Cronicas de Afonso Henriques
Cronicas de Afonso Henriques
Cronicas de Afonso Henriques
Affonso Henriques
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Language: Portuguese
(VOLUME LI)
POR
DUARTE GALVÃO
ESCRIPTORIO
LISBOA
1906
Proprietario e fundador
Mello d'Azevedo
(VOLUME LI)
POR
DUARTE GALVÃO
ESCRIPTORIO
LISBOA
1906
PROLOGO
Sobre Duarte Galvão é bem que se leia a noticia que vem publicada no
dicionario da lingua portugueza, da Academia Real das Sciencias de
Lisboa (Tomo 1.^o e unico. Lisboa, 1793. Catalogo de autores, pag.
CXXVII).
Vir non minus aetate, quam prudentia, ac rerum usu gravissimus he elle
qualificado por Damião de Goes. Raro em sciencia e valor o denomina João
Pinto Ribeiro; homem douto, Duarte Nunes do Leão. Publicou-se
modernamente:
«Nesta Chronica, que Duarte Galvão diz, que fez de novo (são palavras de
Damião de Goes) faltão muitas cousas, que não chegárão á sua noticia.» O
Abbade Barboza traz o lugar citado, e com elle prova que Goes dissera, que
Duarte Galvão a fizera de novo. Mas esta asserção, como se vê claramente,
só pertence ao mesmo Galvão, a quem Goes a attribue. O qual porém nisto
mesmo se enganou, visto que o referido Galvão no Prologo da sobredita
Chronica, dirigido a el-Rei D. Manoel, assim lhe falla: «Pelo qual,
Serenissimo Senhor, como quer que além da materia, me haja de ser trabalho
e difficuldade ajuntar e supprir cousa de tantos tempos, desordenada e
falecida, e para haver de emendar escritos alhêos, vejo que armo sobre mim
juizos de muitos:» O que se ajusta melhor com o parecer de Barros, o qual
escreve, que Duarte Galvão sómente lhe apurára a lingoagem antiga em
que estava escrita.»
«E quem quer que foi (prosegue o mesmo Barros) o compoedor della dará
conta a Deos de macular a fama de tão illustres duas pessoas, como forão a
Rainha Dona Tareja, e el-Rei D. Affonso Henriques, seu filho.» Acudio a
isto com a merecida emenda o P. Fr. Antonio Brandão na terceira Parte da
Monarchia Lusitana. André de Resende só diz que Duarte Galvão a
escrevéra: porém Pedro de Mariz a declara expressamente recopilada de
outra antiquissima por mandado del Rei D. Manoel. No mesmo engano de
Goes, cahio depois Gaspar Estaço, dizendo assim:
Acho ainda um fragmento sob n.^o 8.169. Em todas estas copias acho os
taes quatro capitulos riscados para a primeira edição. Parecem estes codices
ter pertencido a particulares, não a institutos religiosos: não lhes vejo sellos
ou ex-libris de conventos. A Chronica foi impressa em Lisboa em 1726,
eliminados os celebres capitulos escandalosos.
Mas já não estava na mão de D. José Barbosa, ou de quem quer que foi
que riscou esses capitulos, o privar a posteridade da gratificação de saber
quaes esses effeitos da neglicencia e nenhum exame do Chronista, que El-Rei
Dom Manoel encarregou de escrever a historia do Fundador da Monarchia
Portugueza.
Havia ainda outro autor em cujas obras (ineditas em 1726) tinha sido
incorporada a materia dos Capitulos riscados. Fallamos de Christovão
Rodrigues Acenheiro, que escreveo em 1535 um Summario das Chronicas
dos Reis de Portugal, cuja publicação devemos á Academia Real das
Sciencias de Lisboa. (Ineditos da Historia Portugueza, Tomo 5.^o—1824).
Ahi encontramos esses impugnados feitos de D. Affonso Henriques, e
encontramos de mais um juizo do Compilador sobre elles muito mais franco,
muito mais claro, e muito menos mistico, do que aquelle que quiz idear
Duarte Galvão. «Devem bem de notar os Reis e os Principes Christãos» diz
Acenheiro, «estas façanhas do Cardeal e Bispo, e quanto devem pugnar pela
honra de suas pessoas e Reino, quando com justiça e verdade o perseguem,
como este Catholico Rei fazia e fez».
Algumas das suas razões não deixão de ter seu xiste. «O dito Snr. D.
Affonso» (o 6.^o de Castella) «como Catholico Rei que era, quando lhe
morria uma mulher, casava logo com outra»! E daqui funda elle motivo para
se crer que D. Ximena Nunes de Gusmão (mãi de D. Thereza) fôra sua
legitima esposa, que não concubina. Quanto ás circunstancias que poderião
afiançar alguma exactidão em Duarte Galvão, contentar-nos-hemos com
dizer que foi filho de um secretario de D. João 1.^o e de D. Affonso V, e
irmão d'um Bispo de Coimbra, e Escrivão da paridade do ultimo citado
monarcha. Elle mesmo foi Secretario de D. João 2.^o, e alem de Chronista-
mor, foi encarregado de varias missões importantes. Temos portanto que nem
relações nem occasião pessoal lhe faltárão para certificar-se do que era
verdade.
Sobre o Bispo negro não deixa de parecer especiosa a explicação que
offerece Fr. Joaquim de Santa Roza de Viterbo em seu Elucidario:—
A copia dos Quatro Capitulos que aqui offerecemos ao publico foi tirada
sobre um nitidissimo exemplar manuscripto em pergaminho da Chronica de
Duarte Galvão que vimos em Santa Cruz de Coimbra, e que deve hoje existir
na Bibliotheca Publica Portuense. Este exemplar era coetaneo dos tempos do
Chronista-mor, e na encadernação e riqueza das iniciaes illuminadas,
inculcava ter pertencido a pessoa ou repartição Real; e coincide, na
discripção que fez Pedro de Mariz no Prologo á sua intentada edição da
Chronica de D. Affonso 4.^o por Rui de Pina com os Codices que se
guardavão na Torra do Tombo.
A copia é verbal, mas não julgamos conveniente conservar a orthographia
daquelles tempos.
G. Pereira.
CHRONICA DO MUITO ALTO, E MUITO
ESCLARECIDO PRINCIPE D. AFFONSO
HENRIQUES PRIMEIRO REY DE PORTUGAL,
OFFERECIDA
M. DCC. XXVI.
AO LEITOR
Vale.
PROLOGO
DO AUTHOR
DO SANTO OFFICIO
Rocha.—Fr. R. de Allencastre.—Cunha.—Teixeira.—Silva.—Cabedo.
DO ORDINARIO
D. F. Arcebispo de Lacedemonia.
DO PAÇO
SENHOR
Pereira.—Galvão.—Teixeira.—Bonicho.
Chronica do muito alto, e esclarecido princepe D. Affonso Anriques,
primeiro Rei de Portugal
CAPITULO I
Como D. Egas Moniz criou a D. Affonso filho do Conde D. Anrique, que foi
são por milagre de N. Senhora da aleijão com que naceo.
Depois que o Conde D. Anrique foi cazado com a Rainha D. Tareja, filha
del-Rei de Castella como dito é, vindo ella a emprenhar, D. Egas Moniz mui
esforçado e nobre Fidalgo, grande seu privado, que com elle viera da sua
terra, e a quem tinha feito muita mercê, chegou ao Conde pedindo-lhe que
qualquer filho, ou filha, que a Rainha parisse lho quizesse dar para o elle
criar, e o Conde lho outrogou. Veio a Rainha a parir um filho grande, e
fermoso, que não podia mais ser uma creatura, salvo, que naceo com as
pernas tão encolheitas, que a parecer de Mestres, todos julgavam que nunca
poderia ser são dellas. O seu nacimento foi no anno de nosso Senhor de mil
noventa e quatro.
Tanto que D. Egas Moniz soube que a Rainha parira, cavalgou á pressa, e
veio-se a Guimarães onde o Conde estava, e pedio-lhe por mercê que lhe
desse o filho que lhe nacera para o haver de criar, como lhe tinha prometido.
O Conde lhe respondeo que não quizesse tomar tal carrego; porque o filho,
que lhe Deos dera, nacera por seus peccados tolheito de modo, que todos
tinham, que nunca guareceria, nem seria para homem. D. Egas quando esto
ouvio pesou-lhe muito, e disse: «Senhor, antes cuido eu que por meus
peccados aconteceo; mas pois a Deos aprouve de tal ser minha ventura, dai-
me todavia vosso filho, quejando quer que seja»: E o Conde posto que
tivesse grande pejo polo bem que a D. Egas Moniz queria, de o encarregar
em semelhante criação, por causa da aleijão da criança, com tudo lha deu
por lhe comprazer, e quando D. Egas vio a criança tão fermosa, e com tal
aleijão, houve mui grão dó della, e confiando em Deos, que lhe poderia dar
saude, a tomou, e fez criar, não com menos amor, e cuidado como se fora
são.
Vendo D. Egas este tão grande milagre, foi muito o seu prazer, deu muitas
graças, e louvores a Deos, e a Nossa Senhora sua Madre, criando, e
guardando dahi avante com muito maior cuidado o Menino, cujo Aio foi
sempre, até que seu pai morreo em Estorgua, sendo elle já de tal idade, que
nas guerras, e fadigas supria os carregos de seu pai. E por causa deste
milagre foi depois feito em esta Egreja com muita devação o Mosteiro de
Carquare; e como quer que alguns contem seu nacimento ser ultra mar, e
bautizado no Rio do Jordão, porém por mais verdade achei ser seu
nacimento como disse.
CAPITULO IV
Como o Conde D. Anrique adoeceo á morte, e das palavras que disse a seu
filho ante que falecesse.
«Filho esta hora derradeira que me Deos ordena para te haver de leixar
com a vida deste mundo me faz, que te veja, e fale com dobrado amor, e
sentido do nosso apartamento, e por esso assenta em teu coração minhas
palavras como de pai a quem após estas já não has douvir outras. Deves
filho de saber, que o poderio que o Senhor Deos neste mundo ordenou de
alguns Princepes sobre outros sometidos a elles foi por tal, que os máos
sejam constrangidos, e os bons vivam entre elles em paz, e assocego, porque
conservação é dos bons, e pungimento dos máos, pelo qual filho more
sempre em teu coração vontade de fazer justiça, virtude é que dura para
sempre na vontade, e corações dos justos, e dá igualmente seu direito, que é
o maior louvor, e merecimento que os Principes em seu regimento podem
alcançar, que todo o governo, e bem commum consiste principalmente em
duas cousas, a saber: em premio, e em pena; e assi como os bons pela justiça
se fazem milhores recebendo premio, e galardão de suas boas obras, assi os
máos vem a ser bons, ou a menos cessam de seus males com receo da pena, e
por tanto faze filho sempre como hajam todos direito assi grandes como
pequenos, e nunca por rogo, nem cobiça, nem outra nhuma afeição leixes de
fazer justiça, que o dia que um só palmo a leixares de fazer logo no outro se
arredará de teu coração uma braçada.
Como D. Affonso Anriques tanto que seu pai faleceo se fez chamar
Principe, e levando-o a enterrar se alçou em tanto a terra com sua mãi
Dona Tareja.
Quando o Principe D. Affonso Anriques vio que não tinha onde se acolher,
e que sua mãi tão pouco delle curava, segundo mal peccado muitas vezes
vemos as mãis com novos esposos se tornarem madrastas, trabalhou de lhe
furtar dous Castellos: um delles foi Neiva, e o outro o Castello da Feira terra
de Santa Maria, e destes dous Castellos fazia muita guerra a seu padrasto,
tanto que vieram ambos á fala com a Rainha Dona Tareja de presente, e
disse o Conde D. Fernando: «Principe não nos afadiguemos mais nesta
contenda, mas ajuntemo-nos um dia em batalha, eu e vós quando quizerdes, e
ou vós vos sahireis de Portugal, ou eu». Respondeu o Principe D. Affonso.
«Não devia de aprazer a Deos tal cousa que vós me queirais deitar fóra da
terra que meu pai ganhou». E acodio a Rainha sua mãi dizendo. «Minha é a
terra, e será que meu pai ma deu, e ma leixou». Disse então o Conde D.
Fernando a ella «Não andemos mais neste debate, ou vós vos ireis comigo
para a Galiza, ou leixareis a terra a vosso filho, se mais poder que nós».
Vendo assi Dona Tareja Rainha como o Principe D. Affonso seo filho a
não queria soltar enviou seus recados o mais secreto que pôde a El-Rei D.
Affonso de Castella chamado Emperador como El-Rei D. Affonso seu avô,
em que lhe fazia queixume do Principe seu filho a ter preza dizendo que
Portugal pertencia a elle de direito, e que assi por elle cobrar o que seu era,
como pelo que devia á virtude em acudir por uma sua tia posta fóra de seu
marido, e em prizão tão deshonesta lhe pedia, que a quizesse vir livrar, pois
não tinha a quem com mais rezão se soccorresse, e lhe podesse valer.
Quando El-Rei de Castella vio o recado de sua tia, aprouve-lhe muito com
elle, e fez logo prestes suas gentes de Castella, e de Lião, e de Aragão, e de
Galiza, e abalou com mui grande poder contra Portugal. Os Portuguezes
desque souberam que El-Rei de Castella ajuntava seu poder para vir
conquistar Portugal, e tirar sua tia da prizão, houveram todos seu acordo, que
estivessem com o Principe D. Affonso Anriques, e o ajudarem contra elle, e
então se vieram todos para o Principe mui guarnecidos de suas armas, e
ajuntaram-se com elle em um lugar que chamam Val de Vez, entre Monção e
Ponte de Lima, e ali esperaram El-Rei de Castella, o qual tanto que chegou
logo uns e os outros ordenaram suas azes para a batalha, e dambas as partes
foi grande peleija, e tão grande vencimento por parte do Principe D.
Affonso, que El-Rei de Castella foi ferido na perna esquerda de duas
lançadas, e sahio-se da batalha em um cavallo fogindo, acolhendo-se o mais
que pode a Toledo, por haver medo de com este desbarato perder a Cidade,
e prenderam-lhe na batalha sete Condes, e outros muitos Cavalleiros, e
mataram-lhe os Portuguezes muita gente. E o Princepe D. Affonso se foi logo
dalli levando comsigo sua mãi preza, e todos os lugares que se levantáram
contra elle os tomou por força, e tratou asperamente os que os tinham.
Como D. Egas Moniz se foi apresentar com sua molher e filhos a El-Rei D.
Affonso de Castella pela menagem que lhe feito tinha em o cerco de
Guimarães.
Desque D. Egas acabou de falar ficou El-Rei mui irado, e quizera manda-
lo matar, dizendo que o havia enganado: mas os Fidalgos, e nobres que ahi
estavam lhe disseram, que tal não fizesse, que não tinha rezão de lhe fazer
nhum mal, porque D. Egas fizera todo seu dever como mui nobre, e leal
vassallo, quejando elle era, e todos os Principes deviam de desejar ter
muitos tais, que seu mesmo fora o engano de se deixar enganar, e que antes
por seu bom nome tinha razão de lhe fazer muita honra, e mercê, e manda-lo
em paz. El-Rei assocegado de sua sanha pelo que lhe diziam, conhecendo
que era assi na verdade perdeo todo o despeito de D. Egas, e quitou-lhe a
omenagem que lhe feito tinha, e depois de lhe fazer muitas mercês o mandou
livremente elle, e sua molher, e filhos tornar para Portugal.
CAPITULO XI
E tanto que juntou, e teve sua gente prestes, partio de Coimbra, e a poucas
jornadas no Campo Dourique adoeceo á morte D. Egas Moniz seu Aio, e se
finou, de cujo falecimento o Principe tomou pezar, e o sentio grandemente
mostrando o menos pelo da gente, e feito a que ia. Cazo é a morte de bons
vassallos, e servidores em que os Princepes sempre devem mostrar
sentimento, por animarem mais os que ficam para seu serviço, e se
mostrarem virtuosos, e bons, não sómente em vida, mas depois de mortos,
porque as virtudes (onde ha virtude) auzentes devem de ser queridas, e
lembradas. Então mandou o Princepe tornar com o corpo de D. Egas tantos
dos seus, e taes pessoas com que podia ir honradamente. Mandou-se elle
enterrar no Moesteiro do Paço de Souza, que elle mesmo fez, e o seu
moimento está dentro da Capella que se chama do Corporal, ou dos
Freguezes, e entre elle, e a parede não está se não um moimento baixo, esto
se poz aqui para se saber onde jaz tão nobre, e honrado Cavalleiro.
Como o Principe D. Affonso passado o Tejo foi buscar El-Rei Ismar, que
com quatro Reis, outros, e infinda Mourama vinha contra elle, e como
sentaram seus arraiaes um á vista do outro.
Quando foi contra a tarde depois que o Princepe fez poer as guardas em
seu arraial, o Irmitão que estava na Irmida, que acima dissemos, veio a elle,
e disse-lhe: «Princepe D. Affonso Deos te manda por mim dizer, que pela
grande vontade e desejos que tens de o servir, quer que tu sejas ledo, e
esforçado, elle te fará de menhã vencer El-Rei Ismar, e todos seus grandes
poderes, e mais te manda por mim dizer, que quando ouvires tanger uma
campainha que na Irmida está sairás fóra, e elle te apparecerá no Ceo, assi
como padeceo pelos peccadores». (E já antes desto elle tinha feito, e dotado
com grande devação o Moesteiro de Santa Cruz de Coimbra, á honra da
morte e paixão que N. Senhor recebeo na Cruz, pelo qual é de crer que lhe
quiz Deos assi apparecer, porque por onde cada um mais merece, por hi o
mais honra, e alevanta) Des que se partio o Irmitão, o Princepe D. Affonso
poz os giolhos em terra, e disse: «Oh bom Senhor Deos todo poderoso a que
todalas creaturas obedecem, sogeitas a teu poder, e querer, a ti só conheço, e
tenho em mercê os grandes bens e mercês que me tens feito, e fazes em me
mandares prometer tão grande cousa, como esta, e tu Senhor sabes que por te
servir, passei muita fadiga e trabalho contra estes teus imigos, com os quaes,
por serem contra ti, eu não quero paz, nem os ter por amigos, e pois em
quanto viver, me não heide partir de teu serviço á tua infinda piedade peço
que me ajudes, e tenhas em tua santa guarda; porque o imigo da linhagem
humanal não seja poderoso para torvar teu santo serviço, nem fazer que os
meus feitos sejam ante ti aborrecidos».
E desde que esto disse com outras muitas devotas palavras, encomendou-
se a Deos, e á Virgem gloriosa sua Madre, acostou-se, e adormeceo, e
quando foi uma hora, ante menhã tangeo-se a campa, como o Irmitão disséra,
e então o Princepe saio-se fóra da sua tenda, e segundo elle mesmo disse, e
dentro em sua Estoria se contem, vio Nosso Senhor em a Cruz no modo que
disséra o Irmitão, e adorou-o mui devotamente com lagrimas de grande
prazer, confortando-se, e animando-se com tal elevamento, e confirmação do
Espirito Santo, que se afirma (tanto que vio N. Senhor) haver antre outras
palavras falado alguma sobre coração, e espirito humano dizendo: «Senhor,
aos Ereges, aos Ereges faz mister appareceres, que eu sem nhuma duvida
creio, e espero em ti firmemente». Esto mesmo não é para leixar de crer, o
que tambem se afirma que neste apparecimento foi o Princepe D. Affonso
certificado por Deos de sempre Portugal haver de ser conservado em Reino,
e o tempo, e caso, aquella ora sua virtude, e merecimentos eram taes para
lho Deos prometer. E mais se afirma que por ser esta a vontade de N. Senhor
confirmou-o depois um parceiro de S. Francisco homem santo, que veio a
Portugal, do que nos tempos passados, e em nossos dias, Deos seja louvado,
se vio muito grande mostra desto atégora, e será para sempre; tudo é para
crer que N. Senhor queria, e faria a Princepe tão virtuoso, sobre que fundava
Reino, e Reis tão virtuosos, para tanto seu serviço, e da santa Fé Catholica, e
por suas cousas andarem por culpas dos tempos em mui falecida lembrança
de escritura quiz Deos, segundo parece, que ficassem algumas em
confirmada fama.
CAPITULO XVI
«Amigos seres irmãos, eu assaz tenho de honra, e senhorio antre vós, por
sempre ser de vós mui bem servido, e guardado, e porque desto me contento
muito, não me quero chamar Rei, nem se-lo, mas eu como vosso irmão, e
companheiro, vos ajudarei com meu corpo contra estes infiels imigos da Fé,
quanto mais que para o que dizeis o lugar, nem ora, não são convenientes,
pelo qual para o feito em que estamos vós sede mui esforçados, e não temais
nada, que o Senhor Jesu Christo, por cuja Fé somos aqui juntos, e prestes
para peleijar, e esparger nosso sangue, como elle fez por nós, nos ajudará
contra estes imigos, e os dará vencidos em nossas mãos, e o preciozo
Apostolo Santiago cujo dia hoje é, será nosso Capitão, e valedor nesta
batalha». Responderam elles todos: «Senhor praza a Deos que assi seja, e
não menos o esperamos de sua graça, porém para elle ser milhor serviço de
vós, e de nós neste feito, e em todos os outros adiante, é mui necessario que
vos alcemos por Rei, e não deve uma só vontade vossa trovar a de todos que
vo-lo tanto pedimos, e desejamos». O princepe vendo-se tão aficado delles,
disse que pois assi era que fizessem o que lhes bem parecesse. Então todos o
levantaram por Rei; bradando com grande prazer e alegria: «Real, Real, por
El-Rei D. Affonso Anriques de Portugal». Anno de Christo de mil cento e
trinta e nove (1139).
CAPITULO XVII
Feito esto El-Rei cavalgou logo em um cavallo grande, e fermoso, que lhe
foi trazido cuberto de suas armas brancas, como dantes trazia, e os senhores
Cavalleiros se tornaram cada um a suas azes, e lugares ordenados, e sem
mais tardança, moveram contra os Mouros que já vinham contra elles. El-Rei
quando vio ser tempo disse a D. Pero Paes seu Alferes que abalasse mais
rijo com a bandeira, e toda sua az, o fez assi, e foram todos juntos ferir nos
Mouros mui rijo, onde El-Rei que ia diante ferio um Mouro da lança, de tal
sorte, e encontro, que deu logo com elle morto em terra, e rompendo a
primeira az dos Mouros chegaram á segunda da gente mui grossa, e ali foi
grande sem conto o poder dos Mouros, que tambem das outras azes
carregaram sobre El-Rei. Então D. Lourenço Viegas, e D. Gonçalo de Souza
que traziam a reguarda acodiram a El-Rei mui esforçadamente, e foi a
peleija mui grande, e ferida de ambas as partes, esso mesmo Martim Moniz,
e Mem Moniz irmãos, Capitães das azes entraram cada um de sua parte na
batalha, como esforçados Cavalleiros que eram, fazendo grande matança nos
Mouros.
Todos o faziam muito bem: mas em especial El-Rei da ventagem que era
mui grande de corpo, e de mui assinada valentia, de força grande, e coração
muito maior, e gram cortador de espada, e por tanto seu peleijar onde se
topava, antre todos era avantejado. Foi esta batalha tão bravamente
peleijada, que durou até horas do meio dia, sem tomar fim, sendo o dia tão
quente, e tanto pó naquelle tempo, que cada uma destas cousas com pouca
mais afronta os devera cansar; mas N. Senhor que era com El-Rei D. Affonso
tão esforçado Cavalleiro, e com os seus lhes deu esforço, como nem com
nhuma destas cousas, nem com tanta multidão de Mouros afraquassem
dando-lhe batalha, e de tudo tão grande vencimento, qual se não deu, de tão
poucos, e tantos em batalha campal aprazados; foi assi vencido El-Rei Ismar,
e os quatro Reis Mouros que vinham com elle, e mortos na peleija mui
grande conto de Mouros, e muitas das molheres pelejadoras, que acima
dissemos, nem da parte dos Christãos foi a vitoria sem perda grande,
morreram muitos antre os quaes Martim Moniz Capitão da az direita, e D.
Diogo Gonçalves, homens mui principaes.
Depois dos tres dias passados que El-Rei D. Affonso esteve no campo
com mui grande honra, e grandes prezas de ouro, e prata, presioneiros, e
gados tomados na batalha, tornou-se para Coimbra. Antre os prisioneiros era
um bom quinhão de gente que chamavam Moçaraves, os quaes eram
Christãos, que os Mouros tinham por cativos naquella terra, e quando El-Rei
chegou a Coimbra o Prior de Santa Cruz o saio a receber, e disse-lhe: «Oh
Senhor Rei, e vós outros nobres varões que sois filhos da Santa Madre
Egreja, porque trazeis assi prezos, e cativos estes Christãos irmãos vossos
como se fossem infieis, devendo-os de ter, e tratar como vós mesmos; ora
vos peço senhor, pois são da Lei de Christo como nós, sejam soltos, e livres
da prizão». E El-Rei que era muito sogeito a toda rezão, e virtude, de todo
bom, e verdadeiro Christão, outorgou logo no que o Prior falou, e os mandou
todos soltar, e livrar de cativeiro.
Disse então S. Vicente a S. Valerio: «Padre não cumpre aqui resposta que
seja emcolheita, mas se mandardes eu responderei a este Juiz». S. Valerio
respondeo: «Pras-me filho, que como sabes dias ha que te tenho minhas
vezes cometido». Então S. Vicente respondeo, e falou a Daciano com tanto
fervor, e constancia pela Fé de Christo, que Daciano mui irado o mandou
fortemente atormentar mudando-lhe, e dobrando-lhe, (a fim de o tirar de
Christo por muitos dias) os tormentos, taes, e tantos, quanto crueza sobeja
muito podia sobejamente inventar e fazer, sem ficar nhum que se possa
cuidar, os quaes por brevidade, dizer escuzo. Vendo-se Daciano com todos
seus tormentos, perante todos vencido, e S. Vicente cada vez em elles mais
vencedor, e glorificado, receando, que se por então morresse nos tormentos
leixaria de si maior gloria, mandou que o lançassem em sua cama mui mole,
e curar muito bem delle, para depois de convalecido lhe renovar novas
dores, e chagas, e assi por continuação de tormentos faze-lo render; mas elle
jazendo naquella preciosa, e não caridosa cama, deu a Alma a Deos, que
como sua a levou para si, e a quiz haver por escuza de mais exames, nem
provas de virtudes.
Sabendo sua morte Daciano ainda então se não doeo delle, se não de
sendo vivo lhe ser tolhido sua crueza, dizendo: «Pois em vivo o não venci,
morto o vencerei, e desfarei». Mandou então lançar o Corpo ás aves, e
animalias, que o comecem, onde houve pelos Anjos tão guardado, que nhuma
lhe poz boca, antes de Corvos que al não buscavam, foi um visto guarda-lo, e
defende-lo, o que sendo dito a Daciano, disse com a mesma sanha, e crueza
dantes demais: «Se nem morto o poderei vencer». Então mandou atar uma
grande mó ao Corpo, e lanca-lo no mar para debaixo do mar ser escondido,
e desfeito, quem sobre a terra não pudéra; mas o Corpo de S. Vicente
milagrosamente veio até á terra primeiro que o mesmo barco, que o foi
deitar, e alli por sua revelação foi sabido e recolhido seu Corpo dalguns
Christãos, que o devotamente enterraram, fazendo ahi sempre muitos
milagres. Padeceo depois de N. Senhor duzentos e oitenta e sete annos (287).
Deste Martyre precioso falam muitos Doutores, mui grandes louvores, antre
os quaes diz delle Santo Agostinho: «Oh Bemaventurado Vicente,
verdadeiramente venceste: venceo nas palavras, venceo nas penas, venceo
queimado, venceo alagado, venceo vivo, venceo morto».
CAPITULO XX
Sabido este feito em Roma, cuidaram que El Rei era herege, e enviou-lhe
o Papa um Cardeal que lhe ensinasse a fé.
CAPITULO XXII
Aqui falla Duarte Galvão autor como este feito d'El-Rei D. Affonso
Henriques, e outros similhantes, nos bons principes devem ser julgados.
A novidade que esta cousa assim feita por El-Rei D. Affonso Henriques
assim poderá parecer a quem quer que a ler e ouvir, como pareceu naquelle
tempo, me faz haver por necessario, antes que mais por ella prosiga, fazer
alguma salva deste caso por trazer comsigo mostra de exorbitancia. No que
certo, assim como se não pode negar cousas de tal modo feitas serem fóra do
que os homens devem, assim se não pode deixar de confessar o modo e
maneira do Rei ser mui fóra dos outros homens; que o Rei não é Rei per si
nem para si, e para obrar e se salvar, outro ha de ser o caminho do Rei, outro
o do frade. E pois o coração do Rei é na mão de Deos e onde Deos quer o
inclina, segundo diz a sagrada Escriptura, como se deve crer nem cuidar que
Rei catholico e virtuoso faça nenhuma cousa similhante fora da vontade e
querer de Deos, ainda que seja fóra da vontade e parecer dos homens? Que
assim como Deos, sem nosso saber, nos leva muitas vezes por onde não
queremos ao que mais devemos querer, assim é de cuidar que dispensa
occultamente, sempre porem justamente, como se faça ás vezes o que parece
que não deve ser, porque venhamos ao que elle quer e ordena que seja.
Tem a igreja por Santas, e faz festa a certas mulheres que se matarão, por
em seus corpos não consentirem corrompimento, e ha por salvo Santo
Sansão, que tambem se matou, e outros muitos comsigo; havendo a Igreja por
certo que o virtuoso coração destes não podia obrar tamanho mal como é
matar-se, senão pelo instincto de Deos inspirado. Quanto mais deve cuidar e
crer em menos erro de Reis virtuosos por Deos mui ajudados e prosperados
sendo pessoas publicas postas nos reinos para bem dos reinos por Deos, e
nas mãos de Deus mais que nenhuns outros homens; e posto que por ventura
se veja ou leia, que cousas assim feitas não carecerão neste mundo de
alguma punição, é de cuidar que ordena Deos isso por que se conserve
todavia proposito e exemplo do que geralmente mandou que se fizesse,
maiormente não sendo as tribulações e penas deste mundo condenação para
o outro, mas provação ou mezinha por de um muito bom rei fazerem ainda
melhor, dando-lhe azo e cauza de mais lembrança e conhecimento de Deos e
da virtude. Porque, como diz S. Gregorio, os males que neste mundo nos
apressão para Deos nos empuxão; pelo qual os similhantes casos em
principes Catholicos e virtuosos, como era El-Rei D. Affonso Henriques,
não os queiramos assim ligeiramente julgar, que não remettamos o intrinseco
delles áquelle Supremo Saber do Senhor Deos, por cuja providencia se não
faz nada neste mundo sem causa, e assim não nos fará novidade nem espanto
lê-los nem ouvi-los.
CAPITULO XXIII
Como depois desto El-Rei Ismar que foi vencido no campo Dourique veio
tomar Leiria, e o Prior de Santa Cruz de Coimbra foi a Alentejo, e tomou
Arronches, e como El-Rei D. Affonso tornou outra vez a tomar Leiria aos
Mouros.
El-Rei Ismar, que foi vencido no Campo Dourique, por El-Rei D. Affonso
Anriques como já dissemos, tendo sempre grande vontade em guerrear
Christãos, em especial depois de haver aquelle grande desbarato, ajuntou
muitas gentes, e veio-se a Santarem, e dali partio levando consigo a Euzari
que era Alcaide da Villa, e correo a terra, até chegar a Leiria, a qual
combateo tão fortemente, que entrou por força matando os mais dos
Christãos que hi acharam, e levando cativo Paio Goterres, que o Prior de
Santa Cruz ahi leixára por Alcaide, e depois de leixarem Mouros no
Castello, e Villa, que a bem mantivessem, e guardassem, tornaram-se logo
para suas terras, fazendo tudo esto com tanta preça, e trigança, que El-Rei D.
Affonso estando em Coimbra não teve tempo para soccorrer, e vir á batalha
com elles.
Foi tomada Leiria del-Rei Ismar era de N. Senhor de mil cento e quorenta
annos (1140). Quando o Prior de Santa Cruz a que chamavam Theotonio
homem ante El-Rei muito estimado, vio tomada Leiria, que lhe El-Rei D.
Affonso com muita devação, e vontade tinha dado, tomou em si grande pezar,
e partindo-se do Moesteiro, foi-se a guerrear ás terras de Alentejo, que os
Mouros pessuiam, onde tomou a Villa de Arronches, e em quanto assi o Prior
lá andou guerreando, El-Rei D. Affonso tendo grande pezar por se assi tomar
Leiria, ajuntou outra vez gente, e foi sobre ella, e Deos que sempre o ajudava
em todos os seus feitos, lhe deu tão boa esquença, que por força a tornou a
tomar, posto que os Mouros a mui bem defendessem. E esto foi quatro dias
por andar de Fevereiro era do Senhor de mil cento e quorenta e cinco annos
(1145) e porque vio o Prior a quem elle dantes dera a Villa lha não guardára
bem, poz em ella, e no Castello tal guarda, como compria para sua defensão,
que lha não podessem assi os Mouros outra vez ligeiramente tomar, e tornou-
se a Coimbra.
CAPITULO XXVI
Como El-Rei D. Affonso tornou a dar Leiria ao Prior de Santa Cruz, e assi
tambem Arronches, em todo o espiritual, ficando o temporal com os Reis
de Portugal, e como El-Rei cazou com Dona Mofalda filha do conde D.
Anrique de Lara.
Como El-Rei D. Affonso Anriques partio com sua gente para ir tomar
Santarem, e do voto que fez no caminho a S. Bernaldo, o qual naquella
hora lhe foi revelado lá em França, onde estava.
Depois desto fez El-Rei prestes sómente os seus continuos de sua caza, e
alguns poucos de Coimbra, com Gonçalo Gonçalves, e assi mantimentos que
lhes abastassem, e ante que partisse foi-se ao Moesteiro de Santa Cruz a
falar com aquelle devoto homem Prior do Moesteiro em que elle tinha
grande e singular devação, e encomendou-lhe sua alma, e seu estado, assi
como houvesse de partir deste mundo, dizendo-lhe todo o que tinha ordenado
para ir fazer, e quando havia de ser, encomendando-lhe muito afincadamente
que naquelle dia com seus amigos rogasse a Deos de vontade que o quizesse
ajudar naquelle feito a que iam por seu serviço, e que esta couza tivesse em
grande segredo. Então se partio El-Rei uma segunda feira não sabendo
ninguem para onde iam; salvo aquelles a que o comunicara, e levaram o
caminho tão revessado, e encuberto que os Mouros não houveram novas
delles, e vieram aquelle dia poer as tendas em Alfasar, esta foi a sua
primeira jornada, ao seguinte dia partiram, e foram dormir a Codornolos, e
dali mandou El-Rei a Martim Mohaz que fosse dizer aos Mouros de
Santarem que elle levantava a tregua da li em diante, e que a paz dantre si, e
elles, fosse quebrada até tres dias, que segundo costume daquelle tempo,
cada um podia engeitar a tregua a seu imigo quando lhe aprovesse, com tanto
que lho fizesse primeiro saber. Martim Mohaz foi, e depois de comprir o
mandado que levava, tornou á quarta feira a Aldeguas, onde El-Rei estava, o
qual partio da li, e indo pela serra Dalvardos acertou-se que D. Pedro irmão
bastardo del-Rei, que fora já em França, ia falando com elle dos muitos
milagres, que naquella terra Deos fazia pelo Abbade S. Bernaldo que então
era vivo, e como lhe Deos outorgava toda couza que lhe pedia.
Então El-Rei movido a devação pelas couzas que lhe seu irmão assi
contava, disse: «Eu á honra, e louvor de Deos, prometo que se me elle
Santarem quizer dar, por sua piedade, e pelos rogos do Bemaventurado S.
Bernaldo, que vós dizeis, e eu lhe dê toda esta terra para a sua Ordem quanta
vejo daqui até o mar, e que faça um Moesteiro em que Frades da sua Ordem
vivam a serviço de Deos, e porque ella seja mais acrecentada». E segundo
conta a Lenda de S. Bernaldo, tanto que El-Rei fez este voto, logo lhe a elle
foi revelado lá em França, onde estava esta promessa del-Rei, e como havia
de tomar Santarem aos Mouros, e em como aquelle Moesteiro que El-Rei
prometera de fazer seria mui nobre, e abastado de todalas couzas, segundo
depois foi, e é agora um dos grandes, e ricos Moesteiros da sua Ordem que
ha na Christandade.
Tanto que o Abbade S. Bernaldo assi houve esta revelação mandou logo
tanger a Cabido, e todos os Monges juntos, lhes contou o que lhe fora
revelado, então todos cantando: «Te Deum Laudamus», foram á Egreja dar
graças a Deos, e mandáram logo partir certos Monges para Portugal com
livros da sua regra, e ordenança, e os que quizessem, viessem para alli, os
quaes em se começando a obra do Moesteiro, vieram hi ter, e tomaram posse
pela ordem da Doação que lhe El-Rei fizera, começando hi de viver,
segundo sua Regra com muito acrecentamento, o qual a N. Senhor aprouve
que fosse sempre depois, e agora neste tempo.
CAPITULO XXX
Como El-Rei D. Affonso Anriques descubrio aos seus que iam sobre
Santarem, e das rezões que disse a todos.
Na serra Dalvados, que acima dissemos, esteve El-Rei a quinta feira até
noite, e dahi abalaram ao serão andando toda a noite, até a mata que está
sobre Pernes, onde chegaram sexta feira amanhecente, então concirou El-Rei
que era bem descobrir a todos seu desejo, e ao que iam, e fez-lhe uma falla
nesta maneira: «Meus bons Cavalleiros, e amigos, mais verdadeiramente,
que a outros nhuns se ha de chamar, bem sabeis quantos trabalhos, e fadigas
comigo, e sem mi padecestes por azo desta Villa de que ácerca estamos, e
quanta guerra, e males tem feitos á nossa Cidade de Coimbra, e a todo meu
Reino por muito tempo, pelo qual detreminei de a vir com vosco escalar, e
tomar, como em Deos espero, e ainda que parece necessario chamar mais
gente para esso, e seja certo que me viera de mui boa vontade, porém não
quiz, nem escolhi mais que vós soes, em que sempre puz, e ponho meus
conselhos, e fadigas, e cuja lealdade, e valentia, em muitos perigos meus
conhecida me deu sempre de vós, tal, e tão firme confiança, que com a graça
de Deos, ei já por feito o que vimos a fazer, alem desto vejo em vossos
gestos, e continencias não menos sentirdes, e dezejardes, esta couza que eu
mesmo, o que me cauza tanto prazer, que já me não parece termos nisto mais
pejo, que a detença deste dia, que passe azinha, para com a graça de N.
Senhor nos irmos a noite seguinte apossentar dentro na Villa, e o que tenho
cuidado para se esto mais ligeiramente fazer, escolham-se cento e vinte de
nós, para dez esquadras partidos a cada uma doze, que logo no primeiro
sobir, se achem não menos de dez sobre o muro, e assi se dobre cada vez o
conto da gente.
Passado assi esto com outras muitas palavras, e praticas sobre o caso,
aparelharam todo o que fazia mister, para tal obra, e leixando alli as tendas,
e todo o al que traziam, cavalgaram em seus cavallos, e chegaram aos
olivaes de Santarem, de noite. Esto era em vespora de S. Miguel de Maio
sete dias andado do mez, na era de mil cento e quorenta e sete annos, (1147)
e chegados alli viram um sinal, que lhes esforçou muito mais os corações;
viram uma estrella grande ardente com grande raio correndo pelo Ceo, da
parte da Serra, que alumiava a terra, e foi ferir no mar. Vendo esto disseram
logo todos. Senhor Deos todo poderoso a Villa é em vossas mãos. Esso
mesmo no dia que El-Rei mandou notificar aos Mouros o britamento das
treguas, que acima dissemos aos da Villa, appareceo outro sinal mui
espantoso pronostico de sua mortindade, que foi na terceira noite seguinte,
viram no Ceo a horas do meio dia semelhança de um Touro ir por meio do
Ceo, levando chamas de fogo acezas, desde o cabo até á cabeça. O que esses
mais sabedores antre os Mouros, intrepetáram que Santarem haveria cedo
Rei novo, e seria o filho del-Rei de Sevilha Mouro, cujo Santarem, e Lisboa,
e parte da Estremadura era.
Sendo já El-Rei com os seos perto da Villa, lançaram-se em um valle
encuberto, e escuso, tão acerca do lugar, que ouviam falar as velas do muro,
quando bradavam uns aos outros, e estiveram alli toda a noite, com os
cavallos pelas redeas, vigiando com grande cuidado, do que ao dia seguinte
esperavam de fazer, sem os Mouros delles haverem nhum sentimento.
El-Rei D. Affonso desque tomou a Villa, poz nella seu Alcaide, leixando-
a abastecida como compria, e tornou-se para Coimbra com muito prazer,
onde contando á Rainha sua molher, e a outros muitos como lhe acontecera
na tomada de Santarem, disse estas palavras: «Dou a Deos dos Ceos muitos
louvores, ante cujos olhos todalas couzas são sabidas, e conhecidos; que não
tenho agora a grande maravilha, serem pelo seu poder em outro tempo os
muros de Jericó, como se lê derribados, nem estar quedo o Sol por rogo de
Josué um dia todo, em comparação da piedade, e misericordia que lhe
aprouve fazer comigo, em me dar um tão forte lugar tomado com tão pouca
gente, pelo qual glorifico o seu Santo nome, e suas maravilhosas obras, as
quaes renovando em nossos dias elle, quiz mostrar neste feito, tanto sobre
poder humano, que qaando me eu vi ante as portas da Villa abertas, poendo
meus giolhos em terra com muita devação, e prazer de minha alma, orei a
elle palavras que me elle naquella hora, como todo o al, então deu no esprito
quejandas agora não saberia dizer: mas dos ousados esforços, e
cometimentos, que se na tomada da Villa fizeram, digam-no os que se alli
acharam, porque não é em mi dize-lo». Esta Villa se chamava antigamente
Cabilycrasto, e depois da morte de Santa Eyrea, lhe pozeram os Christãos
nome de Santarem, que vem de Santa Eyrea Martyre que a ella veio ter.
CAPITULO XXXIV
Andaram assim estes recados de uma parte, e da outra, até que vieram
concertar de irem juntamente todos cercar a Cidade, á condição que sendo
tomada, ametade fosse del-Rei, e a outra metade dos Estrangeiros, e assim
logo El-Rei por terra, e a frota por mar foram poer cerco a Lisboa; El-Rei
acentou seu arrayal da parte do Oriente, onde agora está o Moesteiro de S.
Vicente de Fóra, e os Inglezes, e outras gentes tomaram a parte do Ponente,
onde ora são os Martyres. Durou o cerco perto de cinco mezes, por a Cidade
ser mui forte, de sitio, e cerca, e estarem dentro muitos Mouros, que a mui
bem defendiam; fizeram-se neste cerco grandes escaramuças, e fortes
combates, em que se matavam muitos Cavalleiros de uma parte, e da outra.
Cada um arrayal dos Christãos, edeficou sua Egreja em que enterrassem os
que alli morriam, e El-Rei D. Affonso fez a sua, onde depois foi edeficado o
Moesteiro de S. Vicente á honra do Martyre S. Vicente, e os Estrangeiros
edeficaram outra que ora é chamada Santa Maria dos Martyres. Estas
Egrejas estão agora dentro dos muros da Cidade, desque a cercou El-Rei D.
Fernando o noveno Rei de Portugal, como se adiante dirá, porque quando
Lisboa esta vez foi tomada a Mouros, não era sua cerca maior, que quanto se
ora vê, e chama cerca velha.
Dos milagres que Deos mostrou pelo Cavalleiro Anrique Alemão que
morreo quando a Cidade de Lisboa foi entrada.
Logo a poucos dias que esto aconteceo veio a morrer um Escudeiro deste
Cavalleiro Anrique de grandes feridas, que tambem houve na entrada da
Cidade, e enterraram-no na mesma Egreja donde jazia seu senhor, e sendo
alli soterrado, appareceo de noite o Cavalleiro Anrique a um homem muito
velho, que servia aquella Egreja e havia nome Anrique como elle, dizendo-
lhe: «Levanta-te, e vai ao lugar onde os Christãos enterraram o meu
Escudeiro alongado de mim, toma o seu corpo, e vem enterra-lo aqui junto
comigo, porque quem me seguio, e se ajuntou comigo na morte, não deve ser
apartado na sepultura». Do que aquelle homem bom nada curou, e vindo-lhe
outro tal segundo aparecimento, e amoestação tão pouco curou desso, como
da primeira, então lhe appareceo a terceira vez o Cavalleiro Anrique mui
irado, e com sembrante bravo, e queixoso ameaçando-o com palavras de
grande medo, se logo não fosse comprir o que por tantas vezes lhe dissera,
pelo qual aquelle bom velho cheio de temor se levantou logo de noite, e foi
com candeias á sepultura onde jazia o Escudeiro, e desenterrou-o trazendo-o
elle por si só e lhe fez uma cova a milhor que pode apar do Cavalleiro
Anrique onde o enterrou, e quando veio pela menhã, achou-se o velho tão
são, e sem cançasso do trabalho da noite passado, sendo impossivel por sua
cançada idade pode-lo fazer, como se jouvera em sua cama folgando sem
fazer nada, e contando ao outro dia todo assi como lhe acontecera, aos
Prelados, e a todo o povo deram todos muitos louvores a N. Senhor.
CAPITULO XXXVIII
Passado assi todo esto fez El-Rei juntar toda sua gente que com elle era, e
disse-lhe: «Amigos meus eu até agora como vistes depois de tomada esta
terra, e Cidade, me ocupei em ordenar, e destribuir os bens temporaes della,
os quaes muitas vezes tem rezão, não em dignidade, nem em preiminencia,
mas em ordem para se haver primeiro de entender nelles, que nos
espirituaes, para que Deos seja assi mais ordenadamente servido, segundo
requere a orde, e maneira das cousas deste mundo, e a fraqueza da condição
humana sem o temporal não póde vagar no espiritual, agora é muita rezão
que não tardemos mais de entender no espiritual, ordenemos, e elejamos
quem nesta Cidade seja Bispo, e Pastor de nossas Almas, e regedor da
Egreja Cathedral». Louvaram todos o que El-Rei dizia, e então foi eleito um
homem virtuoso, que alli era, chamado Gilberto, de muito boa vida, e
costumes, e leterado em Degredos, e a poz esto mandou El-Rei logo notificar
ao Papa cumpridamente o cerco, e tomada de Lisboa, da eleição do Bispo,
que por serviço de Deos novamente fizera, pedindo a Sua Santidade o
quizesse confirmar. O Papa lhe outorgou todo esto, e outras mais cousas que
lhe enviou pedir, dando-lhe grandes perdões, indulgencias para as Egrejas
que tinha feitas. Tanto que este recado veio de Roma chamou El-Rei o Bispo
Gilberto, e disse-lhe: «Bispo estas duas Egrejas, foram aqui edeficadas
como sabeis, tendo nós ainda esta Cidade cercada para se nellas enterrarem
os que morriam, pois a N. Senhor aprouve de vermo-lo, e podermo-lo fazer,
eu quero dotalas começando primeiro no Moesteiro de S. Vicente de Fora».
E então o dotou de muitas posseções, porque entendeo que poderiam bem, e
sem mingoa viver, os que em elle houvessem de servir a Deus, e para os
Povos terem mais azo, e devação de ajudar, e fazer o Moesteiro poz em elle
grandes indulgencias, que lhe o Papa mandou, e assi tambem na Egreja de
Santa Maria dos Martyres.
CAPITULO XL
El-Rei D. Affonso posto que lhe estas novas chegassem, não se quiz
levantar do cerco, que tinha sobre Beja, antes a combateo então fortemente
com engenhos, e artilharias, até que a tomou por força, e pelo despeito que
tinha do mal que os Mouros fizeram em Trancozo, todos os Mouros de Beja
andaram á espada, ficando mui poucos vivos. Foi Beja tomada na era do
Senhor de mil cento e cincoenta e cinco annos (1155). Feita assi esta
destruição nos Mouros, e havidas estas vitorias nas terras Dalentejo, leixou
El-Rei Beja, e todolos outros Lugares mui bastecidos, e providos de
Cavalleiros, e gente que os mui bem podassem defender, e guardar, e tornou-
se para Coimbra com muita honra, e grande prazer, pelas mercês, e grandes
vencimentos, que lhe N. Senhor Deos contra Mouros dera.
CAPITULO XLII
Dos filhos que El-Rei D. Affonso houve, e como cazou sua filha Dona
Mofalda.
Tanto que El-Rei D. Affonso chegou a Coimbra lhe foi logo commettido
cazamento para sua filha Dona Mofalda; elle teve tres filhas, e um só filho, o
filho houve nome D. Sancho, que herdou o Reino por falecimento de seu pai,
e em sendo Ifante foi sempre mui bom e esforçado Cavalleiro, e valente, e
depois que Reinou, não menos bom, virtuoso, e esforçado Rei, fazendo
muitas cavallarias, e accrescentando seu Reino como em seu logar
contaremos, e a primeira filha houve por nome Dona Mofalda, que foi
cazada com D. Reymondo, filho do Conde D. Reymondo de Barcelona, e a
outra chamada Dona Urraca, cazou com El-Rei D. Fernando de Lião; a
terceira filha houve nome Dona Tareja. Esta foi cazada com D. Felippe
Conde de Frandes, e sendo assi commettido a El-Rei D. Affonso o dito
cazamento para sua filha Dona Mofalda, o vieram a concertar, que o Conde
D. Reymondo de Barcelona viesse á Cidade de Tuye, que era del-Rei D.
Affonso, e alli fizessem vistas antre si sobre este cazamento. Então se partio
El-Rei para lá com muitos Senhores, Prelados, e Cavalleiros, levando
comsigo a Rainha Sua mulher, e suas filhas. Chegáram a Tuye dez dias
andados do mez de Janeiro; dahi a oito dias chegou o Conde D. Reymondo;
fez-lhe El-Rei dar bairro, e pouzadas grandes, e boas para elle, e toda sua
gente, que com elle vinha, a qual era muita, e mui luzida; vindo o Conde, El-
Rei sahio-o a receber acompanhado de honrados Prelados, e outros Grandes
do Reino, e Cavalleiros mui principaes; iam com elle D. João Arcebispo de
Braga, D. Mendo Bispo de Lamego, D. Izidoro Bispo de Tuye, D. Pedro
Conde das Asturias, o Conde D. Ramiro, e o Conde D. Vasco, D. Gonçalo de
Souza, D. Pedro Paes seu Alferes, e outros muitos ricos homens, e
Cavalleiros com muita gente. Quando o Conde chegou veio El-Rei para elle,
e o recebeu com muita honra, e gazalhado, trazendo-o consigo até o Paço,
alli descavalgáram, e se foram logo para onde estava a Rainha, e as Ifantes,
e o Conde esso mesmo fez grande reverencia á Rainha, e suas filhas, de que
foi mui bem recebido, e depois de fallarem alli um pouco tomou El-Rei o
Conde, e levou-o para onde haviam de comer.
Aquelle dia comeo o Conde com El-Rei em sala, elle, e todos os que com
elles vinham, e assi a Rainha, e as Ifantes com suas Donas, e Donzelas, e
desque acabáram de comer, vieram Jograes, e tangedores, e foram grandes
danças. Isto acabado, havendo-se o Conde de ir colher a suas pouzadas se
quizera alli despedir del-Rei, e elle não quiz, se não que se espedice só da
Rainha, e suas filhas, e foi-se com elle até porta do Paço onde havia de
cavalgar, e El-Rei tinha já ahi cavallo para ir com o Conde; mas o Conde
não o quiz consentir em nhuma maneira; ficou então El-Rei, e todos os outros
Senhores, e Cavalleiros da Corte, se foram com o Conde até sua pouzada. El
Rei mandou a todos seus Officiaes, que dessem todas as cousas sem
dinheiro, que o Conde houvesse mister, em quanto hi estivesse, e des aquelle
dia em diante, começáram a fallar no trato do cazamento da Ifante, e do filho
do Conde; estiveram em o concertar até dous dias por andar de Janeiro em
que se fez o cazamento; no qual dia sendo hi juntos muitos Senhores, e
Prelados, e Cavalleiros de uma parte e da outra, foi lida á Rainha, e Ifantes
uma Procuração de D. Reymondo filho do dito Conde porque dava poder a
seu Pai, que em seu nome podesse receber com elle a Ifante D. Mofalda filha
del-Rei D. Affonso. E vista a Procuração, El-Rei tomou sua filha, e trouxe-a
ante o Arcebispo de Braga, o qual tomou o Conde pela mão, e assi a Ifante, e
então os recebeu, elle como Procurador de seu filho, e ella por si, como
manda a Santa Madre Egreja de Roma, e esto feito, entregou El-Rei sua filha
ao Conde, que a levasse consigo até onde houvessem de ser feitas as vodas,
e o Arcebispo de Braga, e D. Martim Moniz, e assi Donas, e Donzelas foram
em sua companhia della. Deu El-Rei ricas joias ao Conde, e aos seus fez
mercês de modo que elle, e todos os que com elle vinham partiram mui
contentes del-Rei. Partio-se assi o Conde, levando a Ifante consigo, e elle
partido, El-Rei se tornou para Coimbra com toda sua gente, e Corte.
CAPITULO XLIII
El-Rei com quanto vio o medo, e receio dos seus pela grande multidão
dos Mouros; porém esforçando-se no poderio de Deos ser maior que o dos
homens, no qual elle sempre esperando se achava vencedor, fallou aos seus
em esta maneira: «Que esmaio é este amigos, ou que nova desconfiança do
Senhor Deos, nem que vedes vós agora de novo, para tanta torvação; estes
muitos, que vedes são os que vós muito menos, dos que ora soes, sempre
vencestes, para esso ganhamos nós peleijando, e vencendo, á cincoenta
annos, tanto merecimento, e honra ante Deos, e o Mundo, para todo em uma
só hora, fugindo perdermos, certo que ouvindo-vos, o que ouço, se vos a
todos não conhecera, podera mal cuidar, serdes os que comigo vencestes
muitos mais, que estes imigos no campo Dourique, e em outros lugares, não
ponhaes ante vós meus amigos, quantos mais são, que nós, mas quanto no
poder, e querer de Deos, por quem peleijamos, são muito menos que nós; o
medo, em que os Deos já poz para nós maiormente se dermos nelles de
sobresalto, fará que lhes pareçamos muitos mais do que somos, e elles assi
mesmos, menos muito, do que são, e tendo-nos Deos tantas vezes mostrado
esta verdade, podeis ainda cuidar em nos devermos de retraher, nem fugir,
Deos por nós sempre contra elles em honra, e vencimento, e nos queremos
ora poer em deshonra, e nossos imigos em gloria, e esforço contra nós. Ora
havei Cavalleiros, que mingua de fé, mingua de crença, nos encurta o
esforço, mal concorda no coração de Christão esmaio com ardideza, mal no
Christão desconfiança com fé, que inda que poucos sejamos, tambem de
muitos, poucos são os que peleijam, não tem hoje estes nossos imigos em
seus corações, cousa mais certa que topando-se no campo convosco, e
comigo, haverem-se logo por vencidos, tanto que nos virem não ficará
destroço, nem mortos, nem vencimentos passados, quantos contra elles
houvemos, que como prezentes ante si não ponham, este de agora, que com a
graça de Deos haveremos. Pelo qual meus bons Cavalleiros, não vos venham
por sentido medos, de que nosso Senhor Deos sempre livrou, e mostrou o
contrario, e pois por tantas, e tão milagrosas vitorias, que sobre nosso poder,
por sua piedade nos deu, temos tão sabido nada ser a elle impossivel, não
devemos nada temer, vamos logo com sua graça, que nos sempre acompanha
ferir nos imigos. Eu quero hoje ser vosso pendão, e ver se me quereis seguir,
e guardar como sempre fizestes, que pois Deus ordenou para mostrar mais
seu gram poder, com tão poucos me aqui acertasse, eu determino por seu
serviço, hoje neste dia, de vencedor, ou de morto me não partir do campo».
Sendo El-Rei D. Fernando de Lião casado com Dona Urraca, filha del-Rei
D. Affonso Anriques como acima dissemos, veio a deixa-la, e apartar-se
della por mandado do Papa, por serem parentes mui chegados, e cazarem
sem dispensação, mas o modo como este apartamento foi feito, nem o que se
fez desta Rainha Dona Urraca não achamos escrito, salvo, que houve della
um filho chamado D. Affonso, que depois da morte de seu pai foi Rei de
Lião. Tomando El-Rei D. Affonso deste feito grande pezar, pôs em sua
vontade de ir cercar Badalhouse, que estava em poder de Mouros, por ser da
Conquista del-Rei D. Fernando de Lião, e ajuntando suas gentes para esso
foi poer cerco sobre a Villa, estragando-lhe pães, e vinhas, e fazendo-lhe
tanto dano, e apresso, que veio a toma-la. Como quer que os Mouros se mui
bem defendessem, El-Rei D. Fernando quando soube que El-Rei D. Affonso
de Portugal tomára Badalhouse, enviou lhe a dizer por seus Mensageiros,
que lha leixasse, pois sabia que era sua, e de seu Reino, e El-Rei D. Affonso
lhe respondeo que lha não havia de leixar, e então o dezafiáram sobre esto,
pelo qual El-Rei D. Fernando de Lião ajuntou logo seu poder, e veio contra
El-Rei a Badalhouse, e vinha com elle D. Diogo o bom senhor de Biscaya,
com cuja irmã chamada Dona Urraca Lopes filha do Conde de Navarra, foi
depois cazado este Rei D. Fernando. Vinha tambem D. Fernando Rodriguez
de Castro, sendo então ambos vassallos deste Rei D. Fernando de Lião,
dezavindos del-Rei de Castella, e vindo já acerca disseram a El-Rei D.
Affonso.
«Senhor, aqui é El-Rei D. Fernando, e toda a sua oste. Pois assi é, disse
El-Rei: Armemo-nos, e saiamos a elle ao campo, que pois nos vem buscar,
bem é que nos achem lá fóra em campo comsigo». Então se armáram todos, e
sahiram fóra da Villa, e nisto disseram a El-Rei D. Affonso como os seus se
embaraçavam já com D. Diogo o bom, e com D. Fernando Rodriguez de
Castro, que vinham na dianteira mui bons Cavalleiros, e El-Rei com este
recado abalou rijo a cavallo, correndo por sahir fóra da Villa a chegar aos
seus, e aconteceo, que o cabo do ferrolho não ficára bem colhido ao abrir
das portas, e o cavallo, assi como ia correndo topou nelle com uma ilharga
de guiza, que se ferio muito, e quebrou a perna esquerda del Rei, o qual não
deixou por esto de chegar aos seus a ajuda-los, e nisto o cavallo que ia
ferido, não podendo mais sofrer-se cahio com El-Rei em um senteal, sobre a
mesma perna, e acabou-se de quebrar de todo, de modo que os seus não
poderam mais levanta-lo, nem poer a cavallo, e então Fernão Rodriguez
Castelhano, que o vio cair foi dizer a El-Rei D. Fernando: «Senhor ali jás
El-Rei D. Affonso com uma perna quebrada, hi prende-lo, que mais sem
trabalho vo-lo deu Deos nas mãos do que eu cuidava.»
Chegou então El-Rei D. Fernando onde El-Rei jazia, e por os seus, que o
viram cair, e se acertaram serem poucos, e os imigos muitos, houve de ser
tomado, e prezo com estes que hi eram com elle; não se podendo valer, nem
ser valido, e com os outros seus, que se colhiam á Villa, entráram os del-Rei
D. Fernando de mistura, e devulgando-se já o dezastre del-Rei D. Affonso,
foi a Villa nessa hora tomada, segundo logo tudo falece, como falece o
Capitão. Levou assi El-Rei D. Fernando consigo a El-Rei D. Affonso para a
Villa, e fez-lhe mui bem pençar da perna, e em quanto o teve em poder,
assentando-o sempre a par de si, fazendo-lhe muita honra; despois veio
apreitejar com elle, que lhe desse a terra da Corunha, que é do Minho, até o
Castello da Lobeira, uma legoa álem de ponte Vedra, e porcima pelos chãos
de Castella, aquella terra, que deram ao Conde D. Anrique seu pai, como no
começo da Estoria se disse, fazendo-lhe tambem menagem, que tanto que em
besta cavalgasse se tornasse a sua prizão; El Rei D. Affonso nem podendo al
fazer disse que lhe prazia.
O pezar que me faz, e a todos fará vendo este dezastre del-Rei D. Affonso
Anriques, me faz falar contra as maldições dos pais, e mãis, que ameude se
lançam com pouco tento e resguardo, devendo-se escuzar com muito, vendo,
e sabendo todos, que com nome de filhos nos reconciliou Deos para si, e
com nome de Pai nosso, mandou que o adorassemos, com o nome em que se
conclue, e encerra a maior obrigação e ajuntamento de reverencia, e amor
que póde haver, antre nós, nem de nós para elle, por onde os filhos devem
muito fazer por acatar sempre seus pais, e mãis, segundo por Deos lhe é
distintamente mandada escuzar de os provocar a semilhantes maldições,
antes recea-las muito, e teme las, por injustas que sejam, como se diz das
excommunhões, que desprezando-as haverá por ventura lugar de obrar, como
justas, e ajuntadas com outros males de que mal peccado andamos
acompanhados descote, e ante Deos desmerecemos, porque tanto quiz Deos,
que se guarde, e acate, a ordem que neste mundo ordenou, que elle mesmo
sendo sem peccado justo Julgador, sofreo ter injustamente julgado, por
injustos, e perversos julgadores, por terem na terra o cargo, e presidencias
por elle ordenadas, o que tanto mais devem os filhos acatar, e sofrer a seus
pais, e mãis, quanto a lei de justiça, e ordenança de Deos, lho devem ainda
por grande obrigação de natural reverencia, e amor.
E os pais muito mais de seu cabo devem a meu juizo escuzar semelhantes
maldições, quanto mais idade, e entender tem, concirando que são homens, e
pais de homens, e que elles poderiam já fazer outro tanto a seus pais, e mãis,
maiormente que os erros dos filhos não podem ser tão danosos, que muito
mais não sejam as maldições dos pais, lançando-se sempre por humano
defeito da sanha vendicativa, a qual se decega em desenfriada ira, não
procedesse, não haveria lugar contra o sobejo amor dos pais, e mãis, sendo
sempre tamanho, que quanto mais com causa dizem ao filho: «Má morte te
mate», vendo-lhe algum mal muito menos de morte se culpam, e matam por
elle, e Deos manda, que das nossas injurias, e danos, leixemos a vingança a
elle. Dessas pessoas lhe devemos mais leixar de que aos outros devemos
tomar que são pais, e filhos, os quais toda a rezão obriga, que antre si mais
se comportem, e hajam em suas cousas paciencia, pois Deos que as fez a
quem se ainda mais nesso erra, ha com elles paciencia, e assi escuzaram os
filhos a culpa tão crime como é desobediencia aos pais, de conhecimento
tamanho para Deos como é aos filhos, que lhe deu, por benção, fazerem
filhos de maldição, a qual por esto só tambem por injusta que fosse abastaria
pela ventura, para fazerem por pena, e peccado do pai, penar o filho inocente
neste mundo, em que bem podemos padecer por culpas, e peccados alheios,
assi como filhos por pais, e servos por senhores; ainda que no outro não
possamos, se não pelos proprios nossos, e da verdade deste caso prouvera a
Deos que tiveramos em outra parte a prova, e exemplo mais longe, e
estrangeiro, e não del-Rei D. Affonso, que sendo tão virtuoso, e todos seus
feitos sempre com virtuosa tenção, e de serviço de Deos, não leixou
maldição de mãi, mais madrasta que empecer a este Rei, na pessoa, na
fazenda, e na honra, a filho tão virtuoso.
CAPITULO XLVI
El Rei D. Affonso por não poder cavalgar a cavallo, e sair a elles era mui
enojado em seu coração acostumado a vencer nos campos, e cercar, e não
ser cercado, pelo qual determinando de sair fóra em carro, a lhes dar
batalha, alguns dos seus lho contradisseram, e outros diziam que era bem
ficar na Villa, e que elles sairiam a peleijar com os Mouros, concelhos
ambos muito fóra do parecer del-Rei, e do seu grande animo, e por tanto lhe
respondeo, e disse: «Amigos não cumpre agora ver se sairemos, ou não; mas
é tempo de tomardes tal esforço para peleijar, que eu possa perante todos
louvar os que o bem fizerem, e eu mesmo em pessoa vos ajudarei a esso
contra os imigos, quanto em mim fôr como sempre fiz, e se pela ventura
alguns tiverem receo, o que não cuido, fiquem na Villa, e não vão lá que eu
não poderei sofrer já mais tanta vergonha.» Então acordaram que era bem
sair fóra em toda maneira, e estando já prestes para um dia certo, e
corregidos como deviam de ir, e de quaes havia El-Rei de ser guardado,
aconteceo virem novas a El-Rei D. Affonso como El-Rei D. Fernando de
Lião seu genro, vinha com muita gente, o qual por ser Rei mui virtuoso, e
mui chegado a Deos, como quer que se quitasse de sua filha, e sobre vence-
lo parecesse ser rezão estar delle queixoso, por buscar azo de não cumprir a
menagem que lhe tinha feito de tanto que cavalgasse em uma besta, acudir a
sua Corte, não olhando nada desto, como soube, que El-Rei Albojame com
grande poder tinha cercado El-Rei D. Affonso em Santarem ajuntou sua
gente, e partio para o ajudar, e andando então a era do Senhor em mil e cento
e setenta e um annos, (1171) assi que vindo recado certo a El-Rei D. Affonso
Anriques de como El-Rei D. Fernando de Lião era acerca, e que em poucos
dias seria com elle, foi em grande pensamento, cuidando que vinha contra
elle por rezão da menagem a que não fora, e posto nesta duvida tanto mais,
determinou de peleijar primeiro com os Mouros, e tambem os Mouros de sua
parte quando souberam de sua vinda, crendo que vinha contra elles, em ajuda
del-Rei D. Affonso seu sogro, determinaram levantar o cerco, e saio então
El-Rei D. Affonso a elles, no modo que dantes tinha ordenado, e depois de
muito peleijarem fez grande mortindade nelles, e desbarato, de muitos
prezos, mortos, e feridos, e grandes e ricos despojos tomados.
Como o Corpo de S. Vicente foi achado por uns devotos homens que o
foram buscar.
Elles chegados ao porto da Cidade de Lisboa, não quizeram logo tirar fóra
o Corpo do glorioso Martyr, com receo de lho tomarem por força, e
aguardando a noite levaram-no escondidamente á Egreja de Santa Justa, o
qual sendo logo sabido ao outro dia pela menhã, segundo Deos não quer sua
gloria escondida, toda a Cidade corria para alli, e uns diziam que era bem de
o poerem em S. Vicente de Fòra, e outros, que mais rezão era estar na Sé, e
neste debate D. Gonçalo Viegas Adiantado mór de Cavallaria del-Rei, que
era presente, vendo quão errada cousa era, arguir-se mal e arroido sobre
cousa tão santa e devota, que mais com rezão deviam tolhe-lo, fez cessar o
alvoroço da gente, e que esperassem até que o El-Rei soubesse, e mandasse
o que sua mercê fosse nesso. D. Roberto Daião da Sé homem onesto, e de
boa vida, foi o mais onesta e escuzamente que pode a D. Moniz Prior da
Egreja de Santa Justa, e rogou-lhe mui afincadamente, que por honrar, e
obrigar a Sé, que era a principal e mais dina Egreja da Cidade em que
aquelle Santo Corpo mais honradamente, que em outra parte podia estar, lho
quizesse dar, e a elle aprouve dar lho, e então os da Sé, com toda outra
Clerezia mui ledos, foram por elle, e o levaram mui honradamente em
procissão, acompanhado de toda a gente da Cidade dando todos muitas
graças, e louvores a N. Senhor, e assi foi trazido, e posto na Sé, onde ora jaz.
Os Conegos de S. Vicente vieram logo hi a pedir que lhe dessem das
Reliquias daquelle santo Corpo, mas não lhe foram dadas.
Depois que os cinco annos das tregoas que El-Rei D. Affonso fez com El-
Rei Albojaque, como acima dissemos, foram acabados, que foi na era do
Senhor de mil cento e setenta e oito annos, (1178) estando El-Rei D. Affonso
Anriques em Coimbra, vendo que em toda sua terra era guerra cessada sem
ter receo, salvo dantre Tejo, e Odiana, que pelo acabamento da tregoa
cumpria ser bem defeza, e guardada, e que álem desto seria cousa honroza,
se com a defenção della, se assás se ganharem mais alguns Lugares a
Mouros, chamou seu filho o Ifante D. Sancho, e perante alguns do seu
Concelho lhe disse assi: «Filho tu sabes bem quanto trabalho tenho passado
na guerra com os Mouros, e pela tregoa que tinha com El-Rei Albojaque já
ser acabada, hei por certo que os Mouros, não estarão quedos, e guerrearão
esses Lugares que delles ganhei em Alentejo, donde recebem, e esperam de
receber muito dano, e já me foi falado e requerido que entendesse na
defensão delles, pelo qual eu cuidando como se esto milhor podia fazer de
quantas cousas me vieram por sentido me pareceo, e parece milhor que tudo,
que eu te mande lá em pessoa, e esto por duas rezões, a primeira, porque
sabes que está meu cazo de não poder cavalgar em besta por não ir ás Cortes
del-Rei D. Fernando, o que eu não fora por cousa que no mundo houvesse,
que fazendo traria a ti, e a mim grande perda, e a todos os do Reino de
Portugal; a segunda porque prazendo ao Senhor Deos depois de meus dias, tu
hás de ter o carrego de reger, e defender este Reino, e pois te deu Deos
entender, e corpo, e manhas para o poderes fazer, é bem que já agora
commeces, e o faças.»
Quando o Ifante ouvio esto a seu pai foi muito ledo, e beijou-lhe as mãos,
dizendo: «Senhor, eu vos tenho em mui grande mercê esto, que me
encarregais, e espero em a graça do Senhor Deos com os bons Senhores e
Cavalleiros, de vosso Reino trabalhar como seu serviço, e vossa vontade, e
mandado seja comprido; e pois Senhor se esta cousa ha de fazer seja vossa
mercê querer que se faça logo; porque quanto mais cedo for tanto porei a
terra em milhor estado, e defensão.» El-Rei respondeo que lhe prazia, que
assi o mandava poer em obra, e ordenando logo quais, e quantos daquem do
Tejo contra o Porto fossem chamados para haver de ir com o Ifante
escrevendo que todos se ajuntassem em Coimbra a certo dia; esso mesmo
fizeram ordenanças, e Regimentos que o Ifante havia de ter no feito da
guerra, que havia de começar.
CAPITULO L
Despois de vindos todos os que eram chamados ao tempo que lhes foi
assinado, fez El Rei fazer Alardo no campo que se chamava Arnado, de
assás fermoza, e ataviada gente de armas, e de bésteiros, e piães, e outros
todos com grande mostra de coração, e mui ledos para ir com o Ifante D.
Sancho a fazerem por suas honras o que a cada um convinha em tal cazo, e
desque o soldo foi pago, e elles todos prestes partiram de Coimbra no mez
de Julho da sobredita era (1178). El Rei saio de seus Paços a pé, e veio até
ponte, e o Ifante D. Sancho, e todolos outros Grandes com elle, e a outra
gente passada da parte dálem, e chegando ao meio da ponte disse o Ifante a
El-Rei: «Senhor esto e assaz de vossa vinda, não tome vossa mercê mais
trabalho, mas lançai-nos vossa benção, e com a graça de Deos eu, e estes
Senhores vossos Cavalleiros, e Vassalos, que aqui estamos, iremos fazer o
que mandais, e a elle que sempre endereçou vossos feitos, e teve em sua boa
guarda apraza de nos ajudar em tal modo que vosso coração seja ledo, e
descançado.» Respondeo El-Rei: «Filho vós fazeis muito bem, mas crede
que me é tão grave vossa partida, e destes Vassallos meus naturaes com que
soia estar, e ter continos comigo, que ainda que vós, e elles fosseis a cavallo
e eu sempre a pé, parece-me que não enfadaria, nem cansaria tanto, que
muito mais não faça, como faz este apartamento; mas pois é forçado, pesso a
N. Senhor em cujo serviço his vos ajude a todos, e vos haja em sua guarda
de guiza, que por vós seja sua santa Fé acrecentada, e seus imigos lançados
fóra da terra, que nossos antecessores ganharam». Esto assi passado, quantos
ahi estavam foram beijar a mão a El-Rei, e se despediram delle. O Ifante foi
o derradeiro que se delle despedio beijando-lhe as mãos. El-Rei lhe lançou
sua benção, e se tornou para a Cidade, e elles cavalgaram todos, e se foram
seu caminho.
CAPITULO LI
Partidos dalli foram aquella noite pouzar a Penella, e alli disse o Ifante a
todos que lhe parecia bem não irem juntos, e que para irem mais folgados,
fosse cada um á sua vontade, por onde mais quizesse, porém que se
juntassem com elle na Guoleguam. Aos tres dias andados do dito mez de
Julho, e juntos hi todos como lhes era mandado, partiram dalli, e passando o
Tejo se meteram todos em ordem, como quem entrava em terra a cada passo
sospeita de imigos, andaram assi tanto por suas jornadas, que chegaram a
Evora onde o Ifante foi bem recebido dos que hi moravam, e todos os seus
que com elle iam. Esteve o Ifante em Evora alguns dias por sentir o que os
Mouros queriam fazer por sua vinda, e tambem por dar folgado caminho aos
seus. Este tempo que o Ifante hi esteve, os Mouros nunca fizeram entrada,
nem intentaram cousa alguma, que de contar seja, pelo qual pareceo ao Ifante
tempo de fazer o porque viera. Então mandou chamar alguns das frontarias
ao redor, para irem com elle, e que todavia as Villas, e Lugares ficassem
bem guardadas. De nhuma lhe acodiam tantos, como de Beja, o que causou
ficar a Villa muito minguada de gente, que para sua defensão lhe fazia mister.
O Ifante desque teve sua gente junta, abalou de Evora oito dias andados de
Outubro da sobredita era de mil cento e setenta e oito annos, (1178) e foi seu
caminho direito pelo Castello da Gineta, e dalli se começaram de estender
os corredores, e outros homens de armas guerreando os Mouros, estragando-
lhes a terra, e assi correo todo aquelle caminho, contra Sevilha, até que
passou a Serra Morena. Quando os de Sevilha, e Andaluzia, souberam da
vinda do Ifante D. Sancho tiveram-se por mui desonrados, porque depois que
Espanha fora tomada, e Sevilha em poder de Mouros, nunca fora guerreada
de Christãos, quanto mais ouzarem de chegar tão a cerca della, pelo qual
houveram acordo de sair ao Ifante, e pozeram-se todos á saida do Inxarafe.
Chegaram novas ao Ifante como os Mouros esperavam alli para peleijar com
elle, do que foi mui ledo, dando muitas graças a Deos, por se achar a tempo,
e ora que o podesse servir contra aquelles infieis seus imigos, mandou então
chamar os Grandes, e outros principaes Cavalleiros de sua oste e disse-lhes:
«Quero-vos amigos dar boas novas, com que muito deveis de folgar, como
eu faço. Sabei que todo o poder de Sevilha, e terras de redor vos estão
aguardando para peleijar com nosco, parece-me que muito nos mostra o
Senhor Deos aprazer-lhe de nos dar em nossas mãos o porque viemos, cousa
com que elle seja mui servido, e vós grandemente honrados, que por eu ser
novo nestas cousas, e vós que comigo vindes Cavalleiros, em ellas tão
provados, ainda agora esta honra ha de ser mais vossa que minha, pelo qual
sede muito ledos, e com muito prazer ordenemos, como logo de menhã
vamos a elles, e assi a ordenança que a nossa gente hade levar, que do mais
hei por mui escuzado dizer-vos nada do que cada um hade fazer, nem meter-
vos esforço para esso, conhecendo-vos que sois tais, e que sabeis tanto de
honra, e cavallaria exercitados em muitas peleijas, e batalhas, e grandes
vencimentos com El-Rei meu Senhor, e pai, que soies mais para dar desso
ensino e esforço, que toma-lo de ninguem; hei por assás lembrar-vos, que
ponhaes em vossos corações o mais que tudo vos ha-de lembrar, que
peleijamos por defender, e acrecentar a Fé de N. Senhor Jesu Christo, o qual
de sermos nada, fez de nós filhos, a elle que nos tanto amou, a elle em cujo
serviço se não perde trabalho: nos encomendemos, elle que para havermos
de servi-lo poz em nós o querer, nos cumpra o poder que façamos com sua
graça de menhã, por onde corram de nós taes novas, que elle seja louvado, e
meu Pai descançado, e vejam todos que para parecer eu seu filho, e vós seus
Cavalleiros, e amigos, não faz mister ser elle presente». Com estas palavras
do Ifante folgaram todos muito, e foram mui satisfeitos, respondendo:
«Senhor, nós todos somos vossos, e por serviço de Deos e vosso faremos
neste feito quanto em nós for, e vós podereis ver, de modo que Deos seja
servido, e com sua ajuda vós ganheis muita honra para vós, e para nós, e
desagora ordenai logo o que se em ella ha de fazer, porque hoje seja sabido
de cada um em que lugar ha de ir, e estar».
CAPITULO LII
Nesto os Mouros, que com algum esforço, ou vergonha de ver ainda o seu
pendão levantado, sostinham a peleija, tanto que o viram derribado
começaram todos a fugir, via da Cidade, e o Ifante e os seus apoz elles
matando, e derribando quantos podiam, e ao entrar de Trianna foi tanta a
pressa nos Mouros, que não poderam cerrar a porta, e os nossos entraram de
volta com elles. Os Mouros que tinham já a ponte passada, por tornarem a
soccorrer os que ficavam atraz, acalçados dos nossos, deram tanto empacho
e torvação aos trazeiros, que tiveram os nossos grande e despejado tempo, e
lugar, para fazer em elles grande matança, e em muitas partes se acha escrito
haver sido tanta mortindade dos Mouros, feridos, e mortos no rio
Guadalquibir, que suas aguas pareciam sangue, segundo o sangue tinge
sempre mais de sua quantidade a agua em mostra muito maior. O Ifante feito
este tão grande desbarato dos Mouros, tornou-se para onde elles tiveram seu
arraial de ante sentado, no qual acharam prezas grandes, e ouro, e prata, e
muitas joias, e cavallos, e outras cousas, as quaes repartio por esses
Grandes, e Cavalleiros, e outra gente, como bem lhe pareceu sem tomar nada
para si, do que todos foram delle mui contentes.
CAPITULO LIII
Acha-se escrito, que ficando assi Beja falecida de gente para sua
defenção, pela muita que della se fora com o Ifante D. Sancho mais que de
outro nhum Lugar Dalentejo como acima dissemos, e ainda de esses que
nella ficaram alguns com medo de a não poderem defender, se partiram della
para outros lugares de Christãos, e os Mouros sabendo certo como a Villa
estava para ligeiramente se poder tomar, pela mingua de gente que não tinha,
ajuntaram-se dous mui principaes antre elles chamados um Alboacamesim, e
outro Albouzil, e muitos Mouros que os seguiram, e chegaram a pôr cerco
sobre ella. Os poucos Christãos que dentro estavam, corregeram a Villa o
milhor que poderam, e poseram se a defende-la, e aprouve a N. Senhor, que
com quanto os Mouros logo em chegando a combateram, e afrontaram mui
rijamente, os nossos a defenderam com tanto esforço, que os imigos a não
poderam tomar tão de ligeiro, como traziam por certo, e assi por sua
multidão, e os defensores da Villa serem poucos, como por o Ifante ser com
a outra gente mui alongado, para os haver de soccorrer, detreminaram toda
via sentar arraial sobre a Villa, fazendo conta, que ainda que a não
tomassem, logo em chegando a tomariam, em alguns poucos dias, que para
esso teriam despaço, e começaram trazer, e fazer engenhos, e arteficios, que
para tal cazo cumpria.
Quando os de dentro da Villa viram a determinação, e assento dos
Mouros, tomaram acordo de o fazerem saber ao Ifante, e mandaram um
Escudeiro dos que na Villa estavam sabedor mui bem da terra, cavalgado em
um especial cavallo, o qual como foi noite saio-se fóra da Villa com tal
tento, e avizo, que não houve sentimento, nem torvação dos do arrayal, e a
carta que levava era que os da Villa se encomendavam em sua mercê, e lhe
pediam que lhes acorresse em tão grande fadiga e trabalho em que estavam;
no qual entre tanto elles fariam quanto em si fosse, por toda via guardarem o
que lhes encomendara. Passando assi estas cousas depois de vencida a
batalha de Sevilha, o Ifante partio da li contra a terra, que ora em Castella
chamam Algarve, fazendo muita destruição nos Mouros por toda aquella
terra, e estando sobre Niebla, chegou o recado dos Cavalleiros de Beja,
como aquelles Mouros a tinham cercada. O Ifante vista a carta chamou logo
os do seu Concelho, e amostrou-lha, dizendo: Amigos que vos parece desto,
ou que devemos fazer. E todos acordaram que para andarem correndo a
terra, não era bem perder-se tal Villa, como era Beja. Então pareceo ser
bem, que o Ifante tomasse de sua gente até mil e quatro centos de cavallo dos
melhores emcavalgados para logo partirem com elle, e que toda a outra oste
o seguisse, e tirassem de pôs elle o milhor que podessem direito a Beja.
Esto assi detreminado, disse o Ifante a D. Pero Paes Alferes, que tomasse
carrego dos que haviam de ficar e elle lhe respondeo: «Que cousa Senhor
será irdes vós em algum lugar poer em a ventura a vosso corpo, em que me
eu não ache a ter vossa bandeira, como ora em esta batalha, que vencestes de
Sevilha, e outras muitas com vosso pai, até agora me sempre achei.» O Ifante
lhe tornou a dizer, que elle fora desso mais ledo, mas pois seu cargo era
guardar a oste, e rege-la, e governa-la, e nelle tanto confiava toda via
quizesse ficar com ella. Então ficou D. Pero Paes com a gente, e deu de sua
mão a bandeira a um seu sobrinho, por nome Sueiro Paes, mui bom
Cavalleiro. Logo ao outro dia cedo, sem mais tardar partio o Ifante com
aquelles mil e quatro centos de cavallo, a mais andar, e os Adais e Guias que
comsigo levava, o levaram por tais Lugares, e caminhos, que os Mouro não
poderam haver novas delles, e passaram pelo váo de Mertola, onde chamam
as Asenhas. Os Mouros de Mertola, tinham escuitas no váo, e vieram dar
novas á Villa, e porque o Ifante passava ao Serão, e a Villa era mui forte,
não temeram os Mouros de Mertola, que aquella gente vinha sobre elles, mas
que iam soccorrer a Beja, pelo qual mandaram logo a gram pressa homens
de pé, e de cavallo fazer saber a Alboacamezim, e Albouzil, como pelo váo
das Asenhas passara aquella noite muita gente, e que haviam por certo não
ser outrem se não o Ifante D. Sancho.
Havido este recado, foi muito grande alvoroço no arraial dos Mouros, e
uns diziam que era bem que se fossem, e outros que era milhor aguardarem, e
peleijarem com os Christãos. O Ifante tanto que veio aos chãos do Campo
Dourique, disse aos seus, que se não trigassem a andar por chegarem mais
folgados aos imigos, porque o caminho fora grande, e mao, e vinham
trabalhados, e por causa desso não poderam chegar á vista dos imigos se não
a ora de Terça. Tinham os Capitães dos arraiaes, especiais espias, e tanto
que houveram avizo de Mertola, mandáram logo essa noite corredores a
saber que gente era a que vinha, e se vinham para alli, se para outra parte.
Os corredores dos Mouros amanheceram acerca de alguns do Ifante, que
vinham adiantados, e prenderam um Escudeiro, que lhes contou todo como
era, e tornáram logo á pressa com elle a seus Capitães, e sabida a verdade
por elle, esses milhores do arraial, por escuzarem vergonha de não esperar,
mostraram grande esforço, e tenção de quererem em todo cazo peleijar com
os nossos, como quer que al tivessem na vontade, outros mostravam o
contrario, pelo grande receio que tinham ao Ifante, e aos outros que vinham
com elle, havendo que seriam assinados Cavalleiros, dobrava-lhes este
medo o fresco desbarato, e mortindade de Sevilha, segundo, que a corações
encontrados em receios, sempre se lhes agoura, e apresenta o peor. Este
incerto alvoroço dos Mouros deu espaço para o Ifante poder chegar sem
elles poderem al fazer, se não esperar, e sair-se fóra do arraial, tão acerca
viam já o pó da gente dos Christãos.
*****
«Amigos posto que nós aqui sejamos muitos, porém eu vos rogo, que vos
rejais hoje neste cazo por mim, que segundo cuido, e espero prazerá a Deos
que vossos desejos, e meus, eu vo-los darei compridos com muito prazer, e
honra, antes que estes Mouros daqui vão, e vós sede certos, que os que eu
leixei no Castello são taes, que se defenderão bem, ainda que creio que os
Mouros de os ter em pouco, não cessarão do combate até que a noite os
desparta, e esso é o que eu mais desejo, porque então do caminho e combate
mais cançados se lançarão a repouzar, e dormir, e nós ante menhã daremos
nelles, e os desbarataremos.»
Estando assi D. Fuas Roupinho com El-Rei em Coimbra, quando lhe levou
aquelle Rei Mouro prezo, escreveram os de Lisboa a El-Rei como hi
andavam nove Galés de Mouros, de que era Almirante um Mouro por nome
João Ferreira Dalfamim, o qual fazia muita guerra e dando por aquella
Costa, que fosse sua mercê manda-lo remediar. El Rei havendo este recado,
chamou D. Fuas Roupinho, encomendou-lhe que fosse a Lisboa, e fizesse
armar Galés, e que fosse elle por Capitão, para ir peleijar com os Mouros,
se o esperassem; e deu-lhe logo cartas e mandados para seus officiais, que
lhe dessem para ello todo o que lhe fizesse mister, e outra para a Cidade, de
como o mandava lá para armar aquella frota, e por tanto fizessem todo o que
acerca desso elle lhes requeresse. Tanto que D. Fuas foi despachado,
espedio-se del-Rei, e partio-se para Lisboa, e como chegou deu a Carta del-
Rei á Cidade, e as outras aos officiaes daquelle carrego, e logo á pressa se
deu ordem para se armar a frota, e como foi prestes, D. Fuas entrou em ella,
e partio volta do Cabo de Espichel, por haver novas que na paragem do rio
de Setubal continuadamente, continuavam mais as Galés dos Mouros, e
faziam sua guerra, as quais havendo lá nova da Armada que se fazia, vinham
tambem contra Lisboa a sabe-lo, e trova-lo se podessem, e em dobrando o
Cabo, houveram vista da frota dos Christãos, e sem mais detença se foram
aferrar uns com outros, peleijando mui fortemente, e quiz N. Senhor que os
Mouros foram desbaratados, e todas suas Galés tomadas. Esto foi na era já
dita de mil cento e oitenta annos (1180) a quinze dias de Julho. Tornou-se
então D. Fuas para Lisboa com grande vitoria e honra, com a qual como era
rezão foi recebido.
CAPITULO LVI
Como D. Fuas Roupinho tornou outra vez sobre mar, por mandado del Rei
D. Affonso contra Mouros, e foi desbaratado, e morto elle, e os seus.
Despois que o Ifante D. Sancho teve Beja corregida do que compria para
sua defensão, leixando em ella fronteiros, e assi nos outros Lugares e Villas
Dalentejo veio-se para Santarem com a gente que de continuo trazia
comsigo, e alguma pouca mais, porque a outra ficava repartida pela frontaria
dos Mouros, e estando assi o Ifante D. Sancho em Santarem Almiramolim
Emperador antre os Mouros Rei de Marrocos, vendo o grande danno e
estrago que os Mouros tinham recebido del-Rei D. Affonso Anriques, e do
Ifante D. Sancho seu filho, e como de toda a terra se lhe mandavam desso
cada vez mais agravar, foi movido a fazer guerra a Portugal, e juntou muitas
gentes infieis, dáquem, e dalém mar, e segundo diz uma Chronica, que foi
achada em Santa Cruz de Coimbra, não era em memoria até aquelle tempo
que tanta gente de Mouros fosse junta para entrar em Portugal. Vinham com
Almiramolim, El-Rei Albojaque de Sevilha, e El-Rei Albozady, e El-Rei de
Grada, e El-Rei de Fês, e outros Reis Mouros, que por todos eram treze,
cujos nomes se não acham escritos, e vieram pelas partes Dalentejo a entrar
na Estremadura, passando o Tejo um Domingo, dia de S. João Bautista, sete
dias por andar de Junho, era do Senhor de mil e cento e oitenta e quatro
annos; os Mouros logo em esse dia foram sobre o Castello de Torres Novas,
e destruiram-no, e á Segunda feira vieram poer seu arraial em um lugar que
se chama o monte de Pompeo, e á Terça feira se ajuntáram todos na Redinha,
e á Quarta feira, se vieram a Orta lagoa, e alli sentáram seu raial, e esta
conta da entrada, e jornadas de Almiramolim se escreve assi na Coronica,
como quer que um letreiro dos que estão no Convento de Thomar, desvaire
algum tanto, e diz que foi Almiramolim cercar o Castello de Thomar o
primeiro dia de Julho, e o teve cercado seis dias, e que trazia comsigo
quatrocentos mil de cavallo, quinhentos mil de pé, poderia passado o Tejo
de tanta multidão apartar-se muita gente, poer este cerco, e fazer outras
corridas pela terra, e chegar elle a esto, e deixa-lo posto.
Foi o combate tão forte, que morreram e foram feridos muitos de uma
parte e da outra, em quanto uns peleijavam, destroiam os outros todo o
arravalde de fóra do palanque até torre Lavinha, por fazerem aos Mouros
maior praça, e despejo, para combater. Tanto que veio a noite, que partio o
combate, o Ifante poz guarda no palanque, e fez agazalhar e repousar outra
gente, e pensar dos feridos, e esta mesma afronta sofreram os Christãos assi
cinco dias arreio, porque os Mouros eram tantos, que mui folgadamente se
renovavam cada vez muitos aos combates, desde pela menhã até noite; e
segundo conta a dita Estoria, quando El-Rei D. Affonso soube que
Almiramolim vinha sobre o Ifante seu filho, ajuntou a mais gente que pode, e
abalou tanto á pressa, que aos tres dias desque o Almiramolim chegou a
Santarem, foi El Rei a Porto de Mós. Os Mouros sabendo da vinda del-Rei
D. Affonso não leixáram por esso seguir com maior afronta seus combates,
cada dia, como antes faziam, e ao quinto dia foi o Ifante e os seus tão
afincados dos Mouros, e postos em tanto aperto, que o palanque foi roto por
algumas partes, e muitos dos Christãos mortos, e feridos, e o Ifante esso
mesmo foi ferido, com todo mui esforçadamente se defenderam, e sostiveram
aquelle dia, que não foram entrados, e já não tinham modo de defensão, se
não desemparar o palanque, e acolher-se ácerca; mas o Senhor Deos, que é
poderoso em todalas cousas, quando se os homens em ellas não sabem, nem
podem valer, então acode elle com sua ajuda, porque se então mais conheça,
e poz tal medo e receo nos Mouros, com a vinda e chegada del-Rei D.
Affonso, que começaram a dezemparar os combates que faziam, e ir-se
poucos a poucos, a mais andar, como desbaratados, como soi a muita gente
de fazer, e desmandar-se, quando se menos póde reger, e os Christãos vendo
os raiaes dos Mouros mover se, e partirem-se de onde estavam, saio gente
de pé do Ifante contra elles, e os Mouros se afastáram para um Lugar, que se
chama monte de Abbade, e nisto appareceo El-Rei D. Affonso com sua
gente, de que o Ifante e os seus foram mui ledos, e pozeram-se logo todos a
cavallo, e juntos com El-Rei déram nos Mouros, fazendo nelles grande
estrago, e mortindade, de que morreram alguns dos Reis que alli vinham, e
grande parte dos mais nobres Mouros, e foi alli ferido Almiramolim, e feito
assi nelle, e nos seus tão grande desbarato.
Despois que a batalha assi foi feita, El-Rei D. Affonso Anriques esteve
alguns dias em Santarem, partio se para Coimbra levando comsigo o Infante
D. Sancho seu filho, e como quer que já tenhamos dito, juntamente que El-
Rei D. Affonso teve tres filhas, e que uma dellas cazara com El-Rei D.
Fernando de Lião, e outra com o Conde D. Reymon de Barcelona, e outra
com D. Felippe Conde de Frandes, nesta era acima dita de mil e cento e
oitenta e quatro annos, metendo-se antre o seu cazamento, e de suas Irmãs
passante de vinte e cinco annos, em que parece, que ainda esta Dona Tareja
não era nacida, ou havia pouco que nacera, mas como se veio tratar o seu
cazamento, não achamos escrito cousa para dizer de certo, sómente que desta
tornada del-Rei D. Affonso, de Santarem para Coimbra, mandou o Conde D.
Felippe de Frandes, por Dona Tareja sua molher, e vieram por ella
Cavalleiros, e Senhores muitos, e outra muito nobre gente, e bem luzida, e
Náos mui bem guarnecidas, á Cidade do Porto, e tanto que El-Rei soube que
elles hi eram, partio-se com sua filha para lá, levando comsigo desses
grandes do Reino, e homens principais, e quando chegou os Senhores, e
Cavalleiros, que vinham pela Ifante, sairam a El-Rei, e a ella de quem foram
bem recebidos, e com muita honra agazalhados, perguntando-lhe El-Rei com
muita afeição, e assi a Ifante por novas da saude, e disposição do Conde, e
de seu estado, e depois desto entregou-lhes El-Rei sua filha muito
honradamente, mandando com ella em outras Náos dos seus naturaes alguns
Grandes do Reino, e pessoas principais, e asi Donas, e Donzellas de
linhagem quantas compria, e esta Dona Tareja viveo com seu marido vinte e
tres annos.
CAPITULO LIX
Vendo-me chegado haver de dar cabo aos mui nobres feitos del-Rei D.
Affonso Anriques com sua morte, a qual nos bons sempre é temporam, por
tarde que venha, tomo desso grande pezar, como se vivendo com elle o visse
falecer. Tão conversado, e affeiçoado trazia o esprito na materia de suas
excellencias! Depois de feito o cazamento acima dito, veio o nobre Rei
adoecer logo ao anno seguinte, e faleceo dessa doença o Excellente Principe
mui manhanimo igual a qualquer dos mui excellentes antigos em valentia de
forças, e coração mui grande, nem que na Christandade houve outro, antes,
nem depois delle mais temido dos Mouros, cujos mui notaveis feitos não é
duvida acharem-se muito menos postos em escrito, do que foram por obra,
ora fosse por culpa dos tempos, ora por mingoa dos Escritores, segundo em
alguns passos dessa sua Estoria se pode assás comprehender, porque em ella
se não faz menção de muitas cousas assinadas de sua pessoa, nem dos seus,
assi como de D. Gualdino Paes, que foi Mestre do Templo de Christo, em
Portugal, e fez o Castello de Thomar, e outras Fortalezas, e servio
grandemente em seu tempo.
Teve este muito esforçado Rei, em suas excellentes cavallarias, como por
ellas se mostra, o animoso fervor, e ardente esforço de Julio Cesar, e a
segurança mui confiada de Publio Cipião Africano, em tanto gráo, que todo o
que estava por fazer, cometia como se o tivesse já feito, e o que mui deficil
se acha sendo tão activo. Era cheio de muita fé e devação, sem a qual toda
cavallaria no Christão, é deslouvada, e ainda muitas vezes danoza, e com
rezão mal preparada, pelo qual este mui virtuoso Rei, tendo tamanha
occupação de guerras tão santas, e meritorias, contra os infieis, que assás
bastavam para muito merecer ante Deos, não leixou por esso de fazer muitas
Egrejas, e Moesteiros mui sumptuosos, dotados de muita renda, e ornamentos
com muito serviço e acrescentamento do culto Divino, de que hoje em dia
são principaes o Moesteiro de Santa Cruz de Coimbra, e o Moesteiro de
Alcobaça, leixando manifesto exemplo aos menos devotos, que occupação
de servir a Deos em uma cousa, não tolhe por esso, mas antes dá graça e
poder para muitas outras.
Dos annos que El-Rei D. Affonso Anriques viveo, e do dia, mez, e era em
que se finou, e onde foi sepultado.
Os annos, que neste mundo viveo ainda que se achem escritos em diversos
modos, porém tirada a limpo com muita diligencia, a verdade desso, achei
que viveo noventa e um annos; porque elle naceo na era de N. Senhor Jesu
Christo de mil e noventa e quatro, cinco annos antes que a Caza Santa de
Jerusalem fosse tomada aos Mouros pelo Duque Gudufre de Bulhão; e por
morte de seu pai o Conde D. Anrique ficou elle de dezoito annos, e des então
foi chamado Principe vinte e sete annos, e despois chamado Rei quorenta e
seis annos, e sendo alçado Rei em idade de quorenta e cinco annos, que são
assi por todos noventa e um annos, em que o Senhor Deos aprouve leva-lo
para si, tres annos antes que a Caza Santa se tornasse a perder, e tomar de
infieis, pelos peccados dos Christãos, tolhendo N. Senhor a este virtuoso
Rei, que não visse tão grande pezar, quem lhe tanto mereceo empunhar pela
sua Santa Fé.
DEO GRATIAS
INDEX DAS COUSAS NOTAVEIS
Achy Rei Mouro com trezentos mil Soldados cerca Coimbra, e levanta o
cerco com grande perda.
Affonso (D.) Rei de Lião foi filho de D. Fernando, e Dona Urraca filha
del-Rei D. Affonso Anriques.
Bernardo (S.) Estando em França soube por illustração Divina o voto que
fizera á sua Religião D. Affonso Anriques se conquistasse Santarem.
Childe Rolim foi um dos principaes Cavalleiros que veio na Armada que
ajudou conquistar Lisboa. Passou á Villa de Azambuja, que ficou a seus
descendentes.
Coimbra é cercada por Achy Rei Mouro, e levanta o sitio com grande
perda.
Felippe (D.) Conde de Frandes cazou com Dona Tareja filha terceira del-Rei
D. Affonso Anriques.
Fernando (D.) Conde de Trastamara cazou com D. Tareja viuva do Conde
D.
Anrique.
Era o maior homem de Espanha, e por esta causa se levantou todo Portugal
por elle contra El Rei D. Affonso Anriques.
É prisioneiro na batalha de Santilhanas por El-Rei D. Affonso Anriques.
Fernando (D.) Rei de Lião cazou com Dona Urraca filha de D. Affonso
Anriques.
Separa-se delle por ordem do Papa por serem parentes.
Prisiona em Badalhouse a seu sogro D. Affonso Anriques.
Gilberto foi o primeiro Bispo que teve Lisboa depois de ganhada aos
Mouros.
Inglezes que vieram na Armada para cercar Lisboa assentam o seu arrayal no
logar donde está a Igreja Parochial dos Martyres.
João (D.) Arcebispo de Braga recebe em Tuy a Dona Mofalda filha del-Rei
D. Affonso Anriques com D. Reymondo filho do Conde de Barcellona
assistindo este com procuração do filho.
Assistio com o Infante D. Sancho na batalha de Inxarafe.
L
Leiria é conquistada por D. Affonso Anriques.
É tomada por El-Rei Ismar.
Mofalda (D.) Filha del Rei D. Affonso Anriques caza com D. Reymondo
filho do Conde de Barcelona, e quando, e como se fez este cazamento.
Sancho (Infante D.) filho de D. Affonso Anriques em que dia e anno foi
jurado em Coimbra.
É mandado por seu pai ao Alentejo a peleijar com Mouros, e do alvoroço
com que recebeo esta ordem, e o que executou.
Alcança uma gloriosa vitoria dos Mouros em Sevilha.
Alcança outra vitoria dos mesmos inimigos indo cercar Beja.
É cercado dentro em Santarem por Almiramolim Emperador de Marrocos
com
quatrocentos mil cavallos, e quinhentos mil de pé, e sendo soccorrido
por El-Rei seu pai é desbaratado com todo o exercito.
Tareja (D.) caza com o Conde D. Anrique, e leva por dote a Portugal como
Condado.
Depois da morte do Conde D. Anrique cazou com D. Vermuy Paes de
Trava,
e depois com D. Fernando Conde de Trastamara Irmão de Vermuy Paes.
É prisioneira na batalha de Santilhanas por seu filho D. Affonso
Anriques.
Vermuy Paes de Trava (D.) cazou com a Rainha Dona Tareja viuva do
Conde D.
Anrique.
Depois deixando-a cazou com uma filha da mesma Dona Tareja.
Eu El-Rei D. Affonso.
V—Como D. Affonso Anriques tanto que seu pai faleceo se fez chamar
Principe, e levando-o a enterrar se alçou em tanto a terra com sua mãi
D. Tareja.
X—Como D. Egas Moniz se foi apresentar com sua molher e filhos a El-
Rei
D. Affonso de Castella pela menagem que lhe feito tinha em o cerco de
Guimarães.
XXII—Aqui falla Duarte Galvão autor como este feito d'El Rei D.
Affonso
Henriques, e outros similhantes, nos bons principes devem ser julgados.
XLII—Dos filhos que El Rei D. Affonso houve, e como cazou sua filha
Dona Mofalda.
LVI—Como D. Fuas Roupinho tornou outra vez sobre mar, por mandado
del-Rei D. Affonso contra Mouros, e foi desbaratado, e morto elle, e os seus.
EM PUBLICAÇÃO
Historia Tragico-maritima, por Bernardo Gomes de Brito, VOL XI
[2] Ainda mais. D. Vermuim vendo seu irmão impossado de sua mulher,
casou com uma filha d'esta e do Conde D. Henrique. Assim o diz o Conde D.
Pedro (em seu Livro de Linhagens) e assim o repete Duarte Galvão. A este
peccado, accrescentão, se deve a fundação do Mosteiro de Sobrado.
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