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E BITTAR 2015 34-37

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Introdução 13

“... El progreso hacia la utopía se ve frenado hoy en primera línea por la


relación de todo punto descompensada y desproporcionada que existe
entre el peso de la avasalladora maquinaria del poder social y las masas
atomizadas.
Si la filosofia logra ayudar a los hombres a reconocer estos factores, habrá
prestado un gran servicio a la humanidad. El método de negación, la
denuncia de cuanto mutila a la humanidad e impide su libre desarrollo,
descansa sobre la confianza en el ser humano...” (Horkheimer, Crítica
de la razón instrumental, 2006, p. 187).

4 Podem os filósofos modificar o mundo?


Seria demasiado exagero considerar que é pretensão dos filósofos modifica-
rem o mundo. Suas ideias, porém, não se lançam ao mundo sem motivo, sem
objetivos, sem finalidades. O pensamento se exerce de forma tão presencial
entre os homens do mundo que, uma vez acolhidas e adotadas como formas
de comportamento, trazem como desencadeamento certa modificação do
mundo. Então, o filósofo modifica indiretamente o mundo, pois seu rastro é
sua marca impressa sobre as coisas e as pessoas, à medida que suas ideias são
recepcionadas, dispersas, divulgadas pelas comunidades a que se destinam.
Essa modificação decorre do fato de as pessoas abraçarem a palavra apregoa-
da na seara filosófica, de modo a criar-se na prática o que no pensamento foi
arquitetado pelo pensador. Este não age sozinho, mas com o respaldo, com o
auxílio, com o concurso, com a empreitada de adeptos, continuadores, ideali-
zadores de suas ideias...
Até mesmo dizer que o filósofo age sobre o mundo, por vezes, parece ser
um contrassenso. O modus vivendi do filósofo, em geral, é em meio a ideias, e
não na praxe cotidiana de desenvolvimento das mesmas. Todavia, de qualquer
forma, o que há que se dizer é que o filósofo age por meio do pensamento; seu
modo de ação dá-se por meio de palavras, de ideias, de discursos, de escritos...
que são formas sutis de atuação sobre a realidade.9 É, portanto, por meio do
pensamento, com o pensamento e pelo pensamento que a intervenção mais

9
De acordo com esse pensamento também se expressa Marilena Chaui: “Não somos, porém,
somente seres pensantes. Somos, também, seres que agem no mundo, que se relacionam com
os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e
exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações. A
reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circun-
dante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações” (Chaui, Convite a
filosofia, 1999, p. 14).
14 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida

direta do filósofo sobre o mundo se dá. Seria, pelo contrário, incoerente pensar
que o filósofo não pretende agir sobre o mundo, que pretende ver-se excluído,
distanciado e deslocado dos processos decisórios políticos, jurídicos, sociais,
éticos, humanos... Se nem mesmo o mais idealista dos pensadores, Platão, se
manteve alheio a pretensões de ingerência política sobre o mundo,10 o que dizer
dos demais filósofos atuantes na prática política... Então, de fato, o legado de
cada pensador possui uma carga diferenciada de atuação sobre o mundo.
O que pensar da história do pensamento ocidental após a marcante passa-
gem de Sócrates pela Grécia no século V a.C.? Seria possível desconsiderar a
influência que produziu sobre o pensamento de Platão e de Aristóteles? Seria
possível desmerecer sua participação no re-direcionamento do papel do filósofo
após sua morte? Seria possível dizer que a certeza com que se dirigiu para a
morte, quando condenado a beber cicuta, não transmitiu certezas espirituais a
seus conterrâneos e discípulos? Apagar da história do pensamento a figura de
Sócrates seria o mesmo que apagar da história das religiões a figura do Cristo,
o que, com certeza, distorceria profundamente os destinos da humanidade.
Filosofias mais detidamente científicas acabam por determinar o percurso
intelectual da humanidade durante séculos. O que pensar da história da lógica,
sem os conceitos da lógica formal e analítica formulados por Aristóteles (sécu-
lo IV a.C.)? O que pensar da filosofia de Santo Tomás de Aquino (século XIII
d.C.) sem a leitura das obras de Aristóteles? Quais os reflexos da inexistência
de Aristóteles para o mundo ocidental, tendo em vista que se tornou durante
alguns séculos a leitura básica para a formação dos teólogos da cristandade a
partir do século XIII? O que pensar do ensino universitário sem o concurso
da dialética, da retórica, da ética e da política aristotélicas? Negar a influência
do aristotelismo sobre o pensamento ocidental seria o mesmo que dizer que a
história das ciências começou somente no século XV d.C., o que traduz forte
equívoco, e certo anacronismo.
Filosofias mais abstratas acabam por determinar os destinos da própria
ciência e da própria filosofia após sua intervenção nos meios científicos. Seria
possível imaginar a modernidade sem a determinação do pensamento de Imma-

10
“O ceticismo de Platão com relação à intercessão direta e à participação ativa no processo de
educação do povo ateniense pelo pensador conduziu-o à eleição do bíos theoretikós como método
pedagógico de atuação sobre os membros da sociedade. A fundação da Academia em 387 a.C.
revitaliza a paideia pitagórica do século VI a.C., que deslocava o filósofo do meio social para si-
tuá-lo em ambientes que propiciassem o livre desenvolvimento da capacidade meditativa humana.
Assim mesmo, o ideal paidêutico platônico, em momento algum se descura da preparação do
filósofo como instrumento de transformação da sociedade; o educador terá seu lugar primordial
no contexto da República, assim como também o verdadeiro governante é o governante-filósofo,
aquele que tem a sapiência das eidai” (Bittar, A justiça em Aristóteles, 1999, p. 4).
Introdução 15

nuel Kant (século XVIII d.C.)? Quais os destinos do pensamento moderno sem
o criticismo kantiano, que acabou por dar origem a toda uma nova geração de
filósofos antikantianos e pós-kantianos? Seria possível imaginar o desenvolvi-
mento de um pensamento como o de Hegel (século XIX d.C.) sem a existência
e as conquistas conceituais e teóricas do kantismo? Sem a intervenção do kan-
tismo e do hegelianismo, quais as concepções possíveis no plano do Direito,
tendo em vista as largas contribuições e influência que estes autores geraram
sobre juristas e sistemas filosófico-jurídicos? Desconsiderar essa realidade
seria o mesmo que dizer que a teoria do heliocentrismo em nada modificou o
contexto da ciência e os destinos da própria física moderna.
Filosofias mais radicais, de maior cunho político, de profunda crítica social,
no geral, são produtoras de maiores reflexos sobre a sociedade e as estruturas
de poder vigentes. O que pensar da filosofia e da política do século XX sem a
existência de Karl Marx e de Friedrich Engels? O que pensar, historicamente,
a respeito da Revolução Russa de 1917, ou seja, teria ela lugar ou não no curso
dos acontecimentos políticos do século XX? O que pensar da dispersão dos
partidos de esquerda e das múltiplas tendências sociais, social-democratas,
socialistas, trabalhistas, sindicalistas durante o processo de formação da po-
lítica de massa no século XX? Qual a condição dos direitos sociais nas Cartas
e Declarações Internacionais sem a intervenção e dispersão de ideias sociais
pelos pensadores e idealizadores do movimento comunista? Teria lugar uma
Guerra Fria entre URSS e EUA, em função da divisão do mundo em torno de
duas bandeiras ideológicas, militares e econômicas? O que pensar da geração
de maio de 1968 e suas mudanças culturais? Desconsiderar essas influências
e contribuições seria o mesmo que dizer que a descoberta do átomo em nada
influenciou na formação da bomba atômica, o que é, claramente, uma insanidade.
Filosofias de maior peso espiritual acabam por formar um conjunto de
prescrições que direcionam os discípulos à observância de determinados com-
portamentos, que, na base dessa fé e dessa certeza, passam a constituir regras
gerais de comportamento, por vezes, em toda uma sociedade. Seria possível
desconsiderar o papel da filosofia da não violência de Mahatma Gandhi em
meio ao processo de separatismo da Índia da Inglaterra? Em pleno século XX,
em que guerras sangrentas ceifaram inúmeras vidas, seria possível imaginar
o confronto que surgiria se a Índia tivesse se conduzido de modo radical, sem
seu líder espiritual? Negar a importância desses eventos é o mesmo que apa-
gar da história da física quântica o nome de Albert Einstein, o que traduz uma
impossibilidade.
Filosofias mais propriamente jurídicas determinaram a fundamentação
lógica e sistemática do Direito, como ocorre com a doutrina de Hans Kelsen.
16 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida

O que pensar do ensino jurídico universitário sem o concurso desse jurista? O


que pensar dos destinos do positivismo jurídico no século XX sem a existência
da teoria piramidal e normativa do sistema jurídico? O que pensar das suces-
sivas décadas de profissionais do direito formados sob a ideologia positivista
normativista sem a existência de Hans Kelsen? Boa ou má, sua contribuição é
um marco indelével na cultura e na literatura jurídicas universais.
Então, qual o poder das palavras dos filósofos? Entre idealizar algo e real-
mente alcançar seus frutos vai larga distância. Talvez, a filosofia esteja mais
enraizada na vida quotidiana de cada um do que se possa mesmo imaginar.
Talvez esteja ela tão impregnada de usos e costumes sociais, de hábitos e crenças
populares, de sentenças e opúsculos de pensamento, que seja difícil diferenciar
o que é filosófico do que é folclórico ou cultural. Pequenas e sutis brechas do
quotidiano e da vida fazem perceber que a filosofia é, antes de idealismo, reali-
dade presente e palpável na vida das pessoas. Quando se diz: “gostaria de viver
um amor platônico”, já se está a traduzir certo conhecimento da proposta do
filósofo Platão; “a morte é a passagem desta para uma melhor”, há nisto forte
sabor otimista cristão; “a virtude consiste num meio-termo, nem no excesso
nem no exagero”, está-se a traduzir em miúdos a teoria ética de Aristóteles;
“a natureza é senhora soberana de todos e exemplo para o homem”, está-se
a verificar e identificar na natureza a origem dos direitos, como pregado pela
corrente jusnaturalista.
Talvez, seja uma teoria, uma ideia, uma ideologia, um texto, um livro... a
origem de um comportamento atual, cuja memória do início já se apagou por
completo, ou, o que é ainda mais grave, a origem de massivos comportamentos
sociais.
Talvez, com toda a limitação que é peculiar ao pensamento, as palavras dos
filósofos tenham mais influência que se possa efetivamente medir. Talvez, as
letras filosóficas tenham influenciado mais a história da humanidade do que
muito líder político sonhador tenha jamais pensado poder fazer. Talvez, símbo-
los, sílabas, letras e frases ressoem mais que espadas que tiritam no ar. Talvez,
sistemas ideológicos teoricamente arquitetados alcancem maiores repercussões
sociais que sistemas burocráticos inteiros, com massas de inumeráveis funcio-
nários, não são capazes de construir. Eis aí a ambivalência e o poder da filosofia.

5 Os conhecimentos humanos
Os conhecimentos são inexauríveis, enquanto a vida é finita. Os horizontes
do saber se dilatam à medida que a dinâmica da realidade se altera. O famoso
adágio clássico, ars longa vita brevis, retrata precisamente a sensação de impo-

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