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E01600 Apresentao Nmero 16

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N.

16, 2023

Dossiê:
ANTROPOLOGIA E/DA EDUCAÇÃO
Fotografia: Library of Congress
ANTROPOLOGIA E/DA EDUCAÇÃO

Anthropology and/of Education

Antropología y/de la Educación

Amurabi Oliveira
Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa
Catarina

Fernanda Müller
Professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro

Áltera, João Pessoa, Número 16, 2023, e01600, p. 1-9

ISSN 2447-9837
Antropologia e/da educação

APRESENTAÇÃO

O diálogo interdisciplinar entre Antropologia e Educação remonta aos pri-


mórdios da Antropologia como uma disciplina acadêmica (Gusmão, 1997). Este
debate centra-se no entendimento de que os processos educacionais são funda-
mentais para a formação e transformação cultural, destacando-se como um campo
fértil para investigações antropológicas. A Educação, vista através da lente antro-
pológica, transcende a mera transmissão de conhecimento, abarcando as maneiras
pelas quais as culturas moldam, e são moldadas, pelas experiências de ensino e
aprendizagem.
Poderíamos afirmar que reside justamente aí uma das contribuições mais inci-
sivas da antropologia para o campo educacional: a possibilidade de pensar a educa-
ção de forma alargada. No cerne desta questão encontra-se a indissociabilidade en-
tre educação e cultura, na medida em que a prática educativa é também uma prática
cultural.
Franz Boas (1858-1942) introduziu a ideia de relativismo cultural, opondo-se às
visões etnocêntricas e enfatizando a importância de entender cada cultura dentro de
seu próprio contexto. Margaret Mead (1901-1978) mostra como as diferentes culturas
impactam o desenvolvimento e a socialização de adolescentes, particularmente em
sua obra Coming of Age in Samoa (1928). Ruth Benedict (1887-1948) expandiu essas
ideias em seu trabalho Patterns of Culture (1934), argumentando que cada sociedade
possui um “padrão cultural” distinto, que molda as crenças e comportamentos. Es-
ses antropólogos, ao descreverem diferentes culturas, acabaram tratando também
de processos de ensino e aprendizagem. Talvez esses três antropólogos sejam os
exemplos mais conhecidos entre os clássicos da antropologia cultural que se dedica-
ram ao debate educacional, porém, eles não são os únicos.
A integração da “Antropologia Pedagógica” nos currículos das escolas normais
no Brasil no começo do século XX foi um marco significativo na história educacional
do país (Oliveira, 2013). Esta inserção refletiu uma nova era de inovação pedagógica,
alinhada com o movimento de reforma educacional desse período. Os reformado-
res educacionais, inspirados pelo pensamento progressista e pela necessidade de um
ensino que contemplasse os aspectos sociais e culturais, viram na Antropologia uma
disciplina capaz de oferecer insights valiosos para a prática pedagógica. Inspirados
pelo pragmatismo de pensadores como John Dewey (1859-1952), que via a educação
como catalisadora do desenvolvimento pessoal e social, os reformadores brasileiros
viram na Antropologia uma disciplina-chave para compreender a educação além da
simples transmissão de conhecimento acadêmico, para abarcar todo um repertório
de experiências.

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OLIVEIRA, Amurabi; MÜLLER, Fernanda

Com a adoção da Antropologia Pedagógica, houve um movimento no sentido


de preparar os educadores para reconhecerem e valorizarem a diversidade de iden-
tidades e a complexidade das realidades socioculturais do Brasil. O objetivo era que
a educação pudesse servir como uma ponte para conectar essa diversidade com o
processo de construção de uma sociedade mais compreensiva e integrada. A incor-
poração desta disciplina nos currículos visava dotar os professores de ferramentas
para entenderem seu papel não só como transmissores de conhecimento, mas como
agentes de transformação social.
Essa estratégia pedagógica foi crucial para fundamentar a educação em uma
compreensão mais aprofundada das realidades socioculturais do Brasil. Com a vi-
são de educadores como Anísio Teixeira (1900-1971) e as pesquisas conduzidas pelo
Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), a Antropologia Pedagógica se
tornou parte indispensável do desenvolvimento de políticas e práticas educacio-
nais. Vincularam-se ao CBPE e seus centros regionais antropólogos de destaque,
como Gilberto Freyre (1900-1987), Darcy Ribeiro (1922-1997) e Josildeth Gomes
Consorte (nascida em 1930), tendo o centro também marcando presença durante
a fundação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), durante sua segunda
reunião em 1955.
No entanto, foi no final da década de 1960, com a fundação dos programas
de pós-graduação em Antropologia/Ciências Sociais e em Educação, que a pesquisa
antropológica educacional começou a ser sistematizada no Brasil. Os campos da An-
tropologia e da Educação começaram a estabelecer um diálogo mais estruturado,
resultando em uma análise mais aprofundada e rigorosa dos processos educativos e
seus contextos culturais1.
Já na década de 1980, o processo de redemocratização reacendeu o debate
sobre a pluralidade cultural no contexto educacional. A promulgação da nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em 1996 foi um marco que refletiu
e reforçou esse debate (Brasil, 1996). Esta lei trouxe uma nova ênfase na valorização
e respeito à diversidade cultural como um princípio educacional. Avanços legislativos
subsequentes, tais como a Lei 10.639/03 e a Lei 10.645/08, incluíram no currículo ofi-
cial a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena.
Essa nossa breve síntese nos possibilita vislumbrar duas questões principais
que têm sido constantemente retomadas por pesquisadores/as da área: a) que o di-
álogo da antropologia com a educação é constitutivo do próprio campo antropoló-
gico; b) apesar dos avanços inegáveis nos últimos anos, este é um campo marcado

1 Não podemos olvidar, no entanto, que esse processo teve como uma de suas “consequências não
intencionais” a incorporação de antropólogos às Faculdades de Educação, que passaram a atuar dire-
tamente na formação de professores.

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Antropologia e/da educação

por tensões e por retrocessos em muitos momentos, como quando o CBPE teve suas
atividades encerradas no contexto da ditadura civil-militar.
Nossa breve apresentação serve de pano de fundo aos debates promovidos
pelos artigos que compõem o presente dossiê. São trabalhos diversos e polifônicos
que a partir de diferentes ângulos exploram as múltiplas interfaces entre a antropolo-
gia e a educação. Em seu conjunto, os textos que compõem o presente dossiê dialo-
gam tanto com temas clássicos – incluindo-se uma tradução inédita de Ruth Benedict
– quanto debates mais contemporâneos. Deve-se destacar o forte diálogo de alguns
trabalhos com a antropologia da criança, o que demonstra o quão interdisciplinar e
multifacetada é a interface entre a antropologia e a educação.
Vale também ressaltar que nossa proposta foi organizar um número que pu-
desse dialogar não apenas com antropólogos/as profissionais, mas também com não
antropólogos/as que, a partir de sua inserção no campo educacional, incorporaram
em suas leituras a antropologia, lançando um novo olhar sobre seu campo de inser-
ção acadêmica e profissional.
Em A Lei 10.639/03 e seu processo de implementação em uma escola de ensino
médio na cidade de Teresina (PI), Raimundo Nonato Ferreira do Nascimento analisa
como uma escola da rede pública estadual de ensino, na cidade de Teresina, vem
incentivando e implementando em suas práticas docentes algumas ações que visam
à valorização da diversidade étnico-racial nela presente. Sua reflexão incide sobre a
Lei 10.639/03, a qual completou 20 anos recentemente e instituiu a obrigatoriedade
do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas instituições públicas e
privadas de ensino de nível fundamental e médio em todo o país. Como bem enfatiza
o autor, apesar dos professores não passarem por uma formação específica para
o ensino das relações étnico-raciais, ainda assim buscam incluir a temática em suas
aulas e realizar projetos que visam a uma maior visibilidade e ao protagonismo do
negro – por mais que a realização destes fique condicionada a datas comemorativas.
Por outro lado, o incentivo à prática de uma educação antirracista pelas instâncias
governamentais não é visto com a relevância devida, pois observa-se que, apesar da
exigência legal, não houve a produção de materiais didáticos específicos para nortear
o trabalho docente com a educação para as relações étnico-raciais.
Livia Froes, em Mulheres do campo na universidade: Percepções e vivências numa
Licenciatura em Educação do Campo, analisa por meio de uma etnografia e narrativas
de vida a percepção de mulheres de origem camponesa acerca de certos aspectos de
sua trajetória educacional na Licenciatura em Educação do Campo – LeCampo/UFMG.
Segundo a autora, a maior parte das entrevistadas relataram passar por uma transição
gradual do desconhecimento e estranhamento inicial da linguagem e dos modos de

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OLIVEIRA, Amurabi; MÜLLER, Fernanda

presença – originários de movimentos sociais e levados para a rotina do curso por


meio das místicas, palavras de ordem e bandeiras de luta – ao conhecimento e, em
alguns casos, à incorporação de tais práticas e símbolos em atividades e encontros
na própria comunidade de origem. Ela enfatiza ainda que há diferentes formas de
se integrar, bem como variadas formas de estar, vivenciar e perceber o processo
formativo na LeCampo.
Em Tecnodiversidade e educação: Reflexões a partir de aprendizagens técnicas
no meio rural Eduardo Di Deus propõe um diálogo entre a antropologia da técnica e o
campo da antropologia e educação, buscando abordar a complexidade sociológica e
antropológica dos fenômenos técnicos. Sua pesquisa concentra-se em aprendizagens
técnicas no mundo rural, especialmente na assistência técnica e na extensão rural,
utilizando exemplos etnográficos da cultura da seringueira. Neste trabalho, Di
Deus enfatiza como a perspectiva antropológica das técnicas e uma concepção
de tecnodiversidade nos rementem a olhar as características locais e particulares
das técnicas em seus contextos de realização, escapando aos modelos universais.
Remetem-nos assim ao caminho de entender as técnicas como partes integrantes
das ações humanas, dos modos humanos de agir e se constituir enquanto seres
sociais, bem como formas de mediação de relações – não somente entre humanos
(na educação, educador e educando), mas também nas relações estabelecidas com
(e por) objetos técnicos, seres vivos e o ambiente.
Mario Pereira Borba, em Reflexões sobre a problemática da atenção escolar
nas transições entre criança e estudante, situa a incidência de um diagnóstico como o
de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), que eventualmente
reifica aspectos problemáticos relativos à atenção escolar. Neste trabalho o autor
desenvolve uma breve reflexão sobre a produção de uma subjetividade atenta
aos investimentos escolares, que foram relacionados à produção do estudante,
considerando a forma como esse processo gradual era percebido dentro da escola
e da sua perspectiva (etnográfica) sobre esse cotidiano. A mobilização da atenção
em um determinado sentido (do estudante) aparece, para esses jovens, como novas
formas de aprender, de sistematizar o conhecimento, gravitando em torno de um
comportamento demandado na escola, relacionado ao “prestar atenção”.
Narrativa de vida de uma mulher indígena em defesa da ancestralidade cultural do
povo Potiguara de autoria de Nathália Jorge Novais, Luziana Marques da Fonseca Silva,
Estêvão Martins Palitot, Juliana Sampaio, Waglânia de Mendonça Faustino e Isabella
Chianca Bessa Ribeiro do Valle, busca narrar as experiências e contribuições de uma
pedagoga indígena que se inseriu nas instituições educacionais e é considerada pelo
seu povo Potiguara como referência na educação escolar indígena. O artigo origina-

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Antropologia e/da educação

se do projeto “Partejar: Narrativas de vida de mulheres Potiguara”, tomando como


fio condutor principal a entrevista com a mulher indígena “Rosa Vermelha”. Segundo
os autores, é evidente seu papel no fortalecimento da cultura indígena através de
sua formação acadêmica como pedagoga, sendo essencial para as reflexões acerca
do ensino diferenciando, bem como as inserções de língua tupi, etno-história, arte e
cultura nas escolas indígenas, agindo como intelectual orgânica do seu povo.
Já em “A gente descansa de uma coisa fazendo outras”: Entre muitas mãos, por
uma outra educação, construímos o Coletivo NEAN Oju Obá, de autoria de João Vítor
Velame, Weverson Bezerra Silva, Uliana Gomes da Silva, Christina Gladys Nogueira,
Milene Morais Ferreira, Beatriz Soares Gonçalves, Marina Prado Santiago, Marianne
Muniz Atanazio e Luís Felipe Cardoso Mont’mor, é elaborada uma discussão em
torno da construção do coletivo NEAN Oju Obá (Núcleo de Estudos e Pesquisas de
Antropologia Negra), o qual vem se movimentando e lutando em defesa de uma
pedagogia decolonial e antirracista no ensino superior, e em prol da igualdade de
oportunidades para que pessoas negras acessem (e permaneçam) no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba (PPGA/UFPB,
campi I e IV). Foram utilizados nesse artigo três relatos de alunas negras do coletivo para
tecer reflexões sobre a relação entre antropologia e educação a partir da realização
do Curso Preparatório Negritudes no PPGA/UFPB. Segundo os autores, o coletivo
NEAN Oju Obá desempenha um papel crucial na construção de uma educação para o
acesso às políticas de cotas na universidade. Além disso, o coletivo desempenha um
papel significativo no empoderamento e no fortalecimento da população negra. Os
autores enfatizam ainda dois desafios que foram identificados: o primeiro diz respeito
à implantação de uma educação antirracista na sociedade brasileira; o segundo
desafio está relacionado ao lugar da branquitude, pois é necessário reconhecer não
apenas o papel de resistência, solidariedade e enfrentamento dos grupos racializados
como não brancos, mas também deve-se reconhecer o lugar claro de privilégio dos
brancos dentro dos espaços acadêmicos.
Flora Moana Van de Beuque em O que é uma boa escola? Adultos e crianças
negociando sentidos e práticas em uma instituição pública no Rio de Janeiro busca
enfatizar como as crianças se colocam de forma ativa nas relações que possibilitam
que cheguemos à resposta que está no título do artigo: afinal, o que é uma boa escola?
Parte-se de um trabalho de campo numa instituição pública no Rio de Janeiro, voltada
a alunos de 4 a 10 anos das camadas populares e médias, com estudantes negros e
brancos, e marcada por uma heterogeneidade, sendo considerada uma “escola de
referência”. Observa-se que, de forma geral, os adultos enfatizaram o processo de
ensino-aprendizagem como central no processo escolar, com algumas controvérsias

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OLIVEIRA, Amurabi; MÜLLER, Fernanda

– como sobre a dimensão política da educação. As crianças, mesmo valorizando os


estudos, enfatizaram a brincadeira, a corporalidade ativa e as relações, revelando
também opressões étnico-raciais.
Por fim, partindo de uma perspectiva autoetnográfica, Ceres Karam Brum
apresenta em “Pela luz dos olhos teus”: Uma autoetnografia perspectivista sobre
deficiência e aprendizado da percepção alguns resultados dos diálogos que vem
realizando entre a antropologia da educação (sobretudo na seara de uma antropologia
da aprendizagem) e a antropologia da percepção, com o objetivo de entender como
se configura a percepção visual em pessoas com nistagmo e visão monocular. Neste
texto é proposta uma abordagem que investe no entendimento da diferença como
modo de vida perspectivado pela deficiência, dialogando com a noção de deficiência
como modo de vida e com o perspectivismo de Viveiros de Castro.
Observamos nestes textos uma série de temas comuns que refletem a diver-
sidade e complexidade das experiências educacionais, principalmente no contexto
do Ensino Médio, superior, mas também da formação e da técnica, com ênfase em
questões de inclusão, diversidade cultural e desafios específicos de diferentes grupos
sociais. Estes textos, embora distintos em seus enfoques específicos, compartilham
aspectos cruciais que são fundamentais no campo da antropologia da educação.
Os textos exploram como diferentes identidades e contextos sociais (como
raça, gênero, origem social e capacidade) influenciam as experiências educacionais.
Há uma preocupação comum em abordar as barreiras que impedem a igualdade no
acesso e sucesso educacional. Além disso, esses estudos destacam a importância da
adaptação do conteúdo e métodos educacionais para atender às necessidades espe-
cíficas de diversos grupos. Eles mostram que a educação não é um conceito mono-
lítico, mas uma experiência multifacetada que deve ser flexível e inclusiva para ser
eficaz e justa. Por fim, um tema recorrente é a necessidade de políticas educacionais
que reconheçam e valorizem a diversidade cultural, linguística e social. Esses textos
sublinham a importância de uma educação que não apenas tolera, mas celebra as di-
ferenças, promovendo um ambiente de aprendizado mais inclusivo e representativo.

Amurabi Oliveira e Fernanda Müller

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Antropologia e/da educação

REFERÊNCIAS

BENEDICT, Ruth. Patterns of Culture. Boston: Houghton Mifflin, 1934.


BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.
GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Antropologia e educação: origens de um diálogo.
Cadernos Cedes, v. 18, p. 8-25, 1997.
MEAD, Margaret. Coming of Age in Samoa. Nova York: Morrow, 1928.
OLIVEIRA, Amurabi de. O lugar da antropologia na formação docente: um olhar a
partir das Escolas Normais. Pro-Posições, v. 24, p. 27-40, 2013.

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