Uma Arqueologia Da Liberdade No Ocidente
Uma Arqueologia Da Liberdade No Ocidente
Uma Arqueologia Da Liberdade No Ocidente
Departamento de Filosofia
Curso Integral
14 aulas
1GRONDIN, Jean; “La renaissance de la raison grecque chez KANT”, In: MATTÉI, Jean-François
(org.); La naissance de la raison en Grèce, Paris: PUF, 1990, p. 11
deixaram pensar em grego. Com o advento do logos teria vindo a enunciação da
liberdade, teria vindo a luta pela transformação de nossas estruturas sociais em
nome de uma vida racional e livre.
Eu gostaria de lembrar a vocês as consequências que um pensamento
dessa natureza pode produzir. Pois se o ocidente se confunde com a destinação
do logos, então não haveria razão alguma para deixar de aplaudir os processos,
normalmente violentos, de “extensão do ocidente”, de ampliação colonial do
ocidente àqueles que precisariam ser acordados de seu sono profundo nos
braços do pensamento mítico. Esta ampliação do ocidente seria o verdadeiro
eixo do que deveríamos entender por “história”, a saber, o irresistível
movimento de nos transformarmos em desdobramentos possíveis de uma
metafísica do logos que nos moldou em suas dicotomias e tensões. Assim, a
história começaria lá onde o ocidente consegue enxergar suas raízes, de onde se
seguiria a necessidade de distinções entre sociedades estáticas e dinâmicas,
sociedades desprovidas de história e sociedades históricas.
Filósofos como Hegel, por exemplo, compreenderão sociedades como a
chinesa, a indiana e as africanas como fora da dinâmica histórica, o que significa
sociedades desprovidas de contradição imanente e que, por isto, necessitariam
de intervenções externas para entrar em movimento. Marx ainda pressupunha
essa distinção entre formas sociais dinâmicas e estáticas. Ao falar, por exemplo,
das sociedades nômades da Ásia e América, ele afirma:
4ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max; Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro: Zahar, pp.
24-27
outras partes do globo, racionalizando a vida social a partir da generalização de
um modelo cuja origem, cuja matriz será sempre europeia. Ou seja, tudo se passa
como se houvesse um movimento geral de contágio do centro para as margens,
como uma pedra que cai em um rio.
É claro que este modelo precisa sustentar uma visão de processo histórico
marcado pelas dinâmicas de atraso e antecipação. Algumas experiências sociais
encontrariam-se atrasadas, elas preservariam estruturas arcaicas que deveriam
ser ultrapassadas através do contato com sociedades em um tempo avançado,
sociedades que se anteciparam no interior de um processo geral de
desenvolvimento.
Mas uma perspectiva radicalmente comparatista assumiria existir uma
história universal que não é a descrição irresistível de processos de contágio de
lutas e experiências políticas que ocorrem inicialmente no ocidente. Na verdade,
haveria uma história mundial que não opera de forma concêntrica, mas que
opera sob a forma de ressonâncias. Tal perspectiva comparatista partiria do
princípio de que experiências de emancipação e liberdade estão presentes em
todas as formas de vida dispersas geográfica e historicamente. Tais formas
podem “entrar em ressonância”, ou seja, experiências locais podem fazer ressoar
experiências em outras localidades criando uma espécie de constelação. Ou seja,
não se trata de contrapor a história mundial a uma perspectiva que libera a força
das localidades e das territorialidades singulares. Trata-se de contrapor uma
falsa história mundial a uma história mundial des-colonial, capaz de colocar em
pé de igualdade múltiplas emergências locais de tensões em direção à liberdade.
O que significa, é claro, assumir que as experiências dispersas de liberdade não
são indiferentes umas às outras. Elas se contaminam, mas só podem se
contaminar no interior de uma história mundial, até que elas consigam criar
relações de ressonância, permitindo a emergência de um processo global com
múltiplos enraizamentos locais.
No entanto, para um trabalho desta natureza, como disse anteriormente,
nos falta muito. Há de se reconhecer que nossa formação, em larga medida, ainda
não nos qualifica para tanto. Como toda estratégia comparatista, precisaríamos
ser capazes de trafegar bem em dois mundos, operar bem duas gramáticas. O que
ainda não é o caso.
Por isto, o que gostaria de fazer consiste em partir não da história da
elevação da liberdade a horizonte regulador de nossas expectativas de
transformação social, tal como ela se configuraria no Ocidente, mas partir de seu
ponto de esgotamento, de seu giro autocrítico. Eu gostaria de organizar essa
arqueologia a partir do fim, tendo o fim como seu verdadeiro horizonte. Ou seja,
partir do momento em que nosso modelo hegemônico de liberdade é
reflexivamente questionado no interior da própria tradição que o gerou.
Movimento rico e doloroso, um giro autocrítico desta natureza é expressão de
nosso próprio descentramento, de nossa própria possibilidade de
descentramento.
É claro que tal estratégia exige, por sua vez, a aceitação de certos
pressupostos. O primeiro deles é que poderíamos falar de “modelo hegemônico”
nesse caso. Como se a multiplicidade dispersa de usos do conceito de liberdade
no ocidente acabasse por partilhar certos traços comuns. Traços estes que
definem os limites dos efeitos pragmáticos, da força produtiva do uso do
conceito. Obviamente, esta não é uma proposição imediatamente evidente. No
entanto, gostaria de mostrar como ela pode ser sustentada.
Já o segundo pressuposto defende que um giro autocrítico da liberdade no
interior do pensamento filosófico ocidental permite abrir um campo de
ressonâncias com possibilidades de emancipação presentes em formas sociais
outras. O que poderia ser um passo importante para o que outros já definiram
antes de nós como o exercício de descolonização de nossas formas de pensar e
agir. Ou seja, o pressuposto aqui é: nossas estratégias de auto-crítica nos
aproximam de possibilidades de emancipação não organizadas por uma matriz
que se apresenta como colonizadora de pensamento.
Digamos que essas estratégias de auto-crítica partem de duas formas
possíveis do impacto do contato com o outro. Duas formas de metamorfose a
partir da exposição à alteridade. A primeira diz respeito à colisão com uma
alteridade externa, vinda do contato com outras formas de vida dispersas
geográfica e historicamente. A segunda é o fruto do desvelamento de uma
alteridade interna que parece habitar nossa própria forma de vida, que constitui
práticas que produzem contradições em nosso própria forma de vida, invertendo
continuamente às determinações valorativas que parecem nos orientar. Na
verdade, gostaria de terminar nosso curso explorando essa segunda estratégia.
Eu gostaria de mostrar como somos habitados por práticas que tem a força de
erodir periodicamente o solo de nossa noção hegemônica de liberdade e que,
com isto, nos impulsiona a estratégia de auto-crítica de nós mesmos. Há um setor
da prática estética que tem essa força, produzindo uma noção de autonomia e
liberdade radicalmente distinta daquela que circula em nosso horizonte social.
Auto-pertencimento e propriedade de si
Arendt pode fazer uma afirmação desta natureza porque, a seu ver, a filosofia
grega conheceria, principalmente, uma discussão sobre liberdade onde esta não
se encontra em seu terreno natural, a saber, a política. Antes, a liberdade
apareceria principalmente como liberdade interior, como disposição ética de
conformação ao logos. Pois o modo de vida do filósofo era pensado em oposição
ao bios politikós. Isto permitira o aparente paradoxo filosófico de um escravo,
Epiteto, considerar-se livre. E apenas quando o cristianismo reconstrói toda a
noção política de liberdade a partir da discussão sobre o livre-arbítrio, sobre a
relação consigo mesmo, a liberdade poderia aparecer como um problema
efetivamente filosófico.
a que exercerás a não ser a distinguir o que é seu e o que não é seu, o que
depende de ti e o que não depende de ti, o que encontra obstáculos e o
que não encontra? (...) E de que terás ainda um desejo apaixonado? Pois
tens um desejo bem ordenado e fixo das coisas que dependem de tua
vontade porque elas são belas, mas não tens o desejo dessas que não
dependem de ti, desejo que abriria a porta a desrazão, ao impulso que
precipita contra toda medida8.
13Ver, a este respeito, MENKE, Christoph; Kraft: Eine Grundbegriff ästhetischer Antropologie,
Frankfurt: Suhrkamp, 2008. O modelo de tais processos fora fornecido pela articulação entre
estética e força em HERDER, Johann; “Übers Erkennen und Empfinden in der menchlichen Seele”,
In: Theoretische Schriften, Berlin: Holzinger, 2013; alem das discussões sobre o sublime em
BURKE, Edmund; A philosophical enquiry into our ideas of the sublime and beautiful, Oxford
University Press, 1990. Ele permanecerá, de certa forma, nas discussões modernas, como
podemos ver nas reflexões a respeito da força de “estremecimento” (Erschütterung) própria à
experiência estética em ADORNO, Theodor; Ästhetische Theorie, Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
Arqueologias do conceito de liberdade
Aula 2
Autarkeia e cinismo
Não deixa de ser uma profunda ironia perceber como o termo “cinismo” chegou
até nós. Seu sentido está normalmente ligado a alguma forma de dissimulação, ao
ato de retirar da enunciação da verdade a força performativa que esperávamos
encontrar. Por isto, o termo nos designa algo como um ethos em degradação,
como uma franqueza que parece zombar da verdade. Podemos fornecer um
modelo para esta maneira de encaminhar o problema do cinismo. Podemos
partir das exigências de validade de uma norma moral com expectativas
universais de validade como o princípio de tolerância. Podemos também afirmar
que na significação do princípio já encontramos, aparentemente, a designação de
um modo de ação: o respeito ao outro em sua singularidade. Mas, “em certas
situações especiais”, para defender o princípio de tolerância, eu posso ser levado
a ser intolerante com aqueles que são contra o princípio de tolerância. Em defesa
da tolerância, eu posso ser levado a expulsar os intolerantes da minha
comunidade. Desta forma, posso continuar sendo tolerante na dimensão dos
critérios normativos mesmo sendo intolerante na dimensão da ação. Por sinal,
este foi o caso da extrema direita holandesa encarnada por Pim Fortuyn, morto
dias antes da eleição que o levaria ao poder neste que é o país formalmente mais
tolerante do mundo. Sua própria figura era um exemplo maior do que
procuramos apreender. Tratava-se de um populista de direita cuja grande parte
das características pessoais e opiniões eram politicamente corretas : era
homossexual assumido, tinha boas relações com imigrantes, um senso inato para
a ironia etc. No entanto, o núcleo do seu discurso era: “Os Países Baixos
alcançaram um alto grau de tolerância e liberdade. Não podemos perder tudo
isto deixando que árabes intolerantes venham para cá. Em nome da tolerância,
devemos então ser intolerantes contra os intolerantes. Nós já fomos muito
tolerantes com a intolerância”.
Esta não era a compreensão que os gregos tinham da escola cínica de
Diógenes, de Antístenes, de Menipo, de Crates, de Hipparchia, entre outros. Tanto
que seu nome aludia a “cão” , kunos, por se tratarem de filósofos cuja fala franca
era, via de regra, agressiva, sarcástica, sem consideração pelas convenções
sociais e regras de sociabilidade. Uma verdade nua, crua, resultado de uma vida
também nua e crua, tanto na recusa ao poder, tanto na franqueza em relação à
sexualidade, tanto na procura pela despossessão dos bens. Uma verdade que
estará mais próxima de uma rígida ascese corporal que de um exercício de
esclarecimento filosófico. Nudez esta que pode começar a nos explicar certa
maneira grega de viver a liberdade, de fazer da liberdade o exercício de um
regime de fala e de vida. Essa reversão do cinismo em seu contrário que
conhecemos hoje nos obriga atualmente a falar de “cinismo antigo” e “cinismo
moderno”.
O primeiro filósofo cínico é Antístenes, discípulo de Sócrates, cuja filosofia
é baseada no uso extensivo da enkrateia (auto-domínio) socrática, mas é
Diógenes que passará a posteridade como o mais emblemático dos filósofos
cínicos. Posteriormente, o cinismo será uma filosofia extremamente popular no
período do Império Romano. As figuras cínicas serão recuperadas, não por acaso,
pelo Iluminismo. Esta recuperação do cinismo pelo Iluminismo, que chegou a
transformar Diógenes em herói popular na iconografia da Revolução francesa,
deve ser compreendida no quadro de constituição dos móbiles da crítica
iluminista. A parresia cínica, palavra autêntica com seu sarcasmo em relação aos
preconceitos sexuais, religiosos, morais, políticos e à autoridade aparecerá como
ponto de orientação da crítica no iluminismo. Pelas mão de Diderot, o cinismo
encontra seu ponto de inversão em seu contrário, como podemos atestar em seu
livro O sobrinho de Rameau. Posteriormente, o cinismo será recuperado pela
filosofia contemporânea, seja para indicar uma degradação do ideal iluminista
em “falsa consciência esclarecida” (razão cínica, em Sloterdijk), seja para pensar
as modalidades de recuperação de sua força crítica como forma de vida e estética
da existência (Foucault). Foucault chegará a definir o cinismo como: “uma
experiência ética fundamental do ocidente” que nos acompanhará durante toda
nossa história, como se fosse possível: “mostrar a existência permanente de algo
que pode aparecer como o cinismo através de toda a cultura europeia”.
Por outro lado, lembremos aqui que falar do cinismo grego é um exercício
mais complexo do que pode parecer pois falta um acesso direto aos textos. Os
textos canônicos de contato com o pensamento cínico são recensões feitas por
terceiros, a parte os textos de um cínico menor, Teles. Neste sentido, o sexto livro
do Vida, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres de Diógenes Laércio ainda é a
grande referência; mas ele, por sua vez, é um recessão de anedotas de domínio
público e fragmentos de textos cínicos. Na verdade, os textos cínicos que temos
acesso hoje são principalmente da fase romana do cinismo que se inicia a partir
do século I DC, como, por exemplo, os escritos de um sofista, Dion Crisostomos,
de Favorinus, além das sátiras de Luciano (nas quais Menipo e Diógenes
aparecem frequentemente como protagonistas principais) e dos discursos do
Imperador Juliano. Este estado das fontes impede um estabelecimento mais
preciso dos contornos da filosofia cínica. Por outro lado, ele faz com que: “O
estudo do cinismo, contrariamente ao estudo do platonismo, seja inseparável do
estudo de sua recepção”15.
E se, por acaso, meu corpo sentir a necessidade dos prazeres do amor, a
primeira que vier será suficiente, a tal ponto que as mulheres das quais
me aproximo acolhem-me com transporte pela simples razão de que
ninguém consente em ter comércio com elas20.
16 Idem, p. 8
17 DIÓGENES LAÉRCIO, Vie, doctrine et sentences des philosophes illustres, Paris : Flammarion,
1965, p. 14
18 EMPIRICO, Sexto; Contra os matemáticos, XI, 73-74
19 PAQUET, Lucien; Les cyniques grecs: fragments et témoignages, p. 135
20 XENOFONTE, Banquete, IV, 38
ocasião da recuperação romana, se dedicassem à separação entre um “falso” e
um “verdadeiro” cinismo (basta lembrar do combate de Luciano contra os falsos
cínicos). O fato é que esta discussão a respeito de um falso e de um verdadeiro
cinismo atravessou a recepção medieval e renascentista do legado cínico. O
elogio da pobreza, da autarkeia, e a crítica ao caráter heterônomo das obrigações
morais da vida social foram motivos para a recuperação do cinismo pela filosofia
moral do cristianismo medieval (Erasmo, Morus). No entanto, não foram poucos
os teólogos cristãos que compreenderam como simples figura do amoralismo a
crítica cínica com sua ausência de vergonha (verecundia) e com seu desprezo
pelas regras sociais. A possibilidade de aproximação entre a moralidade cristã e
o cinismo chegou mesmo a ser determinada, em alguns casos, como heresia (vide
o caso dos Turlupins). Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar ainda
que tal dicotomia na recepção do cinismo chegou até a contemporaneidade.
Basta lembrarmos do projeto de Peter Sloterdijk em recuperar o pretenso
potencial disruptivo da crítica cínica aos costumes e á moral, isto a fim de
contrapô-lo ao cinismo próprio à ideologia do capitalismo contemporâneo. No
entanto, esta contraposição simples talvez passe ao largo da verdadeira questão.
Uma explicação possível para o fato desta duplicidade na recepção do
cinismo pode ser fornecida se nos atentarmos para certos problemas na
fundamentação de toda moral naturalista. Neste sentido, lembremos do
significado em fundar a autarkeia cínica através da posição da apatia. Fundar a
dominação de si na negação direta dos vínculos privilegiados a objetos sensíveis
equivale a recorrer a um conceito negativo de liberdade. Digamos que a
liberdade cínica não é “liberdade de fazer determinadas ações”, mas
principalmente “libertação em relação a certos objetos e paixões”. Esta libertação
permite a constituição de vínculos fundamentais entre liberdade e auto-
pertencimento. Lembremos do que diz Diógenes, segundo Epiteto:
O riso da franqueza
22 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 10
23 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 20
24 DIÓGENES LAÉRCIO, idem, p. 30
25 HEGEL, Fenomenologia, par. 524, Phänomonologie, p. 345
Mas tentemos entender melhor a estrutura do falar franco cínico, expressão
maior da liberdade. A primeira característica que gostaria de salientar é a
articulação entre franqueza e sarcasmo. Como se a liberdade se exercesse de
forma privilegiada na derrisão e no riso. Ao falar do cinismo como forma
literária, Nietzsche lembra:
Faz-se necessário, já que utilizamos o logos, que haja uma lexis (uma
maneira de dizer as coisas) e também que tenha um certo número de
palavras que sejam escolhidas em detrimento de outras. Assim, não pode
haver logos filosófico sem esta espécie de corpo de linguagem , corpo de
linguagem que tem suas próprias qualidades, e que tem seus efeitos,
efeitos patéticos que são necessários. Mas o que deve ser necessário, a
maneira de regular estes elementos (elementos verbais, elementos que
têm por função agir diretamente sobre a alma) não deve ser, quando se é
A crítica da metafísica
36 LONG, idem, p. 37
Arqueologia do conceito de liberdade
Aula 3
Determinismo e acontecimento
38 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 10
39 DIÓGENES LAÉRCIO, p. 20
Zenão e Crisipo temos apenas alguns fragmentos e citações, enquanto as obras
de Sêneca, Epiteto e Marco Aurélio foram, em larga medida, preservadas.
O estoicismo é, juntamente com o epicurismo, uma das duas escolas que
marcarão o período de influência da cultura helênica no ocidente. Elas trazem as
características históricas do momento de colapso das cidades-estados e da
propagação imperial da cultural grega.
A articulação cerrada entre lógica, física e ética (os estoicos chegavam a
comparar a filosofia a um ovo sendo a lógica a casca, a ética a clara e a física a
gema) mostrava como nenhuma procura pela orientação da conduta em direção
à felicidade pode ocorrer sem a compreensão da racionalidade do universo.
A princípio, o estoicismo seria a mais refratária das perspectivas
filosóficas à liberdade. Logos é o nome da existência em sua integralidade. Não há
nada que desconheça as amarras da necessidade, não há espaço para a
desordem, o acidente ou para a contingência. Como dirá Cleanto, em seu Hino a
Zeus: “você sabe reduzir o que é sem medida. Ordenar a desordem; em ti a
discórdia é concórdia”40. Afinal, estamos a falar de uma filosofia caracterizada
pelo extremo determinismo. O que significa que a racionalidade do mundo não
está em seus elementos imutáveis, mas sua própria racionalidade imanente, suas
modificações, são a expressão da racionalidade em ato. Lembremos do que nos
diz Emile Bréhier:
Ou bem a moral não tem sentido algum ou bem é isto que ela quer dizer,
ela não tem nada a mais a dizer: não ser indigno do que nos acontece. Ao
contrário, apreender o que acontece como injusto e não merecido (é
sempre a culpa de alguém), eis o que faz nossas feridas repugnantes, o
ressentimento em pessoa, o ressentimento como acontecimento (...) Que
significa dizer então querer o acontecimento? É aceitar a guerra quando
ela acontece, a ferida e a morte quanto elas acontecem? É bem provável
que a resignação ainda seja uma figura do ressentimento, ele que possui
tantas figuras. Se querer o acontecimento é inicialmente extrair dele a
verdade eterna, como o fogo do qual ele se alimenta, este querer alcança o
ponto no qual a guerra é feita contra a guerra, a ferida, traçada viva como
a cicatriz de todas as feridas, a morte revirada contra todas as morte45 .
Liberdade e autopertencimento
É livre aquele que vive como quer, que não se pode nem restringir nem
impedir nem forçar, cujas vontades são sem obstáculos, cujos desejos
alcançam seus objetivos, cujas aversões não encontram o objeto
detestado50.
Desde o início, a que exercerás a não ser a distinguir o que é seu e o que
não é seu, o que depende de ti e o que não depende de ti, o que encontra
obstáculos e o que não encontra? (...) E de que terás ainda um desejo
apaixonado? Pois tens um desejo bem ordenado e fixo das coisas que
dependem de tua vontade porque elas são belas, mas não tens o desejo
dessas que não dependem de ti, desejo que abriria a porta a desrazão, ao
impulso que precipita contra toda medida56.
53 Idem, IV, I, 87
54 DIOGENES LAÉRCIO; Vida e opinião de filósofos ilustres, p. 53
55 Idem, I, I, 16
56 Idem, IV, I, 83
57 EPITETO, Manual, I, 1
Sou responsável pelo uso de minhas representações. A primeira função da
filosofia consiste em examinar as representações. Vontade e pensamento
aparecem como o fundamento do que me define em meu auto-pertencimento.
Esta é a verdadeira autoctonia do estoicismo. Não o solo do qual faço parte
enquanto cidadão da polis, não a territorialidade, mas o ponto no qual a vontade
se encontra na universalidade do logos. Sócrates nunca dizia ser de Atenas ou de
Coríntio, mas do mundo. Pois tal dimensão da vontade só pode ser inabalável por
querer o logos, por querer a racionalidade do mundo e a necessidade do
acontecimento. O que não poderia ser diferente para alguém que dirá: “você é
ator de um drama que o autor quis como tal (...) o que é seu, é de desempenhar
corretamente o personagem que te foi confiado, quanto a escolhe-lo isto é de
outro”58.
Mas isso significa reconhecer que não estamos em um teatro do absurdo,
o que implica no exercício ativo de extrair do que ocorre a força de
transformação do acontecimento. Livre é aquele que quer o logos, será a
proposição fundamental a ser extraída do estoicismo. Um querer que exige um
profundo trabalho sobre si. Trabalho esse cujo eixo fundamental encontra-se na
capacidade de saber agir no espaço daquilo que depende de mim, daquilo que
estabelece comigo um horizonte de pertencimento. Trabalho de liberação das
coisas exteriores e de cultivo do que é próprio à minha natureza. Trabalho que
me leva a nunca estar fora de mim. Foi pensando nisto que Michel Foucault
afirmou:
58 Idem, XVII
59 FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérité, p. 245
60 HEGEL, Lições sobre a história da filosofia – O estoicismo
Ou seja, Hegel compreende o estoicismo como figura larvar da
individualidade moderna, que nesse momento histórico aparece como resposta
compensatória à impossibilidade de transformação efetiva das condições
concretas de existência. Sua esfera de auto-pertencimento seria uma abstração
que preservaria aquilo que trava a realização social da liberdade.
Isto talvez nos explique porque Hegel compreende o estoicismo a partir
de duas determinações complementares. Primeiro:
Nós sabemos que é possível fazer uma pesquisa em ética, de construir uma nova ética, de
dar lugar ao que chamaria de imaginação ética, sem referência alguma à religião, à lei e à
ciência. É por tal razão que a análise da ética greco-romana como estética da existência
pode ter interesse68.
uma maneira de viver cujo valor moral não está vinculado à sua
conformidade a um código de comportamento, nem à um trabalho de
purificação, mas à certas formas, ou melhor, à certos princípios formais
gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles fazemos, nos limites
que observamos, na hierarquia que respeitamos69.
71 Idem, p. 18
72 Idem, p. 69
73 Idem, p. 93
74 Idem, p. 116
75 Idem, p. 29
Neste contexto, aparece um peculiar conceito de soberania, vinculado à
leitura que Foucault faz dos estoicos e de sua askesis, assim como à sua crítica ao
cuidado de si tal como aparece no Alcebíades, referido a Platão. Foucault recusa
esta submissão do cuidado de si, tal como vemos no Alcebíades, à condição de
prolegômeno para o aprendizado do governo da cidade e à condição de exercício
ligado a uma metafísica da alma. Alcebíades deve governar a si mesmo para
poder governar os outros, seu exercício de cuidado de si é por isto submetido a
uma praxis gestionária.
No entanto, contrariamente a tal posição, há uma “autonomia” do cuidado
de si nos estoicos que claramente interessa a Foucault e que já aparece em outro
diálogo de Platão, Laques. Tal autonomia permite o cultivo de uma “soberania do
indivíduo sobre si mesmo” que aparece como horizonte ético ligado
exclusivamente à capacidade de estilizar a liberdade, de compreender que a
liberdade se realiza como afirmação da dimensão estética da existência. Este
caminho nos levaria a uma “história da estilística da existência, uma história da
vida como beleza possível”76. Por outro lado, tal soberania de si forneceria um
horizonte do uso dos prazeres que nos levaria a: “um gozo sem desejo e sem
transtorno (trouble)” 77. Soberania que nos livra do fantasma do excesso, que
permite o aparecimento da liberdade como regulação singular dos corpos sem
transtornos, que é intensificação do cuidado a si.
Mas há de se perguntar sobre o que devemos entender por “soberania”
neste contexto e que, a meu ver, está pressuposta no horizonte do pensamento
de Foucault. Notemos inicialmente como, expulsa da condição de qualidade de
quem detém o poder do Estado, a soberania aparece aqui como uma qualidade
que pode ser exercida por todo sujeito em emancipação. Quando falar sobre a
vida dos cínicos, Foucault mais uma vez sublinhará seu caráter de soberania, de
“vida soberana”. Neste momento, ele não deixará de salientar algumas de suas
características maiores:
Auto-pertencimento
79Ver, por exemplo, GARO, Isabelle; Foucault, Deleuze, Althusser et Marx: la politique dans la
philosophie, Paris: Démopolis, 2011 ou DE LAGASNERIE, Geoffroy; A última lição de Foucault, São
Paulo: Três estrelas, 2013
80 FOUCAULT, Michel; Histoire de la séxualité III, p. 123.
Sendo o Estado compreendido como um modo genérico de
individualização, com formas e mecanismos específicos juridicamente
totalizados, já que ele fornece o quadro institucional necessário para as outras
instituições sociais operarem, não haveria outra tarefa política do que “nos
liberar do Estado e do tipo de individualização que a ele se vincula”81 a fim de
promover novas formas de subjetividade ou, ainda, de “criar um novo direito
relacional que permitiria a todos os tipos possíveis de relação existirem e não
serem impedidos, bloqueados ou anulados por instituições relacionais
empobrecedoras”82. Não encontraremos proposições liberais que caminhem no
sentido desta decomposição das determinações dos indivíduos e desta deposição
da regulação biopolítica do Estado através da afirmação de uma plasticidade do
direito contra as próprias instituições, em especial contra a família e o Estado.
Mas há um ponto que merece maior problematização. Tal criatividade é
compreendida por Foucault a partir da temática do redimensionamento do
espaço dos prazeres. Liberado das amarras jurídicas de nossa identidade estatal,
poderíamos nos abrir à construção contínua de novos espaços de prazeres. A
este respeito, dirá Foucault: “devemos trabalhar não exatamente à liberação de
nossos desejos, mas a permitir que nós mesmos sejamos infinitamente mais
suscetíveis aos prazeres”83. Ou ainda quando ele afirmar que deveríamos
inventar, com o corpo, um erotismo não-disciplinar84. Foucault chega a dar como
exemplo a dissociação entre prazer e sexo próprio a ritualização das formas de
prazer nas subculturas S/M, seguindo uma via aberta por Deleuze em seu estudo
sobre o masoquismo85. Neste sentido, apareceria aqui uma via para uma
“sexualização outra do corpo”, assim como o uso do que Foucault chama de “boas
drogas” poderia abrir o espaço a uma dessexualização do prazer86. Em todos
estes casos, temos reconfigurações da experiência sensível, reconfigurações de
suas velocidades, intensidades e dinâmicas através de práticas muitas vezes
relacionais que aparecem como condição para a emancipação em relação a
formas de repetição de formas hegemônicas de vida. A ideia pressuposta parece
apontar para uma dimensão propriamente sensível da experiência que só pode
ser modificada através da própria sensibilidade e que teria a força de reinstaurar
formas renovadas de laços sociais, mesmo que laços inicialmente restritos.
O prazer e o fora
81 Idem, p. 1051
82 Idem, p. 1129
83 Idem, Dits et écrits II, p. 984. Ou ainda: “Contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio
do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas o corpo e os prazeres” (FOUCAULT, Michel;
Histoire de la séxualité I, Paris: Gallimard, 1976, p. 208).
84 A este respeito, ver SABOT, Phillipe; “Foucault, Sade e as luzes” Redisco, vol 2, n. 2, 2013, pp
111-121
85 Ver DELEUZE, Gilles; Présentation de Sacher-Masoch, Paris: Minuit, 1965
86 Ver MENDELSOHN, Sophie; “Foucault et Lacan: le sujet en acte”, in: Filozofski Vestnik, vol.
chave nitezscheana que reverbera a temática do amor fati. Basta lembrar de afirmações como:
“esta soberania [cínica] se manifesta na felicidade deste que aceita seu destino e não conhece,
por consequência, nenhuma falta, nenhum remorso e nenhum medo. Tudo o que é dureza de
existência, todo o que é privação e frustração, tudo isto se retorna em um exercício positivo da
soberania de si sobre si” (FOUCAULT, Michel; Le courage de la vérite, op. 282)
constituição de procedimentos de imanência. Se esta subjetivação é um “cultivo”,
se ela é um “cuidado” é porque ela instaura um espaço no qual não se pensa mais
o si sob a forma do conflito e do descentramento. Subjetivação na qual a ipse se
funda sobre o espaço possível de uma decisão ou mesmo, se quisermos, de um
projeto voluntário e refletido, o que nos permite nos perguntarmos que tipo de
agência voluntária é esta, o que ela implica, se ela não exigiria estruturas da
subjetividade que o próprio Foucault gostaria de recusar.
No entanto, se é verdade, como dirá Balibar, que Foucault procura
constituir uma: “ética da ultrapassagem de uma individualidade normal e
normalizada através de uma ‘sobreindividualidade’ que a supera (como
Nietzsche falava do ‘sobrehumano’ que superava o humano)”90 então há de se
reconhecer que ela se desdobra a partir das possibilidades de fazer valer formas
de auto-pertencimento que não sejam imediatamente compreendidas como
internalização de relações de propriedade, tão próprias do indivíduo moderno ao
qual Foucault não cessa de criticar.
Aqui, a questão central pode enfim se apresentar: é possível, nas
condições históricas que são as nossas, afirmar o projeto de uma ética
fundamentada na noção de liberdade como auto-pertencimento, sem com isto
sermos reconduzidos ao princípio liberal da liberdade como propriedade de si?
Esta questão é, a meu ver, decisiva para discutir a atualidade possível das
estratégias de Michel Foucault. O que nada tem a ver com a acusação equivocada
de um certo liberalismo do filósofo francês, mas com a reflexão sobre a
possibilidade ou não de realizar, nas condições históricas atuais, um conceito de
liberdade como auto-pertencimento que tenha forte potencial emancipatório e
crítico em relação às dinâmicas reificadas do capitalismo contemporâneo. É certo
que Foucault assumiu esta possibilidade, nos deixando a questão de saber se ela
é a melhor estratégia conceitual para pensar o problema da liberdade no interior
de nossa condição histórica.
90 BALIBAR, Etienne; “L’anti-Marx de Foucault”, in: LAVAL, Christian et alli; Marx et Foucault:
Lectures, usages, confrontations, Paris: La decouverte, 2015
Arqueologia da liberdade
Aula 5
Não é por acaso que a definição que temos de propriedade de si vem de um texto
que é, na verdade, o panfleto político de um dos primeiros movimentos no
Ocidente a se organizar em torno da noção de soberania popular. Trata-se de
Uma flecha contra todos os tiranos e tiranias, escrito por Richard Overton em
1646, na prisão de Newgate.
Estamos em meio às guerras civis na Inglaterra. Entre 1642 e 1651, a
Inglaterra será atravessada por três guerras civis que opunham, de um lado, os
monarquistas apoiadores do rei Carlos I e, posteriormente, de Carlos II e, de
outro, os defensores do Parlamento. A guerra terminará com a vitória do
Parlamento, com o fim da monarquia e a instauração da Commonwealth of
England (1649-1653) que dará lugar, posteriormente, ao protetorado de Oliver
Cromwell (1653-1658). Como o fim do Protetorado e do rápido governo de seu
filho, a monarquia retorna para continuar até os dias de hoje.
Lembremos que desde a proclamação da magna carta em 1215, o rei
britânico reconhecia limitações em seu poder e a necessidade de negociar com o
Parlamento, representante dos interesses da nobreza e de proprietários de
terras. Desde então, o rei necessitava reunir o Parlamento para aprovar
demandas financeiras e tributárias. Ou seja, o Parlamento funcionava de forma
intermitente a pedido do rei.
Carlos I procurou evitar negociações com o Parlamento, passando mais de
dez anos sem convoca-lo. Mas diante da crise financeira provocada por uma
guerra perdida contra os escoceses, que temiam que o rei estivesse a reinstaurar
o catolicismo, o Parlamento é convocado em 1640. Conhecido como Longo
Parlamento, ele tentará limitar os poderes do monarca, o que levará à primeira
guerra civil de 1642-1646. Finda a guerra, a Inglaterra estará dividida e com as
facções em contínua disputa. Uma segunda guerra civil terminará com a
condenação e enforcamento de Carlos I, em 1649, declarado como “tirano,
traidor, assassino e inimigo público”. Será o primeiro regicídio da história
inglesa, e o único. O ato abre o caminho para a ascensão de Cromwell que
precisará ainda vencer uma terceira guerra civil contra uma aliança entre
católicos irlandeses e monarquistas.
Neste contexto, a Inglaterra conhecerá vários movimentos que
advogavam maior participação popular nas decisões do estado, liberdade de
expressão e de culto a todas as seitas protestantes, ampliação do sufrágio, direito
de silêncio, entre outros. Eles se aproveitam da singular liberdade de expressão
que ocorrerá na Inglaterra entre 1641 e 1660 quando não haverá censura estrita.
Dentre esses movimentos, o mais importante será dos Levellers, nome
inicialmente pejorativo que indicava o desejo igualitário de nivelamento que será
o eixo de suas lutas por liberdade. Seus principais líderes serão John Lilburne,
Richard Overton e William Walwyn. Utilizando-se de panfletos dirigidos à
opinião pública, os Levellers terão influência em setores da New Model Army (o
exército regular nacional formado em 1645 pelos defensores do Parlamento,
composto de membros regulares vindos, principalmente, das classes populares;
tratava-se do primeiro exército de recrutas majoritariamente voluntários) e,
juntamente com outros grupos e movimentos (como os Diggers com seu
comunismo agrário) procurarão realizar um outro caminho para as
transformações esperadas pela Inglaterra. De certa forma, podemos dizer que
Oliver Cromwell saberá como se servir da energia de transformação social
produzida por essa miríade de movimentos para limitar suas consequências
reais.
A importância desses movimentos populares não pode ser menosprezada,
pois eles davam expressão política a uma longa história de sedição popular no
interior da Inglaterra. Levando isto em conta, o historiador Christopher Hill dirá:
A gênese da propriedade de si
100 MACPHERSON, C.R.; The theory of possessive individualism, Oxford University Press, 1993, p.
142
101 OVERTON, p. 55
102 OVERTON, p. 63
plenos direitos políticos. Eles aceitaram pertencer a seus mestres. No que se nota
como a proposição teórica da propriedade de si universal é praticamente
limitada tendo em vista a exclusão das classes pobres do direito de decidir,
enquanto maioria, o destino do país. Na verdade, enquanto Cromwell defende
que só é homem livre quem for proprietário de terras ou de uma letra patente
que lhe confere o direito de comerciar, os Levellers parecem defender que é livre
todo o homem que tem a propriedade de sua força de trabalho.
No entanto, lembremos que, em 1647, Levellers mais radicais como
Thomas Rainborough e Edward Sexby defenderão o sufrágio universal. Muitos
defenderão a igualdade radical de propriedades ou, como os Diggers, a
propriedade comunal. No que se vê a tensão extrema que a noção de
propriedade de si conjuga no momento de sua emergência.
103 Ver, a este respeito: ESPOSITO, Roberto; Le persone e le cose, Roma: Einaudi, 2014
Arqueologia da liberdade
Aula 6
105 LOCKE, John; Second treatise of government, Cambridge University Press, p. 340
106 MACPHERSON; La théorie de l’individualismo possessif, p. 332
107 BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 140
minha própria determinação. Não apenas uma estrutura de reconhecimento, ele
é sobretudo uma estrutura de auto-determinação. Minha atividade determina a
forma da minha existência e o campo do que me é próprio. Tudo o que o ser
humano removeu do estado de natureza foi misturado ao trabalho e, desta
forma, algo que é seu agora se encontra no objeto trabalhado. Por isto, ele é sua
propriedade. Ele é seu espelho. Por isto: “o trabalho, no início, dá o direito de
propriedade”108.
Como o burguês que tem dentro de sua casa objetos que contam a história
de sua pessoa, de suas pequenas idiossincrasias, viagens exóticas e memórias, a
consciência que trabalha parece querer transformar a natureza em uma grande
home decorada por objetos que são a expressão de sua própria história. Pois
propriedade é, acima de tudo, um afeto: o afeto da segurança das coisas que estão
completamente submetidas ao meu domínio, que perderam seu estranhamento.
Esta sobreposição entre expressão e possessão pode ocorrer porque a forma da
auto-determinação, o campo de nossa ipse é imediatamente a expressão de
relações de propriedade. Eu sou sujeito porque tenho a propriedade de minha
própria pessoa.
Por outro lado, segundo Locke, Deus forneceu um horizonte de riquezas
aparentemente inesgotáveis que permite a todos serem proprietários. E se nos
perguntarmos pelos limites de tal direito de propriedade, encontraremos
afirmações como: “o quanto de terra um homem é capaz de lavrar, plantar,
melhorar, cultivar e usar seu produto é o quanto de sua propriedade”109. Ou seja,
a restrição a apropriação está ligada a capacidade de cada um cultivar para sua
satisfação. Haverá ainda a obrigação de deixarmos aos outros o que é suficiente,
em quantidade e qualidade, além da restrição moral ao gasto desnecessário e a
destruição suntuária.
Por outro lado, importante lembrar que o estado de natureza é um estado
de liberdade, já que conhece a propriedade, mas não um estado de licença. A
liberdade incontrolada de dispor de sua pessoa e posses não significa liberdade
de destruir a si ou as criaturas de sua posse como bem entender. Locke fala de
um “uso nobre”. Ninguém tem o poder absoluto arbitrário sobre si para destruir
sua própria vida ou tomar a vida e propriedade dos outros. Cada um está ligado a
auto-preservação e, em segundo momento, a preservação da humanidade. Note-
se que este ponto é importante por mostrar uma articulação entre propriedade e
moral que submete a propriedade a um uso moral.
Ou seja, o horizonte de conflito, tão presente no estado de natureza
hobbesiano, no qual todos tem um desejo ilimitado em relação a tudo, o que leva
necessariamente a relações belicistas e concorrenciais, não se coloca da mesma
forma para Locke. Há terras na Inglaterra, mas haverá terras também na
América, prontas para serem trabalhadas e apropriadas. “Terras virgens” (e
poderemos colocar questões importantes a respeito desta fantasia originária da
“terra virgem”, a respeito de quanto tal teoria pressupõe a deposição colonial do
outro).
Mas como o governo tem uma jurisdição direta apenas sobre a terra, e só
atinge seu dono (antes dele se incorporar à sociedade), quando ele reside nela
e goze dela, a obrigação que qualquer indivíduo tem de se submeter ao
governo, em virtude deste gozo, começa e termina com ele; de forma que
quando o dono, que deu apenas seu consentimento tácito ao governo, quiser,
seja por doação, venda ou outro modo qualquer, deixar a possessão em
questão, tem liberdade de partir e se incorporar a qualquer outra comunidade
social ou se unir a outras pessoas para iniciar uma nova comunidade, in vacuis
locis, em qualquer parte do mundo onde encontrem um local livre e sem dono.
Entretanto, aquele que por um acordo propriamente dito e qualquer declaração
expressa deu seu consentimento para fazer parte de qualquer comunidade
social (Commonwealth) está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e
permanecer seu súdito, e nunca poderá ficar de novo na liberdade do estado de
natureza; a menos
que alguma calamidade provoque a dissolução do
governo a que ele estava submetido ou que qualquer ato público o impeça de
continuar sendo um de seus membros114.
Ou seja, não posso levar minhas terra comigo para outra comunidade,
pois isto implicaria no risco perpetuo de dissolução territorial da comunidade.
Mas tenho o direito de derrubar o governo quando este deixou de ser um poder
político ligado ao pacto da preservação da propriedade e respeito da liberdade
para se tornar uma tirania, inclusive através do tiranicídio. A função do governo
é garantir a liberdade. Quando os legisladores se esforçam em tirar e destruir a
propriedade do povo ou reduzi-los a escravidão sob um poder arbitrário, eles se
colocam em estado de guerra contra o povo que não tem mais obrigação alguma
de obediência e podem se servir da força e da violência para se defende:
Qualquer um que use força sem direito, como se faz em uma sociedade na
qual não exista lei, coloca a si em um estado de guerra contra aqueles que
ele usa a força e, neste estado, todos antigos vínculos estão cancelados,
Men come to be furnished with fewer or more simple ideas from without,
according as the objects, they converse with, afford greater or less variety;
and form the operation of their minds within, according as they more or
less reflect on them118.
Assim, posso considerar que o que é ‘eu’, ‘eu mesmo’ (myself) ou ‘meu si’
(my self) é como uma ‘coisa’ que possuo (own) ou que reconheço (own
novamente) ou que reconheço que possuo efetivamente porque foi eu que
a fiz ou que a pensei120.
118 LOCKE: Essay concerning the human understanding, livro II, cap. I, par. 7
119 Ver RORTY, Richard; A filosofia como espelho da natureza, São Paulo: Relume Dumará
120 BALIBAR, Etienne; Citoyen-sujet, p. 133
nascerá desta discussão, ganhando força principalmente na filosofia do século
XX. Que lembremos, entre tantos outros, de Heidegger e sua compreensão da
representação como um Vor-stellen que é ao mesmo tempo Vor-sich-stellen, a
saber, um por diante de si, como coloco uma coisa diante de mim para me
apropriar dela. Crítica que visa o fato de que pensar é compreendido e reduzido a
condição de representar.
Isto nos explica, entre outras coisas, porque tudo o que é acessível à
minha reflexão e que diz respeito aos pensamentos e ações de minha própria
pessoa me são imputáveis. Afinal, eles são minha propriedade. Sendo minha
propriedade, eles são minha identidade. E sendo expressão de minha identidade,
eles são minha responsabilidade. A identidade de consciência define os regimes
de imputabilidade e de responsabilização da ação, mostrando assim como tais
discussões sobre a constituição da identidade psicológica tem, em seu horizonte,
problemas ligados à imputibilidade jurídica. Daí uma definição fundamental de
Locke:
122 Apud MIROWSKI, Phillip; The road from Mont Pelerin: the making of the neoliberal thought, p.
25
que o geram” (HAYEK, 2010, p. 199). Como vemos, as decisões são justificadas
em termos de “responsabilidade”, de “maioridade”, de “independência”. Quer
dizer, os termos são todos morais, e não econômicos. O que não poderia ser
diferente, já que a discussão é claramente ética.
Com isto em mente, não será difícil entender porque economistas como
Ludwig von Mises, procurarão explicar as motivações para a crítica ao
liberalismo através de uma “atitude mental patológica”, como se tratasse da
expressão de uma incapacidade psicológica de alcançar o estágio de maturidade,
a saber: “o ressentimento e uma condição neurastênica que se poderia chamar
de ‘Complexo de Fourier’”. O ressentimento viria do fato de que a base
motivacional da crítica às premissas liberais seria o desejo , moralmente
reprovável, do infortúnio do outro que alcançou maiores realizações que eu
mesmo. Já o dito complexo de Fourier seria, segundo Mises: “doença séria do
sistema nervoso” que sequer Freud teria sido capaz de perceber. Ele expressaria
certos tipo de fuga em direção à ilusão devido a uma sequência de frustrações
diante das expectativas da vida. A ilusão suprema seria aquela produzida pelo
“psicótico” Fourier e consistiria em negar a finitude dos recursos naturais e o
fardo necessário do trabalho. Ou seja, a “realidade” negada é a pretensa realidade
da escassez e do sacrifício necessário.
Como vemos, este vocabulário psicológico visava reconstruir aquilo que
um dia foi chamado de “natureza humana” a partir da lógica da racionalidade
econômica. Isto significa que a economia aparecia como a continuação da
psicologia por outros meios. Por exemplo, é o próprio Mises quem dirá, a
respeito da noção de lucro:
O estado neoliberal
123 Para uma discussão sobre o colóquio, ver AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter
Lippmann Colloquium: the birth of neo-liberalism, Pallgrave, 2018
124 In: AUDIER, Serge e REINHOUDT, Jurgen; The Walter Lippmann Colloquium: the birth of neo-
“As vezes” aparece aqui como indicação de uma possibilidade de uso sempre
iminente, desde que a sociedade não se conforme às injunções econômicas
125 Ver CHAMAYOU, Grégoire, La société ingouvernable, Paris: La fabrique, 2019
neoliberais de forma passiva. Neste sentido, notemos como 1981 era o ano em
que a ditadura de Augusto Pinochet estava no auge. Hayek estava entusiasmado
com a transformação do Chile no laboratório mundial das ideias que ele, Milton
Friedman, Gary Becker, Ludwig von Mises e outros pregavam com afinco.
Neste sentido, o uso da noção de ditadura provisória não será um desvio
de rota. Hayek já havia deixado claro seu receio de uma democracia sem
restrições, de onde se seguia suas diatribes contra uma pretensa “democracia
totalitária” ou uma “ditadura plebiscitária”126 que não respeitaria a tradição do
império da Lei (Rule of Law). O respeito a tal Rule of Law, no qual encontraríamos
a enunciação dos fundamentos liberais da economia e da política, do caráter
inviolável da propriedade privada, seria o melhor remédio contra a tentação de
sucumbir a um processo de barganha através do qual o estado se transformaria
na mera emulação de interesses múltiplos da sociedade, na mera coalização de
interesses organizados. Fato que impediria o Estado de defender a liberdade
(que, no caso, não é nada mais que a liberdade econômica de empreender e de
possuir propriedade privada) contra os múltiplos interesses das corporações da
vida social, o que equivaleria assim a submeter a maioria ao interesse de
minorias organizadas. Contra essa forma de submissão de meus interesses pelos
interesses de um outro, seria necessário que todos se submetessem a regras
racionais e as forças impessoais do mercado, como se fosse questão de assumir
uma experiência de auto-transcendência, uma Lei produzida pelos humanos e
que os transcende. Neste sentido:
É fácil dizer porque Hayek pode afirmar que tal submissão a regras
abstratas e a forças que nos ultrapassam, mesmo quando as
engendramos, é a condição da justiça e da paz social. É que ela cala a fonte
do ressentimento, da inveja, das paixões destruidoras. Este que o mercado
lhe retirou seu emprego, seu negócio ou mesmo sua subsistência sabe
bem, segundo Hayek, que nenhuma intenção quis isto. Ele não foi
submetido a humilhação alguma127.
Liberdade e autoritarismo
128 HAYEK, Frederick, Law, legislation and liberty vol III, p. 194
129 MARCUSE, Herbert; Cultura e sociedade, vol. I, São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 61
130 Ver SCHMITT, Carl; “Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag für Wirtschaftsführen”,
in Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, pp.
81-94
fiador da liberdade individual no âmbito da economia”131. Schmitt não quer um
estado planificador, mas um estado capaz de garantir uma intervenção
autoritária no campo político a fim de liberar a economia em sua atividade
autônoma. Esta noção era extremamente presente no debate alemão do final
dos anos vinte e início dos anos trinta e vem daí a perspectiva política de
Hayek132.
Esse modelo distingue-se do “capitalismo de estado” de Friedrich
Pollock, na medida em que não se trata de uma regulação direta da atividade
econômica visando a substituição do primado da economia pelo da
administração, mas de uma regulação direta no campo político a fim de liberar
a ação econômica de entraves. No entanto, ele se aproxima do modelo de
Pollock na compreensão de que o eixo dos processos de gestão social estarão
baseados na procura em eliminar as contradições sociais através da gestão do
campo econômico. Esse mesmo modelo poderá tanto operar em chave de
democracia liberal quanto de regime autoritário. Se pudermos completar, essa
indiferença vem do fato dos dois polos estarem menos longe do que se gostaria
de imaginar. Na verdade, tanto em um caso como em outro os fundamentos da
racionalização liberal, com sua noção de agentes econômicos maximizadores
de interesses individuais, permanecia como a estrutura da vida social e dos
modos de subjetivação, justificando toda forma de intervenção violenta contra
tendências contrárias.
131 BERCOVICI, Gilberto; Entre o Estado Total e o Estado Social (tese de livre-docência, USP, 2003
132 Ver, por exemplo, a distinção entre Estado total e Estado autoritário em ZIEGLER, Heinz;
Autoritärer oder totaler Staat, Tübigen: Mohr, 1932. Aqui, o estado autoritário aparece como um
“estado neutro”, despolitizado, capaz de se impor a despeito dos múltiplos interesses de classes e
corporações.
133 NOZICK, Robert; Anarquia, estado, utopia, p. 9
impossibilidade de alguém prejudicar o outro em sua vida, saúde, liberdade ou
propriedade.
Note-se que o ponto de partida já define muito a respeito do ponto de
chegada. Partimos do que é “meu”, do que me é “próprio”. Esta é uma relação pré
-política que, na verdade, funda o campo político. Mais uma vez vemos esta
operação que consiste em afirmar que a propriedade é o fundamento pré-
político da política. Só mesmo se houver algo “meu” pode haver liberdade. A
questão toda irá girar então em torno de como preservar o que é meu e como
garantir que existam fronteiras estritas entre o que é meu e o que é do outro,
fronteiras cujo desrespeito legitima formas múltiplas de punição e reparação.
Pode parecer que neste ponto, a emergência do estado se faz necessária
para que as fronteiras sejam respeitadas. Nozick lembra que, no entanto, grupos
de indivíduos podem formar associações de proteção mútua baseados em laços
de amizade e de comprometimento a defesas futuras. Ou seja, a emergência do
estado não é necessária. No entanto, problemas de litígios internos sobre
interpretações distintas de direitos podem inviabilizar a associação. O que pode
nos levar a ideia de que: “algumas pessoas são contratadas para exercerem
função de proteção e alguns empresários ingressam no negócio de vender
serviços de proteção”134. Esta é uma maneira de evidenciar um conjunto de
possibilidades de realização de necessidades sociais evitando a todo momento a
emergência do estado.
Dentro desse processo, é possível que uma agência de proteção acabe por
paulatinamente construir uma hegemonia obedecendo as leis de mercado,
fornecendo segurança a quem está disposta a pagar por ela. Por fim, ela pode
impedir que outras agência façam o mesmo, fornecendo em troca proteção
gratuita. Dessa forma, aparece um estado mínimo a partir do respeito as leis do
mercado. Um estado que acabará por se restringir a segurança, proteção e
garantia de respeito de contratos.
Trata-se assim de admitir o princípio de que nada nem ninguém pode
exigir ou impor princípios gerais de planejamento e de ação coletiva, nem
mesmo em nome de uma sociedade melhor e mais justa. Daí sua recusa a uma
estado redistributivo e suas discussões com a teoria da justiça distributiva de
John Rawls. Essa recusa, e esse é o ponto principal, é feita por razões morais. Ou
seja, Nozick defende que a defesa da justiça distributiva é imoral. Uma aquisição
justa (seguindo os princípios lockeanos) pode ser objeto de usufruto, de troca
não coercitiva. Qualquer taxação a essas operações seria injusta pois impede os
sujeitos de gozarem daquilo que possuem da forma como acharem necessário.
No entanto, Nozick tem uma posição singular porque reconhece que o
estado mínimo é uma utopia. No seu caso, trata-se de colocá-lo submetido à força
de uma carga utópica. A utopia aparece assim como o espaço social no qual não
posso ser submetido ao horizonte utópico de um terceiro que se apoia em
estruturas estatais para me impor o que posso não querer. O estado mínimo
aparece como o único moralmente sustentável e o único capaz de realmente
realizar conteúdos utópicos efetivos:
Não deixa de ser sugestivo uma norma jurídica constitucional que faça
apelo a um preceito moral subjetivo para a definição de seu exercício. Podemos
dizer que isto vem do fato da propriedade e de seu usufruto estar em processo
de limitação normativa de seu exercício. Vejamos, por exemplo, o que diz o artigo
19:
Ninguém pode ser privado da menor porção de sua propriedade sem seu
consentimento, salvo quando a necessidade pública legalmente
constituída exige e sob condição de uma indenização justa e prévia.
Todos os males estão no auge; eles não podem piorar mais: eles só podem
ser consertados por uma convulsão total! ... Que tudo se confunda então!...
que todos os elementos se misturem e se entrechoquem! ... que tudo entre
no caos, e que do caos saia um mundo novo e regenerado. Venhamos,
após mil anos, mudar tais leis grosseiras142.
Em direção a Marx
Alguém que não deixará de ser influenciado pelas ações e problemas levantados
pela ala mais radical da Revolução Francesa será Karl Marx. É em Babeuf e nos
ditos enragés que Engels e Marx encontrarão as fontes do comunismo no interior
da Revolução Francesa, e não nos jacobinos. Um dos elementos centrais será a
crítica da propriedade e a defesa da igualdade real.
O recurso a Marx nesse contexto é relevante porque há, em Marx, a junção
entre três níveis de exigências que muitos gostariam de dissociar: uma reflexão
sobre a liberdade e seu exercício, uma reflexão sobre a emergência de novos
sujeitos políticos e sua força revolucionária, uma crítica à vida possível no
interior das sociedades capitalistas e em outros formas sociais incapazes de não
se fundar em estruturas de exploração e violência. O que Marx mostrou é como
nenhum destes três níveis de exigência caminham separados.
Que Marx seja um pensador da liberdade e da emancipação, eis algo que
vale sempre a pena lembrar. Sua pergunta fundamental não é apenas pelas
condições sociais para a realização da liberdade, já que não posso ser livre em
uma sociedade não-livre, mesmo que acredite que me exilar em minha
interioridade seria possível. A questão de Marx gira em torno de uma crítica a
outros modelos de liberdade, em especial este no interior do qual liberdade e
propriedade estão associados. Pois temos a ilusão de podermos ser livres
quando somos proprietários de nós mesmos, quando possuímos a nós mesmos.
A base material, jurídica e política das sociedades capitalistas encontra-se na
generalização da estrutura da propriedade, até mesmo para as relações a si. Mas
uma liberdade sem possessão é a única liberdade concreta real, lembrará Marx.
Esta liberdade exige uma transformação radical dos modos de reprodução
material da vida. Ela exige que a atividade humana seja liberada da forma do
trabalho produtor de valor, trabalho que faz da atividade uma ação
unidimensional, disciplinar e alienante. Ela exige que as relações à natureza
deixem de ser uma possessão para ser um “metabolismo”. Ela exige que as
relações humanas não sejam mais pensada como relações entre proprietários
que passam entre si contratos. Ao movimento desta transformação, Marx dá um
nome: comunismo.
Esta experiência comunista, experiência da emergência de um comum que
não será posse de ninguém exige a reflexão sobre como sujeitos que não tem
mais nada que os vincule à vida mutilada das sociedades capitalistas afirmam seu
desejo de transformação e agem de forma revolucionária. Uma revolução não
apenas da estrutura do poder e de sua base econômica, mas da forma do
exercício do poder e de desativação da exploração econômica. Insisto neste
ponto porque um dos teóricos fundamentais do pensamento econômico pensa,
na verdade, como permitir a emergência de uma sociedade pós-econômica, para
além das injunções disciplinares que fizeram da economia a verdadeira forma de
produção de subjetividades.
A questão judaica
É neste contexto que ganha importância um dos primeiros textos publicados por
Marx, a saber, Sobre a questão judaica. Trata-se de um texto publicado nos Anais
franco-alemães visando o texto A questão judaica, de Bruno Bauer. Ele deve ser
lido como uma espécie de complemento às críticas de Marx sobre a possibilidade
de confundir a emancipação humana como emancipação política enquanto
cidadão do Estado.
Marx parte da proposta de Bruno Bauer, para quem a emancipação
política dos judeus deveria ser feita à condição do abandono de sua religião, pois:
“Enquanto o Estado for cristão e o judeu judaico, ambos serão igualmente
incapazes tanto de conceder quanto de receber a emancipação”143. Nosso Estado
ainda é cristão, por isto não faz sentido esperar emancipação política no seu
interior, da mesma forma como não faria sentido esperar emancipação política
de quem conserva a centralidade de seu envolvimento religioso. Bruno Bauer
exige, pois, que os judeus renunciem ao judaísmo e que o homem em geral
renuncie à religião para tornar-se emancipado como cidadão.
Marx não concorda com a solução apresentada por Bauer. Pois ao invés de
se perguntar se os judeus tem o direito à emancipação política, há de se
perguntar se a emancipação política tem o direito de exigir dos judeus a
supressão do judaísmo e de exigir do homem a supressão da religião. Ou seja, o
primeiro ponto a destacar aqui é a maneira com que Marx lembra que não se
coloca uma questão sobre se uma comunidade específica tem o direito à
emancipação política. De certa forma, a questão é desprovida de sentido por
naturalizar os pressupostos no qual ela se assenta. A própria forma de colocar a
questão esconde o verdadeiro problema, a saber, se a emancipação política
atualmente configurada é, de fato, uma emancipação humana. Neste sentido, há
de se lembrar que, pensada a emancipação política como cidadania: “a presença
da religião não contradiz a plenificação do Estado”144. Pois a emancipação
política que conhecemos até agora, através da constituição de um Estado de
tolerância religiosa, é uma emancipação que, ao menos aos olhos de Marx,
merece ser profundamente criticada.
Esta situação específica é uma ocasião para Marx lembrar como a forma
geral de superação das contradições entre liberdade e restrição no interior do
Estado moderno consiste em conservar as restrições através da constituição de
modelos formais de liberdade que escondem novas formas de alienação. Assim:
143
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, p. 34
144
Idem, p. 38
145
Idem, p. 38
vida dupla não só mentalmente, mas na vida concreta: laico como cidadão do
Estado e religioso como membro da sociedade civil, laico como cidadão e
religioso como indivíduo vivo. Tal reconciliação clivada impede o advento do que
Marx chama de “estado político pleno” no qual seja possível atualizar a essência
humana pensada como “vida do gênero” (Gattungsleben), advindo assim uma
existência real do gênero. Até porque, o verdadeiro Estado cristão é aquele que
constitui a “religião da vida privada” ao apontar à religião um lugar entre os
demais elementos da sociedade burguesa. No entanto, Marx insistirá que
emancipar não consiste em emancipar politicamente, mas em se emancipar do
modo atual de emancipação política, emancipar das clivagens atualmente
produzidas e geridas pelo Estado.
Antes de tentarmos definir este conceito central de vida do gênero como
horizonte de emancipação e reconhecimento, vamos tentar entender melhor o
que está em jogo neste texto que foi objeto de tanta polêmica. Na verdade, Marx
está a criticar a compreensão da determinação social da liberdade através da
realização do homem como indivíduo abstrato. Neste contexto, “abstrato” deve
ser compreendido como: submetido a um modo disciplinar de constituição de si
no qual ele é constituído como indivíduo que tem um conjunto de propriedades
que lhe são inerentes e próprias (sua religião, suas tradições, sua cultura, etc.). A
discussão da transposição da religião, da esfera pública para a esfera da
constituição da vida privada, é apenas um modo privilegiado para apreender os
modos de privatização de si, de constituição de si a partir da produção da esfera
do privado, do que me é próprio, do que é minha predicação. Daí porque Marx
pode fazer aproximações como:
146
Idem, p. 41
147
Idem, p. 49
(…) A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito
humano à propriedade privada”148.
Gattungsleben
Esta caracterização do ser humano como “ser sem espécie definida”, “ser sem
medida adequada”, de onde se segue sua possibilidade de produzir segundo a
medida de qualquer espécie, abre a possibilidade para uma indiferença genérica
em relação à determinação própria a toda espécie nas suas relações de
transformação do meio-ambiente, o que lhe leva a encontrar a medida inerente
ao próprio objeto150. Liberado da condição de ser apenas objeto para-um-outro, o
objeto pode ser expressão daquilo que, no sujeito, não se reduz à condição de ser
para-um-outro. Daí porque encontrar a medida inerente ao objeto é, ao mesmo
tempo, superar a alienação do sujeito. E o que, no sujeito, não se reduz a tal
condição de ser para-um-outro, é o que nele não se configura sob a forma de
espécie alguma, não tem imagem de espécie alguma pois é sua “vida do gênero”
( Gattungsleben) que se objetifica no objeto trabalhado. O termo vem de
Feuerbach que, ao procurar estabelecer distinções entre humanidade e
animalidade, dirá que:
148
MARX, Karl; Sobre a questão judaica, São Paulo: Boitempo, 2010, p. 49.
149
MARX, Karl; Manuscritos econômico-filosóficos, op. cit., p. 85 [trad. modificada]
150
Não será a última vez que Marx usará a potência de indeterminação do sujeito para construir um
espaço de reconhecimento não-alienado. De certa forma, tal “ser sem espécie definida” adianta, do
ponto de vista ontológico, a “classe dos desprovidos de classe” na qual Marx encontrará o proletariado,
como veremos de maneira mais articulada na terceira parte deste livro.
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo – por isto ele tem
sentimento de si – mas não como gênero – por isto, falta-lhe a consciência,
cujo nome deriva de saber. Onde existe consciência existe também a
faculdade para a ciência. A ciência é a consciência dos gêneros. Na vida,
lidamos com indivíduos, na ciência com gêneros. Mas somente um ser
para o qual seu próprio gênero, sua quididade, torna-se objeto , pode ter
por objeto outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial
deles 151
153
Desenvolvi melhor esta ideia, a propósito da leitura adorniana de Hegel, em SAFATLE, Vladimir:
“Os deslocamentos da dialética” In: ADORNO, Theodor; Três estudos sobre Hegel, São Paulo: Unesp,
2013
Arqueologia da liberdade
Aula 9
Retornando a Antígona
Mas Zeus não foi o arauto delas [as leis enunciadas por Creonte] para
mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela justiça,
companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas
determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de
transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é
de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que
ninguém possa dizer quando surgiram154.
A teologia da autonomia
LUTERO, Martinho. Da liberdade do cristão. Trad. Erlon J. Paschoal. São Paulo: Unesp, p. 43
156
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de
157
Tal concepção não esperou os puritanos para aparecer. Ela pode ser
facilmente identificada nos exercícios espirituais de ascetismo próprio dos
Magda França Lopes. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, pp. 554-555
monges da Idade Média. Ela, por sua vez, é peça fundamental da concepção de
livre-arbítrio legada por Agostinho. No entanto, a novidade aqui é que tal guerra
civil interna não levava a alguma forma radical de rejeição religiosa do mundo,
de uma figura possível daquilo que o antropólogo Louis Dumont (1911-1998)
chamava de “indivíduo fora do mundo”160. Na verdade, tínhamos, contrariamente
à prática monacal, uma forma de estar no mundo onde os ideais ascéticos
podiam guiar até mesmo a vida profissional mundana através, por exemplo, de
uma ética protestante do trabalho. Ética para a qual o trabalho será visto como
vocação ascética, trabalho feito não tendo em vistas o acúmulo e fruição de bens,
mas que aparece como resposta a uma vocação que define minha identidade e se
impõe a mim como dever. Desta forma, as formas da vida, seja na dimensão do
desejo, seja na dimensão do trabalho, eram organizadas a partir da necessidade
constante do exame de si, da guerra que só termina com o fim de minha vida e,
com isto, da afirmação da autonomia da vontade.
Notemos ainda como tal clivagem subjetiva permanece como referência
na filosofia moral contemporânea. Por exemplo, o filósofo Harry Frankfurt (1929
-), em um importante texto de filosofia moral, insistirá que uma diferença
essencial entre os seres humanos e outras criaturas seria a existência, nos
primeiros, de “desejos de segundo nível”161. Além de ter desejos e motivar-se, os
seres humanos poderiam também desejar (ou não) ter certos desejos e
motivações, ou seja, terem “desejo de segundo nível”. Desta forma, eles poderiam
desejar ser diferentes do que são, usando o que Frankfurt chama de “capacidade
de auto-avaliação reflexiva”.
Mas é possível pensar em ao menos duas formas de desejar ter certo
desejo. Posso querer que este desejo seja um dentre outros desejos que tenho ou
posso querer que ele seja absolutamente determinante na constituição da minha
vontade e da eficiência de minha ação. Há uma importante diferença de
intensidade aqui. É possível, por exemplo, desejar ter o desejo de se concentrar
no trabalho mas, dependendo da intensidade deste desejo, ele pode perder sua
eficiência e ser anulado por outro desejo mais forte. Quando certo desejo
constitui a vontade, temos não apenas um desejo de segundo nível, mas uma
“volição de segundo nível”. Tal capacidade de determinar a vontade através de
uma volição de segundo nível seria o verdadeiro atributo determinante de um
ser dotado de autonomia. Pois é através deste segundo nível que determino se
meus desejos são ou não desejáveis. Ou seja, percebemos novamente como a
liberdade da vontade consiste em poder desejar outra coisa do que se deseja de
maneira irreflexiva, ou seja, ela aparece como figura do livre-arbítrio.
O livre-arbítrio
Essa compreensão do livre-arbítrio tem uma matriz que nos leva diretamente a
Agostinho. Tentemos entender este ponto a partir daquilo que, em filosofia,
chamaríamos de “compatibilismo” próprio à reflexão de Agostinho sobre a
liberdade. Uma posição compatibilista é aquela que afirma ser, de alguma forma,
compatível determinismo e livre-arbítrio, enquanto incompatibilista afirmará, ao
160 cf. DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna.
Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1993
161 cf. FRANKFURT, Harry. “Freedom of the Will and the concept of a person”. In: The Journal of
O homem caído não caiu sob uma lei ou uma força que o subjuga
inteiramente: uma cisão marca sua própria vontade que se divide, retorna
-se contra si e escapa ao que ela mesma pode querer. É o princípio,
fundamental em Agostinho da inoboedentia reciproca, da desobediência
em retorno. A revolta no homem reproduz a revolta contra Deus166.
Ou ainda:
sabemos disso também tanto pela experiência das nações selvagens que
existem hoje, como pelas histórias de nossos ancestrais, os antigos
habitantes da Alemanha e de outros países hoje civilizados, onde
encontramos um povo reduzido e de vida breve, sem ornamentos e
comodidades, coisas essas usualmente inventadas e proporcionadas pela
paz e pela sociedade171.
Ou seja, a palavra do chefe não tinha força de lei e sua autoridade depende da
boa vontade do grupo, dando ao poder uma certa “fragilidade permanente”. Sua
verdadeira função era procurar, pela palavra e sua força retórica, apaziguar
conflitos entre sujeitos, famílias, linhagens. Ou seja, a função do chefe é
argumentativa. Ele deve regular divergências através das virtudes de sua
palavra. “Mais do que um juiz que sanciona, ele é um árbitro que busca
reconciliar”175.
Esta descrição converge com aquelas que encontramos nos relatos de
viagens de jesuítas do século XVII a respeito dos povos ameríndios. Tais relatos
diziam coisas, em 1642, como:
Não será por outra razão que jesuítas como Gabriel Segard reconhecerão que a
capacidade de argumentação média de um membro Wendats (tribo do Quebec)
era maior do que dos franceses. O que não deveria nos surpreender já que, como
se tratam de povos submetidos a autoridade não-coercitiva, o uso contínuo da
argumentação é traço social trivial. Como disse o padre Lallemant em 1644, a
respeito dos mesmos Wendats do Quebec: “não creio que existam pessoas sobre
a terra mais livres que eles”. Pois se tratava de povo que desconhecia a obrigação
de submissão à autoridade paterna, que não tinham sistemas individualizados de
penas. Um crime era pago não pelo agente, mas por compensações feitas por sua
família, clã ou tribo. E o elemento mais impressionante destes relatos era a
honestidade de reconhecer que tais sociedades funcionavam melhor que as
europeias. Não é difícil imaginar o tipo de desafio que tais afirmações colocavam
para a filosofia política europeia e seu desejo de legitimar o que entendemos pela
superioridade do ocidente.
Ou seja, a colocação de Locke a respeito da insegurança reinante em tais
sociedades dificilmente se sustenta. Ao contrário, vemos sociedades nas quais a
função efetiva do poder em tempos de paz consiste em dirimir conflitos através
do que chamaríamos, entre nós, de “argumentação racional”, o que leva outro
antropólogo, David Graeber, a afirmar que estamos diante de sociedades onde
seus membros são dotados de grande capacidade de argumentação e
questionamento, ou seja, dotados daquilo que chamaríamos, entre nós, de
“capacidade crítica”. É isto o que permite Clastres afirmar:
De onde se segue que não seria evidente que coerção e poder político
estariam vinculados em todo e qualquer lugar. Clastres chega a falar desses
sociedades como “sociedades sem conflitos”, o que coloca uma série de
Guerra e fuga
Isto nos lembra como a ausência de estado não é uma falta, não estamos a
ver sociedades na infância do mundo. Estamos diante de processos políticos
complexos que visam impedir que uma pressuposição passe à posição, que uma
possibilidade sempre inscrita se realize por querer preservar uma experiência
social de liberdade. A razão para tanto, ao menos para Clastres, é que a divisão
política engendra a divisão econômica, e não o contrário como sustenta o
marxismo para o qual o estado é um instrumento de classe. Neste sentido, as
179 CLASTRES, Pierre; A sociedade contra o estado, São Paulo: Cosac e Naify, 2003, p. 233.
180 FAUSTO, Ruy; Marx: lógica e política II, p. 197
181 CLASTRES, Pierre; Arqueologia da violência, p. 154
sociedades ameríndias lutam para impedir a consolidação de divisões sociais que
serão a quebra da igualdade e a marca fundamental do fim da liberdade, pois não
pode haver liberdade lá onde a sociedade é organizada sob a forma da submissão
ao poder de um outro.
182
Ou seja, nunca foi questão, para os ameríndios, de duvidar do fato dos
europeus terem uma alma. Nesta cosmopolítica, todo existente, sejam humanos
ou animais, participa da mesma humanidade. Os animais tem almas como nós,
mesmo um europeu pode ter alma. O que diferem são seus corpos, que
estabelecem perspectivas singulares baseadas em sistemas específicos de
afecções. Assim, uma multiplicidade de corpos pressuporá uma multiplicidade de
perspectivas sob a univocidade de uma mesma humanidade. Contrariamente ao
nosso multiculturalismo, aparece pois um peculiar multinaturalismo no qual
vários conceitos de natureza cortam o plano de um mesmo campo da cultura.
Esta univocidade da cultura, tão estranha a nossa sensibilidade atual que
só saberia ver nisto um narcisismo animista, permite, ao contrário, uma
operação generalizada de descentramento. Se a mesma humanidade está
presente nos humano e animais, então nada é humano inequivocamente. Ser
humano é, na verdade, estar constantemente fora de si, ser um anti-Narciso, já
que, como dizia Lévi-Strauss: “nada de humano deve ser estranho ao homem”.
Arqueologia da liberdade
Aula 11
Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituição do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral185.
História da queda
Um corpo político
Rousseau fala da emergência de um corpo político, mas de um corpo que não tem
a configuração de um Leviatã no qual o poder soberano se concentra, de maneira
indivisível, nas mãos do detentor do poder executivo. Há uma soberania a animar
o corpo político de Rousseau, mas se trata de uma soberania popular que tem no
espaço da assembleia popular sua expressão máxima. Esta assembleia é
expressão de um princípio de igualdade moral ou política fundamental. Desta
forma, Rousseau espera poder instaurar uma totalidade social baseada na
igualdade como virtude que modera os apetites e nos afasta do caráter egoísta
dos interesses. Como vimos, este corpo político é uma espécie de suplemento a
um outro corpo perdido, a saber, a natureza como uma espécie de corpo nômade
no qual os indivíduos podiam circular em imanência.
Lembremos inicialmente como a condição fundamental para o advento de
um corpo político soberano é a emergência da vontade geral. A vontade geral não
é a somatória de vontades particulares, ou seja, um vontade de todos. Ela é a
expressão de um desejo de liberdade e de igualdade baseado, inicialmente, na
ideia de auto-legislação. A alienação dos interesses particulares na vontade geral
permite a constituição de um Eu comum, de um corpo político unitário capaz de
defender e proteger a pessoa e seus bens. Defender não apenas do outro, mas
principalmente defender-se do próprio poder, defender-se dos efeitos de
193 Idem, p. 169
usurpação do poder quando alienamos a soberania popular a um outro, seja ele
um príncipe, seja qualquer forma de representante. Por isto, Rousseau dirá que o
povo não obedece a um soberano, ele não passa alguma espécie de contrato com
ele. Na verdade, o povo se manifesta através do exercício da soberania. Ele pode
derrubar governos, ele deve ratificar leis, ele se reúne em assembleia, ele não
tem representantes. Nenhum deputado ou príncipe representa o povo, pois a
soberania não é algo que possa ser representado sem ser perdido. Neste sentido,
deputados e príncipes são apenas “comissários” do povo.
O verdadeiro soberano é assim o corpo composto pelos particulares que
lhe formam e que se associam a fim de garantir a liberdade civil. Pois: “o que o
homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado
a tudo o que lhe tenta e que ele pode alcançar. O que ele ganha é a liberdade civil
e a propriedade de tudo o que ele possui”194. Notemos a estrutura da retórica de
Rousseau. Sabendo que não mais é possível fazer apelo a uma relação à physis
soterrada pelo processo civilizacional, Rousseau quer realizar uma liberdade que
ainda signifique pertencimento de si apelando a uma lógica própria às
individualidades proprietárias: veja quanto se perde e quanto se ganha;
deixamos o caráter ilimitado do desejo, mas ganhamos a segurança da
propriedade. Daí porque Hegel dirá, a respeito de Rousseau:
A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que ela não
pode ser alienada. Ela consiste essencialmente na vontade geral, e a
vontade não se representa: ela é a mesma ou ela é outra, não há meio
termo199.
Neste ponto, fica claro como o povo é simplesmente o nome que damos
para a imanência da vontade consigo mesma no interior de um corpo. Já a
metáfora do corpo político é instrutiva neste contexto. Um corpo nunca é “meu”
no sentido que posso dizer que esta cadeira é minha o que este terreno é meu.
Um corpo não se submete à minha vontade como esta cadeira se submete
enquanto objeto. Mesmo sendo espaço da minha subjetividade, um corpo sempre
me faz me confrontar com o que não controlo e com o que me constitui sem me
ser imediatamente próprio. No entanto, esta exterioridade do corpo ao sistema
de afirmações individuais é a instituição da aderência a uma generalidade que
constitui outra forma de existência. Existir como um corpo é sempre existir como
Música e reconhecimento
O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda
terá alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos
nos perguntar se esta transformação produzida pelo legislador, se esta mudança
da própria natureza humana não seria sem produzir uma certa nostalgia social. A
vida política parece não poder dar conta desta nostalgia. No máximo, ela
transmuta a experiência de auto-pertencimento própria ao estado de natureza
em desejo de igualdade (forma única de impedir a servidão) e de autonomia. Por
isto, em algum nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos marcados pela
experiência da individualidade possessiva.
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz
da natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma
linguagem de pura presença. A política procura uma linguagem da pura
presença, ela procura dar à voz sua força de direito. Tal linguagem, Rousseau a
encontra na música e no uso da música como paradigma para a reinstauração da
ordem social.
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma
contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada
ao primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica
derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma
polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma
definição de estruturação da forma musical absolutamente autônoma em relação
a tudo o que seria extra-musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação
que insistia no primado da melodia e da simplicidade monofônica inspirada no
canto.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da
melodia, sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo
que não se refere aos modos de imitação no interior da vida social, mas no
vínculo exterior entre sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relação
entre música e a expressão natural da linguagem com suas entonações e acentos.
Isto o permitia vincular a música à uma pedagogia da arte capaz de servir de
veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura.
Lembremos do que diz Rousseau :
As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a
um, elas mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é
aquela que realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela
mais próxima do canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau,
não há assembleia sem música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o
ato de estar em um mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses
distintos. Estar em assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos
interesses e das estratégias. Por isto, as verdadeiras assembleias são algo raro.
Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será
o mais profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das
paixões. Na verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de
expressão, fazer dela ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero
espaço de afirmação de minhas propriedades, daquilo que me separa de outros
sujeitos. Por isto, a primeira revolta sempre será uma revolta da linguagem
contra sua degradação, uma procura da linguagem em parar um processo
descrito por Rousseau da seguinte forma:
208idem, p. 1389
209
Ver HEGEL, G.W.F.; Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1970. A este
respeito, ver ainda PIPPIN, Robert; Hegel practical philosophy: rational agency and ethical life,
Cambridge University Press, 2008 e HONNETH, Axel; Die zerrissene Welt des Soziale: Sozial-
philosophische Aufsatze, Frankfurt: Suhrkamp, 1990
mesmo que tal potencialidade ainda não tenha se realizado. Assim, a universalidade
não vai para as práticas atualmente em operação, mas para a disposição crítica que
força o presente em direção à sua transformação.
O gozo do dever
Mas, aqui, vale a pena colocar uma pergunta fundamental, a saber, de onde
podem vir as motivações subjetivas que me fazem aquiescer a um sistema de conduta
fundamentado em tal clivagem subjetiva? De onde vem a satisfação com tal liberdade
que faz com que o auto-pertencimento só possa ser afirmado através de certa
clivagem, auto-negação e transformação de si? Se quisermos ser mais precisos, em
uma figura do auto-pertencimento como crítica de si. Pois este auto-pertencimento
não é afirmação de relações imanentes a si. Lembremos mais uma vez, ele é um
trabalho. Se recusarmos argumentos baseados na simples coerção ou no medo de ser
“destruído” pela procura em realizar o desejo, por que sujeitos adeririam a tal modelo
de moralidade no qual preciso, a todo momento, lutar contra meus próprios impulsos,
já que os motivos teológicos não podem ser utilizados neste horizonte? Se não
tivermos medo de pecar por certo anacronismo, há de se perguntar aqui sobre a
“economia libidinal” do dever.
Uma maneira de responder tais perguntas passa pela defesa de que sujeitos não
determinam a totalidade de suas ações através do cálculo do prazer e da satisfação
própria ao bem-estar. Neste sentido, é correto dizer que, para Kant, a vontade
autônoma é vontade que se coloca para além do princípio do prazer, embora não se
trate aqui de elevar a negação do prazer a critério de moralidade de nossas ações. Na
verdade, seria mais correto afirmar que a vontade autônoma é aquela que se afirma
em uma dimensão de indiferença em relação às exigências do prazer.
No entanto, uma afirmação desta natureza tem consequências importantes, já
que ela leva Kant a dissociar a relação, até então necessária, entre ação moral e
felicidade. Pois, ao menos para Kant: “aquilo em que cada um costuma colocar sua
felicidade tem a ver com o seu sentimento particular de prazer e desprazer e, até num
mesmo sujeito, com a carência diversa de mudanças desse sentimento”210. Ou seja,
um dos impactos fundamentais do advento da individualidade moderna seria a
conjugação da felicidade no particular, já que ela estaria profundamente ligada ao
amor próprio e às exigências egoístas do Eu. Cada um procura alcançar e definir sua
felicidade à sua maneira, levando em conta as experiências contingentes de prazer e
desprazer que teve, experiências que mudam no sujeito através do tempo.
Devido a tal particularismo, Kant não pode admitir que ela apareça como a
aspiração de toda ação moral, como era o caso, por exemplo, em Aristóteles, quando
este podia afirmar que: “a felicidade (eudaimonía) é a atividade conforme a
excelência”211. Ou seja, atividade para a qual convergem todos os que procuram a
excelência que o ser humano pode alcançar como animal racional. Alguns filósofos
contemporâneos, como Alasdair MacIntyre, criticarão Kant por ele pretensamente não
compreender que a obediência a uma máxima moral só se justificaria se esta mostrar
sua capacidade em realizar a felicidade de seres racionais212.
No entanto, é bem provável que Kant seja guiado aqui por uma importante
intuição: com o advento da individualidade moderna, a felicidade advém um conceito
210
KANT, Crítica da razão prática. Trad. Valerio Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 43
211
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mario da Gama Kury. Brasília: Edunb, 1992, 1099a
212
MACINTYRE, Alasdair. Depois das virtudes. 2a. edição. Trad. Jussara Simão. Revisão de Hélder
Buenos Aires de Carvalho. Bauru: EDUSC.
problemático. Ligada de maneira constitutiva ao prazer, ela será vista como uma
experiência intermitente. Como os animais, só conhecemos contentamentos por
contraste. Pensando nisto, Kant dirá que é necessário que todo contentamento seja
precedido de uma dor, como um jogo no qual se alternam constantemente medo e
esperança. O domínio da procura da felicidade é, por isto, o domínio da instabilidade.
Por outro lado, conjugada no particular, a felicidade não é um ponto natural de
concórdia, mas fonte de uma experiência social de discórdia. Não apenas devido à
pluralidade de visões que ela comporta, mas também porque, como dirá Kant, nosso
prazer cresce ao compararmos com a dor do outro, assim como nosso sofrimento
diminui ao compararmos ao sofrimento semelhante ou maior do outro. Se aceitarmos
tais colocações de Kant, precisaremos determinar, para além da procura da felicidade,
uma outra forma de contentamento capaz de servir como motivação para a ação. É
neste ponto que poderemos encontrar um certo gozo ligado ao amor pelo dever.
Uma maneira de introduzir tal questão passa pela recuperação do uso kantiano
da distinção entre duas formas de falar “o bem” em alemão: das Gute (que Kant usa
para descrever uma determinação a priori do bem) e das Wohl (ligado ao prazer e ao
bem-estar do sujeito). Já podemos imaginar que os objetos ligados a das Wohl e, por
consequência, ao prazer e ao desprazer serão todos empíricos, pois: "não se pode
conhecer a priori de nenhuma representação de qualquer objeto, seja ela qual for, se
ela se vinculará ao prazer ou desprazer ou se será indiferente a ele”213. O sujeito não
pode saber a priori se uma representação de objeto será vinculada ao prazer ou à dor
porque tal saber depende do sentimento empírico do agradável e do desagradável. E
não há sentimento que possa ser deduzido a priori (exceção feita ao respeito -
Achtung) já que, do ponto de vista do entendimento, os objetos capazes de produzir
satisfação são indiferentes. Logo, a faculdade de desejar é determinada pela
capacidade de sentir (Empfänglichkeit), que é particular à patologia das experiências
empíricas de cada eu e desconhece invariantes universais. Isto permite a Kant afirmar
que não há universal no interior do campo dos objetos do desejo, nem todos desejam
as mesmas coisas, já que aqui cada um segue seu próprio sentimento de bem-estar e
os princípios narcísicos ditados pelo amor de si.
Tal purificação da vontade através da rejeição radical da série de objetos
patológicos nos levaria, no entanto, em direção a um bem para além do sentimento
utilitário de prazer. Esse bem, que Kant chamará de das Gute é, na verdade, "apenas a
maneira do agir (...) e não uma coisa que poderia ser assim chamada"214. Quer dizer, a
vontade que quer das Gute quer apenas uma forma de agir, uma forma específica para
a ação, e não um objeto empírico privilegiado. A forma já é o objeto para a vontade
livre.
E de qual forma trata-se aqui? Nós a encontramos no imperativo categórico :
"Age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa sempre valer como princípio
de uma legislação universal". Estamos aqui diante de uma pura forma vazia e
universalizante, forma que não diz nada sobre as ações específicas legítimas, sobre
quais regras devo seguir, já que ela não enuncia regra alguma. "A lei", diz Kant, "não
pode especificar precisamente de que maneira alguém deve agir e em que medida
deve ser realizada a ação visando o fim que é ao mesmo tempo dever"215. O que não
invalida o empreendimento moral kantiano, já que o contentamento próprio à vontade
livre vem da determinação desta vontade pela forma da máxima moral.
213
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 37
214
KANT, Crítica da razão prática, op. cit., p. 60
215
KANT, Metafísica dos costumes, op. cit., p. 233
Desta maneira, Kant pode traçar um horizonte regulador de reconciliação
através da determinação perfeita da vontade pela Lei. Horizonte que, mesmo não
alcançável por um ser clivado como nós, deve guiar nossas ações. Horizonte no qual a
vontade aparece como Logos puro. Das Gute se confunde aqui com o amor pela Lei, o
que permite a Kant reintroduzir o conceito aristotélico de Soberano Bem enquanto
síntese entre a virtude e a felicidade, abrindo no entanto o espaço para uma importante
mudança qualitativa no contentamento produzido por tal síntese. Pois ela produziria
um: "agradável gozo da vida (Lebensgenuss) e que, no entanto, é puramente moral"216
. Desta forma, um gozo próprio ao contentamento de si (Selbstzufriedenheit), distinto
da felicidade, pois vindo do sentimento de respeito à Lei, aparece no horizonte
regulador do Soberano Bem. Guardemos esta fórmula: a conformação perfeita da
vontade à Lei, a realização da vontade como dever promete um gozo para além do
prazer. É ele que nos fornece a “economia libidinal” da autonomia.
Entre a culpa e o sublime
221
NIETZSCHE, Friedrich; Genealogia da moral, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 76
222KANT. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita In: KANT, I. A paz
perpétua e outros opúsculos. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 34
Arqueologia da liberdade
Aula 13
A libido é tão forte que não apenas domina o corpo inteiro nem só dentro
e fora, mas também põe em jogo o homem todo, reunindo e misturando
entre si o afeto do ânimo e o apetite carnal, produzindo desse modo a
voluptuosidade, que é o maior dos prazeres corporais. Tanto é assim que
o momento preciso em que voluptuosidade chega ao cúmulo, se ofusca
quase por completo a razão e surge a treva do pensamento223.
Este que ousa instituir um povo deve se sentir em estado de mudar, por
assim dizer, a natureza humana, de transformar cada indivíduo, que por si
mesmo é um todo perfeito e solitário, em parte de um todo maior do qual
tal indivíduo recebe de certa forma sua vida e seu ser; de alterar a
constituição do homem para reforça-la; de substituir uma existência física
e independente que todos recebemos da natureza por uma existência
parcial e moral225.
Ver o clássico estudo de WEBER, Max; Fundamentos racionais e sociológicos da música, São
227
Paulo: Edusp, 1994 assim como o mais recente KIVY, Peter; Antithetical arts: on the ancient
quarrel between literature and music, Oxford University Press, 2009 e NEUBAUER, John; The
emancipation of music from language: departure from mimesis in Eighthenn- Century aesthetics,
Yale University Press, 1986
Lembremos, a este respeito, do que diz o crítico de artes visuais Clement
Greenberg:
228 GREEENBERG, Clement; “Rumo a um mais novo Laocoonte”, In: COTRIN, Cecília e FERREIRA,
Glória; Clement Greenberg e o debate crítico, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, pp. 52-53.
229 Ver ROUSSEAU, Jean-Jacques; Écrits sur la musique, la langue et le théatre, Gallimard, 1995.
Ver também: MASUDA, Makoto; "Musique et société. Anthropologie et théorie musicale chez J.J.
Rousseau", Etudes de langue et littérature française, Tokyo, n° 60, 1992, pp. 57-69. MOFFAT,
Margaret; Rousseau et la Querelle du théâtre au XVIIIe siècle, Bordeaux: Brière et Paris: E. de
Boccard, 1930 e PRADO Jr., Bento; A retórica de Rousseau e outros ensaios, São Paulo: Cosac Naify,
2008
230 Como encontramos nas discussões de DAHLHAUS, Carl; Die Idee der absoluten Musik, Kassel:
Bärenreiter Verlag, 1978
Esta estrutura de auto-legislação, ao ser aplicada ao campo da estética,
nos leva normalmente a compreender o problema da autonomia como uma
questão de imposição de padrões próprios de validação e regulação, como se a
esfera estética fosse animada por exigência internas de validação de seus
fenômenos que não levam em conta os modos de organização e expectativa de
outras esferas sociais de valores. No que reencontramos aqui a temática maior
da sociologia weberiana da modernidade como “autonomização das esferas
sociais de valores” depois do colapso do poder unificador dos mitos teológico-
religiosos. Isto fez com que a produção estética aparecesse como destinada a
instaurar processos de auto-tematização no interior dos quais trata-se da arte
“falar de si mesma”, tematizar sua própria forma, afirmando-se como espaço de
auto-referencialidade.
Do ponto de vista de suas consequências sociais, esta afirmação de uma
esfera de legalidade própria, com seus modelos autônomos de validação, foi em
larga medida, compreendida a partir de uma lógica compensatória. Tal esquema
afirma que a experiência moderna de auto-tematização da forma seria herdeira
de uma certa decepção histórica. Ou seja, o que temos aqui é uma leitura
melancólica da autonomia estética. Diante da incapacidade histórica da arte ser
motor de transformação social, isto a partir principalmente da segunda metade
do século XIX, não lhe teria restado outra coisa senão falar de si mesma, ser uma
mera art pour l’art. Não podendo transformar o mundo através da realização de
ideais reformadores que viam na circulação das obras de arte um potencial
“educador” e de reforma moral, ela teria se voltado a uma reflexão sobre si
mesma. Lembremos, por exemplo, do que fala Pierre Bourdieu a respeito da
formação do campo literário e artístico, com suas exigências de autonomia da
arte e dos artistas, na França da segunda metade do século XIX:
Como não supor que a experiência política desta geração, com o fracasso
da revolução de 1848 e com o golpe de estado de Luis-Napoleão
Bonaparte, além da longa desolação do Segundo Império, não tenha
desempenhado um papel na elaboração da visão desencantada do mundo
político e social que segue o culto da arte pela arte? Esta religião exclusiva
é o último recurso dos que recusam a submissão e a demissão231.
232 KANT, Immanuel; Kritik der Urteilkraft, Hamburg: Felix Meiner, 1988 p. 154
sentido advindo dos modos de organização funcional do material, mas seria
dependente da função da música no interior de rituais ou na sua subordinação em
relação a textos recitados ou cantados: subordinação da linguagem musical à palavra.
Desta forma, a música instrumental seria um modo privilegiado de formalização
daquilo que não se deixa expressar diretamente, que seria “qualitativamente contrário
ao conceito”, já que a linguagem musical diria aquilo que a linguagem prosaica não
saberia dizer sem produzir determinações particulares vinculadas à indexação do
mundo dos objetos.
A possibilidade de uma linguagem para além dos limites cognitivos da
representação aparecerá como expressão maior de uma subjetividade capaz de deixar
para trás as convenção, as estruturas de percepção ligadas ao senso comum e ao
hábito. Neste contexto, a crítica da representação impulsionada pela reconfiguração
da categoria do sublime é peça maior de uma estratégia de liberação do sensível das
amarras do ordenamento naturalizado do espaço e do tempo, o que permite o advento
de formas singulares de experiência do sensível. Lida desta forma, a autonomia
estética em sua relação à metafísica do sublime não pode ser o resultado de estratégias
de purificação da linguagem visando constituir uma esfera de valores organizada a
partir de exigências de “legalidade própria”. Antes, ela é a emergência de uma
sensibilidade reconfigurada, ela é motor de uma “revolução na sensibilidade”233 capaz
de fazer com que a potencialidade de novas formas da vida social, novas formas de
imbricação e síntese possam realizar expectativas emancipatórias de produção de
experiências singulares. Desta maneira, a linguagem musical produzirá a figura
sensível de uma experiência nova de liberdade na qual a emergência de uma força
capaz de reconstituir a forma da experiência para além dos modos de representação da
consciência poderá realizar uma heteronomia sem servidão.
Gostaria de tentar mostrar como isso ocorre musicalmente e para tanto
gostaria de discutir alguns aspectos de uma peça de Beethoven chamada
Abertura Coriolano. Comecemos por lembrar do que diz E.T.A. Hoffmann a
propósito da música de Beethoven.
233 SCHILLER, Friedrich; A educação estética do homem, São Paulo: Iluminuras, 1997
234 HOFFMANN, E.T.A.; Kresleriana, Reclam, 1986
conserva em uma certa vagueza, daí o desconforto relativo de Beethoven com a
música vocal. Pois o que é musical não tem a precisão do que se define no
interior de um regime espacial de imagens ou do que se define pela capacidade
de categorização das palavras. Neste sentido, o que é musical desconhece a
“determinação dos afetos”. Por isto, aquilo provido de qualidades musicais tem a
força de provocar em nós uma “nostalgia infinita” por apresentar o que nunca
está completamente presente.
Mas o vocábulo “infinito” não está aqui por acaso. Ele é importante por
expressar o desconforto dos artistas do começo do século XIX com as convenções
formais da linguagem e com a ordem social que elas representavam. Recorrer ao
infinito era a maneira romântica de se compreender em um tempo de mutação
no qual a ordem social não podia mais aspirar fundamentação que outrora teve,
no qual as normas que forneciam a funcionalidade da forma estética devia ser
sistematicamente questionada por parecerem “finitas”. Neste sentido, é
interessante lembrar como escritores como Hoffmann diziam que a música era
talvez a única arte realmente romântica por ter por único objeto a expressão do
infinito. “Expressar o infinito”, neste caso, significa: expressão do que desarticula
nossa capacidade de estabelecer relações de identidade e diferença e que, por
isto, nega constantemente as aspirações construtivas da forma. O que é “musical”
é pois indeterminado, dispõe-se em um jogo constante com o informe, não por
deficiência em relação à prosa do conceito (como o anti-romântico Hegel
defendia), mas por proximidade com a experiência do infinito.
Hoffmann lembra como, para um certo ouvinte médio da época, a música
de Beethoven não seria desprovida de fantasia. No entanto, ela seria
desorganizada, como se a fantasia subjugasse a forma, o que faria de suas
sinfonias uma sucessão inconstante de sentimentos e caracteres. Como disse um
crítico da época, os ouvintes de Beethoven eram: “massacrados por uma massa
de ideias sobrecarregadas e sem relação umas com as outras, assim como pelo
tumulto incessante de todos os instrumentos”235. Música composta por temas
fragmentados por serem, em sua maioria, pequenas ideias musicais de não mais
do que quatro compassos, ideias cujas transições são muitas vezes abruptas,
cortadas, marcadas por pausas e interrupções.
Hoffmann precisa lembrar das opiniões deste “populacho musical”
( musikalischen Pöbel) para afirmar que tal desarticulação dos princípios
construtivos da forma, que tal desregulação das normas, produzida pela música
de Beethoven, não era simples maneirismo, mas modo de trazer para o interior
da forma a tensão entre a expressão do infinito e a regularidade das convenções.
Este que reclamam de Beethoven procuram a unidade através do respeito às
regras gramaticais da linguagem musical hegemônica236. Mas eles deveriam
procurá-la na força unificadora da ideia. Nesta tensão entre expressão do infinito
e regularidade das convenções, a obra não se desagregaria em um mero jogo com
o informe porque a música de Beethoven seria capaz de fornecer novos
processos construtivos.
Contra a comunidade
Esta é a última aula de nosso curso. Apesar das dificuldades desse semestre
atípico, conseguimos chegar ao fim. Antes de entrar no assunto específico de
nosso último encontro, gostaria de recompor rapidamente nosso trajeto nesse
semestre a fim de esclarecer os problemas centrais que, a meu ver, devem guiar
toda discussão contemporânea a respeito do tema da liberdade.
Primeiro, eu comecei lembrando a vocês que nossas discussões sobre o
conceito de liberdade normalmente partem de certa limitação: elas falam do
desenvolvimento dos debates e lutas no ocidente. Infelizmente, ainda não somos
formados para desenvolver uma verdadeira perspectiva comparatista que nos
permitisse sair da ilusão de que a liberdade é uma invenção ocidental e construir
assim articulações fortes entre processos históricos. Mais do que qualquer outro
conceito filosófico, a noção de liberdade transformou-se, entre outras coisas, em
peça fundamental do que chamamos de “dispositivo colonial”. Pois se trata de
dar a impressão de que a liberdade é uma produção da modernidade ocidental
com suas instituições, modos de vida e espaços públicos. O que faria com que a
história mundial devesse necessariamente ser a irresistível história do “devir
ocidental do mundo”, com toda a violência e destruição que sabemos muito bem
que isto implica.
Contra isto, não foram poucos aqueles que insistiram na necessidade
urgente de abandonar toda perspectiva de história global, o que implica, a meu
ver, uma estratégia equivocada e catastrófica. Pois temos uma história mundial,
no seu centro encontra-se o capital e seus processos de auto-valorização. Nossas
vidas estão completamente conectadas no interior dessa falsa universalidade
que produz processos que fazem com que tudo o que seja sólido se desmanche
no ar. Contra essa história mundial baseada em uma falsa universalidade, só
mesmo outra história universal baseada em uma universalidade concreta por vir,
na qual a experiência da liberdade desempenhará papel central.
No entanto, esta experiência não se construirá sem antes abandonarmos o
modelo de universalidade concêntrica, com sua crença na existência de
localizações privilegiadas nas quais emergem os processos de liberdade que
depois deverão se espalhar por todo o mundo. Localizações que, não por acaso,
estariam em solo europeu. Nós tivemos uma aula sobre o impacto da experiência
ameríndia de liberdade no pensamento europeu exatamente para mostrar quão
colonial era esta ideia, ainda fortemente presente entre nós, de que o destino dos
que procuram a liberdade é se tornarem “bons europeus”.
Anteriormente, eu havia dito que deveríamos assumir uma história
universal que não é a descrição irresistível de processos de contágio de lutas e
experiências políticas que ocorrem inicialmente no ocidente. Na verdade, haveria
uma história mundial que não opera de forma concêntrica, mas que opera sob a
forma de ressonâncias. Isto significava partir do princípio de que experiências de
emancipação e liberdade estão presentes em todas as formas de vida dispersas
geográfica e historicamente. Tais formas podem “entrar em ressonância”, ou seja,
experiências locais podem fazer ressoar experiências em outras localidades
criando uma espécie de constelação. Ou seja, não se tratava de contrapor a
história mundial a uma perspectiva que libera a força das localidades e das
territorialidades singulares. Tratava-se de contrapor uma falsa história mundial
a uma história mundial des-colonial, capaz de colocar em pé de igualdade
múltiplas emergências locais de tensões em direção à liberdade. O que
significava assumir que as experiências dispersas de liberdade não são
indiferentes umas às outras. Elas se contaminam, mas só podem se contaminar
no interior de uma história mundial, até que elas consigam criar relações de
ressonância, permitindo a emergência de um processo global com múltiplos
enraizamentos locais.
Como havia dito anteriormente, ainda não somos formados em nossos
departamentos de filosofia para tal tarefa. Mas há algo que podíamos fazer e que
consistia em recuperar a arqueologia da experiência da liberdade levando em
conta com tal operação faz parte de certa crítica de nós mesmo, crítica daquilo
que nos tornamos. Ou seja, tratava-se de uma arqueologia que não visava
explicitar o processo histórico de constituição dos fundamentos normativos dos
conceitos hegemônicos de liberdade presentes em nossas formas de vida. Não se
tratava de confundir gênese e validade, mas de procurar entender como
desenvolvemos a auto-crítica das nossas formas de vida.
Tendo este espírito em vista, partimos da constituição da noção de
liberdade como auto-pertencimento entre os gregos. Tentei demonstrar o que
significava pertencer a si mesmo em um horizonte social no qual “si mesmo” não
indicava a presença de uma individualidade fortemente determinada. De nada
adianta dizermos que a liberdade entre os gregos se funda na articulação
conjunta entre operadores de autonomia, de autarkeia e autoctonia se não está
claro o que devemos entender por “autos” neste contexto. Primeiro, eu recusei a
ideia, presente em autores como Hannah Arendt, de que a liberdade entre os
gregos era fundamentalmente uma questão de liberdade interior e apolítica.
Liberdade como afastamento do horizonte da política, mesmo que a política seja
o campo de ação de homens que não são servos, ou seja, homens livres. O
afastamento em relação à comunidade, como vemos nos cínicos e nos estoicos,
era feito em nome de uma recuperação da força normativa da physis. Vimos, por
exemplo, como os cínicos se contrapõem à polis em nome do retorno à natureza
enquanto plano de imanência que permite a orientação da ação virtuosa e a
constituição de um noção específica de “si próprio”. Essa ética da virtude não é
apenas fruto da crença de que as considerações exclusivas sobre o caráter moral
dos agentes poderiam definir as condições para a felicidade. Trata-se de, na
verdade, naturalizar as virtudes morais. A natureza é o nome do espaço do
pertencimento de si no cinismo e no estoicismo. Isto funda um nomadismo
cosmopolita (no caso do cinismo), uma moralidade do acontecimento que vê o
exercício do logos como apropriação (oikeiosis) do curso do mundo (como no
caso do estoicismo). Este tipo de auto-pertencimento tem consequências
políticas, pois pode alimentar uma força destituinte em relação ao poder, o que
está mais claro no cinismo do que no estoicismo.
Durante o primeiro módulo, eu apresentei alguns casos de tentativas
contemporâneas de recuperação do conceito de liberdade como auto-
pertencimento. Falei um pouco de Deleuze, mas o horizonte fundamental foi
Foucault. Ficou em aberto a possibilidade contemporânea de tal recuperação.
Depois disto passamos à discussão a respeito da liberdade como
propriedade de si. Tentei mostrar como, mesmo não nascendo exatamente
dentro de um horizonte liberal, ela se consolidará como pressuposto
fundamental do liberalismo e de um dispositivo maior de consolidação da nossa
forma ocidental de vida a partir de certa “metafísica da propriedade” que serve
de base ao capitalismo. Levando em conta teóricos do neoliberalismo e de certas
versões do liberalismo, como essa defendida por Robert Nozick, procurei
mostrar como consolidou-se as condições sociais para a generalização da forma-
propriedade enquanto horizonte regulador da vida social. A meu ver, isto
invalida toda e qualquer tentativa de recuperação da liberdade como auto-
pertencimento.
No interior de nossas sociedades capitalistas, todas as formas de
pertencimento e possessão foram colonizadas por um regime geral expresso nas
relações de propriedade. Não seria possível a uma reflexão própria a filosofia
política ignorar tal situação. Não seria possível ignorar que existe algo como uma
força metafísica do capitalismo, ou seja, um modo de conformação das
possibilidades gerais de existência e de relação através da generalização de uma
ontologia de propriedades que organiza até mesmo nossas formas de luta e de
resistência. Até mesmo o vocabulário de nossas lutas é conjugado no interior de
uma ontologia de propriedades, na qual é questão sempre de explicitar o que me
seria “próprio”, o que seria “meu”.
Mesmo quando a democracia liberal foi criticada do ponto de vista da
defesa dos bens comuns, tal crítica foi feita normalmente em nome de outra
forma de propriedade, de outra forma de possessão, a saber, a propriedade
coletiva239. Raros foram os momentos nos quais tal crítica foi feita em nome da
possibilidade de circulação do que é impróprio, do que não é configurado como
propriedade. Isto demonstra como boa parte de nosso esforço crítico
permaneceu no mesmo horizonte normativo que fundamenta o que gostaríamos
de criticar.
Foi tendo isto em mente que procurei explorar a ambiguidade imanente
a uma forma fundamental de auto-pertencimento na filosofia ocidental, a saber, a
ideia de auto-legislação, fundamento das noções modernas de autonomia e livre-
arbítrio. Vimos como a base de nossa noção ocidental de auto-legislação era
teológica, ela se assentava em uma desqualificação teológica das estruturas
motivacionais vinculadas à libido. Por isto, o controle de si pressuposto pela auto
-legislação que aparece com Agostinho tem um caráter de internalização da
culpa, de sujeição a uma autoridade exterior (na caso, deus) que difere
radicalmente dos dispositivos de autarkeia dos gregos. A liberação em relação
aos impulsos e inclinações, a ascese grega é um exercício de fortalecimento de si,
não exatamente de submissão da minha arrogância, vinda do pecado original, à
vontade de um outro. Ela é a expressão da distância contínua de mim em relação
a mim mesmo. Esta identidade de si é uma identidade continuamente diferida.
De certa forma, a noção moderna de autonomia irá preservar este modelo
paradoxal de auto-pertencimento, mesmo quando a matriz teológica for
relativizada. Nós vimos isto através de Rousseau e Kant. De formas distintas,
fomos confrontados com uma junção singular entre auto-pertencimento e
transformação. Se a vertente liberal da reflexão sobre a liberdade acaba por
239 Para um modelo de crítica baseado na despossessão, ver AGAMBEN, Giorgio; Altíssima
pobreza: regras monásticas e formas de vida, São Paulo: Boitempo, 2014
realizar os processos de auto-pertencimento como propriedade de si, essa matriz
que, entre outras características, é não-liberal trará no seu bojo o elemento
paradoxal de que só posso ser mim mesmo se me abrir a algo que não pode ser
pensado sob a forma dos sistemas individuais de interesses, da propriedade de
sua própria pessoa, que o sujeito liberal exerce como fundamento de sua
soberania.
Na aula passada, tentei defender com vocês que esse ímpeto de
transformação de si é o elemento decisivo para a consolidação da autonomia
estética. Para além da temática da autonomia como auto-referencialidade, tão
presente nas críticas ao pretenso “formalismo” da arte moderna e
contemporânea, para além da leitura compensatória da autonomia estética
(Bourdieu, Lukàcs, entre tantos outros) comecei a defender com vocês a
necessidade de compreender o tópico da autonomia estética como um motor
fundamental do giro auto-crítico do conceito de liberdade no ocidente. Se
liberdade está ligada não apenas a jurisdição de si, mas principalmente à
capacidade de não agir a partir do medo, e se a forma da auto-legislação sempre
foi assombrada pelo medo da perda de si, da deriva, da insubmissão, então a
experiência estética nos acostuma a não temer o que nos aparece como
impróprio, insubmisso, irredutivelmente outro, pois isto vem de nossa própria
atividade.
Se na aula passada, começamos a abordar este ponto através da discussão
sobre o conceito de sublime, eu prometera que essa nossa última aula seria
dedicado ao conceito de expressão estética. A escolha obedece a várias razões,
mas há ao menos uma que gostaria de salientar. O conceito de sublime,
contrariamente ao conceito de belo, permaneceu como horizonte de
compreensão da racionalidade das obras de arte. Não apenas filósofos
contemporâneos continuaram a mobiliza-lo (Adorno, Lyotard), mas a arte
contemporânea (Barnet Newman, Mark Rothko) e a literatura (Paul Celan,
Wallace Stevens).
Já o conceito de expressão poderia parecer obsoleto diante de um
momento histórico no qual operadores como gênio artístico, autoria,
autenticidade, parecem entrar definitivamente em colapso. Mas gostaria de
voltar mais uma vez ao romantismo a fim de demonstrar porque creio que se
trata de um operador decisivo se quisermos compreender a arte como uma
prática de liberdade.
242 Ver a este respeito a bela reflexão presente em BERTRAM, Georg; Kunst als menschlische
Praxis: eine Ásthetik, Frankfurt: Suhrkamp, 2014
243 LESSING, G.E.; Laocoonte ou Sobre as fronteiras da pintura e da poesia, São Paulo: Iluminuras,
2011, p. 101
questionar a beleza, como se esta não participasse das “intenções superiores” e
do “desígnio universal” do artista, a expressão se abre à experiência da
desmesura própria ao sublime.
Notemos, no entanto, que o termo “expressão” mudará de sentido quando
indicar a manifestação da genialidade do artista, isto a partir do final do século
XVIII. Pois a noção de gênio é tributária daquilo que Adorno entende como a
questão fundamental do romantismo, a saber: “esta de um estado de consciência
que não pode mais se fiar em canon formal objetivo algum e deve objetivar por si
mesmo, a partir de seu próprio peso, as leis de gravitação de sua própria
subjetividade”244. Isto nos auxilia a compreender porque antes do romantismo, a
expressão estava, em larga medida, ligada à mimesis, à capacidade de imitar de
maneira perfeita, um pouco com se espera de um artista de teatro que ele
expresse de maneira perfeita seu personagem. Vínculo entre expressão e
mimesis que, ao menos sob esta forma, desaparecerá com a noção romântica de
gênio, isto a ponto de alguém como Lizst afirmar claramente: “A música não
imita, ela expressa”. Assim, a genialidade do artista estará ligada à sua
capacidade em quebrar a regularidade da forma sem desestruturá-la
completamente. Quebras que fornecerão uma tensão interna à forma, que
mostrarão à forma que ela sempre será assombrada por algo de informe.
A destituição do território
Para uma peça ser bem resolvida para o piano, conceitos táteis são quase
tão importantes quanto conceitos acústicos (...) Um giro melódico ou uma
figura de acompanhamento chopinesco não é apenas ouvido, mas é
também sentido como uma forma tátil, como a sucessão de excertos
musculares. Uma peça de piano bem formada produz prazer físico246.
Se uma peça pode produzir prazer físico é porque ela esculpe a dinâmica
dos corpos, ela produz um certo esquema corporal que ganha realidade através
da repetição de movimentos. Esta inscrição da corporeidade em um processo de
produção de sons é uma forma importante de desvelamento da existência de
uma certa expressão corporal resultante de uma verdadeira “disciplina de
artista”, ligada a uma trabalho sobre si que faz do corpo o campo de
desdobramento daquilo que Ligeti chama de “conceito táteis”.
Mas há algo mais do que produção de um esquematismo corporal em
Chopin e é este ponto que merece nossa atenção. Se é verdade que: “nos Estudos
de Chopin, o momento de maior tensão emocional é geralmente aquele que a
mão é alongada da maneira mais dolorosa, de maneira que a sensação muscular
se transforme – mesmo sem o som – em uma mimesis da paixão”247 é porque,
muitas vezes, esta escultura da dinâmica dos corpos não é apenas a constituição
de uma regularidade, mas o aprendizado das paixões naquilo que elas tem de
mais amedrontador, ou seja, na confrontação com o ponto no qual tensão
emocional e limite corporal se tocam.
Ver, por exemplo, WELLMER, Albrecht; Versuch über Musik und Sprache, Munique: Carl
249