Gaston - Serena Valentino - 241017 - 185625
Gaston - Serena Valentino - 241017 - 185625
Gaston - Serena Valentino - 241017 - 185625
e-ISBN 978-65-5609-701-5
Título original: Kill the Beast
Você pode pensar que conhece a história de Gaston. Pode até se lembrar do
intrépido autoproclamado herói abrindo caminho pela saga da Fera,
flexionando os músculos e projetando seu queixo enquanto enaltecia a si
mesmo em canções, como se fosse o rei da terra dos machões-com-covinha-
no-queixo. No entanto, às vezes há mais de um vilão em um conto de fadas.
E não se engane: tanto Gaston quanto a Fera eram os vilões desta história,
mesmo que a Fera eventualmente tenha se redimido.
Alguns até dizem que nós é que somos as verdadeiras vilãs que espreitam
estas páginas, manipulando os fios do destino e tecendo estas histórias para
se adequarem aos nossos próprios desígnios. As bruxas intrometidas,
intrigantes e diabólicas de todos estes contos: as Irmãs Esquisitas. E talvez
não estejam enganados.
Como autoras do Livro dos Contos de Fadas, podemos dizer com
autoridade mágica que este é um livro como nenhum outro. É fluido e está
sempre mudando, assim como mudou o destino daqueles cujas histórias
narramos. E embora os acontecimentos que moldaram a vida de Gaston e a
sua morte no fim tenham acontecido há muito tempo, a nossa narrativa
reflete tudo o que ocorreu antes do seu tempo e o que aconteceu desde
então. Você pode se perguntar como isso é possível. É simples: vemos as
coisas com muito mais clareza em nosso novo lar no Submundo na
companhia de Hades. Nós enxergamos tudo. Passado, presente e futuro.
Se você leu a lenda da Fera no Livro dos Contos de Fadas, sabe por que
ajudamos a amaldiçoá-lo. Ele era um homem egoísta, vaidoso e cruel que
partiu o coração de nossa filha Circe. Falamos filha porque é isso que ela é,
mas há muito tempo, na altura desses acontecimentos, mentimos à nossa
filha e lhe dissemos que ela era nossa irmã. Nossa irmã mais nova, que
protegeríamos a qualquer custo, incluindo fazer amizade com Gaston para
nos vingar do príncipe Fera. E embora você possa pensar que conhece o
papel que Gaston desempenhou nesses eventos, sempre há mais de uma
versão da mesma história. Esta é a versão dele.
Se este é ou não um conto de redenção, depende de você. Trata-se da
história de dois meninos que se amavam como irmãos e que mudariam para
sempre a vida um do outro.
CAPÍTULO I
IRMÃOS DE SANGUE
FIQUE À VONTADE
OS FANTASMAS DA BIBLIOTECA
Depois que Gaston e seu pai foram convidados para jantar com os
funcionários internos naquela primeira noite maravilhosa, cinco anos antes,
para a alegria de Gaston, o jantar no salão dos empregados logo se tornou
parte de sua rotina. A vida era perfeita, no que dizia respeito a Gaston. Ele
passava a maior parte do tempo com seu melhor amigo, o príncipe, e as
noites com o pai e os outros servos, que considerava sua família.
Embora ele e o príncipe fossem um pouco mais velhos, ainda preenchiam
seu tempo com aventuras ousadas e explorações. Às vezes, sentiam-se
bastante confinados no castelo, especialmente nas ocasiões em que ficavam
presos dentro de casa por um longo tempo. E desta vez em particular
chovera quase sem parar durante a maior parte da quinzena. Tendo já
explorado cada centímetro do castelo e suas fundações, os dois encontraram
uma forma de se divertir, e era um plano travesso. Como sabiam que o
bibliotecário, Monsieur Biblio, odiava que qualquer um dos livros saísse da
biblioteca, Gaston e o príncipe acharam que seria muito engraçado não
apenas roubar os livros que queriam ler, mas também rearrumar o sistema
meticulosamente organizado de Monsieur Biblio para distrair sua atenção e
impedi-lo de perceber que alguns de seus preciosos livros estavam faltando.
E a crescente frustração do pobre Monsieur Biblio apenas inspirou os
meninos a fazerem mais travessuras.
Claro, Monsieur Biblio suspeitava de Gaston. Mas ele era um homem
inteligente e não iria acusar Gaston na frente de todos, pelo menos não no
início. Ele fazia pequenos comentários e conduzia a conversa de um jeito
que esperava poder enganar Gaston, revelando que era ele quem entrava
furtivamente na biblioteca e reorganizava seus preciosos livros. Esse tinha
se tornado um evento quase noturno, Monsieur Biblio trazendo à baila os
livros perdidos na hora do jantar ou, na verdade, sempre que alguém
quisesse ouvir. O mistério dos livros tornou-se uma obsessão que o
consumia, e o restante da equipe não tinha tempo nem paciência para suas
doutrinações prolixas.
– Acredito ter visto alguns de seus livros no sótão da Ala Oeste,
Monsieur Biblio – disse Plumette uma noite, quando Monsieur Biblio
estava em um de seus discursos inflamados. – Foi quando eu estava lá em
cima tirando o pó. Eu me perguntei por que eles estavam ali, mas imaginei
que você tivesse seus motivos. – Era óbvio para todos os presentes, exceto
para Monsieur Biblio, que Plumette estava provocando o bibliotecário.
– Não haveria razão! Nenhuma razão, mademoiselle! Todo bibliófilo que
se preze sabe que um sótão úmido e empoeirado é o pior lugar possível para
qualquer livro, quanto mais para os tomos preciosos que estão guardados na
biblioteca real! – O rosto de Monsieur Biblio estava contorcido de raiva,
deixando seus olhos ainda menores do que o normal, e seus punhos
cerrados com força.
– Se não foi você, eu me pergunto: como eles acabaram no sótão,
monsieur? – Plumette perguntou com uma piscadela para os outros à mesa.
Esse se tornou o entretenimento noturno da equipe.
– Tenho um culpado em mente – afirmou Monsieur Biblio, olhando para
Gaston. Mas Grosvenor juntara-se a eles naquela noite, e o bibliotecário não
ousou dizer nada na frente do pai do menino.
Quase todos os funcionários da casa pareciam felizes por Grosvenor e
Gaston terem feito as refeições com eles com mais frequência desde aquela
noite feliz, cinco anos antes. E Gaston ficou satisfeito por seu pai não achar
que passar tempo com seus velhos amigos fosse tão doloroso quanto ele
imaginava. Gaston entendeu que estar no castelo podia lembrar o caçador
real dos dias em que Rose estava viva, e isso lhe causava dor, mas agora
parecia que Grosvenor se sentia confortável em passar as noites entre
amigos, entre outros que amavam e valorizavam a mãe de Gaston quase
tanto quanto ele.
A Senhora Potts ficou especialmente encantada com Grosvenor e Gaston
sempre se juntando a eles. Ela adorava ouvir as histórias de Gaston sobre as
aventuras dele e do príncipe, que se tornavam mais ousadas agora que eram
adolescentes. Até o Senhor Cogsworth se acostumara a vê-los na hora do
jantar na maioria das noites. A única pessoa que ainda resmungava sobre
isso e lançava olhares de soslaio para Gaston era Monsieur Biblio, que
estava singularmente concentrado em resolver o mistério de seus livros
errantes.
Os meninos, é claro, achavam tudo isso bastante divertido, observando
Monsieur Biblio caçar seus livros pelo castelo, enviado em buscas inúteis
pelos outros criados. Gaston e o príncipe começaram a deixar pistas que
levavam o pobre homem a procurar em lugares estranhos, como o cemitério
do castelo, só para não encontrar nada lá. Foi um golpe de sorte para os
meninos que Monsieur Biblio tivesse provocado sua própria infelicidade,
irritando tanto a todos que, involuntariamente, se tornaram parte do que
estava se transformando numa brincadeira elaborada. Gaston não entendia
por que Monsieur Biblio ficava tão incomodado com a saída de livros da
biblioteca, por que ele e o príncipe tinham que levá-los às escondidas na
escuridão. Se Monsieur Biblio fosse um pouco menos sistemático em sua
abordagem, talvez as coisas não tivessem dado tão errado para o pobre
homem.
– Ah, acho que concordo com sua teoria, Monsieur Biblio. Só pode haver
um culpado. Tenho certeza de que isso é óbvio para todos nós que estamos
sentados a esta mesa – disse Lumière, sorrindo divertidamente para Gaston.
– Eu sabia! Finalmente alguém com algum bom senso. Obrigado,
Lumière! É hora de pararmos de fingir que não sabemos quem é o culpado
e punir esse ladrão!
– Mas como vamos punir um fantasma, monsieur? – perguntou Lumière,
cutucando Plumette para que ela parasse de rir.
– Como disse, senhor? Eu o ouvi corretamente? Falou fantasma? –
Monsieur Biblio ficou horrorizado, mas os outros à mesa assentiram como
se estivessem convencidos de que o castelo era assombrado. Gaston sentiu
uma onda calorosa, sabendo que fizeram aquilo para protegê-lo. Todavia,
foi a cumplicidade de Lumière no pequeno estratagema que o deixou mais
feliz. Gaston sempre pôde contar com seu talento criativo em situações
como essa.
– De fato, você ouviu corretamente, Monsieur Biblio. É a única
explicação – disse Lumière.
– Você acha mesmo? Alguém notou que mais alguma coisa desapareceu
no castelo ou foi colocada em locais estranhos?
– Acho que esse espírito em particular gosta de livros, monsieur. E quem
pode culpá-lo? Talvez seja o fantasma do bibliotecário anterior – respondeu
Gaston com uma cara séria.
– Duvido que seja um bibliófilo anterior, meu jovem. O sótão é o último
lugar onde um espírito assim esconderia livros, zombeteiro ou não! Bem, se
for um fantasma, sei exatamente como lidar com espectros incômodos. Eu
estava lendo um livro fascinante...
– Ótimo. Parece que você tem tudo sob controle, Monsieur Biblio. Tenho
certeza de que logo encontrará seus livros. Agora está ficando tarde. Acho
que é hora de todos dizermos boa-noite – disse a Senhora Potts, que parecia
sentir pena do homem. Mas, além disso, a Senhora Potts era uma mulher
muito gentil e paciente.
No entanto, Monsieur Biblio conseguiu testar até a bondade e a paciência
da Senhora Potts com o passar dos dias e ainda assim não abandonou a
questão dos livros desaparecidos. Só quando entrou em sua sala de estar,
alguns dias depois, foi que ela perdeu a paciência. A Senhora Potts estava
ocupada em sua mesa, com uma pilha de papéis à sua frente, escrevendo
suas listas para uma próxima festa no castelo, quando Monsieur Biblio
entrou furioso, sem se preocupar em bater.
– Livros! Livros! Mais livros desaparecidos! Estou perdendo o juízo,
Senhora Potts! – Monsieur Biblio estava parado na porta, agitando as mãos
e gritando tão alto que os outros criados que passavam por ele no corredor
olharam para ver o que estava acontecendo. Quando viram quem era,
apenas reviraram os olhos e continuaram andando.
A essa altura, a Senhora Potts já estava acostumada com Monsieur Biblio
entrando, perturbando sua paz e reclamando de livros perdidos. Nessa
ocasião, porém, ela havia sido menos paciente do que de costume, porque
tentava freneticamente terminar de redigir os cardápios da festa no castelo,
para que o Senhor Cogsworth pudesse planejar a carta de vinhos. Todos
tiveram mais trabalho do que o normal para planejar essa festa, e a Senhora
Potts não tinha tempo para aquelas bobagens.
– Exijo que alguém faça algo sobre isso imediatamente! – Monsieur
Biblio continuou. – Livros fora do lugar, livros desaparecidos! Isso é um
caos completo! E não insulte minha inteligência sugerindo que temos um
fantasma! – Parecia que depois de alguns dias caçando fantasmas, Monsieur
Biblio havia desistido da ideia de o culpado ser um trapaceiro sobrenatural
e voltou a suspeitar de Gaston.
Se a Senhora Potts tivesse se dado o trabalho de erguer os olhos, teria
visto Monsieur Biblio cerrando os punhos e sacudindo-os de raiva. Não
importava; ela não precisou olhar para cima para saber qual era a expressão
dele. Tal cena já havia acontecido várias vezes nos últimos meses. E cada
vez Monsieur Biblio ficava mais agitado e exigente. E mais determinado a
provar a culpa de Gaston.
– Eu sei que Gaston é o sequestrador de livros! – ele exclamou, quase
fazendo com que a Senhora Potts levantasse os olhos do trabalho.
– Sequestrador de livros? Ora, isso está virando uma tolice, você não
acha? Tem certeza de que não os perdeu, Monsieur Biblio? Dê talvez uma
boa olhada na biblioteca e descobrirá que estavam lá o tempo todo – ralhou
ela, ainda concentrada em seu trabalho, tentando desesperadamente
terminar de escrever os cardápios antes que o Senhor Cogsworth chegasse
perguntando sobre o motivo do atraso.
– Você está sugerindo que não sei fazer meu trabalho, Senhora Potts?
Devo insistir que a casa de Grosvenor seja revistada. Eu sei que Gaston
pegou os livros! E sei que todos vocês o estão encobrindo!
Monsieur Biblio estava testando a Senhora Potts além de seus limites.
Ela ergueu os olhos dos papéis e fitou Monsieur Biblio, visivelmente
agitada. Bem, a Senhora Potts era, no conceito de todos, uma mulher muito
gentil, a mulher mais gentil que alguém teria a sorte de conhecer, mas que
não ousassem ameaçar sua família. Isso ela não admitiria. E era assim que a
Senhora Potts via Grosvenor e Gaston, como parte de sua família, e ela não
estava disposta a ficar ali sentada, pensando na casa de Grosvenor sendo
revistada por qualquer que fosse o motivo.
– Tenho certeza de que você está ciente de que temos uma grande festa
no castelo chegando. E deve ter adivinhado que estaríamos todos ocupados
fazendo os preparativos, que é exatamente o que eu deveria estar fazendo
neste momento, em vez de discutir seus livros perdidos. Vinte cavalheiros e
damas estarão aqui em questão de dias, Monsieur Biblio; não temos tempo
para isso. – A Senhora Potts estava com o rosto impassível e muito mais
séria do que o normal, mas o bibliotecário furioso não recuou.
– Eu sei, é por isso que não incomodei o Senhor Cogsworth com isso.
– Entendo. Bem, garanto-lhe que todos temos muito trabalho pela frente.
Se está procurando algo para fazer, Monsieur Biblio, já que parece ter muito
tempo livre se preocupando com a perda de livros, talvez queira elaborar a
tabela de assentos, planejar os cardápios, fazer os pedidos, atribuir quartos a
todos os nossos convidados e organizar o entretenimento. Presumo que
tenha visto a legião de criadas esfregando, tirando o pó e arrumando as
flores. Ou talvez você tenha notado lacaios enrolando os tapetes para dar
espaço à dança, enquanto outros lustram a prataria. Sem falar no novo
pavilhão que está sendo construído. Ou que tal a tenda que está sendo
montada para as atividades ao ar livre? Cada membro dos funcionários,
tanto externos quanto internos, está se preparando para a festa na residência
do rei e da rainha. Todos, exceto você. Mas, como se trata de uma
emergência de grande proporção, pedirei a todos que parem o que estão
fazendo e procurem seus livros perdidos imediatamente!
– Se você não me ajudar, serei forçado a discutir isso com o Senhor
Cogsworth!
– Por que não vamos falar com ele juntos? – sugeriu ela, levantando-se. –
Ele está na despensa, resmungando e andando de um lado para o outro.
Tenho certeza de que não vai incomodá-lo saber que os cardápios estão
atrasados porque você está irritado com o desaparecimento de alguns livros!
– Não vou incomodá-lo agora. Mas talvez você possa me dizer: onde
posso encontrar Grosvenor? Acho que vou abordar essa questão
diretamente com ele.
– Fique à vontade. Ele está no pátio. – A Senhora Potts sorriu
maliciosamente enquanto o observava sair esbaforido pelo corredor a
caminho de conversar com Grosvenor. E, quando virava a esquina, ela o
chamou, parando-o no meio do caminho.
– Ah, e, Monsieur Biblio, você poderia, por favor, dizer a Sua Majestade,
o rei, que o Senhor Cogsworth chegará atrasado para revisar as listas de
vinhos porque fomos inevitavelmente atrasados por uma emergência de
livros?
– O quê? Eu, o bibliotecário, levando uma mensagem ao rei? Isso é
inédito! Eu nem sei onde ele está.
– Está no pátio com Grosvenor planejando a caçada, é claro. Tenho
certeza de que, quando o rei souber de seus problemas, insistirá para que
todos abandonemos os afazeres a fim de descobrir o mistério de seus livros
desaparecidos!
A Senhora Potts esperava que isso colocasse um ponto-final nas
perturbações provocadas pelo bibliotecário, pelo menos até o fim da festa.
– Esse assunto ainda não está encerrado, Senhora Potts, eu lhe garanto.
– Tenho certeza de que não – disse ela, suspirando e balançando a
cabeça.
– Qual é a razão disso tudo? – perguntou o Senhor Cogsworth, de repente
colocando a cabeça para fora da despensa depois que Monsieur Biblio se
afastou furioso.
– Oh, nada, Senhor Cogsworth. Parece que o fantasma na biblioteca está
fazendo suas travessuras de novo – disse ela, rindo.
– Você já tem os cardápios redigidos? – ele perguntou, mal prestando
atenção. A Senhora Potts podia ver que o Senhor Cogsworth estava
sentindo a tensão dos acontecimentos iminentes, embora apenas ela tivesse
notado. A Senhora Potts conhecia o Senhor Cogsworth havia muito tempo e
podia identificar os pequenos sinais que o denunciavam. Ela enxergava a
pressão daquela festa no castelo borbulhando sob a superfície de sua
fachada tranquila e estoica. Fazia muito tempo que a família real não
organizava diversão nesse nível. O rei e a rainha estiveram ausentes com
tanta frequência nos últimos anos que não tiveram oportunidade. Por isso,
foi uma surpresa quando a rainha anunciou que iriam hospedar no castelo
um grande número de convidados por um longo período, o que incluiria
jantares luxuosos, entretenimento noturno, caçadas para os homens,
piqueniques e passeios panorâmicos para as mulheres e, para o grande final,
um baile requintado de proporções inéditas desde o próprio casamento do
rei e da rainha. Não foi nenhuma surpresa que a equipe tenha ficado
confusa; a preparação para tão grandioso evento era uma tarefa hercúlea. E
não era de admirar que os funcionários estivessem irritados com Monsieur
Biblio por distraí-los quando eles tinham tantas coisas para fazer e, assim,
desabafar ao provocá-lo.
– Eu tenho os cardápios prontos – a Senhora Potts respondeu,
entregando-os ao Senhor Cogsworth. – Estava fazendo meus ajustes finais
no momento em que Monsieur Biblio interrompeu meu trabalho.
– O que você quer dizer com “fantasma na biblioteca”? Monsieur Biblio
não acredita realmente que o castelo seja assombrado, não é? – perguntou o
Senhor Cogsworth, como se as palavras da Senhora Potts tivessem acabado
de ser registradas.
– Não. Ele culpa Gaston e exigiu que a casa de Grosvenor fosse
revistada.
– Isso é ridículo. – A Senhora Potts ficou surpresa ao ouvi-lo defender
Gaston. – Afinal, o que Gaston iria querer com os livros? A menos que
tivessem imagens. A teoria do fantasma faz mais sentido. Pense nisso,
Gaston lendo. – Ele riu e a Senhora Potts franziu a testa.
– Já chega, Senhor Cogsworth! Se sabe o que é bom para você e gostaria
de permanecer em minhas boas graças, sugiro que guarde esses comentários
para si. E se você não percebeu, Gaston não é mais um menino, nenhum dos
dois é. Ambos têm treze anos agora. Quase homens.
Cogsworth era frequentemente rígido e um notório esnobe, e não era
segredo que não aprovava que Gaston tivesse livre acesso à residência, mas
normalmente não era um homem cruel. E, nesse caso, a Senhora Potts
achou que ele estava sendo cruel e não poderia ter ficado mais
decepcionada com ele. E pela expressão em seu rosto, parecia que o homem
estava desapontado consigo mesmo.
– Isso foi um golpe baixo, Senhor Cogsworth, até para você – comentou
ela, deixando claro que ele tinha ido longe demais.
– Sinto muito, Senhora Potts. Isso foi além dos limites. Essa festa no
castelo me deixou abalado, nem vou tentar negar. Já faz muito tempo que
não temos uma lista de convidados dessa magnitude. Por favor, me diga que
você tem tudo sob controle.
– Claro que sim, Senhor Cogsworth. Não se preocupe. Estamos todos sob
pressão, mas tenho certeza de que será um tremendo sucesso – afirmou a
Senhora Potts.
Naquele momento, ela avistou Gaston virar a esquina da cozinha e parar
quando viu o Senhor Cogsworth ali. Escondeu-se atrás da parede e esperou.
– Não gosto quando estamos em desacordo, Senhora Potts – disse o
Senhor Cogsworth, parecendo um pouco envergonhado. E ela sabia que o
mordomo dizia a verdade. Além disso, não havia tempo para uma de suas
discussões, não com tantas providências a serem tomadas ainda em relação
à festa. E certamente não com Gaston ao alcance da voz.
– Agora, trate de dar o fora daqui. Você ainda tem os vinhos para planejar
– falou ela, fazendo menção de conduzi-lo de volta à despensa com uma
piscadela para Gaston, que espiava na esquina, aguardando a conversa
terminar. Mas o Senhor Cogsworth não arredou pé.
– Ah, e, Senhora Potts, tratarei Gaston como um jovem no momento em
que ele começar a agir como tal.
– Isso também se aplica ao príncipe? – ela perguntou com um sorriso
atrevido. O Senhor Cogsworth não respondeu; apenas abanou a cabeça e foi
para a despensa. Ela não se importou. Sabia que ele estava ansioso para
redigir a carta de vinhos para o rei, e Gaston estava esperando para visitá-la.
Embora hoje ela não tivesse um momento de sobra, seria uma maravilha se
fizesse uma pausa naquele dia antes da hora de se sentar para jantar.
– O Senhor Cogsworth parecia estar muito nervoso. O que aconteceu? –
perguntou Gaston, rindo, parado na porta da Senhora Potts.
– Entre aqui, meu jovem – ela o convidou, puxando-o rapidamente para
sua sala de estar e fechando a porta. – Você não soube? Parece que o
fantasma da biblioteca está aprontando de novo – acrescentou ela,
lançando-lhe um olhar astuto, mas indulgente. – Felizmente para você, o
Senhor Cogsworth está ocupado demais para levar a sério a confusão com
os livros. Mas posso sugerir que você e o príncipe restituam os tesouros do
Monsieur Biblio antes que ele prossiga com isso? Ele está ameaçando
mandar revistar sua casa, e você sabe o que isso significaria: descobririam
sua casa secreta na árvore e, sem dúvida, encontrariam os livros que você
esconde nela. – A Senhora Potts foi até sua mesa de chá e serviu uma xícara
para ambos.
– Ei, como sabia sobre nossa casa na árvore? O que a faz pensar que
estamos com os livros? – perguntou Gaston, pegando um pequeno biscoito
redondo coberto com açúcar de confeiteiro do prato na mesa de chá da
Senhora Potts.
– Há bem pouca coisa que acontece por aqui que eu não saiba.
– Entendo – disse Gaston, mastigando um dos deliciosos biscoitos da
Senhora Potts com uma expressão culpada.
– Não se preocupe, meu garoto, seus segredos estão seguros comigo. Só
seu pai e eu sabemos sobre a casa na árvore. Mas não é nenhum segredo
que você e o príncipe estão com os livros, embora não entendamos por que
isso é um problema tão grande. É por isso que todos provocamos o pobre
homem. Mas temo que essa brincadeira possa ter ido longe demais e não
tenho tempo para lidar com isso e mais tudo que está acontecendo.
– Ele está com raiva porque quebramos sua regra. Esse é o problema –
disse Gaston, pegando outro biscoito.
– Mas por que existe tal regra? Os livros não são para leitura? – A
Senhora Potts levantou as mãos, exasperada.
– É justamente assim que Gaston e eu pensamos – declarou o príncipe,
entrando na sala com uma expressão travessa no rosto. – Então, o que perdi
desta vez?
A Senhora Potts não tinha certeza se gostava do que via no menino de
vez em quando, mas não tinha tempo para um de seus sermões.
– Monsieur Biblio está fazendo estardalhaço novamente. Talvez você e
Gaston possam ajudá-lo a descobrir o mistério por trás dos livros
desaparecidos enquanto eu volto a planejar a festa na residência dos seus
pais – disse ela, apontando para o prato de biscoitos para que ele pegasse
alguns.
– Talvez façamos exatamente isso, Senhora Potts – comentou o príncipe
com um sorriso furtivo. – Acho que sei precisamente de que maneira.
Mais tarde naquela noite, muito depois de Monsieur Biblio ter ido
dormir, exausto depois de muitas horas de busca no castelo pelos livros
perdidos, ele foi acordado por um barulho estranho no corredor da ala
masculina. Dava para ouvir as tábuas do piso rangendo, e ele podia jurar
que havia alguém espreitando do lado de fora de seu quarto. Ele olhou na
escuridão para a nesga de luz que brilhava sob a porta de seu quarto escuro
como breu e viu uma sombra se mover através dela, o que o fez se
sobressaltar. Tinha alguém ali.
– Quem está aí? – ele perguntou com voz fraca enquanto puxava as
cobertas até o queixo como uma criança assustada. Mas quem quer que
fosse não respondeu; apenas permaneceu parado ali em um terrível silêncio.
– Declare o que quer ou vá embora! – ele gritou bem mais alto, tentando
parecer destemido enquanto reunia coragem para acender a vela na mesinha
de cabeceira. A sala explodiu em luz quando ele riscou o fósforo e acendeu
o pavio. Rapidamente vestiu o roupão, ajeitou a touca de dormir e pegou,
com as mãos trêmulas, o prato que segurava o castiçal. Caminhou
lentamente até a porta, com muito medo do que poderia encontrar do outro
lado. Mas, ao abri-la, viu algo completamente inesperado. Livros.
– Aquele maldito garoto! – ele exclamou, olhando para a pilha de livros
no chão. Quando se inclinou para pegá-los, ouviu alguém dobrando a
esquina e descendo o corredor.
– Gaston! Eu sei que é você! – Monsieur Biblio correu pelo corredor, na
esperança de pegar Gaston em flagrante, mas o que encontrou foi um rastro
de livros espalhados pelos corredores. Enquanto Monsieur Biblio seguia a
trilha, sentiu um frio no ar que o fez estremecer e se perguntar se fora
mesmo Gaston quem teria levado os livros, afinal. Talvez houvesse mesmo
um fantasma. Ele havia lido em um de seus livros sobre a condição das
entidades sobrenaturais que quase todos os relatos de um encontro espectral
eram acompanhados por um frio distinto no ar. E havia de fato um frio
distinto que o enregelou por dentro. Não havia como negar. Mas poderia
realmente haver um fantasma? Não parecia possível.
– Não seja um velho tolo! – ele disse em voz alta para si mesmo. – Não
há fantasmas neste castelo. – Mas não tinha certeza. Olhou em volta
procurando uma janela aberta; em busca de alguma razão lógica para de
repente estar tão frio, todavia não conseguiu uma explicação. Sabia que os
castelos antigos eram, por natureza, lugares frios, e sabia disso não apenas
porque morava em um, mas porque tinha lido muitos livros sobre outros.
No entanto, também sabia que os castelos tinham fama de ser lugares
assombrados e não tinha certeza se estava tremendo de medo ou porque a
galeria estava bem fria naquela noite. O enigma o deixou bastante tonto
enquanto seguia a trilha dos livros. Ficou em dúvida se estava se sentindo
fraco por ver seus preciosos tomos espalhados pela galeria de forma tão
vergonhosa ou se estava realmente com medo de que o castelo fosse
assombrado. Fosse qual fosse o motivo, ele lamentou não ter acordado pelo
menos um dos lacaios para acompanhá-lo em sua assustadora missão.
Ele finalmente se viu diante das portas da biblioteca, onde podia ouvir
ruídos estranhos vindos lá de dentro. Sons de lamentos e batidas que
causaram terror em seu coração enquanto ele ficava parado ali de pijama e
touca de dormir, segurando sua vela e parecendo uma ilustração de um de
seus livros. Ele não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Se
não tivesse certeza de que estava acordado, acharia que estava sonhando e
sofrendo de algum tipo de sonambulismo. Como sua biblioteca poderia de
fato ser assombrada? A ideia era absurda.
Quando abriu as portas da biblioteca, ficou surpreso ao ver fantasmas,
fantasmas reais, dançando na grande galeria superior. Estavam tirando
livros das prateleiras e jogando-os em todas as direções. Os fantasmas eram
exatamente como Monsieur Biblio imaginara que seriam: brancos,
ondulantes e assustadores, com olhos negros grandes, redondos e
inexpressivos. E não prestaram absolutamente nenhuma atenção nele;
estavam se deliciando com sua confusão, rindo e jogando fora os tomos
preciosos de Monsieur Biblio totalmente absortos.
Todo o tremor e o medo abandonaram Monsieur Biblio naquele
momento, ao ver seus livros tão maltratados, e foram substituídos pela
indignação, que lhe deu coragem para enfrentar os espíritos travessos.
– Parem com isso imediatamente, estou mandando! Mostrem algum
respeito! – E para sua surpresa os fantasmas se detiveram, parecendo
congelados no tempo, parados ali, segurando grandes pilhas de livros
enquanto o fitavam da galeria.
– Espíritos, por favor! Eu ordeno que vocês guardem esses livros com
cuidado e deixem este lugar imediatamente, para nunca mais voltarem! –
bradou, conseguindo imprimir um tom autoritário. Ele tinha lido que os
espíritos eram mais propensos a obedecer ordens quando se falava com eles
dessa maneira, e até agora parecia estar funcionando. Ele estava se sentindo
bastante orgulhoso de si mesmo. Afinal, era bibliotecário, e não
espiritualista ou mestre das artes da magia. Mas uma das coisas que
Monsieur Biblio mais amava no seu trabalho, o que ele mais amava nos
livros, era que não havia quase nada que ele não pudesse fazer, desde que
primeiro dedicasse tempo para pesquisar.
– Agora, vão embora, espíritos zombeteiros. Voltem para os lugares
sombrios aos quais vocês pertencem! – ele disse, sentindo-se mais um
bruxo poderoso do que um bibliotecário. Mas, então, aconteceu algo que ele
não esperava: os fantasmas começaram a rir! Na verdade, estavam rindo
dele – ele não conseguia acreditar. E começaram a atirar livros nele, lá do
alto da galeria.
Monsieur Biblio gritou enquanto tentava se esquivar da chuva de livros
ao seu redor, caindo no chão com um barulho de trovão. Protegeu a cabeça
enquanto os fantasmas riam e jogavam livro após livro nele, fazendo-o sair
correndo da biblioteca. Monsieur Biblio ficou com tanto medo que não
parou de correr até chegar ao quarto do Senhor Cogsworth, na ala
masculina, onde se viu batendo na porta furiosamente e com grande
exaltação.
– Senhor Cogsworth, Senhor Cogsworth! Por favor, acorde! – Monsieur
Biblio tremia de medo, mas foi tirado de seu transe quando o Senhor
Cogsworth abriu abruptamente a porta do quarto com o bigode torto, o
cabelo despenteado e uma expressão colérica no rosto.
– O que significa isso, Biblio? Qual é o problema agora? – perguntou o
Senhor Cogsworth. Monsieur Biblio nunca o tinha visto tão zangado.
Nunca o vira parecendo outra coisa senão perfeitamente calmo.
– É verdade, Senhor Cogsworth! Existem fantasmas na biblioteca! Venha
rápido! – disse Monsieur Biblio, ajeitando a touca de dormir, que
escorregou enquanto ele corria e agora quase cobria seus olhos.
– Tolice! Você está tendo pesadelos de novo, homem. Volte para a cama.
– Cogsworth estava prestes a bater a porta na cara de Monsieur Biblio, mas
Monsieur Biblio esticou o pé para impedi-lo.
– Não, Senhor Cogsworth, eu juro! Eles estão lá agora. Devo insistir que
você venha comigo. – O pobre homem estava sem fôlego por causa da
corrida e da terrível provação. Certamente, o Senhor Cogsworth percebeu
que ele estava dizendo a verdade. Sem dúvida, não podia descartar aquilo
como um absurdo trivial. Havia fantasmas na biblioteca e algo precisava ser
feito.
– Muito bem. Acorde os lacaios e diga-lhes que nos encontrem na
biblioteca. Se de fato temos fantasmas, então devemos enfrentá-los
preparados. – O Senhor Cogsworth tirou o paletó do gancho na parede ao
lado da porta e vestiu-o. Amarrou o cinto com um floreio furioso e tirou
Monsieur Biblio do caminho.
Monsieur Biblio acordou os lacaios, como o Senhor Cogsworth havia
pedido, e conduziu os jovens atordoados e confusos à biblioteca, onde o
Senhor Cogsworth os aguardava. Mas antes de entrarem na sala, Monsieur
Biblio os deteve para preparar os lacaios para o espetáculo assustador que
estavam prestes a testemunhar.
– Agora, senhores, vocês devem fortalecer sua determinação. Devemos
manter nossa posição, não importa o que acontecer. Aparições como essas
se alimentam de nosso medo. Portanto, façam o que fizerem, não pareçam
assustados – instruiu o bibliotecário enquanto entravam na biblioteca. Mas
assim que o fizeram, seu queixo caiu. Não havia fantasmas, nem mesmo
livros no chão. Tudo estava limpo e arrumado e guardado em seu devido
lugar. Não havia nenhum sinal de que algo tivesse acontecido. Era algo
confuso. Ele não entendeu.
– Sim, está uma bagunça aqui. Está cheio de fantasmas – comentou
Francis, um dos lacaios, fazendo os outros rirem.
– Estou lhes dizendo, havia fantasmas aqui! Eu os vi com meus próprios
olhos. – Monsieur Biblio girava em círculos, olhando perplexo ao redor do
aposento. – Eles estavam aqui, juro!
– Você, Monsieur Biblio, acordou todo mundo por nada mais do que um
pesadelo insignificante, e com todo o trabalho que temos pela frente antes
da festa – ralhou o Senhor Cogsworth, que parecia ter endireitado o bigode
e ajeitado o cabelo ao longo do caminho, enquanto desciam a escada.
– Não foi um pesadelo! Estou lhes dizendo, havia fantasmas aqui e eles
estavam atirando livros em mim! – O bibliotecário olhou em volta em busca
de qualquer sinal de que tudo não tinha sido um sonho. Era evidente que os
espíritos haviam arrumado tudo. Mas isso era provável? Ele não tinha lido
que os espíritos eram particularmente meticulosos nesse aspecto. Mas
mesmo assim, acontecera. Não importava a aparência da biblioteca agora,
poucos momentos antes tudo estava um caos.
– O que é mais provável, Monsieur Biblio, uma biblioteca mal-
assombrada ou um bibliotecário exausto sofrendo de pesadelos? Agora, se
não se importa, acho que voltaremos para a cama. Eu sugiro que você faça
o mesmo. – O Senhor Cogsworth fez sinal aos lacaios para saírem da sala.
– Mas, e os fantasmas? Algo deve ser feito! Espere... O que foi isso?
Você ouviu aquela risada? – perguntou Monsieur Biblio. Seus olhos
estavam arregalados quando ele correu para uma estante atrás da qual
poderia jurar ter ouvido risadas.
– Primeiro fantasmas e agora alguém rindo entre os livros? Monsieur
Biblio, acredito que você precisa descansar. Será que deveríamos pedir ao
Monsieur D’Arque para dar uma olhada em você?
– Agora olhe aqui! É verdade, estou dizendo. Eu vou lhe mostrar. –
Monsieur Biblio apertou um botão discreto na estante, que se abriu para
revelar uma pilha de livros guardados em um compartimento secreto. Os
mesmos livros que haviam sido jogados nele momentos antes. De repente,
tudo ficou claro, ele sabia o que havia acontecido e seu sangue começou a
ferver.
– Saia, Gaston, eu sei que você está aí, seu garoto horrível, diabólico e
miserável... Oh! – Monsieur Biblio ficou chocado ao ver o príncipe sair do
seu esconderijo, de trás da pilha de livros. – Eu... sinto muito, meu príncipe.
Não percebi que era você.
– Obviamente – disse o príncipe. – O que é isso tudo, Monsieur Biblio?
Senhor Cogsworth? Por que vocês estão todos aqui de pijama? – O príncipe
se levantou e cruzou os braços de maneira imperiosa, como se fosse
perfeitamente normal esconder-se atrás de uma estante no meio da noite.
– Sinto muito, Vossa Alteza. Monsieur Biblio deve ter tido um pesadelo.
Peço desculpas – disse o Senhor Cogsworth, com o rosto ficando vermelho.
– É claro que não culpo você, Cogsworth – falou o príncipe, olhando feio
para Monsieur Biblio.
– Que brincadeira é essa a de vocês? Eu sei que Gaston está aí com você!
Sei que ele está por trás de tudo isso – Monsieur Biblio balbuciou de raiva.
Estava farto das tolices de Gaston e do príncipe e só conseguia descontar
sua raiva em um dos meninos. Ambos o atormentavam havia anos, pegando
seus livros e não os devolvendo. Não tinha condições de atacar o príncipe,
denunciá-lo por sua cumplicidade, mas poderia garantir que Gaston fosse
punido por seus perversos hábitos de roubo de livros. Se havia uma coisa
que Monsieur Biblio não suportava era desrespeito com os livros, e Gaston
e o príncipe haviam demonstrado desrespeito do mais baixo nível. Eles os
espalharam por todo o castelo e os jogaram no chão. E não havia como isso
ficar impune, se ele pudesse evitar.
– Digamos que Gaston esteja por trás de tudo isso. E daí se ele estiver? O
que você vai fazer a respeito? – perguntou o príncipe, mais autoritário do
que nunca. Não cabia a Monsieur Biblio dizer, nem mesmo ter uma opinião
sobre essas coisas, mas, no que lhe dizia respeito, o príncipe não era tudo o
que esperava ser e ficava mais impertinente a cada dia. E Gaston era ainda
pior. Monsieur Biblio não entendia por que quase toda a criadagem os
adorava. Parecia que apenas o Senhor Cogsworth e ele próprio viam Gaston
como ele era. Fazia sentido o motivo pelo qual o velho Senhor Cogsworth
inventava desculpas para o príncipe e era indulgente com ele. Mas
Monsieur Biblio tinha certeza de que em pouco tempo o príncipe se
transformaria em um monstrinho se alguém não o controlasse.
– Vamos, Monsieur Biblio, você não quer dizer nada de que possa se
arrepender. Você está descontrolado – comentou o Senhor Cogsworth.
– Eu sei que tudo isso foi obra de Gaston e do príncipe! Roubar livros,
pregar peças! Estou pensando em contar pessoalmente ao rei! – confessou
Monsieur Biblio.
– E em quem você acha que o rei vai acreditar? Num bibliotecário velho
e tolo que acredita em fantasmas ou no próprio filho? Agora, volte para a
cama antes que perca seu cargo, Monsieur Biblio – disse o príncipe com
uma expressão malvada.
– Sim, sugiro que todos voltemos para a cama – falou o Senhor
Cogsworth, que parecia bastante desconfortável com toda a situação,
mexendo no cinto de seu roupão.
Monsieur Biblio fora derrotado. Não havia nada a ser feito. Agora não,
de qualquer modo. Ao sair da biblioteca com o Senhor Cogsworth e os
lacaios resmungões e grogues de sono atrás deles, ele ouviu claramente a
voz de Gaston junto com a do príncipe vindo da biblioteca. Rapidamente
lançou um olhar para Cogsworth para ver qual seria sua reação. Mas não
houve nenhuma. O mordomo estava impassível como sempre, sem
pestanejar, sem sequer mudar a expressão no olhar, como se ambos não
tivessem ouvido a mesma coisa.
– Você realmente não vai dispensar Monsieur Biblio, não é, Reizinho? –
Gaston perguntou.
E o príncipe respondeu:
– Ainda não decidi.
Não, esse não foi o fim para Monsieur Biblio. Ele e o Senhor Cogsworth
sabiam que o príncipe e Gaston estavam por trás dos livros desaparecidos
desde o início. Talvez, juntos, eles encontrassem uma forma de punir os
meninos por quebrarem as regras de Monsieur Biblio.
CAPÍTULO IV
A FERA DE GÉVAUDAN
Gaston nunca tinha visto a Senhora Potts tão transtornada. Ele a levou
para a sala de estar, sentou-a e colocou seu xale em volta dos ombros.
– Pronto, sente-se aqui, Senhora Potts, já volto com um bule de chá –
disse ele quando Plumette entrou na sala.
– O que é isso que estão dizendo? É verdade, Senhora Potts? É
realmente...
Gaston interrompeu Plumette antes que ela pudesse terminar. Ele não
queria que todos a atormentassem com perguntas.
– A Senhora Potts teve um choque, Senhorita Plumette. Meu pai estará
de volta assim que terminar de falar com o rei e explicará. Você poderia, por
favor, ver se uma das criadas da cozinha poderia preparar um bule de chá
para a Senhora Potts? – ele perguntou.
– É pra já! – ela disse, correndo para a cozinha.
– Você está bem, Senhora Potts? – Gaston ajeitou seu xale e segurou sua
mão. Odiava vê-la com tanto medo. Ela tinha uma expressão distante nos
olhos que o lembrava da aparência de seu pai às vezes quando ficava
sentado sozinho olhando para os degraus.
– Sim, querido. Não se preocupe comigo. Vá ver os outros criados e eu
me juntarei a vocês em um momento.
Mas Gaston não queria deixá-la sozinha. Ele nunca vira a Senhora Potts
com medo, não daquele jeito. Pensando bem, ele também nunca tinha visto
seu pai com medo.
Gaston sabia que aquilo devia ser sério para a Senhora Potts e seu pai
estarem tão nervosos. Ele tinha visto seu pai taciturno e pensativo, e talvez
até agitado às vezes, mas nunca assustado, nunca descontrolado, e isso fazia
Gaston sentir medo. As mãos de seu pai tremiam enquanto ele conversava
com a Senhora Potts, e seu rosto estava tomado de medo e pesar, terror e
tristeza. E agora a pobre Senhora Potts estava tão abalada, tão diferente de
si mesma, que ele se perguntou se deveria ter deixado o pai sozinho.
Perguntou-se se seu pai estava seguro. Se a Senhora Potts não precisasse
dele, teria voltado para se certificar de que o pai estava bem.
Gaston conhecia apenas fragmentos das histórias que cercavam a Fera de
Gévaudan, embora as histórias fossem bem conhecidas em suas terras.
Fazia muitos anos que não se ouvia falar da fera e todos pensavam que
estivesse morta. Dizia-se que era um grande lobo cinzento de enormes
proporções que aterrorizara o campo durante anos. Se as histórias fossem
verdadeiras, a fera não era vista desde pouco depois do nascimento de
Gaston, então para ele eram apenas histórias, inventadas para assustar as
crianças e fazê-las obedecer aos pais, como os outros contos de fadas e
lendas com que ele e o príncipe haviam crescido. A ideia de que essa fera
era real encheu de terror o coração de Gaston. Não porque ele sentisse
medo dela, mas porque seu pai sentia. E Grosvenor não tinha, até onde ele
sabia, medo de nada, até hoje.
Gaston podia ouvir todos no salão falando alto, em pânico com a notícia
que obviamente se espalhara pelo castelo durante o tempo que ele e a
Senhora Potts levaram para voltar.
– Onde está Grosvenor? – O Senhor Cogsworth estava parado na porta da
sala de estar da Senhora Potts. – Como sabemos que se trata mesmo da Fera
de Gévaudan e não simplesmente de um ataque de lobo? – O Senhor
Cogsworth havia perdido toda a compostura. Já não era ele mesmo.
– Acalme-se, Senhor Cogsworth, por favor. A Senhora Potts teve um
choque e meu pai voltará em breve para conversar com todos. Tenho
certeza de que ele não iria querer que entrássemos em pânico – disse
Gaston, tentando assumir o controle da situação da maneira que achava que
seu pai faria.
– Agora escute aqui, meu jovem. Não permitirei que o filho de um servo
me diga para me acalmar. – Mas Gaston não se importou. Não iria deixar
ninguém perturbar a Senhora Potts além do que ela já estava; contudo, antes
que pudesse dizer mais alguma coisa, a Senhora Potts deixou a situação
mais do que clara para o mordomo.
– De todos nós, Senhor Cogsworth, se alguém seria capaz de reconhecer
um ataque da Fera de Gévaudan, esse alguém é Grosvenor. E não há razão
para se dirigir a Gaston de forma tão rude – disse a Senhora Potts.
– Você viu... o pobre rapaz? – O Senhor Cogsworth mal conseguiu
pronunciar as palavras. Como se falar sobre isso tornasse tudo real.
– Não. Mas confio em Grosvenor. Ele está falando com o rei agora, e os
dois decidirão o que fazer – disse a Senhora Potts.
– Eu sou o mordomo desta casa! Cabe a mim ajudar o rei a decidir o que
fazer. – O bigode do Senhor Cogsworth se contraiu tão rápido que mais
parecia os ponteiros de um relógio em que se dá corda rapidamente. O fato
era que o Senhor Cogsworth estava muito tenso, e quem poderia culpá-lo,
levando-se em conta tudo que estava acontecendo?
– Você também sabe, Senhor Cogsworth, que essa é a área de
competência de Grosvenor. Tenho certeza de que, assim que ele falar com o
rei, você, Grosvenor e eu nos reuniremos para discutir como o rei deseja
proceder – disse a Senhora Potts.
Ela ainda parecia um pouco pálida, e Gaston desejou que o Senhor
Cogsworth a deixasse em paz, mas ele não estava disposto a pressioná-lo.
Estava em tal estado que Gaston ficou surpreso que Cogsworth não o
tivesse expulsado da sala de estar. Não que a Senhora Potts fosse permitir
isso.
Gaston não tinha apreciado verdadeiramente o lugar de seu pai na equipe
real até aquele momento, mas estava orgulhoso em saber que Grosvenor era
tão importante quanto o Senhor Cogsworth e a Senhora Potts. Gaston não
pôde deixar de sorrir ao ver a resignação de Cogsworth com as palavras da
Senhora Potts.
Quando o pai de Gaston se dirigiu ao salão dos empregados, onde
Gaston, a Senhora Potts, o Senhor Cogsworth e a maior parte da equipe
sênior estavam reunidos, todos no castelo já tinham ouvido a notícia.
Estavam em pânico e cheios de perguntas.
– Acabei de ter com o rei. Ele deseja que eu informe a todos vocês sobre
o toque de recolher que está em vigor imediatamente. Ninguém deve sair de
casa depois de escurecer, por qualquer motivo. O rei espera que todos
obedeçam, para sua própria segurança. E isso inclui você e o príncipe –
disse Grosvenor, olhando diretamente para Gaston. – Ele continuou: – O rei
sugeriu que Gaston devesse tomar um quarto no castelo para que nenhum
deles fique tentado a sair escondido para se verem depois de escurecer, e
conhecendo o histórico dos dois, tenho que concordar. Senhora Potts, será
um problema encontrar um quarto para Gaston?
– Claro que não, Grosvenor. Vou providenciar um quarto para vocês dois
– disse a Senhora Potts.
– Isso não será necessário, Senhora Potts, mas obrigado – agradeceu
Grosvenor.
– Como não? É claro que você ficará hospedado no castelo conosco,
Grosvenor! – interveio Lumière.
– Não temos espaço para abrigar toda a equipe externa do castelo e me
recuso a ficar em segurança dentro de seus limites enquanto meus homens
estiverem em risco. – Grosvenor parecia severo e decidido. Esse era o tipo
de homem que o pai de Gaston era. Bom e honesto e sempre tentava fazer o
melhor para seus homens. Gaston ficou maravilhado com a bravura de seu
pai.
– Certamente eles estarão seguros em seus alojamentos, desde que não
saiam depois do toque de recolher – disse Lumière.
– E estarei seguro no meu – observou Grosvenor.
Gaston estava orgulhoso de seu pai. Mesmo que a ideia de ele ficar
sozinho no chalé assustasse Gaston, ele ficou impressionado com o fato de
seu pai não se esconder atrás das muralhas do castelo a menos que todos os
seus homens estivessem junto.
– Mas, Grosvenor, estamos todos muito assustados. É verdade, então, o
que dizem? A Fera de Gévaudan voltou? Como pode ser? Achei que você
tivesse matado a fera há muito tempo – disse Lumière.
– Eu esperava que tivesse, Lumière, mas parece que não. – Grosvenor
olhou para o filho. Gaston não entendia. Seu pai nunca lhe contara que um
dia havia enfrentado a Fera de Gévaudan. Ele nunca mencionara isso.
Parecia o tipo de coisa de que alguém se gabaria, uma história para partilhar
junto à lareira, mas o seu pai nunca sequer mencionou a Fera de Gévaudan,
muito menos que ele pensava que a tinha matado.
– Sim, Grosvenor, por favor, fique aqui conosco. Os homens ficarão bem
– disse a Senhora Potts. – Precisamos de você aqui para nos proteger. – Ela
ainda parecia tão pálida e assustada. Gaston podia ver que seu pai estava em
uma posição complicada, mas ele não iria se esconder dentro de um castelo
enquanto seus homens se defendiam sozinhos em suas cabanas na floresta
perigosa.
– Meu pai não abandonará seus homens e eu não abandonarei meu pai.
Ficarei na cabana com ele – decidiu Gaston. Agora compreendia como o pai
conseguira a cicatriz: devia ter sido ao lutar contra a Fera de Gévaudan.
Gaston sabia que seu pai era corajoso, sabia que era o melhor em tudo, mas
isso superava tudo o que ele havia imaginado. Seu pai era realmente o
homem mais incrível e Gaston esperava que um dia pudesse ser tão
corajoso quanto ele.
– O rei decretou que você ficará no castelo, Gaston. A Senhora Potts
providenciará um quarto para você. E, por favor, todos vocês, parem de
atormentar Grosvenor com pedidos para que fique no castelo. Se ele sente
que é seu dever estar com os seus homens, então devemos respeitar a sua
escolha – o Senhor Cogsworth falou com convicção, as mãos firmemente
colocadas nos quadris, o que pôs fim à conversa nervosa e às perguntas
intermináveis. E por todo o salão, as sobrancelhas se ergueram em seu
apoio a Grosvenor.
– Obrigado, Senhor Cogsworth. O rei e a rainha gostariam de falar
conosco e com a Senhora Potts, mas primeiro preciso conversar
rapidamente com meu filho. Levará apenas um instante. Com licença. –
Com isso, Grosvenor pegou Gaston pelo braço e conduziu-o para fora do
salão dos empregados.
– Você pode usar minha sala de estar, Grosvenor – a Senhora Potts gritou
para eles, com uma expressão preocupada no rosto. Gaston e Grosvenor
aceitaram a oferta da Senhora Potts e usaram a sala de estar para que
pudessem conversar em particular. A sala estava fria e mal iluminada, com
o fogo reduzido a brasas e nenhuma das velas acesas. Era estranho estar ali
sem a Senhora Potts.
– Escute-me, filho. Sei que está preocupado, mas preciso de você aqui
para ajudar a Senhora Potts a manter a calma. Conto com você para manter
o príncipe longe de problemas. Não quero que nenhum dos dois pense em
deixar o castelo depois de escurecer. O rei também conta com você. Foi
ideia dele que você ficasse no castelo. Ele sabe que você é a única pessoa
que o príncipe realmente ouve. Essa é uma grande responsabilidade,
Gaston, mas sei que você consegue lidar com isso. Estou confiando em
você para manter seu irmão mais novo seguro.
– Você nunca o chamou assim antes, pai. Por que agora? – perguntou
Gaston.
– Porque sei que você o ama como um irmão e quero que entenda quão
importante e sério isso é. Você nunca se perdoaria se algo acontecesse com
seu amigo, e eu nunca me perdoaria se algo acontecesse com você. Meu
coração já foi partido uma vez; por favor, não o parta novamente. Prometa-
me, Gaston, que você deve manter a si mesmo e ao príncipe seguros. –
Grosvenor abraçou o filho quase desesperadamente, como se fosse a última
vez.
– Eu prometo, pai – disse Gaston retribuindo o abraço do pai, sentindo o
peso do que estava acontecendo, embora tivesse a sensação de que seu pai
não estava compartilhando tudo.
– Muito bem. Devo ir com o Senhor Cogsworth e a Senhora Potts falar
com o rei e a rainha. Seja um bom menino e faça o que a Senhora Potts
mandar – disse Grosvenor, dando-lhe um beijo. – Vejo você de manhã no
café da manhã.
Gaston permaneceu na sala da Senhora Potts por um momento depois
que seu pai saiu, pensando em tudo que acabara de ouvir. Ele não conseguia
se lembrar de ter visto seu pai tão assustado antes, tão sério. E não podia
deixar de sentir que havia mais naquela história do que aquilo que
Grosvenor ou a Senhora Potts estavam falando, mas também não conseguia
dizer por que se sentia assim. Era alguma coisa na maneira como agiam,
algo que não diziam e na expressão de seus olhos.
– Gaston! Aí está você. Você ouviu, vai ficar no castelo! Insisti que você
pudesse ficar no quarto conectado ao meu – disse o príncipe, entrando no
aposento como se não estivessem no meio de uma crise.
– Presumi que a Senhora Potts fosse arranjar um quarto na ala dos
criados – declarou Gaston surpreso.
– Não seja ridículo. Acabei de dizer à Senhora Potts para preparar o
quarto azul. Não se preocupe, minha mãe e meu pai não se importam. De
qualquer forma, foi ideia do papai. Você acredita na nossa sorte? Uma
chance de caçar a fera! – O príncipe parecia bem mais jovial do que
deveria. Agindo como se alguém não tivesse acabado de morrer.
– Não tenho certeza se o pobre Andre concordaria com você – comentou
Gaston, lembrando-se do corpo com o casaco por cima, da expressão de
terror no rosto do pai. – Além disso, não vamos atrás da fera, Reizinho.
Prometi a meu pai que ficaríamos dentro de casa e em segurança.
– Desde quando seguimos regras? Vamos! Esse é exatamente o tipo de
aventura que estávamos esperando. Uma verdadeira aventura. Estamos
prontos, Gaston. – O príncipe estava tão indiferente com tudo aquilo que
Gaston quase sentiu vergonha dele. Como o príncipe poderia estar pensando
naquilo como uma aventura? Ele não viu como todos estavam assustados?
Seu amigo não estava levando aquilo a sério. Mas, também, havia muito
pouca coisa que ele levava a sério.
– Não estamos prontos, Reizinho! Deixe a fera para meu pai e seus
homens! – disse Gaston, sentindo-se frustrado com o amigo, mas antes que
pudesse dizer mais alguma coisa, Lumière abriu a porta e espiou dentro do
aposento.
– E o que vocês dois estão tramando? – perguntou Lumière, estreitando
os olhos para ambos. Gaston se sentiu feliz pelo fato de Lumière ter entrado
na sala; ele não queria brigar com seu melhor amigo. Sabia o que se passava
na mente do príncipe, e a última coisa que faria seria trair sua palavra ao
pai.
– Ah, nada, Lumière. Só estou querendo saber o que há para o jantar –
respondeu o príncipe.
– Suponho que isso dependa se você está jantando no andar superior ou
no inferior, Vossa Alteza. Mas, de alguma forma, duvido que seja disso que
estavam falando – afirmou Lumière, ainda olhando para os meninos como
se os tivesse flagrado fazendo algo que não deveriam.
– Talvez você esteja certo, Lumière, mas acho que jantaremos lá embaixo
esta noite.
CAPÍTULO V
A FERA NA FLORESTA
A vida tinha sido boa para Gaston enquanto o príncipe estava fora. Passava
a maior parte do tempo em sua missão singular: caçar e matar a Fera de
Gévaudan. E, se pudesse terminar as noites com os bons homens da aldeia,
melhor ainda. À noite, depois de um longo dia de caça, Gaston geralmente
ia à taverna do Velho Higgins, na aldeia. Sempre era recebido pelos
mesmos rostos amigáveis, todos ansiosos para ouvir sobre suas façanhas e
felizes em lhe pagar uma cerveja. Naquela noite em particular, Gaston abriu
as portas da taverna com um chute e entrou, com as botas cobertas de lama
e as roupas de caça salpicadas de sangue. Tinha um enorme alce pendurado
no ombro e o largou no chão com um baque forte. Todos ergueram os olhos
de suas cervejas e pausaram suas conversas, e comemoraram ao vê-lo.
– Gaston!
– Outro animal selvagem para empalhar e pendurar em sua parede,
Higgins! – Gaston anunciou, mostrando seus dentes brancos e perfeitos. –
Não há necessidade de aplausos, homens. Estou apenas fazendo meu
trabalho. Afinal, sou o caçador real. – Ele soltou uma risada estrondosa. E
não era mentira. Ele passava a maior parte do tempo caçando na floresta e
ocasionalmente organizava uma caçada real quando o rei estava na
residência. Mas no que dizia respeito às outras funções que seu pai
desempenhava quando era vivo, Gaston deixou-as para os demais membros
da equipe externa. Ninguém reclamou. Nem mesmo Cogsworth. E Gaston
estava feliz. Pela primeira vez, sentiu que tinha um propósito. Seu próprio
propósito, não ditado por outra pessoa.
– Gaston! Você conseguiu de novo! – disse o Senhor Higgins. – Outro
troféu. Estamos ficando sem espaço, Gaston. Talvez eu tenha que construir
uma taverna maior. – Todo mundo riu. A taverna estava cheia dos
frequentadores costumeiros. A maioria dos homens que viviam e
trabalhavam na aldeia parava no estabelecimento do Senhor Higgins para
tomar uma bebida e conversar antes de voltarem para casa à noite. Gaston
estava feliz por ter feito disso seu ritual noturno. Os homens o tratavam
com respeito e admiração. Realmente era o lugar perfeito.
– Pegue aí, Gaston. Por conta da casa! – ofereceu Higgins, deslizando
uma cerveja pela bancada do bar. Higgins tinha talento para isso, fazendo a
caneca deslizar da maneira certa para que parasse bem na frente do alvo
pretendido. Gaston pegou a caneca e ergueu-a na direção do grupo de
homens.
– Aos bons homens desta aldeia. E àqueles que têm que suportá-los! – ele
disse, rindo.
– Então, Gaston, teve sorte em rastrear a Fera de Gévaudan? Algum sinal
daquela criatura desgraçada? – perguntou o padeiro, sentado a uma mesa
próxima.
– Nenhum sinal ainda, meu bom homem. Mas tenho pena da fera se ela
voltar para nosso reino – declarou Gaston, terminando sua bebida e batendo
a caneca na bancada.
– Ah, vai voltar, não há dúvida disso. Ouvi dizer que destruiu uma aldeia
inteira numa noite, num reino não muito longe do nosso. As pessoas por
aqui estão outra vez com medo de sair depois de escurecer – disse o
chapeleiro, que estava sentado com o padeiro.
– Uma aldeia inteira, você disse? – Gaston se perguntou se isso poderia
ser verdade. Lembrou-se das histórias que o príncipe lia para ele sobre um
grupo de bruxas com um exército de esqueletos que atacava aldeias inteiras,
matando todos, inclusive crianças. Essa parecia uma causa mais provável
do que uma fera solitária, por maior que fosse.
– Alguém viu a fera? Tem certeza de que foi a Fera de Gévaudan? – ele
perguntou.
– Alguns dizem que a fera viaja com uma matilha de lobos, lobos
terríveis de tamanho incomum que, como a Fera de Gévaudan, anseiam por
sangue humano agora que o experimentaram – respondeu o cavalheiro que
era dono da livraria.
– Isso parece uma história de um dos livros que você vende, meu velho!
– apontou Gaston, tentando disfarçar com uma brincadeira, mas as palavras
do homem realmente o assombraram, trazendo de volta as imagens da
morte de seu pai, fazendo-as passar diante dele como se estivesse
acontecendo tudo de novo.
– Bem, não tenham medo, senhores. Seja um ou vinte, caçarei até o
último animal que encontrar, até o fim de meus dias, se necessário for, para
nos manter seguros – garantiu Gaston.
Nesse momento, um homem mais velho e atarracado, com um grande
bigode espesso e cabelos grisalhos desgrenhados, entrou na taverna
segurando um tronco nos braços. Ele era relativamente novo na aldeia,
então Gaston não o conhecia tão bem quanto os outros homens que
frequentavam o local.
– Algum de vocês viu corujas esta noite? – indagou o homem da porta,
segurando seu tronco nos braços como se fosse um bebê.
– Não posso dizer que sim, Maurice. Não entram muitas corujas aqui –
respondeu o Senhor Higgins, fazendo todos rirem. – Por que você pergunta?
– Gaston não gostou da maneira como Higgins provocava aquele homem.
Sorrindo para ele atrevidamente e tratando-o como um idiota. Até onde
Gaston sabia, ele era um indivíduo interessante. Talvez um pouco
excêntrico, mas algumas de suas pessoas favoritas também eram.
– As corujas têm agido de forma estranha. Vocês não perceberam? – o
homem indagou, piscando de perplexidade para os rostos confusos que
olhavam para ele.
– E o que você tem aí, Maurice, que segura com tanto cuidado? –
perguntou Gaston, caminhando até o homem e apontando para seu tronco.
– É minha tora! Minha primeira tora! Dá para acreditar nisso? – Maurice
exclamou, estendendo-a para ele.
– Parece uma tora muito bonita – disse Gaston, dando tapinhas no tronco
como alguém fazendo carinho na cabeça de um cachorrinho e sorrindo para
o homem.
– Não! Desculpe. Deixe-me explicar. Venho trabalhando em um novo
aparelho que corta madeira! E hoje ele realmente funcionou – contou o
homem com orgulho. – Pelo menos funcionou, até...
– Até que explodiu – concluiu Higgins, interrompendo-o e fazendo todos
na sala rirem.
– Só precisa de um pouco mais de ajustes – argumentou Maurice. – E é
melhor eu voltar ao serviço. Bela ficará furiosa comigo se eu me atrasar
outra vez para o jantar. Adeus, senhores.
Ele saiu correndo, segurando o tronco.
– Diga “olá” às corujas se você as vir – disse Higgins, rindo enquanto as
portas se fechavam atrás de Maurice.
– Oh, deixe-o em paz, Higgins. Ele é um velho inofensivo. E daí se ele
ama sua tora e acha que as corujas estão tramando alguma coisa – falou
Gaston. Todos riram, o que não era sua intenção, mas ele riu também,
mesmo não querendo.
– Aquele velho com certeza é um sujeito estranho. E acho que nunca vi a
filha dele, Bela, sem um livro nas mãos – declarou o padeiro.
– Ela está na minha loja quase todos os dias – comentou o livreiro.
– Ela é uma jovem muito... peculiar – observou o chapeleiro. – Nem um
pouco interessada em chapéus.
– Isso é muito peculiar, mas também bastante intrigante – disse Gaston,
olhando para o relógio. – Cavalheiros, é hora de eu ir também. A Senhora
Potts vai explodir se eu chegar atrasado para o jantar. – Ele se levantou do
banquinho e foi até a porta, onde deixara o bacamarte e o arco encostados
na parede.
O fato é que ele havia esquecido por completo, até aquele minuto, que
prometera à Senhora Potts que se juntaria a ela e aos outros criados para
jantar naquela noite. Então, ele se despediu, pendurou o bacamarte, a
mochila e o arco no ombro e atravessou a aldeia pelo caminho principal até
a ponte de pedra que o levaria diretamente ao castelo.
Gaston não usava mais as catacumbas ou caminhos escondidos. Não
parecia a mesma coisa sem o príncipe. E as recordações desses lugares
causavam uma dolorosa saudade em seu coração, dos dias anteriores à
morte de seu pai. O tempo permitiu que ele perdoasse o amigo pelo que
acontecera naquela noite, pelo menos foi o que dissera a si mesmo, mas a
lembrança ainda doía, e ele não desejava outra coisa senão voltar a uma
época em que aquele terrível acontecimento não estivesse entre eles. Gaston
ainda acreditava em tudo o que haviam dito um ao outro naquele dia antes
de Reizinho partir para seu tour, porém se perguntava como seriam as
coisas entre eles depois de tanto tempo. Dois anos pareceram uma vida
inteira; muita coisa mudara.
Quando finalmente chegou ao castelo, deu a volta até o pátio dos fundos
da cozinha, onde encontraria a entrada dos empregados. Ele tinha boas
lembranças daquele pátio, visitando os criados durante os intervalos e às
vezes brincando com o cachorro do príncipe, Sultão. Lembrou-se da
primeira noite em que ele e seu pai jantaram com os outros criados, depois
de tantos anos fazendo as refeições sozinhos no pequeno chalé. Recordou-
se de ter sentido como se sua vida tivesse mudado naquela noite. Ver seu
pai feliz novamente, rindo e se divertindo com os amigos. Eles viviam tão
isolados antes daquela ocasião, e depois parecia que não havia nada além de
alegria a esperar nos próximos dias. E Gaston se perguntou se não estaria
fazendo a mesma coisa que seu pai havia feito tantos anos atrás se isolando,
ao passar seu tempo caçando na floresta, visitando sua propriedade do outro
lado do reino e desfrutando de momentos de lazer na aldeia. Não que ele
não visitasse seus velhos amigos no castelo, apenas não o fazia de modo tão
frequente desde que começara a caçar a fera.
Podia ouvir risadas pelas janelas abertas do salão dos empregados, e isso
o fez sorrir. Como desejava que seu pai estivesse com ele agora. Quão
orgulhoso ele ficaria em saber que Gaston havia se tornado um caçador tão
habilidoso. Havia tantas coisas que ele gostaria que pudessem ter feito
juntos, tantas coisas que queria dizer, e agora nada disso aconteceria.
Gaston sabia que visitar o castelo iria trazer à tona essas lembranças e fazê-
lo se sentir sozinho no mundo, sem o pai ali. Elas sempre fizeram isso. Mas
ele não estava sozinho, não de verdade, tinha o Senhor e a Senhora Potts, e
até mesmo Lumière e alguns dos outros que eram como uma família para
ele agora, e Gaston esperava que sentissem orgulho do homem que ele
estava se tornando, assim como esperava que seu pai teria sentido. Amava
todos eles de verdade, e não lhe custava nada admitir isso.
Ele olhou para suas botas, lembrando que estavam cobertas de lama da
caçada daquele dia, e as removeu na varanda antes de entrar. Rapidamente
guardou seu bacamarte, arco e aljava no canto da entrada. Não queria se
arriscar à ira da Senhora Potts por deixar um rastro de lama lá dentro como
se ele fosse um garotinho de novo, mas, quando entrou, parecia que ela
ainda tinha motivo para estar aborrecida com ele. Estava parada ali,
aguardando-o. Gaston supôs que o motivo fosse seu atraso. E lá estava ela,
com uma expressão zangada no rosto.
– E como você chama isso? Chegar tarde, coberto de lama e sangue!
Saindo para caçar de novo? Bem, espero que você tenha trazido uma muda
de roupa – disse ela, balançando a cabeça.
– Eu trouxe. Aqui na mochila. – Ele desejou poder simplesmente ter
entrado despercebido e se trocado antes do jantar. Mas a Senhora Potts tinha
que estar esperando por ele ali!
– Não vou demorar – prometeu ele, entrando no banheiro. Gaston estava
horrível. Sem dúvida, deveria ter passado no chalé antes de ir para o
castelo, mas já estava atrasado. Ele não gostava de passar tempo no chalé,
mas não achava que pudesse pedir outro alojamento para se hospedar
enquanto visitava o castelo, pois não havia assumido todas as antigas
funções de seu pai, afora organizar os eventos esporádicos de caçada real
para o rei. Ele preferia passar a maior parte do tempo em sua propriedade,
que ficava bem distante do castelo.
Pelo menos, pensara em trazer algo decente para vestir. Quando voltou,
todo arrumado, a Senhora Potts deu-lhe um de seus sorrisos indulgentes e
um beijo na bochecha, então Gaston presumiu que ela aprovasse seu novo
visual.
– Agora, sim, está muito melhor. Bonito como sempre – disse ela,
segurando seu caçula, Chip, enganchado no quadril. Ele estava quase
grande demais para o colo. Era um garotinho gordo, com bochechas
grandes e redondas, e um sorriso feliz. Gaston perdera a conta de quantos
filhos ela e o Senhor Potts tinham agora.
– Dê boa-noite a seu tio Gaston, Chip. Todos os seus irmãos e irmãs já
estão na cama, e você também deveria estar – declarou ela, colocando-o no
chão.
Gaston inclinou-se e deixou o menino beijá-lo na bochecha, depois
observou-o ir embora cambaleando, o que o fez rir. Para ele, as crianças
sempre pareciam andar como homens que passavam muito tempo na
taverna.
– Sinto muito pelo atraso, Senhora Potts – desculpou-se Gaston,
beijando-a na bochecha. – Perdi a noção do tempo.
– Na taverna, sem dúvida, depois de um dia de caça. Parece que isso é
tudo que você faz hoje em dia. E olhe só para você, ficando tão grande. Não
creio que o príncipe vá reconhecê-lo quando chegar em casa – disse ela,
pegando-o pela mão e levando-o para a cozinha.
– Ele voltará logo então? – Gaston perguntou, envergonhado de admitir
que todas as notícias que recebeu sobre o príncipe vieram das cartas que a
Senhora Potts leu para ele.
– Sim, voltará. Muito em breve, acho. Ele me disse para avisar você.
Faremos uma grande festa para recebê-lo em casa e anunciar seu noivado. –
Ela disse isso com um débil sorriso. Sabia que Gaston ouvia essa notícia
pela primeira vez e provavelmente estava preocupada com a forma como
ele reagiria.
Esse foi um daqueles momentos em que Gaston desejou ter se esforçado
mais para aprender a ler, para que ele e o príncipe pudessem trocar cartas.
Nada o impediu depois que seu pai faleceu, mas, àquela altura, Gaston
sentiu que era tarde demais. Apenas não teve ânimo. Depois que Grosvenor
morreu, ele ficou deprimido demais para se concentrar em qualquer coisa, e
sentiu vergonha de pedir a alguém que o ensinasse. E não importava o
quanto se esforçasse ao tentar aprender sozinho, não conseguia entender.
Havia pensado em pedir ajuda à Senhora Potts. Ele sabia que ela seria
gentil, mas a ideia de pedir ajuda até mesmo a ela o enchia de ansiedade.
Em vez disso, concentrou-se naquilo que fazia melhor: caçar.
– Entre, Gaston. Vou lhe repassar todas as novidades. O príncipe está
muito ansioso para que eu lhe conte tudo – disse ela, conduzindo-o para o
salão dos empregados, onde todos já estavam sentados e o jantar estava
sendo colocado na mesa.
– Felizmente para você, o jantar saiu tarde esta noite – acrescentou a
Senhora Potts, enquanto Gaston puxava a cadeira para ela.
– Sinto muito se deixei todos vocês esperando – declarou Gaston,
sentando-se.
– Não, de jeito nenhum – falou Lumière. – Todos nós acabamos de nos
sentar e estamos muito satisfeitos por você estar aqui conosco.
Os habituais funcionários seniores do castelo; o Senhor Cogsworth;
Plumette; o Chef Bouche; Francis, o primeiro lacaio; alguns outros; e a
Senhora Potts e Lumière, é claro, estavam lá. Parecia uma festa alegre e
Gaston ficou feliz em se juntar a eles. A equipe estava entusiasmada com a
chegada iminente do príncipe e com a notícia de seu noivado. Pareciam não
falar de outra coisa. Até as criadas da cozinha conversavam sobre isso
enquanto terminavam de preparar o jantar. Todos à mesa estavam animados,
trocando ideias sobre os próximos acontecimentos, bem como sobre tudo o
que precisava ser feito para ajudar o rei e a rainha a prepararem uma
viagem marítima para uma terra distante logo após o retorno do príncipe.
Gaston achou interessante que o rei e a rainha tivessem passado muito mais
tempo no castelo enquanto o príncipe estava fora, e ainda mais interessante
que eles planejassem outra longa viagem agora que ele estava retornando
para casa. Perguntou-se se havia algo mais além do acaso.
– Então, Senhora Potts, conte-nos sobre essa jovem sedutora, Circe, com
quem o príncipe planeja se casar. Ela é uma princesa? Ao que tudo indica,
parece encantadora – disse Lumière, enquanto servia uma taça de vinho
para si e outra para Plumette.
– Sim, Senhora Potts, conte-nos tudo sobre Circe. Eu me pergunto se ela
é tão bonita quanto todo mundo diz. Como ela e o príncipe se conheceram?
– perguntou Plumette, dando um beijo na bochecha de Lumière como
agradecimento por encher novamente seu copo. Gaston adorava observar
aqueles dois. Sempre adorara. Quando ele era pequeno, simplesmente os
achava divertidos, e ainda achava, mas agora ele apreciava a maneira como
se amavam. Lumière tratava Plumette como uma rainha, sempre dizendo
que ela era linda, dando-lhe beijos furtivos e certificando-se de que ela não
precisava de nada. Isso o fez se perguntar como Reizinho e Circe seriam um
com o outro. Gaston nem sequer tinha pensado em cortejar alguém
enquanto o príncipe esteve fora. Estava muito ocupado caçando a fera. Isso
nunca lhe ocorrera. Não conseguia imaginar como seria a vida com uma
esposa e uma casa cheia de filhos, sem mais liberdade para fazer o que
quisesse. Quando olhava para o futuro, pensando nas possibilidades, sempre
imaginava sua vida com Reizinho.
A única outra pessoa que despertou o mínimo de seu interesse foi Bela, e
isso por causa do comentário que o livreiro fez na taverna naquela noite
sobre sua obsessão por livros. Gaston não conhecia ninguém mais obcecado
por eles do que ele e Reizinho, isto é, além do antigo bibliotecário, o pobre
sujeito demitido. Mas, na verdade, ele nunca prestara atenção nela até
aquele momento. Bem, se Reizinho tinha seu futuro planejado com essa tal
de Circe, então talvez ele devesse começar a pensar em encontrar alguém
também, por mais improvável que parecesse.
No entanto, Gaston sabia que não importava como seus pensamentos
vagassem, era improvável que ele cortejasse alguém da aldeia, mesmo que
ela adorasse livros tanto quanto ele. Simplesmente, não era um futuro que
ele pudesse de fato abraçar.
– Circe não é uma princesa, até onde eu sei, mas é descendente do Velho
Rei – contou a Senhora Potts com entusiasmo. Gaston fingia não estar
interessado em ouvir falar da mulher com quem seu amigo planejava se
casar. Mas a Senhora Potts o conhecia bem e sabia que ele estaria muito
interessado em saber que tipo de pessoa ela era.
– Então, ela é parente do Rei Neve, pai da Branca de Neve? – O Chef
Bouche pareceu impressionado. – Isso é bastante imponente, não acham?
Ela vem de uma das famílias mais antigas destas terras.
Gaston sabia um pouco sobre a ascendência de Branca de Neve. Ele e o
príncipe aprenderam sobre a família dela em um livro que encontraram na
biblioteca. Era a história dos Muitos Reinos, um volume intitulado Livro
dos Contos de Fadas. O Chef Bouche estava certo, Circe era descendente de
uma das famílias mais antigas dos Muitos Reinos, mas a história familiar
estava envolta em bruxaria e maldições. Por sua vez, quase todas as
famílias nos Muitos Reinos pareciam ter uma ou outra história sórdida
envolvendo bruxas, madrastas malvadas ou algo parecido. Então, ele não
poderia culpá-los por isso. Não que coisas estranhas e horríveis não
acontecessem em seu próprio reino. Eles eram atormentados pela Fera de
Gévaudan, por exemplo. Gaston se perguntou o que Circe pensaria disso.
Ou a terra de onde ela veio era ainda mais perigosa? Essa mulher, Circe,
não foi mencionada na história de Branca de Neve, então ele não sabia nada
sobre ela. Mas se ele bem se lembrava, o livro mencionava primos do rei
que eram de natureza desfavorecida, e ele se perguntou se Circe seria na
verdade parente daquele lado da família.
– De fato. Eles são primos, creio eu – disse a Senhora Potts, servindo-se
com algumas colheradas de batata com creme, queijo e cebolinha, e
passando a tigela para Gaston, que começou a empilhar batatas em seu
prato distraidamente enquanto relembrava a história de Branca de Neve e a
Velha Rainha, Grimhilde.
– Ei! Deixe um pouco para nós! – exclamou Francis brincando. Ele era
um lacaio recém-promovido que Gaston não conhecia bem. Mas Gaston
acabara de empilhar uma montanha de batatas no prato e não culpava o
lacaio por denunciá-lo enquanto sonhava acordado com os primos um tanto
estranhos do Rei Neve.
– Perdão! – falou Gaston, passando-lhe a tigela com um sorriso de
desculpas, percebendo que agora havia mais batatas em seu prato do que na
travessa.
– Não é de admirar que tenha tanto apetite, você cresceu muito, Gaston.
Olhe só seus braços enormes – observou Plumette com uma risadinha
alegre e musical.
Era verdade; Gaston comia mais do que nunca. Passava a maior parte do
tempo ao ar livre, caminhando e espreitando, cortando lenha e construindo
acampamentos para quando fosse caçar na floresta, e, assim que finalmente
parava no fim do dia, estava faminto. E parecia que ficava cada vez maior.
Seu pai era assim. Um homem grande e de constituição poderosa. Gaston
sempre pensou que fosse ser franzino como o príncipe, até que um dia se
olhou no espelho e viu a imagem do pai olhando para ele.
– Ora, vamos, Plumette, não queremos que Lumière fique com ciúmes,
não é? – o Chef Bouche disse brincando, fazendo Lumière rir. Todos
estavam muito animados naquela noite, exceto Gaston, que meditava sobre
o retorno do príncipe.
– Não que Lumière aqui tenha motivos para ficar com ciúmes. Ele é um
dos homens mais bonitos que conheço – disse Gaston, pegando um pouco
de carne assada da travessa e colocando-a ao lado da montanha de batatas.
– Essa Circe não tem irmãs um tanto estranhas? Ouvi dizer que são muito
peculiares e têm uma aparência desagradável. Você acha que Circe é
adequada o suficiente? Quero dizer, só porque ela é prima distante do Velho
Rei, eu me pergunto se isso a torna uma escolha digna. E quem são os pais
dela, exatamente? É isso que gostaria de saber – pontuou Plumette. Gaston
também queria saber. Começava a parecer muito provável que Circe fosse
irmã das irmãs um tanto esquisitas sobre as quais Gaston tinha ouvido falar
na história de Branca de Neve, e, se isso fosse verdade, ele precisaria se
perguntar se Reizinho havia inventado tudo.
– Ouvi dizer que Circe e as irmãs não revelam quem são seus pais. Eu
diria que é um mistério e tanto. Pelo que sabemos, ela é uma camponesa
pobre – disse Francis.
– Você não era um pobre fazendeiro antes de vir trabalhar no castelo? –
questionou Lumière.
– Eu não vou me casar com o príncipe, ela vai! O que realmente sabemos
sobre Circe? – perguntou Francis, olhando para Gaston e sua pilha de
batatas.
– Creio que já chega de fofoca – interveio o Senhor Cogsworth, olhando
de soslaio para Francis. Esse não era o tipo de conversa que o Senhor
Cogsworth encorajava. Na verdade, geralmente deixava claro que achava
aquilo desagradável e desrespeitoso. Para ele, não cabia a eles especular
sobre tais coisas.
– Aparentemente, o rei e a rainha aprovam, ou não estariam realizando
um baile para comemorar o noivado. E o Senhor Cogsworth está certo. Já
chega desta conversa. Temos muito que fazer antes que o príncipe retorne.
Temos um baile para organizar e não se esqueçam, o rei e a rainha partirão
logo depois – declarou a Senhora Potts.
– Tenho certeza de que Gaston ficará feliz quando o príncipe finalmente
voltar para casa. Não é, Gaston? – indagou Francis com um sorriso
atrevido.
– Estou ansioso para vê-lo. – Mas Gaston se perguntou se isso era
verdade. Sentia falta do amigo, contudo também apreciava a liberdade que
tivera enquanto Reizinho estava fora. E se perguntou como seria agora que
seu amigo, o príncipe, iria se casar. Imaginou que teria mais tempo com
Reizinho antes de ele se casar. A ideia de se adaptar a tê-lo de volta ao
mesmo tempo que conhecia Circe parecia assustadora. Mas ele supôs que,
se ele e Circe não gostassem um do outro, ele poderia continuar como vinha
fazendo nos últimos dois anos: caçando na floresta e passando um tempo
em sua propriedade, do outro lado da aldeia. No entanto, ademais, o
príncipe poderia insistir para que Gaston passasse mais tempo no castelo, e
ele se sentiria obrigado a fazê-lo, então só poderia esperar gostar daquela
mulher tanto quanto seu amigo parecia gostar.
– Ouvi dizer que você está fazendo seu nome na aldeia, Gaston. Ninguém
fala de outra coisa. Você é uma celebridade, sendo o melhor amigo do
príncipe – disse o Chef Bouche.
– Acho que é porque ele se tornou um caçador muito respeitado –
argumentou a Senhora Potts, lançando um olhar penetrante ao Chef Bouche.
– Concordo plenamente. Ouvi dizer que não há nenhum troféu na parede
do Velho Higgins que o próprio Gaston não tenha caçado – disse o Senhor
Cogsworth, surpreendendo a todos à mesa com seus elogios a Gaston.
Embora já houvessem se passado anos desde que o Senhor Cogsworth lhe
lançou olhares de desaprovação, nunca elogiara Gaston abertamente.
Parecia que o Senhor Cogsworth tinha parado de pensar nele como o
garotinho que deixava um rastro de lama no castelo e era uma má influência
para o príncipe.
– Entretanto, mal não faz ser o melhor amigo do príncipe, não é? –
pontuou o Chef Bouche, rindo muito.
– Se você tem algo a dizer, Chef Bouche, se tem bronca de mim por
alguma coisa, então sugiro que a revele! Talvez ache que esteja tirando
vantagem de minha amizade com o príncipe e usando-a como uma forma de
me tornar popular entre os aldeões? Se for esse o caso, agradeceria se você
dissesse isso de modo claro! – Gaston olhava o homem diretamente nos
olhos com o rosto cheio de fúria. Ele percebeu que havia surpreendido o
Chef Bouche.
– Não tenho bronca nenhuma de você, Gaston, isso lhe garanto. Não quis
dizer nada com isso. Tenho certeza de que todos na aldeia enxergam suas
qualidades assim como nós – respondeu o Chef Bouche, parecendo um
pouco surpreso com o rumo que seu gracejo tomara.
Gaston percebeu que o homem estava sendo sincero e se sentiu mal por
tentar desafiá-lo. O fato era que Gaston não tinha certeza se as pessoas o
amavam por si mesmo ou porque era sabido que ele era amigo do príncipe.
Ele fazia o possível para minimizar sua amizade com o príncipe, mas todos
sabiam que Gaston cresceu no castelo e recebeu terras e uma propriedade só
sua. Todavia, ele esperava que a razão pela qual fosse tão amado e
respeitado era porque estava empenhado em caçar e matar a Fera de
Gévaudan e porque havia jurado que nunca mais deixaria a aldeia viver
com medo novamente; ele ficaria mortificado se o amassem apenas porque
o príncipe era seu melhor amigo.
Quando Gaston começou a passar mais tempo na aldeia depois que
Reizinho saiu para seu tour e conheceu as pessoas que viviam e
trabalhavam lá, ouvindo de fato suas histórias, percebeu que estavam
aterrorizadas. Ficaram horrorizadas com as histórias da Fera de Gévaudan,
o que ela havia feito na região e como estava agora devastando outros
reinos próximos. Estavam com medo de que ela voltasse para caçar em suas
terras novamente, por isso Gaston prometeu-lhes que os protegeria e
acabaria com a fera, mesmo que fosse a última coisa que faria.
E o mais importante, ele prometeu a si mesmo que faria tudo ao seu
alcance para que se sentissem seguros. Rastrearia e caçaria a fera não
importa quanto tempo demorasse, e isso vinha sendo um esforço exaustivo.
No dia seguinte ao assassinato do pai de Gaston, toda a equipe externa
foi procurar o corpo da fera, esperando que ela tivesse sido mortalmente
ferida e simplesmente tivesse ido para algum lugar na floresta para morrer.
Mas eles não encontraram nada. E, mesmo que não tivesse havido
avistamento da fera naquela região desde a morte de seu pai, Gaston sabia
em seu coração que a fera retornaria e, quando isso acontecesse, ele estaria
pronto. Prometeu a si próprio que vingaria a morte do pai e jurou que essa
era uma promessa que não quebraria.
– Sinto muito, Chef Bouche. Por favor, me perdoe. Temo que haja algo
mais em minha mente que atrapalhou meu julgamento. Eu sei que você teve
boas intenções – disse Gaston.
– Todos nós já fomos culpados disso em uma ocasião ou outra, Gaston.
Não se preocupe – falou o Chef Bouche, parecendo mais à vontade.
O jantar prosseguiu como começara, todos de bom humor, rindo e
compartilhando histórias e imaginando como seria a noiva do príncipe.
Gaston fez o possível para participar da conversa, mas estava distraído.
Perguntava-se se queria estar presente no retorno de Reizinho. Agora que o
príncipe tinha Circe, Gaston não via lugar para si no castelo. Não que ele
passasse mesmo muito tempo lá. Mas ele imaginara, antes de saber do
noivado de Reizinho, que estaria lá com mais frequência. Talvez ele
voltasse para sua propriedade e ficasse lá por um tempo. Para ver como as
coisas estavam indo. E dar tempo aos dois pombinhos para se acomodarem
sem que Gaston estivesse lá para distraí-los.
Antes que percebesse, já era tarde e todos estavam se despedindo e
subindo as escadas para seus quartos. Gaston decidiu que não fazia sentido
tentar voltar para sua propriedade àquela hora já tão adiantada e resignou-se
a dormir em seu antigo chalé naquela noite e voltar para casa na manhã
seguinte.
– Gaston, você poderia se juntar a mim em minha sala antes de ir?
Gostaria de conversar com você – disse a Senhora Potts gentilmente,
conduzindo Gaston para fora do salão dos empregados.
Ele sabia que ela devia ter algo importante para discutir porque fechou a
porta atrás deles e tinha uma expressão bastante séria no rosto. Era culpa
dele, na verdade. Parecera taciturno e irritado durante todo o jantar. E havia
sido agressivo com o pobre Chef Bouche, então sabia que estava prestes a
receber um justo sermão. Gaston disse a si mesmo que o pobre sujeito
merecia outro pedido de desculpas e planejava fazê-lo assim que tivesse um
momento a sós com ele.
– Sente-se, querido. Quero saber: por que você não tem passado mais
tempo em sua propriedade? O príncipe lhe deu terras e uma casa própria,
mas você parece contente em deixar tudo a cargo de seu agente e seus
criados lá.
– Eu não tenho criados. Você está brincando, Senhora Potts? Na verdade,
aquilo lá é um pavilhão de caça melhorado.
– Ao que tudo indica, parece que você passa todo o seu tempo nesta
floresta caçando e acampando, e acho que sei por quê. Todo mundo sabe.
Mas isso tem que parar, Gaston, tem que parar mesmo – declarou ela,
pegando-o de surpresa. Essa não era a conversa que ele esperava. Ele tinha
certeza de que ela iria lhe dizer para não ficar de mau humor com o
casamento do príncipe. Algum tipo de discurso sobre como todos os
príncipes deveriam se casar um dia. Como é seu dever, e assim por diante.
Gaston não esperava por isso.
– Não estou entendendo.
– Oh, acho que está entendendo sim, meu garoto. Você ainda está
caçando a Fera de Gévaudan. A criatura não foi vista desde que seu pai
morreu – falou ela, colocando a mão na dele.
– Isso não é verdade. As pessoas da aldeia dizem que já foi vista em
outras partes desta região, em outros reinos. Estão morrendo de medo.
– Sinto muito, Gaston, e odeio dizer isso, mas às vezes as pessoas na
aldeia podem ser um pouco...
– Ignorantes. Era isso que você ia dizer? – ele perguntou, sentindo-se um
pouco irritado com ela.
– Não, eu ia dizer supersticiosas. E elas não são o que você chamaria de
mente aberta, mas esse é outro assunto. Só estou dizendo que talvez as
histórias da Fera de Gévaudan aterrorizando aldeões em outros reinos
distantes daqui sejam uma forma de passar as noites contando “causos”
perto do fogo e nada mais. Já se passaram anos desde que a criatura chegou
às nossas terras. Talvez você e seu pai tenham conseguido matá-la –
pontuou ela.
– Mas não foi exatamente isso que vocês pensaram da primeira vez?
Vocês não achavam que meu pai a tivesse matado anos antes de ela voltar e
tirar a vida dele? Quem pode dizer com certeza que ela não retornará? E eu
não deveria estar pronto quando isso acontecer? As pessoas da aldeia
contam comigo, procuram-me em busca de proteção. Não vou decepcioná-
los. Não vou quebrar minha promessa, não com eles.
– Sinto que estou conversando com seu pai. Você se parece muito com
ele, Gaston. Especialmente agora que está mais velho. Vi seu pai ficar
obcecado com a Fera de Gévaudan da mesma forma, depois...
– Depois do quê?
– Gaston, seu pai nunca lhe contou como sua mãe morreu?
– Achei que você soubesse disso. Não era isso que você estava
escondendo de mim? O que todos vocês têm escondido de mim?
– Eu nunca tive certeza do quanto você sabia, Gaston. Mas é hora de
você saber tudo. Seu pai caçou a fera durante anos depois que sua mãe
morreu. Depois de a criatura matá-la. A coisa virou sua obsessão e, no fim,
também o destruiu. Foi horrível quando sua mãe foi morta, meu rapaz. Foi
medonho, muito doloroso. É claro que seu pai não contou nada disso. E
agora sinto que estou traindo a confiança dele.
– Ele se foi, Senhora Potts. Não acho que ele vai se importar. Mas por
que esperar até agora para me contar? Por que depois de tantos anos?
– Não eram meus segredos para contar. Eram de seu pai e da rainha. –
Ela enxugou as lágrimas que escorriam por seu rosto com um lenço
delicadamente bordado e começou a torcê-lo nas mãos. – Falei com a rainha
e ela concorda que é hora de você conhecer toda a história. Mas você tem
que me prometer, Gaston: prometa que não vai deixar isso ficar entre você e
o príncipe.
– O que Reizinho tem a ver com isso? Ele nem tinha nascido quando
mamãe morreu.
– Bem, é isso mesmo – começou a dizer a Senhora Potts. – Ela morreu na
noite em que o príncipe nasceu...
CAPÍTULO VIII
ROSE NA FLORESTA
– Não sei por onde começar, meu rapaz – disse a Senhora Potts, enquanto
tomava um gole de seu chá preto aromatizado com baunilha, amêndoa e um
leve toque de conhaque. Ela e Gaston ainda estavam na sala de estar,
acomodados em poltronas confortáveis, de frente para a modesta lareira,
cuja cornija estava coberta de pequenos retratos emoldurados de todos os
seus filhos, entre sua coleção de lindas xícaras de chá. Entre as poltronas
havia uma pequena mesa redonda com um bule de chá, duas xícaras e um
prato com duas tortas de chocolate e frutas que uma criada da cozinha
trouxera para eles. Embora ansioso para que a Senhora Potts lhe contasse
sua história, Gaston estava fazendo o possível para não pressioná-la. Dava
para ele perceber que ela estava angustiada e apreensiva, mas sentia que
haviam escondido dele por tempo demais as circunstâncias da morte de sua
mãe. Nos dias após o terrível fim de seu pai, ele quis perguntar a ela, mas
não conseguiu. Sentia-se perdido e sozinho naquela época, embora estivesse
cercado por pessoas que o amavam. Ele era um fantasma vagando de um
lugar para outro, por capricho do príncipe. E, quando o príncipe partiu, já
não parecia importar mais que o pai de Gaston tivesse morrido antes que
pudesse partilhar seus segredos. Tudo o que importava era que Gaston
quebrara a promessa feita ao pai. Mas todos aqueles antigos sentimentos
estavam começando a surgir novamente e ele queria saber a verdade.
– Por favor, Senhora Potts, conte-me sobre a noite em que minha mãe
morreu. – Gaston tentava não ser rude. Essa era a última coisa que iria
querer. Ele amava aquela mulher, mas estava começando a ficar com raiva e
com medo porque sabia que havia algo que todos escondiam dele, e, agora
que finalmente estava prestes a descobrir a verdade, temia que isso mudasse
sua vida. Ele não tinha certeza se estava pronto.
– Mas há muito mais por trás dessa história, meu garoto. Tantas coisas
mais envolvidas. Não se trata apenas da noite em que sua mãe morreu. Não
se trata apenas de como ela foi morta. É também sobre o amor que a rainha
tinha por sua mãe e o quanto sua mãe a amava. Elas eram absolutamente
devotadas uma à outra, Gaston. Eram como irmãs, como você e o príncipe.
Quando descobriram que ambas estavam grávidas na mesma época, a
rainha insistiu que você fosse cuidado no infantário do castelo. Ela queria
que você e o príncipe crescessem juntos, pensando um no outro como
irmãos.
– E assim nós fizemos. Ainda mais próximo do que a maioria dos irmãos.
Ela realizou seu desejo – disse Gaston.
– E por que você acha que o rei e a rainha nunca estão em casa? Por que
acha que a rainha construiu um memorial tão magnífico para sua mãe
quando ela morreu? Ela fez isso porque se sentia responsável pela morte de
sua mãe. – A Senhora Potts tomou outro gole de chá e prosseguiu.
– Não foi culpa da rainha, é claro. Pelo menos, pensava que não, mas
mesmo assim a rainha se culpou, e acho que havia uma parte do coração de
seu pai que a culpava também. Você nascera havia poucos meses, mas sua
mãe voltara a trabalhar atendendo a rainha durante seu parto. Histórias da
Fera de Gévaudan varriam o reino e todos tinham medo de sair à noite para
não serem atacados ou devorados pela besta. Houve várias mortes naquele
período, e seu pai, com um grupo de outros caçadores, incluindo o rei,
estavam fazendo o possível para pôr fim ao reinado de terror da fera, que
dominava os pesadelos de todos. – A Senhora Potts fez uma pausa, o olhar
se desviando, como se ela estivesse relembrando aqueles dias, perdida em
seus pensamentos com as emoções brotando dentro dela enquanto contava a
história a Gaston.
– A rainha sentiu-se agoniada durante todo o seu confinamento, fazendo
com que sua mãe temesse por ela e pelo bebê. A rainha estava exausta,
preocupada com o que poderia acontecer ao rei enquanto caçava a Fera de
Gévaudan, e sua mãe estava sempre por perto nos dias que antecederam o
nascimento do príncipe para que pudesse confortar e acalmar a rainha.
“E a rainha não era a única pessoa apavorada. Todos nós também nos
sentíamos assim. Sua mãe estava angustiada, preocupada com a rainha e
também com um medo constante de que algo horrível acontecesse com seu
pai. Mas ela não confidenciava isso à rainha. Pelo contrário, era como uma
rocha, como o mármore, inquebrável e forte, pelo menos enquanto estava
na companhia da rainha. Mas depois, quando a rainha finalmente
adormecia, Rose descia para me visitar e, num jorro só, desabafava todas as
coisas que tinha de manter guardadas dentro de si, todo o medo que crescia
dentro dela a ponto de explodir. Todas as noites seu pai caçava a fera, ela
temia que ele não sobrevivesse e o dia em que ele não voltasse para ela.”
– Isso deve ter sido exaustivo para minha mãe – comentou Gaston,
tentando pintar uma imagem de Rose em sua mente, mas tudo que
conseguiu visualizar foi a estátua que ficava em frente ao seu local de
descanso eterno. Como se ela fosse feita de pedra, tal como a Senhora Potts
descrevera, forte e inquebrável.
– Foi horrível. Mas sua mãe era uma mulher forte e fez o possível para
apoiar a rainha, embora houvesse momentos em que só queria chorar. E era
isso que ela fazia, às vezes durante horas, depois que a rainha adormecia.
Sua mãe desabava em meus braços e soluçava. Eu queria dizer a ela que
tudo ficaria bem, mas é claro que nenhum de nós sabia se isso iria
acontecer. Então, apenas a abraçava e dizia que ela poderia contar comigo,
independentemente do que acontecesse conosco.
“Certa manhã, seu pai não apareceu no salão dos empregados para tomar
o café da manhã, como era seu costume enquanto sua mãe dormia no
castelo. Estávamos todos preocupados, ninguém mais do que sua mãe, que
parecia adoentada. Seus nervos estavam à flor da pele e ela aparentava não
dormir havia dias, tendo acabado de dar à luz a você não muito antes. A
rainha insistiu que Rose fosse até o chalé para ver como estava seu pai e
descansar. Nós duas insistimos, na verdade. Eu disse que cuidaria da rainha
enquanto sua mãe descansava, e nós duas lhe dissemos que ela não deveria
voltar até a manhã seguinte, e nem mesmo isso, instruindo-a a descansar até
que se recuperasse por completo. Ela tentou argumentar, é claro. Não queria
abandonar sua amiga. Mas, concordou, pelo menos, para verificar se seu pai
estava bem.
“Seu pai me contou mais tarde que, quando ela chegou ao chalé, desabou
na cama depois de um longo abraço e dormiu o dia inteiro. Ele cancelou a
caçada naquela noite, querendo ficar com sua mãe e, da mesma forma, para
que o rei também pudesse estar com a rainha. Seu pai estava feliz por tê-la
em casa. Feliz em cuidar dela enquanto ela descansava.
“Ele disse que Rose dormiu como se estivesse sob um feitiço de sono,
como uma donzela de um conto de fadas, dormindo sem parar, e sem se
mexer, exceto uma vez no início da noite, quando ele a acordou para comer
alguma coisa e tomar um chá. Mas depois ela voltou para debaixo das
cobertas e caiu novamente na terra dos sonhos. Exausta pelo permanente
cuidado com a rainha e pela preocupação constante.
“Mas então algo inesperado para seu pai aconteceu naquela noite. Ele só
me contou essa história uma vez, contudo as imagens que suas palavras
evocaram em minha mente queimam tanto que é como se Grosvenor as
tivesse compartilhado comigo esta noite, e não há muitos anos.
“Seu pai acordou com gritos vindos da floresta, não muito longe da casa.
Gritos horríveis que inundaram de terror todo o seu ser. Quando se livrou
do torpor e da confusão, percebeu que era sua mãe quem ele ouvia gritando.
Então, escutou os sinos tocando nas ameias do castelo, o que significava
que o rei e a rainha precisavam de ajuda. Ele não sabia por quê; só podemos
presumir que sua mãe tenha ouvido os sinos e temido que a rainha estivesse
em perigo durante o trabalho de parto e tenha saído correndo noite adentro
sem pensar. E foi isso que seu pai fez também. Pegou seu bacamarte e
correu para a floresta, seguindo o som dos gritos de sua mãe.”
A Senhora Potts parou por um momento para tomar outro gole de chá,
fazendo o possível para manter a xícara firme, enquanto tremia e tentava
conter mais lágrimas.
– E o que aconteceu, então? – perguntou Gaston. Seu rosto estava pálido
e inexpressivo, mas suas mãos também tremiam.
– Não sei se posso continuar, meu querido. Tenho certeza de que você
pode imaginar o restante – respondeu ela, baixando os olhos.
– Nada poderia ser pior do que minha imaginação. Você esqueceu, eu vi
meu pai sendo atacado por aquele maldito lobo.
– É pior do que qualquer coisa que você possa imaginar, meu garoto. Foi
tão horrível que seu pai mal conseguia falar sobre isso. Direi apenas que sua
mãe ainda estava gritando enquanto o monstro... a devorava. Não havia
como ela ter sobrevivido, mesmo que seu pai tivesse conseguido atrair a
fera. É horrível demais pensar nisso, meu querido. É horrível demais
imaginar o terror e a dor que sua pobre mãe sofreu em seus últimos
momentos e saber que seu pai viu isso acontecer. Ele fez a única coisa que
podia e pôs fim ao sofrimento dela, depois disso caiu de joelhos soluçando,
dizendo repetidas vezes o quanto sentia muito, sem se importar com a
própria vida, ou mesmo sem perceber que a fera avançava em sua direção
enquanto ele chorava por sua mãe. Nada além de tristeza existia para ele
naquele momento. Não importava para ele o ataque do monstro, que
arranhou seu rosto. Seu pai achou que era certo ele morrer. Queria estar
com sua mãe. Sentia que merecia uma morte horrível em pagamento pela
dela, por não protegê-la.
– Mas não foi culpa dele. Ela saiu correndo enquanto ele dormia. Ele não
sabia. – O estômago e o peito de Gaston estavam contraídos de tristeza e
horror. Ele não tinha ideia de que seu pai sofrera aquilo. Seu corpo estava
fraco e dominado pela dor. Desejava mais do que nunca matar a fera. Ele
precisava matar a fera. Era seu dever, não apenas para com sua mãe e seu
pai, mas também para com o povo da aldeia. Não deixaria nenhum deles
sofrer essa mesma dor, essa perda e tristeza, esse horror, nunca.
– Eu sei, meu querido, mas em momentos de tristeza às vezes nos
culpamos. E em momentos de pânico não pensamos. É por isso que nunca
culpei a rainha por ordenar que os sinos tocassem. – Dava para ver que ela
receava que ele culpasse a rainha. E por que não deveria? Ela era a culpada.
Sua ansiedade e raiva estavam se tornando uma torrente violenta, atacando-
o por dentro. Suas mãos tremiam e ele fazia o possível para não chorar, mas
sentia que, se segurasse o choro por mais tempo, poderia explodir.
– Ela sabia que a fera estava lá fora! Como pôde colocar minha mãe em
perigo daquele jeito? Ela sabia que se minha mãe ouvisse aqueles sinos ela
viria – disse ele, mal conseguindo respirar, a dor no peito tão forte.
– Talvez. Mas assim como sua mãe não pensou antes de sair correndo
para a noite perigosa, a rainha não estava pensando no monstro que
espreitava ali. Ela corria o risco de perder o filho, Gaston, e queria que a
amiga estivesse a seu lado. Isso foi tudo em que ela pensou naquele
momento de desespero e medo.
Gaston viu verdade nisso. Gostaria que tivesse sido diferente, mas
entendeu. Também fizera uma escolha que matou alguém que amava. Quem
era ele para culpar a rainha por chamar a irmã em meio à dor e ao medo de
perder o filho? Talvez a raiva que sentiu da rainha fosse na verdade raiva e
decepção em relação a si mesmo. Ele não sabia.
– Como meu pai escapou da fera? – ele perguntou, tentando banir as
imagens horríveis de sua mãe. Tentando esquecer o que seu pai acreditava
que seriam seus últimos momentos. Por que sua vida tinha que estar tão
ligada àquela criatura?
– Alguns dos outros funcionários externos ouviram os gritos de sua mãe
e vieram ajudar. Quando viram a fera atacando seu pai, atiraram nela, dando
a Grosvenor uma chance de escapar. A criatura cambaleou para trás, o que
lhe permitiu agarrar seu bacamarte e atirar bem no peito da fera. Todos
tinham certeza de que fora um golpe mortal, mas a fera escapou para a
floresta. Foi um negócio sangrento, meu querido. Um negócio sangrento. A
rainha ficou arrasada e seu pai não sabia a quem culpava mais, a si mesmo
ou à rainha. – A Senhora Potts apertou a mão de Gaston com ternura e
olhou para ele com olhos tristes. Ele realmente amava essa mulher e estava
muito grato por tê-la em sua vida. Era a única pessoa que fora como uma
mãe para ele. Gaston não sabia o que faria sem ela.
– É por isso que meu pai preferia passar o tempo no chalé? Mas
certamente ele não achava que vocês o culpassem. – Gaston odiava a ideia
de seu pai se culpar. E pensar que, todas aquelas noites, quando seu pai
olhava para o céu noturno em uma melancolia silenciosa, ele se sentia
responsável pela morte da própria esposa. Era de partir o coração.
– Não, meu querido. Nenhum de nós o culpou. E compreendemos por
que ele caçava obsessivamente na floresta. E por que era raro o rei e a
rainha estarem em casa. A rainha adora que você e o príncipe sejam como
irmãos, é o que ela e sua mãe mais desejavam, mas dói muito ver vocês
juntos. Isso a faz sentir falta da amiga ainda mais, e ela não consegue
suportar o fato de ter tirado sua mãe de você.
– Ela não tirou minha mãe de mim, foi a fera, e eu vou matá-la, Senhora
Potts. Eu juro que vou.
– Meu querido menino, por favor, não siga o caminho do seu pai. Não
dedique sua vida à vingança. Esse tipo de sofrimento é terrível demais para
alguém tão jovem.
Ela se levantou e pegou o rosto dele entre as mãos.
– Por favor, meu garoto, prometa para mim. Eu gostaria muito que você
escolhesse a felicidade.
– Não podemos escolher o nosso destino, Senhora Potts – disse ele,
surpreso com a conversa dela sobre felicidade. Perguntando-se se isso era
mesmo possível.
– Então é seu destino se afogar em um turbilhão de tristeza e vingança?
Não perca sua vida caçando essa fera, meu querido. Se você fizesse isso,
acho que nunca conseguiria parar de chorar. – Ela estava à beira de mais
lágrimas.
– Não pretendo, Senhora Potts. Estou feliz que meu pai não tenha me
revelado sua história. Não suporto a ideia de ele ter que revivê-la, ou ver a
dor em seu rosto ao contá-la. Obrigado por ser franca comigo, Senhora
Potts. E, por favor, não se preocupe. Eu prometo que ficarei bem. – Ele a
pegou nos braços. Ela parecia tão pequena perto dele agora. Tão frágil.
Alguém a ser protegido. Cabia a ele protegê-la agora, proteger todos eles.
– É hora de você parar de tentar cuidar de mim, Senhora Potts, e me
deixar cuidar de você. Cuidar de todos vocês – disse ele, recuando e
sentindo-se grato por ter alguém que o amava tanto.
– Sempre cuidarei de você, Gaston. Sempre. Você é meu doce menino –
declarou ela, chorando outra vez. – E você não culpa o príncipe?
– Pela morte do meu pai? Eu fiz isso por muito tempo. Mas éramos
ambos jovens e tolos, Senhora Potts. Não sei se ainda culpo alguém. – Ele
não tinha certeza se aquilo era verdade. Havia uma parte dele que ainda
culpava o príncipe e a si mesmo, mas agora ele estava guardando sua raiva
e tristeza para a fera.
– Eu quis dizer pela morte de sua mãe – falou ela, tomando um gole
trêmulo de chá.
– Claro que não. Por que eu o culparia pela morte de minha mãe? E não
culpo a rainha, de verdade. Meus pais estão mortos porque uma fera vil os
atacou.
– Estou orgulhosa do homem que você está se tornando, Gaston. Mas não
pense que algum dia deixarei de vê-lo como meu querido menino. E você
deve me prometer que acabará com a caça a essa fera.
– Não faço promessas que não possa cumprir, Senhora Potts. Não mais.
CAPÍTULO IX
O CONVITE
A FEITICEIRA NO JARDIM DE
ROSAS
Gaston ficou surpreso por ter tempo de sobra depois de se vestir para o
baile e ficou bastante feliz por Francis estar lá para ajudá-lo, afinal. Não era
de admirar que a realeza precisasse de criados e criadas – suas roupas eram
tão complicadas, com pequenos botões e prendedores, que ele não seria
capaz de dar conta, especialmente com suas mãos grandes. Ele riu,
imaginando-se tendo que se virar com tudo aquilo sozinho. Graças aos céus
por Francis.
Ainda tinha algum tempo antes de ser aguardado na sala de estar, então
decidiu dar um passeio pelos jardins. Sentia-se bastante estiloso, e talvez até
um pouco elegante (pelo menos para Gaston) com seu novo traje, que ele
não odiou. Outra surpresa. Quem diria que iria gostar de se vestir bem e se
sentir tão bonito. É claro que Reizinho escolheria algo perfeito. Ou pelo
menos daria instruções a alguém incumbido de adquirir as roupas novas e
elegantes de Gaston. As cores, o caimento e o estilo eram perfeitos para
Gaston. Vermelho era a cor de Gaston, e Reizinho sabia disso. Ele escolhera
uma bela sobrecasaca vermelho-escura que fez Gaston se sentir um
cavalheiro sem todo o espalhafato que detestava na moda da realeza.
E se os numerosos elogios que Francis lhe fez fossem indicação disso,
Gaston parecia bastante elegante em seu novo traje na última moda. Claro,
isso era o que seria de esperar que um valete dissesse, mas algo na maneira
como Francis falou quando Gaston estava totalmente vestido fez Gaston
sentir que parecia bastante arrasador.
Ele começara bem.
Gaston estava grato por esse tempo sozinho para pensar e passear pelos
jardins antes de ser lançado em uma situação social na qual, francamente,
não tinha ideia de como se comportar. Mas o novo traje o ajudou. Pelo
menos, ele teria a aparência adequada.
Enquanto caminhava, ouviu vozes de mulheres vindas de dentro do
roseiral. Era lindo, repleto de roseiras rosadas e cercado por sebes altas com
um caminho circular de pedra que levava ao centro, onde se podia sentar e
apreciar a vista. Quem estava no jardim parecia estar discutindo, sem saber
que Gaston se encontrava do outro lado da cerca viva e podia ouvir tudo o
que diziam. Ele sabia que um cavalheiro não ficaria escutando, mas,
também, ele não era um cavalheiro, mesmo que estivesse vestido como um.
– Por favor, irmãs, parem de tentar nos separar. Ele não fez nada para
merecer seu desprezo!
– Ele não é digno de você, Circe.
– Nós vimos isso no...
– ... Livro dos Contos de Fadas.
Gaston poderia jurar que ouvia três, talvez quatro, vozes diferentes
participando da conversa. E algumas delas pareciam um bocado bizarras.
Tão estridentes, com uma cadência tão incômoda na forma como falavam,
terminando as frases umas das outras. Eram vozes que ele não havia ouvido
antes, então tinha quase certeza de que deviam ser Circe e suas irmãs
esquisitas. Plumette comentara que as irmãs de Circe eram estranhas e ela
estava certa. Ele se perguntou se o príncipe as havia conhecido antes de
pedir Circe em casamento. Provavelmente teve que fazer isso, se elas eram
suas guardiãs. Embora parecesse que ela concordara em se casar com o
príncipe sem o consentimento delas, o que significava que Circe era dona
de seu nariz. Talvez ele gostasse dela, afinal.
– Ele é um monstro, Circe! – disse uma de suas irmãs com uma voz
esganiçada tão alta que Gaston estava preocupado que ela pudesse chamar
atenção de outras pessoas. Ele olhou em volta para ver se havia mais
alguém no jardim, mas não avistou ninguém, a não ser os funcionários, na
correria da preparação do baile.
– Ele não é um monstro, Lucinda! Ele me ama e eu me casarei com ele,
não importa o quanto você proteste! – disse Circe.
Gaston ficou surpreso. A tal Circe parecia saber o que queria e estava
visivelmente apaixonada por seu amigo. Ele ficou bastante impressionado
ao ouvi-la enfrentar as irmãs e percebeu que começava a gostar dela, apesar
de tudo. Talvez ela fosse exatamente o tipo de pessoa que manteria
Reizinho na linha.
– Ele ama você por sua beleza e título, e nada mais – disse uma das
irmãs.
– Que título? Não tenho título e mesmo assim ele concordou em se casar
comigo. Poderia se casar com quem bem entendesse, mas quer se casar
comigo – disse Circe.
– Você vem de uma das famílias mais antigas de Muitos Reinos, Circe –
uma terceira irmã falou.
– Você merece coisa melhor do que esse garoto que está brincando de rei.
Enxergamos dentro de seu coração. Não vemos nada além de crueldade e
egoísmo persistentes ali. Guarde minhas palavras, minha garota, ele vai
partir seu coração. Você acha que ele a amaria se você não fosse tão bonita?
Ou, digamos, se você fosse filha de um criador de porcos?
– Eu acho! Esse tipo de coisa não importa para ele. Ele me ama
incondicionalmente – insistiu Circe, e Gaston tentou não rir, perguntando-se
se isso era verdade.
– Veremos, minha menina. Veremos – disseram todas as suas irmãs ao
mesmo tempo, o que Gaston achou perturbador. Como deveria ser a vida
para essa jovem, vivendo com essas irmãs horríveis e controladoras? Não
era de admirar que ela estivesse ansiosa para se casar com o príncipe, pelo
menos para fugir de sua estranha família.
Gaston ouviu Circe chorando quando três pares de passos ressoaram
audivelmente em sua direção no caminho de pedra que desembocava do
jardim de rosas. Ele rapidamente se afastou para fazer parecer que não
estava ali ouvindo, mas não pôde deixar de se assustar com elas quando
saíram de trás do alto muro do jardim. Eram mulheres de aparência
assustadora, cada uma delas exatamente igual às outras. Pensar que havia
uma mulher assim em seu reino, quanto mais três, era inacreditável, com
cabelos negros, pele horrivelmente pálida e olhos bulbosos tão fortemente
delineados de preto que pareciam ter acabado de rastejar para fora de seus
túmulos. Gaston sentiu um arrepio percorrê-lo quando elas lançaram seu
olhar sobre ele, olhando-o de cima a baixo enquanto passavam.
Aquelas mulheres eram realmente enervantes. Elas olharam para ele
como se o conhecessem. Como se conhecessem sua história e o que estava
em seu coração. E ele sentiu que elas sabiam que ele estivera ouvindo a
conversa delas. E por alguma razão sobrenatural, tudo isso pareceu agradá-
las.
Ele observou enquanto elas se afastavam em direção às grandes portas
duplas elaboradamente esculpidas que levavam ao castelo, e não pôde
deixar de se perguntar no que o príncipe havia se metido. Até o modo como
andavam era perturbador, amontoadas, como se estivessem conectadas,
sussurrando e batendo os saltinhos no caminho, os vestidos nos tons preto e
berinjela flutuando ao redor delas como flores cadavéricas. Pareciam bruxas
de um conto de fadas. Isso o lembrou daquele livro que ele e o príncipe
leram, o Livro dos Contos de Fadas. Eram essas as mulheres daquelas
histórias? E então ele se lembrou, uma delas havia mencionado o mesmo
livro. Disseram que viram a história de Reizinho em suas páginas. Como
isso era possível? Ele e Reizinho leram aquele livro de capa a capa e nunca
viram uma história sobre seu reino. Essas mulheres estavam delirando ou
mentindo.
Quem quer que fossem, por tudo que Gaston acabara de ouvir, essas
mulheres peculiares não queriam que sua irmã se casasse com o príncipe. O
príncipe não precisava se envolver nessa briga familiar. Ele não gostaria
que as irmãs de Circe clicassem os saltinhos pelo castelo, assustando os
funcionários com seus rostos pavorosos. Gaston não sabia o que pensar.
Circe defendera o príncipe diante de suas excêntricas irmãs; ela parecia
amá-lo e confiar nele. Mas mesmo que ela fosse a mulher mais bonita de
todas as terras, valeria a pena ter aquelas mulheres terríveis como irmãs por
casamento?
Quando sua mente se acalmou um pouco, Gaston não pôde deixar de
ouvir Circe ainda chorando no jardim, então, quando as irmãs dela estavam
a uma distância segura, ele pegou o lenço que Francis havia colocado tão
cuidadosamente no bolso do peito de sua sobrecasaca e entrou no jardim.
Ela estava sentada no banco, seus cabelos dourados brilhando ao luar;
parecia iluminada por dentro. Sua cabeça estava baixa; ela não sabia que ele
estava ali olhando para ela. Quando ergueu os olhos, ele entendeu. Era a
mulher mais linda que ele já tinha visto. Sua beleza era quase dolorosa
demais para ser contemplada. Ele estendeu o lenço e observou-a pegá-lo
para enxugar as lágrimas. Seus olhos tristes olharam para ele com bondade.
– Obrigada, Gaston – disse ela, sorrindo para ele. Ele se perguntou como
ela sabia o nome dele. Reizinho devia ter contado a ela tudo sobre ele, sobre
seu maior companheiro, mas como ela sabia que ele era essa pessoa? – Peço
desculpas pelas minhas irmãs. Imagino que você tenha ouvido o que elas
disseram. – Ela parecia pequena e triste. Tão doce e nem um pouco como
ele havia imaginado. Não era de admirar que seu amigo quisesse se casar
com ela e estivesse dando tanto trabalho a todos no planejamento desse
grandioso evento.
– Elas protegem a irmã mais nova – disse ele, sem saber o que mais dizer.
– Você é muito gentil. – Ela se levantou e pegou a mão dele, piscando
para afastar mais lágrimas. – Eu gostaria que você não tivesse que partir. –
Ela disse isso de forma tão causal que quase não foi registrado.
– O que você quer dizer? Para onde estou indo? – ele perguntou,
retirando a mão surpreso.
– Querido, doce Gaston. Eu vejo dentro do seu coração. Vejo a dor que o
príncipe lhe causou, como isso apodrece profundamente dentro de você, e
temo que um dia um de vocês perca a vida como resultado. Por favor,
confie em mim, é melhor que vocês nunca mais se vejam.
– Confiar em você? Eu não a conheço, mademoiselle! Você vem aqui
com suas irmãs horríveis, fazendo prognósticos, dizendo que vou perder
minha vida por causa de meu melhor amigo, meu irmão? Ou que de alguma
forma irei causar o fim dele? Quem você pensa que é?
– Às vezes, não podemos evitar nosso destino, Gaston. – Embora aquela
mulher pudesse não se parecer com suas irmãs, ela também era uma bruxa,
embora mais astuta e sedutora. Sabia o que estava fazendo, usando sua
beleza e voz gentil, tentando fazê-lo pensar que machucaria seu amigo.
Mas, na verdade, ele sabia que ela só o queria fora do caminho.
– Reizinho contou a você como meu pai morreu? Você está dizendo que
vou me vingar dele de alguma forma? Isso é loucura!
– Não é vingança. Pelo menos, acho que não. O que vejo não está claro.
Tudo o que sei é que envolve uma fera – declarou ela, estendendo a mão
para pegar a dele, como se lhe doesse dizer essas palavras. Ela era uma boa
atriz, aquela bruxa. Astuta, cruel e perversa, disfarçada por uma voz
melíflua.
– Eu não culpo mais Reizinho por isso. Eu nunca iria machucá-lo.
Nunca!
– No entanto, algo tomou conta de você. Um ódio por algo ou alguém,
tão forte que colocará a vida do príncipe em risco – disse ela.
– Meu ódio é pela fera que matou minha mãe e meu pai, não por
Reizinho! – Ele deu um passo para trás. – Que tipo de mulher você e suas
irmãs são? Que tipo de bruxas? Você entendeu tudo errado, Circe. Eu não
vou matar Reizinho.
– Eu sei. Estou preocupada que ele possa matar você – disse Circe.
– Você está me ameaçando?
– Estou apenas oferecendo um aviso. Gostaria de poder ver os eventos
claramente em minha mente. Eles estão obscuros e confusos, mas sei que se
vocês dois continuarem amigos, isso resultará em um dos dois matando o
outro – afirmou ela. – E parte meu coração dizer isso, porque sei que ele
não ama ninguém mais do que ama você. Nem mesmo a mim.
– É disso que se trata, então, não é? Você está com ciúmes. Você está
tentando se livrar de mim.
– Se eu estivesse apenas tentando me livrar de você, pediria às minhas
irmãs que o levassem para o Hades. Acredite ou não, Gaston, depende de
você. De qualquer forma, há um jantar e um baile dos quais devemos
participar, e imagino que todos estejam esperando que nos juntemos a eles
na sala de estar. Então, por que você não aproveita ao máximo esse tempo
que passa com seu irmão antes de partir? E, por favor, confie que farei tudo
o que puder para fazê-lo feliz na sua ausência.
Ela sorriu para ele como se não estivesse destruindo seu mundo. Isso era
pior do que Gaston imaginara.
– Você já contou a Reizinho sobre isso?
– Não. Eu não queria estragar o reencontro de vocês para ele. Pensei em
deixar você lhe dizer que estava indo embora. Acho que seria melhor vindo
de você. É o melhor, Gaston, por favor, confie em mim. Só estou tentando
proteger vocês dois. – E ele quase acreditou que ela pensava que estava
dizendo a verdade.
– Eu entendo – mentiu Gaston, oferecendo o braço a Circe para que ele
pudesse acompanhá-la até a sala de estar. Ele não podia fazer nada a esse
respeito agora. Ali não. A qualquer momento alguém viria procurá-los. Ele
tinha que agir como um cavalheiro. Tinha que agir como se tudo estivesse
exatamente como deveria ser. Ele pareceria o bruto que Circe
provavelmente pensava que ele era se fizesse uma cena. Mas o fato é que
ele não entendia. Aquilo tudo fora uma loucura. Previsões misteriosas e
suas horríveis irmãs bruxas. Algo não estava certo. Por mais grotescas que
fossem suas irmãs, Circe era a perigosa. Ela queria Reizinho para si. Ela
quase disse isso. O príncipe o amava mais do que qualquer um, inclusive
ela. Era disso que se tratava. Gaston não se importava se ela era uma bruxa
perigosa ou não. Ele não iria deixá-la mandá-lo embora.
Quando chegaram à sala, todos estavam esperando para entrar e jantar.
Eram apenas a família real, as irmãs de Circe e um pequeno número de
amigos da família. Gaston não sabia o que fazer quando viu Reizinho. O
que ele queria era abraçar seu velho amigo, dizer-lhe o quanto sentira sua
falta, que ficar sem ele era mais do que poderia suportar. De alguma forma,
Gaston não percebeu que se sentia assim até o momento em que Circe
ameaçou mandá-lo embora. Quando viu Reizinho parado ali, sorrindo para
ele, soube que nunca mais queria ficar sem ele. Gaston dizia a si mesmo
que estava feliz por Reizinho estar fora, feliz por estar sozinho, mas, na
verdade, estava infeliz e solitário longe dele. Vinha ocupando seus dias
caçando a fera, tentando esquecer a dor da perda de seu pai, mas também a
perda de seu companheiro mais próximo. No momento em que contasse a
Reizinho a verdade sobre como sua mãe havia morrido, Gaston sabia que o
príncipe se juntaria a ele na caça à fera, e, juntos, a matariam, reescrevendo
para sempre toda a dor e angústia que ela havia causado. Mas se Circe
estava determinada a separá-los, a mandá-lo para longe de seu melhor
amigo, de seu irmão, e do único lar e família que ele conheceu, como isso
seria possível? De certa forma, ele estava grato a Circe por fazê-lo temer
perder seu melhor amigo para sempre.
Ele precisava fazer algo a respeito dela. Mas, primeiro, só precisava
passar pelo jantar e pelo baile. Ele viu a rainha sorrir para ele do outro lado
da sala. Seu coração doeu ao pensar que era difícil para ela vê-lo, que isso a
fazia se lembrar de sua amiga Rose. Quão sentida ela ainda deve estar pela
perda. Ele não conseguia imaginar perder Reizinho. E, assim que ganhou
coragem e atravessou a sala para abraçar o amigo, Lumière abriu as portas
da sala de jantar com um gesto teatral e grandioso que chamou atenção de
todos.
– O jantar está servido, Vossas Majestades!
– Obrigada, Lumière – disse a rainha com um sorriso. – Todos, por favor,
sigam Lumière até a sala de jantar. – Lumière os conduziu.
– Gaston, você não vai acompanhar minhas irmãs até a sala de jantar?
Tenho certeza de que elas ficariam honradas – disse Circe enquanto se
aproximava do príncipe para que pudessem entrar juntos na sala de jantar.
– Seria um prazer – respondeu Gaston, encolhendo-se ao oferecer o braço
à irmã da ponta. E será um prazer ver você deixar este reino, para nunca
mais voltar, ele pensou enquanto conduzia desajeitadamente as três bruxas
até a sala de jantar.
Mas o estranho foi que, justamente quando ele pensou isso, todas as três
olharam para ele e sorriram sinistramente. Elas o ouviram. Ele soube disso.
Leram seus pensamentos. Era estranho e inconfundível, mas inegável. Elas
eram bruxas. Porém foi a coisa mais inusitada; elas pareciam querer ajudá-
lo. Bem, é claro que sim, quando ele pensou melhor sobre isso. Elas não
queriam que a irmã se casasse com o príncipe, assim como ele. Juntos,
encontrariam uma forma de garantir que aquele casamento nunca
acontecesse. Mesmo que isso significasse fazer amizade com aquelas irmãs
esquisitas.
CAPÍTULO XI
Para horror de Gaston, ele estava sentado entre as ridículas irmãs de Circe.
Descobriu que se chamavam Lucinda, Ruby e Martha, embora não soubesse
qual bruxa era qual. O jantar durou uma eternidade, enquanto Lumière
apresentava prato após prato, comida suficiente para que até Gaston
estivesse quase estourando. De vez em quando, via Lumière olhando para
ele, como se se sentisse mal pelo infeliz lugar de Gaston à mesa. Gaston
mal podia esperar para descer para o salão dos empregados e contar-lhes
que os rumores sobre as irmãs de Circe eram verdadeiros.
– Como deve ser estranho para você estar no salão de jantar, entre as
pessoas que você já serviu – disse uma das irmãs de aparência medonha.
Era verdade. Era estranho estar ali com o rei e a rainha, e até mesmo com
Reizinho, naquele cenário. Era tudo tão formal, com grandes arranjos
florais e velas por toda parte. Com Cogsworth e todos os seus lacaios
alinhados, em posição de sentido e esperando para ver se algum dos
convidados precisava de alguma coisa.
– Acho que é ainda mais desconfortável ser atendido por pessoas que
considero meus amigos – afirmou ele.
– Falando em amigos, como você deve estar triste. O príncipe não disse
uma palavra a você a noite toda. Acho que ele nem olhou em sua direção
durante o jantar – declarou a bruxa à esquerda. Isso era verdade. Mas
Reizinho sorriu para ele quando estavam na sala de estar, e isso era tudo de
que Gaston precisava. Ele sabia em seu coração que o amigo estava feliz
em revê-lo.
– Sim, me pergunto se Circe não o envenenou contra você – disse a bruxa
à direita, que obviamente não se importava em quebrar as regras de
etiqueta.
Uma das coisas que Francis transmitira a Gaston durante seu curso
intensivo de etiqueta da corte, enquanto o ajudava a se vestir, foi que era
impróprio falar do outro lado da mesa durante jantares formais. Esperava-se
que os convidados seguissem o exemplo da rainha. Se ela estava
conversando com a pessoa à sua esquerda, o mesmo acontecia com todos os
outros à mesa. E assim que ela passou a falar com a pessoa à sua direita,
todos seguiram o exemplo. O que significava que, para a consternação de
Gaston, ele passou a refeição inteira apenas falando com as assustadoras
irmãs de Circe.
– Ora, vamos, acho que vindo de uma família como a sua, tão antiga e
tão respeitada, vocês saberiam como funcionam jantares como este –
pontuou Gaston, feliz consigo mesmo por ter se lembrado da lição de
Francis.
– Você está nos repreendendo, Gaston? É tão cavalheiro agora que se
julga em posição de comentar nossa falta de decoro? – disse a bruxa à
direita.
– De jeito nenhum, minha senhora. Apenas dei uma explicação razoável
sobre por que o príncipe ainda não falou comigo esta noite. – Perguntou-se
quando aquele jantar miserável terminaria e ele seria libertado de tal
tormento, pois estava claro que era isso que aquelas mulheres estavam
fazendo, atormentando-o e sentindo muito prazer em fazê-lo.
Quando as bruxas não estavam sussurrando umas com as outras,
conversavam com ele. Alfinetando, bisbilhotando e rindo estridentemente
em seus ouvidos. Mas a bruxa tinha razão. Reizinho não olhara para ele
nenhuma vez durante toda a refeição. E Gaston se perguntou se as bruxas de
aparência esquelética, com perucas e maquiagem demais no rosto, estavam
certas ao dizer que a maldita Circe também estava enchendo a cabeça de
Reizinho com mentiras sobre ele. Talvez ela já tivesse dito a Reizinho que
ele precisava mandá-lo embora. Uma das coisas que Gaston se lembrava
das histórias de sua infância era que as bruxas raramente, ou nunca, diziam
a verdade. Portanto, é muito provável que Circe estivesse mentindo. Mas o
que isso significava para suas irmãs? Elas também estavam mentindo ou
essa era uma daquelas raras ocasiões em que disseram a verdade? Ele não
tinha certeza do que pensar, exceto que acreditar nas irmãs de Circe tornava
mais fácil conspirar contra ela.
Enquanto estava ali sentado, durante a interminável sucessão de pratos e
conversas desconcertantes, ele se perguntava como aquelas poderiam ser as
verdadeiras irmãs de Circe. Achou que eram pavorosas quando as viu pela
primeira vez no jardim, mas agora, na sala de jantar com as velas acesas, ele
se deparou com o verdadeiro horror delas. Seus rostos estavam pintados de
branco, com uma camada tão espessa que parecia que nunca os lavavam e
apenas reaplicavam a maquiagem, camada sobre camada, criando um efeito
craquelado. Parecia esmalte desgastado no rosto de uma boneca
negligenciada. E era alarmante como eram magras como esqueletos: só
ossos, pele, olhos e penteados elaborados, com penas que não paravam de
roçar seu rosto quando elas viravam a cabeça. Lumière ficava rindo sozinho
quando via Gaston tirando as penas do rosto ou esquivando-se de um
cotovelo pontudo enquanto tentava tomar sua sopa. Gaston também riria
disso, se não estivesse tão infeliz. Talvez ele risse quando contasse a
história aos amigos lá embaixo.
– Imagino que seus amigos Lumière e Francis, e talvez até mesmo o
Senhor Cogsworth, já tenham contado a história a eles antes de você vê-los
novamente – declarou uma das bruxas.
Gaston ficou envergonhado, esquecendo que as bruxas podiam ouvir seus
pensamentos. Isso estava claro desde o momento em que ele as conheceu.
Não que já houvesse estado na companhia de muitas bruxas, ao menos pelo
que ele houvesse tomado conhecimento, mas sabia o suficiente sobre elas
pelo Livro dos Contos de Fadas, e ficava cada vez mais convencido de que
aquelas poderiam muito bem ser as bruxas desses contos. Na verdade, elas
pareciam se assemelhar às bruxas da história da Branca de Neve. As
mesmas bruxas que conduziram sua madrasta Grimhilde pelo caminho da
escuridão e da ruína. Ainda assim, ele ficou envergonhado. Uma coisa era
pensar algo rude, mesmo que fosse verdade. Outra era ter seus pensamentos
secretos compartilhados sem intenção. Ele não sabia bem o que dizer,
exceto pedir desculpas.
– Sinto muito.
– Sabemos que as pessoas zombam de nós, Gaston. Nós também
zombamos de todos vocês – disse a bruxa à esquerda.
– Suponho que estejamos empatados, então – afirmou ele, olhando para
Reizinho e Circe. Foi a primeira vez que ele deixou seu olhar pairar sobre o
casal, e desejou não ter feito isso. Seu amigo parecia muito apaixonado por
ela, dando-lhe beijos e alimentando-a com pequenos doces de seu próprio
prato.
– Não temos certeza se isso é verdade – comentou uma das bruxas,
desviando sua atenção do casal feliz. A princípio, Gaston pensou que ela
estava respondendo seu comentário sobre estarem empatados, mas então
percebeu que a bruxa estava lendo seus pensamentos mais uma vez.
– Você não acha que ele a ama? Ela não consegue ler mentes como
vocês? – ele perguntou baixinho, para que ninguém mais ouvisse.
– Não quando é importante – sibilou uma delas.
– Não quando ela mais precisa – disse outra.
– Não quando ela está sendo teimosa! – disseram juntas, muito mais alto
do que ele esperava.
– Entendo – disse Gaston, olhando em volta para ver se todos os
encaravam. Eles só haviam chamado atenção do Senhor Cogsworth, o que o
surpreendeu e, provavelmente, porque o mordomo estava sempre em alerta.
Essa era uma de suas funções: ver coisas que os outros não viam. Mas todos
os outros à mesa pareciam estar demasiado absortos nas próprias conversas
para repararem. Sem perceber, uma das irmãs voltou a falar.
– Ele aprecia aspectos dela. Ama a beleza de Circe e o fato de ela vir de
uma família excelente, e adora que ela passará essas coisas para os filhos
deles, caso tenham algum – disse a bruxa da extremidade.
– Mas ele não a ama de verdade. Ele não a conhece. Não enxerga sua
grandeza, sua inteligência, seu talento – falou a bruxa à esquerda, com os
olhos esbugalhados de medo nas órbitas enegrecidas.
– Ela não o vê claramente. Só percebe que existe amor, que na verdade
está desviado. Não percebe que o que ele adora é o fato de como as virtudes
dela refletirão sobre ele – declarou a bruxa mais distante de Gaston.
– Eu poderia dizer o mesmo sobre vocês, senhoras. Não creio que vejam
o príncipe com clareza – falou ele, enquanto os lacaios começavam a
recolher o último prato de sobremesa. Gaston esperava que aquele fosse o
prato final e que em breve ele fosse libertado da tortura. Tinha lido sobre os
diferentes círculos do Submundo, cada um deles sendo pior do que o outro,
e decidiu que ficar preso às Irmãs Esquisitas seria o destino mais
insuportável que se podia imaginar.
– Talvez. Mas funcionaria realmente a seu favor se o aprovássemos?
Você não deveria concentrar seus esforços em convencer seu amigo a
desistir desse casamento? – disse a bruxa à esquerda, e, antes que ele
pudesse responder à pergunta da mulher infernal, elas voltaram a conversar
com ele.
– Seu desejo finalmente se tornou realidade, Gaston. Parece que você
será dispensado de nossa companhia. Veja. – A bruxa à esquerda gesticulou
para Lumière, que estava na frente da sala se preparando para fazer seu
anúncio.
– As senhoras são bem-vindas para se juntarem à rainha na sala de estar
enquanto os cavalheiros desfrutam de um vinho do Porto e charutos aqui –
disse ele com um floreio de mãos.
Gaston e todos os cavalheiros levantaram-se com as damas, esperando
até que todas saíssem do salão antes de voltarem a sentar-se. Gaston notou
os homens se agrupando perto do rei e do príncipe, em vez de voltarem a
seus assentos originais, então decidiu que faria o mesmo. Mas, quando
chegou lá, o príncipe levantou-se novamente.
– Desculpem-me, nobres cavalheiros, mas receio que precisarei deixá-los
com seu vinho e seus charutos. Não posso ficar longe de minha querida
Circe. Confio que a companhia do rei será mais do que satisfatória. – Ele
olhou para Gaston pela primeira vez desde que se viram antes do jantar.
Gaston sempre foi capaz de ler Reizinho, mas não conseguiu distinguir a
expressão em seu rosto naquele momento. Era tristeza? Ele não tinha
certeza. Gaston se levantou para poder seguir seu amigo, imaginando se
talvez ele não estivesse tentando sinalizar para ele se retirar também para
que pudessem finalmente conversar, mas o rei o impediu.
– Não, meu rapaz, fique aqui conosco. Ouso dizer que você tem estado
muito na companhia de mulheres tagarelas. Fique e tome uma bebida
conosco – disse o rei, rindo.
– Talvez você tenha razão, Majestade – respondeu Gaston, juntando-se às
risadas.
A última coisa que Gaston queria era ser encurralado pelas irmãs
esquisitas de Circe na sala de estar. Se ele iria conspirar com aquelas bruxas
diabólicas, não precisava que Circe descobrisse. Não havia nada que ele
pudesse fazer quanto a ter que conversar com elas durante o jantar, mas se
fosse visto conversando com elas também na sala de estar, Circe certamente
saberia que estavam tramando alguma coisa. Ele só podia esperar que não o
perseguissem no salão de baile.
Depois dos drinques no salão de jantar, os homens juntaram-se
brevemente às senhoras na sala de estar antes que Lumière abrisse as portas
francesas que levavam ao jardim e acenasse dramaticamente para que o
grupo se reunisse no terraço. Abaixo, eles viram uma multidão de
carruagens abertas atravessando a ponte de pedra. Era hora de sua reunião
íntima se transformar em um evento de gala, com senhores, damas, reis e
rainhas de várias terras, algumas distantes e outras próximas, todos ali para
celebrar o noivado do príncipe e para conhecer a mulher com quem ele iria
se casar. Circe e o príncipe ficaram mais próximos da grade do terraço,
acenando para todos os convidados enquanto fogos de artifício explodiam
no céu.
– Venham, vamos dar as boas-vindas aos convidados – disse a rainha,
pegando o braço do rei e fazendo sinal para que Circe e o príncipe os
seguissem. Todos foram conduzidos ao salão de baile por Lumière. O lugar
estava resplandecendo com as velas brilhando no lustre e nas arandelas de
parede. Gaston nunca tinha reparado naquele salão antes. Ele passara por
ele muitas vezes quando criança, mas nunca se demorara, nunca realmente
o vira. Era uma vasta sala de mármore com fileiras de pilares igualmente de
mármore realçados com ouro e cobertos com faixas de seda vermelha que
combinavam com a sobrecasaca do príncipe. O teto era magnífico, pintado
para parecer uma paisagem celestial de sonho, com o lustre pendurado no
centro. À esquerda, havia uma orquestra perto do piano e, à direita, um
estrado com tronos para a família real sentar-se. E ao redor do perímetro da
sala havia pequenas mesas redondas, com cadeiras para os convidados
descansarem entre as danças. Mas o que Gaston mais amava era a parede de
janelas e portas francesas que davam para todo o reino, com uma vista
deslumbrante do céu noturno, ainda brilhando com fogos de artifício.
A família real sentou-se em seus tronos para aguardar a chegada de seus
convidados, enquanto os fogos de artifício projetavam suas explosões
coloridas no salão de baile. Gaston e os outros que se reuniram no jantar
íntimo sentaram-se nas mesas mais próximas da família real enquanto o
Senhor Cogsworth postou-se na entrada anunciando a chegada dos
convidados, todos prestando homenagem à família real e parabenizando o
príncipe e Circe sobre o noivado.
Depois que todos estavam reunidos, Cogsworth deu uma deixa para
Lumière, que tocou uma pequena sineta de latão retirada do bolso. Uma
legião de lacaios entrou empurrando um carrinho com um bolo enorme,
elaborado para se parecer com o próprio castelo, com pequenas figuras de
marzipã da família real. Era primorosamente decorado com todos os
detalhes, incluindo os jardins, que tinham até pequenas criaturas da floresta.
Todos abriram a boca de admiração quando o bolo adentrou o salão. Era
uma obra de arte. Momentos depois, mais lacaios entraram na sala com
grandes bandejas de champanhe que serviram aos convidados. Assim que
todos estavam com uma taça na mão, Lumière fez outro anúncio.
– E agora o rei gostaria de fazer um brinde ao feliz casal.
O rei e a rainha levantaram-se de seus tronos e sorriram aos presentes. A
rainha estava deslumbrante em seu vestido de veludo vermelho bordado
com rendas delicadas e miçangas finas que caíam em cascata do corpete ao
longo de sua saia volumosa. O rei, que também trajava vermelho, usava
uma sobrecasaca de veludo com dragonas pretas e botões dourados com
calças pretas. Eles formavam um casal impressionante, imperioso e
majestoso, e vibrando de felicidade por celebrar o noivado do filho.
– É uma honra para mim e para Sua Majestade, a rainha, receber todos
vocês aqui e colocar nossas bênçãos sobre a cabeça de nosso filho e de sua
noiva, e desejar-lhes grande alegria em seu iminente casamento. Vamos
erguer nossa taça para os futuros rei e rainha.
– À felicidade deles! – brindou a rainha, e todos seguiram o exemplo. – E
com isso declaro o baile oficialmente aberto!
Cogsworth e os lacaios levaram o bolo para um canto da sala, perto de
mesas de cavalete repletas de variadas bebidas refrescantes, enquanto o
príncipe e Circe se levantavam e se dirigiam ao centro do salão de baile. A
orquestra começou a tocar. Nada disso parecia real para Gaston, e por um
momento ele foi arrebatado pela pompa, tonto pelo glamour e pela beleza
da noite.
O príncipe usava uma sobrecasaca vermelha, não muito diferente da de
Gaston, mas com detalhes dourados. Seus longos cabelos ruivos caíam até
os ombros e seus olhos azuis brilhavam de alegria quando ele estendeu a
mão para Circe. Circe usava um vestido prateado com corpete justo e saia
rodada, bordado com pequenas contas reluzentes que cintilavam à luz das
velas. O casal parecia extasiado um com o outro quando o príncipe colocou
uma das mãos em volta da cintura de Circe e segurou sua mão com a outra,
e deslizaram ao som da música que crescia ao redor deles. Todos na sala
aplaudiram enquanto o casal valsava, girando em círculos e rindo, e logo
outros casais se juntaram, bailando ao redor deles.
Gaston estava sentado sozinho em uma mesinha, observando seu amigo
dançar. Parecia que ele estava numa espécie de sonho enquanto os outros
dançarinos flutuavam ao redor do casal. Os vestidos das mulheres pareciam
flores desabrochando, lembrando-o da conversa que tivera com Circe no
roseiral. Seu coração doeu ao vê-los valsando juntos tão felizes. Ele estava
pronto para arruinar a chance de seu amigo ter a verdadeira felicidade?
– Circe está pronta para arruinar a sua – disse uma voz que fez sua pele
arrepiar. Quando Gaston ergueu a vista, viu as estranhas irmãs de Circe
pairando sobre ele. Ele se levantou de pressa e sorriu debilmente, esperando
que elas não estivessem procurando um parceiro para dançar.
– Podemos ter essa dança? – disse a irmã do meio, e o estômago de
Gaston embrulhou. Não havia fim para sua humilhação esta noite? Primeiro
no jantar e agora no salão de baile; ele nunca se livraria daquelas mulheres?
Era demais. Nem uma palavra de Reizinho a noite toda, e agora isso?
Dançar!
– Como eu poderia escolher com qual encantadora feiticeira dançar
primeiro? – ele perguntou, revirando os olhos. Ele olhou suplicante para
Francis, que estava de pé junto às mesas de cavalete distribuindo bolo e
champanhe aos convidados.
– Você pode ter a honra de dançar com Lucinda primeiro. Ela é a mais
velha. Deveria ter a primeira dança – disseram duas das irmãs, incentivando
Gaston e Lucinda a se aproximarem dos outros dançarinos. Para seu alívio,
Gaston viu Francis apressando-se na direção deles com uma fatia de bolo
oscilando em um prato enquanto corria.
– Gaston, aqui está o bolo que você queria – Francis disse com uma
piscadela.
– Bolo? Você está servindo o bolo? – perguntaram as duas insistentes
irmãs em uníssono, agarrando Lucinda pelo braço. – Sinto muito, Gaston,
sei que você está com o coração partido, mas não podemos dançar agora! É
hora do bolo. – Com isso, elas arrastaram Lucinda, deslizando em direção à
mesa do bolo.
– Obrigado, Francis, você me salvou. Quem diria que as bruxas gostavam
tanto de bolo – disse Gaston, observando-as empurrarem para fora do
caminho os outros convidados que estavam diante da mesa do bolo.
– Bruxas, senhor? – perguntou Francis, observando horrorizado duas das
irmãs pegarem punhados de bolo e enfiá-los na boca, enquanto Lucinda
arrancava com os dentes a cabeça de um príncipe de marzipã.
– Figura de linguagem. Mas são mulheres odiosas. Basta olhar para elas.
– Gaston esfregou a cabeça em frustração.
– Não cabe a mim ter uma opinião – disse Francis, parecendo temer
voltar a suas funções.
– De qualquer forma, não enquanto você estiver aqui em cima –
comentou Gaston, fazendo Francis rir.
– Lamento que você esteja passando por um momento tão infeliz,
Gaston. Mas, se serve de consolo, você é realmente o homem mais bonito
daqui – declarou Francis, fazendo Gaston sorrir. Só então, Cogsworth
apareceu.
– Francis, a mesa de bebidas está sendo terrivelmente negligenciada. Por
favor, volte a seu posto – ordenou ele, com as mãos nos quadris. Francis
ficou ali por alguns instantes, como se quisesse reunir forças suficientes
para retornar ao posto. Suspirou profundamente antes de se virar para sair
enquanto as bruxas colocavam animais de marzipã na boca umas das outras
e gargalhavam.
– A culpa é minha, Senhor Cogsworth, eu o retive conversando – disse
Gaston, lançando a Francis um sorriso de desculpas. – Você dificilmente
pode culpá-lo, veja a bagunça que as irmãs de Circe estão fazendo.
– Há mais alguma coisa que necessite, senhor? – perguntou o Senhor
Cogsworth, rígido como sempre.
– Não, Senhor Cogsworth, você foi muito gentil – disse ele com bastante
sarcasmo.
Para alívio de Gaston, as irmãs de Circe passaram a maior parte da noite
distraídas com o bolo. Era uma distração improvável, mas, também, elas
eram extremamente esquisitas. Era estranho como ninguém parecia notar
seu comportamento inadequado, enchendo a boca de bolo, lançando olhares
raivosos ao príncipe, sussurrando atrás de seus leques e rindo
incontrolavelmente. A certa altura, elas pareciam estar fazendo uma
competição para ver quem conseguia comer mais bolo. Ninguém prestava a
menor atenção nelas. Era como se houvesse um entendimento tácito para
ignorá-las. Então, foi isso que Gaston decidiu fazer também.
O que ele não podia ignorar era quão feliz Reizinho parecia enquanto
dançava com sua enganadora noiva bruxa. A princípio, Gaston se perguntou
se seria certo arruinar a vida que seu amigo poderia ter com aquela mulher
que ele parecia amar tanto, mas à medida que a noite avançava, Gaston foi
ficando irritado e amargo. Circe estava tentando mandá-lo embora, para
longe de seu melhor amigo, da única família e lar que ele conhecia, tudo
por causa de alguma visão que ela sequer entendia completamente. Ele se
sentiu enjoado ao vê-la dançar com o príncipe, escondendo-se atrás de seu
sorriso. Era tudo falsidade, tudo jogo de espelhos e fumaça. Ela era uma
fingida, conspirando para se livrar da concorrência. Ela mesma dissera isso:
o príncipe não amava ninguém mais do que amava Gaston.
Enquanto estava sentado ali, meditando, perguntando-se se estava certo,
perguntando-se se tudo aquilo era uma farsa, ele avistou Reizinho, o
príncipe, parado sozinho perto das altas janelas envidraçadas, admirando o
panorama. Era a primeira vez durante toda a noite que Circe não estava a
seu lado. Ela conversava com o rei e a rainha, provavelmente encantando-
os, assim como seduziu a todos naquela noite com sua aparente doçura e
graça. Essa era sua chance. Ele se levantou da mesa e caminhou lentamente
pelo salão de baile. Nem tinha ideia do que iria dizer. Isso não importava.
Ele finalmente se reuniria com seu amigo. Gaston contornou o salão,
tomando cuidado para evitar Circe e a família real, com medo de que Circe
interviesse.
Quando estava prestes a se aproximar, Reizinho se virou, como se
soubesse que Gaston estava atrás dele, e sorriu ao ver seu amigo parado ali.
Mas a expressão de Reizinho rapidamente se transformou em horror.
Gaston não entendeu. Por que o príncipe estava olhando para ele assim?
Será que Circe estivera tecendo sua teia de mentiras a noite toda,
sussurrando em seu ouvido? Seu amigo já estava preso em sua armadilha?
Seria tarde demais para Gaston e Reizinho terem a vida que sonharam?
Gaston sentiu seu coração se partir, sem entender por que seu amigo o
olhava daquele jeito, e ainda mais confuso quando seu horror se
transformou em risada. Gaston ficou parado ali em silêncio e magoado,
perguntando-se por que Reizinho, o príncipe, estava rindo dele. Afinal, ele
parecia um idiota? Seus pensamentos eram tão facilmente lidos em seu
rosto? Mas, então, ele entendeu. O príncipe não estava olhando para ele.
Estava olhando além dele, para as Irmãs Esquisitas correndo em direção a
Gaston, com mãos, rostos e vestidos cobertos de glacê.
– Gaston! Gaston! – elas gritaram enquanto se aproximavam, o rosto
delas cheio de expectativa. – Oh, Gaston, é hora de nossa dança! – Gaston
enfrentara muitas feras ao longo dos anos, mas o medo que sentiu enquanto
as Irmãs Esquisitas avançavam em sua direção o encheu de aversão. – Você
nos prometeu uma dança! – disseram, gargalhando como as bruxas que
eram.
– Eu não fiz isso – protestou Gaston. – Talvez vocês queiram ir para seus
aposentos e se refrescarem. – Ele não conseguia entender por que ninguém
ali parecia notar o espetáculo grotesco que estavam dando.
– Isso é obra de Circe. Ela nos encantou. Poderíamos gritar até derrubar o
castelo e ninguém notaria ou se lembraria. De qualquer forma, ninguém tem
nenhuma importância – disse a bruxa que ele tinha certeza de que era
Lucinda.
– Entendo... – Mas, antes que Gaston pudesse concluir seu pensamento,
viu o príncipe sendo levado pelas portas do terraço por Circe e sua família.
– O que está acontecendo? – Ele olhou em volta e viu todos seguindo a
família real.
– O castiçal fez um anúncio – respondeu uma das bruxas.
– Castiçal? – ele perguntou, confuso. Do que ela estava falando?
– Candelabro, não castiçal, sua idiota! E ele ainda não é um! – disse uma
das outras bruxas.
– Do que vocês estão falando agora? Isso é simplesmente perfeito. Estou
aliado a bruxas estúpidas que pensam que os castiçais fazem anúncios. A
próxima coisa que vocês verão serão pratos dançantes.
– Talvez o façamos, um dia. Mas não é você quem vai ver. – As bruxas
guincharam alto, gargalhando.
– Shhh, Ruby, não revele todos os nossos segredos.
– Vocês podem, por favor, se comportar normalmente e parar de falar
bobagens só por um momento? – Ele já estava farto. Não iria aguentar a
insanidade delas nem por mais um instante. Já era ruim o suficiente quando
elas o irritavam e provocavam, mas agora estavam apenas falando asneiras.
Ele seguiu os outros convidados até o terraço, deixando para trás as bruxas
lambuzadas de bolo brigando por causa dos talheres dançantes.
Quando chegou ao terraço, viu por que todos estavam ali. O pavilhão da
rainha brilhava como uma joia ao longe, lançando luzes dançantes sobre o
castelo e seus terrenos. Seu coração doeu ao ver o quanto Reizinho amava
Circe. Ele se sentiu derrotado e sozinho, sem saber o que fazer. Deveria
desistir e deixar Circe afastá-lo ou lutar para viver sua vida como queria?
Ele não decidiria agora. Dormiria e tentaria pensar nisso com mais clareza
pela manhã. Sairia enquanto todos observavam as luzes. Era muito doloroso
ver o pavilhão iluminado, despertando lembranças muito vívidas dos dias
em que tudo começou a desmoronar, mudando sua vida para sempre.
As luzes pareciam fantasmas bailando, tremeluzindo e movendo-se com
a brisa. Gaston foi dominado por seus próprios fantasmas; pela mãe que ele
nunca conheceu; pelo pai, de quem sentia falta de todo o coração, e, acima
de tudo, pela vida que ele e Reizinho imaginaram para si mesmos quando
eram jovens.
CAPÍTULO XII
O ESPELHO MÁGICO
No dia seguinte, Gaston acordou em seu quarto com uma batida na porta.
Era Francis, segurando um pacote embrulhado em papel pardo e amarrado
com barbante. Gaston ainda estava exausto da noite anterior, mal abrindo os
olhos quando Francis entrou no aposento.
Gaston fez o possível para se livrar do torpor e dizer um “olá” cansado.
– O que é isso, Francis? De quem é? – ele perguntou, virando-o para ver
se havia algum bilhete.
– Não diz, senhor. Foi entregue esta manhã, e o mensageiro explicou que
deveria ser dado a você. – Francis parecia ansioso para comentar sobre
como as irmãs de Circe agiram ridiculamente na noite anterior, mas elas
eram as últimas pessoas sobre quem Gaston queria falar naquele momento.
– Que estranho. Aposto que é do príncipe – disse Gaston. – Obrigado,
Francis. – Ele estendeu a mão para remover a colcha, quase esquecendo que
não estava vestido.
– Você gostaria de tomar café da manhã no quarto esta manhã ou vai se
juntar aos outros no salão de jantar? Sei que gosta bastante de ovos. Devo
trazer um pouco para acompanhar seu café, senhor? – perguntou Francis.
– Pensei em tomar café da manhã com a equipe lá embaixo, antes de
voltar para minha propriedade. – Gaston estava farto de salas de jantar
chiques, de fingir que era um cavalheiro e, acima de tudo, de Circe e suas
irmãs.
– O príncipe achou que esse pudesse ser seu plano e disse que, se fosse
assim, avisaria que ficaria feliz em acompanhá-lo para o café da manhã lá
embaixo, antes de seu passeio a cavalo depois do café da manhã – declarou
Francis.
– Passeio? Que passeio? Deixe para lá. Obrigado, Francis.
– Devo preparar um banho para você antes de ir, senhor?
– Santo Deus, Francis, não. Posso preparar meu próprio banho, obrigado.
– Ele não quis ser rude com Francis. Simplesmente não estava acostumado
a ser servido por pessoas que considerava seus amigos. Gaston não estava
acostumado a ser servido por ninguém, aliás. E ficou surpreso que Reizinho
quisesse vê-lo. Que passeio era esse que fariam no fim da tarde? Ele não
sabia que tinham planos de cavalgar. Gaston se sentiu ignorado por
Reizinho na noite anterior, e foi um pesadelo ficar preso às irmãs de Circe,
tendo que suportar não apenas elas, mas também a falsidade de Circe.
Talvez Reizinho estivesse igualmente desapontado por não terem tido
tempo juntos na noite anterior e estivesse querendo compensá-lo por isso.
Gaston supôs que fosse descobrir. Mas isso não era motivo para descontar
no pobre Francis, que não fora nada além de gentil e solidário durante toda
aquela farsa.
– Sinto muito, Francis. Ainda não sou eu mesmo. Nunca sou antes do
café, e a noite passada foi uma loucura. Temo que ainda não tenha me
recuperado. Você poderá um dia me perdoar?
– Não há nada para perdoar. Seu café está na mesa, senhor.
– Você é meu herói, Francis. Obrigado.
– Se não houver mais nada que eu possa fazer, irei até a cozinha e direi
ao Chef Bouche para preparar muitos ovos para seu café da manhã. Cinco
dúzias, não é?
– Sim, Francis. Obrigado – disse ele, ansioso pelo café, que tomou assim
que Francis saiu do quarto.
Gaston estava feliz que Reizinho iria se juntar a ele no salão dos
empregados para o café da manhã. Esperava que ele não estivesse
planejando levar Circe. A última coisa que Gaston queria era sentar-se para
outra refeição com ela e o príncipe, vendo-a bajulá-lo, fingindo que não
estava tentando acabar com a amizade deles. Mas, por sua vez,
provavelmente era indigno dela tomar café da manhã lá embaixo. Bem, pelo
menos as novas maneiras sofisticadas de Reizinho não o impediam de fazer
uma refeição com seus velhos amigos.
Não houve um único momento na noite anterior em que Gaston pudesse
falar a sós com o príncipe, por isso estava ansioso pelo passeio mais tarde e
esperava poder convencer Reizinho a sair para tomar uma bebida na taverna
depois. Ele precisava pensar cuidadosamente sobre como iria lidar com as
coisas com o príncipe. Era um assunto delicado dizer a alguém que
escolhera a pessoa errada para se casar, e ele não sabia bem o que dizer.
Poderia simplesmente ser franco e contar-lhe o que Circe havia dito no
jardim de rosas, mas e se Reizinho acreditasse na bobagem da visão dela? O
Reizinho que ele conhecia não acreditava em fantasmas, feitiços ou
maldições, mas Gaston nem imaginava no que Reizinho acreditava agora.
Pelo que Gaston sabia, Circe o fazia acreditar em todo tipo de coisa. Não,
ele tinha que calcular exatamente o que dizer.
Enquanto tomava seu café tentando descobrir a melhor maneira de lidar
com as coisas, lembrou-se do pacote. Estava sobre a mesa perto das portas
duplas que davam para o terraço. Ele o abriu, surpreso ao descobrir que era
um espelho de mão.
– Que presente estranho. O que Reizinho estava pensando? – ele disse,
olhando para seu reflexo. Era difícil olhar para si mesmo; ele se parecia
muito com o pai agora que estava mais velho. Atualmente, fazia o possível
para evitar os espelhos.
– O presente é nosso, Gaston – afirmou uma voz do espelho. Gaston
deixou cair o objeto em estado de choque, fazendo-o rachar. Ele podia ver
uma das irmãs de Circe no espelho olhando para ele com um sorriso
insípido.
– Outros tentaram quebrar nossos espelhos, Gaston. Até tentaram
enterrá-los em florestas escuras, ou dá-los para outra pessoa, mas eles
sempre voltam como novos – declarou a bruxa do espelho, que ele tinha
certeza ser Lucinda.
– Que bruxaria é essa? Que tipo de arte das trevas é? O que você quer? –
Gaston jogou o espelho na cama enquanto a mulher ria dele.
– Queremos que você traga seu amigo para nossa casa dentro de três
dias – disse ela com um sorriso maligno. – Lá, ele encontrará Circe em
farrapos, cuidando dos porcos.
– Entendo. E como vocês levarão Circe a fazer isso? Presumo que não
sejam uma família de criadores de porcos. Por que ela concordaria com essa
farsa? – ele perguntou, então recuou em estado de choque ao pegar o
espelho novamente e ver que ele não estava mais rachado. Sabia que
aquelas mulheres eram bruxas, mas realmente não as levara muito a sério
com toda aquela farra com o bolo e com o papel de bobas que fizeram no
baile. Ele não tinha certeza de como encarar isso. Quão poderosas eram
aquelas bruxas?
– Mais poderosas do que você jamais imaginará, Gaston. E você faria
bem em não nos contrariar. Então, por favor, deixe-nos ajudá-lo e, ao fazer
isso, você nos ajudará. – Gaston nunca vira Lucinda tão séria. Ela não era a
tola que ele pensava.
– Diremos a Circe que, se o príncipe a ama de verdade, então não
importará se ele a encontrar mexendo com os porcos, e, como ela não
deseja outra coisa mais do que provar que estamos erradas, ela concordará
– falou a mulher perversa, enquanto outra das estranhas irmãs de Circe
aparecia no espelho para intervir.
– Achamos que, se você fizer isso por nós, todos realizaremos nosso
desejo e seu amigo não vai querer se casar com nossa irmã.
– Tenho a sensação de que vocês pretendiam que eu as ouvisse no
roseiral – disse Gaston, sorrindo para as três bruxas.
– Você é mais esperto do que pensávamos, Gaston – declarou uma das
mulheres.
– Sim, muito interessante – falou outra.
– Não tenho certeza se isso vai dar certo – pontuou a terceira, pouco
antes de o espelho voltar para seu próprio reflexo.
– Mulheres vis! – ele disse, virando o espelho. Odiava ter que lidar com
aquelas bruxas e tinha certeza de que não podia confiar nelas. Mas que
escolha ele teria se Reizinho não enxergava a verdade?
Depois de se trocar, Gaston deu a volta pelos fundos até o pátio que dava
para a entrada do salão dos empregados. E exatamente como ele esperava,
estava ali, aguardando por ele. Era a primeira vez que o via sozinho, sem
estar rodeado por um salão cheio de gente. Era uma manhã clara e
ensolarada, e o céu estava tão azul com nuvens brancas e grossas que
parecia que alguém o havia pintado só para eles. Quando Gaston viu o
amigo parado lá, seu coração disparou. Não imaginou que se sentiria tão
nervoso por ficar a sós com ele. Mesmo que isso fosse exatamente o que
esperava assim que o viu na noite anterior.
– Meu amigo! Meu caro amigo. Estou muito feliz em ver você – disse
Gaston, abraçando o príncipe. Reizinho parecia ainda mais bonito do que na
noite anterior. Embora, talvez, um pouco abatido, por ter ficado acordado a
noite toda e ainda não ter feito a barba naquela manhã.
– Gaston! Olhe só para você. Mal o reconheci ontem à noite. Você está
muito mudado. A Senhora Potts me avisou, mas não consegui imaginar, não
até vê-lo. Você se parece muito com seu pai. Não é de admirar que Francis e
quase todos no reino tenham uma queda por você. – Ele retribuiu o abraço
de Gaston.
– Vejo que você já está vestido para cavalgar. Perfeito. Eu disse a eles
que ficaremos fora o dia todo. Só você e eu. Temos muito o que colocar em
dia. – Esse era o Reizinho que Gaston esperava ver. Seu coração parecia
mais leve.
– Realmente temos. Há tantas coisas que quero conversar com você... –
disse ele, detendo-se por enquanto. Decidiu que era melhor conversar
quando estivessem longe do castelo.
– Circe me disse que há algo importante que queria me contar. Espero
que não seja nada muito sério – declarou o príncipe com um sorriso. –
Espero que você goste dela, Gaston. Eu sei que ela gosta de você.
– Ela gosta? Que interessante. – Gaston não conseguiu esconder a
surpresa e o desdém.
– O que foi? Não fique com ciúmes, Gaston, por favor. Se você tivesse
vindo comigo como eu queria, poderia ter me ajudado a escolher a garota
perfeita, mas decidiu ficar em casa. Agora, nós dois teremos que conviver
com minha escolha. Mas ela é linda, não é? A mulher mais linda que já vi.
– O que mais você gosta nela? – perguntou Gaston, sinceramente
querendo saber.
– O que mais há para gostar? Ela ficará bem no trono e me dará lindos
herdeiros.
Gaston estremeceu. Ele se sentiu culpado, planejando arruinar a chance
de seu amigo ter uma vida feliz, mas parecia que, afinal, não era um
casamento por amor.
– Então, esse é o meu castigo? Você vai se casar com a filha de um
criador de porcos só para me espicaçar? – Gaston não pretendia deixar
aquilo escapar num rompante. O que ele estava pensando?
– Do que você está falando? Ela é parente do Velho Rei. – O príncipe não
o estava levando a sério. Gaston conhecia seu amigo. Estava estampado em
seu rosto. Não havia como ele acreditar que a mulher que amava pudesse
ser criadora de porcos. Convencê-lo disso seria difícil. Ele deveria ter
esperado até poder levar Reizinho para ver com os próprios olhos Circe
com os porcos.
– Eu fiquei me perguntando. Ouvi dizer que ela e suas repugnantes irmãs
não dizem quem são seus pais. Tem certeza de que ela é parente do Velho
Rei? Circe e as irmãs não moram longe daqui, segundo me disseram.
Aposto que, se lhes fizéssemos uma visita surpresa, a encontraríamos
cuidando dos porcos.
– Isso é bobagem, e você sabe disso! Qual é, Gaston, você só está com
ciúmes porque vou me casar com a mulher mais linda do país. Você a quer
para você! – Embora fosse verdade que ele estava com ciúmes, ele não
queria Circe para si. Queria ela e suas irmãs perversas o mais longe possível
de seu reino. Como seria a vida de seu amigo sob o domínio daquelas
bruxas?
– Isso não é verdade, Reizinho! Ainda me sinto da mesma forma que no
dia anterior a sua partida para o tour. Lembra-se do que dissemos um ao
outro? Lembra-se do nosso desejo?
– Você sabe que esse sonho é impossível, Gaston. Sabe que tenho que me
casar. – O príncipe parecia profundamente desapontado. Nem ocorreu a
Gaston que ele poderia estar tão decepcionado quanto ele próprio. Ou,
talvez, estivesse simplesmente aborrecido por Gaston não entrar na fila e
fazer uma cara boa, escondendo sua contrariedade.
– Eu sei que você tem que se casar, Reizinho, mas não precisa ser com
ela. Circe é uma mentirosa! Ela e as irmãs são bruxas. Juro a você, ela não é
o que parece. – Gaston ficou parado ali, por um momento, depois de dizer
essas palavras, esperando a resposta do amigo, mas o príncipe apenas olhou
para ele em silêncio. Gaston não tinha certeza se estava absorvendo tudo ou
se estava prestes a sair no soco com ele.
– Você está me dizendo sinceramente que Circe e suas irmãs são bruxas
criadoras de porcos?
– Estou! Quem sabe, talvez Circe siga sua homônima e os porcos sejam
ex-amantes ou inimigos. Não tenho a menor ideia de como funciona a
mente das bruxas.
– Bem, veremos. – Reizinho começou a se afastar.
– Aonde você está indo? – Gaston gritou.
– Confrontar Circe!
A maldição
Irmãs Esquisitas falando. Lembra daquela parte do início desta história,
quando dissemos que o Livro dos Contos de Fadas é fluido e refletirá os
eventos que aconteceram antes e depois da história de Gaston? Bem, este é
um daqueles momentos, meu caro.
Como você sabe, todas as histórias que leu ou vai ler nesta saga são do
Livro dos Contos de Fadas, e nós somos suas autoras. E, embora isso seja
verdade, nossa filha Circe, que é a Rainha da Floresta dos Mortos com suas
colegas bruxas Primrose e Hazel, parece estar assumindo nosso manto
agora que estamos vivendo nossa melhor vida após a morte com Hades no
Submundo. As três rainhas estão contribuindo para o Livro dos Contos de
Fadas e têm noção de seus poderes para mudar o destino.
De nossa posição atual no Submundo, entendemos por que alguns podem
sentir que somos as vilãs dessas histórias. Você pode até se perguntar como
pudemos sorrir quando o príncipe partiu o coração de Circe naquele dia.
Como as irmãs esquisitas e excessivamente protetoras de Circe poderiam se
deliciar com sua tristeza? Por favor, não seja mais tolo do que o necessário.
Tudo o que fizemos foi por amor a Circe. Sim, dançamos e cantamos
canções de alegria, mas quem não faria a mesma coisa? Nós a salvamos de
um príncipe egoísta e brutal e, acredite, odiamos ver Circe tão infeliz,
porém fizemos isso para o bem dela, para protegê-la. Olhamos dentro do
coração do príncipe, vimos algo imundo e podre ali, e observamos isso
crescer a cada dia. Vimos quem ele realmente era e sabíamos o que estava
escrito no Livro dos Contos de Fadas. Pelo menos, o que foi escrito naquela
época.
Se ao menos tivéssemos visto o que crescia dentro de nós naquela época.
Se ao menos tivéssemos ouvido aqueles que tentaram nos alertar... Mas
também, se tivéssemos, talvez não estaríamos rindo e comendo bolo todas
as noites com Hades no Submundo. Então, de nosso ponto de vista, as
coisas funcionaram muito bem. Para nós e para Hades, pelo menos.
E para quem tem prestado atenção, sim, conseguimos dar um jeito de
conseguir bolo no Submundo. Temos todo tipo de guloseimas agora, as
prediletas de Hades. Há muito que pode ser alcançado quando bruxas
poderosas e um deus se unem, mesmo que seja apenas sua própria
felicidade.
Mas estamos divagando; esta é a história de Gaston e, para entendê-la,
você deve saber o que aconteceu com seu melhor amigo, porque o que
aconteceu a seguir mudou a vida de ambos para sempre, levando Gaston a
um destino desastroso.
Desde o dia em que o príncipe partiu o coração de Circe, muitas outras
histórias foram acrescentadas a este Livro dos Contos de Fadas, algumas
das quais não esperávamos. Mas sabíamos desde o início que Circe estava
fadada a ser uma feiticeira poderosa, uma rainha de um reino antigo, o
único reino digno de seus talentos únicos e potentes. E, embora não
víssemos claramente seu futuro naquela altura, sabíamos que ela iria
provocar mudanças em todos os reinos. Estávamos receosas que o
casamento dela com o príncipe fera fosse sufocar seu potencial mágico e
impedi-la de se tornar a bruxa mais poderosa de nossa época. Tínhamos que
garantir que ela continuasse em seu caminho. Precisávamos mantê-la a
salvo de uma vida infeliz com um príncipe pirralho, não importa o quanto
ela pensasse que o amava.
Se você leu a história do príncipe fera, sabe o que aconteceu depois que
ele partiu o coração de Circe. Foi uma série de eventos ruinosos que
mudaram muitas vidas, incluindo a de Gaston. E nós os imortalizamos em
vitrais em um de nossos muitos salões no Submundo, com o restante de
nossas histórias.
O primeiro nessa série de lamentáveis quadros é Circe aparecendo ao
príncipe em seu castelo. Ela ficará para sempre imortalizada no vitral,
vestida como uma mulher esfarrapada. Ela implora ao príncipe que aceite
dela uma única rosa. Um símbolo de seu coração e do amor que ela sentia
por ele.
Quando Circe apareceu na porta do príncipe, ela estava com o coração
partido e triste, com os olhos inchados de tanto chorar. Para o príncipe, ela
parecia uma velha emaciada. Enojado, ele recusou a rosa e, portanto,
recusou o amor dela. Mas, para espanto do príncipe, a velha se transformou
em seu verdadeiro eu, uma bela feiticeira. O príncipe ficou tão
impressionado com a beleza de Circe e, ao saber que ela realmente vinha de
uma longa linhagem da realeza, caiu de joelhos e implorou-lhe perdão. Ele
a pediu em casamento novamente. Ele sabia, é claro, desde o início, que
Circe pertencia a uma grande família, mas deixou-se enganar por Gaston e
por nós. E foi tudo muito fácil. Ele olhou para ela de forma diferente
quando a viu fazendo companhia aos porcos. Ela era humilde, o príncipe
sentiu, e inferior a ele, não era mais digna de se tornar sua esposa e,
eventualmente, rainha.
O espanto em seu rosto ao vê-la se transformar, percebendo que estava
enganado, que Circe era tudo o que dizia ser, a imagem dele caindo de
joelhos e implorando para Circe se casar com ele, foi tudo delicioso.
Mas era tarde demais para o príncipe. Circe viu quem ele realmente era:
um monstro disfarçado de um jovem bonito. Então, ela fez o que todas as
grandes bruxas fazem nessas situações.
Amaldiçoou a ele e todos em seu castelo, com uma pequena ajuda de
suas irmãs mais velhas. Mas nossa doce Circe ainda queria acreditar que
havia algo de bom no príncipe e, em sua generosidade, deu-lhe outra
oportunidade. Disse que, se ele aprendesse a amar e se tornasse digno de ter
esse amor retribuído, a maldição seria quebrada. Ela lhe deu a rosa, aquela
que ele tentou recusar, e preveniu-o de que tinha só até a última pétala cair,
em seu vigésimo primeiro aniversário, para se emendar. Se não o fizesse,
depois daquele dia permaneceria para sempre como uma fera.
A maldição de Circe foi um exemplo de magia brilhante. Era uma
maldição degenerativa que corroeria lentamente sua aparência para
combinar com seu coração egoísta e cruel. Cada vez que o príncipe agia de
maneira horrível, seus atos desprezíveis transpareciam em seu rosto, até que
lentamente, com o tempo, ele não se reconhecia mais. E, à medida que
sucumbia aos aspectos mais vis de sua natureza, seus servos, seus queridos
amigos de infância, também se transformavam um a um, de maneiras que
ele nunca poderia imaginar.
O aviso de Circe foi claro, mas o príncipe não acreditou nela. Em vez
disso, ele se tornou mais cruel e vil do que qualquer um de nós pensava ser
possível.
CAPÍTULO XIV
Reizinho negou a maldição, insistindo que não era real, mas Gaston
conhecia a verdadeira natureza de Circe e das Irmãs Esquisitas e estava
preocupado com a saúde de seu amigo. O príncipe estava se tornando mais
irracional a cada dia, e Gaston cometeu o erro de comentar um retrato do
príncipe, perguntando quando fora pintado, pensando que tivesse sido feito
talvez cinco ou mais anos antes. Mas, para horror dele e do príncipe, o
quadro fora pintado apenas alguns meses atrás. Tal fora a velocidade com
que a aparência do príncipe declinou. Gaston tentou brincar, provocando o
príncipe, fazendo pouco caso da situação, mas era alarmante o quanto
Reizinho havia mudado em tão pouco tempo, e ficou claro para ambos que
a maldição era real.
Reizinho não podia mais negar o que acontecia com ele e o que
aconteceria com todos no castelo se ele não encontrasse um meio de
quebrar a maldição. Mas aceitar seu destino apenas o fez perder o controle,
deixando a Gaston a tarefa de tentar tirar seu amigo daquele profundo poço
de infelicidade. De uma hora para outra, o bem-estar físico e mental do
príncipe estava em perigo. Ele foi acometido por delírios febris
aterrorizantes, fazendo-o reclamar sobre as Irmãs Esquisitas e como a
maldição era verdadeira. Gaston tinha certeza de que isso fora provocado
por um encontro com as Irmãs Esquisitas, mas não tinha certeza do que o
príncipe havia imaginado e do que era real. Gaston e Cogsworth estiveram
ao lado de Reizinho o tempo todo, cuidando dele até que estivesse bem
novamente. E, depois que o príncipe se recuperou, Gaston elaborou um
plano para ajudar seu amigo.
Desesperado para ajudar Reizinho a quebrar a maldição, Gaston
organizou um baile, convidando todas as jovens casa-douras dos reinos
vizinhos. Se Gaston entendera corretamente as divagações febris do
príncipe, para quebrar a maldição eles precisavam encontrar alguém que se
apaixonasse por Reizinho antes que a última pétala caísse da rosa que Circe
lhe dera. Se ele não encontrasse alguém para se apaixonar por ele, se
tornaria uma fera por completo. Parecia muito fácil. Tinha que haver mais
do que isso, mas o príncipe se recusou a dizer qualquer coisa mais. Gaston
podia ver as mudanças sutis em seu amigo, o envelhecimento ao redor dos
olhos, a amargura no rosto, as rugas que ele não tinha antes da maldição.
Parecia a Gaston que a maldição de Circe fazia com que as feições de
Reizinho combinassem com sua natureza cada vez mais sórdida, então, no
que dizia respeito a Gaston, eles enfrentavam uma luta contra o tempo, e ele
precisava encontrar alguém para se apaixonar por Reizinho antes que
aquela maldição miserável tomasse conta dele e de todos os outros no
castelo. E, como membro da criadagem do castelo, Gaston tinha um
pressentimento de que a maldição também o transformaria em algo terrível.
Com o rei e a rainha ainda longe, coube a Gaston ajudar o amigo a sair
daquela confusão. Eles haviam partido logo após o baile de noivado e
provavelmente não sabiam nada sobre o que acontecera desde então. Gaston
sabia que o rei e a rainha sempre quiseram unir sua casa ao reino
Morningstar, e que um casamento entre o príncipe e a princesa Tulipa
Morningstar uniria suas grandes terras em harmonia. Gaston lembrou-se de
uma das cartas que Reizinho enviara à Senhora Potts durante seu grande
tour, contando a temporada que passara com os Morningstar. Ele disse que a
princesa era uma jovem quieta e tímida, que ria com facilidade e era
bastante agradável, mas um pouco enfadonha e boba. Segundo todos os
relatos, ela estava apaixonada pelo príncipe, porém isso foi no início de sua
viagem, e Gaston adivinhava que o príncipe havia apostado que encontraria
alguém mais interessante. Quem diria que o que ele encontraria seria um
ninho de bruxas. Gaston se perguntou se talvez Tulipa não fosse ser uma
combinação melhor naquele momento. Lembrou-se do príncipe falando
sobre como ele a achava adorável, contudo simplesmente não estava
convencido de que eles tinham o suficiente em comum para suportá-la pelo
restante da vida. Gaston esperava que outro encontro com ela pudesse fazê-
lo mudar de ideia. Então, foi até a Senhora Potts em busca de ajuda.
– Não se passou um mês desde que o príncipe se recuperou da doença!
Tem certeza de que ele está preparado para isso? – A Senhora Potts não
estava convencida de que aquele fosse um bom plano. Todos no castelo
estavam desesperadamente preocupados com o príncipe, embora poucos
soubessem da maldição. E a Senhora Potts, é claro, também estava
preocupada com Gaston e o Senhor Cogsworth, recusando-se a sair do lado
deles durante a doença. Era assim que ela era. Não bastava ter seus próprios
filhos; também era mãe de todos os outros, e Gaston estava feliz por isso.
– É exatamente disso que ele precisa, Senhora Potts. Precisamos tirar sua
mente dessa maldição e encontrar alguém para ele se casar. Acho que a
princesa Tulipa Morningstar será perfeita!
– Por que organizar um baile elaborado então? Por que não apenas avisar
ao príncipe que ele deveria cortejar a princesa Tulipa? – A Senhora Potts
parecia um pouco atormentada naquele dia, provavelmente porque o Senhor
Potts ainda estava fora cuidando do irmão doente. Gaston não sabia como
ela conseguia ainda por cima dar conta de administrar o castelo e cuidar de
todos os seus filhos.
– Você já tentou dizer ao príncipe para fazer alguma coisa, Senhora
Potts? Não, ele tem que pensar que ela é escolha dele. – Gaston percebeu
que ela concordava. Todos na casa pareciam confusos com o
comportamento recente do príncipe, que estava mais errático do que nunca,
perdendo a paciência e caindo em um humor profundamente melancólico.
Estavam preocupados, mas ninguém sabia o que fazer a respeito.
– Bem, é claro que estou feliz em ajudar, mas, Gaston, você tem que me
dizer do que realmente se trata. Não é típico de você bancar o Cupido. – A
Senhora Potts conhecia Gaston muito bem. Sabia que havia algo que ele
estava escondendo dela.
– Senhora Potts, você ficaria chocada e revoltada se eu lhe contasse a
verdade. Você me desprezaria, e isso é algo que eu simplesmente não
suportaria. – Ele já desprezava a si mesmo. Se a Senhora Potts também
estivesse decepcionada com ele, Gaston não saberia o que fazer.
– Desprezá-lo? Bem, acho que você tem que me contar agora – disse ela,
fazendo sinal para que ele se sentasse. Como em muitas de suas conversas
ao longo dos anos, eles se encontravam na sala de estar da Senhora Potts.
Ela estava sentada à mesa e Gaston, numa poltrona próxima, em frente à
lareira. A única coisa que faltava era um bule de chá e biscoitos. – Tudo
bem, querido, desabafe – declarou ela, sorrindo para ele.
– Circe afirmou que de alguma forma sabia que eu culpava secretamente
Reizinho pela morte de meu pai e um dia eu o mataria por isso, ou ele me
mataria. Não sei, está tudo confuso agora, mas a questão é que ela disse que
eu precisava deixar o reino.
– Que grande bobagem! Vocês, rapazes, se amam, não há como nenhum
de vocês ser capaz disso. O que ela estava tramando?
– Não sei. Mas eu sabia que não queria ser expulso de meu lar e de minha
família.
– Claro que não queria. Quem no mundo iria querer isso? Então, o que
aconteceu? – ela perguntou, mas respondeu à própria pergunta antes que
Gaston tivesse chance. – Gaston, você não fez isso! Você inventou tudo
sobre ela ser filha de um criador de porcos? Mas, não entendo, o príncipe
viu a prova por si mesmo.
– As irmãs dela estavam envolvidas também. Elas me ajudaram, e isso
partiu o coração de Circe. Você deveria tê-la visto, Senhora Potts. Detesto
falar assim, mas Reizinho foi horrível com ela. – Gaston ainda se sentia
culpado ao lembrar como seu amigo tratara Circe vergonhosamente naquele
dia. Sim, ela estava tentando se livrar dele, porém ainda havia dor e dúvida.
Ele se perguntou se Circe de fato acreditava em sua visão e estava
realmente tentando proteger ele próprio e Reizinho como afirmara.
– Entendo. Mas isso não é culpa sua, Gaston. O príncipe escolheu partir o
coração da garota, não você. Você estava se protegendo, meu garoto. Sei
que não cabe a mim dizer, contudo não gosto do que vejo no príncipe. Ele
sempre teve uma tendência cruel e uma língua afiada, mas ficou muito pior
desde que voltou. Você pode ter mentido, meu rapaz, porém o príncipe
escolheu acreditar na mentira. Foi ele quem decidiu que a filha de um
criador de porcos era inferior a ele e a tem difamado para qualquer pessoa
no reino que queira ouvir. É com ele que estou decepcionada, Gaston, não
com você.
– Eu sabia como eram Circe e suas irmãs, Senhora Potts, mas não
pensei... não tinha ideia de que elas iriam amaldiçoá-lo, e é tudo culpa
minha. Se eu não o tivesse pressionado a terminar com Circe, ele não
estaria amaldiçoado agora.
– Parece-me que você foi enganado, meu garoto, por aquelas irmãs
perversas dela. Mas você tem que parar de se culpar, Gaston. Vi você se
culpar quando seu pai morreu, e agora está se culpando por essa suposta
maldição. Se você quer saber minha opinião, acho que o príncipe é o autor
de sua própria infelicidade, e é hora de você parar de se preocupar com a
felicidade dele e se preocupar com a sua própria.
– Mas não é apenas Reizinho, somos todos nós; estamos todos
amaldiçoados! Circe diz que, se Reizinho não mudar seus hábitos, todos
dentro do castelo serão transformados. Você não vê? Isso é tudo culpa
minha.
– E você tem certeza de que a maldição é real?
– Tenho, e pretendo ajudar Reizinho a quebrá-la.
– Tudo bem, então me diga o que você quer que eu faça – disse ela, com
um sorriso determinado.
A Senhora Potts reuniu a tropa e, com Gaston e o restante da equipe,
planejaram um baile magnífico. Antes que ele percebesse, Gaston ouviu a
Senhora Potts dizendo coisas como “Isso está um sonho!”, percorrendo todo
o castelo enquanto alterava cardápios, fazia sugestões de bolinhos para
servir no grande salão e dizia aos jardineiros com quais flores decorar cada
um dos vários aposentos. Até mesmo Cogsworth parecia ter ganhado corda
extra. Ele era muito austero para revelar isso, mas era visível como estava
satisfeito por ter novamente um castelo movimentado sobre o qual assumir
o controle, como um general em guerra. E era isso mesmo: uma guerra.
Eles iriam salvar o príncipe de si mesmo e daquela maldição.
O príncipe, porém, precisava de alguma persuasão.
– Eu odeio esses eventos, Gaston. Não vejo necessidade de encher o
castelo com mulheres cheias de babados saltitando como pássaros
enfeitados! – Isso fez Gaston rir porque parecia exatamente o tipo de coisa
que o príncipe mais apreciava naquele período. Mas talvez ele estivesse
farto de bailes depois do desastre com Circe.
– Se convidarmos todas as belas donzelas dos Muitos Reinos, ouso dizer
que todas elas comparecerão! – O príncipe parecia deveras apreensivo.
Gaston não entendia por que Reizinho achava isso tão assustador, por que
estava protestando. A questão era exatamente essa: nenhuma mulher
deixaria passar a oportunidade de brilhar aos olhos do príncipe. Depois de
sua longa doença e de tudo o que aconteceu com Circe e as Irmãs
Esquisitas, ele merecia uma diversão. E, se a princesa Tulipa não fosse de
seu agrado, certamente haveria muitas outras mulheres adoráveis para
escolher. Gaston não via qual era o problema.
– Mas é isso que eu temo! – o príncipe exclamou quando Gaston lhe
disse isso. – Certamente haverá muito mais garotas de aparência horrível do
que lindas! Como vou aguentar?
Gaston colocou a mão no ombro do amigo e respondeu:
– Sem dúvida você terá que passar por alguns patinhos feios antes de
encontrar sua princesa, mas não valerá a pena? E o que me diz daquele seu
amigo que teve um baile assim? Não foi um grande sucesso depois que a
questão do sapatinho de cristal foi resolvida?
– De fato, mas você não vai me ver casando com uma criada doméstica
como fez o meu querido amigo, por mais linda que ela seja! Não depois do
desastre com a criadora de porcos!
Conversas assim continuaram por muitos dias antes que Reizinho
finalmente concordasse. Mal sabia ele que Gaston e a Senhora Potts já
haviam colocado tudo em ação. O baile aconteceria com ou sem sua
aprovação. Felizmente para todos os envolvidos, Reizinho mudou de ideia.
Organizar um baile era a última coisa que Gaston esperava ou desejava
fazer, mas se conseguisse convencer Reizinho que a princesa Tulipa era
melhor chance de quebrar a maldição, talvez então Gaston pudesse tirar seu
amigo do profundo poço de depressão no qual ele estava definhando. E
então eles poderiam voltar a viver a vida como sempre viveram. Como eles
sempre desejaram.
Todas as jovens de quase todos os reinos vizinhos foram convidadas para
o baile. Era um evento de gala, repleto de expectativa e entusiasmo
palpáveis. O salão de baile dessa vez fora decorado com faixas prateadas no
topo dos pilares de mármore para combinar com a sobrecasaca do príncipe,
que era, na opinião de Gaston, decididamente mais espalhafatosa do que o
necessário. Mas o príncipe tornara-se nos últimos meses mais vaidoso e
ostentoso em seu estilo e maneiras. A sobrecasaca prateada era adornada
com botões de diamantes e acompanhada por uma camisa branca com gola
e punhos de renda, calças curtas prateadas, meias brancas e sapatos
prateados incrustados de diamantes. Gaston nunca tinha visto nada
parecido. Reizinho parecia bobo para Gaston, sentado em seu trono no salão
de baile e brilhando como o pavilhão de sua mãe, mas as mulheres que
compareceram ao evento não pareciam compartilhar da opinião de Gaston.
Ele não pôde deixar de rir ao vê-las passar por seu amigo, dando risadinhas
por trás de seus leques. Com penas gigantes nos cabelos e enormes vestidos
de baile, pareciam carros alegóricos em um desfile.
Todas as mulheres queriam se casar com o príncipe, exceto uma. Alguém
que Gaston conhecia da aldeia: a filha do inventor, Bela. Ela estava sentada
sozinha à margem, lendo. Não parecia notar nada que acontecia ao redor,
estava tão absorta em seu livro que era como se estivesse em outro mundo.
Era como se ela não quisesse estar ali, e Gaston se perguntou se o pai a
fizera aceitar o convite. Ela não ficara nada impressionada com o castelo,
com o espetáculo brilhante que girava a sua volta e nem com o príncipe. E
este era difícil de não notar.
Algo sobre observar Bela sentada ali lendo no meio de um baile real
girando em torno dela fez Gaston querer levá-la para a biblioteca para
mostrar-lhe todas as delícias que aguardavam por ela nas estantes. Ela era a
única pessoa que ele conhecia que gostava tanto de livros quanto ele e
Reizinho, e talvez fosse por isso que Reizinho se sentiu atraído por ela. O
príncipe exigiu ser apresentado.
Em vez disso, Gaston conduziu Reizinho na direção da princesa Tulipa.
O príncipe precisava de uma esposa que não fosse teimosa, alguém de uma
família real que conhecesse os costumes da corte e não se importasse que o
marido tomasse todas as decisões. E, acima de tudo, ela não deveria se
importar que ele passasse todo o tempo com Gaston. Bela não era nenhuma
dessas coisas, pelo menos até onde Gaston sabia pelas poucas interações
que tiveram e, além disso, ele sabia que Reizinho não se contentaria com a
filha de um inventor, por mais bonita que ela fosse.
Ainda assim, Reizinho insistiu que Gaston os apresentasse.
Gaston enrugou o nariz em sinal de reprovação, esperando que Bela não
estivesse olhando para eles e percebesse que estavam falando sobre ela.
Mas parecia que Bela estava acostumada com as pessoas fazendo isso. Era
tudo o que as pessoas na aldeia pareciam fazer: falar sobre ela e o pai. Ele
não entendia por que todos achavam estranho que ela gostasse de ler ou que
adorasse o pai. Gaston achava isso cativante.
– Você não se interessaria por ela, acredite em mim – disse Gaston.
O príncipe ergueu uma sobrancelha.
– Não me interessaria? E qual seria a razão disso, meu bom amigo? –
Gaston percebeu que Reizinho sabia que ele estava tramando alguma coisa.
Talvez ele pensasse que Gaston queria Bela para si. Gaston não tinha tempo
para querer nada para si, muito menos para cortejar uma jovem da aldeia.
Mesmo que ela parecesse perfeita em todos os sentidos.
Gaston baixou a voz para que as pessoas próximas não ouvissem.
– Ela é filha de um biruta! Ah, ela é adorável, sim, mas o pai dela é
motivo de chacota na aldeia. Ele é bastante inofensivo, porém se considera
um grande inventor. Está sempre construindo engenhocas que fazem
barulho, chacoalham e explodem. Ela não é do tipo com quem você gostaria
de se envolver, bom amigo. – Gaston olhou ao redor para ver se ela estava
olhando na direção deles.
– Talvez você esteja certo, mas mesmo assim gostaria de conhecê-la.
– Acredito que você a acharia muito entediante com sua interminável
conversa sobre literatura, contos de fadas e poesia – disse ele. De repente,
Gaston ficou preocupado por ter cometido um erro ao mencionar o amor
dela pelos livros, embora parecesse que o interesse de Reizinho pela leitura
fosse coisa do passado. Gaston receava ter conseguido apenas despertar o
interesse de Reizinho por ela. Perguntou-se se estava tentando proteger Bela
jogando Tulipa no caminho de seu amigo, e será que agora teria que
proteger Tulipa, assim como Reizinho e todos os outros?
– Você parece saber muito sobre ela, Gaston.
– Temo que sim! Nos poucos momentos em que conversei com ela agora
há pouco, tagarelou sobre nada além de livros. Não, querido amigo,
precisamos encontrar uma dama adequada para você. Uma princesa.
Alguém como a princesa Morningstar ali. Essa, sim, é um deleite. Nenhuma
conversa sobre literatura. Aposto que ela nunca leu um livro ou teve uma
ideia própria.
Gaston percebeu que Reizinho achava que essa fosse uma qualidade
muito boa.
– Sim! Posso pensar por nós dois! Traga a princesa Morningstar. Eu
gostaria muito de encontrá-la novamente.
A princesa Tulipa Morningstar tinha longos cabelos dourados, com uma
tez de pêssego e olhos azuis-claros da cor do céu. Ela parecia uma boneca
enfeitada com diamantes e seda cor-de-rosa. Era uma combinação perfeita
para Reizinho. Pelo menos, uma combinação perfeita para essa nova e
estranha versão de Reizinho com a qual Gaston ainda estava tentando se
acostumar. Gaston se sentia tão culpado pelo príncipe ter sido amaldiçoado
que não teve tempo de processar tudo o que acontecera desde seu retorno.
Percebeu que não estava apontando os erros de Reizinho quando ele agia de
forma horrível. Não estava lembrando ao amigo de não se transformar em
um príncipe tirano e feroz como prometeu que faria quando eram mais
jovens. E não tinha certeza do que Reizinho faria se o fizesse. Ele até
deixara Reizinho pensar que era o melhor em tudo, e agia como se sempre
tivesse sido assim, só porque isso deixava seu amigo feliz. Esse era
realmente um Reizinho diferente. Era mais fácil para Gaston acompanhar o
amigo, e depois de um tempo isso o incomodava menos, porque a natureza
de Gaston também vinha mudando, às vezes sem que ele percebesse.
Houve momentos em que Gaston recuava e realmente olhava para si
mesmo e se perguntava quem ele era. Não era típico de Gaston arrasar
alguém por nunca ter lido um livro ou presumir que tal pessoa nunca teve
pensamentos próprios. E mesmo que fosse assim, seria culpa dela? Pelo que
ele sabia, a aristocracia só tinha por missão educar seus herdeiros homens.
E quem era ele para falar, afinal? O maior arrependimento de sua vida foi
nunca ter aprendido a ler e temia que agora fosse tarde demais.
Ficou claro para Gaston e para todos no baile que Reizinho havia
decidido que se casaria com a princesa Tulipa, e isso quase levou a noite a
um final mal-humorado, com todas as outras damas tão decepcionadas
(exceto Bela, que mal pareceu perceber). Gaston fez o possível para parecer
satisfeito consigo mesmo, para estar feliz por seu amigo não apenas
escolher um casamento por amor, mas ter se interessado justamente pela
dama para quem Gaston o direcionou. Mas parte dele não conseguia deixar
de se perguntar se estaria empurrando a princesa Tulipa para um destino
ruinoso. Ele sentia como se a estivesse jogando em um covil de lobos para
se defender sozinha, e que sua cumplicidade em reuni-los só manchava
ainda mais seu coração sombrio.
CAPÍTULO XV
O solstício de inverno
Ficamos de olho em Gaston, deliciando-nos com o terror que estávamos
causando. Nós o vimos assistir com horror enquanto Reizinho ficava mais
amargo e cruel, testemunhando a evidência no rosto de seu querido amigo
que se tornou tão monstruoso quanto seu sombrio coração. Gaston também
se sentiu monstruoso por encorajar esse romance entre Reizinho e a
princesa Tulipa, vendo como Reizinho a tratava terrivelmente toda vez que
ela vinha visitá-lo.
Sorrimos quando ele tentou levantar o ânimo de Reizinho organizando
uma esplêndida celebração do solstício, lembrando o quanto ambos
adoravam o solstício quando crianças, pensando que talvez a magia de
todas as armadilhas fosse ajudar a tirar seu amigo de sua tristeza e talvez
aproximar mais o príncipe e a princesa após a desastrosa visita anterior.
Gaston providenciaria para que tivessem um solstício romântico e
novamente solicitou a ajuda da criadagem para que tudo fosse perfeito para
a estadia da princesa.
Enquanto a carruagem da princesa Tulipa Morningstar avançava pelo
caminho que levava ao castelo do príncipe, ela não pôde deixar de sentir
que não havia nada mais deslumbrante do que o castelo no inverno.
Morningstar era de longe um dos reinos mais bonitos do país, mas nem
chegava aos pés do reino do príncipe quando coberto de neve branca e pura,
e decorado para o solstício de inverno. Todo o castelo estava infundido de
luz e brilhava intensamente na noite escura de inverno. Tulipa tinha grandes
esperanças nessa visita e não ansiava por nada além de que o príncipe a
tratasse com bondade e amor, como já fizera. Assim como Gaston, ela
esperava que as férias de inverno melhorassem seu mau humor e o
trouxessem de volta ao homem por quem ela se apaixonara no baile. Mal
sabia ela que estava se aproximando do limite do perigo.
Lumière abriu a porta da carruagem e cumprimentou a princesa na
entrada do castelo.
– Bonjour, princesa! Você está muito linda, como sempre! É tão
agradável vê-la de novo. – Não importou quanto Gaston houvesse
implorado, ele não conseguiu convencer Reizinho a recepcionar sua futura
esposa quando ela chegasse. Pelo menos, Lumière estava presente para
fazer a princesa se sentir bem-vinda e adorada.
– Reizinho, você tem que receber Tulipa quando ela chegar! O que ela
pensará se você não estiver lá para cumprimentá-la? – disse Gaston.
– Eu não me importo com o que ela pensa. Foi você quem insistiu para
que ela viesse para cá e que o castelo fosse decorado para o solstício. Parece
um pesadelo de inverno aqui, árvores por toda parte, pilhas intermináveis de
presentes. Suponho que tenham custado uma fortuna todos esses presentes
que você comprou para ela. E onde estão todos os servos? Como tudo isso
foi obtido?
Gaston não queria contar a Reizinho que a maldição começara a afetar os
criados também. Todos os dias, havia menos criados do que no dia anterior;
todos os dias havia novas estátuas em lugares estranhos. Gaston tinha a
arrepiante sensação de que as estátuas o observavam, movendo-se quando
ele estava de costas. O castelo também estava mudando, por dentro e por
fora, gárgulas e dragões substituindo querubins; estava se tornando mais
sombrio, agourento e assustador. Ele fazia o possível para proteger
Reizinho do máximo de situações que podia, mas não conseguia esconder
que o pessoal havia diminuído para a Senhora Potts, o Senhor Cogsworth,
Lumière e alguns outros.
– Os servos estão sendo transformados em estátuas! Abra os olhos,
homem, e olhe ao redor. Tulipa é nossa única esperança de quebrar a
maldição, então controle-se, faça sua cara mais feliz e cumprimente-a
quando ela chegar.
– Estátuas? Tem certeza? – O príncipe parecia horrorizado.
– Tulipa ama você, Reizinho. E, se você não parar de tratá-la tão
horrivelmente, perderemos todos que amamos, todos os nossos amigos e
familiares aqui. E vamos perder um ao outro. Por favor, seja gentil com ela.
Ela está a caminho agora; você não vai tentar lhe desejar bom feriado? Se
não por ela, por todos nós?
– Suponho que sim. Mas não suporto ficar ao ar livre, Gaston. Parece
muito amplo. Eu não consigo explicar. Meu coração dispara e sinto que vou
desmaiar. Não me sinto seguro a menos que esteja no castelo.
– Tudo bem: então, encontre-a no grande salão. Lumière a trará e você a
surpreenderá com todos os seus presentes. Deixe tudo conosco, meu velho
amigo. Juro, eu sei o que é melhor.
A ausência do príncipe na chegada de Tulipa, no entanto, não passou
despercebida, e a Babá resmungou sobre isso enquanto descia da carruagem
logo após a princesa. Mas Lumière tinha tudo sob controle, dizendo que
suas coisas seriam levadas para seus quartos, mesmo que não houvesse
lacaios à vista. Lumière conduziu as damas por muitos quartos vastos e
lindos até que finalmente chegaram a uma grande porta embrulhada para
parecer um presente extravagante com um laço dourado. As mulheres
estavam confusas. Normalmente, eram conduzidas a seus quartos para que
pudessem se refrescar após a longa jornada, mas Tulipa ficou animada ao
encontrar aquela porta intrigante e parecia ansiosa para ver o que havia do
outro lado.
A babá de Tulipa, porém, parecia cética.
– O que é isso? – ela perguntou de maneira ríspida, olhando para a porta
com confusão e admiração. Mas Lumière as incentivou.
– Entrem e vejam por si mesmas!
Tulipa abriu a porta gigante embrulhada para presente e encontrou um
país das maravilhas do inverno. Havia um enorme carvalho que se estendia
até a altura do teto abobadado dourado. Estava coberto de luzes magníficas
e ornamentos lindamente elaborados e cintilantes. Debaixo da árvore, havia
uma abundância de presentes, e entre eles estava o príncipe, com os braços
estendidos enquanto esperava para cumprimentá-la. O coração da pobre
menina se encheu de alegria, sem saber que o sorriso no rosto do príncipe
era forçado.
– Meu amor! Estou tão feliz em vê-lo! – ela disse, envolvendo-o com os
braços. Nós, Irmãs Esquisitas, observamos o príncipe olhar para ela com
repulsa. Foi o mesmo olhar que ele deu a nossa Circe quando a viu coberta
de lama com os porcos. Não importa o quanto ele tentasse, não conseguia
evitar mostrar quem ele realmente era. Não importava o que Gaston
dissesse ou fizesse, o príncipe já tinha ido longe demais. Ele estava nas
garras da maldição e não poderíamos estar mais felizes por ele receber o
que merecia.
– Olá, minha querida. Você está bem cansada da viagem, não está? Estou
surpreso por não ter insistido para ser levada às suas acomodações e ficar
apresentável antes de me encontrar.
– Desculpe, querido, você está certo, é claro.
Lumière, sempre cavalheiro e ansioso por agradar, interveio.
– É minha culpa, meu senhor. Insisti para que ela me seguisse. Sabia que
o senhor estava animado para mostrar à princesa sua decoração.
– Entendi. Bem, Tulipa querida, logo você será rainha destas terras e,
mais importante, rainha desta casa, e deve aprender a decidir sozinha o que
é certo e insistir nisso. Tenho certeza de que, na próxima vez, fará a escolha
certa. – Com isso, ele fez sinal para ela subir.
Tulipa estava em lágrimas enquanto Lumière mostrava a ela e a Babá
seus quartos.
– Como eu disse quando chegaram, querida princesa, a senhorita está
linda como sempre – Lumière disse gentilmente enquanto a conduzia. –
Não dê ouvidos às palavras do mestre. Ele está muito distraído
ultimamente.
O restante da visita de Tulipa se transformou em pesadelo enquanto a
maldição atormentava o príncipe e todos no castelo. Mais funcionários
estavam desaparecendo, estátuas perturbadoras apareciam em lugares
estranhos, como o observatório, locais que ele sabia que não haviam estado
antes, e o príncipe ficou assombrado por nossas palavras de advertência
quando pronunciamos a segunda parte da maldição.
– Seu castelo e suas terras também serão amaldiçoados, então, e todos
dentro delas serão obrigados a compartilhar seu fardo. Nada além de
pavor rodeará você, desde se olhar no espelho até se sentar em seu amado
jardim.
Tais palavras ressoavam em seus ouvidos a cada desaparecimento e a
cada nova estátua que surgia, e ele conhecia os horrores que havia criado.
No entanto, a qualquer momento o príncipe poderia ter tentado mudar seus
hábitos, poderia ter sido terno com Tulipa, mas os constantes maus-tratos
que dispensava a ela o levaram – e a todos no castelo – ainda mais para
dentro de um vórtice de desesperança. Eles se perguntavam se ficariam
presos para sempre naquela desgraça. E Gaston estava com raiva.
– O que foi isso que ouvi sobre você fazer Tulipa chorar? O que há de
errado com você, Reizinho?
– Você deveria tê-la visto, Gaston! Ela não estava preparada para estar
em minha companhia!
– Você tem se visto no espelho ultimamente? Olhe para você. Você tem
sorte que Tulipa ainda queira se casar com você. Tem sorte de o que sobrou
da criadagem não ter abandonado você. Controle-se, homem, e faça as
pazes com ela! Você me entendeu? Faça as pazes com ela e quebre essa
terrível maldição. Perdemos quase todas as pessoas que amamos, e quanto
tempo levará para que o restante também desapareça? Quanto tempo antes
de você se perder por completo?
– Já chega, Gaston. Eu entendo.
– Será que entende? É melhor entender mesmo. Agora vá; ela está
esperando por você.
Depois disso, o príncipe parecia determinado a quebrar a maldição. Mas
ele zombou do amor, meteu os pés pelas mãos tentando fazer Tulipa feliz.
– Tulipa! Você me ama? Quero dizer, realmente me ama? Você me
amaria se eu ficasse desfigurado de algum jeito?
– Que pergunta! É claro que amaria! Você sabe que eu amo você, mais do
que tudo neste mundo!
– Agora eu sei, meu amor, agora eu sei. – E isso era tudo que ele
precisava. Ela o amava. Amava-o verdadeiramente. Ela o ajudaria a quebrar
a maldição.
No que lhe dizia respeito, ele estava na metade do caminho. Tudo o que
ele precisava fazer era convencer a nós, as malvadas Irmãs Esquisitas, de
que ele também a amava. Claro, havia coisas em Tulipa que ele amava. Ele
amava sua beleza, sua timidez e que ela guardasse suas opiniões para si
mesma. Adorava que ela não demonstrasse interesse por livros e não
tagarelasse sobre seus passatempos. Na verdade, ele não tinha ideia de
como ela passava o tempo quando não estava na companhia dele. Era como
se ela não existisse quando não estava com ele. Ele a imaginou sentada em
uma cadeirinha no castelo do pai, apenas esperando que ele mandasse
buscá-la.
Ele adorava como ela nunca lhe lançava um olhar zangado ou o
desprezava, mesmo quando ele estava de mau humor, e como ela era muito
fácil de lidar. Certamente isso contava para alguma coisa. Certamente isso
era uma forma de amor. Então, ele decidiu que, quanto mais doce fosse com
ela, mais rápido quebraria a maldição. Tudo o que restava era selar o acordo
com um beijo e a maldição seria quebrada. Tudo voltaria a ser como era.
Foi muito cômico, na verdade, vê-lo fingir que amava Tulipa. Fazendo
um teatrinho para nós. Mas vimos dentro de seu coração. Infelizmente para
Tulipa, ela não viu.
Lumière recebeu a tarefa de conduzir a Babá até o térreo para tomar chá
com a Senhora Potts e levar a cesta que a Senhora Potts havia preparado
para o príncipe e a princesa para seu interlúdio romântico, como Lumière o
chamava. Fora tudo planejado. Esse seria o momento em que eles
declarariam seu amor um pelo outro e se beijariam! E bam, a maldição seria
quebrada. Num estalar de dedos.
Observamos enquanto o príncipe conduzia a princesa até a borda do
labirinto. Seus olhos estavam cobertos por um longo lenço de seda branca.
Seu coração disparou porque ela estava com medo do escuro e cheia de
excitação nervosa com a surpresa que o príncipe havia preparado para ela.
Ele pediu que ela contasse até cinquenta e depois tirasse a venda,
garantindo-lhe que o caminho para sua surpresa seria bastante claro.
Ela arrancou a faixa dos olhos no instante em que chegou aos cinquenta,
precisando de um momento para deixar seus olhos se ajustarem antes de
visualizar o caminho colocado diante dela. A ponta dos sapatos tocou as
pétalas de rosas espalhadas pelo pátio, criando um caminho que levava ao
labirinto de sebes. Seus medos se dissiparam enquanto ela caminhava
rapidamente pela trilha das pétalas, ansiosa para entrar no labirinto de
topiárias de animais.
As pétalas a conduziram através de uma topiária incrivelmente trabalhada
de uma serpente muito grande, com a boca aberta e ostentando presas
longas e mortais. Virava a esquina, revelando uma parte do labirinto que ela
nunca tinha visto. Uma réplica do castelo, quase exata em todos os
aspectos, só que sem os grifos e muitas gárgulas empoleiradas em quase
todos os cantos e torres. As pétalas saíam do labirinto e entravam em um
pequeno jardim fechado cheio de flores de cores vivas. Era como se ela
tivesse de alguma forma tropeçado na primavera no meio daquela paisagem
de inverno. Era uma visão tão notável, tão brilhante e cheia de vida. Ela não
conseguia imaginar como as flores suportavam um frio tão intenso. Entre as
flores havia lindas estátuas de diversas histórias, personagens de lendas e
mitos. Ela os reconheceu por ter escutado as aulas de seu irmão antes de ser
levada para aprender a andar como uma dama. Não era de admirar que os
homens não levassem as mulheres a sério. Elas tinham aulas sobre como
caminhar apropriadamente enquanto os homens aprendiam línguas antigas.
O jardim era deslumbrante e parecia um conto de fadas sob a fria luz
azulada da tarde de inverno. Aninhado no centro do jardim encantado, todo
rosa e dourado, havia um banco de pedra, onde o príncipe a esperava.
– Fiz com que as flores da estufa fossem trazidas para cá para que você
vivesse um pouco a alegria da primavera.
– Você é maravilhoso, meu amado! Obrigada.
O príncipe decidiu que esse seria o momento em que iria beijá-la e
quebrar a maldição.
– Posso te beijar, meu amor?
E eles se beijaram. E foi mágico. Para Tulipa, pelo menos. Ela ficou
extremamente feliz – mesmo que apenas por um momento, antes de tudo
dar terrivelmente errado.
Enquanto caminhavam de volta ao castelo pelo labirinto, o príncipe teve
certeza de ter quebrado a maldição com o beijo. Mas, então, ele ouviu algo
se mexendo e rosnando no labirinto. Tulipa brincou que talvez um dos
topiários de animais tivesse ganhado vida, mas o príncipe sentiu que eles
estavam em perigo real. Ele sabia que havia verdade nas palavras de Tulipa,
mesmo que ela não soubesse. Então, ele saiu correndo para ver que tipo de
animal estava no labirinto, deixando Tulipa sozinha e indefesa. Quando
finalmente retornou, parecia abatido e zangado enquanto olhava para Tulipa
como se estivesse atordoado, sangrando pelos cortes profundos em seu
braço.
– Meu amor, você está ferido!
– Brilhante de sua parte ter concluído isso, minha querida.
Era seu habitual tom cruel e amargo, cheio de veneno, como se ele
também fosse uma das criaturas topiárias que haviam surgido no labirinto.
Mal sabia Tulipa que ele estava se tornando mais animalesco a cada
momento.
CAPÍTULO XVII
O descendente
A princesa Tulipa Morningstar nunca mais ouviu falar do príncipe. E
parecia que Reizinho finalmente havia parado de delirar com feitiços e
maldições malignas, mas se recusava a sair do castelo. Ele nunca saía do
quarto e não permitia que Lumière ou Gaston abrissem as cortinas. E
admitia que acendessem apenas uma vela à noite. O único visitante que ele
tolerava era Gaston.
– Tem certeza de que é assim que quer lidar com isso, Reizinho? –
Gaston perguntou a ele certa manhã, logo depois que Tulipa e Babá
partiram durante a noite. O príncipe olhou para Gaston como se ele
estivesse tentando ao máximo não cair em um dos acessos de raiva que tão
facilmente se apoderavam dele nos últimos tempos. E Gaston não queria
fazer nada que pudesse desencadear um deles.
– Tenho certeza, meu amigo. É o único jeito. Você irá até o castelo
Morningstar para romper o noivado oficialmente.
– E o acordo de casamento? O rei será destituído sem o acordo que
prometeu.
O príncipe sorriu.
– Tenho certeza de que será. Mas é isso que merece por jogar sua filha
idiota em cima de mim! Ela nunca me amou, Gaston! Nunca! Era tudo
mentira! Tudo um meio de conseguir meu dinheiro, para ela e para o reino
de seu pai!
Gaston balançou a cabeça. Parecia que toda a raiva de Reizinho estava
agora dirigida aos Morningstar. Seu amigo não se contentou em destruir o
coração da princesa; ele queria destruir o reino dela também. Gaston não se
incomodou em discutir com ele. Ele viu que seu amigo estava ficando
nervoso de novo e já havia tentado convencê-lo de que Tulipa o amava.
Gaston não sabia como ajudar. Nada do que ele dissesse convenceria o
príncipe de que ele estava errado sobre Tulipa e que o que quer que tivesse
acontecido no labirinto não fora culpa dela. A convicção de Reizinho era
tão forte, porém, que até mesmo Gaston começou a se perguntar se seu
amigo estaria certo. Ou ele estava apenas perdendo a si mesmo e sua razão
para essa maldição? Tulipa estivera realmente os fazendo de tolos o tempo
todo? Ela era esperta o suficiente para realizar um truque tão inteligente,
fazendo Reizinho acreditar que ela o amava, quando na verdade não o
amava? Gaston não tinha certeza. Ele pensou que tinha escolhido
sabiamente ao juntar o casal, e podia jurar que Tulipa amava o príncipe,
mas agora ele apenas sentia pena dos problemas que isso havia causado,
para seu amigo e para os Morningstar.
– Vou partir hoje mesmo, meu bom amigo. Descanse.
O sorriso do príncipe era perverso, distorcendo seu rosto à vaga luz das
velas, lançando sombras perversas. Quase fez Gaston ficar com medo do
amigo.
O caçador na floresta
Já haviam se passado vários meses desde que o príncipe enviara Gaston em
sua missão covarde, e o príncipe não saiu de seu quarto desde então,
mantido cativo pelo medo e pela raiva. Gaston se fora, e o príncipe estava
exatamente onde o queríamos: sua desgraça aumentava a cada dia e seu
destino estava mais próximo de ser selado. O único servo que o príncipe via
era Lumière, e ele era evasivo quanto à criadagem quando o príncipe
perguntava. Gaston agora estava livre dos horrores de ficar preso dentro do
castelo amaldiçoado.
Observamos Lumière no quarto de seu mestre segurando seu pequeno
candelabro, com medo de lançar luz sobre o rosto do príncipe, ou sobre o
seu próprio, com medo de que o príncipe percebesse quão
desesperadamente ele estava tentando esconder seu terror. Ficamos
encantadas em ver o príncipe tão medonho, pálido e desgastado. Seus olhos
eram buracos escuros e suas feições eram mais animalescas do que
humanas. Lumière não tinha coragem de contar que todos no castelo, um
por um, foram transformados após cada ato imundo que o príncipe cometeu,
e agora, depois do que o príncipe fizera com Tulipa e sua família, Lumière
era o único servo que restava em sua forma humana. Mas parecia que isso
já havia ficado claro para o príncipe, o que restava dele, de qualquer modo,
falando sobre servos desaparecendo, com medo das estátuas se
movimentando pelo castelo e virando os olhos em sua direção quando ele
não estava olhando.
Mas não era assim que os servos se viam. Eles não viam horrores
espreitando nas sombras ou estátuas em movimento. Não viam nada disso.
Esse pavor estava reservado apenas ao príncipe, agora que seu amigo
Gaston havia escapado dos horrores do desaparecimento de seus amigos de
infância, do medo de que estivessem presos em pedra. Na verdade, eles
haviam sido transformados em objetos domésticos e estavam fazendo o
possível para ajudar o príncipe a tentar quebrar a maldição.
Lumière sabia que era apenas uma questão de tempo até que ele também
se transformasse em algum objeto doméstico como havia acontecido com
os outros, e o príncipe ficaria sozinho apenas com os horrores que eram
conjurados em sua mente. Até lá, Lumière faria o que pudesse para
confortá-lo.
Certa noite, Lumière convenceu o príncipe a dar um passeio na floresta.
Era crepúsculo, a hora preferida do príncipe, a hora intermediária em que
tudo era possível. Quando tudo parecia perfeito. O céu escuro estava lilás,
tornando a lua ainda mais marcante pelo contraste. Lumière estava certo,
pensou o príncipe, um passeio na floresta era o que ele precisava depois de
ficar tanto tempo enfurnado em seu quarto. À medida que escurecia, ele
ficava mais à vontade, a copa dos galhos das árvores acima dele obscurecia
a luz, exceto por pequenos trechos que revelavam um manto de noite
coalhado de estrelas. Observamos o príncipe enquanto ele ficava mais
confortável, seus olhos se adaptando à escuridão como um animal da
floresta, e vimos que ele agora estava gostando de sua nova forma,
sentindo-se bastante bestial e rondando a floresta. Perseguindo, procurando
algo para matar. Ele estava à vontade; tudo parecia certo e perfeito na
floresta. Estava em seu ambiente.
Algo – ele não tinha certeza do que, talvez instinto – o fez se esconder
rapidamente atrás de um grande toco de árvore coberto de musgo. Alguém
estava vindo. Um caçador andando pela floresta segurando um bacamarte.
Mas, antes que o príncipe fera pudesse reagir, choveram tiros sobre ele,
penetrando no tronco da árvore, lascando a madeira e colocando seu
coração num ritmo maníaco que ele pensou que iria matá-lo.
Ficamos encantadas; isso não poderia ter sido mais perfeito. Seria esse o
momento em que Gaston mataria seu amigo, pensando que finalmente havia
matado a fera que havia ceifado sua família? O momento que Circe previra?
Ou o príncipe fera mataria o caçador, sem saber que era seu amigo Gaston?
Estava tudo muito delicioso. E vimos algo terrível e sombrio crescer dentro
do príncipe fera. Isso obscureceu tudo, fazendo-o esquecer Gaston. Ele
sentiu como se estivesse escorregando para um oceano profundo e escuro,
estava se afogando nele, perdendo a si mesmo e a lembrança de seu amigo
por completo enquanto outra coisa assumia o controle, algo que parecia
estranho, mas familiar e confortável ao mesmo tempo.
Tudo em sua periferia se estreitou e a única coisa em que ele conseguia
se concentrar era Gaston. Nada mais existia, nada mais importava, exceto o
som do sangue correndo para o coração palpitante de Gaston. O som o
envolveu, combinando com seu próprio batimento cardíaco.
Ele queria o sangue de Gaston. Ele nem percebeu que havia corrido e
derrubado Gaston e o imobilizado no chão até que se viu olhando para
aquele homem que ele havia derrubado tão facilmente, aquele homem que
ele deixara indefeso. Aquele com medo nos olhos.
Tudo o que ele queria era provar seu sangue. Ele lambeu os lábios,
imaginando qual seria o sabor: quente, salgado e espesso. Mas, então, olhou
nos olhos do homem e viu medo, e viu seu amigo. Aquele homem, aquele
caçador, era Gaston. Ele nunca tinha visto Gaston parecer tão assustado,
desde que eram meninos. O príncipe quase tirara a vida de seu melhor
amigo. Um homem que salvara sua vida. Então, ele arrancou a arma de
Gaston das mãos trêmulas dele e a lançou longe, fugindo o mais rápido que
pôde, deixando Gaston sozinho e confuso na floresta, imaginando que tipo
de animal o atacara. O príncipe fera só podia esperar que Gaston não
soubesse que havia sido seu velho amigo quem tentara matá-lo.
Depois daquele momento, se Gaston ainda tivesse alguma lembrança do
príncipe, da amizade deles ou de sua vida anterior no castelo, ela foi
completamente esquecida. E a vida anterior de Gaston também o esqueceu.
Lumière não o reconheceu quando ele apareceu no pátio dos criados,
espancado, machucado e ensanguentado, necessitando de socorro. Ele era
apenas um homem que precisava da ajuda deles e que se esqueceu de que
esteve lá depois de partir.
Parecia-nos que Gaston finalmente teria seu final feliz para sempre.
Estava livre. Livre de suas obrigações para com o príncipe e de suas
lembranças dele.
Pelo que Gaston sabia, fora atacado pela Fera de Gévaudan na floresta, e
não pelo homem que um dia o chamou de irmão. O homem que disse que
não tinha espaço em seu coração para ninguém além dele. Então, depois
que ele foi tratado dos ferimentos e despachado, voltou para a única vida
que conhecia. A de herói da cidade. O único homem corajoso o suficiente
para caçar a Fera de Gévaudan.
Gaston teve uma nova vida, vivendo em sua propriedade, esquecendo
que foi o príncipe quem a dera a ele. Estava livre para viver como quisesse.
Livre para ser o melhor em tudo, fazer suas próprias escolhas e o que
estivesse em seu alcance para proteger as pessoas da cidade, que não o
esqueceram como fizeram todos os que viviam dentro do castelo depois que
a maldição foi selada. O castelo que agora era considerado uma relíquia
antiga e abandonada que restara da obscuridade, um lugar assombrado e
fantasmagórico que ninguém tinha motivos para visitar.
E, por um tempo, Gaston estava vivendo sua melhor fase. Parecia que
finalmente seria capaz de viver do jeito que desejasse. Mas Gaston mal
sabia que ainda tínhamos planos para ele. Vasculhamos profundamente seu
coração e vimos que ele ainda amava o príncipe, mesmo que não se
lembrasse dele. E não queríamos que essa irmandade entre eles despertasse
suas lembranças, fazendo com que Gaston ajudasse a fera. Que se
aventurasse de volta ao seu antigo lar, em busca de respostas para meias-
recordações nebulosas ou sonhos estranhos sobre outra vida. Queríamos
que ele fosse controlado, que se concentrasse quase inteiramente em si
mesmo. Para ser o homem que deveria ser. Para ser o melhor.
Precisávamos de algo para distraí-lo. Bela parecia a escolha perfeita. Ela
adorava livros quase tanto quanto Gaston, mesmo que ele não se lembrasse
daqueles dias em que entrava furtivamente na biblioteca do castelo ou do
príncipe lendo para ele. Mesmo que ele não se lembrasse de amar histórias,
mesmo que começasse a partilhar as mesmas noções de mente fechada que
as outras pessoas da aldeia tinham sobre a necessidade de se adaptarem, que
as mulheres não deviam ter o nariz enfiado num livro e que eram peculiares
por sonharem acordadas. Pelo que Gaston sabia, ele era como todo mundo
na cidade, e sempre fora assim. Pelo que ele sabia, crescera com aquelas
pessoas e compartilhava seus valores. Ele era exatamente o que a cidade
pensava que precisava. E Gaston estava feliz com a sensação de
pertencimento.
Nossa maldição mudou Gaston, mas pelo menos ele se encaixou. E ele
era amado por todos na cidade. Mas precisávamos de garantias. Então,
fizemos o que as bruxas fazem de melhor. Lançamos um feitiço. Um que o
fez mudar seu foco para Bela.
Aquele que fez de Bela o maior desejo de Gaston.
CAPÍTULO XX
A FERA
Tarde da noite e nas primeiras horas da manhã, depois que Gaston fora
atacado pela fera, ele e seu administrador de propriedade, LeFou, estavam
na taverna, cercados por todos os farristas habituais que frequentavam o
estabelecimento do Senhor Higgins. Aquele era o lugar favorito de Gaston,
onde ficava rodeado de seus admiradores. As paredes estavam repletas de
troféus que ele colecionava havia anos. Não havia nenhuma cabeça de
animal empalhada ou montada naquela parede que alguém além dele
pudesse reivindicar ser sua. Pelo que todos sabiam, ele tinha orgulho disso,
mas, de certa forma, ao mesmo tempo que as paredes cobertas de troféus de
caça o envaideciam, também eram um lembrete de que faltava um. A
cabeça da fera que matara seus pais. E naquele dia tivera a chance de matá-
la, mas a fera levou a melhor sobre ele e fugiu.
Todos os olhares estavam fixos em Gaston, arrebatados pela atenção
enquanto ouviam sua história angustiante. Ele passava mais tempo na aldeia
e em sua propriedade, mesmo antes de o príncipe ter se transformado por
completo. Ele e o príncipe já estavam começando a perder as lembranças
lentamente antes daquela noite fatídica em que esqueceriam para sempre o
que significavam um para o outro.
– E do nada a fera se lançou sobre mim, prendendo-me no chão! Eu
pensei que estivesse acabado. Vocês tinham que ter visto sua cara
contorcida num rosnado, seus dentes enormes e afiados como navalha,
prontos para rasgar minha garganta.
O que Gaston não contou foi que ele havia tentado e errou. E como ele
realmente ficara assustado quando a fera levou a melhor sobre ele. Foi
como um raio! Ele nem tinha visto acontecer; num momento estava ali
parado e no seguinte jazia no chão temendo por sua vida. Ele não lhes disse
que tivera medo de morrer, que sentia como se tivesse falhado com sua mãe
e seu pai, ou como sentiu-se impotente enquanto estava preso ao chão. A
fera era muito forte. Mas algo estranho aconteceu quando ele estava deitado
no chão olhando nos olhos da fera: por um breve momento, pensou que
soubesse quem era a fera. Pensou ter a reconhecido. E naquele momento
fugaz, a fera agarrou o bacamarte de Gaston e atirou-o longe, correndo para
dentro da floresta. Mas como aquilo foi possível? Como uma fera poderia
fazer isso? Estava tudo tão confuso em sua mente. Tudo o que ele conseguia
lembrar era de ter procurado e encontrado sua arma e ir até a taverna,
sentindo que só havia uma coisa que desejava mais do que matar a fera.
Queria contar tudo a Bela.
– O que aconteceu depois? Você a matou, Gaston? Onde está o monstro
agora?
– Eu teria feito isso, mas a maldita criatura me pegou de surpresa e
conseguiu arrancar a arma da minha mão – contou Gaston. – E fugiu. Não
consigo explicar.
– Você estará pronto da próxima vez, não é, Gaston? – perguntou LeFou,
sempre lá para elevar o ânimo de Gaston.
– Claro que estará! – disse o Senhor Higgins. – A fera nem saberá o que a
atingiu!
– Estarei. Não tenham medo. Eu vou matar a fera! Podem ter certeza
disso! – ele afirmou, distraído pelo relógio na parede. – LeFou, olhe, o sol
nasceu! Já é de manhã. Acho que já é hora de Bela voltar da livraria para
casa. Vamos, quero impressioná-la com minha história sobre a fera.
Nenhuma mulher viva pode resistir a um bom caçador, especialmente se
esse caçador for bonito como eu!
LeFou parecia confuso, mas seguiu em frente mesmo assim.
– Desde quando você se preocupa em impressionar Bela?
– Desde que decidi que vou me casar com ela, desde então! – Gaston
disse, abrindo a porta da taverna e saindo. E foi sorte dele: um bando de
gansos sobrevoava. Essa era sua chance de mostrar a Bela suas habilidades
de caça. – Rápido, LeFou, pegue sua bolsa! Prepare-se!
LeFou estava com ele desde que Gaston se lembrava. Na verdade, nem
tinha certeza de como se tornara seu agente de terras. Nenhum dos dois
conseguia se lembrar, mas isso não importava. Gaston presumiu que fosse
algo que seu pai havia arranjado. Ele não tinha certeza. O que sabia era que
LeFou era leal e estava sempre a seu lado. Ao que tudo indicava, LeFou
parecia adorar Gaston mais do que qualquer outra pessoa na aldeia, e isso
dizia alguma coisa. Gaston não se importava. Ele gostava de tê-lo por perto.
Sempre pronto para cumprir suas ordens. Sempre lembrando-o de como ele
era bonito e de como era o melhor em tudo. Não que Gaston precisasse ser
lembrado. Ele sabia que era o melhor. Sabia que era o queridão de todos.
Gaston ergueu seu bacamarte e atirou nos gansos no céu, acertando um.
Gostava de imaginar que LeFou não conseguiu pegar a ave quando ela caiu
porque estava muito distraído, admirado com o tiro de Gaston.
– Puxa! Você não perde um tiro, Gaston! – LeFou parecia pasmo com o
talento de Gaston. – Você é o maior caçador! – Gaston sabia que seu
companheiro era fácil de impressionar. E também sabia que ele estava
tentando fazê-lo se sentir melhor por deixar a fera fugir. LeFou era perfeito
assim. Embora aparentemente não fosse perfeito para pegar gansos.
– Eu sei – disse Gaston.
– Rá. Nenhuma fera tem a menor chance com você... e nenhuma garota
também! – afirmou LeFou.
– Tem razão, LeFou. E eu só consigo olhar praquela ali! – disse Gaston,
passando um dos braços em volta do pescoço de LeFou e levantando-o,
usando seu bacamarte para apontar para Bela, a fim de que LeFou pudesse
ver de quem ele estava falando.
– A filha do inventor? – LeFou parecia confuso. Como se de alguma
forma Bela fosse indigna do afeto de Gaston. Era verdade, ela não parecia
ser a escolha óbvia para Gaston, mas havia algo nela que ele gostava. Algo
diferente. Algo especial. E havia algo que lhe dizia que ela era a garota
certa para ele. A mulher com quem ele deveria se casar. Então, por que lutar
contra isso? Por que não pedi-la em casamento? Afinal, ele era o homem
mais bonito da cidade. Por que ela não iria querer se casar com ele? Tudo o
que ele precisava fazer era pedir.
E foi exatamente isso que ele pretendia fazer.
– É ela sim. E é com ela que eu quero me amarrar! – exclamou Gaston,
olhando para Bela como se ela fosse uma de suas presas. Como se
planejasse fazer dela um de seus troféus.
– Mas ela é...
– É a mais bonita da cidade – interrompeu ele, irritando-se com o amigo.
– É, eu sei... – declarou LeFou.
– Ela é a melhor! E eu não mereço a melhor? – Gaston disse, largando
seu bacamarte na cabeça de LeFou.
– Ora, é claro, você merece sim, mas...
Gaston pegou sua arma das mãos de LeFou e partiu atrás de Bela,
determinado a alcançá-la, mas isso não o impediu de se admirar num
espelho antes de persegui-la pela rua movimentada. Ela continuava a ler seu
livro enquanto caminhava, alegremente alheia ao que acontecia ao seu
redor.
Gaston esquivou-se de carroças e admiradoras a ponto de desmaiar ao
avistá-lo, enquanto abria caminho entre aldeões fofoqueiros, mantendo o
tempo todo o olho em Bela, que estava vários metros à sua frente. Ele podia
ouvir as pessoas comentando sobre ela enquanto passava por eles, dizendo
como Bela era peculiar por ler tanto, como a achavam estranha, mas isso
não importava para ele. Gaston declarou suas intenções a todos ao alcance
de sua voz de fazer de Bela sua esposa.
Gaston tinha que concordar com todos na cidade. Bela era estranha, com
seu amor pelos livros e olhar distante, sempre sonhando acordada. Ela era a
garota mais estranha que ele já conhecera. Bela não era como ninguém na
cidade, mas talvez fosse por isso que estava tão apaixonado por ela. Gaston
não se importava; mesmo que Bela não se encaixasse, ele ainda iria se casar
com ela. Tinha que se casar! Algo o estava levando a isso. Ele ia pedi-la em
casamento naquele dia. E que os deuses ajudassem qualquer um que falasse
contra ela depois de casados.
Gaston desistiu de tentar chegar a Bela abrindo caminho entre a multidão
reunida na aldeia e decidiu entrar em uma das casas no fim da rua. Ele
correu até o sótão o mais rápido que pôde, subiu pela janela até o telhado e
deslizou para poder surpreender Bela do outro lado. Ele havia cronometrado
tudo perfeitamente.
O que Gaston sentia por Bela naquele dia era quase tão estranho quanto
ela. Nunca havia pensado nela desse jeito antes. Pelo menos, não achava
que tivesse. Nunca havia parado para prestar atenção nela. Claro, ele a via
na aldeia desde que ela e o pai se mudaram para lá. Mas não fora algo que
se poderia chamar de amor à primeira vista. Fora mais como um relâmpago
inesperado. Um choque que o atingiu depois que ele foi atacado pela fera –
de repente, ele estava apaixonado por Bela. Ele não conseguia explicar. E
não se importava.
Finalmente ele a alcançou. Sabia que Bela ficaria muito feliz ao saber
que ele sentia algo por ela. Que mulher não ficaria? Bela provavelmente
estava sofrendo por ele desde que ela e seu excêntrico pai se mudaram para
a cidade, e só andava pelas ruas lendo seus livros para chamar atenção dele.
E de alguma forma ele nunca a tinha notado, não de verdade, não assim,
não até aquele dia. O dia em que ele decidiu que tinha que se casar com ela.
Ele pulou do telhado, aterrissando bem no caminho de Bela, e fez uma de
suas melhores poses: mãos na cintura, exibindo seus músculos. Ele sabia
naquele momento que estava mais bonito do que nunca, se isso fosse
possível.
– Olá, Bela – Gaston disse, certo de que ela ficaria surpresa e satisfeita
por ele estar fazendo poses e conversando com ela. Ele a faria desmaiar em
pouco tempo.
– Bonjour, Gaston – ela falou, enquanto Gaston arrancava o livro de suas
mãos de brincadeira. Ele era até bom em flertar! – Gaston, me devolve o
livro, sim?
– Como pode ler isto? Não tem figuras! – ele exclamou, virando o livro
de lado e depois de cabeça para baixo.
– Ah, só precisa usar a imaginação.
– Bela, já é tempo de você afastar a cabeça desses livros e dar atenção a
coisas mais importantes... como eu! – Ele jogou o livro no ar com um
floreio, deixando-o cair em uma poça de lama. Ela não pareceu
impressionada. Bela não ficou muito feliz por ele estar falando com ela.
Qual poderia ser o problema? Qualquer outra garota estaria desmaiando
agora. Na verdade, Claudette, Laurette e Paulette, as três beldades loiras
que trabalhavam na taverna, estavam paradas na rua, desmaiando por causa
dele naquele exato momento. O que havia de errado com essa garota?
– A aldeia toda só fala nisso. Não é direito uma mulher ler. Logo começa
a ter ideias... a pensar – disse Gaston com a maior sinceridade, enquanto
Bela pegava seu livro na lama. Nem lhe passava pela cabeça que um dia ele
amara livros tanto quanto ela; Gaston havia se esquecido completamente
daqueles dias. E se ele tivesse se lembrado, ficaria feliz em passar a vida
com alguém que adorasse ler, alguém tão doce e gentil, que ficaria satisfeita
em dedicar um tempo para ensiná-lo a ler livros por conta própria, se ele
não agisse de modo tão arrogante... Mas tudo o que sabia era que amava
aquela mulher e não sabia por quê. Ele não se lembrava de ter desejado a
oportunidade de cortejá-la depois da conversa no baile, de como desejara
levá-la do salão de baile para a biblioteca e mostrar-lhe todos os seus livros
favoritos. Ele não se lembrava de como, em algum nível, estava protegendo
Bela quando empurrou Reizinho na direção de Tulipa. Ele não se lembrava
de nada disso.
Ele nem era a mesma pessoa que fora antes da maldição. Era mais
parecido com as pessoas da cidade, tacanho e com ideias antiquadas. Ele se
encaixava. E era obcecado por um punhado de coisas: ser o herói que a
cidade queria, ser o melhor, matar a fera e cortejar Bela. Todo o restante
havia sido encoberto pela maldição, mesmo que permanecesse sob a
superfície, obscuro e indistinto. Essas novas obsessões o distraíam e
inspiravam. Mesmo que o foco em si mesmo o tornasse insuportável, não
havia chance de ele se lembrar.
– Gaston, você é um homem primitivo. – Bela lançou-lhe um olhar feio
enquanto limpava o livro com o avental. Aquilo não estava indo bem, e
Gaston não entendia por quê. Ela deveria estar nas nuvens por ter um
homem tão bonito puxando conversa com ela. Bela era imune a sua extrema
beleza? Ela não estava impressionada com suas habilidades superiores de
caça? Com sua reputação de ser o homem mais corajoso da aldeia?
Impossível! Devia haver algo mais acontecendo, ele pensou, e decidiu
interpretar o comentário dela como um elogio. Considerava tudo um elogio;
a vida era muito mais agradável assim. Colocou o braço em volta dela e
sorriu.
– Ora, obrigado, Bela. O que me diz de darmos um passeio até a taverna
para olhar meus troféus? – Com toda certeza, se ela visse todas as suas
conquistas, perceberia como ele era um bom partido.
– Talvez em outra ocasião – respondeu ela. Claudette, Laurette e Paulette
engasgaram audivelmente, e Gaston sabia como se sentiam. Bela o estava
dispensando. Como todos na cidade o amavam, exceto Bela?
– Perdão, Gaston. Eu não posso. Preciso ir ajudar meu pai. Até logo. – E
assim ela estava se afastando dele. Como isso era possível? Ele ficou
parado ali, incrédulo, quando LeFou chegou ao local, e os dois ficaram um
ao lado do outro, observando Bela caminhar em direção a sua casa.
– Ha-ha-ha, aquele velho maluco está precisando de muita ajuda! –
LeFou sempre sabia o que dizer para fazê-lo rir. O pai de Bela era um
pouco doido. Não havia como negar.
– Não fale de meu pai desse jeito! – Bela se virou e lançou-lhes um olhar
severo. Essa foi a primeira vez que Bela deixou transparecer sua raiva. E
Gaston sabia que, se quisesse conquistar o coração daquela garota, zombar
do pai dela não era a maneira de fazer isso.
– É, não fale do pai dela desse jeito! – Gaston se apressou em dizer,
batendo na cabeça de LeFou. Mas Bela ainda estava com raiva. Ela ficou
parada lá, olhando feio para eles.
– Meu pai não é louco! Ele é um gênio! – ela exclamou quando algo
explodiu no porão de sua casa, fazendo levantar fumaça. Muito
provavelmente, uma das engenhocas malucas do velho Maurice.
Enquanto ela saía correndo, Gaston disse:
– Não me importo com o que dizem sobre ela, LeFou! Vou me casar com
aquela garota e você vai me ajudar a fazer isso!
E Gaston falava sério. Todo o restante estava derretendo. Não havia mais
nada que importasse. Ele tinha que se casar com Bela. Era uma sensação na
boca do estômago, uma urgência inexplicável empurrando-o, quase como se
sua vida dependesse disso.
CAPÍTULO XXI
A SURPRESA
Mais tarde naquela noite, Gaston se viu de volta à taverna com LeFou,
lambendo as feridas. Não sabia ao certo como se sentia: irritado, magoado
ou confuso? Talvez tudo junto. Mesmo que Bela não se sentisse digna dele,
como ela poderia humilhá-lo publicamente daquele jeito? Não havia
ninguém na cidade que não tivesse ouvido falar de como ela o recusara e o
expulsara de casa. E como isso o fazia parecer? Não. Como isso a fazia
parecer? Sem dúvida, todos se perguntavam como ela poderia resistir a seus
encantos e a uma proposta de casamento tão romântica.
Ele não conseguia pensar direito. Sua mente estava acelerada, era como
um redemoinho, girando. Ele ouviu as mesmas palavras sendo entoadas
repetidamente em sua mente: Você tem que se casar com Bela. Ele não
sabia quem estava dizendo as palavras. Era ele? Esses eram seus próprios
pensamentos? Não parecia ele. Era outra pessoa? Houve momentos em que
ele pensou que eram vozes de mulheres; três, na verdade. Vozes que ele
pensava conhecer, mas não conseguia identificar. Isso o estava deixando
louco. Ele ao menos queria se casar com Bela? Claro que sim. Precisava
disso. Não havia como voltar atrás agora.
– Quem ela pensa que é? Está brincando com o homem errado. Ninguém
diz “não” pra Gaston! – A última coisa que ele desejava era se sentir fraco
na frente dos outros homens, ainda mais LeFou. Ele precisava salvar sua
reputação.
Precisava colocar a cabeça no lugar.
– Tem toda razão!
– Repudiado. Rejeitado. Publicamente humilhado. Ah, isso é demais pra
um homem! – Ele virou a cadeira para que os outros não o vissem agindo
como uma criança.
– Mais cerveja? – Era típico de LeFou tentar animá-lo, mas nem a
cerveja estava ajudando. Não havia nada que alguém pudesse fazer.
– Pra quê? Nada consola. Sou um desgraçado.
– Quem, você? Jamais. Gaston, você tem que voltar logo a ser o que era.
– E era verdade, Gaston nunca estivera tão deprimido, e era típico de LeFou
tentar animá-lo. E sem saber como aquilo aconteceu, todos na taverna
começaram a balançar de um lado para o outro, cantando louvores a
Gaston. O turbilhão de vozes que o enlouquecia foi substituído pela
cantoria de seus amigos. Ah, sim, era disso que ele precisava para levantar
seu ânimo. Era disso que se tratava a vida, estar na companhia de homens
bons que davam valor às suas qualidades. Pessoas que o amavam. Por quem
ele era.
E bem no momento em que os amigos de Gaston o celebravam com sua
música, no momento em que ele estava se sentindo melhor e mais parecido
com ele mesmo, ou talvez uma versão sua ainda melhor do que antes, o pai
de Bela, Maurice, entrou cambaleando na taverna deixando lá fora o frio
congelante. Gaston tinha certeza de que o homem estava ali para perguntar
o que acontecera com Bela. Se alguém poderia convencer Bela a agir com
bom senso, esse alguém era o pai dela, por isso, por um instante, Gaston
ficou satisfeito em vê-lo. Mas não parecia que Maurice estivesse em
condições de fazer alguma coisa, tremendo e em pânico como estava.
– Socorro! Alguém me ajude.
– Maurice?
– Por favor! Por favor, eu preciso de ajuda! Ele a pegou. Ele a prendeu no
calabouço. – As coisas que Maurice falava estavam fazendo menos sentido
ainda do que o normal. Nenhum deles sabia do que ele estava falando.
– Quem? – perguntou LeFou.
– Bela! Temos que ir! Não podemos perder um minuto! – exclamou
Maurice.
– Ô-ô! Devagar, Maurice. Quem prendeu Bela, afinal de contas? –
Gaston queria entender direito aquilo. Não havia como ele tolerar que
alguém trancasse sua futura noiva em um calabouço.
– A fera! Uma fera monstruosa e horrível! – Maurice corria de homem
em homem, implorando ajuda. Mas eles apenas riam. Essa não era a
primeira vez que Maurice entrava na taverna dizendo coisas estranhas, e os
homens estavam todos exaltados depois de um longo dia. Eles resolveram
que iriam se divertir um pouco com o pobre velho.
– E de que tamanho?
– Grande!
– Com um focinho grande e feio?
– Uma cara horrenda!
– Com os caninos afiados?
– É, é. Vão me ajudar?
– Está bem, velhote, nós vamos livrá-lo disso – disse Gaston.
– Ah, vão? Obrigado, obrigado, obrigado! – agradeceu Maurice. E três
dos homens o pegaram e atiraram pela porta da taverna.
– Velho louco Maurice.
– Ele mata a gente de tanto rir!
– Velho louco Maurice. Velho louco Maurice. Humm. – Gaston teve uma
ideia.
Ele sabia que, se Maurice tivesse realmente ficado cara a cara com a fera,
não teria sobrevivido para contar a história. Se um caçador habilidoso como
Gaston mal havia escapado com vida, não tinha como Maurice conseguir.
Além disso, a Fera de Gévaudan era um animal selvagem. Não andava por
aí colocando pessoas em calabouços. Ela as devorava. Não, essa era apenas
uma das histórias de Maurice.
Todo mundo sabia que ele era um velho excêntrico, sempre falando sobre
uma coisa e outra. Não fora ele o mesmo homem que entrara na taverna
alegando que as corujas não eram o que pareciam? O que isso significava?
E, naquela mesma noite, disse que estava construindo uma engenhoca que
poderia cortar madeira em toras. Quem já ouviu falar de tal coisa? E por
que alguém iria querer ou precisar disso? Todos estavam cansados de suas
histórias, engenhocas e noções malucas sobre as coisas. E esse era apenas
mais um exemplo.
Não, Maurice estava apenas dizendo bobagens, como sempre. Mas
Gaston tinha uma ideia de como isso funcionaria a seu favor. Ele só
precisava de uma forma de convencer Monsieur D’Arque, o homem que
dirigia o sanatório, a seguir seu plano.
CAPÍTULO XXIV
MORTE À FERA
IRMÃOS DE SANGUE