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Essencial Roberto Schwarz

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário

Sobre o autor
Introdução— Franco Moretti
Nota sobre os textos

ESSENCIAL ROBERTO SCHWARZ

As ideias fora do lugar


A importação do romance e suas contradições em Alencar
A poesia envenenada de Dom Casmurro
Cultura e política, 1964-1969
Cuidado com as ideologias alienígenas (Respostas a Movimento)
A carroça, o bonde e o poeta modernista
Na periferia do capitalismo (Entrevista)
Verdade tropical: Um percurso de nosso tempo
Acumulação literária e nação periférica
Um seminário de Marx
Os sete fôlegos de um livro
8½ de Fellini

Notas
Créditos
ESSENCIAL ROBERTO SCHWARZ

roberto schwarz nasceu em Viena, na Áustria, em . Graduado


1938

em ciências sociais pela usp , fez mestrado na Universidade Yale e


doutorado na Universidade de Paris , Sorbonne. Ensinou teoria
iii

literária na usp e na Unicamp. Dele, a Companhia das Letras


publicou, entre outros, Duas meninas (1990), Sequências brasileiras
(1999) e Martinha versus Lucrécia (2012), além da coletânea Um
crítico na periferia do capitalismo (2007), com textos de autores
brasileiros e estrangeiros sobre sua trajetória. É um dos críticos
brasileiros mais estudados no exterior.

franco moretti nasceu em Sondrio, na Itália, em 1950. Considerado


um dos mais importantes nomes da teoria e crítica literária, Moretti
teve sua obra traduzida para mais de vinte línguas. Entre seus livros
mais importantes estão O romance de formação (1986), The Modern
Epic: The World-System from Goethe to García Márquez (1996) e
Atlas do romance europeu (1997), além da ambiciosa série que
coordenou sobre o gênero romanesco, A cultura do romance (2001). É
professor emérito da Universidade Stanford e leciona na École
Polytechnique Fédérale de Lausanne.
Introdução

Uma intuição nova


franco moretti

sobre a crítica de roberto schwarz

O crítico “enxerga o destino nas formas”, escreveu Lukács em 1910:


“a forma é sua grande vivência”.1 Ele pensava em Roberto Schwarz.
“A explicação do propósito da vida de d. Plácida tem a brevidade
sintética do conto losó co setecentista”,2 escreve Schwarz em Um
mestre na periferia do capitalismo, seu estudo sobre Memórias
póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. E continua: “mas
abarcando a esfera de fatalidades maciças circunscrita pelo
naturalismo oitocentista, sem esquecer que a sua frieza analítica —
universalista e clássica pelo estilo — tem um quê trocista e amalucado,
que serve de cor local brasileira na caracterização de classe de Brás
Cubas”.3 Conto losó co, naturalismo, frieza clássica, cor local… Em
outro ponto do Mestre, os termos são “conversa de tico-tico”,
“opereta”, “chalaça”; na resenha de Schwarz acerca de Cidade de
Deus, de Paulo Lins, são “as grandes produções de cinema sobre o
gangsterismo”; em seu ensaio sobre A Santa Joana dos Matadouros,
de Brecht, são “arabesco e variação abstrata”,4 e assim por diante.
Geralmente, abrimos um livro e vemos palavras em uma página;
Schwarz vê formas — muitas vezes mais de uma, que caminham em
direções opostas (“a conversa miúda e as grandes abstrações formam
na prosa machadiana uma inseparável dupla de comédia, como o
Gordo e o Magro do cinema”).5 Pensemos no lema de Cézanne,
recentemente trazido à tona por T. J. Clark (outro crítico que vê o
destino nas formas): “Je vois, par taches”.6 Eu vejo por retalhos, por
manchas, ou pinceladas, ou pequenos pontos; eu vejo por meio de
partículas elementares a serem especi cadas — novamente, no Mestre:
“a sublimação da chalaça”, “feição barateada, com alguma coisa de
opereta” — com precisão tão despretensiosa quanto rme.7
Por outro lado, a gura sobre a qual Schwarz escreveu amiúde é
cheia de pretensão: o narrador-protagonista de Machado, que
caracteristicamente “não permanece igual a si mesmo por mais de um
curto parágrafo, ou melhor, muda de opinião, de assunto ou de estilo
quase que a cada frase”.8 Essa volubilidade — a propensão de ir e vir
daqui pra lá e de lá pra cá — não é, no entanto, uma fraqueza, mas
uma maneira esperta e cínica de personi car com absoluta
impunidade os vários papéis disponíveis para a classe dominante
brasileira, “entre o envolvimento paternalista e a indiferença
burguesa, ou, de modo análogo, entre um liberalismo ilustrado e cheio
de boas intenções e a autoridade aviltante e sem limites de um chefe de
clientela ou de um dono de escravos”.9 O resultado é o “enredo
errático e frouxo” dos romances maduros de Machado, cuja
segmentação radical — 160 capítulos em Memórias póstumas de Brás
Cubas, 148 em Dom Casmurro, 201 em Quincas Borba (em média,
cada um com cerca de uma página) — multiplica ad in nitum as
possibilidades de injustiça caprichosa.10 Trata-se de um exemplo
perfeito da ideia de forma de Schwarz: “a) como regra de composição
da narrativa, e b) como estilização de uma conduta própria à classe
dominante brasileira”.11 Uma forma de enredo especí ca como
estilização de uma conduta especí ca de classe. Se alguém se perguntar
como deve ser a análise marxista de uma narrativa, Um mestre na
periferia do capitalismo é a resposta.

abstrato das relações sociais

Schwarz lê um romance e vê formas; e, dentro das formas, vê


classes.12 Estilo e enredo se somam a uma gramática social que
permeia, como em Simmel ou Go man, todos os tipos de relações
cotidianas. De um lado estão as ações de “chefes ou herdeiros de certo
tipo brasileiro de família extensa

a quem os dependentes — assim como os escravos — deviam obediência e delidade. Como


esses papéis se alternavam de acordo com a conveniência momentânea dos ricos, num
vaivém dos mais peculiares, os dependentes cavam aturdidos. Do ponto de vista destes,
não havia como prever se estavam prestando seu respeito lial a) a um padrinho ou
protetor generoso, numa relação de reciprocidade; b) a uma gura de autoridade, que os
brutalizaria; ou c) a uma pessoa de posses moderna, a quem eles seriam completamente
indiferentes e que os trataria como estranhos.13

Padrinho, protetor, autoridade, proprietário moderno: todos estão


no topo da pirâmide. No extremo oposto — em uma situação colonial
ou pós-colonial, os estratos médios da sociedade costumam ter pouco
peso — há três guras subjugadas caracteristicamente brasileiras: os
escravizados, cujo principal papel narrativo consiste em “especi car
aspectos nefastos da classe dominante”; os pobres, para quem uma
“vida honesta e independente” torna-se impossível, e acabam por
viver “ao deus-dará”; e o agregado, ou “dependente”, cuja vida
menos difícil que a dos demais, mas intensamente dominada pelo
“favor”, oferece, por sua vez, a “caricatura” do “homem livre”.14
Um mundo pautado por crueldade, arbítrio e favor: estamos diante,
nas palavras de Antonio Candido, professor de Schwarz, da “redução
estrutural de um movimento que a circunstância histórica impunha
[…] à camada dominante brasileira”.15 “Trata-se da imitação de uma
estrutura histórica por uma estrutura literária”, retoma Schwarz em
um ensaio sobre o trabalho de Candido, cujo título, “Forma
objetiva”, esclarece qual é o aspecto central das convenções literárias
para o crítico.16 “Passando a pressuposto sociológico uma parte das
condições históricas originais reaparece, com sua mesma lógica, mas
agora no plano da cção e como resultado formal”, acrescenta em “A
importação do romance e suas contradições em Alencar”; “Neste
sentido, formas são o abstrato de relações sociais determinadas”.17
Um abstrato de relações sociais. Reconhecer a natureza de classe de
artifícios especí cos não é o su ciente: pretende-se apreender a
natureza estrutural da obra machadiana. Os romances são como
modelos: simpli cados, “reduzidos” — e justamente por isso capazes
de revelar padrões sociais subjacentes. “[…] em vez de elementos de
identi cação, Machado buscava relações e formas. A feição nacional
destas é profunda, sem ser óbvia.”18 Profundo, mas não óbvio: em
crítica literária, geralmente tal formulação atua como um prólogo à
metafísica. Aqui, trata-se do oposto. Como resultado dos
ensinamentos de Candido, Schwarz a rma na sóbria e comovente
homenagem escrita por ocasião de sua morte que

o juízo de gosto teria de mudar de base: deixava de argumentar apenas em termos de


cultura geral para apoiar-se também nas novas ciências humanas. A ligação do debate ao
dínamo da pesquisa acadêmica, com suas várias frentes em evolução, produzia um estilo
novo de raciocínio estético, mais a m com os requisitos intelectuais do tempo.19

Novas ciências humanas: lembremo-nos de outra importante


experiência de aprendizado de Schwarz, o seminário sobre O capital
que ocorreu na Faculdade de Filoso a, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo a partir de 1958 . No seminário, muitas
disciplinas foram abordadas — economia (Paul Singer), sociologia
(Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Bola , Michael
Löwy), ciência política (Francisco We ort), antropologia (Ruth
Cardoso), história (Fernando Novais), loso a (José Giannotti, Bento
Prado Jr.). Schwarz parece ter sido o único integrante com interesses
estéticos, mas as descobertas do grupo — “uma ideia que não é
exagero chamar uma intuição nova do Brasil” —20 mostraram-se tão
férteis para o estudo de Machado de Assis quanto para o Rio Grande
do Sul.

fraturas na forma

Frequentemente críticos marxistas têm escolhido autores especí cos


como um modo de conferir unidade ao cenário heterogêneo da
história: Lukács o fez com Lênin e o jovem Hegel, Benjamin com
Baudelaire, Sartre com Mallarmé, Genet e Flaubert, Adorno com
Wagner e Mahler, Thompson com Morris, Jameson com Sartre e
Wyndham Lewis, T. J. Clark com Courbet e Picasso… Às vezes, o
alinhamento entre o micro e o macro permanece opaco (a nal, o que
Mahler representa?), instável (a hesitação de Benjamin entre
Baudelaire e Paris como foco nas Passagens), ou bizarramente
desequilibrado (o oceânico O idiota da família). Mas com Machado
realmente dá certo.
Machado, isto é, o Brasil, capturado no momento de sua de nitiva
inserção no mundo moderno, criou a condição objetiva para uma
mudança maior de direção; uma conjuntura crítica comparável à
situação em que Goethe e Púchkin trabalharam. Aproximando-nos da
época de Machado, a conjuntura é comparável à das Filipinas de
Rizal, da Índia de Tagore ou do Japão de Soseki. Era, para falar com a
obra-prima de Candido,21 um momento decisivo da história brasileira:
decisivo, mas não porque tenha inaugurado uma nova ordem de
coisas, mas porque chancelou um pacto de nitivo entre o atraso e o
progresso, personi cando-o em uma classe dominante que se queria
“parte do Ocidente progressista e culto” enquanto mantinha “o
último ou penúltimo grande sistema escravocrata do mesmo
Ocidente”.22 Aqui, os resultados do seminário sobre O capital foram
cruciais:

O grupo chegara à audaciosa conclusão de que as marcas clássicas do atraso brasileiro não
deviam ser consideradas como arcaísmo residual, e sim como parte integrante da
reprodução da sociedade moderna […] a ligação do país à ordem revolucionada do capital
e das liberdades civis não só não mudava os modos atrasados de produzir, como os
con rmava e promovia na prática.23

A ordem revolucionada do capital reforçando meios de produção


atrasados. Nesse estado de coisas — em que “a harmonia deste
sistema parece exigir e reproduzir desigualdades e alienações de toda
espécie” —, uma mistura mórbida entre atraso e progresso introduz
em todos os aspectos da existência uma peculiar “má-formação
nacional”.24 “Nada é mais brasileiro que esta literatura mal
resolvida”,25 escreve Schwarz em outro texto, e expressões análogas
— desajuste, desacordo entre a forma e a matéria, esquisitices
nacionais, ideias fora do lugar, romances enjoativos apesar do
engenho, inviabilidade literária, efeito dissonante da construção, ideias
que entre nós são diferentes —26 acabam por compor um dos campos
semânticos mais característicos de seu trabalho.
Característicos e dinâmicos: “aos olhos do crítico dialético a fratura
da forma aponta para impasses históricos”, escreve Schwarz,
encaminhando-se para o m do Mestre: “as fraquezas artísticas de
uma obra […] deixam de remeter a limitações do autor, para
indicarem impossibilidades objetivas, cujo fundamento é social”. Se a
forma é objetiva, suas ssuras também o são, e reconhecer as
limitações que o mundo capitalista impõe ao desenvolvimento da
imaginação (e a muitos outros aspectos, é claro) torna-se o primeiro
passo na análise. Mas não o último: em alguns casos bem-sucedidos, o
“desacordo entre forma e matéria” da literatura mal resolvida pode se
tornar “fermento artístico e de conhecimento”.27 A progressão “do
re exo involuntário à elaboração re exiva, da incongruência para a
verdade artística”28 foi, de fato, a grande conquista da literatura russa
do século xix. “A psicologia do egoísmo racional, assim como a moral
formalista”, observa Schwarz em uma passagem célebre de “As ideias
fora do lugar”, “faziam no Império Russo efeito de uma ideologia
‘estrangeira’, e portanto localizada e relativa. De dentro de seu atraso
histórico, o país impunha ao romance burguês um quadro mais
complexo.”29
De dentro de seu atraso histórico, um romance mais complexo: um
paradoxo so sticado. Mas como a passagem da incongruência para a
verdade artística ocorre concretamente?

forma ostensiva

A cumplicidade inescrupulosa entre atraso e progresso não é,


obviamente, o único resultado possível do desenvolvimento desigual e
combinado: a nal, as mais memoráveis exposições do conceito — os
escritos de Trótski sobre a Revolução Russa e sobre o nal da década
de 1920 na China — indicam o oposto. No Brasil dos anos 1960 , “a
aliança de vanguarda estética e cultura popular meio iletrada”
engendrou um eco tardio dessas con gurações iniciais explosivas:

Estimulada pelo avanço da luta de classes e do terceiro-mundismo […] a experimentação


avançada com as formas tornava-se parte e metáfora da transformação social iminente […].
Caetano possui como poucos a capacidade de caracterizar artistas e obras. Espalhados pelo
livro [Verdade tropical, de autoria de Caetano] e apimentados pela rivalidade, os retratos de
Maria Bethânia, Nara Leão, Elis Regina, Glauber Rocha, Chico Buarque, Raul Seixas,
Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Augusto Boal, Augusto de Campos, Geraldo Vandré e outros
formam uma excelente galeria contemporânea.30

O golpe militar de 1964 cortou esse panorama vívido, forçando o


próprio Schwarz a se exilar. Mas uma lição sobreviveu: durante esse
período, a “vida artística desvestia o seu aspecto esotérico e mostrava
ser o que é de fato, uma tentativa imaginária de intervenção”.31 A
imaginação como intervenção na realidade social — trata-se do outro
polo da pesquisa estética de Schwarz: Brecht, com sua plateia ideal,
“de caráter proletário, amiga […] do espírito crítico”, uma
“assembleia de transformadores do mundo”. Eis como Santa Joana
dos Matadouros, que foi ao ar pela primeira vez na rádio alemã em
1932 , se dirigiu à assembleia:

Em vez de fazer tábula rasa do passado, Brecht, cuja posição a respeito era própria, tratou
de montar uma antologia estratégica de textos máximos da tradição, a que as falas das
personagens aludem sistematicamente […]. Apoiado em seus dons excepcionais de
pastichador, expunha as peripécias da luta de classes e os cálculos do cartel dos enlatados
— a matéria nova — em versos imitados de Schiller, de Hölderlin, do segundo Fausto, da
poesia expressionista, ou também dos trágicos gregos, vistos como alemães honoris causa.
Os recursos literários mais celebrados da literatura nacional, ou, por extensão, o melhor e o
mais sublime da cultura burguesa, contracenavam de perto com a crise econômica. […]
Embora tenha algo de receita, o acoplamento de pastiches lírico- losó cos às brutalidades
da competição econômica e do antagonismo de classe compõe um dispositivo de grande
alcance […]. A fórmula evita a segregação cultural em que se via fechada a experiência
proletária, além de dar expressão ao desencontro, a superar, entre excelência cultural e
ponto de vista operário.32

Segundo Franco Fortini, o legado utópico de Lukács residia na


tentativa de levar Goethe para os soldados do Exército Vermelho. A
leitura que Schwarz faz de Brecht é similar, assim como a sua
insistência a respeito do signi cado político dos romances de
Machado de Assis. (A proximidade entre Brecht e Machado parece
estranha, e de fato é estranha, e por isso mesmo tão poderosa.)
Normalmente, estética e política se encontram em um detalhe formal,
o que se relaciona, mais uma vez, com o narrador machadiano.
Enquanto nos romances iniciais essa gura foi elaborada para se
solidarizar com as vítimas da estrutura de classes brasileira,

em algum ponto, tendo decidido que essa tarefa era impossível — um julgamento histórico
importante —, Machado abandonou a fórmula de seus romances anteriores […]. Em vez de
tomar o partido dos fracos, cujas solicitações não levavam a nada, ele inventou um
narrador que não apenas apoiava a injustiça social e seus bene ciários, mas também
celebrava ostensivamente o fato de pertencer a seu grupo.33
Ostensivamente. Segundo as crônicas da época, na première da
Ópera dos três vinténs os espectadores permaneceram tranquilos até
que o gângster Macheath e o chefe de polícia Jack Tiger Brown
entoassem juntos a Kanonensong, com sua ultrajante euforia
imperialista (“Viva a brigada/ Na canhonada/ Do Cabo ao
Industão”34 [a tradução não corresponde à rima insolente do
original]). Nesse instante o público explodiu, e a lenda em torno da
peça começou. O narrador machadiano exibe uma desfaçatez análoga
— como quando Bento Santiago, em Dom Casmurro, lamenta o fato
de que o falecimento de um amigo interrompe “as melodias da minha
alma” em vez de esperar algumas horas para morrer (“toda hora é
apropriada ao óbito”).35 O resultado é uma “autoexposição
‘involuntária’”36 que não poderia ser mais evidente.
Não poderia? Como Machado “utiliza com maestria absoluta os
recursos ideológicos e literários os mais prezados de sua vítima” —37
como, por exemplo, seu talento casuístico para a autoabsolvição —,
para muitos de seus contemporâneos seus livros pareciam tomar
partido dos narradores, oferecendo todo tipo de justi cativas
complexas para suas condutas. “A julgar pelas reações da crítica”,
a rma Schwarz, tal ventriloquismo “prevaleceu quase inteiramente”,
gerando “um quadro de alta misti cação” e “faz que entre crítica
feroz e apologia a semelhança confunda”.38 Confusão, de fato: como
crítica feroz pode ser confundida com apologia?

imitação
Um enredo “que serve à exposição metódica de um modo de ser”;
uma desproporção narrativa que “é um fato eloquente de
composição”; uma técnica “expressiva também da assimetria da
relação social”; um “abjeto humor de classe […] exposto”; um
“cinismo ‘excessivo’”, que faz do texto uma “delação de si mesmo,
uma verdadeira traição de classe”.39 Exposto, eloquente, expressivo,
delação de si mesmo, traição… tudo está às claras. Mas então “cabe
ao leitor descobrir que não está diante de um exemplo de autoexame e
requintada franqueza”; “O efeito literário realista e o insight histórico
[…] estão […] em outro nível, que cabe ao leitor identi car e
construir”; “a sionomia […] do narrador […] passa incógnita”;
“reencenava e apontava à execração dos bons entendedores a
ambiguidade característica da classe dominante brasileira”.40
Narrativa eloquente ou narrador incógnito? Delação de si mesmo
ou ambiguidade visível para os bons entendedores? Trata-se do
quebra-cabeça do “realismo” machadiano. “Se nos ativermos aos
modelos estabelecidos”, observa Schwarz,

parecerá mais razoável chamar Machado de antirrealista. Entretanto, se pensarmos no


espírito peculiar do realismo, na sua ênfase na análise da sociedade contemporânea em
movimento, podemos, de fato, considerá-lo um grande realista. Para efeitos de precisão e
complexidade, digamos então que ele é um realista que trabalha ostensivamente com
procedimentos antirrealistas.41

Procedimentos antirrealistas, funcionais para a apreensão realista


“da sociedade contemporânea em movimento”. Estamos diante de um
desacordo entre meios e ns cujas raízes se localizam fora da esfera
estética:

Para efeitos de precisão e complexidade, digamos então que ele é um realista que trabalha
ostensivamente com procedimentos antirrealistas. Devemos, é claro, nos perguntar por quê.
Meu argumento é que esse paradoxo […] tem a ver com outra questão, a saber: como ca o
realismo num país periférico […]. Para falar de modo mais geral, o que acontece com as
formas modernas em lugares que não possuem as condições sociais que estavam nas origens
dessas formas e que elas de certa maneira têm como pressuposto?42

O que acontece com o realismo em um país periférico: é a questão


colocada pelo coletivo de pesquisa Warwick (wrec — Warwick
Research Collective), uma tentativa provocativa e original de
reimaginar a prática da crítica marxista, como mostra a análise de
Max Havelaar, de Multatuli, feita pelo grupo.43 “O
comprometimento brechtiano de Schwarz com o realismo”, escreve
Francis Mulhern em sua cristalina introdução à coletânea Two Girls
and Other Essays, “caminha junto com sua convicção, a qual ele
expressa com toda a clareza possível, de que a literatura é capaz de
produzir conhecimento.”44 Conhecimento, en m. Aquilo que o
seminário sobre O capital procurava, Schwarz encontrou em
Machado: conhecimento novo — o adjetivo é importante —, “muito
mais arrojado”, segundo Mulhern, “do que a proposta convencional
de que o realismo artístico busca apresentar, em seus próprios termos,
aquilo que a teoria já conhece — o efetivo limite do reconhecimento
de Lukács”.
Produção de novos conhecimentos. Mas como? Eis o nal do
Mestre:

Ao contrário do que faz supor a voga atual do antirrealismo, a mimese histórica,


devidamente instruída de senso crítico, não conduzia ao provincianismo, nem ao
nacionalismo, nem ao atraso. E se uma parte de nossos estudiosos imaginou que o mais
avançado e universal dos escritores brasileiros passava ao largo da iniquidade sistemática
mercê da qual o país se inseria na cena contemporânea, terá sido por uma cegueira também
ela histórica, parente mais ou menos longínqua da desfaçatez que Machado imitava.

Quantos livros você conhece em que a última palavra está em


itálico? “Isso é importante”, nos diz a tipogra a, como a levantar
ligeiramente a voz nesse “imitava”. Mas para dizer o quê? Que
Machado expôs a desfaçatez das classes altas da maneira mais exata
possível, ou que ele in ou algumas de suas características para torná-
la inconfundível? Fotogra a ou caricatura? O conteúdo semântico de
“imitava” sugere uma concepção de literatura antiga e ligeiramente
asséptica; a escolha do itálico aponta para a caricatura, postulando a
distorção controversa como pressuposto do conhecimento.
Esse é, provavelmente, o ponto crucial da crítica marxista, e talvez
do marxismo tout court. Há alguns anos, Lucio Colletti sintetizava a
questão no título de um de seus ensaios — “Marxismo: scienza o
rivoluzione?” — e respondeu sua própria pergunta postulando um
ponto de vista de classe que conduziria a uma forma de conhecimento
objetivamente veri cável. A posição de Schwarz é similar, embora não
idêntica. O conhecimento literário está depositado no texto
machadiano, sim — trata-se, lembremos, de uma forma objetiva —,
mas está claramente criptografado nele: trata-se, de fato, de uma
forma objetiva. Para se tornar de fato visível, ele precisa ser liberado
pelo catalisador do trabalho crítico. Em outras palavras: o
“conhecimento novo” de Memórias póstumas é produto de Machado
e de Schwarz: dois diferentes tipos de discurso, dois per s intelectuais
muito diferentes cooperando para um mesmo m.
Crítica feroz ou apologia? Como formulou Benjamin, monumentos
de cultura são também monumentos de barbárie; os romances de
Machado contêm os dois elementos, mas não podem ser reduzidos a
nenhum deles. Ter reconhecido a cultura e a barbárie com igual
clareza e as atribuir à estrutura de classes do Brasil moderno por meio
de um estilo profundamente racional de pensamento estético: tais
realizações fazem de Roberto Schwarz o maior crítico marxista do
nosso tempo.

Notas

1. Georg Lukács, “Sobre a forma e a essência do ensaio: Carta a Leo Popper”, em A alma e as
formas. Trad. de Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
2. Grifos meus.
3. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo:
Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 110. (Citado, daqui em diante, como Mestre.)
4. Respectivamente, Mestre, pp. ,
61 63 e 96. “Cidade de Deus”, p. 163, e “Altos e baixos da
atualidade de Brecht”, p. 133. Os dois ensaios estão em Sequências brasileiras: Ensaios (São
Paulo: Companhia das Letras, 1999).
5. Mestre, pp. 53-4.
6. “Eu vejo por manchas”. T. J. Clark, “Strange Apprentice”. London Review of Books, 8

out. 2020.
7. Mestre, pp. 96 e 63.
8. Roberto Schwarz, “Complexo, moderno, nacional e negativo”. Novos Estudos Cebrap,
São Paulo, v. 1, n. 1, p. 47, dez. 1981.
9. Id., “Um avanço literário”. Trad. de Marcos Soares. Literatura e Sociedade, São Paulo, v.
15 , n. 13, p. 243, 2010.
10. Mestre, p. 66.
11. Ibid., p. 18.
12. “[…] e dentro das formas, vê classes”: óbvio, ele é um crítico marxista! Óbvio? Com que
frequência a crítica marxista recente empreendeu uma análise de classes concreta em vez de
recorrer a generalizações vagas?
13. Roberto Schwarz, “Um avanço literário”, op. cit., pp. 241-2.
14. Respectivamente, Mestre, pp. 113 , 107 e ; “As ideias fora do lugar”, em Ao vencedor
88

as batatas (São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 16).


15. Apud Schwarz, Mestre, p. 35.
16. “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’”, em Que horas são?:
Ensaios (São Paulo: Companhia das Letras, , p.
1987 ). No mesmo ensaio, Schwarz
135

a rma: “a forma que o crítico estuda foi produzida pelo processo social, mesmo que
ninguém saiba dela” e “Se as Memórias são lidas como um todo em movimento […], isto é,
se são lidas esteticamente, é porque têm essa dimensão” (pp. 141 e , respectivamente).
135
O texto foi publicado em inglês como “Objective Form: Re ections on the Dialetic of
Roguery”, em Two Girls and Other Essays (Trad. de John Gledson. Londres: Verso, 2012).
17. Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 51.
18. “Duas notas sobre Machado de Assis”, em Que horas são?: Ensaios, op. cit., p. 166.
19. Roberto Schwarz, “Antonio Candido 100 anos”, em Antonio Candido 100 anos. Org. de
Maria Augusta Fonseca e Roberto Schwarz. São Paulo: Ed. 34, 2018, p. 12.
20. Id., “Um seminário de Marx”, em Sequências brasileiras, op. cit., p. 93.
21. Formação da literatura brasileira: Momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1964-9. 2 v.
22. Mestre, op. cit., p. 42.
23. Ibid., pp. 13 e 37.
24. “Duas notas sobre Machado de Assis”, em Que horas são?: Ensaios, op. cit., p. 169.
25. “A importação do romance e suas contradições em Alencar”, em Ao vencedor as batatas,
op. cit., p. 70.
26. Todas as expressões se encontram no livro Ao vencedor as batatas, op. cit.
Respectivamente, pp. 25, 56, 27, 9, 87, 70, 72 e 47.
27. Mestre, op. cit., pp. 171 e 155.
28. Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 70.
29. “As ideias fora do lugar”, em Ao vencedor as batatas, op. cit., p. 27.
30. “Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”, em Martinha versus Lucrécia: Ensaios e
entrevistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 55, 56 e 73.
31. Ibid., p. 56.
32. Roberto Schwarz, “Altos e baixos da atualidade de Brecht”, op. cit., pp. 126, 138 e 142.
33. Id., “Um avanço literário”, op. cit., p. 243.
34. Bertolt Brecht, “A ópera de três vinténs”, em Teatro completo 3. Trad. de Wolfgang Bader
e Marcos Roma Santa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 39.
35. Machado de Assis, Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Globo, p. 186.
36. Mestre, op. cit., p. 82.
37. Ibid., p. 82.
38. Ibid., pp. 190, 189 e 83.
39. Ibid., pp. 103, 107 e 110. Todos os grifos são meus.
40. Ibid., pp. 189-90, 193-4 e 233. Grifos meus.
41. Roberto Schwarz, “Um avanço literário”, op. cit., p. 235.
42. Ibid.
43. Ver Desenvolvimento combinado e desigual: Por uma nova teoria da literatura mundial
(Trad. de G. B. Zanfelice. Campinas: Unicamp, 2020). “O registro realista de Max
Havelaar é repetidamente minado por técnicas irrealistas: a extraordinária narração
cindida, o enquadramento narrativo e a incorporação genericamente incongruente de
materiais indígenas javaneses… Lemos tais cisões e incongruências como indicativo do
registro formal do texto da instabilidade complexa da vida tal como ela é experimentada na
periferia das colônias holandesas das Índias Orientais.” Os membros da , tal como
wrec

listados no livro, são Sharae Deckard, Nicholas Lawrence, Neil Lazarus, Graeme
Macdonald, Upamanyu Pablo Mukherjee, Benita Parry e Stephen Shapiro.
44. Two Girls and Other Essays, op. cit., pp. xiii-xiv.
Nota sobre os textos

“Introdução”, de Franco Moretti: publicado como “A New Intuition”


em New Left Review, n. 131, set.-out. 2021.

“As ideias fora do lugar”: publicado como “Dépendance nationale,


déplacement d’idéologies, littérature” em L’Homme et la Société, n.
26, 1972; retomado em Ao vencedor as batatas (São Paulo: Duas
Cidades, 1977).

“A importação do romance e suas contradições em Alencar”:


publicado como “Criando o romance brasileiro” em Argumento, n. 4,
1974 (número apreendido pela censura); retomado em Ao vencedor as
batatas (São Paulo: Duas Cidades, 1977).

“A poesia envenenada de Dom Casmurro”: publicado em Novos


Estudos Cebrap, n. , mar.
29 ; retomado em Duas meninas (São
1991

Paulo: Companhia das Letras, 1997).

“Cultura e política, -
1964 1969 ”: publicado como “Remarques sur la
culture et la politique au Brésil, 1964-1969” em Les Temps Modernes,
n. ,
288 1970 ; retomado em O pai de família (Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 1978).

“Cuidado com as ideologias alienígenas”: publicado como “Respostas


a Movimento” em Movimento, n. 56, jul. ; retomado em O pai
1976

de família (Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978).

“A carroça, o bonde e o poeta modernista”: publicado em Que horas


são? (São Paulo: Companhia das Letras, 1987).

“Na periferia do capitalismo”: entrevista a Mariluce Moura e Luiz


Henrique Lopes publicada em Pesquisa Fapesp, n. , abr.
98 2004 ;
retomado em Martinha versus Lucrecia (São Paulo: Companhia das
Letras, 2012).

“Verdade tropical: um percurso de nosso tempo”: publicado como


“Political Iridescence” em New Left Review, n. , maio-jun.
75 2012 ;
retomado em Martinha versus Lucrecia (São Paulo: Companhia das
Letras, 2012).

“Acumulação literária e nação periférica”: publicado na Folha de


S.Paulo, 23 jun. , caderno Letras; retomado em Um mestre na
1990

periferia do capitalismo: Machado de Assis (São Paulo: Duas Cidades,


1990 ).

“Um seminário de Marx”: publicado na Folha de S.Paulo, 8 out.


1995 , caderno Mais!; retomado em Sequências brasileiras (São Paulo:
Companhia das Letras, 1999).
“Os sete fôlegos de um livro”: publicado em Antonio Candido:
Pensamento e militância, organizado por Flávio Aguiar (São Paulo:
Fundação Perseu Abramo; Humanitas, 1999); retomado em
Sequências brasileiras (São Paulo: Companhia das Letras, 1999).

“8½ de Fellini”: publicado em Revista Civilização Brasileira, n. 1,


1965 ; retomado em A sereia e o descon ado (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1965).
As ideias fora do lugar

Toda ciência tem princípios, de que deriva o seu sistema. Um dos


princípios da economia política é o trabalho livre. Ora, no Brasil
domina o fato “impolítico e abominável” da escravidão.
Este argumento — resumo de um pan eto liberal, contemporâneo
de Machado de Assis —1 põe fora o Brasil do sistema da ciência.
Estávamos aquém da realidade a que esta se refere; éramos antes um
fato moral, “impolítico e abominável”. Grande degradação,
considerando-se que a ciência eram as Luzes, o Progresso, a
Humanidade etc. Para as artes, Nabuco expressa um sentimento
comparável quando protesta contra o assunto escravo no teatro de
Alencar: “Se isso ofende o estrangeiro, como não humilha o
brasileiro!”.2 Outros autores naturalmente zeram o raciocínio
inverso. Uma vez que não se referem à nossa realidade, ciência
econômica e demais ideologias liberais é que são, elas sim,
abomináveis, impolíticas e estrangeiras, além de vulneráveis. “Antes
bons negros da costa da África para felicidade sua e nossa, a despeito
de toda a mórbida lantropia britânica, que, esquecida de sua própria
casa, deixa morrer de fome o pobre irmão branco, escravo sem senhor
que dele se compadeça, e hipócrita ou estólida chora, exposta ao
ridículo da verdadeira lantropia, o fado de nosso escravo feliz.”3
Cada um a seu modo, estes autores re etem a disparidade entre a
sociedade brasileira, escravista, e as ideias do liberalismo europeu.
Envergonhando a uns, irritando a outros, que insistem na sua
hipocrisia, estas ideias — em que gregos e troianos não reconhecem o
Brasil — são referência para todos. Sumariamente está montada uma
comédia ideológica, diferente da europeia. É claro que a liberdade do
trabalho, a igualdade perante a lei e, de modo geral, o universalismo
eram ideologia na Europa também; mas lá correspondiam às
aparências, encobrindo o essencial — a exploração do trabalho. Entre
nós, as mesmas ideias seriam falsas num sentido diverso, por assim
dizer original. A Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo,
transcrita em parte na Constituição Brasileira de , não só não
1824

escondia nada, como tornava mais abjeto o instituto da escravidão.4 A


mesma coisa para a professada universalidade dos princípios, que
transformava em escândalo a prática geral do favor. Que valiam,
nestas circunstâncias, as grandes abstrações burguesas que usávamos
tanto? Não descreviam a existência — mas nem só disso vivem as
ideias. Re etindo em direção parecida, Sérgio Buarque observa:
“Trazendo de países distantes nossas formas de vida, nossas
instituições e nossa visão do mundo e timbrando em manter tudo isso
em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos uns desterrados
em nossa terra”.5 Essa impropriedade de nosso pensamento, que não é
acaso, como se verá, foi de fato uma presença assídua, atravessando e
desequilibrando, até no detalhe, a vida ideológica do Segundo
Reinado. Frequentemente in ada, ou rasteira, ridícula ou crua, e só
raramente justa no tom, a prosa literária do tempo é uma das muitas
testemunhas disso.
Embora sejam lugar-comum em nossa historiogra a, as razões desse
quadro foram pouco estudadas em seus efeitos. Como é sabido,
éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja
produção dependia do trabalho escravo, por um lado, e, por outro, do
mercado externo. Mais ou menos diretamente, vêm daí as
singularidades que expusemos. Era inevitável, por exemplo, a presença
entre nós do raciocínio econômico burguês — a prioridade do lucro,
com seus corolários sociais — uma vez que dominava no comércio
internacional, para onde a nossa economia era voltada. A prática
permanente das transações escolava, neste sentido, quando menos
uma pequena multidão. Além do quê, havíamos feito a Independência
havia pouco, em nome de ideias francesas, inglesas e americanas,
variadamente liberais, que assim faziam parte de nossa identidade
nacional. Por outro lado, com igual fatalidade, este conjunto
ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que
é mais, viver com eles.6 No plano das convicções, a incompatibilidade
é clara, e já vimos exemplos. Mas também no plano prático ela se
fazia sentir. Sendo uma propriedade, um escravo pode ser vendido,
mas não despedido. O trabalhador livre, nesse ponto, dá mais
liberdade a seu patrão, além de imobilizar menos capital. Este aspecto
— um entre muitos — indica o limite que a escravatura opunha à
racionalização produtiva. Comentando o que vira numa fazenda, um
viajante escreve: “Não há especialização do trabalho, porque se
procura economizar a mão de obra”. Ao citar a passagem, F. H.
Cardoso observa que “economia” não se destina aqui, pelo contexto,
a fazer o trabalho num mínimo de tempo, mas num máximo. É
preciso espichá-lo, a m de encher e disciplinar o dia do escravo. O
oposto exato do que era moderno fazer. Fundada na violência e na
disciplina militar, a produção escravista dependia da autoridade, mais
que da e cácia.7 O estudo racional do processo produtivo, assim
como a sua modernização continuada, com todo o prestígio que lhes
advinha da revolução que ocasionavam na Europa, eram sem
propósito no Brasil. Para complicar ainda o quadro, considere-se que
o latifúndio escravista havia sido na origem um empreendimento do
capital comercial, e que portanto o lucro fora desde sempre o seu
pivô. Ora, o lucro como prioridade subjetiva é comum às formas
antiquadas do capital e às mais modernas. De sorte que os incultos e
abomináveis escravistas até certa data — quando esta forma de
produção veio a ser menos rentável que o trabalho assalariado —
foram no essencial capitalistas mais consequentes do que nossos
defensores de Adam Smith, que no capitalismo achavam antes que
tudo a liberdade. Está-se vendo que para a vida intelectual o nó estava
armado. Em matéria de racionalidade, os papéis se embaralhavam e
trocavam normalmente: a ciência era fantasia e moral, o
obscurantismo era realismo e responsabilidade, a técnica não era
prática, o altruísmo implantava a mais-valia etc. E, de maneira geral,
na ausência do interesse organizado da escravaria, o confronto entre
humanidade e inumanidade, por justo que fosse, acabava encontrando
uma tradução mais rasteira no con ito entre dois modos de empregar
os capitais — do qual era a imagem que convinha a uma das partes.8
Impugnada a todo instante pela escravidão, a ideologia liberal, que
era a das jovens nações emancipadas da América, descarrilhava. Seria
fácil deduzir o sistema de seus contrassensos, todos verdadeiros,
muitos dos quais agitaram a consciência teórica e moral de nosso
século xix. Já vimos uma coleção deles. No entanto, essas di culdades
permaneciam curiosamente inessenciais. O teste da realidade não
parecia importante. É como se coerência e generalidade não pesassem
muito, ou como se a esfera da cultura ocupasse uma posição alterada,
cujos critérios fossem outros — mas outros em relação a quê? Por sua
mera presença, a escravidão indicava a impropriedade das ideias
liberais; o que entretanto é menos que orientar-lhes o movimento.
Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era
o nexo efetivo da vida ideológica. A chave desta era diversa. Para
descrevê-la é preciso retomar o país como todo. Esquematizando,
pode-se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da
terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem
livre”, na verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é
clara; é a multidão dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários
nem proletários, seu acesso à vida social e a seus bens depende
materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande.9 O
agregado é a sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através
do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo
também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas
classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em consequência,
por este mesmo mecanismo.10 Assim, com mil formas e nomes, o
favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional,
ressalvada sempre a relação produtiva de base, esta assegurada pela
força. Esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas
atividades, mais e menos a ns dele, como administração, política,
indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo pro ssões liberais,
como a medicina, ou quali cações operárias, como a tipogra a, que,
na acepção europeia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram
governadas por ele. E assim como o pro ssional dependia do favor
para o exercício de sua pro ssão, o pequeno proprietário depende dele
para a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu
posto. O favor é a nossa mediação quase universal — e sendo mais
simpático do que o nexo escravista, a outra relação que a colônia nos
legara, é compreensível que os escritores tenham baseado nele a sua
interpretação do Brasil, involuntariamente disfarçando a violência,
que sempre reinou na esfera da produção.
O escravismo desmente as ideias liberais; mais insidiosamente o
favor, tão incompatível com elas quanto o primeiro, as absorve e
desloca, originando um padrão particular. O elemento de arbítrio, o
jogo uido de estima e autoestima a que o favor submete o interesse
material não podem ser integralmente racionalizados. Na Europa, ao
atacá-los, o universalismo visara o privilégio feudal. No processo de
sua a rmação histórica, a civilização burguesa postulara a autonomia
da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a
remuneração objetiva, a ética do trabalho etc. — contra as
prerrogativas do Ancien Régime. O favor, ponto por ponto, pratica a
dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada,
remuneração e serviços pessoais. Entretanto, não estávamos para a
Europa como o feudalismo para o capitalismo; pelo contrário, éramos
seus tributários em toda linha, além de não termos sido propriamente
feudais — a colonização é um feito do capital comercial. No fastígio
em que estava ela, Europa, e na posição relativa em que estávamos
nós, ninguém no Brasil teria a ideia e principalmente a força de ser,
digamos, um Kant do favor, para bater-se contra o outro.11 De modo
que o confronto entre esses princípios tão antagônicos resultava
desigual: no campo dos argumentos prevaleciam com facilidade, ou
melhor, adotávamos sofregamente os que a burguesia europeia tinha
elaborado contra arbítrio e escravidão; enquanto na prática,
geralmente dos próprios debatedores, sustentado pelo latifúndio, o
favor rea rmava sem descanso os sentimentos e as noções que implica.
O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com
burocracia e justiça, que, embora regidas pelo clientelismo,
proclamavam as formas e teorias do Estado burguês moderno. Além
dos naturais debates, este antagonismo produziu, portanto, uma
coexistência estabilizada — que interessa estudar. Aí a novidade:
adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam servir e muitas
vezes serviram de justi cação, nominalmente “objetiva”, para o
momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de
existir, o antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de
mãos dadas. Esta recomposição é capital. Seus efeitos são muitos e
levam longe em nossa literatura. De ideologia que havia sido — isto é,
engano involuntário e bem fundado nas aparências —, o liberalismo
passa, na falta de outro termo, a penhor intencional duma variedade
de prestígios com que nada tem a ver. Ao legitimar o arbítrio por meio
de alguma razão “racional”, o favorecido conscientemente engrandece
a si e ao seu benfeitor, que por sua vez não vê, nessa era de hegemonia
das razões, motivo para desmenti-lo. Nestas condições, quem
acreditava na justi cação? A que aparência correspondia? Mas,
justamente, não era este o problema, pois todos reconheciam — e isto
sim era importante — a intenção louvável, seja do agradecimento, seja
do favor. A compensação simbólica podia ser um pouco desa nada,
mas não era mal-agradecida. Ou por outra, seria desa nada em
relação ao Liberalismo, que era secundário, e justa em relação ao
favor, que era principal. E nada melhor, para dar lustre às pessoas e à
sociedade que formam, do que as ideias mais ilustres do tempo, no
caso as europeias. Neste contexto, portanto, as ideologias não
descrevem sequer falsamente a realidade e não gravitam segundo uma
lei que lhes seja própria — por isso as chamamos de segundo grau.
Sua regra é outra, diversa da que denominam; é da ordem do relevo
social, em detrimento de sua intenção cognitiva e de sistema. Deriva
sossegadamente do óbvio, sabido de todos — da inevitável
“superioridade” da Europa — e liga-se ao momento expressivo, de
autoestima e fantasia, que existe no favor. Neste sentido dizíamos que
o teste da realidade e da coerência não parecia, aqui, decisivo, sem
prejuízo de estar sempre presente como exigência reconhecida,
evocada ou suspensa conforme a circunstância. Assim, com método,
atribuem-se independência à dependência, utilidade ao capricho,
universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao
privilégio etc. Combinando-se à prática de que, em princípio, seria a
crítica, o Liberalismo fazia com que o pensamento perdesse o pé.
Retenha-se no entanto, para analisarmos depois, a complexidade desse
passo: ao tornarem-se despropósito, estas ideias deixam também de
enganar.
É claro que esta combinação foi uma entre outras. Para o nosso
clima ideológico, entretanto, foi decisiva, além de ser aquela em que
os problemas se con guram da maneira mais completa e diferente. Por
agora bastem alguns aspectos. Vimos que nela as ideias da burguesia
— cuja grandeza sóbria remonta ao espírito público e racionalista da
Ilustração — tomam função de… ornato e marca de dalguia: atestam
e festejam a participação numa esfera augusta, no caso a da Europa
que se… industrializa. O quiproquó das ideias não podia ser maior. A
novidade no caso não está no caráter ornamental de saber e cultura,
que é da tradição colonial e ibérica; está na dissonância propriamente
incrível que ocasionam o saber e a cultura de tipo “moderno” quando
postos neste contexto. São inúteis como um berloque? São brilhantes
como uma comenda? Serão a nossa panaceia? Envergonham-nos
diante do mundo? O mais certo é que nas idas e vindas de argumento
e interesse todos estes aspectos tivessem ocasião de se manifestar, de
maneira que na consciência dos mais atentos deviam estar ligados e
misturados. Inextricavelmente, a vida ideológica degradava e
condecorava os seus participantes, entre os quais muitas vezes haveria
clareza disso. Tratava-se, portanto, de uma combinação instável, que
facilmente degenerava em hostilidade e crítica as mais acerbas. Para
manter-se precisa de cumplicidade permanente, cumplicidade que a
prática do favor tende a garantir. No momento da prestação e da
contraprestação — particularmente no instante-chave do
reconhecimento recíproco — a nenhuma das partes interessa
denunciar a outra, tendo embora a todo instante os elementos
necessários para fazê-lo. Esta cumplicidade sempre renovada tem
continuidades sociais mais profundas, que lhe dão peso de classe: no
contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial à
mais fraca, que nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserável dos
favorecidos via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que
transformava prestação e contraprestação, por modestas que fossem,
numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma.
Lastreado pelo in nito de dureza e degradação que esconjurava — ou
seja, pela escravidão, de que as duas partes se bene ciam e timbram
em se diferençar —, este reconhecimento é de uma conivência sem
fundo, multiplicada, ainda, pela adoção do vocabulário burguês da
igualdade, do mérito, do trabalho, da razão. Machado de Assis será
mestre nestes meandros. Contudo veja-se também outro lado. Imersos
que estamos, ainda hoje, no universo do Capital, que não chegou a
tomar forma clássica no Brasil, tendemos a ver esta combinação como
inteiramente desvantajosa para nós, composta só de defeitos.
Vantagens não há de ter tido; mas para apreciar devidamente a sua
complexidade considere-se que as ideias da burguesia, a princípio
voltadas contra o privilégio, a partir de 1848 haviam se tornado
apologéticas: a vaga das lutas sociais na Europa mostrara que a
universalidade disfarça antagonismos de classe.12 Portanto, para bem
lhe reter o timbre ideológico é preciso considerar que o nosso discurso
impróprio era oco também quando usado propriamente. Note-se, de
passagem, que este padrão iria repetir-se no século xx , quando por
várias vezes juramos, crentes de nossa modernidade, segundo as
ideologias mais rotas da cena mundial. Para a literatura, como
veremos, resulta daí um labirinto singular, uma espécie de oco dentro
do oco. Ainda aqui, Machado será o mestre.
Em suma, se insistimos no viés que escravismo e favor introduziram
nas ideias do tempo, não foi para as descartar, mas para descrevê-las
enquanto enviesadas — fora de centro em relação à exigência que elas
mesmas propunham, e reconhecivelmente nossas, nessa mesma
qualidade. Assim, posto de parte o raciocínio sobre as causas, resta na
experiência aquele “desconcerto” que foi o nosso ponto de partida: a
sensação que o Brasil dá de dualismo e factício — contrastes
rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, contradições,
conciliações e o que for — combinações que o Modernismo, o
tropicalismo e a economia política nos ensinaram a considerar.13 Não
faltam exemplos. Vejam-se alguns, menos para analisá-los que para
indicar a ubiquidade do quadro e a variação de que é capaz. Nas
revistas do tempo, sendo grave ou risonha, a apresentação do número
inicial é composta para baixo e falsete: na primeira parte, a rma-se o
propósito redentor da imprensa, na tradição de combate da Ilustração;
a grande seita fundada por Gutenberg afronta a indiferença geral, nas
alturas o condor e a mocidade entreveem o futuro, ao mesmo tempo
que repelem o passado e os preconceitos, enquanto a tocha
regeneradora do Jornal desfaz as trevas da corrupção. Na segunda
parte, conformando-se às circunstâncias, as revistas declaram a sua
disposição cordata, de “dar a todas as classes em geral e
particularmente à honestidade das famílias, um meio de deleitável
instrução e de ameno recreio”. A intenção emancipadora casa-se com
charadas, união nacional, gurinos, conhecimentos gerais e
folhetins.14 Caricatura desta sequência são os versinhos que servem de
epígrafe à Marmota na Corte: “Eis a Marmota/ Bem variada/ P’ra ser
de todos/ Sempre estimada.// Fala a verdade,/ Diz o que sente,/ Ama e
respeita/ A toda gente”. Se, noutro campo, raspamos um pouco os
nossos muros, mesmo efeito de coisa compósita:

A transformação arquitetônica era super cial. Sobre as paredes de terra, erguidas por
escravos, pregavam-se papéis decorativos europeus ou aplicavam-se pinturas, de forma a
criar a ilusão de um ambiente novo, como os interiores das residências dos países em
industrialização. Em certos exemplos, o ngimento atingia o absurdo: pintavam-se motivos
arquitetônicos greco-romanos — pilastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. — com
perfeição de perspectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais
realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. Em outros, pintavam-se janelas
nas paredes, com vistas sobre ambientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um
exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, escravos e terreiros de
serviço.15

O trecho refere-se a casas rurais na província de São Paulo, segunda


metade do século xix. Quanto à Corte:

A transformação atendia à mudança dos costumes, que incluíam agora o uso de objetos
mais re nados, de cristais, louças e porcelanas, e formas de comportamento cerimonial,
como maneiras formais de servir à mesa. Ao mesmo tempo conferia ao conjunto, que
procurava reproduzir a vida das residências europeias, uma aparência de veracidade. Desse
modo, os estratos sociais que mais benefícios tiravam de um sistema econômico baseado na
escravidão e destinado exclusivamente à produção agrícola procuravam criar, para seu uso,
arti cialmente, ambientes com características urbanas e europeias, cuja operação exigia o
afastamento dos escravos e onde tudo ou quase tudo era produto de importação.16

Ao vivo esta comédia está nos notáveis capítulos iniciais do Quincas


Borba. Rubião, herdeiro recente, é constrangido a trocar o seu escravo
crioulo por um cozinheiro francês e um criado espanhol, perto dos
quais não ca à vontade. Além de ouro e prata, seus metais do
coração, aprecia agora as estatuetas de bronze — um Fausto e um
Me stófeles — que são também de preço. Matéria mais solene, mas
igualmente marcada pelo tempo, é a letra de nosso hino à República,
escrita em 1890 , pelo poeta decadente Medeiros e Albuquerque.
Emoções progressistas a que faltava o natural: “Nós nem cremos que
escravos outrora/ Tenha havido em tão nobre país!” (outrora é dois
anos antes, uma vez que a Abolição é de 1888 ). Em 1817 , numa
declaração do governo revolucionário de Pernambuco, mesmo timbre,
com intenções opostas: “Patriotas, vossas propriedades inda as mais
opugnantes ao ideal de justiça serão sagradas”.17 Refere-se aos
rumores de emancipação, que era preciso desfazer, para acalmar os
proprietários. Também a vida de Machado de Assis é um exemplo, na
qual se sucedem rapidamente o jornalista combativo, entusiasta das
“inteligências proletárias, das classes ín mas”, autor de crônicas e
quadrinhas comemorativas, por ocasião do casamento das princesas
imperiais, e nalmente o Cavaleiro e mais tarde O cial da Ordem da
Rosa.18 Contra isso tudo vai sair a campo Sílvio Romero.

É mister fundar uma nacionalidade consciente de seus méritos e defeitos, de sua força e de
seus delíquios, e não arrumar um pastiche, um arremedo de judas das festas populares que
só serve para vergonha nossa aos olhos do estrangeiro. […] Só um remédio existe para
tamanho desideratum: — mergulharmo-nos na corrente vivi cante das ideias naturalistas e
monísticas, que vão transformando o velho mundo.19
À distância é tão clara que tem graça a substituição de um arremedo
por outro. Mas é também dramática, pois assinala quanto era alheia a
linguagem na qual se expressava, inevitavelmente, o nosso desejo de
autenticidade. Ao pastiche romântico iria suceder o naturalista. En m,
nas revistas, nos costumes, nas casas, nos símbolos nacionais, nos
pronunciamentos de revolução, na teoria e onde mais for, sempre a
mesma composição “arlequinal”, para falar com Mário de Andrade: o
desacordo entre a representação e o que, pensando bem, sabemos ser
o seu contexto. — Consolidada por seu grande papel no mercado
internacional, e mais tarde na política interna, a combinação de
latifúndio e trabalho compulsório atravessou impávida a Colônia,
Reinados e Regências, Abolição, a Primeira República, e hoje mesmo é
matéria de controvérsia e tiros.20 O ritmo de nossa vida ideológica, no
entanto, foi outro, também ele determinado pela dependência do país:
à distância acompanhava os passos da Europa. Note-se, de passagem,
que é a ideologia da independência que vai transformar em defeito
esta combinação; bobamente, quando insiste na impossível autonomia
cultural, e profundamente, quando re ete sobre o problema. Tanto a
eternidade das relações sociais de base quanto a lepidez ideológica das
“elites” eram parte — a parte que nos toca — da gravitação deste
sistema por assim dizer solar, e certamente internacional, que é o
capitalismo. Em consequência, um latifúndio pouco modi cado viu
passarem as maneiras barroca, neoclássica, romântica, naturalista,
modernista e outras, que na Europa acompanharam e re etiram
transformações imensas na ordem social. Seria de supor que aqui
perdessem a justeza, o que em parte se deu. No entanto, vimos que é
inevitável este desajuste, ao qual estávamos condenados pela máquina
do colonialismo e ao qual, para que já que indicado o seu alcance
mais que nacional, estava condenada a mesma máquina quando nos
produzia. Trata-se en m de segredo mui conhecido, embora
precariamente teorizado. Para as artes, no caso, a solução parece mais
fácil, pois sempre houve modo de adorar, citar, macaquear, saquear,
adaptar ou devorar estas maneiras e modas todas, de modo que
re etissem, na sua falha, a espécie de torcicolo cultural em que nos
reconhecemos. Mas, voltemos atrás. Em resumo, as ideias liberais não
se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis. Foram
postas numa constelação especial, uma constelação prática, a qual
formou sistema e não deixaria de afetá-las. Por isso, pouco ajuda
insistir na sua clara falsidade. Mais interessante é acompanhar-lhes o
movimento, de que ela, a falsidade, é parte verdadeira. Vimos o Brasil,
bastião da escravatura, envergonhado diante delas — as ideias mais
adiantadas do planeta, ou quase, pois o socialismo já vinha à ordem
do dia — e rancoroso, pois não serviam para nada. Mas eram
adotadas também com orgulho, de forma ornamental, como prova de
modernidade e distinção. E naturalmente foram revolucionárias
quando pesaram no Abolicionismo. Submetidas à in uência do lugar,
sem perderem as pretensões de origem, gravitavam segundo uma regra
nova, cujas graças, desgraças, ambiguidades e ilusões eram também
singulares. Conhecer o Brasil era saber destes deslocamentos, vividos e
praticados por todos como uma espécie de fatalidade, para os quais,
entretanto, não havia nome, pois a utilização imprópria dos nomes era
a sua natureza. Largamente sentido como defeito, bem conhecido mas
pouco pensado, este sistema de impropriedades decerto rebaixava o
cotidiano da vida ideológica e diminuía as chances da re exão.
Contudo facilitava o ceticismo em face das ideologias, por vezes bem
completo e descansado, e compatível aliás com muito verbalismo.
Exacerbado um nadinha, dará na força espantosa da visão de
Machado de Assis. Ora, o fundamento deste ceticismo não está
seguramente na exploração re etida dos limites do pensamento
liberal. Está, se podemos dizer assim, no ponto de partida intuitivo,
que nos dispensava do esforço. Inscritas num sistema que não
descrevem nem mesmo em aparência, as ideias da burguesia viam
in rmada já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de
abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que
elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam
sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de
arbítrio e favor. Abalava-se na base a sua intenção universal. Assim, o
que na Europa seria verdadeira façanha da crítica, entre nós podia ser
a singela descrença de qualquer pachola, para quem utilitarismo,
egoísmo, formalismo e o que for são uma roupa entre outras, muito
da época mas desnecessariamente apertada. Está-se vendo que este
chão social é de consequência para a história da cultura: uma
gravitação complexa, em que volta e meia se repete uma constelação
na qual a ideologia hegemônica do Ocidente faz gura derrisória, de
mania entre manias. O que é um modo, também, de indicar o alcance
mundial que têm e podem ter as nossas esquisitices nacionais. Algo de
comparável, talvez, ao que se passava na literatura russa. Diante
desta, ainda os maiores romances do realismo francês fazem
impressão de ingênuos. Por que razão? Justamente, é que, a despeito
de sua intenção universal, a psicologia do egoísmo racional, assim
como a moral formalista, fazia no Império Russo efeito de uma
ideologia “estrangeira”, e portanto localizada e relativa. De dentro de
seu atraso histórico, o país impunha ao romance burguês um quadro
mais complexo. A gura caricata do ocidentalizante, francó lo ou
germanó lo, de nome frequentemente alegórico e ridículo, os
ideólogos do progresso, do liberalismo, da razão, eram tudo formas de
trazer à cena a modernização que acompanha o Capital. Estes homens
esclarecidos mostram-se alternadamente lunáticos, ladrões,
oportunistas, crudelíssimos, vaidosos, parasitas etc. O sistema de
ambiguidades assim ligadas ao uso local do ideário burguês — uma
das chaves do romance russo — pode ser comparado àquele que
descrevemos para o Brasil. São evidentes as razões sociais da
semelhança. Também na Rússia a modernização se perdia na
imensidão do território e da inércia social, entrava em choque com a
instituição servil e com seus restos — choque experimentado como
inferioridade e vergonha nacional por muitos, sem prejuízo de dar a
outros um critério para medir o desvario do progressismo e do
individualismo que o Ocidente impunha e impõe ao mundo. Na
exacerbação deste confronto, em que o progresso é uma desgraça e o
atraso uma vergonha, está uma das raízes profundas da literatura
russa. Sem forçar em demasia uma comparação desigual, há em
Machado — pelas razões que sumariamente procurei apontar — um
veio semelhante, algo de Gógol, Dostoiévski, Gontcharov, Tchékhov, e
de outros talvez, que não conheço.21 Em suma, a própria
desquali cação do pensamento entre nós, que tão amargamente
sentíamos, e que ainda hoje as xia o estudioso do nosso século xix,
era uma ponta, um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a
história mundial.22
Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e
repõe ideias europeias, sempre em sentido impróprio. É nesta
qualidade que elas serão matéria e problema para a literatura. O
escritor pode não saber disso, nem precisa, para usá-las. Mas só
alcança uma ressonância profunda e a nada caso lhes sinta, registre e
desdobre — ou evite — o descentramento e a desa nação. Se há um
número inde nido de maneiras de fazê-lo, são palpáveis e de níveis as
contravenções. Nestas registra-se, como ingenuidade, tagarelice,
estreiteza, servilismo, grosseria etc., a e cácia especí ca e local de uma
alienação de braços longos — a falta de transparência social, imposta
pelo nexo colonial e pela dependência que veio continuá-lo. Isso
posto, o leitor pouco cou sabendo de nossa história literária ou geral,
e não situa Machado de Assis. De que lhe servem então estas páginas?
Em vez do “panorama” e da ideia correlata de impregnação pelo
ambiente, sempre sugestiva e verdadeira, mas sempre vaga e externa,
tentei uma solução diferente: especi car um mecanismo social, na
forma em que ele se torna elemento interno e ativo da cultura; uma
di culdade inescapável — tal como o Brasil a punha e repunha aos
seus homens cultos, no processo mesmo de sua reprodução social.
Noutras palavras, uma espécie de chão histórico, analisado, da
experiência intelectual. Pela ordem, procurei ver na gravitação das
ideias um movimento que nos singularizava. Partimos da observação
comum, quase uma sensação, de que no Brasil as ideias estavam fora
de centro, em relação ao seu uso europeu. E apresentamos uma
explicação histórica para esse deslocamento, que envolvia as relações
de produção e parasitismo no país, a nossa dependência econômica e
seu par, a hegemonia intelectual da Europa, revolucionada pelo
Capital. Em suma, para analisar uma originalidade nacional, sensível
no dia a dia, fomos levados a re etir sobre o processo da colonização
em seu conjunto, que é internacional. O tique-taque das conversões e
reconversões de liberalismo e favor é o efeito local e opaco de um
mecanismo planetário. Ora, a gravitação cotidiana das ideias e das
perspectivas práticas é a matéria imediata e natural da literatura,
desde o momento em que as formas xas tenham perdido a sua
vigência para as artes. Portanto, é o ponto de partida também do
romance, quanto mais do romance realista. Assim, o que estivemos
descrevendo é a feição exata com que a História mundial, na forma
estruturada e cifrada de seus resultados locais, sempre repostos, passa
para dentro da escrita, em que agora in ui pela via interna — o
escritor saiba ou não, queira ou não queira. Noutras palavras,
de nimos um campo vasto e heterogêneo, mas estruturado, que é
resultado histórico, e pode ser origem artística. Ao estudá-lo, vimos
que difere do europeu, usando embora o seu vocabulário. Portanto a
própria diferença, a comparação e a distância fazem parte de sua
de nição. Trata-se de uma diferença interna — o descentramento de
que tanto falamos — em que as razões nos aparecem ora nossas, ora
alheias, a uma luz ambígua, de efeito incerto. Resulta uma química
também singular, cujas a nidades e repugnâncias acompanhamos e
exempli camos um pouco. É natural, por outro lado, que esse
material proponha problemas originais à literatura que dependa dele.
Sem avançarmos por agora, digamos apenas que, ao contrário do que
geralmente se pensa, a matéria do artista mostra assim não ser
informe: é historicamente formada e registra de algum modo o
processo social a que deve a sua existência. Ao formá-la, por sua vez,
o escritor sobrepõe uma forma a outra forma, e é da felicidade desta
operação, desta relação com a matéria pré-formada — em que
imprevisível dormita a História — que vão depender profundidade,
força, complexidade dos resultados. São relações que nada têm de
automático, e veremos no detalhe quanto custou, entre nós, acertá-las
para o romance. E vê-se, variando-se ainda uma vez o mesmo tema,
que, embora lidando com o modesto tique-taque de nosso dia a dia, e
sentado à escrivaninha num ponto qualquer do Brasil, o nosso
romancista sempre teve como matéria, que ordena como pode,
questões da história mundial; e que não as trata, se as tratar
diretamente.
A importação do romance e suas contradições em
Alencar

O romance existiu no Brasil antes de haver romancistas brasileiros.1


Quando apareceram, foi natural que estes seguissem os modelos, bons
e ruins, que a Europa já havia estabelecido em nossos hábitos de
leitura. Observação banal, que no entanto é cheia de consequências: a
nossa imaginação xara-se numa forma cujos pressupostos, em
razoável parte, não se encontravam no país, ou encontravam-se
alterados. Seria a forma que não prestava — a mais ilustre do tempo
— ou seria o país? Exemplo desta ambivalência, própria de nações de
periferia, é dado na época pelo americano Henry James, que acabaria
emigrando, atraído pela complexidade social da Inglaterra, que lhe
parecia mais propícia à imaginação.2 Mas veja-se o caso de mais
perto: adotar o romance era acatar também a sua maneira de tratar as
ideologias. Ora, vimos que entre nós elas estão deslocadas, sem
prejuízo de guardarem o nome e o prestígio originais, diferença que é
involuntária, um efeito prático da nossa formação social. Caberia ao
escritor, em busca de sintonia, reiterar esse deslocamento em nível
formal, sem o que não ca em dia com a complexidade objetiva de sua
matéria — por próximo que esteja da lição dos mestres. Esta será a
façanha de Machado de Assis. Em suma, a mesma dependência global
que nos obriga a pensar em categorias impróprias nos induzia a uma
literatura em que essa impropriedade não tinha como a orar. Ou por
outra, antecipando: em vez de princípio construtivo, a diferença
apareceria involuntária e indesejadamente, pelas frestas, como defeito.
Uma instância literária do nível intelectual rebaixado a que nos
referíamos no capítulo anterior. — Lembrando os anos da sua
formação, Alencar fala nos serões da infância, em que lia em voz alta
para a mãe e as parentas, até car a sala toda em prantos. Os livros
eram Amanda e Oscar, Saint-Clair das ilhas, Celestina e outros.
Menciona também os gabinetes de leitura, a biblioteca romântica de
seus colegas, nas repúblicas estudantis de São Paulo — Balzac, Dumas,
Vigny, Chateaubriand, Hugo, Byron, Lamartine, Sue, mais tarde Scott
e Cooper — e a impressão que então lhe causara o sucesso de A
Moreninha, o primeiro romance de Macedo.3 Por que não tentar, ele
também? “Qual régio diadema valia essa auréola de entusiasmo a
cingir o nome de um escritor?”4 Não faltavam os grandes modelos, e
mais que esse ou aquele havia o prestígio do molde geral e o desejo
patriótico de dotar o país de mais um melhoramento do espírito
moderno.5 No entanto, a imigração do romance, particularmente de
seu veio realista, iria por di culdades. A ninguém constrangia
frequentar em pensamento salões e barricadas de Paris. Mas trazer às
nossas ruas e salas o cortejo de sublimes viscondessas, arrivistas
fulminantes, ladrões ilustrados, ministros epigramáticos, príncipes
imbecis, cientistas visionários, ainda que nos chegassem apenas os seus
problemas e o seu tom, não combinava bem. Contudo, haveria
romance na sua ausência? Os grandes temas, de que vem ao romance
a energia e nos quais se ancora a sua forma — a carreira social, a
força dissolvente do dinheiro, o embate de aristocracia e vida
burguesa, o antagonismo entre amor e conveniência, vocação e ganha-
pão —, como cavam no Brasil? Modi cados, sem dúvida. Mas
existiam, além de existirem fortemente na imaginação, com a
realidade que tinha para nós o conjunto das ideias europeias. Não
estavam à mão no entanto o sistema de suas modi cações, e muito
menos os efeitos deste último sobre a forma literária. Estes deveriam
ser descobertos e elaborados. Assim como, aliás, os mencionados
temas não estiveram prontos desde sempre, à espera do romance
europeu. Surgiram, ou tomaram a sua forma moderna, sobre o solo da
transição — continental e secular — da era feudal à do capitalismo.
Também na Europa foi preciso explorá-los, isolar, combinar, até que
se formasse uma espécie de acervo comum, em que se alimentaram
ruins, medianos e grandes. Diga-se de passagem que é este aspecto
cumulativo e coletivo da criação literária, mesmo da individual, que
iria permitir a multidão dos romances razoáveis que o Realismo
produziu. Na crista das soluções e ideias correntes, ainda se não as
aprofundam, estes livros fazem a impressão de complexidade e logram
sustentar o interesse da leitura. Como em nossos dias o bom lme. Um
gênero de acumulação que foi difícil para a literatura brasileira, cujos
estímulos vinham e vêm de fora. Desvantagem, por outro lado, que
hoje tem as suas vantagens, convergindo muito naturalmente com a
bancarrota da tradição, a que duramente se acostuma o intelectual
europeu, a m de chegar — como a uma expressão-chave de nosso
tempo — à descontinuidade e ao arbitrário culturais em que no Brasil,
bem contra a vontade, sempre se esteve.
Escritor re etido e cheio de recurso, Alencar deu respostas variadas
e muitas vezes profundas a esta situação. A sua obra é uma das minas
da literatura brasileira, até hoje, e, embora não pareça, tem
continuidades no Modernismo. De Iracema, alguma coisa veio até
Macunaíma: as andanças que entrelaçam as aventuras, o corpo
geográ co do país, a matéria mitológica, a toponímia índia e a
História branca; alguma coisa do Grande sertão já existia em Til, no
ritmo das façanhas de Jão Fera; nossa iconogra a imaginária, das
mocinhas, dos índios, das orestas, deve aos seus livros muito da sua
xação social; e de modo mais geral, para não encompridar a lista, a
desenvoltura inventiva e brasileirizante da prosa alencarina ainda
agora é capaz de inspirar. Isso posto, é preciso reconhecer que a sua
obra nunca é propriamente bem-sucedida e que tem sempre um quê
descalibrado e, bem pesada a palavra, de bobagem. É interessante
notar, contudo, que estes pontos fracos são, justamente, fortes noutra
perspectiva. Não são acidentais nem fruto da falta de talento; são,
pelo contrário, prova de consequência. Assinalam os lugares em que o
molde europeu, combinando-se à matéria local, de que Alencar foi
simpatizante ardoroso, produzia contrassenso. Pontos portanto que
são críticos para a nossa literatura e vida, manifestando os desacordos
objetivos — as incongruências de ideologia — que resultavam do
transplante do romance e da cultura europeia para cá. Iremos estudá-
los no romance urbano de Alencar, para precisá-los, e ver em seguida
a solução que Machado de Assis lhes daria. — Comentário curioso
destes impasses encontra-se em Nabuco, o europeizante, que os
percebia muito bem, por achá-los horríveis. Ao contrário do que
dizem, a sua disputa com Alencar é pobre em re exão e baixa nos
recursos — “um tête-à-tête de gigantes”, segundo Afrânio Coutinho;
brigam até para ver quem sabe mais francês. Mas tem o interesse de
reter uma situação. O realismo de Alencar inspirava a Nabuco dupla
aversão: uma por não guardar as aparências e outra por não
desrespeitá-las com, digamos, a devassidão escolada e apresentável da
literatura francesa. É como um cidadão viajado que voltasse para a
sua cidade, onde o morti cam a existência de uma casa de mulheres, e
o seu pouco requinte. As meninas alencarinas, com os seus arrancos
de grande dama, lhe pareciam ao mesmo tempo inconvenientes e
bobocas, nem românticas nem naturalistas, o que é bem percebido,
embora pesando no prato estéril da balança.6 As observações sobre o
tema escravo e sobre o abrasileiramento da língua têm o mesmo teor.
Se lhe aceitasse a crítica, Alencar escreveria ou romance edi cante, ou
romance europeu. Nabuco põe o dedo em fraquezas reais, mas para
escondê-las; Alencar, pelo contrário, incide nelas tenazmente, guiado
pelo senso da realidade, que o leva a sentir, precisamente aí, o assunto
novo e o elemento brasileiro. Ao circunscrevê-las sem as resolver, não
faz grande literatura, mas xa e varia elementos dela — um exemplo a
mais de como é tortuoso o andamento da criação literária.

Estudando a obra de Macedo, em que toma pé a tradição de nosso


romance, Antonio Candido observa que ela combina o realismo da
observação miúda, “sensível às condições sociais do tempo”, e a
máquina do enredo romântico. São dois aspectos de um mesmo
conformismo, que interessa distinguir: adesão pedestre “ao meio sem
relevo social e humano da burguesia carioca”, e outro, “que
chamaríamos poético, e vem a ser o emprego dos padrões mais
próprios à concepção romântica, segundo acaba de ser sugerido:
lágrimas, treva, traição, con ito”. O resultado irá pecar por falta de
verossimilhança: “Tanto que nos perguntamos como é possível
pessoas tão chãs se envolveram nos arrancos a que [Macedo] as
submete”.7 Como veremos, ligeiramente ajustada, esta análise vale
também para o romance urbano de Alencar. Antes, no entanto,
voltemos aos seus elementos. A notação verista, a cor local exigida
pelo romance de então, davam estatuto e curso literário às guras e
anedotas de nosso mundo cotidiano. Já o enredo — o verdadeiro
princípio da composição —, esse tem a sua mola nas ideologias do
destino romântico, em versão de folhetim para Macedo e algum
Alencar, e em versão realista para o Alencar do romance urbano de
mais força. Ora, como já vimos o nosso cotidiano regia-se pelos
mecanismos do favor, incompatíveis — num sentido que precisaremos
adiante — com as tramas extremadas, próprias do Realismo de
in uência romântica. Submetendo-se ao mesmo tempo à realidade
comezinha e à convenção literária, o nosso romance embarcava em
duas canoas de percurso divergente, e era inevitável que levasse alguns
tombos de estilo próprio, tombos que não levavam os livros franceses,
já que a história social de que estes se alimentavam podia ser revolvida
a fundo juntamente por aquele mesmo tipo de entrecho. — Vista
segundo as origens, a disparidade entre enredo e notação realista
representa a justaposição de um molde europeu às aparências locais
(não importa, no caso, que estas aparências se tenham transformado
em matéria literária por in uência do próprio Romantismo). Segundo
passo, troque-se a origem no mapa-múndi pelas ideias que
historicamente lhe correspondiam: teremos voltado, com mais clareza
agora das razões subjacentes, ao problema próprio da composição —
em que ideologias românticas, de vertente seja liberal, seja
aristocratizante, mas sempre referidas à mercantilização da vida,
guram como chave mestra do universo do favor. Fiel à realidade
observada (brasileira) e ao bom modelo do romance (europeu), o
escritor reedita, sem sabê-lo e sem resolvê-la, uma incongruência
central em nossa vida pensada. Note-se que não há consequência
simples a tirar desta dualidade; em país de cultura dependente, como o
Brasil, a sua presença é inevitável, e o seu resultado pode ser bom ou
ruim. É questão de analisar caso por caso. Literatura não é juízo, é
guração: os movimentos de uma reputada chave que não abra nada
têm possivelmente grande interesse literário. Veremos que em
Machado de Assis a chave será aberta pela fechadura.
Senhora é um dos livros mais cuidados de Alencar, a sua
composição vai nos servir de ponto de partida. Trata-se de um
romance em que o tom varia marcadamente. Digamos que ele é mais
desafogado na periferia que no centro: Lemos, pelintra e interesseiro
tio da heroína, é gordinho como um vaso chinês e tem ar de pipoca; o
velho Camargo é um fazendeiro barbaças, rude mas direito; d.
Firmina, mãe de encomenda ou conveniência, estala beijos na face da
menina a quem serve, e quando senta acomoda “a sua gordura
semissecular”.8 Noutras palavras, uma esfera singela e familiar, em
que pode haver sofrimento e con ito, sem que ela própria seja posta
em questão, legitimada que está pela natural e simpática propensão
das pessoas à sobrevivência rotineira. Os negociantes são espertalhões,
as irmãzinhas abnegadas, a parentela aproveita, vícios, virtudes e
mazelas admitem-se tranquilamente, de modo que a prosa, ao
descrevê-los, não perde a isenção. Não é conformista, pois não
justi ca, nem é propriamente crítica, pois não quer transformar. O
registro sobe quando passamos ao círculo mundano, limitado aliás à
mocidade casadoura — o que tem seu interesse, como se verá. Aqui
presidem o cálculo do dinheiro e das aparências, e o amor. A
hipocrisia, complexa por de nição, combina-se à pretensão de
exemplaridade própria desta esfera, e à de espontaneidade, própria ao
sentimento romântico, saturando a linguagem de implicações morais.
Espontaneamente, estas obrigam à re exão normativa, à custa dos
prazeres simples da evocação. A matriz distante são a sala e a prosa de
Balzac. Finalmente, no centro deste centro, a voltagem vai ao teto
quando está em cena Aurélia, a heroína do livro. Para esta herdeira
bonita, inteligente e cortejada, o dinheiro é rigorosamente a mediação
maldita: questiona homens e coisas pela fatal suspeita, a que nada
escapa, de que sejam mercáveis. Simetricamente, exaspera-se na moça
o sentimento da pureza, expresso nos termos da moralidade mais
convencional. Pureza e degradação, uma é talvez ngida, uma é
intolerável: lançando-se de um a outro extremo, Aurélia dá origem a
um movimento vertiginoso, de grande alcance ideológico — o alcance
do dinheiro, esse “deus moderno” — e um pouco banal; falta
complexidade a seus polos. A riqueza ca reduzida a um problema de
virtude e corrupção, que é in ado, até tornar-se a medida de tudo.
Resulta um andamento denso de revolta e de profundo conformismo
— a indignação do bem-pensante — que não é só de Alencar. É uma
das misturas do século, a marca do dramalhão romântico, da futura
radionovela, e ainda há pouco podia ser visto no discurso udenista
contra a corrupção dos tempos. Mas voltemos atrás, para corrigir a
distinção do princípio, entre o tom das personagens periféricas e das
centrais. A questão não é gradual, é qualitativa. No caso das
primeiras, trata-se de aproveitar as evidências do consenso, localista e
muitas vezes burlesco, tais como a tradição, o hábito, o afeto, em toda
a sua irregularidade, as haviam consolidado. Seu mundo é o que é,
não aponta para outro, diferente dele, no qual se devesse transformar,
ou, por outra ainda, não é problemático: exclui a intenção
universalista e normativa, própria da prosa romântico-liberal da faixa
de Aurélia. Veremos ainda que esta é a tonalidade de um romance
importante em nossa literatura, as Memórias de um sargento de
milícias. E nada impede, seja dito de passagem, que este consenso
traga ele próprio a cunha de tradições literárias. No segundo caso,
pelo contrário, procura-se perceber o presente como problema, como
estado de coisas a recusar. Esta a razão do peso maior, da “seriedade”
destas passagens — ainda que literariamente seja sempre um alívio
quando Alencar volta à outra maneira, que lhe dá páginas de muita
graça e força narrativa. Entretanto, é neste segundo estilo carregado
de princípios, polarizado pela alternância de sublime e infâmia, que
ele se lia à linha forte do Realismo de seu tempo, ligada, justamente,
ao esforço de gurar o presente em suas contradições; em lugar de
di culdades locais, as crispações universais da civilização burguesa. É
este o estilo que irá prevalecer. Resumindo, digamos que em Senhora a
re exão toma o alento e a maneira à esfera mundana, do dinheiro, da
carreira, dando-lhe por conseguinte a primazia na composição. Como
as grandes personagens da Comédia humana, Aurélia vive o seu
dilaceramento e procura expressá-lo, transformando-o em elemento
intelectual da existência comum, e em elemento formal — como se
verá, a propósito do enredo — responsável pelo fechamento do
romance. No entanto, esse tom re exivo e problemático, bem
realizado em si mesmo, não convence inteiramente e é infeliz em seu
convívio com o outro. Faz efeito pretensioso, tem alguma coisa
descabida, que interessa analisar em mais detalhe.
Observe-se, quanto a isto, que predominância formal e peso social
em Senhora não coincidem. Se é natural, por exemplo, que a cena
mundana esteja em oposição à província e à pobreza, é esquisito que
inclua pequenos funcionários e lhas de comerciantes remediados. E é
esquisitíssimo que exclua os adultos: nas festas da Corte, as mães
nunca são mais que respeitáveis senhoras, que vigiam as lhas e não
cansam de criticar os modos desenvoltos de Aurélia, “impróprios de
meninas bem-educadas”.9 Como aliás os homens, que são caricaturas,
desde que não sejam rapazes. Em suma, o tom da moda é reservado à
mocidade núbil e bem-posta, de que é o ornamento, mas não é a
síntese da experiência social de uma classe, além de ser malvisto se vai
longe. Não tem curso entre as pessoas que já sejam sérias, as quais por
sua vez cam excluídas do brilho literário, e do movimento de ideias
que deve sustentar e arrematar o romance. Por sua composição,
portanto, o livro se con na aos limites da frivolidade, a despeito de
seu andamento ambicioso, que ca prejudicado. Este desacordo não
existe no modelo; para sentir a diferença, basta lembrar a importância
que têm o adultério madurão, a política, as arrogâncias do poder na
cena mundana de Balzac. Alencar conserva-lhe o tom e vários
procedimentos, porém deslocados pelo quadro local, imposto pela
verossimilhança. Adiante, voltaremos à diferença. Agora, vejamos a
complexidade, a variedade de aspectos deste empréstimo. Inicialmente
é preciso retirar, mas não de todo, o sentido pejorativo a esta noção.
Considere-se o que signi cava, como atualização e desenvoltura, fazer
que uma personagem, mulher ainda por luxo, tratasse livremente das
questões de que então, ou pouco antes, tratara o Realismo europeu.
Em certo sentido muito claro, é um feito, seja qual for o resultado
literário. Algo semelhante, para a geração dos que zeram vinte agora,
nos anos 1960, ao salto dos manuais de loso a e sociologia, em
língua espanhola, para os livros de Foucault, Althusser, Adorno. Entre
uma alienação antiga e outra moderna, o coração bem formado não
hesita. Ficava para trás a imitação miúda e complacente, o romancista
obrigava-se a uma concepção das coisas, impunha nível
contemporâneo à re exão. O romance alcançava a seriedade que a
poesia romântica já havia alcançado fazia mais tempo. Finalmente,
considere-se o próprio movimento da imitação, que é mais complicado
do que parece. No prefácio de Sonhos d’ouro, escreve Alencar:

Tachar estes livros de confeição estrangeira é, relevem os críticos, não conhecer a sociedade
uminense, que aí está a faceirar-se pelas salas e ruas com atavios parisienses, falando a
algemia universal, que é a língua do progresso, jargão erriçado de termos franceses,
ingleses, italianos, e agora também alemães.
Como se há de tirar a fotogra a desta sociedade, sem lhe copiar as feições?10

O primeiro passo portanto é dado pela vida social, e não pela


literatura, que vai imitar uma imitação.11 Mas fatalmente o progresso
e os atavios parisienses inscreviam-se aqui noutra pauta; retomando o
nosso termo do início, são ideologia de segundo grau.12 Chega o
romancista, que é parte ele próprio desse movimento faceiro da
sociedade, e não só lhe copia as novas feições, copiadas à Europa,
como as copia segundo a maneira europeia. Ora, esta segunda cópia
disfarça, mas não por completo, a natureza da primeira, o que para a
literatura é uma infelicidade, e lhe acentua a veia ornamental.
Adotando forma e tom do romance realista, Alencar acata a sua
apreciação tácita da vida das ideias. Eis o problema: trata como sérias
as ideias que entre nós são diferentes; como se fossem de primeiro
ideologias de segundo grau. Soma em consequência do lado empolado
e acrítico — a despeito do assunto escandaloso —, desprovido da
malícia sem a qual o tom moderno entre nós é inconsciência histórica.
Ainda uma vez chegamos ao nó que Machado de Assis vai desatar.
Em suma, também nas letras a dívida externa é inevitável, sempre
complicada, e não é parte apenas da obra em que aparece. Faz gura
no corpo geral da cultura, com mérito variável, e os empréstimos
podem facilmente ser uma audácia moral ou política, e mesmo de
gosto, ao mesmo tempo que um desacerto literário. Qual destes
contextos importa mais? Nada, a não ser a deformação pro ssional,
obriga ao critério unicamente estético. Assim, procuramos assinalar
um momento de desprovincianização, a disposição argumentativa na
tonalidade que predomina em Senhora, e nem por isso deixaremos de
revê-lo adiante em luz desfavorável, nem lhe disfarçaremos a fraqueza,
do ponto de vista da construção. Mas voltemos atrás: no gesto, o
andamento do livro é audacioso e inconciliável, gostaria de ser uma
voz na altura do tempo; já seu lugar na composição, pelo contrário,
faz ver neste impulso grave uma prenda de sala. A última palavra no
caso é a segunda. Por alguma razão, que o leitor já agora adivinha, a
dura dialética moral do dinheiro se presta ao galanteio da mocidade
faceira, mas não afeta o fazendeiro rico, o negociante, as mães
burguesas, a governanta pobre, que se orientam pelas regras do favor
ou da brutalidade simples. Contudo, são estas as personagens que
tornam povoado o romance. Embora secundárias, compõem o traçado
social em que circulam as guras centrais, de cuja importância serão a
medida. Noutras palavras, nosso procedimento foi o seguinte: liamos
o andamento do romance — depois de caracterizá-lo — ao círculo
restrito que exprime, tudo sempre nos termos que o próprio romance
propõe. Em seguida vimos como ca este círculo, se considerado
relativamente, no lugar que lhe cabe no espaço social, também ele de
cção. Qual a autoridade do seu discurso? O que decide é o re uxo
desta segunda vista: diante dela, o tom do livro e a pretensão que o
anima fazem efeito infundado. A sua dicção desdiz da sua
composição. O oposto justamente do que se observa no modelo: a
maneira sensacionalista e generalizante de Balzac, tão construída e
forçada, liga-se a extraordinário esforço de condensação, e de fato vai
se tornando menos incômoda à medida que nos convencemos de sua
continuidade profunda com os inúmeros per s ocasionais, de
“periferia”, que deslocam, re etem, invertem, modi cam — em suma,
trabalham — o con ito central, que duma forma ou doutra é o de
todos.13 Seja por exemplo o discurso desabusado e “centralíssimo”
dalguma de suas grandes damas: é revoltoso, futriqueiro, vulnerável,
calculista, destemido, como o serão, quando aparecerem
“casualmente”, o criminoso, a costureira, o pederasta, o banqueiro, o
soldado. O andamento vertiginoso afasta-se do natural, beira bastante
o ridículo, mas avaliza esta distância — o seu nível de abstração —
com grande lastro de conhecimentos e experiência, que ultrapassa de
muito a latitude individual, e não é fato apenas literário: é a soma de
um processo social de re exão, na perspectiva, digamos, do homem de
espírito. É este o cinquentão vivido e sociável que segundo Sartre é o
narrador do realismo francês.14 Dos pressupostos históricos desta
forma falaremos adiante. Por agora basta-nos dizer que esta re exão
se alimentava de um processo real, novo, também ele vertiginoso e
pouco “natural”, que revirava de alto a baixo a sociedade europeia,
frequentando igualmente a brasileira, cuja medula no entanto não
chegava a transformar: trata-se da generalização — com seus in nitos
efeitos — da forma-mercadoria, do dinheiro como nexo elementar do
conjunto da vida social. É a dimensão gigantesca, ao mesmo tempo
global e celular deste movimento, que irá sustentar a variedade, a
mobilidade tão teatral da composição balzaquiana — permitindo o
livre trânsito entre áreas sociais e de experiência aparentemente
incomensuráveis. Em resumo, herdávamos com o romance, mas não
só com ele, uma postura e dicção que não assentavam nas
circunstâncias locais e destoavam delas. Machado de Assis iria tirar
muito partido deste desajuste, naturalmente cômico. Para indicar
duma vez a linha de nosso raciocínio: o temário periférico e localista
de Alencar virá para o centro do romance machadiano; este
deslocamento afeta os motivos “europeus”, a grandiloquência séria e
central da obra alencarina, que não desaparecem, mas tomam
tonalidade grotesca. Estará resolvida a questão. Mas voltemos a
Senhora. Nosso argumento parece talvez arbitrário: como podem
umas poucas personagens secundárias, ocupando uma parte pequena
de um romance, quali car-lhe decisivamente o tom? De fato, se fossem
eliminadas, desaparecia a dissonância. Mas restaria um romance
francês. Não é a intenção do autor, que pelo contrário queria
nacionalizar o gênero. Entretanto, o pequeno mundo secundário,
introduzido como cor local, e não como elemento ativo, de estrutura
— uma franja, mas sem a qual o livro não se passa no Brasil —,
desloca o per l e o peso do andamento de primeiro plano. Eis o que
importa: se o traço local deve ter força bastante para enraizar o
romance, tem-na também para não lhe deixar incontrastada a dicção.
Pelas razões que vimos e por outras que veremos, esta passa a girar em
falso. Noutras palavras, o problema artístico, da unidade formal, tem
fundamento na singularidade de nosso chão ideológico e nalmente,
através dele, em nossa posição dependente-independente no concerto
das nações —, ainda que o livro não trate de nada disso. Expressa
literariamente a di culdade de integrar as tonalidades localista e
europeia, comandadas respectivamente pelas ideologias do favor e
liberal. Não que o romance pudesse eliminar de fato esta oposição:
mas teria de achar um arranjo, em que estes elementos não
compusessem uma incongruência, e sim um sistema regulado, com sua
lógica própria e seus — nossos — problemas tratados na sua
dimensão viável.
Menos que explicar, o que zemos até aqui foram atribuições: um
tom para cá, outro para lá, o enredo para a Europa, as anedotas para
o Brasil etc. Para escapar aos acasos da paternidade, contudo, é
preciso substituir a contingência da origem geográ ca pelos
pressupostos sociológicos das formas, estes sim atuais e indescartáveis.
Mais precisamente, digamos que do conjunto mais ou menos
contingente de condições em que uma forma nasce, esta retém e
reproduz algumas — sem as quais não teria sentido — que passam a
ser o seu efeito literário, o seu “efeito de realidade”,15 o mundo que
signi cam. Eis o que interessa: passando a pressuposto sociológico,
uma parte das condições históricas originais reaparece, com sua
mesma lógica, mas agora no plano da cção e como resultado formal.
Neste sentido, formas são o abstrato de relações sociais determinadas,
e é por aí que se completa, ao menos a meu ver, a espinhosa passagem
da história social para as questões propriamente literárias, da
composição — que são de lógica interna, e não de origem. Dizíamos
por exemplo que em Senhora há duas dicções, e que uma prevalece
indevidamente sobre a outra. O leitor cordato provavelmente
reconheça, porque acha também a semelhança, que uma delas vem do
Realismo europeu, enquanto a outra é mais presa a uma oralidade
familiar e localista. Como explicação, porém, este reconhecimento não
chega ao problema. Por que razão não seriam compatíveis as duas
maneiras, se incompatibilidade é um fato formal, e não geográ co? E
por que não pode ser brasileira a forma do Realismo europeu?
Questão esta última que tem o mérito de inverter a perspectiva: depois
de vermos que origem não é argumento, ca indicado quanto é
decisivo o seu peso real. En m, uns tantos empréstimos formais
importantes, indicados os pressupostos da forma emprestada, que
vieram a ser o seu efeito; descrição das matérias a que esta forma
esteja sendo aplicada; e por m os resultados literários deste
deslocamento — serão estes os nossos tópicos.
Para começar, vejamos o desenrolar da história. — Aurélia, moça
muito pobre e virtuosa, ama a Seixas, rapaz modesto e um pouco
fraco. Seixas pede-a em casamento, mas depois desmancha, em favor
de outra que tem um dote. Aurélia herda de repente. Teria perdoado a
Seixas a inconstância, mas não lhe perdoa o motivo pecuniário. Sem
dizer quem é, manda oferecer ao antigo noivo um casamento no
escuro, com dote grande, mas contra recibo. O rapaz, que está
endividado, aceita. É onde começa propriamente o enredo principal.
Para humilhar o amado e vingar-se, mas também para pô-lo em brios
e nalmente por sadismo — de tudo isso há um pouco —, Aurélia
passa a tratar o marido recém-comprado como a uma propriedade:
reduz o casamento de conveniência a seu aspecto mercantil, cujas
implicações por suprema ofensa vão comandar a trama. A tal ponto
que as quatro etapas da história são chamadas “O preço”,
“Quitação”, “Posse”, “Resgate”. Como indica este rigorismo na
condução do con ito, enredo e gura são de linhagem balzaquiana.
Com abundância de re exão e sofrimento levam à improvável
consequência última (embora haja uma conciliação no nal, de que
ainda falaremos) um grande tema da ideologia contemporânea.
Aurélia é da família férrea e absoluta dos vingadores, alquimistas,
usurários, artistas, ambiciosos etc., da Comédia humana; como eles,
agarra-se a uma questão — dessas que haviam cativado a imaginação
do século — fora da qual a vida passa a lhe parecer vazia. Em
consequência, lógica e destino histórico dalguma ideia reputada
tornam-se elementos determinantes na organização do entrecho,
ganham força de princípio formal — entre outros. Não que as
personagens encarnem uma noção abstrata, como Harpagão
encarnara a avareza. Mas uma abstração — que vai combinar-se a
toda sorte de particularidades de biologia, de psicologia e posição na
sociedade — é elemento voluntário e problemático de sua equação
pessoal: decide-lhes o destino. Como um clarão em céu noturno, estas
guras re exivas e enfáticas riscam a paisagem social e deixam, além
da vertigem de seu movimento, o traçado implacável das contradições
que opõem a sociedade a seus ideais. Retomando nosso o, trata-se
dum modelo narrativo em cuja matéria entram necessariamente as
ideologias de primeiro grau — certezas tais como a igualdade, a
república, a força redentora de ciência e arte, o amor romântico,
mérito e carreira pessoal, ideias en m que na Europa oitocentista
sustentam sem despropósito o valor da existência.16 Neste sentido, o
romance realista foi uma grande máquina de desfazer ilusões. Para
compreender-lhe a importância é preciso vê-lo em conjunto, em
movimento, atravessando fronteiras nacionais, desrespeitando a
hierarquia dos assuntos: uma a uma vai desdobrando as convicções
mais caras ao seu tempo, as combina às guras mais fortes e dotadas,
e deixa que se quebrem — ao longo do enredo — contra a mecânica
sem perdão da economia e das classes sociais. Daí o peso intelectual
deste movimento, sua postura audaciosa, amiga de verdade —
retomada por Alencar. Eis o nosso problema que torna: importávamos
um molde, cujo efeito involuntário é de dar às ideias estatuto e
horizonte — timbre, energia, crise — em desacordo com o que a vida
brasileira lhes conferia. Ou, do ponto de vista da composição: sem
correspondência na construção das personagens secundárias,
responsáveis pela cor local. Que diria a estas guras, interessadas
sobretudo em arranjar a sobrevivência, o discurso universalizante e
polêmico de Aurélia? Veremos como a própria audácia realista, nestas
circunstâncias, terá transformado o seu sentido.
Para outro exemplo, considere-se o “maquiavelismo” de Aurélia, a
desenvoltura com que ela se bene cia da engrenagem social. A moça,
que tivera a sorte de herdar, enoja-se a princípio com a venalidade dos
rapazes. Depois, pensando bem, faz um plano e compra o marido de
seu coração. A vítima do dinheiro vai à sua escola e con a-lhe
nalmente — aos seus mecanismos odiosos — a obtenção da
felicidade. Alinha assim no campo ilustre das criaturas “superiores”,
que escapam ao império de fortuna e carreira na medida em que
alcançaram compreendê-lo e manobrar em proveito próprio. A seu
tempo e em seu lugar estas personagens, de que está cheia a cção
realista, foram guras da verdade. Livravam-se de tradições
envelhecidas, não eram enganadas pela moral e pagavam a sua
clarividência com o endurecimento do coração. Trata-se de uma
situação básica do romance oitocentista: as veleidades amorosas e de
posição social, propiciadas pela revolução burguesa, chocam-se contra
a desigualdade, que embora transformada continua um fato; é preciso
adiá-las, calcular, instrumentalizar a si e aos outros… para a nal
descobrir, quando riqueza e poder tiverem chegado, que não está mais
inteiro o jovem esperançoso dos capítulos iniciais. Com mil variações,
esta fórmula em três tempos será capital. Entre os ardores do princípio
e a desilusão do m, sempre o mesmo interlúdio, de vigência irrestrita
dos princípios da vida moderna: a engrenagem do dinheiro e do
interesse “racional” faz o seu trabalho, anônimo e determinante, e
imprime o selo contemporâneo à travessia de provações que é o
destino imemorial dos heróis. São as consequências, na perspectiva do
individualismo burguês, da generalizada precedência do valor de troca
sobre o valor de uso — também chamada alienação —, a qual se
transforma em pedra de toque para a interpretação dos tempos. Efeito
literário e pressuposto social desse enredo, do momento de cálculo que
é a sua alavanca, estão na autonomia — sentida como coisi cação,
como esfriamento — das esferas econômica e política, as quais
parecem funcionar separadas do resto, segundo uma racionalidade
“desumana”, de tipo mecânico. Para a economia a causa está no
automatismo do mercado, a que objetos e força de trabalho estão
subordinados ao mesmo título, e que do ponto de vista do mérito
pessoal é uma arbitrária montanha-russa. Quanto à política, no
período histórico aberto pelo Estado moderno, conforme ensinamento
de Maquiavel, as suas regras nada têm a ver com normas de moral.
Nas duas esferas, como também na da carreira, que em certo sentido é
intermediária, a vida social vem afetada de sinal negativo e
implacável, e é em con ito com ela que alguma coisa se salva.17 Esta,
e não outra, é a paisagem na qual tem poesia o descompromisso
romanesco, às vezes exaltante, às vezes sinistro, entre indivíduo e
ordem social. Solitários e livres, um desígnio atrás da testa, os
personagens de romance planejam os seus golpes nanceiros,
amorosos ou mundanos. Uns triunfam pela inteligência e dureza,
outros pelo casamento ou pelo crime, outros ainda fracassam, e
nalmente existem os simbólicos, que fazem um pacto com o diabo.
Em todos uma certa grandeza, digamos satânica, vinda de sua radical
solidão e do rme propósito de usar a cabeça para alcançar a
felicidade. Mesmo Seixas, um neto atenuado de Rastignac, faz um
cálculo desse tipo: tratam-no como mercadoria? Aceita o papel, e com
tal rigor que Aurélia, exasperada e nalmente derrotada pela sua
obediência, acaba implorando que ele volte a se comportar como um
ser humano. — Em termos de nosso problema: são fábulas que devem
a sua força simbólica a um mundo que no Brasil não tivera lugar. Sua
forma é a metáfora tácita da sociedade desmitologizada (entzaubert,
na expressão de Max Weber) e misti cada que resulta da
racionalidade burguesa, ou seja, da generalização da troca mercantil.
Isso posto, só em teoria dá-se o confronto direto entre uma forma
literária e uma estrutura social, já que esta, por ser ao mesmo tempo
impalpável e real, não comparece em pessoa entre as duas capas de
um livro. O fato de experiência, propriamente literário, é outro, e é a
ele que a boa teoria deve chegar: está no acordo ou desacordo entre a
forma e a matéria a que se aplica, matéria que esta sim é marcada e
formada pela sociedade real, de cuja lógica passa a ser a representante,
mais ou menos incômoda, no interior da literatura. É a forma desta
matéria, portanto, que vai nos interessar, para confronto com a outra,
que a envolve. Quais então estes embriões formais, que asseguram a
delidade localista e contrastam as certezas em que assenta o modelo
— que imitávamos — do romance europeu? Falávamos, páginas atrás,
de um “tom mais desafogado”. Voltemos ao problema, a propósito
agora do enredo. — A parte inicial do romance, chamada “O preço”,
termina em suspense e clímax, na noite mesma do casamento: Seixas
“modulava o seu canto de amor, essa ode sublime do coração”,
quando Aurélia o interrompe e lhe declara, de recibo na mão, que ele
é um “homem vendido”. Frente a frente “as castas primícias do santo
amor conjugal” e os intoleráveis “cem contos de réis” do dote. Nos
limites do primarismo vibrante que a ideologia romântica havia
consagrado, não podia estar mais carregado o antagonismo entre ideal
e dinheiro.18 Fim de capítulo. Já a segunda parte abre singela e
descontraidamente, noutro registro, muito bene ciada pelo contraste.
Volta atrás no tempo, a m de contar a história de Aurélia e de sua
família, das origens modestas até a herança de mil contos. Saímos da
esfera elegante, a cena agora é pobre, de bairro ou de interior. Como
se verá, as histórias aqui — subenredos que não chegam a determinar
a forma do livro — são de outra espécie. Pedro Camargo, por
exemplo, é lho natural de um fazendeiro abastado, a quem teme mais
que a morte. Vem à Corte para estudar medicina. Gosta de uma moça
pobre, não tem coragem de contar ao pai, casa com ela em segredo,
que foge de casa, pois também na família dela há oposição, já que o
rapaz não é lho legitimado e pode não herdar. Do casamento nascem
Aurélia e um menino de “espírito curto”.19 Sempre com medo de
confessar ao velho, volta o estudante à fazenda, onde acaba
morrendo. Deixa mulher e lhos no Rio, na posição equívoca da
família sem pai conhecido. As mulheres costuram para viver, o lho
vira caixeiro etc. Observe-se, neste sumário, que, embora estejam
presentes os elementos do romance realista, a diferença é total: nem o
avô — de quem Aurélia irá herdar a fortuna mais adiante — faz gura
detestável por ter lhos naturais, nem o lho é condenado em nome
do Amor que não moveu montanhas, ou da Medicina, que não era
uma vocação, nem a sua mulher é diminuída por ter desrespeitado
família e conveniências, e nem a família dela, que a nal de contas era
pobre e numerosa, pode condenar-se porque não incorpora um
estudante sem tostão. Noutras palavras, amor, dinheiro, família,
compostura, pro ssão não estão aqui naquele sentido absoluto, de
sacerdócio leigo, que lhes dera a ideologia burguesa e cuja exigência
imperativa dramatiza e eleva o tom à parte principal do livro. Não são
ideologia de primeiro grau. As consequências formais são muitas.
Primeiramente baixa a sua tensão, que perde a estridência normativa,
e com ela a posição central, de linha divisória entre o aceitável e o
inaceitável. Não sendo um momento obrigatório e coletivo do destino,
o con ito ideológico não centraliza a economia narrativa, em que irá
fazer gura circunstancial, de incidente. Nem permite o amálgama de
individualismo e Declaração dos Direitos do Homem, de que depende,
para a sua vibração, o enredo clássico do romance realista. As
soluções não são de princípio, mas de conveniência, e conformam-se à
relação de forças do momento. Arranjos que no mundo burguês
seriam tidos como degradantes, nesta esfera são como coisas da vida.
Notem-se também o caráter episódico da história, a dispersão de seus
con itos, que de fato supõem a mencionada distensão, sem a qual a
poesia do andamento errático, tão brasileira, caria anuviada de
moralismo. Para a prosa, resulta que a sua qualidade literária não será
da ordem da força crítica e do problema, mas antes da felicidade
verbal, de golpe de vista, de andamento, virtudes estas diretamente
miméticas, que guardam contato simpático e fácil com a fala e as
concepções triviais. Uma fuga de acontecimentos, evocada com arte e
inde nidamente prolongável, que vem desembocar nalguma coisa
como o repertório dos destinos sugestivos neste mundo de Deus.
Estamos próximos da oralidade e talvez do “causo”, estrutura mais
simples que a romanesca, mas a nada com as ilusões — também elas
individualistas — de nosso universo social. Um complemento literário
da predominância ideológica do favor: a falta de absolutismo nas
normas re ete, se podemos dizer assim, a arbitrariedade do arbítrio,
ao qual é preciso se acomodar. Daí o encanto para modernos desta
maneira narrativa, em que os Absolutos que ainda hoje nos
vampirizam a energia e o moral aparecem relativizados, referidos que
estão ao fundo movediço e humano — repetimos que ilusório — dos
arranjos pessoais. Para conceber en m a distância ideológica
transposta nesta mudança de registro, digamos que ela corta ou dá
circuito, como um comutador, nada menos que ao fetichismo próprio
à civilização do capital — fetichismo que isola e absolutiza os
chamados “valores” (Arte, Moral, Ciência, Amor, Propriedade etc., e
sobretudo o próprio valor econômico), e que ao separá-los do
conjunto da vida social tanto os torna irracionais em substância
quanto depositários, para o indivíduo, de toda a racionalidade
disponível: uma espécie de sco insaciável, a quem devemos e
pagamos conscienciosamente a existência.20
Um só romance, mas dois efeitos de realidade, incompatíveis e
superpostos — eis a questão. Aurélia sai fora do comum: seu trajeto
irá ser a curva do romance, e as suas razões, que para serem sérias
pressupõem a ordem clássica do mundo burguês, são transformadas
em princípio formal. Já à volta dela, o ambiente é de clientela e
proteção. O velho Camargo, d. Firmina e o sr. Lemos, o decente
Abreu e o honesto dr. Torquato, a família de Seixas, as facilidades que
este encontra para arranjar sinecuras — são personagens, vidas, estilos
que implicam uma ordem inteiramente diversa. Formalmente, o
privilégio cabe à ordem do enredo. Artisticamente, tal privilégio não
se materializa, pois Alencar não completa a preeminência formal dos
valores burgueses com a crítica da ordem do favor, de que é
admirador e amigo. Assim, a forma não só ca sem rendimento, como
é restringida em sua vigência: o sinal negativo, que por lógica e ainda
tacitamente ela aporia à matéria de que diverge, é desautorizado,
contrabalançado pelas boas palavras. Ora, o revezamento de
pressupostos incompatíveis quebra a espinha à cção. Uma base
dissociada, a que irão corresponder no plano literário a incoerência, o
tom postiço e sobretudo a desproporção. Se em Balzac os medianos
olham medusados para os radicais, que são a sua verdade concentrada
— os “tipos”, de que fala Lukács —, em Alencar olham com espanto
para Aurélia, cuja veemência parece despropósito a alguns, gracinha
de sala a outros, literatura importada aos dois. O aspecto
programático dos sofrimentos dela, que lhes deveria avalizar a
dignidade mais que pessoal, faz efeito de veleidade isolada, de
capricho de moça. Ora, amor, dinheiro ou aparências não sendo
absolutos e exclusivos, nada mais razoável que levar em conta os três
aspectos, e mais outros, na hora de casar; o con ito que os absolutiza
parece desnecessário e sem naturalidade. Idem para a prosa, que
parece exagerada. E mesmo do ponto de vista da coerência linear
haverá di culdades, pois, embora seja boa moça, compassiva e
desprendida, Aurélia despede chispas de fulgor satânico e aplica
rigorosamente a moral do contrato. Alguém dirá que é a dialética,
Shylock e Portia numa só personagem. Não é, pois se há movimento
entre os termos, movimento até vertiginoso, o processo não os
transforma — Alencar adere aos dois, a um por sentimento dos
costumes, a outro por apreço pela modernidade, que saem puros do
livro, tal como entraram. Veja-se ainda neste sentido o peso incerto
das re exões desabusadas de Aurélia: se têm razão de ser (como
teriam, se a sua força formal fosse efetiva), as senhoras que não
gostam, porque as acham impróprias, deveriam fazer gura de
hipócritas; mas não, são boas mães. Já os rapazes do tom, que acham
picante e não se ofendem, são acusados de insensibilidade moral.
Seixas, por sua vez, que romanticamente aceitara humilhar-se a m de
reaver o apreço da amada, no nal apresenta entre as razões de sua
obediência… a honorabilidade comercial, revalorizando assim o nexo
mercantil cuja crítica é a razão de ser do enredo.21 Para ver o estrago
causado no próprio tecido da prosa, estudem-se as páginas de
abertura. A boa sociedade uminense é referida sucessivamente como
elegante, atrasada e vil, sem que seja assinalada a contradição.
Também o narrador não é sempre o mesmo. Ora fala a linguagem
conivente do cronista mundano, ora fala como estudioso das leis do
coração e da vida social, ora é um duro moralista, ora um homem
evoluído, ciente do provincianismo brasileiro, ora en m é respeitador
dos costumes vigentes. A nal, para uso do romance, a verdade onde
estará? E no entanto, um pouco de autocrítica e humor
transformariam esta incoerência dos juízos, que se veri ca de frase a
frase, na inconstância abissal da narrativa machadiana.
De modo mais ingênuo, desarranjos semelhantes aparecem n’A pata
da gazela e em Diva. Neste segundo livro, que começa com graça, o
clima geral, como em Senhora, é família, de melindres, festinhas e
namoricos. No entanto o enredo dispara: os dengues e acanhamentos
da heroína, comuns e convincentes de início, são aumentados até o
descalabro, e vertidos para a mais descombinada e exaltada retórica
romântica, da pureza, da dúvida e da desilusão totais, tudo acabando
em casamento. Entre a banalidade da vida social e a movimentação do
enredo, um abismo. Não falam da mesma coisa. Ainda assim, sempre
aquém do nível que só a coerência artística dá, a intriga guarda certa
força: o seu andamento tem alguma coisa crua e descarada, a despeito
do conformismo, algo das cções violentas, prolixas, cheias de
castigos deliciosos e triunfos abjetos, com que a fantasia humilhada
compensa ressentimentos e incertezas da vida. N’A pata da gazela a
desproporção resulta do percurso contrário: em lugar da
monumentalização romântica de con itos pequenos, assistimos ao
esvaziamento acelerado da situação romântica inicial, que no entanto
é o elemento de interesse do livro. Horácio, devasso leão da moda, é
oposto a Leopoldo, rapaz modesto por fora e iluminado por dentro, a
ponto de ter os olhos fosforescentes. Diz o primeiro ao segundo: “tu
amas o sorriso, eu o pé”, o que é gurado e literal.22 De fato,
materialismo e xações proibidas confrontam-se com o amor das
belezas morais — a propósito do pé. Se este é bonito, a Horácio não
importa a dama; já Leopoldo, se esta lhe fala à alma, casa com ela
ainda que o seu pé seja um “aleijão”, uma “pata de elefante”, “cheio
de bossas como um tubérculo”, “uma posta de carne, um cepo!”.23
Entretanto, aos poucos a componente perversa e cruel é desarmada,
deixando o campo ao contraste bem-comportado, de seguro
desenlace, entre o moço frívolo e o moço sincero. Insensivelmente, e
nem tanto, o assunto passa a ser outro. A insolência do con ito
ideológico é como uma viga falsa, que prende a leitura mas não
sustenta, em última análise, a narrativa. Não sendo metáforas da
totalidade social, perversão, vida mundana, tédio, alfaiates e
sapateiros da moda reduzem-se a chamariz, superpostos sem muito
disfarce à falta de prestígio de nossa rotina brasileira. Não que esta
fosse desprovida de profundidade — como adiante se verá, com
Machado de Assis. Mas seria preciso construí-la. Por agora, estamos
de volta ao quadro que já estudamos: o tom da moda confere
modernidade e alcance à narrativa, que no entanto o desquali ca; nem
é necessário, nem é supér uo. Ou melhor, é necessário para tornar
apresentável24 a literatura narrativa, mas ca descalibrado quando se
trata de incorporar a ela o elemento local. Mesma coisa para o
con ito das ideologias morais, que ora é audacioso e grave, à la
Balzac, ora é superfetação pura, às vezes intencional e humorística, às
vezes involuntária. Desnecessário dizer que a cada guinada destas se
desmancha a credibilidade do contexto anterior, que se vinha tecendo.
Os salvados literários, que são bastantes, também aqui se devem à
garra mimética do autor, que sobrevive às incongruências da
composição. A própria questão do pé, legitimada para as letras pelo
temário satânico do Romantismo, vem a funcionar numa faixa
inesperada, mesquinha e direta, mas viva, a exemplo do que vimos
para o andamento de Diva. É origem não só de um debate insípido
entre alma e corpo, como também de re exões mais íntimas e
espontâneas, traduzidas por exemplo nos nomes dados ao defeito
físico ou na maneira pela qual a sua descoberta afeta o namorado. Por
entre as generalidades ltra alguma coisa de mordente, que faz parte
duma tradição de nossa literatura, a tradição — se podemos dizer
assim — do instante cafajeste, re exivo nalguns, natural em outros.
Para documentá-la, sejam lembrados o episódio das hemorroidas n’A
Moreninha de Macedo; a sensação esquisita do herói de Cinco
minutos, primeira história de Alencar, quando considera que a
passageira noturna e velada, em cujo ombro colara “os lábios
ardentes”, nos fundos de um ônibus, talvez fosse feia e velha; os
terríveis capítulos de Eugênia, a menina coxa, nas Memórias póstumas
de Brás Cubas; a multidão das grosserias parnasiano-naturalistas,
combinação que em si mesma já tem algo cafajeste; e em nossos dias
as piadas de Oswald, a podridão programática de Nelson Rodrigues,
o tom mesquinho de Dalton Trevisan, além de uma linha maciça e
consolidada de música popular.
A cção realista de Alencar é inconsistente em seu centro; mas a sua
inconsistência reitera em forma depurada e bem desenvolvida a
di culdade essencial de nossa vida ideológica, de que é o efeito e a
repetição. Longe de ocasional, é uma inconsistência substanciosa. Ora,
repetir ideologias, mesmo que de maneira concisa e viva, do ponto de
vista da teoria é repetir ideologias e nada mais. Já do ponto de vista da
literatura, que é imitação — nesta fase ao menos — e não juízo, é
meio caminho andado. Daí à representação consciente e criteriosa vai
um passo. Embora tenhamos insistido num lado só, o resultado de
nossa análise é, portanto, duplo. Passemos a seu lado positivo. O
próprio Alencar terá sentido alguma coisa do que procuramos
descrever nestas páginas. Explicando-se a propósito de Senhora e da
gura de Seixas, que fora criticada por seu pouco relevo moral,
responde que “talha os seus personagens no tamanho da sociedade
uminense”, e gaba-lhes “justamente […] esse cunho nacional”. “Os
teus colossos”, diz Alencar ao seu crítico, “neste nosso mundo
[brasileiro] teriam ares de convidados de pedra.”25 Ora, tudo está em
saber o que seja essa medida diminuída, esse “tamanho uminense”
em que se reconhece a marca do país. Por que será menor, sob pena de
parecer fantasma, um arrivista uminense que um francês? Tomando a
questão de mais perto, note-se que a estatura dos heróis alencarinos
não é estável. São medíocres? De exceção? Ora uma coisa, ora outra.
Oscilam entre o titânico e o familiar, conforme as exigências
respectivas do desenvolvimento dramático, à europeia, e da
caracterização localista. Assim Aurélia, que vive no absoluto mais
exaltado — lasciva como uma salamandra, cantando árias da Norma
em voz bramida e esmagando o mundo “como a um réptil venenoso”
—,26 pergunta a d. Firmina se é mais bonita que a Amaralzinha, sua
companheira de festas;27 logo adiante, para sublinhar-lhe a lucidez,
elogiam-se os seus conhecimentos de aritmética.28 Mesma coisa com
Seixas, que para ns românticos é “uma natureza superior” e
“predestinada”,29 e no mais um rapaz como os outros. Em Diva, a
medicina é um sacerdócio, mas o doutor passa o tempo namorando
uma menina ingrata.30 Também o heterodoxo adorador de botinas,
em A pata da gazela, cedo mostra ser um moço respeitoso, que sente
“efusões de contentamento” quando o pai da amada lhe oferece a
casa.31 Na verdade, portanto, o “tamanho uminense” resulta da
alternância irresolvida de duas ideologias diversas. A sua causa,
voltando aos nossos termos, está na vigência prejudicada, por assim
dizer esvaziada, que tinham no Brasil as ideologias europeias,
deslocadas pelo mecanismo de nossa estrutura social. Isto quanto à
realidade. Quanto à cção, é preciso tomar com reserva a expressão
de Alencar, distinguir entre concepção construtiva e justi cação de um
efeito, isto é, entre os graus de intenção. Já vimos que não falta
extremismo a estas guras — ao contrário do que diz o seu autor —
particularmente em Senhora; o que lhes quali ca a estatura, em
prejuízo da grandeza almejada, é a rede das relações secundárias, que
abala o mérito e o fundamento ao con ito central, que sai
relativizado. Daí o efeito de desproporção, de dualidade formal, que
procuramos assinalar e que é o resultado estético destes livros, e
também a sua consonância profunda com a vida brasileira. Apagada
no primeiro plano da composição, que é determinado pela adoção
acrítica do modelo europeu, a nossa diferença nacional retorna pelos
fundos, na gura da inviabilidade literária, a que Alencar no entanto
reconhece o mérito da semelhança. Assim, o tributo pago à
inautenticidade inescapável de nossa literatura é reconhecido, xado e
em seguida capitalizado como vantagem. Esta a transição que nos
interessa estudar, do re exo involuntário à elaboração re exiva, da
incongruência para a verdade artística. Estamos na origem, aqui, de
uma dinâmica diversa para a nossa composição romanesca. Note-se
portanto o problema: onde vimos um defeito de composição, Alencar
vê um acerto da imitação. De fato, a fratura formal em que insistimos,
e que Alencar insistia em produzir, guiado pelo senso do “tamanho
uminense”, tem extraordinário valor mimético, e nada é mais
brasileiro que esta literatura mal resolvida. A di culdade, no caso, é só
aparente: em toda forma literária há um aspecto mimético, assim
como a imitação contém sempre germes formais; o impasse na
construção pode ser um acerto imitativo — como já vimos que é, neste
caso — que, sem redimi-lo, lhe dá pertinência artística, enquanto
matéria a ser formada, ou enquanto matéria de re exão. Vejamos em
que sentido. — Alencar não insiste na contradição entre a forma
europeia e a sociabilidade local, mas insiste em pô-las em presença, no
que é membro de sua classe, que apreciava o progresso e as
atualidades culturais, a que tinha direito, e apreciava as relações
tradicionais, que lhe validavam a eminência. Não se trata de
indecisão, mas de adesão simultânea a termos inteiramente
heterogêneos, incompatíveis quanto aos princípios — e harmonizados
na prática de nosso “paternalismo esclarecido”. Estamos diante duma
gura inicial daquela modernização conservadora cuja história ainda
hoje não acabou.32 É o problema de nosso primeiro capítulo,* que
reaparece no plano da literatura: onde a lógica desta combinação,
esdrúxula mas real? Assim, repetindo sem crítica os interesses de sua
classe, Alencar manifesta um fato crucial de nossa vida — a
conciliação de clientelismo e ideologia liberal — ao mesmo tempo que
lhe desconhece a natureza problemática, razão pela qual naufraga no
conformismo do senso comum, de cuja falsidade as suas incoerências
literárias são o sintoma. Noutras palavras digamos que forma
europeia e sociabilidade local são tomadas tais e quais, com talento e
sem reelaboração. Frente a frente, no espaço estreito e lógico de um
romance, contradizem-se em princípio, ao passo que a sua contradição
não é levada adiante por… senso da realidade. Nem conciliadas, nem
em guerra, não dão a referência, uma à outra, de que precisariam para
desmanchar a sua imagem convencional e ganhar integridade artística:
a primeira ca sem verossimilhança, a segunda ca sem importância, e
o todo é peco e desequilibrado. Todo, no entanto — eis a surpresa —,
em que há felicidade imitativa, o “cunho nacional” que leva Alencar a
insistir na receita, a estabilizá-la para as nossas letras. Para a tradição
de nosso Realismo, é o seu legado mais profundo. Assim, falência
formal e força mimética estão reunidas. O leitor dá-se conta de que ao
dizê-lo estamos relendo o livro por outro prisma. A inconsistência
agora é vista não como fraqueza duma obra ou dum autor — como
repetição de ideologias —, mas como imitação de um aspecto essencial
da realidade. Não é efeito nal, mas recurso ou ponto de passagem
para outro efeito mais amplo. Trata-se de uma leitura de segundo
grau, que recupera para a re exão a verdade nem sempre voluntária
do “tamanho uminense”. Note-se também que o defeito formal é
ingrediente, aqui, a mesmo título que os ingredientes que o produzem
a ele, defeito. De forma, a inconsistência passa a matéria. Tanto assim
que em lugar da combinação de dois elementos — forma europeia e
matéria local —, que resulta precária, temos uma combinação de três:
o resultado precário da combinação de forma europeia e matéria
local, que resulta engraçado. Substituindo o primeiro efeito, rebaixado
a elemento, aparece um segundo, diverso e desabusado, cuja graça
está nas desgraças do primeiro. É verdade que seu rendimento
intelectual e artístico faz falta quase completa em Alencar. Para
apreciá-lo, será preciso esperar pela segunda fase de Machado de
Assis. Não obstante, é a própria substância — a desenvolver — do
“tamanho uminense”. Em abstrato seria o seguinte: se o efeito
desencontrado é um dado inicial e previsto da construção, deveria
dimensionar e quali car os elementos que o produzem, além de lhes
rede nir as relações. Deveria relativizar a pretensão enfática do
temário europeu, retirar ao temário localista a inocência da
marginalidade e dar sentido calculado e cômico aos desníveis
narrativos, que assinalam o desencontro dos postulados reunidos no
livro. O leitor está reconhecendo, espero, a tonalidade machadiana.
Talvez se convença mais levando em conta uma questão de escala: se a
qualidade imitativa resulta da fratura do conjunto e fraqueja em suas
partes, em que no entanto se demora a leitura, esta será tediosa —
como de fato é — e há erro de economia literária. Para aproveitar a
solução, seria preciso concentrá-la, de modo a dar-lhe presença a todo
momento da narrativa; transformar o efeito de arquitetura em
química da escrita. Ora, a prosa machadiana como que depende da
miniaturização prévia dos circuitos do romance de Alencar, cujo
espaço ideológico inteiro, inconsistência inclusa, ela percorre quase
que a cada frase. Reduzida, rotinizada, estilizada como unidade
rítmica, a desproporção entre as grandes ideias burguesas e o vaivém
do favor transforma-se em dicção, em música sardônica e familiar. Da
inconsistência formal à incoerência humorística e confessa, o resultado
tornou-se ponto de partida, matéria mais complexa, que outra forma
irá explorar. Não sugiro com isto que o romance de Machado seja o
produto simples da crítica ao romance de Alencar. A tradição literária
não corre assim separada da vida. Na verdade os problemas de
Alencar eram com pouca transposição os problemas de seu tempo,
continuidade fácil de documentar com discursos e matéria de
imprensa, que sofriam das mesmas contradições e desproporções.
Machado podia emendar num como noutro. Nem se trata
propriamente de in uência, que houve e não é difícil de catar. O que
interessa examinar de mais perto, aqui, é a formação de um substrato
literário com densidade histórica su ciente, capaz de sustentar uma
obra-prima. Voltemos atrás, à força mimética do impasse formal. Este
último resulta, conforme a nossa análise, da incorporação acrítica
duma combinação ideológica normal no Brasil — submetida à
exigência de unidade própria ao romance realista e à literatura
moderna. Repetindo ideologias, que são elas mesmas repetições de
aparências, a literatura é ideologia ela também. Segundo momento, o
impasse é tido como característico da vida nacional. Em consequência,
passa a ser um efeito conscientemente procurado, o que é o mesmo
que relativizar a combinação de ideologias e formas que o produz,
uma vez que não valem por si mesmas, mas pelo fraco resultado de
seu convívio. A repetição ideológica de ideologias é interrompida por
efeito da delidade mimética. Assim, “tamanho uminense” é um
nome para este hiatozinho, que sem ser uma ruptura levada até o m
virtualmente basta para redistribuir os acentos e remanejar as
perspectivas, fazendo vislumbrar o campo de uma literatura possível,
que não seja recon rmação de ilusões con rmadas — passo que
Machado irá dar. No que toca ao escritor, esta modi cação pode ter
muitas razões. Do ponto de vista objetivo, que nos importa agora, ela
leva a incorporar às letras, enquanto tal, o momento de
impropriedade que a ideologia europeia tem entre nós. Noutras
palavras, o processo é uma variante complexa da chamada dialética de
forma e conteúdo: nossa matéria alcança densidade su ciente só
quando inclui, no próprio plano dos conteúdos, a falência da forma
europeia, sem a qual não estamos completos. Fica de pé naturalmente
o problema de encontrar a forma apropriada para esta nova matéria,
de que é parte essencial a inanidade das formas a que por força nos
apegamos. Antes da forma, portanto, foi preciso produzir a própria
matéria-prima, enriquecê-la com a degradação de um universo formal.
Note-se a propósito desta operação que o seu móvel é puramente
mimético. Semelhança, assim, não é um fato de superfície. O trabalho
de ajustamento da imitação, à primeira vista limitado pelo acaso das
aparências, como que prepara o curso de um novo rio. Seus efeitos
para a composição, determinados pela exigência lógica — histórica —
da matéria utilizada a bem da semelhança, ultrapassam in nitamente
o círculo estreito do mimetismo, que no entanto os traz à luz. Neste
sentido, para uso do escritor, o “tamanho uminense” pode ser um
vago critério nacionalista e imitativo, que dispensa maiores de nições;
objetivamente, contudo, produz algo como uma ampliação do espaço
interno da matéria literária, a qual passa a comportar uma
permanente referência transatlântica, que será sua pimenta e verdade.
Noutros termos, para construir um romance verdadeiro é preciso que
sua matéria seja verdadeira. Isto é, para nosso caso de país
dependente, que seja uma síntese em que gure com regularidade a
marca de nossa posição diminuída no sistema nascente do
imperialismo. Por força da imitação, da delidade ao “cunho
nacional”, as ideologias do favor e liberal estão reunidas em
permanência, formando um quebra-cabeça que ao ser armado — à
força de lógica, e já não de mimetismo — irá dar uma gura nova e
não diminuída da diminuição burguesa, cujo ciclo ainda hoje nos
interessa, pois não se encerrou.
Ficou para o m o defeito mais evidente de Senhora, o seu desfecho
açucarado. Imagine-se quanto a isto um nal diferente, que “o hino
misterioso do santo amor conjugal” não estragasse: o romance teria
uma fraqueza a menos, mas não seria melhor. Nenhum dos problemas
que viemos apontando estaria resolvido. O fecho róseo ou pelo menos
edi cante não é especialmente ligado à literatura brasileira, mas ao
romance de conciliação social, de Feuillet e Dumas Filho por exemplo,
que foram in uências diretas. Estes sim destruíram a sua literatura à
força de cálculos conformistas. Tome-se o Roman d’un jeune homme
pauvre, de Feuillet, e tornem-se agudas as contradições que ele atenua:
estaríamos diante de um bom romance realista.33 É que Feuillet, como
Alencar, é herdeiro de uma tradição formal com os pressupostos
críticos da revolução burguesa. Senhora e o Romance de um moço
pobre circulam entre o quarto modesto e o palacete, a cidade e a
província, o escritório do negociante e os jardins da amada, o
sentimento aristocrático e o burguês etc. No livro de Feuillet, os
antagonismos implicados nesta disposição de espaços e temas são
como sombras de dúvida e subversão, debeladas pela virtude das
personagens positivas. Triunfa uma liga exemplar de aristocratas
igualitários e burgueses sem ganância. No entanto, os problemas da
revolução burguesa não só estão formalizados no travejamento do
romance realista, a que se lia Feuillet, como sobretudo trabalham a
própria realidade, o corpo social da Europa, que é a matéria viva
desta literatura. Assim, disfarçar as contradições sociais e desmanchar
o relevo literário são neste caso uma e a mesma coisa. O caso é outro
com Alencar, que aliás concilia apenas no nal e não é conformista no
percurso, em que é audacioso e amigo de contradições.34 Que fazer
com esta forma, se as oposições de princípio que a compõem não
vincam também a matéria que deve organizar? Se a fazenda do velho
Camargo não é o lugar das virtudes provincianas e aristocráticas, mas
do capital e também dos costumes dissolutos da escravaria, qual o
resultado de seu confronto com a cupidez e a leviandade da Corte?
Seja qual for, não soma com o con ito central, nem lhe responde.
Analogamente, ao mudar de seu quarto pobre para o palacete da
esposa, Seixas não muda propriamente de classe social e sobretudo de
ideologia como faria supor o contraste dos lugares; muda só de nível
de consumo, como se diria hoje, o que tira a força poética à
localização da ação. Etc. etc. Se as oposições que de nem a forma não
governam também o chão social a que ela se aplica, rigor formal e
desequilíbrio artístico estarão juntos, e haverá conformismo no
próprio desassombro com que se ponham contradições ditas
tremendas — mas prestigiadas. Daí aliás um efeito esquisito destes
romances, que, sendo voltados para a história contemporânea, não
produzem a impressão de ritmo histórico algum. Justamente porque a
poesia deste último depende da periodização ao vivo, isto é, da
correspondência entre a matéria de con itos bem datados e as
contradições históricas que organizam o conjunto em seu movimento.
Assim, depois de mostrarmos que a melhor contribuição de Alencar
à formação de nosso romance está nos pontos fracos de sua literatura,
vejamos também como a sua fraqueza passa por pontos realmente
fortes, que tomados isoladamente são méritos de escritor. A propósito
de Senhora, Antonio Candido observa que seu assunto — a compra de
um marido — dá forma não só ao enredo, como repercute também no
sistema metafórico do livro. Trata-se justamente da consistência
formal, cujo efeito queremos estudar.

A heroína, endurecida no desejo de vingança, possibilitada pela posse do dinheiro, inteiriça


a alma como se fosse agente duma operação de esmagamento do outro por meio do capital,
que o reduz a coisa possuída. E as próprias imagens do estilo manifestam a mineralização
da personalidade, tocada pela desumanização capitalista, até que a dialética romântica do
amor recupere a sua normalidade convencional. No conjunto, como no pormenor de cada
parte, os mesmos princípios estruturais enformam a matéria.35

De fato, o movimento dramático transforma a menina rica, exposta


à “turba dos pretendentes”,36 em mulher revoltada e veemente.
Quando tem a iniciativa, Aurélia considera o mundo através dos
óculos do dinheiro, com a intenção de devolver em dobro as
humilhações sofridas. Reverso da medalha, quando sente a própria
pessoa exposta aos mesmos óculos, sobrevêm a lividez marmórea, os
lábios congelados, as faces jaspeadas, a crispação, a voz ríspida e
metalizada etc.37 Até aqui, a dialética moral do dinheiro e o mal que
ele faz às pessoas. Contudo, como já sugerem o mármore e o jaspe, o
movimento é mais complexo. A mineralização a que se refere Antonio
Candido está na interseção de muitas linhas: dureza necessária para
instrumentalizar o outro, recusa visceral de emprestar a própria
humanidade ao cálculo alheio, paganismo da matéria inconsciente e
da estátua, recusa do corpo, substâncias caras etc. Em suma, o objeto
da crítica econômica tem prestígio sexual. “E o mundo é assim feito;
que foi o fulgor satânico da beleza dessa mulher a sua maior sedução.
Na acerba veemência da alma revolta, pressentiam-se abismos de
paixão; e entrevia-se que procelas de volúpia havia de ter o amor da
virgem bacante.”38 Assunto explícito: o dinheiro recalca os
sentimentos naturais; assunto latente: dinheiro, desprezo e recusa
formam um conjunto erotizado, que abre perspectivas mais
movimentadas que a vida convencional. Noutras palavras, o dinheiro
é deletério porque separa a sensualidade do quadro familiar existente,
e é interessante pela mesma razão. Daí a convergência, em Alencar,
entre riqueza, independência feminina, intensidade sensual e imagens
da esfera da prostituição. Como se vê, o desenvolvimento é de audácia
e complexidade consideráveis, verdade que bem apoiado na Dama das
camélias. Isso posto, a consequência formal com que Alencar
desenvolve o seu assunto fortalece — em lugar de eliminar — a
dualidade formal que viemos estudando: coloca no centro do romance
a coisi cação burguesa das relações sociais. Onde Antonio Candido
aponta uma superioridade, que existe, há também uma fraqueza. A
utilização instrumental e portanto o antagonismo absoluto é o
modelo, aqui, da relação entre os indivíduos. Ora, esse é um dos
efeitos ideológicos essenciais do capitalismo liberal, assim como é um
dos méritos do romance realista signi cá-lo em sua própria estrutura.
Mas não era o princípio formal de que precisávamos, embora nos
fosse indispensável — como tema.

* Refere-se ao ensaio “As ideias fora do lugar”, primeiro capítulo do livro Ao vencedor as
batatas (São Paulo: Duas Cidades, 1977). (n. e.)
A poesia envenenada de Dom Casmurro

A Gilda de Mello e Souza

Dom Casmurro (1899) é um bom ponto de partida para apreciar a


distância, na verdade o adiantamento, que separava Machado de Assis
de seus compatriotas. O livro tem algo de armadilha, com lição crítica
incisiva — isso se a cilada for percebida como tal. Desde o início há
incongruências, passos obscuros, ênfases desconcertantes, que vão
formando um enigma. A eventual solução, sem ser propriamente
difícil, tem custo alto para o espírito conformista, pois deixa mal um
dos tipos de elite mais queridos da ideologia brasileira. Acaso ou não,
só sessenta anos depois de publicado e muito reeditado o romance,
uma professora norte-americana (por ser mulher? por ser estrangeira?
por ser talvez protestante?) começou a encarar a gura de Bento
Santiago — o Casmurro — com o necessário pé atrás. É como se para
o leitor brasileiro as implicações abjetas de certas formas de
autoridade fossem menos visíveis.
Depois de contar o idílio de sua adolescência, completado pelo
casamento em que seria traído e pelo desterro que impôs à
companheira e ao lho de pai duvidoso, Dom Casmurro conclui por
uma pergunta a respeito de Capitu: a namorada adorável dos quinze
anos já não esconderia dentro dela a mulher in el, que adiante o
enganaria com o melhor amigo? Induzido a recapitular, o no leitor
prontamente lembrará por dezenas os indícios do calculismo e da
dissimulação da menina. Entretanto, considerando melhor, notará
também que as indicações foram espalhadas com muita arte pelo
próprio narrador, o que muda tudo e obriga a inverter o rumo da
descon ança. Em lugar da evocação, do memorialismo emocionado e
sincero que pareceria merecer todo o crédito do mundo, surgem o
libelo disfarçado contra Capitu e a tortuosa autojusti cação de Dom
Casmurro, que, possuído pelo ciúme, exilara a família. O livro, assim,
solicita três leituras sucessivas: uma, romanesca, onde acompanhamos
a formação e decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e
policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como
indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e
logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e
ao leitor da culpa da mulher.
Como se vê, uma organização narrativa intrincada, mas
essencialmente clara, que deveria transformar o acusador em acusado.
Se a viravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa
seduzir pelo prestígio poético e social da gura que está com a
palavra. Aliás, como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e
sentimental, admiravelmente bem-falante, um pouco desajeitado em
questões práticas, sobretudo de dinheiro, sempre perdido em
recordações da infância, da casa onde cresceu, do quintal, do poço,
dos brinquedos e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, além
de obcecado pela primeira namorada? Em consequência, a despeito
das decisivas indicações em contrário, prevaleceu a leitura
conformista. Para exemplo do tom que iria dominar, até entre críticos
notáveis pela sutileza, sirva um trecho tomado à primeira exposição
de conjunto da obra machadiana, publicada em 1917.

Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa,
submissa e con ante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua
deliciosa vizinha, Capitolina — Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma
das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos
olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim
dizer, instintiva e talvez inconsciente. Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre,
consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em direito e casa com a
companheira de infância. Capitu engana-o com o seu melhor amigo, e Bento Santiago vem
a saber que não é seu o lho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e
quase mau.1

A adesão do crítico ao ponto de vista a ser questionado não podia ser


mais completa.
Helen Caldwell, a quem as acusações de Bentinho a Capitu
pareceram infundadas e ditadas pelo ciúme, publicou o seu The
Brazilian Othello of Machado de Assis em 1960 . Punha a descoberto
o artifício construtivo da obra, a ideia insidiosa de emprestar a Otelo
o papel e a credibilidade do narrador, deixando-o contar a história do
justo castigo de Desdêmona. No básico, a charada literária que
Machado armara estava decifrada.2
Também o avanço seguinte se deveu a um crítico de fora, John
Gledson, num livro cheio de perspicácia e espírito democrático. O
estudo retoma a tese de Caldwell segundo a qual o ponto de vista de
Bento Santiago, que está com a palavra, é especioso. Contudo, as
razões encontradas para a falta de objetividade de Dom Casmurro
agora são mais complexas. Atrás da agitação sentimental de primeiro
plano, Gledson identi ca a presença de interesses propriamente
sociais, ligados à organização e à crise da ordem paternalista. Em
lugar do novo Otelo, que por ciúme destrói e difama a amada, surge
um moço rico, de família decadente, lho de mamãe, para o qual a
energia e a liberdade de opinião de uma mocinha mais moderna, além
de lha de um vizinho pobre, provam ser intoleráveis. Nesse sentido,
os ciúmes condensam uma problemática social ampla, historicamente
especí ca, e funcionam como convulsões da sociedade patriarcal em
crise.3
Assim, depois de encantar várias gerações, o lirismo do Casmurro
começa a mostrar aspectos dúbios, para não dizer odiosos — com
grande vantagem para a qualidade do romance. Nascida da antipatia
a prerrogativas de marido, de proprietário ou de detentor da palavra,
essa viravolta na leitura torna eloquentes as passagens opacas do livro,
que a outra interpretação forçosamente passava por alto. Examinados
com o recuo devido, os compassos débeis mudam de gura para se
mostrarem cruciais, como pistas ou também como sintomas:
raciocínios truncados, precisões que se diriam supér uas,
interpretações descabidas, fórmulas anódinas em excesso,
procedimentos artísticos arbitrários, tudo adquire relevo novo, dando
um depoimento inesperado sobre o narrador. No mesmo sentido, a
singeleza amaneirada do tom, favorita das antologias de colégio, passa
a funcionar como um ápice de duplicidade. Não custa lembrar a
propósito que Dom Casmurro se aparenta por vários lados com o
romance policial e a psicanálise, que estavam nascendo.
Observe-se que essa leitura a contrapelo, uma exigência escondida
mas estrutural do livro, forma-se entre os traços essenciais da cção
mais avançada do tempo. Como o seu contemporâneo Henry James,
Machado inventava situações narrativas, ou narradores postos em
situação: fábulas cujo drama só se completa quando levamos em conta
a falta de isenção, a parcialidade ativa do próprio fabulista. Este vê
comprometida a sua autoridade, o seu estatuto superior, de exceção,
para ser trazido ao universo das demais personagens, como uma delas,
com sionomia individualizada, problemática e sobretudo
inconfessável.4 Não há dúvida quanto ao passo adiante em relação ao
objetivismo de realistas e naturalistas: também o árbitro é parte
interessada e precisa ser adivinhado como tal. Mas, como bem
observa Gledson, refutando a interpretação em voga, a conduta
capciosa do autor-protagonista não suspende o con ito social nem a
História, muito pelo contrário.5 Dramatizado no procedimento
narrativo, o antagonismo dos interesses vem ao primeiríssimo plano,
onde o seu caráter de relação social con itiva opera na plenitude,
objetivamente, ainda que a crítica não o costume notar.
Ao adotar um narrador unilateral, fazendo dele o eixo da forma
literária, Machado se inscrevia entre os romancistas inovadores, além
de car em linha com os espíritos adiantados da Europa, que sabiam
que toda representação comporta um elemento de vontade ou
interesse, o dado oculto a examinar, o indício da crise da civilização
burguesa. Também na esfera local, das atitudes e ideias sociais bra-
sileiras, as consequências da nova técnica eram audaciosas. O nosso
cidadão acima de qualquer suspeita — o bacharel com bela cultura, o
lho amantíssismo, o marido cioso, o proprietário abastado, avesso
aos negócios, o arrimo da parentela, o moço com educação católica, o
passadista re nado, o cavalheiro belle époque — cava ele próprio
sob suspeição, credor de toda a descon ança disponível. Do ângulo da
ideologia artística nacional, en m, o narrador cheio de credenciais
mas privado de credibilidade con gurava igualmente uma situação
inédita, difícil de aceitar, em contraste marcado com a anterior.
Superavam-se as certezas edi cantes próprias ao ciclo da formação da
nacionalidade, certezas segundo as quais a atualização artística e a
aquisição de aptidões literárias seriam serviços inquestionáveis
prestados à pátria pelos seus dedicados homens cultos.6 Quando, pela
primeira vez em nossas letras, com Machado de Assis, a inteligência
da forma bem como as ideias modernas comparecem livres de
inadequação e diminuição provinciana, já não é dentro do anterior
espírito de missão. Por exemplo, os excelentes recursos intelectuais
vinculados a Bento Santiago não representam uma contribuição a
mais para a civilização do país, e sim, ousadamente, a cobertura
cultural da opressão de classe. Longe de ser a solução, o re namento
intelectual da elite passa a ser uma face — com aspectos diversos,
positivos e também negativos — da con guração social que o romance
saudosamente relembra, ou desencantadamente põe a nu.

Apreciado nas grandes linhas, Dom Casmurro se compõe de duas


partes muito diferentes, uma dominada por Capitu, outra por Bento,
ou, ainda, uma sob o signo do espírito esclarecido, outra sob o signo
do obscurantismo.
Na primeira, o jovem casal de namorados luta contra a superstição
e o preconceito social. A superstição é de d. Glória, a mãe, que havia
prometido o lho à Igreja por medo de perdê-lo no parto. Já o
preconceito se prende à diferença de situações: Capitu é lha de
vizinhos pobres, meio dependentes de d. Glória, enquanto Bentinho
pertence a uma família de classe dominante, cujo chefe havia sido
fazendeiro e deputado, e deixava bastante propriedade. Capitu dirige
a campanha do casalzinho com esplêndida clareza mental,
compreensão dos obstáculos, rmeza — qualidades que faltam
inteiramente a seu amigo. As manobras terminam bem, pelo triunfo
do amor e pelo casamento, que se sobrepõem às posições de classe. O
con ito que se anunciava não chega à tona, contornado pela
habilidade da moça, que conquista as boas graças da futura sogra, de
quem aplaca os escrúpulos religiosos. Como é natural, o leitor de
coração bem formado toma o partido dos namorados, contra o
seminário e contra as intrigas familiares, ou seja, o partido das Luzes,
contra o mito e a injustiça.
A segunda parte começa por capítulos de felicidade conjugal. A
velha casa da mãe e da infância em Matacavalos foi trocada por outra
nova, na Glória. O único senão é a ausência de um lho, que custa a
vir. Mesmo isso depois de algum tempo se resolve com o nascimento
de Ezequiel. O menino é esperto, dado a fazer imitações. Entre as
pessoas que imita está o melhor amigo do casal, o Escobar, com quem
começa a car parecido. A certa altura Escobar, que era nadador,
morre afogado. No velório, homens e mulheres choram. Subitamente
Bento para de chorar: nota lágrimas nos olhos de Capitu, que olhava
o morto. O habitual ataque de ciúmes desta vez é tão forte que Bento
não consegue ler as palavras de despedida que havia redigido para
pronunciar no cemitério. As aparências enganam, e os presentes
aplaudem a comoção do amigo, num exemplo de ilusão possível.
Parecia amizade, mas não era, como as lágrimas de Capitu — aliás
poucas — podiam parecer adúlteras sem o serem, como a semelhança
entre Ezequiel e Escobar podia ser acaso.
O fato é que Bento acha o lho mais e mais parecido com o outro.
Afasta-se de Capitu e se torna o Casmurro. Quer matar a mulher, o
lho e a si mesmo. A certa altura, para buscar distração, vai ao teatro,
onde vê o Otelo. Em lugar de entender que os ciúmes são maus
conselheiros e as impressões podem trair, Bento conclui de forma
insólita: se por um lencinho o mouro estrangulou Desdêmona, que era
inocente, imaginem o que eu deveria fazer a Capitu, que é culpada! A
indicação ao leitor não podia estar mais clara: a personagem
narradora distorce o que vê, deduz mal, e não há razão para aceitar a
sua versão dos fatos.
Este o protagonista tendencioso que na página nal formula a
célebre pergunta pelo “resto do livro”, pelo sentido geral do romance.
“O resto” — diz Dom Casmurro — “é saber se a Capitu da praia da
Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada
naquela por efeito de algum caso incidente.” Ou seja, tudo está em
decidir se Capitu foi pér da desde sempre ou só depois de casada.
Ostensivamente, o que se examina é a pureza do primeiro amor: não
seria impuro ele também, apesar da poesia? O efeito sub-reptício
entretanto é outro, pois no principal a pergunta tem a vantagem, para
o narrador, de assegurar a resposta desejada. Com efeito, se a dúvida
diz respeito ao momento a partir do qual houve culpa, não sobra
lugar para a hipótese da inocência. A mesma ratoeira expositiva se
repete na frase seguinte, agora com apoio bíblico. Bento lembra o bom
conselho de Jesus, lho de Sirach, que manda não ceder ao ciúme para
que a mulher “não se meta a enganar-te com a malícia que aprender
de ti”. Ainda aqui a disposição para a incerteza serve de manto ao
direito do mais forte, à incriminação sem espaço para resposta: tudo
se resume em saber se a in delidade de Capitu — positiva e subtraída
portanto a eventuais objeções — foi efeito das constantes
descon anças do marido ou se já estava lá, na menina, “como a fruta
dentro da casca”. Esse nale em falso, em forma de so sma, avalizado
não obstante pelo Livro Sagrado, pelo sofrimento do narrador, pela
sua cultura sentimental e literária, e também pelo valor por assim
dizer conclusivo que costumamos reconhecer às últimas palavras dos
romances, dá bem a medida da audácia artística de Machado de Assis.
Isso posto, um balanço equilibrado talvez dissesse o seguinte.
Impossível decidir se Ezequiel é lho ou não de Escobar, já que a
semelhança entre os dois, reconhecida por Capitu, prova pouco num
livro deliberadamente repleto de sionomias parecidas e coincidências
de todo tipo — outros tantos avisos contra deduções precipitadas.
Tanto mais que o romance tem um de seus assuntos modernos no
impacto consciente ou inconsciente do interesse na formação do juízo,
ou, para vir ao caso, nas parecenças que se notam ou deixam de notar.
Dois anos depois, Thomas Mann publicaria Os Buddenbrook, cuja
ironia também consiste, ao menos em parte, na relativização
psicológica das certezas naturalistas sobre a hereditariedade. Em
suma, não há como ter certeza da culpa de Capitu, nem da inocência,
o que aliás não con gura um caso particular, pois a virtude certa não
existe. Em compensação, está fora de dúvida que Bento escreve e
arranja a sua história com a nalidade de condenar a mulher. Não está
nela, mas no marido, o enigma cuja decifração importa.7
Qual o sentido desse deslocamento? Vimos que na primeira metade
do livro o amor, a inteligência e a con ança recíproca de um casal
levam a melhor sobre uma promessa ao céu e sobre a prevenção de
classe. A vitória não dura, pois na segunda metade o universo
tradicional vai reaparecer e se impor, agora dentro do próprio casal. O
marido narrador evolui para um clima especialíssimo de poesia
envenenada, entre patético, desgovernado e prepotente, propriamente
reacionário, cuja xação é um dos méritos notáveis do romance. À luz
das incuráveis suspeitas de Bento, a vontade clara e a lucidez de
Capitu são rebaixadas a provas de um caráter interesseiro e
dissimulado, ao passo que a admiração com que o mesmo Bento havia
obedecido às instruções dela faz gura de simplicidade risível.
Começou a difamação escarninha e sombria das qualidades prezadas
da Ilustração, indispensáveis à realização do indivíduo. Contudo, uma
vez relativizado o valor de prova de semelhanças e coincidências em
que se baseia a advocacia especiosa do narrador, ca em destaque a
disposição suspeitosa ela mesma, que de efeito passa a causa. Agora o
que chama a atenção do leitor são os paroxismos de ciúme a que
Bento é dado desde sempre, anteriores à paternidade e ao casamento.
Ainda adolescente ele queria rasgar a amiga com as unhas, julgá-la e
talvez perdoá-la por crimes que ele inventava segundo a necessidade
íntima.8 Os episódios dessa natureza são diversos e, uma vez ligados
entre si, rede nem o caráter de quem está com a palavra, bem como o
valor desta, alterando inteiramente a con guração do con ito. Se a
primeira leitura não vai por aí é porque a arte literária do Casmurro
dirige a nossa descon ança noutro sentido, e também porque evoca as
crises de ciúme em ordem dispersa, como fatos de diferentes gêneros, e
não como um problema. Trata-as como singularidades psicológicas,
anedotas da vida ginasiana, acidentes esporádicos, ilustrações de um
temperamento impulsivo e ingênuo, às voltas com a dissimulação
feminina e a frieza da razão. Assim, a identi cação tardia do algoz em
quem se presumia a vítima, bem como o desmascaramento das
avaliações misóginas e obscurantistas que permitiram aquele
quiproquó, decorrem da travação básica da obra. Vimos que não há
como responder à dúvida nal quanto à época em que se teria de nido
o caráter de Capitu. Para o caso do narrador, pelo contrário, não há
dúvida possível: o ciumento da Glória já existia pronto e acabado no
menino de Matacavalos, com uma diferença de que falaremos. Isso
posto, a virada interpretativa excede em alcance o fascínio algo
tacanho do traiu-não-traiu e também o âmbito familiar a que o
con ito parece con nado. Para apreciá-la é preciso trazer à frente a
componente social das personagens, quando então se notarão uma
ordem e um destino históricos em movimento. Os atores formam um
sistema social rigoroso, dotado de necessidade interna, distante das
razões sentimentais e de pitoresco, ou seja, românticas, que levaram o
Casmurro a lembrá-las com notável precisão.

Examinada nas suas relações, a população de Dom Casmurro compõe


uma parentela, uma dessas grandes moléculas sociais características
do Brasil tradicional. No centro está um proprietário mais
considerável — inicialmente d. Glória —, cercado de parentes,
dependentes, aderentes e escravos, todos mais ou menos atados à
vontade e aos obséquios daquele. A dominação toma a forma de
autoridade paternal, e a subordinação, de respeito lial, ambas
tingidas de devoção religiosa, já que o bom exemplo vem da relação
com Deus Padre. A preeminência dos motivos católico-familiares
empurra para uma decorosa clandestinidade as razões estritamente
individuais e econômicas, que nem por isso deixam de existir, na
forma mesma que o capitalismo e o liberalismo oitocentista haviam
criado. Em confronto com esses interesses modernos, ainda que
submersos, o universo das expressões, dos vínculos e raciocínios
paternalistas, colhidos e apurados com mão de mestre, faz gura
risível, datada como anacronismo com tintura provinciana. A
apreciação inversa está igualmente posta em cena, quando então os
valores tradicionais suspeitam a racionalidade burguesa de
materialismo, egoísmo, calculismo etc. De outro ângulo, digamos que
o mandonismo e a dependência pessoal direta, o seu complemento,
excluem a conduta autônoma, cujas presunções entretanto são
indispensáveis à dignidade do cidadão evoluído — em pleno século
xix e num país que aspira explicitamente à civilização e ao progresso.
Para marcar o caráter histórico da questão, que ultrapassa a
psicologia, não custa lembrar que aquele complexo não se entende
sem referência à nossa “anomalia” social, a escravidão. Nos próprios
termos do tempo, esta imprimia uma nota bárbara à propriedade, e,
no outro campo, privava de oportunidade e respeitabilidade o
trabalho assalariado, obrigando boa parte dos brasileiros pobres a
buscar sustento em relações de proteção e clientela.9 Como então
conciliar a dependência, que era inevitável, com a autonomia, que era
de rigor? Ou ainda, como ser moderno e civilizado dentro das
condições geradas pelo escravismo? A pergunta e seus impasses têm
fundamento claro na ordem social armada no romance, a qual, sob
aspectos decisivos, é um modelo reduzido da sociedade brasileira.
Veremos que as soluções imaginárias para essa verdadeira quadratura
do círculo são especialidades do sentimento-de-si nacional e da cção
machadiana.
José Dias é o agregado da família Santiago. O termo designa uma
gura que, não tendo nada de seu, vive de favor no espaço de uma
família de posses, onde presta toda sorte de serviços. O cinquentão de
estampa respeitável, com bagagem retórica e cívica, além do ar de
conselheiro, que no entanto não passa de um moleque de recados,
concentra admiravelmente as tensões contemporâneas dessa condição
geral. A personagem, e em especial a convivência espúria da relação de
favor com aspirações de independência e cidadania, são estudadas por
Machado com precisão propriamente cientí ca. Esta reúne o sentido
romântico da particularidade local e histórica a uma exigência
analítica máxima, escolada no classicismo francês. A lógica interna do
tipo social é construída com rigor, em complementaridade também
rigorosa com a lógica dos demais tipos e das clivagens sociais
dominantes, o que rma uma arquitetura de conteúdos. São aspectos
centrais da arte literária machadiana, que vale a pena frisar, já que a
crítica não lhes prestou muita atenção.
Na sua primeira aparição, José Dias anuncia a d. Glória “uma
grande di culdade”.10 Antes de explicá-la — trata-se do namoro de
Capitu e Bentinho —, vai prudentemente até a porta da sala, para ver
se o menino não está ouvindo. A graça vem do contraste entre a
gravidade vitoriana da pessoa e os cuidados subalternos a que se
obriga. Está xado o padrão do agregado distinto, que fala, pondera,
conta vantagem ou destrata os vizinhos com a autoridade de alguém
da família, dentro da qual contudo tem situação inteiramente incerta,
dependendo sempre de acomodações mais ou menos humilhantes. A
observação ou invenção de traços pessoais que iluminem a
complexidade dessa posição está entre os virtuosismos de Machado.
Assim, chamado a dizer o que acha, o agregado “não abusava, e sabia
opinar obedecendo” (grifo meu). Analogamente, “ria largo, se era
preciso, de um grande riso sem vontade, mas comunicativo, a tal
ponto as bochechas, os dentes, os olhos, toda a cara, toda a pessoa,
todo o mundo pareciam rir nele. Nos lances graves, gravíssimo”.11
Com efeito, quem é ele para rir com vontade própria, ou para não rir
largo “se era preciso”, ou para rir em “lances graves”? Há muito
acerto empírico nessa descrição do riso acoronelado, cuja espessura de
detalhes, entretanto, se conforma sem sobras, com economia
completa, ao esquema sociológico geral, o que naturalmente é a
façanha maior (salvo se sentirmos, o que também é possível, que há
excesso construtivo, do qual resulta um toque redundante, embora em
alto nível, barrando a força individualizadora da ação). Mais
cruelmente, os excessos de zelo em certo momento trocam o sexo ao
pobre-diabo, que atende Bentinho “com extremos de mãe e atenções
de servo”.12 A caracterização mais engenhosa de todas talvez seja a
das duas velocidades de José Dias, que ora é “vagaroso e rígido”, ora
“se descompõe em acionados”, “tão natural nesta como naquela
maneira”.13 O homem com duas marchas ecoa as funções
representativa e prestativa do agregado, bem como a vivacidade de
quem vive de expedientes. O leitor dirá se inventamos ao imaginar que
a mesma estrutura dirige os passistas de escola de samba, vagarosos e
principescos da cintura para cima, enquanto os pés se dedicam a um
puladinho acelerado e diversi cado.
Em todos os exemplos assistimos à conjugação da dependência
pessoal com certo espetáculo de dignidade, alusivo ao estatuto do
indivíduo livre na ordem burguesa moderna. Os dois elementos, na
qualidade mesma de incompatíveis, são indispensáveis à composição
da personagem, mas o primeiro pesa mais, pela necessidade material.
O ngimento salta aos olhos e tem de ser administrado a m de
prevenir algum contravapor. Quando trata com os superiores, o
agregado se desdobra em adulações, pois se faltar a simpatia podem
não lhe reconhecer as fumaças de homem livre, que com isso
adquirem uma empostação de comédia. Quando trata com os seus
similares (para não dizer iguais, noção ausente de seu universo), põe
ênfase máxima na dignidade, que se transforma no oposto autoritário
e farsesco dela mesma, já que a sua garantia está no prestígio social da
família dos protetores, no qual o agregado toma carona. O lado
satírico da caracterização, centrada no vazio dessa respeitabilidade,
dispensa comentários. Contudo, à medida que lhe entendemos a
necessidade social, além do pobre proveito para o interessado, que
com toda a sua diplomacia não consegue nada, as imposturas deste
vão nos parecendo menos “condenáveis” e terminam por ser
simpáticas, um modo de sobreviver em circunstâncias adversas. Em
todo caso parecem mais verdadeiras que a respeitabilidade
complementar e igualmente vazia dos ricos, disfarçada de discrição e
poesia. A indicação desse parentesco é uma das ousadias do livro.
José Dias cultua a gramática, a prosódia, a gravata lavada, o
direito, as belas-letras, a história pátria, ou seja, a face representativa
da ordem. Ele ama também os superlativos, que dão “feição
monumental às ideias”,14 e revira os olhos de gosto quando acerta
uma expressão capaz de merecer o aplauso, suponhamos, de um lente
em teologia.15 A linha-mestra da caracterização passa pelo
pernosticismo do pé-rapado, que vibra com a cultura dos senhores a
ponto de esquecer o seu lugar, em sentido literal. Há um lado abjeto
nessa adesão, pois as delícias que ela proporciona, compensando em
imaginação o desvalimento social efetivo, excluem a revolta, a
formação do critério próprio e a re exão a respeito. Mas há também
um lado astuto, já que a identi cação visceral com os proprietários
representa uma vantagem relativa, sobretudo na competição com os
demais candidatos à proteção, a quem José Dias metodicamente opõe
a superioridade de sua fala e seus modos. De outro ângulo, o amor
ignaro do agregado pelas coisas do espírito termina por lançar a
descrença também sobre estas últimas. Com toda candura, ele as
encara como adereço da gente na e as reduz a fachada. A redução
não deixa de ser um acerto, pois re ete o funcionamento possível da
cultura oitocentista numa sociedade que aparta da civilização grande
parte de seus membros, quando não os mantém na senzala, ao passo
que outra boa parte, embora inserida e desejosa de participar, não
dispõe da independência pessoal necessária às opiniões próprias.
Nesse sentido, a sátira à vacuidade sentenciosa de José Dias visa uma
constelação nacional, e aliás atinge em cheio os ideais de historiogra a
saudosista alimentados pelo próprio Casmurro, ornamentos também
da propriedade e da ordem estabelecida. A reciprocidade de vícios
entre senhores e escravos, observada por Nabuco, se pode estender à
relação entre senhores e clientela.16 Por outro lado, essa verdade local
da sátira, interessante nela mesma, não lhe esgota o alcance. É como
se nas circunstâncias brasileiras se apurasse e viesse à linha de frente
uma dimensão de privilégio que nas sociedades europeias, com
trabalho livre e cidadania menos precária, podia parecer inessencial,
superada ou assunto de opereta, sem prejuízo da vigência profunda: o
aspecto encasacado, melhor-que-os-outros, antidemocrático, ou, em
suma, o laço de origem entre a liberdade e a propriedade burguesa —
que fala ao coração de José Dias — existe e até hoje não se esgotou
por completo em parte alguma. Por m, note-se que o agregado leva o
amor dos formalismos à última consequência, que é a descrença nas
formas elas mesmas. Assim, ele salta de uma a outra conforme a sua
conveniência e sem constrangimento, desobrigado de consistência,
com desapreço vertiginoso pela dignidade que cultua, o que lhe
proporciona uma espécie de liberdade de movimento diante de seus
senhores. Veja-se a propósito a notável falta de amor-próprio — um
soldado Schweyk nacional — com que, para não cumprir uma ordem,
reconhece que é um charlatão, isso sem desvestir nem por um
momento o acento elevado: “Eu era um charlatão… Não negue. […]
para servir a verdade, menti; mas é tempo de restabelecer tudo”.17
A gama das relações de dependência paternalista no romance é
variada e escolhida. Além do proprietário e do agregado, as guras
incluem escravos, vizinhos com obrigações, comensais, parentes
pobres em graus diversos, conhecidos que aspiram à proteção, ou
pessoas simplesmente que sabem da importância ou da fortuna da
família, o que já basta para inspirar certa reverência. Trata-se de uma
unidade numerosa e solta, o que Gilberto Freyre, em Sobrados e
mucambos, descreve como a persistência da grande família rural da
Colônia em condições de cidade e europeização oitocentista. Quanto à
consistência da concepção, não há exagero em dizer que todos os tipos
valem a pena de uma análise atenta e têm algo de interessante e
diferenciado a ensinar no capítulo, além do substrato comum,
consubstanciado pelo conjunto. Para as nalidades desta discussão
nos limitaremos aos polos principais. — No próprio campo dos
dependentes, o oposto de José Dias é Capitu. A diferença, ligada ao
mandamento moderno de autonomia da pessoa e objetividade do
juízo, ou, noutras palavras, ao choque entre a norma paternalista e a
norma burguesa, tem signi cado moral saliente. Sem prejuízo das
constantes artimanhas, o agregado não se concebe propriamente como
indivíduo, à parte da família a que serve, com a qual se confunde em
imaginação e cuja importância lhe empresta o sentimento da própria
valia. A sujeição ao marido de d. Glória, depois à viúva e nalmente
ao lho não é uma contingência externa, mas o molde do seu espírito,
cujas manifestações não se desprendem nunca da necessidade imediata
de agradar e emprestar lustre.
Capitu, pelo contrário, satisfaz os quesitos da individuação. A
menina sabe a diferença entre compensações imaginárias e realidade, e
não tem apreço pelas primeiras. Em país tão sentimental, ainda mais
em se tratando de mocinhas, deve-se assinalar o incomum dessa
iniciativa machadiana de estudar a beleza, a aventura e a tensão
próprias ao uso da razão. Assim, quando a santa mãe de Bentinho
resolve cumprir uma promessa e mandar o lho para o seminário,
pondo em risco os planos conjugais da vizinha pobre, esta explode
num raro espetáculo de independência de espírito e inteligência. É
Bento quem primeiro lhe traz as novas, que a deixam lívida, os olhos
vagos, olhando para dentro, “uma gura de pau”, o tempo de se dar
conta da situação; depois ela rompe no inesperado “ — Beata! carola!
papa-missas!”. Capitu não só tem desígnios próprios, os quais
consulta, como tem opinião formada e crítica a respeito de seus
protetores, e até da religião deles. Em seguida ela re ete, aperta os
olhos, quer saber circunstâncias, respostas, gestos, palavras, o som
destas, presta atenção nas lágrimas de d. Glória, “não acaba de
entendê-las”.18 “Era minuciosa e atenta; a narração e o diálogo, tudo
parecia remoer consigo. Também se pode dizer que conferia, rotulava
e pregava na memória a minha exposição.”19 Notícia exata e
veri cação interior, uma certa recapitulação crítica da situação, vão
juntas, indicando o nexo entre liberdade de espírito e objetividade,
esta última um verdadeiro esforço metodizado de pensamento. A
clareza na decisão supõe distância em relação ao sistema de sujeições,
obrigações e fusões imaginárias do paternalismo.
O brilho de Capitu decorre também da comparação com os demais
dependentes. Já vimos que José Dias compensa a precariedade da
situação de agregado com superlativos e futricas. Também prima
Justina, uma parenta pobre, equilibra a autoestima falando mal de
ausentes e participando com a curiosidade e os olhos do amor
nascente do lho da casa, outro modo de se consolar de um destino
mesquinho. O confronto mais interessante se faz com o próprio Bento,
que enquanto não casa deve ser incluído no campo dos sujeitados a d.
Glória. Quando tenta dizer à mãe que não pode ser padre como ela
desejava porque quer casar com Capitu, algo nele fraqueja e ele sai
com o incrível “eu só gosto de mamãe”, o contrário do que
tencionava.20 Em face da autoridade o seu propósito se desmancha.
Outra saída — naturalmente em sonho — seria pedir ao imperador
que intercedesse junto à mãe, que então cederia à autoridade por sua
vez.21 Em ambas as linhas não podia ser mais completa a
superioridade de Capitu: ela não foge da realidade para a imaginação
e é forte o bastante para não se desagregar diante da vontade superior.
Isso posto, Capitu não é Capitu só porque pensa com a própria
cabeça. Embora emancipada interiormente da sujeição paternalista,
exteriormente ela tem de se haver com essa mesma sujeição, que
forma o seu meio. O encanto da personagem se deve à naturalidade
com que se move no ambiente que superou, cujos meandros e
mecanismos a menina conhece com discernimento de estadista. É
como se a intimidade entre a inteligência e o contexto retrógrado
comportasse um m feliz, uma brecha risonha por onde se
solucionassem a injustiça de classe e a paralisia tradicionalista, algo
como a versão local da “carreira aberta ao talento”. — A propósito
do caráter da amiga, o Casmurro observa que não lhe faltavam ideias
atrevidas;

mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o
m proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem. Suponde uma
concepção grande executada por meios pequenos. Assim, para não sair do desejo vago e
hipotético de me mandar para a Europa [uma saída lembrada pela moça], Capitu, se
pudesse cumpri-lo, não me faria embarcar no paquete e fugir; estenderia uma la de canoas
daqui até lá, por onde eu, parecendo ir à fortaleza da Laje em ponte movediça, iria
realmente até Bordéus, deixando minha mãe na praia, à espera.22

O trecho pode e deve ser lido em várias chaves, pois tanto expressa
a fascinação de Bento pela feminilidade de Capitu como serve no
processo movido pelo marido contra a mulher, lembrando que ela
desde cedo fora ambiciosa, calculista, oblíqua e inimiga da futura
sogra. Há outra leitura ainda, atenta ao conteúdo social das relações,
que oferece a vantagem de articular a conduta de Capitu à das demais
guras, de modo a lhes tornar visível o sistema. Com efeito, a
desproporção entre ns e meios, central no retrato, re ete os cons-
trangimentos práticos da moça esclarecida nas circunstâncias locais.
Com muxoxo oligárquico, as “ideias atrevidas” designam eventuais
resultados da independência de espírito da personagem, projetos
individuais que escapam ao limite da conformidade respeitosa. Já o
recurso aos “saltinhos”, por oposição à presumível franqueza de um
pulo grande (que seria masculino, e não feminino? que não seria
atrevido?), registra a necessidade em que se encontram os dependentes
de obter o favor de seu patrono a cada passo, sem o que caem no
vazio. Faz parte da lógica do paternalismo que os possíveis objetivos
não se assumam enquanto tais e a título individual, mas, lialmente,
como conveniências do protetor, o que não só os viabiliza, como
legitima. Daí as canoas e a fortaleza da Laje, em lugar do paquete e de
Bordéus, já que ns familiares são mais fáceis de impingir. As
maneiras “hábeis” e “sinuosas” de Capitu representam a política de
decoro, ou, segundo o ponto de vista, a hipocrisia requerida por esse
arranjo. Por outro lado é característica do Casmurro e de sua
ideologia de classe apresentar como de ciência moral, como falta de
franqueza, a política de olhos baixos imposta pela sua própria
autoridade, sem prejuízo de considerar “atrevimento” a conduta
contrária. Como parte de sua confusão, ou de sua complexidade,
note-se ainda como um tipo de conduta com fundamento na estrutura
mesma da sociedade brasileira lhe aparece ora como falta de caráter
de sua mulher, ora como elemento de interesse erótico, ora como
característica geral e desabonadora da psicologia feminina. Seja como
for, estará claro o fundo comum entre as manobras de Capitu, o riso
sem vontade de José Dias, os pânicos de Bentinho diante da mãe e o
susto de prima Justina quando lhe pedem a opinião. O signi cado
dessas variações sobre uma situação de dependência básica ca
incompleto, contudo, enquanto não passamos ao outro polo, que as
determina, o polo da autoridade dos proprietários.
Ao enviuvar, d. Glória vende a fazenda e compra “uma dúzia de
prédios, certo número de apólices”, além de escravos, que aluga ou
põe no ganho.23 A família Santiago e a casa de Matacavalos agora
vivem de rendas. Sem índole de chefe, a viúva é boa criatura, devota,
apegada com o lho e voltada para os serviços da casa. Ainda assim, a
sua autoridade não padece dúvida, como indicam os cuidados para
não contrariá-la, que sem exceção todos tomam. O mando decorre da
propriedade, mesmo se o proprietário não é cioso. Algo semelhante
vale para a virtude. D. Glória, conforme o lho lhe faz gravar na
sepultura, é uma santa.24 Isso embora ela o tivesse prometido à vida
de padre sem o consultar, embora o internasse no seminário contra a
sua vontade (“Deixa de manha, Bentinho”),25 e embora mais adiante
aceitasse um subterfúgio esfarrapado para voltar atrás em sua
promessa. Noutras palavras, um pouco de superstição, autoritarismo e
capricho em absoluto afetam a santidade das mães de família ilustre,
antes pelo contrário. Em situação patriarcal, os deslizes práticos não
mancham a bondade por assim dizer transcendental dos pais e chefes,
a qual forma um halo em volta da propriedade. Note-se por m que a
dignidade do marido narrador irá se bene ciar do mesmo caráter
inquestionável — até segunda ordem, quando se transforma em alvo
de sátira. A gesticulação respeitável e civilizada da classe proprietária
lhe torna invisível a conduta efetiva, em cuja pormenorização o
espírito crítico de Machado se deleita.
Depois de sair do seminário, estudar direito em São Paulo e casar,
Bento se torna proprietário por sua vez. A formação à qual assistimos
na parte inicial do livro agora vai se mostrar em suas consequências. À
primeira vista, aquela parte formativa é uma crônica de saudades,
cheia de afagos maternos, de emoção lial, inocência, apego a cenas e
lugares da infância, tudo percorrido de arrepios libidinosos e
sentimentos de culpa. No conjunto, um ranço perverso e consistente,
que lembra o clima do romantismo-família de Casimiro de Abreu, a
con guração sentimental que Mário de Andrade identi cou em
“Amor e medo”.26 À segunda leitura, tão fundada quanto a primeira,
a crônica de saudades aparece como a documentação de um
diagnóstico severo e moderno do mundo paternalista: aí estão o
manejo irresponsável e caprichoso da autoridade, a que correspondem
o parasitismo e a sujeição bajuladora ou assustada; os estudos
superiores sem vocação ou seriedade, com propósito ornamental; a
religião frouxa, pouco interiorizada, dando cobertura a toda sorte de
interesses menos católicos etc. Como dizia de si mesmo Brás Cubas,
ao concluir um capítulo semelhante, sobre a sua educação: “Dessa
terra e desse estrume é que nasceu esta or”.27
Note-se que esse diagnóstico negativo decorre da outra norma, ou
também da norma por excelência. Trata-se do ideal da sociedade
composta de indivíduos livres e responsáveis, quer dizer, nem escravos
nem dependentes, ideal infuso na civilização burguesa europeia, em
relação ao qual a sociedade brasileira — que não tinha como não se
medir por ele, salvo ao preço de saltar fora da atualidade — aparecia
como errada. Assim, metodicamente equívoca, a narrativa dá curso
simultâneo ao encantamento e à condenação da ordem paternalista,
imprimindo ubiquidade à preferência, meio culposa meio assumida,
por formas de vida caducas.28
Bento agora é chefe de uma família abastada, advogado esta-
belecido, uma gura da ordem. A desestabilização interior que a
autoridade lhe causava em criança já não tem razão de ser, ou melhor,
talvez haja mudado de posição relativa, uma vez que a autoridade
passou a ser ele mesmo. Nas novas circunstâncias as velhas turvações
do juízo, a incapacidade de traçar a linha entre a vontade de quem
manda e a própria, trocam de natureza. A instância mais dramática
está no ciúme, que havia sido um entre os vários destemperos
imaginativos do menino, e agora, associado à autoridade do
proprietário e marido, se torna uma força de devastação. Embora o
assunto seja da esfera privada, e o romance na segunda parte de fato
se afunile em direção da di culdade entre duas pessoas, o tema
continua a ser o outro: a prerrogativa que tem o proprietário à
brasileira de confundir as suas vontades, mesmo as escusas, com os
foros da lei, da dignidade etc., segundo a conveniência ou inclinação
do momento, e sem que os dependentes tenham como contrastá-lo.
Assim, há complementaridade entre a falta de garantias e direitos
destes últimos e, no campo oposto, a despeito das aparências de
civilidade, a falta de fronteira clara posta ao desejo, que nas circuns-
tâncias não tem como se enxergar. Daí um dos temas originais e
profundos da cção machadiana, a indisciplina mental especí ca à
articulação brasileira de escravidão, clientelismo e padrão
contemporâneo, em especial a loucura de nossos homens bem-
pensantes. De outro ângulo, digamos que a malversação da
credibilidade narrativa, a seu modo uma quebra de contrato — o
procedimento crucial do romance —, estende as unilateralidades dessa
relação de poder ao plano da forma, onde elas, desde que notadas,
aparecem como intoleráveis infrações.
A trajetória de Capitu pode servir de comentário ao signi cado
destrutivo desse desgoverno. Ao fazer um bom casamento, a mocinha
escapa às condições modestas de sua família e ca — na bonita
comparação machadiana — “como um pássaro que saísse da
gaiola”.29 Contudo, a mesma compreensão clara das relações efetivas
que havia permitido as manobras da menina agora faz que, diante dos
ciúmes do marido, a mulher trate de prevenir o enfrentamento por
todos os meios, renunciando à rua e à janela, terminando por viver
autossequestrada, tudo naturalmente em vão. A gaiola da autoridade
patriarcal voltava a se fechar, sem apelação, conforme sugere a
resignação lúcida e comovente em que termina Capitu. Outro
comentário tácito encontra-se nos episódios que tratam o tema da
con ança recíproca, ou do pacto, com a parte de igualdade que este
implica. Enquanto assiste à amamentação do lho, numa cena de
domesticidade audaciosa, ocorre a Bento, muito emocionado, que
aquele ser existia devido ao amor e à constância do casal.30 No
contexto, a passagem naturalmente se presta à releitura sardônica. A
emoção no entanto se refere a algo real, a criações do acordo mútuo,
as quais, na ausência deste, não se mantêm. O assunto já havia
surgido no capítulo do “juramento do poço”, onde os adolescentes
fazem frente contra as circunstâncias e prometem casar um com o
outro, promessa depois cumprida.31 Embora o tópico ostensivo do
romance seja a in delidade de Capitu, à qual se prenderia a
descon ança universal do Casmurro, a matéria substantiva está na
desinclinação do último pela relação entre iguais, hipótese ou tentação
moderna — se o termo de comparação for a ordem patriarcal — que o
ceticismo escarninho deve desbancar. Contrariamente ao que a
melancolia desabusada do narrador faz crer, na ausência dos iguais
não resta o indivíduo solitário, mas o proprietário na acepção
brasileira do termo, o gurão desobrigado de prestar contas.
Nos capítulos nais assistimos a uma estranha sucessão de climas,
que desenvolvem com exatidão as consequências esterilizantes
embutidas no tipo social do narrador. Há aí uma fusão buñuelesca de
amalucamento, decoro e maldade extremada. Assim, depois de
preparar um suicídio teatral, inspirado em Catão via Plutarco, o
Casmurro por muito pouco não envenena deveras o menino que lhe
lembra o outro. Em seguida, para separar-se de Capitu mas guardar as
aparências, Bento nge um passeio da família à Europa, onde deixa a
mulher, o lho e uma governanta, viagem que passa a repetir
regularmente, de modo que faz de conta que vive com os seus, que no
entanto não procura, e de quem na volta dá notícias inventadas a pa-
rentes e amigos. A certa altura, muito de passagem, menciona a morte
de Capitu — o encanto de sua vida e do romance — em duas frases
curtas, como que para reparar um lapso. Quando o lho o visita, já
rapaz, o pai deseja-lhe a morte pela lepra; não é ouvido pelo destino,
que mata o moço em seguida, de tifo. A concepção do penúltimo
capítulo, “A exposição retrospectiva”, é propriamente genial, desde
que percebamos a situação por detrás dos eufemismos da prosa. Mal
ou bem Dom Casmurro se está gabando de que a sua alma “não cou
aí para um canto como uma or lívida e solitária”, nem lhe haviam
faltado “amigas que me consolassem da primeira”. Reparando me-
lhor, entenderemos que se trata de pobres moças, presumivelmente
prostituídas, trazidas a um casarão afastado para ouvir as recordações
de um gentleman de meia-idade, depois do que vão embora a pé
(calcante pede, a expressão vem em latim, por pudor de cavalheiro ou
também para marcar distinção), isso a não ser que chova, caso em que
o dono da casa providencia um carro de praça.
Pois bem, como entender que a elegância da prosa dos primeiros
capítulos, suprema sem nenhum exagero, seja a obra e o passatempo
dessa gura nociva e patética das páginas nais? Respostas à parte, a
pergunta decorre da composição do livro. Sob pena de ingenuidade,
esta obriga à distância em relação ao que é dito, ou melhor, incita a
dar a palavra a correções e adendos que a situação narrativa imprime
ao memorialismo lírico do primeiro plano.

Como se articulam a primeira e a segunda parte de Dom Casmurro?


Vimos que na primeira a realização pessoal de um casalzinho está em
luta com o nosso Ancien Régime, com as suas famílias de
proprietários mandões, supersticiosos e senhores do casamento (ou
celibato) dos lhos. Por ora o comando das ações cabe a Capitu, mais
perspicaz e ativa que o namorado, este sempre emocional. Contudo,
em surdina, a nitidez do antagonismo vai sendo solapada por
insinuações quanto aos motivos interesseiros da moça e de seus pais.
Assim, o combate entre a liberdade do indivíduo e a ordem familista,
simpático entre todos, deixa margem também à avaliação
conservadora, de horizonte senhorial e romântico, a qual desvia o
foco para o contraste entre a emoção, que é sincera, e a inteligência,
que é pér da. Desse ângulo, a personagem melhor só pode ser
Bentinho. Seja como for, a vitória dos moços é fácil e não aguça os
con itos a ponto de lhes testar os termos. Essa falta geral de gravidade
combina-se ao formato de cromo adotado pelo narrador, às
lembranças encantadas e algo ilhadas, circunscrevendo um mundo
idílico, pseudoinocente, que faz sorrir e onde tudo termina bem. Com
efeito, embora não faltem os grandes momentos nesta primeira parte,
a sua força não decorre em linha reta da ação, mas do espelhamento
na prosa narrativa, cujo incrível teor de complexidade e ambiguidade
é pautado pelos sucessos da parte nal.
A crer no próprio narrador, a virada em seu caráter data da sua
decepção, da revelação de que Ezequiel é lho de Escobar. À luz dessa
certeza — que o romance desautoriza — a independência moral e in-
telectual de Capitu, sem a qual Bentinho não teria escapado à batina,
troca de feição e con rma as insinuações do começo. A mulher com
ideias próprias tinha que dar em adultério e no lho do outro. O
Casmurro agora se identi ca ao conservadorismo a que mal ou bem se
havia oposto no período anterior. Clareza mental, ainda diante da
autoridade, gosto pela aritmética, senso das situações, constância de
propósitos ou capacidade de lidar com dinheiro passam a ser outras
tantas provas de um caráter falso, e, no limite, de traição conjugal. O
obscurantismo rudimentar e e caz dessas assimilações dirige-se contra
a parte de cálculo e reserva, de recuo de si e dos outros, sem a qual
não há racionalidade possível para o indivíduo, ou sem a qual este não
chega a se de nir como tal. Mediatamente, dirige-se contra a
utilização da inteligência por parte dos dependentes. O assalto à razão
se completa nos requintes de desmando que apontamos nos capítulos
nais. — Entretanto já vimos que a periodização mais plausível não é
essa, proposta pelo narrador. A viravolta decisiva dá-se mais cedo,
quando Bento deixa de ser lho e se torna marido e proprietário: o seu
coração atrapalhado e “de brasa”,32 que havia sido uma inferioridade
administrada a duras penas por Capitu, agora não tem mais como ser
contrastado e vai mandar. O novo Santiago não nasce da traição da
mulher, mas da junção de vontades confusas, em parte inconfessáveis
(o ciúme desatinado, os apetites sexuais diversos), com a autoridade
patriarcal, conjugação que descarta, ou trai, o juramento de con ança
e igualdade que o moço bem-nascido zera à vizinha pobre. Assim,
contrariamente ao que parecia, o casamento de Capitu não representa
uma vitória das Luzes, mas uma rea rmação da ordem tradicional,
ainda que diferida. E o ceticismo universal do Casmurro, com matizes
que vão da tolerância à ferocidade, armado de todos os pés de cabra
do progresso intelectual moderno, serve ao próprio de cobertura
racional para faltar às exigências da dignidade burguesa, ou, por
outra, autoriza — sem quebra do clima civilizado — a brutalidade do
proprietário incivil. O alcance crítico da autoexposição, desde que seja
percebida, é extraordinário.
Retomando essas observações em termos do movimento a que
dizem respeito, notemos que o elemento dinâmico da primeira parte
— a mais longa — se esgota antes do m, com o que prova ser irreal,
ao passo que um grupo de temas dispersos, sem conexão evidente à
primeira vista, ainda que presentes desde o início, a certa altura se
uni ca e se torna a força dinâmica por sua vez, passando por cima do
que prometia ser a tendência geral e lhe demonstrando o caráter
ilusório. Trocando em miúdos, o amor entre a vizinha pobre e o
rapazinho família, com o correspondente anseio de felicidade, de
realização pessoal e mesmo de saída histórica e progressista para uma
relação de classe, anima a intriga até um ponto avançado do livro,
quando então a dimensão autoritária da propriedade rouba a cena e
galvaniza o antigo nhonhô, que agora se enxerga como vítima,
desmerece e escarnece as suas próprias perspectivas anteriores de
entendimento, igualdade, lucidez, e a rma pela força a sua disposição
de mandar sem prestar contas, tudo isso dentro de uma linguagem
requintada e civilizada, digna e própria da Belle Époque. Essa a curva
do romance e um de seus elementos tácitos de generalização, em que o
leitor interessado poderá buscar o per l sintético de um caminho
brasileiro para a modernidade.
Há outra especi cação histórica embutida no próprio elenco das
personagens. O leitor estará lembrado de que ao começar o livro o pai
de Bento, fazendeiro e deputado, já está morto, e que a família, depois
de vender as terras, vive de rendas. Com isso ca fora do romance a
atividade econômica e política dos proprietários, a bem da esfera
intrafamiliar, onde as relações de dominação e sujeição paternalista
serão examinadas em estado por assim dizer quimicamente puro, ou
seja, deixadas a seu movimento próprio. Observe-se ainda que a
exclusão das fontes de vida externas equivale a xar o sistema em seu
momento de decadência. Esse horizonte dá a nota peculiar à regressão
de Bento, cujas arbitrariedades mais ou menos plangentes ou raivosas,
con nadas a um âmbito estreito, já não signi cam senão a necessidade
de encontrar-se a si mesmo. Por outro lado, essa atmosfera rarefeita
permite a con uência da brutalidade senhorial brasileira com o
decadentismo europeu, sob o signo da deliquescência psicológica, da
prosa ultramatizada, do culto da incerteza, tudo envolto na aversão
“ao grunhido dos porcos, espécie de troça concentrada e losó ca”33
(o ponto de vista esclarecido).
No que interessa à qualidade artística, a continuidade rigorosa entre
as duas partes do livro não suprime o aspecto heterogêneo e a
expectativa romanesca frustrada. Essa forma eloquente e pouco
harmônica esclarece o andamento peculiar da prosa, onde em surdina
encontramos disseminada a mesma tensão, sob forma de enigmas,
dissonâncias ou ressonâncias profundas. No conjunto, Dom
Casmurro pode ser visto como um enorme trocadilho socialmente
pautado, uma fórmula narrativa audaz e de execução di cílima. As
duas sionomias do narrador, tão discrepantes, têm de ser alimentadas
por uma escrita sistematicamente equívoca, passível de ser lida como
expressão viva de uma como de outra, do marido ingênuo e traído
bem como do patriarca prepotente. Assim, por exemplo, quando
Bento explica o propósito de seu livro, que “era atar as duas pontas
da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. Existe coisa mais
estimável que a saudade de um viúvo desejoso de recompor o que o
tempo dispersou? Mas a poesia no caso pode também ser um álibi, um
modo de afetar a isenção necessária à inculpação pública de Capitu…
Mesma coisa para a citação do Fausto, logo em seguida, que faz
tremer de emoção a pena do memorialista. “Aí vindes outra vez,
inquietas sombras…”34 Agitação de repassar sensações juvenis? Ou
arrepio de encarniçar-se sobre um fantasma indefeso, como pensará
quem tenha em mente todo o livro? O virtuosismo de Machado na
invenção de assuntos e sequências que deem realce à dualidade do
narrador chega ao inacreditável.
O capítulo primeiro, onde se explica o título do romance, é um
milagre de organização impalpável mas funcional. Servindo de
abertura, assistimos a ligeiras escaramuças de esnobismo. Num vagão
de trem, voltando à noite para o arrabalde, um cavalheiro distinto
cochila para fugir às familiaridades de um cacete da vizinhança, que
lhe fala da lua e dos ministros, além de recitar versos. O cacete
naturalmente se tem na conta de civilizadíssimo e sente-se ofendido
pela indiferença do outro, a quem passa a chamar Dom Casmurro. A
vizinhança aprova a alcunha, pois os modos reclusos de Santiago
também a irritam. Este conta a anedota na sua roda de amigos nos
da cidade, os quais acham graça e adotam o novo nome, completando
o ciclo. Em transposição afastada e ambígua, os temas da intriga estão
aí. O gentleman distante não destoa do modelo de civilidade europeia,
com seu direito à privacy, o costume do anonimato citadino etc. Em
contraste, a sem-cerimônia do rapaz que nem sequer havia sido
apresentado aponta a capital provinciana, o país invivível, do qual o
Casmurro se queixa aos amigos elegantes, que têm o hábito de chá,
camarote no teatro e casa em Petrópolis. Contudo, a gura do
secarrão inabordável deixa entrever também o patriarca furioso, que
foi ocultar o seu “mal secreto” na “caverna” do bairro distante,
sempre sem descuidar as aparências.35 Isso posto, não há dúvida de
que o memorialista requintado e frequentador da alta-roda é este
último. O convívio regular, articulado em profundidade, entre os
aspectos iníquos da sociedade brasileira e os seus lados modernos e
re nados está no centro da literatura machadiana.
Mas voltemos ao modo tão poético pelo qual o apelido de Bento
Santiago pegou. O novo nome se deve, pela ordem, ao acaso de um
cochilo, ao despeito de um poeta, à birra da vizinhança, à jovialidade
de um cavalheiro, que comenta com os amigos elegantes as suas
desventuras de arrabalde, e ao humorismo dos mesmos amigos, que
acham justa a alcunha. O próprio Bento não desgosta dela, que será o
título de sua narrativa, se não lhe ocorrer outro melhor. Muito da
simpatia que o narrador conquista de entrada se deve a essa
demonstração de tolerância, de aceitação da contingência e do
diverso, que indicam a superioridade esclarecida de alguém que vive e
deixa viver. Na verdade esse processo de xação do nome ao sabor
das preferências de uns e outros con gura uma ideologia estética e
política, de repercussões que vão além, um dos vários episódios-ideia
que, ao lado de alegorias e teorias de bolso, compõem o ambiente
re exivo do romance. Note-se que o nome no caso não é
propriamente necessário, pois podia ser um outro, mas satisfaz os
interessados, que puseram nele algo de si, o que, junto com o uso
comum e o hábito, lhe confere certa estabilidade e legitimidade,
su cientes sem serem absolutas. O nome, como aliás as formações
históricas, resulta da vida, do tempo, das acomodações, ou, por outra,
não é produto de um propósito uno ou abstrato, pelo qual pudesse ser
aferido criticamente. Não se pode negar algum acerto a esse
minimodelo do processo social, cujo signi cado varia muito, segundo
o âmbito a que se aplique. O seu adversário em última instância talvez
seja a Revolução Francesa, a cujo programa de reconstrução racional
e justa da humanidade ele se opõe. Assim, depois de contribuir para a
reputação civilizada do narrador, a tolerância divertida diante da
contingência funciona também em chave conservadora, como
poetização do Brasil velho, da herança colonial, em cujo
prolongamento está a intangibilidade do mando dos proprietários —
quando então o memorialista encantador mostra a outra face. Nas
quatro frases nais do capítulo esses temas, que até agora apareceram
em forma de conversa solta, falsamente desprovida de intenção,
passam por um adensamento vertiginoso, cujo zigue-zague pre gura o
ritmo e o alcance do que vem adiante.
“Também não achei melhor título para a minha narração; se não
achar outro daqui até o m do livro, vai este mesmo. O meu poeta do
trem cará sabendo que não lhe guardo rancor.” Noutras palavras,
nomes e invenções não cam menos bons ou utilizáveis por serem
alheios, uma verdade materialista, que deveria inclinar a sentimentos
amistosos. “E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar
que a obra é sua.” Aqui a cordialidade cede à maldade. Depois de
adotar o achado do outro e reconhecer de boa sombra o aspecto não
individual em sua própria literatura, e mesmo enxergar acerto na
displicência quanto ao que seja meu ou seu, o narrador muda e
insinua que o poeta do trem não vai mostrar o mesmo desapego; não
vai resistir à veleidade da autoria pessoal, nem — quase a mesma
coisa? — à apropriação indébita. A valorização do fundo social ou
coletivo da vida vem seguida da crítica à ilusão individualista e
proprietária, que vem seguida do… “pega-ladrão”. A mudança de tom
se completa na frase nal: “Há livros que apenas terão isso de seus
autores; outros nem tanto”. Depois dos infelizes que, havendo
contribuído com o nome, julgam que a obra é sua, vêm as obras que
não foram feitas por quem lhes deu o nome (e que portanto são
fraudulentas?), ou pior, aquelas que nem o nome têm de seu autor.
Não restou nada da anterior simpatia pelos funcionamentos
socializados, que tomam algo aqui, algo ali, de uns e de outros, e
devem a beleza a essa colaboração de muitos, cheia de acasos e meio
involuntária. En m, são ousadias desencontradas e céticas sobre o
tópico das quimeras de autor, raciocínios que no entanto se tornam
drásticos, desde que nos demos conta de que autoria aqui é uma
primeira variante do tema da paternidade. Com efeito, leia-se “ lhos”
onde está “livros” — há lhos que apenas terão isso (o nome) de seus
autores; outros nem tanto — e teremos passado ao universo violento e
boçal onde a vítima genérica é a honra da genitora alheia, uma
humanidade composta de efes da pê. A emergência abrupta desse tom,
com a sua pertinência para a caracterização do tipo social e da
postura do narrador-personagem, é outra invenção incrível.
Recapitulando, digamos que o rastreamento dos passos que levaram à
xação de um apelido a na com a crônica dos aspectos pitorescos e
populares do Rio, de inspiração romântica e fácil; puxada para um
âmbito mais “ losó co”, a observação de funcionamentos coletivos,
cuja poesia vem de correrem por fora da canalização burguesa da
vida, aponta para a estreiteza e irrealidade desta última: a autoria e,
através dela, a propriedade são processos menos obviamente
individuais do que parecem; contudo, a ironia e a liberdade de espírito
dessa posição moderna desaparecem incontinenti quando a mesma
ordem de ideias é trazida à esfera dos tabus patriarcais, rea rmados
com determinação selvagem. Nada mais sugestivo como
caracterização de classe do que essa sequência-ritmo, do simpático ao
ousado, ao ferozmente regressivo, ou, forçando um pouco a nota, do
cronista das graças locais ao socialista, ao proprietário disposto a
tudo.
Dom Casmurro entrou para a literatura brasileira como a nossa
busca do tempo perdido — em acepção saudosista, que deixaria
Proust de cabelo em pé —, ou ainda como o romance lírico do
primeiro beijo, da descoberta do amor, das devoções ingênuas, tudo
destruído pela traição de uma mulher. Indicamos o avesso dessa
pureza na grosseria, no autoritarismo patriarcal e de classe que o
desempenho do narrador coloca em cena. O imbricamento de fundo e
a reversibilidade pronta entre as autoimagens queridas da elite e as
manifestações mais crassas da sua barbárie constituem um resultado
crítico de primeira ordem. O ponto máximo da tensão talvez esteja na
quase inviabilidade, em termos de verossimilhança, de sustentar que a
fera das páginas nais e o memorialista reservado e sensível das
iniciais sejam a mesma pessoa. Entretanto, acompanhando os
meandros da prosa deste último pudemos constatar a presença da
pontada feroz, disfarçada de elegância. No plano da intriga, vimos
que faz parte de seu movimento global o naufrágio da aspiração
esclarecida. Ocorre que a vitória da confusão mental do Casmurro —
a que não falta nem a coincidência da sexta-feira aziaga — vai se
expressar e estabilizar numa linguagem de re namento sem
precedentes na literatura brasileira, re namento armado de todos os
recursos e aberturas da literatura, da psicologia e da sociologia as
menos ingênuas daquele m de século. Que signi ca essa combinação,
estranha sem nenhum favor? Por um lado, indica que não há motivo
para supor que só porque falta à civilidade em casa o proprietário
brasileiro não possa ou não queira participar dos adiantamentos da
civilização contemporânea, quando todos sabemos que o contrário é a
verdade. Por outro, mostrando que essa participação é efetiva, dá um
quadro não apologético do progresso — da atualidade em sentido
forte —, com lugar confortável para todas as regressões. Trata-se de
uma espécie de contrafação da tolerância esclarecida, que é sobretudo
indulgência para com os próprios momentos, sempre recorrentes, de
obscurantismo. Retomando o assunto por outro prisma, a propósito
dos dois registros de Santiago, note-se que ambos — o ignóbil não
menos que o idealizado — funcionam como indícios quase se diria
pitorescos de um mundo de segunda classe, de individuação limitada,
onde os dinamismos modernos caram pela metade. Com efeito, o
próprio nome das guras principais, Capitu e Bentinho, não deixa
imaginar que o romance seja sério deveras. Não há dúvida quanto à
conotação nacional desse tamanho diminuído, recuado quanto ao
nível contemporâneo, tamanho sugerido também pelo formato de
vinheta dos capítulos. Este dá a objetividade da forma à distância
entre a sociedade local e as outras, “adiantadas”, que nos serviam de
modelo. A surpresa porém está na potência que esse universo com
data vencida guarda em relação às mesmas categorias que o rebaixam.
A mistura promíscua de propriedade, autoridade e capricho, com seu
cortejo de acintes à razão e à objetividade, no caso não designa apenas
uma sociedade atrasada. O estudo níssimo das inerências entre
aqueles termos faz duvidar da pretensão de os separar limpamente e
planta a dúvida quanto a uma eventual sociedade composta de
indivíduos racionais e estanques (o mundo de primeira classe). Num
movimento característico, a cção machadiana primeiro desquali ca a
vida local, por ser matéria aquém da norma da atualidade, e em
seguida desacredita a própria norma, que não resiste à prova do que
se viu. A inferioridade do país é inegável, mas a superioridade de
nossos modelos não convence. O narrador capcioso, que sai da regra e
sujeita a convenção literária às suas prerrogativas de classe, responde
aos dois momentos. Por um lado, expressa e desnuda o arbítrio, o
enlouquecimento do proprietário em face de seus dependentes; por
outro, faz descrer do padrão universal que, além de não impedir nada,
ajuda o narrador, patriarca e proprietário, a esconder e cazmente os
seus interesses impublicáveis.
Cultura e política, 1964-1969

alguns esquemas

Nota, 1978

As páginas que seguem foram escritas entre 1969 e . No principal, como o leitor
1970

facilmente notará, o seu prognóstico estava errado, o que não as recomenda. Do resto,
acredito — até segunda ordem — que alguma coisa se aproveita. A tentação de reescrever
as passagens que a realidade e os anos desmentiram naturalmente existe. Mas para que
substituir os equívocos daquela época pelas opiniões de hoje, que podem não estar menos
equivocadas? Elas por elas, o equívoco dos contemporâneos é sempre mais vivo. Sobretudo
porque a análise social no caso tinha menos intenção de ciência que de reter e explicar uma
experiência feita, entre pessoal e de geração, do momento histórico. Era antes a tentativa de
assumir literariamente, na medida de minhas forças, a atualidade de então. Assim, quando
se diz “agora”, são observações, erros e alternativas daqueles anos que têm a palavra. O
leitor verá que o tempo passou e não passou.

Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a m de garantir o


capital e o continente contra o socialismo. O governo populista de
Goulart, apesar da vasta mobilização esquerdizante a que procedera,
temia a luta de classes e recuou diante da possível guerra civil. Em
consequência, a vitória da direita pôde tomar a costumeira forma de
acerto entre generais. O povo, na ocasião, mobilizado mas sem armas
e organização própria, assistiu passivamente à troca de governos. Em
seguida sofreu as consequências: intervenção e terror nos sindicatos,
terror na zona rural, rebaixamento geral de salários, expurgo
especialmente nos escalões baixos das Forças Armadas, inquérito
militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução das
organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus etc.
Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda
não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de
crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é
dominante. Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia
cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo
e Rio, cheias de marxismo, nas estreias teatrais, incrivelmente festivas
e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação
estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos
santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. Esta anomalia —
que agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadíssimas
para a propaganda do socialismo — é o traço mais visível do
panorama cultural brasileiro entre 1964 e 1969 . Assinala, além de
luta, um compromisso.
Antes de apresentá-la em seus resultados, é preciso localizar esta
hegemonia e quali cá-la. O seu domínio, salvo engano, concentra-se
nos grupos diretamente ligados à produção ideológica, tais como
estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e economistas, a
parte raciocinante do clero, arquitetos etc. — mas daí não sai, nem
pode sair, por razões policiais. Os intelectuais são de esquerda, e as
matérias que preparam, de um lado, para as comissões do governo ou
do grande capital e, de outro, para as rádios, televisões e os jornais do
país não são. É de esquerda somente a matéria que o grupo —
numeroso a ponto de formar um bom mercado — produz para
consumo próprio. Essa situação cristalizou-se em 1964 , quando
grosso modo a intelectualidade socialista, já pronta para prisão,
desemprego e exílio, foi poupada. Torturados e longamente presos
foram somente aqueles que haviam organizado o contato com
operários, camponeses, marinheiros e soldados. Cortadas naquela
ocasião as pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo
Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do
ideário esquerdista, que embora em área restrita oresceu
extraordinariamente. Com altos e baixos essa solução de habilidade
durou até 1968, quando nova massa havia surgido, capaz de dar força
material à ideologia: os estudantes, organizados em
semiclandestinidade. Durante esses anos, enquanto lamentava
abundantemente o seu con namento e a sua impotência, a
intelectualidade de esquerda foi estudando, ensinando, editando,
lmando, falando etc., e sem perceber contribuíra para a criação, no
interior da pequena burguesia, de uma geração maciçamente
anticapitalista. A importância social e a disposição de luta dessa faixa
radical da população revelam-se agora, entre outras formas, na prática
dos grupos que deram início à propaganda armada da revolução. O
regime respondeu, em dezembro de 1968 , com o endurecimento. Se
em 1964 fora possível à direita “preservar” a produção cultural, pois
bastara liquidar o seu contato com a massa operária e camponesa, em
1968 , quando o estudante e o público dos melhores lmes, do melhor
teatro, da melhor música e dos melhores livros já constituem massa
politicamente perigosa, será necessário trocar ou censurar os
professores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, os
editores — noutras palavras, será necessário liquidar a própria cultura
viva do momento. O governo já deu vários passos neste sentido, e não
se sabe quantos mais dará. Em matéria de destroçar universidades, o
seu acervo já é considerável: Brasília, São Paulo e Rio, as três maiores
do país.
Para compreender o conteúdo, a implantação e as ambiguidades
dessa hegemonia, é preciso voltar às origens. Antes de 1964 , o
socialismo que se difundia no Brasil era forte em anti-imperialismo e
fraco na propaganda e organização da luta de classes. A razão esteve,
em parte ao menos, na estratégia do Partido Comunista, que pregava
aliança com a burguesia nacional. Formou-se em consequência uma
espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico, um
complexo ideológico ao mesmo tempo combativo e de conciliação de
classes, facilmente combinável com o populismo nacionalista então
dominante, cuja ideologia original, o trabalhismo, ia cedendo terreno.
O aspecto conciliatório prevalecia na esfera do movimento operário,
onde o pc fazia valer a sua in uência sindical, a m de manter a luta
dentro dos limites da reivindicação econômica. E o aspecto combativo
era reservado à luta contra o capital estrangeiro, à política externa e à
reforma agrária. O conjunto estava sob medida para a burguesia
populista, que precisava da terminologia social para intimidar a
direita latifundiária, e precisava do nacionalismo, autenticado pela
esquerda, para infundir bons sentimentos nos trabalhadores. Não se
pense, é claro, que o populismo seja criação do pc; o populismo é que
consolidara neste uma tendência, cujo sucesso prático muito grande
tornava o partido, como veremos adiante, invulnerável à esquerda.
Ora, uma vez consumada essa aliança, tornou-se difícil a separação
dos bens. Hoje tudo isso parece claro. Não obstante, esse complexo
deteve a primazia teórica no país, seja em face das teorias
psicossociológicas do “caráter nacional”, já anacrônicas então, seja
em face do nacionalismo simples da modernização, inocente de
contradições, seja em face dos simulacros cristãos do marxismo, que
traduziam imperialismo e capital em termos de autonomia e
heteronomia da pessoa humana, e seja nalmente diante dos
marxismos rivais, que batiam incansavelmente na tecla do leninismo
clássico, e de hábito se bastavam com a recusa abstrata do
compromisso populista. O ponto forte da posição comunista, que
chegou a penetrar as massas, aprofundando nelas o sentido político do
patriotismo, estava na demonstração de que a dominação imperialista
e a reação interna estão ligadas, que não se muda uma sem mudar a
outra. Aliada ao momento político, a repercussão dessa tese foi muito
grande. A literatura anti-imperialista foi traduzida em grande escala e
os jornais fervilhavam de comentários. Foi a época de Brasilino, uma
personagem que ao longo de um livrinho inteiro não conseguia mover
um dedo sem topar no imperialismo. Se acendia a luz, pela manhã, a
força era da Light & Power. Indo ao trabalho, consumia gasolina da
Esso, num ônibus da General Motors. As salsichas do almoço vinham
da Swift & Armour etc. Os Cadernos do Povo, por sua vez, vendidos
por um cruzeiro, divulgavam amplamente as manobras em torno do
petróleo, relações entre latifúndio e doença endêmica, questões de
reforma agrária, discutiam quem era “povo” no Brasil etc. O país
vibrava e as opções diante da história mundial eram pão diário para o
leitor dos principais jornais. Nesse período aclimatizaram-se na fala
cotidiana, que se desprovincianizava, o vocabulário e também o
raciocínio político da esquerda. Daí uma certa abstração e velocidade
especí ca do novo cinema e teatro, em que as opções mundiais
aparecem de dez em dez linhas e a propósito de tudo, às vezes de
maneira desastrada, às vezes muito engraçadas, mas sempre erguendo
as questões à sua consequência histórica, ou a uma caricatura dela.
Quando numa peça teatral um namorado diz à namorada,
insu cientemente marxista diante das complicações familiares:
“generaliza, pô!” — são estes anos de Aufklärung [esclarecimento]
popular que têm a palavra.1 Mas voltemos. Se o pc teve o grande
mérito de difundir a ligação entre imperialismo e reação interna, a sua
maneira de especi cá-la foi seu ponto fraco, a razão do desastre futuro
de 1964. Muito mais anti-imperialista que anticapitalista, o pc

distinguia no interior das classes dominantes um setor agrário,


retrógrado e pró-americano, e um setor industrial, nacional e
progressista, ao qual se aliava contra o primeiro. Ora, esta oposição
existia, mas sem a profundidade que lhe atribuíam, e nunca pesaria
mais do que a oposição entre as classes proprietárias, em bloco, e o
perigo do comunismo. O pc entretanto transformou em vasto
movimento ideológico e teórico as suas alianças, e acreditou nelas,
enquanto a burguesia não acreditava nele. Em consequência, chegou
despreparado à beira da guerra civil.2 Este engano esteve no centro da
vida cultural brasileira de 1950 para cá e tinha a tenacidade de seu
sucesso prático. Esta a di culdade. A crítica de esquerda não
conseguia desfazê-lo, pois todos os dias anteriores ao último davam-
lhe razão. Como previsto, Goulart apoiava-se mais e mais no pc , cuja
in uência e euforia eram crescentes. Só o que não houve meios de
prevenir, na prática, já que as precauções neste terreno perturbariam a
disposição “favorável” do presidente, foi o nal militar. Estava na
lógica das coisas que o pc chegasse à soleira da revolução con ando
no dispositivo militar da Presidência da República. Em suma, tratava-
se de um engano bem fundado nas aparências. Seus termos e seu
movimento foram a matéria-prima da crítica e da apologética do
período. Sumariamente, era o seguinte: o aliado principal do
imperialismo, e portanto o inimigo principal da esquerda, seriam os
aspectos arcaicos da sociedade brasileira, basicamente o latifúndio,
contra o qual deveria erguer-se o povo, composto de todos aqueles
interessados no progresso do país. Resultou, no plano econômico-
político, uma problemática explosiva mas burguesa de modernização e
democratização; mais precisamente, tratava-se da ampliação do
mercado interno através da reforma agrária, nos quadros de uma
política externa independente. No plano ideológico, resultava uma
noção de “povo” apologética e sentimentalizável, que abraçava
indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpesinato, a
intelligentsia, os magnatas nacionais e o exército. O símbolo desta
salada está nas grandes festas de então, registradas por Glauber Rocha
em Terra em transe, onde fraternizavam as mulheres do grande
capital, o samba, o grande capital ele mesmo, a diplomacia dos países
socialistas, os militares progressistas, católicos e padres de esquerda,
intelectuais do partido, poetas torrenciais, patriotas em geral, uns em
traje de rigor, outros em blue jeans. Noutras palavras, postas de lado a
luta de classes e a expropriação do capital, restava do marxismo uma
tintura rósea que aproveitava ao interesse de setores (burguesia
industrial? burocracia estatal?) das classes dominantes. E de fato,
nesta forma, foi parte em grau maior ou menor do arsenal ideológico
de Vargas, Kubitschek, Quadros e Goulart. Assim, no Brasil, a
deformação populista do marxismo esteve entrelaçada com o poder
(particularmente durante o governo Goulart, quando chegou a ser
ideologia confessa de guras importantes na administração),
multiplicando os quiproquós e implantando-se profundamente, a
ponto de tornar-se a própria atmosfera ideológica do país. De maneira
vária, sociologia, teologia, historiogra a, cinema, teatro, música
popular, arquitetura etc. re etiram os seus problemas. Aliás, esta
implantação teve também o seu aspecto comercial — importante, do
ponto de vista da ulterior sobrevivência —, pois a produção de
esquerda veio a ser um grande negócio e alterou a sionomia editorial
e artística do Brasil em poucos anos. Entretanto, se nesta fase a
ideologia socialista servia à resolução de problemas do capitalismo, a
cada impasse invertia-se a direção da corrente. Agitavam-se as massas,
a m de pressionar a faixa latifundiária do Congresso, que assustada
aprovaria medidas de modernização burguesa, em particular a
reforma agrária. Mas o Congresso não correspondia; e a direita, por
sua vez, contrariamente à esquerda populista, que era moderadíssima,
promovia ruidosamente o fantasma da socialização. Consolidava-se
então, aqui e ali, por causa mesmo da amplitude das campanhas
populares o ciais, e por causa de seu fracasso, a convicção de que as
reformas necessárias ao país não seriam possíveis nos limites do
capitalismo e portanto do populismo. Esta conclusão, embora esparsa,
tinha o mesmo vasto raio da propaganda governamental. Foi adotada
por quadros de governo, quadros técnicos, estudantes e vanguardas
operárias, que em seguida, diante do golpe militar de 1964, não
puseram em dúvida o marxismo, mas a aplicação que o pc zera dele.
Este esquema explica aliás alguma coisa do caráter e do lugar social de
parte do marxismo brasileiro. Num país dependente mas
desenvolvimentista, de capitalização fraca e governo empreendedor,
toda iniciativa mais ousada se faz em contato com o Estado. Esta
mediação dá perspectiva nacional (e paternalista) à vanguarda dos
vários setores da iniciativa, cujos teóricos iriam encontrar os seus
impasses fundamentais já na esfera do Estado, sob forma de limite
imposto a ele pela pressão imperialista e em seguida pelo marco do
capitalismo. Isto vale para o conjunto da atividade cultural (incluindo
o ensino) que precise de meios, vale para a administração pública,
para setores de ponta na administração privada, e especi cando-se um
pouco valeu mesmo para isolados capitalistas nacionais e para o ciais
do exército. Em consequência, a tônica de sua crítica será o
nacionalismo anti-imperialista, anticapitalista num segundo momento,
sem que a isto corresponda um contato natural com os problemas da
massa. Um marxismo especializado na inviabilidade do capitalismo, e
não nos caminhos da revolução. Ora, como os intelectuais não detêm
os seus meios de produção, essa teoria não se transpôs para a sua
atividade pro ssional, embora faça autoridade e oriente a sua
consciência crítica. Resultaram pequenas multidões de pro ssionais
imprescindíveis e insatisfeitos, ligados pro ssionalmente ao capital ou
governo, mas sensíveis politicamente ao horizonte da revolução — e
isto por razões técnicas, de di culdade no crescimento das forças
produtivas, razões cuja tradução política não é imediata, ou por outra,
é aleatória e depende de ser captada. Em suma, formara-se uma nova
liga nacionalista de tudo que é jovem, ativo e moderno — excluídos
agora magnatas e generais — que seria o público dos primeiros anos
da ditadura e o solo em que deitaria fruto a crítica aos compromissos
da fase anterior. Era tão viva a presença desta corrente que não faltou
quem reclamasse — apesar dos tanques da ditadura rolando
periodicamente pelas ruas — contra o terrorismo cultural da
esquerda.3
Este, esquematicamente, o mecanismo através do qual um dúbio
temário socialista conquistou a cena. Entretanto, resultados culturais e
horizontes de uma ideologia, já porque ela nunca está só, não são
idênticos em tudo à sua função. Do contato com as novas tendências
internacionais e com a radicalização do populismo, o qual a nal
desembocava em meses de pré-revolução, nasciam perspectivas e
formulações irredutíveis ao movimento ideológico do princípio, e
incompatíveis com ele. Dada a análise que zemos, este é mesmo um
critério de valor: só na medida em que nalgum ponto rompesse com o
sistema de conciliações então engrenado, que não obstante lhe dava o
impulso, a produção de esquerda escapava de ser pura ideologia. Isto
dava-se de muitas maneiras. Por exemplo, as demagógicas emoções da
“política externa independente” (Jânio Quadros condecorando
Guevara) ou das campanhas de Goulart estimulavam, nas faculdades,
o estudo de Marx e do imperialismo. Em consequência vieram de
professores — destas longínquas tartarugas — as primeiras exposições
mais convincentes e completas da inviabilidade do reformismo e de
seu caráter misti cador. Outro resultado oblíquo: paradoxalmente, o
estudo acadêmico devolvia aos textos de Marx e Lênin a vitalidade
que o monopólio do pc lhes havia tomado; saindo da aula, os
militantes defendiam o rigor marxista contra os compromissos de seus
dirigentes. Em suma, como os Grupos de Onze e as ligas camponesas
escapavam à máquina populista, que entretanto era a sua atmosfera, a
cultura dispersava por vezes, em obras isoladas ou mesmo em
experimentos coletivos, a fumaceira teórica do pc, que entretanto era
também o clima que lhe garantia audiência e importância imediata.
Finalmente, para um exemplo mais complexo desta disparidade entre
a prática reformista e seus resultados culturais, veja-se o Movimento
de Cultura Popular (mcp) em Pernambuco (uma bela evocação
encontra-se no romance de Antonio Callado, Quarup, de 1967 ). O
movimento começou em 1959, quando Miguel Arraes era prefeito e se
candidatava a governador. A sua nalidade imediata era eleitoral, de
alfabetizar as massas, que certamente votariam nele se pudessem (no
Brasil, o analfabeto, % da população, não vota). Havia intenção
50

também de estimular toda sorte de organização do povo, em torno de


interesses reais, de cidade, de bairro, e mesmo folclóricos, a m de
contrabalançar a indigência e o marginalismo da massa; seria um
modo de fortalecê-la para o contato devastador com a demagogia
eleitoral. O programa era de inspiração cristã e reformista, e a sua
teoria centrava na “promoção do homem”. Entretanto, em seus
efeitos sobre a cultura e suas formas estabelecidas, a profundidade do
mcp era maior. A começar pelo método Paulo Freire, de alfabetização
de adultos, que foi desenvolvido nesta oportunidade. Este método,
muito bem-sucedido na prática, não concebe a leitura como uma
técnica indiferente, mas como força no jogo da dominação social. Em
consequência, procura acoplar o acesso do camponês à palavra escrita
com a consciência de sua situação política. Os professores, que eram
estudantes, iam às comunidades rurais, e a partir da experiência viva
dos moradores alinhavam assuntos e palavras-chave — “palavras
geradoras”, na terminologia de Paulo Freire — que serviriam
simultaneamente para discussão e alfabetização. Em lugar de aprender
humilhado, aos trinta anos de idade, que o vovô vê a uva, o
trabalhador rural entrava, de um mesmo passo, no mundo das letras e
no dos sindicatos, da Constituição, da reforma agrária, em suma, dos
seus interesses históricos. Nem o professor, nesta situação, é um
pro ssional burguês que ensina simplesmente o que aprendeu, nem a
leitura é um procedimento que quali que simplesmente para uma
nova pro ssão, nem as palavras e muito menos os alunos são
simplesmente o que são. Cada um destes elementos é transformado no
interior do método, em que de fato pulsa um momento da revolução
contemporânea: a noção de que a miséria e seu cimento, o
analfabetismo, não são acidentes ou resíduo, mas parte integrada no
movimento rotineiro da dominação do capital. Assim, a conquista
política da escrita rompia os quadros destinados ao estudo, à
transmissão do saber e à consolidação da ordem vigente.
Analogamente para o teatro. Certa feita, o governo Arraes procurou
estender o crédito agrícola, que em dois meses passou a bene ciar 40

mil pequenos agricultores em lugar de apenas mil. Grupos teatrais


procuravam então os camponeses, informavam-se e tentavam
dramatizar em seguida os problemas da inovação. Num caso destes,
quem seria o autor? Quem aprende? A beleza ainda adorna as classes
dominantes? De onde vem ela? Com o público, mudavam os temas, os
materiais, as possibilidades e a própria estrutura da produção cultural.
Durante este breve período, em que polícia e justiça não estiveram
simplesmente a serviço da propriedade (notavelmente em
Pernambuco), as questões de uma cultura verdadeiramente
democrática brotaram por todo canto, na mais alegre
incompatibilidade com as formas e o prestígio da cultura burguesa.
Aliás, é difícil dar-se conta, em sua verdadeira extensão, da
cumplicidade complexa, da complementaridade que muitas vezes
existe entre as formas aceitas, artísticas ou culturais, e a repressão
policial. Foram tempos de áurea irreverência. No Rio de Janeiro, os
Centros Populares de Cultura (cpc) improvisavam teatro político em
portas de fábrica, sindicatos, grêmios estudantis e na favela,
começando além disso a fazer cinema e lançar discos. O vento pré-
revolucionário descompartimentava a consciência nacional e enchia os
jornais de reforma agrária, agitação camponesa, movimento operário,
nacionalização de empresas americanas etc. O país estava
irreconhecivelmente inteligente. O jornalismo político dava um
extraordinário salto nas grandes cidades, bem como o humorismo.
Mesmo alguns deputados zeram discursos com interesse. Em
pequeno, era a produção intelectual que começava a reorientar a sua
relação com as massas. Entretanto sobreveio o golpe, e com ele a
repressão e o silêncio das primeiras semanas. Os generais, em arte,
eram adeptos de uma linha mais tradicional. Em São Paulo, por
exemplo, verdade que mais tarde, o comandante do Segundo Exército
— famoso pela exclamação de que almoçaria a esquerda antes que ela
o jantasse — promovia comentado sarau literário, em que recitou
sonetos da lavra paterna, e no nal, instado pela sociedade presente,
também alguns de sua própria pluma. No Recife, o mcp foi fechado
em seguida, e sua sede transformada, como era inevitável, em
Secretaria da Assistência Social. A fase mais interessante e alegre da
história brasileira recente havia se tornado matéria para re exão.
Agora, no rastro da repressão de 1964 , era outra camada geológica
do país quem tinha a palavra. “Corações antigos, escaninhos da
hinterlândia, quem vos conhece?” Já no pré-golpe, mediante forte
aplicação de capitais e ciência publicitária, a direita conseguira ativar
politicamente os sentimentos arcaicos da pequena burguesia. Tesouros
de bestice rural e urbana saíram à rua, na forma da “Marcha da
família, com Deus pela liberdade”, movimentavam petições contra
divórcio, reforma agrária e comunização do clero, ou cavam em casa
mesmo, rezando o “Terço em família”, espécie de rosário bélico para
encorajar os generais. Deus não deixaria de atender a tamanho
clamor, público e caseiro, e de fato caiu em cima dos comunistas. No
pós-golpe, a corrente da opinião vitoriosa se avolumou, enquanto a
repressão calava o movimento operário e camponês. Curiosidades
antigas vieram à luz, estimuladas pelo inquérito policial-militar que
esquadrinhava a subversão. — O professor de loso a acredita em
Deus? — O senhor sabe inteira a letra do Hino Nacional? — Mas as
meninas, na faculdade, são virgens? — E se forem praticantes do amor
livre? — Será que o meu nome estava na lista dos que iriam para o
paredão? Tudo se resumia nas palavras de ardente ex-liberal: “Há um
grandioso trabalho à frente da Comissão Geral de Investigações”. Na
província, onde houvesse ensino superior, o ressentimento local
misturava-se de interesse: professores do secundário e advogados da
terra cobiçavam os postos e ordenados do ensino universitário, que
via de regra eram de licenciados da capital. Em São Paulo, speakers de
rádio e televisão faziam terrorismo político por conta própria. O
governador do estado, uma encarnação de Ubu, invocava
seguidamente a Virgem — sempre ao microfone —, a quem chamava
“adorável criatura”. O ministro da Educação era a mesma gura que
havia poucos anos expurgara a biblioteca da Universidade do Paraná,
de que então era reitor; naquela ocasião mandara arrancar as páginas
imorais dos romances de Eça de Queirós. Na faculdade de medicina,
um grupo inteiro de professores foi expulso por outro, menos
competente, que aproveitava a marola policial para ajuste de rancores
antigos.
Em menos palavras: no conjunto de seus efeitos secundários, o
golpe apresentou-se como uma gigantesca volta do que a
modernização havia relegado; a revanche da província, dos pequenos
proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em
lei etc. Para conceber o tamanho desta regressão, lembre-se que no
tempo de Goulart o debate público estivera centrado em reforma
agrária, imperialismo, salário mínimo e voto do analfabeto, e mal ou
bem resumira não a experiência média do cidadão, mas a experiência
organizada dos sindicatos, operários e rurais, das associações
patronais ou estudantis, da pequena burguesia mobilizada etc. Por
confuso e turvado que fosse, referia-se a questões reais e fazia-se nos
termos que o processo nacional sugeria, de momento a momento, aos
principais contendores. Depois de 1964 o quadro é outro. Ressurgem
as velhas fórmulas rituais, anteriores ao populismo, em que os setores
marginalizados e mais antiquados da burguesia escondem a sua falta
de contato com o que se passa no mundo: a célula da nação é a
família, o Brasil é altivo, nossas tradições cristãs, frases que não mais
re etem realidade alguma, embora sirvam de passe-partout para a
afetividade e de caução policial-ideológica a quem fala. À sua
maneira, a contrarrevolução repetia o que havia feito boa parte da
mais reputada poesia brasileira deste século; ressuscitou o cortejo dos
preteridos do capital. Pobres os poetas, que viam seus decantados
maiores em procissão, brandindo cacetes e suando obscurantismo!
Entretanto, apesar de vitoriosa, esta liga dos vencidos não pôde se
impor, sendo posta de lado em seguida pelos tempos e pela política
tecnocrática do novo governo. (Fez, contudo, fortuna artística ainda
uma vez, em forma de assunto. Seu raciocínio está imortalizado nos
três volumes do Febeapá — sigla para Festival de Besteira que Assola
o País —, antologia compilada por Stanislaw Ponte Preta. E de
maneira indireta, o espetáculo de anacronismo social, de cotidiana
fantasmagoria que deu, preparou a matéria para o movimento
tropicalista — uma variante brasileira e complexa do pop, na qual se
reconhece um número crescente de músicos, escritores, cineastas,
encenadores e pintores de vanguarda. Adiante tentarei apresentá-la.) A
sua segunda chance, esta liga veio a tê-la agora em , associada ao
1969

esforço policial e doutrinário dos militares, que tentam construir uma


ideologia para opor à guerra revolucionária nascente. Porém voltemos
a . O governo que resultara do golpe, contrariamente à pequena
1964

burguesia e à burguesia rural, que ele mobilizara mas não ia


representar, não era atrasado. Era pró-americano e antipopular, mas
moderno. Levava a cabo a integração econômica e militar com os
Estados Unidos, a concentração e a racionalização do capital. Neste
sentido o relógio não andara para trás, e os expoentes da propriedade
privada rural e suburbana não estavam no poder. Que interesse pode
ter um tecnocrata, cosmopolita por de nição, nos sentimentos que
fazem a hinterlândia marchar? Muito mais interessante é ver o que
veem os seus colegas em Londres, Nova York e Paris: Hair, Marat-
Sade, Albee e mesmo Brecht. Da mesma forma, quando marchavam
pelas ruas contra o comunismo, em saia, blusa e salto baixo, as damas
da sociedade não pretendiam renunciar às suas toaletes mais
elaboradas. A burguesia entregou aos militares a Presidência da
República e lucrativos postos na administração, mas guardava
padrões internacionais de gosto. Ora, neste momento a vanguarda
cultural do Ocidente trata de um só assunto, o apodrecimento social
do capitalismo. Por sua vez, os militares quase não traziam a público
o seu esforço ideológico — o qual será decisivo na etapa que se inicia
agora —, pois dispondo da força dispensavam a sustentação popular.
Neste vácuo, foi natural que prevalecessem o mercado e a liderança
dos entendidos, que devolveram a iniciativa a quem a tivera no
governo anterior. A vida cultural entrava em movimento, com as
mesmas pessoas de sempre e uma posição alterada na vida nacional.
Através de campanhas contra tortura, rapina americana, inquérito
militar e estupidez dos censores, a inteligência do país unia-se e
triunfava moral e intelectualmente sobre o governo, com grande efeito
de propaganda. Somente em ns de 1968 a situação volta a se
modi car, quando é o cialmente reconhecida a existência de guerra
revolucionária no Brasil. Para evitar que ela se popularize, o
policialismo torna-se verdadeiramente pesado, com delação
estimulada e protegida, a tortura assumindo proporções pavorosas, e
a imprensa de boca fechada. Cresce em decorrência o peso da esfera
ideológica, o que se traduziu em profusão de bandeiras nacionais,
folhetos de propaganda, e na instituição de cursos de ginástica e
civismo para universitários. Subitamente renascida, em toda parte se
encontra a fraseologia do patriotismo ordeiro. Que chance tem o
governo de forjar uma ideologia nacional efetiva? Se precisa dela, é
somente para enfrentar a subversão. Noutro caso, preferia dispensá-la,
pois é no essencial um governo associado ao imperialismo, de
desmobilização popular e soluções técnicas, ao qual todo
compromisso ideológico veri cável parecerá sempre um entrave. Além
disso, há também a penetração instituída e maciça da cultura dos
Estados Unidos, que não casa bem com Deus, pátria e família, ao
menos em sua acepção latino-americana. Portanto, a resistência à
difusão de uma ideologia de tipo fascista está na força das coisas. Por
outro lado, di cilmente ela estará na consciência liberal, que teve seus
momentos de vigor depois de , mas agora parece quase extinta.
1964

Em 1967 , por ocasião de grandes movimentações estudantis, foi


trazida a São Paulo a polícia das docas. A sua brutalidade sinistra,
rotineiramente aplicada aos trabalhadores, voltava-se por um
momento contra os lhos da burguesia, causando espanto e revolta.
Aquela violência era desconhecida na cidade, e ninguém supusera que
a defesa do regime necessitasse de tais especialistas. Assim também
hoje. Contrafeita, a burguesia aceita a programação cultural que lhe
preparam os militares.

Sistematizando um pouco, o que se repete nestas idas e vindas é a


combinação, em momentos de crise, do moderno e do antigo; mais
precisamente, das manifestações mais avançadas da integração
imperialista internacional e da ideologia burguesa mais antiga — e
obsoleta — centrada no indivíduo, na unidade familiar e em suas
tradições. Super cialmente, esta combinação indica apenas a
coexistência de manifestações ligadas a diferentes fases do mesmo
sistema. (Não interessa aqui, para o nosso argumento, a famosa
variedade cultural do país, em que de fato se encontram religiões
africanas, tribos indígenas, trabalhadores ocasionalmente vendidos tal
qual escravos, trabalho a meias e complexos industriais.) O
importante é o caráter sistemático desta coexistência, e seu sentido,
que pode variar. Enquanto na fase Goulart a modernização passaria
pelas relações de propriedade e poder, e pela ideologia, que deveriam
ceder à pressão das massas e das necessidades do desenvolvimento
nacional, o golpe de 1964 — um dos momentos cruciais da Guerra
Fria — rmou-se pela derrota deste movimento, através da
mobilização e con rmação, entre outras, das formas tradicionais e
localistas de poder. Assim a integração imperialista, que em seguida
modernizou para os seus propósitos a economia do país, revive e
toni ca a parte do arcaísmo ideológico e político de que necessita para
a sua estabilidade. De obstáculo e resíduo, o arcaísmo passa a
instrumento intencional da opressão mais moderna, como aliás a
modernização, de libertadora e nacional passa a forma de submissão.
Nestas condições, em 1964 o pensamento caseiro alçou-se à eminência
histórica. Espetáculo acabrunhador especialmente para os intelectuais,
que já tinham se desacostumado. Esta experiência, com sua lógica
própria, deu a matéria-prima a um estilo artístico importante, o
tropicalismo, que re ete variadamente a seu respeito, explorando e
demarcando uma nova situação intelectual, artística e de classe. Tento
em seguida um esquema, sem qualquer certeza, de suas linhas
principais. Arriscando um pouco, talvez se possa dizer que o efeito
básico do tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos
desse tipo, grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz
branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do
Brasil. A reserva de imagens e emoções próprias ao país patriarcal,
rural e urbano é exposta à forma ou técnica mais avançada ou na
moda mundial — música eletrônica, montagem eisensteiniana, cores e
montagem do pop, prosa de Finnegans Wake, cena ao mesmo tempo
crua e alegórica, atacando sicamente a plateia. É nesta diferença
interna que está o brilho peculiar, a marca de registro da imagem
tropicalista.4 O resultado da combinação é estridente como um
segredo familiar trazido à rua, como uma traição de classe. É
literalmente um disparate — é esta a primeira impressão — em cujo
desacerto porém está gurado um abismo histórico real, a conjugação
de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista. São muitas as
ambiguidades e tensões nesta construção. O veículo é moderno e o
conteúdo é arcaico, mas o passado é nobre e o presente é comercial;
por outro lado, o passado é iníquo e o presente é autêntico etc.
Combinaram-se a política e uma espécie coletiva de exibicionismo
social: a força artística lhe vem de citar sem conivência, como se
viessem de Marte, o civismo e a moral que saíram à rua — mas com
intimidade, pois Marte ca lá em casa — e vem também de uma
espécie de delação amorosa, que traz aos olhos profanos de um
público menos restrito os arcanos familiares e de classe. Noivas
patéticas, semblantes senatoriais, frases de implacável dignidade,
paixões de tango — sem a proteção da distância social e do prestígio
de seu contexto, e gravadas nalguma matéria plástico-metálico-
fosforescente e eletrônica, estas guras refulgem estranhamente, e ca
incerto se estão desamparadas ou são malignas, prontas para um
fascismo qualquer. Aliás, este fundo de imagens tradicionais é muitas
vezes representado através de seus decalques em radionovela, opereta,
cassino e congêneres, o que dá um dos melhores efeitos do
tropicalismo: o antigo e autêntico era ele mesmo tão faminto de efeito
quanto o deboche comercial de nossos dias, com a diferença de estar
fora de moda; é como se a um cavalheiro de cartola, que insistisse em
sua superioridade moral, respondessem que hoje ninguém usa mais
chapéu. Sistematizando: a crista da onda, que é, quanto à forma, onde
os tropicalistas estão, ora alinha pelo esforço crítico, ora pelo sucesso
do que seja mais recente nas grandes capitais. Esta indiferença, este
valor absoluto do novo, faz que a distância histórica entre técnica e
tema, xada na imagem-tipo do tropicalismo, possa tanto exprimir
ataque à reação quanto o triunfo dos netos citadinos sobre os avós
interioranos, o mérito irrefutável de ter nascido depois e ler revistas
estrangeiras. Sobre o fundo ambíguo da modernização, é incerta a
divisa entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração.
Uma ambiguidade análoga aparece na conjugação de crítica social
violenta e comercialismo atirado, cujos resultados podem facilmente
ser conformistas, mas podem também, quando ironizam o seu aspecto
duvidoso, reter a gura mais íntima e dura das contradições da
produção intelectual presente. Aliás, a julgar pela indignação da
direita (o que não é tudo), o lado irreverente, escandaloso e comercial
parece ter tido, entre nós, mais peso político que o lado político
deliberado. Qual o lugar social do tropicalismo? Para apreciá-lo é
necessária familiaridade — mais rara para algumas formas de arte e
menos para outras — com a moda internacional. Esta familiaridade,
sem a qual se perderia a distância, a noção de impropriedade diante
da herança patriarcal, é monopólio de universitários e a ns, que por
meio dela podem falar uma linguagem exclusiva. Como já vimos, o
tropicalismo submete um sistema de noções reservadas e prestigiosas a
uma linguagem de outro circuito e outra data, operação de que deriva
o seu alento desmisti cador e esquerdista. Ora, também a segunda
linguagem é reservada, embora a outro grupo. Não se passa do
particular ao universal, mas de uma esfera a outra, verdade que
politicamente muito mais avançada, que encontra aí uma forma de
identi cação. Mais ou menos, sabemos assim a quem fala este estilo;
mas não sabemos ainda o que ele diz. Diante de uma imagem
tropicalista, diante do disparate aparentemente surrealista que resulta
da combinação que descrevemos, o espectador sintonizado lançará
mão das frases da moda, que se aplicam: dirá que o Brasil é incrível, é
a fossa, é o m, o Brasil é demais. Por meio destas expressões, em que
simpatia e desgosto estão indiscerníveis, lia-se ao grupo dos que têm
o “senso” do caráter nacional. Por outro lado, este clima, esta essência
imponderável do Brasil, é de construção simples, fácil de reconhecer
ou produzir. Trata-se de um truque de linguagem, de uma fórmula
para visão so sticada, ao alcance de muitos. Qual o conteúdo deste
esnobismo de massas? Qual o sentimento em que se reconhece e
distingue a sensibilidade tropicalista? Entre parênteses, sendo simples
uma fórmula não é necessariamente ruim. Como veremos adiante, o
efeito tropicalista tem um fundamento histórico profundo e
interessante; mas é também indicativo de uma posição de classe, como
veremos agora. Voltando: por exemplo, no método Paulo Freire estão
presentes o arcaísmo da consciência rural e a re exão especializada de
um alfabetizador; entretanto, a despeito desta conjunção, nada menos
tropicalista do que o dito método. Por quê? Porque a oposição entre
os seus termos não é insolúvel: pode haver alfabetização. Para a
imagem tropicalista, pelo contrário, é essencial que a justaposição de
antigo e novo — seja entre conteúdo e técnica, seja no interior do
conteúdo — componha um absurdo, esteja em forma de aberração, a
que se referem a melancolia e o humor deste estilo. Noutras palavras,
para obter o seu efeito artístico e crítico o tropicalismo trabalha com a
conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contrarrevolução
cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da anterior tentativa
fracassada de modernização nacional. Houve um momento, pouco
antes e pouco depois do golpe, em que ao menos para o cinema valia
uma palavra de ordem cunhada por Glauber Rocha (que parece
evoluir para longe dela): “Por uma estética da fome”. A ela ligam-se
alguns dos melhores lmes brasileiros, Vidas secas, Deus e o diabo e
Os fuzis em particular. Reduzindo ao extremo, pode-se dizer que o
impulso desta estética é revolucionário. O artista buscaria a sua força
e modernidade na etapa presente da vida nacional, e guardaria quanta
independência fosse possível em face do aparelho tecnológico e
econômico, em última análise sempre orientado pelo inimigo. A
direção tropicalista é inversa: registra, do ponto de vista da vanguarda
e da moda internacionais, com seus pressupostos econômicos, como
coisa aberrante, o atraso do país. No primeiro caso, a técnica é
politicamente dimensionada. No segundo, o seu estágio internacional
é o parâmetro aceito da infelicidade nacional: nós, os atualizados, os
articulados com o circuito do capital, falhada a tentativa de
modernização social feita de cima, reconhecemos que o absurdo é a
alma do país e a nossa. A noção de uma “pobreza brasileira”, que
vitima igualmente a pobres e ricos — própria do tropicalismo —,
resulta de uma generalização semelhante. Uns índios num descampado
miserável, lmados em tecnicolor humorístico, uma cristaleira no
meio da autoestrada asfaltada, uma festa grã- na, a nal de contas
provinciana —, em tudo estaria a mesma miséria. Esta noção de
pobreza não é evidentemente a dos pobres, para quem falta de comida
e de estilo não podem ser vexames equivalentes. Passemos entretanto à
outra questão: qual o fundamento histórico da alegoria tropicalista?
Respondendo, estaríamos explicando também o interesse
verdadeiramente notável que estas imagens têm, que ressalta de modo
ainda mais surpreendente se ocorre serem parte de uma obra
medíocre. A coexistência do antigo e do novo é um fato geral (e
sempre sugestivo) de todas as sociedades capitalistas e de muitas
outras também. Entretanto, para os países colonizados e depois
subdesenvolvidos, ela é central e tem força de emblema. Isto porque
estes países foram incorporados ao mercado mundial — ao mundo
moderno — na qualidade de econômica e socialmente atrasados, de
fornecedores de matéria-prima e trabalho barato. A sua ligação ao
novo se faz através, estruturalmente através de seu atraso social, que
se reproduz em lugar de se extinguir.5 Na composição insolúvel mas
funcional dos dois termos, portanto, está gurado um destino
nacional, que dura desde os inícios. Aliás, cultivando a
“latinoamericanidad” — em que tenuemente ressoa o caráter
continental da revolução —, o que no Brasil de fala portuguesa é
raríssimo, os tropicalistas mostram que têm consciência do alcance de
seu estilo. De fato, uma vez assimilado este seu modo de ver, o
conjunto da América Latina é tropicalista. Por outro lado, a
generalidade deste esquema é tal que abraça todos os países do
continente em todas as suas etapas históricas — o que poderia parecer
um defeito. O que dirá do Brasil de 1964 uma fórmula igualmente
aplicável, por exemplo, ao século xix argentino? Contudo, porque o
tropicalismo é alegórico, a falta de especi cação não lhe é fatal (seria,
num estilo simbólico). Se no símbolo, esquematicamente, forma e
conteúdo são indissociáveis, se o símbolo é “aparição sensível” e por
assim dizer natural da ideia, na alegoria a relação entre a ideia e as
imagens que devem suscitá-la é externa e do domínio da convenção.
Signi cando uma ideia abstrata com que nada têm a ver, os elementos
de uma alegoria não são trans gurados artisticamente: persistem na
sua materialidade documental, são como que escolhos da história real,
que é a sua profundidade.6 Assim, é justamente no esforço de
encontrar matéria sugestiva e datada — com a qual alegorizam a
“ideia” intemporal de Brasil — que os tropicalistas têm o seu melhor
resultado. Daí o caráter de inventário que têm lmes, peças e canções
tropicalistas, que apresentam quanta matéria possam para que esta
sofra o processo de ativação alegórica. Produzido o anacronismo —
com seu efeito convencionalizado, de que isto seja Brasil —, os ready-
mades do mundo patriarcal e do consumo imbecil põem-se a signi car
por conta própria, em estado indecoroso, não estetizado, sugerindo
in nitamente as suas histórias abafadas, frustradas, que não
chegaremos a conhecer. A imagem tropicalista encerra o passado na
forma de males ativos ou ressuscitáveis, e sugere que são nosso
destino, razão pela qual não cansamos de olhá-la. Creio que este
esquema vigora mesmo quando a imagem é cômica à primeira vista.7

Comentando algumas casas posteriores a 1964, construídas por


arquitetos avançados, um crítico observou que eram ruins de morar
porque a sua matéria, principalmente o concreto aparente, era muito
bruta, e porque o espaço estava excessivamente retalhado e
racionalizado, sem proporção com as nalidades de uma casa
particular. Nesta desproporção, entretanto, estariam a sua honestidade
cultural, o seu testemunho histórico. Durante os anos
desenvolvimentistas, ligada a Brasília e às esperanças do socialismo,
havia maturado a consciência do sentido coletivista da produção
arquitetônica. Ora, para quem pensara na construção racional e
barata, em grande escala, no interior de um movimento de
democratização nacional, para quem pensara no labirinto das
implicações econômico-políticas entre tecnologia e imperialismo, o
projeto para uma casa burguesa é inevitavelmente um anticlímax.8
Cortada a perspectiva política da arquitetura, restava entretanto a
formação intelectual que ela dera aos arquitetos, que iriam torturar o
espaço, sobrecarregar de intenções e experimentos as casinhas que os
amigos recém-casados, com algum dinheiro, às vezes lhes
encomendavam. Fora de seu contexto adequado, realizando-se em
esfera restrita e na forma de mercadoria, o racionalismo arquitetônico
transforma-se em ostentação de bom gosto — incompatível com a sua
direção profunda — ou em símbolo moralista e inconfortável da
revolução que não houve. Este esquema, aliás, com mil variações
embora, pode-se generalizar para o período. O processo cultural, que
vinha extravasando as fronteiras de classe e o critério mercantil, foi
represado em 1964. As soluções formais, frustrado o contato com os
explorados, para o qual se orientavam, foram usadas em situação e
para um público a que não se destinavam, mudando de sentido. De
revolucionárias passaram a símbolo vendável da revolução. Foram
triunfalmente acolhidas pelos estudantes e pelo público artístico em
geral. As formas políticas, a sua atitude mais grossa, engraçada e
didática, cheias do óbvio materialista que antes fora de mau tom,
transformavam-se em símbolo moral da política, e era este o seu
conteúdo forte. O gesto didático, apesar de muitas vezes simplório e
não ensinando nada além do evidente à sua plateia culta — que existe
o imperialismo, que a justiça é de classe —, vibrava como exemplo,
valorizava o que à cultura con nada não era permitido: o contato
político com o povo. Formava-se assim um comércio ambíguo, que de
um lado vendia indulgências afetivo-políticas à classe média, mas do
outro consolidava a atmosfera ideológica de que falamos no início. A
in nita repetição de argumentos conhecidos de todos — nada mais
redundante, à primeira vista, que o teatro logo em seguida ao golpe —
não era redundante: ensinava que as pessoas continuavam lá e não
haviam mudado de opinião, que com jeito se poderia dizer muita
coisa, que era possível correr um risco. Nestes espetáculos, a que não
comparecia a sombra de um operário, a inteligência identi cava-se
com os oprimidos e rea rmava-se em dívida com eles, em quem via a
sua esperança. Davam-se combates imaginários e vibrantes à
desigualdade, à ditadura e aos Estados Unidos. Firmava-se a
convicção de que vivo e poético, hoje, é o combate ao capital e ao
imperialismo. Daí a importância dos gêneros públicos, de teatro,
a ches, música popular, cinema e jornalismo, que transformavam este
clima em comício e festa, enquanto a literatura propriamente saía do
primeiro plano. Os próprios poetas sentiam assim. Num debate
público recente, um acusava outro de não ter um verso capaz de levá-
lo à cadeia. Esta procuração revolucionária que a cultura passava a si
mesma e sustentou por algum tempo não ia naturalmente sem
contradições. Algumas podem ser vistas na evolução teatral do
período.
A primeira resposta do teatro ao golpe foi musical, o que já era um
achado. No Rio de Janeiro, Augusto Boal — diretor do Teatro de
Arena de São Paulo, o grupo que mais metódica e prontamente se
reformulou — montava o show Opinião. Os cantores, dois de origem
humilde e uma estudante de Copacabana, entremeavam a história de
sua vida com canções que calhassem bem. Neste enredo, a música
resultava principalmente como resumo, autêntico, de uma experiência
social, como a opinião que todo cidadão tem o direito de formar e
cantar, mesmo que a ditadura não queira. Identi cavam-se assim para
efeito ideológico a música popular — que é com o futebol a
manifestação chegada ao coração brasileiro — e a democracia, o povo
e a autenticidade, contra o regime dos militares. O sucesso foi
retumbante. De maneira menos inventiva o mesmo esquema liberal, de
resistência à ditadura, servia a outro grande sucesso, Liberdade,
liberdade, no qual era apresentada uma antologia ocidental de textos
libertários, de vi a.C. a xx d.C. Apesar do tom quase cívico destes dois
espetáculos, de conclamação e encorajamento, era inevitável um certo
mal-estar estético e político diante do total acordo que se produzia
entre palco e plateia. A cena não estava adiante do público. Nenhum
elemento da crítica ao populismo fora absorvido. A con rmação
recíproca e o entusiasmo podiam ser importantes e oportunos então,
entretanto era verdade também que a esquerda vinha de uma derrota,
o que dava um traço indevido de complacência ao delírio do aplauso.
Se o povo é corajoso e inteligente, por que saiu batido? E se foi batido,
por que tanta congratulação? Como veremos, a falta de resposta
política a esta questão viria a transformar-se em limite estético do
Teatro de Arena. Redundante neste ponto, Opinião era novo noutros
aspectos. Seu público era muito mais estudantil que o costumeiro,
talvez por causa da música, e portanto mais politizado e inteligente.
Daí em diante, graças também ao contato organizado com os grêmios
escolares, esta passou a ser a composição normal da plateia do teatro
de vanguarda. Em consequência, aumentou o fundo comum de cultura
entre palco e espectadores, o que permitia alusividade e agilidade,
principalmente em política, antes desconhecidas. Se em meio à suja
tirada de um vilão repontavam as frases do último discurso
presidencial, o teatro vinha abaixo de prazer. Essa cumplicidade tem, é
certo, um lado fácil e tautológico; mas cria o espaço teatral — que no
Brasil o teatro comercial não havia conhecido — para o argumento
ativo, livre de literatice. De modo geral aliás, o conteúdo principal
deste movimento terá sido uma transformação de forma, a alteração
do lugar social do palco. Em continuidade com o teatro de agitação da
fase Goulart, a cena e com ela a língua e a cultura foram despidas de
sua elevação “essencial”, cujo aspecto ideológico, de ornamento das
classes dominantes, estava a nu. Subitamente, o bom teatro, que
durante anos discutira em português de escola o adultério, a liberdade,
a angústia, parecia recuado de uma era. Estava feita uma espécie de
revolução brechtiana, a que os ativistas da direita, no intuito de
restaurar a dignidade das artes, responderam arrebentando cenários e
equipamentos, espancando atrizes e atores. Sem espaço ritual, mas
com imaginação — e também sem grande tradição de métier e sem
atores velhos —, o teatro estava próximo dos estudantes; não havia
abismo de idade, modo de viver ou formação que os separasse. Por
sua vez, o movimento estudantil vivia o seu momento áureo, de
vanguarda política do país. Esta combinação entre a cena “rebaixada”
e um público ativista deu momentos teatrais extraordinários, e
repunha na ordem do dia as questões do didatismo. Em lugar de
oferecer aos estudantes a profundidade insondável de um texto belo
ou de um grande ator, o teatro oferecia-lhes uma coleção de
argumentos e comportamentos bem pensados, para imitação, crítica
ou rejeição. A distância entre o especialista e o leigo diminuíra muito.
Digredindo, é um exemplo de que a democratização, em arte, não
passa por barateamento algum, nem pela inscrição das massas numa
escola de arte dramática; passa por transformações sociais e de
critério, que não deixam intocados os termos iniciais do problema.
Voltando: nalguma parte Brecht recomenda aos atores que recolham e
analisem os melhores gestos com que acaso deparem, para
aperfeiçoá-los e devolvê-los ao povo, de onde vieram. A premissa
deste argumento, em que arte e vida estão conciliadas, é que o gesto
exista no palco assim como fora dele, que a razão de seu acerto não
esteja somente na forma teatral que o sustenta. O que é bom na vida
aviva o palco e vice-versa. Ora, se a forma artística deixa de ser o
nervo exclusivo do conjunto, é que ela aceita os efeitos da estrutura
social (ou de um movimento) — a que não mais se opõe no essencial
— como equivalentes aos seus. Em consequência, há distensão formal,
e a obra entra em acordo com o seu público; poderia diverti-lo e
educá-lo, em lugar de desmenti-lo todo o tempo. Estas especulações,
que derivam do idílio que Brecht imaginara para o teatro socialista na
República Democrática Alemã, dão uma ideia do que se passava no
Teatro de Arena, onde a conciliação era viabilizada pelo movimento
estudantil ascendente. A pesquisa do que seja atraente, vigoroso e
divertido, ou desprezível — para uso da nova geração — fez a
simpatia extraordinária dos espetáculos do Arena desta fase. Zumbi,
um musical em que se narra uma fuga e rebelião de escravos, é um
bom exemplo. Não sendo cantores nem dançarinos, os atores tiveram
que desenvolver uma dança e um canto ao alcance prático do leigo,
que entretanto tivessem graça e interesse. Ao mesmo tempo impedia-se
que as soluções encontradas aderissem ao amálgama singular de ator e
personagem: cada personagem era feita por muitos atores, cada ator
fazia muitas personagens, além do que a personagem principal era o
coletivo. Assim, para que se pudessem retomar, para que o ator
pudesse ora ser protagonista, ora massa, as caracterizações eram
inteiramente objetivadas, isto é, socializadas, imitáveis. Os gestos
poderiam ser postos e tirados, como um chapéu, e portanto
adquiridos. O espetáculo era verdadeira pesquisa e oferenda das
maneiras mais sedutoras de rolar e embolar no chão, de erguer um
braço, de levantar depressa, de chamar, de mostrar decisão, mas
também das maneiras mais ordinárias que têm as classes dominantes
de mentir, de mandar em seus empregados ou de assinalar, mediante
um movimento peculiar da bunda, a sua importância social.
Entretanto, no centro de sua relação com o público — o que só lhe
acrescentou o sucesso — Zumbi repetia a tautologia de Opinião: a
esquerda derrotada triunfava sem crítica, numa sala repleta, como se a
derrota não fosse um defeito. Opinião produzira a unanimidade da
plateia através da aliança simbólica entre música e povo, contra o
regime. Zumbi tinha esquema análogo, embora mais complexo. À
oposição entre escravos e senhores portugueses, exposta em cena,
correspondia outra, constantemente sugerida, entre o povo brasileiro e
a ditadura pró-imperialista. Este truque expositivo, que tem a sua
graça própria, pois permite falar em público do que é proibido,
combinava um antagonismo que hoje é apenas moral — a questão
escrava — a um antagonismo político, e capitalizava para o segundo o
entusiasmo descontraído que resulta do primeiro. Mais precisamente,
o movimento ia nos dois sentidos, que têm valor desigual. Uma vez, a
revolta escrava era referida à ditadura; outra, a ditadura era
reencontrada na repressão àquela. Num caso o enredo é artifício para
tratar de nosso tempo. A linguagem necessariamente oblíqua tem o
valor de sua astúcia, que é política. Sua inadequação é a forma de uma
resposta adequada à realidade policial. E a leviandade com que é
tratado o material histórico — os anacronismos pululam — é uma
virtude estética, pois assinala alegremente o procedimento usado e o
assunto real em cena. No segundo caso, a luta entre escravos e
senhores portugueses seria, já, a luta do povo contra o imperialismo.
Em consequência apagam-se as distinções históricas — as quais não
tinham importância se o escravo é artifício, mas têm agora, se ele é
origem — e valoriza-se a inevitável banalidade do lugar-comum: o
direito dos oprimidos, a crueldade dos opressores; depois de 1964 ,
como ao tempo de Zumbi (século xvii), busca-se no Brasil a liberdade.
Ora, o vago de tal perspectiva pesa sobre a linguagem, cênica e verbal,
que resulta sem nervo político, orientada pela reação imediata e
humanitária (não política portanto) diante do sofrimento. Onde Boal
brinca de esconde-esconde, há política; onde faz política, há
exortação. O resultado artístico do primeiro movimento é bom, o do
segundo é ruim. Sua expressão formal acabada, esta dualidade vai
encontrá-la no trabalho seguinte do Arena, o Tiradentes. Teorizando a
respeito, Boal observava que o teatro hoje tanto deve criticar como
entusiasmar. Em consequência, opera com o distanciamento e a
identi cação, com Brecht e Stanislavski. A oposição entre os dois, que
na polêmica brechtiana tivera signi cado histórico e marcava a linha
entre ideologia e teatro válido, é reduzida a uma questão de
oportunidade dos estilos.9 De fato, em Tiradentes a personagem
principal — o mártir da independência brasileira, homem de origem
humilde — é apresentada através de uma espécie de gigantismo
naturalista, uma encarnação mítica do desejo de libertação nacional.
Em contraste, as demais personagens, tanto seus companheiros de
conspiração, homens de boa situação e pouco decididos, quanto os
inimigos, são apresentadas com distanciamento humorístico, à
maneira de Brecht. A intenção é de produzir uma imagem crítica das
classes dominantes, e outra, essa empolgante, do homem que dá sua
vida pela causa. O resultado entretanto é duvidoso: os abastados
calculam politicamente, têm noção de seus interesses materiais, sua
capacidade epigramática é formidável e sua presença em cena é bom
teatro; já o mártir corre desvairadamente empós a liberdade, é
desinteressado, um verdadeiro idealista cansativo, com rendimento
teatral menor. O método brechtiano, em que a inteligência tem um
papel grande, é aplicado aos inimigos do revolucionário; a este vai
caber o método menos inteligente, o do entusiasmo. Politicamente,
este impasse formal me parece corresponder a um momento ainda
incompleto da crítica ao populismo. Qual a composição social e de
interesses do movimento popular? Esta é a pergunta a que o
populismo responde mal. Porque a composição das massas não é
homogênea, parece-lhe que mais vale uni-las pelo entusiasmo que
separá-las pela análise crítica de seus interesses. Entretanto, somente
através desta crítica surgiriam os verdadeiros temas do teatro político:
as alianças e os problemas de organização, que deslocam noções como
sinceridade e entusiasmo para fora do campo do universalismo
burguês. Por outro lado, isto não quer dizer que chegando a estes
assuntos o teatro vá melhorar. Talvez nem seja possível encená-lo. É
verdade também que os melhores momentos do Arena estiveram
ligados à sua limitação ideológica, à simpatia incondicional pelo seu
público jovem, cujo senso de justiça, cuja impaciência, que têm
certamente valor político, zeram indevidamente as vezes de interesse
revolucionário puro e simples. Em m de contas, é um desencontro
comum em matéria artística: a experiência social empurra o artista
para as formulações mais radicais e justas, que se tornam por assim
dizer obrigatórias, sem que daí lhes venha, como a honra ao mérito, a
primazia qualitativa.10 Mas não procurá-las conduz à banalização.
Também à esquerda, mas nos antípodas do Arena, e ambíguo até a
raiz do cabelo, desenvolvia-se o Teatro O cina, dirigido por José
Celso Martinez Corrêa. Se o Arena herdara da fase Goulart o impulso
formal, o interesse pela luta de classes, pela revolução, e uma certa
limitação populista, o O cina ergueu-se a partir da experiência
interior da desagregação burguesa em 1964 . Em seu palco esta
desagregação repete-se ritualmente, em forma de ofensa. Os seus
espetáculos zeram história, escândalo e enorme sucesso em São Paulo
e no Rio, onde foram os mais marcantes dos últimos anos. Ligavam-se
ao público pela brutalização, e não como o Arena, pela simpatia; e seu
recurso principal é o choque profanador, e não o didatismo. A
oposição no interior do teatro engajado não podia ser mais completa.
Sumariamente, José Celso argumentaria da forma seguinte: se em
1964 a pequena burguesia cou com a direita ou não resistiu,
enquanto a grande se aliava ao imperialismo, todo consentimento
entre palco e plateia é um erro ideológico e estético.11 É preciso
massacrá-la. Ela, por outro lado, gosta de ser massacrada ou ver
massacrar, e assegura ao O cina o mais notável êxito comercial. É o
problema deste teatro. Para compreendê-lo, convém lembrar que nesse
mesmo tempo se discutiu muito a perspectiva do movimento
estudantil: seria determinada por sua origem social, pequeno-bur-
guesa, ou representa uma função social peculiar — em crise — com
interesses mais radicais? O Arena adota esta segunda resposta, em que
funda a sua relação política e positiva com a plateia; em decorrência,
os seus problemas são novos, antecipando sobre o teatro numa
sociedade revolucionária; mas têm também um traço de voto pio, pois
o suporte real desta experiência são os consumidores que estão na
sala, pagando e rindo, em plena ditadura. O O cina, que adotou na
prática a primeira resposta, põe sinal negativo diante da plateia em
bloco, sem distinções. Paradoxalmente, o seu êxito entre os
estudantes, em especial entre aqueles a que o resíduo populista do
Arena irritava, foi muito grande; estes não se identi cavam com a
plateia, mas com o agressor. De fato, a hostilidade do O cina era uma
resposta radical, mais radical que a outra, à derrota de ; mas não
1964

era uma resposta política. Em consequência, apesar da agressividade,


o seu palco representa um passo atrás: é moral e interior à burguesia,
reatou com a tradição pré-brechtiana, cujo espaço dramático é a
consciência moral das classes dominantes. Dentro do recuo,
entretanto, houve evolução, mesmo porque historicamente a repetição
não existe: a crise burguesa, depois do banho de marxismo que a
intelectualidade tomara, perdeu todo crédito, e é repetida como uma
espécie de ritual abjeto, destinado a tirar ao público o gosto de viver.
Cristalizou-se o sentido moral que teria, para a faixa de classe média
tocada pelo socialismo, a reconversão ao horizonte burguês. Entre
parênteses, esta crise tem já sua estabilidade e alberga uma população
considerável de instalados. Voltando, porém: com violência
desconhecida — mas autorizada pela moda cênica internacional, pelo
prestígio da chamada desagregação da cultura europeia, o que
exempli ca as contradições do imperialismo neste campo — o O cina
atacava as ideias e imagens usuais da classe média, os seus instintos e
sua pessoa física. O espectador da primeira la era agarrado e
sacudido pelos atores, que insistem para que ele “compre!”. No
corredor do teatro, a poucos centímetros do nariz do público, as
atrizes disputam, estraçalham e comem um pedaço de fígado cru, que
simboliza o coração de um cantor milionário da , que acaba de
tv

morrer. A pura noiva do cantor, depois de prostituir-se, é coroada


rainha do rádio e da televisão; a sua gura, de manto e coroa, é a da
Virgem etc. Auxiliado pelos efeitos de luz, o clima destas cenas é de
revelação, e o silêncio na sala é absoluto. Por outro lado, é claro
também o elaborado mau gosto, evidentemente intencional, de
pasquim, destas construções “terríveis”. Terríveis ou “terríveis”?
Indignação moral ou imitação maligna? Imitação e indignação,
levadas ao extremo, transformam-se uma na outra, uma guinada de
grande efeito teatral, em que se encerra e expõe com força artística
uma posição política. A plateia, por sua vez, choca-se três, quatro,
cinco vezes com a operação, e em seguida ca deslumbrada, pois não
esperava tanto virtuosismo onde supusera uma crise. Este jogo, em
que a última palavra é sempre do palco, esta corrida no interior de um
círculo de posições insustentáveis, é talvez a experiência principal
proporcionada pelo O cina. De maneira variada, ela se repete e deve
ser analisada. Nos exemplos que dei, combinam-se dois elementos de
alcance e lógica artística diferentes. Tematicamente são imagens de um
naturalismo de choque, caricato e moralista: dinheiro, sexo e nada
mais. Estão ligadas contudo a uma ação direta sobre o público. Este
segundo elemento não se esgota na intenção explícita com que foi
usado, de romper a carapaça da plateia, para que a crítica a possa
atingir efetivamente. Seu alcance cultural é muito maior e difícil de
medir por enquanto. Tocando o espectador, os atores não
desrespeitam somente a linha entre palco e plateia, como também a
distância física que é de regra entre estranhos, e sem a qual não
subsiste a nossa noção de individualidade. A colossal excitação e o
mal-estar que se apossam da sala vêm, aqui, do risco de generalização:
e se todos se tocassem? Também nos outros dois exemplos violam-se
tabus. Por sua lógica, a qual vem sendo desenvolvida, ao que parece,
pelo Living Theater, estes experimentos seriam libertários e fazem
parte de um movimento novo, em que imaginação e prática, iniciativa
artística e reação do público estão consteladas de maneira também
nova. No O cina, contudo, são usados como insulto. O espectador é
tocado para que mostre o seu medo, não seu desejo. É xada a sua
fraqueza, e não o seu impulso. Se acaso não car intimidado e tocar
uma atriz, por sua vez, causa desarranjo na cena, que não está
preparada para isto. Ao que pude observar, passa-se o seguinte: parte
da plateia identi ca-se ao agressor, às expensas do agredido. Se
alguém, depois de agarrado, sai da sala, a satisfação dos que cam é
enorme. A dessolidarização diante do massacre, a deslealdade criada
no interior da plateia são absolutas, e repetem o movimento iniciado
pelo palco. Origina-se uma espécie de competição, uma espiral de
dureza em face dos choques sempre renovados, em que a própria
intenção política e libertária que um choque possa ter se perde e se
inverte. As situações não valem por si, mas como parte de uma prova
geral de força, cujo ideal está na capacidade inde nida de se
desidenti car e de identi car-se ao agressor coletivo. É disto que se
trata, mais talvez que da superação de preconceitos. Por seu conteúdo,
este movimento é desmoralizante ao extremo; mas como estamos no
teatro, ele é também imagem, donde a sua força crítica. O que nele se
gura, critica e exercita é o cinismo da cultura burguesa diante de si
mesma. Sua base formal, aqui, é a sistematização do choque, o qual de
recurso passou a princípio construtivo. Ora, a despeito e por causa de
sua intenção predatória, o choque sistematizado tem compromisso
essencial com a ordem estabelecida na cabeça de seu público, o que é
justamente o seu paradoxo como forma artística. Não tem linguagem
própria, tem que emprestá-la sempre de sua vítima, cuja estupidez é a
carga de explosivo com que ele opera. Como forma, no caso, o
choque responde à desesperada necessidade de agir, de agir
diretamente sobre o público; é uma espécie de tiro cultural. Em
consequência, os seus problemas são do domínio da manipulação
psicológica, da e cácia — a comunicação é procurada, como na
publicidade, pela titilação de molas secretas —, problemas que não
são artísticos no essencial. Quem quer chocar não fala ao vento, a
quem entretanto todo artista fala um pouco. E quem faz política não
quer chocar… Em suma, a distância entre palco e plateia está
franqueada, mas numa só direção. Esta desigualdade, que é uma
deslealdade mais ou menos consentida, não mais corresponde a
qualquer prestígio absoluto de teatro e cultura, nem por outro lado a
uma relação propriamente política. Instalando-se no descampado que
é hoje a ideologia burguesa, o O cina inventa e explora jogos
apropriados ao terreno, torna habitável, nauseabundo e divertido o
espaço do niilismo pós-1964. Como então a rmar que este teatro
conta à esquerda? É conhecido o “pessimismo de olé” da República de
Weimar, o Jucheepessimismus, que ao enterrar o liberalismo teria
prenunciado e favorecido o fascismo. Hoje, dado o panorama
mundial, a situação talvez esteja invertida. Ao menos entre
intelectuais, em terra de liberalismo calcinado parece que nasce ou
nada ou vegetação de esquerda. O O cina foi certamente parte nesta
campanha pela terra arrasada.

Em seu conjunto, o movimento cultural destes anos é uma espécie de


oração tardia, o fruto de dois decênios de democratização, que veio
amadurecer agora, em plena ditadura, quando as suas condições
sociais já não existem, contemporâneo dos primeiros ensaios de luta
armada no país. À direita cumpre a tarefa inglória de lhe cortar a
cabeça: os seus melhores cantores e músicos estiveram presos e estão
no exílio, os cineastas brasileiros lmam na Europa e na África,
professores e cientistas vão embora, quando não vão para a cadeia.
Mas também à esquerda a sua situação é complicada, pois, se é
próprio do movimento cultural contestar o poder, não tem como
tomá-lo. De que serve a hegemonia ideológica se não se traduz em
força física imediata? Ainda mais agora, quando é violentíssima a
repressão tombando sobre os militantes. Se acrescentarmos a enorme
difusão da ideologia guerreira e voluntarista, começada com a
guerrilha boliviana, compreende-se que seja baixo o prestígio da
escrivaninha. Pressionada pela direita e pela esquerda, a
intelectualidade entra em crise aguda. O tema dos romances e lmes
políticos do período é, justamente, a conversão do intelectual à
militância.12 Se a sua atividade, tal como historicamente se de niu no
país, não é mais possível, o que lhe resta senão passar à luta
diretamente política? Nos meses que se passaram entre as primeiras
linhas deste panorama e a sua conclusão, o expurgo universitário
prosseguiu, e foi criada a censura prévia de livros, a m de obstar à
pornogra a. A primeira publicação enquadrada foi a última em que
ainda se manifestava, muito seletiva e dubiamente, o espírito crítico
no país: o semanário O Pasquim.13 Noutras palavras, a impregnação
política e nacional da cultura, que é uma parte grande da sua
importância, deverá ceder o passo a outras orientações. Em
consequência, ouve-se dizer que a universidade acabou, cinema e
teatro idem, fala-se em demissão coletiva de professores etc. Estas
expressões, que atestam a coerência pessoal de quem as utiliza,
contêm um erro de fato: as ditas instituições continuam, embora
muito controladas. E mais, é pouco provável que por agora o governo
consiga transformá-las substancialmente. O que a cada desaperto
policial se viu, em escala nacional, de 1964 até agora, foi a maré
fantástica da insatisfação popular; calado à força, o país está igual,
onde Goulart o deixara, agitável como nunca. A mesma permanência
talvez valha para a cultura, cujas molas profundas são difíceis de
trocar. De fato, a curto prazo a opressão policial nada pode além de
paralisar, pois não se fabrica um passado novo de um dia para o
outro. Que chance têm os militares de tornar ideologicamente ativas
as suas posições? Os pró-americanos, que estão no poder, nenhuma; a
subordinação não inspira o canto, e mesmo se conseguem dar uma
solução de momento à economia, é ao preço de não transformarem o
país socialmente; nestas condições, de miséria numerosa e visível, a
ideologia do consumo será sempre um escárnio. A incógnita estaria
com os militares nacionalistas, que, para fazerem frente aos Estados
Unidos, teriam que levar a cabo alguma reforma que lhes desse apoio
popular, como no Peru. É onde aposta o pc . Por outro lado, os
militares peruanos parecem não apreciar o movimento de massas…
Existe contudo uma presença cultural mais simples, de efeito
ideológico imediato, que é a presença física. É um fato social talvez
importante que os militares estejam entrando em massa para a vida
civil, ocupando cargos na administração pública e privada. Na
província começam a entrar também para o ensino universitário, em
disciplinas técnicas. Esta presença difusa dos representantes da ordem
altera o clima cotidiano da re exão. Onde anteriormente o intelectual
conversava e pensava durante anos, sem sofrer o confronto da
autoridade, a qual só de raro em raro o tornava responsável por sua
opinião, e só a partir de seus efeitos, hoje é provável que um de seus
colegas seja militar. A longo prazo esta situação leva os problemas da
vida civil para dentro das Forças Armadas. De imediato, porém, traz a
autoridade destas para dentro do dia a dia. Nestas circunstâncias, uma
fração da intelectualidade contrária à ditadura, ao imperialismo e ao
capital vai dedicar-se à revolução, e a parte restante, sem mudar de
opinião, fecha a boca, trabalha, luta em esfera restrita e espera por
tempos melhores. Naturalmente há defecções, como em abril de 1964 ,
quando o empuxo teórico do golpe levou um batalhão de marxistas
acadêmicos a converter-se ao estruturalismo. Um caso interessante de
adesão artística à ditadura é o de Nelson Rodrigues, um dramaturgo
de grande reputação. Desde meados de 1968 este escritor escreve
diariamente uma crônica em dois grandes jornais de São Paulo e do
Rio, em que ataca o clero avançado, o movimento estudantil e a
intelectualidade de esquerda. Vale a pena mencioná-lo, pois, tendo
recursos literários e uma certa audácia moral, paga integral e
explicitamente — em abjeção — o preço que hoje o capital cobra de
seus lacaios literários. Quando começou a série, é fato que produzia
suspense na cidade: qual a canalhice que Nelson Rodrigues teria
inventado para esta tarde? Seu recurso principal é a estilização da
calúnia. Por exemplo, vai à meia-noite a um terreno baldio, ao
encontro de uma cabra e de um padre de esquerda, o qual nesta
oportunidade lhe revela as razões verdadeiras e inconfessáveis de sua
participação política; e conta-lhe também que d. Helder suporta mal o
inalcançável prestígio de Cristo. Noutra crônica, a rma de um
conhecido adversário católico da ditadura que não pode tirar o
sapato. Por quê? Porque apareceria o seu pé de cabra etc. A nalidade
cafajeste da fabulação não é escondida, pelo contrário, é nela que está
a comicidade do recurso. Entretanto, se é transformada em método e
voltada sempre contra os mesmos adversários — contra os quais a
polícia também investe —, a imaginação abertamente mentirosa e
mal-intencionada deixa de ser uma blague e opera a liquidação, o
suicídio da literatura: como ninguém acredita nas razões da direita,
mesmo estando com ela, é desnecessário argumentar e convencer. Há
uma certa adequação formal, há verdade sociológica nesta
malversação de recursos literários: ela registra, com vivacidade, o
vale-tudo em que entrou a ordem burguesa no Brasil.
Falamos longamente da cultura brasileira. Entretanto, com
regularidade e amplitude, ela não atingirá 50 mil pessoas, num país de
90 milhões. É certo que não lhe cabe a culpa do imperialismo e da
sociedade de classes. Contudo, sendo uma linguagem exclusiva, é
certo também que, sob este aspecto ao menos, contribui para a
consolidação do privilégio. Por razões históricas, de que tentamos um
esboço, ela chegou a re etir a situação dos que ela exclui e tomou o
seu partido. Tornou-se um abcesso no interior das classes dominantes.
É claro que na base de sua audácia estava a sua impunidade. Não
obstante, houve audácia, a qual, convergindo com a movimentação
populista num momento, e com a resistência popular à ditadura
noutro, produziu a cristalização de uma nova concepção do país.
Agora, quando o Estado burguês — que nem o analfabetismo
conseguiu reduzir, que não organizou escolas passáveis, que não
generalizou o acesso à cultura, que impediu o contato entre os vários
setores da população — cancela as próprias liberdades civis, que são o
elemento vital de sua cultura, esta vê nas forças que tentam derrubá-lo
a sua esperança. Em decorrência, a produção cultural submete-se ao
infravermelho da luta de classes, cujo resultado não é lisonjeiro. A
cultura é aliada natural da revolução, mas esta não será feita para ela
e muito menos para os intelectuais. É feita, primariamente, a m de
expropriar os meios de produção e garantir trabalho e sobrevivência
digna aos milhões e milhões de homens que vivem na miséria. Que
interesse terá a revolução nos intelectuais de esquerda, que eram
muito mais anticapitalistas de elite que propriamente socialistas?
Deverão transformar-se, reformular as suas razões, que entretanto
haviam feito deles aliados dela. A história não é uma velhinha
benigna. Uma gura tradicional da literatura brasileira deste século é
o “fazendeiro do ar”:14 o homem que vem da propriedade rural para
a cidade, onde recorda, analisa e critica, em prosa e verso, o contato
com a terra, com a família, com a tradição e com o povo, que o
latifúndio lhe possibilitara. É a literatura da decadência rural. Em
Quarup, o romance ideologicamente mais representativo para a
intelectualidade de esquerda recente, o itinerário é o oposto: um
intelectual, no caso um padre, viaja geográ ca e socialmente o país,
despe-se de sua pro ssão e posição social, à procura do povo, em cuja
luta irá se integrar — com sabedoria literária — num capítulo
posterior ao último do livro.
Cuidado com as ideologias alienígenas

(respostas a movimento)

Na sua opinião, qual a importância do in uxo externo nos rumos da


vida ideológica do Brasil?
A importância foi e é enorme. Mas antes de mais nada esta questão
precisa ser vista sem primarismo. Nem tudo que é nacional é bom,
nem tudo que é estrangeiro é ruim, o que é estrangeiro pode servir de
revelador do nacional, e o nacional pode servir de cobertura às piores
dependências. Assim, por exemplo, nada mais aberto às in uências
estrangeiras do que o Modernismo de 1922 , que entretanto
transformou a nossa realidade popular em elemento ativo da cultura
brasileira. Enquanto isto, o nacionalismo programático se enterrava
no pitoresco, e muito sem querer assumia como “autênticos” os
aspectos que decorriam de nossa condição de república bananeira.
Isso posto, a resposta é diferente nas diferentes esferas da cultura.
Algum tempo atrás tive o prazer de discutir o assunto com Maria
Sylvia de Carvalho Franco. Na opinião dela, a noção de in uxo
externo é super cial e idealista, pois ideias não viajam, a não ser na
cabeça de quem acredite no “difusionismo” (uma teoria antropológica
que dá muita importância ao processo da difusão cultural). Ideias,
segundo Maria Sylvia, se produzem socialmente. De minha parte, não
vou dizer que não, mas continuo achando que elas viajam. No que
interessa à literatura brasileira do século , acho até que viajavam
xix

de barco. Vinham da Europa de quinze em quinze dias, no paquete,


em forma de livros, revistas e jornais, e o pessoal ia ao porto esperar.
Quem lida com história literária — ou, para dar outro exemplo, com
história da tecnologia — não pode fugir à noção do in uxo externo,
pois são domínios em que a história do Brasil se apresenta em
permanência sob o aspecto do atraso e da atualização.
É certo que atraso e atualização têm causas internas, mas é certo
também que as formas e técnicas — literárias e outras — que se
adotam nos momentos de modernização foram criadas a partir de
condições sociais muito diversas das nossas, e que a sua importação
produz um desajuste que é um traço constante de nossa civilização.
Em perspectiva nacional, esse desajuste é a marca do atraso. Em
perspectiva mundial, ele é um efeito do desenvolvimento desigual e
combinado do capitalismo, de que revela aspectos essenciais, donde o
seu signi cado “universal”. Noutras palavras, não inventamos o
Romantismo, o Naturalismo, o Modernismo ou a indústria
automobilística, o que não nos impediu de os adotar. Mas não bastava
adotá-los para reproduzir a estrutura social de seus países de origem.
Assim, sem perda de sua feição original, escolas literárias, cientí cas e
Volkswagens exprimiram aspirações locais, cuja dinâmica entretanto
era outra. Daí uma relação oblíqua, o já citado desajuste, que aliás é
um problema especí co para quem estuda a literatura de países
subdesenvolvidos. São necessários ouvido e senso da realidade para
perceber as diferenças e sobretudo para interpretá-las. Por exemplo,
Araripe Jr. observa que o nosso Naturalismo não era pessimista como
o europeu; Antonio Candido nota que os primeiros baudelairianos
brasileiros eram rapazes saudáveis, rebelados contra a hipocrisia dos
costumes sexuais, e Oswald e os tropicalistas puseram o dito desajuste
no centro de sua técnica artística e de sua concepção do Brasil. São
problemas para encarar sem preconceito: em certo plano, é claro que
o desajuste é uma inferioridade e que a relativa organicidade da
cultura europeia é um ideal. Mas não impede noutro plano que as
formas culturais de que nos apropriamos de maneira mais ou menos
inadequada possam ser negativas também em seu terreno de origem, e
também que, sendo negativas lá, sejam positivas aqui, na sua forma
desajustada. É questão de analisar caso por caso. Assim, não tem
dúvida que as ideologias são produzidas socialmente, o que não as
impede de viajar e de ser encampadas em contextos que têm muito ou
pouco a ver com a sua matriz original. Para chegar aos nossos dias,
veja-se o estruturalismo, cuja causa losó ca “interna” foi 1964 , que
pôs fora de moda o marxismo, o qual por sua vez também é uma
ideologia “exótica”, como gostam de dizer as pessoas de direita,
naturalmente convencidas da origem autóctone do “fascio”. E quem
garante que ao se naturalizarem no Brasil estas teorias não tenham
elas também mudado um pouco de rumo? É um assunto interessante,
para quem gosta de mexer em vespeiro. Estudando “A nova geração”
(1879), Machado de Assis dizia que “o in uxo externo é que
determina a direção do movimento; não há por ora no nosso ambiente
a força necessária à invenção de doutrinas novas”. Noutras palavras,
o país é novo, e o in uxo externo contribui para o atualizar e civilizar.
Muitos anos antes, a propósito do projeto para uma história do Brasil
com que o alemão Von Martius ganhara o prêmio do Instituto
Histórico, escrevia um anônimo no Ostensor Brasileiro (1846): “A
Europa, que nos manda nosso algodão ado e tecido […] manda-nos
até indicar a melhor maneira de escrever a história do Brasil” (devo a
citação a Luiz Felipe de Alencastro). Era o nexo entre a exploração
econômica (exportação de matéria-prima e importação de
manufaturados) e a subordinação ideológica que madrugava. Noutras
palavras, o in uxo externo indica relações desiguais e tem dimensão
política. Do ponto de vista de nossas elites, as duas apreciações estão
certas, comportando um impasse. O in uxo externo é indispensável
ao progresso, ao mesmo tempo que nos subordina e impede de
progredir. São contradições do subdesenvolvimento: o país é
capitalista, e obrigatoriamente se mede pelo metro do progresso
capitalista, mas este progresso não está ao seu alcance, pois a divisão
internacional do trabalho lhe atribui outro papel, um papel que à luz
deste mesmo progressismo parece inadmissível.
Por outro lado, retomando o nosso o, a documentação básica da
pesquisa de Maria Sylvia são processos-crime de Guaratinguetá no
século , um material ligado ao aspecto mais estático da sociedade
xix

brasileira (o homem pobre na área do latifúndio), em que o in uxo


ideológico da Europa contemporânea não seria um elemento decisivo.
Assim, divergências teóricas monumentais podem originar-se, ao
menos em parte, na diferença muito casual dos assuntos em que uns e
outros se especializam. Seja como for, ca claro que o problema se põe
diferentemente nos vários domínios da vida social.
Quem diz in uxo externo está pensando em termos de nacional e
estrangeiro, e em nosso contexto é provável que esteja pensando na
alienação cultural que acompanha a subordinação econômica e
política. São fatos irrecusáveis. Entretanto, se forem traduzidos em
linguagem apenas nacionalista, enganam e podem dar resultado
contrário ao desejado. Em sentido estrito, é claro que hoje em dia as
independências econômica, política e cultural não só não existem
como são praticamente inconcebíveis. O que existe de fato são formas
diferentes de interdependência, como dizia para outros ns o marechal
Castelo Branco, formas que naturalmente interessam a camadas
diferentes da população. É verdade que o nacionalismo desperta muita
combatividade, mas não é menos verdade que ele é discreto na
especi cação e na análise dos interesses sociais. Uma lacuna que em
minha opinião é a principal em nossas letras críticas. O problema
portanto não é o de ser a favor ou contra o in uxo externo, mas o de
considerá-lo (bem como a tradição nacional) de uma perspectiva
popular.
Aliás, a in uência externa toma feição caricata sobretudo quando
falta esta perspectiva.

Houve mudança signi cativa do século xix para cá, em termos da


combinação entre as in uências ideológicas externas e a nossa prática
capitalista?
Com certeza houve, mas eu não seria capaz de precisar
rapidamente. Por outro lado, há também as continuidades. Impossível,
na segunda metade do século xix, uma defesa entusiasta e brilhante da
escravidão, que entretanto era a instituição fundamental de nossa
economia. Havia um morto embaixo da cama dos nossos inteligentes,
cujo universo mental mal ou bem era balizado pela Revolução
Francesa. Por razões parecidas, os elogios do modelo atual só podem
ser tecnicistas, cínicos ou primários.

Na época do capitalismo nos moldes clássicos europeus, a ideologia


era designada por “falsa consciência” e tinha como função ocultar os
reais mecanismos da vida social. Nestes termos, qual seria a função da
ideologia no caso brasileiro?
Ideologia, nesta acepção, é um fato da era burguesa. Uma
concepção aparentemente verdadeira do processo social no conjunto,
que entretanto apresenta os interesses de uma classe como sendo os de
todo mundo. O exemplo mais perfeito é a ideologia liberal do século
xix, com as suas igualdades formais. Note-se que a ideologia neste
sentido tem de ser verossímil no tocante às aparências, a ponto de
fazer que mesmo os prejudicados se reconheçam nela. Noutras
palavras, pela sua existência mesma a vida ideológica presume que as
pessoas se integrem no processo social através de convicções re etidas,
e não da força bruta (o que faz dela um bem, além de uma ilusão).
Ora, é claro que não era pelas ideias que o escravo se integrava em
nosso processo, e que nesse sentido a universalização ideológica dos
interesses dos proprietários era supér ua. Daí os aspectos ornamentais
de nossa vida ideológica, sua localização inessencial e sua esfera
relativamente restrita. Em nossos dias a situação é outra, mas nem
tanto. Acredito com a Escola de Frankfurt que a ideologia principal
do capitalismo moderno está na massa das mercadorias acessíveis e na
organização do aparelho produtivo, ao passo que as ideias
propriamente ditas passaram para o segundo plano. Ora, se é claro
que no Brasil a ideologia consumista existe, é mais claro ainda que
não é ela que acalma os que não consomem. Em certo sentido muito
desagradável, há menos ideologia e mais verdade.

A re exão sobre os países periféricos traria alguma vantagem à crítica


do capitalismo em geral?
Em primeiro lugar, no sentido óbvio, de que o subdesenvolvimento
é parte do sistema. Depois, porque o caráter inorgânico e re exo da
modernização na periferia faz que o desenvolvimento das forças
produtivas apareça de um ângulo diferente. Uma coisa é o processo
social em que a grande indústria se criou, e outra é o transplante mais
ou menos deliberado de seus resultados. Em minha impressão, a
novidade mais interessante destes últimos anos é a análise crítica do
aparelho produtivo moderno (econômico-técnico-cientí co), cuja
neutralidade política vem sendo posta em questão. São ideias que já
afetaram profundamente a nossa compreensão dos países adiantados e
que devem a sua irradiação mundial a um país dos mais atrasados,
que está procurando outro caminho para a sua industrialização,
diferente do modelo que o capitalismo clássico criou. Fomos
habituados a considerar a massa trabalhadora do ponto de vista da
industrialização, o que corresponde às relações correntes de poder. Em
caso, porém, de a massa exceder de muito o raio das possibilidades
industriais e em caso sobretudo de ela pesar efetivamente, é a
industrialização que será considerada do ponto de vista dela, o que
abre uma área de problemas e um prisma analítico originais: as
formas de dominação da natureza não são progresso puro e simples,
são também formas de dominação social. É interessante notar que essa
mesma análise da função centralizadora, autoritária e ideológica da
grande indústria (produtivismo) — naturalmente com menos
repercussão — já fora feita pela Escola de Frankfurt, que, como
gostam de dizer as pessoas politizadas, não tem contato com a
realidade. É claro que a linha do Brasil é outra. Quem lê jornais
brasileiros depois de uma temporada fora leva um susto: metade é
progresso, metade são catástrofes e as suas vítimas. Há um livro
imortal esperando um brasileiro disposto: uma enquete corajosa e bem
analisada sobre a barbaridade destes nossos anos de progresso.
Na época do populismo, nossos intelectuais se preocuparam mais com
os impasses do capitalismo periférico do que com as possibilidades da
sua transformação. A seu ver, esta situação ainda persiste?
Persiste e é natural. O que não é natural é que ao falar em
transformação só se fale em generalidades. Falta entrar no detalhe,
submeter as teorias ao teste real, ao teste da desigualdade monstruosa
e variadíssima do país. Se não há solução em vista, é uma razão a mais
para imaginá-la. Não a partir de teses gerais, mas dos dados os mais
desfavoráveis da realidade.

Uma leitura ingênua de seu ensaio “As ideias fora do lugar” não
poderia concluir que toda ideologia, inclusive as libertárias, seria uma
ideia fora do lugar em países periféricos?
Este aspecto existe. Ideias estão no lugar quando representam
abstrações do processo a que se referem, e é uma fatalidade de nossa
dependência cultural que estejamos sempre interpretando a nossa
realidade com sistemas conceituais criados noutra parte, a partir de
outros processos sociais. Neste sentido, as próprias ideologias
libertárias são com frequência uma ideia fora do lugar, e só deixam de
sê-lo quando se reconstroem a partir de contradições locais. O
exemplo mais conhecido é a transposição da sequência escravismo-
feudalismo-capitalismo para o Brasil, país que já nasceu na órbita do
capital e cuja ordem social no entanto difere muito da europeia. Mas
o problema vai mais longe. Ainda quando é magistralmente
aproveitado, um método não representa o mesmo numa circunstância
ou noutra. Por exemplo, quando na Europa se elaborava a teoria
crítica da sociedade, no século , ela generalizava uma experiência
xix

de classe que estava em andamento, criticava uma ciência que estava


no apogeu (a Economia Política), dava continuidade a tradições
literárias e losó cas etc. Noutras palavras, a teoria da união da teoria
e da prática fazia parte de um poderoso movimento neste sentido. Por
complicadas que sejam as suas obras capitais, elas guardam contato
com as ideologias espontâneas (e também com as ideologias críticas)
de sua época, o que aliás é um dos critérios distintivos da verdadeira
análise concreta. Para passar ao Brasil, vejam-se os livros
fundamentais de nossa historiogra a. Mesmo quando são excelentes,
o seu contato com o processo social é de uma ordem inteiramente
diversa. As circunstâncias são outras. São aspectos que é preciso levar
em conta, pois, do ponto de vista materialista, a teoria é parte também
da realidade, e a sua inserção no processo real é parte do que
concretamente ela é.

O uso da paródia como meio privilegiado de expressão em nossa


cultura não correria o risco de trazer uma postura contemplativa?
Não vejo por quê. A paródia é das formas literárias mais
combativas, desde que a intenção seja esta. Por outro lado, um pouco
de contemplação não faz mal a ninguém. Além do quê, em países de
cultura importada a paródia é uma forma de crítica quase natural: a
explicitação da inevitável paródia involuntária (vide a “Carta pras
icamiabas”). Acresce que a bancarrota ideológica em nossos dias é
extraordinária e mais ou menos geral, o que também se traduz em
paródia. Proust, Joyce, Kafka, Mann, Brecht, todos foram
consumados parodistas. Entre nós, Machado, Mário, Oswald, e hoje
Glauber e Caetano.

É necessário estar em perfeita sintonia com o que ocorre nos centros


hegemônicos para sacar os meandros de nossa vida sociocultural?
Depende naturalmente do objeto de estudo. É ele que de ne o raio
dos conhecimentos indispensáveis. Como entretanto a importação de
formas é parte constante de nosso processo cultural, é claro que não
basta conhecer o contexto brasileiro. É preciso conhecer também o
contexto original para apreciar a diferença, a qual é uma presença
objetiva, ainda que um pouco impalpável, em nossa vida ideológica.
Por isto, a nossa historiogra a tem de ser comparativa. Seria
interessante por exemplo que um cidadão com boa leitura traçasse um
programa de estudos comparativos necessários ao conhecimento
apropriado da literatura brasileira. Isto no plano pacato da pesquisa
universitária. Já no plano da interpretação da sociedade
contemporânea, que a nal de contas é o que interessa mais, hoje é
muito mais fácil estar em dia com a bibliogra a internacional do que
com a realidade do Brasil. Esta última di culdade não é só acadêmica.
Se a experiência histórica de setores inteiros do país é atomizada e não
soma, como conhecer o seu sentido? Para car num aspecto
secundário da questão, todos emburrecemos.
A carroça, o bonde e o poeta modernista

Oswald de Andrade inventou uma fórmula fácil e poeticamente e caz


para ver o Brasil. A facilidade no caso não representava defeito, pois
satisfazia a uma tese crítica segundo a qual o esoterismo que cercava
as coisas do espírito era uma bruma obsoleta e antidemocrática, a
dissipar, fraudulenta no fundo. Quando Lênin dizia que o Estado, uma
vez revolucionado, se poderia administrar com os conhecimentos de
uma cozinheira, manifestava uma convicção de mesma ordem: não
desmerecia as aptidões populares, e sim a rmava que a irracionalidade
e a complicação do capitalismo se estavam tornando supér uas;
brevemente seriam substituídas por uma organização social sem
segredo e conforme ao bom senso. Igual con ança no potencial
materialista e rebelde da obviedade bem escolhida se encontra na
poética de Brecht. Este proclamava a intenção de reduzir o seu
vocabulário à dimensão chã do Basic English,1 defendia a
oportunidade do pensamento sem requinte (plumpes Denken) e,
sobretudo, elaborava protótipos artísticos, fáceis de imitar e variar
produtivamente, os quais, como é sabido, guram no centro de sua
teoria do teatro didático. Tratava de atualizar a literatura, a)
incorporando-lhe a universalidade de procedimentos própria à
fabricação industrial, ao trabalho cientí co e também (!!!) à luta de
classes; b) concebendo um caminho moderno para a generalização da
cultura exigente; e c) contrariando a idolatria do cunho pessoal na
invenção artística. Sem desconhecer a diferença política e estética entre
os três homens, vale a pena assinalar um certo horizonte comum,
ditado na época pela crise geral da ordem burguesa e pelas
perspectivas radicalmente democráticas e antitradicionalistas abertas
pelo progresso industrial.
Corrido o tempo, não parece que o âmbito da cultura se tenha
desanuviado, nem aliás o do poder, apesar de os dois mudarem muito.
Até segunda ordem, o processo histórico não caminhou na direção dos
objetivos libertários que animavam as vanguardas política e artística.
Assim, aliados à energia que despertaram, esses objetivos acabaram
funcionando como ingredientes dinâmicos de uma tendência outra, e
hoje podem ser entendidos como ideologia, de signi cado a rediscutir.
Nem por isso são ilusão pura, se considerarmos, com Adorno, que a
ideologia não mente pela aspiração que expressa, mas pela a rmação
de que esta se haja realizado. Algo semelhante aconteceu com o
Modernismo brasileiro, que tampouco saiu incólume, e cujo triunfo
atual, na larga escala da mídia, tem a ver com a sua integração ao
discurso da modernização conservadora. Em parte a despeito seu, em
parte como desdobramento de disposições internas.
Mas voltemos à fórmula de Oswald para o poema “pau-brasil”. A
sua matéria-prima se obtém mediante duas operações: a justaposição
de elementos próprios ao Brasil Colônia e ao Brasil burguês, e a
elevação do produto — desconjuntado por de nição — à dignidade de
alegoria do país. Esta a célula básica sobre a qual o poeta vai
trabalhar. Note-se que a mencionada contiguidade era um dado de
observação comum no dia a dia nacional, mais e antes que um
resultado artístico, o que conferia certo fundamento realista à
alegoria, além de explicar a força irresistível da receita oswaldiana,
um verdadeiro “ovo de Colombo” na acertada expressão de Paulo
Prado.2 A nossa realidade sociológica não parava de colocar lado a
lado os traços burguês e pré-burguês, em con gurações incontáveis, e
até hoje não há como sair de casa sem dar com elas. Essa dualidade,
cujos dilemas remontam à Independência e desde então se impõem
inexoravelmente ao brasileiro culto, suscitou atitudes diversas; talvez
não seja exagero dizer que ela animou a parte crucial de nossa
tradição literária. Ainda há pouco o Tropicalismo lhe deu a versão
correspondente ao pós-64. Machado de Assis tomou o assunto em
veia analítica, tendo em mente a problemática moral implicada, como
espero mostrar num próximo trabalho. A matéria está presente no
romance naturalista, onde o universo colonial se funde à pujança do
trópico — o determinismo caro à escola —, levando ao naufrágio
quaisquer pretensões a uma existência burguesa conforme à regra.
Também Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr.
escreveram a respeito os seus livros clássicos, e a lista é fácil de
estender. Já com Oswald o tema, comumente associado a atraso e
desgraça nacionais, adquire uma surpreendente feição otimista, até
eufórica: o Brasil pré-burguês, quase virgem de puritanismo e cálculo
econômico, assimila de forma sábia e poética as vantagens do
progresso, pre gurando a humanidade pós-burguesa, desrecalcada e
fraterna; além do que oferece uma plataforma positiva de onde objetar
à sociedade contemporânea. Um ufanismo crítico, se é possível dizer
assim.
Isso posto, não basta circunscrever a matéria de um poeta para lhe
de nir a poesia. Além de notar a mencionada acomodação do
desconforme e lhe dar estatuto de emblema pátrio não o cial, ou de
mini-maxi-subsídio para a nova compreensão do país, o artista pau-
brasil tem de lhe atinar com exemplares brilhantes, limpá-los,
rearranjar, aperfeiçoar etc. O foco da invenção está na exposição
estrutural do descompasso histórico, obtida através da mais
surpreendente e heterodoxa variedade de meios formais, tudo
disciplinado e posto em realce pela singeleza familiar dos elementos
usados, pela busca do máximo em brevidade e por um certo culto do
achado feliz e da arquitetura poética. A liberdade e a irreverência com
que Oswald opera dependem da vanguarda estética europeia, e a
combinação de soluções antitradicionais e matéria essencialmente
“antiga” realiza por sua vez a síntese que o poema procura captar.
Empenhada em rmar a seriedade do poeta, por oposição à fama do
piadista, a crítica sublinhou a identidade entre as soluções
oswaldianas e as inovações hoje clássicas das vanguardas
internacionais. Daí o conhecido per l do modernista de primeira
linha, subversor exímio de linguagens, crítico e revolucionário nesta
medida. Contudo, o trabalho formal realizado pela poesia pau-brasil
se pode analisar também noutra perspectiva, em função da matéria
que trata de organizar, a qual obriga a repensá-lo a uma luz
historicamente mais especi cada.3 A gura de artista que este tipo de
estudo revela não será menor, ainda que diferente. Para concretizar,
vejamos um poema tomado a “Postes da Light”, conjunto homogêneo
na concepção e, aliás, muito paulista.

pobre alimária

O cavalo e a carroça
Estavam atravancados no trilho
E como o motorneiro se impacientasse
Porque levava os advogados para os escritórios
Desatravancaram o veículo
E o animal disparou
Mas o lesto carroceiro
Trepou na boleia
E castigou o fugitivo atrelado
Com um grandioso chicote4

A cidade em questão é adiantada, pois tem bondes, e atrasada, pois


há uma carroça e um cavalo atravessados nos seus trilhos. Outro sinal
de adiantamento são os advogados e os escritórios, embora
adiantamento relativo, já que o bonde só de jurisconsultos sugere a
sociedade simples, o leque pro ssional idílica ou comicamente
pequeno. Sem esquecer que o progresso requeria engenheiros, e que
nesse sentido, corrente até hoje, o batalhão de bacharéis está na
contramão e aponta para “o lado doutor, o lado citações, o lado
autores conhecidos”.5 O progresso é inegável, mas a sua limitação,
que faz englobá-lo ironicamente com o atraso em relação ao qual ele é
progresso, também.
De um lado, o bonde, os advogados, o motorneiro e os trilhos; do
outro, o cavalo, a carroça e o carroceiro: são mundos, tempos e
classes sociais contrastantes, postos em oposição. A vitória do bonde é
inevitável, mas como a diferença de tamanho entre os antagonistas
não é grande, e a familiaridade das suas presenças é igual, o
enfrentamento guarda um certo equilíbrio engraçado. Espero não
forçar a nota imaginando que, no espaço exíguo do cromo da
província, algo do empacamento de uma parte se transmite também à
outra.
A luta é desempatada pelo motorneiro. Este serve o campo moderno
e lhe toma as dores; mas o seu mundo de origem deve ser o outro. Sob
o signo do imperfeito do subjuntivo, um tempo verbal para eruditos, a
sua irritação (“E como o motorneiro se impacientasse”) re ete a
identi cação com os de cima, contra os iguais e inferiores. O
anonimato a que ca relegado o sujeito de “Desatravancaram o
veículo” — certamente os populares que andavam por ali — deve-se à
mesma postura importante, que não se digna especi car a ajuda
alheia. No processo, a própria carroça muda de categoria e ascende a
“veículo”, palavra que lembra o “elemento” da terminologia policial.
No campo oposto, com imaginação não menos fogosa, o carroceiro é
“lesto” à maneira dos heróis antigos, ofuscando a grandeza em m de
contas medíocre que possa ter a impaciência do rebanho de
advogados. O sentimento épico da vida entretanto não escapa ao
registro familiar nem ao brasileirismo, aquém da norma lusa (“Trepou
na boleia”), o que lhe afeta a vigência e o con na ao terreno da
suscetibilidade ferida e da compensação imaginária. Do alto de sua
prosápia, senhorialmente o carroceiro julga e castiga o “fugitivo
atrelado”, que no título, mais compassivo, havia gurado como
“pobre alimária”. Pelo desajeitamento luminoso, a fórmula herói-
cômica sintetiza ignorância, reminiscências cultas e pernosticismo,
completando a analogia com o opositor e rival, cujo subjuntivo
também era de empréstimo. Por um lado, o enfrentamento existe, pois
o apoteótico chicote nal se destina a provar que o carroceiro não
aceita intimidação de motorneiros, bondes ou advogados, nem cede a
palma a ninguém quanto ao valor. Por outro, existem também a
hierarquia e o mecanismo comum: apoiado nos advogados, o
motorneiro desconta no carroceiro, e este, apoiado num modelo
cultural mais nobre ainda, mas também deslocado, desconta no
cavalo; e quem garante que os advogados não estejam envolvidos no
mesmo faz de conta, apoiados, também eles pernosticamente, em
títulos, prestígios e modos emprestados a sociedades mais ilustres?
Pessoas, bichos, coisas e lugares, além de se oporem, suspiram em
uníssono por uma forma de vida superior, um lugar menos atrasado,
onde carroças fossem veículos, motorneiros fossem autoridades e
advogados não sofressem contratempos. Contudo, pelo paradoxo
central à poesia pau-brasil, o desterro será o paraíso.
A propósito da diferença entre a rigidez germânica e a folga dos
vienenses, conta-se que um alemão pergunta pelo horário de certo
trem, e qual não é o seu estupor quando o austríaco lhe responde que
o dito-cujo “tem o costume” de passar à hora tal. A graça está no
abismo entre horário e costume, e indica a falta de naturalidade de
uns e a desadaptação ao mundo moderno de outros. No poema de
Oswald, se examinarmos os motivos que levam à desobstrução dos
trilhos, encontraremos uma comicidade com fundo semelhante. A
razão não está na necessidade do serviço público, mas na disposição
temperamental do motorneiro, devida aliás ao prazer com que este
expressa o ponto de vista, não do passageiro em geral, mas dos
doutores e de seus escritórios. Noutras palavras, a modernidade atua
integrada ao esquema da autoridade tradicional, que se compraz, por
sua vez, em adotar a fachada dos novos funcionamentos impessoais.
Estes servem como elemento de distinção e destaque, mais que como
regra, o que contribui para a coloração antiquada do bloco adiantado.
Simetricamente, o espetáculo dado pelo carroceiro se destina um
pouco a ele próprio, um pouco ao universo, mas muito aos
advogados, cujo reconhecimento busca e a quem deve provar a valia
da personagem, que não con gura um mundo contrário ao outro. Os
avançados não abrem mão do atraso, e os atrasados, longe de serem
retrógrados convictos, gostam também de um “solzinho
progressista”:6 um quadro cujas noções dominantes funcionam de
maneira inesperada, à qual voltaremos e que faz rir.
O poema se compõe de elementos simples: a carroça, o trilho, os
escritórios etc., substantivos em estado cru, privados da dose de
sugestão e música sem a qual, para adeptos do que existira antes, não
há poesia. A feição deliberadamente rudimentar é funcional em vários
planos e re ete o programa primitivista da vanguarda. Como é sabido,
esta a rma que a tradição estética havia formado uma teia de
alienações e preconceitos que precisava ser abolida para a realidade
poder brilhar. Quando livrasse os fatos da crosta oitocentista de
literatice e complicações psicológicas, o indivíduo encontraria a poesia
revitalizada dos sentidos, da inteligência e da ação. Uma poesia
diferente, assentada em apetites efetivos, oposta à interioridade sofrida
e decadente do período anterior. Quanto menos enquadrado o fato,
quanto mais nu, mais completa a desenvoltura do sujeito. E é certo,
no capítulo, que a poesia de Oswald mobiliza talentos que a
musicalidade do verso e o lirismo subjetivo costumam entorpecer:
trabalha, por assim dizer, à distância de seu objeto, com ânimo
experimental, aberta a sugestões não pautadas e variando os pontos
de vista. A modernidade dessa atitude salta aos olhos, o que não
impede as conotações divergentes e até opostas. Assim, a despeito da
mobilidade dos prismas e da composição abreviada, que empurram
em direção construtivista, o poeta não renuncia ao dom imitativo, que
aliás possui em grau extraordinário. Em nosso exemplo, veja o leitor
se o conjunto não sugere um causo observado, cujo narrador tem a
maneira rude e espirituosa do paulista do interior (um sujeito lírico
vanguardista?), com uma palavra para cada coisa, de preferência
familiar e um pouco bruta: o trilho no singular, os advogados e
escritórios no plural abrangente, vagamente depreciativo.
De um lado, o registro coisista, pão, pão, queijo, queijo, onde as
aparências não enganam; de outro, o desejo igualmente real, mas nada
sóbrio, de desmerecer ou impressionar os outros, ou seja, de
in acionar aparências e valer através delas. O expurgo do acessório,
signi cado pela quase ausência de adjetivos e tecido de ligação,
destinava-se a livrar a nova poesia da matéria ácida do diz que diz,
do detalhe pessoal inútil, da cumplicidade entre pretensões tortuosas.
Ocorre que a tônica substantiva da dicção vem associada, no caso, a
um verdadeiro auge dessas mesmas alienações. A tensão, muito
notória, antes que um problema é um achado, que se integra
perfeitamente à matéria-prima oswaldiana: o sujeito ativo e
desimpedido da poesia vanguardista coexiste com a ânsia generalizada
de reconhecimento superior, própria ao Ancien Régime das
dependências pessoais, originário do período colonial. Isso posto,
sendo desentrosada por de nição, a mencionada matéria a na com as
coisas e palavras em liberdade do gosto modernista. Mas só até certo
ponto, pois a potência classi catória de sua fórmula — polarizada em
termos de arcaísmo e progresso, com vistas na de nição da identidade
nacional — é alta, enquadrando e rotulando os objetos que o
procedimento de vanguarda visava liberar. Isoladas da ressonância
habitual, ou do contexto prático imediato, não há dúvida de que
palavras, coisas e pessoas tomam a feição sem hierarquia e quase de
brinquedo infantil que foi uma das revelações da arte moderna.
Todavia, operada por Oswald, a descontextualização só em parte tem
esse sentido. A concreção decorrente funciona de modo paradoxal,
servindo também noutro registro, aí como termo abstrato (!), ou
melhor, como uma generalidade parassociológica: um trilho é um
trilho e mais nada, bem como parte integrante, aliás facilmente
substituível, de uma alegoria e quase teoria do Brasil. A atmosfera
humorística relativiza, mas penso que não elimina a precariedade
intelectual do estatuto sensorial-patriótico, literal-alegórico ou
concreto-abstrato da imagem. Desse ângulo, a semelhança da
ingenuidade oswaldiana com os primeiros papéis colados do Cubismo,
com os rabiscos de Klee ou com as criaturas sem nalidade de Kafka,
onde a arte moderna de fato procurou se libertar da conivência com
prestígios exteriores, é apenas de superfície.7 O mundo sem data e
rubrica, proposto no Manifesto Antropófago, é datado e rubricado,
como indica a sua matéria disposta segundo ciclos históricos e
impregnada de valor nacional; a disponibilidade que em tese lhe
corresponderia, na qual os radicais da Europa buscavam escapar à
coação de hierarquias e identidades estabelecidas, se transforma em
atributo positivo do brasileiro.
Por outro lado, há mais especi cação no poema do que parece. O
subjuntivo de aparato, o gesto heroico sabotado pela expressão
inculta, o trabalho sem sujeito reconhecido, o termo pretensioso
colado ao termo familiar, o advogado no plural um tantinho
sarcástico, os trilhos no singular: são desvios mínimos, mas de
consistência forte, muito engenhosa e imprevista, su cientes para
erguer outra vida atrás da singeleza dos seres visíveis. Um mundo de
ressentimentos em luta, de insegurança e ambiguidade valorativa, de
crispações do amor-próprio, oposto em tudo à limpidez anunciada na
composição. Característicos ao extremo, os pormenores indicam a
sociedade contraditória, estudada e percebida em movimento, à
maneira da literatura realista. Nem por isso eles deixam de aludir,
através da dissonância que trazem embutida, à periodização dual da
poética pau-brasil, quando então funcionam convencionalmente,
como alegorias do país burguês e não burguês. Por sua vez, a
brevidade feliz e magistral dos achados sugere um modo mais lépido
de viver. Em miniatura, a cena de rua resume um romance realista,
com o seu sistema de desníveis sociais e sentimentos tortuosos; mas
enche também de inocência os nossos olhos, como um quadro do
douanier Rousseau; e funciona como gurinha num álbum de
iconogra a ufanista.
Assim, a construção do poema superpõe coordenadas
incongruentes, cujo desajuste desa a diretamente a consciência
histórica: arte de vanguarda versus ciumeiras de província; Brasil da
carroça versus Brasil dos escritórios; individualismo pagão versus
alegoria patriótica ou culto da interioridade. São questões com peso
real, que no entanto, por um efeito estratégico da composição, não
têm maior gravidade nem parecem constituir problema. Digamos, por
exemplo, retomando observações anteriores, que os arrancos de
amor-próprio do motorneiro e do carroceiro fariam supor um mundo
encruado, de humilhações, ofensas e reparações imaginárias,
incompatível em princípio com a visualidade sem segredo, toda em
primeiro plano, a que o poema aspira. Ocorre porém, contrariamente
ao esperável, que os ressentimentos não perturbam o estado de
inocência de coisas e guras, ao qual na verdade se integram. O passe
de mágica está todo aí: reduzida a um mecanismo mínimo e
rigorosamente sem mistério, a subjetividade toma feição de coisa por
assim dizer exterior, de objeto entre os demais objetos, tão cândida e
palpável como eles.8 Vimos que a exigência de um grão de fantasia
forma o denominador comum entre a impaciência do motorneiro, o
rompante do carroceiro, a pontualidade dos advogados, a promoção
da alimária a bicho de epopeia etc. Ora, nada mais engraçado e
compreensível, conhecido e familiar: trata-se das frioleiras da boa
gente deste país, empenhada em fazer bonito e satisfeita quanto ao
resto. “Dê-me um cigarro/ Diz a gramática/ Do professor e do aluno/
E do mulato sabido// Mas o bom negro e o bom branco/ Da Nação
Brasileira/ Dizem todos os dias/ Deixa disso camarada/ Me dá um
cigarro”9 A parte da condescendência nessa visão encantada do Brasil
é enorme e foi logo notada por Mário de Andrade, que também não
estava livre dela.10 Vista pelo outro lado do binóculo, a vida parece
um desenho de Tarsila, onde os homens, bichos e coisas evoluem sob
um signo enternecido e diminutivo. Essa distância, que permite passar
por alto os antagonismos e envolver as partes contrárias numa mesma
simpatia, naturalmente é um ponto de vista por sua vez.
Para caracterizá-lo na sua dimensão histórico-social, voltemos em
plano mais abstrato aos termos da própria composição. Páginas atrás,
vimos que o poema caçoa de um tipo atrasado de progresso, que
depende, para se con gurar, da presença de outro progresso mais
adiantado. Este segundo se faz sentir no bojo do trabalho literário,
cuja liberdade formal destoa ironicamente do modernismo tênue das
obrigações de motorneiro e advogados, além de marcar, no mesmo
passo, a sintonia com a transformação artística europeia recente. O
desnível, decisivo para a poesia de Oswald, se mede entre a adoção
conservadora de uns tantos melhoramentos e a radicalidade
revolucionária do século , de cujos limites naquele momento ainda
xx

não havia sinal. Era natural que à luz deste último ponto de vista,
atualizado, aventuroso, cosmopolita e muito superior, os partidos do
bonde e da carroça estivessem mais para iguais que para opostos.
Assim, o esvaziamento do antagonismo entre as matérias colonial e
burguesa (atrasada), bem como o descaso pelos seus conteúdos
subjetivos, são efeito de uma distância interna ao poema,
transposição, por sua vez, da distância entre as guras locais e
universais do progresso. Surpreendentemente, o resultado é
valorizador: a suspensão do antagonismo e sua transformação em
contraste pitoresco, onde nenhum dos termos é negativo, vêm de par
com a sua designação para símbolo do Brasil, designação que,
juntamente com a prática dos procedimentos vanguardistas, está entre
as prerrogativas da superioridade, do espírito avançado que estamos
tratando de caracterizar. Portanto, a modernidade no caso não
consiste em romper com o passado ou dissolvê-lo, mas em depurar os
seus elementos e arranjá-los dentro de uma visão atualizada e,
naturalmente, inventiva, como que dizendo, do alto onde se encontra:
tudo isso é meu país.11 Um lirismo luminoso, de pura solução técnica,
nos antípodas de sondagem interior, expressão ou transformação do
sujeito (individual ou coletivo).
Num estudo sobre Macunaíma, tratando de situar o livro, Carlos
Eduardo Berriel liga o nacionalismo de 1922 ao setor da oligarquia
cafeeira que, além de plantar, buscou disputar aos capitais
imperialistas a área da comercialização, que era a mais rendosa do
negócio. O argumento vai além da conhecida proximidade entre os
Modernistas e algumas famílias de grandes fazendeiros: sugere uma
certa homologia entre a estética de Mário e a experiência acumulada
de uma classe que a) se movia com pontos de vista próprios no campo
dos grandes interesses internacionais (o café chegou a ser o maior
artigo de comércio internacional do mundo); b) combinava à sua
indisputável atualização cosmopolita o conservadorismo no âmbito
doméstico, já que a persistência da monocultura de exportação, com
as relações de trabalho correspondentes, era a sua base de eminência
nacional e participação internacional; c) encarava a “vocação
agrícola” do país como um elemento de progresso e
contemporaneidade, a que as demais manifestações modernizantes se
deveriam e poderiam subordinar harmoniosamente; e d) planava
muito acima do conservadorismo defensivo e chucro do restante da
riqueza do país. —12 Não disponho de conhecimento histórico para
avaliar essas hipóteses com precisão (as relações nada lineares entre
cafeicultura e industrialização tornaram-se um tópico de especialistas),
mas acho que o esquema ajuda a entender a poesia pau-brasil e
ilumina os nexos que viemos tratando até aqui. Antes de prosseguir,
não custa dizer que um poeta não melhora nem piora por dar forma
literária à experiência de uma oligarquia: tudo está na consequência e
na força elucidativa das suas composições. Não se trata de reduzir o
trabalho artístico à origem social, mas de explicitar a capacidade dele
de formalizar, explorar e levar ao limite revelador as virtualidades de
uma condição histórico-prática; sem situar o poema na história, não
há como ler a história compactada e potenciada dentro dele, a qual é
o seu valor. Hoje todos sabemos que a hegemonia do café já não tinha
futuro e terminou em 1930, o que naturalmente não atinge a poesia de
Oswald, que está viva.
O próprio Oswald mais de uma vez se referiu às “causas materiais e
fecundantes” do Modernismo, “hauridas no parque industrial de São
Paulo, com seus compromissos de classe no período áureo-burguês do
primeiro café valorizado”.13 A relação aparece com muita beleza em
“aperitivo”, onde “A felicidade anda a pé/ Na Praça Antônio Prado/
São 10 horas azuis/ O café vai alto como a manhã de arranha-céus/
Cigarros Tietê/ Automóveis/ A cidade sem mitos”.14 A plenitude
moderna (e idealizada) das sensações, sem pecado, superstição ou
con ito, o gosto de ver e ser visto, tão característicos da inocência
cultivada por Oswald, vêm na crista da prosperidade do café. São uma
emanação de poder, o que lhes quali ca, mas não anula a ingenuidade.
O privilégio econômico não tira a força poética à despreocupação que
ele propicia: as posses do transeunte são um aspecto sugestivo e dão a
seu contentamento algo da fragilidade da sorte grande (as cotações em
alta podem baixar).15
Outra singularidade oswaldiana é a total ausência de saudosismo na
exposição de guras e objetos do mundo passado (o contraste com os
nortistas, ligados à decadência do açúcar, neste ponto é instrutivo).
Tecnicamente, o efeito se deve à preferência vanguardista e
antissentimental pela presença pura, em detrimento da profundidade
temporal e demais relações. A sustentação de fundo entretanto vem do
futuro que o café pensava ter pela frente, fazendo que o universo de
relações quase coloniais que ele reproduzia lhe aparecesse não como
obstáculo, mas como elemento de vida e progresso, e aliás, uma vez
que era assim, de um progresso mais pitoresco e humano do que
outros, já que nenhuma das partes cava condenada ao
desaparecimento. Digamos que a poesia de Oswald perseguia a
miragem de um progresso inocente.
Para que o moderno de província, o moderníssimo e o arcaico se
acomodem, é preciso que se encontrem. Os locais inventados por
Oswald para a sua conciliação, espécies de praça pública, constituem
achados em si mesmos. Pode ser o Brasil inteiro, dividido ao meio por
um trem, como o vazio pelo meridiano;16 podem ser “campos
atávicos”, cheios de “Eleições tribunais e colônias”;17 ou o terreno
abstrato da gramática, onde a boa gente brasileira, sem discriminação
entre negros e brancos, mas com uma al netada nos mulatos, vence o
pedantismo lusó lo e põe o pronome no lugar errado, o que é o
certo.18 Em “bonde”, “Postretutas e famias sacolejam”, congraçadas,
muito a despeito seu, nos solavancos, na prosódia e na caçoada do
poeta cosmopolita.19 A situação nos poemas citadinos, aliás, é mais
complexa. O ingrediente moderno toma formas diversi cadas: trilhos,
o viaduto do Anhangabaú, o Jardim da Luz, um tarado nalgum
parque, o fotógrafo ambulante, choferes bloqueados pela passagem de
uma procissão, a escola “berlites”, o ateliê de Tarsila, placares de
futebol, a garçonnière do escritor, a Hípica etc. Como se vê, um álbum
abrangente, com cenas tomadas a todos os espaços sociais. O
denominador comum está em certo progressismo acomodatício e fora
da norma, que é o elemento de simpatia e sobretudo de identidade
visado. Puxado mais para elegante quando se trata de Tarsila, e mais
para baixo noutros casos. É notável como o clima ganha em
densidade nas cenas de rua ou em logradouros públicos, onde haja
presença de populares, quando então a irregularidade generalizada, a
disposição ordeira apesar de tudo e o desejo de progredir — que numa
reunião da Hípica re etem apenas esnobismo — formam uma mistura
comovente e de muito interesse.20
O uso inventivo e distanciado das formas parece colocar a poesia de
Oswald no campo inequivocamente crítico. E de fato, sempre que o
alvo é alguma espécie de rigidez o cialista, a quebra da convenção tem
esse efeito. Contudo, a preferência por uma certa informalidade
também pode ser uma ideologia, e até penhor de identidade nacional,
conforme procurei indicar. Com os meios da literatura mais
radicalmente anti-ilusionista, ou antiaurática, para falar com Walter
Benjamin, Oswald buscou fabricar e “auratizar” o mito do país não
o cial, que nem por isso era menos proprietário. Hoje todos sabemos
que as técnicas da desidenti cação brechtiana são usadas na televisão
para promover a nossa identi cação com marcas de sapólio. Por isso
mesmo é interessante veri car que já ao tempo de sua invenção,
quando o mordente seria máximo, esses procedimentos por si sós não
bastavam para esquivar ambiguidades.
Por curto que seja, “pobre alimária” é uma história. Na altura da
metade, o poema exibe uma funcional falta de jeito, de que vai
depender o seu voo. Até aí, e depois até o m, a narrativa avança por
dísticos, ao ritmo de uma ação a cada duas linhas, o que estipula e
confere alguma extensão aos propósitos correspondentes. Os versos
do meio fogem à regra: num, os anônimos “Desatravancaram o
veículo”; no outro, “o animal disparou”. Como traço de união entre
os dois, a conexão inespecí ca do “e”, acentuando a disparidade e
certa equivalência humorística dos sujeitos — os populares e a
alimária —, bem como de suas iniciativas. Por atrelamento, se é
possível dizer assim, o cavalo fugitivo expõe os imprevistos do mundo
do carroceiro. Complementarmente, faz ver que é precário o verniz do
mundo dos advogados. Note-se que a intervenção do chicote
restabelece a ordem, não porque impeça novas obstruções do trânsito,
e sim porque reequilibra a economia das autoestimas, por sobre a
inalterada rachadura social.
O programa pau-brasil queria tirar o país do estado de irrelevância.
Para isso, tratava de lhe realçar a inscrição direta, e em posição
original, na história da humanidade. Daí o constante jogo com
referências cardeais, umas prestigiosíssimas, outras menos, o que já
indica as di culdades do empreendimento: a indústria, a oresta, Ruy
Barbosa, o Carnaval, o azul do céu cabralino, Wagner, o vatapá,
questões de câmbio, a perspectiva de Paolo Uccello, Maricota lendo o
jornal etc. Nos “versos baianos”, por exemplo, as mesmas águas que
levam uma jangada com “homens morenos/ De chapéu de palha”
foram “campos de batalha/ Da Renascença”, “Frequentado rendez-
vous/ De Holandeses de Condes e de Padres”, hoje sendo perfeitas
“para as descidas/ Dos hidroplanos de meu século”.21 O
procedimento visa aproximar e articular dados que a ideologia
colonialista, e sobretudo a sua interiorização pelo colonizado,
separam em compartimentos estanques. Trata-se nada menos que de
conquistar a reciprocidade entre a experiência local e a cultura dos
países centrais, como indica a exigência de uma poesia capaz de ser
exportada, contra a rotina unilateral da importação. O valor crítico e
transformador desse projeto, mais a felicidade de suas fórmulas de
sete léguas, até hoje conferem aos Manifestos um arejamento
extraordinário. Ainda assim, me parece claro que o uso irreverente de
nomes, datas e noções ilustres não deixa de ser uma reverência com
sinal trocado. Um modo até certo ponto precário de suprir a falta de
densidade do objeto, falta que re ete, no plano da cultura, o mutismo
inerente à unilateralidade das relações coloniais e depois imperialistas,
e inerente também à dominação de classe nas ex-colônias.
Conhecidamente, a mencionada rarefação é o tormento dos artistas
nesses países, mas a bem das proporções não custa lembrar que
Machado de Assis já a havia vencido superiormente no século
anterior. Mudando o ângulo, vimos como o gosto modernista pela
pura presença empurrava para segundo plano a dimensão relacional
das guras, em certo sentido lhes suprimindo o antagonismo e a
negatividade.22 Vimos igualmente a correspondência entre essa
estética e o progressismo conservador da burguesia cosmopolita do
café. Articulado assim, o parti pris de ingenuidade e de “ver com
olhos livres”23 algo tem de uma opção por não enxergar, ou melhor,
por esquecer o que qualquer leitor de romances naturalistas sabia. Daí
que os achados da inocência oswaldiana paguem a sua plenitude,
muito notável, com um quê de irrealidade e infantilismo. Mas sendo
Oswald um artista grande e esperto, providenciava contrapesos à sua
decisão de colocar no “presente do universo” — 24 e com sinal
energicamente positivo! — o nosso provincianismo e as nossas
relações rurais atrozes: deu a tudo um certo ar de piada. É neste, e
levada em conta a situação complexa a que responde, que se encontra
a verdade da poesia pau-brasil, um dos momentos altos da literatura
brasileira.
Na periferia do capitalismo

(entrevista)

Gostaria que você falasse um pouco sobre sua formação e


personagens que mais o in uenciaram nessa fase.
Meus pais eram austríacos, intelectuais de esquerda, ateus e judeus.
Quando a Alemanha anexou a Áustria, tiveram que emigrar. Se não
fosse isso, meu pai, que era um homem completamente literário, teria
sido escritor e professor. Embora tivéssemos chegado ao Brasil sem
nada, ele logo começou a refazer uma boa biblioteca alemã, que tenho
até hoje.
Ele morreu cedo, quando eu tinha quinze anos. O Anatol Rosenfeld,
que era amigo dele e da família, passou a acompanhar os meus
estudos e a sugerir leituras. Durante muitos anos ele jantou em casa
aos domingos, que passaram a ser um dia obrigatório de revisão da
semana e discussões. Apesar da grande diferença de idade, camos
muito amigos.

O Anatol tinha um grupo…


Sim, ele dava um curso de história da loso a na casa do Jacó
Guinsburg. O grupo, que era de ex-comunistas, se reunia
semanalmente para ler e discutir textos básicos de Teoria do
Conhecimento. Haviam começado com Descartes e quando passei a
participar estavam nos empiristas ingleses. No nal da reunião havia
chá com bolo e a conversa geralmente passava para a política.

E aí você entrou no curso de ciências sociais da usp.


Foi, em 1957, por sugestão também do Anatol. Eu estava no último
ano do secundário, um pouco incerto se fazia letras, loso a ou
ciências sociais. O Anatol, muito objetivo, me disse que fosse à
faculdade assistir a algumas aulas antes de decidir. Assisti a uma aula
de literatura, de um professor cujo nome não vou dizer, e desisti de
fazer letras. Assisti a uma aula do Cruz Costa, que fazia piada atrás de
piada e me deixou um pouco assim… E assisti a uma aula da Paula
Beiguelman, em política, muito bem preparada e interessante. Aí me
decidi pelas ciências sociais.

Já no curso de ciências sociais você participou daquele grupo do


seminário do Capital ou foi bem depois isso?
O seminário começou em . Foi iniciativa de um grupo de
1958

professores jovens, vindos das ciências sociais, da loso a, da história


e da economia, que tiveram a boa ideia de incluir também alguns
alunos. Com isso o seminário já nasceu multidisciplinar e espichado
para a geração seguinte. Marx na época era pouco ou nada ensinado,
embora muitos professores nessa área fossem de esquerda. De modo
que a decisão de estudar a sério a sua obra tinha alcance estratégico.
No núcleo inicial estavam Ruth e Fernando Henrique Cardoso,
Octávio Ianni, Fernando Novais, Paul Singer e Giannotti. Os alunos
mais assíduos eram Leôncio Martins Rodrigues, Francisco We ort,
Gabriel Bolla , Michael Löwy, Bento Prado e eu.
E qual foi o peso do seminário em sua formação, em sua visão de
mundo?
Foi decisivo. Ao contrário do que diz meu amigo Giannotti, estudar
Marx na época não era assimilar um clássico entre outros. Por um
lado, tratava-se de apostar na re exão crítica sobre a sociedade
contemporânea, na desmisti cação de suas justi cações e instituições,
bem como na necessidade que têm os explorados de transformá-la.
Por outro, tomava-se distância da autoridade dos Partidos Comunistas
na matéria, que promoviam uma compreensão bisonha de Marx, que
era imposta como um dogma. Havia também a excitação de descobrir
e a rmar a superioridade intelectual de um autor profundamente
incômodo para a academia bem-pensante e para a ordem em geral.
Marx era tabu nos Estados Unidos, por conta do macarthismo; na
Alemanha, por conta da Guerra Fria; o próprio debate alemão dos
anos 1920 e , que foi decisivo, não estava traduzido e os livros não
30

se encontravam no comércio; os franceses não tinham tradição


dialética, ao passo que os partidos comunistas, enquadrados pela
União Soviética, publicavam obras escolhidas ou completas de Marx e
Engels, ao mesmo tempo que propagavam uma versão esterilizada e
autoritária de seu pensamento. Digo isso para indicar o inusitado e
também o precário, além de premonitório, da iniciativa do seminário.
Poucos sabiam alemão, não tínhamos familiaridade com o contexto
cultural de Marx, a bibliogra a moderna não estava disponível, para
não dizer que estava desaparecida. De um ponto de vista universitário
“normal”, não estávamos preparados para a empreitada. Em
compensação havia a sintonia com a progressiva radicalização do
país, que entrara em movimento, e talvez com a corrente de fundo que
levaria o mundo a 1968 . Até certo ponto o despreparo foi uma
vantagem, pois permitiu que enfrentássemos com espírito livre as
di culdades que a experiência brasileira opunha aos esquemas
marxistas.

Como era a dinâmica do seminário?


O grupo se reunia de quinze em quinze dias e discutia mais ou
menos vinte páginas por vez. Havia rodízio de expositor, mas todos
tinham obrigação de ler o texto. A discussão ia de questões
elementares de compreensão a problemas cabeludos, com
consequências teóricas e políticas. Como os professores estavam em
idade de escrever as suas teses, que no geral foram de assunto
brasileiro, começou a se con gurar no seminário a distância entre a
construção marxista e a experiência histórica do país. O seminário
teve a força de não desconhecer a discrepância e, também, de não
considerar que ela anulava a melhor teoria crítica da sociedade
contemporânea. Era preciso re etir a respeito, ver o desajuste como
um problema fecundo e, talvez, como parte das desigualdades do
desenvolvimento do capitalismo. Marx não podia ser aplicado tal e
qual ao Brasil, que entretanto fazia parte do universo do capital.
Estava surgindo o tema da reprodução moderna do atraso, segundo o
qual há formas sociais ditas atrasadas que na verdade fazem parte da
reprodução da sociedade contemporânea, em âmbito nacional e
internacional. Contrariamente à aparência, elas não estão no polo
oposto ao progresso, de que são complementares. O argumento é
contraintuitivo, mas, uma vez assimilado, é muito evidente e
transformador, com desdobramentos políticos e estéticos. Embora a
obra correspondente não tenha sido escrita, essas observações ligadas
à experiência das nações periféricas têm relevância histórico-mundial,
para uma apreciação sóbria e não ideológica das realidades do
progresso, o qual é mais perverso do que consta. Dentro de minhas
possibilidades, quando chegou a minha vez de fazer tese e de analisar
os romances de Machado de Assis, eu me havia impregnado muito
desse modo de ver.

Nos anos do seminário, a literatura já era o seu foco?


Já.

Já havia seu interesse pela literatura, mas em termos formais como se


deu sua ida para a teoria e a crítica literária?
Fui aluno de Antonio Candido no segundo ano de ciências sociais,
em 1958, no último ano em que ele deu sociologia. No ano seguinte
comecei a car abatido com o lado empírico da pesquisa sociológica,
os levantamentos e as tabulações não eram comigo. A essa altura,
Antonio Candido passara da sociologia para as letras, e estava
ensinando literatura brasileira em Assis. Ruminei o exemplo e fui até
lá, me queixar da vida e pedir conselho, pois gostava mesmo é de
literatura. Ficou mais ou menos combinado que quando eu terminasse
o curso faria um mestrado em literatura comparada no exterior e
depois iria trabalhar com ele na usp . Nessa época eu já escrevia um
pouco de crítica literária para jornal.

Qual jornal?
Um suplemento literário da Última Hora, onde publiquei um artigo
sobre O amanuense Belmiro, romance sobre o qual o Antonio
Candido havia escrito anos antes. Uma amiga espoleta levou o
trabalho ao professor, contando que eu achava o artigo dele parecido
com o meu. Ele achou graça, leu e me convidou para colaborar no
Suplemento Literário do Estadão, que era dirigido pelo Décio de
Almeida Prado. Assim, quando fui a Assis procurar conselho, ele tinha
ideia do que eu andava fazendo.

A ida para o exterior era porque na época não havia mestrado aqui?
A pós-graduação estava começando. Na época só fazia mestrado e
doutorado o pessoal que já estava trabalhando nalguma cadeira.
Como eu vinha de ciências sociais, para ensinar em letras precisava de
um título apropriado. Fui ao Estados Unidos fazer um mestrado em
teoria literária e literatura comparada na Universidade Yale. Na volta,
em , pouco antes do golpe, comecei a trabalhar na teoria
1963

literária, que era uma novidade na usp.

Em Yale seu trabalho foi com autores brasileiros?


Não. Em Yale havia dois tipos de mestrado: num, faziam-se um ano
de curso e um ano de tese — a tese eram três artigos de vinte páginas
cada um, com alguma dimensão teórica ou comparativa, mais uma
conclusão. Esse era um padrão. No outro, eram dois anos de curso
com boas notas. Como eu estava interessado em adquirir
conhecimentos, z esse último. Eram tópicos de teoria e de literatura
comparada, como por exemplo história da crítica moderna, épica
renascentista, romance realista, Lessing e a estética das Luzes etc.

E nesse começo de trabalho com Antonio Candido, na usp , como é


que se delineiam seus temas de trabalho?
Os primeiros anos são sempre suados. Preparar cursos, aprender o
su ciente para ensinar, no começo não é fácil. Mas a ideia básica de
meu trabalho eu tive cedo. Foi mais ou menos o seguinte: eu lia
Machado de Assis e achava a ironia dele especial. Tinha a impressão
de que havia naquele tipo de humorismo, de gracinha metódica,
alguma coisa brasileira. Então saí atrás disso. Combinei a tentativa de
descrever a ironia de Machado com a intuição de que ela seria
nacional — o que restava explicar. Combinei um close reading dessa
ironia com a teoria do Brasil do seminário do Capital. A ideia de que
a substância da ironia machadiana tinha a ver com a mistura de
liberalismo e escravismo no Brasil me veio cedo, antes de 1964 .
Agora, daí a escrever sobre isso vai um pedaço.

E quanto ao doutorado?
Fiz na França, na Universidade Paris , Sorbonne. A minha tese lá
iii

foi Ao vencedor, as batatas. O livro é de . Quando voltei para


1977

casa já estava publicado.

A sua ida para a França decorreu, na verdade, da repressão política


que a ditadura instaurou no país. Como as coisas se passaram e como
foi sua experiência de exílio?
A França foi camarada com os refugiados, que foram chegando por
ondas, conforme as ditaduras iam tomando conta da América Latina.
Dentro do desastre geral, a verdade é que o exílio era também muito
interessante, apresentava os latino-americanos uns aos outros, e
mesmo os brasileiros das diferentes regiões. O ar ainda estava cheio
dos événements de mai, os acontecimentos de 1968. Para quem não
estivesse com a vida quebrada, ou sob pressão material excessiva, e
para quem tivesse disciplina para retomar os estudos, foram anos
bons.

Bem, mas para chegar ao ápice de sua investigação sobre a relação


entre a ironia de Machado de Assis, o comportamento da elite
brasileira e, en m, a estrutura social do país, em outras palavras, para
chegar a Um mestre na periferia do capitalismo, você gastou mais uns
onze anos, não é verdade?
Sou mais lento do que devia.

Em alguma medida há pioneirismo no trabalho de Antonio Candido


quando ele lança um olhar para a literatura atravessado por uma
visão mais sociológica do país, quando ele faz uma crítica literária
bem ncada na materialidade das relações sociais? Ou isso é uma
prática geral na crítica, que ele explicita melhor?
Eu colocaria a questão ao contrário (posso estar errado). Invertendo
os seus termos, Antonio Candido lança à visão histórico-sociológica
do país — que ele conhece como poucos — um olhar atravessado pela
experiência e pela análise literárias, em cujo valor de revelação ele
acredita e a que deve as suas descobertas. O pioneirismo está aí, nessa
inversão, que dá cidadania plena ao ângulo estético.
Vamos por partes. Que a literatura faça parte da sociedade, ou que
se conheça a literatura através da sociedade e a sociedade através da
literatura, são teses capitais do século xix, sem as quais, aliás, a
importância especi camente moderna da literatura ca
incompreensível. Elas estão na origem de visões geniais e dos piores
calhamaços. Em seguida se tornaram o lugar-comum que sustenta a
historiogra a literária convencional. Dentro desse quadro, o traço que
distingue a crítica dialética, e que a torna especial, é que ela
desbanaliza e tensiona essa inerência recíproca dos polos, sem
suprimi-la. O que for óbvio, para ela não vale a pena. Se não for
preciso adivinhar, pesquisar, construir, recusar aparências, con-
substanciar intuições difíceis, a crítica não é crítica. Para a crítica
dialética o trabalho da guração literária é um modo substantivo de
pensamento, uma via sui generis de pesquisa, que aspira à consistência
e tem exigência máxima. O resultado não é a simples reiteração da
experiência cotidiana, a cuja prepotência se opõe, cujas contradições
explicita, cujas tendências acentua, com decisivo resultado de
clari cação. Em suma, em termos de método, o ponto de partida está
na con guração da obra, com as luzes que lhe são próprias, e não na
sociedade.

Ao contrário do que dizem os detratores dessa crítica.


É isso. Ela parte da análise estética e busca o não evidente, o
resultado do que o trabalho formal do artista con gurou. Ao passo
que a posição tradicional, ou positivista, que também vai se
renovando e continua presente com outros nomes, se limita aos
conteúdos brutos, procurando o mesmo na sociedade e nas obras,
vistas em termos redundantes, de con rmação recíproca direta.

Isso você já dizia com 23 anos, no artigo sobre o psicologismo na


poética de Mário de Andrade.
A verdade é que não lembro. Retomando o o, há uma fórmula do
Lukács, anterior ainda ao período marxista dele, segundo a qual o
social na obra está na forma. Não que os conteúdos não sejam sociais,
mas a forma, ao trabalhá-los e organizá-los, ou também ao ser
in etida por eles, con gura algo de mais geral, análogo à precedência
da sociedade sobre os seus conteúdos separados. Se as obras
interessam é porque se organizam de um modo revelador, que algum
fundamento tem na organização do mundo histórico — fundamento a
descobrir caso a caso.
Como a maior parte da historiogra a literária é de inspiração
nacional e como a nação até outro dia era um horizonte quase
autoevidente, criou-se uma espécie de certeza infundada, segundo a
qual o espaço a que a literatura e as formas literárias se referem é
também ele nacional. Ora, a literatura mais audaciosa, justamente por
ter aversão às mentiras do o cialismo e do nacionalismo, e por
adivinhar o avanço de dimensões extranacionais da civilização
burguesa, não cabe nesse quadro. Nada mais francês que o romance
de Flaubert, mas não teria cabimento ver aí o seu aspecto essencial,
que se liga a um curso moderno das coisas, o qual está longe de ser
francês. Cabe à crítica identi car e formular esse âmbito, o âmbito de
sua relevância contemporânea.
Ora, no caso brasileiro — como seguramente no de outras ex-
colônias — a referência nacional tem uma realidade própria, de tipo
diverso, que continuou efetiva (até hoje?) e catalisou uma parte
importante da invenção formal. Em parte por causa do complexo de
país novo — vide Antonio Candido —, que fazia da criação de uma
literatura nacional um projeto deliberado. Basta lembrar o
pitoresquismo programático dos românticos, ou a tentativa
machadiana — descoberta por John Gledson — de maquinar intrigas
com relevância nacional, ou o naturalismo com o seu trópico
cientí co-alegórico, ou a invenção modernista de logotipos nacionais,
como o Pau Brasil, a Negra e Macunaíma. Dito isso, a questão ca
mais interessante quando a reconhecemos fora da esfera do projeto
nacional assumido, numa certa gama de in exões, situações,
problemas, reações etc. É como se a matriz nacional se impusesse
inconscientemente, pela força das coisas, ou melhor, como
consequência da peculiaridade da estrutura social do país, que gera
uma problemática social, linguística, política e estética singular, com a
qual nos debatemos e à qual nos cabe responder, queiramos ou não.
Isso estará deixando de ser verdade? Aqui, a referência nacional não é
uma bandeira, um preconceito ou uma velharia cediça, mas a
descoberta crítica de um vínculo oculto, que aliás pode não ser
lisonjeiro.
Ao deixar de lado a intenção do autor, ou ao fazer dela um
ingrediente entre outros, e não a instância última, a análise histórico-
estrutural coloca-se no terreno — real entre todos — das
con gurações e dos funcionamentos objetivos, cuja dinâmica não
corre em trilhos previstos, podendo levar aonde o autor não
imaginava e aonde ninguém quis ir. A referência é nacional, mas sem
garantia de nal feliz. Essa naturalmente é uma consciência crítica
adulta, segundo a qual não fazemos o que queremos, ou fazemos o
que não queremos, e não obstante pagamos a conta. Uma posição
esclarecida e desabusada, que se torna modelo para a compreensão
estética e social quando ca evidente que a sociedade burguesa não se
governa a não ser super cialmente, ao passo que a sua superação não
está à vista.
Ainda aqui o passo à frente foi dado por Antonio Candido, no
admirável ensaio sobre O cortiço, que não foi ainda devidamente
explorado. O crítico explicava que o autor pensava estar
romanceando o processo brasileiro de guerra e acomodação entre as
raças, em conformidade com as teorias racistas do Naturalismo, mas
que na verdade, conduzido pela lógica da cção, mostrava um
processo primitivo de exploração econômica e formação de classes,
que se encaminhava de um modo passavelmente bárbaro e desmentia
as ilusões raciais e nacionais do romancista. O curso das coisas é
nacional, mas difere do previsto pelo escritor.

O que exatamente você quer dizer com o “já não é mais assim”,
quando observa que normalmente se trabalhava com textos que de
alguma maneira tinham no horizonte uma pretensão de fundação
nacional?
A crítica dialética supõe obras que sejam mais ou menos fechadas e
altamente estruturadas. Na literatura brasileira não há muitas que
convidem a uma análise desse tipo. Quando Antonio Candido
resolveu estudar nessa veia as Memórias de um sargento de milícias,
estava escolhendo o caminho difícil e levando ao extremo uma
posição crítica de ponta. A ousadia foi pouco notada, porque o
romance — divertido e despretensioso — não faz pensar nessa ordem
de tentativas. Manuel Antônio de Almeida não só não queria fazer o
que o crítico descobriu, como se movia num plano incomparavelmente
mais modesto. Essa desproporção é um erro? Pelo contrário, ela tira
as consequências de uma certa ideia de forma objetiva, que não
coincide com as intenções do autor, as quais pode exceder e contrariar
amplamente. Uma ideia de forma e de análise que o crítico
compartilha com uns poucos mestres da crítica dialética. Os dois
ensaios centrais de Antonio Candido, sobre o Sargento de milícias e O
cortiço, sendo rigorosamente apoiados na análise das obras,
descobrem a força e a relevância delas num plano que não teria
ocorrido aos respectivos autores. Dizendo de outra maneira: segundo
esse modo de ver, o trabalho de con guração artística tem uma
disciplina própria, que lhe permite superar as convicções, as teorias e
os horizontes do autor.

Essa é uma visão propriamente marxista, não?


No essencial, penso que é, embora a terminologia não seja, ou seja
só em parte. A parte boa da tradição marxista manda acreditar mais
na con guração objetiva das obras que nas convicções ou posições
políticas dos escritores. Há uma a rmação célebre de Marx, em que
ele diz ter aprendido mais com os romances de Balzac do que com a
obra dos economistas, isso embora Balzac seja conservador. Mas há
sobretudo uma a nidade de fundo na concepção de forma objetiva,
seja social, seja estética, independente de intenções individuais:
conforme o caso, o seu dinamismo interno se realiza não só contra,
mas também através das ilusões dos interessados (o racismo de
Aluísio, por exemplo, faz parte da força com que O cortiço mostra
que o problema é de classe, e não de raça). O modelo é o ciclo do
capital, que se realiza — na expressão de Marx — “atrás das costas”
dos participantes, levados à crise contra a sua vontade.
Mas voltando à sua pergunta: esse tipo de crítica supõe obras e
sociedades muito estruturadas, com dinamismo próprio. Trata-se de
enxergar uma na outra as lógicas da obra e da sociedade, e de re etir
a respeito. Acontece que vivemos um momento em que essa ideia de
sociedade, como algo circunscrito, com destino próprio, está posta em
questão, para não dizer que está em decomposição. Já ninguém pensa
que os países de periferia têm uma dialética interna forte — talvez
alguns países do centro tenham, talvez nem eles. E no campo das
obras, com a entrada maciça do mercado e da mídia na cultura, é voz
corrente que a ideia de arte mudou, e é possível que o padrão de
exigência do período anterior tenha sido abandonado. Talvez os
pressupostos da crítica dialética estejam desaparecendo…

Penso que mesmo hoje, com muita frequência, existe a intenção dos
escritores de produzirem alguma coisa que traga até as palavras o
sentimento desse presente de relações e valores tão esgarçados, essa
vida contemporânea confusa, violenta etc. Por que, então, não se
chega a essa obra capaz de apresentar essa relação bem íntima entre
forma do texto e forma social?
Também não me convenço de que não seja mais possível. Mas é fato
que o processo social mudou de natureza. A circunscrição dele, no
sentido em que você podia dizer “essa é a sociedade brasileira”, está
deixando de ser efetiva, de ser verdadeira. Por exemplo, o caso…

Poderíamos pegar o caso de Cidade de Deus.


Antes disso, para não perder o o, quero falar do ensaio de Adorno
sobre Beckett, para o meu gosto um dos mais brilhantes que já se
escreveram sobre a literatura moderna. Em Fim de partida as
personagens são guras metidas numa lata de lixo, mutiladas e
falando uma linguagem limitada a quase nada, um resíduo. Isso
costuma ser considerado uma redução ao essencial, um minimalismo
atemporal, para mostrar que o ser humano, mesmo na situação mais
precária, conserva inteira a sua grandeza. Mas Adorno desloca a cena,
lhe põe uma data e diz que, muito ao contrário, o que Beckett está
descrevendo é uma sociedade “pós-catástrofe”. Pós-catástrofe nuclear,
pós-Segunda Guerra Mundial, en m, a época em que a civilização
moderna mostrou que a sua capacidade de autogoverno ou de
autossuperação não é o que se dizia. Dentro desse universo, os
farrapos de loso a, os resíduos de iniciativa, de desejo de progresso,
os cacoetes da esperança, representam na verdade lixo intelectual,
água servida, o que restou da civilização burguesa no seu m. Assim, a
operação crítica consistiu em deslocar para um momento histórico
preciso e bem explicado, embora imaginado, o que se costumava
alegorizar como a condição humana. O deslocamento confere uma
incrível vivacidade e particularidade artística ao que pareceriam
alegorias e generalidades insossas. Do lado do referente também há
deslocamento: a sociedade não é nacional, regional ou municipal, ela é
o planeta depois do desastre. Noutras palavras, embora planetário, o
âmbito não é a “mera” condição humana, fora ou acima da história.
O ensaio de Adorno muda a leitura de Beckett e é um grande achado
crítico. É um exemplo de como o referente social e histórico tem
âmbitos inesperados e pode ser de diferentes tipos. Outro dia li um
estudo, também de intenção histórico-social, em que o crítico dizia
que no caso de Beckett é preciso considerar que ele era um irlandês
inconformado com a estreiteza do nacionalismo na Irlanda, o que o
levou a mudar para Londres, onde encontrou o universo cultural —
igualmente intolerável — do imperialismo inglês, que oprimia os
irlandeses, o que o levou se refugiar na França, um terreno neutro que
lhe permitiu encontrar o equilíbrio. Do ponto de vista biográ co
parece um percurso possível, que entretanto se move num universo
diversi cado de nações, piores ou melhores, cujo desaparecimento é
na verdade a novidade da visão, talvez do diagnóstico, de Beckett. Um
bom exemplo de particularização histórica que não vem ao caso. Ao
passo que a hipótese de Adorno, que não é menos histórica, tem
grande capacidade esclarecedora.
Retomando a sua pergunta, no caso do Paulo Lins há de fato um
universo circunscrito, por assim dizer policialmente segregado. Um
universo fechado por circunstâncias “modernas”, desastrosas,
altamente preocupantes, que permite escrever um romance “à antiga”.
Mas o romance não é antigo de jeito nenhum.

O que despertou mais a sua atenção foi exatamente essa


possibilidade?
Não. Foi, primeiro, a extrema vivacidade da linguagem popular,
dentro da monotonia tenebrosa das barbaridades, que é um ritmo da
maior verdade. Depois, a mistura muito moderna e esteticamente
desconfortável dos registros: a montagem meio crua de
sensacionalismo jornalístico, caderneta de campo do antropólogo,
terminologia técnica dos marginais, grossura policial, efusão lírica,
lme de ação da Metro etc. E sobretudo o ponto de vista narrativo,
interno ao mundo dos bandidos, embora sem adesão, que arma um
problema inédito. Há ainda o conhecimento pormenorizado,
sistematizado e re etido de um universo de relações, próximo da
investigação cientí ca, algo que poucos romances brasileiros têm.
En m, é um mix poderoso, representativo, que desmanchou a
distância e a aura pitoresca de um mundo que é nosso. É um
acontecimento.

Em paralelo ao desenvolvimento de uma crítica dialética, orescia


uma outra crítica bem diferente no Brasil, comandada pelos
concretistas, em especial pelos irmãos Campos, e entre as duas se
estabeleceu uma intensa polêmica. Gostaria que você situasse um
pouco essa questão.
A oposição existe, mas no que importa ela não é fácil de xar,
porque foi recoberta por um a- u, errado em relação às duas partes.
Até onde entendo, as versões que caram foram determinadas pelos
anos da ditadura. Numa delas, os críticos ligados à Teoria Literária da
usp seriam múmias conteudistas, professores atrasados, cegos para as
questões de forma, praticantes do sociologuês, nacionalistas estreitos,
além de censores stalinistas. Ao passo que no campo concretista
estariam os revolucionários da forma, atualizados com o
estruturalismo francês, o formalismo russo e a ciência da linguagem,
conscientes de que o âmbito literário não se comunica com a vida
social. Naturalmente a versão do campo em frente trocava os sinais
desses mesmos termos e opunha, para abreviar, engajados a alienados,
um pouco em paralelo — como me indicou uma amiga — com as
polarizações dos festivais da canção da época.
Ora, nada disso corresponde. Os críticos dialéticos (que não
chegavam a meia dúzia) eram formalistas de carteirinha, empenhados
justamente na re exão sobre os problemas correspondentes. Seu
ângulo era estético, as suas simpatias eram modernistas e sua posição
era antistalinista de longa data. As linhas teóricas a que se
contrapunham eram a historiogra a positivista, o psicologismo, o
marxismo vulgar e a classi cação das obras segundo as convicções
políticas de seus autores. Para dar ideia da independência conceitual e
crítica com que então se trabalhava na usp (em certos setores), não
custa acompanhar alguns passos de um percurso característico. Talvez
se possa dizer que Antonio Candido foi buscar no close reading do
New Criticism — uma técnica formalista, desenvolvida nos States, na
década de 1930, com sentido conservador — um instrumento para
fazer frente ao sociologismo e ao marxismo vulgar correntes na
esquerda brasileira dos anos 1940 . Só que ele reelaborou o
procedimento e o abriu em direção da história, com vistas na
historicização das estruturas, o que lhe permitiu uma sondagem de
novo tipo da literatura e da sociedade brasileiras. Sem alarde de
terminologia, e muito menos de grifes internacionais, os ensaios de
Antonio Candido que vêm ao caso aqui são seguramente as peças
mais originais de análise estrutural já feitas no Brasil. Há um bom
paralelo a fazer com o trabalho de Celso Furtado, que também
desenvolveu um estruturalismo histórico sob medida para as nações
periféricas, à margem da ortodoxia marxista.
Também no campo dos concretistas a história não cabe no chavão.
É falsa a ideia de que fossem “alienados” ou desinteressados do rumo
da história extraliterária. Como vanguardistas, entendiam a sua
revolução formal como parte de uma revolução social em curso. Eram
de esquerda e que eu saiba Haroldo se considerava próximo do
marxismo, não sei se também nos últimos tempos. Se a pecha de
pouco sociais colou neles no pré-64 foi devido aos preconceitos
antiexperimentalistas do Partido Comunista, que na época dispunha
de autoridade e denunciava o “formalismo” da arte moderna. O que
não impediu os concretistas de disputar com galhardia o seu lugar
dentro da esquerda e de anunciar, num congresso de crítica literária
em Assis, em 1961, o seu “salto participante”. Procuravam articular a
invenção formal com a radicalização política do Brasil.
Em suma, contrariamente ao lugar-comum, os dialéticos eram
formalistas, os concretistas eram engajados, e o que nos movia a todos
era a aceleração histórica do país.

Os concretistas desenvolviam a linha de Oswald de Andrade?


É o que eles dizem, embora eu ache difícil reconhecer o ar de
família. Ainda quanto aos chavões, é interessante notar que ao
contrário do que eles a rmam, e os outros repetem, eles são de longe
os escritores brasileiros que mais se valeram da sociologia para a sua
autojusti cação e para explicar a própria primazia. Entre nós, não há
outros que dependam tanto da teoria social para garantir a posição a
que aspiram para a sua obra. A teoria deles vale o que vale, mas a
contradição merece registro.
Voltando à polêmica, não é fácil encontrar grandes razões para ela.
De um lado, críticos-professores tentando uma interpretação
histórico-estrutural da literatura brasileira, puxando para a esquerda.
Do outro, à esquerda também, o grupo dos poetas concretistas, que
militavam para impor a sua obra, em que viam a revolução, além de
teorizarem em causa própria, o que é natural igualmente, mas nem
sempre convence. Para que a história fosse outra (e ninguém fosse
chamado de “vermina pestilente” ou chefe de uma “campanha de caça
aos concretistas”), talvez bastasse que os professores da usp não
tivessem torcido o nariz para a “tese” dos poetas, segundo a qual a
linha nobre da poesia moderna, que vem de Mallarmé, passa por
Oswald de Andrade, Drummond e João Cabral, culmina neles
próprios. Mas, para incluir motivos altos, pode-se imaginar também
que o antagonismo tenha fundamento em ideias diferentes no que
respeita à evolução das formas. Do ponto de vista dialético, a
modernização formal existe, não signi ca o que pretende, e deve ser
analisada não só como solução, mas também como problema. Já do
ponto de vista dos poetas concretos, que a buscam numa espécie de
iconização e aceleração da linguagem, ela é a linha reta e indisputável
que leva a um plano superior e positivo. Para re exão, não custa notar
que o Movimento Concreto foi lançado na mesma época em que
Adorno assinalava, como um marco, o envelhecimento da Música
Nova, ou seja, o esvaziamento da tensão vanguardista e de sua força
negativa.

Mas o Concretismo não foi mudando ele também?


A partir de - , quando a revolução saiu da ordem do dia no
1964 8

Brasil, uma parte dos escritores passou a considerar a linguagem como


a sua única trincheira. Foi a época em que a crítica literária falava de
subversão da sintaxe, das formas, dos gêneros, revolução textual etc.
Haveria um estudo engraçado a escrever sobre essas substituições.

E isso com alguns apoios teóricos internacionais, não?


Claro, claro. Foi o auge do estruturalismo de base linguística, e logo
do pós-estruturalismo, este especializado na dissolução das estruturas
efetivas. Ao passo que o estruturalismo buscado por alguns na Teoria
Literária da usp era de base histórica e estava descobrindo a potência
formal, no plano estético, da estrutura de classes do país. Pensando
melhor, talvez houvesse mais antagonismo do que cou dito até aqui.

E depois essa guerra repercutiu também em espaços de maior


reverberação do discurso, como o da música popular brasileira, não é?
É um ponto que merece atenção. O livro de Caetano Veloso,
Verdade tropical, é muito valioso e interessante nesse sentido. Caetano
tem ideia clara do que estava em jogo e tem grande capacidade de
sintetizar debates intelectuais. O livro está sempre polemizando com a
esquerda, mas descreve o processo de maneira realista. A ideia de que
naquilo tudo só se tratasse de linguagem não passa pela cabeça dele.

Mas em algum momento, passada a fase mais furiosa do embate entre


críticos dialéticos e concretistas, aparentemente algumas linhas de
trabalho de crítica literária no país buscam uma certa síntese entre
proposições das duas tendências. Em certa medida, Silviano Santiago
não faz isso?
Não penso que síntese seja a palavra. Mas Silviano escreveu na
década de 1970 “O entrelugar do discurso latino-americano”, um
ensaio de grande habilidade estratégica, a primeira mobilização
importante da obra de Derrida no quadro brasileiro. Ele usa a
desconstrução para descrer das categorias da opressão e fazer desta
um jogo de linguagem, que certamente ela também é. Mas ela não será
mais do que isso? Seja como for, também aqui não se tratava só de
linguagem, pois o ensaio, até onde vejo, deveu a repercussão aos
poderes a que se opunha: à prepotência dos militares, ao
autoritarismo na esquerda armada, às presunções do imperialismo
americano, a nosso sentimento de inferioridade diante da primazia
cultural dos grandes centros etc. Mais adiante, Silviano a nou a
desconstrução de Derrida com o jogo ou con ito entre os gêneros,
fazendo dela um elemento de liberação sexual, em especial da
homossexualidade. Que eu saiba, foi o primeiro crítico a fazer da
liberação da homossexualidade um elemento importante de
periodização da história do Brasil, ao fazer que ela convergisse com o
tema da abertura política e da redemocratização, de que seria uma
pedra de toque. Na minha opinião é um grande lance, embora a
construção me pareça conformista por outro lado.

Como você descreveria o panorama atual da crítica literária no Brasil?


Quais são seus pontos de força teóricos? Continuamos tendo
trabalhos na linha da crítica dialética, outros que guardam sua liação
a Jakobson, temos uma terceira via?
As linhas teóricas internacionais estão representadas e funcionando,
há pós-graduações numerosas, com bolsas de estudo, e, não obstante,
há um certo esgotamento. Com perdão da mania, o que falta é espírito
dialético. Como os momentos notáveis da cultura brasileira estão
consagrados, não lembramos até que ponto dependeram do contato
com o avesso da sociedade. Essa é uma verdade insu cientemente
considerada. A re exão hoje tem que se redimensionar através do
mundo que está se formando à revelia do discurso o cial sobre a
modernização e o progresso. Basta subir ao Alto de Santana e olhar a
desolação sem m de São Paulo para saber que o que está
acontecendo está fora de controle e tem pouco a ver com as grandes
linhas incorporadas em nossa organização mental. Nesse sentido, os
cultural studies, com a sua falta de hierarquia, não deixam de ser uma
resposta, embora — até onde sei — pouco crítica do capitalismo e
pouco interessada em questões de estética, o que diminui muito o seu
alcance.
Um trabalho que acho admirável e não teve repercussão nenhuma é
o ensaio de Iumna Simon, que saiu na revista praga n. 7, sobre a
poesia de Valdo Motta. Ele é um poeta negro do Espírito Santo,
homossexual militante, muito pobre e dado a especulações teológicas.
É uma poesia que toma o ânus do poeta como centro do universo
simbólico. A partir daí, mobiliza bastante leitura bíblica, disposição
herética, leitura dos modernistas, capacidade de formulação, talento
retórico e fúria social. O ponto de vista e a bibliogra a fogem ao
corrente, mas o tratamento da opressão social, racial e sexual não tem
nada de exótico. Bem, a Iumna leu o poeta por acaso, numa revista,
percebeu a força e a importância do que estava ocorrendo, procurou
saber mais, e acabou organizando um volume de poemas para a
editora da Unicamp, juntamente com Berta Waldman (Valdo Motta,
Bundo e outros poemas, ). Para fazer justiça ao poeta, que é
1996

perfeitamente contemporâneo, ela teve que se enfronhar em áreas que


desconhecia e, sobretudo, compará-lo a seus pares mais mainstream,
re etir sobre a inserção dele na cultura atual e tirar as consequências
estéticas que cabem. É de trabalhos assim — sem desmerecer outras
linhas possíveis — que a crítica depende para recobrar vitalidade e
estar à altura da realidade.

Vou voltar a um ponto anterior: por que o New Criticism, como


empreendimento nos Estados Unidos, era conservador?
O New Criticism nasceu como uma teoria de professores de letras
do Sul dos Estados Unidos, o Old South anti-ianque. Eles viam o
poema como um campo de complexidade singular, onde a linguagem
não tem nalidade utilitária e não é abstrata, o que, de certo modo,
simboliza uma oposição ao capital, ao mundo do Norte. Para
consubstanciar essa posição, desenvolveram uma técnica de análise
centrada em ambiguidade, tensão e ironia, atributos estranhos à
funcionalidade moderna. Há uma carta de John Crowe Ransom, uma
das grandes guras do movimento, em que ele diz que acabava de ler
o artigo de um alemão que descrevia a obra de arte como eles, embora
infelizmente fosse marxista. O alemão era Adorno, que vivia como
refugiado de guerra nos Estados Unidos. A anedota é interessante
porque mostra que o anticapitalismo de Adorno, com horizonte
socialista, até certo ponto convergia com o anticapitalismo de um
sulista católico e tradicionalista — na posição contrária à
instrumentalização da linguagem. A análise cerrada que o New
Criticism praticava representou de fato um patamar novo em matéria
de compreensão da complexidade interna da poesia. A técnica podia
ser usada, é claro, de muitas maneiras. Anatol Rosenfeld, por
exemplo, dizia explicitamente que praticava o close reading, mas
informado por sua cultura losó ca, que não tinha nada que ver com
a dos new critics americanos. Eles talvez fossem provincianos, mas
desenvolveram uma acuidade genial.

O New Criticism foi bem assimilado no Brasil?


É um bom tópico de pesquisa. Nos anos 1950 houve militância, em
especial de Afrânio Coutinho, hoje difícil de ler. Como sempre,
aproveitaram bem os que tinham projeto próprio e souberam guardar
distância, como Sérgio Buarque e Antonio Candido.

Em que se concentra o seu trabalho hoje?


Gostaria de tirar algumas consequências do que já z, especialmente
à luz do que aconteceu depois.

Não lhe parece que o mundo contemporâneo, midiatizado,


espetacularizado, oferece um ambiente pouco adequado à literatura
como um exercício insistente e forte? O fenômeno é só brasileiro?
Certamente não. Mas de alguma maneira os intelectuais brasileiros
estão cavando pouco o seu próprio terreno. Conhecemos pouco as
coisas das quais dependemos neste momento. Se você pensar no
conhecimento que tinham da sua matéria Guimarães Rosa, Mário de
Andrade, Machado de Assis, vai ver que a escrita deles estava
associada a um processo tenaz de aquisição de conhecimento, de
veri cação social e moral, de experimentação. No m de contas, uma
das coisas que mais distingue o livro de Paulo Lins é que, como ele foi
assistente de pesquisa de uma antropóloga, tem o conhecimento
exaustivo e articulado do universo dele. Isso dá ao livro uma potência
própria, que falta aos colegas. O sumiço da exigência intelectual não
precisava ter ocorrido, foi uma falta de pique. Também na poesia
aconteceu uma coisa assim, ela abriu mão de falar do mundo
contemporâneo de maneira sustentada. No Brasil, por uma razão que
não sei, de repente começou a surgir uma poesia curtinha, pouco
re exiva, pouco ousada. Digo isso sabendo que não é tudo, pois a
poesia mais minimalista dos últimos tempos é também — na minha
opinião — a mais re exiva e complexa — estou pensando no Elefante
de Francisco Alvim.

Quando você diz que não sabe, é ironia, ou não sabe mesmo?
Eu diria que o predomínio do Concretismo, que atravessou a
segunda metade do século passado, tornou a poesia impermeável ao
pensamento, com muito prejuízo para ela. A culpa não é dos
concretistas, acho natural que todo grupo poético procure se
promover e valorizar. O que aconteceu de incrível foi que o mundo
intelectual brasileiro pouco ou nada opôs àquele padrão. Marx diz a
certa altura que o segredo da vitória de Luís Napoleão não está na
força dele, mas na fraqueza da sociedade francesa do tempo.
Analogamente, podemos perguntar pelo que aconteceu à vida cultural
brasileira do último meio século para que algo tão limitado como a
poesia concreta alcançasse tanta eminência. É uma questão mais
profunda do que pode parecer. Tem a ver com a credulidade
subdesenvolvida diante do progresso.

Queria que você contasse o caso curioso de Berta Dunkel, que pouca
gente conhece.
Foi o seguinte: mais ou menos em 1966 me encomendaram uma
explicação didática da ideia marxista de mais-valia, para ser usada em
aulas para um grupo operário, clandestino na época. Escrevi com a
maior clareza de que era capaz. Como não saiu ruim, houve interesse
em divulgar o folheto em âmbito maior, e o grupo da Teoria e Prática
resolveu publicá-lo na revista. Inventei uma personagem para assinar
o “artigo”, que era essa Berta Dunkel. Berta para Roberto, e Dunkel,
que quer dizer escuro, para Schwarz, que é “preto”. Escrevi uma
pequena biogra a como introdução, explicando que ela era uma
escritora alemã de vanguarda, que nos anos 1920 , tocada pela
proximidade da revolução, resolvera se dedicar ao didatismo político,
no qual via uma forma literária e um problema estético. É claro que
eram questões brechtianas, pelas quais eu estava me interessando. A
coisa teve um desdobramento engraçado, porque um intelectual de
renome, que conhecia tudo do movimento operário alemão, tinha
lembrança de Berta.
Verdade tropical

um percurso de nosso tempo

De início devo dizer que não sou a pessoa mais indicada para
comentar a autobiogra a de Caetano Veloso, pois não tenho bom
conhecimento de música nem das composições do autor.1 Entretanto
gosto muito do livro como literatura. Particularmente os blocos 1 e 2

se leem como um excelente romance de ideias, em que as


circunstâncias históricas, o debate da época e a gura do biografado,
um herói re exivo e armado intelectualmente, além de estranho, se
entrelaçam em profundidade, fazendo ver uma etapa-chave da vida
nacional. Como sempre na prosa realista, metade da composição é
desígnio do autor e metade são conexões mais ou menos latentes na
matéria narrada. Quando há química entre as metades, como ocorre
aqui, o conjunto conta algo para além dos fatos. As questões
levantadas têm generalidade, e penso que podem ser discutidas por um
leigo em música.
Além de autobiogra a de artista, Verdade tropical é uma história do
tropicalismo e uma crônica da geração à volta de . A sua matéria
1964

são as questões estético-políticas do ofício de pop star nas condições


do Terceiro Mundo.2 A intimidade inteligente com a o cina da canção
popular, incluídas aí as realidades do show business, coloca o livro em
boa posição ao lado dos congêneres literários ilustres, como o
Itinerário de Pasárgada de Bandeira e o Observador no escritório de
Drummond, ou as memórias de Oswald de Andrade e de Pedro Nava.
Domínio em alto nível de um setor fundamental do presente, até então
pouco estudado, avaliações críticas ousadas e certeiras, segredos da
cozinha artística sob a ditadura, depoimentos sobre a prisão e o exílio,
retratos perspicazes de colegas famosos, circunstâncias pessoais
reveladoras, opções intelectuais e formais decisivas, para o bem e para
o mal, tudo muito interligado e interessante, compõem um panorama
de grande qualidade literária. As correspondências entre vida privada,
vida pública e criação artística têm força, dando unidade interior ao
conjunto. Sem medo de frases longas e do aspecto melindroso ou sutil
das situações, um pouco à maneira substanciosa e exível de Gilberto
Freyre, a prosa de ensaio deve a vitalidade ao gosto pela controvérsia
e pela provocação.
A conjugação do músico popular ao intelectual de envergadura não
deixa de ser uma novidade. O livro surpreenderia menos se o autor
fosse um músico erudito, um poeta, um cineasta ou um arquiteto, ou
seja, um membro da faixa dita nobre das artes, cuja abertura para os
valores máximos e para a re exão a respeito é consenso. Como bem
observa Caetano, a quem a originalidade de sua posição não escapa,
“a divisão nítida dos músicos em eruditos e populares retira destes
últimos o direito (e a obrigação) de responder por questões culturais
sérias”.3 Aliás, ao escrever um ensaio alentado que foge a essa divisão
ele não só inova como assinala uma recon guração do quadro
cultural, chamado a fazer frente às feições peculiares da música pop.
A novidade que o livro recapitula e em certa medida encarna é a
emancipação intelectual da música popular brasileira. Na pessoa de
um de seus expoentes, esta toma distância de si e passa a se enxergar
como parte responsável da cena contemporânea, seja poética, seja
musical, seja política, desrespeitando os enquadramentos aceitos do
gênero. Ao saturar de re exão estética e social as opções dos
companheiros de ofício e as suas próprias, Caetano puxa a discussão
para o patamar desconvencionalizado e autocrítico da arte moderna,
sem contudo abandonar o compromisso com o público de massas. O
interesse dessa posição difícil, talvez impossível de sustentar, dispensa
comentários.
Se o adjetivo “popular” estiver na acepção antiga, que nas
circunstâncias brasileiras envolve semianalfabetismo, exclusão social e
direitos precários, haveria uma quase impossibilidade de classe nesse
passo à frente, ligado a boa cultura literária e teórica. Se estiver na
acepção moderna, de nida pelo mercado de massas e pela indústria
cultural, o avanço deixa de ser impossível para ser apenas improvável,
devido às diferenças entre a vida de pop star e a vida de estudos.
Note-se que no Brasil, como noutros países periféricos, as duas
acepções do popular se sobrepõem, pois as condições antigas não
estão superadas, embora as novas sejam vitoriosas, o povo
participando das duas esferas. Exclusão social — o passado? — e
mercantilização geral — o progresso? — não são incompatíveis, como
supõem os bem-pensantes, e sua coexistência estabilizada e
inadmissível (embora admitida) é uma característica estrutural do país
até segunda ordem. Bem mais do que as outras artes, a música
popular está imersa nesse descompasso, o que a torna nacionalmente
representativa, além de estratégica para a re exão. Assim, a disposição
para pensar trazida por Caetano vem entrelaçada com uma realidade
de classes sui generis, cujas projeções estéticas e políticas não se
esgotam na ideia geral do pop.
Unindo o que a realidade separa, a aliança de vanguarda estética e
cultura popular meio iletrada e socialmente marginal, além de mestiça,
é um programa já antigo. Ensaiada pelo Modernismo carioca nos anos
1920 , em rodas boêmias, e retomada pela bossa nova nos anos 1950 ,
ela ganhou corpo e se tornou um movimento social mais amplo,
marcadamente de esquerda, nas imediações de 1964 .4 Sob o signo da
radicalização política, que beirou a pré-revolução, o programa tinha
horizonte transformador. Em especial as artes públicas — cinema,
teatro e canção — queriam romper com a herança colonial de
segregações sociais e culturais, de classe e raça, que o país vinha
arrastando e reciclando através dos tempos, e queriam, no mesmo
passo, saltar para a linha de frente da arte moderna, fundindo
revolução social e estética. Tratava-se por um lado de reconhecer a
parte relegada e não burguesa da nação, dando-lhe direito de cidade,
e, por outro, de superar as alienações correspondentes a essa exclusão,
que empobreciam a vida mental também dos incluídos. Graças ao
espírito dialético, que estava em alta, os vexames de nossa
malformação social — as feições de ex-colônia, o subdesenvolvimento
— mudavam de estatuto. Em vez de varridos para baixo do tapete,
eles passavam a ser identi cados como interpelações históricas, em
que estavam em jogo não só o atraso nacional como o rumo burguês e
a desigualdade do mundo. Estimulada pelo avanço da luta de classes e
do terceiro-mundismo, uma parte da intelligentsia passava a buscar o
seu sentido — e o salto qualitativo em seu trabalho intelectual — na
associação às necessidades populares. Orientada por esse novo eixo e
forçando os limites do convencionado, a experimentação avançada
com as formas tornava-se parte e metáfora da transformação social
iminente, que entretanto viria pela direita e não pela esquerda.
Durante alguns anos, antes e depois de 1964 , a invenção artística
radical sintonizou com a hipótese da revolução e fez dela o seu
critério. A ligação polêmica e o enriquecimento mútuo entre inovação
estética, escolhas políticas e sociedade em movimento conferiam à
vida cultural uma luz nova. Como a realidade parecia encaminhar
alternativas, o partidarismo da vida artística desvestia o seu aspecto
esotérico e mostrava ser o que é de fato, uma tentativa imaginária de
intervenção. Passado o tempo, é possível que o saldo do período,
avaliado nas suas obras, não sobressaia particularmente, o que
entretanto não diminui o acerto das questões levantadas. Explicitado
naquela oportunidade, o relacionamento con itante e produtivo entre
as formas estéticas, as deformidades sociais do país e as grandes linhas
do presente internacional tornou-se uma pedra de toque durável, que
mal ou bem sobreviveu à derrota da esquerda. Escrito trinta anos
depois, Verdade tropical deve muito de seu tino histórico à delidade
que Caetano guardou àquele momento, “que só é considerado remoto
e datado por aqueles que temiam os desa os surgidos então, e que
ainda os temem justamente por os saberem presentes demais em sua
nova latência”.5
Dito isso, a altura da visão de Caetano não é estável, sempre
ameaçada por descaídas regressivas. Volta e meia a lucidez cede o
passo a superstições baratas, à miti cação despropositada do Brasil, à
autoindulgência desmedida, ao confusionismo calculado. Em
passagens tortuosas e difíceis de tragar, a ditadura que pôs na cadeia o
próprio artista, os seus melhores amigos e professores, sem falar no
estrago geral causado, é tratada com complacência, por ser ela
também parte do Brasil — o que é uma verdade óbvia, mas não uma
justi cação. O sentimento muito vivo dos con itos, que confere ao
livro a envergadura excepcional, coexiste com o desejo acrítico de
conciliação, que empurra para o conformismo e para o kitsch.
Entretanto, como num romance realista, o acerto das grandes linhas
recupera os maus passos do narrador e os transforma em elementos
representativos, aumentando a complexidade da constelação.

Muito brilhante e felliniana, a crônica da juventude do autor em Santo


Amaro — uma cidade pequena, próxima de Salvador — tem como
pano de fundo a tendência à americanização, que imprime a seu
atraso o selo contemporâneo. A mistura do recesso familiar e da
cidade provinciana à corrente geral do mundo moderno é um achado
com revelações próprias: nem a província e a infância são tão
apartadas da atualidade quanto se supõe, nem esta última é tão
estereotipada quanto as generalidades a seu respeito. De entrada
assistimos à comédia dos “meninos e meninas que se sentiam
fascinados pela vida americana da era do rock ‘n’ roll e tentavam
imitar as suas aparências”, com jeans e botas, rabos de cavalo e
chiclete. O autor não fazia parte dessa turma nova, em que via, do
alto de seus quinze anos, um modelo pouco inteligente e pouco
interessante: “embora fossem exóticos, eram medíocres”. Partilhava
“com os santamarenses razoáveis uma atitude crítica condescendente
em relação ao que naqueles garotos parecia tão obviamente
inautêntico”.6 Note-se que os motivos de seu desdém não estão onde
se espera. Apesar da coincidência com os “santamarenses razoáveis”,
o que o incomodava não era o espalhafato da diferença, atraente para
ele desde sempre, mas a sua “nítida marca de conformismo”:7 “[…] o
que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de
não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia”.8 A
importação acrítica mas escandalosa da moda internacional, a nota de
pseudorrevolta combinada à abdicação da experiência própria, foram
sentidas como um problema desde cedo.
Embora usasse um pé de meia de cada cor, o extravagante Caetano
se aliava aos santamarenses sensatos — uma categoria pouco
sociológica, mas possivelmente real —, para juntos criticarem a
moçada que estreava o rock na cidade. A trinca dos protagonistas
forma um quadro cheio de ironia, distante dos esquemas batidos em
que a consciência pátria dá combate ao imperialismo americano. Em
plano imprevisto, são aspectos divertidos e verdadeiros da
modernização, ou da americanização, noções que na prática eram
difíceis de distinguir. Noutros passos, contudo, a questão da in uência
dos Estados Unidos aparecerá em variantes menos risonhas, causando
discussões acesas sobre a identidade e a subserviência nacionais, bem
como sobre o próprio golpe de Estado que instalou a ditadura, aliás
modernizante por sua vez. Entre as escaramuças de gosto na província
e o americanismo dos generais golpistas vai uma grande diferença,
mas ambos formam parte de um mesmo processo, cuja unidade
complexa e cheia de instâncias percorre o livro, dando-lhe consistência
literária, amplitude de registro e especi cidade histórica.
Desde o começo a posição de Caetano é diferenciada, fugindo às
limitações do nacionalismo simplista. A imitação das novidades
americanas não lhe parece inautêntica em si, pois pode ser portadora
de inconformismo, quando então adquire autenticidade. O que conta
não é a procedência dos modelos culturais, mas a sua funcionalidade
para a rebeldia, esta sim indispensável ao país atrasado. Muito
esclarecidamente, o autêntico se de ne por oposição ao conformismo,
e não à cópia ou ao estrangeiro. Nem por isso a in uência americana
deixa de ser um problema, pelo que representa de monopólio e
imposição. Como situar-se diante dela sem perder a liberdade,
inclusive a liberdade, segundo a circunstância, de aproveitar um
modelo interessante e mais adiantado? Retomada sob muitos ângulos,
a pergunta — que é vital — reaparece a todo momento, politizando e
tornando mais complexa a crônica, cerradamente entretecida com as
relações de força do século americano. Assim, evitar a xenofobia não
impede de enfrentar as pressões exercidas pelo carro-chefe do
imperialismo. São ângulos que coexistem, e trata-se de desautomatizar
o juízo a respeito, para torná-lo judicioso e su cientemente complexo
ou esperto. Caetano foi precoce na compreensão da política
internacional da cultura, em que o in uxo estrangeiro — inevitável —
tanto pode abafar como trazer liberdade, segundo o seu signi cado
para o jogo estético-político interno, que é o nervo da questão.
Nas grandes linhas, digamos que o capítulo sobre Santo Amaro
contrapõe duas atitudes perante a americanização. De um lado, a
aceitação açodada e subalterna, que pode caracterizar tanto um
roqueiro como um ministro das Relações Exteriores;9 de outro, a
rebeldia embebida no contexto local, mas aberta para o mundo. Esta
última, que é receptiva sem perder o pé ou sem deixar de ser situada,
valoriza a experiência santamarense na hora de avaliar as novidades
de fora, assim como recorre às novidades estrangeiras para fazer
frente às estreitezas da província. A liberdade descomplexada dessa
atitude, que resiste à precedência das metrópoles mas não desconhece
as limitações da cidadezinha interiorana, da qual não se envergonha e
a qual não quer rifar, é uma proeza intelectual. Em parte, ela se deve à
independência de espírito do menino inconformado, que ambiciona
tudo e nem por isso abdica de seu primeiro universo. “Eu, no entanto,
atava-me à convicção de que, se queria ver a vida mudada, era preciso
vê-la mudada em Santo Amaro — na verdade, a partir de Santo
Amaro.”10 A disposição enraizada desse desejo de mudança, que não
aceita jogar fora os preteridos pelo progresso, mais adiante irá
contrastar com o progressismo abstrato de parte da esquerda, que
fazia tábua rasa da realidade imediata e de seus impulsos em nome de
um remoto esquema revolucionário.
A Santo Amaro a ser sacudida — opressiva e amada ao mesmo
tempo — é patriarcal, católica, mestiça, conservadora sem fanatismo e
com traços de ex-colônia. O menino diferente, que não acredita em
Deus, que acha errados os tabus sexuais e as prerrogativas masculinas,
que veste meias desemparelhadas, que não se conforma com a pobreza
à sua volta, que tem dúvidas metafísicas, que quer interferir na
educação de sua irmã menor, que não vê por que as meninas pretas
devam espichar o cabelo, que gosta de subir ao palco e cantar fados
cheios de arabescos vocais etc. etc., é um portador de inquietação. A
rebeldia, ainda que pontual, questiona a ordem no seu todo: as
insatisfações formam corpo umas com as outras — questões de raça,
gosto, sexo, classe, família, atraso —, ligando-se por dentro e
remetendo ao conjunto da formação social. Este o papel de guarda
avançada da crítica e da mudança que Caetano desde cedo vê como
apropriado à sua pessoa. Era natural portanto que o aspirante a
reformador, inicialmente da família, depois da cidade e logo da cultura
brasileira, não se quisesse confundir com a garotada cujo desejo maior
era participar de concursos de rock e se parecer aos estudantes
americanos de high school. A oposição ca mais interessante se
lembrarmos que pouco tempo depois o mesmo Caetano faria época
em programas de auditório, introduzindo a guitarra elétrica, a palavra
coca-cola e a parafernália roqueira no terreno resguardado da mpb .
Não se tratava de uma inconsistência, ao contrário do que podia
parecer. No seu caso, a incorporação da coisa estrangeira vinha em
benefício do foco nacional, puxado para a atualidade pelas
transgressões bem meditadas, que o questionavam e lhe aumentavam
o valor problemático. À maneira da antropofagia oswaldiana, que
estava sendo redescoberta por conta própria, a importação das
inovações internacionais favorecia o desbloqueio e a ativação histórica
das realidades e dos impulsos de um quintal do mundo.
Do ângulo da rebeldia, Santo Amaro parece parada e passada. Vista
no conjunto, entretanto, também ela se move e as inquietações de
Caetano fazem parte de sua atualização. No dia em que terminou a
Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o pai do garoto saiu à rua
agitando uma bandeira da União Soviética, para indicar simpatias
socialistas, compensadas por um retrato de Roosevelt na sala de
jantar. Participando também do mundo moderno, uma prima mais
velha, cansada da vida tacanha em Santo Amaro, sonha com as
liberdades prometidas pelo existencialismo francês. Nos programas de
rádio, quem manda é a concorrência internacional, outra gura do
presente: “a música popular americana encontrou sempre por aqui a
competição não apenas da rumba cubana, do tango argentino e do
fado português, mas também e sobretudo da música brasileira, que
nunca foi vencida no consumo nacional por nenhum produto de
importação”.11 Já nas salas de projeção, Hollywood disputava com
tas francesas, italianas e mexicanas (o cinema nacional não existia),
às vezes de grande qualidade. Assim, a política e a cultura estrangeiras
faziam parte normal do cotidiano da província e de seu mercado, que
nunca foram exclusivamente nacionais, ao contrário do que a rmava
a ilusão nacionalista. A oposição efetiva não estava entre o nacional e
o de fora, como se fossem entidades estanques, mas entre apropriações
vivas e consumo alienador, seja do externo, seja do interno. As boas
páginas que descrevem a coexistência da produção americana e
europeia nos cinemas de Santo Amaro são instrutivas a esse respeito.
A seriedade social dos italianos e a franqueza sexual dos franceses,
notadas por alguns santamarenses que se reconheciam nelas, punham
em relevo o convencionalismo empobrecedor dos norte-americanos,
cujos musicais eram no entanto deslumbrantes. Com simplicidade
memorável, a ruminação juvenil sobre a beleza, o valor dos cachês e a
força emblemática de Brigitte Bardot, Gina Lollobrigida e Marilyn
Monroe, tão diferentes entre si, captava em movimento algo da
equação social-estética do período, incluída aí a dimensão de
rivalidade geopolítica, de que a cine lia santamarense fazia uma parte
pequena mas real. A graça das comparações depende de certo
equilíbrio entre os diferentes Olimpos nacionais, que permitia ao
público de Santo Amaro escolher segundo a sua preferência no
cardápio do mundo contemporâneo. Sob o signo da diversidade, quer
dizer, sem as injunções da hegemonia, a presença de modelos externos
tornava-se um fator de autoconhecimento, e não de alienação. “Seu
Agnelo Rato Grosso, um mulato atarracado e ignorante que era
açougueiro e tocava trombone na Lira dos Artistas (uma das duas
bandas de música da cidade — a outra se chamava Filhos de Apolo),
foi surpreendido por mim, Chico Motta e Dasinho, chorando à saída
de I vitelloni, também de Fellini, e, um pouco embaraçado, justi cou-
se, limpando o nariz na gola da camisa: ‘Esse lme é a vida da
gente!’.”12
A busca de um presente mais livre e em dia com os tempos se repete
logo adiante em novo patamar. Quando mudam de Santo Amaro para
Salvador, a m de prosseguir nos estudos, Caetano e a irmã têm a
sorte de encontrar em marcha um momento histórico de
desprovincianização, quase se diria de emancipação. Graças à
iniciativa de Edgar Santos, um reitor esclarecido, a Universidade
Federal da Bahia acrescentara ao corpo de suas faculdades as escolas
de música, dança e teatro, bem como um museu de arte moderna,
trazendo para a sua direção “os mais arrojados experimentalistas em
todas estas áreas, oferecendo aos jovens da cidade um amplo
repertório erudito”.13 A descrição que o livro dá da ebulição
característica do pré-64 é notável. Sem que esteja propriamente
discutido, o encontro explosivo — e formador — de experimentalismo
artístico sem fronteiras nacionais, subdesenvolvimento, radicalização
política, cultura popular onipresente e província, além da hipótese
socialista no horizonte, é o contexto de tudo. Com os ajustes do caso,
era um microcosmo do Brasil em véspera de mudanças. O que o rádio,
os discos e algum cinema haviam feito para abrir a cabeça de Caetano
em Santo Amaro agora seria continuado noutra escala. Propiciado
pela universidade que se abria, o contato com as obras revolucionárias
da arte moderna de Stravinski, Eisenstein e Brecht até Antonioni e
Godard combinava-se à agitação estudantil, ao caráter não burguês
das festas populares da Bahia, às esperanças ligadas ao governo
popular de Miguel Arraes em Pernambuco, à experimentação
esquerdista dos Centros Populares de Cultura. Paralelamente, a vida a
ser mudada já não era apenas a da família e da cidadezinha, mas a do
país, com sua con guração de classes indefensável, sua desatualização
cultural paralisante e sua submissão ao imperialismo.

Falávamos de literatura, cinema, música popular; falávamos de Salvador, da vida na


província, da vida das pessoas que conhecíamos; falávamos de política. […] éramos levados
a falar frequentemente de política: o país parecia à beira de realizar reformas que
transformariam a sua face profundamente injusta — e de alçar-se acima do imperialismo
americano. Vimos depois que não estava sequer aproximando-se disso. E hoje nos dão bons
motivos para pensar que talvez nada disso fosse propriamente desejável. Mas a ilusão foi
vivida com intensidade — e essa intensidade apressou a reação que resultou no golpe.14

Mais adiante voltaremos ao ceticismo, ou ao realinhamento, em que a


citação termina. Fiquemos por agora com a convergência entre
revolução estética e emancipação social, que animou aquele período e
é uma das linhas de força — partidas — do livro.
A certa altura, ainda criança, Caetano decide comunicar à família
católica praticante que não acredita em Deus nem nos padres. “Não o
z em tom o cial — nem mesmo com tanta clareza — por ouvir de
meus irmãos que isso representaria um desgosto terrível para Minha
(tia) Ju.”15 Essa mescla peculiar de ruptura radical com respeito ou
apego reaparecerá muitas vezes no livro. Mesmo em momentos de
agressividade e escândalo intencionais, já depois de 1964 , Caetano
con a que tudo terminará bem, que os próprios adversários
reconhecerão que nada foi por mal e que no m de contas a
divergência aproveitará a todos. “Muitos dos que eram íntimos
tinham se afastado por causa da revolta que lhes inspirava o
tropicalismo. […] Ouvíamos histórias, mas não nos preocupávamos
demasiadamente. Tínhamos certeza de que ninguém sairia diminuído
desse episódio. E que, com o tempo, todos perceberiam vantagens
gerais advindas do nosso gesto.”16 Note-se de passagem a
tranquilidade, literariamente muito boa, com que o autor concede que
as suas iniciativas causavam repulsa. Pois bem, visto o grau das
discórdias que guram no livro, por que supor que em última
instância as partes opostas estejam no mesmo campo? Por que a
surpresa e a decepção de Caetano quando seus ataques são mal
recebidos? O exemplo mais desconcertante dessa sua reação é o tom
queixoso que adota quando é preso pela ditadura depois de uma série
impressionante de provocações — como se a divisão social não fosse
para valer. Seja como for, o seu traço de personalidade muito à
vontade no atrito mas avesso ao antagonismo propriamente dito
combinava com o momento brasileiro do pré-golpe, quando durante
algum tempo pareceu que as contradições do país poderiam avançar
até o limite e ainda assim encontrar uma superação harmoniosa, sem
trauma, que tiraria o Brasil do atraso e seria a admiração de todos.
Há algo em comum entre a) a família decorosa, que aceita bem as
suas crianças excêntricas; b) a Santo Amaro um tanto antiga,
respeitadora das tradições, mas também ela simpática aos meninos
entusiasmados por causas doidas — e modernas — como a música de
João Gilberto, a pintura abstracionista e a cção de Clarice Lispector;
e c) a universidade de província que importa núcleos de vanguardismo
artístico para ativar o clima cultural da cidade. Em todas essas esferas,
a despeito da componente de ordem, o salto progressista a uma forma
social mais livre e menos injusta ou absurda representava antes uma
aspiração que um transtorno. O golpe de Estado em seguida iria
demonstrar que esse provincianismo tolerante com a inovação e a
reforma, mesmo onde elas tocavam a questão da propriedade, não era
a regra geral no país, o que não quer dizer que não existisse. Tomando
distância, digamos que naqueles casos anteriores a licença de
experimentar vinha de cima: a família Veloso, Santo Amaro, a
Reitoria e, mais longe, o próprio Estado desenvolvimentista não se
identi cavam mais à ordem retardatária, que mal ou bem estava com
a data vencida. A cor política dessa inesperada abertura para a
modernização, que não via com maus olhos o espírito crítico das
crianças e as tentativas vanguardistas dos universitários e adjacências,
era de nidamente anticapitalista, numa veia de pequena classe média,
talvez mais moral do que política. “No ambiente familiar e nas
relações de amizade nada parecia indicar a possibilidade de alguém,
em sã consciência, discordar do ideário socializante. A direita só
existia por causa de interesses escusos e inconfessáveis.”17 Esse clima
de opinião provinciano e esclarecido, para o qual o socialismo seria
razoável e o capitalismo um erro, clima que hoje a muitos parecerá de
outro planeta, não chegava a ser majoritário. A sua amplitude
entretanto era su ciente para dar a ilusão de que ele representava a
tendência real das coisas, enquanto o campo oposto seria um triste
anacronismo, em vias de ser superado. Daí certa euforia, que em
seguida se provou ingênua, quanto ao rumo do progresso. Daí
também a atmosfera quase utópica do capítulo sobre Salvador, em que
os estudantes reinventam a vida livremente, segundo os seus contatos
com a vida popular e a cultura erudita, entre botecos pobres e
instalações públicas modernas, à sombra de autoridades, professores e
intelectuais progressistas, e, sobretudo, à distância das pressões do
capital. Por razões históricas em que o livro não entra, as quais
tinham a ver com o auge e a crise do nacionalismo desenvolvimentista
no pré-64, havia simpatias de esquerda espalhadas por todos os níveis
da sociedade, inclusive no governo. Graças a esses apoios, que tinham
alcance não só moral como também prático, estava em curso uma
recombinação extramercado de forças intelectuais, políticas e
institucionais, mal ou bem ensaiando possibilidades socialistas, quase
como se o capital não existisse. A hipótese mostrou ser fantasiosa,
mas a beleza desses capítulos deve-se a ela e à plenitude de vida que
ela prometia e em certa medida facultava.
Os primeiros passos da pro ssionalização artística de Caetano — a
expressão é dele — são ilustrativos nesse sentido. Longe das alienações
do show business, eles obedecem a estímulos diversos, todos
estimáveis, curiosamente desprovidos de carga negadora maior. Aí
estão as inspirações populares de sua imaginação, as amizades juvenis
intensas, a inteligência estética notável, a ânsia de apropriar-se do
espírito moderno, o culto à voz da irmã mais moça, a insatisfação —
carinhosa — com o estado em que se encontravam a província e o
país, o desejo de puxar a arte da canção para o presente, sem romper
entretanto com a linha central da música popular brasileira, e, para
concluir, a conjunção talvez sartriana de “responsabilidade intelectual
e comprometimento existencial”.18 Seriam passos de
pro ssionalização, mas num sentido pouco escolar e nada comercial,
diverso do corrente. Digamos que se tratava das tentativas de um
estudante talentoso, que juntamente com a sua geração procurava
participar de um momento iluminado de transformação nacional, que
a todos permitiria a realização. Algo parecido valeu para boa parte do
movimento artístico dos anos 1960, que era jovem e mais próximo da
agitação estudantil que das especializações pro ssionais. A diferença
notável do caso é que o clima amador e enturmado não se traduzia
pela desambição intelectual, muito pelo contrário. O exemplo
característico, verdade que com mais carga de radicalismo e
negatividade, seria Glauber Rocha. A dinâmica histórica e a força das
discussões revolucionavam por dentro as guras que logo mais seriam
de ponta, as quais passavam por um processo acelerado e intensivo de
acumulação e formação em áreas diversas, incluindo o debate
internacional, com resultado impressionante. Entravam em liga a
cultura especializada do fã, o ambiente cultural movimentado, o
engajamento maior ou menor na luta social, tinturas acadêmicas,
delidade à experiência de vida prévia, além do domínio precário do
ofício, que aliás não impedia o experimentalismo e de certo modo até
o favorecia. O conjunto sintonizava com a revolução brasileira em
esboço, e também, visto em retrospecto, com os prenúncios do que
seria 1968 no mundo, tudo num grau de a nidade com que as
preparações mais propriamente pro ssionais não sonhavam. Caetano,
que tinha consciência aguda desses paradoxos, observa que a
originalidade de seu primeiro disco “muitas vezes provinha mais de
nossas limitações que de nossa inventividade”.19 No mesmo espírito, a
propósito do trabalho de um grupo amigo: “O disco, como de hábito,
não é bom. Mas em compensação é ótimo”.20 A precariedade da
fatura artística mudava de conotação, ou adquiria outra impregnação.
Passava a ter parte com um hipotético salto nacional à frente, de
dimensão histórica, e tinha valor nessa condição, em relação à qual as
considerações convencionais de métier eram secundárias. Assim, a
propósito de Deus e o diabo na terra do sol, Caetano escreve —
memoravelmente — que “Não era o Brasil tentando fazer direito (e
provando que o podia), mas errando e acertando num nível que
propunha, a partir de seu próprio ponto de vista, novos critérios para
julgar erros e acertos”.21
Lembrando o início de sua educação estética, diz Caetano que se
“sentia num país homogêneo cujos aspectos de inautenticidade — e as
versões de rock sem dúvida representavam um deles — resultavam da
injustiça social que distribuía a ignorância, e de sua
macromanifestação, o imperialismo, que impunha estilos e
produtos”.22 Mesmo que sumariamente, a ordem mundial inaceitável,
a desigualdade brasileira e as questões de arte estão interligadas,
xando um patamar dialético para a re exão. Grosso modo, era a
posição do nacionalismo de esquerda da época, ou dos comunistas,
com seus méritos e limitações: o latifúndio e o imperialismo causavam
inautenticidade cultural (o que certamente era verdade), ao mesmo
tempo que permaneciam como que externos ao país, formando corpos
estranhos numa nação essencialmente boa e fraterna (o que era uma
ingenuidade). A nado com essa ordem de sentimentos e
prolongando-a no plano artístico, o menino Caetano sonhava uma
decantação do som, uma recusa da vulgaridade e do tosco: o
saxofone, por exemplo, lhe soava grosseiro e a bateria era “uma
atração de circo”, sem falar no mau gosto do acordeão.23 No ponto
de fuga dessa reforma dos timbres, que era mais que meramente
musical, estaria um Brasil verdadeiro, liberto das imposições de fora e
da ignorância nativa. “Apenas radicalizava dentro de mim — como
João Gilberto nalmente radicalizou para todos — uma tendência de
de nição de estilo brasileiro nuclear, predominante.”24 A
radicalização, se ouvirmos bem, nada tinha de esteticismo, do desejo
de voltar as costas à realidade degradante ou de romper com ela. Pelo
contrário, tratava-se de uma espécie de aperfeiçoamento, de
condensação e estilização do país na sua melhor parte, que com sorte
puxaria o resto. “Eu ouvia e aprendia tudo no rádio, mas à medida
que, ainda na infância, ia formando um critério, ia deixando de fora
uma tralha cuja existência eu mais perdoava que admitia.”25 Mais
outro exemplo da combinação caetanista de ruptura e apego, esse
critério que mais perdoa que recusa a tralha das rádios comercial-
populares faz parte de um sentimento das coisas ou do país, com prós
e contras, que mais adiante e noutros termos será importante para o
tropicalismo.
As passagens sobre a bossa nova e João Gilberto são pontos altos
do livro, não só pela qualidade da análise, como pela correspondência
de fundo com o painel biográ co-social. Não custa notar que essa
dialética entre a invenção artística e o seu momento histórico, além de
um raro espetáculo, foi desde sempre o objetivo da crítica de
esquerda, aqui realizado por um adversário. A seu modo, a
reciprocidade viva entre re exão estética e crônica dos tempos, ou,
ainda, entre prosa de ensaio e prosa narrativa, que vão alternando, é
um arranjo formal com feição própria, que solicita a interpretação,
como o andamento de um romance. A dialética desdobra-se em vários
planos, dando ideia do que seja uma revolução artística, ou, por
analogia, uma revolução sem mais. Na boa exposição de Caetano, a
inovação técnica da bossa nova responde a um conjunto de impasses,
tanto musicais como sociais, achando novas saídas para o presente,
abrindo perspectivas para o futuro e rede nindo o próprio passado,
que também muda. A nova batida de violão inventada por João
Gilberto apoia-se na sua “interpretação muito pessoal e muito
penetrante do espírito do samba”, articulada “ao domínio dos
procedimentos do cool jazz, então ponta de lança da invenção nos
Estados Unidos”. Assim, o artista associava uma tradição brasileira,
marcada social e racialmente, a um desenvolvimento de vanguarda,
com projeção internacional, que a desprovincianizava, além de
viabilizá-la no mercado estrangeiro e junto a novos públicos no país.
O resultado é “um processo radical de mudança de estágio cultural
que nos levou a rever o nosso gosto, o nosso acervo e — o que é mais
importante — as nossas possibilidades”. Noutras palavras, a viravolta
formal, fruto da ruminação simultânea do samba e do jazz, tem tanto
lógica interna como consequências que vão além da forma,
rearrumando o campo da música popular brasileira e ensaiando um
novo arranjo entre as classes sociais e as raças, além de alcançar um
relacionamento mais produtivo com a cultura dominante do tempo.
Caetano toma conhecimento da transformação aos dezessete anos,
como “uma sucessão de delícias para a minha inteligência”.26 A
versão mais audaciosa, meditada e reivindicativa do elogio vem nas
páginas nais, em que o grande cantor popular, pela originalidade da
dicção musical que desenvolveu, é dito “um redentor da língua
portuguesa, como violador da imobilidade social brasileira — da sua
desumana e deselegante estrati cação —, como desenhador das
formas re nadas e escarnecedor das elitizações tolas que apequenam
essas formas”.27 Como poucas vezes, a invenção artística e sua força
estão ligadas a uma análise de classe sob medida para o país.
No centro da exposição está uma frase de 32 linhas, um verdadeiro
olé dialético (e como tal um pouco forçado), em que a sintaxe procura
sugerir, ou captar, a complexidade do processo real.28 Pela
abrangência da visão, pela sua potência organizadora, pelo teor de
paradoxo e pela capacidade de enxergar o presente no tempo, como
história, é uma façanha. Assim, a revolução que João Gilberto operou
nas relações entre a fala, a linha melódica e a batida de violão 1 )
tornou possível o desenvolvimento pleno do trabalho de seus
companheiros de geração; 2) “abriu um caminho para os mais novos
que vinham chegando”; 3) deu sentido às buscas de seus predecessores
imediatos, que “vinham tentando uma modernização através da
imitação da música americana”; 4 ) superou-os todos pelo uso que
soube fazer do cool jazz, “que lhe permitiu melhor religar-se ao que
sabia ser grande na tradição brasileira”, da qual justamente os
modernizadores queriam fugir; e 5) “marcou, assim, uma posição em
face da feitura e fruição de música popular no Brasil que sugeria
programas para o futuro e punha o passado em nova perspectiva — o
que chamou a atenção de músicos eruditos, poetas de vanguarda e
mestres de bateria de escolas de samba”. Como é próprio da escrita
dialética, o mesmo sujeito de frase — no caso a revolução musical
trazida por João Gilberto — comanda verbos muito díspares, que por
sua vez comandam objetos (sujeitos) também eles desiguais,
pertencentes a domínios separados e às vezes opostos da realidade,
que assim cam articulados por dentro. Tanto sujeitos como verbos
atuam em várias dimensões ao mesmo tempo, as quais re uem sobre o
seu ponto de partida, que existe através delas e adquire uma unidade
ampliada e imprevista, que é o selo da dialética. Na realidade e na
prosa, guras apartadas pela especialização e pelo abismo das classes
sociais, como os músicos eruditos, os poetas de vanguarda e os
mestres de bateria de escolas de samba, na bela enumeração de
Caetano, são colocadas em movimento associado e produtivo, saindo
de seu isolamento. A uidez se torna vertiginosa quando a inovação
não afeta apenas o presente e o futuro, como quer o senso comum,
mas abala também o passado, que deixa de ser imutável e se recompõe
sob nossos olhos. A viravolta é um micromodelo do alcance total que
tem uma revolução, mesmo restrita.
Caetano possui como poucos a capacidade de caracterizar artistas e
obras. Espalhados pelo livro e apimentados pela rivalidade, os retratos
de Maria Bethânia, Nara Leão, Elis Regina, Glauber Rocha, Chico
Buarque, Raul Seixas, Erasmo Carlos, Gilberto Gil, Augusto Boal,
Augusto de Campos, Geraldo Vandré e outros formam uma excelente
galeria contemporânea. Deliberadamente ou não, as feições
individuais somam, ressoando umas nas outras e con gurando com
densidade a problemática de uma geração. Noutro plano, o mesmo
golpe de vista estético-social, aberto para a individualidade das obras
e para a sua substância coletiva, faz de Caetano um crítico de arte de
primeira qualidade. As suas páginas sobre Terra em transe e Alegria,
alegria estão entre as boas peças da crítica brasileira, particularmente
pela inteligência com que integram descrição formal e circunstância
histórica. Dito isso, as caracterizações devem o seu relevo a mais outro
elemento de visão, também ele dialético, ligado à con ança sem
reservas no valor histórico da individualização complexa. Com efeito,
para Caetano as obras e os artistas não são epifenômenos, mas
acontecimentos, pontos de acumulação real, que fazem diferença e
têm consequências no campo estético e fora dele. São momentos
salientes e signi cativos de uma história em curso, que não se reduz à
dinâmica do mercado, com as suas modas que se sucedem indiferente
e inde nidamente, nem aos esquemas pre xados do marxismo vulgar.
Por outro lado, sobretudo numa área tão comercial como a música
popular e pensando num momento como aquele, de indústria cultural
nascente, o risco de agigantar e miti car diferenças meramente
funcionais para o mercado é grande. O cacoete de transformar divas
em deusas — sem ironia — tem o mérito eventual de sublinhar o
aspecto extraordinário que o trabalho artístico pode ter, ao mesmo
tempo que contribui talvez para emprestar transcendência a ilusões
triviais do estrelato. Até onde vejo, as duas coisas estão presentes no
ensaísmo de Caetano. “Ter tido o rock ‘n’ roll como algo
relativamente desprezível durante os anos decisivos da nossa formação
— e, em contrapartida, ter tido a bossa nova como trilha sonora de
nossa rebeldia — signi ca, para nós, brasileiros da minha geração, o
direito de imaginar uma interferência ambiciosa no futuro do mundo.
Direito que passa imediatamente a ser vivido como um dever.”29
Noutras palavras, a invenção bossa-novista, que reelaborou a
hegemonia norte-americana em termos não destrutivos, compatíveis
com a nossa linha evolutiva própria, criou um patamar melhor para a
geração seguinte, que graças à densidade do ambiente musical-
intelectual interno não precisou sofrer a entrada do rock como um
esmagamento cultural. A observação é aguda e aliás resume a aura de
revolução benigna ou incruenta que cercou a bossa nova. Nos passos
seguintes, contudo, saltando as mediações indispensáveis e o senso das
proporções, a relativa autonomia cultural alcançada num lance
artístico feliz abre as portas à possibilidade e ao dever de uma geração
de brasileiros de in uir no futuro do mundo. A satisfação legítima de
sair do estado de segregação de uma cultura semicolonial se converte,
sem mais aquela, na ambição de fazer e acontecer na arena
internacional — em lugar de questionar essas aspirações elas mesmas.

O jogo de progressões e retomadas entre Santo Amaro, Salvador, a


cultura internacional e a bossa nova, com o Brasil ao fundo, sugeria
um percurso democrático de modernização. É como se por um
momento (inverossímil) o progresso e a internacionalização se
zessem para o bem de todos, num toma lá dá cá harmonioso, e não à
custa dos fracos e atrasados. A vida popular e a província pareciam
ter algo de especial a dizer, que não seria posto de lado pelas
transformações que se aproximavam. Retomando o velho desejo de
Caetano, a mudança iria se dever também a Santo Amaro. Para uma
ideia dessa miragem de modernização feliz e abrangente, veja-se um
começo de frase que capta o deslumbramento da época: “O Caravelle
da Cruzeiro do Sul — aeronave cuja modernidade de linhas me
encantava como um samba de Jobim ou um prédio de Niemeyer
[…]”.30 Associadas na mesma aspiração de elegância, aí estavam a
tecnologia francesa, a música popular brasileira e a arquitetura
vanguardista de Brasília, como se o país inteiro estivesse a ponto de
decolar. A euforia foi desmanchada em 1964 pelo golpe, um momento
estelar da Guerra Fria, quando se uniram contra o ascenso popular e a
esquerda, quase sem encontrar resistência, os militares pró-
americanos, o capital e o imenso fundo de conservadorismo do país,
tudo com ajuda dos próprios americanos. Como a posição de Caetano
iria mudar pouco depois, é interessante citar a sua primeira reação,
perfeitamente a nada com a esquerda da época: “[…] víamos no
golpe a decisão de sustar o processo de superação das horríveis
desigualdades sociais brasileiras e, ao mesmo tempo, de manter a
dominação norte-americana no hemisfério”.31 Noutras palavras,
cava interrompido um vasto movimento de democratização, que
vinha de longe, agora substituído pelo país antissocial, temeroso de
mudanças, partidário da repressão, sócio tradicional da opressão e da
exploração, que saía da sombra e fora bisonhamente subestimado. As
desigualdades internas e a sujeição externa deixavam de ser resíduos
anacrônicos, em vias de desaparecimento, para se tornarem a forma
deliberada, garantida pela ditadura, do presente e do futuro. No
mesmo passo, para uma parte dos brasileiros a realidade acabava de
tomar uma feição inaceitável e absurda.
As consequências estéticas tiradas por Caetano, que zeram dele
uma gura incontornável, custaram a aparecer. Conforme explica ele
mesmo, o catalisador foi uma passagem crucial de Terra em transe, o
grande lme de Glauber Rocha que lida com o confronto de 64 e com
o papel dos intelectuais na ocasião. O protagonista, Paulo Martins, é
um poeta e jornalista originário da oligarquia, agora convertido à
revolução social e aliado ao Partido Comunista e ao populismo de
esquerda. Exasperado pela duplicidade dos líderes populistas, e
também pela passividade pré-política da massa popular, que não é
capaz de confrontar os dirigentes que a enganam, Paulo Martins tem
uma recaída na truculência oligárquica (verdade que com propósito
brechtiano, de distanciamento e provocação). Tapando com a mão a
boca de um líder sindical, que o trata de doutor, ele se dirige
diretamente ao público: “Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto,
um imbecil, um despolitizado!”. Meio sádico, meio auto agelador, o
episódio sublinha entre outras coisas a dubiedade do intelectual que se
engaja na causa popular ao mesmo tempo que mantém as avaliações
conservadoras — raramente explicitadas como aqui — a respeito do
povo. Ditada pela evidência de que não haveria revolução, a
desquali cação dos trabalhadores é um desabafo histórico, que no
passo seguinte leva à aventura da luta armada sem apoio social. Do
ponto de vista da esquerda, a cena — uma invenção artística de
primeira força — era um compêndio de sacrilégios, fazendo uma
espécie de chacota dolorosa das certezas ideológicas do período. Os
trabalhadores estavam longe de ser revolucionários, a sua relação com
os dirigentes pautava-se pelo paternalismo, os políticos populistas se
acertavam com o campo adversário, a distância entre as teses
marxistas e a realidade social era desanimadora, e os intelectuais
confundiam as razões da revolução política e as urgências da
realização pessoal. Nem por isso se atenuavam as feições grotescas das
camadas dirigentes e da dominação de classe, que continuavam em pé,
esplendidamente acentuadas. A revolução não se tornara supér ua,
muito pelo contrário: encontrava-se num beco histórico e não dera o
necessário passo à frente. A nota geral era de desespero.32
Tão desconcertantes quanto a própria cena, as conclusões de
Caetano entravam por um rumo oposto, quase se diria eufórico,
dando sequência à recomposição ideológica pós-golpe. Enxergavam
oportunidades e saídas onde o lme de Glauber desembocava em
frustração nacional, autoexame político e morte. Digamos que elas
acatavam sem mais as palavras devastadoras de Paulo Martins,
passando por alto os traços problemáticos da personagem, que são
essenciais à complexidade artística da situação. “Vivi essa cena — e as
cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar — como o
núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje lhe
posso dar não me ocorrera com tanta facilidade então (e por isso eu
buscava mil maneiras de dizê-lo para mim mesmo e para os outros): a
morte do populismo. […] era a própria fé nas forças populares — e o
próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo — o
que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si. Essa
hecatombe eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado para
examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as consequências.
Nada do que veio a se chamar de ‘tropicalismo’ teria tido lugar sem
esse momento traumático.”33 “Portanto, quando o poeta de Terra em
transe decretou a falência da crença nas energias libertadoras do
‘povo’, eu, na plateia, vi, não o m das possibilidades, mas o anúncio
de novas tarefas para mim.”34
Convém notar que “populismo” aqui não está na acepção
sociológica usual, latino-americana, de liderança personalista exercida
sobre massas urbanas pouco integradas. No sentido que lhe dá
Caetano, o termo designa algo de outra ordem. Trata-se do papel
especial reservado ao povo trabalhador nas concepções e esperanças
da esquerda, que reconhecem nele a vítima da injustiça social e, por
isso mesmo, o sujeito e aliado necessário a uma política libertadora. O
respeito que “os melhores” sentiam — e já não sentem? — pelos
homens do povo, semiexcluídos e excluídos, em quem contemplavam
a dura verdade de nossa sociedade de classes, liga-se a essa convicção.
“Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos”, escrevia
Drummond em 1940 , pensando no operário.35 Assim, quando
Caetano faz suas as palavras de Paulo Martins, constatando e
saudando através delas a “morte do populismo”, do “próprio respeito
que os melhores sentiam pelos homens do povo”, é o começo de um
novo tempo que ele deseja marcar, um tempo em que a dívida
histórico-social com os de baixo — talvez o motor principal do
pensamento crítico brasileiro desde o Abolicionismo — deixou de
existir. Dissociava-se dos recém-derrotados de , que nessa acepção
64

eram todos populistas. A mudança era considerável e o opunha a seu


próprio campo anterior, a socialistas, nacionalistas e cristãos de
esquerda, à tradição progressista da literatura brasileira desde as
últimas décadas do século xix, e, também, às pessoas simplesmente
esclarecidas, para as quais há muito tempo a ligação interna, para não
dizer dialética, entre riqueza e pobreza é um dado da consciência
moderna. A desilusão de Paulo Martins transformara-se em
desobrigação. Esta a ruptura, salvo engano, que está na origem da
nova liberdade trazida pelo tropicalismo. Se o povo, como antípoda
do privilégio, não é portador virtual de uma nova ordem, esta
desaparece do horizonte, o qual se encurta notavelmente.
Faz parte do vigor literário do livro uma certa naturalidade com o
atrito ideológico, por momentos azedo e turbulento. Aos olhos da
esquerda, que mal ou bem centralizava a resistência à ditadura,
descrer da “energia libertadora do povo” era o mesmo que alienar-se e
entregar os pontos. Aos olhos de Caetano, era livrar-se de um mito
subitamente velho, que cerceava a sua liberdade pessoal, intelectual e
artística. Já do ângulo da evolução ulterior das coisas, que num livro
escrito décadas depois é importante, digamos que o artista havia
pressentido a inversão da maré histórica no mundo, a qual até
segunda ordem deixava sem chão a luta pelo socialismo, como a
própria esquerda aos poucos iria notar. Aliás, conforme sugere
Nicholas Brown, um estudioso americano do Brasil, da globalização,
da bossa nova e do tropicalismo, a vitória da contrarrevolução em
-
1964 70 , com a decorrente supressão das alternativas socialistas,
havia propiciado a passagem precoce da situação moderna à pós-
moderna no país, entendida esta última como aquela em que o
capitalismo não é mais relativizado por um possível horizonte de
superação. Em linha com esse esquema, a bossa nova seria um
Modernismo tardio, e a tropicália, um pós-Modernismo de primeira
hora, nascido já no chão da derrota do socialismo.36
Seja como for, a mudança não zera de Caetano um conformista. O
impulso radicalizador do pré-64 continuava atuando dentro dele e
logo em seguida iria se acentuar, através da adoção do gurino
ultrarrebelde e polêmico da contracultura e do pop, em diálogo vivo
com o momento estético e político nacional. A oposição à ordem
estabelecida agora era completa, incluída aí a esquerda convencional
— entenda-se o Partido Comunista e os estudantes nacionalistas que
frequentavam festivais de música —, a qual falava em anti-
imperialismo e socialismo mas era bem-pensante e “nunca discutia
temas como sexo e raça, elegância e gosto, amor ou forma”.37
Ambígua ao extremo, a nova posição se queria “à esquerda da
esquerda”, simpatizando discretamente com a luta armada de
Guevara e Marighella, sem prejuízo de defender a “liberdade
econômica” e a “saúde do mercado”. Cultuando divindades
antagônicas, Caetano interessava e chocava — outra maneira de
interessar — as diversas religiões de seu público, tornando-se uma
referência controversa mas obrigatória para todos. O descaso pela
coerência era ostensivo e tinha algo de bravata: “Uma política
unívoca, palatável e simples não era o que podia sair daí”.38
Paralelamente, o abandono da fé “populista” se traduzia por um
notável aumento da irreverência, de certa disposição de pôr para
quebrar, que entrava em choque com o já mencionado bom-mocismo
dos progressistas e, certamente, com os mínimos de disciplina exigidos
pela ação política. Assim, a posição libertária e transgressora
postulada por Caetano rechaçava igualmente — ou quase — os
establishments da esquerda e da direita, os quais tratava de abalar ao
máximo no plano do escândalo cênico, ressalvando entretanto o
mercado. Somando-se à “anarquia comportamental”,39 às roupas e
cabeleiras acintosas, concebidas para passar da conta, a provocação
chegava ao extremo, em plena ditadura, de exibir no palco a bandeira
com que Hélio Oiticica homenageava um bandido morto pela polícia:
“Seja marginal, seja herói”. Como era de prever, embora a ideia não
fosse essa, terminou tudo em meses de cadeia, por iniciativa de um
juiz de direito que assistia ao espetáculo com a namorada.40 Talvez
zesse parte desse quadro uma competição deslocada e suicida com os
companheiros de geração que estavam optando pela luta armada,
também eles contrários à ditadura e à esclerose histórica do Partido
Comunista.41 Sem esconder a satisfação de amor-próprio, Caetano
relata a sua cumplicidade com o major que o interrogara na prisão, o
qual denunciava “o insidioso poder subversivo de nosso trabalho” e
reconhecia “que o que Gil e eu fazíamos era muito mais perigoso
[para o regime] do que o que faziam os artistas de protesto explícito e
engajamento ostensivo”.42 O atestado de periculosidade passado pelos
militares vinha compensar os remoques dos adversários de esquerda,
para os quais o tropicalismo dos cabeludos não passava de alienação.
Dito isso, e a despeito do custo alto que muitos pagaram, além da
acrimônia, a rivalidade entre contracultura e arte engajada tinha algo
de comédia de desencontros, sobretudo porque ela era desnecessária,
pois nada obrigava a esquerda (na verdade só uma parte dela) a ser
convencional em matéria de estética e costumes, assim como era
evidente o impulso antiburguês da contracultura. Por outro lado, a
simetria na recusa dos dois establishments não era perfeita, como
explica Caetano com sinceridade desarmante. Habituado à
hostilização pública por parte da esquerda, que o chamava de
alienado e americanizado, além de vaiá-lo em cena, julgava-se por isso
mesmo a salvo da repressão policial-militar, que não o veria como
inimigo e o deixaria em paz.43 [O movimento tropicalista] “Era
também uma tentativa de encarar a coincidência (mera?), nesse país
tropical, da onda da contracultura com a voga dos regimes
autoritários.”44 Que pensar desse cálculo espinhoso e secreto — um
imaginário alvará informal, que aliás se provou errado —, vindo de
alguém que se queria perigoso para o regime? O fato é que Caetano se
sentia duplamente injustiçado, uma vez por ser preso pela direita sem
ter feito grande coisa (o juízo é dele, apesar dos juízos contrários
noutros momentos)45 e outra por não ser reconhecido como
revolucionário pela esquerda.
Geraldo Vandré, uma gura de proa da canção de protesto, a certa
altura pede aos tropicalistas que não compitam com ele, pois o
mercado só comporta um nome forte de cada vez, e o Brasil da
ditadura, para não dizer o socialismo, precisava de conscientização
das massas. Com perspicácia, Caetano observa que talvez se tratasse
de um embrião daquele mesmo o cialismo que matava a cultura dos
países socialistas em nome da história. Veja-se a ironia duvidosa de
seu comentário, que jogava com chavões da Guerra Fria e con uências
inaceitáveis para dar forma literária ao caráter envenenado da
situação: “Livres do perigo vermelho desde que nossos inimigos
militares tomaram o poder, nós não víamos a mais remota
possibilidade de realizar-se esse desejo de Vandré”.46 Com a irrisão do
caso, inclusive autoirrisão, ainda aqui os inimigos de direita pareciam
garantir, contra os semicompanheiros de esquerda e de ofício, um
certo espaço de liberdade — isso até prova em contrário, que não
tardaria. Contra alguns da esquerda, que sonhavam assegurar-se do
mercado por meio de alegações políticas, os tropicalistas apostavam
“numa pluralidade de estilos concorrendo nas mentes e nas caixas
registradoras”.47 O cinismo alegre dessas últimas, funcionando por
assim dizer como agentes da democracia e da cultura, em certo plano
era menos hipócrita que o enquadramento proposto pelos adversários;
noutro plano, entretanto, era pior, pois a ideia de concorrência “nas
mentes” calava a presença do Estado policial, que no m das contas
era o fato relevante. Escolhidas a dedo para vexar os socialistas, as
“caixas registradoras” explicitavam o aspecto comercial do
enfrentamento ideológico-musical nos programas de , aspecto que
tv

os artistas engajados, por serem anticapitalistas, preferiam passar por


alto.48 Isso posto, mesmo que manipulado e explorado pelo show
business, o a- u artístico-ideológico era um verdadeiro fenômeno
social. Transpunha para o espetáculo a nova etapa do confronto com
a ditadura, confronto que estava em preparação e pouco adiante
terminaria em novo massacre da esquerda. Digamos que a rivalidade
exaltada nas plateias, uma disputa simbólica pela liderança do
processo, aludia à luta nas ruas e à realidade do regime, ainda que de
maneira indireta e distorcida. Faria parte de um discernimento
intelectual mais exigente distinguir entre antagonismos secundários e
principais, adversários próximos e inimigos propriamente ditos.
A confusão nessa matéria era grande. A devastação causada pela
ditadura, que suspendeu as liberdades civis e desbaratou as
organizações populares, seria de mesma ordem que as desfeitas e
mesmo agressões do público estudantil ou dos colegas de ofício? A
simples comparação não seria uma falta de juízo? Veja-se a respeito
um amigo libertário de Caetano, que não lamentava o incêndio da
União Nacional dos Estudantes logo em seguida ao golpe. “Tremi ao
ouvi-lo dizer que o prédio da União Nacional dos Estudantes devia
mesmo ter sido queimado. O incêndio da , um ato violento de
une

grupos de direita que se seguiu imediatamente ao golpe de abril de ,


64

era motivo de revolta para toda a esquerda, para os liberais assustados


e para as boas almas em geral [por que a ironia?]. Rogério [o amigo]
expunha com veemência razões pessoais para não a nar com esse
coro: a intolerância que a complexidade de suas ideias encontrara
entre os membros da une fazia destes uma ameaça à sua liberdade. O
estranho júbilo de entender com clareza suas razões, e mesmo de
identi car-me com elas, foi maior em mim do que o choque inicial
produzido pela a rmação herética. Não tardei a descobrir que
Rogério exibiria ainda maior violência contra os reacionários que
apoiassem em primeira instância a agressão à . Isso, que para
une

muitos parecia absurda incoerência, era para mim prova de rmeza e


rigor: ele detectava embriões de estruturas opressivas no seio mesmo
dos grupos que lutavam contra a opressão, mas nem por isso iria
confundir-se com os atuais opressores destes.”49
Em perspectiva histórica, tratava-se da reavaliação do passado
recente. O ascenso socializante do pré-64, cujo impulso superador e
democrático fazia a beleza dos capítulos sobre Santo Amaro e
Salvador, agora era revisto sob luz contrária, como um período
incubador de intolerância e ameaça à liberdade. Depois de serem
motivo de orgulho, os grupos que se erguiam contra o imperialismo e
a injustiça social passavam a ser portadores de “embriões de
estruturas opressivas”, contra os quais mesmo um incêndio não seria
uma providência descabida. Ainda que imaginemos que o incêndio
tenha sido aqui uma or de retórica, a mudança de posição era
radical. Veja-se um exemplo do novo tom, que não caria mal em
editoriais da imprensa conservadora: “Hoje são muitas as evidências
de que […] qualquer tentativa de não alinhamento com os interesses
do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às
liberdades fundamentais […]”.50 Que pensar dessa viravolta, referida
a um momento em que as liberdades fundamentais de fato haviam
sido canceladas, mas pela direita? Agora é a luta por uma sociedade
melhor que é posta sob suspeição. Em termos de consistência literária,
de coerência entre as partes da narrativa, que numa autobiogra a
quase-romance têm valor estético-político, o novo ponto de vista
antiesquerda destoa e não encontra apoio na apresentação — tão
notável — do período anterior a 64 . Conforme o próprio livro, foram
anos justamente em que a liberdade de experimentação social e
artística brilhou em toda linha, com força talvez inédita no país. Seja
dito de passagem que a vitalidade desse experimentalismo se devia em
parte ao fato de que o próprio capitalismo estava em jogo, e, com ele,
as coordenadas da realidade, num grau que não se repetiria mais.
Assim, quando aparece, a insistência no caráter antidemocrático da
luta pela democracia é um corpo estranho no relato, de cuja dinâmica
interna não parece resultar. Sem maior base no passado, pode
entretanto re etir a correlação de forças pós-golpe, que depois de
derrubar e proibir as aspirações sociais da fase prévia as pintou com
as cores do terror stalinista. É certo que a sombra da União Soviética
pesaria sobre qualquer tentativa socializante, mas transformá-la em
impedimento absoluto à insatisfação com o capitalismo era e é outra
forma de terror ou de paralisação da história. Em plano mais
comezinho, o novo antiesquerdismo magni cava desentendimentos
antigos, em questões de arte e estilo de vida, que até onde conta
Caetano não chegavam a ser incontornáveis. “Se eu me identi quei
com Rogério logo ao conhecê-lo, foi porque minha situação entre
meus colegas de esquerda na Universidade da Bahia fora semelhante à
dele entre seus amigos da une no Rio. Sem que desse motivos para
confrontos do tipo que ele teve que enfrentar, minha atitude reticente
em face das certezas políticas de meus amigos suscitava neles uma
irônica descon ança. Eu era um desses temperamentos artísticos a que
os mais responsáveis gostam de chamar de ‘alienados’. Minhas
relações com os colegas de esquerda eram até mesmo ternas.”51
O júbilo ante o incêndio da une , uma emoção “estranha” e
“herética”, meio inconfessável e meio perversa, é parente do
entusiasmo pela cena traumática de Terra em transe. Também esta foi
uma “hecatombe” bem-vinda, que punha abaixo as aspirações da
esquerda e, com elas, a crer no novo Caetano, uma prisão mental. Nos
dois casos, sob o manto de reações tabu, que requerem certa coragem
para se a rmar — embora o campo vencedor as aprove —, assistimos
a uma conversão histórica, ou, melhor dizendo, à revelação de que a
esquerda, até então estimada, é opressiva e não vale mais que a
direita. Adiante veremos em funcionamento essa equidistância. Seja
dito de passagem que iluminações tanto podem esclarecer como
obscurecer e que às vezes fazem as duas coisas. Por agora, notemos
algumas das razões que zeram que Caetano festejasse a derrocada da
esquerda — mas não a vitória da ditadura — como um momento de
libertação. Mal ou bem, é o depoimento de um artista incomum sobre
o mal-estar que a própria existência da esquerda, com sua
terminologia, suas teses e posições, lhe passara a causar.
O incômodo começava pela linguagem. Por que chamar de
proletários os trabalhadores pobres e “miseravelmente
desorganizados” do Recôncavo, a quem esse nome não ocorreria e
que aliás gostariam muito de usar capacete e de ser assalariados? Na
mesma ordem de objeções, não soava descabido e pouco
“estimulante”, dadas as circunstâncias, falar em ditadura do
proletariado?52 Noutro plano, o socialismo seria mesmo a solução
para todos os problemas, como uma panaceia? “A solução única já
era conhecida e chegara aqui pronta: alcançar o socialismo.”53 Com
sentido comum, Caetano havia notado o desajuste entre a vulgata
marxista e a realidade local, bem como certa cegueira correspondente.
A pobreza entretanto existia sim, e o desconforto com as palavras não
a fazia desaparecer. “Claro que as ideias gerais a respeito da
necessidade de justiça social me interessavam e eu sentia o entusiasmo
de pertencer a uma geração que parecia ter diante de si a
oportunidade de mudar profundamente a ordem das coisas.”54
Afastada a camisa de força do jargão, a sociedade de classes voltava
pela janela dos fundos e impunha os seus problemas, cujo horizonte é
coletivo. Acresce que a alergia aos esquemas do marxismo tinha ela
mesma um viés de classe, passível de crítica — marxista? — por sua
vez. “Eu sinceramente não achava que os operários da construção civil
em Salvador […] — tampouco as massas operárias vistas em lmes e
fotogra as — pudessem ou devessem decidir quanto ao futuro de
minha vida.”55 Como não ver a parte do desdém e da exclusão
política nessa formulação, sem falar na fantasia ideológica de um
futuro pessoal incondicionado? Acaso as classes dirigentes que nós
intelectuais e artistas costumamos tolerar ou adular não in uem na
nossa vida? E a restrição aos operários seria feita igualmente a
empresários, banqueiros, políticos pro ssionais ou donos de estações
de tv?
Depois de haver sido o partido da transformação social, da crítica à
ordem burguesa e ao atraso, a esquerda passava a ser considerada,
talvez por força da derrota, como um obstáculo à inteligência. Sem ser
uma refutação no plano das ideias, a vitória do capital sobre o
movimento popular afetava as cotações intelectuais e estimulava a
substituição das agendas, com vantagem discutível. “O golpe no
populismo de esquerda [Caetano refere-se à cena central de Terra em
transe] libertava a mente para enquadrar o Brasil de uma perspectiva
ampla, permitindo miradas críticas de natureza antropológica, mítica,
mística, formalista e moral com que nem se sonhava.”56 As ausências
conspícuas nessa lista de perspectivas amplas são a análise de classes,
a crítica ao capital e o anti-imperialismo, sem falar no prisma da
desmisti cação. Assim, salvo engano, a nova liberdade de vistas
consistia em deixar de lado os ângulos propriamente modernos ou
totalizantes que haviam conquistado o primeiro plano no pré-64,
quando teriam sido causa — mas será verdade? — de acanhamento
mental. Repitamos que não é o que o livro conta nos capítulos
dedicados ao período, nos quais, ao contrário, se vê um momento
inteligente e aberto da vida nacional, notável pelo ascenso popular e
muito mais livre do que o que veio depois. Noutras palavras, voltando
ao argumento de Caetano, o abalo causado pela viravolta militar e
política teria tido também o seu aspecto positivo, abrindo perspectivas
intelectuais novas, antes inacessíveis (mas alguém as vedava?), que
“procuravam revelar como somos e perguntavam pelo nosso
destino”.57 Já um materialista dirá que, longe de ser novidade, a
consideração “antropológica, mítica, mística, formalista e moral” do
país, bem como a pergunta pelo “nosso destino”, marcava uma volta
ao passado, às de nições estáticas pelo caráter nacional, pela raça,
pela herança religiosa, pelas origens portuguesas, que justamente a
visão histórico-social vinha redimensionar e traduzir em termos da
complexidade contemporânea. É claro por outro lado que a
recon guração geral do capitalismo, de que 64 fez parte, exige uma
resposta que os socialistas continuam devendo.
A caracterização da esquerda como um bloco maciço,
antidemocrático em política e retrógrado em estética não correspondia
à realidade. Embora minoritária, a na or da re exão crítica do
período era, além de socializante, antistalinista com conhecimento de
causa e amiga do experimentalismo em arte. Basta lembrar Mario
Pedrosa, Anatol Rosenfeld, Paulo Emilio Salles Gomes e Antonio
Candido. Com as diferenças de cada caso, algo parecido valia para os
artistas de ponta, como Glauber e seus companheiros do Cinema
Novo, o grupo da Poesia Concreta, os signatários do manifesto da
Música Nova, o pessoal do Teatro de Arena e O cina, incluindo o
próprio Caetano antes da virada.58 Por que então a pressa em
abandonar o barco, em que não faltavam aliados? Arriscando um
pouco, digamos que Caetano generalizou para a esquerda o
nacionalismo super cial dos estudantes que o vaiavam, bem como a
idealização atrasada da vida popular que o Partido Comunista
propagava. A generalização errava o alvo e não deixava de
surpreender, pois muito do êxito do artista se deveu a setores mais
radicalizados da mesma esquerda, que se sentiam representados na
linguagem pop, no comportamento transgressivo, nos acordes atonais
e, de modo mais geral, na experimentação vanguardista e na
atualização internacional. Assim, até onde vejo, não foi a limitação
intelectual da esquerda o que levou Caetano a fazer dela o seu
adversário. A razão da hostilidade terá estado simplesmente nas
reservas gerais dela ao capitalismo vencedor, na negatividade estraga-
prazeres diante da voragem da mercantilização que se anunciava.
Numa passagem inesquecível do livro — também ela um júbilo
duvidoso — Caetano desce à rua para ver de perto uma passeata
estudantil e sua repressão pelos militares.59 À maneira dos hippies,
que então era nova, o artista ostentava uma cabeleira enorme, vestia
um capote de general sobre o torso nu e usava jeans e sandálias, além
de “um colar índio feito de dentes grandes de animal”. Caminhando
na contracorrente da manifestação, enquanto os estudantes fugiam e
eram espancados, a estranha gura se toma de uma “ira santa”, com
alguma coisa talvez de beato, e interpela os passantes, “protestando
contra sua indiferença medrosa (e, quem sabe?, seu apoio íntimo) em
face da brutalidade policial”. A cena é intrincada e vale uma
discussão. Os protagonistas centrais naturalmente eram os estudantes
e os militares, que disputavam o domínio da rua e o ser ou não ser da
ditadura. Caetano não toma partido direto no con ito, não se
alinhando com os manifestantes nem falando a eles, a nal de contas a
sua gente, nem tampouco se dirigindo aos soldados. Em vez disso
inventa para si uma gura de possesso, ou de profeta, e passa a dizer
desaforos — “desaforos foi o que ouviram” — às pessoas da rua que
não querem saber de nada e só pensam em cair fora o mais rápido
possível. “Homens e mulheres apressados tinham medo dos
manifestantes, dos soldados e de mim. Eu estava seguro de que,
naquela situação, ninguém me tocaria um dedo.” Entre parênteses,
seria interessante, para aprofundar o episódio, conhecer o teor das
recriminações. Seja como for, a participação a que o profeta incita os
passantes não vale para ele próprio, vestido a caráter, que quer mesmo
é invectivar, mais do que ser ouvido. A própria “ira santa” tinha um
quê relativo, pois vinha acompanhada de cálculos de segurança pouco
irados, que faziam dela um teatro para uso sobretudo particular. “Por
outro lado, os soldados di cilmente focariam a sua atenção em mim:
eu andava em sentido contrário aos estudantes fugitivos, na verdade
tangenciando o olho do furacão, e minha aparência não seria
computada como sendo a de um dos manifestantes. Eu falava alto e
exaltadamente, mas nenhum soldado se aproximaria de mim o
su ciente para me ouvir.” Com ar de doido, desses que as situações de
caos e a religiosidade popular fazem aparecer, a personagem sentia-se
a salvo da repressão, que não a veria como adversário. Em suma, uma
intervenção arriscada mas nem tanto, que no fundo não é uma
intervenção, embora criando uma posição fora de concurso, possível
na circunstância (para quê?). De inegável interesse, devido sobretudo à
complicação dos motivos, o episódio é difícil de classi car. Caetano o
tem em alta conta, como happening, teatro político e poesia.
Tão esquisitas quanto a cena são as considerações a seu respeito. No
principal, trata-se de valorizá-la como um lance de arte de vanguarda,
ou neovanguarda dos anos 1960 . As marcas distintivas estão aí: a
recusa da separação entre arte e vida prática, a performance
improvisada à luz do dia, com dimensão política, envolvendo o
cidadão comum, a proposta de um fazer artístico sem obra durável, a
poesia totalmente desconvencionalizada, que não se limita ao espaço
do poema, e, por m, a inspiração libertária geral. “Mas nessa
estranha descida à rua, eu me sabia um artista realizando uma peça
improvisada de teatro político. De, com licença da palavra, poesia. Eu
era o tropicalista, aquele que está livre de amarras políticas
tradicionais e por isso pode reagir contra a opressão e a estreiteza com
gestos límpidos e criadores. Narciso? Eu me achava nesse momento
necessariamente acima de Chico Buarque ou Edu Lobo, de qualquer
um dos meus colegas tidos como grandes e profundos.” O
autoenaltecimento algo cômico desse nal, que combina aspirações à
genialidade com a vontade meio infantil de estar à frente de colegas
muito aplaudidos, dá o tom. É certo que o episódio preenche os
requisitos do vanguardismo, com os quais está em dia, mas isso não é
tudo, pois há também as suas dissonâncias internas, que o
caracterizam noutra linha. A ira santa ngida, o profeta que assusta os
assustados, em lugar de esclarecê-los e persuadi-los, a encenação de
um happening enquanto os companheiros de geração e resistentes à
ditadura apanham, a dúvida — alimentada ao longo do livro inteiro
— quanto ao que sejam e de que lado estão a opressão e a estreiteza, a
posição superior porém inde nida do tropicalista “livre de amarras
políticas tradicionais” (quais?), os dividendos puramente subjetivos da
operação vanguardista, despida do sentido transitivo ou explosivo que
lhe é próprio, nada disso en m é límpido, embora haja invenção.
Digamos que a verdade dessa página extraordinária, talvez a
culminação do livro, não está onde o seu autor supõe. A riqueza da
cena não decorre da integridade de seu gesto central — um ato de
poesia? —, mas da a nidade deste com a desagregação que se processa
à sua volta, representativa do momento, como num romance realista.
No começo do capítulo, Gilberto Gil experimenta um chá de auasca e
descobre que pode “amar, acima do temor e de suas convicções ou
inclinações políticas, o mundo em suas manifestações todas, inclusive
os militares opressores”.60 O caráter regressivo do amor aos homens
da ditadura dispensa comentários, e aliás não deixa de ser um
documento do que pode a droga segundo as circunstâncias. Logo em
seguida, con rmando o clima de instabilidade e conversões
vertiginosas, a narrativa retoma os dias anteriores ao golpe, quando
Caetano ainda era simpático à transformação social, ao método Paulo
Freire de alfabetização de adultos e ao cpc , que pouco depois iria
abominar a ponto de aplaudir o incêndio da une. Voltando en m ao
presente pós-golpe, tão exaltantes quanto a droga há as situações de
multidão nos concursos de auditório e nas manifestações de rua,
quando “Deus está solto”,61 com os correspondentes convites à ego
trip e ao messianismo, ao heroísmo e ao medo, que são outras tantas
viagens. “Nesse clima de ânimos exaltados e ruas con agradas é que a
auasca […] fez sua aparição.”62 No que se refere ao valor literário,
que é real, tudo está em perceber a totalidade turbulenta,
historicamente particular, composta destas referências tão diversas —
planos de conquista da primazia artística, ditadura militar, agitação e
militância revolucionária, indiferença dos passantes, clima psicodélico,
arte de vanguarda, pancadarias de rua e auditório, celebridade
midiática, medo, coordenadas da Guerra Fria etc. —, em que se
objetiva com força memorável, sem paralelo talvez na literatura
brasileira recente, o custo espiritual da instalação do novo regime.
De maneira metódica, o tropicalismo justapunha traços formais
ultramodernos, tomados à linha de frente da moda internacional, e
aspectos característicos do subdesenvolvimento do país. A natureza
desencontrada e humorística da combinação, com algo de realismo
mágico, salta aos olhos. No episódio da passeata, por exemplo, estão
reunidos o visual hippie e a exaltação religiosa do pregador popular, o
gurino do happening e o colar índio com seus grandes dentes de fera.
São elementos com data e proveniência heterogêneas, cujo
acoplamento compõe um disparate ostensivo, que reitera
descompassos da história real. A incongruência, no entanto — aí a
surpresa —, é um achado estético, e não uma de ciência da
composição. O contraste estridente entre as partes descombinadas
agride o bom gosto, mas ainda assim, ou por isso mesmo, o seu
absurdo se mostra funcional como representação da atualidade do
Brasil, de cujo desconjuntamento interno, ou modernização precária,
passa a ser uma alegoria das mais e cazes. Vinda do campo da arte de
consumo, a ambição do projeto, que visava alto, era surpreendente.
Em tese, a canção tropicalista programada por Caetano queria
conjugar superioridades com órbita diversa: a revolução do canto
trazida por João Gilberto, o nível literário dos melhores escritores
modernos da língua (João Cabral e Guimarães Rosa), a vasta
audiência dos sucessos comerciais, so sticados ou vulgares (Beatles,
Roberto Carlos e Chacrinha), a força de intervenção do pop star, cujas
posturas públicas podem fazer diferença (em especial num momento
de ditadura), atuando “sobre o signi cado das palavras” — tudo de
modo a in uenciar “imediatamente a arte e a vida diária dos
brasileiros”. Em suma, “nós outros tentávamos descobrir uma nova
instância para a poesia”.63 A intenção revolucionária desse programa,
que buscava aliar primazias que as especializações artísticas e as
realidades da ordem burguesa mantinham separadas, só não era
evidente porque o escândalo a encobria. Estão aí, convincentes ou
não, o descon namento da poesia, liberta dos “ritos tradicionais do
ofício” e interferindo na vida real; a entrada da canção comercial, até
então plebeia, para o clube da grande arte; a derrubada das divisórias
entre arte exigente e indústria cultural, experimentalismo e tradição
popular, que deixariam — mas será certo? — de se repelir; o trânsito
livre entre a excelência artística e a vida diária da nação, viabilizado
aqui pelos bons serviços do mercado, como se vivêssemos no melhor
dos mundos e os mecanismos alienadores do capital não existissem.
Por outro lado, tomando distância, notemos que o desejo de e cácia
transformadora e a desenvoltura diante das divisões correntes davam
prosseguimento, noutra chave, a tendências sociais e artísticas
anteriores a . Embora oculta, essa continuidade con gurava e
64

problematizava a passagem de um período ao outro, sendo um fator


de fundo da força romanesca que o livro tem. Também nos anos de
pré-revolução — basta lembrar o capítulo de Caetano sobre Salvador
— estiveram na ordem do dia a invenção de novas formas de
militância cultural, a exposição das formas artísticas a um debate
politizado, a rede nição subversiva das relações entre cultura exigente
e cultura popular, a incorporação do repertório erudito e
vanguardista, nacional e internacional, às condições peculiares da luta
social no país etc. Não obstante, a diferença entre os dois momentos
não podia ser maior. Sob o signo do ascenso popular, a convergência
entre inovação artística e dessegregação social antecipava, ilusória ou
não, alguma forma de superação socialista, que colocava a
experimentação estética no campo da busca de uma sociedade nova e
melhor. Já sob o signo contrário, da derrota do campo popular, os
mesmos impulsos adquiriam uma nítida nota escarninha, inclusive de
autoderrisão, aliás indispensável à verdade do novo quadro. Também
este é um resultado artístico forte, que dá gura crítica a um momento
da história contemporânea, a saber, o truncamento da revolução social
no Brasil. De maneira enviesada, a carnavalização tropicalista aludia à
autotransformação que o país cara devendo.
“A palavra-chave para se entender o tropicalismo é sincretismo”,
com as suas implicações antipuristas de heterogeneidade e mistura, ou
de integração de citária.64 Com efeito, a colagem de elementos que
não casam, dissonantes pelos respectivos contextos de origem, é o
traço formal distintivo da arte tropicalista, contrária em tudo ao
padrão da forma orgânica. A agressão às separações estabelecidas
tinha signi cado ambíguo, expressando tanto o anterior impulso
revolucionário quanto a vitória subsequente da comercialização,
também ela destradicionalizadora. O procedimento dava gura à
mixórdia dos novos tempos em que o país entrava, a que as formas
populares tradicionais, com seu universo convencional e circunscrito,
não tinham acesso. O passo à frente, em termos de modernização da
música popular, de aproximação dela ao vanguardismo estético, era
indubitável. As discrepâncias — ou montagens — ocorriam no interior
das canções, ou também entre as canções de um mesmo disco. Assim,
por exemplo, comentando os planos para um dos primeiros trabalhos
de Gal Costa, Caetano observa que se tratava de superar “tanto a
oposição mpb/ Jovem Guarda quanto aquela outra oposição, mais
profunda, que se dava entre bossa nova e samba tradicional, ou ainda
entre música so sticada moderna (fosse bossa nova, samba-jazz,
canção neorregional ou de protesto) e música comercial vulgar de
qualquer extração (“versões de tangos argentinos, boleros de
prostíbulos, sambas-canções sentimentais etc.”).65 Observe-se o
sentido inesperado que tem aqui a ideia de superação. Em todos os
casos, ela envolvia algum grau de afronta (“escândalos que eu próprio
queria desencadear”),66 pois mesclava gêneros ou rubricas rivais,
al netando as razões e os preconceitos envolvidos na sua diferença.
Em cada uma das oposições lembradas estavam em pauta, como é
fácil ver, hostilidades de linha política, ou também de classe ou
geração, as quais apimentavam as divergências artísticas. Ao agitar e
transformar em tema esse substrato de animosidades estético-sociais,
altamente representativas, o tropicalismo inovava e aprofundava o
debate. Estava em jogo também o rumo que as coisas iriam tomar: a
bossa nova colocava-se adiante do samba tradicional, a vulgaridade
comercial cava aquém da música so sticada, e a mpb , segundo o
ponto de vista, estava à frente ou atrás da Jovem Guarda do iê-iê-iê,
questão que por um momento pareceu ter implicações para o futuro
do país. Acentuando o paradoxo, digamos então que as oposições que
o tropicalismo projetava superar eram elas mesmas portadoras de
ambição superadora, e que nesse sentido era a própria superação que
estava sendo superada, ou, ainda, a própria noção de progresso que
estava sendo desativada por uma modalidade diferente de
modernização.
Assim, a superação tropicalista deixava e não deixava para trás as
oposições acima das quais queria planar. A distância tomada era
su ciente para permitir que os termos em con ito coexistissem e
colaborassem na mesma canção, no mesmo disco e sobretudo num
mesmo gosto, mas não tanta que se perdesse a chispa antagônica, sem
a qual iria embora o escândalo da mistura, que também era
indispensável e devia ser conservado. A seu modo, era uma distância
que, embora mudando a paisagem, deixava tudo como antes, com a
dinâmica superadora a menos. A mais, havia um ponto de vista
superiormente atualizado, acima do bem e do mal, um novo
sentimento do Brasil e do presente, que se recusava a tomar partido e
que encontrava no impasse o seu elemento vital, reconhecendo valor
tanto ao polo adiantado como ao retrógrado, inclusive o mais
inconsistente e kitsch. O que se instalava, a despeito do alarido
carnavalesco, era a estática, ou, noutras palavras, uma instância literal
de revolução conservadora. Veremos que esta não é a palavra nal
sobre o tropicalismo, ainda que contenha muitas de suas intenções
principais.
A guração do país através de seus contrastes estereotipados, em
estado de ready-made, torna-se uma fórmula sarcástica, de conotação
vanguardista. Aí estão o mato virgem e a capital hipermoderna, a
revolução social e o povo abestalhado, o iê-iê-iê dos roqueiros e a
família patriarcal rezando à mesa, o mais que ultrapassado Vicente
Celestino e o avançadíssimo João Gilberto, o mau gosto superlativo de
d. Iolanda, a mulher do general-ditador, quando comparada à
dignidade de Indira Gandhi, a grande dama terceiro-mundista que nos
visitava etc. etc., tudo realçado pelo envoltório pop de última moda.
Longe de ser um defeito, a facilidade da receita era uma força
produtiva ao alcance de muitos, que permitiu a uma geração falar de
maneira engenhosa e reveladora “da tragicomédia Brasil, da aventura
a um tempo frustra e reluzente de ser brasileiro”.67 Com alta dose de
ambivalência, a funcionalidade por assim dizer patriótica dessas
oposições estacionárias, que não tendiam à resolução, fazia que elas
trocassem de sinal. De descompassos e vexames, passavam a retrato
assumido e engraçado da nacionalidade, verdadeiros logotipos com
toque ufanista, em suma, à revelação festiva, ainda que embaraçosa,
do que “somos”.68 Uma ideologia carnavalesca da identidade nacional
harmonizava e caucionava os desencontros de nossa formação social,
desvestindo-os da negatividade que haviam tido no período anterior,
de luta contra o subdesenvolvimento. Os termos opostos agora
existiam alegremente lado a lado, igualmente simpáticos, sem
perspectiva de superação. Saltando a outro plano, distante mas
correlato, essa acomodação do presente a si mesmo, em todos os seus
níveis, sem exclusivas, era a imitação ou assimilação subjetiva — mais
satírica do que complacente? — do ponto de vista da programação
comercial da cultura. Também as estações de rádio ou de tv

trabalham com todas as faixas de interesse do público, do regressivo


ao avançado, desde que sejam rentáveis. O mundo cheio de diferenças
e sem antagonismos toma a feição de um grande mercado.
Para sugerir algo das diferentes possibilidades envolvidas numa
conjuntura como essa, vejam-se duas indicações curiosas sobre
“Alegria, alegria”, o primeiro grande êxito de Caetano. Conforme
aponta o autor, a canção retoma no título um refrão do Chacrinha e
inclui na letra uma formulação de J.-P. Sartre — “nada no bolso e nas
mãos” —, colocando juntos o animador clownesco de tv, autoritário
e comercial, ídolo das empregadas domésticas, e o lósofo da
liberdade, ídolo dos intelectuais.69 A piada passaria despercebida se
Caetano, interessado em exempli car o espírito misturador do
tropicalismo, não chamasse atenção para ela. A sua irreverência se
pode ler de muitas maneiras, o que só lhe aumenta o interesse. Por um
lado, o artista deixa claro que a imaginação tropicalista é libérrima e
se alimenta onde bem entende, sem respeito à hierarquia (elitista?
preconceituosa?) que coloca o grande escritor acima da popularidade
televisiva. Por outro, a inspiração igualitária não convence, pois na
associação de Chacrinha e Sartre há também a alegria debochada de
nivelar por baixo, sob o signo do poder emergente da indústria
cultural, que rebaixa tanto a gente pobre quanto a loso a,
substituindo por outra, não menos opressiva, a hierarquia da fase
anterior. Seria o abismo histórico entre cultura erudita e popular que
se estaria tornando coisa do passado? Seria a desquali cação do
pensamento crítico pelas novas formas de capitalismo que estaria em
andamento? Ou seria a força “saneadora” da “imunda” indústria do
entretenimento que se fazia sentir?70 O gosto duvidoso que a brin-
cadeira deixa na boca é um sabor do nosso tempo.
Dito isso, a visão 1997 que Caetano propõe do tropicalismo, como
um movimento mais positivo que negativo, antes a favor do que do
contra, não deixa de surpreender. A despeito do autor, não é isso o
que o livro mostra ao fazer a crônica de uma radicalização artística e
social vertiginosa, talvez mal calculada, com ponto de fuga na
provocação e na morte. Na última série de programas de tv que
antecedeu a prisão, que tinha como título Divino, maravilhoso, a
exacerbação já chegava ao limite: o palco estava atrás de grades, os
artistas cantavam em jaulas e assistiam ao enterro do movimento, ao
passo que Caetano apontava um revólver para a cabeça.71 A a nidade
sempre negada com a arte de protesto não podia ser maior. Assim,
uma apreciação equilibrada do conjunto deveria ressaltar linhas de
força contraditórias. A justaposição crua e estridente de elementos
disparatados, inspirada em certo sentimento do Brasil, dava espaço a
leituras divergentes. Colocados lado a lado, em estado de inocência
mas referidos à pátria, os termos da oposição podem signi car um
momento favorável, de descompartimentação nacional, de destemor
diante da diversidade extravagante e caótica do que somos, a qual por
m começaria a ser assumida num patamar superior de conciliação.
Difícil de compaginar com a ditadura, esse aspecto eufórico existia,
embora recoberto por uma ironia que hoje não se adivinha mais. A
frequente atitude de orientador cultural adotada por Caetano, voltada
para a regeneração da música popular brasileira, liga-se a essa
perspectiva. Se entretanto atentarmos para a dimensão temporal que
no m das contas organiza e anima as justaposições, em que o
ultranovo e o obsoleto compõem uma aberração constante e
inelutável, algo como um destino, o referente passa a ser outro,
historicamente mais especí co e francamente negativo. Em lugar do
Brasil-terra-de-contrastes, amável e pitoresco, entra o Brasil marcado
a ferro pela contrarrevolução, com sua combinação esdrúxula e
sistemática de modernização capitalista e reposição do atraso social —
a oposição atrás das demais oposições —, de que a fórmula
tropicalista é a notável transposição estrutural e crítica. Nesse sentido,
sem prejuízo das convicções políticas contrárias do autor, o absurdo
tropicalista formaliza e encapsula a experiência histórica da esquerda
derrotada em 1964 e sua verdade. Nem sempre as formas dizem o que
os artistas pensam.
O paralelo entre o tropicalismo e a poesia antropófaga de Oswald
de Andrade, quarenta anos mais velha, é evidente. Esta última
canibalizava soluções poéticas do vanguardismo europeu e as
combinava a realidades sociais da ex-colônia, cuja data e espírito eram
de ordem muito diversa. O resultado, incrivelmente original, era como
que uma piada euforizante, que deixava entrever uma saída utópica
para o nosso atraso meio delicioso, meio incurável. Nessa hipótese do
antropófago risonho, o Brasil saberia casar o seu fundo primitivo à
técnica moderna, de modo a saltar por cima do presente burguês,
queimando uma etapa triste da história da humanidade.
Analogamente, o tropicalismo conjugava as formas da moda pop
internacional a matérias características de nosso subdesenvolvimento,
mas agora com efeito contrário, em que predominava a nota grotesca.
Esta apontava para a eternização de nosso absurdo desconjuntamento
histórico, que acabava de ser recon rmado pela ditadura militar.
Digamos que em sua própria ideia a antropofagia e o tropicalismo
tinham como pressupostos o atraso nacional e o desejo de superá-lo,
ou seja, em termos de hoje, o quadro da modernização retardatária.
Num caso, plantado no início do ciclo, a perspectiva é cheia de
promessas (“A alegria é a prova dos nove”).72 No outro, suscitado
pela derrota do avanço popular, a tônica recaía na persistência ou na
renovação da malformação antiga, que portanto não estava em vias de
superação como se supunha. “Assim, digam o que disserem, nós, os
tropicalistas, éramos pessimistas, ou pelo menos namoramos o mais
sombrio pessimismo.”73 “[…] de fato, nunca canções disseram tão
mal do Brasil quanto as canções tropicalistas, nem antes nem
depois.”74 Com sentidos diferentes, sempre com força e inserção
histórica, digamos que tanto a antropofagia quanto o tropicalismo
foram programas estéticos do Terceiro Mundo.

Depois de capítulos sobre a prisão, a liberdade vigiada em Salvador e


dois anos e meio de exílio em Londres — um conjunto de punições
que não é pequeno —, há a volta ao Brasil. São páginas cheias de
interesse, cujo caráter deliberadamente apolítico, entretanto, chama a
atenção. A nal de contas, não se tratava aqui de um anônimo, mas de
uma gura saliente da oposição cultural à ditadura, “com poder sobre
a opinião pública” e, por que não dizer, com as responsabilidades
correspondentes.75 Em especial a parte sobre a cadeia desconcerta.
Muito literária, atravessada por exercícios proustianos, ela se
concentra nas perturbações do sono, da libido, dos humores e da
razão causadas pela perda da liberdade. A resposta ao castigo político
in igido pela ditadura vem na forma de um longo queixume analítico
sobre os sofrimentos da prisão — o que aliás não deixa de ser uma
denúncia em registro inesperado. Nenhuma vontade de resistência,
nenhuma ideia sobre a continuidade do movimento oposicionista de
que, mal ou bem, mesmo involuntariamente, o artista continuava a ser
parte. É claro que a preferência pelo ângulo intimista, às expensas da
dimensão coletiva da situação, pode ser um afã de originalidade do
escritor. Onde a tradição do gênero manda o prisioneiro político dar
um balanço dos acontecimentos passados e das perspectivas futuras, o
artista adota o papel anticonvencional de anti-herói e anota outras
coisas, não menos importantes, como a incapacidade de chorar ou de
se masturbar — lágrimas e sêmen são parentes — acarretada pelo
cárcere; ou a precedência invencível da superstição sobre o bom senso
quando se trata de especular sobre a eventual libertação. Em seu
momento, três décadas depois, a opção narrativa pela con ssão de
fraqueza, pela incapacidade de opor resistência, pode ser um heroísmo
ao contrário (uma superioridade sobre a estreiteza dos militantes?
uma rebeldia em segundo grau?), e penso que é assim que ela se
apresenta. Entretanto, é possível também que a longa descida aos
infernos não funcione só como depoimento, ou leal rememoração,
mas também como desconversa, dispensando o autor de reatar o o
com a posição avançada e guerreira em que se encontrava no
momento em que a direita política o atingiu. Comentando o acerto da
canção com que Gil se despedia do Brasil, depois da prisão e antes do
exílio, “sem sombra de rancor”, “amor e perdão impondo-se sobre a
mágoa”, Caetano louva a sua sabedoria: “‘Aquele abraço’ era, nesse
sentido, o oposto de meu estado de espírito, e eu entendia comovido,
do fundo do poço da depressão, que aquele era o único modo de
assumir um tom ‘bola para a frente’ sem forçar nenhuma barra”.76 A
lição aplicada pelos militares havia surtido efeito.
A recomposição se completa depois da volta ao país em 1972 —
auge da ditadura —, no primeiro carnaval passado na Bahia. Em
matéria de melodrama, coincidências mágicas e apoteose, o episódio
chega ao grandioso. “Chuva, suor e cerveja”, um frevo composto por
Caetano ainda no exílio, estava tendo grande aceitação popular,
deixando o artista entre o riso e as lágrimas. A atmosfera de
pansexualismo nas ruas, onde se confundiam os foliões fantasiados e
os hippies autênticos, os travestis carnavalescos e os gays da revolução
sexual em curso, era como que a realização popular do programa
tropicalista, que também ele tornava uidas as fronteiras entre
tradicional e moderno, local e cosmopolita, masculino e feminino.
Respirava-se “uma sensação de liberdade muito grande”.77 Por
coincidência com o título do frevo, a chuva começa a cair assim que o
trio elétrico o começa a tocar, enquanto a multidão continua cantando
e dançando. “[…] tudo compunha uma festa completa de recepção
para mim por parte do Brasil que me falava direto ao fundo do
imaginário.”78 Sobre o caminhão do trio elétrico vinha montado um
foguete espacial que trazia a inscrição “Caetanave”. O músico sobe
para agradecer a homenagem. “Senti alguma coisa bater em meu rosto
que não era uma gota de chuva. Aproximei a mão para descobrir o
que era. A coisa voou para o meu peito e só aí é que Roberto [um
amigo] e eu percebemos que se tratava de uma esperança. Apesar da
chuva grossa, essa esperança verde voou na direção das luzes do
caminhão e veio pousar em mim. Eu então disse para Roberto: ‘Quer
dizer que há esperança?’. Ele respondeu com a alegria tranquila de
quem não esperaria por nada menos: ‘Claro!’.” A Caetanave segue em
direção da casa em que Gil estava dormindo. Este, que acreditava em
disco voador, leva um momento para se recompor e perceber o que se
passava. “Quando me viu descer do objeto estranho do qual o som
trepidante provinha, entendeu antes de tudo que a magia e o ordinário
se rea rmavam mutuamente, que o simbólico e o empírico não
precisavam ser distinguidos um do outro — que, naquele momento
forte, o mito vinha fecundar a realidade. A rejeição que o exílio
signi cara não apenas se dissipava: dava lugar a uma carinhosa
compensação.”79
Como num conto de fadas ou numa alegoria carnavalesca, a chuva,
os bichinhos alados e o povo da Bahia se unem para dar boas-vindas,
em nome do Brasil, ao artista que fora rejeitado e agora voltava. O
apelo ao maravilhoso é compreensível como expressão de desejo,
embora kitsch. Como explicação do curso das coisas, é regressivo,
uma verdadeira abdicação. A personi cação mítica do país, que
acolhe e repara depois de haver mandado embora, toma o lugar da
discriminação sóbria dos fatos, com evidente prejuízo intelectual.
Apagam-se por exemplo a fragilidade e o medo do perseguido
político, as consultas a itas do exilado, que gostaria de voltar mas não
de ser preso, os cálculos sórdidos da ditadura, necessitada de alguma
legitimidade cultural, en m, um mundo de negociações inglórias mas
reais, que compunha os bastidores de congraçamentos dessa ordem.
Sobretudo desaparece o jogo dos con itos e das alianças de classe que
subjazem à invenção estética e à consagração artística, sem o qual a
beleza não se compreende socialmente. Como Caetano é mestre na
percepção e análise dessas relações, ca mais decepcionante a sua
conversão ao mito. Dito isso, o livro seria menos representativo se
faltassem esses parágrafos.
Muito estranhas e cheias de ntas, as primeiras páginas de Verdade
tropical se comprazem num show de inteligência propositalmente
barata, que procura desnortear o leitor esclarecido. Aliás, o uso do
mal-estar como um recurso literário problematizador é uma
originalidade do livro. Ao tomar posições que não cabem no consenso
civilizado (que manda, por exemplo, não aplaudir o incêndio da casa
do adversário, não fazer pouco da capacidade política dos
trabalhadores, não apresentar-se a si mesmo como personagem de um
mito), Caetano faz da relação de leitura um campo de provocações,
con ituoso e inseguro, um cabo de guerra característico do vale-tudo
dos novos tempos, em que não há por que dar crédito aos autores,
mesmo quando são interessantes. A incerteza prende e incomoda, em
especial porque não se trata de cção, mas de um depoimento.
Interessante ela própria, essa relação para-artística talvez seja mais
verdadeira ou contemporânea que as certezas cediças que asseguram o
acordo literário entre os bem-pensantes. Assim, o livro começa
tecendo considerações duvidosas sobre a nossa singularidade nacional.
“No ano 2000 o Brasil comemora, além da passagem do século e do
milênio, quinhentos anos do seu descobrimento. […] É um acúmulo
de signi cados para a data não compartilhado com nenhum outro país
do mundo.” Que pensar dessa nossa exclusividade cheia de
promessas? A banalidade meio o cialista da observação, à beira do
risível, deixa perplexo o leitor que não tenha a superstição dos
números redondos. É claro que já na frase seguinte Caetano vai tomar
distância de sua pérola — mas não inteiramente —, atribuindo a
superstição aos compatriotas. “A sobrecarga de presságios
desencadeada por uma tal conjunção combina bem com a psicologia
de uma nação falhada que encontra razões para envergonhar-se de um
dia ter sido chamada de ‘país do futuro’.” Ainda aqui, entretanto, se
prestarmos atenção, o movimento é dúbio. Presságios combinam bem
com a psicologia de nações falhadas, mas não, como seria de esperar,
porque estas faltassem com o realismo, mas porque não tiveram a
força de acreditar noutros presságios mais favoráveis. “[M]as a
magnitude dessas decepções antevividas revela que — feliz e
infelizmente — estamos muito longe de um realismo sensato.”80 Em
suma, a credulidade do narrador não é dele, mas do país, embora seja
dele também, com muita honra.
As idas e vindas são conduzidas com malabarismo e, se não chegam
a exaltar a superstição da nacionalidade, simpatizam com ela e
rebaixam um pouco o bom senso na matéria. A relativização das
vantagens e desvantagens respectivas vai se repetindo a propósito de
outras polaridades análogas, num procedimento bem dominado, que
diz respeito a alternativas abstratas entre imaginação (ou mito, ou
sonho, ou superstição) e realismo, Brasil e Estados Unidos, o nome e a
coisa, todas mais ou menos paralelas. Dependendo do ponto de vista,
são a- us bem achados e sugestivos, ou questões passavelmente ocas.
“Os Estados Unidos são um país sem nome […], o Brasil é um nome
sem país.” O Brasil é o “Outro” dos Estados Unidos: “O duplo, a
sombra, o negativo da grande aventura do Novo Mundo”, “[…] esse
enorme lugar-nenhum cujo nome arde”. 81 Seja como for, são
colocações de um patriotismo fantasioso, meio poético e meio mítico,
que convida a assumir as nossas debilidades como uma riqueza
própria. Em seguida, contudo, o leitor notará que o elogio da
insensatez e a licença de ser inconsequente têm função retórica,
estabelecendo a ambiência intelectual complacente e furta-cor de que
Caetano precisa para falar do golpe de 64, o nervo sensível do
capítulo. Depois de dizer que na adolescência a sua geração sonhara
reverter o “legado brutal” das desigualdades brasileiras, vem uma das
frases características do livro: “Em , executando um gesto exigido
64

pela necessidade de perpetuar essas desigualdades que têm se


mostrado o único modo de a economia brasileira funcionar (mal,
naturalmente) — e, no plano internacional, pela defesa da liberdade
de mercado contra a ameaça do bloco comunista (guerra fria) —, os
militares tomaram o poder”.82 É preciso ler devagar, para assimilar os
solavancos ideológicos dessa passagem que procura captar — com
distanciamento? com sarcasmo? com ânimo justi catório? — o ângulo
da direita vencedora. A sucessão de imperativos contraditórios, alguns
claramente injusti cados, carrega de tensão social a escrita, além de
acender a controvérsia. A tarefa histórica gloriosa de transformar um
país deformado pela desigualdade cede o passo à necessidade de…
perpetuar a desigualdade. Necessidade por quê? de quem? O uso
indevido da palavra, propriamente ideológico, fala por si. O que
aconteceu entre o desejo de superar o “legado brutal” e a decisão
contrária de rea rmá-lo? Qual foi o ensinamento assimilado? Acresce
que executar “um gesto exigido pela necessidade” parece apontar para
alguma grandeza trágica, logo desmentida pela baixeza do objetivo. A
razão última, também ela um so sma, embora com tintura
materialista, diz que foi tudo por amor da pátria, que sem a
desigualdade não funcionaria. Como saber, se o Brasil menos desigual
nunca foi experimentado? Seja como for, a pátria aqui é a pátria dos
bene ciários da desigualdade. Completando o movimento, a ditadura
é necessária, no plano internacional da Guerra Fria, para defender a
liberdade do mercado contra a ameaça do bloco comunista. Com algo
de verdade, que não deixa de ser uma incriminação da liberdade de
mercado, as frases dão forma literária — aí o seu mérito — ao
horizonte rebaixado e “mau” da contrarrevolução. A hesitação inicial
e algo frívola entre mito e realidade — qual seria melhor? —
prolonga-se no vaivém quanto às razões da esquerda e da ditadura. As
escaramuças prosseguem nos parágrafos seguintes, os quais sugerem
que a esquerda, ao contrário do que pensava, não tinha o monopólio
dos bons sentimentos, ao passo que a direita era menos má do que se
dizia. São reti cações morais discutíveis, de uma equidistância
obviamente enviesada, que em todo caso passavam longe das
realidades brutas da ditadura, ou, no momento anterior, das questões
que dividiam o país e diziam respeito à reforma agrária, à
reivindicação popular, à incorporação sociopolítica da população
rural, ao desenvolvimentismo, à política externa independente, ao
combate à pobreza, em suma, ao aprofundamento da democracia.
Escrito com distância de três décadas, em plena normalização
capitalista do mundo nos anos 1990 , Verdade tropical recapitula a
memorável efervescência dos anos 1960 , em que o tropicalismo
gurava com destaque. Bem vistas as coisas, a guerra de atrito com a
esquerda não impediu que o movimento zesse parte do vagalhão
estudantil, anticapitalista e internacional que culminou em . Leal
1968

ao valor estético de sua rebeldia naquele período, Caetano o valoriza


ao máximo. Por outro lado, comprometido também com a vitória da
nova situação, para a qual o capitalismo é inquestionável, o
memorialista compartilha os pontos de vista e o discurso dos
vencedores da Guerra Fria. Constrangedora, a renúncia à negatividade
tem ela mesma valor de documento de época. Assim, a melhor
maneira de aproveitar esse livro incomum talvez inclua uma boa dose
de leitura a contrapelo, de modo a fazer dele uma dramatização
histórica: de um lado o interesse e a verdade, as promessas e as
de ciências do impulso derrotado; do outro, o horizonte rebaixado e
inglório do capital vitorioso.
Acumulação literária e nação periférica

[…] o aparecimento do Brás Cubas modi cou a ordem estabelecida: as posições de José de
Alencar, de Manuel Antônio de Almeida, de Taunay, de Macedo — até então os grandes
nomes da nossa cção — tiveram que ser sensivelmente alteradas.
Lúcia Miguel Pereira, Prosa de cção

Se voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mestre admirável se
embebeu meticulosamente da obra dos predecessores. A sua linha evolutiva mostra o
escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo, de de nitivo, na
orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio e colorido de
Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a existência dos
predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza: numa literatura em que, a cada
geração, os melhores recomeçam da capo e só os medíocres continuam o passado, ele
aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências
anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos
europeus, do seu alheamento às modas literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não
terem muitos críticos sabido onde classi cá-lo.
Antonio Candido, Formação da literatura brasileira

A descontinuidade entre as Memórias póstumas e a literatura apagada


da primeira fase machadiana é irrecusável, sob pena de
desconhecermos o fato qualitativo, a nal de contas a razão de ser da
crítica. Mas há também a continuidade rigorosa, aliás mais difícil de
estabelecer. Os dois aspectos foram assinalados ainda em vida do
autor, e desde então se costumam comentar, cada qual por seu lado,
no âmbito ilusório da biogra a: a crise dos quarenta anos, a doença
da vista, o encontro com a morte ou o estalo do gênio explicam a
ruptura; ao passo que o amadurecimento pessoal e o esforço constante
dão conta do progresso ininterrupto. Levada ao terreno objetivo, da
comparação dos romances, a questão muda de gura e os dois pontos
de vista deixam de se excluir. Em lugar do percurso de um indivíduo,
em particular a sua evolução psicológica e doutrinária, observamos as
alterações mediante as quais uma obra de primeira linha surgiu de um
conjunto de narrativas médias e provincianas. Em que termos
conceber a diferença? Para situar o interesse da pergunta, digamos que
ela manda re etir sobre os aprofundamentos de forma, conteúdo e
perspectiva que se mostraram capazes de corrigir a irrelevância de
uma parte de nossa cultura, ou de lhe vencer o acanhamento histórico.
Tudo estará em especi car o que muda e o que ca, sempre em função
de um impasse literário anteriormente constituído e a superar, o qual
subjaz à transformação e lhe empresta pertinência e verdade.
A novidade dos romances da segunda fase está no seu narrador. A
vários críticos o humor inglês e a inspiração literária sem fronteiras
pareceram sugerir, para mal ou para bem, um espaço alheio a balizas
nacionais. Nos capítulos anteriores* argumentamos em sentido
contrário, tratando de salientar o funcionamento realista do
universalismo, impregnado de particularidade e atualidade pela
refração na estrutura de classes própria ao país. Analogamente, o
parentesco entre o autor tão metafísico das Memórias e o mundo
estreito e edi cante dos romances iniciais não salta à vista, mas se
pode demonstrar.
Vimos que o procedimento literário de Brás Cubas — a sua
volubilidade — consiste em desdizer e descumprir a todo instante as
regras que ele próprio acaba de estipular. Ora, com a velocidade a
menos, a mesma conduta já gurava nos romances do primeiro
período, sob forma de assunto. De Ressurreição (1872) a Iaiá Garcia
(1878), as narrativas têm como objeto o estrago causado pela vontade
imprevisível e caprichosa de um proprietário. A partir de A mão e a
luva (1874), a travação de classe do tema vem à frente e o passa a
determinar. A questão está encarada do ângulo da moça de muitos
méritos, mas pobre e dependente, a quem as decisões arbitrárias de
um lho-família ou de uma viúva rica, aparentemente liberais,
reservam seja humilhações e desgraças, seja o possível prêmio de uma
cooptação. Os aspectos morais esmiuçados pela análise são sobretudo
dois, rigorosamente complementares, um em cada polo da relação: a)
visto o desequilíbrio de meios entre o proprietário e os seus
protegidos, qual a margem de manobra dos segundos, caso não
aceitem cometer indignidades ou ser destratados, mas queiram, ainda
assim, ter acesso aos bens da vida contemporânea? e b) como não será
ignóbil a nossa gente de bem, além de louca, se a promiscuidade entre
desejo escuso e autoridade social, impeditiva para qualquer espécie de
objetividade, decorre estruturalmente da falta de direito dos demais?
A perspectiva dos romances é civilizatória, pois cuida de tornar estas
relações menos bárbaras para os dependentes e menos estéreis para os
abastados, isto mediante a compreensão esclarecida do interesse dos
dois campos, ambos desorientados pelos efeitos da arbitrariedade, o
verdadeiro ponto a corrigir.1
No conjunto, os romances da primeira fase exploram os dilemas do
homem livre e pobre numa sociedade escravista, onde os bens têm
forma mercantil, os senhores aspiram à civilização contemporânea, a
ideologia é romântico-liberal, mas o mercado de trabalho não passa
ainda de uma hipótese no horizonte. Se não há como escapar às
relações de dependência e favor, ainda conhecendo o seu anacronismo
histórico, existiria algum modo de lhes evitar o efeito humilhante e
destrutivo? Conduzidos pela autocrítica muito consequente, os
progressos de um livro a outro são notáveis. O período culmina em
Iaiá Garcia. Aqui o sistema do liberal-clientelismo está exposto com
amplitude, expresso na sua terminologia própria, sustentado por uma
galeria de personagens pertinentes e diferenciadas, organizado pelos
con itos práticos e morais que lhe são especí cos, e ajudado, en m,
por uma dramaturgia inventada sob medida. O ajustamento à
peculiaridade nacional resulta de um vasto trabalho de absorção da
empiria, e, não menos importante, do deslocamento e cancelamento
dos esquemas românticos, folhetinescos ou liberais, percebidos como
ilusão. Nesta altura, a quantidade das observações sociais e
psicológicas, das re exões críticas e das soluções formais encontradas
já representa uma acumulação realista muito respeitável —
neutralizada, apesar de tudo, pelo enquadramento conformista.
Na sua versão mais complexa, carregada de ressonância moral,
ideológica e estética, o impasse xado em Iaiá Garcia se prende à
exigência de dignidade dos dependentes. Estes já não querem dever
favores a ninguém, pois “a sua taça de gratidão estava cheia”.2 Nem
por isso deixam de prestar e receber obséquios, uma vez que o seu
espaço social não lhes faculta outro modo de sobreviver. Contudo,
desincumbem-se de sua parte a frio, sem envolvimento pessoal,
buscando inibir o jogo de simpatia e reciprocidade, e também de
endividamento, inseparável da prática do favor. Esta atitude
cerceadora de si e dos outros não se deve tomar apenas como
psicologia, pois representa o resultado de uma experiência de classe,
uma espécie de heroísmo na renúncia, re etido e peculiar, adequado à
circunstância histórica. A frieza paradoxalmente responde à hipótese
mais favorável ao dependente, aquela em que, embora desamparado
de qualquer direito, ele seria tratado como igual — porque a parte
mais afortunada quis assim. Condicionada por um inaceitável
ingrediente de capricho, esta hipótese feliz constituiria o obséquio
maior de todos, e por isso mesmo a maior indecência e humilhação. A
sujeição da dignidade, dos valores românticos e liberais à desfaçatez
de um proprietário é o pesadelo característico a que a reserva dos
pobres deveria pôr um paradeiro, mesmo ao preço de car tudo como
está.
A prosa que não verbaliza com liberdade o con ito exposto na
intriga constitui a principal limitação artística de Iaiá Garcia. A
de ciência não decorre de falta de recursos, mas da restrição
ideológica imposta pelo propósito de civilizar sem faltar ao respeito.
Por outro lado, a restrição tem fundamento prático na posição dos
inferiores, que não dispõem da independência necessária à crítica, o
que empresta uma nota situada e realista ao convencionalismo dos
termos. Ainda assim, a injustiça das relações como que pressiona o
padrão comportado da escrita, cuja insu ciência é objetiva e faz
desejar um narrador menos coibido em face dos proprietários. Tanto
mais que o romance termina com a heroína procurando no trabalho
assalariado o remédio para a “vida de dependência e servilidade”3 a
que o paternalismo obriga o pobre. Estava alcançada a posição a
partir da qual o desplante tranquilo dos abastados se podia encarar
sem subserviência, xado em seu arcaísmo e no vínculo inconfessável
com a escravidão. Assim, o último romance da primeira fase trazia
inscrito em negativo um outro livro — o seguinte? —, onde a
superação da dependência pessoal pelo trabalho livre, um avanço
histórico, permitiria expor sem rebuços o caráter inaceitável e
destrutivo das relações de dominação próprias ao período anterior.
Sabemos contudo que Machado não escreveu tal obra e que o
caminho do país tampouco seria este.
Passados os anos, é notório que o m do cativeiro não transformou
escravos e dependentes em cidadãos, e que a tônica do processo, pelo
contrário, esteve na articulação de modos precários de assalariamento
com as antigas relações de propriedade e mando, que entravam para a
nova era sem grandes abalos. Nalguma altura anterior às Memórias e
posterior a Iaiá, faltando um decênio para a Abolição, o romancista se
terá compenetrado deste movimento decepcionante e capital. O
arranjo civilizado das relações entre proprietários e pobres, que
estivera no foco do trabalho literário da primeira fase, cava adiado
sine die. De agora em diante Machado insistiria nas virtualidades
retrógradas da modernização como sendo o traço dominante e
grotesco do progresso na sua con guração brasileira. Voltando a Iaiá
Garcia, o esquema europeu embutido na sua intriga, ligado à
dinâmica moralizadora do trabalho livre, estava fora de combate.
Se estivermos certos, este quadro permite apreciar a genialidade da
viravolta operada nas Memórias. Já não se trata de buscar um freio —
irreal — à irresponsabilidade dos ricos, mas de salientá-la, de
emprestar latitude total a seu movimento, incontrastado e nem por
isso aceitável. O tipo social do proprietário, antes tratado como
assunto entre outros e como origem de ultrajes variados, passava
agora à posição ( dedigna?) de narrador. Ou, por outra, as condutas
reprováveis (mas não reprovadas) do primeiro reapareciam
transformadas em procedimento narrativo, onde o vaivém entre
arbítrio e discurso esclarecido, causa do mal-estar moral e prático dos
pobres, se encontrava universalizado, afetando a totalidade da matéria
romanesca. Ajustando melhor o foco, digamos que a volubilidade
narrativa confere a generalidade da forma e o primeiro plano absoluto
ao passo propriamente intolerável dos relacionamentos de favor,
aquele em que segundo a conveniência ou veneta do instante a gente
de bem se pauta ou não pela norma civilizada, decidindo “entre duas
xícaras de chá”4 sobre a sorte de um dependente. Sai de cena o
narrador constrangido dos primeiros romances, cujo decoro obedecia
às precauções da posição subalterna, e entra a desenvoltura
característica da segunda fase, a “forma livre de um Sterne ou de um
Xavier de Maistre”,5 cujo ingrediente de contravenção sistemática
reproduz um dado estrutural da situação de nossa elite. No caso há
vínculo evidente, embora complicado, entre as questões de forma
literária e classe social: o ponto de vista troca de lugar, deixa a posição
de baixo e respeitosa pela de cima e senhorial, mas para instruir o
processo contra esta última. Noutros termos, Machado se apropriava
da gura do adversário de classe para deixá-lo mal, documentando
com exemplos na primeira pessoa do singular as mais graves
acusações que os dependentes lhe pudessem fazer, seja do ângulo
tradicional da obrigação paternalista, seja do ângulo moderno da
norma burguesa. Depois do proprietário visto da perspectiva
ressabiada do dependente, temos o dependente visto da perspectiva
escarninha do proprietário, que se dá em espetáculo.6 Em âmbito
biográ co, talvez se pudesse imaginar que Machado havia completado
a sua ascensão social, mas não alimentava ilusões a respeito, nem
esquecia os vexames da situação anterior. Esta reorganização do
universo literário é profunda e carregada de consequências, das quais
veremos algumas.
A volubilidade narrativa torna rotineira a ambiguidade ideológico-
moral dos proprietários, diferentemente dos romances iniciais, onde
esta tivera estatuto de momento excepcional e revelação, com lugar
crucial na progressão dramática. A reversibilidade metódica entre as
posturas normativa e transgressiva agora veio a ser a ambiência geral
da vida. Ficam inviabilizados os desdobramentos contraditórios
longos, dotados de travejamento ideológico e crise objetiva, próprios
ao Realismo europeu, substituídos por um movimento global sui
generis, com fundamento histórico não menor: em lugar da dialética,
o desgaste das vontades. A normalização literária de um dado
estrutural da sociedade brasileira não signi cava entretanto
justi cação. Pelo contrário, o caráter insustentável da volubilidade
ressalta a todo instante, ao passo que nos romances anteriores, por
prudência, ele não fora frisado. Estes últimos queriam remediá-lo,
enquanto nas Memórias, onde não há saída à vista, o objetivo é
enxergá-lo na sua extensão e na envergadura dos danos causados.
Em que consiste a reserva autoimposta do narrador dos romances
iniciais? No que toca à relação entre proprietários e dependentes, o
comedimento está em não glosar com verve os prolongamentos mais
perversos da dominação pessoal direta; e no que toca ao signi cado
contemporâneo daquela relação, em não expor a gente de bem ao
critério burguês que a condenaria. Contudo, ao esquivar o ponto de
vista moderno em deferência aos abastados, cuja dignidade, muito
sublinhada, parece independer dos abusos que praticam, Machado
plantava o seu romance em terreno apologético e provinciano:
construía um espaço à parte, a salvo do julgamento da atualidade, este
último como que localmente desativado. Ora, o narrador volúvel põe
m à segregação protetora. Ao faltar com estardalhaço às regras de
equidade e razão, ele as reconhece e torna efetivas, patenteando em
toda linha, enquanto dado presente, a discrepância entre as nossas
formas sociais e o padrão da civilização burguesa.
Do mesmo modo, os romances da primeira fase têm pouco espaço
para as manifestações mais espetaculares da nova era, tais como a
política parlamentar, o cultivo da ciência, a empresa capitalista, a
loso a da evolução, o progresso material. A quase ausência não
decorre de desinteresse, mas da evidência do caráter precário destas
atividades no país, difíceis de conciliar sem ridículo com as formas de
dominação vigentes. Por outro lado, não podiam também faltar
completamente, uma vez que eram indispensáveis à verossimilhança
oitocentista e à presunção civilizada da gente na. Com o tino realista
necessário à idealização, Machado tratava o interesse pelas
matemáticas, pelos versos, pela construção de pontes, pela pesquisa
histórica ou pela Câmara de Deputados como simples complementos
da elegância senhorial. A posição secundária dos índices de
modernidade permitia passar por alto o aspecto atrasado de nossos
adiantados, embora ao preço de certa nota de irrelevância e falta de
atualidade gerais, que matam estes romances no conjunto. A partir
das Memórias, entretanto, quando a dignidade dos senhores vem à
berlinda e deixa de ser tabu, haverá inversão de sinais e também de
proporções. Conforme tivemos ocasião de ver, as novidades da
civilização burguesa agora ocupam a cena. Aí estão em primeiro plano
loso as recentes, teorias cientí cas, invenções farmacêuticas, projetos
de colonização e vias férreas, bem como o liberalismo, o parlamento,
a imprensa política etc., ainda que sempre des gurados pela
subordinação a uma certa desfaçatez de classe, a qual é a verdade
crítica da dignidade proprietária pretendida nos romances do primeiro
período. A desprovincianização literária ocorre em grande escala, seja
degradando a gura das relações sociais locais, confrontadas ou
expostas à norma e ao progresso da civilização burguesa, nunca sem
vexame, seja desmoralizando a reputação incondicional destes
mesmos progressos e normas, levados, no contexto, a desempenhar
papéis deslocados e contrários ao seu conceito.
As liberdades narrativas peculiares à segunda fase começam sob o
signo de Sterne, conforme a conhecida indicação de Machado.
Observe-se contudo que na ocasião a prosa borboleteante era velha
conhecida não só do romancista, como de muitos outros literatos
brasileiros, que a praticavam nos folhetins semanais da imprensa,
imitando modelos franceses.7 A miscelânea de crônica parlamentar,
resenha de espetáculos, notícia de livros, coluna mundana e anedotas
variadas, com intuito de recreio, compunha um gênero bem
estabelecido — e de estatuto “pouco sério”. Devido talvez a esta
conotação duvidosa, várias de suas propriedades formais acabaram
entrando para a feição do novo período machadiano, por razões que
veremos.
A notação política, por exemplo, solicitava o registro conciso das
posições, mais apimentado quando estas se mostram absurdas,
risíveis, deletérias etc. Por sua vez, a disparidade tão moderna dos
problemas surgidos no âmbito do parlamento, paralela à indiferença
recíproca e à incongruência de matérias procedentes do mundo
inteiro, acomodadas ao acaso numa página de jornal, ou no espaço de
uma crônica, incitava ao ponto de vista de Sirius. A disposição
sumária sobre os diferentes assuntos, o grande número deles, a
passagem inevitavelmente arbitrária de um a outro, introduziam o
elemento de bazar e capricho. Expressivo da situação aleatória e
spleenética do indivíduo contemporâneo, este mesmo capricho se
prestava à poetização, e também ao papel de chamariz, atendendo à
necessidade comercial de prender o leitor. Com efeito, na ambiência
imaginária originada pela imprensa e intensi cada no folhetim, o
público era induzido a se comportar como consumidor na escala do
planeta. E o folhetinista, explorando como atrativos a variedade, a
novidade, a vivacidade, o preço, o exclusivismo etc., transpunha para
a técnica da prosa os mandamentos práticos da mercadoria.
A lista de traços comuns à crônica hebdomadária e às Memórias
póstumas pode ser encompridada à vontade. Com funções diversas, o
amálgama de atualismo e futilidade está presente nos dois casos.
Entretanto, se desde a juventude Machado dominava esta técnica, à
qual se prende, como vimos, a superioridade da “segunda maneira”,
por que só agora ele a trazia para a esfera do romance? A questão é
interessante, pois leva a especi car de maneira imprevista os passos de
um indiscutível progresso literário. Nos anos 1870 , quando escrevia
os seus quatro romances fracos, quase privados de atmosfera
contemporânea, Machado já era forte nas piruetas petulantes e
cosmopolitas do folhetim semanal. O que faltava, para completar a
con guração artística da maturidade, não era, portanto, o
procedimento narrativo. A viravolta pendente, que permitiria
incorporar à elaboração romanesca uma técnica disponível e comum a
muitos, era de ordem ideológica. De modo genérico, pode-se imaginar
que a literatura de jornal, frívola e algo cínica, parecesse incompatível
com ambições artísticas sérias. Mais decisivamente, aqueles defeitos
representavam o oposto da delidade e retidão que seria preciso quase
exigir dos proprietários, como única segurança para o desamparo dos
dependentes. Assim, a saída história buscada nos romances da
primeira fase supunha lealdades morais e compromisso com a
promoção social dos pobres, sobretudo os mais dotados, lealdade e
compromisso que deveriam primar sem mistura sobre a de nição
burguesa do interesse, à qual no entanto os proprietários não podiam
também deixar de estar submetidos. Quando percebe o infundado
daquela expectativa, Machado se capacita da pertinência literária das
modalidades de rebaixamento a que o folhetim emprestava o brilho, e
as transforma em ambiente espiritual. Os novos tipos de consumo e
propriedade, em face dos quais o dependente pobre, pela força das
coisas, se encontra desvalido, saem da sombra e passam a dar a nota.
Sob o patrocínio prestigioso de Sterne, e também das condutas
antissociais cultivadas e estetizadas na prosa de folhetim, a
volubilidade narrativa irmana e faz alternarem os arrancos da
impunidade patriarcal e o pouco se me dá do proprietário moderno, o
arbítrio da velha oligarquia escravista e a irresponsabilidade da nova
forma de riqueza. Reencenava e apontava à execração dos bons
entendedores a ambiguidade característica da classe dominante
brasileira.8 Assim, o princípio formal desenvolvido nas Memórias
soluciona e ergue a novo patamar os impasses apurados no romance
machadiano da primeira fase. A dialética de conteúdo, experiência
social e forma é rigorosa, com ganho verdadeiramente imenso em
qualidade artística, justeza histórica, profundidade e amplitude de
visão. Para apreciar o alcance deste processo, cujas faces crítica e
cumulativa dependem uma da outra, convém tomar distância.
Do ponto de vista da evolução literária local, a estreiteza dos
romances do primeiro período não constituiu apenas um defeito,
como as nossas observações poderiam fazer crer. Noutra parte
mostramos que estas obras respondiam com discernimento a certa
falha do realismo praticado por Alencar, à qual escapavam, ainda que
ao preço de engendrar de ciências de outra ordem, talvez menos
simpáticas. Com efeito, estudando Senhora pudemos constatar um
verdadeiro sistema de desajustes ideológicos e estéticos. Se não
erramos, este decorre da adoção acrítica de uma fórmula da cção
realista europeia, ligada à concepção romântica e liberal do indivíduo,
pouco própria, por isto, para re etir a lógica das relações
paternalistas. A conjunção inocente de matéria local e forma europeia
nova atendia ao desejo de atualidade dos leitores mais informados,
mas desconhecia a química própria a esta mistura. Em consequência,
as notações sociais, ou seja, a sociedade efetivamente observada,
pouco interagem com a linha mestra da intriga, permanecendo
estranhas uma à outra, o que não as impede, no plano geral da
composição, de se desacreditarem reciprocamente. Resulta um
universo literário fraturado, onde as reivindicações românticas — a
mola da fábula — têm sempre algo de afetação risível, postiça e
importada.9 Assim, quando o primeiro Machado recuava do terreno
dito contemporâneo e praticamente excluía de seus romances o
discurso das liberdades individuais e do direito à autorrealização,
discurso novo e crítico, ele estava fugindo à posição falseada em que
se encontravam a ideologia liberal e as ostentações de progresso nas
condições brasileiras. Uma vez rmado, este mesmo discernimento lhe
permitirá, a partir das Memórias, reintroduzir em massa as presunções
de modernidade, só que agora explicitamente marcadas de diminuição
e deslocamento, como convinha à circunstância, solucionando o
problema artístico armado na cção urbana de Alencar e evitado, ao
preço do con namento à esfera da dominação intrafamiliar, em seus
próprios trabalhos da primeira fase.
Por sua vez, sem prejuízo da ingenuidade, o realismo alencarino dos
“per s de mulher” se pode ver como resposta re etida a romances
anteriores de Joaquim Manuel de Macedo, em relação aos quais
progredia. Como termo de comparação, sirva de exemplo o capítulo
iv de O moço loiro (1845), onde duas formosas sinhazinhas estão
postadas à janela de uma chácara, contemplando a lua e o mar.
Dissertam sobre os horrores da situação de herdeira: como poderiam
crer nas declarações de amor dos pretendentes, se inevitavelmente
essas serão devidas ao dinheiro dos pais e a outros pensamentos ainda
mais cínicos? O autor de A Moreninha xara a ressonância poética,
maior do que parece, da conjunção de ambiente patriarcal, paisagem
uminense e chavões ultrarromânticos, bem aproveitada pelo seu
sucessor. A graça da cena está na arti cialidade das ideias, gritante
ainda em se tratando de mocinhas com “o dobro da instrução que
soem ter nossas patrícias”.10 A função dos discursos desiludidos das
meninas não é crítica, mas lisonjeira, ou, por outra, não é desenvolver
as grandes linhas da situação em que se encaixam, mas lhe atestar o
vínculo com a civilização contemporânea. Com menos complacência,
ou complacência de outra ordem, a mesma atmosfera e um assunto
comparável foram expostos em Senhora, onde se desdobram as etapas
da compra e ulterior redenção de um marido. O leitor estará lembrado
da organização muito estridente do livro, dividido em quatro partes —
“O preço”, “Quitação”, “Posse” e “Resgate” — conforme a
terminologia das transações comerciais. Assim, Alencar trazia o rigor
analítico (um tanto disparatado) e a seriedade da indignação moral
(também um pouco fora de foco) ao universo sobretudo faceiro e
amigo de novidades de seu predecessor. Nem por isto a razão e a
dignidade muito enfáticas deixavam por seu turno de ser faceirices,
provas de adiantamento e europeísmo antes que esforços efetivos de
lucidez — repetindo, em nível mais elaborado, a constelação a superar.
Os funcionamentos especiosos da vibração moralista e da verve
analítica, enfeiadas pelo fundo de elitismo, funcionamentos tão
incômodos em Alencar, adiante formariam entre os grandes achados
críticos das Memórias, de cuja matéria literária fazem parte
sistemática. Ao lhes sublinhar o motivo imediatista e compensatório,
em desacordo com a gesticulação ilustrada, Machado reconstituía em
novo plano, eletrizado pelo discernimento moral e pelo empenho da
inteligência, ambos girando em falso, a inconsequência amena que
movimenta a prosa de Macedo.
Uma corrente de comicidade muito mais franca e popular é formada
por França Júnior, Manuel Antônio de Almeida e Martins Pena. O
traço distintivo está na sem-cerimônia extraordinária com que são
tratadas ou desconhecidas as ideias capitais da burguesia oitocentista.
Os autores dão de barato a posição precária da normatividade nova
no país, e aliás enxergam aí um elemento alegre, de desafogo. Veja-se,
no caso dos Folhetins de França Júnior, a promiscuidade pitoresca
entre as presunções europeístas e as realidades de escravidão,
clientelismo e antiga família patriarcal, promiscuidade que já é a
mesma de Machado de Assis, descontada a consciência crítica.
No Inglês maquinista, de Martins Pena, anterior ainda à cessação
do trá co, tudo está na deliberada falta de decoro das combinações
temáticas. Assim, os três pretendentes de Mariquinha são um primo
pobre, honesto e patriota, um contrabandista de africanos, com barba
até dentro dos olhos, e um English vigarista, tão desonesto como o
outro; a mãe da moça bate em negros para desafogar o peito, faz
vestidos de seda com as modistas francesas, de chita com a
Merenciana, é mestra em usar empenhos para se apropriar de escravos
da Casa de Correção, e naturalmente prefere os namorados com
dinheiro. E, embora não pairem dúvidas no que respeita ao bem e ao
mal, o primeiro não goza de tratamento literário distinto, convivendo
em igualdade de condições e dentro de toda a intimidade com a
barbárie e contravenções de toda ordem. Esta equanimidade,
embutida no andamento lépido, se poderia atribuir ao gênero farsesco,
o que no entanto seria desconhecer o senso histórico do autor.
Digamos então que o clima de farsa permitia xar artisticamente
algumas das constelações escandalosas da normalidade nacional.11
A solução encontrada por Manuel Antônio de Almeida nas
Memórias de um sargento de milícias é menos palpável, mas
aparentada. Antonio Candido assinalou o convívio de bonomia e
cinismo em sua prosa, cujo balanço abre espaço para os dois lados de
todas as questões, encaradas ora do ângulo da ordem social, ora do
ângulo da transgressão. Daí uma certa suspensão do juízo moral, e
também da ótica de classe, em contraste benfazejo com a entonação
crítica desenvolvida pelos românticos, sobretudo por Alencar,
impregnada de indignação um pouco farisaica e presunções de
superioridade pessoal. Antonio Candido nota ainda a ressonância
“brandamente fabulosa” daquele ritmo, que sugere um mítico
“mundo sem culpa”, “um universo que parece liberto do peso do erro
e do pecado”.12 Para ligar ao nosso esquema estas observações — em
que nos inspiramos largamente —, acrescentemos que a narrativa se
passa num Ancien Régime meio fantasioso, contrastante com a nossa
época normalizada. “Era no tempo do rei”, quando os meirinhos e
demais funcionários se vestiam e conduziam de acordo com a
majestade de seu cargo, não como os de hoje, que “nada têm de
imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar”.13 É claro que o
encanto dos outros tempos não decorre só da vestimenta e dos
costumes coloridos, mas sobretudo da ausência tangível do sentido
moral moderno, a qual, para os súditos deste último, adquire
conotação utópica. Assim, não deixa de haver tensão entre a
consciência moral, de que a condução da prosa tacitamente tem e dá
notícia, ainda que apenas para a passar por alto, e o mundo de
arranjos pessoais, propiciado pelo clientelismo. A comicidade
sutilmente moderna do livro depende deste distanciamento.
Digamos então que, sem prejuízo da acentuação diversa, as
vertentes que indicamos exploram e desdobram uma mesma
problemática, de origem extraliterária, proposta pelas grandes linhas
da realidade nacional e de sua inserção no mundo contemporâneo. A
matriz prática se havia formado com a Independência, quando se
articularam perversamente as nalidades de um Estado moderno,
ligado ao progresso mundial, e a permanência da estrutura social
engendrada na colônia. Entre esta con guração e a das nações
capitalistas adiantadas havia uma diferença de fundo. Inscrita no
quadro da nova divisão internacional do trabalho, e do
correspondente sistema de prestígios, a diferença adquiria sinal
negativo: signi cava atraso, particularidade pitoresca, alheamento das
questões novas, atolamento em problemas sem relevância
contemporânea. Enredados nesta trama, alienante em sentido próprio,
caberia ao trabalho artístico e à re exão histórico-social desfazer a
compartimentação e descobrir, ou construir, a atualidade universal de
imensos blocos de experiência coletiva, estigmatizados e anulados
como periféricos.
Recapitulando, o nosso percurso tem como ponto de partida a
polarização sui generis e desconcertante a que a vida nacional
submetia um conjunto de categorias pertencentes à experiência
moderna. A peculiaridade social terá sido notada e re etida de
inúmeras maneiras, desde as cotidianas, que caram sem registro, até
as conservadas em jornal ou livro. No campo artístico, alinhada com
os modos de reação mais imediata e popular, observamos uma
pequena tradição de literatura cômica, despretensiosa mas de
irreverência notável. Orientados pelo senso romântico da
peculiaridade histórica, e cientes da impostura que, nas circunstâncias
locais, aderia ao modelo de personalidade próprio ao mesmo
Romantismo, esses escritores tratam sem deferência o ponto de vista e
os costumes ditos adiantados, e sobretudo não lhes conferem
privilégio sobre o dia a dia pouco prestigioso e não burguês do Rio de
Janeiro. A relevância crítica deste humorismo, o seu vínculo com a
colônia bem como o seu prolongamento moderno em Macunaíma e
no Sera m Ponte Grande foram assinalados por Antonio Candido.14
Em contraste, a linha Macedo-Alencar adaptava à boa sociedade
uminense as complicações da aspiração subjetiva, do foro íntimo, do
sentimento liberal, ou, mais geralmente, da individualidade que se
quer autônoma — donde os desencontros que já estudamos e que, nos
romances da sua primeira fase, Machado trataria de abafar. Nas
Memórias póstumas, por m, o movimento alcança uma síntese
superior, que lhe recupera os momentos ruins e bons, e os transforma
em acertos máximos. A interioridade funciona a todo vapor, cheia de
desvãos e revelações, mas despegada do chique, da superioridade e do
potencial reformista que em graus diferentes Macedo e Alencar lhe
tinham atribuído. Tratado como caixa de compensações imaginárias,
em sintonia com avanços decisivos na concepção cientí ca do homem,
o universo interior não pressiona em direção de progresso algum.
Ajusta-se à ciranda viva e sem tendência à autorreforma que a
literatura de inspiração popular soube inventar, calcada em
dinamismos reais da sociedade brasileira. O ritmo de Martins Pena e
Manuel Antônio de Almeida está retomado no Brás Cubas, só que
agora trazido às alturas alencarinas do sentimento de si mais exigente
e contemporâneo, que o condena enfaticamente e nem por isso deixa
de se acumpliciar com ele, passando a integrá-lo e sendo condenado
por sua vez.15
Assim, a técnica narrativa das Memórias póstumas resolvia questões
armadas por quarenta anos de cção nacional e, sobretudo,
encontrava movimentos adequados ao destino ideológico-moral
implicado na organização da sociedade brasileira. Como se vê, os
problemas estéticos têm objetividade, engendrada pela História intra e
extra-artística. Ao enfrentá-los, ainda que sob a feição depurada de
uma equação formal, o escritor trabalha sobre um substrato que
excede a literatura, substrato ao qual as soluções alcançadas devem a
força e a felicidade eventuais. As questões de forma não se reduzem a
questões de linguagem, ou são questões de linguagem só na medida
em que estas últimas vieram a implicar outras do domínio prático.
Pelo simples diagrama, a célula elementar do andamento machadiano
supõe, em nível de abrangência máxima, uma apreciação da cultura
burguesa contemporânea e outra da situação especí ca da camada
dominante nacional, articuladas na disciplina inexorável e em parte
automatizada de um procedimento, a que o signi cado histórico deste
atrito empresta a vibração singular.
A inspiração materialista de nosso trabalho não terá escapado ao
leitor. O caminho que tomamos, entretanto, vai na direção contrária
do habitual. Ao invés do artista aprisionado em constrangimentos
sociais, a que não pode fugir, mostramos o seu esforço metódico e
inteligente para captá-los, chegar-se a eles, lhes perceber a implicação
e os assimilar como condicionantes da escrita, à qual conferem
ossatura e peso reais. A prosa disciplinada pela história
contemporânea e o ponto de chegada do grande escritor, e não o
ponto de partida, este sempre des brado, na sociedade moderna, pela
contingência e o isolamento do indivíduo.
Voltando a Machado de Assis, vimos que a sua fórmula narrativa
atende meticulosamente às questões ideológicas e artísticas do
Oitocentos brasileiro, ligadas à posição periférica do país. Acertos,
impasses, estreitezas, ridículos, dos predecessores e dos
contemporâneos, nada se perdeu, tudo se recompôs e trans gurou em
elemento de verdade. Por outro lado, longe de representar um
con namento, a formalização das relações de classe locais fornece a
base verossímil ao universalismo caricato das Memórias, um dos
aspectos da sua universalidade efetiva. Os imperativos da
volubilidade, com feição nacional e de classe bem de nida, imprimem
movimento e signi cado histórico próprios ao repertório
ostensivamente antilocalista de formas, referências, tópicos etc., cujo
interesse artístico reside nesta mesma deformação. A notável
independência e amplitude de Machado no trato literário com a
tradição do Ocidente depende da solução justa que ele elaborou para
imitar a sua experiência histórica.
Lembremos por m a nota perplexa que acompanha as
intermináveis manobras, ou infrações, do “defunto autor”: a norma
afrontada vale deveras (sob pena de o atritamento buscado não se
produzir), e não deixa contudo de ser a regra dos tolos. Postos em
situação, como reagimos? Entramos para a escola de baixeza deste
movimento, ou nos distanciamos dele e o transformamos num
conteúdo cujo contexto cabe a nós construir? Com per l realçado mas
enigmático, à maneira de Baudelaire e Flaubert, Dostoiévski e Henry
James, o procedimento artístico se coloca deliberadamente a
descoberto, como parte, ele próprio, do que esteja em questão. Não
porque a literatura deva tratar de si mesma, segundo hoje se costuma
a rmar, mas porque, na arena inaugurada em meados do século xix ,
cuja instância última é o antagonismo social, toda representação
passava a comportar, pelas implicações de sua forma, um ingrediente
político, e a ousadia literária consistia em salientar isso mesmo,
agredindo as condições da leitura con ada e passiva, ou melhor,
chamando o leitor à vida desperta.16 Como é sabido, a dívida técnica
mais patente das Memórias é setecentista, e não será ela o essencial da
novidade de um autor do último quartel do século xix. A imitação el
da desfaçatez da classe dominante brasileira; o sentido agudo de seu
signi cado contemporâneo e efeito deletério; a incerteza completa
quanto a seu prazo no tempo e — ousadia suprema — quanto à
superioridade da civilização que lhe servia de modelo inalcançado: a
este conjunto complexo, de alta maturidade, deve-se a saliência
especi camente moderna da forma machadiana, tão nítida e
desnorteante. O método narrativo purgava de complacência patriótica
e beletrística (isto quando não funcionasse ao contrário…) o
sentimento amável e cediço que a nossa elite tinha de si mesma, o qual
se via mudado numa cifra — implacável entre as implacáveis — do
destino da civilização burguesa. Ao contrário do que faz supor a voga
atual do antirrealismo, a mimese histórica, devidamente instruída de
senso crítico, não conduzia ao provincianismo, nem ao nacionalismo,
nem ao atraso. E se uma parte de nossos estudiosos imaginou que o
mais avançado e universal dos escritores brasileiros passava ao largo
da iniquidade sistemática mercê da qual o país se inseria na cena
contemporânea, terá sido por uma cegueira também ela histórica,
parente mais ou menos longínqua da desfaçatez que Machado
imitava.

* Refere-se ao livro Um mestre na periferia do capitalismo (São Paulo: Duas Cidades, ),


1990

onde foi originalmente publicado. (n. e.)


Um seminário de Marx

A história mundial não existiu sempre; a história, como história mundial, é um resultado.
Karl Marx, “Introdução”,
Fundamentos da crítica à economia política

O marxismo está em baixa e passa por ser uma ladainha. Entretanto,


acho difícil não reconhecer que alguns dos argumentos mais
inovadores e menos ideológicos do debate brasileiro dependem dele,
com a sua ênfase no interesse material e nas divisões da sociedade.
Será mesmo o caso de esquecer — ou calar — o nexo entre lógica
econômica, alienação, antagonismos de classe e desigualdades
internacionais? E será certo que a vida do espírito ca mais relevante
sem essas referências?
Como tive a sorte de participar de um momento de marxismo
crítico, me pareceu que seria interessante contar alguma coisa a
respeito. Me re ro a um grupo que se organizou em São Paulo, a
partir de 1958 , na Faculdade de Filoso a, para estudar O capital. O
grupo deu vários professores bons, que escreveram livros de
qualidade, e agora viu um de seus membros virar presidente da
República. Naturalmente não imagino que o marxismo nem muito
menos o nosso seminário tenham chegado ao poder. Mas mal ou bem
é possível reconstituir um caminho que levou da Faculdade de
Filoso a da rua Maria Antônia e daquele grupo de estudos à projeção
nacional e ao governo do país. Embora propício a deduções
amalucadas, é um tema que merece re exão.
Qual a origem do seminário? Como tudo que é antediluviano, ela é
nebulosa e há mais de uma versão a respeito. Giannotti conta que na
França, quando bolsista, frequentou o grupo Socialisme ou Barbarie,
onde ouviu as exposições de Claude Lefort sobre a burocratização da
União Soviética. De volta ao Brasil, em 1958, propôs à sua roda de
amigos, jovens assistentes de esquerda, que estudassem o assunto.
Fernando Novais achou que era melhor dispensar intermediários e ler
O capital de uma vez. A anedota mostra a combinação heterodoxa e
adiantada, em formação na época, de interesse universitário pelo
marxismo e distância crítica em relação à urss.
Quando o seminário começou a se reunir, as guras constantes eram
Giannotti, Fernando Novais, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth e
Fernando H. Cardoso. Com estatuto de aprendiz, apareciam também
alguns estudantes mais metidos: Bento Prado, We ort, Michael Löwy,
Gabriel Bola e eu. A composição era multidisciplinar, de acordo com
a natureza do assunto, e estavam representadas a loso a, a história, a
economia, a sociologia e a antropologia. Vivíamos voltados para a
universidade, mas nos reuníamos fora dela, para estudar com mais
proveito, a salvo da compartimentação e dos estorvos próprios à
instituição. O ambiente era de camaradagem, muita animação, e
também de rivalidade. Durante um bom tempo a primeira prevaleceu.
A discussão e a crítica eram enérgicas, uns metiam o bedelho no
trabalho dos outros, havia temas compartilhados e disputados, de
sorte que o processo tinha uma certa nota coletiva, com pouca
margem para a propriedade privada de ideias. A cada encontro se
explicavam e discutiam mais ou menos vinte páginas do livro. As
reuniões se faziam de quinze em quinze dias, em tardes de sábado,
com rodízio de expositor e casa, e uma comilança no nal. Havia
bastante desigualdade de posses entre os participantes, patente nas
moradas respectivas, que iam do abastado e confortável ao
sobradinho geminado e modesto. Não perguntei a opinião dos demais,
mas lembro a diferença como um traço de união, a que não faltava
alguma coisa poética. Em vez de atrapalhar, contribuía para nos dar o
sentimento da primazia do interesse intelectual e político. A fórmula
deu certo, e a geração seguinte montou um seminário de composição
mais ou menos paralela, em 1963 . Depois o costume entrou para o
movimento estudantil, já no âmbito da resistência à ditadura de .
64

Note-se que na época os círculos de leitura de Marx se multiplicaram


em todo o mundo, uma “coincidência” que vale a pena examinar.
Com a morte de Stálin, em , a divulgação das realidades
1953

inaceitáveis da União Soviética e da vida interna dos partidos


comunistas ganhou em amplitude, também entre adeptos e
simpatizantes. A incongruência com as aspirações libertárias e o
espírito crítico do socialismo cara irrecusável. Nesse quadro, a volta
a Marx representava um esforço de autorreti cação da esquerda, bem
como de reinserção na linha de frente da aventura intelectual.
Afrontava o direito de exclusividade, o monopólio exegético que os
partidos comunistas haviam conferido a si mesmos em relação à obra
de seus clássicos, da qual davam uma versão de catecismo, inepta e
regressiva. À distância, o seminário paulistano sobre O capital fazia
parte dessa contestação, como aliás indica a inspiração lefortiana
inicial. Com efeito, a crítica ao marxismo vulgar, bem como às
barbaridades conceituais do pcb, era um de seus pontos de honra.
Mas é fato igualmente que os descalabros da , em m de contas o
urss

desa o essencial para uma esquerda à altura do tempo, não ocupavam


o primeiro plano em nossa imaginação. A aposta no rigor e na
superioridade intelectual de Marx, embora suscitada pelo atoleiro
histórico do comunismo, era rede nida nos termos da agenda local, de
superação do atraso por meio da industrialização, o que não deixava
de ser abstrato e acanhado em relação ao curso efetivo do mundo.
Voltaremos ao assunto.
A outra referência internacional foi a Revolução Cubana, em 1959.
Também ela desmentia o marxismo o cial, pois não foi feita por
operários, não foi dirigida pelo Partido Comunista e não respeitou a
sequência de etapas prevista na teoria. A sua grande repercussão
quebrou a redoma localista em que vivia a imaginação latino-
americana, a qual se deu conta, com fervor, de que era parte da cena
contemporânea e de sua transformação, e até portadora de utopia. A
incrível aventura dos revolucionários, em particular a gura ardente
de Guevara, parecia mudar a noção do possível; emprestava um
sentido novo à iniciativa pessoal, à independência de espírito, ao
próprio patriotismo, e também à coragem física, que mais adiante
passariam por provações tremendas.
O contexto nacional, esquerda à parte, era formado pelo
desenvolvimentismo de Juscelino, com o seu propósito de avançar
cinquenta anos em cinco. Três décadas depois, lembrando o período,
Celso Furtado observa que naqueles anos pareceu possível uma
arrancada recuperadora, que tirasse a diferença que nos separava dos
países adiantados. As indústrias novas em folha, propagandeadas nos
semanários ilustrados e noticiários de cinema, os automóveis
nacionais rodando na rua, o imenso canteiro de obras em Brasília,
inspecionado pelo presidente sempre risonho, que para a ocasião
botava na cabeça um capacete operário, o povo pobre e esperançado
chegando de toda parte, uma arquitetura que passava por ser a mais
moderna do mundo, pitadas de anti-imperialismo combinadas a
negociatas do arco da velha, isso tudo eram mudanças portentosas,
animadas por uma irresponsabilidade também ela sem limites. O país
sacudia o atraso, ao menos na sua forma tradicional, mas é claro que
nem remotamente se guiava por uma noção exigente de progresso. Era
inevitável, nas circunstâncias, que outras acepções mais estritas do
interesse nacional, da luta de classes, da probidade administrativa etc.
começassem a assombrar o ambiente, para bem e para mal.
Isso posto, o contexto imediato do seminário não era a esquerda
nem a nação, mas a Faculdade de Filoso a. Em seus departamentos
mais vivos, ajudada pelo impulso inicial dos professores estrangeiros,
esta fugia às rotinas atrasadas e buscava um nível que fosse para valer,
isto é, referido ao padrão contemporâneo de pesquisa e debate. Nova
no ambiente, a natureza organizada e técnica do trabalho universitário
tendia a desbancar as formas anteriores de produção intelectual.
Tratava-se de um empenho formador, coletivo, patriótico sem
patriotada, convergente com o ânimo progressista do país, de que
entretanto se distinguia por não viver em contato com o mundo dos
negócios nem com as vantagens do o cialismo. Daí uma certa
atmosfera provinciana, séria, simpaticamente pequeno-burguesa, bem
mais adiantada aliás que o clima de corte que marcava a intelligentsia
encostada no desenvolvimentismo governamental (ver Terra em
transe, de Glauber Rocha). Por outro lado, vinha também daí a
consequência nas ideias, já que estas corriam num mundo à parte, que
pouco sofria o confronto das correlações de força reais, pelas quais
tínhamos franca antipatia.
Quando os jovens professores se puseram a estudar O capital,
pensavam mexer com a Faculdade. Queriam promover um ponto de
vista mais crítico, e também uma concepção cientí ca superior, ainda
que meio esotérica. O Brasil entrava por um processo de
radicalização, e a re exão sobre a dialética e a luta de classes parecia
sintonizar com a realidade, ao contrário das outras grandes teorias
sociais, mais voltadas para a ordem e o equilíbrio do que para a
transformação. Entretanto, a consequência principal do seminário
pode ter sido a inversa: através dele, a Faculdade é que iria in uir de
forma decisiva sobre o marxismo local.
Grosso modo, este havia existido como artigo de fé do Partido
Comunista e áreas assemelhadas, ou, ainda, como referência losó ca
de espíritos esclarecidos, impressionados com a resistência soviética ao
nazismo e opostos aos privilégios da oligarquia brasileira. Nesse
sentido, aliás muito positivo, o marxismo era uma presença
doutrinária à antiga, apoiada no cotidiano e bebida em manuais, sem
prejuízo da intenção progressista e das constelações modernas a que se
referia. Além da bitola stalinista, contudo, a própria opção
revolucionária e popular, bem como a perseguição policial
correspondente — fontes naturais de autoridade —, tinham
contribuído para con ná-lo num universo intelectual precário,
afastado da normalidade dos estudos e desprovido de relações
aprofundadas com a cultura do país. Tanto é assim que os seus
melhores resultados, até onde enxergo, ocorreram onde menos se
espera. Encontram-se esparsos na obra de poetas e ensaístas com
outra formação, de inserção cultural e histórica mais densa, como por
exemplo Oswald e Mário de Andrade, que lhe sofreram a in uência e
aos quais o foco materialista no drama das classes, no interesse
econômico e nas implicações da técnica sugeriu formulações
modernas. O caso de exceção foi Caio Prado Jr., em cuja pessoa
inesperada o prisma marxista se articulou criticamente à acumulação
intelectual de uma grande família do café e da política, produzindo
uma obra superior, alheia ao primarismo e assentada no conhecimento
sóbrio das realidades locais. Pois bem, a ligação deliberada da leitura
de O capital ao motor da pesquisa universitária iria modi car o
quadro e deixar a cultura marxista anterior em situação difícil. No
essencial, o desnível indicava regimes diferentes de re exão social, dos
quais um se estava tornando anacrônico. Os aspectos modernos da
Faculdade, que era uma instituição especializada, de estudiosos
pro ssionais, deixavam patentes os lados arcaicos e amadorísticos das
lideranças do campo popular. Como é óbvio, são mudanças históricas
objetivas, que nada dizem do valor das pessoas, e aliás é certo que a
institucionalização da inteligência tem por sua vez um preço alto em
alienação e embotamento. Seja como for, a ideia de uma esquerda
marxista sem chavão, à altura da pesquisa universitária
contemporânea, aberta para a realidade, sem cadáveres no armário e
sem autoritarismos a ocultar, era nova.
A intensidade intelectual do seminário devia muito às intervenções
lógico-metodológicas de Giannotti, cujo teor exigente, exaltado e
obscuro, além de sempre voltado para o progresso da ciência, causava
excitação. A própria ala dos cientistas sociais se tinha compenetrado
da missão scalizadora do lósofo, de quem esperávamos o
esclarecimento decisivo, a observação que nos permitiria subir a outro
plano, ou escapar à trivialidade. Superstições à parte, a vontade de dar
um grande passo à frente, e o sentimento de que isso seria possível,
estavam no ar. Por Giannotti e Bento Prado interpostos, o estudo de
Marx tinha extensões losó cas, que nutriam a nossa insatisfação
com a vulgata comunista, além de fazerem contrapeso aos manuais
americanos de metodologia empírica, que não deixávamos também de
consumir. Apesar de desajeitada, a tensão entre esses extremos foi uma
força do grupo, que não abria mão do propósito de explicar alguma
coisa de real, e nesse sentido nunca foi apenas doutrinário.
Entretanto, se não me engano, a inovação mais marcante foi outra,
também devida a Giannotti, que na sua estada na França havia
aprendido que os grandes textos se devem explicar com paciência,
palavra por palavra, argumento por argumento, em vista de lhes
entender a arquitetura. Paulo Arantes chamou a atenção para a ironia
do caso, em que a teoria mais crítica da sociedade contemporânea
adquiria autoridade e e cácia entre nós através de sua associação à
técnica da explication de texte, mais ou menos obrigatória no
secundário europeu.1 Contudo, observe-se que no Brasil, a não ser
pela literatura de uns poucos escritores, Machado de Assis à frente, a
ideia da consistência integral de um texto não existia, de modo que a
militância do lósofo trazia um claro progresso. Além disso, é certo
que os escritos de Marx, e em particular as páginas iniciais de O
capital, exigem um grau excepcional de atenção. Note-se en m que o
aprendizado da leitura cerrada e metódica atendia às necessidades
universitárias de iniciação e diferenciação. Tanto que estava em curso
um movimento paralelo nos estudos literários, onde também se
ensinava a ler “de outra maneira”, diferente da comum. Sem alarde e
com resultados admiráveis, cada um a seu modo, Augusto Meyer,
Anatol Rosenfeld e Antonio Candido praticavam o close reading havia
algum tempo. Na mesma época, Afrânio Coutinho fazia uma ruidosa
campanha pelo New Criticism, ao passo que os concretistas
proclamavam a sua “responsabilidade integral perante a linguagem”.2
Em suma, a leitura dos textos e a explicação da sociedade se
tecni cavam, de modo ora despropositado, ora esclarecedor, mas
sempre aumentando o desnível com os não especialistas. Era a vez dos
universitários que chegava.
Enquanto isso no Rio de Janeiro o Iseb (Instituto Superior de
Estudos Brasileiros) ligava a dialética e a luta de classes ao
desenvolvimentismo. A instituição era o cial, incluía vários antigos
integralistas, não se fechava aos comunistas, e entrava num processo
de radicalização espetacular. Menos que o insólito da mistura, os
nossos olhos estritos notavam o caráter mais nacionalista que
socialista da pregação: tratava-se de um quadro claro de
inconsequência, para o qual torcíamos o nariz. Não há dúvida de que
a falta de rigor existia, e que em 64 foi preciso pagar por ela. Mas é
certo também que o Iseb respondia ao acirramento social em curso,
por vezes de maneira inventiva e memorável, ao passo que as nossas
objeções pouco saíam do plano trancado das posições de princípio.
Atrás da antipatia é possível que estivessem, além da oposição teórica,
o complexo provinciano dos paulistas e, de modo geral, as diferenças
entre Rio e São Paulo. Como é sabido, a vida intelectual carioca
evoluía em torno de redações de jornal, editoras, partidos políticos,
ministérios, ou seja, organismos com repercussão nacional e saída
uente para o debate público (sem falar em praias, boemia e
mundanidades); bem o contrário da nossa escola da rua Maria
Antônia, ambiciosa e caipira, sofrendo da falta de eco nacional e
tendo como bandeira o padrão cientí co, por oposição à ideologia.
Além disso é possível que a aposta marxista “pura”, voltada para a
dinâmica autônoma da luta de classes, tivesse mais verossimilhança no
quadro do capitalismo paulista. Ao passo que no Rio, com as brechas
e verbas oferecidas à esquerda pela promiscuidade do nacional-
populismo, não havia como dizer não ao Estado, cuja ambiguidade no
con ito em parte era efetiva. No essencial, entretanto, a facilidade
com que em 64 a direita iria desbaratar a esquerda, em aparência tão
aguerrida, demonstrou o infundado das alianças desta, acabando por
dar razão aos paulistas.3
Dito isso, a contribuição especí ca do seminário veio por outro
lado. Os jovens professores tinham pela frente o trabalho da tese e o
desa o de rmar o bom nome da dialética no terreno da ciência. De
modo geral escolheram assunto brasileiro, alinhados com a opção
pelos de baixo que era própria à escola, onde se desenvolviam
pesquisas sobre o negro, o caipira, o imigrante, o folclore, a religião
popular. Comentando o deslocamento ideológico dos anos 1930 e ,
40

a que a Faculdade se liava, Antonio Candido apontou a novidade


democrática e antioligárquica de um tal elenco de temas.4 Este o
quadro em que a ruminação intensa de O capital e do 18 Brumário,
ajudada pela leitura dos recém-publicados História e consciência de
classe, de Lukács, e Questão de método, de Sartre, dois clássicos do
marxismo heterodoxo, iria se mostrar produtiva. O fato é que a certa
altura despontou no seminário uma ideia que não é exagero chamar
uma intuição nova do Brasil, a qual organizou os principais trabalhos
do grupo e teve repercussão considerável. Sumariamente, a novidade
consistiu em juntar o que andava separado, ou melhor, em articular a
peculiaridade sociológica e política do país à história contemporânea
do capital, cuja órbita era de outra ordem. Com a parcialidade do
estudante que aproveitou apenas uma parte do que ouvia e lia,
exponho em seguida os argumentos que mais contaram para mim.
O passo à frente está indicado no título do doutoramento de F. H.
Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962). A
ousadia do livro, que estuda o Rio Grande do Sul oitocentista, estava
no relacionamento complicado entre aqueles dois termos assimétricos,
nem opostos nem próximos. Não se tratava de categorias
complementares, à maneira da oposição entre casa-grande e senzala,
cuja reunião compõe um todo sociológico; nem se tratava da
culminação de um antagonismo global, à maneira, imaginemos, de
“Escravismo e abolição”. O que o livro investiga em pormenor são as
conexões efetivas entre capitalismo e escravidão numa área periférica
do país, área com certa autonomia, mas dependente do que se passava
nos âmbitos centrais e na vizinha Argentina, onde vigorava o trabalho
assalariado. Antes que o Senhor, ou a Liberdade, o outro da
escravidão é o capitalismo, e este de modo muito relativo, já que é
também a causa dela. De entrada cavam relativizadas pela história as
polarizações abstratas entre escravidão e liberdade, entre os
correspondentes tipos sociológicos, ou a identi cação ideológica entre
liberdade e capitalismo. Se em última análise o capitalismo é
incompatível com a escravidão e acaba por liquidá-la, por momentos
ele também precisou, para desenvolver-se, desenvolvê-la e até
implantá-la. De sorte que nem ele é tão avançado, nem ela tão
atrasada. Assim, a escravidão podia ter parte com o progresso, e não
era apenas um vexame residual. É claro que não se tratava aqui de
elogiá-la, mas de olhar com imparcialidade dialética os paradoxos do
movimento histórico, ou, ainda, as ilusões de uma concepção linear do
progresso. Sem que a ponta polêmica estivesse explicitada, tratava-se
de uma especi cação importante e estratégica do curso da história,
pois punha em evidência a ingenuidade dos progressismos correntes.
No campo da esquerda, em especial, desmentia o itinerário de etapas
obrigatórias — com ponto de partida no comunismo primitivo,
passando por escravismo, feudalismo e capitalismo, para chegar a
bom porto no socialismo — em que o Partido Comunista fundava a
sua política “cientí ca”.
O caminho fora aberto por Caio Prado Jr., que na esteira aliás de
Marx explicara a escravidão colonial como um fenômeno moderno,
ligado à expansão comercial europeia, estranho portanto àquela
sucessão de etapas canônicas. Isso posto, o argumento de Caio tratava
ainda de nossa pré-história. Já na monogra a de F. H. Cardoso
estamos em pleno Brasil independente, cujos movimentos nos dizem
respeito direto. Usando terminologia posterior, mas cujo fundamento
descritivo já se encontra aqui, o que temos é que o progresso nacional
repõe, isto é, reproduz e até amplia as inaceitáveis relações sociais da
Colônia. E pior ainda, quando en m suprime a escravidão, não é para
integrar o negro como cidadão à sociedade livre, mas para enredá-lo
em formas velhas e novas de inferioridade, sujeição pessoal e pobreza,
nas quais se reproduzem outros aspectos da herança colonial, que
teima em não se dissolver e parece continuar com um grande futuro
pela frente, o qual é preciso reconhecer, ainda uma vez, como fundado
na evolução moderna da economia.
As implicações desses encadeamentos são numerosas. Para o que
interessa aqui, retenhamos algumas: a) a história (do capital? da
liberdade? da alienação? do país? do Rio Grande?) procede por
avanços e recuos combinados; b) contudo ela avança, tanto que o
capitalismo acaba obrigando à Abolição; c) ao avançar, ela não
cumpre as promessas formadas no âmbito do con ito anterior; d)
chegado o momento, o avanço tem a realidade de uma tarefa
ineludível, em cujo cumprimento no entanto há espaço para uma certa
liberdade e invenção políticas, bem como para o surgimento de
desumanidades novas; e) as taras da sociedade brasileira, objetivadas
em sua estrutura sociológica ou de classes, não devem ser concebidas
como resquícios do passado colonial, nem como desvios do padrão
moderno (coisa que entretanto elas também são), mas como partes
integrantes da atualidade em movimento, como resultados funcionais
ou disfuncionais da economia contemporânea, a qual excede os limites
do país. Contra as miragens ideológicas, cabe à crítica elucidar as
relações de toda ordem, em especial as regressões, de que se compõe o
progresso (aliás progresso de quem?).
A implicação mais inovadora, contudo, refere-se à aplicação de
categorias sociais europeias (sem exclusão das marxistas) ao Brasil e
às demais ex-colônias, um procedimento que leva ao equívoco, ao
mesmo tempo que é inevitável e indispensável. Fique de lado a crítica
ao uso chapado de receitas, sempre justa, mas tão válida no Velho
Mundo quanto entre nós. A di culdade de que tratamos aqui é mais
especí ca: nos países saídos da colonização, o conjunto de categorias
históricas plasmadas pela experiência intraeuropeia passa a funcionar
num espaço com travejamento sociológico diferente, diverso mas não
alheio, em que aquelas categorias nem se aplicam com propriedade,
nem podem deixar de se aplicar, ou melhor, giram em falso mas são a
referência obrigatória, ou, ainda, tendem a um certo formalismo. Um
espaço diverso, porque a colonização não criava sociedades
semelhantes à metrópole, nem a ulterior divisão internacional do
trabalho igualava as nações. Mas um espaço de mesma ordem, porque
também ele é comandado pela dinâmica abrangente do capital, cujos
desdobramentos lhe dão a regra e de nem a pauta. À distância, essa
meia vigência das coordenadas europeias — uma con guração
desconcertante e sui generis, que requer malícia diferencial por parte
do observador — é um efeito consistente da gravitação do mundo
moderno, ou do desenvolvimento desigual e combinado do
capitalismo, para usar a expressão clássica. Já na perspectiva das ex-
colônias, mais ou menos melhoristas pela força do ponto de partida,
esperançosas e empenhadas na generalização local dos benefícios do
progresso, a articulação inevitável de modernidade e desagregação
colonial aparece como anomalia pátria, uma originalidade nos
momentos de otimismo, uma diferença vergonhosa nos demais, mas
sempre um desvio do padrão civilizado. Um dos melhores capítulos de
Capitalismo e escravidão estuda os dilemas da racionalização de uma
economia escravista. É claro que nesse contexto as ideias de razão e
produtividade, discutidas com minúcia, aparecem a uma luz crua. O
deslocamento meio macabro entretanto não as desquali ca, nem ele é
sem relevância. Muito pelo contrário, então como hoje, as
inadequações desse tipo abrem janelas para o lado escuro mas decisivo
da história contemporânea, o lado global, dos resultados
involuntários, crescidos “atrás das costas” dos principais interessados.
Às apalpadelas, havia consciência no seminário de que sem crítica e
invenção categorial — ou seja, sem a superação da condição mental
passiva, de consumidores crédulos do progresso das nações adiantadas
(e também das atrasadas) — não seria possível dar boa conta da tarefa
histórico-sociológica posta em nossos países. Noutras palavras, faria
parte de uma inspiração marxista consequente um certo deslocamento
da própria problemática clássica do marxismo, obrigando a pensar a
experiência histórica com a própria cabeça, sem sujeição às
construções consagradas que nos serviam de modelo, incluídas aí as de
Marx.
Essa ordem de questões iria encontrar o seu tratamento maduro na
tese de Fernando Novais sobre Portugal e Brasil na crise do Antigo
Sistema Colonial (1777-1808). O livro, concebido nos anos do
seminário e terminado muito tempo depois, é a obra-prima do grupo.
Como indica o título, a exposição vai do todo à parte e vice-versa,
com domínio notável sobre a matéria nos dois planos. Contra o
preceito corrente, que manda situar a história local no seu contexto
mais amplo, cuja compreensão entretanto não está em jogo por sua
vez, Novais busca ver os âmbitos um no outro e em movimento.
Assim, as reformas portuguesas no Brasil, que naturalmente visavam
preservar a posição da Metrópole, são observadas também como
outros tantos passos involuntários na direção da crise e da destruição
do Antigo Sistema Colonial no seu conjunto, a bem da Revolução
Industrial na Inglaterra. Um encadeamento propriamente dialético. A
exposição em vários planos, muito precisa e concatenada, é um
trabalho de alta relojoaria, sem nenhum favor. Também aqui o
marxismo rigoroso mas não dogmático punha em di culdade as ideias
feitas, dos outros e as suas próprias. Entre estas, como se sabe, está a
que a rma o primado da produção sobre a circulação, ou, por outra,
que manda fundar a compreensão histórica nas relações de produção
locais. Pois bem, acompanhando a dinâmica de conjunto do
capitalismo mercantil, Novais chega à conclusão heterodoxa, além de
contraintuitiva, de que a escravidão moderna é uma imposição do
trá co negreiro, e não o contrário. Digamos por m que a
interpenetração da história local e global alcançada nesse livro não
descreve apenas a gravitação daquele tempo, como também responde
a uma intuição do nosso.
Uma das melhores contribuições do seminário não veio de dentro
dele senão indiretamente. Espero não forçar a realidade achando que
Homens livres na ordem escravocrata (1964), de Maria Sylvia de
Carvalho Franco, embora elaborado fora do grupo, respira o seu
mesmo clima crítico, ideológico e bibliográ co. Passando por alto as
diferenças, há complementaridade de fundo com Capitalismo e
escravidão. Este último livro surpreendia ao integrar o trabalho
escravo aos cálculos e à reprodução da sociedade moderna.
Analogamente, Maria Sylvia salientava o vínculo de estrutura entre a
categoria mais relegada e con nada do país — os homens pobres do
interior — e a con guração da riqueza e do poder mais avançados, tal
como se haviam desenvolvido na civilização do café. Embora
Capitalismo e escravidão pesquisasse a economia do charque no Rio
Grande do Sul e Homens livres tivesse como documentação de base os
processos-crime da comarca de Guaratinguetá, as grandes linhas
argumentativas das duas monogra as pedem uma leitura de síntese,
pois se referem a dimensões interligadas, gerais e decisivas da
sociedade brasileira no conjunto. A sujeição violenta em que se
encontra o escravo, bem como a relação de dependência à qual o
homem livre e pobre na ordem escravista não pode fugir, ambas têm
como antagonista, no polo oposto, a camada de homens que a
propriedade insere no mundo do cálculo econômico. Fernando
Henrique havia analisado os impasses cruéis da racionalização
produtiva no escravismo. Em espírito similar, Maria Sylvia observa
que os donos da terra tratam os seus moradores e dependentes ora
como apadrinhados, com os quais têm obrigações morais, ora como
estranhos, sem direito a morada ou proteção (ou seja, a terra em que
moram de favor pode ser vendida). Essa última mudança de atitude,
em que o mundo vem abaixo para um dos lados, ocorre
arbitrariamente, sem satisfações a dar, conforme a variação dos
interesses econômicos ou outros da outra parte. Assim, ainda que nas
duas monogra as a simpatia dos autores que com os oprimidos,
cujas chances analisam, o resultado substantivo vai na direção
contrária, sublinhando a margem de manobra que a peculiar estrutura
do processo brasileiro faculta à propriedade, a qual segundo a
conveniência toca os seus negócios por meio de escravidão, trabalho
livre, relações paternalistas ou indiferença moderna. Longe de ser
apenas um emparedamento no passado, esse leque de “opções”
mostrava-se uma bem explorada prerrogativa social no interior da
cena contemporânea. Noutras palavras, ao aprofundar a análise de
classe, o seminário especi cava a imensa e desconcertante liberdade de
movimentos da riqueza em face dos oprimidos no país (o que não
deixava de ser um resultado paradoxal para um grupo de estudos
marxistas).
Como se sabe, as perguntas que dirigimos ao passado têm
fundamento no presente. Se zermos abstração da matéria especí ca
que as três teses pesquisaram (a qual entretanto lhes conferia a nova
seriedade universitária), o seu conjunto como que indica a mão
invisível da história contemporânea, ou melhor, indica a obra que se
estava esboçando através de nós todos e que até agora não chegou ao
papel com a plenitude desejável. Tratava-se de entender a
funcionalidade e a crise das formas “atrasadas” de trabalho, das
relações “arcaicas” de clientelismo, das condutas “irracionais” da
classe dominante, bem como da inserção global e subordinada de
nossa economia, tudo em nossos dias. O estímulo vinha da
radicalização desenvolvimentista, a que a universidade respondia de
modo oblíquo: por que a Abolição, além de não levar à Liberdade,
não criou um operariado à maneira clássica? como imaginar a
passagem da estreiteza das relações de dependência pessoal à abertura
nacional e internacional da consciência de classe? como se processam
internamente, no bojo das aspirações emancipatórias e dentro da
correlação de forças local, as grandes transformações da atualidade,
que de emancipatórias podem não ter muito? Embora fosse a
inspiração de todos, é preciso convir que o horizonte socialista não se
desenhava com rmeza nos fatos, nem ganhava corpo na gura que
esses trabalhos isentos de demagogia compunham. Passando por cima
da convicção dos autores, a pesquisa acadêmica radical ia delineando
um quadro irresolvido, de difícil interpretação, que ainda vale a pena
interrogar.
A relevância contemporânea e extra-acadêmica desses pontos de
vista apareceu no livro seguinte de F. H. Cardoso, Empresário
industrial e desenvolvimento econômico, sempre uma tese
universitária, mas já a meio caminho da intervenção política. O
parágrafo nal, redigido às vésperas e sob a pressão do desfecho de
64, concluía por uma alternativa inesperada para a esquerda. No que
dependesse da burguesia industrial, que era quem pesava mais na
balança, o rumo estava tomado: “satisfeita já com a condição de sócio
menor do capitalismo ocidental e de guarda avançada da agricultura”,
ela renunciara a tentar “a hegemonia plena da sociedade”. A
incógnita, se houvesse, vinha do campo oposto. Qual seria “a reação
das massas urbanas e dos grupos populares”? Teriam capacidade de
organização e decisão “para levar mais adiante a modernização
política e o processo de desenvolvimento econômico do país”? “No
limite a pergunta será então, subcapitalismo ou socialismo?” Só Deus
sabe o que teria sido esse socialismo, mas o prognóstico, no que diz
respeito ao subcapitalismo, não só fugia à voz corrente como se
mostrou exato. A alternativa contrariava de frente as formulações do
Partido Comunista, que se haviam transformado no clima geral da
esquerda e justi cavam as alianças em que esta acreditava. Sempre
aplicando de nições remotas, o pc a ançava — no jargão do tempo
— o interesse anti-imperialista da burguesia nacional, que por isso
mesmo seria aliada da classe operária na luta pela industrialização do
país, ao passo que o latifúndio e os americanos formavam o bloco
oposto ao progresso. Nessa perspectiva, não haveria industrialização
sem vitória sobre o imperialismo, ou, por outra, a vitória deste
con naria o país em sua feição agrícola. Ora, como se sabe, esse
conjunto de teses foi duramente desmentido pela história. No aperto,
a burguesia nacional preferiu a direita e os americanos ao operariado
nacionalista, que por sua vez, em parte ao menos, também preferia as
rmas estrangeiras. E o mais importante: contrariando a previsão dos
progressistas, ao golpe conservador seguiu-se um poderoso surto
industrial — que entretanto não cumpriu nenhuma das promessas
políticas e civilizatórias que se costuma associar ao desenvolvimento
econômico. Fernando Henrique acertara em toda linha, também neste
ponto: tratava-se de um “subcapitalismo”, ávido de avanços
econômicos e sem compromisso com a integração social do país. A
impopularidade da tese não impedia que a sua justeza fosse
reconhecida à boca pequena, e suponho que a ascendência intelectual
e política de seu autor no interior da esquerda tenha crescido a partir
daí.
Outro fator de autoridade esteve na crítica frontal às concepções
despolitizadas do subdesenvolvimento então propagadas pelo
establishment americano. Contra os esquemas abstratos em voga nos
Estados Unidos, que propunham a questão em termos inocentes, de
variáveis econômicas bem ou mal combinadas, tratava-se de
identi car os interesses envolvidos, sem os quais aquelas variáveis
permaneciam letra morta. Em lugar do rearranjo de fatores
econômicos isolados, operado de preferência no vácuo, ou das
genéricas escalas de transição do tradicional ao moderno, entrava em
foco, com evidente vantagem intelectual, o campo efetivo da luta pelo
desenvolvimento. Um campo histórico, pautado pelas grandes
coordenadas do tempo: capitalismo dos monopólios, imperialismo,
competição internacional, descolonização, enfrentamento entre
capitalismo e socialismo, con gurações especí cas da luta de classes.
Talvez se possa dizer que naqueles anos tumultuosos, de culminação e
crise do nacionalismo desenvolvimentista, o qual trouxe à cena a
massa dos excluídos e os prometia integrar (ilusão ou não), a
experiência da história empurrou uma parte da intelectualidade a se
desapequenar. A teoria social desenvolvida nas universidades dos
países hegemônicos passava a ser examinada com olhos críticos, a
validade geral de seus consensos sociológicos e econômicos deixara de
ser ponto pací co, e mesmo o seu lado mediocremente apologético foi
notado. Com isso, a discussão do subdesenvolvimento adquiriu uma
representatividade contemporânea inédita, que abria perspectivas ao
pensamento de oposição também no mundo desenvolvido. A
circulação mundial da obra de Celso Furtado e da Teoria da
Dependência, sem falar no destaque alcançado por artistas latino-
americanos no período, dá testemunho desse interesse acrescido. Com
altos e baixos, a oração do marxismo e da dialética no continente
expressava e formulava esta repolarização dos pontos de vista, que
impregnou de história e contradição a questão dita técnica da luta
contra o atraso.
Do ângulo acadêmico, mas também político, a novidade estava em
associar a visão marxista da industrialização brasileira a uma enquete
sobre o que pensavam e faziam os empresários. O marxismo
defrontava-se com fatos que lhe dizem respeito, ao passo que os
industriais eram postos diante de sua responsabilidade histórica, vista
esta no quadro vasto da industrialização retardatária, do progresso e
da integração (ou desintegração) nacionais, do confronto entre
capitalismo e socialismo — sem esquecer a opção pelo golpe militar
iminente, uma data destacada no calendário da Guerra Fria. Sem
favor, a pesquisa universitária deixava de ser remota. A busca da
ligação viva e contraditória entre as contingências locais e o
andamento global da história contemporânea atendia a um ideal de
dialética. Noutro plano, respondia também a uma aspiração peculiar
do debate brasileiro, sempre isolado da atualidade pelas feições
singulares e “arcaicas” do país, e sempre necessitado, por isso mesmo,
de um trabalho crítico de desprovincianização, que permita entendê-lo
no presente.
O percurso e a conclusão do Empresário industrial formavam a
síntese atualista dos resultados do seminário. Conforme o livro trata
de mostrar, o trajeto em direção ao desenvolvimento não é o mesmo
nos países desenvolvidos e nos subdesenvolvidos, embora aqueles
sirvam de modelo para estes. O que não quer dizer que os últimos não
se desenvolvam, mas que o seu desenvolvimento corre noutros trilhos,
encontra problemas diferentes e é levado adiante por categorias sociais
que tampouco são as mesmas. Assim, a sua burguesia nacional não
corresponde ao conceito de burguesia nacional, idem para a sua classe
trabalhadora. A própria noção de racionalidade econômica não
coincide, e só os doutrinários ou os sociólogos não sabiam que um
empresário weberiano estrito no Brasil se daria mal e seria um
exemplo de irracionalidade. Segundo os espíritos ofuscados pelo
modelo canônico, essas diferenças inviabilizariam o desenvolvimento.
Não assim o espírito dialético, afeito a ver o mesmo no outro. Na
verdade, é no interior daquelas diferenças tão heterodoxas que o
desenvolvimento vai se dando, até que em 64 a crise chame à ordem
do dia a rede nição da sociedade, que deveria dar substância social e
civilizadora às promessas do crescimento, quando então — chegada a
hora da verdade — a classe dominante atalha as aspirações populares
e sai pela brecha do subcapitalismo, que a nova con guração da
economia internacional lhe abria. Em suma, com o progresso as
anomalias da sociedade brasileira se reproduziam noutro patamar, em
lugar de se dissolverem. De outro ângulo, essas anomalias são o
arranjo sociológico-político em cima do qual se processa a inserção do
país na economia internacional, e nada mais normal do que elas,
portanto. Noutros termos ainda, o desenvolvimento dos países
subdesenvolvidos não leva ao desenvolvimento senão em aparência,
pois assim como, chegado o momento, estes repõem o seu
travejamento social “arcaico”, o capitalismo visto no todo e em plena
ação modernizante também repõe a situação subdesenvolvida, que
nesse sentido faz parte do travejamento arcaico da própria sociedade
contemporânea, de cujo desenvolvimento então seria o caso de
duvidar. Noutras palavras, estavam errados tanto os descrentes como
os crédulos. O pioneirismo do quadro — em cujas cores paradoxais
carreguei um pouco — era grande, levando Florestan Fernandes a
escrever na orelha do livro que, “de fato, só os cientistas sociais dos
‘países subdesenvolvidos’ possuem condições para resolver problemas
metodológicos ou teóricos mal formulados pelos autores clássicos”. O
próprio autor da monogra a terá sentido a novidade e o risco de sua
posição, pois termina a nota introdutória lembrando o Galileu de
Brecht, que a certa altura, pensando em si mesmo, na ciência e na
Inquisição, faz o elogio dos copernicanos: “O mundo inteiro estava
contra eles, e eles tinham razão”. Quando um pouco adiante
Giannotti redigiu a sua crítica ao marxismo tão in uente de Althusser,
na qual se opunha, com notável independência, ao esvaziamento
positivista das categorias sociais, suponho que obedecesse a um
sentimento dessa mesma ordem, de valia da experiência histórica
feita.5
Dependência e desenvolvimento na América Latina foi escrito
depois do golpe, no Chile, e já não pertence à época do seminário.
Não tenho os conhecimentos para um bom comentário de suas
relações com a teoria econômica cepalina, nem da repercussão que
alcançou, evidentemente muito grande. Seu programa de
especi cações históricas, sociológicas e econômicas, assim como o
sistema das variações de país a país, que aponta para um todo em
movimento, fazem a novidade e a força do livro. Espero não errar,
contudo, notando que em parte se trata da generalização e do ajuste,
para o continente, dos pontos de vista do Empresário industrial. Lá
estão as singularidades dos arranjos sociológicos nacionais, sempre
subdesenvolvidos e carregados de história, funcionando como
suportes da inserção contemporânea da economia. São eles a travação
do caráter dependente, ou “sub”, de seus países, que nem por isso
cam excluídos do desenvolvimento capitalista, que se processa de
forma sui generis através daqueles mesmos arranjos (a reposição do
atraso), ou de sua reformulação (o atraso reposto de modo novo).
Ainda uma vez tratava-se de mostrar que as categorias econômicas
não andam sozinhas e que a subordinação dos subdesenvolvidos não
dispensava uma correia de transmissão interna, acessível à luta
política (este o momento combativo). E que as transformações do
capitalismo central mudam os termos do enfrentamento de classes nos
países periféricos, abrindo saídas imprevistas no quadro do con ito
cristalizado anteriormente, que passa a girar em falso, enquanto a
nova solução recria outra modalidade de atraso (este o momento de
dura constatação).
Para concluir com um pouco de pimenta, saltando mais de vinte
anos, acho possível enxergar uma con guração análoga na eleição
presidencial de . Para Lula e o Partido dos Trabalhadores a
1994

disputa dava-se em termos nacionais internos, tendo de um lado o


Brasil carcomido e conservador, enfeitado pela conversa ada
tecnocrática, e do outro o Brasil social, do progresso e da integração
dos excluídos. Ao passo que fhc apostava na incidência da mutação
econômica global, que valorizava a estabilidade doméstica, convidava
o eleitorado a participar das novidades materiais e organizativas do
mundo contemporâneo, e declarava matéria vencida os con itos
sociais armados no período anterior. À vista do resultado, mais uma
vez a evolução geral do capitalismo desarmava o enfrentamento
interno, de conteúdo sociológico claro, e dava espaço à recondução,
ainda que relativa, do bloco do poder. Tudo em linha com as análises
já clássicas do próprio sociólogo, as quais entretanto, em ocasiões
prévias, se haviam destinado a abrir os olhos da esquerda, ao passo
que agora levavam à presidência o seu autor em pessoa, à frente de
uma coligação partidária de centro-direita.6 O signi cado histórico
dessa vitória está em aberto e não é o assunto de meu depoimento — a
não ser muito indiretamente, pelo viés de sua ligação com as
conclusões do grupo, armadas no estudo do Brasil escravista. Com
efeito, a constatação da margem de liberdade absurda e antissocial de
que a classe dominante — fortalecida pelo seu canal com o progresso
do mundo externo — dispõe no país foi um dos resultados a que a
contragosto chegavam os nossos estudos marxistas.
Agora, com trinta anos de distância, como ca o seminário? Já disse
o bem que penso de suas contribuições para a interpretação do Brasil.
Não obstante, visto de meu ângulo de hoje, o marxismo do grupo
deixava a desejar nalguns aspectos, que talvez sejam sempre os
mesmos. Não houve muito interesse pela crítica de Marx ao
fetichismo da mercadoria. Como correspondia àqueles anos de
desenvolvimentismo, o foco estava nos impasses da industrialização
brasileira, que podiam até empurrar na direção de uma ruptura
socialista, mas não levavam à crítica aprofundada da sociedade que o
capitalismo criou e de que aqueles impasses formam parte. Era lógico
aliás que houvesse uma dose de conformismo embutida no projeto
basicamente nacional, ou até continental, de tirar a diferença e superar
o atraso, já que no caso os países adiantados (embora não as suas
teorias sociológicas) tinham de ser dados como parâmetro e como
bons. A parte da lógica da mercadoria na própria produção e
normalização da barbárie pouco entrava em linha de conta e cou
como o bloco menos oportuno da obra de Marx. Pelas mesmas razões
faltou ao seminário compreensão para a importância dos
frankfurtianos, cujo marxismo sombrio, mais impregnado de
realidade que os demais, havia assimilado e articulado uma apreciação
plena das experiências do nazismo, do comunismo stalinista e do
American way of life, encarado sem complacências. Daí também uma
possível inocência do grupo em relação ao lado degradante da
mercantilização e industrialização da cultura, consideradas sem
maiores restrições. E daí, nalmente, uma certa indiferença em relação
ao valor de conhecimento da arte moderna, incluída a brasileira, a
cuja visão negativa e problematizadora do mundo atual não se
atribuía importância. O preço literário e cultural pago por esse último
descaso, aliás um subproduto perverso da luta pela a rmação da
universidade, foi alto, pois fez que os achados fortes do seminário não
se aliassem produtivamente ao potencial crítico espalhado nas letras e
na cultura ambiente, cando con nados ao código e ao território
acadêmico, dizendo e rendendo menos do que poderiam. Para
contraste basta pensar nas relações da prosa de Gilberto Freyre e
Sérgio Buarque com a cultura modernista, às quais se prende o
estatuto tão especial de suas obras. Penso não exagerar achando que
no essencial a intuição histórico-sociológica do seminário não ca
devendo à desses mestres, embora seja evidente que, pela falta da
elaboração de um instrumento literário à altura, entroncado nas
Letras contemporâneas, as obras respectivas não ocupem um lugar de
mesma ordem. Visando mais alto, por m, me parece certo que a clara
visualização do subdesenvolvimento e de suas articulações tem alcance
histórico-mundial, capaz de sustentar, suponhamos, algo como as
Minima moralia referentes ao que é sem dúvida uma das feições-chave
do destino contemporâneo. Fica a sugestão, mas a ideia talvez não
pudesse mesmo se realizar em nosso meio, já que em última análise
estávamos — e estamos — engajados em encontrar a solução para o
país, pois o Brasil tem que ter saída. Ora, alguém imagina Marx
escrevendo O capital para salvar a Alemanha? Assim, o nosso
seminário em m de contas permanecia pautado pela estreiteza da
problemática nacional, ou seja, pela tarefa de superar o nosso atraso
relativo, sempre anteposta à atualidade. Ficava devendo outro passo,
que enfrentasse — na plenitude complicada e contraditória de suas
dimensões presentes, que são transnacionais — as relações de
de nição e implicação recíproca entre atraso, progresso e produção de
mercadorias, termos e realidades que se têm de entender como a
precariedade e a crítica uns dos outros, sem o que a ratoeira não se
desarma.
Os sete fôlegos de um livro

Os livros que se tornam clássicos de imediato, como foi o caso de


Formação da literatura brasileira, publicado em , às vezes pagam
1959

por isso, cando sem o debate que lhes devia corresponder. Passados
quarenta anos, a ideia central de Antonio Candido mal começou a ser
discutida.
O livro vinha apoiado em superioridades palpáveis, que se
impuseram em bloco e empurraram para a sombra os detalhes. A
erudição segura, a atualização teórica, a pesquisa volumosa, a
exposição equilibrada e elegante, o juízo de gosto bem argumentado,
tudo isso estava numa escala inédita entre nós. Seja dito entre
parênteses que a passagem do tempo não tornou menos desejáveis
estas qualidades. Entretanto, há também os outros aspectos, mais
difíceis de notar e igualmente valiosos.
A título de exemplo, vale a pena estudar as relações do crítico e
historiador com seus predecessores. Nada mais educativo que ver em
conjunto os capítulos de José Veríssimo sobre o Arcadismo, na
História da literatura brasileira, e os de Antonio Candido, na
Formação: o leitor notará que as observações do primeiro são
retomadas uma a uma pelo segundo, formuladas com maior
amplitude ou equilíbrio, combinadas a informações novas, corrigidas
pelo ponto de vista atual, mas sempre aproveitadas.
A relação de continuidade, adensamento ou superação é constante,
a ponto de se tornar uma força produtiva deliberada, uma técnica de
trabalho. Lembra o que o próprio Antonio Candido notou a respeito
de Machado de Assis, que teve a capacidade de utilizar e aprofundar a
elaboração dos romancistas que o precederam, crescendo sobre os
ombros de escritores que, ao menos em parte, eram bastante
medíocres, mas cuja obra havia contribuído na transposição literária
da experiência do país.
Sirva de ilustração a mudança na gura de Cláudio Manuel da
Costa ao passar de um crítico ao outro. À maneira romântica,
Veríssimo o considerava como um tímido precursor do sentimento
brasileiro, sem a força — ainda — da cor local. Já Antonio Candido
vai valorizá-lo como o poeta que, bene ciado pelo convencionalismo
generalizante do padrão neoclássico, pôde estilizar com admirável
universalidade o tema-chave das duas delidades do letrado brasileiro,
tão apegado à rusticidade da vida local quanto à norma culta do
Ocidente. A força particularizante no caso — a capacidade de
con gurar este con ito histórico — decorreu do universalismo da
escola poética, ao contrário do que supunha a visão romântica, que aí
só enxergava fraqueza e falta de peculiaridade. Assim, a valorização
crítica do que é historicamente especí co, ensinada pelo Romantismo,
é conservada, ao passo que a condenação romântica do registro
neoclássico é questionada.
O interesse da viravolta, com seu claro acréscimo em discernimento,
que deixa para trás o pitoresquismo nacionalista sem abrir mão da
particularidade da experiência local, dispensa comentários. Os
machadianos estarão reconhecendo uma variante do famoso
“sentimento íntimo” do tempo e do país, “diverso e melhor do que se
fora apenas super cial”. Para o que nos importa aqui, é uma instância
entre muitas da produtividade ligada à veri cação crítica da tradição,
que aliás é outro nome para o valor intelectual do processo formativo
estudado por Antonio Candido.
Como estou querendo sugerir a fecundidade dessa linha de
trabalho, vamos tomar para contraste o procedimento universitário
comum. Neste, os fatos da literatura local são apanhados sem maior
disciplina histórica e revistos ou enquadrados pelos pontos de vista
prestigiosos do momento, tomados à teoria crítica internacional e a
seus pacotes conceituais. O chão social cotidiano e extrauniversitário
da elaboração intelectual, pautado por suas contradições especí cas, é
substituído pelo sistema de categorias elaborado nos programas de
pós-graduação, na maior parte norte-americanos, com brechas para
franceses, alemães e ingleses. O universalismo infuso da Teoria
Literária, que em parte nem decorre dela, mas da sua adoção acrítica
nestas e noutras plagas, cancela a construção intelectual da
experiência histórica em curso. Desaparecem, ou cam em plano
irrelevante, o juízo crítico propriamente dito e o processo efetivo de
acumulação literária e social a que as obras responderam. Não custa
insistir que estas minhas observações não são ditadas pelo
chauvinismo, mas pela atenção às consequências acarretadas pelos
diferentes recortes do objeto.
Pois bem, o conselho que se pode tirar da abordagem de Antonio
Candido — que não foi concebida em vista desta polêmica — aponta
para uma colocação diferente dos acentos. Digamos que a operação
toda é comandada pelo juízo de gosto — que não se omite —, situado
e inspirado na vida presente, mas justi cado com argumentos
estruturais, historicamente informados, em que ele se socializa. Os
conceitos das gerações anteriores, tanto os que o tempo sustentou
quanto os provincianos e fora de esquadro, fazem parte dessa
informação histórica e são levados em conta, de sorte que a sua
aferição crítica, à luz da experiência e das teorizações
contemporâneas, tem a feição (e a força) de uma autossuperação que
excede o indivíduo e se dá no âmbito da história. Em vez do
enquadramento da experiência local pelas teorias internacionais, com
o que ele implica de abdicação, unilateralidade, vida emudecida etc.,
assistimos à relativização de esquemas universalizantes, a qual por si
só é um resultado crítico de primeira ordem. A independência no caso
se deve ao discernimento formal e conceitual do crítico, mas também
expressa algo de um momento nacional favorável, em que a
experiência feita no país, bem como a pesquisa de sua consistência
interna, pareciam contar como um prisma relevante sobre as coisas,
um prisma que valia a pena objetivar e comunicar. O interesse pelo
passado sob o signo da atualidade, quer dizer, sem passadismo, havia
sido rmado fazia duas décadas por Mário de Andrade. Para o
modernista, a tarefa nacional e a nossa função “para com a
humanidade” consistiam em tradicionalizar o passado, “isto é, referi-
lo ao presente”.1 O sentido antitradicional em que usa a palavra
tradição indica as carências do país novo, denotando o ímpeto de criar
juntamente a tradição e a liberdade em relação a ela.
Em seu momento inicial, digamos que a concepção rigorosa do
objeto, com lógica interna e delimitação bem argumentada, opunha a
Formação aos repertórios e panoramas algo informes que são
tradicionais na historiogra a literária. A novidade tinha a ver com o
clima intelectual da Universidade de São Paulo dos anos 1940 e 50,
quando houve em algumas áreas da Faculdade de Filoso a um esforço
coletivo e memorável de exigência cientí ca e de re exão. Sem
prejuízo da pesquisa, os trabalhos deviam ser comandados por
problemas, a que deviam a relevância.
Como diz o título do livro, trata-se de historiar nos seus momentos
decisivos a formação de uma literatura nacional. Este último adjetivo
é bom para datar a matéria estudada, em que a literatura brasileira
está em sentido histórico, e não geográ co e anacrônico. Por motivos
que merecem análise, nós brasileiros gostamos de nos contrapor aos
portugueses, mas não ao legado colonial. Assim, temos o costume de
considerar parte direta da nação tudo o que tenha ocorrido no
território. Daí que, forçando um pouco, os índios pré-cabralinos, José
de Anchieta, Cunhambebe, Zumbi, Gregório de Matos e o padre
Vieira gurem como nossos concidadãos, numa pseudoproximidade
que engana. Num livro recente, Fernando Novais aponta o
anacronismo embutido em expressões como “Brasil Colônia” ou
“período colonial da história do Brasil”, às quais prefere “América
Portuguesa”. “Pois não podemos fazer a história desse período como
se os protagonistas que a viveram soubessem que a Colônia iria se
constituir, no século , num Estado nacional”, diz o autor.2 Cada
xix

um a seu modo, Gregório e Vieira são grandes guras do sistema


colonial, ou, ainda, do ciclo colonial português. Será que cam
desconhecidos ou diminuídos por não terem participado de um
dinamismo que cinquenta anos depois de sua morte mal começava a
se esboçar?
Adivinhando a Formação da literatura brasileira pelo sumário,
poderíamos pensar num estudo sobre os momentos arcádico e
romântico no Brasil, com um capítulo de ligação sobre as Luzes.
Estaria perdido o essencial da contribuição de Antonio Candido, que
consistiu em ver aqueles momentos — esteticamente antagônicos —
sob o signo uni cador da independência nacional em processo,
compondo um objeto com questões especí cas. Em termos de estilo,
nada mais oposto ao Arcadismo do que o Romantismo. Um é
explicitamente universalista e convencional — basta lembrar os seus
pastores —, enquanto o outro visa o máximo de individualização.
Não obstante, impregnados de patriotismo ilustrado em dose variável,
os dois movimentos se integraram à gravitação da independência
nacional, à tarefa de criar um país que participasse da cultura comum
do Ocidente e que guardasse sionomia própria. A continuidade do
movimento foi uma tese dos próprios românticos, que viam alguns
árcades como predecessores, em especial os que haviam cantado o
índio. Nesse sentido, trata-se de um processo com unidade real,
inclusive do ponto de vista da autocompreensão de seus membros, que
tinham em comum alguma coisa da atitude empenhada e construtiva
da Ilustração.
Contudo, sublinhar essa unidade, no caso, é só o primeiro passo. O
essencial é descrever a sua articulação interna, ou seja, a
complementaridade funcional dos momentos e a regra de seu
movimento, além do sistema de paradoxos e de ilusões que lhe
corresponde. Noutras palavras, a formação da literatura brasileira é
identi cada como uma estrutura histórica em sentido próprio, aliás de
grandes dimensões, com atributos e dinamismos especí cos, a
pesquisar e estudar dentro de sua lógica. Por exemplo, a identi cação
do caráter peculiarmente interessado ou empenhado dessa literatura
— caráter implicado na natureza patriótica e programática do
processo da formação nacional tardia — é uma descoberta de peso,
cheia de alcance para a compreensão da vida intelectual brasileira, e
provavelmente das outras comparáveis, saídas, como a nossa, de
condições coloniais. Outra lei de movimento é a alternância dos
impulsos universalistas e localistas, que tem como quadro inicial a
sucessão cronológica dos padrões neoclássico e romântico, mas cuja
razão de ser profunda é outra, ligada às necessidades de a rmação de
uma literatura nacional, a que os dois aspectos são necessários,
motivo pelo qual depois seguiram se alternando, já sem muito a ver
com a matriz inicial da oposição. Essa feição estrutural-histórica do
livro não foi notada, porque o autor não fez praça dela. Talvez o
momento seja bom para lembrar que Antonio Candido é seguramente,
e de longe, o mais estrutural entre os críticos brasileiros, se
entendermos o termo em acepção exigente, para além dos cacoetes
terminológicos. Para dar ideia da posição avançada do livro, note-se
ainda que a combinação de estrutura e história — ou seja, a pesquisa
da historicidade entranhada nas estruturas, bem como da disciplina
estrutural dos andamentos históricos — estava no foco do debate
teórico da época. A Crítica da razão dialética, de Sartre, publicada
pouco depois, fazia dessa combinação a pedra de toque da
compreensão do mundo pela esquerda.
Voltando à estrutura da Formação da literatura brasileira, vejamos
algumas objeções que ela suscitou, as quais são outras tantas maneiras
de tornar visível o seu per l. Aos nacionalistas, convencidos de que o
Brasil começou no dia do descobrimento ou antes, o livro parece
pouco patriótico, pois entrega de mão beijada aos portugueses várias
das grandes guras que viveram nestas paragens, como o padre Vieira
e Gregório de Matos. Já comentamos o anacronismo. O argumento
reaparece com o poeta e crítico Haroldo de Campos, que considera o
livro um “sequestro do barroco”, sempre por não tratar de Gregório.3
O recorte sequestrador seria expressão das preferências românticas de
Antonio Candido e de sua antipatia por tudo o que tenha a ver com
Góngora. Também aqui o anacronismo dispensa comentários. Não
ocorreu a Haroldo que a ausência do grande baiano se pudesse ligar à
natureza do tema tratado, ou, por outra, que a formação da literatura
nacional seja um processo particular, com realidade e delimitação
próprias, cujo âmbito não é o mesmo da história do território ou da
língua, nem da literatura escrita “no Brasil”, para lembrar a solução
dada ao problema por Afrânio Coutinho. Os ciclos históricos existem
ou não existem. Não custa acrescentar que a força de Góngora é um
pressuposto explícito da Formação, onde forma um contraste
de nidor com a imagem de tipo neoclássico. O que por outro lado
não impede o livro de comentar os monstrengos do barroco
administrativo, tão funcionais nas circunstâncias da colonização.
Noutro passo, Haroldo de Campos supõe que o autor, porque
estudou uma formação nacional, é nacionalista, obedecendo a “um
ideal metafísico de enti cação do nacional”.4 Por isso mesmo, seria
prisioneiro das ilusões da origem e da evolução linear, que segundo a
loso a de Jacques Derrida acompanham a posição mencionada. Ora,
a despeito da autoridade do lósofo, nada mais distante da realidade,
pois Antonio Candido pertence à geração universitária que
notoriamente criticou o nacionalismo e seus mitos, dando uma
explicação materialista e sóbria da formação nacional, alheia à
patriotada. Já quanto à tese de que ele cultive a metafísica da
nacionalidade, só aplaudindo de pé o disparate. Para consolidá-la,
Haroldo cata e força as expressões do texto, de modo a mudar a
Formação numa epopeia do Logos e do Ser em busca de seu novo
habitáculo em terras americanas.5 Depois de fazer de Antonio
Candido um misto brasileiro de Hegel e Heidegger — o que é um erro
de pessoa dos mais extravagantes —, ca fácil apontá-lo como
ideólogo do Brasil metafísico. No caso, se vejo bem, a boa crítica
entraria pelo rumo contrário e desconstruiria as generalidades de
Derrida — tão estéreis do ponto de vista do conhecimento — à luz de
uma problemática efetiva.
Quanto à linearidade do esquema, o próprio da análise estrutural
praticada no livro é justamente a exposição articulada, oposta à linha
evolutiva simples. Assim, por exemplo, a busca romântica da
diferenciação nacional aparece como frequentemente inócua, além de
liada às expectativas europeias de pitoresco. Ao passo que o
universalismo arcádico aparece como capaz de con gurar
singularidades e perplexidades históricas de maneira superior. Onde a
visão linear?
Outros consideram que a combinação de categorias de história
literária e de história política — Arcadismo, Romantismo e
Independência — signi ca desconhecimento da autonomia da esfera
estética, ou, no caso, desconhecimento da periodização estilística (tese
de Afrânio Coutinho), representando a recaída em posições
ultrapassadas. Ora, a combinação dos âmbitos não decorre aqui de
uma opção de método, da preferência por uma maneira ou outra de
análise, mas da descoberta de uma estrutura e de um movimento reais,
cujas articulações, sumamente interessantes, se devem estudar e não
negar — a não ser, naturalmente, que se trate de demonstrar a sua
inexistência, o que seria legítimo (e talvez difícil). Seja dito entre
parênteses que a ligação re etida entre análise estética e análise
histórico-social representou, e representa, um passo à frente
substantivo, vistas as di culdades teóricas levadas em conta e
vencidas. Não vejo onde possa haver conformismo nesse
empreendimento, comprometido com a crítica das formas artísticas e
também das estruturas sociais.
Uma vez que Antonio Candido explicou, no prefácio, haver
adotado em seu livro o ângulo dos primeiros românticos, era quase
inevitável que alguém assinalasse o atraso ou a parcialidade de seu
ponto de vista. Contudo, como notamos a propósito do Arcadismo, o
autor analisou criticamente os preconceitos da perspectiva que, por
outro lado, julgou interessante tomar. Digamos que ele, socialista e
internacionalista, amigo da liberdade das artes, além de nascido cem
anos mais tarde, encara com simpatia o empenho patriótico e
formador daquela geração, cuja força e pertinência reconhece, sem lhe
desconhecer as limitações. Por um lado, enquanto tarefa, considera
que a etapa da formação está concluída e que seu prisma já não tem
razão de ser: a literatura brasileira existe e a rarefação da vida colonial
foi vencida. Não obstante, em outro âmbito, a formação do país
independente e integrado não se completou, e é certo que algo do
dé cit se transmitiu e se transmite à esfera literária, onde a falta de
organicidade, se foi superada em certo sentido, em outro continua
viva. Esta posição distanciada, mas não por completo, que de fato
existe no livro em relação ao movimento da formação, representa um
modo real e apropriado de consciência histórica. Com estas
observações entramos para o signi cado contemporâneo da ideia da
Formação.
Voltando atrás, em que consiste então o processo formativo?
Usando os termos do autor, trata-se da constituição progressiva de um
sistema literário, composto de autores, obras e públicos interligados,
idealmente na escala da própria nação, a qual também vai se
constituindo no processo. O adensamento da referência mútua, em
luta contra a rarefação e as segregações coloniais, era sentido como
participação na tarefa de construção cultural da pátria. A dimensão
civilizatória desse esforço integrador — que busca superar a nossa
“inorganicidade”, para falar como Caio Prado Jr. — é patente. A
tarefa se completa quando, por um lado, o conjunto da vida nacional
estiver incorporado, e quando, por outro, a cultura contemporânea
estiver assimilada em formas e temas. Do ponto de vista literário, a
repolarização nacional do imaginário tem o seu momento bom
quando entram em espelhamento mútuo e veri cador as relações
próprias ao país, já adensadas, e um complexo relevante de ideias e
formas modernas. O valor da desalienação cultural e histórica
implicada em movimentos dessa ordem é claro.
Vemos aqui uma das dimensões fortes do processo formativo, que
torna literário, ou seja, traz para dentro da imaginação, o conjunto
das formas sociais que organizam o território. Uma vez interiorizadas
pela literatura, estas passam a ser objeto passível de guração crítica e
de discussão. É esclarecedor a respeito o bloco que trata da cção
romântica, no segundo volume da Formação da literatura brasileira,
onde Antonio Candido assinala a vocação extensiva de nosso
romance. De certo modo, este cumpria o papel que hoje cabe aos
estudos sociais, num movimento de ampliação que só se aquieta
depois de recobrir o país no seu todo. A expansão, no sentido da
abrangência, se completa com o m do Romantismo, mais ou menos
por volta de 1870, quando começa a exploração em profundidade
empreendida por Machado de Assis. Como Antonio Candido também
explicou, esse romancista soube aproveitar de maneira consistente os
acertos de seus predecessores, ao mesmo tempo que lhes evitava as
estreitezas, o que permitiu — sem exclusão de outros fatores — que
criasse a primeira grande obra da literatura brasileira do século xix e a
primeira que de fato conta para a cultura moderna. Temos aqui um
quase protótipo do movimento formativo, com as suas estações sem
grande valor literário, que entretanto permitem uma acumulação que
em seguida faculta a viravolta crítica e o surgimento de um grande
escritor, capaz de transmutar a elaboração local e precária em valor
contemporâneo. Nesses termos, Machado de Assis é um ponto de fuga
e de chegada do movimento de formação da literatura brasileira. Ao
possibilitar a sua obra, despida de provincianismo e debilidades, o
processo mostrava estar concluído. — Salvo engano, seria este o
esquema da formação da literatura brasileira segundo Antonio
Candido.
Quando o livro saiu, alinhou-se entre várias obras de perspectiva
paralela e comparável, que buscaram acompanhar a formação do país
em outros níveis. No campo progressista, os congêneres mais
importantes e conhecidos eram os livros de Caio Prado Jr., Sérgio
Buarque de Holanda e Celso Furtado. A comparação entre estas obras
ainda está engatinhando, à espera de trabalhos de síntese. Muito
sumariamente quero sugerir alguns contrastes. Para Caio Prado Jr., a
formação brasileira se completaria no momento em que fosse
superada a nossa herança de inorganicidade social — o oposto da
interligação com objetivos internos — trazida da Colônia. Este
momento alto estaria, ou esteve, no futuro. Se passarmos a Sérgio
Buarque de Holanda, encontraremos algo análogo. O país será
moderno e estará formado quando superar a sua herança portuguesa,
rural e autoritária, quando então teríamos um país democrático.
Também aqui o ponto de chegada está mais adiante, na dependência
das decisões do presente. Celso Furtado, por seu turno, dirá que a
nação não se completa enquanto as alavancas do comando,
principalmente as do comando econômico, não passarem para dentro
do país. Ou seja, enquanto as decisões básicas que nos dizem respeito
forem tomadas no estrangeiro, a nação continua incompleta. Como
para os outros dois, a conclusão do processo encontra-se no futuro,
que pareceu próximo à geração do autor, e agora parece remoto,
como indica o título de um dos últimos livros dele mesmo: Brasil: A
construção interrompida (1992).
Dei a vocês três exemplos em que o ponto de chegada da formação
ainda está por ser alcançado, quando então haverá — ou haveria —
uma virada decisiva para a vida nacional. O caminho para chegar lá é
da ordem mais ou menos de uma revolução, ainda que não seja o
mesmo para cada um dos autores. Ora, a formação da literatura nos
termos de Antonio Candido difere bastante dessas construções, com as
quais no entanto se aparenta. Primeira diferença, ela pôde se
completar no passado, mais ou menos à volta de 1870 , antes da
abolição da escravatura. Digamos então que ela já está concluída no
momento em que o Autor a expõe, ou, por outra, que ele não escreve
com o propósito militante de levá-la a bom termo. Segunda diferença,
ao se completar ela não marcou uma transformação fundamental do
país. Ou ainda, foi possível que o sistema literário do país se formasse
sem que a escravidão — a principal das heranças coloniais — estivesse
abolida.
O quadro se presta a re exões sobre as liberdades e vinculações
complicadas da literatura, a qual pode atingir organicidade sem que
ocorra o mesmo com a sociedade a que ela corresponde. Vemos no
livro de Antonio Candido que a elite brasileira, na sua parte
interessada em letras, pôde alcançar um grau considerável de
organização mental, a ponto de produzir obras-primas, sem que isso
signi que que a sociedade da qual esta mesma elite se bene cia chegue
a um grau de civilidade apreciável. Nesse sentido, trata-se de uma
descrição do progresso à brasileira, com acumulação muito
considerável no plano da elite, e sem maior transformação das
iniquidades coloniais. Com a distância no tempo, pode-se também
dizer que essa visão do acontecido, apresentada por Antonio Candido,
resultou mais sóbria e realista que a dos outros autores de que
falamos. É como se nos dissesse que de fato ocorreu um processo
formativo no Brasil e que houve esferas — no caso, a literária — que
se completaram de modo muitas vezes até admirável, sem que por isso
o conjunto esteja em vias de se integrar. O esforço de formação é
menos salvador do que parecia, talvez porque a nação seja algo menos
coeso do que a palavra faz imaginar.
Na altura em que Antonio Candido escrevia, nas décadas de 1940 e
50, a sociedade brasileira lutava para se completar no plano
econômico e social. O impulso formativo recebia o in uxo
materialista da industrialização em curso e tinha como aspiração e
eventual ponto de chegada o país industrial, que se integra
socialmente através da reforma agrária, superando o atraso material e
a posição subalterna no concerto das nações. A vocação empenhada
da intelectualidade, explicada no livro de Antonio Candido, vivia um
momento substancioso. O nacionalismo desenvolvimentista, que tinha
como adversários inevitáveis o latifúndio e o imperialismo, imprimia
ao projeto de formação nacional uma dimensão dramática, de
ruptura, que por momentos se avizinhava da ruptura de classes e da
revolução socialista. Pois bem, esse sentimento da relevância prática e
histórica do processo de estruturação está presente na concepção de
Antonio Candido, onde entretanto a peculiaridade do objeto — a
formação da literatura brasileira — faz ver as coisas e o seu curso em
linha menos polarizada e triunfalista, ou mais cética. Digamos que os
autores progressistas que historiavam a nossa formação econômica e
social mostravam um movimento represado, que não se completara, e
que transformaria o país se viesse a se completar. Ao passo que o livro
que soube perceber o percurso efetivo da literatura nacional
constatava um movimento que se completou e nem por isso
transformou o Brasil. O sistema literário integrado funcionaria como
uma antecipação de integrações futuras? Não demonstrava também
que as elites podiam ir longe, sem necessidade de se fazerem
acompanhar pelo restante do país? Serão ritmos desiguais, que nalgum
momento convergirão para formar um uníssono? São discrepâncias
que fazem duvidar da hipótese e até da necessidade — segundo o
prisma — da convergência? Quais os ensinamentos a tirar dessas
constelações de resultados, que sintetizam a experiência nacional e
armam equações decisivas para o mundo contemporâneo? Seja como
for, sob o signo do desenvolvimentismo, os obstáculos encontrados
pela industrialização e pela reforma agrária, pelo cinema e pelo teatro,
pela alfabetização de adultos e pela reforma universitária pipocavam e
remetiam uns aos outros, sugerindo a noção de uma única e vasta
formação nacional em curso.
Chegando aos dias de hoje, parece razoável dizer que o projeto de
completar a sociedade brasileira não se extinguiu, mas cou suspenso
num clima de impotência, ditado pelos constrangimentos da
mundialização. A expectativa de que nossa sociedade possa se
reproduzir de maneira consistente no movimento geral da
modernização capitalista está relegada ao plano das fantasias pias,
não sendo mais assumida por ninguém. Por boa-fé, ceticismo ou
cinismo, os governantes não escondem que nas circunstâncias a
integração social não vai ocorrer. Vocês dirão se me engano, mas
tenho a impressão de que tampouco a esquerda está se
comprometendo a sério com a hipótese de uma integração acelerada
da sociedade brasileira. Nesse quadro novo, como ca a própria ideia
de formação? Vou só alinhar algumas perspectivas sumárias, para
sugerir questões e discussões possíveis.
Uma é de que ela, que é também um ideal, perdeu o sentido,
desquali cada pelo rumo da história. A nação não vai se formar, as
suas partes vão se desligar umas das outras, o setor “avançado” da
sociedade brasileira já se integrou à dinâmica mais moderna da ordem
internacional e deixará cair o resto. En m, à vista da nação que não
vai se integrar, o próprio processo formativo terá sido uma miragem
que a bem do realismo é melhor abandonar. Entre o que prometia e o
que cumpriu a distância é grande.
Outra perspectiva possível: suponhamos que a economia deixou de
empurrar em direção da integração nacional e da formação de um
todo relativamente autorregulado e autossu ciente (aliás, ela está
empurrando em direção oposta). Se a pressão for esta, a única
instância que continua dizendo que isso aqui é um todo e que é
preciso lhe dar um futuro é a unidade cultural que mal ou bem se
formou historicamente, e que na literatura se completou. Nessa linha,
a cultura formada, que alcançou uma certa organicidade, funciona
como um antídoto para a tendência dissociadora da economia.
Contudo vocês não deixem de notar o idealismo dessa posição
defensiva. Toda pessoa com algum tino materialista sabe que a
economia está no comando e que o âmbito cultural sobretudo
acompanha. Entretanto, é preciso reconhecer que nossa unidade
cultural mais ou menos realizada é um elemento de antibarbárie, na
medida em que diz que aqui se formou um todo, e que esse todo existe
e faz parte interior de todos nós que nos ocupamos do assunto, e
também de muitos outros que não se ocupam dele. Outra hipótese
ainda: despregado de um projeto econômico nacional, que deixou de
existir em sentido forte, o desejo de formação ca esvaziado e sem
dinâmica própria. Entretanto, nem por isso ele deixa de existir, sendo
um elemento que pode ser utilizado no mercado das diferenças
culturais e até do turismo. A formação nacional pode ter deixado de
ser uma perspectiva de realização substantiva, centrada numa certa
autonomia político-econômica, mas pode não ter deixado de existir
como feição histórica e de ser talvez um trunfo comercial em toda
linha, no âmbito da comercialização internacional da cultura. En m,
ao desligar-se do processo de autorrealização social e econômica do
país, que incluía tarefas de relevância máxima para a humanidade, tais
como a superação histórica das desigualdades coloniais, a formação
não deixa de ser mercadoria. E ela pode inclusive, no momento
presente, estar tendo um grande futuro nesse plano.
Há também o ponto de vista propriamente estético, interessante e
difícil de formular. Outro dia, um amigo ccionista e crítico me
explicava que o âmbito formativo para ele já não tinha sentido. Os
seus modelos literários lhe vinham de toda parte: da França, dos
Estados Unidos, da Argentina, a mesmo título que do Brasil. É natural
que seja assim, e é bom que todos escolhamos as in uências à nossa
maneira individual e com liberdade, sem constrangimento coletivo.
Não obstante, é verdade também que esse sentimento de si e das
coisas faz supor uma ordem de liberdade e de cidadania do mundo, e
sobretudo uma sociedade mundial, que não existem. Se em lugar das
in uências literárias, que de fato estão como que à escolha, pensarmos
na linguagem que usamos, comprometida — sob pena de
pasteurização — com o tecido social da experiência, veremos que a
mobilidade globalizada do ccionista pode ser ilusória. A nova ordem
mundial produz as suas cisões próprias, que se articulam com as
antigas e se depositam na linguagem. De modo mudado, esta continua
local, e até segunda ordem quali ca as aspirações dos intelectuais que
gostariam de escrever como se não fossem daqui — restando
naturalmente descobrir o que seja, agora, ser daqui.
No momento, o sistema literário nacional parece um repositório de
forças em desagregação. Não digo isso com saudosismo, mas em
espírito realista. O sistema passa a funcionar, ou pode funcionar, como
algo real e construtivo na medida em que é um dos espaços onde
podemos sentir o que está se decompondo. A contemplação da perda
de uma força civilizatória não deixa de ser civilizatória a seu modo.
Durante muito tempo tendemos a ver a inorganicidade, e a hipótese de
sua superação, como um destino particular do Brasil. Agora ela e o
naufrágio da hipótese superadora aparecem como o destino da maior
parte da humanidade contemporânea, não sendo, nesse sentido, uma
experiência secundária.
8½ de Fellini

o menino perdido e a indústria

É fácil gostar de 8½ e mais difícil dizer por quê. Presa à psicologia de


Guido e da criação artística, a discussão tende a perder-se em
banalidades sobre a persistência infeliz mas feliz do menino no
quarentão. O alcance do lme é maior, transcende a psicologia. Fosse
psicológico o seu eixo, não haveria prejuízo essencial em transformar
o cineasta num músico ou escritor, pois a distância entre a experiência
infantil e a realização artística ou pessoal permaneceria a mesma.
Lembrado o lme, entretanto, sabemos que o prejuízo seria enorme. A
pro ssão de Guido é o contexto indispensável de 8½: em contato com
a indústria do cinema, os problemas tradicionais do artista e
intelectual tomam feição nova e piorada.
Acionado pela indústria, sem a qual não nasce, o cinema atinge
grande parte da população nacional. Pelo dinheiro e pela fama que
movimenta, é o sonho comum: todos querem registrar-se nele. É a
primeira forma de arte a ter circulação forçada, análoga, em
penetração, à expansão da economia moderna. Essa força, Fellini faz
senti-la ao mostrar como tudo sorri, se arruma e curva quando passa
Guido, o diretor: todos querem ser personagens suas. Ao alcance total
corresponde, é claro, uma responsabilidade também total. Se querem
todos mostrar-se, é preciso fazer justiça a todos. A concepção artística
de Guido, entretanto, é burguesa; o seu anseio é de objetivar uma
visão pessoal, idiossincrática, uma xação infantil de que assim caria
liberto. Este o problema psicológico explícito no lme. O alcance
maior do tema, entretanto, implícito, está na articulação de sua
banalidade com a indústria, que lhe dá potência. Fosse escritor, Guido
poderia atrapalhar, com as suas xações, a vida de três, quatro, cinco
mulheres. Muito mais é impossível, para quem corteja com recursos
pessoais. Mas Guido é diretor de cinema: tem as mulheres da nação a
seu dispor, ao dispor de suas manias, e irá atormentá-las segundo a
sua semelhança maior ou menor com os mitos infantis. Há
descompasso entre as forças sociais desencadeadas e o particularismo
que as rege. Diante da máquina social, do poder criado pelo
desenvolvimento burguês, é a própria concepção e glori cação
burguesa do indivíduo — partícula sagrada, valor máximo — que
prova grotesca. Valer-se da indústria e atordoar o país para objetivar
uma xação infantil é possível, mas absurdo: se a personalidade
triunfante é livre e caprichosa, é que todos lhe devem o salário de que
vivem. Como bem demonstra a gura de Guido, crueldades e
fraquezas de si pequenas são monumentalizadas pela posse privada da
engrenagem social. O cinema põe em xeque a concepção individualista
das artes: a busca da garantia subjetiva de autenticidade — o ator
deve corresponder à visão prévia do diretor — prova ser tirania. A
obra não é feita para o bem do mundo, mas é o mundo que existe
para a subsistência da visão. Esta frase, que para os estetas do século
xix era metafórica e exprimia repulsa em face da comercialização
listina da vida, ganha sentido prático e real quando associada ao
cinema e ao seu poder econômico. Aliada ao poder industrial, a
delicada exigência de autenticidade subjetiva põe à mostra o seu lado
prepotente, a fúria de impor aos outros a própria visão; fúria que é
simbólica da violência diariamente realizada na vida competitiva. Uma
idiossincrasia quer ser melhor que a outra. O cinema, pelas exigências
práticas de sua linguagem, explicita o que ca implícito nas outras
artes: há violência social no impulso que leva à elaboração de
mitologias pessoais, mesmo nas ligranas de um poema hermético.

Acusa-se ½ de ampliar desmesuradamente uma angústia pequena.


8

Mostramos já que esta ampliação é tema do lme, e não seu defeito.


O engano vem da identi cação de Guido e Fellini, autorizada pelos
colunistas de mexerico e pelo próprio diretor, talvez, mas não pelo
lme. Se Fellini é Guido, os con itos deste campeiam idênticos no
peito daquele, que seria o bobo de suas próprias limitações, um
pequeno-burguês nostálgico e fantasioso, incapaz de fazer coisa que
preste. Para defender 8½ é preciso mostrar em Guido a personagem,
explicitar a diferença entre o seu modo de ver e o nosso de vê-lo
vendo. Quanto mais idiossincráticos os seus propósitos, maior o
signi cado social de sua gura, que resta expor.
Guido saúda a atriz francesa dizendo que tem cara de lumachina,
“caracol”; a semelhança é mesmo surpreendente. É de supor que o
diálogo esteja ajustado às personagens, de modo a fazê-lo exato; basta
imaginar a di culdade, caso o texto precedesse os atores, de encontrar
uma atriz com cara de escargot. Na realização do lme, o diretor
parte dos atores que tem, e não das personagens imaginárias. O
processo não será privativo de Fellini, mas tem importância especial
para ½, cujo tema é o procedimento inverso: Guido parte de suas
8
obsessões e procura nos atores a semelhança com elas; mas entre visão
e ator há um hiato insuperável. Não se deve esquecer, entretanto, que
as visões de Guido — as visões e experiências belíssimas, ricas e
naturais, que seus atores só conseguem estragar — foram elas mesmas
lmadas por Fellini. Há dois lmes: um bom, da vida real e imaginária
de Guido, e um ruim, em que Guido procura recriar a sua experiência.
Correspondem às duas maneiras de lmar que descrevemos. Para
exempli car, imaginemos Fellini com um arsenal de dez bruxas mais
ou menos parecidas. Tomará uma delas e tentará captar, em detalhe,
as possibilidades de bruxa da bruxa que tem; esta será a Saraghina
extraordinária das visões de Guido. Para fazer o lme feito por sua
personagem, entretanto, Fellini procederá de maneira diversa: manda
que as outras nove imitem a primeira, já transformada, agora, em vida
real, fora do alcance de Guido, que gostaria de reproduzi-la. A
diferença no resultado é nítida. Filmadas segundo as suas naturezas
individuais, as novas poderiam ser interessantes; forçadas a imitar a
Saraghina original, tornam-se todas cópias baratas, interpretam seus
papéis. As duas maneiras de lmar correspondem, respectivamente, a
8½ e à sua personagem; a de Guido sai batida. São também
transposição técnica do antagonismo social que expusemos a
princípio: o anseio burguês, de impor e assim salvar uma visão apenas
pessoal, é contrário ao compromisso coletivo, e por isso mesmo
objetivo, do cinema. Para Guido as imagens valem quando
biogra camente saturadas; o seu critério é a memória, a sua tarefa, a
recriação. Para 8½, as imagens valem quando plenamente realizadas;
o critério é a signi cação objetiva, a tarefa é a revelação de
possibilidades do objeto.
O frescor inalcançável da visão imediata, miragem de Guido, é
alcançado e fabricado por Fellini. Fabricado o infabricável, mediado o
imediato, deslocam-se os problemas. Fica sem justi cativa a obsessão
de Guido, que identi cava a pesquisa da beleza à objetivação de suas
xações infantis e de seus ecos adultos. Será presunção sustentar a sua
identidade, uma vez demonstrado que se podem separar. O lme teria
um tema que ele próprio declara ultrapassado, e estaria certo dizer,
como disseram críticos de esquerda, que ele não interessa. Entretanto:
não basta saber que uma aberração é aberrante para tirá-la do mundo;
não basta, para dissolvê-la, saber que a posse privada da engrenagem
social é um contrassenso; o casamento é contraditório, pretende xar
a espontaneidade? Não é por saber disso que as pessoas se amolam
menos. Em efígie, a consciência racionalista já enterrou o mundo
burguês, que entretanto persiste e lhe dita as regras de existência. Esta
reprise continuada e compulsória de mentiras gastas é o chão
histórico, e atual, de 8 ½. A persistência meramente prática de
costumes e instituições, que racionalmente já são anacronismo, dá
justeza à mistura de ridículo e desespero no lme, exige a investigação
sustentada e mesmo maníaca das origens, das razões que dão sete
fôlegos ao cadáver. A técnica de 8½ torna caduca a de Guido, mas a
ordem vigente, à qual se aplica, repõe os problemas de Guido em
circulação, na qualidade, agora, de ultrapassados.

As contradições da realidade social, mesmo se criticadas em teoria,


impõem a existência contraditória: a cada impasse corresponde uma
crispação na consciência individual, obrigada a fazer sua uma
di culdade que despreza. A concessão, entretanto, não dissolve o
impasse social, que perdura e volta a cobrar submissão logo adiante.1
Favorecido pela força do cinema, Guido não procura o mundo; o
mundo é que o procura e des la na sua frente, uma procissão
oferecida de empresários, empregados, atrizes, amigos velhos,
jornalistas, todos rapidamente consumidos e dispensados. A
contradição entre o alcance coletivo e o horizonte personalista, em
Guido, desgastará de maneira sempre análoga todas as relações
pessoais. O mel se despreza na voracidade das moscas; espera por uma
que não seja voraz, que entretanto não virá, pois se vier não será a
esperada. Ao impasse social corresponde uma coleção de con itos
individuais, imagens suas, em cuja variedade transparece a constância
da impossibilidade fundamental. É a própria realidade que está xada.
Esse contexto faz reconsiderar a xação psicológica, a qual poderá
não ser apenas mania contingente, sem sentido generalizável. Pode
corresponder à estrutura do mundo real. Na obsessão que vê o mesmo
em tudo pode haver loucura, mas também senso, senso de que a
multiplicidade do mundo não é renovação, mas variação de uma
di culdade insuperada.
Na perspectiva biográ ca, de Guido e da memória, este traço
maníaco da realidade é ligado à primeira experiência pessoal do
impasse, que seria matriz e causa de suas versões posteriores.
Entretanto: sem prejuízo de ser indelével para a biogra a individual, o
detalhe da primeira experiência é contingente em face do impasse
objetivo, que pesaria de uma ou de outra forma. Embora o
antagonismo entre sexualidade e vida normativa, para Guido, seja
mera repetição do con ito entre Saraghina e sua mãe, o con ito, por
sua vez, é a con rmação do antagonismo, que tem alcance coletivo.
Está-se vendo que a pesquisa da infância, tida por chave das
di culdades adultas, leva a substituir ao impasse objetivo uma sua
manifestação contingente — esta a banalidade das preocupações de
Guido. Mas vê-se também que nos seus achados vive em detalhe a
contradição social — este o horizonte de 8½. Fixações pessoais são a
cifra traumática da violência que sustenta uma ordem de convívio.
Não são simbólicas para Guido; são mesmo xações, e devem ser
remidas como tais: são tortura e promessa de prazer, recuperá-las em
sua peculiaridade seria uma libertação. Na perspectiva do lme,
entretanto, elas têm grande generalidade: a igreja de um lado e as
perdidas do outro, a infância na província, na casa-grande, cheia de
mulheres serviçais, e a vida na cidade grande, das mulheres
independentes — esses contrastes compõem um padrão típico, de
alcance ocidental.

Guido circula ativamente entre presente, memória e fantasia. As


senhas de passagem são geralmente detalhes visuais, e a origem do
movimento é o instante do adulto. A matriz dos signi cados,
entretanto, está nas imagens da infância, cuja força e anterioridade
lógica faz delas como que o lastro real da inquietação de Guido. Os
dilemas do adulto aparecem como variação mais ou menos disfarçada
de contradições antigas, de uma ambiguidade fundamental: a
Saraghina é o mal mas é o bem; e a mãe e os padres são o bem mas
são o mal. A bruxa, uma espécie de hipopótamo leonino, enxotado
para as praias abandonadas da povoação, é feroz; mas é cúmplice,
também, de todos os anseios, pois em sua ferocidade acuada
preservou-se a vindicação sensual da felicidade que o povoado
expulsou e reprimiu. Se a Saraghina existe, tudo é permitido. É
assombrosa de poder libertário a cena em que o monstro humilhado
se trans gura pela dança e pelo aplauso dos meninos, transformando-
se em leoa e nalmente em felicidade turbulenta. Mas o que é bom
dura pouco: os padres chegam logo e arrastam o menino para o outro
campo, da religião, da família, da escola. A mãe de Guido, uma santa
senhora, é limpinha, magra e virtuosa. Implora ao lho que se
comporte. Vista em close, entretanto, tem o olho rancoroso. Enquanto
enxuga as lágrimas sentidas da pálpebra esquerda, o seu olho direito
espia, duro e acusador. Em seguida o sentimento e o lenço passam
para a face direita, trocam de lado com a virtude ultrajada. As
imagens do bem são contraditórias mesmo visualmente; a decência é a
face hipócrita mas transparente da autoridade: assim na composição
simétrica de sentimento e tirania sobre um rosto, na silhueta frágil da
gurinha materna, desmentida pela dureza dos detalhes sionômicos,
no gesto ungido dos padres, que vistos de perto têm cara de mulher.
O antagonismo entre Luisa, esposa de Guido, e Carla, a sua
amante, reproduz o con ito da infância. A duplicação faz o esquema e
o interesse psicológico do enredo. No brio civilizado e ressentido de
Luisa ecoam os brados de vergogna dos padres e da mãe, como no
gesto rocambolesco e pequeno-burguês de Carla, obsequiosamente
desfrutável, ecoa minguada a liberdade prometida pela Saraghina. A
correspondência entre os pares é bem explícita: durante um beijo
sonhado, Guido transforma a mãe na sua mulher, e no quarto de hotel
transforma Carla em Saraghina, ao pintar-lhe as sobrancelhas e
pedindo que faça uma faccia da porca. O real é o presente, a infância
é imaginária; mas a nitidez está na infância, de que o real, presente, é
re exo intrincado.
O presente visual é poroso, centelha para memória e fantasia; deixa
transparecer a matriz irresolvida, e por isso constante, da infância. A
matriz clari ca, ordena a confusão da experiência, é capaz de
sustentar a identidade pessoal através da voragem das solicitações. A
unidade da pessoa está baseada, portanto, na permanência de
impasses, na fraqueza. Há prazer na recorrência, autoconstatação; a
vida ganha, assim, sentido, embora injusti cável, pois ligado
meramente à repetição. Daí a felicidade ambígua que acompanha os
inúmeros déjà-vus; muda o mundo mas não mudo eu, que sou sempre
o mesmo procrastinador; o que me con rma me piora, o que me salva
me dissolve, é hostil. Essa é a experiência que anima ou desanima a
pesquisa de Guido e a torna tão contraditória.2
Tudo o que os olhos veem pode ser sinal do que viram e querem
modelar na imaginação. Os joelhos da lavadeira, nas termas, levam às
pernas da Saraghina dançando; Carla no quarto, versão de Saraghina,
traz a imagem da mãe; a senha infantil, asa nisi masa, evoca a hora do
banho e o dormitório da infância. As imagens fazem eco: no harém,
Guido abana as mãos cruzadas à volta do pescoço como fazia a
menina Claudia antes de dormir, para conjurar espíritos; e Claudia
será o nome da grande vedete; Guido é carregado em toalhas por suas
servas imaginárias, como na infância, quando era embrulhado em
fraldas para sair do banho; a mulher imperiosa, que sobe e desce as
escadarias do hotel, tem o sorriso da estátua da Virgem que Guido
vira ao sair do confessionário, quando criança. Por força das
repetições e variações, as imagens passam a reverberar. Exigem e
suscitam uma atitude peculiar, de atenção visual, empenhada em
vislumbrar o que viu no que vê; um tipo de atenção sensorial,
disponível, habitualmente reservado à música, pouco a m de decisões
morais.
Não importa rmar posição diante de Luisa ou Carla; importa
redescobrir nelas a infância, o que é uma posição também. A postura
estritamente visual não toma partido; constata e associa. Através dela
Guido furta-se aos con itos em que se meteu; busca em tudo a
memória e a felicidade, e basta. Recria assim o privilégio da meninice,
quando corria a ver a Saraghina sem saber ou se ocupar do pecado. A
pureza do mundo infantil, entretanto, que é a fascinação de Guido,
não está na ausência de contradição — a mãe e a rumbeira se
excluíam desde sempre —, mas na ignorância dela. Embora a
contradição existisse no plano objetivo, pois existiam a praia e a
escola, não fora ainda interiorizada, em forma de consciência e
compromisso. O adulto não vê Carla sem pressentir o desgosto de
Luisa, e não vê Luisa sem sentir, em sua leveza um pouco antisséptica,
a exclusão de Carla. A plenitude das imagens da infância corresponde
à plenitude com que o menino esteve na praia como no casarão, antes
de saber que um custava o outro. A comparativa palidez das imagens
da vida adulta, por outro lado, corresponde ao senso, presente a cada
passo, do oposto negado e perdido. A identidade entre as pesquisas
autobiográ ca e estética tem o seu fundamento aqui: se as imagens da
criança são as mais fortes, é a pesquisa delas que irá produzir a obra
melhor. Guido não busca, pois, um mundo em que esteja superado o
seu con ito; basta-se com procurar uma fase de sua vida, ou uma
postura, em que não seja atingido pela contradição, que entretanto
deve ser nítida e vigorosa, e deve lambiscá-lo sempre. Busca a
repetição inofensiva, mas não a superação. A possibilidade infantil de
alinhar com os dois lados da contradição, de não optar entre os
queridos, é a sua inveja. É o que tenta recuperar pela redução do
mundo à dimensão visual: reduzido, o mundo volta a ser pleno; menos
é mais, pois imagens não se negam ativamente, mesmo se
contraditórias podem coexistir. A destruição está no nível dos feitos
vivos, da lógica das situações.
Guido prefere ver apenas. Ora, a isenção em meio de contradições é
coisa de eremita ou é privilégio. Em princípio, o mundo poderia
deixar de lado quem não se ocupa dele. Guido, entretanto, se abstém a
partir de uma posição de força, de cineasta. O mundo vem a sua
procura em lugar de abandoná-lo. Há privilégio, mesmo que o
privilégio no de não respeitar, ao menos visualmente, privilégios
sociais ou normas repressivas. A postura contemplativa — os olhos
buscam seu prazer onde ele esteja — pressupõe uma república
satisfatória, que não existe. Prova é que ao corpo não se permite a
poligamia ativa e farta permitida aos olhos, cujo democratismo
natural, cuja capacidade imediata de interesse e simpatia não
derrubam, por sua vez, as diferenças sociais. Os olhos são
progressistas enquanto o corpo obedece ainda a uma legislação
retrógrada. A postura de Guido é ambígua; vacila entre crítica e
complacência, pois, se nasceu de uma retirada, no retiro passa mais ou
menos bem e gosta do espetáculo de que se retirou. A evasão nada
resolve, mas assinala um impasse e um anseio que são reais. É
resistência simbólica, embora tortuosa e humorística; uma consciência
misturada, ciente de que seus con itos insuperáveis não são
insuperáveis, além de não contarem muito.

A busca da imagem justa é central ao lme, é preciso interpretá-la. É


tema através das obsessões visuais de Guido e pressuposto técnico do
enredo, já que se deve criar a ilusão de uma experiência imediata e
rica, inacessível à reprodução artística. ½ é de uma beleza visual
8

assombrosa. As imagens que apresenta, perseguidas por Guido,


irradiam felicidade e melancolia de mistura — a sua riqueza é a
presença mais imediata para quem vê, mas é, também, a mais
intangível ao conceito, pois não se liga diretamente à trama e ao
diálogo, embora seja o seu contexto essencial. A imagem feliz é uma
utopia cifrada. Guido e 8½, cada um a seu modo, convergem na busca
daquela: fazer que as pessoas apareçam segundo a sua natureza; dar-
lhes razão até que oresçam desinibidas. As imagens tocadas de poesia
são empostadas, as guras parecem ser propositalmente o que são.
Essa é a chave de seu alento. Em suas visões, Guido como que bolina
as guras, para suscitá-las a desabrochar. Lembramos a cena de Carla
no terraço de balneário. Quando nota a esposa ao pé de Guido, a
amante suburbana se amplia em intuições de cosmopolitismo, encena
um esplendoroso ritual de discrição; família apesar das peles
excessivas, atemorizada pela situação, mas envaidecida também, um
pouco alucinada pelo balneário grã- no e sobretudo achando sublime
o sacrifício de ser uma senhora sozinha no parque, esconde-se bem
visível a um canto. A cena prossegue na fantasia de Guido, que atrás
de seus óculos escuros visualiza Carla cantando, generosa, esticada e
comovida como uma girafa que uivasse à lua, infeliz mas feliz porque
amada a distância, solitária e fustigada como um violinista de opereta.
A visão realiza o que a realidade suscita. Pela empostação acentuada,
o que seria temor irre etido é transformado em estratégia consciente.
Encenando a si mesma, Carla não é mais o seu próprio limite vulgar; a
sua vulgaridade é uma estilização graciosa que ela houve por bem
escolher. O romantismo de radionovela, exaltado mas prudente, de
Margarida Gauthier dentro dos limites do praticável torna-se ironia
em meio às di culdades dominadas. A euforia da imagem, sua
desenvoltura utópica, vem da facilidade ostensiva no interior dos
envolvimentos sociais.
A imaginação de Guido põe Carla a salvo das contradições reais e
das limitações do bom senso, é um palco em que ela não responde
pelo que faz. Nesse contexto, o sentimentalismo imbecil da imagem —
de que adianta a cantoria modesta e maravilhosa, quando em frente
está a esposa, bufando? — passa por uma transformação
surpreendente: no mundo irreal, onde não se torna abjeta pela
humilhação a que corresponde, a vontade de agradar traduz apenas
vontade de ser e de fazer feliz. Liberados de sua consequência prática
pela fantasia, os dois lados da contradição se tornam positivos, não
pedem a mútua exclusão. Carla sente-se sublime e escusa
simultaneamente, o que em imagem é duas vezes bom: uma porque é
justo satisfazer e satisfazer-se, e outra porque é divertido burlar
instituições hostis. Numa como noutra agitam-se veleidades válidas.
Na realidade, entretanto, que é da esposa, e das leis, e forçosa, dá-se o
inverso: porque satisfaz os caprichos seus e de Guido, Carla será mais
puta do que sublime; e também na discrição haveria menos
cumplicidade feliz que receio e ferida. Luisa, a esposa, fulmina Carla,
a amante. Os anseios contraditórios, que eram felizes um a um,
compõem a pessoa machucada quando se enfeixam na sua
consequência prática. Dar a Carla o que é de Carla, ainda que ela não
o possa sustentar — reside nisso a beleza da imagem —, é não dar a
Luisa o que é dela; e vice-versa. Não é possível dar razão às duas,
salvo em imagem, pois alimentam-se da mútua negação. Já se vê que a
felicidade está nas visões isoladas, boas por si, e no enredo, na
dimensão das consequências e da responsabilidade, está o desastre.
Guido tem um fraco pela fraqueza. Vê nela o desejo que não será
remido, que só não é força por força das circunstâncias. O amor do
instante é o temor da sua continuação. A imagem abriga
possibilidades que o enredo desconhece, e resiste a ser enquadrada
nele; está para ele, que dispõe dela, como a veleidade pessoal para a
marcha da sociedade: é uma célula subversiva, cuja riqueza, sem
préstimo para a trama, respira lamento e protesto contra a
simplicidade compulsória do que lhe sucederá. Poderia ser o ponto de
partida de um entrecho novo, de um mundo que zesse justiça ao que
o entrecho velho descartava. Construída contra o enredo hostil, a
imagem feliz é o germe imaginário de outra ordem de coisas. A
perfeição re ui sobre a existência e incita à esperança; na atmosfera
fantástica do lme, a felicidade poderia alastrar como uma coceira.
Daí a força espantosa dessas imagens. Guido, entretanto, não quer
revolucionar o mundo, nem imaginariamente. Quer curar certas dores,
mas não para sempre nem por completo, pois perderia o prazer da
cura. Daí a melancolia patife que acompanha as suas revoluçõezinhas
visuais; não são coisa séria. E há outra tristeza, também, esta
irremissível e pesada: Guido quer felizes as suas personagens, mas aqui
e agora, sem que se transformem, pois transformadas não seriam mais
as que quer bem. Não quer revolução, quer redenção. Quer que as
personagens sejam mas não sejam como são: felizes, estariam livres de
sua contradição, e não seriam quem são agora; sendo como são, não
seriam felizes. O percurso é contraditório: para dar felicidade é preciso
suspender a contradição que infelicita, o que suspende, entanto, a
individualidade por amor da qual fora suspensa a contradição. Na
perspectiva de Guido, a imagem feliz não é verdadeira, e a imagem
verdadeira é infeliz.
Em termos de lógica dramática: não é Luisa inteira quem escorraça
Carla, nem seria o contrário. Para combater, as rivais deveriam
especializar-se uma em ser amante e a outra em ser esposa, com
prejuízo do mais que pudessem dar. O impasse institucional pesa sobre
a imagem, as guras não podem coexistir com plenitude se respeitam
o seu contexto social. Retidas pela contemplação, entretanto,
transbordam. Transbordando, sugerem novos enredos ou destinos
mais ricos. Mas Guido acolhe as sugestões só pela metade; para o
diretor personalista, o papel da fantasia é ambíguo: deve recuperar a
integridade que a vida prejudica, mas não importa se além ou se
aquém do con ito. O anseio de plenitude é menor que a fobia pela
tristeza da imperfeição visual. O critério não está nas exigências do
mundo, mas na serenidade do cineasta. Há duas vias, portanto, na
composição da imagem feliz: uma, triunfal, em que a personagem
supera o que a limita, chegando à inteireza; na outra, humilhante para
o objeto, a veleidade pessoal é ajustada à situação real de modo a não
diferir dela, anulada portanto. Nos dois casos, antagônicos, resulta
harmonia para a contemplação. No retiro visual, a benevolência mais
generosa e a crueldade não se excluem.
A felicidade e o acerto das imagens provêm de sua irrealidade.
Negam, sublimam, superam con itos reais, deixam entrever a
liberdade no corpo mesmo de quem está preso. A realidade infeliz é a
sua referência, fora da qual não têm sentido. Não têm autonomia.
Para desespero de Guido não compõem uma história, embora sejam
parte da história de um diretor que por meio delas não consegue
compor uma história. O melhor exemplo é Claudia. Ao criticar o
roteiro de Guido, o literato magriço a rma que ela é o mais bolorento
dos clichês bolorentos que perfazem o lme futuro; e tem razão.
Entretanto, ela é das imagens belíssimas do lme presente. Como
explicar? Tomada por si só, de fato, ela seria uma fada boba. Mas o
seu contexto é a fantasia de Guido, levemente combalido e canastrão,
recuperando o fígado nas termas. Vista através de nervos cansados, a
sua imagem branca de enfermeira das almas e do corpo é medicinal. O
copo d’água, vindo de suas mãos, é como a fonte da vida nova. Seu
passo é leve e constante como a doçura estática de seu sorriso. Ah,
constância sem esforço. O corpo é cheio mas os pés são suaves,
descalços sobre a relva. Oh, peso que não fere. Claudia avança como
quem bebe a brisa, as mãos um pouco atrasadas deixam supor que irá
voar. Ah, sonho, não voe já. Precisa ser vista duas vezes: como a garça
alvinitente e chocha, ragazza crescida entre objetos de antica belleza,
pureza e solução no lme de Guido, e como a contraimagem silenciosa
e lenitiva da desordem, das olheiras, do ruído. É a presença de Guido
que dá vida ao chavão. Claudia não pode contracenar, não tem
continuidade no mundo imaginário; a sua substância é o instante de
Guido. Ela é como um poema seu. Mas poemas não compõem um
romance.
Tomar o partido da incoerência, da imagem contra o enredo, do
instante contra a sua consequência, é tomar o lado da
irresponsabilidade; mas é o lado, também, das veleidades inibidas ou
espezinhadas pela coerência que esteja no poder. Essa ambiguidade é o
limite de Guido, seu fracasso como diretor, seu interesse como
personagem. Não há realismo em sua atitude, pois a coerência irá
prevalecer; mas há sentido em sua derrota. Resulta uma atmosfera
elegíaca, de lamentação das felicidades possíveis, das possibilidades
que a situação deixa mas não deixa medrar. Paradoxalmente, a
impotência de Guido transmite, pela irritação que nos causa, o senso
preciso de que a ordenação da vida está obsoleta; consciência e meios
materiais, parece tudo à mão para modi cá-la.

A imagem feliz, construída para curativo pessoal, nasce de uma


operação simples: transforma em opção o que é destino, em disfarce o
que é cicatriz, e faz que desapareça, assim, a marca da coerção social.
Anula a diferença entre o propósito e a existência. Cria um mundo
feliz e fraterno, cuja nalidade é fazer bem a Guido, não incomodá-lo.
É como uma república socialista de que ele fosse o rei. As imagens de
paz são imagens de violência, pois cancelam o próximo para paci cá-
lo. A fantasia da dança reconciliada entre a esposa e a amante é um
exemplo; dá prazer a Guido, mas é possível somente porque Luisa foi
esvaziada. A generosidade de Guido é generosa com ele mesmo e
brutal com as personagens. A disparidade entre carinho e
impertinência culmina quando Guido transforma a mulher numa linda
criadinha azafamada, que prepara o seu banho e escova o chão de seu
harém. As conciliações todas são mandadas, obra da onipotência
imaginária de Guido; não solucionam nada, não passam pelo interior
das personagens e de seus con itos. Não é à toa que a grande
paci cação nal se faz numa ciranda. Os pais e o lho, os padres e a
rumbeira, a mulher e a amante, os atores e seu diretor, todos dão as
mãos numa dança fraterna, sem que, entanto, se resolvesse, entre eles,
uma só diferença. A imagem da farândola paci cada tem três lados:
para Guido ela é feliz, pois suspende as suas contradições mais doídas
e permite uma conciliação, ilusória, pelo transbordamento
sentimental; para as personagens é um ultraje, pois o próprio de cada
qual é posto de lado, a bem da paz de Guido; para o espectador é
comovente e irritante, pois, embora atenda a uma dor real, não leva
para além dela — pela ilusão que cria fecha um círculo de
reincidência. Guido passa pelo que passa sem aprender, no nal está
no mesmo ponto em que começou. Quer, por força, tomar
contradições como se fossem harmonia, reter o mundo tal e qual; para
nada perder nada supera, para não mentir a si mesmo, ou mesmo a
Carla e Luisa, mente aos três.
Guido anda em círculo. O horizonte de 8½ e do espectador,
entretanto, não é o seu, é maior. Daí não ser trágico o con ito, que
tem mais de inércia que de necessidade. A inércia de Guido, contudo,
desperta uma reação muito forte, aparentemente desproporcional.
Também Carla é casada, também Luisa tem um erte. Não obstante, a
situação das duas é incomparável à de Guido, cuja complacência nos
atinge e escandaliza como coisa decisiva. Por que razão?
Habitualmente, encontrar uma solução privada e secreta para
impasses coletivos, por isso mesmo inevitáveis, é sinal de saber viver.
Salvo quando a solução pessoal pode ter alcance público, suspendendo
o impasse que tornava necessários o engenho e o segredo individuais.
Deixar de publicá-la passa então a conformismo, e mais, passa a
ridículo, pois produz uma prudência já desnecessária.
Embora seja palpável à experiência, o anacronismo nos impasses de
Guido é difícil de localizar. Por que não serão válidas as obsessões de
um homem, os seus compromissos entre a mulher e a amante? Qual o
contexto que lhes tira o peso? Guido não é simplesmente um homem;
é um cineasta. O cinema, com a atmosfera que o envolve, introduz
uma constelação prática para a qual os con itos burgueses são letra
morta. Por forte que seja o senso disso, isso não é fácil de comprovar,
pois trata-se do horizonte efetivo, mas nunca explicitado, de 8½ e de
nossa cultura. Os indícios do mundo novo mal e mal se entreveem,
embora sempre o bastante para tornar pungente e obsoleta a
permanência do mundo velho.
Não nos interessa, aqui, o argumento abstrato contra a sociedade
individualista; procuramos as imagens e situações cuja mera presença,
no lme, bastou para tingir de caducos os empenhos de Guido. Em
seu passeio pelas termas, o cineasta vê uma sucessão vertiginosa de
faces extraordinárias, imperiosas e originais. A sequência não se deve
apenas à perspicácia de seu olhar treinado, que sabe ver, mas ao
exibicionismo que a sua pro ssão suscita. Daí a vida se acelerar e
empostar à sua volta. Vislumbrada por todos na atenção do diretor, a
câmera de cinema representa um estágio novo da técnica, faz
pressentir modalidades novas de convívio. Mobiliza impulsos como
aquele que faz um torcedor saltar, para que os telespectadores da
cidade tomem conhecimento de sua cara. Não que ele se ache bonito,
mas quer ser visto. A câmera de cinema tem um poder curioso, que é
preciso interpretar: desperta orgulho nas pessoas, de serem quem são.3
Diante do olho impessoal, ao mesmo tempo que universal pelo
alcance, mostram-se trejeitos e intimidades que normalmente se
escondem com cuidado. O que é vergonha ou handicap visto por
poucos ganha dignidade de patrimônio nacional quando o público são
todos. O que é anco exposto numa perspectiva particularista e
antagônica é peculiaridade pessoal, ousadia, traço curioso no acervo
humano tão logo o ponto de vista seja coletivo. É como se as pessoas
dissessem: “vejam que verruga mais interessante essa minha”, ou
“espiem como é feio o meu pé”, ou “olhem só como sou gordo ou
magricelo”. Já se vê que o cinema atiça, em escala total, a liberação
que Guido empreende com requinte, como prova de talento pessoal e
em favor de quem lhe é caro. O alcance da técnica escapa a Guido,
que dispensa como benevolência suas virtualidades que são da cultura.
Está nisso a convergência como a divergência entre 8½ e Guido.
Há gestos que só se fazem quando sozinho — as criancices de
Guido, no banheiro e no corredor — ou diante da câmera, que
mostrará o gesto a todos. Neste paradoxo está cifrado o alento
utópico do cinema. O lme, por sua imparcialidade mecânica e pela
circulação social que tem, cria ou ajuda a criar uma universalidade
que não é teórica apenas, mas é prática; pode haver publicidade total
de tudo. Representa num estágio técnico em que os segredos e,
portanto, o antagonismo organizado só arti ciosamente se mantêm.
Libera o indivíduo de sua posição particular na sociedade, de seu
convívio restrito e restritivo, para dar-lhe como esfera o conjunto da
vida social. Não se trata apenas de uma ampliação. É o próprio eixo
do convívio que se desloca. A referência coletiva suscita as faculdades
que o con ito imediatista abafa. O olho cinematográ co é um
confessionário especial: quem ouve não é um padre autoritário, mas é
a nação em seus momentos de curiosidade e lazer; tudo o que diverte e
não atrapalha merece absolvição, isto é, licença. Diante do olho
universal da ciência, diante do universalizador concreto que são os
mass media, as peculiaridades pessoais deixam de ser fraqueza secreta
e sinal de inumanidade — o que sempre foram no interior do contexto
competitivo — como as contradições sociais deixam de ser fato
natural e insuperável. O cinema, a psicanálise, a sociologia, o convívio
cerrado na cidade grande, essas perspectivas tornam insustentável a
cção burguesa da natureza humana, da sociedade composta de
bichos proprietários, competitivos e monogâmicos. Nessas
circunstâncias, que são as do lme, a persistência da ordem tradicional
de vida é particularmente penosa. Leva à generalização da má-fé e ao
nascimento de novas formas dela.
Luisa, vendo Carla no parque, diz a Guido: “O que mais me
enfurece é pensar que aquela vaca sabe tudo de nós”. Em seguida
explode, em voz baixa porque é civilizada: “Puta!”. Logo depois
desculpa-se de estar fazendo a burguesa. A sua fúria é complexa:
“saber tudo”, no caso, será saber coisas extraordinárias? De modo
algum. A violência de Luisa mais nge do que defende uma intimidade
preciosa, em boa parte é indignação pela inexistência do que pretende
resguardar. Na ferocidade dolorosa com que a rma a sua diferença
está implícito o reconhecimento da igualdade. Luisa sabe da variedade
dos desejos e não reconhece mais autoridade às proibições
tradicionais; intelectualmente não tem por que se revoltar. A crítica
teórica, entretanto, não afasta a contradição prática. A coexistência
prolongada das duas, por sua vez, queima os nervos. Luisa diz a
Guido que ele “mente como respira”, o que vale também para ela e
para todos os que vivem a situação — se for incluído entre as mentiras
mentir a si mesmo. Nasce um tipo novo de sionomia, correspondente
especí co desta constelação: a sionomia do intelectual, do homem
cônscio e cioso de suas contradições. Tanto quanto sei, foi posta na
tela por Fellini e Antonioni pela primeira vez. O rosto é desgastado,
mas não pelo esforço físico, de modo que guarda traços juvenis, que
não são felizes; é livre e expressivo por instantes, embora em geral
pareça preso, não pela estupidez, mas pela consciência logo maníaca
de suas próprias contradições; há fraqueza, mas não apodrecimento,
pois o esforço de buscar a verdade, de viver a vida mais ou menos
certa, é constante. Dirigida contra Guido, mas também contra si
mesma, a mistura tensa de desprezo, piedade e fúria forma um ríctus
espantoso à volta da boca de Luisa. O seu rosto doído, consciente e
destrutivo é um emblema, tão verdadeiro para o lme quanto o
sorriso de Guido, generoso, complacente e depressivo. O mundo tem
as caras que pode ter.
Guido vê, mas não ouve, escondido atrás de seus óculos escuros.
Alheio à conversação e aos problemas que aparecem nela, compõe o
seu mundo feliz. Os outros ouvem, mas não veem: metidos em suas
questões, não admitem que haja mundo fora delas. Esse é o contexto
que dá riqueza e verdade ao esquematismo das grandes cenas nais. A
ciranda da felicidade, em que se recuperam a fraternidade universal e
a pureza das guras brancas, seria sentimentalismo se fosse real, se
fosse apresentada como solução. Sendo irreal, entretanto, apenas
visão, é justo que seja triunfal, pois concilia contradições dolorosas.
Sendo triunfal e sem realidade, tinge-se de melancolia e é de uma
beleza tocada pelo improvável. A sua mentira é a sua verdade, euforia
e garganta cerrada: a apoteose torna-se sinal de sua própria ausência.
Notas

as ideias fora do lugar

1. A. R. de Torres Bandeira, “A liberdade do trabalho e a concorrência, seu efeito, são


prejudiciais à classe operária?” (O Futuro, Rio de Janeiro, n. ,
ix 15 jan. ). Machado era
1863

colaborador constante nessa revista.


2. A polêmica Alencar-Nabuco. Org. e intr. de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1965, p. 106.
3. Depoimento de uma rma comercial, M. Wright & Cia., com respeito à crise nanceira
dos anos 1950 . Citado por Joaquim Nabuco em Um estadista do Império (São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1936 , v. 1, p. 188 [5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000 ]) e
retomado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (Rio de Janeiro: José Olympio,
1956 , p. 96 [26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007]).
4. Emília Viotti da Costa, “Introdução ao estudo da emancipação política”, em Carlos
Guilherme Mota (org.), Brasil em perspectiva. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968

[21. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001].


5. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 15.
6. Emília Viotti da Costa, op. cit.
7. Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão. São Paulo: Difusão Europeia do
Livro, 1962, pp. 189-91 e 198 [5. ed. rev. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003].
8. Conforme observa Luiz Felipe de Alencastro em sua tese de doutorado, O trato dos
viventes: Trá co de escravos e “Pax Lusitana” no Atlântico Sul, séculos xvi-xix (Nanterre,
Universidade de Paris, - ), a verdadeira questão nacional de nosso século
1985 6 xix foi a
defesa do trá co negreiro contra a pressão inglesa. Uma questão que não podia ser menos
propícia ao entusiasmo intelectual. Cf. Luiz Felipe de Alencastro, O trato dos viventes:
Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos xvi e . (São Paulo: Companhia das Letras,
xvii

2000 ).
9. Para uma exposição mais completa do assunto: Maria Sylvia de Carvalho Franco,
Homens livres na ordem escravocrata (São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1969 [4.
ed. São Paulo: Editora Unesp, 1997]).
10. Sobre os efeitos ideológicos do latifúndio, ver Sérgio Buarque de Holanda, “A herança
rural”, capítulo iii de Raízes do Brasil, op. cit.
11. Como observa Machado de Assis, em 1879 , “o in uxo externo é que determina a
direção do movimento; não há por ora no nosso ambiente a força necessária à invenção de
doutrinas novas”. Cf. “A nova geração”, em Obra completa (Rio de Janeiro: Aguilar, 1959, v.
, pp. 826-7).
iii

12. G. Lukács, “Marx und das Problem des Ideologischen Verfalls”, em Werke. Neuwied:
Luchterhand. v. 4: Probleme des Realismus.
13. Explorada em outra linha, a mesma observação encontra-se em Sérgio Buarque:
“Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e
imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o
fruto de nosso trabalho e de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução
próprio de outro clima e de outra paisagem” (op. cit., p. 15).
14. Ver o “Prospecto” de O Espelho, Revista Semanal de Literatura, Modas, Indústrias e
Artes (Rio de Janeiro, Typographia de F. de Paula Brito, n. 1, p. 1, 1859) ; “Introdução” da
Revista Fluminense, Semanário Noticioso, Literário, Cientí co, Recreativo etc. etc. (Rio de
Janeiro, ano 1, n. 1, pp. 1-2, nov. 1868) ; A Marmota na Corte (Rio de Janeiro, Typographia
de F. de Paula Brito, n. 1, p. 1, 7 set. 1840) ; Revista Ilustrada, publicada por Ângelo Agostini
(Rio de Janeiro, n. 1, 1 jan. 1876) ; “Apresentação” de O Bezouro, Folha Humorística e
Satírica (Rio de Janeiro, 1o ano, n. 1, 6 abr. ; “Cavaco”, O Cabrião (São Paulo, Typ.
1878)

Imperial, n. 1, p. 2, 1866).
15. Nestor Goulart Reis Filho, Arquitetura residencial brasileira no século xix, manuscrito,
pp. 14-5.
16. Ibid., p. 8.
17. Emília Viotti da Costa, op. cit., p. 104.
18. Jean-Michel Massa, A juventude de Machado de Assis, 1839-1870: Ensaio de biogra a
intelectual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971 , pp. ,
265 435 e 568 [2. ed. rev. São
Paulo: Editora Unesp, 2009].
19. Sílvio Romero, Ensaios de crítica parlamentar. Rio de Janeiro: Moreira, Maximino &
Cia., 1883, p. 15.
20. Para as razões desta inércia, ver Celso Furtado, Formação econômica do Brasil (São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971 [Ed. comemorativa 50 anos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009]).
21. Para uma construção rigorosa de nosso problema ideológico, em linha um pouco
diversa desta, ver Paula Beiguelman, Formação política do Brasil (São Paulo: Pioneira, 1967 .
v. i: Teoria e ação no pensamento abolicionista), em que há várias citações que parecem sair
de um romance russo. Veja-se a seguinte, de Pereira Barreto: “De um lado estão os
abolicionistas, estribados sobre o sentimentalismo retórico e armados da metafísica
revolucionária, correndo após tipos abstratos para realizá-los em fórmulas sociais; de outro
estão os lavradores, mudos e humilhados, na atitude de quem se reconhece culpado ou medita
uma vingança impossível”. P. Barreto é defensor de uma agricultura cientí ca — é um
progressista do café — e neste sentido acha que a abolição deve ser efeito automático do
progresso agrícola. Além de que os negros são uma raça inferior, e é uma desgraça depender
deles (op. cit., p. 159).
22. Antonio Candido lança algumas ideias neste sentido. Procura distinguir uma linhagem
“malandra” em nossa literatura. Veja-se a sua “Dialética da malandragem”, na Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo, n. 8 , 1970 [Republicada em O discurso e a
cidade. . ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul,
4 2010 ]). Também os parágrafos sobre a
Antropofagia, na “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, em Vários escritos (São
Paulo: Duas Cidades, 1970, pp. 84 ss. [4. ed. Rio de Janeiro: Duas Cidades/Ouro sobre Azul,
2004 ]).

a importação do romance e suas contradições em

alencar

1. Leia-se a este respeito o sugestivo estudo de Marlyse Meyer, “O que é, ou quem foi
Sinclair das Ilhas?”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo, n. 14, 1973).
2. Teobaldo, um americano enfático de “The Madonna of the Future” (1873): “Somos os
deserdados da arte! Estamos condenados à super cialidade, excluídos do círculo encantado!
O solo da percepção americana é um sedimento escasso, estéril, arti cial! Sim, estamos
destinados à imperfeição. Para atingir a excelência, o americano tem que aprender dez vezes
mais que o europeu. Falta-nos o sentido mais apurado. Não temos gosto, tato ou força. E
como haveríamos de ter? Nosso clima rude e mal-encarado, nosso passado silencioso, nosso
presente ensurdecedor, a pressão constante das circunstâncias desprovidas de graça — tudo é
tão sem estímulo, alimento e inspiração para o artista quanto é sem amargura o meu coração
ao dizê-lo! Nós, pobres aspirantes, deveremos viver em perpétuo exílio”, em The Complete
Tales of Henry James (Londres: Rupert Hart-Davis, 1962, v. , pp.
iii - . De volta à
14 5)

América, em visita a Boston, James anota: “Tenho 37 anos, z a minha escolha, e sabe Deus
que não tenho tempo a perder. A minha escolha é o velho mundo — minha escolha, minha
necessidade, minha vida. […] Meu trabalho está lá — je n’ai que faire neste vasto novo
mundo. Não é possível fazer as duas coisas — é preciso escolher. […] O peso é
necessariamente maior para um americano — pois ele precisa lidar, mais ou menos, e ainda
que só por implicação, com a Europa; enquanto europeu algum é obrigado a lidar sequer
minimamente com a América. Ninguém vai achá-lo menos completo por causa disso. (Falo
naturalmente de pessoas que fazem o meu tipo de trabalho; não de economistas ou do pessoal
das ciências sociais.) O pintor de costumes que não se ocupe da América não é incompleto,
por enquanto. Mas daqui a cem anos — talvez cinquenta — ele certamente o será”, em F. O.
Matthiessen e K. B. Murdock (Orgs.), The Notebooks of Henry James (Nova York: Galaxy
Book, 1961, entrada de 25 nov. 1881, pp. 23-4).
3. José de Alencar, Como e por que sou romancista, Obra completa (OC). Rio de Janeiro:
Aguilar, 1959. v. i.
4. Ibid., p. 138.
5. Antonio Candido, “Aparecimento da cção”, em Formação da literatura brasileira (São
Paulo: Martins, 1969, v. ii).
6. Cf. Afrânio Coutinho, A polêmica Alencar-Nabuco (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1965 ), especialmente as objeções de Nabuco a Diva.
7. Ver, na citada Formação da literatura brasileira, os capítulos que tratam de romance. O
seu conjunto compõe uma teoria da formação deste gênero no Brasil e pode ser lido como
uma introdução a Machado de Assis. Embora não faça parte da fase “formativa” de que trata
o livro e esteja mencionado só umas poucas vezes, Machado é uma das suas guras centrais, o
seu ponto de fuga: a tradição é considerada, ao menos em parte, com vistas ao
aproveitamento que Machado lhe dará. Para os trechos citados, ver pp. 140-2.
8. José de Alencar, Senhora, OC, v. i, pp. 958, 966, 969 e 1065-6.
9. Senhora, p. 952.
10. Obra completa, v. i, p. 699.
11. A situação é comparável à de Caetano Veloso cantando em inglês. Acusado pelos
“nacionalistas”, responde que não foi ele quem trouxe os americanos ao Brasil. Sempre quis
cantar nesta língua, que ouvia no rádio desde pequeno. E é claro que cantando inglês com
pronúncia nortista registra um momento substancial de nossa história e imaginação.
12. Comentando os hábitos de consumo no Brasil de ns de século, Warren Dean observa
que o comércio importador transformava em artigos de luxo os produtos que a
industrialização tornara correntes na Europa e nos Estados Unidos. Cf. A industrialização de
São Paulo (São Paulo: Difel, 1971, p. 13).
13. “Comparada a outras formas de representação, a multiplicidade de Balzac é a que mais
se aproxima da realidade objetiva. Contudo, quanto mais se aproxima desta, mais se afasta
da maneira habitual, cotidiana ou média de espelhá-la diretamente. De fato, o método
balzaquiano abole os limites estreitos, costumeiros, rotineiros desta reprodução imediata.
Contraria assim as facilidades habituais na maneira de considerar a realidade, e por isso
mesmo é sentido por muitos como sendo ‘exagerado’, ‘sobrecarregado’ etc. […] Aliás o seu
engenho não se limita às formulações brilhantes e picantes; antes manifesta-se na revelação
bem marcada do essencial, na tensão extrema dos elementos contrários que o compõem.” G.
Lukács, Balzac und der Französische Realismus, em Werke (Berlim; Neuwied: Luchterhand,
1965 , v. vi, p. 483).
14. J.-P. Sartre, “Qu’est-ce que la Littérature?”, em Situations, ii (Paris: Gallimard, 1948 ,
pp. 176 ss.). Para um condensado cômico dos tiques balzaquianos, ver a incomparável
imitação que deles faz Proust em Pastiches et mélanges. O aspecto desfrutável e sedativo das
generalizações de Balzac é mencionado por Walter Benjamin, no estudo sobre o Flâneur, em
Charles Baudelaire: Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus (Frankfurt: Suhrkamp,
1969 , pp. 39-40).
15. Expressão de Althusser, mas com outra loso a.
16. Para exemplo leiam-se as páginas de Lukács sobre o papel do Romantismo no romance
realista. Sendo uma ideologia espontânea do inconformismo anticapitalista do século xix ,a
visão romântica era matéria de romance por assim dizer obrigatória; ideologia de personagens
e clima literário, que o enredo destroça. Cf. G. Lukács, “Balzac als Kritiker Stendhals”
[1935], em Werke, op. cit.
17. “É somente com o século xviii e na ‘sociedade burguesa’ que as diferentes formas do
relacionamento social se deparam ao indivíduo como sendo simples instrumentos para a
consecução de suas nalidades privadas e como necessidade externa.” K. Marx, “Einleitung”,
em Grundrisse der Kritik der politischen Oekonomie (Frankfurt: Europaeische Verlagsanstalt,
s.d., p. . Cf. também G. Lukács, Die Theorie des Romans (Neuwied: Luchterhand,
6) 1962 )e
Geschichte und Klassenbewusstsein, em Werke (Berlim; Neuwied: Luchterhand, 1965 , v. ,
ii

cap. 4); Lucien Goldmann, Pour une Sociologie du roman (Paris: Gallimard, 1964).
18. Senhora, pp. 1026 e 1028-9.
19. Ibid., p. 1038.
20. Para a construção do contraste entre narrativa pré-capitalista e romance — feita sobre o
fundo da transição do artesanato à produção industrial, transição que não é a brasileira —,
veja-se o admirável ensaio de Walter Benjamin sobre o narrador, em Schriften (Frankfurt:
Suhrkamp, 1955 , v. . Idealmente e arriscando, digamos que o “causo” submete à
ii)

experiência de seus ouvintes, e à tradição em que estes se entroncam, a simplicidade


inesgotável de uma anedota. Experiência e tradição compostas elas também de anedotas, às
quais a mais recente, mal foi contada, já está se incorporando. Uma história, destacada com
habilidade sobre o fundo vário do repertório que compõe a sabedoria comum, eis a poesia
deste gênero de que está banido o conhecimento conceitual, o conhecimento que não tenha
caução vivida ou tradução noutra anedota. O contrário do que se passa com o romance, cujas
aventuras são atravessadas e explicadas pelos mecanismos gerais mas contraintuitivos da
sociedade burguesa: a poesia deste está na conjunção “moderna” e artisticamente difícil de
experiência viva, naturalmente a m do esforço mimético, e do conhecimento abstrato e
crítico, referido sobretudo à predominância social do valor de troca e às mil variantes da
contradição entre igualdade formal e desigualdade real. A dureza e a consequência lógica
estão entre as suas marcas de qualidade. Digamos portanto que, no romance, o incidente é
atravessado de generalização, mas sua generalidade é referida a um tipo particular de
sociedade, ou melhor, a uma etapa histórica da mesma, cifrada no con ito central. Já no
causo, o incidente é puro de explicação, e no entanto vai inscrever-se — a despeito de seu
total localismo — no tesouro a-histórico e genérico das motivações e dos destinos de nossa
espécie, vista segundo a ideia da diversidade dos homens e dos povos, e não da
transitoriedade dos regimes sociais. O causo contribui para uma casuística das situações
humanas e das tradições regionais: serve para desasnar e divertir, forti ca e ajuda a viver a
quem o saiba ouvir. Enquanto o romance, que pelo contrário só desilude, tem compromisso
com a verdade sobre a vida numa formação social determinada, e faz parte de um movimento
de crítica mesmo quando não o queira. Forma histórica entre todas — à qual se incorpora
livremente o conhecimento dito cientí co, em especial de história, psicologia e economia,
além da intenção do retrato de época e de denúncia —, o romance pôde barrar até certo
ponto, entre nós, a guração literária do país. Eis o paradoxo. Enquanto o causo,
incomparavelmente menos diferenciado e banhado no caudal quase eterno e inespecí co da
narrativa oral, combina a concepção a-histórica — os enleios da vida — e o apreço
desimpedido pela reprodução da circunstância, que lhe permite um realismo que entre nós o
Realismo de tradição literária não só não alcançava, como di cultava. No entanto, é claro
que Alencar não é um contador de causos, já porque escreve. Por uma destas falsidades felizes
da literatura romântica, ele combina a veia popular autêntica ao Romantismo moderno e
restaurativo da evocação, cujo ritmo respirado e largo constrói a simbiose de meditação e
espontaneidade — a ligação profunda e natural com natureza e comunidade, ngida na
postura “visionária” — que é a poesia da escola e o sentimento do mundo que ela opõe à
sociedade burguesa. Em estado puro, este segundo movimento da imaginação encontra-se em
Iracema, onde jamais o mundo evocado se deixa estar na distância indiferente da
objetividade. Frase a frase, ou pouco menos, a imagem está sempre passando, aproximando-
se, desaparecendo ao longe, compensando outra anterior, no espaço, no tempo, na afeição —
mobilidade “inspirada” que desfaz a esclerose da objetividade pura e restitui o elemento
interessado e palpitante em memória e percepção. Neste sentido vejam-se também O guarani
e a bela descrição inicial de O tronco do ipê. Guardadas as proporções, é o ritmo da grande
meditação romântica, em que à custa de silêncio e intensidade mental a complexidade do
mundo é apreendida e retida, para recompor-se — em minutos de plenitude e clareza
exaltadas — segundo a ordem uente, não mutilada, da imaginação. Note-se porém nestas
visões, por a rmativas que sejam, nos poetas ingleses ou em Hölderlin, por exemplo, que é
sempre irreal o mundo que compõem — o mundo instável e fremente da visualização
governada pelo sentido interior —, cuja plenitude “devolve” aos homens o sentimento da
natureza e da vida que a sociedade moderna lhes teria tomado. Aí uma diferença importante:
a natureza alencarina tem muito disso, é efetivamente repassada de nostalgia, mas por
instantes lhe acontece de ser a paisagem brasileira e mais nada. Onde os românticos,
polemizando contra o seu tempo, imaginariamente repristinavam percepção e natureza,
Alencar contribui para a glória de seu país, cantando-lhe a paisagem e ensinando os patrícios
a vê-la. O sortilégio romântico serve-lhe de fato para valorizar a sua terra, e não para
redescobri-la contra os contemporâneos menos sensíveis. Assim, a exaltação romântica da
natureza veio a perder entre nós a sua força negativa e acabou xando o padrão de nosso
patriotismo em matéria de paisagem. O prestígio duma escola literária moderna consagrava a
terra, que outros consideravam rude, e a descoberta de nossa terra consagrava a verdade da
escola literária (A. Candido, op. cit., v. , p. 9). Com grande satisfação e senso de progresso,
ii

as nossas elites punham-se em dia com o sentimento que manda desesperar da civilização. É o
que se chama ser um jovem país. Daí a superposição tão esquisita em Iracema, de poesia da
distância, que doura de romantismo os nomes índios e os acidentes geográ cos, e de intenção
propriamente informativa e propagandística — superposição que dá margem a uma zona de
indiferença entre literatura e ufanismo, ou nostalgia e cartão-postal, combinação recuperada
em veia humorística, e só então verdadeira, na poesia inicial dos modernistas. Em versão
ignóbil, pois destituída de ingenuidade, a confusão de paraíso e país empírico — a “mentirada
gentil” de que falava Mário de Andrade — hoje alimenta a propaganda o cial. — Seja como
for, o sopro da meditação romântica chegou também até o romance realista, embora diluído
pela prosa extensa e contrariado pelo assunto mundano. Em lugar da natureza e do vilarejo, a
totalidade desenvolvida do mundo social: para oferecer o equivalente da plenitude
contemplativa do poeta, o romancista obriga-se a fundir em sua prosa a necessária massa de
conhecimentos factuais, a sua elaboração analítica e crítica, e nalmente o movimento
desimpedido da re exão — síntese que contraria em tudo a tendência do século, em que os
três quesitos brigavam entre si, como continuam brigando. Ainda uma vez o exemplo será
Balzac. A sua postura visionária, ensaiada e nem sempre convincente, apresenta-se como a
faculdade “genial” de abarcar numa só mirada do espírito a França do capital; de auscultar-
lhe o movimento complexo a partir de qualquer detalhe sugestivo, de fantasiar livremente a
seu respeito, sem prejuízo de sempre dizer verdades raras, nais, originais etc. A natureza do
assunto, contudo, atrapalha: a intimidade re exiva com o mundo burguês só a custo sustenta
um clima de meditação — transações não são paisagens nem destinos —, donde a ocasional
impressão de que o titanismo visionário de Balzac é também um descomunal impulso
fofoqueiro. Alencar, que procura a mesma atmosfera, tem bons resultados quando é
retrospectivo: deixando suspenso o con ito de primeiro plano (em que não é feliz), volta atrás
para traçar, das origens, a história de um de seus elementos, o que faz com olho seguro,
interessante e econômico, e também poético. Vejam-se, além da história prévia de Aurélia, a
de Seixas e o cap. 10 , parte i, de O tronco do ipê. Breve e informativo por de nição, o
retrospecto limita a re exão ideológica da personagem ou do narrador — que prejudica o
romance urbano e problemático — e as aventuras descabeladas — que prejudicam os livros
mais aventurosos. É realista por de nição: a sua regra é o encadeamento claro e sugestivo dos
atos, com vistas à situação que estivera na origem do ashback. Resulta uma guração mais
tranquila, interessada na descrição, e não na crítica, das forças que irão pesar. É uma solução
em que brilham o talento mimético, a cultura brasileira e a visão de conjunto de Alencar, ao
mesmo tempo que se minimizam os efeitos desencontrados de nossa vida ideológica. Recurso
ocasional em Senhora, este andamento é central em Til e O tronco do ipê, os romances
alencarinos da fazenda. São livros de intriga abstrusa, ligada a uma noção subliterária do
destino e da expiação das culpas, noção que no entanto vem aligeirar-lhes a prosa, à maneira
do que vimos para o ashback. Em lugar da complexidade analítica dos problemas, a força
do destino. Nos dois casos trata-se de ricos fazendeiros, que deverão pagar em detalhe os
esquecidos malfeitos da juventude. No entanto, quando sobe à cena e se abate sobre os
mortais, o peso de sua culpa coincide em larga medida — e vantajosamente — com o peso do
passado, com o encadeamento e a purgação dos antagonismos objetivos do mundo da
fazenda: lhos ilegítimos, escravos enlouquecidos de pavor, propriedades subtraídas, capangas
e assassinatos, incêndios, superstição, levantes na senzala etc. Leiam-se, em Til, os capítulos
em volta do incêndio (parte iv , caps. ), para ter ideia da força e amplitude deste
i-ix

movimento. É aliás na unidade de fôlego de sequências longas e variadas, como esta a que nos
referimos, que se atesta a força romântica, “subjetiva”, do narrador. É aí também, na presteza
com que lhe acodem as palavras e as imagens — presteza de que nem sempre o bestialógico
está ausente —, que a dicção de Alencar converge com a fala comum, pré-literária. O
andamento novelesco, por sua vez, decompõe-se em episódios breves, compatíveis com a
narrativa de tradição popular. A mim, em matéria do que poderia ter sido, parece que são
estes dois os seus melhores livros.
21. Senhora, p. 1203.
22. Obra completa, v. i, p. 650.
23. Ibid., pp. 608 e 652.
24. Expressão e problema são sugestões de Alexandre Eulalio, que vê a dicção de Alencar
como um rearranjo da prosa jurídico-política dos grêmios estudantis paulistanos, a qual não
deixaria nunca de vincar a sua prosa de cção.
25. Em nota anexa a Senhora, p. 1213.
26. Senhora, p. 955.
27. Ibid., p. 959
28. Ibid., p. 968.
29. Ibid., p. 1054.
30. Diva, p. 527.
31. A pata da gazela, p. 609.
32. Gilberto Freyre registra o problema, com nura quanto à sua permanência, com
cegueira de classe quanto às suas di culdades, e sobretudo sem o menor distanciamento — a
despeito dos quase cem anos que se passaram: “De modo que precisamos estar atentos a essa
contradição de Alencar: o seu modernismo antipatriarcal — nuns pontos inclusive o desejo de
‘certa emancipação da mulher’ — e o seu tradicionalismo noutros pontos: inclusive no gosto
pela gura castiçamente brasileira da sinhazinha de casa-grande patriarcal”. “É como se
Alencar, através dessa Alice ao mesmo tempo tradicionalista e modernista, familista e
individualista, tivesse se antecipado à tentativa de renovação da cultura brasileira sobre base
ao mesmo tempo modernista e tradicionalista que foi, em nossos dias, o Movimento
Regionalista do Recife, ao lado do mais grandioso Modernismo de São Paulo, do qual
também uma ala se esforçou pela combinação daqueles contrários.” G. Freyre, José de
Alencar. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951 , pp. 15 e 27-8. (Os Cadernos
de Cultura.)
33. Com intenção contrária, Paul Bourget faz a mesma observação: “Lendo os seus livros,
sente-se uma estima singular por este nobre espírito, que, dado embora às audácias da análise
e às curiosidades perigosas, soube guardar o culto do cavalheiresco, da mulher e do amor”.
Cf. Pages de critique et de doctrine (Paris: Plon, ), p.
1912 113. Impressionado talvez com a
Comuna de Paris, Dumas Filho é mais direto: “Foi-se o tempo de ser espirituoso, ameno,
libertino, sarcástico, cético e fantasioso; não é hora para isso. Deus, a natureza, o trabalho, o
casamento, o amor, a criança, são coisas sérias”. Prefácio de La Femme de Claude, citado em
H. S. Gershman e K. B. Whitworth Jr. (Orgs.), Anthologie des préfaces de romans français du
xix siècle (Paris: Julliard, 1964, p. 325).
34. A distinção entre conformismo e conciliação em Alencar me foi feita por Clara Alvim.
35. Antonio Candido, “Crítica e sociologia”, em Literatura e sociedade. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1965, pp. 6-7.
36. Senhora, p. 954.
37. Ibid., pp. 1028 e 1044.
38. Ibid., p. 955.

a poesia envenenada de dom casmurro

1. Alfredo Pujol, Machado de Assis. São Paulo: Typographia Levi, 1917, p. 240.
2. Helen Caldwell, The Brazilian Othello of Machado de Assis. Berkeley: University of
California Press, 1960.
3. John Gledson, The Deceptive Realism of Machado de Assis. Liverpool: Francis Cairms,
1984 .
4. James fala inúmeras vezes de sua preferência pela combinação da anedota interessante
com um ângulo de observação limitado, cuja componente pessoal pode mas não precisa estar
explícita. Ver, por exemplo, os prefácios a The Golden Bowl e a The Ambassadors, em The
Art of the Novel (Nova York: Charles Scribner, 1937).
5. John Gledson, op. cit., capítulo introdutório.
6. Antonio Candido, “Uma literatura empenhada”, em Formação da literatura brasileira.
São Paulo: Martins, 1969, v. i.
7. “Em resumo: os críticos estavam interessados em buscar a verdade sobre Capitu, ou a
impossibilidade de se ter a verdade sobre Capitu, quando a única verdade a ser buscada é a de
Dom Casmuro.” Silviano Santiago, “Retórica da verossimilhança”, em Uma literatura nos
trópicos. São Paulo: Perspectiva, , p.
1978 . Silviano detecta os recursos intelectuais do ex-
32

seminarista e do advogado na técnica narrativa do Casmurro, bem como o caráter brasileiro


dessa combinação.
8. Dom Casmurro, cap. lxxv.
9. “[…] alguns proprietários avarentos e barbarizados do nosso interior não compreendiam
o modo de dirigir os homens livres, nem queriam executar elmente as obrigações
estipuladas.” A. C. Tavares Bastos, Os males do presente e as esperanças do futuro (1861),
São Paulo: C. E. Nacional, 1976. p. 86. Devo a citação a Walquiria G. Domingues Leão Rego,
“Um liberal tardio”, tese de doutoramento em Ciência Política, usp, 1989, p. 88.
10. Dom Casmurro, cap. iii.
11. Ibid., cap. v.
12. Ibid., cap. xxiv.
13. Ibid., cap. v.
14. Ibid., cap. iv.
15. Ibid., cap. lxi.
16. Joaquim Nabuco, O abolicionismo (1883). Petrópolis: Vozes, 1977, p. 68.
17. Dom Casmurro, cap. v. Ver também As aventuras do bom soldado Schweyk (1920), do
escritor tcheco Jaroslaw Haˇsek. O herói do livro sobrevive à Primeira Guerra Mundial graças
à sua grandiosa falta de amor-próprio. A personagem foi retomada depois numa peça teatral
de Bertolt Brecht.
18. Dom Casmurro, cap. xviii.
19. Ibid., cap. xxx.
20. Ibid., cap. xli.
21. Ibid., cap. xxix.
22. Ibid., cap. xviii.
23. Ibid., cap. vii.
24. Ibid., cap. cxlii.
25. Ibid., cap. xli.
26. Mário de Andrade, “Amor e medo”, em Aspectos da literatura brasileira (1935). São
Paulo: Martins, s. d.
27. Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), cap. ix.
28. Uma ilustração sugestiva desses desajustes encontra-se na ironia com que O
Kaleidoscopio (30 de junho de 1860) encarava a pregação social de Tavares Bastos. “Seu ideal
na política é o self-government, como o entendem e praticam os ingleses. Porém para chegar-
se a isto, há de se dar alma à família, para da família brotar o município que será a matriz das
províncias, cuja união e prosperidade serão a fonte de grandeza e felicidade da pátria. Este é o
índice de seu sistema governamental. Mas ah, meu caro Bastos! Pensa que em dez ou doze
anos se escrevem os capítulos dessa obra? Nem em vinte, nem em trinta. Olhe: são precisos,
pelo menos, cinco séculos: um, para convencer o pai de família que a sua mulher é mulher, e
que são seus os lhos de sua mulher; outro, para a tal história do município; o terceiro, para
demonstrar aos pernambucanos que os baianos também descendem de Adão e Eva; o quarto
para os self-governments descobrirem onde é o Brasil; o quinto, nalmente, para se
desmanchar tudo e voltar tudo ao antigo estado.” Citado em Sérgio Adorno, Os aprendizes
do poder (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 192-3).
29. Dom Casmurro, cap. cv.
30. Ibid., cap. cviii.
31. Ibid., cap. xlviii.
32. Ibid., cap. cxliv.
33. Ibid., cap. ii.
34. Ibid., caps. cxxxii e i.
35. Ibid., caps. i e cxxxii.

cultura e política, 1964-1969: alguns esquemas

1. Animália, de Gianfrancesco Guarnieri.


2. À esquerda, foi a corrente de Brizola, não marxista e de pouca teoria, composta de
nacionalistas radicais, que tentou se preparar para o golpe militar iminente. Em consequência,
os brizolistas buscaram cristalizar a luta de classes no interior das Forças Armadas (houve
rebelião de sargentos e marinheiros) e organizaram civis nos famosos Grupos de Onze.
Controlavam também uma grande estação de rádio. Brizola — deputado federal, antigo
governador do Rio Grande do Sul, líder da mobilização popular que em 1961 garantiu,
contra os militares, a sucessão legal a Goulart (seu cunhado), um político tradicional portanto
— teve a clareza e iniciativa que faltaram ao grosso do campo marxista, o qual pelo contrário
errava fragorosamente e entrava em crise. Esta superioridade prática do nacionalismo radical
sobre o marxismo estabelecido não está estudada. Infelizmente não tenho elementos para
descrevê-la melhor.
3. Para um apanhado histórico das origens da crise de 1964 , ver R. M. Marini,
“Contradições no Brasil contemporâneo” (Teoria e Prática, São Paulo, n. 3, 1968) . Para as
limitações da burguesia nacional e para a estrutura do poder populista, ver respectivamente os
trabalhos de F. H. Cardoso e F. C. We ort, Les Temps Modernes, Paris, out. 1967.
4. Nos casos em que o elemento “antiquado” é recentíssimo e internacional — os hábitos
neofósseis da sociedade dita de consumo —, o tropicalismo coincide simplesmente com
formas do pop.
5. Para uma exposição ampla destas noções, ver Gunder Frank, Capitalism and
Underdevelopement in Latin America: Historical Studies of Chile and Brazil (Nova York:
Monthly Review, 1967).
6. Ideia e vocabulário são emprestados aqui ao estudo de Walter Benjamin sobre o drama
barroco alemão, em que se teoriza a respeito da alegoria.
7. Alguns representantes desta linha são, para a música, Gilberto Gil e Caetano Veloso;
para o teatro, José Celso Martinez Corrêa, com O Rei da Vela e Roda-viva; no cinema há
elementos de tropicalismo em Macunaíma, de Joaquim Pedro, Os herdeiros, de Carlos
Diegues, Brasil ano 2000, de Walter Lima Jr., Terra em transe e O dragão da maldade contra
o santo guerreiro, de Glauber Rocha.
8. Sérgio Ferro Pereira, “Arquitetura nova”. Teoria e Prática, São Paulo, n. 1, 1967.
9. Augusto Boal, Prefácio a Arena conta Tiradentes. A peça é de Gianfrancesco Guarnieri e
Augusto Boal. Para uma discussão detalhada desta teoria, ver Anatol Rosenfeld, “Heróis e
coringas” (Teoria e Prática, São Paulo, n. 2, 1967).
10. Este argumento é desenvolvido por Adorno, em seu ensaio sobre os critérios da música
nova, quando confronta Schönberg e Webern, em Klang guren [Figuras sonoras] (Frankfurt:
Suhrkamp, 1959).
11. Numa entrevista traduzida em Partisans, n. 46 (Paris: Maspero), José Celso explica:
“En m, é uma relação de luta, uma luta entre os atores e o público. […] A peça o agride
intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente. Quer dizer que ela quali ca o
espectador de cretino, reprimido e reacionário. E nós mesmos também entramos neste banho”
(p. ). “Se tomamos este público em seu conjunto, a única possibilidade de submetê-lo a
75

uma ação política e caz reside na destruição de seus mecanismos de defesa, de todas as suas
justi cações maniqueístas e historicistas (incluso quando elas se apoiam em Gramsci, Lukács e
outros). Trata-se de pô-lo em seu lugar, de reduzi-lo a zero. O público representa uma ala
mais ou menos privilegiada deste país, a ala que se bene cia, ainda que mediocremente, de
toda a falta de história e de toda a estagnação deste gigante adormecido que é o Brasil. O
teatro tem necessidade hoje de desmisti car, de colocar este público em seu estado original,
frente a frente com a sua grande miséria, a miséria do pequeno privilégio obtido em troca de
tantas concessões, tantos oportunismos, tantas castrações, tantos recalques, em troca de toda
a miséria de um povo. O que importa é deixar este público em estado de nudez total, sem
defesa, e incitá-lo à iniciativa, à criação de um caminho novo, inédito, fora de todos os
oportunismos estabelecidos (que sejam ou não batizados de marxistas). A e cácia política que
se pode esperar do teatro no que diz respeito a este setor (pequena burguesia) só pode estar na
capacidade de ajudar as pessoas a compreender a necessidade da iniciativa individual, a
iniciativa que levará cada qual a jogar a sua própria pedra contra o absurdo brasileiro” (p.
70). “Em relação a este público, que não vai se manifestar enquanto classe, a e cácia política
de uma peça mede-se menos pela justeza de um critério sociológico dado que pelo seu nível de
agressividade. Entre nós, nada se faz com liberdade, e a culpa no caso não é só da censura”
(p. 72).
12. Pessach, a travessia, romance de Carlos Heitor Cony (1967); Quarup, romance de
Antonio Callado (1967); Terra em transe, lme de Glauber Rocha (1967); O desa o, lme de
Paulo Cesar Saraceni (1965). É interessante notar que o enredo da conversão resulta mais
político e artisticamente limpo se o seu centro não é o intelectual, mas o soldado e o
camponês, como em Os fuzis, de Ruy Guerra (1964), Deus e o diabo na terra do sol (1964),
de Glauber Rocha, ou Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos. Nestes casos, a
desproporção fantasmal das crises morais ca objetivada ou desaparece, impedindo a trama
de emaranhar-se no inessencial.
13. O Pasquim não foi fechado. Fica o erro sem corrigir, em homenagem aos numerosos
falsos alarmes que atormentavam o cotidiano da época.
14. Título de um livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade.

a carroça, o bonde e o poeta modernista

1. A comparação entre os laconismos objetivantes de Oswald e Brecht foi lembrada por


Haroldo de Campos. Cf. “Uma poética da radicalidade”, em Oswald de Andrade, Poesias
reunidas (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, p. 21).
2. Paulo Prado, “Poesia pau-brasil”, em Oswald de Andrade, Poesias reunidas, op. cit., p.
67.
3. “[…] não se ignora o papel que a arte primitiva, o folclore, a etnogra a, tiveram na
de nição das estéticas modernas, muito atentas aos elementos arcaicos e populares
comprimidos pelo academismo. Ora, no Brasil as culturas primitivas se misturam à vida
cotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de
um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes
com a nossa herança cultural do que com a deles.” Antonio Candido, “Literatura e cultura de
1900 a 1945”, em Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965, pp.
144 5 - .
4. Oswald de Andrade, Poesias reunidas, op. cit., p. 120.
5. Id., “Manifesto da poesia pau-brasil”, em Do pau-brasil à antropofagia e às utopias. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 5.
6. “escala”, Poesias reunidas, op. cit., p. 148.
7. Para o parentesco entre a prosa de Kafka, as garatujas de Klee e a música de Webern, ver
Theodor W. Adorno, “Anton von Webern”, em Klang guren (Frankfurt: Suhrkamp, 1959 ,
pp. 178-9).
8. Outra face desse objetivismo está na assombrosa “capacidade de fotografar a estupidez”
que Mário reconhecia em Oswald. Cf. Mário de Andrade, “Osvaldo de Andrade” (1924), em
Maria Rosseti Batista, Telê Porto Ancona Lopez e Yone Soares de Lima (orgs.), Brasil: 1o

tempo modernista (São Paulo: ieb, 1972, pp. 222-3).


9. “pronominais”, Poesias reunidas, op. cit., p. 125.
10. “Pau-brasil é rótulo condescendente e vago signi cando pra nós iluminadamente a
precisão da nacionalidade.” Mário de Andrade, “Oswald de Andrade: Pau-Brasil”, em Brasil:
1o tempo modernista, op. cit., p. 231.
11. “Sejamos agora de novo, no cumprimento de uma missão étnica e protetora,
jacobinamente brasileiros.” Paulo Prado, op. cit., p. 69.
12. Carlos Eduardo Berriel, Dimensões de Macunaíma: Filoso a, gênero e época.
Campinas: Unicamp, 1987 , pp. -
28 35 . Dissertação (Mestrado). Adaptei um pouco o
argumento a meus propósitos. — Ao analisar a política de valorização do café, posta em
prática pela elite dirigente do período, Celso Furtado assinala a sua “excepcional audácia”,
além da inviabilidade a longo prazo. Ver Formação econômica do Brasil (Rio de Janeiro:
Fundo de Cultura, 1959, p. 213).
13. Oswald de Andrade, “O caminho percorrido”, em Ponta de lança (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1972, p. 95).
14. “aperitivo”, Poesias reunidas, op. cit., p. 126.
15. Para a impressão “burguesa” que causariam os modernistas de São Paulo ao resto do
Brasil, ver a crônica de Drummond sobre Mário nas Con ssões de Minas: Carlos Drummond
de Andrade, “Suas cartas”, em Poesia e prosa (Rio de Janeiro: Aguilar, 1979, p. 930). Sobre a
mistura de Modernismo paulista, vanguarda europeia e alta burguesia, ver as numerosas
observações de Alexandre Eulálio, “A aventura brasileira de Blaise Cendrars”, no livro de
mesmo título (São Paulo: Quíron, 1978).
16. “noturno”, Poesias reunidas, op. cit., p. 98.
17. “prosperidade”, Poesias reunidas, op. cit., p. 98.
18. “pronominais”, Poesias reunidas, op. cit., p. 125.
19. “bonde”, Poesias reunidas, op. cit., p. 106.
20. As alianças de classe operadas na literatura modernista eram novas, e valeria a pena
comparar a esse respeito os diferentes escritores. Estudando os elementos formadores do
timbre próprio de Manuel Bandeira, Davi Arrigucci Jr. chama a atenção para a importância
dos quartos e bairros pobres habitados pelo poeta, transformados em espaços imaginários
onde a doença, a solidão, a poesia simbolista europeia e a perda de situação social se fundem
ao modo de viver da camada popular carioca. Davi Arrigucci Jr., “O humilde cotidiano de
Manuel Bandeira”, em Enigma e comentário (São Paulo: Companhia das Letras, 1987).
21. Poesias reunidas, op. cit., p. 148.
22. A propósito das relações entre a forma humana e o fundo na pintura nacionalista de
Tarsila, Gilda de Mello e Souza escreve: “A simpli cação imposta aos elementos secundários,
para que se acomodassem à estilização do conjunto, não alterava essencialmente a natureza
das frutas, do passarinho, do barco; mas o mesmo recurso aplicado ao moleque tirava a
dignidade da gura, fazendo o todo resultar decorativo como cartaz publicitário”. Ver, da
autora, “Vanguarda e nacionalismo na década de vinte”, em Exercícios de leitura (São Paulo:
Duas Cidades, 1980, pp. 268-9).
23. “Manifesto da poesia pau-brasil”, op. cit., p. 9.
24. “É muito sabido já que um grupo de moços brasileiros pretendeu tirar o Brasil da
pasmaceira artística em que vivia, colocando a consciência nacional no presente do universo.”
Mário de Andrade, “Osvaldo de Andrade”, op. cit., p. 223.

verdade tropical: um percurso de nosso tempo

1. Caetano Veloso, Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
2. Ibid., p. 19.
3. Ibid., p. 430.
4. Para os anos 1920 , José Miguel Wisnik, “Getúlio da Paixão Cearense”, em Enio Sque e
José Miguel Wisnik, Música (São Paulo: Brasiliense, 1982) ; Davi Arrigucci Jr., “Presença
ausente”, em Humildade, paixão e morte: A poesia de Manuel Bandeira (São Paulo:
Companhia das Letras, 1990 ;) Humberto Werneck, Santo sujo: A vida de Jayme Ovalle (São
Paulo: Cosac Naify, 2008) . Para a bossa nova, Ruy Castro, Chega de saudade (São Paulo:
Companhia das Letras, 1990) ; Lorenzo Mammi, “João Gilberto e a bossa nova” (Novos
Estudos Cebrap, n. , nov.
34 1992) ; Caetano Veloso, “Elvis e Marilyn”, em Verdade tropical,
op. cit.; Walter Garcia, Bim bom: A contradição sem con ito de João Gilberto (São Paulo:
Paz e Terra, 1999) . Para 1964 , Roberto Schwarz, “Cultura e política -
1964 1969”, em O pai
de família (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978).
5. Caetano Veloso, op. cit., p. 19.
6. Ibid., p. 23.
7. Ibid., p. 24.
8. Ibid., pp. 23-4.
9. Caetano refere-se a Juracy Magalhães, o ministro da ditadura, segundo o qual “o que é
bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Ibid., p. 52.
10. Ibid., p. 57.
11. Ibid., p. 29
12. Ibid., pp. 31-2.
13. Ibid., p. 58.
14. Ibid., pp. 63-4.
15. Ibid., p. 28.
16. Ibid., p. 263.
17. Ibid., p. 15.
18. Ibid., p. 63.
19. Ibid., p. 156.
20. Ibid., p. 183.
21. Ibid., p. 101.
22. Ibid., p. 254.
23. Ibid., pp. 254-5.
24. Ibid., p. 255.
25. Ibid., p. 254.
26. Ibid., pp. 35-6.
27. Ibid., p. 502.
28. Ibid., pp. 35-6.
29. Ibid., pp. 52-3.
30. Ibid., p. 277.
31. Ibid., p. 177.
32. Para uma ótima análise da gura de Paulo Martins, ver Ismail Xavier, “O intelectual
fora do centro”, em Alegorias do subdesenvolvimento (São Paulo: Brasiliense, 1993).
33. Caetano Veloso, op. cit., pp. 104-5.
34. Ibid., p. 116.
35. Carlos Drummond de Andrade, “O operário no mar”, em Sentimento do mundo. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
36. Nicholas Brown, Utopian Generations. Princeton: Princeton University Press, , pp.
2005

- .
176 7

37. Caetano Veloso, op. cit., p. 116.


38. Ibid., p. 446 . “No nosso próprio campo, fazíamos as duas coisas: empurrávamos o
horizonte do comportamento para cada vez mais longe, experimentando formas e difundindo
invenções, ao mesmo tempo que ambicionávamos a elevação do nosso nível de
competitividade pro ssional — e mercadológica — aos padrões dos americanos e dos
ingleses.”
39. Ibid., p. 418 e também 385-6.
40. Ibid., pp. 306-7.
41. “Nós não estávamos de todo inconscientes de que, paralelamente ao fato de que
colecionávamos imagens violentas nas letras de nossas canções, sons desagradáveis e ruídos
nos nossos arranjos, e atitudes agressivas em relação à vida cultural brasileira nas nossas
aparições e declarações públicas, desenvolvia-se o embrião da guerrilha urbana, com a qual
sentíamos, de longe, uma espécie de identi cação poética.” Ibid., pp. 50-1.
42. Ibid., p. 401.
43. Ibid., p. 349.
44. Ibid., p. 17.
45. Ibid., pp. 306-7.
46. Ibid., p. 282.
47. Ibid., p. 281.
48. “As questões de mercado, muitas vezes as únicas decisivas, não pareciam igualmente
nobres para entrar nas discussões acaloradas.” Ibid., pp. 177-8.
49. Ibid., p. 107.
50. Ibid., p. 52.
51. Ibid., p. 114 . “Nós [Gil e Caetano] nos encontrávamos na música […]: saudávamos o
surgimento do cpc e da une — embora o que fazíamos fosse radicalmente diferente do que se
propunha ali — e amávamos a entrada dos temas sociais nas letras de música, sobretudo o
que fazia Vinicius de Moraes com Carlos Lyra.” Ibid., p. 288.
52. Ibid., p. 115.
53. Ibid., p. 87.
54. Ibid., p. 115.
55. Ibid., p. 116.
56. Ibid., p. 105.
57. Ibid., p. 105.
58. Ver a respeito a boa documentação reunida em Arte em Revista, n. 1 (São Paulo:
Kairós, 1981).
59. Caetano Veloso, op. cit., pp. 317-9.
60. Ibid., p. 308.
61. Ibid., p. 301.
62. Ibid., p. 319.
63. Ibid., pp. 141-4.
64. Ibid., p. 292.
65. Ibid., p. 126.
66. Ibid., p. 136.
67. Ibid., p. 184.
68. Ibid., p. 105.
69. Ibid., pp. 166-7.
70. Ibid., p. 19.
71. Ibid., pp. 342-3.
72. Oswald de Andrade, “Manifesto antropófago” [1928], em Do Pau-Brasil à
antropofagia e às utopias (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p. 18).
73. Caetano Veloso, “Diferentemente dos americanos do Norte”, em O mundo não é chato
(São Paulo: Companhia das Letras, 2005 , pp. -
49 50). Trata-se de uma conferência de 1993 ,
um pouco anterior, portanto, a Verdade tropical.
74. Ibid., p. 52.
75. Caetano Veloso, Verdade tropical, p. 414.
76. Ibid., p. 419.
77. Ibid., p. 465.
78. Ibid., p. 466.
79. Ibid., p. 467.
80. Ibid., p. 13.
81. Ibid., p. 15.
82. Ibid., p. 15.

acumulação literária e nação periférica

1. Para uma análise mais pormenorizada, ver Roberto Schwarz, “O paternalismo e a sua
racionalização nos primeiros romances de Machado de Assis”, em Ao vencedor as batatas
(São Paulo: Duas Cidades, 1977; 5. ed., São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000).
2. Machado de Assis, Iaiá Garcia, em Obras completas (Rio de Janeiro: Aguilar, 1959 , v. i,
p. 315).
3. Ibid., p. 406.
4. Ibid., p. 402.
5. Id., Memórias póstumas de Brás Cubas, oc, p. 109.
6. Alfredo Bosi refere-se ao “tom pseudoconformista, na verdade escarninho, com que [o
narrador] discorre sobre a normalidade burguesa”. Cf. “A máscara e a fenda”, em A. Bosi et
al., Machado de Assis (São Paulo: Ática, 1982, p. 457).
7. “O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto, como em
cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde maiores proporções
tomava o grande veículo do espírito moderno; falo do jornal. […] o folhetim nasceu do
jornal, o folhetinista por consequência do jornalista. Esta íntima a nidade é que desenha as
saliências sionômicas na moderna criação. O folhetinista é a fusão admirável do útil e do
fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos,
arredados como polos, heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na
organização do novo animal.” Machado de Assis, “O folhetinista” (1859), oc, v. , p.
iii 968 .
O tema está exposto de maneira ampla e documentada em Marlyse Meyer, “Voláteis e
versáteis, de variedades e folhetins se fez a crônica”, xerox, 1987 (incluído em Folhetim: uma
história [São Paulo: Companhia das Letras, 1996]).
8. A crônica de jornal como lugar de encontro entre modernização e tradição foi estudada
por Davi Arrigucci Jr. “Fragmentos sobre a crônica”, em Enigma e comentário (São Paulo:
Companhia das Letras, 1987).
9. Roberto Schwarz, “A importação do romance e suas contradições em Alencar”, em Ao
vencedor as batatas, op. cit.
10. Joaquim Manuel de Macedo, O moço loiro. S.l.: Ediouro, s.d., p. 33.
11. Ver a respeito as numerosas observações de Vilma Arêas em Na tapera de Santa Cruz
(São Paulo: Martins Fontes, 1987).
12. Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, em O discurso e a cidade (São Paulo:
Duas Cidades, 1993, pp. 47-54).
13. Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro, 1962, pp. 7-8.
14. Antonio Candido, op. cit., p. 53.
15. A propósito de um conto de Machado, “O diplomático”, Vinicius Dantas estudou as
continuidades e diferenças entre a prosa machadiana da maturidade e a comicidade
popularesca dos anos 1830 e 1840, cultivada na imprensa. “O narrador cronista e o narrador
contista”, trabalho de aproveitamento, Unicamp, 1984.
16. “Se não cursaste a retórica/ Do no professor Satã/ Joga fora este livro! Não entenderás
nada/ E me acreditarias histérico.” Charles Baudelaire, “Epígrafe para um livro condenado”.
Os versos são dirigidos ao “Leitor pacato e bucólico,/ Sóbrio e ingênuo homem de bem”.

um seminário de marx

1. Paulo E. Arantes, Um departamento francês de ultramar. São Paulo: Paz e Terra, 1994 ,
cap. 5.
2. Augusto de Campos, Décio Pignatari, Haroldo de Campos, “Plano piloto para poesia
concreta” (1958), em Teoria da poesia concreta. São Paulo: Ed. Invenção, 1965, p. 156.
3. Leia-se a respeito a reconstituição interessante de Daniel Pécaut, Os intelectuais e a
política no Brasil (São Paulo: Ática, 1990).
4. Antonio Candido, “Entrevista”, em Brigada ligeira e outros estudos. São Paulo: Unesp,
1992 , pp. 233-5.
5. “Contra Althusser”. Teoria e Prática, São Paulo, n. 3, abr. ; retomado em J. A.
1968

Giannotti, Exercícios de loso a (São Paulo: Brasiliense, 1975).


6. Para uma análise crítica do percurso, ver José Luís Fiori, “Os moedeiros falsos” (Folha
de S.Paulo, 3 jul. 1994. Mais!, pp. 6-7).

os sete fôlegos de um livro

1. Mário de Andrade, “Assim falou o papa do futurismo” (1925), em Telê Ancona Lopez
(org.), Entrevistas e depoimentos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, pp. 18-9.
2. Fernando A. Novais, “Condições da privacidade na Colônia”, em Laura de Mello e
Souza (org.). História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 17. v. 1.
3. Haroldo de Campos, O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: O
caso Gregório de Mattos. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1989.
4. Ibid., p. 12.
5. Ibid., pp. 12-5.

8½ de fellini: o menino perdido e a indústria

1. Em seu ensaio sobre As a nidades eletivas, Walter Benjamin comenta a resistência de


Goethe ao casamento: “Ao perceber quanto é tremenda a exigência das forças do mito,
conciliáveis somente pela constância do sacrifício, Goethe se rebelou”. Walter Benjamin,
Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 1955, p. 99.
2. “Ele sente que ao viver impede o seu próprio caminho. Mas nesse impedimento, por
outro lado, encontra a prova de que vive.” Franz Kafka, “Ele”, em Descrição de uma luta.
3. “A industrialização capitalista do cinema barra o direito que tem o homem
contemporâneo de se ver reproduzido.” Walter Benjamin, “A obra de arte ao tempo de sua
reprodução técnica”.
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Gra a atualizada segundo o Acordo Ortográ co da Língua Portuguesa de 1990, que entrou
em vigor no Brasil em 2009.

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tradução da introdução

Carolina Serra Azul

preparação

Leny Cordeiro

revisão

Clara Diament
Ana Maria Barbosa

versão digital

Rafael Alt

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