Essencial Roberto Schwarz
Essencial Roberto Schwarz
Essencial Roberto Schwarz
Capa
Folha de rosto
Sumário
Sobre o autor
Introdução— Franco Moretti
Nota sobre os textos
Notas
Créditos
ESSENCIAL ROBERTO SCHWARZ
fraturas na forma
O grupo chegara à audaciosa conclusão de que as marcas clássicas do atraso brasileiro não
deviam ser consideradas como arcaísmo residual, e sim como parte integrante da
reprodução da sociedade moderna […] a ligação do país à ordem revolucionada do capital
e das liberdades civis não só não mudava os modos atrasados de produzir, como os
con rmava e promovia na prática.23
forma ostensiva
Em vez de fazer tábula rasa do passado, Brecht, cuja posição a respeito era própria, tratou
de montar uma antologia estratégica de textos máximos da tradição, a que as falas das
personagens aludem sistematicamente […]. Apoiado em seus dons excepcionais de
pastichador, expunha as peripécias da luta de classes e os cálculos do cartel dos enlatados
— a matéria nova — em versos imitados de Schiller, de Hölderlin, do segundo Fausto, da
poesia expressionista, ou também dos trágicos gregos, vistos como alemães honoris causa.
Os recursos literários mais celebrados da literatura nacional, ou, por extensão, o melhor e o
mais sublime da cultura burguesa, contracenavam de perto com a crise econômica. […]
Embora tenha algo de receita, o acoplamento de pastiches lírico- losó cos às brutalidades
da competição econômica e do antagonismo de classe compõe um dispositivo de grande
alcance […]. A fórmula evita a segregação cultural em que se via fechada a experiência
proletária, além de dar expressão ao desencontro, a superar, entre excelência cultural e
ponto de vista operário.32
em algum ponto, tendo decidido que essa tarefa era impossível — um julgamento histórico
importante —, Machado abandonou a fórmula de seus romances anteriores […]. Em vez de
tomar o partido dos fracos, cujas solicitações não levavam a nada, ele inventou um
narrador que não apenas apoiava a injustiça social e seus bene ciários, mas também
celebrava ostensivamente o fato de pertencer a seu grupo.33
Ostensivamente. Segundo as crônicas da época, na première da
Ópera dos três vinténs os espectadores permaneceram tranquilos até
que o gângster Macheath e o chefe de polícia Jack Tiger Brown
entoassem juntos a Kanonensong, com sua ultrajante euforia
imperialista (“Viva a brigada/ Na canhonada/ Do Cabo ao
Industão”34 [a tradução não corresponde à rima insolente do
original]). Nesse instante o público explodiu, e a lenda em torno da
peça começou. O narrador machadiano exibe uma desfaçatez análoga
— como quando Bento Santiago, em Dom Casmurro, lamenta o fato
de que o falecimento de um amigo interrompe “as melodias da minha
alma” em vez de esperar algumas horas para morrer (“toda hora é
apropriada ao óbito”).35 O resultado é uma “autoexposição
‘involuntária’”36 que não poderia ser mais evidente.
Não poderia? Como Machado “utiliza com maestria absoluta os
recursos ideológicos e literários os mais prezados de sua vítima” —37
como, por exemplo, seu talento casuístico para a autoabsolvição —,
para muitos de seus contemporâneos seus livros pareciam tomar
partido dos narradores, oferecendo todo tipo de justi cativas
complexas para suas condutas. “A julgar pelas reações da crítica”,
a rma Schwarz, tal ventriloquismo “prevaleceu quase inteiramente”,
gerando “um quadro de alta misti cação” e “faz que entre crítica
feroz e apologia a semelhança confunda”.38 Confusão, de fato: como
crítica feroz pode ser confundida com apologia?
imitação
Um enredo “que serve à exposição metódica de um modo de ser”;
uma desproporção narrativa que “é um fato eloquente de
composição”; uma técnica “expressiva também da assimetria da
relação social”; um “abjeto humor de classe […] exposto”; um
“cinismo ‘excessivo’”, que faz do texto uma “delação de si mesmo,
uma verdadeira traição de classe”.39 Exposto, eloquente, expressivo,
delação de si mesmo, traição… tudo está às claras. Mas então “cabe
ao leitor descobrir que não está diante de um exemplo de autoexame e
requintada franqueza”; “O efeito literário realista e o insight histórico
[…] estão […] em outro nível, que cabe ao leitor identi car e
construir”; “a sionomia […] do narrador […] passa incógnita”;
“reencenava e apontava à execração dos bons entendedores a
ambiguidade característica da classe dominante brasileira”.40
Narrativa eloquente ou narrador incógnito? Delação de si mesmo
ou ambiguidade visível para os bons entendedores? Trata-se do
quebra-cabeça do “realismo” machadiano. “Se nos ativermos aos
modelos estabelecidos”, observa Schwarz,
Para efeitos de precisão e complexidade, digamos então que ele é um realista que trabalha
ostensivamente com procedimentos antirrealistas. Devemos, é claro, nos perguntar por quê.
Meu argumento é que esse paradoxo […] tem a ver com outra questão, a saber: como ca o
realismo num país periférico […]. Para falar de modo mais geral, o que acontece com as
formas modernas em lugares que não possuem as condições sociais que estavam nas origens
dessas formas e que elas de certa maneira têm como pressuposto?42
Notas
1. Georg Lukács, “Sobre a forma e a essência do ensaio: Carta a Leo Popper”, em A alma e as
formas. Trad. de Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
2. Grifos meus.
3. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 110. (Citado, daqui em diante, como Mestre.)
4. Respectivamente, Mestre, pp. ,
61 63 e 96. “Cidade de Deus”, p. 163, e “Altos e baixos da
atualidade de Brecht”, p. 133. Os dois ensaios estão em Sequências brasileiras: Ensaios (São
Paulo: Companhia das Letras, 1999).
5. Mestre, pp. 53-4.
6. “Eu vejo por manchas”. T. J. Clark, “Strange Apprentice”. London Review of Books, 8
out. 2020.
7. Mestre, pp. 96 e 63.
8. Roberto Schwarz, “Complexo, moderno, nacional e negativo”. Novos Estudos Cebrap,
São Paulo, v. 1, n. 1, p. 47, dez. 1981.
9. Id., “Um avanço literário”. Trad. de Marcos Soares. Literatura e Sociedade, São Paulo, v.
15 , n. 13, p. 243, 2010.
10. Mestre, p. 66.
11. Ibid., p. 18.
12. “[…] e dentro das formas, vê classes”: óbvio, ele é um crítico marxista! Óbvio? Com que
frequência a crítica marxista recente empreendeu uma análise de classes concreta em vez de
recorrer a generalizações vagas?
13. Roberto Schwarz, “Um avanço literário”, op. cit., pp. 241-2.
14. Respectivamente, Mestre, pp. 113 , 107 e ; “As ideias fora do lugar”, em Ao vencedor
88
a rma: “a forma que o crítico estuda foi produzida pelo processo social, mesmo que
ninguém saiba dela” e “Se as Memórias são lidas como um todo em movimento […], isto é,
se são lidas esteticamente, é porque têm essa dimensão” (pp. 141 e , respectivamente).
135
O texto foi publicado em inglês como “Objective Form: Re ections on the Dialetic of
Roguery”, em Two Girls and Other Essays (Trad. de John Gledson. Londres: Verso, 2012).
17. Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 51.
18. “Duas notas sobre Machado de Assis”, em Que horas são?: Ensaios, op. cit., p. 166.
19. Roberto Schwarz, “Antonio Candido 100 anos”, em Antonio Candido 100 anos. Org. de
Maria Augusta Fonseca e Roberto Schwarz. São Paulo: Ed. 34, 2018, p. 12.
20. Id., “Um seminário de Marx”, em Sequências brasileiras, op. cit., p. 93.
21. Formação da literatura brasileira: Momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1964-9. 2 v.
22. Mestre, op. cit., p. 42.
23. Ibid., pp. 13 e 37.
24. “Duas notas sobre Machado de Assis”, em Que horas são?: Ensaios, op. cit., p. 169.
25. “A importação do romance e suas contradições em Alencar”, em Ao vencedor as batatas,
op. cit., p. 70.
26. Todas as expressões se encontram no livro Ao vencedor as batatas, op. cit.
Respectivamente, pp. 25, 56, 27, 9, 87, 70, 72 e 47.
27. Mestre, op. cit., pp. 171 e 155.
28. Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 70.
29. “As ideias fora do lugar”, em Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 27.
30. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”, em Martinha versus Lucrécia: Ensaios e
entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 55, 56 e 73.
31. Ibid., p. 56.
32. Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, op. cit., pp. 126, 138 e 142.
33. Id., “Um avanço literário”, op. cit., p. 243.
34. Bertolt Brecht, “A ópera de três vinténs”, em Teatro completo 3. Trad. de Wolfgang Bader
e Marcos Roma Santa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 39.
35. Machado de Assis, Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Globo, p. 186.
36. Mestre, op. cit., p. 82.
37. Ibid., p. 82.
38. Ibid., pp. 190, 189 e 83.
39. Ibid., pp. 103, 107 e 110. Todos os grifos são meus.
40. Ibid., pp. 189-90, 193-4 e 233. Grifos meus.
41. Roberto Schwarz, “Um avanço literário”, op. cit., p. 235.
42. Ibid.
43. Ver Desenvolvimento combinado e desigual: Por uma nova teoria da literatura mundial
(Trad. de G. B. Zanfelice. Campinas: Unicamp, 2020). “O registro realista de Max
Havelaar é repetidamente minado por técnicas irrealistas: a extraordinária narração
cindida, o enquadramento narrativo e a incorporação genericamente incongruente de
materiais indígenas javaneses… Lemos tais cisões e incongruências como indicativo do
registro formal do texto da instabilidade complexa da vida tal como ela é experimentada na
periferia das colônias holandesas das Índias Orientais.” Os membros da , tal como
wrec
listados no livro, são Sharae Deckard, Nicholas Lawrence, Neil Lazarus, Graeme
Macdonald, Upamanyu Pablo Mukherjee, Benita Parry e Stephen Shapiro.
44. Two Girls and Other Essays, op. cit., pp. xiii-xiv.
Nota sobre os textos
“Cultura e política, -
1964 1969 ”: publicado como “Remarques sur la
culture et la politique au Brésil, 1964-1969” em Les Temps Modernes,
n. ,
288 1970 ; retomado em O pai de família (Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 1978).
A transformação arquitetônica era super cial. Sobre as paredes de terra, erguidas por
escravos, pregavam-se papéis decorativos europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a
criar a ilusão de um ambiente novo, como os interiores das residências dos países em
industrialização. Em certos exemplos, o ngimento atingia o absurdo: pintavam-se motivos
arquitetônicos greco-romanos — pilastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. — com
perfeição de perspectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais
realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. Em outros, pintavam-se janelas
nas paredes, com vistas sobre ambientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um
exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, escravos e terreiros de
serviço.15
A transformação atendia à mudança dos costumes, que incluíam agora o uso de objetos
mais re nados, de cristais, louças e porcelanas, e formas de comportamento cerimonial,
como maneiras formais de servir à mesa. Ao mesmo tempo conferia ao conjunto, que
procurava reproduzir a vida das residências europeias, uma aparência de veracidade. Desse
modo, os estratos sociais que mais benefícios tiravam de um sistema econômico baseado na
escravidão e destinado exclusivamente à produção agrícola procuravam criar, para seu uso,
arti cialmente, ambientes com características urbanas e europeias, cuja operação exigia o
afastamento dos escravos e onde tudo ou quase tudo era produto de importação.16
É mister fundar uma nacionalidade consciente de seus méritos e defeitos, de sua força e de
seus delíquios, e não arrumar um pastiche, um arremedo de judas das festas populares que
só serve para vergonha nossa aos olhos do estrangeiro. […] Só um remédio existe para
tamanho desideratum: — mergulharmo-nos na corrente vivi cante das ideias naturalistas e
monísticas, que vão transformando o velho mundo.19
À distância é tão clara que tem graça a substituição de um arremedo
por outro. Mas é também dramática, pois assinala quanto era alheia a
linguagem na qual se expressava, inevitavelmente, o nosso desejo de
autenticidade. Ao pastiche romântico iria suceder o naturalista. En m,
nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos
pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a
mesma composição “arlequinal”, para falar com Mário de Andrade: o
desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser
o seu contexto. — Consolidada por seu grande papel no mercado
internacional, e mais tarde na política interna, a combinação de
latifúndio e trabalho compulsório atravessou impávida a Colônia,
Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é
matéria de controvérsia e tiros.20 O ritmo de nossa vida ideológica, no
entanto, foi outro, também ele determinado pela dependência do país:
à distância acompanhava os passos da Europa. Note-se, de passagem,
que é a ideologia da independência que vai transformar em defeito
esta combinação; bobamente, quando insiste na impossível autonomia
cultural, e profundamente, quando re ete sobre o problema. Tanto a
eternidade das relações sociais de base quanto a lepidez ideológica das
“elites” eram parte — a parte que nos toca — da gravitação deste
sistema por assim dizer solar, e certamente internacional, que é o
capitalismo. Em consequência, um latifúndio pouco modi cado viu
passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista,
modernista e outras, que na Europa acompanharam e re etiram
transformações imensas na ordem social. Seria de supor que aqui
perdessem a justeza, o que em parte se deu. No entanto, vimos que é
inevitável este desajuste, ao qual estávamos condenados pela máquina
do colonialismo e ao qual, para que já que indicado o seu alcance
mais que nacional, estava condenada a mesma máquina quando nos
produzia. Trata-se en m de segredo mui conhecido, embora
precariamente teorizado. Para as artes, no caso, a solução parece mais
fácil, pois sempre houve modo de adorar, citar, macaquear, saquear,
adaptar ou devorar estas maneiras e modas todas, de modo que
re etissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos
reconhecemos. Mas, voltemos atrás. Em resumo, as ideias liberais não
se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram
postas numa constelação especial, uma constelação prática, a qual
formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso, pouco ajuda
insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acompanhar-lhes o
movimento, de que ela, a falsidade, é parte verdadeira. Vimos o Brasil,
bastião da escravatura, envergonhado diante delas — as ideias mais
adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem
do dia — e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram
adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de
modernidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias
quando pesaram no Abolicionismo. Submetidas à in uência do lugar,
sem perderem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra
nova, cujas graças, desgraças, ambiguidades e ilusões eram também
singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e
praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais,
entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era
a sua natureza. Largamente sentido como defeito, bem conhecido mas
pouco pensado, este sistema de impropriedades decerto rebaixava o
cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances da re exão.
Contudo facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem
completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo.
Exacerbado um nadinha, dará na força espantosa da visão de
Machado de Assis. Ora, o fundamento deste ceticismo não está
seguramente na exploração re etida dos limites do pensamento
liberal. Está, se podemos dizer assim, no ponto de partida intuitivo,
que nos dispensava do esforço. Inscritas num sistema que não
descrevem nem mesmo em aparência, as ideias da burguesia viam
in rmada já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de
abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que
elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam
sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de
arbítrio e favor. Abalava-se na base a sua intenção universal. Assim, o
que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre nós podia ser
a singela descrença de qualquer pachola, para quem utilitarismo,
egoísmo, formalismo e o que for são uma roupa entre outras, muito
da época mas desnecessariamente apertada. Está-se vendo que este
chão social é de consequência para a história da cultura: uma
gravitação complexa, em que volta e meia se repete uma constelação
na qual a ideologia hegemônica do Ocidente faz gura derrisória, de
mania entre manias. O que é um modo, também, de indicar o alcance
mundial que têm e podem ter as nossas esquisitices nacionais. Algo de
comparável, talvez, ao que se passava na literatura russa. Diante
desta, ainda os maiores romances do realismo francês fazem
impressão de ingênuos. Por que razão? Justamente, é que, a despeito
de sua intenção universal, a psicologia do egoísmo racional, assim
como a moral formalista, fazia no Império Russo efeito de uma
ideologia “estrangeira”, e portanto localizada e relativa. De dentro de
seu atraso histórico, o país impunha ao romance burguês um quadro
mais complexo. A gura caricata do ocidentalizante, francó lo ou
germanó lo, de nome frequentemente alegórico e ridículo, os
ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram tudo formas de
trazer à cena a modernização que acompanha o Capital. Estes homens
esclarecidos mostram-se alternadamente lunáticos, ladrões,
oportunistas, crudelíssimos, vaidosos, parasitas etc. O sistema de
ambiguidades assim ligadas ao uso local do ideário burguês — uma
das chaves do romance russo — pode ser comparado àquele que
descrevemos para o Brasil. São evidentes as razões sociais da
semelhança. Também na Rússia a modernização se perdia na
imensidão do território e da inércia social, entrava em choque com a
instituição servil e com seus restos — choque experimentado como
inferioridade e vergonha nacional por muitos, sem prejuízo de dar a
outros um critério para medir o desvario do progressismo e do
individualismo que o Ocidente impunha e impõe ao mundo. Na
exacerbação deste confronto, em que o progresso é uma desgraça e o
atraso uma vergonha, está uma das raízes profundas da literatura
russa. Sem forçar em demasia uma comparação desigual, há em
Machado — pelas razões que sumariamente procurei apontar — um
veio semelhante, algo de Gógol, Dostoiévski, Gontcharov, Tchékhov, e
de outros talvez, que não conheço.21 Em suma, a própria
desquali cação do pensamento entre nós, que tão amargamente
sentíamos, e que ainda hoje as xia o estudioso do nosso século xix,
era uma ponta, um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a
história mundial.22
Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e
repõe ideias europeias, sempre em sentido impróprio. É nesta
qualidade que elas serão matéria e problema para a literatura. O
escritor pode não saber disso, nem precisa, para usá-las. Mas só
alcança uma ressonância profunda e a nada caso lhes sinta, registre e
desdobre — ou evite — o descentramento e a desa nação. Se há um
número inde nido de maneiras de fazê-lo, são palpáveis e de níveis as
contravenções. Nestas registra-se, como ingenuidade, tagarelice,
estreiteza, servilismo, grosseria etc., a e cácia especí ca e local de uma
alienação de braços longos — a falta de transparência social, imposta
pelo nexo colonial e pela dependência que veio continuá-lo. Isso
posto, o leitor pouco cou sabendo de nossa história literária ou geral,
e não situa Machado de Assis. De que lhe servem então estas páginas?
Em vez do “panorama” e da ideia correlata de impregnação pelo
ambiente, sempre sugestiva e verdadeira, mas sempre vaga e externa,
tentei uma solução diferente: especi car um mecanismo social, na
forma em que ele se torna elemento interno e ativo da cultura; uma
di culdade inescapável — tal como o Brasil a punha e repunha aos
seus homens cultos, no processo mesmo de sua reprodução social.
Noutras palavras, uma espécie de chão histórico, analisado, da
experiência intelectual. Pela ordem, procurei ver na gravitação das
ideias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação
comum, quase uma sensação, de que no Brasil as ideias estavam fora
de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma
explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações
de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e
seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo
Capital. Em suma, para analisar uma originalidade nacional, sensível
no dia a dia, fomos levados a re etir sobre o processo da colonização
em seu conjunto, que é internacional. O tique-taque das conversões e
reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um
mecanismo planetário. Ora, a gravitação cotidiana das ideias e das
perspectivas práticas é a matéria imediata e natural da literatura,
desde o momento em que as formas xas tenham perdido a sua
vigência para as artes. Portanto, é o ponto de partida também do
romance, quanto mais do romance realista. Assim, o que estivemos
descrevendo é a feição exata com que a História mundial, na forma
estruturada e cifrada de seus resultados locais, sempre repostos, passa
para dentro da escrita, em que agora in ui pela via interna — o
escritor saiba ou não, queira ou não queira. Noutras palavras,
de nimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado, que é
resultado histórico, e pode ser origem artística. Ao estudá-lo, vimos
que difere do europeu, usando embora o seu vocabulário. Portanto a
própria diferença, a comparação e a distância fazem parte de sua
de nição. Trata-se de uma diferença interna — o descentramento de
que tanto falamos — em que as razões nos aparecem ora nossas, ora
alheias, a uma luz ambígua, de efeito incerto. Resulta uma química
também singular, cujas a nidades e repugnâncias acompanhamos e
exempli camos um pouco. É natural, por outro lado, que esse
material proponha problemas originais à literatura que dependa dele.
Sem avançarmos por agora, digamos apenas que, ao contrário do que
geralmente se pensa, a matéria do artista mostra assim não ser
informe: é historicamente formada e registra de algum modo o
processo social a que deve a sua existência. Ao formá-la, por sua vez,
o escritor sobrepõe uma forma a outra forma, e é da felicidade desta
operação, desta relação com a matéria pré-formada — em que
imprevisível dormita a História — que vão depender profundidade,
força, complexidade dos resultados. São relações que nada têm de
automático, e veremos no detalhe quanto custou, entre nós, acertá-las
para o romance. E vê-se, variando-se ainda uma vez o mesmo tema,
que, embora lidando com o modesto tique-taque de nosso dia a dia, e
sentado à escrivaninha num ponto qualquer do Brasil, o nosso
romancista sempre teve como matéria, que ordena como pode,
questões da história mundial; e que não as trata, se as tratar
diretamente.
A importação do romance e suas contradições em
Alencar
Tachar estes livros de confeição estrangeira é, relevem os críticos, não conhecer a sociedade
uminense, que aí está a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a
algemia universal, que é a língua do progresso, jargão erriçado de termos franceses,
ingleses, italianos, e agora também alemães.
Como se há de tirar a fotogra a desta sociedade, sem lhe copiar as feições?10
* Refere-se ao ensaio “As ideias fora do lugar”, primeiro capítulo do livro Ao vencedor as
batatas (São Paulo: Duas Cidades, 1977). (n. e.)
A poesia envenenada de Dom Casmurro
Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa,
submissa e con ante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua
deliciosa vizinha, Capitolina — Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma
das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos
olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim
dizer, instintiva e talvez inconsciente. Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre,
consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em direito e casa com a
companheira de infância. Capitu engana-o com o seu melhor amigo, e Bento Santiago vem
a saber que não é seu o lho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e
quase mau.1
mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o
m proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma
concepção grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e
hipotético de me mandar para a Europa [uma saída lembrada pela moça], Capitu, se
pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma la de canoas
daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria
realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera.22
O trecho pode e deve ser lido em várias chaves, pois tanto expressa
a fascinação de Bento pela feminilidade de Capitu como serve no
processo movido pelo marido contra a mulher, lembrando que ela
desde cedo fora ambiciosa, calculista, oblíqua e inimiga da futura
sogra. Há outra leitura ainda, atenta ao conteúdo social das relações,
que oferece a vantagem de articular a conduta de Capitu à das demais
guras, de modo a lhes tornar visível o sistema. Com efeito, a
desproporção entre ns e meios, central no retrato, re ete os cons-
trangimentos práticos da moça esclarecida nas circunstâncias locais.
Com muxoxo oligárquico, as “ideias atrevidas” designam eventuais
resultados da independência de espírito da personagem, projetos
individuais que escapam ao limite da conformidade respeitosa. Já o
recurso aos “saltinhos”, por oposição à presumível franqueza de um
pulo grande (que seria masculino, e não feminino? que não seria
atrevido?), registra a necessidade em que se encontram os dependentes
de obter o favor de seu patrono a cada passo, sem o que caem no
vazio. Faz parte da lógica do paternalismo que os possíveis objetivos
não se assumam enquanto tais e a título individual, mas, lialmente,
como conveniências do protetor, o que não só os viabiliza, como
legitima. Daí as canoas e a fortaleza da Laje, em lugar do paquete e de
Bordéus, já que ns familiares são mais fáceis de impingir. As
maneiras “hábeis” e “sinuosas” de Capitu representam a política de
decoro, ou, segundo o ponto de vista, a hipocrisia requerida por esse
arranjo. Por outro lado é característica do Casmurro e de sua
ideologia de classe apresentar como de ciência moral, como falta de
franqueza, a política de olhos baixos imposta pela sua própria
autoridade, sem prejuízo de considerar “atrevimento” a conduta
contrária. Como parte de sua confusão, ou de sua complexidade,
note-se ainda como um tipo de conduta com fundamento na estrutura
mesma da sociedade brasileira lhe aparece ora como falta de caráter
de sua mulher, ora como elemento de interesse erótico, ora como
característica geral e desabonadora da psicologia feminina. Seja como
for, estará claro o fundo comum entre as manobras de Capitu, o riso
sem vontade de José Dias, os pânicos de Bentinho diante da mãe e o
susto de prima Justina quando lhe pedem a opinião. O signi cado
dessas variações sobre uma situação de dependência básica ca
incompleto, contudo, enquanto não passamos ao outro polo, que as
determina, o polo da autoridade dos proprietários.
Ao enviuvar, d. Glória vende a fazenda e compra “uma dúzia de
prédios, certo número de apólices”, além de escravos, que aluga ou
põe no ganho.23 A família Santiago e a casa de Matacavalos agora
vivem de rendas. Sem índole de chefe, a viúva é boa criatura, devota,
apegada com o lho e voltada para os serviços da casa. Ainda assim, a
sua autoridade não padece dúvida, como indicam os cuidados para
não contrariá-la, que sem exceção todos tomam. O mando decorre da
propriedade, mesmo se o proprietário não é cioso. Algo semelhante
vale para a virtude. D. Glória, conforme o lho lhe faz gravar na
sepultura, é uma santa.24 Isso embora ela o tivesse prometido à vida
de padre sem o consultar, embora o internasse no seminário contra a
sua vontade (“Deixa de manha, Bentinho”),25 e embora mais adiante
aceitasse um subterfúgio esfarrapado para voltar atrás em sua
promessa. Noutras palavras, um pouco de superstição, autoritarismo e
capricho em absoluto afetam a santidade das mães de família ilustre,
antes pelo contrário. Em situação patriarcal, os deslizes práticos não
mancham a bondade por assim dizer transcendental dos pais e chefes,
a qual forma um halo em volta da propriedade. Note-se por m que a
dignidade do marido narrador irá se bene ciar do mesmo caráter
inquestionável — até segunda ordem, quando se transforma em alvo
de sátira. A gesticulação respeitável e civilizada da classe proprietária
lhe torna invisível a conduta efetiva, em cuja pormenorização o
espírito crítico de Machado se deleita.
Depois de sair do seminário, estudar direito em São Paulo e casar,
Bento se torna proprietário por sua vez. A formação à qual assistimos
na parte inicial do livro agora vai se mostrar em suas consequências. À
primeira vista, aquela parte formativa é uma crônica de saudades,
cheia de afagos maternos, de emoção lial, inocência, apego a cenas e
lugares da infância, tudo percorrido de arrepios libidinosos e
sentimentos de culpa. No conjunto, um ranço perverso e consistente,
que lembra o clima do romantismo-família de Casimiro de Abreu, a
con guração sentimental que Mário de Andrade identi cou em
“Amor e medo”.26 À segunda leitura, tão fundada quanto a primeira,
a crônica de saudades aparece como a documentação de um
diagnóstico severo e moderno do mundo paternalista: aí estão o
manejo irresponsável e caprichoso da autoridade, a que correspondem
o parasitismo e a sujeição bajuladora ou assustada; os estudos
superiores sem vocação ou seriedade, com propósito ornamental; a
religião frouxa, pouco interiorizada, dando cobertura a toda sorte de
interesses menos católicos etc. Como dizia de si mesmo Brás Cubas,
ao concluir um capítulo semelhante, sobre a sua educação: “Dessa
terra e desse estrume é que nasceu esta or”.27
Note-se que esse diagnóstico negativo decorre da outra norma, ou
também da norma por excelência. Trata-se do ideal da sociedade
composta de indivíduos livres e responsáveis, quer dizer, nem escravos
nem dependentes, ideal infuso na civilização burguesa europeia, em
relação ao qual a sociedade brasileira — que não tinha como não se
medir por ele, salvo ao preço de saltar fora da atualidade — aparecia
como errada. Assim, metodicamente equívoca, a narrativa dá curso
simultâneo ao encantamento e à condenação da ordem paternalista,
imprimindo ubiquidade à preferência, meio culposa meio assumida,
por formas de vida caducas.28
Bento agora é chefe de uma família abastada, advogado esta-
belecido, uma gura da ordem. A desestabilização interior que a
autoridade lhe causava em criança já não tem razão de ser, ou melhor,
talvez haja mudado de posição relativa, uma vez que a autoridade
passou a ser ele mesmo. Nas novas circunstâncias as velhas turvações
do juízo, a incapacidade de traçar a linha entre a vontade de quem
manda e a própria, trocam de natureza. A instância mais dramática
está no ciúme, que havia sido um entre os vários destemperos
imaginativos do menino, e agora, associado à autoridade do
proprietário e marido, se torna uma força de devastação. Embora o
assunto seja da esfera privada, e o romance na segunda parte de fato
se afunile em direção da di culdade entre duas pessoas, o tema
continua a ser o outro: a prerrogativa que tem o proprietário à
brasileira de confundir as suas vontades, mesmo as escusas, com os
foros da lei, da dignidade etc., segundo a conveniência ou inclinação
do momento, e sem que os dependentes tenham como contrastá-lo.
Assim, há complementaridade entre a falta de garantias e direitos
destes últimos e, no campo oposto, a despeito das aparências de
civilidade, a falta de fronteira clara posta ao desejo, que nas circuns-
tâncias não tem como se enxergar. Daí um dos temas originais e
profundos da cção machadiana, a indisciplina mental especí ca à
articulação brasileira de escravidão, clientelismo e padrão
contemporâneo, em especial a loucura de nossos homens bem-
pensantes. De outro ângulo, digamos que a malversação da
credibilidade narrativa, a seu modo uma quebra de contrato — o
procedimento crucial do romance —, estende as unilateralidades dessa
relação de poder ao plano da forma, onde elas, desde que notadas,
aparecem como intoleráveis infrações.
A trajetória de Capitu pode servir de comentário ao signi cado
destrutivo desse desgoverno. Ao fazer um bom casamento, a mocinha
escapa às condições modestas de sua família e ca — na bonita
comparação machadiana — “como um pássaro que saísse da
gaiola”.29 Contudo, a mesma compreensão clara das relações efetivas
que havia permitido as manobras da menina agora faz que, diante dos
ciúmes do marido, a mulher trate de prevenir o enfrentamento por
todos os meios, renunciando à rua e à janela, terminando por viver
autossequestrada, tudo naturalmente em vão. A gaiola da autoridade
patriarcal voltava a se fechar, sem apelação, conforme sugere a
resignação lúcida e comovente em que termina Capitu. Outro
comentário tácito encontra-se nos episódios que tratam o tema da
con ança recíproca, ou do pacto, com a parte de igualdade que este
implica. Enquanto assiste à amamentação do lho, numa cena de
domesticidade audaciosa, ocorre a Bento, muito emocionado, que
aquele ser existia devido ao amor e à constância do casal.30 No
contexto, a passagem naturalmente se presta à releitura sardônica. A
emoção no entanto se refere a algo real, a criações do acordo mútuo,
as quais, na ausência deste, não se mantêm. O assunto já havia
surgido no capítulo do “juramento do poço”, onde os adolescentes
fazem frente contra as circunstâncias e prometem casar um com o
outro, promessa depois cumprida.31 Embora o tópico ostensivo do
romance seja a in delidade de Capitu, à qual se prenderia a
descon ança universal do Casmurro, a matéria substantiva está na
desinclinação do último pela relação entre iguais, hipótese ou tentação
moderna — se o termo de comparação for a ordem patriarcal — que o
ceticismo escarninho deve desbancar. Contrariamente ao que a
melancolia desabusada do narrador faz crer, na ausência dos iguais
não resta o indivíduo solitário, mas o proprietário na acepção
brasileira do termo, o gurão desobrigado de prestar contas.
Nos capítulos nais assistimos a uma estranha sucessão de climas,
que desenvolvem com exatidão as consequências esterilizantes
embutidas no tipo social do narrador. Há aí uma fusão buñuelesca de
amalucamento, decoro e maldade extremada. Assim, depois de
preparar um suicídio teatral, inspirado em Catão via Plutarco, o
Casmurro por muito pouco não envenena deveras o menino que lhe
lembra o outro. Em seguida, para separar-se de Capitu mas guardar as
aparências, Bento nge um passeio da família à Europa, onde deixa a
mulher, o lho e uma governanta, viagem que passa a repetir
regularmente, de modo que faz de conta que vive com os seus, que no
entanto não procura, e de quem na volta dá notícias inventadas a pa-
rentes e amigos. A certa altura, muito de passagem, menciona a morte
de Capitu — o encanto de sua vida e do romance — em duas frases
curtas, como que para reparar um lapso. Quando o lho o visita, já
rapaz, o pai deseja-lhe a morte pela lepra; não é ouvido pelo destino,
que mata o moço em seguida, de tifo. A concepção do penúltimo
capítulo, “A exposição retrospectiva”, é propriamente genial, desde
que percebamos a situação por detrás dos eufemismos da prosa. Mal
ou bem Dom Casmurro se está gabando de que a sua alma “não cou
aí para um canto como uma or lívida e solitária”, nem lhe haviam
faltado “amigas que me consolassem da primeira”. Reparando me-
lhor, entenderemos que se trata de pobres moças, presumivelmente
prostituídas, trazidas a um casarão afastado para ouvir as recordações
de um gentleman de meia-idade, depois do que vão embora a pé
(calcante pede, a expressão vem em latim, por pudor de cavalheiro ou
também para marcar distinção), isso a não ser que chova, caso em que
o dono da casa providencia um carro de praça.
Pois bem, como entender que a elegância da prosa dos primeiros
capítulos, suprema sem nenhum exagero, seja a obra e o passatempo
dessa gura nociva e patética das páginas nais? Respostas à parte, a
pergunta decorre da composição do livro. Sob pena de ingenuidade,
esta obriga à distância em relação ao que é dito, ou melhor, incita a
dar a palavra a correções e adendos que a situação narrativa imprime
ao memorialismo lírico do primeiro plano.
alguns esquemas
Nota, 1978
As páginas que seguem foram escritas entre 1969 e . No principal, como o leitor
1970
facilmente notará, o seu prognóstico estava errado, o que não as recomenda. Do resto,
acredito — até segunda ordem — que alguma coisa se aproveita. A tentação de reescrever
as passagens que a realidade e os anos desmentiram naturalmente existe. Mas para que
substituir os equívocos daquela época pelas opiniões de hoje, que podem não estar menos
equivocadas? Elas por elas, o equívoco dos contemporâneos é sempre mais vivo. Sobretudo
porque a análise social no caso tinha menos intenção de ciência que de reter e explicar uma
experiência feita, entre pessoal e de geração, do momento histórico. Era antes a tentativa de
assumir literariamente, na medida de minhas forças, a atualidade de então. Assim, quando
se diz “agora”, são observações, erros e alternativas daqueles anos que têm a palavra. O
leitor verá que o tempo passou e não passou.
(respostas a movimento)
Uma leitura ingênua de seu ensaio “As ideias fora do lugar” não
poderia concluir que toda ideologia, inclusive as libertárias, seria uma
ideia fora do lugar em países periféricos?
Este aspecto existe. Ideias estão no lugar quando representam
abstrações do processo a que se referem, e é uma fatalidade de nossa
dependência cultural que estejamos sempre interpretando a nossa
realidade com sistemas conceituais criados noutra parte, a partir de
outros processos sociais. Neste sentido, as próprias ideologias
libertárias são com frequência uma ideia fora do lugar, e só deixam de
sê-lo quando se reconstroem a partir de contradições locais. O
exemplo mais conhecido é a transposição da sequência escravismo-
feudalismo-capitalismo para o Brasil, país que já nasceu na órbita do
capital e cuja ordem social no entanto difere muito da europeia. Mas
o problema vai mais longe. Ainda quando é magistralmente
aproveitado, um método não representa o mesmo numa circunstância
ou noutra. Por exemplo, quando na Europa se elaborava a teoria
crítica da sociedade, no século , ela generalizava uma experiência
xix
pobre alimária
O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículo
E o animal disparou
Mas o lesto carroceiro
Trepou na boleia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote4
não havia sinal. Era natural que à luz deste último ponto de vista,
atualizado, aventuroso, cosmopolita e muito superior, os partidos do
bonde e da carroça estivessem mais para iguais que para opostos.
Assim, o esvaziamento do antagonismo entre as matérias colonial e
burguesa (atrasada), bem como o descaso pelos seus conteúdos
subjetivos, são efeito de uma distância interna ao poema,
transposição, por sua vez, da distância entre as guras locais e
universais do progresso. Surpreendentemente, o resultado é
valorizador: a suspensão do antagonismo e sua transformação em
contraste pitoresco, onde nenhum dos termos é negativo, vêm de par
com a sua designação para símbolo do Brasil, designação que,
juntamente com a prática dos procedimentos vanguardistas, está entre
as prerrogativas da superioridade, do espírito avançado que estamos
tratando de caracterizar. Portanto, a modernidade no caso não
consiste em romper com o passado ou dissolvê-lo, mas em depurar os
seus elementos e arranjá-los dentro de uma visão atualizada e,
naturalmente, inventiva, como que dizendo, do alto onde se encontra:
tudo isso é meu país.11 Um lirismo luminoso, de pura solução técnica,
nos antípodas de sondagem interior, expressão ou transformação do
sujeito (individual ou coletivo).
Num estudo sobre Macunaíma, tratando de situar o livro, Carlos
Eduardo Berriel liga o nacionalismo de 1922 ao setor da oligarquia
cafeeira que, além de plantar, buscou disputar aos capitais
imperialistas a área da comercialização, que era a mais rendosa do
negócio. O argumento vai além da conhecida proximidade entre os
Modernistas e algumas famílias de grandes fazendeiros: sugere uma
certa homologia entre a estética de Mário e a experiência acumulada
de uma classe que a) se movia com pontos de vista próprios no campo
dos grandes interesses internacionais (o café chegou a ser o maior
artigo de comércio internacional do mundo); b) combinava à sua
indisputável atualização cosmopolita o conservadorismo no âmbito
doméstico, já que a persistência da monocultura de exportação, com
as relações de trabalho correspondentes, era a sua base de eminência
nacional e participação internacional; c) encarava a “vocação
agrícola” do país como um elemento de progresso e
contemporaneidade, a que as demais manifestações modernizantes se
deveriam e poderiam subordinar harmoniosamente; e d) planava
muito acima do conservadorismo defensivo e chucro do restante da
riqueza do país. —12 Não disponho de conhecimento histórico para
avaliar essas hipóteses com precisão (as relações nada lineares entre
cafeicultura e industrialização tornaram-se um tópico de especialistas),
mas acho que o esquema ajuda a entender a poesia pau-brasil e
ilumina os nexos que viemos tratando até aqui. Antes de prosseguir,
não custa dizer que um poeta não melhora nem piora por dar forma
literária à experiência de uma oligarquia: tudo está na consequência e
na força elucidativa das suas composições. Não se trata de reduzir o
trabalho artístico à origem social, mas de explicitar a capacidade dele
de formalizar, explorar e levar ao limite revelador as virtualidades de
uma condição histórico-prática; sem situar o poema na história, não
há como ler a história compactada e potenciada dentro dele, a qual é
o seu valor. Hoje todos sabemos que a hegemonia do café já não tinha
futuro e terminou em 1930, o que naturalmente não atinge a poesia de
Oswald, que está viva.
O próprio Oswald mais de uma vez se referiu às “causas materiais e
fecundantes” do Modernismo, “hauridas no parque industrial de São
Paulo, com seus compromissos de classe no período áureo-burguês do
primeiro café valorizado”.13 A relação aparece com muita beleza em
“aperitivo”, onde “A felicidade anda a pé/ Na Praça Antônio Prado/
São 10 horas azuis/ O café vai alto como a manhã de arranha-céus/
Cigarros Tietê/ Automóveis/ A cidade sem mitos”.14 A plenitude
moderna (e idealizada) das sensações, sem pecado, superstição ou
con ito, o gosto de ver e ser visto, tão característicos da inocência
cultivada por Oswald, vêm na crista da prosperidade do café. São uma
emanação de poder, o que lhes quali ca, mas não anula a ingenuidade.
O privilégio econômico não tira a força poética à despreocupação que
ele propicia: as posses do transeunte são um aspecto sugestivo e dão a
seu contentamento algo da fragilidade da sorte grande (as cotações em
alta podem baixar).15
Outra singularidade oswaldiana é a total ausência de saudosismo na
exposição de guras e objetos do mundo passado (o contraste com os
nortistas, ligados à decadência do açúcar, neste ponto é instrutivo).
Tecnicamente, o efeito se deve à preferência vanguardista e
antissentimental pela presença pura, em detrimento da profundidade
temporal e demais relações. A sustentação de fundo entretanto vem do
futuro que o café pensava ter pela frente, fazendo que o universo de
relações quase coloniais que ele reproduzia lhe aparecesse não como
obstáculo, mas como elemento de vida e progresso, e aliás, uma vez
que era assim, de um progresso mais pitoresco e humano do que
outros, já que nenhuma das partes cava condenada ao
desaparecimento. Digamos que a poesia de Oswald perseguia a
miragem de um progresso inocente.
Para que o moderno de província, o moderníssimo e o arcaico se
acomodem, é preciso que se encontrem. Os locais inventados por
Oswald para a sua conciliação, espécies de praça pública, constituem
achados em si mesmos. Pode ser o Brasil inteiro, dividido ao meio por
um trem, como o vazio pelo meridiano;16 podem ser “campos
atávicos”, cheios de “Eleições tribunais e colônias”;17 ou o terreno
abstrato da gramática, onde a boa gente brasileira, sem discriminação
entre negros e brancos, mas com uma al netada nos mulatos, vence o
pedantismo lusó lo e põe o pronome no lugar errado, o que é o
certo.18 Em “bonde”, “Postretutas e famias sacolejam”, congraçadas,
muito a despeito seu, nos solavancos, na prosódia e na caçoada do
poeta cosmopolita.19 A situação nos poemas citadinos, aliás, é mais
complexa. O ingrediente moderno toma formas diversi cadas: trilhos,
o viaduto do Anhangabaú, o Jardim da Luz, um tarado nalgum
parque, o fotógrafo ambulante, choferes bloqueados pela passagem de
uma procissão, a escola “berlites”, o ateliê de Tarsila, placares de
futebol, a garçonnière do escritor, a Hípica etc. Como se vê, um álbum
abrangente, com cenas tomadas a todos os espaços sociais. O
denominador comum está em certo progressismo acomodatício e fora
da norma, que é o elemento de simpatia e sobretudo de identidade
visado. Puxado mais para elegante quando se trata de Tarsila, e mais
para baixo noutros casos. É notável como o clima ganha em
densidade nas cenas de rua ou em logradouros públicos, onde haja
presença de populares, quando então a irregularidade generalizada, a
disposição ordeira apesar de tudo e o desejo de progredir — que numa
reunião da Hípica re etem apenas esnobismo — formam uma mistura
comovente e de muito interesse.20
O uso inventivo e distanciado das formas parece colocar a poesia de
Oswald no campo inequivocamente crítico. E de fato, sempre que o
alvo é alguma espécie de rigidez o cialista, a quebra da convenção tem
esse efeito. Contudo, a preferência por uma certa informalidade
também pode ser uma ideologia, e até penhor de identidade nacional,
conforme procurei indicar. Com os meios da literatura mais
radicalmente anti-ilusionista, ou antiaurática, para falar com Walter
Benjamin, Oswald buscou fabricar e “auratizar” o mito do país não
o cial, que nem por isso era menos proprietário. Hoje todos sabemos
que as técnicas da desidenti cação brechtiana são usadas na televisão
para promover a nossa identi cação com marcas de sapólio. Por isso
mesmo é interessante veri car que já ao tempo de sua invenção,
quando o mordente seria máximo, esses procedimentos por si sós não
bastavam para esquivar ambiguidades.
Por curto que seja, “pobre alimária” é uma história. Na altura da
metade, o poema exibe uma funcional falta de jeito, de que vai
depender o seu voo. Até aí, e depois até o m, a narrativa avança por
dísticos, ao ritmo de uma ação a cada duas linhas, o que estipula e
confere alguma extensão aos propósitos correspondentes. Os versos
do meio fogem à regra: num, os anônimos “Desatravancaram o
veículo”; no outro, “o animal disparou”. Como traço de união entre
os dois, a conexão inespecí ca do “e”, acentuando a disparidade e
certa equivalência humorística dos sujeitos — os populares e a
alimária —, bem como de suas iniciativas. Por atrelamento, se é
possível dizer assim, o cavalo fugitivo expõe os imprevistos do mundo
do carroceiro. Complementarmente, faz ver que é precário o verniz do
mundo dos advogados. Note-se que a intervenção do chicote
restabelece a ordem, não porque impeça novas obstruções do trânsito,
e sim porque reequilibra a economia das autoestimas, por sobre a
inalterada rachadura social.
O programa pau-brasil queria tirar o país do estado de irrelevância.
Para isso, tratava de lhe realçar a inscrição direta, e em posição
original, na história da humanidade. Daí o constante jogo com
referências cardeais, umas prestigiosíssimas, outras menos, o que já
indica as di culdades do empreendimento: a indústria, a oresta, Ruy
Barbosa, o Carnaval, o azul do céu cabralino, Wagner, o vatapá,
questões de câmbio, a perspectiva de Paolo Uccello, Maricota lendo o
jornal etc. Nos “versos baianos”, por exemplo, as mesmas águas que
levam uma jangada com “homens morenos/ De chapéu de palha”
foram “campos de batalha/ Da Renascença”, “Frequentado rendez-
vous/ De Holandeses de Condes e de Padres”, hoje sendo perfeitas
“para as descidas/ Dos hidroplanos de meu século”.21 O
procedimento visa aproximar e articular dados que a ideologia
colonialista, e sobretudo a sua interiorização pelo colonizado,
separam em compartimentos estanques. Trata-se nada menos que de
conquistar a reciprocidade entre a experiência local e a cultura dos
países centrais, como indica a exigência de uma poesia capaz de ser
exportada, contra a rotina unilateral da importação. O valor crítico e
transformador desse projeto, mais a felicidade de suas fórmulas de
sete léguas, até hoje conferem aos Manifestos um arejamento
extraordinário. Ainda assim, me parece claro que o uso irreverente de
nomes, datas e noções ilustres não deixa de ser uma reverência com
sinal trocado. Um modo até certo ponto precário de suprir a falta de
densidade do objeto, falta que re ete, no plano da cultura, o mutismo
inerente à unilateralidade das relações coloniais e depois imperialistas,
e inerente também à dominação de classe nas ex-colônias.
Conhecidamente, a mencionada rarefação é o tormento dos artistas
nesses países, mas a bem das proporções não custa lembrar que
Machado de Assis já a havia vencido superiormente no século
anterior. Mudando o ângulo, vimos como o gosto modernista pela
pura presença empurrava para segundo plano a dimensão relacional
das guras, em certo sentido lhes suprimindo o antagonismo e a
negatividade.22 Vimos igualmente a correspondência entre essa
estética e o progressismo conservador da burguesia cosmopolita do
café. Articulado assim, o parti pris de ingenuidade e de “ver com
olhos livres”23 algo tem de uma opção por não enxergar, ou melhor,
por esquecer o que qualquer leitor de romances naturalistas sabia. Daí
que os achados da inocência oswaldiana paguem a sua plenitude,
muito notável, com um quê de irrealidade e infantilismo. Mas sendo
Oswald um artista grande e esperto, providenciava contrapesos à sua
decisão de colocar no “presente do universo” — 24 e com sinal
energicamente positivo! — o nosso provincianismo e as nossas
relações rurais atrozes: deu a tudo um certo ar de piada. É neste, e
levada em conta a situação complexa a que responde, que se encontra
a verdade da poesia pau-brasil, um dos momentos altos da literatura
brasileira.
Na periferia do capitalismo
(entrevista)
Qual jornal?
Um suplemento literário da Última Hora, onde publiquei um artigo
sobre O amanuense Belmiro, romance sobre o qual o Antonio
Candido havia escrito anos antes. Uma amiga espoleta levou o
trabalho ao professor, contando que eu achava o artigo dele parecido
com o meu. Ele achou graça, leu e me convidou para colaborar no
Suplemento Literário do Estadão, que era dirigido pelo Décio de
Almeida Prado. Assim, quando fui a Assis procurar conselho, ele tinha
ideia do que eu andava fazendo.
A ida para o exterior era porque na época não havia mestrado aqui?
A pós-graduação estava começando. Na época só fazia mestrado e
doutorado o pessoal que já estava trabalhando nalguma cadeira.
Como eu vinha de ciências sociais, para ensinar em letras precisava de
um título apropriado. Fui ao Estados Unidos fazer um mestrado em
teoria literária e literatura comparada na Universidade Yale. Na volta,
em , pouco antes do golpe, comecei a trabalhar na teoria
1963
E quanto ao doutorado?
Fiz na França, na Universidade Paris , Sorbonne. A minha tese lá
iii
O que exatamente você quer dizer com o “já não é mais assim”,
quando observa que normalmente se trabalhava com textos que de
alguma maneira tinham no horizonte uma pretensão de fundação
nacional?
A crítica dialética supõe obras que sejam mais ou menos fechadas e
altamente estruturadas. Na literatura brasileira não há muitas que
convidem a uma análise desse tipo. Quando Antonio Candido
resolveu estudar nessa veia as Memórias de um sargento de milícias,
estava escolhendo o caminho difícil e levando ao extremo uma
posição crítica de ponta. A ousadia foi pouco notada, porque o
romance — divertido e despretensioso — não faz pensar nessa ordem
de tentativas. Manuel Antônio de Almeida não só não queria fazer o
que o crítico descobriu, como se movia num plano incomparavelmente
mais modesto. Essa desproporção é um erro? Pelo contrário, ela tira
as consequências de uma certa ideia de forma objetiva, que não
coincide com as intenções do autor, as quais pode exceder e contrariar
amplamente. Uma ideia de forma e de análise que o crítico
compartilha com uns poucos mestres da crítica dialética. Os dois
ensaios centrais de Antonio Candido, sobre o Sargento de milícias e O
cortiço, sendo rigorosamente apoiados na análise das obras,
descobrem a força e a relevância delas num plano que não teria
ocorrido aos respectivos autores. Dizendo de outra maneira: segundo
esse modo de ver, o trabalho de con guração artística tem uma
disciplina própria, que lhe permite superar as convicções, as teorias e
os horizontes do autor.
Penso que mesmo hoje, com muita frequência, existe a intenção dos
escritores de produzirem alguma coisa que traga até as palavras o
sentimento desse presente de relações e valores tão esgarçados, essa
vida contemporânea confusa, violenta etc. Por que, então, não se
chega a essa obra capaz de apresentar essa relação bem íntima entre
forma do texto e forma social?
Também não me convenço de que não seja mais possível. Mas é fato
que o processo social mudou de natureza. A circunscrição dele, no
sentido em que você podia dizer “essa é a sociedade brasileira”, está
deixando de ser efetiva, de ser verdadeira. Por exemplo, o caso…
Quando você diz que não sabe, é ironia, ou não sabe mesmo?
Eu diria que o predomínio do Concretismo, que atravessou a
segunda metade do século passado, tornou a poesia impermeável ao
pensamento, com muito prejuízo para ela. A culpa não é dos
concretistas, acho natural que todo grupo poético procure se
promover e valorizar. O que aconteceu de incrível foi que o mundo
intelectual brasileiro pouco ou nada opôs àquele padrão. Marx diz a
certa altura que o segredo da vitória de Luís Napoleão não está na
força dele, mas na fraqueza da sociedade francesa do tempo.
Analogamente, podemos perguntar pelo que aconteceu à vida cultural
brasileira do último meio século para que algo tão limitado como a
poesia concreta alcançasse tanta eminência. É uma questão mais
profunda do que pode parecer. Tem a ver com a credulidade
subdesenvolvida diante do progresso.
Queria que você contasse o caso curioso de Berta Dunkel, que pouca
gente conhece.
Foi o seguinte: mais ou menos em 1966 me encomendaram uma
explicação didática da ideia marxista de mais-valia, para ser usada em
aulas para um grupo operário, clandestino na época. Escrevi com a
maior clareza de que era capaz. Como não saiu ruim, houve interesse
em divulgar o folheto em âmbito maior, e o grupo da Teoria e Prática
resolveu publicá-lo na revista. Inventei uma personagem para assinar
o “artigo”, que era essa Berta Dunkel. Berta para Roberto, e Dunkel,
que quer dizer escuro, para Schwarz, que é “preto”. Escrevi uma
pequena biogra a como introdução, explicando que ela era uma
escritora alemã de vanguarda, que nos anos 1920 , tocada pela
proximidade da revolução, resolvera se dedicar ao didatismo político,
no qual via uma forma literária e um problema estético. É claro que
eram questões brechtianas, pelas quais eu estava me interessando. A
coisa teve um desdobramento engraçado, porque um intelectual de
renome, que conhecia tudo do movimento operário alemão, tinha
lembrança de Berta.
Verdade tropical
De início devo dizer que não sou a pessoa mais indicada para
comentar a autobiogra a de Caetano Veloso, pois não tenho bom
conhecimento de música nem das composições do autor.1 Entretanto
gosto muito do livro como literatura. Particularmente os blocos 1 e 2
[…] o aparecimento do Brás Cubas modi cou a ordem estabelecida: as posições de José de
Alencar, de Manuel Antônio de Almeida, de Taunay, de Macedo — até então os grandes
nomes da nossa cção — tiveram que ser sensivelmente alteradas.
Lúcia Miguel Pereira, Prosa de cção
Se voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mestre admirável se
embebeu meticulosamente da obra dos predecessores. A sua linha evolutiva mostra o
escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo, de de nitivo, na
orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de
Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a existência dos
predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza: numa literatura em que, a cada
geração, os melhores recomeçam da capo e só os medíocres continuam o passado, ele
aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências
anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos
europeus, do seu alheamento às modas literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não
terem muitos críticos sabido onde classi cá-lo.
Antonio Candido, Formação da literatura brasileira
A história mundial não existiu sempre; a história, como história mundial, é um resultado.
Karl Marx, “Introdução”,
Fundamentos da crítica à economia política
por isso, cando sem o debate que lhes devia corresponder. Passados
quarenta anos, a ideia central de Antonio Candido mal começou a ser
discutida.
O livro vinha apoiado em superioridades palpáveis, que se
impuseram em bloco e empurraram para a sombra os detalhes. A
erudição segura, a atualização teórica, a pesquisa volumosa, a
exposição equilibrada e elegante, o juízo de gosto bem argumentado,
tudo isso estava numa escala inédita entre nós. Seja dito entre
parênteses que a passagem do tempo não tornou menos desejáveis
estas qualidades. Entretanto, há também os outros aspectos, mais
difíceis de notar e igualmente valiosos.
A título de exemplo, vale a pena estudar as relações do crítico e
historiador com seus predecessores. Nada mais educativo que ver em
conjunto os capítulos de José Veríssimo sobre o Arcadismo, na
História da literatura brasileira, e os de Antonio Candido, na
Formação: o leitor notará que as observações do primeiro são
retomadas uma a uma pelo segundo, formuladas com maior
amplitude ou equilíbrio, combinadas a informações novas, corrigidas
pelo ponto de vista atual, mas sempre aproveitadas.
A relação de continuidade, adensamento ou superação é constante,
a ponto de se tornar uma força produtiva deliberada, uma técnica de
trabalho. Lembra o que o próprio Antonio Candido notou a respeito
de Machado de Assis, que teve a capacidade de utilizar e aprofundar a
elaboração dos romancistas que o precederam, crescendo sobre os
ombros de escritores que, ao menos em parte, eram bastante
medíocres, mas cuja obra havia contribuído na transposição literária
da experiência do país.
Sirva de ilustração a mudança na gura de Cláudio Manuel da
Costa ao passar de um crítico ao outro. À maneira romântica,
Veríssimo o considerava como um tímido precursor do sentimento
brasileiro, sem a força — ainda — da cor local. Já Antonio Candido
vai valorizá-lo como o poeta que, bene ciado pelo convencionalismo
generalizante do padrão neoclássico, pôde estilizar com admirável
universalidade o tema-chave das duas delidades do letrado brasileiro,
tão apegado à rusticidade da vida local quanto à norma culta do
Ocidente. A força particularizante no caso — a capacidade de
con gurar este con ito histórico — decorreu do universalismo da
escola poética, ao contrário do que supunha a visão romântica, que aí
só enxergava fraqueza e falta de peculiaridade. Assim, a valorização
crítica do que é historicamente especí co, ensinada pelo Romantismo,
é conservada, ao passo que a condenação romântica do registro
neoclássico é questionada.
O interesse da viravolta, com seu claro acréscimo em discernimento,
que deixa para trás o pitoresquismo nacionalista sem abrir mão da
particularidade da experiência local, dispensa comentários. Os
machadianos estarão reconhecendo uma variante do famoso
“sentimento íntimo” do tempo e do país, “diverso e melhor do que se
fora apenas super cial”. Para o que nos importa aqui, é uma instância
entre muitas da produtividade ligada à veri cação crítica da tradição,
que aliás é outro nome para o valor intelectual do processo formativo
estudado por Antonio Candido.
Como estou querendo sugerir a fecundidade dessa linha de
trabalho, vamos tomar para contraste o procedimento universitário
comum. Neste, os fatos da literatura local são apanhados sem maior
disciplina histórica e revistos ou enquadrados pelos pontos de vista
prestigiosos do momento, tomados à teoria crítica internacional e a
seus pacotes conceituais. O chão social cotidiano e extrauniversitário
da elaboração intelectual, pautado por suas contradições especí cas, é
substituído pelo sistema de categorias elaborado nos programas de
pós-graduação, na maior parte norte-americanos, com brechas para
franceses, alemães e ingleses. O universalismo infuso da Teoria
Literária, que em parte nem decorre dela, mas da sua adoção acrítica
nestas e noutras plagas, cancela a construção intelectual da
experiência histórica em curso. Desaparecem, ou cam em plano
irrelevante, o juízo crítico propriamente dito e o processo efetivo de
acumulação literária e social a que as obras responderam. Não custa
insistir que estas minhas observações não são ditadas pelo
chauvinismo, mas pela atenção às consequências acarretadas pelos
diferentes recortes do objeto.
Pois bem, o conselho que se pode tirar da abordagem de Antonio
Candido — que não foi concebida em vista desta polêmica — aponta
para uma colocação diferente dos acentos. Digamos que a operação
toda é comandada pelo juízo de gosto — que não se omite —, situado
e inspirado na vida presente, mas justi cado com argumentos
estruturais, historicamente informados, em que ele se socializa. Os
conceitos das gerações anteriores, tanto os que o tempo sustentou
quanto os provincianos e fora de esquadro, fazem parte dessa
informação histórica e são levados em conta, de sorte que a sua
aferição crítica, à luz da experiência e das teorizações
contemporâneas, tem a feição (e a força) de uma autossuperação que
excede o indivíduo e se dá no âmbito da história. Em vez do
enquadramento da experiência local pelas teorias internacionais, com
o que ele implica de abdicação, unilateralidade, vida emudecida etc.,
assistimos à relativização de esquemas universalizantes, a qual por si
só é um resultado crítico de primeira ordem. A independência no caso
se deve ao discernimento formal e conceitual do crítico, mas também
expressa algo de um momento nacional favorável, em que a
experiência feita no país, bem como a pesquisa de sua consistência
interna, pareciam contar como um prisma relevante sobre as coisas,
um prisma que valia a pena objetivar e comunicar. O interesse pelo
passado sob o signo da atualidade, quer dizer, sem passadismo, havia
sido rmado fazia duas décadas por Mário de Andrade. Para o
modernista, a tarefa nacional e a nossa função “para com a
humanidade” consistiam em tradicionalizar o passado, “isto é, referi-
lo ao presente”.1 O sentido antitradicional em que usa a palavra
tradição indica as carências do país novo, denotando o ímpeto de criar
juntamente a tradição e a liberdade em relação a ela.
Em seu momento inicial, digamos que a concepção rigorosa do
objeto, com lógica interna e delimitação bem argumentada, opunha a
Formação aos repertórios e panoramas algo informes que são
tradicionais na historiogra a literária. A novidade tinha a ver com o
clima intelectual da Universidade de São Paulo dos anos 1940 e 50,
quando houve em algumas áreas da Faculdade de Filoso a um esforço
coletivo e memorável de exigência cientí ca e de re exão. Sem
prejuízo da pesquisa, os trabalhos deviam ser comandados por
problemas, a que deviam a relevância.
Como diz o título do livro, trata-se de historiar nos seus momentos
decisivos a formação de uma literatura nacional. Este último adjetivo
é bom para datar a matéria estudada, em que a literatura brasileira
está em sentido histórico, e não geográ co e anacrônico. Por motivos
que merecem análise, nós brasileiros gostamos de nos contrapor aos
portugueses, mas não ao legado colonial. Assim, temos o costume de
considerar parte direta da nação tudo o que tenha ocorrido no
território. Daí que, forçando um pouco, os índios pré-cabralinos, José
de Anchieta, Cunhambebe, Zumbi, Gregório de Matos e o padre
Vieira gurem como nossos concidadãos, numa pseudoproximidade
que engana. Num livro recente, Fernando Novais aponta o
anacronismo embutido em expressões como “Brasil Colônia” ou
“período colonial da história do Brasil”, às quais prefere “América
Portuguesa”. “Pois não podemos fazer a história desse período como
se os protagonistas que a viveram soubessem que a Colônia iria se
constituir, no século , num Estado nacional”, diz o autor.2 Cada
xix
2000 ).
9. Para uma exposição mais completa do assunto: Maria Sylvia de Carvalho Franco,
Homens livres na ordem escravocrata (São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969 [4.
ed. São Paulo: Editora Unesp, 1997]).
10. Sobre os efeitos ideológicos do latifúndio, ver Sérgio Buarque de Holanda, “A herança
rural”, capítulo iii de Raízes do Brasil, op. cit.
11. Como observa Machado de Assis, em 1879 , “o in uxo externo é que determina a
direção do movimento; não há por ora no nosso ambiente a força necessária à invenção de
doutrinas novas”. Cf. “A nova geração”, em Obra completa (Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, v.
, pp. 826-7).
iii
12. G. Lukács, “Marx und das Problem des Ideologischen Verfalls”, em Werke. Neuwied:
Luchterhand. v. 4: Probleme des Realismus.
13. Explorada em outra linha, a mesma observação encontra-se em Sérgio Buarque:
“Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e
imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o
fruto de nosso trabalho e de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução
próprio de outro clima e de outra paisagem” (op. cit., p. 15).
14. Ver o “Prospecto” de O Espelho, Revista Semanal de Literatura, Modas, Indústrias e
Artes (Rio de Janeiro, Typographia de F. de Paula Brito, n. 1, p. 1, 1859) ; “Introdução” da
Revista Fluminense, Semanário Noticioso, Literário, Cientí co, Recreativo etc. etc. (Rio de
Janeiro, ano 1, n. 1, pp. 1-2, nov. 1868) ; A Marmota na Corte (Rio de Janeiro, Typographia
de F. de Paula Brito, n. 1, p. 1, 7 set. 1840) ; Revista Ilustrada, publicada por Ângelo Agostini
(Rio de Janeiro, n. 1, 1 jan. 1876) ; “Apresentação” de O Bezouro, Folha Humorística e
Satírica (Rio de Janeiro, 1o ano, n. 1, 6 abr. ; “Cavaco”, O Cabrião (São Paulo, Typ.
1878)
Imperial, n. 1, p. 2, 1866).
15. Nestor Goulart Reis Filho, Arquitetura residencial brasileira no século xix, manuscrito,
pp. 14-5.
16. Ibid., p. 8.
17. Emília Viotti da Costa, op. cit., p. 104.
18. Jean-Michel Massa, A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: Ensaio de biogra a
intelectual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971 , pp. ,
265 435 e 568 [2. ed. rev. São
Paulo: Editora Unesp, 2009].
19. Sílvio Romero, Ensaios de crítica parlamentar. Rio de Janeiro: Moreira, Maximino &
Cia., 1883, p. 15.
20. Para as razões desta inércia, ver Celso Furtado, Formação econômica do Brasil (São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971 [Ed. comemorativa 50 anos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009]).
21. Para uma construção rigorosa de nosso problema ideológico, em linha um pouco
diversa desta, ver Paula Beiguelman, Formação política do Brasil (São Paulo: Pioneira, 1967 .
v. i: Teoria e ação no pensamento abolicionista), em que há várias citações que parecem sair
de um romance russo. Veja-se a seguinte, de Pereira Barreto: “De um lado estão os
abolicionistas, estribados sobre o sentimentalismo retórico e armados da metafísica
revolucionária, correndo após tipos abstratos para realizá-los em fórmulas sociais; de outro
estão os lavradores, mudos e humilhados, na atitude de quem se reconhece culpado ou medita
uma vingança impossível”. P. Barreto é defensor de uma agricultura cientí ca — é um
progressista do café — e neste sentido acha que a abolição deve ser efeito automático do
progresso agrícola. Além de que os negros são uma raça inferior, e é uma desgraça depender
deles (op. cit., p. 159).
22. Antonio Candido lança algumas ideias neste sentido. Procura distinguir uma linhagem
“malandra” em nossa literatura. Veja-se a sua “Dialética da malandragem”, na Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo, n. 8 , 1970 [Republicada em O discurso e a
cidade. . ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
4 2010 ]). Também os parágrafos sobre a
Antropofagia, na “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, em Vários escritos (São
Paulo: Duas Cidades, 1970, pp. 84 ss. [4. ed. Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul,
2004 ]).
alencar
1. Leia-se a este respeito o sugestivo estudo de Marlyse Meyer, “O que é, ou quem foi
Sinclair das Ilhas?”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo, n. 14, 1973).
2. Teobaldo, um americano enfático de “The Madonna of the Future” (1873): “Somos os
deserdados da arte! Estamos condenados à super cialidade, excluídos do círculo encantado!
O solo da percepção americana é um sedimento escasso, estéril, arti cial! Sim, estamos
destinados à imperfeição. Para atingir a excelência, o americano tem que aprender dez vezes
mais que o europeu. Falta-nos o sentido mais apurado. Não temos gosto, tato ou força. E
como haveríamos de ter? Nosso clima rude e mal-encarado, nosso passado silencioso, nosso
presente ensurdecedor, a pressão constante das circunstâncias desprovidas de graça — tudo é
tão sem estímulo, alimento e inspiração para o artista quanto é sem amargura o meu coração
ao dizê-lo! Nós, pobres aspirantes, deveremos viver em perpétuo exílio”, em The Complete
Tales of Henry James (Londres: Rupert Hart-Davis, 1962, v. , pp.
iii - . De volta à
14 5)
América, em visita a Boston, James anota: “Tenho 37 anos, z a minha escolha, e sabe Deus
que não tenho tempo a perder. A minha escolha é o velho mundo — minha escolha, minha
necessidade, minha vida. […] Meu trabalho está lá — je n’ai que faire neste vasto novo
mundo. Não é possível fazer as duas coisas — é preciso escolher. […] O peso é
necessariamente maior para um americano — pois ele precisa lidar, mais ou menos, e ainda
que só por implicação, com a Europa; enquanto europeu algum é obrigado a lidar sequer
minimamente com a América. Ninguém vai achá-lo menos completo por causa disso. (Falo
naturalmente de pessoas que fazem o meu tipo de trabalho; não de economistas ou do pessoal
das ciências sociais.) O pintor de costumes que não se ocupe da América não é incompleto,
por enquanto. Mas daqui a cem anos — talvez cinquenta — ele certamente o será”, em F. O.
Matthiessen e K. B. Murdock (Orgs.), The Notebooks of Henry James (Nova York: Galaxy
Book, 1961, entrada de 25 nov. 1881, pp. 23-4).
3. José de Alencar, Como e por que sou romancista, Obra completa (OC). Rio de Janeiro:
Aguilar, 1959. v. i.
4. Ibid., p. 138.
5. Antonio Candido, “Aparecimento da cção”, em Formação da literatura brasileira (São
Paulo: Martins, 1969, v. ii).
6. Cf. Afrânio Coutinho, A polêmica Alencar-Nabuco (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1965 ), especialmente as objeções de Nabuco a Diva.
7. Ver, na citada Formação da literatura brasileira, os capítulos que tratam de romance. O
seu conjunto compõe uma teoria da formação deste gênero no Brasil e pode ser lido como
uma introdução a Machado de Assis. Embora não faça parte da fase “formativa” de que trata
o livro e esteja mencionado só umas poucas vezes, Machado é uma das suas guras centrais, o
seu ponto de fuga: a tradição é considerada, ao menos em parte, com vistas ao
aproveitamento que Machado lhe dará. Para os trechos citados, ver pp. 140-2.
8. José de Alencar, Senhora, OC, v. i, pp. 958, 966, 969 e 1065-6.
9. Senhora, p. 952.
10. Obra completa, v. i, p. 699.
11. A situação é comparável à de Caetano Veloso cantando em inglês. Acusado pelos
“nacionalistas”, responde que não foi ele quem trouxe os americanos ao Brasil. Sempre quis
cantar nesta língua, que ouvia no rádio desde pequeno. E é claro que cantando inglês com
pronúncia nortista registra um momento substancial de nossa história e imaginação.
12. Comentando os hábitos de consumo no Brasil de ns de século, Warren Dean observa
que o comércio importador transformava em artigos de luxo os produtos que a
industrialização tornara correntes na Europa e nos Estados Unidos. Cf. A industrialização de
São Paulo (São Paulo: Difel, 1971, p. 13).
13. “Comparada a outras formas de representação, a multiplicidade de Balzac é a que mais
se aproxima da realidade objetiva. Contudo, quanto mais se aproxima desta, mais se afasta
da maneira habitual, cotidiana ou média de espelhá-la diretamente. De fato, o método
balzaquiano abole os limites estreitos, costumeiros, rotineiros desta reprodução imediata.
Contraria assim as facilidades habituais na maneira de considerar a realidade, e por isso
mesmo é sentido por muitos como sendo ‘exagerado’, ‘sobrecarregado’ etc. […] Aliás o seu
engenho não se limita às formulações brilhantes e picantes; antes manifesta-se na revelação
bem marcada do essencial, na tensão extrema dos elementos contrários que o compõem.” G.
Lukács, Balzac und der Französische Realismus, em Werke (Berlim; Neuwied: Luchterhand,
1965 , v. vi, p. 483).
14. J.-P. Sartre, “Qu’est-ce que la Littérature?”, em Situations, ii (Paris: Gallimard, 1948 ,
pp. 176 ss.). Para um condensado cômico dos tiques balzaquianos, ver a incomparável
imitação que deles faz Proust em Pastiches et mélanges. O aspecto desfrutável e sedativo das
generalizações de Balzac é mencionado por Walter Benjamin, no estudo sobre o Flâneur, em
Charles Baudelaire: Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus (Frankfurt: Suhrkamp,
1969 , pp. 39-40).
15. Expressão de Althusser, mas com outra loso a.
16. Para exemplo leiam-se as páginas de Lukács sobre o papel do Romantismo no romance
realista. Sendo uma ideologia espontânea do inconformismo anticapitalista do século xix ,a
visão romântica era matéria de romance por assim dizer obrigatória; ideologia de personagens
e clima literário, que o enredo destroça. Cf. G. Lukács, “Balzac als Kritiker Stendhals”
[1935], em Werke, op. cit.
17. “É somente com o século xviii e na ‘sociedade burguesa’ que as diferentes formas do
relacionamento social se deparam ao indivíduo como sendo simples instrumentos para a
consecução de suas nalidades privadas e como necessidade externa.” K. Marx, “Einleitung”,
em Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie (Frankfurt: Europaeische Verlagsanstalt,
s.d., p. . Cf. também G. Lukács, Die Theorie des Romans (Neuwied: Luchterhand,
6) 1962 )e
Geschichte und Klassenbewusstsein, em Werke (Berlim; Neuwied: Luchterhand, 1965 , v. ,
ii
cap. 4); Lucien Goldmann, Pour une Sociologie du roman (Paris: Gallimard, 1964).
18. Senhora, pp. 1026 e 1028-9.
19. Ibid., p. 1038.
20. Para a construção do contraste entre narrativa pré-capitalista e romance — feita sobre o
fundo da transição do artesanato à produção industrial, transição que não é a brasileira —,
veja-se o admirável ensaio de Walter Benjamin sobre o narrador, em Schriften (Frankfurt:
Suhrkamp, 1955 , v. . Idealmente e arriscando, digamos que o “causo” submete à
ii)
as nossas elites punham-se em dia com o sentimento que manda desesperar da civilização. É o
que se chama ser um jovem país. Daí a superposição tão esquisita em Iracema, de poesia da
distância, que doura de romantismo os nomes índios e os acidentes geográ cos, e de intenção
propriamente informativa e propagandística — superposição que dá margem a uma zona de
indiferença entre literatura e ufanismo, ou nostalgia e cartão-postal, combinação recuperada
em veia humorística, e só então verdadeira, na poesia inicial dos modernistas. Em versão
ignóbil, pois destituída de ingenuidade, a confusão de paraíso e país empírico — a “mentirada
gentil” de que falava Mário de Andrade — hoje alimenta a propaganda o cial. — Seja como
for, o sopro da meditação romântica chegou também até o romance realista, embora diluído
pela prosa extensa e contrariado pelo assunto mundano. Em lugar da natureza e do vilarejo, a
totalidade desenvolvida do mundo social: para oferecer o equivalente da plenitude
contemplativa do poeta, o romancista obriga-se a fundir em sua prosa a necessária massa de
conhecimentos factuais, a sua elaboração analítica e crítica, e nalmente o movimento
desimpedido da re exão — síntese que contraria em tudo a tendência do século, em que os
três quesitos brigavam entre si, como continuam brigando. Ainda uma vez o exemplo será
Balzac. A sua postura visionária, ensaiada e nem sempre convincente, apresenta-se como a
faculdade “genial” de abarcar numa só mirada do espírito a França do capital; de auscultar-
lhe o movimento complexo a partir de qualquer detalhe sugestivo, de fantasiar livremente a
seu respeito, sem prejuízo de sempre dizer verdades raras, nais, originais etc. A natureza do
assunto, contudo, atrapalha: a intimidade re exiva com o mundo burguês só a custo sustenta
um clima de meditação — transações não são paisagens nem destinos —, donde a ocasional
impressão de que o titanismo visionário de Balzac é também um descomunal impulso
fofoqueiro. Alencar, que procura a mesma atmosfera, tem bons resultados quando é
retrospectivo: deixando suspenso o con ito de primeiro plano (em que não é feliz), volta atrás
para traçar, das origens, a história de um de seus elementos, o que faz com olho seguro,
interessante e econômico, e também poético. Vejam-se, além da história prévia de Aurélia, a
de Seixas e o cap. 10 , parte i, de O tronco do ipê. Breve e informativo por de nição, o
retrospecto limita a re exão ideológica da personagem ou do narrador — que prejudica o
romance urbano e problemático — e as aventuras descabeladas — que prejudicam os livros
mais aventurosos. É realista por de nição: a sua regra é o encadeamento claro e sugestivo dos
atos, com vistas à situação que estivera na origem do ashback. Resulta uma guração mais
tranquila, interessada na descrição, e não na crítica, das forças que irão pesar. É uma solução
em que brilham o talento mimético, a cultura brasileira e a visão de conjunto de Alencar, ao
mesmo tempo que se minimizam os efeitos desencontrados de nossa vida ideológica. Recurso
ocasional em Senhora, este andamento é central em Til e O tronco do ipê, os romances
alencarinos da fazenda. São livros de intriga abstrusa, ligada a uma noção subliterária do
destino e da expiação das culpas, noção que no entanto vem aligeirar-lhes a prosa, à maneira
do que vimos para o ashback. Em lugar da complexidade analítica dos problemas, a força
do destino. Nos dois casos trata-se de ricos fazendeiros, que deverão pagar em detalhe os
esquecidos malfeitos da juventude. No entanto, quando sobe à cena e se abate sobre os
mortais, o peso de sua culpa coincide em larga medida — e vantajosamente — com o peso do
passado, com o encadeamento e a purgação dos antagonismos objetivos do mundo da
fazenda: lhos ilegítimos, escravos enlouquecidos de pavor, propriedades subtraídas, capangas
e assassinatos, incêndios, superstição, levantes na senzala etc. Leiam-se, em Til, os capítulos
em volta do incêndio (parte iv , caps. ), para ter ideia da força e amplitude deste
i-ix
movimento. É aliás na unidade de fôlego de sequências longas e variadas, como esta a que nos
referimos, que se atesta a força romântica, “subjetiva”, do narrador. É aí também, na presteza
com que lhe acodem as palavras e as imagens — presteza de que nem sempre o bestialógico
está ausente —, que a dicção de Alencar converge com a fala comum, pré-literária. O
andamento novelesco, por sua vez, decompõe-se em episódios breves, compatíveis com a
narrativa de tradição popular. A mim, em matéria do que poderia ter sido, parece que são
estes dois os seus melhores livros.
21. Senhora, p. 1203.
22. Obra completa, v. i, p. 650.
23. Ibid., pp. 608 e 652.
24. Expressão e problema são sugestões de Alexandre Eulalio, que vê a dicção de Alencar
como um rearranjo da prosa jurídico-política dos grêmios estudantis paulistanos, a qual não
deixaria nunca de vincar a sua prosa de cção.
25. Em nota anexa a Senhora, p. 1213.
26. Senhora, p. 955.
27. Ibid., p. 959
28. Ibid., p. 968.
29. Ibid., p. 1054.
30. Diva, p. 527.
31. A pata da gazela, p. 609.
32. Gilberto Freyre registra o problema, com nura quanto à sua permanência, com
cegueira de classe quanto às suas di culdades, e sobretudo sem o menor distanciamento — a
despeito dos quase cem anos que se passaram: “De modo que precisamos estar atentos a essa
contradição de Alencar: o seu modernismo antipatriarcal — nuns pontos inclusive o desejo de
‘certa emancipação da mulher’ — e o seu tradicionalismo noutros pontos: inclusive no gosto
pela gura castiçamente brasileira da sinhazinha de casa-grande patriarcal”. “É como se
Alencar, através dessa Alice ao mesmo tempo tradicionalista e modernista, familista e
individualista, tivesse se antecipado à tentativa de renovação da cultura brasileira sobre base
ao mesmo tempo modernista e tradicionalista que foi, em nossos dias, o Movimento
Regionalista do Recife, ao lado do mais grandioso Modernismo de São Paulo, do qual
também uma ala se esforçou pela combinação daqueles contrários.” G. Freyre, José de
Alencar. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951 , pp. 15 e 27-8. (Os Cadernos
de Cultura.)
33. Com intenção contrária, Paul Bourget faz a mesma observação: “Lendo os seus livros,
sente-se uma estima singular por este nobre espírito, que, dado embora às audácias da análise
e às curiosidades perigosas, soube guardar o culto do cavalheiresco, da mulher e do amor”.
Cf. Pages de critique et de doctrine (Paris: Plon, ), p.
1912 113. Impressionado talvez com a
Comuna de Paris, Dumas Filho é mais direto: “Foi-se o tempo de ser espirituoso, ameno,
libertino, sarcástico, cético e fantasioso; não é hora para isso. Deus, a natureza, o trabalho, o
casamento, o amor, a criança, são coisas sérias”. Prefácio de La Femme de Claude, citado em
H. S. Gershman e K. B. Whitworth Jr. (Orgs.), Anthologie des préfaces de romans français du
xix siècle (Paris: Julliard, 1964, p. 325).
34. A distinção entre conformismo e conciliação em Alencar me foi feita por Clara Alvim.
35. Antonio Candido, “Crítica e sociologia”, em Literatura e sociedade. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1965, pp. 6-7.
36. Senhora, p. 954.
37. Ibid., pp. 1028 e 1044.
38. Ibid., p. 955.
1. Alfredo Pujol, Machado de Assis. São Paulo: Typographia Levi, 1917, p. 240.
2. Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis. Berkeley: University of
California Press, 1960.
3. John Gledson, The Deceptive Realism of Machado de Assis. Liverpool: Francis Cairms,
1984 .
4. James fala inúmeras vezes de sua preferência pela combinação da anedota interessante
com um ângulo de observação limitado, cuja componente pessoal pode mas não precisa estar
explícita. Ver, por exemplo, os prefácios a The Golden Bowl e a The Ambassadors, em The
Art of the Novel (Nova York: Charles Scribner, 1937).
5. John Gledson, op. cit., capítulo introdutório.
6. Antonio Candido, “Uma literatura empenhada”, em Formação da literatura brasileira.
São Paulo: Martins, 1969, v. i.
7. “Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a
impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de
Dom Casmuro.” Silviano Santiago, “Retórica da verossimilhança”, em Uma literatura nos
trópicos. São Paulo: Perspectiva, , p.
1978 . Silviano detecta os recursos intelectuais do ex-
32
uma ação política e caz reside na destruição de seus mecanismos de defesa, de todas as suas
justi cações maniqueístas e historicistas (incluso quando elas se apoiam em Gramsci, Lukács e
outros). Trata-se de pô-lo em seu lugar, de reduzi-lo a zero. O público representa uma ala
mais ou menos privilegiada deste país, a ala que se bene cia, ainda que mediocremente, de
toda a falta de história e de toda a estagnação deste gigante adormecido que é o Brasil. O
teatro tem necessidade hoje de desmisti car, de colocar este público em seu estado original,
frente a frente com a sua grande miséria, a miséria do pequeno privilégio obtido em troca de
tantas concessões, tantos oportunismos, tantas castrações, tantos recalques, em troca de toda
a miséria de um povo. O que importa é deixar este público em estado de nudez total, sem
defesa, e incitá-lo à iniciativa, à criação de um caminho novo, inédito, fora de todos os
oportunismos estabelecidos (que sejam ou não batizados de marxistas). A e cácia política que
se pode esperar do teatro no que diz respeito a este setor (pequena burguesia) só pode estar na
capacidade de ajudar as pessoas a compreender a necessidade da iniciativa individual, a
iniciativa que levará cada qual a jogar a sua própria pedra contra o absurdo brasileiro” (p.
70). “Em relação a este público, que não vai se manifestar enquanto classe, a e cácia política
de uma peça mede-se menos pela justeza de um critério sociológico dado que pelo seu nível de
agressividade. Entre nós, nada se faz com liberdade, e a culpa no caso não é só da censura”
(p. 72).
12. Pessach, a travessia, romance de Carlos Heitor Cony (1967); Quarup, romance de
Antonio Callado (1967); Terra em transe, lme de Glauber Rocha (1967); O desa o, lme de
Paulo Cesar Saraceni (1965). É interessante notar que o enredo da conversão resulta mais
político e artisticamente limpo se o seu centro não é o intelectual, mas o soldado e o
camponês, como em Os fuzis, de Ruy Guerra (1964), Deus e o diabo na terra do sol (1964),
de Glauber Rocha, ou Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Nestes casos, a
desproporção fantasmal das crises morais ca objetivada ou desaparece, impedindo a trama
de emaranhar-se no inessencial.
13. O Pasquim não foi fechado. Fica o erro sem corrigir, em homenagem aos numerosos
falsos alarmes que atormentavam o cotidiano da época.
14. Título de um livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade.
1. Caetano Veloso, Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
2. Ibid., p. 19.
3. Ibid., p. 430.
4. Para os anos 1920 , José Miguel Wisnik, “Getúlio da Paixão Cearense”, em Enio Sque e
José Miguel Wisnik, Música (São Paulo: Brasiliense, 1982) ; Davi Arrigucci Jr., “Presença
ausente”, em Humildade, paixão e morte: A poesia de Manuel Bandeira (São Paulo:
Companhia das Letras, 1990 ;) Humberto Werneck, Santo sujo: A vida de Jayme Ovalle (São
Paulo: Cosac Naify, 2008) . Para a bossa nova, Ruy Castro, Chega de saudade (São Paulo:
Companhia das Letras, 1990) ; Lorenzo Mammi, “João Gilberto e a bossa nova” (Novos
Estudos Cebrap, n. , nov.
34 1992) ; Caetano Veloso, “Elvis e Marilyn”, em Verdade tropical,
op. cit.; Walter Garcia, Bim bom: A contradição sem con ito de João Gilberto (São Paulo:
Paz e Terra, 1999) . Para 1964 , Roberto Schwarz, “Cultura e política -
1964 1969”, em O pai
de família (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978).
5. Caetano Veloso, op. cit., p. 19.
6. Ibid., p. 23.
7. Ibid., p. 24.
8. Ibid., pp. 23-4.
9. Caetano refere-se a Juracy Magalhães, o ministro da ditadura, segundo o qual “o que é
bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Ibid., p. 52.
10. Ibid., p. 57.
11. Ibid., p. 29
12. Ibid., pp. 31-2.
13. Ibid., p. 58.
14. Ibid., pp. 63-4.
15. Ibid., p. 28.
16. Ibid., p. 263.
17. Ibid., p. 15.
18. Ibid., p. 63.
19. Ibid., p. 156.
20. Ibid., p. 183.
21. Ibid., p. 101.
22. Ibid., p. 254.
23. Ibid., pp. 254-5.
24. Ibid., p. 255.
25. Ibid., p. 254.
26. Ibid., pp. 35-6.
27. Ibid., p. 502.
28. Ibid., pp. 35-6.
29. Ibid., pp. 52-3.
30. Ibid., p. 277.
31. Ibid., p. 177.
32. Para uma ótima análise da gura de Paulo Martins, ver Ismail Xavier, “O intelectual
fora do centro”, em Alegorias do subdesenvolvimento (São Paulo: Brasiliense, 1993).
33. Caetano Veloso, op. cit., pp. 104-5.
34. Ibid., p. 116.
35. Carlos Drummond de Andrade, “O operário no mar”, em Sentimento do mundo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
36. Nicholas Brown, Utopian Generations. Princeton: Princeton University Press, , pp.
2005
- .
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1. Para uma análise mais pormenorizada, ver Roberto Schwarz, “O paternalismo e a sua
racionalização nos primeiros romances de Machado de Assis”, em Ao vencedor as batatas
(São Paulo: Duas Cidades, 1977; 5. ed., São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000).
2. Machado de Assis, Iaiá Garcia, em Obras completas (Rio de Janeiro: Aguilar, 1959 , v. i,
p. 315).
3. Ibid., p. 406.
4. Ibid., p. 402.
5. Id., Memórias póstumas de Brás Cubas, oc, p. 109.
6. Alfredo Bosi refere-se ao “tom pseudoconformista, na verdade escarninho, com que [o
narrador] discorre sobre a normalidade burguesa”. Cf. “A máscara e a fenda”, em A. Bosi et
al., Machado de Assis (São Paulo: Ática, 1982, p. 457).
7. “O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em
cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções
tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal. […] o folhetim nasceu do
jornal, o folhetinista por consequência do jornalista. Esta íntima a nidade é que desenha as
saliências sionômicas na moderna criação. O folhetinista é a fusão admirável do útil e do
fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos,
arredados como polos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na
organização do novo animal.” Machado de Assis, “O folhetinista” (1859), oc, v. , p.
iii 968 .
O tema está exposto de maneira ampla e documentada em Marlyse Meyer, “Voláteis e
versáteis, de variedades e folhetins se fez a crônica”, xerox, 1987 (incluído em Folhetim: uma
história [São Paulo: Companhia das Letras, 1996]).
8. A crônica de jornal como lugar de encontro entre modernização e tradição foi estudada
por Davi Arrigucci Jr. “Fragmentos sobre a crônica”, em Enigma e comentário (São Paulo:
Companhia das Letras, 1987).
9. Roberto Schwarz, “A importação do romance e suas contradições em Alencar”, em Ao
vencedor as batatas, op. cit.
10. Joaquim Manuel de Macedo, O moço loiro. S.l.: Ediouro, s.d., p. 33.
11. Ver a respeito as numerosas observações de Vilma Arêas em Na tapera de Santa Cruz
(São Paulo: Martins Fontes, 1987).
12. Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, em O discurso e a cidade (São Paulo:
Duas Cidades, 1993, pp. 47-54).
13. Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro, 1962, pp. 7-8.
14. Antonio Candido, op. cit., p. 53.
15. A propósito de um conto de Machado, “O diplomático”, Vinicius Dantas estudou as
continuidades e diferenças entre a prosa machadiana da maturidade e a comicidade
popularesca dos anos 1830 e 1840, cultivada na imprensa. “O narrador cronista e o narrador
contista”, trabalho de aproveitamento, Unicamp, 1984.
16. “Se não cursaste a retórica/ Do no professor Satã/ Joga fora este livro! Não entenderás
nada/ E me acreditarias histérico.” Charles Baudelaire, “Epígrafe para um livro condenado”.
Os versos são dirigidos ao “Leitor pacato e bucólico,/ Sóbrio e ingênuo homem de bem”.
um seminário de marx
1. Paulo E. Arantes, Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz e Terra, 1994 ,
cap. 5.
2. Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, “Plano piloto para poesia
concreta” (1958), em Teoria da poesia concreta. São Paulo: Ed. Invenção, 1965, p. 156.
3. Leia-se a respeito a reconstituição interessante de Daniel Pécaut, Os intelectuais e a
política no Brasil (São Paulo: Ática, 1990).
4. Antonio Candido, “Entrevista”, em Brigada ligeira e outros estudos. São Paulo: Unesp,
1992 , pp. 233-5.
5. “Contra Althusser”. Teoria e Prática, São Paulo, n. 3, abr. ; retomado em J. A.
1968
1. Mário de Andrade, “Assim falou o papa do futurismo” (1925), em Telê Ancona Lopez
(org.), Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, pp. 18-9.
2. Fernando A. Novais, “Condições da privacidade na Colônia”, em Laura de Mello e
Souza (org.). História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 17. v. 1.
3. Haroldo de Campos, O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: O
caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.
4. Ibid., p. 12.
5. Ibid., pp. 12-5.
Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.
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tradução da introdução
preparação
Leny Cordeiro
revisão
Clara Diament
Ana Maria Barbosa
versão digital
Rafael Alt
isbn 978-85-8285-182-1