Zona e Outros Poemas - Guillaume Apollinaire
Zona e Outros Poemas - Guillaume Apollinaire
Zona e Outros Poemas - Guillaume Apollinaire
Capa
Folha de rosto
Sumário
Sobre o autor
À Saúde
Outono doente
Hotéis
Trompas de caça
Laços
As janelas
Paisagem
As colinas
Árvore
Segunda-feira rua Cristina
Carta-oceano
Sobre profecias
O músico de Saint-Merry
A gravata e o relógio
Um fantasma de nuvens
Coração coroa e espelho
Viagem
Cruzando a Europa
Chove
O pequeno automóvel
Bandolim cravo e bambu
Baforadas
Em Nîmes
A pomba apunhalada e o chafariz
Vigia
Sombra
Longe do pombal
sp
Mira
Cartão-postal
Saliente
Guerra
Oráculos
Os suspiros do atirador de Dakar
Sempre
Festa
Madeleine
Noite de abril de 1915
O adeus do cavaleiro
O palácio do trovão
No abrigo-caverna
Desejo
Canção do Horizonte em Champanhe
Oceano de terra
Maravilha da guerra
Exercício
Há
Simultaneidades
Algodão nas orelhas
Cartão-postal
Leque dos sabores
Recordações
Cavalos de Frisa
Comandante de pelotão
Tristeza de uma estrela
A vitória
A ruiva bonita
Comentários
Cronologia
Créditos das imagens
Créditos
ZONA
e outros poemas
1.
“Você é um homem-época.”
Assim o compositor e escritor Alberto Savinio definiu, em 1916 ,
Guillaume Apollinaire, um dos principais poetas do século xx e hoje
um dos mais populares da França. De fato, não há como falar de
poesia francesa e modernista, de movimentos de vanguarda
internacional na pintura e na literatura, de revolução e
experimentação verbal, sem mencionar Apollinaire. Como escreve
Paul Auster,
ele, mais do que qualquer outro artista de seu tempo, parece incorporar as
aspirações estéticas da primeira parte do século xx . Em sua poesia, que vai de
graciosos poemas líricos até corajosos experimentos, da rima ao verso livre aos
poemas “figurados”, ele manifesta uma nova sensibilidade, ao mesmo tempo
tributária das formas do passado e entusiasmadamente confortável no mundo dos
automóveis, aeroplanos e do cinema.1
Instalado em Paris, então com quase 3 milhões de habitantes, ele
abraçou com entusiasmo a aventura da modernidade e nela se fundiu,
questionando e tensionando a relação entre arte e realidade,
concentrando todo o espírito de mudança daquele período mágico e
efervescente: a belle époque (1871-1914). Uma era de relativa paz, de
euforia e otimismo, da segunda revolução industrial, do auge do
imperialismo, expansão colonial, nacionalismos e começo da
globalização. De invenções e descobertas tecnológicas (eletricidade,
aço, produtos químicos, motores, fonógrafo, telefone, telégrafo sem
fio, avião, automóvel, metrô, trens elétricos, transatlântico, barco a
vapor, submarinos). Uma época de descobertas no campo da ciência e
da física (raios x, radioatividade, elétrons, núcleo atômico, energia
quântica), da revolucionária teoria da relatividade de Einstein e de
investigações na mente humana (a psicanálise de Freud). De grandes
obras artísticas em todas as áreas: só na música temos composições
importantes de Ravel, Fauré, Debussy, Stravinsky, Prokofiev,
Schönberg e Satie, amigo de Apollinaire. Na pintura, os artistas se
libertam de séculos de “tirania” da perspectiva linear que imperava
desde o Quattrocento. Múltiplas possibilidades surgiam desse estado
de coisas. Ele estava atento a todas, capturando-as para sua própria
obra. Como descreve Roger Cardinal, “em seu apogeu, à beira da
Grande Guerra Mundial, Guillaume Apollinaire era como uma aranha
inquieta no centro de uma teia cosmopolita, monitorando ciosamente
cada tremor de novidade através do mapa cultural e, por sua vez,
projetando uma influência irresistível sobre a vanguarda
internacional”.2
Muitos artistas de seu tempo sentiam que os antigos instrumentos e
formas consagradas pela tradição não eram mais suficientes para
capturar o mundo e suas rápidas mudanças. Uma nova mente, uma
nova percepção do tempo e do espaço exigiam novas formas artísticas
e poéticas. Na poesia, como indica o título do célebre estudo de
Michel Décaudin, havia uma crise dos valores simbolistas.
Obviamente, Apollinaire e a vanguarda encontraram forte oposição,
não só dos defensores da tradição quanto do público em geral, ainda
presos aos cânones do passado (classicismo, romantismo e
simbolismo).
Organizando exposições, fazendo crítica de arte (ele preferia o
termo “escritor de arte”)3 em contato com artistas de outros países e
agitando a vida cultural parisiense, o poeta foi o principal crítico a
firmar as reputações de Picasso, Braque, Delaunay e uma pletora de
artistas. “Apollinaire se destaca como o mais magistral inovador em
uma geração febrilmente devotada à experimentação não porque suas
ideias fossem as mais originais, mas porque ele tinha o gênio criativo
de transformar conceitos estéticos que estavam em circulação em uma
poesia poderosa e atraente”, escreve com propriedade S. I. Lockerbie.4
“Central entre todas essas ideias estéticas estava a noção de que a
obra de arte moderna devia refletir de modo adequado a natureza
global da consciência contemporânea.”
É preciso dizer que Apollinaire era radicalmente avesso a qualquer
ideia de “escola poética” ou petites chapelles (“capelinhas”, como ele
chamava as tendências de sua época).5 Embora tenha sido um dos
primeiros a usar as palavras “cubismo”, “surrealismo”, “caligramas”
e “orfismo”, não gostava de ser rotulado (“futurista”, “fantasista”,
“cubista”). Suspeitava de sistemas, dogmas e regras,6 preferindo
valorizar as sínteses únicas conseguidas por cada criador, fosse ele
pintor ou escritor. Em “Simultaneísmo-letrismo” (1914), ele
constatava: “O número de escolas poéticas aumenta todos os dias.
Quase não há nenhuma em que eu não tenha sido colocado durante
um tempo, de boa ou má vontade”.7
Embora não comungasse da destruição do passado e dos museus,
muito menos execrasse a tradição (como Marinetti e os futuristas
italianos), talvez Apollinaire seja o poeta mais representativo daquilo
que Marjorie Perloff chamou de momento futurista: “a breve fase
utópica do primeiro modernismo, quando artistas sentiam estar no
limiar de uma nova era que seria mais excitante, mais promissora,
mais inspiradora do que nenhuma outra”.8 Como vemos em “O
pequeno automóvel” (1914), mesmo o anúncio da explosão da
Primeira Guerra Mundial é recebido pelo poeta-jornalista com um
entusiasmo quase infantil:
pouca gente, mesmo entre os soldados, fazia alguma ideia do que significaria uma
guerra tecnológica moderna, não só para os indivíduos, mas para sociedades
inteiras. Poucos achavam que a Primeira Guerra Mundial se prolongaria além do
Natal: ninguém imaginava, quando ela finalmente terminou, que a Europa de
1914 teria desaparecido para sempre.9
Mesmo sem ter a obrigação de se alistar, por ser estrangeiro, o
italiano Apollinaire faz de tudo para ir à guerra defender seu país de
adoção. Ele parece se alistar como se fosse para uma colônia de férias,
sem imaginar o que encontraria na região da Champanhe a partir de
1915 . Totalmente adaptado à caserna, depois de meses de treinamento
intensivo, ele estava na Frente Ocidental,10 com seu bom anjo de
vanguarda, transformando a experiência-limite da guerra em poesia, o
espetáculo da morte em vida, em linguagem viva. Seus poemas de
guerra, pouco explorados, estão entre os mais atordoantes que alguém
jamais escreveu, oferecendo uma “rendição total da linguagem ao
momento imediato”.11 São provas vivas de que o “eu lírico” e o
lirismo não morreram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.
novela de formas
Assim como sua vida, a poesia de Apollinaire também pode ser lida
como uma novela de aventuras formais, marcada por uma grande
radicalidade e diversidade de experimentações verbais. Começa
metrificada e rimada, sob os eflúvios da poesia medieval, romântica e
simbolista. Dialogando com as tendências artísticas que ele ajudou a
divulgar e formular (futurismo, fauvismo, cubismo, simultaneísmo,
orfismo, dramatismo, unanimismo, paroxismo), ele se lança ao verso
livre com peças como “Cortejo”, “Viagem”, “Poema lido no
casamento de André Salmon” e “Zona”. Experimenta poemas mais
discursivos e narrativos com “A casa dos mortos” e “Um fantasma de
nuvens”. Em 1913 , cria os poèmes-conversations, que captam o
“lirismo ambiente” (“Segunda-feira rua Cristina”), os “poemas-
passeios” e os “poemas simultaneístas” e “órficos” da magnífica seção
“Ondas” (clássicos como “As janelas”, no qual diz ter desenvolvido
“uma estética toda nova”, “Cruzando a Europa” e “O músico de
Saint-Merry”).
Em 1914 , pouco antes da explosão da guerra e em pleno debate
sobre simultaneísmo, que sacudia os círculos artísticos de Paris,
desenvolve a escrita-imagem dos “ideogramas líricos” ou
“caligramas”19 (palavra que ele criou), em realizações-síntese como
“Carta-oceano”. A novela formal de Apollinaire tem seu clímax nos
poemas de guerra (ver “Algodão nas orelhas”), terminando com os
poemas longos “As colinas” (45 quintetos em octossílabos), “Vitória”
e “A ruiva bonita”, compostos sob os princípios do “Espírito Novo”
(seu termo para modernismo). Seus últimos poemas não deixam de
trair um clima de fim de festa, de acerto de contas, como se ele intuísse
que fosse morrer logo, mesmo tendo sobrevivido à guerra.
Sua obra oferece um panorama complexo da poesia de 1898 a
1918 . Os poemas mais antigos de Álcoois foram escritos no mesmo
ano da morte de Mallarmé e os últimos de Caligramas, em 1918 ,
meses antes do lançamento do “surrealismo” (outro termo cunhado
por ele) e em pleno desenvolvimento do dadaísmo (lançado em 1916 ).
Portanto, sua obra poética é sintomática das grandes transformações
ocorridas na poesia francesa depois de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud
e Mallarmé. Ela vai influenciar e informar o surrealismo (Breton &
cia.), o ultraísmo (Huidobro, Girondo, Borges, Guillermo de La
Torre), o Espírito Novo, a poesia beat (Ginsberg,20 Ferlinghetti), a
Escola de Nova York (Ohara, Ashbery, Padgett). Vai impactar
escritores como Kafka e Beckett (que traduziu “Zona” para o inglês
com brilhantismo), poetas singulares como Giuseppe Ungaretti, Juan
Tablada, e.e. cummings, Louis Zukofsky, Paul Celan, o modernismo
brasileiro e a poesia concreta, o letrismo e a poesia minimalista, entre
outros autores e tendências poéticas do século xx.
Por aqui, excetuando alguns estudos acadêmicos, ainda faltam
livros que tentem traçar e identificar a presença de Apollinaire na
poesia brasileira. O fato é que ele ampliou a percepção do que é
poesia e poema. Foi um genuíno poeta inventor, criador de novas
formas de escrever poesia e de processos poéticos. “Zona” é tido
como o poema mais representativo da poesia modernista do começo
do século xx. Para uma de suas principais biógrafas, Laurence Campa,
“Apollinaire ensinou os poetas a escreverem com suas próprias leis.
Sua independência das regras de composição, das hierarquias, dos
gêneros e fontes de inspiração traz uma renovação geral da linguagem
poética como não se via desde Rimbaud e Mallarmé”.21 Foi um
investigador de formas-conteúdos, ao mesmo tempo ambicionando ser
lido pelo maior número de pessoas dos mais diversos backgrounds.
Sonhou com uma poesia que transcendesse raças e nações. É o que ele
revela em carta enviada do front a Madeleine Pagès, em novembro de
1915 : “Gostaria que meus versos fossem amados por um boxeador
negro americano, uma imperatriz da China, um jornalista boche,22 um
pintor espanhol, uma jovem de boa linhagem francesa, uma jovem
camponesa italiana e um oficial inglês das Índias”.23
Ter transitado com desenvoltura por gêneros como jornalismo,
romance, conto, crítica de arte e literária, crônica, peças de teatro,
ensaio, manifestos, traduções, ter feito ghost-writing e até mesmo
roteiro de filme foi fundamental para a imediatidade e versatilidade de
seu verso. Sábio, destilou todas essas experiências na sua poesia,
borrando as fronteiras entre linguagem “poética” e linguagem
comum, arte e vida. Era um poeta intuitivo e rigoroso ao mesmo
tempo. Esteve longe de qualquer “automatismo psíquico” (adotado
posteriormente à sua morte pelos surrealistas). Vários estudiosos e
comentaristas de sua obra (Michel Décaudin, Claude Debon) já
demonstraram, por análise genética, os longos processos de
composição e edição de seus manuscritos.
A aparência improvisacional de alguns de seus poemas camuflam
anos de estudo e elaboração. Como explica Michel Décaudin: “Exceto
para poemas ocasionais ou epistolares, Apollinaire não improvisa, ele
deixa o trabalho amadurecer, às vezes por bastante tempo”.24 O dublê
de jornalista e poeta dominava os múltiplos recursos da linguagem
poética, bem como a tipografia, os espaços em branco e o layout do
poema na página. Tinha profunda consciência da poesia como “arte
da linguagem verbal” e era um crítico atento da escrita de seu tempo.
Ele sempre lembrava a origem da palavra poiētḗs (“fazedor”,
“artesão”) para colocar o ato poético como sinônimo de criação
artística, em sua máxima pureza (“poesia e criação são a mesma
coisa”). No processo, há um convite para que o leitor tenha um papel
mais ativo na recriação da experiência, para que ele também se torne
um poiētḗs.
versificateur
amplitude de temas
estética da surpresa
“ordem” e “aventura”
Não se pode transportar consigo, por toda parte, o cadáver do próprio pai. Ele é
abandonado em companhia de outros mortos. E lembramos dele, lamentamos por
ele, falamos dele com admiração. E se nos tornamos pais, não devemos esperar
que um de nossos filhos queira se duplicar para a vida de nosso cadáver.
Mas nossos pés só se separam em vão do solo que abriga os mortos.50
vocabulário onívoro
simultaneidade poética
a obra de arte tinha que abandonar as estruturas lineares e discursivas, nas quais
os eventos são arranjados sucessivamente, em favor do que Apollinaire chamou de
simultaneidade: um tipo de estrutura que daria a impressão de uma consciência
completa e instantânea dentro de um momento no espaço-tempo.56
A sucessão dá lugar à simultaneidade. Diferentes planos coabitam o
mesmo espaço (ver “Zona”, “O músico de Saint-Merry” e “Árvore”).
As novas invenções e descobertas científicas, o cinema e as
aventuras do Fantômas faziam a imaginação de Apollinaire fervilhar.
“Uma razão pela qual ele admirava as aventuras do detetive era que o
anti-herói era capaz de criar infinitas novas identidades, mudando-a
de acordo com seus arredores.”57 Ele explora a ideia de onipresença e
simultaneidade espaçotemporal não só em poemas como na ficção.
Um de seus personagens é o barão d’Ormesan. Inspirado no seu
“secretário” belga que roubou as estatuetas do Louvre, “diretor de
cinema”, tido como “o novo Messias”, o barão tem o dom de
aparecer em centenas de lugares do mundo ao mesmo tempo, graças a
um aparelho que ele inventou. Em “O tato à distância”, de O poeta
assassinado, há dois aparelhos “que têm a simples aparência de um
prego”, capazes de transmitir não apenas imagens para outros lugares,
mas a presença temporal, “profecias” que são uma realidade hoje,
com a internet e a realidade virtual. No conto “O rei-lua”, em uma
caverna do Tirol, o narrador cruza com Luís ii da Baviera. Morto-
vivo, ele possui um dispositivo que atrai todos os murmúrios, ruídos e
paisagens sonoras do planeta ao mesmo tempo. “Os dedos do rei
passaram aleatoriamente sobre as teclas, acordando, por assim dizer,
todos os rumores do mundo.” Ouvem-se o assovio dos gêiseres na
Nova Zelândia, o ruído do tráfego de Chicago, os sons dos mercados
do Taiti, o mugido das vacas no rio Hudson, em Nova York, o
barulho dos vendedores de chá num mercado chinês, sinos badalando
em um templo no Tibete, “no Rio de Janeiro passa uma cavalaria
carnavalesca”, o canto de um galo na Coreia, “rezas violentas diante
de um Cristo no México”, entre outros sons.58 Já seus cortesãos
possuem outras engenhocas, como um cinturão, que permitem a eles
fazer amor com as grandes personalidades femininas do passado.
Em “Simultaneísmo-Libretismo” (1914), ele escreve em defesa do
pioneirismo do cubismo: “A ideia da simultaneidade havia muito
preocupava os artistas; já em 1907 preocupava um Picasso, um
Braque, que tentavam representar figuras e objetos de vários lados ao
mesmo tempo”.59 Na primeira fase do cubismo os objetos eram
desconstruídos, representados sob múltiplas perspectivas de uma vez,
suas facetas “embaralhadas” na superfície da tela. Não havia mais um
ponto de vista exclusivo, e sim vários, simultâneos. Apollinaire
absorvia essas lições e as incorporava de diversas maneiras em sua
poesia. Como ele definia em seus ensaios: a arte não imitaria mais a
natureza, mas a examinaria, fragmentaria e remontaria de uma forma
quase abstrata, “cosa mentale”. Ele escreve em “Os pintores cubistas”
(1913): “Um Picasso estuda um objeto como um cirurgião disseca um
cadáver”.60 O espaço da tela cubista da primeira fase também é um
espaço profundamente influenciado não só pela pintura de Cézanne,
mas pela então recente invenção do cinema, até mesmo em seu quase
monocromatismo (Apollinaire e Picasso eram fãs de cinema). “A
simultaneidade se tornou não só um tema central como um princípio
formal e estrutural”, descreve com precisão Marjorie Perloff.
“Figurativamente falando, estar em dois lugares ao mesmo tempo
agora se tornava uma realidade; de fato, o então recente cinema (em
1913 havia duzentos cinemas em Paris) podia transportar o público
do Senegal a Sydney numa fração de segundo.”61
o problema
Só havia um problema no objetivo de transportar os preceitos de
simultaneidade dos futuristas, cubistas e orfistas para a poesia. A
pintura é uma arte do espaço, e a poesia, uma arte do tempo (que
pode ser também do espaço, como Apollinaire descobrirá nos
caligramas). Em uma pintura ou em um filme as imagens são
apreendidas, a princípio, num golpe de olhar, ao mesmo tempo. Numa
página de livro, a não ser que se domine as técnicas de leitura
dinâmica, é preciso obrigatoriamente avançar a leitura do poema
fonema a fonema, palavra a palavra, verso a verso. O poema e sua
leitura seguem uma lógica discursiva linear e unidirecional. William
Burroughs, que explodiu a narrativa com seus cut-ups [colagens
textuais] reclama, numa entrevista:
A escrita como meio é limitada, não há a menor dúvida. O escritor sempre vai se
deparar com palavras numa página, não há como escapar disso. A literatura hoje
ainda segue a forma tradicional, o fato de que existem palavras em sequência
numa página. Não há uma maneira possível de se obter eventos simultâneos num
romance. É um beco sem saída.62
contrastes simultâneos
simultaneidade metafórica
Mas eu fluía nessa delícia de guerra com minha companhia inteira ao longo das
tripas-trincheiras
Elefantes-para-balas
abolição da pontuação
Sem dúvida! Vou voltar aos princípios. A pontuação permite que os maus
escritores justifiquem seu estilo. Alguns travessões, uma vírgula aqui, uma vírgula
ali, e tudo parece fazer sentido. Além disso, essa supressão dá mais elasticidade ao
significado lírico das palavras. Mas essa questão certamente não será mais
interessante quando o livro desaparecer.69
efeitos de simultaneidade
colagem
Dentro desse contexto, não podemos esquecer da importância crucial
da experiência da colagem.81 Segundo o pintor Severini, foi
Apollinaire quem a sugeriu, depois de ter provocado Picasso a
experimentar o procedimento em suas telas no fim de 1912:82
Quanto aos chamados papiers collés, posso dizer com precisão que eles nasceram
em 1912 na zona de Montmartre. Até onde me lembro, Apollinaire sugeriu a ideia
para mim depois de ter falado dela para Picasso, que imediatamente pintou uma
pequena natureza-morta na qual ele aplicou um pedaço de papel parafinado (do
tipo que era usado em toalhas de mesa nos bistrôs de Paris).83
Ele me falou de alguns dos pintores primitivos italianos que tinham colocado nos
seus quadros elementos reais, observando que a sua presença e o contraste que
provocavam aumentavam a vida dessas obras e o seu dinamismo. Ele deu-me
como exemplos um São Pedro exposto na Pinacoteca de Brera, em Milão, que tem
na mão chaves reais, e outros santos que transportam outros objetos, para não
mencionar halos feitos de verdadeiras pedras preciosas e pérolas.84
a página de jornal
Podemos, portanto, esperar, no que diz respeito ao material e aos meios de arte,
uma liberdade de opulência inimaginável. Os poetas de hoje estão aprendendo
esta liberdade enciclopédica. No campo da inspiração, sua liberdade não pode ser
menor do que a de um jornal diário que lida, em uma única página, com os mais
diversos assuntos, viaja para os países mais distantes.90
estrutura paratática
O poema permaneceu sendo uma estrutura verbal, linear e sucessiva, mas que
tendia a dar a sensação — ou a ilusão — da simultaneidade. Apollinaire […]
compreendeu imediatamente que a supressão dos nexos sintáticos era, em poesia,
um ato de consequências semelhantes à abolição da perspectiva na pintura. A
justaposição foi seu método de composição.92
Você em Amsterdam com uma donzela que nada tem de lady […]
Você em Paris diante do juiz de instrução […]
Você diante do balcão de algum bar devasso […]
Você de noite num restaurante chique […]
Você rumo a Auteuil quer chegar em casa a pé […]
[…]
A que horas parte o trem pra Paris?
E naquele instante
Pombos das Molucas defecam noz-moscada
Simultaneamente
Missão católica de Boma que fim vocês deram no escultor
E em outro lugar
Ela cruza a ponte que liga Bonn a Beuel e desaparece em Pützschen
E ao mesmo tempo
Uma moça apaixonada pelo prefeito
E em outro bairro
Poetas competem com rótulos de perfumes
[…]
Há seis salsichas no céu noite chegando vai ver são larvas parindo estrelas
Há um submarino inimigo assediando o meu amor
Há mil pinheiros despedaçados pelos estilhaços de obuses ao meu redor
[…]
Há um capitão esperando ansiosamente por mensagens vindas pelo Atlântico via
Telefonia Sem Fio
Há soldados à meia-noite serrando tábuas para os caixões
Há mulheres aos gritos exigindo mais milho diante de um Cristo sangrando no
México
Há a Gulf Stream tão morna e benfazeja
Há um cemitério cheio de cruzes a 5 quilômetros daqui
Há cruzes aqui ali por toda parte
Há figos-da-barbária nos cactos na Argélia
[…]
[…]
Cintilante diamante
Vancouver
Onde o trem branco de neve e seus fogos noturnos fogem do inverno
Ó Paris
Do vermelho ao verde morre todo o amarelo
Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York e as Antilhas
A janela se abre como uma laranja
O belo fruto da luz
indeterminação pronominal
Sinal, a letra permite fixar as palavras; linha, ela permite figurar a coisa. Assim, o
caligrama pretende apagar ludicamente as mais velhas oposições de nossa
civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular;
imitar e significar; olhar e ler. Acuando duas vezes a coisa de que fala, ele lhe
prepara a mais perfeita armadilha. Por sua dupla entrada, garante essa captura, da
qual não são capazes o discurso por si só ou o puro desenho. Conjura a invencível
ausência da qual as palavras são incapazes de triunfar, impondo-lhes, pelas
astúcias de uma escrita que joga no espaço, a forma visível de sua referência:
sabiamente dispostos sobre a folha de papel, os signos invocam, do exterior, pela
margem que desenham, pelo recorte de sua massa no espaço vazio da página, a
própria coisa de que falam. E, em retorno, a forma visível é cavada pela escrita,
arada pelas palavras que agem sobre ela do interior e, conjurando a presença
imóvel, ambígua, sem nome, fazem emergir a rede das significações que a batizam,
a determinam, a fixam no universo dos discursos. Duplo alçapão; armadilha
inevitável: por onde escapariam, daqui para a frente, o voo dos pássaros, a forma
transitória das flores, a chuva que escorre?96
Embora não cite o poeta em seu texto, pelos exemplos que Foucault
dá fica evidente que ele se refere aos caligramas de Apollinaire.
Vejamos um último exemplo do efeito de simultaneidade e das
sutilezas escondidas nos seus versos. Lições de ambiguidade
aprendidas com o simbolismo, das quais ele nunca abriu mão.
“Cantor”, seu poema mais breve, traz apenas um verso em
alexandrino clássico (doze sílabas poéticas, com tônicas na sexta e 12a
sílabas):
Chantre
Et l’unique cordeau des trompettes marines
Na minha tradução:
Cantor
E o cordão solitário das trombas marinhas
3.
apollinaire no brasil
do Boulevard Saint-Germain.
Em 1924 a poesia e obra de Apollinaire ganham um difusor de peso
com a chegada do poeta e amigo Cendrars. Tendo vivido no Brasil por
nove meses na primeira estadia (a convite de Paulo Prado, feito no ano
anterior) e em mais cinco outras temporadas, o suíço, que tanto
marcou nossa literatura, é um dos principais responsáveis por difundi-
las entre nós, através de seus testemunhos, conversas, leituras,
palestras e artigos publicados aqui. Para Sérgio Milliet o poema
“Zona” teve um papel importante no modernismo brasileiro:101 “Era
para nós um modelo e quase o sabíamos de cor”. Bandeira escrevia,
em carta a Mário, em 1925 : “Cheguei à feira modernista pelo
expresso Verlaine-Rimbaud-Apollinaire”.
Quem não se aperceberia de que isso [os caligramas] não é mais do que um início,
e que, por efeito da lógica determinista que dirige a evolução de todo mecanismo,
tais poemas devem acabar apresentando um conjunto pictural em relação ao tema
tratado? Assim se atingirá o ideograma quase perfeito.104
Nada poderia ser mais equivocado do que pensar que o formato dos caligramas,
sejam os pictóricos ou os mais abstratos, é incidental ou meramente decorativo.
Ao contrário, sua forma gráfica interage com o texto verbal de modo a criar uma
nova forma de poesia que tem tido muitos sucessores. Eles também cumprem sua
função, como os poemas-conversações antes deles, de estender a gama da
expressão poética e aumentar o número de usos de linguagem nos quais podemos
encontrar satisfação estética.125
traduções no brasil
Apollinaire está ganhando leitores […] e sua aura tem realmente crescido ao longo
do século e continua a crescer, ainda mais desde que ele caiu no domínio público.
Ele pertence verdadeiramente à herança e à cultura francesas, o que não era o caso
de modo algum no início. Devemos lembrar que Álcoois teve cerca de seiscentas
cópias e Apollinaire era muito mais conhecido como crítico de arte do que como
um poeta. Aos poucos, Álcoois tornou-se, junto com Paroles, de Jacques Prévert,
a coleção mais popular de poesia francesa do século xx. 126
esta seleção
Esta antologia foi feita a partir das edições originais dos seus dois
livros mais importantes: Alcools: Poèmes (1898-1913), de 1913 , e
Calligrammes: Poèmes de la paix et de la guerre (1913-1916), de
1918 . Ambos publicados em Paris pela Mercure de France e nos quais
ele teve papel ativo.
Apesar de trazer em seu subtítulo 1916 como sendo o ano final da
coleção, Caligramas reúne poemas escritos até pouco antes de sua
morte, em 9 de novembro de 1918 (ironicamente dois dias antes do
fim oficial da Primeira Guerra Mundial). Portanto, os 77 poemas desta
seleção cobrem sua produção de 1900 (“Clair de Lune”, “A porta”)
até 1918 (“A ruiva bonita”, um dos últimos poemas que escreveu).
Em termos de técnica poética, temas e estrutura linguística existem
diferenças significativas entre Álcoois e Caligramas. Apesar de abrir
Álcoois, o famoso poema “Zona” foi o último a ser escrito para o
livro e serve como perfeita transição para Caligramas e para a seção
“Ondas”, que abre o segundo livro. Respeitei a ordem em que os
poemas aparecem nos dois volumes, nas edições supervisionadas por
ele. Dos 39 poemas de Álcoois, traduzi 26 . Dos 84 poemas de
Caligramas, 51.
Para esta seleção adotei um princípio cubista e simultaneísta, com o
objetivo de mostrar as múltiplas facetas de um mesmo objeto (no
caso, sua poesia). Agrupei aqui os poemas traduzidos sob uma
classificação geral, lembrando que há peças que se sobrepõem a mais
de uma categoria:
Poemas pós-simbolistas: predomínio do universo e tradição
romântica e simbolista (Heine, Verlaine, Verhaeren, Baudelaire,
Mallarmé). Melopeia (exploração da música das palavras), presença
constante de estruturas métricas e rímicas. Presença de poemas do seu
período alemão, do chamado “ciclo renano”. Temas da perda e do fim
do amor, da passagem do tempo e da fugacidade da experiência
humana, sob a luz da melancolia, do outono (sua “estação mental”,
equivalente à passagem da vida para a morte), dos astros. Estão nesse
grupo “A ponte Mirabeau”, “Açafrões”, “Cantor”, “Crepúsculo”,
“Annie”, “Clotilde”, “Marizibill”, “Maria”, “Branca de Neve”, “O
adeus”, “A cigana”, “Outono”, “Signo”, “À Saúde”, “Outono
doente”, “Hotéis”, “Raios de luar”, “Trompas de caça”.
Poemas-ambulantes: (road poems, flâneries urbanas e pastorais,
poemas-passeios, poemas-viagem). Predomínio do verso livre e da
estrutura paratática, da descontinuidade, do deslocamento ao ar livre:
“Zona”, “Cortejo”, “A casa dos mortos”, “Saltimbancos”,
“Marizibill”, “O viajante”, “1909”, “Poema lido no casamento de
André Salmon”, “Árvore”, “O músico de Saint-Merry”, “Um
fantasma de nuvens”, “Cruzando a Europa”, “O pequeno automóvel”
e os poemas de guerra “Sempre”, “Saliente” e “Algodão nas orelhas”.
Poemas seminarrativos: presença de alguma estrutura narrativa e
continuidade, de reelaboração moderna de fábulas e mitos, do fluxo
de consciência, da fusão do real com o fantástico, de saltos de
memória: “Zona”, “Outono”, “A casa dos mortos”, “Um fantasma
de nuvens”, “O músico de Saint-Merry”, “O pequeno automóvel”,
“Os suspiros do atirador de Dakar”, “O palácio do trovão”,
“Maravilha da guerra” e o poema-carta “Sobre profecias”.
Poemas simultaneístas-“cubistas”: com predomínio do verso livre,
ou mistura de esquemas métricos com verso livre. Poemas não
miméticos e antidiscursivos, que abandonam a lógica sucessiva e
almejam efeito de ubiquidade e simultaneidade: “Zona”, “A porta”,
“As janelas”, “Árvore”, “Laços”, “Segunda-feira rua Cristina”,
“Cruzando a Europa”, “Carta-oceano”, “Sombra”, “Saliente”,
“Canção do Horizonte em Champanhe”, entre outros. Justaposição.
Descontinuidade.
Poemas-ambientes (poema-algaravia, “lirismo ambiente”), colagem
de vozes e “textos encontrados”: “Segunda-feira rua Cristina” (o
exemplo clássico), “Carta-oceano”, parte de “As janelas” e de
“Árvore” e o começo de “Guerra”.
Caligramas e poemas com caligramas inseridos. Exploração do
espaço da página, da colagem, radicalização do efeito de
simultaneidade (o leitor é convidado a vler). Criação de um novo tipo
de poema, que influenciará decididamente a poesia visual que se fará
depois: “Cantor”, “Chove”, “Paisagem”, “Viagem”, “Carta-oceano”,
“A gravata e o relógio”, “Leque dos sabores”, “Bandolim cravo e
bambu”, “Mira”, “Oráculos”, “sp”, “Cartão-postal", “Baforadas”,
“A pomba apunhalada e o chafariz”, “Longe do pombal”,
“Madeleine”.
Poemas de guerra: versos livres, outros que retomam as formas
fixas, escritos durante e sob o impacto da Primeira Guerra Mundial:
“O pequeno automóvel”, “Em Nîmes”, “Sombra”, “sp”, “Mira”,
“Saliente”, “Guerra”, “Oráculos”, “Festa”, “Noite de abril de 1915 ”,
“O adeus do cavaleiro”, “O palácio do trovão”, “Os suspiros do
atirador de Dakar”, “A pomba apunhalada e o chafariz”, “Sempre”,
“No abrigo-caverna”, “Desejo”, “Há”, “Simultaneidades”, “Algodão
nas orelhas”, “Canção do Horizonte em Champanhe”, “Oceano de
terra”, “Maravilha da guerra”, “Exercício”, “Cartão-postal”,
“Madeleine”, “Leque de sabores”, “Recordações”, “Cavalos de
Frisa”, “Comandante de pelotão” e “Tristeza de uma estrela”.
Poemas do “Espírito Novo”, escritos na volta a Paris, poemas
retrospectivos e propositivos. Busca de uma síntese entre as lições do
passado e a renovação da poesia, entre tradição e inovação, entre o
que ele chamou de “Ordem” e “Aventura”. O poeta como visionário,
cientista do humano, “antena da raça” (Pound). Poemas como
“Sempre” (escrito ainda no front) e os longos “As colinas”, “Vitória”
e “A ruiva bonita”.
esta tradução
Notas
Ces femmes ne sont pas méchantes elles ont des soucis cependant
Toutes même la plus laide a fait souffrir son amant
Adieu Adieu
Sol Degolado
le pont mirabeau
Un charlatan crépusculaire
Vante les tours que l’on va faire
Le ciel sans teinte est constellé
D’astres pâles comme du lait
Um charlatão crepuscular
Revela as atrações da noite
Céu constelado a desbotar
Estrelas brancas feito leite
1 No litoral do Texas
Entre Mobile e Galveston há
Um jardim imenso cheio de rosas
E uma casa de campo por lá
Que é uma imensa rosa
Soudain
Rapide comme ma mémoire
Les yeux se rallumèrent
De cellule vitrée en cellule vitrée
Le ciel se peupla d’une apocalypse
Vivace
20 Et la terre plate à l’infini
Comme avant Galilée
Se couvrit de mille mythologies immobiles
Un ange en diamant brisa toutes les vitrines
Et les morts m’accostèrent
Avec des mines de l’autre monde
80 Je vous attendrai
Dix ans vingt ans s’il le faut
Votre volonté sera la mienne
Je vous attendrai
Toute votre vie
Répondait la morte
Des enfants
De ce monde ou bien de l’autre
Chantaient de ces rondes
Aux paroles absurdes et lyriques
90 Qui sans doute sont les restes
Des plus anciens monuments poétiques
De l’humanité
L’étudiant passa une bague
A l’annulaire de la jeune morte
Nos enfants
Dit la fiancée
Seront plus beaux plus beaux encore
Hélas! la bague était brisée
110 Que s’ils étaient d’argent ou d’or
D’émeraude ou de diamant
Seront plus clairs plus clairs encore
Que les astres du firmament
Que la lumière de l’aurore
Que vos regards mon fiancé
Auront meilleure odeur encore
Hélas! la bague était brisée
Que le lilas qui vient d’éclore
Que le thym la rose ou qu’un brin
120 De lavande ou de romarin
Je vous aime
140 Disait-il
Comme le pigeon aime la colombe
Comme l’insecte nocturne
Aime la lumière
Trop tard
Répondait la vivante
Repoussez repoussez cet amour défendu
Je suis mariée
Voyez l’anneau qui brille
Mes mains tremblent
150 Je pleure et je voudrais mourir
Et si certain
Qu’ils ne craignaient point de le perdre
De repente
Rápidos como minha memória
Os olhos se acenderam de novo
De célula vítrea a célula vítrea
O céu ficou lotado com um vívido
Apocalipse
20 E a terra plana infinita
Como antes de Galileu
Cobriu-se de mil mitologias imóveis
Um anjo de diamantes quebrou todas as vitrines
E os mortos me abordaram
Com caras de outro mundo
30 Os mortos se divertiam
Ao verem seus cadáveres entre eles e a luz
Riam de suas sombras e as examinavam
Como se elas fossem realmente
Suas vidas passadas
Então os contei
Eram quarenta e nove homens
Mulheres e crianças
Iam ficando lindos a olhos vistos
E me encaravam agora
40 Com tanta cordialidade
Tanta ternura até
Que fazendo amizade com eles
De repente
Convidei todos prum rolê
Longe dos arcos da sua casa
Todo mundo de braços dados
Cantando hinos militares
Sim seus pecados estão perdoados
Saímos do cemitério
50 Cruzamos a cidade
E encontrávamos direto
Amigos e parentes que se juntavam
À pequena trupe de mortos recentes
Todos felizes da vida
Tão charmosos e saudáveis
Tinha que ser muito malandro
Pra distinguir os mortos dos vivos
Depois no campo
Nos dispersamos
60 Dois dragões se juntaram
Os cavaleiros foram bem-vindos
Cortaram farpas de viburno
E de sabugueiro
Com o que fizeram apitos
Que distribuíram às crianças
80 Vou te esperar
Dez anos vinte se preciso
Sua vontade será a minha
Vou te esperar
Por toda a sua vida
A morta respondia
A criançada
Deste ou do outro mundo
Cantava cirandas
Com umas letras líricas e absurdas
90 Que por certo são as relíquias
Dos monumentos poéticos mais antigos
Da humanidade
O estudante passou a aliança
No dedo anelar da moça morta
Nossas crianças
A noiva falou
Serão mais bonitas agora
O anel de vidro se quebrou
110 Que fosse de prata ou de ouro
De esmeralda ou de diamante
E vão brilhar bem mais é claro
Que estas estrelas tão distantes
Do que a luz da aurora lá fora
Que seu olhar noiva que adoro
Terão odor melhor agora
O anel de vidro se quebrou
Do que um lilás que desabrocha
Que rosa ou tomilho um galhim
120 De lavanda ou de alecrim
Depois que os músicos se foram
Continuamos o passeio
Os barcos atracaram
Num lugar onde os dragões
Sabiam o que um eco respondia da margem
A gente não cansava de fazer perguntas
Eram perguntas tão extravagantes
E respostas tão pertinentes
Que quase morremos de rir
E o moço morto disse pra moça viva
180 Na cidade
Nossa trupe foi minguando aos poucos
Todos diziam
Tchau tchau
Até amanhã
A gente se vê
E tão certa
Que não tinham medo de perdê-la
1 L’anémone et l’ancolie
Ont poussé dans le jardin
Où dort la mélancolie
Entre l’amour et le dédain
1 A anêmona e a ancolia
Floresceram nesse jardim
Onde dorme a melancolia
Entre o amor e tanto desdém
Un jour
20 Un jour je m’attendais moi-même
Je me disais Guillaume il est temps que tu viennes
Pour que je sache enfin celui-là que je suis
Moi qui connais les autres
Um dia
20 Um dia esperava por mim mesmo
Falei pra mim tá na hora de seu advento Guillaume
De eu saber enfim quem eu sou
Eu que conheço os outros
Ah caros companheiros
Sinos elétricos das estações de trem a canção dos ceifadores
Carrinho de açougueiro regimento de ruas inumeráveis
Cavalaria de pontes noites pálidas de álcool
30 Cidades que vi de relance vivazes como mulheres possessas
salmon
Le 13 juillet 1909
salmon
13 de julho de 1909
Celebremos não por nossa amizade ter sido o rio que nos
fertilizou
Terrenos ribeirinhos cuja abundância é o alimento que todos
esperam
Não porque nossos copos de novo nos lançam outro moribundo
olhar de Orfeu
Ou por crescermos tanto que as pessoas tomam nossos olhos por
estrelas
Nem porque bandeiras estalam nas janelas dos cidadãos felizes há
um século por terem a vida e suas coisinhas pra defender
Nem porque fundados na poesia temos direitos sobre essas
palavras que formam e desfazem o Universo
Nem porque podemos chorar sem passar vexame e aprendemos a
rir
Nem porque fumamos e bebemos como outrora
Celebremos porque o diretor do fogo e dos poetas
40 O amor que inunda tudo como a luz
Todo o sólido espaço entre as estrelas e os planetas
O amor comemora e quer que meu amigo André Salmon se case
agora
l’adieu
ii
iii
iv
vi
Septembre 1911
à saúde
ii
iii
iv
vi
Setembro 1911
automne malade
Pauvre automne
Meurs en blancheur et en richesse
De neige et de fruits mûrs
Au fond du ciel
Des éperviers planent
10 Sur les nixes nicettes aux cheveux verts et naines
Qui n’ont jamais aimé
Pobre outono
Morres na brancura e na fartura
Da neve e das frutas maduras
No fundo do céu
Falcões flutuam
10 Sobre ninfeias néscias e nanicas de cabelos verdes
Que jamais amaram
Le patron doute
Payera-t-on
Je tourne en route
Comme un toton
Ô La Vallière
Qui boite et rit
De mes prières
Table de nuit
Et tous ensemble
Dans cet hôtel
Savons la langue
20 Comme à Babel
1 O quarto é um ovo
Cada um por si
O freguês é novo
Paga ao mês aqui
Gerente duvida
Se eles pagarão
Rodo pela vida
Tal qual um pião
Ah La Vallière
Só ri a manquinha
Só quer que eu me ferre
É esta mesinha
Todos no saguão
Fechemos as portas
Chequem por favor
Cada um transporte
Seu único amor
cors de chasse
Ennemis du regret
Ennemis des larmes
Ennemis de tout ce que j’aime encore
Inimigos da mágoa
Inimigos das lágrimas
Inimigos de tudo que ainda amo
les fenêtres
Profondeurs de la conscience
On vous explorera demain
Et qui sait quels êtres vivants
Seront tirés de ces abîmes
Avec des univers entiers
Vá se acostume como eu
Aos inventos que ora anuncio
Bondade vai nos governar
E o sofrimento que eu aturo
170 É pista do nosso futuro
A beleza será composta
De sofrimento e de bondade
Será beleza mais perfeita
Do que edifica a simetria
Neva me queima e me arrepia
Un enfant
Un veau dépouillé pendu à l’étal
Un enfant
Et cette banlieue de sable autour d’une pauvre ville au fond de
l’est
Un douanier se tenait là comme un ange
A la porte d’un misérable paradis
Et ce voyageur épileptique écumait dans la salle d’attente des
premières
Engoulevent Blaireau
Et la Taupe-Ariane
20 Nous avions loué deux coupés dans le transsibérien
Tour à tour nous dormions le voyageur en bijouterie et moi
Mais celui qui veillait ne cachait point un revolver armé
Uma criança
Um vitelo esfolado suspenso no gancho do açougue
Uma criança
E esse subúrbio de areia ao redor de uma cidade pobre no leste
profundo
Um fiscal de alfândega parado como um anjo
À porta de um paraíso miserável
E o viajante epilético espumava na sala de espera da primeira
classe
Curiango Texugo
E a Toupeira-Ariadne
20 Alugamos duas cabines no Transiberiano
Dormimos em turnos o vendedor de joias e eu
Mas o que vigiava nem disfarçava o revólver carregado
Entre as pedras
30 Entre as roupas multicoloridas nas vitrines
Entre os carvões ardentes dos vendedores de castanhas
Entre dois barcos noruegueses ancorados em Rouen
Flutua a tua imagem
Tristeza profunda
Receber aquele postal de La Corunha
10 Ça a l’air de rimer
Je partirai à 20 h. 27
Six glaces s’y dévisagent toujours
Je crois que nous allons nous embrouiller encore davantage
Cher monsieur
Vous êtes un mec à la mie de pain
20 Cette dame a le nez comme un ver solitaire
Louise a oublié sa fourrure
Moi je n’ai pas de fourrure et je n’ai pas froid
Le Danois fume sa cigaretteden consultant l’horaire
Le chat noir traverse la brasserie
Viajo às 8 e 27
Seis espelhos para sempre se encarando
Tô achando que vamos entrar é numa fria maior ainda
Caro senhor
Cê é um ladrão de galinha
20 O nariz daquela dona parece uma solitária
A Luísa esqueceu o casaco
Tô sem casaco mas também não tô com frio
O dinamarquês fuma seu cigarro enquanto checa os horários
O gato preto cruza o restaurante
Puis ailleurs
A quelle heure un train partira-t-il pour Paris
A ce moment
Les pigeons des Moluques fientaient des noix muscades
En même temps
Mission catholique de Bôma qu’as-tu fait du sculpteur
Ailleurs
Elle traverse un pont qui relie Bonn à Beuel et disparaît à travers
Pützchen
40 Au même instant
Une jeune fille amoureuse du maire
En somme ô rieurs vous n’avez pas tiré grand chose des hommes
Et maintenant
50 Tu me ressembles tu me ressembles malheureusement
Cortèges ô cortèges
Les femmes débordaient tant leur nombre était grand
Dans toutes rues avoisinantes
Et se hâtaient raides comme balle
Afin de suivre le musicien
Ah! Ariane et toi Pâquette et toi Amine
Et toi Mia et toi Simone et toi Mavise
Et toi Colette et toi la belle Geneviève
70 Elles ont passé tremblantes et vaines
Et leurs pas légers et prestes se mouvaient selon la cadence
De la musique pastorale qui guidait
Leurs oreilles avides
Voici le soir
À Saint-Merry c’est l’Angélus qui sonne
Cortèges ô cortèges
C’est quand jadis le roi revenait de Vincennes
Il vint une troupe de casquettiers
Il vint des marchands de bananes
Il vint des soldats de la garde républicaine
O nuit
Troupeau de regards langoureux des femmes
100 O nuit
Toi ma douleur et mon attente vaine
J’entends mourir le son d’une flûte lointain
o músico de saint-merry
21 de maio de 1913
Barqueiro dos mortos zum-zum das rameiras merryanas
10 Milhões de moscas abanavam um esplendor
Quando um homem sem olhos sem nariz sem orelhas
Virou na Sébastopol e entrou na rua Aubry-le-Boucher
Era um moço moreno tinha bochechas morango
O homem Ah! Ariadne
Tocava flauta e a música guiava seus passos
Parou na esquina da rua Saint-Martin
Tocando a música que estou cantando agora e que inventei
Mulheres passando paravam à sua volta
Vinham de todos os lados
20 Quando de repente os sinos da Saint-Merry começaram a tocar
O músico parou de soprar e bebeu água na fonte
Que fica na esquina da rua Simon-Le-Franc
Saint-Merry ficou calada
O desconhecido tocou sua flauta outra vez
Retraçando seus passos foi até a rua de La Verrerie
Onde entrou sendo seguido pela trupe de mulheres
Que jorravam das casas
Que vinham pelas transversais com olhos loucos
Mãos espalmadas em direção ao raptor melodioso
30 E ele prosseguia indiferente fazendo seu som
Prosseguia terrivelmente
Em outro lugar
A que horas parte o trem pra Paris
E naquele instante
Pombos das Molucas defecam noz-moscada
Simultaneamente
Missão católica de Boma que fim vocês deram naquele escultor
E em outro lugar
Ela cruza a ponte que liga Bonn a Beuel e desaparece em
Pützschen
40 E ao mesmo tempo
Uma moça apaixonada pelo prefeito
E em outro bairro
Poetas competem com rótulos de perfumes
E agora
50 Você parece comigo parece comigo infelizmente
Cortejos ó cortejos
Como quando o rei ia pra Vincennes
Quando os embaixadores chegavam em Paris
60 Quando o magro Suger corria pro Sena
Quando o motim morria ao redor da Saint-Merry
Cortejos ó cortejos
Mulheres transbordavam eram tantas
Por todas as ruas da vizinhança
Rápidas como balas
Seguindo o músico
Ah! Ariadne e você Paquette e você Amine
E você Mia e você Simone e você Mavise
E você Colette e até você bela Genevieve
70 Passaram trêmulas e vãs
E seus pés leves e lépidos seguiam a cadência
Da música pastoral que conduzia
Seus ávidos ouvidos
Ce rose-là se niche surtout dans les plis qui entourent souvent leur
bouche
Ou près des narines
C’est un rose plein de traîtrise
Le second saltimbanque
N’était vêtu que de son ombre
Je le regardai longtemps
40 Son visage m’échappe entièrement
C’est un homme sans tête
Os saltimbancos pararam
30 O mais velho vestia um maiô rosa violáceo que se vê nas faces
frescas das mocinhas a ponto de morrer
O segundo saltimbanco
Vestia só a sua sombra
O admirei por um bom tempo
40 Sua face não lembro muito bem
Era um homem sem cabeça
1 Rotsoge
Ton visage écarlate ton biplan transformable en hydroplan
Ta maison ronde où il nage un hareng saur
Il me faut la clef des paupières
Heureusement que nous avons vu M. Panado
Et nous sommes tranquilles de ce côté-là
Qu’est-ce que tu vois mon vieux M. D…
90 ou 324 un homme en l’air un veau qui regarde à travers le
ventre de sa mère
1 Rotsoge
Tua face escarlate teu biplano transformável em hidroplano
Tua casa redonda onde um arenque defumado nada
Perdi a chave das pálpebras
Ainda bem que cruzamos seu Panado
Estamos tranquilos quanto a isso
O que você vê meu velho amigo M. D…
90 ou 324 um homem no ar um bezerro que vê através do ventre
da mãe
1 31 de agosto de 1914
Parti de Deauville por volta da meia-noite
No pequeno automóvel de Rouveyre
Par Fontainebleau
Nous arrivâmes à Paris
Au moment où l’on affichait la mobilisation
Nous comprîmes mon camarade et moi
Que la petite auto nous avait conduits dans une époque
Nouvelle
Et bien qu’étant déjà tous deux des hommes mûrs
Nous venions cependant de naître
E quando depois de passar a tarde
Perto de Fontainebleau
Chegamos em Paris
No momento em que pregavam cartazes de mobilização
E então eu e meu parceiro percebemos
Que o pequeno automóvel havia nos conduzido a uma Época
Nova
E embora fôssemos homens-feitos
Tínhamos acabado de nascer
bandolim cravo e bambu
baforadas
à nîmes
A Émile Léonard
Au Mercure de France
Mars revient tout couleur d’espérance
J’ai envoyé mon papier
Sur papier quadrillé
J’entends les pas des grands chevaux d’artillerie allant au trot sur
la grand-route où moi je veille
10 Un grand manteau gris de crayon comme le ciel m’enveloppe
jusqu’à l’oreille
Quel
Ciel
Triste
Piste
Où
Va le
Pâle
Sou-
rire
20 De la lune qui me regarde écrire
vigia
Na Mercure de France
Março marcha colorido de esperança
Meu artigo foi enviado
Em papel quadriculado
1 Toujours
Nous irons plus loin sans avancer jamais
Et de planète en planète
De nébuleuse en nébuleuse
Le don Juan des mille et trois comètes
Même sans bouger de la terre
Cherche les forces neuves
Et prend au sérieux les fantômes
Perdre
Mais perdre vraiment
Pour laisser place à la trouvaille
Perdre
La vie pour trouver la Victoire
sempre
Para Madame Faure-Favier
1 Sempre
Iremos mais longe sem nunca avançar
E de planeta em planeta
De nebulosa em nebulosa
O don Juan dos mil e três cometas
Mesmo sem sair da terra
Procura forças novas
E leva a sério os fantasmas
Perder
Mas perder pra valer
Pra dar lugar à descoberta
Perder
A vida para avistar a Vitória
fête
A André Rouveyre
Deux fusants
Rose éclatement
Comme deux seins que l’on dégrafe
Tendent leurs bouts insolemment
il sut aimer
10 quelle épitaphe
Dois clarões
Róseas explosões
Seios arrebitam no frio
Bicos eretos insolentes
ele soube amar
10 que epitáfio
Mais
orgues
aux fétus de la paille où tu dors
L’hymne de l’avenir est paradisiaque
noite de abril de 1915
Para L. de C.-C.
Mas
música de órgãos
no feno onde dormes
O hino do futuro é bem paradisíaco
l’adieu du cavalier
Je désire
Te serrer dans ma main Main de Massiges
Si décharnée sur la carte
Meu desejo
É segurar sua mão Main de Massiges
Tão macilenta no mapa
Il a l’Étoile du Benin
20 Mais du singe en boîtes carrées
Crois-tu qu’il y aura la guerre
Allô la truie
Ah! s’il vous plaît
Ami l’Anglais
Ah! qu’il est laid
Ton frère ton frère ton frère de lait
Tem tantas papoulas vermelhas
Por onde tanto sangue escorre
Mas o que deu na sua telha
É sangue bom só tá de porre
Mesmo sem um goró nem breja
Na aguinha só
Alô La Truie
au
Pé
ris
co
pe
pelo
Pe
ris
có
pio
On imagine difficilement
A quel point le succés rend les gens stupides et tranquilles
Écoutez la mer
Difícil imaginar
Como o sucesso torna as pessoas estúpidas e impassíveis
Ouçam o oceano
ÁLCOOIS
zona
a ponte mirabeau
açafrões
cantor
crepúsculo
Escrito em fevereiro de 1909 . Publicado pela primeira vez em Les
Argonautes (fevereiro de 1909 ) junto com “Saltimbancos”. Poema
composto de cinco quartetos em octossílabos (verso de oito sílabas,
um dos metros favoritos de Apollinaire). Muitas assonâncias, com
rimas ocorrendo de modo irregular de estrofe a estrofe. Poema
misterioso e, como “Annie”, “1909” e outros, traz uma mulher como
personagem (aqui, a Arlequina). O poema estabelece um diálogo com
as pinturas de Marie Laurencin (a quem o poema é dedicado),
Rousseau e Picasso, pela presença de arlequins, mágicos, feiticeiros,
cartas de tarô e animais. Anne Hyde Greet13 assinala que as imagens
sugerem a atmosfera de conto de fadas da temporada do poeta na
Alemanha e a poesia de Max Jacob. O crepúsculo ou lusco-fusco é
uma hora de ambiguidade, assinalando a morte do dia e o nascimento
da noite, passagem do sol para a sombra. Composição de atmosfera
simbolista, remete às performances dos acrobatas em “Um fantasma
de nuvens” e “Saltimbancos”. Carmody14 identifica ecos de versos de
Heine, Verhaeren, Marinetti e Rimbaud. A plateia de “especialistas”
(mágicos, encantadores, feiticeiras etc.) se reúne para julgar a
performance e os truques mágicos do Arlequim Trismegisto, que se
trismegista. Outros personagens aparecem durante a performance: um
cego ou cega acalentando um bebê, um asno, um anão duende, um
enforcado.
clotilde
cortejo
marizibill
o viajante
maria
branca de neve
o adeus
a porta
saltimbancos
a cigana
outono
signo
clair de lune
à saúde
Título: À La Santé traz um trocadilho: pode ser lido tanto como “Ao
presídio La Santé”, quanto o tradicional brinde “À sua
saúde!” (À votre santé!). Minha solução tenta preservar os
dois sentidos.
Linha 12 : Apollinaire ficou na cela 15 e não na 11 , como ele coloca,
para efeito de rima.
outono doente
hotéis
trompas de caça
CALIGRAMAS
laços
as janelas
paisagem
as colinas
árvore
carta-oceano
sobre profecias
o músico de saint-merry
a gravata e o relógio
um fantasma de nuvens
Título: faz referência à mitologia grega. O vilão Ixíon, rei dos lápitas,
é convidado para uma festa. Zeus percebe Ixíon assediando
sua esposa Hera e lhe prepara uma armadilha. Ele faz uma
réplica da esposa a partir de uma nuvem, dando-lhe o nome
de Néfele. Quando deixa a réplica sozinha, Ixíon de fato a
seduz, pensando ser Hera. Da transa de Ixíon e Néfele (a
nuvem) nasce a raça dos centauros. Greet: “Ixíon é o poeta
abraçando sua visão e, portanto, criando uma poesia que,
como os centauros, tem uma natureza híbrida, ao mesmo
tempo humana e divina”.70 No conto “O rei-lua”
Apollinaire nos dá mais uma pista para o poema: “Os
operadores novamente colocaram uma espécie de cinto que
segurava o dispositivo por uma ponta, e me pareceu que
todos eles devem ter se assemelhado à Ixíon quando ele
acariciou o Fantasma de Nuvens, a Juno invisível” (Juno é
equivalente à Hera). Greet sugere que a imagem do fantasma
feito de nuvens é um símbolo do otimismo trazido pelo novo
século, antes da Primeira Guerra, bem como da própria
poesia. Lembremos que o lema de Apollinaire era um
centauro (remetendo à Ixíon) e as palavras “Eu maravilho”.
A composição exemplifica o que pode ser chamado de
lirismo realista-mágico (rigoroso, preciso, nada arbitrário e
automático). O poeta transita livremente entre o que ele
observa e sua imaginação. Como ele escreve em Meditações
estéticas: “Os grandes poetas e os grandes artistas têm por
função social renovar incessantemente a aparência que a
natureza reveste aos olhos do homem”. Algumas imagens
foram retiradas de seu ensaio “Os jovens: Picasso, pintor”
(1905), sobre a pintura do espanhol.
Linhas 1-7: Assim como faz em outros momentos, quase como uma
marca registrada, Apollinaire incorpora textualmente a data
em que se passa a ação do poema. Catorze de julho é o
feriado nacional francês que comemora a Tomada da
Bastilha. Ocorrida em 1789 , ela deu início à Revolução
Francesa.
Linha 4 : A sugestão dos saltimbancos, acrobatas e mendigos remete
aos personagens que habitavam a pintura de Picasso das
fases azul e rosa. Essas figuras também aparecem em seus
poemas “Crepúsculo” e “Saltimbancos”.
Linha 14 : Longwy: cidade industrial no nordeste da França, na
fronteira com a Bélgica.
Linhas 30 2 - : O primeiro saltimbanco: alusão à aparência de meninas
nas telas de Picasso, sobretudo em Femme à la corneille.
Apollinaire observa algo de andrógino na figura dos
arlequins. Ele também escreve, no ensaio sobre Picasso:
“arlequins taciturnos têm as faces e as frontes emaciadas pela
sensibilidade mórbida”.
Linhas 37 41- : O segundo saltimbanco: Greet71 aponta aqui para uma
alusão ao “enforcado” e ao “Trismegisto” do poema
“Crepúsculo”. Ele carrega sua sombra, isto é, seu fantasma,
lembrando também o “homem sem face” de “O músico de
Saint-Merry”.
Linhas - : O terceiro saltimbanco: com a aparência de um bandido,
42 5
viagem
cruzando a europa
chove
Caligrama escrito no balneário de Deauville em julho de 1914 , pouco
antes dos eventos narrados no poema “O pequeno automóvel” e da
explosão da Primeira Guerra Mundial. Publicado pela primeira vez na
revista de vanguarda sic , n. 12 , dezembro de 1916 . Um dos poemas
mais amados, imitados e conhecidos de Apollinaire, antecipando-se a
movimentos como o letrismo, poesia concreta e poesia visual. Greet80
aponta possível influência, em seu arranjo vertical, de uma série de
quadros do pintor futurista Umberto Boccioni (Estados mentais:
aqueles que vão e Estados mentais: aqueles que ficam, de 1911 ). Ela
nota ainda que as linhas não só imitam e emulam a rapidez e a tristeza
da chuva como carregam um sentido de aventura e exploração
espacial. Os cinco versos, sem rimas finais, vertem-se verticalmente, ao
modo da escrita chinesa e japonesa, que Apollinaire estudou. Elas
podem ser visualizadas de várias maneiras: 1) a chuva caindo, 2) gotas
de chuva percorrendo uma vidraça, e 3) os cinco dedos de uma mão.
Faleiros81 chama a atenção para os “tremores tipográficos” das linhas,
que acentuam ainda mais o tom melancólico. Apesar de nitidamente
visual (fanopeia), é marcado por grande fluência e musicalidade. “Il
pleut” pode remeter ainda ao verso de Rimbaud, “Il pleut doucement
sur la ville” [Chove docemente sobre a cidade], e a “Il pleure dans
mon cœur/ Comme il pleut sur la ville” [Chora no meu coração/
Como chove sobre a cidade], de Paul Verlaine.
o pequeno automóvel
baforadas
em nîmes
sombra
“Sombra” foi escrito em fevereiro ou março de 1917 , no retorno de
Apollinaire a Paris, enquanto ainda se recuperava do ferimento da
cabeça e da cirurgia de trepanação. Primeira publicação no folheto O.
S. T. (Œuvre du Soldat dans la Tranchée) [A obra do soldado na
trincheira], distribuído na sua conferência em prol dos soldados em 16
de junho de 1917 . Versos livres, rimas ocasionais. Apollinaire
organizou os poemas de Caligramas em ordem cronológica, a exceção
sendo “As colinas” e “Sombra”. Como ambos foram escritos ou
finalizados em 1917 , eles deveriam estar junto com os últimos três
poemas desta seleção. Segundo o escritor Philippe Soupault (1897-
1990 ), ele procurou o poeta em seu apartamento para pedir uma
colaboração para uma antologia de escritos de soldados que estava
ajudando a organizar. O poeta se isolou algumas horas em seu
apartamento e entregou a peça para um atônito Soupault.
longe do pombal
Escrito em abril de 1915 , em Beaumont-sur-Vesle, onde seu regimento
se encontrava. Caligrama enviado a Lou, amante e correspondente de
Apollinaire.
Com algum esforço pode-se visualizar simultaneamente o caligrama
de uma harpa (símbolo de Orfeu, que dá ordem e harmonia ao caos
com sua lira, figura tutelar para Apollinaire), um formato bastante
abstrato de um coração invertido (formado pelas palavras “tocante
Leste”, o lado esquerdo do peito). A parte de cima da harpa
(constituída por “coroa”, “pescoço” e “ombro”) também pode ser
vista como uma das cobras que Apollinaire menciona em suas cartas.
sp
mira
cartão-postal
saliente
guerra
oráculos
sempre
festa
Escrito em maio de 1915 . Enviado para Lou em setembro de 1915 .
Primeira publicação em L’Élan, n. 10 , 1o de dezembro de 1916 .
Dedicado ao seu amigo André Rouveyre. Poema em octossílabos com
rimas alternadas a b a b na primeira, terceira e quarta estrofes (nas
demais ele varia a posição). Na minha tradução, mantive o esquema
de rimas e a métrica. Em 1o de setembro de 1915 Apollinaire foi
promovido a comandante de artilharia. De seu refúgio momentâneo
(uma pequena floresta a leste de La Salle), ele contempla o espetáculo
dos foguetes na noite de guerra, transformado num jardim das delícias
imaginário, percebido por todos os sentidos.
madeleine
o adeus do cavaleiro
no abrigo-caverna
desejo
oceano de terra
Escrito na primeira linha do front, em Trou Bricot, entre 19 e 23 de
dezembro de 1915 . Publicado pela primeira vez na revista Nord-Sud,
de Pierre Reverdy, em 12 de fevereiro de 1918 . Dedicado ao amigo e
pintor italiano Giorgio de Chirico (1888-1978, irmão de Alberto
Savinio, mencionado no começo da Introdução). De Chirico teria,
como Apollinaire, grande influência nos surrealistas. Escrito depois de
o poeta ser transferido para as trincheiras de Champanhe, tem um
tom de urgência, uma atmosfera de sonho ou pesadelo, com o poeta
explorando, como sempre, a musicalidade das palavras. Preocupação
com a segurança, com a urgência vital do refúgio, presente também
em “O palácio do trovão” e “No abrigo-caverna”. Ele vai elaborar
aqui a imagem do “mar de brancas espumas” do poema anterior.
maravilha da guerra
Escrito em dezembro de 1915 . Publicado pela primeira vez em La
Grande Revue (11 de novembro de 1917 ). A guerra surge como um
grande espetáculo ou fantasia (circo com acrobatas, cabarés com
dançarinas, espetáculo astronômico, um banquete).
exercício
há
simultaneidades
mil espécies).
Linha 22 : Cor: uso aqui uma palavra arcaica para coração. Daí vem a
expressão “de cor” (do coração, de memória). Na metáfora
bélica-amorosa projecteur du cœur temos dois sentidos aqui:
refere-se aos holofotes e refletores militares usados no campo
de batalha para combates noturnos e também ao projetor,
aparelho para projeção de imagens em uma tela. Em
português “projetor” cobre os dois sentidos: de holofote e
qualquer aparelho de projetar filme, vídeo etc.
Linha 25 : Phare-fleur: farol-flor. Apollinaire funde duas palavras em
uma, separadas apenas pelo hífen. Em português, resulta
quase em um anagrama perfeito. Há uma múltipla
sobreposição de imagens sugeridas por esses versos: a luz do
coração + a luz do farol (o projetor militar) + as luzes do
teatro de guerra + a luz dos olhos de Madeleine.
Linha 27: Tirs: tiros. Tiroteio: uso a palavra no exato sentido de “fogo
de fuzilaria em que os tiros são disparados em quantidade e
em sequência”.
Linhas 27 9 - : Apollinaire faz uma fusão cinematográfica: os clarões no
céu noturno (proporcionados pelas bombas, foguetes,
sinalizadores etc.) e os brilhos vivazes disparados pelos belos
olhos de sua amada.
cartão-postal
recordações
cavalos de frisa
comandante de pelotão
vitória
Publicado na Nord-Sud em 15 de março de 1917 . Escrito
especialmente para o primeiro número da revista do poeta Pierre
Reverdy. Poema em versos livres, sendo um dos últimos escritos por
Apollinaire. Aqui, ele delineia, como em “A ruiva bonita”, um poema-
manifesto pela renovação da linguagem poética. Notar o uso da
técnica da “linha flutuante” (usada com maestria pelo Mallarmé do
“Um lance de dados”). A indeterminação sintática, dada pela abolição
da pontuação, impregna o poema de uma atmosfera de sonho.
Greet143 chama a atenção de como, novamente, ele antecipa o
surrealismo ao fundir sonhos e memórias, sendo capaz de captar
vários níveis de consciência (o que a mente observa, o que é sonhado,
ou um comentário analítico e objetivo). Outro predecessor dessa
prática de justaposições inusitadas seria o uruguaio Isidore Ducasse, o
conde de Lautréamont (1846-70), em sua famosa descrição de um
garoto “belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma
máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”. A ausência de
pontuação certamente potencializa a fusão desses níveis, às vezes
numa mesma linha (1-2), além de dar dinamismo ao texto. Se nos
caligramas Apollinaire propõe uma poesia visual, espacial e
sinestésica, aqui ele expressa, com ironia, o desejo de incorporar todos
os sons humanos (tosses, risadas, espirros, gaguejos, peidos, soluços
etc.), questionando a prioridade do sentido sobre o som (ele fala de
uma língua fora do alcance dos gramáticos).
Linhas -
3 5 e -
19 20 : Como em “Zona”, “Crepúsculo” e “Árvore”
reaparece o tema dos cegos, aqui fundido no mito de Ícaro.
Este, por sua vez, associado aos santos e aos modernos
aviadores, como ele faz frequentemente em sua poesia.
Linha 7: Diamant qui parle: diamante falante, referência a Jacqueline
Kolb, última mulher de Apollinaire e cujo apelido era Ruby.
Linha 10 : Saint-Claude: povoado francês localizado na cordilheira do
Jura, na fronteira com a Suíça, famoso no século xix como
centro mundial de cortadores de diamantes e pedras
preciosas. Apollinaire visitou a região em junho de 1912 ,
acompanhado dos pintores Picabia e Duchamp.
Linha 19 : Instituto de Jovens Cegos, fundado por Valentini Haüy
(1745-1822) para promover, dar dignidade e educação para
jovens deficientes visuais. É mencionado aqui em uma crítica
velada ao capitalismo, ao mercantilismo das instituições. O
jovem cego de asas seria, para Greet, uma imagem para o
Amor (possivelmente Dédalo também). Nesse trecho há
possível alusão ao seu amigo, o pintor Giorgio de Chirico,
que escreveu: “você só pode ver de olhos fechados” (lema
retomado depois pelos surrealistas). Alusão a cegos
visionários, como Homero. Ecos do segundo verso do poema
“Árvore”: “Onde estão os cegos onde se meteram”.
Linhas 21 62- : Esse trecho, matéria de debates, toca na questão da
linguagem, da necessidade de romper com a sintaxe
tradicional, da busca por novas formas e vocabulários
poéticos. Apollinaire expressa uma posição algo ambígua
sobre o cinema (novidade então recente), sobre os
experimentos com poesia sonora da época e sobre os limites
do experimentalismo verbal.
Linhas 29 59 - : Referência, com um leve toque de ironia, às
experiências da vanguarda com poesia sonora, como o
ruidismo e o bruitismo dos futuristas italianos (Carrà,
Marinetti), o zaum da vanguarda russa, ou ainda aos
dadaístas, que estavam chegando à cena literária parisiense.
Linha 31 : Postilhões: a palavra significa “mensageiros”, mas, pelo
contexto, está mais próxima do sentido de “lançar
perdigotos” (“lancer des postillons”), gotículas de saliva
projetadas ao falar.
Linhas 46 51- : Apollinaire convida-nos a nos surpreender e amar as
invenções recentes (o que ele chamava de “a beleza nova”),
porque, em breve, ninguém o faria, elas “sairiam de moda”
ou seriam substituídas por outras.
Linha 62: Myrtaie: cunhagem de Apollinaire, bosque de murta
(plantas com flor, da família das Myrtaceae). Na mitologia
grega, a murta era consagrada a Afrodite.
Linha 63 : Éros et Antéros: título de uma história escrita por
Apollinaire. Trecho hermético. Eros, deus do amor, remete
ao jovem cego das linhas 3, 19 e 20 , para Greet, assim como
sua figura antitética, Anteros (“vingador do amor
desprezado”, segundo Plínio, em seu livro História natural.
Anteros era também o nome de uma pedra preciosa (imagem
que remete, por sua vez, ao “diamante murmurante” ou
“rubi falante” da linha 7).
Linhas 89 93- : Novamente, Apollinaire funde guerra (que ainda
prosseguia) e a vanguarda poética (o espiritonovismo).
a ruiva bonita
Notas
fev 2021.
131. “Pensamentos soltos sobre as Meditações estéticas de Apollinaire”. Trad. de
Flávia Nascimento Falleiros, Lettres Françaises, Araraquara, Unesp, v. 2, n. 20, p.
286, 2019 . Disponível em: <periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/13566>.
Acesso em: 15 jan. 2021.
132. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 486.
133. Ibid., p. 486.
134. Ibid., p. 487.
135. Ibid., p. 485.
136. Ibid., p. 487.
137. Ibid., p. 488.
138. Ibid., p. 489.
139. Ibid., p. 492.
140. Ibid., p. 495.
141. Ibid.
142. Guillaume Apollinaire, La Femme assise. Paris: nrf, p. 35.
143. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
498 .
144. Jorge Luis Borges, “O espírito novo e os poetas”, em Willard Bohn,
Apollinaire and the International Avant-Garde. Nova York: State University of New
York, 1997, p. 245.
145. Atribuído a Bernard de Chartres por John of Salisbury em Metalogicon
(1159), livro iii , capítulo 4 , apud Édouard Jeauneau, História breve da filosofia
medieval. Lisboa: Verbo, 1968.
146. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 506.
147. Ibid., p. 507.
Cronologia
-
1896 8 Janeiro: morre Verlaine. Apollinaire passa a estudar no
Colégio Stanislas, em Cannes. Como acontecerá na guerra, sua
adaptação ao novo ambiente será rápida. Conhece Toussaint-
Luca. Angelica conhece Jules Weil em um cassino. Judeu de
Estrasburgo, ele é dez anos mais novo do que ela. Será seu
companheiro até a morte. Weil se muda para a casa de
Angelica, Guillaume e Albert. Os quatro passam uma
temporada em Aix-les-Bais e Lyon. Apollinaire lê
compulsivamente. Escreve e publica os primeiros poemas, sob o
pseudônimo de Guillaume Macabre.
10 de dezembro de 1896 : estreia em Paris o esquete dramático
Ubu rei, de seu futuro amigo Alfred Jarry.
Maio de 1897 : Marconi envia a primeira mensagem telegráfica
em mar aberto. Mallarmé publica o poema revolucionário “Um
lance de dados jamais abolirá o acaso” na revista Cosmopolis.
Julho de 1897 : não passa no baccalauréat (exame que lhe
possibilitaria ingressar no ensino superior). Desiste de
prosseguir com os estudos. É o fim de sua carreira de estudante
“oficial”. Tem mais tempo livre para vadiar, estudar, ler e
escrever. O jovem Kostrowitzky frequenta a biblioteca
municipal e sua bela coleção de livros e revistas. Sonha em se
tornar jornalista. Interesse pelo anarquismo. Defesa ferrenha
do capitão Dreyfus, injustamente acusado de espionagem, num
caso célebre. Apollinaire fica fascinado com o fenômeno da
acusmatia (escuta atenta de um som cuja origem está oculta ou
se ignora e que com o aparecimento do rádio, do telefone e do
gramofone se torna realidade). “Fofocas ouvidas com um
ouvido indiscreto, palavras proferidas por santos e condenados,
vozes de poetas e profetas, todas as formas de fala o
encantavam”, descreve Laurence Campa (op. cit., p. 51 ). Esse
fenômeno alimentará, futuramente, seus “poemas-conversas” e
seu conceito de “lirismo ambiente”. Uma multiplicidade de
temas e assuntos lhe interessa: biografias, etimologia, catálogos,
jornais de medicina, livros de linguística, contos de fadas
(Grimm, Perrault), romances de aventuras, gramáticas e livros
de viagens. Como leitor, passa de um tema a outro, exercitando
a rápida associação de ideias, que será outra marca de sua
poesia. Descobre pássaros fabulosos no Journal Asiatique, que
vão figurar em sua poesia futura (como o pi-mu e o pihi).
Apaixona-se pelo formato das letras, pela caligrafia hebraica,
sânscrita e pelo ideograma chinês, que o inspirarão para a
aventura futura dos “caligramas”. Desenha e ilustra suas
próprias histórias. Compila formas fixas, acrósticos, lê poesia
síria, chinesa e coreana. Gosto por canções populares
compostas “na verdadeira língua francesa”. Encanta-se com o
charme da assonância e a inocência da rima, como mostra
Laurence Campa (op. cit., p. 52 ). Nesse período também
conhece o Inferno, de Dante, e Macbeth, de Shakespeare, os
versos de Samain e Jean Lorrain. Aprofunda-se nas leituras de
La Fontaine, Vigny, Leconte de Lisle, Baudelaire, Mallarmé,
Rimbaud, Verlaine e os simbolistas (Gustave Kahn, Moréas,
Maeterlinck, Vielé-Griffin etc.). Na prosa, descobre Balzac,
Zola, Tolstói e, sobretudo, Nerval (Sylvie).
1898 : Em Paris, primeira incursão de Santos Dumont com
ascensão aerostática.
9 de setembro: morre Mallarmé.
1899 Abril: Angelica muda-se para Paris com os filhos e Jules Weil. A
torre Eiffel, símbolo da modernidade e da belle époque, é
terminada. O jovem de dezenove anos maravilha-se com a
Cidade Luz. Total instabilidade econômica. Wilhelm frequenta
a biblioteca Mazarine e prossegue sua autoeducação. Decide
assumir, como elegante nom de plume, Guillaume Apollinaire
(seus prenomes, Wilhelm e Apollinaris, afrancesados), uma
referência também a Sidônio Apolinário, poeta gaulês-romano,
de língua latina, contemporâneo da decadência de Roma
(século v), e a Apolo (uma das principais divindades da
mitologia greco-romana, deus da poesia, da beleza, da
perfeição, da harmonia, do equilíbrio e da razão).
Julho: a mãe se muda para Spa e Ostende, na Bélgica, para
juntar-se a Jules nas jogatinas. Os filhos são instalados na
pensão Constant, em Stavelot, um vilarejo encravado na
fronteira da Prússia com a Bélgica. Primeira paixão: uma nativa
chamada Marie Dubois (“Mareye”). Nas “férias” de três
meses, explora a região a pé, descobre as lendas das Ardenas e
se encanta com o dialeto valão. Escreve contos e poemas. Data
dessa época a redação de “Que vlo-ve?” e L’Enchanteur
pourrissant (O mago apodrecido). Angelica tem seu acesso
barrado no Cassino de Spa e, tendo perdido tudo na jogatina,
volta para Paris, largando os filhos na pensão.
5 de outubro: sem dinheiro para pagar a conta, os dois irmãos
são instruídos pela mãe a fugirem. De noite, atravessam sete
quilômetros de montanha e floresta, até pegarem o trem em
Roanne-Coo. Conseguem chegar a Paris e se unem à mãe, que
está morando num hotel na rua Constantinople, no 9.
Novembro: a polícia localiza os Kostrowitsky. São
interrogados por um juiz sobre o calote na pensão em Stavelot.
Angelica promete pagar a conta.
pp. 37 , 252 , 268 , 272 , 280 , 286 , 290 , 292 , 310 , 356 e 370 :
Calligrammes: poèmes de la paix et de la guerre (1913-1916), de
Guillaume Apollinaire. Paris: Mercure de France, 1918 . Beinecke Rare
Book and Manuscript Library, Yale University
Penguin and the associated logo and trade dress are registered
and/or unregistered trademarks of Penguin Books Limited and/or
Penguin Group (usa) Inc. Used with permission.
preparação
Jane Pessoa
Luís Eduardo Gonçalves
versão digital
Rafael Alt
isbn 978-85-8285-200-2