S Crônicas E As Chancelarias Régias A Natureza E Os Problemas de Aplicação Das Fontes Medievais Portuguesas
S Crônicas E As Chancelarias Régias A Natureza E Os Problemas de Aplicação Das Fontes Medievais Portuguesas
S Crônicas E As Chancelarias Régias A Natureza E Os Problemas de Aplicação Das Fontes Medievais Portuguesas
Resumo: Este trabalho pretende abordar as fontes documentais medievais portuguesas escritas
disponíveis nos dias de hoje. A forma como foram organizadas em acervos e coleções, a dimensão dos
materiais perdidos e as razões destas perdas, umas acidentais outras intencionais. Outro aspecto explorado
diz respeito à crítica interna que deve ser aplicada na análise do conteúdo destes materiais, assim como as
habilidades necessárias àqueles que desejem manuseá-las. A consciência da natureza destas fontes como
elaborações discursivas e legitimatórias, em muitos casos visando a construção de modelos ideais de
conduta e ética em benefício de determinado grupo pretende ser outro aspecto abordado neste trabalho.
Assim como as potencialidades e limites da metodologia proposográfica na transposição destes filtros
idealizadores.
Palavras-chave: Fontes medievais portuguesas; Prosopografia medieval; Iideologia política medieval
Abstract: This paper aims to address the portuguese medieval documental sources written available on
actual days. The form as they were organized in collections, the dimension of the lost materials and the
reasons of those loss, some accidental others intentionals. Another aspect explored is about the internal
critic that must be applied on the analysis of the content of those materials, as the necessary skill to those
who wish to use it. The conscience of nature of those sources as elaborations discursive and legitimate, in
many cases aiming the construction of ideal models of conduct and ethic in profit of determined group
intends to be another aspect aborded on this paper. As the potentialities and limits of the methodological
prosopography on the transposition of those idealized filters.
Keywords: Portuguese medieval sources; Medieval prosopography; Medieval political ideology.
***
A
s fontes medievais portuguesas são material diverso em sua natureza e fins e
constituem-se enquanto eficientes instrumentos de cristalização de posições,
valores, modelos a serviço de interesses vários. Como já escreveu o saudoso
historiador Luís Krus, a escrita é poder na Idade Média e toda a tradição oral junta não
teria a força de uma obra escrita (KRUS, 1981). Já se delineiam aqui, alguns limites da
nossa exposição selecionando as fontes escritas, sem descurar a função e importância
das fontes iconográficas, musicais, monumentais dentre outras, no entanto, raramente
encontramos qualquer destas fontes desprovida de uma vinculação inspiradora e ou
legitimadora que não tivesse suporte escrito. O registro de uma narrativa num
manuscrito ou pecia constitui uma obra com uma dimensão quase artística envolvendo
*
Dados do autor: Titulação: Doutora em História Medieval pela Universidade do Porto-Portugal.
Instituição a que se encontra filiado: UFPR / NEMED. Título da pesquisa em andamento: Identidades e
fronteiras no medievo ibérico. Órgão financiador: CNPq / Capes. E-mail: lxa90@hotmail.com e
fatimaregina@pq.cnpq.br.
77
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
1
“Durante muito tempo foi considerado com o primeiro livro impresso em português a «Vita Christi», em
1495, até que V. Pina Martins, em 1965, dava a conhecer o «Tratado da Confissom», impresso em
Chaves. Rosemarie Erika Horch, do Brasil, tenta provar que afinal foi o «Sacramental» de Clemente
Sanchez Vercial, uma vez que se poderia reconstituir o seu colófon, por informação bibliográfica
posterior, e atribuindo-lhe a data de impressão em Chaves a 18 de Abril de 1488. O «Sacramental», obra
pastoral redigida entre 1421 e 1425 em língua castelhana, trata da forma como deve viver o homem
medieval, abordando a alimentação, as relações familiares, as relações sociais, a relação com Deus, o
trabalho, o descanso, a saúde, a doença e a sexualidade, faz dele um documento indispensável para o
estudo da sociedade medieval portuguesa, foi um dos livros mais lidos durante o século XV. Foi proibido
pela Inquisição no século XVI e consequentemente queimado. Teve várias edições impressas em língua
castelhana e portuguesa”. Disponível em: <http://tertuliabibliofila.blogspot.com.br/2009/08/o-primeiro-
livro-impresso-em-portugal-2.html>.
2
Muitos documentos eclesiásticos, ligados à Universidade e peças jurídicas manter-se-íam em latim nos
textos da Chancelaria até depois da Modernidade, no entanto, Saul Gomes nos esclarece que no Mosteiro
de Santa Cruz de Coimbra, 1287 é a data do primeiro documento escrito integralmente em português e
que em fins do primeiro quartel do século XIV o português seria a língua predominante em seus
documentos. Fenômeno semelhante, à mesma época e com a mesma intensidade ao da Chancelaria do
Mosteiro cisterciense de Alcobaça e o Mosteiro de São Vicente de Fora dentre outros. GOMES, S. A.
78
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
documento particular mais antigo conhecido que foi escrito em português arcaico é a
Notícia do Torto escrito entre 1211 e 1216 onde o nobre Lourenço Fernandes da Cunha
relata os abusos e violências de que fora vítima por parte do nobre Vasco Mendes com
anuência do rei D. Sancho II.3 Observamos, assim, que o século XIII manifestaria em
Portugal adoção deliberada da língua vulgar como suporte de divulgação documental e
oficialidade dos relatos e decisões régias.
Documentos manuscritos cuja leitura original exige conhecimentos de
Paleografia e cujas formulações, abreviaturas e símbolos numéricos constituem códigos
próprios dos redatores medievais que devem ser considerados e conhecidos
previamente. Assim, mesmo que hoje trabalhemos com edições críticas de fontes
manuscritas transcritas e por vezes transliteradas devemos atermo-nos à sua proposta
original de formato e composição manuscrita.
Obras manuscritas que posteriores impressões tentaram conservar ainda que as
inevitáveis perdas tenham ocorrido ente os séculos medievais e os nossos dias. Alguns
fatores naturais como incêndios e terremotos como o de Lisboa de 1755 destruiram as
encadernações dos Livros das Chancelarias portuguesas obrigando à realização de
empreitada de nova encadernação realizada de forma desqualificada colocando fólios
referentes ao governo de Afonso IV na Chancelaria de Afonso V; acontecendo o mesmo
com cadernos de registro de D. João I que foram encontrados na Chancelaria de D. João
II. Outro bom exemplo disto é a Chancelaria de Afonso IV (1325-57) cuja proporção de
documentação chancelar sofreu significativas perdas, conforme destacara já, Pedro de
Azevedo (AZEVEDO, 1913, p. 180-5), seja por causas naturais ou intencionais, tendo
sido objeto de publicação referente apenas aos anos de 1325 a 1344(Marques, 1990)
sendo que o governo afonsino estende-se até 1357.
Capa do livro IV da Chancelaria de D. Fernando:
Visto e rubricado.
Estes fragmentos de chancelaria del rei D. Fernandos e meteram neste
armário dos papéis truncados porque seu conteúdo se acha inteiramente
declarado nos livros da Chancelaria do mesmo rei que estão no 4º armárioda
nova casa da Coroa.21 de maio de 1762.
Este livro novamente se encontroucom as folhas dispersas entre outros
documentos que se não achavam em lembrança nem memória nos alfabetos,
Chancelarias Medievais Portuguesas: observações acerca da sua produção documental latina e vernacular,
p. 546-9.
3
Lourenço Fernandes da Cunha será o cabeça de linhagem dos Cunha na primeira metade do século XIII,
sendo o autor da "Menctio de Malefactoria", composição onde queixa-se dos estragos que lhe são feitos na
torre dos Cunha no decurso das agitações que caracterizaram o reinado de Sancho II. Seu primogênito,
Gomes Lourenço, reproduz os abusos de que seu pai foi vítima, sendo chamado à atenção por Afonso III,
acabando por ser destituído de seus direitos de cabeça de linhagem, por sentença de 1285, já no reinado
dionisino. Seus irmãos secundogênitos, serão, contudo, privados de Afonso III, especialmente Vasco e Egas
Lourenço, recaindo sobre o primeiro, os direitos alienados a Gomes Lourenço, engrossado pelo morgado que
Egas, sem descendência, lega a seu irmão. Observa-se assim, o eclipse do ramo primogênito dos Cunha na
segunda metade do século XIII devido à intervenção régia, beneficiando o ramo secundogênito, no qual a
política afonsina sempre buscou esteio de afirmação. Vide Livro de Linhagens do Século XVI, p. 136-7;
Portugaliae Monumenta Historica..., Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, p. 356-9; FREIRE, Os
Brasões da Sala de Sintra. v.I, p. 156-9 e VENTURA. A Nobreza de Corte de Afonso III, v.2, p. 641-7.
79
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
80
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
do Tombo em inícios do século XVI teria sido o primeiro resultado de tarefa encarregue
por D. João I ao jurisconsulto Joanne Mendes para compilação e ordenação da
legislação anterior a seu reinado. Da mesma forma as Ordenações del Rei D. Duarte,
compiladas à volta de 1436 foram um ensaio do esforço de sistematização e atualização
legislativa cujos primeiros passos se deram ainda no reinado de João I,4 iniciativas que
reforçavam a ideologia de uma sétima idade do mundo que se abriria com a dinastia de
Avis. Mas o culminar do projeto sistematizador e atualizador destas reformas
legislativas se completaria pelo menos na época medieval em 1446 com as Ordenações
Afonsinas.5
A reforma das Chancelarias demandada pelo rei Afonso V nas Cortes de Lisboa
de 1459 e realizada por Gomes Eanes de Zurara, talvez mais conhecida, promoveria
uma seleção dos documentos dos reinados anteriores, iniciativa responsável pelo
desaparecimento de documentação e ou substituição de documentos integrais por
ementas cujos originais já estariam destruídos em inícios do século XVI.
Iniciativas que teriam seu quinhão de responsabilidade na delimitação dos
materiais com que podemos trabalhar hoje, longe, portanto, da coetâneidade
pretendida.6
Observamos, assim, as limitações dos materiais de que dispomos resultantes de
perdas e seleções declaradas ajunte-se a isto a necessária análise heurística dos
documentos detectando cópias falsas, documentos apócrifos e outros desvios na
natureza externa das fontes históricas. Interpolações posteriores que denotam a
importância de incluir ainda que posteriormente informações pessoais e ou de grupo
numa obra de caráter cronístico ou de literatura genealógica a fim de usufruir da
projeção reconhecida e construída por estas obras. Aspectos a serem considerados antes
da análise hermenêutica dos documentos medievais.
Devemos ressaltar ainda a importância e função destas interpolações e patrocínio
da elaboração dos relatos individuais e ou inserção de suas façanhas em Crônicas régias,
pois estas estratégias constituem eficiente mecanismo cristalizador de modelos e
4
O Livro das Leis e Posturas só foi restaurado e colocado nos armários da Torre do Tombo em 1633 por
obra do escrivão Jorge da Cunha conforme nota que consta na guarda do volume (Livro das Leis e
Posturas, p. V-XI) e Nuno Espinosa Gomes da Silva considera que o Livro das Leis e Posturas tenha
autonomia em relação às Ordenações não constituindo um ensaio das obras posteriores (Idem, ibidem, p.
13). Vide ainda HERCULANO, apud BENTO, Subsídios para a História do Direito Português, p. 52-
5; CAETANO, História do Direito Português, p. 346-7; Ordenações del Rei D. Duarte, p. V-XXVI;
COSTA, Ordenações. In: Dicionário de História de Portugal, v. 4, p. 441-6 e FERNANDES,
Comentários à Legislação Medieval Portuguesa, p. 15-6.
5
Gomes Eanes de Zurara promove a Reforma dos Livros das Chancelarias de Dinis a Duarte, as
Ordenações Afonsinas, concluídas em 1446. (Ordenações Afonsinas, p. 6; HOMEM, O Desembargo
Régio (1320-1433), p. 625; Idem; DUARTE e MOTA, Percursos na burocracia régia (séculos XIII-XV) e
MARQUES, Portugal na Crise dos Séculos XIV e XV, p. 254-5). Assim como a Reforma Manuelina,
concluída em 1521, atualizando as Ordenações Afonsinas, teria refiltrado o que restara da documentação
chancelar joanina, a qual se encontra hoje, igualmente desfalcada de boa parte de sua composição
original, conforme nos alerta Baquero Moreno (LOPES, Fernão, Crónica de D. João I, v.1, p. X e
FERREIRA, Manuel I. In: Dicionário de História de Portugal, v.4, p. 157- 60).
6
A confiarmos em Frei Manuel dos Santos, o primeiro livro da Chancelaria de D. Fernando estaria
concluído, sua organização e revisão, em 1463 (SANTOS. Monarquia Lusitana, p. VIII, l. XXII, p.
263).
81
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
7
LOPES, Fernão. Crónica de D. João I, 1ªp. , caps. 31-9, pp. 63-78, cap. 193, pp. 424-7 e Idem, Ibidem,
vol.2, caps. 198-200, pp. 447-456 e cap. 202, pp. 460-1. Vide ainda FERNANDES, Estratégias de
legitimação linhagística em Portugal nos séculos XIV e XV. Revista da Faculdade de Letras, Historia,
p. 263-84.
82
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
83
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
de Nuno Alvares, pois relata sua morte, portanto, depois de 1431, logo, as duas fontes
podem ter entre si, em termos de produção, um lapso temporal relativamente pequeno.
Além disso, é notória a proximidade em vida, do Condestável e do regente Pedro, o que
justificaria a interpolação de uma parte importante da elegia particular do Condestável,
na construção da elegia da dinastia de Avis.
Assim, a proximidade pessoal do regente D. Pedro ao Condestável Nuno Alvares
Pereira justificaria a inserção dos quatro capítulos da Crónica do Condestável na
Crónica de D. João I, apesar de tal iniciativa exaltar, indiretamente o genro do
Condestável, inimigo do Infante Pedro. Tais tensões transpiram das duas partes da
Crónica de D. João I, especialmente entre 1449, data da morte do Regente, a partir de
quando Fernão Lopes será patrocinado pelo rei Afonso V e seus aliados, dentre eles o
Duque de Bragança e 1452-4, quando Fernão Lopes passa o cargo de cronista régio a
Zurara.
Ainda interessa-nos um dos quatro capítulos que contam a vida de Nuno
Alvares, retirados de sua própria Crônica e copiados na Crônica régia e que fala das
dúvidas do Prior Álvaro Gonçalves Pereira em saber qual de seus filhos, Pedro Alvares
ou Nuno Alvares seria o protagonista de uma profecia que vaticinava a um deles um
futuro de grandes batalhas e inevitáveis vitórias.
E disse estomçe El Rei comtra o meestre: “Tenha este moço isto por agora,
ca sei que mais alto hade montar, se este he o meu filho Joane de que me a
mim alguumas vezes fallarom, como quer que eu quiria ante que se
comprisse no Iffamte Dom Joham meu filho que neelle; ca a mim disserom
que eu tenho huum filho Joanne, que ade montar muito alto, e per que o reino
84
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
de Purtugal adaver mui gramde homra. E por que eu nom sei qual destes
Johanes hade seer, nem o podem saber em certo, eu aazarei como sempre
acompanhem ambos estesmeus filhos, pois que ambos som de huum nome, e
escolha Deos huum delles pera esto, qual sua mercee for. Como quer que
muito me sospeita a voontade que este hade seer, e outro nenhuum nom, por
que eu sonhava huuma noite o mais estranhado sonho que vos vistes: a mim
parecia em dormimdo, que eu viia todo Portugal arder em fogo, de guisa que
todo o reino parecia huuma fugueira; e estamdo assi espamtado veemdo tal
cousa, viinha este meu filho Johanne com huuma vara na maão, e com Ella
apagava aquelle fogo todo. E eu comtei esto a alguuns que razom tem
dentemder em taaes cousas, e disseromme que nom podia seer, salvo que
alguuns gramdes feitos lhe aviam de sahir damtre as maãos (CDP, cap. 43, p.
195-7).
8
LOPES, Fernão, Crónica de D. João I, 2ª p, cap. 202, p. 460. O Condestável daria a sua filha em 1 de
novembro de 1399 em arras por seu casamento com o Conde de Barcelos na forma de morgado a vila e
castelo de Chaves, o julgado de Montenegro, castelo e fortaleza de Montalegre, a terra de Barroso, Baltar,
Paços no Entre-Douro-e-Minho e Trás-ós-Montes, quintas da Carvalhosa, Covas, Canedo, Sarraços,
Gondinhães, São Felix da Temporã, casais de Bostelo, quintas da Moreira e Pousada (Arquivos
Nacionais/Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. João I, l. II, f. 175v) completando o
patrimônio da Casa de Barcelos: doação confirmada a 8 de novembro por D. João I. Entendemos,
portanto, que estes bens continuaram em mãos do Condestável mesmo após o chamamento régio. Por
outro lado, esta união constituiria uma forma mais eficaz e duradoura de reincorporação de patrimônio
régio cedido ao Condestável pela monarquia de Avis.
85
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
João I vai a Ceuta ainda teria uma motivação medieval básica conduzindo uma empreitada
cruzadística que apenas ensaiava algumas estratégias novas aplicadas nos séculos seguintes
(FERNANDES, 2000, p. 107-24), o Conde por sua vez, representava uma nobreza
adaptada aos novos tempos.
Um homem de vanguarda que faz sua trajetória ascendente e trabalha para manter
suas prerrogativas frente a um contexto especialmente concorrencial apoiando-se em
homens simples de baixa extração social que compartilham de suas habilidades e alguns
interesses. A ética moralizante de Nuno Álvares serviria de modelo aos servidores de Avis,
adaptado às realidades de transição do século XIV-XV e moldado em valores específicos
desta nobreza construídos a partir de seus instrumentos ideológicos tradicionais:
literatura genealógica, cantigas e romances, mas também a partir destes séculos finais da
Idade Média, na cronística nobiliárquica particular e na inserção na cronística régia. A
historiografia seria fonte de legitimidade desta nobreza regenerada oficializando uma
nova relação da monarquia com a nobreza a partir de Avis, num fenômeno paralelo
àquele que identifica Quintanilla Raso para a nobreza trastamarista castelhana do século
XV.
Neste ponto, devemos trazer ainda a esta discussão, outra obra, o Livro de
Linhagens do Conde D. Pedro redigido à volta de 1340-44 sob o patrocínio do bastardo
de D. Dinis, Pedro, Conde de Barcelos (FERNANDES, 2003, pp. 351-6) sobre o qual
estudos sérios já comprovaram suficientemente as redações e interpolações a que esta
obra esteve sujeita entre 1360-5 e 1380-3 (PMH, 1980, v.II /1, p. 41- 50) em benefício
também dos descendentes do Prior Álvaro Gonçalves Pereira. A profundidade granjeada
com a interpolação da narrativa da batalha do Salado referente às ações do Prior nesta
obra fortalecer-se-ia com a posterior inserção do grande protagonismo de seu filho
Nuno Álvares na Crônica régia de D. João I, alimentado ainda pela sua Crônica
particular, a do Condestável9. Os descendentes desta linhagem disporiam, assim, de
grande manancial ideológico de legitimação frente às conturbações que atingiriam o
reino português na crise de Alfarrobeira e mesmo nos séculos posteriores, especialmente
pela associação à figura do Condestável que fundira sua Casa à própria Casa régia,
alicerce da dinastia de Bragança e da continuidade da monarquia portuguesa no
processo da Restauração de 1640.
Tais elaborações cristalizam um modelo que identificaria a linhagem dos Pereira
à de nobre combatente, fiel, servidor direto da monarquia e que por seus próprios
méritos, audácia e singularidade alcançaria uma posição inquestionável e inatingível na
sociedade política portuguesa com direito a ecos de eternidade em outros contextos. O
serviço direto ao rei, a indispensabilidade deste serviço sob risco de perda inclusive de
todo o reino é a tônica deste perfil. De miliciano da Reconquista a herói de Aljubarrota,
o reino português não poderia ter sobrevivido sem a constante presença e atuação dos
Pereira, esta é a mensagem destas narrativas de fundo ideológico assentes numa
estrutura e modelo nobiliárquico. Assim, Nuno Álvares seria o rosto da nobreza e
mesmo da monarquia de Avis, através de uma eficiente construção e consolidação de
9
Veja-se Portugaliae Monumenta Historica, Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, vol.II/l, 21G12-
15, p. 238-57 e Chronica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez Pereira, 1911.
86
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
87
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
10
Suas origens encontram-se nos eruditos alemães ligados ao estudo da Antiguidade clássica, como
Mommsem, ainda que em bases bastante mais limitadas que as atuais. A renovação deste método de
trabalho chega a merecer encontros científicos importantes e um periódico específico, o Medieval
Prosopography (Vide ainda Prosopographie et Genese de l'État Moderne, 1986 e HEINZ (org). Por
outra história das elites, 2006).
88
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
uma visão bastante aproximada da realidade em sua totalidade. E isto porque o homem
medieval, seja ele nobre ou vilão, identifica-se não enquanto indivíduo, mas apenas
enquanto grupo. A solidariedade de grupo funcionava como elemento estabilizador da
sociedade medieval, e no que tange à nobreza, como meio de defesa e continuidade da
sua posição de privilégio. Daí que estes estudos iniciem-se com a reconstituição das
trajetórias dos indivíduos pertencentes a estes grupos privilegiados, identificando, caso
a caso, os critérios definidores da sua supremacia, assim como as bases de
relacionamento deste elemento com um nível de poder central que lhe esteja
diretamente relacionado, neste caso, a monarquia.
Uma linha de trabalho que teve adeptos em quase todos os países europeus
envolvidos numa tarefa coletiva de dar um rosto a estes grupos nobiliárquicos
mapeando suas atuações nos contextos específicos de estudo11. Uma busca pela
especificidade que traduz uma percepção de realidade concreta fugindo a padrões
explicativos monolíticos. Um método que permite uma adequada compreensão da
natureza de instituições como a monarquia e mesmo a nobreza medieval atendendo a
conceitos específicos de sua época, isentando a investigação de possíveis perspectivas
retroativas sugeridas por projetos de compilações de fontes reféns de projetos
nacionalistas ou de debates contemporâneos acerca das origens medievais dos Estados
modernos.
A partir destas considerações parece-nos bastante pertinente a utilização da
metodologia prosopográfica à análise de todos os documentos medievais e inclusive
uma forma produtiva de aproveitamento das Chancelarias régias portuguesas, por
exemplo, cujo conteúdo após todas as intempéries acima descritas apresentam-se como
conjunto pouco ordenado, tanto do ponto-de-vista cronológico como temático. Um
método cujos resultados permitem medir as variações no volume e intensidade da
concessão de benefícios régios aos indivíduos estudados, assim como o estabelecimento
dos momentos mais propícios à substituição dos elementos mais diretamente vinculados
aos monarcas e os mecanismos e pré-condições de aceitação destes mesmos agentes e
suas respectivas regiões de preferencial estabelecimento. O fato de tratar-se de um reino
territorialmente reduzido permite ao pesquisador abranger a nobreza portuguesa como
um todo, sem necessidade de regionalizar a análise, contando ainda com a vantagem de
ter os documentos centralizados num único acervo, o da Torre do Tombo em Lisboa.
Considerando-se as vinculações que dão uma feição de extraterritorialidad a esta
nobreza medieval (MOXÓ ORTIZ DE VILLAJOS, 1969, p. 1-210) preconiza-se o
alargamento da análise a indivíduos e por vezes linhagens de outros reinos, potenciais
intervenientes na política régia em cada contexto analisado. Fator que obriga
constantemente a fazer recurso a fontes complementares de outros reinos, por vezes
11
Um nome que não se pode deixar de referir neste renascimento dos estudos de base prosopográfica é o
de Salvador de Moxó, cuja produção na década de 60, aborda a nobreza medieval castelhana. Uma das
mais insignes seguidoras desta linha é Marie-Claude Gerbet, que desde a defesa da sua tese doutoral em
1979, abordando a análise das estruturas sociais urbanas da Extremadura castelhana nos fins do século
XV, inícios do século XVI, seus trabalhos têm servido de guia a muitos na mesma linha de análise. E sem
dúvida, um campo, cujo reflorescimento em Espanha deve-se ao empenho de Miguel-Angel Ladero
Quesada, orientador de vários trabalhos de idêntica raiz prosopográfica.
89
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
90
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
Referências
91
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
92
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
HEINZ, Flávio M. (org). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2006.
KRUS, L. Escrita e poder nas Inquirições de Afonso III. Estudos Medievais, Porto, v.1,
p. 59-79, 1981.
LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I, ed. Damião PERES, Porto: Civilização. 1965.
(Abreviatura CDP).
93
Revista Ágora, Vitória, n.16, 2012, p. 77-94.
______________________
Recebido em: 19/01/2013
Aprovado em: 19/02/2013
94