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Os Korubo Descobrem Os Brancos Uma Etnog

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Juliana Oliveira Silva

OS KORUBO DESCOBREM OS BRANCOS


Uma etnografia sobre contato na Amazônia ocidental

Rio de Janeiro
2022
Juliana Oliveira Silva

OS KORUBO DESCOBREM OS BRANCOS


Uma etnografia sobre contato na Amazônia ocidental

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de
doutora em Antropologia Social.

Orientadora: Bruna Franchetto


Co-orientadora: Luisa Belaunde

Rio de Janeiro
2022

2
CIP - Catalogação na Publicação

Oliveira Silva, Juliana


O586k Os Korubo descobrem os brancos: uma etnografia sobre contato na
Amazônia ocidental. / Juliana Oliveira Silva. -- Rio de Janeiro, 2022.
433 f.

Orientadora: Bruna Franchetto.


Coorientadora: Luisa Elvira Belaunde.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional,
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2022.

1. contato. 2. Korubo. 3. brancos. 4. FUNAI. 5.Vale do Javari. I.


Franchetto, Bruna , orient. II.Belaunde, Luisa Elvira, coorient. III. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a),
sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.

3
4
Aos vakwëvo

À Bruno Pereira (in memoriam)

5
Imagem 1. Pëxken, o mais velho.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil. 1

1
Todas as imagens reproduzidas nessa tese possuem autorização formal emitida pelo Museu do Índio/FUNAI
a partir de anuência dada pelos Korubo.
6
CONVENÇÕES

A grafia da língua korubo utilizada nessa tese segue a proposta do linguista Sanderson Oliveira
(2009) que fez uma análise da fonética e da fonologia da língua falada pela parcela dos Korubo
contatada pelo órgão indigenista em 1996:2

CONSOANTES labial alveolar álveo- palatal álveo-palatal velar glotal


palatal retroflexa
oclusivas p t k kw k kw
africadas ts tx tx
nasais m n
fricativas v s x x
fricativas laterais l l
laterais l
flepes l
aproximantes w y

VOGAIS anterior central posterior


alta i ë u
média e ë o3
baixa a4

As aspas duplas são utilizadas para indicar os conceitos teóricos, as falas dos interlocutores e
as citações bibliográficas. O modo itálico é utilizado para sinalizar termos da língua korubo e
de outras línguas, títulos de obras, eventos e relatórios técnicos.

No caso de nomes de pessoas korubo, o termo vakwë refere-se a crianças, sem distinção de
gênero (vakwëvo; -vo: coletivizador). No caso de objetos, vakwë remete ao tamanho pequeno.
Quando acrescentado a um nome próprio, este termo sinaliza um homônimo de geração

2
Atualmente, parte dessa proposta está sistematizada no Portal Japiim do Museu do Índio, onde há um
dicionário da língua korubo, construído no âmbito do ProDoclin:
https://japiim.museudoindio.gov.br/index.php. Acesso: 19/12/22.
3
Este fone ocorre quando a vogal é nasalizada.
4
Este fone ocorre quando a vogal é nasalizada.
7
distinta, isto é, mais jovem. Neste caso, abreviarei o termo Vakwë para Va, conforme os
Korubo abreviam: por exemplo, Takvan Vakwë é “Takvan Va”, Pinu Vakwë é “Pinu Va”.
Ao mencionar apenas “Takvan” ou “Pinu”, refiro-me aos homônimos mais velhos destes
homens.

Na Parte 3, os nomes próprios das pessoas foram omitidos nas tabelas sobre remunerações e
aquisições de mercadorias. Nestes casos, foi utilizada a seguinte codificação: lala (homem) +
número + primeiro nome da aldeia no rio Ituí.

Ao me referir a totalidade dos Korubo, utilizo o termo “Korubo” com a inicial maiúscula. Ao
me referir a pessoas específicas ou substantivos, como aldeia, roça, homem, mulher, dentre
outros, utilizo o termo “korubo” com a inicial minúscula: por exemplo, maloca korubo,
mulher korubo, os dois korubo, alguns korubo etc.

Para os termos de parentesco, utilizo a notação inglesa para indicar as posições genealógicas:
F=pai, M=mãe, B=irmão, Z=irmã, S=filho, D=filha, Ch=filhos, e=mais velho, y=mais novo
(eB=irmão mais velho), FF=pai do pai (father’s father), MB=irmão da mãe (mother’s
brother), Ch=filhos (children) etc. Tais notações podem aparecer ou não acrescidas dos
termos na língua korubo, como kuku/piak (MB/ZD). Os diagramas utilizados na tese contêm
as seguintes representações:

mulher casamento

homem viuvez

pessoas falecidas germanidade

8
pessoas do cronotopo A separação
(1996)

pessoas do cronotopo B filhos entre irmãos


(2014)

pessoas do cronotopo C pessoas do cronotopo


(2015) pós-contato

Alguns destes símbolos aparecem destacados nos diagramas da Parte 2, cujo objetivo é
especificado em cada legenda. Da esquerda para a direita, os símbolos indicam a ordem de
nascimento das pessoas (do mais velho ao mais novo).

9
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica (CNPq, Brasil) e ao Legs Lelong en


Anthropologie Sociale, de l’Institut des Sciences Humaines et Sociales du Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS, França) pela bolsa e pelo financiamento de pesquisa de campo
que me possibilitaram reunir os dados analisados na tese.

Aos Korubo residentes no rio Ituí: Wio Wasa, Pipin, Malu, Këtsi Wasa, Txilavo, Sini, Maya
Malaya, Omon, Lalanvet Vëtxolo, Maluxin, Manisvo, Maya Koluvo, Xaun, Tupa Vëna,
Tuxi, Tëkpa Wasa, Waxmën Wasa, Txuxan, Lonkon, Malu Xuma, Wio, Naylo, Luni,
Waxmën, Maluin, Manu, Waxmën Xatan, Omonvo, Waxmën Vakwë, Këtsi Vakwë, Këtsi
Wisu, Tsele Tananeloanpikit, Tuxi, Tose, Lonlon, Luni, Kolotxia, Malu, Muna, Nuatvo
Vakwë, Nanë, Manis, Nuatvo, Wio, Maya, Mamoka, Puki, Siankit, Patsinlut, Kontxo
Tinkeitvo, Kunu, Txitxopi Vakwë, Txixpa Lamon, Pinu Vakwë, Malevo, Tsamavo Kuinin,
Tamu Lala, Empule Bruno, Paxtu Vakwë, Tëpi, Visa Vakwë, Wanka Vakwë, Kanikit, Vali,
Valitsika, Vunpa, Seatvo Siankit, Takvan Vakwë, Pinu, Txitxopi, Lëyu, Kanxi
Kaxëmëanpikit, Makwëx Vakwë, Xikxuvo Vakwë, Pëkwin, Xamalekit Txain, Visa (in
memoriam), Tsamavo Vakwë, Mëlanvo, Takvan Mavën, Pëxken, Kwëlonvo, Antontema,
Tumi Muxavo, Makwële, Mayuvekit, Ayax Punu, Ixovo, Wanka, Xuxu Luasivo e Xikxuvo.

À União dos Povos do Vale do Javari, exemplo de resiliência e diplomacia: Paulo Marubo,
Varney Thoda Kanamari, Beto Marubo e Eliesio Marubo. À Fundação Nacional do Índio: a
Bruno Pereira (in memoriam) e Clarisse Jabur por terem viabilizado a minha autorização para
ingresso em terra indígena; a Eumar Vasques, Waldecy Jaste, Jose Rocha, Vitor Roger,
Antônio Saldanha, Gustavo Sena, Iltercley Rodrigues, Danielle Brasileiro, Mislene Mendes
e, sobretudo, a minha amiga Idnilda Obando e sua família pelo apoio em campo e pela
companhia em Tabatinga/AM. À Secretaria Especial de Saúde Indígena, especialmente às
equipes de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena Vale do Javari que estiveram comigo
em campo: Patrícia Oliveira, Lucivan Reis, Ledenilce Almeida, Elmar Pontes, Antonio Silva,
Leonardo Melo e Robervan Salinas.

10
Ao parceiros do Centro de Trabalho Indigenista, sempre dispostos a compartilhar materiais
e conhecimentos com quem chega para trabalhar na região, especialmente Hilton
Nascimento, Janekely D’Ávila, Thiago Arruda e Helena Ladeira. Aos companheiros da
Universidade Nacional da Colômbia (Sede Amazônia em Letícia) que me viabilizaram o
acesso a uma excelente infraestrutura para escrever parte da tese: Edgar Bolívar, Juan Alvaro
Echeverri, Dany Mahecha e, sobretudo, ao meu amigo Gabriel Vargas.

À Beatriz Matos pelas articulações iniciais com o órgão indigenista e pela colaboração no
âmbito do ProDocult do Museu do Índio/RJ. Ao Sanderson Oliveira pelos inúmeros
esclarecimentos e pelas trocas de conhecimento sobre a língua korubo. Ao Walter Coutinho
pela contribuição ao Vale do Javari junto ao Ministério Público Federal. Ao Fabrício Amorim
por disponibilizar materiais documentais sobre os Korubo. Ao Observatório dos Direitos
Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato pela elaboração do mapa da
Terra Indígena Vale do Javari em Anexo 1.

À Cecília McCallum, Dominique Gallois, Philippe Erikson, Miguel Aparicio, Carlos Fausto
e Danilo Ramos por aceitarem participar da banca examinadora e compartilharem preciosos
comentários. Ao artista e amigo William Mattos que desenhou os croquis das aldeias korubo,
na Parte 2. Ao Serviço de Referências Documentais do Museu do Índio por emitir termo de
autorização para a reprodução de documentos do acervo, especificamente as fotos dos Korubo
produzidas por Paulo Mumia em atividades do ProDoclin, coordenado pelo linguista
Sanderson Oliveira.

O campo não teria sido possível sem a formação antropológica que recebi no Programa de
Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Às minhas orientadoras:
Bruna Franchetto e Luisa Belaunde. À equipe da Biblioteca Francisca Keller: Dulce Carvalho,
Fernando Lima, Adriana Ornellas e Márcio Miranda. Aos professores: John Commerford,
Carlos Fausto, Moacir Palmeira, Els Lagrou, Olívia Cunha, Edmundo Pereira, Adriana
Vianna, Maria Elvira Benitez, Luiz Fernando Duarte e, especialmente, Federico Neiburg que
foi o meu orientador durante o curso de mestrado.

Aos colegas e amigos que fiz no Museu Nacional: Arthur Imbassahy, Aymara Escobar, Safira
Reink, Danielle Peralta, Luana Batista, Clara Brandão, Lucas Odilon, Vinicius Dino, Uliana

11
Esteves, Luana Almeida, Lucas Freire, Marcela Rabello, Morena Freitas, Antonia Gabriela de
Araújo, Breno Anselmo, Dennis Novaes, Fernando Freitas, Jefferson Scabio, Jorge Luan
Teixeira, Julián Riquelme, Lorena Mochel, Lucas Marques, Marlise Rosa, Maria Luisa Lucas,
Natalia Carvalhosa, Raúl Alejandro Montenegro, Renata Lacerda, Rosa Ribas Vieira, Victor
Castillo de Macedo, Bruno Basto, Caio Maia, Filipe Juliano, Marcela Andrade, Igor
Rolemberg, Luis Felipe Torres, Oswaldo Zampiroli, Rafael Moreira, Rafael Andrade, Telma
Bemerguy, Willian da Conceição, Cristiane Julião, Enoc Santi, Gustavo Fialho, Helena
Assunção, Lucas Bártolo, Luna Mendes, Marcelo Moura, Mateus Marcílio, Nahuel Blázquez,
Nathan Virgílio, Noshua Amoras, Paulo Büll, Pedro Portella, Sandra Benites, Fracineia
Fontes, Ximena Rojas, Leonardo Nascimento e Maria Aline Sabino.

Aos amigos que conheci na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru: Hermísia Pedrosa, Marta
Lopes, Tadeu Macedo e Nilvânia Amorim. Aos amigos-irmãos que fiz em andanças entre o
Maranhão, Rio de Janeiro, Pará e Amazonas: Arleth Borges, Calliandra Ramos, Lays Branco,
Damilles Ribeiro, Frank Figueira, Fabiano Jucá, Anderson Lucas Pereira, Mayco Chaves,
Renato Guimarães, Daniel Ferreira, Carol Tucuju, Jessie Jen, Alain Kaly, Augusto César de
Alencar, Everton Amorim, Varin Mema, João Alípio, Pedro Gama, Francesca Repetto,
Graziela e a família Telles.

À minha família: Edson Silva, Olívia Oliveira e Isabella Oliveira. Ao meu companheiro, Luiz
Costa.

12
Se os brancos não tivessem entrado em nossa floresta quando eu era
Davi Kopenawa em A queda do céu criança, com certeza eu teria me tornado um guerreiro e, tomado
pela raiva, teria flechado outros Yanomami por vingança. Cheguei
a pensar nisso. Mas nunca matei ninguém. Sempre contive meus
maus pensamentos acima de mim e fiquei quieto, lembrando-me dos
brancos.

[...]

Hoje, os brancos acham que deveríamos imitá-los em tudo. Mas não


é o que queremos. Eu aprendi a conhecer seus costumes desde a minha
infância e falo um pouco a sua língua. Mas não quero de modo
algum ser um deles. A meu ver, só poderemos nos tornar brancos no
dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami. Sei
também que se formos viver em suas cidades, seremos infelizes. Então,
eles acabarão com a floresta e nunca mais deixarão nenhum lugar
onde possamos viver longe deles.
© William Mattos

13
RESUMO

Silva, J.O. 2022. Os Korubo descobrem os brancos: uma etnografia sobre contato na Amazônia
ocidental. Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro.

Esta tese é uma etnografia sobre os Korubo, pertencentes ao ramo setentrional da família
linguística Pano e habitantes da Terra Indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas,
fronteira entre o Brasil e o Peru. Realizei pesquisa de campo, entre janeiro de 2019 e março
de 2020, nas aldeias korubo localizadas no rio Ituí, interior da terra indígena. A tese divide-
se em três partes. Na Parte 1, abordo alguns encontros entre os Korubo e os brancos.
Primeiro, durante o período de extração da borracha, madeira e petróleo no Vale do Javari e,
posteriormente, os eventos de contato com o órgão indigenista, que configuram um cenário
de pluricontato. Na Parte 2, analiso a articulação entre tempo, espaço na construção de
parentesco após o pluricontato. Os Korubo foram contatados em parcelas ao longo de 1996,
2014, 2015 e 2019 em diferentes sub-bacias hidrográficas no interior da terra indígena. Esse
pluricontato produziu diferenciações temporais entre os Korubo que se mantêm, apesar de
passarem a co-residir no baixo curso do rio Ituí, incidindo na disposição das malocas e casas
unifamiliares, e nos arranjos matrimoniais. Na Parte 3, abordo a relação dos Korubo com as
mercadorias industrializadas e o dinheiro. Investigo a forma como eles pedem, trocam e
compram, os usos que fazem dos objetos e como concebem e calculam o dinheiro. A
incorporação das mercadorias e do dinheiro segue critérios próprios de nomeação e posse
utilizados para elementos do cotidiano das aldeias, definindo e redefinindo concepções, como
“sovinar” e “roubar”. Ao longo da tese, argumento o contato como um processo que
cronotopiza as pessoas, estabelecendo distinções espaço-temporais entre pessoas, relações e
objetos.

Palavras-chave: contato; Korubo; brancos; FUNAI; Vale do Javari.

14
ABSTRACT

Silva, J.O. 2022. Os Korubo descobrem os brancos: uma etnografia sobre contato na Amazônia
ocidental. PhD thesis, Social Anthropology, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro.

This thesis is an ethnography of the Korubo, speakers of a Northern Panoan language and
inhabitants of the Vale do Javari Indigenous Land, in the Brazilian state of Amazonas, near
the border with Peru. I carried out fieldwork between January 2019 and March 2020 in
Korubo villages on the Ituí River, within the confines of the Indigenous Land. The thesis is
divided into three parts. Part 1 focuses on encounters between the Korubo and the whites, at
first during the rubber boom and in the context of timber and oil extraction in the Vale do
Javari, and later, after pluricontact, with the Indigenous Agency. Part 2 analyses the
articulation of time and space in the post-pluricontact construction of kinship. The Korubo
were contacted during 1996, 2014, 2015, and 2019. Pluricontact produced temporal
differentiations among the Korubo which persist despite the fact that they have come to
coreside in the lower Ituí, affecting the layout of longhouses and single-family homes, and in
matrimonial arrangements. Part 3 turns to the relations of the Korubo with industrialized
goods and money, investigating how they beg for, exchange and buy these goods, as well as
the uses to which they are put and how they calculate monetary value. The incorporation of
goods and money abides by criteria of naming and possession which are used for day-to-day
elements of the village, thereby coming to redefine understanding of “miserliness” and
“theft”. Throughout the thesis I argue that contact is a process which chronotopes people,
establishing spatio-temporal distinctions between people, relations, and objects.

Keywords: contact; Korubo; whites; FUNAI; Vale do Javari.

15
LISTA DE SIGLAS

AIS Agente Indígena de Saúde


AJUSOL Ajudância do Alto Solimões
AMAS Associação dos Madeireiros do Alto Solimões
BAPE Base de Proteção Etnoambiental
CBG Companhia Brasileira de Geofísica
CIVAJA Conselho Indígena do Vale do Javari
CGIIRC Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CTI Centro de Trabalho Indigenista
CASAI Casa de Saúde do Índio
CR Coordenação Regional da FUNAI
DACC Diretrizes e Acordos de Conduta e Convivência
DII Departamento de Índios Isolados
DSEI Distrito Sanitário Especial Indígena
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FPE Frente de Proteção Etnoambiental
FAZ Fundo de Artesanato Zo’é
FUNASA Fundação Nacional de Saúde
ISA Instituto Socioambiental
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IEPÉ Instituto de Pesquisa e Formação Indígena
INSS Instituto Nacional do Seguro Social
MN Museu Nacional
MNTB Missão Novas Tribos no Brasil
MI Museu do Índio
OS Ordem de Serviço
PPGAS Programa de Pós-graduação em Antropologia Social

16
PIB Programa Povos Indígenas no Brasil
PIA Posto Indígena de Atração
PIIRC Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato
ProDoclin Projeto de Documentação de Línguas Indígenas
ProDocult Projeto de Cooperação Técnica Internacional de Salvaguarda do Patrimônio
Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e de Recente
Contato na Região Amazônica
PK Programa Korubo
RANI Registro Administrativo de Nascimento de Indígena
RCB Regime de Circulação de Bens
SPI Serviço de Proteção aos Índios
SIL Summer Institut of Linguistics
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena
TI Terra Indígena
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
UBSI Unidade Básica de Saúde Indígena
UNIVAJA União dos Povos Indígenas do Vale do Javari

17
LISTA DE CROQUIS, DIAGRAMAS, IMAGENS E TABELAS

Croqui 1. Grafismos korubo. ........................................................................................... 91


Croqui 2. Aldeia Sentele Maë. ....................................................................................... 223
Croqui 3. Aldeia Tapalaya. ............................................................................................ 226
Croqui 4. Aldeia Tankala Maë. ...................................................................................... 230
Croqui 5. Aldeia Vuku Maë. .......................................................................................... 235

Diagrama 1. Parcela contatada no evento 1. ................................................................... 191


Diagrama 2. Parcelas contatadas nos eventos 2 e 3. ........................................................ 195
Diagrama 3. Parcelas contatadas nos eventos 4 e 5. ........................................................ 199
Diagrama 4. População da Sentele Maë. ........................................................................ 225
Diagrama 5. População da Tapalaya. ............................................................................. 228
Diagrama 6. População da Tankala Maë. ....................................................................... 233
Diagrama 7. População da Vuku Maë. ........................................................................... 237
Diagrama 8. Maya e os caciques. .................................................................................... 252
Diagrama 9. As matxo e os caciques. .............................................................................. 253
Diagrama 10. Terminologia de parentesco (ego masculino). .......................................... 264
Diagrama 11. Terminologia de parentesco (ego feminino). ............................................ 265
Diagrama 12. Casamento 1............................................................................................ 272
Diagrama 13. Casamento 2............................................................................................ 273
Diagrama 14. Casamento 3............................................................................................ 274
Diagrama 15. Casamento 4............................................................................................ 275
Diagrama 16. Casamento 5............................................................................................ 276
Diagrama 17. Casamento 6............................................................................................ 277
Diagrama 18. Casamento 7............................................................................................ 278
Diagrama 19. Casamento 8............................................................................................ 279
Diagrama 20. Casamento 9............................................................................................ 280
Diagrama 21. Casamento 10.......................................................................................... 281
Diagrama 22. Casamento 11.......................................................................................... 282
Diagrama 23. Casamento 12.......................................................................................... 283

Imagem 1. Pëxken, o mais velho. ....................................................................................... 6


Imagem 2. Kanikit e Wanka Vakwë. ................................................................................ 24
Imagem 3. Malevo. .......................................................................................................... 33
Imagem 4. Takvan Vakwë. .............................................................................................. 40
Imagem 5. Base Ituí-Itaquaí. ............................................................................................ 42
Imagem 6. Txitxopi cacique. ............................................................................................ 53

18
Imagem 7. Ornamentação Xiavo. ..................................................................................... 86
Imagem 8. Pintura corporal masculina. ............................................................................ 90
Imagem 9. Xuxu Luasivo. .............................................................................................. 139
Imagem 10. Malu. ......................................................................................................... 160
Imagem 11. Caminhada na floresta. ............................................................................... 178
Imagem 12. Lalanvet. .................................................................................................... 192
Imagem 13. Maluxin e Mayuvekit. ................................................................................ 197
Imagem 14. Pëxken tsusivo. ............................................................................................ 206
Imagem 15. Xikxuvo darasibo e Tumi Muxavo. ............................................................. 206
Imagem 16. Waxmën Wasa cuidando de Maya Koluvo. ................................................ 212
Imagem 17. Maloca korubo. .......................................................................................... 217
Imagem 18. Interior da maloca. ..................................................................................... 218
Imagem 19. Maya. ......................................................................................................... 240
Imagem 20. Cesto feito com folhas txiaxa. ..................................................................... 241
Imagem 21. Lonkon, ao lado de Wio, tecendo piski. ...................................................... 247
Imagem 22. Muna matxo cuidando de criança. .............................................................. 255
Imagem 23. Waxmën matxo tecendo rede de tucum. ..................................................... 256
Imagem 24. Lalanvet matxo tecendo braçadeira witsun................................................... 256
Imagem 25. O cipó tatxik e o ralador. ............................................................................ 258
Imagem 26. Novelo de tucum em cesto kakan. .............................................................. 316
Imagem 27. Armazenamento da zarabatana. .................................................................. 345
Imagem 28. Ayax Punu limpando zarabatana. ............................................................... 346
Imagem 29. Visa, Pëxken e crianças recebendo visitas na beira. ...................................... 349
Imagem 30. Varal de roupas. ......................................................................................... 353
Imagem 31. Xikxuvo vestido como FUNAI. .................................................................. 358
Imagem 32. Seatvo e Vunpa. ......................................................................................... 359
Imagem 33. Nanë. ......................................................................................................... 359
Imagem 34. Tamu, Tumi e Tupa brincando no igarapé. ............................................... 362
Imagem 35. Macaxeira. .................................................................................................. 366
Imagem 36. Seatvo mostra imagens para Kontxo, Tamu e Tupa. ................................... 392
Imagem 37. Xikxuvo coletando frutos com peconha. ..................................................... 403

Tabela 1. A FUNAI dos Korubo ...................................................................................... 45


Tabela 2. Classificações do ramo setentrional da família linguística Pano. ........................ 79
Tabela 3. Dualismos Pano. .............................................................................................. 87
Tabela 4. Eventos e marcos de contato. .......................................................................... 121
Tabela 5. Intermediários no pluricontato. ...................................................................... 149
Tabela 6. Cenas do encontro Matis-Korubo. ................................................................. 153
Tabela 7. Eventos de contato entre a FUNAI e os Korubo. ............................................ 174
Tabela 8. Grupos e cronotopos. ..................................................................................... 187
19
Tabela 9. Diferenciações cronotópicas............................................................................ 204
Tabela 10. Doações da FUNAI para os Korubo. ............................................................ 310
Tabela 11. Trocas entre a FUNAI e os Korubo. ............................................................. 311
Tabela 12. O valor das cédulas. ...................................................................................... 327
Tabela 13. Remunerações. ............................................................................................. 333
Tabela 14. Aquisição de espingardas e motores. ............................................................. 343

20
SUMÁRIO

PREÂMBULO 23
INTRODUÇÃO 27
Uma oficina no Museu do Índio 28
A FUNAI dos Korubo 41
O trabalho de campo 45
Os Korubo 64
A tese 70

PARTE 1. Os Korubo encontram os brancos 73

Capítulo 1.
LATKUTE 77
1.1. Um etnônimo Pano setentrional 78
1.2. O nós e os outros 82
1.3. Explorando o Javari 94
1.4. Da fuga a busca 115

Capítulo 2.
PLURICONTATO 121
2.1. Evento 1 123
2.2. Eventos 2 e 3 131
2.3. Eventos 4 e 5 133
2.4. Evento 6 143
2.5. Terceiros incluídos 146
2.6. Conclusão – Parte 1 165

PARTE 2. Parentesco multicrono 168

Capítulo 3.
TEMPO E ESPAÇO 173
3.1. Cronotopos 177
3.2. Cisões e fusões 187
3.3. Velhos e novos 200
3.4. Casas e roças 217

21
Capítulo 4.
APARENTAR-SE 238
4.1. Maya 240
4.2. Arranjos cronotópicos 262
4.3. Rearranjos cronotópicos 283
4.4. Soluções matrimoniais 287
4.5. Conclusão – Parte 2 290

PARTE 3. As coisas dos brancos 294

Capítulo 5.
DA GUERRA A TROCA 299
5.1. O Regime de Circulação de Bens 305
5.2. Teorias do índio e do branco 318
5.3. Da troca ao trabalho 329

Capítulo 6.
AS COISAS 335
6.1. Demandar e comprar 337
6.2. Comer 364
6.3. Nomear e possuir 377
6.4. Sovinar e roubar 383
6.5. Conclusão – Parte 3 389

CONCLUSÃO 394
BIBLIOGRAFIA 404
ANEXOS 430
1. Mapa da Terra Indígena Vale do Javari 430
2. Autorização de Ingresso em Terra Indígena 431
3. Cronotopos 433

22
PREÂMBULO

19 de maio de 2019, aldeia Tankala Maë, rio Ituí, Terra Indígena Vale do Javari, Amazonas:
Acordei, mas permaneci deitada em minha rede, refletindo sobre as atividades a serem
realizadas naquele dia. Escutei o som de um motor peque-peque se afastando da aldeia. Um
grupo de homens saiu para caçar. Na maloca, as mulheres produziam artefatos, tipoias e redes
com a fibra de tucum. Naquele dia, excepcionalmente, elas não quiseram estudar português
ou matemática. Estavam concentradas na produção artefatual. Alguns homens korubo, que
trabalharam no “acampamento de contato” no rio Coari, desceriam o rio Ituí em direção à
Tabatinga, Amazonas, onde os artefatos seriam vendidos. Os Korubo aproveitariam a
logística. O cotidiano da aldeia estava sob a influência de um evento específico: a “expedição
de contato” realizada pela Fundação Nacional do Índio, em março daquele ano, com o
objetivo de contatar outros 34 korubo no rio Coari. A noite, todos da aldeia se reuniram em
uma das casas para a narração de histórias sobre os Korubo do rio Coari. Há alguns meses
antes, quando conheci dois korubo em uma das maiores capitais brasileiras, eu não fazia ideia
do quanto esse novo evento de contato no rio Coari influenciaria o cotidiano das aldeias
korubo no rio Ituí.

22 de novembro de 2018, Museu do Índio, Rio de Janeiro: Naquela manhã, ao chegar no


Museu do Índio para participar de uma oficina de dicionários de línguas indígenas, fui
surpreendida com a presença de dois homens: Malevo e Takvan Vakwë. Aquela foi a primeira
vez que os conheci, embora eu já soubesse que possivelmente faria uma etnografia sobre os
Korubo. Os dois korubo, acompanhados por um linguista, participavam daquela atividade
no âmbito de um projeto que visava a elaboração de um dicionário da língua korubo. Ao
apresentarem o projeto aos participantes da oficina no início daquela manhã, os korubo
destacaram: eles queriam aprender a falar português, ler e escrever, participar de outros
“projetos” e acessar “dinheiro” para adquirir mercadorias industrializadas.

23
Imagem 2. Kanikit e Wanka Vakwë.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

O que vem à nossa mente quando pensamos em uma etnografia com um povo considerado
pelo Estado brasileiro como de “recente contato”? No caso korubo, a categoria “recente
contato” é acionada pela política indigenista para amalgamar parcelas de uma população
contatadas em diferentes períodos e lugares entre os anos 1990 e 2000. No cotidiano das
aldeias korubo no rio Ituí, verifiquei que isso se evidencia na convivência entre pessoas que
não necessariamente se consideram parentes e possuem diferentes níveis de acesso a elementos
do mundo não-indígena: à língua portuguesa, ao conhecimento numérico, ao dinheiro, às
mercadorias e alimentos industrializados.

Com os múltiplos eventos de contato ocorridos ao longo dos anos, que formam o que
chamarei de “pluricontato”, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) reuniu no baixo curso
do rio Ituí não “grupos” ou “subgrupos” korubo – conceitos caros à literatura etnológica –, e
sim cronotopos (em grego, –cronos: tempo; –topos: lugar): parcelas contatadas em distintos
lugares e momentos, gerando diferentes formas de se relacionar entre eles e com os não-
indígenas. Cronotopo diz respeito à uma análise do tempo e do espaço como aspectos

24
relacionais, uma característica do pluricontato, que se projeta na configuração atual das
aldeias. 5

Ao longo da minha pesquisa de campo, os chamados “Korubo de recente contato” estavam


em um processo de contato. Em 2019, 93 korubo – contatados em 1996, 2014 e 2015 em
locais e eventos distintos – viviam juntos em quatro aldeias no baixo curso do rio Ituí.
Naquele ano, esses três cronotopos vivenciavam um novo evento de contato com outros 34
korubo, localizados em outro rio no interior da terra indígena: o rio Coari.

Os Korubo do rio Ituí 6 falavam o tempo inteiro sobre assuntos, como “contato”, “escola” e
“dinheiro”, em seu processo de desvendar os “brancos” (latkute). 7 Isso incidiu diretamente
no meu tema de pesquisa. Se, inicialmente, interessava-me analisar a criação das crianças e o
fazer corporal na construção da pessoa korubo, o contexto que encontrei ao chegar em campo
e, posteriormente, a pandemia do novo coronavírus conduziram essa pesquisa para outro
tema: o “contato”. Nesta tese, o conceito de contato não diz respeito apenas às expedições
realizadas pelo órgão indigenista, mas às relações interétnicas que antecedem e sucedem a
intervenção estatal. Nesses termos, o conceito de “contato” envolve o que chamaríamos de
“pré” e “pós” contato, ou melhor, abriga o caráter múltiplo dos eventos de contato que
constroem sobreposições temporais que co-ocorrem em um mesmo espaço.

O conceito de contato acionado aqui refere-se a um processo que se desenrola todos os dias.
Os processos de contato, historicamente, adquiriram diversos formatos. Nem sempre foram
encontros face a face entre ameríndios e brancos. O que chamaríamos de “contatos indiretos”
tiveram efeitos marcantes sobre os povos ameríndios. Nesses termos, a categoria “contato” e
suas subsidiárias, como “isolamento”, têm caráter cíclico (ver Roller 2021). Processos que se
caracterizam por períodos de expansão e retração em que os ameríndios lançam mão de
diferentes estratégias ao se aproximarem ou se distanciarem dos brancos.

5
Sobre o conceito de “cronotopo”, conferir o capítulo 3.
6
A referência aos Korubo “dos rios Ituí e Coari” não corresponde a autodesignações. Trata-se de um recurso
narrativo acionado ao longo da tese.
7
Ao longo da tese, o termo “brancos” se refere aos não-indígenas enquanto categoria etnopolítica, conforme a
tradução para o português dada pelos Korubo aos termos latkute e nawa.
25
No caso dos Korubo, o ano de 2019 foi marcado por uma atenção central do órgão
indigenista e das parcelas korubo localizadas no rio Ituí em relação ao evento de contato com
uma nova parcela no rio Coari. Os agentes estatais da FUNAI e da Secretaria Especial de
Saúde Indígena (SESAI) falavam sobre a “expedição” e o “acampamento de contato”
instalado no rio Coari.8 Ao mesmo tempo, os Korubo do rio Ituí falavam intensamente sobre
os seus “parentes”, outrora “isolados”, que tornaram-se “recém-contatados” naquele ano. Os
Korubo do rio Ituí foram intermediários nas relações entre os recém-contatados no rio Coari
e os agentes estatais.

Dessa maneira, o evento de contato entre a FUNAI e outra parcela korubo no rio Coari,
realizado em março de 2019, foi viabilizado a partir da atuação das parcelas korubo
contatadas em 1996, 2014 e 2015. Essa intensa participação dos Korubo do rio Ituí no evento
de contato com os Korubo do rio Coari promoveu modificações diversas em suas formas de
organização. Esta tese analisa as relações entre os distintos cronotopos, atravessadas por um
novo evento de contato, como produtoras de modificações nos modos de habitar dos Korubo
residentes no rio Ituí.

O que significa dizer que “os Korubo descobrem os brancos”? Não se trata de inverter o
sentido de descoberta utilizado pelos brancos em relação aos ameríndios. Para os Korubo, o
sentido de descoberta é outro. Descobrir os brancos envolve deixar de lado o desejo de matar,
a raiva, e se interessar por novos desejos, novas convivências e tecnologias que constroem
novos corpos a partir de novos alimentos, hábitos e conhecimentos. Os cronotopos mostram
que o fazer novos corpos, pessoas e desejos trata-se de um processo em que novas gerações de
pessoas korubo passam, cada vez mais, a descobrir os brancos.

8
Sobre “expedição de contato” e “acampamento de contato”, conferir o capítulo 2.
26
INTRODUÇÃO

Ao longo do curso de doutorado no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do


Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS-MN/UFRJ), prossegui
com as experiências de incursão pela Amazônia brasileira iniciadas durante a minha pesquisa
de mestrado. Eu nutria a intenção de trabalhar com um dos povos ameríndios do estado do
Maranhão, local onde nasci e cresci. Em julho de 2018, realizei então uma viagem ao
Maranhão durante um mês para efetuar esses diálogos e averiguar a possibilidade de realização
de uma etnografia com os Tenetehara-Guajajara, da família linguística Tupi-Guarani.

Quando voltei ao Rio de Janeiro em agosto de 2018, a chefia da Coordenação-Geral de Índios


Isolados e de Recente Contato (CGIIRC/FUNAI) solicitou ao PPGAS-MN/UFRJ a atuação
de um doutorando para produzir a primeira tese de doutorado sobre os Korubo de recente
contato da Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no estado do Amazonas. Devido ao longo e
conflituoso histórico de contatos esporádicos entre os Korubo e os brancos, marcado por
mortes, até então nenhum antropólogo residira com eles. O órgão indigenista argumentou
que carecia de informações qualificadas, de caráter antropológico, para subsidiar a efetivação
da política indigenista junto aos Korubo.

Durante alguns dias, refleti sobre a viagem que fizera ao Maranhão e a proposta que recebera
de ir para o estado do Amazonas fazer a primeira etnografia sobre os Korubo do Vale do
Javari. Durante o Seminário Internacional Povos Indígenas em Isolamento Voluntário:
repensando as abordagens antropológicas, realizado nos dias 24 e 25 de setembro de 2018, no
Campus Praia Vermelha/UFRJ, me comuniquei diretamente com pessoas da CGIIRC,
participantes daquele seminário.

Após os diálogos profícuos estabelecidos durante o seminário, houve a eleição de Jair Messias
Bolsonaro à presidência do Brasil e subsequentes ataques às terras indígenas, sobretudo, em
regiões como o Maranhão. A TI Araribóia/MA já havia sido alvo de uma série de queimadas
por parte de madeireiros e fazendeiros. Juntos, esses fatores foram decisivos para a minha
tomada de decisão: eu iria para o Vale do Javari, pois conforme a proposta inicial, no

27
Amazonas eu teria o apoio do órgão indigenista para realizar a pesquisa de campo com os
Korubo.

Para uma primeira aproximação, a CGIIRC propôs que, inicialmente, eu realizasse uma
atividade com os Korubo do rio Ituí na Base de Proteção Etnoambiental (BAPE), localizada
na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, na TI Vale do Javari/AM. O tema da atividade proposto
pela CGIIRC eram as matérias-primas dos objetos industrializados que os Korubo passaram
a acessar através das relações contínuas com os brancos. A CGIIRC emitiria uma Ordem de
Serviço (OS) para que eu pudesse realizar essa atividade.

Após realizá-la, de acordo com a interação estabelecida entre os Korubo e eu, poderíamos
então registrar em audiovisual uma reunião de anuência dos Korubo para a realização da
pesquisa antropológica. A partir disso, o procedimento para solicitação de ingresso em terra
indígena seria iniciado com o fornecimento dos documentos necessários, incluindo o registro
da anuência. No entanto, eu não precisei esperar o início de 2019 para conhecer os Korubo,
pois dois deles foram ao Rio de Janeiro em novembro de 2018.

Uma oficina no Museu do Índio

Do dia 21 a 23 de novembro de 2018, houve uma oficina de dicionários de línguas indígenas


no Museu do Índio (MI), no Rio de Janeiro/RJ, conforme mencionei no preâmbulo. Essa
oficina era uma das atividades desenvolvidas no âmbito do Projeto de Documentação de
Línguas Indígenas (ProDoclin): uma parceria entre o MI e a Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Eu não pude participar do primeiro dia
da oficina. No entanto, no segundo dia, ao chegar no museu, fui surpreendida com a presença
de dois homens korubo, participantes da atividade, acompanhados pelo linguista Sanderson
Oliveira: o primeiro pesquisador a atuar junto aos Korubo de recente contato, sobretudo,
com a primeira parcela contatada em 1996 (ver Oliveira 2009).

Eu já recebera a proposta de fazer a primeira etnografia sobre os Korubo. No entanto, ao


comparecer naquela oficina, jamais esperei encontrá-los ali. Eu acreditava que levaria alguns
meses para que isso acontecesse. Até então, contentava-me com a pequena bibliografia e os
28
registros documentais e audiovisuais produzidos sobre eles. Naquela manhã, as pessoas
chegavam ao MI para iniciar as atividades do segundo dia da oficina. No momento em que
Takvan Vakwë e Malevo entraram e se sentaram em cadeiras no fundo da sala, eu soube que
eles eram Korubo. As fisionomias eram marcantes e, ao mesmo tempo, recordei dos
documentários que assistira. 9

Takvan Va e Malevo foram eleitos como bolsistas do ProDoclin para auxiliar na construção
do dicionário korubo junto ao referido linguista. Isso aconteceu porque os dois possuíam um
conhecimento considerável sobre o mundo dos brancos. Essa diferenciação foi construída
processualmente na relação com as instituições estatais. As atividades de letramento junto aos
Korubo foram iniciadas no início dos anos 2000 através de uma parceria entre o Centro de
Trabalho Indigenista (CTI) e a Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Vale do Javari.
Inicialmente, Malevo e Takvan Va eram deslocados da única aldeia korubo no rio Ituí para
a BAPE, localizada na confluência dos rios Ituí e Itaquaí (ver Mapa da TI Vale do Javari em
Anexo 1).

A partir de 2007, o linguista Sanderson Oliveira, vinculado à FPE Vale do Javari, passou a
atuar junto aos Korubo. Existia então não apenas uma, mas duas aldeias korubo: Roça e
Mário Brasil, esta última viria a ser chamada de Tapalaya. Naquele momento, devido às
atividades desenvolvidas na parceria institucional, Malevo e Takvan Va possuíam certo
conhecimento da língua portuguesa e dos números, formulavam frases e sabiam da existência
de dinheiro. Com a atuação de Oliveira, além de Malevo e Takvan Va, outros dois korubo
da aldeia Mário Brasil começaram a participar das atividades de letramento. Inicialmente, o
trabalho do linguista era acompanhado por intermediários do povo Matis, também da família
linguística Pano. Com o aprendizado da língua matis e, posteriormente, da língua korubo, o
linguista passou a trabalhar com os Korubo sem a intermediação dos Matis.

Com o passar do tempo, a diferença entre os conhecimentos de Malevo e Takvan Va começou


a aparecer: o segundo demonstrava uma facilidade de aprendizado maior sobre língua
portuguesa e matemática em relação ao primeiro. Takvan Va passava períodos na Casa de

9
Söderström, E. (2002). The Hidden Tribes of The Amazon. França: Striana-France Films, DVD (55’); Solis et.
al. (2013). Korubo: uma etnia entre fronteiras. Noctua. (59’).
29
Saúde do Índio (CASAI/SESAI) em Manaus/AM com uma de suas filhas, chamada
Wanxunu. Nessas estadias, ele tinha a oportunidade de permanecer em maior contato com a
língua portuguesa. Não por acaso, em 2019-20, Takvan Va era o único korubo que sabia ler
com relativa facilidade.

Em 2010, as atividades de letramento foram estendidas a outros korubo, inclusive, mulheres.


Em 2011, a FUNAI construiu uma Casa de Intercâmbio que viabilizou a continuidade das
atividades de letramento pelo linguista nas proximidades das aldeias korubo. Essa casa passou
a ser chamada pelos Korubo de lalawate xuvu (–lalaway: escrever; xuvu: maloca), termo
traduzido por eles como “escola”. Entre 2012 e 2015, atividades pontuais de letramento
foram executadas com os Korubo.

Note-se que, pelo menos, desde 2016, os Korubo demandavam maior regularidade e
periodicidade nas atividades de letramento para evitar “esquecerem” o conteúdo estudado.
Este longo processo de atividades de letramento consolidou diferenciações internas aos
Korubo acerca dos níveis de conhecimento sobre o mundo dos brancos. Disto decorreu a
eleição de Malevo e Takvan Va para serem os bolsistas do ProDoclin. Por isso, eles estavam
na oficina no MI, Rio de Janeiro/RJ.

Na manhã daquele dia, 22 de novembro de 2018, o projeto korubo foi o primeiro a ser
apresentado. Malevo falou em língua korubo e foi traduzido para o português pelo linguista.
Takvan Va falou em português. Conforme destacaram, o projeto estava na fase inicial da
elaboração de um dicionário em língua korubo com cerca de 600 verbetes. O trabalho de
campo fora iniciado com o método xbox, fichas de papel, e agora estavam em busca de um
software adequado. Todavia, havia desafios: embora os Korubo contassem com três aparelhos
celulares, as aldeias korubo no rio Ituí não possuíam energia elétrica. Isso significava que o
método utilizado por outros linguistas, como a comunicação via WathsApp, era inviável ao
projeto korubo.

Outro aspecto destacado na apresentação do projeto foi a demanda dos Korubo em torno da
escolarização e do acesso a uma versão impressa do dicionário. Conforme veremos, o interesse
dos Korubo em aprender a ler, escrever e calcular foi central na minha entrada em campo e
na relação que estabeleci com eles ao longo da pesquisa. Na apresentação do projeto, Takvan

30
Va reforçou aspectos mencionados pelo linguista, ou seja, a importância do dicionário korubo
e a demanda dos Korubo por implementação de escolas nas aldeias. Destacou ainda a
necessidade que sentiam de participar de “projetos” em torno de sua língua para acessarem
“dinheiro” e suprirem as necessidades que o órgão indigenista não conseguia suprir. Para
exemplificar as necessidades mencionadas, Takvan Va citou algumas mercadorias, como
terçados e panelas. Esclareceu que possuía três filhas. Uma delas (a Wanxunu), por ser
portadora de necessidades especiais, não morava na terra indígena, e sim na CASAI em
Manaus/AM.

O intervalo para o almoço foi o momento em que pude me aproximar deles. Até então, o
linguista já sabia que eu era uma antropóloga interessada em trabalhar com os Korubo.
Enquanto ele resolvia alguns assuntos relacionados ao ProDoclin junto aos funcionários do
MI, acompanhei os korubo. Malevo e Takvan Va me cumprimentaram com um aperto de
mão e um sorriso amistoso. O pátio do MI tornara-se vazio. Os participantes da oficina
saíram para almoçar nas proximidades. Os korubo aproveitaram aquele momento e o fato de
eu ter me aproximado deles para matar algumas curiosidades em relação à cidade.

A curiosidade inicial era em torno do Cristo Redentor que víamos dali do pátio do museu,
especificamente, sobre o que ele estava apoiado e se caía ou não. Ficaram surpresos ao saber
que as pessoas pagavam para subir até lá. Naquele instante, um helicóptero sobrevoou o
monumento, aguçando a curiosidade dos dois, que queriam saber quem era: a polícia?
turistas? Malevo e Takvan Va fizeram questão de destacar: era a primeira vez que estavam no
Rio de Janeiro, mas já conheciam Manaus. Toda a vivência deles no Rio de Janeiro foi
pensada em relação à Manaus e às suas aldeias.

Fomos almoçar acompanhados pelo linguista e por Paulo Mumia, então fotógrafo contratado
pelo MI, que já conhecia os Korubo de uma estadia anterior em suas aldeias no rio Ituí para
registros audiovisuais do ProDoclin. Oliveira disse aos korubo a minha intenção de trabalhar
com eles nas aldeias. Eles balançaram a cabeça positivamente, sorrindo. Para uma primeira
aproximação, estava fácil demais para ser verdade, imaginei. Após o almoço, o fotógrafo e eu
acompanhamos os korubo ao banco para a retirada das senhas de atendimento. Eles

31
precisavam realizar o saque do pagamento das diárias disponibilizadas pelo projeto. Retiramos
as senhas e retornamos ao MI.

O turno da tarde da oficina estava prestes a iniciar, mas houve tempo suficiente para Takvan
Va retirar de sua bolsa, feita com fibra de tucum (Bactris setosa), decorada com listras
alaranjadas, pintadas com urucum (Bixa orellana), um punhado de pulseiras e braçadeiras
(witsun) para vender aos participantes da oficina. Quando a oficina recomeçou, o fotógrafo e
eu acompanhamos os korubo de volta ao banco. Ao chegar no caixa, a funcionária verificou
que os documentos de ambos foram retirados em Tabatinga/AM e pediu que aguardássemos
um tempo para conferir a validade no sistema. Aguardamos o retorno dos documentos, pois
Takvan Va só lembrava a senha da sua conta se olhasse para os números no seu registro de
identidade. Enquanto aguardávamos, Malevo me perguntou se podia sentar-se em uma das
cadeiras de espera. Nós três nos sentamos para aguardar.

Após a verificação dos documentos, retornamos ao caixa e fomos informados que sem o cartão
era possível sacar apenas uma quantia determinada. Takvan Va realizou o saque de acordo
com o limite estipulado. Malevo tentou sacar sem o cartão, mas hesitou no que parecia ser
uma dificuldade para lembrar a senha de sua conta. Descobrimos então que, ao abrir a conta
bancária em Tabatinga/AM, o gerente do banco não cadastrara uma senha numérica para
Malevo. Uma operação que só era possível ser realizada na agência de abertura da conta.
Tínhamos então uma questão: apenas um dos korubo conseguira sacar o dinheiro das diárias
fornecidas pelo projeto.

Diante do impasse, o fotógrafo sugeriu que ambos utilizassem as diárias de Takvan Va até
conseguirmos encontrar uma solução para o problema. Eles conversaram um momento e, ao
final da conversa, Takvan Va nos disse que a sugestão do fotógrafo era inviável porque “ele
não vai devolver”. Malevo é um dos pais de Wio, a primeira esposa de Takvan Va. 10 Portanto,
o sogro não era obrigado a devolver o dinheiro ao genro. Saímos do banco apenas com o
dinheiro de Takvan Va. No caminho para o MI, Malevo parou um instante em uma banca

10
Wio é filha de Waxmën com Lëyu e Malevo. Ao longo de toda a pesquisa de campo, Wio tratava ambos
como “pais”. Apesar disso, no Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI/FUNAI) consta que
Lëyu é o pai de Wio. Malevo e Wio destacavam que sua relação é de pai-filha, pois Waxmën enquanto estava
grávida se relacionou também com Malevo.
32
de relógios para observar. Era perceptível a tristeza dele por não ter conseguido sacar o
dinheiro que havia em sua conta bancária. No dia seguinte, o fotógrafo retornaria ao banco
para falar com o gerente e tentaria mais uma vez solucionar o problema.

Imagem 3. Malevo.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Durante alguns minutos, permanecemos sentados nos bancos do pátio do MI. Malevo
observava os passarinhos e me disse que, em korubo, se chamavam “wiktxun”. Falou-me que
depois deveríamos ir à praia. Os korubo ainda não conheciam o mar. No final daquela tarde,
após o término das atividades, outros ameríndios se aproximaram dos korubo para conversar.
Alguns falantes de línguas Pano, como Poyanawa e Marubo, exploravam as semelhanças e
diferenças entre as suas línguas e a língua korubo.

Ao sairmos do MI, os korubo ficaram entretidos com os macacos que perambulavam pela
fiação elétrica dos postes de iluminação pública. Os dois, imediatamente, pegaram os seus
telefones celulares para filmá-los e repetiam o nome daquela espécie em korubo: “pixtan”.
Aquela foi a primeira de muitas outras observações que os korubo fizeram dos aspectos
semelhantes entre as suas aldeias no rio Ituí e as cidades.

33
No terceiro e último dia da oficina, 23 de novembro de 2018, os korubo já estavam no MI
quando cheguei. Ambos me cumprimentaram à distância com um breve sorriso. A aparente
intimidade alcançada no dia anterior fora praticamente zerada. Era necessário recomeçar a
interação. Eu começara a perceber que a postura de desconfiança e a seriedade dos Korubo
oculta um jeito de ser brincalhão e afetuoso que se revela aos poucos no convívio diário. Uma
característica que não se revela com facilidade aos brancos.

Naquela manhã, as discussões da oficina tematizaram a viabilidade do wikicionário para a


efetivação dos dicionários das línguas indígenas. Não demorou muito para que os korubo,
aparentemente entediados, saíssem da sala e se sentassem nos bancos no pátio do MI.
Algumas pessoas foram até lá conversar com eles, mas as conversas não se prolongavam. Eles
estavam entretidos com os seus celulares, ouvindo músicas e assistindo vídeos.

Após um tempo, fiz a mesma tentativa e obtive algum êxito. Takvan Va fez um resumo do
cotidiano nas aldeias no rio Ituí. Segundo ele, os homens korubo “trabalham muito”,
acordam de madrugada, por volta das quatro horas, tomam o cipó tatxik (Paullinia), banham
e saem para caçar. As mulheres, por sua vez, acordam por volta das sete horas e permanecem
na aldeia. Ao final do dia, os homens retornam com a caça, preparada e cozida por elas. As
crianças menores “só brincam” e, a partir dos dez anos, começam a “ajudar a mãe”. Ao final,
ele frisou novamente que os Korubo “trabalham muito”, isto é, abrem roças, caçam, pescam
e coletam.

A conversa continuou, pois do mesmo modo que eu estava interessada pelo cotidiano das
aldeias, Takvan Va estava interessado pelo cotidiano citadino. Estávamos sentados lado a lado
e, quando comecei a falar sobre a rotina nas cidades, ele se virou para me olhar. Interessava-
lhe saber como as pessoas acessam mercadorias industrializadas e benefícios através do
dinheiro e o motivo de algumas pessoas terem mais dinheiro do que outras.

Enquanto conversávamos, um homem guarani aproximou-se de nós e sentou-se no gramado.


Ele comentou que na aldeia Maracanã/RJ havia uma pessoa korubo. Takvan Va foi enfático
ao declarar que no Rio de Janeiro os únicos korubo que haviam eram eles dois e que, em
breve, não haveria mais korubo naquela cidade porque eles iriam embora para o Amazonas.
O guarani perguntou ainda se outros indígenas poderiam passar um tempo nas aldeias

34
korubo. Takvan Va retrucou: “não, não pode, só pode quem a gente deixa, e a gente só deixa
professor”, e continuou: “branco não aguenta ficar com a gente”, “branco gosta de internet”.

Em seguida, aproximou-se de nós um funcionário do MI com uma câmera nas mãos.


Visivelmente dirigido à mim, como se eu fosse uma porta-voz, informou que viera à pedido
do então diretor do MI para registrar um relato deles sobre a experiência no Rio de
Janeiro/RJ. Takvan Va e Malevo permaneceram de braços cruzados, sem a menor intenção
de serem filmados. O funcionário persistiu. Inicialmente, perguntou se eu era a antropóloga
que trabalhava com eles. Takvan Va respondeu por mim com um nítido “não”. Após a
negativa, o funcionário questionou se havia alguém, um branco que pudesse responder pelos
korubo. Permaneci calada. Por fim, o funcionário explicou que o diretor do MI era uma
espécie de “cacique”, mas esse argumento não fez com que os korubo mudassem de ideia.

O funcionário lançou mão de outra estratégia: a pesca. Disse que possuía um barco e saía
para pescar com frequência. Para comprovar o que dizia, retirou o celular do bolso e mostrou
aos korubo vídeos e fotos de peixes, mariscos e crustáceos. Os dois se distraíram com as fotos
e os vídeos, mas ao final a resposta era a mesma: não autorizavam a filmagem. Após a tentativa
fracassada de aproximação, passou-se um minuto em silêncio.

Em seguida, Takvan Va retirou de sua bolsa as pulseiras e braçadeiras (witsun) que trouxera
para vender, e disse ao funcionário do MI: “tenho pulseira...”. A meu ver, aquela era uma
chance para a negociação: comprar as pulseiras e, talvez, filmá-los. Contudo, o funcionário
disse a Takvan Va que não compraria. Então, os korubo continuaram dizendo que não seriam
filmados. A insistência do funcionário do MI gerou um clima que, para mim, era
desconfortável. Os korubo, ao contrário, sustentavam a negativa sem esforços.

O linguista então aproximou-se de nós e foi interpelado pelo funcionário. Este pedia que
aquele convencesse os korubo a fazer um pequeno vídeo para o acervo do MI. O linguista
conversou durante alguns minutos com os korubo. Visivelmente, eles contra argumentavam,
gerando um esforço para convencê-los a permitir a filmagem. Os dois só aceitaram ser
filmados com a condição de que o linguista aparecesse na gravação junto com eles. Dessa
forma, o funcionário do MI filmou os três. Primeiro, os korubo falaram, depois o linguista
falou. Enquanto este último falava, Takvan Va pegou o celular e o filmou, realizando uma

35
filmagem dentro da outra. As filmagens e fotografias registradas pelos korubo seriam
compartilhadas com os demais nas aldeias.

Após a filmagem, fomos almoçar. Era visível que o entusiasmo dos korubo no momento de
escolher o cardápio contrastava com a seriedade e, até mesmo, decepção quando precisavam
pagar a conta. Eles começaram a compreender que quanto mais comida houvesse no prato,
mais dinheiro teriam que gastar. Nos momentos de fechar a conta, ambos se aproximavam
de nós, brancos, para confirmar o valor que deveria ser pago, as cédulas a serem entregues e
se haveria troco ou não.

Retornamos ao MI para o turno vespertino daquele terceiro e último dia da oficina. Sentamos
nos bancos do pátio para aguardar o início das atividades. Entre as conversas e brincadeiras,
tornava-se evidente que os korubo possuíam uma crença: os brancos ansiavam enriquecer às
custas deles. Por isso, eles se recusavam a ser gravados e fotografados. Na concepção korubo,
aqueles registros seriam convertidos em dinheiro para os brancos. Malevo exemplificou esse
argumento mostrando um vídeo que assistia repetidas vezes no seu celular. O vídeo mostrava
uma mulher indígena contrária a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do país. Interessado
no vídeo, Malevo o exibia, associando-o ao argumento de que os brancos ganham dinheiro
com a imagem dos indígenas.

O linguista esclareceu o contexto do vídeo e destacou para os korubo que Bolsonaro tornara-
se o presidente deles. Takvan Va balançou a cabeça negativamente, sorrindo, e destacou que
Bolsonaro não era o presidente dele. O diálogo sobre política foi interrompido pela chegada
de um jovem kuikuro, que aproximou-se de Takvan Va falando em português. O korubo o
ignorou. Embora compreendesse, não queria falar em português ou, pelo menos, não queria
falar com outra pessoa que não estivesse em nosso círculo de conversa. Com a sustentação do
silêncio por parte dos korubo, o kuikuro dirigiu-se a mim, perguntou se eu trabalhava com
os korubo. Conforme ocorrera pela manhã com o funcionário do MI, respondi “não”,
enquanto os korubo me fitavam com os olhos.

O guarani, que não obtivera êxito na abordagem aos korubo pela manhã, também se
aproximou. Dessa vez, com um celular nas mãos, direcionado para o linguista tirar uma foto
dele com os korubo. Takvan Va falou em língua korubo, mas o corpo dele expressou uma

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evidente negativa. O guarani insistiu e o linguista traduziu. Surpreso, o guarani questionou:
“eles não querem?”. E obteve outra negativa: “não, eles não querem”. Constrangido, se
afastou. Os korubo continuaram assistindo vídeos nos seus celulares, como se nada tivesse
acontecido.

A oficina recomeçou. Acompanhados por Paulo Mumia, fotógrafo do MI, os korubo foram
ao banco, a fim de solucionar os entraves na conta bancária de Malevo. Aproveitaram a tarde
para conhecer o mar: não entraram para tomar banho, apenas o observaram. No final da
tarde, a oficina terminou e não os vi mais. No dia seguinte, iria encontra-los pela manhã. A
priori, assistiria eles trabalharem nos verbetes do dicionário, mas os planos mudaram.
Passamos o dia visitando alguns locais do Rio de Janeiro/RJ.

No dia seguinte, 24 de novembro de 2018, antes de desbravarmos a cidade, passeamos pelas


áreas coletivas do apartamento onde estavam hospedados. Uma área de lazer com piscina, a
academia: tudo era objeto da atenção dos korubo. A curiosidade manifestava-se sob a forma
de uma avalanche de perguntas, que o linguista esclarecia: que fruta é essa? Jaca. Está madura?
Sim. Essa parede é de madeira? Não, apenas decoração. O que é aquilo? É a academia, onde
as pessoas se exercitam. E assim por diante. O passeio pelo apartamento foi seguido por uma
caminhada na orla de Botafogo.

Os korubo caminhavam um atrás do outro, semelhante ao modo como caminham na floresta.


O linguista explicou para eles que, na cidade, os brancos caminham lado a lado. Com a
explicação, todos nós sorrimos. Na areia da praia, outro bloco de perguntas sobre o que era
o bondinho do Pão-de-açúcar; a poluição das praias; e se os barcos ali estacionados possuíam
donos. Naquela instante, um avião sobrevoou o Pão-de-açúcar: “Azul, Manaus”, disse
Takvan Va – única companhia aérea a voar no trecho Tabatinga-Manaus. Em seguida, ele
recordou que chegara ali no avião de outra companhia aérea. Observamos durante um tempo
aqueles aviões em direção ao pouso, sobrevoando o Pão-de-açúcar, como se fossem colidir.
Foi então que Takvan Va soube que os pilotos não são os donos dos aviões. Ficou ainda mais
impressionado ao descobrir que é necessário pagar para aprender a pilotar aviões.

Um caiaque estacionado na areia chamou a atenção dos korubo. Eles se aproximaram e, com
as explicações do linguista, constataram: parecia uma canoa, mas era de plástico. Um jovem

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ofereceu seu número de telefone para os korubo, caso quisessem remar em algum momento.
Continuamos nossa caminhada. À certa altura do passeio, os korubo já sabiam que era
prudente atravessar as avenidas o mais rápido possível, correndo, para não serem atropelados.

No almoço, em um restaurante próximo, eles experimentaram o açaí congelado e doce,


diferente daquele coletado da palmeira. Apesar da diferença, os korubo apreciaram o açaí
carioca. O momento de efetuar os pagamentos das refeições era sempre de certa tensão.
Ambos se aproximavam de nós, brancos, para perguntar em voz baixa o valor da conta. Havia
incerteza e desconfiança manifestas na entrega relutante das cédulas ao caixa. O medo de
serem enganados pelos brancos na cidade. Após o almoço, durante a caminhada, os korubo
queriam compreender os moradores de rua, o motivo de algumas pessoas dormirem no chão
e outras não. Naquela tarde, os korubo subiriam o Cristo Redentor e, ao final do dia,
encontraríamos os demais participantes da oficina no Pão-de-açúcar.

Encontramos o fotógrafo do MI no Largo do Machado, local de partida do passeio, e pegamos


as cortesias. Os korubo brincavam conosco, dizendo que éramos “Funaivo” e “cacique”.
Durante a subida ao Corcovado, os korubo observavam e comentavam entre si os detalhes da
paisagem que ia se desenhando entre árvores, pedras, morros e casas amontoadas. Chegamos
à loja no início da subida para o Cristo. Eles pararam para avaliar os produtos à venda.
Malevo, sem ter conseguido realizar o saque de suas diárias, chegou a pedir ao vendedor para
trazer uma bota para que ele experimentasse. Não demorou muito para que ele desistisse de
esperar.

Ao contrário dos brancos atentos a paisagem, os korubo observaram a paisagem rapidamente


e concentraram a sua atenção nos brancos, “turistas”. Takvan Va gravou um pequeno vídeo
em seu celular e contou para os demais korubo sobre o Rio de Janeiro e o Cristo Redentor.
Ele destacou que subira alto, havia muitos brancos e um “txistea amë” (txistea: rio; amë:
grande), ou seja, o mar. Os korubo se divertiam nos fotografando: o fotógrafo, o linguista e
eu. Inicialmente, tiravam muitas fotos do linguista, com quem já tinham intimidade. Na
medida em que o tempo passava e quanto mais interação tinham com o fotógrafo e comigo,
tiravam também fotos nossas.

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Não demorou muito para que eles quisessem sair do Cristo Redentor. Retornamos para o
Largo do Machado, onde encontramos outros participantes da oficina para seguir para o Pão-
de-açúcar. Àquela altura, Takvan Va já sabia que Uber era um carro que nos levaria ao nosso
destino, e explicava as suas constatações para Malevo, mais velho. Na porta do Pão-de-açúcar
nos deparamos com um vendedor de marionetes de pelúcia. Um macaco que, através de um
apito assoprado pelo vendedor, emitia sons e se movimentava prendeu a atenção dos korubo
por tempo suficiente para que o restante dos participantes da oficina chegasse ao local. Os
participantes, ameríndios e brancos, que chegavam ao local, manifestavam interesse em tirar
fotografias coletivas para registrar o passeio. Takvan Va e Malevo fugiam a todo o instante
dos celulares e das câmeras.

Apenas o fotógrafo do MI os fotografava sem censura. Após a estadia nas aldeias korubo e as
andanças no Rio de Janeiro, o fotógrafo conseguira conquistar alguma confiança dos korubo.
Quando outras pessoas (inclusive, ameríndios) tentavam fotografar os korubo, eles se
afastavam. Os dois ficavam próximos fisicamente de nós três e, ao mesmo tempo,
distanciavam-se do restante do grupo. O fascínio deles com o Pão-de-açúcar centrava-se na
subida e descida daquela máquina, o bonde. Divertiam-se com qualquer manifestação de
medo por parte dos brancos por causa da altura. Destacavam que eram acostumados a subir
em árvores muito altas durante as caçadas. Já haviam enfatizado também que, para eles, era
fácil correr em locais, como o Aterro do Flamengo, pois eram acostumados a correr atrás de
queixadas.

Muitas instruções não precisavam ser verbalizadas para os korubo. Eles olhavam como nós
agíamos e nos imitavam, como a entrega dos tickets na bilheteria do Pão-de-açúcar. Takvan
Va não apenas nos observava e imitava, como também instruía Malevo. Eles se divertiam nos
fotografando. Outras brincadeiras consistiam em nomear alguém para pagar a conta. Algo
que não acontecia, mas rendia sorrisos e piadas. Após aquele sábado, os encontrei dois dias
depois para fazer compras no centro do Rio de Janeiro.

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Imagem 4. Takvan Vakwë.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Quando os encontrei no centro, o linguista e os korubo estavam em uma loja de roupas na


Rua da Alfândega. Takvan Va experimentava calças jeans e, com relutância, pagou com o
cartão na função débito. Desconfiado com a máquina de passar cartão, ele queria sacar o
dinheiro para efetuar os pagamentos. Meses depois, na aldeia, ele me questionaria sobre o
funcionamento dessas máquinas: como o pagamento é efetuado se não visualizamos o
dinheiro?

Naquela tarde, após a primeira compra no débito, as demais foram feitas sem tanta
desconfiança. Tivemos que recordá-lo: na medida em que ele passava o cartão na função
débito, o dinheiro diminuía na conta. Para Takvan Va, isso era uma questão, considerando
que no retorno ao Amazonas ele planejava adquirir uma espingarda para caçar. Paramos em
diversas lojas do centro para ver itens, como mochilas, malas, camisas, shorts e bonés. Malevo
mostrava-se inquieto, queria ir embora rapidamente das lojas. Estava aflito por não poder
comprar e, portanto, não queria que Takvan Va comprasse.

Em uma das lojas, Takvan Va comprou uma mochila para si e uma mala para Malevo.
Durante a perambulação, comprou ainda fone de ouvidos, e um boné verde e amarelo.

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Caminhava pelo centro da cidade com a mochila nova, vazia nas costas, e o boné na cabeça.
Poucos minutos depois, em outra loja, Takvan Va comprou um boné para Malevo com as
cores camufladas utilizadas pelo Exército. Os dois experimentaram peças de roupas e
acessórios. Havia uma preferência pela cor vermelha. No final daquela tarde, caminhamos até
os Arcos da Lapa e jantamos em um estabelecimento na Glória.

No final do mês de novembro de 2018, último dia que estive com os korubo no Rio de
Janeiro, fomos à Santa Teresa visitar Ricardo Beliel: um dos fotógrafos que participou da
expedição de contato com uma parcela dos Korubo em 1996. Na ocasião, os korubo
aproveitaram o momento para esclarecer alguns aspectos daquele primeiro evento de contato.
Das observações feitas por Malevo, que em 1996 era um jovem adulto, duas se destacaram.

A primeira delas dizia respeito a um barulho de paus batendo em árvores que, segundo Beliel,
a equipe de contato ouviu e atribuiu à presença korubo nas proximidades do acampamento.
Malevo negou que eles estivessem nas proximidades fazendo barulho para assustar os brancos.
A segunda observação referia-se a uma foto que registrou um momento durante a expedição
de contato, no qual um acidente poderia ter ocorrido. O pai de Takvan Va, chamado
Xikxuvo, aproximou-se repetidas vezes da câmera de Beliel por causa do som da lente e dos
disparos. Naquela ocasião, Xikxuvo, intrigado com o som do equipamento, se posicionou
para atacar a equipe de contato com golpes de borduna, mas Malevo o segurou e o fez mudar
de ideia. O reencontro entre os korubo e Beliel foi nostálgico. Os korubo olhavam as fotos e
identificavam os seus parentes. Na maior parte dos registros, ambos apareciam. Naquela
época, Malevo como um jovem rapaz e Takvan Va como um menino com,
aproximadamente, três anos de idade.

A FUNAI dos Korubo

Após ter conhecido os dois korubo em novembro de 2018 no Rio de Janeiro/RJ, eu só os


veria novamente em janeiro de 2019 em Tabatinga/AM. A partir daí, eu compreenderia a
estrutura do órgão indigenista que atua com os chamados Povos Indígenas Isolados e de
Recente Contato (PIIRC) no Brasil. A FUNAI dos Korubo é uma estrutura composta por,

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pelo menos, três instâncias. Até então, eu conhecia apenas uma parte da CGIIRC. A
CGIIRC, com sede em Brasília/DF, coordena 11 Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE)
no Brasil. Essas FPE estão distribuídas em sete estados: Amazonas, Acre, Roraima, Rondônia,
Mato Grosso, Maranhão e Pará. Nestes estados, as FPE são: Vale do Javari; Madeira-Purus;
Waimiri Atroari; Envira; Yanomami Yekuana; Uru-Eu-Wau-Wau; Guaporé; Madeirinha-
Juruena; Awá-Guajá; Médio Xingu; Cuminapanema.

No caso korubo, interessa-nos a FPE Vale do Javari, no estado do Amazonas. A FPE Vale do
Javari possui uma sede em Tabatinga e está vinculada a duas Coordenações Regionais (CR),
das quais recebe apoio administrativo: (i) CR do rio Solimões, com a qual a FPE Vale do
Javari compartilha a estrutura física em Tabatinga, e (ii) a CR em Atalaia do Norte/AM. A
FPE Vale do Javari, por sua vez, controla cinco Bases de Proteção Etnoambiental (BAPE) na
TI Vale do Javari. Essas BAPEs estão localizadas nos rios Curuçá, Jandiatuba, Quixito, Coari
e, a primeira e maior, localizada na confluência dos rios Ituí e Itaquaí: a BAPE Ituí-Itaquaí.
No caso dos Korubo residentes no rio Ituí, esta última é a que nos interessa. De acordo com
essa pirâmide, a CGIIRC controla a FPE Vale do Javari e esta, por sua vez, controla as BAPEs
na terra indígena.

Imagem 5. Base Ituí-Itaquaí.


Foto: Juliana Oliveira Silva.

A política indigenista voltada aos PIIRC é pensada, majoritariamente, a partir da CGIIRC.


A FPE Vale do Javari a executa em diálogo com a CGIIRC e as BAPEs. Embora haja diálogos
entre essas instâncias, a verba financeira para a execução dos planejamentos é liberada a partir
da instância em Brasília: a CGIIRC. Contudo, no cotidiano das aldeias, essa pirâmide
CGIIRC-FPE-BAPE é invertida. Na experiência do mundo vivido korubo, a FUNAI não é
uma instituição estatal abstrata. O termo “FUNAI” refere-se a conjuntos de pessoas,
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detentoras de poderes e funções específicas e localizadas em diferentes lugares. Não ouso
afirmar que, para os Korubo, existe uma hierarquia entre essas instâncias, mas eles percebem
a existência de uma hierarquia entre as pessoas que pertencem a esses conjuntos. Para os
Korubo, os brancos que configuram a FUNAI (Funaivo) distinguem-se em três níveis.

O primeiro nível, o mais concreto para os Korubo e próximo geograficamente das aldeias
korubo no rio Ituí é a BAPE Ituí-Itaquaí. Nessa BAPE, existe a Unidade Básica de Saúde
Indígena (UBSI), que abriga os profissionais de saúde que atendem as aldeias korubo no rio
Ituí. Embora a sigla do órgão indigenista seja BAPE – termo utilizado pelos brancos –, os
Korubo se referem a esta estrutura como “Base Ituí”. É impossível conceber a experiência dos
Korubo com os brancos, a partir dos anos 1990, sem pensar a existência da Base Ituí, pois
essa estrutura foi construída como consequência da expedição de contato realizada em 1996
com a primeira parcela dos Korubo. Nesse nível, o conceito “FUNAI”, acionado pelos
Korubo, refere-se às pessoas que trabalham na Base Ituí junto aos profissionais de saúde e a
aos “colaboradores indígenas”. Os Korubo não mencionam a distinção entre os funcionários
concursados e os colaboradores contratados pela FUNAI. Tal diferenciação só faz sentido
para e só é acionada pelos brancos.

O segundo nível, a FPE Vale do Javari, é relativamente concreto para os Korubo, mas não
tão próximo geograficamente das aldeias: o escritório da FPE Vale do Javari localizado em
Tabatinga/AM. Para se referir a essa estrutura, os Korubo utilizam o termo “escritório da
FUNAI”. Note-se que o escritório da FUNAI está localizado na primeira referência de cidade
para os Korubo: Tabatinga. Embora cidades, como Atalaia do Norte e Benjamin
Constant/AM sejam as mais próximas geograficamente da Base Ituí, estas duas cidades não
são referências primárias para os Korubo, pois nelas residem descendentes de pessoas mortas
em conflitos passados com eles, quando não possuíam relações permanentes com o Estado
brasileiro.

Desse modo, a mobilidade dos Korubo, operada pelas instituições estatais, é sempre para
Tabatinga/AM. Esta é a cidade para onde os Korubo são removidos pela SESAI para
atendimentos sanitários nos hospitais; onde os Korubo recebem os pagamentos pelos
trabalhos realizados para a FUNAI; e onde eles retiram os seus documentos de identificação

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pessoal. Tabatinga é também o local de compra-venda de mercadorias industrializadas e
artefatos feitos pelos Korubo. Para os Korubo, Tabatinga é também é o local do escritório da
FUNAI.

No escritório da FUNAI, os Korubo distinguem a presença de um “chefe”, ou seja, o(a)


coordenador(a) da FPE Vale do Javari é o chefe mais próximo do cotidiano das aldeias
korubo. Para os Korubo, as “reuniões” com esse chefe só ocorrem quando este se desloca às
aldeias no rio Ituí ou quando os Korubo vão à Tabatinga/AM. Ademais, os Korubo não se
comunicam diretamente com o chefe do escritório da FUNAI, apenas enviam mensagens
radiofônicas ou intermediadas por outras pessoas que estejam na Base Ituí.

O terceiro nível do conceito “FUNAI” é o mais abstrato para os Korubo e também o mais
distante geograficamente. Este nível consiste na CGIIRC, localizada em Brasília/DF. Trata-
se de um nível apenas imaginado pelos Korubo, pois eles jamais estiveram em Brasília – aliás,
esta é uma demanda atual deles. Os Korubo referem-se à CGIIRC como “Brasília” ou
“FUNAI Brasília”. Eles sabem que em Brasília existem “chefes”: pessoas que, de alguma
forma, controlam o “dinheiro” e também comandam o chefe do escritório da FUNAI em
Tabatinga/AM. Desse ponto de vista, para os Korubo, “Brasília” é mais que uma cidade.
Trata-se de um componente central das instituições estatais (FUNAI e SESAI), um local onde
estão os chefes com maior poder, pois controlam os recursos financeiros que afetam o
cotidiano das aldeias.

Para os Korubo, tudo se passa como se em Brasília/DF estivessem os verdadeiros chefes. Falar
com os verdadeiros chefes significa maiores chances de suas demandas serem ouvidas e
atendidas. Isso ocorre porque, quando as demandas dos Korubo não são atendidas pelo
escritório da FUNAI em Tabatinga, os funcionários do órgão indigenista costumam explicar
para os Korubo que não puderam atender tais demandas, pois a “decisão veio de Brasília”. 11

11
Os Zo’é, falantes de língua Tupi-Guarani, também considerados pelo órgão indigenista como “recente
contato”, recebem explicações dos agentes estatais relacionando as decisões à Brasília e, a partir disso, constroem
suas concepções em torno de quem é ou não chefe bom ou ruim: “Podem, portanto, acatar a explicação de um
funcionário quando este justifica não poder lhes dar nada, pois para essa decisão, “depende dos chefes em
Brasília”, julgando se tratar de um chefe fraco ou mesmo, ruim” (Gallois 2015: 289).
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Então os Korubo manifestam o interesse de ir à Brasília para “falar com Brasília” eles mesmos,
ou seja, sem a intermediação dos brancos do escritório da FUNAI e da Base Ituí.

Instâncias do órgão indigenista FUNAI para os Korubo

Base de Proteção Etnoambiental na confluência dos rios Ituí e Base Ituí


Itaquaí (BAPE Ituí-Itaquaí)

Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Vale do Javari Escritório da FUNAI

Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato FUNAI Brasília


(CGIIRC)

Tabela 1. A FUNAI dos Korubo

No caso korubo, o conceito “FUNAI” envolve essas três instâncias, conjuntos de pessoas
localizadas em diferentes lugares e com escopo de atuação distintos, nomeados pelos Korubo,
como “FUNAI Brasília”, “escritório da FUNAI” e “Base Ituí”. Entre essas instâncias e no
interior delas existem divergências sobre temas relacionados a elaboração e execução da
política indigenista junto aos Korubo. Tais divergências incidem nas atividades
desempenhadas com eles de modo geral e, especificamente, no trabalho de campo.

O trabalho de campo

O funcionamento da política indigenista brasileira voltada aos PIIRC, estruturado em


instâncias distintas, influenciou a minha pesquisa de campo de diferentes maneiras. A atuação
do órgão indigenista incidiu na configuração inicial da relação que se desenhou entre os
Korubo e eu, especificamente, na concepção que eles formaram em torno de figuras, como
“antropólogo” e “pesquisador”. Essa incidência se refletiu nos tipos de dados etnográficos que
consegui coletar ao longo das primeiras semanas em campo. Paralelamente, a eleição de
Bolsonaro à presidência do Brasil, e as sucessivas exonerações de indigenistas e nomeações de
militares e religiosos no quadro do órgão indigenista foram fatores incidentes sobre o trabalho
de campo. Tratava-se de fazer etnografia em um contexto em que um governo de extrema
direita fragilizava a política indigenista brasileira.
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Realizei trabalho de campo entre janeiro de 2019 e março de 2020. Esse período foi
intercalado com permanências em aldeias korubo no rio Ituí, estadias na Base Ituí e em
cidades, como Tabatinga/AM. Devido à interrupção da pesquisa de campo por causa da
pandemia do novo coronavírus, residi em duas das quatro aldeias korubo no rio Ituí: a
Tankala Maë e a Sentele Maë. Eu frequentava as outras duas aldeias (Tapalaya e Vuku Maë)
nas visitas realizadas entre os Korubo. Ao longo do trabalho de campo, acompanhei a
circulação dos Korubo entre aldeia-Base-cidade por motivos diversos, como tratamentos de
saúde, retirada de documentos, recebimento de pagamentos e compra-venda.

Conforme a proposta inicial de pesquisa, a indicação do PPGAS-MN/UFRJ de um


antropólogo para atuar junto aos Korubo poderia ser pensada como uma oferta de apoio
logístico e total abertura por parte do órgão indigenista para a realização da pesquisa de
campo. No entanto, somente após chegar em Tabatinga/AM, percebi que a FUNAI que dera
a abertura para uma antropóloga trabalhar com os Korubo consistia em uma parcela da chefia
da “FUNAI Brasília”. No primeiro e no segundo âmbito da FUNAI – “escritório da FUNAI”
e “Base Ituí” – não havia consenso sobre se os Korubo deveriam ou não conviver com
antropólogos.

Os Korubo do rio Ituí já haviam sido interlocutores de uma pesquisa em Linguística,


conduzida por Sanderson Oliveira, conforme mencionei anteriormente. Até então, para eles,
o paradigma de pesquisador era a figura do linguista e a expressão máxima dessa forma de
pesquisa era o gravador de voz. Na concepção korubo, um linguista, sinônimo de
“pesquisador”, é alguém que rouba a “língua” dos Korubo com o uso do gravador de voz e
depois “vai embora”. A partir do conceito de “cultura”, tal concepção foi ampliada para a
pesquisa antropológica. Na concepção dos Korubo, em grande medida norteada por
percepções de outros povos e dos agentes estatais, o antropólogo “rouba a cultura” – fazendo
perguntas, anotações e registros audiovisuais – e depois “vai embora”. O antropólogo é
alguém que rouba a cultura alheia e não permanece junto.

Se, por um lado, alguns funcionários do órgão indigenista explicaram para os Korubo o que
um antropólogo estuda (a “cultura”), por outro lado, me esclareceram o que consideravam
ser aspectos da personalidade dos Korubo. Antes de eu chegar a campo em janeiro de 2019,

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os Korubo haviam sido então alertados por determinados funcionários da FUNAI a se
preservarem em relação a um antropólogo, isto é, “não mostrar a cultura”. Demorei um
tempo para compreender a postura de hesitação dos Korubo quando fiz a primeira
permanência na aldeia Tankala Maë. Meses após o início do trabalho de campo, esse alerta
para os Korubo me foi confirmado por um funcionário da FPE Vale do Javari. Após ter a
convicção de que eu não estava entre os Korubo com “más intenções”, o funcionário me
esclareceu que havia sido alertado por outrem que, a partir das ordens da FUNAI Brasília,
uma antropóloga estava chegando na região e que ele deveria “avisar” os Korubo para
manterem uma postura de desconfiança.

Dessa maneira, durante as primeiras semanas em campo, quando algum korubo cantava ou
dançava na maloca e eu chegava ao local, a pessoa parava de cantar e dançar. Nessas ocasiões,
se eu perguntasse algo aos Korubo, sem maiores explicações, eles respondiam: “é nossa
cultura”. Durante a minha estadia na aldeia Tankala Maë, uma parcela dos Korubo ali
residentes respondia “é nossa cultura” para quase todas as perguntas que eu fazia. Isso parou
de acontecer quando eu parei de fazer perguntas e, sobretudo, quando fui residir na aldeia
Sentele Maë.

De modo semelhante, enquanto eu não conhecia as aldeias korubo, uma parcela da FUNAI
tomava para si a responsabilidade de me instruir sobre as características do trabalho de campo,
e o que considerava ser a personalidade e o temperamento dos Korubo. Nesse sentido, alguns
funcionários enfatizavam a enorme dificuldade dos Korubo em compreenderem o mundo
dos brancos, sobretudo, aspectos econômicos. Destacavam que as aldeias korubo e,
principalmente, a comida dos Korubo eram “roots”, comparando os Korubo com outros
povos do Vale do Javari, como os Matis, considerados “mais ritualísticos”. Enfatizavam que
os Korubo eram “desorganizados” e “brigavam muito” entre si e com os brancos. Na ocasião,
supostamente, os Korubo estavam em “uma onda errada”, pois “qualquer coisa falavam em
cacetar” os funcionários da FUNAI.

Essa postura abrigava uma concepção nutrida por uma parcela da FUNAI sobre quem eram
os Korubo, atrelando-os à desorganização e à possibilidade de não serem bons anfitriões
comigo. Ao contrário das instruções iniciais que recebi, os Korubo foram os melhores

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anfitriões que eu poderia ter. Estavam sempre atentos ao meu bem-estar. Guiavam-me nas
andanças pela floresta, avisando sobre a existência de formigas, espinhos e outros elementos
que pudessem me machucar. Extremamente observadores, prestavam atenção se eu estava ou
não com fome ou sono. Inicialmente, até assopravam os pedaços de macaxeira, esfriando-os
antes de me oferecer. Controlavam as crianças para não mexerem nas minhas coisas. Aos
poucos, me ensinavam a pronúncia de termos em sua língua, contanto que eu não os gravasse
ou escrevesse naquele momento. Dedicavam-se com afinco às aulas e tinham muita paciência
comigo, pois sabiam que era a primeira vez que eu estava ensinando pessoas que não falavam
português. Sem dúvidas, mais aprendi com os Korubo do que os ensinei.

Após ter conhecido os dois korubo em novembro de 2018 no Rio de Janeiro/RJ, os


reencontrei novamente no dia 24 de janeiro de 2019 em Tabatinga/AM. No aeroporto, fui
recepcionada por um funcionário da FPE Vale do Javari que me levou direto para o escritório
da FUNAI, onde estavam os korubo: duas mulheres, três homens e quatro crianças. Havia
ainda outros korubo na CASAI/SESAI em Tabatinga. Cabelos lisos e curtos – com exceção
das duas jovens mulheres que deixaram o cabelo crescer até os ombros –, de baixa estatura,
porém, robustos. Chamava a atenção a pele dos Korubo, sobretudo, a das crianças, castigada
por piuns (Simulium Pertinax). As picadas de piuns eram espocadas com espinhos, um gesto
que denota afetividade. Com o passar do tempo, suas peles adquiriam um aspecto rugoso,
ressecado e, por vezes, sangrento.

As duas mulheres que estavam ali eram a primeira esposa de Takvan Va, chamada Wio, e a
irmã mais nova dele, Manis. As quatro crianças eram os filhos delas. Wio, sentada no chão
com as crianças, sorriu para mim amistosamente. Em seguida, sussurrou o meu nome para
Manis. Ela me reconhecera de imediato, pois vira as fotos que Takvan Va tirara em seu celular
quando esteve no Rio de Janeiro. Manis, por sua vez, inicialmente manteve uma postura
séria, seguida por uma aproximação súbita.

Sorrindo, com as mãos escondendo as bocas, elas começaram a me fazer questionamentos


intercalados com comentários entre elas. A primeira pergunta feita por Manis foi: “tu tem
marido?”. Com a negativa, ela afirmou que eu precisava de um marido para “pegar carne”
para mim. Ao saber que eu era solteira, ela quis então esclarecer onde, de fato, eu morava.

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Indicou as duas referências de cidade que os Korubo conheciam: “Manaus? Rio de Janeiro?”.
Mal consegui explicar que nascera em outra cidade, que não era Manaus nem Rio de Janeiro,
quando fui interrompida por outra pergunta.

Dessa vez, Wio disse-me: “tu conheceu o meu pai? Malevo!”. Respondi que sim e perguntei
aonde ele estava. Wio destacou que Malevo não gostou do Rio de Janeiro e ficou com “medo”
daquela cidade. Ambas olhavam fixamente para o meu relógio, até que Wio afirmou “cinco
horas”, mostrando que ela possuía um conhecimento sobre os números e a contagem do
tempo no relógio digital. Em seguida, ela me pediu para comprar “sandálias” para as suas
filhas, pois os pés delas cresceram e as que possuíam não serviam mais, e cinquenta reais para
pôr “crédito no celular”. Argumentou que a “FUNAI não ajuda” os Korubo e mencionou
que possuía uma rede feita com fibra de tucum para vender, mas não estava no escritório.

Manis aproveitou a ocasião e me ofereceu pulseiras witsun. Cada uma custava dez reais, mas
praticamente todas ficaram folgadas no meu pulso. Na medida em que eu testava o tamanho
de todas as pulseiras, elas sorriam e resmungavam. Até que achei uma relativamente do
tamanho do meu pulso. A irmã de Takvan Va prometeu reduzi-la e me entregar depois.

Takvan Va então se aproximou de nós. Apertou a minha mão e mencionou o meu nome. Eu
disse a ele que Wio, a “esposa” dele, era bonita. Tanto ele, quanto ela frisaram: “primeira
esposa”. A segunda esposa de Takvan Va é Lonkon e, conforme ele mesmo destacou, um dos
pais de Lonkon, chamado Makwëx, é um dos homens mais velhos entre a parcela dos Korubo
que seria contatada pelo órgão indigenista em março de 2019. Wio não apenas sabia o meu
nome, sabia também que eu era “antropóloga” e me perguntou por que eu estava em
Tabatinga. Respondi que eu estava ali para trabalhar com eles, fazer pesquisa e dar aulas, mas
tudo isso dependia da autorização deles e do órgão indigenista. Sobre as aulas, ela destacou:
“isso nós precisamos”.

Não demorou para que a SESAI chegasse ao escritório da FUNAI para buscar os korubo e
leva-los de volta para a CASAI, onde estavam hospedados. Na viatura da SESAI viera um
homem matsés. Ao descer do carro e se deparar com os korubo, ele disse: “agora korubo veste
roupa?”. Os korubo, sem dar atenção, entraram no carro e foram embora. Conforme
esclareceu após a saída dos korubo, alguns anos atrás, o matsés tentara doar um cobertor para

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os Korubo. A então coordenação da FPE Vale do Javari impedira a doação com a justificativa
de que os Korubo não deveriam receber mercadorias por serem de “recente contato”.

No dia seguinte, 25 de janeiro de 2018, um funcionário da FPE Vale do Javari e eu


acompanhamos os Korubo em compras “na beira”, o porto de Tabatinga. A beira do rio
Solimões é um local onde atracam as embarcações com destino a cidades, como Manaus,
Benjamin Constant, Atalaia do Norte (Amazonas, Brasil) e Santa Rosa (Peru). Nesse local,
existem lojas diversas de proprietários peruanos, colombianos e brasileiros.

Passaram-se quase vinte dias para que outros korubo viessem à cidade. Até então, eu
aguardava em Tabatinga a emissão da OS, por parte da FUNAI Brasília, para realizar a
atividade e a reunião de anuência com os Korubo na Base Ituí. Dessa vez, reencontrei Malevo
e Takvan Va e conheci outro homem: Txitxopi Korubo, irmão mais velho de Takvan Va.
Txitxopi me foi apresentado pelos dois korubo e por um funcionário da FPE Vale do Javari
como o “cacique geral”, representante das aldeias korubo no rio Ituí. Eles trouxeram duas
panelas de cerâmicas feitas por mulheres mais velhas para a venda na cidade. Após realizarem
as suas compras em Tabatinga, retornaríamos juntos para a Base Ituí, onde realizaríamos a
atividade educativa proposta pela FUNAI Brasília.

Naquela manhã, no escritório da FUNAI, antes de partirem, Takvan Va pediu ao funcionário


da FPE Vale do Javari para me levar às “quatro horas” no “depósito”, estrutura física da
FUNAI onde estavam hospedados. No horário solicitado, o funcionário me levou ao local.
No caminho, encontramos os três korubo de saída para um passeio na cidade, sozinhos.
Quando nos viram, voltaram para o depósito e começamos a “reunião”. Ao chegar, o
funcionário pediu aos korubo que lhe preparassem a bebida tatxik, que eles costumam trazer
da aldeia quando vêm à cidade. Eles já tinham bebido, mas ralaram o cipó novamente.

Txitxopi, o cacique, começou a falar. Takvan Va, seu irmão mais novo, o traduziu: “Juliana,
como é que tu pensa em trabalhar na minha aldeia?”. Tentei esclarecer que eu não era
“turista”, “FUNAI” ou “fotógrafa”. Eu era “pesquisadora”, semelhante ao linguista que atuara
com eles. Expliquei que não possuía marido ou filhos, então poderia me dedicar mais tempo
a eles: dar aulas em troca da autorização para fazer o meu trabalho como antropóloga.

50
Takvan Va não traduziu a minha resposta para o cacique e retrucou que os Korubo pensavam
diferente de mim: primeiro, eu os ensinaria português e matemática; depois, eles me
ensinariam a língua korubo. O paradigma de pesquisador para os Korubo, até então, era a
figura do linguista. Ele argumentou que pensavam diferente porque o linguista que trabalhara
com eles aprendeu a língua deles “muito rápido”, “gravou com o gravador” e “depois foi
embora”. Note-se que o sentido de “ir embora” refere-se às atividades de letramento pontuais
que foram realizadas com os Korubo. “Ir embora” é, portanto, uma atitude típica dos brancos.
Uma atitude que não é definitiva, e sim contínua. Para os Korubo, nós, brancos, estamos
sempre indo embora.

Nesse instante, Malevo reforçou o argumento de Takvan Va. Enfatizou que eu não poderia
ficar apenas um ou dois meses e ir embora. Eu teria que ficar com eles mais tempo porque
“esqueciam” o que aprendiam com o linguista depois que ele “ia embora”. O cacique Txitxopi
reforçou o argumento, afirmando que queria que o seu filho mais velho pudesse ir à cidade e
soubesse conferir o troco sem precisar da “ajuda da FUNAI”. Takvan Va finalizou: eu
precisava ensinar bem e correto, “não pode errar”.

Com o intuito de colaborar, o funcionário da FPE Vale do Javari que me acompanhava fez
duas intervenções na conversa, mas nenhuma delas foi completamente exitosa. Primeiro, ele
tentou explicar aos Korubo o que significava ser pesquisador. Nesse sentido, estendeu a
comparação que eu fizera inicialmente com o linguista a outro funcionário da FPE Vale do
Javari. Nesse momento, os Korubo ficaram confusos. Pareciam não saber ou lembrar que um
funcionário do órgão indigenista, além do linguista, pesquisara e escrevera sobre eles.

A segunda intervenção do funcionário da FPE Vale do Javari na reunião com os Korubo foi
tentar esclarecer para eles que os pesquisadores (como o linguista, o outro funcionário e eu)
“entraram pela FUNAI”, destacando a agência e iniciativa primária do órgão indigenista em
inserir-nos entre os Korubo. Nesse momento, os três korubo também não compreenderam.
Tudo se passava como se Malevo e Takvan Va tivessem me conhecido no Rio de Janeiro e, a
partir disso, os próprios Korubo estivessem agindo como protagonistas na minha inserção em
suas aldeias.

51
Tentei contornar o estado de confusão que esses dois comentários causaram nos korubo.
Enfatizei que para ficar mais tempo nas aldeias precisaria de cuidados por parte deles,
sobretudo, relacionados à alimentação. Takvan Va ficou surpreso. Foi então que o
funcionário da FPE Vale do Javari esclareceu que eu não levaria “comida de branco” (nawan
pete) para as aldeias. Eu seria “responsabilidade” dos Korubo. Takvan Va sorriu e perguntou
se eu comia “comida de Korubo”, continuou: “macaco, macaxeira” etc. Respondi
afirmativamente. Então ele retrucou que em outras ocasiões a macaxeira deles fora criticada
pelos brancos na Base Ituí. O acordo dessa reunião era que, caso eu os ensinasse, eles
cuidariam de mim e me alimentariam. O cacique destacou, com tradução de Takvan Va, que
eu “subiria” com eles e na aldeia conversaríamos novamente.12

No dia seguinte, 13 de fevereiro de 2019, viajamos para a Base Ituí. A nossa primeira parada
foi em Atalaia do Norte/AM para os korubo se reunirem com o então coordenador do
Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Vale do Javari e pegarem uma bateria nova para
o rádio de uma das aldeias. Os korubo, desconfiados, desceram do barco alertas porque, no
passado, eles tiveram muitos conflitos com os brancos daquela cidade. Txitxopi, rapidamente,
colocou um boné para esconder o seu corte de cabelo em meia-lua.

12
O deslocamento da cidade em direção às aldeias é referido como “subir para” a Base Ituí ou aldeias. O
deslocamento no sentido inverso, das aldeias para a Base Ituí ou cidades, é referido como “descer para”. Esse
vocabulário refere-se ao curso fluvial.
52
Imagem 6. Txitxopi cacique.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

O coordenador do DSEI chegou ao escritório da Coordenação Regional (CR) da FUNAI em


Atalaia do Norte/AM, local da reunião com os korubo. Takvan Va apresentou Txitxopi como
“nosso cacique”. Semelhante ao que ocorrera comigo, Txitxopi começou a falar em korubo e
foi traduzido por seu irmão mais novo. A pergunta inicial foi: “Jorge, como é que tu pensa a
SESAI trabalhar na minha aldeia?”. Os korubo possuíam uma série de críticas e demandas
para a SESAI, como: a distância das equipes sanitárias, localizadas na Base Ituí, em relação às
aldeias korubo; a formação de pessoas korubo como Agentes Indígenas de Saúde (AIS); a
troca dos rádios que deterioraram nas aldeias etc.

Após a reunião, almoçamos no escritório da CR. Os korubo pegaram a bateria solicitada ao


coordenador do distrito sanitário e seguimos a viagem para a Base Ituí. Os korubo sinalizavam
os “furos” 13 para o funcionário. Com um motor de popa 40HP, a viagem à Base Ituí durou
cerca de cinco horas. Chegamos ao local no final daquela tarde. Txitxopi dormiu na Base Ituí
junto com outro korubo, chamado Lëyu, que estava ali trabalhando como “colaborador da

13
Atalhos pela floresta utilizados quando o rio está cheio para encurtar o tempo das viagens.
53
FUNAI”. Malevo e Takvan Va foram dormir na aldeia korubo mais próxima da Base Ituí (a
Sentele Maë), localizada a poucos minutos de distância.

Na manhã seguinte, Txitxopi e Lëyu Korubo interagiam com dois colaboradores matis que
estavam trabalhando na Base Ituí. Na conversa, eles se referiam a mim como txampi e nawa
txampi (txampi: menina; nawa: não-indígena/branco). Lëyu disse para o funcionário da FPE
Vale do Javari que eu seria a filha dele, pois ele cuidaria de mim na aldeia. Nesse momento,
em conversa com um dos matis, Lëyu decidiu que o meu nome korubo seria “Manis”. Passou
então a fazer brincadeiras, mencionando o marido da Manis Korubo, chamado Wanka, pois
esta passaria a ser a minha homônima: “Manis, cadê o seu Wanka?”, e sorria.

Após o café, houve uma reunião na Base Ituí, conforme fazem diariamente para a divisão das
tarefas e informes aos colaboradores que ali trabalham. Fui apresentada pela FUNAI não
apenas como uma antropóloga que trabalharia com os Korubo em uma atividade, mas
também como uma “oportunidade” que os Korubo teriam, semelhante a outros povos do
Vale do Javari. Na ocasião, solicitaram que eu me apresentasse, explicando como chegara ali
e o conteúdo da atividade a ser realizada com os Korubo. Outros colaboradores indígenas
falaram, manifestando apoio aos Korubo estudarem. Após o almoço, o funcionário da FPE
Vale do Javari e eu levaríamos Txitxopi para a aldeia Tankala Maë, passando na Sentele Maë
para buscar Takvan Va que dormira lá.

Ao escutarem o som de motor, os Korubo costumam “descer para a beira” do rio Ituí, local
onde fofocam e anunciam as notícias e os temas a serem discutidos em profundidade na
maloca. Na primeira aldeia, Sentele Maë, não descemos da embarcação, apenas buscamos
Takvan Va. A partir de então, nas conversas com os demais korubo, Txitxopi passou a se
referir a mim como lalawameankit, traduzido por eles como “professora”. 14

Ao chegarmos na beira da aldeia Tankala Maë, o clima era de alegria geral. Txitxopi estava
sorridente. Exibia a todos as mercadorias e os alimentos industrializados que trouxera da
cidade, mas não só isso. Além de todas as novidades, o cacique trouxera uma “professora”,
conforme anunciava. Um homem korubo mais velho, cujo rosto aparecia em diversos
documentários, estava ali na beira: Xikxuvo, pai de Takvan Va e Manis. Pintado com

14
lala-wa-me-an-kit: homem-fazer-CAUS.-?-NMZ.
54
urucum, amarração peniana, braçadeiras e uma testeira feita com a fibra da palmeira muru-
muru (Astrocaryum murumuru), Xikxuvo possuía baixa estatura, porém, corpo robusto.
Exibia toda a sua vitalidade e animação. Falava alto, de modo frenético e impetuoso.

Os Korubo retiraram os materiais da embarcação. O funcionário da FPE Vale do Javari e eu


fomos à “Casa de Apoio”, construída pela FUNAI ao lado da aldeia Tankala Maë. O projeto
inicial previa que essa casa fosse ocupada pelos brancos que trabalham com os Korubo,
sobretudo, os agentes estatais. Contudo, a Casa de Apoio passava a maior parte do tempo
desocupada, o que era alvo de queixas por parte dos Korubo. Deixamos os nossos pertences
na casa e, ao retornarmos à Tankala Maë, fomos convidados a entrar na maloca para mais
uma “reunião”.

O dia estava ensolarado. A Tankala Maë era rodeada por roças. Da beira do rio para a maloca,
havia uma trilha ladeada por cultivos de macaxeira. No final do caminho, havia a maloca. O
terreno da aldeia era repleto de elevações irregulares, o que dava um colorido especial,
resultado da luz solar refletida nas palhas da maloca (xuvu) e das casas unifamiliares (wëtëkit).
Naquela época, a Tankala Maë possuía uma maloca e seis casas unifamiliares. Cinco destas
eram casas de pernas elevadas, construídas com paxiúba, no estilo regional dos brancos.
Aquela bela imagem contrastava com os comentários que ouvira anteriormente sobre a aldeia
dos Korubo ser “roots”.

Takvan Va e diversas crianças já estavam na maloca quando o funcionário da FPE Vale do


Javari e eu entramos. Aos poucos, os adultos começaram a chegar. Wio sentou-se ao meu
lado, enquanto Takvan Va sentou ao lado do funcionário. Xikxuvo, o mais velho da aldeia,
ficou em pé diante de nós e começou a falar. Takvan Va o traduziu para o português. Dentre
uma série de questionamentos à FUNAI, Xikxuvo criticou a duração da atividade educativa:
apenas quatro dias. Destacou que, para os Korubo, esse tempo era insuficiente ao
aprendizado.

O funcionário da FPE Vale do Javari esclareceu que a proposta da atividade educativa era nos
conhecermos, os Korubo e eu. Caso nos déssemos bem, eu poderia ficar mais tempo e dar
aulas nas aldeias. Apenas aquela atividade seria na Base Ituí. Na medida em que Takvan Va
traduzia a explicação dada pelo funcionário, Xikxuvo ficava entusiasmado. A empolgação foi

55
generalizada. De uma rede no fundo da maloca, uma mulher robusta e elegante, chamada
Waxmën, se manifestou e foi traduzida por um dos seus filhos, um jovem rapaz que sabia
falar português. Ela declarou que também queria estudar. Waxmën era uma mulher mais
velha (matxo), conforme eu saberia depois.

Com a empolgação generalizada, emergiu um desafio logístico. Considerando a estrutura


física da Base Ituí e a alimentação a ser fornecida para os Korubo, a FUNAI Brasília estipulou
que seriam 15 participantes na atividade. No entanto, mais de 30 korubo de três das quatro
aldeias no rio Ituí desceram o rio para participar da atividade na Base Ituí. 15 Outro
funcionário da FPE Vale do Javari, que estava na função de “chefe da Base Ituí”, ao ver as
embarcações korubo chegarem, se desesperou: “a Base não vai aguentar” [a quantidade de
pessoas korubo]. O estado emocional do então chefe da Base contagiou os demais
colaboradores e instalou um clima desconfortável que oscilou entre tensão e desdém.

Os Korubo, imediatamente, perceberam. Logo, começaram a conversar em tom baixo entre


si. Txitxopi se aproximou e me disse que o chefe da Base lhe dissera: “tem muita gente e não
pode”. Eu fiquei sem graça com a sinceridade de Txitxopi e não sabia o que responder. Em
seguida, outro korubo sugeriu fazer a atividade na Casa de Apoio, ao lado da Tankala Maë.
Por causa das circunstâncias, o funcionário da FPE Vale do Javari e eu decidimos que o
cronograma seria modificado: em vez de quatro dias, a atividade ocorreria em dois.

A atividade seria realizada em uma estrutura da Base Ituí, chamada de “Chapéu de Zinco”,
feita de madeira e zinco em formato circular. Inicialmente, este espaço fora projetado para
que os colaboradores indígenas pudessem estudar enquanto trabalhavam como colaboradores
nas atividades da Base junto ao órgão indigenista. Havia ali quadros de giz, cadeiras escolares
e mesa de madeira. No entanto, o espaço não estava sendo utilizado de modo permanente,
conforme o plano inicial.

Conforme mencionei anteriormente, o tema da atividade proposto pela FUNAI Brasília eram
as matérias-primas dos objetos industrializados atualmente utilizados pelos Korubo. Dividi o

15
As pessoas da aldeia Tapalaya não participaram dessa atividade, pois estavam em outra localidade da terra
indígena abrindo novas roças, com o intuito de transladarem a aldeia. Algo que não aconteceu durante a pesquisa
de campo.
56
material coletado em três partes: (i) as matérias-primas, as indústrias e os impactos
ambientais; (ii) o contraste entre, por um lado, os artefatos produzidos pelos Korubo e os
produtos de suas roças e, por outro, o modo como as mercadorias industrializadas são
adquiridas por diferentes tipos de brancos; (iii) as trocas entre os Korubo e o órgão
indigenista, e o valor dos objetos industrializados.

Inicialmente, cada palavra que eu pronunciava em português, eles repetiam. Durante cerca
de uma hora, estavam com a atenção completamente voltada para a atividade. Com os olhares
de descoberta após as explicações, teciam comentários entre si, sobretudo, quando falamos
sobre o período de extração de borracha e petróleo no Vale do Javari. Os mais velhos
rememoraram eventos anteriores aos eventos de contato com o órgão indigenista e os
conflitos com os brancos que extraíam esses recursos. Takvan Va traduzia alguns assuntos
explicitamente para a sua mãe, chamada Maya. Txitxopi denotava tamanho interesse e fazia
perguntas.

Takvan Va traduzia para os demais, citando suas experiências de viagens: “em Manaus/Rio
de Janeiro/Tabatinga tem isso”. Depois ele foi substituído por um jovem rapaz, Txitxopi
Vakwë, que traduzia tão bem quanto Takvan Va. Na medida em que os tradutores imitavam
os mesmos gestos que eu fazia ao mostrar os slides, o orgulho surgia nos olhares dos mais
velhos, animados com o engajamento e o desempenho desses jovens intermediários.

Contudo, o estado de ânimo dos Korubo começou a mudar. Eles começaram a ficar cansados
de visualizar as imagens, e ouvir as explicações e traduções. Um jovem rapaz interrompeu a
atividade e me disse: “Juliana, ensina matemática para mim”. Eu pedi que ele esperasse um
momento. Ele passou a atenção dada inicialmente para o seu aparelho celular, depois saiu do
Chapéu de Zinco e não retornou. Após a primeira hora de atividade, as crianças começaram
a dispersar e chorar. Os mais velhos bocejavam. Estavam cansados.

Tornou-se evidente que os Korubo esperavam algo diferente do que fora proposto pela
FUNAI Brasília. A interação visual serviu como fonte de interesse inicial, mas logo se
dissipou. O que eles esperavam era algo escolar, com o uso de papel, lápis e quadro de giz.
Eles não queriam apenas visualizar as imagens e discutir, eles queriam escrever, pois este é o
sentido de “estudar”: lalaway é o termo utilizado para expressar o ato de “escrever” e

57
“estudar”. 16 Após o almoço, refleti sobre os rumos da atividade durante aquela tarde. Caso eu
insistisse com a logística inicialmente proposta pelo órgão indigenista, corria o risco de perder
toda a atenção e o entusiasmo dos Korubo. Decidi então repensar o modelo da atividade,
focar no valor dos objetos dos brancos, no dinheiro e nos números. Foi a partir dessa mudança
de ênfase que a atividade aconteceu.

No dia seguinte, antes de realizarmos a reunião de anuência para a pesquisa antropológica, o


funcionário da FPE Vale do Javari decidiu conversar à sós com Takvan Va sobre a anuência
para pesquisa antropológica. Segundo a versão que o funcionário me ofereceu
posteriormente, Takvan Va estava “desconfiado”, pois “outras pessoas” (brancos e
ameríndios) disseram a ele que antropólogo enriquece com a “cultura” alheia e nunca mais
retorna para as aldeias.

Para a reunião de anuência, o funcionário da FPE Vale do Javari que acompanhava a atividade
educativa convocou o então chefe da Base Ituí, e pediu aos Korubo para filmar a reunião.
Eles consentiram. O funcionário que conduzia a reunião explicou aos Korubo a proposta.
Takvan Va traduzia. A FUNAI destacou a necessidade dos Korubo cuidarem de mim para
que eu pudesse permanecer com eles por mais tempo. Frisou-se o meu compromisso em dar
aulas, ensinar letras e números, de acordo com o cotidiano e as atividades das aldeias korubo.

Os Korubo, por sua vez, destacaram que eu deveria permanecer nas aldeias por tempo
suficiente para que eles aprendessem e não esquecessem os conteúdos estudados. Eles se
comprometeram com o cuidado e a alimentação. Txitxopi pediu ainda que quando eu fosse
à cidade eu levasse uma pessoa korubo comigo para “ensinar a andar na cidade”. Ressaltaram
que, caso eu não trabalhasse e ficasse com “preguiça”, “deitada na rede”, eles me mandariam
“de volta para a Base Ituí”. Para os Korubo estava claro: não importava o fato de eu ser
antropóloga e fazer pesquisa, o que lhes importava era que eu permanecesse nas aldeias para
ensiná-los “coisas de nawa”.

16
lala-way: homem-fazer. Na língua matsés, o cognato –dada refere-se a corpo, tronco, tronco de árvore, topo,
cume, homem desconhecido, primo distante (Fleck, Bëso e Huanán 2012: 93). Nesse sentido, –lala pode se
referir ao corpo do instrumento de escrita.
58
O funcionário da FPE Vale do Javari explicou ainda que eu retornaria para a cidade para
organizar os documentos e o material para ensiná-los. Depois voltaria para as aldeias no rio
Ituí. A reunião de anuência durou cerca de quarenta minutos. Havia um consenso por parte
dos Korubo de que eu deveria ir morar nas aldeias com eles. Tudo se passava como se eu fosse
uma possibilidade de maior contato com o mundo dos brancos e, por conseguinte, de
aprendizados. Os Korubo ansiavam desvendar os brancos e eu tornara-me uma ferramenta
para essa finalidade.

Após a realização da atividade educativa e a anuência dos Korubo na Base Ituí retornei à
Tabatinga/AM, onde permaneci o mês de março de 2019, para elaborar o material didático
e reunir a documentação para a solicitação de ingresso em terra indígena. A elaboração do
material didático para as aulas foi um verdadeiro desafio. Apesar de trabalhar como professora
de língua francesa no Maranhão, a contrapartida exigida pelos Korubo foi a minha primeira
experiência de letramento com ameríndios. Busquei dialogar com integrantes do CTI,
organização não governamental que atua na TI Vale do Javari, sobretudo, com o consultor e
ecólogo Hilton Nascimento (Kiko) que, além de possuir larga atuação no Vale do Javari,
contribuíra com a alfabetização dos Matis.

A partir dos diálogos e materiais disponibilizados pelo CTI, construí uma cartilha de letras,
utilizando o alfabeto korubo convencionado pelo linguista Sanderson Oliveira. O conteúdo
da cartilha inicia com as vogais e possui exercícios de aprimoramento da coordenação motora,
de memorização e reconhecimento das letras com o auxílio de ilustrações do acervo do CTI.
Essa cartilha foi revisada pelo referido linguista. Elaborei a cartilha de números com base em
livros didáticos. Esta possui exercícios de memorização e reconhecimento dos números de
zero a nove, o conceito de dezena, e operações iniciais de adição e subtração. Os exercícios
ilustrados na cartilha de matemática foram pensados com base em objetos atualmente
acessados pelos Korubo, inclusive, aqueles envolvidos no Regime de Circulação de Bens
(RCB) elaborado pelo órgão indigenista. 17

Imprimi e encadernei quarenta exemplares das duas cartilhas, ao todo oitenta. Além das
cartilhas, levei materiais para as aldeias, como quadro branco, ábaco, relógio analógico, atlas

17
Para uma discussão sobre esse Regime de transações econômicas, ver o capítulo 5.
59
e materiais de papelaria em geral: lápis, borrachas, apontadores, cadernos, resmas de papel,
pincéis, apagador, lápis, massinha de modelar e giz para colorir. Em cada aldeia, a
infraestrutura para realização das aulas foi construída e disponibilizada pelos Korubo. Casas
elevadas de paxiúba e palha (wëtëkit) tornaram-se “escolas”.

Nesse período em que estive em Tabatinga/AM, acompanhei um grupo de quatro homens


korubo em uma “feira de artesanato” em Benjamin Constant/AM, evento realizado pela
Rodada de Negócios Indígenas do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(SEBRAE), no dia 28 de março de 2019. Foi a primeira participação dos Korubo em evento
de compra-venda de artefatos. Enquanto a autorização para ingresso em terra indígena
tramitava, a FPE Vale do Javari emitiu a segunda OS para que eu realizasse outra atividade
educativa, entre abril e maio de 2019. Dessa vez, a permanência foi na Tankala Maë, a maior
aldeia korubo no rio Ituí.

Em junho de 2019, fui à Tabatinga para a extração de dois dentes sisos que inflamaram
durante essa estadia, inviabilizando a minha alimentação. Retornei à Tankala Maë em julho
de 2019. Dessa vez, eu já possuía a Autorização de Ingresso em TI nº 45/AAEP/PRES/2019
(ver Anexo 2). No final do mês de agosto de 2019, saí novamente dessa aldeia para a
organização da logística e chegada da equipe do Projeto de Cooperação Técnica Internacional
de Salvaguarda do Patrimônio Linguístico e Cultural de Povos Indígenas Transfronteiriços e
de Recente Contato na Região Amazônica (ProDocult): uma parceria entre a UNESCO e o
MI. A equipe permaneceu na região entre os dias 03 e 15 de setembro de 2019, realizando
registros audiovisuais de produções artefatuais korubo nas aldeias no rio Ituí.

Após essa permanência, retornei à Tabatinga/AM com a equipe do projeto para a retirada do
pagamento dos seis korubo que trabalharam como “especialistas” na produção artefatual
registrada em audiovisual. Contudo, duas exonerações no quadro de funcionários do órgão
indigenista, entre setembro e outubro de 2019, atingiriam diretamente a minha pesquisa de
campo e as atividades do ProDocult: a de Bruno Pereira da CGIIRC, e a de José Levinho do
MI.

A primeira estremeceu a FPE Vale do Javari com a possibilidade de fechamento das BAPEs.
Ao longo de 2019, os funcionários da FPE Vale do Javari vivenciaram cerca de oito episódios

60
em que invasores dispararam com armas de fogo em direção à Base Ituí. 18 O ápice desses
conflitos foi em setembro de 2019, quando Maxciel dos Santos, funcionário da FUNAI, foi
assassinado em Tabatinga/AM após cumprir permanência na Base Ituí, período em que
realizou apreensões de carne de caça ilegal.

Essa fatalidade e a exoneração de Bruno Pereira da CGIIRC levou os funcionários a se


manifestarem exigindo melhores condições de trabalho, sob pena de fechamento das BAPEs.
Caso a Base Ituí fechasse, era inviável retornar às aldeias korubo no rio Ituí. A chefia da
FUNAI Brasília passou para a coordenação de Ricardo Dias, com histórico vinculado a
Missão Novas Tribos no Brasil (MNTB). Enquanto esteve nessa coordenação, Dias foi alvo
de processos (nº 1007395-45.2020.4.01.3400) por parte da Procuradoria Jurídica da União
dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA), inclusive, por sua pretensão de ingressar
na terra indígena sem a realização de quarentena durante a pandemia da COVID-19. 19

A segunda exoneração, de José Levinho do MI, retardou os pagamentos do ProDocult,


previstos em contrato, prolongando a minha estadia em Tabatinga/AM, pois o combinado
com os Korubo era retornar às aldeias no rio Ituí com o pagamento em mãos. Apenas em
novembro de 2019 pude retornar às aldeias korubo. Desta vez, fui para a Sentele Maë, onde
permaneci até fevereiro de 2020. Nesse momento, eu possuía uma compreensão razoável da
língua korubo. Entendia nossas conversas, me expressava em língua korubo e compreendia
aspectos gerais das conversas entre eles.

Ao longo do mês de fevereiro, essa estadia foi marcada por algumas idas à Base Ituí devido a
frequentes mal-estares que senti. Os profissionais de saúde que atendem aos Korubo me
ofereciam medicamentos para combater os sintomas que amenizavam, mas não desapareciam.
Ao final de fevereiro de 2020, sob recomendação da equipe de saúde, fui à Tabatinga/AM
para a realização de exames. Fui então diagnosticada com anemia ferropriva.

18
Fonte: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2019/11/04/principal-base-da-funai-para-
protecao-de-indios-isolados-do-pais-sofre-oitavo-ataque-em-12-meses.ghtml. Acesso: 04/11/19.
19
Fontes: https://oglobo.globo.com/politica/coordenador-de-indios-isolados-da-funai-omite-atuacao-em-
projeto-missionario-de-evangelizacao-24385866; https://veja.abril.com.br/blog/matheus-leitao/mpf-e-contra-
entrada-de-coordenador-da-funai-no-vale-do-javari/. Acessos: 22/04/20; 26/10/20.
61
O fato de os Korubo serem de “recente contato” complexificava as possibilidades de levar
alimentos industrializados para as aldeias. Eu ficaria entre o risco de ser considerada “sovina”
(kulaspek) por não compartilhar, ou ainda, compartilhar e acabar agravando os atuais
problemas de saúde dos Korubo, reflexos do consumo desses alimentos. Igualmente
constrangedora era a ideia de me alimentar enquanto a comunidade estivesse com fome.
Diante da complexidade dessas questões, escolhi vivenciar com os Korubo os períodos de
fartura e escassez.

Sempre que eu ia para as aldeias eu levava alguns itens, como miçangas e agulhas de costura
para as mulheres, materiais de caça e pesca para os homens, e alimentos para o consumo
coletivo. Tais alimentos eram, sobretudo, arroz, farinha e outros não perecíveis que serviam
de acompanhamento para as proteínas obtidas pelos Korubo. Ademais, eu trabalhava com as
mulheres korubo nas roças e atividades de coleta. Apesar das minhas limitações, enquanto
nawa, elas pacientemente mostravam-se sempre dispostas a me ensinarem a trabalhar.
Todavia, os esforços dos Korubo para obter alimentos e a sua imensa generosidade em dividir
comigo toda a comida que possuíam, não evitavam os períodos de escassez nas aldeias no
baixo curso do rio Ituí: área que é um alvo contínuo dos invasores da terra indígena. 20

Apesar do meu estado de saúde, entre os dias 11 e 14 de março de 2020, acompanhei os


Korubo na 6ª Assembleia da UNIVAJA, realizada na aldeia matsés Nova Esperança, no rio
Curuçá. Essa foi a primeira participação dos Korubo em atividades do movimento indígena
e a minha última estadia na terra indígena. No dia 13 de março de 2020, durante a
assembleia, soubemos pelo telefone da aldeia matsés que o novo coronavírus chegou ao Brasil.
Desde então não pude retornar às aldeias korubo no rio Ituí.

20
Em relatório técnico, intitulado As desovas de tracajás (Podocnemis unifilis) e tartarugas-da-amazônia
(Podocnemis expansa) no médio e alto rio Ituí, Terra Indígena Vale do Javari (2013), os pesquisadores Hilton
Nascimento e Andrea Raimo mostram que: “a grande atividade de tartaruga encontrada na região dos 150 km
do médio Ituí se reduz justamente próximo a antiga aldeia Matis do Beija Flor, se estendendo por toda área
utilizada pelos Korubo isolados e se transformando em um “vazio” de atividades reprodutivas dessa espécie em
toda uma área de 100 km no baixo Ituí, justamente o território dos Korubo contatados.” (: 9). Esses dados
revelam que as constantes atividades ilegais de caça e pesca, executadas por invasores na terra indígena, levaram
ao desaparecimento das tartarugas no baixo curso do rio Ituí. Um dos exemplos de como as atividades ilegais
de invasores incidem na alimentação dos Korubo no rio Ituí.
62
Por um lado, a pesquisa de campo na terra indígena foi interrompida pela Portaria
nº419/PRES/FUNAI, que restringiu o acesso de civis às terras indígenas para conter a
pandemia do novo coronavírus, e a circulação dos Korubo em perímetros urbanos foi
limitada. Por outro lado, as investigações dessa pesquisa continuaram no contexto pandêmico
através de interlocuções com os órgãos estatais, organizações e associações indígenas e o
Ministério Público Federal. Através das redes sociais e dos documentos produzidos,
acompanhei a proliferação da COVID-19 na região. Passei então a refletir sobre ações de
contingência para a proteção dos Korubo durante a pandemia. Jamais imaginei que as minhas
primeiras produções escritas sobre os Korubo seriam justamente relacionadas à pandemia (ver
Silva 2020a; Silva 2020b; Silva e Marques 2020).

Portanto, esta tese foi construída a partir de uma confluência de fatores, como o contexto de
conflitos entre os Korubo e os brancos; o ineditismo da atuação antropológica entre os
Korubo; a aversão dos Korubo a registros audiovisuais; a inserção de conceitos, como
“cultura”, “pesquisador” e “antropólogo”; e as alterações nas chefias das instâncias que
constituem o órgão indigenista em um contexto político desfavorável ao indigenismo. A
relação entre os Korubo e eu, que ensejou essa pesquisa de campo, foi tecida em diferentes
locais e momentos, e envolve os conjuntos de pessoas incluídas no conceito de “FUNAI”.

A aproximação inicial no Rio de Janeiro/RJ, sem a presença de agentes estatais, configurou


uma participação ativa dos Korubo nesse processo. Do ponto de vista dos Korubo, foram eles
que me escolheram. Isso significa não apenas aprender sobre o mundo dos brancos, mas
também o processo de “criar” uma nawa. Sem a disposição do órgão indigenista e sem a
aceitação dos Korubo, essa pesquisa de campo não teria sido possível. Trata-se de uma
confluência entre diferentes instâncias de articulação que viabilizaram esse processo de
aproximação em diferentes lugares e momentos. A minha inserção nas aldeias korubo foi
facilitada por uma parcela do órgão indigenista, sem dúvidas, mas a execução da pesquisa de
campo jamais seria possível sem a agentividade dos Korubo e a demanda que eles têm de
compreender os brancos e as coisas dos brancos.

63
Os Korubo

Os Korubo, também chamados de “caceteiros” devido à fabricação e ao uso de diferentes


tipos de borduna, 21 ocupam um território ancestral na sub-bacia hidrográfica do rio Itaquaí,
um afluente do baixo rio Javari, fronteira entre o Brasil e o Peru. Atualmente, dentro dos
limites da TI Vale do Javari, no estado do Amazonas. Conforme mencionei anteriormente,
após tentativas iniciais não exitosas, a FUNAI os contatou em diferentes eventos, começando
em 1996 e, posteriormente, em 2014, 2015 e 2019. Hoje grande parte dos Korubo é
considerada pelo órgão indigenista como de “recente contato”, enquanto outra parcela
permanece em situação de “isolamento”.

Até março de 2020, a população korubo de recente contato constituía cerca de 127 pessoas:
93 distribuídas em quatro aldeias no baixo curso do rio Ituí; 34 localizadas no rio Coari. 22 As
93 pessoas – localizadas no rio Ituí e distribuídas nas aldeias Sentele Maë, Tapalaya, Tankala
Maë e Vuku Maë – foram contatadas pelo órgão indigenista ao longo de 1996, 2014 e 2015.
Outros 34 korubo, localizados no rio Coari, foram contatados em março de 2019. A minha
pesquisa de campo foi realizada com as 93 pessoas, no rio Ituí. Não conheci os Korubo do
rio Coari, embora esta expedição de contato perpasse a minha etnografia.

A autodenominação dos chamados Korubo foi motivo de controvérsias ao longo dos anos e,
caso exista, ainda é desconhecida. “Korubo”, possivelmente, é um etnônimo utilizado no
século XVIII por povos Pano setentrionais em referência aos seus inimigos. No entanto, a
etimologia desse termo permanece desconhecida (Erikson 1999: 74-5). Mas registra-se que,
além da primeira pessoa do plural inclusivo (nukmi), os Korubo passaram a adotar esse
etnônimo nas relações com os brancos e outros ameríndios.

A língua korubo, como as línguas matis, matsés e kulina-pano, pertence ao ramo setentrional
da família linguística Pano (Oliveira 2009; Fleck 2013). Os povos da família linguística Pano
valorizam a intercompreensão mútua, enfatizando as similaridades entre as suas línguas. Os
Korubo não são exceção à regra. Conhecem e adotam termos linguísticos falados por povos

21
As bordunas são chamadas regionalmente de “cacetes”.
22
Em dezembro de 2022, esse número era de 150 pessoas nos rios Ituí e Coari (Fonte: SIASI/SESAI).
64
Pano vizinhos, como os Matis, os Matsés e os Marubo, chegando a se comunicar nessas
línguas.

A maioria da parcela korubo contatada em 1996 possui algum entendimento da oralidade


em língua portuguesa e iniciação à escrita em língua korubo em virtude das esporádicas
oficinas de letramento e numeração, apoiadas pelo órgão indigenista desde 2007, e da relação
permanente com agentes estatais. No cotidiano das aldeias korubo no rio Ituí, esse
conhecimento se estende às pessoas contatadas em 2014 e 2015. Esse cenário difere no caso
dos contatados em 2019, ainda localizados no rio Coari. 23

Ao longo do século XX, os Korubo ocuparam um território que vai da confluência dos rios
Ituí e Itaquaí, como limite setentrional, ao divisor de águas dos rios Coari e Branco, como
limite meridional. O término do processo de regularização fundiária da TI Vale do
Javari/AM, com decreto de homologação e registro na Secretaria do Patrimônio da União e
nos Cartórios de Registros de Imóveis, data de 02 de maio de 2001. Com a extensão de 8,5
milhões de hectares, a terra indígena foi demarcada e homologada em meio a uma série de
manifestações contrárias e campanhas favoráveis à demarcação, realizadas desde meados da
década de 1980, com a adução dos conflitos envolvendo os Korubo (então, “isolados”).

Essa área incide em quatro municípios do estado do Amazonas, localizada na porção sudoeste.
Trata-se de um território compartilhado por cinco povos da família linguística Pano (Matis,
Matsés, Marubo, Kulina-Pano e Korubo) e dois povos da família linguística Katukina
(Kanamari e Tsohom-dyapa). Uma parcela dos Korubo e os Tsohom-dyapa são considerados
pelo órgão indigenista como de “recente contato”. Além desses sete grupos, essa terra indígena
abriga uma das maiores concentrações de indígenas em situação de “isolamento” (ver Ricardo
e Gongora 2019; Rodrigo Octavio et al. 2020). Segundo o censo do DSEI Vale do Javari,
em 2020, a população da terra indígena era 6.317 habitantes e, em 2022, passou a ser 6.102.

23
Inicialmente, logo após a expedição de contato realizada em 2019, havia uma intenção por parte dos Korubo
residentes no rio Ituí em mudarem suas aldeias para o rio Coari, argumentando que neste local há abundância
de caça. Os agentes estatais não incentivavam essa mudança, especialmente porque na Base Ituí há uma
infraestrutura que não havia no rio Coari. Em 2023, os Korubo do rio Ituí não demonstravam a mesma intenção
e passaram a afimar que a co-residência com os Korubo do rio Coari provocaria conflitos internos, sobretudo,
por motivo de ciúmes e disputas pelas mulheres.
65
Até março de 2020, a concentração populacional das aldeias korubo era constantemente
redefinida pela patrilocalidade e pelas cisões decorrentes dos conflitos entre grupos familiares.
Na relação com os brancos, a figura do “cacique” emerge e ganha evidência. Contudo, os
Korubo ainda funcionam sob a lógica dos grupos familiares extensos, característica que se
reflete na configuração atual das quatro aldeias no rio Ituí.

A população korubo, de modo geral, é jovem. Os maiores índices etários dos Korubo do rio
Ituí variavam entre 0 e 34 anos de idade, com uma concentração de 20% do valor total entre
crianças de 5 a 9 anos de idade, e apenas quatro pessoas com idade estimada acima dos 50
anos, revelando os óbitos de praticamente todos os anciãos korubo antes da homologação da
terra indígena. Após o último evento de contato efetuado pelo órgão indigenista, em 2019, o
saldo de pessoas com idade estimada acima de 50 anos passou a ser cinco.

As atividades produtivas dos Korubo estão diretamente ligadas à sazonalidade, a época das
chuvas e do verão. Entre os meses de março e maio, há um período privilegiado para as
caçadas de macaco preto e macaco barrigudo, pois estão gordos. Nessa época, os Korubo saem
das aldeias e acampam em tapiris 24 na floresta para caçar e moquear grandes quantidades de
carne, trazidas à aldeia após um tempo de consumo in loco. Durante o verão, com o
surgimento das praias, destaca-se o consumo e a coleta dos ovos de quelônios.

Os Korubo apreciam macaco prego, macaco cheiro, preto, macaco-barrigudo, macaco da


noite, zogue-zogue, guariba e parauacu que, tradicionalmente, são caçados com zarabatana,
do mesmo modo que a preguiça e espécies de aves, como mutum, jacamim, arara-vermelha,
cujubim e jacu. Destes, o mutum ocupa um lugar privilegiado. Personagem do mito de
origem da agricultura, presente entre outros povos Pano, por vezes, o mutum torna-se um
animal de criação dos Korubo, como cachorros, gatos, espécies de macacos, preguiças e
jabutis. Apreciam o consumo de répteis, como jacaré, algumas espécies de rãs, tracajás e
jabutis. Alimentam-se também de mamíferos de pequeno, médio e grande porte, como paca,
cutia, caititu, preguiça, veado, tamanduá, quati, anta e queixadas.

24
Tapiri é um abrigo temporário feito com folhas de palmeira na floresta. No Vale do Javari, os tapiris podem
indicar a presença de “isolados”.
66
As caçadas geralmente são feitas por grupos de homens e jovens rapazes. Em algumas caçadas,
sobretudo de queixadas, mulheres e crianças os acompanham. As mulheres ajudam a tratar a
caça e também a carregá-la, transportando à aldeia. Todavia, os jabutis são espécies caçadas
por mulheres. Há mulheres korubo com a reputação de exímias caçadoras de jabutis.

Uma substância potencializadora das caçadas é o cipó tatxik (Paullinia), utilizado pelos
Korubo de diversas formas. Um dos principais usos desse cipó é a bebida amarga,
potencializadora dos processos de cura e das caçadas, consumida por mulheres mais velhas e
homens. Os caçadores, homens e jovens aprendizes, tomam tatxik antes e depois das caçadas,
durante a madrugada e ao longo do dia, sentados em bancos de madeira individuais,
posicionados em formato circular no centro da maloca ou nas casas unifamiliares. Os Korubo
no rio Ituí passaram a adotar o uso de espingardas e cachorros nas caçadas.

Além da obtenção de proteína por meio das caçadas, os Korubo coletam diferentes tipos de
mel e frutos. De fevereiro a maio, coletam grandes quantidades de açaí e, entre maio e agosto,
coletam buriti. Nesses períodos, a alimentação e a dinâmica de circulação dos Korubo giram
em torno desses frutos que são acompanhados por proteína e produtos da roça. A coleta do
açaí é feita pelos homens que, com o uso de peconha, sobem nas palmeiras e retiram grandes
cachos, trazidos à maloca para extração da polpa com o auxílio das mulheres. A coleta do
buriti, por sua vez, envolve mulheres e crianças que recolhem os frutos caídos no chão
enquanto brincam e conversam, comendo e separando uma quantia para levar às aldeias.
Outras frutas consumidas, coletadas inclusive por crianças, são ingá, abiu, cacau do mato,
cupuaçu, bacuri, cubiu e mamão. Homens, mulheres e jovens korubo coletam pelo menos
três tipos de mel, que envolvem a derrubada das árvores e, a depender das espécies de abelha,
o uso ou não de fogo.

As tecnologias de pesca dos Korubo eram adaptadas aos pequenos igarapés e a corpos d’água
no interior da floresta com a utilização de timbó, lança e pedaços de pau. Durante o verão
destaca-se a captura do poraquê com o uso do timbó. O bodó e a traíra são outras espécies
de peixe capturadas com essa técnica. Após a relação permanente com os brancos, os Korubo
no rio Ituí passaram a se apropriar de outros materiais de pesca, como malhadeiras, anzóis,
linhas e iscas. Ao expandirem a área de pesca dos igarapés para o leito dos grandes rios e lagos,

67
ampliou-se a gama de peixes acessados pelos Korubo, como pirarucus, pirararas, espécies de
mandi etc. A pesca apresenta-se como uma atividade complementar a agricultura itinerante
e a obtenção de proteína através das caçadas.

A abertura das roças organiza as atividades ao longo do ano. Inicia-se com a derrubada das
árvores de pequeno porte com o uso de terçado e, posteriormente, de grande porte com o
auxílio de machado. Após a derrubada, acontecem as queimas e o repouso do solo,
preferencialmente durante a estação seca e, por fim, o plantio. Acompanhados por mulheres
e crianças, os homens fazem a derrubada, a queima e o plantio. As mulheres colhem,
transportam, cozinham e distribuem os produtos da roça.

Em geral, nas roças korubo cultiva-se mandioca mansa (“macaxeira”), milho, banana,
pupunha, e espécies de inhame e cará. Destacam-se a macaxeira e o milho: onipresentes no
cotidiano korubo e, no caso do milho, envolvido em rituais, semelhante a outros povos de
línguas Pano. No preparo dos alimentos oriundos da caça, pesca e coleta, verifica-se a
preeminência do cozimento, e o preparo de bebidas e mingaus a partir dos produtos da roça.

A cultura material korubo é composta por armas de guerra, caça e pesca, adornos corporais,
cestaria, trançados, madeiras e cerâmicas. A zarabatana, seus dardos e aljava, o arco-flecha, a
lança e as bordunas pertencem ao conjunto das armas para guerra, caça e pesca. Atualmente,
as armas mais utilizadas pelos Korubo são a zarabatana e um dos tipos de borduna. O uso da
zarabatana envolve ainda o preparo do curare a partir da combinação de diferentes cipós.

Essa tese é o resultado da primeira pesquisa antropológica sobre os Korubo do Vale do Javari.
Os registros históricos revelam uma confusão entre quem seriam os Korubo e quem seriam
outros Pano setentrionais, também chamados de “Mayoruna”. Ao longo do século XX, a
literatura sobre a região evidenciou a proliferação de termos para denominar povos da bacia
do rio Javari, dentre eles, os Korubo. O acervo documental disponível sobre os Korubo
compreende dois períodos: de 1920 aos anos 2000, e a partir dos anos 2000.

Esse acervo narra, sobretudo, os conflitos entre os Korubo e os brancos: as múltiplas


experiências de contato prévias e durante os eventos de contato com o órgão indigenista. O
período histórico incide sobre o perfil dessas produções documentais que ganham certa

68
densidade após a expedição de contato em 1996. Dessa forma, antes do primeiro evento de
contato, o que existia era uma série de relatos dos avistamentos e conflitos envolvendo os
Korubo e os brancos das frentes extrativistas e de atração.

A partir da expedição de contato realizada em 1996, o órgão indigenista esclareceu alguns


aspectos relacionados às cisões internas e dispersões dos Korubo. Paralelamente, através de
sobrevoos, expedições terrestres e geoprocessamento mapeou os Korubo que permaneceram
em “isolamento”. Na medida em que outros eventos de contato foram realizados (em 2014,
2015 e 2019), alguns relatórios técnicos foram produzidos. Uma parcela dos Korubo passou
então da situação de “isolamento” à categoria de “recente contato”.

Os acervos do Museu do Índio e do Programa Povos Indígenas no Brasil, do Instituto


Socioambiental (PIB/ISA), registram acontecimentos envolvendo os Korubo entre os anos
1928 e 2011. A partir dos anos 2000, há uma produção documental diversificada de
relatórios, diagnósticos e trabalhos acadêmicos que mencionam ou tematizam os Korubo.
Nesse contexto, duas produções acadêmicas destacam-se: Oliveira (2009) e Vargas da Silva
(2017b). A primeira é uma dissertação de mestrado em Linguística que tematiza a fonologia
da língua falada pela primeira parcela dos Korubo contatada em 1996. A segunda é uma
dissertação de mestrado interdisciplinar realizada por um geógrafo e funcionário do órgão
indigenista e, portanto, enfatiza o tema da territorialidade.

Trata-se de duas produções pioneiras sobre os Korubo que, embora não possuam caráter
antropológico, registram aspectos importantes relacionados à língua, às cisões internas, ao
modus operandi do órgão indigenista e aos eventos de contato. Outros trabalhos acadêmicos
tematizam os Matis, mas mencionam os Korubo em diversos trechos, como Erikson (1996)
e Arisi (2007). Ademais, existe uma ampla produção acadêmica sobre povos da bacia do rio
Javari (ver caso matis, Erikson 1996; Arisi 2011; matsés, Coutinho Júnior 1993; 2017; Matos
2014; kulina-pano, D’Ávila 2018; marubo, Welper 2009; Dollis 2017; kanamari, Costa
2017; tsohom-dyapá, Gil 2020).

69
A tese

Essa tese está dividida em três partes. Cada uma das partes é constituída por dois capítulos.
Ao todo, são seis capítulos. No início de cada parte, há uma introdução temática a partir de
discussões antropológicas e etnográficas de contextos diversos e a apresentação de cada um
dos dois capítulos que constituem a parte.

A Parte 1, Os Korubo encontram os brancos, tematiza a relação dos Korubo com os brancos
durante a exploração extrativista na bacia do rio Javari, as tentativas de contato por parte das
Frentes de Atração e os eventos de contato realizados pelo órgão indigenista em 1996, 2014,
2015 e 2019. O capítulo 1, Latkute, possui quatro seções. Na primeira seção, situo a língua
falada pelos Korubo no ramo setentrional da família linguística Pano, abordando algumas
características centrais entre os povos pertencentes a essa família. Na segunda seção, discuto
algumas categorias acionadas pelos Korubo para fazer a distinção entre eles e os brancos,
chamados de latkute e nawa. Na terceira seção, resgato o histórico das relações interétnicas
estabelecidas por outros povos ameríndios no Vale do Javari durante o período extrativista.
Essa terceira seção baseia-se em acervos documentais existentes sobre os Korubo, até então
dispersos, analisados junto aos dados etnográficos coletados durante a pesquisa de campo. Na
quarta seção, destaco o contraste existente na postura dos Korubo em relação aos brancos:
inicialmente a recusa e, posteriormente, a busca por parte dos Korubo em estabelecer relações
permanentes dentro de um processo de descoberta que envolve o estranhamento, sobretudo,
do corpo dos brancos.

O capítulo 2, Pluricontato, possui cinco seções. As primeiras quatro seções dedicam-se aos
seis eventos de contato entre o órgão indigenista e os Korubo, que configuram o que chamo
de “pluricontato”. Ao abordar cada um dos eventos de contato, discuto algumas mortes de
brancos e ameríndios que marcaram a relação dos Korubo com o órgão indigenista. Na quinta
seção, analiso a atuação dos intermediários ameríndios, ou seja, pessoas de outros povos que
atuaram nos eventos de contato com os Korubo, como os Kanamari, os Matis e até mesmo
parcelas da população korubo.

70
A Parte 2, Parentesco multicrono, tematiza o “contato” como um evento cronotopizador das
pessoas. Nesses termos, o contato não é lido como uma saída da condição de “isolado” para
“recente contato”, conforme a política indigenista brasileira, e sim como uma passagem de
um estado de guerra real à guerra potencial, ou melhor, à troca. Trata-se de uma mudança
no posicionamento dos Korubo, onde eles deixam de conflitar com os brancos para
estabelecer outros formatos relacionais. No caso korubo, após o pluricontato, as pessoas
passaram a co-residir no baixo curso do rio Ituí, mas continuam habitando temporalidades
distintas. Como pessoas que não se consideravam parentes e outrora guerreavam entre si
passaram a conviver após os eventos de contato com o órgão indigenista? Quais são os tipos
de relações que pessoas com diferentes “tempos de contato” com os brancos passaram a
estabelecer entre si?

O capítulo 3, Tempo e espaço, possui quatro seções. Na primeira seção, apresento o conceito
de “cronotopo” como uma ferramenta útil à análise do pluricontato entre os Korubo,
realçando as sobreposições espaço-temporais entre eles. Apresento as configurações das
parcelas contatadas pelo órgão indigenista ao longo dos anos, ou seja, os grupos familiares
encontrados pelos agentes estatais em cada evento de contato. Na terceira seção, analiso a
distinção acionada pelos Korubo entre, por um lado, a parcela contatada em 1996 e os
nascidos após o pluricontato e, por outro, as parcelas contatadas posteriormente em 2014,
2015 e 2019. Para essa distinção, os Korubo acionam categorias de línguas Pano, como xëni
e paxa, que remetem a antiguidade (maturidade) e novidade (imaturidade), isto é, quem
dentre eles é “antigo” e quem é “novo” no contato com os brancos. Um eixo central da
distinção xëni-paxa é justamente o controle da raiva enquanto pulsão para matar. Na quarta
seção, situo a configuração das quatro aldeias no rio Ituí: a localização das roças, casas
unifamiliares e malocas, e a população de cada aldeia.

O capítulo 4, Aparentar-se, é composto por quatro seções. Na primeira, apresento a Maya


como uma matriarca korubo: mulher mais velha (matxo) entre os Korubo no rio Ituí e, ao
mesmo tempo, antiga (xëni) no contato com os brancos. A senioridade de Maya está
vinculada à sua posição enquanto elo de parentesco, ancestral em comum entre diferentes
cronotopos no rio Ituí. Maya é aquela que possui mais genros e filhos e também é quem, após
o pluricontato, galgou acessos a recursos, como dinheiro e mercadorias, diferenciando-a de

71
outras mulheres e dos demais korubo. Diferente de outros capítulos, a seção sobre Maya é
narrada em estilo de crônica para que os leitores possam vislumbrar minúcias do caráter e da
personalidade dessa matriarca. As três seções posteriores tematizam os casamentos entre
pessoas de diferentes cronotopos, seja arranjos ou rearranjos que revelam como os Korubo
estão construindo parentesco entre pessoas que passaram a co-residir após o pluricontato.
Doze casos de arranjos matrimoniais e algumas situações de rearranjos são analisados nesse
capítulo, todos eles entre pessoas xëni e paxa.

A Parte 3, As coisas dos brancos, tematiza o acesso dos Korubo às mercadorias e à “comida de
branco” (nawan pete). No capítulo 5, Da guerra a troca, composto por quatro seções, discuto
o modo como a política indigenista voltada aos PIIRC se efetua no caso korubo. Apresento
o Regime de Circulações de Bens (RCB), construído pelos agentes estatais para regular as
transações de troca, doações e venda e, por conseguinte, as relações estabelecidas pelos
Korubo. Contrasto o RCB com a concepção que os Korubo nutrem a respeito da política
indigenista e de categorias, como “recente contato”. Ao longo desse capítulo, narro desde as
trocas e doações de mercadorias aos Korubo, por parte do órgão indigenista, à inserção deles
em atividades remuneradas e o consequente acesso a dinheiro.

O capítulo 6, As coisas, dedica-se aos modos de “indigenização” das mercadorias e serviços


acessados pelos Korubo na relação com os brancos. Conceitos, como pedir, comprar, comer,
sovinar e roubar são discutidos no contexto de aquisição de determinados bens, como os
motores peque-peque, as espingardas, as roupas e a “comida de branco”. Juntos, os seis
capítulos discutem criticamente o conceito de “contato” e propõem a abordagem de um
processo múltiplo e cronotópico que instaura diferenças espaço-temporais que se mantêm na
configuração atual das aldeias korubo.

72
PARTE 1. Os Korubo encontram os brancos

O mesmo tipo de mudança cultural, induzida por forças externas mas


orquestrado de modo nativo, vem ocorrendo há milênios. Não somente
porque as chamadas sociedades primitivas jamais foram tão isoladas quanto a
antropologia em seus primórdios, obcecada pelo interesse evolucionista com o
antigo, gostaria de acreditar. Os elementos dinâmicos em funcionamento –
incluindo o confronto com um mundo externo, que tem determinações
imperiosas próprias e com outros povos, que têm suas próprias intenções
paroquiais – estão presentes por toda a experiência humana (Sahlins 1985: 9).

Desde os anos 1980, Marshall Sahlins refletia sobre “encontros distantes” por meio da análise
da chegada dos britânicos no Havaí, Polinésia. Quando o Capitão Cook chegou na baía de
Kealakekua em uma embarcação repleta de alimentos, os havaianos o conceberam como o
deus da paz e fertilidade: Lono. Então, passaram a adora-lo. Contudo, após Cook ter buscado
o rei havaiano como refém, a situação mudou. Cook acabou sendo morto pelos havaianos
por ter transgredido o status ritual que adquirira. De deus mítico adorado tornou-se uma
oferta de sacrifício.

A viagem do capitão Cook ao Havaí, no século XVIII, coincidiu com o ritual do Makahiki.
Tal encontro entre havaianos e britânicos seguiu a narrativa mítica e culminou com a morte
do Capitão Cook. O mito de Lono, como outros mitos, estava aberto a interpretações
múltiplas. As interpretações, baseadas em diferentes perspectivas, culminam em conclusões
diversas e reelaborações entre “estrutura” e “evento”. A estrutura interpreta os eventos que,
por sua vez, podem transforma-la, configurando o que Sahlins (1985: 15) chamou de
“estrutura da conjuntura”: “a realização prática das categorias culturais em um contexto
histórico específico, assim como se expressa nas ações motivadas dos agentes históricos”. A
estrutura da conjuntura é uma “síntese situacional” de evento e estrutura.

As mudanças culturais são motivadas por eventos (“forças externas”) e ocorrem a partir de
estruturas próprias (“modo nativo”), ou seja, as mudanças ocorrem na relação estrutura-
evento, e não porque supostamente houve um período de ausência de relações (ou melhor,
de “isolamento”) seguido por um período de estabelecimento de relações. A relação entre
estrutura e evento, proposta por Sahlins (1985), nos auxilia a repensar o conceito de

73
“isolamento” utilizado pela política indigenista estatal voltada aos Povos Indígenas Isolados e
de Recente Contato (PIIRC).

Segundo a atual definição do órgão indigenista oficial, a Fundação Nacional do Índio


(FUNAI), os povos isolados são aqueles “que não estabeleceram contato permanente com a
população nacional, diferenciando-se dos povos indígenas que mantêm contato antigo e
intenso com os não-índios.” 25 De acordo com esse conceito, os Korubo em algum momento
foram um povo “isolado” e, após o “contato” com o órgão indigenista estatal, passaram à
categoria de “recente contato”. Os eventos de contato entre a FUNAI e os Korubo ocorreram
em 1996, 2014, 2015 e 2019. Juntos, esses eventos formam o que chamo de pluricontato. O
pluricontato instaurou uma passagem de categorias: os Korubo eram isolados e tornaram-se
de recente contato. Mas, na prática, o que isso significa?

As concepções da política indigenista brasileira diferem das discussões etnológicas em torno


do conceito de “isolamento” (ver Gallois 1992: 3; Gow 2011: 12; Viveiros de Castro 2019:
12). Essas discussões têm destacado que a categoria estatal de isolamento é unilateral,
embasada em relações coloniais em que as sociedades ditas nacionais adjetivam determinados
povos. Tal adjetivo (“isolado”) indica que determinados povos não se subordinam
diretamente ao aparelho administrativo do Estado. Nessa primeira parte da tese, o isolamento
aparece como uma “posição” (nos termos de Gallois (1992)), constantemente reconstruída
em redes relacionais de encontros diretos e indiretos, ou ainda, uma “recusa” (nos termos de
Gow (2011)) a um certo tipo de relação com os brancos.

Portanto, dizer que os Korubo eram “isolados” sinaliza que durante um período eles
assumiram uma posição de recusa a um certo tipo de relação com os brancos. Os Korubo
assumiam a posição de isolamento em relação ao Estado, recusando relações permanentes
com os brancos, o que também significa que eles estabeleciam relações anteriores à chegada
do órgão indigenista na região. Este é o tema dessa primeira parte da tese. No primeiro
capítulo, me aterei ao histórico das relações estabelecidas pelos Korubo durante o período
extrativista e das frentes de atração no Vale do Javari. No segundo capítulo, me aterei ao

25
Fonte: https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/povos-indigenas/povos-indigenas-isolados-e-de-recente-
contato-2/povos-isolados-1. Acesso: 12/02/21.
74
pluricontato com a FUNAI enquanto “eventos”, nos termos de Sahlins (1985), vivenciados
a partir de “estruturas” próprias aos Korubo.

Uma vez que os Korubo vão transformando a posição de recusa a um certo tipo de relação
com os brancos que, após o pluricontato, tornam-se mais constantes e pacíficas (ou menos
esporádicas e guerreiras), suas concepções em torno dos brancos vão sendo remodeladas. A
diferença entre “nós” e “eles” vai sendo cada vez mais evidenciada e complexificada. Uma das
principais diferenças entre os brancos e os ameríndios é a maneira de se relacionar com a
diferença, conforme Claude Lévi-Strauss (1993: 212) já dissera a respeito do “dualismo em
perpétuo desequilíbrio”, característica do pensamento ameríndio expressa na ideologia,
mitologia e/ou organização social. 26

Desde as reflexões de Sahlins (1985) e Lévi-Strauss (1993), centrais para o tema do encontro
entre ameríndios e brancos, as etnografias produzidas têm evidenciado o quanto os sistemas
simbólicos ameríndios são reconfigurados para incorporar novos personagens emergentes em
novos eventos. Com frequência, esses novos personagens (neste caso, os brancos) são
incorporados aos mitos (ver Teixeira Pinto 2002; Vilaça 2006). A partir de circunstâncias
históricas e da associação ou não dos brancos a personagens cosmológicos, o evento de contato
adquire maior ou menor centralidade para os ameríndios, refletindo-se em sua cosmologia,
mitologia e organização social.

Para os Korubo, os primeiros encontros com os brancos eram oportunidades para adquirir
ferramentas de metal. Nesse período, constantemente os brancos eram confundidos com o
sampin: um ser extrassocial que vive na floresta, deixando rastros e emitindo sons. Por isso,
diversas vezes os Korubo intencionaram atacar os brancos, que até então eram vinculados ao
sampin. Este ser da cosmologia korubo serviu (e ainda serve) para explicar o surgimento desses
personagens inabituais: os brancos. Tal como Sahlins (1985) prevê, a cosmologia interpreta
os novos eventos que, por sua vez, a transformam. No caso korubo, após o pluricontato, a
concepção sobre os brancos vem se transformando.

26
Nos anos 1990, a partir de um conjunto de mitos da América do Sul e do noroeste da América do Norte,
Lévi-Strauss (1993) analisou como os povos ameríndios não emparelham os gêmeos (o vento e o nevoeiro, o
Lince e o Coiote), configurando uma gemelaridade não-homogênea na mitologia ameríndia.
75
Os Korubo se esforçam para compreender o comportamento e o pensamento dos brancos e,
ao mesmo tempo, apreender as concepções dos brancos sobre eles. Por isso, essa parte da tese
centra-se nos primeiros registros sobre os encontros entre os Korubo e os brancos. Esses dois
capítulos foram elaborados a partir do acervo documental disponível sobre os Korubo, que
ocupa o primeiro plano, em diálogo complementar com os dados etnográficos obtidos em
pesquisa de campo.

O primeiro capítulo, intitulado Latkute, analisa uma parte do acervo documental que diz
respeito à relação entre os Korubo e os brancos das frentes extrativistas em busca de recursos,
como borracha, madeira e petróleo, e os brancos das Frentes de Atração que desde os anos
1970 tentavam, sem êxito, fazer o primeiro evento de contato pacífico com os Korubo.
Conforme veremos no capítulo 1, os Korubo estiveram em constante fuga e, inicialmente,
recusavam a presença dos brancos com os quais passaram a guerrear incessantemente.

O segundo capítulo, intitulado Pluricontato, narra os seis eventos de contato entre a FUNAI
e os Korubo ao longo dos anos, ou seja, quando os agentes estatais, de fato, conseguiram
estabelecer marcos (1996, 2014, 2015 e 2019) de uma relação contínua com os Korubo. Essa
relação deixa de ser apenas de guerra, e torna-se gradualmente de troca, nos termos de Lévi-
Strauss (1976). Enquanto o acervo documental utilizado nas primeiras seções do capítulo 2
revela o ponto de vista institucional sobre os contatos, a seção sobre os “Terceiros incluídos”
traz para o centro da cena o ponto de vista ameríndio, ou seja, a concepção dos intermediários
indígenas que atuaram nos eventos de contato entre a FUNAI e os Korubo.

76
1

LATKUTE

Os Korubo não me forneceram relatos sobre o “primeiro branco” que conheceram, nem
mitos sobre a origem dos brancos. A escassez desse tipo de informação etnográfica está
relacionada ao falecimento da maioria dos anciões korubo antes do pluricontato com o órgão
indigenista. Durante o período extrativista, os Korubo estiveram em constante fuga. Então,
o que pude apreender de sua relação com os brancos foi a partir do acervo documental e do
cotidiano nas aldeias: suas dúvidas, curiosidades e inquietações. Na língua korubo, os brancos
são chamados de latkute ou nawa. 27 Os latkute são “perigosos”, mentem, matam e “têm
medo” dos Korubo. Os latkute têm corpos flácidos e não sabem se portar como os Korubo.

Uma das características da literatura etnológica sobre povos da família linguística Pano são as
relações com missionários e/ou extrativistas (ver Townsley 1994; Kensinger 1995). No caso
dos Korubo, antes do pluricontato com a FUNAI nos anos 1990 e 2000, eles já tinham
relações com os brancos. O acervo documental – até então disperso nos arquivos do Museu
do Índio, do Instituto Socioambiental, dentre outros – nos oferece um panorama dessas
relações entre os séculos XVIII e XX. Uma das características desse acervo documental é a
profusão de etnônimos atribuídos aos povos ameríndios da bacia do rio Javari.

Os Korubo já foram confundidos com outros povos antes de serem associados à sua
localização geográfica no baixo curso dos rios e ao uso das armas de guerra: as bordunas,
regionalmente chamadas de “cacetes”, o que os fez ficar conhecidos como “caceteiros”. Após
os conflitos com os brancos, as bordunas eram cravadas no chão e tornaram-se insígnias da
presença dos Korubo. Nesse contexto, eles eram considerados “isolados”, ou seja, escolhiam
não estabelecer relações permanentes e pacíficas com o Estado brasileiro.

Nesse capítulo, em diálogo com os registros documentais disponíveis, discuto a relação entre
os Korubo e os brancos das frentes extrativistas e de atração no Vale do Javari. Na primeira

27
Os Korubo utilizam o termo “branco” da língua portuguesa para se referir aos não-indígenas em geral. Trata-
se de uma categoria etnopolítica (Viveiros de Castro 2019: 9).
77
seção, destaco algumas peculiaridades do ramo setentrional da família linguística Pano para
compreender o modo como os Korubo aparecem no acervo documental. Na segunda seção,
do etnônimo “Korubo” passo à maneira como eles definem a si mesmos e aos brancos. Na
terceira seção, analiso o contexto extrativista no Vale do Javari e, em diálogo com as
experiências de outros povos ameríndios, as relações entre os Korubo e os brancos. Na quarta
seção, argumento que a fuga e a evitação contrastam com a gradual aproximação dos Korubo
em sua busca por compreender os brancos.

1.1. Um etnônimo Pano setentrional

A língua falada pelos Korubo pertence ao ramo setentrional da família linguística Pano. O
termo pano provém dos Shetebo do baixo rio Ucayali e, originalmente, significa “tatu”
(Erikson 1996: 38). As línguas Pano constituíram uma família etnolinguística no século XIX,
a partir do trabalho de Raoul de Grasserie (Amarante Ribeiro 2006: 161; Oliveira 2014: 46).
Os povos Pano ocupam a fronteira entre o Brasil e o Peru, do alto rio Solimões ao alto Purus;
o rio Ucayali e seus afluentes Javari, Juruá e Purus; o estado de Rondônia no Brasil e o
nordeste da Bolívia (Erikson 1996: 37-51).

Os Pano formam um “macro-conjunto”, pois certos aspectos reaparecem com frequência e


densidade, variando de modo consistente, como: o sistema onomástico; o uso de malocas; a
alimentação baseada em macaxeira, banana e milho, este um alimento ritual; o
armazenamento de mandíbulas ósseas enquanto troféus de caça e guerra; o endocanibalismo
funerário; a importância das guerras internas que visam incorporar os cativos; o dualismo
fundamentado nas diferenças de gênero e na sapidologia; e a coerência estilística das
ornamentações corporais e dos artefatos (Erikson 1993). Majoritariamente, os Pano são
nomeados com etnônimos exógenos, como é o caso dos Korubo. Internamente, cada grupo
constitui-se por “grupos locais” autodesignados com sufixos, como –bo, –nahua e –vo.

78
ERIKSON (1996) VALENZUELA (2003) FLECK (2013)

Pano setentrionais/Mayoruna Grupo do Norte Ramo Mayoruna


Matis A. Grupo Mayo
Matsés
Matis Subgrupo Matsés
Korubo
Matsés Matsés (3 dialetos):
Kulina-Pano
Korubo Matses do Peru
Maya
Kulina-Pano Matses do Brasil
† Paud Usunkid
Kulina do rio Curuçá (3 dialetos):
Kapishtana
Mawi
Chema
† Dëmushbo

Subgrupo Korubo (2 dialetos):


Korubo
Chankueshbo 28

Subgrupo Matis
a. Matis

b. † Mayoruna do rio Jandiatuba

c. † Mayoruna do rio Amazonas (2


dialetos):

Mayoruna assentados no rio


Amazonas
Mayoruna isolados do rio Amazonas

B. Mayoruna de Tabatinga

Tabela 2. Classificações do ramo setentrional da família linguística Pano.

De acordo com a tabela acima, o antropólogo Philippe Erikson (1996) dividiu a família
linguística Pano em oito subgrupos/conjuntos. Para André-Marcel D’Ans (1973), a língua
mayoruna pertence a um subgrupo Pano. Para Eugene Loos (1999), as línguas Pano estão
subdivididas em três subgrupos, além das línguas não agrupadas, como Matsés/Mayoruna.
Pilar Valenzuela (2003) sugeriu um “grupo do Norte” separado das outras línguas Pano. O
linguista David Fleck (2013) fez uma revisão dessas classificações e dividiu a família

28
Para os Matsés, os Korubo seriam um dos grupos denominados como chancuëshbo (gente do tucano) ou paë
porque comem macaco cheiro, vivem rio abaixo e têm roças pequenas (Coutinho Júnior 2017: 148-9).
79
linguística Pano em dois grupos: o primeiro deles é o ramo Mayoruna, com dois subgrupos,
o “grupo Mayo” e o “Mayoruna de Tabatinga”.

O primeiro estudo fonológico sobre a língua korubo foi realizado por Sanderson Oliveira
(2009; 2014), que a incluiu na porção setentrional da família linguística Pano, em
concordância com classificações da tabela acima. Além dos Korubo, outros povos Pano
setentrionais residem no Vale do Javari, como os Matis, os Matsés e os Kulina-Pano. Os Pano
setentrionais tornaram-se conhecidos na literatura pela resistência às investidas coloniais, uma
das características presente nos relatos dos viajantes:

Os maxurunas (majurunas, majorunas, maxironas), constituem uma das tribos


mais poderosas, mais vastamente espalhadas e mais temíveis do alto Solimões.
Eles nem reconhecem a supremacia espanhola, nem a portuguesa, e são
perigosos para os viajantes brasileiros do Javari, assim como para os espanhóis
do Ucayali. Falam língua própria, de entoação muito sonora e dura. Usam
cabeleira comprida, com tonsura ao redor do topo da cabeça. Fazem muitos
furos no nariz e nos lábios onde metem compridos acúleos e, junto dos dois
cantos da boca enfiam duas penas de arara. No lábio inferior, asas nasais e
lóbulos das orelhas, soem trazer discos talhados de conchas. A esse aspecto
apavorante, corresponde a crueldade de seus costumes; pois não se satisfazendo
com comer a carne do inimigo abatido, matam e comem os próprios velhos e
doentes de sua tribo, sem poupar o pai ou filhos nas doenças graves, antes que
o doente emagreça (Spix e Martius 2017: 290-1).

A resistência guerreira soma-se a outros aspectos partilhados pela maioria dos Pano
setentrionais, como o uso de ornamentos faciais, as tatuagens, os cabelos compridos, e a
ocupação no médio e alto curso dos rios (ver Coutinho Júnior 1993; Erikson 1996). No
relato dos viajantes Spix e Martius (2017), a partir de características, como o cabelo comprido
e os ornamentos faciais, é possível que eles se referissem aos Matsés. Os Matsés durante muito
tempo foram chamados de Mayoruna – termo de origem quechua que significa “gente do
rio” ou “gente do rio Mayo”, afluente do Huallaga, no Peru. O termo Mayoruna aparecia na
literatura como sinônimo de Matsés até os anos 1970 (Romanoff 1976).29 Hoje, sabemos
que os Matsés são um dos povos Pano setentrionais.

A penetração das frentes extrativistas no Vale do Javari reduziu e isolou os povos Pano
setentrionais em unidades, refletindo-se em uma profusão de etnônimos atribuídos a eles.

29
O termo mayoruna adquiriu diferentes usos, até mesmo para se referir a povos não pertencentes à família
linguística Pano, como os Moríke (ver Fleck 2007).
80
Desde o século XIX, os Pano setentrionais e povos vizinhos na bacia do rio Javari foram
registrados no acervo documental de modo confuso, conforme o caso dos Matsés:

É verdade que desde o século XIX denominações como Maxuruna, Mayirona,


Mangerona e Marubo já apareciam descontinuamente na literatura sobre a
região. Durante o século XX esta tendência irá se fortalecer, encontrando-se
termos como Mayo, Magirona, Mangeroma, Marubo e Corubo para
denominar grupos do Vale do Javari, além da menção ocasional a termos como
Pisabo, Capishto, Canibo etc. (Coutinho Júnior 1993: 239).

Os equívocos existentes nos registros dos diferentes povos Pano setentrionais aparecem
também nas referências aos Korubo. Durante as primeiras tentativas de aproximação, nos
anos 1970, os agentes do órgão indigenista confundiram os Korubo com outros povos.
Inicialmente, denominaram os Korubo de “Marubões”, pois acreditavam que eles eram um
subgrupo marubo. Nos anos 1970, conjecturaram que a autodenominação dos Korubo era
kaniwa – termo de parentesco presente em terminologias Pano. Por fim, chamaram os
Korubo de “índios da confluência” dos rios Ituí e Itaquaí (Melatti 1981). Além desses
equívocos por parte dos agentes estatais, o acervo documental evidencia também variações na
grafia do termo “Korubo”, como “Corubo”, “Carubo”, “Kurubo” ou “Kurubu”.

“Korubo” é um etnônimo Pano setentrional. Desde o século XVIII, este termo era atribuído
pelos Pano setentrionais aos seus inimigos. A etimologia do termo permanece desconhecida
(Erikson 1999: 74-5), exceto pelo coletivizador –bo. Apesar da profusão de etnônimos Pano
setentrionais, entre 1920 e 2000, o acervo documental sobre os Korubo ganhou contornos
mais definidos. Os brancos pareciam convictos de que aquelas pessoas avistadas eram
antepassados das que hoje são conhecidas como “Korubo”, pois se distinguiam-se de outros
povos Pano setentrionais em alguns aspectos.

Diferente de outros povos Pano setentrionais, os Korubo localizam-se no baixo curso dos
cursos, usam bordunas como armas de guerra e cortam o seu cabelo em meia-lua. Com o
capim-navalha (Paspalum virgatum), fazem dois tipos de corte: (i) porção posterior da cabeça
raspada forma meia-lua na parte frontal; (ii) o topo da cabeça raspado forma uma faixa que
divide duas meias-luas, uma na testa e a outra na nuca. Essas características distinguem os
Korubo de outros povos Pano setentrionais e indicam que, nos séculos XX e XXI, o acervo

81
documental narra eventos vividos pelos antepassados das pessoas que hoje conhecemos como
Korubo.

1.2. O nós e os outros

Conforme vimos, Korubo é um etnônimo Pano setentrional. A maneira pela qual os povos
ameríndios concebem a si mesmos e aos outros está menos relacionada à noção ocidental de
“autodenominação”, enquanto representação política, e mais relacionada ao uso de pronomes
(Viveiros de Castro 1996; Gow 2013). Entre povos Pano, termos como huni kuin, matsés e
matis têm a conotação de “humano”, “gente” e “pessoa” (ver Erikson 1996: 71-87; Lagrou
2007b: 143; Matos 2014: 10; D’Ávila 2018: 24). Diferente de outros povos Pano
setentrionais do Vale do Javari, na língua korubo, o termo matses é utilizado para se referir às
pessoas do gênero feminino: mulheres korubo são matses (ou txilavo) e homens korubo são
lala. 30

Uma das maneiras que os Korubo utilizam para falar de si mesmos é através da primeira
pessoa do plural inclusivo: o “nós” (nukmi) em oposição a “outros” (wëtsi). O nukmi, antes
de expressar uma totalidade, organiza as diferenças entre o “nós” e o “outro”. Para os Korubo,
o conceito de wëtsi abriga diferentes níveis de alteridade, similar ao que ocorre entre outros
povos ameríndios. Este é o caso dos Wajãpi, da família linguística Tupi-Guarani, que
constroem aproximações e distanciamentos a partir do “nós” (jane) e do “outro” que, por sua
vez, possui três posições: outros criados por nós (jane kwer), outros aproximados a nós (jane
anã) e outros distanciados de nós (janerowã) (Gallois 2007: 54-71).

No caso da família linguística Pano, os povos costumam utilizar um termo para designar
“pessoa” ou “humano” (como matis ou matses) e classificar pessoas com as quais há diferentes
níveis de relações. Os Pano setentrionais acrescentam um qualificativo ao termo para pessoa,
humano. Por exemplo, ao termo matis, acrescentam o qualificativo kimo (verdadeiro) ou utsi
(outro). A oposição entre verdadeiro/outro é relacional e refere-se à proximidade/distância.

30
Na língua matsés, o cognato dada refere-se a corpo; torso; tronco de corpo humano ou vegetal; parte de cima,
cume; homem; homem desconhecido; e primo distante (Fleck, Bëso e Huanán 2012: 93).
82
O verdadeiro é o próximo, enquanto o outro é sempre distante em relação ao verdadeiro: os
matis kimo são humanos próximos, enquanto os matis utsi são outros idênticos. Os utsi são
aqueles que pertencem à mesma seção, gênero e geração, ou seja, pessoas que têm posição
equivalente no sistema de parentesco. Matis kimo e matis utsi são circunstanciais e constituem
uma maneira simbólica de incorporar a alteridade (Erikson 1996: 71-87).

Os Korubo não se veem como humanos verdadeiros diante de outros. Há uma


permeabilidade entre “nós” (nukmi) e “outro” (wëtsi), pois co-residentes podem se considerar
wëtsi, enquanto estrangeiros podem ser lidos como pares. Algumas pessoas são kimvo
(verdadeiras) em relação a wëtsi (outras), mas nem por isso são alteridade radical. O nukmi
antes de se referir a uma totalidade, organiza diferenças internas aos Korubo, e entre eles e os
brancos. Tal permeabilidade está relacionada ao pluricontato com o órgão indigenista,
conforme veremos na segunda parte da tese. Ao mesmo tempo, existem diferentes posições
de alteridade, como outros povos ameríndios (tëtum wëtsi) e os estrangeiros, brancos, inimigos
(latkute, nawa).

Xiavo e Txikitxoevo

Uma das maneiras que os Korubo constroem proximidades e distanciamentos internos ao


“nós” (nukmi) é utilizando os termos Xiavo e Txikitxoevo. Hoje, a maior parte dos Korubo
que residem no rio Ituí se autoidentificam como Xiavo em oposição aos Txikitxoevo. Os
Txikitxoevo são uma pequena parcela que reside nas aldeias do rio Ituí somada aos Korubo
que permanecem separados no rio Coari. No rio Ituí, quase todos são Xiavo. No rio Coari,
todos são Txikitxoevo, além de uma parcela destes que migrou para o rio Ituí após os dois
eventos de contato com o órgão indigenista realizados em 2015. Numericamente, os Xiavo
são superiores aos Txikitxoevo. Até o primeiro semestre de 2020, das 91 pessoas que residiam
no rio Ituí, apenas 21 eram Txitxoevo.

Não posso afirmar que Xiavo e Txikitxoevo são grupos locais ou metades. Mas, sem dúvidas,
são unidades internamente semelhantes. As poucas informações etnográficas que disponho
sobre essas unidades dizem respeito a uma versão do mito sobre a diferenciação dos povos

83
Pano. Em 14 de julho de 2019, Takvan Va me contou que, em um tempo primordial, os
Xiavo alimentavam uma sucuriju com restos de comida, como ossos de macaco. Ela cresceu
e os Xiavo a utilizaram como uma ponte para atravessar o rio. Depois que uma parte das
pessoas atravessou a ponte, uma mulher menstruada tentou atravessa-la. Então, a sucuriju
afundou. 31 Os Xiavo preocuparam-se, pensaram em como atravessariam o rio para
reencontrar os demais. Fizeram vários cochos de paxiúbas, mas as piranhas furavam os cochos
e os Xiavo afundavam na água.

Eles caminharam até a cabeceira do rio, com o objetivo de verificar se lá era mais estreito para
atravessar. Ao constatarem que a cabeceira do rio não era estreita, os Xiavo desistiram e
disseram aos seus parentes que permanecessem do outro lado do rio. Conforme Takvan Va
destacou ao final da narração, os Korubo acreditam que antigamente os Matsés eram Xiavo.
Os povos da bacia do rio Javari se assemelhavam. Foi após essa dispersão, narrada no mito da
ponte-sucuriju, que povos, como os Matis e os Matsés, passaram a se tatuar, usar ornamentos
faciais e raptar pessoas. Então, diferenciaram-se dos Xiavo.

Esse mito descreve a passagem do contínuo para o discreto, ou seja, ilustra o processo através
do qual a consciência concebe a criação de um contexto de manifestação da diferença e dos
sistemas de significação (Lévi-Strauss 1993). O mito enfatiza como uma unidade (neste caso,
Xiavo) tornou-se distinta, configurando o que conhecemos hoje como distintos povos
ameríndios na bacia do rio Javari (Marubo, Matsés, Matis, Korubo, Kulina-Pano). Esse mito
possui versões diversas entre os Matsés e os Marubo.

As versões do mito matsés se assemelham mais à versão oferecida pelos Korubo. Narram que
os Matsés alimentavam uma sucuri que servia como ponte. Todas as vezes que eles a
alimentavam com carne e cantavam para ela eram oportunidades para atravessarem o rio
enquanto ela boiava. A ponte-sucuri afundou quando uma mulher matsés menstruada que
estabelecia relações extraconjugais tentou atravessa-la. Os Matsés se dividiram e
permaneceram espalhados. Uma parte deles permaneceu do outro lado do rio, onde fizeram
roças e casaram entre si (Matos 2014: 115; Coutinho Júnior 2017: 159).

31
Sobre a relação entre hematologia e mitologia amazônica, ver Belaunde (2006; 2019).
84
Algumas versões do mito marubo, ao contrário das outras, narram que um jacaré servia como
ponte para a travessia e foi derrubado após relações sexuais incestuosas. Os brancos teriam
nascido do sangue e dos espíritos dos Rovonáwavo (povo japó) incestuosos. Outras versões
enfatizam que, após a ruptura da ponte-jacaré, vários animais foram criados a partir das almas
e dos pertences dos mortos (Melatti 1975: 44-6; Welper 2009: 44).

Além da narração mítica sobre a origem da diferenciação entre povos Pano, as unidades Xiavo
e Txikitxoevo aparecem em outras histórias contadas pelos Korubo. Os Korubo narram o
rapto de duas mulheres no século XX, evento que reconfigurou a distribuição dos Xiavo e
Txikitxoevo em dois rios: o Ituí e o Coari, respectivamente. Maya, matriarca korubo no rio
Ituí, afirma que duas de suas irmãs, Maluxin e Wio Maluxin, foram raptadas por “outros
homens” (lala wëtsi). Após o rapto, ambas se separaram dos Xiavo e passaram a viver com os
Txikitxoevo – retomarei essa cisão no capítulo 3.

Além do evento de contato com Maya em 1996, os agentes estatais entraram em contato com
a Maluxin nos eventos ocorridos em 2015. Wio Maluxin faleceu sem vivenciar eventos de
contato com a FUNAI. Maluxin e seus filhos com o falecido Patxi, provenientes do rio Coari
e atualmente residentes no rio Ituí, são Txikitxoevo. Entre os Txikitxoevo, existiam poucas
mulheres, conforme Maluxin me contou. Uma delas era a sua cunhada, chamada Wëluxu:
esposa de Visa, irmão de Maluxin. Wëluxu cortava os cabelos dos Txikitxoevo. A respeito da
etimologia das palavras, é provável que xia-vo refira-se a uma espécie animal não identificada
(–vo: coletivizador) e txikit-txoe-vo ao nome do homem que raptou as duas mulheres: Txikit
(–txo: vir).

Os Korubo do rio Ituí destacam que os Xiavo e os Txikitxoevo se consideram “parentes”, mas
falam línguas um pouco diferentes. Por isso, costumam sinalizar palavras pronunciadas de
modo diferente por pessoas dos rios Ituí e Coari. A ornamentação corporal para rituais e
guerras é outra diferença entre Xiavo e Txikitxoevo. Feita com a palmeira muru-muru
(Astrocaryum murumuru) e o uso das bordunas, a ornamentação corporal é composta pela
fibra dessa palmeira, utilizada de modo liso ou frisado. Na testeira (mauxte), pode haver ou
não fios da fibra pendurados, a depender da unidade.

85
Os Xiavo utilizam a testeira e a fibra lisa, pendurada nas braçadeiras (witsun), e não na testeira.
Não presenciei uma ocasião em que os Korubo utilizaram essa ornamentação para rituais ou
guerras. Raramente eles relatavam a existência dessa ornamentação e, durante a pesquisa de
campo, alguns jovens se paramentavam para ilustrar os seus relatos. Os croquis que rascunhei
em campo coincidem com as imagens disponíveis no acervo do Museu do Índio:

Imagem 7. Ornamentação Xiavo.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Ayakovo e Tsasivo

A concepção do pronome “nós” (nukmi) envolve ainda uma reflexão sobre o sistema de
metades, tema clássico da antropologia que permeou a etnologia dos povos Pano. As metades
ou esquemas binários são o que Rodney Needham chamou de instâncias de “classificação
simbólica” e, posteriormente, de “classificação simbólica dupla” em suas análises sobre
alianças matrimoniais entre os Kom, os Aimol e os Lamet do sudeste asiático. Trata-se de
uma forma de classificação utilizada pelos povos para classificar e organizar elementos
distintos dentro de um sistema de relações. Dualismos como direito-esquerdo e masculino-
feminino são análogos e apresentam uma semelhança formal entre polos opostos, ou seja, há
uma analogia entre os dois contrastes (Needham 1979; Forth 2010).

86
No caso dos povos Pano, as metades ressoam nas relações de gênero, na sapidologia e nas
ornamentações corporais. Entre povos Pano, ornamentos corporais, sabores (sobretudo, doce
e amargo) e grafismos criam diferenças constitutivas nos corpos das pessoas (e não apenas
expressam diferenças entre grupos), funcionando como operadores ontológicos. O dualismo
Pano se expressa em categorias, como ayakobo e tsasibo entre os Matis (Erikson 1996: 89-
108); bëdibo e macubo entre os Matsés (Matos 2018: 119-123); ayacabo e tsatsibo entre os
Kulina-Pano (D’Ávila 2018: 25-8). As categorias ayakobo, bëdibo e ayacabo estão relacionadas
ao jaguar. Tsasibo, macubo e tsatsibo estão vinculadas à fermentação.

ayakobo tsasibo
bata (doce) chimu (amargo)
wasa (branco) wisu (negro)
pasha (jovem) sheni (velho)
kasi (magro) sheni (gordo)
chirabo (mulher) dara (homem)

Tabela 3. Dualismos Pano.


Fonte: Erikson (1999: 252-8)

Conforme a tabela acima, para os Matis, a metade masculina é jaguar e a metade feminina
vincula-se a fermentação. Essa oposição se desdobra nos pares caça-bebida fermentada e doce-
amargo. A metade doce compreende qualidades, como o salgado, claro, imaturo, magro,
baixo, esquerdo e feminino. A metade amarga envolve outras qualidades, como o picante,
escuro, velho, gordo, alto, direito e masculino. Tais qualidades são afecções que definem
pessoas ayakabo e tsasibo (Erikson 1996: 93-105). Para os Matis, o losângulo refere-se aos
ayakobo e os círculos aos tsasibo.

No caso matis, os grafismos pintados ou tecidos em pulseiras e braçadeiras não apontam o


pertencimento de uma pessoa a uma das duas metades. Os artefatos pintados com os
grafismos auxiliam os caçadores, funcionando como operadores ontológicos, conforme
mencionei. Os Matis desenham os grafismos de acordo com a presa que almejam capturar ou
as qualidades de um predador que facilite a captura de determinada presa. Os grafismos
presentes na ornamentação corporal se efetivam na vida material.

O dualismo matis ayakobo-tsasibo incorpora diferenças simbólicas. Uma metade representa o


interior do grupo e a outra metade representa o exterior. Ayakobo é o termo utilizado pelos

87
Matis para se referir aos Marubo e Korubo. Tsasibo está vinculado ao interior, refere-se aos
Matis. Erikson (1996) ressalta que, com a morte dos anciãos, os Matis invocaram os ayakobo
para manter estrangeiros entre si – característica da alteridade constitutiva Pano. As origens
estrangeiras desses membros são evocadas em contextos específicos. Durante a pesquisa de
campo feita por Erikson (1996: 96), os Matis se declaravam como tsasibo e poucos se diziam
ayakabo, apenas quando evocavam a sua ascendência korubo. 32

Entre os Matsés, as metades bëdibo-macubo definem uma consubstanciação das pessoas com
seres extrassociais. A metade macubo ou tsasibo de uma criança é transmitida pela substância
paterna. Essa transmissão norteia as relações da criança com determinados seres, animais ou
vegetais: os macubo têm relações especiais com as larvas das plantações de milho e com as
queixadas; os bëdibo têm relações especiais com as onças e cobras. Os traços horizontais
remetem às larvas (macubo), os círculos à onça (bëdibo), e os triângulos às pegadas das
queixadas e, quando invertidos, dos caititus (Matos 2014: 52).

Entre os Matsés, cada metade possui um grafismo pintado ou tecido em pontas de flechas,
testeiras, pulseiras, tornozeleiras e nas pinturas corporais. Esses grafismos constituem a
“corporalidade matsés”. Nos rituais, as pessoas utilizam os grafismos de sua metade. Diferente
do caso matis, os grafismos matsés sinalizam a relação das pessoas com os animais e seres de
sua metade (Matos 2018: 121-2).

No caso matsés, a diferença de gênero é caracterizada por intensidade. Ao nascer, uma pessoa
recebe os banhos com plantas medicinais que formam comportamentos e personalidades
diferenciadas de acordo com o seu gênero. Essa diferenciação continua durante a infância e
juventude, de modo que os meninos e as meninas matsés aprendem e executam tarefas
distintas relacionadas ao seu gênero. Na fase adulta, os homens matsés são aqueles que se
relacionam mais com substâncias amargas do que as mulheres, que precisam manejar também
substâncias doces presentes na alimentação da comunidade (Matos 2018: 123).

32
Uma parte dos Matis se considerava descendente de duas meninas korubo capturadas nos anos 1920 por
guerreiros matis com quem se casaram (Erikson 1996: 96; Arisi 2007: 76; Matos 2015: 20). Um exemplo
comparativo interessante é o dos Parakanã, onde o sistema de patrimetades remete a um rapto e aos descendentes
desse rapto, ver Fausto (2001).
88
As metades matsés efetuam diferenças entre pessoas que se consideram parentes. A
constituição das pessoas é atravessada pelo aparentamento com outros seres mais distantes,
não apenas estrangeiros ou brancos. O aparentamento com os outros constrói potencialidades
e afecções. É necessário que os macubo plantem o milho, pois eles se comunicam com as larvas
que arruínam as plantações, enquanto os bëdibo têm relação com as onças, algo importante
nas caçadas. O êxito de uma comunidade matsés depende do equilíbrio entre essas metades.

Para os Kulina-Pano, as metades servem para identificar os laços de parentesco entre dois
grupos: o do Mawi e o do Kapishtana. Os Ayacabo (grupo do Mawi) residiam no rio Novo,
afluente do rio Ituí, e abandonaram o uso da zarabatana para usar flechas e lanças. Os Tsatsibo
(grupo do Kapishtana) ocupavam a cabeceira dos igarapés Pedro Lopes e Esperança, no rio
Curuçá, e continuaram usando zarabatana. Cada um desses grupos possuía ornamentação
corporal distinta (D’Ávila 2018: 25-8). 33

Essas etnografias entre outros Pano setentrionais servem para iluminar o caso korubo. Raras
vezes, enquanto estive em campo, os Korubo mencionaram a existência de um sistema de
metades ayakovo e tsasivo. Nessas ocasiões, não pude compreender detalhes sobre as metades
porque as explicações sobre esse tema eram escassas. Ninguém entre as pessoas no rio Ituí
afirmava adquirir afecções relacionadas a uma metade específica. Entretanto, nas ocasiões em
que os Korubo mencionaram as metades foi relacionando-as a determinados grafismos.

33
Os Kulina-Pano que ocupavam o igarapé São Salvador (Ayacabo) possuíam ornamentação corporal similar a
dos Matis. Utilizavam cabelos compridos, adornos de caramujo nas orelhas, o dëshpin no septo nasal e o cuit no
lábio inferior. Usavam colares feitos com dentes de macaco e piscarem, pulseiras, braçadeiras e perneiras.
Diferentemente, os ornamentos dos Kulina-Pano do igarapé Pedro Lopes (Tsatsibo) eram menores. Estes não
possuíam tatuagens faciais nem perfurações nasais e usavam cabelos compridos com franja (D’Ávila 2018: 28-
9).
89
Imagem 8. Pintura corporal masculina.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Entre os Korubo, existe, pelo menos, três padrões de grafismo utilizados em pinturas
corporais, relacionados a animais, como anta (awat), paca (mapua) e onça (kamon). Esses
padrões são construídos a partir de combinações de círculos, linhas verticais e horizontais. 34
As linhas verticais formam o padrão awat. Linhas horizontais e verticais conformam o padrão
mapua. Os círculos, no corpo ou rosto, referem-se ao kamon. As mulheres e crianças são as
que mais utilizam esses padrões. Os homens costumam pintar o tórax inteiro, conforme a
imagem acima, embora eu tenha registrado ocasiões em que alguns rapazes utilizaram o
padrão kamon.

34
As pinturas corporais relacionadas às metades ayakovo e tsasivo são feitas com urucum (xinte), com ou sem o
látex da seringueira (manilo). Raras vezes, os Korubo usam jenipapo (wisute). Pintam-se com as pontas dos
dedos das mãos e acrescentam látex para garantir a durabilidade do urucum na pele.
90
Croqui 1. Grafismos korubo.
Ilustração: Juliana Oliveira Silva.

Conforme mencionei, os padrões de grafismo remetem às metades, tema presente na


etnologia de outros povos Pano. No caso korubo, essas metades são expressas pelos termos
ayakovo e tsasivo. A partir da literatura etnológica supracitada, verificamos que os casos matis
e matsés possuem apenas uma semelhança com o que sabemos a respeito do caso korubo: o
círculo forma o padrão do jaguar (kamon). Esse déficit de dados etnográficos sobre o sistema
de metades entre os Korubo, possivelmente, está relacionado ao falecimento de quase todos
os anciões korubo antes do pluricontato com o órgão indigenista.

Conforme veremos nas próximas seções, os Korubo fugiram dos brancos durante um longo
período de conflitos em que sofreram decessos populacionais. É provável que a lembrança
desses padrões gráficos persistiu entre alguns korubo mais velhos, independente da

91
configuração anterior do sistema de metades entre eles. O que sabemos sobre o sistema de
metades Pano, no caso korubo, são resquícios de um povo que esteve em constante fuga e
perdeu grande parte de sua população, passando a se reconstruir hoje após o pluricontato
com a FUNAI.

Latkute e Nawa

O “nós” (nukmi) abriga aproximações e distanciamentos relacionados às unidades Xiavo e


Txikitxoevo, e às metades ayakovo e tsasivo. O “outro” (wëtsi) também abriga diferentes
posições de relações. Anteriormente, mencionei que a concepção nós-outro entre povos Pano
setentrionais envolve o termo para “pessoa” acrescido de um qualificativo, como kimvo
(verdadeiro) ou wëtsi (outro) no caso korubo. Kimvo e wëtsi são qualificativos relacionais,
relativos à proximidade ou distância, e se opõem a outra categoria que os Korubo utilizam
para se referir aos brancos, estrangeiros e inimigos: latkute ou nawa. Na língua korubo, essa
posição é verbalizada com a categoria latkute, mas os Korubo também utilizam o termo nawa,
falado por outros povos Pano. 35

O conceito de nawa é alvo de análises na interface identidade-alteridade entre povos Pano


(Keifenheim 1990; 1992; Calávia Sáez 2002). Um dos motivos para essa atenção é justamente
a pluralidade de usos que adquire. Por um lado, nawa pode ser um sufixo de etnônimos Pano,
como ocorre entre os Marubo para designar segmentos ou seções, como os isconawavo (povo
japó), barinawavo (povo do sol) e os camanawavo (povo jaguar) (Melatti 1977; Welper 2009;
Dollis 2017). Por outro lado, nawa pode ser usado para se referir a outros povos ameríndios
(caso iskonawa, ver Alzza 2017: 125) ou aos brancos, majoritariamente, considerados
estrangeiros e/ou inimigos.

Quando refere-se ao “outro”, o termo nawa abriga diferentes conotações sobre a alteridade,
pois existem diferentes tipos de nawa: nawa que se assemelha mais ou menos aos ameríndios,

35
Os Matsés constituem uma exceção aos demais Pano setentrionais do Vale do Javari. Antes do contato com
os missionários, eles chamavam os brancos de dada (corpo). Posteriormente, o termo chotac passou a ser utilizado
para se referirem aos brancos em oposição aos matsés (gente, humano) (Matos 2014: 33, 59).
92
nawa verdadeiro, nawa outro, nawa inca etc. Em todos os casos, nawa é uma categoria
ambígua que serve para se opor e, ao mesmo tempo, se identificar, pois entre os Pano, as
definições do “nós” estão vinculadas às do “outro”, constituindo um fluxo conceitual entre a
identidade e alteridade.

Os Matis, por exemplo, se identificam como deshan mikitbo (gente do alto) ou mushabo
(gente tatuada) em relação aos Korubo e aos brancos, respectivamente (Erikson 1996). Entre
outros Pano, como os Kaxinawá, entre o nós e o outro existe uma “zona intermediária”: um
não-si e não-outro. O “nós” inclui parentes próximos, enquanto o termo nawa é relacional,
um não-eu. Pessoas que vivem juntas podem ser parentes e, ao deixar de conviverem, tornam-
se nawa ou até mesmo espíritos yuxin (Keifenheim 1990; 1992; Lagrou 2007a).

Os Korubo utilizam o termo nawa para se referir aos brancos que conhecem: agentes estatais
do órgão indigenista, equipes de saúde, pesquisadores e parceiros. O termo nawa, além de ser
utilizado para se referir ao conjunto dos brancos (nawavo; –vo: coletivizador), se refere ao
destino pós-morte dos Korubo que, ao falecerem, se tornam nawa vakwë e passam a viver em
um mundo subterrâneo.36 Ao longo de 2019-20, observei que os Korubo frequentemente
reservavam o uso do termo latkute para um conjunto específico de brancos: aqueles que
mataram seus antepassados com armas de fogo. Todas as vezes que narravam conflitos no
passado entre eles e os brancos, os Korubo costumavam utilizar o termo latkute, e não nawa,
constituindo uma distinção entre diferentes tipos de branco: por um lado, os agentes estatais
e pesquisadores (nawa) e, por outro, os inimigos (latkute) – o que não significa que em poucas
ocasiões as pessoas do primeiro conjunto fossem também denominadas de latkute.

Desde o século XVIII, a relação dos Korubo com os latkute era conflituosa. Nos anos 1990,
uma médica, em viagem no âmbito do Projeto de Prevenção e Combate à Cólera nas

36
Ao morrer, o espírito de uma pessoa korubo vai para o mundo subterrâneo, onde há caça em abundância e
grandes malocas. Antigamente, antes de os Korubo precisarem fugir dos brancos, os seus mortos passavam dias
na maloca, sem pinturas e ornamentações corporais. Após o luto, o corpo do falecido era enterrado fora da
maloca, em um local não muito distante. Caso o espírito do falecido fosse “criado” – recebesse comida e cuidados
– poderia reviver. Os Korubo contam que, por um lado, a família do morto queria morrer junto com ele e, por
outro lado, os demais tinham medo. Por isso, com o passar do tempo, os Korubo não criaram mais os mortos,
que passaram a não retornar à vida após o falecimento. Os mortos que vivem no mundo subterrâneo são
chamados de nawa vakwë. Na língua korubo, o termo vakwë conota crianças, diminutivo e jovens homônimos.
Entre os Marubo, o cognato vake refere-se a espiritualidade e ancestralidade (ver Welper 2009: 43).
93
Comunidades Indígenas do Rio Javari, coletou dados que configuram o único registro
documental de convivência pacífica entre os Korubo e os brancos. Uma comunidade
ribeirinha no rio Ituí, localizada na região do seringal Aliança, informou à médica que os
“Kurubo” anteriormente “viviam na margem oposta à da comunidade sem nunca tê-los
molestado” (Selau 1991: 14). Os dados coletados durante a pesquisa de campo não me
permitem confirmar a existência de uma convivência pacífica e amistosa entre os Korubo do
rio Ituí e os brancos no passado. Ao contrário, para os Korubo, com frequência, os brancos
são pessoas que mentem, enganam e matam.

1.3. Explorando o Javari

No século XIX, o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich Martius
fizeram expedições para pesquisar a fauna e a flora brasileira. Em vários trechos da obra
Viagem pelo Brasil (1823), Spix e Martius mencionam a abundância de recursos naturais na
Amazônia e as relações conflituosas entre ameríndios e brancos, inclusive, na bacia do rio
Javari:

No Javari (Nota VII) são de fato abundantes o cacau, a salsaparrilha e


tartarugas; mas, por causa das doenças malignas, ali reinantes, e da crueldade
dos seus habitantes, é evitada essa região pelos portugueses. Quando passa uma
canoa, aqueles índios hostis, escondendo-se atrás de uma árvore, atravessam o
piloto com um grande dardo, ou com a azagaia, e caem então sobre os outros
da tripulação com grandes davas quadriláteras (tamaranas), de sorte que
raramente escapa algum (Spix e Martius 2017: 283).

A extração das “drogas do sertão” e de produtos, como borracha, madeira e petróleo,


configuram o plano de fundo dos conflitos entre brancos e ameríndios na bacia do rio Javari.
A extração da borracha na Amazônia, ao longo dos séculos XIX e XX, impactou a vida dos
ameríndios e tornou-se um tema nas etnografias da região. No início do século XX, a
concorrência da produção da borracha em Singapura e Sri Lanka promoveu uma queda na
produção da borracha no Brasil. A produção da borracha brasileira voltou a crescer nos anos
1940, influenciada pelas demandas emergentes após a Segunda Guerra Mundial. No Vale do

94
Javari, foram extraídos dois tipos de borracha: a seringa (Hevea brasiliensis) e o caucho
(Castilloa eslastica).

A seringa era encontrada em terras baixas, argilosas e regiões de várzea, originando o sistema
de aviamento, caracterizado pela submissão dos seringueiros a um patrão e barracão.
Explorava-se as cabeceiras e afluentes da margem direita do rio Solimões com mão-de-obra
nordestina e ameríndia. A extração do caucho era realizada de uma só vez em terras firmes
(Weinstein 1993).

O período de extração da borracha no Vale do Javari, semelhante a outras partes da


Amazônia, caracterizou-se por ocupações desordenadas. Os brancos abriam os seringais e
faziam “correrias”, raptavam mulheres e crianças para a escravização e o extermínio. Nesse
período, todos os povos do Vale do Javari estabeleceram contatos com os brancos, seja
seringueiros ou caucheiros, de modo amistoso ou conflituoso, configurando relações que
variaram do enfrentamento à prestação de serviços em troca de mercadorias industrializadas.

Os primeiros contatos dos Kulina-Pano foram com os caucheiros no rio Novo, afluente do
rio Ituí. Posteriormente, eles encontraram os seringueiros. Ao longo dos séculos XIX e XX,
especificamente entre 1870 e 1911, uma parte dos Kulina-Pano trabalhou para os caucheiros
em troca de ferramentas de metal. Após esse contato contínuo com os caucheiros, os Kulina-
Pano contraíram doenças e muitos faleceram. Os sobreviventes migraram do rio Novo para
o igarapé São Salvador (D’Ávila 2018: 56-9).

Os Tsohom-dyapa tiveram contatos com os brancos que extraíam borracha, pelo menos
desde o século XIX, no alto curso do rio Jutaí. No relato da morte da esposa de Kamarah, os
brancos, também chamados de “colombianos”, demonstraram a sua agressividade para os
Tsohom-dyapa, que passaram a sentir “raiva” dos brancos. Apesar da raiva, a partir dos anos
1950, os Tsohom-dyapa estabeleceram uma “dinâmica de visitas” com os brancos que
extraíam borracha. Estes tornaram-se os “patrões” dos Tsohom-dyapa que, por sua vez,
acampavam nas proximidades das casas dos patrões, oferecendo carne de caça e produtos da
floresta em troca de mercadorias. Os Tsohom-dyapa compartilharam a localidade próxima
ao igarapé Davi, afluente do rio Jutaí, com os brancos (Gil 2020: 31-6).

95
Os Kanamari estabeleceram os primeiros contatos com os brancos entre 1860 e 1870.
Inicialmente, evitavam os seringueiros e caucheiros. Depois trabalharam para os brancos no
rio Juruá e chegaram a ter os seus próprios “patrões”, como Ioho e Dyaho: duas crianças
kanamari que viveram com os brancos e tornaram-se patrões (Costa 2007: 102). Os Marubo
também tiveram os seus próprios patrões após trabalharem para os brancos. O primeiro
patrão dos Marubo foi um peruano, chamado Jarira. Entre 1870 e 1910, os Marubo
trabalharam como empregados e fregueses para caucheiros, seringalistas e comerciantes
brancos. O contato com os caucheiros os influenciou: aprenderam a extrair caucho e falar
castelhano, adotaram a caiçuma fermentada, as músicas com flautas, o veneno para pesca,
tambores, danças e coreografias. Com o aprendizado obtido junto aos caucheiros, os Marubo
também se tornaram “patrões” (Melatti 1985; Welper 2009: 97-9, 116).

Contudo, apesar desses casos de relações de prestação de serviços em troca de mercadorias, o


acervo documental e as etnografias revelam que as relações entre os seringueiros, caucheiros
e ameríndios no Vale do Javari foram, majoritariamente, caracterizadas por violência,
expropriação e extermínio. Os Matsés relataram como foram “amansados” por caucheiros
peruanos durante a extração da borracha. Conforme os relatos, uma mulher matsés vivia com
os caucheiros e os levou para a sua aldeia. Os caucheiros passaram a residir em uma casa feita
pelos Matsés e contavam com a mão-de-obra matsés para extrair caucho, seringa, sorva e
amapá-doce. Meses depois, os caucheiros cobiçaram e tomaram para si mulheres matsés. Os
homens matsés ficaram “bravos” e atacaram os caucheiros (Coutinho Júnior 2017: 219).

Em Abu Maë, os brancos mataram Damë Matis e outros homens e raptaram três mulheres
matis – Xaua, Kana e Tuman Matis –, os filhos delas e outras crianças. Uma delas faleceu,
vítima de disparos com armas de fogo. Duas delas conseguiram fugir da casa dos seringueiros
no rio Branco e retornar para a aldeia. Então, Xaua contou aos seus parentes como eram as
cidades e os hábitos dos brancos. Levaram para a aldeia redes de algodão, que foram flechadas
pelos Matis (Matos 2015: 26-8).

Paralela à extração da borracha, a partir do mesmo modo de operação e mão-de-obra, com


preferência pelo alto curso dos rios, a madeira tornou-se rentável nos séculos XIX e XX. A
madeira extraída era encaminhada para as serrarias em Atalaia do Norte e Benjamin

96
Constant/AM. Os conflitos com os povos do Vale do Javari continuaram até que, em 1950,
os Exércitos brasileiro e peruano interviram e instalaram duas guarnições militares: Palmeiras
do Javari e Estirão do Equador. Com a penetração das turmas de madeireiros nas terras firmes
e cabeceiras dos rios, os ameríndios não possuíam refúgio e reagiram aliando-se ou atacando
os brancos.

Os Kulina-Pano e os Tsohom-dyapa chegaram a trabalhar com madeireiros. Após o contato


com seringueiros e caucheiros, estrategicamente, os Kulina-Pano estabeleceram relações
pacíficas com qualquer branco que representasse uma ameaça. Em 1945, os madeireiros
ocuparam o igarapé São Salvador. Segundo os Kulina-Pano, estes eram “bons” e comeram
juntos, mas os que apareceram depois escravizaram e deslocaram os Kulina-Pano para o
médio curso do rio Javari: local do conflito entre os Matsés e os Kulina-Pano. Ao longo dos
anos 1960, os Kulina-Pano continuaram se relacionando com os brancos, regatões e
madeireiros.

Outros povos, como os Matsés, enfrentaram os madeireiros. A partir de 1950, os madeireiros


passaram a recuar na área matsés por causa dos contínuos ataques. Os Matsés tentavam se
refugiar em terra firme, mas tornava-se cada vez mais difícil. Reagiam atacando as turmas de
madeireiros até que, nos anos 1960, houve uma intervenção militar. O Exército interviu para
assegurar a expansão extrativista na região, coibida pela reação dos Matsés, e alguns militares
participaram de “correrias” contra os Matsés sob o argumento de que havia estrangeiros entre
os ameríndios (Coutinho Júnior 2017: 91). 37

O Vale do Javari também foi alvo de pesquisas sísmicas para a exploração de petróleo e gases
raros, gerando novos conflitos. O primeiro achado de petróleo e gás na Amazônia brasileira
ocorreu em 1925 no rio Tapajós/PA. Em 1953, os primeiros 15 poços de petróleo foram
perfurados pelo Conselho Nacional de Petróleo no rio Amazonas. Em 1954, a Petrobrás foi
fundada para a extração de petróleo na Amazônia. Os povos do Vale do Javari tiveram que
lidar com a presença invasiva da Petrobrás em seu território.

37
A extração da madeira no Vale do Javari, semelhante a borracha, foi um período marcado por raptos. Este é
o caso de um jovem tsohom-dyapa, criado por um madeireiros que, após adulto, retornou para viver com os
seus parentes (Gil 2020: 39-40).
97
No início dos anos 1970, os Matsés sofriam as pressões de petrolíferas aliadas aos missionários
do Summer Institut of Linguistics (SIL) na fronteira entre Brasil e Peru. Uma das petrolíferas
peruanas, a International Petroleum Company, já havia colaborado com a força aérea no
desenvolvimento de napalm para bombardear as malocas matsés em 1964. Em 1972, os
Matsés sofreram com as epidemias adquiridas no contato com os brancos que extraíam
petróleo (Coutinho Júnior 2017: 109).

No Brasil, nos anos 1980, funcionários da Petrobrás visitaram as malocas dos Tsohom-dyapa,
e trocaram carne de caça por mercadorias e dinheiro. Ensinaram danças e músicas
carnavalescas aos Tsohom-dyapa e recomendaram que estes abandonassem a área de
ocupação para residir com os Kanamari, no rio Jutaí. O objetivo era realizar testes sísmicos
naquela área (Gil 2020: 41). A atuação da Petrobrás no Vale do Javari caracterizou-se por
nomadismo massivo e utilização de aeronaves. 38

Os Korubo não relataram relações amistosas ou laborais com os brancos que extraíam recursos
no Vale do Javari. Ao contrário, relembram como os seus antepassados foram mortos por
disparos de espingardas dos brancos (nesses casos, chamados de latkute). Embora os Korubo
não mencionem nomes de brancos com quem eles guerrearam, os registros documentais
revelam um histórico bélico entre eles e os latkute. Um dos conflitos mais veiculados na mídia
envolvendo os brancos das equipes de prospecção sísmica ocorreu com os Korubo, conforme
veremos.

O registro mais antigo que tive acesso sobre os Korubo data do século XVIII. Em 1737, no
contexto das disputas entre os jesuítas espanhóis e as tropas de resgate portuguesas para
delimitar as fronteiras geopolíticas, o padre espanhol André Zaráte encontrou alguns

38
Nos anos 1950-60, alguns povos do Vale do Javari também foram alvo de missões religiosas, com os Marubo
e os Matsés. Em 1953, os missionários da MNTB ofereceram mercadorias aos Marubo, no rio Ituí (Welper
2009: 124). Nos anos 1960, com a autorização do governo peruano, os missionários investiram em contatos
com os Matsés. O SIL possuía um acordo com o Ministério da Educação para implementar um programa de
educação bilíngue na Amazônia peruana. As missionárias do SIL aprenderam a língua matsés com ex-cativos
fugidos das aldeias para fazer o contato com os Matsés (Matos 2014: 16). Pelo que sabemos, embora não tenham
sido alvo de missionários durante o período extrativista, recentemente os Korubo foram alvo de investidas
missionárias, impedidas com ação judicial por parte da UNIVAJA. Conferir:
https://oglobo.globo.com/politica/justica-do-amazonas-cita-ameaca-de-coronavirus-proibe-entrada-
determina-retirada-de-missionarios-em-area-de-indios-isolados-24376870;
https://povosisolados.com/2020/06/19/univaja-entra-com-recurso-no-stj-para-retirar-missionario-da-
coordenacao-geral-de-indios-isolados-e-de-recente-contato/. Acessos: 17/04/20; 19/06/20.
98
Mayoruna penetrando o rio Manite. Ao entrar pelo rio Tabayay, depois chamado de
Tahuayo, Zaráte se deparou com uma fração mayoruna denominada “Curugos” e registrou:

Os Curugos somavam 40 pessoas, mais ou menos, e seriam “gente miserável e


apocada, e relíquias de sua parcialidade que em anos passados foi muito
numerosa, mas os portugueses do Pará a extinguiram... E segundo a solicitude
para buscar em número considerável aos fugitivos, formarão um povoado
razoável, se as enfermidades originadas dos novos alimentos ou a abundância
deles não os acabam” (Bayle 1948: 561-2 apud Coutinho Júnior 1993: 111).

Após esse vago registro sobre os “Curugos”, ao longo do século XIX, há um vazio no acervo
documental sobre os Korubo. Mas sabemos que, nesse período, o Vale do Javari estava
ocupado por comerciantes e seringueiros. O rio Itaquaí abrigava cerca de 1.500 brancos que
extraíam seringa e caucho. No rio Ituí, havia três “barracões” com gerentes e capangas
armados. O rio Branco começara a ser explorado por comerciantes. Os Korubo só voltaram
a ser mencionados nos registros do século XX, como a entrevista dada por Euquério Serra aos
antropólogos Delvair e Júlio Cézar Melatti nos anos 1970, ocasião em que afirmou haver
“Carubu” na região do rio Quixito, e dos igarapés Pedro Lopes e São Salvador até a foz do
rio Arrojo (Coutinho Júnior 1993: 231-4, 244).

Os acervos do Museu do Índio e Instituto Socioambiental contêm registros de conflitos


envolvendo os Korubo desde o início do século XX. Após dois registros em 1928 e 1943, há
um vazio no acervo até os anos 1960. O incidente em 1928 aconteceu no rio Coari e foi
narrado pelo regatão Oscar Gomes aos referidos antropólogos em 1975. De acordo com o
relato, Gomes, seu tio, um peruano e alguns indígenas “Tukúna” roubaram produtos de uma
roça korubo. Isso resultou em um conflito. Mais de 40 korubo foram alvejados por Gomes e
seu grupo. Anos depois, em 1934, a morte de Antônio Mandim no seringal Aliança, rio Ituí,
foi atribuída aos Korubo. Anteriormente, Mandim disparara com armas de fogo na direção
dos Korubo (Melatti 1981).

O Relatório de Identificação e Delimitação da TI Vale do Javari (1998) compilou informações


técnicas sobre os Korubo entre 1965 e 1997. Registrou 25 óbitos de brancos em conflitos
com os Korubo, incluindo, os funcionários do órgão indigenista; três raptos de crianças
brancas; e sete ataques dos Korubo às residências dos brancos. Há ocorrência de, no mínimo,
10 retaliações por parte dos brancos aos Korubo em 1979, 1981, 1982, 1983, 1988, 1989,
99
1991, 1993 e 1995, com o uso de armas de fogo ou doações de alimentos envenenados
(Coutinho Júnior 1998: 54-68).

Entre os anos 1960 e 1990, os Korubo foram acuados pelas frentes extrativistas na região.
Apareciam com frequência nas acomodações dos extrativistas e furtavam mercadorias, mas
demonstravam o seu descontentamento com a presença dos brancos quebrando objetos e
colocando bloqueios em caminhos na floresta – regionalmente, chamados de “tapagens”. Nos
anos 1990, os Korubo assediaram mais ainda as roças dos brancos. As fugas decorrentes dos
conflitos com os brancos resultaram na dificuldade dos Korubo para obter alimentos,
caracterizada pela ausência das caças e redução de suas roças.

Nos anos 1960, houve cinco óbitos, três raptos de crianças e um ataque à residência dos
brancos nos rios Itaquaí e Branco. Em 1965, os Korubo mataram três brancos no igarapé
Marubo, afluente da margem esquerda do rio Itaquaí. Três anos depois, mataram outro
seringueiro e raptaram uma menina na localidade Volta do Perigo, margem esquerda do rio
Itaquaí. No mesmo ano, saquearam a casa de um branco e mataram uma criança no rio
Branco. Em agosto e setembro de 1969, outras duas crianças brancas, com nove anos de
idade, foram raptadas no igarapé Marubo.

Os anos 1970 foram marcados pelo fracasso das tentativas de atração do Estado, que
resultaram em mortes de dois funcionários no rio Itaquaí, além de dois seringueiros e um
pescador, mortos nos rios Ituí e Itaquaí. Os conflitos com os brancos, os raptos, a pressão dos
empresários e o anseio pela instalação da Rodovia Perimetral Norte, em 1972, levaram à
construção de quatro Postos Indígenas de Atração (PIA) nos rios Branco, Curuçá, Itaquaí e
Ituí. Os Korubo contataram os agentes estatais em novembro de 1974, porém, duas vezes
atacaram o PIA Marubo, no rio Itaquaí. 39

As tentativas de atração dos kurubu foram iniciadas em 1975, mas no mesmo


ano a FUNAI decidiu fechar o posto Marubo, alegando que era grande a
resistência dos índios, reativando-o este ano. Os kurubu têm sérios conflitos
com madeireiros e seringueiros da região que invadem suas terras, matando-
os e transmitindo-lhes doenças: os índios não sabem quem é a favor ou contra

39
O PIA Marubo, criado oficialmente pela FUNAI através da Portaria nº 67/N em 08 de junho de 1972,
recebeu este nome porque até então os brancos acreditavam que os Korubo eram um subgrupo marubo. O PIA
Itacoaí foi aberto em janeiro de 1987 através da Portaria nº117, com o objetivo de estabelecer “contato pacífico,
proteger a integridade física e o meio ambiente dos índios isolados denominados Korubo” (Aquino 1998: 7).
100
eles. Todos são brancos e, portanto, ameaçadores. Os kurubu, arredios e
hostis, estão com malária e sífilis e, no último domingo, o posto de atração
conseguiu fazer com que oito deles aceitassem remédios (FUNAI ESP -
16/07/82).

Em 02 de julho de 1973, os Korubo atacaram o PIA Marubo. Queimaram o posto e mataram


a esposa de um dos trabalhadores. Em 16 de agosto de 1973, os Korubo atacaram novamente
o PIA Marubo. Mataram Sebastião Bandeira e feriram Bernardo Müller, responsável pelo
posto. No mês de maio de 1974, os Korubo mataram um seringueiro que caçava próximo ao
lago Meruim (Aquino 1998: 2).

Em fevereiro de 1975, cerca de 200 korubo apareceram na margem oposta do rio Itacoaí,40
em frente ao PIA Marubo, “hostilizando os integrantes da Frente de Atração” (idem). Em
novembro de 1975, outro funcionário da FUNAI, chamado Jaime Sena Pimentel, foi morto
próximo ao PIA Marubo. Nesse mesmo ano, os PIA Marubo e Rio Branco foram desativados
devido aos conflitos entre os brancos da FUNAI e os Korubo.

Em 1970 e 1975, registrou-se a morte de dois seringueiros na margem esquerda do rio Itaquaí
e na margem direita do rio Ituí. Em 1979, a casa de um seringueiro foi saqueada e um
pescador foi morto pelos Korubo, na margem esquerda do rio Itaquaí. Nesse mesmo ano, um
kanamari que trabalhava com o patrão Flavio Azevedo relatou que, ao encontrarem os
Korubo nas margens do rio Itaquaí, dispararam com armas de fogo na direção deles, sem
saber o número de óbitos.

Conforme mencionei, a aproximação entre os agentes estatais e os Korubo em 1974 culminou


na morte de Pimentel um ano depois. A morte desse funcionário gerou controvérsias acerca
de uma possível retaliação aos Korubo. Os brancos da FUNAI fotografaram os Korubo,
ofereceram mercadorias e combinaram um reencontro três meses depois. Quando os Korubo
retornaram ao posto, o chefe do PIA Marubo, Valmir Torres, estava de férias e fora
substituído por Bernardo Müller, que já escapara da morte anteriormente. Ao ver os Korubo,

40
“Itacoaí” e “Itaquaí” referem-se ao mesmo rio.
101
Müller, assustado, atirou fogos de artifício, doados pelo órgão indigenista aos funcionários.
Os Korubo correram.

Em novembro de 1975, os Korubo reapareceram. Torres e Pimentel atravessaram o rio


Itaquaí para encontrá-los e deixaram dois funcionários na retaguarda. Os Korubo os
atacaram: Pimentel morreu e Torres escapou. Uma Comissão de Sindicância da FUNAI foi
aberta e, posteriormente, arquivada, inocentando Torres. Contudo, o jornalista Rubens
Valente (2016: 241-250) registrou inconsistências nas investigações realizadas em 1975 e
2000. Os depoimentos e relatórios de Torres eram controversos acerca da posse ou não de
armas de fogo no momento do ataque por parte dos Korubo.

Alguns funcionários da FUNAI presentes no local afirmaram que ouviram disparos, mas não
mencionaram se os Korubo foram atingidos. Em 2015, José Tenazor, uma das testemunhas,
foi entrevistado por Valente (2016) em Atalaia do Norte/AM. Na entrevista, Tenazor
confirmou que os depoimentos da época foram corrigidos e combinados pelo responsável
pela investigação:

Em novembro de 1975, [Tenazor] era um dos funcionários da Funai que, do


outro lado do rio, acompanhavam a tentativa de Jayme e Valmir de manter
contato amistoso com os Korubo. Tenazor viu ambos com revólveres e apitos.
Ninguém sabia, mas os índios estavam escondidos no mato. Quando
sertanistas chegaram ao tronco caído no meio da roça, um garoto índio se
aproximou. Ato contínuo, os índios saíram da mata e cercaram os dois. Na
fuga, segundo Tenazor, Valmir teria derrubado um índio com um tiro. Em
socorro a Valmir, o pessoal da Funai, incluindo Tenazor, decidiu atravessar o
rio. Eles estavam com “nove ou dez armas”. Tenazor pegou uma espingarda e
uma caixa de balas e começou a remar. Ao chegar à outra margem, porém, um
índio da equipe chamado Apuí pegou a espingarda e subiu o barranco,
deixando-o desarmado. Valmir então aproximou-se, armado com um revólver.
Segundo Tenazor, quando ele conseguiu galgar o barranco e chegar à roça,
deu de cara com uma cena caótica e sangrenta. O pessoal da Funai disparava
suas espingardas e o ar estava carregado de fumaça da pólvora detonada. À sua
direita, um índio com “uma cara redonda, a cara de uma onça”, levantou seu
cacete contra um funcionário, mas outro atirou no rosto do índio, que girou,
“abraçou” uma árvore e deslizou para o chão. Metros adiante, Tenazor disse
ter visualizado outro índio, “bem moreno”, com “o cabelo bem quebrado”.
Este, segundo ele, “era o mandão” [um branco entre os Korubo, segundo
Tenazor], pois com um cajado e posicionado em um morrinho de terra parecia
ordenar as ondas de ataque dos índios contra o pessoal da Funai. Um tiro
derrubou o Korubo.

“O que o Valmir fazia nessa hora?”, eu [Rubens Valente] quis saber de


Tenazor.

102
“O Valmir só disse assim, quando estava aflito, lá dentro d’água: ‘Pô, mata ao
menos um que é para vingar a morte do homem [Pimentel]’. Só disso que ele
falou. Mas depois ele revogou [a ordem]. ‘Não, pô, atira para cima’.”
“Quantos índios o senhor acha que morreram?”, indaguei.
“Caído, caído mesmo, só aquele. Agora, só que por onde eles passavam, assim
por aqueles paus, [deixaram] aquele merdeiro de sangue. Eu não podia ir mais
porque eu tinha medo. Se eu fosse mais, eles iam me bater e eu só com dois
[cartuchos].”
“O senhor acredita que quantos tiros foram dados no total?”, perguntei.
“Tinha doze caixas de bala. Uma caixa tinha 25 cartuchos. Tinha doze caixas
de cartucho. Acho que não sobrou nada.” (Valente 2016: 246-7).

Segundo Tenazor, Torres teria autorizado os funcionários da FUNAI a dispararem na direção


dos Korubo. Em seguida, ponderou e disse para atirarem para cima. No depoimento, Torres
argumentou que escapara da morte porque correu, enquanto Pimentel estava de galochas e
não teve êxito, sendo alcançado pelos Korubo. Tenazor mencionou que, no mesmo dia da
morte de Pimentel, do outro lado do rio Itaquaí, os Korubo cantavam-choravam pelos seus
mortos: “era uma choradeira, foi a noite inteira. Eram 3 [mil] ou 4 mil índios. Eu não sei
onde estão esses índios, os Korubo. Hoje são tão pouquinhos.” (idem: 250). Esse é um dos
poucos registros que apresenta reações dos agentes estatais às tentativas mal sucedidas de
atração dos Korubo.

O registro também sugere uma convivência entre os Korubo e os brancos (o “mandão”) antes
do contato permanente com os agentes estatais. O acervo documental sobre o período
extrativista registra a presença de brancos entre os povos do Vale do Javari. Um destes era um
peruano, chamado Pancho, reconhecido como “patrão” dos índios do Quixito, uma área de
perambulação korubo. É curioso notar que, hoje, o termo pantxu é utilizado pelos Korubo
como um apelido para pessoas de baixa estatura. 41

Outro branco que, supostamente, teria contatado os Korubo chamava-se Deusdéti e


convivera com os Kulina-Pano dos igarapés Pedro Lopes e São Salvador. Após
desentendimentos com os Kulina-Pano, Deusdéti, Manduca Major, Gringo e Carrapixo
encontraram os “Corubo” e pretendiam “amansá-los”. Após ter ido encontrar os Korubo,
Major não retornou e os registros passam a mencionar com maior frequência os saques feitos
pelos Korubo em busca de objetos e alimentos industrializados, como sal e açúcar (Melatti

41
Na língua matsés, o cognato panchu refere-se ao líder das queixadas (Fleck, Bëso e Huanán 2012: 161).
103
1981: 113). É possível que os Korubo estivessem buscando esses itens porque acostumaram-
se a consumi-los enquanto houve/havia brancos entre eles (Coutinho Júnior 1993: 276).

Nos anos 1980, houve outras mortes dos agentes estatais e retaliações dos brancos aos
Korubo. Em 1982, o PIA Marubo foi reaberto na localidade Jó, margem direita do rio
Itaquaí. Em julho daquele mesmo ano, a morte de Amelio Wadick e José Pacífico,
funcionários da FUNAI, ao retornarem de uma pescaria, desativou a Frente de Atração
novamente. Conforme registros da FUNAI, o incidente ocorreu por um “erro tático: em vez
de arrastar pelo chão a canoa que traziam, colocaram-na nos ombros. Isso tirou-lhes a visão
da mata e acabaram sendo surpreendidos por 12 índios, que atacaram com bordunas.”
(FUNAI ESP - 16/07/82). Essas duas mortes revoltaram a população de Atalaia do Norte,
que se manifestou na sede da Ajudância do Alto Solimões (AJUSOL): estruturada para atrair
e assistir povos do Vale do Javari, cujos territórios seriam atravessados pela Rodovia
Perimetral Norte.

Em 1980 e 1981, dois pescadores foram mortos na margem esquerda do rio Itaquaí. Ainda
em 1980, os Korubo mataram um madeireiro no igarapé Coarizinho, afluente do rio Ituí
(Aquino 1998: 6). Em 1981, três patrões brancos entregaram farinha envenenada aos Korubo
naquele mesmo rio. No mês de julho, os Korubo revidaram saqueando uma instalação do
órgão indigenista e matando Adalberto, funcionário da FUNAI, que abria estrada para a
extração de seringa no rio Itaquaí. Em setembro e outubro de 1981, madeireiros retaliaram
os Korubo na Volta do Bindá, margem direita do rio Itaquaí. Em novembro de 1981, os
Korubo apareceram em igarapés no rio Quixito e deixaram “tapagens” na floresta.

A partir de um sobrevoo, realizado em agosto de 1982, registrou-se a existência de malocas


korubo nos rios Itaquaí, Branco e Ituí. A população korubo foi estimada em
aproximadamente 150 pessoas. 42 Após a reabertura do PIA no rio Itaquaí, houve encontros
pacíficos entre os agentes estatais da Frente de Atração e os Korubo. Em abril, maio e julho

42
Através do sobrevoo, a FUNAI registrou a existência de quatro malocas korubo no igarapé Marubo, rio
Itaquaí; duas malocas no igarapé São Pedro, margem esquerda do rio Branco; duas malocas no igarapé Correia,
margem esquerda do rio Itaquaí; uma maloca e uma roça no rio Novo, margem direita do rio Ituí. Eram nove
malocas korubo, uma delas estava abandonada.
104
de 1982, os Korubo receberam mercadorias e dialogaram com os funcionários através do
intermediário Binan Matis.

Nessas ocasiões, os agentes estatais perceberam que alguns Korubo contraíram malária.
Inicialmente, os Korubo relutaram para aceitar a medicação, mas depois cederam e
informaram que havia mais pessoas doentes nas malocas. Em seguida, naquele mesmo mês,
dois funcionários da FUNAI foram mortos. Era mais uma reação dos Korubo aos decessos
populacionais.

Entre 1982 e 1988, os Korubo saquearam e invadiram quatro vezes residências de


seringueiros e madeireiros. Em maio de 1982, o patrão João Bezerra disparou contra uma
mulher e uma criança korubo, deixando outros Korubo feridos. No mesmo ano, os
madeireiros retaliaram os Korubo no rio Itaquaí. Em 1983, as retaliações continuaram por
ordem dos patrões Flavio Azevedo e Flavio Pinto. Em agosto daquele ano, os Korubo
assassinaram o seringueiro Antonio Kulina no rio Novo, afluente da margem direita do rio
Ituí (Melatti 1983: 86).

Esse contexto caracterizou-se pela reivindicação da demarcação da TI Vale do Javari/AM e


pelas invasões dos brancos nas áreas de ocupação dos povos “isolados”, conforme o conceito
da política indigenista brasileira. O então presidente da FUNAI não queria demarcar um
território compartilhado, e sim reservas para cada povo da bacia do rio Javari. Em 1983, a
FUNAI realizou sobrevoos para delimitar a área. Em março daquele ano, o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), de Benjamin Constant/AM, registrou a
existência de seringais com títulos definitivos de propriedade, como “Valença, Gênova,
Arena, Porto Alegre, Flora e Floresta, na margem esquerda do Itacoaí, acima da confluência
com o Ituí na seção do Parque proposta para os Korúbo” (Melatti 1983: 80).

Pessoas físicas e jurídicas podiam apresentar um projeto de exploração e solicitar terras ao


INCRA, exceto para extração de madeira e borracha. O rio Ituí, área dos Korubo, possuía
pelo menos 16 lotes da empresa Três Pinheiros, proprietária de ambas as margens desse rio,
o que afetava as terras dos “isolados” no rio Quixito, e as áreas dos Korubo e dos Matis. Os
brancos evitavam algumas áreas de reconhecida presença dos Korubo, como a margem direita
do rio Ituí:

105
Em minha viagem de subida pelo rio Ituí, em janeiro de 83, realmente observei
que em suas margens se localizavam casas habitadas, a grande distância umas
das outras, desde sua foz até pouco antes da antiga localização do PIA Ituí.
Porém, dada a presença dos Korúbo, sua margem direita estava desabitada, em
longo trecho, desde aproximadamente o paralelo de 4° 55’ Sul até a foz do rio
Negro. Se isso acontecia na margem direita do Ituí, deveriam estar também
desertas, pelo mesmo motivo, a margem esquerda do Itacoaí abaixo da foz do
Branco, e a margem esquerda deste, no seu curso inferior (Melatti 1983: 82).

O ano de 1984 ficou marcado pelo conflito entre os Korubo e a Petrobrás. Os Korubo
atacaram outros dois funcionário: um da FUNAI e outro da Companhia Brasileira de
Geofísica (CBG), subsidiária da Petrobrás. O Decreto nº65.202 (22/09/69) e a Portaria
Interministerial nº006 (15/01/81) são documentos que condicionaram a “exploração de
minerais estratégicos” em terras indígenas a um acordo prévio e Convênio FUNAI-Petrobrás.
Em 11 de março de 1982, esse convênio foi assinado com prazo indeterminado.

O objetivo do convênio era realizar “pesquisa e lavra de petróleo e gases raros em terras
indígenas”, pois era uma atividade “de relevante interesse para a segurança e o
desenvolvimento nacional”. A FUNAI participava do Convênio enquanto “órgão
competente para exercer, em nome da União Federal, a tutela dos índios e das comunidades
indígenas ainda não integradas na comunhão nacional, gerindo o patrimônio indígena e
estabelecendo as diretrizes e garantindo o cumprimento da política indigenista, entre outras
obrigações [...]” (Convênio nº18/82).

Após a assinatura do convênio, em 1983, a Petrobrás penetrou o Vale do Javari,


especificamente os rios Jutaí, Jandiatuba e Itaquaí, áreas dos “isolados”. A petrolífera utilizava
bombas de dinamite e sobrevoos. Os ameríndios reagiram atacando os brancos. Um conflito
ocorreu em novembro de 1983, no rio Jandiatuba, e o outro em março de 1984, no rio
Itacoaí. Os Korubo realizaram o terceiro ataque:

Índios arredios conhecidos por “Kurubu”, mataram, em 04 set, a bordunadas,


Lindolfo Nobre Filho, funcionários da 1ª DR/FUNAI e João Praia Caldas,
funcionário da companhia brasileira de Geofísica (CBG), na região do rio
Itacoaí, afluente do rio Javari, após uma aproximação dos índios com as
vítimas, que se encontravam na área juntamente com uma equipe que realizava
pesquisa petrolífera. A 1ª DR/FUNAI desconhece a causa do ataque e
determinou o deslocamento, sábado (05 set), do chefe do setor de atração,
juntamente com o sertanista Sebastião Amancio da Costa, para a área em

106
questão, a fim de apurar as causas do episódio (MAO29 AC
3545/19/AMA/84 06SET/1745).

A reduzida equipe da FUNAI estava sem o auxílio dos intermediários ameríndios quando,
no dia 04 de setembro de 1984, Lindolfo Nobre Filho da FUNAI e João Praia da CBG foram
mortos a golpes de bordunas por cerca de 50 Korubo no acampamento. Na ocasião, ao
olharem os Korubo nas proximidades, os dois se aproximaram deles com mercadorias
industrializadas. Os Korubo chegaram a dar as mãos e a dançar com os funcionários. Depois,
os atacaram com golpes de bordunas. Cerca de 150 funcionários da Petrobrás assistiram ao
episódio. Dois dias depois, a CBG e a FUNAI retiraram os funcionários do local (Labiak e
Neves 1984: 130-4). Nesse conflito, estima-se que, no mínimo, um Korubo morreu, embora
inexista detalhes no acervo:

Apesar de todos esses ataques e mortes protagonizados pelos Korubo, há


também informações disponíveis neste Processo da Funai [BSB/1074/80]
acima citado, de que esses índios teriam sido massacrados e tiveram diversas
de suas malocas queimadas tanto pelos madeireiros quanto pela Petrobrás. As
explosões realizadas pela Petrobrás, no início dos anos 80, vêm repercutindo,
até mesmo nos dias de hoje, na recusa dos Korubo em estabelecerem relações
pacíficas com o mundo dos brancos (Amigos da terra 1997: 12).

Como medida diante do ataque dos Korubo aos funcionários da Petrobrás e CBG, a empresa
forneceu armas de fogo e munições aos trabalhadores. Seis dias após as mortes, suspenderam
os trabalhos no rio Itaquaí e migraram para os rios Jandiatuba e Curuena, área dos “isolados”
conhecidos como “flecheiros”. 43 A retirada da equipe do rio Itaquaí, composta por cerca de
400 pessoas, foi acompanhada de “100 mil cargas de dinamite, 500 tambores de querosene e
dinamitar uma linha já carregada” (Informe nº22/0851/G-3/84, Ministério do Interior).

No rio Jandiatuba, as equipes sísmicas abriram clareiras na área dos flecheiros, forçando-os
ao abandono de suas malocas. Em 19 de junho de 1984, a FUNAI denunciou que o
Convênio não estava sendo “respeitado” pela Petrobrás e suas subsidiárias. A FUNAI pediu

43
Conforme Aquino (1998: 3): “Esses “arredios”, que viviam no igarapé São José, eram denominados
“Flecheiros” pelos regionais, para os distinguir dos Korubo, que só utilizam “cacetes”, ou bordunas,
desconhecendo, assim, o uso de arcos e flechas”. Hoje, os Korubo do rio Ituí produzem arcos e flechas. Não
posso afirmar que essa tecnologia foi adquirida no pluricontato com o órgão indigenista. O uso de bordunas
(“cacetes”) caracteriza conflitos entre os Korubo e os brancos.
107
a suspensão dos trabalhos na área por tempo indeterminado para viabilizar os “trabalhos de
atração desses índios sem pressões de qualquer espécie”. Em 10 de setembro daquele ano,
diante dos conflitos entre a Petrobrás e os isolados, através da Informação nº002/ASS-
SUPEX, o Assessor II da FUNAI solicitou a reformulação do Convênio:

Por pressão dos grupos indígenas a Petrobrás está sendo obrigada a abandonar
a área indígena, havendo entretanto, ao que tudo indica, concluído a fase de
prospecção, preparando-se para a 2ª fase das operações que incluem a
perfuração de poços. Acreditamos que este seja o momento propício para a
reformulação do Convênio FUNAI/PETROBRÁS, como sugere a
Informação nº25/84-AESP, com a qual estamos de acordo.

Em 31 de outubro de 1984, o Centro de Informações do Ministério da Justiça registrou que


o motivo do ataque dos Korubo aos funcionários da Petrobrás e CBG foi uma “tentativa mal
sucedida de negociar objetos domésticos em troca da amizade dos nativos” (Informe
nº1848/01/V/84-CI/DPF, Ministério da Justiça). No Relatório sobre os trabalhos da Petrobrás
no Alto Solimões (1984), a FUNAI registrou que “se por imperativo nacional, a Petrobrás tiver
que efetuar trabalhos idênticos em áreas habitadas por grupos arredios [Korubo “isolados”]
esta Fundação, deve, dispor antes de todo o tempo que for necessário para contatar com os
grupos arredios, até que, consolidado o contato, possa tomar as medidas para neutralizar os
efeitos danosos” (BSB 05/11/84).

Além da atuação perturbadora da Petrobrás no Vale do Javari, em 1985 e 1986, o rio Ituí foi
disputado por madeireiros e seringueiros da Companhia Três Pinheiros. Havia mais de 50
seringueiros nas duas margens do rio Ituí, da foz do rio Novo de Cima até a confluência dos
rios Ituí e Itaquaí. Na porção baixa da margem esquerda do rio Ituí, local onde os Korubo
apareciam no verão, residiam oito seringueiros. Em contraposição, na margem esquerda do
mesmo rio, considerada mais segura pela ausência dos Korubo, havia cerca de 42 “colocações”
de seringueiros. No rio Itaquaí, havia seringais da Empresa Seringalista Amazonense e da Rui
Rossi Brasil (Cavuscens e Neves 1986: 182).

Em 1985, na tentativa de fugir das frentes extrativistas, os Korubo atravessaram o rio Itaquaí
pelo menos três vezes e expandiram a sua área de ocupação. Deslocaram-se para a área entre
a margem esquerda do rio Ituí e o rio Esquerdo, afluente da margem direita do rio Quixito;

108
a margem direita do rio Itaquaí; a área entre o rio Itaquaí e acima da foz do rio Branco (idem:
187).

Em 30 de agosto de 1985, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) entrou com uma


“Ação popular contra a FUNAI e a PETROBRÁS” para “anular um convênio entre as duas
entidades” visando a proteção dos isolados (Informe nº1096/01/V/85-CI/DPF). Um ano
depois, em 10 de novembro de 1986, o Vale do Javari era uma região de “Prioridade 01” no
Estudo nº009-4ªSC/86 sobre ilicitudes e carências na região da Amazônia legal (Estudo
Preliminar nº025/3ªSC/86 sobre o Desenvolvimento ordenado da Amazônia legal). 44

Após o conflito entre os Korubo e os funcionários da Petrobrás e CBG, em 1984, eles


mataram outro branco na margem direita do rio Ituí (Cavuscens e Neves 1986: 187). Em
1985, atacaram a casa do seringueiro José Nelson da Silva, na margem esquerda do rio Ituí
(Aquino 1998: 6). Naquele mesmo ano, um cadáver korubo emergiu no estirão do igarapé
Fraternidade, rio Itaquaí, e foi encontrado por um kanamari. A FUNAI investigou e localizou
pertences dos Korubo na localidade Volta Grande. Em 1986, houve conflitos entre os
Korubo e madeireiros no rio Branco. Um dos madeireiros faleceu, o outro foi ferido
(Montagner 1988: 273).

Em junho e julho de 1987 e agosto de 1988, os conflitos entre os seringueiros e os Korubo


continuaram. Os Korubo queimaram duas casas de brancos: uma no Estirão do Cruzeiro,
margem esquerda do rio Ituí, e a outra próxima da foz nesse mesmo rio. 1987 foi um ano de
aparições dos Korubo e consequentes exposições a conflitos e doenças. Em agosto, eles
apareceram no igarapé Quebrado, margem esquerda do rio Ituí. Os moradores fugiram e
pediram a ajuda da Administração Regional da FUNAI. Após um tempo, os brancos
retomaram as suas colocações naquele local. No final de novembro, os Korubo aproximaram-
se ainda mais de Atalaia do Norte/AM e entravam nos barcos dos brancos para pedir
alimentos e mercadorias industrializadas. Os brancos, por sua vez, arremessavam esses itens
nas margens dos rios.

44
Nos anos 2000, a busca por petróleo foi reiniciada por parte da agência estatal peruana Perúpetro S.A. No
final de 2007, através dos Contratos de Licencia para la Exploración y Explotación de Hidrocarburos, o governo
peruano objetivava explorar petróleo na fronteira brasileira, incidindo no território dos Matsés e dos “isolados”,
no rio Jaquirana (Coutinho Júnior 2014).
109
O ano de 1989 ficou marcado pelo massacre aos três korubo no lago Gamboá, próximo à foz
do rio Itaquaí. Um dos poucos conflitos envolvendo os Korubo que foi noticiado por jornais,
como Gazeta do Povo, Correio Brasiliense e Notícias Populares. O padre Joseney Lira, da
Pastoral Indigenista da Diocese do Alto Solimões, fez a denúncia com base no testemunho
de um seringueiro. Conforme a apuração, após aparecerem nas redondezas da casa um
seringueiro, quatro homens korubo foram perseguidos por um grupo de 15 brancos. Dos
quatro korubo, três foram assassinados com armas de fogo em setembro de 1989, no lago
Gamboá.

Dois meses depois, a Polícia Federal e a FUNAI localizaram os três corpos e encaminharam
para a exumação e o inquérito. Os moradores do Parque Nacional Ajanari indicaram três
pescadores como os autores desse crime. A FUNAI anunciou a implantação de um posto
nesse parque para bloquear a entrada dos brancos na área dos Korubo. Os conflitos se
acirraram desde a criação desse parque em 1987, quando os índices das invasões de
madeireiros e caçadores aumentaram. Após o assassinato dos três korubo, os moradores
relataram que pescadores e madeireiros utilizaram bombas de pesca contra outros Korubo no
rio Ituí (ISA 1987/90: 278). 45 No ano seguinte, a investigação do caso do lago Gamboá
regrediu. Da esfera federal voltou à estadual e foi paralisada pelo juiz da Comarca de Atalaia
do Norte/AM.

Nos anos 1990, os conflitos entre os Korubo e os madeireiros foram acirrados. A exploração
madeireira no Vale do Javari, iniciada nos anos 1980, aumentou. Houve invasões em diversas
localidades da área indígena. A sobrevivência dos Korubo tornou-se uma preocupação latente
(ISA 1991/95: 347). A população branca residente no rio Ituí aumentou. Desde o conflito
com a Petrobrás em 1984, os brancos passaram a incidir sobre a área dos Matis por temerem
as reações dos Korubo. Nessa época, madeireiros penetraram o rio Coari em busca de madeira
branca (Montagner 1988: 272).

Havia uma preocupação, por parte da FUNAI e do movimento indígena local, com as
constantes aparições dos Korubo nas margens dos rios. No verão, eles apareciam em busca de

45
Aquino (1998: 88), a partir do depoimento do padre Joseney Lira, registrou que as bombas foram deixadas
pelos pescadores em lagos do rio Itaquaí, não no rio Ituí.
110
ovos e quelônios, tornando-se vulneráveis (idem: 273). Em 1993, o sertanista Sebastião
Amâncio da Costa relatou que os Korubo estavam tão acuados pelas frentes extrativistas que
um pequeno grupo se instalou na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, local onde a madeira já
havia sido praticamente toda extraída. Esse grupo passou a lidar com as pressões dos
pescadores que adentravam pelos lagos centrais (Coutinho Júnior 1998: 60).

Um sobrevoo, realizado em 1991, revelou a presença de malocas korubo e de um grupo de


madeireiros nas vertentes do igarapé Marubo, no rio Itaquaí. Esse grupo de madeireiros era
chefiado pelo patrão Flavio Pinto que, com a utilização de cães farejadores, liderara uma
caçada aos Korubo nesse local. Conforme o Jornal do Brasil e o Correio Braziliense, em
novembro de 1991, uma equipe composta pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e
pela FUNAI recebeu a denúncia de que um grupo de madeireiros atuava com seis tratores na
área dos Korubo.

O sertanista Pedro Coelho verificou a informação e constatou que os Korubo estavam


encurralados pelos madeireiros. Por isso, os Korubo acabaram atravessando o rio Itaquaí em
direção à sede da fazenda Palmito do Sul, da empresa Agropalm, localizada fora dos limites
interditados pela FUNAI. O órgão indigenista solicitou o auxílio da Polícia Federal e do
Exército para realizar a desintrusão da área. A polícia se recusou a agir sem a autorização da
Justiça Federal do estado do Amazonas (ISA 1991/95).

Os madeireiros assediavam as roças korubo e disparavam com armas de fogo na direção deles.
Nesse mesmo ano, os Korubo reagiram matando dois madeireiros no rio Coari, afluente do
médio rio Ituí, e deixaram 19 bordunas junto aos corpos. Havia vítimas entre os Korubo,
mas essa informação não foi confirmada. Após essas duas mortes, no dia 10 de dezembro de
1991, os madeireiros saíram de Benjamin Constant/AM em uma expedição punitiva aos
Korubo.

Além dos madeireiros, em 1991, uma equipe de filmagem da Universidade de Brasília


verificou a presença de caçadores na área dos Korubo. Sob a autorização do chefe de posto da
FUNAI, esses caçadores carregavam cerca de 500 quilos de carne de caça salgada e animais
silvestres. Nesse mesmo ano, o Conselho Indígena do Vale do Javari (CIVAJA) relatou o
avistamento dos Korubo na confluência dos rios Ituí e Coari, onde os palmiteiros da

111
Agropalm Indústria e Comércio de Alimentos S.A atuavam. O CIVAJA demandava a
intervenção da FUNAI para evitar conflitos entre os Korubo e os brancos (ISA 1991/95: 343-
4). 46

Em 1992, a FUNAI instalou um posto móvel na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, onde
cerca de 40 korubo apareceram. Em dezembro de 1993, a morte de outro madeireiro,
chamado Luiz Biá, no igarapé Tira Luxo, afluente do rio Quixito, gerou retaliações aos
Korubo. Diversos madeireiros abandonaram as suas residências no alto rio Quixito, após a
morte de Biá. O madeireiro José Maria pediu a ajuda de Nonato Marubo para encontrar o
tapiri dos Korubo, mas não obteve ajuda. Então, foi para Benjamin Constant se reunir com
outros madeireiros e preparar a retaliação aos Korubo (ISA 1991/95: 344).

Em 1994, os Korubo saquearam acampamentos de madeireiros no rio Branco. Os


madeireiros se mudaram do igarapé Trincheira para outro afluente desse mesmo rio. Os
Korubo foram atrás deles. Ainda nesse ano, a Pastoral Indigenista do Alto Solimões recebeu
informações de que uma turma de madeireiros invadiu o baixo rio Ituí para retirar cedro e
mogno, e fez uma “correria” contra eles (Aquino 1998: 7). Madeireiros no rio Ituí avistaram
os Korubo diversas vezes. Em outubro de 1994, uma equipe de saúde os encontrou. Eles
informaram que estavam com fome. A contínua exploração madeireira afugentava as caças.

Entre janeiro e agosto de 1995, 58 embarcações de madeireiros transitaram pela área dos
Korubo. A penetração das frentes madeireiras compeliu os Korubo a se deslocarem para novas
áreas. Em fevereiro de 1995, os Korubo mataram um funcionário da Companhia de
Abastecimento do Amazonas no igarapé Pau Branco, margem direita do rio Quixito, e
apareceram em roças dos brancos nesse mesmo rio. Duas semanas depois, os moradores
informaram que um grupo de madeireiros assassinou 10 korubo no rio Quixito.

Em maio de 1995, o sindicato dos madeireiros e seus aliados políticos organizaram um


encontro que reuniu cerca de 400 pessoas em Benjamin Constant/AM. Os manifestantes
exigiram a liberação das madeiras apreendidas pelo Exército, repudiaram a demarcação da

46
Em dezembro de 1990, durante o I Encontro dos Povos Indígenas do Vale do Javari, o CIVAJA foi criado em
Atalaia do Norte. Em 1992, ocorreu a I Assembleia Indígena do Vale do Javari no médio rio Curuçá (Ortolan
Matos 2006). Hoje, o movimento indígena é representado pela UNIVAJA, criada em 2010.
112
área indígena, ameaçaram os Korubo e seus aliados, e pretendiam formar um grupo armado
de caça aos Korubo. Em Atalaia do Norte/AM, a Pastoral Indigenista da Diocese do Alto
Solimões, a FUNAI e a Polícia Federal tomaram providências diante das ameaças. Em março,
durante duas passeatas, organizações indígenas e seus aliados elaboraram um manifesto
exigindo a proteção dos Korubo (ISA 1991/95: 335).

Em maio de 1995, o Exército realizou uma operação com a FUNAI e apreendeu entre quatro
a cinco mil metros cúbicos de madeira cedro na área dos Korubo. A madeira extraída,
destinada a Manaus, foi interceptada. O setor madeireiro ficou indignado (ISA 1996/2000:
434-5). Em 1997, a equipe Amigos da Terra entrevistou quatro membros da Associação dos
Madeireiros do Alto Solimões:

Eu tenho, por exemplo, presa lá no Ituí 800 toras de cedro e 300 toras de
madeira branca. E já tenho derrubada e rolada mais de 1.200 toras de madeiras
no rio Itacoaí, que não pude mais tirar por causa da prisão de toda safra de
madeira do Vale do Javari. Eu sei, que a partir do dia 22 de maio de 96, os
fiscais do IBAMA e agentes da Federal prenderam mais de 20 mil metros
cúbicos de madeira de todos os madeireiros do Vale do Javari. Nós
trabalhamos, não sei quantos anos, extraindo madeiras do Vale do Javari,
inclusive, financiados pela agência do BASA daqui de Benjamin Constant e da
agência do Banco do Brasil de Tabatinga.

[...] foram 16 grandes apreensões de madeira. Cada chefe de turma trabalha


com várias turmas de madeireiros. Eu, por exemplo, trabalhava com cinco
turmas de madeireiros. Outro chefe de turma ali trabalhava com 10 turmas e
outro com 8 turmas. E assim por diante. E cada turma de madeireiros é
baseada em 8 homens, cada uma. Então, é muita gente envolvida.

O pior de tudo é que toda nossa madeira foi apreendida na colheita da safra,
justamente em fins de maio de 96, época em que ocorre as grandes enchentes
aqui nesta região. Aí não houve como remanejar. E, olhe, que representantes
da Superintendência do IBAMA de Manaus tiveram antes aqui, dizendo que
nós podia descer com a nossa madeira, que não ia ter problema. Veio até o
deputado Euler Ribeiro, fizemos uma reunião com ele ali no prédio da
Biblioteca. E ele disse: − Vocês todos podem baixar com a safra de madeira de
vocês, que não vai ter problema nenhum. Embora muitos de vocês trabalhem
na área de pretensão dos índios, não vai acontecer nada com a madeira de
vocês Podem baixar com a madeira que não vai acontecer nada, porque quem
tá falando aqui é o deputado Euler Ribeiro (Amigos da Terra 1997: 100-1).

113
Naquele mesmo mês, os Korubo alcançaram as roças dos moradores da comunidade Ladário,
na margem esquerda do rio Itaquaí, e percorreram o rio Quixito e a margem esquerda do rio
Ituí (Cavuscens 1995: 335-7). A extração de madeira estava vinculada a caça e pesca,
conforme Vitor Magalhães, proprietário de duas serrarias em Benjamin Constant/AM:

Em seu depoimento, a seguir, disse que, mesmos sem incentivos e


financiamentos do governo federal, construiu açudes em sua fazenda,
localizada nas proximidades de Benjamin Constant, onde está criando mais de
três mil quelônios (tracajás e tartarugas) e muitos peixes, sobretudo o tambaqui
e o curimatã. Além disso, vêm realizando plantio consorciado de mais de dois
mil pés de cupuaçu com algumas madeiras nobres da região e, ainda, criação
de gado leiteiro e de corte (Amigos da Terra 1997: 107).

Em agosto de 1995, os saques às roças dos brancos continuaram. Os Korubo, em contínuo


estado de fuga, enfrentavam dificuldades para caçar e abrir roças. Nesse mesmo mês, mataram
um morador da comunidade ribeirinha Monte Alegre, chamado Guilherme Barbosa, na
margem esquerda do rio Itaquaí. Na ocasião, o prefeito de Atalaia do Norte forneceu oito
caixas de munição aos madeireiros da comunidade Ladário para retaliar os Korubo (Coutinho
Júnior 1998: 64).

Além do massacre no lago Gamboá em 1989, outro ocorreu entre 1995-96, apurado pelo
indigenista Rieli Franciscato posteriormente. No Relatório sobre Massacre de Índios Korubo,
ocorrido em 1995, Franciscato (2000) narrou a sua viagem com uma parcela dos Korubo,
contatada em 1996, a um local onde havia ossadas de seus antepassados mortos por brancos
da comunidade Ladário em 1995, ou seja, um ano antes do primeiro evento de contato com
o órgão indigenista. Três anos depois, em 1998, os agentes estatais observaram fragmentos
de chumbo nas partes dos corpos dos Korubo.

Após esse primeiro evento de contato com a FUNAI e a consequente aproximação desses
Korubo com as comunidades ribeirinhas do entorno da terra indígena, eles reconheceram os
brancos que foram os autores do crime e passaram a relatar mais detalhes desse massacre aos
agentes estatais. Segundo o relato coletado por Franciscato (2000), Takvan, Lëyu, Malevo,
Tsamavo, “Yiwá” e Txukuma foram a uma roça da comunidade Ladário coletar bananas e
pernoitaram nas proximidades. Pela manhã, os brancos os emboscaram. Txukuma e “Yiwá”
caíram no chão. Malevo e Tsamavo escaparam porque permaneceram deitados imóveis.

114
Quando os brancos foram embora, Lëyu e Takvan retornaram ao local. Txukuma estava
morto e “Yiwá” estava desfalecida. 47 Ela foi carregada, mas faleceu a caminho da maloca. Por
causa das dores, os Korubo não transportaram até a maloca nem os enterraram. Dias depois,
retornaram para enterra-los, mas encontraram um rastro de queixadas e decidiram caçar. Após
1996, os Korubo viram os ossos outra vez, mas não os enterraram. Após essas duas mortes,
os Korubo se esconderam em um local e abriram roças. Em janeiro de 1996, através da
Portaria nº003/PRES, a FUNAI criou a Frente de Contato para a atração dos Korubo. Meses
depois alcançou o objetivo, configurando o primeiro evento de contato, conforme veremos
no capítulo 2.

1.4. Da fuga a busca

Era 13 de julho de 2019, na aldeia Tankala Maë, rio Ituí. Um homem com cerca de 33 anos
de idade, chamado Pinu, havia sido contatado pela FUNAI em 2014. Naquela manhã, Pinu
me disse que seus avós contavam que quando os brancos (latkute) viam os Korubo nas
margens dos rios atiravam na direção deles com armas de fogo. Então, ele e a sua geração
cresceram com medo (lakule) dos brancos, pois aprenderam que os brancos são “perigosos”.
Quando viam os cartuchos de munição vazios espalhados pela floresta, eles mudavam a
direção do caminho. Pinu afirmou que antes da relação permanente com o órgão indigenista,
ele pensava que outros ameríndios eram nawa devido ao uso de roupas e armas de fogo. Ele
não compreendia que havia outros povos, nem o que era a FUNAI e a equipe de saúde.

Um mês após aquela conversa, Pinu e sua esposa, Naylo, me convidaram para comer na casa
deles. Dessa vez, Pinu expressou algumas inquietações em relação aos brancos. Era noite
quando fui à casa de Pinu e Naylo. Lá, havia um jovem intermediário korubo que fala bem
a língua portuguesa. Sentei-me em um banco de madeira, utilizado pelos homens, chamado
de tsatte. Enquanto comíamos, notei que Pinu parou por um momento a me observar e, com

47
Franciscato (2000: 5) registrou o nome “Yiwá” para essa mulher falecida e indicou que era a “mãe” (M) de
Lëyu. De acordo com as informações que obtive, a mãe de Lëyu chamava-se Maluxin. É provável que a mãe de
Lëyu possuísse dois nomes, tivesse trocado de nome, ou ainda, poderia se tratar de uma tita utsi (MZ), pois para
os Korubo MZ=M.
115
a tradução do jovem, me falou que não compreendia como eu, sendo “mulher”, “sabe sentar”
[no tsatte]. Em seguida, levantou-se e imitou os agentes estatais da FUNAI e SESAI,
especialmente, imitou o modo como aqueles nawa caminham e se sentam em bancos tsatte.
Pinu não precisou mencionar os nomes, pois todos sabíamos quem eram as pessoas que ele
imitava, tamanha era a perfeição de sua performance. Ele imitava sério, parecia inconformado
e confuso. Aquela não foi a única nem a última vez que os Korubo expressaram inquietações
com o corpo dos brancos.

Nesse capítulo vimos que, inicialmente, os Korubo foram mencionados de modo confuso na
historiografia da região. Havia uma profusão de etnônimos vinculados aos Pano setentrionais,
característica acentuada durante o extrativismo no Vale do Javari. Apesar da confusão no
acervo documental, os registros ganharam certa precisão no século XX, quando determinadas
características específicas dos Korubo e distintas de outros Pano setentrionais, serviram para
identifica-los, como o corte de cabelo em meia-lua, a localização no baixo curso dos rios e o
uso das bordunas nos conflitos com os brancos.

Vimos também que Korubo é um etnônimo e a maneira como eles concebem a si mesmos
perpassa o pronome “nós” (nukmi) em relação a “outros” (wëtsi). Cada um desses pronomes
possui camadas de relações que se atravessam mutuamente. O nukmi envolve diferenciações
entre unidades Xiavo-Txikitxoevo e o que, suponho, ser um aspecto do sistema de metades
Pano, expresso nos termos ayakovo-tsasivo. O nukmi não diz respeito a um todo, e sim à
proximidade e distância entre pessoas kimvo e wëtsi. A categoria “outro” (wëtsi), por sua vez,
envolve os parentes classificatórios e outros tipos de alteridade mais distantes, como os
brancos, chamados de latkute e nawa. Os termos latkute e nawa são utilizados pelos Korubo
para se referir aos brancos, estrangeiros e inimigos.

No contexto da extração de recursos, como borracha, madeira e petróleo, os povos do Vale


do Javari estabeleceram relações diversas com os brancos: da prestação de serviços em troca
de mercadorias à guerra contínua. Os Korubo se encaixam nesse segundo modelo relacional
e não estiveram tão “isolados” quanto o conceito da política indigenista brasileira pressupõe.
Os registros documentais disponíveis e os dados etnográficos não me permitem assegurar que,
no passado, os Korubo estabeleceram outro modelo de relação com os brancos que não fosse

116
o de conflitos, raptos, saques e mortes. Ao longo desse período, houve movimentos
esporádicos de aproximações e distanciamentos por parte dos Korubo para obter ferramentas
de metal, mercadorias industrializadas e alimentos. O estado de fuga contínua, assinalado por
Pinu, levou os Korubo a uma situação de encurralamento em que tornou-se inviável manter
roças e malocas, o que os aproximava novamente dos brancos, formando um ciclo contínuo
de aproximações e distanciamentos.

Os latkute mortos a golpes de bordunas pelos Korubo não foram apenas os extrativistas, mas
também os agentes estatais das Frentes de Atração que, desde os anos 1970, tentavam contatar
os Korubo para construir a Rodovia Perimetral Norte: um projeto do governo federal para
ligar diferentes estados na Amazônia. A demarcação e homologação da TI Vale do Javari/AM
aconteceu em meio a esses conflitos envolvendo os Korubo, então “isolados”. Uma parcela
dos Korubo só viria a ser contatada pela FUNAI em uma expedição de contato em 1996,
conforme discutirei no próximo capítulo.

Ao longo do século XX, os Korubo ocuparam um território que compreende dos rios Ituí e
Itaquaí aos rios Coari e Branco, no Vale do Javari. Com a extensão de 8,5 milhões de hectares,
a TI Vale do Javari/AM foi demarcada e homologada em 02 de maio de 2001, em um cenário
que mesclava manifestações contrárias, conflitos e campanhas favoráveis mencionando os
Korubo. Hoje, na TI, residem povos das famílias linguísticas Pano (Matsés, Matis, Marubo,
Korubo e Kulina-Pano) e Katukina (Kanamari e Tsohom-dyapa). Além do maior contingente
de povos “isolados” do mundo, ou seja, povos que adotam uma postura de recusa a certos
tipos de relações, inclusive, às relações com as instituições estatais (Ricardo e Gongora 2019;
Rodrigo Octavio et al. 2020).

Atualmente, os jovens korubo manifestam a consciência dos raptos e das correrias como
elementos constitutivos das histórias dos seus antepassados e aproveitam ocasiões para fazer
perguntas sobre os brancos. Indagavam-me se, na cidade, semelhante ao que acontecia no
Vale do Javari, os brancos “roubavam” as mulheres ou apenas as “coisas delas”. Comentavam
que, no passado, os Matis raptaram meninas korubo e as criaram, 48 os Korubo raptaram

48
O rapto de duas meninas korubo pelos Matis, no início do século XX, fortaleceu o sentimento de parentesco
pautado na autoidentificação dos Matis com a ascendência korubo (Erikson 1996: 96; Arisi 2007: 76; Matos
2015: 20).
117
mulheres matsés, e os seringueiros raptaram e violentaram mulheres korubo. Os mais velhos
contaram àqueles rapazes histórias de mulheres korubo que, violentadas pelos latkute,
engravidaram, usaram plantas para envenená-los e fugiram.

Os jovens korubo não sabiam me dizer os nomes dessas mulheres, nem detalhes sobre esses
raptos, mas sabem que isso faz parte do seu passado, conforme Pinu já havia sido alertado e
aconselhado pelos seus antepassados sobre os brancos serem “perigosos” e, portanto, evitáveis.
A priori, os latkute são inimigos com quem os Korubo guerreavam, inimigos que mataram os
seus antepassados com armas de fogo. Hoje, os latkute passaram a ser também os
pesquisadores e agentes institucionais. Conforme Pinu mencionou, há um processo
vivenciado pelos Korubo de adquirir consciência sobre esses “outros”, além dos latkute,
distinguindo-os (FUNAI, profissionais de saúde, outros povos etc.). Sugiro que essa
complexificação da noção de alteridade (wëtsi-latkute) levou os Korubo a utilizarem, com
maior frequência, o termo nawa – presente em outras línguas Pano – para se referir a essa
nova categoria de brancos com quem estabelecem relações que não são mais de guerra.

Para os Korubo, os brancos estão relacionados ao perigo e, ao mesmo tempo, “têm medo de
Korubo” devido às mortes em um passado recente. Os Korubo sabem que seu caráter
guerreiro os colocou em posição diferenciada na relação com os brancos em comparação aos
contatos interétnicos que os brancos tiveram com outros povos do Vale do Javari. Sabem que
o estereótipo dos “caceteiros” do Vale do Javari tem forte repercussão, sobretudo, na região.
Apesar disso, os Korubo possuem grande curiosidade sobre os brancos em geral. Tais
curiosidades são direcionadas àqueles com quem os Korubo tentam estabelecer outros
formatos relacionais, como as petições incansáveis e as brincadeiras de trocar os nomes
próprios das pessoas que hoje trabalham com eles.

Os dados do acervo documental somados ao contexto etnográfico que encontrei em 2019-


20 evidenciam o contraste nos modos que os Korubo encontram para se relacionar com os
brancos: da hesitação aos latkute à busca por compreender os nawa. Após um longo contexto
de conflitos, os Korubo passaram a buscar não apenas as ferramentas de metal, mas também
outras “coisas de nawa” (Oliveira 2016). Se, inicialmente, os latkute ofereciam alimentos
envenenados aos Korubo, nos últimos anos, a “comida de branco” e as mercadorias

118
industrializadas são cobiçadas pelos Korubo como elementos centrais na relação entre eles e
os nawa. 49

Os Korubo se esforçam para compreender os nawa, fazendo perguntas e observando-os


minuciosamente, com especial atenção ao corpo dos brancos. Conforme as indagações de
Pinu ilustram, a postura curvada é, com frequência, alvo de estranhamentos por parte dos
ameríndios na relação com os brancos. Sabemos que uma das características do pensamento
ameríndio é justamente a crença na unidade de espírito e a diversidade de corpos, ou seja, o
cerne das diferenças entre eles e os brancos está nos corpos. Ameríndios e brancos são
diferentes porque possuem corpos distintos. Mas o conceito de “corpo” aqui não diz respeito
apenas a materialidade, e sim a um “sistema disposicional de afetividade”, uma mescla de
afetos e afecções constitutivos de modos de ser (Viveiros de Castro 2004: 254; 2009: 31-42).

As etnografias sobre o contato interétnico apresentam diversas concepções ameríndias em


torno dos brancos. O caso dos Yanomami, por exemplo, evidencia como os tipos de contatos
com os brancos transformaram a maneira como os Yanomami pensam os brancos, as
mercadorias industrializadas e as doenças. No período extrativista, os Yanomami associaram
os brancos a seres maléficos e fantasmas devido a características, como ao fato de não falarem
a língua yanomami, a calvície ou pilosidade, ao uso de roupas e sapatos. Depois, os brancos
foram concebidos como detentores de “duplos”, espíritos maléficos que utilizam as
mercadorias para proliferar doenças e epidemias através da fumaça (Albert 1992).

As etnografias sobre povos Pano também revelam concepções ameríndias em torno do corpo
dos brancos, ou melhor, da postura corporal dos brancos. Uma das representações rituais dos
Kaxinawá acerca dos brancos era caracterizada por “sobrancelhas muito grossas, grandes
orelhas, uma barba horrível e um cigarro pendurado no canto da boca. Sua voz era rouca e
ridícula, sua postura curvada, e ele se balançava de um lado para o outro enquanto falava.”
(McCallum 2002: 385). Para os Marubo, também falantes de língua Pano, é importante
sentar com as nádegas, e não com o cóccix. O sentar curvado cria barriga (apôtsaka). É uma
postura deselegante que denota fraqueza. Pessoas que não sabem sentar envelhecem sem

49
Conforme veremos no capítulo 6, a “comida de branco” (nawan pete) inclui arroz, farinha, calabresa, frango,
pão, bolachas, macarrão, café, açúcar e sal.
119
flexibilidade corporal. A postura curvada é uma “má formação anatômica” (Nelly Dollis,
comunicação pessoal).

Para os Korubo, os nawa não têm postura corporal: não sabem se sentar ou caminhar,
possuem corpos flácidos e estranhos. Isso é um dos aspectos que os diferencia dos Korubo.
Homens e mulheres korubo mantêm o tórax ereto. Uma atitude que destaca a rigidez dos
seus corpos, tornando-os mais altos e fortes. Mesmo quando desempenham suas tarefas
cotidianas, a coluna vertebral permanece ereta. Pinu não compreende o fato de homens
brancos caminharem e sentarem nos bancos tsatte, espaços masculinos, com a coluna vertebral
arqueada, os ombros para frente, esparramados e moles. Os corpos dos brancos lhes parecem
estranhos. Os brancos não sabem se comportar. Sentam e caminham sempre arqueados, com
seus corpos flácidos, balançando de um lado para o outro. Outrora em fuga dos latkute, hoje
os Korubo buscam compreender os nawa, com especial dedicação ao corpo dos brancos, cerne
da diferença de perspectivas.

120
2

PLURICONTATO

O histórico de relações entre os Korubo e os brancos não é recente e antecede a chegada dos
agentes estatais do órgão indigenista na bacia do rio Javari. No capítulo anterior, a partir do
acervo documental e dos dados etnográficos, mostrei que durante o período extrativista os
Korubo adotaram uma postura de recusa a um certo tipo de relação com os brancos e que,
hoje, essa postura contrasta com uma busca por compreender os brancos. Essa passagem da
fuga à busca tem sido gradual. Desde os anos 1970, os agentes estatais do órgão indigenista,
a FUNAI, tentavam estabelecer o “contato” pacífico e exitoso com os Korubo, algo que só
passou a acontecer nos anos 1990. Foram mais de 20 anos de tentativas fracassadas que
resultaram em conflitos e mortes.

A partir de 1996, houve uma sequência de eventos de contato entre os Korubo e a FUNAI.
Ao todo, foram seis eventos que configuram quatro marcos de contato (1996, 2014, 2015 e
2019) em sub-bacias hidrográficas distintas (Ituí, Itaquaí, Branco e Coari) – cenário que
chamo de pluricontato. Em 1996, os agentes estatais contataram uma parcela dos Korubo.
Em 2014 e 2015, os intermediários e, posteriormente, a FUNAI contataram quatro parcelas,
pois foram dois eventos de contato em cada ano. Em 2019, a FUNAI contatou outra parcela
korubo. Ao todo, foram quatro marcos de contato e seis eventos, pois em 2014 e 2015 houve
dois eventos de contato realizados com parcelas distintas.

Evento 1 1996
Evento 2 2014
Evento 3 2014
Evento 4 2015
Evento 5 2015
Evento 6 2019
Tabela 4. Eventos e marcos de contato.

Sugiro que o termo “evento de contato” refere-se ao início do estabelecimento de outro tipo
de relação entre os Korubo e os agentes estatais, enquanto o termo “marco de contato” refere-

121
se ao ano de realização dos eventos. As relações que outrora caracterizaram-se por guerra e
intermitência transformam-se gradualmente em trocas contínuas. O evento pode ou não ser
precedido por “expedições de contato”. Mas, no caso korubo, caracteriza-se pelo
estabelecimento de um “acampamento de contato”, seguido de relações diretas e contínuas
entre os Korubo e os agentes estatais e do acesso às mercadorias industrializadas decorrentes
dessa relação.

O “contato”, em vez de assinalar a passagem entre as categorias da política indigenista voltada


aos PIIRC (de “isolados” a “recente contato”), no caso korubo, diz respeito a passagem da
guerra à troca, nos termos propostos por Lévi-Strauss (1976). Os conflitos guerreiros e as
trocas econômicas são dois aspectos opostos e indissolúveis de um processo social. No caso
korubo, há uma passagem lenta e gradual da hostilidade à cordialidade, da agressão à
colaboração. Se, por um lado, a troca é guerra potencial pacificamente resolvida, por outro
lado, a guerra é o resultado de transações mal sucedidas (Lévi-Strauss 1976). Falar de
pluricontato, no caso korubo, refere-se a sobreposição e co-ocorrência dos eventos de contato
que marcam o início dessa passagem gradual e mudança relacional da hostilidade e agressão
à cordialidade e colaboração, da guerra à troca.

Durante a pesquisa de campo, havia pessoas de cinco eventos de contatos ocorridos em 1996,
2014 e 2015 residindo juntas nas aldeias no rio Ituí. Todas elas estavam envolvidas no evento
de contato realizado em março de 2019 no rio Coari. Não conheci os Korubo contatados
pela FUNAI em 2019 nem estive no rio Coari, mas esse evento de contato norteou o
cotidiano das aldeias korubo no rio Ituí. Os dados etnográficos utilizados nesse capítulo
foram coletados durante a minha permanência nas aldeias korubo do rio Ituí, paralela ao
sexto evento de contato realizado no rio Coari. A produção dos artefatos, a circulação das
pessoas e dos alimentos entre aldeias, a busca por notícias, a relação com os brancos foram
aspectos atravessados por esse novo evento de contato.

Nesse capítulo, a partir das referências bibliográficas em diálogo com os dados etnográficos,
analiso o pluricontato entre os Korubo e a FUNAI. As quatro primeiras seções refletem os
quatro marcos de contato, especificados em seis eventos. A quinta seção analisa a atuação dos

122
intermediários ameríndios no pluricontato. Conceitos, como “expedição” e “acampamento
de contato”, são acionados para elucidar a discussão sobre intermediação.

2.1. Evento 1

Em 1996, os agentes estatais conseguiram realizar o “primeiro contato” (pacífico e


considerado como “oficial”) com os Korubo. Desde 1972, os agentes estatais tentavam
contatar os Korubo, então “isolados”. Essas tentativas resultaram em diversas mortes dos
agentes estatais, funcionários do órgão indigenista, e de outros brancos que atuavam em
atividades extrativistas na bacia do rio Javari. Os Korubo estabeleceram contatos esporádicos
com os agentes estatais, mas acabavam os atacando com golpes de borduna em reação aos
decessos populacionais sofridos. Quando uma pessoa korubo falecia, os Korubo matavam os
brancos. Os conflitos com os brancos se refletiram na redução da população korubo,
evidenciada entre 1985 e 1995, quando de 300 pessoas passou para 250 pessoas. Essa
estimativa se manteve estável em 1999 e 2000 (Cavuscens 2000: 428).

Ao final de 1995, após o conflito que resultou no assassinato de um homem e uma mulher
korubo, mortos por disparos de armas de fogo dos brancos da comunidade Ladário, os
Korubo permaneceram encurralados no local onde a FUNAI os encontrou em 1996,
conforme mencionei no capítulo anterior (Franciscato 2000). Em 04 de janeiro de 1996, a
FUNAI criou a Frente de Contato Vale do Javari através da Portaria nº 003/96. Em 22 de
abril de 1996, o sertanista Sidney Possuelo foi nomeado como chefe do Departamento de
Índios Isolados (DII), através da Portaria nº 224/FUNAI, e passou a dirigir a Frente de
Contato Vale do Javari.

Nesse contexto, a Portaria nº 810/FUNAI restringiu o ingresso, a locomoção e a permanência


de pessoas no Vale do Javari. O objetivo da Frente de Contato era “proceder o contato
pacífico, proteger a integridade física e o meio ambiente dos índios isolados denominados
Korubo” (Aquino 1998: 20). Para a FUNAI, o contato era necessário. Caso contrário, os
Korubo seriam exterminados pelos brancos. Possuelo chegou à região em março e realizou o

123
evento de contato em outubro de 1996. Esse evento caracterizou-se por uma “expedição de
contato” intermediada pelos Matis.

Em agosto daquele ano, a expedição de contato chefiada por Possuelo localizou uma maloca
korubo. No mês seguinte, a “equipe de contato”, composta por “colaboradores” ameríndios
e brancos, iniciou a fase de “namoro” com os Korubo. A “expedição de contato” consiste na
entrada da equipe na floresta em busca de uma aproximação pacífica com os ameríndios. Nos
anos 1960 e 1970, o “namoro” era uma etapa do evento de contato, caracterizada pela
disposição estratégica de mercadorias industrializadas em pontos da floresta para aguardar a
reação dos ameríndios. A coleta, a troca ou a recusa das mercadorias sinalizam a aproximação
com os brancos ou recusa ao contato. 50 Na ocasião, os Korubo recolheram as mercadorias
deixadas pelos agentes estatais na floresta e recusaram a farinha. Recordemos que os Korubo
receberam farinha envenenada dos brancos em 1981, no rio Itaquaí, conforme o capítulo
anterior. Posteriormente, a Frente de Contato substituiu a farinha por bananas. Estas sim,
foram recolhidas pelos Korubo.

Essa expedição foi registrada e divulgada na mídia pela National Geographic. Nesse primeiro
evento de contato com os Korubo, em outubro de 1996, a FUNAI contatou 18 pessoas,
remanescentes de cisões internas: quatro mulheres, seis homens, seis meninos e duas
meninas. 51 Em novembro de 1996, os Korubo, então “recém-contatados”, visitaram diversas
vezes a comunidade ribeirinha Ladário e o barco Waiká – sede da Frente de Contato no rio
Ituí. Dez meses depois da expedição, em 22 de agosto de 1997, os Korubo mataram mais um
funcionário da FUNAI: Raimundo Magalhães, chamado de Sobral.

50
Com o passar do tempo, a estratégia do “namoro” mudou. Atualmente, as Frentes de Proteção Etnoambiental
(FPE) podem fazer expedições para deixar na floresta ferramentas de metal para o uso por parte dos ameríndios
(“isolados”). Teoricamente, as mercadorias agora não visam mais atrai-los para o contato, e sim evitar que eles
queiram contatar os brancos com o objetivo de acessar mercadorias (Villa Pereira 2018: 54-5). Contudo, na
prática, nem sempre a disposição de objetos industrializados por parte da FUNAI realmente evita eventos de
contato, pois pode sugerir uma disposição à continuidade da oferta, gerando mais busca por parte dos
ameríndios. Conforme veremos, isso ocorreu com os Korubo contatados em 2014.
51
Das 18 pessoas, um homem e duas crianças do sexo masculino faleceram por infecção de malária em 1998
(Franciscato 2000: 3).
124
A morte de Sobral

A Superintendência da Polícia Federal no estado do Amazonas abriu um inquérito para


investigar a morte de Sobral. Esse óbito envolveu uma série de controvérsias e debates,
averiguações sobre as motivações dessa reação dos Korubo recém-contatados na expedição de
contato realizada no ano anterior. Na concepção de Possuelo, chefe da expedição em 1996,
a morte de Sobral foi, por um lado, uma resposta dos Korubo aos decessos sofridos nos
conflitos com os brancos e, por outro lado, o resultado da quebra de protocolos por parte dos
agentes estatais da FUNAI (ISA 1996/2000: 442). No entanto, essa concepção não foi
partilhada por todos.

Um dos principais argumentos contrários ao de Possuelo foi elaborado pelo antropólogo


Terri Aquino, integrante da equipe Amigos da Terra no Projeto Rádio Amazônia: parceria
com o movimento indígena local, o CIVAJA, para a instalação de 16 rádios nas aldeias do
Vale do Javari em 1996 e 1997. Os dados a seguir foram fornecidos por Aquino (1998: 29-
30) e afirmam que, um dia antes da morte de Sobral, os Korubo contatados em 1996
apareceram na margem oposta à Base Ituí.

A equipe Amigos da Terra-CIVAJA atravessou o rio Ituí. Acompanhada por agentes estatais
e intermediários dos povos Matis e Marubo, a equipe ofereceu bananas e farinha aos Korubo.
Naquele dia, horas depois, apareceram outros nove korubo na margem do rio, gesticulando
e pedindo alimentos. Novamente, a FUNAI ofereceu banana e farinha aos Korubo. A partir
da intermediação dos Matis, os Korubo pediram à FUNAI ferramentas de metal. Na ocasião,
Sobral autorizou a equipe a fotografa-los. Os Korubo tocavam nos corpos e adereços
utilizados pelos brancos, como colares e pulseiras.

Sobral relatou à equipe as dificuldades financeiras enfrentadas pela FUNAI para manter os
agentes estatais em campo e oferecer os “brindes” (mercadorias industrializadas e alimentos)
demandados pelos Korubo. A precariedade financeira do órgão indigenista contrastava com
a importância da Base Ituí. A Base era central para coibir a entrada de invasores brancos em
busca de madeira, seringa, caucho, carne de caça e pesca na área indígena. Sobral demonstrou

125
preocupação com as visitas dos Korubo à comunidade ribeirinha Ladário, onde recebiam
roupas e mercadorias industrializadas, possíveis vetores de doenças infectocontagiosas. Apesar
desses intercâmbios, as relações na região eram tensas:

Em Ladário, sobretudo, o clima era de tensão e revolta. Seus moradores


estavam temerosos devido às frequentes visitas que os Korubo vinham lhes
fazendo, solicitando “brinde” (especialmente roupas, machados, terçados e
panelas), que não existiam em disponibilidade no Posto da Funai. Chegando,
inclusive, a responsabilizar a Frente de Contato por atrair os Korubo para as
proximidades de suas casas (Aquino 1998: 31).

Na concepção de Sobral, a Frente de Contato Vale do Javari deveria ter uma estrutura para
o atendimento dos Korubo. Essa estrutura deveria ser localizada acima da confluência dos
rios Ituí e Itaquaí, próxima do igarapé Quebrado e, ao mesmo tempo, distante da Base Ituí.
Após a conversa com Sobral, a equipe desceu o rio Itaquaí em direção à cidade. Ao passar em
frente à margem oposta, onde estavam os Korubo, um Marubo arremessou três bananas para
eles (idem: 31). No dia seguinte, em 22 de agosto de 1997, os Korubo atacaram quatro
funcionários da FUNAI. Mataram Sobral com golpes de bordunas e os outros três
funcionários escaparam de barco.

Para a imprensa, a diretoria da FUNAI afirmou que o incidente foi reflexo de um passado
conflituoso entre os Korubo e os brancos. Mas em relatório interno, intitulado Sequência dos
acontecimentos nos dias 21 e 22 de agosto de 1997 no Posto de Vigilância da Frente de Contato
Vale do Javari, Possuelo, chefe do DII, afirmou que Aquino “pressionou” Sobral para
atravessar o rio Ituí e fotografar os Korubo, tornando-se “co-responsável pela morte do
auxiliar de sertanista”.

Em 23 de abril de 1998, em MEMO nº114/DEID/DAF, Aquino respondeu o relatório da


FUNAI. Destacou questões a serem resolvidas pelo órgão indigenista estatal no atendimento
aos Korubo, como: a escassez dos recursos financeiros para fornecimento dos “brindes”
solicitados pelos Korubo; os atrasos nos pagamentos dos funcionários; a ausência de medidas
sanitárias para combater a malária nas comunidades ribeirinhas visitadas pelos Korubo; a

126
necessidade de separar a Frente de Atração do Posto de Vigilância; a urgência da regularização
administrativa da terra indígena.

Após a morte de Sobral, os Korubo deixaram de visitar o Posto de Vigilância da FUNAI,


afastando-se temporariamente da relação com os agentes estatais. No mês seguinte, oito
korubo foram avistados acima do igarapé Quebrado, no rio Ituí. Pediram alimentos, mas os
agentes estatais não se aproximaram. Em novembro de 1997, nove korubo apareceram na
comunidade Ladário, pediram alimentos e mercadorias. Os moradores procuraram a sede da
FUNAI em Atalaia do Norte e propuseram vender suas terras (Coutinho Júnior 1998). Os
Korubo voltaram a estabelecer relações novamente com a FUNAI em busca de atendimento
à saúde (Erikson 2000a: 433).

Do ponto de vista dos agentes estatais, a morte de Sobral foi uma reação dos Korubo às ações
dos brancos. Durante a pesquisa de campo, alguns funcionários da FUNAI relataram
episódios que naquele contexto poderiam ter contribuído para o ataque dos Korubo, como:
(i) Sobral retomou uma lona da FUNAI que estava cobrindo um tapiri korubo; (ii) Sobral
puxou um machado das mãos de um korubo, empurrando-o; (iii) os Korubo pediram panelas
de metal, mas a FUNAI não deu, apesar de haver mercadorias armazenadas na embarcação
Kukahã.

Em fevereiro de 2020, um homem que presenciara o ataque dos Korubo a Sobral, me


forneceu o seguinte relato. 52 Uma vez por semana, Sobral atravessava o rio Ituí para visitar os
Korubo em frente à Base. A Base ainda não possuía a infraestrutura atual. Sobral se
relacionava afetivamente com uma moradora da comunidade Ladário e retirou a lona que
cobria o tapiri korubo para entregar ao pai dela. No dia do incidente, aproximava-se o final
da escala laboral de Sobral, o que chamam de “permanência” na Base. Sobral atravessou o rio
Ituí para visitar os Korubo, acompanhado por três pessoas, inclusive, um intermediário Matis.

A equipe, acompanhada por Sobral, atracou na margem do rio. Maya e dois homens korubo
convidaram Sobral para se aproximar deles. Estrategicamente, os Korubo se posicionaram de

52
O nome do narrador será mantido em sigilo. Basta saber que, em 2020, ele prestava serviços à FUNAI como
“colaborador eventual” na Base Ituí, local de coleta desse relato.
127
modo a fazer com que Sobral ficasse de costas para um “espinheiro”. O korubo que o atacou
se aproximou pelas costas de Sobral e o golpeou com uma borduna duas vezes. Os demais
korubo correram para a floresta. Os acompanhantes de Sobral entraram na embarcação e
retornaram para a Base Ituí. Naquele dia, os agentes estatais passaram um tempo na Base,
com receio de retornar para buscar o corpo de Sobral. Até que atravessaram o rio armados,
pegaram o corpo e levaram à Base.

Ao final, o autor do relato mencionou que os Korubo passaram um tempo escondidos na


floresta após matarem Sobral. Retornaram aos poucos para a localidade em frente à Base Ituí,
onde construíram uma maloca. Após a morte de Sobral, configurou-se uma “relação abusiva”,
pautada no “medo” sentido pelos brancos em relação aos Korubo. Os Korubo passaram a
adquirir mercadorias através de “ameaças” aos agentes estatais. 53 Ao contrário das concepções
dos brancos, no ponto de vista dos Korubo, a morte de Sobral foi uma consequência de
decessos populacionais, especificamente do falecimento de Xulun, filha de Waxmën.54

Após a morte de Sobral, houve um processo de reaproximação dos Korubo com os agentes
estatais. Após o evento de contato em 1996 e a morte de Sobral ocorrida no ano seguinte, os
agentes estatais visitavam os Korubo “ostensivamente armados”, enquanto estes buscavam
mercadorias industrializadas na comunidade Ladário. Nesse contexto, o movimento indígena
local reivindicava uma articulação conjunta com os agentes estatais no atendimento aos
Korubo (Cavuscens 2000: 429).

Esse primeiro evento de contato foi a mola propulsora para a homologação da TI Vale do
Javari/AM. Nos anos 2000, após o processo de regularização fundiária, a Frente de Contato
tornou-se Frente de Proteção Etnoambiental (FPE). As instalações da antiga Frente de
Contato foram aprimoradas e tornou-se a Base de Proteção Etnoambiental (BAPE),
localizada na confluência dos rios Ituí e Itaquaí – chamada de “Base Ituí” pelos Korubo.

53
As “ameaças” mencionadas pelo autor do relato ainda existiam durante o período da pesquisa de campo.
Contudo, menos relacionadas à aquisição de mercadorias, e mais relacionadas aos adoecimentos e falecimentos
dos Korubo.
54
No capítulo 4, o tema da raiva elucida a discussão sobre a morte, como o motivo de os Korubo reagirem aos
falecimentos de sua população matando os brancos.
128
As tensões com os brancos do entorno não cessaram com o evento de contato ou a
homologação da terra indígena.55 Em fevereiro de 2000, cerca de 300 moradores de Benjamin
Constant/AM invadiram a Base Ituí insatisfeitos com a demarcação da terra indígena (ISA
1996/2000: 431-3). Nesse período, os Korubo mataram três madeireiros no rio Quixito,
todos eles membros da família Mariano, residentes em Atalaia do Norte/AM. Essas três
mortes trouxeram consequências atuais para a vida dos Korubo devido aos vínculos de
parentesco entre da família Mariano e os moradores de Atalaia do Norte. 56

Nos anos 2000, a parcela dos Korubo contatada na expedição realizada em 1996 (evento 1)
passou a ser reconhecida pelo órgão indigenista como de “recente contato”. Até então, essa
parcela constituía uma população de 25 pessoas, distinta da maioria dos Korubo que
mantinham a postura de recusa às relações pacíficas e permanentes com os agentes estatais,
ou seja, permaneciam “isolados”. Nesse período, a situação de saúde no Vale do Javari ganhou
destaque e o atendimento à saúde dos Korubo entrou no debate. 57 Por um lado, os Korubo
(“isolados”) apareciam nas margens dos rios durante o verão para coletar ovos de quelônios.
Nessas ocasiões, as aproximações com outros povos representavam ameaças de transmissão
de doenças infectocontagiosas. Por outro lado, os Korubo (“recente contato”) contraíram
doenças.

Os Korubo (“isolados”) no médio curso dos rios Itaquaí e Ituí estavam em contato iminente
com os Kanamari e os Matis que circulavam por aqueles rios, sobretudo, durante o verão
(ISA 2006/2010: 376). Em 2007, os agentes estatais registraram 14 avistamentos dos Korubo

55
Em 1997, a FUNAI permitiu a entrada de madeireiros na área dos Korubo para a retirada de um carregamento
de madeira, interditado durante a expedição de contato (ISA 1996/2000: 440).
56
Em 2003, Waxmën Korubo foi removida para um hospital em Atalaia do Norte para realizar uma cirurgia
cesárea. Os moradores souberam da presença de uma korubo na cidade e cercaram o hospital para lincha-la. A
Polícia Federal interveio e a levou de volta para a Base Ituí (Vargas da Silva 2017b: 80). Até hoje, a logística de
atendimento sanitário aos Korubo envolve remoções diretas para Tabatinga, sem paradas em Atalaia do Norte
e Benjamin Constant.
57
Houve tentativas de reparar a situação sanitária no Vale do Javari. O Programa de Proteção Etnoambiental do
Vale do Javari, uma parceria entre o CTI e a FUNAI, visava a proteção territorial, o planejamento e a execução
de um plano de atendimento sanitário aos Matis e Korubo. Em 2004, a Expedição Imagem do Javari para a
realização de exames por imagem foi embargada (ISA 1996/2000: 437; 2001/2005: 453). Sobre a situação
sanitária no Vale do Javari, conferir Selau (1991), Sampaio et al. (1996), Matos e Marubo (2000), Nascimento
e Erikson (2006), Nascimento e Cuevas Paredes (2006), Cesarino e Welper (2006) e Coutinho Júnior (2008;
2020).
129
nas margens dos rios (Amorim 2008: 17). Ao final daquele ano, eles abordaram os Kanamari
duas vezes, e receberam mercadorias e roupas usadas.

Em 2008, em uma expedição de monitoramento no rio Itaquaí, os agentes estatais se


comunicaram à distância com os Korubo (“isolados”) (Oliveira 2009: 16). Nessa ocasião, os
agentes estatais gravaram um vídeo (6’ 56”). A cena mostra os Korubo na margem do rio se
comunicando à distância com a equipe da FUNAI. A equipe disse aos Korubo para eles se
afastarem dos transeuntes, pois com os contatos esporádicos poderiam adoecer. Durante a
conversa, um homem korubo se definiu como wiloma, indicando que eles haviam passado
por decessos populacionais, pois este é um termo que indica que ele havia perdido um parente
na posição de irmã/o, um homônimo, ou ainda, um animal de criação em posição
equivalente, isto é, animal tratado como irmã/o e/ou homônimo de alguém. 58 A equipe
mencionou alguns nomes dos Korubo contatados no evento 1, em 1996, que estavam no rio
Ituí, como “Xikxuvo”. Em reposta, os Korubo (“isolados”) perguntaram se Xikxuvo falecera.
Os brancos informaram que ele estava vivo em outro rio e mencionaram outros nomes de
pessoas korubo, como: “Muna, Takvan, Malevo, Maya, Tsamavo”. Todos estes contatados
no evento 1.

No ano seguinte, em 2009, os agentes estatais arremessaram ferramentas de metal nas roças
dos Korubo (“isolados”) durante um sobrevoo, com o intuito de reduzir os índices dos
avistamentos. Entretanto, os Korubo continuaram aparecendo nas margens dos rios.
Paralelamente aos contatos esporádicos com os Korubo (“isolados”), a maioria dos Korubo
contatados no evento 1 foi removida para Tabatinga/AM, a fim de realizar tratamentos de
malária e hepatites virais. O resultado dos exames revelou que 54,5% destes não reagiram à
vacina; das 22 amostras coletadas, 68,18% testou positivo para hepatite A, 18,1% positivo
para hepatite C; e duas infecções por hepatite B (Coutinho Júnior 2008: 139).

58
A experiência de um povo que esteve por décadas em guerra, como os Korubo, reflete-se em sua onomástica
que contém um conjunto de termos relacionados a morte: (1) inoma utilizado para se referir aos pais que
perderam uma filha; (2) mëkto utilizado para se referir ao pai que perdeu um filho; (3) mena utilizado para se
referir ao homem que perdeu o pai e/ou a mãe, ou seja, um órfão; (4) xiali utilizado para se referir a mulher que
perdeu o pai e/ou a mãe, ou seja, uma órfã; (5) vënoma utilizado para se referir à pessoa que perdeu a esposa ou
o marido, ou seja, viúvo/a; (6) tokoma utilizado para se referir a mulher que perdeu um filho ou animal de
criação em posição equivalente; (7) wiloma utilizado para se referir a pessoa que perdeu um irmão, uma irmã,
um homônimo ou animal de criação em posição equivalente.
130
Em 2012, a parcela dos Korubo contatada no evento 1 reorganizou-se em duas aldeias,
chamadas de Talawaka e Tapalaya, localizadas na margem esquerda do rio Ituí (Coutinho
Júnior 2018: 8). Essa reduzida população enfrentava dificuldades para produzir alimentos e
realizar matrimônios. O contínuo estado de fuga anterior ao evento 1 os impediu de manter
elementos fundamentais ao seu modo de vida, como as roças e malocas. Por isso, os agentes
estatais afirmam que essa parcela dos Korubo, então localizada no rio Ituí, desejava fazer
outros eventos de contato com os Korubo (“isolados”) no rio Itaquaí. Com esse intuito, um
grupo de cinco homens korubo da parcela contatada no evento 1 foi em busca de outra
parcela korubo (“isolados”) acima do igarapé Coarizinho, em novembro de 2011.

Posteriormente, os Korubo (“recente contato”) relataram aos agentes estatais que no local
onde os outros (“isolados”) estavam havia sete tapiris, bolacha, farinha e roupas usadas.
Durante a primeira visita, os Korubo (“isolados”) informaram que seus parentes morreram e
eles estavam com fome. Na segunda visita, 12 Korubo (“recente contato”) foram até os
Korubo (“isolados”) levando mercadorias e alimentos industrializados. Dessa vez, houve um
conflito entre eles. Quatro homens (“recente contato”) foram feridos pelos Korubo
(“isolados”). O conflito começou quando os Korubo, contatados no evento 1, demonstraram
interesse em levar mulheres dos Korubo (“isolados”) para o rio Ituí (Amorim 2011).
Conforme veremos, a relação entre a parcela dos Korubo contatada no evento 1 e os agentes
estatais foi fundamental para a realização dos eventos de contatos posteriores.

2.2. Eventos 2 e 3

Vimos que o evento 1 ocorreu devido aos conflitos entre os Korubo e os brancos. Os eventos
2 e 3 ocorreram em setembro e outubro de 2014, com a participação dos Kanamari, da família
linguística Katukina. As motivações dos eventos 2 e 3 foram diferentes do evento 1. Desde o
verão de 2005, os agentes estatais recebiam relatos de outros povos do Vale do Javari sobre
os avistamentos dos Korubo (“isolados”) nas margens do rio Itaquaí.

131
A partir de “expedições de averiguação”, o órgão indigenista constatou a presença de tapiris
e mercadorias industrializadas na área korubo (Vargas da Silva 2017b: 82). Até então, os
agentes estatais sabiam que essa parcela dos Korubo (“isolados”) no rio Itaquaí estabelecia
contatos esporádicos com os transeuntes, obtendo mercadorias industrializadas e
reaparencendo nas margens dos rios em busca de novas aproximações com os transeuntes.

Nos anos 2000, um sobrevoo realizado pela FUNAI mostrou uma redução demográfica entre
os Korubo (“isolados”). A priori, os agentes estatais inferiram que eles contraíram doenças
durante os contatos esporádicos nas margens dos rios Ituí e Itaquaí. Das nove malocas
catalogadas nos anos 1990, apenas uma estava habitada nos anos 2000. As roças e demais
malocas estavam abandonadas. Apesar desse alerta, em 2010, uma missão do Exército de
combate ao narcotráfico instalou um acampamento na área dos Korubo (“isolados”) (ISA
2006/2010: 385-6).

Ao longo de 2013, essa parcela dos Korubo (“isolados”) não foi vista coletando ovos de
quelônios nas margens do rio Itaquaí, conforme fizera nos anos anteriores. Ao mesmo tempo,
aquela parcela contatada no evento 1 fez uma viagem ao rio Itaquaí e observou a presença de
mercadorias industrializadas no interior de malocas dos Korubo (“isolados”). Em agosto de
2014, os agentes estatais obtiveram notícias sobre essa parcela dos Korubo (“isolados”), que
apareceu perto das roças dos Kanamari, na aldeia Massapê Novo, localizada no rio Itaquaí
(Vargas da Silva 2017a: 4-5; Vargas da Silva 2017b: 84-5).

No dia 22 de agosto de 2014, os agentes estatais averiguaram os relatos dos Kanamari e, acima
da foz do rio Branco, encontraram três korubo (“isolados”) com quem dialogaram à distância.
Era um casal e uma criança. A mulher apresentava infecção por acidente ofídico em uma das
pernas. Eles estavam com fome, pediam banana e farinha aos transeuntes. Com o auxílio de
um intérprete korubo, contatado no evento 1, o casal informou aos agentes estatais que
aqueles Korubo (“isolados”) que apareceram na aldeia dos Kanamari eram os seus parentes e
que eles não retornariam para as suas malocas, pois não possuíam roças e os mais velhos
faleceram (Santos 2014: 2). Após a conversa, os agentes estatais retornaram à Base Ituí.

132
Em setembro de 2014, marco do segundo evento de contato, os Kanamari avistaram seis
Korubo (“isolados”) e os levaram para a aldeia Massapê, no rio Itaquaí. Dentre eles, havia o
casal visto anteriormente pelos agentes estatais somado a outras quatro crianças. A equipe de
contato, composta por agentes estatais da FUNAI e SESAI e por intermediários ameríndios,
levou essa parcela dos Korubo para a Base Ituí. Posteriormente, os agentes estatais os levaram
para junto da parcela contatada no evento 1 (Coutinho Júnior 2018: 20). Duas parcelas
korubo somaram-se no rio Ituí após o evento 2, ocorrido em setembro de 2014.

A parcela contatada no evento 2 cumpriu a quarentena, recebeu o atendimento médico e um


dos homens korubo, chamado Visa, informou que havia outra parcela (“isolados”) composta
por seus parentes, localizados no rio Itaquaí. Dentre eles, Lalanvet e Pinu: a mãe e o irmão
mais velho de Visa. Durante o período em que essa parcela dos Korubo (“isolados”) esteve
no rio Itaquaí, muitos adoeceram e morreram. Os enfermos manifestavam sintomas, como
febre e tremores. O que, para os Korubo, era “feitiço”, para a equipe de saúde, era malária.
Ao todo, foram oito infecções entre as pessoas contatadas no evento 2 (Vargas da Silva e
Albertoni 2014; Amorim 2014: 87).

Em 08 de outubro de 2014, ocorreu o evento 3. Além da parcela que havia sido contatada
no mês anterior, os Kanamari informaram aos agentes estatais que outros 15 korubo
apareceram em uma roça da aldeia Massapê Novo, no rio Itaquaí. Dentre eles, estavam a mãe
e o irmão mais velho de Visa: Lalanvet e Pinu. Essas duas parcelas contatadas nos eventos 2
e 3 foram posteriormente reunidas no rio Ituí junto àquela parcela contatada no evento 1.
Pessoas de três eventos de contato distintos, realizados em 1996 e 2014, passaram a co-residir
em aldeias no rio Ituí.

2.3. Eventos 4 e 5

Vimos que os eventos 2 e 3, realizados em 2014, envolveram a participação dos Kanamari,


um povo do Vale do Javari que fala uma língua bem diferente da dos Korubo. Apesar das
diferenças sociocosmológicas entre os Kanamari e os Korubo, a localização compartilhada por

133
eles (o rio Itaquaí) e o contexto de contatos esporádicos, adoecimentos e mortes entre os
Korubo promoveu um aumento no aparecimento dos Korubo (“isolados”) em roças e aldeias
dos Kanamari. Os eventos 4 e 5, por sua vez, ocorreram em 2015 e envolveram a
intermediação dos Matis, pertencentes à mesma família linguística dos Korubo.

Os Matis foram os principais intermediários entre os Korubo e os agentes estatais nos eventos
1, 4 e 5, realizados em 1996 e 2015. Contudo, nos eventos ocorridos em 2015, as relações
entre os Matis e os Korubo (“isolados”) se complexificaram. Houve conflitos e mortes,
marcando um momento crítico em um histórico de relações entre os dois povos. A partir de
dados etnográficos mais recentes, sabemos que, pelo menos, desde 2005, havia encontros
esporádicos entre os Korubo (“isolados”) e os Matis no rio Coari (Arisi 2007: 76; Amorim
2008: 17; Matos 2015: 6).

Em 2010, os Matis construíram a aldeia Todowak no rio Coari. Dois anos depois, os Matis
então residentes nas aldeias Aurélio e Beija-flor, localizadas no rio Ituí, formaram as aldeias
Tawaya e Bukuak no rio Branco. Tratava-se de uma antiga área de ocupação Matis que, em
2012, foi retomada por eles. Todavia, com a ausência dos Matis durante décadas, a área do
médio rio Coari e baixo rio Branco foi ocupada pelos Korubo (“isolados”). Em 2014, essa
parcela dos Korubo se aproximou da aldeia Todowak, no rio Coari. Conforme veremos, essa
aproximação desencadeou não apenas dois, mas três eventos de contato entre os agentes
estatais e os Korubo, permeados por mortes.

As mortes de Damë e Xucuruta

No dia 05 de dezembro de 2014, a Coordenação Regional (CR) da FUNAI em Atalaia do


Norte/AM recebeu a notificação sobre um conflito entre os Korubo (“isolados”) e homens
matis da aldeia Todowak. Seis homens korubo apareceram na roça da aldeia Todowak,
quando Damë, Xucuruta e Tumi Tukun Matis plantavam milho. Os korubo atacaram os
três matis com pedaços de pau. No contexto da reocupação territorial, essa era a primeira
roça construída pelos Matis na margem direita do rio Coari. Tumi Tukun escapou. Damë e

134
Xucutura faleceram. Os korubo levaram a arma de Tumi Tukun e deixaram a de Damë junto
ao corpo dele (Matos 2015: 50; Pereira 2018: 17-9). No ponto de vista dos agentes estatais,
esse conflito foi explicado da seguinte maneira. Após a mudança dos Matis do rio Ituí para o
rio Coari, realizada em 2010, os encontros esporádicos entre os Matis e os Korubo
(“isolados”) causaram epidemias entre os Korubo, gerando mortes, que resultaram no ataque
aos Matis.

Durante a pesquisa de campo, obtive mais detalhes sobre esse conflito. No ponto de vista dos
Korubo hoje residentes no rio Ituí, o fator propulsor do ataque aos Matis foi o falecimento
de Tiwa, filho de Mëlanvo Korubo. Mëlanvo utilizou plantas medicinais, mas não conseguiu
curar o seu filho. Acreditou que Tiwa adoecera e falecera por causa de um “feitiço” feito pelos
Matis, que “assopraram” no rastro dos Korubo (“isolados”). 59 Então, Mëlanvo, Xuxu Luasivo
e Makwëx Korubo decidiram atacar os Matis na roça da aldeia Todowak.

No Vale do Javari, as acusações de feitiçaria entre povos vizinhos são constantes, característica
agravada nos anos 2000: contexto das epidemias de hepatites virais em que os ameríndios
atribuíram as mortes a “feitiços” (Montagner 2002; Nascimento e Cuevas Paredes 2006). A
feitiçaria é um esquema de atribuição de causas, infortúnios e mortes. As acusações de
feitiçaria figuram entre uma das características dos povos falantes de línguas Pano, como os
Matis e os Korubo (Erikson 1993; 1996). No caso dos Korubo, cura-se pessoas enfermas,
utilizando recursos, como água, suor, saliva e realizando banhos com plantas medicinais,
chamadas de “remédios do mato” (iwi polo; iwi: árvore, pau; polo: folha).

Os Korubo atribuem a causa das doenças a seres, como o sampin e, sobretudo, a povos
vizinhos do Vale do Javari, considerados inimigos. A doença é aspirada e sugada do meio da
cabeça, dos olhos e ouvidos do enfermo. Depois, é cuspida para fora do corpo enfermo. O
uso das plantas medicinais não é tão frequente quanto os rituais de canto-choro (wine). Wine
evoca o parentesco com o enfermo, chamando-o de volta para que permaneça entre os vivos,

59
Na Amazônia, a feitiçaria é uma faceta do xamanismo (Whitehead e Wright 2004). Em alguns casos, como
os Aweti do Xingu e os Matsés do Vale do Javari, a feitiçaria pode ser motivada por ciúmes, inveja ou raiva entre
parentes (Vanzolini 2013; Matos 2014). No entanto, majoritariamente, a feitiçaria sinaliza a “negação do
parentesco”, como a relação entre os Kanamari e os Kulina-Madiha (Costa 2007: 89, 93). A feitiçaria pode ser
considerada a razão de mortes por doenças (ver Wagley 1977; Ireland 1988; Fausto 2001).
135
similar ao que fazem os Kaxinawá (McCallum 1998). 60 Os Korubo choram por pessoas ou
animais de criação. Uma filha pode chorar por seu pai, por exemplo, com o seguinte canto:
nukun mama tsë. Uma pessoa pode chorar por seu macaco barrigudo: nukun kolokit vakwë
tsë. 61 O morfema –tsë indica que a pessoa ou animal é querido por quem canta-chora, similar
ao cognato –tsëc da língua matsés (Fleck 2003: 382).

A feitiçaria, enquanto sistema acusatório, é atribuída pelos Korubo a outros que podem
“assoprar” em seus rastros, gerando doenças e mortes. Antes dos quatro eventos de contato
realizados em 2014 e 2015, as doenças e os falecimentos entre os Korubo (“isolados”) foram
concebidos por eles como resultados de “feitiços” enviados por não-parentes. Na ocasião, os
acusados de enviar “feitiços” foram os Kanamari (eventos 2 e 3) e os Matis (eventos 4 e 5).
Esse foi o caso do falecimento de Tiwa, filho de Mëlanvo Korubo, que gerou a morte dos
dois homens matis na roça da aldeia Todowak, no rio Coari, culminando nos eventos 4 e 5.

Antes dessas mortes, conforme mencionei, os Matis e os Korubo (“isolados”) estabeleceram


contatos esporádicos no rio Coari. Tais encontros foram gravados pelos Matis, hoje
disponíveis no acervo do Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Um dos registros data de
agosto de 2013, realizado por Makë Bëux Matis. 62 Conforme os agentes estatais relataram,
na primeira parte do vídeo, os Matis desembarcam nas margens do rio Coari e são recebidos
pelos Korubo. Em tom amistoso, Binan Mabëru, Txami, Damë, Ivan e Tumi Tukun Matis
perguntaram aos Korubo se estes apareceram nas roças dos Matis e qual era a localização
deles. Os Korubo apontam para a margem oposta à sua ocupação no rio Coari. Os Matis
dizem para os Korubo fazerem suas próprias roças e não assediarem as roças dos Matis.

Os agentes estatais relatam ainda que, na segunda parte do vídeo, há tensão entre os Matis e
os Korubo (“isolados”). Tumi Tukun, Ivan e Damë conversam com homens korubo mais
velhos, que não apareceram na primeira cena. Os três matis estavam armados com
espingardas. Um dos korubo perguntou se os Matis estavam ali para atacá-los. Ao saberem

60
Os rituais de choro kaxinawá são realizados por parentes e afins próximos para “acordar” o morto, como se
os cantos fossem caminhos para o espírito fugido da pessoa retornar ao corpo, ativando o conhecimento
incorporado e a lembrança do parentesco (idem: 230-5).
61
nukun-mama-tsë: meu-pai-tsë / nukun-kolokit-vakwë-tsë: meu-barrigudo-DIMIN.-tsë
62
O vídeo feito pelos Matis, acessado via CTI, intitula-se Vídeo 2013.08.23 Contato dos Matis com os Korubo
(28’ 29”) e divide-se em duas cenas.
136
da existência desse vídeo, os agentes estatais foram para a aldeia Todowak, no rio Coari,
dialogar com Txami Matis. Na ocasião, Txami argumentou que não mudaria a aldeia
Todowak do rio Coari, pois conhecia os Korubo (“isolados”) e aquela era uma área de
ocupação ancestral dos Matis. Em setembro de 2014, os Matis verificaram que os Korubo
bloquearam um caminho na floresta (“tapagem”) entre as aldeias Todowak e Tawaya.
Contudo, os Matis continuaram a abertura das novas roças até que houve o conflito com os
Korubo em dezembro de 2014 (Matos 2015: 18; Vargas da Silva 2017b: 95; Pereira 2018:
19).

Os agentes estatais afirmam que, após esse conflito, os Matis responsabilizaram o órgão
indigenista pelas mortes de Damë e Xucuruta. Argumentaram que os Korubo (“isolados”) no
rio Coari sentiram a falta dos Korubo contatados nos eventos 2 e 3, no rio Itaquaí,
posteriormente deslocados para o rio Ituí. Em diálogo com os Korubo contatados nos eventos
2 e 3, os agentes estatais souberam que há décadas não havia relações entre essas parcelas
korubo localizadas nos rios Itaquaí e Coari. Portanto, na concepção dos agentes estatais, esse
não era o motivo do ataque dos Korubo aos Matis (Pereira 2018: 20). Após conversas e
tensões, os Matis da aldeia Todowak aceitaram a proposta dos agentes estatais: transladar as
aldeias Tawaya e Bukuwak do rio Coari para o rio Branco. Os agentes estatais retornaram ao
local do ataque, onde Tumin Tukun relatou mais detalhes:

Tumin relatou que eles haviam percebido a presença dos Korubo, pois uma
panelinha com sementes de milho hidratadas, com a qual plantavam no dia
anterior, havia sido derrubada no chão. Mesmo com Damë e Tumin
ressabiados de entrar na roça, após isso Xucuruta continuou e subiu para o
local mais alto da área plantada onde tinha um pequeno tapiri. Segundo
Tumin, os Korubo logo apareceram e se aproximaram. Eram seis e estavam
sem suas armas de guerra, as conhecidas bordunas. Eles reconheceram uns aos
outros, como os mesmos do encontro de 2013 (citado mais acima) e lhes falou
para não aparecerem mais ali, e ainda que os Matis já haviam ensinado eles a
plantar macaxeira (se referia a esse encontro de 2013). Falou também que
fossem para outro local, pois ali era área Matis. Os Korubo, então, segundo
Tumin, pediram para abrir uma sacola plástica que continha comida e o outro
grupo disse que não deveriam, pois poderiam pegar doenças. Nesse momento,
um dos Korubo levantou-se, passou por trás de Tumin e arrancou a espingarda
de suas mãos, enfiando seu cano bruscamente no chão. Tumin gritou para
Damë, que também estava armado, para “atirar por cima” deles. Porém não
houve tempo, e começou uma correria, cada Matis seguido numa direção
diferente. Dessa maneira, dois Korubos perseguiram Damë, e três perseguiram
Xucuruta. Um dos Korubo pegou o pau/cavador que os Matis usavam para
plantar macaxeira e milho, e com ele matou Damã. Xucuruta foi morto em

137
um local diferente, golpeado com um pedaço de pau pego no chão, que havia
sido cortado na abertura da roça (Pereira 2018: 22).

Em 08 de dezembro de 2014, os agentes estatais iniciaram o translado dos Matis do rio Coari
para o rio Branco. As embarcações eram insuficientes ao translado de todos os Matis. Era
necessário esperar dois dias para que uma embarcação maior chegasse ao local. Os Matis
queriam realizar a mudança das aldeias rapidamente e cogitaram ir caminhando. Calafetaram
três canoas de madeira para a mudança das aldeias (Pereira 2018: 23). No dia 10 de dezembro
de 2014, os agentes estatais chegaram à Base Ituí, onde um homem matis da aldeia Todowak
confessou que os Matis vingaram as mortes de Damë e Xucuruta no dia seguinte ao ataque
por parte dos Korubo, ou seja, no dia 06 de dezembro de 2014:

Após o ataque Korubo, possivelmente no dia seguinte, os Matis foram no


encalço dos Korubo, que não estavam muito longe, e fizeram uma emboscada,
matando a tiros de arma de fogo um contingente considerável de pessoas. Há
relatos bastante dramáticos sobre esse ataque Matis. Wió e Maluxi, bem como
Mëlanvo, ainda possuem chumbos em suas peles […]. O relato de Wió é um
dos mais dramáticos. Ela relata que os Matis os emboscaram num varadouro.
Os Korubo correram da mira das espingardas, ao som ensurdecedor dos
primeiros disparos. No entanto, havia outros Matis em outros pontos da mata,
abatendo quem corria próximo. Wió fugiu desses primeiros tiros, carregando
sua filha, ainda bebê, como fazem tradicionalmente: apoiada na nuca. Ela
relata que recebeu um tiro por trás, enquanto fugia, o tiro visou sua cabeça,
mas atingiu sua filha, que caiu no mesmo instante, morta. Ensanguentada, ela
fugiu. Não retornou para enterrar sua filha, muitos ficaram mortos nesse local
(Vargas da Silva et al. 2016 apud Coutinho Júnior 2018: 19).

Ao longo de 2019, os Korubo ainda chamavam Wio, contatada em 2015, de tokoma: termo
utilizado para se referir a mulher que perdeu um filho ou animal de criação em posição
equivalente. O uso desse termo em relação a Wio sinaliza a morte de Naylo na vingança
operada pelos Matis. Naylo era a filha de Xuxu Luasivo com Wio. Xuxu também perdera
outro filho que possuía com Maluxin, esposa do seu primeiro casamento, conforme veremos.

138
Imagem 9. Xuxu Luasivo.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Entre outros Pano, os nomes dos mortos ou palavras semelhantes aos nomes são substituídos
por termos de parentesco (Welper 2009: 53; Matos 2014: 62). No caso dos Korubo, os
viventes passam a ser chamados por termos, como (1) inoma utilizado para se referir aos pais
que perderam uma filha; (2) mëkto utilizado para se referir ao pai que perdeu um filho; (3)
mena utilizado para homem órfão; (4) xiali utilizado para mulher órfã; (5) vënoma utilizado
para homem ou mulher viúvo/a; (6) tokoma utilizado para se referir a mulher que perdeu um
filho ou animal de criação em posição equivalente, isto é, animal que seja considerado filho/a
de alguém; (7) wiloma utilizado para se referir a pessoa que perdeu um irmã/o, um homônimo
ou animal de criação em posição equivalente, isto é, animal considerado irmã/o ou
homônimo de alguém. A morte de uma pessoa korubo altera a forma como os viventes são
chamados durante um período determinado, que pode ser meses ou anos, de modo que o
espírito do morto consiga descansar no mundo subterrâneo dos ancestrais (nawa vakwë).

Vimos que, após a morte de Tiwa, os Korubo (“isolados”) atacaram homens matis e mataram
Damë e Xucuruta na roça da aldeia Todowak em dezembro de 2014, rio Coari. Essas duas

139
mortes foram vingadas pelos Matis com o uso de armas de fogo. 63 Os agentes estatais afirmam
que, por um lado, esse foi o motivo que levou os Matis a se apressarem para remover a
população do rio Coari para o Rio Branco e, por outro, os Matis cobravam que os agentes
estatais realizassem o evento de contato 4 para evitar novos conflitos. Os Matis se recusavam
a sair do rio Branco e viam o evento 4 como uma forma de os agentes estatais “amansarem”
os Korubo localizados no rio Coari para assegurarem a permanência das aldeias matis no rio
Branco (Pereira 2018: 25, 40).

Em reunião realizada em janeiro de 2015, os agentes estatais esclareceram junto aos Matis
que o translado de uma parcela dos Korubo, contatada nos eventos 2 e 3, do rio Itaquaí para
o rio Ituí foi uma decisão dos próprios Korubo. A partir disso, os agentes estatais destacaram
que a argumentação dos Matis mudou. Os Matis passaram a alegar que as mortes de Damë
e Xucuruta foram o resultado de outro conflito, ocorrido em novembro de 2011, entre os
Korubo contatados no evento 1 e outros Korubo (“isolados”).

Os agentes estatais se preparavam para a abertura da nova aldeia matis no rio Branco,
chamada Kudaya quando, em 26 de setembro de 2015, os Matis realizaram o evento de
contato 4, no rio Branco. Os agentes estatais foram informados via radiofonia. Os Matis
rastrearam um cocho de paxiúba utilizado pelos Korubo (“isolados”) e encontraram um
grupo de “crianças”. Levaram as crianças para a aldeia Tawaya, no rio Branco, para atrair os
adultos. Outro grupo matis permaneceu aguardando os adultos korubo chegarem ao local
(FUNAI 2016: 15-6; Pereira 2018: 27-8).

Em seguida, os Matis levaram essa parcela dos Korubo, composta por 10 pessoas, para um
acampamento no rio Branco: era três homens, duas mulheres, um adolescente e quatro
crianças. Segundo o relatório de viagem da Procuradoria da República de Tabatinga, nessa
ocasião, os Korubo só não foram mortos graças à presença dos profissionais de saúde na aldeia
dos Matis (Coutinho Júnior 2018: 24).

63
Outra etnografia que mostra como a introdução de mercadorias e armas de fogo impacta as alianças e o
sistema de agressões e vinganças foi realizada entre os Yanomami. A partir dos anos 1990, o uso de armas de
fogo tornou-se a principal causa das mortes entre eles (Do Pateo 2005: 110-3).
140
Uma equipe mista, composta por agentes estatais da FUNAI e da SESAI, se deslocou para a
aldeia Tawaya, a fim de iniciar o “plano de contingência” criado para eventos de contato. Na
aldeia, havia uma tensão entre os agentes estatais e os Matis. Por um lado, os agentes estatais
queriam priorizar o atendimento médico dos Korubo. Por outro lado, os Matis preocupavam-
se com a possibilidade de os agentes estatais removerem os Korubo do rio Branco para o rio
Ituí, conforme ocorrera com as duas parcelas dos Korubo contatadas nos eventos em 2014.

Os Matis demandavam que os agentes estatais realizassem o evento 5 com outra parcela dos
Korubo remanescente no rio Coari. Após horas de tensão, os Matis autorizaram que os
agentes estatais acessassem as 10 pessoas contatadas no evento 4, no rio Branco. No dia 30
de setembro de 2015, os Matis pegaram dois korubo e os levaram para averiguar vestígios da
presença dos demais korubo. Os Matis argumentavam para os agentes estatais que “os Korubo
são nossos, nós os pegamos no mato” (Pereira 2018: 30-2).

A primeira iniciativa dos agentes estatais foi construir um “acampamento de contato” fora
aldeia Tawaya, com a participação de dois intermediários Matis, para o atendimento médico
dos Korubo. No dia 05 de outubro de 2015, os Matis visitaram o acampamento de contato
e pediram aos agentes estatais que dois korubo os ajudassem a localizar os demais (“isolados”).
Os agentes estatais não concordaram. Dois dias depois, em 07 de outubro, os Matis
realizaram o evento 5, ou seja, contataram outros 11 korubo. Essa parcela contatada no
evento 5 foi reunida junto com a parcela contatada no evento 4, todos no mesmo
acampamento, onde a quarentena foi reiniciada.

Após os eventos, durante a 1ª Conferência Nacional de Política Indigenista, realizada em


Atalaia do Norte/AM, os Matis questionaram se os agentes estatais deslocariam os 20 korubo
contatados nos eventos em 2015 do rio Branco para o rio Ituí. Nessa ocasião, um matis
confirmou em público que os Matis vingaram as mortes de Damë e Xucuruta (Pereira 2018:
36). Em seguida, os Matis que estavam reunidos no rio Branco se deslocaram para o
acampamento de contato e interromperam a quarentena epidemiológica dos Korubo
novamente.

141
Os agentes estatais relataram que, diante da postura dos Matis, os Korubo demonstraram
“apreensão”, “desconfiança” e “medo”. Com a “ajuda da equipe”, via radiofonia, os Korubo
contatados no evento 1, localizados no rio Ituí, se comunicaram com os Korubo contatados
nos eventos 4 e 5, em 2015. Houve um acordo entre as diferentes parcelas korubo para
viverem juntas no rio Ituí (Vargas da Silva 2017b: 102).

Após os eventos 4 e 5, as tensões entre os Matis e os agentes estatais continuaram. Quando


os agentes estatais prepararam o deslocamento dos Korubo do rio Branco para o rio Ituí, os
Matis da aldeia Bukuak amarraram um cabo de uma margem do rio a outra para impedir a
passagem das embarcações. Conforme os relatos dos agentes estatais, os Matis estavam
pintados com jenipapo, utilizavam máscaras de mariwin 64 e levaram o coordenador da equipe
de contato para conversar durante três dias na aldeia matis (Pereira 2018: 37-8).

Os agentes estatais relataram que os Matis acreditavam que os eventos de contato com os
Korubo deveriam contar com a intermediação e atuação dos Matis em colaboração com a
FUNAI na construção de roças e de um posto para os Korubo. De fato, os Matis
demandavam essa participação, pois conforme veremos, foram eles que iniciaram os eventos
4 e 5, chegando a construir um “acampamento de contato” antes mesmo dos agentes estatais
chegarem ao local dos eventos. Em dezembro daquele mesmo ano, durante a 1ª Conferência
Nacional de Política Indigenista, realizada em Brasília/DF, os Matis exigiram duas exonerações
em cargos do órgão indigenista. Em 19 de janeiro de 2016, os Matis ocuparam a sede do
órgão indigenista em Atalaia do Norte/AM com essas exigências (idem).

No dia 06 de março de 2016, conforme os relatos dos agentes estatais, cerca de 50 matis
pararam na Base Ituí, ameaçaram os funcionários, agrediram um profissional de saúde
responsável pelo atendimento aos Korubo, pegaram uma embarcação da FUNAI e foram ao
rio Ituí para encontrar os Korubo (Coutinho Júnior 2018: 2-3). Após essas tensões entre os
agentes estatais e os Matis, uma das exonerações exigidas pelos Matis foi publicada no Diário
Oficial no dia 24 de março de 2016.

64
Mariwin são entidades ancestrais dos Matis (Erikson 1996: 224). Para mais detalhes, ver a seção “Terceiros
incluídos” nesse capítulo.
142
2.4. Evento 6

A relação Korubo-Matis com os agentes estatais resultou nos eventos 4 e 5, realizados em


2015. Tal contexto de relações se estendeu para o evento 6, realizado em março de 2019,
com outra parcela dos Korubo (“isolados”) no rio Coari – remanescente das parcelas
contatadas nos eventos 4 e 5. O evento 6 caracteriza-se pela atuação dos intermediários
korubo, contatados nos eventos anteriores (1, 4 e 5), que passaram a atuar em colaboração
com outros ameríndios e com os agentes estatais no acampamento de contato.

Após os eventos de contato 4 e 5, uma parcela dos Korubo permaneceu no rio Coari. Por
isso, conforme os agentes estatais, os Matis e os Korubo (“recente contato”) pediram a
realização do evento 6 com os Korubo (“isolados”), no rio Coari (Pereira 2018: 42). O evento
6 ocorreu no rio Coari, durante o meu trabalho de campo, incidindo no cotidiano das aldeias
korubo no rio Ituí. No dia 03 de março de 2019, uma expedição chefiada pelo indigenista
Bruno Pereira, com uma equipe de cerca de 30 pessoas – dentre elas, seis homens korubo –
saiu da Base Ituí em direção ao rio Coari.

Essa equipe construiu um acampamento de contato próximo ao igarapé Coarizinho. Dez dias
depois, verificou que os Korubo (“isolados”) não estavam nas malocas. A equipe os procurou
em roças antigas. Seis dias depois, localizou dois homens, que se emocionaram ao
reencontrarem os seus parentes contatados nos eventos 4 e 5. No dia seguinte, outros 22
korubo (“isolados”) se aproximaram da equipe. Posteriormente, mais 10. Ao todo, no evento
6, os agentes estatais contataram 34 pessoas no rio Coari. 65 Conforme o órgão indigenista,
essa parcela korubo é composta por: “Quatorze deles com idade aproximada entre 20 e 48
anos, sendo oito homens e seis mulheres, duas delas grávidas. O grupo conta, ainda, com 21

65
Há outra parcela dos Korubo que ainda recusa certo tipo de relação com os agentes estatais. Em 2012, esses
Korubo (“isolados”) atacaram os Kanamari no rio Curuena e raptaram duas crianças (Vargas da Silva 2017a: 6;
Coutinho Júnior 2018: 8-9). Em outubro de 2020, através de um sobrevoo realizado pela UNIVAJA, constatou-
se que essa parcela dos Korubo está migrando do rio Curuena por pressão do garimpo ilegal nessa porção da
terra indígena. Fonte: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/10/08/presenca-de-garimpeiros-
ameaca-povos-indigenas-isolados-da-amazonia.ghtml. Acesso: 08/10/20.
143
crianças e jovens de até 16 anos, sendo nove meninos e 12 meninas. Dessas, três bebês de
menos de um ano de idade”. 66

Diferente dos outros cinco eventos de contato, realizados em 1996, 2014 e 2015, não há
referências bibliográficas sobre o evento 6 justamente por seu caráter recente. Não conheci os
Korubo contatados no evento 6. Não participei da expedição de contato em 2019, nem
mesmo estive no rio Coari. No entanto, o fato de um novo evento de contato está em
andamento no rio Coari durante a minha estadia em campo no rio Ituí modulou o tipo de
dado etnográfico que acessei. Em vez de acessar documentos, relatórios ou registros dos
agentes estatais sobre um evento de contato ocorrido no passado, mesmo que recente, o que
vivenciei foram os efeitos da realização desse novo evento de contato na vida dos Korubo
(“recente contato”), localizados no rio Ituí. Vejamos então um exemplo da dinâmica
cotidiana das aldeias no rio Ituí durante a realização do evento 6.

Em uma manhã do mês de maio de 2019, as mulheres da aldeia Tankala Maë, localizada no
rio Ituí, produziam artefatos para vender nas cidades enquanto aguardavam um grupo de
homens korubo retornar do rio Coari. Com a fibra de tucum (Astrocaryum), uma jovem tecia
tipoia e amamentava seu filho, Waxmën e outra mulher mais velha teciam redes. Os homens
que elas aguardavam estavam trabalhando (caçando, pescando e traduzindo) como
intermediários no evento 6, no rio Coari. Naquela noite, eles desceriam o rio Ituí em direção
a Tabatinga para receber o pagamento monetário por esses serviços prestados ao órgão
indigenista. As mulheres permaneciam atentas a qualquer comunicação radiofônica,
aguardando notícias sobre essa logística.

Ao escutar o som da embarcação se aproximar da aldeia, todas as pessoas da Tankala Maë


correram para a margem do rio Ituí para aguardar a chegada de dois funcionários do órgão
indigenista e quatro homens korubo, que trouxeram cestos com milhos e anta moqueada de
sua estadia no rio Coari. Um dos homens korubo, chamado Ayax Punu, não foi à cidade e
permaneceu como visitante na Tankala Maë. Os Korubo da Tankala Maë convocaram os
funcionários da FUNAI para uma “reunião”. Aparentemente, um homem – chamado

66
Fonte: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2019/funai-realiza-expedicao-para-protecao-de-
indigenas-korubo-no-vale-do-javari. Acesso: 05/04/19.
144
atualmente de “cacique” – queria vender sua antiga espingarda aos agentes estatais. Contudo,
o objetivo da reunião era outro: saber novidades sobre os Korubo do rio Coari.

Os Korubo do rio Ituí indagavam os agentes estatais sobre o tamanho da roça dos Korubo
contatados no evento 6, no rio Coari. Questionavam se a roça possuía a dimensão de “um
hectare”. Com frequência, os Korubo do rio Ituí se comparavam aos do rio Coari, sobretudo,
destacando o aspecto do tempo e da qualidade da relação com os brancos. Após a partida dos
agentes estatais, os Korubo da Tankala Maë se comunicaram via rádio com outros homens
da nova equipe de intermediários korubo que foram trabalhar no rio Coari. Estes ainda
realizavam a “quarentena” para iniciar a permanência no acampamento.

Ao anoitecer, um jovem me convidou para comer na casa do cacique. Dentro, havia cerca de
dez pessoas de diferentes idades e famílias da Tankala Maë, inclusive, um casal visitante de
outra aldeia que chegara pela manhã. Havia carne e milho assado, e as pessoas se distribuíam
nas redes e nos bancos. Ayax Punu, recém-chegado do acampamento de contato, começou a
narrar histórias vivenciadas no rio Coari. Enquanto narrador principal, sua voz alcançava
diferentes tons. Todos o ouviam com atenção.

A primeira foi a narrativa de uma caçada. Lëyu (contatado no evento 1) e outro korubo do
rio Coari (contatado no evento 6) seguiram os rastros de uma anta. Os demais aguardavam
notícias sobre a caçada. Após um período em silêncio, todos escutaram um disparo de
espingarda. Os Korubo contatados no evento 6 começaram a cantar-chorar, pois acreditavam
que Lëyu atirara em um deles. Contudo, o disparo abatera a anta. Naquela noite, na Tankala
Maë, todos os ouvintes soltaram gargalhadas altas, acompanhadas por salva de palmas
pausadas, inclinação do tórax para frente e para trás, e batidas das solas dos pés no chão. Um
modo de os Korubo rirem do engano e da possibilidade de morte – características dessas
histórias sobre os Korubo do rio Coari.

No dia seguinte, nós todos comemos carne de anta, trazida do rio Coari e distribuída entre
as diferentes casas da Tankala Maë. Enquanto comíamos, Ayax Punu contou outras duas
histórias sobre os Korubo do rio Coari. Dessa vez, eles sorriam de uma mulher contatada no
evento 6, que cantava-chorava por seu filho enfermo, acreditando que ele morreria. Sorriram
também de um agente estatal que, por ser calvo, quase foi “cacetado” – golpeado com

145
bordunas – por um homem contatado no evento 6 que o confundiu com um sampin: ser que
emite sons na floresta e deixa rastros no chão. 67 O som das gargalhadas e da salva de palmas
ecoava nas margens do rio Ituí.

Conforme ocorrera naquele dia do mês de maio, o evento 6, realizado em 2019 no rio Coari,
incide no cotidiano dos Korubo (contatados nos eventos 1, 2, 3, 4 e 5) porque toda a
dinâmica das aldeias no rio Ituí volta-se para a saída de alguns homens para trabalharem como
intermediários entre os agentes estatais, outros ameríndios e os Korubo contatados no evento
6. Uma vez realizado o evento 6, o Estado mantém um acampamento de contato no local e,
recentemente, construiu uma nova Base para monitorar os Korubo no rio Coari.

Com a saída dos intermediários korubo do rio Ituí para trabalhar no rio Coari, a produção
artefatual das mulheres segue o calendário das logísticas de subidas e descidas fluviais para
vendas e recebimento de pagamentos nas cidades. Ao saírem das aldeias para trabalhar no rio
Coari, os homens transladam suas esposas gestantes para aldeias vizinhas, no rio Ituí, a fim
de evitar relações extraconjugais e conflitos internos aos co-residentes. Na ausência dos
homens, as famílias mudam temporariamente sua disposição espacial nas casas de uma aldeia,
pois as esposas de um homem se mudam temporariamente para a maloca, transladando suas
redes e seus pertences até que os homens retornem do rio Coari para a aldeia. Alimentos são
trazidos do rio Coari para o rio Ituí junto com as narrativas que mesclam o trágico e o cômico
em torno do modo como outros Korubo (“recém-contatados” no evento 6) pensam e
interagem com esse mundo novo que estão conhecendo: o dos brancos.

2.5. Terceiros incluídos

O pluricontato entre a FUNAI e os Korubo foi realizado em seis eventos ocorridos ao longo
de 1996, 2014, 2015 e 2019. Ao longo das quatro seções anteriores, a partir do acervo
documental, apresentei o ponto de vista dos agentes estatais sobre a sua própria atuação, sobre
os Korubo e sobre outros ameríndios atuantes nos eventos de contato. Nessa seção,

67
Os Korubo e alguns brancos que trabalham com eles traduzem sampin como “curupira”. Os Korubo
costumam dizer que o sampin é “igual korubo”, provavelmente se referindo ao fato de possuir aparência humana.
146
evidenciarei outro aspecto do pluricontato: os “terceiros incluídos”, ou seja, os ameríndios
que assumem a posição de intermediários entre consanguíneos e afins, parentes e estrangeiros
nos eventos de contato.68

O papel dos intermediários ameríndios aparece em diversas etnografias. Os Kayapó


intermediaram o contato dos Arara (Teixeira Pinto 2002). Os Awá-Guajá eram estimulados
pelos agentes estatais a trabalharam em eventos de contato com outros Awá (“isolados”)
(Garcia 2010). Os Shipibo-Conibo intermediaram o contato dos missionários com os
Iskonawa (Alzza 2017). Os Kampê e os Mekéns intermediaram o contato dos Kanoê (Aragon
e Algayer 2020). Uma das etnografias mais recentes analisou a intermediação como tema
central, focando na relação entre os índios do Xinane e outros ameríndios no contato com o
órgão indigenista, no estado do Acre (Almeida 2021).

Com frequência, a maioria das etnografias sobre esse tema evidencia a introdução de novos
elementos por parte dos intermediários na vida dos “recém-contatados”. Os Ashaninka
introduziram o uso de determinadas plantas e da caiçuma entre os Yaminahua. Os
Yaminahua, por sua vez, introduziram a ayahuasca entre os Nahua. Os Ashaninka também
influenciaram os índios do Xinane no uso de roupas tradicionais, no estilo de construção de
novas casas e na adoção de novos vocabulários (Pérez-Gil 2011; Heredia Flores 2018;
Almeida 2021), para citar apenas alguns exemplos. Essas relações podem ser ambíguas,
caracterizadas por casamentos, partilha de conhecimentos e alimentos, e também por
acusações mútuas de sovinice e envenenamento, e ameaças de morte, como entre Korubo e
Matis, e Awá-Guajá e Guajajara (Nascimento e Erikson 2005: 447-8; Arisi 2007: 86; Garcia
2010: 158).

No caso do pluricontato com os Korubo, os conceitos de “expedição” e “acampamento” de


contato são centrais para a compreensão da atuação dos intermediários. A “expedição de
contato” envolve planejamento, estudos prévios sobre o volume demográfico e a localização
dos Korubo (“isolados”) a partir de sobrevoos, expedições de averiguação e

68
O conceito de “terceiros incluídos” diz respeito à discussão sobre a afinidade na Amazônia (Viveiros de Castro
2002: 152-3). Os terceiros incluídos assumem posições entre consanguíneos-afins e parentes-estrangeiros.
Articulam-se ao parentesco por inversão, neutralização, generalização, metaforização etc. Associados a afinidade,
os terceiros mediam esferas, como interior-exterior, cognato-inimigo, individual-coletivo e vivos-mortos.
147
geoprocessamento. Após os estudos e o planejamento, característicos de uma assimetria inicial
entre ameríndios e brancos, a expedição de contato consiste na entrada de uma equipe na
floresta em busca dos Korubo para o início do estabelecimento de uma relação, que se quer
pacífica e estável.

A fase de “namoro”, componente das antigas expedições em que mercadorias industrializadas


e alimentos eram deixados na floresta para aguardar a reação dos ameríndios, ocorreu no
primeiro evento de contato realizado com os Korubo em 1996. Em 2014 e 2015, não houve
expedições de contato no sentido supramencionado, pois os Korubo foram contatados por
terceiros, como os Kanamari e os Matis. Posteriormente, os agentes estatais chegaram ao local
e removeram os Korubo para a Base Ituí ou construíram um acampamento de contato no
local.

Após o evento de contato, o “acampamento” é construído através de uma parceria entre


agentes institucionais da FUNAI e SESAI, baseado em protocolos previamente
estabelecidos. 69 O objetivo do acampamento, conforme os agentes estatais, é “monitorar a
integridade física e sanitária” dos Korubo (“recém-contatados”). No caso do evento 6,
realizado em 2019 no rio Coari, equipes se revezam no acampamento em escalas de 30-60
dias, ou ainda, 90-120 dias. Tais equipes são compostas por agentes estatais e “colaboradores
eventuais” (ameríndios e brancos) para a realização de atividades, como traduzir e intermediar
conversas, pilotar embarcações, caçar, pescar e coletar para complementar a alimentação das
pessoas no acampamento. 70

No pluricontato com os Korubo, os terceiros participaram de expedição de contato e/ou no


acampamento de contato, ou ainda, informaram aos agentes estatais sobre o aparecimento
dos Korubo (“isolados”) em determinada localidade. Em 1996, os Matis participaram da
expedição como integrantes da equipe de contato chefiada por Sidney Possuelo. Nos eventos
2 e 3, ocorridos em 2014 no rio Itaquaí, os Korubo apareceram primeiro para os Kanamari

69
No Brasil, a Portaria Conjunta nº 4.094/2018 aprovou as diretrizes para a atuação conjunta entre as
instituições estatais (FUNAI e SESAI) no atendimento sanitário aos PIIRC. Os protocolos do acampamento de
contato são diversos: “a) protocolos no acampamento da equipe; b) protocolos no acampamento Korubo, e c)
protocolos de saúde e prevenção epidemiológica.” (Amorim 2017).
70
A colaboração eventual é uma modalidade de recrutamento temporário da FUNAI através da emissão de um
documento, chamado Ordem de Serviço (OS).
148
que, por sua vez, informaram aos agentes estatais. Nos eventos 4 e 5, ocorridos em 2015, os
Matis estabeleceram os contatos esporádicos com os Korubo e, posteriormente, os agentes
estatais foram informados e chegaram ao local, conforme a tabela abaixo. No evento 6, a
expedição de contato chefiada por Bruno Pereira contou com a participação dos
intermediários korubo contatados nos eventos 1, 4 e 5:

Evento de contato Sub-bacia Data/Marco Número de pessoas Terceiros


hidrográfica contatadas
Evento 1 Ituí Outubro/1996 18 Matis
Evento 2 Itaquaí Setembro/2014 6 Kanamari
Evento 3 Itaquaí Outubro/2014 15 Kanamari
Evento 4 Branco Setembro/2015 10 Matis
Evento 5 Branco Outubro/2015 11 Matis
Evento 6 Coari Março/2019 34 Korubo
Tabela 5. Intermediários no pluricontato.

Na tabela acima, a coluna “Terceiros” não diz respeito aos únicos povos que atuaram nos
eventos de contato, pois sabemos que tais eventos envolvem a composição de equipes mistas,
que mesclam ameríndios de diferentes povos com brancos vinculados a instituições diversas
(FUNAI e SESAI). A concepção de terceiros/intermediários, longe de ocultar o caráter misto
das equipes de contato, refere-se a um enfoque específico naqueles povos que tiveram uma
posição de destaque, mediando esferas e viabilizando a realização dos eventos de contato.

Korubo-Matis

Os Matis foram os intermediários entre os Korubo (“isolados”) e os agentes estatais antes


mesmo do evento 1. Nos anos 1980, Binan Matis traduziu algumas conversas entre os
Korubo e a Frente de Atração, conforme o capítulo 1. Em 1996, um grupo de quatro homens
matis participou da expedição do órgão indigenista em busca de uma parcela dos Korubo.
Em 2015, mais uma vez a atuação dos Matis norteou os eventos de contato 4 e 5,
possibilitando indiretamente a realização do evento 6. Dessa vez, os Matis foram os

149
protagonistas do contato, pois os agentes estatais só chegaram ao local dos eventos
posteriormente.

Parte da complexidade da relação Korubo-Matis relaciona-se aos vínculos de parentesco entre


eles. 71 Se, por um lado, existem pessoas com ascendência korubo entre os Matis devido aos
raptos ocorridos no século XX (Erikson 1996: 96; Arisi 2007: 76; Matos 2015: 20), por outro
lado, existem pessoas korubo que atualmente afirmam uma ascendência matis, como duas
jovens da aldeia Tankala Maë, que não são irmãs, mas afirmam ter “pais matis”. Entre os
Korubo, similar ao que ocorre entre outros povos Pano, os homens que mantêm relações
sexuais com uma gestante contribuem para a formação do feto, podendo em alguma medida
ser considerados “pais” (ver o caso matis, Erikson 2002b: 123-136). Possivelmente, as mães
dessas jovens korubo se relacionaram sexualmente com homens matis durante a gestação.

Apesar da ascendência, até hoje os Korubo são endogâmicos e não existem casamentos
Korubo-Matis. Os Matis já relataram que havia propostas de casamento entre eles e os
Korubo, mas naquele contexto os agentes estatais proibiam esse tipo de aliança (Arisi 2007:
111-6). Os Korubo também relatam que alguns rapazes desejaram se casar com mulheres
matis, após o evento 1, mas foram desencorajados por seus mais velhos sob o argumento de
que se não casassem entre si “desapareceriam” porque eram “poucos”. Embora essas alianças
matrimoniais não tenham se concretizado, os Matis desempenharam um papel central como
intermediários nos eventos de contato com os Korubo, relação caracterizada por dupla
estratégia de construção do parentesco, conforme veremos.

No evento 1, em 1996, os Matis se referiram aos Korubo, como nukon utsibo (meu parente),
nukon papi (meu filho) e nukon txampi (minha filha). Após a expedição de contato, essa
parcela dos Korubo também chamava os Matis de nukon mamã (meu papai) (Arisi 2007: 72-
3, 86). Os agentes estatais reconhecem que, após o evento 1, a proximidade entre esses dois
povos influenciou a atuação do órgão indigenista que tornou-se “dependente do trabalho dos

71
A complexidade da relação Korubo-Matis foi tematizada em poucas produções, conferir Arisi (2007) e Matos
(2015; 2019). Embora tematizem parentesco e guerra, a discussão sobre intermediação em eventos de contato
não é o mote central dessas produções.
150
Matis na Base de Proteção” (Vargas da Silva 2017b: 75). 72 Com a constatação dessa
“dependência”, os agentes estatais tentaram reverter a situação. Em 2007, introduziram um
linguista para estudar a língua falada pelos Korubo contatados no evento 1, “na tentativa de
construção de um diálogo mais qualificado da Funai com o coletivo korubo” (Amorim 2017).

Com o aprendizado da língua korubo, os agentes estatais não precisariam mais da onipresença
dos intermediários Matis. A inserção do linguista ocorreu “de forma lenta e gradual”. Nas
primeiras etapas do trabalho de campo, ele esteve acompanhado por intermediários Matis.
Foi necessário aprender primeiro a língua matis para conseguir dialogar com os Korubo
(Oliveira 2009: 3). Os agentes estatais atribuíam as petições dos Korubo à influência dos
Matis e a um suposto desejo dos Korubo em se assemelharem aos Matis e/ou os brancos
(nawa):

É também comum dizerem que a Frente não lhes dá casa de “nawa”, roupa de
“nawa”, que não têm um posto ou um chefe de posto, etc., como se quisessem
tornar-se iguais aos Matis ou aos “nawa”. Atualmente se empenham por
conseguir um motor, fazendo canoas, farinha e artesanato para vendê-los com
a ajuda da FPEVJ [FUNAI] e, assim, comprar um motor (Oliveira 2016: 11).

Para os agentes estatais, era necessário reduzir a centralidade dos intermediários Matis na
interlocução com os Korubo. A influência dos Matis sobre os Korubo contatados no evento
1 era tamanha que os agentes estatais concebiam os desejos manifestados pelos Korubo como
influência dos intermediários – algo que também ocorreu entre os índios do Xinane e os
intermediários Jaminawa (Almeida 2021: 200). Nos eventos de contato 4 e 5, a percepção
dos agentes estatais mudou novamente. Dessa vez, focando no aspecto bélico da relação
Korubo-Matis.

As seções anteriores narraram as mortes de Damë e Xucuruta, e a vingança dos Matis contra
os Korubo, característica presente nas narrativas dos agentes estatais. Mencionei ainda que,
após retornarem para os rios Coari e Branco, nos anos 2000, antes dos eventos de contato 4
e 5, os Matis estabeleceram contatos esporádicos com os Korubo (“isolados”) no rio Coari.
Alguns desses encontros foram filmados e fotografados pelos Matis, hoje disponíveis no

72
Os Matis também pareciam conceber essa “dependência”. Um dos exemplos disso é que, para os Matis, Sobral
foi morto pelos Korubo, em 1997, porque não havia intermediários Matis trabalhando na Base Ituí naquela
ocasião (Arisi 2007: 86).
151
acervo do CTI. Tais registros audiovisuais mostram a ambiguidade da relação Korubo-Matis,
caracterizada por usos de termos de parentesco, oferta de alimentos, comensalidade e
transmissão de conhecimentos:

Registro 1 (28’ 29”): feito por Makë Bush em agosto de 2013, divide-se em duas cenas. A
primeira mostra uma interação amistosa entre oito matis e cinco korubo nas margens do rio.
Há um esforço e cuidado por parte dos Matis em evitar que os Korubo subam o rio e cheguem
às aldeias matis e, ao mesmo tempo, em fazer os Korubo compreenderem que os contatos
esporádicos os expõem a doenças. Os Korubo aproximam-se dos Matis, chamando-os de
vutxi (eB) e mama (F), curiosos por mercadorias industrializadas, pelos ornamentos faciais e
pela zarabatana dos Matis. Os Matis, por sua vez, estimulam os Korubo a os chamarem de
mama (F) e txailo (FF). Em mais de uma vez, referem-se aos Korubo com o termo papi (S),
denotando que nessa relação os Korubo ocupam a posição dos mais novos a serem instruídos
pelos mais velhos. 73

Os Matis informam aos Korubo do evento 4 sobre a existência dos Korubo contatados no
evento 1. Explicam que as mercadorias são produzidas por brancos, demonstram como os
Korubo devem abrir roças com ferramentas de metal e, posteriormente, doam as ferramentas
para os Korubo. Na segunda cena desse primeiro vídeo (26’ 51”), um grupo de nove homens
korubo se encontra com os Matis. Um dos korubo se interessa pela mochila de um matis,
chamando-o de vutxi (eB). Os Matis pedem que os Korubo cantem e dancem. Mais de uma
vez, os Matis dizem aos Korubo que são numerosos, provavelmente para evitar qualquer
tentativa de ataque por parte dos Korubo.

Registro 2 (36’ 17”): autoria coletiva de 17 Matis, apresenta uma frase inicial indicando que
a gravação ocorreu em 26 de setembro de 2015, ou seja, no dia em que os agentes estatais
foram informados sobre o contato feito pelos Matis com uma parcela dos Korubo. O vídeo
mostra uma interação Korubo-Matis em nove cenas diferentes, conforme a sequência da
tabela abaixo:

73
Ao contrário da relação entre os índios do Xinane e os intermediários Jaminawa em que os primeiros são
atrelados à antiguidade (Almeida 2021: 192)
152
Cena Conteúdo
1 Chegada da embarcação matis nas margens do rio, recepcionados pelos Korubo. Os Matis trazem
comida para os Korubo.
2 Grupo matis encontra cochos de paxiúba dos Korubo no rio e os desamarram.
3 Os Matis insistem em saber os nomes dos Korubo.
4 Chegada de outra embarcação matis na margem do rio, trazendo carne de caça, recepcionados pelos
Korubo.
5 Mulheres korubo tratam a carne de caça trazida pelos Matis.
6 Homem matis ensina Mëlanvo Korubo a pescar com vara e isca.
7 Os homens matis ensinam os homens korubo a tratarem peixe. As mulheres matis ensinam as
mulheres korubo a descascar macaxeira.
8 Dois korubo deslocam-se em embarcação matis para buscar uma canoa de madeira e pescar.
9 Chegada de outra embarcação matis na margem do rio, recepcionados pelos Korubo.
Tabela 6. Cenas do encontro Matis-Korubo.

De acordo com a sequência acima, os Matis chegam em uma praia e são recebidos por Ixovo
e Ayax Punu Korubo. Os dois korubo ajudam os Matis a carregarem cestos com bananas,
milhos e batatas: alimentos doados pelos Matis. Nesse vídeo, os Korubo se referem aos Matis
por termos, como txitxi (MM), txailo (FF), vutxi (eB), masko (yB), piak (ZD) e kuku (MB).
Há um interesse dos Matis em saber quantas pessoas korubo faltam naquele local, e destas
quantas são mulheres. Para perguntar a essa parcela dos Korubo sobre os demais, os Matis
utilizam o termo min utsibo (teus outros, teus parentes). Se, em 1996, os Matis chamaram os
Korubo de nukon utsibo (nossos outros, nossos parentes) (Arisi 2007: 72), em 2015,
sinalizaram a diferença entre eles e os Korubo, enfatizando a semelhança entre as parcelas
korubo contatadas nos eventos 4 e 5.

Diante da insistência dos Matis em tentar descobrir o nome de cada pessoa korubo e também
os nomes daqueles que não estão ali, os Korubo adotam estratégias e/ou uma postura de
desconfiança: respondem os seus nomes trocados, parecem não compreender as perguntas e
mudam o tema da conversa. Há ainda uma cena de pescaria coletiva em que um matis ensina
Mëlanvo Korubo a utilizar vara de pesca com isca. Juntos, eles vão para um lago.
Posteriormente, eles tratam e assam os peixes.

153
Registro 3 (108 vídeos): feitos por Damë Bëtxun, os pequenos vídeos formam uma cena que
retrata o encontro dos Matis com os Korubo contatados no evento 4. Nessa ocasião, os Matis
constroem o primeiro “acampamento” de contato para os Korubo, o que elucida o argumento
dos Matis para os agentes estatais: “Os Korubo são nossos, nós os pegamos no mato” (Pereira
2018: 32). Nas cenas iniciais, um grupo de mais de 20 pessoas matis avista um cocho de
paxiúba e desembarca na margem do rio. O grupo observa os vestígios dos Korubo na floresta:
tapiris, cipó tatxik (Paullinia) e paxiúbas derrubadas (Socratea exorrhiza).

Após a averiguação do local, os Matis encontram Mëlanvo, Ixovo, Luni, Xuxu Luasivo e Wio
Korubo. Mais uma vez, os Korubo se referem aos Matis por termos de parentesco. Os Matis
querem saber quantas pessoas korubo ainda estão na floresta. Os Korubo respondem que
pessoas, como Nuatvo, Xiali 74, Lamon, Pëxken, Waxmën e Kolotxia partiram, ou seja,
permanecem na floresta. Homens matis e korubo tomam tatxik juntos enquanto esclarecem
os nomes e a quantidade de homens e mulheres entre os Korubo que não estão ali.

Os Korubo continuam curiosos em torno das mercadorias industrializadas e da ornamentação


dos Matis – característica presente nos registros 1 e 2. Os Matis perguntam os nomes dos
Korubo. Pela primeira vez, Mëlanvo confirma o seu nome. Então, os Matis contam a eles os
nomes dos outros Korubo contatados nos eventos 1, 2 e 3. Instruem os Korubo a
permanecerem naquele local, afirmando que vão trazer os demais Korubo, já contatados pelo
órgão indigenista, para todos viverem juntos. Nesse momento, os Korubo demonstram
desconhecer os demais Korubo e perguntam quem eles são. Xuxu Luasivo demonstra-se
incrédulo diante da informação sobre a existência de outros Korubo, discordando com a
cabeça, e perguntando quem é o “Visa” (contatado no evento 2), um dos nomes mencionados
pelos Matis.

Os Matis capinam um local nas proximidades e erguem um “acampamento” de contato para


os Korubo que, por sua vez, os observam. Enquanto estruturam o acampamento, um matis
diz a Mëlanvo Korubo que entre os outros Korubo existe “Xikxuvo” e “txitxi Maya avi”
(txitxi: MM; avi: ter), contatados no evento 1. Os Matis atam as redes dos Korubo e cobrem
o acampamento recém-construído. Instruem os Korubo a permanecerem debaixo do

74
Xiali é um termo para mulher órfã de pai e/ou mãe.
154
acampamento e dizem que aquela é a casa deles: “min shobo”. Uma mulher matis aproveita
para ensinar Wio a colocar o colar de miçangas de modo cruzado sobre o peito, como o
piskare matis, e não apenas de um lado como os Korubo usam.

Após erguerem o acampamento para os Korubo, eles conversam, sorriem e comem mingau
de banana juntos. Xuxu oferece o mingau para os Matis, chamando-os por termos de
parentesco. Os Matis não querem comer, apenas conversam. Um grupo de homens matis vai
para a floresta com Mëlanvo para ele demonstrar como usa a zarabatana korubo. Os Matis
apreciam a mira dele. No final, um velho matis avisa para Xuxu Luasivo que outros (utsi),
inclusive brancos, chegarão ao acampamento e que eles devem permanecer ali. Nessa cena,
jovens korubo que não estavam no local antes, como Ayax Punu e Këtsi Wisu, aparecem.

Os três registros audiovisuais feitos pelos Matis mostram os encontros esporádicos com os
Korubo (“isolados”) entre 2013 e 2015. Trata-se de longas interações e diálogos envolvendo
comensalidade, familiarização e a construção de vínculos de parentesco entre Korubo-Matis.
A atitude dos intermediários Matis denota um cuidado em reunir as parcelas korubo
contatadas em eventos distintos para explicar o mundo dos brancos e da floresta. Os Matis
querem ensinar aos Korubo o seu modo de vida, o jeito matis de caçar, pescar, cozinhar,
consumir mercadorias etc. Consideram que seu estilo de vida deshan mikitbo (gente do alto),
em oposição aos Korubo, é superior (Erikson 1996: 83). Tal postura de distinção e
senioridade evidencia a intenção dos Matis em transmitir conhecimentos aos Korubo,
portando-se como aqueles que estão na posição de instruir.

O acervo documental e os registros audiovisuais 1, 2 e 3 mostram que, em vez de utilizarem


termos para denotar afinidade simétrica como dispositivo de relação interétnica – termos que
em várias partes da Amazônia são mobilizados no encontro entre grupos distintos que não
mantêm relações de parentesco entre si (Viveiros de Castro 2002) –, os Matis e os Korubo
acionam uma dupla estratégia de construção do parentesco. Por um lado, usam termos de
parentesco para denotar a possibilidade de aliança matrimonial efetiva (ZD e MB). Por outro,
usam termos de relações de consanguinidade assimétrica (F, FF, MM e S) que, em várias
partes da Amazônia, denotam uma ética do parentesco envolvendo cuidado e afeto (Fausto
2008).

155
Em maio de 2022, durante a 2ª Oficina de capacitação para situações de contatos de índios
isolados, organizada por agentes estatais, Tëpi Matis e Ivan Ibu Matis apresentaram suas
concepções a respeito dos eventos de contato 4 e 5, ocorridos em 2015. Conforme os relatos,
quando os Korubo apareceram nas proximidades das aldeias e roças, os Matis sentiram
“medo”, pois não sabiam qual era o “pensamento” dos Korubo. A ideia inicial dos Matis era
“pegar os Korubo e viver com eles”, mas os Korubo “não pensavam igual” e o contato “ficou
difícil”. Quando encontraram cochos de paxiúba dos Korubo, os Matis pensaram em fazer o
contato e, posteriormente, convocar os agentes estatais para atendê-los. Na concepção dos
Matis, o fato de os Korubo terem atravessado para a outra margem do rio indicava que
estavam planejando “ataca-los”. Por isso, os Matis planejaram o contato. Juntaram-se e foram
atrás dos Korubo.

No evento 4, quando os Matis encontraram as crianças korubo, elas estavam sozinhas em


tapiris porque seus pais estavam atrás de outra parcela dos Korubo. Não houve consenso entre
os Matis sobre pegar as crianças. Então, decidiram leva-las para a aldeia, enquanto a outra
parte dos Matis aguardou os adultos korubo retornarem aos tapiris. Ao verem os Matis, os
adultos correram, mas os Matis os alcançaram. No evento 5, a outra parcela dos Korubo
estava nas proximidades da aldeia Kudaya. Os Matis supuseram que os Korubo estavam
procurando as famílias de Tumi Tukun e Txami para ataca-los. Por isso, seguiram os vestígios
dos Korubo. Acharam patauá e pëxo, até que encontraram os Korubo cozinhando curare.75
Alguns correram, mas os Matis conseguiram pegar as mulheres. Então, os homens retornaram
por causa delas. Os Matis os reuniram e levaram para a localidade do Tawaya, onde comeram
juntos. Posteriormente, os agentes estatais chegaram ao local.

Mais de uma vez, os Matis destacaram que seu plano inicial era reunir os Korubo (as parcelas
dos diferentes eventos de contato), fazer roças e aldeias para que eles (Matis e Korubo)
pudessem viver juntos. Conforme vimos, os Korubo e os Matis realizaram intercâmbios de
objetos, conhecimentos e hábitos. Em 2015, com a proximidade dos Korubo, os Matis
vislumbraram a possibilidade de “familiarização” (Erikson 1987; Fausto 2001) e do

75
Pëxo é um dos ingredientes do curare (nakunte), o veneno utilizado nas caçadas com zarabatana.
156
estabelecimento de outro tipo de relação: não mais de guerra, e sim apenas de parentesco
(“pegar os Korubo e viver com eles”).

O processo de familiarização não ocorreu conforme os Matis desejavam. Mas os eventos de


contato possibilitaram a introdução de novos elementos na vida dos dois povos, configurando
intercâmbios e trocas. A partir do evento 1, destaca-se a reintrodução do cipó tatxik
(Paullinia) entre os Matis. Os Matis haviam suspendido o consumo de substâncias amargas
após o seu contato com o órgão indigenista nos anos 1970, pois concebem que o amargo
causa doenças e o doce promove a imunidade. Na autoconcepção Matis, eles possuem mais
substâncias doces em seus corpos e precisam buscar o equilíbrio ingerindo o amargo através
do cipó e das tatuagens, por exemplo. Se, por um lado, o excesso de amargo os torna bons
caçadores, por outro, atrai doenças, gerando epidemias como a vivenciada pelos Matis nos
anos 1970. Após o contato com o órgão indigenista, os Matis reduziram a ingestão de
substâncias amargas e, após o evento 1, a relação com os Korubo os estimulou a consumir o
cipó novamente (Erikson 2000b; Amorim 2017).

A retomada do cipó tatxik por parte dos Matis na relação com a parcela dos Korubo contatada
no evento 1 é uma inversão do que costuma aparecer nas etnografias sobre intermediações
(Pérez-Gil 2011; Heredia Flores 2018; Almeida 2021). Nesse caso, não foram os terceiros
que inseriram um elemento novo na vida dos “recém-contatados”, e sim os Korubo que
reintroduziram um elemento já familiar aos Matis. Mais recentemente, observei que os
Korubo caçavam e armazenavam dentes de espécies de macaco para oferecer aos Matis que,
por sua vez, os utilizam para fabricar colares.

A influência dos Matis pode ser verificada na onomástica e nos rituais atualmente praticados
pelos Korubo no rio Ituí. 76 Vejamos o caso do ritual mariwin entre os Matis. Os mariwin são
espíritos ancestrais que partilham a essência vegetal da pupunheira (Bactris gasipaes). 77 O

76
Os agentes estatais indicam que foi a partir da relação com os Matis que alguns nomes dos Korubo foram
alterados, como Darambete que tornou-se Lalanvet Omon. Registro a atual adoção de nomes matis, como Tupa
e Tëpi, em crianças korubo no rio Ituí.
77
Existem mariwin vermelhos e escuros. Os vermelhos moram nas capoeiras de roças antigas dos Matis, e os
escuros moram nas margens dos rios. Os vermelhos estão associados à regeneração, ao fim das reclusões, às festas
e aos trabalhos coletivos, aos ciclos agrícola e vital. Os escuros estão associados a perda e morte. O alimento
preferido dos mariwin, em geral, são as araras. Sua aparência ritual envolve o uso de lama no corpo e de folhas
de samambaia na cabeça. A máscara dos mariwin é feita de argila, caracterizada por perfurações com dardos na
157
canto os estimula a entrar na maloca para castigar crianças desobedientes e preguiçosas. No
ritual, os Matis mais velhos comportam-se como pais e espíritos dos mais jovens, batendo em
seus corpos para endurecê-los e discipliná-los: característica dos rituais Pano em que fazer
alguém crescer é uma consequência do sofrimento, dos golpes e das torções. Os adultos
também podem se disfarçar de espíritos e bater nas crianças matis, enganando-as (Erikson
1996).

Atualmente, os Korubo do rio Ituí afirmam desempenhar uma “brincadeira” similar ao


mariwin dos Matis. A fabricação corporal das crianças korubo é estimulada com golpes de
folhas do cubiu (Solanum sessiliflorum). 78 Na língua korubo, o cubiu é chamado de puputan
e suas folhas são pokes. Os adultos e jovens correm atrás das crianças com pokes para golpear
seus corpos, atitude que denominam como “pokes txuxe”. Para os adultos, o pokes é uma
“brincadeira” benéfica às crianças e difere de uma agressão, até porque bater em crianças não
é um hábito dos Korubo.

Para as crianças korubo, o pokes é levado à sério, e envolve choro e sofrimento. As crianças
correm para longe, dizendo: pokesemen (–men: NEG.), o que fomenta o riso de jovens e
adultos. Não possuo dados que me permitam afirmar que o atual pokes remete a um antigo
ritual dos Korubo, cujo contato com o mariwin dos Matis serviu para reavivar determinados
aspectos. No entanto, o crucial é destacar que os próprios Korubo reconhecem o pokes como
mariwin, uma “brincadeira dos Matis”. Sugiro que o pokes é um ritual da mesma família do
mariwin, que visa a fabricação e o aprimoramento corporal das crianças.

Hoje, enquanto os brancos costumam comparar Korubo-Matis, os próprios Korubo


praticamente não mencionam os Matis, e passaram a criticar o seguinte aspecto do
comportamento Matis: a inferiorização do modo de vida korubo em que tudo é considerado
isamarap (ruim, feio) em comparação ao modo de vida matis (deshan mikitbo). As
transformações na relação Korubo-Matis parecem ter sido, por um lado, resultado da atitude

boca e barba de algodão. Os mariwin vermelho e escuro residem nas florestas e nos rios, e diferem dos maru que
residem nos ventos. Se, entre os Matis, há distinções entre mariwin e maru, no caso dos Kanamari, há distinção
entre os kiriwono e os adyaba. Os homens kanamari incorporam espíritos kiriwino que, similar aos mariwin,
batem nas crianças com pedaços de bamboo para fortalecê-las e fazê-las crescer (Costa 2007: 90, 107-110).
78
Os Korubo acionam diversos mecanismos de fabricação corporal, a partir do uso de cipó tatxik, da fibra de
tucum e da mandioca, por exemplo. Aqui foco no pokes como um elemento de incorporação e troca na relação
Korubo-Matis.
158
dos agentes estatais nos eventos de contato em 2015, por outro lado, do atual alargamento
das possibilidades relacionais dos Korubo no rio Ituí.

Após os eventos 4 e 5, os Matis foram temporariamente interditados pelos agentes estatais de


trabalharem como “colaboradores” na Base Ituí. Os agentes estatais afirmam que havia uma
“desconfiança” por parte dos Korubo com os Matis que, por sua vez, manifestavam a intenção
de “convencer os Korubo a retornarem para o rio Branco”, “boicotando o trabalho da
FUNAI”. É possível que o afastamento Korubo-Matis, também estimulado pelos agentes
estatais, contribuiu para acentuar a postura de senioridade dos Matis em relação aos Korubo:
os Matis insistem em destacar que são os melhores intermediários que os Korubo poderiam
ter e, por isso, enfatizam o modo de vida korubo como isamarap em relação ao modo de vida
deshan mikitbo.

Ao mesmo tempo, os Korubo passaram a trabalhar nas atividades remuneradas pelo órgão
indigenista e a frequentar mais as cidades. Nesses fluxos, estabelecem relações com outros
ameríndios da bacia do rio Javari, sobretudo, falantes de línguas Pano. Nessas novas
interlocuções, os Korubo se queixam sobre a atuação dos agentes estatais, tornando seus novos
intermediários em suas testemunhas: terceiros, conscientes de suas demandas, para reverberá-
las e galgar efetivações.

Korubo-Kanamari

Nos eventos 2 e 3, realizados em 2014, parte da equipe mista de contato era composta por
pessoas korubo, que haviam sido contatadas no evento 1, e também por Kanamari. Os
Kanamari falam uma língua Katukina, diferente da família linguística dos Korubo. Contudo,
apesar das diferenças sociocosmológicas, foram os Kanamari que fizeram os eventos 2 e 3 de
contato com os Korubo. Os Kanamari não participaram de expedição de contato nem de
acampamento de contato promovidos pelo órgão indigenista. Entretanto, eles encontraram
as duas parcelas dos Korubo e informaram aos agentes estatais.

159
Em 2014, Ninya Kanamari trabalhava como colaborador do órgão indigenista e recebeu uma
comunicação radiofônica da aldeia Massapê, no rio Itaquaí, informando que uma parcela dos
Korubo (evento 2) aproximara-se dos Kanamari. 79 Inicialmente, os Korubo dos eventos 2 e
3 conviviam juntos. Nas proximidades do igarapé Purgatório, Visa e Pinu Korubo brigaram
por causa de Malu. Ela havia sido esposa do pai deles, chamado Paxtu Vakwë. Com o
falecimento de Paxtu, Malu tornara-se viúva e passou a ser disputada entre os dois irmãos
para tornar-se esposa de um deles. Essa disputa entre Visa e Pinu gerou uma cisão entre os
Korubo, configurando os eventos de contato 2 e 3, em 2014. Uma parcela dos Korubo foi
em direção ao rio Itaquaí e a outra parcela a seguiu.

Imagem 10. Malu.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Os Korubo (“isolados”) estavam subindo o rio há meses. Até que uma parcela deles atravessou
o rio Branco e chegou nas proximidades da aldeia kanamari Massapê, no rio Itaquaí (evento
2). Cerca de duas semanas depois, a outra parcela deles também chegou à localidade (evento
3). Os Kanamari observaram as trilhas feitas pelos Korubo e perceberam que terminavam na

79
Esse relato sobre o contato entre os Kanamari e as duas parcelas korubo contatadas nos eventos 2 e 3, em
2014, foi fornecido por Ninya Kanamari em 12 de janeiro de 2022.
160
localidade chamada de “canal do professor Dyoho”. Francisco Dyoho, chamado pelos
Kanamari de “professor Dyoho”, foi a pessoa que encontrou a primeira parcela dos Korubo,
gerando o evento 2.

Segundo os relatos dos Kanamari, essa primeira parcela dos Korubo os avistou enquanto
navegavam pelo rio Itaquaí e os chamou para se aproximarem. Os Kanamari encostaram a
embarcação nas margens do rio. Visa Korubo entrou na embarcação dos Kanamari e não
queria sair. Visa estava acompanhado por Malu e algumas crianças, que também entraram na
embarcação dos Kanamari. Então, os Kanamari decidiram leva-los para a aldeia Massapê.

Naquela tarde, os Kanamari jogaram futebol. Embora não soubesse as regras do jogo, Visa
também jogou: “queria meter gol em outra trave, tinha hora que corria atrás do time dele”.
Após um dia em Massapê, Visa “mexeu com duas mulheres [kanamari] casadas”. “O
Francisco Dyoho ficou como se fosse o pai dele” [de Visa]. “Na hora que o Dyoho falava para
ele [Visa], ele não mexia mais não [com as mulheres]”. Na tarde do dia seguinte, durante um
banho no rio Itaquaí, havia crianças. Visa “mexeu com uma criança branquinha [kanamari]”,
“ele [Visa] pensava que era uma criança branca” [não-indígena]. Visa penetrou a vagina da
criança com os dedos, e ela sangrou. 80

Nesse ínterim, os agentes estatais realizaram um sobrevoo para “diagnosticar o que de fato
estava ocorrendo e avaliar a pertinência em se efetuar, ou não, o contato com o restante do
grupo” (Amorim 2017). As roças dos Korubo no rio Itaquaí estavam abandonadas. No ponto
de vista dos Kanamari, a outra parcela dos Korubo (evento 3) estava “escondida”, buscando
compreender o que acontecera os demais: “Parece que eles [evento 3] estavam escondidos
para tentar vingar a morte dos parentes deles [evento 2] porque ficaram por ali [nas
proximidades da antiga aldeia Massapê] e não foram até à aldeia [Massapê Novo, localizada
cinco voltas acima no rio Itaquaí]”.

Os Korubo do evento 3 rondaram as roças dos Kanamari e retiraram bananas. Os Kanamari


perceberam que suas roças haviam sido mexidas, e viram os rastros deixados pelos Korubo.
Os agentes estatais foram informados sobre a aproximação dos Korubo e demoraram alguns

80
Na língua korubo, a penetração vaginal com os dedos da mão é chamada de mëpuku (–më: mão). Trata-se da
abertura e formação da cavidade vaginal, precedente de relações sexuais fálicas.
161
dias para chegar em Massapê. Na equipe de contato, havia pessoas de diferentes povos
(Marubo, Matis, Matsés e dois korubo contatados no evento 1). Após uma semana que a
equipe chegara em Massapê, houve o evento 3. Visa (contatado no evento 2) intermediou a
comunicação entre os agentes estatais e seus familiares (contatados no evento 3):

Nos acompanhavam dois indígenas do grupo da Maya e Visa. Eles gritavam,


do jeito tradicional (I’e), chamava-os. Após várias tentativas sem resultado,
ouvimos finalmente a resposta dos isolados, ao longe, em direção ao centro da
mata. Demoraram um pouco, e finalmente se aproximaram, gritando da
mesma forma (Amorim 2017).

Os Kanamari relatam que, no encontro entre as duas parcelas korubo, “houve um chororo
danado [dos Korubo], se abraçando, gritando”. No dia seguinte, os agentes estatais
deslocaram os Korubo contatados nos eventos 2 e 3 para a Base Ituí, local da “quarentena”.
Os Kanamari foram centrais nos eventos 2 e 3 entre os Korubo e a equipe de contato.

Essa intermediação, diferente do que ocorreu com os Matis, não proporcionou o


estabelecimento de alianças posteriores entre os Korubo e os Kanamari. Apesar de Francisco
Dyoho ter agido como o “pai” do Visa – um anfitrião que o instruiu acerca dos
comportamentos considerados adequados pelos Kanamari – essa relação não se estendeu para
além dos eventos 2 e 3. Ao contrário, atualmente, os Korubo do rio Ituí destacam as
diferenças sociocosmológicas entre eles e os Kanamari.

Korubo-Korubo

Após o evento 1, realizado em 1996, os Korubo (“recente contato”) participaram dos eventos
posteriores entre os agentes estatais e os Korubo (“isolados”). Não houve expedições de
contato nos eventos 2, 3, 4 e 5, conforme o conceito de “expedição” apresentado nessa seção.
Nesses casos, os Korubo apareceram primeiro para outros ameríndios que, por sua vez,
informaram aos agentes estatais.

A estratégia dos agentes estatais para reduzir a influência dos Matis sobre os Korubo, iniciada
em 2007, teve relativo êxito. Quando cheguei em campo, a relação Korubo-Matis era bem

162
diferente daquela descrita por Arisi (2007), pois os Matis já não intermediavam a
comunicação entre os Korubo e os agentes estatais. Hoje, são os jovens korubo, nascidos e
crescidos após o pluricontato, que desempenham esse papel. Em 2020, a geração nascida após
o pluricontato constituía 41% da população korubo residente no baixo curso do rio Ituí.
Esses jovens intermediam os diálogos entre os Korubo e os brancos: acompanham os
pacientes removidos pelas equipes de saúde para as cidades; intermediam os Korubo
contatados no evento 6, no rio Coari.

Nos eventos 2, 3, 4 e 5, os Korubo contatados no evento 1 auxiliaram os agentes estatais na


interlocução com os demais. Após esses quatro eventos, os agentes estatais levaram os Korubo
(“recém-contatados”) para o rio Ituí, onde permaneceram junto àqueles contatados no evento
1. Os Korubo contatados no evento 1 têm sido centrais na adaptação das demais parcelas
korubo ao contato permanente com os agentes estatais, ou seja, na passagem da guerra à troca
(Lévi-Strauss 1976). Os agentes estatais afirmam que os Korubo contatados no evento 1
estavam interessados em contatar outros, gerando os eventos 2 e 3 no rio Itaquaí, para
aumentar o contingente de mulheres e realizar casamentos:

Ambos os contatos, o de 2014 e o de 2015, foram organizados por meio de


protocolos e extensas regras de trabalho, o que contribuiu determinantemente
para a não ocorrência de quaisquer situações tensas ou conflituosas no pós
contato. A participação indígena, inclusive de representantes do grupo Korubo
contatado em 1996, foi fundamental para a organização dos protocolos e
cumprimento dos objetivos da equipe (Amorim 2017).

A participação desses intermediários korubo nos eventos 2, 3, 4 e 5 não foi remunerada pelo
órgão indigenista, o que só veio a acontecer no evento 6, quando os intermediários Korubo
se tornaram “colaboradores da FUNAI”, com a emissão de OS. A contratação de ameríndios
como funcionários do órgão indigenista teve início nos anos 1980 e seguiu sem avaliações
pormenorizadas, gerando efeitos diversos entre os povos, como ciúmes e conflitos entre
grupos locais.

No evento 6, os intermediários Korubo contatados nos eventos 4 e 5 foram centrais devido


aos seus vínculos de parentesco com a parcela korubo contatada no evento 6. Na concepção
dos Korubo, seu papel como intermediários envolve “conversar” e “explicar” aos demais
Korubo (“recém-contatados”) aspectos do mundo dos brancos para evitar que estes fiquem

163
“bravos” (kuinine ou nakane). Em outras palavras, os intermediários Korubo concebem como
sua função auxiliar os “recém-contatados” no controle da raiva – tema discutido na Parte 2.
Nesse caso, controlar a raiva significa evitar conflitos e ataques por parte dos Korubo (“recém-
contatados”) aos agentes estatais. Evitar conflitos preconiza também que os intermediários
alertem os brancos sobre atitudes consideradas pelos Korubo como sovinas (kulaspek), pois
essa postura vulnerabilizam os brancos a ataques dos Korubo. Os intermediários concebem
que sovinar algo aos Korubo (“recém-contatados”) coloca os agentes estatais em uma posição
de “perigo”.

A partir de concepções em torno de sovinice e generosidade, os intermediários Korubo


classificam os agentes estatais como bons (vëyla) ou ruins (txuturap), recomendando ou
desencorajando para a coordenação do órgão indigenista a permanência de determinadas
pessoas no acampamento de contato. Além do controle da raiva e da sovinice, no evento 6,
os intermediários Korubo realizam atividades remuneradas pelo órgão indigenista. Eles
caçam, pescam e coletam para manter o acampamento de contato no rio Coari.

Para os intermediários Korubo, trabalhar no acampamento de contato proporciona estar em


contato com o mundo dos brancos, acessar dinheiro e abastecer suas aldeias com mercadorias
industrializadas, ou seja, os mesmos acessos que adquirem trabalhando na Base Ituí. No
entanto, há uma diferença entre o trabalho realizado nesses dois lugares. Se, por um lado, a
Base Ituí proporciona aos Korubo relações de troca com outros ameríndios e com os brancos,
por outro lado, o acampamento de contato é um espaço que, além disso, possibilita a
construção do parentesco entre parcelas korubo contatadas em diferentes eventos.

Através dos intermediários Korubo, as famílias korubo no rio Ituí enviam mercadorias
industrializadas para o rio Coari. Nessas ocasiões, as mulheres instruem os homens korubo a
entregarem as mercadorias industrializadas, dizendo aos Korubo contatados no evento 6
quem as forneceu, e acrescentando termos de parentesco que denotam consanguinidade
assimétrica, como tita (M): “tita Wio menea” (–mene: dar). Ao retornarem do rio Coari para
o rio Ituí, os intermediários Korubo trazem imagens e vídeos em seus celulares, relatam as
novidades e narram histórias, como aquelas contadas por Ayax Punu às pessoas na Tankala
Maë, conforme vimos.

164
2.6. Conclusão – Parte 1

O pluricontato envolve uma rede de relações que nem sempre ocupa o espaço devido nas
narrativas consideradas oficiais. Os eventos de contato entre o órgão indigenista e os Korubo
envolveram a participação de terceiros que atuaram como intermediários em expedições e
acampamentos, ou ainda, como proporcionadores e protagonistas dos eventos. A participação
dos Matis (eventos 1, 4 e 5), dos Kanamari (eventos 2 e 3) e dos Korubo contatados no evento
1 foram centrais para a realização dos eventos de contato posteriores.

Atualmente, os Korubo assumem cada vez mais a posição de intermediários e constroem


novas interlocuções com outros ameríndios e brancos, não mais apenas os agentes estatais.
Ao serem inseridos em trabalhos remunerados pelo órgão indigenista e circularem para as
cidades, os Korubo expandem suas possibilidades de interlocução e colocam novos
personagens no papel de intermediários. Aproximando-se cada vez mais de figuras
representativas do movimento indígena local, como Beto Marubo e Waki Mayuruna.

No capítulo 1, vimos que os Korubo estabeleceram relações de guerra com outros ameríndios
e, sobretudo, com os brancos que atuaram na bacia do rio Javari no contexto de extração de
recursos, como borracha, madeira e petróleo. Trata-se de um período marcado por fugas
constantes e decessos populacionais, com aproximações pontuais dos Korubo em busca de
mercadorias industrializadas e alimentos. No capítulo 2, vimos que o pluricontato entre os
Korubo e os agentes estatais foi realizado em seis eventos ao longo de 1996, 2014, 2015 e
2019, envolvendo relações com outros ameríndios, nem sempre caracterizadas apenas por
conflitos e mortes. Com o pluricontato, em vez de passarem de “isolados” a “recente contato”,
conforme os conceitos da política indigenista brasileira, os Korubo operaram uma mudança
de postura. Suas relações com a alteridade estão passando gradualmente do estado de guerra
à troca (Lévi-Strauss 1976).

Nos anos 1980, ao refletir sobre o contato interétnico entre havaianos e ingleses, Sahlins
(1985) analisou como as pessoas, a partir de suas próprias categorias culturais (“estrutura”),

165
interpretam novos “eventos”, como o contato interétnico. Estes eventos, por sua vez,
produzem transformações na estrutura, configurando o que ele chamou de “estrutura da
conjuntura”: uma síntese entre evento e estrutura. A análise de Sahlins (1985), feita a partir
de registros documentais sobre a chegada do Capitão Cook ao Havaí, configura uma
antropologia histórica em que o tempo e o espaço são elementos centrais para a elaboração
da memória. É necessário o benefício do tempo para que as pessoas interpretem os eventos a
partir de suas próprias categorias culturais.

A abordagem da antropologia histórica de Sahlins influenciou uma série de etnografias sobre


contato interétnico na Amazônia (Gallois 1988; Teixeira Pinto 2002; McCallum 2002;
Erikson 2002a; Vilaça 2006). Em geral, essas etnografias são feitas a partir da memória
coletiva, da coleta de narrativas orais de anciões, mesclando dados etnográficos com teoria
antropológica e historiografia. O contexto de produção dessas etnografias situa-se no “pós-
contato” entre o povo estudado e o órgão indigenista, norteando o acesso desses antropólogos
a um perfil de dados etnográficos específico. Nesse processo, o tempo é fundamental para
que haja reelaborações de mitos e narrativas históricas, constituindo uma “condensação
mítica” em que a experiência vivida é incorporada à mitologia (Fausto 2002: 16).

A partir do benefício do tempo, o mito de origem pode servir para explicar como os Wajãpi
compartilham a mesma origem com os brancos, criados pelo mesmo demiurgo, porém,
detentores de tipos de humanidade distintos (Gallois 1988: 224; 2007: 60-1). O mito de
origem também pode explicar por qual motivo os brancos têm abundância de mercadorias
em comparação aos Arara, ou ainda, contextualizar os brancos como antepassados dos Wari’
(Teixeira Pinto 2002: 417; Vilaça 2006: 274). Os brancos podem ser incorporados como
personagens em narrativas míticas e históricas que evidenciam a experiência rememorada
pelos vivos, como o ritual damiain entre os Kaxinawá (McCallum 2002). A autopercepção e
o discurso sobre si também são redefinidos com o tempo, contribuindo para a reconfiguração
de práticas, como a ingestão de substâncias doces e amargas entre os Matis (Erikson 2002a).

Todas essas etnografias foram realizadas com povos que vivenciavam o chamado “pós-
contato”, ou seja, o antropólogo chegou a campo após um período de tempo que viabiliza a
reelaboração cosmológica dos mitos, das narrativas, dos rituais e das autorepresentações. Isso

166
permite que a “estrutura da conjuntura”, discutida por Sahlins (1985), seja apreendida, pois
com o tempo, os ameríndios interpretam o evento do contato. No caso dos Korubo, eu não
tive acesso à estrutura da conjuntura por duas razões.

Primeiro, o conceito de “estrutura” nos leva a refletir acerca da necessidade não apenas do
tempo, mas também do espaço para a reprodução cultural dos Korubo. É necessário ter
alguma estabilidade para a produção de ritos e mitos, e para construir roças e malocas – algo
que durante muito tempo os Korubo não puderam ter por estarem em constante fuga dos
brancos, conforme vimos no capítulo 1.

Segundo, o “evento” de contato ainda estava em curso quando estive em campo, ou seja, os
Korubo ainda estavam vivendo o evento. Com os múltiplos eventos de contato, as parcelas
dos Korubo entram em um contínuo processo de incorporação e familiarização de novas
parcelas, contatadas em eventos posteriores, tornando-se intermediárias umas das outras nesse
encontro contínuo com o mundo dos brancos.

Desse modo, não foi possível coletar junto aos jovens korubo relatos míticos sobre os brancos,
pois estes não costumam falar sobre os seus antigos, e sim sobre o novo mundo que estão em
vias de conhecer: o dos brancos. Nem foi possível obter narrativas dos poucos anciões korubo
sobre os primeiros brancos que eles conheceram. O que pude apreender foi o cotidiano vivido
no rio Ituí, permeado por um novo evento de contato no rio Coari, que ainda não contou
com o benefício do tempo para ser interpretado pelos Korubo. Quem narra mitos é quem
não os vive, pois sabemos que narrar é interpretar. Os Korubo ainda estão vivenciando o que
um dia se tornará mito. Só então, a estrutura da conjuntura se revelará disponível e visível
para análises futuras.

167
PARTE 2. Parentesco multicrono

Se há algum mérito em meus argumentos, seria de se esperar que a


antropologia ao estudar o Tempo tanto quanto outras áreas, tenha sido o seu
próprio obstáculo contra o confronto coevo com o seu Outro. Isso para dizer
o mínimo, uma vez que a negação da coetaneidade é um ato político, não
apenas um fato discursivo. A ausência do Outro de nosso Tempo tem sido a
sua forma de presença em nosso discurso – como um objeto e vítima. É isso o
que é preciso sobrepujar: uma etnografia reforçada do Tempo não mudará a
situação (Fabian 2013: 170).

Em 1983, Johannes Fabian publicou O tempo e o outro: como a antropologia estabelece seu
objeto, denunciando o modo como a antropologia constrói o seu “outro”: povos outrora
chamados de “primitivos” ou “selvagens” que foram, por mais de um século, o “objeto” da
disciplina. Os antropólogos estabeleceram relações de poder com esse outro, a partir da
manipulação do tempo, ou seja, negando a coetaneidade aos sujeitos da pesquisa. Tal negação
se expressa nas narrações antropológicas em que as pessoas são apresentadas como se vivessem
em um não-tempo. Durante a pesquisa de campo, o pesquisador convive com o grupo
estudado, compartilhando o mesmo tempo e espaço. Mas, durante a escrita, a coetaneidade
desaparece e uma distância espaço-temporal emerge entre o antropólogo e o seu “outro”.

Os dados etnográficos que coletei ao longo de 2019-20 entre os Korubo deslocam o problema
apontado por Fabian (1983): em vez da “negação de coetaneidade” em relação ao objeto da
antropologia, o caso dos Korubo revela que essa negação é uma questão ontológica dos
próprios ameríndios após o pluricontato com o órgão indigenista. Nesse caso, a negação
aparece em dois eixos: (i) na forma como os Korubo são apreendidos pelo Ocidente, pelo
Estado e seus dispositivos, e (ii) na maneira como os Korubo classificam determinadas pessoas
entre si.

O primeiro eixo se expressa na maneira como os Korubo são retratados pelos brancos. Sob o
rótulo de “caceteiros do Vale do Javari”, tornaram-se famosos justamente por não serem
tratados como nossos coetâneos. Tal imagem construída em torno deles é primitivista, pois
são retratados como se vivessem congelados em outra época – característica expressa em
materiais jornalísticos e audiovisuais e, em alguma medida, na noção de “recente contato”

168
acionada pela política indigenista brasileira. 81 O segundo eixo, por sua vez, se expressa na
maneira como os Korubo se relacionam entre si. O órgão indigenista fez seis eventos de
contato com eles. Pessoas de cinco eventos de contato distintos, que outrora habitavam em
diferentes sub-bacias hidrográficas, passaram a co-residir no baixo curso do rio Ituí. No
entanto, o pluricontato não significou um nivelamento dessas pessoas. Ao contrário, as
diferenças relacionadas ao “tempo de contato” com os brancos vieram à tona. 82 Os Korubo
passaram a se distinguir como korubo xëni (“korubo antigo/velho”) e korubo paxa (“korubo
novo”).

Assim, a “negação da coetaneidade” apontada por Fabian (1983) se revela não somente uma
questão epistemológica, ou seja, na maneira como a antropóloga narraria a experiência de
campo vivida com os Korubo. Essa negação torna-se um aspecto das relações dos brancos
com os Korubo e, ao mesmo tempo, das relações internas às parcelas korubo contatadas em
diferentes eventos. A partir disso, uma questão é, justamente, compreender o que aconteceu
com as parcelas korubo contatadas pelo órgão indigenista ao longo dos anos? Com a co-
residência de pessoas contatadas nos cinco eventos de contato em 1996, 2014 e 2015 no
baixo curso do rio Ituí, houve uma série de casamentos entre pessoas xëni e paxa, mesclando
diferentes “tempos de contato” nas quatro aldeias korubo.

As relações matrimoniais são um dos aspectos analisados por Peter Gow (1989) que
evidenciam a importância dos processos corporais na cosmologia ameríndia. No cotidiano,
os povos ameríndios falam constantemente sobre “desejos” (“desejo sexual” e “desejo por
comida”) e, sobretudo, como tais desejos são satisfeitos nas relações entre diferentes pessoas.
Os alimentos que circulam entre as pessoas são produzidos dentro de uma divisão do trabalho
entre homens e mulheres, o que envolve também as relações de parentesco e casamento.
Embora não tenham cônjuges, pessoas solteiras consomem porque têm parentes casados que
trabalham uns para os outros, gerando o parentesco.

81
Para uma discussão em torno da noção de “recente contato”, ver o capítulo 5.
82
Nesta parte da tese, os conceitos “tempo de contato” e “momento de contato” se referem aos marcos dos
eventos ocorridos entre os Korubo e a FUNAI em 1996, 2014, 2015 e 2019, e não à totalidade das relações
com os latkute e nawa, conforme o capítulo 1.
169
Tal análise evidencia vetores de relações de parentesco: um do modelo relacional entre pais e
filhos, o outro do modelo matrimonial. O primeiro modelo pode se generalizar para outras
relações, como entre sogra e genro, irmãos, primos, avós e netos, caracterizando-se por
“respeito”, demandas indiretas por comida, a memória e o cuidado com o outro. O segundo
modelo, evidenciado também nas relações entre cunhados, caracteriza-se por brincadeiras, e
demandas diretas por sexo e comida. Quando tais demandas não são satisfeitas entre os
cônjuges podem resultar em “abandono”, equivalente da separação. A caça que um homem
oferece à esposa fomenta o casamento, mas também outras relações de respeito que, juntas,
configuram o parentesco.

As mulheres são o foco do interesse sexual dos homens com quem não têm relações de
respeito, ou seja, aqueles com quem elas brincam e, portanto, podem se casar. Ao mesmo
tempo, os homens investem em recursos para obter esposas. Entre os Piro, um dos recursos
atuais é a aquisição monetária. Os rapazes Piro passaram a ingressar em atividades madeireiras
para obter dinheiro e comprar mercadorias ofertadas como presentes para as mulheres. Ao
casarem-se, os pais da noiva contam com o trabalho do genro. A noiva que ofertou a
disposição sexual inicial recebe do marido presentes e alimentos que, por sua vez, retribui
satisfazendo os desejos dele por sexo e comida. Quando um casal têm filhos, torna-se
produtor pleno com casa e roça própria, e gera uma transformação da relação inicial
(demanda entre cônjuges) para uma relação de respeito entre pessoas de gerações distintas.

A análise de Gow (1989) evidencia a configuração de um ciclo de satisfação dos “desejos”


entre diferentes pessoas, que constituem os vetores de relações (pais-filhos e cônjuges) que
geram e fomentam o parentesco. O casamento aparece dentro dessa economia de desejos
como uma das molas propulsoras do parentesco. A proposta de Gow (1989) foi
compreendida como reveladora do funcionamento de um “gradiente próximo-distante”,
onde os “afins reais” são aqueles que nutrem “respeito” uns pelos outros, enquanto os “afins
potenciais” brincam e confrontam-se em rituais (Viveiros de Castro 2002: 131). 83

83
Em sua análise do parentesco na Amazônia, Eduardo Viveiros de Castro (2002: 123) propôs três tipos de
afinidade: a “efetiva” (presente entre cunhados e genros); a “virtual cognática” (primos cruzados, tio materno);
e a “potencial” (cognatos distantes, não-cognatos, amigos formais). Os “afins efetivos” são assimilados aos co-
residentes como consanguíneos, enquanto os “afins potenciais” (parentes classificatórios que não são co-
residentes) são reconsanguinizados através dos casamentos.
170
Toda troca, inclusive o casamento, é uma “forma de predação” em que afiniza-se para
incorporar e incorpora-se para consanguinizar. Na Amazônia, as alianças matrimoniais
subsidiam outras trocas, como as cerimoniais e funerárias (Viveiros de Castro 2002: 167-8).
Assim, atentar aos vetores de relação vigentes na economia dos desejos (nos termos de Gow)
e ao gradiente próximo-distante (nos termos de Viveiros de Castro) é fundamental para
percebermos como os Korubo estão (re)construindo afinidade e consanguinidade entre
pessoas de diferentes eventos de contato que, em alguns casos, embora fossem consanguíneas
em outro momento, ao residirem distantes umas das outras por décadas, tornaram-se
inimigas. Como os Korubo negam a coetaneidade entre si, diferenciando as pessoas como
xëni ou paxa, de modo a realizar casamentos entre pessoas com diferentes “tempos de contato”
com os brancos? Como, a partir dessa diferenciação, a afinidade é tecida? Como inimigos
tornam-se parentes e parentes convertem-se em inimigos?

O capítulo 3, Tempo e espaço, apresentará o conceito de “cronotopo” (do grego, –cronos:


tempo; –topos: lugar) como uma ferramenta útil à análise do caso korubo por evidenciar
aspectos espaço-temporais que, após o pluricontato, se sobrepuseram entre os co-residentes
no rio Ituí. Esclarecerei as configurações korubo no momento dos encontros com o órgão
indigenista, ou seja, quem eram as pessoas presentes em cada evento de contato, seus vínculos
de parentesco, a quantidade de grupos familiares e as cisões internas. Discutirei o cronos
mostrando a negação da coetaneidade entre os Korubo, expressa na distinção xëni e paxa.
Abordarei o topos evidenciando a disposição espacial das aldeias no rio Ituí: o índice de pessoas
xëni, paxa e solteiras expresso na presença de casas unifamiliares, malocas, e roças
unifamiliares e coletivas.

O capítulo 4, Aparentar-se, se dedicará à maneira como pessoas com diferentes tempos de


contato com os brancos casam entre si, representando uma passagem analítica da estratégia
criativa (distinção xëni e paxa) para a estratégia política (arranjos e rearranjos cronotópicos).
Partirei do aspecto em comum entre todos os Korubo: a ascendência matrilateral vinculada à
Maya, uma matriarca contatada pelos agentes estatais na expedição realizada em 1996.
“Antiga” (xëni) no contato com os brancos e também “mulher mais velha” (matxo), Maya
aparece como a protagonista que, após os eventos de contato, reúne em si todas as
características de uma “chefia”, conforme esta é compreendida e definida comparativamente

171
na etnologia das terras baixas da América do Sul (Lévi-Strauss 1944; Clastres 1974). A partir
desse elo em comum, focarei em 12 arranjos matrimoniais e algumas situações de rearranjos
entre pessoas xëni e paxa. No caso korubo, através da co-residência, da partilha de substâncias
e da criação de crianças, ex-parentes e ex-inimigos estão tecendo um parentesco permeado
por múltiplas temporalidades.

172
3

TEMPO E ESPAÇO

O evento de contato é um marco que estabelece diferentes temporalidades que foram


sobrepostas quando os Korubo passaram a co-residir no baixo curso do rio Ituí. Por isso, no
capítulo 2 sugeri o termo “pluricontato” que refere-se não à sucessão dos eventos de contato,
e sim ao contato enquanto multiplicidade de eventos díspares que são simultâneos,
sobrepostos e contraditórios. A ideia de pluricontato opõe-se ao conceito de “contato”,
evidenciando a multiplicidade dos eventos. Cada um destes abriga e expande uma dimensão
espacial e temporal que não é linear ou geométrica.

Este capítulo divide-se em quatro seções. Na primeira, argumento a utilidade do conceito de


“cronotopo” para a análise da organização social dos Korubo no baixo curso do rio Ituí,
contexto inaugurado pelo pluricontato. Discuto a pertinência ou não de conceitos, como
“grupos” ou “subgrupos”, para a análise do caso korubo. Na segunda seção, esclareço as cisões
e configurações das parcelas contatadas nos cinco eventos de contato ocorridos em 1996,
2014 e 2015. Na terceira, analiso a estratégia criativa elaborada pelos Korubo diante do
pluricontato, ou seja, a distinção entre korubo xëni e korubo paxa – “antigos” e “novos” no
contato com os brancos – para expressar a sobreposição de temporalidades nas aldeias. Na
última seção, me concentro no topos: a configuração atual de cada uma das quatro aldeias no
rio Ituí, evidenciando a distribuição cronotópica em um mesmo topos, expressa na disposição
de casas e malocas, e roças coletivas e unifamiliares.

Em 1996, os recorrentes conflitos entre os Korubo e os brancos foram a motivação do


primeiro evento de contato. Os contatos posteriores foram reflexos de decessos populacionais
entre os Korubo (“isolados”) decorrentes de doenças, como malária e síndromes gripais,
adquiridas em aproximações pontuais com outros povos, como os Kanamari e os Matis. Ao
mesmo tempo, houve cisões internas e dispersões entre os Korubo que se refletiram nos
quatro eventos de contato ocorridos em 2014 e 2015. Entre o contexto extrativista no Vale
do Javari e os eventos de contato 4 e 5, houve cerca de cinco cisões internas aos Korubo. Tais

173
cisões redefiniram a área de circulação e configuraram o processo de pluricontato entre a
FUNAI e as parcelas korubo, que foram chamadas pelos agentes estatais de “grupos”.

Diante da complexidade do pluricontato, os agentes estatais elaboraram estratégias para


identificar as parcelas korubo contatadas em eventos distintos e reunidas no baixo curso do
rio Ituí. Após a expedição de contato em 1996, Maya Korubo apareceu para os brancos como
uma figura proeminente (Silva 2021b: 388). Naquele momento, os agentes estatais não
tiveram tanta dificuldade para identificar essa parcela. No entanto, na medida em que outros
eventos de contato foram realizados com novas parcelas korubo em diferentes sub-bacias
hidrográficas ao longo dos anos, tornou-se latente a necessidade de identificá-las para o
diálogo interétnico, conforme a tabela abaixo:

Evento de Data do evento Local do Nomeação dada pela FUNAI Número de


contato evento pessoas korubo
contatadas
1 Outubro 1996 Rio Ituí Grupo da Maya 18
2 Setembro 2014 Rio Itaquaí Grupo do Visa 6
(Grupo do Marubão)
3 Outubro 2014 Rio Itaquaí Grupo do Pinu 15
(Grupo do Marubão)
4 Setembro 2015 Rio Branco Grupo do Xuxu 10
5 Outubro 2015 Rio Branco Grupo da Maluxin 11
6 Março 2019 Rio Coari Grupo do Makwëx 34
(Grupo do Coari)
Tabela 7. Eventos de contato entre a FUNAI e os Korubo.

Inicialmente, houve consenso sobre a referência do primeiro evento ser a matriarca, Maya.
Por isso, os agentes estatais nomearam essa parcela, como o “grupo da Maya”. Esse consenso
aparece nas falas dos agentes estatais e nos documentários gravados com os Korubo
contatados no evento 1. Em 2014, a referência não era evidente e aconteceram dois eventos
(2 e 3): primeiro, com o “grupo do Visa”; depois com o “grupo do Pinu”. Em 2015, ocorreu
algo semelhante nos eventos posteriores (4 e 5): contatou-se o “grupo do Xuxu” e,
posteriormente, o “grupo da Maluxin”. Mais recentemente, após o sexto evento de contato
entre a FUNAI e outra parcela korubo em março de 2019 no rio Coari, esta foi nomeada
como o “grupo do Makwëx”, o homem mais velho dentre as pessoas dessa parcela.

174
Essa estratégia de nomeação das parcelas korubo se baseou na associação com fenótipos ou
traços comportamentais da pessoa-ícone, como foi o caso do “grupo do Pinu”. No evento 3,
em 2014, Pinu se destacou como um homem “extrovertido e articulado” que possui uma
“mancha no rosto” (Vargas da Silva 2017b: 87). As nomeações na tabela acima também se
referem a topônimos, como o “grupo do Marubão” e o “grupo do Coari”, que indicam a
localização dos Korubo (“isolados”) em determinado momento.

A estratégia onomástica acionada pelos agentes estatais não é totalmente alheia aos povos
ameríndios. Com frequência, aldeias, malocas, grupos locais, parentelas, dentre outros, são
nomeados a partir de pessoas específicas ou lugares, nomes geralmente acompanhados por
um afixo coletivizador. O órgão indigenista adota postura relativamente similar ao usar um
termo que serve como coletivizador (“grupo de”). Mas, nesse caso, os agentes estatais estariam
criando grupos onde inexistiam?

As estratégias ameríndias de nomeação dos coletivos não servem para reificar, e sim para
capturar um momento que pode se dissolver posteriormente. Ao contrário, a estratégia do
órgão indigenista constrói designações que, no caso korubo, a partir dos eventos de contato,
codificaram e sedimentaram situações contingentes. Assim, a FUNAI criou grupos que foram
registrados dessa maneira nos documentos estatais e ganharam existência independente,
inclusive, de sua pertinência antropológica. Todavia, entre 2019-20, das nomeações utilizadas
pelos agentes estatais para identificar as parcelas korubo, o termo “grupo da Maya” era o que
mais expressava a organização social no baixo curso do rio Ituí. As demais nomeações não
faziam sentido no cotidiano das aldeias, pois nem todas as pessoas indicadas (Visa, Pinu,
Xuxu Luasivo e Maluxin) ocupam posições proeminentes entre os Korubo, mesmo no
diálogo com os agentes estatais.

Até o primeiro evento de contato em 1996, o “grupo da Maya” não existia. O que existia era
os “isolados”. Após esse primeiro evento, os “isolados” tornaram-se “Korubo recém-
contatados” ou “Korubo de recente contato”. O “grupo da Maya” só adquiriu existência no
acervo documental quando ocorreu o segundo evento de contato, em 2014. Até então, o
atual “grupo da Maya” equivalia aos “Korubo”. A estratégia de nominação adotada pelos
agentes estatais, de certo modo, reificou essa parcela de pessoas enquanto um “grupo”. A

175
partir daí, tal grupo adquiriu certa autonomia em relação ao órgão indigenista, tornando-se
de fato uma referência para os brancos e, em alguma medida, para os Korubo, embora estes
expressem-na em outros termos, conforme veremos.

Para o órgão indigenista, o que foi uma estratégia de identificação de coletivos é, para a
antropologia, uma estratégia de criação e reificação de coletivos que revela o quanto o
pluricontato incide na cronotopização das pessoas. Nesse caso, a cronotopização do “grupo
da Maya” ocorreu a partir dos eventos de contato posteriores, sobretudo, aqueles ocorridos
em 2014. Mas por qual motivo a estratégia não funcionou da mesma forma nos demais
eventos de contato? Conforme veremos, por um lado, Maya é uma figura singular entre os
Korubo, que reúne em sua biografia e personalidade características que os demais não
possuem, sobressaindo-se como pessoa magnificada e, por outro lado, após o primeiro evento
em 1996, o intervalo entre os eventos de contato posteriores foram mínimos. Assim, houve
uma sequência de eventos que dificultaram ancorar a coletividade em outras pessoas que não
fossem a Maya.

Tais designações serviram às finalidades do órgão indigenista, ou seja, identificar as pessoas a


cada um dos eventos de contato e, ao mesmo tempo, reificaram determinadas figuras entre
os Korubo – se não no cotidiano das aldeias, mas no acervo documental. O uso do termo
“grupo” pelo órgão indigenista trata-se de abreviações com finalidades administrativas e não
serve à reflexão antropológica que, por sua vez, busca compreender as configurações sociais
encontradas durante e após os eventos de contato. Os agentes estatais atribuíram o termo
“grupo” às parcelas korubo contatadas em diferentes eventos, e nomes ou topônimos
vinculados a cada uma destas.

Os nomes referem-se a pessoas que se destacaram aos olhos dos agentes estatais durante os
eventos de contato, e não de pessoas que ocupavam posições de chefia ou proeminência entre
os Korubo. Na maioria dos casos, essas pessoas foram selecionadas a partir de critérios físicos,
como o humor e a mancha no rosto do Pinu, de gênero (Visa, Xuxu Luasivo) e etário
(Maluxin, Maya e Makwëx). Apenas no caso do evento 1, os agentes estatais conviveram com
essa parcela dos Korubo ao longo de 18 anos até os eventos 2 e 3, em 2014, a ponto de notar
a influência exercida por Maya sobre os demais no rio Ituí.

176
Os topônimos selecionados referem-se à localidade onde os agentes estatais encontraram essas
parcelas, o que não significa que tais locais sejam de uso contínuo ou exclusivo destas, como
é o caso dos “subgrupos” entre povos de línguas Katukina e Arawa, conforme veremos
adiante. Embora ao longo do século XX, os Korubo ocupassem um território que vai da
confluência dos rios Ituí e Itaquaí ao divisor de águas dos rios Coari e Branco, não há
informações que nos permitam assegurar que as mesmas parcelas korubo ocuparam de modo
permanente os locais às quais foram vinculadas, como o igarapé Marubão e o rio Coari.

Dessa forma, as parcelas korubo não apresentam determinadas características que nos
permitem inclui-las no conceito antropológico de “grupo” ou “subgrupo”: (i) não possuem
delimitação territorial, com o uso exclusivo de bacias ou sub-bacias hidrográficas, como é o
caso de “subgrupos”; (ii) não recebem nome na língua korubo; (iii) não são endogâmicas ou
exogâmicas, mostrando-se endógamas apenas enquanto estiveram isoladas umas das outras
antes do pluricontato; (iv) não possuem mecanismos de afiliação. Além disso, tais parcelas
não se perpetuaram após os eventos de contato e, ao serem reunidas no baixo curso do rio
Ituí, se misturaram nas aldeias.

O que os agentes estatais nomearam de “grupo de __” são parcelas de uma população mais
ampla, falante de língua Pano, que, antes do pluricontato, viviam em contínuo processo de
fusão, fissão e migração. Acidentalmente, tais parcelas foram contatadas em determinados
momentos e locais pelos agentes estatais. Esse tipo de configuração é comum em regiões da
Amazônia setentrional e entre povos Pano (ver Coutinho Júnior 1993; 2017; Welper 2009)

3.1. Cronotopos

Em janeiro de 2019, conforme mencionei, o termo “grupo” não expressava a complexidade


do fenômeno em curso, ou seja, a reunião de pessoas com diferentes “tempos de contato”
com os brancos no baixo curso do rio Ituí. Os marcos dos eventos de contato não
correspondiam à composição das aldeias korubo, pois as pessoas dos “grupos” nomeados pelos
agentes estatais estão espalhadas em diferentes aldeias. Tal coexistência produz diversos níveis
de acessos ao mundo dos brancos, como à língua portuguesa e às mercadorias. Em uma

177
mesma aldeia, há pessoas que falam português, concentram mercadorias e outras que não
compreendem a língua portuguesa nem possuem objetos industrializados. Pessoas que falam
pouco português, mas têm bens, e outras com muitos bens que não sabem a “língua dos
brancos”.

Imagem 11. Caminhada na floresta.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Nas aldeias korubo no rio Ituí, é comum observarmos pessoas vestidas semelhante aos brancos
e, simultaneamente, outras trajando apenas a ornamentação corporal, como as amarrações
penianas e as braçadeiras feitas com a fibra de tucum (Bactris setosa). Pessoas que possuem
várias roupas e outras que usam sempre a mesma peça de roupa. Pessoas que só caçam com
espingardas e outras que só usam zarabatana. Pessoas que têm motores peque-peque e outras
que não têm canoa e sempre se deslocam em caronas. Crianças que já conhecem cidades e
outras que jamais saíram da aldeia para sequer ir à Base Ituí.

Esse cenário revela uma concomitância de temporalidades no mesmo espaço, cuja


complexidade precisa ser compreendida, justamente, por tornar-se uma questão ontológica
dos Korubo. Por um lado, há pessoas de tal modo familiarizadas com o mundo dos brancos
que administram a interlocução interétnica, por outro, há as que parecem ter iniciado
recentemente o processo de descobrir o mundo dos brancos. Trata-se de compreender como
178
os marcos do pluricontato dirigem a coexistência de diferentes modos de se relacionar entre
si e com o universo dos brancos. Ao escrever a etnografia, me deparei com duas questões
distintas: (i) apreender as classificações próprias dos Korubo e (ii) compreender uma
configuração emergente no pluricontato.

Vimos que o uso do conceito de “grupo” para se referir às configurações sociais dos Korubo
durante os eventos de contato é insuficiente à análise antropológica. Historicamente, a
antropologia dispõe de diversos conceitos para se referir a agrupamentos, pois o uso dos
conceitos ocidentais para expressar costumes nativos é um dos problemas clássicos da
disciplina. Por muitas décadas, os antropólogos estiveram interessados em compreender
concepções, como “grupo”, que são parte da invenção e projeção de uma ordem por parte do
antropólogo, ou seja, uma necessidade sentida pelos próprios pesquisadores de falar sobre
esses temas. Por isso, muitas vezes, os critérios utilizados para agruparmos as pessoas não são
os critérios que as próprias pessoas utilizariam para se agruparem. Em alguns casos, as
chamadas “formas nativas” expressam “eliciações indiretas” (e não agrupamentos) que variam
a depender do ponto de vista do observador (Wagner 1974; Viveiros de Castro 1996).

Inicialmente, é preciso destacar que os “grupos” criados pelos agentes estatais diante do
pluricontato com as parcelas da população korubo são unidades com valor totalmente
distinto dos conceitos etnológicos, como é o caso da discussão em torno de “subgrupos”. No
primeiro caso, os agentes estatais nomeiam “grupos” diante de eventos de contato enquanto
uma estratégia onomástica em que algumas pessoas são escolhidas aleatoriamente para
personificar e representar as demais, servindo a finalidades administrativas de identificação
das pessoas. No segundo caso, trata-se de termos que alguns antropólogos usam para traduzir
unidades reconhecidas pelos ameríndios, como os afixos padronizados em suas línguas,
reiterando categorias nativas baseadas em determinadas características, como circunscrição
geográfica, endogamia, chefia, etc.

Mesmo nos casos em que o antropólogo não busca impor suas categorias aos povos estudados,
compreender as formas de classificação nativas é um desafio. Conforme Carlos Fausto (2001:
130-1) questionou em sua etnografia sobre os Parakanã, ao refletir sobre a dificuldade de
compreender as “estruturas observáveis”: caso determinadas designações correspondessem a

179
formas específicas no passado, estas seriam “subgrupos”, “aldeias”, “patrilinhas”, “clãs”? Em
alguns casos, como os Karo-Arara, observa-se que o uso de determinadas categorias acionadas
pelos antropólogos, como “povo”, é efetivado por alguns homens e mulheres que elicitam tais
conceitos em relação a outros humanos e não-humanos em contextos rituais (Otero dos
Santos 2022).

A literatura etnográfica está repleta de mecanismos utilizados pelos etnólogos para


compreender determinadas “formas nativas”, como é o caso dos povos falantes de línguas
Katukina e Arawa, onde termos, como “subgrupo”, carregam densas conotações que variam
intra e entre as famílias linguísticas. Se analisarmos o uso desses termos, vemos que não
servem para compreendermos a situação dos Korubo após o pluricontato, justamente, por
não nos permitirem elucidar as sobreposições espaço-temporais construídas após os eventos
de contato.

Os subgrupos são coletivos que definem dinâmicas de alteridade e redes de intercâmbio. No


caso Kulina, é um “grupo nomeado” ou “subgrupo nomeado” que compõe ou se identifica
com as aldeias, já que estas podem ter membros de vários subgrupos, mas sua face externa é
a de um subgrupo. Os membros do subgrupo nomeado madiha vivem juntos, compartilham
o território e trocam entre si. No caso dos casamentos exogâmicos, a filiação paterna
estabelece o critério de pertencimento aos subgrupos nomeados: meninos pertencem ao
subgrupo do pai, meninas pertencem ao subgrupo da mãe. A localização geográfica, a
endogamia, a autonomia política e as guerras intergrupais marcam as diferenças entre os
madiha (Pollock 1985; Lorrain 1994).

Entre os povos de línguas Arawa, os subgrupos são descritos como sendo “categorias de
identidade local” (caso deni, Koop e Lingenfelter 1983) ou “grupos de denominação”
(jamamadi ocidentais, Rangel 1994). Entre os Deni, o compartilhamento territorial define
os subgrupos, mas não a criação das aldeias ou as regras de casamento. Entre os Jamamadi
ocidentais, a língua e a ocupação territorial conglutinam subgrupos, que realizam trocas e
rituais, enquanto as acusações de feitiçaria e vinganças seccionam, gerando novos subgrupos.

Entre os Suruwaha, o que os etnólogos chamam de subgrupos recebem o afixo –dawa,


acoplado a termos designando acidentes geográficos ou pontos cardinais, dentre outros.

180
Portanto, –dawa é um coletivizador que, geralmente, designa uma origem comum em algum
lugar. Pessoas consideradas “nossa gente”, em oposição a “outros” estrangeiros, formam
unidades dawa. O pertencimento a um dawa vincula as pessoas a um ancestral e a um povo
primordial. As relações inter dawa se caracterizam por trocas e rituais, estabelecimento de
alianças exogâmicas e o compartilhamento do sentimento de pertencimento a uma
comunidade linguística. Entre os Suruwaha, os dawa remetem a um território e possuem
nomeações topográficas, como “gente do igarapé Pretão” (Aparicio Suárez 2013).

A discussão etnológica sobre os subgrupos Arawa revela que pode haver coincidência entre
subgrupos, ou seus equivalentes, e as aldeias contemporâneas. No caso Jarawara, as aldeias
correspondem a configuração tradicional: agrupamentos em torno de um líder. Os membros
de uma aldeia jarawara casam entre si. Nesse caso, similar ao que ocorre entre os Suruwaha,
os subgrupos têm nomeações topográficas, como “gente do Leste” (Maizza 2012).

No Vale do Javari, o conceito de “subgrupo” aparece nas etnografias dos povos falantes de
línguas Katukina, como os Kanamari e os Tsohom-dyapa (Costa 2007; Gil 2020). No caso
Kanamari, a lógica dos subgrupos endogâmicos vigorava nos tempos primordiais e, a partir
do século XIX, foi se modificando com a chegada dos brancos. Os Kanamari dividem-se em
subgrupos nomeados a partir dos nomes de animais, seguidos do sufixo –dyapa, 84 com o
funcionamento similar aos madiha kulina. Entre povos Katukina, a ocupação territorial
também é central, pois os dyapa ocupavam bacias hidrográficas. Em cada bacia, existia um
conjunto de aldeias kanamari. Os co-residentes se consideravam “parentes verdadeiros” em
contraposição às pessoas de outras aldeias kanamari, consideradas “parentes distantes”.
Pessoas de subgrupos distintos eram “não-parentes”. Pessoas do mesmo subgrupo e de aldeias
distintas casavam entre si (Costa 2007: 45).

Conforme os casos mencionados, os subgrupos são identificados a partir de afixos, como


madiha, deni, dawa e dyapa, que conformam unidades. Ao longo de um território, essas
unidades estabelecem redes de intercâmbios e rituais, mas passaram por transformações na

84
Dyapa destituído de prefixo é utilizado em referência aos Kaxinawá e Marubo, falantes de línguas Pano,
inimigos dos Kanamari (Costa 2007: 41). No caso dos Tsohom-dyapa, eles “seriam um dos muitos –dyapa que
mantinham relações mútuas no passado, mas que, ao optarem por se afastar dos não indígenas e interromper
seus vínculos com outros –dyapa, assumiram uma trajetória diferente daqueles que mais tarde se organizaram
sob o guarda-chuva geral “Kanamari”” (Gil 2020: 10).
181
relação com os brancos e, em muitos casos, deixaram de ser uma dimensão pertinente da
organização social dos povos contemporâneos. 85 Nessas etnografias, características como a
ocupação territorial contígua e as redes de intercâmbio são centrais na caracterização dos
“subgrupos”.

Tais características inexistiam em um passado recente entre as parcelas korubo. O capítulo 2


indicou que a parcela dos Korubo chamada pelos agentes estatais de “grupo do Xuxu”,
contatada em 2015, desconhecia as demais parcelas contatadas em 1996 e 2014. Os
intermediários Matis estabeleceram os vínculos de parentesco entre pessoas do “grupo do
Xuxu” e outros, por exemplo, informando a Mëlanvo Korubo que a sua “avó Maya” estava
no rio Ituí: “txitxi Maya avi”. Outro exemplo da ausência de relações entre os Korubo em
um passado recente apresenta-se no encontro entre os agentes estatais e os Korubo
(“isolados”) no rio Itaquaí em 2008. Na ocasião, a equipe informou à distância que no rio
Ituí havia outros Korubo, contatados em 1996, e mencionou os nomes de alguns deles. Os
Korubo (“isolados”) mostraram-se surpresos ao saber que “Xikxuvo” (contatado em 1996)
ainda estava vivo. Isso confirma que eles – os contatados no evento 1 e aqueles que seriam
contatados nos eventos 2 e 3 – não estabeleciam relações entre si há algum tempo.

A ocupação territorial dos Korubo centrou-se em sub-bacias do rio Javari. 86 As pessoas das
distintas parcelas não mantiveram relações de intercâmbio, a ponto de não se reconhecerem
como parentes de imediato. Diferente de alguns povos Arawa, os Korubo não se
autodesignam pertencentes a topônimos, como “grupo do Coari” ou “grupo do Marubão”,
estes são nomes dados pela FUNAI, conforme vimos. Do mesmo modo, “Korubo do rio Ituí”
e “Korubo do rio Coari” é um recurso narrativo acionado nesta tese, e não uma
autoidentificação dos Korubo.

85
No caso dos povos falantes de línguas Pano, o conceito de “conjunto” destaca-se. Philippe Erikson distinguiu
oito conjuntos que, por sua vez, constituem um “macro-conjunto” Pano por compartilharem características na
onomástica e mitologia que facilitam a identificação entre os conjuntos e, ao mesmo tempo, a distinção entre
estes, os brancos e outras famílias linguísticas (Erikson 1993: 47-8; 1996: 42-4). Neste caso, diferente de
“subgrupo”, o conceito trata de fronteiras etnológicas entre “povos” Pano distintos. Outro uso deste conceito
pode ser verificado em Matos (2017: 39) para pensar os “conjuntos de relações” expressos em narrativas de
guerra de povos Pano setentrionais que caminhavam ou moravam juntos, como: dëmushbo x camumbo; mayu x
taëmido (caso Matsés); dëshan nikitbo x tsawesbo (Matis), dentre outros.
86
A bacia do rio Javari origina duas sub-bacias: Ituí e Itaquaí. Ituí origina a sub-bacia Coari, enquanto o Itaquaí
origina a sub-bacia Branco (Conrado Rodrigo Octavio, comunicação pessoal).
182
A ausência de determinadas características presentes na literatura etnológica evidenciam por
qual motivo as parcelas korubo reunidas após os eventos de contato não são “subgrupos”. A
configuração social dos Korubo antes do pluricontato carece de unidades supralocais com
permanência no tempo, como clã e linhagem, por exemplo. O que havia era parcelas de uma
população mais ampla que vivenciou contínuos processos de fissão e fusão, sobretudo, após
o período de exploração extrativista na bacia do rio Javari, conforme ocorreu com outros
povos da família linguística Pano.

Se, por um lado, a literatura etnológica fornece subsídios para a compreensão das
classificações ameríndias, por outro, a segunda questão permanece sem solução, ou seja, como
compreender uma configuração própria do pluricontato? Não se trata apenas de compreender
a maneira como os Korubo denominam suas unidades e atomizações internas, como Xiavo e
Txikitxoevo conforme o capítulo 1, e sim de entender como o pluricontato, ao reunir as
parcelas, inaugurou sobreposições espaço-temporais balizadas por e definidoras da relação
entre os Korubo e os brancos.

Como identificar as parcelas korubo que, antes dos eventos de contato, não eram relevantes
para os Korubo e tornaram-se centrais após o pluricontato, justamente, por terem adquirido
uma importância para os agentes estatais e outros brancos que atuam com eles? Como nomear
unidades que condizem com uma política indigenista estatal? Como compreender a
consistência dessas nomeações, na medida em que novos eventos de contato acontecem?
Como explicamos essa co-existência, na mesma aldeia, de pessoas que remetem a diferentes
eventos de um pluricontato? Pessoas que compartilharam o evento de contato e, que em
função deste fato, são administrativamente “agrupadas” pelos agentes estatais, mas não
configuravam (até onde podemos saber) uma unidade sociológica relevante no período
anterior ao contato. A etnografia sobre os Korubo traz este elemento à reflexão antropológica:
um contexto que só existe em função do pluricontato.

Diante disso, sugiro como solução o conceito de “cronotopo”. Não intenciono usar este
conceito enquanto um neologismo para substituir o termo “grupo” acionado pelos agentes
estatais, nem definir unidades importantes para os Korubo. O uso de “cronotopo” visa
auxiliar na compreensão de como o pluricontato incide e reconfigura os fluxos sociais

183
existentes, inaugurando situações cronotópicas de sobreposições espaço-temporais. Os
cronotopos korubo, conforme veremos, não são apenas uma questão desta etnografia, mas
são também formas de repensarmos como a temporalidade cria unidades sociológicas.

O conceito de “cronotopo” foi criado pelo filósofo russo Mikhail Bakhtin (em grego, –cronos:
tempo; –topos: lugar) no final de 1930, mas só ganhou contornos mais definidos décadas
depois na obra The Dialogic Imagination (1981). Este conceito, grosso modo, diz respeito à
relação entre tempo e espaço enquanto elementos inseparáveis nas narrativas literárias, ou
seja, tais elementos constroem trajetórias narrativas e pontos de vista expressos em poemas
épicos e romances modernos. Os romances gregos antigos mostram que o tempo da aventura
caracteriza-se por um personagem que vivencia diversos eventos que não modificam sua
personalidade, ao contrário das hagiografias em que os eventos externos transformam o
personagem. Neste caso, são os diferentes cronotopos que possibilitam a criação de tipos de
historicidade, ações e pessoas. Isso porque o tempo e o espaço são relativos e contextuais,
produtores de histórias e relações sociais.

Embora tenha surgido na literatura, o conceito de “cronotopo” foi incorporado em outras


áreas de conhecimento, como as artes, a sociolinguística e as ciências sociais, justamente, por
auxiliar na análise de contextos em que tempo-espaço são acionados discursivamente para
atribuir significados, como as narrativas orais, contribuindo para o desenvolvimento de
reflexões sobre a construção de imaginários espaço-temporais (Blommaert 2015; Perrino
2015; Wirtz 2016). Este é o caso de narrativas coletadas em tribunais (Keller-Cohen e
Gordon 2003; Carranza 2003), nos relatos de pessoas enfermas (Büllow e Hydén 2003), nas
relações entre mães e filhos ou entre estudantes (Bloome e Katz 1997; Wortham 2001; Chang
2003), nos discursos sobre racismo ambiental (Blanton 2011), nas entrevistas (Wirtz 2016),
dentre outros.

Na antropologia, um dos exemplos da rentabilidade deste conceito está na etnografia de


Christopher Ball entre os Wauja do Xingu. Ball (2015; 2018), a partir de escalas espaciais
distintas, aborda a maneira como os Wauja falam, agem e pensam em determinados contextos
sociais para compreender a relacionalidade social, ou seja, como eles se comportam em relação
a outros (espíritos, humanos, brancos etc.). Ele aciona o conceito de “cronotopo” para

184
analisar como os Wauja se situam em tempos e espaços narrativos, e argumenta que as relações
de parentesco são construídas por meio de cronotopos processuais sustentados em usos de
nomes, termos relacionais e na evitação de nomes. Nesse caso, Ball (2015) analisa as
nomeações e as evitações de nomes entre consanguíneos e afins.

Os Wauja têm um estoque de nomes utilizados ao longo da vida e mudam de nome com
certa frequência. Os nomes e seus possuidores são emblemas uns dos outros. Portanto, os
nomes wauja são substantivos inalienavelmente possuídos que quase sempre são acrescidos
de morfemas pronominais indicando posse. O batismo ritual em que uma pessoa recebe um
nome “projeta implicitamente o cronotopo” do portador do nome e das associações (pessoas,
histórias) que este carrega. Nesse sentido, o batismo muda o nome e, assim, muda a pessoa –
de modo relativamente similar como os eventos de contato promovem transformações entre
as pessoas korubo.

A análise dos nomes Wauja revela que “as instâncias de uso e não uso [dos nomes] estão em
dialética com as estruturas de parentesco e troca, assim como de tempo e espaço, que ordenam
a relacionalidade social. Essas estruturas, que chamo aqui de cronotopos de parentesco, são
produzidas por meio do uso apropriado e exercem influência sobre ele, o que implica
evitação.” (Ball 2015: 353, tradução própria). Por exemplo, entre os Wauja, um pai evita
dizer o nome de um peixe por ser o mesmo nome de seu filho, este dado pelo avô materno
do menino. Tal evitação do genro em falar o nome dado pelo sogro denota a intimidade e
não afinidade com o filho (cronotopo da consanguinidade) e, ao mesmo tempo, expressa a
afinidade com o sogro (cronotopo da afinidade).

Por um lado, na lógica da consanguinidade, os nomes são bens imutáveis, como se fossem
heranças que projetam o tempo futuro, por outro, nas relações de afinidade, os nomes são
dinâmicos dentro de um fluxo temporal do aqui-e-agora. Os nomes dos consanguíneos não
são evitados nem quando falecem e são acrescidos do afixo –tumban (“falecido”). Tais nomes
são transmitidos em rituais públicos realizados em grupos. O topos da consanguinidade é o
centro da aldeia, espaço masculino, local de sepulturas ancestrais e dos rituais públicos. Ao
contrário, os Wauja evitam dizer os nomes de seus afins, substituindo-os por nomes que
remetem a plantas ou animais.

185
O foco da evitação, nesses casos, nem sempre é o portador do nome, mas pode ser aquele que
deu o nome, conforme o exemplo supracitado da relação entre sogro e genro. O topos da
afinidade são os espaços domésticos e periféricos, privados e femininos. A evitação dos afins
não ocorre apenas no âmbito discursivo, mas espacial. As pessoas evitam as casas de seus afins,
consideradas “casas dos outros”, criando topos circunscritos por afinidade-consanguinidade
dentro da aldeia, o que Ball (2015: 358) chama de “mapas pessoais”. Desse modo, os Wauja
agem socialmente de acordo com as estruturas de parentesco apropriadas em cada contexto,
seja usando os nomes (cronotopo da consanguinidade) ou evitando os nomes (cronotopo da
afinidade). Trata-se de “cronotopos normativos” (Ball 2015: 359) que prescrevem
comportamentos adequados no tempo e espaço.

As etnografias mostram que o conceito proposto por Bakhtin (1981) foi adaptado e
reformulado, expandido para além da literatura, tornando-se uma ferramenta nas análises
antropológicas. Contudo, grande parte das utilizações desse conceito concentram-se na
linguagem, verbal e não verbal. No caso korubo, a minha proposta é ampliarmos um pouco
mais o conceito, aplicando-o também às pessoas. Nesta tese, eu chamo de “cronotopo” as
parcelas contatadas em cada marco de contato, pois os cronotopos não formam identidades
nem fronteiras e se difundem na organização social do baixo rio Ituí. Os cronotopos não
definem uma unidade social e, portanto, não correspondem à noção de “grupo” acionada
pelos agentes estatais. Em outra ocasião, considerei o termo “cronogrupo” como adequado.
Era uma proposta temporária, utilizada em uma discussão sobre gênero e o surgimento de
caciques entre os Korubo no rio Ituí (Silva 2021b: 382). Após rever os dados, escolhi o
conceito “cronotopo” para enfatizar, em primeiro lugar, o tempo e o espaço, em vez de
priorizar o agrupamento humano.

Recordemos que, em 2014 e 2015, ocorreram quatro eventos de contato em dois marcos. O
que os agentes estatais chamam de “grupo do Marubão” ou “grupo do Coari” não eram
grupos nos momentos de contato, e sim foram reunidos conceitualmente pelos agentes
estatais sob a categoria “grupo de __”. Cada um destes se mesclou em diferentes aldeias no
baixo rio Ituí. Para evitar a noção rígida de “grupo”, que pouco reflete as características do
pluricontato, opto por “cronotopo” visando enfatizar as múltiplas temporalidades. No rio
Ituí, coexistem o cronotopo do Estado que nomeia e define as parcelas contatadas; o

186
cronotopo do “tempo de contato” como um marco definidor das diferenças internas aos
Korubo, promovendo a cronotopização das próprias pessoas através das categorias korubo xëni
e korubo paxa; o cronotopo do parentesco na construção dos vínculos entre pessoas que
passaram a co-residir após o pluricontato, algo evidenciado nos casamentos entre pessoas xëni
e paxa; o cronotopo do rio Coari que, após a expedição de contato em 2019, se alinhou
discursivamente aos cronotopos já existentes no rio Ituí.

“Grupos” criados pela FUNAI Cronotopos


grupo da Maya cronotopo A
grupo do Visa cronotopo B
grupo do Pinu cronotopo B
grupo do Xuxu Luasivo cronotopo C
grupo da Maluxin cronotopo C
Tabela 8. Grupos e cronotopos.

Em vez de falar em “grupo de __”, opto por falar em cronotopo e, ao mesmo tempo,
substituir os nomes de pessoas e lugares por letras do alfabeto em língua portuguesa. O
objetivo é, em vez de reificar determinadas personalidades e lugares na trajetória dos Korubo,
evidenciar as sobreposições, os cronotopos como eventos que co-ocorrem no tempo-espaço.
Após o pluricontato, os cronotopos se inserem em uma dinâmica sociocultural no baixo rio
Ituí, não formam fronteiras específicas nem determinam pertencimentos. Trata-se de
“estruturas da conjuntura” nos termos de Sahlins (1985), pois são categorias que remetem ao
pluricontato: pessoas que em certo momento foram contatadas pelo órgão indigenista e, a
partir daí, foram classificadas pelo Estado como “grupo de ___”. O cronotopo remete aos
eventos de contato e estabelece um divisor, uma espécie de marco.

3.2. Cisões e fusões

Durante a pesquisa de campo, reconstituí alguns vínculos genealógicos de pessoas contatadas


em eventos distintos. Algumas genealogias foram montadas posteriormente a partir das
minhas anotações no caderno de campo, outras foram esboçadas em conjunto com os Korubo
na aldeia. A partir desse material, é possível visualizar parte das genealogias das pessoas
contatadas pelo órgão indigenista nos anos 1990 e 2000 e compreender como, após o

187
pluricontato, os Korubo se organizaram em quatro aldeias no rio Ituí. De certa maneira, o
fenômeno do pluricontato foi indigenizado e submetido à lógica da sociologia korubo,
caracterizando-se por cisões e fusões que conformam uma dinâmica própria aos eventos de
contato. Tais dinâmicas nos ajudam a compreender a configuração social da população
korubo durante as aproximações com o órgão indigenista.

Veremos que a atribuição do etnônimo “Korubo” equivale ao uso do termo “grupo de __”
por parte dos agentes estatais, pois ambos são construções que permeiam o pluricontato.
Aparentemente, havia alguma semelhança cultural entre as parcelas korubo, como as
bordunas e a indumentária, por exemplo, mas certamente havia também diferenças
cromáticas entre essas parcelas relacionadas à língua e aos rituais que, para aqueles que hoje
são chamados de “Korubo”, faziam muita diferença. O mecanismo de classificar as pessoas
de um evento de contato como “grupo de __” é o desdobramento de uma classificação de
parcelas de pessoas de uma população que nem sequer podemos afirmar que eram “grupos
locais”. Conforme veremos, as parcelas pertencem a uma parentela mais ampla que esteve em
contínuo movimento de cisões e fusões, característico de várias regiões da Amazônia
setentrional – para uma visão dos cronotopos juntos, conferir o diagrama no Anexo 3. Dessa
maneira, o pluricontato é o primeiro momento em um processo de devir-Korubo, que ainda
está em curso.

Cronotopo A

As origens do cronotopo A, chamado pelos agentes estatais de “grupo da Maya”, remontam


ao rapto de duas mulheres: Maluxin e Wio Maluxin. Ambas eram irmãs de Maya, matriarca
contatada pelo órgão indigenista em 1996, que foram raptadas por pessoas que viviam com
Txikit Korubo. Elas foram levadas para o rio Coari, onde viriam a configurar parte dos
cronotopos contatados em 2015 e 2019. As pessoas que acompanhavam a Maya
consideravam aqueles do rio Coari como “lala wëtsi” (lala: homem; wëtsi: outro). Entre eles,
havia raptos, conflitos internos e acusações de feitiçaria, produzindo alterações em sua
configuração, conforme a dinâmica de grupos locais Pano descrita por Erikson (1993). A

188
partir dessa cisão, os Korubo do rio Ituí se autodefiniam como Xiavo em contraste a outra
parcela localizada no rio Coari, chamada de Txikitxoevo. A etimologia deste termo pode ser
traduzida como “aqueles que vieram com Txikit”, o que constitui um etnônimo comum a
grupos locais em toda a Amazônia (Txikit: nome do raptor; –txo: vir).

Uma cisão interna aos Xiavo no rio Itaquaí, após um conflito com os brancos durante o
período extrativista, reconfigurou o formato do que viria a ser os cronotopos A e B, chamados
pelos agentes estatais de “grupo da Maya”, “grupo do Visa” e “grupo do Pinu”. Em 1989,
três homens korubo foram alvejados por um grupo de brancos no lago Gamboá, rio Itaquaí,
após terem aparecido nas proximidades da casa de um seringueiro (ISA 1987/90: 278),
conforme o capítulo 1. Maya foi quem teve a iniciativa de ir para as margens dos rios pedir
ferramentas de metal aos brancos. Então, os Korubo conflitaram entre si, descontando nela a
raiva pelas três mortes causadas na aproximação com os brancos (Silva 2021b: 397). Além
dos três korubo alvejados, outros três homens korubo foram mortos por Nëmulo, irmão de
Maya. Houve uma nova dispersão entre eles.

Maya e suas duas irmãs, e os filhos delas, foram em direção ao rio Quixito, Ituí e igarapé
Quebrado, localizado na margem esquerda do rio Ituí onde ocorreu o evento 1, em 1996,
(Oliveira 2009: 13-8) – configurando o que viria a ser o cronotopo A. Durante a exploração
extrativista, essa parcela saqueava as roças dos brancos das comunidades Ladário e Monte
Alegre. Em 1995, os brancos os atacaram, matando Txukuma e Malu Korubo – esta última
uma das irmãs da Maya. Eles ficaram escondidos até o evento de contato com a FUNAI um
ano depois (Franciscato 2000).

Conforme o diagrama abaixo, essa parcela era constituída pela parentela da Maya: os filhos
dela e os seis filhos de suas duas irmãs. Estes eram também filhos classificatórios de Maya,
pois o termo de referência para MZ na terminologia korubo é tita utsi (tita: M; utsi: outra).
Entre eles, havia quatro filhos que Maya teve com Pete, seu ex-marido falecido no conflito
interno aos Xiavo após o massacre no lago Gamboá, no rio Itaquaí. Maya e Pete tiveram cinco
filhos, mas uma delas não estava com Maya em 1996, pois permanecera no rio Itaquaí.

Considerando que, no caso korubo, o casamento prescrito ocorre entre primos cruzados, é
importante notar que entre essa parcela houve uma série de casamentos entre primos

189
paralelos, ou seja, irmãos classificatórios. Os filhos e as filhas da Maya casaram-se com os
filhos/as das irmãs dela: Takvan com Muna; Waxmën com Lëyu; Txitxopi com Luni; e
Omon com Tsamavo. Posteriormente, Omon separou-se de Tsamavo e casou-se com
Malevo, também seu irmão classificatório.

Além dos filhos com o falecido Pete e dos filhos de suas duas irmãs, Maya teve dois filhos
com Xikxuvo, seu ZS, mas apenas um deles era nascido durante o evento 1: Takvan Vakwë.
Atsa – filho de Txukuma e Malu – possuía um filho, chamado Wanka. Atsa faleceu antes do
evento 1. Por isso, ao longo da pesquisa de campo, embora Muna, mãe de Wanka fosse viva,
este era chamado por sua esposa de “mena” (órfão). Wanka casou-se com Manis: a filha mais
nova de Maya e Xikxuvo, nascida após 1996. Por ainda não ter nascido durante o evento 1,
ela não aparece destacada no diagrama a seguir. Assim, o que viria a ser o cronotopo A era
composto pelos filhos de Maya com Pete e Xikxuvo, e pelos filhos de duas irmãs de Maya,
chamadas de Maluxin e Malu.

190
Vinan Manis
Diagrama 1. Parcela contatada no evento 1.

Pete Maya Makwëx Maluxin Txukuma Malu


191

Takvan Lalanvet Waxmën Txitxopi Omon Muna Tsamavo Lëyu Luni Atsa Xikxuvo Malevo

Wanka
Takvan Manis
Vakwë
Cronotopo B

Após o conflito entre os Xiavo, desencadeado pelo massacre dos três homens korubo no rio
Itaquaí, houve outra cisão. Conforme mencionei, uma parcela foi em direção aos rios Quixito
e Ituí, configurando o que estou chamando de cronotopo A. Outra parcela permaneceu no
rio Itaquaí e no interflúvio com o rio Jandiatuba, configurando o que os agentes estatais
chamaram de “grupo do Visa” e “grupo do Pinu” – o que juntos chamo de cronotopo B.
Trata-se das famílias de dois irmãos da Maya: Nëmulo e Paxtu Vakwë. Desse modo, antes do
evento 1, o que chamo de cronotopos A e B eram parte de um mesmo aglomerado,
caracterizado por relações de afinidade cross-sex. Diferente das relações internas à primeira
parcela contatada (o que seria o cronotopo A) que são de consanguinidade a ponto de haver
uniões matrimoniais entre irmãos classificatórios, conforme vimos.

Imagem 12. Lalanvet.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Recordemos que na primeira parcela contatada, dentre os filhos de Maya e Pete, faltava a
filha mais velha desse casal, chamada de Lalanvet. Paxtu Va, irmão de Maya, casou-se com
Lalanvet. Ele era o seu kuku (MB). Acima mencionei que entre os Korubo o casamento

192
prescritivo ocorre entre primos cruzados. Aqui, vemos um casamento avuncular, outra
possibilidade de aliança que os Korubo passaram a explorar, conforme ocorre em outras
regiões da Amazônia. 87 Das 21 pessoas que comporiam o cronotopo B – somatório das duas
parcelas contatadas nos eventos 2 e 3 –, nove são filhos de Paxtu Va com Lalanvet. Paxtu Va
casou-se também com Malu, com quem teve outros três filhos. Ao todo, uma das famílias
componentes do cronotopo B é a de Paxtu Va, Lalanvet e Malu, e os 12 filhos dessa união
polígama.

A outra família componente do cronotopo B é a de Nëmulo e Manis, que tiveram dois filhos:
Naylo e Pinu Vakwë. Posteriormente, estes casaram-se com os filhos de Lalanvet e Paxtu Va.
Com a morte de Nëmulo, por razões que desconheço, Paxtu Va ficou com “raiva” e, portanto,
passível de matar. Isso desencadeou uma nova cisão entre os Korubo. Uma parte dessa parcela
fugiu em direção ao rio Curuena, onde permanece (“isolada”) sem estabelecer relações
permanentes com as demais parcelas korubo e com o Estado brasileiro – os Korubo afirmam
que dentre estes há um homem chamado de Mananvo. Após essa cisão, Paxtu Va e sua família
ocuparam uma região no rio Itaquaí, próxima ao igarapé Marubo, também chamado de
“Marubão”.

Posteriormente, Paxtu Va faleceu. Os Korubo afirmam diversas causas para essa morte e todas
evidenciam que não resultou de conflitos com os brancos. Conforme as informações dos
Korubo, Paxtu Va morreu após ter adoecido. Para as razões desse adoecimento, uma parte
dos Korubo diz que ele foi alvo de feitiçaria, outra parte diz que ele comeu graxa. Em ambos
os argumentos, os Korubo vinculam a morte de Paxtu Va aos Kanamari, povo de língua
Katukina que habita o rio Itaquaí, ou seja, as narrativas korubo apontam que os Kanamari
teriam enfeitiçado ou ofertado graxa a Paxtu Va que, sem saber o que era, comeu e se
intoxicou. Há quem diga que Paxtu Va faleceu por causa de seres, como o sampin.

Embora não haja precisão a respeito da causa, o óbito de Paxtu Va desencadeou uma nova
dispersão que resultou nos eventos 2 e 3, em 2014 – o que os agentes estatais chamaram de
“grupo do Visa” e “grupo do Pinu”. Estes passaram a aparecer com frequência nas roças

87
Sobre as alianças matrimoniais, conferir o capítulo 4.
193
kanamari e nas margens do rio Itaquaí para pedir alimentos aos transeuntes até que foram
contatados pelos Kanamari e, posteriormente, pelo órgão indigenista.

Após o falecimento de Paxtu Va, Pinu e Visa – dois filhos que ele teve com Lalanvet –
passaram a disputar Malu, que tornara-se viúva. Pinu, irmão mais velho de Visa, reivindicava
a viúva para si. Entretanto, Visa fugiu com Malu e os filhos desta, sendo encontrados primeiro
pelos Kanamari, no rio Itaquaí. Lalanvet, os filhos dela e os filhos de Nëmulo foram atrás,
sendo encontrados posteriormente. Nesse caso, após o óbito de Paxtu Va, ocorreu uma
fragmentação interna à família de Lalanvet, resultando nos eventos de contato em 2014.
Nota-se que, ao contrário do que viria a ser o cronotopo A, o que chamo de cronotopo B
caracteriza-se por relações de afinidade, inclusive, entre primos cruzados reais.

Dois filhos de Paxtu Va e Lalanvet casaram-se com os filhos de Nëmulo e Manis, formando
duas uniões classificatoriamente avunculares: Naylo casou-se com Pinu e tiveram três filhos
(MMBD/FZDS); Pinu Va casou-se com Maya Malaya e tiveram dois filhos
(MMBS/FZDD). Entre as parcelas contatadas nos eventos 2 e 3, dois irmãos geraram uma
criança. Desse modo, conforme as pessoas destacadas no diagrama abaixo, a configuração do
que viria a ser o cronotopo B resulta das cisões entre as famílias de Nëmulo e Paxtu Va, após
as mortes de ambos, e das dispersões geradas na disputa entre Visa e Pinu por Malu. Os dados
apontam para relações de afinidade entre as pessoas dos cronotopos A e B.

194
Vinan Manis
Diagrama 2. Parcelas contatadas nos eventos 2 e 3.

Nëmulo Manis Pete Maya Paxtu Malu


Vakwë
195

Lalanvet

Naylo Pinu Xikxuvo Txuxan Kanxi


Vakwë

Pinu Visa Maya Xamalekit Sini Lonlon Kunu Txilavo Tuxi


Malaya

Omonvo
Malu Kontxo
Vali Kanikit Wanka
Vakwë
Cronotopo C

O que os agentes estatais nomearam de “grupo do Xuxu” (também chamado de Luasivo) e


“grupo da Maluxin”, contatados nos eventos 4 e 5, foram as parcelas mais difíceis para traçar
a genealogia. Grande parte dessas pessoas reside na aldeia Tapalaya, onde não residi, apenas
visitava. Parte dos vínculos de parentesco dessas parcelas vincula-se a parcela que reside no
rio Coari e foi contatada no evento 6, em 2019. 88 Os dados que disponho me permitem
afirmar que, por um lado, há relações mais próximas entre os cronotopos A e B e, por outro,
entre o cronotopo C e o que viria a ser o cronotopo D. Nesse caso, a maior parte das pessoas
que compõem o que chamo de cronotopo C reside em uma aldeia no rio Ituí (a Tapalaya),
enquanto as pessoas que comporiam o cronotopo D permanecem separadas no rio Coari. Tal
dado reforça o argumento anterior de que os “grupos” nomeados pelos agentes estatais não
correspodem ao topos das atuais aldeias no rio Ituí.

Parte da configuração do que viria a ser o cronotopo C é composta pelos descendentes das
duas mulheres raptadas por Txikit, conforme mencionei, o que caracteriza relações de rapto
e guerra entre os cronotopos A e C. Considerando que os três cronotopos descendem de um
casal (Vinan e Manis), podemos afirmar que o que hoje conhecemos como “Korubo” trata-
se de uma parentela que entrou em processo de atomização.

A mulher mais velha da parcela contatada no evento 5 é Maluxin, irmã de Maya que fora
raptada por Txikit. Ao ir residir no rio Coari, ela casou-se com Patxi com quem teve três
filhos. Wio Maluxin, outra irmã de Maya que fora raptada por Txikit, casou-se com Vali e
teve um grupo de filhos homens, dentre eles, Xuxu Luasivo. Antes do pluricontato havia,
pelo menos, seis famílias no rio Coari. Duas destas são descendentes das irmãs de Maya e
constituem o que os Korubo do rio Ituí chamam de Txikitxoevo. Em 2015, Xuxu Luasivo já

88
Somente os agentes estatais (FUNAI, SESAI e colaboradores eventuais) e repórteres ou jornalistas convidados
pelo órgão indigenista têm acesso à parcela dos Korubo contatada no evento 6, em 2019, chamada de “grupo
do Makwëx”. Pelo evento de contato ter sido recente, esta parcela ainda não possui os conhecimentos necessários
para fornecer anuência à pesquisa antropológica, ou seja, inexistem condições éticas básicas para que eles se
tornem interlocutores de uma pesquisa de campo, a partir da autorização para o ingresso em terra indígena
emitido pelo órgão indigenista e dos trâmites junto à Comitê de Ética em Pesquisa.
196
havia sido esposo de Maluxin, sua tita utsi (MZ). Posteriormente, ele se casou com Wio e
Nuatvo – esta última é uma das filhas de Maluxin.

O diagrama abaixo mostra que, pelo menos, um filho de Xuxu Luasivo com Maluxin havia
falecido antes dos eventos de contato ocorridos em 2015: Vëmakute Vakwë foi morto durante
a retaliação por parte dos Matis. 89 Nesse contexto, houve relações extraconjugais que
resultaram em uma nova cisão. Uma parcela dos Korubo atravessou o rio Branco, sendo
chamada de “grupo do Xuxu”, e foi seguida pela outra parcela, nomeada pelos agentes estatais
de “grupo da Maluxin”. Por isso, após essa cisão, houve dois eventos de contato em 2015.

Imagem 13. Maluxin e Mayuvekit.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Um dos registros audiovisuais feitos pelos Matis, conforme o capítulo 2, mostrou o momento
posterior a esta cisão. Xuxu Luasivo (ex-marido de Maluxin) estava em busca de Nuatvo, uma
de suas atuais esposas (filha de Maluxin com o falecido Patxi), que fugira levando Mayuvekit

89
Segundo os relatos dos Korubo, vários outros faleceram no conflito com os Matis nos anos 2000. Dentre eles,
pelo menos, três mulheres de homens korubo hoje residentes no rio Coari: (i) Muna Epapa, ex-noiva de
Makwëx, homem mais velho da parcela contatada no evento 6, um dos filhos da irmã de Maya, esta sua tita utsi
(MZ); (ii) Tananeloanpikit, ex-noiva de Txipu Vëtxixne; (iii) Tuxi, ex-noiva de Txipu Vakwë, ambos irmãos
de Makwëx.
197
(filho de Nuatvo com Xuxu Luasivo). Primeiro, os Matis encontraram Xuxu Luasivo, Luni,
Wio, Mëlanvo e Ixovo, configurando o quarto evento de contato. Posteriormente, realizaram
o quinto evento de contato com a outra parcela, composta pelos filhos e pelo genro de
Maluxin, chamado Pëxken – este é o homem korubo mais velho, chamado de tsusivo. Ambos,
Maluxin e Pëxken, são os mais velhos do que viria a ser o cronotopo C.

198
Vinan Manis
Diagrama 3. Parcelas contatadas nos eventos 4 e 5.

Maya Patxi Maluxin Vali Wio Nawa Muna


Maluxin
199

Pëxken Kolotxia Nuatvo Txixpa Makwëx Muna Txipu Tananeloanpikit Xuxu Wio Ayax Manis Txipu Vëtsuisvo Vunpa Luni
Lamon Vëtxixne Luasivo Punu Maksin Vakwë

Mëlanvo Ixovo
Makwëx Waxmën Waxmën Mayuvekit Vëmakute Tsele Lonkon Këtsi Këtsi
Vakwë Wasa Vakwë Vakwë Wisu Vakwë
3.3. Velhos e novos

Vimos que as parcelas contatadas nos seis eventos de contato correspondem a descendentes
de um casal (Manis e Vinan), ou seja, uma parentela que se atomizou, passando por sucessivas
cisões e dispersões. Após os cinco eventos de contato realizados entre 1996 e 2015, a paisagem
no rio Ituí passou a ser constituída por aldeias compostas de pessoas contatadas em diferentes
eventos, ou melhor, com diferentes “tempos de contato” com os brancos. Por um lado, tal
paisagem possui características discutidas pela etnologia clássica, como os aglomerados entre
os quais ocorrem casamentos e visitas mútuas, por outro, trata-se de um contexto peculiar,
justamente, por ser atravessado por múltiplas temporalidades decorrentes do pluricontato.

Diante disso, o uso do conceito de “cronotopo” não se apresenta como um fenômeno korubo,
pois não corresponde a unidades reconhecidas pelos ameríndios, nem substitui o termo
“grupo” que serve aos objetivos de identificação por parte do órgão indigenista. Trata-se de
um artefato para compreender como os agentes estatais concebem e discursam sobre “os
Korubo” e como as parcelas contatadas se relacionam e co-residem atualmente no rio Ituí. Se
o pluricontato constrói um “povo” (“os Korubo”), os cronotopos evidenciam os resquícios
das memórias e diferenças entre as parcelas de uma parentela, expressando as distinções
internas aos Korubo após o pluricontato.

A partir da co-residência de múltiplas temporalidades em um mesmo espaço, os Korubo


passaram a utilizar termos de línguas Pano para se referir a essa sobreposição de cronos,
diferenciando korubo xëni e korubo paxa, ou seja, “velhos/antigos” e “novos” no contato com
os brancos. Tal estratégia criativa dos Korubo evidencia o “contato” como evento
cronotopizador das pessoas, pois embora co-residam em aldeias no baixo rio Ituí, continuam
habitando em temporalidades distintas: um topos, múltiplos cronos.

Na língua korubo, os termos xëni e txuka remetem às qualidades de senioridade e juventude,


assim como os seus cognatos em outras línguas Pano do ramo setentrional. No caso matis, o
termo sheni conota maturidade e velhice, indicando que a gordura é uma concretização
material da maturação, e também refere-se aos homônimos mais velhos (misheni) (Erikson
1999: 206, 211). No caso matsés, o conceito shëni sinaliza homônimos mais velhos, mas pode

200
estar atrelado a algo que perdeu o valor por tornar-se velho (Fleck, Bëso e Huanán 2012:
189).

O termo pasha, na língua matis, indica algo “novo” e “jovem” que a partir de um processo
deixará de ser pasha e se tornará sheni, ou seja, o que está imaturo poderá amadurecer (Erikson
1999: 256). Em matsés, o termo chuca remete a algo “novo” e aos homônimos mais jovens
(Fleck, Bëso e Huanán 2012: 78). Na literatura Pano setentrional, tais categorias podem
encontrar eco em outros dualismos, como as metades ayakobo e tsasibo. Conforme mencionei
no capítulo 1, no caso dos Matis existe uma supremacia dos tsasibo em relação aos ayakobo e
se desdobra na superioridade de sheni em relação a pasha (Erikson 1999: 252-8).

Na língua korubo, os termos xëni e txuka, utilizados em diferentes contextos, expressam os


pares velho-novo e senioridade-juventude. Note que a tradução de “velho” e “novo” esconde
outros campos semânticos. Estes termos estão presentes em (i) nomes de aldeias, como
Talawaka xëni e Talawaka txuka, para caracterizar a abertura de novas aldeias homônimas de
antigas aldeias; (ii) aldeias próximas de roças antigas, como Maë Xëni (maë: roça); (iii)
gordura animal apreciada pelos Korubo, como awat xëni, traduzida como “banha de anta”
(awat: anta); (iv) termo de parentesco referente à FZ (natxi xëni); (v) ideias de novidade e
repetição (txuka? novamente?).

A mesma conotação serve para a relação entre homônimos. Semelhante a outros Pano
setentrionais (Erikson 1999: 197; Matos 2014: 56; Coutinho Júnior 2017: 176), ao nascer,
homens e mulheres korubo recebem os nomes próprios de parentes na posição de seus avôs
paternos (FF, FFB) e de suas avós maternas (MM, MMZ), respectivamente. Tornam-se
homônimos de seus parentes mais velhos. Entre os Korubo, uma pessoa chama o seu
homônimo ou irmão mais velho de wënxëni, enquanto este chama o mais jovem de wëntxuka
(–wën: GEN.).

Após o pluricontato, os Korubo passaram a acionar esses termos para se distinguirem de outra
maneira. Inicialmente, mobilizaram os conceitos “índio txuka” e “índio xëni” em referência
aos eventos de contato, sobretudo, nas negociações com os agentes estatais:

201
[...] Essas categorias refletem o marco do contato e a distância temporal frente
a ele como um indicador das diferenças entre as situações dos distintos grupos
indígenas. Essa percepção aparece relacionada a muitas questões que nos fazem
pensar que os indígenas estão conscientes das diferentes políticas públicas
desenvolvidas segundo as categorias elaboradas pelo governo. Por outro lado,
isso não pressupõe uma equivalência terminológica entre as palavras em
português e as traduções em korubo.

Outra coisa que nos chama a atenção é que os Korubo utilizam o termo
“índios”, uma categoria externa que os inclui em um grupo abstrato que
tampouco é próprio, mas que é altamente operativo e justifica, inclusive, a
própria ação indigenista. Quer dizer, os Korubo começam a se incluir dentro
da categoria de indígenas, ainda que não se observe uma categoria semelhante
no uso atual de sua língua. Ademais, os contextos em que se insere o uso dos
termos citados sugere que os Korubo querem nivelar-se com outros grupos
que conhecem e com quem se relacionam. É comum por exemplo, que eles
questionem seu status de “índio txuka” quando querem ter acesso a materiais,
instrumentos ou benefícios não materiais que os “índios xëni” já têm.

Essa tensão entre indígenas novos e velhos é também ambivalente, pois serve
para garantir ações diferenciadas que os indígenas Korubo percebem como
vantagens. Por exemplo, é comum que advoguem pelo status de “índios
novos” quando querem que a FUNAI os acompanhe em ações de negociação
de sua produção na cidade. É interessante notar que os Korubo sabem utilizar
nessas discussões um discurso que podemos resumir, em linhas gerais, como
de vulnerabilidade frente a nossos códigos e, principalmente, frente a nosso
sistema econômico e político (Oliveira 2017: 64-5, tradução própria).

As categorias “índio xëni” e “índio txuka” são contextuais. Por um lado, podem ser usadas
pelos Korubo para se diferenciarem em relação a FUNAI e, por outro, diferenciarem-se a
partir dos eventos de contato. Nesse contexto, os Korubo questionavam o seu status txuka
quando desejavam obter mercadorias, enfatizando-se como xëni. Nas cidades, se
reivindicavam txuka para demandar a proteção e o acompanhamento dos agentes estatais.
Durante a pesquisa de campo, verifiquei que alguns aspectos destacados por Sanderson
Oliveira (2017) permaneceram, enquanto outros transformaram-se.

De fato, essas categorias referem-se às diferenças estabelecidas a partir dos eventos de contato
e, conforme o supracitado, não pressupõem uma equivalência semântica na língua
portuguesa, embora possamos traduzi-las por “índio velho” e “índio novo”. Se, por um lado,
o termo “índio”, acionado pelos Korubo, sinaliza uma auto inclusão em uma categoria
genérica que fundamenta as ações do órgão indigenista, por outro, o termo “índio” foi
substituído pelo etnônimo “Korubo”. A incorporação e utilização de termos como “índio

202
xëni” e “índio txuka” revela que, após o pluricontato, ‘virar Korubo’ é sinônimo de ‘virar
índio’. A condição nomeada pelo Estado como “isolamento” consiste em um período de se
conceber como pessoa humana (nukmi: nós) e, após o pluricontato, o nukmi passa a incluir
a concepção de ‘índio’. Assim, em alguma medida, a categoria “recente contato” torna-se um
eufemismo para ‘recém-índio’.

Em 2019-20, os Korubo não falavam mais em “índio xëni” e “índio txuka”, e sim em korubo
xëni e korubo paxa. 90 Tal substituição do termo “índio” pelo etnônimo “Korubo” parece-me
apontar para uma percepção dos Korubo em torno de ideias, como “povo” ou “etnia”,
emergentes e estimuladas na relação com os brancos, semelhante ao que ocorreu com a
concepção de “cacique”. De tanto os brancos interpelarem os Korubo perguntando quem
dentre eles é o “cacique”, os Korubo se apropriaram deste termo e construíram a sua própria
noção do que seja um cacique: aquele que convoca uma reunião, chama “para conversar”
(onkeno; –onke: conversar; –no: POSP.). A noção dos Korubo sobre o papel de um cacique
não corresponde às concepções dos agentes estatais sobre um cacique – “representante”,
“responsável” por um “povo” – nem às figuras de autoridade no cotidiano das aldeias no rio
Ituí, como a das matxo, mulheres mais velhas (Silva 2021b).

Os Korubo começaram a incorporar o etnônimo que lhes fora atribuído. Em determinados


contextos, é mais eficaz conversar com os brancos em nome de uma coletividade, nomeada
“Korubo”, do que através da lógica dos grupos familiares. Para além da eficácia, a substituição
do termo “índio” pelo etnônimo exógeno – acrescido dos modificadores xëni e paxa – sinaliza
a transposição de uma diferenciação que era externa para o nível interno. Os Korubo eram
considerados “índios txuka” em oposição a outros ameríndios, estes eram “índios xëni”. Hoje,
os conceitos korubo xëni e korubo paxa indicam diferenças internas aos Korubo produzidas
com o pluricontato. Mais do que sinalizar as diferenças entre “grupos indígenas”, as categorias
korubo xëni e korubo paxa sinalizam diferenças cronotópicas entre pessoas contatadas no
evento 1 e seus descendentes que cresceram na relação permanente com o órgão indigenista

90
Paxa é um termo utilizado por outros povos de línguas Pano, como é o caso dos Matis (Oliveira 2017: 64).
203
(nesta tese, expressos como o “cronotopo pós-contato”) 91 em relação às pessoas contatadas
nos eventos posteriores:

xëni=antigo/velho paxa=novo
cronotopo A (1996) cronotopo B (2014)
cronotopo pós-contato cronotopo C (2015)
Tabela 9. Diferenciações cronotópicas.

Em vez dessas categorias sinalizarem uma “consciência” por parte dos Korubo em torno das
diferentes políticas públicas para povos de “recente contato” ou “isolados”, as categorias
korubo xëni e korubo paxa revelam a cromaticidade do pluricontato – processo cronotopizador
das pessoas – e abrigam conotações que extrapolam a generalidade das categorias vigentes na
política indigenista brasileira. Essas categorias são utilizadas pelos agentes estatais, e também
em reuniões nas aldeias que tematizam casamentos, dinheiro e mercadorias: por exemplo, as
pessoas da aldeia Sentele Maë se deslocam à Tankala Maë para conversar com homens xëni,
como Takvan Va, Lëyu e Txitxopi ou as da Tankala Maë visitam a Vuku Maë para conversar
com alguns xëni, como Maya, Xikxuvo e Wanka. Mas qual é a distinção que fundamenta essa
bi-partição xëni e paxa?

Um eixo central na diferença entre xëni e paxa relaciona-se ao termo unane que refere-se ao
conhecimento, ao sentimento de nostalgia e à saudade. Unane tem cognatos nas línguas matis
(sinanek) e matsés (sinan) (Erikson 1999: 188; Matos 2014: 91-3). No caso da língua
marubo, Cesarino (2008: 29-32) nota que o cognato china, traduzido como “vida” ou
“princípio vital”, refere-se a um espaço onde residem os duplos responsáveis pelo intelecto da
pessoa marubo, e constitui um pensamento relacionado à distância ou ausência sentidas no
peito (e não na cabeça).

Entre os Matsés, o sinan está na “alma de um xamã; habilidade de caçaria; pontaria; força;
valor; todos estes são parte de uma ‘essência’ que pode ser passada de um homem a outro
assoprando tabaco ou colocando veneno de sapo no braço ou peito” (Fleck, Bëso e Huanán

91
“Cronotopo pós-contato” é um termo provisório que, a rigor, deveria ser o “cronotopo E”, pois a existência
dos cronotopos é posterior ao pluricontato. No entanto, para os fins desta análise, manterei o termo “cronotopo
pós-contato” para evidenciar que são pessoas nascidas e crescidas na relação permanente com o Estado brasileiro
e suas instituições.
204
2012: 198, tradução própria). O sinan enquanto “conhecimento incorporado” é transferido
via relações com os parentes mais velhos ou seres extrassociais. Mulheres matsés cheias de
sinan cuidam de suas casas e roças, tecem e cozinham. Homens matsés detentores de sinan
são exímios caçadores, construtores e trabalhadores (Matos 2014: 117).

Os Korubo passaram a acionar o termo sinane para se referir ao sentimento de saudade e


nostalgia em relação a outra pessoa, enquanto unane passou a ser mais utilizado para conotar
compreensão e conhecimento próprios. Assim, os Korubo costumam dizer “mivi ëmpi sinane”
para expressar saudade de alguém (2SG-1SG-sinane), e “unane ëmpi” para afirmar que
compreendem e entendem algo (unane-1SG). No caso da distinção korubo xëni e korubo paxa,
unane diz respeito, primariamente, ao entendimento sobre o mundo dos brancos. Os Korubo
dizem: “korubo paxa unanemen” (–men: NEG.) e, ao contrário, “korubo xëni unane ëmpi”,
que pode ser traduzido como “eu sou korubo antigo, eu entendo”. Nesse caso, o conceito de
xëni diz respeito àqueles homens ou mulheres “antigos/velhos” na relação com os brancos que
entendem o funcionamento desse novo mundo. Atualmente, essa categoria se estende aos
filhos dos xëni do cronotopo A, ou seja, àqueles que pertencem ao que chamo de “cronotopo
pós-contato”, nascidos na relação permanente com a FUNAI.

Em julho de 2019, as pessoas da Tankala Maë aguardavam uma equipe de jornalistas que
faria uma reportagem sobre a parcela dos Korubo contatada no evento 6, no rio Coari. Os
Korubo da Tankala Maë estavam de acordo: os korubo paxa do rio Coari não deveriam ser
filmados, pois ainda não entendem o mundo dos brancos (“paxa unanemen”). Ao contrário,
conforme os Korubo compararam, os xëni compreendem o mundo dos brancos, sabem o que
é uma câmera e que outros brancos assistem aos vídeos produzidos. Em contextos como esse,
as categorias xëni-paxa não estão relacionadas às faixas etárias das pessoas, pois há homens
velhos considerados paxa, como o Pëxken do cronotopo C, residente na Tapalaya.

205
Imagem 14. Pëxken tsusivo.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Imagem 15. Xikxuvo darasibo e Tumi Muxavo.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

206
Estima-se que a idade de Pëxken – homem korubo mais velho no rio Ituí – é superior a 60
anos. Os Korubo do rio Ituí chamam-no de tsusivo: termo para se referir aos homens mais
velhos. Pëxken é um tsusivo paxa, embora estes termos não sejam discursivamente aglutinados
nas falas dos Korubo. Pëxken é um “ancião” e, ao mesmo tempo, “novo” na relação com os
brancos. Ao contrário, os homens mais velhos e xëni do cronotopo A, como Xikxuvo e
Tsamavo, são chamados de darasibo: Xikxuvo darasibo; Tsamavo darasibo. O termo darasibo,
sinônimo de tsusivo, facilita a distinção xëni-paxa. Desse modo, Xikxuvo e Tsamavo, com
idades estimadas em 53 e 45 anos, respectivamente, são homens mais velhos e xëni, chamados
de darasibo. O termo darasibo conota a senioridade destes homens “antigos” na relação com
os brancos e mais velhos que outros homens. Tsusivo parece estar para paxa, como darasibo
está para xëni.

Situação diferente do termo matxo utilizado para mulheres mais velhas, que não foi
substituído por outro. Os Korubo raramente dizem “matxo xëni”, e jamais ouvi a expressão
“matxo paxa”. Utilizam o termo matxo para todas as mulheres mais velhas, sem distingui-las
a partir do evento de contato. Nos casos das mulheres mais velhas dos cronotopos B e C,
dizem que são matxo e, em determinados contextos relacionados ao mundo dos brancos,
dizem que são paxa sem aglutinar discursivamente os termos, nem encontrar cognatos em
outras línguas Pano para o caso das mulheres mais velhas e xëni.

Tal complexidade verificada no gênero masculino – homens mais velhos paxa são tsusivo,
enquanto homens mais velhos xëni são darasibo – não se estendeu ao gênero feminino,
justamente, porque são os homens aqueles que mais acessam o mundo dos brancos:
recrutados para as atividades remuneradas junto ao órgão indigenista. A necessidade de
categorizar a maturidade em relação ao mundo dos brancos emergiu primeiro entre o gênero
masculino. A categoria matxo abriga em si a conotação de maturidade, valor central para as
mulheres no cotidiano das aldeias e da floresta (ver Silva 2021b), sendo até então dispensável
outro termo que conote a maturidade em relação ao mundo dos brancos.

A raiva

207
A concepção de que os paxa não compreendem (unanemen) justifica comportamentos
agressivos, imprevisíveis e manifestações de raiva. Um homem xëni pode explicar a razão do
conflito com uma de suas esposas afirmando que esta é paxa. Em 2019, quando perguntei a
um xëni o motivo de um conflito ocorrido em sua casa, ele respondeu-me: “tsaon, korubo
paxa” (tsaon: não sei). A utilização da categoria korubo paxa, por si só, explica eventuais
tensões, prescindindo de maiores esclarecimentos, pois uma das características atribuídas aos
paxa é o descontrole da raiva, geradora de conflitos, uma característica de sua juventude na
relação com os brancos e um reflexo da falta de conhecimento suficiente sobre esse novo
universo.

As etnografias sobre os povos das terras baixas da América do Sul já demonstraram que o
convívio comunitário é uma mescla de interações positivas e negativas. A sociabilidade
amazônica resulta de esforços individuais, cultivados pelo coletivo, na efetivação de
habilidades para a vida social. O controle da raiva é uma dessas habilidades. Em vários casos,
a raiva emerge dentro da própria comunidade entre consanguíneos ou afins
consanguinizados. A manutenção da sociabilidade amazônica requer esforço e vigilância
contínuos, desempenhados por cada pessoa (Overing Kaplan e Passes 2000: 1-30).

Os Airo-pai, por exemplo, consideram-se pessoas inclinadas à raiva. A manifestação da raiva


evidencia que uma pessoa não foi capaz de controlar e transformar as forças cosmológicas
dentro de si em benefício da vida social. A raiva superaquece e acelera o sangue, condensando-
o nas veias, podendo levar ao desejo de vingança, morte e destruição do parentesco (Belaunde
2006; 2019). Portanto, a raiva caracteriza um estado liminar vinculado à doença, morte e
recusa do parentesco. Na Amazônia, desde cedo as crianças aprendem a cultivar pensamentos
sem raiva, algo que faz parte da constituição como pessoas (Mahecha Rubio 2015).

Ao longo da vida adulta, o esforço para controlar a raiva continua. Diferentes alternativas são
acionadas para lograr o controle da raiva, como as festas com bebidas alcóolicas (Lima 1995),
as dietas e reclusões após expedições guerreiras (Gonçalves 2001; Fausto 2001), a pusanga
(Beysen 2013), os rituais para extravasar a raiva sentida pelos parentes próximos (Otero dos
Santos 2019), dentre outras. Quando esse controle não é alcançado, uma das reações pode

208
ser correr para a floresta, como ocorre entre os Kanamari. Quando estão perdidos de si, se
tornando um não parente, não-humano, os Kanamari cortam o cabelo, se abstém de comer,
emagrecem, perambulam durante a noite e permanecem deitados na rede. Um novo cabelo,
imaculado pela raiva, tem que crescer para que a pessoa retorne ao estado social,
reconhecendo os seus vínculos de parentesco. Nesse caso, correr para a floresta é um ato
inconsciente, pois ninguém escolhe fazê-lo (Costa 2007: 325-6).

Entre os povos falantes de línguas Pano, a raiva pode ser atribuída a seres primordiais, como
o Inka, aos estrangeiros e brancos, considerados “raivosos e geniosos”. Entre os Kaxinawá, a
pessoa permanece deitada em sua rede ou caminha sozinha pela floresta. Os espíritos yuxin
entendem que essa pessoa quer morrer (Lagrou 2007a: 309, 432). Uma pessoa matsés com
raiva pode ter o seu espírito mayan capturado por um espírito da floresta (Matos 2014: 98).
Nesses casos, a raiva relaciona-se ao pensamento e coração, este é o órgão sede do pensamento.

Tal associação aparece no léxico das línguas Pano que utilizam termos similares ou a mesma
raiz para expressar pensamento, lembrança, saudade e raiva, como –shina entre os Katukina
e Shipibo (Coffaci de Lima 2000; Hammerschmidt 2019) e –xinai entre os Yaminahua e
Yawanawa (Pérez-Gil 2006; Carid Naveira 2007). Para estes povos, o excesso de pensamento
produz a raiva, expressa no coração apertado, estragado e afetado (Feather 2010: 2009). Entre
os Matis, a nostalgia e a ira são sentimentos afins. A associação entre tristeza e raiva se
evidencia através da raiz –sina (Erikson 1999: 361). O léxico matsés evidencia o vínculo entre
raiva e indisposição, ambos estados anti-sociais e de recusa aos vínculos de parentesco (Matos
2014: 84, 122).

Entre os Korubo, o estado de raiva, similar ao que ocorre entre outros povos, é caracterizado
por solidão. Para evitar criar pessoas raivosas, os Korubo não deixam suas crianças chorando
sem resposta. O choro de uma criança é sempre alvo da atenção dos adultos, que se
empenham em conversar com a criança e fazer o choro cessar. As pessoas se afastam de uma
pessoa com raiva e esta também busca estar sozinha. Na língua korubo, kuinine ou nakane
são termos para se referir à raiva, traduzida para o português como “estar bravo”. Os Korubo

209
utilizam ainda a expressão tuxke para se referir a brigas. 92 Uma pessoa korubo com raiva
profere monólogos, similar ao que ocorre entre os Yudjá (Lima 1995: 402-3).

Os monólogos korubo caracterizam-se pelo alto som da voz, batidas de pés no chão e gestos
com as mãos. Todas as demais pessoas distanciam-se de alguém com raiva. A pessoa com
raiva pode ameaçar os seus parentes, pois se torna outro, violento e desconhece os seus
vínculos de parentesco. É comum que nesse estado a pessoa corra para a floresta sozinha. Os
Korubo dizem que determinada pessoa “correu para o mato”, na língua korubo: “_avalax” (–
avat: correr; –ax: PASS.). Diferente de outros povos em que uma pessoa com raiva permanece
sozinha e perambula ou caminha pela floresta, os Korubo literalmente correm. Avale remete
ao conceito de ityonin-man dos Kanamari, que também correm para a floresta (Costa 2017:
116).

No caso korubo, a pessoa corre para a floresta não apenas porque está se perdendo de si,
desconhecendo os seus vínculos de parentesco, mas também e, sobretudo, para dissipar a
raiva. Trata-se de um ato voluntário de correr para a floresta e, posteriormente, retornar limpa
e trazendo comida (frutos ou caça). Depois de algum tempo, que podem ser horas ou dias,
calma, a pessoa retorna lavada, trazendo os alimentos para a aldeia, ou seja, trazendo a sua
contribuição para o parentesco que havia sido suspenso pela raiva e pelo estado anti-social. O
correr para a floresta e o desempenho de atividades produtivas distante da aldeia fazem a raiva
passar e a pessoa retoma o estado social, apta ao convívio em comunidade.

Após o estado nakane, diferente dos Yudjá que ficam envergonhados, os Korubo agem como
se nada tivesse acontecido. A raiva, muitas vezes, é precedida por nostalgia e lembrança dos
mortos, expressos pelo termo unane. Uma pessoa que sente saudades de alguém que morreu
pode passar ao estado de raiva e sente vontade de matar outrem, seja pessoa ou animal, para
superar o luto. Não por acaso, quando os Korubo perdiam um parente, matavam pessoas,
como foi o caso das mortes de Sobral, de Damë e Xucuruta Matis na roça da aldeia Todowak,
ou mesmo, dos três parentes de Maya mortos por seu irmão, Nëmulo. Matar outrem durante
o luto é traduzido com o termo “bagunçar”, pois o luto desestrutura o estado social, gerando

92
Na língua matis, “ficar bravo” é referido pelos termos tuske ou tuska, e kunen (Ferreira 2005: 277-9).
210
a raiva e promovendo o estado anti-social: roças e malocas deixam de ser abertas e construídas,
rituais deixam de ser realizados. 93

Uma pessoa korubo controla a raiva correndo para a floresta, desempenhando atividades
produtivas, e adquirindo conhecimento sobre os brancos, o que gera o estado unane. Por isso,
uma das principais funções que os intermediários korubo tomam para si na relação com a
parcela contatada em 2019 no rio Coari – chamada pelos agentes estatais de “grupo do
Makwëx” – é explicar para estes aspectos do mundo dos brancos para que eles não fiquem
“bravos” e briguem com as pessoas do acampamento de contato.

A categoria xëni é utilizada pelo falante em relação a si, enquanto a categoria paxa é um rótulo
acionado sobre outra pessoa. Neste sentido, tal distinção assemelha-se ao uso do termo
wajãpi-puku entre os Wajãpi falantes de língua Tupi-Guarani. A distinção entre os Wajãpi
(dos rios Jari e Oiapoque) e os Wajãpi-puku (da zona de floresta, dos pequenos igarapés e
cabeceiras) relaciona-se aos eventos de contato interétnico de cada subgrupo. O termo wajãpi-
puku passou a ser acionado pelos Wayana e Wajãpi setentrionais em referência aos Wajãpi
do Inipuku, Karapanaty e Onça, caracterizados de modo depreciativo como “arredios”,
“rústicos” e “bravos”, opostos aos Wajãpi do Oiapoque. Posteriormente, o termo passou a ser
utilizado entre parcelas wajãpi contatadas em períodos distintos para indicar que determinada
pessoa não sabe se comportar (Gallois 1986: 131-9).

Entre os Korubo, “korubo paxa” é um rótulo que justifica manifestações de raiva, e também
é utilizado em brincadeiras enquanto uma categoria de acusação. Em geral, as brincadeiras
entre os Korubo envolvem acusações mútuas, enfrentamentos que geram risos.
Frequentemente, pessoas de mesmo gênero acusam-se mutuamente, como “mivi kapoemen”
(“você não caça”), “mivi matsés/lala kimvo pimen” (“você não é mulher/homem de verdade),
“mivi txuturap” (“você não presta”, “você é feio”), “korubo paxa mivi” (“você é korubo novo”).
Nessas brincadeiras, ser paxa adquire uma conotação cômica e pejorativa que ninguém quer

93
No final dos anos 1990, após a morte de uma criança korubo, as pessoas da parcela contatada no evento 1
queriam ir para as comunidades do entorno matar pessoas (“bagunçar”), mas os intermediários Matis as
convenceram a não fazer isso (Arisi 2007: 89).
211
assumir. Algumas pessoas se autointitulam orgulhosamente de “korubo xëni”, mas jamais ouvi
alguém se afirmar nesse tom como um korubo paxa.

As categorizações xëni e paxa adquirem outras complexidades na distribuição das tarefas e no


tratamento das enfermidades no rio Ituí. Alguns paxa, solteiros e casais com ou sem filhos,
periodicamente visitam outras aldeias. Estes visitantes levam alimentos ou desempenham
tarefas na aldeia anfitriã. Homens paxa ajudam a abrir roças novas, caçam e coletam frutos
para a aldeia anfitriã. Mulheres paxa buscam água, cozinham e cuidam dos filhos de outras.
Este tipo de colaboração é mais evidente no caso dos jovens paxa: por exemplo, Ayax Punu
da aldeia Vuku Maë (cronotopo C) passou um tempo residindo na Tankala Maë para
“trabalhar” com Txitxopi (cronotopo A) na abertura das roças, sem promessas matrimoniais
envolvidas nessa colaboração.

Imagem 16. Waxmën Wasa cuidando de Maya Koluvo.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

No tratamento das doenças, geralmente, são os paxa que dominam o conhecimento sobre as
plantas medicinais, chamadas de iwi polo, traduzidas como “remédio do mato” (iwi: árvore,
madeira; polo: folha). Nesses casos, o conceito unane é transposto aos paxa. Por isso, com

212
frequência, os korubo xëni argumentam para os profissionais de saúde que “não sabem
remédio do mato”. Afinal, entre os Korubo no rio Ituí, um número restrito de pessoas paxa
concentra este tipo de conhecimento. Alguns paxa são reconhecidos pelos Korubo como
conhecedores de plantas, como Pinu e Mëlanvo. Estes tratam enfermidades dos xëni a partir
de banhos com ervas, em alguns casos sendo necessário se deslocarem à aldeia do enfermo.
Eles entram na floresta, acompanhados ou não por homens xëni, para coletar as plantas e, ao
retornarem para a maloca, preparam o banho.

Em julho de 2019, Mëlanvo (cronotopo C), acompanhado por Tsamavo Va (cronotopo pós-
contato), se deslocou da Tapalaya para tratar um bebê na Tankala Maë, filho de uma mulher
do cronotopo pós-contato com um xëni do cronotopo A. Na ocasião, Mëlanvo e Tsamavo
Va entraram na floresta para coletar as plantas. Após algumas horas, quando retornaram para
a maloca da Tankala Maë, Mëlanvo trouxe duas espécies de plantas, segurando-as debaixo do
braço esquerdo. Ao entrar na maloca, todos passaram a se comunicar com sussurros.
Cuidadosamente, Mëlanvo retirou o pecíolo e a bainha das folhas e colocou-as em uma panela
com água. Instruiu a mãe do bebê a sentar-se em determinado local da maloca para dar o
banho na criança.

Os xëni, por sua vez, são reconhecidos pelos Korubo e pelos profissionais de saúde como
aqueles que compreendem algo sobre “remédio de branco” (nawan txiete). Embora ainda
inexista um Agente Indígena de Saúde (AIS) entre os Korubo, alguns jovens xëni são
instruídos pelos brancos e designados para administrar o preparo de determinadas medicações
aos pacientes de sua aldeia, seguindo as instruções dadas pelos profissionais de saúde. Estes
compreendem alguns tratamentos e medicamentos dos brancos porque possuem os
conhecimentos numéricos necessários à cronometragem das dosagens. Ao mesmo tempo,
desempenham práticas xamânicas. Os xëni mais velhos, como Maya, Waxmën e Tsamavo,
aspiram doenças do corpo dos demais, e realizam os rituais de canto-choro (wine) com
frequência.

No início de 2019, quando cheguei à região, algumas pessoas de outros povos Pano do Vale
do Javari posicionavam-se contrárias ao sexto evento de contato, realizado em março daquele
ano no rio Coari. Para estas, os Korubo (“isolados”) protegem mais o território. Nessas

213
argumentações, o evento de contato realizado pelo órgão indigenista é expresso como
sinônimo de “amansar” os Korubo, destituí-los da raiva que desencadeou os conflitos e as
mortes que impulsionaram a demarcação da terra indígena nos anos 2000. Tal concepção
está presente em outros casos na Amazônia em que o “selvagem” precisa ser “domesticado” e
“civilizado”. Há uma concepção relativamente similar na relação xëni-paxa. Os xëni
consideram que os paxa, lidos como “bravos”, precisam ser “acalmados” através de explicações
e da aquisição de conhecimentos dentro de um processo de maturação que envolve as relações
com os brancos.

A relação xëni-paxa entre os diferentes cronotopos inclui a participação de “terceiros”, como


os agentes institucionais. Os recém-contatados dos cronotopos B e C foram incorporados ao
cronotopo A, no rio Ituí, através do termo paxa que expressa uma escala processual de
classificação bi-partida. Os paxa tornaram-se co-residentes dos xëni a partir do pluricontato.
Uma vez convivendo juntos, alguns xëni casaram-se com pessoas paxa, configurando uma
“afinidade atual” (Viveiros de Castro 2002: 160). O estabelecimento das aldeias nas margens
do rio Ituí relaciona-se ao pluricontato e à manutenção da relação com os brancos: fontes de
acesso ao dinheiro, às mercadorias e medicamentos.

As relações guerreiras entre Xiavo e Txikitxoevo cederam espaço aos conflitos com os brancos
no período extrativista e, após o pluricontato, foram remodeladas. Parte do que outrora foram
os Txikitxoevo e seus descendentes, hoje corresponde aos paxa no rio Ituí e parte do que fora
os Xiavo corresponde aos xëni, configurando relações de colaboração e trocas entre eles, mas
também de guerra (Lévi-Strauss 1976). Os xëni viabilizam aos paxa o acesso às mercadorias
e conhecimentos sobre o mundo dos brancos, intermediando as relações interétnicas. Os
paxa, por sua vez, viabilizam aos xëni casamentos, práticas xamânicas e colaborações em
tarefas produtivas, como caçar, pescar, coletar e abrir roças.

A relação xëni-paxa não caracteriza-se por uma postura dos xëni como mestres-educadores
dos paxa, ao contrário do que ocorreu na intermediação dos Matis nos eventos de contato 4
e 5, em 2015. Nesse caso, conforme o capítulo 2, os Matis intencionavam ensinar aos Korubo
o estilo de vida deshan mikitbo, considerado superior. Ao contrário, os xëni não têm a intenção
explícita de ensinar algo aos paxa, mas apresentam-se como pontes de acesso ao mundo dos

214
brancos. Tudo se passa como se o processo em que um paxa se torna xëni só ocorra a partir
do tempo e da convivência com os brancos, mediada pelos xëni, e não através de ensinamentos
característicos das relações entre pais e filhos.

Ideias, como “amansar” e “acostumar”, estão no cerne desse formato de relações e afecções,
componentes de uma nova vida após o pluricontato. No caso da relação xëni-paxa, a afinidade
guerreira permanece latente. Nessa relação inexiste um controle assimétrico e absoluto dos
xëni sobre os paxa. Para os xëni, os paxa são “bravos”, mas isso não significa que os xëni não
sintam raiva. A diferença entre xëni e paxa está em uma auto capacidade de controlar a raiva,
passar da guerra a troca, desempenhando as habilidades que viabilizam o convívio social após
o pluricontato.

Ninguém se aproxima de uma pessoa com raiva. Enquanto a raiva não passar, todos se
afastam, pois a pessoa está em estado homicida, plenamente capaz de matar. Nesses termos,
a “raiva” não é apenas um sentimento, mas é o que leva as pessoas a agirem, a matarem através
de violência física, feitiçaria ou envenenamento, por exemplo (Belaunde 1992: 13; Aparicio
Suárez 2019: 119). No caso korubo, a raiva passa ao matar alguém, humano ou animal, ou
ao correr para a floresta (avale) e passar um tempo sozinho, desempenhando atividades
produtivas. Então, nem mesmo um xëni é capaz de controlar um paxa em estado de raiva,
pois a raiva só pode ser controlada previamente.

Evita-se ficar bravo, pois uma vez bravo tudo foge ao controle e, portanto, é necessário estar
sozinho. Ser paxa justifica manifestações de descontrole da raiva e, ao mesmo tempo, gera
risos, piadas e brincadeiras entre os Korubo. As brincadeiras de enfrentamento são meios de
dissipar emoções que, caso não se tornem riso, podem se converter em conflito e raiva. Entre
xëni-paxa, existe uma cumplicidade e compreensão, pois os xëni justificam os
comportamentos dos paxa diante dos brancos.

Os paxa, por sua vez, têm cautela em relação aos novos hábitos incorporados pelos xëni no
contato interétnico. Em um dos diálogos com os brancos em outubro de 2019, um paxa
(cronotopo B), traduzido por um jovem do cronotopo pós-contato, argumentou que teme “a
família da Maya” porque as pessoas dessa família são diferentes por comerem nawan pete
(“comida de branco”) e andarem nas cidades. O tradutor enfatizou que o paxa “não é da

215
família da Maya”, “é contato novo”, “não conhece cidade, não quer ficar bravo”. Contudo,
o paxa é vava (DS) de Maya.

O contato com o mundo dos brancos impulsiona o controle da raiva por parte dos xëni que
agora voltam o seu pensamento à descoberta desse novo mundo: comer nawan pete, aprender
nawan onkete (“língua do branco”), andar pelas cidades, utilizar dinheiro etc. Semelhante
interesse entre os Parakanã levou à desativação das vinganças guerreiras, conforme disse o
jovem Japokatoa: “acabou a raiva” (Fausto 2001: 396). O pensamento dos xëni volta-se à
compreensão do mundo dos brancos, enquanto os paxa permanecem em outro momento
dentro desse processo – algo que se reflete nas afecções xëni e paxa.

Sabemos que, na Amazônia, os corpos estão em contínuo processo de fabricação e


aperfeiçoamento intencionais e periódicos, que incluem intervenções sobre as substâncias
corporais, alternados entre os momentos de reclusão-ocultação e decoração-exibição corporal
(Viveiros de Castro 1979). As dietas, as reclusões e os resguardos, a couvade, as intervenções
cirúrgicas em genitálias, as escarificações são processos de fabricação corporal. No caso dos
povos de línguas Pano, tais processos envolvem o uso de substâncias, como urtigas, picadas
de formiga tucandeira, escoriações com ferrão de escorpião, o veneno do sapo (kampô) e o
cipó tatxik (Melatti 1992; Erikson 1996; Matos 2014). Tais processos buscam o equilíbrio
entre substâncias doces e amargas, mantendo a potência guerreira, caçadora e o fundamento
do poder xamânico. A regulação dessas substâncias é constitutiva da pessoa, e produz corpos
duros, amargos e fortes, com determinadas qualidades sociais e éticas.

Tais afecções relacionam-se à diferença xëni e paxa. Os xëni consomem nawan pete e circulam
em cidades, o que torna os seus corpos diferentes dos corpos paxa. Estes, por sua vez, ainda
mantêm a busca pelo equilíbrio entre substâncias doces (vata) e amargas (tximu) e, portanto,
veem com estranhamento as práticas que os xëni adotaram após o pluricontato. Os eventos
de contato estabelecem modificações corporais, destacadas pelos ameríndios ao recordarem
com nostalgia o tempo em que os seus corpos não tinham doenças, eram fortes e gordos em
contraste com a magreza atual (ver o caso Kulina-Pano, D’Ávila 2018: 61). Entre os Korubo,
o pluricontato gerou diferenças corporais e afectivas que são também cronotópicas, inscritas
nos corpos: os paxa detêm corpos mais amargos com afecções guerreiras, os xëni estão

216
transformando seus corpos na relação com os brancos, ingerindo mais substâncias doces e,
portanto, menos inclinados à guerra. Ainda não podemos dizer que, para os xëni, a raiva já
acabou, mas provavelmente no futuro acabará.

3.4. Casas e roças

O topos no baixo curso do rio Ituí abriga pessoas xëni e paxa em quatro aldeias que não
correspondem aos quatro marcos dos eventos de contato (1996, 2014, 2015 e 2019). Pessoas
de cinco eventos de contato, exceto as do evento 6, co-residem nessas quatro aldeias. Cada
uma das aldeias é constituída por um conjunto de habitações – maloca (xuvu) e casas
unifamiliares (wëtëkit) –, roças (maë), o igarapé (waka) e dois tipos de banheiro: o isuntano
para urinar e o kamino para defecar. Os Korubo costumam viver na maloca. Cada maloca
possui uma ou duas portas com cerca de um metro de altura, de modo que é preciso curvar
o corpo para entrar.

Imagem 17. Maloca korubo.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

217
O teto da maloca é alto, mas tudo dentro dela é pequeno. Estacas de madeira fincadas no
chão, com cerca de um metro de altura, servem de suporte para pequenas redes de tucum.
Algumas delas com mosquiteiros verdes, fornecidos pela SESAI como forma de prevenção da
malária. Outras com pequenas fogueiras, acesas próximas das redes. Não há esteiras entre as
redes. Pequenos bancos de madeira posicionados no centro da maloca contrastam com as
redes espalhadas ao redor. Cada aldeia possui uma maloca, construída por grupos de homens,
que abriga certo número de familiares e, mais recentemente, passou a ser também o local de
receber as visitas dos brancos, como os agentes estatais e pesquisadores.

Imagem 18. Interior da maloca.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Nos últimos anos, os Korubo passaram a construir casas unifamiliares em torno da maloca.
A casa unifamiliar é uma estrutura recente, incorporada pelos Korubo no contato interétnico,
inspirada na estética das casas regionais já em uso por outros povos da bacia do rio Javari.
Cada casa unifamiliar possui pernas elevadas, construída com paxiúba (Socratea exorrhiza) e
uma espécie de palha chamada de vulët. Por um lado, a quantidade de casas unifamiliares em
uma aldeia evidencia o volume de pessoas xëni, paxa e solteiras, por outro lado, revela o anseio
dos Korubo por aprender a ler e a escrever, pois em alguns casos eles chamam essas casas de
“escolas”.

218
As roças dos Korubo podem ser de milho (xikxu maë), macaxeira (mankit maë) e bananas
(vakwa maë e txuta maë). Cada roça possui ainda outros tubérculos e cultivos, como
pupunhas (kwenat) e cará (matunku), ou ainda, plantações de urucum (xinte), mamão (wala)
e cubiu (puputan). Contudo, a maior parte das roças korubo são de milho e, sobretudo,
macaxeira. Os Korubo costumam cultivar, pelo menos, três tipos de macaxeira: nitayun
mankit (“macaxeira do mato”), setkya (“macaxeira branca”) e pëtkya (“macaxeira amarela”).

Além das casas unifamiliares (wëtëkit), os Korubo passaram a fazer roças unifamiliares que
somam-se às roças de uso coletivo. Este tipo de roça segue o padrão de construção das casas
unifamiliares em torno da maloca, algo similar ocorreu entre os Matsés no Peru, onde o
reagrupamento e a implantação de aldeias populosas e próximas das margens dos rios
configurou dois tipos de roça (a familiar e a nuclear) que se complementavam para compensar
a dieta matsés. 94 No caso dos Korubo, cada roça unifamiliar é dita como sendo propriedade
de um homem: “Lëyun maë” traduzida como “roça do Lëyu” (–n: POSS.), conforme veremos
no capítulo 6.

Os nomes das aldeias korubo, geralmente, são topônimos relacionados a características da


fauna, flora e do solo na localidade. Por exemplo, os nomes de duas aldeias antigas, chamadas
de Talawaka xëni e Talawaka txuka, referem-se à coloração escura da água (–waka: água), que
fez os Korubo se mudarem e abrirem novas aldeias. Durante a pesquisa de campo, eles
visitavam as roças das aldeias Talawaka para coletar determinados cultivos, como pupunhas.
Atualmente, os nomes das novas aldeias também referem-se a espécies de árvores, aves e
características do solo.

Em 2019, havia quatro aldeias korubo no baixo curso do rio Ituí: a Vuku Maë na margem
direita e as outras três na margem esquerda, chamadas de Sentele Maë, Tapalaya e Tankala
Maë – conforme o Mapa da Terra Indígena Vale do Javari em Anexo 1. A Sentele Maë,
outrora chamada de “Roça Velha”, e a Tapalaya, também chamada de “Mário Brasil”, são
antigas ocupações dos Korubo. A Tankala Maë e a Vuku Maë são relativamente recentes.

94
Em 1979, o povoado de Nuevo San José de Añushi tinha 17 roças: 11 destas eram de famílias nucleares e seis
de famílias extensas (Calixto Mendez 1985; 1986).
219
Pessoas dos diferentes eventos de contato co-residem nessas quatro aldeias, mesclando os
cronotopos A, B e C. A partir de 2016, após o quinto evento de contato, os Korubo passaram
a afirmar que cada uma dessas aldeias, com exceção da Vuku Maë, possui um “cacique”,
sendo um destes chamado de “cacique geral”. A Vuku Maë, diferente das outras três aldeias,
é reconhecida pelos Korubo e brancos como a “aldeia da Maya” (ver Silva 2021b). A posição
de “cacique” parece ter emergido após os eventos de contato 4 e 5, em 2015, pois em 2016
Txitxopi passou a ser apresentado aos brancos como o “novo cacique” (Oliveira 2016: 12).

Em 2019, os Korubo utilizavam a palavra “cacique” para se referir a Txitxopi: um xëni do


cronotopo A, com 30 anos de idade, residente na Tankala Maë, filho de Maya com o falecido
Pete. Ao longo de 2020, este termo passou a ser utilizado pelos Korubo em determinados
contextos para se referir a outros homens. Além da palavra “cacique”, semelhante aos brancos,
os Korubo incorporaram a palavra “chefe”: esta utilizada para se referir aos cargos ocupados
pelos agentes estatais, como os chefes da “Base Ituí” e do “Escritório da FUNAI”. Os Korubo
concebem que o cacique, ao contrário do que pensam os agentes estatais, existe estritamente
“para conversar” com os bancos, função expressa no termo onkeno (–onke: conversa; –no:
POSP.).

Tal noção korubo sobre o “cacique” assemelha-se às discussões sobre figuras emergentes no
contato interétnico, como é o caso do “representante” entre os Zo’é, falantes de língua Tupi-
Guarani. O “representante” é aquele que tem a “capacidade de agir, de impulsionar outros a
agir”, “de fazer aparecer e movimentar coletivos”. Um pessoa deve “falar duro”, “mandar
trabalhar” e “pensar muito” para se tornar o “representante” de uma comunidade. 95 Parte do
papel desses representantes é “cuidar da Funai”, evitando que as crianças zo’é roubem as coisas
dos brancos, oferecendo informações sobre as famílias à equipe do posto e esclarecendo as
demandas dos Zo’é. Tal concepção sobre o papel do representante relaciona-se à noção de
chefe como aquele que captura e faz circular conhecimentos, inclusive, do mundo dos brancos
(Gallois 2015: 291-4).

95
O sentido de “falar duro” entre os Zo’é difere do caso dos Wajãpi, também de língua Tupi-Guarani, onde os
discursos políticos combinam os estilos mítico e histórico, constituindo a oratória política destinada a “Funai”,
ao “governador”, ao “governo” e ao “chefe dos garimpeiros”. Nesses casos, trata-se de “discursos-ação”
caracterizados por retrospecção, retórica agressiva, exaltação da diferença e superioridade (Gallois 2002: 212-7).
220
Os caciques entre os Korubo e os representantes entre os Zo’é são figuras que emergem no
contato interétnico com os agentes estatais e incidem sobre as formas tradicionais de
autoridade ameríndia. No caso dos Zo’é, há o surgimento de representantes jovens,
configurando outro formato de autoridade, diferente da dos velhos, baseada na aquisição de
conhecimentos do mundo dos brancos (Gallois 2015: 295-6). No caso dos Korubo, nota-se
a proliferação de homens adultos ocupando a posição de “caciques”, criados para conversar
com os agentes estatais majoritariamente do gênero masculino, paralela à autoridade das
mulheres mais velhas (matxo) no cotidiano das aldeias no rio Ituí. As matxo assemelham-se
muito mais à concepção dos Wajãpi sobre os jovijã: homens ou mulheres que dominam a
arte verbal de transmissão dos conhecimentos (Gallois 2006). Diferente do termo jovijã,
matxo é um termo usado apenas para se referir a mulheres.

Os homens designados como caciques korubo promovem o diálogo com os brancos, algo que
difere da postura dos Korubo antes da passagem da guerra à troca (Lévi-Strauss 1976),
conforme a Parte 1. Trata-se de uma posição índice dessa passagem em que em a guerra torna-
se potencial, hoje expressa nos diálogos caracterizados por um discurso que, inicialmente,
busca fazer os brancos falarem para se contraporem posteriormente, evidenciando as
diferenças entre os “pensamentos” dos brancos e dos Korubo. Em 2019-20, presenciei
diferentes contextos em que esta posição era acionada pelos agentes estatais e pelos Korubo,
e as substituições do “cacique geral” por um “cacique substituto”.

A emergência e multiplicação da figura do cacique relaciona-se com a proliferação das aldeias


no baixo curso do rio Ituí. Em 2016, os Korubo possuíam um cacique, em 2019 eram quatro.
A configuração de aldeias nas margens do rio é tão recente quanto a emergência do cacique.
O contingente populacional e a quantidade dessas aldeias passou por alterações nos últimos
anos. Após o primeiro evento de contato, em 1996, a parcela que se viria a ser o cronotopo
A permaneceu no igarapé Quebrado, margem esquerda do rio Ituí, próximo à Base. Naquela
localidade, eles estabeleceram a aldeia Roça. Em 2007, essa parcela possuía duas aldeias no
rio Ituí: além da aldeia Roça, fundaram a Tapalaya. Após os quatro eventos de contato
ocorridos em 2014 e 2015, surgiu a necessidade de abrir roças para formar novas aldeias
próximas da Tapalaya e abrigar as parcelas contatadas, ou seja, entre 2017-19 houve um
crescimento populacional decorrente dos eventos de contato 2, 3, 4 e 5. Foi necessário

221
construir novas aldeias para que as parcelas contatadas se somassem ao cronotopo A no baixo
curso do rio Ituí.

Com a reunião das parcelas que viriam a ser os cronotopos A, B e C nas margens do baixo
rio Ituí, a convivência desencadeou relações de proximidade e conflitos. Os conflitos ocorrem,
sobretudo, por causa de relações extraconjugais e, atualmente, são um dos principais fatores
para a abertura de novas aldeias. Após os conflitos, é comum famílias ou casais mudarem de
aldeia ou fixarem residência temporária em aldeia vizinha. Um dos mecanismos para evitar
conflitos, como as brigas entre casais, é sair de casa temporariamente ou mudar de aldeia,
similar ao que ocorre entre outros povos, como os Airo-pai e os Shipibo-Conibo (Belaunde
1994: 108; Hammerschmidt 2019: 124).

A abertura das novas aldeias para abrigar as parcelas contatadas nos eventos ocorridos em
2014 e 2015, junto ao cronotopo A, promoveu a replicação da posição de cacique, pois o
diálogo interétnico demanda que cada aldeia korubo apresente um porta-voz. Em 2019-20,
com exceção da Vuku Maë que é a “aldeia da Maya”, cada uma das três aldeias possuía um
homem na posição de cacique. Todos são xëni do cronotopo A. A Tankala Maë, maior aldeia
korubo, possuía dois homens nessa posição: o cacique geral e o substituto. A Sentele Maë
tinha como cacique o Malevo; a Tapalaya tinha como cacique o Takvan; a Tankala Maë tinha
como cacique o Txitxopi, também “cacique geral”, com o Lëyu como o seu substituto. 96

96
Sobre a emergência e o papel dos “caciques” entre os Korubo, conferir Silva (2021b).
222
Sentele Maë

Croqui 2. Aldeia Sentele Maë.


Ilustração: William Mattos.

223
A Sentele Maë possui uma maloca e quatro casas unifamiliares. Anteriormente, essa aldeia
era chamada de Maë Xëni (maë: roça; xëni: velha, antiga). Em 2019, os Korubo a renomearam
de Sentele Maë devido à presença de inhambu (Crypturellus parvirostris) nas proximidades. 97
Ao lado direito da maloca, na parte baixa do solo, há os banheiros isuntano e kamino, ambos
caracterizados por troncos de árvores derrubadas no chão. Na porção direita da parte posterior
da Sentele Maë, há o igarapé, fonte de água para banhos e consumo.

Até março de 2020, havia quatro casas unifamiliares na Sentele Maë. A primeira, construída
em 2019, possuía uma estrutura de madeira coberta com palha, ladeada por telas de arame,
chamada de “escola”. A Sentele Maë localiza-se em terra alta. Ao subirmos para a maloca,
visualizamos a escola e, ao lado, a maloca. Ainda naquele ano, Kunu (cronotopo B), então
solteiro, construiu outra casa unifamiliar na porção posterior do lado direito da maloca, cujas
laterais são feitas de paxiúba. Tsamavo (também chamado de Kuinin, do cronotopo A),
homem mais velho da Sentele Maë, construiu outra casa unifamiliar atrás da maloca para
residir com sua esposa, Sini. Foi nessa casa que eu residi enquanto permaneci na Sentele Maë.

Por ser casado e ter filhos, a casa de Tsamavo é maior que a de Kunu. Conforme mencionei,
ao contrário da maloca, as casas unifamiliares são ditas como sendo propriedades de homens,
com exceção do caso de Maluxin (cronotopo C), matxo da Sentele Maë, cuja casa foi
construída pelo filho dela, chamado Txixpa Lamon, mas é mencionada como sendo
propriedade dela: “Maluxin wëtëkit”. A casa de Maluxin localiza-se no lado esquerdo da
porção frontal da maloca.

Além destas casas unifamiliares, em 2020, um jovem casal dessa aldeia (homem do cronotopo
C e mulher do cronotopo B) iniciou a construção de outra casa unifamiliar na porção
posterior do lado esquerdo da maloca, mas não foi concluída, pois esta união foi desfeita pela
mãe da noiva, conforme discutirei no capítulo 4. As pessoas dessa aldeia passam a maior parte
do tempo na maloca e utilizam as casas unifamiliares para estudar e dormir. Ao longo do dia,
quando não havia aulas, as crianças utilizavam a escola também para brincar.

A roça de milho localiza-se atrás dessa aldeia. Para chegar nessa roça, os Korubo percorrem
um varadouro ao longo do qual saúdam os espíritos da roça de milho, chamados de xavit

97
Na língua korubo, aves desta espécie são chamadas de xonkeit ou sënu.
224
nantan (xavit: espírito; nantan: dentro de, centro da maloca). “Ehe!” é a saudação
característica dessas ocasiões, utilizada pelos Korubo ao chegarem e partirem de um local.
Esta foi a única aldeia korubo onde presenciei a saudação aos xavit todas as vezes que
chegávamos à roça de milho.98 Somente após a saudação coletávamos milho. Além da roça
de milho, em 2020, os Korubo abriram roças de macaxeira e banana. Na Sentele Maë,
diferente da roça de milho, as roças de macaxeira e banana são unifamiliares.

Vinan Manis

Paxtu
Makwëx Maluxin Txukuma Malu Patxi Maluxin
Nëmulo Manis Pete Maya Vakwë

Txixpa
Pinu Lalanvet Omon Tsamavo Malevo Lamon
Vakwë (Vëtxolo) (Kuinin)

Txitxopi
Vakwë Maya Sini Kunu Txilavo Tuxi
Malaya

Malu Kontxo Këtsi Patsinlut Siankit Pipin Mamoka Wio


Puki
(Tinkeitvo) Wasa (Rieli) Wasa
(Simone)

Diagrama 4. População da Sentele Maë.

Até abril de 2020, 22 pessoas residiam na Sentele Maë (11♀; 11♂) – em destaque no diagrama
acima. Dentre elas, havia duas pessoas do cronotopo C; três do cronotopo A; nove do
cronotopo B; e oito do cronotopo pós-contato. Essa configuração populacional inclui a
família de Lalanvet, também reconhecida como matxo. A mulher mais velha dessa aldeia é
Maluxin, pertencente ao cronotopo C: uma das irmãs de Maya que foi raptada por Txikit,
constituindo os Txikitxoevo no rio Coari. Maluxin é a tita utsi (MZ) de Lalanvet, Omon,
Tsamavo e Malevo, residentes nessa aldeia.

98
Em outra roça de milho, localizada entre as aldeias Tankala Maë e Tapalaya, esta saudação não era realizada.
225
Tapalaya

Croqui 3. Aldeia Tapalaya.


Ilustração: William Mattos.

226
A Tapalaya é a segunda maior aldeia korubo no rio Ituí. Conforme os Korubo, o termo
tapalaya refere-se ao solo lamacento da localidade. Nessa aldeia, há uma maloca e duas casas
unifamiliares: uma construída por Xikxuvo Vakwë (cronotopo C) para ser a “escola”, e a
outra era a casa de Visa (cronotopo B), onde ele residiu com Tuxi e Tose (ambas do
cronotopo pós-contato), suas esposas, até falecer em 2020. A Tapalaya aparece nos registros
documentais como sinônimo de “Mário Brasil”: localidade ocupada pelos brancos durante o
período extrativista. Conforme o Jornal Porantim (nº 186/1996), Mário Brasil era um dos
madeireiros que atuavam nessa localidade antes da demarcação e homologação da terra
indígena. Hoje, a presença dos brancos é atestada em cultivos de limão (Citrus latifolia) na
entrada dessa aldeia.

Ao chegarmos na Tapalaya, subíamos um barranco e encontrávamos a casa unifamiliar de


Visa. Atrás dessa casa, havia o igarapé e os banheiros isuntano e kamino. À esquerda da casa
de Visa, após uma trilha curta, há a casa unifamiliar construída por Xikxuvo Va para ser a
“escola” da aldeia. Próximo desta, há a “casa do rádio”: uma estrutura de madeira e palha,
utilizada para proteger o equipamento das intempéries. Em 2019-20, apenas a Tapalaya e a
Tankala Maë possuíam rádios de comunicação. Os rádios são centrais em uma aldeia korubo,
pois norteiam a dinâmica comunicacional com a Base Ituí, com outros povos e entre os
cronotopos. O rádio da Tapalaya localiza-se em frente à entrada frontal da maloca. Com
exceção de Visa e suas esposas, todos as pessoas da Tapalaya residem na maloca.

Eu não conheci as roças dessa aldeia, pois não residi na Tapalaya, apenas visitava
regularmente. Conforme as informações dos Korubo, essa aldeia possui duas roças de uso
coletivo: uma de macaxeira e banana; a outra de milho, macaxeira e banana. Há também uma
roça antiga (“capoeira”), onde os Korubo coletam pupunhas. Entre a Tapalaya e a Tankala
Maë, há um varadouro que leva à floresta e à roça de milho. Por vezes, os Korubo utilizam
esse varadouro para se visitar. A chegada de visitantes pelo varadouro é silenciosa e não
caracteriza-se pelo frenesi das visitas fluviais. 99

99
Para uma discussão acerca dos rádios e das visitas fluviais em motores peque-peque, ver o capítulo 6.
227
Vinan Manis

Pete Maya Makwëx Maluxin Vali Wio Patxi Maluxin Paxtu Malu
Maluxin Vakwë
Diagrama 5. População da Tapalaya.

Pëxken Kolotxia Xikxuvo Kanxi


(Waxmën) Vakwë (Kaxëmeanpikit)
Takvan Lalanvet Muna
228

(Mavën) (Vëtxolo) Makwëx Muna Txipu Tananeloanpikit Vunpa Luni


Vëtxixne

Makwëx Waxmën
Vakwë Vakwë
Tsele Mëlanvo Këtsi Këtsi
(Tananeloanpikit) Wisu Vakwë

D. 2020

Pinu Visa Xamalekit Lonlon


Tsamavo Pëkwin Tose Tuxi Maluin (Txain)
Vakwë

Manu Waxmën Omonvo


Xatan
Até abril de 2020, 25 pessoas residiam na Tapalaya (15♀; 10♂). Dentre elas, nove do
cronotopo C; sete do cronotopo B; sete do cronotopo pós-contato; e duas do cronotopo A.
Portanto, na Tapalaya, a maioria das pessoas é paxa. Isso se evidencia no fato de continuarem
residindo na maloca e terem construído poucas casas e roças unifamiliares. A Tapalaya é
constituída pela família de Takvan (chamado de Mavën, do cronotopo A), filho mais velho
da Maya com o falecido Pete, reconhecido como “cacique” dessa aldeia, e pelas famílias
provenientes do rio Coari, como a de Mëlanvo e a de Pëxken tsusivo.

229
Tankala Maë

Croqui 4. Aldeia Tankala Maë.


Ilustração: William Mattos.

230
A Tankala Maë é a maior aldeia no rio Ituí, possui uma maloca e seis casas unifamiliares. O
nome dessa aldeia relaciona-se à maior árvore existente na localidade, derrubada para a
construção das habitações. Tankala refere-se a essa espécie de árvore não identificada. A trilha
entre a margem do rio Ituí e a maloca é ladeada por plantações de macaxeira. Em frente a
maloca, há duas casas unifamiliares. Uma delas é a casa de Txitxopi (cronotopo A), onde ele
reside com Luni e Malu Xuma, suas esposas, e filhos. O rádio dessa aldeia localiza-se na casa
de Txitxopi, tornando-se um atrativo para visitantes oriundos da aldeia Vuku Maë, localizada
rio acima.

Ao lado da casa de Txitxopi, Seatvo (também chamado de Siankit, do cronotopo pós-


contato), então solteiro, construiu outra casa unifamiliar que abrigava um grupo de rapazes
solteiros. Em 2019, por decisão dos Korubo, esta casa tornou-se o local das atividades de
letramento, chamada de “escola”. Além dessas duas casas (a de Txitxopi e a escola), há as casas
de Pinu (cronotopo B), Takvan Va e Xikxuvo (ambos do cronotopo A). Xikxuvo possuía
duas casas nessa aldeia, onde ele residia antes de se mudar para a Vuku Maë: uma no modelo
maloca reduzida, a outra no estilo unifamiliar wëtëkit. Esta tornou-se “Julianan xuvu” (–n:
POSS.) enquanto residi na Tankala Maë. Era uma casa alta, com uma escada de madeira
maior que todas as outras. Xikxuvo preferia a sua casa unifamiliar no estilo maloca reduzida
e, voluntariamente, me ofereceu o wëtëkit. Quando fui embora da Tankala Maë, esta casa
unifamiliar foi derrubada e Seatvo construiu uma nova no lugar.

Na Tankala Maë, há dois banheiros isuntano e kamino: um ao lado direito da maloca e outro
localizado mais próximo das casas de Xikxuvo e do varadouro que liga essa aldeia à floresta e
à Tapalaya. Entre as casas de Takvan Va e Pinu, há uma trilha que leva ao igarapé, cuja água
é utilizada para banhos e consumo. Ao lado da Tankala Maë, há a “Casa de apoio” construída
pelos funcionários da FUNAI para abrigar os brancos que trabalham com os Korubo:
pesquisadores, agentes estatais etc. A Casa de Apoio, feita de madeira com janelas teladas,
possui dois quartos, uma cozinha e uma sala. Os Korubo deslocavam-se da Tankala Maë à
Casa de Apoio através do rio e, durante o verão, utilizavam também a praia. No terreno atrás
dessa Casa, há uma sepultura de brancos que viveram na região durante o período extrativista,
nascidos no século XI e provenientes de estados, como Ceará e Rio de Janeiro.

231
À montante da Casa de Apoio, havia cerca de cinco roças de macaxeira unifamiliares, feitas
pelos homens da Tankala Maë. Se, por um lado, as roças de macaxeira da Tankala Maë são
unifamiliares, por outro lado, a roça de milho localizada no caminho entre as aldeias Tankala
Maë e Tapalaya é coletiva. Além das roças, entre as casas unifamiliares, há plantações de
urucum (Bixa orellana), mamão (Carica papaya) e cubiu (Solanum sessiliflorum).

232
Vinan Manis
Diagrama 6. População da Tankala Maë.

Makwëx Maluxin Txukuma Malu Vali Wio Patxi Maluxin Paxtu Malu
Nëmulo Manis Pete Maya Maluxin Vakwë
233

Xikxuvo Pëxken Kolotxia


Xuxu Wio Txuxan
Naylo (Waxmën)
Lalanvet Waxmën Luni Lëyu
Txitxopi
(Vëtxolo)

Waxmën
Takvan Lonkon Wasa
Wio Malu Seatvo Valitsika Tëkpa Visa Maya Pinu
Tamu Vakwë
Xuma (Siankit) Vakwë Koluvo Vunpa
Lala

Vali Kanikit Wanka Wanxunu Tupa Manisvo


Vakwë Tëpi Xaun Empule
Vëna
Bruno
Até abril de 2020, 28 pessoas residiam na Tankala Maë (14♀; 14♂). Destas, 15 são pessoas
do cronotopo pós-contato; seis do cronotopo B; cinco do cronotopo A; e duas do cronotopo
C. Desse modo, pessoas xëni constituem a maioria da população dessa aldeia, o que se reflete
na quantidade de roças e casas unifamiliares construídas em torno da maloca antes de eu
chegar à região.

234
Vuku Maë

Croqui 5. Aldeia Vuku Maë.


Ilustração: William Mattos.

235
Em 2019-20, a Vuku Maë – única aldeia korubo localizada na margem esquerda – era a de
menor contingente populacional: possuía uma maloca e nenhuma roça. Havia apenas uma
pequena plantação de cará (Dioscorea) localizada do lado esquerdo da porção posterior da
maloca. 100 A Vuku Maë, também conhecida como a “aldeia da Maya”, recebeu este nome
por causa de uma árvore, cuja espécie não foi identificada, derrubada para a construção da
maloca. De todas as aldeias, a Vuku Maë é a mais distante da margem do rio Ituí. Há uma
longa trilha entre a margem do rio e as habitações.

Em 2020, alguns homens da Vuku Maë começaram a abrir uma roça de macaxeira. Até então,
a macaxeira consumida pelas pessoas da Vuku Maë era levada pelos filhos de Maya residentes
na Tankala Maë. Há uma relação estreita entre as pessoas da Vuku Maë e Tankala Maë que
se visitam constantemente para usar o rádio, entregar comida, e circular crianças, pois os
netos da Maya, sobretudo, os filhos de Waxmën com Lëyu passam períodos na Vuku Maë
aos cuidados dela. Nos casos de conflitos entre co-residentes, é comum que pessoas da
Tankala Maë se mudem para a Vuku Maë, e vice-versa.

Ao longo de 2019-20, Xikxuvo (cronotopo A) que se mudou da Tankala Maë para a Vuku
Maë construiu três casas unifamiliares nessa aldeia. A maloca, por sua vez, foi construída por

Xuxu Luasivo (cronotopo C). Até abril de 2020, a Vuku Maë abrigava 16 pessoas (6♀; 10♂),
que constituíam parte da família de Maya. Dentre estas, sete pessoas do cronotopo pós-
contato; seis do cronotopo C; e três do cronotopo A.

100
Diferente de outros cultivos, o cará (matunku) geralmente é coletado por grupos de mulheres jovens. As
mulheres mais velhas e homens não costumam acompanhar essas coletas.
236
Vinan Manis

Pete Maya Makwëx Txukuma Malu Vali Wio Patxi Maluxin


Maluxin
Maluxin

Atsa Xikxuvo
Omon Muna Tsamavo
(Kuinin) Txipu Tananeloanpikit Nuatvo
Xuxu Wio Ayax
Luasivo Punu Vëtxixne

Nanë Manis Wanka


Lonkon Mayuvekit Ixovo

Tumi Nuatvo Makwële Antontema Kwëlonvo


Muxavo

Diagrama 7. População da Vuku Maë.

237
4

APARENTAR-SE

O pluricontato estabeleceu um panorama de sobreposições espaço-temporais evidenciadas na


morfologia das aldeias korubo – a construção de casas e roças unifamiliares em torno de
malocas e roças coletivas – e nas categorias korubo xëni e korubo paxa. Tais categorias que
servem para a distinção “velho” e “novo”, após o pluricontato, passam a servir para distinguir
pessoas de diferentes cronotopos a partir dos eventos de contato: quem é “antigo” (maduro)
e quem é “novo” (imaturo) na relação com os brancos. A corporalidade e as afecções estão no
cerne dessa distinção, como fica evidente no maior controle da raiva por parte dos xëni e, ao
mesmo tempo, em corpos paxa mais amargos detentores de potência guerreira.

As diferenças corporais e afectivas se refletem nas atividades produtivas e comunitárias.


Pessoas xëni e paxa têm acessos diferenciados às mercadorias e aos conhecimentos sobre os
mundos do branco e da floresta. Os xëni dominam determinadas técnicas do mundo dos
brancos, como motores, malhadeiras, anzóis e linhas de pesca, espingardas, combustível etc.
A partir da co-residência, os paxa são beneficiados por esses acessos, pois o alimento obtido é
distribuído entre as pessoas de uma aldeia, ou ainda, entre aldeias. Os paxa, por sua vez,
detêm e compartilham com os xëni conhecimentos da floresta ao caçar, coletar, pescar, abrir
roças, construir malocas e curar enfermidades. Por isso, os xëni reconhecem determinados
paxa como pessoas que “ajudam” e, em alguns casos, estes são escolhidos como parceiros
matrimoniais para os xëni.

Este capítulo divide-se em quatro seções e analisa uma das principais formas de construir
parentesco após o pluricontato: os casamentos entre pessoas de diferentes cronotopos. Na
primeira seção, foco em Maya: uma matriarca xëni do cronotopo A que é também a mulher
mais velha no rio Ituí, uma matxo. Maya (matxo xëni) é duplamente velha, ou seja, sênior e,
ao mesmo tempo, antiga no contato com os brancos. Por isso, ela constitui um eixo central
em torno do qual os vínculos de parentesco são construídos após o pluricontato. Na três
seções seguintes, analiso doze casamentos e alguns casos de rearranjos matrimoniais entre
pessoas de diferentes cronotopos, configurando casamentos entre xëni e paxa.
238
Ao longo desse capítulo, mostro como pessoas de diferentes eventos de contato estão co-
residindo nas quatro aldeias no baixo curso do rio Ituí. Os diagramas analisados não exibem
todos os pais de uma pessoa, pois entre os Korubo, como entre outros povos Pano, considera-
se que todos os homens que têm relações sexuais com uma mulher durante a gravidez
contribuem, de alguma forma, para a fabricação do feto e podem, em alguns casos, serem
“pais” da criança, com atitudes e obrigações atendentes (ver McCallum 2001: 16; Erikson
2002b: 123-136; Pérez-Gil 2006: 41; Carid Naveira 2007: 271; Matos 2014: 45).

Os doze arranjos matrimoniais mostram que uma das formas que os Korubo encontram para
produzir parentesco é casando-se com pessoas em posições não prescritas segundo a lógica
dravidiana dos sistemas de parentesco Pano. Em vez de casarem-se com os primos cruzados
– a xanu para ego masculino e o vëntolo (também chamado de wëntxok) para ego feminino –
, os Korubo realizaram outros casamentos entre níveis geracionais distintos, como o
avuncular, experimentando uma possibilidade comum no dravidianato amazônico. Nesses
casos, a distância geográfica entre as pessoas foi central, ou seja, o fato de residirem em
diferentes sub-bacias hidrográficas favoreceu os casamentos entre cronotopos. Observa-se
ainda casos de rearranjos matrimoniais, ou seja, promessas de casamento que foram desfeitas
para dar lugar à construção de novos vínculos entre pessoas xëni e paxa.

Os rearranjos matrimoniais analisados revelam que uma das principais motivações para esses
casamentos é unir homens xëni com mulheres paxa. Os xëni dos cronotopos A e pós-contato
são homens que chamo de duplamente produtivos, pois trabalham nas aldeias e, ao mesmo
tempo, trabalham com os brancos. Nas aldeias, abrem roças, caçam, pescam e coletam. Com
os brancos, recebem pagamentos monetários e, assim, acessam mercadorias industrializadas.
Nesses termos, os casamentos cronotópicos, seja arranjos ou rearranjos, estabelecem a
complementaridade entre xëni e paxa, e evidenciam a transformação dos Korubo. Tais uniões,
por um lado, não seguem a prescrição matrimonial entre xanu e vëntolo e, por outro,
valorizam as qualidades pessoais dos xëni enquanto vetores de acesso ao mundo dos brancos.
Assim, outras posições de parentesco, como os primos paralelos, estão sendo reclassificadas
como sendo relações entre primos cruzados.

239
4.1. Maya

Em fevereiro de 2019, fui pela primeira vez à Vuku Maë, a “aldeia da Maya”. Ao longo
daquele ano, acompanhei uma série de visitas feitas pelas pessoas da Tankala Maë às pessoas
da Vuku Maë, no rio Ituí. A chegada na Vuku Maë configura um clima de animação
generalizado. Os Korubo atracam a embarcação, desembarcam e seguem em direção à maloca
em uma caminhada permeada por sussurros e fofocas. Dentro da maloca, costumam formar
duas rodas de conversa. Algumas jovens em torno de Manis (cronotopo pós-contato, Vuku
Maë), a filha mais nova de Maya com Xikxuvo (cronotopo A, Vuku Maë). Os adultos, em
geral, permanecem ao redor de Maya.

Imagem 19. Maya.


Fonte: Korubo uma etnia entre fronteiras (vimeo).

Naquele dia do mês de fevereiro, foi a primeira vez que a vi. Maya nos aguardava na trilha
entre a margem do rio Ituí e a maloca da Vuku Maë. Vestida com uma saia vermelha de
comprimento na altura dos joelhos e uma camisa branca, ela estava com os cabelos compridos
e, em comparação aos registros audiovisuais que eu assistira, estava também mais magra. Eu
estava acompanhada por Takvan Va (cronotopo A, Tankala Maë), também filho de Maya
com Xikxuvo, e um funcionário da FUNAI. O nosso objetivo era buscar as pessoas da Vuku
Maë e leva-las à Base Ituí, onde eu realizaria a atividade educativa proposta pela “FUNAI
Brasília” sobre as matérias-primas de determinadas mercadorias industrializadas.

Ao ver o funcionário, Maya perguntou por outros agentes estatais, mencionando os nomes
deles, com um tom de voz de quem exige satisfação. Ele respondia enquanto caminhávamos
pela trilha. Ao chegarmos na maloca, Takvan Va entrou na floresta em busca de um grupo
de caçadores da Vuku Maë, e nos disse para acompanharmos sua mãe e sua irmã mais nova,

240
Maya e Manis. Elas iriam a uma localidade próxima coletar frutas. Os Korubo haviam
derrubado uma árvore frutífera com machado cerca de três dias antes. Então, as frutas
amadureceram e estavam prontas para serem colhidas.

O funcionário da FUNAI e eu acompanhamos Maya e Manis por uma trilha até a árvore. Ao
sentar-se no chão, Maya colheu uma folha txiaxa e começou a fazer um pequeno cesto para
transportar as frutas. Enquanto fabricava o cesto, brincava com os filhos de Manis, incitando-
os a chamarem-na de “txitxi” (MM). Maya e Manis se comunicavam à distância com o grupo
de caçadores que estava em outra parte da floresta. 101

Imagem 20. Cesto feito com folhas txiaxa.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

No retorno para a maloca, Maya deu o cesto com frutas para o funcionário da FUNAI e, em
troca, pediu um pacote de bolachas Maria, considerada pelos Korubo como “bolacha kimvo”,
isto é, “bolacha verdadeira”, pois estavam habituados a consumi-la durante as estadias na Base
Ituí. Ela pediu ainda algumas mercadorias, como panelas de metal. O funcionário da FUNAI
destacou que panelas não constam dentre os itens doados pelo órgão indigenista aos Korubo,

101
Os sons que constituem essa comunicação à distância são o que David Fleck (2003: 188) descreveu como
“monótono enfático” no caso matsés.
241
conforme o Regime de Circulação de Bens.102 Maya, matxo xëni – a “mulher mais velha”
entre os Korubo no rio Ituí, e também “antiga” no contato com os brancos – já escutara os
agentes estatais falarem sobre o Regime de Circulação de Bens uma porção de vezes. Não era
uma novidade. Mas a petição é um dos meios privilegiados que os Korubo encontram para
se relacionar com os brancos. Afinal um dos principais temas de conversa em comum são as
mercadorias industrializadas.

Maya é conhecida pelos brancos como uma das pessoas korubo que mais pede mercadorias e
alimentos industrializados, e também como alguém que se queixa de dores com frequência.
Naquela manhã de fevereiro, ela manifestou ao funcionário da FUNAI o seu desejo de ir à
Base Ituí. Argumentou que ela e uma de suas netas sentiam dores no corpo e, portanto,
precisavam visitar a equipe de saúde instalada na Base Ituí. Maya parecia interessada em ir à
Base também para acompanhar Ixovo (cronotopo C, Vuku Maë), seu jovem companheiro.

Semanas após a primeira vez que a conheci, Maya foi para Tabatinga como acompanhante
de Manis. Geralmente, as matxo auxiliam nos partos e cortam os cabelos dos Korubo. No
entanto, a gestação de Manis indicava um parto de risco e a equipe de saúde recomendou a
remoção sanitária para a realização de uma cesárea. Maya acompanharia o nascimento de
mais um de seus netos, a quem deu o nome “Kwëlonvo”. Em maio daquele ano, o processo
de solicitação da aposentadoria de Maya, por motivo de idade, tramitava junto ao Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS). Ela seria a primeira mulher a receber esse tipo de benefício
entre os Korubo residentes no rio Ituí. 103

Embora os brancos afirmem a “postura de liderança” de Maya, eu não tinha a dimensão exata
da autoridade dela entre as pessoas no baixo curso do rio Ituí. Ao longo da pesquisa de campo,
foram vários os contextos de reconhecimento de sua autoridade, conforme uma tarde de julho
de 2019, na Tankala Maë. No dia anterior àquela tarde, duas pessoas da Tankala Maë foram
levar peixes à Xikxuvo (cronotopo A, Vuku Maë). Seatvo (cronotopo pós-contato, Tankala
Maë) saíra para pescar durante a madrugada e subiu o rio para entregar o pescado. Algumas

102
Sobre as transações econômicas entre os Korubo e o órgão indigenista, ver o capítulo 5.
103
A primeira korubo a receber benefício do INSS foi uma criança, chamada Wanxunu: filha de Takvan Va
com Wio e, portanto, neta de Maya. Por ser portadora de necessidades especiais, Wanxunu reside em
Manaus/AM sob os cuidados da SESAI.
242
pessoas da Vuku Maë, dentre elas Maya, aproveitaram a carona para ir à Tankala Maë se
comunicar com Txitxopi (cronotopo A, Tankala Maë) via rádio: um dos filhos de Maya com
o falecido Pete, que estava trabalhando no “acampamento de contato” no rio Coari.

Txitxopi se machucou em uma caçada e, embora não fosse grave, Maya e Xikxuvo queriam
se comunicar com ele. Junto ao som da embarcação chegando na Tankala Maë, ouvimos
Xikxuvo cantar-chorar. Ele vinha em pé na embarcação, enquanto Maya, sentada, carregava
uma lança em suas mãos. Ao atracarem na Tankala Maë, eles foram para a casa de Txitxopi,
onde estava o rádio. Sentaram-se nos bancos de madeira para aguardar o horário da
comunicação radiofônica com o acampamento. Lëyu (cronotopo A, Tankala Maë), genro de
Maya, pegou o ralador de cipó, água, um prato piski e o cipó tatxik (Paullinia). Então,
preparou a bebida para a sua sogra, Maya, e Xikxuvo. Um grupo de mulheres saiu para coletar
macaxeira e cará para levar à Vuku Maë. Ao retornarem, fomos para a “escola” da Tankala
Maë, mas logo os Korubo dispersaram.

Ayax Punu (cronotopo C, Vuku Maë) chegou remando à Tankala Maë, avisando que ouvira
o som de queixadas próximo da Vuku Maë. Ele desceu o rio para avisar os caçadores da
Tankala Maë, que possuíam espingardas. Qualquer notícia sobre caça transforma o cotidiano
de uma aldeia korubo, sobretudo, se forem queixadas. Com entusiasmo, os homens da
Tankala Maë se manifestaram para convidar os caçadores da Tapalaya através do rádio.
Quanto mais pessoas, mais armas, mais munições, logo, mais carne também. Entretanto,
Maya imediatamente disse: “vama!” (“não!”). Afirmou que somente Wanka, seu genro,
casado com Manis, poderia caçar queixadas nas proximidades de sua aldeia. Argumentou que
as pessoas da Tapalaya pegaram queixadas anteriormente e não dividiram com outras aldeias.
Diante da negativa, os caçadores ficaram descontentes, cabisbaixos e entraram na maloca.
Lëyu voltou a aperfeiçoar a sua zarabatana. Levantou os olhos em minha direção, e disse:
“Maya é brava”. Maya é tita utsi (MZ) e natxi (WM) de Lëyu, pois ele é casado com uma de
suas filhas mais velhas, Waxmën (cronotopo A, Tankala Maë).

Na casa de Txitxopi, Maya e Xikxuvo conseguiram se comunicar via rádio e decidiram ir


embora. Um pouco antes de partirem, um funcionário da FUNAI chamou as pessoas da
Tankala Maë no rádio para conversar. O funcionário avisou os Korubo sobre uma “feira de

243
artesanato” que ocorreria em São Gabriel da Cachoeira/AM. Conforme as instruções, os
Korubo deveriam selecionar duas pessoas das aldeias no rio Ituí para participar da feira. Estas
deveriam ser portadoras de documentos de identificação pessoal e, no caso das mulheres, sem
filhos – o que excluía a grande maioria das mulheres korubo. Quando a comunicação
radiofônica terminou, Maya veio em minha direção e disse-me que queria viajar. Embora ela
dissesse aos brancos que não sabia falar português, ela compreendia muitas coisas da nossa
língua.

Maya argumentou que, em 1996, ela fez o contato com os brancos, não foi Xikxuvo, seu ex-
marido, nem Takvan (cronotopo A, Tapalaya), seu filho mais velho com o falecido Pete.
Maya reivindica o seu protagonismo no contato com os brancos, pois foi quem teve a
iniciativa de ir para as margens dos rios pedir ferramentas de metal. Concordei com ela e
esclareci que a viagem para São Gabriel da Cachoeira/AM é uma atividade proposta pelo
órgão indigenista, e não estava relacionada às viagens previstas no âmbito do Prodocult –
projeto vinculado ao Museu do Índio/FUNAI qual eu era pesquisadora-membro.

Com a distração desencadeada pelo tema da venda dos artefatos e das viagens, Maya aceitou
que os caçadores da Tankala Maë fossem atrás das queixadas nas proximidades de sua aldeia,
a Vuku Maë, sob a condição de que eles não convidariam as pessoas da Tapalaya para a
caçada. Foi o que aconteceu. Com exceção de Naylo, Pinu e a maioria dos filhos deste casal
(todos do cronotopo B, Tankala Maë), as pessoas da Tankala Maë rapidamente se arrumaram
para ir dormir na Vuku Maë. Embora fosse um dos filhos de Lalanvet (cronotopo B, Sentele
Maë) que, por sua vez, é a filha mais velha de Maya com o falecido Pete, Pinu não costumava
visitar a Vuku Maë. Naquela ocasião, Vali (cronotopo B, Tankala Maë), filho mais velho de
Pinu com Naylo, foi à caçada. Diferente de outros paxa, Vali aprendeu a usar espingardas e
carregaria a caça. Pinu, ao contrário, não sabia manusear armas de fogo e sempre caçava com
zarabatana.

Saímos da Tankala Maë por volta das 17h. No trajeto, os Korubo coletaram ovos de tracajá
e caçaram jacarés. Na embarcação, havia macaxeira e manivas para o plantio nas futuras roças
da Vuku Maë. Com um ar de satisfação e felicidade, naquele momento, Xikxuvo me disse
que eles (Korubo) eram vários e que eu (nawa) era somente uma – o que configurava o mundo

244
ideal para os Korubo. Em seguida, disse que eu deveria envelhecer morando com eles, pois
me considerava “mansa”. Ao chegarmos na Vuku Maë, me instalei em uma casa unifamiliar,
construída por Xikxuvo ao lado da maloca, chamada de “escola”. Os Korubo se instalaram
na maloca. Maya atou uma rede ao seu lado, e disse para eu me sentar. Falou-me que era
muito bom eu ter ido com eles para dormir em sua aldeia. Quando um dos jacarés foi cozido,
ela me serviu pequenos pedaços, esfriados semelhante ao modo como os Korubo alimentam
os seus animais de criação. 104

Na manhã do dia seguinte, por volta das 7h, homens, mulheres e crianças saíram atrás das
queixadas. As mulheres levaram facas para “tratar” a caça e transportá-la à maloca. 105 Waxmën
indicou que eu deveria permanecer na aldeia com “txitxi Maya”. Isto porque, além de Manis
ser filha de Maya matxo, a filha mais nova de Waxmën com Lëyu chama-se Maya Koluvo.
Maya matxo é mãe de Manis e, ao mesmo tempo, avó materna de Maya Koluvo. Tendo eu
recebido o nome “Manis”, dado pelos Korubo, cabia a mim chamar Maya matxo de tita (M)
ou txitxi (MM) em consonância com as minhas homônimas wënxëni e wëntxuka, conforme
o traço kariera presente na onomástica korubo.

A princípio, Maya, algumas mulheres jovens e crianças permaneceram na Vuku Maë. Então,
ela me convidou para sentar ao seu lado na rede de uma de suas netas. Ralou bananas verdes
e macaxeiras, e preparou mingaus para as crianças. Wio (cronotopo C, Tankala Maë)
cozinhou jacaré e macaxeira e trouxe uma grande porção à rede da “matxo”: termo que ela
usa para se referir a Maya. Após esfria-los, Maya me oferecia pequenos pedaços, e também
distribuía aos seus netos, chamando cada um pelo nome. Depois, mulheres e crianças foram

104
Os Korubo são atenciosos e cuidadosos com os animais de criação: alimentando-os, protegendo-os da chuva
e dos trovões, e levando-os para as caminhadas na floresta. Os animais de criação recebem nomes korubo ou
nomes de brancos e tornam-se parentes e homônimos, sendo enterrados em rituais fúnebres quando falecem,
algo que incide na onomástica. O ato inicial de alimentar os animais para cria-los é referido pelo termo wisma,
traduzido pelos Korubo como “amansar”. Wisma se refere também ao ato de assoprar. Antes de uma caçada aos
queixadas, alguns korubo assopram algodão na direção desses animais para evitar que eles corram para longe e,
ao mesmo tempo, atraí-los para perto. O sopro em direção às queixadas é chamado de “wismano tankuru”
(wisma-no-tankuru: sopro-POSP.-queixadas). Não é à toa a chateação dos Korubo com os brancos, quando
passamos longos períodos longe das aldeias, pois essa relação evidencia um quase fracasso do processo de criação:
mesmo recebendo comida, sendo criados, os brancos sempre “vão embora”.
105
Regionalmente, “tratar a caça” refere-se ao processo que antecede o uso do fogo: cortar, depenar, quebrar os
ossos, retirar o couro e a pele dos animais.
245
tomar banho juntas. Os banhos coletivos são momentos de conversações e risadas, mas
também de transmissão de conhecimentos das mais velhas às jovens.

Ao retornarem, elas observaram que Lonkon (cronotopo C, Tankala Maë), então gestante,
começara a produzir leite materno. Maya comentou que queria que o seu neto, filho de
Lonkon com Takvan Va, fosse um menino (papi). Não era a primeira vez que os adultos
paravam para observar o momento em que uma gestante começa a lactar. Todas as mulheres
se aproximam para verificar o leite materno (xuma). Para os Korubo, o leite materno possui
potência cicatrizante, sendo passado sobre lesões, e estimula o crescimento e o fortalecimento
corporal das crianças. Por isso, o leite materno é passado no corpo dos bebês durante os
banhos, ocasiões em que as mulheres modelam os corpos dos bebês através de torções que,
segundo os Korubo, fazem os músculos crescerem, tornando-os bonitos. 106

De volta à maloca, Maya começou a varrer o chão. Eu me deitei em uma rede. De olhos
fechados, escutava sua voz ao fundo, dizendo às crianças para brincarem em outro lugar e não
fazer barulho ali porque eu estava dormindo: “nukin nawa uxe në” (“nossa branca dorme
aqui”). Todas as vezes que os Korubo se referiam a mim falando entre si, utilizavam pronomes
possessivos, como min (2SG.) e nukin (1PL.): por exemplo, nukin Manis; nukin Juliana;
nukin nawa etc.

Ao acordar, Maya me ofereceu um pedaço de macaxeira, distribuiu outros pedaços para as


crianças e guardou o restante para levar à floresta. Só então eu soube que ela iria ao encontro
daqueles que saíram para caçar. Ela tomou banho novamente, me avisou que iria com Wio
(cronotopo C, Vuku Maë), casada com Xuxu Luasivo, atrás das queixadas e que eu
permaneceria na aldeia. Preparou e tomou tatxik sozinha, sentada em sua rede na maloca.
Vestiu uma calça legging preta e uma camisa vermelha. Pegou uma mochila preta e, antes de
sair da maloca, disse a Wio que me alimentasse.

Wio (cronotopo C, Vuku Maë) fez conforme o ordenado: me deu um pedaço de carne de
jacaré e a seguiu. Vestida com uma saia vermelha, Wio carregava em suas costas um cesto,
feito com folhas txiaxa, cheio de carne de jacaré e macaxeira cozida. Em seguida, Nuatvo

106
A modelagem corporal das crianças é uma prática constante em outros povos ameríndios que buscam a
rigidez muscular e o embelezamento (Pérez Gil 2003: 29; Costa 2017: 117).
246
(cronotopo C, Vuku Maë), também casada com Xuxu Luasivo, e Malu Xuma (cronotopo
pós-contato, Tankala Maë), casada com Txitxopi, também foram atrás das queixadas,
carregando os seus filhos nas costas. Permaneci na Vuku Maë acompanhada por Wio
(cronotopo pós-contato, Tankala Maë) e Lonkon (cronotopo C, Tankala Maë), esposas de
Takvan Va, que logo me chamaram para fazer pratos de palha piski, pois as mulheres
costumam esperar os homens retornarem de uma caçada promissora fazendo piski.

Imagem 21. Lonkon, ao lado de Wio, tecendo piski.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Era visível que Wio e Lonkon foram compelidas a permanecer na Vuku Maë para que os
Korubo não precisassem me levar na caçada e eu não permanecesse sozinha na aldeia.
Semanas antes, eles perderam um rastro de queixadas e não podiam perder outra
oportunidade. Eu só acompanharia uma caçada de queixadas meses depois. Enquanto teciam
piski, elas se comunicavam à distância com os demais que estavam na floresta. Retornamos
para a maloca, onde havia cará, macaxeira e ovos de tracajá. Era noite quando os Korubo
retornaram para a maloca: um por um, carregando os porcos, cabisbaixos, cansados e
famintos, com os pés machucados, sentindo dores no corpo, apressados em pegar as coisas e
seguir de volta para a Tankala Maë. Ao todo, os Korubo mataram seis porcos: três foram
mortos por Lëyu (cronotopo A, Tankala Maë), dois por Vunpa (cronotopo pós-contato,
247
Tankala Maë) e um por Seatvo (cronotopo pós-contato, Tankala Maë). Seatvo, um dos filhos
de Waxmën com Lëyu, trouxe um filhote de queixada que seria criado por sua mãe.

Waxmën (cronotopo A, Tankala Maë) também carregava um porco, pois Lëyu estava com
dores após a caçada e retornou praticamente carregado para a maloca. Wio (cronotopo pós-
contato, Tankala Maë), uma de suas filhas com Waxmën, lhe ofereceu duas dipironas, que
foram tomadas de uma só vez. Xikxuvo (cronotopo A, Vuku Maë) pôs um porco para
cozinhar logo que entrou na maloca, inclusive, o fígado e o coração, considerados partes
nobres dessa caça. Todos estavam famintos. Xuxu Luasivo (cronotopo C, Vuku Maë), por
sua vez, não quis transportar os porcos e permaneceu na floresta, fez um acampamento com
Maya e suas duas esposas, Wio e Nuatvo. A Vuku Maë permaneceu vazia naquela noite.

Malgrado a opulência de Maya, exibida em momentos como essa caçada de queixadas,


comumente ela sofria crises de dores por osteoartrose. Há anos, ela obteve esse diagnóstico
que se agrava em determinados períodos do ano. Os profissionais de saúde tentam esclarecer
para os Korubo que essas dores vão reaparecer de vez em quando. Todavia, durante as crises,
os Korubo ficam agitados. Em fevereiro de 2020, seus filhos e seu companheiro, Ixovo
(cronotopo C, Vuku Maë), levaram-na para a Base Ituí. Quatro dias após, Maya continuava
se queixando de sentir dores. Nas aldeias, os Korubo comentavam entre si sobre o estado de
saúde dela e queriam que a SESAI a removesse para tratamento em hospitais em
Tabatinga/AM. As queixas de Maya mobilizavam as quatro aldeias no rio Ituí, onde as pessoas
cantavam-choravam por ela, algumas saindo das aldeias para a Base com o objetivo de aspirar
a doença do corpo dela.

Os agentes estatais, por sua vez, desacreditavam parte das queixas de Maya, argumentando
que ela estava “influenciando os Korubo” para conseguir ir à cidade receber o benefício de
sua aposentadoria. No primeiro dia do mês de março daquele ano, Maya e Ixovo retornaram
à Base Ituí mais uma vez, onde ele trabalharia como “colaborador” do órgão indigenista. Até
então, Ixovo era o único homem paxa a trabalhar em atividades remuneradas pela FUNAI,
afinal ele é o companheiro da Maya. Ela, por sua vez, impôs aos brancos a sua vontade de ir
à cidade receber a sua aposentadoria, o que acabou acontecendo.

248

Das nomeações atribuídas pela FUNAI aos cronotopos após o pluricontato, a única que
coincide com uma referência primária e/ou atual para os Korubo é Maya. Termos como
“chefe”, “líder”, “matriarca”, ou mesmo, a expressão “la reina de los Korubo” foram utilizados
para se referir a ela (Arisi 2007: 21; Solis et al. 2013; Rodrigo Octavio 2015: 183). Com
frequência, quem ouve falar dos Korubo pela primeira vez, ouve falar dessa mulher. Com
cerca de 60 anos de idade, Maya é uma figura proeminente também para os agentes estatais:
“Os Korubo contatados em 1996 eram aparentemente liderados pela mulher mais velha entre
todos os integrantes, chamada Maya, uma verdadeira matriarca, de abordagens extrovertidas
e discurso firme.” (Vargas da Silva 2017: 76, grifos meus).

O destaque de Maya entre os Korubo relaciona-se como causa e/ou consequência de sua
atuação no primeiro evento de contato com os brancos. Não é possível afirmar que ela possuía
uma posição de chefia entre os Korubo antes das relações permanentes com o Estado
brasileiro. No entanto, de acordo com antigos coordenadores da FPE Vale do Javari, no
passado, um dos chefes korubo era um homem vinculado a Maya. Após o falecimento dessa
suposta chefia masculina e com a cisão e dispersão resultantes dos conflitos internos e externos
aos Korubo: “eles não falavam em chefe, mas a Maya sempre se posicionava como a líder. Ela
dizia que ela e o Xikxuvo, seu então esposo, eram os chefes. Depois do contato com outros
índios é que os Korubo tiveram ‘cacique’” (Idnilda Obando, comunicação oral).

Para os agentes estatais, Maya ocupou a posição de um chefe que faleceu antes das relações
permanentes com a FUNAI. Nesse novo cenário, ela teve um protagonismo que a colocou
em uma posição de liderança entre os Korubo no rio Ituí. Os próprios Korubo enfatizam o
protagonismo de Maya em aproximar-se dos brancos, inicialmente em busca de ferramentas
de metal, similar ao que ocorre entre outros povos ameríndios107:

Xikxuvo: [...] O rio passava longe de onde a gente ficava. Era no rio Itaquaí.
A gente não via branco. A gente morava longe. Um dia a Maya foi a beira do
rio e viu muito branco. A Maya pensou: “Não tem faca, panela, não tem onde

107
A busca por ferramentas de metal como mola propulsora para a aproximação dos ameríndios com os brancos
é central entre diversos povos. Em alguns casos, como os Wajãpi, reflete-se na mitologia. Conferir Gallois (1985;
1988).
249
colocar água... Vou buscar panela dos brancos”. Ela começou a pedir a um
barco no meio do rio.

Maya: Eu fui para buscar faca. Quando eu fui, os brancos mataram meu irmão
mais velho. Mataram também Kanikit Vakwë, Patxi e o Paxtu. Aí corremos
de volta para a aldeia [...] (Solis et al. 2013).

Atualmente, Maya aciona esse protagonismo para reivindicar acessos viabilizados pelo órgão
indigenista, como a participação em “feiras de artesanato”, “projetos” e “viagens”. Para os
Korubo, as viagens não são apenas passeios. Viajar relaciona-se a convivência com os brancos,
pessoas desse novo mundo que eles estão descobrindo e com quem estão estabelecendo outros
formatos relacionais. 108 Então, Maya destaca que foi ela, e não os homens korubo, que fizeram
o contato com os brancos. A iniciativa de Maya em contatar os brancos culminou em
conflitos e mortes. Conforme o capítulo 3, as mortes causadas por reações violentas dos
brancos às tentativas de aproximação dos Korubo geraram decessos populacionais e cisões
entre uma parentela que se atomizou. Uma dessas cisões ocorreu no final dos anos 1980 e
configurou o que, nos anos 2000, após os eventos 2 e 3, se tornou o cronotopo A.

A posição proeminente de Maya entre os Korubo no rio Ituí vincula-se ao protagonismo no


contato com os brancos. Nesse sentido, ela se diferencia das demais mulheres korubo. Ao
mesmo tempo, existem algumas semelhanças entre ela e os “caciques” korubo. Como a
maioria dos caciques, Maya também não fala português e necessita da tradução feita pelos
jovens. Uma das principais tradutoras nos diálogos entre ela e os brancos é Manis (cronotopo
pós-contato, Vuku Maë), sua filha mais nova com Xikxuvo (cronotopo A, Vuku Maë). Entre
os Korubo no rio Ituí, existem jovens mulheres, como Manis, detentoras de um
conhecimento razoável da língua portuguesa. No entanto, a maioria destas é casada e possui
filhos pequenos. Por serem mães e/ou não poderem sair das aldeias sem os seus maridos, estas
jovens não são recrutadas pelos brancos para participar de determinadas atividades que
viabilizam o acesso a viagens, dinheiro e mercadorias industrializadas.

108
Tal sentido dado pelos Korubo às viagens aproxima-se ao que ocorre entre os Wari’, falantes de língua
Txapakura. Quando os Wari’ falam de suas idas às cidades, descrevem a comida industrializada que
compartilharam e o convívio nas casas dos brancos. Nesses termos, as viagens para as cidades são “percursos
corporais”, experiências vividas com o corpo e a partir do corpo (Vilaça 2000: 68).
250
Apesar de Maya e essas jovens mulheres não serem recrutadas para participar de atividades,
Maya possui documentos de identificação pessoal e acessa dinheiro. Em 2019, ela era a única
mulher korubo que recebia o benefício da aposentaria por idade junto ao INSS. A partir de
então, outras mulheres korubo demandavam para o órgão indigenista viabilizar o acesso a
benefícios, como o auxílio maternidade. No entanto, até 2020, elas não acessavam essa fonte
de renda.

Maya, enquanto mulher xëni do cronotopo A, se diferencia das demais mulheres por ter
protagonizado o contato com os brancos e por acessar determinados recursos e
conhecimentos do mundo dos brancos que as outras mulheres não acessam. Ao mesmo
tempo, os homens eleitos como “caciques” se diferenciam de Maya por serem recrutados com
frequência para os trabalhos remunerados da FUNAI e outras atividades, como as “feiras de
artesanato” e os “projetos”. Após o pluricontato, Maya e os caciques se diferenciam dos
demais (Silva 2021b).

Contudo, na medida em que os caciques não possuem a autoridade para mobilizar os Korubo
em atividades coletivas dentro e fora das aldeias, Maya possui certo poder sobre as pessoas de
distintos cronotopos no rio Ituí, inclusive, decidindo sobre tarefas majoritariamente
masculinas, como as caçadas. Maya possui influência e autoridade no cotidiano das aldeias
korubo não apenas entre as mulheres, mas também entre os homens. Vejamos então os
vínculos de parentesco entre Maya e os homens nomeados como “caciques”:

251
Vinan Manis

Pete Maya Txukuma Malu Makwëx Maluxin

Takvan Waxmën Txitxopi Omon Malevo Lëyu


(Mavën)

Diagrama 8. Maya e os caciques.

Maya é tita (M) de Takvan, Waxmën, Txitxopi e Omon, o que a torna, ao mesmo tempo, a
tita utsi (MZ) e a natxi (WM) de Lëyu e Malevo, casados com Waxmën e Omon, neste caso,
suas irmãs classificatórias. 109 Entre os Korubo, a relação com a sogra (natxi) é estrita. Exceto
em contextos rituais, não deve-se brincar com a natxi, configurando relações de autoridade e
respeito entre os caciques e a Maya. Maya é quem possui mais filhos e genros entre os Korubo
no rio Ituí: uma característica da chefia entre diversos povos das terras baixas da América do
Sul (Lévi-Strauss 1944; Clastres 1974). Nesse caso, falar em “família dos caciques” é falar da
“família da Maya”, ou seja, todos os acessos proporcionados pelos brancos favorecem os xëni
do cronotopo A. Ao mesmo tempo, Maya possui influência e autoridade sobre os caciques,
incidindo direta e indiretamente nos diálogos interétnicos.

As matxo

109
Os diagramas dessa seção não exibem todos os vínculos de parentesco, apenas as relações especificadas nas
legendas. Registro ainda a atualização dos matrimônios. No capítulo 3, o diagrama do cronotopo A mostrou o
casamento entre Omon e Tsamavo (também chamado de Kuinin): uma configuração existente durante o
primeiro evento de contato com a FUNAI em 1996. Em 2019-20, Omon havia se separado de Tsamavo e
tornara-se a primeira esposa de Malevo. Ambos, irmãos classificatórios dela.
252
Se, para os caciques, Maya é mãe e sogra. Para os Korubo, ela não é usualmente referida como
“chefe”, “cacique” ou “matriarca”. O termo utilizado pelos Korubo para se referir a Maya é
matxo. Na língua korubo, este termo refere-se às mulheres mais velhas. No rio Ituí, há um
conjunto de mulheres korubo chamadas dessa maneira. Matxo também é utilizado para
sublinhar a distinção entre homônimas de gerações distintas. Em geral, os Korubo distinguem
uma txampi (menina) ou matses (mulher) de sua homônima, mulher mais velha: por exemplo,
Wio e Wio matxo, quando referido pelos demais. No tratamento entre elas, utilizam os termos
wënxëni (homônima mais velha) e wëntxuka (homônima mais nova).

O termo matxo é acionado para situar alguém em uma categoria de mulheres korubo. As
mulheres que, ao longo de um processo, alcançam essa posição passam a ser referidas pelo
termo de parentesco ou nome próprio acrescido do termo matxo, como “Maya matxo”, “tita
matxo” e “txitxi matxo” (tita: M; txitxi: MM). Os termos de parentesco para “mãe” e “avó”
materna somam-se à posição de matxo. Até 2020, além de Maya, existiam pelo menos cinco
matxo entre os Korubo no rio Ituí: Waxmën, Luni, Maluxin, Lalanvet e Muna. 110

Vinan Manis

Pete Maya Txukuma Malu Makwëx Maluxin Maluxin

Lalanvet Takvan Waxmën Txitxopi Omon Malevo Muna Luni Lëyu


(Mavën)

Diagrama 9. As matxo e os caciques.

110
Wio (cronotopo C, Vuku Maë), primeira esposa de Xuxu Luasivo, é uma exceção e, portanto, não consta na
lista acima. Ela era referida pelos Korubo como matxo apenas em relação à sua homônima mais nova, Wio
(cronotopo pós-contato, Tankala Maë), primeira esposa de Takvan Va.
253
Maya, matxo xëni, possui então vínculos de parentesco com os caciques e as outras matxo.
Três dos quatro caciques (todos xëni do cronotopo A) são casados com matxo. O único
cacique que não é casado com uma matxo é Malevo. Entretanto, em 2019-20, apesar de
Omon não ser uma matxo, ela possuía uma influência central na Sentele Maë, possivelmente
por ser uma das filhas da Maya. Conforme alguns agentes estatais dizem, todas as filhas da
Maya possuem uma “postura de liderança”. Apesar disso, no cotidiano das aldeias, homens
brancos buscavam dialogar majoritariamente com os jovens do cronotopo pós-contato,
falantes de língua portuguesa, e com os “caciques”. 111

Das cinco matxo, três são xëni do cronotopo A: Waxmën, Luni e Muna. Lalanvet e Maluxin
são paxa dos cronotopos B e C, respectivamente. Apesar de algumas matxo serem esposas dos
caciques korubo, elas não são chamadas de “líderes mulheres”, conforme o que ocorre entre
os Kaxinawá (McCallum 2001: 111). Contudo, elas têm autoridade e influência sobre a
socialidade korubo semelhante às “líderes mulheres” casadas com os homens kaxinawá. A
autoridade das matxo se manifesta nas tarefas diárias e reuniões nas aldeias, seja na presença
ou ausência dos caciques. A idade estimada das matxo varia entre 38 e 60 anos. Dentre elas,
somente uma não possui netos. Duas delas têm filhos pequenos, respectivamente, com três e
um ano de idade.

111
Os agentes estatais desempenham o apagamento ou destaque de determinadas figuras. No caso dos Zo’é, os
agentes estatais influenciavam os jornalistas, que acabavam tendo dificuldades para enxergar a liderança dos mais
jovens (Gallois 2015: 287). No caso korubo, ao contrário, os jovens são evidenciados em detrimento das matxo.
254
Imagem 22. Muna matxo cuidando de criança.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Dentre elas, Maya é a matxo por excelência por ser a mais velha de todas as mulheres korubo
e, ao mesmo tempo, aquela que promoveu o primeiro evento de contato com os brancos. O
protagonismo na abordagem dos brancos, que culminou na expedição de contato realizada
em 1996, somou-se à posição de matxo, criando um diferencial entre Maya, as demais matxo
e as matses (mulheres mais jovens). Maya distingue-se das matxo, enquanto as matxo
diferenciam-se das matses.

Por um lado, a distinção das matxo em relação às matses provém da destreza na execução de
tarefas. Na relação entre matxo e matses, as matxo ocupam a posição de mestres-especialistas
na produção dos artefatos e concentram determinados conhecimentos da produção artefatual
que as matses não dominam, como a produção das cerâmicas e dos cestos. Os decessos
populacionais entre os Korubo, ocorridos antes do pluricontato, resultaram na concentração
de determinados conhecimentos entre algumas matxo. Embora nem todas as matxo produzam
cerâmicas, as mulheres korubo que produzem esses artefatos são matxo. Por outro lado, a
distinção e senioridade das matxo se expressa na não-execução de tarefas femininas, como
cozinhar e, ao mesmo tempo, na execução de algumas tarefas que seriam consideradas

255
masculinas, como coletar lenha e água. Embora as matxo possam cozinhar, costumeiramente
outras mulheres, sobretudo, as segundas esposas ou jovens rapazes cozinham para elas.

Imagem 23. Waxmën matxo tecendo rede de tucum.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Imagem 24. Lalanvet matxo tecendo braçadeira witsun.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

256
Diferente das matses, as matxo “tomam o cipó tatxik” (Paullinia), acompanhadas ou não pelos
homens. 112 Entre os Korubo, essa bebida é ingerida pelas matxo e pelos caçadores, seja homens
xëni e paxa, ou ainda, os rapazes do cronotopo pós-contato. Pessoas de ambos os gêneros
podem tomar o cipó sozinhas ou em grupos. Os homens costumam tomá-lo sentados em
bancos tsatte posicionados em círculos no centro da maloca, ou ainda, na lateral esquerda das
casas unifamiliares. As matxo, geralmente, tomam sentadas em suas redes nas laterais da
maloca ou das casas unifamiliares. A primeira toma do cipó ocorre por volta das três horas da
madrugada – horário que os Korubo acordam –, e repete-se ao longo do dia.

A bebida é consumida antes e depois das caçadas, e nas rodas de conversa. 113 Muitas vezes, os
homens preparam a bebida e servem as matxo, embora elas mesmas possam prepara-la. A
mesma maneira de preparar e tomar a bebida é utilizada por ambos os gêneros. A casca do
cipó é raspada com faca. As raspas são umedecidas em água e espremidas dentro de um
recipiente. Retira-se o sumo, espremendo-o, e bebe-se o líquido. Quem prepara a bebida
costuma servi-la aos demais e ingerir em seguida.

Vakwëvo (crianças) e matses (mulheres) não tomam tatxik. Esse cipó é também interdito às
matxo durante a menstruação. Entre os Korubo, a menstruação e a reclusão menstrual são
referidas pelo termo tsat vule (tsat: sentar), ou seja, o permanecer sentada durante o
sangramento, similar ao termo tsadquid da língua matsés (Matos 2014: 76). Uma rede de
cuidados é acionada pelas mulheres para oferecer alimentos, dar instruções e fazer companhia
à reclusa, a fim de que esta não circule pela aldeia. Tsat vule é, portanto, um período de
interdição à toma de tatxik pelas matxo.

Tal proibição pode ser compreendida a partir da sapidologia entre povos Pano e da
hematologia amazônica (Erikson 1999; Belaunde 2006). Os Korubo argumentam que, caso
as matses tomem tatxik, ficarão com o corpo “muito amargo” (tximu rapa; tximu: amargo,

112
O termo tatxik refere-se ao cipó e à bebida. Essa espécie é utilizada por outros povos, como os Matis do Vale
do Javari e os Airo-Pai do Putumayo (Erikson 1996; Bolívar e Echeverri 2004).
113
O tatxik é utilizado em rituais e xamanismo. Neste capítulo, me atenho à ingestão dessa bebida pelas matxo
enquanto prática que as diferencia das matses.
257
venenoso, coloração escura; rapa: INT.), e isso “não é bom” (vëyla pimen; vëyla: bom, bonito;
pimen: NEG.). Diferentemente, quando não estão menstruadas, as matxo tomam o cipó em
quantidades controladas e isso faz bem para o corpo delas, conforme os Korubo dizem. Eles
enfatizam que é no corpo dos homens que o tatxik manifesta a sua principal função: a
potência caçadora. Caso não tomem o tatxik, os homens não conseguem caçar, e traduzem
essa incapacidade como “ficar panema”. 114 O tatxik, enquanto substância amarga, se
contrapõe a substâncias doces (vata), como algumas frutas.

Imagem 25. O cipó tatxik e o ralador.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

O ralador utilizado para a preparação da bebida tatxik é de uso exclusivo, não podendo ser
utilizado no preparo de substâncias doces, e vice-versa. O ralador, chamado de luxëta (-xëta:
dente), feito com dentes de macaco barrigudo (kolokit xëta), é similar tanto para o uso de
tatxik, quanto para o preparo dos mingaus e bebidas. Contudo, o uso dos raladores jamais é
subvertido pelos Korubo, ou seja, raladores de tatxik ralam apenas o tatxik, enquanto os
raladores de mingaus e bebidas ralam apenas os produtos da roça. Em diversas regiões da

114
Para uma discussão sobre a panemice como parte da lógica das qualidades sensíveis, sobretudo, olfativas,
conferir Braga (2021).
258
Amazônia, as substâncias doces e salgadas são contrapostas ao curare (nakunte), substância
amarga por excelência. O amargo carrega a potência caçadora e o poder de matar (Erikson
1996: 205). Essas substâncias são centrais à fabricação corporal, pois corpos fortes e ideais são
feitos, continuamente, a partir do uso de determinadas substâncias. No caso dos povos Pano,
a regulação de substâncias doces e amargas conferem determinadas qualidades sociais e éticas
ao corpo.

Entre os Korubo, o tatxik é utilizado para este fim. A potência do amargo pode ser afetada
não apenas por substâncias doces, mas também pelo sangue. Sabemos que o sangue de
homens e mulheres abriga uma potência que precisa ser administrada e controlada por meio
de dietas e reclusões. Por um lado, o sangue pode ser uma troca de pele que produz fertilidade
e renovação e, por outro, pode produzir um efeito de visibilização das pessoas ao ataque de
seres extrassociais, promovendo uma diluição das fronteiras entre planos através do olfato
(Belaunde 2006: 210). Portanto, não é de se estranhar que a regulação dessas duas substâncias
– o amargo do tatxik e o sangue menstrual das mulheres – seja objeto da atenção dos Korubo.

As mulheres menstruadas não tomam o cipó, nem mesmo as matxo. Estas adequam o ciclo
reprodutivo à ingestão da substância amarga, ou seja, elas não tomam o cipó quando estão
menstruadas. Afinal, conforme dizem, o tatxik é bom para os corpos dos caçadores e, em certa
medida, para os corpos das matxo. 115 As matxo são mulheres mais velhas que, estando ou não
férteis, possuem uma posição de senioridade entre os Korubo. O tratamento destinado a elas
difere daquele destinado às matses. As matxo são uma categoria dentre o conjunto de mulheres
korubo. Para o caso dos Matis, Erikson (1999: 120) definiu as macho como mulheres na
“menopausa”. Segundo essa definição, as macho são mulheres que têm um “status quase
masculino”. Por isso, realizam “transgressões legítimas”, como comer alimentos interditos às

115
No meu caso, ser chamada de matxo não me viabilizou tomar cipó tatxik, exceto quando a equipe do
ProDocult esteve na Vuku Maë em setembro de 2019. No cotidiano das aldeias, permaneci no limiar entre ser
menina (txampi) e mulher mais velha (matxo). Com frequência, os Korubo me chamavam de “Manis” ou
“txampi”. O lugar da txampi é o do aprendizado e da criação: aquela que ainda não tem filhos, não é mulher
adulta e depende dos adultos, inclusive, para se alimentar. O lugar da matxo era atribuído a mim nos momentos
em que eu estava exercendo a função de “professora”, ou seja, quando eu ensinava algo do mundo dos brancos
aos Korubo, ou ainda, quando as minhas limitações físicas vinham à tona, sobretudo, nas caminhadas pela
floresta. Ao questioná-los se mulheres tomam o cipó, os Korubo dizem que não seria bom se as matses tivessem
corpos amargos, portanto, eu também não deveria ter. Tais posições (txampi e matxo) podem ser pensadas como
“espaços às margens”, conforme a reflexão de Bruna Franchetto (1996: 36-8) acerca da ambiguidade do lugar
da pesquisadora em campo.
259
mulheres não menopausadas; sentar no centro da maloca, espaço reservado aos homens;
receber golpes para a injeção de sho, força oculta e amarga, fonte de poder.

Entre os Korubo, a interrupção do sangue menstrual não é o que as define enquanto matxo.
Conforme mencionei, há matxo que amamentam, têm filhos pequenos e são férteis. Tais
evidências afastam a matxo korubo da concepção de infertilidade subjacente à ideia de
“menopausa”. Esta ideia abriga certa fixidez: uma espécie de marco entre o período de
fertilidade (sangramento) e o período de infertilidade (ausência de sangramento). No caso
das matxo korubo, a ideia de manejo dos fluidos corporais torna-se profícua, pois viabiliza
compreender o processo que antecede e acompanha o que chamamos de “menopausa”.

As matxo korubo relacionam-se com a idade para além da conotação biológica, uma posição
relacional de acúmulo de conhecimentos. 116 Trata-se de mulheres com destreza e habilidades
otimizadas, evidenciadas nas tarefas cotidianas, nas caminhadas pela floresta, na caça e coleta
e no tratamento destinado aos demais, em especial às crianças. A falta de força ou debilidade
física que associaríamos à noção ocidental de velhice traria limitações para pensarmos as matxo
korubo. Por isso, a conotação de idade a ser considerada aqui não pode ser apenas biológica.

As matxo são mais velhas que as outras mulheres korubo, mas são também grandes, gordas e
detentoras de força: carregam cestos pesados, crianças e porcos. Evidentemente, o corpo das
matxo passa por transformações. Maya, por exemplo, tem crises de dores em determinados
momentos por causa de osteoartrose. No entanto, quando não sente dores, ela desempenha
todas as tarefas, como as demais matxo.

Nas caminhadas pela floresta, as matxo são aquelas que sabem fazer uma “boa caminhada”
pela floresta, o bom sentido de “andar no mato”, chamado de “kapoe vëyla”. 117 Escolher um
bom caminho é escolher o melhor atalho, o melhor local para passar: sem espinhos, argila ou
insetos. Mas uma boa caminhada é também otimizar a coleta e a caça, ou seja, aproveitar a

116
Não discutirei a posição dos homens mais velhos (tsusivo ou darasibo). Até 2020, havia três homens
considerados pelos Korubo como os mais velhos: Pëxken, Xikxuvo e Tsamavo (Kuinin). O que interessa para
os propósitos dessa discussão é que os tsusivo e darasibo não têm a mesma proeminência das matxo entre os
Korubo no rio Ituí.
117
Kapoe refere-se às caminhadas na floresta para caçar, coletar, pescar ou acampar. Essa prática constitui o
modo de vida dos Pano setentrionais, como os Matis e os Matsés (kapuek, capuec) (Erikson 1996; Matos 2014).
Para mais detalhes sobre o conceito de kapoe, ver o capítulo 6.
260
caminhada para extrair o máximo possível de matérias-primas à fabricação dos artefatos e à
alimentação. As matses sabem caminhar na floresta e também acompanham os homens nas
caçadas e coletas. No entanto, a madurez das matxo se evidencia na força e destreza com que
desempenham todas as tarefas cotidianas.

Além de serem mestres, as matxo são especialistas na criação e no cuidado, pois em geral,
possuem filhos, netos e casaram-se mais de uma vez. O cuidado das matxo abrange desde os
mais velhos às crianças. Elas cortam os cabelos de todos os Korubo e são as favoritas das
crianças. Com frequência, as matxo estão rodeadas por crianças, pois recebem seus netos, que
residem em outras aldeias e são levados por suas mães para passar um período com as suas
avós.

Ao mesmo tempo, as matxo, especialmente Maya, são figuras de autoridade diante dos mais
jovens. Para uma criança arredia, as mães ameaçam chamar uma “matxo”. Entre os adultos,
isso se manifesta como uma brincadeira, semelhante ao pokes. 118 Para as crianças, chamar uma
matxo é algo sério, pois elas se acalmam e se escondem da iminente aproximação da matxo,
sobretudo, quando é a Maya. A matxo ameaça com pedaços de lenha em brasa ou dá leves
palmadas nas mãos, pés e pernas. Exceto com pokes, homens e mulheres mais jovens não
costumam bater nas crianças, apenas as repreendem verbalmente.

Para compreendermos a Maya e a posição das matxo, é necessário afastar concepções


biologizantes em torno do fluxo sanguíneo e da velhice. Ao longo de um processo, as matses
tornam-se matxo. Alcançar essa posição, reconhecida por todos os Korubo, subtende um
acúmulo de conhecimentos ao longo da vida. Portanto, somente após ter criado muitas
pessoas, caminhado, coletado, caçado e trabalhado, uma mulher korubo adquire a destreza e
o conhecimento que a caracterizam como uma matxo. Então, ela recebe dos demais korubo
um tratamento específico.

Não se trata aqui de contestar a distinção entre homens e mulheres korubo, e sim escapar de
uma oposição dicotômica entre os gêneros. A crítica à oposição feminino-masculino e suas

118
Pokes são as folhas do cubiu (Solanum sessiliflorum), utilizadas pelos Korubo para golpear os corpos das
crianças. O pokes tem função pedagógica, auxilia na fabricação e crescimento corporal, pois retira a preguiça e
fortalece os corpos, conforme discuti no capítulo 2.
261
variantes, como natureza-cultura e privado-público, foi feita ao longo dos anos 1980-90,
quando as etnografias realizadas nas terras baixas da América do Sul e Melanésia mostraram
que a transposição dessas dicotomias era infértil para a reflexão dos contextos não-ocidentais
(Hugh-Jones 1979; Overing Kaplan 1986; Strathern 1988; Gow 1989; McCallum 1989;
Belaunde 1992; Hugh-Jones 2001).

A oposição masculino-feminino nos impediria de refletir sobre a Maya enquanto referência


para os Korubo para além da sua atual posição de matxo. Recordemos que Maya nem sempre
foi uma matxo. Com o primeiro evento de contato, em 1996, ela tornou-se xëni e, ao longo
do tempo, também matxo. Antes de sê-lo, ela já aparecia como uma referência entre o que se
tornou o cronotopo A, com o poder de aglutinar pessoas em torno dela e engajá-las em seu
objetivo: fazer contatos com os brancos para obter ferramentas de metal. Com o passar do
tempo, Maya tornou-se uma xëni matxo, influente nas aldeias do rio Ituí, constituindo hoje
a principal referência dessa categoria de mulheres korubo e um elo de parentesco entre os
distintos cronotopos.

4.2. Arranjos cronotópicos

Em 2019, os cronotopos A, B e C, constituídos por múltiplos grupos familiares, estavam


misturados nas quatro aldeias no baixo curso do rio Ituí, configurando a coexistência de
tempos e mundos mencionada no capítulo 3. Na medida em que novos eventos de contato
foram feitos, uniões matrimoniais foram definidas e redefinidas para abrigar o contingente
populacional “recém-contatado” pelo órgão indigenista. Após os eventos 2, 3, 4 e 5, os recém-
contatados foram residir junto à parcela contatada no evento 1, no rio Ituí. Nos eventos de
contato, os Korubo chamavam os recém-contatados por termos de afinidade, abrindo
possibilidades matrimoniais que, então, transformam afins sem afinidade em afins efetivos e,
eventualmente, em consanguíneos. Os casamentos evidenciam a reunião das parcelas korubo
contatadas pelo órgão indigenista que tornaram-se cronotopos no rio Ituí e, portanto, os
casamentos são um dos meios privilegiados para verificar como as parcelas da população

262
korubo passaram a co-residir no rio Ituí, tornando-se cronotopos e evidenciando uma
estratégia política dos Korubo.

A seguir, apresento a compilação de dados coletados a respeito dos termos de referência das
terminologias masculina e feminina de parentesco korubo. Ambas contêm o que identifico
como prováveis erros devido às limitações do uso de métodos convencionais de coleta de
dados terminológicos junto aos Korubo (por exemplo, como em Barnard e Good 1984), e
também por interrupção na pesquisa de campo que me impediram de retornar para checar
dados nas aldeias. No entanto, apesar de saber que tais dados apresentam lacunas a serem
preenchidas e corrigidas em futuras pesquisas, e considerando-se também o fato de a
terminologia de parentesco não ser o foco da minha análise, escolho apresentar essa
compilação adiante, indicando os pontos que configuram o que identifico como possíveis
erros. Não havendo outra fonte bibliográfica expondo esse tipo de informação sobre os
Korubo, opto por apresentar as terminologias aqui da maneira que os compreendi em campo
por se tratar de uma primeira ocasião para expor dados referentes ao parentesco korubo.

263
txailo txitxi txailo txitxi
Diagrama 10. Terminologia de parentesco (ego masculino).

mama utsi mama tita


(ënva) txaya (amë) (nini) kuku tita utsi
264

> vutxi > txutxu > lawës > vutxi > txutxu > lawës > vutxi > txutxu
< masko < txivi < kaniwa xanu < masko awin < txivi < kaniwa xanu < masko < txivi

piak piak papi txampi piak piak

kaniwa
kaniwa kaniwa
kaniwa kaniwa
kaniwa kaniwa
kaniwa vava vava vava vava kaniwa
kaniwa kaniwa
kaniwa kaniwa
kaniwa kaniwa
kaniwa
txailo txitxi txailo txitxi
Diagrama 11. Terminologia de parentesco (ego feminino).

miuka mama tita


(mama utsi)
utsi) txaya (amë) (nini) kuku tita utsi
265

> vutxi > txutxu > vutxi > txutxu > vutxi > txutxu
< masko vëntolo tsavë vënë vëntolo tsavë
< txivi < masko < txivi < masko < txivi

piak
piak piak papi txampi (miuka)
(miuka) piak

vava vava vava vava vava vava vava vava vava vava vava vava
No caso da terminologia masculina, as gerações ascendentes revelam uma estrutura
classicamente dravidiana: em G+2 não há distinção entre lineares e colaterais, tampouco
cruzamento, havendo apenas a distinção por sexo; em G+1 a terminologia exibe um padrão
de cruzamento característica de uma terminologia do tipo dravidiana (ou iroquesa, ou de
duas linhas). Em G0, a característica mais peculiar (mas não necessariamente desviante do
dravidiano clássico ou do que Viveiros de Castro (1998) chamou de “Amazônico normal”) é
a distinção de idade relativa para quase todas as posições genealógicas. Nesta geração, os
germanos de ambos os sexos e primos paralelos de ambos os sexos recebem a mesma distinção:

♂: > vutxi e < masko; ♀: > txutxu e < txivi. Tais termos são consistentes nas terminologias
masculina e feminina, ou seja, um ego masculino ou feminino chama um germano ou primo
paralelo pelo mesmo termo.

Para os primos cruzados bilaterais masculinos, um ego masculino distingue idade relativa: ♂:
> lawës e < kaniwa. 119 Para a prima cruzada bilateral, há um único termo: xanu. A única outra
posição na grade genealógica em G0 para a qual há um único termo é “esposa” (awin). 120 Em
G-1, verificam-se também algumas singularidades que violam o caráter dravidiano da
terminologia: os termos lineares, papi (S) e txampi (D), são diferentes dos termos para todos
os parentes colaterais. Até aí a terminologia korubo se assemelha a outras terminologias Pano
setentrionais, como a dos Matis, que também distinguem lineares de colaterais pelo uso de
termos restritos a essas posições genealógicas.

No entanto, ao contrário de outras terminologias Pano setentrionais, os dados coletados a


respeito da terminologia korubo operam uma havaianização de todos os colaterais, apagando
até diferenças de sexo, chamando todos os parentes colaterais em G-1 de piak. A rigor, esse
apagamento da distinção entre cruzados e paralelos (afins e consanguíneos) em G-1 anularia

119
Os termos dawës e kaniwa, na terminologia matis, referem-se a primos cruzados novos e velhos. O termo
dawës pode ser intercambiado estruturalmente por chairo (grande primo cruzado, MF), pois ambos contribuem
à formação pedagógica dos meninos, algo que marca o pertencimento à categoria dos primos cruzados (Erikson
1996: 120-1). Uma das diferenças em relação a outras terminologias Pano é que, no caso dos Matis, por
exemplo, há termos específicos para diferenciar os avós maternos (chairo e chichi) dos avós paternos (buchi e
shanon), enquanto os Korubo apresentaram apenas os termos txitxi e txailo para avós maternos e paternos.
120
Neste caso, os Korubo podem ou não adicionar um qualificador (epapa: um, uma; lavëtpa: dois, duas) para
evidenciar que trata-se de “primeira” ou “segunda esposa”, conforme traduzem. Todavia, não obtive dados a
respeito da existência de um termo de referência para distinguir “esposa mais velha” de “esposa mais nova” que
pudesse constar no diagrama acima.
266
a regra de casamento de primos cruzados (pois o cruzamento tem que persistir nas três
gerações centrais para que a regra possa operar sem desvios), substituindo-a por uma distinção
forte e absoluta entre parentes lineares (distinguidos por sexo) e colaterais (sem distinção de
sexo). Não obstante, não tenho dúvida de que há uma regra de casamento com a prima
cruzada, ou seja, de que um ego masculino deve casar-se com alguém que ele chama de xanu.
Outras terminologias Pano setentrionais, como a dos Matis e Matsés, mantêm a distinção
cruzados/paralelos em G-1, atestando, assim, na estrutura das terminologias, o casamento
entre primos cruzados bilaterais (ver Erikson 1996: 114-5; Matos 2014: 47-8). É possível que
o caso korubo apresente um erro e seria necessário realizar mais pesquisa de campo para checar
esses dados e preencher as lacunas. É possível, também, que existam termos adicionais,
contextuais, que separam piak cruzados de piak paralelos, ou mesmo, piak homens (cruzados
ou paralelos) de piak mulheres (cruzadas ou paralelas). 121

Por fim, na terminologia masculina dos Korubo, a distinção entre lineares e colaterais operada
em G-1 é repetida em G-2. No entanto, nesta geração, a distinção dos parentes lineares por
sexo desaparece: todos os descendentes lineares de G-2 (SCh ou DCh) são vava, e todos os
descendentes colaterais de G-2 são kaniwa. Na terminologia dos Matis, kaniwa é o termo
utilizado para se referir não apenas ao cunhado mais jovem que ego, mas também equivale
estruturalmente a determinadas posições em G-2: ZSS, ZSD, BDS, BDD na terminologia
masculina; ZSS e BDS na terminologia feminina. No caso da terminologia Matsés, kaniwa
aparece somente na terminologia masculina sendo utilizado para se referir ao cunhado mais
jovem que ego masculino e equivalente ao BDS, DS e ZSS em G-2. Desse modo, kaniwa
adquire conotações de junioridade, cruzamento e alternância de gerações, algo expresso na
etimologia do termo (kani: crescer; –w: tornar-se) (Erikson 1996: 125). No caso korubo, este
é o termo que ego masculino usa para o seu primo cruzado genealógico mais novo e para o
seu afim simétrico (ZH e WB), caso esse seja mais novo do que ele, além de ser o termo para
descendentes colaterais em G-2. Portanto, tudo indica que em G-2 temos não só uma

121
Na terminologia masculina dos Matis, o termo piak designa pessoas da categoria do tio materno e do sobrinho
uterino, quando são mais jovens que ego, e aplicados a mulheres, parentes mais jovens da mesma categoria,
criando uma distinção genealógica (yMB / yZS). Só as mulheres que não são da geração da mãe podem ser piak,
em G+1 todas as primas cruzadas dos pais são tita (M) independente da idade (Erikson 1996: 122-7).
267
distinção entre linear e colateral, mas também alguma associação entre colateralidade e
cruzamento/afinidade. É necessário mais estudos para entender as implicações disso.

Verifica-se que a terminologia feminina korubo é idêntica à masculina em G+2 e G+1. Em


G0, a estrutura da terminologia difere um pouco da de ego masculino. Para germanos e
primos paralelos, nota-se a mesma estrutura em que a idade relativa a ego determina termos
diferentes. No caso dos primos cruzados, não há distinção de idade em contraste com a
terminologia masculina que distingue os primos cruzados de mesmo sexo por idade relativa
a ego. Na terminologia feminina, há um único termo para o primo cruzado bilateral
independente de idade (vëntolo) e um único termo para a prima cruzada bilateral
independente de idade (tsavë). Há ainda um termo para o “marido” (vënë), assim como a
terminologia masculina tem um termo para a “esposa” (awin).

Em G-1, a terminologia feminina repete a estrutura da terminologia masculina e, ainda mais,


replica todos os termos que se aplicam às mesmas posições genealógicas. A única exceção
parcial é o BS, que pode ser chamado de piak, como os demais colaterais de G-1, ou ainda,
de miuka: termo usado para designar o FB, padrão também presente entre os Matis. 122 Em
G-2, em contraste com a terminologia masculina que tem um termo para os descendentes
lineares e outro para os descendentes colaterais, a terminologia feminina reconhece um único
termo: vava. Se, na terminologia masculina, vava designa os descendentes lineares de G-2, na
terminologia feminina, designa todos os descendentes de G-2, algo que se assemelha ao que
ocorre entre os Matsés. Nas terminologias matsés, baba é estruturalmente intercambiável com
os termos para o primo e a prima cruzada: mëntado (ZSS, SS e BDS) e tsabë (ZSD, SD e
BDD) na terminologia feminina; caniua (BDS, DS e ZSS) e shanu (BDD, DD e ZSD) na
terminologia masculina (Matos 2014: 47-8).

Desse modo, observo com estranhamento o seguinte aspecto nos dados das terminologias
korubo que coletei. Em G0, G+1 e G+2, as terminologias masculina e feminina apresentam
estrutura classicamente dravidiana, observando o princípio de idade relativa em algumas
posições em G0, algo que não desvia muito do dravidianato amazônico. Entretanto, nas

122
Nas terminologias matis, termos, como amioka (terminologia feminina) e bakwë (terminologia masculina)
também reagrupam membros de gerações alternas, não sendo decompostos em função de idade relativa,
correspondentes à categoria de “pai” (F) (Erikson 1996: 126).
268
gerações descendentes parece haver uma mudança de lógica ou, pelo menos, é o que os dados
coletados indicam, dados estes que podem apresentar erros ou lacunas, conforme mencionei.
Portanto, se em G0, G+1 e G+2, a lógica é entre cruzados e paralelos, nas gerações
descendentes a distinção passa a ser entre lineares e colaterais. Na terminologia masculina,
distinguem-se lineares de colaterais nas duas gerações descendentes: G-1 distingue filho e
filha e há um único termo para parentes colaterais independente do sexo; G-2 distingue
descendentes lineares independente de sexo (vava) de descendentes colaterais independente
do sexo (kaniwa). Na terminologia feminina, G-1 apresenta a mesma estrutura da
terminologia masculina, com os mesmos termos designando as mesmas posições genealógicas
que a terminologia masculina; em G-2 não distingue lineares de colaterais, nem distingue
sexo. Tudo isso faz parecer que os Korubo tem duas terminologias diferentes: uma dravidiana
(em G0, G+1 e G+2), a outra esquimó (em G-1 e G-2). Esta aparente duplicidade ou
‘mudança’ na terminologia korubo é estranha não somente à lógica do dravidianato
amazônico, mas também ao que ocorre nas terminologias de outros povos Pano setentrionais,
como os Matis e os Matsés.

Entre outros povos Pano, o traço kariera, um desenvolvimento possível dos sistemas
dravidianos, opera na onomástica, incidindo na terminologia de parentesco, pois alguns
termos repetem-se em gerações alternadas e na transmissão de nomes próprios. Trata-se de
um princípio de alternância de gerações em que posições de parentesco equivalentes
espelham-se na onomástica. As mulheres recebem os nomes de suas avós maternas (MM) e
os homens recebem os nomes de seus avôs paternos (FF) em transmissão paralela (ver Erikson
1996: 113; Coffaci de Lima 1997: 12; Matos 2014: 46). Entre os Korubo, o traço kariera
preconiza os homônimos acrescidos de modificadores geracionais, como wëntxuka
(homônimo mais novo) e wënxëni (homônimo mais velho), e o gradiente de consanguinidade
e afinidade expresso nos termos kimvo (verdadeiro) e wëtsi / utsi (outro), que gera posições
ternárias. Estes termos são um traço kariera da onomástica korubo, onde duas grades parecem
recortar, sociologicamente, o parentesco: (i) a oposição entre wënxëni e wëntxuka, e (ii) o
gradiente kimvo e wëtsi.

Sabemos que, nos estudos de parentesco, por um lado, há o conteúdo semântico das
nomenclaturas, seus correlatos institucionais, e sua classificação em tipologias globais, por

269
outro lado, há o comportamento associado ao uso da terminologia, sua manipulação, os
sistemas de atitudes, a estratégia matrimonial, a interseção entre parentesco e política. O meu
interesse neste capítulo está nessa segunda dimensão, e a primeira só nos interessa como pano
de fundo para a segunda. Portanto, apesar do que considero ser possíveis erros nas
terminologias korubo apresentadas acima, observo que para os fins desta análise – ou seja, as
estratégias matrimoniais como operadores cronotópicos – o que importa são os dados em G0
e o fato de os Korubo assegurarem que realizam preferencialmente casamentos entre primos
cruzados: uma mulher casa-se com o seu vëntolo (também chamado de wëntxok) e um homem
casa-se com sua xanu. Entretanto, antes do pluricontato, a situação de encurralamento
vivenciada pelo que se tornou o cronotopo A levou à realização de casamentos entre primos
paralelos que, neste caso, são irmãos classificatórios.

Os casamentos korubo apresentam uma tendência virilocal estatística e sistemática, similar


aos Matis e Matsés, constituindo exceções à maioria dos povos de línguas Pano que são
uxorilocais (Erikson 1996: 112). Uma mulher korubo desloca-se para residir junto ao
cônjuge, transpondo a sua rede de dormir para ao lado da rede dele. Tradicionalmente, o
vëntolo “cria” a sua xanu até que ela adquira a idade para se casar. Criar, no sentido dado a
este termo pelos Korubo, refere-se ao fornecimento de alimentos, como carne de caça,
produtos da floresta e da roça. O noivo caça e coleta para cumprir as obrigações matrimoniais
com a sua futura esposa e, sobretudo, com os pais da noiva.

Com a reunião de pessoas de diferentes eventos de contato, oriundas de distintas sub-bacias


hidrográficas, alguns novos casamentos foram criados, enquanto outros, que pre-existiam ao
pluricontato, foram redefinidos. Uniões oblíquas somaram-se ao modelo prescrito de
casamentos entre primos cruzados. Não posso afirmar que antes do pluricontato não haviam
casamentos oblíquos entre os Korubo. Contudo, o padrão korubo de casamento após o
pluricontato revela menos uma preferência por uma lógica avuncular e mais uma preferência
por casamentos que unam pessoas “velhas” (xëni) com “novas” (paxa), ou seja, desde que
corresponda a esta oposição, o casamento oblíquo entre os Korubo não é considerado
incorreto, pois a principal variável (a lógica dual velho/novo) é respeitada.

270
Até 2020, a população korubo residente no rio Ituí somava 93 pessoas. Das 93 pessoas no rio
Ituí, cerca de 85% tem faixa-etária entre 0-34 anos – com maior concentração entre 5-9 anos,
20% da população total –, e somente quatro pessoas com idade estimada acima dos 50 anos.
O alto índice de crianças nascidas após o pluricontato (41% do total) revela a coexistência
dos cronotopos A, B e C junto ao “cronotopo do pós-contato”, ou seja, pessoas que nasceram
e cresceram na relação permanente com o Estado brasileiro – o que a, rigor, seria um
cronotopo E.

O cronotopo pós-contato evidencia maior familiaridade com os elementos do mundo dos


brancos, como o conhecimento numérico e da língua portuguesa e, em alguns casos, o acesso
ao dinheiro e às mercadorias industrializadas. Tal aspecto tem se tornado o (principal) critério
definidor das uniões matrimoniais, pois as jovens muitas vezes se casam com homens xëni,
antigos no contato com os brancos e, por conseguinte, fontes de acesso a dinheiro e
mercadorias. Em 2020, havia 26 arranjos matrimoniais nas quatro aldeias korubo no rio Ituí.
Destes, sete eram polígamos: seis envolvendo um homem de determinado cronotopo casado
com duas mulheres de cronotopos distintos; em cinco destes, o noivo era um xëni. 123 Nesses
casos, o acesso ao mundo dos brancos é um desdobramento da oposição velho/novo após o
pluricontato. Tal oposição, já existente como instituição social entre os Korubo, foi colocada
à serviço da interpretação dos eventos de contato e, uma vez realizado o pluricontato, tem
sido transformada por ele, nos termos da “estrutura da conjuntura” discutida por Sahlins
(1985).

Dos 26 casamentos, nem todos puderam ser analisados e na maioria dos casos só foi possível
traçar a ascendência matrilateral dos cônjuges, em geral, vinculados a Maya. Ao todo, analisei
12 casos, incluindo os casos polígamos, em que pessoas de diferentes cronotopos (A, B, C e
pós-contato) se casaram, constituindo o que estou chamando de arranjos cronotópicos, isto
é, casamentos em que os noivos pertencem a cronotopos distintos.

123
As seis uniões polígamas entre cronotopos distintos eram: (1) A♂ + A♀ + B♀; (2) B♂ + pós-contato♀ + pós-
contato♀; (3) A♂ + A♀ + B♀; (4) A♂ +C♀ + pós-contato♀; (5) A♂ + A♀ + pós-contato♀; (6) A♂ + A♀ + B♀. O
único casamento polígamo sem ser cronotópico envolvia um homem e duas mulheres, todos do cronotopo C.
Em (1), por exemplo, lê-se: “homem do cronotopo A casado com uma primeira esposa do cronotopo A e uma
segunda esposa do cronotopo B”.
271
Em 2020, 21 pessoas residiam na Sentele Maë (10♀; 11♂). Dos cinco arranjos matrimoniais
existentes nessa aldeia, três eram casamentos cronotópicos envolvendo as filhas de Lalanvet
(cronotopo B, Sentele Maë) com o falecido Paxtu Vakwë.

Caso 1: A♂ + A♀ + B♀ (MMZS/MZDD)

Primeira Ego
esposa

Segunda
esposa

Diagrama 12. Casamento 1.

Trata-se de uma união polígama entre um homem do cronotopo A, considerado xëni, com
duas mulheres: a primeira esposa é do cronotopo A, mulher xëni, e a segunda esposa é do
cronotopo B, mulher paxa. Com a primeira esposa, o noivo teve três filhos e, com a segunda,
teve dois. A união matrimonial entre os cronotopos A e B, ou seja, entre o noivo e a segunda
esposa consiste em um homem casado com a filha da filha da irmã de sua mãe, ou seja, a filha
de sua irmã classificatória. Nesse caso, a noiva é sobrinha uterina do noivo.

Após o pluricontato, a noiva deslocou-se do rio Itaquaí, enquanto o noivo já residia no rio
Ituí. Estima-se que a noiva tinha 29 anos e o noivo tinha 39. Eles só estabeleceram relações

272
entre si na fase adulta de suas vidas. Quando vivia no rio Itaquaí, antes do pluricontato, a
noiva foi casada com o filho do irmão de sua avó materna (MMBS/FZDD). Essa união gerou
duas crianças, ambas do cronotopo B. Após o pluricontato, a noiva separou-se de seu MMBS
e casou-se com o noivo do caso 1, tornando-se a sua segunda esposa (MMZS/MZDD). O
ex-marido, MMBS da noiva, casou-se novamente com a mãe dela, formando uma união entre
primos cruzados (MBS/FZD). Todos residentes na Sentele Maë.

Caso 2: A♂ + B♀ (MMZS/MZDD)

Ego

Esposa

Diagrama 13. Casamento 2.

Trata-se de uma união monogâmica entre um homem xëni do cronotopo A com uma mulher
paxa do cronotopo B. Este casal teve uma filha. Similar ao caso 1, o noivo casou-se com a
filha de sua irmã classificatória, ou seja, a noiva é sobrinha uterina classificatória dele. Ambos
cresceram sem contato um com o outro, pois a noiva deslocou-se do rio Itaquaí para o rio
Ituí, onde o noivo já vivia em contato com o órgão indigenista desde 1996. Enquanto esteve
no rio Ituí, o noivo do caso 2 foi casado com a primeira esposa do noivo do caso 1, sua irmã

273
classificatória, com quem teve dois filhos (MZD/MZS). Após o evento de contato em 1996,
o noivo do caso 2 separou-se e casou-se novamente. Dessa vez, com a sua sobrinha uterina
classificatória. Estima-se que a idade do noivo era 45 anos – sendo chamado pelos Korubo de
darasibo (homem mais velho) para denotar a sua senioridade –, enquanto a noiva possuía
idade estimada em 15 anos, evidenciando uma maior diferença etária em relação ao caso 1.

Caso 3: C♂ + B♀ (MMZS/MZDD)

Ego

Esposa

Diagrama 14. Casamento 3.

Trata-se de uma união monogâmica entre um homem do cronotopo C com uma mulher do
cronotopo B: ambos paxa e sem filhos. Mais uma vez, o noivo casou-se com a sobrinha
uterina classificatória, filha de sua irmã classificatória. Antes do pluricontato, o noivo residia
no rio Coari e era casado com outra jovem (MMZS/MZDD). Após o pluricontato, o noivo
passou a residir no rio Ituí com a noiva do caso 3. Estima-se que o noivo tinha 23 anos e a
noiva tinha 13 anos. Em fevereiro de 2020, esse casamento foi desfeito pela mãe da noiva. A
noiva do caso 3 foi entregue em casamento a outro rapaz da Sentele Maë, do cronotopo pós-

274
contato, configurando um casamento entre irmãos classificatórios (MZS/MZD), similar ao
que ocorreu com os filhos e as filhas da Maya que configuraram o cronotopo A – retomarei
este caso adiante.

Em 2020, 25 pessoas residiam na Tapalaya (15♀; 10♂). Das nove uniões matrimoniais
existentes na Tapalaya, seis eram casamentos cronotópicos. Devido à ausência de dados para
retraçar a ascendência da parcela korubo que configurou o cronotopo C, analisei apenas três
desses casamentos.

Caso 4: pós-contato♂ + B♀ (MBS/FZD)

Esposa Ego

Diagrama 15. Casamento 4.

Trata-se de uma união monogâmica entre um homem do cronotopo pós-contato e uma


mulher paxa do cronotopo B. Neste caso, o noivo casou-se com a filha da irmã do seu pai,
ou seja, a sua prima cruzada (xanu). Antes do pluricontato, quando residia no rio Itaquaí, a
noiva do caso 4 teve uma filha com o seu irmão mais velho, configurando uma união

275
temporária e incestuosa. Após o pluricontato, a noiva deslocou-se para o rio Ituí, onde se
casou com o noivo. Este adotou a filha que ela teve com o irmão. O noivo tinha 21 anos de
idade, enquanto estima-se que a idade de sua noiva era 20 anos. Entre 2020-22, esse casal
teve uma filha.

Caso 5: B♂ + pós-contato♀ + pós-contato♀ (FZS/MBD)

Ego Primeira Segunda


esposa esposa

Diagrama 16. Casamento 5.

Trata-se de uma união polígama entre um homem paxa do cronotopo B e duas irmãs do
cronotopo pós-contato, sem filhos. Neste caso, o noivo casou-se com as duas filhas do irmão
de sua mãe, ou seja, suas primas cruzadas (xanu). Para que essa configuração fosse alcançada,
houve uma troca prévia de mulheres. Antes do pluricontato, o noivo do caso 5, proveniente
do rio Itaquaí, casou-se com a ex-esposa do seu pai que tornara-se viúva. Não possuo
informações sobre os vínculos genealógicos envolvidos nessa união. A viúva, após o
pluricontato, foi oferecida pelo noivo ao seu kuku (MB) para ser a segunda esposa deste. Em

276
troca, o kuku ofereceu suas duas filhas ao noivo. Este tinha idade estimada em 23 anos,
enquanto as suas duas esposas tinham 15 e 17 anos.

Caso 6: B♂ + C♀ (MMZDD/MMZDS)

Ego Esposa

Diagrama 17. Casamento 6.

Trata-se de uma união monogâmica entre um homem do cronotopo B e uma mulher do


cronotopo C, ambos paxa. Nesse caso, também houve uma troca de mulheres. A noiva passou
por um casamento anterior e, após o pluricontato, foi dada ao noivo do caso 6 em troca de
uma irmã dele, que casou-se com o noivo do caso 3. O caso 6 revela que o noivo casou-se
com a filha da filha da irmã de sua avó materna, ou seja, a filha da irmã classificatória de sua
mãe (MMZDD/MMZDS). Antes do pluricontato, o noivo residia no rio Itaquaí e a noiva
no rio Coari. Enquanto residia no rio Coari, a noiva deste casamento já havia sido casada
com o noivo do caso 3, pertencente ao mesmo cronotopo dela (MMZS/MZDD). Após os
eventos de contato em 2015, o noivo do caso 6 deu uma de suas irmãs para o noivo do caso
3 casar-se. Em troca, recebeu a noiva deste caso. Estima-se que o noivo tinha 21 anos e a

277
noiva tinha 14. Em 2022, essa união foi desfeita. A noiva do caso 6 separou-se mais uma vez
para se casar com um dos homens xëni – figura proeminente na aldeia Tapalaya –,
configurando uma união MMZS/MZDD. Conforme os relatos dos Korubo, esse xëni
“roubou” a noiva do noivo do caso 6. Este permaneceu solteiro, enquanto o xëni passou a ter
três esposas.

Em 2020, 28 pessoas residiam na Tankala Maë (14♀; 14♂). Das sete uniões matrimoniais
existentes na Tankala Maë, quatro eram casamentos cronotópicos. Um deles era um
casamento polígamo em que cada uma das três pessoas pertencia a um cronotopo diferente.

Caso 7: A♂ + A♀ + pós-contato♀ (MB/ZD)

Ego Primeira
esposa

Segunda
esposa

Diagrama 18. Casamento 7.

Trata-se de uma união polígama entre um homem xëni do cronotopo A e duas mulheres: a
primeira esposa do cronotopo A e a segunda esposa do cronotopo pós-contato. Com a
primeira esposa, o noivo teve um filho. Com a segunda esposa, teve três filhos. Neste caso,

278
em relação à segunda esposa, o noivo casou-se com a filha de sua irmã mais velha, ou seja,
trata-se de um casamento entre kuku / piak (MB/ZD). A filha de sua irmã cresceu em contato
com o noivo no rio Ituí. Estima-se que o kuku tinha 34 anos, enquanto a sua piak tinha 19
anos.

Caso 8: A♂ + A♀ + B♀ (FZS/MBD)

Primeira Ego Segunda


esposa esposa

Diagrama 19. Casamento 8.

Trata-se de uma união polígama entre um homem xëni do cronotopo A e duas mulheres: a
primeira esposa xëni do cronotopo A e a segunda esposa paxa do cronotopo B. Com a
primeira esposa, o noivo teve oito filhos. Neste caso, com a segunda esposa, o noivo casou-se
com a filha do irmão de sua mãe, sua prima cruzada (xanu). Segundo os Korubo da Tankala
Maë, o segundo casamento do noivo aconteceu a partir de uma decisão coletiva. Após o
primeiro evento de contato, em 1996, o noivo casou-se com a sua primeira esposa, que era
sua irmã classificatória (MZD/MZS). Posteriormente, quando ela se tornou uma mulher
mais velha (matxo) ficou “cansada”. Então, os Korubo perceberam que ele precisava de uma

279
segunda esposa mais jovem para acompanhá-lo nas caçadas. Estima-se que o noivo tivesse 39
anos, enquanto a sua segunda esposa tinha 12 anos. Essa união foi desfeita em 2022, pois ego
masculino cedeu a sua segunda esposa paxa para casar-se com um dos filhos que teve com a
sua primeira esposa matxo.

Caso 9: A♂ + pós-contato♀ + C♀ (FMZS/MZSD)

Segunda
Primeira Ego esposa
esposa

Diagrama 20. Casamento 9.

Trata-se de uma união polígama entre um homem xëni do cronotopo A e duas mulheres: a
primeira esposa é do cronotopo pós-contato e a segunda esposa é paxa do cronotopo C. Com
a sua primeira esposa, filha de sua irmã, ou seja, sua piak, o noivo teve três filhas (MB/ZD).
A segunda esposa é também sua piak, porém, classificatória. Este caso representa uma união
em que o noivo casou-se com a filha do filho da irmã de sua mãe, ou seja, casou-se com a
filha de seu irmão classificatório. Diferente da relação de convivência entre o noivo e sua
primeira esposa, ele residia no rio Ituí e cresceu sem conhecer aquela que se tornou a sua

280
segunda esposa, pois esta era proveniente do rio Coari. O noivo possuía 27 anos, enquanto a
idade estimada de sua segunda esposa era 14 anos.

Em 2020, a Vuku Maë abrigava 16 pessoas (6♀; 10♂). Das cinco uniões matrimoniais
existentes nessa aldeia, três eram casamentos cronotópicos.

Caso 10: A♂ + pós-contato♀ (MZSS/FMZD)

Esposa Ego

Diagrama 21. Casamento 10.

Trata-se de uma união monogâmica entre um homem xëni do cronotopo A e uma mulher
do cronotopo pós-contato. A noiva desse caso é filha do homem do caso 11 com a mulher
do casamento 12. Eles foram casados e tiveram dois filhos, dentre eles, a noiva do casamento
10. Depois se separaram e cada um deles casou-se novamente, gerando os casos 11 e 12. A
união 10 gerou quatro filhos. Neste caso, o noivo casou-se com a filha da irmã de sua avó
paterna, ou seja, o noivo é o sobrinho agnático da noiva, pois ela é a irmã classificatória do

281
pai dele. Nesse caso, estima-se que a idade do noivo era 29 anos, enquanto a noiva tinha 22
anos. A noiva nasceu e cresceu no rio Ituí em contato com o noivo.

Caso 11: A♂ + pós-contato♀ (MMZS/MZDD)

Ego

Esposa

Diagrama 22. Casamento 11.

Trata-se de uma união monogâmica entre um homem xëni do cronotopo A e uma mulher
do cronotopo pós-contato. Essa união gerou uma criança. Este homem já havia sido noivo
de outra mulher mais velha e, após ter se separado dela, casou-se com essa jovem. Estima-se
que a idade do noivo era 53 anos – sendo chamado pelos Korubo de darasibo (homem mais
velho) –, enquanto a idade da noiva era 19 anos. Neste caso, o noivo casou-se com a filha da
filha da irmã de sua mãe, ou seja, a filha de sua irmã classificatória. Então, a noiva é sobrinha
uterina classificatória do noivo. Diferente dos casos 1, 2 e 3 – encontrados na Sentele Maë –
, no caso 10, a noiva nasceu e cresceu em contato com o noivo, ambos no rio Ituí.

282
Caso 12: C♂ + A♀ (ZSS/FMZ)

Esposa

Ego

Diagrama 23. Casamento 12.

Trata-se de uma união monogâmica entre um jovem rapaz do cronotopo C e uma mulher
mais velha, xëni do cronotopo A. Nesse caso, o noivo casou-se com a irmã da sua avó paterna.
Estima-se que a noiva tivesse 60 anos e o noivo tivesse 22. Esse casal não possuía filhos. Antes
do pluricontato, a noiva residia no rio Ituí sem contato com o noivo que, por sua vez, residia
no rio Coari. O noivo cresceu sem estabelecer contato com a irmã de sua avó paterna.

4.3. Rearranjos cronotópicos

Ao longo da pesquisa de campo, dois arranjos matrimoniais foram refeitos pelos Korubo no
rio Ituí. Tais rearranjos chamaram a minha atenção, justamente, por se tratarem de
casamentos entre xëni-xëni e paxa-paxa transformados em casamentos xëni-paxa, ou seja, em
casamentos cronotópicos. Conforme o capítulo 3, os conceitos xëni e paxa são acionados
pelos Korubo para distinguir, dentre eles, quem é “antigo/velho” e quem é “novo” na relação

283
com os brancos. Os korubo xëni são caracterizados por sua antiguidade no tempo de contato
e sua maturidade relativa ao acúmulo de conhecimento sobre os brancos. Nesse aspecto, as
pessoas do cronotopo A são os “verdadeiros xëni” (xëni kimvo). Tal conotação se evidencia
em serem o que chamo de pessoas duplamente produtivas.

No caso dos homens, caçam com zarabatana e espingardas, abrem roças, pescam com timbó
e materiais de pescaria não-indígena. Ao mesmo tempo, possuem documentos de
identificação pessoal e trabalham nas atividades remuneradas pela FUNAI, logo, acessam
dinheiro e mercadorias industrializadas. Os xëni são duplamente produtivos e transitam entre
o mundo da floresta e das aldeias, e o mundo dos brancos, as cidades. Não por acaso esse é o
argumento central dos xëni sobre os casamentos entre xëni-paxa, ou seja, os xëni são pontes
de acesso ao mundo dos brancos. Os rearranjos matrimoniais xëni-paxa têm sido uma solução
encontrada pelos Korubo para amenizar o contraste criado entre eles após o pluricontato?
Um modo de equilibrar os acessos díspares em relação ao mundo dos brancos? A seguir,
vejamos duas situações.

Situação 1

Desde que chegara a campo, os Korubo e os agentes estatais diziam que uma jovem do
cronotopo pós-contato, com 10 anos de idade, residente na Sentele Maë, seria a noiva de um
jovem do cronotopo pós-contato, com 14 anos, residente na Tankala Maë. Ambos são filhos
de xëni do cronotopo A e formariam uma união entre primos cruzados matrilaterais
(FZD/MBS). Essa promessa matrimonial era pública e agradava aos pais de ambos.
Entretanto, em 2020, a promessa foi desfeita e o casamento entre esses dois jovens desdobrou-
se em dois casamentos cronotópicos entre xëni e paxa. Com o rearranjo, os Korubo passaram
a afirmar que o jovem do cronotopo pós-contato, residente na Tankala Maë, se casaria uma
noiva paxa do cronotopo B, residente na Sentele Maë, com 9 anos de idade, outrora sem
pretendentes matrimoniais. Essa nova união também era entre primos cruzados matrilaterais
(FZD/MBS), ou seja, o que mudava era o fato de a noiva ser paxa do cronotopo B.

284
Nesse caso, a jovem do cronotopo pós-contato, residente na Sentele Maë, ficou disponível
para casamentos, uma vez que a promessa matrimonial foi desfeita. Todos sabiam que o kuku
(MB) dessa jovem, residente na Tapalaya, estava interessado em casar-se com ela. No entanto,
o pai dela afirmava que não a daria em casamento ao kuku, pois este “não o ajudava”. Na
concepção korubo, “não ajudar” implica em não oferecer alimentos da caça e pesca ou abrir
roças.

Em fevereiro de 2020, o pai dessa moça afirmou que a daria em casamento para outro jovem
da Sentele Maë – um paxa do cronotopo B que até então não possuía esposa –, pois este sim
o “ajudava”. Este paxa já havia me dito que, no rio Ituí, não havia mulheres disponíveis para
casamento e que ele teria que aguardar uma mulher xëni casada se separar para casar-se. Com
o rearranjo, o destino do jovem mudou. Essa união entre ele e a noiva do cronotopo pós-
contato, ambos da Sentele Maë, configurou um casamento entre primos paralelos
matrilaterais, ou seja, irmãos classificatórios (MZS/MZD).

Assim, a promessa matrimonial entre dois jovens do cronotopo pós-contato, filhos de xëni e
primos cruzados matrilaterais, desdobrou-se em dois casamentos xëni-paxa: (i) o primeiro,
seguindo a preferencial matrimonial por primos cruzados xanu / vëntolo (FZD/MBS); (ii) o
segundo entre primos paralelos, que são irmãos classificatórios, configurando um rearranjo
matrimonial incorreto (MZS/MZD) – digo “incorreto” em vez de estritamente “incestuoso”,
pois a relação entre os dois é classificatória e a distância cronotópica (tempo + espaço) se
sobrepõe à grade classificatória. No caso (ii), registra-se a distância geográfica como um fator
importante, pois a união entre o cronotopo pós-contato e o cronotopo B significa que ambos
cresceram em sub-bacias hidrográficas distintas, longe um do outro, e só se conheceram após
os eventos de contato ocorridos em 2014.

Situação 2

285
A segunda situação envolve um casamento consolidado entre dois jovens paxa, residentes na
Sentele Maë – o noivo do cronotopo C e a noiva do cronotopo B –, que foi desfeita pela mãe
da noiva, a natxi (WM), sogra do noivo, conforme mencionei no caso 3 da seção anterior.
Esse casamento durava desde os eventos de contato ocorridos em 2015 e configurava uma
união MZDD/MMZS: o noivo casou-se com a sua sobrinha uterina classificatória. Estima-
se que o noivo tinha 22 anos, enquanto a noiva tinha 12. Para que essa união existisse foi
necessária uma troca prévia de mulheres.

Antes de ser casado com essa jovem do cronotopo B, enquanto residia no rio Coari, o noivo
foi casado com outra jovem paxa do mesmo cronotopo, o C. Após os eventos de contato
realizados em 2015 e o deslocamento para o rio Ituí, esse jovem paxa do cronotopo C trocou
a sua esposa por uma das irmãs de outro paxa do cronotopo B. A troca foi então realizada e
cada um dos casais residia em uma aldeia diferente: (i) o jovem paxa do cronotopo C e a
noiva paxa do cronotopo B residiam na Sentele Maë; (ii) o jovem paxa do cronotopo B e a
noiva paxa do cronotopo C residiam na Tapalaya. Nessa situação, o casamento (i) entre paxa
foi desfeito.

A união entre esse jovem casal paxa parecia estável. Entre novembro e dezembro de 2019,
ambos engajaram-se na construção de uma casa unifamiliar em torno da maloca da Sentele
Maë. Contudo, em fevereiro de 2020, a união foi desfeita pela natxi do noivo. Então, a rede
de dormir da jovem esposa foi reposicionada na maloca: deixou de estar posicionada ao lado
da rede do noivo e passou a estar ao lado da rede da mãe dela, a natxi, que é uma matxo do
cronotopo B. O jovem paxa, inconformado com a decisão da natxi matxo, foi à Base Ituí
conversar com os agentes estatais. Na ocasião, relatou que a natxi matxo havia tomado a sua
esposa, afirmando que ele “não sabia caçar” e pediu a ajuda dos funcionários da FUNAI para
convencer a natxi matxo a devolvê-la.

O desespero do jovem paxa era ainda maior, pois a natxi matxo não apenas tomara a noiva
dele, mas prometera entregá-la em casamento a outro jovem da mesma aldeia. Este não era
um paxa, e sim filho de pais xëni, pertencente ao cronotopo pós-contato. Nos dias que
decorreram desde sua ida à Base Ituí para solicitar a ajuda dos brancos e tentar reaver o seu
casamento, vi o jovem paxa interpelar a natxi matxo diversas vezes na Sentele Maë,

286
argumentando de todas as formas possíveis para ela devolver a filha dela para ele. A natxi
matxo apenas o escutava, sem nada dizer, pois estava decidida a entregar a filha para um novo
casamento – um exemplo da incidência política dessa categoria de mulheres, as matxo.

A partir disso, a mãe do noivo pretendente dizia que a jovem paxa recém-separada era a xanu
do seu filho. Apesar de utilizar o termo xanu referente a prima cruzada, esse rearranjo
matrimonial era entre primos paralelos matrilaterais, ou seja, irmãos classificatórios
(MZD/MZS). No final do mês de fevereiro, a rede da jovem paxa, então separada, estava
posicionada ao lado da rede do seu novo marido, o jovem do cronotopo pós-contato. Este
passou a construir uma casa unifamiliar em torno da maloca da Sentele Maë para residir com
a sua nova esposa.

A mãe da noiva que outrora era tita utsi (MZ) desse rapaz passou a ser chamada de natxi
(WM=FZ). Após o casamento entre os paxa ter sido desfeito e o rearranjo matrominal entre
xëni-paxa ter sido consumado, o jovem paxa, outrora casado, ficou solteiro. Inconformado,
ele tornara-se instável e, por sentir saudades de sua esposa, corria para a floresta recorridas
vezes. Isso porque, conforme o capítulo 3, raiva e saudade são sentimentos afins. Não sem
razão, os Korubo traduzem que alguém está “bravo de saudade”. Então, uma pessoa corre
para a floresta quando está com raiva ou saudade. Apesar disso, todos continuaram residindo
na mesma aldeia, a Sentele Maë.

4.4. Soluções matrimoniais

As duas seções anteriores ilustram doze arranjos e algumas situações de rearranjos


matrimoniais envolvendo pessoas de diferentes cronotopos. Com as mortes dos velhos
korubo em conflitos com os brancos e o tempo decorrido desde o primeiro evento de contato
em 1996 até a realização da pesquisa de campo, foi possível remontar no máximo à G+2,
limitando a investigação sobre a extensão vertical da diferença entre consanguíneos e afins, e
também à ascendência matrilateral dos meus interlocutores. Todos os vínculos matrilaterais
têm como ponto em comum a Maya, matxo xëni.

287
Dos doze casos analisados, apenas três são entre primos cruzados e, portanto, seguem a
preferência por primos cruzados, característica do sistema de parentesco korubo: os casos 4,
5 e 8 são entre pessoas da mesma geração (G0) em que o vëntolo casou-se com a sua xanu, em
geral, pertencente aos cronotopos B ou pós-contato. Embora a preferência seja o casamento
entre primos cruzados, verificou-se que os casamentos cronotópicos configuram uniões
oblíquas, avunculares e entre primos paralelos.

Os casos 1, 2, 3 e 11 são entre MMZS e MZDD. Nestes, o noivo casou-se com a filha de sua
irmã classificatória, ou seja, a noiva é a sobrinha uterina dele. Esse modelo de casamento
oblíquo que une G0 e G-1 não segue a lógica comum entre outros povos Pano que, por sua
vez, preconiza a união entre pessoas de mesmo nível geracional. Similares são os casos 7 e 9,
porém, entre consanguíneos. Nestes casos, o MB casou-se com sua ZD, formando uma união
oblíqua entre kuku / piak, unindo G0 e G-1.

Conforme o princípio de gerações alternadas, presente entre outros Pano, a posição de piak
equivale a mãe (M), tornando esse tipo de união incestuosa. Entre os Matis, o “incesto
preferencial” entre kuku e piak foi uma das saídas encontradas após os decessos populacionais
causados pelas epidemias, que restringiram as possibilidades de casamentos preferenciais entre
primos cruzados. Entre povos Pano, a estadia na residência avuncular e a prática de penetração
vaginal com os dedos é feita pelo MB em ZD (Erikson 1996: 137, 142-3). No caso korubo,
tal prática, chamada de mëpuku (–më: mão), é realizada também pelos irmãos da mãe
classificatórios e pelo primo cruzado.

Nesses seis casos (1, 2, 3, 7, 9 e 11), os noivos são xëni. Três destes casamentos são polígamos
envolvendo mulheres de outro cronotopo (em geral, B ou pós-contato) que ocupam posições
de primeira ou segunda esposa. Nota-se que 50% dos casamentos cronotópicos analisados
nas quatro aldeias correspondem ao matrimônio avuncular, característica do dravidianato
amazônico, em que a noiva casou-se com o MB, seja consanguíneo ou classificatório. O
avunculato corresponde a uma estratégia matrimonial de máxima contração dos dispositivos
endogâmicos (Viveiros de Castro 2002: 133).

No caso 6, o noivo casou-se com a filha da irmã classificatória de sua mãe, ou seja, com a sua
prima paralela, logo, sua irmã classificatória (MMZDD/MMZDS). Entre outros Panos, o

288
casamento entre primos paralelos também é considerado incestuoso, algo que se reflete na
mitologia desses povos (Erikson 1996: 136). Nesse caso, diferente do que ocorreu entre as
pessoas do cronotopo A, a distância geográfica entre os noivos é central, pois antes do
pluricontato eles residiam em sub-bacias hidrográficas distintas no interior da terra indígena.
A noiva do caso 6 evidencia a instabilidade – uma característica dos casamentos cronotópicos
–, pois antes do pluricontato, ela possuía um casamento com um noivo do mesmo cronotopo
que ela. Depois do pluricontato, ela casou-se com o noivo do caso 6. Ao longo de 2022,
novamente ele se separou e casou-se com um xëni do cronotopo A.

No caso 9, a noiva casou-se com o irmão classificatório do seu pai, ou seja, com o seu pai
classificatório, pois entre os Korubo o irmão do pai é “outro pai” (chamado de mama utsi ou
miuka), caracterizando outro tipo de união sociologicamente incorreta. Nesse caso, leva-se
em consideração a distância geográfica entre o noivo xëni e a noiva paxa que cresceram longe
um do outro, em sub-bacias hidrográficas distintas, conhecendo-se somente após o
pluricontato.

Diferentemente, no caso 10, a distância não é um fator central, pois o noivo cresceu em
contato com a sua natxi utsi (FMZD), no rio Ituí. Nesse caso, a noiva é irmã classificatória
do pai do noivo e casou-se com o seu sobrinho agnático, configurando uma união natxi /
miuka, embora tenham praticamente a mesma idade. No caso dos Matis, a alternância de
gerações preconiza que a natxi pertence à patrimetade de ego, o que configuraria uma união
oblíqua (Erikson 1996: 146-8).

O caso 12, por sua vez, abriga uma das maiores distâncias etárias entre os casais no rio Ituí.
Nesse caso, o noivo é um homem paxa que cresceu longe da noiva, uma mulher xëni,
passando a conhecê-la após o pluricontato. O noivo casou-se com a sua FMZ, configurando
uma união entre G0 e G+2. De acordo com as gerações alternadas entre outros Pano, em
G+2 todos os cruzados são parceiros potenciais. Nota-se em nesses matrimônios, antes de
uma preferência avuncular, parece predominar como critério de aliança a dicotomia
velhos/novos (xëni / paxa), discutida no capítulo 3.

O casamento, seja arranjo ou rearranjo, não é a única maneira pela qual os Korubo criam
parentesco entre pessoas de diferentes cronotopos, mas certamente é a principal. Em 2019,

289
na Tankala Maë, havia uma jovem do cronotopo C que estava sendo “criada” por sua tita
utsi classificatória (MZ) para ser a esposa de um dos filhos dela, o que viria a se tornar um
casamento entre MMZDS/MMZDD. Nessa mesma aldeia, havia a família de Naylo e Pinu,
ambos do cronotopo B: os únicos paxa da Tankala Maë. Os Korubo argumentavam que Pinu
estava naquela aldeia para “ajudar” uma matxo. Ele era o sobrinho cruzado dela
(miuka=MZDS).

Entre os Korubo, miuka é também o termo pelo qual uma mãe chama o marido de sua filha,
o seu genro. Sabe-se que o genro têm obrigações laborais com a sua sogra. Várias mulheres
da Tankala Maë chamavam Pinu de miuka. Ele, por sua vez, respondia chamando-as de natxi
ou tsavë. Apesar das lacunas nas terminologias korubo expostas neste capítulo, torna-se
interessante observar que eu tenha registrado a existência de uma posição genealógica
específica (miuka) – distinta de piak em G-1 –, que aparece apenas na terminologia feminina,
possivelmente relacionada à posição proeminente das matxo entre os Korubo. 124

Através de arranjos e rearranjos matrimoniais, os Korubo lidam com as questões trazidas pelo
pluricontato, como o acesso desigual ao mundo dos brancos, ao dinheiro e às mercadorias
industrializadas. A partir da co-residência e da alimentação, o parentesco entre pessoas de
diferentes cronotopos vem sendo (re) construído. Pessoas que não se consideravam parentes,
justamente por não terem convivido juntas durante muito tempo, passaram a co-residir. Os
Korubo estão se reaparentando, casando com seus afins ou ex-inimigos.

4.5. Conclusão – Parte 2

Vimos que, após os seis eventos de contato com a FUNAI, criaram-se sobreposições espaço-
temporais no baixo curso do rio Ituí que se perpetuam. Após uma parentela formada pelo
casal Vinan e Manis ter passado por processos de cisões e fusões, parcelas da população korubo
tornaram-se “cronotopos”. Nesse processo, categorias de línguas Pano, utilizadas para
distinguir velho/novo e maduro/imaturo, como xëni e paxa, passaram a servir para distinguir

124
Registro ainda que as mulheres korubo costumam chamar os jovens caçadores pelo termo mama (F),
acrescido dos nomes próprios: por exemplo, “mama Vunpa”, “mama Seatvo”, “mama Vali” – denotando que a
figura paterna está relacionada ao ato de alimentar outrem.
290
pessoas de cronotopos distintos, ou seja, de diferentes eventos de contato. O cronotopo A e
aqueles nascidos após os eventos de contato (cronotopo pós-contato) tornaram-se xëni
(velhos, antigos) em comparação aos paxa (novos), contatados nos cinco eventos de contato
posteriores. Hoje, xëni e paxa residem juntos em quatro aldeias no baixo curso do rio Ituí. A
configuração dessas aldeias evidencia as diferenças cronotópicas a partir da disposição de casas
unifamiliares e malocas, e das roças unifamiliares e coletivas.

Pessoas de diferentes cronotopos estão construindo vínculos de parentesco entre si,


majoritariamente, após terem passado anos vivendo separadas em sub-bacias hidrográficas
distintas. A amostra de matrimônios (arranjos e rearranjos) analisados nesse capítulo revela
que vários casamentos realizados antes do pluricontato foram desfeitos para originar novos
casamentos entre pessoas com diferentes tempos de contato, especificamente, xëni com paxa,
configurando uma estratégia explícita e dirigida, um projeto korubo de existência operado
por meio do casamento. Afinal, “as relações de casamento entre homens e mulheres, baseadas
na demanda mútua de alimento e gratificação sexual, são as relações produtivas centrais, mas
ambas são criadas e, por sua vez, criam relações de cuidado entre parentes” (Gow 1989: 580).
Os casamentos são a mola propulsora do parentesco multicrono.

No entanto, considerando que a frequência da poligamia entre os Korubo, poderíamos nos


perguntar por qual motivo os casamentos cronotópicos em geral não ocorreram sem a
dissolução de laços matrimoniais anteriores ao pluricontato? Todo o cronotopo pós-contato
(que poderia ser um cronotopo E, conforme mencionei) passou a existir sob a égide dos xëni
do cronotopo A e, além disso, a maioria das pessoas nascidas após o pluricontato deriva de
uniões em que pelo menos um dos pais é do cronotopo A. Nesses termos, o que parece ser
uma estratégia política “dos Korubo” é, na verdade, uma estratégia política do cronotopo A.
Tal estratégia ocorre mesmo no caso dos rearranjos cronotópicos, analisados na seção 3, em
que a mãe da noiva (natxi), uma matxo do cronotopo B, desfez o casamento de sua filha
(cronotopo B) com o noivo (cronotopo C) na aldeia Sentele Maë. Neste caso, trata-se de
pessoas paxa reproduzindo uma lógica criada e estimulada pelos xëni do cronotopo A, que
têm como figura central a matriarca Maya, uma matxo xëni: “mulher mais velha” e “antiga”
no contato com os brancos, a precursora do primeiro evento de contato com os brancos em
busca de ferramentas de metal.

291
A figura de Maya entre os Korubo nos lembra a atuação de João Tuxaua entre os Marubo,
também falantes de língua Pano. Hoje, os Marubo, residentes nos rios Ituí e Curuçá,
concebem a sua sociedade contemporânea como reflexo e resultado de um processo de
conflitos e miscigenações intertribais encerradas após a ascensão política de João Tuxaua,
reconhecido como o “criador das pessoas marubo” (yora shovimaya). João Tuxaua criou uma
ordem social e cosmológica, reconhecida como um tempo de paz, prosperidade e crescimento
demográfico, que não se resume somente ao viver junto, produzir alimentos e fazer festas, e
sim a uma transformação social das pessoas e de suas vidas que teve como referência o “viver”
e o “pensar” dos espíritos yove: protótipos de pessoas melhores e mais sábias.

Por isso, João Tuxaua é reconhecido pelos Marubo como um líder político e, ao mesmo
tempo, um guia espiritual e xamânico, caracterizado por possuir uma “fala de respeito” que
reprimia toda e qualquer ameaça ao bem-estar coletivo. Na relação interétnica, João Tuxaua
estimulava o acesso dos Marubo às mercadorias industrializadas. Similar a Maya, ele desejava,
sobretudo, adquirir ferramentas de metal. Por isso, estimulava a aproximação (controlada)
dos Marubo com os brancos. Até hoje, João Tuxaua é reconhecido como uma das lideranças
que aprovou a criação do movimento indígena no Vale do Javari, resultando na criação do
antigo Conselho Indígena do Vale do Javari (CIVAJA) (ver Welper 2009: 159-193).

Se, por um lado, João Tuxaua transformou a guerra em parentesco, criando “os Marubo”,
por outro lado, Maya tem sido um elo de construção do parentesco entre o que está em
processo de vir a ser “os Korubo”. No entanto, as estratégias de João Tuxaua e Maya diferente.
Maya mantém a guerra virtual (controlada) entre diferentes cronotopos, na medida em que
estimula casamentos xëni-paxa, realizando também concessões com o órgão indigenista. Aliás,
neste processo de criação/transformação do que se tornará “os Korubo”, a FUNAI emerge
como um aspecto singular da atuação estratégica de Maya, que gerencia seus filhas/os e genros
(o cronotopo A) na relação com os agentes estatais. A FUNAI aparece como um aspecto
inédito na atuação dessa figura proeminente e criadora “dos Korubo” e o que os dados
etnográficos mostram é que o processo da invenção “dos Korubo”, ou ainda, o ‘virar índio’
está em curso entre os Korubo.

292
Como parte da estratégia política do cronotopo A, coordenada por Maya, o aspecto definidor
das alianças cronotópicas (em vez de ser idade relativa ou gênero) é juntar pessoas com
experiências de contato distintas (xëni com paxa) e, por conseguinte, diferentes acessos ao
mundo dos brancos, mantendo a dinamicidade da mescla entre mundo dos brancos (xëni) e
mundo da floresta (paxa). A estratégia política do cronotopo A busca manter assimetria entre
eles e as pessoas de outros cronotopos e, ao mesmo tempo, dissipar bens e serviços entre as
aldeias korubo, o que constitui em sua própria natureza uma estratégia anti-FUNAI, pois o
órgão indigenista busca controlar os acessos às mercadorias industrializadas e aos serviços,
conforme veremos na Parte 3.

Tudo se passa como se as pessoas do cronotopo A estivessem ‘virando índio’ antes das demais,
mantendo uma distinção em relação à maioria. Tal distinção foi instaurada em 1996, quando
essa parcela reunia em si mesma o etnônimo “Korubo” e acessou prioritariamente
mercadorias e serviços. É nesses termos que os Korubo estabelecem uma estratégia política,
pois a “negação da coetaneidade é um ato político”, conforme Fabian (2013). As pessoas do
cronotopo A diferenciam-se internamente e mantêm essa distinção como xëni ou paxa,
refazendo casamentos, arranjos e rearranjos como estratégia anti-FUNAI para distribuir bens
e serviços, de modo a manter o equilíbrio entre os conhecimentos sobre os distintos mundos:
o dos brancos e o da floresta.

293
PARTE 3. As coisas dos brancos

Os brancos são outra gente. Eles acumulam muitas mercadorias e sempre as


guardam junto de si, enfileiradas em tábuas de madeira no fundo de suas casas.
Deixam que envelheçam por bastante tempo antes de minguar algumas a
contragosto. Quando as pedimos, ficam desconversando e fazendo promessas
para não ter de entregá-las. Ou então exigem que antes trabalhemos para eles
por um bom tempo. De todo modo, no final, eles não nos dão nada ou então
só coisas já gastas, exigindo ainda mais trabalho em retribuição! (Kopenawa e
Albert 2015: 412).

Em A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2015), Davi Kopenawa fala sobre a
paixão dos brancos pelas mercadorias industrializadas. Na concepção yanomami, a geração
dos brancos criada pelo demiurgo Omama era sábia e possuía uma terra boa. Contudo, as
novas gerações passaram a rejeitar a sabedoria dos antigos e acabaram se esquecendo dos
ensinamentos de Omama. Os brancos passaram a desejar o ouro que está debaixo da terra e
se apaixonaram por objetos, tornando-se o “povo da mercadoria”, os criadores de “peles de
papel”, dinheiro. Os brancos têm um desejo desmedido porque querem possuir todas as
mercadorias. É essa paixão pelos objetos, como se fossem pessoas, que move-os a destruírem
a floresta.

Primeiro, os Yanomami desejaram as coisas dos brancos e as chamaram de matihi: termo


tradicionalmente utilizado para se referirem aos adornos rituais, aos bens de Omama, aos
ossos e às cinzas dos mortos. Depois, nomearam cada uma das mercadorias. Ainda não
pensavam que as mercadorias dos brancos geram doenças e mortes. Os Yanomami não
acumulam mercadorias porque, diferente das pessoas, as mercadorias não morrem e se
amontoam. Então, precisam ser destruídas quando os seus donos morrem. Para os
Yanomami, as mercadorias servem para circular, e não para serem acumuladas. Eles desejam
mercadorias para troca-las uns com os outros (Kopenawa e Albert 2015: 405-420).

A paixão pelas mercadorias, o acúmulo de objetos e a sovinice são características que os


ameríndios costumam atribuir aos brancos. Essa não é uma peculiaridade dos Yanomami. As
mercadorias industrializadas e os alimentos estão no cerne do contato interétnico,
caracterizando a trajetória de diversos povos. A antropologia, por sua vez, sempre esteve

294
interessada em compreender como as populações não europeias se inserem no capitalismo
mundial. Durante décadas, essa questão foi abordada sob a ótica do processo de
“aculturação”: as transformações nos sistemas econômicos e políticos tradicionais eram
avaliadas a partir de indicadores de “integração” das populações à “sociedade moderna”. 125

No Brasil, o tema das mudanças socioculturais esteve relacionado à ênfase na relação entre
ameríndios e brancos. Nos anos 1970, por um lado, enfatizava-se a “aculturação” e
“assimilação” dos ameríndios à sociedade nacional. Por outro, destacava-se o aspecto
conflituoso do contato interétnico (Ribeiro 1970; Cardoso de Oliveira 1976). Em ambas
abordagens, as mercadorias industrializadas tinham um papel central por serem um dos meios
pelo qual a sociedade nacional cooptava a mão-de-obra ameríndia. Para a surpresa de alguns
antropólogos da época, em vez de perderem seus traços distintivos por meio do contato, as
populações ameríndias estavam crescendo e se transformando, incorporando instituições
exógenas ou criando novas instituições. Dito de outro modo, não era por adquirirem
mercadorias que os ameríndios deixariam de ser ameríndios.

No final dos anos 1970, outros antropólogos perceberam que os conceitos analíticos
importados de outras regiões etnográficas eram insuficientes para analisar os povos da
América do Sul. Se propuseram então a repensa-los a partir dos dados etnográficos. Essas
primeiras sínteses teóricas atentaram às chamadas “ideologias nativas”, evidenciando noções
ameríndias de tempo, espaço e corporalidade (Overing Kaplan 1977; Seeger et al. 1979). A
etnografia de Peter Gow (1991) sobre os Piro do baixo rio Urubamba, na Amazônia peruana,
representa um momento chave desse movimento iniciado nos anos 1970.

Para os Piro, a “ideologia nativa” é formada por categorias geradas no contato com a sociedade
peruana. Tudo do mundo dos brancos é colocado à serviço dos Piro, refletindo e informando
os seus valores. Essa etnografia apresenta um aparente paradoxo: os mesmos elementos que

125
A “aculturação” é um processo que gera mudanças culturais em povos em contato. A “assimilação”, por sua
vez, é uma fase do processo de aculturação (ver Redfield, Linton e Herskovits 1936). Para estudos pioneiros
sobre “aculturação” na Amazônia, ver Wagley e Galvão (1949) e Wagley (1964). O tema da aculturação aparece,
por exemplo, nas primeiras etnografias sobre os Mundurucu, que mantinham relações comerciais intensas com
missionários e negociantes portugueses, e migraram para o baixo rio Madeira e Tapajós para obter mercadorias
industrializadas (Murphy 1960: 160-5).
295
atestariam a “aculturação” dos Piro, como a escola ou o reconhecimento estatal do direito à
terra, codificam a centralidade do parentesco para suas relações sociais, assemelhando-os aos
povos que outrora seriam classificados como “tradicionais”. O paradoxo se resolve quando
dissolvemos a oposição entre “aculturado” e “tradicional” como definições de tipos de
cultura.

Essa releitura antropológica das relações coloniais, não mais vistas sob a ótica da aculturação,
e sim pela reelaboração local e criativa de uma ordem global imposta, não foi uma
exclusividade da etnologia amazônica. Desenvolvendo seus trabalhos de antropologia
econômica e sua análise da lógica simbólica do capitalismo, Sahlins (1972; 1976) atacou,
justamente, a ideia de “aculturação” como uma consequência da economia de mercado. O
que o acesso ao mercado propicia, segundo Sahlins (1997a; 1997b), é uma “intensificação
cultural” em que projetos específicos, articulados com o mercado, promovem os valores da
“cultura local”.

Na Amazônia, etnografias produzidas a partir de diálogos com as obras de Gow e Sahlins têm
evidenciado que a transação comercial é uma das ou a principal forma de relação com a
alteridade, seja os brancos ou não-humanos. Tais etnografias expressam a pluralidade de
noções ameríndias, como “riqueza” e “pobreza”, que ultrapassam o conceito de “necessidade
material”, por vezes, acionado pelo Estado em relação aos povos ameríndios. Evidenciam
diferentes formas ameríndias de classificar as mercadorias, atribuindo suas origens aos brancos
ou a seres míticos, e diferenciando-as ou não de seus próprios artefatos (ver Hugh-Jones 1992;
Howard 2002; Dal Poz 2004; Barbosa 2005; Bonilla 2005; Gow 2007; Walker 2012; Grotti
2013; Paula 2015).

Em alguns casos, os ameríndios supervalorizam as mercadorias industrializadas em relação


aos seus próprios artefatos, em outros casos, as inferiorizam (Van Velthem 2002; Erikson
2009; Ewart 2013). A distinção que podem realizar entre mercadorias e artefatos inclui
diferentes modos de produção e incorporação, como a inserção de grafismos. As classificações
das mercadorias incidem nos tipos de transações em que são inseridas: algumas mercadorias
podem ser doadas, outras apenas são emprestadas (Mura 2006). Uma vez incorporadas, as
mercadorias entram em regimes específicos, incidindo em dinâmicas rituais e noções de
296
pessoa (Gordon 2006; Andrade 2007). Nas análises da incorporação do dinheiro e da inserção
de povos ameríndios em programas sociais do governo federal, como o Programa Bolsa
Família, as etnografias revelam que o dinheiro é incorporado em lógicas de acusação de
feitiçaria, e redes de aliança e parentesco em diferentes contextos (Serra da Silva 2017; Novo
2018; Vanzolini 2018).

Essas etnografias evidenciam que os ameríndios acessam e concebem as mercadorias e o


dinheiro de modos diversos, ou seja, possuem formas próprias de incorporar o sistema mundo
em seus “sistemas de mundo”, nos termos de Sahlins (1992). Esta terceira parte da tese segue
a trilha dessas discussões a respeito da incorporação de mercadorias, dinheiro e alimentos –
elementos que constituem o que os Korubo chamam de “coisas de nawa”, ou seja, coisas dos
brancos.

Os Korubo são considerados pela política indigenista brasileira como um povo de “recente
contato”. Dentre os povos de recente contato, os Korubo são um dos poucos que possuem
um protocolo documental, o Regime de Circulação de Bens (RCB), elaborado pelo órgão
indigenista para regular suas relações com as mercadorias industrializadas e o dinheiro.
Conforme Sahlins (1972) destacou, as mercadorias mantêm e geram relações sociais. Então,
o protocolo visa controlar também as relações sociais dos Korubo. A classificação estatal
(“recente contato”) e os seus dispositivos, como o RCB, remetem a um imaginário vigente
no órgão indigenista sobre “tradição” e “aculturação”.

No capítulo 5, Da guerra a troca, centralizarei a discussão em torno do RCB, apresentando a


concepção do órgão indigenista em contraponto à concepção dos Korubo sobre a política
indigenista. Discutirei o modo como os Korubo concebem transações de doação-troca-venda
com os brancos e apresentarei a inserção dos Korubo em uma nova lógica: o trabalho
remunerado. No capítulo 6, As coisas, apresentarei os processos de “indigenização” de
determinadas mercadorias e alimentos, discutindo conceitos, como “posse”, “sovinice” e
“roubo”. Analisarei o modo como as demandas emergem no interior das casas unifamiliares
e da maloca e tornam-se compras nas cidade. Focarei em determinadas mercadorias, como as

297
espingardas, os motores peque-peque, as roupas industrializadas, e os alimentos, discutindo
a diferença entre “comida de branco” (nawan pete) e “comida de Korubo”. 126

126
Poderíamos glosar o termo “comida de Korubo” por korubon pete. No entanto, majoritariamente, os Korubo
falam esse termo na língua portuguesa.
298
5

DA GUERRA A TROCA

Ao chegar nas aldeias em 2019, me deparei com pessoas, majoritariamente, jovens e


monolíngues. Os Korubo jamais haviam hospedado um branco em suas aldeias a longo prazo.
São ainda vulneráveis às doenças infectocontagiosas e necessitam da biomedicina para tratar
malária e síndromes gripais. Ao mesmo tempo, as aldeias estão repletas de objetos
industrializados, roupas, instrumentos não-indígenas de caça e pesca, utensílios de cozinha,
alguns celulares e motores peque-peque, e os Korubo possuem preferências alimentares bem
definidas em relação à “comida de branco”. Esses itens estão distribuídos de modo desigual
entre os cronotopos. Tal mescla de elementos considerados tradicionais e modernos (e não
uma oposição) nos leva a refletir sobre os conceitos da política indigenista brasileira voltada
aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (PIIRC).

Este capítulo, divide-se em três seções. Na primeira, analiso como a política indigenista
voltada aos PIIRC se expressa no caso korubo e como os Korubo concebem-na. Na segunda,
mostro como a concepção dos Korubo sobre a política indigenista e seus dispositivos, como
o RCB, baseia-se em concepções sobre os brancos que, por sua vez, estão em constante
transformação. Na última seção, analiso a passagem em curso de um regime de trocas com o
órgão indigenista para a inserção dos Korubo em atividades remuneradas, o que expressa a
passagem da guerra à troca, conforme Lévi-Strauss (1976).

A emergência da categoria “recente contato” é recente na trajetória do órgão indigenista


brasileiro e articula-se em um contexto mais amplo com concepções sobre “isolamento”. O
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão indigenista criado no século XX, possuía uma
concepção dos ameríndios como estando em um processo de incorporação à sociedade
nacional: de “índios” passariam a “trabalhadores agrícolas” por meio da “atração” e
“pacificação” operadas pelos agentes estatais. O alvo desse projeto de integração por parte do
Estado era os chamados “índios bravos” ou “isolados”: aqueles não batizados e sem relações
comerciais com os brancos.

299
Essa concepção dos “índios” em transição já estava presente no Código Civil de 1916 que os
apresentava como “relativamente incapazes”: “crianças” carentes de um “tutor” que, por sua
vez, seria o próprio Estado. Em 1910, esse tutor era o SPI e, em 1968, tornou-se a FUNAI.
O Estatuto do Índio (Lei nº 6.001), elaborado cinco anos depois da criação da FUNAI,
expressa essa ideia de incorporação à sociedade nacional. O órgão indigenista tal como o
concebemos hoje nasceu baseado na ideologia positivista de Marechal Rondon e assumia o
papel de intermediar interesses estatais e privados para viabilizar a exploração econômica dos
territórios ocupados por ameríndios (Ramos 1992; Souza Lima 1995).

Até então, a função do órgão indigenista era realizar o contato com os isolados para viabilizar
a construção de empreendimentos privados e estatais, como a Rodovia Perimetral Norte,
projetada para ligar o Brasil ao Platô das Guianas. Ao longo dos anos 1970-80, os contatos
realizados com essa finalidade geraram inúmeras mortes entre os povos, pois o órgão
indigenista não adotava medidas sanitárias previamente planejadas para conter adoecimentos
nos contatos. Diante desse cenário, o ano de 1968 representa um marco na política
indigenista brasileira, pois foi quando ocorreu o I Encontro de Sertanistas em Brasília/DF:
ocasião em que consolidou-se uma mudança de concepção por parte dos agentes estatais em
torno do contato (Freire 2005: 108-113).

Em vez de fazer o contato à serviço dos interesses econômicos, teoricamente os agentes estatais
assumiram como prioridade não realizar o contato com “isolados”. Outrora instrumento de
pacificação e incorporação, o contato passou a ser visto como um risco à sobrevivência dos
povos. A chamada “política do não contato”, criada em 1987, prevê a inclusão de medidas
sanitárias e educacionais no “pós-contato” vivenciado pelos ameríndios. Com a política do
não-contato, a proteção territorial em áreas com presença de isolados ganhou evidência.
Através de sobrevoos, geoprocessamento, expedições de averiguação, e análise de rastros e
vestígios, o órgão indigenista passou a mapear e registrar a presença de isolados para proteger
essas áreas. 127 Essa mudança na política indigenista preconiza também diretrizes voltadas para
povos de “recente contato”. Conforme a FUNAI, este conceito diz respeito a:

127
Um dos reflexos dessa mudança na política indigenista resultou, em 1998, na homologação da Terra Indígena
Massaco, no estado de Rondônia, para uso exclusivo de isolados, ver Villa Pereira (2018).
300
povos ou grupos indígenas que mantêm relações de contato permanente e/ou
intermitente com segmentos da sociedade nacional e que, independentemente
do tempo de contato, apresentam singularidades em sua relação com a
sociedade nacional e seletividade (autonomia) na incorporação de bens e
serviços. São, portanto, grupos que mantêm fortalecidas suas formas de
organização social e suas dinâmicas coletivas próprias, e que definem sua
relação com o Estado e a sociedade nacional com alto grau de autonomia.

Art. 2º. II - Povos Indígenas de Recente Contato: povos ou agrupamentos


indígenas que mantêm relações de contato ocasional, intermitente ou
permanente com segmentos da sociedade nacional, com reduzido
conhecimento dos códigos ou incorporação dos usos e costumes da sociedade
envolvente, e que conservam significativa autonomia sociocultural. 128

Os povos que foram contatados nos anos 1990, como os Korubo contatados no evento 1,
tornaram-se “referências recém-contatadas” (Vaz 2011). Em 2010, houve uma restruturação
no órgão indigenista refletida nas categorias e classificações atuais. Essa reestruturação envolve
a disposição de duas coordenações dentro da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de
Recente Contato (CGIIRC): Coordenação de Políticas para Povos Indígenas de Recente
Contato (COPIRC) e a Coordenação de Proteção e Localização de Índios Isolados
(COPLII). Ambas vinculadas a 11 Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), consideradas
“unidades específicas” e distintas das Coordenações Regionais (CR), cujo objetivo é
proporcionar “assistência específica” e “não homogênea” aos PIIRC. Uma das funções da
CGIIRC, via COPIRC, é implementar “políticas sociais universais” para os povos de contato
recente. Essa política ainda é considerada estando em processo de consolidação (Jabur 2021:
418-9).

Mesmo após o Encontro em 1987, vários contatos foram realizados, sobretudo, em 2014 e
2015, como os eventos 2, 3, 4 e 5 com os Korubo e, mais recentemente, o evento 6. Cabe ao
órgão indigenista avaliar casos em que a vida dos povos isolados esteja ameaçada a ponto de
ser necessária a realização do contato, ou seja, as concepções sobre “risco” utilizadas nessa
avaliação são as dos próprios agentes estatais que elaboram e autoavaliam seus argumentos

128
Fontes: https://www.gov.br/funai/pt-br/atuacao/povos-indigenas/povos-indigenas-isolados-e-de-recente-
contato-2/povos-de-recente-contato-
1#:~:text=A%20Funai%20considera%20%22de%20recente,nacional%20e%20seletividade%20(autonomia)
%20na; https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/57220459; Acessos:
02/12/21; 20/12/18.
301
sobre realizar ou não determinado contato, configurando uma espécie de monopólio do órgão
indigenista sobre o “fazer contato”. Se, antes de 1987, os agentes estatais obedeciam a
interesses de exploração econômica, após a política do não contato, em alguma medida,
passaram a atender suas concepções, pautados em ideais de serem técnicos e especialistas no
tema. A Portaria Conjunta FUNAI-SESAI nº 4.094 é considerada pelos agentes estatais como
um dos avanços da atual política indigenista. Entretanto, cabe notar que foi com grande
atraso (somente em 2018) que o órgão indigenista concebeu sua atuação conjunta e planejada
com equipes de saúde em situações de contato.

Vemos então que enquanto a categoria “isolado” existia, pelo menos, desde os anos 1970, a
categoria “recente contato” é tão nova que torna-se sua subsidiária. Algumas críticas já foram
feitas em torno do conceito de recente contato, justamente, por abrigar certas representações
em torno dos ameríndios, atrelando-os a ideais de inocência e fragilidade (Gallois 1992). Os
critérios para a definição dos povos como pertencentes à essa categoria são ainda ambíguos e
confusos. 129 Embora não remeta ao aspecto temporal (apesar do termo “recente”), resta-nos
a dúvida em torno dos critérios para a definição. Uma das alternativas apresentadas por Jabur
(2021: 423) é que esse conceito diz respeito a “configuração da relação que [esses povos]
estabelecem com os âmbitos do Estado nacional”. Sob essa ótica, os povos de recente contato
são aqueles que dialogam apenas com os agentes estatais e acessam poucos serviços públicos,
como os de saúde.

As duas acepções do conceito de “recente contato” supracitadas não dizem respeito à


totalidade das relações que os Korubo estabelecem com os brancos, conforme a primeira parte
da tese, e sim preconizam um modo de atuação específico do órgão indigenista em relação
aos povos incluídos nessa categoria. No capítulo 1, vimos que, pelo menos, desde o século
XIX, os Korubo adotaram uma postura de recusa a certo tipo de relação com os brancos. Tal
postura não significa uma ausência de relações, e sim um contexto em que as relações eram

129
Conforme a FUNAI, os povos de recente contato estão espalhados em cerca de 19 terras indígenas no Brasil.
Temos etnografias entre alguns destes, como os Awá-Guajá (Garcia 2010); Suruwahá (Aparicio Suárez 2014);
Hupd’äh (Ramos 2013; Marques 2015; Serra da Silva 2017); Kanoê e Akuntsú (Tavares 2020); Tsohom-dyapa
(Gil 2020); Zo’é (Gallois 2015; Braga 2017; Ribeiro 2020); e os índios do Xinane (Almeida 2021), por exemplo.
302
predominantemente de guerra e, com o passar do tempo, estão se tornando guerra potencial,
ou melhor, troca (Lévi-Strauss 1976).

A primeira acepção do conceito menciona a ideia de “autonomia” duas vezes. Na primeira


definição, autonomia é sinônimo de “seletividade”. Supostamente, os povos de recente
contato selecionam (ou melhor, o Estado seleciona para eles) determinados bens e serviços
para “incorporar” – e não “indigenizar” (Sahlins 1992). Isso significa que esses povos não
acessam mercadorias industrializadas e serviços de modo irrestrito. O fato de não acessarem
todo tipo de bens e serviços, mas apenas alguns, é um sinônimo de que eles têm “autonomia”
(e não dependência) em relação à sociedade nacional. Há um pressuposto de que tais povos
não acessam todos os tipos de bens e serviços porque não “necessitam”. Supostamente, o fato
desses povos não acessarem de modo irrestrito bens e serviços tem como consequência o
“fortalecimento” da “organização social” e da “dinâmica coletiva própria” – o que alguns
chamariam de “cultura”.

A segunda acepção do conceito, presente na tardia Portaria Conjunta, também traz a ideia de
“autonomia” e, mais que isso, a concepção de que usos e costumes dos brancos são
“incorporados” pelos ameríndios, cujo sentido vai na contracorrente do processo de
“indigenização” nos termos de Sahlins (1992). Ora, sabemos que em vez de incorporarem as
mercadorias e os serviços tal como existem entre os brancos, os ameríndios costumam colocar
esses novos elementos à serviço de seus modos de vida, configurando usos e costumes
diversos. 130

As duas acepções do conceito estatal abrem margem para a interpretação de que determinados
povos (“recente contato”) são diferentes de outros porque consomem menos ou apenas
determinadas mercadorias e serviços (o “necessário”), o que proporciona a manutenção de
uma cultura “tradicional” em relação a outros povos com relações mais intensas com os
brancos. De alguma forma, o conceito estatal abre margem para o pensamento de que o acesso

130
Os efeitos dos bens sobre os formatos relacionais ameríndios diferem conforme a natureza dos bens e suas
formas de incorporação (caso das roupas, ver Vilaça 2000; Gow 2007; animais de abate, Vander Velden 2011;
Costa 2017; dinheiro, Gordon 2006; documentos de identificação pessoal, Allard 2012; Miller 2015). Para a
reflexão sobre as condições e os termos em que os conhecimentos do mundo dos brancos são engajados,
processados e servem aos projetos indígenas, conferir os seguintes casos: matemática (Vilaça 2018; Almeida
2019); escrita (Franchetto 2008); cristianismo (Wright 1999; Vilaça 2016); e discurso político (Gallois 2002).
303
irrestrito a bens e serviços gera “aculturação”, ou ainda, de que alguns povos são mais
ameríndios do que outros – pressuposto do qual a antropologia vem tentando se desvencilhar
desde os anos 1980-90.

Historicamente, as mercadorias compõem o cerne do contato entre os agentes estatais e os


ameríndios. Durante os primeiros encontros, as mercadorias serviam para “apaziguar” os
ameríndios, transformando a guerra real em potencial, por assim dizer. Hoje, o objetivo da
distribuição das mercadorias mudou. Não visa mais apaziguar, mas configura uma “relação
de poder” que impacta esses povos, nos termos de Gallois (1992: 8):

Na fase de primeiros encontros, a oferta de bens desejados pelos índios visa


apaziguar a eventual agressividade dos isolados. A aceitação e a troca de
artefatos por parte dos índios, representou, historicamente, um marco da
conquista. No passado, não muito remoto, os “pacificadores” recolhiam
sobretudo armas (ou seja, desarmavam os índios) que eram encaminhadas aos
museus, cujos acervos evidenciam hoje a desproporção desse tipo de artefatos
em relação a outros objetos da cultura material indígena. Atualmente, os
propósitos da distribuição de bens mudaram, mas a manipulação de presentes
para atração continua um elemento central nas técnicas dos “primeiros
contatos”. Admitindo-se que a maioria dos grupos isolados não só tem
conhecimento da tecnologia dos brancos, como se aproximam deles para obter
tais objetos, sua distribuição se transforma rapidamente numa relação de
poder. O gesto se transforma num meio de obter não apenas docilidade, mas
sobretudo criar relações privilegiadas com determinados segmentos ou
indivíduos do grupo. A competição entre agências de contato exerce-se
habitualmente através dessas relações. Quando o gesto, de momentâneo ou
ocasional, se transforma numa política de relacionamento – operando seleções
definidas pelos agentes de contato – ele acaba por afetar diretamente o sistema
de relações sociais e políticas internas da sociedade indígena.

No caso korubo, vimos no capítulo 2 não apenas a oferta de mercadorias durante a fase do
“namoro”, em 1996, mas também um fluxo de bens consecutivo aos eventos de contato.
Uma vez feito o evento inicial, as mercadorias continuaram a circular entre os Korubo até
adquirir o formato de um protocolo criado pelos agentes estatais: o Regime de Circulação de
Bens (RCB). O RCB dos Korubo é uma das expressões da atual política indigenista voltada
aos PIIRC. Dentre os povos considerados de “recente contato”, apenas outro povo possui
uma iniciativa de mesma natureza (ou seja, um protocolo escrito), porém, com conteúdo
diferente do RCB. Trata-se dos Zo’é.

304
Os Zo’é pertencem à família linguística Tupi-Guarani e constituem uma população de 330
pessoas, organizadas em mais de 50 aldeias na Terra Indígena Zo’é, no estado do Pará. Nos
anos 1980, eles foram contatados por missionários e, nos anos 1990, passaram a ter relações
contínuas com a FUNAI (Gallois e Havt 1998). Em 2010, os Zo’é fizeram expedições para
fora da terra indígena, em direção aos Campos Gerais, buscando mercadorias e outras relações
sociais. Dois anos depois, em 2012, a FPE Cuminapanema criou o Fundo de Artesanato Zo’é
(FAZ) para distribuir mercadorias e evitar que eles fizessem novas expedições para fora da
terra indígena (Gallois 2015: 293-4; Braga 2017: 22; Ribeiro 2020: 21).

A criação do FAZ e o acesso às mercadorias têm gerado modificações na vida dos Zo’é, como
o aumento das expedições zo’é (não mais para fora da terra indígena) e a emergência da figura
do “representante”. Isso ocorre porque os conceitos de autoridade e chefia zo’é estão
relacionados à aquisição de conhecimentos e às mercadorias. Uma das atuais transformações
no perfil da chefia zo’é é o fato de estar passando dos homens mais velhos aos mais jovens,
pois um dos fatores mais valorizados pelos Zo’é é incorporar e fazer circular os conhecimentos
adquiridos, o que inclui os conhecimentos dos brancos (Gallois 2015).

O RCB dos Korubo e o FAZ dos Zo’é são protocolos criados pelo Estado, baseados na
categoria de “recente contato” e, em alguma medida, no pressuposto da “aculturação”, que
visam regular o acesso dos ameríndios às mercadorias e ao dinheiro. Controlar esses acessos é
também uma tentativa de gerir as relações estabelecidas pelos ameríndios com outros povos
e com os brancos. No entanto, os ameríndios reagem criativamente aos dispositivos estatais
e “indigenizam” as mercadorias e o dinheiro. Vejamos então o caso do RCB criado pela FPE
Vale do Javari, em 2011, para os Korubo.

5.1. O Regime de Circulação de Bens

O RCB não prevê a distribuição e o consumo de alimentos, dinheiro nem a realização de


atividades de letramento. O foco do Estado, a partir desse protocolo, é regular o acesso dos
Korubo às mercadorias industrializadas, ao dinheiro e prescrever uma tabela de valores para
a venda dos artefatos produzidos pelos Korubo. Apesar do RCB prescrever somente o acesso

305
a algumas mercadorias e ao dinheiro – itens elencados nas tabelas desta seção –, outros tipos
de mercadorias, alimentos industrializados e, sobretudo, o dinheiro são elementos acessados
pelos Korubo no pluricontato com os agentes estatais, ou seja, nas fases anteriores e
posteriores aos eventos de contato.

Na aproximação inicial, a doação de mercadorias por parte dos agentes estatais costuma
nortear as concepções ameríndias em torno dos brancos. No caso dos Wajãpi, falantes de
língua Tupi-Guarani, estes distinguiam os “brancos amigos”, agentes estatais doadores de
mercadorias, de outros brancos que não faziam doações. As mercadorias foram centrais para
que os Wajãpi decidissem acompanhar os agentes estatais e se instalassem nas proximidades
do posto da FUNAI nos anos 1970 (Gallois 2002: 208). A doação abundante de mercadorias
também foi central na concepção inicial de “generosidade” que os Arara, falantes de língua
Karib, atribuíram aos agentes estatais da Frente de Atração (Teixeira Pinto 2002: 408).

No caso dos Korubo, o evento 1 contou com a fase de “namoro”, caracterizada pela entrega
de mercadorias e alimentos aos Korubo. Após 1996, os Korubo pediam “brindes” aos agentes
estatais (Aquino 1998: 31). Os relatos de antigos funcionários da FUNAI destacam que os
Korubo frequentemente os acusavam de sovinice. Não sem razão, as mercadorias permearam
as narrativas dos agentes estatais sobre a morte de Sobral, conforme o capítulo 2. Em todas
as hipóteses dos brancos, supostamente, Sobral foi morto por ter sovinado determinadas
mercadorias aos Korubo.

De lá para cá, as mercadorias continuaram no cerne da relação entre os agentes estatais e os


Korubo, relação que se transformou ao longo do tempo. Os agentes estatais, de alguma forma,
ainda operam com instrumentos de sedução e atração que remetem ao “namoro” de outras
décadas. As mercadorias que serviram, inicialmente, para atrair os Korubo e, posteriormente,
para apaziguá-los, transformando a guerra real em potencial, nos últimos anos servem
também para “consolidar a relação” e extrair informações dos Korubo. Um exemplo disso foi
a expedição realizada pelos agentes estatais em abril de 2017. Nessa ocasião, eles levaram os
Korubo dos cronotopos A e B ao igarapé Marubão, no rio Itaquaí, para visitar roças antigas.
Ao mesmo tempo, objetivavam coletar informações sobre a ocupação dos Korubo antes dos

306
eventos de contato. Diante das perguntas feitas por um agente estatal, alguns Korubo
reagiram com desconfiança, abrandada com a doação e a promessa de mercadorias:

Lalanvet [matxo do cronotopo B] a princípio ficava muito desconfiada e já tem


a mania dos Korubo de contato mais antigo [cronotopo A] de pedir
insistentemente utensílios, muitos que já havia doado anteriormente. A
estratégia que utilizei para consolidar a relação e poder conversar sobre mais
coisas foi a de primeiramente resolver a questão dos bens. Me comprometi a
conseguir os itens que são mais pedidos, como faca pequena, panela e terçado
(Vargas da Silva 2017a: 9).

Percebemos que o agente estatal atribui a determinados Korubo – especificamente, àqueles


contatados no evento 1 (“de contato mais antigo”) –, o hábito (“mania”) de pedir
mercadorias. As mercadorias aparecem como uma “estratégia” do agente estatal para se
aproximar dos Korubo em busca de mais informações sobre a ocupação territorial anterior ao
pluricontato. Não precisou que o agente estatal possuísse as mercadorias em mãos, pois
apenas a promessa de doação (“me comprometi a”) de mercadorias específicas, como
ferramentas de metal e utensílios de cozinha, foi o suficiente para que Lalanvet matxo
fornecesse as informações demandadas.

Se, por um lado, as mercadorias são acionadas pelos agentes estatais como uma “estratégia”
na relação com os Korubo, por outro lado, a partir de 2011, os agentes estatais buscaram
controlar o acesso dos Korubo às mercadorias obtidas em transações com outros brancos.
Desde a coordenação de Rieli Franciscato na FPE Vale do Javari, havia tentativas de
padronizar o acesso dos Korubo às mercadorias. Franciscato contou com o auxílio do linguista
Sanderson Oliveira, que naquela época desempenhava atividades de letramento junto aos
Korubo do cronotopo A. Por volta de 2010 e 2011, sob a coordenação de Fabrício Amorim,
esses esforços ganharam o formato de um protocolo escrito: o RCB.

O RCB, protocolo elaborado pelos agentes estatais da FPE Vale do Javari, foi criado no
âmbito do Programa Korubo (PK) e ganhou o formato de um documento em 2011. Em
2009, a “FUNAI Brasília” começou a articular a criação do PK. Dez anos depois dessas
articulações, o PK foi instituído oficialmente através da Portaria nº 693/PRES/2019. 131 Esta

131
Fonte: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2019/funai-institui-programa-korubo-pioneiro-
em-acoes-integradas-para-povos-de-recente-contato. Acesso: 30/05/19.
307
é a primeira iniciativa dessa natureza voltada aos povos de “recente contato”. O RCB – criado
como uma ação do PK, embora antes da emissão da Portaria do Programa – visa “padronizar”
as relações de troca e venda de objetos (artefatos e industrializados) entre os brancos e os
Korubo, e evitar “consequências negativas” na vida dos Korubo.

O PK e o RCB são argumentados pelos agentes estatais como reflexos de uma política
indigenista diferenciada para os PIIRC, mas trata-se de uma política elaborada para os
Korubo. No Vale do Javari, há outro povo considerado de “recente contato”: os Tsohom-
dyapa, falantes de língua Katukina, que residem com os Kanamari na aldeia Jarinal, rio Jutaí.
O caso dos Korubo difere dos Tsohom-dyapa, pois estes não possuem um Programa ou
protocolo, como o PK e o RCB. Por parte do Estado, inexistem ações direcionadas aos
Tsohom-dyapa tal como existem para os Korubo (ver Gil 2020: 105). Esse contraste chama
ainda mais a nossa atenção para os esforços estatais direcionados a determinados povos dentre
aqueles considerados de “recente contato”. Por que o Estado se empenha mais em elaborar
políticas específicas para alguns povos do que outros que também são englobados na categoria
“recente contato”? Ou melhor, por que o Estado cria dispositivos para regular os acessos de
determinados povos, e não de outros?

Na definição estatal da categoria “recente contato”, a “seletividade”, sinônimo de


“autonomia”, se evidencia em um controle e/ou “padronização” exercido pelos agentes
estatais sobre as mercadorias e os serviços acessados pelos Korubo. Segundo esse ponto de
vista, a autonomia é um atributo dos Korubo e a seletividade é um exercício dos agentes
estatais. Na prática, a autonomia, caso exista, sofre interferência do Estado.

O RCB assemelha-se a outro documento: o Diretrizes e Acordos de Conduta e Convivência:


Equipe/Visitantes/ Korubo (DACC). A partir do RCB e do DACC, os agentes estatais
exercem a “seletividade” na incorporação das mercadorias e dos serviços entre os Korubo.
Durante a coordenação de Antenor Vaz, a “FUNAI Brasília” elaborou o DACC para as FPE.
Trata-se de um documento de seis páginas, composto por uma apresentação e 11 seções: (1)
Doação; (2) Troca, venda, compra; (3) Visitas; (4) Registro audiovisual; (5) Tecnologias
audiovisuais e digitais; (6) Alteridade; (7) Território; (8) Saúde; (9) Bebidas alcóolicas; (10)

308
Hierarquia funcional; (11) Proselitismo religioso. Naquele contexto, havia apenas o primeiro
evento de contato com os Korubo, realizado em 1996.

O DACC prevê normas existentes no atual RCB, elaborado posteriormente. Mas o DACC
estabelece outras regras sobre o comportamento dos agentes estatais e dos visitantes. Na seção
seis, prevê que na presença dos Korubo, os brancos evitem “palavrões e/ou gestos” pejorativos
a respeito do mundo não-indígena. Contudo, durante a pesquisa de campo, o DACC parecia
não vigorar mais ou, pelo menos, não da forma como fora proposto. Por exemplo, o uso do
termo “veado”, de modo pejorativo e homofóbico para se referir aos homossexuais, chamava
a atenção. Enquanto alguns agentes estatais ensinaram para os Korubo que chamar outro
homem de “veado” significa que este mantém relações sexuais com outro homem, os Korubo
subverteram este uso. Eles acionam o termo pavukun (Cervidae), que em sua língua
corresponde ao animal caçado e consumido, para se referirem exclusiva e diretamente aos
agentes estatais.

O RCB, por sua vez, regula transações econômicas entre os Korubo e os brancos. Possui 11
páginas, três tabelas e seis seções: (1) justificativa; (2) objetivo; (3) doações; (4) troca; (5)
venda; (6) compra. Segundo o texto do RCB, esse protocolo serve para “padronizar” as
relações de troca e venda de objetos (artefatos e industrializados) entre os brancos e os
Korubo. A partir dessa padronização, evitar “consequências negativas” na vida dos Korubo,
como “danos na estrutura organizacional” e “empobrecimento da cultura material”, de modo
que os agentes estatais consigam “acompanhar as demandas” dos Korubo e ter “subsídios para
o planejamento orçamentário” da FPE Vale do Javari.

O RCB preconiza que alguns itens sejam “doados” pela FUNAI aos Korubo sem
periodicidade fixa, pois as doações dependem do orçamento do órgão indigenista e da vida
útil das mercadorias, ou seja, estas não precisam ser doadas novamente “antes que percam seu
uso”. As doações devem incluir as “demandas dos Korubo” que, na época, eram a parcela que
tornou-se o cronotopo A. Portanto, os Korubo precisam ter um “acompanhamento
constante” para evitar o excesso de doações e a produção de lixo nas aldeias. Confira abaixo
os itens que são doados pelos agentes estatais aos Korubo, conforme o RCB:

309
Item Quantidade e distribuição Periodicidade
pilha 2 pares por família mensal
sabão 2 barras por família mensal
isqueiro 1 por família bimestral
lanterna 2 por família trimestral
lima 1 por família trimestral
terçado 1 por cada homem adulto semestral
machado 1 por cada homem adulto anual
Tabela 10. Doações da FUNAI para os Korubo.

O protocolo preconiza que os itens doados sejam entregues pelo chefe da Base Ituí, pela
coordenação da FPE ou integrantes do PK com o preenchimento de uma “ficha”; as doações
de novos itens devem ser feitas a partir da devolução dos itens usados; não recomenda-se
doações de objetos e alimentos aos Korubo sem o “conhecimento e consentimento” dos
agentes estatais. Não deve-se priorizar pessoas korubo em detrimento de outras para evitar
“discrepâncias políticas e de interlocução”. Deve-se evitar doações de novas mercadorias que
criem “dependências” na relação entre os Korubo e os brancos, como armas de fogo e
munições.

Na quarta seção, o RCB considera que existem relações de troca entre produtos da roça e
artefatos korubo (“artesanatos”) por mercadorias existentes na Base Ituí. Por um lado, os
Korubo demandam “insumos para manutenção dos seus motores pec pec”, por outro, as
trocas com os Korubo podem “ajudar na complementação do rancho disponível aos
trabalhadores” da Base. Essas trocas não devem “prolongar a dependência” dos Korubo em
relação às mercadorias, pois com as “limitações orçamentárias” da FUNAI podem se tornar
insuficientes às “necessidades” da Base e dos Korubo.

O protocolo destaca que as demandas da Base Ituí não devem ser prejudicadas e, para que as
trocas sejam efetuadas, é necessário que as mercadorias existam em quantidade suficiente na
Base. Similar às doações, essas trocas são realizadas pelo chefe da Base, coordenação da FPE
ou integrantes do PK através do preenchimento de “planilha referente”. Confira abaixo os
itens que são trocados (e não doados) entre os agentes estatais e os Korubo, conforme o RCB:

310
Item Equivalência Periodicidade
gasolina 10 litros = 10 a 20 macaxeiras (ver máximo de 60 litros
tamanho) de gasolina por mês
10 litros = 1 cacho grande de (30 litros para cada
bananas ou 2 cachos pequenos aldeia)
10 litros = 2 cachos de pupunha
10 litros = 1/3 paneiro de farinha
óleo 4t 2 litros de óleo = 10 litros de máximo de 2 litros de
gasolina óleo por mês (1 litro
para cada aldeia)
graxa 1 pote = 10 litros de gasolina máximo de 2 potes de
graxa por mês (1 pote
para cada aldeia)
Tabela 11. Trocas entre a FUNAI e os Korubo.

Esta tabela prevê, dentre os “produtos da roça”, uma categoria chamada “outros”: eventuais
alimentos que os Korubo possam fornecer para a troca com os agentes estatais. Durante a
elaboração do protocolo, o valor de mercado para o litro da gasolina era R$ 3,00. Além disso,
havia somente duas aldeias korubo no rio Ituí e um motor peque-peque. Então, além das
trocas, o RCB prevê que “peças repositoras de motor e ferramentas” poderiam ser “trocadas”
com os Korubo, de acordo com o “valor de mercado” em casos de “quebra do motor”. Caso
os agentes estatais não considerem como uma “emergência”, os Korubo devem adquirir peças
e ferramentas com “seu próprio dinheiro”, obtido através das vendas, conforme veremos. As
peças de motores, inutilizadas na Base Ituí, poderiam ser “doadas” para os Korubo, decisão
que cabe aos agentes estatais.

Outros objetos poderiam ser “trocados” com os Korubo, desde que as “normas de doação”
fossem seguidas. Dentre elas, a “presença e consentimento” do chefe da Base Ituí, da
coordenação da FPE ou integrantes do PK. Essas trocas não devem “interferir na estrutura
organizacional dos indígenas, criar discrepâncias políticas, nem dependências e obedecerá os
valores de mercado do objeto não indígena a ser trocado (levando em consideração o estado
do objeto) e os valores dos bens indígenas referentes a cada categoria de comprador” (: 7).

Quando os agentes estatais elaboraram o RCB, as fontes de renda dos Korubo eram a venda
dos produtos da roça e dos artefatos. Portanto, a quinta seção do RCB busca “tabelar os
valores” desses itens vendidos pelos Korubo com o auxílio dos agentes estatais. Os valores

311
previstos oscilam de acordo com o local da venda, a quantidade dos itens vendidos e as
categorias de compradores. O local da venda dos itens poderia ser as aldeias, a Base Ituí, e as
cidades próximas ou distantes. Os preços flutuam de acordo com a “oferta”. Para a venda dos
artefatos, o RCB prevê “categorias de compradores” e o valor dos artefatos é “flexibilizado”
dentro de uma margem do “mínimo tabelado”. Há duas categorias de compradores no
protocolo, que chamarei de “comprador 1” e “comprador 2”. O “comprador 1” são os agentes
estatais (FUNAI e SESAI), e o “comprador 2” são os demais brancos, como os pesquisadores
e outros profissionais. O protocolo prevê preços diferenciados para cada uma dessas categorias
de compradores.

O argumento para o estabelecimento de valores diversos para perfis de compradores é que os


agentes estatais pagam menos por comprarem os artefatos nas aldeias korubo e, além disso,
“sofrerem algum tipo de intimidação ou pressão verbal [por parte dos Korubo] para comprá-
los”. Tal argumento denota a relação entre os Korubo e os agentes estatais no contexto da
criação do protocolo. Dessa maneira, uma pessoa da FUNAI ou SESAI compra determinado
artefato por um valor X na aldeia. Esse valor torna-se X+Y se o artefato for comprado na
cidade. O mesmo artefato, comprado por outros brancos que não sejam agentes estatais, custa
X+Y+Z.

Os valores dos produtos da roça não variam conforme categorias de compradores, e seguem
o “valor de mercado”. Podem ser comprados a partir do “consentimento e presença” do chefe
da Base Ituí, da coordenação da FPE ou integrantes do PK. As vendas devem respeitar três
“normas”: não contração de dívidas, exceto em casos de artefatos transportados às cidades;
proibição de lucro por parte dos brancos a partir da venda dos artefatos, exceto reunir recursos
para cobrir os custos dos deslocamentos; supostamente, o dinheiro da venda dos artefatos é
“responsabilidade” do “indígena”. Isto não significa que o poder de compra dos Korubo seja
irrestrito, pois os agentes estatais com frequência opinam sobre o que eles devem ou não
consumir.

A última seção do RCB regula as compras que os Korubo passaram a fazer durante as idas à
Tabatinga/AM. Os agentes estatais acompanham os Korubo nas compras de “roupas, panelas,
material de pesca, vasilhas de plásticos e alguns alimentos como bolacha, macarrão e outros”.

312
O acompanhamento deve ser integral com um “diálogo franco e constante” para explicar por
qual motivo determinado item não deve ser adquirido e quais consequências a compra desse
item trará para a vida dos Korubo. Em casos de “necessidades banais”, o protocolo preconiza
uma “interlocução firme” com os Korubo. Ao final, o RCB afirma a importância do processo
de “etnoeducação” para que os Korubo apreendam os “métodos e códigos” dos brancos,
suprindo suas demandas sem “prejudicá-los”. 132

Com a criação do RCB, as pessoas do cronotopo A abriram uma roça para a produção de
excedentes destinados à venda, distinguindo “roça para comer” e “roça para vender”.
Inicialmente, produziam farinha com mandioca mansa. Posteriormente, plantaram
mandioca brava para produzir farinha, algo que não é uma prática tradicional dos Korubo,
conforme veremos no capítulo 6. Os Korubo adquiriram o primeiro motor peque-peque a
partir do dinheiro das vendas de bananas e farinha em Tabatinga/AM, reguladas pelo RCB e
acompanhados pelos agentes estatais. 133 Com a aquisição desse motor, os Korubo do
cronotopo A buscaram outros Korubo (“isolados”) nos rios Itaquaí e Coari, e passaram a
abordar os Marubo, no rio Ituí, pedindo mercadorias e alimentos industrializados. Utilizaram
a tecnologia de navegação dos brancos para traçar novas relações e obter cada vez mais bens,
extrapolando o RCB.

Nesse contexto, os Korubo se interessavam por equivalências de valores e buscavam


compreender transações monetárias. Por exemplo, perguntavam aos agentes estatais quantas
bananas precisavam vender para chegar ao preço de uma caneta (Fabrício Amorim,
comunicação pessoal). Na medida em que novos eventos de contato ocorreram, a venda dos
produtos da roça por parte dos Korubo fracassou, pois o contingente populacional aumentou
e a produção voltou-se à alimentação dos cronotopos contatados em novos eventos. Nesse
período, os agentes de saúde relatam que os Korubo enfrentaram quadros de “insegurança
alimentar” (ver Albertoni e Reis 2017: 816-823).

132
Até hoje, as atividades de educação não ocorrem de forma contínua entre os Korubo, tornando-se uma
demanda atual.
133
Outros povos adquiriram seus primeiros motores a partir do recebimento de benefícios, como os Hupd’äh
via Programa Bolsa Família (Ramos 2013; Serra da Silva 2017).
313
Ao longo da pesquisa de campo, os agentes estatais retomavam o tema do RCB na
interlocução com os Korubo. Um dos papéis da equipe da FPE Vale do Javari é relembrar
aos Korubo as normas previstas no protocolo, pois com frequência os Korubo pedem
mercadorias e alimentos industrializados que não estão previstos no documento. Os antigos
coordenadores da FPE Vale do Javari argumentam que o RCB, inicialmente, objetivava evitar
conflitos internos aos Korubo, e entre eles e os brancos, ou seja, nivelar as doações e trocas
para que alguns brancos não aparecessem como “bons” (vëyla) em contraste a outros,
considerados como “sovinas” (kulaspek) ou “ruins” (txuturap). No entanto, na prática ocorre
exatamente esse tipo de distinção, pois os Korubo associam as doações de mercadorias do
RCB a determinados agentes estatais. A partir disso, os classificam como vëyla ou txuturap,
característica que se estende aos coordenadores da FPE Vale do Javari: “chefes bons” ou
“chefes ruins”.

Os chefes considerados bons são aqueles que visitam as aldeias korubo com frequência e
entregam as mercadorias previstas nas doações do RCB, mostrando sua generosidade. Os
chefes ruins são aqueles que não visitam as aldeias korubo nem doam as mercadorias previstas
no protocolo, logo, são kulaspek. Se, por um lado, o objetivo do RCB é, teoricamente,
“padronizar” as transações estabelecidas pelos Korubo, por outro, o funcionamento do
protocolo fortalece a teoria korubo a respeito de alguns brancos serem “bons” e outros serem
“ruins”. Vëyla e txuturap (ou kulaspek) são contextuais e relacionais. Em determinado
contexto, alguém é bom, em outro pode tornar-se ruim ou sovina, sempre em oposição a
outrem. Por isso, chegar às aldeias levando as mercadorias previstas no RCB é apresentar-se
como “bom” para os Korubo, fomentando um clima amistoso e distinto das visitas
habituais. 134

Os agentes estatais vinculados ao PK ou a FPE transportam as mercadorias previstas no RCB


para as aldeias, ou ainda, os Korubo buscam as mercadorias na Base Ituí. No primeiro caso,
antes de ir às aldeias, os agentes estatais informam aos Korubo via rádio que haverá entrega
das mercadorias, prenúncio que gera animação e expectativa entre os Korubo. No segundo

134
A doação de mercadorias é uma característica que os Zo’é atribuem aos “chefes” brancos. Nesse caso, diferente
do que ocorre com os Korubo, a atribuição independe do cargo que essas pessoas ocupam no órgão indigenista
e atrela-se ao ato de doar mercadorias (Gallois 2015: 289).
314
caso, os Korubo das aldeias mais próximas da Base Ituí deslocam-se, a fim de buscar algum
item previsto no RCB, como o combustível – o que os Korubo chamam de “nossa gasolina”
ou “gasolina da nome da aldeia”. Os Korubo também aproveitam os deslocamentos das
equipes de saúde para solicitar aos funcionários da FUNAI, localizados na Base, a entrega das
mercadorias.

Os agentes estatais registram em um caderno localizado na Base Ituí a entrega das mercadorias
e aproveitam essas ocasiões para advertir os Korubo. É costume, por exemplo, que digam aos
Korubo que o combustível é “coletivo para ser utilizado em caçadas”, não em “passeios”. Isso
porque o sentido de “passeio” para os brancos não relaciona-se ao conceito de kapoe dos
Korubo: termo utilizado para se referir às caminhadas na floresta para caçar, coletar, pescar
ou acampar, conforme veremos. A periodicidade das transações previstas no RCB varia de
acordo com o orçamento do órgão indigenista ou incidentes, como os ataques de invasores à
Base Ituí em 2019. 135 Quando a periodicidade das doações não é seguida, ao receberem a
“visita” dos agentes estatais nas aldeias, os Korubo questionam por qual motivo as
mercadorias não foram entregues. Este é um tema em comum entre eles e os agentes estatais,
um motivo para fazer “reuniões” e prolongar a estadia dos brancos nas aldeias, algo desejado
no processo de descobrirem o mundo dos brancos.

A proposta inicial do RCB não foi formulada a partir de dados etnográficos sobre os Korubo,
tampouco houve atualizações para acompanhar as transformações vivenciadas por eles. Por
isso, ao longo da pesquisa de campo, as previsões do protocolo não se efetivavam no
cotidiano, ou seja, há uma espécie de desencaixe entre teoria (texto do protocolo) e a prática
(realidade nas aldeias korubo). O RCB, enquanto um protocolo formulado por agentes
estatais expressa as concepções destes em torno dos Korubo, e não como os próprios Korubo
concebem o mundo vivido. Vejamos alguns exemplos desse desencaixe entre teoria e prática.

Um dos exemplos se evidencia nas doações. Conforme vimos, o RCB prevê a doação anual
de um machado para “cada homem adulto”. Contudo, nas aldeias, homens e mulheres
korubo disputam os machados. Ferramentas que, na concepção dos agentes estatais, são

135
Fonte: https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2019/11/04/principal-BAPE-da-funai-para-
protecao-de-indios-isolados-do-pais-sofre-oitavo-ataque-em-12-meses.ghtml. Acesso em 20/11/19.
315
utilizadas por homens e, portanto, devem ser doadas apenas para os homens.
Equivocadamente, alguns agentes estatais concebem atividades desempenhadas por mulheres
korubo como masculinas, como a coleta de tucum (Bactris setosa) para a produção de artefatos
(Vargas da Silva 2017b: 118).

Imagem 26. Novelo de tucum em cesto kakan.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

A fibra de tucum serve para a produção de redes, testeiras, braçadeiras, tipoias para carregar
cestos e crianças, pratos, esteiras, abanadores, colares. Mesmo as armas, produzidas pelos
homens, possuem acessórios feitos pelas mulheres com essa fibra, como a corda do arco, a
alça da aljava e as bolsas para armazenamento do algodão, componente da zarabatana. Entre
os Korubo, “derrubar tucum” é uma atividade das mulheres (tote lële; tote: tucum, lët:
derrubar). Elas também desempenham atividades praticadas por homens, como a retirada de
mel de abelha e o corte de lenha. Todas essas atividades demandam a utilização de machados.
Os Korubo demandam a entrega de machados também para as mulheres, pois as ferramentas
de metal utilizadas para o corte de madeira seca não são utilizadas no corte de madeira verde,
por exemplo, o machado utilizado para cortar lenha não serve para derrubar tucum.

Outro exemplo de desencaixe se expressa nas trocas. O RCB preconiza que as trocas sejam
baseadas no “valor de mercado”, no orçamento e na disponibilidade das mercadorias na Base
316
Ituí. Mas os Korubo não seguem as quantidades previstas no protocolo, e sim a
disponibilidade dos alimentos nas aldeias e suas restrições rituais. Por isso, a oferta dos
Korubo para a troca varia, podendo, por exemplo, oscilar entre pequenas e grandes
quantidades. Em fevereiro de 2019, os Korubo da Sentele Maë foram à Base Ituí, levando
um veado em troca de combustível. Ao ver a caça, o chefe da Base disse que o veado inteiro
era “muita carne”. Outro funcionário sugeriu que o chefe cortasse e ficasse com uma parte da
caça, devolvendo o restante aos Korubo.

Naquela ocasião, os agentes estatais acreditavam que os Korubo ofereceram a caça inteira
porque não comem veado. Contudo, os Korubo estavam seguindo as restrições da couvade. 136
Os Korubo costumam consumir carne de veado, porém, quando há recém-nascido nas aldeias
evitam ingerir algumas caças, sobretudo, determinadas partes do corpo do animal, como o
peito e o pescoço do veado. Naquele contexto, a troca com os agentes estatais foi regulada a
partir do volume alimentar disponível e da couvade.

Esses dois exemplos de desencaixe revelam que, por um lado, o Estado considera as doações
e trocas como negociações com pessoas individuais (“homem adulto”), por outro lado, os
Korubo consideram unidades maiores, como o grupo familiar ou os co-residentes, para a
realização de transações econômicas. Troca-se e doa-se para pessoas coletivas. Mesmo as
classificações que os Korubo fazem dos brancos são relacionais, e não de indivíduos
particulares. Embora os agentes estatais sejam caracterizados pelos Korubo como pessoas
individuais, vinculados a uma instância (a “FUNAI”), estes são sempre bons (vëyla), ruins
(txuturap) ou sovinas (kulaspek) em relação a outrem.

Um terceiro exemplo do desencaixe entre a teoria e a prática aparece nas vendas. O RCB
prevê duas categorias de compradores para a venda dos artefatos korubo: os agentes estatais
pagam preços mais baratos do que outros brancos. Para os Korubo, os preços de seus artefatos
variam em função do vendedor (às vezes, produtor), ou seja, uma pessoa korubo pode pedir

136
Regras seguidas pelo pai, pela mãe e pelos parentes próximos e co-residentes de um recém-nascido. O
nascimento é um momento dentro do processo de fabricação corporal e construção da pessoa (Viveiros de
Castro 1979; Menget 1979; Crocker 1985; Rival 1998; Vilaça 2002). Em alguns casos, a couvade objetiva o
cuidado com a saúde dos adultos, não do recém-nascido (Costa 2017: 97-136). Há casos em que a proximidade
com determinadas mercadorias durante a couvade, como as ferramentas de metal e os motores, traz
consequências negativas para as pessoas (Ramos 2013: 338-9).
317
valor X por uma borduna, enquanto outra pede X+Y pela mesma borduna. Em geral, quem
estabelece os valores são os homens korubo que vão às cidades e efetuam as vendas
acompanhados pelos agentes estatais. Em fevereiro de 2019, um korubo me ofereceu uma
borduna por um valor X+Y. Na ocasião, eu não sabia da existência do RCB. Então, um
funcionário da FUNAI interviu, afirmando que a compra por aquele valor “inflacionaria” o
preço dos artefatos korubo, e disse que o valor pago deveria ser X. O korubo não relutou em
abaixar o valor e acatou o preço estabelecido pelo funcionário.

Na prática, o protocolo não se efetiva de acordo com a proposta inicial. Para os Korubo, o
RCB é um “projeto”, chamado de “nosso projeto”, ou seja, um “projeto” que os agentes
estatais criaram para eles. Na concepção korubo, tal “projeto” existe por causa da diferença
entre eles e outros povos do Vale do Javari. Se, para os brancos, essa diferença se expressa no
conceito de “recente contato”, para os Korubo, eles são “diferentes” de outros povos que
podem se deslocar em seus motores para comprar suas próprias mercadorias nas cidades do
entorno, algo que os Korubo entendem que não podem fazer.

5.2. Teorias do índio e do branco

Os exemplos de desencaixes em doações, trocas e vendas previstas no RCB, mencionados na


seção anterior, revelam a diferença perspectival entre, por um lado, o que podemos chamar
de “teorias do índio” subjacentes aos conceitos da política indigenista (“recente contato”) e
seus dispositivos e, por outro, as “teorias do branco” elaboradas pelos Korubo que embasam
a maneira como eles percebem suas diferenças em relação a outros povos e concebem o RCB
como um “projeto”. 137

No primeiro caso, a incorporação das mercadorias deve ser controlada pelos agentes estatais
sob pena de “aculturação”. A gestão dos bens por parte dos agentes estatais é também um
controle sobre as relações estabelecidas pelos Korubo em que a FUNAI apresenta-se como o
principal parceiro em transações autorizadas e pretensamente legítimas. No segundo caso, os

137
Utilizo o termo “teorias do branco” como um empréstimo de Gallois (2002: 206) em sua análise sobre o
caso dos Wajãpi.
318
agentes estatais têm como função serem vetores de mercadorias que, por sua vez, são
“indigenizadas” pelos Korubo, que buscam cada vez mais expandir suas redes de relações com
os brancos e outros povos. O RCB e o “projeto” não são diferentes perspectivas em torno do
mesmo tema, e sim “conflitos ontológicos” que exprimem diferentes perspectivas em torno
de um pluriverso (Viveiros de Castro 2004; Blaser 2009; 2013). A falta de consciência acerca
dos significados alternativos em jogo e a reconfiguração dos símbolos do outro em convenções
alheias a estes são dois aspectos que caracterizam o “equívoco” entre os Korubo e os agentes
estatais.

Quando cheguei a campo em 2019, os brancos tinham opiniões bem definidas em torno dos
Korubo e se esforçavam para divulga-las. A Base Ituí é o espaço, por excelência, onde os
brancos tecem comentários sobre os Korubo. Os agentes estatais, os profissionais de saúde,
os policiais da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) e, em menor medida, outros
povos do Vale do Javari diagnosticavam voluntariamente o que consideram ser os
“problemas” dos Korubo. Alguns agentes estatais afirmavam que os Korubo eram
“improdutivos” devido ao “mal costume” que antigos funcionários da FUNAI estimularam
entre eles, ou seja, os atuais “problemas dos Korubo” estão relacionados a um contexto
passado em que outros funcionários, supostamente, “faziam tudo o que os Korubo pediam”,
caracterizando uma “relação abusiva” pautada no “medo”.

Nessas narrativas, os atuais agentes estatais buscam se distinguir de outros funcionários da


FUNAI, afirmando-se como uma nova geração que visa estimular a “autonomia” dos
Korubo. Nesse caso, “autonomia” significa criar mecanismos para fazer os Korubo “pararem
de pedir coisas à FUNAI”. Tal concepção entre a atual geração dos funcionários da FUNAI
contrapõe-se aos relatos de antigos funcionários, atuantes na “época do Possuelo”, ou seja,
após o evento de contato em 1996. 138 Naquele contexto, havia um esforço por parte dos
agentes estatais para manter os Korubo “puros”, ou seja, “distantes da Base Ituí” e dos
brancos. De fato, nem a “autonomia” proclamada pela atual geração, nem o ‘purismo’
desejado pelos antigos funcionários da FUNAI se efetivaram.

138
Referência a Sidney Possuelo, chefe da expedição de contato realizada em 1996.
319
Tais concepções, seja da velha ou da nova geração, expressam as teorias do índio. Por um
lado, a velha guarda preconizava a ideia de “índios puros”, diferentes de outros considerados
“misturados”, a chamada “vala comum”, isto é, aqueles que “deixaram de ser índios”.
Segundo essa concepção, para se manterem puros, os “índios” devem ser afastados do
convívio duradouro com os brancos e receber apenas os “brindes” doados pelos agentes
estatais. O órgão indigenista se impunha como o principal interlocutor das pessoas do
cronotopo A após o evento 1, em 1996, fomentando essa relação com a oferta de mercadorias
e alimentos, como farinha e bananas. Por outro lado, a nova geração se baseia em conceitos,
como “recente contato”, e elaborou protocolos, como o DACC e o RCB, para regular o
acesso dos Korubo às mercadorias e ao dinheiro, controlando suas relações com outros
brancos e povos. Tudo isso em nome da “autonomia”, e não da “pureza”. Autonomia é a
“seletividade” exercida pelos agentes estatais, ou seja, os povos autônomos são aqueles que
não consomem muitas mercadorias e serviços dos brancos, nem “pedem coisas à FUNAI”.

Ambas as concepções abrigam a ideia de que os “índios” não devem consumir, ou melhor,
devem consumir sob a regulação e o controle exercido pelos agentes estatais. Estes definem
os critérios de consumo, como “bom”, “ruim”, “necessário” etc. Conforme o RCB, tal
controle é argumentado em nome da “proteção” do que os agentes estatais consideram ser a
“cultura” dos Korubo, também chamada de “organização social”. Desse modo, o RCB
expressa teorias do índio – um tipo genérico de “índio” –, que contêm algumas continuidades
com os ideais de pureza defendidos pelos antigos funcionários da FUNAI, agora sob o
discurso da autonomia e preservação cultural. As mercadorias continuam presentes nessa
relação, ofertadas e intercambiadas através de um protocolo escrito.

Entretanto, esse processo não é unilateral. Os Korubo também elaboram concepções em


torno de si mesmos e dos brancos, inclusive, refletem sobre os dispositivos criados pelos
agentes estatais. Se, por um lado, os agentes estatais conceberam o RCB pautados em teorias
do índio, por outro lado, os Korubo concebem o RCB, chamado de “nosso projeto”, a partir
de teorias do branco. Vimos no capítulo 1 que os Korubo concebem os brancos como
“perigosos” que “mentem” e “matam”. Inicialmente, os Korubo vincularam os brancos ao
sampin e a determinadas mercadorias, como as roupas e armas de fogo. Os mais velhos
relatavam às atuais gerações que os brancos (latkute) viam os Korubo nas margens dos rios e

320
disparavam na direção deles. Então, os Korubo observavam vestígios na floresta, como os
cartuchos de munição vazios, e mudavam a direção do caminho.

Tal teoria tem sido reformulada no contato interétnico e nos ajuda a compreender porque os
Korubo chamam o RCB de “nosso projeto”, e como eles avaliam e “indigenizam” a política
indigenista. Parte da atual teoria dos brancos, no caso korubo, está relacionada ao dinheiro.
Se, antes do pluricontato, tudo o que os brancos queriam era matar os Korubo, após os
eventos de contato, tudo o que os brancos querem é “ganhar dinheiro”. A literatura etnológica
mostra que as “teorias do branco” variam em diferentes contextos, de modo que os brancos
ocupam posições ambíguas.

Nos contatos esporádicos com os Wajãpi, os brancos foram concebidos como detentores de
armas poderosas e venenosas, geradores de violências e mortes. Após os contatos permanentes,
os brancos foram associados à destruição da floresta e às doenças, considerados “perigosos”
por sua falta de conhecimento (Gallois 2002: 207, 227). No caso dos Arara, no período da
Atração, os brancos foram associados a espíritos maléficos. Durante o contato, os brancos
apareceram como “generosos” doadores de mercadorias. Contudo, após o contato, os Arara
se esforçavam para compreender porque a generosidade dos brancos, expressa mas doações
de mercadorias, se transformou em escassez e “egoísmo” (Teixeira Pinto 2002: 408-414). Os
Xikrin veem os brancos como mentirosos, detentores de “duas bocas”: ““falam uma coisa
aqui, outra ali”, “esquecem o que dizem”, “não têm palavra”, “prometem e não cumprem””
(Gordon 2006: 222).

A atual autoconcepção dos Korubo relaciona-se às teorias do branco. Os Korubo se


autoconcebem como pessoas que não podem se deslocar para as cidades em seus motores
peque-peque desacompanhados dos agentes estatais por causa de seu passado conflituoso com
os brancos. Recordemos que, em 2003, uma parturiente korubo foi ameaçada de morte em
um hospital em Atalaia do Norte/AM devido aos conflitos e mortes envolvendo pessoas da
família Mariano (Vargas da Silva 2017b: 80). Por isso, até hoje, quando saem da terra
indígena, os Korubo se dirigem a Tabatinga/AM, sem parar em Atalaia do Norte e Benjamin
Constant/AM. A partir de experiências como essa, os Korubo acreditam que os regionais têm

321
ressentimentos. Esta concepção é fomentada por agentes estatais e, para os Korubo, tal
lembrança fomenta a raiva e a vontade dos brancos de mata-los.

Matar, na concepção korubo, é a concretização do “fazer mal” a alguém. Quando sentem-se


ameaçados, costumam pensar nas possibilidades de morte causadas por seres humanos ou
não-humanos. O sampin pode matar alguém quando há luzes acesas na aldeia. O trovão
(avuk) e o arco-íris (noman vai) prenunciam morte. O som do gavião cancão (Falconidae) ao
sobrevoar a aldeia é um presságio de doença e morte para as crianças. 139 Do mesmo modo, os
brancos “fazem mal” matando. Para os Korubo, é difícil compreender como determinados
brancos podem afetar suas vidas negativamente a partir de suas funções em cargos públicos,
por exemplo. Por isso, costumam questionar as possibilidades que os brancos têm de “matá-
los” ou de “mandar matá-los”.

Essa teoria a respeito da raiva dos brancos e sua pulsão para mata-los subjaz o conceito do
RCB enquanto um “projeto”. Para os Korubo, a função deste “projeto”, chamado de “nosso
projeto”, é evitar que eles saiam sozinhos de suas aldeias para comprar mercadorias nas cidades
do entorno, conforme a maioria dos povos da bacia do rio Javari faz. Eis o que, para os
Korubo, é uma das principais diferenças entre eles e outros povos. Para os agentes estatais, o
RCB visa evitar “danos na estrutura organizacional”, “empobrecimento da cultura material”
e “dependência”. Para os Korubo, o “projeto” existe para que eles possam acessar mercadorias,
com o auxílio dos agentes estatais, sem serem mortos pelos brancos nas cidades do entorno.

Trata-se de teorias distintas (a do índio e a do branco) que acionam ideias de proteção. As


teorias do índio, preconizadas pelos agentes estatais, visam minimizar e controlar o consumo
das mercadorias, do dinheiro e, por conseguinte, das relações. As teorias do branco,
elaboradas pelos Korubo, objetivam maximizar a aquisição das mercadorias e do dinheiro.
Para os Korubo, uma das principais funções dos agentes estatais é serem vetores de
mercadorias, transportando-as das cidades às aldeias, ou ainda, transportando os Korubo das
aldeias para a cidade: acompanhando nos deslocamentos, auxiliando nas transações de
compra e venda.

139
Os Korubo reagem à presença do gavião cancão, chamado de wëlankit, jogando as doenças de volta para ele,
dizendo: “vai embora comer teu milho verde, vai embora beber o vinho da embaúba”.
322
Os Korubo concebem que esse “projeto” é efetivado a partir de um “dinheiro” específico que
o órgão indigenista dispõe para adquirir as mercadorias e distribui-las nas aldeias. A partir
disso, avaliam o funcionamento do “projeto”. Na concepção korubo, os agentes estatais
devem doar mais e trocar menos, pois cabe ao órgão indigenista “ajudá-los”, onde “ajudar”
significa facilitar o acesso às mercadorias e serviços dos brancos. Os agentes estatais são “pagos
para trabalhar com Korubo”, conforme os Korubo dizem. Esta característica diferencia a
relação Korubo-FUNAI da relação Kanamari-FUNAI. Nesta, o órgão indigenista é um
“análogo contemporâneo dos antigos chefes de subgrupo” (Costa 2016: 103). No caso
korubo, há uma inversão em que eles se autoconcebem como os chefes dos agentes estatais.

A tentativa de controle via RCB sobre as mercadorias e o dinheiro é concebida pelos Korubo
como manifestações da sovinice e do caráter não confiável dos brancos. Os Korubo têm
dificuldades para compreender que a escassez das transações previstas no RCB refletem as
flutuações no orçamento da FUNAI. Parte dessa dificuldade relaciona-se ao fato de inexistir
(pelo menos, durante a pesquisa de campo) prestações de conta dos recursos do RCB e
processos contínuos de formação para que os Korubo compreendessem a origem e os modos
de captação de recursos orçamentários nos órgãos federais. A ausência desse tipo de iniciativa
fomenta as teorias do branco. Conforme os Korubo, as mercadorias do RCB não são
entregues nas aldeias nos períodos acordados e em quantidades satisfatórias porque os agentes
estatais destinam o dinheiro do “projeto” para outras finalidades. Os agentes estatais trocam
mais e doam menos e, na concepção korubo, deveriam doar mais e trocar menos. Por isso, os
agentes estatais são considerados kulaspek, sovinas de modo geral. Afinal, se os brancos têm
tantas mercadorias porque não doa-las mais aos Korubo?

Antes de circularem pelas cidades, os Korubo não faziam ideia de quantos brancos existiam.
Por isso, um dos planos iniciais dos Korubo era matar os brancos e tomar a Base Ituí para si.
Antigos funcionários da FUNAI, que atuaram junto aos Korubo nos anos 1990, relatam que
as pessoas do cronotopo A se aproximavam silenciosamente da Base Ituí em cochos de
paxiúba para atacar os brancos de surpresa. Os Korubo não pretendiam conviver com os
brancos durante muito tempo. Todavia, logo perceberam que nós, brancos, somos muitos.
Após o pluricontato, os Korubo começaram a descobrir o mundo dos brancos, circulando

323
pelas cidades e observando as transações econômicas. Então, passaram a compartilhar a crença
de que os brancos ganham dinheiro de diversas maneiras para conseguir viver nas cidades.

Conforme as teorias korubo sobre os brancos, ao aprenderem a língua, fotografarem e


filmarem os Korubo, os brancos “ganham dinheiro”, ou seja, sua língua e imagem são
“vendidas” e transformadas em dinheiro. Por isso, os brancos têm tanto interesse neles. Não
é à toa que os Korubo afirmam que os agentes estatais “são pagos para trabalhar com os
Korubo”. Tal argumento faz parte da percepção dos Korubo sobre a centralidade do dinheiro
nas cidades. O interesse dos brancos por eles não poderia ser outro que não fosse “ganhar
dinheiro”, ou seja, todos os brancos que trabalham com eles estão ali porque, de alguma
forma, ganham dinheiro através deles. Os Korubo já perceberam que as pessoas que vivem
nas cidades precisam de dinheiro, pois conforme mencionei na introdução, nas viagens, um
dos questionamentos era o fato de tudo ser pago com dinheiro: comidas, bebidas, passeios,
aprendizados etc. Se tudo na cidade é pago com dinheiro, os brancos se interessam por
“ganhar dinheiro”. Então, todas as suas atividades visam essa finalidade.

Tal argumento encontra coerência na relação que os Korubo possuem com o órgão
indigenista. Logo após a expedição de contato realizada em 1996, os xëni do cronotopo A
relembram que houve um fluxo de jornalistas e fotógrafos para registra-los. Afinal de contas,
após tantas tentativas realizadas pelos agentes estatais desde os anos 1970, uma parcela dos
Korubo finalmente fora contatada de modo relativamente pacífico nos anos 1990. Hoje, os
xëni dos cronotopos A e pós-contato concebem que os brancos que os fotografaram naquela
época “ganharam dinheiro” através das imagens e vídeos, e foram embora sem “paga-los”. Ao
longo dos anos 2000, os xëni continuam reivindicando esse pagamento.

Se ganhar dinheiro é o objetivo principal dos brancos, os Korubo costumam duvidar dos
brancos quando trata-se de dinheiro. Alguns xëni do cronotopo A, com frequência, me
perguntavam se a FUNAI recebe dinheiro para autorizar filmagens. Perguntavam-me se os
brancos vendem as imagens deles, transformando-as em dinheiro: para quem e como fazem
isso? Estes são alguns questionamentos atuais e, por isso, eles buscam confirmar o que os
brancos dizem. Para os agentes estatais, os Korubo repetem a mesma pergunta várias vezes
porque têm dificuldades de compreensão. Contudo, fazer a mesma pergunta várias vezes é

324
uma maneira de os Korubo confirmarem as assertivas dos brancos. Quando Maya matxo se
aposentou, os agentes estatais explicaram aos Korubo o benefício da aposentadoria. Bastava
estarem à sós comigo que os Korubo perguntavam novamente o valor da aposentadoria, a fim
de validar ou refutar as explicações anteriores. Do mesmo modo, um dos papéis dos
intermediários korubo é, justamente, ouvir (kwak) e ver (ise) o que os brancos dizem e fazem,
e não apenas traduzir as conversas.

Vimos que os agentes estatais nutrem concepções específicas em torno dos Korubo que
constituem as teorias do índio e fomentam a política indigenista e seus dispositivos, como o
RCB. Ao mesmo tempo, a ideia de que os brancos são pessoas “perigosas” que “mentem”,
“matam” e buscam “ganhar dinheiro” compõem o arcabouço das teorias do branco,
elaboradas e reelaboradas pelos Korubo, e subjazem o conceito de “projeto”, sinalizando que
os Korubo passaram a conceber o dinheiro como um eixo estrutural do modo de vida dos
brancos. Tais teorias são posteriores aos eventos de contato e constituem uma etapa central
no processo de descoberta dos brancos.

O valor do dinheiro

O dinheiro, enquanto elemento central da vida citadina, torna-se um dos eixos do argumento
dos Korubo em suas teorias sobre os brancos. O desejo e a busca incessante dos brancos por
dinheiro torna-se, no ponto de vista dos Korubo, uma das principais motivações de suas
ações. Contudo, resta-nos compreender como os Korubo compreendem o dinheiro. Na
literatura etnológica, o dinheiro aparece como um elemento próprio do contato interétnico.
Diferente de outros povos que mencionam o “dinheiro” como sinônimo de “folha de
árvore”, 140 os Korubo chamam-no pelo termo na língua portuguesa. No caso dos Korubo, o
dinheiro foi acessado primeiro através do órgão indigenista. Assim, eles adquirem as
mercadorias e os alimentos industrializados que circulam nas aldeias.

140
Este é o caso dos Xikrin, Nahua e dos índios do Xinane, ver Gordon (2006), Feather (2010) e Almeida
(2021).
325
Os povos ameríndios adquirem dinheiro de diferentes maneiras: a partir do ingresso no
sistema de aviamento, da venda dos produtos das roças ou artefatos, dos benefícios sociais do
governo federal ou do trabalho remunerado. Os Piro concebiam a aquisição monetária como
resultado de atividades, como a extração de borracha e madeira, onde há a figura do patrão
(Gow 1991). Os Wari’ trabalhavam como professores e agentes de saúde, e também recebiam
benefícios sociais, como licença maternidade e aposentadoria (Vilaça 2006: 492-3). Os
Hupd’äh recebem dinheiro do Programa Bolsa Família (Serra da Silva 2017: 242-6).

Na bacia do rio Javari, os Kanamari acessam dinheiro e mercadorias através de programas


previdenciários e salários. Na concepção kanamari, as mercadorias e o dinheiro provêm de
“Brasília” ou da “Federal”, que são os “donos” de todos os brancos (Costa 2007: 196). O
dinheiro adquirido pelos Kanamari é considerado de posse individual, pois cada pessoa recebe
o seu dinheiro. Contudo, nas aldeias, o dinheiro e as mercadorias circulam entre co-
residentes, de modo que pessoas que não recebem dinheiro diretamente também são
beneficiadas (Gil 2020: 104). No rio Itaquaí, uma das pessoas que mais acessava dinheiro era
Poroya que, por sua vez, o convertia em mercadorias doadas para os seus co-residentes. Em
troca, ajudavam-no a cultivar roças e a realizar outras tarefas na aldeia (Costa 2007: 197-8,
205-6).

Para os Korubo, o dinheiro não tem valor em si mesmo, apenas quando é convertido em
mercadorias. Portanto, não faz sentido acumular dinheiro. 141 Nas aldeias, as cédulas de
dinheiro permanecem praticamente invisíveis, guardadas nas palhas das casas ou em bolsas
industrializadas. As cédulas só aparecem quando há possibilidade de transforma-las em
mercadorias, ou seja, quando os Korubo sabem que alguém irá à cidade e fará compras. Nessas
ocasiões, o dinheiro aparece, as cédulas saem de diferentes partes das casas unifamiliares e da
maloca. Nas aldeias korubo, o dinheiro é um tema de conversas, alvo de curiosidades e
dúvidas até ser visibilizado para tornar-se mercadoria. Por isso, os Korubo buscam
constantemente multiplicar suas possibilidades de ganhar dinheiro, tentando vender algo,
trabalhando, ou ainda, cobrando os devedores.

141
O dinheiro em si também não é um objetivo dos Xikrin. Para eles, é apenas um meio de obter os objetos.
Somente os brancos gostam do dinheiro pelo dinheiro (Gordon 2006: 277-8).
326
O caráter visível-invisível das cédulas não significa que os Korubo não se interessem em
compreender o funcionamento das transações monetárias. Alguns xëni do cronotopo A
buscam entender o funcionamento dos cartões de débito e crédito. Como os brancos
manuseiam esse dinheiro que não enxergamos? Como as passagens aéreas são compradas
através de computadores? Grande parte das dúvidas e do interesse dos Korubo por dinheiro
relaciona-se ao valor das cédulas. A noção de valor (“muito” ou “pouco”) que os Korubo têm
diferem das concepções ocidentais, tornando-se um dos desafios durante as atividades de
letramento.

Uma artesã xëni pode pedir R$ 200,00 por uma panela de cerâmica e, posteriormente, reduzir
o valor para R$ 20,00, desconsiderando o tamanho do artefato e todo o processo de
fabricação. Um jovem do cronotopo pós-contato pode oferecer aulas de língua korubo por
R$ 3.000,00 e, em seguida, diminuir o valor para R$ 400,00. Nessas ocasiões de venda, por
exemplo, os xëni do cronotopo pós-contato e os paxa costumam pedir valor X e, caso o
potencial comprador reclame do preço ou argumente que não possui dinheiro, eles abaixam
o valor subitamente. Nessas transações, há um valor na efetivação da transação em si que é
também a efetivação de uma relação, e não apenas na quantia monetária.

Tais oscilações refletem a dificuldade dos Korubo para compreender a noção de valor dos
brancos utilizada nas transações monetárias, ou melhor, o valor atribuído pelos brancos a
cada cédula individual. Os Korubo identificam cada cédula a partir do animal e,
teoricamente, sabem os valores de cada uma. Todos os xëni contam os números de zero a dez.
Alguns deles sabem também outras dezenas:

Valor numérico Animal da cédula em korubo Animal da cédula em português


R$ 2,00 nëxo tartaruga-de-pente
R$ 5,00 aikin garça-branca-grande
R$ 10,00 tolia arara-vermelha-grande
R$ 20,00 pixtan mico-leão-dourado
R$ 50,00 kamon onça-pintada
R$ 100,00 ipu peixe garoupa
Tabela 12. O valor das cédulas.

De acordo com a tabela acima, nas cédulas de dois, vinte e cem reais, os termos em korubo
não equivalem à espécie desenhada nas cédulas, e sim à família: por exemplo, ipu não refere-

327
se ao peixe garoupa, mas é uma categoria genérica para “peixe”. Os Korubo falam o nome do
animal e o valor das cédulas, mas sua noção de valor monetário é distinta da dos brancos.
Para os Korubo, ter “muito dinheiro” é possuir uma grande quantidade de cédulas em mãos,
independente do valor de cada uma delas. Os xëni estão em vias de compreender que, para
os brancos, um ipu vale mais que um nëxo. Para eles, ainda é um desafio estabelecer as
equivalências com as cédulas: por exemplo, duas tolia equivalem a um pixtan.

Hoje, os Korubo percebem que sua noção de valor difere da utilizada pelos brancos em
transações monetárias. Por isso, demandam que o órgão indigenista promova atividades de
letramento nas aldeias. Receiam serem enganados pelos brancos nas cidades, e desejam se
relacionar cada vez mais com os brancos de outras formas que não são a guerra real. Para os
Korubo, o que é considerado “muito dinheiro” em determinado momento pode tornar-se
“pouco dinheiro”. A variação do valor atende as demandas circunstanciais. Vejamos um
exemplo.

Em 2019, antes da chegada da equipe do ProDocult à terra indígena, realizei visitas às aldeias
korubo para esclarecer o objetivo do projeto: construir uma coleção korubo no acervo do
Museu do Índio/RJ. Naquele contexto, os Korubo apreciaram o fato de que cada artesão
“especialista” de uma aldeia receberia o valor X para produzir determinado artefato, registrado
em audiovisual pela equipe. Cada uma das quatro aldeias indicaria um homem e uma mulher,
geralmente os mais velhos, para produzir artefatos específicos. O valor X, acordado com os
Korubo e apreciado ao longo da estadia da equipe nas aldeias, tornou-se insuficiente meses
depois quando um acidente ocorreu na aldeia Tankala Maë: a casa de um xëni foi incendiada
por causa de um acidente de cozinha. Ele perdeu todas as suas mercadorias e passou a
contestar o valor acordado inicialmente com a equipe do ProDocult. Naquele novo contexto,
o que outrora era dinheiro suficiente tornou-se “pouco dinheiro”. Então, ele passou a
comparar os valores oferecidos pelo ProDocult com as quantias pagas por seu trabalho como
“colaborador da FUNAI”.

Desse modo, os Korubo estão em vias de compreender as concepções e os usos que os brancos
fazem do dinheiro: um componente das teorias do branco. Até o momento, eles
compreendem que o dinheiro é um dispositivo central não apenas nas cidades, mas também

328
em suas relações com os brancos e que, a partir de sua transformação em mercadorias, pode
ser incorporado como um vetor de relações entre pessoas de diferentes cronotopos. Conceber
o dinheiro a partir dos animais desenhados nas cédulas é um primeiro passo dos Korubo em
direção a “indigenização” desse elemento novo.

5.3. Da troca ao trabalho

Base Ituí, 16 de maio de 2019: um xëni do cronotopo A e algumas pessoas de sua aldeia
chegaram à Base, trazendo uma anta dentro da embarcação. O xëni pediu ao chefe da Base
uma canoa de madeira para pescar, pois com sua baleeira de alumínio não conseguia entrar
em lagos pequenos. O chefe da Base argumentou que a FUNAI não possuía uma canoa para
doar. Eles passaram um tempo conversando: os Korubo afirmavam que precisavam de uma
canoa e perguntavam se a FUNAI poderia doar; os agentes estatais respondiam que não
possuíam canoas disponíveis para doação.

Os Korubo decidiram então descer o rio em direção às comunidades ribeirinhas do entorno


da terra indígena para trocar a anta por uma canoa de madeira. Ao que parece, eles já haviam
sondado anteriormente, mas caso os agentes estatais doassem a canoa, eles desistiriam de
efetuar a troca com os regionais. Na ocasião, os agentes estatais argumentavam para os
Korubo que retirar a anta da terra indígena era “ilegal”. Mas os Korubo não compreendiam
por qual motivo a anta não poderia ser utilizada como uma moeda em troca da canoa que
precisavam, já que não possuíam dinheiro, conforme diziam.

Então, o xëni disse-me: “matxo, kwane ëvi. FUNAI eu segura não” (matxo: mulher mais velha;
kwan: ir, andar; ëvi: 1SG.). À contragosto dos agentes estatais, os Korubo decidiram ir às
comunidades efetuar a troca. Após algumas horas, retornaram para a aldeia, passando pela
Base, exibindo a nova canoa de madeira que adquiriram. Para ensina-los que retirar carne de
caça da terra indígena é “ilegal”, a forma encontrada pelos agentes estatais foi proibir o xëni
de trabalhar na Base Ituí por vários meses ao longo de 2019, privando-o do acesso ao dinheiro
e às mercadorias. Desde então, nenhum outro homem korubo tentou fazer o mesmo.

329
Os Korubo costumam dizer que a “FUNAI não ajuda”. Tal assertiva deve ser analisada sob o
contexto da diferença entre o RCB, criado pelos agentes estatais, e a concepção dos Korubo
sobre o “nosso projeto”. Vimos que o órgão indigenista não doa mais e troca menos,
conforme os Korubo gostariam. Diante disso, eles buscam ampliar seus acessos às mercadorias
e ao dinheiro. Diversas etnografias mostram o estranhamento ameríndio diante de doações
de mercadorias outrora abundantes que, com após o contato, tornam-se escassas, ou melhor,
os brancos (agentes estatais) que inicialmente pareciam generosos tornam-se sovinas. Tal
estranhamento relaciona-se a uma mudança na política indigenista brasileira, ou seja, a
passagem de uma política integracionista, vigente no século XX, para uma política
protecionista. Essa passagem, expressa nos pares abundância-escassez e generosidade-
egoísmo, aparece na etnografia sobre os Arara dos rios Xingu e Iriri, por exemplo (Teixeira
Pinto 2002: 408, 419).

Atualmente, os Korubo realizam uma série de trocas que extrapolam as previsões do RCB.
Estabelecem intercâmbios com outros povos da bacia do rio Javari, com os brancos residentes
no entorno da terra indígena, e com os profissionais de saúde. Oferecem produtos de suas
roças, carne de caça e frutos em troca de mercadorias e alimentos industrializados. Um dos
exemplos mais notáveis da ampliação das transações econômicas expressa-se na relação atual
dos Korubo com os Marubo, povo falante de língua Pano com quem compartilham o rio
Ituí. Ao escutarem o som das embarcações marubo “descendo” ou “subindo” o rio Ituí, as
mulheres korubo correm para a margem do rio, acompanhadas por crianças e jovens,
carregando produtos de suas roças para troca-los por alimentos industrializados.

Com frequência, os Korubo navegam atrás dos Marubo, enquanto estes aceleram seus
motores quando passam em frente às aldeias korubo. Nessas transações, o papel dos jovens
korubo é pilotar a embarcação. Em algumas ocasiões durante o verão, os Korubo conseguem
alcançar os Marubo, quando estes atracam nas “praias” para coletar ovos de quelônios. Os
jovens dizem ter lakule (lakut: medo, vergonha) nessas ocasiões, pois não sabem qual é o
“pensamento” e, portanto, será a reação dos Marubo. O saldo dessas transações pode ser, por
exemplo, meia dúzia de bananas e macaxeiras oferecida pelos Korubo em troca de pacotes de
macarrão, quilos de farinha e arroz, bolachas e gasolina trazidos pelos Marubo de Atalaia do

330
Norte/AM. Posterior à troca, outra transação ocorre na aldeia entre os Korubo: a partilha dos
bens adquiridos entre os co-residentes.

Essas transações evidenciam parte da ampliação dos acessos às mercadorias que os Korubo
hoje têm, ou seja, são transações que extrapolam o protocolo criado pelos agentes estatais.
Outra forma de ampliação dos acessos são os recursos (“dinheiro”) recebidos por alguns
Korubo, a partir de diferentes tipos de atividades remuneradas. Ao longo de 2019-20, não vi
os Korubo vendendo cultivos de suas roças. Apenas alguns destes produtos eram trocados
esporadicamente com os agentes estatais, como as macaxeiras que substituíram as bananas,
abundantes durante a implementação do RCB. Ocasionalmente, alguns artefatos eram
vendidos na cidade.

A maior parte da renda atual dos Korubo provém de projetos, como ProDocult e ProDoclin
e, sobretudo, das atividades remuneradas pelo órgão indigenista, algo que passou a ocorrer
com maior frequência a partir de 2019. Os homens korubo participam de duas atividades da
FUNAI: “colaboradores eventuais” na Base Ituí e (intermediários) no acampamento de
contato no rio Coari. Os Korubo portadores de documentos de identificação pessoal e com
maior tempo de contato com os brancos recebem pagamentos em dinheiro. 142 O trabalho
dos Korubo na Base Ituí envolve a realização de atividades de caça, pesca e coleta que
fomentam a manutenção da Base e as atividades de proteção etnoambiental. O trabalho dos
Korubo no acampamento de contato no rio Coari é mais recente.

Em 2014 e 2015, alguns homens do cronotopo A, contatados no evento 1, passaram a


trabalhar como “colaboradores” intermediários nos eventos de contatos 2, 3, 4 e 5. Nesses
eventos, eles não foram remunerados pela FUNAI. A atuação dos Korubo no evento de
contato 6, realizado em março de 2019, passou a ser remunerada pela FUNAI. Assim, os
intermediários korubo passaram à categoria de “colaboradores indígenas”. Hoje, os Korubo
acreditam que essa é a forma correta de “trabalhar” com a FUNAI (txonoalek), ou seja,

142
A partir de 2021, com o Processo Seletivo Simplificado, apenas cinco homens korubo selecionados pela
FUNAI como agentes etnoambientais passaram a trabalhar na Base Ituí e no acampamento de contato no rio
Coari. Outras pessoas não podem mais ser contratadas como “colaboradores eventuais” via Ordem de Serviço
(OS). Os Korubo também demandam que alguém dentre eles torne-se Agente Indígena de Saúde (AIS), cargo
remunerado pela SESAI. De todos os povos da bacia do Vale do Javari, apenas os Korubo não possuem AIS.
Até mesmo os Tsohom-dyapa, também considerados de recente contato, contam com um AIS Kanamari que
reside na aldeia Jarinal, no rio Jutaí.
331
“ajudando” a contatar outros Korubo e sendo pagos com dinheiro. Se, por um lado, o RCB
objetiva regular o acesso dos Korubo às mercadorias e ao dinheiro, por outro, a relação dos
Korubo com o trabalho remunerado não é alvo da mesma atenção por parte do Estado. Ao
contrário, são as próprias instituições estatais que remuneram os Korubo, gerando um acesso
a quantias monetárias inéditas, sem o acompanhamento constante de atividades de
letramento.

Semanas antes de os Korubo se deslocarem ao rio Coari, os agentes estatais se comunicam


com as aldeias, às vezes por radiofonia, para que os Korubo indiquem os nomes dos homens
que vão trabalhar como “colaboradores” na Base Ituí ou no acampamento de contato no rio
Coari. Tal indicação têm uma margem de seleção: o órgão indigenista demanda homens,
preferencialmente portadores de documentos de identificação pessoal. Os agentes estatais
acreditam que os Korubo devem se reunir para decidir quem serão os “colaboradores” de
determinada “permanência”, ou seja, períodos/escalas de trabalho. Os Korubo não costumam
realizar essas reuniões, pois há certo consenso sobre a sequência dos homens e rapazes que
vão trabalhar para o órgão indigenista. Afinal, não há uma lista infindável de caçadores
korubo com documentos de identificação pessoal.

Na escolha dos nomes, os Korubo priorizam os mais velhos (xëni do cronotopo A),
acompanhados por um ou mais jovens (cronotopo pós-contato) que ocupam o papel de
tradutores e intérpretes dos mais velhos. Desse modo, ao receberem a solicitação dos agentes
estatais a respeito da indicação de nomes para trabalhar, não há disputas ou conflitos internos
aos Korubo. Há um consenso de que quem trabalha para a FUNAI são os xëni. Em casos de
adoecimentos, determinado xëni indica outro para trabalhar em seu lugar. Quando um xëni
sai de sua aldeia para trabalhar no rio Coari, suas esposas ou sogras colaboram, cortando o
seu cabelo ou organizando suas coisas, abastecendo sua mochila com remédios, colheres,
pratos, mosquiteiro, redes etc. Vestido com roupas industrializadas, o xëni aguarda a
embarcação da FUNAI busca-lo na aldeia para leva-lo à “quarentena”, no rio Coari. Abaixo,
vejamos as remunerações dos colaboradores korubo em 2019:

332
Colaborador 143 Valor do Data
documento
Lala1Sentele R$ 3.982,50 abril 2019
Lala1Sentele R$ 3.186,00 dezembro 2019
Lala1Tankala R$ 3.186,00 março 2019
Lala1Tankala R$ 3.982,50 maio 2019
Lala1Tankala R$ 5.310,00* outubro 2019
Lala2Tankala R$ 3.982,50 abril 2019
Lala2Tankala R$ 1.062,00 julho 2019
Lala2Tankala R$ 5.310,00 dezembro 2019
Lala3Tankala R$ 3.982,50 abril 2019
Lala3Tankala R$ 7.611,00 agosto 2019
Lala1Tapalaya R$ 6.372,00 agosto 2019
Lala2Tapalaya R$ 3.982,50 maio 2019
Lala3Tapalaya R$ 1.062,00 julho 2019
Lala3Tapalaya R$ 5.310,00 144 outubro 2019
Lala1Vuku R$ 3.044,40 outubro 2019
Lala1Vuku R$ 5.310,00 dezembro 2019
Tabela 13. Remunerações.
Fonte: www.portaltransparencia.gov.br. Acesso: 22/03/22.

Os dados do Portal da Transparência ocultam a quantia exata recebida por cada colaborador,
pois algumas pessoas não possuem documentos de identificação pessoal, como o Lala2Sentele
e o Lala2Vuku. Nesses casos, uma pessoa portadora de documentos recebe o seu pagamento
e o de outras que não têm documentos. A partir do ingresso dos Korubo em atividades
remuneradas pelo órgão indigenista, eles acederam à categoria de “colaboradores indígenas”,
similar a outros povos da bacia do rio Javari. Os primeiros a receberem remunerações da
FUNAI foram Lala2Tankala (julho 2016), Lala1Sentele (julho 2017), Lala2Tapalaya
(setembro 2018) e Lala1Vuku (dezembro de 2018). O Lala1Tankala (março 2019),
Lala3Tankala (abril 2019), Lala1Tapalaya (agosto 2019) e Lala3Tapalaya (julho 2019)
passaram a ser remunerados em 2019.

Com o dinheiro recebido, os Korubo adquirem mercadorias nas cidades. Aproveitam as


ocasiões em que são removidos das aldeias pela SESAI para tratamentos de saúde nos hospitais

143
Os nomes dessas pessoas foram codificados do seguinte modo: lala + número + primeiro nome da aldeia.
Também utilizo essa codificação no capítulo 6.
144
Essa quantia refere-se aos pagamentos de “auxílio financeiro indígena” da atividade no rio Coari da FPE Vale
do Javari. Este dado não indica a totalidade dos homens que trabalharam no acampamento de contato, mas
apenas aos dois casos que essa atividade foi especificada dessa forma no Portal da Transparência.
333
ou Casas de Apoio, ou ainda, quando são removidos pela FUNAI para receber pagamentos e
retirar documentos nas cidades. Nessas ocasiões, compram não apenas os itens previstos nas
doações do RCB (sabão, pilhas, lanternas e ferramentas de metal), mas também outras
mercadorias, como motores peque-peque, geradores de luz, fogão, roupas, utensílios de
cozinha (panelas e recipientes plásticos, pratos, copos, colheres, conchas), materiais para caça
e pesca (espingardas, munições, malhadeiras), e alimentos (arroz, farinha, calabresa, frango,
pão, bolachas, macarrão, café, açúcar, sal).

334
6

AS COISAS

Após o pluricontato, os Korubo estabeleceram transações contínuas com os agentes estatais,


passando aos poucos da guerra a troca. As mercadorias e os alimentos industrializados desde
o início permeiam as relações interétnicas dos Korubo. A política indigenista brasileira voltada
aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (PIIRC) – baseada nas premissas da
“aculturação” e na oposição tradicional-moderno – preconiza uma atuação distinta entre
povos de “recente contato” daqueles que têm maior contato com os brancos. No caso dos
Korubo, vimos que o Regime de Circulação de Bens (RCB) é um dos seus dispositivos. Com
o passar do tempo, os Korubo realizaram outras trocas, não mais apenas com os agentes
estatais e, hoje, experimentam outra forma de transação econômica: compras a partir do
dinheiro recebido por trabalho remunerado.

Este capítulo divide-se em quatro seções. Primeiro, analiso como o dinheiro permeia relações
de demanda e parentesco entre os Korubo. As mulheres demandam o que deve ser comprado
e os homens, por sua vez, compram nas cidades as mercadorias e os alimentos que circulam
entre os diferentes cronotopos. Na segunda seção, discuto a forma como os Korubo nomeiam
e se relacionam com os alimentos que produzem e com os industrializados. Na terceira,
analiso o conceito de posse e o ato de os Korubo nomearem as mercadorias, conferindo
agência aos objetos enquanto extensões de pessoas. Na quarta seção, discuto os conceitos de
“sovinice” e “roubo”, mostrando que as atuais acusações de roubo não existem porque os
Korubo acessam determinados bens, e sim porque tal acesso ocorre de modo desigual entre
os cronotopos.

Até novembro de 2018, não havia geradores de energia elétrica nas aldeias korubo do rio Ituí
e os Korubo possuíam três telefones celulares, utilizados quando iam à Base, onde há energia
elétrica e internet. Esse cenário foi se transformando quando os Korubo tornaram-se
“colaboradores” remunerados pela FUNAI. Nos últimos anos, as pessoas nas aldeias do rio
Ituí têm acessado uma quantia inédita de dinheiro e diversas mercadorias hoje circulam nas

335
aldeias. Em 2019, das 91 pessoas no rio Ituí, 46 eram homens. Destes, 20 tinham mais de 18
anos de idade.

A posse de documentos de identificação pessoal, como o Registro Geral (RG) e o Cadastro


de Pessoa Física (CPF), viabilizam a contratação dos Korubo como “colaboradores”. Desses
20 homens em idade apta a contratação, apenas metade era xëni, os demais eram paxa. Dos
quatro homens com idade acima dos 18 anos, na Sentele Maë, dois eram paxa, e os dois xëni
trabalhavam como “colaboradores”. Dos quatro homens com mais de 18 anos na Tankala
Maë, um era paxa, os três xëni eram os colaboradores. Dos sete homens com mais de 18 anos
residentes na Tapalaya, quatro eram paxa, e três xëni eram os colaboradores. Dos cinco
homens com idade superior a 18 anos na Vuku Maë, três eram paxa, os dois xëni eram os
colaboradores. Hoje, os Korubo falam em adquirir motosserras, televisões e motores
geradores de luz para as aldeias no rio Ituí, além de novos motores peque-peque.

Desse modo, alguns xëni que não dominam a língua portuguesa nem o conhecimento
numérico – algo considerado importante pelos mais velhos –, passaram a acessar grandes
quantias monetárias. Entre 2019-20, grande parte das mercadorias e dos alimentos
industrializados acessados pelos Korubo nas aldeias não provinha do RCB, e sim do dinheiro
adquirido pelos Korubo em trabalhos remunerados. As mercadorias adquiridas passavam a
coexistir com os artefatos produzidos pelos Korubo. Recebem cuidados e usos distintos e
configuram um cenário misto. A enxurrada de mercadorias adquiridas por compra não fez
com que os artefatos fossem deixados de lado. Ao contrário, a partir de um modo tipicamente
Pano de incorporar o exterior (Keifenheim 1990; 1992; Erikson 1996), o cenário das aldeias
korubo acomoda tanto as coisas dos Korubo, quanto as “coisas dos brancos”, incorporadas e
“indigenizadas” como coisas dos Korubo.

Animais de criação, como galinhas, cachorros e jabutis, guarda-chuvas, brinquedos de


criança, restos de alimentos, embalagens, fogueiras e bancos de madeira ficam espalhados pelo
chão da maloca. Roupas, cobertores, espigas de milho, zarabatanas e mosquiteiros doados
pelos profissionais de saúde são pendurados nas paredes e no teto. Nas vigas das casas
unifamiliares, há cerâmicas com curare e panelas de alumínio com alimentos. Nesse cenário,
outros elementos do mundo dos brancos também circulam nas aldeias junto às mercadorias,

336
como músicas e palavras em português. 145 Vejamos então como o dinheiro é transformado
em mercadorias e alimentos.

6.1. Demandar e comprar

Conforme mencionei na Parte 2, em sua etnografia sobre os Piro da Amazônia peruana, Peter
Gow (1989) analisou como o funcionamento de economias ameríndias gira em torno da
construção de sujeitos de “desejo sexual” e “desejo oral”, ou seja, desejo por comida. Tais
sujeitos só podem ser construídos a partir de outros tipos de relações. Gow identificou dois
vetores de relação: um entre cônjuges, o outro entre pais e filhos. O processo de construção
de parentesco não é homogêneo, possui nuances, vetores, orientações que exigem estratégias
distintas. No caso korubo, essas estratégias envolvem atualmente a aquisição de mercadorias
e alimentos industrializados, e sua distribuição entre os cronotopos, similar ao que tem
ocorrido entre outros povos, como os Xikrin em que “alguns enviam pacotes de café para os
pais que vivem na outra aldeia, uma avó manda bolachas e refresco em pó para sua neta de
seis anos, um casal envia cartuchos de espingarda e um rolo de linha de algodão para um
outro, como meio de demonstrar gosto no casamento de seus respectivos filho e filha”
(Gordon 2006: 301-3).

Entre os Korubo, o processo de circulação de mercadorias e alimentos perpassa o


estabelecimento de uma lista de demandas e a posterior aquisição por meio de compras nas
cidades. Embora os homens trabalhem com a FUNAI, são as mulheres que demandam as
coisas a serem compradas. A irmã, as esposas ou a sogra de um homem, por exemplo, pedem
que ele compre e leve para a aldeia determinada mercadoria ou alimento. Este pode ser
distribuído como um presente, ou ainda, como algo que foi comprado por outrem porque
alguém permaneceu na aldeia e não pôde ir à cidade. Essas demandas evidenciam os dois

145
Os Korubo apreciam os gêneros musicais que os agentes estatais escutam, como bregas e forrós. Algumas
músicas em que o vocalista fala antes de cantar fazem mais sucesso nas aldeias, pois os jovens ouvem atentamente
as frases em português e repetem-nas, imitando os cantores. O interesse dos Korubo nesse tipo de música é ouvi-
las com atenção para aprender nawan onkete, a “língua dos brancos” (nawa: branco; –n: POSS.; onkete: fala,
língua).
337
modelos relacionais discutidos por Gow (1989), de modo a criar o cuidado e a memória do
parentesco entre os cronotopos.

Os Korubo se interessam por mercadorias diversas. Relógios, óculos de sol, bonés, botas,
sandálias, mochilas, malas de viagem, camisas e shorts, lanternas, facas, recipientes e baldes
plásticos, conchas, munições, cartões de memória, redes etc. As mulheres interessam-se
especialmente por ferramentas de metal, tesouras, linhas, agulhas, calcinhas, sutiãs, pentes,
espelhos, panelas de diferentes tamanhos e, no caso das jovens, esmaltes para pintar unhas.
Com exceção de algumas ferramentas de metal, tais mercadorias não são previstas no RCB,
constituindo parte do que é considerado pelos agentes estatais como “desnecessário” para o
consumo dos Korubo.

As pessoas que vão menos às cidades perguntam para as outras, mais experientes, a
disponibilidade e os preços de determinadas mercadorias em diferentes cidades. Com
frequência, os jovens do cronotopo pós-contato perguntam aos xëni do cronotopo A se em
cidades, como Manaus e Rio de Janeiro, há mosquiteiros, panelas e utensílios de cozinha, e
se essas mercadorias custam mais “caro” nessas cidades. Perguntam ainda por qual motivo
“coisas falsificadas” são mais “baratas” que outras, consideradas “originais”. Indagações a
respeito dos preços das mercadorias quase sempre são comparativas. Todas as saídas das
aldeias korubo para Tabatinga/AM tornam-se ocasiões para a compra de mercadorias e
alimentos industrializados, mesmo que o objetivo primário do deslocamento seja outro, como
os tratamentos de saúde.

As compras envolvem uma lista de demandas de quem permanece nas aldeias. Alguém envia
o seu dinheiro através daqueles que vão para a cidade ou solicita presentes e doações aos
parentes próximos e aos brancos. Quando estão na cidade, os homens falam com as pessoas
da aldeia através do rádio, localizado no escritório da FUNAI e na Casa de Apoio em
Tabatinga/AM. Assim, os Korubo expressam suas demandas quando saem das aldeias e
através da comunicação radiofônica. Pessoas xëni e paxa demandam direta ou indiretamente
mercadorias e alimentos para os brancos antes que estes saíam da terra indígena para desfrutar
de folgas e férias nas cidades.

338
Uma pessoa pode pedir farinha, por exemplo, dizendo: lulu ëvi vetxunta (lulu: farinha; ëvi:
1SG.; vet-xun-ta: pegar-BEN-IMP.). As mulheres costumam pedir algo indiretamente,
perguntando se há determinada mercadoria em um local ou por qual motivo determinado
objeto não está sendo utilizado. Por exemplo, se uma mulher pergunta a um branco se este
usa shampoo, trata-se de uma demonstração de interesse em adquirir e utilizar shampoo. Há
também outra forma indireta de pedir através de intermediários. Os xëni, com frequência,
me pedem para comprar determinadas mercadorias para alguém que permaneceu nas aldeias:
os homens pedem presentes para as suas esposas ou filhas.

Ao retornarem das cidades levando os itens demandados, os homens são recepcionados por
suas esposas e filhos, que vão busca-lo na Base Ituí em motores peque-peque. As mulheres
recebem as mercadorias trazidas e avaliam a qualidade. No caso dos machados, as lâminas são
observadas cuidadosamente. Mesmo que não saibam ler, os Korubo demonstram preferência
por machados de marcas conhecidas pelos brancos, considerados “bons” (vëyla) e, caso as
mercadorias e os alimentos sejam considerados “ruins” (txuturap), não hesitam em expressar
seu descontentamento para o doador, seja este korubo ou branco.

O local das compras feitas pelos Korubo costuma ser a “beira” do rio Solimões, ou seja, o
porto de Tabatinga/AM, local de estabelecimentos para compra-venda. Ir às compras na beira
gera tensão. Por um lado, os xëni entram em um estado de adrenalina. Ao entrarem em uma
loja, seus olhos percorrem diversas mercadorias e expressam um misto entre a angústia e a
dispersão, um olhar de quem não pode levar tudo porque o dinheiro é insuficiente ou mesmo
inexistente. Por outro lado, com frequência, os Korubo receiam ser enganados pelos brancos.
Quando ludibriam os agentes estatais, realizam suas compras acompanhados ou sozinhos.

Quando há automóveis das instituições estatais disponíveis para leva-los, os Korubo não
recusam as “caronas”, pois apreciam passear pela cidade nos automóveis. Similar aos
deslocamentos na floresta para caça, coleta e pesca, todos os deslocamentos na cidade em
automóveis, motos ou à pé são chamados de kapoe. 146 Para alguns agentes estatais, levar os

146
Termos similares para o sentido de andar e caminhar na floresta podem ser encontrados entre povos de outras
famílias linguísticas, como watá e watáhá falados pelos Awá-Guajá da família linguística Tupi-Guarani (ver
Garcia 2010: 269-315). Entretanto, o sentido de kapoe ultrapassa a ideia de caçar ou buscar alimentos,
abrangendo também a coleta de recursos, como as matérias-primas para a produção de artefatos e, atualmente,
os deslocamentos pelas cidades.
339
Korubo para as compras na “beira” do rio Solimões é uma “missão demorada” porque estes
não têm “objetividade” nas compras. Para os Korubo, os brancos que não gostam de ir às
compras com eles “não querem ajuda-los”. De fato, os xëni não economizam esforços para
fazer os agentes estatais levarem-nos repetidas vezes às lojas na beira. Cada ida à beira é uma
oportunidade para aprender mais sobre as mercadorias, o dinheiro e os brancos.

Com o passar do tempo, alguns agentes estatais passaram a questionar por qual motivo os
Korubo fazem compras e, posteriormente, pedem para ir às compras novamente.
Aparentemente, o dinheiro dos Korubo acabou. O fato é que os xëni não dizem para os
agentes estatais o valor monetário total que possuem e, estrategicamente, são levados várias
vezes para fazer compras na beira, gastando o seu dinheiro aos poucos, na medida em que
multiplicam suas ocasiões de kapoe, aprendizado e descoberta. Mesmo sem dinheiro, uma
pessoa korubo pede para acompanhar as compras de outro apenas para olhar, ver (isek), sendo
a observação um vetor central para aprender e conhecer (unane) (Silva 2020b: 161).

Um dos maiores anseios dos xëni é “não precisar da FUNAI” para fazer compras e andar pela
cidade, conforme afirmam. Passear nos automóveis dos órgãos estatais é uma kapoe prazerosa,
mas “precisar” dos brancos por não monopolizar o conhecimento dos brancos não é
considerado um benefício. Nos últimos anos, os Korubo passaram a escapar dos brancos para
ir às compras sozinhos. De moto-táxi ou a pé, saem para a “beira” sem que os agentes estatais
saibam. Nem sempre há automóveis e funcionários disponíveis nos horários que os xëni
gostam de sair para as compras ou falar no rádio, ou seja, ao amanhecer ou após o meio dia.

Majoritariamente, os xëni que saem para a beira sozinhos não possuem o corte de cabelo em
meia-lua: um dos principais fatores de identificação dos Korubo pelos regionais. Nos últimos
anos, um dos motivos para os Korubo deixarem o cabelo crescer é justamente não serem
identificados pelos brancos e, assim, circularem pela cidade com mais segurança. Em
Tabatinga/AM, esses jovens vão de moto-taxi ou a pé para a beira comprar mercadorias
sozinhos. Vão à Casa de Saúde (CASAI/SESAI) para usar o rádio e se comunicar com aqueles
que permaneceram nas aldeias. Nessas ocasiões, os jovens mentem para os brancos a respeito
de sua circulação. Em 2021, após sair da terra indígena pela primeira vez desde o início da
pandemia da COVID-19, um grupo de jovens korubo chegou à CASAI em Tabatinga/AM.

340
Ao perceber que não estavam acompanhados, uma enfermeira perguntou como eles chegaram
ali. Os jovens afirmaram que “a FUNAI” os levou de carro. A enfermeira observou que os
pés deles estavam sujos de lama, característica do solo na localidade da CASAI, pois haviam
chegado à pé. Para os agentes estatais da FUNAI, os Korubo disseram o oposto, ou seja, que
haviam sido levados para a CASAI pela “SESAI”.

Para os Korubo, fazer compras é kapoe, uma ocasião de aprendizado. É através da observação
(isek) que eles ensinam as crianças e, assim, apreendem o conhecimento (unane) dos brancos.
A concepção de observar e conhecer é central para diversos povos ameríndios, geralmente,
relaciona-se a outros conceitos, como “escutar” e “imitar”. 147 No caso dos Korubo, a
observação (isek) é um pressuposto do “experimentar” e “imitar”, ambos referidos pelo verbo
“tan”. O fazer compras é um processo que envolve não apenas a ida aos estabelecimentos
localizados nas margens do rio Solimões. Mas, sobretudo, uma cadeia de relações de demanda
em que as mulheres são as principais agentes na escolha das mercadorias e dos alimentos
industrializados. Oferecer mercadorias e alimentos industrializados é ter pensamento em
alguém, lembrar de, reconhecer e reafirmar o parentesco.

Com os brancos, entram em cena outros modos de pedir, seja indiretamente ou através de
terceiros. Os diversos modos de pedir evidenciam as tentativas dos Korubo em estabelecer
novos formatos relacionais com os brancos. Não mais relações guerreiras, e sim de cuidado e
demanda. Ao mesmo tempo, os xëni anseiam ter autonomia em seus deslocamentos pela
cidade, ou seja, circular sozinhos. Mas este sentido de autonomia difere daquele usado pelos
agentes estatais, presente na definição de “recente contato”, como vimos no capítulo anterior.
Para os xëni, autonomia não é deixar de pedir coisas aos brancos ou possuir poucas

147
Os processos de aprendizagem podem estar relacionados a diferenças de gênero, como entre os Runa do
Equador. Os homens runa caçam, pescam, constroem casas, roças e canoas, enquanto as mulheres cultivam e
colhem mandioca doce, fabricam cerâmica e cerveja de mandioca. O processo de aquisição desses
conhecimentos ocorre a partir de meios e ênfases distintos. Por um lado, os homens runa ingerem substâncias
corporais que os concedem qualidades éticas e sociais valorizadas, como força e bravura. Por outro lado, as
mulheres runa, imitam e reproduzem movimentos executados por outras mulheres. Neste caso, o aprendizado
das mulheres visa moldar a maneira como os seus corpos se movimentam a partir da imitação do movimento
de outras pessoas, ou melhor, mulheres mais velhas transmitem seus movimentos para as mulheres mais novas.
Tal discussão evidencia que entre os gêneros há distintas ênfases em visibilidade e exterioridade no processo de
incorporação de novos conhecimentos, ver Mezzenzana (2017).
341
mercadorias. Autonomia é kapoe, “não precisar” de outrem para circular com finalidades
almejadas. Nas cidades, o objetivo é observar, escutar, aprender e obter “coisas de nawa”.

Espingardas e motores

As espingardas e os motores são mercadorias que aparecem na literatura etnológica quase


sempre atreladas aos brancos. No caso das Guianas, a espingarda aparece na mitologia
Wajãpi. No tempo mítico, as armas foram distribuídas. Então, os brancos tornaram-se os
donos das espingardas (Gallois 1988: 225-6; 2002: 219). Para os Wayana, a espingarda é um
falso enfeite, pois não tem uso e função específica, ou seja, mata todos os animais (Van
Velthem 2002: 64). No caso do alto rio Negro, os motores peque-peque são adquiridos pelos
Hupd’äh por compra através dos benefícios sociais e salários. Os motores são elementos que
os diferenciam de outros povos da localidade, e também são signo de riqueza e poder, pois
são utilizados por Bisiw, o dono dos animais, para fugir dos xamãs (Ramos 2013: 415-7).

No caso korubo, as espingardas e os motores são exo-tecnologias, incorporadas nas relações


com os brancos, que tornam-se instrumentos para buscar coisas fora das aldeias, ou seja, na
floresta e nos rios. O conceito de kapoe, mencionado anteriormente, refere-se à boa
caminhada, aos deslocamentos na floresta para caçar, coletar, pescar ou acampar,
constituindo um modo de vida Pano setentrional (ver Erikson 1996; Matos 2014). No caso
korubo, este conceito estende-se aos deslocamentos na cidade com o objetivo de olhar (isek)
para aprender (unane). Os brancos possuem determinadas tecnologias que viabilizam a kapoe,
como as espingardas (xawi) e os motores peque-peque (moto). 148 Embora não sejam
tecnologias demandadas pelas mulheres, as espingardas e os motores são priorizados nas
compras porque fomentam a obtenção alimentar e o parentesco. Os xëni trabalham e recebem
dinheiro, mas as espingardas e os motores de um xëni beneficiam o coletivo. Vejamos então
as aquisições de espingardas e motores peque-peque por colaboradores korubo:

148
No caso korubo, a palavra moto é uma oxítona. Os Matsés também utilizam uma expressão emprestada da
língua portuguesa para se referir aos motores peque-peque: motod (Fleck, Bëso e Huanán 2012: 139).
342
Homens Aquisição de Aquisição Cronotopo
espingarda de motor
peque-
peque
Lala1Sentele X X A
Lala2Sentele X A
Lala1Tankala X X A
Lala2Tankala X X A
Lala3Tankala X X A
Lala1Tapalaya X X A
Lala2Tapalaya Pós-contato
Lala3Tapalaya X Pós-contato
Lala1Vuku X A
Lala2Vuku X A
Tabela 14. Aquisição de espingardas e motores.

Das quatro aldeias no rio Ituí, Tapalaya era a única que contava com apenas uma espingarda.
Na época, os homens dessa aldeia trabalhavam para o órgão indigenista com a intenção de
reunir seus pagamentos e adquirir mais espingardas para caçadas. Essa diferença em relação
aos homens da Tankala Maë se justifica pelo fato de os homens da Tankala Maë terem
ingressado primeiro em atividades remuneradas pela FUNAI. A maioria dos homens que
trabalharam com o órgão indigenista em 2019-20 são das duas maiores aldeias no rio Ituí
(Tankala Maë e Tapalaya). Todavia, esse aparente equilíbrio entre Tankala Maë e Tapalaya
não corresponde à disponibilidade de mercadorias no cotidiano, pois a Tankala Maë possuía
três motores, enquanto a Tapalaya, semelhante às demais aldeias, possuía apenas um.

Nesse caso, o Lala2Vuku residia na Tankala Maë e, posteriormente, mudou-se para a Vuku
Maë. Lala2Vuku adquiriu um motor após ter trabalhado no acampamento de contato no rio
Coari, mas doou para o seu filho (Lala2Tankala), que sabe pilotar embarcações e reside na
Tankala Maë. O Lala2Vuku é uma exceção em termos de um xëni que não sabe pilotar.
Então, na Tankala Maë havia três motores, enquanto na Vuku Maë não havia motores – algo
que Maya matxo ambicionava adquirir através do benefício de sua aposentadoria via INSS.

Grupos de pais e filhos xëni economizam o dinheiro recebido, reúnem as quantias (“juntar
dinheiro”) para comprar espingardas e motores, e otimizar suas caçadas. Enquanto “juntam
dinheiro”, pedem aos agentes estatais notícias a respeito de determinadas atividades, como os
“projetos” do Museu do Índio/RJ, para aglutinar possibilidades de aquisição monetária.

343
Armazenam os valores reunidos nas vigas das casas, nas paredes da maloca, em bolsas e
mochilas industrializadas.

Diferente de outras mercadorias, as espingardas e os motores permanecem nas aldeias quando


os Korubo vão para as cidades para tratamentos de saúde, retirada de documentos,
participações em feiras de compra-venda de artefatos, recebimento de pagamentos e realização
de compras. Nessas ocasiões, os Korubo se deslocam, acompanhados por agentes estatais em
embarcações dos órgãos federais. Levam consigo cestos kakan, carregados através de faixas de
envira, e mochilas contendo algumas mercadorias e artefatos, como teares para fabricação de
braçadeiras, canecas plásticas, colheres de metal, cipó tatxik, roupas industrializadas etc. Ao
sair das aldeias, os xëni deixam as suas espingardas guardadas na Base Ituí para que outras
pessoas, sobretudo, as crianças e os caçadores mais jovens não mexam (mixenla). Quando vão
para o rio Coari, levam as espingardas consigo.

As mulheres korubo não utilizam espingardas, apenas os homens mais velhos, adultos e
rapazes. Nem todos as pessoas do gênero masculino sabem manusear armas de fogo. Os paxa
adultos e um darasibo do cronotopo A (o Lala2Vuku da tabela acima) não sabem caçar com
espingardas. O uso de espingardas é sinônimo de uma vida após o pluricontato. Nesse
sentido, os Korubo afirmam que os paxa do cronotopo B, antes do pluricontato, raramente
comiam carne de anta, pois não possuíam espingardas e se alimentavam de mamíferos e aves
menores, caçados com zarabatanas. A espingarda é um signo da relação com os brancos não
apenas porque o “perigo” proveniente dos brancos está relacionado às armas de fogo, mas
também porque ter espingardas é efetuar uma mudança no modo de vida korubo que
perpassa a alimentação.

Os homens têm cuidados específicos com os diferentes tipos de armas: bordunas, zarabatanas
e espingardas. Essas armas são transportadas nos ombros. Eles seguram com uma das mãos a
porção frontal da arma, de modo que o corpo da arma fique atravessado e apoiado sobre o
ombro. Há homens adultos e rapazes de diferentes cronotopos que caçam com zarabatanas e
espingardas, por vezes, simultaneamente. Os dois tipos de armas são levados para as caçadas.
Os homens se dividem em pequenos grupos e saem para diferentes partes da floresta,
reunindo-se ao final da caçada.

344
Os Korubo utilizam a zarabatana para caçar aves e mamíferos de pequeno porte, como as
espécies de macaco e preguiças. Contudo, já houve ocasiões em que eles utilizaram zarabatana
até para caçar queixadas, configurando uma exceção. As zarabatanas, chamadas de kanon,
possuem um bocal (ëxa) e uma mira. Os Korubo colam as partes da zarabatana com breu
vegetal (mamo), e passam cinzas de aruá grande (nunti) e urucum (xinte) no corpo da
zarabatana. Hoje, os Korubo lapidam o bocal com faca e o corpo da zarabatana, feito de
paxiúba, com terçado. Antes de possuírem ferramentas de metal, eles utilizavam dentes de
paca (xëta mapua) para a construção da fenda por onde deslizam os dardos (tsipa). Colam o
bocal com uma resina (këku) retirada de uma árvore não identificada. Com o auxílio de fogo
e um pedaço de cerâmica, passam o breu no corpo da zarabatana. Trituram o aruá pequeno
(txitxiko) no fogo até tornar-se cinzas que são passadas sobre o breu, no corpo da zarabatana,
lixado com entrecasca de árvore.

Imagem 27. Armazenamento da zarabatana.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Após as caçadas, os homens limpam as suas zarabatanas. Cada caçador que produz uma
zarabatana torna-se o seu dono e, portanto, é responsável por sua limpeza. Os Korubo limpam
periodicamente a fenda por onde deslizam os dados assoprados pelo caçador, penetrando-a
com um pedaço de bacaba (Oenocarpus bacaba, em korubo xekte) para desobstrui-la.
345
Periodicamente, os caçadores desmontam e remontam os componentes da zarabatana.
Retiram o bocal, reposicionam a mira, e a reenceram com breu vegetal, cinzas de aruá e
urucum. 149

O processo de fabricação e manutenção de uma zarabatana é cuidadoso, silencioso e


demorado. Um trabalho solitário desempenhado pelo caçador que, por vezes, fabrica e
desmonta a zarabatana sentado na porção frontal e direita da maloca, enquanto escuta os
demais conversando. Por vezes, ele limpa a zarabatana com xekte na floresta, sozinho,
próximos ao igarapé. Há um cuidado com o local de armazenamento das zarabatanas.
Crianças ou animais de criação não podem transitar por cima dela. Raramente as zarabatanas
ficam no chão das habitações. Nesse caso, se alguma criança ou animal transitar por cima,
são repreendidos pelos adultos.

Imagem 28. Ayax Punu limpando zarabatana.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

149
Há ainda a aljava da zarabatana, cujo processo de fabricação eu não acompanhei, embora saiba que as bolsas
para armazenamento do algodão (opo) são tecidas pelas mulheres com o uso da fibra da palmeira tucum (Bactris
setosa, em korubo tote). Entretanto, as aljavas não são refeitas periodicamente, como a zarabatana. A
manutenção, montagem e desmontagem das zarabatanas não acompanha a reelaboração das aljavas.
346
Os Korubo guardam as zarabatanas no teto da maloca e das casas unifamiliares sem o contato
direto com a palha das habitações, pois há uma haste feita com cipó e envira, que forma um
espaço em que a zarabatana é pendurada. Na aldeia Tankala Maë, as zarabatanas são
armazenadas no lado direito da porção frontal das casas unifamiliares e da maloca. Nesse
mesmo local, os homens se sentam para tomar tatxik e penduram as cerâmicas com nakunte,
curare: veneno utilizado para a caçada com zarabatanas. Na Sentele Maë, ao contrário, as
zarabatanas são penduradas no lado esquerdo e na porção posterior da maloca. Próximo delas,
há redes para dormir.

As espingardas, por sua vez, são chamadas de xawi ou tonkate. Neste caso, os cartuchos de
munição são tonkate ëxë (ëxë: olho, semente), como se a munição fosse o olho ou a semente
da espingarda. 150 Os cartuchos de munição também são chamados de polotsi. As espingardas
e munições são compradas com o dinheiro dos Korubo. Do mesmo modo que a aljava da
zarabatana é carregada na cabeça ou no pescoço do caçador, pendendo para as costas, alguns
jovens do cronotopo pós-contato carregam as munições presas em faixas penduradas no
corpo, no pescoço ou atravessadas no tórax.

Embora as espingardas não sejam desmontadas, os homens limpam o lado externo do cano
com pedaços de tecido ou peças de roupas. Diferente da zarabatana, não há uma haste para
armazenar as espingardas, que são enfiadas nas vigas em contato direto com a palha do teto
da maloca ou das casas unifamiliares. Geralmente, as espingardas são penduradas do lado
direito do teto das casas unifamiliares ou da maloca. Quando saem das aldeias para averiguar
rastros de caça, os xëni recomendam aos jovens que não disparem com as espingardas, caso
olhem uma caça pequena, para não espanta-las para longe das aldeias. Esta é uma distinção
central entre zarabatanas e espingardas. As zarabatanas são silenciosas como um caçador
korubo deve agir na floresta. As espingardas, ao contrário, são barulhentas, semelhante as
cidades e seus habitantes, os brancos.

O uso das espingardas pelos xëni é crescente, pois esse tipo de arma viabiliza maior consumo
de caças grandes, como as antas e as queixadas. Volumes alimentares que saciam toda a aldeia

150
Em matsés, ëshë refere-se a olho, semente, cartucho de munição ou pilha de lanterna (Fleck, Bëso e Huanán
2012: 106).
347
durante alguns dias. Mas as espingardas não se restringem às caçadas, sendo utilizadas até em
pescarias. Tradicionalmente, os Korubo paxa e xëni utilizam o timbó (Ateleia glazioviana, em
korubo komo) para atordoar os peixes e facilitar a captura. Um dos peixes capturados dessa
maneira é o kunit, poraquê. Com a aquisição das espingardas, os Korubo mesclam diferentes
técnicas. O poraquê é provocado até emergir na superfície da água, momento em que os
Korubo o atacam com pedaços de pau, ferramentas de metal ou disparos de espingarda.

O uso das espingardas estimula as caçadas coletivas entre homens de aldeias distintas. Quando
há vestígios e rastros de determinada caça, os Korubo se comunicam via rádio. Convidam
caçadores de outras aldeias para se unirem na caçada, pois o objetivo é reunir espingardas e
munições para obter mais carne. A caçada de determinados animais, como a anta e as
queixadas, é atrelada ao uso das espingardas. Caso os caçadores de uma aldeia tentem ir atrás
desses animais sem espingardas, correndo o risco de espanta-los para longe, há conflitos entre
os co-residentes. Nesses casos, há um consenso sobre aguardar as espingardas e munições para
assegurar o êxito na caçada.

Os xëni dos cronotopos A e pós-contato são também cuidadosos com outra tecnologia de
kapoe: os motores peque-peque. Durante algum tempo, os Korubo (“isolados”) foram
associados aos cochos de paxiúba utilizados para atravessar o rio. O uso dos cochos foi
transformado na atual intimidade que eles mantêm com os motores e as embarcações de
alumínio, chamadas de “baleeiras”. Os motores são temas das conversas entre homens adultos
e rapazes. Os jovens perguntam aos xëni do cronotopo A os preços das peças de motores, a
depender das cidades que os xëni já conhecem.

Quando saem das aldeias ou durante o horário de dormir, os Korubo retiram os motores da
água, guardam nas casas unifamiliares ou cobrem com palha para não ficarem expostos às
intempéries. Os motores utilizados pelos Korubo são acompanhados por baleeiras, onde cada
pessoa tem um lugar específico. Na proa, um caçador, homem adulto, fica à espreita de
alguma caça. Na popa, há um ou dois jovens, chamados de “motoristas”. No estibordo, as
mulheres e crianças que raramente sentam nos bancos da baleeira, e permanecem
posicionadas sobre um pedaço de madeira localizado entre os bancos da embarcação.

348
A importância dos motores peque-peque no modo de vida após o pluricontato e a
“indigenização” dessa mercadoria relaciona-se à atual centralidade da “beira” no cotidiano
das aldeias korubo. Existem dois tipos de “beira”: (i) a do rio Solimões, local de realização das
compras, conforme mencionei no início desta seção; (ii) e a do rio Ituí, entrada atual das
aldeias korubo. No caso dos motores, refiro-me ao segundo tipo. Fora da entrada das aldeias
não existe “beira”, e sim “praia” (ëmate). Após o pluricontato, o estabelecimento de aldeias
no baixo curso do rio Ituí e a aquisição dos motores instalaram uma nova dinâmica: as
“visitas” entre aldeias.

Imagem 29. Visa, Pëxken e crianças recebendo visitas na beira.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Hoje, a “beira” do rio Ituí é o espaço de socialidade entre os diferentes cronotopos nos
momentos de chegada (txue) e partida (kwane). Com os motores, pessoas xëni e paxa se
visitam com frequência. Essas ocasiões são kapoe e constituem oportunidades para caçar,
pescar, acampar e coletar, pois é louvável chegar em outra aldeia levando carne de caça abatida
no caminho. A caça pode ser tratada no trajeto, e cozida e consumida na aldeia anfitriã. A
partir do som de determinado motor, os Korubo sabem quem está se aproximando: os agentes
estatais, outros brancos “invasores”, os Marubo ou visitas dos Korubo de aldeias vizinhas.
Quando uma embarcação se aproxima, caso sejam conhecidos, as pessoas de uma aldeia
349
aguardam os visitantes “na beira”. Caso sejam desconhecidos, os Korubo não aparecem na
beira, saem da maloca e entram na floresta, sobretudo, se houver somente as mulheres
aguardando os homens retornarem de uma caçada.

Na chegada dos visitantes (txue), as pessoas permanecem quietas, esperando que a visita se
manifeste, ou ainda, a saudam: ehe!. Em seguida, perguntam se está tudo bem: “vëyla?”. As
visitas não desembarcam imediatamente, pois é um hábito dos Korubo conversar na beira
durante alguns minutos, talvez porque passaram décadas fugindo das margens dos rios
ocupadas pelos brancos latkute, conforme o capítulo 1. Existem “visitas” que só ocorrem na
beira e as pessoas nem chegam a entrar nas malocas. Por exemplo, pessoas da Tankala Maë
pode estar em uma kapoe com o objetivo de coletar fibra de tucum (tote) na localidade acima
da aldeia Vuku Maë. Na chegada e no retorno, ao ouvir o som do motor, as pessoas da Vuku
Maë vão para a beira. Então, as pessoas da Tankala Maë encostam a embarcação para
conversar, ou ainda, buscar alguém que queira participar daquela kapoe.

A beira do rio Ituí é, por excelência, o local de anúncios, novidades, fofocas e temas a serem
aprofundados na maloca. A beira é o local das trocas comerciais e de se informar sobre o fluxo
de pessoas na terra indígena, como as canoas dos Marubo que sobem e descem para as cidades.
A beira é o local de saber se há ou não carne, qual é a caça e quem a abateu, quem “chamou
no rádio” durante uma kapoe. A beira é o local do anúncio das tragédias, mas também de
brincar e gargalhar. A beira é o local de manter-se atualizado sobre as dinâmicas e logísticas
dos agentes estatais, ou seja, qual branco está subindo o rio Ituí e para fazer o quê.

Mas a beira não é apenas o local da chegada e da informação. As pessoas também conversam
na beira quando vão embora (kwane). A despedida é prolongada. Dar partida no motor não
significa se afastar da beira rapidamente. As pessoas continuam se comunicando à distância
através de “enfático monótono” (Fleck 2003: 188), até que a baleeira se distancie da beira a
ponto de não verem ou ouvirem quem permanece, ou ainda, até que as pessoas da aldeia
anfitriã retornem para a maloca. A partir da circulação dos motores dos Korubo e dos motores
de popa dos agentes estatais, circulam também mercadorias e alimentos entre as aldeias.

Em motores próprios, as visitas entre pessoas de diferentes aldeias são oportunidades para a
coleta de sementes e manivas para a abertura de roças. As pessoas de determinada aldeia

350
buscam ou levam as sementes ou manivas para outra aldeia após a demanda de alguém que
abrirá novas roças. Os Korubo também utilizam os motores para distribuir carne após uma
caçada exitosa, por exemplo, as pessoas da Tankala Maë levam carne para as pessoas da
Tapalaya após capturarem queixadas ou uma anta.

Há ainda as “caronas” entre os Korubo. Ao chegarem das compras realizadas nas cidades, os
xëni são recepcionados na Base Ituí por suas esposas e filhos, que vão busca-los em motores
peque-peque. Quando dão carona a alguém de outra aldeia até a Base, há partilha da gasolina
entre as aldeias. Por exemplo, os xëni da Tapalaya e Tankala Maë retornam da cidade. As
aldeias se organizam para busca-los na Base: a Tankala Maë oferece o motor e a baleeira, e
cada uma das duas aldeias fornece a cota de combustível. Neste caso, um xëni da Tapalaya
pega carona no motor de um xëni da Tankala Maë, que pode ser o seu masko (eB).

Os xëni desejam não apenas ganhar dinheiro para adquirir motores peque-peque, mas
compreender o funcionamento dos motores. Alguns xëni do cronotopo A manifestam
curiosidade em aprender a ler o conteúdo das notas fiscais, guardadas nas paredes das casas
unifamiliares. Esse tipo de mercadoria envolve demandas subjacentes para a manutenção e o
funcionamento dos motores, como gasolina, graxa, óleo 4T, vela etc. Alguns destes, constam
no RCB. Mas, a partir de 2019, os xëni passaram a compra-los com dinheiro próprio – algo
que eles têm orgulho de dizer, evidenciando que não foram obtidas em doações “da FUNAI”.

A cada quatro dias, as equipes de saúde visitam as aldeias korubo no rio Ituí. Em casos de
acidentes ou emergências, o prazo das visitas é reduzido. Quando falta combustível ou
embarcação, é ampliado. Durante as visitas das equipes de saúde, as pessoas de uma aldeia
aproveitam para doar ou devolver alimentos e mercadorias para as pessoas de uma aldeia
vizinha. Comumente, os Korubo pedem aos agentes estatais uma “carona” para visitar pessoas
em outra aldeia ou participar de caçadas coletivas. Os motivos para a solicitação das caronas
são diversos: os conflitos conjugais levam um cônjuge a querer se afastar do outro; os
adoecimentos levam alguém a querer visitar o enfermo para aspirar a doença; os avós desejam
rever e passar um tempo com seus netos. A disposição das caronas depende dos brancos que
compõem as equipes de saúde.

351
Tais elementos norteiam as interações entre os Korubo e os agentes estatais, mas também as
possibilidades de alimentação de uma aldeia. As caçadas de macacos, entre os meses de março
e maio, ocorrem apenas quando há combustível suficiente e motores em funcionamento.
Embora um homem seja reconhecido como proprietário de determinada espingarda ou
motor, essas tecnologias são utilizadas para beneficiar todas as pessoas de uma aldeia.
Alimentar os co-residentes, gerando o parentesco entre os cronotopos. O caso dos motores
revela como as tecnologias e mercadorias dos brancos são “indigenizadas” para administrar os
conflitos e as saudades do parentesco.

Uma mãe residente na Sentele Maë envia através da equipe de saúde uma panela de metal
com caça cozida para um filho residente na Tapalaya, mesmo que esteja seja casado. Uma
mãe da Tapalaya envia bananas para o seu filho que esteja trabalhando como “colaborador”
na Base Ituí. Este, por sua vez, envia para a Tapalaya um cobertor industrializado obtido na
Base em transações com os brancos. Uma mulher solicita timbó para o seu irmão, casado e
residente em outra aldeia. Assim, a realização de visitas entre aldeias, paralelas às visitas dos
agentes estatais, geram e nutrem a memória dos laços de parentesco. Sabemos que o
parentesco se manifesta pela co-presença mútua e co-residência (Gow 1989; 1997). Assim,
eles submetem à ética do cuidado e da partilha mercadorias industrializadas, obtidas no
contato interétnico por lógicas estranhas ao parentesco, como o trabalho remunerado, a
compra e o dinheiro.

352
Roupas

Imagem 30. Varal de roupas.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

As roupas industrializadas, diferente das espingardas e dos motores, são demandadas como
presentes e doações, seja entre os Korubo ou para os brancos. Trata-se de um tipo de
mercadoria que, embora não seja vinculado ao conceito de kapoe, também é utilizado nos
deslocamentos para fora das aldeias. As peças de roupa têm posse definida e sua aquisição
beneficia proprietários específicos, e não a um coletivo. Os Korubo vestem roupas
industrializadas em tarefas habituais e rituais fúnebres. Conforme ocorreu em 2019, na aldeia
Sentele Maë, quando um barrigudo (Lagothrix lagotricha, em korubo kolokit) criado pelos
Korubo, foi encontrado morto e duas matxo dos cronotopos B e C vestiram camisas vermelhas
para enterra-lo.

Os Korubo demonstram seu interesse pelos brancos e pelas coisas dos brancos perguntando
se outros ameríndios falam português e vestem roupas. O uso de roupas industrializadas é
acionado nas narrativas de diversos povos como um índice do contato permanente e regular
com os brancos, do processo de deixar de ser “índio bravo” e sair da mata para tornar-se
“civilizado” (Alzza 2017: 113; Almeida 2021: 100-111). Em alguns casos, pode indicar a

353
“vergonha” atrelada à nudez ou que os ameríndios estão “acostumados” com os brancos
(Fausto 2001: 63, 185; Betancourt 2018: 136).

As roupas permeiam as teorias ameríndias sobre o branco. Durante os primeiros encontros


diretos entre as frentes extrativistas e os Yanomami, estes conceberam os brancos como
espíritos maléficos, dentre diversas características, devido ao uso de sapatos e roupas (Albert
1992: 165). Entre os Wari’, branco é wijam: inimigo de corpo branco, uma referência às
roupas. O mito de Oropixi narra a origem dos brancos a partir da trajetória de um povo que
trocou o seu local de residência e, ao retornar e reencontrar os Wari’ que permaneceram no
mesmo local, um dos estranhamentos foi justamente o uso das roupas. Então, passaram a não
se reconhecer mais e a guerrear entre si (Vilaça 2006: 141, 260-1).

O uso de roupas industrializadas pode ser concebido também como uma fonte de malefícios
na relação dos ameríndios com outros seres. Para os Zo’é, o uso das espingardas e roupas são
motivos para a escassez de queixadas. Quando os Zo’é pararam de plantar urucum e deixaram
de pintar seus corpos, passando a usar roupas industrializadas, os porcos não gostaram e
desapareceram (Braga 2017: 138-9). Outros casos mostram que nem sempre os ameríndios
desejaram ter roupas industrializadas, como os Yagua que as recusaram porque vesti-las era
tornar-se branco, algo indesejado (Chaumeil 1983). A recusa também pode estar atrelada a
uma concepção de que as roupas industrializadas são fontes de doenças, como é o caso dos
Marubo (Welper 2009: 94, 185).

Contudo, nem sempre as roupas industrializadas foram atreladas negativamente aos brancos.
Mesmo para os Marubo, que a priori concebiam as roupas como fontes de gripe, os mitos
apresentam os Incas como personagens que possuem roupas, enfeites, usam ayahuasca e rapé,
e forneceram o metal e o tecido aos Marubo (Welper 2009: 94). Para os povos da bacia do
rio Javari, os brancos estiveram atrelados à doação de roupas, como é o caso dos Kanamari,
Marubo, Matsés e Kulina-Pano (Costa 2007: 59; Welper 2009: 124-5; Matos 2014: 19-23;
D’Ávila 2018: 36, 60-1).

No entanto, nem sempre foram os brancos que doaram as roupas para os ameríndios. Em
alguns casos, as roupas e o conhecimento vinculado a estas são transmitidos pelos
intermediários atuantes nos contatos interétnicos, como é o caso dos Tsohom-dyapa e

354
Kanamari, Jaminahua e os índios Xinane, e Zo’é e Tirió (Gil 2020; Ribeiro 2020; Almeida
2021). As etnografias evidenciam não apenas a recusa ou o interesse dos humanos pelas
roupas, mas também o interesse de seres extrassociais, como os “fantasmas” que vão aos
acampamentos de caça abandonados pelos Awá-Guajá em busca de roupas (Garcia 2010:
116).

Na Parte 1, vimos que, após os eventos de contato, os Korubo desejavam adquirir roupas
industrializadas e, por isso, pediam constantemente aos agentes estatais que chegaram a
cogitar que os Korubo queriam assemelhar-se aos Matis e aos nawa (Oliveira 2009: 11). Entre
2019-20, no rio Ituí, havia algumas pessoas que não usavam roupas e a maioria estava sempre
vestida. Mesmo que alguns não acessassem dinheiro, a partir do trabalho remunerado, todos
acessavam alguma peça de roupa quando precisavam sair das aldeias para a cidade. A partir
de doações dos brancos, da compra e distribuição das mercadorias entre os Korubo, todos
(xëni ou paxa) acessam roupas. Se, por um lado, há uma circulação de roupas industrializadas
nas aldeias, por outro lado, o mesmo não acontece com as sandálias e os sapatos, pois algumas
pessoas saem descalças das aldeias.

No caso dos Korubo, o sentimento de vergonha (lakule) e o desejo de cobrir seus corpos é
evidente na distinção xëni e paxa, ou seja, quem é “antigo” no contato com os brancos e quem
é “novo” nessa relação. Nas aldeias, os homens mais velhos quase sempre trajam apenas
amarrações penianas e braçadeiras. As mulheres mais velhas usam shorts apertados e saias, com
os seios e o tórax descobertos. Durante os banhos coletivos das mulheres, as jovens
demonstram vergonha em mostrarem seus corpos. Apenas as mais velhas e paxa ficam nuas
durante o banho. As matxo do cronotopo A e as mulheres mais jovens tomam banho vestidas.

Para os Korubo, o uso de roupas sempre esteve atrelado aos brancos. Não sem razão, os xëni
do rio Ituí dizem que Makwëx – homem mais velho contatado no evento 6 – têm “raiva” de
gente que “veste roupa”, inclusive, de outros de povos do Vale do Javari. As roupas doadas
aos Korubo em situação de isolamento são um objeto de preocupação por parte dos agentes
estatais por serem possíveis vetores de doenças (Aquino 1998; Amorim 2008). Os Korubo
adquiriam roupas por doações. Hoje, preferencialmente, as roupas são compradas com
dinheiro próprio. Apenas jovens e adultos vestem roupas nas aldeias, na floresta e na Base,

355
diferente das crianças que praticamente só vestem roupas quando vão às cidades ou quando
há um grupo de brancos na aldeia.

Camisas e camisetas são lapoate. Bermudas e calças são tsipoate. No caso dos shorts e das saias,
por vezes, as mulheres utilizam o termo natonkete ou txitonkete. Na língua korubo, o sufixo
–te é um nominalizador de verbos, que tem como resultado a ideia de “instrumento, coisa
de” (Sanderson Oliveira, comunicação pessoal). Os prefixos –txi, –na e –la, por sua vez,
referem-se a partes do corpo humano. Na língua matsés, o prefixo –tsi (cognato do –txi)
refere-se à região das nádegas e extremidade dos objetos; –da (cognato do –la) refere-se a
tronco; –na refere-se ao abdômen (Fleck 2006: 64-6). As roupas são instrumentos utilizados
para cobrir partes do corpo. 151

Quando um branco doa uma peça de roupa aos Korubo, abre margem para outras pessoas
demandarem doações. Um branco precisa demonstrar através da doação de roupas que há
uma relação, que não é mais a de guerra. Dar uma peça de roupa a alguém sinaliza uma
relação pacífica, ou seja, a transformação e ampliação das possibilidades relacionais dos
Korubo. Com frequência, ao doar uma peça de roupa a determinada pessoa, as demais se
manifestam pedindo roupas, ou ainda, perguntando ao branco sobre a doação feita
anteriormente a determinada pessoa – o que, conforme vimos, é uma das maneiras de pedir.

Tudo se passa como se fosse necessário doar uma peça de roupa a todas as pessoas de mesmo
gênero e aldeia. Nem sempre as peças de roupa demandadas pelos Korubo se ajustam aos seus
corpos, ficando grandes ou pequenas, mas isso não tem importância. Em uma doação, o
importante é a posse, ou seja, um korubo tornar-se o dono da roupa e estabelecer relações
com a alteridade, e não a ideia de “necessidade”. Nesses casos, nem sempre a peça de roupa
doada para determinada pessoa é utilizada. Por exemplo, uma peça de uma paxa pode ser
apropriada por ou emprestada para uma xëni.

As roupas compradas com dinheiro dos Korubo são adquiridas em estabelecimentos nas
cidades que eles circulam. Em Tabatinga/AM, as roupas são compradas na “beira” do rio
Solimões, onde há uma confluência de lojas de brancos com distintas nacionalidades.

151
Interessante notar que, para os índios do Xinane, o termo txuka refere-se a “roupa” (Almeida 2021: 88).
Entre os Korubo, txuka refere-se a algo “novo”.
356
Inicialmente, os homens xëni que trabalham eram os compradores de todas as roupas sozinhos
ou, em algumas ocasiões, acompanhados por suas esposas e filhos. Quase sempre os homens
compravam as roupas para os demais que permaneciam nas aldeias, seja levando roupas
demandadas, ou ainda, “presentes” para determinadas mulheres. Por exemplo, um irmão
pode levar dois shorts para as suas duas irmãs, um para cada, mesmo que elas sejam casadas.
Mais recentemente, alguns xëni do cronotopo A passaram a demandar que as suas esposas os
acompanhem nas compras porque elas mesmas querem escolher suas roupas.

As mulheres korubo afirmam que os homens não sabem comprar roupas para elas. Os
homens, por sua vez, argumentam que suas esposas são “grandes” e precisam experimentar as
roupas antes de comprá-las. Isso ocorre porque, ao chegarem na aldeia, as peças compradas
não agradavam as mulheres por não se ajustarem aos seus corpos – o que, para elas, é um
sinônimo de roupa bonita, ou seja, a roupa que cola no corpo como uma segunda pele. Hoje,
as mulheres querem escolher suas próprias roupas, compradas com o dinheiro adquirido a
partir do trabalho dos homens: um atrativo para os casamentos entre homens xëni e mulheres
paxa, ou seja, a tecnologia dos brancos colocada à serviço da criação de parentesco através de
alianças matrimoniais, conforme o capítulo 4. Entre os Korubo do rio Ituí, os homens xëni
são reconhecidos como aqueles que podem comprar mercadorias para as mulheres, como as
roupas.

Com frequência, as roupas compradas são mais apreciadas pelos Korubo do que as roupas
recebidas em doações dos brancos. Possivelmente, a compra de roupas a partir do dinheiro
próprio envolve um processo de aquisição inexistente nas doações. Se, por um lado, receber
roupas de um branco sinaliza uma relação que não é de guerra, por outro lado, comprar
roupas com dinheiro próprio é parte do processo de descobrir os brancos, incorporando e
“indigenizando” elementos exógenos. Comprar uma roupa com dinheiro próprio envolve o
trabalho com os brancos, o deslocamento das aldeias para as cidades, o recebimento dos
pagamentos, o uso do dinheiro nas lojas, calcular e escolher as mercadorias, levar as
mercadorias de volta para as aldeias e ser recepcionado por seus co-residentes, gerando um
estado de animação generalizado e fomentando o parentesco.

357
As roupas compradas são escolhidas pelos Korubo, segundo critérios específicos. Os Korubo
gostam da cor vermelha (pëtkit). Dentre as peças de roupa compradas, há outras cores que se
destacam, sobretudo, vibrantes, camisas dos órgãos estatais e cores camufladas utilizadas por
militares ou policiais. 152 As cores das sandálias não são tão importantes. Os Korubo se
importam mais com as cores das roupas e de outros tipos de mercadoria, como miçangas,
mochilas e bonés.

Imagem 31. Xikxuvo vestido como FUNAI.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

152
Similar aos Korubo, os índios do Xinane também preferem a cor vermelha e cores camufladas (Almeida
2021: 159, 166, 181).
358
Imagem 32. Seatvo e Vunpa.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Imagem 33. Nanë.


Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

359
Seja xëni ou paxa, as mulheres utilizam shorts apertados, com altura acima dos joelhos ou, no
caso das matxo, saias na altura dos joelhos. Algumas xëni dos cronotopos A e pós-contato
possuem camisas e sutiãs, utilizados em ocasiões de visitas entre aldeias, visitas dos brancos
ou rituais fúnebres. Os homens xëni e paxa usam amarração peniana (xui tënëxe; xui: pênis;
tëvi: amarrar) por debaixo dos calções. Os adultos e rapazes, com frequência, saem vestidos
com bermudas para as caçadas, mas ao entrarem na floresta retiram as roupas, deixando-as
pelo caminho, pois afirmam que vestidos os animais os enxergam e fogem. Apenas os mais
velhos e poucos adultos paxa permanecem trajando as amarrações penianas sem bermudas,
mesmo na presença dos brancos. Os rapazes paxa já usam bermudas.

Hoje, as mulheres praticamente não permanecem na presença dos brancos sem estarem
vestindo shorts ou saias. Nas saídas das aldeias para a Base Ituí ou cidade, as xëni e as jovens
do cronotopo pós-contato usam calças legging. Os homens, por sua vez, variam a depender
da idade. Os adultos do cronotopo A, os jovens do cronotopo pós-contato e os paxa dos
cronotopos B e C recebem visitas vestidos e permanecem de bermudas nas aldeias. Os velhos
xëni ou adultos paxa permanecem com amarração peniana, sem bermudas. Poucos xëni
possuem calças ou bermudas jeans, raramente vestidas nas aldeias e, em grande medida,
utilizadas nas cidades.

Os homens usam sandálias havaianas, galochas (botas de borracha) nas aldeias ou quando
saem para caçar. As mulheres raramente utilizam-nas. Quando saem das aldeias, todos os
Korubo vestem camisas de algodão, geralmente, com alguma mensagem escrita ou cor
vibrante, ou ainda, fardamentos doados por militares, policiais ou agentes estatais. Apenas
nas idas às cidades, as crianças saem vestidas, permanecendo no cotidiano das aldeias com os
seus ornamentos corporais: braceletes (mësuate) e tornozeleiras (tasuate) e, no caso dos
meninos, o cinto peniano (xui tënëxe). Quando um bebê korubo nasce, a tita (M) ou txitxi
(MM) coloca em suas mãos e pés mësuate e tasuate, feitos com fibra de tucum (–më: mão; –
ta: pé; –te: NMLZ.).

De modo relativamente similar, para os Matis, o recém-nascido é invisível e a função das


mulheres é visibiliza-lo, fornecendo os primeiros ornamentos corporais: as tornozeleiras e os
braceletes. Na medida em que a criança cresce, os ornamentos aumentam em volume,

360
tamanho e qualidade (Erikson 1996: 233). No caso korubo, para que uma criança cresça e
não fique “magrinha”, ela precisa dos braceletes e das tornozeleiras. Mësuate e tasuate fazem
com o que o corpo da criança cresça “forte” e “grande” (xoko amë; xoko: músculo, amë:
grande). Os bebês ainda não possuem amarração peniana, e sim um cinto feito com fibra de
tucum amarrado na cintura. Na medida em que a criança cresce, amarra-se o prepúcio. Estas
são as ornamentações corporais das crianças, filhos de xëni ou paxa. Algumas também
utilizam colares de miçangas feitos pelas mulheres.

O uso e o tratamento dado às roupas varia de acordo com o cronotopo, o gênero e a faixa
etária. As xëni dos cronotopos A e pós-contato têm mais roupas, o que se reflete na maior
frequência com que lavam as peças. Em geral, as mulheres tomam banho vestidas. Durante
o banho, retiram as roupas para esfrega-las com as mãos, muitas vezes sem sabão, pois nem
sempre há esse produto nas aldeias. Com frequência, as mulheres e, sobretudo, as paxa,
utilizam as roupas como extensões corporais: tomam banho com as peças, espremendo-as ao
final do banho, e colocando-as no corpo novamente para secar.

Os banhos são realizados entre casais ou pessoas de mesmo gênero. No meu caso, raras vezes
tomei banho sozinha. Sempre que ia em direção ao igarapé era seguida por mulheres ou
crianças, que aproveitavam a minha presença para brincar de arremessar argila umas nas
outras. Os homens xëni costumam deixar os seus calções ou toalhas pendurados em árvores
ou no chão de uma trilha que leva ao igarapé. Deixar peças de roupa dispostas no caminho
para o igarapé sinaliza que há um homem, talvez acompanhado por familiares, tomando
banho. Em outras palavras, as roupas sinalizam que o igarapé está ocupado e é preciso
aguardar para tomar banho.

361
Imagem 34. Tamu, Tumi e Tupa brincando no igarapé.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

As roupas doadas ou compradas podem ser descosturadas e customizadas pelas mulheres,


sobretudo, as paxa: hábeis em transformar camisas em saias, similar às mulheres awá-guajá
que aproveitam a linha de outras peças de roupa para costurar suas saias (Garcia 2010: 90).
O armazenamento das roupas não segue distinções de gênero e difere muito do que ocorria
entre os Matis, onde as casas unifamiliares (nawan shobo) armazenavam mercadorias
industrializadas para evitar que circulassem na maloca, esta sim considerada a casa verdadeira
(shobo kimo) (Erikson 1996: 173). Nas aldeias korubo, ao contrário, as roupas são
armazenadas tanto nas casas unifamiliares (wëtëkit), quanto na maloca (xuvu).

Todas as peças feitas com tecido (roupas, cobertores, redes industrializadas) são armazenadas
nas paredes, no teto ou nas vigas das casas unifamiliares e da maloca. Este é o modo que as
pessoas de uma aldeia armazenam pedaços de carne cozida e outras mercadorias, como facas,
colheres, pentes, espelhos etc. Quase tudo o que cabe entre as vigas de uma casa ou da maloca
pode ser pendurado pelas mulheres xëni e paxa, pois são elas que varrem a maloca com veskate,
vassouras feitas com cipó titica (Heteropsis flexuosa, em korubo ayax).

Peter Gow (2007: 285-95) foi um dos etnólogos que chamou a atenção para o fato de que as
roupas são signos de “alteridade”, e não de “aculturação”. Os Piro utilizavam roupas
362
industrializadas não para “se converterem em brancos”. Nesse caso, o acesso às roupas sinaliza
o estado das relações com os brancos. Inicialmente, as roupas eram escassas e, após o contato,
tornaram-se abundantes, podendo ser adquiridas nas cidades através do dinheiro. Os Piro
distinguem a “roupa industrializada” da “roupa tradicional”. Adquirir roupas industrializadas
é acessar um instrumento de intimidação, considerando que os brancos são violentos, raivosos
e temíveis.

O tema do uso das roupas industrializadas por ameríndios vincula-se aos “processos de
transformação” presente no uso das pinturas corporais, das ornamentações rituais, dos ciclos
reprodutivos e do plano espiritual. Ao nascer, a placenta (roupa velha do bebê) precisa ser
enterrada para que ele e sua mãe vivam. Ao morrer, um kaxinawá troca de roupa e se
transforma em outro, o Inca. Ao menstruar, as mulheres trocam a sua pele interna (ou seja, a
sua roupa) para gerar novas vidas. Nesses processos, a roupa, a pele, o invólucro precisa morrer
para adquirir outra forma (Lagrou 2007b).

No caso das roupas industrializadas, os Wari’ se concebem como detentores de uma dupla
identidade inscrita no corpo: são brancos e, ao mesmo tempo, são Wari’, do mesmo modo
que os xamãs são humanos e também animais. Tanto o lado wari’, quanto o lado branco dos
Wari’ são verdadeiros e simultâneos, pois o corpo ameríndio é duplo. O corpo ameríndio é
o local de fabricação e construção da própria identidade. Nesse processo de fabricação da
pessoa através do corpo, os ornamentos corporais e as roupas industrializadas são “motores
de um processo corporal”. As roupas animais usadas pelos xamãs, os ornamentos corporais e
as roupas industrializadas são “recursos de diferenciação e de transformação do corpo”,
vinculados a outros recursos, como a comida (Vilaça 2000: 60-7). A roupa é apenas um
componente de um “conjunto de hábitos que formam o corpo”. Não é por acaso que as
roupas de uma pessoa podem ser enterradas com os pertences de um falecido. Em alguns
casos, as roupas substituem o corpo do morto (Gow 2007: 288-9; Matos 2014: 69).

Para além dos debates sobre aculturação ou a dicotomia tradicional-moderno, as etnografias


revelam coexistências entre pinturas, ornamentos corporais e roupas industrializadas. Como
os Xikrin, que utilizam duas formas de se vestir quando vão à cidade: em reuniões habituais,
usam roupas industrializadas; em eventos políticos, usam paramentos das expedições de caça

363
e guerra. Não por acaso, o mesmo termo para “roupa” refere-se a “pele” ou “invólucro” dos
brancos. Ao vestirem roupas industrializadas, os Xikrin manifestam o estado de relações
pacíficas com os brancos, certo grau de amizade e aparentamento, o que não significa que
queiram se tornar brancos (Gordon 2006: 219-231).

Conforme vimos, a coexistência entre ornamentos, pinturas corporais e roupas


industrializadas ocorre entre os Korubo. Junto com as roupas industrializadas, os Korubo
utilizam pinturas, armas, como as bordunas, e outros ornamentos corporais, como as
braçadeiras e amarrações penianas. O que os Korubo parecem querer nesse processo de
descoberta dos brancos é a relação, uma relação que não é mais de guerra, e sim relações onde
as mercadorias, como as espingardas, os motores e as roupas são centrais, seja para construir
parentesco entre os cronotopos ou troca com os brancos.

6.2. Comer

Similar às roupas industrializadas, a comida também é um “recurso de diferenciação e de


transformação do corpo” (Vilaça 2000: 60-7). As etnografias mostram a centralidade dos
alimentos nos contatos interétnicos, como entre os Kayabi, os Awá-Guajá e os Kanoê e
Akuntsú (Oakdale 2008; Cardoso 2019; Aragon e Algayer 2020), por vezes, constituindo
parte do processo de se acostumar com os brancos. Para os Kulina-Pano da bacia do rio Javari,
semelhante a outros povos, o período anterior ao contato com os brancos caracteriza-se por
fartura e gordura corporal (D’Ávila 2018: 50-62). Tal característica está presente também na
relação entre os ameríndios e seus intermediários.

O contato entre os intermediários e os índios do Xinane foi permeado por alimentos. Mas
antes do contato com a FUNAI, os índios do Xinane obtinham sal e açúcar em saques e
roubos, similar aos Korubo. Após 2014, o órgão indigenista proibiu as pessoas na Base Envira
de oferecer alimentos industrializados aos índios do Xinane. Na prática, o fluxo de alimentos
continuou. Os intérpretes jaminawa se comparavam aos índios do Xinane, afirmando que o
comer cozido e o comer sem condimentos industrializados, como o sal e óleo, são
características anteriores ao contato com a FUNAI (Almeida 2021: 141, 170, 194).

364
Na Parte 1, vimos que os alimentos, industrializados ou não, estão no cerne das relações
interétnicas estabelecidas pelos Korubo. Eles saquearam roças dos regionais e de outros povos
enquanto fugiam dos extrativistas. Nesse período, receberam alimentos envenenados pelos
brancos. Após o evento 1, em 1996, com a consolidação da relação com os agentes estatais e
aproximação da Base Ituí, o consumo de alimentos industrializados entre os Korubo
aumentou. Hoje, os Korubo distinguem “comida de Korubo” da “comida dos brancos”, esta
nem sempre é sinônimo de comida industrializada.

A dieta dos Korubo inclui os cultivos da roça e a proteína obtida na pesca e, sobretudo, na
caça. A combinação de dois tipos de alimentos constitui a alimentação básica e verdadeira
(kimvo) para os Korubo: a carne de caça (oen) e um complemento que, em geral, é a macaxeira
(mankit). Em outras línguas Pano, nami refere-se a “carne” e pete a “comida” (Ferreira 2005:
82, 167; Fleck, Bëso e Huanán 2012: 142, 163). No caso korubo, o termo oen pode ser
intercambiado com nami em referência a “carne”, mas geralmente o primeiro termo é mais
utilizado. Quando as pessoas xëni e paxa dizem “eu comi” (kutka ëmpi), referem-se a essa
combinação.

A carne de caça engloba espécies de aves e mamíferos de pequeno, médio e grande porte,
caçados com zarabatana e/ou espingarda. Dentre as aves, destacam-se o jacamim, o cujubim
e o mutum. Dentre os mamíferos, há várias espécies de macaco. Os mamíferos de grande
porte mais apreciados são a anta e as queixadas. A proteína obtida da pesca não possui status
equivalente à carne de caça. Ao mesmo tempo, comer apenas macaxeira não é comer de
verdade. Pode-se comer carne sem macaxeira, mas o ideal é a combinação dos dois.

Em determinado período do ano, o consumo da macaxeira é substituído temporariamente


por milho. Semelhante a outros povos Pano, entre os Korubo, o milho é um alimento ritual
e a macaxeira é para o consumo diário. Outros frutos, como o açaí e o buriti, são coadjuvantes
e de consumo sazonal. A água consumida pelos Korubo é proveniente dos igarapés, sem
fervura, mesmo quando utilizada para o preparo das bebidas feitas com macaxeira, pupunha,
milho e banana. As bebidas não acompanham todas as refeições.

365
Imagem 35. Macaxeira.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

O consumo da macaxeira é, eminentemente, cozido. Cozinha-se a carne de caça e a macaxeira


cortadas em pedaços, sem condimentos, na mesma panela. Os pedaços de carne e macaxeira
são servidos em piski: pratos coletivos, trançados com palha pelas mulheres. Oen e mankit
estão envolvidos em um circuito de produção, circulação e consumo. A produção da
macaxeira está vinculada à abertura das roças, chamada de maë lële ou maë txaxe (maë: roça,
lët: derrubar). As roças são abertas por grupos de homens, acompanhados ou não por
mulheres e crianças. Grupos de homens abrem roças coletivas, enquanto as roças
unifamiliares são abertas por um homem sozinho ou acompanhado por suas esposas e
filhos/as.

Nos dois casos (roças coletivas e unifamiliares), quando as mulheres xëni e paxa e as crianças
os acompanham, estas preparam alimentos para os homens comerem durante o intervalo do
trabalho. Na presença das crianças, as mulheres assam milho ou macaxeira para eles. A
abertura de uma roça passa por etapas, características da agricultura de coivara. Inicia com a
derrubada das árvores menores com terçados e, posteriormente, as maiores com o uso de
machados. Após a derrubada, há a queima (maë kukakit; kuka: queimar) e o repouso do solo
para iniciar o plantio.

366
Uma vez que homens xëni e paxa abrem a roça, o plantio de macaxeira (mankit menane) pode
ser acompanhado ou não por mulheres e crianças. Quando as mulheres e crianças os
acompanham, os meninos plantam os pequenos pedaços de macaxeira junto com os homens
mais velhos. Após a derrubada (maë txaxe) e o plantio da macaxeira (mankit menane; menan:
enterrar), a coleta (mankit vele; vet: pegar), traduzida como “pegar macaxeira”, é
responsabilidade das mulheres, acompanhadas por crianças. Quando os homens
acompanham a coleta de macaxeira é, excepcionalmente, para proteger as mulheres e crianças
em casos de aparecimento de víboras ou felinos. Isso só acontece caso, em alguma coleta
anterior, tenham observado algum rastro ou vestígio desses animais.

Caso contrário, apenas mulheres e crianças frequentam uma roça de macaxeira. No caso das
roças unifamiliares, ao traduzirem para o português, os Korubo dizem que a roça é do homem
a que a abriu, por exemplo, “roça do Lëyu”. No entanto, a macaxeira da roça de um homem
é da sua primeira esposa, seja ela matxo ou não: “macaxeira da Waxmën”. A roça é aberta
pelos homens, mas o cultivo da roça é referido como propriedade das esposas desses homens.
Se diz que uma roça pertence a determinado homem porque foi ele que a abriu (maë lële) e
plantou (mankit menane). A macaxeira é da mulher que frequentou a roça para coletá-la, a
transportou em cestos para a aldeia (mankit vele) e a cozinhou (mankit kolokai; koloka:
cozinhar).

A produção da carne, por sua vez, está vinculada à caçada com zarabatana e/ou espingarda. A
caça é uma atividade, majoritariamente, masculina. Em geral, os homens e jovens rapazes
saem para caçar em grupos, mas um homem pode sair para caçar sozinho. No entanto, a
caçada também pode ser acompanhada por mulheres e crianças. Na caçada de queixadas, as
mulheres e crianças podem aguardar a chegada dos caçadores preparando os piski, pratos de
palha para receber a caça, ou ainda, podem acompanhar os homens na caçada para tratar a
caça e transportá-la à aldeia. Nas caçadas de animais arborícolas ou mamíferos de pequeno e
médio porte, em geral, os homens vão sozinhos.

Todavia, se um homem possui uma segunda esposa jovem, as mulheres mais velhas
aconselham-na a acompanhá-lo nessas caçadas. Caso a jovem se recuse, esse conselho torna-
se uma advertência contundente. Uma das funções da mulher que ocupa a posição de segunda

367
esposa, sobretudo, se for jovem, é acompanhar o marido na caçada. Este era o caso de uma
jovem paxa do cronotopo B que tornou-se segunda esposa de um xëni do cronotopo A,
residentes na Tankala Maë. Ele já possuía como primeira esposa uma matxo, também do
cronotopo A, que era a sua prima paralela. Havia um consenso entre a comunidade: ele
precisava de uma segunda esposa mais jovem para ajudá-lo nas caçadas. As matxo da Tankala
Maë a pressionavam para acompanha-lo nas caçadas. Caso ela se recusasse, era rechaçada
coletivamente pelas mulheres da aldeia.

Uma vez que um caçador xëni ou paxa retorna para a aldeia, a depender da caça que traz, é
recepcionado pelas mulheres e/ou pelas crianças na “beira” do rio Ituí. Se for um mamífero
de grande porte, a chegada é aguardada ansiosamente por todas as mulheres e crianças na
beira. Caso contrário, apenas as crianças correm para a beira para receber os caçadores e
anunciar em voz alta o que eles trouxeram.

Ao contrário da macaxeira, entre os Korubo, não se diz que a carne é de determinada mulher
ou de determinado homem. Conta-se quem foi o caçador e como ele a caçou (tëka). Disso
provém o prestígio do caçador. Ao chegar na aldeia, a distribuição da carne é responsabilidade
das mulheres, seja matxo ou não. Com frequência, a segunda esposa cozinha sob as instruções
da primeira esposa, que pode ser uma matxo. A primeira esposa administra a distribuição da
carne e da macaxeira nos piski ao coordenar as tarefas executadas pela segunda esposa.

Apesar de as aldeias korubo estarem repletas de utensílios domésticos industrializados, como


pratos, conchas, colheres, facas, panelas, depósitos plásticos, copos, dentre outros, os Korubo
comem utilizando as mãos, sobretudo, a ponta dos dedos, em pratos piski ou folhas de
bananeira. A ponta dos dedos é utilizada para comer substâncias líquidas, como mel, pirão e
mingau. Nesse caso, homens, mulheres e crianças comem juntos. Os piski são separados por
gênero: piski dos homens, e piski das mulheres e crianças. Homens e mulheres costumam ficar
de cócoras em torno de um piski, formando um círculo.

A “comida de Korubo” caracteriza-se pela ausência de sal. “Comer sem sal” é sinônimo de
“comer como os Korubo” e, no meu caso, significa também estar “acostumada” a morar com
eles. Por isso, inicialmente, destacavam que a “comida de Korubo” não tinha sal. Na medida
em que eu consumia os alimentos sem sal, eles me observavam orgulhosamente e quando

368
recebiam visitas de outros brancos, sinalizavam para estes que eu já estava “acostumada a
comer nossa comida, sem sal”, conforme Takvan Va destacou para a equipe do ProDocult
em setembro de 2019.

O sal é um condimento desejado pelos xëni para o armazenamento das carnes, mas a sua
ausência não é sentida com pesar. Nas aldeias, o sal não é utilizado para alterar o gosto dos
alimentos, e sim para conservá-los. Os xëni “salgam a carne” para que dure mais tempo, sem
estragar, pois não há geladeiras nas aldeias. Assim, a comida de Korubo consiste basicamente
na mescla entre produtos da roça e carne de caça. Uma de suas principais características é a
ausência de sal, um índice da capacidade de conviver com os Korubo, estar “acostumado”
com eles, o êxito do processo de criação e “familiarização” de um branco por parte dos Korubo
(Erikson 1987; Fausto 2001). Estar acostumado envolve o paladar e a afecção, uma atitude
expressa e construída (a partir do e) no corpo.

Fome de carne

Tankala Maë, rio Ituí, agosto de 2019: um dos caçadores (paxa do cronotopo B) retornou
para a maloca extasiado, pois escutou o som de queixadas (tankuru) próximas da roça de
milho. Na ocasião, todos os xëni que possuíam espingardas haviam saído para visitar as
pessoas da aldeia Vuku Maë. O caçador sentou-se para incrementar o curare e decidiu sair
atrás das queixadas com a zarabatana, levando consigo um jovem rapaz que possuía arco e
flecha. Duas mulheres (uma xëni do cronotopo A e uma gestante paxa do cronotopo B) e eu
os acompanhamos para tratar a caça. Contudo, a caçada não foi bem sucedida e as queixadas
se afastaram da aldeia.

Ao retornarem para a Tankala Maë, os xëni trouxeram seis macacos barrigudos (kolokit) e um
mutum (koxti). Receberam a informação sobre o rastro das queixadas e o fracasso da caçada.
Então, houve uma discussão entre o paxa do cronotopo B e um xëni do cronotopo pós-
contato. O jovem argumentou para o paxa que quando olharem rastros de mamíferos grandes
devem aguardar as espingardas porque “não tem carne”, disse, apontando para os barrigudos
e o mutum que trouxera. Na língua korubo, a ausência de carne (oen vama) consiste em um

369
estado de fome: pekase ou vunek. Ao longo de 2019-20, fome era a grande preocupação dos
Korubo do rio Ituí. O estado de fome só é anulado com carne de caça (oen), considerada o
alimento verdadeiro.

Fome não é necessariamente a ausência de comida, e sim a ausência de carne, semelhante ao


que ocorre entre os Parakanã (Fausto 2001: 103). Por isso, falo em fome de carne. O estado
de fome é também chamado de pekasone (fome-INT.). Diferente de pekase, o termo pekasone
utilizado pelos Korubo envolve o sono causado pela fome. A fome é tão grande que gera sono
e a pessoa não tem forças nem energia para realizar as tarefas cotidianas. Permanecer deitado
na rede, para os Korubo, caracteriza um estado similar a enfermidade: período em que as
pessoas também permanecem deitadas nas redes.

Ter carne (oen avi) é um estado de abundância que, após o pluricontato, é vivenciado
pontualmente no baixo rio Ituí. O estado contínuo e atual é oen vama: escassez contraposta
a oen avi, estado de abundância de carne. Em períodos de fome, todas as tarefas e os esforços
dos Korubo voltam-se para as possibilidades de obter carne de caça. As demais atividades,
inclusive, as de letramento, tão demandadas por eles, são suspensas. As mulheres são os
agentes da demanda por carne de caça, embora os homens também sintam fome. São as
mulheres que exigem que os homens saiam para caçar, ou melhor, é por causa delas que os
homens sentem-se motivados a caçar – ver o caso dos Sharanahua, Siskind (1973).

Após um período de escassez de carne, a chegada de grandes caças é motivo de entusiasmo


entre as pessoas de uma aldeia. A atmosfera transforma-se. Ao retornarem de uma caçada, os
homens estão orgulhosos. Em pé, na baleeira, saúdam “ehe!”. Esta saudação indica que há
carne em abundância e, portanto, trata-se de uma saudação utilizada após as caçadas de antas,
queixadas, ou até mesmo, de tracajás (nëxo). Ehe indica a interrupção temporária do estado
pekasone. Todos ficam eufóricos, ou seja, tanto quem chega com a carne, quanto aqueles que
recebem os caçadores na beira.

No caso das caçadas de carne de caça, todos correm para a beira para receber os caçadores.
Diferente das pescarias em que somente as crianças correm para a beira. Após a recepção na
beira, os caçadores tomam banho. Em seguida, dirigem-se à maloca para tomar tatxik e narrar
a caçada. Os jovens do cronotopo pós-contato, por vezes, ralam o tatxik para os xëni do

370
cronotopo A. Todos ouvem os caçadores atentamente. As mulheres, por sua vez, ocupam-se
de tratar e cozinhar a carne em panelas de metal, enquanto também ouvem a narrativa. Após
cozida, as mulheres distribuem a carne nos piski. Em alguns casos, os Korubo enviam alguma
quantidade de caça como presente para uma aldeia vizinha através dos jovens em motores
peque-peque: por exemplo, uma mãe envia um pedaço de anta para a casa de sua filha e
genro. Os Korubo distribuem a caça entre as casas unifamiliares da aldeia, embora todos
comam juntos na maloca.

Nawan pete

Os alimentos que os Korubo aprenderam a consumir com os brancos, nem sempre


industrializados, compõem a nawan pete, termo traduzido como “comida de branco” (nawa:
branco, –n: POSS., pek: comida). A comida de branco não constitui o alimento verdadeiro
(oen, nami) nem mata a fome (pekasone) que apenas a carne de caça suprime. Quando
removidos para a Base Ituí ou cidade, os xëni e paxa levam cestos kakan carregando alimentos,
como macaxeira, milho e carne de caça, independente se há ou não comida de branco para
consumir. Apesar de não ser o alimento verdadeiro nem suprimir a fome, os Korubo
demandam e estimam a comida de branco, sobretudo, os xëni. O órgão indigenista não possui
dispositivos para regular o acesso dos Korubo aos alimentos industrializados, conforme tenta
fazer com as mercadorias.

Além do termo genérico nawan pete, os Korubo nomeiam individualmente esses alimentos
com termos da língua portuguesa, como “bolacha”, “arroz”, “pão” etc. Há também termos
na língua korubo, utilizados para outros elementos, que são utilizados para os alimentos
industrializados. Alguns destes se referem à forma dos alimentos, como calabresa (xui, termo
também utilizado para se referir ao pênis), macarrão (tsipatsiwete; tsipa: dardos da zarabatana),
pão (xapu, termo também utilizado para algodão), café (nawan tatxik: tatxik dos brancos),
farinha (lulu ou matxi), dentre outros.

Os xëni são avessos a saladas, vegetais, legumes e azeite de oliva. Similar aos Zo’é, os Korubo
dizem que a ingestão de “folhas” é “comida de anta” (Braga 2017: 52). Apreciam arroz,

371
farinha, macarrão, calabresa, frango, bolachas salgadas e doces, pães, café, açúcar e leite. A
comida de branco adquirida pelos Korubo circula entre diferentes aldeias no rio Ituí. Uma
pessoa da Tankala Maë pode doar alimentos como presentes para outras da Sentele Maë em
consonância com os vínculos de parentesco, por exemplo, um genro oferece comida de
branco ao seu sogro.

A comida de branco é um dos elementos das listas de demandas e pedidos antecipados por
parte dos Korubo aos brancos e também àqueles que saem das aldeias para as cidades, gerando
oportunidades de compras na beira do rio Solimões. Nas idas à Base Ituí, os Korubo pedem
aos agentes estatais que estes doem alimentos industrializados que não constam dentre os
itens previstos no RCB.

Os xëni sabem que são os agentes estatais que controlam o acesso ao “depósito”, local de
armazenamento dos alimentos na Base. As Bases são locais interessantes, constitutivos das
teorias dos Korubo sobre os brancos, considerados sovinas, pois nada mais estranho que
brancos que guardam comida dentro de um local específico e recusam-se a entrega-la aos
Korubo. Afinal, para quê servem as mercadorias e os alimentos senão para circular? O
armazenamento alimentar na Base revela distintos sistemas em ação na relação interétnica
entre os Korubo e os agentes estatais. Nos períodos em que os Korubo permanecem na Base
essa polaridade se evidencia.

O hábito de comer comida de branco provém das aproximações pontuais dos Korubo com
os latkute, conforme o capítulo 1 e, mais recentemente, das idas à Base Ituí e às cidades.
Alguns homens xëni do cronotopo A aprenderam a cozinhar comida de branco, como arroz
e café, durante as atividades remuneradas pelo órgão indigenista. Nas aldeias, diferente do
que ocorre com a comida de Korubo, a comida de branco pode ser preparada pelos homens.
Ao comerem a comida de branco, os xëni costumam utilizar colheres de metal. Quando não
há colheres, comem com as mãos. De modo geral, seja comida de Korubo ou comida de
branco, os Korubo não requentam os alimentos para comê-los. Uma vez cozida, a comida é
consumida fria. Os Korubo armazenam pedaços de carne, macaxeira e milho nas paredes da
maloca e, posteriormente, retiram e consomem diretamente.

372
Na concepção dos Korubo, embora um branco possa se “acostumar” a comer comida de
Korubo, o corpo dos brancos precisa de nawan pete. Os xëni são os que mais consomem
comida de branco, característica que os distingue dos paxa. A comida de branco é um vetor
de transformação do corpo e da pessoa korubo. Nesse sentido, um paxa do cronotopo B, neto
de uma mulher xëni do cronotopo A, afirmou para os brancos que não pertence à “família”
de sua txitxi (MM), pois “não come comida de branco nem anda na cidade”. Por ser “contato
novo não conhece cidade nem quer ficar bravo”, o que denota o vínculo entre a comida de
branco, o conhecimento das cidades e o sentimento de raiva, discutido na Parte 2.

Hoje, a comida de branco é alvo de dissensos entre os agentes estatais que atuam com os
Korubo. Os brancos compartilham o ponto de vista de que os Korubo “comem demais”.
Contudo, entre os agentes estatais há discordâncias a respeito da alimentação dos Korubo.
Na Base, os agentes estatais permanecem atentos para tentar evitar que os Korubo comam
duas ou mais refeições por turno. Isso porque alguns Korubo costumam almoçar no refeitório
da SESAI e, posteriormente, almoçar no refeitório da FUNAI. Na concepção dos agentes
estatais, por um lado, os Korubo devem comer uma refeição por turno (café, almoço e jantar)
e, por outro, a alimentação dos Korubo é uma “responsabilidade” da instituição que
promoveu o deslocamento das aldeias à Base. Se os Korubo saem das aldeias para
desempenhar alguma tarefas com a FUNAI, devem se alimentar no refeitório da FUNAI e,
caso saiam removidos pelas equipes de saúde, devem se alimentar no refeitório da SESAI.

Similar aos Awá-Guajá (Garcia 2010: 11), os Korubo xëni e paxa apreciam farinha, alimento
que passaram a consumir de modo constante no pluricontato. A farinha é comprada todas as
vezes que os Korubo vão às cidades – algo que incomoda os agentes estatais. Discursivamente,
a farinha é um alimento acionado pelos agentes estatais para se referirem ao que consideram
ser a “improdutividade” ou “preguiça” dos Korubo. Conforme mencionei no capítulo 5, após
os eventos de contato, os Korubo produziram farinha de mandioca brava durante um período
para o consumo próprio e a venda nas cidades. Ex-coordenadores da FPE Vale do Javari
relatam as dificuldades que enfrentavam para vender a farinha dos Korubo em Tabatinga/AM
por não ser o tipo preferido dos regionais.

373
Durante a pesquisa de campo, os Korubo não produziam farinha para consumo próprio ou
venda. Não havia “casas de farinha” em nenhuma das quatro aldeias no rio Ituí. Para os
brancos, o fato de os Korubo não produzirem mais farinha sinaliza “preguiça” e “mal
costume”, uma relação de “dependência” com a Base Ituí. Sabemos que espécies, como a
mandioca (Manihot esculenta) e a banana, foram inseridas na Amazônia durante o período
colonial. Pesquisas genéticas e arqueológicas revelam que, por volta de cinco mil anos atrás,
a mandioca foi domesticada na porção sudoeste da Amazônia. Possivelmente, o cultivo
extensivo da mandioca resultou da introdução das ferramentas de metal, e das guerras entre
os povos ameríndios e os colonizadores europeus após 1492 (Fausto e Neves 2018).

Mais recentemente, entre 1998 e 2000, as pesquisas sobre o manejo da mandioca revelaram
a “criação” de alta diversidade nos cultivos, e a predominância da mandioca brava e da
agricultura de coivara em algumas regiões, como o noroeste da Amazônia, o médio rio
Amazonas, Altamira/PA, e o sudoeste da Amazônia, especificamente, o alto rio Juruá,
fronteira com o Peru (Emperaire 2005). No caso dos Korubo, diferente de outros povos,
tradicionalmente eles não produzem tipos de farinha, como tucupi e tapioca. Os Korubo
consomem e cultivam a mandioca mansa, chamada de “macaxeira”. Então, o plantio
temporário de mandioca brava foi um estímulo no contato com os agentes estatais. Durante
muito tempo, na concepção dos agentes estatais, o fato de os Korubo produzirem farinha
com mandioca brava demonstrava a intenção deles em “trabalhar”, considerada antônimo do
que consideram ser a atual “preguiça”. A produção de farinha emerge como uma ideia e
exigência dos agentes estatais para a “autonomia” dos Korubo por considerarem que farinha
é “comida de índio”, um componente das “teorias do índio” discutidas no capítulo 5.

O conceito de “preguiça” atrelado à concepção de que os Korubo “comem demais” manifesta-


se em piadas e brincadeiras entre os agentes estatais. Quando os xëni retornam da cidade com
suas compras, os agentes estatais observam o que foi comprado e mencionam que
determinada quantidade de farinha dura “mal quinze dias”. Os Korubo, por sua vez, apreciam
a farinha enquanto um adicional nas refeições, sobretudo, à base de peixe (ipu) e macaxeira
(mankit). A farinha não é um alimento verdadeiro ou mais cobiçado, e sim um arranjo
alimentar característico do pluricontato que serve para atenuar a fome de carne.

374
A abertura das roças revela uma complexidade na produção coletiva entre os Korubo, algo
que se evidencia na suspensão da produção de farinha. Exceto a Vuku Maë, nas outras três
aldeias, há roças coletivas e unifamiliares. Em vez de “preguiça”, há entre os co-residentes a
construção de uma nova lógica de produção de roças, um reflexo do pluricontato, expressa
na dificuldade para a mobilização e organização coletiva entre os diferentes cronotopos.
Então, os co-residentes acabam abrindo roças sozinhos (roças unifamiliares) e mantendo a
lógica dos grupos familiares.

Para alguns funcionários da FUNAI, os xëni pedem alimentos industrializados na Base Ituí
por um “mal costume” e, atualmente, compram farinha (e não a produzem) por serem
“preguiçosos”. Para alguns profissionais de saúde, o problema dos Korubo é a “fome” – uma
concepção distinta de pekasone. Entre o final de 2019-20, algumas equipes de saúde
sinalizavam que grande parte das remoções dos Korubo para a Base Ituí eram, na verdade,
performances. Supostamente, os Korubo estariam “fugindo da fome” em suas aldeias. A
chegada de uma cozinheira para compor a equipe de saúde nesse período esteve relacionada
a este argumento.

A relação entre os Korubo e as equipes de saúde é permeada por transações envolvendo a


comida de branco e ensinamentos relacionados ao consumo de alimentos industrializados.
Nas aldeias, os Korubo acessam alguns alimentos industrializados em trocas realizadas com
determinados agentes estatais. As refeições oferecidas aos pacientes na CASAI em
Tabatinga/AM também são industrializadas. Há ainda crianças korubo que dependem do
consumo de leite industrializado. Nesse caso, as equipes de saúde instruem os pais sobre o
preparo do leite, como o caso de um bebê da Sentele Maë que foi diagnosticado com fenda
palatina e baixo peso no início de 2019.

O consumo de comida de branco e a ausência de escovação bucal geram problemas


odontológicos entre os Korubo. Nas aldeias, as equipes de saúde instruem os Korubo sobre o
modo de utilizar a escova e o creme dental. Na Base Ituí, realizam procedimentos
odontológicos em ocasiões chamadas de “ações”. Em maio de 2020, a SESAI informou que:

[...] nos anos de 2018 e 2019 foram realizadas duas ações de saúde bucal nas
comunidades da população indígena Korubo, uma em cada semestre. Foram
realizados atendimentos odontológicos, sendo ofertados diversos tratamentos

375
básicos como restaurações, exodontias, tratamento periodontal, entre outros
procedimentos clínicos individuais. E ainda, foram realizadas atividades
coletivas como escovação dental supervisionada, aplicação tópica de flúor,
além da entrega de material de higiene bucal contendo, pasta escova e fio
dental (Resposta a Manifestação para Acesso à Informação, nº
25820.003765/2020-21).

Embora os Korubo recebam instruções odontológicas da SESAI, poucas vezes vi atividades


educativas focadas nas consequências do consumo dos alimentos industrializados. Há uma
dificuldade de os Korubo vincularem os problemas bucais com o consumo dos alimentos
industrializados e, além disso, a escovação bucal ainda não se consolidou como um hábito
entre eles. No entanto, a relação dos Korubo com os agentes estatais é permeada pelos
alimentos industrializados não apenas relacionados aos impactos na saúde, mas também
impactos nas relações sociais. Em 2020, o ingresso de uma cozinheira na equipe da SESAI
impactou a relação dos Korubo com os profissionais de saúde.

Semelhante aos demais profissionais de saúde, a cozinheira permanecia na Unidade Básica de


Saúde Indígena (UBSI), localizada na Base Ituí, e a sua função era cozinhar para os pacientes
korubo “em tratamento” na Base, ou seja, aqueles que são avaliados (“em observação”) e
permanecem na Base sob os cuidados da equipe, recebendo medicamentos até obterem alta.
Nesse período, os agentes estatais argumentavam que as queixas dos xëni a respeito de
determinados mal-estares eram falsas, como as reclamações dos adultos a respeito de seus
filhos apresentarem sintomas, como diarreia, o que não era comprovado após a observação
das fraldas descartáveis.

A presença da cozinheira na Base, destinada a atender determinados pacientes, e não a todos


os Korubo, gerou ciúmes entre eles, traduzido como sovinice (kulaspek), expresso em queixas
para os profissionais de saúde. Na concepção dos Korubo, se havia pacientes de determinada
aldeia na Base Ituí e as pessoas de outra aldeia se queixavam de mal-estares, todos deveriam
permanecer na Base, onde a cozinheira prepararia as refeições para todos. Afinal, se os brancos
possuem alimentos armazenados na Base por qual motivo não consumi-los, semelhante ao
modo como os Korubo fazem quando caçam, pescam e coletam, acabando os alimentos em
poucos dias?

376
Os profissionais de saúde pensavam diferente. Para eles, há duas categorias de pacientes: “em
observação” e “em tratamento”. Os conceitos de “tratamento” e “observação” são pilares do
funcionamento das equipes de saúde, cruciais para compreendermos as dinâmicas entre
aldeia-Base-cidade. A passagem ou não entre os estados de observação-tratamento determina
a mobilidade dos pacientes: o retorno para a aldeia, a permanência na Base ou a ida para a
cidade (Silva 2020a: 249). Seguindo essa lógica, os pacientes em observação não devem fazer
todas as suas refeições na Base Ituí, pois estão ali temporariamente e, após um diagnóstico,
podem passar à fase de “tratamento” ou irem embora. Os pacientes em tratamento, ao
contrário, permanecem na Base Ituí e a sua alimentação é considerada “responsabilidade da
SESAI”.

Para os Korubo, a inconformidade provocada pela presença da cozinheira na Base para


atender os pacientes não estava relacionada ao fato de não comerem comida de branco, e sim
ao fato de alguns Korubo comerem e outros não. O tratamento diferenciado a pessoas de
aldeias distintas no rio Ituí – justificado por profissionais de saúde através de conceitos, como
“observação” e “tratamento” – expressa o que os Korubo concebem como sovinice: uma
característica atribuída aos brancos em geral.

6.3. Nomear e possuir

Nas seções anteriores, vimos a “indigenização” das tecnologias de kapoe, como as espingardas
e os motores, das roupas industrializadas e dos alimentos que constituem a “comida de
branco”. No entanto, há outro aspecto que carece de reflexão: o ato de os Korubo darem
nomes de branco para algumas mercadorias. Em 2019, havia motores, pratos e até animais
de criação, como galinhas, que possuíam nomes de brancos. Este é um aspecto que chama a
nossa atenção, sobretudo, considerando que primeiro os Korubo deram nomes de brancos às
mercadorias e animais e só nos últimos anos passaram a dar nomes de brancos também para
algumas crianças.

Um dos motores de um xëni do cronotopo A, residente na Tankala Maë, chama-se


“Ledenilce”, nome de uma enfermeira da SESAI dado pelo filho do xëni ao motor, um jovem

377
do cronotopo pós-contato. Ao escutarem o som do motor retornando para a Tankala Maë,
os Korubo dizem: “Ledenilce txoe” ou “moto txoe” (txoe: voltar, vir). Inicialmente, eu não
distinguia as embarcações. Então, a frase tornava-se ambígua. Os Korubo poderiam estar
retornando para a Tankala Maë em seus motores ou os profissionais de saúde poderiam estar
chegando na Tankala Maë, trazendo a enfermeira Ledenilce para atender os Korubo.

Contudo, o ato de dar nomes de pessoas às mercadorias não é uma particularidade dos
motores. Não identifiquei espingardas ou roupas industrializadas com nomes, mas uma série
de outros objetos industrializados são chamados de modo peculiar. Os Korubo, às vezes,
chamam uns aos outros por abreviações dos nomes: Waxmën é chamada de “Wax”, Visa de
“Vis”, Naylo de “Nay” etc. Do mesmo modo, uma pawa (colher) é chamada de “pa”. Quando
não são nomes próprios ou abreviações dos termos, as mercadorias são nomeadas como
extensões dos corpos humanos ou animais. A munição é tonkate ëxë, ou seja, o olho ou a
semente da espingarda (ëxë: olho). A pochete é pusa va, ou seja, uma barriga pequena (pusa:
barriga; va: DIMIN.). O mosquiteiro é similar a uma aranha pequena (xoke vakwë; xoke:
aranha, teia; vakwë: DIMIN.). A nomeação das mercadorias segue padrões de nomeação das
pessoas e dos animais.

O olho da espingarda é a munição, a barriga de uma pessoa é a pochete, o mosquiteiro é o


corpo de um animal. O motor peque-peque, por sua vez, têm a agência de voltar para a aldeia
como uma pessoa que retorna da caçada ou um visitante que se aproxima. Do mesmo modo
que as espingardas não permanecem nas aldeias quando seus donos saem para trabalhar no
rio Coari ou na Base Ituí, sendo levadas para o acampamento ou guardadas na Base, as
mulheres e filhos/as de um xëni não permanecem nas casas unifamiliares em sua ausência.
Elas transportam suas redes e as dos seus filhos das casas unifamiliares para a maloca. A casa
de um xëni que se ausenta para trabalhar com os brancos torna-se temporariamente inabitada
e só volta a ser habitada quando ele retorna para a aldeia.

Sabemos que os objetos têm “agência” e suas matérias-primas têm propriedades ativas (Gell
1998; 1999; Ingold 2001; 2007). As etnografias revelam que objetos rituais, detentores de
“propriedades sensíveis”, podem ser humanos, animais ou espíritos. Alguns criam tamanha
autonomia que precisam ser destruídos. Em toda a América do sul, objetos rituais

378
imperecíveis são capazes de agir de maneira que os humanos são incapazes. Eles têm
continuidade no tempo, espaço e produzem pessoas, como ocorre entre os Waura do alto
Xingu (Barcelos Neto 2008). Outras etnografias mostram que os ameríndios domesticam e
incorporam mercadorias industrializadas, transformando-as a partir de uma lógica de
“estética da pacificação do inimigo”, como é o caso das miçangas entre os Kaxinawá (Lagrou
2009: 56). No caso dos Korubo, essa “indigenização” ocorre com diversas mercadorias
industrializadas que, tornando-se análogas aos corpos de humanos ou animais, passam a servir
aos projetos dos Korubo, como o tecer parentesco entre os cronotopos após os eventos de
contato.

O ato de nomear um objeto industrializado ou animal de criação só ocorre a partir do


pressuposto da posse, ou seja, determinada pessoa nomeia os objetos que são seus. Entre
outros povos, a posse é adquirida de maneiras diversas, como: receber algo doado ou
ensinado, ou ainda, adquirir algo por guerra ou domesticação. Os Wajãpi, por exemplo,
adquirem as mercadorias industrializadas através de doação e ensinamento. Quando o
demiurgo Janejar criou os bens, os brancos tornaram-se donos das mercadorias e, hoje, os
Wajãpi “recuperam” aquilo que foi dado por Janejar e tomado pelos brancos (Gallois 1985:
58; 2002: 229-230).

No caso dos Korubo, não registrei mitos a respeito da posse das mercadorias industrializadas
em tempos primordiais. Contudo, as mercadorias e os alimentos (comida de Korubo e
comida de branco) possuem donos específicos no cotidiano das aldeias. Um xëni do
cronotopo A comentava que os brancos têm a mania de fazer doações que dizem ser “para a
aldeia”, como um rádio de pilha que um enfermeiro da SESAI doou “para a Tankala Maë”.
O enfermeiro entregou o rádio nas mãos de um jovem do cronotopo pós-contato que, logo,
tornou-se o dono do rádio. Antes de ouvir esse comentário, eu também cometi esse equívoco.
Cheguei a levar malhadeiras para a aldeia, instrumento de pesca que servem à alimentação de
todos, e disse que era “de todos”. Logo, uma matxo me disse: “atxuwëx pimen” (atxuwëx:
todos; pimen: NEG.). Com o passar do tempo, passei a observar que entre os Korubo inexiste
algo que seja “de todos”. Mesmo os instrumentos de caça e pesca, utilizados para a
alimentação coletiva, pertencem a alguém.

379
A discussão sobre posse nos ajuda a compreender porque, em 2019, havia três motores na
Tankala Maë e apenas duas baleeiras de metal. A discrepância entre o número de motores e
baleeiras talvez não fosse percebida se os Korubo não se esforçassem continuamente
carregando os motores da beira do rio Ituí para as casas unifamiliares, revezando conforme o
uso. Se o xëni proprietário de determinado motor saía, o motor dele era colocado na baleeira,
mas se ele permanecia na aldeia, seu motor era retirado da baleeira. Não há entre os co-
residentes a ideia de que os motores são “da aldeia”, e sim de homens xëni que trabalham e,
a partir do dinheiro recebido, compram. Algumas destas mercadorias servem ao benefício dos
co-residentes por gerarem o parentesco.

Todos os Korubo se beneficiam de mercadorias, como espingardas, motores e, até certo


ponto, também das roupas industrializadas. Todos pegam caronas e se alimentam dos
resultados de uma caçada ou pescaria feita com espingardas e motores. Todos usam roupas
quando saem das aldeias para a cidade. Contudo, cada uma dessas mercadorias têm
proprietários bem definidos e, portanto, não saem das aldeias ou são utilizadas sem a
autorização do dono. Uma exceção a isso é quando os xëni emprestam suas espingardas e
motores aos seus filhos, jovens caçadores do cronotopo pós-contato. O mesmo acontece com
outras mercadorias que podem ser emprestadas, como as bolas de futebol, cuja posse é
individual, mas o uso é coletivo.

A posse das mercadorias pode ser temporária. Se um korubo me oferece um prato


industrializado com comida, diz “Julianan prato”, embora o prato não seja meu (–n: POSS.).
Nesse caso, o prato fora comprado pelos Korubo com dinheiro próprio, mas o fato de eu
comer naquele prato o tornava temporariamente meu. O uso me dava a posse temporária.
Outra forma de expressar relação de posse é através dos pronomes que, em alguns casos, são
acionados em relação a pessoas. 153

Os alimentos, seja comida de Korubo ou comida de branco, também têm donos. As caças
nas proximidades de determinada aldeia são das pessoas residentes naquela aldeia. Por isso,

153
Os Korubo utilizam termos, como nukin nawa (nossa branca), min nawa (tua branca), nukin Manis (nossa
Manis), nukin Juliana (nossa Juliana), nukun vënë (meu marido), nukun awin (minha esposa), dentre outros. O
uso desses pronomes pode indicar paradigmas de posse, como a permanente, a alienável ou inalienável. Podem
ser utilizados em brincadeiras sexuais entre mulheres korubo que afirmam que determinado homem é de alguém
que, por sua vez, responde dizendo que aquele não é, e sim outro homem é o seu.
380
os Korubo argumentam que os Marubo pegam “nossos ovos de tracajá” (nukun nëxo vakwë),
ou seja, coletam ovos nas proximidades das aldeias korubo no rio Ituí. As espigas de milho
destinadas ao plantio em novas roças são de alguém e, portanto, os Korubo as armazenam
nas vigas das malocas e casas unifamiliares em pequenos conjuntos, separados uns dos outros.
Ao olhar para os milhos, identificam de imediato quem são os donos daquelas espigas,
utilizando o morfema para posse (–n): Nanën xikxu, Kuinin xikxu, Waxmën xikxu etc.

A macaxeira também têm dono, embora não seja separada da mesma maneira que o milho.
A posse das roças e das manivas são fundamentadas na divisão do trabalho entre os gêneros.
Conforme mencionei na seção anterior, quem abre a roça (maë lële) e planta a macaxeira
(mankit menane) são os homens. Quem colhe, transporta (mankit vele) e cozinha a macaxeira
(mankit kolokai) são as mulheres. A roça é dos homens e os cultivos são das mulheres. Similar
ao que ocorre entre os Piro (Gow 1989: 570-1), entre os Korubo, embora os homens cacem
e abram as roças, são as mulheres que circulam os alimentos, coletando, cozinhando e
distribuindo a caça, a pesca e os produtos das roças.

Cada mercadoria pode adquirir um nome, assemelhando-se ao corpo humano ou animal,


possuir um dono e entrar em circuitos econômicos em que a história de sua aquisição torna-
se importante de ser contada. Os Korubo costumam perguntar uns aos outros sobre as
mercadorias adquiridas: como e quem doou. No entanto, essa evidência da posse torna-se
nebulosa quando se trata das mercadorias e dos alimentos dos brancos. Provavelmente,
porque os brancos possuem coisas em abundância e, na concepção dos Korubo, não deveriam
sovina-las. Eu levava poucos alimentos para as aldeias, parcialmente devido às restrições
envolvidas no trabalho com os povos que o órgão indigenista considera como de “recente
contato”. Ao longo da pesquisa de campo, aprendi com os Korubo que levar alguns fardos de
arroz e farinha é uma boa atitude, pois servem ao consumo coletivo.

O arroz e a farinha são nawan pete, mas nessas ocasiões eram chamados também de Julianan
pete, embora todos comessem. Os xëni armazenavam o arroz e a farinha na maloca ou nas
casas unifamiliares, e ficavam sob os cuidados de alguém. Na Tankala Maë, inicialmente,
permaneciam na casa de Takvan Va (xëni do cronotopo A), Wio (xëni do cronotopo pós-

381
contato) e Lonkon (paxa do cronotopo C). Na ausência deles, o cuidado dos alimentos foi
transmitido para Waxmën matxo (xëni do cronotopo A).

Uma vez que o arroz e a farinha passaram para os cuidados de Waxmën matxo, foram
armazenados na maloca da Tankala Maë que era habitada pela família dela, pois as demais
famílias dessa aldeia residiam em casas unifamiliares. Na Sentele Maë, o arroz e a farinha
permaneciam sob os cuidados de Lalanvet matxo (paxa do cronotopo B). Em ambas as aldeias,
as matxo não cuidavam apenas dos alimentos que eu levava, mas também de mim. O arroz
era consumido por todos e jamais um quilo era cozido pela metade. Cozinhava-se cada quilo
de arroz inteiro para o consumo coletivo. Os Korubo sempre me avisavam que iam cozinhar
arroz. A farinha, ao contrário, era consumida aos poucos e sem aviso prévio.

Os quilos de arroz e farinha circulavam entre os Korubo como presentes dados por Waxmën
matxo a sua txivi (eZ), por exemplo. Com o passar do tempo, na Tankala Maë, outras
mercadorias que eu levava passaram a ser guardadas sob os cuidados de Waxmën, como as
pilhas e as lanternas, para evitar que as crianças e os jovens mexessem. Estas não eram
distribuídas como presentes entre os Korubo. Waxmën guardava tudo em uma pequena
mochila de couro que carrega consigo e ninguém ousa mexer. Os Korubo mais velhos dizem
aos mais jovens para não mexer nas coisas dos brancos que trabalham com eles (mixemen;
mixe: mexer; –men: NEG.), sobretudo, dos “professores”. Na concepção dos Korubo, é esse
tipo de atitude que faz os brancos “irem embora” das aldeias e, por isso, eles ainda não sabem
ler ou escrever. A mochila de Waxmën abrigava não apenas as minhas coisas, mas também
outras mercadorias dos Korubo, como as caixas de munição do marido dela, um xëni do
cronotopo A.

Se os alimentos e determinadas mercadorias eram guardadas pelas matxo, havia também


outros tipos de mercadorias que os Korubo desconsideravam como minhas, como uma panela
de metal que, apesar de estar guardada em minha mala, emergiu subitamente na maloca nas
mãos de uma criança para quem a mãe ofereceu como um presente. O rádio de pilhas que
levei para a aldeia também tornou-se de um grupo de jovens do cronotopo pós-contato que
escutava músicas em português para aprender a “língua dos brancos” (nawan onkete). O rádio
foi disputado entre jovens xëni e paxa, justamente, por não ter uma posse definida: não era

382
meu, mas também não fora entregue (por mim ou por outrem) nas mãos de alguém, gerando
a posse. Se o rádio não tinha um dono, os Korubo tentavam definir a posse a partir das pilhas.
Quando as pilhas do rádio acabavam, se eu mesma não colocasse as pilhas no rádio e as
entregasse nas mãos de alguém, outrem dizia que eu havia “dado pilhas para” alguém, e não
para o rádio. As pessoas não tinham o rádio, mas tornavam-se donas das pilhas que o faziam
funcionar.

Quando eu me ausentava da aldeia, independente do período que permanecesse distante, as


mercadorias que eu deixava em minha casa, chamada de Julianan xuvu, tornavam-se de outras
pessoas, inclusive, habitantes de aldeias vizinhas. Os Korubo argumentavam que, ao sair das
aldeias, eu poderia ter outras mercadorias. Lanternas, bolachas, baldes passavam a ter novos
donos. Então, todas as vezes que eu saía da aldeia, eu sabia que as mercadorias não estariam
no mesmo local quando eu retornasse, com exceção da minha rede (li) e do mosquiteiro (xoke
vakwë). Estes ninguém tomava para si. Eram guardados pelas matxo e, posteriormente,
devolvidos. Desse modo, os Korubo se relacionam com as mercadorias enquanto detentoras
de agência, similares aos corpos de seres humanos ou não-humanos, e também de donos.

6.4. Sovinar e roubar

Aldeia korubo, rio Ituí, julho de 2019: 154 era final de tarde, quando um grupo de jovens
caçadores saiu para pescar. A noite, escutamos o som do motor peque-peque retornando para
a aldeia. Ouvimos também a saudação ehe! – sinal de que eles traziam uma caça significativa.
Os jovens pegaram nove tracajás grandes. Não havia caça abundante há alguns dias naquela
aldeia. Então, todos ficaram maravilhados. Durante a madrugada, dois tracajás foram cozidos
para o consumo imediato. Na manhã seguinte, os Korubo avaliavam os sete tracajás
remanescentes para selecionar os que seriam abatidos e cozidos. Ouvimos então o som de um
motor: dois casais de outra aldeia chegaram para visitar-nos. Para a minha surpresa, ao
escutarem o som do motor, os Korubo rapidamente esconderam os tracajás em um tonel
próximo de uma roça de bananas.

154
Nesse caso, a pedido de uma matxo, omito o nome da aldeia para preservar as pessoas.
383
Custei a crer que eles estavam escondendo os tracajás dos visitantes. Após chegar, um dos
visitantes disse que em sua aldeia não havia carne. Portanto, estava com fome e perguntou se
eu comera: “Pekase ëvi. Kutka mimpi?”. Eu respondi a verdade: ainda não havia comido nada.
Nem deu tempo de comer algo. Os visitantes permaneceram quase toda a manhã conosco.
Parte da manhã foi dedicada à busca por plantas medicinais para tratar um bebê que estava
enfermo. Os tracajás permaneceram escondidos até os visitantes irem embora. Enquanto
cozinhava, uma matxo me disse para não contar às pessoas de outras aldeias que havia muitos
tracajás naquela aldeia.

Se, por um lado, os Korubo criticam a postura dos brancos que tentam doar mercadorias que
supostamente seriam coletivas, isto é, “da aldeia”, por outro lado, argumentam que as
mercadorias compradas a partir de dinheiro próprio podem ser sovinadas. Diversos povos
concebem a sovinice como uma característica dos brancos. Os Korubo usam o termo kulaspek
para se referir a “sovinice”. Contudo, a sovinice não é uma essência permanente, e sim um
estado. Em determinada ocasião, alguém pode sovinar algo. Em outra ocasião, pode deixar
de ser sovina (kulasemen; kulase: sovina, –men: NEG.). Os Korubo usam esse mesmo termo
para denotar “ciúmes”, ou seja, ter ciúmes de alguém é sovina-lo para outrem.

Os Korubo não abominam a sovinice, mas também não a incentivam, e tal atitude varia a
depender da aldeia. Na Sentele Maë, onde há mais pessoas paxa, a posse e a sovinice são
manifestas de outro modo. Uma criança do cronotopo B que recebe bolachas na Base Ituí
costuma leva-las para a aldeia e compartilha com as demais. As crianças da Sentele Maë
devolviam os lápis de cor e materiais de papelaria utilizados nas aulas, sem que os adultos
pedissem. Nessa aldeia, não presenciei acusações de “roubo”. Estas ocorriam em outras aldeias
com maiores índices de xëni do cronotopo pós-contato e, por conseguinte, mais mercadorias.

Em geral, diversas coisas são sovinadas, como a maioria das mercadorias adquiridas com
dinheiro próprio ou os “presentes”. Os Korubo compreendem quando pedem algo e negamos
afirmando que foi um “presente” dado por alguém, sobretudo, se nos comprometemos em
doar algo similar posteriormente. Com frequência, crianças são acusadas de sovinar algo para
outrem, como durante as atividades de letramento, quando elas monopolizam os materiais
didáticos e relutam em entregar os lápis e cadernos aos adultos. Estes não se esforçam para

384
pegar os materiais das mãos das crianças, e sim as incentivam verbalmente a atuarem com
generosidade, devolvendo voluntariamente os materiais: “kulasemen”. Se uma criança chora
pedindo comida ou algo que está com outra criança, os adultos se dirigem a esta incentivando-
a a compartilhar com aquela que chora.

Além das acusações e dos estímulos à generosidade, os adultos sorriem de uma criança que
busca algo somente para si, ridicularizando a postura sovina, indesejada. Em algumas raras
ocasiões, os Korubo batem com palha ou envira em crianças sovinas, sobretudo, se estas se
recusam a compartilhar alimentos. Acusar, incentivar a partilha, sorrir ou mesmo bater são
atitudes pedagógicas que visam promover reflexões nas crianças, fazendo-as mudar de
comportamento e partilhar com outrem. Os Korubo não criticam a posse de algo, e sim a
restrição do acesso dos demais a algo. Assim, é possível sovinar algo ou alguém sem ser o
dono.

Os Korubo não costumam sovinar comida, seja a deles próprios ou a dos brancos. Essa atitude
gera vergonha, conforme o ato de esconder os tracajás e posteriormente me pedir discrição.
Comer algo escondido gera conflitos, sobretudo, quando envolve a primeira e a segunda
esposa de um homem. Apesar disso, há casos em que alguém sovina comida para outrem,
sobretudo, entre pessoas de aldeias distintas, ou mesmo, quando trata-se de alimentos que
não abundantes na aldeia. 155 Em épocas de escassez de bananas, por exemplo, alguém pode
esconder algumas bananas próximo de sua rede de dormir. Nesses casos, os Korubo tentam
omitir ou justificar a atitude sovina.

Há também casos em que os Korubo argumentam atitudes sovinas, como ocorreu quando
Maya matxo interditou o convite dos homens da Tankala Maë para os homens da Tapalaya
participarem de uma caçada de queixadas, conforme a parte 2. Diante da insatisfação dos
caçadores, ela argumentou que outrora as pessoas da Tapalaya sovinaram queixadas aos
demais Korubo, caçaram e comeram sozinhas. Nessa ocasião, Maya possuía o direito de

155
Os Korubo jamais sovinaram caça, pescado ou produtos de suas roças para mim. No entanto, quando havia
comida de Korubo disponível, nem sempre eles me ofereciam voluntariamente os alimentos industrializados
também disponíveis na aldeia, como bolachas e café. Estes eram repartidos comigo, caso eu pedisse.
385
interditar o convite não apenas por ser uma matxo xëni, mas também porque o rastro das
queixadas estava nas redondezas da sua aldeia, Vuku Maë, chamada de “aldeia da Maya”.

Descobrir o rastro de determinado animal e não convidar outras pessoas para se juntarem na
caçada é aceitável, sobretudo, se as pessoas de outra aldeia não colaboram levando espingardas
e munições para a caçada. Geralmente, são as mulheres xëni do cronotopo A que restringem
os convites para as caçadas, enquanto os homens buscam ampliá-los. Trata-se de interesses
opostos entre os gêneros: as mulheres, donas da caça, têm que dividir o alimento com mais
ou menos pessoas, enquanto os homens, caçadores, buscam outros homens para compartilhar
a tarefa de buscar a caça.

Kulaspek é uma categoria de acusação que gera constrangimento, sobretudo, se envolve


alimentos. Ninguém se autointitula “sovina”, pois trata-se de uma atribuição. No entanto,
há coisas que podem ser sovinadas, como determinados saberes. Algumas mulheres xëni não
queriam que jovens paxa estudassem durante as atividades de letramento e me diziam para
não distribuir papel e lápis para essas pessoas. É também legítimo sovinar o cônjuge para
outrem, o que os brancos chamam de “ter ciúmes”. As relações extraconjugais são recorrentes
nas aldeias e tornam-se brincadeiras e/ou conflitos entre os Korubo. Nesses casos, os Korubo
não julgam uns aos outros pelo envolvimento com pessoas casadas, e sim porque
determinadas pessoas não podem sovinar outras, como alguém casado não pode sovinar (ter
ciúmes de) alguém solteiro que já está comprometido com outrem.

Essa era a situação de uma jovem paxa do cronotopo B, casada, que envolveu-se com um
rapaz do cronotopo pós-contato, solteiro. O rapaz solteiro estava prometido a outra paxa do
cronotopo C, que estava sendo criada pela mãe dele para o casamento. Todos os Korubo
sabiam que a paxa casada tinha um relacionamento extraconjugal com o rapaz, seu enteado,
e isso não era um problema. Até o momento em que ela começou a ter ciúmes da futura
esposa do rapaz. O tema virou alvo de reuniões entre os Korubo, que não julgavam-na por
ser casada e relacionar-se com seu enteado, e sim por estar sovinando um rapaz
indevidamente. 156

156
Erikson (2002b: 128) também observou que, entre os Matis, sovinar os órgãos genitais é uma violação ética
muito mais séria do que a infidelidade.
386
Não são apenas as relações extraconjugais que geram debates entre os xëni, mas outras formas
de acesso desigual, como as participações em projetos, viagens, atividades remuneradas, a
retirada de documentos de identificação pessoal, as remoções para a Base Ituí etc. Tudo isso
gera questionamentos dos Korubo junto aos brancos, a fim de esclarecer porque alguns dentre
eles têm determinados acessos, e outros não.157 A posse e a sovinice das mercadorias e dos
alimentos pode desencadear conflitos entre os Korubo. Por exemplo, duas mulheres paxa
disputam linhas e agulhas, já que frequentemente o seu acesso a este tipo de mercadoria é
mais restrito em comparação às xëni do cronotopo A e pós-contato. Tais conflitos podem se
agravar e adquirir o formato do que os Korubo nomeiam como “roubo”.

Tankala Maë, rio Ituí, julho de 2019: naquela tarde, um caçador (xëni do cronotopo A)
acusava um jovem (xëni do cronotopo pós-contato) de ser “ladrão”, afirmando que este havia
roubado uma de suas caixas de munição, adquirida por compra com dinheiro próprio. Ele
vasculhou em diversas casas da aldeia, mas não encontrou a caixa. Entrou em sua casa e,
minutos depois, começou a esbravejar um monólogo, como os Korubo fazem quando estão
kuinine, “bravos”, com raiva. Ninguém se aproxima de alguém nesse estado. O caçador
ameaçava matar os jovens com borduna e espingarda. Os jovens, por sua vez, sorriam
escondidos atrás da maloca. Maya matxo aproveitou a ocasião para falar novamente no rádio
e avisar o seu filho, Txitxopi, que estava no rio Coari, sobre o “roubo” na aldeia no rio Ituí.
Txitxopi nada pôde fazer, nem se demorou nos comentários, afinal está acostumado com o
jeito da mãe. De fato, conforme descobriu-se dias depois, os jovens haviam enterrado a caixa
de munição perto da roça de macaxeira. A caixa estava quase completa, faltavam duas
munições. Uma foi encontrada logo em seguida. Objetivamente, o saldo daquele “roubo” foi
uma munição.

Em alguns casos, o roubo é justificável diante de uma atitude considerada sovina. Os Korubo
usam o morfema –vet para se referir a “pegar” algo. Os xëni afirmam que não existe um termo
em korubo para designar o sentido que damos à palavra “roubo”. Atualmente, eles usam este

157
O ciúme também incidiu diretamente no trabalho de campo. Todas as vezes que eu ia trabalhar em uma
nova aldeia, eu tinha que levar exatamente as mesmas mercadorias e alimentos que eu levara para a aldeia
anterior. Só assim eu evitava ciúmes por parte dos Korubo. Ao mesmo tempo, era o meu papel manter as
obrigações anteriores em dia, cumprindo minhas doações de presentes às pessoas da aldeia que eu residira
anteriormente e que haviam cuidado de mim.
387
termo em português. Nas aldeias, mercadorias de uso contínuo, como pilhas, munições,
gasolina e isqueiros podem ser “roubadas” pelos mais jovens, conforme os Korubo dizem. Os
jovens aproveitam os momentos em que as pessoas de uma aldeia saem para caçar, coletar ou
visitar outra aldeia e mexem nas coisas alheias. Entre os Korubo, o ato de pegar algo
escondido, cuja posse não é sua, mesmo que seja devolvido posteriormente, é chamado por
alguns xëni de “roubo”. Concepções, como “roubo” e “ladrão”, estão sendo incorporadas
pelos Korubo na relação com os brancos. Um dos xëni que mais aciona esses conceitos nas
aldeias é quem mais entende o mundo dos brancos e explica para outros jovens como os
brancos lidam com “roubo” e com os “ladrões” nas cidades, afirmando que estes são “presos”.

As acusações de roubo costumam ocorrer onde há maior distribuição desigual de mercadorias.


Onde há poucos donos com muitas coisas, há mais “roubos”. Na Tankala Maë, essas ocasiões
costumavam ocorrer com maior frequência, pois a população era maior. Havia mais acessos
a dinheiro e mercadorias em contraste ao que ocorria na Sentele Maë, por exemplo. Nesses
casos, alguns xëni acusavam-se de “ladrão” e, motivados pela raiva, conflitavam uns com os
outros. Geralmente, um xëni era “roubado” por jovens do cronotopo pós-contato ou paxa
que não possuíam acessos aos mesmos recursos.

Os mais velhos desaprovavam esse tipo de prática e relembravam aos jovens que estes
deveriam procurar meios de “ganhar dinheiro” para comprar suas mercadorias. Roubar, assim
como matar, é uma forma de “bagunçar” com os brancos, conforme a Parte 2. As acusações
de roubo geram vergonha coletiva e, quando ocorrem, os xëni tentam ocultar dos demais
Korubo, do mesmo modo que tentam ocultar atitudes sovinas em relação a comida,
sobretudo, se as acusações de roubo envolvem ameaças de morte entre co-residentes.

O que os Korubo chamam de “roubo”, os brancos chamam de “furto”. Trata-se de ocasiões


em que a posse de alguém sobre algo é subvertida temporariamente. Retira-se uma mercadoria
de determinado local de armazenamento para satisfazer a curiosidade. Por vezes, as
quantidades levadas são inexpressivas ou ressarcidas sem prejuízos financeiros. Mesmo no
caso dos “roubos” das pilhas, estas são levadas em pequenas quantidades, como pares. Caso
não se constate que as coisas foram remexidas, os “roubos” talvez nem sejam notados. Assim,

388
o conceito dos Korubo para “roubo” relaciona-se ao acesso desigual aos recursos entre
distintos cronotopos, o que corrompe o sentido de posse.

6.5. Conclusão – Parte 3

O interesse dos Korubo pelas mercadorias extrapola concepções ocidentais a respeito do uso
e consumo, sobretudo, a ideia de “necessidade material” acionada por agentes estatais. Os
Korubo possuem mercadorias que não utilizam, seja porque a chamada “vida útil” do objeto
acabou ou porque consideram que não serve ao consumo. Quando veem qualquer objeto
boiando no rio, como embalagens de alimentos e bebidas, aproximam-se para ver, retiram da
água e elaboram hipóteses sobre quem era o antigo dono. Mesmo danificados, eles levam tais
objetos para as aldeias. Há uma importância na posse, e não no que nós, ocidentais,
concebemos como “uso” ou “consumo”.

No capítulo 5, vimos que o órgão indigenista considera os Korubo como um povo de “recente
contato”, categoria subsidiária do conceito de “isolamento”, que preconiza ações específicas.
No caso dos Korubo, uma dessas manifestações é o RCB, protocolo criado para controlar o
acesso dos Korubo às mercadorias, ao dinheiro e, por conseguinte, às relações com outros
povos e com outros brancos que não são agentes estatais. Inicialmente, os agentes estatais
utilizaram mercadorias para atrair os Korubo ao primeiro evento de contato, depois passaram
a doar algumas mercadorias e alimentos regularmente para abrandar os Korubo, “consolidar
a relação” e obter informações.

A bacia do rio Javari, onde habitam os Korubo, era ocupada por grupos locais com práticas
de guerras endêmicas, acusações de feitiçaria, vendetas, e raptos de mulheres e crianças,
gerando processos de fissão, dispersão social e a redefinição de coletivos. Essa característica
foi acentuada durante a exploração extrativista, conduzindo aos ataques de malocas e raptos
de mulheres e crianças. Com a extremização dessa belicosidade, os brancos tornaram-se os
principais inimigos dos Korubo. As aproximações entre os Korubo e os brancos foram
conflituosas, de modo que as tentativas iniciais de obter ferramentas de metal geraram
conflitos e mortes. Após 1996, a relação entre os Korubo e os brancos começou a se

389
reconfigurar, passando da guerra à troca. Os Korubo passaram a não guerrear mais para obter
mercadorias, e sim a dialogar e fazer acordos com os brancos. O RCB expressa essa
transformação relacional: uma tentativa de instaurar um regime de troca onde havia guerra.

O RCB abriga concepções relacionadas aos preceitos da “aculturação”: controla-se o acesso


dos ameríndios às mercadorias e serviços para preservar a “cultura”, selecionando apenas os
bens que sejam “necessários” ao consumo – o que também fomenta nos agentes estatais certo
ethos salvacionista. As doações, trocas e vendas previstas no protocolo destoam do mundo
vivido pelos Korubo, que concebem o RCB como um “projeto” que visa não controlar, mas
facilitar seus acessos às mercadorias e ao dinheiro. E se, na prática, não ocorre dessa maneira
é por causa dos brancos, ou melhor, das teorias korubo sobre os brancos que refletem-se em
teorias a respeito da política indigenista. Se o RCB representa uma tentativa de instaurar a
troca onde havia guerra, mais recentemente, uma nova lógica foi apresentada aos Korubo: o
trabalho remunerado.

Com o acesso dos Korubo a quantias inéditas de dinheiro adquirido por meio dos pagamentos
recebidos, uma enxurrada de mercadorias passou a configurar outro cenário nas aldeias – o
que alguns poderiam chamar de mescla entre o “tradicional” e o “moderno”. Mas, ao
contrário do que a política indigenista preconiza, os Korubo em vez de entrarem na “vala
comum”, isto é, “deixarem de ser índios”, estão “indigenizando” o dinheiro e as mercadorias,
colocando-os à serviço de um projeto maior e atual: construir o parentesco entre diferentes
cronotopos que passaram a co-residir no baixo curso do rio Ituí, e entre pessoas dos rios Ituí
e Coari.

Nesse sentido, o capítulo 6 abordou o consumo de espingardas, motores, roupas e alimentos


para compreender como essas relações de parentesco têm sido tecidas a partir das mercadorias,
do dinheiro, dos serviços e da tecnologia dos brancos. Nas aldeias, tampas de panelas de metal
tornam-se “pratos” e as de garrafas térmicas viram “copos”, passando a serem nomeados
assim. Conchas de metal servem para tomar tatxik. Mochilas industrializadas são levadas para
a abertura das roças e camufladas com folhas em determinado trecho da floresta. As
ferramentas de metal, quando novas, são armazenadas nas vigas e no teto da maloca e das
casas unifamiliares. Quando velhas e desamoladas, ficam espalhadas pelo chão das aldeias.

390
Para amolar as lâminas, os Korubo não utilizam apenas as limas doadas pelos agentes estatais,
mas também o sumo do cipó tatxik, combinando as duas técnicas. A argila dos igarapés serve
para lavar e ariar as panelas tenkele, que são transportadas do mesmo jeito que os Korubo
carregam seus cestos kakan: com uma faixa de envira apoiada no alto da cabeça, pendendo
para as costas de quem transporta.

As ferramentas de metal foram as primeiras mercadorias a interessar os Korubo, que iam para
as margens dos rios solicita-las aos transeuntes. Foi assim que Maya matxo alega ter feito o
contato com os brancos em 1996. Hoje, outras mercadorias permeiam o cotidiano dos
Korubo, como os telefones celulares e os rádios de comunicação, configurando uma
“indigenização” das tecnologias de comunicação obtidas no contato interétnico. Em 2019,
mesmo algumas pessoas que não sabiam ler e aldeias korubo sem energia elétrica, já possuíam
celulares. 158 Nas cidades, os Korubo usam os celulares para registrar em audiovisual aspectos
que queiram compartilhar com seus co-residentes nas aldeias, como as similaridades entre
cidade e floresta. Repetidas vezes, compram não apenas o crédito para os celulares, mas
também novos chips, como fazem com outras mercadorias, trocando de número todas as vezes
que vêm às cidades. Na Base Ituí, utilizam os celulares para falar com os brancos que
conhecem.

158
O termo “celular” também é utilizado como o nome de uma brincadeira entre duplas de crianças korubo
que disputam entre si para ver quem consegue derrubar quem no chão.
391
Imagem 36. Seatvo mostra imagens para Kontxo, Tamu e Tupa.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

Nas aldeias, um dos passatempos atuais é ver vídeos e fotos de outros ameríndios e brancos.
Foi assim que quando cheguei a Tabatinga/AM, em 2019, as mulheres já sabiam o meu nome
e a minha profissão, pois Takvan Va e Malevo haviam compartilhado fotos e vídeos
produzidos no Rio de Janeiro/RJ. Mais recentemente, os celulares servem para a construção
do parentesco entre os Korubo do rio Ituí e os Korubo contatados no evento 6, localizados
no rio Coari. Os xëni que trabalham como “colaboradores” no acampamento de contato no
rio Coari registram com seus celulares o cotidiano dos Korubo do Coari e, ao retornarem
para suas aldeias no rio Ituí, ver esses registros é um dos principais lazeres. Até mesmo as
pessoas que não foram ao rio Coari, como mulheres e crianças, sabem nomear cada uma das
pessoas contatadas no evento 6, como se as conhecessem intimamente.

Outra tecnologia colocada à servido da construção do parentesco entre os cronotopos é o


rádio de comunicação. Em 2019, apenas as aldeias Tapalaya e a Tankala Maë possuíam
rádios. Então, as pessoas de aldeias vizinhas “visitavam” essas aldeias para “falar no rádio”. Os
Korubo constroem casas específicas para os rádios, chamadas de wëtëkit ou “casa do rádio”,
para protegê-los das intempéries. Entre as aldeias, o rádio serve para fomentar a comunicação
a respeito da disponibilidade ou escassez de alimentos, adoecimentos, conflitos internos:
392
quem caçou, o quê caçou, em qual aldeia há carne, quem se acidentou, quem brigou com
quem e por qual motivo etc.

Contudo, os rádios também conectam os Korubo com o que acontece na bacia do rio Javari,
nas aldeias de outros povos e na Base Ituí. Os colaboradores korubo de “permanência” na
Base são vetores dessa comunicação, informando tudo o que acontece: quem “sobe” e quem
“desce” o rio, quando e para quê etc. Antes mesmo de os brancos subirem o rio, os Korubo
sabem quem está chegando e qual é o seu objetivo. Estão informados a respeito de todas as
logísticas e trânsitos nos rios Ituí e Coari. Assim, cada vez mais a passagem da guerra a troca
se consolida, colocando lógicas exógenas (as mercadorias, o dinheiro, a compra) à disposição
de lógicas endógenas, como a construção do parentesco, a co-residência e a partilha.

393
CONCLUSÃO

Refletir sobre o contato interétnico é também compreender o povo a partir de suas


reivindicações e propostas de soluções para o futuro. Em Contact Strategies (2021), a
historiadora Heather Roller analisou uma série de registros documentais, especificamente
sobre os Mura e os Guaikurú, para discutir as estratégias de contato utilizadas por povos
ameríndios em suas relações com os brancos, atentando aos modos como os ameríndios
buscam produtos, conhecimentos e pessoas de maneira própria para atender aos seus
objetivos. Historicamente, muitos povos tiveram a iniciativa de contatar os brancos e se
apropriaram do que consideravam útil, belo e bom no mundo não-indígena, o que não
significa que eles queriam se tornar brancos. Ao contrário, o ritmo e a extensão do contato
são, em muitos casos, controlados pelos ameríndios.

A ideia de “estratégias” não diz respeito necessariamente a um cálculo racional, e sim a


tomadas de decisões práticas e improvisos criativos por parte dos ameríndios diante de
mudanças constantes. Nesses termos, as estratégias acionadas pelos Mura e Guaikurú não são
exceções, embora tenham se tornado casos emblemáticos, e estão presentes na história de
diversos povos. Em muitos casos, os povos utilizavam canoas ou cavalos e lutaram contra as
frentes coloniais. Ao final do século XVIII, fizeram acordos de paz com os portugueses. Ao
longo do século XIX, tornaram-se aliados dos brasileiros. Tais povos participaram ativamente
do processo de construção das fronteiras geopolíticas, ou seja, da criação dos estados.

Nesse processo, estereótipos, como “selvagens”, “bárbaros”, “errantes” foram atribuídos aos
ameríndios de modo pejorativo (no caso korubo, destaca-se o rótulo de “arredios”), na
tentativa de ocultar a sua capacidade de expansão territorial e suas habilidades táticas contra
os colonos e soldados. Nos termos de Roller (2021: 13), “contact is a process that plays out
every day”. Seja nos períodos de expansão ou retração, o contato têm efeitos diversos sobre a
vida dos ameríndios e, ao mesmo tempo, estes se engajam nesse processo interpretando e
reinterpretando seus históricos de contato. Desse modo, as estratégias de contato, operadas
por ameríndios, têm raízes em experiências locais e dinâmicas de mudança em diferentes

394
períodos da história. Desta concepção decorre o título desta tese, onde “descobrir” é mais que
uma subversão do sentido que comumente damos a este termo.159

Ao longo dessa tese, refleti sobre as estratégias e os processos de contato experimentados pelos
Korubo a partir de dados etnográficos. Semelhante a outros povos, os Korubo também
lançam mão de estratégias durante e após o pluricontato. Xikxuvo (cronotopo A),
reconhecido pelos Korubo como um darasibo, é uma das pessoas mais velhas e hospitaleiras
no rio Ituí. Em uma de nossas primeiras conversas, na aldeia Vuku Maë, ele me ofereceu uma
rede para sentar, bananas e carne de caça para comer, e disse-me: “Korubo é amigo”. Em
seguida, afirmou que eu deveria permanecer nas aldeias e não ir para a cidade. Conforme
argumentou, os jovens korubo querem usar roupas e óculos de sol, mas ainda não sabem o
que ele considera o mais importante: nawan onkete (“a língua dos brancos”).

A preocupação dos antigos, como Xikxuvo, revela o contraste entre o pensamento ameríndio
e a política indigenista. Por um lado, esta preconiza que alguns temas, como as mercadorias
industrializadas, sejam alvo de preocupação, supostamente, com o objetivo de salvaguardar
algo, como a “cultura dos Korubo”. Por outro lado, os korubo mais velhos expressam a sua
preocupação com outros temas, até então ignorados ou minimizados pelos agentes estatais.
Na concepção dos mais velhos, a língua dos brancos é um componente fundamental do
processo de descoberta dos brancos por parte dos Korubo. Não sem razão, as escolas são uma
das demandas mais fortes e latentes dos Korubo para o órgão indigenista, pois pedir “escola”
é falar sobre o futuro dos mais jovens. Os Korubo querem aprender a ler, escrever e calcular
para otimizar o seu processo de descobrir os brancos e poder viver nesse novo modelo
relacional, que não é mais o de guerra, e sim o de troca. Os olhos de Xikxuvo, dentre os mais
velhos no rio Ituí, vivem marejados, como quem abriga uma profunda tristeza. A sua
preocupação com o destino dos mais jovens é reiterada constantemente.160

159
Dentre os muitos sentidos que o verbo “descobrir” adquire em dicionários da língua portuguesa, constam:
1. Achar o ignorado, o desconhecido ou o oculto. 2. Fazer um descobrimento. 3. Chegar a conhecer. 4. Notar.
5. Destapar. 6. Mostrar. 7. Manifestar; revelar. 8. Avistar; ver; alcançar com a vista. 9. Inventar.
160
Essa nostalgia do passado e o sentimento de tristeza por parte dos velhos em relação aos jovens também
caracteriza as falas atuais dos Wajãpi, de língua Tupi-Guarani, para os brancos: “Se hoje, nas rodas de conversa
das aldeias, não se fala apenas de como “criar filho, matar bicho e plantar roça”, é porque os Waiãpi reconhecem
com tristeza (jane angy’o pa ko’y) as alterações que o contato impôs a todos os aspectos de sua vida social. O
interesse desse tema é que ele reflete também a mudança nas relações intergrupais e interpessoais: hoje, grande
395
Busquei evidenciar o contínuo processo de contato interétnico e as estratégias e formas de
ação dos Korubo em relação aos brancos e às coisas dos brancos. O processo de contato incide
sobre diversas instâncias da vida e do cotidiano dos Korubo, perpassando a concepção do
“nós” (nukmi) e dos “outros” (latkute, nawa), as relações entre eles, como as distinções entre
“antigos” (xëni) e “novos” (paxa), as suas estratégias matrimoniais e os seus modos de
“indigenização” dos bens e serviços ofertados pelos brancos.

No capítulo 1, Latkute, a partir do acervo documental disponível e dos dados etnográficos,


apresentei alguns moldes das relações entre os brancos e os Korubo. O contexto extrativista e
das Frentes de Atração no Vale do Javari levou os Korubo a um estado de fuga dos brancos,
com aproximações pontuais para a obtenção de mercadorias, como as ferramentas de metal,
entre os séculos XVIII e XX. Nem os registros documentais nem os dados etnográficos
apontam para o “primeiro branco” com quem os Korubo estabeleceram relações, pois grande
parte dos anciões korubo faleceu nesse período. Contudo, os dados etnográficos indicam
características que os Korubo atribuem aos brancos: mentirosos, perigosos, matadores e, ao
mesmo tempo, medrosos, detentores de corpos estranhos e risíveis.

No capítulo 2, Pluricontato, discuti a realização de seis eventos de contato por parte do órgão
indigenista brasileiro junto aos Korubo ao longo dos anos 1996, 2014, 2015 e 2019,
configurando o que chamei de “pluricontato”. Do ponto de vista da política indigenista, após
esses eventos, os Korubo passaram da categoria de “isolados” a “recente contato”. Do ponto
de vista antropológico, os Korubo estão em processo (ainda em curso) de passar da “guerra”
a “troca”, nos termos de Lévi-Strauss (1976). Portanto, dizer que os Korubo tornaram-se um
povo de “recente contato” sinaliza que eles passaram a aceitar uma relação contínua e
relativamente pacífica com as instituições estatais que os buscavam desde os anos 1970.

A literatura etnográfica sobre os povos que o órgão indigenista classifica como de “recente
contato” é reduzida, mas sinaliza um aspecto em comum: todos, antes das relações contínuas
com a FUNAI, estabeleceram relações com outros brancos e/ou ameríndios (ver Gallois e
Havt 1998; Garcia 2010; Aparicio Suárez 2014; Aragon e Algayer 2020; Gil 2020; Tavares

parte do tempo antes dedicado ao repasse de notícias e informações sobre atividades de subsistência tradicionais
é preenchido com discussões sobre as intervenções dos karai-ko” [brancos] (Gallois 2002: 215).
396
2020; Braga 2017; Ribeiro 2020; Almeida 2021). Neste aspecto, o caso korubo é similar,
pois eles interagiam, de modo conflituoso, com outros brancos antes dos agentes estatais
chegarem na região. Todavia, essa etnografia com os Korubo apresenta a seguinte
peculiaridade. Diferente dos casos apresentados na literatura etnológica, os Korubo de
“recente contato” ainda estavam em processo de “contato” quando residi com eles. Pessoas
das quatro aldeias existentes no rio Ituí, em 2019-20, estavam envolvidas na expedição de
contato com outra parcela korubo localizada no rio Coari.

Todos os eventos de contato realizados com os Korubo contaram com a participação de


“terceiros”: os intermediários ameríndios. Os intermediários kanamari foram fundamentais
na localização das parcelas korubo, contatadas nos eventos 2 e 3, e nos informes para o órgão
indigenista. Os intermediários korubo estabelecem afinidade com os recém-contatados no rio
Coari através das doações de mercadorias. Os intermediários matis, por sua vez, assumiram
o papel de transmitir aos Korubo o seu modo de vida e acompanharam os eventos de contato
desde os anos 1970. Tanto a intermediação dos próprios Korubo, quanto a intermediação
dos Matis compartilham a concepção de que a raiva é uma pulsão para matar e, portanto, um
dos papéis dos intermediários é instruir os “recém-contatados” sobre as regras e dinâmicas
sociais a partir de conversas e explicações sobre o mundo dos brancos. É compreendendo o
mundo dos brancos que os Korubo estabelecem novos moldes de relação, não mais baseadas
somente na guerra, como no período extrativista quando os Korubo golpearam os brancos
com bordunas. É compreendendo o mundo dos brancos que a pulsão para matar pode ser
controlada.

No capítulo 3, Tempo e espaço, mostrei como diante da complexidade do pluricontato os


agentes estatais criaram estratégias administrativas para identificar as parcelas contatadas nos
seis eventos. Discuti a pertinência antropológica de determinados conceitos, como “grupos”
e “subgrupos”, para se referir a essas parcelas. Por fim, argumentei o uso do conceito de
“cronotopo” como uma ferramenta analítica fértil para a apreensão de um contexto que só
existe a partir do pluricontato. Com a reunião de diversas pessoas contatadas em eventos
distintos no baixo curso do rio Ituí, criou-se sobreposições em que diferentes cronos habitam
o mesmo topos, ou seja, a reunião dessas pessoas nas aldeias não construiu uma coesão em
torno do etnônimo “Korubo”. Antes disso, as diferenças criadas a partir de e refletidas no

397
pluricontato se mantiveram, manifestando-se na diferenciação entre korubo xëni e korubo
paxa para distinguir pessoas “antigas” e “novas” no contato com os brancos. Categorias que
já pertenciam ao léxico Pano (utilizadas para denotar antiguidade e novidade, maturidade e
imaturidade) foram incorporadas e reformuladas para expressar a cromaticidade instaurada
pelo pluricontato, nos termos que Sahlins (1985) define a “estrutura de conjuntura” em que
os “eventos” estão incidindo sobre a “estrutura” e, ao mesmo tempo, estão sendo
transformados por ela dentro de um processo que, no caso korubo, ainda está em curso.

Em 2019-20, havia quatro aldeias no baixo curso do rio Ituí. Cada uma delas, possuía um
homem korubo na posição de “cacique”. Para essa nova posição, emergente a partir da relação
e dos questionamentos interétnicos, os Korubo concederam uma função específica: chamar
para conversar (onkeno). Os caciques são ícones do novo modelo relacional entre os Korubo
e os brancos (Silva 2021b). A infraestrutura das aldeias no rio Ituí evidencia a cronotopização
gerada a partir do pluricontato: a construção de casas unifamiliares em torno de malocas
coletivas, e o plantio de determinados cultivos em roças unifamiliares ou comunitárias. O
número de casas unifamiliares (wëtëkit) em determinada aldeia sinaliza a sobreposição de
tempos de contato em determinado topos.

No capítulo 4, Aparentar-se, trouxe para o cerne da análise os casamentos entre pessoas de


diferentes cronotopos. Tais arranjos têm sido uma via de unir pessoas de diferentes
cronotopos dentro de um contexto produtivo. Um homem korubo conta com a ajuda do seu
genro para abrir roças, caçar e pescar. Uma vez casados, uma mulher korubo recebe do seu
cônjuge roças para colher cultivos, carne de caça e peixes que ela cozinhará e distribuirá de
acordo com seus vínculos de parentesco, conforme a discussão proposta por Gow (1989) em
torno da economia dos “desejos”. Após o pluricontato, as demandas envolvidas nas relações
matrimoniais se multiplicaram, pois entra em cena o dinheiro. Nesse novo contexto, os xëni,
recrutados para as atividades remuneradas pelo órgão indigenista, são aqueles que podem
oferecer às suas esposas não apenas roças, carne de caça e pescados, mas também mercadorias
industrializadas. Tais acessos passaram a compor as exigências matrimoniais: as mulheres
querem se casar com homens xëni, pois estes são meios de acesso a recursos.

398
O capítulo 4 inicia com uma narrativa sobre a matriarca Maya: matxo xëni, a partir da qual
os vínculos de parentesco entre os Korubo estão sendo construídos após o pluricontato. Ela
é uma matxo por ser uma mulher mais velha, sênior e, ao mesmo tempo, xëni por ser do
cronotopo A, isto é, “antiga” no contato com os brancos. Maya é a protagonista do primeiro
evento de contato com a FUNAI realizado em 1996. Hoje, ela é a que tem mais genros e
filhos no rio Ituí e, atualmente, ela acessa recursos diferenciados das demais mulheres, como
o dinheiro obtido por sua aposentadoria junto ao governo federal. No rio Ituí, todas as
condições para estabelecer autoridade convergem na Maya, detentora das características de
chefia, conforme outros casos na Amazônia.

Maya tem o poder para administrar os arranjos matrimoniais, tal como fez entre os seus filhos
e filhas do cronotopo A e, posteriormente, após o contato em 1996, gerenciou também o
casamento de seu filho Takvan Va (cronotopo A) com Wio (cronotopo pós-contato),
formando uma união entre o tio materno e sobrinha uterina. Maya evitou que Takvan Va se
casasse com uma mulher matis, argumentando que os Korubo precisavam casar entre si, pois
eram poucos e desapareceriam, conforme o capítulo 2. Similar a Maya, outras matxo têm o
poder de gerenciar os casamentos de seus filhos e filhas, como a mãe da noiva que desfez o
casamento de sua filha paxa, argumentando que o noivo não sabia caçar, entregando-a
posteriormente a um novo casamento com o seu primo paralelo, do cronotopo pós-contato.
No caso korubo, as matxo têm gerenciado uniões matrimoniais oblíquas e entre irmãos
classificatórios. Em vez de apagar as distinções xëni e paxa, os arranjos matrimoniais difundem
os acessos ao mundo dos brancos e ao mundo da floresta. Para os Korubo, não é interessante
ter em uma só aldeia apenas pessoas xëni nem apenas paxa. O ideal e o que os Korubo parecem
estar buscando é chegar a um equilíbrio entre pessoas xëni e paxa distribuídas nas aldeias do
rio Ituí.

Os xëni são importantes em uma aldeia porque concentram os acessos ao mundo dos brancos
e funcionam como vetores dos Korubo a esse novo mundo. Através deles, as pessoas de uma
aldeia acessam mercadorias que viabilizam a vida produtiva, como motores peque-peque,
espingardas, combustível, roupas, lanternas, pilhas etc. Os paxa, por sua vez, também têm
uma importância no modo de vida korubo por serem os conhecedores das plantas medicinais,

399
dos saberes e conhecimentos tradicionais, como os necessários para a construção de malocas,
detentores do amargor e da potência xamânica.

Através do equilíbrio entre pessoas xëni e paxa, os Korubo podem construir parentesco e uma
vida após o pluricontato com os brancos. Para isso, os dozes casamentos analisados revelam
que o parentesco entre os Korubo vem sendo reconstruído no pós-contato a partir de outros
modelos de casamento, cujo elo central é Maya, que não são mais aquele preferencial com a
prima cruzada. Casamentos oblíquos, avunculares e com a irmã classificatória vem sendo
realizados. Nesses casos, a categoria xanu (tradicionalmente utilizada em referência à prima
cruzada ambi-lateral) vem sendo acionada para se referir a outras posições, como a sobrinha
uterina e a prima paralela.

No capítulo 5, Da guerra a troca, analisei como a política indigenista brasileira voltada aos
povos considerados de “recente contato” preconiza conceitos, como “seletividade” e
“autonomia”, relacionados à incorporação de bens e serviços. No Brasil, dentre esses povos
apenas os Zo’é e os Korubo possuem regimes documentais para “regular” a incorporação das
mercadorias industrializadas e do dinheiro. No caso dos Korubo, o Regime de Circulação de
Bens (RCB) visa a padronização das transações econômicas interétnicas, como doação, troca
e venda. Por um lado, a partir do RCB, os bens, inicialmente utilizados pelos agentes estatais
nas tentativas de atração dos Korubo entre os anos 1970-90, a partir dos anos 2000 são
transacionados de outro modo e, por outro lado, são incorporados e “indigenizados” para
servir ao modo de vida korubo após o pluricontato.

No capítulo 6, As coisas, analisei o consumo dos Korubo, a partir de diferentes tipos de


mercadorias e alimentos industrializados acessados. Com a aquisição monetária, as compras
nas cidades tornaram-se mais frequentes. O ato de comprar nas cidades é kapoe: termo
presente entre povos Pano para se referir aos deslocamentos na floresta com vistas à coleta de
matérias-primas e alimentos. No caso das compras, kapoe traduz-se nos deslocamentos pela
cidade com vistas à aquisição de bens através do dinheiro. Comprar é não apenas um
momento de acessar bens, mas ocasiões para apreender o mundo dos brancos. Tais ocasiões
envolvem listas de demandas, pois ganhar dinheiro só adquire sentido se for transformado

400
em mercadorias, atendendo demandas das mulheres, o que torna os xëni homens cobiçados
para casamentos com mulheres paxa.

Além das listas de demandas, há também diferentes formas de pedir coisas aos brancos. A
concepção de “autonomia”, vigente no conceito de “recente contato” da política indigenista
brasileira, choca-se mais uma vez com a ideia de kapoe como sinônimo de compras e
aprendizados. Ter autonomia não é deixar de pedir coisas aos brancos, mas poder circular
sem precisar da ajuda destes. Autonomia é kapoe e, portanto, espingardas e motores peque-
peque constituem um dos bens mais desejados pelos Korubo, pois são tecnologias dos brancos
que facilitam os deslocamentos na floresta (kapoe) com vistas à obtenção alimentar das
comunidades. Tais mercadorias sinalizam uma vida após o pluricontato em que é possível
caçar mamíferos de grande porte, como a anta e as queixadas e, ao mesmo tempo, realizar
visitas entre aldeias.

Além das espingardas e dos motores peque-peque, outro tipo de mercadoria que sinaliza uma
vida após o pluricontato são as roupas. O uso das roupas de modo diferenciado entre
cronotopos sinaliza a emergência do sentimento de vergonha atrelado à nudez, algo nutrido
pelos xëni. As roupas, chamadas a partir de termos da língua korubo, denotam sua principal
função: cobrir partes do corpo. Ter uma peça de roupa é mais importante do que usa-la, pois
indica a relação com esse novo universo (o dos brancos), e a passagem de um período de
guerra para a troca.

Ao lado da reflexão sobre espingardas, motores e roupas, os alimentos industrializados são


fundamentais para o tema do contato interétnico no caso korubo. Os Korubo diferenciam o
que consideram ser a “comida de korubo” e nawan pete (“comida de branco”). Ambas são
obtidas a partir de kapoe, seja caçando, pescando e coletando ou indo às cidades para comprar.
Por um lado, a comida de korubo é produzida a partir de uma distribuição produtiva entre
os gêneros (homens abrem roças, mulheres coletam cultivos; homens caçam e pescam,
mulheres cozinham e distribuem os alimentos), por outro lado, a comida de branco também
possui um processo de aquisição gendrificado em que os homens trabalham e ganham
dinheiro para adquiri-la, mas são as mulheres que incidem nos tipos de alimentos adquiridos
nas cidades a partir de suas listas de demandas.

401
Um eixo central da distinção entre comida de korubo e comida de branco é a presença ou
ausência de sal. Comer comida sem sal é comer comida de korubo e, mais que isso, é estar
“acostumado” a viver com os Korubo. Através da comida, os corpos são refeitos dentro do
processo de descoberta dos brancos por parte dos Korubo. A fome só é saciada a partir da
proteína obtida por caça (oen) e, portanto, somente a comida de korubo é capaz de saciar a
fome. Os alimentos industrializados não saciam a verdadeira fome, isto é, a fome de carne, e
possuem nomes na língua korubo que assemelham o formato desses alimentos a determinados
elementos do mundo korubo, como os dardos da zarabatana, o algodão, o cipó tatxik, dentre
outros. Nawan pete está no cerne das relações entre os Korubo e os agentes estatais, algo que
se torna evidente no contexto das estadias dos Korubo na Base Ituí e nos problemas de saúde
que os Korubo passaram a enfrentar nos últimos anos.

Mercadorias, como os motores peque-peque, recebem nomes e são tratados como detentores
de agência, similar aos humanos e, em sua maioria, possuem donos. Entre os Korubo,
podemos dizer que tudo possui dono: seja os alimentos industrializados ou os itens da comida
de korubo; seja as mercadorias para kapoe, como os motores e as espingardas, mas também as
roupas. Não sem razão, os Korubo veem com estranhamento as tentativas de determinados
brancos em oferecer presentes “para a aldeia”, como se a posse de algo pudesse ser coletiva. A
ideia de posse tem como subsidiária outras duas concepções: sovinice e roubo.

Entre os Korubo, a sovinice é uma característica atribuída aos brancos, mas no interior das
aldeias há uma série de atitudes que podem ser consideradas sovinas, desde que argumentadas.
Os brancos são aqueles que sovinam sem razão, pois vivem em cidades cheias de mercadorias
e alimentos industrializados e, a partir do dinheiro adquirido, podem obtê-las com
frequência, mas muitas vezes se recusam a doar. Diferentemente, entre os Korubo ninguém
diz a si mesmo como sendo sovina, pois trata-se de uma categoria de acusação. Ninguém quer
ser considerado sovina, sobretudo, quando diz respeito aos alimentos. Mas sovinar é também
resguardar a posse de determinada coisa. O contrário disso é justamente o que os Korubo
passaram a nomear como “roubo”: subverter a posse de alguém sobre algo.

402
Imagem 37. Xikxuvo coletando frutos com peconha.
Foto: Paulo Mumia. Acervo do Museu do Índio/FUNAI – Brasil.

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ANEXOS

1. Mapa da Terra Indígena Vale do Javari

430
2. Autorização de Ingresso em Terra Indígena

431
432
3.
Cronotopos
Vinan Manis

Patxi Maluxin Paxtu Malu


Nëmulo Manis Pete Maya Vali Wio Makwëx Maluxin Txukuma Malu
Vakwë
Maluxin
433

Pinu Naylo Takvan Lalanvet Waxmën Txitxopi Omon Makwëx Muna Txipu Tananeloanpikit Xuxu Wio Ayax Vunpa Luni Muna Tsamavo Lëyu Luni Atsa Xikxuvo Malevo
Vëtxixne Luasivo Punu Pëxken Kolotxia Nuatvo Txixpa Xikxuvo Txuxan Kanxi
Vakwë
Lamon Vakwë

Tsele Mëlanvo Ixovo Lonkon Këtsi Këtsi Wanka


Takvan Manis Pinu Visa Maya Xamalekit Sini Lonlon Kunu Txilavo Tuxi Makwëx Waxmën Waxmën
Wisu Vakwë Malaya
Vakwë Vakwë Wasa Vakwë

Mayuvekit
Malu Kontxo Vali Kanikit Wanka Omonvo
Vakwë

Cronotopo A (1996)
(1996)

Cronotopo B (2014)
(2014)

Cronotopo C (2015)
(2015)

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