A Feiticaria Moderna Na America Portugue
A Feiticaria Moderna Na America Portugue
A Feiticaria Moderna Na America Portugue
Resumo
Abstract
This article is dedicated to the analysis of the construction of a model of the Modern
Age witch who finds references in misogynist conceptions that stretch along the
western intellectual history. A set of behaviors and female attitudes differ from those
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Religare, ISSN: 19826605, v.11, n.1, março de 2014, p.107-131.
Este artigo irá tratar de uma das personagens típicas mais emblemáticas da
Esta representa, antes de mais nada, o olhar erigido pela cultura dominante
– que nos foram legadas, podemos observar que, em relação a esse tipo mulheres, as
3O texto deste artigo, sobre o qual foram procedidas pequenas alterações, integra um capítulo da
dissertação intitulada “s Mulheres Malditas : Crenças e práticas de feitiçaria no nordeste da América
Portuguesa, defendida em 2012 para obtenção do título de mestre, junto ao Programa de Pós
Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.
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uma repressão severa entre a mulheres mortais para a coibição de tais atributos. E
será justamente sobre estas últimas que, em caso de desvio desse conjunto de regras
misóginos antigos, medievais e modernos, poderemos inferir que, para seus autores,
todas as fêmeas da espécie humana são feiticeiras em potencial, pois que são
portadoras da semente do mal. Um fato que poderia ser justificado quer remetendo-
se à Isthar dos babilônicos, à Pandora dos gregos ou à Eva dos judeus, para citar
da Idade Moderna compilaram um modelo de feiticeira que passou a ser vista por
análise destas mulheres, julgadas malditas, que iremos nos dedicar no decorrer deste
América Portuguesa.
contexto de forma que alguns desses aspectos foram enfatizados enquanto outros
feiticeira fazendo com que ela diferisse parcialmente dos modelos antecedentes.
4Para a análise de fontes especificamente literárias da antiguidade oriental e clássica ocidental remeto
ao primeiro capítulo do trabalho de dissertação citado acima.
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feiticeira dos campos (onde estavam confinadas segundo uma tradição medieval)
para as cidades onde passam a negociar seus dons com fins lucrativos, atuando,
inquisitoriais pode nos revelar ainda um aspecto essencial da feitiçaria moderna que
feitiçaria a partir de textos latinos cuja autoridade não se ousava contestar. Tais
5CARDINI, Franco. Magia e bruxaria na Idade Média e no Renascimento. Revista de Psicologia USP, São
Paulo, v.7, n.12, 1996, p.15.
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feiticeira, comum aos meios da Espanha e Itália 6. E mais, o modelo que dá origem a
descrita como uma bruxa, esperta, feiticeira, conhecedora de todas as maldades que
romana: Circe, Medéia, Canídea. À todas elas vem juntar-se a nossa feiticeira
título perigoso, lucrativo, atirado a elas pelo ódio popular que pouco à pouco,
6 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.
227.
7 BAROJA, Júlio Caro. As bruxas e o seu mundo. Lisboa: Editorial Vega, 1983, p. 28.
8 MICHELET, Jules. A feiticeira. Trad. Ronaldo Wernek. 2ª ed. São Paulo: Círculo das Letras, 1976, p.
132.
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Santa Cruz. Á temática de que estamos tratando pretende analisar os termos dessa
realizadas até o momento e nos conta um pouco da história de Antônia Maria, cuja
prática do ofício de feitiçaria lhe rendeu dois processos, o degredo para os trópicos,
primeira vez, por parte do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, pelo
crime de superstições e feitiçaria. Antônia era ¼ de cristã nova pelo lado paterno,
casada com Vasco Janeiro, mãe de um filho menor de nome Estevão e contava com
invocação do demônio, pacto expresso com o diabo e erro no entendimento contra nossa Santa
Fé Católica .
Beja e por três anos para Angola, mas, por haver se confessado, fora absolvida da
excomunhão maior. Alguns anos mais tarde, outro processo é instaurado contra
Antônia Maria, que continuava atuando em suas práticas mágicas, não em Portugal
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ou Angola para onde deveria ter sido degredada, mas no Brasil. Não há informações
sobre como a feiticeira aportou na colônia portuguesa na América, mas sabe-se que
defende a possibilidade de que talvez fosse possível que Antônia Maria, tendo
Pernambuco era uma capitania rica e tenha visto aí uma oportunidade de prósperos
depoimento ela declara que assim que chegou a Pernambuco logo se publicou o crime
por que fora o dito degredo e começaram a concorrer a casa dela ré muitas pessoas, uma que
lhes aplicasse algum remédio aos ataques que padeciam outras que lhe adivinhassem algumas
coisas futuras e que, ao se negar, logo era acusada de má vontade e de que não lhes
dava os remédios só porque eles padecessem os males nem lhes queria dizer o que
Maria sob a acusação de crimes inquisitoriais, os mesmos que alguns anos antes a
Inquisição para ser julgada e punida por seus crimes. Na folha 108 do processo
agora se acha relapsa nas mesmas culpas fazendo sortilégios, feitiços e curas com
observado que resultam dos mesmos sortilégios o efeito prometido como clara
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depoente, de nome Francisco Xavier, afirmou saber que Antônia Maria, que na época
do ocorrido era sua vizinha de parede e meya , viera degredada para Pernambuco
pelo crime de feitiçaria. Disse que, de três para quatro anos, tempo em que pretendia
ser admitido as ordens pelo ”ispo D. Manoel “lves e ouvindo-lhe dizer em sua
casa, com tristeza, que não via no bispo boa vontade para com a sua causa, disse-lhe
Antônia Maria para não se preocupar que, ao seu tempo , saberia ele em como havia
de ser ordenado . “lgum tempo depois, veio à sua casa e lhe pediu os seguintes
ingredientes: um alguidar com água, quatro vinténs, uma folha de papel, uma
invocando por São Pedro e por São Paulo e pela porta de Santiago , perguntou se
Antônio Xavier haveria de se ordenar clérigo e dentro de quanto tempo, ao que foi
predito que o seria dentro de pouco tempo. Perguntado se tinha algo que acrescentar
ao depoimento afirmou que, após buscar novamente ao senhor bispo com a sua
petição, foi recebido com mais agrado, admitindo-lhe a sua petição e o ordenando no
tempo de dois meses e meio antes que partisse numa frota para Lisboa, tudo com
Xavier, é a sua mãe, Isabel da Silva, uma viúva de 60 anos que também testemunha
na comissão inquisitorial, quem nos oferece maiores informações. Ela disse ter ido ela
própria à casa de Antônia Maria e, por saber que ela vinha a estas terras degredadas
por culpas de feitiçaria, foi perguntar-lhe se, apesar do desagrado com que recebera a
petição de seu filho, iria o bispo ordená-lo clérigo. A feiticeira, então, lhe respondeu
que, para disso saber, era necessário lhe fazer as sortes de São Pedro , e pediu os itens já
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Após tudo realizado, Antônia Maria, de uma janela, jogou no rio a água, os
reafirma que tudo se passou como Antônia Maria dissera. Isabel disse ainda que a
casa de sua vizinha feiticeira era frequentada por muitas mulheres, de dia e de noite,
corroborando os depoimentos de sua mãe e irmão. Disse, no entanto, que levado pela
curiosidade, quem procurara Antônia Maria fora seu irmão. Acrescentou também
que se testemunhara o dito referido fora somente por curiosidade e por não imaginar
ser coisa grave contra a Santa Fé e que por ignorância de mulher não tinha dado parte nem
sabia a quem . Disse, ainda, como sua mãe, que a casa da dita Antônia Maria era
Nos depoimentos não são feitas referência a pagamentos pelo serviço prestado
por Antônia; talvez se tratasse apenas de uma cortesia entre vizinhos. E, na verdade,
as sortes de São Pedro podem ser consideradas um feitiço simples, de teor cristão,
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de ter sua casa frequentada por inúmeras mulheres. Assim, se Isabel da Silva aponta
Antônia como uma feiticeira requisitada e reconhecida, sua filha Ignácia Maria nos
prostituição.
amor, ódio e diversas outras necessidades; O próprio Francisco Xavier era um clérigo
que almejava ordenar-se padre, mas não se fez de rogado em pedir ajuda a Antônia,
feiticeira e mulher de mal viver. Na verdade, o que muitas vezes se passava é que os
voluntariamente meios condenados pela Igreja Católica. Foi o caso das clientes de
édito do Santo Ofício, que previa punições para aqueles que recorressem à feitiçaria,
vulgarmente chamado quibanto em que se faz nessa terra tão pouco escrúpulo . Um dos
principais motivos para a utilização deste método era a adivinhação de furto, para
qual a própria Antônia Maria havia sido solicitada algumas vezes e que, segundo o
bispo, não poderia lograr efeito positivo sem colaboração demoníaca já que só podia
Também depõe neste caso o oficial de pedreiro João Pimentel, que era cristão
velho, casado com Bárbara de Melo, natural da ilha de São Miguel e morador na vila
de Santo Antônio. Disse que, morando na rua das laranjeiras, há algum tempo era
vizinho de quintal contiguo com Antônia Maria e começou a lhe frequentar a casa;
foi aí que, por fragilidade humana e vendo a pobreza em que vivia, manteve
amizade com ela. Pressentindo uma traição, a esposa o pressionou e ele testemunha
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se retirou de continuar com a amizade que tinha com a dita Antônia Maria . “pós o
rompimento, João Pimentel soube que Antônia Maria lhe veio a casa por três vezes
com o pretexto de visitar a dita sua mulher Barbara de Melo que estava doente e fizera
várias instancias de lhe por as mãos na barriga, a apalpar e curar o que a dita sua mulher não
consentiu . Disse então que, já com melhor disposição, sua esposa soube, por Joana
Pereira, que a dita Antônia Maria lhe tinha lançado feitiços pondo-os à porta de sua
casa para matá-la, assim como a seu marido e duas escravas que possuía. Sabedor
deste fato, ele testemunha tratou de buscar algum sacerdote para fazer os exorcismos a si,
à sua mulher e às duas escravas para remédio dos ditos feitiços porque se iam achando
comida, lhes deram mesinhas e executaram rituais no que resultou lançar ele
testemunha do seu corpo pela via do curso natural... Dentes de gente, ossos, carvão,
arvorezinhas com seus galhos, espinha de peixes, pedaços de pedras, cabelos de gente , o que
também sucedia à sua mulher e escravas. Disse ainda que, enquanto lhe eram feitos
noite correr sobre o telhado a maneira de cabras . “o final, a enfermidade não se curou
com os exorcismos diante do que João Pimentel não se fez de rogado e procurou a
Domingos João, negro afamado por curandeiro que, com purga, ajuda de ervas e
que dava o fazia por ódio ou malquerença e respondeu que na ocasião em que veio
se votava alguma raiva contra a feiticeira era por estar certo de que ela lhe lançara os
feitiços.
Em todo caso, a doença da esposa de João Pimentel (e que até então era só
Antônia, que a esta altura não devia manter boas relações com a mesma, lhe
que reconhecem e temem a eficácia das práticas mágicas é muito grande e perpassa
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exceção de um detalhe que, para nós, não poderia passar despercebido. Trata-se da
acusação feita contra uma outra mulher, também conhecida como feiticeira, a parda
de nome Páscoa Maria com quem Bárbara afirma que Antônia havia aprendido
nas artes mágicas mantido por Antônia com a tal Páscoa Maria vem apenas ressaltar
Certamente Antônia voltou a Portugal mais experiente de seu ofício após sua
passagem pelo Brasil. Vimos ainda que, apesar do ritual de exorcismo procedido por
aqueles que detinham o monopólio sobre o universo das curas espirituais, o que cura
mulher é um dos principais motores para execução de malefícios sendo que esse
dado, bastante representado pela cultura escrita ocidental, encontra amplo respaldo
energia feminina negativa contra os homens e surge ao menos como consolo, que é a
esperança de ver vingada alguma desfeita. Assumindo esse papel, a feiticeira torna-
pedreiro Domingos de Almeida Lobato também foi alvo de malefícios motivados por
como arma sobrenatural de seus rancores. Ele afirma que, há quatro anos mais ou
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nome Inácio que, por sua vez, lhe disse que a culpada pelo infortúnio era uma
mulher viúva de nome Brasília Pessoa, com que em tempos de solteiro mantivera
conversação ilícita . Indignada pelo fato de o dito Domingos não querer casar-se
com ela, Bazília teria procurado Antônia Maria, feiticeira já renomada, para lhe
Após tentar cura através de diversos remédios, se sentindo mal por enfeitiçado e
própria Antônia Maria e, exigindo-lhe uma cura, levou-a, em plena madrugada, até
sua casa onde, já de manhazinha, ela iniciou o contra feitiço. Para tanto, apanhou
cinco raminhos de ervas dizendo-lhe que fosse ao mesmo quintal e tirasse o pé esquerdo
da chinela e pusesse sobre a terra e lhe trouxesse o meio do raspo e pedindo uma panelinha
capazes comandarem as ondas do mar, e a quem pedia remédio para que o feitiço se
11Sobre o diabo coxo citado no feitiço, lembro-me que a investigação de Carlo Ginzburg, empreendida
em sua História Noturna , resulta na descoberta da coxeadura como um elemento mítico
antiquíssimo que identifica personagens mágicos e mitológicos capazes de transitar livremente entre o
mundo dos vivos e o mundo dos mortos. A análise sobre a permanência desse elemento mítico no
imaginário da feitiçaria portuguesa pode ser de grande complexidade e, além disso, excede o espaço
deste trabalho. A mulher do diabo coxo é muitas vezes a própria bruxa Maria Padilha. Esta invocação
é relativamente comum nos casos de feitiçaria portugueses e coloniais registrados pela Inquisição. Ver:
GINZBURG, Carlos. História Noturna – decifrando o Sabá. Trad. Nilson Moulin Louzada 2ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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guardasse a dita panelinha para, na terça-feira, a por novamente ao fogo para que se
defumasse com ela e, na sexta-feira, após a meia-noite, fosse lançar seu conteúdo à
porta da dita Bazília Pessoa. O sortilégio só fez com que o pobre Domingos se
sentisse pior, pois ele confessa que, tão logo se realizou, sentiu seus soluços
aumentarem ao ponto de por duas vezes ir ao chão e com receio de maior dano foi ele
lançar a panelinha no mar junto com os cinco raminhos e a terra do rasto . “ testemunha
afirma que então compreendeu que o feitiço havia sido realizado para maior dano
dele e não para seu remédio. Lembra ainda que quando a dita Antônia Maria foi à
sua casa lhe havia pedindo cinco patacas para realização de um sortilégio extra
para o qual se utilizou apenas quatro, a quinta pataca levou afirmando que com ela
faria uma ceia para os seus cinco soldados valorosos . Em desespero e sem melhora
o pedreiro procurou o nosso já conhecido negro Domingos João que lhe lançou uns
pós na palma da mão para solver pela boca e pelos narizes e uma raiz para enterrar no limiar
da sua porta e, tornando ele a casa do dito negro, este lhe deu uma bebida que mais
parecia sumo de ervas pisadas e logo no mesmo tempo lhe lançou pela boca, numa
bacia, um bicho do feitio de um cavalo, como lhe disse sua mulher, seco do meio para
baixo . O curador lhe disse ainda que ele morreria quando o bicho secasse totalmente.
A testemunha conta que, ao lançar o dito bicho, entrou voando pela porta uma
galinha que, segundo sua mulher, pegou o bicho pelo bico antes de se lançar aos ares
e sumir. De acordo com o negro, a galinha era a dona do bicho que o viera buscar para o
seu corpo não tornar para trás . Daí por diante esteve curado. “ galinha, que o curador
afirma ser a dona do bicho, seria, então, a feiticeira autora do malefício que se havia
que seu marido lhe contou estar a padecer de um mal causado por um feitiço
encomendado pela viúva Bazília por despeito de tê-la desprezado. Ela, tal qual seu
marido, conta ter recebido o conselho de várias pessoas para que eles procurassem
Antônia Maria para curar a enfermidade que ela própria causara com seus feitiços.
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Foi assim que, quando lhe pediu ajuda, ela se ofereceu para ir à sua casa, mas, ao
saber quem era a vítima, mudou de ideia Já tivemos a oportunidade de observar que,
a despeito de sua vontade, Antônia Maria foi à casa de Domingos para a cura já
descrita anteriormente e que foi repetida praticamente nos mesmos termos, embora
Crysostoma dissesse que com o pavor com que estava... às vezes se retirava de junto da
dita Antônia Maria . Disse ainda que, antes de se ir embora, Antônia lhe alertou sobre
a necessidade de resguardar-se e segurar o corpo com alguma cura , pois que a viúva
Bazília também lhe desejava fazer mal. Endossando a versão de que seu marido só
piorara após o feitiço ela contou que, orientada pelos conselhos de tal Francisca,
esposa do oficial de armas de fogo chamado José Pereira, foi procurar o negro forro
marido era feitiços o dito negro o havia adivinhar e curar , pois já lhe havia adivinhado o
autor de um furto de que fora vítima. Indo o casal ao engenho em que o negro se
adivinhação, a própria Bazília Ribeiro torna-se uma agente demoníaca, pois que fora
o próprio diabo que lhe avisara que seu amante haveria de se casar com outra
mulher. O feiticeiro disse que a viúva ultrajada procurou então a quem fizesse cousa
que vos virasse o coração , o feito o tornou enfermo dos soluços e em breve tempo
haveria de ficar louco, andando pelo campo a comer capim como cavalo . Ela contou
que, enquanto adivinhava tais coisas, o negro tinha nas mãos um cabacinho do
qual tirava várias coisas e que em seguida deu ao enfermo para ingerir alguns pós e
raízes. Na segunda visita, pois que parece que a primeira não logrou resultado, o
negro deu certa bebida a seu marido e após o ritual de purga já descrito
anteriormente, esse ficou curado. Disse a mesa inquisitória que, tal como havia dito
aos seus confessores, só fizera as coisas confessadas para buscar remédio a vida do seu
marido .
Bazília constituía um desvio moral e uma ameaça aos bons costumes de que ele se
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livrou partindo para uma união honesta, o que, por sua vez, resultou na fúria
causa dos males e, a segunda, a cura. O negro forro Domingos João aparece pela
segunda vez como curador de males causados por Antônia Maria e, a julgar pelos
depoimentos, era bastante conhecido e solicitado no Recife por uma gente que se
ofício exclusivamente feminino. Tanto o negro forro Domingos João, quanto a parda
Joseph Pereira. Este contraiu matrimônio com a feiticeira, mas afirma que quando
passou a frequentar sua casa achava que ela já estava emendada do crime pelo qual
viera degredada. Depois de casado, disse que quando se recolhia à casa de sua mãe,
com quem morava em solteiro, sua irmã tirava-lhe da casaca inúmeros alfinetes.
Sobre esse objeto sabemos serem instrumentos notórios na prática de magia negra,
acaso. Ele afirma ainda que a casa da sua mulher era muito frequentada por várias
pessoas, dentre elas uma tal de Isabel de Avelar que, segundo havia lhe dito Antônia
Maria, a visitava para lhe meter uma embarcação à pique por não pagar seu marido João de
Souza suas letras que nela tinha mandado a isso e que a dita sua mulher dissera a uma
parda sua amiga, chamada Maria Dias, que não realizaria o feitiço por ser de grande
encargo . “lém de Isabel, ele nomeia outras mulheres que procuravam Joana para
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fazer obter boa vida com os maridos. Algumas pessoas levavam Joana às suas casas
para que ela lhes fizesse orações e adivinhasse coisas e, após a morte de sua mulher,
ele teria encontrado diversos instrumentos suspeitos como os alfinetes que tantas
vezes encontrara em sua roupa. Ele conta que quando Joana estava para morrer, veio
lhe visitar “ntônia Maria a quem a moribunda disse: já vistes o que desejáveis . E o
motivo de tão mau desejo era que Joana lhe tirava o ganho . Disse ainda ser público e
notório que Antônia fazia malefícios, como o fizera a João Pimentel e sua esposa,
assim como a um tal Luís Gomes, a quem tornou incapaz de ter coabitação com a sua
mulher e que muitas pessoas nesse arraial queixam-se da feiticeira. Joseph Pereira
promove em seu depoimento novas denúncias ao citar nomes. A acusação que ele
afirma ter feito Joana Pereira em seu leito de morte desvela um mundo de
materiais, pois o motivo para o rompimento entre ambas e o possível maleficio que
feiticeiras.
Como já vimos, a denúncia foi acatada pela Inquisição e Antônia foi presa e
Inquisição onde estava desde janeiro desse mesmo ano, Antônia Maria veio
apresentar-se perante os inquisidores para confessar seus crimes. Ela então disse que,
por volta de dois anos mais ou menos, lhe procurou em sua casa no Recife uma
mulher por nome Margarida acompanhada de sua filha, Ana Maria, pedindo-lhe que
desligasse um tal de Luiz Gomes da amizade ilícita na qual se encontrava com a dita
sua filha. Às clientes, Antônia disse que falaria sobre o assunto com sua companheira
Joana Pereira, que também havia sido degredada pelo tribunal do Santo Ofício, para
que ela realizasse o feito. Concluiu afirmando que, sob as orientações de Joana, teria
novamente à sua presença Antônia Maria. Depois de cumprir o protocolo e jurar sob
os Santos Evangelhos dizer somente a verdade, foi perguntada se, após a abjuração
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Católica e se deixou de ter a Deus como seu Senhor. Ela negou, assim como negou
embora o inquisidor sugerisse isso insistentemente e das formas mais diversas. Era
necessário evidenciar o pacto que, pelo teor das acusações, devia figurar aos olhos
dos inquisidores como coisa certa. Foi então questionada sobre o primeiro crime que
Ela havia dito que, quando foi procurada por Ana Maria e sua mãe com o objetivo de
desligar a Luís Gomes, disse que falaria com sua companheira Joana e, a partir de
então, agiu sob as orientações desta. Joana lhe teria mandado pedir um lenço de Luís
Gomes, com o qual lhe apanhara a luz a sombra da candeia e que estando a dita sombra no
lenço . Este lenço que foi entregue a Joana Pereira, foi devolvido em cinzas que
deveriam ser postas onde o dito Luís Gomes pusesse os pés. Neste momento deveria,
então, dizer certas palavras mágicas do que tudo fez como pedido, embora não tenha
Foi perguntada se alguma vez acreditara que o dito remédio poderia resultar
no efeito desejado ao que afirmou nunca ter acreditado que com semelhante remédio
ficaria desligado o dito Luís Gomes , pois não via que o feitiço fosse meio proporcional
para o dito efeito e apenas o fez por se ver obrigada por “na Maria e Margarida e
também por querer mostrar de alguma boa vontade em fazer-lhes serviço. Disse
ainda que só lhes pediram o dito remédio por causa da notícia que houve naquelas
partes de ela ter saído nesta inquisição o que, segundo “ntônia Maria, deu ocasião para
que estas e outras pessoas lhe viessem procurar. Convém relembrar que a notícia de
que ela era uma degredada por feitiçaria recém-chegada à terra brasillis lhe deu
material. Ela afirma que atendeu os pedidos dos que lhe procuravam por ser só em
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clientes. Este fato ressalta a ambiguidade das feiticeiras, que apesar de temidas e
Mas abaixo, após pergunta auspiciosa do inquisidor sobre a sua confiança nos
feitiços de Joana, disse que quando falou com a colega sobre o caso, entendeu que o
remédio dado poderia ter efeito, pois Joana Pereira se gabava de que sabia fazer o
feitiço. Quando perguntada se, para efeito do feitiço, era necessário que Joana tivesse
pacto com o demônio, disse que não lhe parecera que o remédio só teria efeito com
Momentos depois confessou que ouvira dizer que Joana Pereira tinha feito pacto com
o demônio embora nunca a tivesse visto obrar o que quer que fosse com o auxílio do
mesmo. Contradizendo a afirmação de que o feitiço não teria logrado efeito, Antônia
disse que suas clientes Ana Maria e Margarida vieram depois contar-lhes que o tal do
Luís Gomes buscara todos os remédios possíveis para curar o mal que então lhe
atingia, mas sem resultado algum. O inquisidor insiste em saber como julgara ela
possível que todo esse malefício pudesse vir a cabo sem a presença do demônio e ela
nas palavras ditas por Antônia enquanto fazia o fervedouro destinado a curar o dito
palavras proferidas, mas, fugindo da pergunta do inquisidor, disse que não entendia
com isso que a intervenção dos demônios o pudessem curar e que só realizou o
sortilégio por haver sido obrigada a tal por Domingos e que se ela invocou ao
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demônio não o fez esperando com isso que ele viesse ao seu auxílio para conseguir a
resposta de que tudo o que fez foi para cumprir o ritual que lhe havia sido ensinado
por Joana e nunca com ânimo de parceria demoníaca. O inquisidor a crítica por haver
cedido às expectativas dos que lhe procuravam quando, na verdade, deveria dizer
intenção com que tem realizado os feitiços, alertando-a sob o crime de falso
testemunho. Claro está que o inquisidor tenciona fazer com que ela confesse o pacto
com o diabo, mas Antônia o frustra uma vez mais afirmando que nada tem a declarar
Antônia pôs a culpa dos crimes de que era acusada na falecida Joana Pereira que a
teria obrigado com ameaças e tentou se isentar do crime mais grave de pacto com o
demônio. Mas a Inquisição sempre foi conhecida pela paciência e pelo uso de
técnicas de persuasão bastante eficazes e não se passará tanto tempo antes que
Antônia confesse tudo o que deseja o inquisidor. Até lá, e ao longo deste período em
processo foram: o sargento mor João da Mota, que confirmou a inimizade latente
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entre João Pimentel e sua esposa para com Antônia Maria; o ajudante de pedreiro
mandar degredá-la para Angola; a esposa de Luís, de nome Maria Frajota, que
Antônia por causa da desconfiança que tinha de que esta houvera mantido romance
com seu marido; Agostinha Pacheco, que reafirmou os depoimentos prestados por
Maria Frajota; Luciano de Siqueira diz não ter tido conhecimento de nada; uma
mulher por nome Brites de Almeida, que afirmou que Bárbara de Melo fez a
feitiço que Antônia Maria lhe infligira; o padre Bernardo de Nápoles que só
reafirmou o dito por Brites; o padre Miguel Ângelo, que afirmou ter sido ele a
persuadir Bárbara de Melo e o seu marido a denunciar Antônia Maria. Talvez, deste
novo rol de testemunhas, o depoimento mais interessante tenha sido o prestado pelo
capitão Francisco Rodrigues Chaves que confessou ter procurado Antônia Maria
para que ela lhe adivinhasse a autoria de um furto de que havia sido vítima e
recebera dela a inusitada resposta de que não o faria por ele ser português e ela não o
querer enganar, como o faria caso fosse brasileiro, pois, ela não sabia adivinhar. Os
Melo afirma já ter denunciado Antônia Maria ao ouvidor da província e ter sido
ignorada.
Nada disso parece ter ajudado Antônia Maria que, por sua reticencia em
confessar suas culpas verdadeiras , foi submetida às torturas físicas. Ela, então,
confessou vários feitiços distribuídos entre a população do Recife colonial, entre elas
orações que trouxera do Reino para conseguir casamentos. Nestas, eram comumente
invocadas as almas dos mortos para que entrassem no coração da vítima por amor de
fulano, e que ela não possa parar, nem sossegar, sem que o sim do casamento lhe queira dar .
Os mortos parecem ter sido cúmplices constantes das feiticeiras, sobretudo aqueles
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que não conseguiram descanso para suas almas. É assim que Antônia Maria toma
invoca:
Outras orações, que visavam subjugar a vontade dos amantes, eram mais
ousadas com a invocação de demônios, como a que se segue nas seguintes palavras:
Neste portal me venho assentar, e não vejo fulano nem tenho que o
vá buscar, vá Barrabás, vá Satanás, vá Lúcifer, vá sua mulher, vá
Maria Padilha com toda a sua quadrilha, e todos se queiram juntar e
em casa de fulano entrar, e o não deixem comer, dormir nem
repousar sem que pela minha porta adentro venha entrar, e tudo
quanto eu lhe pedir me queira fazer, e outorgar, e se isso me fizerem
uma mesa prometo de lhe dar.
Neste ponto se faz necessário tomar algumas linhas desta narrativa para
espanhóis que a apresentam, teria vivido no reino de Castela durante o século XIV e
era nada menos do que a amante favorita do rei D. Pedro I, dito O Cruel . Versada
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em artes mágicas, a sedutora doña Maria Padilha impunha sua vontade ao próprio
rei tendo-o convencido, inclusive, a assassinar sua legítima esposa, a rainha Branca.
Nos romances que narram a História da Espanha , a mão, ou melhor, as mãos que
escreveram o ciclo de D. Pedro I são incisivas em seu julgamento: Maria Padilha era
AUGRAS. Monique R. María Padilla, reina de la magia. In: Revista Española de Antropología
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uma mulher infame, cruel, pecadora, feiticeira e nociva ao reino 13. Pois bem, essa
portuguesas.
Neste percurso, Maria Padilha foi convertida em padroeira das feiticeiras a ser
Padilha aportou com toda sua quadrilha na “mérica Portuguesa onde, tendo
de Santa Cruz, foi adotada, num incrível exemplo de sincretismo religioso, pelas
única de etnia branca. Nos dias de hoje, ao visitar terreiros na capital paraibana,
a Maria Padilha14, afirma que ... “ inequívoca associação entre a figura da feiticeira e
voltada para o meio urbano, assentada no sortilégio amoroso ... . E mais, ... “
quanto àquela que deu início a toda essa discussão? O que podemos nós dizer sobre
13 MEYER, Marlise. Maria Padilha e toda a sua Quadrilha – De amante de um rei de Castela, a pomba-gira de
Umbanda. São Paulo: Duas Cidades, 1993.
14 MEYER, Marlise. Op.cit.,p. 9.
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inquisitoriais, a feiticeira era de pequena estatura, alva de rosto, e este largo, olhos pretos e
mantendo trato ilícito com homens casados e distribuindo feitiços vingativos tal qual
Medéia furiosa. Era, portanto, Antônia Maria, assim como sua padroeira, mulher de
irmãs que procuravam os serviços mágicos de uma feiticeira de ofício, aqui no Brasil
outra mãe recorre à feiticeira para adivinhar o futuro do seu filho; uma esposa
procura uma feiticeira e um curandeiro para que possam curar seu marido; certa
viúva recorre ao feitiço maléfico para vingar uma desfeita. O universo da feitiçaria na
colônia parece se abrir com maiores possibilidades a elas e, não querendo endossar as
tradições europeias, as mulheres não eram mais facilmente seduzidas pela feitiçaria,
votando crença firme a seus efeitos e mais dispostas a fazer uso de seus métodos.
Embora vários homens figurem no processo envoltos, de uma forma ou de outra, nas
práticas e crenças mágicas, vale lembrar que a casa de Antônia Maria era, de acordo
cumprir penitências espirituais, degredo por cinco anos para a cidade portuguesa de
Miranda e o pagamento das custas do processo; fato revelador que, segundo Tatiana
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brasileiras15. A feitiçaria que lhe deu meio de vida, fama, amores, também lhes
Referências
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