Boletim N° 073
Boletim N° 073
Boletim N° 073
Assessores
Fernanda Narezi Pimentel Rosa
Marcelo Sorrentino Neira
Paulo José de Palma
Ricardo José Gasques de Almeida Silvares
Rogério Sanches Cunha
Analista Jurídica
Ana Karenina Saura Rodrigues
Boletim Criminal Comentado n° 073 – Novembro 2019
SUMÁRIO
SUMÁRIO --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 2
ESTUDOS DO CAOCRIM--------------------------------------------------------------------------------------------------- 3
1- Tema: ADCs 43, 44 e 54. Impossibilidade de execução antecipada da pena. Resumo da decisão e
orientação do CAOCRIM ........................................................................................................................ 3
DIREITO PENAL------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 16
1-Tema: Retratação no crime de falso testemunho. Condições .......................................................... 16
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Boletim Criminal Comentado n° 073 – Novembro 2019
ESTUDOS DO CAOCRIM
1- Tema: ADCs 43, 44 e 54. Impossibilidade de execução antecipada da pena. Resumo da decisão e
orientação do CAOCRIM
A possibilidade de execução da pena após a decisão do recurso em segunda instância foi inicialmente
estabelecida pelo STF no julgamento do habeas corpus 126.292, em 17 de fevereiro de 2016. À época,
o tribunal modificou orientação firmada em 2009, quando, ao julgar o habeas corpus 84.078, havia
considerado impossível que se executasse a pena antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória e estabeleceu a possibilidade de encarceramento apenas se verificada a necessidade
de que isso ocorresse por meio de cautelar (prisão preventiva).
À época, o pleno do STF indeferiu medida cautelar para que fossem suspensas execuções antecipadas
em curso e para que fossem impedidas novas execuções enquanto não julgado o mérito das ações
constitucionais. Considerou-se, basicamente, que a presunção de inocência tem sentido dinâmico,
modificando-se conforme se avança a marcha processual. Dessa forma, se no início do processo a
presunção pende efetivamente para a inocência, uma vez proferido julgamento em recurso de
segunda instância essa presunção passa a ser de não culpa, pois, nessa altura, encerrou-se a análise
de questões fáticas e probatórias. Portanto, uma vez que o tribunal (TJ/TRF) tenha considerado bem
provados o fato e suas circunstâncias, os recursos constitucionais não abordarão esses aspectos, pois
estarão adstritos aos limites que lhe são impostos constitucional e legalmente. O acórdão foi
publicado nos seguintes termos:
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Em abril de 2018, nova ação declaratória de constitucionalidade (54) foi ajuizada com o mesmo
propósito das anteriores. Em dezembro do mesmo ano, o ministro Marco Aurélio (relator) chegou a
deferir liminar para suspender as execuções penais em curso, mas a decisão foi imediatamente
suspensa pelo presidente da Corte.
Nas últimas sessões plenárias, o tribunal julgou o mérito das três ações e, contrariando a tendência
que se desenhava desde 2016, decidiu que a pena só pode ser executada após esgotados todos os
recursos, marco do trânsito em julgado.
Na qualidade de relator de todas as ações, o ministro Marco Aurélio foi o primeiro a votar para julgar
procedentes os pedidos e, consequentemente, declarar a constitucionalidade do art. 283 do CPP,
com a consequente proibição de que penas sejam executadas antes do julgamento dos recursos
(trânsito em julgado da sentença condenatória). De acordo com o ministro, o art. 5º, inc. LVII, da
Constituição Federal, é claro e não deixa margem para dúvidas a respeito da necessidade da
condenação definitiva.
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Abrindo a divergência, o ministro Alexandre de Moraes votou pela possibilidade de que a pena seja
executada após o julgamento dos recursos em segunda instância. O argumento é basicamente o
mesmo que fundamentou o indeferimento da cautelar em 2016: observado o devido processo legal,
a decisão condenatória em segunda instância afasta o princípio da presunção de inocência e abre o
caminho para a execução da pena. Para o ministro Alexandre, é necessário dar efetividade às
decisões das instâncias ordinárias, competentes para o exame dos fatos e das provas, decisões estas
que, em caso de ilegalidade ou inconstitucionalidade, podem ser atacadas por meio de habeas corpus
ou medida cautelar para que se aguarde o pronunciamento dos tribunais superiores em recursos de
índole extraordinária.
Na mesma linha seguiu o ministro Edson Fachin, para quem a execução antecipada da pena é legítima
a não ser que se confira efeito suspensivo ao recurso cabível contra a decisão de segunda instância.
É inviável, no seu entendimento, impor que se aguarde a prisão até que “o último recurso da última
corte constitucional tenha sido examinado”.
Também alinhado a decisões anteriores, o ministro Luís Roberto Barroso acompanhou a divergência
e ressaltou que o requisito para a imposição de prisão não é o trânsito em julgado, mas a ordem
escrita e fundamentada da autoridade judicial. Não se confunde, portanto, o inciso LVII do art. 5º,
segundo o qual não é possível considerar alguém culpado até o trânsito em julgado, com o inciso LXI,
que trata da garantia de que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade competente. Condicionar a execução da pena ao trânsito em julgado
serve apenas para incentivar a interposição de recursos protelatórios e contribui para a promoção
da impunidade.
A ministra Rosa Weber, por sua vez, votou pela procedência das ações e, portanto, pela proibição da
execução penal prévia ao trânsito em julgado. Após destacar que, até este momento, aderiu às
decisões anteriormente proferidas pelo tribunal em respeito ao princípio da colegialidade, afirmou
que o julgamento de mérito das ações constitucionais é o momento adequado para fazer valer sua
interpretação de que a Constituição Federal garante a presunção de inocência até que a sentença
condenatória tome caráter definitivo. A ministra ressaltou como um ponto capital, no seu entender,
a diferença entre a prisão de natureza cautelar e a prisão com propósito punitivo, que só pode ser
imposta quando formada definitivamente a culpa; qualquer prisão antes disso só pode ser decretada
se presentes as circunstâncias características da cautelar.
O ministro Luiz Fux manteve sua orientação e divergiu do relator. Enxerga como viável a execução
antecipada da pena. Mencionou diversos exemplos de graves crimes cujos autores estariam soltos
se se exigisse o trânsito em julgado, não parecendo razoável impor limitação tão severa à imposição
da consequência penal. A presunção de inocência não tem relação com a possibilidade de execução
da pena após o pronunciamento de segunda instância, mas decorre do fato de que outrora cabia ao
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réu provar sua inocência, o que atualmente não ocorre, tendo em vista que o ônus recai na acusação.
Isto quer dizer que até o trânsito em julgado o réu tem a possibilidade de contestar a acusação. Mas
trata-se de uma presunção que admite prova em contrário, e à medida em que o processo tramita
ocorre uma mitigação da mesma presunção. Esgotadas as instâncias ordinárias, há declaração de que
o réu é culpado e sua prisão é necessária, seguindo-se, com isso, outras regras que relativizam a
necessidade do trânsito em julgado, como a Lei Complementar 135/10 (“Lei da Ficha Limpa”).
Concluiu destacando que a modificação da jurisprudência do tribunal é injustificável e prejudicial à
segurança jurídica.
Votando em seguida, o ministro Ricardo Lewandowski manteve o tom de suas decisões anteriores
sobre o tema, ou seja, considerou inconstitucional a execução antecipada da pena. Para o ministro,
hão de ser consideradas as circunstâncias do sistema judiciário brasileiro, extremamente
congestionado e disfuncional, com metas de produtividade cada vez mais severas, em que a
possibilidade de erros na primeira e na segunda instâncias se multiplica. Nestas circunstâncias, a
presunção de inocência como óbice à execução antecipada da pena serve como garantia de que
inocentes não sejam submetidos a penas ilegítimas. Ainda segundo o ministro, a execução
antecipada é um retrocesso que contraria frontalmente a vontade do legislador constituinte
originário no sentido de que não é possível restringir a liberdade pela aplicação da pena antes da
formação cabal da culpa.
A ministra Cármen Lúcia manteve seu convencimento já exposto nos julgamentos anteriores.
Segundo a ministra, a disposição constitucional de que ninguém pode ser considerado culpado até o
trânsito em julgado da sentença penal condenatória deve ser lida em conjunto com outros
dispositivos, como o inciso LXI do art. 5º, segundo o qual ninguém será preso senão em flagrante
delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Isto revela que
pode haver prisão independentemente do trânsito em julgado, bastando a obediência ao devido
processo legal, que se cumpre com o esgotamento da matéria de fato nas instâncias ordinárias. Exigir
o trânsito em julgado para a execução da pena desvirtua a ordem processual na medida em que
confere a recursos de índole extraordinária um efeito suspensivo que não lhes é característico,
embora seja possível, excepcionalmente, quando presente alguma justificativa, o que, aliás, afasta
alegações de que direitos fundamentais seriam necessariamente ofendidos com a execução
antecipada. A ministra fez, ainda, referência à necessidade de segurança jurídica e de efetividade do
Direito Penal, que, no caso, se afirmam pela certeza da aplicação da pena e pela imposição de limites
para que alguns indivíduos não se valham do intrincado e sofisticado sistema recursal para adiar
indefinidamente as consequências de seus atos criminosos.
O ministro Gilmar Mendes modificou sua orientação – como, aliás, já vinha sinalizando – para
considerar inconstitucional a execução antecipada da pena. O ministro iniciou sua explanação
elencando situações em que o tribunal modificou sua própria orientação a respeito de questões de
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fundamental importância, bem como mencionou situações não menos relevantes em que o tribunal
foi obrigado a decidir sobre a recepção de normas anteriores à atual ordem constitucional. O ministro
seguiu seu voto afirmando que desde os primeiros debates sobre a matéria demonstrou sua
inquietação a respeito da determinação automática de execuções penais após o julgamento em
segunda instância, sem a devida individualização frente aos casos concretos. Na sua acepção,
mudanças nos contextos normativo e fático subjacentes ao debate fizeram com que sua posição
evoluísse diante da necessidade de proteção real do princípio da presunção de inocência. O que o
tribunal admitiu nos julgamentos anteriores foi a possibilidade de que a pena fosse executada após
a decisão de segunda instância, mas não a obrigatoriedade de que isso fosse feito. A imposição
indiscriminada da execução antecipada e a decretação de prisões preventivas que, na sua visão,
assumiam caráter permanente e eram decretadas sem fundamentação concreta fizeram com que se
enfraquecesse sua esperança de que os tribunais de segunda instância seriam capazes de evitar
abusos. Considerou, portanto, impossível a execução da pena até que sobrevenha o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória.
Finalmente, o ministro Dias Toffoli modificou sua orientação anterior para votar pela procedência
das ações e, consequentemente, pela inconstitucionalidade da execução antecipada da pena.
Segundo o ministro, a redação do art. 283 do CPP é clara ao dispor que ninguém poderá ser preso
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Com a decisão, portanto, voltamos à situação em que estávamos até o julgamento do habeas corpus
126.292: a prisão para execução da pena só pode ser determinada após o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória. Qualquer prisão antes disso deve ser fundamentada, inicialmente, no
artigo 312 do Código de Processo Penal: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova
da existência do crime e indício suficiente de autoria; ou ainda em caso de descumprimento de
qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares. A isto se deve somar o
disposto no art. 313, segundo o qual a prisão preventiva é cabível: nos crimes dolosos punidos com
pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos; se o agente tiver sido condenado por
outro crime doloso, em sentença transitada em julgado; se o crime envolver violência doméstica e
familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para
garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Diante desse novo cenário, revela-se necessário promover a verificação, caso a caso, da presença
dos requisitos determinantes à decretação da prisão preventiva, ante a impossibilidade de, agora,
reconhecer-se a automatização do recolhimento ao cárcere pela tão só condenação em segunda
instância.
Assim, por se compreender que não se revela juridicamente adequada a soltura dos réus que
cumprem pena com base no entendimento hoje superado, sem que se proceda com a providência
retromencionada, o CAOCRIM encaminhou aos colegas, no dia seguinte à decisão ora comentada,
modelo, no qual consta argumentação desenvolvida pelo CAO, e também no âmbito do GNCCRIM,
voltada a provocar a manifestação jurisdicional acerca da necessidade da prisão.
Além disso, sugere-se que o retromencionado pedido seja direcionado ao juízo da Vara Criminal
(ou equivalente) que proferiu a sentença, consoante compreensão advinda da jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça:
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“Em matéria de prisão preventiva, deve ser observado o princípio da confiança no juiz do processo,
uma vez que está presente no local onde o crime é cometido e conhece as peculiaridades do caso
concreto, sendo quem melhor pode avaliar a necessidade da decretação da segregação cautelar”
(STJ – HC n° 243446-SE, Rela. Marilza Maynard, j. 15.8.2013, DJe 30.8.2013).
Constatando-se que um único membro do Ministério Público, numa mesma peça processual,
apresentou contrarrazões ao recurso de apelação e ofertou parecer sobre o caso, configura ofensa
ao disposto nos artigos 127 da Constituição Federal e 257 do Código de Processo Penal.
Embora seja certo que a atuação do órgão Ministério Público no segundo grau de jurisdição não
tenha nenhuma carga vinculativa para o julgamento da insurgência, já que exprime o que a
instituição reputa por correto no caso concreto, trata-se de verdadeira instância de controle,
essencial para a manutenção ou reparação da ordem jurídica, cuja defesa lhe é inerente.
A função fiscalizatória exercida pelo parquet também deve ser marcada pela imparcialidade, sob
pena de se inviabilizar o alcance das suas incumbências constitucionais (artigo 127, caput, da
Constituição Federal).
Diferente, contudo, é a situação em que atua como órgão de acusação em primeiro e em segundo
grau. Não se vislumbra justificativa para que o impedimento disposto no art. 252, III, do CPP tenha
aplicabilidade em relação a membro do Ministério Publico que, nas duas instâncias, atua no exercício,
unicamente, da função acusatória - não fiscalizatória -, tendo em vista o disposto no art. 258 do CPP,
que determina a extensão aos membros do Parquet, "no que lhes for aplicável", das prescrições
relativas à suspeição e aos impedimentos dos juízes.
Deve ser lembrado, por fim, que a jurisprudência do STJ firmou entendimento no sentido de que o
reconhecimento de nulidade no curso do processo penal reclama efetiva demonstração de prejuízo,
à luz do art. 563 do Código de Processo Penal, segundo o princípio pas de nullité sans grief, o que não
se verifica na espécie.
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Nesse sentido:
STJ- REsp 1542007/MT, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 22/03/2018,
DJe 02/04/2018
STJ- HC 242.352/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 08/04/2014, DJe
23/04/2014
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Para a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), é ilegal a decisão judicial que autoriza busca
e apreensão coletiva em residências, feita de forma genérica e indiscriminada. O colegiado concedeu
habeas corpus nesta terça-feira (5) para anular decisão que autorizou a medida em domicílios nas
comunidades de Jacarezinho e no Conjunto Habitacional Morar Carioca, no Rio de Janeiro, sem
identificar o nome de investigados e os endereços a serem objeto da abordagem policial.
A Defensoria Pública do Rio de Janeiro impetrou o habeas corpus coletivo em benefício dos
moradores dessas comunidades pobres, argumentando que, além de ofender a garantia
constitucional que protege o domicílio, o ato representou a legitimação de uma série de violações
gravíssimas, sistemáticas e generalizadas de direitos humanos.
Segundo a DP, a medida foi tomada, em agosto de 2017, após a morte de um policial em operação
das forças de segurança nas favelas de Jacarezinho, Manguinhos, Mandela, Bandeira 2 e Morar
Carioca, o que levou à concessão da ordem judicial de busca e apreensão domiciliar generalizada na
região. A ordem era para que a polícia tentasse encontrar armas, documentos, celulares e outras
provas contra facções criminosas.
Na decisão que autorizou a revista indiscriminada de residências nas áreas indicadas pela polícia, a
juíza responsável fez menção à forma desorganizada como as comunidades pobres ganham novas
casas constantemente, sem registro ou numeração que as individualize. Segundo ela, a revista
coletiva seria necessária para a própria segurança dos moradores da região e dos policiais que ali
atuam.
O relator do habeas corpus coletivo, ministro Sebastião Reis Júnior, reconheceu, inicialmente, que a
jurisprudência consolidada no STJ não admite a impetração de habeas corpus coletivo sem a
indicação de nomes e da situação individual de cada paciente. No entanto, afirmou, "não há como
aqui exigir a identificação dos pacientes se a própria decisão contestada também não identifica quem
será revistado, sendo questionada justamente a generalidade da ordem de busca e apreensão".
Sebastião Reis Júnior declarou que a ausência de individualização das medidas de busca e apreensão
contraria diversos dispositivos legais, como os artigos 240, 242, 244, 245, 248 e 249 do Código de
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Processo Penal, bem como o artigo 5°, XI, da Constituição Federal, que traz como direito fundamental
a inviolabilidade do domicílio.
Em seu voto, o ministro citou doutrina segundo a qual é indispensável que o mandado de busca e
apreensão tenha objetivo certo e pessoa determinada, não se admitindo ordem judicial genérica.
"Reitero, portanto, o meu entendimento de que não é possível a concessão de ordem indiscriminada
de busca e apreensão para a entrada da polícia em qualquer residência. A carta branca à polícia é
inadmissível, devendo-se respeitar os direitos individuais. A suspeita de que na comunidade existam
criminosos e que crimes estejam sendo praticados diariamente, por si só, não autoriza que toda e
qualquer residência do local seja objeto de busca e apreensão", disse.
Exclusão social
Ao aderir ao voto do relator, o ministro Rogerio Schietti Cruz ressaltou que a medida de busca e
apreensão coletiva "é notoriamente ilegal e merece repúdio como providência utilitarista e ofensiva
a um dos mais sagrados direitos de qualquer indivíduo – seja ele rico ou pobre, morador de mansão
ou de barraco: o direito a não ter sua residência, sua intimidade e sua dignidade violadas por ações
do Estado, fora das hipóteses previstas na Constituição da República e nas leis".
Schietti ressaltou que o estado do Rio de Janeiro vive tempos sombrios na economia e na política,
com reflexos na Justiça criminal e no sistema penitenciário, além de altos índices de violência. Para
ele, não é possível "sacrificar ainda mais as pessoas que, por exclusão social, moram em comunidades
carentes, submissas ao crime organizado, sem serviços públicos minimamente eficientes, sujeitando-
as, além de tudo isso, a terem a intimidade de seus lares invadida por forças policiais".
Com o habeas corpus, concedido de forma unânime, a Sexta Turma anulou a decisão que decretou a
busca e apreensão coletiva – o que afeta eventuais provas e ações penais decorrentes das diligências.
COMENTÁRIOS DO CAO-CRIM
De fato, o mandado de busca deve observar, rigorosamente, os requisitos do art. 243 do CPP,
individualizando o objeto da diligência. Ocorre que, em algumas situações, o cumprimento à risca do
mandamento legal torna absolutamente inviável a realização de diligências imprescindíveis para a
apuração de gravíssimas infrações penais. Basta lembrar uma realidade nacional: a ocupação de
morros por milhares de pessoas, que se instalaram precariamente, sem endereço definido, em
barracos quase sempre dispostos de forma a tornar impossível qualquer individualização. Este tipo
de ocupação, aliás, somada à omissão de sucessivos governos na área de segurança pública – e em
várias outras –, propiciou que facções criminosas simplesmente tomassem para si o controle de
praticamente todo o território ocupado. O que se vê são pessoas submetidas a um poder paralelo
criminoso. Algumas simplesmente aderem a esse poder e passam a integrá-lo, enquanto outras
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vivem sob tensão permanente, na expectativa de que em algum momento sejam atingidas pelas
práticas criminosas que vigoram nesses locais. Os que se integram abrigam criminosos e permitem
que em suas residências sejam escondidas armas e drogas; os que vivem sob jugo muitas vezes são
obrigados a colaborar.
Tais circunstâncias trazem em si uma imensa dificuldade para as operações de combate ao crime. É
nesse contexto que nasce a discussão sobre a legalidade (ou não) do mandado de busca e apreensão
coletivo, expedido sem especificar quais imóveis serão objeto de devassa e quais pessoas suportarão
a medida.
Este procedimento, que vai de encontro à disposição legal que exige precisão no mandado de busca
e apreensão, tem sido utilizado diante da impossibilidade de empreender de outra forma as
diligências. Já ocorreu no Estado do Rio de Janeiro em várias ocasiões, nas quais os mandados faziam
referência apenas a bairros ou ruas, quando possível a identificação.
É fato que muitas pessoas são atingidas simplesmente porque residem no local, sem que lhes recaia
nenhuma suspeita específica da prática de crime. Mas também não se pode negar que, ponderando
os interesses em jogo, não é irrazoável que prevaleça a iniciativa de desmantelar organizações
criminosas que impõem o caos e o terror generalizado. Nessas localidades, a ação policial baseada
no mandado coletivo é a única forma de fazer cessar atividades criminosas de extrema gravidade e
que vitimam inclusive os moradores injustamente atingidos pela busca domiciliar.
Os tribunais, no entanto, se dividem a respeito do cabimento desse tipo de medida. O STJ, antes
mesmo da decisão ora comentada, chegou a deferir liminar em habeas corpus – que, por
prejudicialidade, não teve o mérito julgado –, na qual restabelecia decisão também liminar proferida
pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que havia suspendido a execução de mandados de busca
e apreensão coletivos:
“(…) Com efeito, como observado na decisão do eminente Desembargador João Batista Damasceno,
que deferiu a liminar na origem, em regime de plantão, o padrão genérico e padronizado com que se
fundamentam decisões de busca e apreensão em ambiente domiciliar em favelas e bairros da
periferia – sem suficiente lastro probatório e razões que as amparam – expressam grave violação ao
direito dos moradores da periferia. A busca e apreensão domiciliar somente estará amparada no
ordenamento jurídico se suficientemente descrito endereço ou moradia no qual deve ser cumprido
em relação a cada uma das pessoas que será sacrificada em suas garantias. E, ainda que não se possa
qualificá-la adequadamente é necessário que os sinais que a individualize sejam explicitados (fl. 160).
Da mesma decisão, extraio mais os seguintes trechos (fls.160): No presente caso, temos um mandado
judicial genérico, expedido com eficácia territorial ampla, geograficamente impreciso, que não se
preocupa em determinar o fato concreto a ser apurado. Pelo seu alto grau de dano a valores
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Assim, entendo presente o fumus boni iuris, em razão da ausência de individualização das medidas
de apreensão a serem cumpridas, o que contraria diversos dispositivos legais, dentre eles os arts.
242, 244, 245, 248 e 249 do CPP, além do art. 5º, XI, da Constituição Federal: a casa é asilo inviolável
do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de
flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judiciar.
Na minha concepção, também caracterizado o periculum in mora, diante da possibilidade concreta
e iminente de ofensa ao direito fundamental à inviolabilidade do domicílio. Ante o exposto, defiro a
liminar para suspender os efeitos da decisão ora impugnada, restabelecendo a liminar deferida pelo
eminente Desembargador João Batista Damasceno em 25/8/2017 (fls. 147/162)” (HC 416.483/RJ, j.
18/9/2017).
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem decisões ora admitindo, ora rechaçando a possibilidade
de expedir mandados coletivos:
“(…) 5. Forçoso reconhecer que, no caso, o deferimento da medida cautelar de busca domiciliar não
se revela idôneo, já que não individualiza minimamente a unidade domiciliar objeto de violação, qual
seja, a ¿casa¿, nos moldes definidos pelo inciso I do art. 243 do Código de Processo Penal, que deve
ser indicada ¿o mais precisamente possível¿, tampouco informa o ¿nome do respectivo proprietário
ou morador¿. 6. Busca domiciliar que possui como característica precípua a referibilidade, não sendo,
portanto, um fim em si mesma, estando, ao revés, vinculada ao procedimento investigatório cuja
efetividade se procura assegurar. Logo, a medida em questão não pode constituir uma autorização
genérica para que se reúna as fundadas razões que deveriam justificá-la, sob pena de subversão total
de sua lógica e, ainda, de delegação à autoridade policial não apenas da executoriedade do ato, mas
da própria delimitação de seu objeto – a casa -, dos cidadãos que terão os seus direitos fundamentais
mitigados e, por conseguinte, do alcance da medida sujeita à cláusula da primazia judiciária (…)” (HC
0061167-57.2016.8.19.0000, j. 2/2/2017).
“(…) Bem verdade que deve o mandado de busca e apreensão indicar, o mais precisamente possível,
a casa em que será realizada a diligência e o nome do proprietário ou morador. Todavia, como muito
bem realçado pela Juíza de primeiro grau, no plantão noturno, numa realidade em que o domínio,
há mais de 30 (trinta) anos, de facção criminosa armada “impede a permanência do poder público
para regulação e instalação de equipamentos de indicação e individualização de ruas e localidades;
numa realidade em que todos os mínimos espaços foram ocupados de forma irregular, sendo
impossível o acesso senão por becos aleatórios e acidentados, numa realidade em que novas “casas”
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são fundadas de forma independente, e quase imediata, pelo simples acréscimo de materiais a lajes
de outras casas, sem que sejam registradas e ordenadas, não há como individualizar e indicar
numerações sem uma incursão ao local”. Neste ponto, é interessante mencionar que
a busca e apreensão possui, em regra, natureza jurídica de meio de prova, mas também pode
revestir-se de caráter assecuratório de direitos. No caso em questão, esta segunda natureza,
associada à primeira, demonstra que ambas se amoldam à medida deferida, em virtude de buscar
resguardar os interesses dos proprietários que estão sendo burlados em seus direitos absolutos e
plenos de usar, gozar e dispor de seus bens, sendo coagidos a permitir que membros da facção
criminosa deles se utilizem para guardar armas e substâncias tóxicas, ou como abrigos
estrategicamente localizados, garantindo-lhes superioridade tática. ORDEM DENEGADA, com a
determinação do imediato cumprimento da decisão aqui proferida, com determinação de expedição
de ofícios” (0048172-75.2017.8.19.0000, j. 26/9/2017).
Note-se que a segunda decisão transcrita faz referência exatamente ao fato de que muitos
moradores são coagidos pelos membros das organizações criminosas a permitir que suas casas sejam
utilizadas para acobertar e disfarçar atividades ilícitas. Sem que se permita examinar as residências
que integram as localidades dominadas por essas organizações, é impossível obter qualquer sucesso
em operações de índole policial. E, uma vez impraticável a individualização dos imóveis, a única
medida viável é realmente a expedição de mandados coletivos, que façam referência apenas ao
bairro ou mesmo à rua, caso seja possível.
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DIREITO PENAL:
1-Tema: Retratação no crime de falso testemunho. Condições.
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. FALSO TESTEMUNHO. ART. 342, § 2º, DO CP. RETRATAÇÃO EM PROCESSO
DIVERSOS. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. PRECEDENTES DESTA CORTE. PARECER
ACOLHIDO. ACÓRDÃO E SENTENÇA CASSADOS. RETORNO DOS AUTOS AO JUÍZO PROCESSANTE PARA
JULGAMENTO DA AÇÃO PENAL. AFASTADA A TESE DE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. Recurso especial
provido nos termos do dispositivo
Esta jurisprudência foi incluída a pedido do Setor de Recursos Criminais Extraordinários e Especiais.
COMENTÁRIOS DO CAO-CRIM
O § 2º do art. 342 do CP prevê extinção de punibilidade nas hipóteses em que o agente se retrata do
conteúdo declarado antes de proferida a sentença.
Retratar-se, no caso, não significa apenas negar ou confessar a prática do delito. É muito mais. É
escusar-se, retirando do mundo o que afirmou (retroceder na mentira), ou revelando o que ocultou,
demonstrando sincero arrependimento.
A retratação acerca de declaração que caracteriza o falso testemunho deve ser realizada no mesmo
processo em que o agente fez a afirmação falsa e desde que realizada antes da sentença.
Vale dizer, não há extinção da punibilidade quando a retratação do réu se dá em outro processo, qual
seja, na ação penal a que responde pela prática do delito do artigo 342, §2º do Código Penal.
Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, é imperioso que a retratação ocorra nos
mesmos autos em que feita a declaração falsa da testemunha. Se faltou com a verdade num processo
de divórcio, por exemplo, deve se retratar nesse feito, e não no processo crime pelo delito cometido.
1
. Direito penal, v. 4, p. 393.
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