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Gaston - Serena Valentino - 241017 - 185625

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Serena Valentino

A história do vilão de A Bela e a Fera


Kill the Beast
Copyright © 2024 Disney Enterprises, Inc. All rights reserved. Adapted in
part from Disney’s Beauty and the Beast.
Published by Disney • Hyperion, an imprint of Disney Book Group.

© 2024 by Universo dos Livros


Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora,
poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios
empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer
outros.

Diretor editorial: Luis Matos


Gerente editorial: Marcia Batista
Produção editorial: Letícia Nakamura e Raquel F. Abranches
Tradução: Jacqueline Valpassos
Preparação: Aline Graça
Revisão: Gabriele Fernandes e Tássia Carvalho
Arte: Renato Klisman
Diagramação: Beatriz Borges
Ilustração da capa: Jeffrey Thomas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057
V252g Valentino, Serena
Gaston : a história do vilão de A Bela e a Fera / Serena Valentino
; tradução de Jacqueline Valpassos. – São Paulo : Universo dos
Livros, 2024. 320 p. (Coleção Vilões da Disney, vol 11)

e-ISBN 978-65-5609-701-5
Título original: Kill the Beast

1. Ficção infantojuvenil norte-americana 2. Gaston – Personagem


fictício
I. Título II. Valpassos, Jacqueline III. Série

24-3257 CDD 028.5

Universo dos Livros Editora Ltda.


Avenida Ordem e Progresso, 157 - 8º andar - Conj. 803
CEP 01141-030 - Barra Funda - São Paulo/SP
Telefone: (11) 3392-3336
www.universodoslivros.com.br
e-mail: editor@universodoslivros.com.br
Dedicado com amor a meus leitores incrivelmente gentis e solidários. Eu
lhes agradeço de todo o coração. Obrigada.
PRÓLOGO

DO LIVRO DOS CONTOS DE FADAS

Você pode pensar que conhece a história de Gaston. Pode até se lembrar do
intrépido autoproclamado herói abrindo caminho pela saga da Fera,
flexionando os músculos e projetando seu queixo enquanto enaltecia a si
mesmo em canções, como se fosse o rei da terra dos machões-com-covinha-
no-queixo. No entanto, às vezes há mais de um vilão em um conto de fadas.
E não se engane: tanto Gaston quanto a Fera eram os vilões desta história,
mesmo que a Fera eventualmente tenha se redimido.
Alguns até dizem que nós é que somos as verdadeiras vilãs que espreitam
estas páginas, manipulando os fios do destino e tecendo estas histórias para
se adequarem aos nossos próprios desígnios. As bruxas intrometidas,
intrigantes e diabólicas de todos estes contos: as Irmãs Esquisitas. E talvez
não estejam enganados.
Como autoras do Livro dos Contos de Fadas, podemos dizer com
autoridade mágica que este é um livro como nenhum outro. É fluido e está
sempre mudando, assim como mudou o destino daqueles cujas histórias
narramos. E embora os acontecimentos que moldaram a vida de Gaston e a
sua morte no fim tenham acontecido há muito tempo, a nossa narrativa
reflete tudo o que ocorreu antes do seu tempo e o que aconteceu desde
então. Você pode se perguntar como isso é possível. É simples: vemos as
coisas com muito mais clareza em nosso novo lar no Submundo na
companhia de Hades. Nós enxergamos tudo. Passado, presente e futuro.
Se você leu a lenda da Fera no Livro dos Contos de Fadas, sabe por que
ajudamos a amaldiçoá-lo. Ele era um homem egoísta, vaidoso e cruel que
partiu o coração de nossa filha Circe. Falamos filha porque é isso que ela é,
mas há muito tempo, na altura desses acontecimentos, mentimos à nossa
filha e lhe dissemos que ela era nossa irmã. Nossa irmã mais nova, que
protegeríamos a qualquer custo, incluindo fazer amizade com Gaston para
nos vingar do príncipe Fera. E embora você possa pensar que conhece o
papel que Gaston desempenhou nesses eventos, sempre há mais de uma
versão da mesma história. Esta é a versão dele.
Se este é ou não um conto de redenção, depende de você. Trata-se da
história de dois meninos que se amavam como irmãos e que mudariam para
sempre a vida um do outro.
CAPÍTULO I

IRMÃOS DE SANGUE

Gaston cresceu em um reino pitoresco, com um castelo situado no topo de


uma imponente ilha rochosa conectada às terras da propriedade por uma
longa ponte de pedra. Era uma construção bela e arquitetonicamente
singular, composta de vários níveis – cada qual com patamar e jardim
próprios. As torres do castelo, e havia muitas, pareciam chapéus de bruxa
pontudos que perfuravam majestosamente o céu. Gaston administrava esse
castelo e os terrenos do entorno e, junto ao príncipe daquele reino, passava
os dias explorando cada centímetro dali e as vastas florestas da região.
Gaston e o príncipe eram melhores amigos desde que tiveram idade
suficiente para se aventurar. Suas mães eram muito próximas e gostavam da
ideia de os filhos crescerem juntos, que foi o que aconteceu. Eram meninos
incontroláveis, aventureiros e rebeldes, sempre em busca de emoção – e
nunca tiveram que procurar muito para encontrá-la. A dupla sempre achava
uma forma de se divertir.
Brincavam de procurar as árvores mais antigas e os caminhos mais
cobertos de vegetação. Com isso, encontraram construções anexas
abandonadas em mau estado e carvalhos escavados que levavam a túneis
subterrâneos, e descobriram um cemitério antigo e em ruínas que parecia ter
existido lá muito antes de a família do príncipe governar aquela terra. Em
alguns dias, passavam horas cavalgando, saltando riachos e cercas,
desafiando um ao outro a cavalgar o mais longe possível do reino do
príncipe para que pudessem explorar terras estranhas sobre as quais só
haviam aprendido através dos livros que encontraram na biblioteca do
castelo. Em outros, ficavam perto de casa, debruçados sobre esses livros e
sonhando acerca de como seria a vida quando tivessem idade suficiente
para fazer o que quisessem.
Uma de suas travessuras favoritas quando estavam no castelo era entrar
furtivamente na biblioteca para fuçar todo tipo de livros, incluindo aqueles
sobre a história dos Muitos Reinos. Tais obras estavam repletas de
ilustrações extravagantes de seres que não eram vistos havia centenas de
anos, como os grandes Senhores das Árvores, que outrora governaram todas
as terras sobre as quais os Muitos Reinos se encontravam agora construídos.
Mal sabiam eles que, não muito tempo depois, os Senhores das Árvores
emergiriam novamente, despertando de um longo sono para ocupar seu
lugar no mundo mais uma vez.
O bibliotecário do castelo, Monsieur Biblio, era um homem rabugento e
enfadonho, bastante rigoroso quanto ao fato de os livros nunca saírem da
biblioteca, embora por direito as obras pertencessem ao príncipe – ou, pelo
menos, fossem pertencer um dia. Monsieur Biblio guardava os livros como
um dragão ganancioso protegendo seu tesouro, às vezes até rosnando e
resmungando se descobrisse que faltava algum deles. Os dois meninos
concordavam que Monsieur Biblio parecia mais uma toupeira do que um
dragão. Ele era um homem atarracado, com uma cabeça muito redonda e
calva, e olhinhos que eram ampliados pelos óculos grossos. Gaston e o
príncipe gostavam de brincar de entrar furtivamente na “Cova do Dragão”,
como chamavam a biblioteca, desafiando um ao outro a entrar enquanto
Monsieur Biblio cumpria seus deveres. Às vezes, o príncipe entrava sob o
pretexto de fazer uma pergunta a Monsieur Biblio, geralmente sobre um
assunto que sabiam que interessava ao bibliotecário de maneira especial e
sobre o qual poderia falar sem pressa. Os meninos observaram que
Monsieur Biblio estava intrigado, em particular, com a história e a
construção dos vários castelos nos Muitos Reinos. E sentia-se notavelmente
atraído pelos diversos protocolos que regiam a vida doméstica em cada um
desses castelos. Mas seu interesse especial, o que mais ocupava seu tempo,
era aprender sobre os guardiões de livros que vieram antes dele e como
administravam bibliotecas. A pessoa comum, não por culpa própria, pode
não perceber que a esfera de ação do bibliotecário real ia muito além da
proteção dos tomos régios. Esse profissional era o que mais conhecia a
casa, seus bens e aqueles que haviam vivido dentro de suas muralhas ao
longo dos tempos. Ademais, era historiador. Assim, tudo o que o príncipe
precisava fazer era perguntar a Monsieur Biblio sobre a casa, ou sobre
quem era o retratado em determinado quadro, e o homem tagarelava sem
parar – o que dava a Gaston a oportunidade de entrar furtivamente e colocar
alguns livros na mochila. Depois, os meninos riam, satisfeitos por terem
enganado mais uma vez o velho e enfadonho Monsieur Biblio, e levavam
seus tesouros ilícitos para a casa na árvore, onde não seriam incomodados.
Não havia praticamente nada que Gaston e o príncipe amassem mais do
que colocar as mãos em livros magníficos cheios de emocionantes histórias
de aventuras. Gaston adorava olhar os desenhos enquanto o príncipe lia em
voz alta as páginas. Às vezes, passavam horas lendo um dos preciosos
tomos de Monsieur Biblio, escondidos na casa na árvore que o pai de
Gaston construíra para eles, não muito longe do chalé onde o garoto morava
com o pai. Este era o único adulto que sabia sobre a casa secreta na árvore –
já que aqueles que moravam no castelo raramente visitavam o chalé – e
prometeu que nunca contaria a ninguém. O esconderijo era tudo o que os
meninos poderiam desejar, com grandes janelas redondas e um alçapão que
podiam fechar quando estivessem lá dentro. O local ficava enfiado no alto
dos galhos fortes de um venerável e maciço carvalho e, à noite, parecia aos
meninos que estavam entre as estrelas. Eles tinham almofadas para se sentar
e pilhas de livros da biblioteca para desfrutar, cercados pelas coisas
interessantes que haviam encontrado em suas aventuras. Era o lugar secreto
deles. Um mundo onde só existiam os meninos e suas histórias.
– Que livro você lerá para nós esta noite? É sobre dragões? – perguntou
Gaston, jogando suas espadas e escudos de madeira em um canto da casa na
árvore.
Ainda vestiam os trajes de cavaleiros da aventura do início do dia.
Haviam corrido pelas catacumbas abaixo do castelo, em busca de dragões.
Claro que não encontraram nenhum dragão de verdade, mas se divertiram
muito matando essas criaturas em sua imaginação.
Depois de um dia matando dragões, eles se acomodaram, deitando-se
juntos em uma montanha de almofadas que haviam levado do castelo,
decididos a mergulhar nas páginas de um de seus livros favoritos.
Felizmente, ninguém parecia notar as várias coisas que desapareciam do
castelo e que acabavam na casa na árvore. (Isto é, afora os livros que eles
surrupiavam da biblioteca.)
– É outra história sobre a Floresta dos Mortos – disse o príncipe,
segurando um livro velho e grosso chamado Livro dos Contos de Fadas.
– São as minhas favoritas! Espero que haja uma batalha com todos
aqueles soldados mortos!
– E há! É sobre Sir Jacob, lembra dele? Esta história é sobre sua jornada
antes de morrer e como ele passou a servir as Rainhas dos Mortos.
– Ah, uau! Sempre me perguntei como ele foi parar lá. – Gaston ficava
imaginando como Sir Jacob havia sido em vida. Esperava que houvesse
uma boa descrição dele. Gaston adorava o Livro dos Contos de Fadas.
Tinha tudo o que ele mais gostava: contos emocionantes imersos na história
dos Muitos Reinos. E é claro que não fazia mal algum haver vários contos
envolvendo dragões, gigantescas árvores falantes, soldados mortos-vivos,
bruxas e magia.
– Você acha que poderíamos ir para a Floresta dos Mortos um dia,
Reizinho?
– Não, a menos que você queira se tornar um dos soldados mortos-vivos
de Jacob – respondeu o príncipe com uma risada. – Mas podemos ir para o
reino Morningstar. É uma longa viagem, porém não tão longa a ponto de
não voltarmos antes do jantar se sairmos bem cedo.
– Você acha que nossos pais nos deixariam ir?
– Não vamos dar a eles a chance de dizer não. – Gaston adorava isso no
amigo. O príncipe estava sempre disposto a se aventurar, sem se importar
com as regras. Se ele fosse o tipo de príncipe que seguisse regras, os dois
não seriam amigos e não fariam tantas travessuras. Nem teriam todos os
tesouros que coletaram em suas muitas aventuras.
Alguns desses tesouros eram aparentemente prosaicos, como pinhas de
aparência interessante, ou pedras de cores vivas, ou bolotas com símbolos
estranhos gravados nelas. Também tinham penas de corvo, pedaços de
lápides do cemitério e pequenos ossos que encontraram no chão da floresta.
Por menor que fosse, cada tesouro contava uma história diferente, uma
lembrança da aventura vivida naquele dia. Mas o seu tesouro mais valioso
era a pequena faca de caça usada para cortar a palma das mãos para que
pudessem se tornar irmãos. Não havia nada de mágico nisso, é claro;
nenhum deles sabia dessas coisas, exceto pelas histórias de fadas que o
príncipe lia em voz alta de vez em quando. Só queriam ser irmãos, e isso
era a coisa mais próxima de serem irmãos de verdade que conseguiam
imaginar.
Serem irmãos de sangue.
Se dependesse de Gaston e do príncipe, ficariam na casa na árvore o dia
todo e até tarde da noite, debruçados sobre seus livros mais queridos e
discutindo as histórias fantásticas que descobriam. E às vezes ficavam, até
que o pai de Gaston os chamava para lembrar ao príncipe que deveria voltar
para casa e jantar ou ter aulas com o tutor, o Senhor Willowstick. Gaston
normalmente acompanhava o príncipe de volta ao castelo, onde se
separavam: o príncipe ia para o salão de jantar, e Gaston ia visitar a Senhora
Potts na cozinha ou na sala de estar dela. Quando o jantar acabava, os dois
partiam para outra aventura, com os bolsos cheios de guloseimas que a
Senhora Potts lhes dava.
Um de seus outros passatempos favoritos era esgueirar-se por partes do
castelo que eram proibidas. Dizer a qualquer um deles que algo não era
permitido era como lhes dar uma ordem direta para procurar aquela coisa e
descobrir seus segredos. Passavam incontáveis horas vagando pelas
catacumbas sob o castelo e explorando suas muitas passagens secretas.
Encontraram até painéis escondidos que conduziam a passagens entre as
paredes do castelo que os levavam diretamente às cozinhas do porão, que na
verdade não eram segredo algum, pois eram bem conhecidas dos
funcionários, sendo uma passagem mais direta para os criados, a fim de que
pudessem levar as refeições para o salão de jantar e cumprir outras tarefas
sem perturbar a família real. Mas os rapazes tinham inventado outras razões
para essas passagens secretas, histórias malucas que alimentavam a sua
imaginação, proporcionando-lhes intermináveis horas de diversão. Ambos
adoravam se esconder atrás das portas secretas e sair quando ouviam
alguém do outro lado para assustar o infeliz transeunte, embora tomassem
cuidado especial para não fazer isso com o Senhor Cogsworth. Nenhum dos
meninos queria dar ao Senhor Cogsworth um motivo para ficar zangado
com eles. Ou, mais precisamente, ainda mais razões para ficar zangado com
Gaston, porque o Senhor Cogsworth parecia estar sempre num estado de
desaprovação no que dizia respeito a Gaston.
O mesmo não acontecia com a governanta-chefe, a Senhora Potts, ou
com a maioria dos outros empregados; todos pareciam amar Gaston e
estavam felizes em deixar os meninos se divertirem, até permitindo que
Gaston e o príncipe acreditassem que tinham feito uma nova descoberta
quando apareceram inesperadamente na cozinha, fingindo ser ghouls e
depois implorando por guloseimas, que a Senhora Potts sempre tinha à mão
quando os garotos entravam saltando em sua sala de estar ou cozinha.
Quase todos os servos tratavam Gaston e o príncipe como se fossem
irmãos. Não que fossem irmãos, veja bem, mas tinham mais ou menos a
mesma idade e, sendo tão bons amigos, estavam sempre na companhia um
do outro. E haviam declarado que eram irmãos de sangue, afinal de contas,
e quem lhes diria o contrário?
O pai de Gaston, Grosvenor, era o guarda-caça do rei e caçador real. Era
sua função supervisionar os cavalariços que cuidavam dos cavalos e dos
cães, e supervisionar aqueles que cuidavam dos terrenos e da floresta que
cercavam o castelo. Mas o mais importante é que ele organizava as caçadas
reais para o rei e seus vários convidados da nobreza.
E, embora de dia Gaston percorresse o castelo de cima a baixo, à noite
ele voltava para casa, para o chalé de pedra onde morava com seu pai, longe
da agitação do castelo, como Grosvenor preferia. O homem nem sempre se
contentara em ficar escondido no chalé; era muito sociável com os outros
funcionários. Mas, hoje em dia, preferia a própria companhia à de qualquer
outra pessoa, isto é, exceto a de Gaston, a quem amava profundamente.
Gaston também amava o pai, mas a vida com ele podia ser solitária no
chalé na floresta. Grosvenor era um bom homem que se orgulhava de seu
trabalho e fazia questão de ensinar seu ofício ao filho. Era um pai gentil e
amoroso, mas Gaston sentia que havia uma ferida profunda no coração do
caçador, uma ferida secreta que servia de proteção e que às vezes lhe
causava grande melancolia. Grosvenor ficava sentado por horas na parte de
fora do chalé, apenas olhando para o céu estrelado. Gaston era sempre bem-
vindo para se juntar ao pai na cadeira ao lado da dele, e ocasionalmente se
sentavam juntos em silêncio, observando as estrelas piscarem contra a
cortina escura da noite. O menino sabia quem assombrava os pensamentos
do pai: sua mãe.
A mãe de Gaston, Rose, morrera quando o filho era muito jovem. Ele não
tinha lembranças de verdade dela, apenas as histórias que os criados e o pai
lhe contavam, e parecia que ela era amada por todos que a conheceram. E,
embora fosse muito amigável com os outros criados, Rose era
particularmente próxima da Senhora Potts. As duas tornaram-se amigas
quando foram trabalhar no castelo como jovens empregadas de salão.
Juntas, subiram na hierarquia: a Senhora Potts tornou-se governanta-chefe e
Rose, atendente pessoal da rainha e dama de companhia. Ambas estavam
sempre juntas quando não se encontravam no cumprimento de seus deveres
e foram madrinhas de casamento uma da outra. Naquela época, Grosvenor e
Rose faziam suas refeições na casa-grande (que era como chamavam o
castelo) com os demais criados e, juntos, compartilhavam como havia sido
o dia de cada um, rindo dos relatos e às vezes ficando acordados até altas
horas para curtir a companhia um do outro. E assim foi, até Rose morrer.
De acordo com a Senhora Potts, as pessoas só tinham boas recordações
de Rose, e todos na casa, dos patrões à criadagem, ficaram com o coração
partido quando ela morreu. Falavam de como a rainha entrou em um
lamentável estado de luto assim que Rose foi tirada deles tão
inesperadamente, e insistiu que a mãe de Gaston fosse enterrada na
propriedade, para que pudesse visitar o local de descanso de sua amiga,
muitas vezes levando ela própria flores para o túmulo de Rose. Ninguém
contava a Gaston como sua mãe morrera, e ele sabia que fora de modo
trágico, porque sempre se falava do assunto em voz baixa, com expressões
faciais angustiadas. Mas havia uma única coisa de que Gaston tinha quase
certeza: o rosto de seu pai trazia as cicatrizes do que acontecera naquela
noite, e o menino sabia que elas não eram nada se comparadas às cicatrizes
no coração de Grosvenor. Então, Gaston entendia por que seu pai às vezes
passava horas em silêncio e por que gostava do isolamento de sua casinha
de pedra na floresta.
Com a morte da mãe de Gaston, os outros adultos da vida do menino se
uniram em torno dele. Embora as responsabilidades do pai de Gaston para
com a coroa fossem grandes, e muitas vezes ele caísse em uma melancolia
silenciosa sem aviso-prévio, o homem sempre arranjava tempo para Gaston,
tomando cuidado especial para mostrar ao filho tudo o que ele precisaria
saber para que um dia Gaston pudesse ocupar seu lugar como o caçador
real. Era uma boa posição, especialmente para alguém que adorava caçar e
se aventurar ao ar livre. E, ainda que Gaston compartilhasse esse amor com
o pai e o respeitasse, assim como sua posição, o garoto queria mais. Queria
aprender a ler e a escrever, e queria aprender sobre o mundo e suas
histórias. Queria a mesma educação que o príncipe recebia. Ficava feliz
quando o príncipe lia histórias para ele, mas queria lê-las ele mesmo.
Quando compartilhou isso com seu amigo, o príncipe insistiu que Gaston se
sentasse com ele nas aulas, mas seu tutor, o Senhor Willowstick, recusou,
dizendo que Gaston seria apenas uma distração. E no momento em que
Gaston perguntou ao pai se ele poderia frequentar a escola da aldeia, o pai
disse que não via razão, já que Gaston tinha muito que aprender para se
tornar o caçador real. Com o passar do tempo, Gaston desistiu de perguntar
ao pai se poderia frequentar a escola e aprendeu o que pôde com os livros
que ele e o príncipe aproveitavam juntos, mas isso sempre o fazia sentir
como se estivesse faltando alguma coisa. E esse era mais um exemplo de
como ele não era de fato igual ao príncipe, não importava o quanto o
príncipe insistisse que era.
Desde a morte de Rose, a Senhora Potts passou a ter um interesse
especial por Gaston. A Senhora Potts o adorava e estava sempre lá para
oferecer conselhos ou ralhar balançando o dedo negativamente, a depender
da situação. Gaston era bem-vindo à sala de estar da Senhora Potts, onde ela
passava a maior parte do tempo executando diversas tarefas. Quando não
estava em sua sala de estar, supervisionava o pessoal da cozinha e as
criadas, ou fazia companhia ao Chef Bouche enquanto ela mesma
cozinhava um pouco, atividade que era um de seus passatempos mais
queridos.
Cogsworth, que era um pouco mais sisudo, não aprovava que Gaston
zanzasse pelo castelo. Na maioria das vezes, se estivesse estalando a língua
em desaprovação ou resmungando, era sobre Gaston, especialmente quando
ele e o príncipe corriam para o castelo depois de uma de suas aventuras com
botas enlameadas. Cogsworth nunca perdia a oportunidade de lembrar a
Gaston que ele não deveria entrar pela porta da frente, mas sim pelos
fundos, por onde os servos acessavam o local. O príncipe sempre
gesticulava para o Senhor Cogsworth sair, dizendo que esse tipo de coisa
não importava, mas era o trabalho de Cogsworth, afinal, manter os padrões
da casa, e um desses padrões era garantir que Gaston conhecesse seu lugar.
Ou pelo menos era assim que o Senhor Cogsworth via as coisas. No frigir
dos ovos, Gaston era filho de um servo, e os servos entravam no castelo
pelos fundos. E, embora o rei e a rainha não parecessem se importar com a
amizade do filho com Gaston, o Senhor Cogsworth deixava claro que sentia
que era uma amizade que não poderia durar até a idade adulta. Havia
histórias, claro, de aristocratas e seus servos desafiando a grande separação
de classes e tornando-se verdadeiros amigos, mas eram raras. E, mesmo que
já houvesse tido uma amizade tão milagrosa em sua própria casa entre a
rainha e a mãe de Gaston, Rose, o Senhor Cogsworth ainda desaprovava
tais coisas.
Quando Rose estava viva, a rainha insistiu, após o nascimento de Gaston,
que ele fosse cuidado no infantário do castelo durante o dia, em vez de Rose
encontrar alguém da aldeia para vigiá-lo enquanto ela cumpria seus outros
deveres. A própria rainha esperava um bebê para breve, e as duas mulheres
adoraram a ideia de seus filhos crescerem juntos.
O Senhor Cogsworth não aprovava nem um pouco essas ideias. Veja, ele
era das antigas. Não o que se poderia chamar de modernista, mas havia
pouco que pudesse opinar quando era isso que a própria rainha desejava.
Os modos um tanto rígidos do Senhor Cogsworth ocasionaram várias
discussões ao longo dos anos entre ele e a Senhora Potts, discussões
bastante barulhentas, que muitas vezes faziam os outros servos se
espalharem em todas as direções, especialmente quando a Senhora Potts
começava a atirar xícaras de chá em frustração.
Certo dia, quando os meninos tinham cerca de sete anos, Cogsworth e a
Senhora Potts expulsaram todos da cozinha com mais uma de suas
altercações. Ela estava ali, revisando o cardápio com o Chef Bouche
enquanto cozinhava um pouco, quando o Senhor Cogsworth irrompeu no
recinto batendo os pés e resmungando. A Senhora Potts passava a maior
parte do tempo na cozinha quando não estava na sala de estar cuidando de
seus outros afazeres. Ela gostava da companhia do Chef Bouche e das
criadas da cozinha, e da agitação dos lacaios entrando e saindo contando
piadas. Até gostava quando o Senhor Cogsworth vinha para uma conversa
ou uma xícara de chá, mas dava para ela notar, pela expressão no rosto dele
naquele dia, que o mordomo não estava de bom humor.
– Não sei quantas vezes já tive que mandar aquele menino Gaston passar
pela entrada dos empregados! Você deveria ver a lama que ele deixou no
vestíbulo. Como se todos nós não tivéssemos trabalho suficiente nos
preparando para o retorno do rei e da rainha de suas viagens.
O bigode do Senhor Cogsworth tremia de frustração, e a Senhora Potts
balançou a cabeça e suspirou enquanto continuava a preparar biscoitos. A
rigor, cozinhar não era uma das funções da Senhora Potts. Ela era a
governanta-chefe. Era a segunda em comando depois do Senhor Cogsworth,
porém tratava-se mais de uma parceria, ou pelo menos era assim que ela
enxergava as coisas. O fato é que gostava de cozinhar e, em vez de
aumentar as funções do Chef Bouche, pedindo-lhe que preparasse
guloseimas extras para o príncipe, Gaston e seus próprios filhos, que eram
muitos, ela mesma fazia isso, porque praticamente não havia nada que
amasse mais do que agradar às crianças.
– E suponho que o príncipe não tenha trazido nem um pouco dessa lama
nos pés. – A Senhora Potts afastou uma mecha de cabelo que havia
conseguido escapar de sua touca enquanto pressionava a massa com um
grande cortador de biscoitos no formato de um navio pirata, levantando
uma sobrancelha para o Senhor Cogsworth.
– Ele é o príncipe. Ele pode enlamear o que quiser, onde quiser. Gaston é
filho de um servo!
Cogsworth sempre assumia essa postura. A seus olhos, o príncipe nunca
fazia nada de errado. Já em relação a Gaston, a história era outra.
– Por que você sempre tem que colocar o pobre garoto no lugar dele,
Senhor Cogsworth? Coma um dos biscoitos que fiz para os meninos, talvez
isso o deixe menos mal-humorado – disse ela, sorrindo para o colega.
– É revigorante saber que você acha que Gaston tem um lugar, Senhora
Potts! Você trata esses meninos como se fossem irmãos. Percebe que não
está fazendo nenhum favor a Gaston, tratando-o como se ele fosse igual ao
príncipe?
– Eles se amam como irmãos, Senhor Cogsworth, e por que não
deveriam? Você não conseguiria separar aqueles garotos nem se tentasse.
– E eu não sei disso?! E como você acha que vai ser quando ambos
crescerem e Gaston for o guarda-caça aqui? – argumentou o Senhor
Cogsworth. A Senhora Potts supôs que ele pudesse estar certo em
circunstâncias diferentes, com meninos diferentes. Mas ela conhecia
aqueles dois melhor do que o Senhor Cogsworth. Ela conhecia seus
sentimentos.
– Gaston será o caçador real, Senhor Cogsworth, e o rei e a rainha não
parecem se importar com a amizade deles, então não vejo por que você
deveria fazer isso.
– O rei e a rainha estão ocupados demais para perceber. – O comentário
pegou a Senhora Potts de surpresa. Esse tipo de coisa nunca era falado em
voz alta, mesmo que do ponto de vista dos servos parecesse ser o caso. O
rei e a rainha estavam frequentemente ausentes e, quando estavam no
castelo, ficavam ocupados demais para passar tempo com o filho. Mas a
Senhora Potts sabia que a rainha amava o príncipe e tinha um interesse
especial por Gaston, e que estava satisfeita com o fato de os dois serem
amigos.
– Bem, eu lhe digo para deixar isso para lá, Senhor Cogsworth. Apenas
deixe-os em paz. Pense em quão solitário o príncipe ficaria sem Gaston.
Pense nos problemas que ele teria sem a amizade de Gaston, especialmente
com gente como você dizendo que ele pode fazer e dizer o que quiser. E daí
se eles continuarem amigos quando crescerem? Que mal isso causará? Você
sabe como a rainha era próxima da mãe de Gaston. Ela a amava como uma
irmã.
– Não importa o quanto a rainha amasse Rose, ela ainda era serva da
rainha, e Rose conhecia seu lugar. Até eu, mordomo desta grande e
respeitada casa, conheço meu lugar. E, como tal, cabe a mim ficar de olho
no príncipe – esclareceu ele com as mãos nos quadris, numa postura
desafiadora, e falando com ênfase. A Senhora Potts sabia que, quando o
Senhor Cogsworth colocava as mãos nos quadris, estava tenazmente
obstinado. Não havia como abalar sua determinação.
– Bem, fique de olho nele do seu jeito, e eu farei o mesmo do meu – disse
ela, entregando uma assadeira coberta com biscoitos em formato de navio
pirata para uma das empregadas da cozinha levar ao forno.
– Enchendo-os de guloseimas e tratando os dois como pequenos
príncipes, sem dúvida – resmungou o Senhor Cogsworth.
– E daí se eu fizer isso?! Agora, vá embora! É melhor você subir e se
certificar de que tudo está pronto para o retorno do rei e da rainha. Já tenho
o bastante com que me preocupar administrando o banquete de boas-vindas
com o Chef Bouche sem que você venha aqui e espante todo mundo para
fora da cozinha. – A Senhora Potts podia ouvir sua voz aumentando o tom
como uma chaleira prestes a ferver. E não era de admirar, com o Senhor
Cogsworth tagarelando e sendo, na opinião dela, um considerável esnobe.
– Bem, então, se você vir o príncipe, diga-lhe que espero que ele esteja lá
embaixo para saudar seus pais quando chegarem, sem Gaston a reboque!
– Tique-taque, Senhor Cogsworth! O rei e a rainha estarão aqui antes que
você perceba! – advertiu a Senhora Potts, apontando para o relógio.
Com uma contração do bigode, o Senhor Cogsworth virou-se e saiu da
cozinha. Parecia um general em guerra, a caminho para proteger as ameias.
Quando ele se foi, a Senhora Potts pôde ouvir sons de risadinhas e pés
arrastados por trás do painel oculto que levava à passagem que ligava a
cozinha ao salão de jantar. Perguntou-se quanto da conversa eles teriam
ouvido.
– Vocês podem sair agora, meninos, ele já foi – disse ela, sorrindo-lhes
enquanto saíam de trás do painel escondido na parede. – Suponho que
tenham ouvido tudo o que ele disse, não foi? Bem, só para deixar claro,
amo vocês dois da mesma forma. Não deem ouvidos ao velho e enfadonho
Senhor Cogsworth. Não percam tempo pensando nele, entenderam? – Ela
olhou para Gaston, que parecia um pouco triste. A Senhora Potts ficava
com o coração partido ao vê-lo desanimado, e sempre fazia o possível para
tirá-lo desse estado de espírito. Fora uma promessa que fez a si própria
quando a mãe de Gaston morreu, de que cuidaria dele como se fosse um de
seus filhos.
– Eu não me importaria se Gaston fosse meu irmão – comentou o
príncipe, radiante e orgulhoso ao lado do amigo. Que dupla formavam,
ambos cobertos de lama por causa de suas aventuras. Ambos tão dedicados
um ao outro.
– Eu sei que não se importaria, querido, você é um menino doce – disse a
Senhora Potts, sorrindo para o príncipe. – E suponho que vocês estivessem
brincando de cavaleiros na floresta? Matando uma criatura ou outra, talvez
um monstro de lama?
– Todo mundo sabe que monstros de lama não existem, Senhora Potts!
Não, estávamos caçando dragões no...
– Gaston, shh! – o príncipe apressou-se em interrompê-lo, dando-lhe uma
cotovelada nas costelas. – Não revele todos os nossos segredos. – O
príncipe muitas vezes fazia a Senhora Potts rir. A ideia de que pudessem
esconder qualquer coisa dela era cômica.
– Acha que não sei tudo o que vocês, meninos, fazem? Deixe para lá;
você ouviu o Senhor Cogsworth: suba e prepare-se para cumprimentar seus
pais. Não vou deixá-lo coberto de lama quando eles chegarem. Tomem... –
Ela entregou a cada um dos garotos um biscoito coberto com um bocado de
algo desagradável que parecia ser glacê.
– O que é essa coisa cinzenta? – perguntou Gaston, olhando para o
biscoito e cheirando-o com desconfiança.
– Experimente, querido. São apenas biscoitos esfarelados misturados
com pudim e creme. Juro que está delicioso – assegurou ela, colocando
mais cobertura em tigelas de pudim, prevendo que eles iriam querer mais.
O príncipe mastigou seu biscoito, parecendo concordar com a descrição
da Senhora Potts, e alegremente aceitou a tigela que a mulher lhe ofereceu.
– Vamos, Gaston, prove, é realmente uma delícia. – O príncipe pegou um
bocado da substância cinzenta da tigela com o dedo e cutucou Gaston com
o cotovelo. – E então poderemos voltar para nossa casa na árvore –
acrescentou, sorrindo.
– Vou manter Gaston aqui comigo para tomar um chá, querido. Vá agora
e prepare-se para a chegada dos seus pais. – A Senhora Potts, que, ao
contrário do Senhor Cogsworth, nunca fazia cerimônias, não se preocupou
em chamar o príncipe por seu título real. O príncipe não pareceu se
importar, mas ficou mal-humorado porque ela não o deixou escapulir com
Gaston para a casa na árvore, em vez de ficar apresentável para seus pais. –
Tome, pegue isso – ofereceu ela, dando-lhe uma pilha de biscoitos
embrulhados em um pano para levar consigo e um beijo na bochecha.
Depois que o príncipe saiu da sala, a Senhora Potts segurou a mão de
Gaston. Estava claro que algo o estava incomodando.
– Qual é o problema, querido?
– Eu gostaria que fôssemos irmãos – respondeu ele com um grande
suspiro.
– Vocês são irmãos em seu coração, querido. E isso significa ainda mais
do que compartilhar os mesmos pais – afirmou ela, erguendo gentilmente o
queixo do menino com a mão para que os olhos dele encontrassem os dela.
– Mas e se o Senhor Cogsworth estiver certo? E se o príncipe não quiser
ser meu amigo quando formos mais velhos?
– Sei no fundo de meu coração que ele vai querer ser seu amigo, querido.
Eu prometo. Vamos, anime-se. Enviei uma mensagem a seu pai dizendo que
vocês dois deveriam se juntar a nós no salão dos empregados para jantar
esta noite – disse ela, percebendo que o Chef Bouche caminhava em direção
a eles.
– Sério? Isso é permitido? – perguntou Gaston.
– Claro que é permitido, meu garoto! – respondeu o Chef Bouche. – E
teremos um banquete magnífico para comemorar. Já se passaram muitos
anos desde que seu pai se juntou a nós para jantar. – Ele deu tapinhas no
ombro de Gaston.
– Mas o Senhor Cogsworth não se importará? – Gaston questionou.
– Deixe o Senhor Cogsworth comigo, querido – respondeu a Senhora
Potts. – O jantar sairá tarde esta noite, só depois de servirmos o jantar lá em
cima. Tome... – Ela lhe entregou um prato de sanduíches. – Coma isso com
chá antes de ir. Não quero que fique com fome esperando tanto tempo antes
do jantar.
– Obrigado, Senhora Potts – disse Gaston, perguntando-se o que ele
havia feito para merecer tamanha sorte.
Depois do chá e dos sanduíches, Gaston atravessou a passagem entre as
paredes do castelo. Ele imaginou que fosse encontrar o príncipe ali,
aguardando por ele, decidindo que não ia cumprimentar os pais. Gaston até
deixou alguns sanduíches de lado caso o amigo quisesse beliscar alguma
coisa antes de ser obrigado a comer a comida chique que serviam no salão
de jantar. Para decepção de Gaston, o príncipe não esperava por ele no
corredor, mas ele concluiu que seu amigo realmente fizera o que lhe foi dito
e agora estava se preparando para o retorno dos pais. Então, Gaston
terminou ele mesmo os sanduíches enquanto caminhava pelo corredor.
Desejou que o príncipe estivesse com ele. Os dois adoravam esses
lugares secretos e os conheciam de cor. Gaston escolheu o caminho que ia
dar em um túnel conduzindo às terras que rodeavam o castelo sem precisar
cruzar a ponte. Atravessou a floresta, que ficava bastante bonita naquela
hora do dia. Era o momento em que a noite e o dia se encontravam,
tornando o céu laranja e fazendo com que as árvores e construções se
assemelhassem a recortes em papel preto. O cemitério parecia saído das
páginas de um livro pop-up de que Gaston se lembrava da época em que ele
e o príncipe eram crianças no infantário. Não parecia real, com suas lápides,
mausoléus e árvores retorcidas delineadas contra o céu perfeito demais. Não
parecia real que aquele fosse o lugar onde sua mãe estava sepultada. Sua
mãe nada mais era do que histórias para ele. Como o personagem de um
livro ou de um dos contos de fadas que o príncipe lia para ele. Gaston
supunha que a amasse, tanto quanto qualquer um poderia amar alguém que
não conhecia, mas desejava mais do que tudo tê-la conhecido, não apenas
por si próprio, e sim por seu pai, porque sabia que Grosvenor a amava e
sentia falta dela de todo o coração. Enquanto estava parado ali, observando
o dia se transformar em noite, acompanhando as mudanças de luz e as
sombras dos galhos das árvores se estenderem pelo cemitério, perguntou-se
como teria sido a vida se sua mãe tivesse sobrevivido. Ou como teria sido
se ele e o príncipe fossem de fato irmãos. Pensou nisso enquanto continuou
caminhando para casa através da floresta que conhecia bem até que
finalmente chegou ao chalé de pedra onde morava com o pai.
Era um belo chalé, na verdade. Mais espaçoso do que a maioria dos
chalés da propriedade. Seu pai explicara que eles haviam recebido
acomodações tão grandiosas pelo tanto que sua mãe era amada antes de
falecer, mas parecera a Gaston (mesmo em uma idade tão tenra) que seu pai
nunca enxergara verdadeiramente o próprio valor. Mesmo que seu pai fosse
o melhor em tudo. Ele era o melhor caçador, perseguidor e rastreador. Sabia
o nome de todas as árvores, flores e arbustos. Sabia quais plantas,
cogumelos e frutas eram venenosos e quais poderiam ser ingeridos, assim
como o nome de todas as criaturas, incluindo as diferentes espécies de
pássaros que habitavam a vasta floresta, da qual ele era o guarda-caça. E
sabia cuidar de animais doentes, coisa de que Gaston particularmente se
orgulhava, porque admirava o amplo conhecimento e experiência do pai no
que dizia respeito aos cuidados com os bichos. Ele era conhecido por levar
para casa uma criatura ferida de vez em quando, cuidando dela para
recuperá-la ou ficando acordado a noite toda com os cavalariços tratando de
um cavalo ou cachorro doente ou ferido. Gaston achava o pai um grande
homem. Porém não acreditava que Grosvenor tivesse noção da própria
grandeza. Ele não percebia que era o melhor. Mas também, se tivesse
noção, não seria a mesma pessoa. E Gaston amava seu pai do jeito que era.
Quando Gaston chegou ao chalé, viu fumaça saindo da chaminé de pedra.
Seu pai provavelmente estava sentado perto do fogo, já instalado de modo
confortável em sua poltrona favorita. Gaston esperava chegar lá antes dele,
para que o pai não tivesse tempo de se preparar para passar a noite. Seu pai
trabalhava duro e, quando retornava para casa, ficava feliz por estar ali,
feliz por simplesmente se instalar junto ao fogo e relaxar. Gaston se
perguntou quão alegre ele ficaria ao saber que faria uma excursão ao castelo
naquela noite.
– Ouvi dizer que vamos jantar na casa-grande esta noite. Isso é obra sua?
Você conseguiu um convite da Senhora Potts? – indagou o pai quando
Gaston entrou em casa. Como Gaston suspeitava, seu pai já estava sentado
ao lado da grande lareira de pedra em sua poltrona de madeira favorita, com
a mão pendurada para acariciar distraidamente sua gata de pelagem
escaminha, que descansava na almofada ao lado do pai de Gaston.
– Não, papai, ela acabou de me contar – respondeu o menino, notando a
gata piscando lentamente seus grandes olhos amarelos para ele. – Vejo que
você voltou para casa – disse, ajoelhando-se para coçar o queixo da
bichana. – O que você andou fazendo enquanto esteve fora por tanto tempo,
eu me pergunto.
– Ah, você sabe como ela é. É como você, Gaston, sempre metida em
aventuras. E assim como faço com você, nunca me preocupo que ela não
volte para casa, não importa quanto tempo fique fora – declarou o pai de
Gaston com um sorriso. – Agora, suponho que ambos tenhamos que tomar
banho e nos vestir adequadamente para esse grande evento?
– Não é um evento, papai. É apenas um jantar com os funcionários
internos – explicou Gaston, esperando que seu pai não resmungasse e
acabasse recusando o convite da Senhora Potts.
– Prefiro jantar em minha própria casa, Gaston. Estou confortável aqui.
Mas imagino que seja solitário ter apenas a companhia de seu velho pai
todas as noites, não é?
– Eu não diria isso.
– Talvez não para mim, mas suponho que tenha dito à Senhora Potts.
– Não vai ser tão ruim, vai, papai? Ouvi dizer que você jantava na casa-
grande o tempo todo quando mamãe estava viva. E sei que você gosta do
Senhor e da Senhora Potts.
– Isso é verdade, filho. Tudo bem, então. A quem estou enganando,
afinal? Não vou recusar de jeito nenhum o convite da Senhora Potts. Ela
iria explodir. – Grosvenor deu sua risada profunda e calorosa. – E suponho
que você e o príncipe tenham estado na cozinha hoje. A Senhora Potts já
tem bastante trabalho, com todo o serviço e os próprios filhos agarrados à
barra da saia, sem que você e o príncipe a importunem por guloseimas.
– Ela não se importa.
– Acredito que não. Ela sempre teve um grande coração, aquela Senhora
Potts. Bem, é melhor nos prepararmos, então, não é? E não devemos nos
atrasar para o jantar. Não queremos dar ao velho Senhor Cogsworth um
motivo para torcer o bigode para nós, queremos? – Grosvenor disse,
fazendo Gaston rir.
– Você tem razão, já tive bastante bigode torcido por um dia.
CAPÍTULO II

FIQUE À VONTADE

Tanto Gaston quanto Grosvenor pareciam arrasadores no que o pai de


Gaston chamava de sua roupa de domingo. Os outros servos ainda estariam
usando seus uniformes, é claro – que eram trajes bastante sofisticados,
apesar de tudo, por serem uniformes de servos de uma casa real. E o pai de
Gaston sabia que não seria apropriado usar roupas de atividades ao ar livre
para jantar, por isso decidiu vestir seu melhor terno e disse ao filho para
fazer o mesmo. Eles formavam uma bela dupla, os dois entrando juntos no
salão dos empregados. Ambos com cabelos escuros, olhos azuis e feições
marcantes. Gaston parecia uma versão em miniatura de seu pai, exceto pela
longa cicatriz que corria diagonalmente pelo rosto de Grosvenor. Mas
aquela cicatriz não diminuía em nada a boa aparência dele. Era quase como
se aquilo o tornasse mais bonito. E, aos olhos de Gaston, isso certamente o
fazia parecer forte e corajoso, e também um tanto misterioso, já que o pai
nunca falara sobre como conseguiu a cicatriz.
Quando Gaston e seu pai entraram no salão dos empregados, todos
estavam se dirigindo para seus lugares na longa mesa de jantar de madeira
no centro da sala. A Senhora Potts avistou o pai de Gaston no mesmo
instante e o abraçou apertado. Grosvenor riu e retribuiu o gesto
cordialmente. A Senhora Potts parecia minúscula envolta nos braços do
homenzarrão, e todos puderam ver que ela tinha o brilho de lágrimas
brotando nos olhos, tão encantada que estava por ele ter aceitado o convite.
– Estou tão feliz que você veio, Grosvenor! Já faz muito tempo desde que
se juntou a nós para jantar. Nunca consigo vê-lo hoje em dia, mas
acompanho como você está por meio de Gaston, é claro – disse ela,
sorrindo para o menino.
– Espero que ele não esteja lhe incomodando, Senhora Potts – comentou
ele, bagunçando o cabelo escuro de Gaston.
– Está de brincadeira, Grosvenor? A Senhora Potts adora o menino! – Era
o Senhor Potts, dando tapinhas nas costas de seu querido amigo e rindo. –
Ter você aqui conosco é como nos velhos tempos – acrescentou, puxando
uma cadeira para o amigo se sentar.
– Gaston, por que não vai para a cozinha? – sugeriu a Senhora Potts. –
Preparei uma cesta para você levar para casa depois do jantar. Vá em frente
e dê uma olhada nas delícias que o Chef Bouche e eu separamos para você e
seu pai, enquanto nós, adultos, conversamos.
O pai de Gaston observou seu filho correr entusiasmado para a cozinha.
Ele sorriu ao ver Gaston tão contente, por estar tão à vontade entre os outros
criados. Houve um tempo em que ele sentia o mesmo, e era bom estar com
eles novamente. Nem sabia direito por que havia esperado tanto tempo para
fazer isso. Por que havia se escondido em seu mundinho. Ele sabia muito
bem como tudo começara. Não suportava estar no castelo ou ver seus
rostos. Tudo isso o lembrava de Rose, do quanto sentia falta dela, e ele
odiava ver a própria dor refletida em suas feições angustiadas. Mas já
haviam se passado quase oito anos, certamente era tempo suficiente. Se não
fosse por seu próprio bem, seria pelo de Gaston. Era hora de estar entre seus
amigos mais uma vez.
– Você é muito gentil, Senhora Potts. Só espero que Gaston não esteja
colocando coisas na cabeça.
– Gaston está sempre com coisas na cabeça, Grosvenor, e elas geralmente
são brilhantes – ela retrucou, parecendo perplexa.
– Não, não é isso que quero dizer, Senhora Potts. Estava me referindo a
coisas acima de sua posição. Ele passa todo o tempo com o príncipe e agora
janta com os funcionários internos... Fico com certo receio.
– Que bobagem! Você é o caçador do rei, organiza as caçadas reais, é o
chefe da equipe externa, isso significa alguma coisa. Não há motivo para
não comer conosco – disse a Senhora Potts.
– Você é o Senhor Cogsworth da equipe externa, Grosvenor. Vocês são
funcionários seniores – acrescentou o Senhor Potts, encolhendo-se depois
ao parecer se arrepender por compará-lo ao Senhor Cogsworth. – Bem,
você sabe o que quero dizer, de qualquer maneira.
– Ainda assim, o Senhor Cogsworth não vai gostar – insistiu Grosvenor.
– Não importa o que ele gosta. Você conhece o Senhor Cogsworth, ele
nunca vai acompanhar os tempos – declarou a Senhora Potts.
– Falando nisso, não é hora de servir o jantar? – questionou o Senhor
Cogsworth da porta do salão dos empregados, onde estava em pé, ouvindo
silenciosamente a conversa, sem que eles percebessem. De repente, todos à
mesa se levantaram em posição de sentido, como era de praxe quando ele
entrava na sala.
– Boa noite, Senhor Cogsworth – cumprimentou Grosvenor, aguardando
com todos os outros que o mordomo se acomodasse em seu lugar antes de
se sentar novamente. Todos pareciam nervosos, esperando para ver se o
Senhor Cogsworth tinha ouvido a Senhora Potts e como ele reagiria. Mas
ele só ficou sentado em silenciosa desaprovação. A verdade é que
Grosvenor tinha todo o direito de estar presente, mesmo que não fosse
costume o pessoal externo juntar-se ao pessoal interno durante as refeições.
Havia motivos para ele ingressar quando Rose estava viva, já que ela era
um membro sênior da equipe. Mas não havia nada que o Senhor Cogsworth
pudesse fazer a respeito naquela época, e pouquíssimo que pudesse fazer
agora, depois que a Senhora Potts havia emitido um convite oficial. Para ela
e para a maioria dos outros funcionários, Grosvenor era da família, e eles
estavam felizes por tê-lo de volta.
– Sim, bem, agora que o Senhor Cogsworth se juntou a nós, podemos
começar o jantar. Lumière, você faria as honras? – perguntou a Senhora
Potts.
Lumière, seguindo o exemplo da Senhora Potts, foi para a cozinha.
Pouco depois, uma legião de ajudantes, em elegantes uniformes no padrão
preto e branco, adentrou o salão dos empregados, trazendo uma comida
deliciosa e magnífica em enormes travessas. O Chef Bouche, por instrução
da Senhora Potts, providenciara um banquete esplêndido para os criados
naquela noite, e Lumière, como se estivesse apresentando a refeição para a
família real no andar de cima, anunciou todos os pratos enquanto eles saíam
da cozinha. O aroma da comida tomou o salão assim que as criadas
colocaram a refeição na mesa. Em geral, não havia tanta fanfarra durante o
jantar dos criados, mas todos ficaram tão satisfeitos por Gaston e seu pai se
juntarem a eles naquela noite que decidiram tornar aquela ocasião especial.
No centro da mesa havia uma terrina grande repleta de boeuf
bourguignon e, ao lado, um adorável pâté en croûte de pato; um confit de
frango de aparência milagrosa; uma tigela grande de batatas com carne de
porco salgada, cebola, cogumelos e queijo; um enorme e colorido
ratatouille; pão recém-saído do forno; salgados folhados de queijo; e, claro,
de sobremesa, mousse de chocolate com um rico chantilly.
Gaston e seu pai estavam sentados perto do Senhor e da Senhora Potts,
do outro lado da mesa, em frente ao Senhor Cogsworth. Afora o mordomo
carrancudo, eles formavam um grupo alegre, composto dos membros mais
graduados da equipe: Lumière, o maître do castelo; Plumette, a criada-
chefe; e o Chef Bouche.
– É tão maravilhoso ter você aqui, Monsieur Grosvenor! Já faz muito
tempo que não temos sua agradável companhia. É claro que ouvimos falar
de suas aventuras pelo jovem Gaston, mas é muito bom vê-lo tão bem, e
entre nós aqui, esta noite, não é verdade, Senhor Cogsworth? – disse
Lumière, deliciando-se, como sempre, em fazer o Senhor Cogsworth
resmungar.
– Bem, acho magnífico – comentou Plumette, colocando a mão sobre a
de Lumière. – Já faz muito tempo que você não come conosco. Claro,
entendemos por que você ficou longe...
– Não há necessidade de entrar nesse assunto – disse o Senhor
Cogsworth, limpando a garganta e puxando as lapelas do casaco com um
movimento violento.
Lumière olhou de soslaio para o Senhor Cogsworth enquanto se
levantava e batia palmas teatralmente três vezes para chamar os lacaios que
estavam por perto.
– E agora, para dar o toque final ao delicioso banquete que o Chef
Bouche preparou com tanta habilidade para nós, escolhi algo especial: ah, é
esplêndido, uma libação simplesmente divina para celebrar o retorno de
Monsieur Grosvenor! Posso dizer sem qualquer hesitação que todos iremos
gostar imensamente! – declarou Lumière quando os lacaios entraram no
salão dos empregados com lindos copos brilhantes em bandejas de prata.
– Como não vamos incomodar vocês ou as criadas novamente, por favor,
sentem-se para jantar – disse a Senhora Potts, dispensando os lacaios para
que pudessem se juntar às criadas e outros funcionários para o jantar. – Isso
parece delicioso! – disse a Senhora Potts, pegando seu copo e examinando-
o. – Está adorável, Lumière, obrigada.
– Sim, Lumière, obrigado – falou o Chef Bouche.
– Vamos fazer um brinde? Você se importaria se eu fizesse as honras,
Senhor Cogsworth? – perguntou o Senhor Potts, passando o braço em volta
de Grosvenor.
– Como quiser. – A expressão do Senhor Cogsworth fez com que
parecesse que havia um cheiro desagradável no ar.
– O que há de errado, Senhor Cogsworth? O aroma do jantar ofende de
alguma forma seus sentidos? – questionou o Chef Bouche, parecendo
agitado. Todos à mesa pareceram surpresos com sua franqueza. – De
alguma forma, deixei a desejar na execução da refeição desta noite? Ela não
conta com sua perfeita aprovação?
O Chef Bouche, conhecido por seu mau humor, estava agora fora de sua
cadeira, com o rosto vermelho e carrancudo por baixo de seu grande bigode
louro. Não havia muitas pessoas que o Senhor Cogsworth considerasse
intimidantes, mas era sabido que ele sempre fazia o possível para manter o
Chef Bouche de bom humor, se pudesse evitar, caso contrário o chef
explodiria em uma fúria ardente.
– De jeito nenhum, Chef Bouche. Na verdade, estou ansioso para
participar de sua divina obra-prima antes que se torne um banquete da
meia-noite – afirmou o Senhor Cogsworth. Isso pareceu acalmar o chef,
para alívio de todos, especialmente do Senhor Cogsworth.
– Senhor Potts... faça as honras... – disse o Senhor Cogsworth, dando ao
Senhor Potts a deixa para fazer seu brinde.
– Tchin-tchin, mon ami – declarou o Senhor Potts, erguendo a taça para
Grosvenor. – A nosso querido amigo, que finalmente voltou para nós. Que
esta seja a primeira de muitas outras noites que virão.
– Tchin-tchin, Monsieur Grosvenor! – exclamou Lumière, erguendo a
taça com os demais que estavam à mesa, todos olhando para o pai de
Gaston.
– E à Rose! – acrescentou a Senhora Potts. – Muito amada e nunca
esquecida.
– E ao Gaston, meu querido irmão! – disse uma voz que eles não
esperavam. Quando todos se viraram, viram o príncipe parado na porta,
ainda com o traje que usara naquela noite mais cedo para jantar com seus
pais. Imediatamente, todos à mesa se levantaram, seguindo o exemplo do
Senhor Cogsworth, que se ergueu de seu assento para se postar em posição
de sentido.
– Há algo que possamos fazer por você, Vossa Alteza? Por que não tocou
a sineta? – O Senhor Cogsworth parecia ainda mais desconfortável do que
antes. Uma coisa era convidar Gaston e o pai para jantar, mas agora o
príncipe? Isso era inédito. Ou, pelo menos, deveria ter sido. Todo mundo
sabia que esse era o tipo de coisa com a qual o Senhor Cogsworth se
recusaria a se envolver. Em sua mente, isso era uma ladeira escorregadia
que levava todos ao caos e à desintegração da ordem, tradição e
propriedade. Mas havia pouco que o homem pudesse fazer se o príncipe
insistisse, o que parecia muito provável.
– Eu esperava que me deixassem jantar com vocês – anunciou o príncipe,
sorrindo maliciosamente para Gaston.
– Aqui! – prontificou-se Gaston, puxando uma das cadeiras para que o
príncipe pudesse sentar-se ao seu lado. Todos no salão pareciam
perfeitamente felizes com o fato de o príncipe se juntar a eles, exceto o
Senhor Cogsworth. Ele era um homem que gostava de ordem e regras, e
deixar o príncipe jantar com eles era como o desmoronamento de tudo em
que ele acreditava, de tal forma um abalo no chão sob seus pés que o fez se
perguntar quanto tempo levaria até que tudo simplesmente ruísse em caos.
– Claro que você pode jantar conosco, querido! Sente-se, sente-se. O
Chef Bouche preparou comida mais do que suficiente – assegurou a
Senhora Potts, que estava visivelmente ignorando o desconforto do Senhor
Cogsworth.
– Isso é altamente irregular, Vossa Alteza. Tem certeza de que o rei e a
rainha aprovarão? Eles não vão se perguntar onde você está? – O Senhor
Cogsworth se contorcia e mexia no colete, um hábito que denunciava
quando estava nervoso.
– Eles foram para a cama logo depois do jantar – respondeu o príncipe.
– E você não deveria ter feito o mesmo, jovem senhor? Eu sei que o
Senhor Willowstick estará esperando você na sala de aula amanhã bem cedo
– argumentou o Senhor Cogsworth.
– Você está enganado, Senhor Cogsworth, ele ainda estará visitando o
irmão por mais uma semana. – O príncipe sorriu, sabendo que estava
ganhando essa partida. A expressão do Senhor Cogsworth pareceu ficar
ainda mais tensa, e tudo levava a crer que o príncipe estava gostando.
– Sinto muito, Vossa Alteza, mas parece que ele decidiu encurtar a
viagem. Chegou esta noite – explicou o Senhor Cogsworth, puxando
novamente o colete.
– Então, onde ele está? – O príncipe fez um teatrinho olhando ao redor da
sala. – Por que não se junta à equipe para jantar?
– Ele dormiu cedo, já que enfrentou uma longa viagem de volta, Alteza.
– Cogsworth parecia ainda mais nervoso do que o normal. Todos prenderam
a respiração, imaginando como aquilo iria acabar. Sabiam que o príncipe
não era o tipo de aristocrata que se escondia atrás de um espesso véu de
convenções. Quando estava com raiva, não disfarçava, e todos eles haviam
sofrido com tal ira.
– Não vou ter aula amanhã! Está me ouvindo? Isso não é justo. Por que
ninguém me disse antes que ele estava de volta?! – O príncipe não fez nada
para esconder sua raiva. Foi um alívio que o Senhor Willowstick não tivesse
se juntado a eles para jantar, ou a ira do príncipe teria sido dirigida a ele. E
se as vozes elevadas que eram sempre ouvidas na sala de aula servissem de
indicação, o pobre Senhor Willowstick tinha sido alvo da raiva do príncipe
com bastante frequência.
– Vamos, Reizinho, está tudo bem. De qualquer maneira, tenho aulas com
meu pai amanhã. Irei procurá-lo quando terminarem – disse Gaston,
puxando a cadeira para o amigo se sentar, e acrescentou: – Pense em todas
as histórias que você terá para mim amanhã, depois das aulas. Quer apostar
agora quantas vezes você vai adormecer enquanto o Senhor Willowstick
tagarela? – Isso fez o príncipe rir e pareceu tirá-lo de seu mau humor, para
alívio de todos, inclusive de Gaston. Mas, normalmente, agir assim era tudo
o que seria necessário para fazê-lo rir, e Gaston era muito bom nisso.
– “Reizinho”? E essa agora. Por que você o está chamando assim? –
perguntou o Senhor Cogsworth, olhando para Gaston e depois para o
príncipe com uma expressão confusa no rosto.
– Não é nada, Cogsworth. Deixe para lá. Agora, o que vamos jantar? – O
príncipe sentou-se ao lado de Gaston, dando-lhe um sorriso atrevido que fez
Gaston rir.
Além do Senhor Cogsworth, ninguém parecia se importar com o fato de
o príncipe se juntar a eles para jantar. Na verdade, pareciam satisfeitos por
Gaston ter um amigo de sua idade para se ocupar enquanto os adultos
conversavam. Os filhos mais novos do Senhor e da Senhora Potts já tinham
ido dormir e, embora Lumière, Plumette, o Senhor e a Senhora Potts e até
mesmo o Chef Bouche de vez em quando apreciassem a companhia de
Gaston, era uma boa oportunidade para poderem se atualizar sobre
Grosvenor enquanto os meninos se entretinham mutuamente. Foi uma noite
divertida para todos e, quando terminou, houve promessas de repeti-la e
muitos abraços foram trocados antes de Grosvenor e Gaston voltarem para
casa, já bem tarde.
Desta vez, conversaram enquanto caminhavam, maravilhados com o céu
estrelado brilhando acima deles. Fora uma noite perfeita. Pelo menos,
Gaston pensava assim.
– Do que mesmo você chamou o príncipe? “Reizinho”, não é? –
perguntou o pai, quando passaram por um dos carvalhos favoritos de
Gaston a caminho de casa.
– É só um apelido – respondeu Gaston, arrependido de ter usado o nome
secreto na frente de todos. Ele não pretendia cometer aquele pequeno
deslize, mas sabia que seu amigo não pareceu se importar. No entanto,
Gaston não tinha vontade de explicar isso ao pai ou a qualquer outra pessoa.
Eles não entenderiam.
– Ouvi vocês dois conversando durante o jantar. Ouvi o príncipe dizer
que você o venceu no tiro com arco outro dia, foi mesmo? – Gaston achou
que isso fosse deixar seu pai orgulhoso, mas parecia apenas lhe causar
preocupação.
– Eu o venci! Por quê? O que isso importa? Você deveria ter visto, papai.
Acertei na mosca todas as vezes! O príncipe nem chegou a acertar o alvo na
metade delas – gabou-se Gaston, rindo.
– Nem sempre você precisa ser o melhor, Gaston – aconselhou o pai,
surpreendendo-o.
– Mas você é o melhor, papai! Você é o melhor em tudo!
– Não quando estou na companhia do rei, aí não sou. Aí, ele é o melhor –
disse o pai, um pouco mais sério do que Gaston jamais o vira.
– Você quer dizer que deixa o rei pensar que ele é o melhor – Gaston
zombou. – Reizinho nunca cairia nessa.
– Realmente eu faço isso, e você deveria fazer o mesmo com o príncipe.
– Mas o rei tem que saber, papai. Ele deve saber. Isso não faz com que
ele pareça tolo, fingir enquanto todos sabem que você é o melhor? Reizinho
ficaria zangado se eu fizesse isso – disse Gaston, parando para poder olhar
o pai nos olhos.
– Ele pode ficar zangado com você agora se sempre o deixar vencer, mas
duvido que isso aconteça quando ele for mais velho. Os reis sempre querem
ser os melhores e cabe a nós garantir que eles pensem que são. – O pai
colocou a mão no ombro de Gaston e lançou-lhe outro olhar sério.
– Você está parecendo o enfadonho e velho Senhor Cogsworth falando! –
Gaston disse com uma risada.
– Deus me livre! – exclamou o pai de Gaston, seu tom se suavizando e se
tornando uma risada também. Grosvenor parecia contente em abandonar o
assunto à medida que continuavam andando.
O céu estava preto como nanquim, e não havia nenhuma nuvem à vista.
A lua e as estrelas brilhavam intensamente, piscando para eles enquanto
atravessavam a floresta a caminho de casa.
– O príncipe costuma perder a paciência assim? – perguntou seu pai
casualmente, parando em frente ao pequeno cemitério onde a mãe de
Gaston fora sepultada. Gaston percebeu que o homem estava preocupado,
embora fingisse não estar. Esse era o jeito do pai, sempre calmo, nunca
querendo dar grande importância a nada, mesmo que Gaston percebesse que
estava visivelmente irritado.
– Assim como? – Gaston sabia o que seu pai insinuava, mas não queria
deixar transparecer que seu amigo perdia a paciência facilmente. Não queria
que Grosvenor se preocupasse ainda mais, além do que já estava
preocupado com a amizade de Gaston com o príncipe: não queria lhe dar
motivos extras para se preocupar. Ou pior, que o pai lhe dissesse que ele e o
príncipe não deveriam passar tanto tempo juntos.
– Ele pareceu muito zangado quando o Senhor Cogsworth contou que o
Senhor Willowstick voltara mais cedo da viagem. – Seu pai se abaixou para
colher algumas flores silvestres que cresciam ao longo do muro de pedra
em torno do pequeno cemitério. Gaston sempre se perguntou onde ele
colhia as flores que levava para casa de suas caminhadas e colocava na
mesinha de cabeceira, mas deveria ter adivinhado.
– Oh, não se preocupe com isso, papai. Ele só ficou aborrecido porque
tínhamos planos para amanhã, o que o deixou todo, você sabe, reizinho –
disse Gaston, rindo.
– Ah, é essa a razão do apelido – constatou o pai, reunindo as flores num
ramalhete e levantando-se. – E ele não se importa que você o avise quando
está agindo dessa maneira?
– Não! Ele me fez prometer que não o deixaria se tornar um daqueles reis
horríveis de que se ouve falar, decapitando cabeças e coisas assim.
– Acredito que você esteja pensando na Rainha de Copas, mas entendo o
que quer dizer – declarou o pai, rindo.
– Quem é ela? Ela não mora nos Muitos Reinos, mora?
– Não, ela governa em outro mundo chamado País das Maravilhas, se
quisermos acreditar nas lendas. Você pode encontrar uma ou outra história
sobre ela em um de seus livros – disse seu pai, parecendo estar perdido em
pensamentos enquanto olhava para as flores silvestres que havia colhido.
– O que foi, papai? Você parece preocupado.
– Temo que sim, filho. Estou começando a me perguntar se é uma boa
ideia você e o príncipe serem tão bons amigos.
– Você está parecendo o Senhor Cogsworth de novo.
– É melhor você parar de dizer isso ou terei que deixar crescer um bigode
longo e pontudo, e começar a tremê-lo para você! – disse seu pai, rindo
outra vez.
– Papai, você já pensou em me contar como mamãe morreu? – perguntou
Gaston, olhando para o túmulo de sua mãe. Era o maior do cemitério e o
mais bonito. A rainha fez com que um dos escultores mais famosos e
talentosos do país esculpisse uma estátua de sua mãe, Rose, em mármore
rosa-claro. Era graciosa e serena, como se estivesse acenando para Gaston
entrar. Gaston sempre achou aquilo assustador, como se sua falecida mãe
estivesse tentando levá-lo para o outro lado a fim de ficar com ela. Agora
que estava mais velho, ele se perguntava se esse não fora o propósito do
escultor. Não assustar Gaston, é claro, mas fazer parecer que ela esperava
que sua família e amigos se juntassem a ela quando estivessem prontos para
passar para o próximo reino. O garoto não tinha certeza se sua teoria estava
certa nem teve coragem de perguntar à rainha ou ao pai, por isso aquilo
permaneceu um mistério.
– Ah, filho. – Seu pai pareceu cansado de repente. – Não é uma história
para ouvidos jovens. – Grosvenor retomou a caminhada, sinalizando para
que Gaston fizesse o mesmo.
– Talvez quando eu for mais velho, então? – perguntou Gaston, correndo
para alcançar o pai.
– Talvez, meu garoto. Veremos.
Depois que Gaston e o pai retornaram para casa e se aconchegaram na
cama, o garoto repassou o dia e os acontecimentos da noite em sua mente. É
provável que tenha sido uma das melhores noites que já tivera. E esperava
que houvesse muitas outras noites como essa por vir.
CAPÍTULO III

OS FANTASMAS DA BIBLIOTECA

Depois que Gaston e seu pai foram convidados para jantar com os
funcionários internos naquela primeira noite maravilhosa, cinco anos antes,
para a alegria de Gaston, o jantar no salão dos empregados logo se tornou
parte de sua rotina. A vida era perfeita, no que dizia respeito a Gaston. Ele
passava a maior parte do tempo com seu melhor amigo, o príncipe, e as
noites com o pai e os outros servos, que considerava sua família.
Embora ele e o príncipe fossem um pouco mais velhos, ainda preenchiam
seu tempo com aventuras ousadas e explorações. Às vezes, sentiam-se
bastante confinados no castelo, especialmente nas ocasiões em que ficavam
presos dentro de casa por um longo tempo. E desta vez em particular
chovera quase sem parar durante a maior parte da quinzena. Tendo já
explorado cada centímetro do castelo e suas fundações, os dois encontraram
uma forma de se divertir, e era um plano travesso. Como sabiam que o
bibliotecário, Monsieur Biblio, odiava que qualquer um dos livros saísse da
biblioteca, Gaston e o príncipe acharam que seria muito engraçado não
apenas roubar os livros que queriam ler, mas também rearrumar o sistema
meticulosamente organizado de Monsieur Biblio para distrair sua atenção e
impedi-lo de perceber que alguns de seus preciosos livros estavam faltando.
E a crescente frustração do pobre Monsieur Biblio apenas inspirou os
meninos a fazerem mais travessuras.
Claro, Monsieur Biblio suspeitava de Gaston. Mas ele era um homem
inteligente e não iria acusar Gaston na frente de todos, pelo menos não no
início. Ele fazia pequenos comentários e conduzia a conversa de um jeito
que esperava poder enganar Gaston, revelando que era ele quem entrava
furtivamente na biblioteca e reorganizava seus preciosos livros. Esse tinha
se tornado um evento quase noturno, Monsieur Biblio trazendo à baila os
livros perdidos na hora do jantar ou, na verdade, sempre que alguém
quisesse ouvir. O mistério dos livros tornou-se uma obsessão que o
consumia, e o restante da equipe não tinha tempo nem paciência para suas
doutrinações prolixas.
– Acredito ter visto alguns de seus livros no sótão da Ala Oeste,
Monsieur Biblio – disse Plumette uma noite, quando Monsieur Biblio
estava em um de seus discursos inflamados. – Foi quando eu estava lá em
cima tirando o pó. Eu me perguntei por que eles estavam ali, mas imaginei
que você tivesse seus motivos. – Era óbvio para todos os presentes, exceto
para Monsieur Biblio, que Plumette estava provocando o bibliotecário.
– Não haveria razão! Nenhuma razão, mademoiselle! Todo bibliófilo que
se preze sabe que um sótão úmido e empoeirado é o pior lugar possível para
qualquer livro, quanto mais para os tomos preciosos que estão guardados na
biblioteca real! – O rosto de Monsieur Biblio estava contorcido de raiva,
deixando seus olhos ainda menores do que o normal, e seus punhos
cerrados com força.
– Se não foi você, eu me pergunto: como eles acabaram no sótão,
monsieur? – Plumette perguntou com uma piscadela para os outros à mesa.
Esse se tornou o entretenimento noturno da equipe.
– Tenho um culpado em mente – afirmou Monsieur Biblio, olhando para
Gaston. Mas Grosvenor juntara-se a eles naquela noite, e o bibliotecário não
ousou dizer nada na frente do pai do menino.
Quase todos os funcionários da casa pareciam felizes por Grosvenor e
Gaston terem feito as refeições com eles com mais frequência desde aquela
noite feliz, cinco anos antes. E Gaston ficou satisfeito por seu pai não achar
que passar tempo com seus velhos amigos fosse tão doloroso quanto ele
imaginava. Gaston entendeu que estar no castelo podia lembrar o caçador
real dos dias em que Rose estava viva, e isso lhe causava dor, mas agora
parecia que Grosvenor se sentia confortável em passar as noites entre
amigos, entre outros que amavam e valorizavam a mãe de Gaston quase
tanto quanto ele.
A Senhora Potts ficou especialmente encantada com Grosvenor e Gaston
sempre se juntando a eles. Ela adorava ouvir as histórias de Gaston sobre as
aventuras dele e do príncipe, que se tornavam mais ousadas agora que eram
adolescentes. Até o Senhor Cogsworth se acostumara a vê-los na hora do
jantar na maioria das noites. A única pessoa que ainda resmungava sobre
isso e lançava olhares de soslaio para Gaston era Monsieur Biblio, que
estava singularmente concentrado em resolver o mistério de seus livros
errantes.
Os meninos, é claro, achavam tudo isso bastante divertido, observando
Monsieur Biblio caçar seus livros pelo castelo, enviado em buscas inúteis
pelos outros criados. Gaston e o príncipe começaram a deixar pistas que
levavam o pobre homem a procurar em lugares estranhos, como o cemitério
do castelo, só para não encontrar nada lá. Foi um golpe de sorte para os
meninos que Monsieur Biblio tivesse provocado sua própria infelicidade,
irritando tanto a todos que, involuntariamente, se tornaram parte do que
estava se transformando numa brincadeira elaborada. Gaston não entendia
por que Monsieur Biblio ficava tão incomodado com a saída de livros da
biblioteca, por que ele e o príncipe tinham que levá-los às escondidas na
escuridão. Se Monsieur Biblio fosse um pouco menos sistemático em sua
abordagem, talvez as coisas não tivessem dado tão errado para o pobre
homem.
– Ah, acho que concordo com sua teoria, Monsieur Biblio. Só pode haver
um culpado. Tenho certeza de que isso é óbvio para todos nós que estamos
sentados a esta mesa – disse Lumière, sorrindo divertidamente para Gaston.
– Eu sabia! Finalmente alguém com algum bom senso. Obrigado,
Lumière! É hora de pararmos de fingir que não sabemos quem é o culpado
e punir esse ladrão!
– Mas como vamos punir um fantasma, monsieur? – perguntou Lumière,
cutucando Plumette para que ela parasse de rir.
– Como disse, senhor? Eu o ouvi corretamente? Falou fantasma? –
Monsieur Biblio ficou horrorizado, mas os outros à mesa assentiram como
se estivessem convencidos de que o castelo era assombrado. Gaston sentiu
uma onda calorosa, sabendo que fizeram aquilo para protegê-lo. Todavia,
foi a cumplicidade de Lumière no pequeno estratagema que o deixou mais
feliz. Gaston sempre pôde contar com seu talento criativo em situações
como essa.
– De fato, você ouviu corretamente, Monsieur Biblio. É a única
explicação – disse Lumière.
– Você acha mesmo? Alguém notou que mais alguma coisa desapareceu
no castelo ou foi colocada em locais estranhos?
– Acho que esse espírito em particular gosta de livros, monsieur. E quem
pode culpá-lo? Talvez seja o fantasma do bibliotecário anterior – respondeu
Gaston com uma cara séria.
– Duvido que seja um bibliófilo anterior, meu jovem. O sótão é o último
lugar onde um espírito assim esconderia livros, zombeteiro ou não! Bem, se
for um fantasma, sei exatamente como lidar com espectros incômodos. Eu
estava lendo um livro fascinante...
– Ótimo. Parece que você tem tudo sob controle, Monsieur Biblio. Tenho
certeza de que logo encontrará seus livros. Agora está ficando tarde. Acho
que é hora de todos dizermos boa-noite – disse a Senhora Potts, que parecia
sentir pena do homem. Mas, além disso, a Senhora Potts era uma mulher
muito gentil e paciente.
No entanto, Monsieur Biblio conseguiu testar até a bondade e a paciência
da Senhora Potts com o passar dos dias e ainda assim não abandonou a
questão dos livros desaparecidos. Só quando entrou em sua sala de estar,
alguns dias depois, foi que ela perdeu a paciência. A Senhora Potts estava
ocupada em sua mesa, com uma pilha de papéis à sua frente, escrevendo
suas listas para uma próxima festa no castelo, quando Monsieur Biblio
entrou furioso, sem se preocupar em bater.
– Livros! Livros! Mais livros desaparecidos! Estou perdendo o juízo,
Senhora Potts! – Monsieur Biblio estava parado na porta, agitando as mãos
e gritando tão alto que os outros criados que passavam por ele no corredor
olharam para ver o que estava acontecendo. Quando viram quem era,
apenas reviraram os olhos e continuaram andando.
A essa altura, a Senhora Potts já estava acostumada com Monsieur Biblio
entrando, perturbando sua paz e reclamando de livros perdidos. Nessa
ocasião, porém, ela havia sido menos paciente do que de costume, porque
tentava freneticamente terminar de redigir os cardápios da festa no castelo,
para que o Senhor Cogsworth pudesse planejar a carta de vinhos. Todos
tiveram mais trabalho do que o normal para planejar essa festa, e a Senhora
Potts não tinha tempo para aquelas bobagens.
– Exijo que alguém faça algo sobre isso imediatamente! – Monsieur
Biblio continuou. – Livros fora do lugar, livros desaparecidos! Isso é um
caos completo! E não insulte minha inteligência sugerindo que temos um
fantasma! – Parecia que depois de alguns dias caçando fantasmas, Monsieur
Biblio havia desistido da ideia de o culpado ser um trapaceiro sobrenatural
e voltou a suspeitar de Gaston.
Se a Senhora Potts tivesse se dado o trabalho de erguer os olhos, teria
visto Monsieur Biblio cerrando os punhos e sacudindo-os de raiva. Não
importava; ela não precisou olhar para cima para saber qual era a expressão
dele. Tal cena já havia acontecido várias vezes nos últimos meses. E cada
vez Monsieur Biblio ficava mais agitado e exigente. E mais determinado a
provar a culpa de Gaston.
– Eu sei que Gaston é o sequestrador de livros! – ele exclamou, quase
fazendo com que a Senhora Potts levantasse os olhos do trabalho.
– Sequestrador de livros? Ora, isso está virando uma tolice, você não
acha? Tem certeza de que não os perdeu, Monsieur Biblio? Dê talvez uma
boa olhada na biblioteca e descobrirá que estavam lá o tempo todo – ralhou
ela, ainda concentrada em seu trabalho, tentando desesperadamente
terminar de escrever os cardápios antes que o Senhor Cogsworth chegasse
perguntando sobre o motivo do atraso.
– Você está sugerindo que não sei fazer meu trabalho, Senhora Potts?
Devo insistir que a casa de Grosvenor seja revistada. Eu sei que Gaston
pegou os livros! E sei que todos vocês o estão encobrindo!
Monsieur Biblio estava testando a Senhora Potts além de seus limites.
Ela ergueu os olhos dos papéis e fitou Monsieur Biblio, visivelmente
agitada. Bem, a Senhora Potts era, no conceito de todos, uma mulher muito
gentil, a mulher mais gentil que alguém teria a sorte de conhecer, mas que
não ousassem ameaçar sua família. Isso ela não admitiria. E era assim que a
Senhora Potts via Grosvenor e Gaston, como parte de sua família, e ela não
estava disposta a ficar ali sentada, pensando na casa de Grosvenor sendo
revistada por qualquer que fosse o motivo.
– Tenho certeza de que você está ciente de que temos uma grande festa
no castelo chegando. E deve ter adivinhado que estaríamos todos ocupados
fazendo os preparativos, que é exatamente o que eu deveria estar fazendo
neste momento, em vez de discutir seus livros perdidos. Vinte cavalheiros e
damas estarão aqui em questão de dias, Monsieur Biblio; não temos tempo
para isso. – A Senhora Potts estava com o rosto impassível e muito mais
séria do que o normal, mas o bibliotecário furioso não recuou.
– Eu sei, é por isso que não incomodei o Senhor Cogsworth com isso.
– Entendo. Bem, garanto-lhe que todos temos muito trabalho pela frente.
Se está procurando algo para fazer, Monsieur Biblio, já que parece ter muito
tempo livre se preocupando com a perda de livros, talvez queira elaborar a
tabela de assentos, planejar os cardápios, fazer os pedidos, atribuir quartos a
todos os nossos convidados e organizar o entretenimento. Presumo que
tenha visto a legião de criadas esfregando, tirando o pó e arrumando as
flores. Ou talvez você tenha notado lacaios enrolando os tapetes para dar
espaço à dança, enquanto outros lustram a prataria. Sem falar no novo
pavilhão que está sendo construído. Ou que tal a tenda que está sendo
montada para as atividades ao ar livre? Cada membro dos funcionários,
tanto externos quanto internos, está se preparando para a festa na residência
do rei e da rainha. Todos, exceto você. Mas, como se trata de uma
emergência de grande proporção, pedirei a todos que parem o que estão
fazendo e procurem seus livros perdidos imediatamente!
– Se você não me ajudar, serei forçado a discutir isso com o Senhor
Cogsworth!
– Por que não vamos falar com ele juntos? – sugeriu ela, levantando-se. –
Ele está na despensa, resmungando e andando de um lado para o outro.
Tenho certeza de que não vai incomodá-lo saber que os cardápios estão
atrasados porque você está irritado com o desaparecimento de alguns livros!
– Não vou incomodá-lo agora. Mas talvez você possa me dizer: onde
posso encontrar Grosvenor? Acho que vou abordar essa questão
diretamente com ele.
– Fique à vontade. Ele está no pátio. – A Senhora Potts sorriu
maliciosamente enquanto o observava sair esbaforido pelo corredor a
caminho de conversar com Grosvenor. E, quando virava a esquina, ela o
chamou, parando-o no meio do caminho.
– Ah, e, Monsieur Biblio, você poderia, por favor, dizer a Sua Majestade,
o rei, que o Senhor Cogsworth chegará atrasado para revisar as listas de
vinhos porque fomos inevitavelmente atrasados por uma emergência de
livros?
– O quê? Eu, o bibliotecário, levando uma mensagem ao rei? Isso é
inédito! Eu nem sei onde ele está.
– Está no pátio com Grosvenor planejando a caçada, é claro. Tenho
certeza de que, quando o rei souber de seus problemas, insistirá para que
todos abandonemos os afazeres a fim de descobrir o mistério de seus livros
desaparecidos!
A Senhora Potts esperava que isso colocasse um ponto-final nas
perturbações provocadas pelo bibliotecário, pelo menos até o fim da festa.
– Esse assunto ainda não está encerrado, Senhora Potts, eu lhe garanto.
– Tenho certeza de que não – disse ela, suspirando e balançando a
cabeça.
– Qual é a razão disso tudo? – perguntou o Senhor Cogsworth, de repente
colocando a cabeça para fora da despensa depois que Monsieur Biblio se
afastou furioso.
– Oh, nada, Senhor Cogsworth. Parece que o fantasma na biblioteca está
fazendo suas travessuras de novo – disse ela, rindo.
– Você já tem os cardápios redigidos? – ele perguntou, mal prestando
atenção. A Senhora Potts podia ver que o Senhor Cogsworth estava
sentindo a tensão dos acontecimentos iminentes, embora apenas ela tivesse
notado. A Senhora Potts conhecia o Senhor Cogsworth havia muito tempo e
podia identificar os pequenos sinais que o denunciavam. Ela enxergava a
pressão daquela festa no castelo borbulhando sob a superfície de sua
fachada tranquila e estoica. Fazia muito tempo que a família real não
organizava diversão nesse nível. O rei e a rainha estiveram ausentes com
tanta frequência nos últimos anos que não tiveram oportunidade. Por isso,
foi uma surpresa quando a rainha anunciou que iriam hospedar no castelo
um grande número de convidados por um longo período, o que incluiria
jantares luxuosos, entretenimento noturno, caçadas para os homens,
piqueniques e passeios panorâmicos para as mulheres e, para o grande final,
um baile requintado de proporções inéditas desde o próprio casamento do
rei e da rainha. Não foi nenhuma surpresa que a equipe tenha ficado
confusa; a preparação para tão grandioso evento era uma tarefa hercúlea. E
não era de admirar que os funcionários estivessem irritados com Monsieur
Biblio por distraí-los quando eles tinham tantas coisas para fazer e, assim,
desabafar ao provocá-lo.
– Eu tenho os cardápios prontos – a Senhora Potts respondeu,
entregando-os ao Senhor Cogsworth. – Estava fazendo meus ajustes finais
no momento em que Monsieur Biblio interrompeu meu trabalho.
– O que você quer dizer com “fantasma na biblioteca”? Monsieur Biblio
não acredita realmente que o castelo seja assombrado, não é? – perguntou o
Senhor Cogsworth, como se as palavras da Senhora Potts tivessem acabado
de ser registradas.
– Não. Ele culpa Gaston e exigiu que a casa de Grosvenor fosse
revistada.
– Isso é ridículo. – A Senhora Potts ficou surpresa ao ouvi-lo defender
Gaston. – Afinal, o que Gaston iria querer com os livros? A menos que
tivessem imagens. A teoria do fantasma faz mais sentido. Pense nisso,
Gaston lendo. – Ele riu e a Senhora Potts franziu a testa.
– Já chega, Senhor Cogsworth! Se sabe o que é bom para você e gostaria
de permanecer em minhas boas graças, sugiro que guarde esses comentários
para si. E se você não percebeu, Gaston não é mais um menino, nenhum dos
dois é. Ambos têm treze anos agora. Quase homens.
Cogsworth era frequentemente rígido e um notório esnobe, e não era
segredo que não aprovava que Gaston tivesse livre acesso à residência, mas
normalmente não era um homem cruel. E, nesse caso, a Senhora Potts
achou que ele estava sendo cruel e não poderia ter ficado mais
decepcionada com ele. E pela expressão em seu rosto, parecia que o homem
estava desapontado consigo mesmo.
– Isso foi um golpe baixo, Senhor Cogsworth, até para você – comentou
ela, deixando claro que ele tinha ido longe demais.
– Sinto muito, Senhora Potts. Isso foi além dos limites. Essa festa no
castelo me deixou abalado, nem vou tentar negar. Já faz muito tempo que
não temos uma lista de convidados dessa magnitude. Por favor, me diga que
você tem tudo sob controle.
– Claro que sim, Senhor Cogsworth. Não se preocupe. Estamos todos sob
pressão, mas tenho certeza de que será um tremendo sucesso – afirmou a
Senhora Potts.
Naquele momento, ela avistou Gaston virar a esquina da cozinha e parar
quando viu o Senhor Cogsworth ali. Escondeu-se atrás da parede e esperou.
– Não gosto quando estamos em desacordo, Senhora Potts – disse o
Senhor Cogsworth, parecendo um pouco envergonhado. E ela sabia que o
mordomo dizia a verdade. Além disso, não havia tempo para uma de suas
discussões, não com tantas providências a serem tomadas ainda em relação
à festa. E certamente não com Gaston ao alcance da voz.
– Agora, trate de dar o fora daqui. Você ainda tem os vinhos para planejar
– falou ela, fazendo menção de conduzi-lo de volta à despensa com uma
piscadela para Gaston, que espiava na esquina, aguardando a conversa
terminar. Mas o Senhor Cogsworth não arredou pé.
– Ah, e, Senhora Potts, tratarei Gaston como um jovem no momento em
que ele começar a agir como tal.
– Isso também se aplica ao príncipe? – ela perguntou com um sorriso
atrevido. O Senhor Cogsworth não respondeu; apenas abanou a cabeça e foi
para a despensa. Ela não se importou. Sabia que ele estava ansioso para
redigir a carta de vinhos para o rei, e Gaston estava esperando para visitá-la.
Embora hoje ela não tivesse um momento de sobra, seria uma maravilha se
fizesse uma pausa naquele dia antes da hora de se sentar para jantar.
– O Senhor Cogsworth parecia estar muito nervoso. O que aconteceu? –
perguntou Gaston, rindo, parado na porta da Senhora Potts.
– Entre aqui, meu jovem – ela o convidou, puxando-o rapidamente para
sua sala de estar e fechando a porta. – Você não soube? Parece que o
fantasma da biblioteca está aprontando de novo – acrescentou ela,
lançando-lhe um olhar astuto, mas indulgente. – Felizmente para você, o
Senhor Cogsworth está ocupado demais para levar a sério a confusão com
os livros. Mas posso sugerir que você e o príncipe restituam os tesouros do
Monsieur Biblio antes que ele prossiga com isso? Ele está ameaçando
mandar revistar sua casa, e você sabe o que isso significaria: descobririam
sua casa secreta na árvore e, sem dúvida, encontrariam os livros que você
esconde nela. – A Senhora Potts foi até sua mesa de chá e serviu uma xícara
para ambos.
– Ei, como sabia sobre nossa casa na árvore? O que a faz pensar que
estamos com os livros? – perguntou Gaston, pegando um pequeno biscoito
redondo coberto com açúcar de confeiteiro do prato na mesa de chá da
Senhora Potts.
– Há bem pouca coisa que acontece por aqui que eu não saiba.
– Entendo – disse Gaston, mastigando um dos deliciosos biscoitos da
Senhora Potts com uma expressão culpada.
– Não se preocupe, meu garoto, seus segredos estão seguros comigo. Só
seu pai e eu sabemos sobre a casa na árvore. Mas não é nenhum segredo
que você e o príncipe estão com os livros, embora não entendamos por que
isso é um problema tão grande. É por isso que todos provocamos o pobre
homem. Mas temo que essa brincadeira possa ter ido longe demais e não
tenho tempo para lidar com isso e mais tudo que está acontecendo.
– Ele está com raiva porque quebramos sua regra. Esse é o problema –
disse Gaston, pegando outro biscoito.
– Mas por que existe tal regra? Os livros não são para leitura? – A
Senhora Potts levantou as mãos, exasperada.
– É justamente assim que Gaston e eu pensamos – declarou o príncipe,
entrando na sala com uma expressão travessa no rosto. – Então, o que perdi
desta vez?
A Senhora Potts não tinha certeza se gostava do que via no menino de
vez em quando, mas não tinha tempo para um de seus sermões.
– Monsieur Biblio está fazendo estardalhaço novamente. Talvez você e
Gaston possam ajudá-lo a descobrir o mistério por trás dos livros
desaparecidos enquanto eu volto a planejar a festa na residência dos seus
pais – disse ela, apontando para o prato de biscoitos para que ele pegasse
alguns.
– Talvez façamos exatamente isso, Senhora Potts – comentou o príncipe
com um sorriso furtivo. – Acho que sei precisamente de que maneira.

Mais tarde naquela noite, muito depois de Monsieur Biblio ter ido
dormir, exausto depois de muitas horas de busca no castelo pelos livros
perdidos, ele foi acordado por um barulho estranho no corredor da ala
masculina. Dava para ouvir as tábuas do piso rangendo, e ele podia jurar
que havia alguém espreitando do lado de fora de seu quarto. Ele olhou na
escuridão para a nesga de luz que brilhava sob a porta de seu quarto escuro
como breu e viu uma sombra se mover através dela, o que o fez se
sobressaltar. Tinha alguém ali.
– Quem está aí? – ele perguntou com voz fraca enquanto puxava as
cobertas até o queixo como uma criança assustada. Mas quem quer que
fosse não respondeu; apenas permaneceu parado ali em um terrível silêncio.
– Declare o que quer ou vá embora! – ele gritou bem mais alto, tentando
parecer destemido enquanto reunia coragem para acender a vela na mesinha
de cabeceira. A sala explodiu em luz quando ele riscou o fósforo e acendeu
o pavio. Rapidamente vestiu o roupão, ajeitou a touca de dormir e pegou,
com as mãos trêmulas, o prato que segurava o castiçal. Caminhou
lentamente até a porta, com muito medo do que poderia encontrar do outro
lado. Mas, ao abri-la, viu algo completamente inesperado. Livros.
– Aquele maldito garoto! – ele exclamou, olhando para a pilha de livros
no chão. Quando se inclinou para pegá-los, ouviu alguém dobrando a
esquina e descendo o corredor.
– Gaston! Eu sei que é você! – Monsieur Biblio correu pelo corredor, na
esperança de pegar Gaston em flagrante, mas o que encontrou foi um rastro
de livros espalhados pelos corredores. Enquanto Monsieur Biblio seguia a
trilha, sentiu um frio no ar que o fez estremecer e se perguntar se fora
mesmo Gaston quem teria levado os livros, afinal. Talvez houvesse mesmo
um fantasma. Ele havia lido em um de seus livros sobre a condição das
entidades sobrenaturais que quase todos os relatos de um encontro espectral
eram acompanhados por um frio distinto no ar. E havia de fato um frio
distinto que o enregelou por dentro. Não havia como negar. Mas poderia
realmente haver um fantasma? Não parecia possível.
– Não seja um velho tolo! – ele disse em voz alta para si mesmo. – Não
há fantasmas neste castelo. – Mas não tinha certeza. Olhou em volta
procurando uma janela aberta; em busca de alguma razão lógica para de
repente estar tão frio, todavia não conseguiu uma explicação. Sabia que os
castelos antigos eram, por natureza, lugares frios, e sabia disso não apenas
porque morava em um, mas porque tinha lido muitos livros sobre outros.
No entanto, também sabia que os castelos tinham fama de ser lugares
assombrados e não tinha certeza se estava tremendo de medo ou porque a
galeria estava bem fria naquela noite. O enigma o deixou bastante tonto
enquanto seguia a trilha dos livros. Ficou em dúvida se estava se sentindo
fraco por ver seus preciosos tomos espalhados pela galeria de forma tão
vergonhosa ou se estava realmente com medo de que o castelo fosse
assombrado. Fosse qual fosse o motivo, ele lamentou não ter acordado pelo
menos um dos lacaios para acompanhá-lo em sua assustadora missão.
Ele finalmente se viu diante das portas da biblioteca, onde podia ouvir
ruídos estranhos vindos lá de dentro. Sons de lamentos e batidas que
causaram terror em seu coração enquanto ele ficava parado ali de pijama e
touca de dormir, segurando sua vela e parecendo uma ilustração de um de
seus livros. Ele não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo. Se
não tivesse certeza de que estava acordado, acharia que estava sonhando e
sofrendo de algum tipo de sonambulismo. Como sua biblioteca poderia de
fato ser assombrada? A ideia era absurda.
Quando abriu as portas da biblioteca, ficou surpreso ao ver fantasmas,
fantasmas reais, dançando na grande galeria superior. Estavam tirando
livros das prateleiras e jogando-os em todas as direções. Os fantasmas eram
exatamente como Monsieur Biblio imaginara que seriam: brancos,
ondulantes e assustadores, com olhos negros grandes, redondos e
inexpressivos. E não prestaram absolutamente nenhuma atenção nele;
estavam se deliciando com sua confusão, rindo e jogando fora os tomos
preciosos de Monsieur Biblio totalmente absortos.
Todo o tremor e o medo abandonaram Monsieur Biblio naquele
momento, ao ver seus livros tão maltratados, e foram substituídos pela
indignação, que lhe deu coragem para enfrentar os espíritos travessos.
– Parem com isso imediatamente, estou mandando! Mostrem algum
respeito! – E para sua surpresa os fantasmas se detiveram, parecendo
congelados no tempo, parados ali, segurando grandes pilhas de livros
enquanto o fitavam da galeria.
– Espíritos, por favor! Eu ordeno que vocês guardem esses livros com
cuidado e deixem este lugar imediatamente, para nunca mais voltarem! –
bradou, conseguindo imprimir um tom autoritário. Ele tinha lido que os
espíritos eram mais propensos a obedecer ordens quando se falava com eles
dessa maneira, e até agora parecia estar funcionando. Ele estava se sentindo
bastante orgulhoso de si mesmo. Afinal, era bibliotecário, e não
espiritualista ou mestre das artes da magia. Mas uma das coisas que
Monsieur Biblio mais amava no seu trabalho, o que ele mais amava nos
livros, era que não havia quase nada que ele não pudesse fazer, desde que
primeiro dedicasse tempo para pesquisar.
– Agora, vão embora, espíritos zombeteiros. Voltem para os lugares
sombrios aos quais vocês pertencem! – ele disse, sentindo-se mais um
bruxo poderoso do que um bibliotecário. Mas, então, aconteceu algo que ele
não esperava: os fantasmas começaram a rir! Na verdade, estavam rindo
dele – ele não conseguia acreditar. E começaram a atirar livros nele, lá do
alto da galeria.
Monsieur Biblio gritou enquanto tentava se esquivar da chuva de livros
ao seu redor, caindo no chão com um barulho de trovão. Protegeu a cabeça
enquanto os fantasmas riam e jogavam livro após livro nele, fazendo-o sair
correndo da biblioteca. Monsieur Biblio ficou com tanto medo que não
parou de correr até chegar ao quarto do Senhor Cogsworth, na ala
masculina, onde se viu batendo na porta furiosamente e com grande
exaltação.
– Senhor Cogsworth, Senhor Cogsworth! Por favor, acorde! – Monsieur
Biblio tremia de medo, mas foi tirado de seu transe quando o Senhor
Cogsworth abriu abruptamente a porta do quarto com o bigode torto, o
cabelo despenteado e uma expressão colérica no rosto.
– O que significa isso, Biblio? Qual é o problema agora? – perguntou o
Senhor Cogsworth. Monsieur Biblio nunca o tinha visto tão zangado.
Nunca o vira parecendo outra coisa senão perfeitamente calmo.
– É verdade, Senhor Cogsworth! Existem fantasmas na biblioteca! Venha
rápido! – disse Monsieur Biblio, ajeitando a touca de dormir, que
escorregou enquanto ele corria e agora quase cobria seus olhos.
– Tolice! Você está tendo pesadelos de novo, homem. Volte para a cama.
– Cogsworth estava prestes a bater a porta na cara de Monsieur Biblio, mas
Monsieur Biblio esticou o pé para impedi-lo.
– Não, Senhor Cogsworth, eu juro! Eles estão lá agora. Devo insistir que
você venha comigo. – O pobre homem estava sem fôlego por causa da
corrida e da terrível provação. Certamente, o Senhor Cogsworth percebeu
que ele estava dizendo a verdade. Sem dúvida, não podia descartar aquilo
como um absurdo trivial. Havia fantasmas na biblioteca e algo precisava ser
feito.
– Muito bem. Acorde os lacaios e diga-lhes que nos encontrem na
biblioteca. Se de fato temos fantasmas, então devemos enfrentá-los
preparados. – O Senhor Cogsworth tirou o paletó do gancho na parede ao
lado da porta e vestiu-o. Amarrou o cinto com um floreio furioso e tirou
Monsieur Biblio do caminho.
Monsieur Biblio acordou os lacaios, como o Senhor Cogsworth havia
pedido, e conduziu os jovens atordoados e confusos à biblioteca, onde o
Senhor Cogsworth os aguardava. Mas antes de entrarem na sala, Monsieur
Biblio os deteve para preparar os lacaios para o espetáculo assustador que
estavam prestes a testemunhar.
– Agora, senhores, vocês devem fortalecer sua determinação. Devemos
manter nossa posição, não importa o que acontecer. Aparições como essas
se alimentam de nosso medo. Portanto, façam o que fizerem, não pareçam
assustados – instruiu o bibliotecário enquanto entravam na biblioteca. Mas
assim que o fizeram, seu queixo caiu. Não havia fantasmas, nem mesmo
livros no chão. Tudo estava limpo e arrumado e guardado em seu devido
lugar. Não havia nenhum sinal de que algo tivesse acontecido. Era algo
confuso. Ele não entendeu.
– Sim, está uma bagunça aqui. Está cheio de fantasmas – comentou
Francis, um dos lacaios, fazendo os outros rirem.
– Estou lhes dizendo, havia fantasmas aqui! Eu os vi com meus próprios
olhos. – Monsieur Biblio girava em círculos, olhando perplexo ao redor do
aposento. – Eles estavam aqui, juro!
– Você, Monsieur Biblio, acordou todo mundo por nada mais do que um
pesadelo insignificante, e com todo o trabalho que temos pela frente antes
da festa – ralhou o Senhor Cogsworth, que parecia ter endireitado o bigode
e ajeitado o cabelo ao longo do caminho, enquanto desciam a escada.
– Não foi um pesadelo! Estou lhes dizendo, havia fantasmas aqui e eles
estavam atirando livros em mim! – O bibliotecário olhou em volta em busca
de qualquer sinal de que tudo não tinha sido um sonho. Era evidente que os
espíritos haviam arrumado tudo. Mas isso era provável? Ele não tinha lido
que os espíritos eram particularmente meticulosos nesse aspecto. Mas
mesmo assim, acontecera. Não importava a aparência da biblioteca agora,
poucos momentos antes tudo estava um caos.
– O que é mais provável, Monsieur Biblio, uma biblioteca mal-
assombrada ou um bibliotecário exausto sofrendo de pesadelos? Agora, se
não se importa, acho que voltaremos para a cama. Eu sugiro que você faça
o mesmo. – O Senhor Cogsworth fez sinal aos lacaios para saírem da sala.
– Mas, e os fantasmas? Algo deve ser feito! Espere... O que foi isso?
Você ouviu aquela risada? – perguntou Monsieur Biblio. Seus olhos
estavam arregalados quando ele correu para uma estante atrás da qual
poderia jurar ter ouvido risadas.
– Primeiro fantasmas e agora alguém rindo entre os livros? Monsieur
Biblio, acredito que você precisa descansar. Será que deveríamos pedir ao
Monsieur D’Arque para dar uma olhada em você?
– Agora olhe aqui! É verdade, estou dizendo. Eu vou lhe mostrar. –
Monsieur Biblio apertou um botão discreto na estante, que se abriu para
revelar uma pilha de livros guardados em um compartimento secreto. Os
mesmos livros que haviam sido jogados nele momentos antes. De repente,
tudo ficou claro, ele sabia o que havia acontecido e seu sangue começou a
ferver.
– Saia, Gaston, eu sei que você está aí, seu garoto horrível, diabólico e
miserável... Oh! – Monsieur Biblio ficou chocado ao ver o príncipe sair do
seu esconderijo, de trás da pilha de livros. – Eu... sinto muito, meu príncipe.
Não percebi que era você.
– Obviamente – disse o príncipe. – O que é isso tudo, Monsieur Biblio?
Senhor Cogsworth? Por que vocês estão todos aqui de pijama? – O príncipe
se levantou e cruzou os braços de maneira imperiosa, como se fosse
perfeitamente normal esconder-se atrás de uma estante no meio da noite.
– Sinto muito, Vossa Alteza. Monsieur Biblio deve ter tido um pesadelo.
Peço desculpas – disse o Senhor Cogsworth, com o rosto ficando vermelho.
– É claro que não culpo você, Cogsworth – falou o príncipe, olhando feio
para Monsieur Biblio.
– Que brincadeira é essa a de vocês? Eu sei que Gaston está aí com você!
Sei que ele está por trás de tudo isso – Monsieur Biblio balbuciou de raiva.
Estava farto das tolices de Gaston e do príncipe e só conseguia descontar
sua raiva em um dos meninos. Ambos o atormentavam havia anos, pegando
seus livros e não os devolvendo. Não tinha condições de atacar o príncipe,
denunciá-lo por sua cumplicidade, mas poderia garantir que Gaston fosse
punido por seus perversos hábitos de roubo de livros. Se havia uma coisa
que Monsieur Biblio não suportava era desrespeito com os livros, e Gaston
e o príncipe haviam demonstrado desrespeito do mais baixo nível. Eles os
espalharam por todo o castelo e os jogaram no chão. E não havia como isso
ficar impune, se ele pudesse evitar.
– Digamos que Gaston esteja por trás de tudo isso. E daí se ele estiver? O
que você vai fazer a respeito? – perguntou o príncipe, mais autoritário do
que nunca. Não cabia a Monsieur Biblio dizer, nem mesmo ter uma opinião
sobre essas coisas, mas, no que lhe dizia respeito, o príncipe não era tudo o
que esperava ser e ficava mais impertinente a cada dia. E Gaston era ainda
pior. Monsieur Biblio não entendia por que quase toda a criadagem os
adorava. Parecia que apenas o Senhor Cogsworth e ele próprio viam Gaston
como ele era. Fazia sentido o motivo pelo qual o velho Senhor Cogsworth
inventava desculpas para o príncipe e era indulgente com ele. Mas
Monsieur Biblio tinha certeza de que em pouco tempo o príncipe se
transformaria em um monstrinho se alguém não o controlasse.
– Vamos, Monsieur Biblio, você não quer dizer nada de que possa se
arrepender. Você está descontrolado – comentou o Senhor Cogsworth.
– Eu sei que tudo isso foi obra de Gaston e do príncipe! Roubar livros,
pregar peças! Estou pensando em contar pessoalmente ao rei! – confessou
Monsieur Biblio.
– E em quem você acha que o rei vai acreditar? Num bibliotecário velho
e tolo que acredita em fantasmas ou no próprio filho? Agora, volte para a
cama antes que perca seu cargo, Monsieur Biblio – disse o príncipe com
uma expressão malvada.
– Sim, sugiro que todos voltemos para a cama – falou o Senhor
Cogsworth, que parecia bastante desconfortável com toda a situação,
mexendo no cinto de seu roupão.
Monsieur Biblio fora derrotado. Não havia nada a ser feito. Agora não,
de qualquer modo. Ao sair da biblioteca com o Senhor Cogsworth e os
lacaios resmungões e grogues de sono atrás deles, ele ouviu claramente a
voz de Gaston junto com a do príncipe vindo da biblioteca. Rapidamente
lançou um olhar para Cogsworth para ver qual seria sua reação. Mas não
houve nenhuma. O mordomo estava impassível como sempre, sem
pestanejar, sem sequer mudar a expressão no olhar, como se ambos não
tivessem ouvido a mesma coisa.
– Você realmente não vai dispensar Monsieur Biblio, não é, Reizinho? –
Gaston perguntou.
E o príncipe respondeu:
– Ainda não decidi.
Não, esse não foi o fim para Monsieur Biblio. Ele e o Senhor Cogsworth
sabiam que o príncipe e Gaston estavam por trás dos livros desaparecidos
desde o início. Talvez, juntos, eles encontrassem uma forma de punir os
meninos por quebrarem as regras de Monsieur Biblio.
CAPÍTULO IV

A FERA DE GÉVAUDAN

Quando Gaston não estava pregando peças no pobre e velho Monsieur


Biblio com o príncipe, ou fazendo suas tolices habituais, estava ao lado de
seu pai, ajudando no planejamento para a Grande Caçada. O pai de Gaston
vinha se preparando para isso desde que o rei o procurara com a notícia de
que iria organizar uma caçada de vastas proporções durante a próxima festa
no castelo, que deixara todos os funcionários em pânico e trabalhando nas
últimas semanas. Gaston acompanhava o pai nas rondas, cuidando dos
batedores que tiravam os animais dos esconderijos para os atiradores, a fim
de se certificar de que estavam equipados com tudo o que precisavam;
supervisionando a recepção dos cavalos dos nobres visitantes, que haviam
sido enviados antes da chegada dos cavalheiros e das damas; e explorando
as melhores áreas para sediar as diversas atividades ao ar livre, tudo isso
consultando o rei e a rainha. Gaston não conseguia acreditar na
responsabilidade que seu pai tinha e achou inspirador vê-lo trabalhar.
Nesse dia em particular, Gaston e o pai dirigiram-se a uma clareira onde
os operários davam os últimos retoques na construção de um enorme
pavilhão externo. O projeto já estava em andamento havia alguns meses,
muito antes da notícia da festa no castelo, mas quando o pai de Gaston
soube que iria organizar uma caçada real, ele e o rei decidiram agilizar o
processo para que estivesse pronto para o almoço dos atiradores, que seria
oferecido pela rainha.
Felizmente, muito progresso já havia sido feito no pavilhão, então os
operários sentiram que teriam condições de terminá-lo a tempo. O pai de
Gaston poderia, é claro, ter deixado isso para o construtor-chefe, assim
como poderia ter deixado o cuidado dos cavalos para o cavalariço-chefe, e
assim por diante, mas Grosvenor sabia quão importante esse evento era para
o rei, e queria ter certeza de que tudo estava perfeito.
Gaston ficou admirado com a atenção do pai aos detalhes, surpreso com
todos os arranjos que teve que fazer e com as coisas que precisava lembrar.
Gaston sentiu o peso das responsabilidades de seu pai pressionando-o como
se fossem suas, embora não houvesse nenhum sinal de que isso parecesse
perturbar Grosvenor. Ele nunca tinha visto um homem tão forte e capaz,
sempre tão calmo, até mesmo gentil, e nunca se irritando com ninguém, não
importa se lhe fosse dado um motivo.
Ao se aproximarem do pavilhão, puderam ver à distância que a estrutura
estava de fato quase concluída, e havia vários funcionários trazendo mesas,
cadeiras e outras coisas necessárias para o almoço da rainha. Havia até um
lustre especial – feito com pequenos espelhos que refletiam a luz –
importado de um reino vizinho. O príncipe contou-lhe que a rainha não
queria saber praticamente de mais nada porque estava muito entusiasmada,
e continuava falando sobre como o lustre era feito de fragmentos da coleção
de um renomado fabricante de espelhos que havia falecido alguns anos
antes. E o pai de Gaston acabara de dizer naquela manhã que sabia que a
rainha tinha grandes planos para o pavilhão além de organizar o almoço; o
lustre era a peça central de seus planos, então ele estava feliz por estar lá
para supervisionar sua chegada e garantir que os operários o tratassem com
cuidado. Ao chegarem mais perto do pavilhão, Gaston percebeu que a
Senhora Potts também estava ali e devia ter tido a mesma ideia.
– Vejo que você também está aqui para supervisionar a instalação do
novo tesouro da rainha, Grosvenor – disse a Senhora Potts, parecendo muito
satisfeita por ter encontrado Gaston com o pai. Ela era uma mulher muito
alegre, sempre com um sorriso no rosto, a menos, é claro, que estivesse
zangada com alguém. Mas parecia que a tensão dos acontecimentos futuros,
e mesmo as explosões de Monsieur Biblio sobre o “incidente da biblioteca”,
como ele o chamava, não poderiam diminuir o ânimo da Senhora Potts.
– Estou aqui por esse motivo mesmo, Senhora Potts. Sei que você tem
muita coisa para cuidar em casa, então pode deixar isso comigo, se preferir
– ofereceu Grosvenor.
– É bom sair um pouco, Grosvenor. Invejo todo o tempo que você passa
ao ar livre. E como você está, Gaston? Está pronto para a Grande Caçada?
Você se juntará ao seu pai nos deveres de atendimento ao rei? – perguntou a
Senhora Potts, que de alguma forma conseguia manter uma conversa
totalmente agradável e ao mesmo tempo observar os trabalhadores com
olhar de falcão enquanto eles retiravam o lustre do caixote de madeira.
– Gaston atenderá o príncipe, servindo como seu carregador – disse
Grosvenor, sorrindo para o filho e dando-lhe tapinhas nas costas.
– Seu carregador? Sou muito melhor atirador do que Reizinho. Não
poderei atirar também? – perguntou Gaston, virando a cabeça em estado de
choque.
– Somos criados, Gaston. Não é nossa função atirar com a companhia
real. E você não é melhor que o príncipe, lembre-se disso. – Grosvenor
olhou para a Senhora Potts para ver se ela poderia intervir.
– Mas Reizinho sabe que sou melhor atirador do que ele.
– Ah, acho que ninguém se importaria se Gaston se juntasse à caçada,
Grosvenor – disse a Senhora Potts. – Realmente acho. E ele tem razão, você
sabe, atira melhor do que o príncipe. É o melhor em tudo. Ele se parece
com você.
– Se ele se parecesse comigo, perceberia a sabedoria em deixar o príncipe
acreditar que é o melhor – observou Grosvenor.
– Você parece o Senhor Cogsworth falando – disse a Senhora Potts. – E
não tenho certeza de quão sábio isso é, especialmente se não for verdade.
A conversa foi interrompida pelo som de um grupo de homens gritando
na floresta. Aparentavam estar a alguns metros do pavilhão, mas Gaston
percebeu que pareciam em pânico enquanto chamavam aqueles que
trabalhavam na obra. Um dos homens veio correndo da floresta, com pavor
estampado no rosto.
– Alguém, por favor, chame Monsieur Grosvenor! – ele exclamou, sem
fôlego, mal conseguindo falar. – Alguém sabe onde ele está?
– Estou aqui. Qual é o problema? – Grosvenor gritou enquanto corria
para o outro lado do pavilhão a fim de ver o que estava acontecendo,
deixando Gaston e a Senhora Potts para trás.
– Ah, senhor! Venha comigo. É terrível – disse o jovem. – Por aqui. – Ele
conduziu Grosvenor para a floresta, onde um grupo de homens estava
reunido, olhando para alguma coisa. A princípio, Grosvenor pensou que um
animal tivesse sido atacado por um lobo ou alguma criatura semelhante. Era
uma cena sangrenta, horrenda e terrível, mas ele não entendia por que os
homens estavam em pânico. Ao se aproximar, percebeu que não era um
animal, mas um dos jovens da equipe externa chamado Andre, de quem
Grosvenor gostava muito. Ele não suportou olhar para o pobre sujeito caído
no chão da floresta, coberto de sangue e terra, como se sua vida não
significasse nada.
– O que aconteceu? – ele quis saber, percebendo que sabia a resposta no
momento em que fez a pergunta. Já vira um ataque como aquele antes, e
isso fez seu estômago embrulhar e o coração disparar tão rápido que ele
pensou que seus joelhos pudessem ceder. Grosvenor recuperou o controle e
examinou o que restava do corpo do pobre jovem com as mãos trêmulas.
– Ele está caído aqui desde ontem à noite! – Não conseguiu evitar que
lágrimas rolassem quando olhou para o rosto angustiado dos outros homens.
Todos eles amigos daquele pobre jovem que perdera a vida. – Por que
ninguém me disse que Andre estava desaparecido? – questionou Grosvenor,
tirando o casaco e colocando-o sobre o rosto do pobre rapaz. – Alguém
traga Jean! – prosseguiu. – Quero saber por que ele não me avisou que
Andre não voltou com os outros operários ontem à noite. – Sua voz estava
embargada, sua dor se transformando em raiva e reprovação.
– Pensávamos que ele estivesse na taverna da aldeia, Grosvenor. Não
poderíamos ter imaginado... – O caçador real não o deixou terminar. Ele
não era o tipo de homem que cortava os outros ou gritava ordens, mas Jean,
o construtor-chefe, chegara e não havia tempo a perder.
– Esqueça isso. Jean, quero uma contagem completa do pessoal externo
imediatamente! E diga a todos que o reino inteiro está sob toque de recolher
até novo aviso. Você entendeu? Ninguém deve sair depois de escurecer.
Quero todos em casa o mais tardar ao anoitecer – orientou Grosvenor,
enquanto os outros começavam a sair do pavilhão para ver o que havia
acontecido.
– E o que devemos dizer ao rei e à rainha quando eles perguntarem por
que não seguimos suas ordens de trabalhar até tarde? Você sabe que não
podemos parar de trabalhar ao anoitecer se quisermos estar prontos para as
festividades! – Jean protestou.
– Toda a festa no castelo terá que ser cancelada, Jean. Vou falar com o rei
– disse Grosvenor. O pequeno grupo agora estava cercado pela equipe
externa, bem como pelas criadas que estavam lá para ajudar nos
preparativos do pavilhão, agora conversando entre si e fazendo perguntas a
Grosvenor.
– Com certeza não podemos cancelar a festa agora. O que o rei e a rainha
dirão? Seus convidados estão viajando há semanas para chegar aqui –
lembrou uma das criadas, que estava lá para polir o lustre antes que o
instalassem.
– Dirão que a Fera de Gévaudan regressou e que estamos sitiados – disse
Grosvenor, fazendo com que todos suspirassem e depois caíssem num
silêncio assustador no momento em que a Senhora Potts e Gaston entraram
em cena.
– O que foi? Tem certeza, Grosvenor? – perguntou a Senhora Potts.
– Para trás, Senhora Potts. Não quero que você veja isso. Gaston, leve-a
de volta ao castelo agora e informe ao Senhor Cogsworth que estarei lá em
breve para falar com ele e com o rei – disse Grosvenor.
– Pode realmente ser a fera, Grosvenor? De verdade? Tem certeza? – A
Senhora Potts parecia instável, trêmula, como se fosse desmaiar, fazendo
com que Gaston estendesse o braço para ela se apoiar nele.
– Gaston, cuide da Senhora Potts e leve-a de volta ao castelo. Falaremos
sobre isso mais tarde – instruiu Grosvenor.
– Claro, papai. – Gaston passou o braço em volta da Senhora Potts e
tentou conduzi-la de volta ao castelo. – Vamos, Senhora Potts, meu papai
cuidará disso – disse Gaston. Ele queria ficar lá com o pai. Não conseguira
ver o que havia acontecido para deixar todos tão assustados, mas sabia que
era sério.
– Mas você tem certeza, Grosvenor? – A Senhora Potts se recusava a
arredar pé; parecia estar num transe de medo.
– Tenho certeza, Senhora Potts. Agora, deixe Gaston levá-la para dentro.
– Vamos, Senhora Potts – falou novamente Gaston, dando-lhe um leve
beijo na bochecha como um filho amoroso. – Acho que uma xícara de chá
lhe faria bem.

Gaston nunca tinha visto a Senhora Potts tão transtornada. Ele a levou
para a sala de estar, sentou-a e colocou seu xale em volta dos ombros.
– Pronto, sente-se aqui, Senhora Potts, já volto com um bule de chá –
disse ele quando Plumette entrou na sala.
– O que é isso que estão dizendo? É verdade, Senhora Potts? É
realmente...
Gaston interrompeu Plumette antes que ela pudesse terminar. Ele não
queria que todos a atormentassem com perguntas.
– A Senhora Potts teve um choque, Senhorita Plumette. Meu pai estará
de volta assim que terminar de falar com o rei e explicará. Você poderia, por
favor, ver se uma das criadas da cozinha poderia preparar um bule de chá
para a Senhora Potts? – ele perguntou.
– É pra já! – ela disse, correndo para a cozinha.
– Você está bem, Senhora Potts? – Gaston ajeitou seu xale e segurou sua
mão. Odiava vê-la com tanto medo. Ela tinha uma expressão distante nos
olhos que o lembrava da aparência de seu pai às vezes quando ficava
sentado sozinho olhando para os degraus.
– Sim, querido. Não se preocupe comigo. Vá ver os outros criados e eu
me juntarei a vocês em um momento.
Mas Gaston não queria deixá-la sozinha. Ele nunca vira a Senhora Potts
com medo, não daquele jeito. Pensando bem, ele também nunca tinha visto
seu pai com medo.
Gaston sabia que aquilo devia ser sério para a Senhora Potts e seu pai
estarem tão nervosos. Ele tinha visto seu pai taciturno e pensativo, e talvez
até agitado às vezes, mas nunca assustado, nunca descontrolado, e isso fazia
Gaston sentir medo. As mãos de seu pai tremiam enquanto ele conversava
com a Senhora Potts, e seu rosto estava tomado de medo e pesar, terror e
tristeza. E agora a pobre Senhora Potts estava tão abalada, tão diferente de
si mesma, que ele se perguntou se deveria ter deixado o pai sozinho.
Perguntou-se se seu pai estava seguro. Se a Senhora Potts não precisasse
dele, teria voltado para se certificar de que o pai estava bem.
Gaston conhecia apenas fragmentos das histórias que cercavam a Fera de
Gévaudan, embora as histórias fossem bem conhecidas em suas terras.
Fazia muitos anos que não se ouvia falar da fera e todos pensavam que
estivesse morta. Dizia-se que era um grande lobo cinzento de enormes
proporções que aterrorizara o campo durante anos. Se as histórias fossem
verdadeiras, a fera não era vista desde pouco depois do nascimento de
Gaston, então para ele eram apenas histórias, inventadas para assustar as
crianças e fazê-las obedecer aos pais, como os outros contos de fadas e
lendas com que ele e o príncipe haviam crescido. A ideia de que essa fera
era real encheu de terror o coração de Gaston. Não porque ele sentisse
medo dela, mas porque seu pai sentia. E Grosvenor não tinha, até onde ele
sabia, medo de nada, até hoje.
Gaston podia ouvir todos no salão falando alto, em pânico com a notícia
que obviamente se espalhara pelo castelo durante o tempo que ele e a
Senhora Potts levaram para voltar.
– Onde está Grosvenor? – O Senhor Cogsworth estava parado na porta da
sala de estar da Senhora Potts. – Como sabemos que se trata mesmo da Fera
de Gévaudan e não simplesmente de um ataque de lobo? – O Senhor
Cogsworth havia perdido toda a compostura. Já não era ele mesmo.
– Acalme-se, Senhor Cogsworth, por favor. A Senhora Potts teve um
choque e meu pai voltará em breve para conversar com todos. Tenho
certeza de que ele não iria querer que entrássemos em pânico – disse
Gaston, tentando assumir o controle da situação da maneira que achava que
seu pai faria.
– Agora escute aqui, meu jovem. Não permitirei que o filho de um servo
me diga para me acalmar. – Mas Gaston não se importou. Não iria deixar
ninguém perturbar a Senhora Potts além do que ela já estava; contudo, antes
que pudesse dizer mais alguma coisa, a Senhora Potts deixou a situação
mais do que clara para o mordomo.
– De todos nós, Senhor Cogsworth, se alguém seria capaz de reconhecer
um ataque da Fera de Gévaudan, esse alguém é Grosvenor. E não há razão
para se dirigir a Gaston de forma tão rude – disse a Senhora Potts.
– Você viu... o pobre rapaz? – O Senhor Cogsworth mal conseguiu
pronunciar as palavras. Como se falar sobre isso tornasse tudo real.
– Não. Mas confio em Grosvenor. Ele está falando com o rei agora, e os
dois decidirão o que fazer – disse a Senhora Potts.
– Eu sou o mordomo desta casa! Cabe a mim ajudar o rei a decidir o que
fazer. – O bigode do Senhor Cogsworth se contraiu tão rápido que mais
parecia os ponteiros de um relógio em que se dá corda rapidamente. O fato
era que o Senhor Cogsworth estava muito tenso, e quem poderia culpá-lo,
levando-se em conta tudo que estava acontecendo?
– Você também sabe, Senhor Cogsworth, que essa é a área de
competência de Grosvenor. Tenho certeza de que, assim que ele falar com o
rei, você, Grosvenor e eu nos reuniremos para discutir como o rei deseja
proceder – disse a Senhora Potts.
Ela ainda parecia um pouco pálida, e Gaston desejou que o Senhor
Cogsworth a deixasse em paz, mas ele não estava disposto a pressioná-lo.
Estava em tal estado que Gaston ficou surpreso que Cogsworth não o
tivesse expulsado da sala de estar. Não que a Senhora Potts fosse permitir
isso.
Gaston não tinha apreciado verdadeiramente o lugar de seu pai na equipe
real até aquele momento, mas estava orgulhoso em saber que Grosvenor era
tão importante quanto o Senhor Cogsworth e a Senhora Potts. Gaston não
pôde deixar de sorrir ao ver a resignação de Cogsworth com as palavras da
Senhora Potts.
Quando o pai de Gaston se dirigiu ao salão dos empregados, onde
Gaston, a Senhora Potts, o Senhor Cogsworth e a maior parte da equipe
sênior estavam reunidos, todos no castelo já tinham ouvido a notícia.
Estavam em pânico e cheios de perguntas.
– Acabei de ter com o rei. Ele deseja que eu informe a todos vocês sobre
o toque de recolher que está em vigor imediatamente. Ninguém deve sair de
casa depois de escurecer, por qualquer motivo. O rei espera que todos
obedeçam, para sua própria segurança. E isso inclui você e o príncipe –
disse Grosvenor, olhando diretamente para Gaston. – Ele continuou: – O rei
sugeriu que Gaston devesse tomar um quarto no castelo para que nenhum
deles fique tentado a sair escondido para se verem depois de escurecer, e
conhecendo o histórico dos dois, tenho que concordar. Senhora Potts, será
um problema encontrar um quarto para Gaston?
– Claro que não, Grosvenor. Vou providenciar um quarto para vocês dois
– disse a Senhora Potts.
– Isso não será necessário, Senhora Potts, mas obrigado – agradeceu
Grosvenor.
– Como não? É claro que você ficará hospedado no castelo conosco,
Grosvenor! – interveio Lumière.
– Não temos espaço para abrigar toda a equipe externa do castelo e me
recuso a ficar em segurança dentro de seus limites enquanto meus homens
estiverem em risco. – Grosvenor parecia severo e decidido. Esse era o tipo
de homem que o pai de Gaston era. Bom e honesto e sempre tentava fazer o
melhor para seus homens. Gaston ficou maravilhado com a bravura de seu
pai.
– Certamente eles estarão seguros em seus alojamentos, desde que não
saiam depois do toque de recolher – disse Lumière.
– E estarei seguro no meu – observou Grosvenor.
Gaston estava orgulhoso de seu pai. Mesmo que a ideia de ele ficar
sozinho no chalé assustasse Gaston, ele ficou impressionado com o fato de
seu pai não se esconder atrás das muralhas do castelo a menos que todos os
seus homens estivessem junto.
– Mas, Grosvenor, estamos todos muito assustados. É verdade, então, o
que dizem? A Fera de Gévaudan voltou? Como pode ser? Achei que você
tivesse matado a fera há muito tempo – disse Lumière.
– Eu esperava que tivesse, Lumière, mas parece que não. – Grosvenor
olhou para o filho. Gaston não entendia. Seu pai nunca lhe contara que um
dia havia enfrentado a Fera de Gévaudan. Ele nunca mencionara isso.
Parecia o tipo de coisa de que alguém se gabaria, uma história para partilhar
junto à lareira, mas o seu pai nunca sequer mencionou a Fera de Gévaudan,
muito menos que ele pensava que a tinha matado.
– Sim, Grosvenor, por favor, fique aqui conosco. Os homens ficarão bem
– disse a Senhora Potts. – Precisamos de você aqui para nos proteger. – Ela
ainda parecia tão pálida e assustada. Gaston podia ver que seu pai estava em
uma posição complicada, mas ele não iria se esconder dentro de um castelo
enquanto seus homens se defendiam sozinhos em suas cabanas na floresta
perigosa.
– Meu pai não abandonará seus homens e eu não abandonarei meu pai.
Ficarei na cabana com ele – decidiu Gaston. Agora compreendia como o pai
conseguira a cicatriz: devia ter sido ao lutar contra a Fera de Gévaudan.
Gaston sabia que seu pai era corajoso, sabia que era o melhor em tudo, mas
isso superava tudo o que ele havia imaginado. Seu pai era realmente o
homem mais incrível e Gaston esperava que um dia pudesse ser tão
corajoso quanto ele.
– O rei decretou que você ficará no castelo, Gaston. A Senhora Potts
providenciará um quarto para você. E, por favor, todos vocês, parem de
atormentar Grosvenor com pedidos para que fique no castelo. Se ele sente
que é seu dever estar com os seus homens, então devemos respeitar a sua
escolha – o Senhor Cogsworth falou com convicção, as mãos firmemente
colocadas nos quadris, o que pôs fim à conversa nervosa e às perguntas
intermináveis. E por todo o salão, as sobrancelhas se ergueram em seu
apoio a Grosvenor.
– Obrigado, Senhor Cogsworth. O rei e a rainha gostariam de falar
conosco e com a Senhora Potts, mas primeiro preciso conversar
rapidamente com meu filho. Levará apenas um instante. Com licença. –
Com isso, Grosvenor pegou Gaston pelo braço e conduziu-o para fora do
salão dos empregados.
– Você pode usar minha sala de estar, Grosvenor – a Senhora Potts gritou
para eles, com uma expressão preocupada no rosto. Gaston e Grosvenor
aceitaram a oferta da Senhora Potts e usaram a sala de estar para que
pudessem conversar em particular. A sala estava fria e mal iluminada, com
o fogo reduzido a brasas e nenhuma das velas acesas. Era estranho estar ali
sem a Senhora Potts.
– Escute-me, filho. Sei que está preocupado, mas preciso de você aqui
para ajudar a Senhora Potts a manter a calma. Conto com você para manter
o príncipe longe de problemas. Não quero que nenhum dos dois pense em
deixar o castelo depois de escurecer. O rei também conta com você. Foi
ideia dele que você ficasse no castelo. Ele sabe que você é a única pessoa
que o príncipe realmente ouve. Essa é uma grande responsabilidade,
Gaston, mas sei que você consegue lidar com isso. Estou confiando em
você para manter seu irmão mais novo seguro.
– Você nunca o chamou assim antes, pai. Por que agora? – perguntou
Gaston.
– Porque sei que você o ama como um irmão e quero que entenda quão
importante e sério isso é. Você nunca se perdoaria se algo acontecesse com
seu amigo, e eu nunca me perdoaria se algo acontecesse com você. Meu
coração já foi partido uma vez; por favor, não o parta novamente. Prometa-
me, Gaston, que você deve manter a si mesmo e ao príncipe seguros. –
Grosvenor abraçou o filho quase desesperadamente, como se fosse a última
vez.
– Eu prometo, pai – disse Gaston retribuindo o abraço do pai, sentindo o
peso do que estava acontecendo, embora tivesse a sensação de que seu pai
não estava compartilhando tudo.
– Muito bem. Devo ir com o Senhor Cogsworth e a Senhora Potts falar
com o rei e a rainha. Seja um bom menino e faça o que a Senhora Potts
mandar – disse Grosvenor, dando-lhe um beijo. – Vejo você de manhã no
café da manhã.
Gaston permaneceu na sala da Senhora Potts por um momento depois
que seu pai saiu, pensando em tudo que acabara de ouvir. Ele não conseguia
se lembrar de ter visto seu pai tão assustado antes, tão sério. E não podia
deixar de sentir que havia mais naquela história do que aquilo que
Grosvenor ou a Senhora Potts estavam falando, mas também não conseguia
dizer por que se sentia assim. Era alguma coisa na maneira como agiam,
algo que não diziam e na expressão de seus olhos.
– Gaston! Aí está você. Você ouviu, vai ficar no castelo! Insisti que você
pudesse ficar no quarto conectado ao meu – disse o príncipe, entrando no
aposento como se não estivessem no meio de uma crise.
– Presumi que a Senhora Potts fosse arranjar um quarto na ala dos
criados – declarou Gaston surpreso.
– Não seja ridículo. Acabei de dizer à Senhora Potts para preparar o
quarto azul. Não se preocupe, minha mãe e meu pai não se importam. De
qualquer forma, foi ideia do papai. Você acredita na nossa sorte? Uma
chance de caçar a fera! – O príncipe parecia bem mais jovial do que
deveria. Agindo como se alguém não tivesse acabado de morrer.
– Não tenho certeza se o pobre Andre concordaria com você – comentou
Gaston, lembrando-se do corpo com o casaco por cima, da expressão de
terror no rosto do pai. – Além disso, não vamos atrás da fera, Reizinho.
Prometi a meu pai que ficaríamos dentro de casa e em segurança.
– Desde quando seguimos regras? Vamos! Esse é exatamente o tipo de
aventura que estávamos esperando. Uma verdadeira aventura. Estamos
prontos, Gaston. – O príncipe estava tão indiferente com tudo aquilo que
Gaston quase sentiu vergonha dele. Como o príncipe poderia estar pensando
naquilo como uma aventura? Ele não viu como todos estavam assustados?
Seu amigo não estava levando aquilo a sério. Mas, também, havia muito
pouca coisa que ele levava a sério.
– Não estamos prontos, Reizinho! Deixe a fera para meu pai e seus
homens! – disse Gaston, sentindo-se frustrado com o amigo, mas antes que
pudesse dizer mais alguma coisa, Lumière abriu a porta e espiou dentro do
aposento.
– E o que vocês dois estão tramando? – perguntou Lumière, estreitando
os olhos para ambos. Gaston se sentiu feliz pelo fato de Lumière ter entrado
na sala; ele não queria brigar com seu melhor amigo. Sabia o que se passava
na mente do príncipe, e a última coisa que faria seria trair sua palavra ao
pai.
– Ah, nada, Lumière. Só estou querendo saber o que há para o jantar –
respondeu o príncipe.
– Suponho que isso dependa se você está jantando no andar superior ou
no inferior, Vossa Alteza. Mas, de alguma forma, duvido que seja disso que
estavam falando – afirmou Lumière, ainda olhando para os meninos como
se os tivesse flagrado fazendo algo que não deveriam.
– Talvez você esteja certo, Lumière, mas acho que jantaremos lá embaixo
esta noite.
CAPÍTULO V

A FERA NA FLORESTA

O jantar no andar inferior foi bastante moderado. O salão dos empregados


não estava ressoando com as vozes alegres de amigos ou com risadas
naquela noite. Todos ficaram chocados e tristes com a descoberta do corpo
de Andre na floresta e assustados com a ameaça da Fera de Gévaudan.
Fazia tanto tempo desde que a fera fora vista pela última vez em sua região
que eles pensaram que fosse uma lembrança distante. E agora não apenas
estavam diante da morte violenta de um amigo e de uma ameaça iminente,
mas também dos trágicos acontecimentos do passado que tanto tentaram
deixar para trás.
– Suponho que o rei e a rainha tenham querido dormir cedo – disse
Plumette, com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar. Todos à mesa
estavam tristes e assustados. Mas parecia haver algo mais por trás de seus
olhos e dos olhares compartilhados entre aqueles que trabalhavam no
castelo há mais tempo. Aqueles que estavam lá quando a fera atacou anos
antes. E Gaston percebeu que havia algo que eles estavam pensando, mas
não diziam um ao outro em voz alta.
– Sim, eles jantaram em seus aposentos privados e retiraram-se cedo para
seus quartos. Ouso dizer que todos nós vamos querer dormir cedo – disse o
Senhor Cogsworth, que mal havia tocado no próprio jantar. Ninguém à
mesa tinha muito apetite, exceto o príncipe, que já havia repetido e agora
olhava para o aparador para ver o que havia para a sobremesa.
Enquanto os outros conversavam, Gaston estava distraído, pensando em
seu pai sozinho no chalé enquanto a fera estava espreitando na floresta em
busca de sua próxima vítima. Conjecturou se Grosvenor teria pensado em
colocar a gata para dentro antes de escurecer. Imagens horríveis encheram
sua mente, rápidas como um relâmpago, seu corpo tomado pelo medo a
cada pensamento invasivo. Não importava o quanto ele tentasse, não
conseguia banir as imagens do lobo cinzento gigante rasgando a garganta de
seu pai e arrancando os membros de seu corpo. Imaginou o corpo do pobre
pai espalhado no chão da floresta, e a gata morta e mutilada, com o pelo
coberto de sangue. Ele fechou os olhos contra esses pensamentos horríveis,
mas não conseguiu afastá-los, não importava o quanto tentasse.
– Gaston, você está bem? Você parece indisposto – comentou a Senhora
Potts. Ela mesma não parecia bem. Estava exausta com os acontecimentos
do dia. Demorara mais do que o normal a tarefa de fazer todos os filhos
dormirem naquela noite. Estavam com medo da fera cruel que espreitava
fora das muralhas do castelo. E sem dúvida a Senhora Potts também estava
preocupada com o pai de Gaston.
– Gaston está bem, Senhora Potts. Ele só está preocupado com o fato de
seu pai estar sozinho em casa – explicou o príncipe. – Mas vamos garantir
que ele esteja bem, não é, Gaston? – Ele deu tapinhas no ombro do amigo.
Gaston estava feliz por ter o príncipe jantando com eles, mesmo que
todos à mesa parecessem desconfortáveis em sua companhia, por algum
motivo. Geralmente, não era assim quando o príncipe jantava lá embaixo –
e não era assim havia muitos anos. Até mesmo o Senhor Cogsworth
normalmente parecia menos incomodado com isso, embora todos
soubessem, estritamente falando, que ele não aprovava. Não, não se tratava
do príncipe se juntar a eles, era outra coisa. Claro, todos estavam tristes por
Andre e deviam estar preocupados com a fera. E agora muitos dos planos
do rei e da rainha para a festa no castelo precisaram ser alterados no último
minuto, mas parecia ser outra coisa. Algo sobre o que todos queriam falar,
mas não o fariam.
– Monsieur Biblio, a biblioteca tem algum livro sobre a Fera de
Gévaudan? – perguntou Gaston, pegando Monsieur Biblio de surpresa. Ele
notou o bibliotecário tentando evitar olhar em sua direção durante todo o
jantar e não entendeu o porquê, até se lembrar da peça que ele e o príncipe
haviam pregado no homem. Ele se sentiu um tolo logo depois de perguntar.
A verdade é que ele quase se esquecera de sua façanha boba com todo o
restante acontecendo. Mas estava claro que Monsieur Biblio não havia
esquecido e ainda estava furioso.
– Estou surpreso que você tenha a audácia de me perguntar sobre um
livro, meu jovem, e ainda mais de falar comigo. Você teve sorte de eu não
ter mandado revistar a casa de seu pai – disse Monsieur Biblio, claramente
sem se importar com o fato de o príncipe estar sentado ali. Ele estava longe
de ser o homem assustado e trêmulo em sua touca de dormir que fora na
outra noite. Parecia um homem com um renovado sentimento de raiva que
não se importava com o que poderia acontecer.
– Você é bem-vindo para revistar agora – disse o príncipe, sob suspiros
audíveis de Monsieur Biblio e de alguns outros à mesa. Chocados por ele
sugerir tal coisa, dadas as circunstâncias.
– Agora? Com a Fera de Gévaudan em ação? Ouso dizer que não, jovem
senhor, ouso dizer que não! – Monsieur Biblio deixou cair o garfo e a faca,
fazendo com que todos à mesa pulassem com o barulho.
– Acho que ouço a fera rosnando na porta dos fundos. Por que você não
abre e dá uma olhada? – indagou o príncipe com um sorriso malicioso.
– Não importa, Reizinho. Já chega. Não vale a pena. – Gaston colocou a
mão no ombro do amigo. Ele odiava quando o príncipe ficava assim. E
começava a se ressentir de ser a única pessoa que conseguia dissuadi-lo
desse estado de espírito. Ele já tinha o suficiente com que se preocupar
naquela noite sem o príncipe provocar Monsieur Biblio. Não importava o
fato de que eles eram a razão pela qual ele estava tão irritado. Eles se
vestiram como fantasmas e o golpearam com livros. Qualquer um ficaria
com raiva. Mas o príncipe não via as coisas dessa forma. Ele sentia que o
homem havia causado tudo isso, e talvez isso fosse mesmo verdade, mas o
príncipe não precisava ir tão longe. E Gaston sabia, por experiência própria,
que o príncipe continuaria pressionando o bibliotecário até que ele
explodisse de raiva. Gaston amava seu amigo, mas odiava quão implacável
ele podia ser quando guardava rancor.
– Você realmente ouviu alguma coisa, Vossa Alteza? A fera está mesmo
aqui? – perguntou Plumette, agarrando assustada a mão de Lumière.
– Não, minha querida, o príncipe está apenas brincando com Monsieur
Biblio. A fera nunca chegaria tão perto do castelo. Pelo menos, espero que
não. – Ele lançou um olhar temeroso pela janela, que dava para o pátio dos
criados.
– Mas e se acontecesse? Como saberíamos? Ela pode estar aí fora agora
mesmo! – disse Plumette, tomando um gole trêmulo de seu copo.
– Há guardas armados nas muralhas, Plumette. Eles vão atirar assim que
avistarem e tocarão os sinos. Você não tem motivos para temer – assegurou
o Senhor Cogsworth.
– Sinto muito, Senhorita Plumette. Eu não queria assustar você. Estava
apenas brincando com Monsieur Biblio – disse o príncipe. – Por favor, me
perdoe, Monsieur Biblio, sei que você está em um estado de espírito frágil e
não deve ser provocado.
– Que disparate! Tenho a mente perfeitamente sã, garanto-lhe – indignou-
se Monsieur Biblio. Gaston percebeu que o homem estava à beira de
explodir de raiva e decidiu fazer o possível para acalmá-lo. Desejou nunca
ter tocado no assunto dos livros. A culpa era sua, e ele sentiu que seria
melhor tentar consertar.
– Claro que tem, Monsieur Biblio. Você está apenas agitado com os
acontecimentos de hoje. Todos estamos, incluindo o príncipe. Não é
verdade, Reizinho? – declarou Gaston, chutando o amigo por baixo da
mesa, mas Reizinho não disse nada, só ficou ali, sentado, olhando para o
homem, com uma expressão arrogante e desdenhosa no rosto.
– E quem não ficaria agitado, como você diz, depois de ser intimidado
por vocês, seus rufiões? E tenho certeza de que não preciso ser defendido
por gente como você! – Monsieur Biblio apontou um dedo ossudo para
Gaston, assustando-o.
– Eu ouvi você dizer rufiões, senhor? Não pode estar falando do príncipe.
– O Senhor Cogsworth deslizou a cadeira para trás violentamente enquanto
se levantava. Parecia prestes a sair no soco.
Tudo havia caído no caos, com o Senhor Cogsworth e Monsieur Biblio
gritando um com o outro, e o príncipe parecia aproveitar cada momento.
Ele recostou-se na cadeira com as mãos atrás da cabeça, apenas sorrindo
enquanto os dois homens continuavam.
– Acalmem-se, vocês dois! – falou a Senhora Potts levantando-se
também. – Tenho certeza de que Monsieur Biblio não quis dizer o que
disse.
– Na verdade, eu quis! Aquele maldito garoto me importunou durante
todo o jantar! Ninguém se importa se eles me atacaram! Ninguém nesta
casa tem respeito pelos livros! Livros desaparecidos, livros colocados de
volta no lugar errado, livros misteriosamente espalhados por todo o castelo,
livros sendo atirados em mim por pirralhos insolentes e mimados. Ainda
tenho os hematomas do ataque deles! Esses meninos estão fora de controle,
atropelando todo mundo sem quaisquer consequências. – O príncipe apenas
sorriu diante da indignação de Monsieur Biblio, e a visão disso fez Gaston
se sentir um pouco enjoado. Ele sabia que seu amigo fizera aquilo de
propósito. E ele não conseguia acreditar que Monsieur Biblio tivesse
mordido a isca.
– Já chega, Monsieur Biblio. Você sairá desta casa imediatamente, sem
referências – disse o Senhor Cogsworth, batendo os punhos na mesa com
tanta força que fez a porcelana chacoalhar. – Você levou as coisas longe
demais. Você ultrapassou os limites!
– Tenho certeza de que Monsieur Biblio não quis dizer o que disse – a
Senhora Potts apressou-se em repetir. – Ele está apenas aborrecido, como
todos nós estamos. Talvez todos se sintam diferentes pela manhã. – O fato é
que Gaston sabia que nada disso teria acontecido se ele e o príncipe não
tivessem pregado uma peça em Monsieur Biblio. As coisas tinham ido
longe demais, e Gaston sentia como se tudo estivesse fora de controle. Sim,
Monsieur Biblio era chato, enfadonho e estranhamente obcecado pelos
livros guardados na biblioteca, mas não merecia ser demitido sem
referências.
– Concordo com a Senhora Potts – disse Gaston.
– Não preciso de um canalha analfabeto para me defender! – exclamou
Monsieur Biblio, fixando os olhos em Gaston.
E naquele momento qualquer resquício de pena ou culpa de Gaston foi
embora. Monsieur Biblio estava navegando perigosamente perto do limite
desde que falara pela primeira vez, e agora não havia nada que Gaston ou
qualquer outra pessoa pudesse fazer para salvá-lo.
– Já chega! Sei que estamos todos cansados deste dia horrível, mas não
vamos dizer mais nada de que possamos nos arrepender. E não mandaremos
Monsieur Biblio embora no meio da noite, por mais que tenha tratado o
príncipe ou Gaston de modo impertinente. Não com a fera vagando pela
floresta. Tenho certeza de que nem mesmo eles desejariam a morte do pobre
Monsieur Biblio – disse a Senhora Potts, esperando a resposta do príncipe e
Gaston.
– Nenhum de nós deseja isso – falou Gaston, cutucando o príncipe. – Não
é, Reizinho? – Mas o príncipe não respondeu. Em vez disso, dirigiu seu
olhar para seu tutor, o Senhor Willowstick, que pareceu bastante surpreso
com as atenções do príncipe. Ele estava sentado em silêncio, tentando ficar
fora da linha de fogo. Sabia muito bem o que era estar do lado errado do
príncipe.
– Se bem me lembro, o senhor Willowstick é bem versado sobre a fera,
não é, senhor Willowstick? – perguntou o príncipe, agindo como se a
situação desagradável com Monsieur Biblio não tivesse acabado de
acontecer.
– De fato, sou, Vossa Alteza, mas não deveríamos entediar os outros com
as lições de História relativas à Fera de Gévaudan. – O Senhor Willowstick
parecia bastante desconfortável enquanto trocava olhares com a Senhora
Potts e alguns dos outros à mesa. Gaston percebeu que todos estavam
perturbados, mas não sabia bem o que fazer a respeito.
– Por favor, senhor Willowstick, acho que todos aqui ficariam fascinados
com seu conhecimento da fera. Eu sei que eu ficaria – disse o príncipe.
Todos à mesa, incluindo o Senhor Willowstick, sabiam que o príncipe não
achava fascinante nada que o Senhor Willowstick dizia. Era óbvio que o
príncipe procurava informações que os adultos à mesa não tinham intenção
de compartilhar, mas isso não iria impedi-lo, e Gaston não tinha certeza se
se importava. Ele queria saber o que acontecera com a fera anos antes e
queria saber como seu pai estava envolvido. Mas, ao contrário do príncipe,
sabia que aquela noite não era o melhor momento para perguntar.
– Eu não acharia isso entediante. Gostaria de saber... – disse Plumette,
mas a Senhora Potts a interrompeu.
– Acho que o senhor Willowstick tem razão. Talvez devêssemos mudar
de assunto – declarou ela, olhando significativamente para Gaston e o
príncipe. Dava para Gaston ver que ela sabia o que o príncipe estava
fazendo, mas não iria permitir.
– Por que ninguém fala sobre a fera e o que aconteceu com Grosvenor?
Mesmo meus pais não falam sobre isso. Exijo que alguém aqui nos conte
imediatamente! – O príncipe olhou para todos à mesa em busca de
respostas. Respostas que eles claramente não estavam dispostos a dar, mas o
príncipe estava de mau humor e não cederia. Gaston o chutou por baixo da
mesa para fazê-lo parar, porém a expressão do príncipe dizia a todos que ele
não iria deixar a oportunidade passar.
– Porque, Vossa Alteza, a história não é nossa para compartilharmos.
Cabe a Grosvenor e a seus pais dizer a vocês dois quando acharem que
vocês estão prontos – disse Lumière.
– O que você quer dizer, Lumière? – perguntou Gaston.
– Não somos crianças. Se você sabe de alguma coisa, diga-nos.
– Já chega – disse a Senhora Potts. – Presumo que ninguém vá comer
mais nada. Sugiro que todos nos dirijamos às nossas camas. – Ela olhou
para o príncipe. – Ouso dizer que já conversamos o suficiente sobre feras
por uma noite.
– A Senhora Potts está certa. Foi um longo dia e ainda temos muito que
fazer antes da festa no castelo – disse o Senhor Cogsworth, parecendo
prestes a desmaiar sob o peso de tudo o que aconteceu naquele dia.
– Ainda vamos ter a festa, então? Achei que Grosvenor disse que fosse
ser cancelada – interveio o Chef Bouche, que até então observava o drama
em silêncio, mas agora parecia estar em pânico.
– Alguns de nossos hóspedes estão viajando há dias, não podemos
mandá-los embora nos portões. Teremos apenas que fazer o melhor que
pudermos – disse a Senhora Potts. – E todos teremos um trabalho difícil.
Então, por favor, vamos nos recolher agora.
– Mas o que devemos fazer com as refeições que planejamos ao ar livre?
Devo transformar os bufês em banquetes internos num piscar de olhos? –
exigiu saber o Chef Bouche.
– Repassaremos tudo isso amanhã, depois de finalizarmos o novo
cronograma com a rainha. – A Senhora Potts esfregou a cabeça com
frustração, visivelmente não desejando nada mais do que ir para a cama.
– A rainha deve estar terrivelmente desapontada por não poder jantar à
luz de velas sob as estrelas. Ela estava ansiosa para iluminar seu novo
pavilhão – disse Plumette.
Lumière pegou a mão dela.
– Minha querida, tenho certeza de que a rainha é a última pessoa que
gostaria de colocar seus convidados ou funcionários em risco simplesmente
porque está animada para fazer um espetáculo, e não depois do que
aconteceu com... – Mas a Senhora Potts interrompeu Lumière.
– Basta, Lumière. Você já falou além da conta. Agora, por favor, vamos
para a cama. Discutiremos isso mais tarde.
– Mais tarde! Depois de irmos para a cama, você quer dizer? Não somos
bobos, sabe? Dá para ver que você está escondendo algo de nós. E sabemos
que está com medo porque Grosvenor se recusou a ficar no castelo – disse o
príncipe. Gaston também queria saber. Toda essa conversa o estava
deixando com mais medo pelo pai. – Exijo que vocês nos contem o que
aconteceu!
– Alguém pode me dizer se isso tem algo a ver com meu pai? – Gaston
acrescentou. – Vocês acham que ele está por aí caçando a fera? Se sim, não
deveríamos ajudá-lo? – Ele pulou para pegar seu casaco e foi em direção à
porta.
– É claro que ele está caçando a fera, não seja mais idiota do que o
necessário – disse o príncipe, fazendo Gaston se virar e lançar-lhe um olhar
furioso.
– Já basta de sua parte, jovem senhor! – ralhou a Senhora Potts, que
provavelmente era a única pessoa além de Gaston sob seu teto que poderia
se safar falando com o príncipe daquela maneira.
– Seu pai não é tolo o suficiente para ir atrás da fera sozinho à noite,
Gaston. Você não está pensando com clareza. A Senhora Potts está certa, é
hora de vocês dois irem para a cama – disse o Senhor Cogsworth.
– Sim, venham, queridos. Vou lhes mostrar seus quartos. – A Senhora
Potts pôs-se de pé, cansada.
– Nós conhecemos o caminho, Senhora Potts – redarguiu o príncipe,
lançando-lhe um olhar que Gaston não gostou, mas a Senhora Potts tirou de
letra.
– Eu sei, querido. Mas prometi ao rei que me certificaria de que vocês
fossem diretamente para seus aposentos, e é isso que pretendo fazer –
declarou a Senhora Potts com um olhar astuto.

Gaston não conseguia dormir. Foi estranho ficar em um dos aposentos do


andar de cima. Não que ele nunca tivesse passado algum tempo naquele
quarto, ou em muitos dos outros quartos destinados à família e seus
convidados, mas ele nunca havia pernoitado. Isso simplesmente não
acontecia. Os criados não ficavam nos quartos de hóspedes. Mas aquelas
eram circunstâncias incomuns, que não facilitaram em nada o sono. Ele se
virou e se revirou, pensando em seu pai, ponderando se ele de fato estava
caçando a fera, como Reizinho dissera. E se perguntou o que a equipe mais
antiga estava escondendo dele e quando iria descobrir o que era. E se sentiu
culpado por Monsieur Biblio. Mesmo que o homem fosse horrível, Gaston
não gostava da ideia de alguém perder o emprego sem ter outro em vista. O
que o pobre homem faria? Aquele tinha sido um dia terrível, e tudo o que
ele queria era adormecer para poder acordar e ver o pai pela manhã. Queria
saber que Grosvenor estava seguro e queria saber a verdade.
– Gaston, você ainda está acordado? – Era a voz do príncipe. Ele estava
parado na porta que ligava os dois quartos. Gaston quase não respondeu.
Mas não havia como Reizinho acreditar que ele estava dormindo. Seu
amigo o conhecia muito bem.
– Sim. Não consigo dormir – respondeu ele, sentando-se e acendendo a
lamparina na mesinha de cabeceira.
– Gaston, temo que seu pai esteja caçando a fera sozinho. Você sabe
como ele é, não querendo colocar nenhum de seus homens em perigo. Não
deveríamos ajudá-lo? – O príncipe estava agora sentado na ponta da cama.
Seu rosto parecia tão sério à luz da lamparina, mas nenhum dos dois tinha
como saber disso com certeza.
– Prometi que não sairíamos do castelo – respondeu Gaston, embora tudo
dentro dele quisesse sair e garantir que seu pai estava seguro. Desejou não
ter feito tal promessa.
– Você prometeu antes de sabermos que ele estava se colocando em
perigo. Temos que ajudá-lo, Gaston. Não seja um covarde.
– Primeiro sou um tolo e agora, covarde. – Gaston ficou olhando para o
amigo. Ele sabia o que Reizinho estava fazendo e odiava que estivesse
realmente funcionando.
– Sabe que não estou falando sério – disse o príncipe. – Você sabe como
eu sou.
– Sei exatamente como você é – declarou Gaston, mas isso não mudava a
verdade. Preferiria estar na floresta protegendo seu pai em vez de no
castelo.
Gaston sabia que havia mais coisas em tudo aquilo do que qualquer um
deles dizia. Não era apenas seu pai e os outros tentando mantê-los longe de
problemas. Havia algo maior, algo sinistro e secreto que ele e o príncipe não
conheciam. E não importava o quanto Gaston quisesse sair correndo noite
afora e proteger seu pai, precisava confiar que Grosvenor sabia o que era
melhor. Tinha que manter sua palavra, por mais medo que tivesse, por mais
que o assustasse a possibilidade de o pai estar caçando a fera sozinho. Uma
fera que Grosvenor enfrentou antes e quase o matou.
– Não sou covarde, Reizinho, e também não sou tolo. Eu sei o que você
está fazendo, mas sou um homem de palavra. Meu pai me fez prometer que
manteria você seguro, e é exatamente isso que vou fazer. Vou manter meu
irmãozinho seguro, assim como ele pediu.
– Então, cumpra sua promessa e fique a meu lado enquanto eu caço a
fera! Porque vou matá-la e colocar a cabeça dela em minha parede, com ou
sem sua ajuda!
– É muito perigoso. Não vamos fazer isso, Reizinho, seremos mortos.
– Mas pense nisso! Seríamos famosos se matássemos a fera!
– Você já é famoso. Você é o herdeiro do trono. – Gaston estava ficando
com raiva. Não se tratava de garantir que seu pai estivesse seguro. Aquilo
era sobre o ego do príncipe.
– Seríamos heróis, Gaston. Imagine só! Escreveriam canções sobre nossa
bravura.
– Odeio quando você fica assim, Reizinho.
– Assim como?
– Capaz de dizer ou fazer qualquer coisa para conseguir o que quer. Você
é implacável, Reizinho, e não importa quem se machuque. Levou o pobre
Monsieur Biblio ao limite e agora ele perdeu o emprego.
– Quem se importa com o velho e bobo Monsieur Biblio? Ora, Gaston.
Ele insultou você, ameaçou revistar a casa de seu pai e me desacatou, e tudo
mais. Mereceu perder o emprego.
– Mas você o pressionou, Reizinho. Vi você fazendo isso. Vi o que estava
fazendo no jantar. E agora está tentando me fazer quebrar a promessa que
fiz a meu pai para que você possa ser o herói. Nem se importa se meu pai
está em perigo. Tudo gira em torno de você!
– Isso não é verdade. Estou preocupado com ele. Por que não podem ser
as duas coisas, Gaston? Não posso estar preocupado com seu pai e querer
ser um herói? Claro que estou preocupado. Agora, você vem comigo ou
não?
– Eu não vou deixá-lo ir, Reizinho. Fiz uma promessa.
– E eu aqui pensando que era eu quem dava as ordens. Vista-se, Gaston.
Partiremos assim que eu estiver pronto. Isso é uma ordem.

Depois que se trocaram, e o príncipe se equipou com seu bacamarte e


Gaston com seu arco e uma aljava cheia de flechas, os dois seguiram pelas
catacumbas sob o castelo que levavam diretamente à floresta.
Ao emergirem das catacumbas, o príncipe avançou pelo caminho
principal, com gravetos e folhas estalando ruidosamente sob seus pés.
– O que você está fazendo? – Gaston questionou, enquanto tirava o
amigo do caminho. – Quer levar um tiro? – Ele apontou para os homens nas
muralhas. – E você está fazendo muito barulho!
Gaston sussurrou o mais suavemente que pôde:
– Isso é um erro. – Mas Reizinho não o ouviu e, se o ouviu, ignorou-o.
Gaston temia que eles já tivessem feito muito barulho. Reizinho não estava
pensando. Nunca fazia isso. E já havia deixado claro que não estava com
disposição para aceitar sugestões de Gaston.
– Você só está com medo – disse o príncipe, andando na frente, abrindo
caminho para a parte mais densa da floresta, onde não seriam vistos pelos
guardas. O comentário irritou Gaston. Mas o fato é que estava com medo.
Estavam agindo como personagens de um dos livros que Reizinho lera para
Gaston quando eram mais jovens. Personagens teimosos e tolos entrando de
cabeça no perigo, sem dar atenção aos avisos de todos ao redor. Penetrando
na floresta para caçar uma fera perigosa. Era imprudente. Era irresponsável.
A vida de ambos estava em perigo, e ele odiava quebrar a promessa feita ao
pai. Queria voltar, mas era tarde demais. Precisava continuar seguindo
Reizinho para mantê-lo seguro.
Enfim alcançou o príncipe. Batendo em seu ombro, sussurrou:
– Tenho um mau pressentimento, Reizinho. Acho que deveríamos chegar
à minha casa o mais rápido possível.
Gaston estava grato por seu pai tê-lo feito aprender a percorrer cada
centímetro da floresta, caso contrário teriam se perdido naquela escuridão
total. A ansiedade e o medo enchiam seu coração, sabendo que eles haviam
cometido um erro terrível ao irem sozinhos para lá. Precisavam chegar à
casa dele o mais rápido possível. Eram muito jovens para estar na floresta
caçando aquela fera. E nem se preocuparam em bolar um plano, ou mesmo
em pensar no que fazer com os caçadores que poderiam confundir Gaston e
o príncipe com a fera. Isso fora imprudente. Tinham que se abrigar naquele
momento antes que algo terrível acontecesse.
O príncipe assentiu como se dissesse que concordava com o plano de
Gaston, mas este ainda estava cheio de apreensão. A lua nova não ajudava
em nada a travessia da floresta escura. As árvores pareciam sinistras e
retorcidas na escuridão, e todas as dependências e chalés estavam escuros.
Parecia que todos os que residiam fora das muralhas do castelo viviam na
escuridão, com medo de atrair a fera para suas moradias. E ali estavam eles,
na floresta, sozinhos com uma fera, enquanto os homens adultos e mais
experientes estavam em segurança em suas casas.
Depois de caminhar um pouco mais, eles viram a luz bruxuleante do fogo
vindo do que pensaram ser o cemitério. Quando se aproximaram,
entenderam. Todo o cemitério estava iluminado por tochas.
– Tenha cuidado – sussurrou Gaston, semicerrando os olhos, tentando ver
se havia mais alguém escondido nas sombras, esperando que a fera
aparecesse na luz. Aquilo tinha que ser algum tipo de armadilha. Era
realmente brilhante a ideia de envolver a floresta na escuridão, exceto por
um ponto. Aquilo tinha que ser obra de seu pai.
A luz das tochas refletia nas criptas e lápides, dançando sobre a estátua
de sua mãe, Rose, erguida em frente a seu mausoléu. Como sempre, ela
parecia estar acenando para que ele se juntasse a ela do outro lado.
Acenando para que Gaston passasse pela porta do mausoléu. Como era
estranho ver seu rosto iluminado pelo fogo das tochas; parecia quase vivo.
Isso fez Gaston se perguntar se seu pai havia escolhido aquele lugar.
Eles rastejaram o mais silenciosamente que puderam e não ousaram
conversar por medo de que a fera ou seu caçador os ouvissem. Se ao menos
seu pai confiasse nele o suficiente para lhe contar seus planos, ele nunca
teria deixado o príncipe intimidá-lo a sair.
Mas Grosvenor confiava nele. Acreditara na promessa do filho. Ele não
tinha motivos para pensar que Gaston e Reizinho estivessem à espreita na
floresta. Isso era ainda mais perigoso do que Gaston pensava.
Era um erro terrível.
Ao se aproximarem do cemitério, viram uma grande sombra aparecer na
lateral do mausoléu de Rose. Tinha que ser a Fera de Gévaudan, não
poderia ser outra coisa. Sua grande e monstruosa sombra era maior do que
qualquer lobo que Gaston já tinha visto. Maior do que qualquer animal ou
homem, e era assustadora. Ele precisou lembrar a si mesmo que as sombras
às vezes podiam fazer as coisas parecerem maiores. Não havia como essa
fera ser tão enorme.
Apesar do medo, Gaston fez um gesto para que Reizinho continuasse
avançando. Rastejaram o mais devagar e silenciosamente que puderam,
certificando-se de permanecer fora de vista até chegarem ao muro baixo de
pedra que cercava o pequeno cemitério. Tentaram distinguir a casa de
Gaston à distância, para ver se talvez pudesse haver algum sinal de que seu
pai estava lá, mas não viram nada além de escuridão para além da luz das
tochas. Avançaram lentamente para dentro do cemitério, rastejando por
cima do muro baixo, e, uma vez lá dentro, fitaram o maior lobo cinzento
que já haviam visto. Era diferente de qualquer outro lobo que tivessem
encontrado. Era enorme e com uma compleição física sólida. Suas pernas
eram robustas e musculosas, e sua cauda era tão longa que chegava ao chão.
Sua cabeça era enorme, com um conjunto poderoso de mandíbulas cheias
de dentes afiados e terríveis que ele usava para dilacerar um alce amarrado
a uma árvore. O sangue jorrava da garganta do alce enquanto a fera rasgava
a carne da pobre criatura com uma força tão grande que fez Gaston
estremecer.
Quando Gaston viu o alce amarrado, soube que estava certo. Seu pai
devia estar lá em algum lugar, aguardando o momento de mirar na fera.
Gaston esperou, imaginando quando isso aconteceria. E se perguntou se
Grosvenor estava sozinho ou se trouxera alguns de seus homens de maior
confiança para ajudá-lo. Gaston forçou os olhos, vasculhando a mata ao
redor para ver se havia alguém escondido nas árvores ou talvez com eles no
cemitério, atrás das criptas. No entanto, não viu nada além da fera
devorando sua refeição. Conhecendo seu pai, sabia que Grosvenor não
gostaria de colocar nenhum de seus homens em perigo. Pelo menos nisso
Reizinho estava certo. Então, Gaston imaginou que o pai devia estar ali
sozinho, fora de vista, aguardando a chance de matar a sinistra criatura.
A fera era grotesca, com a cara coberta de sangue, devorando sua
refeição. Gaston queria esperar que seu pai desse o primeiro tiro,
certificando-se de estar pronto com seu próprio arco, caso não fosse um
golpe mortal. De repente, sentiu-se grato por estar ali para poder ajudá-lo, e
menos zangado com Reizinho por forçá-lo a sair naquela noite perigosa.
Gaston iria auxiliar seu pai. Tudo ficaria bem.
Gaston olhou para Reizinho e colocou o dedo nos lábios silenciosamente,
articulando com eles a palavra espere. Furtivamente, pegou uma flecha da
aljava, colocou-a no arco e puxou-a para trás, mirando na fera enquanto
esperava que seu pai desse o primeiro tiro. Fazia apenas alguns momentos
desde que descobriram a cena, mas parecia uma eternidade, e agora Gaston
começava a se perguntar se seu pai estava lá. Certamente ele já teria atirado,
enquanto a fera estava distraída pelo alce. E, quando Gaston estava prestes
a lançar a flecha, uma forte explosão irrompeu em seu ouvido, fazendo-o
cair no chão e se contorcer de dor. A próxima coisa que percebeu foi que o
príncipe estava parado na frente dele, recarregando seu bacamarte e
mirando direto na fera, que agora estava a poucos metros de distância deles.
O príncipe gritava alguma coisa com ele, porém Gaston não conseguia
ouvir e ele não foi capaz de se levantar, de tão tonto que estava.
A fera estava brincando com eles, aproximando-se cada vez mais,
rosnando, enquanto o príncipe se atrapalhava para recarregar seu bacamarte
e gritava algo para Gaston. Mas este ainda só conseguia ouvir sons
distorcidos e abafados através das ondas de trovoadas em seus ouvidos. Ele
procurou seu arco, contudo não conseguiu encontrá-lo, e naquele momento
percebeu que ele e seu amigo morreriam. Detestava a ideia de o pai
encontrar seus cadáveres espalhados perto do túmulo de sua mãe. E se
odiou por quebrar sua promessa e por não enfrentar Reizinho.
Gaston ficou ali sentado, ainda incapaz de se levantar, horrorizado
quando a fera avançou sobre seu amigo, rosnando e arreganhando os dentes
terríveis. Ele fecharia os olhos enquanto a fera rasgasse a carne do príncipe?
Seria esse o momento em que ambos morreriam?
Assim que a criatura avançou com ímpeto, parou de chofre e virou a
cabeça como se tivesse ouvido algo, um barulho – talvez outra explosão,
Gaston não tinha certeza –, mas, o que quer que fosse, também assustou o
príncipe. E então Gaston viu: um tiro sangrento havia penetrado no ombro
da fera. A criatura uivou de dor tão alto que até mesmo Gaston pôde ouvi-la
acima do latejar em seus ouvidos, e o monstro saltou na direção de onde
viera o tiro. Gaston forçou-se a levantar, achou seu arco e correu atrás da
fera. Ele a encontrou rasgando algo ao pé da estátua de sua mãe. Mirou e
atirou na criatura, perfurando a lateral de seu corpo. A fera ficou em pé
sobre as patas traseiras e uivou de dor antes de fugir para a floresta,
deixando um rastro de sangue atrás de si.
Mas Gaston não seguiu a trilha; não rastreou a fera para descobrir se ela
viveria ou morreria. Outra coisa prendeu sua atenção. Algo tão horrível que
fez nada mais existir. Seu pai estava caído diante da estátua de sua mãe,
com a garganta arrancada, o sangue acumulando-se a seus pés esculpidos
em mármore rosa. Gaston caiu de joelhos e chorou. Seus gritos eram como
os da própria fera, uivando de dor e angústia. Entre soluços, ele pediu
desculpas. Repetidas vezes, até que sua voz ficou embargada e o príncipe o
pegou nos braços e o conduziu para longe do corpo de Grosvenor.
O mundo de Gaston acabou naquele dia. A partir dali vivia em um
mundo sem o pai. Um mundo cruel e injusto. Um mundo onde suas
promessas não significavam nada. Ele havia decepcionado a si mesmo e a
seu pai, e não havia nada que pudesse fazer para mudar isso. Estava com o
coração partido e sozinho.
E seu amigo era o culpado.
CAPÍTULO VI

O LUGAR EM SEU CORAÇÃO

Era um dia nublado e o céu estava cheio de nuvens cinzentas de tempestade


que ameaçavam rebentar a qualquer momento. Mesmo assim, o príncipe
insistiu que Gaston fosse com ele naquela data. Já haviam se passado três
anos desde a morte do pai de Gaston e, embora ele não culpasse mais o
príncipe pelo que acontecera, seu amor pelo amigo havia diminuído e,
quando ele se permitiu admitir isso, o ressentimento ainda permanecia em
seu coração.
Nos dias que se seguiram à morte de seu pai, houve brigas terríveis entre
eles. Gaston exigiu que o príncipe explicasse por que havia disparado
aquele primeiro tiro. Disse repetidas vezes que, se não fosse por ele, seu pai
ainda estaria vivo. O príncipe apenas ouvia em silêncio e depois insistia
para que continuassem como antes, dizendo que eram irmãos, na verdade
mais do que irmãos, e nada, nem mesmo isso, os separaria. Por mais
zangado que Gaston estivesse, por mais duras que fossem suas palavras, o
príncipe continuava sendo seu amigo, nunca falando contra ele, insistindo
que continuassem como sempre foram, insistindo que ainda eram melhores
amigos, até que o ressentimento no coração de Gaston começou a arrefecer.
Antes do passeio naquele dia, Cogsworth estava atendendo o príncipe em
seu quarto de vestir, ajudando-o a colocar o traje de montaria, enquanto
Gaston estava sentado no quarto adjacente. Ele não entendia por que o
príncipe queria sair em um dia tão sombrio, mas não havia como dizer
“não” ao príncipe; quanto mais se pedia que não fizesse algo, mais ele
queria fazer isso. Seu humor estava péssimo como o tempo, e, quando o
humor de Reizinho estava sombrio assim, Gaston sempre se perguntava por
que ainda estava ali. Seus pais haviam morrido e, embora ele não tivesse
exatamente assumido a posição do pai, todos o tratavam como se ele
pertencesse àquele lugar. Ele supôs que estivesse lá porque não tinha para
onde ir e aquele era o único lar que conhecia. Passava seus dias com o
príncipe caçando, cavalgando e praticando luta com armas. Assim fazia a
pedido do príncipe. E supunha que ele o pedisse porque sabia o quanto
Gaston gostava disso. De certa forma, fazer as coisas que seu pai lhe
ensinara deixava Gaston triste, mas também orgulhoso por ter se tornado
ainda melhor nelas. O melhor, na verdade, assim como o pai. Mas
Grosvenor estava errado sobre uma coisa: o príncipe nunca ficava
aborrecido quando Gaston o superava. Pelo menos, se ficava, não dizia
nada.
Enquanto Gaston esperava pelo príncipe, pôde ouvi-lo conversando com
o Senhor Cogsworth. Ele havia se tornado insuportável com quase todo
mundo, menos com Gaston. Era como se fosse necessária toda a paciência
do príncipe para resistir às condenações silenciosas de Gaston, e não
restasse nada além de impaciência para os demais.
– Não entendo por que preciso ser vestido por você como se fosse uma
boneca, Cogsworth. Sou perfeitamente capaz de me vestir sozinho. –
Gaston sentia que o príncipe parecia mais irritado a cada dia. Não tinha
certeza se era porque ainda estava zangado com ele, ou se de fato o príncipe
estava se tornando exatamente o que ele disse que nunca seria: um daqueles
príncipes horríveis, egoístas e mimados que acabariam por se tornar um rei
tirano e terrível.
– Claro que é, Vossa Alteza. Gaston servirá você como caçador e batedor
nessa excursão? – perguntou o Senhor Cogsworth, enquanto dava os
retoques finais na roupa do príncipe.
– Não, Cogsworth, Gaston se juntará a mim como meu amigo. – Gaston
revirou os olhos. Não havia dúvida de que o príncipe considerava Gaston
seu amigo. Seu melhor amigo e irmão. E, embora fosse verdade que ele
defenderia Gaston até a morte se necessário, não se intimidava em dar
ordens que Gaston não tinha outra escolha a não ser obedecer. Como segui-
lo na noite em que seu pai foi morto. Ele sabia que o príncipe ainda se
sentia culpado mesmo depois de todo esse tempo. Sabia que o príncipe
devia ter sentido que cometeu um erro no primeiro tiro. E sabia que o
príncipe tentara compensar isso desde então, e mesmo agora tentava fazer
isso ao defender Gaston diante do Senhor Cogsworth. Mas, para Gaston,
não havia nada que o príncipe pudesse fazer para compensar aquela noite, e
ele ainda não tinha certeza se algum dia conseguiria perdoá-lo – não que o
príncipe tivesse sequer pedido que o fizesse. Talvez, se tivesse feito isso, as
coisas fossem diferentes.
– Talvez seja uma oportunidade para Gaston servi-lo, condizente com a
posição que todos sabemos que ele deveria assumir. É hora de ele aprender
como se comportar adequadamente com seus superiores – declarou o
Senhor Cogsworth.
– Quem disse que sou superior a Gaston? Só porque sou um príncipe?
Não quero ter esse tipo de conversa, Cogsworth, você entendeu? – Isso fez
Gaston rir baixinho. É claro que o príncipe achava que fosse superior a
Gaston. É assim que pensam os que são criados para governar. Podem achar
que tratam as pessoas de maneira justa, ou até mesmo como da família,
mas, em última análise, esperam ser obedecidos.
– A lei do país diz que você é superior a ele, assim como você é meu
superior. – A voz de Cogsworth soava tímida, embora estivesse claro que
ele estava fazendo o possível para parecer decidido.
– Bem, então, se for esse o caso, devo insistir para que você abandone
esse assunto imediatamente. Não vou permitir isso, Cogsworth. Você
entendeu? Gaston perdeu a mãe e o pai. E não cabe a mim decidir se ele
assume a posição do pai, ouviu? Somos velhos amigos, você e eu, mas temo
que você esteja ultrapassando os limites – disse o príncipe em tom muito
sério. Surpreendeu Gaston o fato de ouvir o príncipe mencionar seu pai. Ele
não havia citado aquela noite diretamente desde o acontecido.
– Como desejar, Vossa Alteza. – Cogsworth fez os ajustes finais no traje
do príncipe. – Se não houver mais nada – disse ele solenemente,
despedindo-se, e Gaston entrou no quarto.
– Acho que você feriu os sentimentos do Senhor Cogsworth – disse
Gaston.
– E daí se eu fiz isso?!
– Ele está apenas fazendo seu trabalho, Reizinho. Está apenas cuidando
de você. – Gaston se sentia mal pelo Senhor Cogsworth. Ele cuidava de
Reizinho como um pai faria. Gaston ficava triste e com raiva porque seu
amigo não parecia apreciar quantas pessoas realmente se importavam com
ele, apesar de às vezes ser tão difícil estar por perto.
– Estava defendendo você! – disse o príncipe, seu mau gênio começando
a explodir.
– Eu sei, mas aposto que o destruiu com aquele comentário sobre
ultrapassar os limites. Você sabe que ele leva esse tipo de coisa muito a
sério. E desde quando você fala assim? Ultrapassando os limites! Vamos lá,
Reizinho, é melhor você se desculpar mais tarde, ou ele pode pular da ponte
– declarou Gaston, tentando fazê-lo rir.
– Príncipes não pedem desculpas aos criados, Gaston. Cogsworth seria o
primeiro a lhe dizer isso. – Gaston meneou a cabeça. De onde vinha todo
esse absurdo? Não da mãe e do pai do príncipe. Eles nunca foram assim.
Talvez isso tenha sido influência de Cogsworth, ou talvez a realeza
estivesse simplesmente programada para se transformar em idiotas
mimados? Gaston não sabia.
– Você se desculpou comigo – disse ele. – Pelo menos, já fez isso antes. –
Foi um lembrete para si mesmo, e talvez para o príncipe, de que ainda não
havia pedido desculpas pelo que acontecera com seu pai, mesmo depois de
todo esse tempo.
– Você não é um servo, você é meu irmão. Agora vamos, será uma longa
viagem.
Quando chegaram ao pátio, encontraram os cavalos esperando por eles,
prontos para cavalgar.
– A Senhora Potts preparou um almoço para nós. Está nos alforjes.
Agora, vamos embora – disse o príncipe, enquanto montavam nos cavalos.
O príncipe dera a Gaston um corcel magnífico em seu último aniversário.
Um majestoso Percheron preto de constituição robusta. Gaston o adorava e
foi realmente a única razão pela qual concordara em cavalgar naquele dia.
Uma chance de montar Noir.
Montados em seus cavalos, adentraram a floresta profundamente, sem se
importar com a ameaça de chuva ou com as nuvens escuras de tempestade
no céu acima deles. Cavalgaram por quilômetros, passando por um pequeno
reino vizinho, até chegarem ao pico mais alto das Montanhas Ciclópicas.
De lá, tinham uma vista deslumbrante dos Muitos Reinos. O marco mais
inspirador era o Farol dos Deuses, no distante reino Morningstar, que era
banhado pela luz do sol. Antes, Gaston só tinha visto desenhos do farol. Era
a estrutura mais alta dos Muitos Reinos, construída pelos grandes Ciclopes
na época anterior aos homens, muito antes de os Morningstar construírem
seu castelo no mesmo estilo de alvenaria para parecer que ele também
sempre estivera lá. Gaston nunca sonhou que algum dia iriam longe o
suficiente para vê-lo de perto. Ele e o príncipe disseram muitas vezes que o
fariam, mas nunca ousaram, e o seu pai nunca concordou em levá-lo para
tão longe de casa. Agora Grosvenor não estava mais lá para impedi-lo de
fazer qualquer coisa que seu coração desejasse... mesmo que o que ele mais
desejasse fosse ter o pai de volta.
Enquanto contemplavam as belas terras, Gaston lembrou-se mais uma
vez dos dias e semanas que se seguiram à morte de seu pai. Ele estava em
choque. Sentia como se estivesse andando através da água, deixando o
príncipe e a Senhora Potts conduzirem-no de um lado para outro. Comia
quando a Senhora Potts mandava, fazia companhia ao príncipe quando ele
pedia. Ninguém lhe falou coisa alguma sobre o que aconteceu naquela
noite, exceto para dizer o quanto lamentavam. Ninguém repreendeu
nenhum dos dois, nem ele nem o príncipe, por saírem quando não deveriam.
Gaston tinha certeza de que todos ficariam bravos com ele, mas não havia
olhares de reprovação, apenas tristeza e pena.
Gaston não sentia que merecia a pena deles. Não sentia que merecia
viver. Se tivesse enfrentado o príncipe, talvez seu pai ainda estivesse vivo.
E talvez essa tenha sido uma das razões pelas quais Gaston permaneceu lá,
cumprindo as ordens do príncipe e continuou seu amigo: porque ele sabia
no fundo do coração que a culpa era de ambos. E o que Gaston faria sem o
príncipe, sem seu melhor amigo, mesmo que houvesse um lugar em seu
interior que ainda culpasse tanto o príncipe quanto a si próprio pelo que
acontecera? Ele só podia esperar que um dia fosse capaz de perdoar a si e
ao amigo.
Ao voltar ao presente e contemplar a bela paisagem, Gaston sentiu-se
quase agradecido por estar na companhia do príncipe e presenciar aquela
bela vista. Eles apearam dos cavalos e ficaram juntos no penhasco,
apreciando o esplendor do reino Morningstar. Permanecendo em silêncio
por um longo tempo enquanto a névoa os cercava, agarrados a suas capas,
eles olharam para o reino ensolarado à distância.
– Meu pai quer que eu faça meu grande tour. Começará nos Muitos
Reinos, mas também irei para o exterior, para o mundo fora de nossos
reinos. Perguntei se você poderia vir comigo, mas a única maneira de
conseguirmos isso seria se você concordasse em servir como meu valete.
– Não tenho ideia de como ser valete, Reizinho – disse Gaston, frustrado
com o príncipe por arruinar aquele lindo momento com conversas sobre
grandes tours e valetes.
– Você realmente não terá que ser meu valete. Apenas finja – respondeu o
príncipe, usando seu charme. Gaston sabia o que aconteceria a seguir. O que
sempre acontecia quando Reizinho queria porque queria alguma coisa.
– E quem vai fazer você vestir e tirar todas as fantasias ridículas que
precisará usar em todos aqueles bailes e jantares aos quais deverá
comparecer enquanto viaja pelo mundo e expande sua educação? – Gaston
pressionou.
– Nós vamos descobrir. Não quero ir sem você. Além disso, você terá
que me ajudar a escolher minha futura noiva. Não posso fazer isso sem
você. Precisamos ter certeza de que ela é a pessoa certa para nós – disse ele,
surpreendendo Gaston. Que coisa estranha de dizer.
– Você quer dizer certa para você – falou Gaston, rindo do amigo.
– Para nós, Gaston! Não permitirei que uma princesa atrevida tente nos
impedir de nos divertir só porque sou casado. Se vou me casar com alguém,
ela terá que entender que você vem primeiro. – Gaston olhou para ele e viu
que o príncipe estava falando sério.
– Não acho que seja assim que funciona um casamento, Reizinho.
– É assim que meu casamento vai funcionar. Eu nem quero me casar. Só
estou fazendo isso porque é meu dever. Ficaria feliz em passar o restante de
minha vida com você, caçando, pescando e em aventuras. E, claro,
roubando livros da biblioteca – acrescentou, agora rindo.
– Nenhum de nós precisa roubar livros da biblioteca agora que Monsieur
Biblio se foi. E você pode se sentir diferente em relação ao casamento
quando for mais velho. Nós dois poderíamos.
– Talvez. Mas não tenho certeza se há espaço suficiente para mais de um
amor em meu coração.
Gaston não disse nada. Sabia o que seu amigo queria dizer. Apesar de
tudo, ele amava Reizinho de todo o coração. Era por isso que ainda estava
lá. Às vezes se perguntava como seria quando ambos fossem mais velhos,
se perguntava como a amizade funcionaria, se perguntava como seria
quando Reizinho se casasse, mas sempre parecia tão distante, e logo tirava
isso da cabeça. Agora, parecia que o momento chegara sem qualquer aviso.
Sem nem perceber, o que deixou Gaston apreensivo.
– Eu amo você, Gaston. E sinto muito pelo que aconteceu com seu pai.
Realmente sinto. Faria qualquer coisa para recuperar o que tínhamos.
Gaston percebeu que seu amigo dizia a verdade, embora tenha ficado
chocado ao ouvi-lo pronunciar as palavras. Ele esperava que Reizinho se
sentisse assim, mas foi diferente ouvi-lo dizer isso. E significava tudo para
Gaston o fato de o príncipe estar dizendo aquilo naquele momento.
– Eu sei, meu amigo. Acho que levará mais tempo para se tornar menos
doloroso.
– Por que não vem comigo então? Conheça o mundo, ajude-me a
encontrar alguém que nos ame e não se importe que sejamos melhores
amigos. Ainda mais do que amigos – disse Reizinho, passando o braço em
volta do ombro de Gaston. – Pense em como nos divertiremos. Será como
nos velhos tempos. – Era a primeira vez que Reizinho parecia realmente
feliz e animado com alguma coisa desde que eram meninos, e isso fez
Gaston querer concordar com seu plano. Mas precisou dizer não. Pela
primeira vez, queria fazer algo por si mesmo.
– Talvez algum tempo separados torne as coisas menos dolorosas –
declarou ele calmamente.
– Então, o que você irá fazer? Assumir a posição de seu pai? Você não
quer isso. – A risada do príncipe soou aguda. E ele estava certo. Gaston não
queria a vida do pai. Seria como viver em um mundo de lembranças e dor.
Um lembrete constante de como falhara com ele. Mas Gaston não tinha
escolha.
– É a única coisa que posso fazer. Aproveitei a generosidade de seus pais
por muito tempo. – Gaston ficou surpreso por não ter sido forçado a
assumir o cargo de seu pai antes disso, por eles terem permitido que ele
morasse lá sem trabalhar por tanto tempo.
– Não seja bobo. Conversei com meu pai. Você receberá uma
propriedade, terras e dinheiro próprio. – Reizinho parecia positivamente
satisfeito consigo mesmo. – A propriedade fica neste reino, é claro, próxima
o bastante para que você não fique muito longe, mas com distância
suficiente para que você se sinta independente.
– Do que você está falando? Não tenho ideia de como administrar uma
propriedade.
– Haverá um administrador e um agente de terras para ajudá-lo até que
você aprenda. E para cuidarem das coisas quando você estiver fora. Está
tudo combinado, Gaston. Estará lá disponível quando você decidir que está
pronto. Enquanto isso, será bem cuidada. Assim você poderá ir comigo se
mudar de ideia. – O príncipe parecia tão animado. Tão feliz.
E a verdade é que Gaston ficou feliz com a oferta. Ele sabia que essa era
a maneira de Reizinho tentar compensar as coisas e, apesar de tudo, Gaston
o amava por isso. E queria ir com ele, mas não como seu servo. Queria
seguir sua própria jornada, de seu jeito.
– Acha que seu pai pode acrescentar ao pacote um título de nobreza? Se
ele fizesse isso, eu poderia simplesmente viajar com você como seu amigo
– disse Gaston, rindo.
– Não pense que não pedi. E com título ou sem título, Gaston, você
sempre será meu amigo.
CAPÍTULO VII

UMA MUDANÇA DE ATITUDE

A vida tinha sido boa para Gaston enquanto o príncipe estava fora. Passava
a maior parte do tempo em sua missão singular: caçar e matar a Fera de
Gévaudan. E, se pudesse terminar as noites com os bons homens da aldeia,
melhor ainda. À noite, depois de um longo dia de caça, Gaston geralmente
ia à taverna do Velho Higgins, na aldeia. Sempre era recebido pelos
mesmos rostos amigáveis, todos ansiosos para ouvir sobre suas façanhas e
felizes em lhe pagar uma cerveja. Naquela noite em particular, Gaston abriu
as portas da taverna com um chute e entrou, com as botas cobertas de lama
e as roupas de caça salpicadas de sangue. Tinha um enorme alce pendurado
no ombro e o largou no chão com um baque forte. Todos ergueram os olhos
de suas cervejas e pausaram suas conversas, e comemoraram ao vê-lo.
– Gaston!
– Outro animal selvagem para empalhar e pendurar em sua parede,
Higgins! – Gaston anunciou, mostrando seus dentes brancos e perfeitos. –
Não há necessidade de aplausos, homens. Estou apenas fazendo meu
trabalho. Afinal, sou o caçador real. – Ele soltou uma risada estrondosa. E
não era mentira. Ele passava a maior parte do tempo caçando na floresta e
ocasionalmente organizava uma caçada real quando o rei estava na
residência. Mas no que dizia respeito às outras funções que seu pai
desempenhava quando era vivo, Gaston deixou-as para os demais membros
da equipe externa. Ninguém reclamou. Nem mesmo Cogsworth. E Gaston
estava feliz. Pela primeira vez, sentiu que tinha um propósito. Seu próprio
propósito, não ditado por outra pessoa.
– Gaston! Você conseguiu de novo! – disse o Senhor Higgins. – Outro
troféu. Estamos ficando sem espaço, Gaston. Talvez eu tenha que construir
uma taverna maior. – Todo mundo riu. A taverna estava cheia dos
frequentadores costumeiros. A maioria dos homens que viviam e
trabalhavam na aldeia parava no estabelecimento do Senhor Higgins para
tomar uma bebida e conversar antes de voltarem para casa à noite. Gaston
estava feliz por ter feito disso seu ritual noturno. Os homens o tratavam
com respeito e admiração. Realmente era o lugar perfeito.
– Pegue aí, Gaston. Por conta da casa! – ofereceu Higgins, deslizando
uma cerveja pela bancada do bar. Higgins tinha talento para isso, fazendo a
caneca deslizar da maneira certa para que parasse bem na frente do alvo
pretendido. Gaston pegou a caneca e ergueu-a na direção do grupo de
homens.
– Aos bons homens desta aldeia. E àqueles que têm que suportá-los! – ele
disse, rindo.
– Então, Gaston, teve sorte em rastrear a Fera de Gévaudan? Algum sinal
daquela criatura desgraçada? – perguntou o padeiro, sentado a uma mesa
próxima.
– Nenhum sinal ainda, meu bom homem. Mas tenho pena da fera se ela
voltar para nosso reino – declarou Gaston, terminando sua bebida e batendo
a caneca na bancada.
– Ah, vai voltar, não há dúvida disso. Ouvi dizer que destruiu uma aldeia
inteira numa noite, num reino não muito longe do nosso. As pessoas por
aqui estão outra vez com medo de sair depois de escurecer – disse o
chapeleiro, que estava sentado com o padeiro.
– Uma aldeia inteira, você disse? – Gaston se perguntou se isso poderia
ser verdade. Lembrou-se das histórias que o príncipe lia para ele sobre um
grupo de bruxas com um exército de esqueletos que atacava aldeias inteiras,
matando todos, inclusive crianças. Essa parecia uma causa mais provável
do que uma fera solitária, por maior que fosse.
– Alguém viu a fera? Tem certeza de que foi a Fera de Gévaudan? – ele
perguntou.
– Alguns dizem que a fera viaja com uma matilha de lobos, lobos
terríveis de tamanho incomum que, como a Fera de Gévaudan, anseiam por
sangue humano agora que o experimentaram – respondeu o cavalheiro que
era dono da livraria.
– Isso parece uma história de um dos livros que você vende, meu velho!
– apontou Gaston, tentando disfarçar com uma brincadeira, mas as palavras
do homem realmente o assombraram, trazendo de volta as imagens da
morte de seu pai, fazendo-as passar diante dele como se estivesse
acontecendo tudo de novo.
– Bem, não tenham medo, senhores. Seja um ou vinte, caçarei até o
último animal que encontrar, até o fim de meus dias, se necessário for, para
nos manter seguros – garantiu Gaston.
Nesse momento, um homem mais velho e atarracado, com um grande
bigode espesso e cabelos grisalhos desgrenhados, entrou na taverna
segurando um tronco nos braços. Ele era relativamente novo na aldeia,
então Gaston não o conhecia tão bem quanto os outros homens que
frequentavam o local.
– Algum de vocês viu corujas esta noite? – indagou o homem da porta,
segurando seu tronco nos braços como se fosse um bebê.
– Não posso dizer que sim, Maurice. Não entram muitas corujas aqui –
respondeu o Senhor Higgins, fazendo todos rirem. – Por que você pergunta?
– Gaston não gostou da maneira como Higgins provocava aquele homem.
Sorrindo para ele atrevidamente e tratando-o como um idiota. Até onde
Gaston sabia, ele era um indivíduo interessante. Talvez um pouco
excêntrico, mas algumas de suas pessoas favoritas também eram.
– As corujas têm agido de forma estranha. Vocês não perceberam? – o
homem indagou, piscando de perplexidade para os rostos confusos que
olhavam para ele.
– E o que você tem aí, Maurice, que segura com tanto cuidado? –
perguntou Gaston, caminhando até o homem e apontando para seu tronco.
– É minha tora! Minha primeira tora! Dá para acreditar nisso? – Maurice
exclamou, estendendo-a para ele.
– Parece uma tora muito bonita – disse Gaston, dando tapinhas no tronco
como alguém fazendo carinho na cabeça de um cachorrinho e sorrindo para
o homem.
– Não! Desculpe. Deixe-me explicar. Venho trabalhando em um novo
aparelho que corta madeira! E hoje ele realmente funcionou – contou o
homem com orgulho. – Pelo menos funcionou, até...
– Até que explodiu – concluiu Higgins, interrompendo-o e fazendo todos
na sala rirem.
– Só precisa de um pouco mais de ajustes – argumentou Maurice. – E é
melhor eu voltar ao serviço. Bela ficará furiosa comigo se eu me atrasar
outra vez para o jantar. Adeus, senhores.
Ele saiu correndo, segurando o tronco.
– Diga “olá” às corujas se você as vir – disse Higgins, rindo enquanto as
portas se fechavam atrás de Maurice.
– Oh, deixe-o em paz, Higgins. Ele é um velho inofensivo. E daí se ele
ama sua tora e acha que as corujas estão tramando alguma coisa – falou
Gaston. Todos riram, o que não era sua intenção, mas ele riu também,
mesmo não querendo.
– Aquele velho com certeza é um sujeito estranho. E acho que nunca vi a
filha dele, Bela, sem um livro nas mãos – declarou o padeiro.
– Ela está na minha loja quase todos os dias – comentou o livreiro.
– Ela é uma jovem muito... peculiar – observou o chapeleiro. – Nem um
pouco interessada em chapéus.
– Isso é muito peculiar, mas também bastante intrigante – disse Gaston,
olhando para o relógio. – Cavalheiros, é hora de eu ir também. A Senhora
Potts vai explodir se eu chegar atrasado para o jantar. – Ele se levantou do
banquinho e foi até a porta, onde deixara o bacamarte e o arco encostados
na parede.
O fato é que ele havia esquecido por completo, até aquele minuto, que
prometera à Senhora Potts que se juntaria a ela e aos outros criados para
jantar naquela noite. Então, ele se despediu, pendurou o bacamarte, a
mochila e o arco no ombro e atravessou a aldeia pelo caminho principal até
a ponte de pedra que o levaria diretamente ao castelo.
Gaston não usava mais as catacumbas ou caminhos escondidos. Não
parecia a mesma coisa sem o príncipe. E as recordações desses lugares
causavam uma dolorosa saudade em seu coração, dos dias anteriores à
morte de seu pai. O tempo permitiu que ele perdoasse o amigo pelo que
acontecera naquela noite, pelo menos foi o que dissera a si mesmo, mas a
lembrança ainda doía, e ele não desejava outra coisa senão voltar a uma
época em que aquele terrível acontecimento não estivesse entre eles. Gaston
ainda acreditava em tudo o que haviam dito um ao outro naquele dia antes
de Reizinho partir para seu tour, porém se perguntava como seriam as
coisas entre eles depois de tanto tempo. Dois anos pareceram uma vida
inteira; muita coisa mudara.
Quando finalmente chegou ao castelo, deu a volta até o pátio dos fundos
da cozinha, onde encontraria a entrada dos empregados. Ele tinha boas
lembranças daquele pátio, visitando os criados durante os intervalos e às
vezes brincando com o cachorro do príncipe, Sultão. Lembrou-se da
primeira noite em que ele e seu pai jantaram com os outros criados, depois
de tantos anos fazendo as refeições sozinhos no pequeno chalé. Recordou-
se de ter sentido como se sua vida tivesse mudado naquela noite. Ver seu
pai feliz novamente, rindo e se divertindo com os amigos. Eles viviam tão
isolados antes daquela ocasião, e depois parecia que não havia nada além de
alegria a esperar nos próximos dias. E Gaston se perguntou se não estaria
fazendo a mesma coisa que seu pai havia feito tantos anos atrás se isolando,
ao passar seu tempo caçando na floresta, visitando sua propriedade do outro
lado do reino e desfrutando de momentos de lazer na aldeia. Não que ele
não visitasse seus velhos amigos no castelo, apenas não o fazia de modo tão
frequente desde que começara a caçar a fera.
Podia ouvir risadas pelas janelas abertas do salão dos empregados, e isso
o fez sorrir. Como desejava que seu pai estivesse com ele agora. Quão
orgulhoso ele ficaria em saber que Gaston havia se tornado um caçador tão
habilidoso. Havia tantas coisas que ele gostaria que pudessem ter feito
juntos, tantas coisas que queria dizer, e agora nada disso aconteceria.
Gaston sabia que visitar o castelo iria trazer à tona essas lembranças e fazê-
lo se sentir sozinho no mundo, sem o pai ali. Elas sempre fizeram isso. Mas
ele não estava sozinho, não de verdade, tinha o Senhor e a Senhora Potts, e
até mesmo Lumière e alguns dos outros que eram como uma família para
ele agora, e Gaston esperava que sentissem orgulho do homem que ele
estava se tornando, assim como esperava que seu pai teria sentido. Amava
todos eles de verdade, e não lhe custava nada admitir isso.
Ele olhou para suas botas, lembrando que estavam cobertas de lama da
caçada daquele dia, e as removeu na varanda antes de entrar. Rapidamente
guardou seu bacamarte, arco e aljava no canto da entrada. Não queria se
arriscar à ira da Senhora Potts por deixar um rastro de lama lá dentro como
se ele fosse um garotinho de novo, mas, quando entrou, parecia que ela
ainda tinha motivo para estar aborrecida com ele. Estava parada ali,
aguardando-o. Gaston supôs que o motivo fosse seu atraso. E lá estava ela,
com uma expressão zangada no rosto.
– E como você chama isso? Chegar tarde, coberto de lama e sangue!
Saindo para caçar de novo? Bem, espero que você tenha trazido uma muda
de roupa – disse ela, balançando a cabeça.
– Eu trouxe. Aqui na mochila. – Ele desejou poder simplesmente ter
entrado despercebido e se trocado antes do jantar. Mas a Senhora Potts tinha
que estar esperando por ele ali!
– Não vou demorar – prometeu ele, entrando no banheiro. Gaston estava
horrível. Sem dúvida, deveria ter passado no chalé antes de ir para o
castelo, mas já estava atrasado. Ele não gostava de passar tempo no chalé,
mas não achava que pudesse pedir outro alojamento para se hospedar
enquanto visitava o castelo, pois não havia assumido todas as antigas
funções de seu pai, afora organizar os eventos esporádicos de caçada real
para o rei. Ele preferia passar a maior parte do tempo em sua propriedade,
que ficava bem distante do castelo.
Pelo menos, pensara em trazer algo decente para vestir. Quando voltou,
todo arrumado, a Senhora Potts deu-lhe um de seus sorrisos indulgentes e
um beijo na bochecha, então Gaston presumiu que ela aprovasse seu novo
visual.
– Agora, sim, está muito melhor. Bonito como sempre – disse ela,
segurando seu caçula, Chip, enganchado no quadril. Ele estava quase
grande demais para o colo. Era um garotinho gordo, com bochechas
grandes e redondas, e um sorriso feliz. Gaston perdera a conta de quantos
filhos ela e o Senhor Potts tinham agora.
– Dê boa-noite a seu tio Gaston, Chip. Todos os seus irmãos e irmãs já
estão na cama, e você também deveria estar – declarou ela, colocando-o no
chão.
Gaston inclinou-se e deixou o menino beijá-lo na bochecha, depois
observou-o ir embora cambaleando, o que o fez rir. Para ele, as crianças
sempre pareciam andar como homens que passavam muito tempo na
taverna.
– Sinto muito pelo atraso, Senhora Potts – desculpou-se Gaston,
beijando-a na bochecha. – Perdi a noção do tempo.
– Na taverna, sem dúvida, depois de um dia de caça. Parece que isso é
tudo que você faz hoje em dia. E olhe só para você, ficando tão grande. Não
creio que o príncipe vá reconhecê-lo quando chegar em casa – disse ela,
pegando-o pela mão e levando-o para a cozinha.
– Ele voltará logo então? – Gaston perguntou, envergonhado de admitir
que todas as notícias que recebeu sobre o príncipe vieram das cartas que a
Senhora Potts leu para ele.
– Sim, voltará. Muito em breve, acho. Ele me disse para avisar você.
Faremos uma grande festa para recebê-lo em casa e anunciar seu noivado. –
Ela disse isso com um débil sorriso. Sabia que Gaston ouvia essa notícia
pela primeira vez e provavelmente estava preocupada com a forma como
ele reagiria.
Esse foi um daqueles momentos em que Gaston desejou ter se esforçado
mais para aprender a ler, para que ele e o príncipe pudessem trocar cartas.
Nada o impediu depois que seu pai faleceu, mas, àquela altura, Gaston
sentiu que era tarde demais. Apenas não teve ânimo. Depois que Grosvenor
morreu, ele ficou deprimido demais para se concentrar em qualquer coisa, e
sentiu vergonha de pedir a alguém que o ensinasse. E não importava o
quanto se esforçasse ao tentar aprender sozinho, não conseguia entender.
Havia pensado em pedir ajuda à Senhora Potts. Ele sabia que ela seria
gentil, mas a ideia de pedir ajuda até mesmo a ela o enchia de ansiedade.
Em vez disso, concentrou-se naquilo que fazia melhor: caçar.
– Entre, Gaston. Vou lhe repassar todas as novidades. O príncipe está
muito ansioso para que eu lhe conte tudo – disse ela, conduzindo-o para o
salão dos empregados, onde todos já estavam sentados e o jantar estava
sendo colocado na mesa.
– Felizmente para você, o jantar saiu tarde esta noite – acrescentou a
Senhora Potts, enquanto Gaston puxava a cadeira para ela.
– Sinto muito se deixei todos vocês esperando – declarou Gaston,
sentando-se.
– Não, de jeito nenhum – falou Lumière. – Todos nós acabamos de nos
sentar e estamos muito satisfeitos por você estar aqui conosco.
Os habituais funcionários seniores do castelo; o Senhor Cogsworth;
Plumette; o Chef Bouche; Francis, o primeiro lacaio; alguns outros; e a
Senhora Potts e Lumière, é claro, estavam lá. Parecia uma festa alegre e
Gaston ficou feliz em se juntar a eles. A equipe estava entusiasmada com a
chegada iminente do príncipe e com a notícia de seu noivado. Pareciam não
falar de outra coisa. Até as criadas da cozinha conversavam sobre isso
enquanto terminavam de preparar o jantar. Todos à mesa estavam animados,
trocando ideias sobre os próximos acontecimentos, bem como sobre tudo o
que precisava ser feito para ajudar o rei e a rainha a prepararem uma
viagem marítima para uma terra distante logo após o retorno do príncipe.
Gaston achou interessante que o rei e a rainha tivessem passado muito mais
tempo no castelo enquanto o príncipe estava fora, e ainda mais interessante
que eles planejassem outra longa viagem agora que ele estava retornando
para casa. Perguntou-se se havia algo mais além do acaso.
– Então, Senhora Potts, conte-nos sobre essa jovem sedutora, Circe, com
quem o príncipe planeja se casar. Ela é uma princesa? Ao que tudo indica,
parece encantadora – disse Lumière, enquanto servia uma taça de vinho
para si e outra para Plumette.
– Sim, Senhora Potts, conte-nos tudo sobre Circe. Eu me pergunto se ela
é tão bonita quanto todo mundo diz. Como ela e o príncipe se conheceram?
– perguntou Plumette, dando um beijo na bochecha de Lumière como
agradecimento por encher novamente seu copo. Gaston adorava observar
aqueles dois. Sempre adorara. Quando ele era pequeno, simplesmente os
achava divertidos, e ainda achava, mas agora ele apreciava a maneira como
se amavam. Lumière tratava Plumette como uma rainha, sempre dizendo
que ela era linda, dando-lhe beijos furtivos e certificando-se de que ela não
precisava de nada. Isso o fez se perguntar como Reizinho e Circe seriam um
com o outro. Gaston nem sequer tinha pensado em cortejar alguém
enquanto o príncipe esteve fora. Estava muito ocupado caçando a fera. Isso
nunca lhe ocorrera. Não conseguia imaginar como seria a vida com uma
esposa e uma casa cheia de filhos, sem mais liberdade para fazer o que
quisesse. Quando olhava para o futuro, pensando nas possibilidades, sempre
imaginava sua vida com Reizinho.
A única outra pessoa que despertou o mínimo de seu interesse foi Bela, e
isso por causa do comentário que o livreiro fez na taverna naquela noite
sobre sua obsessão por livros. Gaston não conhecia ninguém mais obcecado
por eles do que ele e Reizinho, isto é, além do antigo bibliotecário, o pobre
sujeito demitido. Mas, na verdade, ele nunca prestara atenção nela até
aquele momento. Bem, se Reizinho tinha seu futuro planejado com essa tal
de Circe, então talvez ele devesse começar a pensar em encontrar alguém
também, por mais improvável que parecesse.
No entanto, Gaston sabia que não importava como seus pensamentos
vagassem, era improvável que ele cortejasse alguém da aldeia, mesmo que
ela adorasse livros tanto quanto ele. Simplesmente, não era um futuro que
ele pudesse de fato abraçar.
– Circe não é uma princesa, até onde eu sei, mas é descendente do Velho
Rei – contou a Senhora Potts com entusiasmo. Gaston fingia não estar
interessado em ouvir falar da mulher com quem seu amigo planejava se
casar. Mas a Senhora Potts o conhecia bem e sabia que ele estaria muito
interessado em saber que tipo de pessoa ela era.
– Então, ela é parente do Rei Neve, pai da Branca de Neve? – O Chef
Bouche pareceu impressionado. – Isso é bastante imponente, não acham?
Ela vem de uma das famílias mais antigas destas terras.
Gaston sabia um pouco sobre a ascendência de Branca de Neve. Ele e o
príncipe aprenderam sobre a família dela em um livro que encontraram na
biblioteca. Era a história dos Muitos Reinos, um volume intitulado Livro
dos Contos de Fadas. O Chef Bouche estava certo, Circe era descendente de
uma das famílias mais antigas dos Muitos Reinos, mas a história familiar
estava envolta em bruxaria e maldições. Por sua vez, quase todas as
famílias nos Muitos Reinos pareciam ter uma ou outra história sórdida
envolvendo bruxas, madrastas malvadas ou algo parecido. Então, ele não
poderia culpá-los por isso. Não que coisas estranhas e horríveis não
acontecessem em seu próprio reino. Eles eram atormentados pela Fera de
Gévaudan, por exemplo. Gaston se perguntou o que Circe pensaria disso.
Ou a terra de onde ela veio era ainda mais perigosa? Essa mulher, Circe,
não foi mencionada na história de Branca de Neve, então ele não sabia nada
sobre ela. Mas se ele bem se lembrava, o livro mencionava primos do rei
que eram de natureza desfavorecida, e ele se perguntou se Circe seria na
verdade parente daquele lado da família.
– De fato. Eles são primos, creio eu – disse a Senhora Potts, servindo-se
com algumas colheradas de batata com creme, queijo e cebolinha, e
passando a tigela para Gaston, que começou a empilhar batatas em seu
prato distraidamente enquanto relembrava a história de Branca de Neve e a
Velha Rainha, Grimhilde.
– Ei! Deixe um pouco para nós! – exclamou Francis brincando. Ele era
um lacaio recém-promovido que Gaston não conhecia bem. Mas Gaston
acabara de empilhar uma montanha de batatas no prato e não culpava o
lacaio por denunciá-lo enquanto sonhava acordado com os primos um tanto
estranhos do Rei Neve.
– Perdão! – falou Gaston, passando-lhe a tigela com um sorriso de
desculpas, percebendo que agora havia mais batatas em seu prato do que na
travessa.
– Não é de admirar que tenha tanto apetite, você cresceu muito, Gaston.
Olhe só seus braços enormes – observou Plumette com uma risadinha
alegre e musical.
Era verdade; Gaston comia mais do que nunca. Passava a maior parte do
tempo ao ar livre, caminhando e espreitando, cortando lenha e construindo
acampamentos para quando fosse caçar na floresta, e, assim que finalmente
parava no fim do dia, estava faminto. E parecia que ficava cada vez maior.
Seu pai era assim. Um homem grande e de constituição poderosa. Gaston
sempre pensou que fosse ser franzino como o príncipe, até que um dia se
olhou no espelho e viu a imagem do pai olhando para ele.
– Ora, vamos, Plumette, não queremos que Lumière fique com ciúmes,
não é? – o Chef Bouche disse brincando, fazendo Lumière rir. Todos
estavam muito animados naquela noite, exceto Gaston, que meditava sobre
o retorno do príncipe.
– Não que Lumière aqui tenha motivos para ficar com ciúmes. Ele é um
dos homens mais bonitos que conheço – disse Gaston, pegando um pouco
de carne assada da travessa e colocando-a ao lado da montanha de batatas.
– Essa Circe não tem irmãs um tanto estranhas? Ouvi dizer que são muito
peculiares e têm uma aparência desagradável. Você acha que Circe é
adequada o suficiente? Quero dizer, só porque ela é prima distante do Velho
Rei, eu me pergunto se isso a torna uma escolha digna. E quem são os pais
dela, exatamente? É isso que gostaria de saber – pontuou Plumette. Gaston
também queria saber. Começava a parecer muito provável que Circe fosse
irmã das irmãs um tanto esquisitas sobre as quais Gaston tinha ouvido falar
na história de Branca de Neve, e, se isso fosse verdade, ele precisaria se
perguntar se Reizinho havia inventado tudo.
– Ouvi dizer que Circe e as irmãs não revelam quem são seus pais. Eu
diria que é um mistério e tanto. Pelo que sabemos, ela é uma camponesa
pobre – disse Francis.
– Você não era um pobre fazendeiro antes de vir trabalhar no castelo? –
questionou Lumière.
– Eu não vou me casar com o príncipe, ela vai! O que realmente sabemos
sobre Circe? – perguntou Francis, olhando para Gaston e sua pilha de
batatas.
– Creio que já chega de fofoca – interveio o Senhor Cogsworth, olhando
de soslaio para Francis. Esse não era o tipo de conversa que o Senhor
Cogsworth encorajava. Na verdade, geralmente deixava claro que achava
aquilo desagradável e desrespeitoso. Para ele, não cabia a eles especular
sobre tais coisas.
– Aparentemente, o rei e a rainha aprovam, ou não estariam realizando
um baile para comemorar o noivado. E o Senhor Cogsworth está certo. Já
chega desta conversa. Temos muito que fazer antes que o príncipe retorne.
Temos um baile para organizar e não se esqueçam, o rei e a rainha partirão
logo depois – declarou a Senhora Potts.
– Tenho certeza de que Gaston ficará feliz quando o príncipe finalmente
voltar para casa. Não é, Gaston? – indagou Francis com um sorriso
atrevido.
– Estou ansioso para vê-lo. – Mas Gaston se perguntou se isso era
verdade. Sentia falta do amigo, contudo também apreciava a liberdade que
tivera enquanto Reizinho estava fora. E se perguntou como seria agora que
seu amigo, o príncipe, iria se casar. Imaginou que teria mais tempo com
Reizinho antes de ele se casar. A ideia de se adaptar a tê-lo de volta ao
mesmo tempo que conhecia Circe parecia assustadora. Mas ele supôs que,
se ele e Circe não gostassem um do outro, ele poderia continuar como vinha
fazendo nos últimos dois anos: caçando na floresta e passando um tempo
em sua propriedade, do outro lado da aldeia. No entanto, ademais, o
príncipe poderia insistir para que Gaston passasse mais tempo no castelo, e
ele se sentiria obrigado a fazê-lo, então só poderia esperar gostar daquela
mulher tanto quanto seu amigo parecia gostar.
– Ouvi dizer que você está fazendo seu nome na aldeia, Gaston. Ninguém
fala de outra coisa. Você é uma celebridade, sendo o melhor amigo do
príncipe – disse o Chef Bouche.
– Acho que é porque ele se tornou um caçador muito respeitado –
argumentou a Senhora Potts, lançando um olhar penetrante ao Chef Bouche.
– Concordo plenamente. Ouvi dizer que não há nenhum troféu na parede
do Velho Higgins que o próprio Gaston não tenha caçado – disse o Senhor
Cogsworth, surpreendendo a todos à mesa com seus elogios a Gaston.
Embora já houvessem se passado anos desde que o Senhor Cogsworth lhe
lançou olhares de desaprovação, nunca elogiara Gaston abertamente.
Parecia que o Senhor Cogsworth tinha parado de pensar nele como o
garotinho que deixava um rastro de lama no castelo e era uma má influência
para o príncipe.
– Entretanto, mal não faz ser o melhor amigo do príncipe, não é? –
pontuou o Chef Bouche, rindo muito.
– Se você tem algo a dizer, Chef Bouche, se tem bronca de mim por
alguma coisa, então sugiro que a revele! Talvez ache que esteja tirando
vantagem de minha amizade com o príncipe e usando-a como uma forma de
me tornar popular entre os aldeões? Se for esse o caso, agradeceria se você
dissesse isso de modo claro! – Gaston olhava o homem diretamente nos
olhos com o rosto cheio de fúria. Ele percebeu que havia surpreendido o
Chef Bouche.
– Não tenho bronca nenhuma de você, Gaston, isso lhe garanto. Não quis
dizer nada com isso. Tenho certeza de que todos na aldeia enxergam suas
qualidades assim como nós – respondeu o Chef Bouche, parecendo um
pouco surpreso com o rumo que seu gracejo tomara.
Gaston percebeu que o homem estava sendo sincero e se sentiu mal por
tentar desafiá-lo. O fato era que Gaston não tinha certeza se as pessoas o
amavam por si mesmo ou porque era sabido que ele era amigo do príncipe.
Ele fazia o possível para minimizar sua amizade com o príncipe, mas todos
sabiam que Gaston cresceu no castelo e recebeu terras e uma propriedade só
sua. Todavia, ele esperava que a razão pela qual fosse tão amado e
respeitado era porque estava empenhado em caçar e matar a Fera de
Gévaudan e porque havia jurado que nunca mais deixaria a aldeia viver
com medo novamente; ele ficaria mortificado se o amassem apenas porque
o príncipe era seu melhor amigo.
Quando Gaston começou a passar mais tempo na aldeia depois que
Reizinho saiu para seu tour e conheceu as pessoas que viviam e
trabalhavam lá, ouvindo de fato suas histórias, percebeu que estavam
aterrorizadas. Ficaram horrorizadas com as histórias da Fera de Gévaudan,
o que ela havia feito na região e como estava agora devastando outros
reinos próximos. Estavam com medo de que ela voltasse para caçar em suas
terras novamente, por isso Gaston prometeu-lhes que os protegeria e
acabaria com a fera, mesmo que fosse a última coisa que faria.
E o mais importante, ele prometeu a si mesmo que faria tudo ao seu
alcance para que se sentissem seguros. Rastrearia e caçaria a fera não
importa quanto tempo demorasse, e isso vinha sendo um esforço exaustivo.
No dia seguinte ao assassinato do pai de Gaston, toda a equipe externa
foi procurar o corpo da fera, esperando que ela tivesse sido mortalmente
ferida e simplesmente tivesse ido para algum lugar na floresta para morrer.
Mas eles não encontraram nada. E, mesmo que não tivesse havido
avistamento da fera naquela região desde a morte de seu pai, Gaston sabia
em seu coração que a fera retornaria e, quando isso acontecesse, ele estaria
pronto. Prometeu a si próprio que vingaria a morte do pai e jurou que essa
era uma promessa que não quebraria.
– Sinto muito, Chef Bouche. Por favor, me perdoe. Temo que haja algo
mais em minha mente que atrapalhou meu julgamento. Eu sei que você teve
boas intenções – disse Gaston.
– Todos nós já fomos culpados disso em uma ocasião ou outra, Gaston.
Não se preocupe – falou o Chef Bouche, parecendo mais à vontade.
O jantar prosseguiu como começara, todos de bom humor, rindo e
compartilhando histórias e imaginando como seria a noiva do príncipe.
Gaston fez o possível para participar da conversa, mas estava distraído.
Perguntava-se se queria estar presente no retorno de Reizinho. Agora que o
príncipe tinha Circe, Gaston não via lugar para si no castelo. Não que ele
passasse mesmo muito tempo lá. Mas ele imaginara, antes de saber do
noivado de Reizinho, que estaria lá com mais frequência. Talvez ele
voltasse para sua propriedade e ficasse lá por um tempo. Para ver como as
coisas estavam indo. E dar tempo aos dois pombinhos para se acomodarem
sem que Gaston estivesse lá para distraí-los.
Antes que percebesse, já era tarde e todos estavam se despedindo e
subindo as escadas para seus quartos. Gaston decidiu que não fazia sentido
tentar voltar para sua propriedade àquela hora já tão adiantada e resignou-se
a dormir em seu antigo chalé naquela noite e voltar para casa na manhã
seguinte.
– Gaston, você poderia se juntar a mim em minha sala antes de ir?
Gostaria de conversar com você – disse a Senhora Potts gentilmente,
conduzindo Gaston para fora do salão dos empregados.
Ele sabia que ela devia ter algo importante para discutir porque fechou a
porta atrás deles e tinha uma expressão bastante séria no rosto. Era culpa
dele, na verdade. Parecera taciturno e irritado durante todo o jantar. E havia
sido agressivo com o pobre Chef Bouche, então sabia que estava prestes a
receber um justo sermão. Gaston disse a si mesmo que o pobre sujeito
merecia outro pedido de desculpas e planejava fazê-lo assim que tivesse um
momento a sós com ele.
– Sente-se, querido. Quero saber: por que você não tem passado mais
tempo em sua propriedade? O príncipe lhe deu terras e uma casa própria,
mas você parece contente em deixar tudo a cargo de seu agente e seus
criados lá.
– Eu não tenho criados. Você está brincando, Senhora Potts? Na verdade,
aquilo lá é um pavilhão de caça melhorado.
– Ao que tudo indica, parece que você passa todo o seu tempo nesta
floresta caçando e acampando, e acho que sei por quê. Todo mundo sabe.
Mas isso tem que parar, Gaston, tem que parar mesmo – declarou ela,
pegando-o de surpresa. Essa não era a conversa que ele esperava. Ele tinha
certeza de que ela iria lhe dizer para não ficar de mau humor com o
casamento do príncipe. Algum tipo de discurso sobre como todos os
príncipes deveriam se casar um dia. Como é seu dever, e assim por diante.
Gaston não esperava por isso.
– Não estou entendendo.
– Oh, acho que está entendendo sim, meu garoto. Você ainda está
caçando a Fera de Gévaudan. A criatura não foi vista desde que seu pai
morreu – falou ela, colocando a mão na dele.
– Isso não é verdade. As pessoas da aldeia dizem que já foi vista em
outras partes desta região, em outros reinos. Estão morrendo de medo.
– Sinto muito, Gaston, e odeio dizer isso, mas às vezes as pessoas na
aldeia podem ser um pouco...
– Ignorantes. Era isso que você ia dizer? – ele perguntou, sentindo-se um
pouco irritado com ela.
– Não, eu ia dizer supersticiosas. E elas não são o que você chamaria de
mente aberta, mas esse é outro assunto. Só estou dizendo que talvez as
histórias da Fera de Gévaudan aterrorizando aldeões em outros reinos
distantes daqui sejam uma forma de passar as noites contando “causos”
perto do fogo e nada mais. Já se passaram anos desde que a criatura chegou
às nossas terras. Talvez você e seu pai tenham conseguido matá-la –
pontuou ela.
– Mas não foi exatamente isso que vocês pensaram da primeira vez?
Vocês não achavam que meu pai a tivesse matado anos antes de ela voltar e
tirar a vida dele? Quem pode dizer com certeza que ela não retornará? E eu
não deveria estar pronto quando isso acontecer? As pessoas da aldeia
contam comigo, procuram-me em busca de proteção. Não vou decepcioná-
los. Não vou quebrar minha promessa, não com eles.
– Sinto que estou conversando com seu pai. Você se parece muito com
ele, Gaston. Especialmente agora que está mais velho. Vi seu pai ficar
obcecado com a Fera de Gévaudan da mesma forma, depois...
– Depois do quê?
– Gaston, seu pai nunca lhe contou como sua mãe morreu?
– Achei que você soubesse disso. Não era isso que você estava
escondendo de mim? O que todos vocês têm escondido de mim?
– Eu nunca tive certeza do quanto você sabia, Gaston. Mas é hora de
você saber tudo. Seu pai caçou a fera durante anos depois que sua mãe
morreu. Depois de a criatura matá-la. A coisa virou sua obsessão e, no fim,
também o destruiu. Foi horrível quando sua mãe foi morta, meu rapaz. Foi
medonho, muito doloroso. É claro que seu pai não contou nada disso. E
agora sinto que estou traindo a confiança dele.
– Ele se foi, Senhora Potts. Não acho que ele vai se importar. Mas por
que esperar até agora para me contar? Por que depois de tantos anos?
– Não eram meus segredos para contar. Eram de seu pai e da rainha. –
Ela enxugou as lágrimas que escorriam por seu rosto com um lenço
delicadamente bordado e começou a torcê-lo nas mãos. – Falei com a rainha
e ela concorda que é hora de você conhecer toda a história. Mas você tem
que me prometer, Gaston: prometa que não vai deixar isso ficar entre você e
o príncipe.
– O que Reizinho tem a ver com isso? Ele nem tinha nascido quando
mamãe morreu.
– Bem, é isso mesmo – começou a dizer a Senhora Potts. – Ela morreu na
noite em que o príncipe nasceu...
CAPÍTULO VIII

ROSE NA FLORESTA

– Não sei por onde começar, meu rapaz – disse a Senhora Potts, enquanto
tomava um gole de seu chá preto aromatizado com baunilha, amêndoa e um
leve toque de conhaque. Ela e Gaston ainda estavam na sala de estar,
acomodados em poltronas confortáveis, de frente para a modesta lareira,
cuja cornija estava coberta de pequenos retratos emoldurados de todos os
seus filhos, entre sua coleção de lindas xícaras de chá. Entre as poltronas
havia uma pequena mesa redonda com um bule de chá, duas xícaras e um
prato com duas tortas de chocolate e frutas que uma criada da cozinha
trouxera para eles. Embora ansioso para que a Senhora Potts lhe contasse
sua história, Gaston estava fazendo o possível para não pressioná-la. Dava
para ele perceber que ela estava angustiada e apreensiva, mas sentia que
haviam escondido dele por tempo demais as circunstâncias da morte de sua
mãe. Nos dias após o terrível fim de seu pai, ele quis perguntar a ela, mas
não conseguiu. Sentia-se perdido e sozinho naquela época, embora estivesse
cercado por pessoas que o amavam. Ele era um fantasma vagando de um
lugar para outro, por capricho do príncipe. E, quando o príncipe partiu, já
não parecia importar mais que o pai de Gaston tivesse morrido antes que
pudesse partilhar seus segredos. Tudo o que importava era que Gaston
quebrara a promessa feita ao pai. Mas todos aqueles antigos sentimentos
estavam começando a surgir novamente e ele queria saber a verdade.
– Por favor, Senhora Potts, conte-me sobre a noite em que minha mãe
morreu. – Gaston tentava não ser rude. Essa era a última coisa que iria
querer. Ele amava aquela mulher, mas estava começando a ficar com raiva e
com medo porque sabia que havia algo que todos escondiam dele, e, agora
que finalmente estava prestes a descobrir a verdade, temia que isso mudasse
sua vida. Ele não tinha certeza se estava pronto.
– Mas há muito mais por trás dessa história, meu garoto. Tantas coisas
mais envolvidas. Não se trata apenas da noite em que sua mãe morreu. Não
se trata apenas de como ela foi morta. É também sobre o amor que a rainha
tinha por sua mãe e o quanto sua mãe a amava. Elas eram absolutamente
devotadas uma à outra, Gaston. Eram como irmãs, como você e o príncipe.
Quando descobriram que ambas estavam grávidas na mesma época, a
rainha insistiu que você fosse cuidado no infantário do castelo. Ela queria
que você e o príncipe crescessem juntos, pensando um no outro como
irmãos.
– E assim nós fizemos. Ainda mais próximo do que a maioria dos irmãos.
Ela realizou seu desejo – disse Gaston.
– E por que você acha que o rei e a rainha nunca estão em casa? Por que
acha que a rainha construiu um memorial tão magnífico para sua mãe
quando ela morreu? Ela fez isso porque se sentia responsável pela morte de
sua mãe. – A Senhora Potts tomou outro gole de chá e prosseguiu.
– Não foi culpa da rainha, é claro. Pelo menos, pensava que não, mas
mesmo assim a rainha se culpou, e acho que havia uma parte do coração de
seu pai que a culpava também. Você nascera havia poucos meses, mas sua
mãe voltara a trabalhar atendendo a rainha durante seu parto. Histórias da
Fera de Gévaudan varriam o reino e todos tinham medo de sair à noite para
não serem atacados ou devorados pela besta. Houve várias mortes naquele
período, e seu pai, com um grupo de outros caçadores, incluindo o rei,
estavam fazendo o possível para pôr fim ao reinado de terror da fera, que
dominava os pesadelos de todos. – A Senhora Potts fez uma pausa, o olhar
se desviando, como se ela estivesse relembrando aqueles dias, perdida em
seus pensamentos com as emoções brotando dentro dela enquanto contava a
história a Gaston.
– A rainha sentiu-se agoniada durante todo o seu confinamento, fazendo
com que sua mãe temesse por ela e pelo bebê. A rainha estava exausta,
preocupada com o que poderia acontecer ao rei enquanto caçava a Fera de
Gévaudan, e sua mãe estava sempre por perto nos dias que antecederam o
nascimento do príncipe para que pudesse confortar e acalmar a rainha.
“E a rainha não era a única pessoa apavorada. Todos nós também nos
sentíamos assim. Sua mãe estava angustiada, preocupada com a rainha e
também com um medo constante de que algo horrível acontecesse com seu
pai. Mas ela não confidenciava isso à rainha. Pelo contrário, era como uma
rocha, como o mármore, inquebrável e forte, pelo menos enquanto estava
na companhia da rainha. Mas depois, quando a rainha finalmente
adormecia, Rose descia para me visitar e, num jorro só, desabafava todas as
coisas que tinha de manter guardadas dentro de si, todo o medo que crescia
dentro dela a ponto de explodir. Todas as noites seu pai caçava a fera, ela
temia que ele não sobrevivesse e o dia em que ele não voltasse para ela.”
– Isso deve ter sido exaustivo para minha mãe – comentou Gaston,
tentando pintar uma imagem de Rose em sua mente, mas tudo que
conseguiu visualizar foi a estátua que ficava em frente ao seu local de
descanso eterno. Como se ela fosse feita de pedra, tal como a Senhora Potts
descrevera, forte e inquebrável.
– Foi horrível. Mas sua mãe era uma mulher forte e fez o possível para
apoiar a rainha, embora houvesse momentos em que só queria chorar. E era
isso que ela fazia, às vezes durante horas, depois que a rainha adormecia.
Sua mãe desabava em meus braços e soluçava. Eu queria dizer a ela que
tudo ficaria bem, mas é claro que nenhum de nós sabia se isso iria
acontecer. Então, apenas a abraçava e dizia que ela poderia contar comigo,
independentemente do que acontecesse conosco.
“Certa manhã, seu pai não apareceu no salão dos empregados para tomar
o café da manhã, como era seu costume enquanto sua mãe dormia no
castelo. Estávamos todos preocupados, ninguém mais do que sua mãe, que
parecia adoentada. Seus nervos estavam à flor da pele e ela aparentava não
dormir havia dias, tendo acabado de dar à luz a você não muito antes. A
rainha insistiu que Rose fosse até o chalé para ver como estava seu pai e
descansar. Nós duas insistimos, na verdade. Eu disse que cuidaria da rainha
enquanto sua mãe descansava, e nós duas lhe dissemos que ela não deveria
voltar até a manhã seguinte, e nem mesmo isso, instruindo-a a descansar até
que se recuperasse por completo. Ela tentou argumentar, é claro. Não queria
abandonar sua amiga. Mas, concordou, pelo menos, para verificar se seu pai
estava bem.
“Seu pai me contou mais tarde que, quando ela chegou ao chalé, desabou
na cama depois de um longo abraço e dormiu o dia inteiro. Ele cancelou a
caçada naquela noite, querendo ficar com sua mãe e, da mesma forma, para
que o rei também pudesse estar com a rainha. Seu pai estava feliz por tê-la
em casa. Feliz em cuidar dela enquanto ela descansava.
“Ele disse que Rose dormiu como se estivesse sob um feitiço de sono,
como uma donzela de um conto de fadas, dormindo sem parar, e sem se
mexer, exceto uma vez no início da noite, quando ele a acordou para comer
alguma coisa e tomar um chá. Mas depois ela voltou para debaixo das
cobertas e caiu novamente na terra dos sonhos. Exausta pelo permanente
cuidado com a rainha e pela preocupação constante.
“Mas então algo inesperado para seu pai aconteceu naquela noite. Ele só
me contou essa história uma vez, contudo as imagens que suas palavras
evocaram em minha mente queimam tanto que é como se Grosvenor as
tivesse compartilhado comigo esta noite, e não há muitos anos.
“Seu pai acordou com gritos vindos da floresta, não muito longe da casa.
Gritos horríveis que inundaram de terror todo o seu ser. Quando se livrou
do torpor e da confusão, percebeu que era sua mãe quem ele ouvia gritando.
Então, escutou os sinos tocando nas ameias do castelo, o que significava
que o rei e a rainha precisavam de ajuda. Ele não sabia por quê; só podemos
presumir que sua mãe tenha ouvido os sinos e temido que a rainha estivesse
em perigo durante o trabalho de parto e tenha saído correndo noite adentro
sem pensar. E foi isso que seu pai fez também. Pegou seu bacamarte e
correu para a floresta, seguindo o som dos gritos de sua mãe.”
A Senhora Potts parou por um momento para tomar outro gole de chá,
fazendo o possível para manter a xícara firme, enquanto tremia e tentava
conter mais lágrimas.
– E o que aconteceu, então? – perguntou Gaston. Seu rosto estava pálido
e inexpressivo, mas suas mãos também tremiam.
– Não sei se posso continuar, meu querido. Tenho certeza de que você
pode imaginar o restante – respondeu ela, baixando os olhos.
– Nada poderia ser pior do que minha imaginação. Você esqueceu, eu vi
meu pai sendo atacado por aquele maldito lobo.
– É pior do que qualquer coisa que você possa imaginar, meu garoto. Foi
tão horrível que seu pai mal conseguia falar sobre isso. Direi apenas que sua
mãe ainda estava gritando enquanto o monstro... a devorava. Não havia
como ela ter sobrevivido, mesmo que seu pai tivesse conseguido atrair a
fera. É horrível demais pensar nisso, meu querido. É horrível demais
imaginar o terror e a dor que sua pobre mãe sofreu em seus últimos
momentos e saber que seu pai viu isso acontecer. Ele fez a única coisa que
podia e pôs fim ao sofrimento dela, depois disso caiu de joelhos soluçando,
dizendo repetidas vezes o quanto sentia muito, sem se importar com a
própria vida, ou mesmo sem perceber que a fera avançava em sua direção
enquanto ele chorava por sua mãe. Nada além de tristeza existia para ele
naquele momento. Não importava para ele o ataque do monstro, que
arranhou seu rosto. Seu pai achou que era certo ele morrer. Queria estar
com sua mãe. Sentia que merecia uma morte horrível em pagamento pela
dela, por não protegê-la.
– Mas não foi culpa dele. Ela saiu correndo enquanto ele dormia. Ele não
sabia. – O estômago e o peito de Gaston estavam contraídos de tristeza e
horror. Ele não tinha ideia de que seu pai sofrera aquilo. Seu corpo estava
fraco e dominado pela dor. Desejava mais do que nunca matar a fera. Ele
precisava matar a fera. Era seu dever, não apenas para com sua mãe e seu
pai, mas também para com o povo da aldeia. Não deixaria nenhum deles
sofrer essa mesma dor, essa perda e tristeza, esse horror, nunca.
– Eu sei, meu querido, mas em momentos de tristeza às vezes nos
culpamos. E em momentos de pânico não pensamos. É por isso que nunca
culpei a rainha por ordenar que os sinos tocassem. – Dava para ver que ela
receava que ele culpasse a rainha. E por que não deveria? Ela era a culpada.
Sua ansiedade e raiva estavam se tornando uma torrente violenta, atacando-
o por dentro. Suas mãos tremiam e ele fazia o possível para não chorar, mas
sentia que, se segurasse o choro por mais tempo, poderia explodir.
– Ela sabia que a fera estava lá fora! Como pôde colocar minha mãe em
perigo daquele jeito? Ela sabia que se minha mãe ouvisse aqueles sinos ela
viria – disse ele, mal conseguindo respirar, a dor no peito tão forte.
– Talvez. Mas assim como sua mãe não pensou antes de sair correndo
para a noite perigosa, a rainha não estava pensando no monstro que
espreitava ali. Ela corria o risco de perder o filho, Gaston, e queria que a
amiga estivesse a seu lado. Isso foi tudo em que ela pensou naquele
momento de desespero e medo.
Gaston viu verdade nisso. Gostaria que tivesse sido diferente, mas
entendeu. Também fizera uma escolha que matou alguém que amava. Quem
era ele para culpar a rainha por chamar a irmã em meio à dor e ao medo de
perder o filho? Talvez a raiva que sentiu da rainha fosse na verdade raiva e
decepção em relação a si mesmo. Ele não sabia.
– Como meu pai escapou da fera? – ele perguntou, tentando banir as
imagens horríveis de sua mãe. Tentando esquecer o que seu pai acreditava
que seriam seus últimos momentos. Por que sua vida tinha que estar tão
ligada àquela criatura?
– Alguns dos outros funcionários externos ouviram os gritos de sua mãe
e vieram ajudar. Quando viram a fera atacando seu pai, atiraram nela, dando
a Grosvenor uma chance de escapar. A criatura cambaleou para trás, o que
lhe permitiu agarrar seu bacamarte e atirar bem no peito da fera. Todos
tinham certeza de que fora um golpe mortal, mas a fera escapou para a
floresta. Foi um negócio sangrento, meu querido. Um negócio sangrento. A
rainha ficou arrasada e seu pai não sabia a quem culpava mais, a si mesmo
ou à rainha. – A Senhora Potts apertou a mão de Gaston com ternura e
olhou para ele com olhos tristes. Ele realmente amava essa mulher e estava
muito grato por tê-la em sua vida. Era a única pessoa que fora como uma
mãe para ele. Gaston não sabia o que faria sem ela.
– É por isso que meu pai preferia passar o tempo no chalé? Mas
certamente ele não achava que vocês o culpassem. – Gaston odiava a ideia
de seu pai se culpar. E pensar que, todas aquelas noites, quando seu pai
olhava para o céu noturno em uma melancolia silenciosa, ele se sentia
responsável pela morte da própria esposa. Era de partir o coração.
– Não, meu querido. Nenhum de nós o culpou. E compreendemos por
que ele caçava obsessivamente na floresta. E por que era raro o rei e a
rainha estarem em casa. A rainha adora que você e o príncipe sejam como
irmãos, é o que ela e sua mãe mais desejavam, mas dói muito ver vocês
juntos. Isso a faz sentir falta da amiga ainda mais, e ela não consegue
suportar o fato de ter tirado sua mãe de você.
– Ela não tirou minha mãe de mim, foi a fera, e eu vou matá-la, Senhora
Potts. Eu juro que vou.
– Meu querido menino, por favor, não siga o caminho do seu pai. Não
dedique sua vida à vingança. Esse tipo de sofrimento é terrível demais para
alguém tão jovem.
Ela se levantou e pegou o rosto dele entre as mãos.
– Por favor, meu garoto, prometa para mim. Eu gostaria muito que você
escolhesse a felicidade.
– Não podemos escolher o nosso destino, Senhora Potts – disse ele,
surpreso com a conversa dela sobre felicidade. Perguntando-se se isso era
mesmo possível.
– Então é seu destino se afogar em um turbilhão de tristeza e vingança?
Não perca sua vida caçando essa fera, meu querido. Se você fizesse isso,
acho que nunca conseguiria parar de chorar. – Ela estava à beira de mais
lágrimas.
– Não pretendo, Senhora Potts. Estou feliz que meu pai não tenha me
revelado sua história. Não suporto a ideia de ele ter que revivê-la, ou ver a
dor em seu rosto ao contá-la. Obrigado por ser franca comigo, Senhora
Potts. E, por favor, não se preocupe. Eu prometo que ficarei bem. – Ele a
pegou nos braços. Ela parecia tão pequena perto dele agora. Tão frágil.
Alguém a ser protegido. Cabia a ele protegê-la agora, proteger todos eles.
– É hora de você parar de tentar cuidar de mim, Senhora Potts, e me
deixar cuidar de você. Cuidar de todos vocês – disse ele, recuando e
sentindo-se grato por ter alguém que o amava tanto.
– Sempre cuidarei de você, Gaston. Sempre. Você é meu doce menino –
declarou ela, chorando outra vez. – E você não culpa o príncipe?
– Pela morte do meu pai? Eu fiz isso por muito tempo. Mas éramos
ambos jovens e tolos, Senhora Potts. Não sei se ainda culpo alguém. – Ele
não tinha certeza se aquilo era verdade. Havia uma parte dele que ainda
culpava o príncipe e a si mesmo, mas agora ele estava guardando sua raiva
e tristeza para a fera.
– Eu quis dizer pela morte de sua mãe – falou ela, tomando um gole
trêmulo de chá.
– Claro que não. Por que eu o culparia pela morte de minha mãe? E não
culpo a rainha, de verdade. Meus pais estão mortos porque uma fera vil os
atacou.
– Estou orgulhosa do homem que você está se tornando, Gaston. Mas não
pense que algum dia deixarei de vê-lo como meu querido menino. E você
deve me prometer que acabará com a caça a essa fera.
– Não faço promessas que não possa cumprir, Senhora Potts. Não mais.
CAPÍTULO IX

O CONVITE

Antes que percebessem, o baile do noivado tinha chegado. Gaston estava


com medo do baile desde que a Senhora Potts lhe contara sobre o evento.
Ele não queria ver Reizinho pela primeira vez em tantos anos na mesma
noite em que conheceria a noiva dele, Circe. Gaston esperava passar algum
tempo a sós com ele, apenas algumas horas teriam bastado, mas parecia que
o príncipe e sua noiva chegariam juntos ao castelo em um turbilhão de
excessiva fanfarra e pompa. Gaston pensou que ele fosse fugir para sua
propriedade e simplesmente evitar o espetáculo, mas a Senhora Potts o
aconselhou o contrário, por isso ele decidiu ficar no antigo chalé de seu pai
naquela noite para estar mais perto do castelo. Ele tentava evitar ficar lá
tanto quanto possível. A casa o lembrava muito de seu pai. E, de alguma
forma, a gata deles parecia saber onde ele estava, sempre aparecendo para
receber cafunés e uma tigela de leite. Ela geralmente estava fora em
aventuras, aquela gata. Desaparecia por semanas, mas sempre encontrava o
caminho de casa, quer Gaston estivesse no chalé ou na casa de sua
propriedade. E ele estava feliz pela companhia dela.
Nenhum dos planos para o retorno de Reizinho parecia algo que seu
amigo teria planejado ele próprio. Gaston soube que Reizinho e Circe
viajariam em uma carruagem aberta pelos Muitos Reinos, percorrendo
todos os reinos vizinhos, bem como a vila em seu próprio reino, para que
ele pudesse exibir sua futura noiva enquanto se dirigia para o castelo. E se
isso não fosse suficientemente esnobe, assim que fizesse a sua grande
aparição, seria saudado por uma multidão de reis e rainhas, cavalheiros e
damas, e a pequena nobreza dos reinos vizinhos, todos presentes para
celebrar o noivado com Circe. Ninguém falava de outra coisa. Realmente,
era doentio. Pelo menos, Gaston pensava assim. Não se parecia em nada
com o Reizinho que ele conhecia. Ao que parecia, aquele seria o evento
mais luxuoso da história dos Muitos Reinos, e isso era muito revelador, se é
que o Livro dos Contos de Fadas fosse digno de crédito. Era muito diferente
de comer sanduíches esmagados no oco de uma velha árvore enquanto
esperavam para ver se conseguiam flagrar fadas. Mas também, Gaston
supôs, eles não eram mais meninos. E a rainha parecia satisfeita por ter um
motivo para dar uma festa.
Ela até organizara alguns dos espetáculos que havia planejado
originalmente para a frustrada celebração que aconteceria havia muitos
anos, antes que a fera retornasse e o pai de Gaston morresse. Algo sobre
isso fez o estômago de Gaston embrulhar. Ele se lembrou do dia em que ele
e o pai foram verificar o pavilhão da rainha para ter certeza de que estaria
pronto para seu grande evento malfadado. De repente, ele ficou com raiva
da rainha por arrastá-lo de volta para aquelas lembranças sombrias. A
Senhora Potts acabara de alertá-lo para não se deixar afogar no passado, e
era exatamente isso que ele estava fazendo. Mas não era culpa da rainha.
Não era ela que o estava puxando para baixo: ele é que estava deixando o
peso de sua dor arrastá-lo para o fundo. Então, Gaston clareou sua mente,
tentando se preparar para ver Reizinho e Circe, embora temesse isso com
todo o seu ser.
Gaston fora convidado para o baile de noivado naquela noite como
convidado, não como criado. Ele foi surpreendido por uma batida à porta do
chalé e, ao abri-la, deparou-se com um criado real parado na varanda, todo
paramentado com uma peruca branca empoada, casaca com punhos de
babados, calções, meias e sapatos de seda com fivelas vistosas. O criado até
trouxera o convite numa pequena bandeja de prata, o que fez Gaston rir.
Não poderiam ter entregado o convite a ele quando estava no salão dos
empregados? Por que toda essa pompa e circunstância? O servo gesticulou
dramaticamente ao anunciar o conteúdo do convite, como se estivesse
fazendo o discurso mais importante já proferido na história dos Muitos
Reinos.
– Você está convidado pelo rei e pela rainha para participar de um baile
real a fim de celebrar o noivado do príncipe e sua amada – anunciou o
lacaio, parado ali sem jeito, enquanto segurava a pequena bandeja redonda
de prata com o convite sobre ela.
– Francis, é você com essa peruca? Veio fantasiado de quê? – Gaston riu
ainda mais, percebendo que o servo desajeitado era Francis.
– Cale-se. Estou tentando ser formal – disse Francis, suando sob todas as
suas roupas elegantes e visivelmente envergonhado por Gaston o ter
reconhecido.
– Sinto muito, mas toda essa bobagem é realmente necessária? – Gaston
tirou o convite da bandeja. Ao abri-lo, viu que havia um pequeno pedaço de
papel dobrado com um bilhete rabiscado junto com o convite oficial.
– É um completo absurdo! Completamente desnecessário! Eu ser
obrigado a correr por aí com sapatos de seda como uma espécie de figurão;
quem já ouviu falar de um lacaio usando sapatos de seda? Tenho medo de
sujá-los de lama ou algo assim. – Gaston percebeu que Francis não
pretendia deixar escapar aquela pequena explosão, e seu comportamento
rapidamente voltou a ser formal, em vez de familiar. Ele limpou a garganta,
pediu desculpas e continuou: – O príncipe quer que você saiba que ele
providenciou para que você tomasse aposentos no castelo, e lá você
encontrará suas roupas para o baile desta noite – informou Francis, olhando
para Gaston.
– Entendo. – Gaston encarou o bilhete. Conjecturou se alguém teria dito
a Francis que ele não sabia ler. E, de repente, sentiu-se envergonhado e
como uma espécie de impostor. Perguntou-se por que estava sendo
convidado para aquele baile chique e tinha certeza de que todos os outros
presentes estariam se perguntando a mesma coisa.
– Peça ao Senhor Cogsworth para direcioná-lo a seu quarto. O gongo de
vestir é às seis. Uma festa íntima será realizada no salão às sete, seguida de
um jantar leve às oito, após o qual o baile será oficialmente aberto pelo
príncipe e sua noiva. Agora, se me dá licença, tenho outros deveres a
cumprir – declarou Francis, antes de se afastar rapidamente. Gaston se
sentiu mal por fazer piada sobre a roupa do lacaio. Ele não queria fazer isso,
na verdade não mesmo, então chamou Francis.
– Ei! Francis! Desculpe!
Gaston não tinha certeza se ele ouviu.
– Isso é uma loucura – disse Gaston à sua gata, que estava olhando para
ele com olhos sonolentos depois de ser acordada por sua voz estrondosa. –
Isso não é típico de Reizinho, de jeito nenhum! – ele disse à gata. Ela
apenas piscou para ele antes de se aconchegar em sua almofada perto da
lareira. – Bem, você não ajuda em nada! Acho que é melhor ir ver a
Senhora Potts e descobrir o que está acontecendo – declarou ele, pegando
sua mochila e armas, e saindo pela porta. Ele atravessou a floresta até o
castelo, dando a volta até a entrada dos criados, e encontrou a Senhora Potts
em sua sala de estar repassando suas listas.
– Veja isso! – Ele parou na porta dela, agitando o bilhete e o convite
rapidamente. – Francis diz que devo tomar aposentos no castelo? Você sabia
sobre isso? O que o Senhor Cogsworth tem a dizer?
– Não cabe ao Senhor Cogsworth ter uma opinião sobre nada disso –
respondeu ela sem erguer os olhos. – Foi uma ordem real. – A Senhora
Potts verificava suas listas e assinalava as tarefas que haviam sido
concluídas. – Eu não entendo por que você está tão contrariado. Achava que
você fosse ficar feliz em ver seu amigo!
– Eu estou. Claro que estou. Quer dizer, acho que estou. Mas o que é essa
história de jantar íntimo antes do baile? Afinal, o que isso quer dizer? –
perguntou Gaston, tentando desviar a atenção da Senhora Potts de volta
para ele.
– É apenas um jantar leve para a família. Haverá um bufê à disposição
durante todo o baile e, claro, uma ceia e café da manhã – explicou a
Senhora Potts. – Não se preocupe, haverá bastante comida para você.
– Então, é um evento que durará a noite toda? – Gaston ficou surpreso; o
rei e a rainha não davam uma festa dessa magnitude desde aquela para a
qual estavam se preparando quando seu pai morreu. – Ouvi dizer que a
rainha vai iluminar o pavilhão e ontem vi os jardineiros esculpindo topiárias
de animais no labirinto de sebes. E agora colocaram o pobre Francis
correndo por aí, suando em sua libré chique e peruca empoada, distribuindo
convites em uma bandeja de prata. Ela deu a todos muito trabalho com
pouquíssimo tempo para realizá-lo. – Gaston balançou a cabeça. – Não
consigo imaginar que Reizinho quisesse nada disso.
– A rainha não ordenou tudo isso; foi decretado pelo príncipe. Ele parece
ter... como direi?... assumido sua posição enquanto esteve fora. – Gaston
conhecia aquele meio-sorriso. Aquele que dizia que a Senhora Potts não
aprovava.
– Entendo – disse Gaston, sentindo-se ainda mais nervoso do que já
estava em rever o amigo. Ele não pôde deixar de se perguntar se tudo isso
era influência de Circe. Ela pertencia a uma família real muito antiga e
provavelmente estava exigindo toda aquela fanfarra ridícula. Ele odiava a
ideia de alguma princesinha bonita e esnobe mudar tudo e tornar sua corte
maçante e pomposa, justo como Reizinho havia prometido que jamais seria.
E o que ela iria pensar dele, o servo amigo do príncipe, seu companheiro de
infância que não sabia ler e de quem sentia pena? Talvez por isso o príncipe
estivesse escolhendo roupas para ele, deixando-o apresentável, respeitável,
para que se adaptasse, como se fosse apenas um velho amigo e não filho de
um servo. Gaston começava a ficar com raiva. Desde quando seu amigo se
importava com o que alguém pensava ou fazia pobres lacaios andarem por
aí com perucas empoadas? Toda a situação fora além do intolerável. E ele
não iria aceitar isso. Não iria se vestir com uma roupa boba e tentar ganhar
a aprovação de ninguém. – E suponho que deva usar algum traje esnobe que
ele escolheu? Provavelmente vou parecer um idiota. – Gaston sentiu como
se seu estômago estivesse cheio de morcegos agitados.
– Suponho que a única maneira de descobrir seja subir e experimentar, e
me deixar voltar ao trabalho. – A Senhora Potts ainda estava grudada nas
listas. Gaston suspirou, sentindo-se derrotado, e virou-se para ir embora.
Ele parou quando ouviu a voz da Senhora Potts chamando por ele.
– Desculpe, querido. Há tanta coisa para fazer, e com o Senhor Potts
ausente, ainda por cima. Você sabe como fico preocupada quando ele está
viajando – disse ela. Gaston entendia. Ele amava a boa mulher e a perdoaria
por qualquer coisa. Ela era o mais próximo de uma mãe que ele conhecera.
– Eu não sabia que o Senhor Potts estava fora; está tudo bem? – ele
indagou, lembrando que o marido da Senhora Potts não estava jantando
com os demais criados na noite anterior. Gaston nem se preocupara em
perguntar por ele.
Estava tão consumido por seus próprios problemas que não parou para
pensar que o Senhor e a Senhora Potts estavam tendo seus próprios
contratempos também.
– O irmão dele não está bem, sabe? E não há mais ninguém para cuidar
dele agora que a esposa faleceu. Receio que o Senhor Potts demore algum
tempo para voltar. – Ela estava tentando não parecer preocupada. Gaston se
sentiu mal por não ter visitado a Senhora Potts tanto como ela gostaria e
prometeu que iria jantar e visitá-la com mais frequência, especialmente com
o Senhor Potts longe.
– Sinto muito por ouvir isso. Por favor, envie lembranças ao Senhor Potts
na próxima vez que escrever para ele. – Lá estava ele tagarelando quando
ela tinha tantas outras coisas em mente. – E não se preocupe, Senhora Potts,
estou aqui.
– Eu sei que você está, querido. Obrigada. E, Gaston, a última coisa que
você vai parecer no baile desta noite é um idiota. Garanto que será o
homem mais bonito da festa – disse ela. – Agora se incline para que eu
possa lhe dar um beijo! – ela pediu com sua risada doce.
– Você quer dizer que serei o segundo homem mais bonito da festa –
declarou Gaston. – Lembro-me de meu pai me dizendo que eu nunca
deveria deixar Reizinho saber que sou melhor do que ele em nada. Tiro,
caça, cavalgada, tudo. Ele disse que foi isso que fez com o rei. Sempre o
deixou pensar que era o melhor.
– Parece algo que seu pai faria. Mas, Gaston, não é essa a relação que
você tem com o príncipe. Ele já ficou zangado quando você foi melhor em
alguma coisa?
– Nunca. Tentava explicar isso a meu pai sempre que ele me aconselhava,
mas papai dizia que um dia isso mudaria. Eu me pergunto se ele tinha razão.
Toda essa pompa e fantasia e babados não parecem coisa de Reizinho. Você
acha que ele mudou? Pelas cartas dele, parece que sim?
– Talvez. Mas duvido que ele tenha mudado em relação a você. E cá
entre nós, querido, acho que você realmente é ainda mais bonito que o
príncipe. E não há nada que você possa fazer para mudar isso. – Ela sorriu e
deu palmadinhas na mão dele. – Agora preciso mesmo voltar ao trabalho.
Acho que você encontrará o Senhor Cogsworth na despensa. Ele estava
esperando por você.
Embora Gaston não fosse mais uma criança, ele não podia deixar de se
sentir como um garotinho na presença do Senhor Cogsworth. Tinha sido
mais fácil lidar com ele nos últimos anos. Gaston não tinha certeza por que
as coisas haviam mudado, se fora porque o príncipe dissera ao Senhor
Cogsworth para deixar Gaston em paz ou se o Senhor Cogsworth
finalmente aceitara o lugar não convencional de Gaston no castelo. Ele
queria que o Senhor Cogsworth gostasse dele. Quando criança, ele fora
como um pai para o príncipe e, de certa forma, era assim que Gaston olhava
para ele agora, embora não houvesse razão para isso, exceto que ele não
tinha mais pai e conhecia Cogsworth desde que era criança. Ele bateu à
porta da despensa do mordomo e ouviu a voz do Senhor Cogsworth do
outro lado.
– Entre.
– Boa tarde, Senhor Cogsworth. Disseram-me para procurá-lo, para que
me dissesse onde encontrar meus aposentos...
O Senhor Cogsworth estava sentado à mesa decantando uma garrafa de
vinho. Ele parecia um alquimista com a garrafa em uma estranha
geringonça e seu castiçal por perto para lhe dar mais luz.
– Sim, senhor – disse o Senhor Cogsworth, levantando-se. – Você deveria
ter entrado pela porta da frente. Você é um convidado nesta casa e será
tratado como tal – declarou o Senhor Cogsworth com bastante rigidez, e
nada da maneira amigável e mais familiar a que Gaston se acostumara nos
últimos anos.
– Quer dizer, eu poderia voltar e entrar pela frente, se você quiser – disse
Gaston, rindo para amenizar as coisas. Mas o Senhor Cogsworth não riu.
Ele ficou parado ali, impassível como sempre. Gaston sentiu como se
tivesse sido transportado para outro mundo. Era assim que o Senhor
Cogsworth agia com a família e seus convidados? Parecia tão estranho e
formal que deixou Gaston desconfortável.
– É engraçado, não é, Senhor Cogsworth? Durante anos você sempre me
repreendeu por passar pela porta da frente, e agora está dizendo que eu não
deveria ter usado a entrada dos criados. – Gaston estava sendo jovial, mas o
velho Cogsworth era como um pilar de pedra ali em posição de sentido.
Gaston não entendia o que estava acontecendo.
– De fato. As coisas mudam, senhor. E enquanto você for um convidado
nesta casa, por favor, me chame de Cogsworth.
– Oh, pare com todas essas formalidades, Senhor Cogsworth. Somos
velhos amigos, você e eu. Não há razão para esse faz de conta – afirmou
Gaston com seriedade. O Senhor Cogsworth estava zangado por Reizinho
ter lhe dado ordem para tratar Gaston como um convidado? O velho
Cogsworth não aprovava? O que quer que estivesse acontecendo, Gaston
não gostou.
– Há muitos motivos para essas formalidades, senhor. Você é um
convidado do príncipe e, portanto, da família, e merece o mesmo respeito
que qualquer hóspede desta casa. Eu não gostaria de ultrapassar os limites.
Isso lembrou Gaston da conversa que ouvira entre o Senhor Cogsworth e
o príncipe, no dia em que Reizinho contou a Gaston que iria fazer seu tour.
O Senhor Cogsworth sugeriu que Gaston devesse aprender seu lugar, e o
príncipe ficou bravo com ele e disse que ele estava ultrapassando os limites.
O príncipe ainda estava seguindo essa linha com o pobre Cogsworth? E,
mais uma vez, Gaston lamentou nunca ter aprendido a ler ou escrever. Se
tivesse, teria mencionado a Reizinho como tinham sido as coisas entre ele e
Cogsworth nos últimos anos. Ele odiava a ideia de Reizinho ainda ser cruel
com o velho.
– Não tenho certeza do que Reizinho falou a você, Senhor Cogsworth,
mas estou muito feliz com a forma como as coisas têm estado entre nós
ultimamente. Não vamos estragar tudo agora – declarou Gaston, desejando
saber o que o príncipe dissera.
– Como quiser, senhor. O jovem Francis irá lhe mostrar seu quarto e
cuidará de você esta noite – disse ele, daquela maneira rígida.
– Cuidar de mim? O que você quer dizer? – Gaston não conseguia
esconder a expressão incrédula em seu rosto. Ele ficou pasmo.
– Como primeiro lacaio, ele serve como valete quando temos convidados
que não trazem seus próprios criados. – Ele olhou Gaston de cima a baixo.
– Claro que não tenho servos. O que está acontecendo? Acabei de ver
Francis; ele não mencionou nada disso. Não preciso de um valete, Senhor
Cogsworth – falou ele, balançando a cabeça.
– No entanto, Francis estará lá para assisti-lo. – O Senhor Cogsworth
abriu a porta e convocou Francis até sua despensa. Francis chegou, não
usando mais o traje anterior, agora vestindo um uniforme preto sóbrio,
digno de um valete.
– Francis, você poderia, por favor, mostrar a Gaston o quarto dele? –
solicitou Cogsworth.
Isso tudo foi demais para Gaston, e ele não entendia por que Cogsworth
estava fazendo tanto rebuliço. Reizinho devia ter dito alguma coisa para ele.
Era estranho ter pessoas que ele conhecia, pessoas de quem era amigo e
com quem até crescera, a sua disposição. Mal conseguia pensar no que
dizer ou para onde olhar enquanto ele e Francis caminhavam juntos para
seu quarto. Então, tentou quebrar a tensão.
– Quantas trocas de roupa você espera fazer no decorrer de um dia, hein,
Francis? – Gaston perguntou com uma risada, mas Francis sequer esboçou
um sorriso.
– Por aqui, senhor – orientou Francis, abrindo a porta do quarto
designado a Gaston.
– Ah, vamos, Francis! Você também, não! – Gaston estava perdendo a
paciência. Ele sabia que Francis estava apenas fazendo seu trabalho, mas
sentia como se tivesse sido transportado para outro universo ou sendo alvo
de alguma pegadinha elaborada em que todos estavam envolvidos. E
quando Francis o deixou entrar em seu quarto, ele ficou chocado.
Era um grande conjunto de cômodos com móveis de madeira e paredes
com lambris decoradas com cabeças de alces, veados e lobos. Havia uma
gigantesca lareira de pedra com duas poltronas confortáveis em frente ao
fogo crepitante, flanqueada por duas enormes estátuas de alces. E, sobre a
lareira havia vários decantadores de cristal, com copos combinando para
saborear as diversas bebidas alcoólicas.
Os aposentos ficavam nos fundos do castelo e tinham um par de portas
envidraçadas que davam para uma varanda com uma vista deslumbrante do
céu noturno e, abaixo, do vasto bosque. A varanda se conectava ao quarto
adjacente, que tinha uma enorme cama de dossel esculpida em madeira. Os
postes eram elaborados de maneira complexa para se parecerem com
bolotas, folhas e pequenas criaturas da floresta, como esquilos, coelhos e
raposas. A cabeceira apresentava um lobo dormindo sob um céu noturno
com lua cheia. A cama era guarnecida por pesadas cortinas de veludo que
combinavam com as cortinas das janelas, e tapeçarias vermelhas
penduradas nas paredes de pedra. Do outro lado do quarto havia uma
penteadeira e um guarda-roupa, onde os trajes estavam pendurados
esperando que ele os vestisse para as festividades noturnas.
Esse quarto não refletia o estilo da rainha. Quase parecia que tinha sido
decorado especialmente para Gaston, embora a ideia fosse ridícula, mesmo
que ele não se lembrasse de ter visto um quarto como aquele em todos os
anos que passara lá. Não conseguia acreditar que receberia aposentos tão
grandes com tantos convidados reais vindo se hospedar no castelo.
– Uma sala de estar e um quarto. Que chique. Tem certeza de que é para
mim? – perguntou a Francis, que estava em posição de sentido, aguardando
as ordens de Gaston.
– E um quarto com banheira – observou Francis, apontando para uma
porta entreaberta que Gaston não percebera. – Eu preparei o banho para
você. Voltarei mais tarde para ajudá-lo a se vestir.
– Isso não é necessário, Francis. Não sei do que o príncipe está
brincando, mas tenho certeza de que você tem coisas melhores para fazer do
que ajudar um homem adulto a se vestir – disse Gaston.
– Mas é o meu trabalho, senhor – insistiu Francis, e de repente Gaston
sentiu-se envergonhado. Ele não pretendia menosprezar a posição do
homem.
– Claro que é. Desculpe. Obrigado, Francis. – Ele observou Francis sair
do quarto com um pouco de alívio, suspirou e se jogou na cama. Não sabia
o que estava acontecendo, mas decidiu que o que quer que fosse logo
descobriria. E a última coisa que ele faria seria fazer papel de bobo. Se
Reizinho queria que ele se vestisse e agisse como um cavalheiro, então era
isso que faria. Gaston não tinha ideia se seus medos em relação a Circe
eram baseados na realidade, mas decidiu que não daria a ela um motivo
para não gostar dele. Ele se comportaria da melhor maneira possível.
CAPÍTULO X

A FEITICEIRA NO JARDIM DE
ROSAS

Gaston ficou surpreso por ter tempo de sobra depois de se vestir para o
baile e ficou bastante feliz por Francis estar lá para ajudá-lo, afinal. Não era
de admirar que a realeza precisasse de criados e criadas – suas roupas eram
tão complicadas, com pequenos botões e prendedores, que ele não seria
capaz de dar conta, especialmente com suas mãos grandes. Ele riu,
imaginando-se tendo que se virar com tudo aquilo sozinho. Graças aos céus
por Francis.
Ainda tinha algum tempo antes de ser aguardado na sala de estar, então
decidiu dar um passeio pelos jardins. Sentia-se bastante estiloso, e talvez até
um pouco elegante (pelo menos para Gaston) com seu novo traje, que ele
não odiou. Outra surpresa. Quem diria que iria gostar de se vestir bem e se
sentir tão bonito. É claro que Reizinho escolheria algo perfeito. Ou pelo
menos daria instruções a alguém incumbido de adquirir as roupas novas e
elegantes de Gaston. As cores, o caimento e o estilo eram perfeitos para
Gaston. Vermelho era a cor de Gaston, e Reizinho sabia disso. Ele escolhera
uma bela sobrecasaca vermelho-escura que fez Gaston se sentir um
cavalheiro sem todo o espalhafato que detestava na moda da realeza.
E se os numerosos elogios que Francis lhe fez fossem indicação disso,
Gaston parecia bastante elegante em seu novo traje na última moda. Claro,
isso era o que seria de esperar que um valete dissesse, mas algo na maneira
como Francis falou quando Gaston estava totalmente vestido fez Gaston
sentir que parecia bastante arrasador.
Ele começara bem.
Gaston estava grato por esse tempo sozinho para pensar e passear pelos
jardins antes de ser lançado em uma situação social na qual, francamente,
não tinha ideia de como se comportar. Mas o novo traje o ajudou. Pelo
menos, ele teria a aparência adequada.
Enquanto caminhava, ouviu vozes de mulheres vindas de dentro do
roseiral. Era lindo, repleto de roseiras rosadas e cercado por sebes altas com
um caminho circular de pedra que levava ao centro, onde se podia sentar e
apreciar a vista. Quem estava no jardim parecia estar discutindo, sem saber
que Gaston se encontrava do outro lado da cerca viva e podia ouvir tudo o
que diziam. Ele sabia que um cavalheiro não ficaria escutando, mas,
também, ele não era um cavalheiro, mesmo que estivesse vestido como um.
– Por favor, irmãs, parem de tentar nos separar. Ele não fez nada para
merecer seu desprezo!
– Ele não é digno de você, Circe.
– Nós vimos isso no...
– ... Livro dos Contos de Fadas.
Gaston poderia jurar que ouvia três, talvez quatro, vozes diferentes
participando da conversa. E algumas delas pareciam um bocado bizarras.
Tão estridentes, com uma cadência tão incômoda na forma como falavam,
terminando as frases umas das outras. Eram vozes que ele não havia ouvido
antes, então tinha quase certeza de que deviam ser Circe e suas irmãs
esquisitas. Plumette comentara que as irmãs de Circe eram estranhas e ela
estava certa. Ele se perguntou se o príncipe as havia conhecido antes de
pedir Circe em casamento. Provavelmente teve que fazer isso, se elas eram
suas guardiãs. Embora parecesse que ela concordara em se casar com o
príncipe sem o consentimento delas, o que significava que Circe era dona
de seu nariz. Talvez ele gostasse dela, afinal.
– Ele é um monstro, Circe! – disse uma de suas irmãs com uma voz
esganiçada tão alta que Gaston estava preocupado que ela pudesse chamar
atenção de outras pessoas. Ele olhou em volta para ver se havia mais
alguém no jardim, mas não avistou ninguém, a não ser os funcionários, na
correria da preparação do baile.
– Ele não é um monstro, Lucinda! Ele me ama e eu me casarei com ele,
não importa o quanto você proteste! – disse Circe.
Gaston ficou surpreso. A tal Circe parecia saber o que queria e estava
visivelmente apaixonada por seu amigo. Ele ficou bastante impressionado
ao ouvi-la enfrentar as irmãs e percebeu que começava a gostar dela, apesar
de tudo. Talvez ela fosse exatamente o tipo de pessoa que manteria
Reizinho na linha.
– Ele ama você por sua beleza e título, e nada mais – disse uma das
irmãs.
– Que título? Não tenho título e mesmo assim ele concordou em se casar
comigo. Poderia se casar com quem bem entendesse, mas quer se casar
comigo – disse Circe.
– Você vem de uma das famílias mais antigas de Muitos Reinos, Circe –
uma terceira irmã falou.
– Você merece coisa melhor do que esse garoto que está brincando de rei.
Enxergamos dentro de seu coração. Não vemos nada além de crueldade e
egoísmo persistentes ali. Guarde minhas palavras, minha garota, ele vai
partir seu coração. Você acha que ele a amaria se você não fosse tão bonita?
Ou, digamos, se você fosse filha de um criador de porcos?
– Eu acho! Esse tipo de coisa não importa para ele. Ele me ama
incondicionalmente – insistiu Circe, e Gaston tentou não rir, perguntando-se
se isso era verdade.
– Veremos, minha menina. Veremos – disseram todas as suas irmãs ao
mesmo tempo, o que Gaston achou perturbador. Como deveria ser a vida
para essa jovem, vivendo com essas irmãs horríveis e controladoras? Não
era de admirar que ela estivesse ansiosa para se casar com o príncipe, pelo
menos para fugir de sua estranha família.
Gaston ouviu Circe chorando quando três pares de passos ressoaram
audivelmente em sua direção no caminho de pedra que desembocava do
jardim de rosas. Ele rapidamente se afastou para fazer parecer que não
estava ali ouvindo, mas não pôde deixar de se assustar com elas quando
saíram de trás do alto muro do jardim. Eram mulheres de aparência
assustadora, cada uma delas exatamente igual às outras. Pensar que havia
uma mulher assim em seu reino, quanto mais três, era inacreditável, com
cabelos negros, pele horrivelmente pálida e olhos bulbosos tão fortemente
delineados de preto que pareciam ter acabado de rastejar para fora de seus
túmulos. Gaston sentiu um arrepio percorrê-lo quando elas lançaram seu
olhar sobre ele, olhando-o de cima a baixo enquanto passavam.
Aquelas mulheres eram realmente enervantes. Elas olharam para ele
como se o conhecessem. Como se conhecessem sua história e o que estava
em seu coração. E ele sentiu que elas sabiam que ele estivera ouvindo a
conversa delas. E por alguma razão sobrenatural, tudo isso pareceu agradá-
las.
Ele observou enquanto elas se afastavam em direção às grandes portas
duplas elaboradamente esculpidas que levavam ao castelo, e não pôde
deixar de se perguntar no que o príncipe havia se metido. Até o modo como
andavam era perturbador, amontoadas, como se estivessem conectadas,
sussurrando e batendo os saltinhos no caminho, os vestidos nos tons preto e
berinjela flutuando ao redor delas como flores cadavéricas. Pareciam bruxas
de um conto de fadas. Isso o lembrou daquele livro que ele e o príncipe
leram, o Livro dos Contos de Fadas. Eram essas as mulheres daquelas
histórias? E então ele se lembrou, uma delas havia mencionado o mesmo
livro. Disseram que viram a história de Reizinho em suas páginas. Como
isso era possível? Ele e Reizinho leram aquele livro de capa a capa e nunca
viram uma história sobre seu reino. Essas mulheres estavam delirando ou
mentindo.
Quem quer que fossem, por tudo que Gaston acabara de ouvir, essas
mulheres peculiares não queriam que sua irmã se casasse com o príncipe. O
príncipe não precisava se envolver nessa briga familiar. Ele não gostaria
que as irmãs de Circe clicassem os saltinhos pelo castelo, assustando os
funcionários com seus rostos pavorosos. Gaston não sabia o que pensar.
Circe defendera o príncipe diante de suas excêntricas irmãs; ela parecia
amá-lo e confiar nele. Mas mesmo que ela fosse a mulher mais bonita de
todas as terras, valeria a pena ter aquelas mulheres terríveis como irmãs por
casamento?
Quando sua mente se acalmou um pouco, Gaston não pôde deixar de
ouvir Circe ainda chorando no jardim, então, quando as irmãs dela estavam
a uma distância segura, ele pegou o lenço que Francis havia colocado tão
cuidadosamente no bolso do peito de sua sobrecasaca e entrou no jardim.
Ela estava sentada no banco, seus cabelos dourados brilhando ao luar;
parecia iluminada por dentro. Sua cabeça estava baixa; ela não sabia que ele
estava ali olhando para ela. Quando ergueu os olhos, ele entendeu. Era a
mulher mais linda que ele já tinha visto. Sua beleza era quase dolorosa
demais para ser contemplada. Ele estendeu o lenço e observou-a pegá-lo
para enxugar as lágrimas. Seus olhos tristes olharam para ele com bondade.
– Obrigada, Gaston – disse ela, sorrindo para ele. Ele se perguntou como
ela sabia o nome dele. Reizinho devia ter contado a ela tudo sobre ele, sobre
seu maior companheiro, mas como ela sabia que ele era essa pessoa? – Peço
desculpas pelas minhas irmãs. Imagino que você tenha ouvido o que elas
disseram. – Ela parecia pequena e triste. Tão doce e nem um pouco como
ele havia imaginado. Não era de admirar que seu amigo quisesse se casar
com ela e estivesse dando tanto trabalho a todos no planejamento desse
grandioso evento.
– Elas protegem a irmã mais nova – disse ele, sem saber o que mais dizer.
– Você é muito gentil. – Ela se levantou e pegou a mão dele, piscando
para afastar mais lágrimas. – Eu gostaria que você não tivesse que partir. –
Ela disse isso de forma tão causal que quase não foi registrado.
– O que você quer dizer? Para onde estou indo? – ele perguntou,
retirando a mão surpreso.
– Querido, doce Gaston. Eu vejo dentro do seu coração. Vejo a dor que o
príncipe lhe causou, como isso apodrece profundamente dentro de você, e
temo que um dia um de vocês perca a vida como resultado. Por favor,
confie em mim, é melhor que vocês nunca mais se vejam.
– Confiar em você? Eu não a conheço, mademoiselle! Você vem aqui
com suas irmãs horríveis, fazendo prognósticos, dizendo que vou perder
minha vida por causa de meu melhor amigo, meu irmão? Ou que de alguma
forma irei causar o fim dele? Quem você pensa que é?
– Às vezes, não podemos evitar nosso destino, Gaston. – Embora aquela
mulher pudesse não se parecer com suas irmãs, ela também era uma bruxa,
embora mais astuta e sedutora. Sabia o que estava fazendo, usando sua
beleza e voz gentil, tentando fazê-lo pensar que machucaria seu amigo.
Mas, na verdade, ele sabia que ela só o queria fora do caminho.
– Reizinho contou a você como meu pai morreu? Você está dizendo que
vou me vingar dele de alguma forma? Isso é loucura!
– Não é vingança. Pelo menos, acho que não. O que vejo não está claro.
Tudo o que sei é que envolve uma fera – declarou ela, estendendo a mão
para pegar a dele, como se lhe doesse dizer essas palavras. Ela era uma boa
atriz, aquela bruxa. Astuta, cruel e perversa, disfarçada por uma voz
melíflua.
– Eu não culpo mais Reizinho por isso. Eu nunca iria machucá-lo.
Nunca!
– No entanto, algo tomou conta de você. Um ódio por algo ou alguém,
tão forte que colocará a vida do príncipe em risco – disse ela.
– Meu ódio é pela fera que matou minha mãe e meu pai, não por
Reizinho! – Ele deu um passo para trás. – Que tipo de mulher você e suas
irmãs são? Que tipo de bruxas? Você entendeu tudo errado, Circe. Eu não
vou matar Reizinho.
– Eu sei. Estou preocupada que ele possa matar você – disse Circe.
– Você está me ameaçando?
– Estou apenas oferecendo um aviso. Gostaria de poder ver os eventos
claramente em minha mente. Eles estão obscuros e confusos, mas sei que se
vocês dois continuarem amigos, isso resultará em um dos dois matando o
outro – afirmou ela. – E parte meu coração dizer isso, porque sei que ele
não ama ninguém mais do que ama você. Nem mesmo a mim.
– É disso que se trata, então, não é? Você está com ciúmes. Você está
tentando se livrar de mim.
– Se eu estivesse apenas tentando me livrar de você, pediria às minhas
irmãs que o levassem para o Hades. Acredite ou não, Gaston, depende de
você. De qualquer forma, há um jantar e um baile dos quais devemos
participar, e imagino que todos estejam esperando que nos juntemos a eles
na sala de estar. Então, por que você não aproveita ao máximo esse tempo
que passa com seu irmão antes de partir? E, por favor, confie que farei tudo
o que puder para fazê-lo feliz na sua ausência.
Ela sorriu para ele como se não estivesse destruindo seu mundo. Isso era
pior do que Gaston imaginara.
– Você já contou a Reizinho sobre isso?
– Não. Eu não queria estragar o reencontro de vocês para ele. Pensei em
deixar você lhe dizer que estava indo embora. Acho que seria melhor vindo
de você. É o melhor, Gaston, por favor, confie em mim. Só estou tentando
proteger vocês dois. – E ele quase acreditou que ela pensava que estava
dizendo a verdade.
– Eu entendo – mentiu Gaston, oferecendo o braço a Circe para que ele
pudesse acompanhá-la até a sala de estar. Ele não podia fazer nada a esse
respeito agora. Ali não. A qualquer momento alguém viria procurá-los. Ele
tinha que agir como um cavalheiro. Tinha que agir como se tudo estivesse
exatamente como deveria ser. Ele pareceria o bruto que Circe
provavelmente pensava que ele era se fizesse uma cena. Mas o fato é que
ele não entendia. Aquilo tudo fora uma loucura. Previsões misteriosas e
suas horríveis irmãs bruxas. Algo não estava certo. Por mais grotescas que
fossem suas irmãs, Circe era a perigosa. Ela queria Reizinho para si. Ela
quase disse isso. O príncipe o amava mais do que qualquer um, inclusive
ela. Era disso que se tratava. Gaston não se importava se ela era uma bruxa
perigosa ou não. Ele não iria deixá-la mandá-lo embora.
Quando chegaram à sala, todos estavam esperando para entrar e jantar.
Eram apenas a família real, as irmãs de Circe e um pequeno número de
amigos da família. Gaston não sabia o que fazer quando viu Reizinho. O
que ele queria era abraçar seu velho amigo, dizer-lhe o quanto sentira sua
falta, que ficar sem ele era mais do que poderia suportar. De alguma forma,
Gaston não percebeu que se sentia assim até o momento em que Circe
ameaçou mandá-lo embora. Quando viu Reizinho parado ali, sorrindo para
ele, soube que nunca mais queria ficar sem ele. Gaston dizia a si mesmo
que estava feliz por Reizinho estar fora, feliz por estar sozinho, mas, na
verdade, estava infeliz e solitário longe dele. Vinha ocupando seus dias
caçando a fera, tentando esquecer a dor da perda de seu pai, mas também a
perda de seu companheiro mais próximo. No momento em que contasse a
Reizinho a verdade sobre como sua mãe havia morrido, Gaston sabia que o
príncipe se juntaria a ele na caça à fera, e, juntos, a matariam, reescrevendo
para sempre toda a dor e angústia que ela havia causado. Mas se Circe
estava determinada a separá-los, a mandá-lo para longe de seu melhor
amigo, de seu irmão, e do único lar e família que ele conheceu, como isso
seria possível? De certa forma, ele estava grato a Circe por fazê-lo temer
perder seu melhor amigo para sempre.
Ele precisava fazer algo a respeito dela. Mas, primeiro, só precisava
passar pelo jantar e pelo baile. Ele viu a rainha sorrir para ele do outro lado
da sala. Seu coração doeu ao pensar que era difícil para ela vê-lo, que isso a
fazia se lembrar de sua amiga Rose. Quão sentida ela ainda deve estar pela
perda. Ele não conseguia imaginar perder Reizinho. E, assim que ganhou
coragem e atravessou a sala para abraçar o amigo, Lumière abriu as portas
da sala de jantar com um gesto teatral e grandioso que chamou atenção de
todos.
– O jantar está servido, Vossas Majestades!
– Obrigada, Lumière – disse a rainha com um sorriso. – Todos, por favor,
sigam Lumière até a sala de jantar. – Lumière os conduziu.
– Gaston, você não vai acompanhar minhas irmãs até a sala de jantar?
Tenho certeza de que elas ficariam honradas – disse Circe enquanto se
aproximava do príncipe para que pudessem entrar juntos na sala de jantar.
– Seria um prazer – respondeu Gaston, encolhendo-se ao oferecer o braço
à irmã da ponta. E será um prazer ver você deixar este reino, para nunca
mais voltar, ele pensou enquanto conduzia desajeitadamente as três bruxas
até a sala de jantar.
Mas o estranho foi que, justamente quando ele pensou isso, todas as três
olharam para ele e sorriram sinistramente. Elas o ouviram. Ele soube disso.
Leram seus pensamentos. Era estranho e inconfundível, mas inegável. Elas
eram bruxas. Porém foi a coisa mais inusitada; elas pareciam querer ajudá-
lo. Bem, é claro que sim, quando ele pensou melhor sobre isso. Elas não
queriam que a irmã se casasse com o príncipe, assim como ele. Juntos,
encontrariam uma forma de garantir que aquele casamento nunca
acontecesse. Mesmo que isso significasse fazer amizade com aquelas irmãs
esquisitas.
CAPÍTULO XI

UM CONTO TÃO ANTIGO QUANTO


O TEMPO

Para horror de Gaston, ele estava sentado entre as ridículas irmãs de Circe.
Descobriu que se chamavam Lucinda, Ruby e Martha, embora não soubesse
qual bruxa era qual. O jantar durou uma eternidade, enquanto Lumière
apresentava prato após prato, comida suficiente para que até Gaston
estivesse quase estourando. De vez em quando, via Lumière olhando para
ele, como se se sentisse mal pelo infeliz lugar de Gaston à mesa. Gaston
mal podia esperar para descer para o salão dos empregados e contar-lhes
que os rumores sobre as irmãs de Circe eram verdadeiros.
– Como deve ser estranho para você estar no salão de jantar, entre as
pessoas que você já serviu – disse uma das irmãs de aparência medonha.
Era verdade. Era estranho estar ali com o rei e a rainha, e até mesmo com
Reizinho, naquele cenário. Era tudo tão formal, com grandes arranjos
florais e velas por toda parte. Com Cogsworth e todos os seus lacaios
alinhados, em posição de sentido e esperando para ver se algum dos
convidados precisava de alguma coisa.
– Acho que é ainda mais desconfortável ser atendido por pessoas que
considero meus amigos – afirmou ele.
– Falando em amigos, como você deve estar triste. O príncipe não disse
uma palavra a você a noite toda. Acho que ele nem olhou em sua direção
durante o jantar – declarou a bruxa à esquerda. Isso era verdade. Mas
Reizinho sorriu para ele quando estavam na sala de estar, e isso era tudo de
que Gaston precisava. Ele sabia em seu coração que o amigo estava feliz
em revê-lo.
– Sim, me pergunto se Circe não o envenenou contra você – disse a bruxa
à direita, que obviamente não se importava em quebrar as regras de
etiqueta.
Uma das coisas que Francis transmitira a Gaston durante seu curso
intensivo de etiqueta da corte, enquanto o ajudava a se vestir, foi que era
impróprio falar do outro lado da mesa durante jantares formais. Esperava-se
que os convidados seguissem o exemplo da rainha. Se ela estava
conversando com a pessoa à sua esquerda, o mesmo acontecia com todos os
outros à mesa. E assim que ela passou a falar com a pessoa à sua direita,
todos seguiram o exemplo. O que significava que, para a consternação de
Gaston, ele passou a refeição inteira apenas falando com as assustadoras
irmãs de Circe.
– Ora, vamos, acho que vindo de uma família como a sua, tão antiga e
tão respeitada, vocês saberiam como funcionam jantares como este –
pontuou Gaston, feliz consigo mesmo por ter se lembrado da lição de
Francis.
– Você está nos repreendendo, Gaston? É tão cavalheiro agora que se
julga em posição de comentar nossa falta de decoro? – disse a bruxa à
direita.
– De jeito nenhum, minha senhora. Apenas dei uma explicação razoável
sobre por que o príncipe ainda não falou comigo esta noite. – Perguntou-se
quando aquele jantar miserável terminaria e ele seria libertado de tal
tormento, pois estava claro que era isso que aquelas mulheres estavam
fazendo, atormentando-o e sentindo muito prazer em fazê-lo.
Quando as bruxas não estavam sussurrando umas com as outras,
conversavam com ele. Alfinetando, bisbilhotando e rindo estridentemente
em seus ouvidos. Mas a bruxa tinha razão. Reizinho não olhara para ele
nenhuma vez durante toda a refeição. E Gaston se perguntou se as bruxas de
aparência esquelética, com perucas e maquiagem demais no rosto, estavam
certas ao dizer que a maldita Circe também estava enchendo a cabeça de
Reizinho com mentiras sobre ele. Talvez ela já tivesse dito a Reizinho que
ele precisava mandá-lo embora. Uma das coisas que Gaston se lembrava
das histórias de sua infância era que as bruxas raramente, ou nunca, diziam
a verdade. Portanto, é muito provável que Circe estivesse mentindo. Mas o
que isso significava para suas irmãs? Elas também estavam mentindo ou
essa era uma daquelas raras ocasiões em que disseram a verdade? Ele não
tinha certeza do que pensar, exceto que acreditar nas irmãs de Circe tornava
mais fácil conspirar contra ela.
Enquanto estava ali sentado, durante a interminável sucessão de pratos e
conversas desconcertantes, ele se perguntava como aquelas poderiam ser as
verdadeiras irmãs de Circe. Achou que eram pavorosas quando as viu pela
primeira vez no jardim, mas agora, na sala de jantar com as velas acesas, ele
se deparou com o verdadeiro horror delas. Seus rostos estavam pintados de
branco, com uma camada tão espessa que parecia que nunca os lavavam e
apenas reaplicavam a maquiagem, camada sobre camada, criando um efeito
craquelado. Parecia esmalte desgastado no rosto de uma boneca
negligenciada. E era alarmante como eram magras como esqueletos: só
ossos, pele, olhos e penteados elaborados, com penas que não paravam de
roçar seu rosto quando elas viravam a cabeça. Lumière ficava rindo sozinho
quando via Gaston tirando as penas do rosto ou esquivando-se de um
cotovelo pontudo enquanto tentava tomar sua sopa. Gaston também riria
disso, se não estivesse tão infeliz. Talvez ele risse quando contasse a
história aos amigos lá embaixo.
– Imagino que seus amigos Lumière e Francis, e talvez até mesmo o
Senhor Cogsworth, já tenham contado a história a eles antes de você vê-los
novamente – declarou uma das bruxas.
Gaston ficou envergonhado, esquecendo que as bruxas podiam ouvir seus
pensamentos. Isso estava claro desde o momento em que ele as conheceu.
Não que já houvesse estado na companhia de muitas bruxas, ao menos pelo
que ele houvesse tomado conhecimento, mas sabia o suficiente sobre elas
pelo Livro dos Contos de Fadas, e ficava cada vez mais convencido de que
aquelas poderiam muito bem ser as bruxas desses contos. Na verdade, elas
pareciam se assemelhar às bruxas da história da Branca de Neve. As
mesmas bruxas que conduziram sua madrasta Grimhilde pelo caminho da
escuridão e da ruína. Ainda assim, ele ficou envergonhado. Uma coisa era
pensar algo rude, mesmo que fosse verdade. Outra era ter seus pensamentos
secretos compartilhados sem intenção. Ele não sabia bem o que dizer,
exceto pedir desculpas.
– Sinto muito.
– Sabemos que as pessoas zombam de nós, Gaston. Nós também
zombamos de todos vocês – disse a bruxa à esquerda.
– Suponho que estejamos empatados, então – afirmou ele, olhando para
Reizinho e Circe. Foi a primeira vez que ele deixou seu olhar pairar sobre o
casal, e desejou não ter feito isso. Seu amigo parecia muito apaixonado por
ela, dando-lhe beijos e alimentando-a com pequenos doces de seu próprio
prato.
– Não temos certeza se isso é verdade – comentou uma das bruxas,
desviando sua atenção do casal feliz. A princípio, Gaston pensou que ela
estava respondendo seu comentário sobre estarem empatados, mas então
percebeu que a bruxa estava lendo seus pensamentos mais uma vez.
– Você não acha que ele a ama? Ela não consegue ler mentes como
vocês? – ele perguntou baixinho, para que ninguém mais ouvisse.
– Não quando é importante – sibilou uma delas.
– Não quando ela mais precisa – disse outra.
– Não quando ela está sendo teimosa! – disseram juntas, muito mais alto
do que ele esperava.
– Entendo – disse Gaston, olhando em volta para ver se todos os
encaravam. Eles só haviam chamado atenção do Senhor Cogsworth, o que o
surpreendeu e, provavelmente, porque o mordomo estava sempre em alerta.
Essa era uma de suas funções: ver coisas que os outros não viam. Mas todos
os outros à mesa pareciam estar demasiado absortos nas próprias conversas
para repararem. Sem perceber, uma das irmãs voltou a falar.
– Ele aprecia aspectos dela. Ama a beleza de Circe e o fato de ela vir de
uma família excelente, e adora que ela passará essas coisas para os filhos
deles, caso tenham algum – disse a bruxa da extremidade.
– Mas ele não a ama de verdade. Ele não a conhece. Não enxerga sua
grandeza, sua inteligência, seu talento – falou a bruxa à esquerda, com os
olhos esbugalhados de medo nas órbitas enegrecidas.
– Ela não o vê claramente. Só percebe que existe amor, que na verdade
está desviado. Não percebe que o que ele adora é o fato de como as virtudes
dela refletirão sobre ele – declarou a bruxa mais distante de Gaston.
– Eu poderia dizer o mesmo sobre vocês, senhoras. Não creio que vejam
o príncipe com clareza – falou ele, enquanto os lacaios começavam a
recolher o último prato de sobremesa. Gaston esperava que aquele fosse o
prato final e que em breve ele fosse libertado da tortura. Tinha lido sobre os
diferentes círculos do Submundo, cada um deles sendo pior do que o outro,
e decidiu que ficar preso às Irmãs Esquisitas seria o destino mais
insuportável que se podia imaginar.
– Talvez. Mas funcionaria realmente a seu favor se o aprovássemos?
Você não deveria concentrar seus esforços em convencer seu amigo a
desistir desse casamento? – disse a bruxa à esquerda, e, antes que ele
pudesse responder à pergunta da mulher infernal, elas voltaram a conversar
com ele.
– Seu desejo finalmente se tornou realidade, Gaston. Parece que você
será dispensado de nossa companhia. Veja. – A bruxa à esquerda gesticulou
para Lumière, que estava na frente da sala se preparando para fazer seu
anúncio.
– As senhoras são bem-vindas para se juntarem à rainha na sala de estar
enquanto os cavalheiros desfrutam de um vinho do Porto e charutos aqui –
disse ele com um floreio de mãos.
Gaston e todos os cavalheiros levantaram-se com as damas, esperando
até que todas saíssem do salão antes de voltarem a sentar-se. Gaston notou
os homens se agrupando perto do rei e do príncipe, em vez de voltarem a
seus assentos originais, então decidiu que faria o mesmo. Mas, quando
chegou lá, o príncipe levantou-se novamente.
– Desculpem-me, nobres cavalheiros, mas receio que precisarei deixá-los
com seu vinho e seus charutos. Não posso ficar longe de minha querida
Circe. Confio que a companhia do rei será mais do que satisfatória. – Ele
olhou para Gaston pela primeira vez desde que se viram antes do jantar.
Gaston sempre foi capaz de ler Reizinho, mas não conseguiu distinguir a
expressão em seu rosto naquele momento. Era tristeza? Ele não tinha
certeza. Gaston se levantou para poder seguir seu amigo, imaginando se
talvez ele não estivesse tentando sinalizar para ele se retirar também para
que pudessem finalmente conversar, mas o rei o impediu.
– Não, meu rapaz, fique aqui conosco. Ouso dizer que você tem estado
muito na companhia de mulheres tagarelas. Fique e tome uma bebida
conosco – disse o rei, rindo.
– Talvez você tenha razão, Majestade – respondeu Gaston, juntando-se às
risadas.
A última coisa que Gaston queria era ser encurralado pelas irmãs
esquisitas de Circe na sala de estar. Se ele iria conspirar com aquelas bruxas
diabólicas, não precisava que Circe descobrisse. Não havia nada que ele
pudesse fazer quanto a ter que conversar com elas durante o jantar, mas se
fosse visto conversando com elas também na sala de estar, Circe certamente
saberia que estavam tramando alguma coisa. Ele só podia esperar que não o
perseguissem no salão de baile.
Depois dos drinques no salão de jantar, os homens juntaram-se
brevemente às senhoras na sala de estar antes que Lumière abrisse as portas
francesas que levavam ao jardim e acenasse dramaticamente para que o
grupo se reunisse no terraço. Abaixo, eles viram uma multidão de
carruagens abertas atravessando a ponte de pedra. Era hora de sua reunião
íntima se transformar em um evento de gala, com senhores, damas, reis e
rainhas de várias terras, algumas distantes e outras próximas, todos ali para
celebrar o noivado do príncipe e para conhecer a mulher com quem ele iria
se casar. Circe e o príncipe ficaram mais próximos da grade do terraço,
acenando para todos os convidados enquanto fogos de artifício explodiam
no céu.
– Venham, vamos dar as boas-vindas aos convidados – disse a rainha,
pegando o braço do rei e fazendo sinal para que Circe e o príncipe os
seguissem. Todos foram conduzidos ao salão de baile por Lumière. O lugar
estava resplandecendo com as velas brilhando no lustre e nas arandelas de
parede. Gaston nunca tinha reparado naquele salão antes. Ele passara por
ele muitas vezes quando criança, mas nunca se demorara, nunca realmente
o vira. Era uma vasta sala de mármore com fileiras de pilares igualmente de
mármore realçados com ouro e cobertos com faixas de seda vermelha que
combinavam com a sobrecasaca do príncipe. O teto era magnífico, pintado
para parecer uma paisagem celestial de sonho, com o lustre pendurado no
centro. À esquerda, havia uma orquestra perto do piano e, à direita, um
estrado com tronos para a família real sentar-se. E ao redor do perímetro da
sala havia pequenas mesas redondas, com cadeiras para os convidados
descansarem entre as danças. Mas o que Gaston mais amava era a parede de
janelas e portas francesas que davam para todo o reino, com uma vista
deslumbrante do céu noturno, ainda brilhando com fogos de artifício.
A família real sentou-se em seus tronos para aguardar a chegada de seus
convidados, enquanto os fogos de artifício projetavam suas explosões
coloridas no salão de baile. Gaston e os outros que se reuniram no jantar
íntimo sentaram-se nas mesas mais próximas da família real enquanto o
Senhor Cogsworth postou-se na entrada anunciando a chegada dos
convidados, todos prestando homenagem à família real e parabenizando o
príncipe e Circe sobre o noivado.
Depois que todos estavam reunidos, Cogsworth deu uma deixa para
Lumière, que tocou uma pequena sineta de latão retirada do bolso. Uma
legião de lacaios entrou empurrando um carrinho com um bolo enorme,
elaborado para se parecer com o próprio castelo, com pequenas figuras de
marzipã da família real. Era primorosamente decorado com todos os
detalhes, incluindo os jardins, que tinham até pequenas criaturas da floresta.
Todos abriram a boca de admiração quando o bolo adentrou o salão. Era
uma obra de arte. Momentos depois, mais lacaios entraram na sala com
grandes bandejas de champanhe que serviram aos convidados. Assim que
todos estavam com uma taça na mão, Lumière fez outro anúncio.
– E agora o rei gostaria de fazer um brinde ao feliz casal.
O rei e a rainha levantaram-se de seus tronos e sorriram aos presentes. A
rainha estava deslumbrante em seu vestido de veludo vermelho bordado
com rendas delicadas e miçangas finas que caíam em cascata do corpete ao
longo de sua saia volumosa. O rei, que também trajava vermelho, usava
uma sobrecasaca de veludo com dragonas pretas e botões dourados com
calças pretas. Eles formavam um casal impressionante, imperioso e
majestoso, e vibrando de felicidade por celebrar o noivado do filho.
– É uma honra para mim e para Sua Majestade, a rainha, receber todos
vocês aqui e colocar nossas bênçãos sobre a cabeça de nosso filho e de sua
noiva, e desejar-lhes grande alegria em seu iminente casamento. Vamos
erguer nossa taça para os futuros rei e rainha.
– À felicidade deles! – brindou a rainha, e todos seguiram o exemplo. – E
com isso declaro o baile oficialmente aberto!
Cogsworth e os lacaios levaram o bolo para um canto da sala, perto de
mesas de cavalete repletas de variadas bebidas refrescantes, enquanto o
príncipe e Circe se levantavam e se dirigiam ao centro do salão de baile. A
orquestra começou a tocar. Nada disso parecia real para Gaston, e por um
momento ele foi arrebatado pela pompa, tonto pelo glamour e pela beleza
da noite.
O príncipe usava uma sobrecasaca vermelha, não muito diferente da de
Gaston, mas com detalhes dourados. Seus longos cabelos ruivos caíam até
os ombros e seus olhos azuis brilhavam de alegria quando ele estendeu a
mão para Circe. Circe usava um vestido prateado com corpete justo e saia
rodada, bordado com pequenas contas reluzentes que cintilavam à luz das
velas. O casal parecia extasiado um com o outro quando o príncipe colocou
uma das mãos em volta da cintura de Circe e segurou sua mão com a outra,
e deslizaram ao som da música que crescia ao redor deles. Todos na sala
aplaudiram enquanto o casal valsava, girando em círculos e rindo, e logo
outros casais se juntaram, bailando ao redor deles.
Gaston estava sentado sozinho em uma mesinha, observando seu amigo
dançar. Parecia que ele estava numa espécie de sonho enquanto os outros
dançarinos flutuavam ao redor do casal. Os vestidos das mulheres pareciam
flores desabrochando, lembrando-o da conversa que tivera com Circe no
roseiral. Seu coração doeu ao vê-los valsando juntos tão felizes. Ele estava
pronto para arruinar a chance de seu amigo ter a verdadeira felicidade?
– Circe está pronta para arruinar a sua – disse uma voz que fez sua pele
arrepiar. Quando Gaston ergueu a vista, viu as estranhas irmãs de Circe
pairando sobre ele. Ele se levantou de pressa e sorriu debilmente, esperando
que elas não estivessem procurando um parceiro para dançar.
– Podemos ter essa dança? – disse a irmã do meio, e o estômago de
Gaston embrulhou. Não havia fim para sua humilhação esta noite? Primeiro
no jantar e agora no salão de baile; ele nunca se livraria daquelas mulheres?
Era demais. Nem uma palavra de Reizinho a noite toda, e agora isso?
Dançar!
– Como eu poderia escolher com qual encantadora feiticeira dançar
primeiro? – ele perguntou, revirando os olhos. Ele olhou suplicante para
Francis, que estava de pé junto às mesas de cavalete distribuindo bolo e
champanhe aos convidados.
– Você pode ter a honra de dançar com Lucinda primeiro. Ela é a mais
velha. Deveria ter a primeira dança – disseram duas das irmãs, incentivando
Gaston e Lucinda a se aproximarem dos outros dançarinos. Para seu alívio,
Gaston viu Francis apressando-se na direção deles com uma fatia de bolo
oscilando em um prato enquanto corria.
– Gaston, aqui está o bolo que você queria – Francis disse com uma
piscadela.
– Bolo? Você está servindo o bolo? – perguntaram as duas insistentes
irmãs em uníssono, agarrando Lucinda pelo braço. – Sinto muito, Gaston,
sei que você está com o coração partido, mas não podemos dançar agora! É
hora do bolo. – Com isso, elas arrastaram Lucinda, deslizando em direção à
mesa do bolo.
– Obrigado, Francis, você me salvou. Quem diria que as bruxas gostavam
tanto de bolo – disse Gaston, observando-as empurrarem para fora do
caminho os outros convidados que estavam diante da mesa do bolo.
– Bruxas, senhor? – perguntou Francis, observando horrorizado duas das
irmãs pegarem punhados de bolo e enfiá-los na boca, enquanto Lucinda
arrancava com os dentes a cabeça de um príncipe de marzipã.
– Figura de linguagem. Mas são mulheres odiosas. Basta olhar para elas.
– Gaston esfregou a cabeça em frustração.
– Não cabe a mim ter uma opinião – disse Francis, parecendo temer
voltar a suas funções.
– De qualquer forma, não enquanto você estiver aqui em cima –
comentou Gaston, fazendo Francis rir.
– Lamento que você esteja passando por um momento tão infeliz,
Gaston. Mas, se serve de consolo, você é realmente o homem mais bonito
daqui – declarou Francis, fazendo Gaston sorrir. Só então, Cogsworth
apareceu.
– Francis, a mesa de bebidas está sendo terrivelmente negligenciada. Por
favor, volte a seu posto – ordenou ele, com as mãos nos quadris. Francis
ficou ali por alguns instantes, como se quisesse reunir forças suficientes
para retornar ao posto. Suspirou profundamente antes de se virar para sair
enquanto as bruxas colocavam animais de marzipã na boca umas das outras
e gargalhavam.
– A culpa é minha, Senhor Cogsworth, eu o retive conversando – disse
Gaston, lançando a Francis um sorriso de desculpas. – Você dificilmente
pode culpá-lo, veja a bagunça que as irmãs de Circe estão fazendo.
– Há mais alguma coisa que necessite, senhor? – perguntou o Senhor
Cogsworth, rígido como sempre.
– Não, Senhor Cogsworth, você foi muito gentil – disse ele com bastante
sarcasmo.
Para alívio de Gaston, as irmãs de Circe passaram a maior parte da noite
distraídas com o bolo. Era uma distração improvável, mas, também, elas
eram extremamente esquisitas. Era estranho como ninguém parecia notar
seu comportamento inadequado, enchendo a boca de bolo, lançando olhares
raivosos ao príncipe, sussurrando atrás de seus leques e rindo
incontrolavelmente. A certa altura, elas pareciam estar fazendo uma
competição para ver quem conseguia comer mais bolo. Ninguém prestava a
menor atenção nelas. Era como se houvesse um entendimento tácito para
ignorá-las. Então, foi isso que Gaston decidiu fazer também.
O que ele não podia ignorar era quão feliz Reizinho parecia enquanto
dançava com sua enganadora noiva bruxa. A princípio, Gaston se perguntou
se seria certo arruinar a vida que seu amigo poderia ter com aquela mulher
que ele parecia amar tanto, mas à medida que a noite avançava, Gaston foi
ficando irritado e amargo. Circe estava tentando mandá-lo embora, para
longe de seu melhor amigo, da única família e lar que ele conhecia, tudo
por causa de alguma visão que ela sequer entendia completamente. Ele se
sentiu enjoado ao vê-la dançar com o príncipe, escondendo-se atrás de seu
sorriso. Era tudo falsidade, tudo jogo de espelhos e fumaça. Ela era uma
fingida, conspirando para se livrar da concorrência. Ela mesma dissera isso:
o príncipe não amava ninguém mais do que amava Gaston.
Enquanto estava sentado ali, meditando, perguntando-se se estava certo,
perguntando-se se tudo aquilo era uma farsa, ele avistou Reizinho, o
príncipe, parado sozinho perto das altas janelas envidraçadas, admirando o
panorama. Era a primeira vez durante toda a noite que Circe não estava a
seu lado. Ela conversava com o rei e a rainha, provavelmente encantando-
os, assim como seduziu a todos naquela noite com sua aparente doçura e
graça. Essa era sua chance. Ele se levantou da mesa e caminhou lentamente
pelo salão de baile. Nem tinha ideia do que iria dizer. Isso não importava.
Ele finalmente se reuniria com seu amigo. Gaston contornou o salão,
tomando cuidado para evitar Circe e a família real, com medo de que Circe
interviesse.
Quando estava prestes a se aproximar, Reizinho se virou, como se
soubesse que Gaston estava atrás dele, e sorriu ao ver seu amigo parado ali.
Mas a expressão de Reizinho rapidamente se transformou em horror.
Gaston não entendeu. Por que o príncipe estava olhando para ele assim?
Será que Circe estivera tecendo sua teia de mentiras a noite toda,
sussurrando em seu ouvido? Seu amigo já estava preso em sua armadilha?
Seria tarde demais para Gaston e Reizinho terem a vida que sonharam?
Gaston sentiu seu coração se partir, sem entender por que seu amigo o
olhava daquele jeito, e ainda mais confuso quando seu horror se
transformou em risada. Gaston ficou parado ali em silêncio e magoado,
perguntando-se por que Reizinho, o príncipe, estava rindo dele. Afinal, ele
parecia um idiota? Seus pensamentos eram tão facilmente lidos em seu
rosto? Mas, então, ele entendeu. O príncipe não estava olhando para ele.
Estava olhando além dele, para as Irmãs Esquisitas correndo em direção a
Gaston, com mãos, rostos e vestidos cobertos de glacê.
– Gaston! Gaston! – elas gritaram enquanto se aproximavam, o rosto
delas cheio de expectativa. – Oh, Gaston, é hora de nossa dança! – Gaston
enfrentara muitas feras ao longo dos anos, mas o medo que sentiu enquanto
as Irmãs Esquisitas avançavam em sua direção o encheu de aversão. – Você
nos prometeu uma dança! – disseram, gargalhando como as bruxas que
eram.
– Eu não fiz isso – protestou Gaston. – Talvez vocês queiram ir para seus
aposentos e se refrescarem. – Ele não conseguia entender por que ninguém
ali parecia notar o espetáculo grotesco que estavam dando.
– Isso é obra de Circe. Ela nos encantou. Poderíamos gritar até derrubar o
castelo e ninguém notaria ou se lembraria. De qualquer forma, ninguém tem
nenhuma importância – disse a bruxa que ele tinha certeza de que era
Lucinda.
– Entendo... – Mas, antes que Gaston pudesse concluir seu pensamento,
viu o príncipe sendo levado pelas portas do terraço por Circe e sua família.
– O que está acontecendo? – Ele olhou em volta e viu todos seguindo a
família real.
– O castiçal fez um anúncio – respondeu uma das bruxas.
– Castiçal? – ele perguntou, confuso. Do que ela estava falando?
– Candelabro, não castiçal, sua idiota! E ele ainda não é um! – disse uma
das outras bruxas.
– Do que vocês estão falando agora? Isso é simplesmente perfeito. Estou
aliado a bruxas estúpidas que pensam que os castiçais fazem anúncios. A
próxima coisa que vocês verão serão pratos dançantes.
– Talvez o façamos, um dia. Mas não é você quem vai ver. – As bruxas
guincharam alto, gargalhando.
– Shhh, Ruby, não revele todos os nossos segredos.
– Vocês podem, por favor, se comportar normalmente e parar de falar
bobagens só por um momento? – Ele já estava farto. Não iria aguentar a
insanidade delas nem por mais um instante. Já era ruim o suficiente quando
elas o irritavam e provocavam, mas agora estavam apenas falando asneiras.
Ele seguiu os outros convidados até o terraço, deixando para trás as bruxas
lambuzadas de bolo brigando por causa dos talheres dançantes.
Quando chegou ao terraço, viu por que todos estavam ali. O pavilhão da
rainha brilhava como uma joia ao longe, lançando luzes dançantes sobre o
castelo e seus terrenos. Seu coração doeu ao ver o quanto Reizinho amava
Circe. Ele se sentiu derrotado e sozinho, sem saber o que fazer. Deveria
desistir e deixar Circe afastá-lo ou lutar para viver sua vida como queria?
Ele não decidiria agora. Dormiria e tentaria pensar nisso com mais clareza
pela manhã. Sairia enquanto todos observavam as luzes. Era muito doloroso
ver o pavilhão iluminado, despertando lembranças muito vívidas dos dias
em que tudo começou a desmoronar, mudando sua vida para sempre.
As luzes pareciam fantasmas bailando, tremeluzindo e movendo-se com
a brisa. Gaston foi dominado por seus próprios fantasmas; pela mãe que ele
nunca conheceu; pelo pai, de quem sentia falta de todo o coração, e, acima
de tudo, pela vida que ele e Reizinho imaginaram para si mesmos quando
eram jovens.
CAPÍTULO XII

O ESPELHO MÁGICO

No dia seguinte, Gaston acordou em seu quarto com uma batida na porta.
Era Francis, segurando um pacote embrulhado em papel pardo e amarrado
com barbante. Gaston ainda estava exausto da noite anterior, mal abrindo os
olhos quando Francis entrou no aposento.
Gaston fez o possível para se livrar do torpor e dizer um “olá” cansado.
– O que é isso, Francis? De quem é? – ele perguntou, virando-o para ver
se havia algum bilhete.
– Não diz, senhor. Foi entregue esta manhã, e o mensageiro explicou que
deveria ser dado a você. – Francis parecia ansioso para comentar sobre
como as irmãs de Circe agiram ridiculamente na noite anterior, mas elas
eram as últimas pessoas sobre quem Gaston queria falar naquele momento.
– Que estranho. Aposto que é do príncipe – disse Gaston. – Obrigado,
Francis. – Ele estendeu a mão para remover a colcha, quase esquecendo que
não estava vestido.
– Você gostaria de tomar café da manhã no quarto esta manhã ou vai se
juntar aos outros no salão de jantar? Sei que gosta bastante de ovos. Devo
trazer um pouco para acompanhar seu café, senhor? – perguntou Francis.
– Pensei em tomar café da manhã com a equipe lá embaixo, antes de
voltar para minha propriedade. – Gaston estava farto de salas de jantar
chiques, de fingir que era um cavalheiro e, acima de tudo, de Circe e suas
irmãs.
– O príncipe achou que esse pudesse ser seu plano e disse que, se fosse
assim, avisaria que ficaria feliz em acompanhá-lo para o café da manhã lá
embaixo, antes de seu passeio a cavalo depois do café da manhã – declarou
Francis.
– Passeio? Que passeio? Deixe para lá. Obrigado, Francis.
– Devo preparar um banho para você antes de ir, senhor?
– Santo Deus, Francis, não. Posso preparar meu próprio banho, obrigado.
– Ele não quis ser rude com Francis. Simplesmente não estava acostumado
a ser servido por pessoas que considerava seus amigos. Gaston não estava
acostumado a ser servido por ninguém, aliás. E ficou surpreso que Reizinho
quisesse vê-lo. Que passeio era esse que fariam no fim da tarde? Ele não
sabia que tinham planos de cavalgar. Gaston se sentiu ignorado por
Reizinho na noite anterior, e foi um pesadelo ficar preso às irmãs de Circe,
tendo que suportar não apenas elas, mas também a falsidade de Circe.
Talvez Reizinho estivesse igualmente desapontado por não terem tido
tempo juntos na noite anterior e estivesse querendo compensá-lo por isso.
Gaston supôs que fosse descobrir. Mas isso não era motivo para descontar
no pobre Francis, que não fora nada além de gentil e solidário durante toda
aquela farsa.
– Sinto muito, Francis. Ainda não sou eu mesmo. Nunca sou antes do
café, e a noite passada foi uma loucura. Temo que ainda não tenha me
recuperado. Você poderá um dia me perdoar?
– Não há nada para perdoar. Seu café está na mesa, senhor.
– Você é meu herói, Francis. Obrigado.
– Se não houver mais nada que eu possa fazer, irei até a cozinha e direi
ao Chef Bouche para preparar muitos ovos para seu café da manhã. Cinco
dúzias, não é?
– Sim, Francis. Obrigado – disse ele, ansioso pelo café, que tomou assim
que Francis saiu do quarto.
Gaston estava feliz que Reizinho iria se juntar a ele no salão dos
empregados para o café da manhã. Esperava que ele não estivesse
planejando levar Circe. A última coisa que Gaston queria era sentar-se para
outra refeição com ela e o príncipe, vendo-a bajulá-lo, fingindo que não
estava tentando acabar com a amizade deles. Mas, por sua vez,
provavelmente era indigno dela tomar café da manhã lá embaixo. Bem, pelo
menos as novas maneiras sofisticadas de Reizinho não o impediam de fazer
uma refeição com seus velhos amigos.
Não houve um único momento na noite anterior em que Gaston pudesse
falar a sós com o príncipe, por isso estava ansioso pelo passeio mais tarde e
esperava poder convencer Reizinho a sair para tomar uma bebida na taverna
depois. Ele precisava pensar cuidadosamente sobre como iria lidar com as
coisas com o príncipe. Era um assunto delicado dizer a alguém que
escolhera a pessoa errada para se casar, e ele não sabia bem o que dizer.
Poderia simplesmente ser franco e contar-lhe o que Circe havia dito no
jardim de rosas, mas e se Reizinho acreditasse na bobagem da visão dela? O
Reizinho que ele conhecia não acreditava em fantasmas, feitiços ou
maldições, mas Gaston nem imaginava no que Reizinho acreditava agora.
Pelo que Gaston sabia, Circe o fazia acreditar em todo tipo de coisa. Não,
ele tinha que calcular exatamente o que dizer.
Enquanto tomava seu café tentando descobrir a melhor maneira de lidar
com as coisas, lembrou-se do pacote. Estava sobre a mesa perto das portas
duplas que davam para o terraço. Ele o abriu, surpreso ao descobrir que era
um espelho de mão.
– Que presente estranho. O que Reizinho estava pensando? – ele disse,
olhando para seu reflexo. Era difícil olhar para si mesmo; ele se parecia
muito com o pai agora que estava mais velho. Atualmente, fazia o possível
para evitar os espelhos.
– O presente é nosso, Gaston – afirmou uma voz do espelho. Gaston
deixou cair o objeto em estado de choque, fazendo-o rachar. Ele podia ver
uma das irmãs de Circe no espelho olhando para ele com um sorriso
insípido.
– Outros tentaram quebrar nossos espelhos, Gaston. Até tentaram
enterrá-los em florestas escuras, ou dá-los para outra pessoa, mas eles
sempre voltam como novos – declarou a bruxa do espelho, que ele tinha
certeza ser Lucinda.
– Que bruxaria é essa? Que tipo de arte das trevas é? O que você quer? –
Gaston jogou o espelho na cama enquanto a mulher ria dele.
– Queremos que você traga seu amigo para nossa casa dentro de três
dias – disse ela com um sorriso maligno. – Lá, ele encontrará Circe em
farrapos, cuidando dos porcos.
– Entendo. E como vocês levarão Circe a fazer isso? Presumo que não
sejam uma família de criadores de porcos. Por que ela concordaria com essa
farsa? – ele perguntou, então recuou em estado de choque ao pegar o
espelho novamente e ver que ele não estava mais rachado. Sabia que
aquelas mulheres eram bruxas, mas realmente não as levara muito a sério
com toda aquela farra com o bolo e com o papel de bobas que fizeram no
baile. Ele não tinha certeza de como encarar isso. Quão poderosas eram
aquelas bruxas?
– Mais poderosas do que você jamais imaginará, Gaston. E você faria
bem em não nos contrariar. Então, por favor, deixe-nos ajudá-lo e, ao fazer
isso, você nos ajudará. – Gaston nunca vira Lucinda tão séria. Ela não era a
tola que ele pensava.
– Diremos a Circe que, se o príncipe a ama de verdade, então não
importará se ele a encontrar mexendo com os porcos, e, como ela não
deseja outra coisa mais do que provar que estamos erradas, ela concordará
– falou a mulher perversa, enquanto outra das estranhas irmãs de Circe
aparecia no espelho para intervir.
– Achamos que, se você fizer isso por nós, todos realizaremos nosso
desejo e seu amigo não vai querer se casar com nossa irmã.
– Tenho a sensação de que vocês pretendiam que eu as ouvisse no
roseiral – disse Gaston, sorrindo para as três bruxas.
– Você é mais esperto do que pensávamos, Gaston – declarou uma das
mulheres.
– Sim, muito interessante – falou outra.
– Não tenho certeza se isso vai dar certo – pontuou a terceira, pouco
antes de o espelho voltar para seu próprio reflexo.
– Mulheres vis! – ele disse, virando o espelho. Odiava ter que lidar com
aquelas bruxas e tinha certeza de que não podia confiar nelas. Mas que
escolha ele teria se Reizinho não enxergava a verdade?
Depois de se trocar, Gaston deu a volta pelos fundos até o pátio que dava
para a entrada do salão dos empregados. E exatamente como ele esperava,
estava ali, aguardando por ele. Era a primeira vez que o via sozinho, sem
estar rodeado por um salão cheio de gente. Era uma manhã clara e
ensolarada, e o céu estava tão azul com nuvens brancas e grossas que
parecia que alguém o havia pintado só para eles. Quando Gaston viu o
amigo parado lá, seu coração disparou. Não imaginou que se sentiria tão
nervoso por ficar a sós com ele. Mesmo que isso fosse exatamente o que
esperava assim que o viu na noite anterior.
– Meu amigo! Meu caro amigo. Estou muito feliz em ver você – disse
Gaston, abraçando o príncipe. Reizinho parecia ainda mais bonito do que na
noite anterior. Embora, talvez, um pouco abatido, por ter ficado acordado a
noite toda e ainda não ter feito a barba naquela manhã.
– Gaston! Olhe só para você. Mal o reconheci ontem à noite. Você está
muito mudado. A Senhora Potts me avisou, mas não consegui imaginar, não
até vê-lo. Você se parece muito com seu pai. Não é de admirar que Francis e
quase todos no reino tenham uma queda por você. – Ele retribuiu o abraço
de Gaston.
– Vejo que você já está vestido para cavalgar. Perfeito. Eu disse a eles
que ficaremos fora o dia todo. Só você e eu. Temos muito o que colocar em
dia. – Esse era o Reizinho que Gaston esperava ver. Seu coração parecia
mais leve.
– Realmente temos. Há tantas coisas que quero conversar com você... –
disse ele, detendo-se por enquanto. Decidiu que era melhor conversar
quando estivessem longe do castelo.
– Circe me disse que há algo importante que queria me contar. Espero
que não seja nada muito sério – declarou o príncipe com um sorriso. –
Espero que você goste dela, Gaston. Eu sei que ela gosta de você.
– Ela gosta? Que interessante. – Gaston não conseguiu esconder a
surpresa e o desdém.
– O que foi? Não fique com ciúmes, Gaston, por favor. Se você tivesse
vindo comigo como eu queria, poderia ter me ajudado a escolher a garota
perfeita, mas decidiu ficar em casa. Agora, nós dois teremos que conviver
com minha escolha. Mas ela é linda, não é? A mulher mais linda que já vi.
– O que mais você gosta nela? – perguntou Gaston, sinceramente
querendo saber.
– O que mais há para gostar? Ela ficará bem no trono e me dará lindos
herdeiros.
Gaston estremeceu. Ele se sentiu culpado, planejando arruinar a chance
de seu amigo ter uma vida feliz, mas parecia que, afinal, não era um
casamento por amor.
– Então, esse é o meu castigo? Você vai se casar com a filha de um
criador de porcos só para me espicaçar? – Gaston não pretendia deixar
aquilo escapar num rompante. O que ele estava pensando?
– Do que você está falando? Ela é parente do Velho Rei. – O príncipe não
o estava levando a sério. Gaston conhecia seu amigo. Estava estampado em
seu rosto. Não havia como ele acreditar que a mulher que amava pudesse
ser criadora de porcos. Convencê-lo disso seria difícil. Ele deveria ter
esperado até poder levar Reizinho para ver com os próprios olhos Circe
com os porcos.
– Eu fiquei me perguntando. Ouvi dizer que ela e suas repugnantes irmãs
não dizem quem são seus pais. Tem certeza de que ela é parente do Velho
Rei? Circe e as irmãs não moram longe daqui, segundo me disseram.
Aposto que, se lhes fizéssemos uma visita surpresa, a encontraríamos
cuidando dos porcos.
– Isso é bobagem, e você sabe disso! Qual é, Gaston, você só está com
ciúmes porque vou me casar com a mulher mais linda do país. Você a quer
para você! – Embora fosse verdade que ele estava com ciúmes, ele não
queria Circe para si. Queria ela e suas irmãs perversas o mais longe possível
de seu reino. Como seria a vida de seu amigo sob o domínio daquelas
bruxas?
– Isso não é verdade, Reizinho! Ainda me sinto da mesma forma que no
dia anterior a sua partida para o tour. Lembra-se do que dissemos um ao
outro? Lembra-se do nosso desejo?
– Você sabe que esse sonho é impossível, Gaston. Sabe que tenho que me
casar. – O príncipe parecia profundamente desapontado. Nem ocorreu a
Gaston que ele poderia estar tão decepcionado quanto ele próprio. Ou,
talvez, estivesse simplesmente aborrecido por Gaston não entrar na fila e
fazer uma cara boa, escondendo sua contrariedade.
– Eu sei que você tem que se casar, Reizinho, mas não precisa ser com
ela. Circe é uma mentirosa! Ela e as irmãs são bruxas. Juro a você, ela não é
o que parece. – Gaston ficou parado ali, por um momento, depois de dizer
essas palavras, esperando a resposta do amigo, mas o príncipe apenas olhou
para ele em silêncio. Gaston não tinha certeza se estava absorvendo tudo ou
se estava prestes a sair no soco com ele.
– Você está me dizendo sinceramente que Circe e suas irmãs são bruxas
criadoras de porcos?
– Estou! Quem sabe, talvez Circe siga sua homônima e os porcos sejam
ex-amantes ou inimigos. Não tenho a menor ideia de como funciona a
mente das bruxas.
– Bem, veremos. – Reizinho começou a se afastar.
– Aonde você está indo? – Gaston gritou.
– Confrontar Circe!

Mais tarde naquele dia, Francis entregou a Gaston uma mensagem de


Reizinho dizendo que ainda esperava ver Gaston naquela tarde e que
deveria encontrá-lo na taverna da aldeia antes de saírem para cavalgar. Ele
não tinha ideia de como fora a conversa com Circe. Era típico de Reizinho
ser enigmático e desconcertante. O que Gaston tinha certeza era de que, não
importava o que acontecesse, Reizinho iria querer continuar como se nada
tivesse acontecido. Esse era o seu jeito.
Quando Gaston chegou à taverna, foi recebido com grandes vivas pelo
velho Senhor Higgins e pelos frequentadores habituais. Reizinho ainda não
havia chegado, então ele pediu uma bebida para si e conversou com o
Senhor Higgins. Já haviam se passado algumas noites desde que ele
apareceu para cumprimentar seus camaradas e estava feliz por estar de
volta.
– O que foi isso que ouvi, Gaston? Está bacana demais para nós agora,
participando de bailes chiques no castelo? – perguntou o Senhor Higgins.
– Foi a festa de noivado de meu melhor amigo. Dificilmente eu poderia
escapar disso, por mais que quisesse – defendeu-se Gaston, rindo muito.
– E nós aqui pensamos que você tinha nos abandonado, agora que o
príncipe voltou – disse o Senhor Higgins. Mas Gaston se perguntou se havia
outros na aldeia que pensavam que ele tinha desistido de sua amizade com
todos eles agora que Reizinho tinha regressado, ou pior ainda, desistido de
sua promessa de caçar a fera.
– Claro que não abandonei vocês, seu velho idiota! Promessa é dívida!
Além disso, quem mais em todo o reino poderá matar a Fera de Gévaudan?
– Bom homem! – celebrou o padeiro, erguendo a cerveja com tanto
entusiasmo que respingou nas tábuas do chão.
– Sabíamos que você não deixaria essa fantasia subir à cabeça – disse
Higgins.
– A Gaston! O herói da aldeia. O único homem neste reino corajoso o
suficiente para caçar a fera e pregar sua cabeça feia na minha parede! –
disse Higgins.
Todos na taverna brindaram.
– A Gaston!
Gaston jogou a cabeça para trás e riu enquanto todos os outros clientes se
reuniam ao seu redor, oferecendo-se para lhe pagar outra bebida, mas ele
não quis ouvir falar disso. Naquela noite, as rodadas eram por sua conta.
Devia isso a eles. Afinal, foram eles que mantiveram seu ânimo para cima
quando Reizinho estava ausente. E foram eles que lhe mostraram sua
verdadeira qualidade. Aqueles bons homens realmente o admiravam e
respeitavam e enxergavam o seu valor. E ele estava feliz por estar na
companhia deles outra vez.
– As bebidas são por minha conta, Higgins! Em comemoração ao
noivado do príncipe! – Gaston sentia-se feliz, e sendo ele mesmo
novamente.
– Ao príncipe! – ele disse, erguendo o copo. Mas ninguém se juntou a
ele.
– Dane-se o príncipe! – Higgins enchia uma caneca atrás da outra,
deslizando-as pela bancada do bar para todos reunidos ao redor de Gaston.
– A Gaston, ao nosso herói que voltou! – Higgins exclamou, enquanto
todos erguiam suas canecas e as batiam com tanta força que derramaram
cerveja no chão.
Gaston estava em seu habitat. Era uma grande mudança em relação à
noite anterior. Estava em um lugar ao qual sentia que pertencia. Ele não
estava fingindo, nem se perguntando o que dizer ou como agir, nem tendo
que se esquivar das irmãs de Circe. As únicas trigêmeas que ele gostaria de
ver novamente eram as lindas louras Claudette, Laurette e Paulette, as
garçonetes que ajudavam o Senhor Higgins quando a taverna estava
movimentada.
– Onde estão suas adoráveis garçonetes hoje? – Ele ficou surpreso por
não as ver, com a taverna tão lotada já àquela hora da tarde.
– Elas não apareceram nos últimos dias. Achei que talvez você tivesse
fugido com Claudette e as outras duas estivessem em casa chorando. Essas
mulheres adoram você, Gaston! Quando você vai se estabelecer, como seu
amigo, e se casar? Não há mulher viva que não queira se casar com você –
disse Higgins, rindo.
– Essa Claudette e suas irmãs são as garotas mais bonitas da aldeia, além
de Bela – interrompeu o padeiro.
– Você poderia facilmente escolher, Gaston. Não há homem vivo mais
merecedor do que você! Você é o homem mais forte, bonito e corajoso da
aldeia. Assim como seu pai era antes de você! Você é o melhor e merece o
melhor! Você só precisa dizer uma palavra e terá a garota mais bonita que
alguém já viu – falou Higgins.
– Não mais bonita que a minha Circe – disse o príncipe, tendo entrado na
taverna sem ser notado. Gaston conhecia aquela expressão no rosto de
Reizinho. Ele não estava feliz. E parecia que ainda iria se casar com aquela
maldita bruxa. Gaston jogou um monte de moedas no bar, pedindo outra
rodada de bebidas.
– As bebidas são por minha conta, senhor! Ao príncipe e sua linda noiva!
– ele afirmou, erguendo a caneca e olhando para todos na taverna como se
dissesse que era melhor seguirem o exemplo, para o próprio bem.
– Obrigado, senhores! Obrigado. – Reizinho mal esboçou um sorriso.
Gaston sabia que estava encrencado.
– Ela é a mulher mais bonita da aldeia. Eu ficaria com inveja se não
fôssemos melhores amigos – disse Gaston. Estava dando um show para os
outros homens, na esperança de amaciar Reizinho.
– Você tem sorte de ter um amigo tão leal em Gaston! – disse um dos
homens, engolindo a bebida e enxugando o rosto com o dorso da mão.
– Gaston é o melhor caçador do reino! Não há nenhum troféu nesta
parede que não tenha sido trazido por Gaston! – exclamou Higgins.
– Bem, eu estive ausente por um bom tempo. Talvez isso mude em breve.
– O príncipe lançou a Gaston um olhar que o amigo não gostou. Talvez
Gaston estivesse errado em sua impressão quando o viu no pátio, afinal este
não era o Reizinho de que ele se lembrava.
– Você está certo, Vossa Alteza! Teremos que abrir espaço! – disse
Higgins, rindo bem-humorado.
Mas Gaston sabia que o Velho Higgins duvidava que o príncipe trouxesse
algum troféu de caça, muito menos o suficiente para rivalizar com Gaston.
Era sabido que Gaston vinha vencendo o príncipe desde que eram meninos.
Mas parecia que isso não serviria mais para o príncipe. Algo havia mudado.
– Se não se importam, senhores, vou roubar meu amigo aqui. Vocês
podem bajulá-lo mais tarde. Vamos, amigo – declarou ele secamente,
conduzindo Gaston até uma mesa perto da lareira onde poderiam se sentar
sozinhos.
Eles ocuparam duas cadeiras uma de frente para a outra, e o príncipe
aproximou-se de Gaston para que pudessem conversar sem serem ouvidos.
– Eu conversei com Circe. Ela nega suas acusações. É claro que estamos
prosseguindo com nossos planos de casamento, Gaston, e você ficará a meu
lado. Você será meu padrinho! – Reizinho estava falando com os dentes
cerrados e mantendo a voz baixa, de olho nos homens no bar que olhavam
em sua direção.
– E como isso vai funcionar, exatamente? Você acha que Circe permitirá
isso, considerando o que ela sente por mim?
– Permitir? Quem é o futuro rei aqui, Gaston? Além disso, não contei a
ela o que você disse. Ela não precisa saber. Um dia vamos rir disso. Quero
rir disso agora. É tudo uma grande bobagem. – Era típico de Reizinho
inventar sua própria versão da realidade, fingindo que tudo estava normal
quando não estava. Exatamente o que ele fez depois que o pai de Gaston foi
morto. Tudo isso era muito familiar e doloroso.
– Não é bobagem!
– Ah, pare com isso, Gaston. Você percebe que eu realmente acreditei em
você? Você deveria tê-la visto chorando quando eu disse que tínhamos que
cancelar o casamento, que eu não poderia me casar com alguém tão
humilde. Mas, francamente, Gaston, olhe só para ela, como ela poderia ser
filha de um criador de porcos, quanto mais uma bruxa? É ridículo.
– Sou filho de um guarda-caça e sou muito bonito – respondeu ele com
orgulho, e um pouco mais alto do que pretendia, fazendo todos na taverna
rirem, mas irritando Reizinho ainda mais.
– Por falar nisso, de agora em diante diremos que essas caças nas paredes
são minhas. Você entende? Minhas! Não posso permitir que você seja o
herói desta aldeia, Gaston. Não vai ser assim. – Gaston não deveria ter
ficado surpreso com o fato de o príncipe estar agindo dessa maneira.
Seu pai o avisara que isso poderia acontecer, na verdade, disse que
aconteceria, porém ele não acreditou. Durante toda a vida, Reizinho não se
incomodara que Gaston fosse melhor em quase tudo. Isso nunca importou.
Mas, então, por algum motivo, acontecera. De repente, agora que estava se
casando e mais perto de se tornar rei, ele magicamente tinha que ser o
melhor em tudo?
– Não é suficiente você ser o príncipe, Reizinho?
– Por quê? Você também está com ciúmes disso?
– Reizinho, qual é! Cada homem aqui sabe que todas essas caças são
minhas.
– Se você disser algo várias vezes, as pessoas começarão a acreditar em
você. Eu faço isso o tempo todo.
– O que quer dizer com “faço isso o tempo todo”? Nunca vi você fazer
isso, Reizinho.
– Não, é? Quantas vezes eu disse que você é meu irmão e igual, até que
finalmente todos te trataram como meu irmão e igual?
– Não sinto que somos iguais agora.
– Não culpo você por ter ciúme de todas as minhas conquistas, Gaston.
Basta olhar para essas paredes! – O príncipe riu enquanto apontava para as
paredes cobertas de troféus.
– O que você tem? Está delirando? Todo mundo sabe que essas caças são
minhas e eu sou o melhor caçador.
– Não mais! Olhe, eu sei que você está com ciúmes. E por que você não
deveria estar? Vou me casar com Circe. Você foi surpreendido pela beleza
dela e não conseguiu evitar sentir inveja, meu amigo. Você a queria para si e
foi por isso que inventou aquela história boba de porcos. Mas quem iria
querer se casar com o rei da terra dos machões-com-covinha-no-queixo, o
rei de nada, quando ela poderia se casar comigo? – As palavras de Reizinho
o deixaram sem fôlego. Foi um golpe baixo, até para ele. Mas Gaston não
deixou transparecer.
– Suponho que você esteja certo. Você não disse que iríamos cavalgar
hoje? Vamos, vamos cavalgar. – Gaston se levantou e caminhou em direção
à porta. Estava com raiva e magoado, mas não daria a Reizinho a satisfação
de saber disso. Iria lhe mostrar quem era o melhor, mesmo que isso
significasse colocar algum juízo nele. Talvez então ele tivesse seu antigo
Reizinho de volta.
– Tudo bem, pessoal! O príncipe e eu estamos prestes a ver quem é o
melhor cavaleiro. Alguma aposta de que ele me vencerá?
– Eu não aceitaria essa aposta! Nem em um milhão de anos, Gaston! –
disse Higgins. Todos na taverna riram quando Gaston abriu as portas com
um floreio semelhante ao de Lumière, deixando o príncipe sair primeiro da
taverna.
– Você ouviu isso, Vossa Alteza? Nem em um milhão de anos! – Gaston
estava rindo, mas tanto ele quanto o príncipe ferviam de raiva quando se
viram do lado de fora da taverna.
– Nunca mais me trate como um idiota na frente desses homens, ou de
qualquer outra pessoa, você me entendeu? Nunca! Você pode ser meu
melhor amigo, mas é só nisso que pode ser chamado de melhor. Eu sou o
melhor em todo o restante.
– Não importa quantas vezes você diga isso, não fará com que seja
verdade – disse Gaston enquanto montava em Noir e pegava as rédeas.
– Vamos ver quem é o melhor! – o príncipe exclamou, enquanto montava
em seu cavalo, e os dois partiram velozes como um raio.
Gaston cavalgou rápido pela floresta, olhando para trás para ver se o
amigo o seguia. Ele estava alguns metros atrás dele. O rosto de Reizinho
estava cheio de raiva enquanto os dois cavalgavam ferozmente; Gaston
saltando sebes com facilidade e chapinhando em riachos enquanto
Reizinho, o príncipe, se esforçava atrás dele. Gaston sempre fora um
cavaleiro melhor do que Reizinho, e ele sabia disso. Gaston conduzia seu
cavalo serpenteando por entre as árvores e rindo o tempo todo. Ele era
melhor do que o príncipe em tudo, sempre fora, e no momento estava
gostando disso muito mais do que deveria.
Então, aconteceu algo que ele não esperava. O céu estava escurecendo. A
princípio, Gaston pensou que uma tempestade estivesse chegando e olhou
para cima, esperando ver grandes nuvens carregadas se aproximando, mas
era outra coisa. Um eclipse. Foi uma sensação estranha, ser de repente
envolvido pela escuridão. Gaston puxou as rédeas de Noir, parando
rapidamente, percebendo onde eles estavam. Estavam bem nos portões do
cemitério onde seu pai fora morto. Não voltara ao local desde que o pai fora
colocado para descansar ali com sua mãe.
Gaston ficou parado no portão, olhando para a estátua da mãe acenando
para ele. A culpa o invadiu quando ele olhou para seu rosto de mármore,
desejando conhecê-la, falar com o pai novamente. Querendo dizer a
Grosvenor que estava certo sobre o príncipe. Querendo entender como é
que ele sabia. Tinha tantas coisas que queria dizer ao pai, tantas perguntas
que nunca seria capaz de fazer. E ele se perguntou como fora parar ali,
olhando para o rosto zangado e confuso de seu amigo quando este
finalmente o alcançou.
– O que está acontecendo? Por que estamos aqui? Você planejou isso? –
o príncipe exigiu saber, desmontando do cavalo e ficando cara a cara com
Gaston, numa atitude de confrontação.
– Como eu poderia? Não sou um feiticeiro. – Gaston se perguntou se
havia algum tipo de magia em ação, lembrando-se de que havia guardado o
espelho de mão na mochila. Não tinha certeza do que o levara a fazer isso,
mas agora se perguntava se fora um erro.
– Não estou falando sobre o eclipse, seu idiota. Estou falando deste
lugar! Por que você me trouxe aqui? – Reizinho olhou em volta,
perscrutando a escuridão. – Do que você está brincando, Gaston? Por que
estamos aqui?
– Eu não trouxe você aqui, Reizinho. E, se você me chamar de idiota
mais uma vez, nós dois veremos quem é o melhor na luta.
– Isso é uma ameaça? Você está ameaçando seu príncipe?
– Ah, cale a boca, Reizinho. O que você tem?
– Circe me disse que você usa a morte de seu pai contra mim. E que um
dia um de nós morrerá como resultado. Depois de tudo que fiz por você,
Gaston, você ainda não me perdoou? Ainda não posso confiar em você?
– Não é verdade, Reizinho. Eu não culpo você, não faço isso há muito
tempo. Ela está mentindo. – Então, era disso que se tratava. Circe contara
isso e agora ele estava magoado. Não era de admirar que ele estivesse
agindo daquela maneira.
– Por que ela mentiria, Gaston? Por que ela inventaria algo assim? E
como ela saberia sobre a fera e seu pai se não tivesse algum tipo de
habilidade de ver... coisas?
– Achei que você não acreditasse em bruxas, Reizinho!
– Não sei em que acreditar, exceto que ela sabe das coisas, Gaston. Não
acho que isso faça dela uma bruxa.
– Todo mundo sabe que meu pai foi morto pela fera. É uma história
muito conhecida nestas terras. Todos sabem que estávamos lá quando isso
aconteceu. E não escondi que estava aborrecido com você naquela época,
não é? Éramos crianças, Reizinho, éramos ambos tolos. Não foi culpa
nossa.
– É assim que você realmente se sente, Gaston? Então, do que se trata? É
ciúme? Eu juro a você, nada precisa mudar entre nós.
– As coisas já mudaram. Você mudou. Você chega em casa insistindo que
é o melhor em tudo, me chamando de idiota em todas as oportunidades, e
está se casando com uma mulher que está tentando me mandar embora.
Você não pode se casar com ela, Reizinho; ela e suas irmãs são perigosas.
Você viu as irmãs dela; quanto tempo levará até que Circe comece a mostrar
sua verdadeira natureza? Você quer viver sua vida em um covil de bruxas?
Ela está inventando coisas, contando mentiras sobre mim. Você nunca
deixou ninguém romper nossa amizade, não importa o quanto tentasse. Não
deixe Circe fazer isso conosco.
– Por que ela inventaria isso? Por que ela faria isso?
– Ela me disse por quê. Ela sabe que você me ama mais do que a ama.
– Ela disse isso? – Gaston percebeu que Reizinho estava surpreso.
– Disse. Ela está tentando se livrar de mim, Reizinho. Ela sabe que eu sei
a verdade sobre a família dela. – Ele se sentia culpado, mas o fato era que a
família dela era perigosa. A verdade era mais insidiosa do que uma história
sobre ela ser filha de um criador de porcos qualquer. Era uma loucura que
seu amigo ficasse mais ofendido por ela cuidar de porcos do que por fazer
parte de um conciliábulo de bruxas.
– Ela realmente disse isso? Que eu o amo mais do que a amo? Então, ela
pode ver nosso coração – declarou o príncipe, desviando o olhar. – E isso
significa que não posso confiar em nenhum de vocês. – Mas, antes que
Gaston pudesse se defender, ouviu algo na escuridão. Um barulho de
esmagar, galhos sendo quebrados sob pés. O som estava cada vez mais
perto, e então ele os viu, quatro pares de olhos brilhando na escuridão.
– O que é isso? É a fera? – O príncipe estava em pânico, girando para
todos os lados tentando ver de onde vinha o perigo.
– Shhh! Não. Acho que são lobos. – Gaston tirou lentamente o bacamarte
do alforje. – Fique atrás de mim, entre os cavalos. Vá! Agora! – Gaston
disse com os dentes cerrados, apontando a arma para os lobos que
avançavam. Eles estavam em semicírculo, aproximando-se cada vez mais.
Gaston tirou um punhado de bolas de chumbo do bolso interno e colocou-as
na arma. Mirou seu bacamarte e disparou, atingindo todos os quatro lobos
na dispersão do tiro. Ao se virar para dizer ao príncipe que estavam em
segurança, ele avistou outro lobo saindo da névoa. Era sinistro e grande,
rosnando para ele.
Sem sequer pensar, Gaston largou o bacamarte e tirou a machadinha do
cinto enquanto o lobo saltava sobre ele, derrubando-o no chão com uma
força tremenda. O lobo estalou as mandíbulas para ele repetidamente,
tentando morder seu rosto enquanto Gaston o detinha segurando o cabo de
madeira do machado em cada extremidade e pressionando-o contra a
garganta do lobo. Foram necessárias todas as suas forças para evitar que o
lobo o mordesse, e houve momentos em que Gaston se preocupou em não
conseguir aguentar por muito mais tempo. Os dentes arreganhados do
animal abocanhavam o ar repetidamente, sua cabeça tão próxima da dele
que Gaston podia sentir seu hálito fétido.
Ele empurrou a criatura com todas as suas forças, tentando sair de baixo
dela, na esperança de conseguir alguma vantagem para poder usar o
machado e matá-la, mas o lobo era muito forte e grande. Quando finalmente
conseguiu ver a criatura claramente e olhá-la nos olhos, soube o que era.
Aquele não era um lobo comum. Era a Fera de Gévaudan. Ele lutou sob seu
tremendo peso, debatendo-se, usando tudo que tinha para dominar a fera,
mas sem aviso ouviu seu bacamarte disparar, e ele e a criatura foram
atingidos por pedras. O sangue jorrou quando as pedras os perfuraram.
A fera desviou os olhos de Gaston, que jazia no chão, coberto de sangue
pelos numerosos tiros, e sem aviso atacou o príncipe. Os dois tombaram na
direção de um dos cavalos. Gaston lutou para se levantar enquanto
observava o cavalo empinar e bater com os cascos na criatura, por pouco
não acertando o príncipe. Reizinho rolou para fora do caminho e tentou
encontrar qualquer coisa com que pudesse recarregar o bacamarte enquanto
a fera estava atordoada. Ele recuou o mais rápido que pôde até chegar ao
tronco de uma árvore, onde ficou sentado, aterrorizado, observando a
horrível criatura dar pesados passos em sua direção.
Sangue escorria sobre os olhos de Reizinho enquanto ele os fechava com
força contra a fera que se aproximava. Ele não conseguiu ver Gaston parado
ali, agora com o arco armado apontado diretamente para a cabeça da fera.
Sem nem perceber que havia realmente atirado, Gaston viu a fera cair sobre
o príncipe. Finalmente, estava morta. Gaston puxou o amigo de baixo da
criatura, dando-lhe tapinhas no rosto e sacudindo-o.
– Reizinho, Reizinho! Acorde! Por favor, por favor, não esteja morto.
– Não seja tão bobo. Claro que não estou morto. – Os dois riram
enquanto se abraçavam com força, até que Reizinho recuou e segurou
Gaston pelos ombros.
– Você salvou minha vida, Gaston. Agora sei que posso confiar em você.
Perdoe-me por ter vacilado.
– Nós salvamos um ao outro, Reizinho. Vingamos meus pais, juntos,
como eu sabia que faríamos. – A fera estava morta. O peso de vingar os
pais já não o sufocava. Não consumia mais todos os seus pensamentos. Era
isso que ele desejava, destruir a fera com seu amigo, deixando para trás
tudo o que acontecera quando eles eram meninos. Gaston tinha o amigo de
volta. Eles tinham a chance de recomeçar. Para ter a vida que sempre
quiseram.
Se ao menos Circe não estivesse em seu caminho.
– Seus pais? O que você quer dizer?
– Eu conto a você mais tarde, meu irmão, prometo. Mas vamos concordar
que podemos confiar um no outro e que devemos nossa vida um ao outro.
Não importa o que aconteça, sempre seremos irmãos, e você não vai deixar
Circe me mandar embora – disse Gaston.
Três dias depois, Gaston levou o príncipe para ver Circe na casa que ela
dividia com suas irmãs esquisitas, com telhado em formato de chapéu de
bruxa e janelas redondas. Gaston não tinha certeza se Reizinho finalmente
acreditava que sua querida Circe poderia realmente ser filha de um criador
de porcos, ou se ele apenas queria provar a Gaston que os rumores eram
falsos. Qualquer que fosse o motivo, Gaston ficou feliz por ele ter
concordado em fazer a viagem.
Era um tipo de lugar estranho, bizarro e agourento, com seus vitrais
retratando imagens de feras de contos de fadas, um dragão cuspindo fogo
verde, uma maçã de aparência sinistra e outras imagens esquisitas que
pareciam ter um significado especial para as bruxas. Havia até uma gata que
se parecia estranhamente com sua própria gata, sentada no jardim perto de
uma macieira solitária, uma árvore que não parecia pertencer àquele lugar.
Gaston não teria sido capaz de explicar por que tinha a sensação de que não
deveria estar ali, se pudesse, mas simplesmente lhe parecia errado, de
alguma forma fora do lugar.
Na frente da casa havia um jardim, e ao lado, um chiqueiro. Foi ali que
eles viram Circe. Exatamente como as Irmãs Esquisitas disseram que ela
estaria. A barra de seu vestido branco simples estava coberta de lama. Seu
cabelo parecia opaco e suas bochechas estavam vermelhas pelo trabalho
duro. Ela deve ter sentido que eles a olhavam enquanto alimentava os
porcos. Deu para Gaston perceber o quanto ela ficara triste com a expressão
de desgosto no rosto do príncipe. Ela parecia tomada de horror e vergonha.
Gaston ficou com os cavalos e deixou o príncipe aproximar-se dela; ele não
conseguiu ficar ao lado do amigo enquanto ele a desprezava e depreciava, e
a acusava de mentir. Gaston viu o coração de Circe se partir naquele
momento; o amor da vida dela estava terminando o relacionamento porque
ele pensava que ela era humilde, que estava abaixo dele. E agora a beleza
dela estava de alguma forma maculada em seus olhos. Tudo porque as
irmãs de Circe e Gaston enganaram o príncipe, fazendo-o acreditar que ela
era filha de um criador de porcos.
O coração de Gaston começou a disparar e ele sentiu o calor subir em seu
rosto, percebendo naquele momento que seu amigo Reizinho era realmente
horrível e que ele próprio não era muito melhor. Eles estavam ligados um
ao outro agora, ainda mais do que antes. Gaston mentiu e deixou Reizinho
envergonhar e partir o coração de Circe. Isso era quem ele era naquele
momento. Quem era seu amigo. E ele odiava que Reizinho fosse assim
havia mais tempo do que Gaston gostaria de admitir. A vida de ambos
nunca mais seria a mesma; ele sentiu isso em seu âmago quando as irmãs de
Circe olharam para ele através das janelas de sua estranha casa, rindo para
ele, seus sorrisos largos e perversos enquanto dançavam e cantavam com
alegria porque haviam realizado seu desejo.
Gaston ficou enjoado ao ver Circe cair de joelhos e chorar enquanto o
príncipe se afastava como se ela fosse um monte de lixo insignificante.
Gaston já tinha visto seu amigo tratar as pessoas de maneira horrível no
passado, mas nada parecido com aquilo. Era perturbador e difícil de assistir,
porém ainda mais perturbador era o papel que ele desempenhara em tudo
isso e o sorriso no rosto das irmãs esquisitas de Circe enquanto os espiavam
pelas janelas. Sorriso que ele temia que assombrasse sua mente, tanto
desperto quanto adormecido, por muitos anos. E se perguntou se essa seria a
última vez que veria aquelas bruxas. Tinha a sensação de que não.
CAPÍTULO XIII

DO LIVRO DOS CONTOS DE FADAS

A maldição
Irmãs Esquisitas falando. Lembra daquela parte do início desta história,
quando dissemos que o Livro dos Contos de Fadas é fluido e refletirá os
eventos que aconteceram antes e depois da história de Gaston? Bem, este é
um daqueles momentos, meu caro.
Como você sabe, todas as histórias que leu ou vai ler nesta saga são do
Livro dos Contos de Fadas, e nós somos suas autoras. E, embora isso seja
verdade, nossa filha Circe, que é a Rainha da Floresta dos Mortos com suas
colegas bruxas Primrose e Hazel, parece estar assumindo nosso manto
agora que estamos vivendo nossa melhor vida após a morte com Hades no
Submundo. As três rainhas estão contribuindo para o Livro dos Contos de
Fadas e têm noção de seus poderes para mudar o destino.
De nossa posição atual no Submundo, entendemos por que alguns podem
sentir que somos as vilãs dessas histórias. Você pode até se perguntar como
pudemos sorrir quando o príncipe partiu o coração de Circe naquele dia.
Como as irmãs esquisitas e excessivamente protetoras de Circe poderiam se
deliciar com sua tristeza? Por favor, não seja mais tolo do que o necessário.
Tudo o que fizemos foi por amor a Circe. Sim, dançamos e cantamos
canções de alegria, mas quem não faria a mesma coisa? Nós a salvamos de
um príncipe egoísta e brutal e, acredite, odiamos ver Circe tão infeliz,
porém fizemos isso para o bem dela, para protegê-la. Olhamos dentro do
coração do príncipe, vimos algo imundo e podre ali, e observamos isso
crescer a cada dia. Vimos quem ele realmente era e sabíamos o que estava
escrito no Livro dos Contos de Fadas. Pelo menos, o que foi escrito naquela
época.
Se ao menos tivéssemos visto o que crescia dentro de nós naquela época.
Se ao menos tivéssemos ouvido aqueles que tentaram nos alertar... Mas
também, se tivéssemos, talvez não estaríamos rindo e comendo bolo todas
as noites com Hades no Submundo. Então, de nosso ponto de vista, as
coisas funcionaram muito bem. Para nós e para Hades, pelo menos.
E para quem tem prestado atenção, sim, conseguimos dar um jeito de
conseguir bolo no Submundo. Temos todo tipo de guloseimas agora, as
prediletas de Hades. Há muito que pode ser alcançado quando bruxas
poderosas e um deus se unem, mesmo que seja apenas sua própria
felicidade.
Mas estamos divagando; esta é a história de Gaston e, para entendê-la,
você deve saber o que aconteceu com seu melhor amigo, porque o que
aconteceu a seguir mudou a vida de ambos para sempre, levando Gaston a
um destino desastroso.
Desde o dia em que o príncipe partiu o coração de Circe, muitas outras
histórias foram acrescentadas a este Livro dos Contos de Fadas, algumas
das quais não esperávamos. Mas sabíamos desde o início que Circe estava
fadada a ser uma feiticeira poderosa, uma rainha de um reino antigo, o
único reino digno de seus talentos únicos e potentes. E, embora não
víssemos claramente seu futuro naquela altura, sabíamos que ela iria
provocar mudanças em todos os reinos. Estávamos receosas que o
casamento dela com o príncipe fera fosse sufocar seu potencial mágico e
impedi-la de se tornar a bruxa mais poderosa de nossa época. Tínhamos que
garantir que ela continuasse em seu caminho. Precisávamos mantê-la a
salvo de uma vida infeliz com um príncipe pirralho, não importa o quanto
ela pensasse que o amava.
Se você leu a história do príncipe fera, sabe o que aconteceu depois que
ele partiu o coração de Circe. Foi uma série de eventos ruinosos que
mudaram muitas vidas, incluindo a de Gaston. E nós os imortalizamos em
vitrais em um de nossos muitos salões no Submundo, com o restante de
nossas histórias.
O primeiro nessa série de lamentáveis quadros é Circe aparecendo ao
príncipe em seu castelo. Ela ficará para sempre imortalizada no vitral,
vestida como uma mulher esfarrapada. Ela implora ao príncipe que aceite
dela uma única rosa. Um símbolo de seu coração e do amor que ela sentia
por ele.
Quando Circe apareceu na porta do príncipe, ela estava com o coração
partido e triste, com os olhos inchados de tanto chorar. Para o príncipe, ela
parecia uma velha emaciada. Enojado, ele recusou a rosa e, portanto,
recusou o amor dela. Mas, para espanto do príncipe, a velha se transformou
em seu verdadeiro eu, uma bela feiticeira. O príncipe ficou tão
impressionado com a beleza de Circe e, ao saber que ela realmente vinha de
uma longa linhagem da realeza, caiu de joelhos e implorou-lhe perdão. Ele
a pediu em casamento novamente. Ele sabia, é claro, desde o início, que
Circe pertencia a uma grande família, mas deixou-se enganar por Gaston e
por nós. E foi tudo muito fácil. Ele olhou para ela de forma diferente
quando a viu fazendo companhia aos porcos. Ela era humilde, o príncipe
sentiu, e inferior a ele, não era mais digna de se tornar sua esposa e,
eventualmente, rainha.
O espanto em seu rosto ao vê-la se transformar, percebendo que estava
enganado, que Circe era tudo o que dizia ser, a imagem dele caindo de
joelhos e implorando para Circe se casar com ele, foi tudo delicioso.
Mas era tarde demais para o príncipe. Circe viu quem ele realmente era:
um monstro disfarçado de um jovem bonito. Então, ela fez o que todas as
grandes bruxas fazem nessas situações.
Amaldiçoou a ele e todos em seu castelo, com uma pequena ajuda de
suas irmãs mais velhas. Mas nossa doce Circe ainda queria acreditar que
havia algo de bom no príncipe e, em sua generosidade, deu-lhe outra
oportunidade. Disse que, se ele aprendesse a amar e se tornasse digno de ter
esse amor retribuído, a maldição seria quebrada. Ela lhe deu a rosa, aquela
que ele tentou recusar, e preveniu-o de que tinha só até a última pétala cair,
em seu vigésimo primeiro aniversário, para se emendar. Se não o fizesse,
depois daquele dia permaneceria para sempre como uma fera.
A maldição de Circe foi um exemplo de magia brilhante. Era uma
maldição degenerativa que corroeria lentamente sua aparência para
combinar com seu coração egoísta e cruel. Cada vez que o príncipe agia de
maneira horrível, seus atos desprezíveis transpareciam em seu rosto, até que
lentamente, com o tempo, ele não se reconhecia mais. E, à medida que
sucumbia aos aspectos mais vis de sua natureza, seus servos, seus queridos
amigos de infância, também se transformavam um a um, de maneiras que
ele nunca poderia imaginar.
O aviso de Circe foi claro, mas o príncipe não acreditou nela. Em vez
disso, ele se tornou mais cruel e vil do que qualquer um de nós pensava ser
possível.
CAPÍTULO XIV

A GRANDE IDEIA DE GASTON

Reizinho negou a maldição, insistindo que não era real, mas Gaston
conhecia a verdadeira natureza de Circe e das Irmãs Esquisitas e estava
preocupado com a saúde de seu amigo. O príncipe estava se tornando mais
irracional a cada dia, e Gaston cometeu o erro de comentar um retrato do
príncipe, perguntando quando fora pintado, pensando que tivesse sido feito
talvez cinco ou mais anos antes. Mas, para horror dele e do príncipe, o
quadro fora pintado apenas alguns meses atrás. Tal fora a velocidade com
que a aparência do príncipe declinou. Gaston tentou brincar, provocando o
príncipe, fazendo pouco caso da situação, mas era alarmante o quanto
Reizinho havia mudado em tão pouco tempo, e ficou claro para ambos que
a maldição era real.
Reizinho não podia mais negar o que acontecia com ele e o que
aconteceria com todos no castelo se ele não encontrasse um meio de
quebrar a maldição. Mas aceitar seu destino apenas o fez perder o controle,
deixando a Gaston a tarefa de tentar tirar seu amigo daquele profundo poço
de infelicidade. De uma hora para outra, o bem-estar físico e mental do
príncipe estava em perigo. Ele foi acometido por delírios febris
aterrorizantes, fazendo-o reclamar sobre as Irmãs Esquisitas e como a
maldição era verdadeira. Gaston tinha certeza de que isso fora provocado
por um encontro com as Irmãs Esquisitas, mas não tinha certeza do que o
príncipe havia imaginado e do que era real. Gaston e Cogsworth estiveram
ao lado de Reizinho o tempo todo, cuidando dele até que estivesse bem
novamente. E, depois que o príncipe se recuperou, Gaston elaborou um
plano para ajudar seu amigo.
Desesperado para ajudar Reizinho a quebrar a maldição, Gaston
organizou um baile, convidando todas as jovens casa-douras dos reinos
vizinhos. Se Gaston entendera corretamente as divagações febris do
príncipe, para quebrar a maldição eles precisavam encontrar alguém que se
apaixonasse por Reizinho antes que a última pétala caísse da rosa que Circe
lhe dera. Se ele não encontrasse alguém para se apaixonar por ele, se
tornaria uma fera por completo. Parecia muito fácil. Tinha que haver mais
do que isso, mas o príncipe se recusou a dizer qualquer coisa mais. Gaston
podia ver as mudanças sutis em seu amigo, o envelhecimento ao redor dos
olhos, a amargura no rosto, as rugas que ele não tinha antes da maldição.
Parecia a Gaston que a maldição de Circe fazia com que as feições de
Reizinho combinassem com sua natureza cada vez mais sórdida, então, no
que dizia respeito a Gaston, eles enfrentavam uma luta contra o tempo, e ele
precisava encontrar alguém para se apaixonar por Reizinho antes que
aquela maldição miserável tomasse conta dele e de todos os outros no
castelo. E, como membro da criadagem do castelo, Gaston tinha um
pressentimento de que a maldição também o transformaria em algo terrível.
Com o rei e a rainha ainda longe, coube a Gaston ajudar o amigo a sair
daquela confusão. Eles haviam partido logo após o baile de noivado e
provavelmente não sabiam nada sobre o que acontecera desde então. Gaston
sabia que o rei e a rainha sempre quiseram unir sua casa ao reino
Morningstar, e que um casamento entre o príncipe e a princesa Tulipa
Morningstar uniria suas grandes terras em harmonia. Gaston lembrou-se de
uma das cartas que Reizinho enviara à Senhora Potts durante seu grande
tour, contando a temporada que passara com os Morningstar. Ele disse que a
princesa era uma jovem quieta e tímida, que ria com facilidade e era
bastante agradável, mas um pouco enfadonha e boba. Segundo todos os
relatos, ela estava apaixonada pelo príncipe, porém isso foi no início de sua
viagem, e Gaston adivinhava que o príncipe havia apostado que encontraria
alguém mais interessante. Quem diria que o que ele encontraria seria um
ninho de bruxas. Gaston se perguntou se talvez Tulipa não fosse ser uma
combinação melhor naquele momento. Lembrou-se do príncipe falando
sobre como ele a achava adorável, contudo simplesmente não estava
convencido de que eles tinham o suficiente em comum para suportá-la pelo
restante da vida. Gaston esperava que outro encontro com ela pudesse fazê-
lo mudar de ideia. Então, foi até a Senhora Potts em busca de ajuda.
– Não se passou um mês desde que o príncipe se recuperou da doença!
Tem certeza de que ele está preparado para isso? – A Senhora Potts não
estava convencida de que aquele fosse um bom plano. Todos no castelo
estavam desesperadamente preocupados com o príncipe, embora poucos
soubessem da maldição. E a Senhora Potts, é claro, também estava
preocupada com Gaston e o Senhor Cogsworth, recusando-se a sair do lado
deles durante a doença. Era assim que ela era. Não bastava ter seus próprios
filhos; também era mãe de todos os outros, e Gaston estava feliz por isso.
– É exatamente disso que ele precisa, Senhora Potts. Precisamos tirar sua
mente dessa maldição e encontrar alguém para ele se casar. Acho que a
princesa Tulipa Morningstar será perfeita!
– Por que organizar um baile elaborado então? Por que não apenas avisar
ao príncipe que ele deveria cortejar a princesa Tulipa? – A Senhora Potts
parecia um pouco atormentada naquele dia, provavelmente porque o Senhor
Potts ainda estava fora cuidando do irmão doente. Gaston não sabia como
ela conseguia ainda por cima dar conta de administrar o castelo e cuidar de
todos os seus filhos.
– Você já tentou dizer ao príncipe para fazer alguma coisa, Senhora
Potts? Não, ele tem que pensar que ela é escolha dele. – Gaston percebeu
que ela concordava. Todos na casa pareciam confusos com o
comportamento recente do príncipe, que estava mais errático do que nunca,
perdendo a paciência e caindo em um humor profundamente melancólico.
Estavam preocupados, mas ninguém sabia o que fazer a respeito.
– Bem, é claro que estou feliz em ajudar, mas, Gaston, você tem que me
dizer do que realmente se trata. Não é típico de você bancar o Cupido. – A
Senhora Potts conhecia Gaston muito bem. Sabia que havia algo que ele
estava escondendo dela.
– Senhora Potts, você ficaria chocada e revoltada se eu lhe contasse a
verdade. Você me desprezaria, e isso é algo que eu simplesmente não
suportaria. – Ele já desprezava a si mesmo. Se a Senhora Potts também
estivesse decepcionada com ele, Gaston não saberia o que fazer.
– Desprezá-lo? Bem, acho que você tem que me contar agora – disse ela,
fazendo sinal para que ele se sentasse. Como em muitas de suas conversas
ao longo dos anos, eles se encontravam na sala de estar da Senhora Potts.
Ela estava sentada à mesa e Gaston, numa poltrona próxima, em frente à
lareira. A única coisa que faltava era um bule de chá e biscoitos. – Tudo
bem, querido, desabafe – declarou ela, sorrindo para ele.
– Circe afirmou que de alguma forma sabia que eu culpava secretamente
Reizinho pela morte de meu pai e um dia eu o mataria por isso, ou ele me
mataria. Não sei, está tudo confuso agora, mas a questão é que ela disse que
eu precisava deixar o reino.
– Que grande bobagem! Vocês, rapazes, se amam, não há como nenhum
de vocês ser capaz disso. O que ela estava tramando?
– Não sei. Mas eu sabia que não queria ser expulso de meu lar e de minha
família.
– Claro que não queria. Quem no mundo iria querer isso? Então, o que
aconteceu? – ela perguntou, mas respondeu à própria pergunta antes que
Gaston tivesse chance. – Gaston, você não fez isso! Você inventou tudo
sobre ela ser filha de um criador de porcos? Mas, não entendo, o príncipe
viu a prova por si mesmo.
– As irmãs dela estavam envolvidas também. Elas me ajudaram, e isso
partiu o coração de Circe. Você deveria tê-la visto, Senhora Potts. Detesto
falar assim, mas Reizinho foi horrível com ela. – Gaston ainda se sentia
culpado ao lembrar como seu amigo tratara Circe vergonhosamente naquele
dia. Sim, ela estava tentando se livrar dele, porém ainda havia dor e dúvida.
Ele se perguntou se Circe de fato acreditava em sua visão e estava
realmente tentando proteger ele próprio e Reizinho como afirmara.
– Entendo. Mas isso não é culpa sua, Gaston. O príncipe escolheu partir o
coração da garota, não você. Você estava se protegendo, meu garoto. Sei
que não cabe a mim dizer, contudo não gosto do que vejo no príncipe. Ele
sempre teve uma tendência cruel e uma língua afiada, mas ficou muito pior
desde que voltou. Você pode ter mentido, meu rapaz, porém o príncipe
escolheu acreditar na mentira. Foi ele quem decidiu que a filha de um
criador de porcos era inferior a ele e a tem difamado para qualquer pessoa
no reino que queira ouvir. É com ele que estou decepcionada, Gaston, não
com você.
– Eu sabia como eram Circe e suas irmãs, Senhora Potts, mas não
pensei... não tinha ideia de que elas iriam amaldiçoá-lo, e é tudo culpa
minha. Se eu não o tivesse pressionado a terminar com Circe, ele não
estaria amaldiçoado agora.
– Parece-me que você foi enganado, meu garoto, por aquelas irmãs
perversas dela. Mas você tem que parar de se culpar, Gaston. Vi você se
culpar quando seu pai morreu, e agora está se culpando por essa suposta
maldição. Se você quer saber minha opinião, acho que o príncipe é o autor
de sua própria infelicidade, e é hora de você parar de se preocupar com a
felicidade dele e se preocupar com a sua própria.
– Mas não é apenas Reizinho, somos todos nós; estamos todos
amaldiçoados! Circe diz que, se Reizinho não mudar seus hábitos, todos
dentro do castelo serão transformados. Você não vê? Isso é tudo culpa
minha.
– E você tem certeza de que a maldição é real?
– Tenho, e pretendo ajudar Reizinho a quebrá-la.
– Tudo bem, então me diga o que você quer que eu faça – disse ela, com
um sorriso determinado.
A Senhora Potts reuniu a tropa e, com Gaston e o restante da equipe,
planejaram um baile magnífico. Antes que ele percebesse, Gaston ouviu a
Senhora Potts dizendo coisas como “Isso está um sonho!”, percorrendo todo
o castelo enquanto alterava cardápios, fazia sugestões de bolinhos para
servir no grande salão e dizia aos jardineiros com quais flores decorar cada
um dos vários aposentos. Até mesmo Cogsworth parecia ter ganhado corda
extra. Ele era muito austero para revelar isso, mas era visível como estava
satisfeito por ter novamente um castelo movimentado sobre o qual assumir
o controle, como um general em guerra. E era isso mesmo: uma guerra.
Eles iriam salvar o príncipe de si mesmo e daquela maldição.
O príncipe, porém, precisava de alguma persuasão.
– Eu odeio esses eventos, Gaston. Não vejo necessidade de encher o
castelo com mulheres cheias de babados saltitando como pássaros
enfeitados! – Isso fez Gaston rir porque parecia exatamente o tipo de coisa
que o príncipe mais apreciava naquele período. Mas talvez ele estivesse
farto de bailes depois do desastre com Circe.
– Se convidarmos todas as belas donzelas dos Muitos Reinos, ouso dizer
que todas elas comparecerão! – O príncipe parecia deveras apreensivo.
Gaston não entendia por que Reizinho achava isso tão assustador, por que
estava protestando. A questão era exatamente essa: nenhuma mulher
deixaria passar a oportunidade de brilhar aos olhos do príncipe. Depois de
sua longa doença e de tudo o que aconteceu com Circe e as Irmãs
Esquisitas, ele merecia uma diversão. E, se a princesa Tulipa não fosse de
seu agrado, certamente haveria muitas outras mulheres adoráveis para
escolher. Gaston não via qual era o problema.
– Mas é isso que eu temo! – o príncipe exclamou quando Gaston lhe
disse isso. – Certamente haverá muito mais garotas de aparência horrível do
que lindas! Como vou aguentar?
Gaston colocou a mão no ombro do amigo e respondeu:
– Sem dúvida você terá que passar por alguns patinhos feios antes de
encontrar sua princesa, mas não valerá a pena? E o que me diz daquele seu
amigo que teve um baile assim? Não foi um grande sucesso depois que a
questão do sapatinho de cristal foi resolvida?
– De fato, mas você não vai me ver casando com uma criada doméstica
como fez o meu querido amigo, por mais linda que ela seja! Não depois do
desastre com a criadora de porcos!
Conversas assim continuaram por muitos dias antes que Reizinho
finalmente concordasse. Mal sabia ele que Gaston e a Senhora Potts já
haviam colocado tudo em ação. O baile aconteceria com ou sem sua
aprovação. Felizmente para todos os envolvidos, Reizinho mudou de ideia.
Organizar um baile era a última coisa que Gaston esperava ou desejava
fazer, mas se conseguisse convencer Reizinho que a princesa Tulipa era
melhor chance de quebrar a maldição, talvez então Gaston pudesse tirar seu
amigo do profundo poço de depressão no qual ele estava definhando. E
então eles poderiam voltar a viver a vida como sempre viveram. Como eles
sempre desejaram.
Todas as jovens de quase todos os reinos vizinhos foram convidadas para
o baile. Era um evento de gala, repleto de expectativa e entusiasmo
palpáveis. O salão de baile dessa vez fora decorado com faixas prateadas no
topo dos pilares de mármore para combinar com a sobrecasaca do príncipe,
que era, na opinião de Gaston, decididamente mais espalhafatosa do que o
necessário. Mas o príncipe tornara-se nos últimos meses mais vaidoso e
ostentoso em seu estilo e maneiras. A sobrecasaca prateada era adornada
com botões de diamantes e acompanhada por uma camisa branca com gola
e punhos de renda, calças curtas prateadas, meias brancas e sapatos
prateados incrustados de diamantes. Gaston nunca tinha visto nada
parecido. Reizinho parecia bobo para Gaston, sentado em seu trono no salão
de baile e brilhando como o pavilhão de sua mãe, mas as mulheres que
compareceram ao evento não pareciam compartilhar da opinião de Gaston.
Ele não pôde deixar de rir ao vê-las passar por seu amigo, dando risadinhas
por trás de seus leques. Com penas gigantes nos cabelos e enormes vestidos
de baile, pareciam carros alegóricos em um desfile.
Todas as mulheres queriam se casar com o príncipe, exceto uma. Alguém
que Gaston conhecia da aldeia: a filha do inventor, Bela. Ela estava sentada
sozinha à margem, lendo. Não parecia notar nada que acontecia ao redor,
estava tão absorta em seu livro que era como se estivesse em outro mundo.
Era como se ela não quisesse estar ali, e Gaston se perguntou se o pai a
fizera aceitar o convite. Ela não ficara nada impressionada com o castelo,
com o espetáculo brilhante que girava a sua volta e nem com o príncipe. E
este era difícil de não notar.
Algo sobre observar Bela sentada ali lendo no meio de um baile real
girando em torno dela fez Gaston querer levá-la para a biblioteca para
mostrar-lhe todas as delícias que aguardavam por ela nas estantes. Ela era a
única pessoa que ele conhecia que gostava tanto de livros quanto ele e
Reizinho, e talvez fosse por isso que Reizinho se sentiu atraído por ela. O
príncipe exigiu ser apresentado.
Em vez disso, Gaston conduziu Reizinho na direção da princesa Tulipa.
O príncipe precisava de uma esposa que não fosse teimosa, alguém de uma
família real que conhecesse os costumes da corte e não se importasse que o
marido tomasse todas as decisões. E, acima de tudo, ela não deveria se
importar que ele passasse todo o tempo com Gaston. Bela não era nenhuma
dessas coisas, pelo menos até onde Gaston sabia pelas poucas interações
que tiveram e, além disso, ele sabia que Reizinho não se contentaria com a
filha de um inventor, por mais bonita que ela fosse.
Ainda assim, Reizinho insistiu que Gaston os apresentasse.
Gaston enrugou o nariz em sinal de reprovação, esperando que Bela não
estivesse olhando para eles e percebesse que estavam falando sobre ela.
Mas parecia que Bela estava acostumada com as pessoas fazendo isso. Era
tudo o que as pessoas na aldeia pareciam fazer: falar sobre ela e o pai. Ele
não entendia por que todos achavam estranho que ela gostasse de ler ou que
adorasse o pai. Gaston achava isso cativante.
– Você não se interessaria por ela, acredite em mim – disse Gaston.
O príncipe ergueu uma sobrancelha.
– Não me interessaria? E qual seria a razão disso, meu bom amigo? –
Gaston percebeu que Reizinho sabia que ele estava tramando alguma coisa.
Talvez ele pensasse que Gaston queria Bela para si. Gaston não tinha tempo
para querer nada para si, muito menos para cortejar uma jovem da aldeia.
Mesmo que ela parecesse perfeita em todos os sentidos.
Gaston baixou a voz para que as pessoas próximas não ouvissem.
– Ela é filha de um biruta! Ah, ela é adorável, sim, mas o pai dela é
motivo de chacota na aldeia. Ele é bastante inofensivo, porém se considera
um grande inventor. Está sempre construindo engenhocas que fazem
barulho, chacoalham e explodem. Ela não é do tipo com quem você gostaria
de se envolver, bom amigo. – Gaston olhou ao redor para ver se ela estava
olhando na direção deles.
– Talvez você esteja certo, mas mesmo assim gostaria de conhecê-la.
– Acredito que você a acharia muito entediante com sua interminável
conversa sobre literatura, contos de fadas e poesia – disse ele. De repente,
Gaston ficou preocupado por ter cometido um erro ao mencionar o amor
dela pelos livros, embora parecesse que o interesse de Reizinho pela leitura
fosse coisa do passado. Gaston receava ter conseguido apenas despertar o
interesse de Reizinho por ela. Perguntou-se se estava tentando proteger Bela
jogando Tulipa no caminho de seu amigo, e será que agora teria que
proteger Tulipa, assim como Reizinho e todos os outros?
– Você parece saber muito sobre ela, Gaston.
– Temo que sim! Nos poucos momentos em que conversei com ela agora
há pouco, tagarelou sobre nada além de livros. Não, querido amigo,
precisamos encontrar uma dama adequada para você. Uma princesa.
Alguém como a princesa Morningstar ali. Essa, sim, é um deleite. Nenhuma
conversa sobre literatura. Aposto que ela nunca leu um livro ou teve uma
ideia própria.
Gaston percebeu que Reizinho achava que essa fosse uma qualidade
muito boa.
– Sim! Posso pensar por nós dois! Traga a princesa Morningstar. Eu
gostaria muito de encontrá-la novamente.
A princesa Tulipa Morningstar tinha longos cabelos dourados, com uma
tez de pêssego e olhos azuis-claros da cor do céu. Ela parecia uma boneca
enfeitada com diamantes e seda cor-de-rosa. Era uma combinação perfeita
para Reizinho. Pelo menos, uma combinação perfeita para essa nova e
estranha versão de Reizinho com a qual Gaston ainda estava tentando se
acostumar. Gaston se sentia tão culpado pelo príncipe ter sido amaldiçoado
que não teve tempo de processar tudo o que acontecera desde seu retorno.
Percebeu que não estava apontando os erros de Reizinho quando ele agia de
forma horrível. Não estava lembrando ao amigo de não se transformar em
um príncipe tirano e feroz como prometeu que faria quando eram mais
jovens. E não tinha certeza do que Reizinho faria se o fizesse. Ele até
deixara Reizinho pensar que era o melhor em tudo, e agia como se sempre
tivesse sido assim, só porque isso deixava seu amigo feliz. Esse era
realmente um Reizinho diferente. Era mais fácil para Gaston acompanhar o
amigo, e depois de um tempo isso o incomodava menos, porque a natureza
de Gaston também vinha mudando, às vezes sem que ele percebesse.
Houve momentos em que Gaston recuava e realmente olhava para si
mesmo e se perguntava quem ele era. Não era típico de Gaston arrasar
alguém por nunca ter lido um livro ou presumir que tal pessoa nunca teve
pensamentos próprios. E mesmo que fosse assim, seria culpa dela? Pelo que
ele sabia, a aristocracia só tinha por missão educar seus herdeiros homens.
E quem era ele para falar, afinal? O maior arrependimento de sua vida foi
nunca ter aprendido a ler e temia que agora fosse tarde demais.
Ficou claro para Gaston e para todos no baile que Reizinho havia
decidido que se casaria com a princesa Tulipa, e isso quase levou a noite a
um final mal-humorado, com todas as outras damas tão decepcionadas
(exceto Bela, que mal pareceu perceber). Gaston fez o possível para parecer
satisfeito consigo mesmo, para estar feliz por seu amigo não apenas
escolher um casamento por amor, mas ter se interessado justamente pela
dama para quem Gaston o direcionou. Mas parte dele não conseguia deixar
de se perguntar se estaria empurrando a princesa Tulipa para um destino
ruinoso. Ele sentia como se a estivesse jogando em um covil de lobos para
se defender sozinha, e que sua cumplicidade em reuni-los só manchava
ainda mais seu coração sombrio.
CAPÍTULO XV

DO LIVRO DE CONTOS DE FADAS

Princesa Tulipa Morningstar


Irmãs Esquisitas falando novamente. É aqui que as coisas podem ficar
complicadas, então tente acompanhar e, por favor, perdoe-nos se já
dissemos isso antes, mas vale a pena repetir: todos os tempos se movem
simultaneamente. Isso significa que todo o tempo está acontecendo de
modo concomitante. Imagine se seu passado, presente e futuro estivessem
acontecendo ao mesmo tempo. É assim que o tempo funciona para bruxas
poderosas e para os deuses. Alguns de nós decidimos nos prender a uma
linha do tempo, dando-nos a ilusão de que estamos vivenciando os eventos
de nossa vida da mesma forma que as pessoas não mágicas percebem a
passagem do tempo. Para as bruxas, é mais fácil assim e muito menos
enlouquecedor. Isso não é nada para os deuses; eles são constituídos de
forma diferente e podem suportar saber tudo de uma vez. Portanto, nem é
preciso dizer que o Livro dos Contos de Fadas se esforça para contar
histórias em linha reta, e é por isso que voltamos e compartilhamos mais
camadas de histórias do que nos volumes anteriores.
Mas as coisas estão ainda mais complicadas agora. Não somos mais
bruxas mortais; vivemos entre deuses e deusas agora que residimos no
Submundo com Hades, governando ao lado dele como rainhas. Então,
perdoe-nos se sairmos da linha do tempo de Gaston e falarmos sobre coisas
que aconteceram e que acontecerão, porque para nós é tudo a mesma coisa.
Se você leu os volumes do Livro dos Contos de Fadas na ordem que
escolhemos, talvez se lembre de que a princesa Tulipa Morningstar
começou sua jornada de maneira muito diferente de como ela continuou. E,
se você a conhece apenas pelas páginas deste volume, aquele que tem em
mãos agora, não apenas agiu contra nossa vontade, mas também ficará
agradavelmente surpreso ao ver aonde sua jornada a levará. A princesa
Tulipa é a única princesa nos Muitos Reinos pela qual temos um interesse
ativo – isto é, um interesse ativo que não era planejar sua morte. Estamos de
olho nela desde que nossa velha amiga Babá passou a ser sua cuidadora.
Isso foi numa época em que a Babá não se lembrava de quem ela era –
quando pensava que era apenas a babá de uma jovem que precisava de
proteção e orientação, e não a fada mais poderosa dos Muitos Reinos.
Nós sabíamos quem ela era naquela época, mesmo que ela não soubesse,
e aguardamos na esperança de que ela acordasse e destruísse o príncipe fera
pelos maus-tratos que dispensou a sua querida e doce Tulipa. Para nossa
surpresa, alguém interveio e salvou Tulipa, alguém que não esperávamos.
Gaston.
Após o baile, a princesa Tulipa voltou ao reino de seu pai e aguardou as
diversas cerimônias, festas e outras atividades que aconteceriam durante seu
noivado com o príncipe. Por costume, ela morava em sua casa, visitando
frequentemente o príncipe com a mãe ou a Babá como acompanhante.
Houve muitas ocasiões assim, e todas foram desastrosas, cada uma
aproximando a pobre Tulipa da beirada do possível esquecimento.
Essas são as ocasiões que brilham intensamente em nossa mente, e
sabemos que elas também brilham intensamente para Tulipa, mesmo agora,
depois de tantos anos desde que ela foi tão maltratada pelo príncipe. Às
vezes, nos perguntamos o que Tulipa tem feito, passando tanto tempo com
os Senhores das Árvores e os Gigantes Ciclópicos. Ouvimos falar de suas
aventuras e nos perguntamos se algum dia ela não levará seu exército até os
portões do castelo do príncipe. Claro, tudo o que teríamos que fazer é olhar
no Livro dos Contos de Fadas e saber a resposta, mas às vezes é melhor não
estragar todas as surpresas da vida após a morte.
O noivado entre Tulipa e o príncipe estava condenado desde o início. Ela
estava perdida e nervosa, mas quem poderia culpá-la? Tulipa tinha acabado
de sair da sala de aula, se é que se pode chamar assim, e agora estava
envolvida em um compromisso para o qual não estava preparada e que o
próprio príncipe realmente não queria. Ela era um meio para atingir um fim
e pagou o preço quando as coisas não aconteceram como o príncipe
esperava. Durante esse tempo, era raro que as jovens pertencentes a famílias
reais recebessem o mesmo tipo de educação que seus irmãos. Elas
aprendiam a tocar piano, a costurar, a planejar festas, a direcionar a
conversa no jantar e a apoiar o marido. Não eram encorajadas a ter opiniões
próprias e, se por acaso tropeçassem numa opinião, eram dissuadidas de
partilhá-la. E Tulipa sentiu o peso de tudo isso quando estava na companhia
do príncipe.
Ela se sentiu estúpida e tola quando um renomado pintor chamado
Mestre veio se hospedar no castelo durante uma de suas visitas para pintar o
retrato do noivado. Ele era um artista amplamente festejado e muito
requisitado, um cavalheiro excêntrico e elegante que se considerava o
homem mais espirituoso e intrigante de Muitos Reinos. Tulipa não soube
como agir quando o elegante pintor apareceu com seu traje de veludo e
renda em vários tons de lilás e amora, com seus grandes olhos tristes
fixados no rosto oval ligeiramente inchado. E principalmente ela não sabia
o que fazer, ou o que dizer, quando ele fazia pronunciamentos floreados
como:
– Parece que todo retrato feito com um sentimento real é um retrato do
artista, e não dos modelos. Ouso dizer que ambos ficarão magníficos!
A pobre Tulipa piscou mais do que algumas vezes, tentando entender o
que ele queria dizer.
– Você estará no retrato conosco, Mestre? – A pobrezinha não sabia se
ele e o príncipe riram dela porque o que ela disse era inteligente ou
estúpido, mas decidiu agir como se tivesse sido a coisa mais inteligente que
ela poderia ter dito, embora, após refletir, teve certeza de que não. Aquela
visita foi um pesadelo: o príncipe estava meditando sobre a maldição, e o
temperamento do Mestre ficou cada vez mais difícil por causa do mau
humor do príncipe, e Tulipa se viu constantemente derretendo em lágrimas.
O príncipe e Gaston fugiam para a taverna todas as noites, deixando Tulipa
entreter o Mestre sozinha. Ela se consolava brincando com a velha gata de
Gaston.
Não foi uma visita muito feliz para a princesa, mas de alguma forma
piorou quando a pintura de noivado foi revelada. Uma festa e tanto foi
preparada para o dia da inauguração. A mãe de Tulipa, a rainha
Morningstar, estava lá, com algumas de suas damas de companhia. Também
estava presente Gaston, bem como alguns amigos íntimos do príncipe que
ele conhecera durante sua viagem. A Senhora Potts havia organizado um
excelente jantar e, após o banquete, todos foram para o grande salão, que já
estava repleto de pinturas do príncipe e sua família. Entre elas estava o tão
aguardado retrato de noivado.
– Ah! Vejo que pendurou o retrato do Mestre aqui no grande salão, onde
os retratos devem ficar. Boa ideia, meu velho! – disse Gaston, olhando para
os rostos com quem cresceu.
– Sim, achei que ficaria melhor aqui – disse o príncipe, enquanto o
Mestre pigarreava alto. Parecia que o pintor sentia que a ocasião exigia
mais cerimônia e essa conversa fiada estava rebaixando a situação em
questão.
– Sim, bem, sem mais delongas, eu gostaria de compartilhar o meu mais
recente tesouro precioso.
E com isso Lumière puxou uma corda, que derrubou o pano de seda preta
que escondia a pintura. A sala explodiu em suspiros e aplausos, e o Mestre
absorveu tudo como um ator no palco, curvando-se e colocando a mão no
coração para indicar que estava muito emocionado.
Gaston percebeu que Reizinho estava chocado com sua aparência na
pintura. Embora não devesse ser uma surpresa, já que o Mestre era
conhecido por fazer retratos altamente realistas. Ele não conseguia contar
quantas vezes Gaston ouvira o Mestre dizer que estava “capturando um
único momento no tempo para ser preservado para sempre”, ou alguma
outra bobagem semelhante. Mas talvez o príncipe não tivesse percebido até
aquele momento o quanto ele realmente havia mudado, ainda mais desde o
baile. Era enervante olhar para a pintura, ver o amigo de Gaston parecer tão
severo, com seus olhos cruéis e penetrantes, quase como os de um lobo,
como se estivesse procurando sua presa. Até sua boca parecia mais fina,
mais sinistra do que antes. Reizinho ficou ali parado, olhando para a pintura
até que Gaston o cutucou com o cotovelo.
– Diga alguma coisa, homem! Eles estão esperando um discurso! – ele
sussurrou no ouvido do amigo, tirando o príncipe de seu estupor.
– Não podia querer um retrato mais bonito de minha noiva! – ele disse
finalmente, ainda horrorizado com a pintura, enquanto Tulipa corava
profundamente, tentando encontrar as palavras certas.
– Obrigada, meu amor. E eu também não poderia querer uma visão mais
bonita e respeitável de meu futuro marido – afirmou ela, sentindo-se muito
orgulhosa de si mesma por dessa vez não ter permitido que seu nervosismo
confundisse sua mente e suas palavras.
Você pode se perguntar por que sentimos pena de Tulipa. Somos célebres
por desprezar princesas. Afinal, elas normalmente têm mais do que seu
quinhão de protetores mágicos. Mas a fada de Tulipa, Babá, nem sabia que
era uma fada, não sabia que tinha magia, nem conseguia lembrar quem ela
era. E o príncipe providenciou para que a Babá fosse distraída pela Senhora
Potts e pelos outros funcionários, por isso ela não viu o que Tulipa estava
passando. Então, observamos à distância o príncipe tratar Tulipa com
crueldade. Quando ele não a estava ignorando, ele a menosprezava e a fazia
se sentir pequena. Nós a vimos caminhar pelos jardins do castelo, vagando
pelo labirinto de sebes, desejando conhecer mais sobre o mundo, desejando
ter a mesma educação que seu irmão, desejando ser mais forte. Ela
precisava de um protetor. Precisava de uma fada ou bruxa para mantê-la
protegida do perigo. Vimos o futuro. Sabíamos que eventualmente Tulipa
escreveria sua própria história. Mas, enquanto estava com o príncipe, ela
murchou. Ela o amava de todo o coração, embora ele a tratasse apenas com
crueldade e zombaria. E sentimos que, mesmo agora, um dia, o príncipe
pagará pelo que fez a ela.
O príncipe mandou Tulipa e sua família embora no dia da inauguração,
irritado por ela o ter chamado de digno. Zangado porque achava que era
assim que os homens eram chamados quando pareciam mais velhos. E ele
parecia mais velho. Ele havia mudado. A maldição o tinha em suas garras.
E, depois que Tulipa e o restante dos convidados foram embora, o príncipe
fez um pedido sinistro a Gaston.
– Preciso de um pequeno favor. Há algum tempo você mencionou um
sujeito particularmente inescrupuloso que pode ser chamado para certas
funções.
Gaston ergueu as sobrancelhas.
– É claro que há um jeito de não se casar com a princesa sem ter que
matá-la! – Gaston ficou feliz por seu comentário ter feito o príncipe rir. Já
fazia um tempo que ele não o via sorrir, muito menos rir.
– Não, cara! Estou falando do Mestre! Gostaria que você fizesse tudo
para mim. O incidente não pode ser rastreado até mim, entendeu?
– Absolutamente! – Gaston olhou para o amigo com novos olhos. Aquele
homem diante dele não era seu velho amigo Reizinho. E Gaston também
não era ele mesmo, porque concordou em tomar as providências para a
morte de alguém simplesmente porque pintou um retrato nada lisonjeiro de
seu amigo. Mesmo que a imagem fosse precisa.
CAPÍTULO XVI

DO LIVRO DOS CONTOS DE FADAS

O solstício de inverno
Ficamos de olho em Gaston, deliciando-nos com o terror que estávamos
causando. Nós o vimos assistir com horror enquanto Reizinho ficava mais
amargo e cruel, testemunhando a evidência no rosto de seu querido amigo
que se tornou tão monstruoso quanto seu sombrio coração. Gaston também
se sentiu monstruoso por encorajar esse romance entre Reizinho e a
princesa Tulipa, vendo como Reizinho a tratava terrivelmente toda vez que
ela vinha visitá-lo.
Sorrimos quando ele tentou levantar o ânimo de Reizinho organizando
uma esplêndida celebração do solstício, lembrando o quanto ambos
adoravam o solstício quando crianças, pensando que talvez a magia de
todas as armadilhas fosse ajudar a tirar seu amigo de sua tristeza e talvez
aproximar mais o príncipe e a princesa após a desastrosa visita anterior.
Gaston providenciaria para que tivessem um solstício romântico e
novamente solicitou a ajuda da criadagem para que tudo fosse perfeito para
a estadia da princesa.
Enquanto a carruagem da princesa Tulipa Morningstar avançava pelo
caminho que levava ao castelo do príncipe, ela não pôde deixar de sentir
que não havia nada mais deslumbrante do que o castelo no inverno.
Morningstar era de longe um dos reinos mais bonitos do país, mas nem
chegava aos pés do reino do príncipe quando coberto de neve branca e pura,
e decorado para o solstício de inverno. Todo o castelo estava infundido de
luz e brilhava intensamente na noite escura de inverno. Tulipa tinha grandes
esperanças nessa visita e não ansiava por nada além de que o príncipe a
tratasse com bondade e amor, como já fizera. Assim como Gaston, ela
esperava que as férias de inverno melhorassem seu mau humor e o
trouxessem de volta ao homem por quem ela se apaixonara no baile. Mal
sabia ela que estava se aproximando do limite do perigo.
Lumière abriu a porta da carruagem e cumprimentou a princesa na
entrada do castelo.
– Bonjour, princesa! Você está muito linda, como sempre! É tão
agradável vê-la de novo. – Não importou quanto Gaston houvesse
implorado, ele não conseguiu convencer Reizinho a recepcionar sua futura
esposa quando ela chegasse. Pelo menos, Lumière estava presente para
fazer a princesa se sentir bem-vinda e adorada.
– Reizinho, você tem que receber Tulipa quando ela chegar! O que ela
pensará se você não estiver lá para cumprimentá-la? – disse Gaston.
– Eu não me importo com o que ela pensa. Foi você quem insistiu para
que ela viesse para cá e que o castelo fosse decorado para o solstício. Parece
um pesadelo de inverno aqui, árvores por toda parte, pilhas intermináveis de
presentes. Suponho que tenham custado uma fortuna todos esses presentes
que você comprou para ela. E onde estão todos os servos? Como tudo isso
foi obtido?
Gaston não queria contar a Reizinho que a maldição começara a afetar os
criados também. Todos os dias, havia menos criados do que no dia anterior;
todos os dias havia novas estátuas em lugares estranhos. Gaston tinha a
arrepiante sensação de que as estátuas o observavam, movendo-se quando
ele estava de costas. O castelo também estava mudando, por dentro e por
fora, gárgulas e dragões substituindo querubins; estava se tornando mais
sombrio, agourento e assustador. Ele fazia o possível para proteger
Reizinho do máximo de situações que podia, mas não conseguia esconder
que o pessoal havia diminuído para a Senhora Potts, o Senhor Cogsworth,
Lumière e alguns outros.
– Os servos estão sendo transformados em estátuas! Abra os olhos,
homem, e olhe ao redor. Tulipa é nossa única esperança de quebrar a
maldição, então controle-se, faça sua cara mais feliz e cumprimente-a
quando ela chegar.
– Estátuas? Tem certeza? – O príncipe parecia horrorizado.
– Tulipa ama você, Reizinho. E, se você não parar de tratá-la tão
horrivelmente, perderemos todos que amamos, todos os nossos amigos e
familiares aqui. E vamos perder um ao outro. Por favor, seja gentil com ela.
Ela está a caminho agora; você não vai tentar lhe desejar bom feriado? Se
não por ela, por todos nós?
– Suponho que sim. Mas não suporto ficar ao ar livre, Gaston. Parece
muito amplo. Eu não consigo explicar. Meu coração dispara e sinto que vou
desmaiar. Não me sinto seguro a menos que esteja no castelo.
– Tudo bem: então, encontre-a no grande salão. Lumière a trará e você a
surpreenderá com todos os seus presentes. Deixe tudo conosco, meu velho
amigo. Juro, eu sei o que é melhor.
A ausência do príncipe na chegada de Tulipa, no entanto, não passou
despercebida, e a Babá resmungou sobre isso enquanto descia da carruagem
logo após a princesa. Mas Lumière tinha tudo sob controle, dizendo que
suas coisas seriam levadas para seus quartos, mesmo que não houvesse
lacaios à vista. Lumière conduziu as damas por muitos quartos vastos e
lindos até que finalmente chegaram a uma grande porta embrulhada para
parecer um presente extravagante com um laço dourado. As mulheres
estavam confusas. Normalmente, eram conduzidas a seus quartos para que
pudessem se refrescar após a longa jornada, mas Tulipa ficou animada ao
encontrar aquela porta intrigante e parecia ansiosa para ver o que havia do
outro lado.
A babá de Tulipa, porém, parecia cética.
– O que é isso? – ela perguntou de maneira ríspida, olhando para a porta
com confusão e admiração. Mas Lumière as incentivou.
– Entrem e vejam por si mesmas!
Tulipa abriu a porta gigante embrulhada para presente e encontrou um
país das maravilhas do inverno. Havia um enorme carvalho que se estendia
até a altura do teto abobadado dourado. Estava coberto de luzes magníficas
e ornamentos lindamente elaborados e cintilantes. Debaixo da árvore, havia
uma abundância de presentes, e entre eles estava o príncipe, com os braços
estendidos enquanto esperava para cumprimentá-la. O coração da pobre
menina se encheu de alegria, sem saber que o sorriso no rosto do príncipe
era forçado.
– Meu amor! Estou tão feliz em vê-lo! – ela disse, envolvendo-o com os
braços. Nós, Irmãs Esquisitas, observamos o príncipe olhar para ela com
repulsa. Foi o mesmo olhar que ele deu a nossa Circe quando a viu coberta
de lama com os porcos. Não importa o quanto ele tentasse, não conseguia
evitar mostrar quem ele realmente era. Não importava o que Gaston
dissesse ou fizesse, o príncipe já tinha ido longe demais. Ele estava nas
garras da maldição e não poderíamos estar mais felizes por ele receber o
que merecia.
– Olá, minha querida. Você está bem cansada da viagem, não está? Estou
surpreso por não ter insistido para ser levada às suas acomodações e ficar
apresentável antes de me encontrar.
– Desculpe, querido, você está certo, é claro.
Lumière, sempre cavalheiro e ansioso por agradar, interveio.
– É minha culpa, meu senhor. Insisti para que ela me seguisse. Sabia que
o senhor estava animado para mostrar à princesa sua decoração.
– Entendi. Bem, Tulipa querida, logo você será rainha destas terras e,
mais importante, rainha desta casa, e deve aprender a decidir sozinha o que
é certo e insistir nisso. Tenho certeza de que, na próxima vez, fará a escolha
certa. – Com isso, ele fez sinal para ela subir.
Tulipa estava em lágrimas enquanto Lumière mostrava a ela e a Babá
seus quartos.
– Como eu disse quando chegaram, querida princesa, a senhorita está
linda como sempre – Lumière disse gentilmente enquanto a conduzia. –
Não dê ouvidos às palavras do mestre. Ele está muito distraído
ultimamente.
O restante da visita de Tulipa se transformou em pesadelo enquanto a
maldição atormentava o príncipe e todos no castelo. Mais funcionários
estavam desaparecendo, estátuas perturbadoras apareciam em lugares
estranhos, como o observatório, locais que ele sabia que não haviam estado
antes, e o príncipe ficou assombrado por nossas palavras de advertência
quando pronunciamos a segunda parte da maldição.
– Seu castelo e suas terras também serão amaldiçoados, então, e todos
dentro delas serão obrigados a compartilhar seu fardo. Nada além de
pavor rodeará você, desde se olhar no espelho até se sentar em seu amado
jardim.
Tais palavras ressoavam em seus ouvidos a cada desaparecimento e a
cada nova estátua que surgia, e ele conhecia os horrores que havia criado.
No entanto, a qualquer momento o príncipe poderia ter tentado mudar seus
hábitos, poderia ter sido terno com Tulipa, mas os constantes maus-tratos
que dispensava a ela o levaram – e a todos no castelo – ainda mais para
dentro de um vórtice de desesperança. Eles se perguntavam se ficariam
presos para sempre naquela desgraça. E Gaston estava com raiva.
– O que foi isso que ouvi sobre você fazer Tulipa chorar? O que há de
errado com você, Reizinho?
– Você deveria tê-la visto, Gaston! Ela não estava preparada para estar
em minha companhia!
– Você tem se visto no espelho ultimamente? Olhe para você. Você tem
sorte que Tulipa ainda queira se casar com você. Tem sorte de o que sobrou
da criadagem não ter abandonado você. Controle-se, homem, e faça as
pazes com ela! Você me entendeu? Faça as pazes com ela e quebre essa
terrível maldição. Perdemos quase todas as pessoas que amamos, e quanto
tempo levará para que o restante também desapareça? Quanto tempo antes
de você se perder por completo?
– Já chega, Gaston. Eu entendo.
– Será que entende? É melhor entender mesmo. Agora vá; ela está
esperando por você.
Depois disso, o príncipe parecia determinado a quebrar a maldição. Mas
ele zombou do amor, meteu os pés pelas mãos tentando fazer Tulipa feliz.
– Tulipa! Você me ama? Quero dizer, realmente me ama? Você me
amaria se eu ficasse desfigurado de algum jeito?
– Que pergunta! É claro que amaria! Você sabe que eu amo você, mais do
que tudo neste mundo!
– Agora eu sei, meu amor, agora eu sei. – E isso era tudo que ele
precisava. Ela o amava. Amava-o verdadeiramente. Ela o ajudaria a quebrar
a maldição.
No que lhe dizia respeito, ele estava na metade do caminho. Tudo o que
ele precisava fazer era convencer a nós, as malvadas Irmãs Esquisitas, de
que ele também a amava. Claro, havia coisas em Tulipa que ele amava. Ele
amava sua beleza, sua timidez e que ela guardasse suas opiniões para si
mesma. Adorava que ela não demonstrasse interesse por livros e não
tagarelasse sobre seus passatempos. Na verdade, ele não tinha ideia de
como ela passava o tempo quando não estava na companhia dele. Era como
se ela não existisse quando não estava com ele. Ele a imaginou sentada em
uma cadeirinha no castelo do pai, apenas esperando que ele mandasse
buscá-la.
Ele adorava como ela nunca lhe lançava um olhar zangado ou o
desprezava, mesmo quando ele estava de mau humor, e como ela era muito
fácil de lidar. Certamente isso contava para alguma coisa. Certamente isso
era uma forma de amor. Então, ele decidiu que, quanto mais doce fosse com
ela, mais rápido quebraria a maldição. Tudo o que restava era selar o acordo
com um beijo e a maldição seria quebrada. Tudo voltaria a ser como era.
Foi muito cômico, na verdade, vê-lo fingir que amava Tulipa. Fazendo
um teatrinho para nós. Mas vimos dentro de seu coração. Infelizmente para
Tulipa, ela não viu.
Lumière recebeu a tarefa de conduzir a Babá até o térreo para tomar chá
com a Senhora Potts e levar a cesta que a Senhora Potts havia preparado
para o príncipe e a princesa para seu interlúdio romântico, como Lumière o
chamava. Fora tudo planejado. Esse seria o momento em que eles
declarariam seu amor um pelo outro e se beijariam! E bam, a maldição seria
quebrada. Num estalar de dedos.
Observamos enquanto o príncipe conduzia a princesa até a borda do
labirinto. Seus olhos estavam cobertos por um longo lenço de seda branca.
Seu coração disparou porque ela estava com medo do escuro e cheia de
excitação nervosa com a surpresa que o príncipe havia preparado para ela.
Ele pediu que ela contasse até cinquenta e depois tirasse a venda,
garantindo-lhe que o caminho para sua surpresa seria bastante claro.
Ela arrancou a faixa dos olhos no instante em que chegou aos cinquenta,
precisando de um momento para deixar seus olhos se ajustarem antes de
visualizar o caminho colocado diante dela. A ponta dos sapatos tocou as
pétalas de rosas espalhadas pelo pátio, criando um caminho que levava ao
labirinto de sebes. Seus medos se dissiparam enquanto ela caminhava
rapidamente pela trilha das pétalas, ansiosa para entrar no labirinto de
topiárias de animais.
As pétalas a conduziram através de uma topiária incrivelmente trabalhada
de uma serpente muito grande, com a boca aberta e ostentando presas
longas e mortais. Virava a esquina, revelando uma parte do labirinto que ela
nunca tinha visto. Uma réplica do castelo, quase exata em todos os
aspectos, só que sem os grifos e muitas gárgulas empoleiradas em quase
todos os cantos e torres. As pétalas saíam do labirinto e entravam em um
pequeno jardim fechado cheio de flores de cores vivas. Era como se ela
tivesse de alguma forma tropeçado na primavera no meio daquela paisagem
de inverno. Era uma visão tão notável, tão brilhante e cheia de vida. Ela não
conseguia imaginar como as flores suportavam um frio tão intenso. Entre as
flores havia lindas estátuas de diversas histórias, personagens de lendas e
mitos. Ela os reconheceu por ter escutado as aulas de seu irmão antes de ser
levada para aprender a andar como uma dama. Não era de admirar que os
homens não levassem as mulheres a sério. Elas tinham aulas sobre como
caminhar apropriadamente enquanto os homens aprendiam línguas antigas.
O jardim era deslumbrante e parecia um conto de fadas sob a fria luz
azulada da tarde de inverno. Aninhado no centro do jardim encantado, todo
rosa e dourado, havia um banco de pedra, onde o príncipe a esperava.
– Fiz com que as flores da estufa fossem trazidas para cá para que você
vivesse um pouco a alegria da primavera.
– Você é maravilhoso, meu amado! Obrigada.
O príncipe decidiu que esse seria o momento em que iria beijá-la e
quebrar a maldição.
– Posso te beijar, meu amor?
E eles se beijaram. E foi mágico. Para Tulipa, pelo menos. Ela ficou
extremamente feliz – mesmo que apenas por um momento, antes de tudo
dar terrivelmente errado.
Enquanto caminhavam de volta ao castelo pelo labirinto, o príncipe teve
certeza de ter quebrado a maldição com o beijo. Mas, então, ele ouviu algo
se mexendo e rosnando no labirinto. Tulipa brincou que talvez um dos
topiários de animais tivesse ganhado vida, mas o príncipe sentiu que eles
estavam em perigo real. Ele sabia que havia verdade nas palavras de Tulipa,
mesmo que ela não soubesse. Então, ele saiu correndo para ver que tipo de
animal estava no labirinto, deixando Tulipa sozinha e indefesa. Quando
finalmente retornou, parecia abatido e zangado enquanto olhava para Tulipa
como se estivesse atordoado, sangrando pelos cortes profundos em seu
braço.
– Meu amor, você está ferido!
– Brilhante de sua parte ter concluído isso, minha querida.
Era seu habitual tom cruel e amargo, cheio de veneno, como se ele
também fosse uma das criaturas topiárias que haviam surgido no labirinto.
Mal sabia Tulipa que ele estava se tornando mais animalesco a cada
momento.
CAPÍTULO XVII

DO LIVRO DOS CONTOS DE FADAS

O mistério dos servos


Para nossa alegria, o castelo entrou em pânico. Não poderíamos estar mais
satisfeitas por tudo estar indo de acordo com nosso plano. Gaston estava na
sala dos empregados quando Lumière desceu correndo para dar-lhes a
notícia. O príncipe fora atacado. Gaston acabara de consolar a Senhora
Potts porque o Senhor Cogsworth estava desaparecido o dia todo e ela
chorava muito. Ele sugeriu que ela tomasse chá com a Babá para tentar
distraí-la das coisas, sugerindo também que Chip procurasse o Senhor
Cogsworth pelo castelo. Mas Gaston temia que não o encontrassem. Eles
não encontraram nenhum dos servos que haviam desaparecido, apenas as
estranhas estátuas que pareciam surgir em lugares estranhos ao redor do
castelo. Estátuas que você juraria ter visto se movendo com o canto do olho
e, quando você se virava, a posição delas havia mudado. Não era de admirar
que Reizinho estivesse perdendo o juízo. Todos ficaram com medo,
inclusive Gaston, que sabia que aquilo era por causa da maldição. Se eles
não a interrompessem, todos dentro do castelo se transformariam naquelas
malditas estátuas. A única coisa que dava esperança a Gaston foi que o
príncipe finalmente acreditou que a princesa Tulipa o amava, e eles estavam
naquele exato momento no jardim, onde o príncipe planejava dar-lhe o beijo
que quebraria essa maldição.
Pelo menos, foi isso que Gaston pensou, até Lumière descer as escadas
num estado de medo e consternação.
– Gaston! O príncipe foi atacado! – Lumière estava sem fôlego, depois de
ter corrido todo o trajeto. – Onde está Francis? Alguém precisa chamar o
médico.
– Não vi Francis o dia todo, e o que você quer dizer com atacado? Por
quem? – Gaston levantou-se da mesa e foi direto pegar seu bacamarte, que
estava apoiado no canto da sala. Era a última coisa que eles precisavam.
Cogsworth estava desaparecido e agora um ataque? Ele sentiu como se
estivesse enlouquecendo.
– Algum tipo de fera no labirinto, não sei. Mas não saia correndo atrás
dela, pois corre o risco de desaparecer também. – Gaston nunca tinha visto
Lumière tão esgotado.
– Então, o que você acha que eu deveria fazer, Lumière?
– Não sei, ver o príncipe? Ele está em ponto de bala. Com raiva e
insistindo para encontrarmos Cogsworth, e tenho a sensação de que sua
surpresa para Tulipa não saiu como ele gostaria – disse ele.
– Eu acho que não! Ele foi atacado!
– Não, há outra coisa. Ele estava sendo muito impaciente com ela. Não
acho que as coisas tenham saído como planejado.
Gaston suspirou.
– Pelo amor de Deus! – ele disse enquanto a Babá descia as escadas. O
que ela estava fazendo lá ele não sabia, mas não tinha tempo para isso.
– Podemos ajudá-la, Babá? – ele perguntou, tentando ficar calmo. Não
era culpa dela que o castelo estivesse desmoronando ao redor deles e que
logo todos sucumbiriam à maldição. Ele tinha que tentar disfarçar. A última
coisa que ele precisava era que a babá de Tulipa tivesse um ataque.
– Lamento incomodá-los, senhores, mas vocês viram a Senhora Potts? –
ela perguntou.
– Não, pensamos que ela estava com você. – Gaston sentiu um aperto no
estômago e no peito. Agora era a Senhora Potts que estava desaparecida? O
que eles fariam sem a Senhora Potts? Isso era demais. Gaston estava
lutando para respirar. Tudo o que podia fazer era manter a compostura, mas
o que ele queria fazer naquele momento era pegar a coisa mais próxima e
arremessá-la contra a parede.
– Ela estava comigo, mas eu saí só por um instante para pegar mais água
quente para o chá e, quando voltei, ela não estava mais lá. Uma coisa muito
estranha. Ela simplesmente tinha ido embora, mas em seu lugar havia um
bule de chá.
– Um bule de chá? Não uma estátua? – perguntou Gaston.
– Uma estátua? O que você quer dizer? O que pelos Muitos Reinos você
quer dizer com uma estátua? Era um bule! Um bule que não existia antes.
– Quero dizer uma estátua, mulher! Você não as viu? Estão por toda
parte! – Gaston percebeu que ela não sabia do que ele estava falando.
Gaston sentiu a raiva e o pânico crescendo dentro dele. Reizinho devia
ter feito algo horrível com Tulipa. Estava ficando claro que toda vez que ele
fazia algo desagradável, alguém que amava desaparecia. Ele também via
isso? Gaston não sabia o que fazer. Ele e Lumière ficaram parados ali
olhando um para o outro, sem dizer uma palavra, dominados pelo medo.
– O que está acontecendo? – perguntou a Babá, olhando para os dois com
desconfiança. – Algo está acontecendo. Posso ser uma mulher idosa, mas
sei dizer quando algo terrível está acontecendo. – Felizmente, Lumière
interveio e assumiu o controle da situação.
– Não é nada. Nada para você se preocupar, de qualquer modo. Suba as
escadas para ver Tulipa. Ouso dizer que ela precisa de você agora mesmo.
Houve algum tipo de acidente no jardim e preciso chamar o médico para
ver o príncipe.
– Chamar o médico? Tulipa está bem?
– Ela está bem, mas temo que precise de consolo – disse Lumière com
um débil sorriso.
– Guardem minhas palavras. Algo não está certo aqui, pressinto isso
fortemente. Este castelo está amaldiçoado, digo a vocês, e vou dizer a
Tulipa que devemos partir imediatamente. – A Babá se afastou e subiu
rapidamente as escadas, mas não antes de se virar para lançar um olhar
furioso para Gaston e Lumière.
– Acho que sobrou para nós dois, então – disse Gaston. – Vou chamar o
médico, você vai consolar Tulipa e a babá dela.
Gaston cuidava do príncipe enquanto Lumière dava atenção a Tulipa e
Babá. Apesar das evidências contra essa probabilidade, Gaston esperava
que, assim que Reizinho se recuperasse, eles começariam a fazer planos
para o casamento. Talvez Reizinho houvesse quebrado a maldição ao beijar
Tulipa no jardim antes do ataque. Talvez não demorasse muito até que
começassem a ver indícios da reversão da maldição. Talvez Reizinho não
tivesse posto tudo a perder. Então, Gaston sentou-se ao lado da cama de
Reizinho e observou enquanto ele dormia agitado, revirando-se,
murmurando durante o sono sobre maldições, beijos e bruxas. Ele segurou a
mão do amigo e garantiu-lhe que Lumière não deixaria Tulipa sair do
castelo até que tivessem certeza de que a maldição fora quebrada.
Enquanto isso, Tulipa e Babá se perguntavam o que poderia ter
acontecido com a Senhora Potts e o Senhor Cogsworth. Lumière fez o
possível para tentar esconder que a maioria dos servos já havia
desaparecido antes da recente chegada de Tulipa ao castelo, mas não havia
como fazer isso. Não havia como esconder que a Senhora Potts e o Senhor
Cogsworth haviam partido. Lumière estava muito ocupado tentando fazer
com que as coisas parecessem não estar no meio de uma crise,
especialmente com a Babá tentando convencer Tulipa a ir embora.
– Garanto a vocês, senhoras, o príncipe está descansando
confortavelmente. O médico acabou de sair e Gaston está com ele agora.
Não há necessidade de se preocupar ou sair correndo no meio da noite. O
jantar será servido no salão no horário habitual.
– Não precisa de muita cerimônia para o jantar esta noite. Pode apenas
nos trazer alguma coisa em uma bandeja. Podemos comer em nossos
aposentos ou, talvez, próximas à lareira na sala de estar. Tenho certeza de
que todos estão enlouquecidos lá embaixo com o desaparecimento da
Senhora Potts e de Cogsworth. Não quero que se preocupem conosco –
disse Tulipa, mas o francês sedutor não queria ouvir falar de servir
convidados em bandejas na sala de estar, ou em qualquer outro cômodo,
aliás.
– Ah, não! Isso não acontecerá! Se a Senhora Potts estivesse aqui, ela iria
enlouquecer só de pensar nas senhoritas comendo em bandejas! E, para o
cardápio desta noite, não há nada a temer, planejamos algo especial para as
senhoritas! – ele disse com seu sorriso mágico que sempre encantava as
mulheres. Mais tarde naquela noite, no salão de jantar principal, ninguém
diria que faltava quase todo o pessoal da criadagem, quanto mais duas das
figuras mais importantes. O salão estava lindo, decorado com flores de
estufa da surpresa anterior de Tulipa, e as velas brilhavam intensamente em
tigelas votivas de cristal, lançando uma luz sobrenatural no ambiente. As
duas damas estavam saboreando a sobremesa quando o príncipe entrou
cambaleando na sala, parecendo abatido e meio enlouquecido.
– Estou feliz que as duas estejam aproveitando a refeição enquanto toda a
casa está desmoronando em volta de vocês! – Ele aparentava ter
envelhecido vários anos desde o início daquela tarde. Parecia exausto e
indisposto, com uma expressão feroz nos olhos.
Babá e Tulipa não sabiam o que dizer. Elas apenas olharam para ele,
completamente perdidas.
– Não tem nada para dizer em sua defesa, Tulipa? Sentada aí se enchendo
enquanto minhas companhias da infância estão sofrendo por um terrível
destino? – Seu rosto se transformou em algo desumano, algo perverso e
cruel, fazendo as duas mulheres recuarem de medo.
– Não me olhe assim, velha! Não vou tolerar que me dê olhares
diabólicos! E você…! – Ele voltou sua raiva para Tulipa. – Sua meretriz
mentirosa, brincando com meus sentimentos, fingindo que me ama quando
claramente não o faz!
Tulipa ofegou e começou a chorar imediatamente, mal conseguindo falar.
– Isso não é verdade! Eu amo mesmo você! – O rosto do príncipe estava
pálido, os olhos fundos e escuros pela doença, a raiva aumentando a cada
palavra.
– Se me amasse, realmente me amasse, nada disso estaria acontecendo! A
Senhora Potts e Cogsworth estariam aqui! Os animais no labirinto não
teriam me atacado, e eu não estaria assim! Olhe para mim! A cada dia fico
mais feio, mais acabado.
A Babá colocou um braço protetor em volta de Tulipa. A princesa
chorava tanto que mal conseguia respirar direito, muito menos dizer
qualquer coisa em sua própria defesa.
– Não suporto olhar para você! Quero-a fora de meu castelo agora! Não
se incomode em pegar suas coisas! – Ele correu em direção a elas, agarrou
Tulipa pelos cabelos e arrastou-a violentamente até a porta, derrubando a
Babá no processo.
– Não a quero no castelo nem mais um segundo, você entendeu? Você me
enoja! – ele disse, cuspindo nela. Tulipa chorou mais do que nunca,
gritando para o príncipe soltá-la quando Gaston entrou na sala.
– O que está acontecendo aqui, homem? – Gaston arrancou Tulipa das
garras do príncipe e ajudou a Babá a se levantar.
– O que está fazendo, senhor? Enlouqueceu? – Gaston nunca estivera tão
zangado com Reizinho desde a noite em que seu pai morrera. Ele não
conseguia acreditar no que estava vendo. De alguma forma, nunca tinha
visto de fato quem era Reizinho antes, ou a tensão da maldição o levara a
isso? De qualquer modo, tudo o que Gaston pôde fazer foi não atacar o
príncipe ali mesmo, vendo-o maltratar uma mulher daquela maneira. Era vil
e abaixo do desprezível.
– Rápido, vão para seus quartos, senhoras. Eu cuidarei disso – disse
Gaston, conduzindo as duas mulheres até a porta, onde Lumière as recebeu.
– Lumière, cuide da Babá e a leve, com a princesa, para cima. – No
momento em que Lumière fechou a porta atrás deles, Gaston deu um soco
no rosto do príncipe, atingindo-o no queixo e derrubando-o no chão.
– Que diabos está acontecendo? – Gaston estava pairando sobre o
príncipe, com o rosto cheio de fúria. Ansiava por chutá-lo no estômago,
mas se conteve. – Como você ousa colocar as mãos em Tulipa desse jeito?
– Gaston estava pronto para partir, pronto para deixar o castelo e seu amigo
para sempre. Ele esperava que Reizinho se levantasse e se defendesse, que
o criticasse por agredi-lo, que o expulsasse do castelo, mas ele
simplesmente chorou.
– Ela mentiu para mim, Gaston. Ela não me amava. Ela nunca amou.
Gaston ficou chocado ao ver como seu amigo estava mudado. Ele não
parecia totalmente humano. Mas Gaston podia sentir que ainda restava nele
algo do velho amigo escondido por trás de sua forma horrível e coração
raivoso.
– Do que você está falando, homem? Ela amava você.
– Então, por que a maldição não foi quebrada? Por que todos os servos
foram transformados em pedra? Por que fui atacado pelos animais no
labirinto?
– Talvez seja porque você não a ame. Não é culpa dela, Reizinho. Ela não
merece isso.
– E eu mereço? – Reizinho indagou, seu rosto se transformando em algo
monstruoso. Sua voz se tornou grave e rosnante. Parecia mais um animal
selvagem do que a voz de um homem.
– Eu mereço ser transformado em um monstro? Mereço ser
amaldiçoado? Isso é culpa sua! Eu culpo você! Foi você quem me
empurrou para os braços daquela idiota. Agora, lide você com isso! – A voz
de Reizinho era alta como um trovão e ele parecia prestes a atacar a
qualquer momento. – Tire essas mulheres do castelo antes que eu as mate. E
não se preocupe em voltar.
Gaston fechou os olhos diante do rosto rosnante do amigo. Não tinha
intenção de ir a lugar nenhum. Reizinho precisava dele. Ele nunca tinha
visto tanta raiva, tanta amargura. Estava com medo por seu amigo e por
todos eles. Como poderia Reizinho vir a amar alguém, tal como ele era? E
quem amaria uma fera assim?
CAPÍTULO XVIII

DO LIVRO DE CONTOS DE FADAS

O descendente
A princesa Tulipa Morningstar nunca mais ouviu falar do príncipe. E
parecia que Reizinho finalmente havia parado de delirar com feitiços e
maldições malignas, mas se recusava a sair do castelo. Ele nunca saía do
quarto e não permitia que Lumière ou Gaston abrissem as cortinas. E
admitia que acendessem apenas uma vela à noite. O único visitante que ele
tolerava era Gaston.
– Tem certeza de que é assim que quer lidar com isso, Reizinho? –
Gaston perguntou a ele certa manhã, logo depois que Tulipa e Babá
partiram durante a noite. O príncipe olhou para Gaston como se ele
estivesse tentando ao máximo não cair em um dos acessos de raiva que tão
facilmente se apoderavam dele nos últimos tempos. E Gaston não queria
fazer nada que pudesse desencadear um deles.
– Tenho certeza, meu amigo. É o único jeito. Você irá até o castelo
Morningstar para romper o noivado oficialmente.
– E o acordo de casamento? O rei será destituído sem o acordo que
prometeu.
O príncipe sorriu.
– Tenho certeza de que será. Mas é isso que merece por jogar sua filha
idiota em cima de mim! Ela nunca me amou, Gaston! Nunca! Era tudo
mentira! Tudo um meio de conseguir meu dinheiro, para ela e para o reino
de seu pai!
Gaston balançou a cabeça. Parecia que toda a raiva de Reizinho estava
agora dirigida aos Morningstar. Seu amigo não se contentou em destruir o
coração da princesa; ele queria destruir o reino dela também. Gaston não se
incomodou em discutir com ele. Ele viu que seu amigo estava ficando
nervoso de novo e já havia tentado convencê-lo de que Tulipa o amava.
Gaston não sabia como ajudar. Nada do que ele dissesse convenceria o
príncipe de que ele estava errado sobre Tulipa e que o que quer que tivesse
acontecido no labirinto não fora culpa dela. A convicção de Reizinho era
tão forte, porém, que até mesmo Gaston começou a se perguntar se seu
amigo estaria certo. Ou ele estava apenas perdendo a si mesmo e sua razão
para essa maldição? Tulipa estivera realmente os fazendo de tolos o tempo
todo? Ela era esperta o suficiente para realizar um truque tão inteligente,
fazendo Reizinho acreditar que ela o amava, quando na verdade não o
amava? Gaston não tinha certeza. Ele pensou que tinha escolhido
sabiamente ao juntar o casal, e podia jurar que Tulipa amava o príncipe,
mas agora ele apenas sentia pena dos problemas que isso havia causado,
para seu amigo e para os Morningstar.
– Vou partir hoje mesmo, meu bom amigo. Descanse.
O sorriso do príncipe era perverso, distorcendo seu rosto à vaga luz das
velas, lançando sombras perversas. Quase fez Gaston ficar com medo do
amigo.

Enquanto Gaston voltava do castelo Morningstar, ele começou a esquecer


por que fora lá e o que havia feito enquanto lá estava. Quando retornou ao
reino de Reizinho, já havia esquecido que estivera em Morningstar e a
devastação que isso causou. Ele nunca saberia que Tulipa ficara tão
perturbada que se atiraria dos penhascos rochosos, na esperança de acabar
com seu sofrimento – apenas para se ver fazendo uma barganha com Úrsula
nas profundezas das águas lá embaixo. E, a partir disso, Tulipa decidiu que
viveria apenas para si mesma. Faria tudo o que desejasse, diria o que sentia,
daria a si mesma a educação que sempre desejou e viveria sua vida
exatamente como quisesse. Você já sabe como o desgosto e as dificuldades
de Tulipa transformaram a princesa Tulipa Morningstar na mulher que ela
eventualmente se tornou, a mulher que ela é agora, apesar de como o
príncipe tentou arruiná-la e destruir seu reino. Ela é a rainha Morningstar,
com sua legião de Senhores das Árvores e Gigantes Ciclópicos, governando
um dos reinos mais poderosos dos Muitos Reinos. Amiga e aliada das
Rainhas da Floresta dos Mortos e, portanto, amiga e aliada nossa, as Irmãs
Esquisitas, e sob nossa proteção. Mas nós nos adiantamos. Essa parte da
história de Tulipa ainda está sendo escrita.
Havia muitas coisas que Gaston nunca saberia, a primeira delas era quão
afundados nessa maldição ele e seu amigo haviam ficado com esse ato final
de crueldade. Eles poderiam muito bem ter empurrado Tulipa do penhasco.
Porque no momento em que ela decidiu que não poderia mais viver no
mundo, no momento em que pulou daquele penhasco, a maldição foi
praticamente selada. O príncipe se tornou a fera que sabíamos que ele era.
Havia se revelado um monstro, e era assim que todos o veriam. E, ao
sucumbir por completo à escuridão, fez com que Gaston se esquecesse dele.
E eventualmente o príncipe esqueceria o amigo.
Gaston não voltou para o castelo ao retornar de Morningstar. Foi para sua
propriedade, deixando seu amigo sozinho para definhar nas garras da
maldição.
Gaston se esqueceu do amigo e de todas as aventuras que viveram juntos.
Esqueceu-se de que tinham matado a Fera de Gévaudan. Esqueceu-se de
que crescera no castelo e de todos os seus amigos e pessoas que considerava
sua família. Ele se esqueceu da Senhora Potts, do Senhor Cogsworth, de
Lumière, de todos eles. Tudo o que ele lembrava era de ter crescido com
seu pai e de como seu pai e sua mãe foram mortos por uma fera. Uma fera
que Gaston jurou matar. Ele não se lembrava do dia em que ele e seu
melhor amigo mataram aquela fera juntos, salvando a vida um do outro.
Tudo o que ele lembrava era um ódio profundo e permanente pela criatura
que tirou sua família dele, e sua promessa de manter o vilarejo seguro, o
que fez dele, aos olhos de todos em sua pequena cidade, um herói.
CAPÍTULO XIX

DO LIVRO DOS CONTOS DE FADAS

O caçador na floresta
Já haviam se passado vários meses desde que o príncipe enviara Gaston em
sua missão covarde, e o príncipe não saiu de seu quarto desde então,
mantido cativo pelo medo e pela raiva. Gaston se fora, e o príncipe estava
exatamente onde o queríamos: sua desgraça aumentava a cada dia e seu
destino estava mais próximo de ser selado. O único servo que o príncipe via
era Lumière, e ele era evasivo quanto à criadagem quando o príncipe
perguntava. Gaston agora estava livre dos horrores de ficar preso dentro do
castelo amaldiçoado.
Observamos Lumière no quarto de seu mestre segurando seu pequeno
candelabro, com medo de lançar luz sobre o rosto do príncipe, ou sobre o
seu próprio, com medo de que o príncipe percebesse quão
desesperadamente ele estava tentando esconder seu terror. Ficamos
encantadas em ver o príncipe tão medonho, pálido e desgastado. Seus olhos
eram buracos escuros e suas feições eram mais animalescas do que
humanas. Lumière não tinha coragem de contar que todos no castelo, um
por um, foram transformados após cada ato imundo que o príncipe cometeu,
e agora, depois do que o príncipe fizera com Tulipa e sua família, Lumière
era o único servo que restava em sua forma humana. Mas parecia que isso
já havia ficado claro para o príncipe, o que restava dele, de qualquer modo,
falando sobre servos desaparecendo, com medo das estátuas se
movimentando pelo castelo e virando os olhos em sua direção quando ele
não estava olhando.
Mas não era assim que os servos se viam. Eles não viam horrores
espreitando nas sombras ou estátuas em movimento. Não viam nada disso.
Esse pavor estava reservado apenas ao príncipe, agora que seu amigo
Gaston havia escapado dos horrores do desaparecimento de seus amigos de
infância, do medo de que estivessem presos em pedra. Na verdade, eles
haviam sido transformados em objetos domésticos e estavam fazendo o
possível para ajudar o príncipe a tentar quebrar a maldição.
Lumière sabia que era apenas uma questão de tempo até que ele também
se transformasse em algum objeto doméstico como havia acontecido com
os outros, e o príncipe ficaria sozinho apenas com os horrores que eram
conjurados em sua mente. Até lá, Lumière faria o que pudesse para
confortá-lo.
Certa noite, Lumière convenceu o príncipe a dar um passeio na floresta.
Era crepúsculo, a hora preferida do príncipe, a hora intermediária em que
tudo era possível. Quando tudo parecia perfeito. O céu escuro estava lilás,
tornando a lua ainda mais marcante pelo contraste. Lumière estava certo,
pensou o príncipe, um passeio na floresta era o que ele precisava depois de
ficar tanto tempo enfurnado em seu quarto. À medida que escurecia, ele
ficava mais à vontade, a copa dos galhos das árvores acima dele obscurecia
a luz, exceto por pequenos trechos que revelavam um manto de noite
coalhado de estrelas. Observamos o príncipe enquanto ele ficava mais
confortável, seus olhos se adaptando à escuridão como um animal da
floresta, e vimos que ele agora estava gostando de sua nova forma,
sentindo-se bastante bestial e rondando a floresta. Perseguindo, procurando
algo para matar. Ele estava à vontade; tudo parecia certo e perfeito na
floresta. Estava em seu ambiente.
Algo – ele não tinha certeza do que, talvez instinto – o fez se esconder
rapidamente atrás de um grande toco de árvore coberto de musgo. Alguém
estava vindo. Um caçador andando pela floresta segurando um bacamarte.
Mas, antes que o príncipe fera pudesse reagir, choveram tiros sobre ele,
penetrando no tronco da árvore, lascando a madeira e colocando seu
coração num ritmo maníaco que ele pensou que iria matá-lo.
Ficamos encantadas; isso não poderia ter sido mais perfeito. Seria esse o
momento em que Gaston mataria seu amigo, pensando que finalmente havia
matado a fera que havia ceifado sua família? O momento que Circe previra?
Ou o príncipe fera mataria o caçador, sem saber que era seu amigo Gaston?
Estava tudo muito delicioso. E vimos algo terrível e sombrio crescer dentro
do príncipe fera. Isso obscureceu tudo, fazendo-o esquecer Gaston. Ele
sentiu como se estivesse escorregando para um oceano profundo e escuro,
estava se afogando nele, perdendo a si mesmo e a lembrança de seu amigo
por completo enquanto outra coisa assumia o controle, algo que parecia
estranho, mas familiar e confortável ao mesmo tempo.
Tudo em sua periferia se estreitou e a única coisa em que ele conseguia
se concentrar era Gaston. Nada mais existia, nada mais importava, exceto o
som do sangue correndo para o coração palpitante de Gaston. O som o
envolveu, combinando com seu próprio batimento cardíaco.
Ele queria o sangue de Gaston. Ele nem percebeu que havia corrido e
derrubado Gaston e o imobilizado no chão até que se viu olhando para
aquele homem que ele havia derrubado tão facilmente, aquele homem que
ele deixara indefeso. Aquele com medo nos olhos.
Tudo o que ele queria era provar seu sangue. Ele lambeu os lábios,
imaginando qual seria o sabor: quente, salgado e espesso. Mas, então, olhou
nos olhos do homem e viu medo, e viu seu amigo. Aquele homem, aquele
caçador, era Gaston. Ele nunca tinha visto Gaston parecer tão assustado,
desde que eram meninos. O príncipe quase tirara a vida de seu melhor
amigo. Um homem que salvara sua vida. Então, ele arrancou a arma de
Gaston das mãos trêmulas dele e a lançou longe, fugindo o mais rápido que
pôde, deixando Gaston sozinho e confuso na floresta, imaginando que tipo
de animal o atacara. O príncipe fera só podia esperar que Gaston não
soubesse que havia sido seu velho amigo quem tentara matá-lo.
Depois daquele momento, se Gaston ainda tivesse alguma lembrança do
príncipe, da amizade deles ou de sua vida anterior no castelo, ela foi
completamente esquecida. E a vida anterior de Gaston também o esqueceu.
Lumière não o reconheceu quando ele apareceu no pátio dos criados,
espancado, machucado e ensanguentado, necessitando de socorro. Ele era
apenas um homem que precisava da ajuda deles e que se esqueceu de que
esteve lá depois de partir.

Parecia-nos que Gaston finalmente teria seu final feliz para sempre.
Estava livre. Livre de suas obrigações para com o príncipe e de suas
lembranças dele.
Pelo que Gaston sabia, fora atacado pela Fera de Gévaudan na floresta, e
não pelo homem que um dia o chamou de irmão. O homem que disse que
não tinha espaço em seu coração para ninguém além dele. Então, depois
que ele foi tratado dos ferimentos e despachado, voltou para a única vida
que conhecia. A de herói da cidade. O único homem corajoso o suficiente
para caçar a Fera de Gévaudan.
Gaston teve uma nova vida, vivendo em sua propriedade, esquecendo
que foi o príncipe quem a dera a ele. Estava livre para viver como quisesse.
Livre para ser o melhor em tudo, fazer suas próprias escolhas e o que
estivesse em seu alcance para proteger as pessoas da cidade, que não o
esqueceram como fizeram todos os que viviam dentro do castelo depois que
a maldição foi selada. O castelo que agora era considerado uma relíquia
antiga e abandonada que restara da obscuridade, um lugar assombrado e
fantasmagórico que ninguém tinha motivos para visitar.
E, por um tempo, Gaston estava vivendo sua melhor fase. Parecia que
finalmente seria capaz de viver do jeito que desejasse. Mas Gaston mal
sabia que ainda tínhamos planos para ele. Vasculhamos profundamente seu
coração e vimos que ele ainda amava o príncipe, mesmo que não se
lembrasse dele. E não queríamos que essa irmandade entre eles despertasse
suas lembranças, fazendo com que Gaston ajudasse a fera. Que se
aventurasse de volta ao seu antigo lar, em busca de respostas para meias-
recordações nebulosas ou sonhos estranhos sobre outra vida. Queríamos
que ele fosse controlado, que se concentrasse quase inteiramente em si
mesmo. Para ser o homem que deveria ser. Para ser o melhor.
Precisávamos de algo para distraí-lo. Bela parecia a escolha perfeita. Ela
adorava livros quase tanto quanto Gaston, mesmo que ele não se lembrasse
daqueles dias em que entrava furtivamente na biblioteca do castelo ou do
príncipe lendo para ele. Mesmo que ele não se lembrasse de amar histórias,
mesmo que começasse a partilhar as mesmas noções de mente fechada que
as outras pessoas da aldeia tinham sobre a necessidade de se adaptarem, que
as mulheres não deviam ter o nariz enfiado num livro e que eram peculiares
por sonharem acordadas. Pelo que Gaston sabia, ele era como todo mundo
na cidade, e sempre fora assim. Pelo que ele sabia, crescera com aquelas
pessoas e compartilhava seus valores. Ele era exatamente o que a cidade
pensava que precisava. E Gaston estava feliz com a sensação de
pertencimento.
Nossa maldição mudou Gaston, mas pelo menos ele se encaixou. E ele
era amado por todos na cidade. Mas precisávamos de garantias. Então,
fizemos o que as bruxas fazem de melhor. Lançamos um feitiço. Um que o
fez mudar seu foco para Bela.
Aquele que fez de Bela o maior desejo de Gaston.
CAPÍTULO XX

A FERA

Tarde da noite e nas primeiras horas da manhã, depois que Gaston fora
atacado pela fera, ele e seu administrador de propriedade, LeFou, estavam
na taverna, cercados por todos os farristas habituais que frequentavam o
estabelecimento do Senhor Higgins. Aquele era o lugar favorito de Gaston,
onde ficava rodeado de seus admiradores. As paredes estavam repletas de
troféus que ele colecionava havia anos. Não havia nenhuma cabeça de
animal empalhada ou montada naquela parede que alguém além dele
pudesse reivindicar ser sua. Pelo que todos sabiam, ele tinha orgulho disso,
mas, de certa forma, ao mesmo tempo que as paredes cobertas de troféus de
caça o envaideciam, também eram um lembrete de que faltava um. A
cabeça da fera que matara seus pais. E naquele dia tivera a chance de matá-
la, mas a fera levou a melhor sobre ele e fugiu.
Todos os olhares estavam fixos em Gaston, arrebatados pela atenção
enquanto ouviam sua história angustiante. Ele passava mais tempo na aldeia
e em sua propriedade, mesmo antes de o príncipe ter se transformado por
completo. Ele e o príncipe já estavam começando a perder as lembranças
lentamente antes daquela noite fatídica em que esqueceriam para sempre o
que significavam um para o outro.
– E do nada a fera se lançou sobre mim, prendendo-me no chão! Eu
pensei que estivesse acabado. Vocês tinham que ter visto sua cara
contorcida num rosnado, seus dentes enormes e afiados como navalha,
prontos para rasgar minha garganta.
O que Gaston não contou foi que ele havia tentado e errou. E como ele
realmente ficara assustado quando a fera levou a melhor sobre ele. Foi
como um raio! Ele nem tinha visto acontecer; num momento estava ali
parado e no seguinte jazia no chão temendo por sua vida. Ele não lhes disse
que tivera medo de morrer, que sentia como se tivesse falhado com sua mãe
e seu pai, ou como sentiu-se impotente enquanto estava preso ao chão. A
fera era muito forte. Mas algo estranho aconteceu quando ele estava deitado
no chão olhando nos olhos da fera: por um breve momento, pensou que
soubesse quem era a fera. Pensou ter a reconhecido. E naquele momento
fugaz, a fera agarrou o bacamarte de Gaston e atirou-o longe, correndo para
dentro da floresta. Mas como aquilo foi possível? Como uma fera poderia
fazer isso? Estava tudo tão confuso em sua mente. Tudo o que ele conseguia
lembrar era de ter procurado e encontrado sua arma e ir até a taverna,
sentindo que só havia uma coisa que desejava mais do que matar a fera.
Queria contar tudo a Bela.
– O que aconteceu depois? Você a matou, Gaston? Onde está o monstro
agora?
– Eu teria feito isso, mas a maldita criatura me pegou de surpresa e
conseguiu arrancar a arma da minha mão – contou Gaston. – E fugiu. Não
consigo explicar.
– Você estará pronto da próxima vez, não é, Gaston? – perguntou LeFou,
sempre lá para elevar o ânimo de Gaston.
– Claro que estará! – disse o Senhor Higgins. – A fera nem saberá o que a
atingiu!
– Estarei. Não tenham medo. Eu vou matar a fera! Podem ter certeza
disso! – ele afirmou, distraído pelo relógio na parede. – LeFou, olhe, o sol
nasceu! Já é de manhã. Acho que já é hora de Bela voltar da livraria para
casa. Vamos, quero impressioná-la com minha história sobre a fera.
Nenhuma mulher viva pode resistir a um bom caçador, especialmente se
esse caçador for bonito como eu!
LeFou parecia confuso, mas seguiu em frente mesmo assim.
– Desde quando você se preocupa em impressionar Bela?
– Desde que decidi que vou me casar com ela, desde então! – Gaston
disse, abrindo a porta da taverna e saindo. E foi sorte dele: um bando de
gansos sobrevoava. Essa era sua chance de mostrar a Bela suas habilidades
de caça. – Rápido, LeFou, pegue sua bolsa! Prepare-se!
LeFou estava com ele desde que Gaston se lembrava. Na verdade, nem
tinha certeza de como se tornara seu agente de terras. Nenhum dos dois
conseguia se lembrar, mas isso não importava. Gaston presumiu que fosse
algo que seu pai havia arranjado. Ele não tinha certeza. O que sabia era que
LeFou era leal e estava sempre a seu lado. Ao que tudo indicava, LeFou
parecia adorar Gaston mais do que qualquer outra pessoa na aldeia, e isso
dizia alguma coisa. Gaston não se importava. Ele gostava de tê-lo por perto.
Sempre pronto para cumprir suas ordens. Sempre lembrando-o de como ele
era bonito e de como era o melhor em tudo. Não que Gaston precisasse ser
lembrado. Ele sabia que era o melhor. Sabia que era o queridão de todos.
Gaston ergueu seu bacamarte e atirou nos gansos no céu, acertando um.
Gostava de imaginar que LeFou não conseguiu pegar a ave quando ela caiu
porque estava muito distraído, admirado com o tiro de Gaston.
– Puxa! Você não perde um tiro, Gaston! – LeFou parecia pasmo com o
talento de Gaston. – Você é o maior caçador! – Gaston sabia que seu
companheiro era fácil de impressionar. E também sabia que ele estava
tentando fazê-lo se sentir melhor por deixar a fera fugir. LeFou era perfeito
assim. Embora aparentemente não fosse perfeito para pegar gansos.
– Eu sei – disse Gaston.
– Rá. Nenhuma fera tem a menor chance com você... e nenhuma garota
também! – afirmou LeFou.
– Tem razão, LeFou. E eu só consigo olhar praquela ali! – disse Gaston,
passando um dos braços em volta do pescoço de LeFou e levantando-o,
usando seu bacamarte para apontar para Bela, a fim de que LeFou pudesse
ver de quem ele estava falando.
– A filha do inventor? – LeFou parecia confuso. Como se de alguma
forma Bela fosse indigna do afeto de Gaston. Era verdade, ela não parecia
ser a escolha óbvia para Gaston, mas havia algo nela que ele gostava. Algo
diferente. Algo especial. E havia algo que lhe dizia que ela era a garota
certa para ele. A mulher com quem ele deveria se casar. Então, por que lutar
contra isso? Por que não pedi-la em casamento? Afinal, ele era o homem
mais bonito da cidade. Por que ela não iria querer se casar com ele? Tudo o
que ele precisava fazer era pedir.
E foi exatamente isso que ele pretendia fazer.
– É ela sim. E é com ela que eu quero me amarrar! – exclamou Gaston,
olhando para Bela como se ela fosse uma de suas presas. Como se
planejasse fazer dela um de seus troféus.
– Mas ela é...
– É a mais bonita da cidade – interrompeu ele, irritando-se com o amigo.
– É, eu sei... – declarou LeFou.
– Ela é a melhor! E eu não mereço a melhor? – Gaston disse, largando
seu bacamarte na cabeça de LeFou.
– Ora, é claro, você merece sim, mas...
Gaston pegou sua arma das mãos de LeFou e partiu atrás de Bela,
determinado a alcançá-la, mas isso não o impediu de se admirar num
espelho antes de persegui-la pela rua movimentada. Ela continuava a ler seu
livro enquanto caminhava, alegremente alheia ao que acontecia ao seu
redor.
Gaston esquivou-se de carroças e admiradoras a ponto de desmaiar ao
avistá-lo, enquanto abria caminho entre aldeões fofoqueiros, mantendo o
tempo todo o olho em Bela, que estava vários metros à sua frente. Ele podia
ouvir as pessoas comentando sobre ela enquanto passava por eles, dizendo
como Bela era peculiar por ler tanto, como a achavam estranha, mas isso
não importava para ele. Gaston declarou suas intenções a todos ao alcance
de sua voz de fazer de Bela sua esposa.
Gaston tinha que concordar com todos na cidade. Bela era estranha, com
seu amor pelos livros e olhar distante, sempre sonhando acordada. Ela era a
garota mais estranha que ele já conhecera. Bela não era como ninguém na
cidade, mas talvez fosse por isso que estava tão apaixonado por ela. Gaston
não se importava; mesmo que Bela não se encaixasse, ele ainda iria se casar
com ela. Tinha que se casar! Algo o estava levando a isso. Ele ia pedi-la em
casamento naquele dia. E que os deuses ajudassem qualquer um que falasse
contra ela depois de casados.
Gaston desistiu de tentar chegar a Bela abrindo caminho entre a multidão
reunida na aldeia e decidiu entrar em uma das casas no fim da rua. Ele
correu até o sótão o mais rápido que pôde, subiu pela janela até o telhado e
deslizou para poder surpreender Bela do outro lado. Ele havia cronometrado
tudo perfeitamente.
O que Gaston sentia por Bela naquele dia era quase tão estranho quanto
ela. Nunca havia pensado nela desse jeito antes. Pelo menos, não achava
que tivesse. Nunca havia parado para prestar atenção nela. Claro, ele a via
na aldeia desde que ela e o pai se mudaram para lá. Mas não fora algo que
se poderia chamar de amor à primeira vista. Fora mais como um relâmpago
inesperado. Um choque que o atingiu depois que ele foi atacado pela fera –
de repente, ele estava apaixonado por Bela. Ele não conseguia explicar. E
não se importava.
Finalmente ele a alcançou. Sabia que Bela ficaria muito feliz ao saber
que ele sentia algo por ela. Que mulher não ficaria? Bela provavelmente
estava sofrendo por ele desde que ela e seu excêntrico pai se mudaram para
a cidade, e só andava pelas ruas lendo seus livros para chamar atenção dele.
E de alguma forma ele nunca a tinha notado, não de verdade, não assim,
não até aquele dia. O dia em que ele decidiu que tinha que se casar com ela.
Ele pulou do telhado, aterrissando bem no caminho de Bela, e fez uma de
suas melhores poses: mãos na cintura, exibindo seus músculos. Ele sabia
naquele momento que estava mais bonito do que nunca, se isso fosse
possível.
– Olá, Bela – Gaston disse, certo de que ela ficaria surpresa e satisfeita
por ele estar fazendo poses e conversando com ela. Ele a faria desmaiar em
pouco tempo.
– Bonjour, Gaston – ela falou, enquanto Gaston arrancava o livro de suas
mãos de brincadeira. Ele era até bom em flertar! – Gaston, me devolve o
livro, sim?
– Como pode ler isto? Não tem figuras! – ele exclamou, virando o livro
de lado e depois de cabeça para baixo.
– Ah, só precisa usar a imaginação.
– Bela, já é tempo de você afastar a cabeça desses livros e dar atenção a
coisas mais importantes... como eu! – Ele jogou o livro no ar com um
floreio, deixando-o cair em uma poça de lama. Ela não pareceu
impressionada. Bela não ficou muito feliz por ele estar falando com ela.
Qual poderia ser o problema? Qualquer outra garota estaria desmaiando
agora. Na verdade, Claudette, Laurette e Paulette, as três beldades loiras
que trabalhavam na taverna, estavam paradas na rua, desmaiando por causa
dele naquele exato momento. O que havia de errado com essa garota?
– A aldeia toda só fala nisso. Não é direito uma mulher ler. Logo começa
a ter ideias... a pensar – disse Gaston com a maior sinceridade, enquanto
Bela pegava seu livro na lama. Nem lhe passava pela cabeça que um dia ele
amara livros tanto quanto ela; Gaston havia se esquecido completamente
daqueles dias. E se ele tivesse se lembrado, ficaria feliz em passar a vida
com alguém que adorasse ler, alguém tão doce e gentil, que ficaria satisfeita
em dedicar um tempo para ensiná-lo a ler livros por conta própria, se ele
não agisse de modo tão arrogante... Mas tudo o que sabia era que amava
aquela mulher e não sabia por quê. Ele não se lembrava de ter desejado a
oportunidade de cortejá-la depois da conversa no baile, de como desejara
levá-la do salão de baile para a biblioteca e mostrar-lhe todos os seus livros
favoritos. Ele não se lembrava de como, em algum nível, estava protegendo
Bela quando empurrou Reizinho na direção de Tulipa. Ele não se lembrava
de nada disso.
Ele nem era a mesma pessoa que fora antes da maldição. Era mais
parecido com as pessoas da cidade, tacanho e com ideias antiquadas. Ele se
encaixava. E era obcecado por um punhado de coisas: ser o herói que a
cidade queria, ser o melhor, matar a fera e cortejar Bela. Todo o restante
havia sido encoberto pela maldição, mesmo que permanecesse sob a
superfície, obscuro e indistinto. Essas novas obsessões o distraíam e
inspiravam. Mesmo que o foco em si mesmo o tornasse insuportável, não
havia chance de ele se lembrar.
– Gaston, você é um homem primitivo. – Bela lançou-lhe um olhar feio
enquanto limpava o livro com o avental. Aquilo não estava indo bem, e
Gaston não entendia por quê. Ela deveria estar nas nuvens por ter um
homem tão bonito puxando conversa com ela. Bela era imune a sua extrema
beleza? Ela não estava impressionada com suas habilidades superiores de
caça? Com sua reputação de ser o homem mais corajoso da aldeia?
Impossível! Devia haver algo mais acontecendo, ele pensou, e decidiu
interpretar o comentário dela como um elogio. Considerava tudo um elogio;
a vida era muito mais agradável assim. Colocou o braço em volta dela e
sorriu.
– Ora, obrigado, Bela. O que me diz de darmos um passeio até a taverna
para olhar meus troféus? – Com toda certeza, se ela visse todas as suas
conquistas, perceberia como ele era um bom partido.
– Talvez em outra ocasião – respondeu ela. Claudette, Laurette e Paulette
engasgaram audivelmente, e Gaston sabia como se sentiam. Bela o estava
dispensando. Como todos na cidade o amavam, exceto Bela?
– Perdão, Gaston. Eu não posso. Preciso ir ajudar meu pai. Até logo. – E
assim ela estava se afastando dele. Como isso era possível? Ele ficou
parado ali, incrédulo, quando LeFou chegou ao local, e os dois ficaram um
ao lado do outro, observando Bela caminhar em direção a sua casa.
– Ha-ha-ha, aquele velho maluco está precisando de muita ajuda! –
LeFou sempre sabia o que dizer para fazê-lo rir. O pai de Bela era um
pouco doido. Não havia como negar.
– Não fale de meu pai desse jeito! – Bela se virou e lançou-lhes um olhar
severo. Essa foi a primeira vez que Bela deixou transparecer sua raiva. E
Gaston sabia que, se quisesse conquistar o coração daquela garota, zombar
do pai dela não era a maneira de fazer isso.
– É, não fale do pai dela desse jeito! – Gaston se apressou em dizer,
batendo na cabeça de LeFou. Mas Bela ainda estava com raiva. Ela ficou
parada lá, olhando feio para eles.
– Meu pai não é louco! Ele é um gênio! – ela exclamou quando algo
explodiu no porão de sua casa, fazendo levantar fumaça. Muito
provavelmente, uma das engenhocas malucas do velho Maurice.
Enquanto ela saía correndo, Gaston disse:
– Não me importo com o que dizem sobre ela, LeFou! Vou me casar com
aquela garota e você vai me ajudar a fazer isso!
E Gaston falava sério. Todo o restante estava derretendo. Não havia mais
nada que importasse. Ele tinha que se casar com Bela. Era uma sensação na
boca do estômago, uma urgência inexplicável empurrando-o, quase como se
sua vida dependesse disso.
CAPÍTULO XXI

DO LIVRO DOS CONTOS DE FADAS

O espião das Irmãs Esquisitas


Irmãs Esquisitas falando. Não se preocupem, queridos, em breve
voltaremos às tosquices de Gaston. Não que vocês já não saibam o que vai
acontecer. Que desastre foi seu casamento surpresa, mas longe de nós
darmos spoiler. Tenho certeza de que vocês já devem ter percebido que
todas essas histórias estão entrelaçadas, uma teia intrincada, tecida como os
fios do destino. Portanto, tenham paciência conosco, queridos, enquanto
compartilhamos algumas páginas do Livro dos Contos de Fadas.
No topo de uma colina gramada havia uma mansão verde-escura em
estilo casinha de biscoitos de gengibre enfeitada em dourado e com
venezianas pretas. Seu telhado se elevava contra o céu, com um formato
parecido com um chapéu de bruxa. Estávamos aconchegadas lá dentro,
tomando nosso chá da manhã. Martha vinha trazendo scones de mirtilo
quando me ouviu gritar de alegria.
– Ela está aqui! Ela está aqui!
Ruby e Martha correram até a janela, tropeçando para ver quem estava
ali. Nós a observamos trilhar o caminho de terra enquanto seus lindos olhos
dourados delineados em preto brilhavam com pequenas manchas verdes na
luz da manhã. Ficamos muito felizes por finalmente tê-la em casa.
– Pflanze, olá! Nós vimos tudo! Nós vimos tudo! Você trabalhou bem,
nossa querida.
Talvez vocês estejam se perguntando como vimos tudo o que estava
acontecendo no castelo. Talvez tenham pensado que era através de um dos
nossos muitos espelhos mágicos e, em alguns casos, era, mas também era
Pflanze. Sim, Pflanze, a velha gata de Gaston, a gata que Tulipa tanto
amava quando estava no castelo.
E tudo teria acontecido como planejamos se Circe não tivesse percebido
que estávamos nos intrometendo, depois de termos prometido a ela que não
faríamos isso. Tentamos fazê-la pensar que estávamos apenas espionando,
apenas de olho no príncipe.
– E o que vocês viram? – ela perguntou, entrando na sala. E, assim,
nossas palavras choveram sobre ela como uma tempestade. Não
conseguimos evitar. E a pobre Circe foi apanhada pela agitação das nossas
histórias fragmentadas. Estamos muito gratas por não falarmos mais assim.
Quando olhamos para nós mesmas, como éramos naquela época, é como se
fôssemos bruxas totalmente diferentes. E suponho que fôssemos.
– Ah, vimos de tudo!
– Coisas desagradáveis e terríveis!
– Pior do que imaginávamos!
– Assassinato!
– Mentiras!
– Uma fera feia, asquerosa e horrível!
– Corações despedaçados, romances malfadados!
– Ah, estamos rimando agora? Que adorável!
Circe pôs fim àquilo antes que a rima continuasse.
– Não, não, não estão! Sem rima! Agora se acalmem e me contem tudo,
de forma contínua. Eu sei que vocês conseguem.
E foi isso que fizemos: contamos tudo a ela. Tudo o que aconteceu desde
a maldição – e é claro que ela se sentia responsável, especialmente pelo que
aconteceu com Tulipa.
– Foi o príncipe que fez isso com ela, Circe, não você!
– Eu sei, mas ele destruiu Tulipa e sua família para quebrar a maldição!
Minha maldição! – Sabíamos que fora um erro contar a ela no momento em
que abrimos a boca. Sabíamos que ela sentiria que precisava fazer alguma
coisa e não havia nada que pudéssemos dizer para influenciar sua
convicção. Mas nós tentamos.
– A Velha Rainha Grimhilde destruiu a terra e deixou um rastro de
desastre e morte em seu caminho. Devemos nos culpar?
Não queríamos que Circe se culpasse por Tulipa ter pulado do penhasco,
assim como não poderíamos nos culpar por Grimhilde ter feito o mesmo
tantos anos antes. Por mais que tentássemos, não conseguíamos controlar
tudo. Além disso, Tulipa foi salva pela Bruxa do Mar Úrsula. Ela estava
bem. Não havia nada para Circe se preocupar.
– O que a Bruxa do Mar exigiu em troca?
– Você faz tão pouco de nossas amizades? – Ruby ficou magoada com a
pergunta. Todas nós ficamos.
– E como vamos saber o que Úrsula tirou dela? Não estamos a par do que
acontece em todos os reinos. – Mas Circe tinha certeza de que isso era
mentira. Claro que sabíamos. Sabíamos mais do que Circe poderia ter
imaginado na época. Mas ela tinha um pressentimento. Ela era muito mais
poderosa do que imaginava na época. Ela não era a rainha que é agora, mas
estava dando os primeiros passos que a levariam ao seu destino.
– Ela não tirou nada que Tulipa realmente precisasse. – Circe não estava
convencida. Não tinha motivos para confiar em nós; ela conhecia nossos
costumes. Mesmo que estivéssemos apenas tentando protegê-la.
– Quero que vocês acertem as coisas com Úrsula! Deem algo a ela em
troca do que ela tirou de Tulipa! E eu vou resolver os assuntos do reino
Morningstar!
Ruby e Martha entraram em pânico, como acontecia frequentemente
naquele tempo, relutantes e ansiosas com a ideia de doar qualquer um de
nossos bens mais preciosos.
– Mas o que vamos dar a ela? Nada muito precioso. Nada do cofre.
– Circe gostaria que doássemos todos os nossos tesouros! Primeiro, um
dos nossos espelhos encantados, e agora?
Mas eu sabia exatamente o que iríamos dar a ela. E não era muito
precioso. Minhas irmãs desmioladas tinham se esquecido daquilo,
escondido no fundo da despensa. Estava em um saquinho de veludo
amarrado com um cordão. Entreguei-o para Circe levar com ela para
Morningstar.
– Quando você chegar em Morningstar, vá até os penhascos e dê isso a
Úrsula. Ela estará lá esperando por você.
E essa foi a última vez que vimos nossa querida Circe por mais tempo do
que gostaríamos de reconhecer.
Às vezes, um simples ato pode causar repercussões inesperadas ao longo
da vida. E dar o colar de conchas de Úrsula a Circe naquele dia nos colocou
em caminhos que nunca imaginamos. Mas não vimos isso então. Tudo o
que sabíamos era que Circe estava determinada a ajudar Tulipa, e muito
possivelmente o príncipe. Conhecíamos nossa filha e conhecíamos seu
coração. E, se você leu a história da fera, sabe que no fim foi Circe quem
interveio e ajudou Bela e a fera, e ela é a razão pela qual eles estão juntos
hoje.
Mas não sabíamos disso na época, então nosso objetivo era garantir que o
príncipe não quebrasse a maldição. Vimos no Livro dos Contos de Fadas
que seria Bela quem poderia ajudá-lo a quebrá-la, e tivemos que fazer tudo
ao nosso alcance para garantir que isso não acontecesse.
Mesmo que isso significasse eliminar Gaston no processo. Mesmo que
isso significasse deixá-lo louco de desejo por Bela e de sede de sangue pela
fera. Então, fizemos o que as bruxas fazem de melhor.
CAPÍTULO XXII

A SURPRESA

Gaston deixou LeFou desempenhando tarefas durante toda a manhã,


preparando-se para a grande surpresa. Ele estava correndo por toda a cidade
cuidando dos preparativos e todos ficaram felizes em ajudar. Afinal, isso era
para Gaston e não havia nada que as pessoas daquela aldeia não fizessem
por ele. O padeiro ficou feliz em fazer o bolo de casamento, e o celebrante
não se importou com um casamento de última hora. LeFou não teve
problemas em montar a banda, ou em encontrar voluntários para preparar o
banquete de casamento, ou em reunir homens para construir um estrado e
arrumar as mesas e cadeiras da festa. E, claro, todos ficaram felizes em
participar. Tudo o que LeFou precisou fazer foi anunciar na taverna que
Gaston iria se casar e todos estavam prontos para participar da
comemoração.
Estava tudo preparado para o casamento de Gaston e Bela. Tudo
preparado e arrumado, bem na frente da casa de Bela, mas do outro lado de
uma cerca viva alta, para que ela não visse o que estavam fazendo. A única
coisa que faltava era a noiva.
– Puxa vida! A Bela vai ter uma grande surpresa, não é, Gaston? – LeFou
comentou enquanto Gaston puxava um galho da cerca viva, revelando a
casa de Bela.
– É. É o dia de sorte dela! – Gaston disse, largando o galho, que acertou
LeFou bem na cara.
Enquanto olhava para todos os seus convidados, ele pensou consigo
mesmo como este seria o ponto alto da vida de Bela. Um sonho tornado
realidade. O dia em que ela se casaria com o homem mais corajoso e bonito
da cidade. Ele mal podia esperar para mostrar a ela sua surpresa.
– Agradeço a todos por virem a meu noivado. Primeiro, vou lá e peço a
mão dela... – Todos riram muito, exceto Claudette, Laurette e Paulette, que
choravam ao pensar em Gaston se casando com alguém que não era uma
delas. Gaston supôs que não houvesse mulher na cidade que não desejasse
poder se casar com ele. E Bela sem dúvida se sentiria honrada por ele a ter
escolhido. Aquilo seria muito fácil!
– LeFou. Quando Bela e eu sairmos daquela porta...
Mas LeFou não deixou Gaston terminar.
– Ah, já sei, já sei! Eu vou reger a banda. – Ele estava tão animado para
mostrar a Gaston que tinha tudo sob controle que começou a comandar a
banda para tocar no mesmo instante. Gaston revirou os olhos.
Obviamente, a banda estava na taverna quando LeFou encontrou os
integrantes. Não importava. Tudo seria perfeito desde que LeFou não
estragasse tudo.
– Ainda não! – Gaston bateu com a tuba na cabeça do idiota. Que
palerma LeFou poderia ser às vezes. Não importava. O momento estava
próximo. Ele bateu à porta e esperou que Bela atendesse. Pareceu-lhe que
estava parado na varanda da frente havia uma eternidade. O que ela estava
fazendo lá dentro? Por que estava demorando tanto? Quanto tempo ele teria
que esperar para se casar com aquela garota? Era enlouquecedor.
O que há de errado com você, homem? Acalme-se, ele disse a si mesmo.
Por que estava em tamanho pânico? Por que isso de repente se tornara tão
urgente?
Quando ela finalmente abriu a porta, estava usando o mesmo vestido azul
e avental branco de antes. Não importava. Ela era linda independentemente
do que vestisse. Seria a noiva perfeita. Sua noiva. A noiva mais sortuda do
mundo.
– Gaston! Mas que bela... surpresa. – Gaston foi entrando na casa e fez
uma de suas melhores poses, colocando as mãos no cinto para exibir seu
novo traje chique. Não havia como resistir a ele com seu novo colete
dourado e longo casaco vermelho. Ele não conseguia se lembrar de ter se
sentido mais bonito do que naquele dia. O que era incrível, já que ele
sempre se sentia bonito.
– Você gostou? Eu sou sempre cheio de surpresas. Sabe, Bela, não há
uma garota na aldeia que não fosse adorar estar em seu lugar. Hoje é o dia...
– ele disse, distraindo-se com seu próprio reflexo no espelho e parando um
momento para admirá-lo. Sim, ele estava mais bonito do que nunca.
Nenhuma dúvida quanto a isso. – Hoje é o dia de realizar seus sonhos. – E
estava falando sério. Ele acreditava. Sentia isso em seu âmago.
– O que você sabe sobre meus sonhos, Gaston?
– Bastante. Olhe, imagine. – Ele se sentou em uma poltrona e cruzou as
botas cobertas de lama sobre o livro de Bela, que estava aberto em cima da
mesa. Ele poderia se acostumar com aquilo, pensou, e tirou as botas,
revelando as meias surradas e cheias de buracos. Era bom tirar as botas,
mexer os dedos dos pés e imaginar sua futura vida com Bela.
– Uma cabaninha rústica, minha última caça assando no fogo, minha
esposinha... massageando os meus pés, pequeninos brincando no chão com
os cães. – O que era aquela expressão no rosto dela? Repulsa? Talvez ela
não gostasse de cachorros.
– Teremos seis ou sete – disse ele, abrindo seu melhor sorriso.
– Cães?
– Não, Bela! Garotos robustos, como eu!
– Imagine só. – Ele percebeu que ela estava nervosa enquanto se ocupava
com a casa, pegando o livro, colocando o marcador nas páginas e
devolvendo-o à estante. Estava tão emocionada com a proposta dele e com
a vida que ele havia planejado para os dois que não sabia o que dizer? Ou
ela não entendera? E ele ali, achando que Bela fosse inteligente.
– E sabe quem será a esposinha?
– Quem será? – perguntou Bela, fingindo que não sabia que era ela. Ou
estaria fingindo? Estava apenas bancando a difícil ou ela realmente não
entendia? Gaston tinha a sensação de que Bela estava brincando com ele.
Bem, ele estava farto daqueles joguinhos. Não poderia ter sido mais claro.
Talvez fosse hora de ser mais direto.
– Você, Bela! – Ele se aproximou e a encurralou, mas ela rapidamente
escapuliu por baixo do braço dele e foi até o outro lado da sala. Jogar duro
para conseguir era uma coisa, mas aquilo estava indo longe demais. Todos
sabiam que ela iria se casar com ele. Todos, ao que parecia, exceto ela.
– Gaston, estou... estou... sem palavras. Eu não sei o que dizer – falou ela
enquanto Gaston empurrava cadeiras e qualquer outra coisa que estivesse
entre ele e sua futura esposa para fora de seu caminho. Então, finalmente
ele a alcançou. Ela estava de costas contra a porta, de frente para ele. Por
fim, teriam seu momento.
– Diga que casa comigo.
– Lamento muito, Gaston, mas... mas... acho que não mereço você –
disse ela, abrindo a porta e fazendo-o cair da varanda em uma poça gigante.
Enquanto estava ali sentado, mortificado, coberto de lama, ele viu suas
botas sendo atiradas para fora antes que ela fechasse a porta.
Gaston se sentia um idiota e parecia um. Mas enquanto a banda tocava
“Lá vem a noiva”, ele percebeu uma coisa. Ela não o recusara. Não de
verdade. Ela simplesmente não acreditava que o merecesse e, embora isso
fosse provavelmente verdade, não importava. Ele a queria. Caramba, ele
poderia ter quem quisesse. Mas queria Bela, ainda que nem tivesse certeza
do motivo. Então, como ele iria provar que ela era digna? Como ele seria
capaz de acalmar o receio dela de não merecê-lo? E que mulher não
gostaria de um casamento surpresa, afinal? E com o homem mais bonito da
cidade? Estaria ela tão confusa quanto seu pai? Estava tentando fazer
Gaston parecer um idiota? Ele não sabia, mas de uma coisa tinha certeza:
não gostava de ser feito de bobo, por engano ou acaso. E ele faria qualquer
coisa para fazê-la se casar com ele.
– Eu vou ter Bela como esposa, pode apostar em minha palavra!
CAPÍTULO XXIII

NINGUÉM LUTA COMO GASTON

Mais tarde naquela noite, Gaston se viu de volta à taverna com LeFou,
lambendo as feridas. Não sabia ao certo como se sentia: irritado, magoado
ou confuso? Talvez tudo junto. Mesmo que Bela não se sentisse digna dele,
como ela poderia humilhá-lo publicamente daquele jeito? Não havia
ninguém na cidade que não tivesse ouvido falar de como ela o recusara e o
expulsara de casa. E como isso o fazia parecer? Não. Como isso a fazia
parecer? Sem dúvida, todos se perguntavam como ela poderia resistir a seus
encantos e a uma proposta de casamento tão romântica.
Ele não conseguia pensar direito. Sua mente estava acelerada, era como
um redemoinho, girando. Ele ouviu as mesmas palavras sendo entoadas
repetidamente em sua mente: Você tem que se casar com Bela. Ele não
sabia quem estava dizendo as palavras. Era ele? Esses eram seus próprios
pensamentos? Não parecia ele. Era outra pessoa? Houve momentos em que
ele pensou que eram vozes de mulheres; três, na verdade. Vozes que ele
pensava conhecer, mas não conseguia identificar. Isso o estava deixando
louco. Ele ao menos queria se casar com Bela? Claro que sim. Precisava
disso. Não havia como voltar atrás agora.
– Quem ela pensa que é? Está brincando com o homem errado. Ninguém
diz “não” pra Gaston! – A última coisa que ele desejava era se sentir fraco
na frente dos outros homens, ainda mais LeFou. Ele precisava salvar sua
reputação.
Precisava colocar a cabeça no lugar.
– Tem toda razão!
– Repudiado. Rejeitado. Publicamente humilhado. Ah, isso é demais pra
um homem! – Ele virou a cadeira para que os outros não o vissem agindo
como uma criança.
– Mais cerveja? – Era típico de LeFou tentar animá-lo, mas nem a
cerveja estava ajudando. Não havia nada que alguém pudesse fazer.
– Pra quê? Nada consola. Sou um desgraçado.
– Quem, você? Jamais. Gaston, você tem que voltar logo a ser o que era.
– E era verdade, Gaston nunca estivera tão deprimido, e era típico de LeFou
tentar animá-lo. E sem saber como aquilo aconteceu, todos na taverna
começaram a balançar de um lado para o outro, cantando louvores a
Gaston. O turbilhão de vozes que o enlouquecia foi substituído pela
cantoria de seus amigos. Ah, sim, era disso que ele precisava para levantar
seu ânimo. Era disso que se tratava a vida, estar na companhia de homens
bons que davam valor às suas qualidades. Pessoas que o amavam. Por quem
ele era.
E bem no momento em que os amigos de Gaston o celebravam com sua
música, no momento em que ele estava se sentindo melhor e mais parecido
com ele mesmo, ou talvez uma versão sua ainda melhor do que antes, o pai
de Bela, Maurice, entrou cambaleando na taverna deixando lá fora o frio
congelante. Gaston tinha certeza de que o homem estava ali para perguntar
o que acontecera com Bela. Se alguém poderia convencer Bela a agir com
bom senso, esse alguém era o pai dela, por isso, por um instante, Gaston
ficou satisfeito em vê-lo. Mas não parecia que Maurice estivesse em
condições de fazer alguma coisa, tremendo e em pânico como estava.
– Socorro! Alguém me ajude.
– Maurice?
– Por favor! Por favor, eu preciso de ajuda! Ele a pegou. Ele a prendeu no
calabouço. – As coisas que Maurice falava estavam fazendo menos sentido
ainda do que o normal. Nenhum deles sabia do que ele estava falando.
– Quem? – perguntou LeFou.
– Bela! Temos que ir! Não podemos perder um minuto! – exclamou
Maurice.
– Ô-ô! Devagar, Maurice. Quem prendeu Bela, afinal de contas? –
Gaston queria entender direito aquilo. Não havia como ele tolerar que
alguém trancasse sua futura noiva em um calabouço.
– A fera! Uma fera monstruosa e horrível! – Maurice corria de homem
em homem, implorando ajuda. Mas eles apenas riam. Essa não era a
primeira vez que Maurice entrava na taverna dizendo coisas estranhas, e os
homens estavam todos exaltados depois de um longo dia. Eles resolveram
que iriam se divertir um pouco com o pobre velho.
– E de que tamanho?
– Grande!
– Com um focinho grande e feio?
– Uma cara horrenda!
– Com os caninos afiados?
– É, é. Vão me ajudar?
– Está bem, velhote, nós vamos livrá-lo disso – disse Gaston.
– Ah, vão? Obrigado, obrigado, obrigado! – agradeceu Maurice. E três
dos homens o pegaram e atiraram pela porta da taverna.
– Velho louco Maurice.
– Ele mata a gente de tanto rir!
– Velho louco Maurice. Velho louco Maurice. Humm. – Gaston teve uma
ideia.
Ele sabia que, se Maurice tivesse realmente ficado cara a cara com a fera,
não teria sobrevivido para contar a história. Se um caçador habilidoso como
Gaston mal havia escapado com vida, não tinha como Maurice conseguir.
Além disso, a Fera de Gévaudan era um animal selvagem. Não andava por
aí colocando pessoas em calabouços. Ela as devorava. Não, essa era apenas
uma das histórias de Maurice.
Todo mundo sabia que ele era um velho excêntrico, sempre falando sobre
uma coisa e outra. Não fora ele o mesmo homem que entrara na taverna
alegando que as corujas não eram o que pareciam? O que isso significava?
E, naquela mesma noite, disse que estava construindo uma engenhoca que
poderia cortar madeira em toras. Quem já ouviu falar de tal coisa? E por
que alguém iria querer ou precisar disso? Todos estavam cansados de suas
histórias, engenhocas e noções malucas sobre as coisas. E esse era apenas
mais um exemplo.
Não, Maurice estava apenas dizendo bobagens, como sempre. Mas
Gaston tinha uma ideia de como isso funcionaria a seu favor. Ele só
precisava de uma forma de convencer Monsieur D’Arque, o homem que
dirigia o sanatório, a seguir seu plano.
CAPÍTULO XXIV

MORTE À FERA

D’Arque ficou mais do que feliz em atender ao pedido de Gaston de colocar


Maurice no sanatório se Bela não concordasse em se casar com ele. Estava
claro que D’Arque sabia muito bem que Maurice era apenas um
homenzinho estranho que amava apenas uma coisa mais do que seus
aparelhos barulhentos: sua filha, Bela. E Bela não amava ninguém mais do
que seu pai. Gaston quase se sentiu mal por ir tão longe, mas havia algo que
o pressionava, como se algum poder estranho o dominasse. E não era
apenas a beleza de Bela; era outra coisa. Talvez fosse o destino, ele não
tinha ideia. Tudo o que ele sabia era que precisava se casar com ela e faria
qualquer coisa para convencê-la a dizer “sim”. Desde que fora atacado na
floresta, parecia que faltava alguma coisa, algo que ele não conseguia
explicar. Gaston tinha uma sensação estranha de vazio, como se tivesse
perdido uma coisa importante, ou alguém importante, como se não estivesse
completo, mas não sabia o que era. Depois que percebeu que nutria
sentimentos por Bela, começou a pensar que talvez, uma vez que ela fosse
sua esposa, ele se sentiria bem e completo novamente.
Parecia que D’Arque estava satisfeito com o acordo, e por que não
estaria? Gaston certificou-se de que seus cofres estivessem cheios e
D’Arque ficou feliz por ter feito uma nova aliança com Gaston. Juntos, eles
estavam prestes a participar de uma boa trapaça à moda antiga.
Até mesmo Gaston teve que admitir quão intimidante D’Arque parecia
agora, iluminado pela luz das tochas enquanto eles estavam diante da casa
de Bela. Parecia a Gaston que a coisa que aquele homem mais adorava era
causar medo. E essa era uma característica que Gaston admirava.
Gaston e sua turba estavam reunidos com força total em frente à casa de
Bela e Maurice. Estavam perto da carroça de D’Arque, pronta para levar
Maurice, caso Bela se recusasse a se casar com Gaston. Eram um bando de
desordeiros que Gaston reunira na taverna. Não havia nada tão ameaçador
quanto um grupo de arruaceiros depois de uma longa noite de bebedeira,
com ouro nos bolsos e ódio no coração. Tudo isso, nesse caso, abastecido
por Gaston.
Não havia dúvida de que Bela se casaria com ele agora. Ela não poderia
resistir, nem se sair melhor. Quem mais na cidade a aceitaria, com seus
modos estranhos? E como ela poderia dizer “não”, dadas as circunstâncias?
Ele iria compensá-la depois que se casassem. Ela seria a mulher mais feliz
do mundo. Quem não seria? Afinal, ela estaria casada com ele.
E, com isso, ele bateu à porta dela.
Bela atendeu à batida timidamente, com os olhos cheios de medo.
– O que deseja?
– Eu vim para internar seu pai – respondeu D’Arque.
Seu rosto murcho, semelhante a uma caveira, parecia horrível e
ameaçador à luz das tochas.
– Meu pai? – Ela parecia confusa.
– Não se preocupe, mademoiselle. Nós cuidaremos bem dele – disse
D’Arque, com a cara da morte.
Gaston percebeu que Bela estava tomada de medo. Ela entendeu o que
estava acontecendo imediatamente. Viu a carroça de D’Arque ao longe.
Sabia que estavam levando seu pai para o hospício.
– Não, não podem fazer isso! – ela protestou, tentando detê-los a todo
custo. Estava com medo e desesperada, e seu olhar de repugnância pela
traição quase fez Gaston cancelar tudo. Algo no medo nos olhos dela o
lembrou de alguém, uma mulher que fora magoada – não por ele, mas por
sua cumplicidade. O que ele estava fazendo? Mas sua cabeça começou a
girar novamente, as vozes estavam de volta, incentivando-o, dizendo-lhe
que seria motivo de chacota se Bela não se casasse com ele, que ficaria
sozinho. Que morreria se não se casasse com Bela. Então, Gaston balançou
a cabeça, livrando-se de suas dúvidas, e prosseguiu com seu plano. E
deveria ter funcionado.
Era um plano simples e direto. Se Bela concordasse em se casar com ele,
Gaston convenceria D’Arque a não levar Maurice embora. Bela era
teimosa. Ele esperava isso, e de certa forma a admirava por tal, mas o que
não esperava era uma prova de que o pai dela realmente havia visto uma
fera. Ela levantou um espelho de mão e revelou o monstro para todos
verem. E ele ficou chocado. Profundamente abalado.
Gaston não conseguia acreditar no que estava vendo; era a mesma fera
que o atacara na floresta. A mesma fera que havia matado seus pais. Ele não
entendia por que não acreditara em Maurice no momento em que pediu
ajuda. Gaston não conseguia descobrir o que havia de errado com ele
ultimamente. Era quase como se ele tivesse esquecido que fora atacado. Sua
cabeça estava tão confusa, e só conseguia pensar e se importar com Bela.
Mas ver aquele monstro no espelho de Bela desencadeou algo, uma faísca,
e ele sabia que já tinha visto aquela fera antes. E o que havia de errado com
Bela, defendendo aquele monstro? Ele acabara de ouvi-la dizer que ele foi
gentil e bondoso? Teria a fera lançado algum tipo de feitiço de amor sobre
Bela, ligando-a a ela para sempre? Aquilo era uma loucura.
– Se eu não a conhecesse, diria que está caidinha por esse monstro –
disse ele, olhando para Bela.
– Ele não é monstro, Gaston. Você é! – Gaston tinha certeza de que Bela
estava sob algum feitiço perverso. Obviamente, aquela fera tinha algum tipo
de magia. De que outra forma ela teria conseguido o espelho mágico se não
fosse da fera? Aquilo era uma loucura. Ela estava delirando.
– Ela é tão louca quanto o velho – declarou ele, enquanto arrancava o
espelho da mão dela. Ele precisava fazer alguma coisa. Tinha que quebrar
aquela maldição maligna que a fera lançara sobre Bela. Tudo fazia sentido
agora, por que ela não queria se casar com ele. Por que ela nunca prestara
atenção nele. Deve ter sido a influência da fera o tempo todo. Encantando-a
de alguma forma à distância, atraindo-a para seu covil, onde poderia tê-la só
para si. Bem, ele não iria deixar Bela ficar trancada para sempre. Não iria
deixar a fera aterrorizar a região, matar mais pessoas inocentes. Iria acabar
com a criatura e quebrar o feitiço maligno que ela lançara sobre sua querida
Bela. Uma vez que o feitiço fosse quebrado, ela perdoaria o que ele
precisou fazer para protegê-la e a todos os outros na aldeia.
Ele mataria a fera.
CAPÍTULO XXV

IRMÃOS DE SANGUE

Alimentados pelo medo e pela raiva, Gaston e os outros aldeões


aventuraram-se em direção a um pesadelo através das brumas e da floresta,
através da escuridão e das sombras até chegarem ao castelo. Era um lugar
aterrorizante, envolto em uma escuridão monstruosa. Para onde quer que
olhassem havia estátuas de gárgulas e outras criaturas repugnantes,
assomando na escuridão, olhando para eles. Gaston podia sentir os olhos
daquelas coisas sobre ele e ouvir sussurros dentro das paredes. Não
conseguia entender o que estavam dizendo, ou se estavam mesmo dizendo
alguma coisa. Mas não podia deixar que a atmosfera o distraísse de seu
propósito. Ele estava lá para salvar Bela, acabando com aquela fera de uma
vez por todas.
Enquanto a multidão invadia o castelo, Gaston perseguia sua presa,
procurando silenciosamente pela fera em todos os aposentos. Ele não tinha
certeza do motivo, mas algo no castelo parecia familiar. Era uma sensação
muito estranha; ao passar de cômodo em cômodo, sentia como se já tivesse
estado ali antes. Deparou-se com um quarto que parecia diferente dos
outros, decorado como ele decoraria um quarto para si próprio. Na
penteadeira, havia dois objetos que pareciam deslocados: um candelabro
fino de ouro e um relógio de corda de aparência rabugenta. Na mesa de
cabeceira, havia um bule atarracado e alegre e uma pequena xícara lascada
sobre um pires. Sua mente começou a mudar à medida que imagens de
rostos que ele não reconhecia apareciam em sua mente. E, novamente, ele
se perguntou o que estava fazendo. Por que ele estava ali.
Ele desanuviou a mente e se lembrou. Ele estava ali para salvar Bela.
Para matar a fera. Não iria perder alguém que amava para aquele monstro.
Então, ele se livrou da confusão e tentou ignorar os sussurros, e continuou
procurando, até que finalmente avistou a fera.
Ela estava sozinha, parecendo estar esperando Gaston chegar lá. Por um
breve momento, sentiu pena dela. Como se a criatura conhecesse o seu
destino. Como se já tivesse sido derrotado antes da chegada de Gaston.
Havia algo em seu comportamento que disse a Gaston que a fera sabia que
estava prestes a morrer. Gaston mirou enquanto a fera lentamente o
encarava. E assim que Gaston lançou sua flecha, viu tristeza em seus olhos.
Por um momento fugaz, Gaston sentiu a dor da fera quando a flecha atingiu
seu ombro. Quis gritar de dor também, enquanto a fera rugia.
Antes que Gaston soubesse o que estava fazendo, antes que a fera
pudesse retaliar, Gaston atacou a criatura. Foi puro instinto e fez com que os
dois saltassem pela janela para a varanda. Eles lutaram, até que Gaston
encurralou a fera na beira do telhado. A fera ficou ali sentada, com ódio de
si mesma e desespero enquanto Gaston zombava da criatura, rindo dela.
Querendo saber como ele já tivera medo daquele monstro. Como aquela
criatura fraca e patética poderia ser a Fera de Gévaudan? Como aquilo
matara seu pai, o homem mais corajoso, mais forte e melhor que ele já
conhecera?
– Levante! Levante! O que foi, Fera? Bom e gentil demais pra me atacar?
Mas a fera nem olhou para ele. Merecia seu destino. Sabia que um dia
Gaston viria buscá-lo. Como poderia ser diferente, depois de tudo que a fera
havia feito?
Enquanto estava ali, Gaston teve a chance de quebrar um pedaço
irregular do telhado que ele poderia usar como um porrete. Ele o ergueu no
ar, pronto para quebrar o crânio da fera, quando ouviu a voz de Bela lá
embaixo, gritando de terror.
– Não!
Com uma palavra, ela partiu seu coração. Bela não tinha medo por
Gaston. Ela estava com medo dele. Com medo de que Gaston matasse a
fera. Ele ouviu a fera murmurar o nome de Bela enquanto arrancava a arma
de Gaston de sua mão. A criatura encontrou forças e se levantou, rugindo na
cara de Gaston.
Foi uma luta terrível, os dois brigando perigosamente no telhado, até que
a fera conseguiu escapar das garras de Gaston e se esconder entre as
sombras. Gaston não conseguiu encontrá-la. Não podia acreditar que havia
deixado a fera escapar novamente. Mas não tinha escapado, não é? Ele o
teria visto fugir. Não, o monstro estava se escondendo como o covarde que
era.
– Venha até aqui e lute! Está apaixonado por ela, Fera? E acha que ela vai
querer você quando tem alguém como eu?
A fera saltou de seu esconderijo entre as gárgulas. Algo sobre o que
Gaston acabara de dizer lhe parecia familiar. Como ele havia dito aquelas
palavras antes. Não, não era isso. Palavras como aquelas haviam sido ditas
a ele, mas por quem? Ele se livrou da agitação de meias-lembranças e
imagens que giravam em sua mente. Não podia se distrair. Tinha que se
concentrar. Precisava salvar a si mesmo e a Bela daquele monstro.
– Acabou, Fera! Bela é minha! – ele disse, mas a fera envolveu sua mão
monstruosa em volta do pescoço de Gaston e apertou-o ao segurá-lo sobre a
beirada do telhado. Enquanto estava pendurado ali, Gaston sentiu o mundo
desaparecer sob seus pés. Ele sabia que a morte esperava por ele lá
embaixo. Sua mente foi novamente inundada por lembranças veladas, a
maioria das quais ele não entendia, mas que de alguma forma sabia que
pertenciam a ele. Coisas que ele havia esquecido.
– Não, não, não me solte! Não me solte! Não me deixe cair! Eu faço
qualquer coisa! Faço qualquer coisa! – Gaston gritou, implorando à fera por
sua vida, e então ele viu a raiva da fera se dissipar, e em seus olhos
percebeu algo que reconheceu quando a fera puxou Gaston de volta para o
telhado. As lembranças estavam começando a entrar em foco agora.
Lembranças fortes, infelizes e horríveis, cheias de tristeza, dor e repulsa.
– Saia daqui! – a fera rugiu, soltando Gaston, voltando sua atenção para
Bela, que corria para a varanda.
Gaston observou enquanto a fera subia a varanda para alcançar Bela. Sua
mente era um turbilhão de meias-lembranças e medo. E, então, teve uma
iluminação. Ele conhecia aquela fera, e não porque tivesse sido atacado por
ela. As lembranças de Gaston estavam embaralhadas e confusas. Apenas
flashes inundavam sua mente. Recordações parciais e meias-verdades. Ele
não viu a história inteira. Não viu toda a verdade. Viu apenas as coisas
horríveis que o príncipe havia feito, a dor que causara a Gaston. Ele se
lembrou da Senhora Potts e da noite em que ela contou a Gaston como sua
mãe havia morrido. Viu a dor nos olhos dela quando ela descreveu a fera
comendo sua mãe viva. Lembrou-se da noite em que o príncipe insistiu que
desobedecessem ao pai de Gaston e caçassem a fera, causando a morte
medonha e horrível de seu pai. E ele se lembrou de ter mandado a princesa
Tulipa embora para mantê-la a salvo do príncipe.
Como ele poderia ter esquecido tudo isso? Enquanto ele estava ali,
observando Bela e o monstro olhando um para o outro com amor, sabia que
tinha que salvá-la também daquela criatura horrível. Aquele homem
horrível. Ele tinha que matar a fera para proteger Bela. Tinha que matá-lo
para vingar sua família.
Gaston ficou enojado com a ideia de Bela estar com aquele monstro, e
ele precisava fazer tudo o que pudesse para protegê-la. Aproximou-se deles
o mais lenta e silenciosamente que pôde e pegou a fera de surpresa! Usando
toda a sua força, cravou sua faca o mais fundo possível nas costas da
criatura. A fera rugiu de dor quando Gaston rapidamente removeu a lâmina
e o atacou, dessa vez para matá-lo. Ele errou, e os dois cambalearam na
beirada da sacada, perdendo o equilíbrio. Ambos ficaram perigosamente
perto de mergulhar para a morte. Naquele momento, Gaston estava pronto
para morrer. Pelo menos, levaria a fera com ele. E Bela estaria livre de
ambos.
Mas, então, ele viu a mão de Bela estendida, mas não para ele. Isso o
lembrou da estátua da mãe em frente ao mausoléu, estendendo-lhe a mão,
como se estivesse chamando Gaston para se juntar a ela do outro lado. E
num piscar de olhos Gaston se lembrou. Ele viu a verdade. Viu tudo. Sua
mente não estava mais obscurecida por uma névoa espessa. E todos os seus
pensamentos eram seus. Viu tudo claramente. A história dele e do príncipe,
quase como um dos livros que ele e Reizinho liam juntos. Lembrou-se de
seu melhor amigo, o homem que amava. Como um irmão. Mais que um
irmão. O homem que disse que não tinha espaço em seu coração para
ninguém além dele.
E com os poucos momentos que lhe restavam, antes de cair para a morte,
Gaston esperava que seu amigo tivesse realmente aberto espaço em seu
coração para outra pessoa, e com Bela ele finalmente quebraria a maldição.
EPÍLOGO

UM CHAMADO DA FLORESTA DOS


MORTOS

Lucinda, Ruby e Martha estavam na biblioteca do Submundo comendo bolo


sob o brilho das chamas azuis dançantes. Elas liam enquanto esperavam por
Hades, que estava no cais da barca pronto para receber as almas
recentemente mortas. Pflanze estava enrolada entre Martha e Ruby no sofá
de dois lugares, e Lucinda estava sentada em frente a elas, sorrindo. Não
conseguia se lembrar da última vez que estivera tão feliz. A qualquer
momento, Hades chegaria em casa e eles fariam seu banquete noturno com
os recém-falecidos.
A vida após a morte deles era boa. Melhor do que boa. Era uma delícia. E
ela sabia que Circe, Primrose e Hazel poderiam lidar com qualquer coisa
que aparecesse em seu caminho. Eram muito mais poderosas do que ela e
suas irmãs jamais foram, não que ela fosse admitir isso. Não para ninguém
além de Hades, porque não fazia sentido mentir para um deus.
Enquanto estava ali sentada, esperando a sineta tocar para avisar que era
hora de ir até o salão de jantar para cumprimentar Hades e seus convidados,
ela ouviu a voz de Circe em seu espelho encantado na parede. Presumiu que
tinha algo a ver com Branca de Neve. Branca escrevera para as rainhas dos
mortos, com medo de que houvesse algo errado com o espelho de
Grimhilde, e pediu ajuda. Lucinda não detestava Branca como antes, mas
seu ódio por ela já fora tão amargo que era difícil esquecer completamente
o gosto. Ela suspirou, levantou-se e foi até o espelho, e nele estava sua doce
Circe.
– Mãe, preciso de sua ajuda. A princesa Tulipa Morningstar pediu nosso
auxílio. Ela planeja atacar o castelo do príncipe fera.
– E suponho que ela tenha os Senhores das Árvores e os Gigantes
Ciclópicos a seu lado. Fiquei imaginando quando isso aconteceria.
– O que você quer dizer? Você previu isso e nunca me contou?
– Como você não viu que isso iria acontecer? Além disso, se eu lhe
contasse tudo o que previ, nunca pararia de falar.
Isso fez Ruby e Martha rirem.
– De qualquer modo, você nunca para de falar – disseram elas ao fundo,
acenando para Circe do outro lado da sala. Lucinda suspirou. Ela temia que
as novas rainhas dos mortos limpassem a bagunça que ela e suas irmãs
haviam deixado para trás. Mas também sabia que Circe seria capaz de dar
conta disso, especialmente com o apoio de Hazel e Primrose.
– Ela tem o direito de declarar guerra a ele, é claro. Mas depois de todo
esse tempo? E juramos ir em seu auxílio como aliadas. Mãe, o que
fazemos?
– Minha doce menina, você sabe que o tempo não significa nada. Parece
que você não tem outra escolha senão juntar seu exército ao dela e marchar
para a batalha.
– Mas não há outro jeito?
– Se houver, minha querida, tenho certeza de que você o encontrará.
FIM

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