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Zona e Outros Poemas - Guillaume Apollinaire

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Sumário

Capa
Folha de rosto
Sumário
Sobre o autor

Introdução — Rodrigo Garcia Lopes

ÁLCOOIS — POEMAS (1898-1913), 1913


Zona
A ponte Mirabeau
Açafrões
Cantor
Crepúsculo
Annie
A casa dos mortos
Clotilde
Cortejo
Marizibill
O viajante
Maria
Branca de Neve
Poema lido no casamento de André Salmon
O adeus
A porta
Saltimbancos
A cigana
Outono
Signo
Clair de Lune
1909

À Saúde
Outono doente
Hotéis
Trompas de caça

CALIGRAMAS — POEMAS DA PAZ E DA GUERRA, (1913-


)
1916 , 1918

Laços
As janelas
Paisagem
As colinas
Árvore
Segunda-feira rua Cristina
Carta-oceano
Sobre profecias
O músico de Saint-Merry
A gravata e o relógio
Um fantasma de nuvens
Coração coroa e espelho
Viagem
Cruzando a Europa
Chove
O pequeno automóvel
Bandolim cravo e bambu
Baforadas
Em Nîmes
A pomba apunhalada e o chafariz
Vigia
Sombra
Longe do pombal
sp

Mira
Cartão-postal
Saliente
Guerra
Oráculos
Os suspiros do atirador de Dakar
Sempre
Festa
Madeleine
Noite de abril de 1915
O adeus do cavaleiro
O palácio do trovão
No abrigo-caverna
Desejo
Canção do Horizonte em Champanhe
Oceano de terra
Maravilha da guerra
Exercício

Simultaneidades
Algodão nas orelhas
Cartão-postal
Leque dos sabores
Recordações
Cavalos de Frisa
Comandante de pelotão
Tristeza de uma estrela
A vitória
A ruiva bonita

Comentários
Cronologia
Créditos das imagens
Créditos
ZONA
e outros poemas

guillaume apollinaire (1880-1918), pseudônimo de Guglielmo


Alberto Wladimiro Alessandro Apollinare de Kostrowitzky, foi um
poe­ta, ficcionista, ensaísta e crítico francês de origem polonesa.
Nascido em Roma, Itália, filho de uma polonesa de ascendência
aristocrática e de um pai desconhecido, Apollinaire foi um dos
principais inovadores da poesia do século xx , aproximando-se de
vários movimentos de vanguarda artística. Inventou os termos
“orfismo”, “caligrama” e “surrealismo”, além de ter dado visibilidade
a outros, como “cubismo”.
Apollinaire viveu uma vida social efervescente em Paris, cercado de
artistas com os quais colaborou, como Pablo Picasso, Jean Cocteau e
Marcel Duchamp. Seus escritos têm uma característica proteica e
experimental, abraçando uma pletora de influências, arriscando-se em
poemas longos, criações visuais, diagramações excêntricas e
explorando a fragmentação da linguagem e a imaginação, ao mesmo
tempo que buscam aproximar a arte da vida.
Guillaume Apollinaire serviu na Primeira Guerra Mundial como
oficial de infantaria, onde sofreu um ferimento do qual nunca se
recuperou por completo. Faleceu em 1918 , vítima da pandemia de
gripe espanhola que assolava a Europa.

rodrigo garcia lopes (Londrina, 1965 ) é poeta, romancista,


tradutor e compositor. Publicou Solarium (1994), visibilia (1996),
Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio realidade (2013),
Experiências extraordinárias (2015) e O enigma das ondas (2020).
Seu romance policial-histórico O trovador foi finalista do Prêmio São
Paulo de Literatura 2015 na categoria melhor livro do ano — autor
estreante (mais de quarenta anos). É autor do livro de entrevistas
Vozes & visões: Panorama da arte e cultura norte­-americanas hoje
(1996) e do ensaio Roteiro literário: Paulo Leminski (2018). Como
tradutor, publicou Sylvia Plath: Poemas (1990) e Iluminuras:
Gravuras coloridas, de Arthur Rimbaud (1994), ambos em parceria
com Maurício Arruda Mendonça; Mindscapes: Poemas de Laura
Riding e O navegante [The Seafarer], poema anônimo anglo-saxão do
século x (2004); Folhas de relva (A primeira edição — 1855 ), de Walt
Whitman (2005); Ariel, de Sylvia Plath (com Cristina Macedo, 2007 );
Epigramas, de Marco Valério Marcial (2017). Em 2019 Roteiro
literário: Paulo Leminski foi um dos três vencedores do Prêmio
Literário da Biblioteca Nacional na categoria ensaio literário. Em
2023 publicou pela editora Kotter Poemas coligidos (1983-2020),
reunindo toda a sua poesia até então. Tem dois álbuns de composições
autorais: Polivox (2001) e Canções do estúdio realidade (2013), e
quatro livros publicados na Itália e em Portugal.
Introdução

rodrigo garcia lopes

1.

apollinaire: o anjo da vanguarda

“Você é um homem-época.”
Assim o compositor e escritor Alberto Savinio definiu, em 1916 ,
Guillaume Apollinaire, um dos principais poetas do século xx e hoje
um dos mais populares da França. De fato, não há como falar de
poesia francesa e modernista, de movimentos de vanguarda
internacional na pintura e na literatura, de revolução e
experimentação verbal, sem mencionar Apollinaire. Como escreve
Paul Auster,

ele, mais do que qualquer outro artista de seu tempo, parece incorporar as
aspirações estéticas da primeira parte do século xx . Em sua poesia, que vai de
graciosos poemas líricos até corajosos experimentos, da rima ao verso livre aos
poemas “figurados”, ele manifesta uma nova sensibilidade, ao mesmo tempo
tributária das formas do passado e entusiasmadamente confortável no mundo dos
automóveis, aeroplanos e do cinema.1
Instalado em Paris, então com quase 3 milhões de habitantes, ele
abraçou com entusiasmo a aventura da modernidade e nela se fundiu,
questionando e tensionando a relação entre arte e realidade,
concentrando todo o espírito de mudança daquele período mágico e
efervescente: a belle époque (1871-1914). Uma era de relativa paz, de
euforia e otimismo, da segunda revolução industrial, do auge do
imperialismo, expansão colonial, nacionalismos e começo da
globalização. De invenções e descobertas tecnológicas (eletricidade,
aço, produtos químicos, motores, fonógrafo, telefone, telégrafo sem
fio, avião, automóvel, metrô, trens elétricos, transatlântico, barco a
vapor, submarinos). Uma época de descobertas no campo da ciência e
da física (raios x, radioatividade, elétrons, núcleo atômico, energia
quântica), da revolucionária teoria da relatividade de Einstein e de
investigações na mente humana (a psicanálise de Freud). De grandes
obras artísticas em todas as áreas: só na música temos composições
importantes de Ravel, Fauré, Debussy, Stravinsky, Prokofiev,
Schönberg e Satie, amigo de Apollinaire. Na pintura, os artistas se
libertam de séculos de “tirania” da perspectiva linear que imperava
desde o Quattrocento. Múltiplas possibilidades surgiam desse estado
de coisas. Ele estava atento a todas, capturando-as para sua própria
obra. Como descreve Roger Cardinal, “em seu apogeu, à beira da
Grande Guerra Mundial, Guillaume Apollinaire era como uma aranha
inquieta no centro de uma teia cosmopolita, monitorando ciosamente
cada tremor de novidade através do mapa cultural e, por sua vez,
projetando uma influência irresistível sobre a vanguarda
internacional”.2
Muitos artistas de seu tempo sentiam que os antigos instrumentos e
formas consagradas pela tradição não eram mais suficientes para
capturar o mundo e suas rápidas mudanças. Uma nova mente, uma
nova percepção do tempo e do espaço exigiam novas formas artísticas
e poéticas. Na poesia, como indica o título do célebre estudo de
Michel Décaudin, havia uma crise dos valores simbolistas.
Obviamente, Apollinaire e a vanguarda encontraram forte oposição,
não só dos defensores da tradição quanto do público em geral, ainda
presos aos cânones do passado (classicismo, romantismo e
simbolismo).
Organizando exposições, fazendo crítica de arte (ele pre­feria o
termo “escritor de arte”)3 em contato com artistas de outros países e
agitando a vida cultural parisiense, o poeta foi o principal crítico a
firmar as reputações de Picasso, Braque, Delaunay e uma pletora de
artistas. “Apollinaire se destaca como o mais magistral inovador em
uma geração febrilmente devotada à experimentação não porque suas
ideias fossem as mais originais, mas porque ele tinha o gênio criativo
de transformar conceitos estéticos que estavam em circulação em uma
poesia poderosa e atraente”, escreve com propriedade S. I. Lockerbie.4
“Central entre todas essas ideias estéticas estava a noção de que a
obra de arte moderna devia refletir de modo adequado a natureza
global da consciência contemporânea.”
É preciso dizer que Apollinaire era radicalmente avesso a qualquer
ideia de “escola poética” ou petites chapelles (“capelinhas”, como ele
chamava as tendências de sua época).5 Embora tenha sido um dos
primeiros a usar as palavras “cubismo”, “surrealismo”, “caligramas”
e “orfismo”, não gostava de ser rotulado (“futurista”, “fantasista”,
“cubista”). Suspeitava de sistemas, dogmas e regras,6 preferindo
valorizar as sínteses únicas conseguidas por cada criador, fosse ele
pintor ou escritor. Em “Simultaneísmo-letrismo” (1914), ele
constatava: “O número de escolas poéticas aumenta todos os dias.
Quase não há nenhuma em que eu não tenha sido colocado durante
um tempo, de boa ou má vontade”.7
Embora não comungasse da destruição do passado e dos museus,
muito menos execrasse a tradição (como Marinetti e os futuristas
italianos), talvez Apollinaire seja o poeta mais representativo daquilo
que Marjorie Perloff chamou de momento futurista: “a breve fase
utópica do primeiro modernismo, quando artistas sentiam estar no
limiar de uma nova era que seria mais excitante, mais promissora,
mais inspiradora do que nenhuma outra”.8 Como vemos em “O
pequeno automóvel” (1914), mesmo o anúncio da explosão da
Primeira Guerra Mundial é recebido pelo poeta-jornalista com um
entusiasmo quase infantil:

Demos adeus a toda uma época


Gigantes furiosos se erguiam sobre a Europa
[…]
Chegamos em Paris
No momento em que pregavam cartazes de mobilização
E então eu e meu parceiro percebemos
Que o pequeno automóvel havia nos conduzido a uma Época
Nova
E embora fôssemos homens-feitos
Tínhamos acabado de nascer

Versos proféticos. Bradbury e Macfarlane nos lembram:

pouca gente, mesmo entre os soldados, fazia alguma ideia do que significaria uma
guerra tecnológica moderna, não só para os indivíduos, mas para sociedades
inteiras. Poucos achavam que a Primeira Guerra Mundial se prolongaria além do
Natal: ninguém imaginava, quando ela finalmente terminou, que a Europa de
1914 teria desaparecido para sempre.9
Mesmo sem ter a obrigação de se alistar, por ser estrangeiro, o
italiano Apollinaire faz de tudo para ir à guerra defender seu país de
adoção. Ele parece se alistar como se fosse para uma colônia de férias,
sem imaginar o que encontraria na região da Champanhe a partir de
1915 . Totalmente adaptado à caserna, depois de meses de treinamento
intensivo, ele estava na Frente Ocidental,10 com seu bom anjo de
vanguarda, transformando a experiência­-limite da guerra em poesia, o
espetáculo da morte em vida, em linguagem viva. Seus poemas de
guerra, pouco explorados, estão entre os mais atordoantes que alguém
jamais escreveu, oferecendo uma “rendição total da linguagem ao
momento imediato”.11 São provas vivas de que o “eu lírico” e o
lirismo não morreram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

da vanguarda a no man’s land

Eu sou a branca trincheira de corpo branco e oca


Eu moro em toda a terra devastada
(“A trincheira”)12

Alguém já disse que, se Guillaume Apollinaire não tivesse existido,


teria que ser inventado. O próprio ítalo-russo-polaco Wilhelm de
Kostrowitzky se encarregou da tarefa por volta de 1900, quando criou
sua identidade poética e um dos mais belos e sonoros pseudônimos da
literatura. “Forasteiro das letras francesas”,13 como o chamou sua
biógrafa Laurence Campa, arauto das vanguardas, ele teve uma vida
que pode ser lida como uma novela de aventuras. Apenas alguns fatos
já a justificariam. Vejamos:
Um apátrida até pouco antes de morrer, italiano descendente de
uma ancestral família aristocrata polonesa, bisneto de um soldado
ferido enquanto lutava pelas tropas do tsar em Sebastopol, neto de um
“camareiro secreto de espada e capa”14 do papa. Pai desconhecido,
tido às vezes como sendo um oficial aristocrata suíço-italiano cujo
nome ele nunca soube e que “desapareceu” em 1885 . Filho de uma
mãe de temperamento forte e independente, aventureira e entraîneuse
de cassinos. Infância e adolescência na Côte d’Azur, em contato com a
natureza, se aventurando em caminhadas de exploração. A descoberta
da literatura e dos clássicos, da poesia, do esoterismo, do hermetismo,
das religiões e do anarquismo. Uma vida itinerante por cidades onde
havia cassinos. A descoberta de Paris, uma fuga após ele e seu irmão
darem um calote em uma pensão na Bélgica (ideia da mãe, que já
estava em Paris). Um ano de sonho como tutor de uma viscondessa
alemã da Renânia, quando explora a região e visita várias cidades e
museus da Europa em viagens culturais (a visita a um cemitério em
Munique inspira “A casa dos mortos”). Uma paixão tórrida e
desesperada pela governanta inglesa Annie Playden, colega de
trabalho. O retorno a Paris, a vida precária, os múltiplos empregos, a
febril atividade de jornalista e freelancer. Duas viagens infelizes a
Londres para tentar conquistar Annie. A convivência com círculos
literários e artísticos de Paris. A amizade com Pablo Picasso, Alfred
Jarry, Henri Matisse, Max Jacob, Marc Chagall, Marcel Duchamp,
Marie Laurencin, Francis Picabia, Henri Rousseau, Erik Satie, Georges
Braque e uma série de artistas que, tendo-o como porta-voz e
articulador, fará uma revolução nas artes. As polêmicas, os
quilômetros de telas vistos nos salons, o resgate histórico da obra de
Sade (então completamente esquecido). Apollinaire, o grande
contador de histórias, sempre bem-humorado, flâneur incansável,
boêmio, gourmand, onipresente, erudito e malandro, crítico de arte
respeitado. Sua relação turbulenta com a pintora Marie Laurencin, a
fama internacional crescente coroada por um escândalo que a
potencializa: a prisão por suspeita de estar associado ao
desaparecimento da Mona Lisa do Museu do Louvre (um dos maiores
roubos da história da arte, episódio rocambolesco e digno de filme),15
como contamos na Cronologia.
Nos últimos quatro anos de vida, a explosão da Primeira Guerra
Mundial traz uma última metamorfose: a do poeta modernista em
poeta-soldado, da vanguarda artística para a vanguarda real.16 Um
livro de poemas lançado em pleno front,17 a curta distância do
inimigo alemão, os bombardeios permanentes, a carnificina, os
horrores da guerra e, enfim, o ferimento na cabeça provocado por
estilhaços de um obus. É o fim da guerra para ele. Seguem-se uma
lenta recuperação e um período de depressão e ópio (para aliviar a
dor), o difícil retorno à vida artística parisiense, o casamento com
Jacqueline Kolb. O poeta escaparia de uma hecatombe para entrar em
outra. Em 1918 , com apenas 38 anos e imunidade baixa, é vítima da
pandemia mundial da gripe espanhola. Seis dias depois de contraí-la,
em seu apartamento no Boulevard Saint-Germain, exige que o médico
salve sua vida, pois ainda tem “tantas coisas para dizer”. Ele morre
em 9 de novembro, dois dias antes do armistício. Reza a lenda que, de
seu apartamento, em delírio, ele teria ouvido a multidão frenética
comemorando o fim da Primeira Guerra Mundial, aos gritos de “À
bas Guillaume!” (“Abaixo Guilherme”, em referência ao seu
homônimo, o kaiser alemão Wilhelm ii ). O saldo de quatro anos de
conflito: 20 milhões de mortos, 21 milhões de feridos e uma Europa
arrasada. Jacques Vaché, escritor, desenhista e um dos inspiradores do
surrealismo, resume o impacto do desaparecimento precoce de
Apollinaire em uma carta a André Breton: “Já foi dito, mas deve ser
repetido: ele marca uma era. As coisas bonitas que podemos fazer —
agora!”.18

novela de formas

Assim como sua vida, a poesia de Apollinaire também pode ser lida
como uma novela de aventuras formais, marcada por uma grande
radicalidade e diversidade de experimentações verbais. Começa
metrificada e rimada, sob os eflúvios da poesia medieval, romântica e
simbolista. Dialogando com as tendências artísticas que ele ajudou a
divulgar e formular (futurismo, fauvismo, cubismo, simultaneísmo,
orfismo, dramatismo, unanimismo, paroxismo), ele se lança ao verso
livre com peças como “Cortejo”, “Viagem”, “Poema lido no
casamento de André Salmon” e “Zona”. Experimenta poemas mais
discursivos e narrativos com “A casa dos mortos” e “Um fantasma de
nuvens”. Em 1913 , cria os poèmes-conversations, que captam o
“lirismo ambiente” (“Segunda­-feira rua Cristina”), os “poemas-
passeios” e os “poemas simultaneístas” e “órficos” da magnífica seção
“Ondas” (clássicos como “As janelas”, no qual diz ter desenvolvido
“uma estética toda nova”, “Cruzando a Europa” e “O músico de
Saint-Merry”).
Em 1914 , pouco antes da explosão da guerra e em pleno debate
sobre simultaneísmo, que sacudia os círculos artísticos de Paris,
desenvolve a escrita-imagem dos “ideogramas líricos” ou
“caligramas”19 (palavra que ele criou), em realizações-síntese como
“Carta-oceano”. A novela formal de Apollinaire tem seu clímax nos
poemas de guerra (ver “Algodão nas orelhas”), terminando com os
poemas longos “As colinas” (45 quintetos em octossílabos), “Vitória”
e “A ruiva bonita”, compostos sob os princípios do “Espírito Novo”
(seu termo para modernismo). Seus últimos poemas não deixam de
trair um clima de fim de festa, de acerto de contas, como se ele intuísse
que fosse morrer logo, mesmo tendo sobrevivido à guerra.
Sua obra oferece um panorama complexo da poesia de 1898 a
1918 . Os poemas mais antigos de Álcoois foram escritos no mesmo
ano da morte de Mallarmé e os últimos de Caligramas, em 1918 ,
meses antes do lançamento do “surrealismo” (outro termo cunhado
por ele) e em pleno desenvolvimento do dadaísmo (lançado em 1916 ).
Portanto, sua obra poética é sintomática das grandes transformações
ocorridas na poesia francesa depois de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud
e Mallarmé. Ela vai influenciar e informar o surrealismo (Breton &
cia.), o ultraísmo (Huidobro, Girondo, Borges, Guillermo de La
Torre), o Espírito Novo, a poesia beat (Ginsberg,20 Ferlinghetti), a
Escola de Nova York (Ohara, Ashbery, Padgett). Vai impactar
escritores como Kafka e Beckett (que traduziu “Zona” para o inglês
com brilhantismo), poetas singulares como Giuseppe Ungaretti, Juan
Tablada, e.e. cummings, Louis Zukofsky, Paul Celan, o modernismo
brasileiro e a poesia concreta, o letrismo e a poesia minimalista, entre
outros autores e tendências poéticas do século xx.
Por aqui, excetuando alguns estudos acadêmicos, ainda faltam
livros que tentem traçar e identificar a presença de Apollinaire na
poesia brasileira. O fato é que ele ampliou a percepção do que é
poesia e poema. Foi um genuíno poeta inventor, criador de novas
formas de escrever poesia e de processos poéticos. “Zona” é tido
como o poema mais representativo da poesia modernista do começo
do século xx. Para uma de suas principais biógrafas, Laurence Campa,
“Apollinaire ensinou os poetas a escreverem com suas próprias leis.
Sua independência das regras de composição, das hierarquias, dos
gêneros e fontes de inspiração traz uma renovação geral da linguagem
poética como não se via desde Rimbaud e Mallarmé”.21 Foi um
investigador de formas-conteúdos, ao mesmo tempo ambicionando ser
lido pelo maior número de pessoas dos mais diversos backgrounds.
Sonhou com uma poesia que transcendesse raças e nações. É o que ele
revela em carta enviada do front a Madeleine Pagès, em novembro de
1915 : “Gostaria que meus versos fossem amados por um boxeador
negro americano, uma imperatriz da China, um jornalista boche,22 um
pintor espanhol, uma jovem de boa linhagem francesa, uma jovem
camponesa italiana e um oficial inglês das Índias”.23
Ter transitado com desenvoltura por gêneros como jornalismo,
romance, conto, crítica de arte e literária, crônica, peças de teatro,
ensaio, manifestos, traduções, ter feito ghost-writing e até mesmo
roteiro de filme foi fundamental para a imediatidade e versatilidade de
seu verso. Sábio, destilou todas essas experiências na sua poesia,
borrando as fronteiras entre linguagem “poética” e linguagem
comum, arte e vida. Era um poeta intuitivo e rigoroso ao mesmo
tempo. Esteve longe de qualquer “automatismo psíquico” (adotado
posteriormente à sua morte pelos surrealistas). Vários estudiosos e
comentaristas de sua obra (Michel Décaudin, Claude Debon) já
demonstraram, por análise genética, os longos processos de
composição e edição de seus manuscritos.
A aparência improvisacional de alguns de seus poemas camuflam
anos de estudo e elaboração. Como explica Michel Décaudin: “Exceto
para poemas ocasionais ou epistolares, Apollinaire não improvisa, ele
deixa o trabalho amadurecer, às vezes por bastante tempo”.24 O dublê
de jornalista e poeta dominava os múltiplos recursos da linguagem
poética, bem como a tipografia, os espaços em branco e o layout do
poema na página. Tinha profunda consciência da poesia como “arte
da linguagem verbal” e era um crítico atento da escrita de seu tempo.
Ele sempre lembrava a origem da palavra poiētḗs (“fazedor”,
“artesão”) para colocar o ato poético como sinônimo de criação
artística, em sua máxima pureza (“poesia e criação são a mesma
coisa”). No processo, há um convite para que o leitor tenha um papel
mais ativo na recriação da experiência, para que ele também se torne
um poiētḗs.

versificateur

O ítalo-polaco Apollinaire faz sua revolução poética em uma tradição


estrangeira que, da Renascença ao fim do século xix , tinha no
alexandrino clássico a sua base e fundação. Patrimônio nacional
francês, o verso consagrado era o de doze sílabas poéticas e uma
cesura (dividindo o verso em dois hemistíquios), com tônicas
obrigatórias na sexta e 12a sílabas. É certamente a título de
provocação que “Zona”, o poema que influenciaria toda a prática do
chamado verso livre internacional e que abraça a modernidade do
começo do século xx , comece com as palavras “No fim” e com o
verso: A la fin tu es las de ce monde ancien [No fim você está farto
deste mundo antigo], um alexandrino clássico perfeito.
“O verso livre”, ele explicava, “deu asas a um novo lirismo; mas foi
só uma etapa da exploração que pode ser feita no domínio da
forma.”25 Ao mesmo tempo, ele sabia que poesia em vers libre não é
prosa cortada em linhas aleatoriamente. Visionário, ia mais longe e
enxergava uma síntese das artes (“música, pintura e literatura”), uma
poesia que traduziria a experiência moderna, “um lirismo totalmente
novo impactado pelos novos meios de expressão”, como a página do
jornal moderno, o cinema, o fonógrafo e as tecnologias de
comunicação e gravação. Sua ópera-bufa As mamas de Tirésias (1917)
apontava para essa direção intermídia.
Entre suas intervenções poéticas está o resgate do verso
octossilábico, onipresente na poesia medieval, mas meio esquecido em
seu tempo. Como descreve Álvaro Faleiros, ele

opta pelo octossílabo em parte considerável de seus poemas devido à importância


desse metro na poesia francesa e, em carta a André Billy, Apollinaire chega a
afirmar: “O verso clássico vinha sendo atacado antes de mim que, contudo,
utilizei-o com tanta frequência que dei vida nova aos versos octossilábicos”.26

Apollinaire tinha uma visão bem eclética sobre o fenômeno do


verso. Como declara em entrevista a Gaston Picard: “Todas as formas
poéticas são boas. O verso pode ser livre, regular, liberado,
caligramático”.27
Podemos encontrar poemas e trechos perfeitamente metrificados e
rimados em todas as fases de sua poesia. Alguns são verdadeiras
canções, como “A ponte Mirabeau”, “Claire de Lune”, “Outono”,
“Maria” e “Simultaneidades”. Além do domínio dos metros, ele era
um mestre das aliterações, das assonâncias, da paronomásia e da arte
da rima, recursos poéticos importantes para ele. Há, é claro, poemas
em versos livres, com presença ou não de rimas. E poemas em versos
livres com a presença de trechos metrificados, com ou sem esquemas
rímicos. Algumas peças têm vários tipos de metros. Alguns poemas
mais discursivos, quase narrativos, mergulhados na fala comum e no
seu poder de fabulação; poemas visuais que desconstroem a palavra,
valorizam o espaço da página, onde os versos-linhas devem ser lidos-
vistos simultaneamente: os caligramas. Ele faz a linha-verso descer
verticalmente, subir em diagonal, girar, explodir na página, se enrolar
sobre si mesma, fragmentar-se, construir e desenhar seres e objetos.
Há peças, como “Carta­-oceano” e “Algodão nas orelhas”, em que
vemos Apollinaire como um maestro de orquestra, conduzindo vários
tipos de verso e em diferentes configurações.
Mesmo nos poemas em versos livres é comum perceber algum
esquema métrico fantasma querendo vir ou vindo à tona (um pouco
como percebeu o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto a respeito
dos versos de T.S. Eliot).28 Isso ocorre porque o poeta, além de um
imagista fabuloso, nunca deixa de ser um músico das palavras. Era um
artesão que sabia, como disse Eliot, que “nenhum verso é livre para
alguém que quer executar bem o seu ofício”.29

amplitude de temas

A poesia de Apollinaire é marcada por uma grande amplitude de


temas, embora ele pregasse contra o tema na obra de arte.
Em Álcoois vemos o poeta destilando o clássico tópos do tempo e
da fugacidade da vida, do mistério da existência e da morte, da perda
e dor do amor, da melancolia, da consciência e da memória. Já
notamos temas que ele ampliará em Caligramas: a alienação do sujeito
moderno e a busca pela identidade, a circularidade do tempo, o
diálogo com o passado, com a tradição hermética, com a pintura de
seu tempo, com a religião. “Zona” abre seus experimentos com a
poesia da metrópole, atualizando Baudelaire (o pioneiro da “poesia da
cidade”), para quem o flâneur é “um calidoscópio dotado de
consciência”. No caso de Apollinaire, dotado de uma consciência
globalizante. O poema abarca todas as regiões do planeta: da
Argentina à China, da África às Américas, incluindo Europa, Guiné,
Japão e Oceania. O foco, em “Zona” e em muitos poemas, é a
simultaneidade do tempo mental, o funcionamento da memória, o
processo do maravilhamento do real e do cotidiano. No centro está
Paris, que ele chamava de “uma grande ametista”.
Em Caligramas, sobretudo nos poemas da fortíssima seção
“Ondas”, que reúne quinze de seus melhores poemas, há a celebração
da amizade, o otimismo pelos novos tempos, os intensos diálogos com
o futurismo, com o cubismo e a pintura de Picasso, Chagall e os
“contrastes simultâneos” da pintura do casal Delaunay. Há a total
imersão numa utopia modernista, da descoberta de uma nova
linguagem que possa equiparar-se às atividades dos cientistas (ver “As
colinas” e “O espírito novo”). Há a exploração do que ele chamou de
“lirismo ambiente”, assumindo uma descontinuidade radical, em uma
visão colagística do mundo. Já nos poemas de guerra, que se tornam
pouco a pouco sombrios, vemos o tema da guerra como espetáculo
absurdo e fantástico, a desumanização e a anonimidade do front, a
esperança em meio à barbárie e a onipresença da morte. No fim, o
tema é a arte como profecia, o convite à invenção e à exploração de
novos caminhos pelos poetas do presente e futuro.

lirismo realista mágico


Experimental, Apollinaire é um poeta profundamente lírico. Mesmo
em seus momentos mais ousados e radicais. Lírico num duplo sentido:
não só porque é um mestre da melopeia, hábil em explorar a música
da língua francesa, mas também porque é, assumidamente, herdeiro
da tradição romântica que vê a poesia como “uma expressão
intensamente subjetiva e pessoal” (Hegel) e o lirismo como “um modo
de expressão que traduz uma maneira apaixonada de sentir, de ver o
mundo e de viver”.30 É esse frescor romântico, aliado a um profundo
humor e leveza em ver a vida, o que nos atrai em sua poesia, ao
contrário de leituras mais cerebrais e redutoras das vanguardas
posteriores.
Apesar de se autodenominar “um investigador de formas”, foi um
ferrenho defensor da inseparabilidade entre arte e vida: “Declaro que
lirismo é aquela rara faculdade de se intoxicar de vida e de si mesmo”,
escreveu. Seu entusiasmo pela existência era lendário, mesmo no
campo de batalha. E ele é ainda mais explícito em carta a André
Breton, em 1916 : “Cada um de meus poemas é a celebração de um
acontecimento em minha vida”.31
Nunca essa afirmação terá um sentido tão trágico quanto nos
poemas escritos durante a Primeira Guerra Mundial, que buscam
captar essa experiência complexa, limite, em linguagem, em resposta a
uma das grandes catástrofes da humanidade. Apollinaire pretende,
assim, não só escrever sobre a experiência da guerra, mas trazê-la para
dentro da estrutura dos poemas, fazendo deles experiências em si
mesmas, numa tentativa emocionante de organizar o mundo caótico à
sua volta. Há em sua poesia o desejo de que cada poema seja uma
criação autônoma, uma nova realidade de palavras. É importante
mencionar que sua poética nunca se esquece do leitor. Ao contrário,
ela nos provoca e nos desafia, ao mesmo tempo que nos imagina como
parceiros na experiência poética, como coprodutores de sentido, e não
meros consumidores.
Na sua poesia-arte, das peças pós-simbolistas às modernistas, dos
caligramas aos poemas de guerra, o real e o cotidiano são
reconfigurados como fantásticos, super-reais. A metrópole e, depois, o
front passam a ser suas “florestas de símbolos”,32 terras de ninguém
que cabem ao poeta decifrar, na esteira de Baudelaire. O poeta,
segundo Apollinaire, tem a missão de “enchanter la vulgaire réalité”
[encantar a realidade vulgar]. Pela arte verbal, tensionando forma e
significado, o poeta causa um estranhamento no real, transforma o
comum em incomum, o ordinário em extraordinário, e vice-versa.
Como escreve Anne Hyde Greet, “o poeta ‘vê’ beleza e mágica no
mundano, no feio e assustador”.33 Ou, como ele mesmo escreve em
Meditações estéticas: “Os grandes poetas e os grandes artistas têm
como função social renovar incessantemente a aparência que reveste a
natureza aos olhos dos homens”.

estética da surpresa

Guillaume Apollinaire é o poeta das analogias insólitas, das


combinações inesperadas e provocantes, dos contras­tes simultâneos.
Alguém que vê o mundo como espetáculo, pura duração,34 ao propor
a fusão de presente, passado e futuro. Para ele, o escritor não deve
imitar e descrever o real mas, como nas telas de seu amigo Picasso,
que tanto o influenciou, dissecá-lo, desconstruí-lo e depois remontá-lo.
Se possível, adivinhá-lo, profetizá-lo.
Os conceitos de “surpresa” e de “espírito novo” tornam­-se termos
guarda-chuvas para abrigar todas as correntes de arte e poesia de
vanguarda que estavam acontecendo. Ele defendia que, em tempos
“ricos em surpresas”, com as promessas do progresso, da ciência e da
tecnologia, “a surpresa é a maior fonte do que é novo”. “É pela
surpresa, pela importância dada à surpresa, que o espírito novo se
distingue de todos os movimentos artísticos e literários que o
precederam”, ele defendia. Assim, os poetas estão prontos para
dominar a arte da profecia, “égua endiabrada que nunca foi
domada”.35
Como “escritor de arte” Apollinaire defendia e elaborava sobre o
desenvolvimento, através de várias técnicas, de uma “pintura pura”,
depois de séculos de imitação, de representação, de mimese. Sua
ênfase é dada ao procedimento, ao como, mais do que ao quê, ao
tema, ao motivo. O uso da palavra “pura”, no vocabulário do poeta-
escritor-de-arte, adquire um sentido estético mais amplo. Se nas artes
plásticas ele a usa no sentido de uma pintura progressivamente não
representacional, não imitativa, dedicada à sua própria materialidade,
uma pura criação do artista, ele levaria essas meditações estéticas para
a própria poesia. Pode-se dizer que ele buscava também uma “poesia
pura”, menos dependente de um tema ou assunto. Simultaneidade
(ubiquidade) e não sucessão. Abstração e menos dependência da
figuração.36
Embora seja o criador da palavra “surréalisme” (ele também usa os
termos “novo realismo” e “surnaturalisme”), preferimos definir sua
poesia como lirismo realista-mágico: ela alia um alto sentido musical a
uma personalíssima visão transfiguradora da realidade, que aposta
sobretudo na capacidade de imaginação do ser humano. Criação de
imagens, não mera representação. Como escreve Roger Shattuck: “A
surpresa é o elemento dessa vividez de imagens que Apollinaire
enfatizou com bom propósito, pois ela obriga a usar todas as
faculdades da imaginação”.37 A mesma surpresa com que ele e seus
contemporâneos viram pela primeira vez as estátuas da África e
Oceania.38 O poeta escreve: “Quando o homem quis imitar o andar,
inventou a roda, que não se parece em nada com uma perna. Foi, sem
o saber, surrealista”. O uso da preposição sur (“sobre”, derivada do
latim super, e que também pode ser equiparada a supra) amplia as
possibilidades de seu neologismo: sobre o realismo, para além dele,
acima do realismo ou, ainda, um super-realismo. “O território mais
rico é o da imaginação”, escreve o poeta, “o menos conhecido e cuja
extensão é infinita.”39
Esse impulso fica claro no imagismo apollinairiano que, mais do
que imitar o real e o cotidiano, busca sempre transformá-lo, estranhá-
lo, sem perder a precisão. Como ele escreve em Meditações estéticas,
“apenas os fotógrafos fabricam a reprodução da natureza”. “Não se
imita aquilo que se quer criar”, dizia o pintor Georges Braque.
“Apollinaire era um verdadeiro mágico da palavra”, escreve Shattuck.
“Ele queria encantar o mundo. Objetos inanimados fazem sons;
emoções sutis tomam a forma de animais e deuses; homens são
afogados vivos nos oceanos onde a vida continua; e em suas ações
diárias as pessoas revivem as façanhas dos personagens lendários de
um passado distante.”40 Essa transfiguração do real ganha ainda mais
dramaticidade e poder de surpresa nos poemas de guerra.
A poesia, segundo Apollinaire, “diviniza” o ser humano e seu
criador. Ele resgata, em plena belle époque e, depois, na guerra, a
concepção do poeta como alquimista, mágico, vidente, demiurgo, já
explorada por Gérard de Nerval, Baudelaire, Victor Hugo, Walt
Whitman e Rimbaud. Na conferência “O espírito novo e os poetas”41
e no longo poema “As colinas”, ele situa a importância dos poetas
como desbravadores de novos mundos, ou “antenas da raça”, para
usar uma definição famosa de Ezra Pound. Apollinaire acreditava que
a poesia era capaz de restaurar à linguagem “algo de suas origens
primitivas e de seu mistério”.42 Não à toa, seu lema era J’émerveille
[Eu maravilho].

“ordem” e “aventura”

Um dado paradoxal é que seu mergulho utópico na nova sensibilidade


da vida moderna nunca exclui o passado. Ambicioso, ele procurou
escrever uma poesia que almejasse fundir passado, presente e futuro.
Era um modernista que acreditava na simultaneidade do fenômeno
literário. Tinha profunda consciência de que não se faz literatura no
vácuo. É um diálogo com certa tradição. Para ele toda “criação” e
todo novo talento individual, como escreveria Eliot,43 se inserem
necessariamente dentro de uma tradição. “Nenhum dos jovens poetas
de que eu gosto, nenhum, eu digo, está fora da tradição poética
francesa”, ele afirma na conferência de 1908 La Phalange Nouvelle [A
falange nova]. Endereçando-se à legião de novos poetas, ele pergunta:

Qual seria a característica de uma tradição, senão a continuidade? E, da nossa


parte, jovens poetas, sabemos que não nos perdemos; pois os mestres que
amamos, que desejamos continuar mantendo nossa personalidade, e que, por um
nobre sentimento de emulação, buscamos superar, eles existem, vivem, estão
plenamente ativos, em plena glória.44
Para Apollinaire, como descreve Peter Read, “Homero, Dante e
Hermes Trismegisto eram contemporâneos próximos”.45 O artista
inteligente não joga fora o que, um dia, foi capaz de surpreender e
maravilhar.
A figura do deus romano Jano, de dupla face, define bem a
abordagem estética de Apollinaire durante toda a sua vida poética:
com os pés no presente, olhando para o passado, mas
simultaneamente para o futuro.46
“O presente deve ser o fruto do conhecimento do passado e da
visão do futuro”,47 ele afirma. Uma das coisas que ele faz
constantemente, seja em poesia ou em prosa, é reelaborar a
Antiguidade (mitos, lendas e fábulas) em contexto contemporâneo,
criando simultaneidade espaçotemporal (mais uma das estratégias
para alcançá-lo, como veremos adiante). Ele antecipa, assim, o
“método mítico” usado por James Joyce (Ulisses, 1922 ), Eliot (A terra
devastada, 1922 ) e Ezra Pound (os primeiros Cantos aparecem apenas
em 1917 ). Apollinaire tinha uma fascinação pelos clássicos, por tudo
o que tivesse a ver com a Renascença, com a Idade Média, pela
cultura de outras civilizações, mesmo as mais remotas. Pioneiramente,
escreveu ensaios reconhecendo o valor plástico da arte “primitiva”
(era colecionador de arte da África, da Oceania, do Egito e do
Camboja). Resgatou a pintura naïf de Henri Rousseau e chegou a
fazer campanha para que fosse aberta uma sala no Louvre dedicada
exclusivamente ao que se chamava então de art nègre.48 O que é o
caligrama, senão uma atualização (uma “reciclagem” em clave
modernista, em verdadeira ritualização do cotidiano) de formas
ancestrais de poesia visual como os technopaegnia gregos e os carmina
figurata latinos? Já em poemas como “Há” ele resgata a anáfora (um
recurso antiquíssimo, presente na poesia hebraica e na Bíblia) para
produzir “contrastes simultâneos” em pleno campo de batalha, para
capturar o horror da guerra moderna tecnológica, a experiência
desumana da terra de ninguém, num exemplo didático de sua visão
sincrônica e simultaneísta.
Sua obra, como ele defende em “O espírito novo e os poetas”, se
equilibra entre a Ordem e a Aventura. A consciência inescapável da
tradição e da inovação linguística e poética. Em determinado
momento é preciso “o esquecimento depois do estudo”. É preciso se
aventurar, mas sem nunca esquecer de onde viemos. Sua posição
diante da questão complexa, que remonta à antiquíssima querela dos
antigos e modernos, pode ser sintetizada neste trecho de Os pintores
cubistas: Meditações estéticas:49

Não se pode transportar consigo, por toda parte, o cadáver do próprio pai. Ele é
abandonado em companhia de outros mortos. E lembramos dele, lamentamos por
ele, falamos dele com admiração. E se nos tornamos pais, não devemos esperar
que um de nossos filhos queira se duplicar para a vida de nosso cadáver.
Mas nossos pés só se separam em vão do solo que abriga os mortos.50

O escritor Paulo Leminski reflete sobre essa questão em uma


entrevista: “A poesia não é a casa de mãe joana. Nenhuma arte é a
casa de mãe joana. Se você não tiver respeito pelos teus mestres, não
vai ter ninguém pra te respeitar um dia. É assim mesmo: você é filho,
um dia vira pai: não tem mistério”.51
Apollinaire escreve, ainda sobre o tema: “A melhor maneira de ser
clássico e ponderado é ser de seu tempo e não sacrificar nada daquilo
que os antigos foram capazes de nos ensinar”.52 Se ele não abre mão
da grande tradição da poesia francesa (dos clássicos, das canções dos
trovadores, de Villon a Baudelaire, Nerval, Verlaine, Rimbaud e
Mallarmé), é um dos principais responsáveis por estabelecer novos
paradigmas para a arte e para a poesia de seu tempo.

vocabulário onívoro

Uma das fontes de estranhamento e surpresa de sua poesia está na


riqueza e na audácia do vocabulário. Podemos dizer que, na esteira do
legado de Whitman, Apollinaire foi um dos grandes responsáveis pela
consciência demótica53 e abertura léxica da poesia moderna. Como
todo bom poeta, ele apreciava a estranheza e a beleza sonora das
palavras, que considerava como signos vivos de uma cultura. Não via
hierarquia entre as palavras: estão lado a lado na escala de valores. Ele
sabia que da mais vulgar à mais sublime todas são válidas para a
poesia. Em termos de vocabulário, acreditava que a poeticidade podia
estar em toda parte e em qualquer palavra.
Seu léxico é onívoro e enciclopédico. Ele era um fanático por
dicionários e pelas palavras que ia descobrindo em suas leituras
ecléticas. Há em seus poemas palavras “poéticas” consagradas pela
tradição (“automne”, “feuilles”, “amour”, “adieu”, nomes de flores),
assim como palavras então novas, estranhas ao território da poesia.
Ele usa palavras arcaicas (“Paraclet”, “boute-selle”, “mânes”,
“chevau-léger”, “Hypogée”, “empyreumatique”, “auriculaires”,
“bourguignotte”, “Câpresses”), nomes de aves exóticas (“Cou-
coupé”, “Colombe poignardée”), derivadas de mitologias orientais
(“pihi”, “pi-mu”, “l’oiseau Roc”), das mitologias em geral (“Pan”,
“Dame-Abonde”, “Psylles”), do universo da heráldica (“chef”), do
ocultismo, da cabala (“Trismégiste”, “Agla”, “svastica”) e da
superstição (“sciomancien”). Há expressões idiomáticas, nomes de
cidades e ruas, termos da química (“mélinite”, “fulminate”, “gaz
lacrymogène”), da medicina (“mortification”, “trépané”,
“traumatisme”, “hématidrose”), da moda (“manequins”, “cheveux à
la Recamier”), das comunicações, dos transportes e da tecnologia
(“tsf”, “acier”, “message téléphonique”, “catalogues”, “affiches”,
“lettre-océan”, “automobile”, “cinéma”, “cinématique”, “biplan”,
“hydroplan”, “avion”, “ascenseur”, “phonographes”, “trolley”,
“gramophones”, “aviatique”, “Port­-Aviation”, “pneu”, “prospectus”,
“sous-marin”, “câbles sous-marins”, “stenodactylographes”,
“aéroplanes”, “auto­-bazar”. Isso sem dizer da presença de palavras
raras (“alidades”, “acousmate”, “pentagramme”, “trompette
marine”). Jornalista, flâneur e boêmio, Apollinaire também era ligado
em palavras de baixo calão e na gíria parisiense, na linguagem das
ruas e dos espaços públicos: “poilu” (soldados veteranos), “Apache”
(bandido), “vouler” (roubar), “cul” (cu/bunda), “sur la paille” (sem
um puto), “champignon” (pênis), “brûle le dur” (“pular catraca”,
viajar sem bilhete), “putain” (puta), “zut!” (porra!), entre outras. Faz
uso de dialetos regionais (o valão belga, em palavras como
“maclote”). Também insere em seus poemas palavras estrangeiras
como, por exemplo, “hall”, “Gulf Stream”, “browning”, “zepelins”,
“love” (inglês, também “desenrolar” em francês), “lul” (do flamengo),
“Anomo”, “Anora” (do maia), “pendejo”, “hijo de la chingada”
(espanhol), “a giorno” (italiano), “cagnat” (do indochinês), “cubicula
locanda” (latim), “araras” e “pororoca” (do tupi). Em seu universo
poético há lugar até mesmo para onomatopeias (“pim pam pim”,
“pif”, “cré cré cré”, “pam pam pam”, “toc toc” etc.), números
cardinais (“25”, “300” etc.) e invenção de palavras (“empânicos”,
“caligramas”, “superdourada”, “supermarina”, “farfolhar” etc.).
Termos militares e gírias dos soldados começam a invadir a sua
poesia a partir de novembro de 1914 : “visée” (instrumento de
medição do ângulo dos tiros de canhão que ele operava), “case
d’armons” (“caixa de armão”, caixote para guardar pertences na
viatura “caisson”, que transportava o canhão de 75 milímetros que ele
operava), “obus” (bomba), “boche” (pejorativo para “alemão”),
“bobosse” (soldado novato), “boyau” (“intestino” ou “tripa”, fossa
em zigue-zague usada para alcançar as trincheiras de primeira linha),
“boîte à singe” (“lata de macaco” ou “macaco na lata”, para designar
tanto a carne de boi cozida e enlatada distribuída quanto as bombas
de grosso calibre lançadas por morteiros de 77 milímetros), “cagoule”
(“capuz”, as primeiras máscaras antigás), “zeppelin”, “marmites”
(bombas), “cagnat” (toca, abrigo), “tacot” (aguardente barata), “abri-
caverne” (abrigo­-caverna, abrigo subterrâneo), “crapauds” (“sapos”,
para granadas, explosões), “abeilles” (“abelhas”, para balas),
“saucisses” (“salsichas”, para balões de observação), “vagues”
(“vagas”, para ondas de ataques com gás), entre outras (ver
Comentários).
“Uma das principais convicções de Apollinaire”, afirma o professor
S. I. Lockerbie, “é a de que uma poesia que busque expressar a
quintessência do mundo moderno deve também usar a linguagem
enérgica e direta da vida contemporânea.”54 Não devemos também
esquecer que o poeta, como bom herdeiro do simbolismo e da
tradição hermética, frequentemente procura explorar a ambiguidade e
a polissemia das palavras através de paronomásias e trocadilhos, dos
duplos sentidos (ver Comentários).
2.

simultaneidade poética

Uma palavra-chave para se entender sua poesia é “simultaneidade”


(“simultaneité”). Ela deriva do latim simul, advérbio que significa “ao
mesmo tempo”, “quase ao mesmo tempo”, “imediatamente” e
“similarmente”. E, ainda, “simultaneamente”. Quando falamos de
simultaneidade, queremos dizer que coisas diferentes acontecem ao
mesmo tempo, sem uma precedência clara entre eles. É a ideia de
coexistência temporal, quando diferentes eventos ocorrem no mesmo
instante ou período de tempo. Ela está ligada, como veremos, à ideia
de ubiquidade almejada pelo poeta: a sensação de estar presente em
todos ou quase todos os lugares ao mesmo tempo, e que ele irá
explorar constantemente em seus poemas. Isso se aplica também à
leitura do poema, que se torna fruto da interação simultânea entre
autor-texto-leitor.
Para muitos artistas do começo do século xx era preciso encontrar
formas de captar toda a complexidade, velocidade e dinamismo da
experiência moderna, impactada pelas descobertas na ciência e na
física, pelos novos meios de transporte e comunicação. A questão da
simultaneidade estava no ar, sendo para alguns (a princípio os
futuristas e cubistas) a estratégia mais adequada para expressar a vida
moderna.55 “Para ser capaz de espelhar uma forma tão múltipla de
consciência”, explica Lockerbie,

a obra de arte tinha que abandonar as estruturas lineares e discursivas, nas quais
os eventos são arranjados sucessivamente, em favor do que Apollinaire chamou de
simultaneidade: um tipo de estrutura que daria a impressão de uma consciência
completa e instantânea dentro de um momento no espaço-tempo.56
A sucessão dá lugar à simultaneidade. Diferentes planos coabitam o
mesmo espaço (ver “Zona”, “O músico de Saint-Merry” e “Árvore”).
As novas invenções e descobertas científicas, o cinema e as
aventuras do Fantômas faziam a imaginação de Apollinaire fervilhar.
“Uma razão pela qual ele admirava as aventuras do detetive era que o
anti-herói era capaz de criar infinitas novas identidades, mudando-a
de acordo com seus arredores.”57 Ele explora a ideia de onipresença e
simultaneidade espaçotemporal não só em poemas como na ficção.
Um de seus personagens é o barão d’Ormesan. Inspirado no seu
“secretário” belga que roubou as estatuetas do Louvre, “diretor de
cinema”, tido como “o novo Messias”, o barão tem o dom de
aparecer em centenas de lugares do mundo ao mesmo tempo, graças a
um aparelho que ele inventou. Em “O tato à distância”, de O poeta
assassinado, há dois aparelhos “que têm a simples aparência de um
prego”, capazes de transmitir não apenas imagens para outros lugares,
mas a presença temporal, “profecias” que são uma realidade hoje,
com a internet e a realidade virtual. No conto “O rei-lua”, em uma
caverna do Tirol, o narrador cruza com Luís ii da Baviera. Morto-
vivo, ele possui um dispositivo que atrai todos os murmúrios, ruídos e
paisagens sonoras do planeta ao mesmo tempo. “Os dedos do rei
passaram aleatoriamente sobre as teclas, acordando, por assim dizer,
todos os rumores do mundo.” Ouvem-se o assovio dos gêiseres na
Nova Zelândia, o ruído do tráfego de Chicago, os sons dos mercados
do Taiti, o mugido das vacas no rio Hudson, em Nova York, o
barulho dos vendedores de chá num mercado chinês, sinos badalando
em um templo no Tibete, “no Rio de Janeiro passa uma cavalaria
carnavalesca”, o canto de um galo na Coreia, “rezas violentas diante
de um Cristo no México”, entre outros sons.58 Já seus cortesãos
possuem outras engenhocas, como um cinturão, que permitem a eles
fazer amor com as grandes personalidades femininas do passado.
Em “Simultaneísmo-Libretismo” (1914), ele escreve em defesa do
pioneirismo do cubismo: “A ideia da simultaneidade havia muito
preocupava os artistas; já em 1907 preocupava um Picasso, um
Braque, que tentavam representar figuras e objetos de vários lados ao
mesmo tempo”.59 Na primeira fase do cubismo os objetos eram
desconstruídos, representados sob múltiplas perspectivas de uma vez,
suas facetas “embaralhadas” na superfície da tela. Não havia mais um
ponto de vista exclusivo, e sim vários, simultâneos. Apollinaire
absorvia essas lições e as incorporava de diversas maneiras em sua
poesia. Como ele definia em seus ensaios: a arte não imitaria mais a
natureza, mas a examinaria, fragmentaria e remontaria de uma forma
quase abstrata, “cosa mentale”. Ele escreve em “Os pintores cubistas”
(1913): “Um Picasso estuda um objeto como um cirurgião disseca um
cadáver”.60 O espaço da tela cubista da primeira fase também é um
espaço profundamente influenciado não só pela pintura de Cézanne,
mas pela então recente invenção do cinema, até mesmo em seu quase
monocromatismo (Apollinaire e Picasso eram fãs de cinema). “A
simultaneidade se tornou não só um tema central como um princípio
formal e estrutural”, descreve com precisão Marjorie Perloff.
“Figurativamente falando, estar em dois lugares ao mesmo tempo
agora se tornava uma realidade; de fato, o então recente cinema (em
1913 havia duzentos cinemas em Paris) podia transportar o público
do Senegal a Sydney numa fração de segundo.”61

o problema
Só havia um problema no objetivo de transportar os preceitos de
simultaneidade dos futuristas, cubistas e orfistas para a poesia. A
pintura é uma arte do espaço, e a poesia, uma arte do tempo (que
pode ser também do espaço, como Apollinaire descobrirá nos
caligramas). Em uma pintura ou em um filme as imagens são
apreendidas, a princípio, num golpe de olhar, ao mesmo tempo. Numa
página de livro, a não ser que se domine as técnicas de leitura
dinâmica, é preciso obrigatoriamente avançar a leitura do poema
fonema a fonema, palavra a palavra, verso a verso. O poema e sua
leitura seguem uma lógica discursiva linear e unidirecional. William
Burroughs, que explodiu a narrativa com seus cut-ups [colagens
textuais] reclama, numa entrevista:

A escrita como meio é limitada, não há a menor dúvida. O escritor sempre vai se
deparar com palavras numa página, não há como escapar disso. A literatura hoje
ainda segue a forma tradicional, o fato de que existem palavras em sequência
numa página. Não há uma maneira possível de se obter eventos simultâneos num
romance. É um beco sem saída.62

Octavio Paz explica:

Podem-se apresentar, ao mesmo tempo e sobre uma mesma superfície, distintas


cores e formas que os olhos percebem simultaneamente. Ao contrário, ao falar e
escrever emitimos as palavras umas após as outras, em fileira; não só não
podemos ouvir várias frases ao mesmo tempo, mas tampouco, se as lemos,
podemos entendê-las.63

Claro que Apollinaire tinha consciência do “problema”. Em


“Simultaneísmo-Libretismo” ele apontava para a limitação do
simultaneísmo polifônico proposto por Henri Barzun, com quem
disputava a criação do termo:
A simultaneidade poética do sr. Barzun só pode ser expressa através de várias
vozes combinadas. Isso é teatro. Em um livro, para um leitor, essas vozes só
podem ser sucessivas, então se o sr. Barzun quiser uma poesia que seja
efetivamente simultânea, ele tem que usar várias pessoas recitando ou o
fonógrafo, mas enquanto ele usar colchetes e as linhas tipográficas usuais [ele se
referia ao libreto que acompanhava a performance], sua poesia permanecerá
sucessiva.64

contrastes simultâneos

Chave para sua abordagem estética, sobretudo a partir de 1912, será a


teoria dos contrastes simultâneos, identificada pela primeira vez pelo
químico francês Michel­-Eugène Chevreul (1786-1889),65 da qual
fariam uso pintores como Van Gogh, Georges Seurat e,
posteriormente, o casal Delaunay e alguns futuristas. Um fenômeno da
percepção visual, que Apollinaire tentará aplicar às palavras e aos
versos. Por exemplo, como raramente vemos uma cor isolada das
demais, uma mesma cor parecerá mais “viva” ou mais “morta”
dependendo da cor adjacente a ela. O efeito fica bem visível quando
justapomos duas cores complementares (vermelho e verde; azul e
amarelo). Um círculo verde vai parecer mais verde se estiver rodeado
por um fundo vermelho, e um círculo vermelho parecerá mais “vivo”
se estiver rodeado por um fundo verde. As cores em si não mudam. O
que muda é a maneira como o nervo óptico as percebe quando
justapostas. É seguindo essa teoria que Apollinaire escreve, em “As
janelas”: “Do vermelho ao verde morre todo o amarelo”.66
Transportando a teoria dos contrastes simultâneos pa­ra a poesia
poderíamos dizer que, como as cores, as palavras (que formam
imagens mentais mas que também podem se transformar em “imagens
em si”, através do tamanho das letras, da tipologia, fontes, cores,
distorções) também não estão isoladas. Elas são igualmente
impactadas pelo seu contexto e pelas palavras vizinhas. Apollinaire irá
buscar esse efeito de contrastes simultâneos nos duplos sentidos e no
recurso da colagem — e também na pintura de Delaunay.

simultaneidade metafórica

Um aliado importante para a conquista dessa simultaneidade será um


velho recurso da poesia ocidental e oriental: a metáfora (“isto é
aquilo”). Como o símile e a comparação, a metáfora opera uma
conexão de dois termos por similaridade. Como já definia Aristóteles:
“O uso hábil da metáfora, sendo, como é, uma rápida percepção das
relações, constitui a marca distintiva do gênio”.67 Metáforas são
dispositivos de fusão, deslocamento e transferência capazes de fazer
saltar a realidade aparente. Ou, como percebeu Apollinaire, de ir além
dela, de criar outra nova. Em “Maravilha da guerra”, ele escreve:

Que beleza esses foguetes iluminando a noite


Escalam seus próprios cimos e se debruçam para admirar
São damas dançando cujos relances são olhos braços e corações

Em “Cartão-postal”, ele observa a terra de ninguém iluminada por


clarões de foguetes, sinalizadores, morteiros, bombas. O céu noturno
se torna um jardim de flores efêmero, como a vida:

Te escrevo debaixo da tenda


Quando morre o dia de estio
Onde a floração ofuscante
Nesse céu de azul diluído
Um bombardeio cintilante
Fenece sem ter existido

As imagens na sua poesia são construídas e organizadas para


provocar choque estético. No caligrama do coração — “Coração
coroa e espelho” (1914) —, lemos: “meu coração parece uma chama
invertida”.

Somos apresentados a uma dupla imagem: a do símbolo­-desenho


tradicional do amor (o ♡ e seus dois ventrículos, formados pelos tipos
M e C levemente ampliados) e, invertendo a página, a chama de uma
vela invertida, (recurso que ele repete na imagem do pássaro que voa
de ponta­-cabeça, em “Cortejo”). A chama (“a alma do fogo”) se abre,
por sua vez, para várias simbologias, positivas ou negativas,
dependendo do contexto: a chama divina, o amor espiritual e o
espírito, a libido e, por outro lado, o símbolo da inveja, da guerra, das
chamas do inferno, do sofrimento. Lembremos que a chama é
também, para o poeta, símbolo da pureza e da pintura. Há ainda as
relações e contrastes que esse caligrama estabelece com os outros dois
que formam o conjunto: uma coroa e um espelho (ver o poema e a
seção Comentários).
Apollinaire usa com frequência uma gíria dos soldados para
trincheira, “boyau”, que significa tripa, intestino. Duas imagens são
sobrepostas na metáfora: trincheiras intestinais. “Ó trincheiras, irmãs
profundas das muralhas”, ele escreve em O poeta assassinado. De
fato, as trincheiras eram chamadas assim não só pela semelhança
visual e de funcionamento com o órgão, mas por sua sujeira e por seu
poder de moer carne. No caso, vidas humanas:

Mas eu fluía nessa delícia de guerra com minha companhia inteira ao longo das
tripas-trincheiras

Com suas explosões, os morteiros abriam crateras que


“desenterravam os mortos e enterravam os vivos”. Em “Saliente”,
lemos:

Cratera de bomba limpa como um banheiro


Pastor seguido por seu rebanho marrom-dourado

O efeito do impacto das bombas no solo do bosque, em forma de


leque, é comparado a uma “vassoura de verdor”. A bomba, a um
pastor se afastando com seu “rebanho de terra”. A cratera, por sua
vez, está “Vive comme un cheval pif”.
Observe que nos três manuscritos do poema ele coloca um espaço
duplo ou quase triplo antes de “pif”, o que não ocorre na versão
impressa. Isso possibilita a leitura da imagem “un cheval pif” como
“Viva como um cavalo roncolho” (agitado por causa de uma doença
chamada criptorquidismo) e, ao mesmo tempo, “pif” como a
tradicional onomatopeia em francês para explosão (“bum”): “Viva
como um cavalo bum”. Não seria estranho se Apollinaire quisesse ter
expressado os dois sentidos para a imediatidade da guerra, dado seu
gosto pela duplicidade semântica e, principalmente, pelo fato de que
ele faz uso constante de onomatopeias em Caligramas, sobretudo em
poemas de guerra que descrevem bombardeios, como “Saliente”.
Objetos da rotina das trincheiras subitamente adquirem vida e a
perdem, como em “O palácio do trovão”:
Morta uma pá jogada com a cara apavorada seus dois olhos reguladores que
servem praprendê-la sob a caixa de munições

Em “Algodão nas orelhas” ele justapõe a imagem dos parapeitos,


feitos de sacos recheados com palha, feno, serragem, areia ou terra,
empilhados à beira das trincheiras para se proteger da artilharia
alemã, com animais “exóticos” da África e da Ásia:

Elefantes-para-balas

Ou ainda, em pleno combate, descrevendo a trajetória de


metralhadoras, morteiros, balas de canhões e foguetes que cruzam o
espaço:

Os projéteis da artilharia deslizam


Como um rio aéreo

O poeta cria, produz novas realidades através das imagens, sempre


buscando a surpresa, a maior fonte de beleza poética segundo
Apollinaire. O mesmo acontece em “Zona”:

O avião pousa enfim mas sem fechar as asinhas [...]


Rebanhos de ônibus mugem cruzam seu caminho […]
Os ponteiros do relógio no bairro judeu giram ao contrário
E você também recua assim da vida lentamente […]

Ou na imagem cíclica e hipnótica de “Açafrões” (antecipando os


“discos simultâneos” da pintura dos Delaunay), que funde as flores
violeta e tóxicas de açafrão com os olhos da amada e suas olheiras:

Os açafrões são cor de olheira e de lilás


Florem seus olhos essas flores que aliás
Tão violáceas como olheiras e este outono
Envenenando a minha vida de abandono
Em “As colinas”, numa série de tomadas que remetem aos efeitos
especiais usados nos primórdios do cinema mudo, temos:

Pros mortos o maître do hotel


Serve uma champanhe irreal
Que espuma como um caramujo

Cada linha passa a ter a função de um take. Mudanças rápidas de


pontos de vista. Montagem cinematográfica:

A cartola preta descansa


Uma mesa cheia de frutas
Luvas mortas junto à maçã
Uma moça que se estrangula
Do lado um homem que se engole

Em “Poema lido no casamento de André Salmon” temos copos que


se quebram ao mesmo tempo que ocorre uma explosão de
gargalhadas. Uma experiência banal tornada epifania:

Os copos caíram se espatifaram


E aí aprendemos a rir

Em “Noite renana” (poema em alexandrinos, de Álcoois, não


incluído nesta seleção) ele já escrevera: “Mon verre s’est brisé comme
un éclat de rire” [Meu copo se quebrou como explosão de riso].
Aqui, ele ainda joga com a homofonia “mon verre s’est” e “mon
vers” (“meu verso” se quebrou). No clássico caligrama “Chove”, em
uma das cinco linhas de água de chuva que escorrem pela vidraça da
página, temos nuvens-cavalos que se tornam cidades sonoras. Lemos
verticalmente:
E essas nuvens empinam e se põem a relinchar todo um universo de cidades
auriculares

O poderio inesperado da guerra mecanizada obrigara os homens, a


partir de setembro de 1914 , a irem para baixo da terra e se tornarem
“invisíveis” ao máximo. Dois terços dos mortos na Primeira Guerra
foram vítimas dos bombardeios. Em “O palácio do trovão” (metáfora
para os abrigos subterrâneos sendo impactados pelas bombas), a
experiência das trincheiras e dos abrigos como moradias improvisadas
(cagnas) se funde ao tempo das cavernas, com o passado humano mais
remoto:

Mas deste lado da abertura o palácio novinho em folha parece antigo


Seu teto é feito de dormentes de trem
[…]
O palácio é iluminado às vezes por uma vela que parece um camundongo

No front Apollinaire experimenta uma espécie de abolição do


tempo. Ele escreve a Madeleine: “A vida nas trincheiras no inverno é
tão simples que você pode sentir como eram as aventuras dos
habitantes das cavernas pré-históricas”.68 A memória, nesse contexto
de morte iminente e desproteção total, passa a ser o gatilho para
outras memórias (provavelmente inspirado por relatos de um
combatente que ele conheceu), sob a persona de um soldado africano
lutando pela França:

No muquifo de toras camuflado com vimes


Perto dos canhões cinzentos apontados pro norte
Sonho com uma aldeia africana

Em “Comandante de pelotão” temos eventos que unem o espiritual


e o geológico:
Tua alma tremerá como uma região durante um terremoto

abolição da pontuação

Outro recurso vai potencializar os efeitos de simultaneidade e surpresa


dos seus poemas. Em 1912 , quando corrigia as provas de Álcoois,
Apollinaire toma uma decisão importante, que fará parte de seu
programa estético: decide retirar todos os sinais de pontuação de
todos os poemas do livro, inclusive dos que escreveria dali em diante.
O fato é que sua práxis teria imensa influência na poesia modernista
internacional, passando a fazer parte do nosso repertório poético.
Com sua decisão o verso enfim se “libertava” das vírgulas, pontos-
finais, pontos e vírgulas, dois-pontos, pontos de exclamação e
interrogação, travessões, reticências, parênteses e mesmo aspas. Seu
gesto era análogo, na pintura, à abolição da perspectiva tradicional, à
fragmentação da estrutura linear e à busca por efeitos de
simultaneidade levadas a cabo pelos futuristas italianos e por seus
amigos cubistas e simultaneístas (Carrà, Boccioni, Picasso, Braque,
Kupka, o casal Delaunay). Em uma entrevista concedida à Gaston
Picard, em 1917 , quando perguntado sobre se continuaria a não usar
pontuação em seus poemas, Apollinaire responde:

Sem dúvida! Vou voltar aos princípios. A pontuação permite que os maus
escritores justifiquem seu estilo. Alguns travessões, uma vírgula aqui, uma vírgula
ali, e tudo parece fazer sentido. Além disso, essa supressão dá mais elasticidade ao
significado lírico das palavras. Mas essa questão certamente não será mais
interessante quando o livro desaparecer.69

A experiência tem antecedentes importantes no poema “Um lance


de dados”,70 de Mallarmé, mas, sobretudo, no exemplo dos futuristas
e sua “parole in libertà” [palavra em liberdade] e pelo livro
simultaneísta A prosa do Transiberiano, de Blaise Cendrars e Sonia
Delaunay. Apollinaire justificava a decisão, que tanto divertiu e
enfureceu os conservadores e tradicionalistas, com uma explicação
sucinta: “O ritmo e a divisão das linhas formam uma pontuação
natural; nenhuma outra é necessária”. Essa decisão também tem a ver
com uma das peculiaridades no processo de composição do poeta-
flâneur. Como ele revela em 1913 , em carta a Henri Martineau:
“Geralmente componho caminhando e cantando junto com duas ou
três músicas que me vêm naturalmente ou que um de meus amigos
escreveu. A pontuação comum não se aplicaria a tais canções”.71
Além de enfatizar a “modernidade” de sua poesia, a eliminação
radical da pontuação fazia parte de um conjunto de preocupações
estéticas e o estabelecimento de um novo estilo. A decisão o desafiava
a experimentar mais com os ritmos da fala cotidiana, com as
possibilidades proporcionadas pelos cortes do verso, pelos
enjambements (cavalgamentos)72 possíveis. Ele era preciso em sua
formulação: “No que se refere à pontuação, só a suprimi porque ela
pareceu-me inútil, e o é de fato: o próprio ritmo e o corte do verso, eis
a verdadeira pontuação” (itálicos meus).

efeitos de simultaneidade

O primeiro efeito da abolição da pontuação era uma maior “limpeza”


das linhas individuais, das estrofes, da mancha gráfica do poema na
página. Associado ao que ele chamou de “estilo telegráfico”, mais
elíptico, com uma sintaxe “mais simples”, a ausência de pontuação
tem o efeito de aumentar consideravelmente a ambiguidade e a
polissemia. Tudo a ver, portanto, com a ideia de simultaneidade
pretendida. Segundo Silvana Amorim, a ausência de pontuação
“pluraliza as possibilidades de leitura e expande a carga significativa
dos versos”.73 Ou, como sintetiza Michel Décaudin, “a eliminação de
todas as pontuações elimina as fronteiras sintáticas das frases, dando
prioridade ao ritmo prosódico do verso”.74
A abolição de pontuação permite, por exemplo, efeitos de
simultaneidade espaçotemporais em passagens como:

Muitos desses deuses perecidos


Os salgueiros choram por eles
Grande Pã Amor Jesus Cristo
Estão bem mortos gatos miam
No pátio eu chorando em Paris75

Graças à ausência de pontuação temos a possibilidade de quatro


enjambements, fenômeno que só existe na arte poética e que gera mais
de um sentido. Podemos, ainda, ler os versos isoladamente ou em
relação ao verso que o precedeu ou sucedeu. Como explica Martin
Sorrell: “Sem a vírgula e o ponto-final depois de miar ou depois de
pátio a sintaxe flui em duas direções simultaneamente”.76 Graças ao
“truque” do enjambement, o poeta posiciona o “eu lírico” em dois
lugares simultaneamente: no pátio, onde observa gatos, num bosque e
em Paris.
Em “A ponte Mirabeau” a ausência de pontuação e o layout do
poema na página não só mimetizam o fluxo inexorável do rio Sena e
do poema como ampliam as imagens da passagem:

Sob a ponte Mirabeau corre o Sena


E o nosso amor
Me lembra a cantilena
Sem a pontuação, só com os cortes dos versos e os enjambements
obtidos, não é só “o Sena” agora que corre, mas também “o nosso
amor” que, graças a um segundo enjambement, imediatamente desliza
para a memória: “me lembra a cantilena”.
Ele alcançava, à sua maneira, o objetivo das “palavras em
liberdade” e o dinamismo propostos pelos pioneiros futuristas. Essa
ambiguidade ou polivalência sintática passa a ser uma técnica
constante na sua prática poética, mesmo nos poemas de guerra:

Todos os deuses terrestres envelhecem


O universo se queixa através de sua voz

Como já pudemos observar, o poeta faz uso constante da


personificação,77 que funciona como outra estratégia para conseguir
efeitos de simultaneidade. Aqui, “o universo” sofre o efeito de
“envelhecer” (provocado por “todos os deuses terrestres”), mas, ao
mesmo tempo, “se queixa” através da voz de outra pessoa (a do
leitor?). A ausência de pontuação permite, em alguns casos, leituras de
cima para baixo, e vice­-versa. É possível ler “Segunda-feira rua
Cristina” e “As janelas” do fim para o começo, por exemplo, sem
perda significativa de seu efeito total. A simples ausência de pontuação
possibilita tais ganhos de simultaneidade sintática. Não à toa, os dois
poemas eram particularmente apreciados por ele.
Apollinaire usa o recurso da personificação com eficácia em
“Canção do Horizonte em Champanhe” e “Maravilha da guerra”.
Neste último, descreve a terra de ninguém, as crateras e as trincheiras
que todos os dias engoliam multidões de vidas humanas:

Pareço estar numa grande festa iluminada a giorno


Num banquete que a terra se oferecesse
Ela tem fome e abre suas bocas pálidas e compridas
A terra tem fome e este é o festim de Baltazar o canibal

Finalmente, no nível vocabular, ele percebeu que efeitos de


simultaneidade também poderiam ser conseguidos através do uso
pontual de paronomásias e trocadilhos, onde uma mesma palavra se
abre para dois ou mais significados ao mesmo tempo (como vimos no
exemplo de “Saliente”). Em Álcoois, Lockerbie observa que “a
natureza sombria e obsessiva dos estados mentais do poeta se reflete
na expressão elíptica, enganosa e, às vezes, hermética. […] Como os
grandes poetas simbolistas”. Ele continua: “Apollinaire encontra
satisfação estética nas belezas da obscuridade e alusividade do
enunciado”.78
Em um dos momentos mais radicais de sua poesia, “Segunda-feira
rua Cristina”, ele inventa um tipo de poema simultaneísta. Ele o
batizou de poème-conversation, ou, seguindo a dica do próprio poeta,
de poema-ambiente. Nesse tipo de composição o poeta assume o papel
de mero gravador, operando mais como um editor e menos como um
sujeito lírico autobiográfico, “mais um programador do que um gênio
torturado”.79 Nos poèmes-conversations, explica Apollinaire em
“Simultaneísmo-Libretismo”, “o poeta, no centro da vida, registra de
certa forma o lirismo ambiente”. Décaudin, como lembra Bergman,
“atribui a Apollinaire a teoria segundo a qual a poesia está em toda
parte do mundo e que basta saber captá-la, assim como o receptor da
telegrafia sem fio capta as ondas invisíveis e, no entanto, estão
presentes ao nosso redor”.80

colagem
Dentro desse contexto, não podemos esquecer da importância crucial
da experiência da colagem.81 Segundo o pintor Severini, foi
Apollinaire quem a sugeriu, depois de ter provocado Picasso a
experimentar o procedimento em suas telas no fim de 1912:82

Quanto aos chamados papiers collés, posso dizer com precisão que eles nasceram
em 1912 na zona de Montmartre. Até onde me lembro, Apollinaire sugeriu a ideia
para mim depois de ter falado dela para Picasso, que imediatamente pintou uma
pequena natureza-morta na qual ele aplicou um pedaço de papel parafinado (do
tipo que era usado em toalhas de mesa nos bistrôs de Paris).83

Severini narra o episódio em seu livro La vie d’un peintre:

Ele me falou de alguns dos pintores primitivos italianos que tinham colocado nos
seus quadros elementos reais, observando que a sua presença e o contraste que
provocavam aumentavam a vida dessas obras e o seu dinamismo. Ele deu-me
como exemplos um São Pedro exposto na Pinacoteca de Brera, em Milão, que tem
na mão chaves reais, e outros santos que transportam outros objetos, para não
mencionar halos feitos de verdadeiras pedras preciosas e pérolas.84

Uma sugestão de fato revolucionária. Para Marjorie Perloff a


colagem é provavelmente a “invenção artística central do avant-
guerre, ao incorporar diretamente na obra um fragmento verdadeiro
do referente, forçando, assim, o leitor ou espectador a considerar a
interação da mensagem ou material preexistente e a nova composição
artística que resulta do enxerto”.85
Apollinaire fará uso constante da colagem, tanto em sua poesia
quanto em sua prosa. Por exemplo: ele costuma “recortar e colar”,
reciclar passagens, versos e estrofes de textos anteriores seus em novos
textos (autocolagem), como já demonstraram Michel Décaudin (1978,
2002 ) e outros estudiosos de sua obra. Mocherif Abdelkahim cita um
caso exemplar: os poemas “A dama”, “O adeus” e alguns versos de
“Renanas de outono” (de Álcoois), bem como “Cruzando a Europa”
(de Caligramas), “provêm de um só poema composto em 1902

intitulado ‘La clef’ [A chave]”.


A colagem privilegia o heterogêneo, o inacabado, o fragmentário, o
descontínuo. “Segunda-feira rua Cristina” incorpora, em versos, a
experiência de entrarmos em um café lotado em Paris, numa
verdadeira e radical colagem verbal. Há várias coisas acontecendo
simultaneamente no poema. As “pistas” são fornecidas apenas pelos
fragmentos linguísticos disponíveis e arranjados em versos pelo poeta:
o planejamento de um roubo, um calote, uma provável cantada
homossexual, clichês, pleonasmos, intervenções descritivas do
ambiente, ruídos do restaurante, protocolos sociais, frases ditas
durante uma partida de baralho, preconceito de classe, piadas sexuais,
insígnia comercial, entre outras conversas paralelas (a criação de um
novo jornal, contatos internacionais, fofocas, comentários sobre
gírias, viagens, drogas, sexo, vestuário etc.). Ele vai repetir a eficácia
do procedimento em poemas como “As janelas”, “Carta­-oceano” e
em passagens de outros poemas. “A visão simultaneísta de
Apollinaire”, escreve Lockerbie, “não só desloca radicalmente a
estrutura poética.” Para simular a impressão de uma consciência
múltipla e simultânea, “percepções e ideias são abruptamente
justapostas nos poemas em um arranjo que, à primeira leitura, parece
ser de uma desordem considerável”.86 A sintaxe elíptica, o
“empilhamento” de imagens disparatadas e as descontinuidades
provocadas pelo texto são muito mais radicais em Caligramas do que
em Álcoois, ele observa.87 A visão simultaneísta “requer do leitor que
ele reorganize os fragmentos aparentemente ao acaso em uma nova
ordem que seja independente do fluxo do tempo e que é
experimentada em um único ato global de consciência”.88 Como num
calidoscópio.

a página de jornal

Outro modelo textual importante para a poesia simultaneísta


desenvolvida por ele é a página do jornal diário.89 O período de 1871

a 1914 é considerado a era de ouro do jornalismo francês, com oitenta


jornais circulando em Paris em 1914. Ele mesmo foi editor de jornais e
revistas, colaborador assíduo de veículos de enorme circulação como
Le Temps, Paris-journal, Le Mercure de France, L’intransigeant,
Excelsior, La vie parisienne, sem contar as inúmeras pequenas revistas
de seu tempo. Era polivalente: escrevia fait divers, reportagens,
crônicas, contos, crítica literária e, sobretudo, crônica de arte.
O impacto do jornal em sua poesia pode ser identificado em vários
aspectos: 1) no uso da linguagem cotidiana, direta, rápida e veloz (“o
estilo telegráfico”), documental, com adoção de linhas mais curtas e
uma sintaxe mais “simples”, dando um ritmo mais sincopado ao
poema; 2 ) na exploração da tipografia e do layout do poema na
página (ver “Carta-oceano” e “Viagem”); e 3 ) na leitura “em
mosaico” e fragmentada que o jornal possibilita, rompendo a
linearidade discursiva.
Sobre este último aspecto, ele escreve em “O espírito novo e os
poetas”:

Podemos, portanto, esperar, no que diz respeito ao material e aos meios de arte,
uma liberdade de opulência inimaginável. Os poetas de hoje estão aprendendo
esta liberdade enciclopédica. No campo da inspiração, sua liberdade não pode ser
menor do que a de um jornal diário que lida, em uma única página, com os mais
diversos assuntos, viaja para os países mais distantes.90

estrutura paratática

Como percebemos em “Segunda-feira rua Cristina”, uma aliada


importante no processo de obter efeitos de simultaneidade em sua
poesia, sobretudo a escrita depois de “Zona”, é a parataxe:

um termo estilístico que se refere à escassez de termos de ligação entre cláusulas


ou frases justapostas, com frequência causando o efeito de empilhamento, rapidez
e, às vezes, compressão. Um estilo paratático é aquele no qual os recursos comuns
da linguagem para unir proposições são deliberadamente subutilizados;
proposições são colocadas uma ao lado da outra (do grego para + taxein).91

A parataxe, portanto, está em total consonância com a técnica da


colagem e com a ideia de simultaneidade. Octavio Paz explica o
processo conseguido por Apollinaire em “Zona” e pelo fundamental
Blaise Cendrars em A prosa do Transiberiano (seu poema-irmão):

O poema permaneceu sendo uma estrutura verbal, linear e sucessiva, mas que
tendia a dar a sensação — ou a ilusão — da simultaneidade. Apollinaire […]
compreendeu imediatamente que a supressão dos nexos sintáticos era, em poesia,
um ato de consequências semelhantes à abolição da perspectiva na pintura. A
justaposição foi seu método de composição.92

Em poemas como “Zona” esse efeito “modernista” de


simultaneidade é conseguido através de um recurso antiquíssimo, a
anáfora (repetição de uma ou mais palavras em versos subsequentes).
Vejamos um trecho:

Você em Marselha entre melancias antes


Você em Coblence no Hotel do Gigante

Você em Roma sentado sob uma ameixeira do Japão

Você em Amsterdam com uma donzela que nada tem de lady […]
Você em Paris diante do juiz de instrução […]
Você diante do balcão de algum bar devasso […]
Você de noite num restaurante chique […]
Você rumo a Auteuil quer chegar em casa a pé […]

As memórias do poeta aparecem como um álbum de fotos de várias


fases de sua vida ou como um filme documentário, mostrando sua
vida sob vários ângulos simultaneamente. Como nas telas cubistas,
não há hierarquia entre as visões que cada verso apresenta: é como se
todas ocupassem o mesmo espaço mental, solicitando que o leitor faça
o mesmo, como diante de uma tela cubista ou orfista. Um recurso que
ele pode ter aprendido com Walt Whitman e sua “técnica de
catálogos”, além de Cendrars.
Os saltos temporais e espaciais na poesia de Apollinaire já são
reflexo do começo da globalização e do impacto dos meios de
transporte e comunicações na percepção humana (além, é claro, do
cinema, da psicanálise de Freud e da teoria da relatividade de
Einstein). É o que ocorre em “Um fantasma de nuvens” (grifos meus):

[…]
A que horas parte o trem pra Paris?
E naquele instante
Pombos das Molucas defecam noz-moscada
Simultaneamente
Missão católica de Boma que fim vocês deram no escultor

E em outro lugar
Ela cruza a ponte que liga Bonn a Beuel e desaparece em Pützschen

E ao mesmo tempo
Uma moça apaixonada pelo prefeito

E em outro bairro
Poetas competem com rótulos de perfumes
[…]

Em “Há”, já escrito no campo de batalha, ele prossegue a busca por


capturar a simultaneidade da experiência, como no cinema (cortes
secos, sobreposições, fade-outs):

Há seis salsichas no céu noite chegando vai ver são larvas parindo estrelas
Há um submarino inimigo assediando o meu amor
Há mil pinheiros despedaçados pelos estilhaços de obuses ao meu redor
[…]
Há um capitão esperando ansiosamente por mensagens vindas pelo Atlântico via
Telefonia Sem Fio
Há soldados à meia-noite serrando tábuas para os caixões
Há mulheres aos gritos exigindo mais milho diante de um Cristo sangrando no
México
Há a Gulf Stream tão morna e benfazeja
Há um cemitério cheio de cruzes a 5 quilômetros daqui
Há cruzes aqui ali por toda parte
Há figos-da-barbária nos cactos na Argélia
[…]

É o efeito obtido pela parataxe, transformando as linhas em


construções paralelas, independentes e justapostas. Acrescente-se a
isso sua predileção por uma poesia altamente imagética, embora não
imitativa, não naturalista. Isso é fanopeia, como definirá Pound: “um
lance de imagens na imaginação visual”, imagem que é definida como
“aquilo que apresenta certo complexo intelectual e emocional num
instante”.93 A força da fanopeia é que ela apresenta uma ou várias
imagens, mas não as descreve ou teoriza a respeito, tampouco as
sentimentaliza. Em outros instantes, Apollinaire dispara na
imaginação do leitor uma rajada de substantivos que evocam as
formas circulares, coloridas e luminosas, os “contrates simultâneos”
da pintura do casal Delaunay. É o que ocorre neste verso de “As
janelas”:

Bignorneaux Lotte multiples Soleils et l’Oursin du couchant


Búzios Lampreias múltiplos Sóis e o Ouriço do crepúsculo

A sensação do verso é o de empilhamento, de compressão de várias


coisas no mesmo espaço. Imagens retiradas da natureza marinha, ou
sugeridas pelas telas de Delaunay, justapostas pelo que têm de similar,
que é o formato circular: a espiral do búzio, a boca-ventosa da
lampreia, os Sóis (ou ainda peixes-sóis), o ouriço-do-mar e o sol se
pondo no oceano (remetendo diretamente aos “discos simultâneos” da
pintura dos Delaunay).
Em “As janelas” o leitor é convidado, mentalmente, a participar dos
saltos entre memória e realidade. O poema apresenta uma
simultaneidade de espaços, lugares e cidades que dialogam
diretamente com o simultaneísmo e orfismo das pinturas dos
Delaunay e sua teoria de “contrastes simultâneos” de cores:

[…]
Cintilante diamante
Vancouver
Onde o trem branco de neve e seus fogos noturnos fogem do inverno
Ó Paris
Do vermelho ao verde morre todo o amarelo
Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York e as Antilhas
A janela se abre como uma laranja
O belo fruto da luz

Os belos versos finais, que fundem a imagem de uma janela sendo


aberta para a luminosidade do dia e uma laranja sendo cortada ao
meio, remetem à pintura de Henri Matisse e, novamente, à série
Janelas, de Robert Delaunay. Vimos, em uma mesma linha, a fusão de
nomes que fazem o leitor ir e voltar em seu mapa-múndi mental: Paris
(França, Cidade Luz, vermelho-vinho), Vancouver (Canadá), Hyères
(Provença, sul da França, conhecida por sua luz e seu mar),
Maintenon (França), Nova York (Estados Unidos) e o Caribe
(Antilhas, conhecidas pelas verdejantes florestas tropicais). O verso,
por sua vez, remete ao título de uma das telas de Delaunay e seu
“sentido mundial”: “Paris New-York Berlin Moscou la Tour
Simultané”. Curiosamente, o verso “Paris Vancouver Hyères
Maintenon New-York e as Antilhas” está em relação de paralelismo
(ou, para dizermos como Delaunay, em “contraste simultâneo”) com
o verso “Búzios Lampreias múltiplos [Peixes-]Sóis e o Ouriço do
crepúsculo”.
A imagem-em-fluxo central de “As janelas”, enigmática e que
funciona como um refrão (“Do vermelho ao verde morre todo o
amarelo”), é nada menos que a descrição do fenômeno que acontece
com as cores do espectro. Como o vermelho fica à extrema esquerda
do espectro, o amarelo (como o laranja) vai “desaparecendo” e
“morrendo” rapidamente à medida que o olhar se move para a
direita, para a primeira metade do disco de Newton. A ideia seria
melhor traduzida se Apollinaire pudesse ter usado letras com as cores
do espectro. No nível da imagem, outro efeito de simultaneidade
recorrente é obtido na fusão do passado mais antigo com o mais
moderno (como o avião). É o caso, por exemplo, do “Cristo-avião” e
do “Ícaro-avião” que aparecem em “Zona” e “O viajante” (ele
acreditava que as invenções modernas confirmavam as previsões dos
mitos):

É Cristo que sobe mais alto que qualquer piloto ou criatura


Ele detém o recorde mundial de altura

Ou a aparição de uma fada do folclore medieval francês, a Dame-


Abonde, num moderno bonde elétrico:

E não devemos esquecer as lendas


Deusa Abundia no bonde noturno nas profundezas do bairro deserto
Vi uma caçada enquanto subia
E o elevador parou em cada andar

Em “O músico de Saint-Merry” ele transporta a antiquíssima lenda


germânica do Flautista de Hamelin (1284) para um bairro de Paris em
maio de 1913 . Efeitos de simultaneidade de tempos e espaços são
conseguidos, como vimos, muitas vezes em uma mesma linha. Como
em “Zona”:

Pastora ó torre Eiffel seu tropel de pontes esta manhã balindo

Aqui temos novamente uso intenso de personificação: 1 ) uma


Pastora (imagem que remete à Antiguidade, à Arcádia, à poesia
pastoral); 2 ) uma Pastora que é, simultaneamente, a torre Eiffel
(símbolo máximo da modernidade, apelidada de “A Pastora”, na
época, por se situar às margens do Sena); 3) uma Pastora-Torre Eiffel
que conduz seu “tropel de pontes” (há uma porção delas ao longo do
Sena em Paris). Tropel: um “conjunto de pessoas ou animais
movendo­-se rapidamente e de maneira desordenada”. Esse tropel,
além do trânsito e da multidão passando pelas pontes, retorna,
ciclicamente, ao passado árcade e à natureza através do verbo “balir”
(e não “buzinar”, por exemplo). E ainda dando a possibilidade de eles
estarem, sinestesicamente, “balindo esta manhã” (berrando à luz da
manhã).
Outras justaposições de substantivos, em palavras compostas, de
contextos diferentes, permitem mais efeitos de contrastes de
simultaneidade. Em “Zona” temos “Pastora­-Torre Eiffel”, “tropel de
pontes”. Em “Árvore” temos “Toupeira-Ariadne” (fusão do mundo
animal com o mitológico). Tanto a toupeira quanto Ariadne (a
“Senhora dos Labirintos” do Minotauro) são especialistas em
labirintos e subterrâneos. Acrescente-se, ainda, que toupeira era gíria
parisiense para prostituta. O mesmo ocorre em “Laços”, com a
palavra hifenizada “Aranha-Pontífice”: os significados etimológicos de
“pontífice” ampliam o significado de “aranha”: é a aranha que faz
teias (também circulares), mas ela aqui é também humanizada como
um arquiteto (fazedor de pontes) e refere-se, ainda, ao papa, a
autoridade máxima da Igreja católica.
Essa ambiguidade e dualidade semântica, o estilo telegráfico,
elíptico, atingem seu auge no último verso de “Zo­na”, talvez o mais
conhecido de Apollinaire:

Soleil cou coupé

“Soleil cou coupé” (“Sol-pescoço-cortado”) pode ser lido ainda


como “Soleil coucou(pé)” (Sol-cuco-cortado, em alusão ao cuco, o
pássaro que simbolicamente marca as horas em relógios). Mas a
grande surpresa o poeta guarda para quando descobrimos que “cou-
coupé” é o nome vulgar de um pássaro do Senegal conhecido como
“degolado” (amadine cou-coupé, Amadina fasciata). Ele possui uma
mancha ou “gola” sanguínea no pescoço, parecendo ter sido
degolado.
Temos, assim, a criação de uma imagem inusitada e cintilante: a do
sol nascendo atrás do skyline de Paris como um pescoço cortado mas
também um “Sol Degolado”. Em suma, ele deixa para o leitor essas e
outras armadilhas e possibilidades de leitura. O fato é que, em uma
imagem, ele é capaz de nos levar de Paris à África.

indeterminação pronominal

Importante mencionar que, levando adiante a frase de Rimbaud, “Eu


é um outro”, Apollinaire também busca efeitos de simultaneidade
através do uso de pronomes.
Ele faz isso, por exemplo, através de jogos pronominais que
desestabilizam a primazia ou hierarquia do “eu lírico”, que o
fragmentam ou até mesmo o anulam, aumentando ainda mais a
ambiguidade e a complexidade de seus poemas (ver “Zona”,
“Cortejo”, “Segunda-feira rua Cristina”, “O músico de Saint-Merry”,
“Árvore”, entre outros). É a ideia do “eu lírico” como uma
encruzilhada de vozes.
Num mesmo poema podemos ter a presença de eu, tu, você, ele(a),
nós, eles(as). Isso é análogo, mais uma vez, ao impulso cubista de
captar um objeto através de múltiplos pontos de vista. Ver,
especificamente, a alteridade que ele consegue no fascinante “Os
suspiros do atirador de Dakar”, escrito do ponto de vista de um
combatente africano lutando pela França.
os caligramas

Além do achado dos poèmes-conversations, do “lirismo ambiente” do


qual “Segunda-feira rua Cristina” é exemplar, ou de poemas-passeios
e road-poems (poemas­-de­-estrada) como “O pequeno automóvel”,
Apollinaire também conseguiu expressar seu conceito de
simultaneidade através da invenção dos “ideogramas líricos”
(posteriormente chamados de caligramas). Ele desestabiliza o verso e o
coloca para desenhar no espaço.
O caráter colagístico da sua poesia e dos caligramas tem sido
apontado por vários críticos e historiadores (como Shattuck, Bohn,
Perloff). Apollinaire decidiu tentar uma fusão de pintura (desenho) e
poesia verbal, até mesmo introduzindo selos, carimbos e cartões-
postais em suas composições.94 A ideia, abortada pela explosão da
Primeira Guerra Mundial, era lançar uma plaquete só de poemas
visuais coloridos que se chamaria, a título de provocação aos seus
amigos pintores, E eu também sou pintor.95 Para seu experimento de
poesia visual Apollinaire fez uma viagem de volta ao tempo da
infância e da juventude, quando passava horas estudando a caligrafia
árabe, os ideogramas orientais, os technopaegnia dos gregos e os
carmina figurata dos romanos, do ocultismo e dos textos da tradição
hermética. O caligrama chamava a atenção para a materialidade e a
plasticidade da linguagem, para o fato de que não só lemos como
vemos (vlemos) as palavras. Eis um ponto fundamental da pesquisa
poética de Apollinaire. O resultado são poemas que ainda hoje
fascinam pela simplicidade e ousadia. Ainda que tivesse um aspecto
“infantil”, o desenhar-com-letras de Apollinaire nada tinha de
ornamental e decorativo e inaugurou um período de experimentações
radicais ao fundir pintura e poesia, imagem e texto. Apollinaire
propunha novos modos de escrever-ler poesia, solicitando uma maior
participação do leitor em sua construção e deciframento.
O Dicionário Aurélio define “caligrama” como uma “re­presentação
figurativa do conteúdo de um texto, mediante arranjo dos próprios
caracteres tipográficos com que é composto”. Seria, por essa definição
redutora, uma mera tautologia: A (imagem) = A (texto). Um
pleonasmo ou redundância. As palavras “falam” exatamente do
desenho e o desenho “figura” o que as palavras dizem. No entanto, a
operação dos caligramas de Apollinaire é um pouco mais complexa e
nem sempre é isso o que acontece. Há um caráter simbólico e bem
emblemático dos poemas visuais (que remetem ao ocultismo, à
tradição hermética) que parece ter sido esquecido na apreciação de
seus experimentos. A exemplo do já citado caligrama de “coração”,
no caligrama do “relógio” cada ponteiro apresenta um enigma. O
ponteiro que marca oito horas, por exemplo, é composto pelo verso
“O infinito posto de pé por um filósofo doido”. Precisamos parar e
lembrar do símbolo matemático que representa o infinito para
entender a charada. As oito horas são um ∞ que um “filósofo doido”
colocou de pé: 8 . São sutilezas desse tipo que se camuflam sob a
aparência pueril e tautológica dos caligramas.
Vem de um filósofo uma compreensão melhor da proposta de
Apollinaire. Michel Foucault descreve o que acontece na experiência
simultânea de vler um caligrama (os itálicos são meus):

Sinal, a letra permite fixar as palavras; linha, ela permite figurar a coisa. Assim, o
caligrama pretende apagar ludicamente as mais velhas oposições de nossa
civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular;
imitar e significar; olhar e ler. Acuando duas vezes a coisa de que fala, ele lhe
prepara a mais perfeita armadilha. Por sua dupla entrada, garante essa captura, da
qual não são capazes o discurso por si só ou o puro desenho. Conjura a invencível
ausência da qual as palavras são incapazes de triunfar, impondo-lhes, pelas
astúcias de uma escrita que joga no espaço, a forma visível de sua referência:
sabiamente dispostos sobre a folha de papel, os signos invocam, do exterior, pela
margem que desenham, pelo recorte de sua massa no espaço vazio da página, a
própria coisa de que falam. E, em retorno, a forma visível é cavada pela escrita,
arada pelas palavras que agem sobre ela do interior e, conjurando a presença
imóvel, ambígua, sem nome, fazem emergir a rede das significações que a batizam,
a determinam, a fixam no universo dos discursos. Duplo alçapão; armadilha
inevitável: por onde escapariam, daqui para a frente, o voo dos pássaros, a forma
transitória das flores, a chuva que escorre?96

Embora não cite o poeta em seu texto, pelos exemplos que Foucault
dá fica evidente que ele se refere aos caligramas de Apollinaire.
Vejamos um último exemplo do efeito de simultaneidade e das
sutilezas escondidas nos seus versos. Lições de ambiguidade
aprendidas com o simbolismo, das quais ele nunca abriu mão.
“Cantor”, seu poema mais breve, traz apenas um verso em
alexandrino clássico (doze sílabas poéticas, com tônicas na sexta e 12a

sílabas):

Chantre
Et l’unique cordeau des trompettes marines

Na minha tradução:

Cantor
E o cordão solitário das trombas marinhas

A palavra “cordeau”, lida em voz alta, pode ser entendida em


francês como “cordão” (cordão de alinhamento usado por pedreiros e
jardineiros), “cordão de água”, “corpo de água” (“corps d’eau”) e,
obviamente, a “corda” de um instrumento musical, no caso um
trompette marine. Apollinaire refere-se aqui à tromba ou trompa
marinha (“tromba marina”, em italiano), bizarro instrumento
medieval de uma só corda, tocada com um arco.
É possível que essa gravura do italiano F. Bonanni, de 1722 , tenha
sido a inspiração do poema, sobretudo pela presença do “Cantor”.
Podemos considerar esse monóstico, portanto, como um verdadeiro
caligrama minimalista e metalinguístico (o poema fala do próprio
poema): a linha única serve, ao mesmo tempo, como representação
gráfica da única corda do instrumento. Cada som possibilita uma
interpretação diferente. Minha tradução possibilita ainda outra
imagem, o “cordão” de uma tromba­-d’água sobre o oceano.

3.

apollinaire no brasil

Antes mesmo de Apollinaire publicar seus primeiros livros — como


Álcoois (1912), Os pintores cubistas: Meditações estéticas (1913) —
alguns intelectuais brasileiros estavam ligados nas suas ideias estéticas
e na sua poesia através de jornais e revistas francesas que chegavam
por aqui: La plume, Vers et prose, Mercure de France e a famosa
revista Les soirées de Paris. Apollinaire colaborava assiduamente com
todas e era um dos diretores da Les soirées. Além da menção à infame
prisão em 1911 , por estar envolvido no imbróglio do roubo da Mona
Lisa, (na revista carioca Fon Fon, n. 49, 9 de dezembro de 1911, p. 6),
alguns contos traduzidos no mesmo ano, em jornais, encontramos
menções à “poesia simultânea” e uma curiosa descrição do caligrama
“Chove” pelo poeta e conde Affonso Celso em sua crônica “Cotas ao
acaso”, publicada no Jornal do Brasil em março de 1917 (apontadas
recentemente pelo poeta Paulo Ferraz),97 mas são raras. O maior
impacto de sua poesia e pensamento estético se dá nos anos 1920 ,
sobretudo entre os modernistas associados à Semana de Arte Moderna
de 1922 . Entre seus primeiros leitores e difusores estão nomes como
Rubens Borba de Moraes, Alberto de Oliveira, Oswald de Andrade,
Sérgio Milliet, Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Graça
Aranha, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda e Luís
Aranha.98 O jovem Sérgio Buarque é o primeiro a assinalar, em 1921 ,
a influência de Apollinaire nos versos dos “futuristas paulistanos”
Mário de Andrade, Guilherme de Almeida e Oswald de Andrade.99
Já em agosto de 1922 , na revista Klaxon, órgão “oficial” do
modernismo brasileiro, Oswald de Andrade reservava um lugar
especial para a tríade formada por Rimbaud, Lautréamont e
Apollinaire. Em meio aos seguidores brasileiros de Apollinaire ele
elencava Bandeira, Luís Aranha, Ronald de Carvalho e Mário de
Andrade. Entre alguns livros em que podemos notar a presença e
influência de Apollinaire estão a primeira poesia de Manuel Bandeira
(A cinza das horas, 1917 ), Pauliceia desvairada (1922), de Mário de
Andrade, Cocktails (de Luís Aranha, publicado postumamente em
1985 , cujo título remete diretamente à Álcoois) e os ensaios de A
escrava que não é Isaura, de Mário de Andrade. Outros nomes
importantes que beberam na Fonte Apollinaire são Guilherme de
Almeida, Murilo Mendes, Mário Quintana, Carlos Drummond de
Andrade (que traduziu o longo poema “As colinas”), João Cabral de
Melo Neto (que o menciona entre suas primeiras leituras
importantes), Jorge de Lima e Vinicius de Moraes.
Um dos primeiros a mencionar Apollinaire por escrito é Mário de
Andrade, em 1922 , “refutando uma acusação de Lima Barreto que ele
e seus amigos fossem Futuristas”.100 Em 1923 , a pintora Tarsila do
Amaral e Oswald de Andrade tomam conhecimento de Apollinaire em
Paris ao conhecerem o fantástico Blaise Cendrars. Apollinaire falecera
havia cinco anos, mas sua presença estava bem viva na atmosfera
literária e cultural parisiense. Durante os seis meses que ficaram lá,
Tarsila e Oswald chegaram a visitar a viúva do poeta, Jacqueline Kolb,
no mesmo apartamento em que ele falecera em 1918 : o número 202

do Boulevard Saint-Germain.
Em 1924 a poesia e obra de Apollinaire ganham um difusor de peso
com a chegada do poeta e amigo Cendrars. Tendo vivido no Brasil por
nove meses na primeira estadia (a convite de Paulo Prado, feito no ano
anterior) e em mais cinco outras temporadas, o suíço, que tanto
marcou nossa literatura, é um dos principais responsáveis por difundi-
las entre nós, através de seus testemunhos, conversas, leituras,
palestras e artigos publicados aqui. Para Sérgio Milliet o poema
“Zona” teve um papel importante no modernismo brasileiro:101 “Era
para nós um modelo e quase o sabíamos de cor”. Bandeira escrevia,
em carta a Mário, em 1925 : “Cheguei à feira modernista pelo
expresso Verlaine-Rimbaud-Apollinaire”.

apollinaire nos anos 1950 e 1960

E ele entraria novamente no radar dos brasileiros, agora através de


escritores como José Lino Grünewald, Ferreira Gullar, Paulo Mendes
Campos, Mário Faustino, Roberto Piva, Claudio Willer; mas,
sobretudo, por sua influência nos postulados e na prática da poesia
concreta de Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari (este
último também o traduziu). Apollinaire é seguidamente citado e
brevemente discutido nos textos teóricos e manifestos dos anos 1950 e
1960 . No entanto, talvez pela associação posterior de seu nome ao
surrealismo — a que os concretos ferrenhamente se opunham —, eles
acabaram privilegiando apenas os caligramas, que constituem apenas
um quinto da sua obra poética. Eles ressaltam sua importância para a
poesia concreta por um ensaio que Apollinaire (sob o pseudônimo de
Gabriel Arboin [sic]) teria publicado na Les soirées em julho de 1914 ,
intitulado “Diante do ideograma de Apollinaire”.102 O grande
destaque é dado ao seguinte trecho, uma afirmação tida como
“revolucionária” por Pignatari e por isso mesmo incluída no “plano-
piloto para poesia concreta”, de 1958 : “porque é necessário que a
nossa inteligência se habitue a compreender sintético­-ideograficamente
em lugar de analítico-discursivamente”.103
Os problemas começam quando os concretos se opõem às seguintes
afirmações de “Arboin-Apollinaire” acerca dos caligramas:

Quem não se aperceberia de que isso [os caligramas] não é mais do que um início,
e que, por efeito da lógica determinista que dirige a evolução de todo mecanismo,
tais poemas devem acabar apresentando um conjunto pictural em relação ao tema
tratado? Assim se atingirá o ideograma quase perfeito.104

Considerando a afirmação “um equívoco”, Augusto de Campos


completa: “Condena, assim [Apollinaire], o ideograma poético à mera
representação figurativa do tema. Se o poema é sobre a chuva (‘Il
Pleut’), as palavras se dispõem em cinco linhas oblíquas. Composições
em forma de coração, relógio, gravata, coroa se sucedem em
Caligramas”.105 A visão estreita de “Arboin-Apollinaire” acerca das
potencialidades da poesia visual teria feito o poeta francês cair em um
“decorativismo sem sentido”106 (Décio Pignatari), em um “arranjo
gráfico-hedonista”107 (Haroldo de Campos) e reduzido a “tentativa”
de poesia concreta proposta pelos caligramas a meros “arabescos
figurativos”108 (Pignatari).
Há um ponto importante a se esclarecer aqui. Os concretos foram
vítimas de uma dúvida levantada nos anos 1950 por Bernard
Poissonier, um amigo de Jacqueline Apollinaire. Ele afirmava que
Gabriel Arbouin era um pseudônimo de Apollinaire e que este seria o
verdadeiro autor do ensaio. O fato é que o ensaio é de Arbouin, e não
de Apollinaire, um equívoco já esclarecido por especialistas como
Marcel Adéma, Michel Décaudin e biógrafas como Laurence
Campa.109 O escritor Gabriel Arbouin (com “u”, -
1888 1917 ) não só
existiu como era fã da poesia de Apollinaire e colaborador assíduo de
periódicos como Écrits français, Radical e Paris-Journal, um jornal de
grande circulação. Este G. A. faleceu em combate na Primeira Guerra
Mundial. O primeiro biógrafo do poeta, Marcel Adéma, já esclarecia
a questão em 1952 e 1954 . Ele também não tem dúvidas de que
Arbouin é o verdadeiro autor, já que ele “não só existiu como é autor
de um romance publicado em 1911 , era conhecido de Apollinaire e
seu colega no jornal Écrits français”.110
Resumindo: os concretos atribuem um texto que teria tanta
importância para a teoria concreta como sendo de Apollinaire (um
equívoco que continua mesmo em traduções recentes).111 O irônico é
que as palavras de Arbouin não só passaram a ser um dos pilares
teóricos da poesia concreta como acabaram por afetar o julgamento
dos concretos sobre Apollinaire, deixando sua poesia confessadamente
em “segundo plano”112 no seu paideuma. É o que fica claro quando
Pignatari escreve, levado pelo equívoco: “tática: joyce, cummings,
apollinaire (como visão, não como realização)”. Augusto diz que
“Apollinaire” foi “[v]ítima do preconceito figurativo, porém, e sem ter
tentado sequer as possibilidades de uma figuração fisiognômica, quis
alcançar não sabemos qual ideograma puro, ou seja, o puro desenho
figurativo, e caiu no decorativismo sem sentido: poemas em forma de
bandolim, de Torre Eiffel, de metralhadora […]”.113 Já Haroldo de
Campos afirma: “Nenhum poeta depois de Mallarmé foi tão radical
quanto Mallarmé. Nem mesmo Apollinaire. Apollinaire é decorativo
onde Mallarmé é estrutural”.114
Bastaria checar os ensaios do poeta para ver que a afirmação de
Arbouin vai contra a defesa constante da arte não mimética e não
temática por parte de Apollinaire, o que se aplica também à poesia
que praticava:

Esses pintores, embora ainda observem a natureza, já não a imitam e evitam


cautelosamente a representação de cenas naturais observadas e reconstituídas pelo
estudo. A verossimilhança já não tem nenhuma importância, pois o artista tudo
sacrifica às verdades, às necessidades de uma natureza superior que ele supõe sem
descobri-la. O tema já não conta e, se conta, é muito pouco.115

Há a recusa da ideia de mimese como imitação da realidade: “A


poesia deve estar o mais longe possível da natureza e com a qual não
deve ter nada em comum”.116 Não que a natureza esteja eliminada da
obra de Apollinaire. Sua defesa se dá no sentido que, pela força da
“imaginação”, o pintor ou o poeta devem “distorcer primorosamente
a realidade”. Como escreve Lockerbie, falando de artistas singulares
como Picasso e Apollinaire: “A característica distintiva do artista
moderno é que ele produz um novo objeto artístico, profundamente
original em forma e concepção e livre de qualquer imitação servil da
realidade, a qual se torna a projeção de sua própria personalidade
criativa sobre o mundo”.117
Ele não só pratica uma “poesia de estrutura” em seus caligramas
como propõe outras, nada convencionais, em obras como “As
janelas”, “Segunda-feira rua Cristina” e “Carta-oceano”
(simultaneísmo, colagem, parataxe) que, infelizmente, passaram ao
largo dos concretos. O fato é que a estética da simultaneidade, como
vimos com Perloff, se tornara para Apollinaire e outros artistas e
escritores de seu tempo “não só um tema central como um princípio
formal e estrutural”. Sobre aquele que é seu caligrama mais eficaz e
impactante, “Chove”, defende Joanna Drucker: “o efeito visual faz
mais do que meramente enfatizar o tema, ele na verdade força o leitor
a performar a leitura de acordo com um movimento idêntico à ação
da chuva — olhos correndo para baixo da página seguindo os riachos
de letras correndo na página”, no que ela chama de “uma instância
clara de performance visual”.118 Simultaneamente, as linhas diagonais
sugerem mais de uma possível figuração: a chuva caindo, os cinco
dedos de uma mão e, ainda, as gotas de chuva percorrendo uma
vidraça. Portanto, a materialidade linguístico-visual das palavras se
interpõe entre o leitor e o que está “lá fora”. O poema se estrutura em
perfeito “isomorfismo fundo-forma”, como gostavam de chamar os
concretos. É o próprio Apollinaire, contra os concretos, quem se
defende: “Na minha poesia eu simplesmente voltei aos princípios
básicos, já que o ideograma é um princípio fundamental da
escrita”.119 Referindo-se a seus caligramas em geral, ao contrário das
“figuras solitárias” dos carmina figurata que aparecem em Rabelais
(século xvi ) e Panard (século xviii ), explica Apollinaire, “as relações
entre as figuras justapostas em meu poema são tão expressivas quanto
as palavras que as compõem, e isso, acho, é uma nova invenção”. Um
dos poetas fundamentais que, desde 1913 , acompanhava atentamente
o desenvolvimento da poesia de Apollinaire era Ezra Pound. O
americano, baseado em Londres, além de leitor da revista de
Apollinaire Les soirées de Paris, lera “A antitradição futurista”,
“Simultaneísmo-Libretismo” e Álcoois com grande interesse (uma
cópia fora enviada a Pound pelo próprio poeta). Pound acreditava que
os poetas franceses, Apollinaire mais que todos, estavam muito à
frente dos ingleses em termos de inovações poéticas, de make it new, e
o considerava um dos fundadores da poesia moderna francesa. Ele
aconselhava, no fim dos anos 1920 : “Os jovens e bem ferozes vão
‘entender’ Guillaume Apollinaire assim como os mais velhos
‘entenderam’ Mallarmé”.120
Embora Apollinaire preferisse escrever sempre à mão e ousasse com
a tipologia, a composição tipográfica e a espacialização, é intrigante o
fato de não ter explorado mais as possibilidades da máquina de
escrever e da tipografia para a composição de poemas (como Barzun o
fez, por exemplo). Não teve tempo: a guerra e depois o vírus adiaram
tudo. Será e.e. cummings, em 1917 , influenciado por ele e em resposta
à sua poesia, um dos responsáveis por fazer isso.121 Em todo caso,
Apollinaire já havia mostrado alguns caminhos de exploração poética.
Talvez considerasse o caligrama apenas mais um estágio para maiores
voos. É o que ele sugere em “O espírito novo e os poetas”:
“Procedimentos tipográficos, empregados com grande ousadia,
fizeram surgir um lirismo visual quase desconhecido entre nós. Esses
procedimentos são capazes de serem levados muito mais além, ao
ponto de consumar uma nova síntese das artes — música, pintura e
literatura”. É Arbouin, inclusive, no mesmo polêmico artigo, quem
antecipa um “problema” da poesia visual e concreta. Apesar de
receber o caligrama com entusiasmo, no mesmo texto ele demonstra
reservas. Teme que o experimento possa “destruir a base rítmica da
poesia, da qual a comunicação da emoção dependia, e assim criar uma
arte arcana, reservada apenas a iniciados”.122 Arbouin, que havia
chamado os caligramas de “revolução”, logo adiante relativiza as
conquistas de Apollinaire e ainda manda um recado a ele:

Pareceria que os esforços como os de Apollinaire na Les Soirées de Paris não


representam precisamente uma revolução, mas sim um retrocesso… que, ao
retornar ao ideograma, tende-se a criar uma linguagem de iniciados, uma arte de
iniciados, que finalmente tais esforços são, da perspectiva social, anticoletivos, o
que talvez não seja de modo algum o objetivo dos protagonistas do
movimento.123

Creio que em seus caligramas Apollinaire vai além de uma mera


operação tautológica, esse processo de pensar que consiste em “repetir
com outras palavras o que se pretende demonstrar”. Mais do que
mero decorativismo, há sim um sentido estrutural nos caligramas,
como prova uma análise mais cuidadosa de poemas como “Chove”,
“Viagem”, “Paisagem”, “Coração coroa e espelho”, poemas de guerra
como “Algodão nas orelhas” e sobretudo o tour de force “Carta-
oceano”. Muitas vezes as imagens chegam a contradizer o que dizem
os textos e vice-versa, criando aquela “dupla entrada” e “armadilha”
de que falou Foucault. Diga-se, ainda, que esse “figurativismo”
unívoco da poesia visual de Apollinaire é rebatido com números.
Como Willard Bohn demonstrou, dos 133 pictogramas que ele criou
em vida “51 não reproduzem nenhuma imagem verbal contida no
texto”.124 Portanto, quase 40%.
Mostrando como “os ideogramas líricos” e os poemas
simultaneístas operam “um deslocamento radical da estrutura”, S. I.
Lockerbie afirma:

Nada poderia ser mais equivocado do que pensar que o formato dos caligramas,
sejam os pictóricos ou os mais abstratos, é incidental ou meramente decorativo.
Ao contrário, sua forma gráfica interage com o texto verbal de modo a criar uma
nova forma de poesia que tem tido muitos sucessores. Eles também cumprem sua
função, como os poemas-conversações antes deles, de estender a gama da
expressão poética e aumentar o número de usos de linguagem nos quais podemos
encontrar satisfação estética.125

traduções no brasil

A poesia de Guillaume Apollinaire, esparsamente vertida por grandes


poetas brasileiros como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade e Décio Pignatari, tem sido relativamente bem traduzida. A
variedade de traduções, apesar de não ser extensa, indica certo
reconhecimento dos tradutores e editores brasileiros pela obra do
francês. Entre os livros mais recentes podemos citar Escritos de
Apollinaire, de 1984 (por Paulo Hecker Filho, trazendo trinta
poemas), O bestiário ou cortejo de Orfeu, de 1997 (livro integral, por
Álvaro Faleiros), Álcoois e outros poemas, de 2005 (integral mais
poemas dispersos, por Daniel Fresnot), Caligramas, de 2008 (que
reúne apenas os caligramas e aqueles poemas com caligramas
inseridos, por Álvaro Faleiros) e Álcoois, de 2013 (integral), por
Mário Laranjeira. Sua poesia faz breves aparições em antologias como
Antologia da poesia francesa: Do século ix ao século xx , de 1991 , por
Cláudio Veiga, 31 Poetas 214 poemas: Do Rigveda e Safo a
Apollinaire, de 1997 , por Décio Pignatari, Poesia erótica em tradução,
de 1990 , por José Paulo Paes, Poetas de França Hoje, de 2006 , por
Mário Laranjeira, além de traduções esparsas em revistas e blogs
(Inimigo Rumor, Coyote, Zunái, 7faces etc.).
Na França e Europa sua fama só cresce, passados 106 anos de sua
morte. Como disse sua biógrafa mais importante hoje, Laurence
Campa:

Apollinaire está ganhando leitores […] e sua aura tem realmente crescido ao longo
do século e continua a crescer, ainda mais desde que ele caiu no domínio público.
Ele pertence verdadeiramente à herança e à cultura francesas, o que não era o caso
de modo algum no início. Devemos lembrar que Álcoois teve cerca de seiscentas
cópias e Apollinaire era muito mais conhecido como crítico de arte do que como
um poeta. Aos poucos, Álcoois tornou-se, junto com Paroles, de Jacques Prévert,
a coleção mais popular de poesia francesa do século xx. 126

esta seleção

Esta antologia foi feita a partir das edições originais dos seus dois
livros mais importantes: Alcools: Poèmes (1898-1913), de 1913 , e
Calligrammes: Poèmes de la paix et de la guerre (1913-1916), de
1918 . Ambos publicados em Paris pela Mercure de France e nos quais
ele teve papel ativo.
Apesar de trazer em seu subtítulo 1916 como sendo o ano final da
coleção, Caligramas reúne poemas escritos até pouco antes de sua
morte, em 9 de novembro de 1918 (ironicamente dois dias antes do
fim oficial da Primeira Guerra Mundial). Portanto, os 77 poemas desta
seleção cobrem sua produção de 1900 (“Clair de Lune”, “A porta”)
até 1918 (“A ruiva bonita”, um dos últimos poemas que escreveu).
Em termos de técnica poética, temas e estrutura linguística existem
diferenças significativas entre Álcoois e Caligramas. Apesar de abrir
Álcoois, o famoso poema “Zona” foi o último a ser escrito para o
livro e serve como perfeita transição para Caligramas e para a seção
“Ondas”, que abre o segundo livro. Respeitei a ordem em que os
poemas aparecem nos dois volumes, nas edições supervisionadas por
ele. Dos 39 poemas de Álcoois, traduzi 26 . Dos 84 poemas de
Caligramas, 51.
Para esta seleção adotei um princípio cubista e simultaneísta, com o
objetivo de mostrar as múltiplas facetas de um mesmo objeto (no
caso, sua poesia). Agrupei aqui os poemas traduzidos sob uma
classificação geral, lembrando que há peças que se sobrepõem a mais
de uma categoria:
Poemas pós-simbolistas: predomínio do universo e tradição
romântica e simbolista (Heine, Verlaine, Verhaeren, Baudelaire,
Mallarmé). Melopeia (exploração da música das palavras), presença
constante de estruturas métricas e rímicas. Presença de poemas do seu
período alemão, do chamado “ciclo renano”. Temas da perda e do fim
do amor, da passagem do tempo e da fugacidade da experiência
humana, sob a luz da melancolia, do outono (sua “estação mental”,
equivalente à passagem da vida para a morte), dos astros. Estão nesse
grupo “A ponte Mirabeau”, “Açafrões”, “Cantor”, “Crepúsculo”,
“Annie”, “Clotilde”, “Marizibill”, “Maria”, “Branca de Neve”, “O
adeus”, “A cigana”, “Outono”, “Signo”, “À Saúde”, “Outono
doente”, “Hotéis”, “Raios de luar”, “Trompas de caça”.
Poemas-ambulantes: (road poems, flâneries urbanas e pastorais,
poemas-passeios, poemas-viagem). Predomínio do verso livre e da
estrutura paratática, da descontinuidade, do deslocamento ao ar livre:
“Zona”, “Cortejo”, “A casa dos mortos”, “Saltimbancos”,
“Marizibill”, “O viajante”, “1909”, “Poema lido no casamento de
André Salmon”, “Árvore”, “O músico de Saint-Merry”, “Um
fantasma de nuvens”, “Cruzando a Europa”, “O pequeno automóvel”
e os poemas de guerra “Sempre”, “Saliente” e “Algodão nas orelhas”.
Poemas seminarrativos: presença de alguma estrutura narrativa e
continuidade, de reelaboração moderna de fábulas e mitos, do fluxo
de consciência, da fusão do real com o fantástico, de saltos de
memória: “Zona”, “Outono”, “A casa dos mortos”, “Um fantasma
de nuvens”, “O músico de Saint-Merry”, “O pequeno automóvel”,
“Os suspiros do atirador de Dakar”, “O palácio do trovão”,
“Maravilha da guerra” e o poema-carta “Sobre profecias”.
Poemas simultaneístas-“cubistas”: com predomínio do verso livre,
ou mistura de esquemas métricos com verso livre. Poemas não
miméticos e antidiscursivos, que abandonam a lógica sucessiva e
almejam efeito de ubiquidade e simultaneidade: “Zona”, “A porta”,
“As janelas”, “Árvore”, “Laços”, “Segunda-feira rua Cristina”,
“Cruzando a Europa”, “Carta-oceano”, “Sombra”, “Saliente”,
“Canção do Horizonte em Champanhe”, entre outros. Justaposição.
Descontinuidade.
Poemas-ambientes (poema-algaravia, “lirismo ambiente”), colagem
de vozes e “textos encontrados”: “Segunda-feira rua Cristina” (o
exemplo clássico), “Carta-oceano”, parte de “As janelas” e de
“Árvore” e o começo de “Guerra”.
Caligramas e poemas com caligramas inseridos. Exploração do
espaço da página, da colagem, radicalização do efeito de
simultaneidade (o leitor é convidado a vler). Criação de um novo tipo
de poema, que influenciará decididamente a poesia visual que se fará
depois: “Cantor”, “Chove”, “Paisagem”, “Viagem”, “Carta-oceano”,
“A gravata e o relógio”, “Leque dos sabores”, “Bandolim cravo e
bambu”, “Mira”, “Oráculos”, “sp”, “Cartão-postal", “Baforadas”,
“A pomba apunhalada e o chafariz”, “Longe do pombal”,
“Madeleine”.
Poemas de guerra: versos livres, outros que retomam as formas
fixas, escritos durante e sob o impacto da Primeira Guerra Mundial:
“O pequeno automóvel”, “Em Nîmes”, “Sombra”, “sp”, “Mira”,
“Saliente”, “Guerra”, “Oráculos”, “Festa”, “Noite de abril de 1915 ”,
“O adeus do cavaleiro”, “O palácio do trovão”, “Os suspiros do
atirador de Dakar”, “A pomba apunhalada e o chafariz”, “Sempre”,
“No abrigo-caverna”, “Desejo”, “Há”, “Simultaneidades”, “Algodão
nas orelhas”, “Canção do Horizonte em Champanhe”, “Oceano de
terra”, “Maravilha da guerra”, “Exercício”, “Cartão-postal”,
“Madeleine”, “Leque de sabores”, “Recordações”, “Cavalos de
Frisa”, “Comandante de pelotão” e “Tristeza de uma estrela”.
Poemas do “Espírito Novo”, escritos na volta a Paris, poemas
retrospectivos e propositivos. Busca de uma síntese entre as lições do
passado e a renovação da poesia, entre tradição e inovação, entre o
que ele chamou de “Ordem” e “Aventura”. O poeta como visionário,
cientista do humano, “antena da raça” (Pound). Poemas como
“Sempre” (escrito ainda no front) e os longos “As colinas”, “Vitória”
e “A ruiva bonita”.

esta tradução

Acredito, como lembra o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, que


toda tradução é, por definição, “uma operação radical de
reescrita”.127 É leitura, escrita e criação ao mesmo tempo. Faço
minhas suas palavras:

Temos consciência de que o texto poético trabalha com a linguagem em todos os


seus níveis — semânticos, sintáticos, fonéticos, rítmicos, entre outros. Idealmente,
o poema deve articular todos esses níveis, ou pelo menos vários deles, no sentido
de chegar a um determinado conjunto harmônico de efeitos poéticos.128

Além de recriação verbal, vejo a tradução como uma superleitura,


uma leitura crítica, sempre buscando tensionar forma e conteúdo.
“Transposição criativa”, chamou-a Roman Jakobson.
Transpoetização, para Britto. Transcriação, segundo os irmãos
Campos. O objetivo deste livro é fazer ressurgirem em português
brasileiro, a força, a beleza e a atualidade surpreendentes da poesia de
Apollinaire. Sem nunca descuidar do significado e da música das
palavras. Não só o que o poema está dizendo, mas como o está
dizendo, simultaneamente. A edição, bilíngue, permite ao leitor acesso
ao original e conferir o trabalho de transpoetização.129
Na Cronologia tento resumir os eventos principais da sua vida e
obra, ajudando o leitor a compreender o contexto histórico e cultural
dos poemas e a trajetória do poeta.
Os Comentários têm a intenção de jogar o foco sobre cada poema
traduzido. As circunstâncias de sua criação e datação, forma poética,
esclarecimento de alusões, vocabulário, indicação de intertextos,
ambiguidades, sua intrincada e enciclopédica rede de referências. Com
isso, o objetivo é permitir que o leitor retorne ao poema com novos
elementos para considerar. Aqui vali-me intensamente dos trabalhos e
comentários de Anne Hyde Greet, Claude Debon, Willard Bohn,
Michel Décaudin, Laurence Campa, S. I. Lockerbie, Roger Shattuck,
S. Bates, L.C. Breunig, F. J. Carmody, Ron Padgett e outros tradutores
e estudiosos da obra de Apollinaire.

Mas riam riam sim de mim


Homens de toda parte especialmente daqui
Pois há tantas coisas que não ouso dizer
Tantas coisas que vocês nunca me deixariam dizer
Tenham piedade de mim

Pântano do Sul, Florianópolis, 11 de março de 2023

Notas

1. Paul Auster, “Introduction”, em The Random House Book of Twentieth Century


French Poetry. Nova York: Vintage, 1984, p. xxxiv.
2. Roger Cardinal, “Apollinaire and the International Avant­-Garde”. Journal of
European Studies, v. 28, n. 4, p. 420, 1998.
3. Apollinaire escrevia sobre artes de maneira bem abrangente: pintura, gravura,
escultura, salões de arte anuais, instituições artísticas, museus, galerias, mercado
etc.
4. S. I. Lockerbie, “Introduction”, em Calligrammes: Poems of Peace and War
(1913-1916). Trad. de Anne Hyde Greet. Oxford: University of California Press,
1980 , p. 3.
5. Guillaume Apollinaire, “À Propos de la poésie nouvelle”. Paris-Journal, 29 jun.
1914 . Disponível em: <obvil.sorbonne-universite.fr/corpus/apollinaire/apollinaire_
paris-journal #apo1914-06-29>. Acesso em: 20 fev. 2021.
6. Laurence Campa, Apollinaire: Critique littéraire. Paris: Honoré-Champion, 2002,
pp. 81-2.
7. Como lembra Conrado Fogagnoli, em “Simultaneísmo e os debates sobre a poesia
francesa da década de 1910” (inédito), na época de Apollinaire existiam mais de
trinta escolas poéticas: simbolismo, vers-librismo, poesia científica, paroxismo,
poesia esotérica, naturismo, jammismo, escola francesa, sintetismo,
somptuarismo, integralismo, neomallarmismo, impulsionismo, neorromantismo,
primitivismo, subjetivismo, sincerismo, intensismo, floralismo ou escola da graça,
dramatismo, simultaneísmo, imperialismo e dinamismo, unanimismo e
fantasismo, entre outras.
8. Marjorie Perloff, The Futurist Moment: Avant-Garde, Avant-Guerre, and the
Language of Rupture. Chicago: The University of Chicago Press, 1986, p. 36.
Duas formulações famosas do “Manifesto futurista” de Marinetti em 1909
corroboram o espírito daqueles tempos: “O Tempo e o Espaço morreram ontem.
Nós vivemos já no absoluto, já que nós criamos a eterna velocidade onipresente”
e “Nós declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza
nova: a beleza da velocidade”. Ver: <arte365.com.br/futurismo/>. Acesso em: 13
fev. 2021.
9. Malcolm Bradbury e James Macfarlane. Modernismo: Guia geral 1890-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 47.
10. Nome que se dava, durante a Primeira Guerra Mundial, à linha de trincheiras
que ia do canal da Mancha, na altura de Ostende (Bélgica), até a fronteira da
França com a Suíça.
11. Guillaume Apollinaire, Alcools. Trad. de Donald Revell. Hanover: University
Press of New England, 1995.
12. “Je suis la blanche tranchée au corps creux et blanc/ Et j’habite toute la terre
dévastée”, em Guillaume Apollinaire, Selected Poems. Intr. de Martin Sorrell.
Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 240.
13. Laurence Campa, Guillaume Apollinaire. Paris: Gallimard, 2013, p. 320.
Apollinaire está entre os escritores que, como Joseph Conrad e tantos outros
(Samuel Beck­ett, Vladimir Nabokov, Elias Canetti, Franz Kafka, Eugène Ionesco),
escreveram em uma língua que não a materna, mas a do país que adotaram.
14. Seu nome era Michal Apolinary Kostrowicki.
15. O imbróglio foi levado às telas em 2012, pelas mãos do diretor espanhol
Fernando Colomo (La banda Picasso).
16. A se mencionar o caso do grande poeta italiano (e amigo de Apollinaire)
Giuseppe Ungaretti (1888-1970), que foi professor da Universidade de São Paulo.
17. Em 17 de junho de 1915, Apollinaire conseguiu imprimir, no front, 25
exemplares de uma plaquete, caligrafada e policopiada. Para isso, pediu
autorização para usar o duplicador de estêncil para impressão, utilizado para a
realização de papéis e jornais militares.
18. Jacques Vaché, Lettres de guerre. Paris: Au Sans Pareil, 1919, p. 79.
19. Palavra-valise composta de caligrafia + ideograma.
20. Além de Whitman, Apollinaire teve algum impacto na forma e na feitura de
“Howl” (“Uivo”), outro poema fundamental do século xx e que dialoga com
“Zona”. Lembremos que o título do poema de Apollinaire era, originalmente,
“Cri” (“Grito”).
21. Bolivar Torres, “Guillaume Apollinaire e a aurora modernista”. O Globo, 16
nov. 2013. Caderno Prosa. Disponível em: <blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/gu
illaume- apollinaire-a-aurora-modernista-515273.html>. Acesso em: 1 jan. 2020.
22. Gíria francesa pejorativa para alemão, equivalente ao nosso “chucrute”.
23. Laurence Campa, Guillaume Apollinaire, op. cit., p. iv.
24. Michel Décaudin, “Soupault en 1917”, nota 13. Disponível em: <books.openedi
tion.org/puc/10099>. Acesso em: 21 fev. 2021.
25. Guillaume Apollinaire, “O espírito novo e os poetas”, em Roger Shattuck,
Selected Writings. Nova York: New Directions, 1971, p. 227.
26. Álvaro Faleiros, “Elementos para a tradução do octossílabo em português”, em
Cadernos de Literatura em Tradução, n. 7, pp. 71-80, 2006. Disponível em: <doi.
org/10.11606/issn.2359-5388.i7p71-80>. Acesso em: 4 jan. 2012.
27. Entrevista para Gaston Picard, Le Pays, 24 jun. 1917.
28. Paulo Henriques Britto, “Para uma tipologia do verso livre em português e
inglês”. Disponível em: <revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/view/275>.
Acesso em: 4 jan. 2012.
29. T.S. Eliot, “A música da poesia”, em De poesia e poetas. Trad. de Ivan
Junqueira. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 53.
30. Vincent Vivès, Calligrammes. Paris: Gallimard, 2003, p. 215. (La Bibliothèque
Gallimard).
31. Michel Décaudin, Le Dossier d’“Alcools”. Genebra: Droz, 1960, p. 13.
32. O termo é de Baudelaire, da primeira estrofe de “Correspondências”: “A
Natureza é um templo onde vivos pilares/ Deixam às vezes vagas falas manifestas;/
E o homem nela passa por entre florestas/ De símbolos que o olham com olhos
familiares”. (As flores do mal. Trad. de Júlio Castañon Guimarães. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019, p. 43.)
33. Anne Hyde Greet, “Wordplay in Apollinaire’s ‘Calligrammes’”. L’Esprit
Créateur, v. 10, n. 4, pp. 296­-307, 1970. Disponível em: <jstor.org/stable/2627955
0 >. Acesso em: 13 jan. 2021.
34. No sentido da filosofia de Henri Bergson (1859-1941): tempo interior, diferente
do tempo cronológico.
35. “The New Spirit”, em Guillaume Apollinaire: Selected Writings. Trad. e intr. de
Roger Shattuck. Nova York: New Directions, 1970, pp.227-37.
36. Para uma discussão detalhada de Apollinaire e a crítica de arte ver: Conrado
Fogagnoli, Guillaume Apollinaire: Reflexão artística e elaboração poética. São
Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, 2018. Tese de Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada.
Disponível em: <teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-20022019-110006/pt-br.
php >. Acesso em: 20 jan. 2021.
37. Ibid., p. 31.
38. Duas dessas estátuas ibéricas, roubadas do Museu do Louvre e vendidas a
Picasso pelo “secretário” belga de Apollinaire, Géry Piéret, ficariam guardadas no
ateliê de Picasso e inspirariam a execução de Les demoiselles d’Avignon (1907), a
obra-prima da pintura modernista.
39. Guillaume Apollinaire, Selected Writings, op. cit., p. 234.
40. Roger Shattuck, “Introduction”, em Guillaume Apollinaire, Selected Writings,
op. cit., p. 37.
41. Conferência proferida um ano antes de morrer e só publicada postumamente.
42. Alex Preminger e T. V. F. Brogan, The New Princeton Encyclopedia of Poetry
and Poetics. Nova Jersey: Princeton University Press, 1993, p. 436.
43. O ensaio de Eliot é de 1919, um ano depois da morte de Apollinaire. Eliot usa,
curiosamente, duas palavras­-chave do vocabulário poético do francês; “ordem” e
“simultâneo”. Para Eliot, o termo “tradição” representa uma “ordem simultânea”
(fusão de passado e presente) e, ao mesmo tempo, uma agoridade (a sensação de
pertencer ao presente). “A tradição implica um significado muito mais amplo. Ela
não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de um
grande esforço. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos
considerar quase indispensável a alguém que pretenda continuar poeta depois dos
vinte e cinco anos; e o sentido histórico implica a percepção, não apenas da
caducidade do passado, mas de sua presença; o sentido histórico leva um homem
a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas
com um sentimento de que toda a literatura europeia desde Homero e, nela
incluída, toda a literatura de seu próprio país, têm uma existência simultânea e
constituem uma ordem simultânea. Esse sentido histórico, que é o sentido tanto
do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, é que
toma um escritor tradicional. E é isso que, ao mesmo tempo, faz com que um
escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua
própria contemporaneidade”. Em “Tradição e talento individual”, Ensaios. Trad.,
intr. e notas de Ivan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989, pp. 37-48.
Disponível em: <iedamagri.files.wordpress.com/2018/09/eliot-t-s-tradiccca7acc83o
-e-talento-individual.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2021.
44. “Prefácios” (ou “Prefácios de Apollinaire”), em “Préfa­ces, chapitres et parutions
isolées”. Obvil: Sorbonne Université. Disponível em: <obvil.sorbonne-universite.f
r/corpus/apollinaire/apollinaire_prefaces>. Acesso em: 12 out. 2020.
45. Peter Read, “Introduction”, em Guillaume Apollinaire, Zone: Selected Poems.
Trad. de Ron Padgett. Nova York: New York Review of Books, 2015, p. xv.
46. De fato, um dos itens mais curiosos da coleção particular de Apollinaire era uma
máscara-elmo ngontang, do Gabão, esculpida em madeira, duas faces olhando em
direções opostas. A máscara pode ser vista em: <metmuseum.org/art/collection/sea
rch/312196>. Acesso em: 3 mar. 2021.
47. Guillaume Apollinaire, Œuvres complètes prose, t. ii. Org. de Pierre Caizergues
e Michel Décaudin. Paris: Gallimard, 1991, p. 986.
48. Lembremos que Apollinaire, ao lado de Blaise Cendrars, teve grande
importância na divulgação da arte primitiva por ter sido conselheiro artístico do
marchand Paul Guillaume (1891-1934), responsável pela Première Exposition
d’Art Nègre et d’Art Océanien, em maio de 1919. O catálogo trazia um texto
curatorial de Apollinaire, que já havia falecido (“À Propos de l’art des Noirs”,
escrito para o Premier album de sculptures nègres, de 1917).
49. O subtítulo foi sugerido pelo editor para atrair mais leitores, já que o “cubismo”
estava em voga. A palavra “cubista” foi criada em 1908, a partir de uma crítica
de Louis Vauxcelles para designar, pejorativamente, as figuras geométricas e os
“cubos” de um quadro de Braque, Casas de L’Estaque.
50. “Pensamentos soltos sobre as meditações estéticas de Apollinaire”. Trad. de
Flávia Nascimento Faleiros. Lettres Françaises, Araraquara, Unesp, v. 2, n. 20, p.
287 , 2019. Disponível em: <periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/13566>.
Acesso em: 21 jan. 2021. O original pode ser acessado em: <obvil.sorbonne-unive
rsite.fr/corpus/apollinaire/apollinaire_meditations-esthetiques>. Acesso em: 11
out. 2020.
51. Rodrigo Garcia Lopes, Roteiro literário: Paulo Leminski. Curitiba: Biblioteca
Pública do Paraná, 2018, p. 33.
52. Lettres de Guillaume Apollinaire à sa marraine: 1915­-1918. Org., intr. e notas
de Marcel Adéma. Paris: Pour Les Fils du Roi, 1948, p. 35.
53. Uso o adjetivo (do grego dēmotikos) no sentido de “pertencente ao povo e às
pessoas comuns”, “do povo”, popular, vulgar.
54. S. I. Lockerbie, op. cit., p. 5.
55. Várias definições e propostas de simultaneísmo pictórico e poético circulavam na
mesma época, como Apollinaire reconhece. Havia, por exemplo, a “simultaneità”
dos futuristas Marinetti, Severini, Boccioni e Carrà; havia o “simultanisme” do
dramaturgo Henri-Martin Barzun; havia ainda o “premier livre simultané”
(“primeiro livro simultâneo” de Blaise Cendrars e Sonia Delaunay, A prosa do
Transiberiano) e ainda a teoria e técnica dos “contrastes simultâneos” da pintura
de Robert e Sonia Delaunay (depois batizado por Apollinaire como “orfismo”,
tendência a qual ele mais se alinhava, ao lado do experimento poético­-pictórico de
Cendrars-Sonia Delaunay).
56. S. I. Lockerbie, “Introduction”, op. cit. Itálicos meus.
57. Doroty Hoogler e Thomas Hoobler, The Crimes of Paris: A True Story of
Murder, Theft, and Detection. Nova York: Little, Brown, and Company, 2009, p.
137 .
58. Apollinaire não teve tempo de experimentar, como queria, as novas técnicas de
gravação e o fonógrafo, apesar de ter deixado registrado sua voz em três poemas
que gravou para os Arquivos da Palavra.
59. Guillaume Apollinaire, “Simultanisme — Librettisme”. Disponível em: <lyrikthe
orie.uni-wuppertal.de/texte/ 1914_apollinaire2.html>. Acesso em: 20 nov. 2020.
60. Guillaume Apollinaire. Pintores cubistas: Meditações estéticas. Trad. de Sueli
Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre: l&pm, 1997, p. 16.
61. Marjorie Perloff, op. cit., p. 14. Itálicos meus.
62. William Burroughs, em entrevista ao autor, em Vozes & visões: Panorama da
arte e cultura norte-americanas hoje. São Paulo: Iluminuras, 1996, p. 79.
63. Octavio Paz, Os filhos do barro: Do romantismo à vanguarda. Trad. de Olga
Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 156.
64. Henri-Martin Barzun (1881-1973). Hoje pouco lembrado, editor da revista
Poème et Drame, foi um ativo teórico e poeta experimentalista, tendo antecipado,
com seu “dramatismo” polifônico, a poesia concreta e o letrismo. Autor de
L’Universel Poème, ou L’Orphéide. Ele acusava Apollinaire e o pintor Robert
Delaunay de terem “sequestrado” seus termos “simultaneísmo” e “orfismo”.
65. Chevreul publicará sua “teoria da cor” em De la Loi du contrast simultané des
couleurs [A lei do contraste simultâneo das cores], de 1839.
66. Ver o poema e a seção Comentários.
67. Aristóteles, apud Ezra Pound, A arte da poesia: Ensaios escolhidos. Trad. de
Heloisa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 71.
68. Claude Debon, Claude Debon commente Calligrammes de Guillaume
Apollinaire. Paris: Gallimard, 2004, p. 151.
69. Em entrevista a Gaston Picard, Le Pays, 24 jun. 1917. Itálicos meus.
70. Apollinaire alega ter conhecido “Um lance de dados” apenas quando a nrf
editou cem cópias do poema na metade de julho de 1914, quando ele já havia
composto “Carta-oceano”. Era a primeira vez que Mallarmé era publicado em
livro. Mesmo assim, parece pouco provável que Apollinaire, com sua imensa
curiosidade, não tenha ido atrás de um exemplar da revista Cosmopolis de maio
de 1898, onde “Um lance de dados” foi publicado pela primeira vez.
71. Guillaume Apollinaire, Correspondance générale: 3 volumes, Tome 1, En guise
d’introduction, 1891-1914. Paris: Honoré Champion, 2015, p. 535.
72. “Termo francês para um processo poético que consiste no desalinhamento da
estrutura métrica e sintática de uma composição, onde os versos se sucedem entre
si sem pausas no final de cada um. É normalmente traduzido para português por
encavalgamento, por tradução direta do espanhol encabalgamiento. O processo de
continuação do sentido de um verso no verso seguinte produz versos corridos,
característica de muitas composições da nossa lírica galego-portuguesa.” A
definição é de Carlos Ceia, E-dicionário de termos poéticos. Disponível em: <edtl.f
csh.unl.pt/encyclopedia/enjambement>. Acesso em: 20 jan. 2021.
73. Silvana Vieira da Silva Amorim, Guillaume Apollinaire: Fábula e lírica. São
Paulo: Editora Unesp, 2002, p. 138.
74. Michel Décaudin, Le Dossier d’“Alcools”. Genebra: Droz, 1965.
75. A passagem faz parte do poema longo em octossílabos “A canção do mal-
amado”, não traduzido nesta seleção. Tradução do autor.
76. Guillaume Apollinaire, Selected Poems. Oxford, op. cit., 2015, p. xx.
77. Figura de linguagem que consiste em atribuir características humanas a outros
seres animados ou a objetos inanimados, presente na poesia ocidental desde
Homero. Também conhecida como prosopopeia.
78. S. I. Lockerbie, op. cit., p. 2.
79. Kenneth Goldsmith discutindo a ideia de gênio desoriginal de Marjorie Perloff,
em Uncreative Writing: Making Language in the Digital Age. Nova York:
Columbia University Press, 2011, p. 1.
80. Décaudin citado em “Modernolatria” e “Simultaneità”, de Pär Bergman. Trad.
de Júlio Bernardo Machinski. Join­ville: Clube de Autores, 2017, p. 179.
81. Collage, do francês coller, “colar”, “grudar”. Nas artes plásticas, técnica que
envolve a inserção e a justaposição, no espaço da tela, de recortes de páginas de
jornais, letras, fotos, texturas pré-fabricadas, objetos reais encontrados etc. Em
literatura seria o uso extensivo e a justaposição de citações, fragmentos, frases
retiradas de outros contextos para compor um novo texto. A colagem tem um
caráter simultâneo também: há 1) a relação do objeto inserido com sua fonte e
contexto originais e 2) a relação do objeto com os demais objetos da tela ou
fragmentos do novo texto. Como descrito no manifesto do grupo mu (1978),
citado por Perloff: “Cada elemento citado quebra a continuidade ou a linearidade
do discurso e leva necessariamente a uma dupla leitura: a do fragmento percebido
em relação a seu texto de origem; a do mesmo fragmento enquanto incorporado a
um novo todo, a uma totalidade diferente. O truque da colagem consiste também
em nunca suprimir totalmente a alteridade destes elementos reunidos em uma
composição temporária”. (Ver Marjorie Perloff, “Collage and Poetry”, em
Encyclopedia of Aesthetics. Org. de Michael Kelly, 4 v. Nova York: Oxford
University Press, v. 1, 1998, pp. 384--7. Disponível em: <scribd.com/document/36
859187 /Collage-and-Poetry>. Acesso em: 11 jan. 23.)
82. Procedimento que marcará a produção de Severini, Picasso, Braque e,
posteriormente, do dadaísmo, do expressionismo-abstrato e da pop art.
83. Gino Severini, citado em Marjorie Perloff, The Futurist Moment, op. cit., p. 45.
O quadro realizado por Picasso após a sugestão de Apollinaire é Natureza-morta
com cadeira de palha, de 1912.
84. Gino Severini, La Vie d’un peintre. Paris: Hazan, 2011, p. 134.
85. Ibid., p. xviii.
86. S. I. Lockerbie, op. cit., p. 3.
87. A variedade do verso apollinairiano havia feito o crítico Georges Duhamel
chamar Álcoois, pejorativamente, de um brechó, uma loja de artigos de segunda
mão (“une boutique de brocanteur”).
88. S. I. Lockerbie, op. cit., p. 3.
89. Sobre a importância da experiência dos jornais e revis­tas em sua poesia ver o
ensaio de Pierre Caizergues, “Apollinaire journaliste: Les débuts et la formation
du journaliste 1900-1909”. Littératures, n. 11, pp. 128-30, 1984. Disponível em:
<persee.fr/doc/litts_0563-9751_1984_num_ 11_1_1312_t1_0128_0000_2>.
Acesso em: 16 fev. 2021.
90. Guillaume Apollinaire, “L’Esprit nouveau et les poètes”, em Œuvres en prose
complètes ii. Paris: Gallimard, 1991, p. 945.
91. Alex Preminger e T. V. F. Brogan, op. cit., p. 880. Itálicos meus.
92. Octavio Paz, op. cit., p. 157.
93. Ezra Pound, op. cit., p. 10.
94. Ver a inserção do desenho de um poste telegráfico, que constava do cabeçalho
do jornal Le Matin, no caligrama “Viagem”.
95. O título alude à frase em italiano “anch’io son pittore”, que teria sido dita pelo
pintor Correggio (1489-1534) ao ver um quadro de Rafael (1483-1520).
96. Michel Foucault, Isso não é um cachimbo. Trad. de Jorge Coli. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2008, p. 23.
97. Ver: <facebook.com/paulorogerioferraz>, postagem de 18 fev. 2022.
98. Ver o ensaio de Willard Bohn, “Apollinaire’s reception in Brazil”. Revue de
Littérature Comparée, n. 311, pp. 311­-28, 2004/3. Disponível em: <cairn.info/rev
ue-de-litteraturecomparee-2004-3-page-311.htm#:~:text=The%20next% 20yea
r%20he%20traveled,about%20Apollinaire%20and % 20Erik%20Satie>. Acesso
em: 10 nov. 2020.
99. Sérgio Buarque de Holanda, “O futurismo paulista”. Fon-Fon, xv, n. 50, 10 dez.
1921 . Por sua vez, o Brasil figura na obra de Apollinaire em pelo menos duas
ocasiões: o Rio de Janeiro durante o Carnaval, no conto “O rei-lua” e em poema
enviado à Lou, do front em Hurlus, em 1915. Em “Pressentiment d’Amérique” ele
imagina a América do Sul como um futuro refúgio para o casal quando a guerra
acabasse, mencionando o rio Amazonas, o “mar vegetal”, as fadas
(provavelmente Iara) “vagues de Proroca” (ondas de pororoca), “mascaret“
(macaréu) etc.
100. Ibid., p. 314.
101. Ibid., p. 315.
102. O artigo original de Gabriel Arbouin, “Devant l’Idéogramme d’Apollinaire” se
encontra em Les Soirées de Paris, n. 26 e 27, pp. 383-5, jul./ago. 1914.
103. Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, “plano-piloto para
poesia concreta”, em Teoria da poesia concreta: Textos e manifestos críticos
(1950-1960). São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 156.
104. Ibid., p. 27. Itálicos meus.
105. Ibid.
106. Ibid., p. 67.
107. Ibid., p. 77.
108. Ibid., p. 69.
109. Em e-mail ao autor (8 jan. 2021) ela escreve: “Eu confirmo que Gabriel
Arbouin existiu realmente. Não é um pseudônimo de Apollinaire” (“Je confirme
que Gabriel Arbouin existait vraiment. Ce n’est pas un pseudonyme
d’Apollinaire”).
110. Marcel Adéma, Apollinaire. Trad. do francês de Denise Folliot. Londres:
William Heineman, 1954, p. 190.
111. Um equívoco que se repete mesmo em iniciativas recentes e importantes de
traduzir Apollinaire, como em Caligramas, por Álvaro Faleiros (2008, p. 25). Ele
afirma, sobre o texto de Arbouin: “Trata-se de um artigo escrito por Apollinaire,
sob o pseudônimo de Gabriel Arboin [sic], publicado na revista Les Soirées de
Paris, sobre seu poema ‘Carta-oceano’”.
112. Augusto de Campos, “Poesia concreta”, em Augusto de Campos, Décio
Pignatari e Haroldo de Campos, op. cit., p. 50.
113. Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, op. cit., p. 67.
Itálicos meus.
114. Haroldo de Campos, “Brazilian Concrete Poetry: How It Looks Today:
Haroldo and Augusto de Campos Interviewed by Marjorie Perloff”. Ciberletras,
n. 17, jul. 2007. Disponível em: <lehman.cuny.edu/ciberletras/documents/ISSUE1
7 .pdf>. Acesso em: 9 jan. 2021.
115. Guillaume Apollinaire. Pintores cubistas: Meditações estéticas, op. cit., p. 14.
Itálicos meus.
116. Id., “Réponse à une enquête”, em Œuvres complètes en prose. Paris:
Gallimard, 1991, tomo ii, p. 958.
117. S. I. Lockerbie, op. cit., p. 4.
118. Johanna Drucker, “Visual Performance of the Poetic Text”, em Close Listening:
Poetry And The Performed Word. Oxford: Oxford University Press, 1998, p. 134.
119. Guillaume Apollinaire, apud Willard Bohn, The Aesthetics of Visual Poetry,
-
1914 1928 . Chicago: University of Chicago Press, 1993, p. 48.
120. Ezra Pound, “Apollinaire and the English Muse”, apud Willard Bohn,
Apollinaire and the International Avant-Garde, op. cit., p. 34.
121. Curiosamente, cummings resgata, como recursos poéticos, exatamente os sinais
de pontuação que Apollinaire eliminara.
122. Gabriel Arbouin, “Devant l’Idéogramme d’Apollinaire”, em Mark Antliff e
Patricia Leighton, A Cubism Reader: Documents and Criticism (1906-1914).
Chicago: The University of Chicago Press, 2008, p. 653.
123. Ibid.
124. Citado em Michael Webster, Reading Visual Poetry After Futurism: Marinetti,
Apollinaire, Schwitters, cummings. Nova York: Peter Lang, 1995, p. 67.
125. S. I. Lockerbie, op. cit., p. 14.
126. Laurence Campa, “Actualité et modernité de Guillaume Apollinaire: “C’est lui
qui ouvre le siècle poétique”. France Culture. Disponível em: <https://www.radiofr
ance.fr/franceculture/podcasts/concordance-des-temps/actualite-et- modernite-de-g
uillaume-apollinaire-c-est-lui-qui-ouvre-lesiecle-poetique-5382989>. Acesso em: 2
jan. 2021.
127. Paulo Henriques Britto, A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2012, p. 67.
128. Id., “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”. Eutomia:
Revista de Literatura e Linguística, v. 1, n. 20, p. 227, 2017. Disponível em: <peri
odicos.ufpe.br/revistas/eutomia/article/view/234813>. Acesso em: 4 jan. 2021.
129. Em alguns momentos de Álcoois e Caligramas Apollinaire não empregou crases
onde, em francês, seriam necessárias. Nesta edição, optamos por manter a grafia
adotada pelo autor sem correções.
Álcoois — poemas
Alcools — poèmes
zone

1 A la fin tu es las de ce monde ancien

Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin

Tu en as assez de vivre dans l’antiquité grecque et romaine

Ici même les automobiles ont l’air d’être anciennes


La religion seule est restée toute neuve la religion
Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation

Seul en Europe tu n’es pas antique ô Christianisme


L’Européen le plus moderne c’est vous Pape Pie x
Et toi que les fenêtres observent la honte te retient
10 D’entrer dans une église et de t’y confesser ce matin
Tu lis les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout
haut
Voilà la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux
Il y a les livraisons à 25 centimes pleines d’aventures policières
Portraits des grands hommes et mille titres divers
J’ai vu ce matin une jolie rue dont j’ai oublié le nom
Neuve et propre du soleil elle était le clairon
Les directeurs les ouvriers et les belles sténo-dactylographes
Du lundi matin au samedi soir quatre fois par jour y passent
Le matin par trois fois la sirène y gémit
20 Une cloche rageuse y aboie vers midi
Les inscriptions des enseignes et des murailles
Les plaques les avis à la façon des perroquets criaillent
J’aime la grâce de cette rue industrielle
Située à Paris entre la rue Aumont-Thiéville et l’avenue des Ternes

Voilà la jeune rue et tu n’es encore qu’un petit enfant


Ta mère ne t’habille que de bleu et de blanc
Tu es très pieux et avec le plus ancien de tes camarades René
Dalize
Vous n’aimez rien tant que les pompes de l’Église
Il est neuf heures le gaz est baissé tout bleu vous sortez du dortoir
en cachette
30 Vous priez toute la nuit dans la chapelle du collège
Tandis qu’éternelle et adorable profondeur améthyste
Tourne à jamais la flamboyante gloire du Christ
C’est le beau lys que tous nous cultivons
C’est la torche aux cheveux roux que n’éteint pas le vent
C’est le fils pâle et vermeil de la douloureuse mère
C’est l’arbre toujours touffu de toutes les prières
C’est la double potence de l’honneur et de l’éternité
C’est l’étoile à six branches
C’est Dieu qui meurt le vendredi et ressuscite le dimanche
40 C’est le Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs
Il détient le record du monde pour la hauteur

Pupille Christ de l’œil


Vingtième pupille des siècles il sait y faire
Et changé en oiseau ce siècle comme Jésus monte dans l’air
Les diables dans les abîmes lèvent la tête pour le regarder
Ils disent qu’il imite Simon Mage en Judée
Ils crient s’il sait voler qu’on l’appelle voleur
Les anges voltigent autour du joli voltigeur
Icare Énoch Élie Apollonius de Thyane
50 Flottent autour du premier aéroplane
Ils s’écartent parfois pour laisser passer ceux que transporte la
Sainte-Eucharistie
Ces prêtres qui montent éternellement élevant l’hostie
L’avion se pose enfin sans refermer les ailes
Le ciel s’emplit alors de millions d’hirondelles
À tire-d’aile viennent les corbeaux les faucons les hiboux
D’Afrique arrivent les ibis les flamands les marabouts
L’oiseau Roc célébré par les conteurs et les poètes
Plane tenant dans les serres le crâne d’Adam la première tête
L’aigle fond de l’horizon en poussant un grand cri
60 Et d’Amérique vient le petit colibri
De Chine sont venus les pihis longs et souples
Qui n’ont qu’une seule aile et qui volent par couples
Puis voici la colombe esprit immaculé
Qu’escortent l’oiseau-lyre et le paon ocellé
Le phénix ce bûcher qui soi-même s’engendre
Un instant voile tout de son ardente cendre
Les sirènes laissant les périlleux détroits
Arrivent en chantant bellement toutes trois
Et tous aigle phénix et pihis de la Chine
70 Fraternisent avec la volante machine

Maintenant tu marches dans Paris tout seul parmi la foule

Des troupeaux d’autobus mugissants près de toi roulent


L’angoisse de l’amour te serre le gosier
Comme si tu ne devais jamais plus être aimé
Si tu vivais dans l’ancien temps tu entrerais dans un monastère
Vous avez honte quand vous vous surprenez à dire une prière
Tu te moques de toi et comme le feu de l’Enfer ton rire pétille
Les étincelles de ton rire dorent le fond de ta vie
C’est un tableau pendu dans un sombre musée
80 Et quelquefois tu vas le regarder de près

Aujourd’hui tu marches dans Paris les femmes sont ensanglantées


C’était et je voudrais ne pas m’en souvenir c’était au déclin de la
beauté

Entourée de flammes ferventes Notre-Dame m’a regardé à


Chartres
Le sang de votre Sacré-Cœur m’a inondé à Montmartre
Je suis malade d’ouïr les paroles bienheureuses
L’amour dont je souffre est une maladie honteuse
Et l’image qui te possède te fait survivre dans l’insomnie et dans
l’angoisse
C’est toujours près de toi cette image qui passe

Maintenant tu es au bord de la Méditerranée


90 Sous les citronniers qui sont en fleur toute l’année
Avec tes amis tu te promènes en barque
L’un est Nissard il y a un Mentonasque et deux Turbiasques
Nous regardons avec effroi les poulpes des profondeurs
Et parmi les algues nagent les poissons images du Sauveur

Tu es dans le jardin d’une auberge aux environs de Prague


Tu te sens tout heureux une rose est sur la table
Et tu observes au lieu d’écrire ton conte en prose
La cétoine qui dort dans le cœur de la rose

Épouvanté tu te vois dessiné dans les agates de Saint-Vit


100 Tu étais triste à mourir le jour où tu t’y vis
Tu ressembles au Lazare affolé par le jour
Les aiguilles de l’horloge du quartier juif vont à rebours
Et tu recules aussi dans ta vie lentement
En montant au Hradchin et le soir en écoutant
Dans les tavernes chanter des chansons tchèques

Te voici à Marseille au milieu des pastèques

Te voici à Coblence à l’hôtel du Géant


Te voici à Rome assis sous un néflier du Japon

Te voici à Amsterdam avec une jeune fille que tu trouves belle et


qui est laide
110 Elle doit se marier avec un étudiant de Leyde
On y loue des chambres en latin Cubicula locanda
Je m’en souviens j’y ai passé trois jours et autant à Gouda

Tu es à Paris chez le juge d’instruction


Comme un criminel on te met en état d’arrestation

Tu as fait de douloureux et de joyeux voyages


Avant de t’apercevoir du mensonge et de l’âge
Tu as souffert de l’amour à vingt et à trente ans
J’ai vécu comme un fou et j’ai perdu mon temps
Tu n’oses plus regarder tes mains et à tous moments je voudrais
sangloter
120 Sur toi sur celle que j’aime sur tout ce qui t’a épouvanté

Tu regardes les yeux pleins de larmes ces pauvres émigrants


Ils croient en Dieu ils prient les femmes allaitent des enfants
Ils emplissent de leur odeur le hall de la gare Saint-Lazare
Ils ont foi dans leur étoile comme les rois-mages
Ils espèrent gagner de l’argent dans l’Argentine
Et revenir dans leur pays après avoir fait fortune
Une famille transporte un édredon rouge comme vous transportez
votre cœur
Cet édredon et nos rêves sont aussi irréels
Quelques-uns de ces émigrants restent ici et se logent
130 Rue des Rosiers ou rue des Écouffes dans des bouges
Je les ai vus souvent le soir ils prennent l’air dans la rue
Et se déplacent rarement comme les pièces aux échecs
Il y a surtout des Juifs leurs femmes portent perruque
Elles restent assises exsangues au fond des boutiques

Tu es debout devant le zinc d’un bar crapuleux


Tu prends un café à deux sous parmi les malheureux

Tu es la nuit dans un grand restaurant

Ces femmes ne sont pas méchantes elles ont des soucis cependant
Toutes même la plus laide a fait souffrir son amant

140 Elle est la fille d’un sergent de ville de Jersey

Ses mains que je n’avais pas vues sont dures et gercées

J’ai une pitié immense pour les coutures de son ventre

J’humilie maintenant à une pauvre fille au rire horrible ma


bouche

Tu es seul le matin va venir


Les laitiers font tinter leurs bidons dans les rues

La nuit s’éloigne ainsi qu’une belle Métive


C’est Ferdine la fausse ou Léa l’attentive

Et tu bois cet alcool brûlant comme ta vie


Ta vie que tu bois comme une eau-de-vie

150 Tu marches vers Auteuil tu veux aller chez toi à pied


Dormir parmi tes fétiches d’Océanie et de Guinée
Ils sont des Christ d’une autre forme et d’une autre croyance
Ce sont les Christ inférieurs des obscures espérances

Adieu Adieu

Soleil cou coupé


zona

1 No fim você está farto deste mundo antigo

Pastora ó torre Eiffel seu tropel de pontes esta manhã balindo

Você está cheio de viver na antiguidade greco-romana

Aqui até dos automóveis um quê de coisa antiga emana


Só a religião não sai de moda a religião
Continua simples como os hangares do Porto-de-Aviação

Só você na Europa não é mais antigo ó Cristianismo

O europeu mais moderno é o Papa Pio x você mesmo


A quem as janelas observam a vergonha o impedindo
10 De entrar numa igreja e se confessar cedinho
Você lê folhetos catálogos cartazes cantando bem alto
Isto é poesia esta manhã e se quiser prosa tem sempre o jornal
Tem fascículos baratos repletos de aventuras policiais
Biografias de famosos e mil títulos mais
Esta manhã vi uma rua bonita cujo nome esqueci
Claro e límpido clarim do sol ali
E diretores e trabalhadores e estenodatilógrafas bonitas seguiam
De segunda de manhã a sábado à tarde passam quatro vezes por
dia
De manhã três vezes a sirene gania
20 Um sino colérico ladra perto do meio-dia
As pichações nos muros anúncios vários
Placas e letreiros gritam feito papagaios
Desta rua industrial adoro seu charme eterno
Que fica em Paris entre a rua Aumont-Thiéville e a avenida dos
Ternos

Eis aqui a rua jovem você agora é só uma criança


Sua mãe te vestindo com roupa azul e branca
Você é devoto como talvez só seu velho amigo René Dalize seja
E nada o delicia mais que as pompas da Igreja
Nove da noite luz azul do gás no fim você foge do dormitório
30 Reza a noite inteira na capela do oratório
Enquanto a eterna e adorável profundeza ametista
Gira para sempre a rutilante glória de Cristo
É o lírio lindo que nos é benquisto
É a tocha de cabelos ruivos que o vento não apaga
É o filho rosipálido da mãe cheia de mágoa
É a árvore sempre frondosa em cada folha uma reza
É a dupla forca da eternidade e da honradez
É a estrela de seis pontas reluzindo
É Deus que morre sexta e ressuscita domingo
40 É Cristo que sobe mais alto que qualquer piloto ou criatura
Ele detém o recorde mundial de altura

Menina dos olhos de Cristo


Vigésima pupila dos séculos ele é especialista nisto
E transformado em pássaro este século ascende como Jesus
Diabos erguem as cabeças e o encaram dos abismos
Dizem que ele é imitação do Mago Simão na Judeia
Gritam voar é fácil aviãozinho você já é
Ao redor do belo acrobata os anjos fazem folias
Ícaro Enoque Apolônio de Tiana e Elias
50 Flutuam ao redor do primeiro aeroplano
Às vezes se afastam pra deixar passar os que transportam a Santa
Eucaristia
Estes padres que ascendem eternamente erguendo a hóstia
O avião pousa enfim mas sem fechar as asinhas
Agora o céu fica lotado com milhões de andorinhas
Batendo as asas velozes chegam falcões corujas corvos
Da África chegam flamingos íbises marabus
Os Pássaros-Rocas celebrados por contistas e poetas
Planam agarrando o crânio de Adão de cabeça primeva
No horizonte a águia solta um grande grito
60 Da América chega o pequeno colibri
Da China os sinuosos compridos pihis
Que têm só uma asa e sempre voam em pares
Depois a pomba espírito imaculado
Pelo pássaro-lira e o pavão escoltada
Fênix pira funérea a nascer de si
Por um instante se cobre com suas cinzas
E deixando pra trás perigosos estreitos
Sereias chegam em trio com seus cantos trejeitos
A fênix a águia o pihi da China a toda
70 Se confraternizam co’a máquina que voa

Agora você anda por Paris na multidão sozinho


Rebanhos de ônibus mugem cruzam seu caminho
A dor do amor faz a garganta travar
Como se ninguém fosse mais capaz de te amar
Se vivesse na antiguidade você entraria prum mosteiro
Que vergonha ser pego rezando com um rosário
Tira sarro de si e como o fogo do inferno seu riso crepita
As centelhas do riso douram o fundo da sua vida
É um quadro pendurado num museu deserto
80 Que você visita às vezes para ver de perto

Hoje você anda por Paris mulheres estão sangrando


Era e quem dera esquecer era o declínio da beleza quando

Entre chamas ardentes Nossa Senhora me contemplou em


Chartres
O sangue do seu Sagrado Coração me inundou em Montmartre,
Estou doente de tanto ouvir palavras de bença
O amor que sofro sim é vergonhosa doença
E a imagem que te possui e mantém vivo em noites de insônia e
dor
Aquela imagem fugaz sempre ao seu redor
Agora você às margens do Mediterrâneo
90 Sob os limoeiros que florescem todo o ano
Você sai pra passear de barco com sua trupe
Um é de Nice outro de Menton dois de La Turbie
O polvo das profundezas nos enchia de horror
E entre algas nadam peixes símbolos do Salvador

Você no jardim de uma pousada perto de Praga


Feliz da vida uma rosa sobre a mesa vaga
E observa em vez de escrever sua história em prosa
O besouro cochilando no coração da rosa

Apavorado se vê desenhado nas ágatas de São Vito


100 Triste aquele dia a ponto de morrer por ter se visto
Você parece Lázaro afligido pelo sol diário
Os ponteiros do relógio no bairro judeu giram ao contrário
E você também recua assim da vida aos poucos
Subindo rumo ao Hradchin ao poente escuta os ecos
Das músicas tchecas que chegam dos botecos

Você em Marselha entre melancias antes

Você em Coblence no Hotel do Gigante

Você em Roma sentado sob uma ameixeira do Japão

Você em Amsterdam com uma donzela que nada tem de lady


110 Vai se casar com um acadêmico de Leida
Alugam quartos de estudante em latim Cubícula Locanda
Lembro de passar três dias lá e outros mais em Gouda

Você em Paris diante do juiz de instrução


Como se fosse um criminoso te dão voz de prisão

Você já fez alegres e dolorosas viagens


Ainda não conhecia a velhice e a falsidade
Aos vinte e aos trinta anos você de amor sofreu
Perdi meu tempo vivi como um imbecil
Você não ousa olhar suas mãos só tem vontade de chorar
120 Por você por ela que amo por tudo que a fez se assustar

Com olhos cheios de lágrimas vê estes pobres imigrantes


Crentes em Deus mulheres rezam amamentam infantes
Com seus cheiros enchem o hall da estação São Lázaro
Eles têm fé em sua estrela como os reis magos
Esperam ficar cheios de argém na Argentina
E ao país natal voltar gente grã-fina
Uma família carrega um edredom vermelho como você seu
coração
Esse edredom e nossos sonhos são ambos irreais
Alguns desses imigrantes aqui passam a viver
130 Nos cortiços da rua dos Écouffes ou das Rosiers
Sempre os vejo ao entardecer na rua tomando um ar
Como jogadores de xadrez sem sair do lugar
Na maioria judeus com suas esposas de peruca
Que exangues sentam-se no fundo de suas baiucas
Você diante do balcão de algum bar devasso
Cercado de infelizes bebendo café barato

Você de noite num restaurante chique

Essas mulheres são honestas todas têm seus tiques


Mesmo as feias fazem seus amantes terem chiliques

140 Ela é filha de um policial das Ilhas Jersey

Suas mãos rachadas e duras eu já nem sei


Sinto uma pena imensa das cicatrizes em seu ventre

Humilho minha boca a mendiga que ri horrivelmente

Você sozinho e a manhã a caminho está


Nas ruas leiteiros batem suas latas

A noite se afasta como uma linda mulata


É Léa a esperta ou Ferdine a falsa

Você bebe o álcool que é sua vida ardente


Vida bebida como uma aguardente

150 Você rumo a Auteuil quer chegar em casa a pé


Dormir entre seus fetiches da Oceania e da Guiné
Estes são os Cristos de outras formas e outras crenças
São os Cristos inferiores de obscuras esperanças
Adeus Adeus

Sol Degolado
le pont mirabeau

1 Sous le pont Mirabeau coule la Seine


Et nos amours
Faut-il qu’il m’en souvienne
La joie venait toujours après la peine

Vienne la nuit sonne l’heure


Les jours s’en vont je demeure

Les mains dans les mains restons face à face


Tandis que sous
Le pont de nos bras passe
10 Des éternels regards l’onde si lasse

Vienne la nuit sonne l’heure


Les jours s’en vont je demeure

L’amour s’en va comme cette eau courante


L’amour s’en va
Comme la vie est lente
Et comme l’Espérance est violente

Vienne la nuit sonne l’heure


Les jours s’en vont je demeure

Passent les jours et passent les semaines


20 Ni temps passé
Ni les amours reviennent
Sous le pont Mirabeau coule la Seine

Vienne la nuit sonne l’heure


Les jours s’en vont je demeure
a ponte mirabeau

1 Sob a ponte Mirabeau corre o Sena


E o nosso amor
Me lembra a cantilena
O prazer sempre vem depois da pena

Venha noite soe hora


Dias vão eu não agora

Fiquemos de mãos dadas face a face


E sob a ponte
De nossos braços passem
10 Os olhares eternos de ondas lassas

Venha noite soe hora


Dias vão eu não agora

O amor se vai como a água cinzenta


O amor se esvai
Como esta vida é lenta
E como esta Esperança é violenta

Venha noite soe hora


Dias vão eu não agora
Passam os dias passam as semanas
20 Nem o passado
Nem o amor voltam à cena
Sob a ponte Mirabeau corre o Sena

Venha noite soe hora


Dias vão eu não agora
les colchiques

1 Le pré est vénéneux mais joli en automne


Les vaches y paissant
Lentement s’empoisonnent
Le colchique couleur de cerne et de lilas
Y fleurit tes yeux sont comme cette fleur-là
Violâtres comme leur cerne et comme cet automne
Et ma vie pour tes yeux lentement s’empoisonne

Les enfants de l’école viennent avec fracas


Vêtus de hoquetons et jouant de l’harmonica
10 Ils cueillent les colchiques qui sont comme des mères
Filles de leurs filles et sont couleur de tes paupières

Qui battent comme les fleurs battent au vent dément

Le gardien du troupeau chante tout doucement


Tandis que lentes et meuglant les vaches abandonnent
Pour toujours ce grand pré mal fleuri par l’automne
açafrões

1 O prado é venenoso mas lindo no outono


Pastando ali as vacas
Se envenenam aos poucos
Os açafrões são cor de olheira e de lilás
Florem seus olhos essas flores que aliás
Tão violáceas como olheiras e este outono
Envenenando a minha vida de abandono

As crianças saindo da escola aos gritos


Vestindo jaquetas tocam seus apitos
10 Colhem açafrões que suas mães fazem lembrar
Filhas de suas filhas da cor das suas pálpebras

Se batem feito flores no vento demente

O guardador de rebanhos canta docemente


Lentas e cabisbaixas as vacas abandonam
O prado todo mal florido pelo outono
chantre

Et l’unique cordeau des trompettes marines


cantor

E o cordão solitário das trombas marinhas


crépuscule
A Mademoiselle Marie Laurencin

1 Frôlée par les ombres des morts


Sur l’herbe où le jour s’exténue
L’arlequine s’est mise nue
Et dans l’étang mire son corps

Un charlatan crépusculaire
Vante les tours que l’on va faire
Le ciel sans teinte est constellé
D’astres pâles comme du lait

Sur les tréteaux l’arlequin blême


10 Salue d’abord les spectateurs
Des sorciers venus de Bohême
Quelques fées et les enchanteurs

Ayant décroché une étoile


Il la manie à bras tendu
Tandis que des pieds un pendu
Sonne en mesure les cymbales
L’aveugle berce un bel enfant
La biche passe avec ses faons
Le nain regarde d’un air triste
20 Grandir l’arlequin trismégiste
crepúsculo
Para Mademoiselle Marie Laurencin

1 Roçada por sombras dos mortos


Na relva onde o dia se extenua
A arlequina está toda nua
Num lago onde mira seu corpo

Um charlatão crepuscular
Revela as atrações da noite
Céu constelado a desbotar
Estrelas brancas feito leite

Do palco o pálido arlequim


10 Saúda seus espectadores
Bruxos da Boêmia e afins
As fadas e os encantadores

Então ele destaca um astro

E o faz rolar pelo seu braço


No ritmo dos pés do acrobata
E que esses címbalos ataca

O cego nina a criancinha


A corça traz a sua cria
De cara triste o anão assiste
20 Crescer o arlequim trismegisto
annie

1 Sur la côte du Texas


Entre Mobile et Galveston il y a
Un grand jardin tout plein de roses
Il contient aussi une villa
Qui est une grande rose

Une femme se promène souvent


Dans le jardin toute seule
Et quand je passe sur la route bordée de tilleuls
Nous nous regardons

10 Comme cette femme est mennonite


Ses rosiers et ses vêtements n’ont pas de boutons
Il en manque deux à mon veston
La dame et moi suivons presque le même rite
annie

1 No litoral do Texas
Entre Mobile e Galveston há
Um jardim imenso cheio de rosas
E uma casa de campo por lá
Que é uma imensa rosa

Sempre uma moça passeia


Sozinha no jardim e quando
Passo pela estrada bordada de tílias
Nós nos olhamos

10 Como essa moça é menonita radical


Suas roupas e roseiras não têm botões
No meu paletó também faltam dois
Nós dois seguimos quase o mesmo ritual
la maison des morts
A Maurice Raynal

1 S’étendant sur les côtés du cimetière


La maison des morts l’encadrait comme un cloître
A l’intérieur de ses vitrines
Pareilles à celles des boutiques de modes
Au lieu de sourire debout
Les mannequins grimaçaient pour l’éternité

Arrivé à Munich depuis quinze ou vingt jours


J’étais entré pour la première fois et par hasard
Dans ce cimetière presque désert
10 Et je claquais des dents
Devant toute cette bourgeoisie
Exposée et vêtue le mieux possible
En attendant la sépulture

Soudain
Rapide comme ma mémoire
Les yeux se rallumèrent
De cellule vitrée en cellule vitrée
Le ciel se peupla d’une apocalypse
Vivace
20 Et la terre plate à l’infini
Comme avant Galilée
Se couvrit de mille mythologies immobiles
Un ange en diamant brisa toutes les vitrines
Et les morts m’accostèrent
Avec des mines de l’autre monde

Mais leur visage et leurs attitudes


Devinrent bientôt moins funèbres
Le ciel et la terre perdirent
Leur aspect fantasmagorique

30 Les morts se réjouissaient


De voir leurs corps trépassés entre eux et la lumière
Ils riaient de leur ombre et l’observaient
Comme si véritablement
C’eût été leur vie passée

Alors je les dénombrai


Ils étaient quarante-neuf hommes
Femmes et enfants
Qui embellissaient à vue d’œil
Et me regardaient maintenant
40 Avec tant de cordialité
Tant de tendresse même
Que les prenant en amitié
Tout à coup
Je les invitai à une promenade
Loin des arcades de leur maison
Et tous bras dessus bras dessous
Fredonnant des airs militaires
Oui tous vos péchés sont absous
Nous quittâmes le cimetière
50 Nous traversâmes la ville
Et rencontrions souvent
Des parents des amis qui se joignaient
A la petite troupe des morts récentes
Tous étaient si gais
Si charmants si bien portants
Qui bien malin qui aurait pu
Distinguer les morts des vivants

Puis dans la campagne


On s’éparpilla
60 Deux chevau-légers nous joignirent
On leur fit fête
Ils coupèrent du bois de viorne
Et de sureau
Dont ils firent des sifflets
Qu’ils distribuèrent aux enfants

Plus tard dans un bal champêtre


Les couples mains sur les épaules
Dansèrent au son aigre des cithares
Ils n’avaient pas oublié la danse
70 Ces morts et ces mortes
On buvait aussi
Et de temps à autre une cloche
Annonçait qu’un nouveau tonneau
Allait être mis en perce

Une morte assise sur un banc


Près d’un buisson d’épine-vinette
Laissait un étudiant
Agenouillé à ses pieds
Lui parler de fiançailles

80 Je vous attendrai
Dix ans vingt ans s’il le faut
Votre volonté sera la mienne

Je vous attendrai
Toute votre vie
Répondait la morte

Des enfants
De ce monde ou bien de l’autre
Chantaient de ces rondes
Aux paroles absurdes et lyriques
90 Qui sans doute sont les restes
Des plus anciens monuments poétiques
De l’humanité
L’étudiant passa une bague
A l’annulaire de la jeune morte

Voici le gage de mon amour


De nos fiançailles
Ni le temps ni l’absence
Ne nous feront oublier nos promesses
Et un jour nous auront une belle noce
100 Des touffes de myrte
A nos vêtements et dans vos cheveux
Un beau sermon à l’église
De longs discours après le banquet
Et de la musique
De la musique

Nos enfants
Dit la fiancée
Seront plus beaux plus beaux encore
Hélas! la bague était brisée
110 Que s’ils étaient d’argent ou d’or
D’émeraude ou de diamant
Seront plus clairs plus clairs encore
Que les astres du firmament
Que la lumière de l’aurore
Que vos regards mon fiancé
Auront meilleure odeur encore
Hélas! la bague était brisée
Que le lilas qui vient d’éclore
Que le thym la rose ou qu’un brin
120 De lavande ou de romarin

Les musiciens s’en étant allés


Nous continuâmes la promenade

Au bord d’un lac


On s’amusa à faire des ricochets
Avec des cailloux plats
Sur l’eau qui dansait à peine

Des barques étaient amarrées


Dans un havre
On les détacha
130 Après que toute la troupe se fut embarquée
Et quelques morts ramaient
Avec autant de vigueur que les vivants

A l’avant du bateau que je gouvernais


Un mort parlait avec une jeune femme
Vêtue d’une robe jaune
D’un corsage noir
Avec des rubans bleus et d’un chapeau gris
Orné d’une seule petite plume défrisée

Je vous aime
140 Disait-il
Comme le pigeon aime la colombe
Comme l’insecte nocturne
Aime la lumière

Trop tard
Répondait la vivante
Repoussez repoussez cet amour défendu
Je suis mariée
Voyez l’anneau qui brille
Mes mains tremblent
150 Je pleure et je voudrais mourir

Les barques étaient arrivées


A un endroit où les chevau-légers
Savaient qu’un écho répondait de la rive
On ne se lassait point de l’interroger
Il y eut des questions si extravagantes
Et des réponses tellement pleines d’à-propos
Que c’était à mourir de rire
Et le mort disait à la vivante

Nous serions si heureux ensemble


160 Sur nous l’eau se refermera
Mais vous pleurez et vos mains tremblent
Aucun de nous ne reviendra

On reprit terre et ce fut le retour


Les amoureux s’entr’aimaient
Et par couples aux belles bouches
Marchaient à distances inégales
Les morts avaient choisi les vivants
Et les vivants
Des mortes

170 Un genévrier parfois


Faisait l’effet d’un fantôme
Les enfants déchiraient l’air
En soufflant les joues creuses
Dans leurs sifflets de viorne
Ou de sureau
Tandis que les militaires
Chantaient des tyroliennes
En se répondant comme on le fait
Dans la montagne

180 Dans la ville


Notre troupe diminua peu à peu
On se disait
Au revoir
A demain
A bientôt

Beaucoup entraient dans les brasseries


Quelques-uns nous quittèrent
Devant une boucherie canine
Pour y acheter leur repas du soir
190 Bientôt je restai seul avec ces morts
Qui s’en allaient tout droit
Au cimetière

Sous les Arcades
Je les reconnus
Couchés
Immobiles
Et bien vêtus
Attendant la sépulture derrière les vitrines

200 Ils ne se doutaient pas


De ce qui s’était passé
Mais les vivants en gardaient le souvenir
C’était un bonheur inespéré

Et si certain
Qu’ils ne craignaient point de le perdre

Ils vivaient si noblement


Que ceux qui la veille encore
Les regardaient comme leurs égaux
Ou même quelque chose de moins
210 Admiraient maintenant
Leur puissance leur richesse et leur génie
Car y a-t-il rien qui vous élève
Comme d’avoir aimé un mort ou une morte
On devient si pur qu’on en arrive
Dans les glaciers de la mémoire
A se confondre avec le souvenir
On est fortifié pour la vie
Et l’on n’a plus besoin de personne
a casa dos mortos
Para Maurice Raynal

1 Estendendo-se ao redor do cemitério


A casa dos mortos o enquadrava como um claustro
No interior de suas vitrines
Como aquelas de butiques
Em vez de sorrirem de pé
Os manequins faziam caretas pra eternidade

Chegado em Munique há quinze ou vinte dias


Era a primeira vez que eu entrava e por acaso
Neste cemitério quase deserto
10 Meus dentes batiam
Diante de tanta burguesia
Em exibição e super bem-vestida
Só esperando a sepultura

De repente
Rápidos como minha memória
Os olhos se acenderam de novo
De célula vítrea a célula vítrea
O céu ficou lotado com um vívido
Apocalipse
20 E a terra plana infinita
Como antes de Galileu
Cobriu-se de mil mitologias imóveis
Um anjo de diamantes quebrou todas as vitrines
E os mortos me abordaram
Com caras de outro mundo

Mas seus rostos e atitudes


Logo ficaram menos fúnebres
O céu e a terra foram perdendo
Aquele olhar fantasmagórico

30 Os mortos se divertiam
Ao verem seus cadáveres entre eles e a luz
Riam de suas sombras e as examinavam
Como se elas fossem realmente
Suas vidas passadas

Então os contei
Eram quarenta e nove homens
Mulheres e crianças
Iam ficando lindos a olhos vistos
E me encaravam agora
40 Com tanta cordialidade
Tanta ternura até
Que fazendo amizade com eles
De repente
Convidei todos prum rolê
Longe dos arcos da sua casa
Todo mundo de braços dados
Cantando hinos militares
Sim seus pecados estão perdoados
Saímos do cemitério
50 Cruzamos a cidade
E encontrávamos direto
Amigos e parentes que se juntavam
À pequena trupe de mortos recentes
Todos felizes da vida
Tão charmosos e saudáveis
Tinha que ser muito malandro
Pra distinguir os mortos dos vivos

Depois no campo
Nos dispersamos
60 Dois dragões se juntaram
Os cavaleiros foram bem-vindos
Cortaram farpas de viburno
E de sabugueiro
Com o que fizeram apitos
Que distribuíram às crianças

Depois num baile campestre


Os casais de mãos sobre os ombros
Dançaram ao som acre das cítaras
Não tinham esquecido como se dança
70 Esses homens e mulheres mortos
Bons de copo também
E de quando em quando um sino
Anunciava a abertura
De um novo barril

Uma morta sentada num banco


Junto a uma moita de uva-espim
Deixava um estudante
Ajoelhado a seus pés
Pedir sua mão em casamento

80 Vou te esperar
Dez anos vinte se preciso
Sua vontade será a minha

Vou te esperar
Por toda a sua vida
A morta respondia

A criançada
Deste ou do outro mundo
Cantava cirandas
Com umas letras líricas e absurdas
90 Que por certo são as relíquias
Dos monumentos poéticos mais antigos
Da humanidade
O estudante passou a aliança
No dedo anelar da moça morta

Este é o penhor do meu amor


Do nosso noivado
Nem o tempo nem a ausência
Nos farão esquecer nossas promessas
E um dia teremos um casamento lindo
100 Com tufos de murta
Nas nossas roupas e nos seus cabelos
Um belo sermão na igreja
Longos discursos depois do banquete
E música
Música

Nossas crianças
A noiva falou
Serão mais bonitas agora
O anel de vidro se quebrou
110 Que fosse de prata ou de ouro
De esmeralda ou de diamante
E vão brilhar bem mais é claro
Que estas estrelas tão distantes
Do que a luz da aurora lá fora
Que seu olhar noiva que adoro
Terão odor melhor agora
O anel de vidro se quebrou
Do que um lilás que desabrocha
Que rosa ou tomilho um galhim
120 De lavanda ou de alecrim
Depois que os músicos se foram
Continuamos o passeio

Nas margens de um lago


Brincamos de ricochetear
Pedrinhas achatadas
Nas águas que dançavam um pouco

Os barcos estavam amarrados


Em uma enseada
Soltaram todos
130 Depois que a tropa toda embarcou
E alguns mortos remavam
Com tanto vigor quanto os vivos

Na proa do barco que eu governava


Um morto falava com uma moça
Ela de vestido amarelo
Corpete preto
Com fitas azuis e um chapéu cinza
Decorado com uma pena pequena e lisa
Te amo
140 O morto dizia
Como o pombo ama a pomba
Como a noturna mariposa
Ama a luz
Agora é tarde
Respondeu a viva
Espante espante esse amor proibido
Sou casada
Olhe este anel cintilante
Minhas mãos estão tremendo
150 Estou chorando quem dera morrer

Os barcos atracaram
Num lugar onde os dragões
Sabiam o que um eco respondia da margem
A gente não cansava de fazer perguntas
Eram perguntas tão extravagantes
E respostas tão pertinentes
Que quase morremos de rir
E o moço morto disse pra moça viva

Seríamos felizes juntos


160 Em nós a água há de fechar
Você chora e mãos tremem juncos
Nenhum de nós vai mais voltar

Pisamos na margem e foi assim o retorno


Amantes se entreamavam
E aos pares com bocas bonitas
Percorriam distâncias desiguais
Os mortos tinham escolhido as moças vivas
E os vivos
As moças mortas

170 Às vezes um zimbro


Lembrava um fantasma
Crianças rasgavam o ar
Soprando com bochechas ocas
Em seus apitos de viburno
Ou de sabugueiro
Enquanto os soldados
Cantavam tirolesas
Iodeleiando uns pros outros
Como fazemos nas montanhas

180 Na cidade
Nossa trupe foi minguando aos poucos
Todos diziam
Tchau tchau
Até amanhã
A gente se vê

Muitos se mandaram pras cervejarias


Outros nos deixaram
Diante de um açougue canino
Pra comprar sua ceia noturna

190 Logo fiquei só com aqueles mortos


Que seguiam reto toda vida
Pro cemitério
Onde
Sob os Arcos
Eu os reconheci
Deitados
Imóveis
E chiques
Esperando a sepultura atrás das vitrines

200 Nem desconfiavam


Do que tinha acontecido
Mas os vivos guardavam a lembrança
Foi uma alegria inesperada

E tão certa
Que não tinham medo de perdê-la

Viviam com tanta nobreza


Que aqueles que a noite passada
Os olhavam como seus iguais
Ou mesmo um pouco inferiores
210 Agora admiravam também
Seu poder sua riqueza seu gênio
Pois não há nada que mais nos enobreça
Que amar um morto ou uma morta
A gente fica tão puro que se chega
Às geleiras da memória
Misturadas com a lembrança
A vida é quem nos dá aquela força
E a gente não precisa de ninguém
clotilde

1 L’anémone et l’ancolie
Ont poussé dans le jardin
Où dort la mélancolie
Entre l’amour et le dédain

Il y vient aussi nos ombres


Que la nuit dissipera
Le soleil qui les rend sombres
Avec elles disparaîtra

Les déités des eaux vives


10 Laissent couler leurs cheveux
Passe il faut que tu poursuives
Cette belle ombre que tu veux
clotilde

1 A anêmona e a ancolia
Floresceram nesse jardim
Onde dorme a melancolia
Entre o amor e tanto desdém

Vêm também nossas sombras frias


Até que esta noite as disperse
E o sol que as deixa tão sombrias
Com elas só desaparece

Deidades das águas correntes


10 Deixem escorrer seus cabelos
Passem e persigam somente
A bela sombra teu desejo
cortège
A M. Léon Bailby

1 Oiseau tranquille au vol inverse oiseau


Qui nidifie en l’air
À la limite où notre sol brille déjà
Baisse ta deuxième paupière la terre t’éblouit
Quand tu lèves la tête

Et moi aussi de près je suis sombre et terne


Une brume qui vient d’obscurcir les lanternes
Une main qui tout à coup se pose devant les yeux
Une voûte entre vous et toutes les lumières
10 Et je m’éloignerai m’illuminant au milieu d’ombres
Et d’alignements d’yeux des astres bien-aimés

Oiseau tranquille au vol inverse oiseau


Qui nidifie en l’air
A la limite où brille déjà ma mémoire
Baisse ta deuxième paupière
Ni à cause du soleil ni à cause de la terre
Mais pour ce feu oblong dont l’intensité ira s’augmentant
Au point qu’il deviendra un jour l’unique lumière

Un jour
20 Un jour je m’attendais moi-même
Je me disais Guillaume il est temps que tu viennes
Pour que je sache enfin celui-là que je suis
Moi qui connais les autres

Je les connais par les cinq sens et quelques autres


Il me suffit de voir leurs pieds pour pouvoir refaire ces gens à
milliers
De voir leurs pieds paniques un seul de leurs cheveux
Ou leur langue quand il me plaît de faire le médecin
Ou leurs enfants quand il me plaît de faire le prophète
Les vaisseaux des armateurs la plume de mes confrères
30 La monnaie des aveugles les mains des muets
Ou bien encore à cause du vocabulaire et non de l’écriture
Une lettre écrite par ceux qui ont plus de vingt ans
Il me suffit de sentir l’odeur de leurs églises
L’odeur des fleuves dans leurs villes
Le parfum des fleurs dans les jardins publics
O Corneille Agrippa l’odeur d’un petit chien m’eût suffi
Pour décrire exactement tes concitoyens de Cologne
Leurs rois-mages et la ribambelle ursuline
Qui t’inspirait l’erreur touchant toutes les femmes
40 Il me suffit de goûter la saveur du laurier qu’on cultive pour que
j’aime ou que je bafoue
Et de toucher les vêtements
Pour ne pas douter si l’on est frileux ou non
O gens que je connais
Il me suffit d’entendre le bruit de leurs pas
Pour pouvoir indiquer à jamais la direction qu’ils ont prise
Il me suffit de tous ceux-là pour me croire le droit
De ressusciter les autres
Un jour je m’attendais moi-même
Je me disais Guillaume il est temps que tu viennes
50 Et d’un lyrique pas s’avançaient ceux que j’aime
Parmi lesquels je n’étais pas
Les géants couverts d’algues passaient dans leurs villes
Sous-marines où les tours seules étaient des îles
Et cette mer avec les clartés de ses profondeurs
Coulait sang de mes veines et fait battre mon cœur
Puis sur cette terre il venait mille peuplades blanches
Dont chaque homme tenait une rose à la main
Et le langage qu’ils inventaient en chemin
Je l’appris de leur bouche et je le parle encore
60 Le cortège passait et j’y cherchais mon corps
Tous ceux qui survenaient et n’étaient pas moi-même
Amenaient un à un les morceaux de moi-même
On me bâtit peu à peu comme on élève une tour
Les peuples s’entassaient et je parus moi-même
Qu’ont formé tous les corps et les choses humaines

Temps passés Trépassés Les dieux qui me formâtes


Je ne vis que passant ainsi que vous passâtes
Et détournant mes yeux de ce vide avenir
En moi-même je vois tout le passé grandir
70 Rien n’est mort que ce qui n’existe pas encore
Près du passé luisant demain est incolore
Il est informe aussi près de ce qui parfait
Présente tout ensemble et l’effort et l’effet
cortejo
Para M. Léon Bailby

1 Ave tranquila em voo inverso ave


Que nidifica no ar
No limite onde nosso solo está a brilhar
Baixe sua pálpebra extra a terra te ofusca
Quando ergue a cabeça

E eu também de perto sou fosco e sem graça


Cerração que as lanternas embaça
Mão que de repente pousa nos olhos
Abóbada entre vocês e todas as luzes
10 Vou embora me iluminando em meio às sombras
E os olhos alinhados dos astros adorados

Ave tranquila em voo inverso ave


Que nidifica no ar
No limite onde já brilha minha memória
Baixe sua pálpebra extra agora
Não pela terra nem pelo sol
Mas por esse fogo oblongo que ficará mais intenso
A ponto de um dia ser uma luz só

Um dia
20 Um dia esperava por mim mesmo
Falei pra mim tá na hora de seu advento Guillaume
De eu saber enfim quem eu sou
Eu que conheço os outros

Conheço todos pelos cinco sentidos e alguns outros


Só preciso ver seus pés que já refaço seus milhares de passos
Ver seus pés empânicos e um único fio de cabelo
Ou suas línguas quando dou uma de médico
Ou suas crianças quando dou uma de profeta
Os barcos dos magnatas as canetas dos camaradas
30 As moedas dos cegos as mãos dos mudos
Ou por causa do vocabulário e não da escrita
Uma carta escrita por quem tem menos de trinta
Só preciso sentir o cheiro de suas igrejas
O cheiro dos rios nas suas cidades
O perfume das flores nos parques públicos
Oh Cornelius Agrippa o cheiro de um cachorrinho é o que
preciso
Pra descrever seus concidadãos de Colônia com precisão
Seus reis magos e sua procissão de Ursulinas
Que inspiraram seu erro em relação às mulheres
40 Só preciso provar o louro que se cultiva aqui pra sentir amor ou
desdém
Só preciso tocar suas vestimentas
Para saber se uma pessoa é friorenta
Ah pessoas que conheço bem
Só preciso ouvir o som dos seus passos
Pra indicar pra sempre a direção que seguiram
Tudo isso me leva a crer ter o direito
De ressuscitar pessoas
Um dia eu mesmo me esperava
Dizia a mim mesmo Guillaume é hora de você chegar
50 E de um modo lírico avançavam aqueles que amo
Entre os quais eu não estava
Gigantes cobertos de algas passavam por suas cidades e vilas
Submarinas, onde as torres solitárias eram ilhas
E esse mar com o brilho de suas profundezas
Corria sangue das minhas veias e fazia meu coração bater
Então nesta terra vinham milhares de povos brancos
Cada homem trazia uma rosa na mão
E a linguagem que no meu caminho inventavam
Aprendi com suas bocas e falo um pouco
60 O cortejo passava e eu atrás do meu corpo
E quem me cruzava e não era eu mesmo
Trazia um por um pedaços de mim a esmo
Construíram-me aos poucos como uma torre
Os povos se juntaram e apareci eu mesmo
Feito de todas as coisas corpos humanos

Tempos passados Os deuses que me formaram


Vivi passando assim como vocês passaram
E ao desviar os olhos do vazio porvir
Em mim mesmo só via o passado expandir

70 Somente o que ainda não existe está morto


Perto do ontem brilhante o amanhã é incolor
Ele é tão informe perto do que é perfeito
Apresenta tudo junto o esforço e o efeito
marizibill

1 Dans la Haute-Rue à Cologne


Elle allait et venait le soir
Offerte à tous en tout mignonne
Puis buvait lasse des trottoirs
Très tard dans les brasseries borgnes

Elle se mettait sur la paille


Pour un maquereau roux et rose
C’était un juif il sentait l’ail
Et l’avait venant de Formose
10 Tirée d’un bordel de Changaï

Je connais des gens de toutes sortes


Ils n’égalent pas leurs destins
Indécis comme feuilles mortes
Leurs yeux sont des feux mal éteints
Leurs cœurs bougent comme leurs portes
marizibill

1 Pela Rua Alta lá em Colônia


Ela ia e vinha de tarde
Para todos se oferecia
Sozinha depois do trottoir
Em um pé-sujo a cara enchia

Tá na lona por um paspalho


Um gigolô sempre de rosa
Um judeu com bafo de alho
Recém-chegado de Formosa
10 A pegou num bordel de Xangai

Sei de seres de toda sorte


Tão desiguais em seus destinos
Indecisos qual folhas mortas
Seus olhos fogos quase extintos
Peitos que batem feito portas
le voyageur
A Fernand Fleuret

1 Ouvrez-moi cette porte où je frappe en pleurant

La vie est variable aussi bien que l’Euripe

Tu regardais un banc de nuages descendre


Avec le paquebot orphelin vers les fièvres futures
Et de tous ces regrets de tous ces repentirs
Te souviens-tu

Vagues poissons arqués fleurs surmarines


Une nuit c’était la mer
Et les fleuves s’y répandaient

10 Je m’en souviens je m’en souviens encore

Un soir je descendis dans une auberge triste


Auprès de Luxembourg
Dans le fond de la salle il s’envolait un Christ
Quelqu’un avait un furet
Un autre un hérisson
L’on jouait aux cartes
Et toi tu m’avais oublié

Te souviens-tu du long orphelinat des gares


Nous traversâmes des villes qui tout le jour tournaient
20 Et vomissaient la nuit le soleil des journées
O matelots ô femmes sombres et vous mes compagnons
Souvenez-vous-en

Deux matelots qui ne s’étaient jamais quittés


Deux matelots qui ne s’étaient jamais parlé
Le plus jeune en mourant tomba sur le côté

O vous chers compagnons


Sonneries électriques des gares chant des moissonneuses
Traîneau d’un boucher régiment des rues sans nombre
Cavalerie des ponts nuits livides de l’alcool
30 Les villes que j’ai vues vivaient comme des folles

Te souviens-tu des banlieues et du troupeau plaintif des paysages

Les cyprès projetaient sous la lune leurs ombres


J’écoutais cette nuit au déclin de l’été
Un oiseau langoureux et toujours irrité
Et le bruit éternel d’un fleuve large et sombre

Mais tandis que mourants roulaient vers l’estuaire


Tous les regards tous les regards de tous les yeux
Les bords étaient déserts herbus silencieux
Et la montagne à l’autre rive était très claire

40 Alors sans bruit sans qu’on pût voir rien de vivant


Contre le mont passèrent des ombres vivaces
De profil ou soudain tournant leurs vagues faces
Et tenant l’ombre de leurs lances en avant

Les ombres contre le mont perpendiculaire


Grandissaient ou parfois s’abaissaient brusquement
Et ces ombres barbues pleuraient humainement
En glissant pas à pas sur la montagne claire

Qui donc reconnais-tu sur ces vieilles photographies


Te souviens-tu du jour où une abeille tomba dans le feu
50 C’était tu t’en souviens à la fin de l’été
Deux matelots qui ne s’étaient jamais quittés
L’aîné portait au cou une chaîne de fer
Le plus jeune mettait ses cheveux blonds en tresse

Ouvrez-moi cette porte où je frappe en pleurant

La vie est variable aussi bien que l’Euripe


o viajante
Para Fernand Fleuret

1 Abram esse portão onde bato chorando

A vida é variável tanto como o Euripo


Você olhava um banco de nuvens descendo
Com o barco órfão rumo às futuras febres
E todo esse pesar esse arrependimento
Você lembra

Peixes ondas arqueadas flores supermarinhas


Uma noite era o mar
E os rios nele se expandiam

10 Eu lembro ainda lembro

Uma noite eu parei num albergue bem triste


Perto de Luxemburgo
E no fundo da sala revoava um Cristo
Alguém tinha um furão
Outro um ouriço
Pessoas jogavam baralho
E você você se esquecera de mim

Lembra do comprido orfanato das estações de trem


Cruzávamos cidades que passavam o dia a girar
20 E de noite vomitavam o sol dos dias
Ah marinheiros Ah mulheres sombrias e vocês companheiros
Lembrem-se

Dois marinheiros que nunca se desgrudavam


Dois marinheiros que nunca se conversavam
O mais jovem morria e a seu lado tombava

Ah caros companheiros
Sinos elétricos das estações de trem a canção dos ceifadores
Carrinho de açougueiro regimento de ruas inumeráveis
Cavalaria de pontes noites pálidas de álcool
30 Cidades que vi de relance vivazes como mulheres possessas

Lembra dos subúrbios e dos rebanhos plangentes das paisagens

Ciprestes lançavam sob a lua suas sombras


Nesta noite no declínio do verão ouço
Um pássaro sempre irritado e preguiçoso
E o rumor eterno de um rio que nos assombra

Mas moribundos e rolando rumo ao estuário


Todos os olhares de todos esses olhos
Barrancos ermos com mato e silenciosos
E o monte do outro lado do rio muito claro

40 Então silêncio não se via um vivente


Contra o monte passaram as sombras vivazes
De perfil ou súbito viram vagas faces
Tendo a sombra de suas lanças à sua frente

As sombras contra o monte perpendicular


Cresciam às vezes baixavam de repente
As sombras barbudas choravam como gente
Deslizavam passo a passo na montanha clara

Me diga quem você reconhece nessas fotos antigas


Lembra do dia em que uma abelha caiu no fogo
50 Lembra era quase no fim do verão
Dois marinheiros que nunca se desgrudavam
O mais velho trazia um grilhão no pescoço
O mais jovem seus cabelos loiros em trança

Abram esse portão onde bato chorando

A vida é variável tanto como o Euripo


marie

1 Vous y dansiez petite fille


Y danserez-vous mère-grand
C’est la maclotte qui sautille
Toute les cloches sonneront
Quand donc reviendrez-vous Marie

Les masques sont silencieux


Et la musique est si lointaine
Qu’elle semble venir des cieux
Oui je veux vous aimer mais vous aimer à peine

10 Et mon mal est délicieux

Les brebis s’en vont dans la neige


Flocons de laine et ceux d’argent
Des soldats passent et que n’ai-je
Un cœur à moi ce cœur changeant
Changeant et puis encor que sais-je
Sais-je où s’en iront tes cheveux
Crépus comme mer qui moutonne
Sais-je où s’en iront tes cheveux
Et tes mains feuilles de l’automne
20 Que jonchent aussi nos aveux

Je passais au bord de la Seine


Un livre ancien sous le bras
Le fleuve est pareil à ma peine
Il s’écoule et ne tarit pas
Quand donc finira la semaine
maria

1 Dançou no tempo de guria


Quando for vovó vai dançar
Até um maclote encararia
Todos os sinos vão tocar
Quando você voltar Maria

Máscaras estão em silêncio


E a música está tão distante
Parece que desce do céu
Sim eu quero te amar te amaria bastante

10 É uma delícia este suplício

Ovelhas vagueiam na neve


Flocos de lã prata brilhante
Soldados passam mas nem veem
Este meu coração mutante
Que bate e não sei mais o quê
Sei pra onde sopram seus cabelos
Oceano crespo e revolto
Sei pra onde sopram seus cabelos
E suas mãos folhas de outono
20 Que também parecem querê-los

Eu passava às margens do Sena


Um livro antigo sob o braço
O rio parece a minha sina
Escoa à toa pelo espaço
Quando é que a semana termina
la blanche neige

1 Les anges les anges dans le ciel


L’un est vêtu en officier
L’un est vêtu en cuisinier
Et les autres chantent

Bel officier couleur du ciel


Le doux printemps longtemps après Noël
Te médaillera d’un beau soleil
D’un beau soleil

Le cuisinier plume les oies


10 Ah! tombe neige
Tombe et que n’ai-je
Ma bien-aimée entre mes bras
branca de neve

1 Os anjos os anjos no céu


Um vestido de oficial
Um vestindo avental
Outros cantando ao léu

Belo oficial da cor do céu


A doce primavera depois do Natal
Vai lhe medalhar um belo sol
Um belo sol

O chef depenando gansos


10 Ah! tombe neve
Já que ela não vem
Tombar em meus braços
poème lu au marriage d’andré

salmon
Le 13 juillet 1909

1 En voyant des drapeaux ce matin je ne me suis pas dit


Voilà les riches vêtements des pauvres
Ni la pudeur démocratique veut me voiler sa douleur
Ni la liberté en honneur fait qu’on imite maintenant
Les feuilles ô liberté végétale ô seule liberté terrestre
Ni les maisons flambent parce qu’on partira pour ne plus revenir
Ni ces mains agitées travailleront demain pour nous tous
Ni même on a pendu ceux qui ne savaient pas profiter de la vie
Ni même on renouvelle le monde en reprenant la Bastille
10 Je sais que seuls le renouvellent ceux qui sont fondés en poésie
On a pavoisé Paris parce que mon ami André Salmon s’y marie

Nous nous sommes rencontrés dans un caveau maudit


Au temps de notre jeunesse
Fumant tous deux et mal vêtus attendant l’aube
Épris épris des mêmes paroles dont il faudra changer le sens
Trompés trompés pauvres petits et ne sachant pas encore rire
La table et les deux verres devinrent un mourant qui nous jeta le
dernier regard d’Orphée
Les verres tombèrent se brisèrent
Et nous apprîmes à rire
20 Nous partîmes alors pèlerins de la perdition
A travers les rues à travers les contrées à travers la raison
Je le revis au bord du fleuve sur lequel flottait Ophélie
Qui blanche flotte encore entre les nénuphars
Il s’en allait au milieu des Hamlets blafards
Sur la flûte jouant les airs de la folie
Je le revis près d’un moujik mourant compter les béatitudes
En admirant la neige semblable aux femmes nues
Je le revis faisant ceci ou cela en l’honneur des mêmes paroles
Qui changent la face des enfants et je dis toutes ces choses
30 Souvenir et Avenir parce que mon ami André Salmon se marie

Réjouissons-nous non pas parce que notre amitié a été le fleuve


qui nous a fertilisés
Terrains riverains dont l’abondance est la nourriture que tous
espèrent
Ni parce que nos verres nous jettent encore une fois le regard
d’Orphée mourant
Ni parce que nous avons tant grandi que beaucoup pourraient
confondre nos yeux et les étoiles
Ni parce que les drapeaux claquent aux fenêtres des citoyens qui
sont contents depuis cent ans d’avoir la vie et de menues
choses à défendre
Ni parce que fondés en poésie nous avons des droits sur les
paroles qui forment et défont l’Univers
Ni parce que nous pouvons pleurer sans ridicule et que nous
savons rire
Ni parce que nous fumons et buvons comme autrefois
Réjouissons-nous parce que directeur du feu et des poètes
40 L’amour qui emplit ainsi que la lumière
Tout le solide espace entre les étoiles et les planètes
L’amour veut qu’aujourd’hui mon ami André Salmon se marie
poema lido no casamento de andré

salmon
13 de julho de 1909

1 Vendo as bandeiras de manhã não disse pra mim mesmo


Eis aqui as roupas chiques dos pobres
Nem o pudor democrático quer encobrir a sua dor
Nem a liberdade que honramos faz com que imitemos
As folhas ó liberdade vegetal ó única liberdade terrestre
Nem as casas queimam porque tem alguém partindo pra nunca
mais voltar
Nem essas mãos agitadas vão trabalhar por nós amanhã
Nem mesmo foram enforcados aqueles que não sabiam curtir a
vida
Nem mesmo renovamos o mundo tomando de novo a Bastilha
10 Digo que só o renovam aqueles fundados na poesia
Paris se decora pois meu amigo André Salmon se casa agora

Nos cruzamos numa adega maldita


Na nossa juventude
Os dois maltrapilhos fumando esperando o amanhecer
Gamados gamados pelas mesmas palavras cujos sentidos terão
que mudar
Enganados enganados pobres meninos sem ainda saber como se ri
A mesa e os dois copos viraram um moribundo que nos lançou
um derradeiro olhar de Orfeu
Os copos caíram se espatifaram
E aí aprendemos a rir
20 Depois partimos peregrinos da perdição
Cruzamos ruas cruzamos países cruzamos a razão
Eu o revi à beira do rio onde boiou Ofélia
Que ainda branca boia entre ninfeias
E ele passava por pálidos Hamlets
Tocando na flauta melodias dementes
Eu o revi recitando beatitudes junto a um mujique moribundo
Admirando a neve semelhante a mulheres nuas
Eu o revi fazendo isso ou aquilo em honra das mesmas palavras
Que mudam a cara das crianças e digo todas essas coisas
30 Futuras e de outrora pois meu amigo André Salmon se casa agora

Celebremos não por nossa amizade ter sido o rio que nos
fertilizou
Terrenos ribeirinhos cuja abundância é o alimento que todos
esperam
Não porque nossos copos de novo nos lançam outro moribundo
olhar de Orfeu
Ou por crescermos tanto que as pessoas tomam nossos olhos por
estrelas
Nem porque bandeiras estalam nas janelas dos cidadãos felizes há
um século por terem a vida e suas coisinhas pra defender
Nem porque fundados na poesia temos direitos sobre essas
palavras que formam e desfazem o Universo
Nem porque podemos chorar sem passar vexame e aprendemos a
rir
Nem porque fumamos e bebemos como outrora
Celebremos porque o diretor do fogo e dos poetas
40 O amor que inunda tudo como a luz
Todo o sólido espaço entre as estrelas e os planetas
O amor comemora e quer que meu amigo André Salmon se case
agora
l’adieu

1 J’ai cueilli ce brin de bruyère


L’automne est morte souviens-t’en
Nous ne nous verrons plus sur terre
Odeur du temps brin de bruyère
Et souviens-toi que je t’attends
o adeus

1 Eu colhi esse galho de alecrim


O outono morreu lembre-se que é vero
Não nos veremos mais na terra enfim
Cheiro de tempo galho de alecrim
E é só você lembrar como eu te espero
la porte

1 La porte de l’hôtel sourit terriblement


Qu’est-ce que cela peut me faire ô ma maman
D’être cet employé pour qui seul rien n’existe
Pi-mus couples allant dans la profonde eau triste
Anges frais débarqués à Marseille hier matin
J’entends mourir et remourir un chant lointain
Humble comme je suis qui ne suis rien qui vaille

Enfant je t’ai donné ce que j’avais travaille


a porta

1 A porta deste hotel sorri horrivelmente


O que pode mamãe querer dizer pra gente
Ser um empregado que crê que o nada existe
Só pares de pi-mus na funda água triste
Anjovas frescas chegam em Marselha ontem
Só ouço essa canção morrendo no horizonte
Humilde como este que ninguém escuta

Já te dei o que tinha filho vai à luta


saltimbanques
A Louis Dumur

1 Dans la plaine les baladins


S’éloignent au long des jardins
Devant l’huis des auberges grises
Par les villages sans églises

Et les enfants s’en vont devant


Les autres suivent en rêvant
Chaque arbre fruitier se résigne
Quand de très loin ils lui font signe

Ils ont des poids ronds ou carrés


10 Des tambours des cerceaux dorés
L’ours et le singe animaux sages
Quêtent des sous sur leur passage
saltimbancos
Para Louis Dumur

1 Pela planície vêm os saltimbancos


Passando por jardins e pelos campos
Portas fechadas de estalagens tristes
Por vilas onde igrejas não existem

As crianças vão abrindo caminho


Os outros seguem sonhando um pouquinho
Árvores frutíferas se resignam
Quando ainda de longe eles acenam

Trazem na carroça bolas e pesos


10 Tamborins aros dourados bem presos
Um macaco e um urso que tudo sabem
Pra pedirem trocados na passagem
la tzigane

1 La tzigane savait d’avance


Nos deux vies barrées par les nuits
Nous lui dîmes adieu et puis
De ce puits sortit l’Espérance

L’amour lourd comme un ours privé


Dansa debout quand nous voulûmes
Et l’oiseau bleu perdit ses plumes
Et les mendiants leurs Ave

On sait très bien que l’on se damne


10 Mais l’espoir d’aimer en chemin
Nous fait penser main dans la main
A ce qu’a prédit la tzigane
a cigana

1 A cigana sabia o futuro


Duas vidas barradas na noite
Ao dar adeus vimos de repente
A Esperança num poço escuro

Como um urso pesado e privê


O amor dançava ao nosso sinal
Ave azul que se despluma igual
Os mendigos todos os seus Avés

Você sabe quando alguém se dana


10 Mas na estrada a esperança de amar
De mãos unidas nos faz pensar
No que um dia predisse a cigana
automne

1 Dans le brouillard s’en vont un paysan cagneux


Et son bœuf lentement dans le brouillard d’automne
Qui cache les hameaux pauvres et vergogneux

Et s’en allant là-bas le paysan chantonne


Une chanson d’amour et d’infidélité
Qui parle d’une bague et d’un cœur que l’on brise

Oh! l’automne l’automne a fait mourir l’été


Dans le brouillard s’en vont deux silhouettes grises
outono

1 Na névoa segue o cambaio camponês


E o boi lentamente na névoa de outono
Que esconde vilas vergonhosas e pobres

E seguindo na distância então entona


Uma canção de amor e de traição
Sobre um coração partido e um anel

Ah outono o outono matou o verão


Na névoa silhuetas cinzas ao léu
signe

1 Je suis soumis au Chef du Signe de l’Automne


Partant j’aime les fruits je déteste les fleurs
Je regrette chacun des baisers que je donne
Tel un noyer gaulé dit au vent ses douleurs

Mon Automne éternelle ô ma saison mentale


Les mains des amantes d’antan jonchent ton sol
Une épouse me suit c’est mon ombre fatale
Les colombes ce soir prennent leur dernier vol
signo

1 Eu sirvo só ao Chefe do Signo do Outono


Portanto adoro frutas e detesto as flores
Lamento cada um dos beijos que abandono
Nogueira que desfolha ao vento as suas dores

Oh meu eterno outono ó estação mental


Mãos de amantes antigas juncam teu canteiro
Uma esposa me segue é uma sombra fatal
As pombas saltam pro seu voo derradeiro
clair de lune

1 Lune mellifluente aux lèvres des déments


Les vergers et les bourgs cette nuit sont gourmands
Les astres assez bien figurent les abeilles
De ce miel lumineux qui dégoutte des treilles
Car voici que tout doux et leur tombant du ciel
Chaque rayon de lune est un rayon de miel
Or caché je conçois la très douce aventure
J’ai peur du dard de feu de cette abeille Arcture
Qui posa dans mes mains des rayons décevants
10 Et prit son miel lunaire à la rose des vents
clair de lune

1 Lua melíflua sobre os lábios dos dementes


Vergéis e burgos estão glutões novamente
Estrelas são abelhas são mesmo delícias
De luminoso mel que pinga das treliças
E eis que docemente elas descem desse céu
Cada raio de luar é um raio de mel
Escondido concebo essa doce aventura
Temo o dardo de fogo dessa abelha Arctura
Que pousa em minhas mãos seus raios fraudulentos
10 E rouba seu mel lunar da rosa dos ventos
1909

1 La dame avait une robe


En ottoman violine
Et sa tunique brodée d’or
Était composée de deux panneaux
S’attachant sur l’épaule

Les yeux dansants comme des anges


Elle riait elle riait
Elle avait un visage aux couleurs de France
Les yeux bleus les dents blanches et les lèvres très rouges
10 Elle avait un visage aux couleurs de France

Elle était décolletée en rond


Et coiffée à la Récamier
Avec de beaux bras nus

N’entendra-t-on jamais sonner minuit

La dame en robe d’ottoman violine


Et en tunique brodée d’or
Décolletée en rond
Promenait ses boucles
Son bandeau d’or
20 Et traînait ses petits souliers à boucles

Elle était si belle


Que tu n’aurais pas osé l’aimer

J’aimais les femmes atroces dans les quartiers énormes


Où naissaient chaque jour quelques êtres nouveaux
Le fer était leur sang la flamme leur cerveau
J’aimais j’aimais le peuple habile des machines
Le luxe et la beauté ne sont que son écume
Cette femme était si belle
Qu’elle me faisait peur
1909

1 A dama usava um vestido


Aviolado otomano
E sua túnica bordada em ouro
Era feita de dois panôs
Presos no ombro

Seus olhos dançando como anjos

Ela ria ela só ria


Sua cara era das cores da França
Olhos azuis dentes brancos boca vermelho-fogo
10 Sua cara era das cores da França

Usava um decote pronunciado


Cabelo estilo Récamier
Com os belos braços nus

Nunca mais vai se ouvir meia-noite soar


A dama de vestido aviolado otomano
Numa túnica bordada a ouro
Decote pronunciado
Passeava seus cachos
Sua bandana dourada
20 E arrastava seus sapatinhos de fivelas

Era tão linda ela


Você não se atreveria a amá-la

Eu amava as mulheres atrozes dos bairros imensos


Onde todo dia nasciam seres novos
O ferro era seu sangue e o fogo era seu cérebro
Eu amava esse povo que manja de máquinas
O luxo e a beleza são só a sua espuma
Essa mulher era tão linda
Que me dava medo
à la santé

1 Avant d’entrer dans ma cellule


Il a fallu me mettre nu
Et quelle voix sinistre ulule
Guillaume qu’es-tu devenu

Le Lazare entrant dans la tombe


Au lieu d’en sortir comme il fit
Adieu adieu chantante ronde
Ô mes années ô jeunes filles

ii

Non je ne me sens plus là


10 Moi-même
Je suis le quinze de la
Onzième

Le soleil filtre à travers


Les vitres
Ses rayons font sur mes vers
Les pitres
Et dansent sur le papier
J’écoute
Quelqu’un qui frappe du pied
20 La voûte

iii

Dans une fosse comme un ours


Chaque matin je me promène
Tournons tournons tournons toujours
Le ciel est bleu comme une chaîne
Dans une fosse comme un ours
Chaque matin je me promène

Dans la cellule d’à côté


On y fait couler la fontaine
Avec les clefs qu’il fait tinter
30 Que le geôlier aille et revienne
Dans la cellule d’à côté
On y fait couler la fontaine

iv

Que je m’ennuie entre ces murs tout nus


Et peints de couleurs pâles
Une mouche sur le papier à pas menus
Parcourt mes lignes inégales
Que deviendrai-je ô Dieu qui connais ma douleur
Toi qui me l’as donnée
Prends en pitié mes yeux sans larmes ma pâleur
40 Le bruit de ma chaise enchaînée
Et tous ces pauvres cœurs battant dans la prison
L’Amour qui m’accompagne
Prends en pitié surtout ma débile raison
Et ce désespoir qui la gagne

Que lentement passent les heures


Comme passe un enterrement

Tu pleureras l’heure où tu pleures


Qui passera trop vitement
Comme passent toutes les heures

vi

50 J’écoute les bruits de la ville


Et prisonnier sans horizon
Je ne vois rien qu’un ciel hostile
Et les murs nus de ma prison

Le jour s’en va voici que brûle


Une lampe dans la prison
Nous sommes seuls dans ma cellule
Belle clarté Chère raison

Septembre 1911
à saúde

1 Antes de entrar na minha cela


Já me fizeram ficar nu
Alguém uiva de uma janela
Guillaume cê entrou pelo cano

Sou Lázaro entrando na cova


Não é como da outra vez
Adeus adeus rodas e trovas
Ai meus anos ai meus amores

ii

Nem sei quem sou


10 Agora mesmo
Sou só um número
A esmo

O sol filtra através


Dos vitrôs
Divertem meus versos
palhaços
E dançam no papel
Bem perto
Alguém raspando o pé
20 No teto

iii

E nesse fosso como um urso


Toda manhã o mesmo esquema
Giro giro o mesmo percurso
O céu azul como uma algema
Nesse fosso vou como um urso
Toda manhã o mesmo esquema

Na cela do lado da minha


Ligaram a água corrente
Com as chaves que ele tilinta
30 O carcereiro se avizinha
Na cela do lado da minha
Ligaram a água corrente

iv

Que tédio sinto entre esses muros


Pintados de cores tão mortas
A mosca patrulha no escuro
O papel minhas linhas tortas
O que será de mim ó Deus que sabe a dor
Você que deu a dor a mim
Tem pena dos meus olhos e de meu palor
40 Ruídos que as correntes fazem
Os pobres corações batendo na prisão
O Amor que me acompanha
Tem dó sobretudo de minha débil razão
E o desespero que dela ganha

E como se arrastam as horas


Como num enterro bem lento

Vai chorar a hora em que chora


Que vai passar rapidamente
Como passam todas as horas

vi

50 Escuto os sons desta cidade


Prisioneiro sem horizonte
No céu há só hostilidade
E esses muros nus defronte

O dia se vai uma vela


Que bruxuleia na prisão
E somos só nós nesta cela
Belo clarão Cara razão

Setembro 1911
automne malade

1 Automne malade et adoré


Tu mourras quand l’ouragan soufflera dans les roseraies
Quand il aura neigé
Dans les vergers

Pauvre automne
Meurs en blancheur et en richesse
De neige et de fruits mûrs
Au fond du ciel
Des éperviers planent
10 Sur les nixes nicettes aux cheveux verts et naines
Qui n’ont jamais aimé

Aux lisières lointaines


Les cerfs ont bramé

Et que j’aime ô saison que j’aime tes rumeurs


Les fruits tombant sans qu’on les cueille
Le vent et la forêt qui pleurent
Toutes leurs larmes en automne feuille à feuille
Les feuilles
Qu’on foule
20 Un train
Qui roule
La vie
S’écoule
outono doente

1 Outono doente e adorado


Morrerás quando o furacão arrasar tuas roseiras
Quando nevar
Sobre o pomar

Pobre outono
Morres na brancura e na fartura
Da neve e das frutas maduras
No fundo do céu
Falcões flutuam
10 Sobre ninfeias néscias e nanicas de cabelos verdes
Que jamais amaram

Nas fronteiras distantes


Os cervos bramaram

E como amo ó estação amo teus rumores


As frutas no chão sem quem as recolha
O vento e a floresta que choram
Tuas lágrimas todas no outono folha a folha
As folhas
Pisadas
20 Um trem
Que passa
A vida
Ida
hôtels

1 La chambre est veuve


Chacun pour soi
Présence neuve
On paye au mois

Le patron doute
Payera-t-on
Je tourne en route
Comme un toton

Le bruit des fiacres


10 Mon voisin laid
Qui fume un âcre
Tabac anglais

Ô La Vallière
Qui boite et rit
De mes prières
Table de nuit
Et tous ensemble
Dans cet hôtel
Savons la langue
20 Comme à Babel

Fermons nos portes


À double tour
Chacun apporte
Son seul amour
hotéis

1 O quarto é um ovo
Cada um por si
O freguês é novo
Paga ao mês aqui

Gerente duvida
Se eles pagarão
Rodo pela vida
Tal qual um pião

O som dos fiacres


10 Vizinho burguês
Que fuma seu acre
Tabaco de inglês

Ah La Vallière
Só ri a manquinha
Só quer que eu me ferre
É esta mesinha
Todos no saguão

Sabem neste hotel


A língua que falam
20 Mesma de Babel

Fechemos as portas
Chequem por favor
Cada um transporte
Seu único amor
cors de chasse

1 Notre histoire est noble et tragique


Comme le masque d’un tyran
Nul drame hasardeux ou magique
Aucun détail indifférent
Ne rend notre amour pathétique

Et Thomas de Quincey buvant


L’opium poison doux et chaste
À sa pauvre Anne allait rêvant
Passons passons puisque tout passe
10 Je me retournerai souvent

Les souvenirs sont cors de chasse


Dont meurt le bruit parmi le vent
trompas de caça

1 A nossa história é nobre e trágica


Como a máscara de um tirano
Nem cena perigosa ou mágica
Nenhum detalhe leviano
Torna nossa paixão patética

E Thomas de Quincey tomando


Ópio veneno doce e casto
À pobre Ana alucinando
Passe que tudo um dia passa
10 E voltarei de vez em quando

Lembranças são trompas de caça


Seus sons no vento vão minguando
Caligramas — poemas da paz e da
guerra

Calligrammes — poèmes de la paix et


de la guerre
liens *

1 Cordes faites de cris

Sons de cloches à travers l’Europe


Siècles pendus

Rails qui ligotez les nations


Nous ne sommes que deux ou trois hommes
Libres de tous liens
Donnons-nous la main

Violente pluie qui peigne les fumées


Cordes
10 Cordes tissées
Câbles sous-marins
Tours de Babel changées en ponts
Araignées-Pontifes
Tous les amoureux qu’un seul lien a liés

D’autres liens plus ténus


Blancs rayons de lumière
Cordes et Concorde
J’écris seulement pour vous exalter
O sens ô sens chéris
20 Ennemis du souvenir
Ennemis du désir

Ennemis du regret
Ennemis des larmes
Ennemis de tout ce que j’aime encore

* Na primeira edição de Calligrammes (Mercure de France, 1918 ), este poema


aparece em itálico. Optamos por manter o padrão e destacá-lo dos demais. Ver
Comentários. (n. t.)
laços

1 Cordas feitas de gritos

Sons de sinos pela Europa


Séculos enforcados

Trilhos ligando nações


Somos só dois ou três homens
Livres de todos os laços
Vamos de mãos dadas

A chuva violenta penteia as fumaças


Cordas
10 Cordas tecidas
Cabos submarinos
Torres de Babel tornam-se pontes
Aranhas-Pontífices
Todos os amantes que um só laço ligou

Outros laços mais tênues


Brancos raios de luz
Cordas e Concórdia

Escrevo só para exaltá-los


Oh meus sentidos queridos
20 Inimigos da memória
Inimigos do desejo

Inimigos da mágoa
Inimigos das lágrimas
Inimigos de tudo que ainda amo
les fenêtres

1 Du rouge au vert tout le jaune se meurt


Quand chantent les aras dans les forêts natales
Abatis de pihis
Il y a un poème à faire sur l’oiseau qui n’a qu’une aile
Nous l’enverrons en message téléphonique
Traumatisme géant
Il fait couler les yeux
Voilà une jolie jeune fille parmi les jeunes Turinaises
Le pauvre jeune homme se mouchait dans sa cravate blanche
10 Tu soulèveras le rideau
Et maintenant voilà que s’ouvre la fenêtre
Araignées quand les mains tissaient la lumière
Beauté pâleur insondables violets
Nous tenterons en vain de prendre du repos
On commencera à minuit
Quand on a le temps on a la liberté
Bignorneaux Lotte multiples Soleils et l’Oursin du couchant
Une vieille paire de chaussures jaunes devant la fenêtre
Tours
20 Les Tours ce sont les rues
Puits
Puits ce sont les places
Puits
Arbres creux qui abritent les Câpresses vagabondes
Les Chabins chantent des airs à mourir
Aux Chabines marronnes
Et l’oie oua-oua trompette au nord
Où les chasseurs de ratons
Raclent les pelleteries
30 Étincelant diamant
Vancouver
Où le train blanc de neige et de feux nocturnes fuit l’hiver
O Paris
Du rouge au vert tout le jaune se meurt
Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York et les Antilles
La fenêtre s’ouvre comme une orange
Le beau fruit de la lumière
as janelas

1 Do vermelho ao verde morre todo o amarelo


Quando as araras cantam nas florestas nativas
Miúdos de pihis
É preciso fazer um poema sobre o pássaro de uma asa só
Enviaremos por mensagem telefônica
Traumatismo gigante
Faz escorrerem os olhos
Olha que moça mais linda que passa entre as jovens de Turim
O pobre rapaz assoa o nariz na sua gravata branca
10 Você vai erguer a cortina
E eis que a janela agora se abre
Aranhas quando mãos teciam a luz
Beleza palidez insondáveis violetas
Tentaremos em vão um cochilo
Vamos começar à meia-noite
Onde se encontra o tempo se encontra a liberdade
Búzios Lampreias múltiplos Sóis e o Ouriço do crepúsculo
Um velho par de botas amarelas diante da janela
Torres
20 Torres são ruas
Poços
Pois poços são praças
Poços
Troncos ocos abrigando Cabritas vagabundas
Os Cabras cantam cantigas de morrer
Pras suas Cabrochas fujonas
E o ganso trompeteia seu ruá-ruá rumo ao norte
Onde caçadores de guaxinim
Raspam as peles da caça
30 Cintilante diamante
Vancouver
Onde o trem branco de neve e seus fogos noturnos fogem do
inverno
Ó Paris
Do vermelho ao verde morre todo o amarelo
Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York e as Antilhas
A janela se abre feito uma laranja
O belo fruto da luz
paysage
paisagem
les collines

1 Au-dessus de Paris un jour


Combattaient deux grands avions
L’un était rouge et l’autre noir
Tandis qu’au zénith flamboyait
L’éternel avion solaire

L’un était toute ma jeunesse


Et l’autre c’était l’avenir
Ils se combattaient avec rage
Ainsi fit contre Lucifer
10 L’Archange aux ailes radieuses

Ainsi le calcul au problème


Ainsi la nuit contre le jour
Ainsi attaque ce que j’aime
Mon amour ainsi l’ouragan
Déracine l’arbre qui crie

Mais vois quelle douceur partout


Paris comme une jeune fille
S’éveille langoureusement
Secoue sa longue chevelure
20 Et chante sa belle chanson
Où donc est tombée ma jeunesse
Tu vois que flambe l’avenir
Sache que je parle aujourd’hui
Pour annoncer au monde entier
Qu’enfin est né l’art de prédire

Certains hommes sont des collines


Qui s’élèvent d’entre les hommes
Et voient au loin tout l’avenir
Mieux que s’il était le présent
30 Plus net que s’il était passé

Ornement des temps et des routes


Passe et dure sans t’arrêter
Laissons sibiler les serpents
En vain contre le vent du sud
Les Psylles et l’onde ont péri

Ordre des temps si les machines


Se prenaient enfin à penser
Sur les plages de pierreries
Des vagues d’or se briseraient
40 L’écume serait mère encore
Moins haut que l’homme vont les aigles
C’est lui qui fait la joie des mers
Comme il dissipe dans les airs
L’ombre et les spleens vertigineux
Par où l’esprit rejoint le songe

Voici le temps de la magie


Il s’en revient attendez-vous
À des milliards de prodiges
Qui n’ont fait naître aucune fable
50 Nul les ayant imaginés

Profondeurs de la conscience
On vous explorera demain
Et qui sait quels êtres vivants
Seront tirés de ces abîmes
Avec des univers entiers

Voici s’élever des prophètes


Comme au loin des collines bleues
Il sauront des choses précises
Comme croient savoir les savants
60 Et nous transporteront partout

La grande force est le désir


Et viens que je te baise au front
O légère comme une flamme
Dont tu as toute la souffrance
Toute l’ardeur et tout l’éclat

L’âge en vient on étudiera


Tout ce que c’est que de souffrir
Ce ne sera pas du courage
Ni même du renoncement
70 Ni tout ce que nous pouvons faire

On cherchera dans l’homme même


Beaucoup plus qu’on n’y a cherché
On scrutera sa volonté
Et quelle force naîtra d’elle
Sans machine et sans instrument

Les secourables mânes errent


Se compénétrant parmi nous
Depuis les temps qui nous rejoignent
Rien n’y finit rien n’y commence
80 Regarde la bague à ton doigt

Temps des déserts des carrefours


Temps des places et des collines
Je viens ici faire des tours
Où joue son rôle un talisman
Mort et plus subtil que la vie

Je me suis enfin détaché


De toutes choses naturelles
Je peux mourir mais non pécher
Et ce qu’on n’a jamais touché
90 Je l’ai touché je l’ai palpé

Et j’ai scruté tout ce que nul


Ne peut en rien imaginer
Et j’ai soupesé maintes fois
Même la vie impondérable
Je peux mourir en souriant

Bien souvent j’ai plané si haut


Si haut qu’adieu toutes les choses
Les étrangetés les fantômes
Et je ne veux plus admirer
100 Ce garçon qui mime l’effroi

Jeunesse adieu jasmin du temps


J’ai respiré ton frais parfum
A Rome sur des chars fleuris
Chargés de masques de guirlandes
Et des grelots du carnaval

Adieu jeunesse blanc Noël


Quand la vie n’était qu’une étoile
Dont je contemplais le reflet
Dans la mer Méditerranée
110 Plus nacrée que les météores
Duvetée comme un nid d’archanges
Ou la guirlande des nuages
Et plus lustrée que les halos
Émanations et splendeurs
Unique douceur harmonies

Je m’arrête pour regarder


Sur la pelouse incandescente
Un serpent erre c’est moi-même
Qui suis la flûte dont je joue
120 Et le fouet qui châtie les autres

Il vient un temps pour la souffrance


Il vient un temps pour la bonté
Jeunesse adieu voici le temps
Où l’on connaîtra l’avenir
Sans mourir de sa connaissance

C’est le temps de la grâce ardente


La volonté seule agira
Sept ans d’incroyables épreuves
L’homme se divinisera
130 Plus pur plus vif et plus savant

Il découvrira d’autres mondes


L’esprit languit comme les fleurs
Dont naissent les fruits savoureux
Que nous regarderons mûrir
Sur la colline ensoleillée

Je dis ce qu’est au vrai la vie


Seul je pouvais chanter ainsi
Mes chants tombent comme des graines
Taisez-vous tous vous qui chantez
140 Ne mêlez pas l’ivraie au blé

Un vaisseau s’en vint dans le port


Un grand navire pavoisé
Mais nous n’y trouvâmes personne
Qu’une femme belle et vermeille
Elle y gisait assassinée

Une autre fois je mendiais


L’on ne me donna qu’une flamme
Dont je fus brûlé jusqu’aux lèvres
Et je ne pus dire merci
150 Torche que rien ne peut éteindre

Où donc es-tu ô mon ami


Qui rentrais si bien en toi-même
Qu’un abîme seul est resté
Où je me suis jeté moi-même
Jusqu’aux profondeurs incolores

Et j’entends revenir mes pas


Le long des sentiers que personne
N’a parcourus j’entends mes pas
À toute heure ils passent là-bas
160 Lents ou pressés ils vont ou viennent

Hiver toi qui te fais la barbe


Il neige et je suis malheureux
J’ai traversé le ciel splendide
Où la vie est une musique
Le sol est trop blanc pour mes yeux

Habituez-vous comme moi


À ces prodiges que j’annonce
À la bonté qui va régner
À la souffrance que j’endure
170 Et vous connaîtrez l’avenir

C’est de souffrance et de bonté


Que sera faite la beauté
Plus parfaite que n’était celle
Qui venait des proportions
Il neige et je brûle et je tremble

Maintenant je suis à ma table


J’écris ce que j’ai ressenti
Et ce que j’ai chanté là-haut
Un arbre élancé que balance
180 Le vent dont les cheveux s’envolent
Un chapeau haut de forme est sur
Une table chargée de fruits
Les gants sont morts près d’une pomme
Une dame se tord le cou
Auprès d’un monsieur qui s’avale

Le bal tournoie au fond du temps


J’ai tué le beau chef d’orchestre
Et je pèle pour mes amis
L’orange dont la saveur est
190 Un merveilleux feu d’artifice

Tous sont morts le maître d’hôtel


Leur verse un champagne irréel
Qui mousse comme un escargot
Ou comme un cerveau de poète
Tandis que chantait une rose

L’esclave tient une épée nue


Semblable aux sources et aux fleuves
Et chaque fois qu’elle s’abaisse
Un univers est éventré
200 Dont il sort des mondes nouveaux

Le chauffeur se tient au volant


Et chaque fois que sur la route
Il corne en passant le tournant
Il paraît à perte de vue
Un univers encore vierge

Et le tiers nombre c’est la dame


Elle monte dans l’ascenseur
Elle monte monte toujours
Et la lumière se déploie
210 Et ces clartés la transfigurent

Mais ce sont de petits secrets


Il en est d’autres plus profonds
Qui se dévoileront bientôt
Et feront de vous cent morceaux
À la pensée toujours unique

Mais pleure pleure et repleurons


Et soit que la lune soit pleine
Ou soit qu’elle n’ait qu’un croissant
Ah! pleure pleure et repleurons
220 Nous avons tant ri au soleil

Des bras d’or supportent la vie


Pénétrez le secret doré
Tout n’est qu’une flamme rapide
Que fleurit la rose adorable
Et d’où monte un parfum exquis
as colinas

1 Sobre os céus de Paris um dia


Combatiam dois aviões
Um bem vermelho o outro negro
E no zênite cintilava
O sempiterno avião solar

Um era minha juventude


O outro era nosso futuro
E lutavam com raiva imensa
Anjo das asas radiantes
10 Se digladiando com Lúcifer

Cálculo que odeia o problema


Tal como a noite odeia o dia
Meu amor ataca o que eu amo
O meu amor tão furacão
Arranca a árvores que grita

Mas olha que delícia em tudo


Paris parece uma mocinha
Que quando acorda está manhosa
Sacudindo os longos cabelos
20 E começando uma canção
Onde caiu a juventude
Vejo o futuro todo em chamas
Ouça o que falo deste dia
Anunciando ao mundo todo
Nasceu a arte da profecia

Há uns homens que são colinas


Eles se elevam sobre os outros
Eles veem de longe o futuro
Muito melhor do que o presente
30 Mais nítido do que o passado

Ornatos de estações estradas


Passam e duram sem parar
Deixe a serpente sibilar
Em vão contra o vento do sul
Onda e Psilos pereceram

Ordem do tempo se essas máquinas


Passarem enfim a pensar
Sobre praias de pedras raras
Quebrando-se em ondas de ouro
40 Seria a espuma mãe ainda
Homens voando sobre as águias
Homens alegria dos mares
Como eles dissipam nos ares
Sombra e tédios vertiginosos
Onde espírito cruza o sonho

Agora é tempo de magia


E olha só eles voltando
E esses milhares de prodígios
São pais de fábula nenhuma
50 E que ninguém imaginou

Amanhã vai investigar


Profundezas da consciência
E quem sabe que seres vivos
Resgataremos dos abismos
Junto aos universos inteiros

Eis se elevarem os profetas


São colinas azuis ao longe
E vão saber coisas precisas
Como acreditam os cientistas
60 Nos levarão por toda parte

Desejo é a força soberana


Vem pra que eu beije a sua testa
Oh ágil como labareda
Me queima essa dor que resta
Todo esse brilho e esse ardor

Virá o tempo em que seremos


Especialistas em sofrer
Não tem nada a ver com coragem
E nem mesmo será renúncia
70 Nada que se possa fazer

Ir ao fundo do humano mesmo


Mais longe que buscamos antes
Investiguemos seu desejo
E a força dele nascerá
Sem máquinas nem instrumentos

Os manes caridosos vagam


Compenetrando-se entre nós
Desde o tempo que nos uniu
Nada termina nem começa
80 Repara no seu dedo o anel

Tempo de praças e colinas


Encruzilhadas e desertos
Vim exibir meus novos truques
Com o auxílio de um talismã
Morto e bem mais sutil que a vida

Eu estou enfim separado


De toda coisa natural
Posso morrer mas não pecar
E o que ninguém jamais tocou
90 Eu toquei fundo e apalpei

Eu explorei o que ninguém


Pôde sequer imaginar
E muitas vezes ponderei
A vida é mesmo imponderável
Posso morrer enfim sorrindo

Muitas vezes pairei tão alto


De cima dei adeus às coisas
Os fenômenos e os fantasmas
E já chega de admirar
100 O menino imitando o medo

Adeus jasmim e juventude


Respiro esse seu fresco aroma
E em Roma nos carros floridos
Cheios de máscaras guirlandas
E de apitos de carnaval

Adeus juventude e Natal


A vida era só uma estrela
Onde eu contemplava um reflexo
Por sobre o mar Mediterrâneo
110 Nacarado qual meteoro
E fofo qual ninho de arcanjo
Ou feito guirlanda de nuvens
Mais ilustrado do que halos
Emanações ou esplendores
Doces únicas harmonias

Então paro e presto atenção


Sobre o gramado incandescente
Uma serpente passa eu mesmo
Que segue a flauta que eu assopro
120 Chicote a castigar os outros

Tempo virá pro sofrimento


Tempo virá para a bondade
Juventude adeus já é hora
De saber mais sobre o futuro
Sem ter de morrer por saber

Será tempo da graça ardente


Onde só a vontade agirá
Sete anos de provas incríveis
O homem se fará divino
130 Mais puro mais vivo mais sábio

E vai descobrir outros mundos


O espírito murcha igual flores
Que geram frutos saborosos
Amadurecendo sem pressa
Sobre a colina ensolarada

Vou lhe dizer o que é a vida


Só eu que sei cantá-la assim
Minhas canções caem sementes
Vocês que cantam juntos calem-se
140 Não misturem joio e trigo

Eis que um navio entra no porto


Navio imenso embandeirado
Ninguém a bordo a não ser
Uma mulher bela e vermelha
Que ali jazia assassinada

Tempos atrás eu mendigava


Pra que me dessem uma chama
Que me queimou até os lábios
E nem muito obrigado eu disse
150 Uma tocha que nada apaga

Cadê você agora amigo


Fechado em si longe daqui
Que só um abismo sobrou
Lá onde eu me lanço com tudo
Nos precipícios incolores

Escuto meus passos voltando


Por uma trilha onde ninguém
Passou e ouço os meus passos
A todo momento eles passam
160 Rápidos lentos vão e vêm

Inverno você faz a barba


Neva e me sinto deprimido
Viajei pelo céu esplêndido
Onde a vida vira uma música
O solo branco me deslumbra

Vá se acostume como eu
Aos inventos que ora anuncio
Bondade vai nos governar
E o sofrimento que eu aturo
170 É pista do nosso futuro
A beleza será composta
De sofrimento e de bondade
Será beleza mais perfeita
Do que edifica a simetria
Neva me queima e me arrepia

Agora aqui sentado à mesa


Escrevo só o que eu senti
E o que eu cantava lá no alto
Árvore esbelta que balança
180 Cabelo entre redemoinhos
A cartola preta descansa
Uma mesa cheia de frutas
Luvas mortas junto à maçã
Uma moça que se estrangula
Do lado um homem que se engole

O baile espirala no eterno


Lá onde matei o maestro
E agora descasco aos amigos
Uma laranja cujo gosto
190 É um show de fogos de artifício

Pros mortos o maître do hotel


Serve uma champanhe irreal
Que espuma como um caramujo
Como cabeça de poeta
Enquanto uma rosa cantava

O escravo brande a espada nua


Com fontes rios se parece
E toda vez que ele se abaixa
Um universo é estripado
200 E dali nascem novos mundos

O chofer gruda no volante

E toda vez que está na estrada


Quando buzina numa curva
Aparece a perder de vista
Um universo ainda virgem
E o terceiro é uma senhora
Subindo pelo elevador
Ela sobe sobe e não para
E a luz não cessa de espalhar-se
210 E esses clarões a transfiguram

Mas isso só são segredinhos


Tem outros que são mais profundos
Em breve a serem revelados
Farão de vocês cem pedaços
Ainda que um só pensamento

Mas chore chore uma vez mais


E esteja a lua toda cheia
Ou seja só uma crescente
Ah! Chore e chore uma outra vez
220 Rimos um tempão sob o sol

Braços áureos erguendo a vida


Penetrem dourado segredo
Pois tudo é um lume fugaz
Que flore uma rosa adorável
E exala um exótico perfume
arbre
A Frédéric Boutet

1 Tu chantes avec les autres tandis que les phonographes galopent


Où sont les aveugles où s’en sont-ils allés
La seule feuille que j’aie cueillie s’est changée en plusieurs mirages
Ne m’abandonnez pas parmi cette foule de femmes au marché
Ispahan s’est fait un ciel de carreaux émaillés de bleu
Et je remonte avec vous une route aux environs de Lyon

Je n’ai pas oublié le son de la clochette d’un marchand de coco


d’autrefois
J’entends déjà le son aigre de cette voix à venir
Du camarade qui se promènera avec toi en Europe
10 Tout en restant en Amérique

Un enfant
Un veau dépouillé pendu à l’étal
Un enfant
Et cette banlieue de sable autour d’une pauvre ville au fond de
l’est
Un douanier se tenait là comme un ange
A la porte d’un misérable paradis
Et ce voyageur épileptique écumait dans la salle d’attente des
premières
Engoulevent Blaireau
Et la Taupe-Ariane
20 Nous avions loué deux coupés dans le transsibérien
Tour à tour nous dormions le voyageur en bijouterie et moi
Mais celui qui veillait ne cachait point un revolver armé

Tu t’es promené à Leipzig avec une femme mince déguisée en


homme
Intelligence car voilà ce que c’est qu’une femme intelligente
Et il ne faudrait pas oublier les légendes
Dame-Abonde dans un tramway la nuit au fond d’un quartier
désert
Je voyais une chasse tandis que je montais
Et l’ascenseur s’arrêtait à chaque étage

Entre les pierres


30 Entre les vêtements multicolores de la vitrine
Entre les charbons ardents du marchand de marrons
Entre deux vaisseaux norvégiens amarrés à Rouen
Il y a ton image

Elle pousse entre les bouleaux de la Finlande

Ce beau nègre en acier


La plus grande tristesse
C’est quand tu reçus une carte postale de La Corogne

Le vent vient du couchant


Le métal des caroubiers
40 Tout est plus triste qu’autrefois
Tous les dieux terrestres vieillissent
L’univers se plaint par ta voix
Et des êtres nouveaux surgissent
Trois par trois
árvore
Para Frédéric Boutet

1 Você canta com os outros enquanto os fonógrafos galopam


Onde estão os cegos onde se meteram
A única folha que arranquei multiplicou-se em miragens
Não me deixe só nessa multidão de mulheres indo ao mercado
Isfahan agora é um céu de azulejo esmaltado de azul
E sigo com você pela estrada perto de Lyon

Nunca me esqueci do som dos sininhos do vendedor de refresco


Já ouço o som estridente daquela voz do futuro
Do camarada que vai passear com você pela Europa
10 Mas sem sair da América

Uma criança
Um vitelo esfolado suspenso no gancho do açougue
Uma criança
E esse subúrbio de areia ao redor de uma cidade pobre no leste
profundo
Um fiscal de alfândega parado como um anjo
À porta de um paraíso miserável
E o viajante epilético espumava na sala de espera da primeira
classe
Curiango Texugo
E a Toupeira-Ariadne
20 Alugamos duas cabines no Transiberiano
Dormimos em turnos o vendedor de joias e eu
Mas o que vigiava nem disfarçava o revólver carregado

Você passeando em Leipzig com uma mulher magra disfarçada de


homem
Inteligência pois isso é que é uma mulher inteligente
E não devemos esquecer as lendas
Deusa Abundia no bonde noturno nas profundezas do bairro
deserto
Vi uma caçada enquanto subia
E o elevador parou em cada andar

Entre as pedras
30 Entre as roupas multicoloridas nas vitrines
Entre os carvões ardentes dos vendedores de castanhas
Entre dois barcos noruegueses ancorados em Rouen
Flutua a tua imagem

Ela brota entre bétulas da Finlândia

Beleza negra em aço

Tristeza profunda
Receber aquele postal de La Corunha

O vento vem do poente


O metal das alfarrobeiras
40 Tudo mais triste que antes
Todos os deuses terrestres envelhecem
O universo se queixa através da tua voz
E surgem novos seres
De três em três
lundi rue christine

1 La mère de la concierge et la concierge laisseront tout passer


Si tu es un homme tu m’accompagneras ce soir
Il suffirait qu’un type maintînt la porte cochère
Pendant que l’autre monterait

Trois becs de gaz allumés


La patronne est poitrinaire
Quand tu auras fini nous jouerons une partie de jacquet
Un chef d’orchestre qui a mal à la gorge
Quand tu viendras à Tunis je te ferai fumer du kief

10 Ça a l’air de rimer

Des piles de soucoupes des fleurs un calendrier


Pim pam pim
Je dois fiche près de 300 francs à ma probloque
Je préférerais me couper le parfaitement que de les lui donner

Je partirai à 20 h. 27
Six glaces s’y dévisagent toujours
Je crois que nous allons nous embrouiller encore davantage
Cher monsieur
Vous êtes un mec à la mie de pain
20 Cette dame a le nez comme un ver solitaire
Louise a oublié sa fourrure
Moi je n’ai pas de fourrure et je n’ai pas froid
Le Danois fume sa cigaretteden consultant l’horaire
Le chat noir traverse la brasserie

Ces crêpes étaient exquises


La fontaine coule
Robe noire comme ses ongles
C’est complètement impossible
Voici monsieur
30 La bague en malachite
Le sol est semé de sciure
Alors c’escie vrai
La serveuse rousse a été enlevée par un libraire

Un journaliste que je connais d’ailleurs très vaguement

Écoute Jacques c’est très sérieux ce que je vais te dire

Compagnie de navigation mixte

Il me dit monsieur voulez-vous voir ce que je peux faire d’eaux-


fortes et de tableaux
Je n’ai qu’une petite bonne

Après déjeuner café du Luxembourg


40 Une fois là il me présente un gros bonhomme
Qui me dit
Écoutez c’est charmant
A Smyrne à Naples en Tunisie
Mais nom de Dieu où est-ce
La dernière fois que j’ai été en Chine
C’est il y a huit ou neuf ans
L’Honneur tient souvent à l’heure que marque la pendule
La quinte major
segunda-feira rua cristina

1 A mãe da zeladora e a zeladora vão deixar passar


Vem comigo hoje à noite se for macho
Precisamos só de um cara pra vigiar a entrada
Enquanto o outro sobe a escada

Três lampiões a gás de fogo


A patroa tá um trapo
Quando você terminar vamos jogar gamão
Um maestro com dor de garganta
Quando você for pra Tunísia vou te fazer fumar haxixe

10 Parece rima vixe

Pilhas de pires umas flores um calendário


Pim pam pim
Devo quase 300 paus pra proprietária
Prefiro cortar o meu perfeitamente do que dar pra ela

Viajo às 8 e 27
Seis espelhos para sempre se encarando
Tô achando que vamos entrar é numa fria maior ainda
Caro senhor
Cê é um ladrão de galinha
20 O nariz daquela dona parece uma solitária
A Luísa esqueceu o casaco
Tô sem casaco mas também não tô com frio
O dinamarquês fuma seu cigarro enquanto checa os horários
O gato preto cruza o restaurante

As panquecas estavam divinas


A fonte flui
Vestido preto como suas unhas
Isso é completamente impossível
Prontinho senhor
30 O anel de malaquita
O chão está cheio de serragem
Então é verdade
A garçonete ruiva se mandou com o livreiro

Um jornalista que conheço assim de vista

Escuta aqui Jacques é muito sério o que vou te contar

Companhia de navegação mista

Ele me diz o senhor quer ver só como eu gravo e como eu pinto


Tenho só uma empregadinha
Depois do almoço Café Luxemburgo
40 Chegando lá ele me apresenta um grandalhão
Que me diz assim
Escuta aqui isso seria um charme
Em Esmirna em Nápoles na Tunísia
Mas pelamor onde é que é isso
Da última vez que estive na China
Faz o que uns oito ou nove anos
A Honra sempre é uma questão de hora
Bati
lettre-océan
carta-oceano
Te souviens-tu du tremblement de terre entre 1885 et 1890 on
coucha plus d’un mois sous la tente
Lembra do terremoto entre 1885 e 1890 foi mais de um mês
dormindo em barraca
sur les prophéties

1 J’ai connu quelques prophétesses


Madame Salmajour avait appris en Océanie à tirer les cartes
C’est là-bas qu’elle avait eu encore l’occasion de participer
À une scène savoureuse d’anthropophagie
Elle n’en parlait pas à tout le monde
En ce qui concerne l’avenir elle ne se trompait jamais

Une cartomancienne céretane Marguerite je ne sais plus quoi


Est également habile
Mais Madame Deroy est la mieux inspirée
10 La plus précise
Tout ce qu’elle m’a dit du passé était vrai et tout ce qu’elle
M’a annoncé s’est vérifié dans le temps qu’elle indiquait
J’ai connu un sciomancien mais je n’ai pas voulu qu’il interrogeât
mon ombre
Je connais un sourcier c’est le peintre norvégien Diriks
Miroir brisé sel renversé ou pain qui tombe
Puissent ces dieux sans figure m’épargner toujours
Au demeurant je ne crois pas mais je regarde et j’écoute et notez
Que je lis assez bien dans la main
Car je ne crois pas mais je regArde et quand c’est possible j’écoute

20 Tout le monde est prophète mon cher André Billy


Mail il y a si longtemps qu’on fait croire aux gens
Qu’ils n’ont aucun avenir qu’ils sont ignorants à jamais
Et idiots de naissance
Qu’on en a pris son parti et que nul n’a même l’idée
De se demander s’il connaît l’avenir ou non
Il n’y a pas d’esprit religieux dans tout cela
Ni dans les superstitions ni dans les prophéties
Ni dans tout ce que l’on nomme occultisme
Il y a avant tout une façon d’observer la nature
30 Et d’interpréter la nature
Qui est très légitime
sobre profecias

1 Conheço umas profetisas por aí


Madame Salmajour aprendeu na Oceania a arte da taromancia
Foi lá também que teve a chance de participar
De uma deliciosa cena de antropofagia
Claro que ela não espalhou pra todo mundo
Mas sobre o futuro nunca errava uma

Uma cartomante de Céret Margarida não sei que lá


Também é talentosa
Mas já Madame Delroy é a mais inspirada
10 A mais precisa
Tudo que disse sobre meu passado era verdade e o que ela
Predisse aconteceu no tempo que indicou
Conheço um ciomante mas não deixei que ele entrevistasse minha
sombra
Conheço um hidróscopo o pintor norueguês Diriks
Espelho quebrado sal derramado migalhas de pão
Que esses deuses sem face sempre me poupem
E ao mesmo tempo não boto fé mas olho e escuto e repare
Que leio mãos muito bem
Pois não boto fé mas mesmo assim eu olho e quando é possível
escuto

20 Todo mundo é profeta caro amigo André Billy


Mas por tanto tempo as pessoas foram levadas a crer
Que não têm futuro que serão ignorantes para sempre
E idiotas de nascença
Que eles acabam se resignando e a ninguém ocorre
De se perguntar se ele conhece ou não o futuro
Não tem nada de religioso nisso
Nem nas superstições nem nas profecias
Nem no que chamamos de ocultismo
O que existe acima de tudo é um jeito de observar a natureza
30 De interpretar a natureza
Que é superlegítimo
le musicien de saint-merry

1 J’ai enfin le droit de saluer des êtres que je ne connais pas


Ils passent devant moi et s’accumulent au loin
Tandis que tout ce que j’en vois m’est inconnu
Et leur espoir n’est pas moins fort que le mien

Je ne chante pas ce monde ni les autres astres


Je chante toutes les possibilités de moi-même hors de ce monde et
des astres
Je chante la joie d’errer et le plaisir d’en mourir

Le 21 du mois de mai 1913


Passeur des morts et les mordonnantes mériennes
10 Des millions de mouches éventaient une splendeur
Quand un homme sans yeux sans nez et sans oreilles
Quittant le Sébasto entra dans la rue Aubry-le-Boucher
Jeune l’homme était brun et de couleur de fraise sur les joues
Homme Ah! Ariane
Il jouait de la flûte et la musique dirigeait ses pas
Il s’arrêta au coin de la rue Saint-Martin
Jouant l’air que je chante et que j’ai inventé
Les femmes qui passaient s’arrêtaient près de lui
Il en venait de toutes parts
20 Lorsque tout à coup les cloches de Saint-Merry se mirent à sonner
Le musicien cessa de jouer et but à la fontaine
Qui se trouve au coin de la rue Simon-Le-Franc
Puis Saint-Merry se tut
L’inconnu reprit son air de flûte
Et revenant sur ses pas marcha jusqu’à la rue de la Verrerie
Où il entra suivi par la troupe des femmes
Qui sortaient des maisons
Qui venaient par les rues traversières les yeux fous
Les mains tendues vers le mélodieux ravisseur
30 Il s’en allait indifférent jouant son air
Il s’en allait terriblement

Puis ailleurs
A quelle heure un train partira-t-il pour Paris

A ce moment
Les pigeons des Moluques fientaient des noix muscades
En même temps
Mission catholique de Bôma qu’as-tu fait du sculpteur

Ailleurs
Elle traverse un pont qui relie Bonn à Beuel et disparaît à travers
Pützchen
40 Au même instant
Une jeune fille amoureuse du maire

Dans un autre quartier


Rivalise donc poète avec les étiquettes des parfumeurs

En somme ô rieurs vous n’avez pas tiré grand chose des hommes

Et à peine avez-vous extrait un peu de graisse de leur misère


Mais nous qui mourons de vivre loin l’un de l’autre
Tendons nos bras et sur ces rails roule un long train de
marchandises

Tu pleurais assise près de moi au fond d’un fiacre

Et maintenant
50 Tu me ressembles tu me ressembles malheureusement

Nous nous ressemblons comme dans l’architecture du siècle


dernier
Ces hautes cheminées pareilles à des tours

Nous allons plus haut maintenant et ne touchons plus le sol

Et tandis que le monde vivait et variait


Le cortège des femmes long comme un jour sans pain
Suivait dans la rue de la Verrerie l’heureux musicien
Cortèges ô cortèges
C’est quand jadis le roi s’en allait à Vincennes
Quand les ambassadeurs arrivaient à Paris
60 Quando le maigre Suger se hâtait vers la Seine
Quand l’émeute mourait autour de Saint-Merry

Cortèges ô cortèges
Les femmes débordaient tant leur nombre était grand
Dans toutes rues avoisinantes
Et se hâtaient raides comme balle
Afin de suivre le musicien
Ah! Ariane et toi Pâquette et toi Amine
Et toi Mia et toi Simone et toi Mavise
Et toi Colette et toi la belle Geneviève
70 Elles ont passé tremblantes et vaines
Et leurs pas légers et prestes se mouvaient selon la cadence
De la musique pastorale qui guidait
Leurs oreilles avides

L’inconnu s’arrêta un moment devant une maison à vendre


Maison abandonée
Aux vitres brisées
C’est un logis du seizième siècle
La cour sert de remise à des voitures de livraisons
C’st là qu’entra le musicien
80 Sa musique qui s’éloignait devint langoureuse
Les femmes le suivirent dans la maison abandonée
Et toutes y entrèrent confondues en bande
Toutes toutes y entrèrent sans regarder derrière elles
Sans regretter ce qu’elles ont laissé
Ce qu’elles ont abandonné
Sans regretter le jour la vie et la mémoire
Il ne resta bientôt plus personne dans la rue de la Verrerie
Sinon moi-même et un prêtre de Saint-Merry
Nous entrâmes dans la vieille maison

90 Mais nous n’y trouvâmes personne

Voici le soir
À Saint-Merry c’est l’Angélus qui sonne
Cortèges ô cortèges
C’est quand jadis le roi revenait de Vincennes
Il vint une troupe de casquettiers
Il vint des marchands de bananes
Il vint des soldats de la garde républicaine
O nuit
Troupeau de regards langoureux des femmes
100 O nuit
Toi ma douleur et mon attente vaine
J’entends mourir le son d’une flûte lointain
o músico de saint-merry

1 Enfim tenho direito de saudar seres que sequer conheço


Eles passam por mim e se acumulam na distância
Enquanto tudo o que vejo neles me é desconhecido
E sua esperança não é menos forte que a minha

Não canto este mundo nem outros astros


Canto todas as possibilidades de mim mesmo além deste mundo e
dos astros
Canto o prazer de errar e o de morrer errando

21 de maio de 1913
Barqueiro dos mortos zum-zum das rameiras merryanas
10 Milhões de moscas abanavam um esplendor
Quando um homem sem olhos sem nariz sem orelhas
Virou na Sébastopol e entrou na rua Aubry-le-Boucher
Era um moço moreno tinha bochechas morango
O homem Ah! Ariadne
Tocava flauta e a música guiava seus passos
Parou na esquina da rua Saint-Martin
Tocando a música que estou cantando agora e que inventei
Mulheres passando paravam à sua volta
Vinham de todos os lados
20 Quando de repente os sinos da Saint-Merry começaram a tocar
O músico parou de soprar e bebeu água na fonte
Que fica na esquina da rua Simon-Le-Franc
Saint-Merry ficou calada
O desconhecido tocou sua flauta outra vez
Retraçando seus passos foi até a rua de La Verrerie
Onde entrou sendo seguido pela trupe de mulheres
Que jorravam das casas
Que vinham pelas transversais com olhos loucos
Mãos espalmadas em direção ao raptor melodioso
30 E ele prosseguia indiferente fazendo seu som
Prosseguia terrivelmente

Em outro lugar
A que horas parte o trem pra Paris

E naquele instante
Pombos das Molucas defecam noz-moscada
Simultaneamente
Missão católica de Boma que fim vocês deram naquele escultor

E em outro lugar
Ela cruza a ponte que liga Bonn a Beuel e desaparece em
Pützschen
40 E ao mesmo tempo
Uma moça apaixonada pelo prefeito

E em outro bairro
Poetas competem com rótulos de perfumes

Resumindo vocês sarristas não arrancaram grandes coisas dos


homens
E mal conseguiram extrair um pouco de banha de suas misérias
Mas nós que morremos por viver longe um do outro
Estendamos nossos braços e nesses trilhos role um longo comboio
carregado de produtos

Você chorou sentada a meu lado no fundo de um táxi

E agora
50 Você parece comigo parece comigo infelizmente

A gente se parece como a arquitetura do século dezenove


Aquelas chaminés altas como torres

Vamos mais alto agora e não tocamos mais o solo

E enquanto o mundo vivia e se transformava


O cortejo de mulheres comprido como o dia sem pão
Seguia o músico feliz da vida pela rua de La Verrerie

Cortejos ó cortejos
Como quando o rei ia pra Vincennes
Quando os embaixadores chegavam em Paris
60 Quando o magro Suger corria pro Sena
Quando o motim morria ao redor da Saint-Merry

Cortejos ó cortejos
Mulheres transbordavam eram tantas
Por todas as ruas da vizinhança
Rápidas como balas
Seguindo o músico
Ah! Ariadne e você Paquette e você Amine
E você Mia e você Simone e você Mavise
E você Colette e até você bela Genevieve
70 Passaram trêmulas e vãs
E seus pés leves e lépidos seguiam a cadência
Da música pastoral que conduzia
Seus ávidos ouvidos

O desconhecido parou um instante diante de uma casa à venda


Casa abandonada
Vidros quebrados
Residência do século dezesseis
Pátio usado de garagem para caminhões de entrega
O músico entrou ali
80 Sua música diminuía ficando mais langorosa
As mulheres o seguiram na casa abandonada
E todas entraram num confuso bando
Todas todas entraram sem olhar pra trás
Sem arrependimentos pelo que deixaram
Ou abandonaram
Sem saudades da luz e da vida e da memória
Logo não tinha mais ninguém na rua de La Verrerie
A não ser eu e o padre da Saint-Merry
Entramos na casa velha

90 Mas não encontramos ninguém ali

Fim de tarde agora


O Ângelus badala na Saint-Merry
Cortejos ó cortejos
Como no dia em quo i o rei voltou de Vincennes
Veio uma trupe de chapeleiros
Vieram vendedores de banana
Vieram soldados da guarda republicana
Ó noite
Rebanho de lânguidos olhares femininos
100 Ó noite
Você minha dor e minha espera fútil
Ouço o som agonizante de uma flauta distante
la cravate et la montre
a gravata e o relógio
un fantôme de nuées

1 Comme c’était la veille du quatorze juillet


Vers les quatre heures de l’après-midi
Je descendis dans la rue pour aller voir les saltimbanques

Ces gens qui font des tours en plein air


Commencent à être rares à Paris
Dans ma jeunesse on en voyait beaucoup plus qu’aujourd’hui
Ils s’en sont allés presque tous en province

Je pris le boulevard Saint-Germain


Et sur une petite place située entre Saint-Germain-des-Prés et la
statue de Danton
10 Je rencontrai les saltimbanques

La foule les entourait muette et résignée à attendre


Je me fis une place dans ce cercle afin de tout voir
Poids formidables
Villes de Belgique soulevées à bras tendu par un ouvrier russe de
Longwy
Haltères noirs et creux qui ont pour tige un fleuve figé
Doigts roulant une cigarette amère et délicieuse comme la vie

De nombreux tapis sales couvraient le sol


Tapis qui ont des plis qu’on ne défera pas
Tapis qui sont presque entièrement couleur de la poussière
20 Et où quelques taches jaunes ou vertes ont persisté
Comme un air de musique qui vous poursuit

Vois-tu le personnage maigre et sauvage


La cendre de ses pères lui sortait en barbe grisonnante
Il portait ainsi toute son hérédité au visage
Il semblait rêver à l’avenir
En tournant machinalement un orgue de Barbarie
Dont la lente voix se lamentait merveilleusement
Les glouglous les couacs et les sourds gémissements

Les saltimbanques ne bougeaient pas


30 Le plus vieux avait un maillot couleur de ce rose violâtrequ’ont
aux joues certaines jeunes filles fraîches mais près de la
mort

Ce rose-là se niche surtout dans les plis qui entourent souvent leur
bouche
Ou près des narines
C’est un rose plein de traîtrise

Cet homme portait-il ainsi sur le dos


La teinte ignoble de ses poumons

Les bras les bras partout montaient la garde

Le second saltimbanque
N’était vêtu que de son ombre
Je le regardai longtemps
40 Son visage m’échappe entièrement
C’est un homme sans tête

Un autre enfin avait l’air d’un voyou


D’un apache bon et crapule à la fois
Avec son pantalon bouffant et les accroche-chaussettes
N’aurait-il pas eu l’apparence d’un maquereau à sa toilette
La musique se tut et ce furent des pourparlers avec le public
Qui sou à sou jeta sur le tapis la somme de deux francs cinquante
Au lieu des trois francs que le vieux avait fixés comme prix des
tours

Mais quand il fut clair que personne ne donnerait plus rien


50 On se décida à commencer la séance
De dessous l’orgue sortit un tout petit saltimbanque habillé de
rose pulmonaire
Avec de la fourrure aux poignets et aux chevilles
Il poussait des cris brefs
Et saluait en écartant gentiment les avant-bras
Mains ouvertes
Une jambe en arrière prête à la génuflexion
Il salua ainsi aux quatre points cardinaux
Et quand il marcha sur une boule
Son corps mince devint une musique si délicate que nul parmi les
spectateurs n’y fut insensible
60 Un petit esprit sans aucune humanité
Pensa chacun
Et cette musique des formes
Détruisit celle de l’orgue mécanique
Que moulait l’homme au visage couvert d’ancêtres

Le petit saltimbanque fit la roue


Avec tant d’harmonie
Que l’orgue cessa de jouer
Et que l’organiste se cacha le visage dans les mains
Aux doigts semblables aux descendants de son destin
70 Fœtus minuscules qui lui sortaient de la barbe
Nouveaux cris de Peau-Rouge
Musique angélique des arbres
Disparition de l’enfant

Les saltimbamques soulevèrent les gros haltères à bout de bras


Ils jonglèrent avec les poids

Mais chaque spectateur cherchait en soi l’enfant miraculeux


Siècle ô siècle des nuages
um fantasma de nuvens

1 Como era véspera do Dia da Bastilha


Lá pelas quatro da tarde
Desci pra rua e fui ver os saltimbancos

Essa gente que faz performances ao ar livre

Está virando raridade em Paris


Na juventude vivia topando com eles por aí
Já se mandaram quase todos pro interior

Peguei o Boulevard Saint-German


E numa pracinha entre a Saint-German-des-Prés e a estátua de
Danton
10 Achei os saltimbancos

A multidão os cercava em silêncio esperando resignada


Descolei um lugar na roda a fim de ver tudo
Pesos formidáveis
Cidades belgas erguidas com um braço só pelo operário russo de
Longwy
Halteres pretos e ocos cujas barras são um rio congelado
Dedos enrolando um cigarro amargo e gostoso como a vida

Tapetes imundos cobriam o chão


Tapetes com pregas que não se alisam
Tapetes totalmente coloridos de pó
20 Com umas manchas verdes ou amarelas que persistem
Como uma canção que te persegue

Veja essa figura magra e selvagem


As cinzas dos seus pais nasceram em sua barba grisalha
Trazia todos os traços hereditários em sua cara
Parecia sonhar com o futuro
Girando mecanicamente o realejo cuja voz
Lentamente se lamentava em maravilhosos
Glu-glus e quacs e uns gemidos surdos

Os saltimbancos pararam
30 O mais velho vestia um maiô rosa violáceo que se vê nas faces
frescas das mocinhas a ponto de morrer

Esse rosa se aninha sobretudo nas dobras ao redor das bocas


Ou perto das narinas
É um rosa cheio de trapaça

Esse homem também carrega nas costas


A tinta asquerosa de seus pulmões

Braços braços por toda parte montando guarda

O segundo saltimbanco
Vestia só a sua sombra
O admirei por um bom tempo
40 Sua face não lembro muito bem
Era um homem sem cabeça

O terceiro tinha jeito de bandido


De um apache bom e crápula se preciso
Com suas calças bufantes usando cintas-ligas
Parecia o cafetão de alguma intriga
A música parou e começou a negociação com a plateia
Que de tostão em tostão atirava no tapete o total de dois francos
e meio
Em vez dos três que o velho tinha dito no começo

Quando ficou claro que ninguém ia dar mais nada


50 Decidiram enfim tocar o show
Debaixo do órgão um pequeno saltimbanco de roupa rosa-
pulmonar apareceu
Joelhos e calcanhares forrados de pele
Deu uns gritinhos
E saudou graciosamente erguendo os antebraços
Mãos espalmadas
A perna de trás pronta pra dobrar
Saudou os quatro pontos cardeais
E então andou sobre uma bola
Seu corpinho virou uma música tão delicada que ninguém da
plateia podia resistir
60 Um pequeno espírito inumano
Pensou cada um
E aquela música de formas
Destruía a música do órgão mecânico
Que o homem com face inçada de ancestrais moía

O pequeno saltimbanco fez uma estrela


Com tanta harmonia
Que o órgão parou de tocar
E o organista escondeu a face entre as mãos
Seus dedos pareciam descendentes do seu destino
70 Fetos minúsculos brotando em sua barba
Os gritos novos dos Peles-Vermelhas
Música angelical das árvores
Criança desaparecida

Os saltimbancos ergueram os halteres imensos na alturados


braços
Fazendo malabariscos

Mas cada espectador procurava em si a criança miraculosa


Século ó século de nuvens
coração coroa e espelho
viagem
a travers l’europe
A M. Ch.

1 Rotsoge
Ton visage écarlate ton biplan transformable en hydroplan
Ta maison ronde où il nage un hareng saur
Il me faut la clef des paupières
Heureusement que nous avons vu M. Panado
Et nous sommes tranquilles de ce côté-là
Qu’est-ce que tu vois mon vieux M. D…
90 ou 324 un homme en l’air un veau qui regarde à travers le
ventre de sa mère

J’ai cherché longtemps sur les routes


10 Tant d’yeux sont clos au bord des routes
Le vent fait pleurer les saussaies
Ouvre ouvre ouvre ouvre ouvre
Regarde mais regarde donc
Le vieux se lave les pieds dans la cuvette
Una volta ho inteso dire Chè vuoi
Je me mis à pleurer en me souvenant de vos enfances
Et toi tu me montres une violeté pouvantable

Ce petit tableau où il y a une voiture m’a rappelé le jour


Un jour fait de morceaux mauves jaunes bleus verts et rouges
20 Où je m’en allais à la campagne avec une charmante cheminée
tenant sa chienne en laisse
Il n’y en a plus tu n’as plus ton petit mirliton
La cheminée fume loin de moi des cigarettes russes
La chienne aboie contre les lilas
La veilleuse est consumée
Sur la robe ont chu des pétales
Deux anneaux d’or près des sandales
Au soleil se sont allumés
Mais tes cheveux sont le trolley
A travers l’Europe vêtue de petits feux multicolores
cruzando a europa
Para Marc Chagal

1 Rotsoge
Tua face escarlate teu biplano transformável em hidroplano
Tua casa redonda onde um arenque defumado nada
Perdi a chave das pálpebras
Ainda bem que cruzamos seu Panado
Estamos tranquilos quanto a isso
O que você vê meu velho amigo M. D…
90 ou 324 um homem no ar um bezerro que vê através do ventre
da mãe

Por tanto tempo procurei os caminhos


10 Tantos olhos fechados à beira dos caminhos
O vento faz salgueiros chorarem
Abra abra abra abra abra
Olhe mas olhe então
O velho lavando os pés numa bacia
Una volta ho inteso dire Chè vuoi
Caio no choro ao lembrar da tua infância
E você me mostra uma terrível nuança violeta

Aquele quadrinho de uma carroça me faz lembrar o dia


Feito de pedaços de malva amarelo azul verde e vermelho
20 Em que fui pro campo com uma chaminé charmosa com seu totó
na coleira
Nada ficou você perdeu até o kazoo
A chaminé fuma cigarilhas russas longe de mim
O totó late pros lilases
A lamparina se apagou
Pétalas caídas num vestido
Dois anéis de ouro perto das sandálias
Pegaram fogo sob a luz do sol
Mas seu cabelo é o trole
Cruzando a Europa vestida de pequenos fogos multicoloridos
chove
la petite auto

1 Le 31 de mois d’Août 1914


Je partis de Deauville un peu avant minuit
Dans la petite auto de Rouveyre

Avec son chauffeur nous étions trois

Nous dîmes adieu à toute une époque


Des géants furieux se dressaient sur l’Europe
Les aigles quittaient leur aire attendant le soleil
Les poissons voraces montaient des abîmes
Les peuples accouraient pour se connaître à fond
10 Les morts tremblaient de peur dans leurs sombres demeures

Les chiens aboyaient vers là-bas où étaient les frontières


Je m’en allais portant en moi toutes ces armées qui se battaient
Je les sentais monter en moi et s’étaler les contrées où elles
serpentaient
Avec les forêts les villages heureux de la Belgique
Francorchamps avec l’Eau Rouge et les pouhons
Région par où se font toujours les invasions
Artères ferroviaires où ceux qui s’en allaient mourir
Saluaient encore une fois la vie colorée
Océans profonds où remuaient les monstres
20 Dans les vieilles carcasses naufragées
Hauteurs inimaginables où l’homme combat
Plus haut que l’aigle ne plane
L’homme y combat contre l’homme
Et descend tout à coup comme une étoile filante

Je sentais en moi des êtres neufs pleins de dextérité


Bâtir et aussi agencer un univers nouveau
Un marchand d’une opulence inouïe et d’une taille prodigieuse
Disposait un étalage extraordinaire
Et des bergers gigantesques menaient
30 De grands troupeaux muets qui broutaient les paroles
Et contre lesquels aboyaient tous les chiens sur la route
o pequeno automóvel

1 31 de agosto de 1914
Parti de Deauville por volta da meia-noite
No pequeno automóvel de Rouveyre

Éramos três contando o chofer

Demos adeus a toda uma época


Gigantes furiosos se erguiam sobre a Europa
Águias saíam dos ninhos para esperar o sol
Peixes vorazes subiam dos abismos
Povos se apressesvam em se conhecer a fundo
10 Os mortos tremiam de medo em suas moradas sombrias

Os cães latiam na direção das fronteiras


Eu partia e levava comigo todos os exércitos que estavam lutando
Sentia-os subir em mim e se espalhar sobre as regiões por onde
serpenteavam
Com as florestas e vilarejos felizes da Bélgica
Francorchamps com seu Eau Rouge suas termas minerais
Região onde as invasões sempre começam
Artérias ferroviárias onde aqueles que vão morrer
Saudavam mais uma vez a vida colorida
Oceanos profundos onde monstros se agitavam
20 Em velhas carcaças de naufrágios
Alturas inimagináveis onde o homem combate
Onde a águia não consegue voar
Ali o homem luta contra o homem
E de repente despenca como estrela cadente

Sentia em mim novos seres cheios de destreza


Erigir ou mesmo organizar um novo universo
Um comerciante de opulência inaudita e estatura prodigiosa
Montava uma exibição extraordinária
E pastores gigantes tocavam
30 Grandes rebanhos mudos que pastavam palavras
Enquanto todos os cães latiam pra eles à beira da estrada
Et quand après avoir passé l’après-midi

Par Fontainebleau
Nous arrivâmes à Paris
Au moment où l’on affichait la mobilisation
Nous comprîmes mon camarade et moi
Que la petite auto nous avait conduits dans une époque
Nouvelle
Et bien qu’étant déjà tous deux des hommes mûrs
Nous venions cependant de naître
E quando depois de passar a tarde
Perto de Fontainebleau
Chegamos em Paris
No momento em que pregavam cartazes de mobilização
E então eu e meu parceiro percebemos
Que o pequeno automóvel havia nos conduzido a uma Época
Nova
E embora fôssemos homens-feitos
Tínhamos acabado de nascer
bandolim cravo e bambu
baforadas
à nîmes
A Émile Léonard

1 Je me suis engagé sous le plus beau des cieux


Dans Nice la Marine au nom victorieux

Perdu parmi 900 conducteurs anonymes


Je suis un charretier du neuf charroi de Nîmes

L’Amour dit Reste ici Mais là-bas les obus


Épousent ardemment et sans cesse les buts

J’attends que le printemps commande que s’en aille


Vers le nord glorieux l’intrépide bleusaille

Les 3 servants assis dodelinent leurs fronts


10 Où brillent leurs yeux clairs comme mes éperons

Un bel après-midi de garde à l’écurie


J’entends sonner les trompettes d’artillerie

J’admire la gaieté de ce détachement


Qui va rejoindre au front notre beau régiment

Le territorial se mange une salade


À l’anchois en parlant de sa femme malade

4 pointeurs fixaient les bulles des niveaux


Qui remuaient ainsi que les yeux des chevaux

Le bon chanteur Girault nous chante après 9 heures


20 Un grand air d’opéra toi l’écoutant tu pleures

Je flatte de la main le petit canon gris


Gris comme l’eau de Seine et je songe à Paris

Mais ce pâle blessé m’a dit à la cantine


Des obus dans la nuit la splendeur argentine

Je mâche lentement ma portion de bœuf


Je me promène seul le soir de 5 à 9

Je selle mon cheval nous battons la campagne


Je te salue au loin belle rose ô tour Magne
em nîmes
Para Émile Léonard

1 Eu me alistei sob o mais bonito dos céus


Na marina Nice vitória é o nome seu

Entre 900 condutores anônimos


Sou carreteiro no nono comboio de Nîmes

O Amor disse fica Mas lá longe os obuses


Esposam sem cessar seus alvos com abusos

Espero que a primavera mande reforços


Para o intrépido glorioso norte nosso
3 atiradores cofiam sobrancelhas
10 Seus olhos brilham nas esporas são centelhas

Bela tarde de guarda nesta estrebaria


Eu escutando os trompetes da artilharia

Admiro a alegria do destacamento


Vai se juntar no front a um belo regimento

O reservista traça salada de anchova


E reclama depois da doença da esposa

Artilheiros alinham a bolha dos níveis


Que rodopiam como os olhos dos corcéis

O bom cantor Girault cantou até as 9


20 Uma grande ópera que a todos comove

E eu só dando um tapa no canhãozinho gris


Gris como água do Sena e sonho com Paris

O pálido soldado contou na cantina


Do esplendor prateado do obus que ilumina

Mastigo lento essa ração de bife e couve


E passeio sozinho entre as 5 e as 9

Selo meu cavalo e circulo na campanha


De longe saúdo ó rosa torre Tamanha
a pomba apunhalada e o chafariz
veille

1 Mon cher André Rouveyre


Troudla la Champignon Tabatière
On ne sait quand on partira
Ni quand on reviendra

Au Mercure de France
Mars revient tout couleur d’espérance
J’ai envoyé mon papier
Sur papier quadrillé

J’entends les pas des grands chevaux d’artillerie allant au trot sur
la grand-route où moi je veille
10 Un grand manteau gris de crayon comme le ciel m’enveloppe
jusqu’à l’oreille
Quel
Ciel
Triste
Piste

Va le
Pâle
Sou-
rire
20 De la lune qui me regarde écrire
vigia

1 Meu caro amigo André Rouveyre


Cu-lá-lá Cogumelo Padaria
Ninguém sabe quando partiremos
Nem quando voltaremos

Na Mercure de France
Março marcha colorido de esperança
Meu artigo foi enviado
Em papel quadriculado

Ouço a passagem dos grandes cavalos da artilharia trotando pela


estrada onde faço a vigia
10 Uma manta imensa de giz cinza como o céu me cobre as orelhas
Qual
Céu
Triste
Trilha
Onde
Vai o
Alvo
Sor-
rir
20 Da lua a me ver escrever
ombre

1 Vous voilà de nouveau près de moi


Souvenirs de mes compagnons morts à la guerre
L’olive du temps
Souvenirs qui n’en faites plus qu’un
Comme cent fourrures ne font qu’un manteau
Comme ces milliers de blessures ne font qu’un article de journal
Apparence impalpable et sombre qui avez pris
La forme changeante de mon ombre
Un Indien à l’affût pendant l’éternité
10 Ombre vous rampez près de moi
Mais vous ne m’entendez plus
Vous ne connaîtrez plus les poèmes divins que je chante
Tandis que moi je vous entends je vous vois encore
Destinées
Ombre multiple que le soleil vous garde
Vous qui m’aimez assez pour ne jamais me quitter
Et qui dansez au soleil sans faire de poussière
Ombre encre du soleil
Écriture de ma lumière
20 Caisson de regrets
Un dieu qui s’humilie
sombra

1 Você de novo aqui perto de mim


Memórias dos meus companheiros mortos na guerra
Oliva de tempo
Memórias que agora formam uma só
Como cem peles fazem um só casaco
Como mil ferimentos fazem só uma matéria de jornal
Aparência impalpável e sombria você assume
A forma mutante de minha sombra
Um Índio de tocaia por toda a eternidade
10 Sombra você rasteja perto de mim
Mas já não consegue me ouvir
Nem vai saber dos poemas divinos que ando cantando
Enquanto ainda te ouço e te vejo
Destinos
Sombra múltipla que o sol te guarde
Você que me ama tanto nunca me deixará só
Você que dança ao sol sem levantar pó
Sombra tinta do sol
Escrita de luz minha
20 Baú de mágoas
Um deus que se humilha
longe do pombal
mira
Para Madame René Berthier
cartão-postal
Para Jean Royère
saillant
A André Level
saliente
Para André Level
guerre

1 Rameau central de combat


Contact par l’écoute
On tire dans la direction “des bruits entendus”
Les jeunes de la classe 1915
Et ces fils de fer électrisés
Ne pleurez donc pas sur les horreurs de la guerre
Avant elle nous n’avions que la surface
De la terre et des mers
Après elle nous aurons les abîmes
10 Le sous-sol et l’espace aviatique
Maîtres du timon
Après après
Nous prendrons toutes les joies
Des vainqueurs qui se délassent
Femmes Jeux Usines Commerce
Industrie Agriculture Métal
Feu Cristal Vitesse
Voix Regard Tact à part
Et ensemble dans le tact venu de loin
20 De plus loin encore
De l’Au-delà de cette terre
guerra

1 Ramal central de combate


Contato por escuta
Atiramos na direção dos “ruídos ouvidos”
Os jovens da turma de 1915
E esses arames eletrizados
Não chore mais por isso pelos horrores da guerra
Antes dela tudo o que tínhamos era a superfície
Da terra e dos mares
Depois dela teremos abismos
10 O subsolo o espaço aviático
Mestres do timão
Depois depois
Possuiremos todos os prazeres
Dos vencedores que relaxam
Mulheres Jogos Fábricas Comércio
Indústria Agricultura Metal
Fogo Cristal Velocidade
Voz Olhar Tocar separados
E juntos no toque vindo de longe
20 De mais longe ainda
Do Além desta terra
oráculos
les soupirs du servant de dakar

1 C’est dans la cagnat en rondins voilés d’osier


Auprès des canons gris tournés vers le nord
Que je songe au village africain
Où l’on dansait où l’on chantait où l’on faisait l’amour
Et de longs discours
Nobles et joyeux

Je revois mon père qui se battit


Contre les Achantis
Au service des Anglais
10 Je revois ma sœur au rire en folie
Aux seins durs comme des obus
Et je revois
Ma mère la sorcière qui seule du village
Méprisait le sel
Piler le millet dans un mortier
Je me souviens du si délicat si inquiétant
Fétiche dans l’arbre
Et du double fétiche de la fécondité
Plus tard une tête coupée
20 Au bord d’un marécage
O pâleur de mon ennemi
C’était une tête d’argent
Et dans le marais
C’était la lune qui luisait
C’était donc une tête d’argent
Là-haut c’était la lune qui dansait
C’était donc une tête d’argent
Et moi dans l’antre j’étais invisible
C’était donc une tête de nègre dans la nuit profonde
30 Similitudes Pâleurs
Et ma sœur
Suivit plus tard un tirailleur
Mort à Arras

Si je voulais savoir mon âge


Il faudrait le demander à l’évêque
Si doux si doux avec ma mère
De beurre de beurre avec ma sœur
C’était dans une petite cabane
Moins sauvage que notre cagnat de canonniers-servants
40 J’ai connu l’affût au bord des marécages
Où la girafe boit les jambes écartées
J’ai connu l’horreur de l’ennemi qui devaste
Le Village
Viole les femmes
Emmène les filles
Et les garçons dont la croupe dure sursaute
J’ai porté l’administrateur des semaines
De village en village
En chantonnant
50 Et je fus domestique à Paris
Je ne sais pas mon âge
Mais au recrutement
On m’a donné vingt ans
Je suis soldat français on m’a blanchi du coup
Secteur 59 je ne peux pas dire où
Pourquoi donc être blanc est-ce mieux qu’être noir
Pourquoi ne pas danser et discourir
Manger et puis dormir
Et nous tirons sur les ravitaillements boches
60 Ou sur les fils de fer devant les bobosses
Sous la tempête métallique
Je me souviens d’un lac affreux
Et de couples enchaînés par un atroce amour
Une nuit folle
Une nuit de sorcellerie
Comme cette nuit-ci
Où tant d’affreux regards
Éclatent dans le ciel splendide
os suspiros do atirador de dakar

1 No muquifo de toras camuflado com vimes


Perto dos canhões cinzentos apontados pro norte
Sonho com uma aldeia africana
Onde se dançava onde se cantava onde se fazia amor
E discursos sem fim
Nobres e felizes

Revejo meu pai que lutou


Contra os Axantes
A serviço dos ingleses
10 Revejo minha irmã com sua risada maluca
Seus seios duros como dois obuses
Revejo
Minha mãe a feiticeira só ela na aldeia
Recusava sal
Pilando milho com um morteiro
Lembro do tão delicado e perturbador
Fetiche na árvore
E o duplo fetiche da fecundidade
Mais tarde uma cabeça degolada
20 Perto de um pântano
Oh palidez do meu inimigo
Era uma cabeça prata
E no pântano
Era a lua que brilhava
Era sim uma cabeça prata
Lá em cima a lua dançava
Era sim uma cabeça prata
E eu invisível neste antro
Era sim uma cabeça de negro na calada da noite
30 Semelhanças Palidezes
Minha irmã depois
Fugiu com um atirador
Morto em Arrás

Se eu quisesse saber minha idade


Teria que perguntar pro bispo
Um docinho de coco com minha mãe
Uma manteiga derretida com minha irmã
Era uma cabaninha
Menos selvagem que nosso muquifo de atiradores
40 Sei de um esconderijo na beira do pântano
Onde a girafa bebe de pernas bem abertas
Sei do horror do inimigo que devasta
A Aldeia
Estupra as mulheres
Rapta as meninas
E os meninos cujas bundas duras saltam
Fui guia de um administrador por mais de uma semana
De aldeia em aldeia
Cantando
50 Fui um criado em Paris
Não sei minha idade
Mas no recrutamento
Me deram vinte anos
Sou um soldado francês e virei branco de repente
Setor 59 não posso dizer onde
Por que será que ser branco é melhor que ser negro
Por que não dançar e discursar
Comer e então dormir
E abrimos fogo contra as linhas de suprimentos boches
60 Ou contra arames farpados bem à frente dos chucrutes
Sob a tempestade metálica
Lembro de um lago horroroso
E casais algemados por um amor atroz
Noite insana
Noite de feitiçaria
Como esta noite
Onde tantos olhos horrorosos
Explodem no céu esplêndido
toujours
À Madame Faure-Favier

1 Toujours
Nous irons plus loin sans avancer jamais

Et de planète en planète
De nébuleuse en nébuleuse
Le don Juan des mille et trois comètes
Même sans bouger de la terre
Cherche les forces neuves
Et prend au sérieux les fantômes

Et tant d’univers s’oublient


10 Quels sont les grands oublieurs
Qui donc saura nous faire oublier telle ou telle partie du monde
Où est le Christophe Colomb à qui l’on devra l’oubli d’un
continent

Perdre
Mais perdre vraiment
Pour laisser place à la trouvaille
Perdre
La vie pour trouver la Victoire
sempre
Para Madame Faure-Favier

1 Sempre
Iremos mais longe sem nunca avançar

E de planeta em planeta
De nebulosa em nebulosa
O don Juan dos mil e três cometas
Mesmo sem sair da terra
Procura forças novas
E leva a sério os fantasmas

E tantos universos são esquecidos


10 Quem são os grandes esquecedores
Quem vai nos fazer esquecer essa ou aquela parte do mundo
Cadê o Cristóvão Colombo a quem devemos o esquecimento de
um continente

Perder
Mas perder pra valer
Pra dar lugar à descoberta
Perder
A vida para avistar a Vitória
fête
A André Rouveyre

1 Feu d’artifice en acier


Qu’il est charmant cet éclairage
Artifice d’artificier
Mêler quelque grâce au courage

Deux fusants
Rose éclatement
Comme deux seins que l’on dégrafe
Tendent leurs bouts insolemment
il sut aimer

10 quelle épitaphe

Un poète dans la forêt


Regarde avec indifférence
Son revolver au cran d’arrêt
Des roses mourir d’espérance

Il songe aux roses de Saadi


Et soudain sa tête se penche
Car une rose lui redit
La molle courbe d’une hanche

L’air est plein d’un terrible alcool


20 Filtré des étoiles mi-closes
Les obus caressent le mol
Parfum nocturne où tu reposes
Mortification des roses
festa
Para André Rouveyre

1 Aço dos fogos de artifício


Essas charmosas claridades
Um artifício desse artífice
Misturando a graça e a coragem

Dois clarões
Róseas explosões
Seios arrebitam no frio
Bicos eretos insolentes
ele soube amar

10 que epitáfio

Um poeta pela floresta


Contempla com indiferença
O cão de sua arma funesta
Rosas morrendo de esperança

Sonha com as rosas de Saadi


Daí sua cabeça inclina
Pois uma rosa dá saudade
Da tua cintura tão fina

Ar cheio de um álcool terrível


20 Filtrado de estrelas oclusas
Bombas acariciam o leve
Noturno aroma onde repousas
A mortificação das rosas
madeleine
la nuit d’avril 1915
A L. de C.-C.

1 Le ciel est étoilé par les obus des Boches


La forêt merveilleuse où je vis donne un bal
La mitrailleuse joue un air à triples-croches
Mais avez-vous le mot
Eh! oui le mot fatal
Aux créneaux Aux créneaux Laissez là les pioches

Comme un astre éperdu qui cherche ses saisons


Cœur obus éclaté tu sifflais ta romance
Et tes mille soleils ont vidé les caissons
10 Que les dieux de mes yeux remplissent en silence

Nous vous aimons ô vie et nous vons agaçons

Les obus miaulaient un amour à mourir


Un amour qui se meurt est plus doux que les autres
Ton souffle nage au fleuve où le sang va tarir
Les obus miaulaient
Entends chanter les nôtres
Pourpre amour salué par ceux qui vont périr

Le printemps tout mouillé la veilleuse l’attaque

II pleut mon âme it pleut mais it pleut des yeux morts


20 Ulysse que de jours pour rentrer dans Ithaque

Couche-toi sur la paille et songe un beau remords


Qui pur effet de l’art soit aphrodisiaque

Mais
orgues
aux fétus de la paille où tu dors
L’hymne de l’avenir est paradisiaque
noite de abril de 1915
Para L. de C.-C.

1 Céu estrelado pelas bombas dos Chucrutes


A floresta encantada onde vivo dá um baile
A metralha toca uma valsa em três por quatro
Tu sabes a senha
Sim! a senha fatal
Pras ameias Largai picaretas ali

Como estrela perdida em busca de estações


Peito bomba que explode e assobia canções
Teus mil sóis exauriram minhas munições
10 Que o deus dos meus olhos em silêncio repõem

A gente te ama vida a gente te irrita

Os obuses miavam um amor de matar


Um amor moribundo nenhum outro adoça
Teu sopro nada no rio onde há de secar
Bombas miavam
Ouçam a canção das nossas
Amor roxo saudado por quem vai morrer

Primavera encharcada lamparina o ataque

Chove minh’alma chove mas chove olhos mortos


20 Ulisses quantos dias pra voltar pra Ítaca

Deite-se na palha e sonhe um belo remorso


Que puro efeito artístico é afrodisíaco

Mas
música de órgãos
no feno onde dormes
O hino do futuro é bem paradisíaco
l’adieu du cavalier

1 Ah Dieu! que la guerre est jolie


Avec ses chants ses longs loisirs
Cette bague je l’ai polie
Le vent se mêle à vos soupirs

Adieu! voici le boute-selle


Il disparut dans un tournant
Et mourut là-bas tandis qu’elle
Riait au destin surprenant
o adeus do cavaleiro

1 Ah Deus essa guerra é tão linda


Canções tempo livre retiros
Tem este anel que lustro ainda
Rajadas mesclam seus suspiros

Adeus já soaram os clarins


Ele sumiu na encruzilhada
Morreu por lá e ela enfim
Ria da sina inesperada
le palais du tonnerre

1 Par l’issue ouverte sur le boyau dans la craie


En regardant la paroi adverse qui semble en nougat
On voit à gauche et à droite fuir l‘humide couloir désert
Où meurt étendue une pelle à la face effrayante à deux yeux
réglementaires qui servent a l’attacher sous les caissons
Un rat y recule en hâte tandis que j’avance en hâte
Et le boyau s’en va couronné de craie semée de branches
Comme un fantôme creux qui met du vide où il passe blanchâtre
Et là-haut le toit est bleu et couvre bien le regard fermé par
quelques lignes droites
Mais en deçà de l’issue c’est le palais bien nouveau et qui paraît
ancien
10 Le plafond est fait de traverses de chemin de fer
Entre lesquelles il y a des morceaux de craie et des touffes
d’aiguilles de sapin
Et de temps en temps des débris de craie tombent comme des
morceaux de vieillesse
À côté de l’issue que ferme un tissu lâche d’une espèce qui sert
généralement aux emballages
II y a un trou qui tient lieu d’âtre et ce qui y brûle est un feu
semblable à l’âme
Tant il tourbillonne et tant il est inséparable de ce qu’il dévore et
fugitif
Les fils de fer se tendent partout servant de sommier supportant
des planches
Ils forment aussi des crochets et l’on y suspend mille choses
Comme on fait à la mémoire
Des musettes bleues des casques bleus des cravates bleues des
vareuses bleues
20 Morceaux du ciel tissus des souvenirs les plus purs
Et it flotte parfois en l’air de vagues nuages de craie

Sur la planche brillent des fusées detonateurs joyaux dorés à tête


émaillée
Noirs blancs rouges
Funambules qui attendent leur tour de passer sur les trajectoires
Et font un ornement mince et élégant à cette demeure souterraine
Ornée de six lits placés en fer à cheval
Six lits couverts de riches manteaux bleus

Sur le palais il y a un haut tumulus de craie


Et des plaques de tôle ondulée
30 Fleuve figé de ce domaine idéal
Mais privé d’eau car ici il ne roule que le feu jailli de la mélinite
Le parc aux fleurs de fulminate jaillit des trous penchés
Tas de cloches aux doux sons des douilles rutilantes
Sapins élégants et petits comme en un paysage japonais
Le palais s’éclaire parfois d’une bougie à la flamme aussi petite
qu’une souris
Ô palais minuscule comme si on te regardait par le gros bout
d’une lunette
Petit palais où tout s’assourdit
Petit palais où tout est neuf rien rien d’ancien
Et où tout est précieux où tout le monde est vêtu comme un roi
40 Une selle est dans un coin à cheval sur une caisse
Un journal du jour traîne par terre
Et cependant tout paraît vieux dans cette neuve demeure
Si bien qu’on comprend que l’amour de l’antique
Le goût de l’anticaille
Soit venu aux hommes dès le temps des cavernes
Tout y était si précieux et si neuf
Tout y est si précieux et si neuf
Qu’une chose plus ancienne ou qui a déjà servi y apparaît
Plus précieuse
50 Que ce qu’on a sous la main
Dans ce palais souterrain creusé dans la craie si blanche et si
neuve
Et deux marches neuves
Elles n’ont pas deux semaines
Sont si vieilles et si usées dans ce palais qui semble antique sans
imiter l’antique
Qu’on voit que ce qu’il y a de plus simple de plus neuf est ce qui
est
Le plus près de ce que l’on appelle la beauté antique
Et ce qui est surchargé d’ornements
A besoin de vieillir pour avoir la beauté qu’on appelle antique
Et qui est la noblesse la force l’ardeur l’âme l’usure
60 De ce qui est neuf et qui sert
Surtout si cela est simple simple
Aussi simple que le petit palais du tonnerre
o palácio do trovão

1 Pela abertura que dá na trincheira calcária


Encarando a parede oposta que parece torrone
Vê-se à esquerda e à direita o corredor molhado e deserto fugir
Morta uma pá jogada com a cara apavorada seus dois olhos
reguladores que servem pra prendê-la sob a caixa de
munições
Um rato recua com pressa enquanto eu avanço com pressa
E a trincheira segue em frente coroada de giz tripa semeada de
galhos
Como um fantasma oco que espalha vazio por onde pálido passa
No alto o teto é azul cobre bem o olhar bloqueado por umas
linhas retas
Mas deste lado da abertura o palácio novinho em folha parece
antigo
10 Seu teto é feito de dormentes de trem
Entre eles há torrões de giz e tufos de abetos de pinheiro
E de vez em quando detritos de giz despencam como pedaços
caquéticos
Ao lado da saída fechada por um pano de estopa que geralmente
a gente usa pra embalagens
Nossa chaminé é um buraco e o que se queima aqui é flama de
alma humana
Que redemoinha e é tão inseparável do que a devora e tão fugidia
Fios de ferro espalhados por toda parte formando uma rede que
sustenta as pranchas
Servindo de ganchos para pendurar mil coisas
Como quem pendura coisas na lembrança
Mochilas azuis capacetes azuis gravatas azuis jaquetas azuis
20 Pedaços de céu tecidos das lembranças mais puras
E às vezes no ar flutuam vagas nuvens de giz

Sobre a prancha o brilho dos foguetes detonadores joias douradas


de cabeças esmaltadas
Negros brancos vermelhos
Equilibristas esperando a vez de percorrer suas trajetórias
Eles fazem decorações delicadas e elegantes para sua moradia
subterrânea
Seis camas arrumadas em formato de ferradura
Seis camas cobertas com ricos casacos azuis

Sobre o palácio há um túmulo alto de giz


E chapas de ferro ondulado
30 Rio congelado de um domínio ideal
Mas sem água pois só o que flui aqui é o fogo do atrito da
melinita
O parque com flores de fulminato jorrava dos buracos pensos
Pilhas de sinos cujos sons débeis são cartuchos rutilantes
Pinheiros pequeninos elegantes de paisagem japonesa
O palácio é iluminado às vezes por uma vela que parece um
camundongo
Palácio minúsculo como se olhado pelo outro lado da luneta
Pequeno palácio que abafa o som
Pequeno palácio onde tudo é novo e nada nada é antigo
E onde tudo é precioso e todo mundo se veste como um rei
40 Uma sela descansa num canto cavalgando um caixote
Um jornal do dia espalhado pelo chão
E no entanto tudo parece velho nesta nova moradia
Dá pra entender a paixão das pessoas por coisas antigas
Um gosto por cacarecos
Que acompanham os homens desde o tempo das cavernas
Tudo antes era tão precioso e novo
Tudo agora é tão precioso e novo
Que uma coisa mais antiga ou já usada parece
Ainda mais preciosa
50 Do que o que está à mão
Neste palácio subterrâneo cavado no giz tão novo e tão branco
Com dois degraus novinhos
Que não têm nem duas semanas
Tão velhos e usados neste palácio que parecem antigos mas sem
imitar a antiguidade
Você vai ver que o que é mais novo e mais simples
Está mais perto do que chamamos de beleza antiga
E o que é entulhado com ornamentos
Precisa envelhecer para possuir a chamada beleza antiga
Que é nobreza força ardor alma e atrição
60 Do que é novo e do que tem serventia
Principalmente se for simples simples
Tão simples quanto o pequeno palácio do trovão
dans l’abri-caverne

1 Je me jette vers toi et il me semble aussi que tu te jettes vers moi


Une force part de nous qui est un feu solide qui nous soude
Et puis il y a aussi une contradiction qui fait que nous ne pouvons
nous apercevoir
En face de moi la paroi de craie s’effrite
Il y a des cassures
De longues traces d’outils traces lisses el qui semblent être faites
dans de la stéarine
Des coins de cassures sont arrachés par le passage des types de
ma pièce
Moi j’ai ce soir une âme qui s’est creusée qui est vide
On dirait qu’on y tombe sans cesse et sans trouver de fond
10 Et qu’il n’y a rien pour se raccrocher
Ce qui y tombe et qui y vit c’est une sorte d’êtres laids qui me
font mal et qui viennent de je ne sais où
Oui je crois qu’ils viennent de la vie d’une sorte de vie qui est
dans l’avenir dans l’avenir brut qu’on n’a pu encore cultiver
ou élever ou humaniser
Dans ce grand vide de mon âme il manque un soleil il manque ce
qui éclaire
C’est aujourd’hui c’est ce soir et non toujours
Heureusement que ce n’est que ce soir
Les autres jours je me rattache à toi
Les autres jours je me console de la solitude et de toutes les
horreurs
En imaginant ta beauté
Pour l’élever au-dessus de l’univers extasié
20 Puis je pense que je l’imagine en vain
Je ne la connais par aucun sens
Ni même par les mots
Et mon goût de la beauté est-il donc aussi vain
Existes-tu mon amour
Ou n’est-tu qu’une entité que j’ai créée sans le vouloir
Pour peupler la solitude
Es-tu une de ces déesses comme celles que les Grecs avaient
douées pour moins s’ennuyer
Je t’adore ô ma déesse exquise même si tu n’es que dans mon
imagination
no abrigo-caverna

1 Me lanço em tua direção e parece que você também se lança em


minha direção
Uma força dispara de nós um fogo sólido que nos solda
Só que há uma contradição no fato da gente não se ver
Na minha cara a parede de giz esfarela
Cheia de fraturas
Traços compridos de utensílios traços lisos elegantes parecem
feitos de estearina
Pedaços de rachaduras são arrancados quando passam os colegas
de toca
Diria que hoje tenho uma alma vazia e oca
E que nela alguém despenca sem cessar nem nunca tocar o fundo
10 Lugar algum onde se segurar
O que despenca e vive em mim é uma multidão de seres feios que
me machucam e que não sei de onde vêm
Vai ver eles vêm da vida um tipo de vida no futuro um futuro
bruto que ainda não pudemos cultivar refinar ou humanizar
No imenso vácuo da minha alma não há ausência que não
ilumine
É hoje esta tarde e não pra sempre
Felizmente é só por esta noite
Nos outros dias me agarro em você
Nos outros dias consolo minha solidão e todos os horrores
Imaginando a tua beleza
Para elevá-la acima do universo em êxtase
20 Depois penso se não fico imaginando em vão
Já que não posso conhecê-la com meus sentidos
Nem mesmo pelas palavras
Então meu gosto pela beleza também é vão
Será que você existe meu amor
Ou será só um ser que criei sem querer
Pra povoar minha solidão
Será que você é umas dessas deusas que os gregos inventaram pra
espantar o tédio
Te adoro minha delicada deusa nem que seja só na minha
imaginação
désir

1 Mon désir est la région qui est devant moi


Derrière les lignes boches
Mon désir est aussi derrière moi
Après la zone des armées

Mon désir c’est la butte du Mesnil


Mon désir est là sur quoi je tire
De mon désir qui est au-delà de la zone des armées
Je n’en parle pas aujourd’hui mais j’y pense

Butte du Mesnil je t’imagine en vain


10 Des fils de fer des mitrailleuses des ennemis trop sûrs d’eux
Trop enfoncés sous terre déjà enterrés

Ca ta clac des coups qui meurent en s’éloignant

En y veillant tard dans la nuit


Le Decauville qui toussote
La tôle ondulée sous la pluie
Et sous la pluie ma bourguignotte

Entends la terre véhémente


Vois les lueurs avant d’entendre les coups

Et tel obus siffler de la démence


20 Ou le tac tac tac monotone et bref plein de dégoût

Je désire
Te serrer dans ma main Main de Massiges
Si décharnée sur la carte

Le boyau Gœthe où j’ai tiré


J’ai tiré même sur le boyau Nietzsche
Décidément je ne respecte aucune gloire

Nuit violente et violette et sombre et pleine d’or par moments


Nuit des hommes seulement
Nuit du 24 septembre
30 Demain l’assaut
Nuit violente ô nuit dont l’épouvantable cri profond devenait
plus intense de minute en minute
Nuit qui criait comme une femme qui accouche
Nuit des hommes seulement
desejo

1 Meu desejo é aquela região ali na minha frente


Atrás das linhas dos chucrutes
Meu desejo também está atrás de mim
Além da zona dos exércitos

Meu desejo é a colina do Mesnil


Meu desejo está bem longe onde eu atiro
Do meu desejo que jaz além da zona dos exércitos
Hoje não falo mas só penso nisso

Colina do Mesnil te imagino em vão


10 Os fios de ferro das metralhadoras inimigas tão seguras de si
Enfiados bem fundo na terra já sepultos

Ca ta claque de tiroteio que diminui e morre

Tarde da noite de vigia


O trem de trincheira tossia
Chapa ondulada sob a chuva
Sob a chuva minha armadura

Ouça a terra veemente


Você vê os flashes antes de ouvir os tiros

E o obus sibilante da demência


20 O tic tac breve e monótono do nojo

Meu desejo
É segurar sua mão Main de Massiges
Tão macilenta no mapa

Atirei contra a trincheira Goethe


Atirei até contra a trincheira Nietzsche
Não há mesmo glória alguma que eu respeite

Noite violenta e violeta e sombria cheia de ouro por uns instantes


Noite dos homens somente
Noite de 24 de setembro
30 Amanhã o ataque
Noite violenta ó noite cujo grito fica mais assustador e profundo
a cada minuto
Noite gritando como uma mulher na hora do parto
Noite dos homens somente
chant de l’horizon en champagne
A M. Joseph Granie

1 Voici le tétin rose de l’euphorbe verruquée


Voici le nez des soldats invisibles
Moi l’horizon invisible je chante
Que les civils et les femmes écoutent ces chansons
Et voici d’abord la cantilène du brancardier blessé

Le sol est blanc la nuit l’azure


Saigne la crucifixion
Tandis que saigne la blessure
Du soldat de Promission

10 Un chien jappait l’obus miaule


La lueur muette a jailli
A savoir si la guerre est drôle
Les masques n’ont pas tressailli

Mais quel fou rire sous le masque


Blancheur éternelle d’ici
Où la colombe porte un casque
Et l’acier s’envole aussi

Je suis seul sur le champ de bataille


Je suis la tranchée blanche le bois vert et roux
20 L’obus miaule
Je te tuerai
Animez-vous fantassins à passepoil jaune
Grands artilleurs roux comme des taupes
Bleu-de-roi comme les golfes méditerranéens
Veloutés de toutes les nuances du velours
Ou mauves encore ou bleu-horizon comme les autres
Ou déteints
Venez le pot en tête
Debout fusée éclairante
30 Danse grenadier en agitant tes pommes de pin
Alidades des triangles de visée pointez-vous sur les lueurs
Creusez des trous enfants de 20 ans creusez des trous
Sculptez les profondeurs
Envolez-vous essaims des avions blonds ainsi que les avettes
Moi l’horizon je fail le roue comme un grand Paon
Écoutez renaître les oracles qui avaient cessé
Le grand Pan est ressuscité
Champagne viril qui émoustille la Champagne
Hommes faits jeunes gens
40 Caméléon des autos-canons
Et vous classe 16
Craquements des arrivées ou bien floraison blanche dans les cieux
J’étais content pourtant ça brûlait la paupière
Les officiers captifs voulaient cacher leurs noms
Œil du Breton blessé couché sur la civière
Et qui criait aux morts aux sapins aux canons
Priez pour moi Bon Dieu je suis le pauvre Pierre

Boyaux et rumeur du canon


Sur cette mer aux blanches vagues
50 Fou stoïque comme Zénon
Pilote du cœur tu zigzagues

Petites forêts de sapins


La nichée attend la becquée
Pointe-t-il des nez de lapins
Comme l’euphorbe verruquée

Ainsi que l’euphorbe d’ici


Le soleil à peine boutonne
Je l’adore comme un Parsi
Ce tout petit soleil d’automne

60 Un fantassin presque un enfant


Bleu comme le jour qui s’écoule
Beau comme mon cœur triomphant
Disait en mettant sa cagoule

Tandis que nous n’y sommes pas


Que de filles deviennent belles
Voici l’hiver et pas à pas
Leur beauté s’éloignera d’elles

O Lueurs soudaines des tirs


Cette beauté que j’imagine
70 Faute d’avoir des souvenirs
Tire de vous son origine

Car elle n’est rien que l’ardeur


De la bataille violente
Et de la terrible lueur
Il s’est fait une muse ardente

Il regarde longtemps l’horizon


Couteaux tonneaux d’eaux
Des lanternes allumées se sont croisées
Moi l’horizon je combattrai pour la victoire

80 Je suis l’invisible qui ne peut disparaître


Je suis comme l’onde
Allons ouvrez les écluses que je me précipite et renverse tout
canção do horizonte em champanhe
Para M. Joseph Granié

1 Eis a tetinha rosa da eufórbia verrugosa


Eis os narizes dos soldados invisíveis
E eu o horizonte invisível a cantar
Que civis deixem mulheres ouvirem minhas canções
E eis aqui este lamento do maqueiro ferido

O solo é branco a noite o azula


E sangra a Crucificação
Enquanto vão sangrando as pústulas
Do soldado da Promissão
10 Um cão que late a bomba mia
Mudo clarão que jorra ali
ver a guerra seja hilária
Quando a máscara não abrir

Risada doida sob a máscara


Branco eterno deste lugar
Até a pomba se mascara
E o aço no espaço a voar
Estou sozinho sobre o campo de batalha
Sou a trincheira branca o bosque verde e vermelho
20 As bombas miam
Vou te matar
Animem-se recrutas de fitas amarelas
Artilheiros robustos e ruivos como toupeiras
Azul-royal como as baías mediterrâneas
Aveludados com todos os nuances do veludo
Ou então lilás ou azul-horizonte como os outros
Ou desbotado
Ponham seus capacetes
Acendam os foguetes
30 Dance granadeiro agite seus pontudos pinhões
Alidades medem o alvo e miram contra os clarões
Cavem jovens de vinte anos cavem
Esculpam as profundezas
Voem pra longe enxames de aviões loiros como abelhas
Eu o horizonte espalho a cauda como um Pavão gigantesco
Escutem renascer os oráculos que haviam cessado
O grande Pã ressuscitou
Vinho viril que excita a Champanhe
Homens maduros e jovens
40 Camaleão de canhão motorizado
E vocês da turma de 16
Estrondo dos foguetes que chegam ou brancas florações no céu
Estava feliz embora tudo isso queimasse as pálpebras
Prisioneiros militares querendo esconder seus nomes
O olhar de Breton ferido em cima da maca
Gritando pros mortos pros canhões pros pinheiros
Reze por mim Bom Deus eu sou só o pobre Pedro

Trincheira e estrondo de canhão


Neste mar de brancas espumas
50 Como doido estoico Zenão
Peito-piloto sem um prumo
Miniflorestas de pinheiros
Ninho faminto se impacienta
Pintam focinhos de coelhos
São uma eufórbia verruguenta

Como a eufórbia deste lugar


O sol floresce mal e mal
Como um Parse eu a adorar
O pequeno sol outonal

60 Um recruta com rosto infante


Azul feito o dia que passa
Diz belo é o peito triunfante
E põe a máscara de gás

Enquanto não estamos mais lá


Quantas garotas dão botão
Agora é inverno pé ante pé
Suas belezas morrerão

Oh Clarões súbitos de tiros


Beleza que imagino bem
70 Já que não tenho mais memórias
Tira de você sua origem

Pois esse é o único ardor


De uma batalha violenta
E desse tiroteio e horror
Compôs a sua musa ardente

Ele olhou o horizonte por um tempo


Cutelos tonéis de água
Lanternas brilham em zigue-zague
E eu o horizonte vou lutar pela vitória

80 Sou o invisível que não pode desaparecer


Sou como uma onda
Abram represas pra que eu me lance e vire tudo do avesso
océan de terre
A G. de Chirico

1 J’ai bâti une maison au milieu de l’Océan


Ses fenêtres sont les fleuves qui s’écoulent de mes yeux
Des poulpes grouillent partout où se tiennent les murailles
Entendez battre leur triple cœur et leur bec cogner aux vitres
Maison humide
Maison ardente
Saison rapide
Saison qui chante
Les avions pondent des œufs
10 Attention on va jeter l’ancre
Attention à l’encre que l’on jette
Il serait bon que vous vinssiez du ciel
Le chèvrefeuille du ciel grimpe
Les poulpes terrestres palpitent
Et puis nous sommes tant et tant à être nos propres fossoyeurs
Pâles poulpes des vagues crayeuses ô poulpes aux becs pâles
Autour de la maison il y a cet océan que tu connais
Et qui ne se repose jamais
oceano de terra
Para Giorgio de Chirico

1 Fiz uma casa no meio do Oceano


Suas janelas são rios escoando dos meus olhos
Polvos pululam por toda parte por suas muralhas
Ouça a batida de seu triplo coração e seus bicos batendo nos
vidros
Casa úmida
Casa ardente
Estação rápida
Estação cantante
Aviões lançam seus ovos
10 Atenção para sua âncora retinta
Atenção para seu jato de tinta
Seria demais se você descesse do céu
As madressilvas do céu escalam
Os polvos terrestres palpitam
E tantos de nós cavam sua própria cova
Pálidos polvos de ondas de giz ó polvos de bicos pálidos
Ao redor da casa tem um oceano que você conhece
E que nunca adormece
merveille de la guerre

1 Que c’est beau ces fusées qui illuminent la nuit


Elles montent sur leur propre cime et se penchent pour regarder
Ce sont des dames qui dansent avec leurs regards pour yeux bras
et cœurs

J’ai reconnu ton sourire et ta vivacité

C’est aussi l’apothéose quotidienne de toutes mes Bérénices dont


les chevelures sont devenues des comètes
Ces danseuses surdorées appartiennent à tous les temps et à
toutes les races
Elles accouchent brusquement d’enfants qui n’ont que le temps de
mourir

Comme c’est beau toutes ces fusées


Mais ce serait bien plus beau s’il y en avait plus encore
10 S’il y en avait des millions qui auraient un sens complet et relatif
comme les lettres d’un livre
Pourtant c’est aussi beau que si la vie même sortait des mourants
Mais ce serait plus beau encore s’il y en avait plus encore
Cependant je les regarde comme une beauté qui s’offre et
s’évanouit aussitôt
Il me semble assister à un grand festin éclairé a giorno
C’est un banquet que s’offre la terre
Elle a faim et ouvre de longues bouches pâles
La terre a faim et voici son festin de Balthasar cannibale

Qui aurait dit qu’on pût être à ce point anthropophage


Et qu’il fallût tant de feu pour rôtir le corps humain
20 C’est pourquoi l’air a un petit goût empyreumatique qui n’est ma
foi pas désagréable
Mais le festin serait plus beau encore si le ciel y mangeait avec la
terre
Il n’avale que les âmes
Ce qui est une façon de ne pas se nourrir
Et se contente de jongler avec des feux versicolores

Mais j’ai coulé dans la douceur de cette guerre avec toute ma


compagnie au long des longs boyaux
Quelques cris de flamme annoncent sans cesse ma présence
J’ai creusé le lit où je coule en me ramifiant en mille petits fleuves
qui vont partout
Je suis dans la tranchée de première ligne et cependant je suis
partout ou plutôt je commence à être partout
C’est moi qui commence cette chose des siècles à venir
30 Ce sera plus long à réaliser que non la fable d’Icare volant
Je lègue à l’avenir l’histoire de Guillaume Apollinaire
Qui fut à la guerre et sut être partout
Dans les villes heureuses de l’arrière
Dans tout le reste de l’univers
Dans ceux qui meurent en piétinant dans le barbelé
Dans les femmes dans les canons dans les chevaux
Au zénith au nadir aux 4 points cardinaux
Et dans l’unique ardeur de cette veillée d’armes

Et ce serait sans doute bien plus beau


40 Si je pouvais supposer que toutes ces choses dans lesquelles je suis
partout
Pouvaient m’occuper aussi
Mais dans ce sens il n’y a rien de fait
Car si je suis partout à cette heure il n’y a cependant que moi qui
suis en moi
maravilha da guerra

1 Que beleza esses foguetes iluminando a noite


Escalam seus próprios cimos e se debruçam para admirar
São damas dançando cujos relances são olhos braços e corações

Reconheci teu sorriso e tua vivacidade

É também a apoteose diária de todas as minhas Berenices cujas


cabeleiras viraram rabos de cometas
Essas dançarinas douradas pertencem a todos os tempos e raças
Geram bebês instantâneos que só têm tempo de morrer

Que beleza todos esses foguetes


Mais belo seria se houvesse mais deles ainda
10 Se fossem milhões com um sentido completo e relativo como
letras num livro
Mas é tão belo que é como se a vida mesma escapasse dos
moribundos

Mais belo seria se houvesse mais deles agora


E no entanto os vejo como uma beleza que se oferece e desmaia
de repente
Pareço estar numa grande festa iluminada a giorno
Num banquete que a terra se oferecesse
Ela tem fome e abre suas bocas pálidas e compridas
A terra tem fome e este é o festim de Baltazar o canibal

Quem diria que se chegaria a esse ponto de antropofagia


E que seria preciso tanto fogo para tostar carne humana
20 Por isso o ar tem um gosto levemente empireumático que juro já
não é tão mau
Mas a festa seria ainda mais bela se o céu jantasse com a terra
O céu só come as almas
Que é um jeito de não se alimentar
Se satisfaz em fazer malabarismo com fogos multicoloridos

Mas eu fluía nessa delícia de guerra com minha companhia inteira


ao longo das trincheiras
Gritos de fogo não cessavam de anunciar minha presença
Cavei o leito onde fluí e me ramifiquei em milhares de riachos que
vão dar em toda parte
Estou nas trincheiras da linha de frente e ainda em toda parte ou
melhor começando a estar em toda parte
Pois começa comigo essa coisa de séculos futuros
30 Vai demorar mais tempo pra se concretizar que a fábula do Ícaro
volante

Lego ao futuro a história de Guillaume Apollinaire


Que esteve na guerra e soube estar em toda parte
Nas cidades felizes atrás das linhas de frente
Em todo o resto do universo
Nos que morreram emaranhados nos arames farpados
Nas mulheres nos canhões nos cavalos
No zênite no nadir nos 4 pontos cardeais
E no ardor singular desta vigília de guerra

E com certeza seria mais belo


40 Se eu pudesse supor que todas essas coisas em que estou por toda
parte
Me ocupassem também
Mas não há nada a se fazer nesse sentido
Pois embora esteja em toda parte agora mesmo só eu estou em
mim
exercice

1 Vers un village de l’arrière


S’en allaient quatre bombardiers
Ils étaient couverts de poussière
Depuis la tête jusqu’aux pieds

Ils regardaient la vaste plaine


En parlant entre eux du passé
Et ne se retournaient qu’à peine
Quand un obus avait toussé

Tous quatre de la classe seize


10 Parlaient d’antan non d’avenir
Ainsi se prolongeait l’ascèse
Qui les exerçait à mourir
exercício

1 Rumo a uma vila na retaguarda


Iam marchando os quatro artilheiros
A lama recobria suas fardas
Da cabeça até os seus artelhos

Olhavam o vasto descampado


E conversavam sobre outros tempos
Nem sequer olharam para o lado
Quando ouviram tossir um obus

Todos da turma de dezesseis


10 Do que foi e não do que vai ser
Falavam prorrogavam asceses
Que os exercita só pra morrer
il y a

1 Il y a un vaisseau qui a emporté ma bien-aimée


Il y a dans le ciel six saucisses et la nuit venant on dirait des
asticots dont naîtraient les étoiles
Il y a un sous-marin ennemi qui en voulait à mon amour
Il y a mille petits sapins brisés par les éclats d’obus autour de moi
Il y a un fantassin qui passe aveuglé par les gaz asphyxiants
Il y a que nous avons tout haché dans les boyaux de Nietzsche de
Gœthe et de Cologne
Il y a que je languis après une lettre qui tarde
Il y a dans mon porte-cartes plusieurs photos de mon amour
Il y a les prisonniers qui passent la mine inquiète
10 Il y a une batterie dont les servants s’agitent autour des pièces
Il y a le vaguemestre qui arrive au trot par le chemin de l’Arbre
isolé
Il y a dit-on un espion qui rôde par ici invisible comme l’horizon
dont il s’est indignement revêtu et avec quoi il se confond
Il y a dressé comme un lys le buste de mon amour
Il y a un capitaine qui attend avec anxiété les communications de
la T S F sur l’Atlantique
Il y a à minuit des soldats qui scient des planches pour les
cercueils
Il y a des femmes qui demandent du maïs à grands cris devant un
Christ sanglant à Mexico
Il y a le Gulf Stream qui est si tiède et si bienfaisant
Il y a un cimetière plein de croix à 5 kilomètres
Il y a des croix partout de-ci de-là
20 Il y a des figues de Barbarie sur ces cactus en Algérie
Il y a les longues mains souples de mon amour
Il y a un encrier que j’avais fait dans une fusée de 15 centimètres
et qu’on n’a pas laissé partir
Il y a ma selle exposée à la pluie
Il y a les fleuves qui ne remontent pas leur cours
Il y a l’amour qui m’entraîne avec douceur
Il y avait un prisonnier boche qui portait sa mitrailleuse sur son
dos
Il y a des hommes dans le monde qui n’ont jamais été à la guerre
Il y a des Hindous qui regardent avec étonnement les campagnes
occidentales
Ils pensent avec mélancolie à ceux dont ils se demandent s’ils les
reverront
30 Car on a poussé très loin durant cette guerre l’art de l’invisibilité

1 Há um barco a vapor que levou a minha amada


Há seis salsichas no céu noite chegando vai ver são larvas parindo
estrelas
Há um submarino inimigo assediando o meu amor
Há mil pinheiros despedaçados pelos estilhaços de obuses ao meu
redor
Há um recruta passando cego de gases asfixiantes
Há tudo o que destroçamos nas trincheiras tripas Nietzsche e
Goethe e Colônia
Há minha expectativa por uma carta que nunca chega
Há várias fotos do meu amor na minha carteira
Há prisioneiros passando pela mina alvoroçados
10 Há uma bateria com os artilheiros agitados ao redor das peças
Há um mensageiro que chega trotando pela trilha da Árvore
solitária
Há um boato de um espião rondando por aqui invisível como o
horizonte azul que ele veste sem vergonha como camuflagem
e com ele se confunde
Há o busto do meu bem ereto como um lírio
Há um capitão esperando ansiosamente por mensagens vindas
pelo Atlântico via Telefonia Sem Fio
Há soldados à meia-noite serrando tábuas para os caixões
Há mulheres aos gritos exigindo mais milho diante de um Cristo
sangrando no México
Há a Gulf Stream tão morna e benfazeja
Há um cemitério cheio de cruzes a 5 quilômetros daqui
Há cruzes aqui ali por toda parte
20 Há figos-da-barbária nos cactos na Argélia
Há as mãos longas e macias do meu amor
Há um tinteiro que fiz de um foguete de 15 centímetros que não
explodiu
Há minha sela pegando chuva lá fora
Há os rios que nunca mais vão retomar seus cursos
Há esse amor que me arrasta com doçura
Há um prisioneiro chucrute com sua metralhadora nas costas
Há homens no mundo que nunca estiveram na guerra
Há os hindus observando atônitos as campanhas ocidentais
Eles pensam nos amigos com tristeza imaginam se vão vê-los de
novo
30 Pois nesta guerra fomos longe demais na arte da invisibilidade
simultanéités

1 Les canons tonnent dans la nuit


On dirait des vagues tempête
Des cœurs où pointe un grand ennui
Ennui qui toujours se répète

Il regarde venir là-bas


Les prisonniers L’heure est si douce
Dans ce grand bruit ouaté très bas
Très bas qui grandit sans secousse

Il tient son casque dans ses mains


10 Pour saluer la souvenance
Des lys des roses des jasmins
Éclos dans les jardins de France

Et sous la cagoule masqué


Il pense à des cheveux si sombres
Mais qui donc l’attend sur le quai
O vaste mer aux mauves ombres
Belles noix du vivant noyer
La grand folie en vain vous gaule
Brunette écoute gazouiller
20 La mésange sur ton épaule

Notre amour est une lueur


Qu’un projecteur du cœur dirige
Vers l’ardeur égale du cœur
Qui sur le haut Phare s’érige

O phare-fleur mes souvenirs


Les cheveux noirs de Madeleine
Les atroces lueurs des tirs
Ajoutent leur clarté soudaine
A tes beaux yeux ô Madeleine
simultaneidades

1 Os canhões trovejam na noite


Vai ver são ondas tempestades
De tédio no peito um açoite
Tédio que dura eternidades

Vê prisioneiros do outro lado


Mas é tão doce este intervalo
Que este estrondo tão abafado
Vai aumentando sem abalos

Traz seu capacete nas mãos


10 Para saudar doces lembranças
Dos lírios das rosas jasmins
A explodir nos jardins da França

Sob esse capuz antigás


Pensa em suas melenas e coxas
Mas quem o espera nesse cais
É o vasto mar de sombras roxas
Belas nozes desta nogueira
A insânia em vão quer seus escombros
Morena vê como gorjeia
20 O pardalzinho no seu ombro

O nosso amor é um clarão


Que o projetor do cor dirige
Pro ardor igual do coração
Que no alto do Farol se erige

Ó flor-farol meus devaneios


Cabelos negros Madeleine
Clarão atoz dos tiroteios
Funde-se ao brilho repentino
Do belo olhar de Madeleine
algodão nas orelhas
Tant et tant de coquelicots
D’où tant de sang a-t-il coulé
Qu’est-ce qu’il se met dans le coco
Bon sang de bois il s’est saoulé
Et sans pinard et sans tacot
Avec de l’eau
Allô la truie

10 Le silence des phonographes


Mitrailleuses des cinémas
Tout l’échelon là-bas piaffe
Fleurs de feu des lueurs-frimas
Puisque le canon avait soif
Allô la truie
Et les trajectoires cabrées
Trébuchements de soleils-nains
Sur tant de chansons déchirées

Il a l’Étoile du Benin
20 Mais du singe en boîtes carrées
Crois-tu qu’il y aura la guerre
Allô la truie
Ah! s’il vous plaît
Ami l’Anglais
Ah! qu’il est laid
Ton frère ton frère ton frère de lait
Tem tantas papoulas vermelhas
Por onde tanto sangue escorre
Mas o que deu na sua telha
É sangue bom só tá de porre
Mesmo sem um goró nem breja
Na aguinha só
Alô La Truie

10 Dos fonógrafos só o silêncio


Metralhadoras de cinema
Todo o escalão agitadiço
Flores de fogo de geada-gemas
Pois o canhão tem sede disso
Alô La Truie
E as trajetórias empinadas
Estrebuchos de estrelas-anãs
Sobre canções estraçalhadas

Ele tem a Estrela do Benim


20 Mas carne enlatada em conserva
Acha mesmo que vai ter guerra
Alô La Truie
Ah meu cortês
Amigo inglês
És feio não vê
Teu mano teu mano teu mano de fé
Et je mangeais du pain de Gênes
En respirant leurs gaz lacrymogènes
Mets du coton dans tes oreilles
30 D’siré

Puis ce fut cette fleur sans nom


À peine un souffle un souvenir
Quand s’en allèrent les canons
Au tour des roues heure à courir
La baleine a d’autres fanons
Éclatements qui nous fanons

Mais mets du coton dans tes oreilles


Évidemment les fanions
Des signaleurs
40 Allô la truie

Ici la musique militaire joue


Quelque chose
Et chacun se souvient d’une joue
Rose
Parce que même les airs entraînants
Ont quelque chose de déchirant quand on les entend à la guerre

Écoute s’il pleut écoute s’il pleut


E eu comia um pão genoveno
Respirando seu gás lacrimogênio
Bote algodão nas orelhas
30 D’siré

Eis a flor sem nome nem nada


Um sopro só vaga lembrança
Quando canhões passam na estrada
No giro da roda hora tensa
A baleia tem outras barbas
A explosão nos acobarda

Mas bote algodão nas orelhas


São só as bandeiras bravas
Dos sinalizadores
40 Alô La Truie

Aqui uma música militar despeja


Qualquer coisa
Cada cara lembra uma bochecha
Rosa
Pois até aquelas canções animadas
Têm uma coisa que nos dilacera quando as escutamos na guerra

A chuva escute escute a chuva


Tu retrouveras
La tranchée en première ligne
Les éléphants des pare-éclats
Une girouette maligne
Et les regards des guetteurs las
Qui veillent le silence insigne
Ne vois-tu rien venir

au

ris
co
pe

La balle qui froisse le silence


Les projectiles d’artillerie qui glissent
Comme un fleuve aérien
Ne mettez plus de coton dans les oreilles
Ça n’en vaut plus la peine
Mais appelez donc Napoléon sur la tour
Allô

Le petit geste du fantassin qui se gratte au cou où les totos


le démangent
La vague
Dans les caves
Dans les caves
Você vai achá-la
Trincheira da primeira linha
Os elefantes-para-balas
Uma biruta bem maligna
Olhares exaustos dos guardas
Velando aquela trégua insigne ah
Não vê nada chegando

pelo
Pe
ris

pio

A bala que rasga o silêncio


Os projéteis da artilharia deslizam
Como um rio aéreo
Não bote mais algodão nas orelhas
Não vale mais a pena
Melhor ligar pro Napoleão na torre
Alô

O gesto simples do recruta coçando a nuca bem onde os piolhos


machucam
Lá vem a onda
Se escondam
Se escondam
carte postale

1 Je t’écris de dessous la tente


Tandis que meurt ce jour d’été
Où floraison éblouissante
Dans le ciel à peine bleuté
Une canonnade éclatante
Se fane avant d’avoir été
cartão-postal

1 Te escrevo debaixo da tenda


Quando morre o dia de estio
Onde a floração ofuscante
Nesse céu de azul diluído
Um bombardeio cintilante
Fenece sem ter existido
leque dos sabores
souvenirs

1 Deux lacs nègres


Entre une forêt
Et une chemise qui sèche

Bouche ouverte sur un harmonium


C’était une voix faite d’yeux
Tandis qu’il traîne de petites gens

Une toute petite vieille au nez pointu


J’admire la bouillotte d’émail bleu
Mais le rat pénètre dans le cadavre et y demeure

10 Un monsieur en bras de chemise


Se rase près de la fenêtre
En chantant un petit air qu’il ne sait pas très bien
Ça fait tout un opéra

Toi qui te tournes vers le roi


Est-ce que Dieu voudrait mourir encore
recordações

1 Dois lagos negros


Entre a floresta
E uma camisa que seca

Boca aberta sobre o órgão de igreja


Era uma voz feito deus olhos
Enquanto a gente humilde rasteja

Uma velhinha de nariz pontudo


Admiro a botija de água quente esmaltada de azul
Mas o rato entra no cadáver e não sai mais

10 Um senhor de mangas arregaçadas


Barbeia-se à janela
Cantando uma canção que não sabe muito bem
Acaba virando uma ópera

E você que vira pro rei e diz


Será que Deus quer morrer outra vez
chevaux de frise

1 Pendant le blanc et nocturne novembre


Alors que les arbres déchiquetés par l’artillerie
Vieillissaient encore sous la neige
Et semblaient à peine des chevaux de frise
Entourés de vagues de fils de fer
Mon cœur renaissait comme un arbre au printemps
Un arbre fruitier sur lequel s’épanouissent
Les fleurs de l’amour

Pendant le blanc et nocturne novembre


10 Tandis que chantaient épouvantablement les obus
Et que les fleurs mortes de la terre exhalaient
Leurs mortelles odeurs
Moi je décrivais tous les jours mon amour à Madeleine
La neige met de pâles fleurs sur les arbres
Et toisonne d’hermine les chevaux de frise
Que l’on voit partout
Abandonnés et sinistres
Chevaux muets
Non chevaux barbes mais barbelés
20 Et je les anime tout soudain
En troupeau de jolis chevaux pies
Qui vont vers toi comme de blanches vagues
Sur la Méditerranée
Et t’apportent mon amour
Roselys ô panthère ô colombes étoile bleue
Ô Madeleine
Je t’aime avec délices
Si je songe à tes yeux je songe aux sources fraîches
Si je pense à ta bouche les roses m’apparaissent
30 Si je songe à tes seins le Paraclet descend
O double colombe de ta poitrine
Et vient délier ma langue de poète
Pour te redire
Je t’aime
Ton visage est un bouquet de fleurs
Aujourd’hui je te vois non Panthère
Mais Toutefleur
Et je te respire ô ma Toutefleur
Tous les lys montent en toi comme des cantiques d’amour et
d’allégresse
40 Et ces chants qui s’envolent vers toi
M’emportent à ton côté
Dans ton bel Orient où les lys
Se changent en palmiers qui de leurs belles mains
Me font signe de venir
La fusée s’épanouit fleur nocturne
Quand il fait noir
Et elle retombe comme une pluie de larmes amoureuses
De larmes heureuses que la joie fait couler
Et je t’aime comme tu m’aimes
50 Madeleine
cavalos de frisa

1 Naquelas noites brancas de novembro


As árvores sendo estraçalhadas pela artilharia
Ainda envelhecendo sob a neve
Vagamente lembrando cavalos de frisa
Cercados por ondas de arame farpado
Meu coração renascia como uma árvore na primavera
Árvore frutífera onde se abrem
As flores do amor

Naquelas noites brancas de novembro


10 Enquanto obuses assobiavam assustadoramente
E as flores mortas da terra exalavam
Seus aromas fatais
Dia a dia eu descrevia meu amor à Madeleine
A neve fixa flores pálidas nas árvores
E forra de arminho os cavalos de frisa
Eles estão por toda parte
Abandonados e sinistros
Cavalos mudos
Não cavalos barbos mas farpos
20 E os transformo de repente
Numa tropa de belos cavalos malhados
Vão avançando até você como ondas brancas
Sobre o Mediterrâneo
E trago meu amor por você
Rosalis ó pantera ó pombas estrela azul
Ó Madeleine
Delícia amar você
Se sonho com teus olhos sonho fontes frescas
Se penso em tua boca rosas aparecem
30 Se sonho com teus seios baixa o Paracleto
Ó pomba dupla teu peito
E vem desatar minha língua de poeta
Só pra repetir
Te amo
Teu rosto é um buquê de flores
Hoje não te vejo Pantera
Mas Todaflor
E eu te aspiro ó minha Todaflor
Todos os lírios brotam em você como canções de amor e alegria
40 E aquelas canções voando em tua direção
Me leve ao lado teu
Pro teu Oriente bonito onde os lírios
Viram palmeiras cujas mãos suaves
Me chamando acenam
Do foguete explode a flor noturna
Quando está escuro
Cai sobre a terra como uma chuva de lágrimas amorosas
Lágrimas felizes que a alegria derrama
E eu te amo e você me ama
50 Madeleine
chef de section

1 Ma bouche aura des ardeurs de géhenne


Ma bouche te sera un enfer de douceur et de séduction
Les anges de ma bouche trôneront dans ton cœur
Les soldats de ma bouche te prendront d’assaut
Les prêtres de ma bouche encenseront ta beauté
Ton âme s’agitera comme une région pendant un tremblement de
terre
Tes yeux seront alors chargés de tout l’amour qui s’est amassé
dans les regards de l’humanité depuis qu’elle existe
Ma bouche sera une armée contre toi une armée pleine de
disparates
Variée comme un enchanteur qui sait varier ses métamorphoses
10 L’orchestre et les chœurs de ma bouche te diront mon amour
Elle te le murmure de loin
Tandis que les yeux fixés sur la montre j’attends la minute
prescrite pour l’assaut
comandante de pelotão

1 Minha boca terá as ardências de Geena


Minha boca será para ti um inferno de doçura e sedução
Os anjos de minha boca vão entronizar teu coração
Os soldados de minha boca vão te tomar de assalto
Os sacerdotes de minha boca vão incensar tua beleza
Tua alma tremerá como uma região durante um terremoto
Teus olhos serão municiados com todo o amor acumulado nos
olhares da humanidade desde que ela existe
Minha boca será um exército contra ti um exército disparando
disparates
Mutante como um mágico que sabe variar suas metamorfoses
10 A orquestra e os corais de minha boca te dirão meu amor
Ela te murmura de longe
Enquanto grudo os olhos no relógio espero o momento do ataque
tristesse d’une étoile

1 Une belle Minerve est l’enfant de ma tête


Une étoile de sang me couronne à jamais
La raison est au fond et le ciel est au faîte
Du chef où dès longtemps Déesse tu t’armais

C’est pourquoi de mes maux ce n’était pas le pire


Ce trou presque mortel et qui s’est étoilé
Mais le secret malheur qui nourrit mon délire
Est bien plus grand qu’aucune âme ait jamais celé

Et je porte avec moi cette ardente souffrance


10 Comme le ver luisant tient son corps enflammé
Comme au cœur du soldat il palpite la France
Et comme au cœur du lys le pollen parfumé
tristeza de uma estrela

1 Bela Minerva que nasce nesta cabeça


Estrela de sangue minha coroa eterna
A razão lá no fundo o céu em minha testa
Você Deusa que há tempos é quem me governa

Por isso não foi lá tão mal o meu martírio


O furo quase fatal virou uma estrela
Mas a dor secreta que nutre meu delírio
É bem maior que uma alma possa escondê-la

Só que transporto em mim esta ardente ânsia


10 Como vaga-lume seu corpo incendiado
Como ao peito do soldado bate uma França
E no peito do lírio um pólen perfumado
la victoire

1 Un coq chante je rêve et les feuillards agitent


Leurs feuilles qui ressemblent à de pauvres marins

Ailés et tournoyants comme Icare le faux


Des aveugles gesticulant comme des fourmis
Se miraient sous la pluie aux reflets du trottoir

Leurs rires amassés en grappes de raisin

Ne sors plus de chez mois diamant qui parlais


Dors doucement tu es chez toi tout t’appartient
Mon lit ma lampe et mon calque troué
10 Regards précieux saphirs taillés aux environs de Saint-Claude
Les jours étaient une pure émeraude

Je me souviens de toi ville des météores


Ils fleurissaient en l’air pendant ces nuits où rien ne dort
Jardins de la lumière où j’ai cueilli des bouquets
Tu dois en avoir assez de faire peur à ce ciel
Qu’il garde son hoquet

On imagine difficilement
A quel point le succés rend les gens stupides et tranquilles

A l’institut des jeunes aveugles on a demandé


20 N’avez-vous point de jeune aveugle ailé

O bouches l’homme est à la recherche d’un nouveau langage


Auquel le grammairien d’aucune langue n’aura rien à dire

Et ces vieilles langues sont tellement près de mourir


Que c’est vraiment par habitude et manque d’audace
Qu’on les fait encore servir à la poésie

Mais elles sont comme des malades sans volonté


Ma foi les gens s’habitueraient vite au mutisme
La mimique suffit bien au cinéma

Main entêtons-nous à parler


30 Remuons la langue
Lançons des postillons
On veut de nouveaux sons de nouveaux sons de nouveaux sons
On veut des consonnes sans voyelles
Des consonnes qui pètent sourdement
Imitez le son de la toupie
Laissez pétiller un son nasal et continu
Faites claquer votre langue
Servez-vous du bruit sourd de celui qui mange sans civilité
Le raclement aspiré du crachement ferait aussi une belle consonne

40 Les divers pets labiaux rendraient aussi vos discours claironnants


Habituez-vous à roter à volonté
Et quelle lettre grave comme un son de cloche
A travers nos mémoires
Nous n’aimons pas assez la joie
De voir les belles choses neuves
Ô mon amie hâte-toi
Crains qu’un jour un train ne t’émeuve
Plus
Regarde-le plus vite pour toi
50 Ces chemins de fer qui circulent
Sortiront bientôt de la vie
Ils seront beaux et ridicules

Deux lampes brûlent devant moi


Comme deux femmes qui rient
Je courbe tristement la tête
Devant l’ardente moquerie
Ce rire se répand
Partout
Parlez avec les mains faites claquer vos doigts
60 Tapez-vous sur la joue comme sur un tambour
O paroles
Elles suivent dans la myrtaie
L’Éros et l’Antéros en larmes
Je suis le ciel de la cité

Écoutez la mer

La mer gémir au loin et crier toute seule


Ma voix fidèle comme l’ombre
Veut être enfin l’ombre de la vie
Veut être ô mer vivante infidèle comme toi

70 La mer qui a trahi des matelots sans nombre


Engloutit mes grands cris comme des dieux noyés
Et la mer au soleil ne supporte que l’ombre
Que jettent des oiseaux les ailes éployées

La parole est soudaine et c’est un Dieu qui tremble


Avance et soutiens-moi je regrette les mains
De ceux qui les tendaient et m’adoraient ensemble
Quelle oasis de bras m’accueillera demain
Connais-tu cette joie de voir des choses neuves

O voix je parle le langage de la mer


80 Et dans le port la nuit les dernières tavernes
Moi qui suis plus têtu que non l’hydre de Lerne

La rue où nagent mes deux mains


Aux doigts subtils fouillant la ville
S’en va mais qui sait si demain
La rue devenait immobile
Qui sait où serait mon chemin

Songe que les chemins de fer


Seront démodés et abandonnés dans peu de temps
Regarde

90 La Victoire avant tout sera


De bien voir au loin
De tout voir
De près
Et que tout ait un nom nouveau
a vitória

1 Um galo canta eu sonho folhagens se agitam


Suas folhas parecendo pobres marinheiros

Com asas e girando como um Ícaro de araque


Os cegos gesticulando feito formigas
Se admiravam nas calçadas empoçadas de chuva

Suas risadas aglomeradas em cachos de uvas

Não me deixe mais meu rubi falante


Durma suave a casa é tua tudo aqui é teu
Minha cama minha lamparina meu capacete furado
10 Olhares safiras preciosas cortadas perto de Saint-Claude
Eram dias de pura esmeralda

Cidade de meteoros não me esqueci de vocês


Floresciam no ar naquelas noites de insônia
Jardins da luz onde colhi buquês
Você deve estar cansado de assustar o céu
Que ele seu soluço abafe

Difícil imaginar
Como o sucesso torna as pessoas estúpidas e impassíveis

No instituto dos jovens cegos foram perguntar


20 Não tem aí um jovem cego que saiba voar

Oh bocas a humanidade busca uma linguagem nova


Uma que deixe os gramáticos sem ter nada a dizer

Essas velhas línguas estão a ponto de morrer


Só mesmo por muito comodismo e covardia
Que ainda as usamos para fazer poesia

Elas são como doentes sem vontade


Meu Deus vamos nos acostumar ao mutismo
Mímica funciona bem no cinema

Mas vamos insistir em falar


30 Agitemos a língua
Lancemos perdigotos
Queremos novos sons novos sons novos sons
Queremos consoantes sem vogais
Consoantes que peidem surdamente
Imitem o rumor do pião
Borbulhem um som nasal e contínuo
Estalem sua língua
Usem aquele barulho de gente mastigando de boca aberta sem
educação
A raspada do cuspe também dá uma bela consoante

40 Vários peidos labiais dariam brilho aos seus discursos


Se acostumem a arrotar à vontade
E qual letra grave como o som de um sino
Atravessando nossas memórias
Não amamos o bastante a alegria
De ver as belas coisas novas
Vamos amiga se apresse
Tema que um dia um trem não te comova
Mais
Olhe mais depressa veja você mesma
50 Essas ferrovias que circulam
Logo vão sumir de nossas vidas
E virar coisas belas e ridículas

Duas lamparinas queimam diante de mim


Como duas mulheres que riem
Curvo minha cabeça tristemente
Diante desse sarro ardente
Suas risadas se expandem
Por toda parte
Falem com as mãos estalem os dedos
60 Batuquem na bochecha como um tamborim
Oh palavras
Elas perseguem no bosque de murta
Eros e Anteros às lágrimas
Sou o céu desta cidade

Ouçam o oceano

Mar uivando e gemendo longe e sozinho


Minha voz fiel feito uma sombra
Quer ser enfim só a sombra da minha vida
Ser enfim oh só o mar infiel como você

70 O mar traidor de marinheiros sem conta


Engole meus gritos são deuses à deriva
E o mar ao sol só pode suportar a sombra
Que lançam pássaros de asas estendidas

A palavra é repentina um Deus que tremula


Avance e me apoie que eu sinto falta ainda
Daqueles dedos que me adoraram tão bem
Que oásis de braços me darão boas-vindas
Você conhece o prazer de ver coisas novas

Ó voz eu falo a língua do oceano eterno


80 No porto de noite nas últimas tavernas
Eu mais cabeça-dura que a Hidra de Lerna

Na rua onde nadam minhas mãos


Dedos sutis fuçando a cidade
Se vão sem nem saber se amanhã
Se essa rua ficasse parada
Onde é que estaria a minha estrada

Pense que um dia as ferrovias


Vão sair de moda e as abandonaremos em breve
Olha

90 Vitória sobretudo será


A capacidade de ver longe
Como ver tudo
De perto
E que tudo mais ganhe um nome novo
la jolie rousse

1 Me voici devant tous un homme plein de sens


Connaissant la vie et de la mort ce qu’un vivant peut connaître
Ayant éprouvé les douleurs et les joies de l’amour
Ayant su quelquefois imposer ses idées
Connaissant plusieurs langages
Ayant pas mal voyagé
Ayant vu la guerre dans l’Artillerie et l’Infanterie
Blessé à la tête trépané sous le chloroforme
Ayant perdu ses meilleurs amis dans l’effroyable lutte
10 Je sais d’ancien et de nouveau autant qu’un homme seul pourrait
des deux savoir
Et sans m’inquiéter aujourd’hui de cette guerre
Entre nous et pour nous mes amis
Je juge cette longue querelle de la tradition et de l’invention
De l’Ordre et de l’Aventure

Vous dont la bouche est faite à l’image de celle de Dieu


Bouche qui est l’ordre même
Soyez indulgents quand vous nous comparez
A ceux qui furent la perfection de l’ordre
Nous qui quêtons partout l’aventure

20 Nous ne sommes pas vos ennemis


Nous voulons vous donner de vastes et d’étranges domaines
Où le mystère en fleurs s’offre à qui veut le cueillir
Il y a là des feux nouveaux des couleurs jamais vues
Mille phantasmes impondérables
Auxquels it faut donner de la réalité
Nous voulons explorer la bonté contrée énorme où tout se tait
Il y a aussi le temps qu’on peut chasser ou faire revenir
Pitié pour nous qui combattons toujours aux frontières
De l’illimité et de l’avenir
30 Pitié pour nos erreurs pitié pour nos péchés

Voici que vient l’été la saison violente


Et ma jeunesse est morte ainsi que le printemps
O Soleil c’est le temps de la Raison ardente
Et j’attends
Pour la suivre toujours la forme noble et douce
Qu’elle prend afin que je l’aime seulement
Elle vient et m’attire ainsi qu’un fer l’aimant
Elle a l’aspect charmant
D’une adorable rousse

40 Ses cheveux sont d’or on dirait


Un bel éclair qui durerait
Ou ces flammes qui se pavanent
Dans les roses-thé qui se fanent

Mais riez riez de moi


Hommes de partout surtout gens d’ici
Car il y a tant de choses que je n’ose vous dire
Tant de choses que vous ne me laisseriez pas dire
Ayez pitié de moi
a ruiva bonita

1 Aqui estou eu diante de todos um homem cheio de sentidos


Que sabe a vida e da morte tanto quanto pode um homem vivo
Que provou as delícias e dores do amor
Que soube às vezes impor suas ideias
Que aprendeu várias linguagens
Que viajou um bocado
Que viu a guerra na Artilharia e na Infantaria
Ferido na testa trepanado sob clorofórmio
Que perdeu os melhores amigos na luta terrível
10 Que sabe do antigo e do novo tanto quanto um homem só pode
saber de ambos
E sem se inquietar hoje com essa guerra
Só entre nós e para nós meus amigos
Estou aqui para julgar a antiga polêmica entre a tradição e a
invenção
Entre a Ordem e a Aventura

Vocês e sua boca feita à imagem da boca de Deus


Boca em si mesma uma ordem
Sejam indulgentes quando nos compararem
Com os que foram a perfeição da ordem
Nós em toda parte em busca de aventura

20 Não somos seus inimigos


Queremos dar a vocês vastos e estranhos domínios
Onde o mistério florescente se oferece a quem quiser colhê-lo
E onde há novos fogos cores nunca vistas
Mil fantasmas imponderáveis
Que só precisam ganhar uma realidade
Queremos explorar a bondade país imenso onde tudo está em
silêncio
Tem também o tempo que pode ser banido ou chamado de volta
Piedade de nós que combatemos sempre nas fronteiras
Do infinito e do futuro
30 Piedade dos nossos erros piedade dos nossos pecados

Vem agora o verão estação violenta


A juventude morta como a primavera
Oh Sol chegou a hora da Razão ardente
E eu à espera
De seguir pra sempre a forma nobre e amável
Que ela assume para que eu a ame somente
É ela que me atrai como se fosse um ímã
Ela que tem o charme incrível
De uma jovem ruiva adorável

40 Os seus cabelos são de ouro


Um belo clarão que perdura
Aquelas chamas que se mostram
Nas rosas-chás que já desbotam

Mas riam riam sim de mim


Homens de toda parte especialmente daqui
Pois há tantas coisas que não ouso dizer
Tantas coisas que vocês nunca me deixariam dizer
Tenham piedade de mim
Comentários

ÁLCOOIS

zona

Publicado na revista de literatura e arte Les Soirées de Paris em


dezembro de 1912 . O título anterior era “Cri” (grito). Poema-chave
do modernismo francês e internacional, é considerado um dos poemas
mais importantes do século xx . Com 155 versos, foi o escolhido por
Apollinaire para abrir Álcoois. Junto com o monóstico “Cantor”, foi
o último poema a ser escrito e incluído no livro. Serve de perfeita
transição de Álcoois (1913) para Caligramas (1918), sobretudo para a
primeira parte (“Ondas”). Poema em versos livres e rimas
emparelhadas: perfeitas, imperfeitas ou toantes. Exemplo clássico de
poema-passeio (como “O músico de Saint-Merry”, “Um fantasma de
nuvens”, “As colinas”, entre outros). Na composição, que já foi
definida como uma pastoral urbana, o “eu lírico” flana por Paris (com
“aparições” em outras cidades) ao longo de 24 horas, formando um
ciclo completo. Marcado pelo fluxo de consciência, os saltos não
lineares da memória, e com estrutura peripatética, “Zona” está
repleto de alusões autobiográficas, além de referências mitológicas,
religiosas, históricas e urbanas. O poema representa uma virada em
sua poesia, a criação de uma zona de fronteira entre tradição e
inovação, tendo impacto na poesia mundial, inclusive brasileira.
Apollinaire teria sido impulsionado a terminar seu poema graças aos
exemplos de poemas e livros importantes que tinham acabado de sair:
Páscoa em Nova Iorque, de Blaise Cendrars (outubro de 1912 ), O
monoplano do Papa, de seu conterrâneo Filippo Marinetti (1912), e A
prosa do Transiberiano e da pequena Joana de França, de Cendrars e
Sonia Delaunay (1913). Melhor seja dizer que “Zona” dialoga com
essas composições. O título, “Zone” (do grego, “cinturão”, “cintura”)
vai bem ao gosto da poética simultaneísta de Apollinaire, uma palavra
que comporta vários significados: 1) nome dado às zonas pobres e aos
cortiços da periferia, localizados no cinturão de Paris (antigamente
uma zona militar que se estendia além das antigas fortificações da
cidade, ocupada ilegalmente por construções leves e miseráveis); 2 )
referência à zona do meretrício, “zona erógena”; 3) possível referência
à zona geográfica (zone franche) situada perto de Étival (nas
montanhas do Jura, onde esteve em junho de 1912 com Picabia e
Duchamp); 4 ) referência às primeiras experiências de aviação,
realizadas na Zone de Issy, perto do bairro de Auteuil, onde
Apollinaire morou; 5 ) o título também remete a seu sentido
etimológico de cinturão, à estrutura circular do poema: da manhã do
segundo verso ao nascer do Sol Degolado, que o encerra.

Linha 1 : Apollinaire começa o poema com as palavras “No fim”,


reforçando o caráter circular da composição. Primeiro verso
em alexandrino clássico, com as devidas sílabas tônicas na
sexta e 12a sílabas: “A/ la/ fin/ tu/ es/ las/ de/ ce/ mon/dean/
ci/ en”. No/ fim/ vo/ cees/ tá/ far/ to/ des/ te/ mun/ doan/ ti
(go), como se o “cansaço” fosse também com os modelos e
as convenções da poesia francesa. Os demais são escritos em
versos livres e irregulares (alguns se aproximando do
alexandrino). Estrofes também irregulares, com a presença
de versos isolados. Prosseguindo a leitura vemos que os
versos não são tão “livres” quanto parecem. Como observa
Ron Padgett, “a dicção de Apollinaire é tão natural que
demora um pouco para muitos leitores perceberem que o
poema é escrito principalmente em dísticos rimados”.1 De
fato, o poema quase inteiro é composto de rimas
emparelhadas (a a, b b etc., sejam elas perfeitas, imperfeitas,
compostas, toantes etc.). Há exceções: éternité/œil,
cachette/collège. Um traço intrínseco da obra que muitos
tradutores evitaram, não o recuperando em suas versões.
Linha 2: Usando personificação, o poeta opera uma fusão do pastoral
com o urbano: no século xix a magnífica torre Eiffel
(inaugurada em 1889 ), símbolo da modernidade, era
chamada de “A Pastora” (La Bergère), por ficar à margem
(berge) do rio Sena. Já o trânsito sobre as pontes de Paris
(havia mais de trinta sobre o Sena) é descrito como um tropel
(troupeau): um “conjunto de pessoas ou animais movendo-se
rapidamente e de maneira desordenada”, o “barulho que se
faz ao andar” (tropel de passos), “ruído forte produzido pela
locomoção de vários animais” e ainda figurativo para
“situação confusa e barulhenta; alvoroço, caos”. Mais
adiante, temos a imagem “rebanho de ônibus”.
Paradoxalmente, o poeta nos joga no torvelinho do mundo
moderno e urbano (a fervilhante Paris da belle époque)
usando imagens do campo (“tropel”, “pastora”, “rebanho”,
“mugem”), além de alusões arcaicas, exóticas e mitológicas.
Linha 3: Além da total ausência de pontuação o poema é marcado por
uma grande indeterminação pronominal. Ora o sujeito é eu,
ora você (o poeta dirige-se a si mesmo ou se retrata na
segunda pessoa), ora nós e eles. Essa indeterminação e
fragmentação do sujeito lírico serão marcas da poesia
modernista (ecoando a sugestão de Rimbaud, uma das
referências de Apollinaire, “Eu é um outro”). O “eu” é
fragmentado, com mudanças constantes de ponto de vista,
como o tratamento dos objetos numa pintura cubista ou uma
imagem em um espelho quebrado. Mesmo assim, a
catalisadora de todas as contradições do poema é a
consciência desse “eu”. Como definiria o poeta pioneiro da
“poesia da cidade”, Baudelaire, o flâneur é “um calidoscópio
dotado de consciência”.
Linha 4 : Alguns dos primeiros automóveis (outro símbolo da
modernidade) lembravam as antigas carroças. Embora a
princípio Apollinaire cante a modernidade, há certa nostalgia
pelo passado (as certezas da religião, infância, imagens da
vida rural, a natureza).
Linha 6: Port-Aviation: aeródromo para pousos, decolagens e corridas
localizado a cerca de vinte quilômetros ao sul do centro de
Paris, o primeiro do seu tipo no mundo. Fundado pela
Sociedade de Encorajamento à Aviação, ali também
funcionava uma escola de pilotagem. O aeródromo continha
hangares, arquibancadas, edifícios administrativos e campo
de pouso. Padgett2 observa que o design do aeroporto era
limpo e funcional (por isso, “simples como os hangares do
Porto-Aviação”). Os meios de transporte em geral
fascinavam Apollinaire, sobretudo a aviação e os
automóveis. Referências aos aviões (geralmente fundidos
com milagres de santos, com Jesus Cristo ou, ainda, o mito
de Ícaro) aparecem em outros poemas. Para Pär Bergman,
nos poemas do modernismo (Marinetti, Apollinaire) os
aviões exercem muitas vezes uma função simbólica,
significando “o pensamento humano, a imaginação do poeta
e outras qualidades do espírito”.3
Linhas 7-8: Pio x (Giuseppe Merchiorre Sarto, 1835-1914) foi papa de
1903 a 1914 . O termo “modernismo” teria aparecido, pela
primeira vez, em sua encíclica Pascendi dominici gregis
(1907), condenando o modernismo católico, como indica o
subtítulo: “Carta encíclica do papa Pio x sobre os erros do
modernismo”. Portanto, o verso não deixa de ser uma
afirmação irônica de Apollinaire. Em 1911 o papa abençoou
o aviador André Beaumont, vencedor da corrida Port-
Aviation-Turim-Roma. Em 11 de junho do mesmo ano Le
Petit Journal, um diário bastante popular de Paris, trazia na
capa uma ilustração colorida do papa, assistindo ao avião de
Beaumont sobrevoar a basílica de São Pedro. Apollinaire,
que era antenado com tudo o que acontecia, certamente a
viu.
Linhas - e
12 4 21 2- : O “eu lírico”, flutuante, calidoscópico, incorpora,
como uma colagem, todos os textos e fragmentos de
linguagem e signos da grande cidade moderna, dos meios de
comunicação e reprodução em massa: cartazes, placas,
propaganda, folhetos publicitários, jornais, “ficção de polpa”
etc.
Linha 17 : Sténo-dactylographes: secretária que domina a
estenodatilografia (técnica que combina a estenografia, um
método de escrita abreviada, com a datilografia para a
transcrição veloz de informações). Dactyl (dáctilo): uma
medida da poesia greco-latina, formada de uma sílaba longa
e duas breves.
Linha 19 : Sirène: em uma palavra Apollinaire novamente funde o
arcaico e o moderno, remetendo à mitologia grega (Sereias,
representadas originalmente como metade mulheres e metade
pássaros, e não peixes) e o nome dos dispositivos modernos
de alarmes (sirenes).
Linha 15: Provalmente a rua Guersant, em Paris.
Linha 24 : Avenida dos Ternos e rua Aumont-Thiéville: ruas ao
nordeste de Paris, perto da Porta de Champerret.
Linha 26 : Na infância a mãe, Angelica, costumava vestir o poeta e seu
irmão Albert de branco e azul, cores associadas à Virgem
Maria, conforme nota Ron Padgett.4
Linha 27 : René Dalize, pseudônimo literário de René Dupuy des
Islettes (1879-1917), um grande amigo de infância e de
colégio em Mônaco. Dalize e Apollinaire se reencontrariam
em Paris em 1903 . Juntos, fundariam em 1912 uma revista,
Les Soirées de Paris, que rapidamente se tornaria uma
importante referência artístico-cultural. Dalize, a quem
Caligramas é dedicado, foi morto na Primeira Guerra
Mundial.
Linha 30 : Capela do oratório do Colégio Saint-Charles, em Mônaco,
onde o poeta estudou quando criança.
Linha 31 : Ametista: símbolo da divindade e da crucificação em obras
cabalísticas e lapidários medievais. Em um poema, intitulado
“Paris”, Apollinaire chamou a capital francesa de “uma
grande ametista”.
Linha 32 : Glória: aqui a referência é à arte cristã, ao halo ou anel de
luz que aparece nas representações de santos e figuras
religiosas.
Linha 33: O lírio é o símbolo da Virgem Maria e, portanto, da pureza.
Linha 37: Referência à cruz sagrada.
Linha 38 : Símbolo de poder e proteção, está presente em várias
culturas antigas, tradicionalmente associado ao judaísmo
(estrela de davi). No cristianismo, é identificada com o
Messias (Jesus).
Linha 41 : Prosopopeia: o século xx é capaz de levitar e voar, como
Cristo, fundido num aeroplano e transformado num aviador
(ou um “super-homem” nietzscheano). Apollinaire, segundo
alguns estudiosos, teria “emprestado” essa imagem do
Cristo-avião de Filippo Tommaso Marinetti, em seu romance
em versos futurista O monoplano do papa (1912) e em Poeta
futurista. A imagem do “Cristo Voador” também remete à
pintura de seu amigo Marc Chagall, com seus personagens e
seres flutuantes no espaço da tela (os Luftmenchen, pessoas
aéreas e sonhadoras, em iídiche).
Linha 42 : Pupila dos olhos de Cristo: trocadilho com pupila (ocular e
discípula) e Cristo (cristalino do olho).
Linha 46: Simão Mago: na Bíblia (Atos 8,9-24), da discussão de Simão
com o apóstolo Pedro nasce o termo “simonia”: ato de
Simão, tráfico de coisas sagradas e espirituais. Simão Mago
ofereceu dinheiro para comprar o Espírito Santo. Com seu
mestre, Dositeu, teria aprendido as artes mágicas, incluindo
voar e levitar, dando exibições públicas para provar sua
doutrina gnóstica.
Linha 47 : Ils crient s’il sait voler qu’on l’appelle voleur: os demônios,
nesta passagem que remete a Dante, gritam tal frase para o
Jesus-aviador, escarnecendo dele e acusando-o de plágio e
imitação (mencionando outros “aviadores” famosos). Os
demônios fazem um trocadilho sacana com voler (voar) e
vouler (gíria para “roubar”): “Eles gritam: ‘se ele sabe voar,
que o chamem de ladrão’”. “Gritam voar é fácil aviãozinho
você já é”, uma solução aproximada, enquanto “Já é”
mantém relação sonora com “Judeia”, já que a rima (mesmo
que toante) é fundamental para a estrutura do poema. No
Brasil, “avião” ou “aviãozinho” é o traficante que
repassa/vende/transporta drogas. Avion (do latim avis, ave, e
o sufixo atio) era uma palavra relativamente recente (foi
empregada pela primeira vez em 1863 e difundida em 1890 ,
em um registro de patente, por um pioneiro da aviação,
Clément Ader). Apollinaire adorava a palavra, sobretudo
pelo trocadilho que possibilitava com o sobrenome de seu
poeta favorito, Villon.
Linha 49 : Ícaro Enoque Apolônio de Tiana e Elias: tanto o patriarca
Enoque, filho de Caim, quanto Elias (Gênesis , ­-
5 18 24 ) são
mencionados como tendo sido levados aos céus (o primeiro
“levado por Deus, desapareceu”). No livro de Enoque ele
detalha sua abdução e naves voadoras, que ele descreve
como sendo “casas de cristais”. O profeta Elias (Reis , -
2 2

13 ), que tinha habilidades extraordinárias, foi levado aos


céus por “carruagens de fogo”. Apolônio de Tiana (15-100
d.C.): filósofo grego neopitagórico, com reputação de
fazedor de milagres e capaz de desaparecer em público. “Na
sua morte ele simplesmente saiu voando pelos céus.”5 Ícaro:
personagem da mitologia grega, célebre por seu desejo de
voar e sua conhecida desventura: ao se aproximar do sol, a
cera de suas asas se derrete e ele cai no mar.
Linhas 54 70- : Um cortejo de aves raras e exóticas, provenientes de
várias partes do mundo. A imagem do cortejo é elemento
importante em “Zona” e em poemas como “Cortejo”, “O
músico de Saint-Merry” e “A casa dos mortos”. Possível
inspiração em O monoplano do papa, de Marinetti, ou nos
versos de A prosa do Transiberiano, de Blaise Cendrars: “É a
terra dos pássaros/ O pássaro do paraíso, o pássaro-lira/ O
tucano, o beija-flor/ E o beija-flor faz ninho no coração dos
lírios negros/ Venha!”.6
Linha 56: Marabus: grande cegonha africana.
Linha 57: Pássaro-Roca ou Roca: ave gigantesca e fictícia da mitologia
oriental. Aparece, por exemplo, em O livro das mil e uma
noites, simbolizando tanto morte iminente quanto
imortalidade.
Linha 58 : Referência ao crânio do primeiro homem a morrer no
Calvário.
Linha 63: A pomba é símbolo tradicional do Espírito Santo.
Linha 64 : Pássaro-lira: mais um item para o catálogo de aves
mitológicas e exóticas. Originária da Austrália, uma das
maiores aves canoras do planeta, com incrível capacidade de
imitar sons. Suas penas, quando esticadas, exibem o formato
de uma lira.
Linha 65 : Fênix: pássaro da mitologia grega que tinha o poder de
renascer das próprias cinzas.
Linha 67 : As Sirenas da mitologia grega, que marcam presença na
Odisseia, de Homero, originalmente eram metade mulheres e
metade pássaros.
Linha 69 : Pihis: refere-se ao Jianjian ( 鶼鶼 ), ave da mitologia chinesa
que tem uma asa e um olho só. Por isso, elas só conseguem
decolar e voar aos pares, uma “colada” à outra. Simbolizam
a inseparabilidade e interdependência de marido e mulher.
Linha 71 : Aqui o catálogo simultaneísta de aves se encerra
bruscamente e o poeta retoma sua errância por Paris. Volta o
tema da perda da amada e da desilusão amorosa (o poema é
marcado pelo rompimento traumático com a pintora Marie
Laurencin, em 1912).
Linha 81 : Referência ao fluxo menstrual, imagem amenizada em
relação à primeira versão.
Linha 84 : Sagrado Coração, famosa basílica situada no alto da colina
de Montmartre, com vista panorâmica de Paris.
Linha 89 : Mediterrâneo: Apollinaire passou sua infância na Côte
d’Azur, litoral sul da França.
Linha 92 : Nissard. Turbiasque. Mentonasque: habitantes das cidades
de Nice, La Turbie e Menton, todas no sul da França.
Reminiscências dos amigos de infância.
Linha 94 : Um dos primeiros símbolos do cristianismo, ao lado da
cruz, o símbolo do peixe remetia a ichthys, cujas letras para
os cristãos formam a frase “Iēsous Christos Theou Yios
Sōtēr” [Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador].
Linha 97 : Eco de William Blake e seu poema “The Sick Rose”, que
fala do “câncer no coração da rosa”. Imagem da pureza
corrompida pelo pecado.
Linha 98 : Cétoine: referência a Cetonia aurata, besouro verde e
dourado que se alimenta de rosas.
Linha 99 : São Vito: catedral de Praga, onde Apollinaire teria visto o
próprio rosto nos veios de uma parede de ágata. Ele teria se
aterrorizado com a experiência (o mesmo ocorre com o
personagem do judeu errante na sua história “O transeunte
de Praga”). São Vito é também o nome da igreja romana
onde ele foi batizado.
Linha 102 : Referência aos famosos relógios localizados na cidade
velha de Praga, que giram em sentido anti-horário, como o
“eu lírico” nesse poema, retrocedendo ao passado.
Linha 104 : Hradchin: castelo real em Praga (República Tcheca), na
parte antiga da cidade.
Linha 107 : Koblenz: cidade alemã situada no entroncamento dos rios
Reno e Moselle.
Linha 110: Leyde: Leiden ou Leida, cidade da Holanda.
Linha 111: Cubicula locanda: “alugam-se quartos”, em latim.
Linha 112 : Gouda: cidade holandesa, a 62 quilômetros ao sul de
Amsterdam, famosa pelo seu queijo.
Linha 113 : Referência ao interrogatório e posterior prisão de
Apollinaire em 1911 , suspeito pelo roubo de algumas
estátuas do Museu do Louvre, durante as investigações do
sumiço da Mona Lisa.
Linha 121 : Agora a hora do crepúsculo, um passeio pelas ruas do
quarteirão judeu de Paris e menção às prostitutas, bem como
aos destituídos, refugiados e imigrantes (como ele). O dark
side da modernidade. Um dos rumores que corriam era que
Apollinaire fosse judeu, por parte de mãe (o que não era
verdade).
Linha 124 : Gare Saint-Lazare: um dos maiores terminais de trem de
Paris e, segundo Martin Sorrell, “onde os emigrantes
embarcavam no trem para La Havre, para embarcar para os
Estados Unidos”.7 Apollinaire frequentava os bares da região
nos primeiros anos em Paris.
Linha 125: Apollinaire faz trocadilho com argent (“prata”, dinheiro) e
Argentina (um dos destinos dos refugiados judeus). Argent
originou a palavra portuguesa “argém”, usada antigamente
para designar a “prata” ou a grana.
Linha 127 : Edredom vermelho: refere-se à coberta dada pela mãe do
poeta na infância e suas constantes mudanças.
Linha 130 : Ruas do bairro do Marais, no Quarto Arrondissement, em
Paris.
Linha 140 : Jersey: ilha localizada no canal da Mancha, hoje
considerada um paraíso fiscal.
Linha 143 : Pauvre fille: tradutores como Greet, Revell e Padgett
verteram como “pobre menina”. Beckett, um dos melhores
tradutores desse poema, fez “To a poor harlot horribly
laughing I humble my mouth” [Para uma pobre prostituta
rindo horrivelmente, humilho minha boca]. Avaliei usar
“putinha” mas, pelo contexto do poema (descrição de
pessoas à margem da sociedade, imigrantes, pobres,
mendigos, mendigas, prostitutas etc.), optei por “mendiga”.
Linha 146 : Métive: a antiga forma de métisse (mestiça, mulata),
branca e preta. Provável referência à novela pornográfica
Une Nuit d’orgies à Saint-Pierre Martinique, de Effe Géache
ou, ainda, a Marie Laurencin. O poeta mergulha em sua
solidão e no álcool.
Linha 147 : Ferdine e Léa: nomes de prostitutas. Ferdine, possível
referência a uma prostituta da novela pornográfica Une Nuit
d’orgies à Saint-Pierre Martinique, de Effe Géache. A novela
constava do catálogo de livros proibidos da Biblioteca
Nacional que Apollinaire ajudou a compilar. Possível
referência à famosa pintura de Picasso, As damas de
Avignon.
Linha 148 : Eau-de-vie: literalmente, “água-da-vida”, termo genérico
para destilados (rum, gim, uísque etc.). Era o título original
de Álcoois. Em português temos a palavra “aguardente”
(água + ardente).
Linha 150 : Auteuil é o bairro parisiense em que Apollinaire morava
desde 1909 , primeiramente na rua Gros no 37 e, depois, na
rua Jean de la Fontaine no 10 , para estar mais perto da casa
de Laurencin.
Linhas 151 3 - : Apollinaire, Vlaminck, Picasso e outros artistas da
época eram fascinados pela arte africana (nègre) e
“primitiva”. Apollinaire colecionava várias estatuetas e
máscaras da África e da Oceania em seu apartamento.
Claude Debon observa: “Zona” começa como um hino à
modernidade mas termina com “um mergulho num passado
mítico de civilizações então consideradas primitivas”.8
Linha 154 : Adieu Adieu: a ausência de pontuação e a repetição da
palavra permitem a Apollinaire fazer um trocadilho sonoro:
Adieu à Dieu (Adeus a Deus).
Linha 155 : Soleil (sol) cou (pescoço) coupé (cortado). A versão
anterior desse verso era “Soleil levant cou tranche” [Sol
nascente pescoço cortado]. Apollinaire já havia, em outros
poemas, comparado o sol com uma cabeça cortada ou,
ainda, com um ventre estripado sangrando sobre o céu. Em
“O noivado” (“Les fiançailles”, não traduzido aqui) temos
os versos “Ele vive decapitado sua cabeça é o sol/ E a lua seu
pescoço cortado”. Para Francis Carmody a imagem deriva de
Marinetti, no retrato de Sainte Pourriture do drama O rei
pândego (1909): Durant la nuit, je me visse au cou une
lune… dès l’aurore je fixe sur mon cou un rouge soleil
levant”.9 [Durante a noite, rosqueio uma lua em volta do
meu pescoço... na aurora fixo em meu pescoço um nascer do
sol vermelho]. Apollinaire fecha seu poema com uma
imagem típica de sua “estética da surpresa”: analogia entre o
sol nascendo, “cortado” pela linha do horizonte (ou do
skyline de Paris visto do telhado de sua casa), e um pescoço
decapitado. O amanhecer em Paris, durante a Revolução
Francesa, era conhecido como o momento em que
aconteciam os guilhotinamentos. Aqui o poeta complica o
jogo verbal-imagético: cou é pescoço mas cou coupé (pescoço
cortado) é um pássaro nativo da África que possui uma
mancha vermelho-sangue no pescoço: o cou coupé, amadine
cou coupé, Amadina fasciata. Daí o nome, entre nós, de
degolado. A alusão faz total sentido no contexto do poema,
por seu cortejo de pássaros exóticos e a menção anterior à
África e Oceania: os degolados são originários das planícies
do Senegal e Sudão. Além de enfatizar a paisagem povoada
de pássaros de todas as partes do mundo, Apollinaire tinha
interesse em pássaros exóticos e curiosos e conhecia o
“degolado”, bem como a “pomba apunhalada” (Colombe
poignardée), do poema “A pomba apunhalada e o chafariz”.
Tudo isso faz esse último verso (feito de três palavras curtas)
particularmente difícil de ser traduzido: optei por “Sol
Degolado” (com o nome do pássaro em maiúscula sugerindo
visualmente o pássaro de garganta cortada ou, ainda, como
um “O” cortado pela metade, se visto de outro ângulo da
página). Augusto de Campos, em Dessurrealistas franceses:
Extraduções (Londrina: Galileu, 2020 ), traduz apenas o
último verso, criando um caligrama do sol nascendo (“sol/
goela/ degolada”).

a ponte mirabeau

Escrito no fim de 1911 . Publicado pela primeira vez em fevereiro de


1912 na revista Les Soirées de Paris. O poema, cheio de aliterações e
assonâncias, alterna quartetos (4) e dísticos (4). Tem uma métrica
complexa, que não costuma ser respeitada pelos tradutores. Primeiro
verso em dez sílabas poéticas, o segundo em quatro, o terceiro em seis
(somando, tem-se um decassílabo dividido em duas linhas) e o quarto
verso em dez sílabas, seguido pelo dístico em sete sílabas (funcionando
como refrão). Influenciada pela chanson de toile, gênero narrativo da
poesia dos trovadores provençais (século xii ). O espaçamento e o
layout sugerem uma ondulação na página, prefigurando os jogos
espaciais de Caligramas. A abolição da pontuação potencializa o
tema, já que assim os versos parecem fluir, possibilitando várias
leituras. Mirabeau, Mirabèu, em provençal, vem de “mirar” (“ver”,
“olhar”) + bèu (“belo”, “bonito”): lugar belo de se ver, bela vista.
Apollinaire vai incorporar esse jogo de palavras nas imagens do
poema no verso “os olhares eternos de ondas lassas”.
Talvez o poema mais popular de Apollinaire, “A ponte Mirabeau”
tem sido definido como uma breve meditação heraclitiana sobre o
tempo e a vida: “Não se atravessa duas vezes o mesmo rio”. Os versos
ecoam também uma citação de Lamartine: “O homem não é um
porto, o tempo não tem margem,/ nem o tempo é um rio./ Mas ele
escoa e nós passamos”. É também uma elegia, um poema sobre a
melancolia, a passagem do tempo e do amor, escrito na ressaca da
separação da pintora Marie Laurencin (1883-1956). O crítico Michel
Décaudin vê esse poema como um resumo da questão central de
Álcoois: “O mundo de Álcoois é um mundo em fuga, onde tudo se
esvai. O poeta imóvel sobre a ponte Mirabeau vê as águas passarem
como passam o amor e a lembrança”.10 Traz, ainda, a estranha
sensação do mundo ser um fluxo e apenas o eu um ponto imóvel no
espaço (como a ponte). Vemos aqui um bom exemplo de “correlato
objetivo”11 de T.S. Eliot: a ponte, a passagem de suas águas, os sinos,
tudo traduz uma emoção complexa. Apollinaire mostra, não descreve.
Mirabeau: ponte sobre o rio Sena, construída entre 1895 e 1897 , a
primeira ponte metálica, moderna, de Paris. Apollinaire
frequentemente passava por ela, pois era seu caminho para chegar à
casa de Laurencin. Pura melopeia (ênfase dada à música das palavras),
foi musicado diversas vezes. Anne Hyde Greet aponta ecos com a
canção medieval anônima “Gaieté et Oriour” e com o poema “Allé
s’en est, et je demeure”, de François Villon (1431--63). Há também
ecos de “Canção de outono”, de Paul Verlaine, outro poeta que ele
amava: “Tout suffocant/ Et blême, quand/ Sonne l’heure,/ Je me
souviens/ Des jours anciens/ Et je pleure” [E soluçando,/ Pálido,
quando/ Soa a hora,/ Recordo todos/ Os dias doidos/ De outrora].12

Linha 21: O amor é associado ao rio Sena. Ver o poema “Maria”.

açafrões

Escrito provavelmente no outono de 1901 e começo de 1902 , na


temporada em que Apollinaire morou e trabalhou na Alemanha como
professor de francês da filha da viscondessa de Milhau, o poema
revela a melancolia de seu amor não correspondido por Annie Playden
(1880-?), governanta inglesa que trabalhava na mesma casa. Foi
publicado na revista neossimbolista La Phalange em 15 de novembro
de 1907 , sendo composto quase todo em alexandrinos (doze sílabas
poéticas, com alguns versos com treze), tecido por aliterações (em l, c,
f) e rimas quase todas emparelhadas (esquema a b a c c a a / c c d d b /
b a a). Na minha tradução, a métrica também é irregular, tendo
empregado sobretudo o verso de onze sílabas.

Título: Colchique automnale: flor da família da liliácea, conhecida


como ancólia ou ancolia (outro nome para “aquilégia”),
cólquica, açafrão-do-prado e lírio-verde. O nome vem de
Cólquida, região grega onde nasceu a bruxa e envenenadora
Medeia. O açafrão-do-prado é tóxico por conter a substância
colchicina. O tema da mulher-flor teria sido sugerido a
Apollinaire pela poesia de Pierre de Ronsard (1524-85).
Linhas 2 3 - : Na primeira versão desse poema, datada “Neu Glück
1902 ” (uma das casas da viscondessa de Milhau), essas
linhas eram uma só (em alexandrino): “Les vaches y paissant
lentement s’empoisonnent”.
Linhas 2 , 7 : A repetição do advérbio “lentamente” reforça a
identificação do “eu lírico” com os animais: ambos pastam
as flores venenosas (em um caso, as flores reais, em outro,
metaforizadas nos olhos da amada que o rejeitou, uma
tônica em Álcoois).
Linha 8 : A chegada das crianças rompe a monotonia da cena. Elas
também, como as vacas, colhem as flores sem se importar ou
saber se são venenosas. Fracas: agitação barulhenta.
Linha 9: Harmonica: gaita de boca (aqui traduzido, pela exigência da
rima, mas sem que a imagem perca muito, por apitos). A
imagem é circular: assim como os açafrões envenenam
(hipoteticamente) as vacas, os açafrões dos olhos e olheiras
da amada envenenam a vida do poeta. Hoqueton: casaco
curto e sem mangas, frequentemente usado por militares ou
pessoas envolvidas em atividades ao ar livre (como pastores)
que exigiam proteção contra o frio.
Linha 11 : Filhas de suas filhas: enfatiza ainda mais a circularidade, os
ciclos da natureza. A correspondência entre o estado de
espírito do poeta e a paisagem que descreve é interrompida
pela entrada dos estudantes barulhentos, remetendo à
infância do poeta.
Linha 12 : Personificações: o vento “demente” se debate, como as
pálpebras, sob o efeito tóxico dos açafrões; a paisagem toda
está intoxicada e morrendo aos poucos.
Linhas 13 5 - : As vacas “vão embora” para sempre (ou seja, morrem),
lentamente, sob efeito da colchicina. Ambiguidade: mal
floriu/ floriu de mal. O verso final remete a As flores do mal,
obra de Charles Baudelaire. Este escreve, em “O veneno”:
“Isso tudo não vale o veneno que vem/ Dos seus olhos […]”.

cantor

Poema incluído em Álcoois na última hora, terminado em setembro-


outubro de 1913 . Ocupa, no livro, uma proximidade contrastante
com o poema longo “Zona”. É o poema mais curto de Apollinaire e se
aproxima do haiku (de modo apollinairiano, sob sua “estética da
surpresa”). Monóstico (poema de apenas um verso) em alexandrino
clássico (doze sílabas poéticas, com uma cesura entre a sexta e sétima
sílabas e sílabas tônicas na segunda e sexta sílabas): “Et l’uni/ que
cordeau// des trompet/tes marines”. O mesmo na tradução: “E o
cordão solitário das trombas marinhas”. Trompette marine é a tromba
ou trompa marinha, estranho instrumento medieval de uma corda só,
tocado com um arco. Podemos considerar essa composição como um
caligrama minimalista, já que a linha única acaba sendo a
representação gráfica da corda solitária do insólito instrumento (assim
como os fios de água correndo pela vidraça, representados em linhas
diagonais, em “Chove”, exemplos de tipografia funcional e nada
decorativa dos caligramas).
O título do poema já se apresenta na forma de uma charada.
“Cantor” remete ao poeta lírico, chamado aedo (rouxinol) na Grécia
antiga, que declamava acompanhado de uma lira, instrumento de
cordas. Referência também ao poeta-cantor Orfeu, da mitologia
grega, com quem Apollinaire se identificava (ele batizou o momento
artístico de orfismo, que buscava analogias entre a música e a
abstração). Procurei manter a estranheza no uso da palavra “cordão”
(e não “corda”) e na opção mais estranha por “trombas marinhas”.
Há um trocadilho no uso de cordeau (corda), que sonoramente remete
à cordeaux (cordão de alinhamento usado por pedreiros e jardineiros),
cor d’eau (corno ou trompete de água), cord’eau (cordão de água) e
corps d’eau (corpo d’água). Bem ao gosto da estética da surpresa
apollinairiana, o verso sugere leituras simultâneas: 1) a corda grossa e
solitária do instrumento, 2) a linha-verso solitária do próprio poema,
e 3 ) analogia com o cordão de uma tromba-d’água no mar. O
trompette marine é tocado de pé, como o violoncelo, e seu formato
lembra um ser humano estilizado (sugerindo as telas cubistas em que
Braque e Picasso inseriam instrumentos musicais).

crepúsculo
Escrito em fevereiro de 1909 . Publicado pela primeira vez em Les
Argonautes (fevereiro de 1909 ) junto com “Saltimbancos”. Poema
composto de cinco quartetos em octossílabos (verso de oito sílabas,
um dos metros favoritos de Apollinaire). Muitas assonâncias, com
rimas ocorrendo de modo irregular de estrofe a estrofe. Poema
misterioso e, como “Annie”, “1909” e outros, traz uma mulher como
personagem (aqui, a Arlequina). O poema estabelece um diálogo com
as pinturas de Marie Laurencin (a quem o poema é dedicado),
Rousseau e Picasso, pela presença de arlequins, mágicos, feiticeiros,
cartas de tarô e animais. Anne Hyde Greet13 assinala que as imagens
sugerem a atmosfera de conto de fadas da temporada do poeta na
Alemanha e a poesia de Max Jacob. O crepúsculo ou lusco-fusco é
uma hora de ambiguidade, assinalando a morte do dia e o nascimento
da noite, passagem do sol para a sombra. Composição de atmosfera
simbolista, remete às performances dos acrobatas em “Um fantasma
de nuvens” e “Saltimbancos”. Carmody14 identifica ecos de versos de
Heine, Verhaeren, Marinetti e Rimbaud. A plateia de “especialistas”
(mágicos, encantadores, feiticeiras etc.) se reúne para julgar a
performance e os truques mágicos do Arlequim Trismegisto, que se
trismegista. Outros personagens aparecem durante a performance: um
cego ou cega acalentando um bebê, um asno, um anão duende, um
enforcado.

Linha 20: Apollinaire faz aqui um trocadilho com o epíteto de Hermes


Trismegisto, para desespero do anão. “Hermes, o três vezes
grande”, legislador, cabalista, astrólogo egípcio, suposto
autor do Corpus hermeticum. Aqui usado especialmente no
sentido de mágico.
annie

Poema escrito entre 1904 e 1912 , alude à partida da governanta


inglesa Annie Playden para os Estados Unidos. Publicado na revista
Les Soirées de Paris (setembro de 1912 ) sob o título “Fanny”, junto
com “Trompas de caça” e “O viajante”. Poema em versos livres (ou
seja, não metrificados e irregulares) com assonâncias e rimas
inesperadas (“Texas”, pronunciado “Texás/ Il y a/ villa// mennonite/
même rite”). A primeira estrofe tem cinco versos, a segunda e a
terceira, quatro.
Apollinaire e Annie (ambos com 21 anos) se conheceram no verão
de 1901 , em Neu-Glück, Alemanha. Ele, tutor da filha da viscondessa
Elinor de Milhau. Ela, governanta da família. O poeta ficou obcecado
pela inglesa, chegando a ir duas vezes para Londres pedir sua mão em
casamento. Foi rejeitado em ambas, sendo que na segunda Annie
“fugiu” para os Estados Unidos. Aqui o poeta imagina um reencontro
com Annie nos Estados Unidos (e uma possível reconciliação, dessa
vez). Em 1946 o poeta e crítico belga Robert Goffin conseguiu
descobrir o paradeiro de Annie em um rancho da Califórnia. Ela disse
não se lembrar do poeta, muito menos sabia dos poemas que ele havia
lhe dedicado e que se tornariam famosos. “Aqueles que amam sua
poesia”, disse ela, “deveriam estar gratos por eu não ter casado com
ele. Se eu tivesse, quem sabe, tal poesia não teria sido escrita”.15

Linhas - : Há uma imprecisão geográfica aqui: Galveston é uma


1 2

cidade ao leste do estado do Texas mas Mobile fica no


Alabama.
Linhas - : O poeta transforma Annie (que era de estrita família
10 4

anglicana) em uma menonita (grupo cristão radical na


tradição anabatista). O nome deriva do padre católico
holandês Menno Simons (1496-1561). Boutons: em francês,
como em português, significa botões de camisa, de flor e
também bico de seio. Afastados do mundo “moderno”, os
menonitas usam fechos no lugar de botões em suas roupas
(como os membros da comunidade Amish).

a casa dos mortos

Publicado no jornal Le Soleil em 31 de agosto de 1907 . Primeiro


escrito como um conto, chamado “O obituário”. Depois foi
transformado em versos livres, com rimas ocasionais e muitas
aliterações. Algumas estrofes estão quase inteiramente rimadas e
compostas em octossílabos regulares. O poema oscila entre o lírico e o
narrativo, explorando o efeito de simultaneidade (de espaços e de
tempos). Os mortos e os vivos compartilham o mesmo espaço. Um
típico poème-flânerie, poema-passeio, ao modo do surrealismo mágico
de “O músico de Saint-Merry” e “Um fantasma de nuvens”. O poema
foi inspirado por uma visita feita a um dos maiores cemitérios de
Munique, na Páscoa de 1902 . Nele os cadáveres, antes do enterro,
eram expostos através de um vidro em um necrotério aberto ao
público. Como conta a biógrafa de Apollinaire, Laurence Campa:
“Quando ele entrou pela primeira vez no Nördlicher Friedhof
[cemitério em Munique] os mortos pareciam cumprimentá-lo logo na
entrada, sob os arcos. Eles haviam sido bem preparados, tinham sido
vestidos burguesamente, impassíveis atrás de sua vitrine, esperando
pacientemente sua sepultura em seus caixões abertos. Essa visão do
outro mundo impressionou o visitante”.16 Apollinaire transformou a
visão em um cortejo e festa fúnebre que borram as fronteiras entre
vida e morte, presença e ausência, alegria e tristeza, esquecimento e
memória. Escreve Anne Greet: “O poeta, como Virgílio no poema de
Dante, é o intermediário entre os mortos e os vivos mas, ao contrário
do poeta medieval italiano (turar augustano), Apollinaire está vivo, e
sua história se passa neste mundo”.17 Apollinaire inverte Dante: os
mortos aqui não são exilados miseráveis, peregrinos ambulantes ou
espíritos abençoados; eles são visitas educadas, que gostam de beber,
namorar e festejar. Ao longo do poema não ficamos sabendo o que
difere os mortos dos vivos.

Linha 44 : “Convidei-os para um passeio”: não resisti em usar rolê,


essa gíria hoje parte do nosso repertório. “Rolê” era usada já
nos anos 1960 pela malandragem e grupos marginais no Rio
(como Apollinaire, que era um ítalo-polaco em Paris e cujas
amizades eram, na maior parte, estrangeiros e imigrantes).
Irônico que uma palavra brasileira tão popular tenha
justamente derivado do francês (rouler é “rodar”, “girar”),
passando tanto a designar um passeio, um movimento na
capoeira e um detalhe da culinária (bife rolê).
Linha 60 : Chevaux-légers: são os cavaleiros-leves ou ligeiros,
membros da guarda do rei do Exército francês, que deixaram
de ser usados em 1815 . Equivalentes aos nossos “dragões”.
Com esse detalhe Apollinaire sobrepõe o presente ao passado
medieval. O poema parece também dialogar com o poema
“Os adormecidos”, de Walt Whitman.
Linhas 109 , 117 : “Ai de mim! o anel foi quebrado”: na tradução, fiz
uma alusão à nossa ciranda mais conhecida, apropriado pelo
elogio que ele faz às cirandas (linhas -
86 92 ). A aliança foi
quebrada, a união é impossível. Imagens circulares são
comuns em sua poesia.
Linhas -
127 38: A alusão aqui é óbvia: Caronte, na mitologia greco-
romana, é o barqueiro do Inferno que conduz a alma dos
mortos para o Hades. O “eu lírico” se torna também uma
espécie de Hermes Psicopompo (condutor de almas) às
avessas, já que ele faz a travessia dos mortos de volta à vida.
Linhas 129 , 154 : Não fica claro, no poema, quem seriam os outros
barqueiros.
Linhas 177 9 - : Tomei a liberdade de criar o neologismo, “iodeleiar”,
cantar ao modo do Yodelei, canto alpino. Wikipédia: “A
palavra iodelei ou jodeln é uma palavra onomatopaica, ou
seja, uma palavra cuja sonoridade imita a voz, ruídos de
objetos ou animais. O yodel é a troca do registro de peito
para o falsete e do registro de falsete para o de peito em uma
certa velocidade. Esta técnica vocal é usada em muitas
culturas, mas é principalmente conhecida na região dos
Alpes, pois a região favorece o eco por seu terreno
acidentado cheio de vales, lagos e rochedos”.

clotilde

Poema provavelmente escrito em Stavelot (Bélgica) em 1899 . Primeira


publicação na revista Les Soirées de Paris (julho de 1912), ao lado dos
poemas “Marie-Sybille” (mais tarde rebatizado “Marizibill”) e
“Rosemonde”. Poema em três quartetos, com versos de sete e oito
sílabas poéticas e rimas intercaladas (a b b a / c d c d / e f e f). Alude a
um Paraíso ou Jardim do Éden. A tradução estabilizou tudo em versos
de oito sílabas.

Linha 7 : Ombre: sombra (também no sentido de espírito, alma,


fantasma), palavra recorrente na poesia de Apollinaire.
Ainda que afirme a interpenetração de sol e sombra, no
poema a noite afugenta as sombras e o sol as torna mais
sombrias (como no lusco-fusco do crepúsculo). A presença
de deidades mitológicas, exploração da musicalidade e do
mistério são resquícios do simbolismo.

cortejo

Escrito parcialmente em 1906 e terminado em 1912 . Seu título


anterior era “Brumário”. Publicado pela primeira vez em Poème et
Drame (novembro de 1912 ). Aparentemente escrito em versos livres,
traz versos alexandrinos ocasionais, versos de treze e catorze sílabas e
octossílabos, em diversas configurações. Três estrofes curtas (de cinco,
seis e sete versos) são seguidas de uma estrofe imensa (47 versos). Nas
três últimas ele retoma a métrica e um esquema rímico: as duas
últimas estrofes trazem dois quartetos em alexandrinos (doze sílabas
poéticas) com esquema de rimas emparelhadas (a a b b). Poema
complexo, que permite múltiplas leituras e onde se tematiza a busca
por uma identidade, que vai sendo construída pouco a pouco. Esse
poema importante, como “Viagem”, prenuncia “Zona”. Apollinaire
descreve-se, na passagem central, como um compósito de toda a
humanidade, passada e presente, segundo Anne Hyde Greet,18
sugerindo um diálogo com o movimento poético chamado
unanimismo.

Título: Cortejo: do italiano corteggio. Segundo o dicionário,


“procissão, comitiva, por vezes pomposa, que segue pessoa
ou grupo de pessoas, geralmente de excepcionais qualidades,
a fim de lhe(s) prestar homenagem ou expressar respeito;
séquito”. Cortejo significa também saudação, cumprimento,
vênia (geralmente a pessoas distintas ou importantes).
Linhas - : Aplicando sua “estética da surpresa”, da justaposição
1 5

sobrenatural e da colagem, o poema abre com dois versos


inusitados: “Oiseau tranquille au vol inverse oiseau/ Qui
nidifie en l’air”. São dois versos octossílabos que o poeta
desestabiliza, ao deslocar oiseau para o fim do verso anterior,
ganhando um enjambement. Alusão a um pássaro que
Apollinaire encontrou no livro de aventuras fantásticas Le
Monde enchanté, cosmographie et histoire naturelle
fantastiques de Moyen Âge (1843), descrita pela primeira vez
em Voyages en Afrique, Asie, Indes orientales et occidentales,
de Jean Mocquet (1617): um pássaro que voa de ponta-
cabeça (ou “de dorso”, como os aviões acrobáticos). De fato,
alguns pássaros e aves podem voar brevemente de cabeça
para baixo. Apollinaire remete, simultaneamente, à então
recente invenção do aeroplano ou avion (uma de suas
obsessões “modernas”). Trocadilho entre inverse (invertido)
e en verse (em verso). O pássaro contempla o brilho
ofuscante do oceano da Terra, rebatendo a luz do sol,
quando ergue a cabeça (portanto, olhando para baixo). Em
Le Monde enchanté Apollinaire leu também sobre um
pássaro que nunca toca o solo e que voa tão alto que os ovos
que caem têm tempo de chocar-se em pleno ar. Há também a
nem sempre reconhecida influência de Marinetti e de outros
futuristas como Soffici. No romance futurista em versos
livres O monoplano do papa (1912) Marinetti se imagina um
pássaro, voando “sobre minha asa direita” e “Sob meus pés,
ao inverso/ a campanha começa a fugir”.19
Linha 3 : Notre sol: Greet (p. 228 ) vê um possível jogo de palavras
aqui, entre sol (“sol”, “terra”, em francês) e sol (o “sol”, em
português, espanhol, dinamarquês, norueguês e finlandês).
Do latim solis.
Linha 5 : Pálpebra extra: trata-se da membrana nictante ou terceira
pálpebra, presente em águias e outros animais, para proteção
e lubrificação dos olhos enquanto enxergam.
Linha 17: Fogo oblongo: descrição de um rastro de cometa ou possível
referência à imagem do Salvador. Ou, ainda, como sugerido
pelo poema de Marinetti, ao refletor do avião.
Linha 19 : A partir daqui há ecos da poesia de Walt Whitman. O
poeta-flâneur, fora e dentro da multidão ao mesmo tempo,
aparece também como um superdetetive capaz de decifrar
enigmas com base em mínimas pistas (lembremos que
Apollinaire era fã das histórias policiais e da série
cinematográfica Fantômas).
Linha 26 : Leurs pieds paniques: “seus pés empânicos”. Pânico remete
ao deus grego Pã. Aqui Apollinaire transforma um
substantivo (pânico) em um adjetivo.
Linha 36 : Agrippa: Cornelius Agrippa (1486-1535), filósofo e
alquimista nascido em Colônia (Alemanha), escreveu um
tratado sobre santa Úrsula. Ele se fazia acompanhar por um
imenso cão negro.
Linha 38: Ursulinas: referência à santa Úrsula e suas 11 mil seguidoras
virgens que, segundo a lenda, foram massacradas pelos
hunos na cidade de Colônia (século v ). Isso provava, para
Agrippa, a superioridade das mulheres (com que Apollinaire
discorda, num comentário misógino).
Linha 54 : Um oximoro (justaposição de palavras de sentido oposto):
claridade das profundezas.

marizibill

Escrito em 1901 durante viagem à Colônia, Alemanha. Publicado na


revista Les Soirées de Paris (julho de 1912 ) sob o título “Marie-
Sybille” (Maria-Sibila, provável nome de guerra de uma jovem
prostituta). Poema composto de três quintetos, em octossílabos (oito
sílabas poéticas) e rimas alternadas (a b a b a / c d c d c / e f e f e).

Linha 1: Rua Alta: no começo do século xx a Hohe Strasse era a rua


principal de comércio e também de prostituição de Colônia.
Linha 5 : Brasserie: é um tipo de bar-restaurante francês que serve
bebida e comida simples e barata. Apollinaire alitera e
personifica brasseries, adicionando o adjetivo borgnes
(zarolhos). Para manter a rima e a personificação, optei
traduzir brasserie por “pé-sujo”.
Linha 6: Se mettre sur la paille: “se meter ou deitar na palha” é gíria
para estar duro, sem um puto, arruinado financeiramente, na
miséria, sem ter onde dormir.
Linhas 11 5 - : Para Anne Hyde Greet o quinteto final é “outra maneira
de expressar aquela compaixão pela humanidade que ocupa
posição central em ‘Cortejo’”.20 Notar a ambiguidade: não é
possível saber se o pronome “seus” se refere às pessoas em
geral ou a eles (Marizibill e seu cafetão). Analogias como
“peitos batendo como portas” antecipam as imagens
surrealistas (termo criado por Apollinaire, que escreveu um
poema chamado “As nove portas de seu corpo”).

o viajante

Publicado pela primeira vez em Les Soirées de Paris, n. 8, setembro de


1912 . Composição bem diferente de “Ponte Mirabeau”, escrito na
mesma época. Poema em versos livres, com algumas linhas órfãs,
flutuantes, e outras (32-47) perfeitamente metrificadas e rimadas
(alexandrinos). Antecipa, ao lado de “Cortejo”, o poema “Zona”.
Dedicado a Fernand Fleuret (1884­-1943), poeta, escritor e amigo. Dos
versos 32 a 47 Apollinaire adota o quarteto em versos de doze sílabas
(alexandrino) com rimas a a b b. A diferença leva Anne Hyde Greet a
supor que o trecho seja fragmento de um poema anterior. Décaudin
mostrou que o poema é uma verdadeira colagem, seguindo também o
princípio da montagem cinematográfica, com o uso de versos de
poemas inacabados. “O viajante” é um poema cosmopolita, uma
mistura de reminiscências de lugares em que o poeta viveu ou passou:
Mediterrâneo, Renânia (Alemanha), Paris e Holanda (para onde
viajou de trem em 1909 ). Podemos caracterizá-lo como um poème-
promenade, ou poema­-viagem­-passeio. Como observa Martin Sorrell,
“é uma das evocações mais bem-sucedidas da alienação, da falta de
um centro fixo do mundo moderno. O modernismo da visão de
Apollinaire aparece não só no tema e no tom do poema, mas também
em sua prosódia”.21

Linha 1: Greet22 aponta semelhança com a primeira linha do poema


“A porta” (“A porta do hotel sorri horrivelmente”) e com
“Hotéis”, onde cada ser humano vive a portas fechadas.
Portas e janelas são símbolos recorrentes na poesia de
Apollinaire, passagens e limites ao mesmo tempo. Euripo:
estreito localizado no mar Egeu, Grécia, entre a Beócia e a
ilha de Euboe. No Euripo as correntes mudam de direção
várias vezes por dia, por isso são imprevisíveis. Para Greet, a
menção a Euripo é uma alusão à morte (segundo a lenda, foi
o lugar onde o filósofo Aristóteles teria morrido afogado).
Outra comparação surpreendente, ao gosto de Apollinaire.
Linha 4: Paquebot: navio ou barco a vapor. Há clara referência aqui
ao poema “O barco ébrio”, de Rimbaud, onde o meio de
transporte aparece como imagem do próprio poeta.
Linha 7 : Surmarine: supermarinha ou sobremarinha. Cunhagem de
Apollinaire, assim como surrealismo.
Linhas 11 31 - : Greet23 observa que o trecho prenuncia não só a
estrutura de “Zona” mas também imagens que irão aparecer
naquele poema: o Cristo-avião, rebanho de paisagens,
cavalaria e tropas de ruas e pontes, os sem-teto e “órfãos”
(vagões?) na Gare Saint-Lazare, noites pálidas de “álcool”.
Linhas -
32 47 : O poema, que vinha se desenrolando em verso livre,
muda para quartetos em alexandrinos, com esquema rímico
a b b a. Greet24 destaca a bela metáfora olhos = ondulações
no rio, e a imagem paradoxal de sombras vivas, fantasmas
vivos (e não cores vivas).
Linhas - : Referência a uma das poucas fotos existentes de
51 3

Apollinaire quando criança, na qual aparece com seu único


irmão, Albert, ambos vestidos de marinheiro.
Linhas -
49 50 : Greet destaca ainda a beleza da imagem da abelha
caindo na fogueira do verão, anunciando a morte da estação.
“O brilho e o zumbido da abelha ligados à imagem do
fogo”, trazendo a ideia de vida e morte ao mesmo tempo.
Linhas 51-5: O verso volta a ser em alexandrinos.

maria

Primeira publicação na revista Les Soirées de Paris, n. 9, outubro de


1912 . Poema composto de cinco quintetos em octossílabos, a exceção
sendo a linha 9 , curiosamente em alexandrino clássico (acentuações
tônicas na sexta e 12a sílabas). Esquema de rimas alternadas (a b a b
a). Poema altamente lírico, melopaico, com uma rima rica nos versos
11 e 15: neige (neve) e n’ai-je (não a tenho), que ele repete em “Branca
de Neve”. O poema é provavelmente contemporâneo do clássico “A
ponte Mirabeau” pelo tema da perda da amada (também Marie
Laurencin) e pela metáfora do rio Sena. Transformado em canção por
Léo Ferré (1916-93).
Linhas 1 3 - : Os primeiros três versos remetem à Marie Dubois, uma
moça que ele conheceu na temporada que passou em Stavelot
(Bélgica), na região da Valônia, quando tinha dezenove anos.
A especialidade de Marie era dançar o maclotte. Depois a
referência passa a ser a outra Marie, a pintora Marie
Laurencin, que também gostava de dançar e com quem teve
sua relação mais longa (cinco anos). Marie não só remete à
imagem da Mère (a Virgem Maria) como se trata de um
anagrama de aimer (amar). Mère-grand (vovó): substantivo
que data do século xv , sinônimo de grand-mère (cuja figura
aparece, por exemplo, em “Chapeuzinho Vermelho”).
Linha 3 : Maclotte ou matelote (martelote): dança típica da região
rural da Valônia, na Bélgica, onde fica a cidadezinha de
Stavelot. “O passo básico do maclote ocupa duas barras 4/4
ou /
6 8 e consiste em dois passos saltados (geralmente
partindo do pé esquerdo) seguidos de três passos
martelados”. Apollinaire gosta de usar pontualmente
palavras em desuso, raras ou estranhas, na linha da
obscuridade da tradição simbolista.
Linha 9 : O único verso em alexandrino, retirado de um caderno de
anotações do tempo de Stavelot e enxertado no poema
(colagem). Para Anne Greet, a intenção de alongar esse verso
foi dar uma qualidade onomatopaica ao amor do poeta,
prolongando-o até que ele se dissolvesse, como na música.
Pela diferença com o restante do poema, a intenção da linha
parece ser o de aparte teatral: recurso em que o personagem
faz um comentário direto para a plateia ou para um
determinado personagem, não ouvido pelos demais. Inseri o
verbo “amor” no condicional para inscrever a palavra
“Maria”.
Linha 10 : Oximoro: Apollinaire combina duas palavras ou ideias
opostas ou contraditórias, criando um efeito de contraste.
Como o título de uma das composições de seu amigo, Erik
Satie: “Desespero agradável” (1908).
Linhas 11 3 - : Tentei reproduzir o jogo de palavras do original: Neige/
n’ai- je (neve/ nem veem).
Linhas 21-5: ecoam os versos de “A ponte Mirabeau”.

branca de neve

Provavelmente escrito durante a temporada na Alemanha (1901­-2).


Um dos poucos poemas inéditos de Álcoois (1913). Quase nada se
sabe sobre as circunstâncias de sua composição, que remete às
imagens de contos de fadas alemães, ao modo das canções infantis. O
pano de fundo, novamente, é o fim do relacionamento com Annie
Playden, colega de trabalho na vila de Bennerscheid (perto de
Oberpleis e do rio Reno). Foi transformado em um belo madrigal
(música de câmara vocal) por Francis Poulenc (1899-1963). Ron
Padgett relembra uma “coincidência anacrônica”.25 Dois anos depois
de publicar esse poema Apollinaire ficou amigo, no front da Primeira
Guerra Mundial, de um tenente e seu cozinheiro. O nome do
cozinheiro era Loiseau (“O pássaro”, se adicionarmos um apóstrofo
depois do “L”: L’oiseau. O título remete à neve e à famosa
personagem dos irmãos Grimm, simultaneamente.
Linhas 1-8: Um anjo disfarçado de oficial (uniforme azul de militar) e
o outro de chef de cozinha (avental branco). A cor dos
uniformes militares franceses era chamada de azul-horizonte.
Apollinaire canta uma cena celeste em ambiente terrestre.
Médaillera (medalhará): neologismo.
Linhas -
9 10 : No sul da França há uma expressão popular para
quando começa a nevar: “Le bon Dieu plume ses oies” [O
bom Deus despluma seus gansos]. Há uma conotação sexual
malandra também, como na gíria “afogar o ganso” (transar).
Oie (gansa), fêmea do jars (ganso), pode ter sentido
pejorativo para “mulher”, como em oie blanche (gansa
branca = uma jovem ingênua e inocente). Há também um
trocadilho entre tombe (tomba) e tombe (tumba).
Linhas 10 1 - : Tentei novamente reproduzir o jogo de palavras do
original: neige/ n’ai-je (neve/ não vem).

poema lido no casamento de andré salmon

Publicado pela primeira vez em Verse et Prose (outubro de 1911 ).


Datado de 13 de julho de 1909 . Segundo Apollinaire, esse poema, em
versos livres, foi escrito no andar de cima de um ônibus, enquanto ia
para o casamento de André Salmon (1881-1969) com Jeanne Blazy-
Escarpette (1882-1949). Ele estava acompanhado de seu amigo René
Dalize, que não parava de falar. Salmon foi poeta, crítico de arte e
grande amigo de Apollinaire. Na verdade, embora a composição
pareça ter sido escrita num jato e fosse comum o poeta escrever em
lugares públicos, o poema foi bastante retrabalhado posteriormente.
Pelos versos longos, uso da anáfora e a temática “democrática”, a
composição dialoga com a poesia de Walt Whitman e com ideias do
unanimismo.

Linha 1 : Paris já estava enfeitada para o feriado do Dia da Bastilha


(14 de julho). Salmon se casaria no dia seguinte, na igreja de
Saint-Merry (a mesma do poema “O músico de Saint-
Merry”).
Linha 5 : Liberdade vegetal: referência ao naturismo, uma das
correntes literárias no fin-de-siècle na França.
Linha 12 : Caveau maudit: a “caverna maldita” refere-se, para alguns,
ao Café du Départ (célebre ponto de encontro de escritores e
artistas em Paris). Para outros (como o próprio Salmon), a
uma adega que ficava no Quartier Latin frequentada por
poetas malditos (termo criado por Paul Verlaine, um habitué
do Café du Départ).
Linha 18 : Orfeu: na mitologia grega, lendário poeta-músico capaz de
encantar todos os seres e coisas sobre a terra.
Linha 23 : Ofélia: personagem da peça Hamlet, de William Shake­-
speare, que termina em trágico suicídio nas águas de um rio.

o adeus

Escrito provavelmente em Stavelot (Bélgica) em 1901 . Publicado na


revista Le Festin d’Ésope em dezembro de 1903 . Um quinteto em
octossílabos (aqui vertido em decassílabos), com esquema de rimas a b
a a b. Poema de despedida aos mortos e/ou aos amores perdidos
(como Marie Dubois, sua paixão da temporada belga). Anne Hyde
Greet e outros identificam semelhança com o poema que Victor Hugo
escreveu para a morte da filha (“Demain, dès l’aube”, em
alexandrinos) e um diálogo entre uma pessoa viva (primeiros três
versos) e uma morta (dois últimos). Elíptico e misterioso, o poema
teve variantes.

Linha 1: Bruyère é a urze (ou torga, Calluna vulgaris), nome comum


de diversas plantas da família Ericaceae, conhecida mais pela
cor violeta e que nasce em regiões montanhosas. Vertido
como alecrim (também encontrado nas cores rosa, azul ou
violeta) para efeito de rima.

a porta

Provavelmente escrito em 1900 , em seu quarto miserável onde a


família morava na rua Constantinople no 9 , segundo o biógrafo
Marcel Adéma (no endereço funciona hoje um hotel Ibis Styles).
Publicado em Vers et Prose, v. xxxi , outubro­-novembro­-dezembro de
1912 . Poema composto de um septeto e um monóstico. Métrica:
versos alexandrinos. Esquema de rimas: emparelhadas (a a b b c c d /
d). Poema enigmático, já empregando o método da colagem,
parecendo ambientado simultaneamente em Paris e na Côte d’Azur
(lembranças de onde Apollinaire passou a infância). Reminiscências da
vida precária e nômade com a mãe, femme galante, e o irmão, de hotel
em hotel, e os constantes pedidos de sua mãe para que procurasse
trabalho.

Linha 4 : Pi-mu: pi-mú-yú, peixe fantástico do Oriente que possui


apenas um olho, o que o obriga a sempre nadar colado com
seu par. Apollinaire leu sobre essa e outras criaturas em
Journal Asiatique, uma coleção de lendas indianas, em
janeiro de 1896.
Linha 5 : Anges frais: Apollinaire usa a palavra “anges” (“anjos”,
supostamente os casais que chegam ao hotel), mas logo
ficamos sabendo que são “frescos” e se referem também a
“anges”, o peixe-anjo (peixe ornamental, cujas barbatanas
lembram as asas de um anjo e que acabaram dando nome à
Baie des Anges, perto de Nice). O único jeito de captar a
ambiguidade sem alongar o verso foi criar uma palavra-
valise, “anjovas” (anjos-anchovas), fiel ao exotismo léxico de
Apollinaire, um “parente” hipotético do pi-mu. Marselha: no
porto de Marselha chegam tantos pescados quanto
passageiros.
Linha 6: Possível alusão às Sereias, da mitologia grega (originalmente
representadas como uma mistura de pássaros e mulheres),
que enfeitiçavam e torturavam marinheiros com sua música.

saltimbancos

Publicado em Les Argonautes em fevereiro de 1909 , ao lado de


“Crepúsculo”. Os poemas “Saltimbancos” e “Crepúsculo” aparecem
juntos num mesmo rascunho. Poema em três estrofes de quatro versos
em octossílabos (decassílabos na minha tradução) e rimas
emparelhadas (a a b b). Como outros artistas do círculo de Apollinaire
(Picasso, Marie Laurencin), o poeta tinha fascinação pelos
saltimbancos, acrobatas, cegos, ciganas, mendigos, judeus errantes, se
identificando com marginais, aventureiros, excêntricos (Jarry, Satie) e
“marginais” da sociedade. Anne Hyde Greet26 sugere que o poema é
parcialmente inspirado nas memórias da Alemanha, bem como nas
pinturas de saltimbancos de Picasso e outros pintores-amigos, cujos
ateliês Apollinaire frequentava assiduamente.

Linha 3: Gris: adjetivo que significa, em francês, tanto “cinza” quanto


“bêbado”.
Linha 9 : Poids ronds ou carrés: pesos redondos ou quadrados,
material de trabalho dos saltimbancos.
Linha 11 : L’ours et le singe animaux sages: o urso e o símio, animais
sábios. Animais amestrados eram parte regular das trupes de
saltimbancos. O poema também dialoga com “Bohémiens en
voyage” [Ciganos em viagem], de Charles Baudelaire.

a cigana

Outro poema da temporada alemã, começado em 1901 e terminado


em 1902 . Publicado em La Phalange, n. 17 , 15 de novembro de 1907 ,
ao lado de “Açafrões” e “Lul de Faltenin”. Poema composto de três
quartetos, em octossílabos e rimas intercaladas (a b b a). A cigana,
associada à errância e ao destino, aparece em outros poemas, como
“Sobre profecias” e “Saltimbancos”.

Linhas 2 4 - : A cigana acertará a previsão: os amantes não ficarão


juntos.
Linhas 3-4: Trocadilho com et puis/ de ce puits (e depois/ desse poço).
Há uma ambiguidade no que é dito pela cigana. A
Esperança, para os amantes, está no fundo de um poço, mas
ele é escuro e turvo.
Linhas - : A imagem do urso e de ciganos aparece em
5 6

“Saltimbancos”. Associação surpreendente do amor como


um urso privé, que dança sobre duas patas. Mantive privê, já
entronizado entre nós, pela ambiguidade: pode significar
tanto domesticado quanto privado, frustrado e, ainda,
íntimo, seleto, particular. Se o poema se refere à sua relação
com Annie Playden, como diz Greet,27 aquela paixão foi
esquecida, domesticada, e a esperança de vê-la novamente,
perdida (cada vida segue seu caminho).
Linha 7 : Os antigos romanos usavam penas de pássaros como
oráculos. No caso, índice de mau presságio. O pássaro azul
aparece em vários contos de fadas como símbolo da
felicidade. Os amantes também se transformam em mendigos
com seus Ave-Maria, isto é, suas esperanças, suas preces.
“Seus Ave” foi traduzido aqui, para efeito de rima, por “Seus
Avés”, uma variação ortográfica alternativa para “ave”,
especialmente usada em contexto religioso ou literário. É
uma forma menos comum, mas pode ser encontrada em
certos contextos para se referir à oração ou à saudação cristã
Ave-Maria, ou para diferenciar entre o pássaro e a saudação
religiosa.

outono

Provavelmente escrito na Alemanha em 1901 . Publicado


originalmente na revista La Plume, n. 374 , em 15 de junho de 1905 .
Composto de três tercetos em versos alexandrinos e esquema de rimas
a b a / b c d / c d. Adotei o verso hendecassílabo na tradução. Mais
uma peça de atmosfera simbolista, remetendo à temporada alemã às
margens do Reno ou aos arredores do vilarejo de Stavelot (Bélgica).
Anne Greet observa o caráter circular do poema, de eterno retorno,
como em “Açafrões”.

Linhas - : Possível alusão a “Das zerbrochene Ringlein” [O


4 5

anelzinho quebrado], lied do poeta e romancista alemão


Joseph von Eichendorff (1788-1857). Temos, no Brasil, os
versos da famosa ciranda, dança de roda infantil: “O anel
que tu me deste/ Era vidro e se quebrou/ O amor que tu me
tinhas/ era pouco e se acabou”, apropriado à condição de
“mal-amado” de Apollinaire.

signo

Provavelmente escrito em 1904 , logo depois da partida de Annie


Playden para os Estados Unidos. Primeira publicação na revista
Schéhérazade em 15 de março de 1911 . Dois quartetos em versos
alexandrinos e rimas cruzadas (a b a b / c d c d), típico da fase inicial e
neossimbolista da poesia de Apollinaire.28 Mantive o verso de doze
sílabas e o esquema rímico, mas não respeitei as tônicas nas sexta e
12a sílabas.

Linha 1: Chef: na linguagem da heráldica, chefe é a parte superior de


um escudo ou brasão de armas. O verso manifesta a
ambiguidade típica da poesia simbolista. Signo do Outono:
Apollinaire era do signo astrológico de Virgem, que coincide
com o outono europeu (sua estação preferida e com a qual se
identifica).
Linhas 4 e 6 : “Todas as nozes da árvore foram colhidas, e o poeta,
pobremente amado”, segundo leitura de Greet.29

clair de lune

Publicado em setembro de 1901 , na revista La Grande France, com o


título “Lunaire”. Poema em alexandrino clássico, com rimas
emparelhadas (a a b b c c d d e e f f g g). Apesar de ser considerado
um poema menor, “uma paródia superficial das imagens
simbolistas”,30 o incluí por ser o primeiro publicado por Apollinaire.
Ele também é exemplar da primeira fase de sua poesia, mas já
antecipando, em algumas imagens, a “estética da surpresa” (ver
última linha, que traça uma intricada fusão simultaneísta: raios-
bússola-luar-mãos-mel). A lua, melancólica e nostálgica, é tema
clássico da poesia simbolista. Como lembra Pär Bergman, a lua será
considerada decadente pelos futuristas do século xx , que irão celebrar
a eletricidade.

Título: Referência ao famoso “Clair de lune”, de Paul Verlaine


(“Clarão de luar”, em As festas galantes, 1869 ) e à célebre
composição homônima, de Claude Debussy (1890),
inspirada pelo poema de Verlaine.
Linha 2 : Uso de personificação. “Gourmand”, do francês medieval
(fim do século xv ), significa glutão. O sentido de “pessoa que
aprecia boas comidas e bebidas” aparece por volta de 1785 .
“Gourmand” também tem o sentido de “ganancioso”.
Linhas 5 e 7: Doux, douce: Apollinaire joga com o duplo sentido da
palavra doce: gentil e açucarado.
Linha 8: Arcture: conhecida como Arturo ou Arcturus, pertencente à
constelação do Boieiro, é a quarta estrela mais brilhante no
céu noturno.
Linha 10 : Rose de vents: a rosa dos ventos é um instrumento de
navegação (bússola).
1909

Primeira publicação em Álcoois. Versos livres, alguns metrificados.


Como Anne Hyde Greet31 observa, o ano de 1909 é aqui
personificado na forma de uma bela e misteriosa jovem parisiense,
luxuosamente bem-vestida. Greet vê na composição um tom parecido
ao dos versos de um contemporâneo de Apollinaire, o norte-
americano Vachel Lindsay. Há ecos de um poema de Baudelaire,
“Recueillement” [Recolhimento], de As flores do mal. Mil novecentos
e nove é também o ano em que Apollinaire se aproxima das ideias do
unanimismo e da poesia de Verhaeren e Whitman.

Título: A inspiração pode ter sido um calendário ilustrado.


Lembremos que estamos na Paris da belle époque, da grande
capital da moda, dos grandes inventos e “máquinas” novas.
Linha 12 : Referência à moda de Madame Récamier e ao estilo
“orientalista” do estilista Paul Poiret (1879-1944), apelidado
de Le magnifique. Buscando manter o estranhamento do
original, optei por uma palavra em português mais parecida
com o som e significado de violine: “aviolado” é da cor roxa,
violeta, violáceo, e ainda “em forma de viola”. Récamier:
antes da nossa era de celebridades, Madame Récamier
(nascida Jeanne-Françoise-Julie-Adélaïde, -
1777 1849 ) foi
uma famosa socialite, admirada em toda a Europa, símbolo
de elegância, ícone da beleza neoclássica francesa. Seu salon
atraía a nata dos políticos e literatos de seu tempo. O poema
remete a uma série de pinturas que tiveram a socialite como
modelo, especialmente Retrato de Madame Récamier, de
Jacques-Louis David (1748-1825). Além do seu estilo de
cabelo, Récamier também virou o nome de um tipo de sofá
onde gostava de se reclinar.
Linha 14 : Nesse monóstico Apollinaire adota o decassílabo.
Referência direta a uma frase de Charles Perrault no conto
“Cinderela”: “Assim, ela ouviu soar o primeiro toque da
meia­-noite”. É uma lenda que remonta à Antiguidade.
Novamente, vemos uma simultaneidade de épocas:
Antiguidade, séculos xviii e xx . O uso do pretérito
imperfeito em todo o poema remete ao tempo dos contos de
fadas (“Era uma vez”).
Linhas 23 7: - Aqui Apollinaire sai do verso livre e passa para o
alexandrino. Com exceção da métrica da linha 23 , as demais
foram respeitadas.
Linha 23 : “Gente tão perita em máquinas”: Apollinaire pode estar
fazendo aqui um elogio às prostitutas dos bairros pobres, às
operárias que trabalhavam nas fábricas, ou no sentido geral
de operários. Já Susan Harrow32 vê no poema, e
especialmente nesse verso, um exemplo de uma visão
distópica da era da reprodução mecânica, em massa, onde
até mesmo seres humanos parecem nascer de uma linha de
montagem, como automóveis. Em um trecho da famosa
conferência “O espírito novo e os poetas”, Apollinaire
chama a atenção, no melhor estilo futurista, para os “seres
formidáveis que são as máquinas”.

à saúde

Primeira publicação em Álcoois. Nessa composição, datada de


setembro de 1911 , Apollinaire usa vários tipos de estrofes (quarteto,
quinteto etc.), metros (octossílabos, decassílabos, alexandrinos e o
menos comum verso de onze sílabas, o hendecassílabo) e esquemas de
rimas. Poema em seis seções, poema-diário de prisão, um fragmento
para cada um dos seis dias que passou confinado na prisão La Santé
(de 1o a 7 de setembro), como suspeito de envolvimento no roubo da
Mona Lisa do Museu do Louvre. O episódio o marcaria
profundamente. Apollinaire já era onipresente e famoso na cena
artística e cultural de Paris, sobretudo pela defesa das vanguardas e
por suas colunas em jornais e revistas. Por isso, sua prisão foi um
escândalo e notícia internacional. A imprensa xenófoba francesa pedia
sua deportação (era estrangeiro, de passaporte italiano). Muitos
amigos lhe voltaram as costas. Outros se uniram numa corrente para
libertá-lo.

Título: À La Santé traz um trocadilho: pode ser lido tanto como “Ao
presídio La Santé”, quanto o tradicional brinde “À sua
saúde!” (À votre santé!). Minha solução tenta preservar os
dois sentidos.
Linha 12 : Apollinaire ficou na cela 15 e não na 11 , como ele coloca,
para efeito de rima.

outono doente

Escrito na primavera de 1902 , depois de sua visita a Munique,


durante a temporada em que trabalhou para a viscondessa de Milhau.
Primeira publicação em Álcoois. Data do chamado “período renano”
de sua poesia. Poema em versos irregulares (últimas seis linhas em
dissílabos) com rimas ocasionais, presença ostensiva de assonâncias
(ou, a, ai, on etc.) e aliterações (em l, p, n etc.). O pano de fundo: a
decepção amorosa com Annie Playden (a linha 10 seria referência à
governanta inglesa e colega de trabalho). A chegada do outono,
estação com a qual o poeta se identifica, é tema recorrente em Álcoois.
Há ecos de Émile Verhaeren, outro poeta de sua predileção.
Lembremos também do clássico “Canção do outono”, de Paul
Verlaine.

Título: Personificação do outono, associado à morte e ao fim das


coisas.
Linha 7: O outono também é estação de passagem: vem da vitalidade
e dos frutos maduros (verão) e caminha para a morte
(inverno).
Linha 10 : Nixes nicettes: trocadilho com a semelhança fônica entre as
palavras. Nixes são ninfas das águas na mitologia germânica
e nórdica, que atraem homens para afogá-los de paixão
(como a Sereia da mitologia grega e a Iara brasileira).
Apollinaire rebaixa o mito: são nixes nicettes (simples,
ignorantes, ingênuas, em francês antigo, provavelmente do
latim nesciens) e naines (anãs, nanicas). Jogo de palavras que
ecoa o nome Annie (naines é praticamente um anagrama de
Annie).
Linha 17 : Metáfora: folhas que caem = lágrimas, contrapondo os
frutos que apodrecem nas árvores, sem quem os recolha (o
amor de Apollinaire sendo novamente recusado?).
Linhas 17 22- : Os últimos seis versos (de apenas duas sílabas) são uma
espécie de alexandrino rediagramado, cortado em seis versos,
com a intenção de imitar visual e sonoramente a queda
oscilante da folha de um galho, símbolo tradicional da
solidão. O poeta e.e. cummings radicalizaria a ideia no
famoso poema “l(a” (“a leaf falls”, “uma folha cai”, de
1958 ). A disposição final dos últimos seis versos sugere
“letras-folhas” caindo debaixo da palavra “outono” (linha
16 ), antecipando também os futuros caligramas (sobretudo
“Chove”).

hotéis

Publicado pela primeira vez em Álcoois. Poema composto de seis


quartetos, com versos tetrassílabos (quatro sílabas métricas, cinco na
minha tradução). Rimas alternadas (a b a b) em todas as estrofes. Para
alguns estudiosos, o poema teria como pano de fundo o episódio em
que o poeta e seu irmão, abandonados pela mãe, foram obrigados a
fugir de uma pensão de Stavelot (Bélgica) sem pagar a conta. As
demais estrofes referem-se ao hotel em que morou na Rue de
Constantine, nos primeiros tempos de Paris. Já para Décaudin, o
poema tem como tema a vida solitária nos hotéis, suas mobílias,
hábitos e hóspedes.

Linha 9: Fiacre: táxi movido a cavalo.


Linha 13 : La Vallière: duquesa de la Vallière (1644-1710), famosa
amante do rei Luís xiv , e que mancava levemente de uma
perna.
Linha 15: “que manca e ri das minhas preces”, no original.
Linha 20 : Babel: cada hóspede fala uma língua diferente, como no
mito bíblico.

trompas de caça

Publicado na revista Les Soirées de Paris, n. 8 , setembro de 1912 ,


junto com “Fanny” (posteriormente “Annie”) e “O viajante”. Poema
composto de dois quintetos e um dístico. Versos octossílabos, com
rimas a b a b a / b d b d b / d b. Ao lado de “A ponte Mirabeau”,
“Maria” e trechos de “Zona”, mais um poema que tematiza a
passagem do tempo e, sobretudo, a dor amorosa com o fim do
relacionamento com a pintora Marie Laurencin.

Título: Trompa de caça: instrumento de sopro usado em música de


salão e em caçadas. Imagem recorrente em poemas de
Baudelaire, Victor Hugo, Paul Verlaine, Alfred de Vigny e
Jules Laforgue. Há referência ao teatro (Greet chama o
poema de “um drama simbólico em miniatura”).33
Linhas 6-8: Thomas de Quincey (1785-1859) ensaísta inglês, famoso
por seu Confissões de um inglês comedor de ópio.
Apollinaire também conviveu com o ópio, consumido
sobretudo na temporada de Nice, com Louise, pouco antes
de se alistar em 1914 , e nos meses finais de vida. Quincey
conhecera, nas ruas de Londres, uma prostituta e pedinte de
quinze anos chamada Ann (a “Ana de Oxford Street”, que
salvara sua vida, segundo Quincey). Ele passou anos em uma
busca desesperada para encontrá-la. Ann ecoa o nome da
obsessão e desilusão amorosa de Apollinaire: a governanta
inglesa Annie Playden e suas viagens frustradas a Londres
para pedir a sua mão em casamento. Greet escreve: “Viver é
atravessar um palco; lembrar é olhar para trás. As memórias
são como trompas de caça, fora de cena, que lhe chamam, e
seu ecoar e notas repetidas sugerem o passado, e
especialmente as lembranças, nos poemas de Vigny,
Baudelaire, Laforgue”.34 O tema do outono doente e a
imagem das trompas de caça aparecem em um poema de
Émile Verhaeren, um dos seus poetas prediletos.

CALIGRAMAS

laços

Publicado pela primeira vez na revista Montjoie, em abril de 1913 ,o


poema abre Caligramas e a seção “Ondas” (em referência às ondas do
rádio e às ondas da física). É a única composição totalmente em itálico
do volume, como se fosse uma espécie de manifesto ou prefácio, em
função similar à de “Zona” em Álcoois. Exemplar do novo estilo
“telegráfico” e “simultaneísta” de Apollinaire (versos livres, curtos e
sincopados, estrutura paratática), com autonomia maior de cada
linha. Willard Bohn35 ressalta a analogia com o procedimento da
colagem verbal, “em que frases e estrofes são justapostas
abruptamente, ao modo da pintura cubista”. Anne Greet lê a
composição como uma celebração modernista do admirável mundo
novo dos sentidos. Como ela enfatiza, “o tempo urgente da nova
sensibilidade é refletida no ritmo e na sintaxe, com suas rápidas
sequências de frases, muitas delas sem verbo”.36

Título: Todo o poema gira ao redor do título e a ambiguidade é sua


marca. Apollinaire aplica suas lições do cubismo à palavra
poética, explorando-a a partir de várias perspectivas,
associação de ideias, criando paradoxos. A imagem de
“laços” traz a ideia de apego e desapego, conexão e
desconexão ao mesmo tempo. Liens pode ser vertido como
“liames”, “elos”, “correntes”, “ligações”, “vínculos” (como
na expressão “laços de família”). Liens, segundo Mario
Richter,37 pode também se referir às próprias linhas poéticas,
unindo sílabas, formando correntes de som e sentido,
conectando-se umas às outras em novas possibilidades. As
linhas de trem estavam rapidamente ligando países,
prendendo-os numa só corrente.
Linha 1 : Cordas: a palavra tem associação tradicional com a lira e
com a poesia lírica, bem como com cordas vocais e peças
musicais para instrumentos de corda. Cordas são usadas
para juntar, pendurar, atravessar objetos. Gritos também têm
a função de chamar e ligar pessoas. Por isso, a imagem de
“cordas feitas de gritos”.
Linhas 2 3 - : Para Greet,38 a imagem sugere a simultaneidade
espaçotemporal do mundo moderno. Lembremos que
Apollinaire era leitor e divulgador dos futuristas italianos,
que associavam sua sensibilidade à simultaneidade e tinham
verdadeiro fascínio pela velocidade. Os sinos têm badalado
através dos séculos e, ao mesmo tempo, seus sons atravessam
fronteiras. Séculos estão suspensos ou mortos (no passado) e
enforcados (reforçando a imagem-título, mais um sentido
para “laços”).
Linha 4: Trens aparecem aqui sugerindo solidariedade e coletividade.
Linha 5: Possível alusão a Picasso, Cendrars, ao pintor simultaneísta
Delaunay e à elite da vanguarda parisiense, da qual
Apollinaire era o principal porta-voz.
Linhas 8 9 - : Uma imagem de tempestade que ecoa o caligrama
“Chove”. Cordas de água: ver “Cantor”.
Linha 10 : As “cordas tecidas” agora remetem simultaneamente aos
cabos submarinos (linha 11) e às aranhas (linha 6).
Linha 11 : Câbles sous-marines: os primeiros cabos telefônicos
submarinos entre França e Inglaterra foram instalados em
1891 . Outra imagem de conexão e comunicação entre os
povos. Como os cabos transmitem uma algaravia de vozes
simultaneamente, Apollinaire os compara a Babéis
horizontais, na linha seguinte.
Linha 13 : Araignées: a aranha simboliza a maestria em construir
“redes”, estabelecer elos entre as pessoas.39 Pontifex:
Apollinaire continua a sequência metafórica, as
metamorfoses, agora usando a palavra pontífice menos no
sentido de sacerdote romano ou papa e mais no sentido
etimológico de “construtor(a) de pontes”.
Linhas -
18 24 : Greet40 joga alguma luz no significado desse trecho: ela
nos lembra que Apollinaire escreveu o poema especialmente
para uma revista de vanguarda que tinha como lema
editorial ser “contra todo o sentimentalismo na arte e na
vida”.

as janelas

Em versos livres e com rimas esparsas, poema composto em


novembro-dezembro de 1912 , durante as seis semanas que o poeta
passou com o casal de pintores Sonia e Robert Delaunay. Escrito
especialmente para o catálogo da exposição de Robert em Berlim
(janeiro de 1913 ). Publicado, no mesmo mês, em Poème et Drame, v.
ii . Um dos mais célebres de Apollinaire e um de seus favoritos. Ao
lado de “Segunda-feira rua Cristina”, exemplar dos poemas
simultaneístas e poemas-conversas, em que se busca captar, segundo
sua expressão, o “lirismo ambiente”. Ele dizia estar conseguindo
“simplificar a estética poética”41 e formular, neste e outros poemas
que estava escrevendo (os da seção “Ondas”), “uma estética toda
nova cujas fontes eu jamais encontrei posteriormente”.42 Ênfase na
técnica da colagem, com inserção de “fragmentos da realidade”. Há
duas versões não necessariamente excludentes para a criação dessa
peça: as primeiras linhas teriam sido escritas coletivamente por ele,
André Billy e René Dalize no bar Crucifix, na rua Daunou, cada um
escrevendo um verso. Já Delaunay afirma que “As janelas” foi escrito
inteiramente em sua casa-estúdio em novembro e dezembro de 1912 ,
na temporada em que o poeta e crítico de arte morou com ele e sua
esposa. As duas versões explicam a sensação de estarmos em três
ambientes ao mesmo tempo: em um café, em um ateliê e no universo
órfico que o poema fabrica. Delaunay: “Acho que ‘As janelas’ marca o
que Apollinaire chamou de Pura Pintura ao buscar a Pura Poesia”
(“puro”, aqui, no sentido de que o poeta, como o artista, cria uma
nova realidade, e não meramente a imita). É difícil também identificar
“quem fala” nos fragmentos individuais. Na tradição da acusmatia,
ele deixa em aberto todas as possibilidades. “As janelas” é feito de
uma colagem de referências às telas e teorias do casal Delaunay,
objetos do ateliê, reminiscências, sensações, interrupções e
comentários. Parte dele pode ser chamado de poema-ambiente (como
“Segunda-feira rua Cristina”). Bohn comenta que ele “capta uma
visão aérea do mundo onde o tempo e o espaço foram abolidos”.43 O
poeta tenta aplicar às palavras e aos versos, em sua manipulação
estética, a teoria dos “contrates simultâneos” aplicada às pinturas do
casal. Como “Segunda-feira rua Cristina,” o poema antecipa a ideia
de texto de Roland Barthes, como “um tecido de citações, oriundas
dos mil focos da cultura”.44 Como na colagem, cada linha é
autônoma e, ao mesmo tempo, parte de um todo. Marcado pela
ambiguidade e indeterminação, com uso intensivo da parataxe (ver
Introdução), o poema é composto “como uma sequência de
justaposições radicais”,45 sugerindo a simultaneidade espacial. “As
janelas” também é, do começo ao fim, marcado por grande
indeterminação pronominal. O poeta convoca a participação ativa do
leitor em sua reconstrução. A linguagem compacta e impactante
sugere o encolhimento do mundo pelos meios de transporte e
comunicações.
Título: Refere-se às janelas em geral, às janelas que o poema abre, às
do estúdio do casal Delaunay e, sobretudo, à série de
pinturas desenvolvidas à época por Robert Delaunay, como
Janelas simultâneas e Janelas abertas simultaneamente
(1912).
Linhas 1 , 34 : Provavelmente um comentário de Robert Delaunay
sobre o efeito pictórico dos “contrastes simultâneos” e cores
complementares. Bohn46 oferece uma chave: as cores do
espectro (o disco de Newton) são organizadas em vermelho,
laranja, amarelo, verde, azul, índigo e violeta. Já que o
vermelho fica na extrema esquerda do espectro, o amarelo
(como o laranja) vai “desaparecendo” e “morrendo”
rapidamente, à medida que o olhar se move da esquerda para
a direita. Do vermelho ao verde morre todo o amarelo. Da
mesma forma, tomando a outra direção do disco, todo
amarelo renasce do verde ao vermelho.
Linha 2: Aras: araras, do tupi a’rara. Ave barulhenta e multicor (que
alude à paleta de cores da linha 1 ): verde, amarelo, azul,
vermelho. Possível referência ao Brasil, no uso de uma
palavra tupi, e às famosas florestas tropicais onde vivem as
araras.
Linha 3 : Abatis: espécie de cabidela, feita com miúdos de aves.
Apollinaire era um gourmand, com um gosto enciclopédico
para tudo que fosse exótico. Abatis também é um termo
militar para trincheiras feitas de árvores derrubadas e
cortadas, estacadas no solo, com a função de retardar o
avanço das tropas inimigas. Pihi: pássaro da lenda chinesa
que faz aparição em “Zona”. O pihi ( 鶼鶼) tem apenas uma
asa, o que o obriga a voar sempre em pares (o macho à
direita, a fêmea à esquerda). É análogo ao pi-mu, (ver “A
porta”), peixe fantástico do Oriente que possui apenas um
olho, o que o obriga a sempre nadar colado com seu par.
Bohn47 sugere, criativamente, que a palavra “pihi” é um
ícone verbal, um tipo de caligrama simultaneísta em si
mesmo. Seguindo sua sugestão, podemos tomar os pontos
nos is como sendo os olhos e o h como o corpo do pássaro
(e, por que não, o p como sendo a única asa).
Linhas - : Referência ao telefone sem fio (tsf) e ao estilo
4 5

“telegráfico” (ver caligrama do pássaro-telegrama em


“Viagem”). A presença de “nós” e as mudanças abruptas de
pronomes acentuam o tom conversacional (poema-
conversas). Apollinaire lembrou que havia prometido enviar
um prefácio para a exposição de Delaunay naquele mesmo
dia, por isso a urgência.
Linha 6 : Traumatismo gigante: possivelmente refere-se novamente à
cor vermelha ou no sentido de trauma psicológico ou, de
maneira cifrada, a um pôr do sol.
Linha 8: A imagem das moças de Turim, como em “1909” e “Carta-
oceano”, pode ter sido inspirada por algum calendário
ilustrado ou fotografia que ostentava a parede do bar
Crucifix (seu dono era de Turim).
Linha 9 : Apollinaire estava de gravata branca nas fotos em que
aparece sendo preso pelo affair das estatuetas do Louvre
(1911), amplamente divulgadas pelos jornais da época
(lembrando que o branco é a cor resultante da mistura
aditiva das cores vermelha, verde e azul, representando a
presença completa das cores no espectro de luz).
Linha 11 : Além da mencionada referência à pintura de Delaunay,
possível alusão ao verso de Blaise Cendrars: “As janelas de
minha poesia estão abertas para os bulevares”.
Linha 16 : Trocadilho com o nome de dois jornais parisienses, La
Liberté e Le Temps e com o fato de que A Liberdade
republicava as matérias que saíam em O Tempo. Expressão
que o atarefado jornalista Apollinaire sempre repetia,
reclamando de tempo livre para escrever.
Linha 17 : Búzios Lampreias múltiplos Sóis e o Ouriço do crepúsculo:
uma natureza-morta marinha em uma linha. A reiteração de
motivos circulares e solares em todo o poema, mas,
especialmente aqui, remete diretamente aos “discos
simultâneos” da pintura dos Delaunay. Soleils Bignorneaux
são os búzios, os caracóis-marinhos. Podem se referir
também aos peixes-sóis (Lepomis gibbosus), o crapet-soleil
ou perche soleil.
Linha 19 : Uso de “palavras semafóricas” (ao gosto dos futuristas
italianos), abruptamente justapostas, em papel análogo às
placas e aos letreiros urbanos.
Linhas 19 23- : A série de quadros de “janelas simultâneas” de
Delaunay trazia a icônica torre Eiffel ao fundo (por isso,
Torres). Puits/ puis: trocadilho. Puits (poço) e puis (depois,
então), similar ao que ele faz em “A cigana”. Torres são ruas:
Apollinaire se diverte com o fato de que uma mudança de
perspectiva pode alterar a aparência dos objetos. É preciso
adotar o ponto de vista aéreo: uma avenida se estendendo ao
longe, vista de cima de uma janela, pode parecer uma torre.
Do mesmo modo, as praças, vistas de cima, parecem poços.
Linhas 24 6 - : Todo esse trecho usa personagens do romance de
aventuras antiescravagista The Quadroon (O mulato), de
Thomas Mayne Reid, que Apollinaire, em tradução para o
francês, leu e releu na prisão La Santé (1911). Câpre/
Câpresse (de capre, alcaparra): designação, nas Antilhas
Francesas (Caribe), para a pessoa descendente de negro e
mulato. Chabins/ Chabines: designações, nas Antilhas, dos
filhos de negro com mulato. No Brasil temos “Cabrita” e
“Cabrocha” como designações antigas para jovem mulher
mestiça ou mulata. O mesmo com homens: “Cabra”, mestiço
de negro com mulata. Trocadilho com Chabins e le
chabanais (barulho ou arruaça). Marronne designa um
escravo fugitivo. Marronne (1590), do adjetivo francês
marron, “fugitive”. Airs à mourir sugere canções
extremamente emocionais, que são “matadoras” ou “de
matar” (no sentido de algo ótimo, excelente). Ou no sentido
de canções “lindas de matar” (no Brasil, quando queremos
dizer que alguma coisa ou alguém é tão bonito que se
poderia morrer por ela ou ele).
Linha 26 : Oie oua-oua (pássaro huá-huá) ou cacawee (Anas glacialis),
presente em The Quadroon. Talvez inspirado em linha de
Whitman: “Ya-honk! ele grita, e envia seu grito pra mim
feito um convite”, de Folhas de relva. Os caçadores
canadenses, mencionados aqui, também aparecem no
romance de Reid.
Linha 32 : O ritmo sincopado e agora a imagem do trem de palavras-
cidades dotam o poema de velocidade, expressando o desejo
de borrar as fronteiras geográficas, simbolizando,
modernamente, a sensação de “ubiquidade” (a presença em
vários locais ao mesmo tempo).

paisagem

Publicado em Les Soirées de Paris (agosto de 1914 ), com o título


“Paisagem animada”, ao lado de outros “ideogramas líricos”
(batizados posteriormente de “caligramas”) como “Viagem”,
“Coração coroa e espelho” e “A gravata e o relógio”. Caligrama
(palavra­-valise composta de caligrafia + ideograma, cunhagem de
Apollinaire). O plano de Apollinaire, interrompido pela guerra, era
unir ao grupo o poema “Carta-oceano” e publicá-los, juntamente com
outros que estava criando, em um livro que se chamaria Et moi aussi
je suis peintre (E eu também sou pintor). O projeto foi abandonado
pela explosão da Primeira Guerra e retomado quatro anos depois,
bastante modificado e expandido, com o título Caligramas. Bohn48
identificou uma incrível semelhança com a pintura Les Fumeurs [Os
fumantes], de Fernand Léger (1911). “Paisagem” traz quatro texto-
imagens, apresentados simultaneamente para o leitor: uma casa, um
arbusto, uma figura humana e um charuto aceso e sua fumaça. Cada
caligrama pode ser tomado individualmente e, ao mesmo tempo, em
relação aos demais, possibilitando várias leituras e interpretações. O
mais ambíguo é o da figura humana, pois o texto se refere a um casal,
a “amantes”. Podemos imaginar então, como sugere o texto, de que se
trata de amantes deitados juntos, quem sabe um sobre o outro (collage
também é gíria para dois amantes que não se desgrudam). Talvez,
inspirado pelos pi-mus, pássaros da lenda chinesa de uma só asa que
só conseguiam decolar e voar colados a seu par. Para complicar, o
caligrama refere-se também a “meus membros” (sugerindo a leitura
amantes = membros do poeta), fragmentando a figura como os
pintores cubistas. Note o movimento geral dos quatro elementos,
como se imitassem uma forma de ascensão: pluma de fumaça da casa
sobre o telhado, o arbusto que cresce verticalmente, os braços
lançados para cima (aspirando aos céus), a fumaça do charuto que
sobe. Várias narrativas possíveis: a partir da figura humana, em
sentido anti-horário teríamos 1) o casal e o sexo, 2) o charuto após o
sexo, 3) a gravidez, 4) a casa e, nela, o nascimento de uma divindidade
(o poeta?). Lembrando que o título anterior era “Paisagem animada”,
Anne Hyde Greet sugere pelo menos mais duas possibilidades de
leitura. Uma delas começa da figura humana e prossegue em sentido
horário: o poeta se desmembrando da amante, então levantando-se
para saudar a paisagem ao redor, rejuvenescido pelo amor. “O tema
seria a projeção do amor como uma força que emana dos amantes e se
espalha pela paisagem, fazendo tudo frutificar em uma operação quase
mágica”.49 O poema é um bom exemplo de como o caligrama é mais
complexo do que apenas uma tautologia (ver Introdução).

as colinas

Publicado pela primeira vez em Caligramas, é um dos últimos escritos


por Apollinaire (dezembro de 1917 ). Poema de 45 quintetos, o mais
extenso do livro, contém trechos compostos em diversos períodos,
numa colagem dinâmica. Inteiramente em octossílabos, tem escassez
radical de rimas externas, não encontrada em nenhuma peça da
primeira e importante seção “Ondas”. Como “A bela ruiva”, “As
colinas” é uma espécie de testamento poético e foi escrito quando ele
se recuperava de sua cirurgia. Em 1918 Apollinaire escrevia a Picasso
sobre suas intenções com “As colinas”: “Estou tentando renovar o
tom poético, mas no ritmo clássico”. O poema foi traduzido por
Carlos Drummond de Andrade (que não respeitou a métrica). A
composição ecoa várias formulações de Apollinaire, algumas delas em
sua conferência “O espírito novo e os poetas”, proferida em 26 de
novembro de 1917 . Retomada do visionarismo e desregramento de
Rimbaud. Ecos de Marinetti. O poeta como profeta, inventor,
cientista, anjo de vanguarda. Ocupando o centro da seção “Ondas”,
como observa Harrow,50 ele “fornece um elo simbólico entre a série
de poemas experimentais e os últimos” (como “A vitória” e “A ruiva
bonita”).

Linha 3: Em 1916 o aviador francês Jean Navarre (1895-1919) havia


pintado seu avião de vermelho-vivo para desafiar e intimidar
os inimigos alemães durante a Primeira Guerra Mundial.
Simultaneidade de tempos: Apollinaire funde os duelos
aéreos e os duelos de cavaleiros medievais e bíblicos (versos
-
8 10 ).
Linha 33 : Num verbo, “sibilar”, Apollinaire aproxima as serpentes às
Sibilas da mitologia grega. Aqui ele recorta e cola, como é
comum, uma imagem do poema “A canção do mal-amado”:
“Ô mon ombre ô vieux serpent” [Oh minha sombra oh
velha serpente].
Linha 35 : Psylles: segundo Heródoto, os psilos eram uma antiga tribo
da África (na Líbia), conhecida por sua habilidade em
controlar serpentes e por uma história intrigante. De acordo
com relatos, quando o vento sul secou todos os poços da
tribo, eles decidiram declarar guerra contra o vento como
vingança. Contudo, o vento respondeu com uma terrível
tempestade de areia que devastou completamente a tribo.
Linha 76: Os manes, na mitologia romana, são os espíritos dos mortos
considerados divindades tutelares de uma família. Do latim
manes, espírito de um falecido, fantasma, sombra de um
morto. A palavra está geralmente associada à bondade e ao
adjetivo latino manus (“bom”). O tema das almas dos
antigos se juntando aos contemporâneos é desenvolvido no
poema “A casa dos mortos”.
Linhas 79 80- : A imagem do anel retoma a ideia de circularidade e
ciclo, recorrente em sua poesia (ver “Açafrões”, “As janelas”
e “Zona”, por exemplo). Nada começa, nada termina: tudo é
um círculo, como um anel.
Linha 151: O amigo aqui é Picasso. Ambos haviam se distanciado um
pouco desde o imbróglio da prisão de Apollinaire.

árvore

Primeiras publicações na revista Le Gay Sçavoir (10 de março de


1913 ), na revista dadaísta Cabaret Voltaire (n. 1, 25 de maio 1916 )e
em Portugal Futurista (n. 1 , novembro de 1917 ). Poema em versos
livres.
Título: Há várias interpretações para um título tão geral e cifrado.
Segundo Greet,51 ele faz referência a uma árvore cujos frutos
dão poderes divinos, ou escondida num bosque e vigiada por
um monstro e que é, ainda, uma cruz e uma forca. Pode
remeter ao mapa das veias de um corpo humano e a uma
árvore genealógica.
Linha 1 : O fonógrafo, inventado por Thomas Edison em 1877 ,
reproduzia o som gravado num cilindro de cera. Já o
gramofone, inventado pelo alemão Emil Berloner em 1887 ,
reproduzia um som gravado num disco plano. Em 1835 a
palavra “fonógrafo” tinha o sentido de “caractere
representando um som, um caractere usado em fonografia”
(de fono, “som” + grafia, “escrita”). Esse sentido mais antigo
era raro e é obsoleto. Há uma alusão ao poeta “globe-
trotter” e amigo Blaise Cendrars (1887-1961).
Linha 5 : Ispahan: cidade do Irã onde fica a mesquita Sha, uma das
obras-primas da arquitetura persa, cuja grande cúpula é feita
de azulejos azul-claros, amarelos e brancos. Apollinaire tem
um poema publicado postumamente chamado “Ispahan”.
Linha 7: Marchand de coco: na França, “coco” era o nome de uma
bebida popular até o fim do século xviii , uma mistura de
água, limão e suco de alcaçuz. Era vendida por ambulantes,
chamados de “marchands de coco”, que usavam um jarro de
ferro nas costas e anunciavam a bebida com sininhos.
Semelhantes ao nosso vendedor de refresco, uma figura
popular no Brasil desde a escravidão até um passado não tão
distante.
Linhas -
7 10 : Alusão a versos do poema “Hamac”, de Dezenove
poemas elásticos, que Cendrars escreveu em homenagem a
Apollinaire. O jovem e ambicioso poeta suíço, que estava
chegando à cena literária parisiense, provocava, ao concluir
seu poema com um epitáfio que dizia: “Apollinaire (1900-
1911 ): por 12 anos, o único poeta da França”. Cendrars
tinha desafiado Apollinaire nestes versos de “Hamac”:
“Viajante ocidental/ Por que você não vem comigo pros
Estados Unidos?”. O fantástico personagem barão
d’Ormesan, personagem de “O heresiarca”, de Apollinaire,
era capaz de “aparecer” em centenas de lugares ao mesmo
tempo. O barão foi inspirado no belga e troublemaker Géry
Pieret, que viveu alguns anos nos Estados Unidos e foi preso
por suspeita de estar associado ao roubo da Mona Lisa, em
1911 .
Linhas 15 6 - : Referência ao pintor francês Henri Rousseau (1844-
1910 ), conhecido pelo apelido “Le Douanier” (aduaneiro ou
fiscal de alfândega), já que ele havia trabalhado muito tempo
como alfandegário. Ele também pintou um famoso quadro
de Marie Laurencin e Apollinaire, que foi um enérgico
defensor do valor de sua pintura.
Linhas 18 9 - : Toupeira-Ariadne: composição metafórica que opera
uma fusão simultaneísta do mundo animal com o mitológico.
Toupeira era gíria parisiense comum para prostituta.
Ariadne: na mitologia grega, a “Senhora dos Labirintos” do
Minotauro (ela reaparece em “O músico de Saint-Merry”).
Tanto a toupeira quanto Ariadne são especialistas em
subterrâneos (onde crescem as raízes da árvore aludida no
título). Segue uma das sugestões do segundo “Manifesto
técnico da literatura futurista” de Marinetti52 (1912), que
defende que “um substantivo deve ser seguido, sem nenhuma
frase conjuntiva, pelo substantivo ao qual está ligado por
analogia. Exemplo: homem-barco torpedeiro, mulher-golfo,
turba-ressaca, praça­-funil, porta­-torneira”.
Linhas 20 2 - : Aqui Apollinaire reescreve uma passagem do poema La
Prose du Transsibérien et de la petite Jehanne de France, de
Cendrars, que foi aprendiz de joalheiro (“E parti na
companhia de um caixeiro-viajante de joias a caminho de
Harbin”). Referência à Ferrovia Transiberiana (Moscou-
Vladivostok), com 9289 quilômetros de extensão e
abrangendo oito fusos horários. Reminiscência da viagem
que Cendrars fez em 1904 com seu chefe, um comerciante de
joias.
Linha 23 : Provável alusão a Marie Laurencin. Em junho de 1912 ela
rompera relações com o poeta, que mergulhou em grande
depressão.
Linha 26 : Dame-Abonde: Abundia, Deusa Abundia, fada das lendas
medievais, ora boa, ora má. Aparece em Roman de la Rose.
Como o nome indica, está ligada à abundância (a frutificação
da árvore, portanto). Possuía, na Idade Média, papel
semelhante ao Papai Noel para os franceses.
Linha 34 : Possível alusão à sua mãe, Angelica, nascida na Finlândia
russa, de onde o poeta, como em uma árvore genealógica,
ramificou.
Linhas 36-7: La Corogne: La Coruña, cidade portuária no noroeste da
Espanha. Local onde Marie Laurencin estava com o amante
quando Apollinaire enviou o postal.

segunda-feira rua cristina

Primeira publicação na revista Les Soirées de Paris (15 de dezembro


de 1913 ). Poema em versos livres, com uso extremo da parataxe e
descontinuidade (ver “As janelas”). Cada fragmento­-linha é, ao
mesmo tempo, autônomo e parte de uma composição. Metonímia: a
parte pelo todo. “Poema-conversas” ou “poema-algaravia”, é feito de
uma colagem de fragmentos de conversas, comentários, descrições e
sons entreouvidos num pequeno café na rua Christine, uma rua
estreita localizada no Sexto Arrondissement, em Paris. O poeta estava
com o escritor e jornalista Jacques Dyssord (1880-1952) e outro
amigo, Madsen, na noite anterior da partida de Dyssord para a
Tunísia. O poema é exemplar da evolução de sua poética, um
desenvolvimento de uma estrutura tão ou mais importante que os
caligramas. O insight da escolha por conversas banais, lugares-
comuns, clichês, frases prontas e fragmentos da linguagem ordinária
na poesia é análogo à inserção de pedaços do cotidiano nas telas
cubistas. Há também uma referência aos ready-mades de seu amigo
Marcel Duchamp (o primeiro, “Roda de bicicleta”, é de 1913 ). Nesse
tipo de composição o poeta assume o papel de um operador de som
(um colagista de vozes e fragmentos de linguagem encontrados no
ambiente) e menos um sujeito lírico autobiográfico. Poesia
estereofônica.
Há várias coisas acontecendo ao mesmo tempo aqui: o
planejamento de um roubo (linhas 1 a 4 ), clichês, pleonasmos,
intervenções descritivas do ambiente (linhas 5 , 11 , 24 , 26, 27 e 31 ,
por exemplo), frases ditas durante uma partida de baralho (linhas 7 e
a última), ruídos do restaurante (linha 12 ), protocolos sociais (“Caro
senhor”, “Prontinho senhor”, “perfeitamente”, este inserido no verso
14 , onde o contexto pediria um palavrão), onomatopeias do bar em
atividade (“pim pam pim”), piadas sexuais (linhas 14 e 37 ), insígnia
comercial (“Companhia de navegação mista”). Há outras conversas
paralelas: a criação de um novo jornal, contatos internacionais,
fofocas, comentários sobre gírias, viagens, drogas, sexo, vestuário etc.
Apollinaire vai usar o recurso em “As janelas” e “Carta-oceano”,
entre outros poemas. Segundo Apollinaire, o poema-conversation faz
parte do desejo do poeta de libertar-se da tirania da linguagem e
registrar, “no centro da vida, por assim dizer, o lirismo ambiente”53
(itálicos meus).
Além de seu personagem do conto “O rei-lua” (e seu dispositivo
capaz de tocar sons e ruídos de várias partes do planeta), a inspiração
vem do fenômeno da acusmatia (a escuta atenta de um som cuja
origem se ignora), que o fascinava desde criança. “Fofocas ouvidas
com um ouvido indiscreto, palavras proferidas por santos e
condenados, vozes de poetas e profetas, todas as formas de fala o
encantavam”, descreve Laurence Campa.54 Parece ser também
inspirado nas transcrições de conversas,55 um gênero jornalístico em
si, praticado ao longo do século xix , como aponta Maria Dario: “O
poema é na verdade uma colagem de afirmações anônimas e
fragmentadas e descontínuas, que não podem mais ser atribuídas a
nenhum sujeito lírico. Eles são de materiais triviais, extraídos de seu
contexto local e justapostos, que, ao integrar diferentes pontos de
vista, produzem um efeito de percepção fragmentada, semelhante à
leitura do jornal”.56 Finalmente, a inspiração fundamental do
procedimento da colagem (segunda fase da pintura cubista), quando
Picasso, Braque e outros começaram a inserir fragmentos de
linguagem “real” como letras, texturas pré­-fabricadas, objetos
cotidianos, fragmentos de páginas de jornais, de partituras, de livros
etc.

Linha 5: Bec de gaz: lampiões a gás, usados na iluminação pública ou


presentes no interior do restaurante. Curiosamente, era
também gíria da época para policiais. Apollinaire escreve em
“Les fiançailles” [O noivado]: “Os bicos de gás mijavam suas
chamas ao luar”. Allumé também era gíria para estar
ligeiramente bêbado, entusiasmado.
Linha 14 : Um dos fregueses diz que prefere cortar seu próprio pênis a
pagar a locatária. Curiosamente, onde se esperaria um
palavrão (caralho, pau) Apollinaire enfia um fragmento de
conversa (“perfeitamente”), provavelmente dito pelo garçom
que os atende.
Linha 16 : Os espelhos são personificados e estão de frente um para o
outro, criando a ilusão de um espaço infinito.
Linha 20 : Trocadilho com solitária (sozinha) e solitária (tênia,
parasita).
Linha 37 : Há uma insinuação sexual e provavelmente homossexual
nessa frase dita por algum pintor ou marchand.
Linha 48 : La quinte major: o royal straight flush no pôquer, uma mão
imbatível. O poema termina abruptamente, como se alguém
revelasse as cartas vencedoras e encerrasse o jogo (e o
poema) de forma repentina, refletindo a imbatibilidade do
royal straight flush (daí a minha interpretação). As traduções
variam: Greet e Revell optam por “A mão vencedora”,
enquanto Sorrell e Padgett preferem “Royal Flush” e “The
Royal Flush”.

carta-oceano

Primeira publicação na revista Les Soirées de Paris em 15 de junho de


1914 . No original, a primeira, segunda e quarta páginas do poema
eram dispostas na vertical. Um dos mais complexos e bem-sucedidos
caligramas de Apollinaire, exemplar simultaneísta. A peça se enquadra
também dentro do poema-algaravia ou poemas-conversas (ver “As
janelas”, “Segunda-feira rua Cristina” etc.). Como escreve Anne Hyde
Greet,57 a composição “é sem dúvida nenhuma o experimento mais
radical em ‘simultaneidade tipográfica’, envolvendo uma maior
subordinação do texto à forma gráfica do que em outros caligramas”.
Foi originalmente publicado em duas páginas abertas, lado a lado, o
que não costuma ser respeitado em outras aparições, para prejuízo de
sua leitura.

Lettre-océan: a “carta-oceano” era transmitida por um telegrafista


através do tsf (telégrafo sem fio) de um navio a outro (tendo
sido usada, por exemplo, no naufrágio do Titanic, em 1912 ).
Depois a mensagem era transcrita e encaminhada ao porto
mais próximo, seguindo para seu destino via correio postal.
Justifica-se, assim, o título da seção “Ondas” (referentes
também às ondas de rádio). Greet58 lembra que “Carta­-
oceano” “celebra a consciência global do homem moderno
através dos avanços das comunicações em todo o mundo”.
As linhas onduladas remetem às ondas de rádio, da física e
do mar, simultaneamente. A estrutura visual única desse
poema de Apollinaire torna impossível uma análise
detalhada linha por linha. Sua forma e disposição são
fundamentais para a compreensão da mensagem,
dificultando a abordagem tradicional de comentários por
linha.
Carte postale: Apollinaire se dirige a seu irmão, Albert, que partira em
janeiro de 1913 para o México.
Juan Aldama: patriota mexicano fuzilado em 1811.
Ypiranga: nome do navio a vapor que fazia o trajeto do México para a
Europa.
Como faz em outros poemas, Apollinaire inscreve as circunstâncias
imediatas de composição. Os números indicam a hora
(11h45), o dia (24 de maio), o ano (1914) e o local (Rue des
Batignolles) de onde a mensagem foi enviada.
Zut!: gíria francesa similar ao nosso “porra!”, “merda!”, “puta que
pariu!”. A interjeição nomeou os artistas do grupo Zútico,
que contava com poetas como Charles Cros, Verlaine e
Rimbaud (este chegou a ser expulso). M. Zun: trata-se de
xingamento cifrado à Henri-Martin Bazun, poeta e diretor
da revista Poème et Drame, com o qual Apollinaire teve uma
polêmica em 1914 sobre “simultaneísmo”. Também é
“interjeição popular de desprezo e indiferença”, como
lembra Augusto de Campos.59
Pad: os manuscritos revelam que Apollinaire havia escrito inicialmente
Bar (inicial de Barzun), mas decidiu substituir por pad.
Des clefs: verso de “La clef”, poema de juventude.
tsf : o Telégrafo Sem Fio, inventado por Marconi, transmitia sinais em
código Morse. Havia uma poderosa antena no topo da torre
Eiffel.
Garotas em Chapultepec: lugar turístico famoso na Cidade do
México, legenda do cartão-postal enviado pelo irmão Albert.
Brûlé le dur: gíria parisiense para “viajar sem pagar bilhete”.
Gerce: gíria para jovem amante.
Chirimoya: a exótica fruta-do-conde.
Pendeco: Apollinaire se refere à palavra “pendejo” (babaca).
Toussaint-Luca: amigo de Apollinaire, que ele conheceu ainda na
juventude, em Mônaco.
Anomo: “Bom dia, homem”, em maia.
Anora: “Bom dia, mulher”, em maia.
1890 : referência ao terremoto ocorrido na Côte d’Azur em 1887.
O primeiro círculo pode sugerir também um molho de chaves. As duas
grandes formas circulares representam 1) as ondas do rádio
sendo propagadas para todas as direções do planeta do alto
da torre Eiffel, o novo centro mundial; 2 ) um disco de
gramofone, o qual, como lembra Greet,60 Apollinaire
considerava vital para o desenvolvimento da poesia futura.
Ele nos deixa uma última surpresa: no centro do círculo, ele
indica ao leitor que o ponto de vista é o aéreo: a torre Eiffel,
de trezentos metros de altura, vista exatamente de cima, a
partir de sua antena.
Crea: uma observação mundana e “antipoética”, em linguagem
onomatopaica repetitiva, imita o som dos sapatos novos do
poeta-flâneur pelas ruas, ao mesmo tempo que joga com o
verbo “créer” (criar). Também ecoa a palavra “creme” (A la
Crème à).
Allons circulez Mes: provável mensagem cortada para “Vamos em
frente, vamos circulando, mesdames (minhas senhoras)” ou
“[…] mes amis (meus amigos)”.

sobre profecias

Primeira publicação na revista Les Soirées de Paris, n. 24 , 15 de maio


de 1914 , com o título “Profecias”. O estilo desse poema em versos
livres é conversacional, relaxado, coloquial. Apollinaire faz uma
defesa das superstições e profecias. Para a imaginação e seu lirismo
realista-mágico, essas formas são tão válidas quanto a ciência.

Linha 2: Madame Salmajour, cartomante fictícia.


Linha 7 : Outra cartomante fictícia. Céret: um vilarejo do sul da
França, no sopé da cordilheira dos Pirineus.
Linha 9 : Madame Deroy realmente existiu. Violette Deroy teria
profetizado que Apollinaire seria preso, como insinuou o
poeta em sua famosa coluna “A Vida Anedótica”, em 16 de
outubro de 1911.
Linha 13 : Ciomante: aquele que adivinha o futuro através da
comunicação com as sombras dos mortos (do grego scio,
sombra, fantasma). Mais um motivo para Apollinaire temer
ter a sua sombra interrogada. A imagem da sombra tem um
papel importante na poesia de Apollinaire, adquirindo vários
significados (morte, dualidade, inconsciente, efemeridade
etc.).
Linha 14: Diriks: Edward Diriks (1855-1930), pintor norueguês
(apelidado de “pintor do vento”) e amigo do poeta.
Linha 20: Amigo de Apollinaire e escritor, André Billy (1872­-1971) na
época era hostil às inovações modernistas. O poema adquire
aqui um caráter epistolar, com Apollinaire defendendo a
profecia e as adivinhações como formas legítimas de
conhecimento (ver “As colinas”).

o músico de saint-merry

Primeira publicação na revista Les Soirées de Paris (15 de fevereiro de


1914 ). Poema em versos livres, com alguns alexandrinos. Mesmo com
os “interlúdios simultaneístas” (linhas -
32 44 , ­-
48 52 , -
53 61 ), nessa
peça Apollinaire retoma alguma narratividade e linearidade, como
ocorre em “Um fantasma de nuvens” e “Sobre profecias”. Novamente
a imagem do cortejo, da procissão (ver “Cortejo”, “A casa dos
mortos” e “Zona”, por exemplo). A composição é meticulosa. É
importante saber que Apollinaire liderara uma visita guiada pelo
bairro de Saint­-Merry no dia 4 de maio de 1913 , em nome da
Sociedade dos Amigos da Paris Pitoresca. Suas anotações e
perambulações, ao pesquisar sobre o bairro para preparar sua visita,
serviram de base para o experimento, o que se revela em sua precisão
geográfica e histórica. Novamente, ele vai explorar a simultaneidade
espaçotemporal: a antiga fábula germânica do Flautista de Hamelin é
transportada para o distrito histórico de Marais, em Paris, em 4 de
maio de 1913 , com recuos para outros momentos históricos. Havia
uma estátua de um flautista na fachada da igreja Saint-Merry que
pode ter sido o gatilho para a composição. O poeta surge como um
mestre do maravilhoso e do estranhamento, fundindo realidade e
imaginação, criando uma espécie de lirismo realista-mágico. Escreve
Anne Hyde Greet: “Poucos poemas ilustram melhor o conceito
estético de surnaturalisme, quer dizer, uma poesia que incorpora uma
visão mítica da realidade sem nunca perder contato com o
imediatismo da vida comum”.61

Título: Saint-Merri ou Saint-Merry é o 13o bairro administrativo de


Paris (Quarto Arrondissement). A igreja Saint-Merry,
mencionada no poema, fica na Rue de la Verrerie, esquina
com a Saint-Martin. Seu nome vem de Medéric, um abade
eremita que se estabeleceu por ali no século vii . Foi a mesma
igreja em que se casou André Salmon (ver “Poema lido no
casamento de André Salmon”).
Linhas 1 e 6: Podem ser lidas como uma ars poetica. A canção pode
ser o próprio poema no momento em que está sendo
composto. Apollinaire tinha costume de fazer poemas
enquanto caminhava por Paris, às vezes cantarolando. Greet
sugere que esse trecho foi recortado e colado de outra
composição, servindo como uma abertura.
Linha 7 : Sendo um legítimo flâneur, Apollinaire explora o duplo
sentido do verbo “errar”: cometer um erro e vagar,
perambular.
Linha 8: Novamente, Apollinaire inclui a datação e circunstância em
que foi escrito o poema na própria composição.
Linha 9 : Mordonnantes mériennes: tema de alguma polêmica
interpretativa. Para Greet,62 trata-se uma palavra-valise, da
junção de mort (os franceses chamam o período pós­-orgasmo
de petite mort, pequena morte) + bourdonnantes
(zumbidoras, sonantes). Mériennes designa, segundo algumas
leituras, as prostitutas de Saint-Merry. Merry também quer
dizer, em inglês, alegre e divertido. Há também possível
referência sub­liminar a duas decepções amorosas (Marie, de
Stavelot, e a pintora Marie Laurencin).
Linha 10 : Alusão a Belzebu (Βεελζεβούλ), que em grego significa
“senhor das moscas e da pestilência”. O Diabo.
Linha 11 : Entra o personagem principal do poema, o flautista cego e
estrangeiro. Aqui Apollinaire incorpora e erotiza a lenda
folclórica alemã do Flautista de Hamelin. O famoso conto
dos irmãos Grimm é baseado em uma história mais antiga
(de 1284 ). O flautista um dia chega à cidade. Hamelin sofre
com uma infestação de ratos. Com a promessa de uma
recompensa, o Desconhecido começa a passear pela cidade,
hipnotizando os roedores com a música de sua flauta. Os
ratos o seguem, enfeitiçados, até o rio Weser, onde o flautista
os afoga. No entanto, a cidade recusa-se a pagar a
recompensa (alegando que ele não apresentou as cabeças dos
bichos como provas). O Desconhecido vai embora, jurando
vingança. Num de seus retornos, enquanto todos estão na
igreja, ele enfeitiça, com sua flauta, 130 meninos e meninas,
que são conduzidos para fora de Hamelin e trancados numa
caverna. Por isso, em Hamelin não há ratos, nem crianças. O
último som ouvido foi a flauta morrendo na distância. O
flautista também remete ao mito de Orfeu, deus da poesia,
da música e da profecia. Ele tinha o poder de encantar todos
os seres vivos e objetos inanimados com sua lira.
O homem sem face e o poeta são a mesma pessoa. Como os cubistas,
Apollinaire multiplica os pontos de vista, alternando os
pronomes. Bohn defende que o herói do poema é o próprio
Apollinaire, que está presente sob três disfarces ou personas:
como protagonista (o músico), o narrador (o locutor) e o
poeta (o cantor). A canção que ele está cantando é o próprio
poema que está sendo escrito. Apollinaire se vinga das
mulheres que o fizeram sofrer ao se tornar um músico
irresistível que as conduz para o Hades (ou para a morte, ver
linhas 84-6).
Linhas 11 e 13 : Willard Bohn63 sugere que o homem “sem olhos sem
nariz e sem orelhas” (mas com uma boca e de bochechas
rosadas) seria uma espécie de Homem-Pênis Ereto (leitura
que Apollinaire, pornógrafo e editor de Sade, concordaria).
O homem sem rosto (os bocas quebradas) seria uma visão
comum durante a Primeira Guerra Mundial, que começaria
um ano depois.
Linha 18 : O cortejo de mulheres misteriosas que começa a seguir o
músico se refere às filles de joie (prostitutas) que habitavam
os cortiços do bairro desde a Idade Média. A sugestão é de
que Ariane (a Ariadne do mito do labirinto do Minotauro) é
quem lidera o cortejo. Ariadne reaparece no poema
“Árvore”.
Linha 21 : Refere-se à Fontaine Maubuée, fonte de água do século xiii .
Localizada na esquina das ruas Saint-Martin e Venise, no
Quarto Arrondissement, em Paris, é mencionada no famoso
poema “Testamento”, de François Villon, um dos favoritos
de Apollinaire. A má qualidade da água a fazia ser apelidada
de “que lava mal” ou, ainda, “que me lave o mal”. A fonte
original ficava na esquina da rua Saint-Martin com a
Maubuée.
Linhas 32 53- : A narrativa é interrompida para a inserção de uma
primeira série de “notícias do mundo” que alcançam a mente
do poeta (Paris, as Molucas, Congo, Alemanha). Interessante
lembrar que Apollinaire havia inventado, em L’Hérésiarque
et Cie., o barão d’Ormesan, criminoso e aventureiro,
inventor de uma máquina de ubiquidade, que lhe permitia
aparecer em centenas de lugares do mundo ao mesmo tempo.
Linha 35 : Pombas defecam noz-moscada: a ave Ducula spilorrhoa,
cujo nome popular é pombo-da-noz-moscada, da família
Columbidae, é encontrada na Austrália, Indonésia e Papua­-
Nova Guiné. Alimenta-se de bagas e frutos. As sementes de
noz-moscada, de fato, também fazem parte de sua dieta.
Linha 37 : Na época, alguns missionários se imbuíram da missão de
destruir esculturas africanas por sua idolatria e indecência.
Um missionário de Bôma, capital do então Congo Belga,
havia ganhado notoriedade ao destruir sistematicamente
fetiches congoleses. Apollinaire possuía uma escultura de
Bôma na sua coleção. O verso, para Bohn,64 pode ser lido
como um ataque de Apollinaire à imposição do cristianismo
à população africana. Os escultores africanos, convertidos ao
cristianismo e com a proibição de manufaturar fetiches,
máscaras e deuses tribais, acabam também perdendo sua
profissão. Ver linhas 150-3 de “Zona”.
Linha 39 : Apollinaire pode estar se referindo aqui à Marie Laurencin
(que fora embora de Paris, recém-casada com um barão
alemão) ou Annie Playden (a governanta inglesa pela qual ele
foi apaixonado na Alemanha). Esse é o trajeto da
personagem Tristouse Ballerinete, de O poeta assassinado,
baseada em Marie Laurencin.
Linha 43 : Para Bohn, assim como pintores e escultores como Picasso
estavam sendo influenciados pela descoberta das esculturas
africanas, a poesia moderna deveria se inspirar nos layouts,
pôsteres e rótulos de perfumes.
Linhas 44 5 - : Para Bohn, há uma crítica social nessa passagem, relativa
à luta de classes: “os capitalistas exploram a miséria dos
pobres, enquanto o proletariado tem que lutar para
sobreviver”.
Depois do catálogo de nomes de prostitutas (linhas ­- ), um breve
67 9

catálogo de clientes (linhas 95 9- ). Apollinaire evoca também


vários cortejos históricos, evidenciando algum parentesco
entre “O músico de Saint-Merry” e “Cortejo” (de Álcoois).
Linhas 46 8 - : A referência, novamente, é Marie Laurencin, supondo
que ela esteja tão mal quanto ele com a separação.
Linha 48 : Mais uma inserção autobiográfica: Apollinaire havia
consolado Laurencin pela perda da mãe enquanto tomavam
um táxi.
Linha 50 : Possível alusão ao famoso verso de Baudelaire de “Ao
leitor”, de As flores do mal: “Hipócrita leitor — meu
semelhante — meu irmão!”.
Linha 53 : Assim como as linhas 33 e 47 se referem a trens, esta alude
ao avião, dois símbolos da modernidade cantada por
Apollinaire.
Linha 55 : Como um dia sem pão: em maio de 1913 ocorreu uma
greve dos padeiros em Saint-Merry (na época uma espécie de
quartel-general dos padeiros parisienses). Só duas padarias,
na rua de La Verrerie, ficaram abertas, causando imensas
filas. Em protesto, vidraças foram quebradas, ecoando as
vidraças quebradas do imóvel abandonado que ele visitou
(linha 74), existente até hoje na mesma rua. Bohn lembra que
existe um tipo de pão francês chamado flûte (flauta). Esses
episódios são transformados por Apollinaire no realismo
mágico ou surnaturel do poema. A imagem da procissão,
como em “Cortejo”, passa a ser o fio condutor do poema.
Linha 60 : “O magro Suger” refere-se ao abade Suger de Saint­-Denis
(1080-1151), conselheiro de Luís vi e Luís vii . Diplomata e
autor de histórias, ele tinha uma casa na mesma rua de La
Verrerie.
Linha 61 : Em 5 de junho de 1832 , durante o funeral do general
Lamarque, houve uma insurreição popular no bairro.
Linha 67 : Paquette: no folclore francês, “paquette” é o nome genérico
de uma camponesa “disponível”. No Cândido, de Voltaire,
“Paquette” é uma camareira que é obrigada a se tornar
prostituta para sobreviver e responsável pela sífilis contraída
pelo personagem Pangloss. Também é uma forma abreviada
de “paquerette” (a flor margarida, em português).
Linhas 74 89- : Casas vazias e abandonadas fazem parte da convenção
de contos fantásticos.65 Aqui a referência é a um prédio no
no 83 da rua de La Verrerie, local de uma das casas mais
antigas e pitorescas da velha Paris. Havia uma curiosa
escadaria de corrimão de madeira, registrada como
monumento histórico e atração turística. O edifício e o pátio
interno existem até hoje.
Linha 92: Angélus: a hora da Ave-Maria, na tradição católica. No
caso, indicação de que são seis da tarde. Segundo Bohn,66 o
toque dos sinos anuncia o fim da “fantasia” e o retorno à
“realidade”.
Linha 94: O rei Luís xiv (1683-1715) ampliou a rua de La Verrerie
para possibilitar a passagem dos cortejos de embaixadores e
tropas que iam do Louvre em direção a seu Castelo de
Vincennes, a leste de Paris.
Linhas 95-9: Apollinaire mistura informações retiradas de guias
turísticos com suas observações na área, para poder usá-las
em sua visita guiada para a Sociedade dos Amigos da Paris
Pitoresca. Menção aos clientes das mordonnantes mériennes.
Havia uma série de chapelarias na rua Roi­-de­-Sicile. A
guarda republicana tinha um quartel no bairro. Para
Apollinaire, segundo Bohn,67 tudo no poema adquire uma
dimensão mítica.

a gravata e o relógio

Publicado pela primeira vez na revista Les Soirées de Paris (julho­-


agosto de 1914 ). Junto com outros caligramas, essa composição faria
parte do livro Et moi aussi je suis peintre, que acabou não sendo
publicado.

Caligrama da gravata: Há uma anedota de que o poema teria sido


composto na redação da revista Les Soirées de Paris, quando
Apollinaire tirou sua gravata e colocou-a ao lado do relógio
do colega Serge Férat. A passagem do tempo e a liberdade
criativa são temas-chave de Apollinaire, sobretudo em
Álcoois. Para Greet68 a gravata representa, segundo as
próprias palavras que a compõem, uma crítica às restrições
impostas pela civilização (a sensação de sufocamento
causada pelas convenções sociais) e um convite à liberdade.
À direita do relógio: Caligrama da pulseira ou corrente: traz uma
mensagem de carpe diem (a exortação a viver a vida
plenamente, a cada segundo): “A beleza da vida supera a dor
de morrer”, que introduzem as horas.
Caligrama do relógio: Cada uma das doze palavras que representam
as horas faz um trocadilho ou lança um enigma para o leitor.
A coroa, onde se dá a corda no relógio, traz as palavras “Comme l’on
s’amuse bien” seguida das palavras “as horas”, propondo
uma brincadeira com o leitor. Em francês, on tem três
significados: 1 ) “nós” ou “a gente”; 2 ) para indicar um
grupo, exterior a nós; e 3) no sentido de “alguém”. Portanto,
pode ser traduzida por “Como nos divertimos bem” ou
“Como são bem divertidas”.
Ponteiros: Sigo aqui a decifração de Anne Greet para os doze
ponteiros:69 1) um coração: uma hora (apenas um coração).
2 ) Os olhos: duas horas (são dois olhos). 3 ) Criança: três
horas (resultado do acasalamento, 1 + 1 = 3 ). 4 ) Agla
(‫)אגלא‬, as quatro letras formam uma sigla hebraica
cabalística para Atah Gibor Le-olam Adonai (“Sois poderoso
e eterno, Senhor”). 5 ) A mão (= cinco dedos). 6 ) Tircis, o
pastor de Virgílio, tradicional amante da poesia pastoral, dá
lugar a uma charada erótica: Je tire six, eu tiro ou dou três.
7 ) Semana (sete dias). 8 ) Símbolo matemático do infinito
posto de pé (∞). 9) As nove musas da mitologia grega. 10 ) x

é o numeral romano para dez. “O belo desconhecido” é o


símbolo “x”, usado para representar uma incógnita
matemática. Também remete à lenda do rei Arthur e os
Cavaleiros da Távola Redonda: em A morte de Arthur o
irmão de Gauvain chega à corte do rei Arthur como um “Bel
inconnu”, um “Belo desconhecido”. 11 ) Onze horas está
representada pela palavra “o verso dantesco” (a Divina
comédia é toda composta em hendecassílabos). 12 ) Doze
horas está representada pelas palavras “as horas” (são doze
no relógio), que ligam relógio e coroa. A meia-noite é
tradicionalmente a hora da morte e do fim.
Caligrama dos ponteiros: Indicando visualmente o que parece ser
cinco minutos para a meia-noite, mas, paradoxalmente, se
referindo no texto às cinco da tarde, quando o expediente na
redação da revista acaba (das nove às cinco). Possível
referência à Cinderela, cuja magia acabava à meia-noite (ver
“1909”).

um fantasma de nuvens

Primeira publicação em Les Écrits Français, n. 1 (5 de dezembro de


1913 ). Composição em versos livres, exemplar do poema­-passeio,
retomando alguma narratividade e discursividade, como ocorre em
“O músico de Saint-Merry”, “Sobre profecias”, entre outros. De
acordo com André Billy, as primeiras dez linhas foram escritas em
prosa, como o começo de uma história. Desafiado por Billy,
Apollinaire resolveu transformá-la num poema que alterna um estilo
prosaico e lírico. Várias metamorfoses acontecem ao longo da peça.

Título: faz referência à mitologia grega. O vilão Ixíon, rei dos lápitas,
é convidado para uma festa. Zeus percebe Ixíon assediando
sua esposa Hera e lhe prepara uma armadilha. Ele faz uma
réplica da esposa a partir de uma nuvem, dando-lhe o nome
de Néfele. Quando deixa a réplica sozinha, Ixíon de fato a
seduz, pensando ser Hera. Da transa de Ixíon e Néfele (a
nuvem) nasce a raça dos centauros. Greet: “Ixíon é o poeta
abraçando sua visão e, portanto, criando uma poesia que,
como os centauros, tem uma natureza híbrida, ao mesmo
tempo humana e divina”.70 No conto “O rei-lua”
Apollinaire nos dá mais uma pista para o poema: “Os
operadores novamente colocaram uma espécie de cinto que
segurava o dispositivo por uma ponta, e me pareceu que
todos eles devem ter se assemelhado à Ixíon quando ele
acariciou o Fantasma de Nuvens, a Juno invisível” (Juno é
equivalente à Hera). Greet sugere que a imagem do fantasma
feito de nuvens é um símbolo do otimismo trazido pelo novo
século, antes da Primeira Guerra, bem como da própria
poesia. Lembremos que o lema de Apollinaire era um
centauro (remetendo à Ixíon) e as palavras “Eu maravilho”.
A composição exemplifica o que pode ser chamado de
lirismo realista-mágico (rigoroso, preciso, nada arbitrário e
automático). O poeta transita livremente entre o que ele
observa e sua imaginação. Como ele escreve em Meditações
estéticas: “Os grandes poetas e os grandes artistas têm por
função social renovar incessantemente a aparência que a
natureza reveste aos olhos do homem”. Algumas imagens
foram retiradas de seu ensaio “Os jovens: Picasso, pintor”
(1905), sobre a pintura do espanhol.
Linhas 1-7: Assim como faz em outros momentos, quase como uma
marca registrada, Apollinaire incorpora textualmente a data
em que se passa a ação do poema. Catorze de julho é o
feriado nacional francês que comemora a Tomada da
Bastilha. Ocorrida em 1789 , ela deu início à Revolução
Francesa.
Linha 4 : A sugestão dos saltimbancos, acrobatas e mendigos remete
aos personagens que habitavam a pintura de Picasso das
fases azul e rosa. Essas figuras também aparecem em seus
poemas “Crepúsculo” e “Saltimbancos”.
Linha 14 : Longwy: cidade industrial no nordeste da França, na
fronteira com a Bélgica.
Linhas 30 2 - : O primeiro saltimbanco: alusão à aparência de meninas
nas telas de Picasso, sobretudo em Femme à la corneille.
Apollinaire observa algo de andrógino na figura dos
arlequins. Ele também escreve, no ensaio sobre Picasso:
“arlequins taciturnos têm as faces e as frontes emaciadas pela
sensibilidade mórbida”.
Linhas 37 41- : O segundo saltimbanco: Greet71 aponta aqui para uma
alusão ao “enforcado” e ao “Trismegisto” do poema
“Crepúsculo”. Ele carrega sua sombra, isto é, seu fantasma,
lembrando também o “homem sem face” de “O músico de
Saint-Merry”.
Linhas - : O terceiro saltimbanco: com a aparência de um bandido,
42 5

é ele quem negocia o couvert da apresentação com os


espectadores. Apache: tribo índígena dos Estados Unidos,
conhecida por sua ferocidade e astúcia (Gerônimo sendo seu
membro mais conhecido). Gíria pejorativa, na belle époque,
para designar um grupo de bandidos, marginais e criminosos
violentos que atuavam sobretudo na noite de Paris
(provavelmente cunhado pelo jornalista Victor Moris, em
1902 ). A palavra aparece, em vários dicionários, no sentido
de marginal, meliante, malfeitor e bandido.
Linhas - : O quarto saltimbanco: uma criança que remete
58 9

diretamente a O acrobata e a bola (1905), quadro da fase


rosa de Picasso. Remete também a uma passagem de seu
ensaio sobre o pintor e amigo espanhol: “As irmãs
adolescentes, pisoteando em equilíbrio as grandes esferas dos
saltimbancos, imprimem a essas bolas o movimento radiante
dos mundos.72
Última linha: “Século ó século de nuvens” remete ao título,
circularmente, e reforça a sugestão de que o fantasma de
nuvens é uma personificação do século xx . O fantasma de
nuvens pode, ainda, referir-se ao próprio poema construído
para seduzir o leitor (metalinguagem). Greet defende que
“Um fantasma de nuvens” oferece uma ideia diferente de
simultaneidade do que em “As janelas”: “não como uma
maneira de abordar a variedade inumana do universo, mas
como uma ponte entre dois tipos de experiência humana cuja
aliança pode enriquecer nossas potências criativas”73
(itálicos meus).
coração coroa e espelho

Publicado pela primeira vez na revista Les Soirées de Paris (julho­-


agosto de 1914 ), junto com outros caligramas. Mesmo modernista,
Apollinaire não abria mão das lições simbolistas e de seu gosto pelo
exótico e pitoresco. Espécie de autorretrato caligramático e
emblemático do poeta, como sugere Greet.74
A imagem do coração invertido é uma autocitação de um verso do
poema “Tu descendais dans l’eau”, de Vitam impendere amori (1917):
“a flama é meu coração invertido”. O caligrama foi inserido em seu
túmulo no Père Lachaise.
A coroa remete à linhagem nobre e aristocrata dos seus
antepassados, os Kostrowitzky. Para Greet, também é um comentário
sobre os reis que estavam desaparecendo no período e com os quais
Apollinaire se identifica. Seu pseudônimo e identidade poética
parecem flutuar no espaço do espelho, emoldurados por palavras que
remetem a Mallarmé e sua “negação da realidade”. Pode remeter a
um verso de “As janelas”, de Mallarmé: Je me mire et me vois ange!”
[Olho-me e me vejo anjo]. Além da moldura do espelho, é possível ver
ainda a figura geométrica da elipse como representação de uma
auréola de santo e uma coroa de louros. A simbologia do poema seria
a seguinte: 1) o coração (com seus dois ventrículos, representados por
letras maiores) estaria para o rei, 2 ) a coroa (com joias incrustadas,
em letras maiores, indicando a direção vertical de leitura) para o
poder, e 3) o espelho para o espírito. Alain-Marie Bassy75 defende que
as três figuras são organizadas de acordo com a fórmula alquímica:
formatio, reformatio, transformatio. O leitor testemunha duas
transformações simultâneas: 1) homem — rei — santo, e 2) amor —
poder — espiritualidade. Greet76 nota que os três caligramas oferecem
imagens de reflexão, memória e transformação, além de um
autorretrato emblemático do poeta, contribuindo para a construção
de uma identidade. Lembremos os vários nomes que o poeta teve em
vida.

viagem

Publicado pela primeira vez em Les Soirées de Paris, julho­-agosto de


1914 . Nesse caligrama Apollinaire propõe outra forma de ler-ver um
poema e uma paisagem, ao modo dos jogos no espaço das telas
cubistas e dos experimentos dos futuristas (as “palavras em liberdade”
do seu conterrâneo Marinetti). Para Greet,77 “o layout tipográfico é,
quando muito, uma representação bastante esquemática de uma
paisagem. É mais através de uma interpretação visual da forma, e por
um processo cinético de leitura, que um sentido de espaço é criado”
(itálicos meus). Críticos apontam que o poema coincide com o
casamento de Marie Laurencin com um barão alemão, remetendo à
sua “viagem de núpcias”. Apollinaire retoma, de forma caligramática,
dois temas caros à sua poesia, sobretudo a de Álcoois: o tema da
perda amorosa e da passagem (da vida, do tempo, do amor, das
coisas). Uso de fontes e tamanhos diferentes, com as palavras
sugerindo várias possibilidades de direção de leitura.

No alto da página: temos uma colagem curiosa: o desenho de um


poste de telégrafo que servia de logotipo do jornal de grande
circulação Le Matin. O procedimento é análogo à inserção
de recortes de jornal e texturas pré-fabricadas nas telas de
Braque e Picasso. Serve também como uma espécie de
bandeira de seu novo “estilo telegráfico”.
No alto das páginas: ao lado do logotipo do poste e fios elétricos, o
primeiro caligrama é uma nuvem carregada de chuva e, do
lado direito, um “pássaro-telegrama”. Na nuvem, ao
mencionar o poeta Dante Alighieri (1265-1321) e o verbo
“cair”, Apollinaire refere-se a sua jornada pessoal pelo
Inferno, Purgatório e Paraíso, no contexto do seu
relacionamento com Laurencin.
No centro da página: simbolizando a passagem do tempo (como em
“Outono doente”) temos o caligrama dos vagões, da
locomotiva e da fumaça. O poeta, que abolira a pontuação
em Álcoois, curiosamente faz aqui uso expressivo e plástico
do sinal de pontuação (ponto de interrogação­-fumaça do
trem).
Abaixo: caligrama de céu estrelado (letras-sílabas-estrelas) e lua
crescente (representada pela letra C em negrito e em fonte
maior). Todos os elementos ocupam o mesmo espaço da
página e possibilitam vários pontos de vista e linhas de fuga.

cruzando a europa

Primeira publicação em Les Soirées de Paris (15 de abril de 1915) e na


revista expressionista alemã Der Sturm, maio de 1914 . Texto híbrido
que faz uso radical da colagem e da descontinuidade (ver “Segunda-
feira rua Cristina”), borrando as fronteiras entre linguagem poética e
linguagem comum. De estrutura altamente paratática, com ênfase no
pensamento não linear, o poema foi escrito em quatro horas, sob o
impacto da visita, das conversas e, sobretudo, do universo das
pinturas do russo Marc Chagall (1887-1985), a quem ele dedica o
poema apenas pelas iniciais. Apollinaire, que era crítico de arte,
também dialoga diretamente com telas que ele viu no ateliê e que
ficariam famosas, como La vache enceinte, Paris, à travers de la
fenêtre, Paupières, Le mariage, Le promenade, entre outras. Além
disso, ele incorpora observações sobre a vizinhança, descrições
mínimas de objetos do estúdio, fragmentos de conversas (a viagem de
trem da Rússia a Paris feita por Chagall) e flashbacks. Como Greet
bem observa, “a flutuação contínua entre as memórias do poeta e o
que ele vê no mundo do pintor fornece uma estrutura poética”.78 O
poeta identifica-se com o universo de Chagall, remetendo-o ao próprio
passado (a perda, ainda recente, de Marie Laurencin, linha 24 em
diante). Também importante mencionar que ele estava fascinado com
a teoria dos “contrastes simultâneos” de Delaunay via Chevreau (ver
“As janelas”), o que transparece na estrofe final.

Título: Sugere o cosmopolitismo dos tempos modernos, com o mundo


e as distâncias se encolhendo pelos novos meios de
transporte e comunicação.
Linha 1: Ambiguidade linguística: o poema ia se chamar inicialmente
“Rotsoge” (referindo-se ao cabelo ruivo de Chagall, cujo
apelido carinhoso dado pelos amigos era Rodztag). Royt tog
significa “dia vermelho” em iídiche (Chagall era russo e
judeu). Essa expressão pode também fazer referência a
alguns autorretratos de Chagall, onde ele aparece com o
rosto avermelhado.
Linha 2 : Possível menção à bissexualidade de Chagall, aos novos
meios de transporte e, ainda, às figuras flutuantes de suas
telas.
Linha 3 : Maison ronde (casa redonda) refere-se a La Ruche (A
colmeia), prédio localizado no número 2 da Passagem
Dantzig, em Paris, onde ficava o estúdio de Chagall e outros
artistas. Hareng saur: arenque defumado, comida barata e
nutritiva, favorita do pintor, e que aparece nos quadros
L’homme au hareng e Le saoul.
Linha 5 : Mr. Panado: referência cifrada a Ricciotto Canudo (1879-
1923 ), escritor, editor da revista Montjoie e vanguardista,
amigo do poeta. Canudo se irritava com os atrasos de
Apollinaire nos deadlines das matérias e compromissos. La
panade é uma sopa de pão. Por isso, panade virou gíria para
estar na miséria, sem dinheiro, significando também uma
situação difícil, um apuro ou uma confusão.
Linha 6: m.d .: três possibilidades aqui: iniciais para o pintor Maurice
Dennis, M. Delaunay (o pintor Robert Delaunay, cuja teoria
das cores influenciava Apollinaire) ou ainda a M. Dalize (seu
amigo mais antigo, René Dalize).
Linha 7 : Apollinaire estaria fazendo uma charada matemática ao
elencar esses números. 90 ou 324 : 9 + 0 = 9; 3 + 2 + 4 = 9.
Curiosamente, 324 metros também é a altura da torre Eiffel,
até a ponta da antena.
Linha 8 : Remissão às pinturas que Apollinaire viu no estúdio. Para
alguns críticos, o verso remete diretamente a uma imagem do
quadro de Chagall de que ele mais gostava, Paris, vista
através da janela (1913). A tela mostra, ao fundo, uma
pessoa pulando de paraquedas da torre Eiffel. Isso estava se
tornando comum em Paris (o austríaco Franz Reichelt
morreria em 1912 , devido a uma falha em sua “roupa-
paraqueda”, que não abriu).
Linha 15 : Una volta ho inteso dire Chè vuoi: em italiano, “Uma vez
ouvi alguém dizer o que você quer”. Possivelmente uma
citação de uma conhecida passagem de Os diabos amorosos,
de Jacques Cazotte, em que Belzebu, transformado em
camelo, pergunta “O que você quer?” ao protagonista.
Linha 17: Possível alusão à tela O passeio, de Chagall.
Linha 18 : A pintura a qual Apollinaire se refere é, provavelmente, O
vendedor de animais (1912).
Linha 19 : As cores aludem à teoria de “contrastes simultâneos” da
pintura de Robert Delaunay.
Linha 20 : Chaminé charmosa: a alusão aqui é Marie Laurencin
(transformando o lugar-comum “fumava como uma
chaminé” em incomum).
Linha 29 : Trolley: os cabelos negros, crespos e eriçados de Marie lhe
lembravam as faíscas dos trilhos dos bondes. Padgett79 crê
que a imagem se refere, especificamente, ao cabo aéreo que
conduzia a corrente elétrica de um trolley (bonde de
passageiros) e as faíscas provocadas nos pontos de contato.
Linha 22 : Mirliton: o mirlitão é um instrumento de sopro do tipo
kazoo, e que Marie Laurencin gostava de tocar.

chove
Caligrama escrito no balneário de Deauville em julho de 1914 , pouco
antes dos eventos narrados no poema “O pequeno automóvel” e da
explosão da Primeira Guerra Mundial. Publicado pela primeira vez na
revista de vanguarda sic , n. 12 , dezembro de 1916 . Um dos poemas
mais amados, imitados e conhecidos de Apollinaire, antecipando-se a
movimentos como o letrismo, poesia concreta e poesia visual. Greet80
aponta possível influência, em seu arranjo vertical, de uma série de
quadros do pintor futurista Umberto Boccioni (Estados mentais:
aqueles que vão e Estados mentais: aqueles que ficam, de 1911 ). Ela
nota ainda que as linhas não só imitam e emulam a rapidez e a tristeza
da chuva como carregam um sentido de aventura e exploração
espacial. Os cinco versos, sem rimas finais, vertem-se verticalmente, ao
modo da escrita chinesa e japonesa, que Apollinaire estudou. Elas
podem ser visualizadas de várias maneiras: 1) a chuva caindo, 2) gotas
de chuva percorrendo uma vidraça, e 3) os cinco dedos de uma mão.
Faleiros81 chama a atenção para os “tremores tipográficos” das linhas,
que acentuam ainda mais o tom melancólico. Apesar de nitidamente
visual (fanopeia), é marcado por grande fluência e musicalidade. “Il
pleut” pode remeter ainda ao verso de Rimbaud, “Il pleut doucement
sur la ville” [Chove docemente sobre a cidade], e a “Il pleure dans
mon cœur/ Comme il pleut sur la ville” [Chora no meu coração/
Como chove sobre a cidade], de Paul Verlaine.

Linha 1 : Pleut/ pleurent: jogo de palavras entre “chover” e


“chorando”. Fusão de imagem, fundindo os modos visuais,
verbais e auditórios.
Linhas 3-4: Auriculares: palavra presente em Rabelais, vem do latim
auricularius, “derivado das orelhas”. As “cidades
auriculares” ou ainda “cidades de orelhas”. A chuva faz
barulho, se espalhando e sendo ouvida pela cidade.
Enquanto os dois primeiros versos têm um tom melancólico,
familiar aos leitores de Álcoois, as linhas 3 e 4 devem ser
lidas no contexto da modernidade. Há, segundo Greet,82
“uma dialética mais complexa na qual a chuva é associada
ao enriquecimento de novas experiências e ao envolvimento
sincero com o mundo moderno”.
Linha 5 : Novamente, ele explora a duplicidade semântica do verbo
“tomber”, que significa, como em português, “cair” e
“morrer”. Os elos são comparados à chuva, que liga terra e
céu, passado e futuro. O poeta repetirá o uso de linhas
verticais e diagonais em “Mira” e “Algodão nas orelhas”.

o pequeno automóvel

Embora faça referência à data de 31 de agosto de 1914 , “O pequeno


automóvel” foi provavelmente escrito meses depois dos eventos
mencionados. Publicado pela primeira vez em Caligramas. Versos
livres, com caligrama inserido na metade do poema: as letras
desenham três pessoas (o chofer, Apollinaire e o amigo jornalista
Rouveyre), o carro, volante, rodas, estribo, estrada (ou representação
de dois fluxos de ar). Exemplo de poème-promenade, poema-passeio
(como “Zona”, “Um fantasma de nuvens”, “Cruzando a Europa” e
“O músico de Saint-Merry”), recapitula a viagem de carro de
Deauville a Paris e a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Também
inaugura os “poemas de guerra” de Caligramas.
Título: Lembremos da adoração dos futuristas italianos pelo
automóvel. No “Manifesto futurista”, de 1909 , Marinetti
defendia: “Declaramos que o esplendor do mundo se
enriqueceu de uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um
automóvel de corrida cuja carroceria é adornada por grandes
tubulações como serpentes de alento explosivo… um
automóvel que ruge, que parece correr sobre a metralha, é
mais belo do que a Vitória de Samotrácia. […] Queremos
cantar o homem ao volante, cuja lança ideal atravessa a
Terra, ela própria lançada no circuito de sua órbita”. Como
contraposição irônica, o automóvel de Apollinaire é um
“carrinho”, bem mais modesto e menos poderoso do que o
dos futuristas e ainda sujeito a acidentes banais de percurso
(pneus estourados três vezes durante a viagem, faróis que
não funcionam). Apesar do tom apocalíptico do começo, o
poeta, como muitos, saúda a guerra com otimismo algo
infantil. Como muita gente na época, ele tinha a ilusão de
que ela iria durar pouco tempo e que teria um efeito
“higiênico” sobre a Europa. Essa visão irá mudar
sensivelmente, sobretudo quando ele finalmente conhecer os
horrores do front e a insanidade da guerra de trincheiras em
1915 6- . O poema dá um caráter mítico ao momento
histórico e traumático da eclosão da Primeira Guerra
Mundial.
Linhas - : Deauville: balneário turístico da Normandia, a
1 4 196

quilômetros de Paris. Apollinaire e seu amigo André


Rouveyre (1879-1962, jornalista e desenhista) foram para lá
em julho para fazer uma reportagem sobre a temporada
turística. O poema narra a viagem de volta para Paris
(passando por Lisieux e Fontainebleau), com a chegada à
capital no momento em que começava a mobilização geral
para a guerra. Curiosamente, como aponta Greet, eles
partiram de Deauville no dia 31 de julho, e não 31 de agosto.
A mudança pode ter sido para que o primeiro verso emulasse
uma famosa canção popular de marinheiros (“Le 31 du mois
d’août”, de “Les marins d’Iroise”), que comemorava uma
vitória naval sobre os ingleses em 1800 . Trinta e um de
agosto (de 1880 ) é a data em que Apollinaire foi registrado e
nasceu oficialmente (ver último verso).
Linhas 14 6 - : Em 31 de julho a Alemanha ainda não invadira a
Bélgica, o que aconteceria, de forma relâmpago, no dia 3 de
agosto. Isso confirma que o poema foi sendo escrito em
etapas, certamente finalizado depois da data mencionada no
poema. A caminho de Paris, a bordo de um carro, o poeta
tem uma visão profética: o cataclisma da Primeira Guerra
Mundial e o nascimento de uma Nova Era (sem perceber que
era uma belle époque que terminava naquele momento).
Linha 18 : Francorchamps: cidade nas Ardenas, perto de Stavelot
(Bélgica), onde Apollinaire morou por um curto período. Lá
passaria a ser realizado, a partir de 1921 , o famoso Circuito
de Spa-Franchorchamps. Eau Rouge: Água Vermelha, nome
de uma estação de águas e de um pequeno rio da região, que
hoje dá nome a uma das curvas mais desafiadoras da
Fórmula 1 . Apollinaire teria ficado encantado com a
coincidência. Pouhon: fonte de água mineral ferruginosa.
No caligrama do carro: Maréchaux-ferrants (ferradores) era o nome
dado aos soldados que consertavam as ferraduras da
cavalaria.
No caligrama da roda traseira: Lisieux: cidadezinha da Normandia.
No caligrama da roda dianteira: Há um trocadilho com a palavra
Versailles (a cidade e o famoso castelo) com vers ailles d’or
(“rumo às asas douradas”). Greet83 nota, com propriedade,
que o caligrama do carrinho é meramente descritivo, “sem a
ambiguidade visual de outros”.
Linhas 25-31: O poeta surge como um profeta e alguém capaz de estar
em todos os lugares ao mesmo tempo. A referência a
comerciantes poderosos e pastores pode ter relação com os
líderes dos grandes países envolvidos no conflito.
Trecho final do poema: Fontainebleau: cidade a 69 quilômetros ao sul
de Paris. A esticada até a cidadezinha, fora do caminho, se
deu porque Rouveyre morava ali. Nessa parada, no dia 1o de
agosto, foi feita a única imagem em movimento do poeta, ao
lado de Rouveyre, a partir de cinquenta fotos tiradas numa
cabine de “fotos automáticas”, outra novidade moderna. No
mesmo dia Apollinaire se alistaria para lutar na guerra, sem
sucesso.

bandolim cravo e bambu

Caligrama escrito em Nice, em outubro de 1914 , na mesma época de


“Fumées” (“Baforadas”). Nos rascunhos o poema teve três títulos
anteriores: “O bambu perfumado”, “O mistério fragrante” e “O
sonho”, que já oferecem pistas para sua decifração. Remete aos
sentidos: visão, audição (bandolim), olfato (a flor cravo e a piteira de
bambu) e tato (corpo varado).

Caligrama do bandolim ou mandolim: Escreve Greet: “a comparação


da terra tremendo com a música etérea torna os sons da
batalha e as balas rasgando a carne sugestivos de uma
compressão mais profunda (la verité)”.84 A linha circular do
bandolim remete ao pensamento também circular expresso:
guerra-som-verdade-razão-mulher-som. Greet comenta ainda
que o bandolim “contém em si toda a violência da guerra,
que ecoa do centro de seu tampo, com o braço do
instrumento lembrando peças de artilharia”.85
Caligrama da flor cravo: Forma gráfica dominante do poema. Através
do olfato (mais até do que a audição), no caligrama do
bandolim, “o poeta é capaz de vislumbrar as leis que trarão
uma grande expansão da mente humana”, como escreve
Greet. O uso do sinal de + no lugar da palavra “mais”
remete, sutilmente, às experiências dos futuristas.
Caligrama do bambu: Refere-se à piteira com a qual Apollinaire e a
condessa divorciada Louise de Coligny-Châtillon
(1881­-1963) fumavam ópio em Nîmes (pronuncia-se
“Nima”). O poeta e agora quase soldado a conheceu numa
fumerie de ópio. Ver “Baforadas”.
O caligrama da piteira de bambu remete à experiência da expansão da
consciência com o ópio. Uma experiência tida geralmente em
lugares confinados, como sugerido pelo design. É o mais
ambíguo dos três caligramas, com sintaxe bastante elíptica e
várias leituras possíveis. Os três aros podem ser lidos
também como “Ohs”, aros de fumaça baforados no ar e os
nós da piteira.
Greet86 anota que o poema, como um todo, “diz respeito à sensação
como um estímulo para a imaginação poética” provocada
pelo ópio. Ela chama também a atenção para o trocadilho
com raison (razão, relacionada à mulher e à verdade) e rai-
son (raio-som).

baforadas

Escrito pouco depois de ser aceito pela artilharia em Nîmes, em


dezembro de 1914 . Publicado pela primeira vez em Caligramas.
Primeiro quarteto em versos de seis sílabas, seguido de caligrama de
um cachimbo (em nove sílabas). A estrofe final é composta de seis
versos de doze sílabas (alexandrinos), com as últimas quatro linhas
alternando seis e cinco sílabas (6-5-6-5). A composição remete às
lembranças das orgias com Lou (Louise de Coligny-Châtillon),
regadas a ópio, em Nîmes. Com ela terá uma relação curta e
conturbada e, durante a guerra, intensa correspondência. Os poemas
dedicados a Lou serão reunidos em dois livros póstumos: Ombre de
mon amour (Sombra do meu amor, 1947 ) e Poèmes à Lou (Poemas a
Lou, 1955).

Zone: refere-se aqui à “Zône”, uma zona franca na fronteira da


França com a Suíça, onde estivera em 1913 com Picabia e
Duchamp. Pode se referir à zone fumeurs (área de fumantes,
fumódromo), mas não deixa de sugerir o poema “Zona”,
que abre Álcoois, além de zoner (deitar-se em qualquer
lugar). “Zona”, no Brasil, é um dos nomes dados à zona de
meretrício.
Estrofe final: Flammes-femmes: flamas-fêmeas, rima rica, em que uma
palavra tem o efeito de iluminar e intensificar a outra,
visualmente inclusive (remetendo ao tratamento das cores da
pintura dos Delaunay e seus “contrastes simultâneos”).
Linhas -
6 15 : A atmosfera onírica e alucinatória sugere o ópio. A
imagem da fumaça aparece em vários poemas de guerra, aqui
associada ao próprio ato de escrever.

em nîmes

Datado de dezembro de 1914 . Publicado pela primeira vez com o


título “Le dépôt” (“O depósito”) em La Grande Revue, n. 11

(novembro de 1917 ). Composto de dísticos rimados (a a // b b etc.).


Tentei respeitar a rima e a métrica o tanto quanto possível nesta
tradução. Como nota Greet, o verso alexandrino, “despido de sua
costumeira melodiosidade, recebe algo da inflexão ingênua da poesia
folclórica”.87 Apollinaire se alistara no dia 4 de dezembro, em Nice
(para onde foi depois do começo da guerra). Ele juntou­-se ao 38o

regimento de artilharia de campo em Nîmes no dia 6 de dezembro. O


poema retrata seu entusiasmo, a aceitação de sua nova identidade (a
de soldado), o treinamento e seus primeiros dias na caserna, em
preparação para ir para o front.

Linha 2: Nice: cidade localizada na costa sudoeste da França, aos pés


dos Alpes Marítimos, onde Apollinaire passou a infância.
Vem do grego Nike, a deusa grega da vitória.
Linha 8: Bleusaille: gíria militar para jovem recruta (pela cor da blusa
azul que usavam).
Linha 15 : Territorial: reservista do Exército francês em 1914 , com
idade entre 34 e 49 anos.
Linha 17 : Pointeur: artilheiro que aponta o canhão. “Bolhas dos
níveis.” Nível: instrumento para indicar ou medir
inclinações, usado por carpinteiros, pedreiros, engenheiros,
eletricistas, agrimensores e, neste caso, por artilheiros.
Enclinômetro.
Linha 28 : Torre Magna: construída entre os séculos xvi e xv a.C.
Localizada no ponto mais alto de Nîmes (Mont), a Torre
Magna é a único remanescente das fortificações romanas na
área e oferece uma vista para toda a planície. Para efeito de
rima, traduzi como torre Tamanha (cuja origem etimológica
é o latim tam magnus, tão grande).

a pomba apunhalada e o chafariz

Escrito no Natal de 1914 e publicado pela primeira vez em


Caligramas. Inspirado em um desenho de pombas que Apollinaire
recebeu de seu amigo André Rouveyre no fim de 1914 (ver “O
pequeno automóvel”). Greet nota que o tom do poema é o da elegia.
O poeta retoma o tema do Ubi sunt [onde estão], derivado da
expressão em latim Ubi sunt qui ante nos fuerunt? [Onde estão
aqueles que foram antes de nós?], a qual convoca a uma reflexão
sobre a morte e a efemeridade da vida. Referência possível a um dos
poetas de sua predileção, François Villon (1431-desaparecido em
1466 ), e seu famoso verso “Onde estão as neves de antanho?”), do
poema “Balada das mulheres dos tempos passados”. O poema dialoga
com “A pomba apunhalada”, de Jules Lefèvre-Deumier (1797-1857) e
“O chafariz”, de Baudelaire.

Colombe poignardée: “pomba apunhalada”, espécie de pomba do


gênero Gallicolumba, também chamada de “coração
sangrento” devido à mancha vermelho-sangue que possui no
alto do peito. Aqui ela substitui, metaforicamente, a imagem
da “paz destruída”. Ver semelhança com a imagem do
Degolado que fecha “Zona”. O caligrama da pomba é
composto de uma mistura de versos de seis e oito sílabas e
um decassílabo, contendo alguns nomes de mulheres do
passado do poeta (Annie, Mia, Mareye, Marie) e outras
imaginárias.
Jet d’eau: jato d’água, chafariz. O caligrama do chafariz e seus
esguichos, feitos de catorze versos em octossílabos, tem
esquema de rimas a a / b b / c c etc. O chafariz chora os
nomes de alguns amigos, artistas e escritores com os quais
Apollinaire perdera o contato depois de se alistar: René
Dalize, André Billy, Max Jacob, Robert Desnos, Maurice
Raynal e Georges Braque. O caligrama da base do chafariz
(ou seria uma boca?) é composto de octossílabos
“emendados” nas partes superior e inferior, o centro também
em octossílabos. Mais um exemplo prático do desejo de
Apollinaire de equilibrar, em sua poesia, a tradição
(“Ordem”) e a experimentação (“Aventura”), que ele irá
elaborar no ensaio-manifesto “O espírito novo e os poetas”.
vigia

Enviado para seu grande amigo André Rouveyre (o mesmo de “O


pequeno automóvel”), de Nîmes, sul da França, em 13 de março de
1915 . As primeiras estrofes em octossílabos e as demais em versos
livres. Na primeira versão havia um refrão chulo que se repetia,
brincando com “Rouveyre-Tabatière”: “trou du cul” (literalmente,
“buraco do cu”, em linguagem grosseira, ou ainda xingamento,
“cuzão”, “otário”). A primeira estrofe é uma paródia da canção
popular francesa “Marbrough s’en va-t-en guerre” (“Marlbrouck vai
para a guerra”): “Marbrough s’en va-t-en guerre,/ mironton,
mironton, mirontaine,/ Marbrough s’en va-t-en guerre,/ Ne sait quand
reviendra”.

Linha 2: Troudla la Champignon Tabatière: Como um “código” entre


amigos, provavelmente Apollinaire está parodiando o
segundo verso da canção famosa (“mironton, mironton,
mirontaine”), justapondo três gírias usadas no fin-de-siècle
em Paris: troudla ou trou-du-cul (“cu”, “buraco do cu”) +
champignon (“pênis”) + tabatière ("tabaqueira", palavra
usada como gíria para “bunda”, cu”, “traseiro”). Minha
solução tenta reproduzir o efeito: no Brasil “cogumelo” é o
nome para um tipo de pênis em que a glande é maior que a
haste (como “chapeleta”). “Padaria” era uma gíria dos
nossos avós para “bunda” (onde se faz o “pão”).
Linha 6: Apollinaire faz um trocadilho com Mars (março, mês em que
começa a primavera no hemisfério Norte), Mars (Marte), o
deus da guerra, e, possivelmente, Mars (Le grand Mars
changeant (Apatura iris), uma espécie de borboleta).
Linha 7: Outro trocadilho: papier significa tanto o paper ou artigo de
jornal enviado à revista Mercure de France, com a qual
colaborava durante a guerra, quanto o papel da caderneta
onde ele costumava escrever. Papel quadriculado: a
referência é novamente ao papel em que ele escreve, sua
caderneta de papel quadriculado.
Linhas 9 12- : Aqui as duas linhas extensas, à maneira de Walt
Whitman, se metamorfoseiam em caligrama de estrada, local
onde o soldado fazia sua vigia enquanto os companheiros
dormiam.
Linha 10 : A capa ou manto do soldado se funde com as nuvens de pó
branco levantadas pelas bombas ou pela passagem das
tropas. A região da Champanhe é famosa por seu subsolo
onde predomina o calcário (giz). Apollinaire faz constantes
referências a isso em cartas e poemas como “No abrigo­-
caverna” e “O palácio do trovão”.
Linhas 13 20- : A penúltima linha é verticalizada e transformada em
monossílabos, tornando o ritmo sincopado, sugerindo um
caligrama de um lápis e de um raio de luar. A lua, agora
personificada, também de vigia como ele, observa-o
escrevendo, num fecho metalinguístico (o poema fala do
poema).

sombra
“Sombra” foi escrito em fevereiro ou março de 1917 , no retorno de
Apollinaire a Paris, enquanto ainda se recuperava do ferimento da
cabeça e da cirurgia de trepanação. Primeira publicação no folheto O.
S. T. (Œuvre du Soldat dans la Tranchée) [A obra do soldado na
trincheira], distribuído na sua conferência em prol dos soldados em 16
de junho de 1917 . Versos livres, rimas ocasionais. Apollinaire
organizou os poemas de Caligramas em ordem cronológica, a exceção
sendo “As colinas” e “Sombra”. Como ambos foram escritos ou
finalizados em 1917 , eles deveriam estar junto com os últimos três
poemas desta seleção. Segundo o escritor Philippe Soupault (1897-
1990 ), ele procurou o poeta em seu apartamento para pedir uma
colaboração para uma antologia de escritos de soldados que estava
ajudando a organizar. O poeta se isolou algumas horas em seu
apartamento e entregou a peça para um atônito Soupault.

Título: Greet88 destaca que a sombra (como projeção do si­-mesmo


junguiano ou self) é uma imagem recorrente na poesia de
Apollinaire e pode significar vida, morte, passado, ausência
etc. Ele escrevera, em “Les fiançailles” [O noivado]: “Dei
tudo para o sol/ Menos minha sombra”. Aqui o “eu lírico”
assume as identidades de companheiros mortos na guerra e
as transforma em energia criativa. Tradicionalmente, na
literatura, a sombra (do grego σκιά, e do latim umbra) é o
espírito ou o fantasma de uma pessoa morta. Apollinaire
incorpora a sombra de seus amigos mortos na sua própria.
Lembremos que o poema foi escrito no auge da Primeira
Guerra Mundial, que terminaria um ano depois.
Linha 3 : L’olive du temps: a oliva (azeitona) de tempo. Na Grécia
antiga a oliveira e o ramo de oliveira eram considerados
sagrados. Possuem vários simbolismos: paz, vitória,
perseverança, sabedoria, fidelidade. Na mitologia cristã,
durante o Dilúvio, a pomba enviada para procurar terra
firme retorna com um ramo de oliveira. Ron Padgett89
lembra que Apollinaire havia escrito um romance chamado
A glória da oliva (a maior parte se perdeu), que se referia a
uma paz futura. Para Greet, a imagem sugere a ideia de uma
condensação, compacta como uma azeitona, de muitos
amigos mortos num só. Ou, ainda, em referência ao sabor
pungente da azeitona. Reminiscências da infância e dos
arredores de Nice, cheios de oliveiras (que demanda quinze
anos para frutificar, mas depois pode durar séculos
frutificando).
Linha 20 : Caisson: carro de duas a quatro rodas e um timão, puxado
por cavalos, usado antigamente pelo Exército francês para
carregar munição de artilharia. Também designa um caixote
ou baú sob os assentos de um carro, onde se guardavam
munições e mesmo pertences pessoais dos soldados. “A
viatura-caisson de uma bateria é responsável por fornecer
munições à viatura-canhão”, como explica Debon.90 Alguns
tradutores optam por não traduzir o termo, mantendo-o
caisson. Caixa ou carreta de munições. Optei por “baú de
mágoas”, na linha do termo “baú de segredos”, “pessoa em
quem se confiam ou se podem confiar segredos; confidente”.

longe do pombal
Escrito em abril de 1915 , em Beaumont-sur-Vesle, onde seu regimento
se encontrava. Caligrama enviado a Lou, amante e correspondente de
Apollinaire.
Com algum esforço pode-se visualizar simultaneamente o caligrama
de uma harpa (símbolo de Orfeu, que dá ordem e harmonia ao caos
com sua lira, figura tutelar para Apollinaire), um formato bastante
abstrato de um coração invertido (formado pelas palavras “tocante
Leste”, o lado esquerdo do peito). A parte de cima da harpa
(constituída por “coroa”, “pescoço” e “ombro”) também pode ser
vista como uma das cobras que Apollinaire menciona em suas cartas.

Título: Pigeonnier: “Pombal” era como Apollinaire chamava seu


apartamento e “ninho de amor”. Localizado no topo do
prédio de três andares no no 202 do Boulevard
Montparnasse, era onde Lou, com dificuldades financeiras, se
abrigara em abril de 1915.
“E você sabe por quê”: A primeira linha, em tom meditativo, e de
intimidade, endereça-se a Lou e aos outros 25 leitores de
Case d’armons, a plaquete produzida em pleno front e onde
o poema foi concluído.
Caligrama da serpente: Em cartas enviadas a Lou, Apollinaire
descrevia o fascínio com as cobras que ele via na floresta
onde estava e que interpretava como bons presságios. “Elas
coleam graciosamente e deslizam com barulho entre os
vimes. Agora estou acostumado e vejo esses pequenos
animais como espíritos benfazejos.” Ele também lembrava,
na mesma carta, que os Kostrowitzky pertenciam ao
antiquíssimo clã polonês Wąż (serpente), cujo brasão trazia
uma cobra verde mordendo uma maçã.
Se love: Apollinaire faz um trocadilho bilíngue (francês-inglês) com
love (se lover é colear, avançar sinuosamente ou em zigue­-
zague, “encaracolar”) e love (“amor” e “amar”). Ele escreve
no poema “A inscrição inglesa”: “Dont chaque lettre se love
en belle anglaise// […] Le jeu de mots bilingue que se manque
point de susciter […]. “Em que cada letra se love em belo
inglês/ O jogo de palavra bilíngue que ninguém ousa evocar.”
Tentei recriar o jogo visual na tradução, com uma palavra­-
valise bilíngue, love + enovelar (enrolar em novelo, dobrar, se
emaranhar, se enrodilhar). A palavra cria um espelhismo ou
anagrama interno: “lovenovelar” (amar se enrolando como
um fio ou novelo). Ao mesmo tempo, a linha sinuosa sugere
um caligrama de uma visão aérea da Fronteira Ocidental
(645 quilômetros de extensão e cerca de quatrocentos
quilômetros de trincheiras), que serpenteava do canal da
Mancha, na Bélgica, até a fronteira com a Suíça (Alpes, o
“Leste” que menciona o poema). Pode representar ainda os
rolos de arames farpados, mencionados logo abaixo.
Formando o que seria o pilar da harpa temos a sugestão
visual (acentuada pelo número 75 ) de um canhão 75

milímetros de cuja boca sai agora a fumaça da segunda linha.


Imagem também de um pênis ereto, reforçada pelas palavras
“em sentinela”. O canhão de 75 milímetros, orgulho do
Exército francês, era o tipo que o canhoneiro Apollinaire
operava.
Xexaedros: Apollinaire coloca um “X” em vez do “H” da palavra
hexaedro (um poliedro de seis faces). Assim, os x x sugerem
visualmente os obstáculos “cavalos de frisa”. Obrigatórios
na guerra, os “cavalos de frisa” eram enrolados em arames
farpados e colocados na terra de ninguém para impedir e
dificultar o avanço do inimigo. Apollinaire escreve, em O
poeta assassinado: “E o front se iluminou, os hexaedros
rolaram, as flores de aço desabrocharam, o arame farpado
ficava mais fino com desejos sangrentos, as trincheiras se
abriram como mulheres diante dos homens”.
Azul: “azul-horizonte” era a cor do uniforme do Exército francês na
Primeira Guerra Mundial.
Malourène: nome que aparece no poema “A canção do mal­-amado”.
Aqui Apollinaire faz um autotrocadilho e uma ho­menagem a
Lou: Ma Lou Reine (Minha Lou Rainha). Malourène é o
nome de uma das sete espadas do poema homônimo de
Apollinaire: “A quarta Malourène/ É um rio verde e
dourado” (Álcoois).
Canteraine: “lugar onde cantam as rãs”. Pode se referir ao lugar de
onde escreve o poema, uma floresta onde ele ouvia rãs
cantando de noite. Crapaud (“sapo”) também era gíria para
morteiros e bombas, na Primeira Guerra. Pode ser que ele
também esteja fazendo um trocadilho com o nome completo
da condessa: Louise de Coligny-Châtillon: Minha “Louise
Soixante-quinze Canteraine”.
Gerbes: feixes ou maço de cereais, buquês, termo da balística para o
efeito visual da explosão de uma bomba caindo na terra, o
maço de poeira e terra levantado pela explosão de um obus.
Ainda, refere-se ao conjunto de trajetórias que as balas de
um estilhaço ou os estilhaços de uma bomba percorrem.
Aqui temos um exemplo de caligrama que corre o risco de fazer a
poesia se tornar uma linguagem cifrada, compreendida
apenas por estudiosos de Apollinaire ou “iniciados”, como
alertou o fã-leitor Gabriel Arbouin em “Diante do ideograma
de Apollinaire” (1914). Em todo caso, mostra a persistência
de valores simbolistas em sua poesia, no que parece ser uma
linguagem secreta entre amantes: um jogo de palavras­-
imagens que fundem guerra e amor, como será comum nos
poemas deste período.

sp

Escrito em maio de 1915 . Como observa Greet, com exceção da


primeira estrofe, temos um desenho caligramático de uma peça de
artilharia (o canhão de 75 mm, arma do canhoneiro-condutor
Apollinaire) atirando em direção ao céu. O desenho do canhão de
perfil, apoiado em uma base de madeira para ganhar altura, aparece
em uma foto do poeta-soldado. Ele fica mais evidente na versão
manuscrita do poema na plaquete Case d’armons.

Título: sp : abreviação para Setor Postal. Os setores postais foram


criados em 1914 , no começo da Primeira Guerra Mundial,
para melhorar o caos do inflacionado serviço postal (as
cartas eram o principal e muitas vezes o único meio de
comunicação entre os combatentes e suas famílias e amigos).
Linha 2 : Armão era uma carreta de duas rodas usada para rebocar
peças de artilharia. Tinha dois caixotes debaixo do assento
dos artilheiros (os caissons d’armons), usados para guardar
munições e pertences pessoais. Apollinaire, amante de
palavras estranhas e raras, se fascinava com os novos termos
que ele ia aprendendo durante a guerra e incluindo em seus
novos poemas.
Linha 3: Poilu: “peludo”, gíria usada para se referir aos soldados da
infantaria francesa na Primeira Guerra Mundial,
especialmente aqueles que haviam sobrevivido à carnificina
do começo do conflito. Segundo uma versão popular, o
termo referia-se, no começo da guerra, aos soldados
entrincheirados que não tinham tempo de fazer barba e
bigode. Por isso, “peludo” adquiriu o sentido de bravo,
valente, corajoso.
Linha 4 : Pan pan pan: onomatopeia para os tiros dos canhões e/ou
possível alusão ao refrão de uma canção popular francesa
“La Première Garde que j’ai montée” [A primeira guarda que
montei]. Há também a expressão “pane-pane-pane!”, como
alerta de emergência.
Linha 5 : Peruca: como esclarece Faleiros,91 na Primeira Guerra
“peruca de canhão” era como os soldados se referiam às
folhagens e aos galhos das árvores, usados para camuflar as
peças de artilharia.
Linhas 8-18: Um “texto encontrado” é inserido ao poema, ao modo
das colagens cubistas. Provavelmente retirado de manual
militar distribuído aos soldados para como agir em caso de
ataques de gás.
Linha 8: Vapores: referência aos gases venenosos (nocivos), asfixiantes
ou lacrimogêneos. Devido à crescente guerra química, o
Exército francês distribuiu máscaras para os soldados em
abril de 1915.
Linhas -
19 21 : O gás lacrimogêneo (um dos gases usados na crescente
guerra química) tem, aqui, o efeito contrário do choro. Os
risos dementes são invisíveis porque estão ocultos pela
máscara e são provavelmente resultantes de trauma de
guerra. O termo shell shock foi cunhado em 1914 , como
efeito psicológico proveniente das bombas e da artilharia nos
soldados.

mira

Caligrama enviado a Madeleine Pagès em 10 de junho de 1915 . Como


observa Faleiros,92 apesar de ser um caligrama, este e alguns outros
poemas visuais foram escritos usando o metro alexandrino clássico.
Respeitei a contagem de sílabas, mas não necessariamente a cesura na
sexta sílaba. Cada linha representa um ângulo e também a trajetória
de um tiro em direção a um alvo.
A experiência militar de Apollinaire teve grande influência na poesia
e no vocabulário dos poemas que escreveu nas cinco seções que
seguem a seção “Ondas”. Ele era canhoneiro, por isso a necessidade
de conhecimento (manuais de artilharia) e treinamento de balística,
ângulos, trajetórias, equipamentos etc. Apollinaire emprega muitos
termos e gírias militares em sua poesia. Como escreve a Lou: “O
projétil é uma pequena estrela cuja vida e propriedades precisam ser
conhecidas, a fim de direcioná-lo para seu objetivo. É evidentemente
muito poético […]”.

Título: Refere-se ao triangle de visée, instrumento usado pelos


artilheiros para determinar a pontaria e a posição da
artilharia inimiga.93 Cada linha torna-se a trajetória de uma
imagem verbal disparada pela mente do poeta em pleno
campo de batalha. “Artilharia é a arte de medir ângulos/ e
montar a cavalo é a arte de apertar as correias”, escreveu
Apollinaire.
Linha 1 : Chevaux couleur cerise limite des Zélandes: Zeeland,
Zelândia, província dos Países Baixos. Provável jogo de
palavras com “cavalos de frisa ou Frísia” (“chevaux de
frise”), nome dos obstáculos usados na guerra para impedir
ou dificultar o avanço das tropas na terra de ninguém. Para
Greet,94 a linha evoca, no estilo “telegráfico” desenvolvido
por Apollinaire, sua localização.
Linha 2: Coaxam: o verbo sugere crapaud, “sapo”, gíria dos soldados
franceses para granada de mão alemã na Primeira Guerra
Mundial. Escreve Greet: “Todo um processo de fabulação do
campo de batalha está concentrado nessa linha (e ocorre
também em outras). As metralhadoras tornam-se objetos de
contos de fadas, fiando lendas”.95
Linha 3: Hypogées: hipogeu, do grego hypo (debaixo) + gaia (terra ou
Terra). Construção subterrânea ou escavada em escarpas,
como sepulturas, monumentos e templos funerários no Egito
antigo e na era pré-cristã. Em arqueologia, tudo o que se
acha debaixo da terra (túmulos). No uso do arcaísmo,
Apollinaire faz, novamente, um paralelo entre a guerra
moderna (de trincheiras e abrigos subterrâneos) com o
passado mais remoto. A imagem “cavalos cor de cereja”
pode estar evocando o traje particular dos cavalos de sua
unidade.
Linha 7: Uma pista para a decifração do verso é dada por Greet: em
uma carta enviada para Lou ele menciona ter recebido dela
“um telegrama, peixinho azul das ondas telegráficas”96. De
fato, alguns telegramas da época eram em papel azul.
Linha 8: Possivelmente se refere ao uso do nome de cidades e vilarejos
como “senhas” militares, como ele sugere no poema “Venu
de Dieuze”.
Linha 11 : Do latim aurea flamma (flama ou chama dourada),
estandarte adotado pelos reis da França do século xii ao
século xv , passando a designar qualquer bandeira estreita e
comprida. Possível referência, junto com “mãos cortadas”,
às atrocidades cometidas pelos alemães à população civil
francesa e dos Países Baixos.

cartão-postal

Enviado em abril de 1915 ao seu amigo André Rouveyre, direto das


trincheiras. Um exemplo de poema-cartão-postal.

Auto-bazares eram caminhões usados pelo comerciante Julien Damoy,


que percorriam o front de batalha transportando todo tipo
de utensílios para os soldados franceses: produtos de higiene,
roupas, artigos de papelaria, tabaco, cachimbos etc.
lul : falo ou pica, palavrão em flamenco. Referente a “Lul de
Faltenin”, um dos poemas de Álcoois.
On les aura: “Vamos pegá-los”. Frase usada entre as tropas, famosa
pela inclusão em um discurso do marechal Pétain em abril de
1916 .
Far tiz: gíria, em alguns portos do Mediterrâneo, “fazer figa”,
“acender o tição” ou ainda o insulto “vai tomar no cu”. O
desenho dos dois canhões cruzados e uma bomba em chamas
era o símbolo da artilharia francesa e aparece nos capacetes
dos soldados.
Rosa: metáfora para o órgão sexual feminino. Pode ter o sentido de
elogio (“rosas para…”), como Apollinaire faz no manifesto
“A antitradição futurista”.

saliente

Escrito em maio-junho de 1915 . Primeira publicação em Caligramas.


Apresenta jogos espaciais, sugerindo um torpedo e um grão de trigo e,
mais abaixo, um cartaz-grafite. Exemplar do estilo altamente elíptico,
“telegráfico” e simultaneísta de Apollinaire, agora aplicado a uma
situação de guerra, com muitas impressões e coisas acontecendo ao
mesmo tempo. Escrito no período em que Apollinaire servia como
agent de liaison: o contato ou agente de ligação é o soldado
encarregado de transmitir, a cavalo ou a pé, ordens e informações
durante a batalha, especialmente nas operações em que é impossível o
uso do telefone. Durante a guerra ele estava acampado numa pequena
floresta, por isso as frequentes menções a um refúgio bucólico (com a
presença dos sapos, cobras, flores etc.). O poema se passa em uma
floresta e em movimento na terra de ninguém, de onde vem o
cavaleiro a pé, seguido de um torpedo aéreo.

Título: Saliente: termo militar que designa a parte avançada de uma


linha de entrincheiramento, por isso mesmo um território
ainda mais perigoso, exigindo atenção total do mensageiro.
Linha 2 : Dragão: termo militar para o soldado da infantaria que
podia combater a pé ou a cavalo. O uso da palavra remete
também à figura mitológica.
Linha 5: “Vassoura de verdor” (assim como a do “buquê” ou “feixe
de centeio”, em “Longe do pombal”) é uma imagem
impressionante para descrever o efeito de um torpedo ou
bomba explodindo na floresta onde Apollinaire se
encontrava.
Rapace: ave de rapina: gíria dos combatentes para obus (bomba).
Linha 8: O bosque mágico, refúgio, torna-se um belo reino devastado.
Pif: em francês, clássica onomatopeia para explosão, estrondo e
detonação. Um cheval pif é um cavalo que sofre de
“criptorquidismo”. No Brasil chamamos de “roncolho” o
cavalo que tem um dos testículos não desenvolvido, enfiado
no abdômen e que, por isso, pode ser indisciplinado,
perigoso e difícil de montar. Álvaro Faleiros97 traduz o verso
como “Viva como um cavalo desastrado”, justificando a
explicação em sua nota como “cavalo que sofre de
criptorquidia (os testículos não desceram) e que por isso é
turbulento e causa acidentes”. Já Anne Hyde Greet98
traduziu como “As lively as a horse bang” (“Agitado como
um cavalo bum”), justificando sua escolha: “Pif no fim da
linha 10 é uma representação onomatopaica da explosão que
é descrita na linha 11 como tendo aberto uma cratera grande
e limpa”. Susan Harrow cita “pif” também como exemplo
de onomatopeia: “o som de uma bomba explodindo em
‘Saliente’”.99 Optei por manter os sentidos de “roncolho” e
“bum” (onomatopeia para explosão). De fato, em
manuscritos que encontramos (ver Introdução), Apollinaire
nitidamente separa as duas palavras por um espaço duplo,
com o branco fazendo a função de uma pausa entre as
palavras “cavalo” e “pif”, o que claramente acentua o
sentido de explosão. Em Caligramas ele usa com frequência
onomatopeias para minar seu discurso. Como o cavalo está
atravessando uma região de minas e explosões, ele pode ter
feito um jogo homofônico com os dois sentidos da palavra.
Susan Harrow chama a atenção, nos poemas escritos no
campo de batalha, para a naturalização da guerra através de
analogias incongruentes como uma cratera de bomba “limpa
como um banheiro”. “O humor, subentendido por uma
ironia corrosiva, tem o efeito terapêutico de denunciar a
guerra pelo próprio processo de naturalizá-la.”100
Aÿ: região no norte da França (hoje Aÿ-Champagne), famosa pela
produção de champanhe.
Lou: é Louise de Coligny-Chântillon, sua “musa” à época, com quem
tivera um caso tórrido e que se tornara sua correspondente e
“madrinha de guerra”. Aqui Lou é comparada ao vinho
espumante.
Verzy: outra cidade do norte da França produtora de champanhe, bem
perto de onde Apollinaire escrevia esse poema.
Crapaud: “sapo”. Crapaud também era gíria militar dos combatentes
franceses para granada alemã. Crapouillot (“sapinho”)
indica um morteiro de trincheira, cujo aspecto lembrava um
sapo. Curiosamente, crapaud é um termo de joalheiros que
indica um defeito em um diamante ou em uma pedra
preciosa.
Suástica: símbolo místico encontrado em inúmeras religiões (como o
budismo e o hinduísmo), significando divindade e
espiritualidade. Antes de ser adotado em 1920 pelos nazistas,
era símbolo de paz, prosperidade e boa sorte.
Capiston: gíria militar usada na trincheira para o capitão. O uso de
maiúsculas sugere um cartaz de incentivo colocado pelos
soldados na trincheira ou na entrada de um abrigo-caverna.
Linha 18 : O último verso contrasta com o nervosismo bélico do resto
do poema. Greet101 menciona uma carta de Apollinaire a
Lou, de 2 de maio de 1915 , na qual ele descreve uma cena
que teria visto num canal: uma balsa passando, com duas
meninas a bordo escovando os cabelos, e se perdendo na
distância.

guerra

Um dos primeiros poemas escritos no front, em maio de 1915 .


Publicado na revista L’Élan, n. 8, janeiro de 1916 . Poema em versos
livres.

Linhas 1-3: Apollinaire começa no estilo do “poema-conversas”, dessa


vez inserindo termos usados no front, comandos e ordens
militares. Em Caligramas há diversas referências à
“invisibilidade” do inimigo na insana guerra de trincheiras
(lembremos que, em muitos casos, alemães e aliados
chegavam a ficar muito próximos uns dos outros, separados
apenas pela “terra de ninguém”). A única identidade do
inimigo, como sugere o verso, é o ruído que escapa de suas
armas. Em carta a Madeleine, em 20 de maio de 1915 ,
Apollinaire diz: “Nunca vi um desses seres cujos projéteis eu
conheço bem”.
Linha 4: Classe de 1915 : o ano da “classe” é o do recrutamento aos
vinte anos de idade: os da classe de 1915 nasceram em 1895 .
Apollinaire já tinha 31 quando foi aceito.
Linha 9: Abismos: os abismos se referem aqui às profundezas da terra
(a guerra forçando os homens a desenvolverem novas
técnicas de túneis, abrigos subterrâneos etc.), bem como às
fossas marinhas, potencialmente alcançáveis agora pela
tecnologia dos submarinos.
Linha 10 : Aviatique: aviático. Apollinaire transforma o nome de uma
fábrica num adjetivo. Avião militar biplano alemão,
produzido pela Automobil und Aviatik ag , usado de início
apenas para reconhecimento. Ironicamente, a modernidade
tecnológica tão elogiada por Apollinaire estava aumentando
o poder de destruição humana.
Linha 11 : Timon: timão refere-se à barra do leme do navio e a uma
parte da viatura que carregava o canhão de 75 milímetros
que Apollinaire operava como artilheiro-condutor.
Linha 15 : Como nota Susan Harrow, no constante processo de
erotização da guerra por parte de Apollinaire, a mulher,
transformada em mercadoria, figura entre os espólios dos
vencedores, aqui “ligada a uma visão de modernidade
futurista e imperialista e o destino do guerreiro macho”.102
Linha 18 : Apollinaire imaginara a possibilidade do “toque à
distância” em L’Hérésiarque, defendendo uma “arte tátil”:
“Assim como a voz pode ser transportada de um ponto a
outro a uma grande distância, também a aparência de um
corpo e as propriedades de resistência através das quais os
cegos adquirem a noção dele podem ser transmitidas, sem
que seja necessário que nada ligue o onipresente aos corpos
que ele projeta. Eu acrescentaria que o novo corpo retém a
plenitude das faculdades humanas, dentro do limite onde elas
são exercidas sobre o aparelho pelo corpo real”.

oráculos

Escrito no fim de maio-começo de junho de 1915.

Linha 1: Segundo Greet, quem fala na primeira linha, em linguagem


formal (votre), é Lou (Louise de Coligny-Châtillon), a quem
Apollinaire havia enviado um anel (feito nas trincheiras, com
o alumínio de um obus alemão) e um apito.
Linha 4: O tom formal é quebrado com o uso de tu, “você”.
Linhas 9-10: Provavelmente essa é uma resposta a Lou, que está em
Paris (metrôs, táxis), temporariamente, em seu apartamento
no Boulevard Saint-Germain. Apollinaire, segundo Greet,103
estava em um estado mental eufórico àquela altura da
guerra, “pronto para elevar objetos ordinários (como o anel
e o apito) ao status de oráculos (na Antiguidade, oráculo era
a resposta dada pela divindade a quem a consultava).
Caligrama de apito: O apito era usado para coordenar as
movimentações das tropas. Aqui, ele adquire significado
erótico, seguido de instruções para que a amada tire as
medidas do dedo, para que o poeta possa confeccionar um
anel. É o que ele pede também à noiva Madeleine em carta
de 6 de outubro: “Me mande a medida de seu anular. Vou
tentar fazer alianças de noivado em alumínio boche, te
enviarei as duas e beijarás a que me devolver”.104

os suspiros do atirador de dakar

Enviado a Lou em 11 de junho de 1915 . Aqui o poeta adota, em


versos livres, a persona de um soldado negro africano lutando pela
França. Apollinaire, assim, acaba fazendo uma homenagem aos
milhares de soldados africanos (provenientes de colônias francesas)
enviados para a linha de fogo da Primeira Guerra Mundial. Dakar:
capital e maior cidade do Senegal, colônia francesa na época. Havia
uma trincheira chamada Dakar nas proximidades de Souain, o que
pode também ter inspirado o poeta. A biografia que se segue pode ser
inspirada na de um atirador real que ele conheceu na guerra. O poema
alterna passado e presente, civilização africana e civilização europeia.
Um exemplo de lirismo realista-mágico, com imagens influenciadas
pelo primitivismo das telas de seu amigo Rousseau.

Linha 1: Cagnat ou cagna: transmitido do vietnamita cain-nha para as


tropas coloniais da Indochina Francesa, gíria que designa um
tipo de casa rudimentar e temporária aberta na terra,
geralmente camuflada com arbustos, pedras e terra. Abrigo
de trincheira. O Exército brasileiro tem o termo “toca” (que
vem do tupi oka, casa) para designar um espaço
improvisado, muitas vezes uma trincheira ou abrigo
subterrâneo, onde os militares se protegem ou descansam em
situações de combate ou acampamentos temporários. Em
português, temos ainda “muquifo” (de provável origem
africana), tornada gíria pejorativa brasileira para casebre
sujo, rústico, desconfortável, geralmente em ruínas.
Linha 8: Ashantis: os axântis ou axantes são um dos principais grupos
étnicos da região de Axante, na Gana atual. As guerras
anglo-axantes ocorreram de 1824 a 1900 entre o Império
Axante e a Grã-Bretanha e seus aliados. Não era incomum
que nativos lutassem contra suas próprias tribos.
Linhas 10 2 - : Apollinaire aliviou esse trecho em relação à primeira
versão, que incluía referência a incesto.
Linhas 19 33- : Greet afirma que, na primeira versão, ficava claro que o
garoto africano de vinte anos matara um homem branco,
como um rito de iniciação à masculinidade.105
Linha 33: Arras, cidade no norte da França, onde se travaria a Batalha
de Arras (de abril a maio de 1917).
Linha 59 : Boche: termo pejorativo empregado na França para se
referir aos alemães. Boche é adjetivo derivado da expressão
“cabeça de repolho”. Durante a Segunda Guerra, os
americanos chamavam os alemães de “chucrutes”.
Linha 60 : Bobosse: gíria militar para soldados alemães e soldados
novatos. Apollinaire oferece uma pequena aula sobre a
palavra em carta à Madeleine (4 de junho de 1915 ), dizendo
que a palavra “fantabosse” é derivada de fantassin bobosse
(“soldado corcunda”). Bossa é corcunda, protuberância:
aspecto dos soldados quando carregam seus sacos (mochilas)
nas costas. Também usada para se referir a soldados
franceses novatos.

sempre

Poema datado de maio de 1915 . Publicado pela primeira vez em La


Grande Revue, em 11 de novembro de 1917 , une o gosto de
Apollinaire por imagens de ficção científica, relatos de descobrimentos
e mitos. Há ecos do tema do artista como incansável e curioso
explorador de novos mundos, desenvolvido na conferência “O espírito
novo e os poetas” (1917). Começo e fim da composição marcados por
dois paradoxos: avançar parado e vencer perdendo, que remetem ao
equilíbrio que ele defendia entre Ordem e Aventura, entre tradição e
inovação. O poeta surge como um mítico conquistador do espaço
interior. Greet observa outro paradoxo: “a fusão entre a
transitoriedade de todas as coisas e o ato criativo imortal o qual, ao
criar, ao mesmo tempo varre limites e estruturas prévias”.106

Linha 2: O uso de “nós” convida o leitor a ser um participante ativo


da criação de sentido do poema, a embarcar nas explorações
e criações de um Novo Mundo.
Linha 3: “Sempre” foi escrito em pleno front. Imagens de planetas e
nebulosas provavelmente sugeridas pelo espetáculo noturno
da guerra.
Linhas 3 8 - : Don Juan: figura lendária da literatura espanhola,
protótipo do conquistador de mulheres e libertino
(Apollinaire foi importante tradutor e organizador de
coletâneas de literatura libertina, sendo responsável pelo
resgate editorial de Sade e Aretino na França). “Mil e três
cometas” refere-se à lista de 1003 mulheres que teriam sido
amantes de Don Juan apenas na Espanha. Aqui, temos um
lendário personagem transformado em cosmonauta, que
conquista planetas e nebulosas incansavelmente.
Linha 8 : Possível duplo sentido: Apollinaire era fã das aventuras
policiais Fantômas, chegando a fundar, com Max Jacob, uma
“Sociedade dos Amigos do Fantômas”. Na adaptação para o
cinema eram constantes os deslocamentos simultâneos desse
bandido cosmopolita para outros lugares do mundo.
Linha 12 : Cristóvão Colombo foi descobrir um caminho para as
Índias e a Ásia e acabou encontrando a América (Bahamas).
Linhas 16 7 - : Incluídos posteriormente, os dois versos finais dão um
tom nacionalista e contrapõem o aparente derrotismo dos
versos iniciais, referentes à guerra imóvel de trincheiras, que
já durava um ano. Anne Hyde Greet assinala um comentário
otimista sobre as vitórias pírricas (aquelas obtidas a danos e
prejuízos imensos) da Primeira Guerra Mundial ou, ainda,
“como uma visão das energias criativas a serem encontradas
na guerra”.107

festa
Escrito em maio de 1915 . Enviado para Lou em setembro de 1915 .
Primeira publicação em L’Élan, n. 10 , 1o de dezembro de 1916 .
Dedicado ao seu amigo André Rouveyre. Poema em octossílabos com
rimas alternadas a b a b na primeira, terceira e quarta estrofes (nas
demais ele varia a posição). Na minha tradução, mantive o esquema
de rimas e a métrica. Em 1o de setembro de 1915 Apollinaire foi
promovido a comandante de artilharia. De seu refúgio momentâneo
(uma pequena floresta a leste de La Salle), ele contempla o espetáculo
dos foguetes na noite de guerra, transformado num jardim das delícias
imaginário, percebido por todos os sentidos.

Linha 3: Artificier: é o diretor técnico de um espetáculo de fogos de


artifício (ou fogueteiro). Também era o termo usado para o
canhoneiro (como Apollinaire). A palavra grega poiētḗs
significa “o que faz”, artesão, artífice. Os dois sentidos estão
presentes.
Linha 5: Fusant: um foguete ou obus que explode acima do solo, em
alturas e distâncias variáveis, com estilhaços mortíferos.
Linha 11 : Forêt: a floresta como refúgio temporário da guerra.
Localizada entre Potevent e La Salle-du-Bois, era onde
Apollinaire se encontrava com seu regimento naquele
momento.
Linha 15 : Rosas de Saadi: “Les roses de Saadi”, famoso poema de
Marceline Desbordes-Valmore (1786-1859), inspirado pelo
poeta iraniano Saadi de Xiraz (século xiii).
Linha 19 : A referência é ao perfume forte das rosas, mas,
simultaneamente, ao cheiro dos gases tóxicos invadindo o ar
durante os ataques de armas químicas.
Linha 23 : Mortificação: segundo o dicionário, “flagelação do próprio
corpo ou privação de alimentos, água etc., com o objetivo de
vencer as tentações corporais e alcançar um estado de
suposta espiritualização”. Termo médico (raro) para
gangrena.

madeleine

Escrito em 17 de junho de 1915 . Enviado no começo de sua


correspondência e namoro à distância com Madeleine Pagès. A jovem
professora morava em um subúrbio de Oram, Argélia (daí a referência
à exótica imagem da “vila árabe”). Caligrama manuscrito, ao estilo
dos grafites urbanos contemporâneos, onde o desenho conta tanto
quanto as palavras.
O desenho da estrela remete ao Oriente e, possivelmente, à estrela
da bandeira da Argélia.
O segundo elemento é um caligrama do verso de um envelope de
correspondência (a resposta de Madeleine).
O recebimento de uma foto de Madeleine é anunciado em letras
mais destacadas.
O terceiro desenho funciona como assinatura do poeta. Dois
canhões entrecruzados e a granada em chamas: símbolo da artilharia
francesa na Primeira Guerra Mundial, localizado na frente do
capacete de Apollinaire e dos demais soldados.

Far tiz: expressão mediterrânea que significa “fazer figa”. Além do


significado de afastar o azar, o gesto da figa também é uma
espécie de gíria árabe para “acender o tição” e “vai tomar no
cu”. Tiz, no norte da África, significa o sexo de uma mulher.
Far tiz é gíria italiana das ruas, língua que ele aprendeu na
infância, significando “fazer fogo”, “incendiar a pólvora”,
“acender o tição”, com conotações sexuais. Os canhões são
óbvios símbolos fálicos e a granada acesa simboliza o ardor e
o tesão.
Rosa: a rosa, obviamente, simboliza o amor, a perfeição, a pureza etc.
Na literatura francesa, desde a Idade Média, símbolo do sexo
feminino e do amor realizado. Na alquimia, representa o
feminino e o órgão sexual da mulher. Apollinaire tem um
poema, “Lou ma rose”, do livro póstumo Poèmes à Lou
(1947), onde ele desenvolve o tema.

noite de abril de 1915

Enviado e dedicado para Lou, em 10 de abril de 1915 , como parte de


um poema longo, o qual teve doze versões. Publicado na revista
L’Élan, n. 6, em março de 1916 . Poema em alexandrinos com rimas (a
b a c b a / d e d e / d / f g f g f / h / i / h / i j / k i i j).
Segundo Greet, aqui vemos um resumo dos sentimentos
contraditórios de Apollinaire em relação à guerra nos primeiros meses
no front. Novamente, amor e guerra se entrelaçam. Greet: o poema
registra “a nova excitação do perigo, a suavidade triste da desilusão
amorosa, o consolo através de sonhos eróticos, a celebração da vida e
esperanças de um futuro radiante”.108 Os versos passam a impressão
de velocidade, de urgência. Apollinaire transforma o bosque onde seu
regimento estava e o compara a uma floresta mágica, de contos de
fadas. Eros e Tânatos se fundem novamente na psique do poeta, como
era comum nas peças do período.

Linha 1: Boche: gíria depreciativa para soldados alemães.


Linha 6: Le mot: a palavra (como em “Mira”) está sendo usada aqui
no sentido de senha militar. Créneaux: ameia de fortificação
militar, palavra usada pelos soldados para designar as
aberturas feitas no parapeito da trincheira, de onde podiam
observar ou atirar nos inimigos alemães.
Linha 19 : Greet109 menciona a força melancólica e ao mesmo tempo
alucinatória dessa imagem, talvez inspirada no fato de que
pleuvoir (“chover”) e pluie (“chuva”) eram gírias usadas
pelos soldados franceses para se referir aos ataques de obuses
e barragens de artilharia.
Linha 20 : Ulisses: Ítaca. Apollinaire se projeta no herói Ulisses, da
Odisseia, de Homero, que levou vinte anos para voltar a
Ítaca e aos braços de sua amada Penélope.

o adeus do cavaleiro

Escrito em agosto de 1915 . Primeira publicação na Mercure de


France, 1o de julho de 1916 . Dois quartetos em octossílabos, com
rimas a b a b / c d c d. Preservei esquemas métrico e rímico. Nesse
caso, preferi omitir as exclamações (seguindo a abolição radical que
Apollinaire adotara em seus poemas) e busquei palavras que
remetessem à guerra, mesmo que subliminarmente, como retiros
(lugar de longos lazeres e meditação, mas um inferno auditivo de
tiros) e rajadas (podendo ser entendidas como de vento ou de
metralhadoras). Notar o jogo temporal que ele opera através do uso
de vários tempos verbais num mesmo contexto, e em um poema tão
curto: presente, passado perfeito, presente, passado imperfeito etc.
Acrescentei ainda e enfim, na minha solução, resolvendo a rima e
acentuando essa marca de temporalidade indeterminada do texto. A
guerra acontece agora, no tempo do poema, mas há um recuo ao
passado no uso de uma palavra antiquada como boute-selle para se
referir ao toque de clarim, e ainda uma referência a uma canção
humorística militar polonesa do século xviii (o poeta era russo-
polaco). Apollinaire certamente leu o trovador provençal e senhor
feudal Bertran de Born (c. -
1140 1215 ), famoso por suas canções sobre
guerra, amor e política, especialmente pela exaltação dos ideais
guerreiros e pela glorificação das batalhas.

Título: Uma das funções de Apollinaire na guerra, nesse período, era a


de mensageiro (a pé ou a cavalo), quando as linhas de
comunicação eram destruídas. Novamente o poeta opera
uma fusão entre os temas da guerra e do amor e da
fugacidade de ambos. A surpresa é sempre o efeito
pretendido.
Linha 1: La guerre est jolie: “a guerra é bonita” é um oximoro, pois
combina duas palavras aparentemente opostas. Esse verso,
tomado isoladamente, foi usado para acusar o poeta, post
mortem, de fazer apologia da guerra, causa de parte do
desinteresse por sua obra no pós-guerra. Como defende
Laurence Campa, “se há alguma apologia no poema é o da
vida sobre a morte”. Para ela, é um poema sobre desilusão,
nostalgia e a fatalidade do amor, “o oposto de um elogio à
guerra”.110 Uma fonte provável é a canção militar polonesa
“Jak to na wojence ładnie” [Como é belo na guerra],
composta em 1863 pelo conde Władysław Tarnowsk. Outra,
“What a Lovely War”, canção britânica usada na Guerra dos
Bôeres. Ela chegou a dar nome a uma famosa comédia
musical, Oh, What a Lovely War, de Joan Littlewood
(1963), adaptada para o cinema em 1969 , com o mesmo
título. No Brasil, foi traduzida como Oh! que delícia de
guerra!. Os críticos não viram o verso de Apollinaire em seu
contexto. No poema, ele ironiza a futilidade da guerra e até
do amor (ironia encapsulada no trocadilho entre ah Dieu!
(algo como “bom Deus”, “meu Deus”) e Adieu (“Adeus”).
O poema descreve de maneira inédita, como em outras peças
de Caligramas, a guerra enquanto espetáculo. Porém, a
guerra agora está longe de ser considerada uma “colônia de
férias”, apesar de haver períodos de inatividade e espera
entre os ataques. O riso (da amada, da guerra, da curva da
estrada?) é um riso nervoso, em reação de choque (penso
aqui num riso sob efeito de gás lacrimogêneo).
Linha 3: Anel: entre os combatentes, era comum e até um passatempo
confeccionar objetos e bijuterias utilizando partes de
artilharia. Ver poema “Oráculos”.
Linha 5: Boute-selle: expressão do antigo francês militar. O toque de
clarim que sinaliza ao soldado para colocar a sela e arrear o
cavalo.
Linha 7: Là-bas: advérbio de lugar: lá, ali, lá longe. Greet observa: “o
amante morreu là-bas, não em um lugar real, mas em uma
no man’s land indefinida”.111
o palácio do trovão

Enviado a Madeleine Pagès em 11 de outubro de 1915 . Primeira


publicação em La Grande Revue, em 11 de novembro de 1917.

Título: Como o título do poema seguinte, “No abrigo-caverna”, o


“palácio” refere-se ao abrigo temporário dos soldados e
lugar de proteção contra os “trovões” (o impacto das
bombas) e as intempéries. Podia ser construído na lateral das
trincheiras ou, ainda, a cerca de seis metros de profundidade,
com chapas, trilhos de trem, sacos de areia e troncos. De
vários tamanhos, podiam abrigar de um a dezenas de
combatentes. Os destinados aos oficiais costumavam ser até
confortáveis e engenhosos, como parece ser o caso deste
“palácio do trovão”. Claude Debon identifica, neste e em
outros poemas, sobretudo os caligramas, “um processo que
os teóricos do imaginário chamam de gulliverização, a
tendência a miniaturizar os objetos ou elementos do
cenário”.112
Linhas - : Boyau (tripa, intestino), gíria dos soldados para
1 7

“trincheira”, construída geralmente em zigue-zague,


especialmente a trincheira de comunicação, que servia de
ligação entre linhas de trincheiras. A imagem reaparece em
poemas como “Há”, “Desejo” e “Maravilha da guerra”.
Craie: calcário, giz. Em cartas e em poemas Apollinaire faz
constantes referências à fragilidade das trincheiras e dos
abrigos construídos no terreno poroso e quebradiço da
região de Champanhe.
Linha 4 : Pá de olhos reguladores: numa paisagem desumana, os
objetos parecem se humanizar, inclusive a própria trincheira.
Linha 6: Ratos eram uma praga na vida nas trincheiras (as quais, por
sua vez, propiciavam um ambiente ideal para a infestação),
devorando comida e se alimentando dos cadáveres.
Linha 31: Melinita: poderoso explosivo à base de ácido pícrico, usado
para obuses, granadas etc.
Linha 32 : Fulminate: fulminato de mercúrio: explosivo usado em
detonadores. Buracos inclinados: provavelmente em
referência aos canhões.
Linha 34: Referência à arte do bonsai.
Linha 45: Literalmente “Um gosto por antiguidades/ Que aparece nos
homens desde os tempos das cavernas”. Minha solução visou
tornar o verso mais irônico e paradoxal.
Linha 59 : Usure: nesse verso a palavra é usada para se referir ao
desgaste das coisas novas que estão sendo usadas ou à
deterioração ao longo do tempo. Usura no sentido de
desgaste, corrosão e atrição (efeito do atrito, o desgaste por
ele provocado). Lembremos também que a Primeira Guerra
Mundial foi uma guerra de atrição por excelência, na qual se
desgasta o inimigo até que as perdas de vida e equipamentos
o levem a um colapso. Adotei a palavra “atrição”, como
Greet.

no abrigo-caverna

Enviado para Madeleine Pagès em 8 de outubro de 1915 . Primeira


publicação em La Grande Revue, n. 11 (novembro de 1917 ). Escrito
durante as batalhas de Champanhe dos dias 22 a 25 de setembro de
1915 . A composição retrata de forma evidente a exaustão e a
desolação geradas por uma guerra que, inicialmente, se esperava ser
breve. Como anota Greet, “o poeta tenta melhorar seu estado de
espírito através de uma invocação quase alucinatória da amada”.113
As batalhas intensas em Champanhe despertam, em Apollinaire,
saudades de Madeleine, sobretudo da vida e do mundo que ficaram
para trás. Ele escreve em “Le 10e Poème secret” [O décimo poema
secreto]: “Estalactites das cavernas sombrias onde minha imaginação
vagueia com deleite…”. Novamente, o tema oscila entre a
desumanizante e dura realidade da guerra e o amor. Para Susan
Harrow, em “No abrigo­-caverna”, “o eu-soldado revela a
deterioração de sua morada troglodita e, no processo, expõe um
sentido de vazio interior e autodissolução”.114

Título: Abri-caverne: termo técnico militar. Abrigo cavado


inteiramente na terra, para dar guarida e proteger soldados
da chuva e dos bombardeios pesados. Geralmente eram
escavados na lateral de uma trincheira. Bem mais difícil de se
manter na região de Champanhe devido ao solo calcário,
problemas de umidade, erosão e goteiras.
Linha 1 : A cena aqui é noturna. Apollinaire está em seu abrigo­-
caverna no setor 138 , provavelmente abrigado com mais
camaradas. Ele escrevera a Madeleine em 5 de outubro: “Faz
frio, de dia não se pode fazer fogo por causa da fumaça,
também não se pode escrever. De noite cada grupo se junta
no seu buraco”.115
Linha 2 : A imagem paradoxal do “fogo sólido”, segundo Greet,
remete ao misticismo e ocorre também no poema “Le
brasier” [O braseiro]. O fogo pode simbolizar esperança,
purificação, paixão, desejo, renascimento (Fênix), destruição
etc.
Linha 4 : O solo branco e calcário da região de Champanhe se
esfarelava com facilidade, dificultando muito o trabalho nas
trincheiras, túneis e bunkers. A descrição da situação
precária do abrigo-caverna serve de perfeito exemplo de
“correlato objetivo” do estado de espírito de Apollinaire a
essa altura da guerra. Para Eliot, “a única maneira de
expressar emoção na forma de arte é encontrando um
‘correlato objetivo’; em outras palavras, um conjunto de
objetos, uma situação, uma cadeia de eventos que será a
fórmula daquela emoção particular; de modo que, quando os
fatos externos, que devem terminar na experiência sensorial,
são dados, a emoção é imediatamente evocada”.116
Linha 6: Estearina: sebo para fazer sabão ou vela.
Linha 7: Peça de artilharia (Apollinaire era canhoneiro-condutor).

desejo

Escrito em 6 de outubro de 1915 e enviado a Madeleine no dia


seguinte. Primeira publicação na revista italiana La Voce (31 de
janeiro de 1916 ) e depois na La Grande Revue (n. 11 , novembro de
1917 ). Na véspera do grande ataque às linhas alemãs em 25 de
setembro (Segunda Batalha de Champanhe), o poeta projeta ou atira
seus desejos sobre o campo de batalha.
Linha 5 : Butte du Mesnil: colina de Mesnil, posição estratégica e
complexo defensivo que estava em poder dos alemães,
disputada ao longo dos quatro anos e quatro meses de guerra
tanto pelos alemães quanto pelos aliados. Nela havia um
sistema de trincheiras com um túnel de trinta metros de
profundidade. O ataque é precedido por um maciço ataque
de artilharia.
Linha 16 : Bourguignotte: borguinhota, espécie de capacete, parte de
uma armadura (e que muitas vezes tinha, além da proteção
facial, uma parte traseira alongada para proteger o pescoço).
Foi usada entre os séculos xv e xvii pelos soldados e
cavaleiros. Inspirou o capacete M15 Adrian usado pelo
Exército francês em 1915.
Linha 19 : Decauville: nome da locomotiva de trincheira, fabricada
pela empresa de mesmo nome, para abastecer as tropas com
armas e suprimentos. Apollinaire usa aqui a metonímia (a
parte pelo todo).
Linha 22 : Main de Massiges: outra posição estratégica disputadíssima,
situada numa pequena colina localizada entre os fronts de
Argonne e Champanhe. Seu relevo tem o formato de uma
mão aberta. Foi conquistada pelo regimento de Apollinaire
em setembro de 1915.
Linhas 24 e 25 : Goethe e Nietzsche: na Primeira Guerra, era comum
que as trincheiras recebessem nomes. Nome de duas
trincheiras alemãs, destruídas nesse ataque e cujas ruínas
existem até hoje.
Linha 29: Noite de 24 de setembro: Apollinaire insere a data precisa
no corpo do próprio poema (como ocorre em “O pequeno
automóvel”, “O músico de Saint-Merry”, “Um fantasma de
nuvens”, “Noite de abril de 1915”, entre outros).

canção do horizonte em champanhe

Enviado a Madeleine em 27 de outubro de 1915 . Primeira publicação


na revista Mercure de France, em 1o de julho de 1916 . Poema em
versos livres, com rimas ocasionais e com trechos (linhas 6-17 e 48 -
75 ) em quartetos octossilábicos com rimas alternadas (a b a b),
elementos formais que tentei preservar ao máximo.

Título: Champanhe, no norte da França, região famosa por seus


vinhos espumantes, foi onde Apollinaire lutou sua guerra. O
poema, a princípio, é narrado do ponto de vista do
Horizonte (aqui personificado), transformado pela guerra
num campo de batalha, terra de ninguém.
Linha 1: Verruquée: É como Apollinaire grafa o adjetivo verruqueux.
A Euphorbia verrucosa é uma planta da família das
Euphorbiaceae. Numa das cartas a Lou, Apollinaire a chama
de “euphorbe verruquée”.
Linha 2: Novamente a referência à “invisibilidade” do inimigo.
Linhas 4-10: O Horizonte introduz canções (a do maqueiro ferido, em
referência ao poeta e amigo Léo Larguier, ferido no campo
de batalha).
Linha 9: Referência bíblica à Terra Prometida.
Linha 10 : Referência ao teatro de guerra e aos ataques de armas
químicas: aqui, paradoxalmente, o gás lacrimogêneo, ao
contrário de fazer chorar, faz rir (ver “sp” e “O adeus do
cavaleiro”). Possível alusão ao trauma de guerra.
Linha 15 : Os poemas escritos no front fazem constantes referências ao
solo e subsolo da região, compostos na maior parte de giz
calcário, altamente poroso e quebradiço. Isso lhe permite
fazer, em outro poema, uma metáfora e personificação: “os
lábios brancos” das trincheiras da região de Champanhe
(aludindo, por sua vez, às espumas). Brancura e as imagens
da terra de ninguém como um imenso mar branco (além da
referência a bombas e máscaras de gás) remetem ao poema
“Oceano de terra”. A imagem da máscara de gás surge como
símbolo do anonimato da guerra, da “invisibilidade” dos
combatentes e do próprio horizonte (era vital ver sem ser
visto). O horror da guerra finalmente alcançara o poeta.
Linha 22 : Fantassin: gíria militar francesa para soldado da infantaria.
Do italiano fantaccino (por sua vez derivado de fante, forma
abreviada de infante).
Linha 26: Bleu-horizon: Azul-horizonte, nome dado à cor do uniforme
francês adotado após a Batalha de Marne, em setembro de
1914 , substituindo a visibilidade desastrosa das calças
vermelhas usadas até então, que tornavam os soldados alvos
fáceis para a artilharia alemã.
Linha 30: Apollinaire funde os dois sentidos da palavra numa mesma
imagem. Grenadier refere-se tanto às árvores de romã
quanto aos soldados responsáveis por atirar granadas de
mão (chamadas assim pela semelhança com a fruta).
Linha 34: Aviões loiros, ou seja, alemães.
Linha 35 : Trocadilho: a palavra “Pavão”, em caixa-alta, faz referência
aos oráculos, sublinhando a associação entre a deidade
moderna e o deus Pã. A imagem pode também ter sido
sugerida pelas bombas caindo no campo de batalha e seus
impactos na terra, em forma de leque-cauda de pavão. A
mesma imagem bela e terrível das explosões como “feixes de
centeio” (gerbes) ocorre em “Longe do pombal”.
Linha 50 : A referência a estoico indica que ele não está falando de
Zenão de Eleia (filósofo pré-socrático), e sim de Zenão de
Cítio (Atenas, 333 a.C.-263 a.C.), fundador da escola
filosófica estoica.
Linha 58 : Parse: integrante do grupo religioso de persas zoroastristas
que, na Antiguidade, se estabeleceu na Índia (Dicionário
Aulete).
Linha 60: Trocadilho com a etimologia de fantassin (infante).
Linha 63 : Cagoule: capuz, gíria dos soldados para máscara de gás
(pela semelhança com o capuz usado pelos monges
medievais).
Linha 70 : Refere-se a uma experiência comum entre soldados na
guerra: a sensação de o tempo ter parado misturada à
impressão de perda da identidade.
Linhas 75 82- : Greet chama a atenção para a transição do “ele” (o
soldado) novamente para “eu” (Moi), que se refere ao
Horizonte. Para ela o Horizonte, no poema todo, seria uma
persona ou “máscara” do poeta.117

oceano de terra
Escrito na primeira linha do front, em Trou Bricot, entre 19 e 23 de
dezembro de 1915 . Publicado pela primeira vez na revista Nord­-Sud,
de Pierre Reverdy, em 12 de fevereiro de 1918 . Dedicado ao amigo e
pintor italiano Giorgio de Chirico (1888­-1978, irmão de Alberto
Savinio, mencionado no começo da Introdução). De Chirico teria,
como Apollinaire, grande influência nos surrealistas. Escrito depois de
o poeta ser transferido para as trincheiras de Champanhe, tem um
tom de urgência, uma atmosfera de sonho ou pesadelo, com o poeta
explorando, como sempre, a musicalidade das palavras. Preocupação
com a segurança, com a urgência vital do refúgio, presente também
em “O palácio do trovão” e “No abrigo-caverna”. Ele vai elaborar
aqui a imagem do “mar de brancas espumas” do poema anterior.

Título: O “oceano de terra” refere-se à terra de ninguém, à paisagem


ondulada, cheia de crateras e devastada dos campos de
batalha na região de Champanhe. Em carta a Madeleine o
poeta compara a paisagem a um oceano congelado. Talvez
ele soubesse que, até cerca de 70 milhões de anos atrás, toda
aquela região havia sido um mar interior que cobrira a maior
parte da França. O solo branco é formado pelos esqueletos
de microrganismos marinhos e fósseis de moluscos da era
secundária e é altamente poroso. Ideal para o plantio de
uvas, mas péssimo para uma guerra de trincheiras, túneis e
abrigos subterrâneos (ver “O palácio do trovão” e “No
abrigo-caverna”). O título é um oximoro ou um paradoxo
condensado, fundindo dois elementos contraditórios, mas
muito reais para Apollinaire: as trincheiras e a terra de
ninguém. Há a sobreposição simultaneísta da paisagem
marinha com a paisagem da terra devastada.
Linha 1 : O poema é dominado pelas imagens do oceano, cemitério,
abrigos subterrâneos e do polvo. Tudo remete, como lembra
Greet, ao mar de crateras provocada pelas bombas, a
devastação do campo de batalha. Alusão também aos
soldados que, ao usarem primeiras máscaras ou capuzes
antigás, ficavam com o aspecto fantástico de polvos
escalando as trincheiras.
Linha 3: Poulpes: o polvo é uma das imagens favoritas de Apollinaire
(aparecendo em “Zona”), cujo contato remonta à época em
que morou em Mônaco. É assim que ele define o povo em
seu Bestiário, numa tradução literal: “Ejetando sua tinta no
céu/ Sugando o sangue daqueles que ama/ E achando­-o
delicioso/ Este monstro desumano sou eu mesmo!”. Se em
Bestiário o polvo aparece como um mal-amado, um animal
que o aterrorizava desde criança, aqui é transformado em
uma imagem assustadora do próprio poeta no front de
batalha, como aponta Greet.118 As menções ao triplo
coração, saliva devoradora, bico quitinoso e mortal, tinta
negra ejetada como camuflagem, evidenciam o conhecimento
de Apollinaire sobre a criatura.
Linhas - : Menção ao abrigo ou toca subterrânea, servindo de
5 6

proteção contra bombas e artilharia inimiga.


Linhas 10-1: Greet119 aponta para o trocadilho entre “ancre” (âncora)
e “encre” (tinta), recriado com a solução tinta/retinta.

maravilha da guerra
Escrito em dezembro de 1915 . Publicado pela primeira vez em La
Grande Revue (11 de novembro de 1917 ). A guerra surge como um
grande espetáculo ou fantasia (circo com acrobatas, cabarés com
dançarinas, espetáculo astronômico, um banquete).

Título: Apollinaire era um estudioso de tudo o que fosse medieval. A


palavra “maravilha” está colada ao seu significado antigo de
mirabilia (coleção de coisas admiráveis, que por sua vez vem
de mirare, “olhar”, “admirar”). Lembremos que o emblema
de Apollinaire, adotado em Bestiário, era “Eu maravilho”.
Linha 5 : Uma das coisas mais impressionantes e “modernas” na
Primeira Guerra era o espetáculo de bombas e obuses
iluminando o céu noturno, possibilitado pelas novas
tecnologias bélicas. Comparação entre os foguetes com rabos
de cometa e a rainha greco-egípcia Berenice (multiplicada em
Berenices), cujo cacho de cabelo teria dado origem mítica à
constelação Coma Berenices, a Cabeleira de Berenice.
Linha 7 : Surdorées: “superdouradas”, neologismo de Apollinaire,
adicionando o prefixo sur (sobre, super), assim como ele faz
com surréalisme e surmarines (em “O viajante”).
Linha 14: A giorno: em pleno dia, em italiano no original.
Linha 16 : A imagem da grande carnificina da guerra como um imenso
banquete horroroso. Greet nota que as bocas, aqui, são as
trincheiras rasgadas na terra e as crateras da terra de
ninguém. “A imagem da terra como um ogro carnívoro.”
Linha 17: Alusão ao relato bíblico da festa sacrílega de Baltazar
(Daniel 5, Salmo 137).
Linha 20: Empireumático: aquilo em que há empireuma (fumaça acre
que escapa das carnes queimadas).
Linha 25 : Como Greet observa, “o movimento do poeta pelas
trincheiras de comunicação (os boyaux) se torna uma fusão
íntima com a terra e uma expansão para seus limites
externos, marcadamente controlados pelas imagens de água
corrente, que sugerem um processo irresistível, natural e
pervasivo”.120
Linhas 30 à última: Novamente Apollinaire anseia atingir, via verso,
um estado ou sensação de ubiquidade, de estar presente em
vários lugares simultaneamente. Uma das especialidades de
um de seus personagens, o barão d’Ormesan.
Linha 31: Menção ao mito de Ícaro, recorrente em seus poemas.
Linha 33 : O paradoxal sentido de ubiquidade provocado pela
experiência da guerra.

exercício

Enviado a Madeleine em 22 de novembro de 1915 , pouco antes de ser


promovido a segundo-tenente e transferido para a infantaria. Um dos
últimos escritos no front. Poema em octossílabos, composto de três
quartetos de rimas alternadas (a b a b / c d c d / e f e f). Adotei o verso
de nove sílabas e mantive o esquema de rimas.

Título: O título ambíguo se aplica tanto ao exercício e treinamento


militar quanto, como se verá nos últimos dois versos, ao
treinamento religioso.
Linha 2 : Bombardier: em português, bombardeiro, artilheiro, lança-
bombas.
Linha 11 : Ascese: do latim ascesis, do grego áskesis, nome que se dá
ao conjunto de exercícios (oração, meditação etc.) que visa o
aperfeiçoamento espiritual (no caso, para a morte iminente,
que ocorre enquanto o poema se desenrola). Relato conciso
do front, da perda de qualquer expectativa, da tensão e
paranoia constantes, da inevitabilidade da morte numa
guerra (os soldados falam do passado porque sabem que não
têm futuro). Mudança de perspectiva em relação à guerra,
por parte de Apollinaire, menos espetacular e mais sombria.

Enviado do front de batalha para a professora de letras e noiva


Madeleine Pagès (1892-1965) em 30 de setembro de 1915. Apollinaire
tem um poema “irmão” deste, também intitulado “Il y a”, que ele
enviou para Louise de Coligny-Châtillon (1881-1961) em abril
daquele ano. Tendo a anáfora como principal elemento estrutural, a
composição pode ser chamada de poema-lista ou poema-catálogo, na
linha do verso bíblico, dos inventários medievais e da poesia de Walt
Whitman. Para Vincent Vivès,121 a composição é uma litania: poema
religioso em que a diversidade do mundo, mesmo em meio à guerra, se
traduz em múltiplas associações de ideias, lugares e pessoas.
Novamente, observa-se a ubiquidade do “eu lírico”, que se supõe
estar em vários lugares simultaneamente.
Linha 2 : Na Primeira Guerra, saucisses (salsichas) era gíria para os
balões de observação alemães. De forma alongada, eram
usados inicialmente para espionagem. Asticots (larvas de
mosca): possível alusão aos obuses e foguetes explodindo no
céu noturno. Uma imagem, como tantas outras, que
exemplifica bem a “estética da surpresa” de Apollinaire.
Linha 3 : Os submarinos foram uma das invenções modernas mais
bem-sucedidas na Primeira Guerra.
Linha 5 : Referente à guerra química (gás mostarda, lacrimogêneo,
cloro, fosgênio) e às primeiras máscaras-capuzes, que davam
aos soldados um aspecto fantasmagórico, de polvo ou de
seres fantásticos.
Linha 6: Boyaux: tripas, gíria para trincheiras (pela sujeira e caráter
em zigue-zague). Nietzsche, Goethe, Cologne: nomes dados
às trincheiras pelos soldados, muitas existentes até hoje.
Como “Os Cenobitas Tranquilos”, cartaz que ele descreve na
entrada de um abrigo em “Algodão nas orelhas”.
Linha 11 : Vaguemestre, vagomestre: suboficial do Exército francês,
responsável pela correspondência e comunicação de
mensagens. A árvore possivelmente alude a um ponto de
referência militar. Ele descreve em uma carta a Madeleine (5
de maio de 1915 ): “Não há uma árvore sem a marca de um
estilhaço de obus. Os troncos são quebrados e por assim
dizer mascados, como os lápis em meu tempo de colégio”.
Linha 12 : Azul-horizonte, cor do uniforme do soldado francês. Azul
também era a cor favorita dos poetas simbolistas. São
constantes as referências ao horizonte nos poemas de guerra.
Linha 16 : Possível referência às notícias enviadas do México pelo
irmão, Albert.
Linha 17: Gulf Stream: Corrente do Golfo. No original, em inglês.
Linha 22 : Nas trincheiras, em uma guerra mais de posição do que de
deslocamento, eram muitos os períodos de inatividade e
tédio. Muitos soldados faziam os mais inusitados objetos
com o que estava à mão, como o tinteiro feito com a parte de
um foguete que Apollinaire menciona.
Linha final: “a arte da invisibilidade”. Esse verso tem um duplo
sentido para Vivès: refere-se tanto às características das
guerras de trincheiras, onde o inimigo ficava enterrado,
quanto às mais diversas camuflagens e à tecnologia bélica,
suas bombas e canhões, capazes de destruição à distância,
fazendo o inimigo desaparecer.122

simultaneidades

Enviado a Madeleine Pagès em 14 de outubro de 1915 . Cinco


quartetos em octossílabos e um quinteto (a última linha funciona mais
como um fecho ou assinatura). Rimas alternadas (a b a b) e
sofisticadas.
Longe estão os debates sobre “simultaneísmo” que chacoalharam o
meio artístico nos meses que antecederam a guerra em 1914 . Para
Greet123 as “simultaneidades” se referem não tanto aos efeitos obtidos
nos poemas da seção “Ondas”, por exemplo, e mais à simultaneidade
da experiência de soldado e de amante. Os pensamentos projetados ao
amor distante (pelo projetor-holofote do coração) se fundem no
“filme” imediato da guerra acontecendo a seu redor. A presença da luz
(sob a forma de explosões, disparos, raios, farol, refletor) parece
remeter à luminosidade e aos padrões circulares das telas do casal
Delaunay (que Apollinaire designou como orfismo).

Linhas - : Há uma possível justaposição, segundo Greet, entre a


1 3

imagem dos sons de canhões aos corações dos amantes


batendo, pulsando juntos.
Linha 2: Vagas (ondas) e tempestade: como os soldados chamavam a
aproximação das nuvens dos ataques de gás e as tempestades
de explosões no campo noturno da batalha. Ver “Algodão
nas orelhas”.
Linha 3: A palavra “ennui” comporta vários sentidos: tédio, cansaço,
exaustão, enjoo, depressão, melancolia. Nas mãos de
Baudelaire e dos poetas decadentistas passou a designar, com
o substantivo “spleen”, o sentimento de futilidade e cansaço
da vida. Greet optou por traduzir ennui por “cansaço”.
Optei por “tédio”.
Linha 13 : Cagoule: capuz, como o de monges medievais, gíria dos
soldados para designar as primeiras máscaras contra gases
asfixiantes: gás de cloro, gás lacrimogêneo e, depois, o
terrível gás mostarda, frutos da evolução da tecnologia
química.
Linha 17 : A nogueira personifica o poeta, como observa Gre­et,124
remetendo ao poema “Signo”. “Sinto por cada um dos beijos
que abandono/ Nogueira que desfolha ao vento as suas
dores.” Pode remeter também à Madeleine, como uma
árvore que não se desgalha. A nogueira era usada pelos
druidas co­mo suporte para encantamentos.
Linha 20 : Mésange: o pássaro chapim-real, cuja plumagem tem as
cores amarela, vermelha, azul, negra e branca. Teria origem
na África, que é onde Madeleine morava. Denominação
comum às aves da ordem dos passeriformes (com mais de 6

mil espécies).
Linha 22 : Cor: uso aqui uma palavra arcaica para coração. Daí vem a
expressão “de cor” (do coração, de memória). Na metáfora
bélica-amorosa projecteur du cœur temos dois sentidos aqui:
refere-se aos holofotes e refletores militares usados no campo
de batalha para combates noturnos e também ao projetor,
aparelho para projeção de imagens em uma tela. Em
português “projetor” cobre os dois sentidos: de holofote e
qualquer aparelho de projetar filme, vídeo etc.
Linha 25 : Phare-fleur: farol-flor. Apollinaire funde duas palavras em
uma, separadas apenas pelo hífen. Em português, resulta
quase em um anagrama perfeito. Há uma múltipla
sobreposição de imagens sugeridas por esses versos: a luz do
coração + a luz do farol (o projetor militar) + as luzes do
teatro de guerra + a luz dos olhos de Madeleine.
Linha 27: Tirs: tiros. Tiroteio: uso a palavra no exato sentido de “fogo
de fuzilaria em que os tiros são disparados em quantidade e
em sequência”.
Linhas 27 9 - : Apollinaire faz uma fusão cinematográfica: os clarões no
céu noturno (proporcionados pelas bombas, foguetes,
sinalizadores etc.) e os brilhos vivazes disparados pelos belos
olhos de sua amada.

algodão nas orelhas


Planejado em 29 de janeiro de 1916 , como o poeta revela em carta a
Madeleine, o poema foi terminado em 11 de fevereiro daquele ano.
Aqui ele abre sua caixa de ferramentas: versos livres, metrificados
(oito, sete e dez sílabas) e rimados, caligramas, uso motivado da
tipografia e pontuação (exclamação e negrito para explosão,
interrogação que pode ser visualizada de várias maneiras, como a
fumaça saindo do canhão-megafone), uso de parataxe,
descontinuidade, uso de slogan e “jogos no espaço”. Há grande
cuidado com a sonoridade e com a métrica, o que expõe o desejo de
uma estrutura em meio ao caos. Há jogos de palavras, uso de vários
tipos de rimas (toantes, homófonas), uso de gírias dos soldados,
refrões (Alô La Truie). Greet considera “Algodão nas orelhas” “um
dos mais ambiciosos poemas de guerra”.125 Apollinaire usa seu
arsenal cubo-futurista-simultaneísta para fazer uma colagem que capta
o espetáculo sonoro-visual da guerra. O poema também processa,
espacialmente, os deslocamentos do poeta-soldado e suas mudanças
de posição no teatro de guerra: primeiro na artilharia, na retaguarda,
depois na infantaria, se movimentando pelas tripas das trincheiras
(boyaux) até alcançar a primeira linha.

Linha 1: O ponto de exclamação passa a ser, ele mesmo, o ideograma


de uma explosão (o poema se refere a “pontos de impacto”
na linha 3). Duplo sentido da palavra “ponto”: como sinal
gráfico (ponto-final) e como local geográfico (um ponto no
mapa, um ponto de ataque). Há uma ambiguidade em “sur
le point” (sobre o ponto) que pode significar também “a
ponto de”, “prestes a”. Greet traduz o verso como “So many
explosives just about to be alive!” [Tantos explosivos a ponto
de estarem vivos!].126 Álvaro Faleiros traduz: “Tantos
explosivos no ponto vital!”.127
Linhas 3 5 - : Elas simulam as trajetórias dos tiros ou os rastros de
foguetes percorrendo o céu e o campo de batalha. A primeira
linha, metalinguística, tem um tom de cobrança ou desafio: é
realmente difícil escrever qualquer coisa sob um bombardeio.
Linha 5 : Omégaphone: a própria palavra, com o uso de tipos
decrescentes, forma a imagem do megafone (e, por que não,
de um canhão). O megafone era usado, em meio aos
combates ensurdecedores, para passar ordens e comandos. O
ômega (que significa “grande O”, letra final do alfabeto
grego), também simboliza a morte e o renascimento para
Apollinaire.
Allô La Truie: “Alô, La Truie?”. Esse refrão é repetido sete vezes pelo
telefonista militar, que tenta chamar o setor localizado no
bosque chamado La Truie [A Porca], entre Mesnil­-les-Hurlus
e a Main de Massiges, atrás das trincheiras francesas.
Os Cenobitas Tranquilos: durante a Primeira Guerra era comum os
soldados colocarem placas e tabuletas para localização nas
trincheiras e na entrada dos abrigos subterrâneos. O poeta
comenta, em carta a Madeleine, os nomes exóticos e
engraçados de muitas delas. “Cenobita”: do grego koinós
(comum) + bios (vida), “o que vive em comunidade”, origem
do latim coenobium (convento, mosteiro). Um monge,
portanto. Aqui a palavra é usada tanto em relação à vida
comunitária das trincheiras quanto à castidade forçada
imposta aos soldados. Ele faz um trocadilho intraduzível
entre Les cenobites tranquilles e Laissez nos bites tranquilles
(“Deixe nossas picas em paz”) que, segundo Greet,128 traduz
a mesma ideia mas em gíria vulgar militar. Lembra os títulos
trocadilhescos das obras de seu amigo Marcel Duchamp.
Primeiro quarteto: Do norte: ou seja, vinda do setor alemão.
Coquelicot: flor vermelha da família da papoula, de propriedades
soníferas, emblema de serenidade e paz. Palavra que vem de
coquerico, depois cocorico, onomatopeia (voz imitativa do
canto do galo) associada à cor da sua crista. Como a flor tem
facilidade para germinar em qualquer solo revirado e
calcário, ela acabava brotando nas terras devastadas pela
guerra. Passou a simbolizar o “sono eterno” dos soldados
mortos nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.
Coquelicot também era gíria dos soldados para designar os
recrutas, durante a guerra. Os egípcios costumavam espalhar
pétalas de papoula nos túmulos para garantir aos mortos um
sono tranquilo e eterno.
Coco: gíria para cabeça (cuca, cachola, coco).
Tacot: gíria usada entre as tropas argelinas e coloniais para
aguardente.
Phonographes: os fonógrafos aqui estão silenciosos, talvez por serem
incapazes de registrar e gravar a realidade dos ataques.
Échelon: escalão. Termo militar. Segundo o Dicionário Aulete, “cada
agrupamento de uma tropa que ocupa certo lugar numa
formação diante do inimigo (um mais avançado, outro a
segui-lo etc.), de modo a se apoiarem e sustentarem”. Nessa
estrofe, Apollinaire descreve a agitação caótica do escalão, as
“flores de fogo” cuspidas sem parar por sua bateria.
Enquanto bombas alemãs “estrebucham” como “sóis-
anões”, os artilheiros alimentam incessantemente os canhões
com novos cartuchos, como se estivessem “com sede”. O de
75 milímetros, operado por Apollinaire, dava vinte a 28 tiros
por minuto.
Estrela do Benim: condecoração colonial dada aos veteranos da
guerra na África, associada, na linha seguinte, às “latas de
macaco” (ver próxima nota). Pode ser uma referência a
Picasso, que é retratado em O poeta assassinado como
L’Oiseau du Bénin [O Pássaro do Benim].
Boîte à singe: literalmente, lata de macaco ou macaco na lata. Gíria
dos soldados franceses para a carne de boi cozida e enlatada
ou em caixas que às vezes eram distribuídas às tropas.
“Macaco” pelo exotismo da carne enlatada em gelatina.
Boîte de singe também era gíria dos soldados para as bombas
de grosso calibre lançadas por morteiros de 77 milímetros.
Laid. Lait: trocadilho (paronomásia) entre laid (feio) e lait (de leite,
irmão de leite).
D’siré: Desirê significa “a querida” ou “a desejada” e vem do la­tim
Desideratus. Greet traduz esse fragmento enigmático como
“M’love” [M’amor]. Para ela, Apollinaire estaria imitando a
pronúncia popular do nome supostamente cristão Désiré.
Álvaro Faleiros adota “D’sire” e dá nota: “expressão irônica
cunhada a partir de sire, sir, do inglês”.129
Caligrama da chuva: Lembremos que chuva também era gíria dos
soldados para os ataques de artilharia inimiga. A passagem
remete ao seu famoso caligrama “Il pleut”, com os versos
imitando a chuva caindo, agora vista de dentro de um
abrigo. Curiosamente, as linhas também podem sugerir uma
visão aérea das trincheiras.
Elefantes-para-balas: Apollinaire funde o mundo natural ao bélico: a
imagem de um elefante (que remete à África) com os
parapeitos das trincheiras, feitos de sacos com terra, areia.
Pão de Gênova ou bolo genovês: é um bolo doce, provavelmente um
presente enviado por Madeleine ou um amigo. Apesar do
nome italiano, teria sido inventado pelo chef parisiense
Fauvel, em 1840.
“Autour de roues heure à corrir/ La baleine a d’autres fanons/
Éclatements qui nous fanons”: a imagem aqui é enigmática,
como atesta Greet e outros tradutores, devendo ser
compreendida na tendência geral dos poemas de Apollinaire
animalizarem a guerra. Chama a atenção a sequência
alucinatória de rimas nessa passagem: sans nom/ canons/
fanons/ fanons/ fanions. O verso “A baleia tem outras
barbas” refere-se, para Greet, ao efeito visual da barragem
de artilharia inimiga no céu noturno. No caligrama da chuva
ele fala de “soldados cegos” (pelos gases) entre “cavalos de
frisa” (os cavaletes com arame farpado usados como
obstáculos) sob uma “lua líquida de Flandres”. Jérôme
Janczukiewicz e Nathalie Lefoll130 creem que aqui ele está
evocando o efeito visual dos raios das rodas dos veículos de
artilharia (transportando canhões) e que estão em
movimento (enquanto atravessam poças de água sob a
chuva). Os raios são comparados às “barbas” de uma baleia
(as lâminas córneas que revestem as mandíbulas dos
cetáceos). “Os raios das rodas, parcialmente submersos,
podem evocar as bocas das baleias com suas barbas.” Outra
leitura sugere que tanto a baleia quanto os fusíveis das ogivas
têm furos chamados “respiradouros”. No caso dos obuses, o
respiradouro tem a função de deixar o ar passar para ajudar
na combustão dos fusíveis detonadores. As “barbas” seriam
os estilhaços dessa “ogiva-baleia”. Pode se referir ainda,
visualmente, à régua de medição que se localiza abaixo do
respiradouro da ogiva do foguete alemão Dopp Z 92.
Últimas linhas: Uma observação banal é seguida do anúncio de uma
onda de gás alemã (vague) se aproximando e a ordem para
que todos se protegessem nas cavernas (além de se referir aos
abrigos-cavernas, cave também é nome para adega
subterrânea, na região de Champanhe).

cartão-postal

Poema-cartão-postal enviado a André Rouveyre em 20 de agosto de


1915 . Um sexteto composto em octossílabos com esquema de rimas
alternadas (a b a b a b). O estilo telegráfico e conciso mimetiza o
sentido de urgência, num registro críptico da efemeridade da vida em
meio à guerra. Esse poema ecoa um trecho de seu livro Meditações
estéticas, publicado em 1913 : “Em vão, estica-se o arco-íris, as
estações do ano palpitam, as multidões precipitam-se rumo à morte, a
ciência desfaz e refaz o que existe, os mundos se distanciam para
sempre de nossa concepção, nossas imagens móveis se repetem ou
ressuscitam sua inconsciência e as cores, os odores, os ruídos que
ouvimos nos surpreendem, depois desaparecem da natureza”.131
leque dos sabores

Composto de cinco caligramas, um para cada sentido humano: visão,


audição, paladar, olfato e tato. Mais um exemplo do quanto o
simbolismo e a ideia de sinestesia (sensações simultâneas) continuaram
impactando sua poesia lírica modernista. Caligrama elíptico e
intrigante, cheio de alusões eróticas e permitindo duas ou mais
leituras. Tomando os elementos isoladamente, temos: pistola
Browning, lago ou atol, pássaro sem rabo, boca humana e um peixe
nadando. Tomado como um todo, num golpe de vista, temos a
sugestão visual de uma face (desconstruída à maneira cubista e
remetendo à art nègre): cabelo, olho, nariz, orelha e boca. Outras
alusões visuais são possíveis, pondo em questão a origem tautológica
(A=a) dos poemas visuais (carmina figurata). O leitor é convidado a
recriar o poema e a tentar ver, simultaneamente, as relações que as
várias “ilhas de texto” estabelecem umas com as outras. Apollinaire
reconhecia essa diferença estrutural de seus caligramas: ao contrário
das “figuras solitárias” que vemos na tradição dos carmina figurata de
Rabelais (século xvi ) e Panard (século xviii ), explica Apollinaire, “as
relações entre as figuras justapostas em meu poema são tão
expressivas quanto as palavras que as compõem, e isso, acho, é uma
nova invenção”.

Caligrama 1 : Brownings: pistolas da firma belga Herstal. O modelo


1910 seria justamente o usado no Atentado de Sarajevo, em
28 de junho de 1914 , que deu origem à Primeira Grande
Guerra. Alusão óbvia ao falo, à virilidade da guerra.
“Singulares” expressa os sentidos de “únicos”, “raros”,
“fora do comum”, “surpreendentes” e “expressivos”.
Caligrama 2: Attols (atóis): atol, como explica o Dicionário Aulete, é
um “grupo circular de ilhas, em forma de coroa fechada ou
não, com uma lagoa ao centro e constituído de corais que se
juntaram sobre a boca de antigos vulcões marinhos”. Outras
alusões visuais: um olho e o canto lacrimal (“lagos
versicolores” + minicaligrama feito com o D maiúsculo), um
peixe, uma cratera aberta na no man’s land (terra de
ninguém, descrita como “atóis singulares de guerra” em “Le
troisième poème secret”) e, ainda, o sexo da amada (o púbis
de Madeleine é comparado a um recife de coral em
“Deuxième poème secret”). Ver “Oceano de terra”.
Caligrama 3: Um pássaro sem rabo: para Greet,132 a metáfora esconde
uma piada de cunho sexual: “queue é uma gíria comum para
pênis, portanto colocar um rabo em um pássaro é uma óbvia
menção ao ato sexual”.
Caligrama 4: No primeiro esboço desse poema a forma de um leque
ficava mais evidente. Na versão final, o caligrama se torna
mais ambíguo, pois sugere o formato de uma boca aberta e,
pelo fato de estar levemente inclinado, o desenho de uma
orelha.
Caligrama 5: Uma boca: novamente, buscando efeitos de sinestesia, o
caligrama se refere à “audição”. A boca tem papel
predominante nesse poema, a partir do título, pois remete ao
paladar, ao sabor, mas também ao amor e à linguagem (a
fala). Aloês: segundo Greet,133 alusão à planta aloé (babosa,
de formato fálico), que consta nos Salmos da Bíblia e é
mencionada134 por suas propriedades sensuais. Mirliton: tipo
de flauta de som anasalado (kazoo); pessoa que toca esse
instrumento. Vers de mirliton: diz-se de versos considerados
ruins. Tanto a referência à pistola, à babosa e ao kazoo
podem ter significados ocultos, possivelmente eróticos
(segundo Greet,135 o caligrama sugere, novamente, uma
genitália feminina). Provável reminiscência da pintora Marie
Laurencin, que gostava de divertir seus convidados tocando
kazoo.

recordações

Escrito em 10 de março de 1916 . Publicado na revista sic (Sons,


Idées, Couleurs, Formes), n. 7, julho de 1916 . Poema em versos livres,
formado por três tercetos, um quarteto e um dístico, cada um
apresentando um quadro ou cena. Flashes do cotidiano, reminiscência
dos vilarejos visitados pelo poeta no front, com as pessoas tentando
tocar a vida apesar dos horrores da guerra. Imaginado primeiramente
como parte de uma série de poemas curtos, que ele chamou de
“inscrições” e “pequenos poemas para pintores”. Segundo Greet, uma
das composições enviadas a Madeleine Pagès depois de um período
sem notícias. “O regimento de Apollinaire estivera na linha de frente
por mais de dois meses, engajado em manobras intensivas e longas
marchas de um setor para outro”.136

Linhas 1-3: Niègres: para Greet, Apollinaire explora aqui os sentidos


da palavra “negro” em francês (e em português): o que se
refere ao “preto” (cor) e à “raça negra”, numa alusão ao
Continente Negro (África) e ao “primitivismo mágico” do
pintor e amigo Rousseau, segundo Greet137 (imagem da
floresta). Os lagos negros são contrapostos à camiseta
(branca) da civilização europeia. Podem sugerir uma
descrição metafórica da face de Madeleine: os olhos (dois
lagos negros), entre a cabeleira negra (uma floresta) e o
sorriso (uma camiseta branca que seca). Os três primeiros
versos sugerem a estrutura (montagem, justaposição) e
concisão do haiku japonês.
Linhas 4-5: Harmonium: harmônio, pequeno órgão de igreja. Em uma
carta para Madeleine, Apollinaire descrevera a catedral de
Reims parcialmente destruída e uma igreja que visitou, onde
havia um órgão entre os escombros.
Linha 5 : Trocadilho com a homofonia de d’yeux (de olhos) e Dieu
(Deus). Tomei a liberdade de duplicar o efeito na tradução.
Linha 8: A bouillotte era um aquecedor antigo de metal, em formato
bojudo ou cilíndrico, usado para aquecer água, os pés ou a
cama. Muitos deles eram fabricados no formato de uma
garrafa térmica usada pelos soldados. A bouillotte antiga era
uma garrafa de cobre, cilíndrica e tubular, com tampa de
latão. Algumas eram em esmalte azul-horizonte e com tampa
dourada. Por isso, pode estar sugerindo um soldado francês
morto na trincheira e de onde sai um rato. Ou a bouillotte
pode estar, ainda, aquecendo os pés da velhinha descrita na
linha 7.
Linha 9 : Imagem da morte. Corpos apodrecendo nas trincheiras ou
nos vilarejos destruídos, sendo comidos por ratos, era uma
visão cotidiana para os soldados.
Linhas 10 3- : Greet138 aponta que essas linhas ilustram a “estética da
surpresa” desenvolvida no ensaio “O espírito novo e os
poetas”: a justaposição dos aspectos incongruentes e
inesperados da vida.

cavalos de frisa

Enviado para Madeleine no dia 18 de novembro de 1915 . Escrito na


“seção 149 ”, ao sul de Trou-Bricot, depois de uma batalha em que
ocuparam antigas posições alemãs. Publicado em La Grande Revue, n.
11 , novembro de 1917 . Para Greet,139 “um dos exemplos mais
desenvolvidos do uso de poesia amorosa não para escapar da
realidade da guerra, mas como um meio de investi-la de significado,
com o poeta mantendo o controle sobre ela”. A experiência da guerra
transformada em linguagem. Greet e Davies identificam, pelo tom de
súplica e de êxtase, a influência dos Salmos e do Cântico dos Cânticos,
da Bíblia.

Título: os cavalos de frisa (literalmente “cavalos da Frísia”, região no


norte dos Países Baixos) são obstáculos de madeira,
estruturas móveis e portáteis, assim chamados por
lembrarem um cavalete. Os frísios lutavam basicamente com
cavalos. Os “cavalos de frisa” eram originalmente usados
para deter o avanço da cavalaria inimiga. Podia ser utilizado
junto com arames farpados, para deter o avanço da
infantaria. Como o poeta relata em carta a Madeleine, havia
nevado no dia 14 , e a neve ainda cobria a “terra de
ninguém” e as trincheiras.
Linha 19 : Apollinaire faz um trocadilho entre barbes (berbere, barbo,
raça de cavalos da Berbéria, região costeira do norte da
África que abrange Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia) e
barbelés (farpados). Tentei manter o jogo verbal. Farpo:
armado com farpas, dentes ou pontas.
Linha 25 : Roselys: rosalis, ou rosalírio, além do sentido esotérico, era
a gíria que os soldados usavam para a baioneta.
Panthère/Toutefleur: Apollinaire cria epítetos para Madeleine
a partir de um jogo de palavras: pantera e Pan (tudo,
completo) + anthéros (florido). Antera (botânica) também é a
parte final do estame de uma flor. Além disso, o trecho
parece fazer referência à enciclopédia de Brunetto Latini, em
que ele descreve o perfume da pantera, que era capaz de
inebriar todos os animais da floresta, atraí-los e comê-los. Há
um conto de Balzac, “A paixão no deserto” (1830), em que
um soldado se perde, entra numa gruta e encontra uma
pantera, que acaba se apaixonando por ele.
Linha 30 : Paraclet: Paráclito ou Paracleto (grego: παράκλητος —
paráklētos; latim: paracletus): “aquele que consola ou
conforta; aquele que encoraja e reanima; aquele que revive”.
O Espírito Santo, no cristianismo.

comandante de pelotão

Escrito entre 17 de outubro de 1915 e março de 1916 . Portanto, o


poema foi terminado quando Apollinaire estava na primeira linha do
front, em Reims ou em Bois de Buttes. Publicado pela primeira vez em
11 de novembro de 1917 na La Grande Revue, n. 11 (novembro de
1917 ). Como em “Il y a” (“Há”), a estrutura anafórica remete ao
estilo dos Salmos, da Bíblia. O uso da enumeração dá um efeito de
“devoção extática”.140 Apollinaire escreve para Madeleine: “O horror
trágico, horrível, obscuro das batalhas corpo a corpo nas trincheiras e
as crateras de bombas aumentam minha voluptuosidade por você”. O
poeta trabalha com imagens religiosas, bélicas e eróticas.

Chef de section: no Exército francês, a seção era uma subdivisão de


uma companhia, o equivalente a um pelotão.
Linha 1 : Géhenne: Geena, Geh Ben-Hinom, literalmente “Vale do
Filho de Hinom”. Em português, como em francês, palavra
de origem hebraica que significa Inferno. A visão do poeta
transforma a terra de ninguém no vale de Hinom (nos
arredores de Jerusalém), que era originalmente usado como
depósito de lixo e cadáveres de animais e, ainda, de pessoas
consideradas indignas.
Linhas 9-10: Entre as máscaras ou personas favoritas de Apollinaire
estavam a do encantador, do mágico e do demiurgo.
Última linha: Apollinaire interrompe o discurso, como observa Greet:
“o efeito estrutural mais inteligente é o que é trazido pela
última linha, por dar a todas as linhas anteriores o status de
pensamentos correndo na mente do poeta enquanto ele se
prepara para o ataque”.141

tristeza de uma estrela


Escrito em abril-maio de 1916 , quando estava convalescendo no
Hospital do Governo Italiano para os Feridos da Guerra Francesa,
anexo ao hospital Val-de-Grâce, em Paris, segundo anotou no
manuscrito. Publicado pela primeira vez na plaquete Six poèmes, 24

de novembro de 1916 . Um dos poemas mais célebres de Caligramas.


Três quartetos em alexandrino clássico ou francês. Respeitei a métrica
(mas não as tônicas) e o esquema de rimas: a b a b / c d c d / e f e f. Ao
lado de “Chant de l’honneur” (“Canto de honra”), primeiro poema
escrito por Apollinaire depois de chegar muito perto da morte. Às
quatro da tarde de 17 de março de 1916 , enquanto lia a revista
Mercure de France na sua trincheira em Bois de Buttes, perto de Berry-
au-Bac, foi ferido por estilhaços de um obus de 150 milímetros.
Alguns fragmentos furaram seu capacete e deixaram um ferimento em
formato de estrela em sua têmpora direita. O poeta foi afastado e
sofreu várias operações. Foi enviado para Paris, onde teve de ser
trepanado (para retirar fragmentos do crânio) no dia 9 de maio. Uma
semana antes, ele se casara com uma enfermeira, Jacqueline Kolb (ver
“A ruiva bonita”). Greet vê no poema uma pista de que Apollinaire
temia que a trepanação e a convalescença tivessem diminuído seus
poderes poéticos. De todo modo, em carta à Madeleine, de 7 de maio,
ele dizia que não se sentia mais a mesma pessoa.

Linha 1: Minerva: deusa romana da razão, da sabedoria, das artes e


da guerra, equivalente à Atena dos gregos. Minerva teria
nascido da cabeça de Júpiter, já completamente armada,
depois deste sofrer um golpe desferido por Vulcano, deus do
fogo, para que se realizasse o parto, iniciado por uma terrível
dor de cabeça. Poeticamente, liga-se à árvore de Minerva ou
Palas, a oliveira que essa deusa deu à luz. Minerve também é
o aparelho ortopédico que mantém a cabeça alinhada no
caso de traumatismo, usado por ele no período pós-
operatório. Novamente, mais uma palavra que se abre para
mais de um significado, e onde mito e vida íntima se unem
(com o poeta no papel de Júpiter).
Linha 2 : A imagem das estrelas, em sua obra, anota Greet, remete
tanto aos bombardeios noturnos quanto simboliza o destino
(os astros como controladores de nossos futuros).
Linha 3 : Raison: a referência à razão, ou à passagem da juventude
para a idade da razão, a maturidade, sobretudo depois de
uma experiência traumática (a prisão, um amor fracassado, a
guerra).
Linhas 9-12: Greet considera que o quarteto final deve ser lido mais
como expressão amorosa do que meramente patriótica.
“Ardente” é palavra-chave em Apollinaire, e aqui refere­-se
tanto à bravura do soldado quanto ao desejo de uma musa,
alguma forma de epifania amorosa. No romance La Femme
assise (A mulher sentada, só publicado em 1920 ,
postumamente), ele escreveu: “Doce poesia! A mais bela das
artes! Você que, despertando em nós o poder criativo, nos
aproxima da divindade, as decepções não amortecem o amor
que tenho por você desde minha infância! Até a guerra
aumentou o poder que a poesia tem sobre mim, e é graças a
ambas que o céu agora se funde em minha cabeça
estrelada”.142

vitória
Publicado na Nord-Sud em 15 de março de 1917 . Escrito
especialmente para o primeiro número da revista do poeta Pierre
Reverdy. Poema em versos livres, sendo um dos últimos escritos por
Apollinaire. Aqui, ele delineia, como em “A ruiva bonita”, um poema-
manifesto pela renovação da linguagem poética. Notar o uso da
técnica da “linha flutuante” (usada com maestria pelo Mallarmé do
“Um lance de dados”). A indeterminação sintática, dada pela abolição
da pontuação, impregna o poema de uma atmosfera de sonho.
Greet143 chama a atenção de como, novamente, ele antecipa o
surrealismo ao fundir sonhos e memórias, sendo capaz de captar
vários níveis de consciência (o que a mente observa, o que é sonhado,
ou um comentário analítico e objetivo). Outro predecessor dessa
prática de justaposições inusitadas seria o uruguaio Isidore Ducasse, o
conde de Lautréamont (1846-70), em sua famosa descrição de um
garoto “belo como o encontro fortuito de um guarda-chuva e uma
máquina de costura sobre uma mesa de dissecação”. A ausência de
pontuação certamente potencializa a fusão desses níveis, às vezes
numa mesma linha (1-2), além de dar dinamismo ao texto. Se nos
caligramas Apollinaire propõe uma poesia visual, espacial e
sinestésica, aqui ele expressa, com ironia, o desejo de incorporar todos
os sons humanos (tosses, risadas, espirros, gaguejos, peidos, soluços
etc.), questionando a prioridade do sentido sobre o som (ele fala de
uma língua fora do alcance dos gramáticos).

Linhas -
3 5 e -
19 20 : Como em “Zona”, “Crepúsculo” e “Árvore”
reaparece o tema dos cegos, aqui fundido no mito de Ícaro.
Este, por sua vez, associado aos santos e aos modernos
aviadores, como ele faz frequentemente em sua poesia.
Linha 7: Diamant qui parle: diamante falante, referência a Jacqueline
Kolb, última mulher de Apollinaire e cujo apelido era Ruby.
Linha 10 : Saint-Claude: povoado francês localizado na cordilheira do
Jura, na fronteira com a Suíça, famoso no século xix como
centro mundial de cortadores de diamantes e pedras
preciosas. Apollinaire visitou a região em junho de 1912 ,
acompanhado dos pintores Picabia e Duchamp.
Linha 19 : Instituto de Jovens Cegos, fundado por Valentini Haüy
(1745-1822) para promover, dar dignidade e educação para
jovens deficientes visuais. É mencionado aqui em uma crítica
velada ao capitalismo, ao mercantilismo das instituições. O
jovem cego de asas seria, para Greet, uma imagem para o
Amor (possivelmente Dédalo também). Nesse trecho há
possível alusão ao seu amigo, o pintor Giorgio de Chirico,
que escreveu: “você só pode ver de olhos fechados” (lema
retomado depois pelos surrealistas). Alusão a cegos
visionários, como Homero. Ecos do segundo verso do poema
“Árvore”: “Onde estão os cegos onde se meteram”.
Linhas 21 62- : Esse trecho, matéria de debates, toca na questão da
linguagem, da necessidade de romper com a sintaxe
tradicional, da busca por novas formas e vocabulários
poéticos. Apollinaire expressa uma posição algo ambígua
sobre o cinema (novidade então recente), sobre os
experimentos com poesia sonora da época e sobre os limites
do experimentalismo verbal.
Linhas 29 59 - : Referência, com um leve toque de ironia, às
experiências da vanguarda com poesia sonora, como o
ruidismo e o bruitismo dos futuristas italianos (Carrà,
Marinetti), o zaum da vanguarda russa, ou ainda aos
dadaístas, que estavam chegando à cena literária parisiense.
Linha 31 : Postilhões: a palavra significa “mensageiros”, mas, pelo
contexto, está mais próxima do sentido de “lançar
perdigotos” (“lancer des postillons”), gotículas de saliva
projetadas ao falar.
Linhas 46 51- : Apollinaire convida-nos a nos surpreender e amar as
invenções recentes (o que ele chamava de “a beleza nova”),
porque, em breve, ninguém o faria, elas “sairiam de moda”
ou seriam substituídas por outras.
Linha 62: Myrtaie: cunhagem de Apollinaire, bosque de murta
(plantas com flor, da família das Myrtaceae). Na mitologia
grega, a murta era consagrada a Afrodite.
Linha 63 : Éros et Antéros: título de uma história escrita por
Apollinaire. Trecho hermético. Eros, deus do amor, remete
ao jovem cego das linhas 3, 19 e 20 , para Greet, assim como
sua figura antitética, Anteros (“vingador do amor
desprezado”, segundo Plínio, em seu livro História natural.
Anteros era também o nome de uma pedra preciosa (imagem
que remete, por sua vez, ao “diamante murmurante” ou
“rubi falante” da linha 7).
Linhas 89 93- : Novamente, Apollinaire funde guerra (que ainda
prosseguia) e a vanguarda poética (o espiritonovismo).

a ruiva bonita

Publicado no jornal L’Éventail, em 5 de março de 1918 . Considerado


o poema-testamento de Apollinaire. Ele voltara da guerra e encontrara
uma nova geração de artistas tomando a cena poética (ver “Vitória”).
Como no ensaio “O espírito novo e os poetas” (1917, publicado em
1918 ), aqui ele propõe uma renovação da vida e da linguagem.
Observa Jorge Luis Borges: “Num tipo de salmo — cuja dicção
confidencial e patética trai seu débito com Whitman — Apollinaire
separa os escritores entre aqueles que prezam a Ordem e os que têm
fome de Aventura e, depois de se incluir entre os últimos, pede para
ser perdoado por seus pecados e erros”. No mesmo artigo em que
comenta o poema, Borges chega à conclusão de que Ordem e
Aventura não eram opostas, e sim aspectos diferentes da experiência
humana.144 A discussão tem origem já na Antiguidade, mas repercute
na França (século xvii ) com a famosa Querela dos Antigos e
Modernos. O filósofo Bernardo de Chartres (1130-60), na
comparação de seus contemporâneos com os antigos, afirmava: “Nós
[os modernos] somos comparáveis a anões montados sobre os ombros
de gigantes [os antigos]: vemos, portanto, mais coisas do que eles
viram e vemos mais longe do que eles. Qual a razão disso? Não é nem
a acuidade do nosso olhar, nem a superioridade da nossa altura, mas
porque somos transportados e elevados pela alta estatura dos
gigantes”.145

Título: A “ruiva bonita” é Emma Louise Kolb (1891-1967). Também


conhecida como Jacqueline (Apollinaire a chamava de
Ruby), era uma enfermeira francesa com quem o poeta se
casara em maio de 1918 , pouco antes de morrer de gripe
espanhola. Ao mesmo tempo que é um poema de amor, é
uma peça que tematiza a linguagem. Em uma Europa
devastada por uma guerra que já durava quatro anos, ele
lança uma convocação aos artistas do século xx , para que
busquem não a destruição do passado, e sim um equilíbrio,
ou uma síntese criativa, entre o que ele chamava de Ordem e
Aventura: tradição e inovação. Como nota Greet, “aqui
Apollinaire lança mão do estilo fluente, discursivo e
imediatamente acessível que constitui um dos polos de seu
modernismo”.146 O poeta assume uma postura claramente
pública, julgando, mas também submetendo-se ao
julgamento de sua audiência. Para precedentes desse poema
ver “Sobre profecias”, “No abrigo-caverna” e “Maravilha da
guerra”.
Linhas 20 30- : “O desejo de dominar o tempo e manipulá-lo à sua
vontade, assim escapando de seu fluxo inexorável, é um
ímpeto central em sua obra”, lembra Greet.147
Última linha: Alusão ao miserere, “Tende piedade de mim”, dos
Salmos da Bíblia.

Notas

1. Guillaume Apollinaire, Zone: Selected Poems. Trad. de Ron Padgett e intr. de


Peter Read. Nova York: New York Review of Books, 2015, p. 145.
2. Ibid., p. 245.
3. Pär Bergman, “Modernolatria” e “Simultaneidade”. Trad. de Júlio Bernardo
Machinski. Joinville: Clube de Autores, 2018, p. cxxi.
4. Apud Guillaume Apollinaire, op. cit., p. 246.
5. Ibid.
6. “C’est le pays des oiseaux/ L’oiseau du paradis, l’oiseau-lyre/ Le toucan,
l’oiseau moqueur/ Et le colibri niche au cœur des lys noirs/ Viens!”. Disponível em:
<lyricstranslate.com/en/prose-du-transsib%C3%A9rien-et-de-la-petite-jehanne-de-
france-trans-siberian-prose-and-little-jeann.html>. Acesso em: 2 jan. 2021.
7. Martin Sorrell, “Explanatory Notes”, em Guillaume Apollinaire, Selected
Poems. Trad., intr. e notas de Martin Sorrell. Oxford: Oxford University Press, p.
263 .
8. Apud Bolivar Torres, “Guillaume Apollinaire: A aurora modernista”. O Globo,
16 nov. 2013 . Caderno Prosa. Disponível em:
<blogs.oglobo.globo.com/prosa/post/guillaume-apollinaire-a-aurora-modernista-
515273 .html>. Aces­so em: 14 fev. 2021.
9. Filippo Marinetti, apud Francis J. Carmody, The Evolution of Apollinaire’s
Poetics, 1901-1914. Berkeley: University of California Press, 1963, p. 56.
10. Michel Décaudin, Alcools de Guillaume Apollinaire (Essai et dossier). Paris:
Gallimard, 1993, p. 220.
11. “A única maneira de expressar emoção na forma de arte é encontrando um
‘correlativo objetivo’; em outras palavras, um conjunto de objetos, uma situação,
uma cadeia de eventos que será a fórmula daquela emoção particular; de modo que,
quando os fatos externos, que devem terminar na experiência sensorial, são dados, a
emoção é imediatamente evocada.” Disponível em:
<pt.qaz.wiki/wiki/Objective_correlative>. Acesso em: 2 dez. 2020.
12. Guilherme de Almeida, Poetas de França. São Paulo: Babel, [s.d.].
13. Guillaume Apollinaire, Alcools. Trad. de Anne Hyde Greet e pref. de Warren
Ramsey. Berkeley: University of California Press, 1974, p. 224.
14. Francis J. Carmody, op. cit., p. 28.
15. Gérard H. Goutierre, “Looking for Miss Playden”. Les Soirées de Paris, 5 jan.
2021 . Disponível em: <lessoireesdeparis.com/2021/01/05/looking-for-miss-playden/>
Acesso em: 20 jan. 2021.
16. Laurence Campa, Guillaume Apollinaire. Paris: Gallimard, 2013, p. 123.
17. Guillaume Apollinaire, Alcools, op. cit., 1974, p. 226.
18. Id., Alcools, Trad. de Anne Hyde Greet e pref. de Warren Ramsey. Berkeley:
Berkeley University Press, 1965, p. 227.
19. Filippo Tommaso Marinetti, Le Monoplane du pape: Roman politique en vers
libres. Paris: Bibliothèque Internationale d’Éditions E. Sansot & Cie, 1912, p. 272.
20. Guillaume Apollinaire, Alcools, op. cit., 1965, p. 230.
21. Martin Sorrell, “Introduction”, em Guillaume Apollinaire, Selected Poems,
op. cit., p. xviii.
22. Guillaume Apollinaire, Alcools, op. cit., 1965, p. 230.
23. Ibid., p. 231.
24. Ibid.
25. Guillaume Apollinaire, Zone: Selected Poems, op. cit., 2015, p. 243.
26. Id., Alcools, op. cit., 1965, p. 223.
27. Ibid., p. 246.
28. Ibid., p. 263.
29. Ibid., p. 264.
30. Ibid., p. 278.
31. Ibid., p. 279.
32. Susan Harrow, The Material, the Real, and the Frac­tured Self: Subjectity and
Representation from Rimbaud to Réda. Toronto: University of Toronto Press, 2004 ,
p. 70.
33. Guillaume Apollinaire, Alcools, op. cit., 1974, p. 281.
34. Ibid.
35. Willard Bohn, Reading Apollinaire’s Calligrammes. Nova York: Bloomsbury,
2018 , p. 7.
36. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916).
>Trad. de Anne Hyde Greet. Oxford: University of California Press, 1980, p. 348.
37. Mario Richter, Apollinaire: Le Renouvellement de l’écriture poétique du xx

siècle. Paris: Classics Garnier, 2014, p. 75.


38. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 347.
39. Ibid., p. 348.
40. Ibid.
41. Guillaume Apollinaire, Œuvres poétiques complètes. Org. de Marcel Adéma e
Michel Décaudin, pref. de André Billy. Paris: nrf, 1956, p. 1066.
42. Ibid.
43. Willard Bohn, op. cit., p. 23.
44. Roland Barthes, O rumor da língua. Trad. de Mário Laranjeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2004, p. 62.
45. Michael Webster, Reading Visual Poetry after Futurism: Marinetti,
Apollinaire, Schwitters, Cummings. Nova York: Peter Lang, 1995, p. 52.
46. Willard Bohn, op. cit., p. 17.
47. Ibid.
48. Ibid., p. 60.
49. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 356.
50. Susan Harrow, op. cit., p. 235.
51. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 372.
52. O manifesto original está disponível em:
<loc.gov/resource/gdcwdl.wdl_20026/?st=gallery>. Acesso em: 12 dez. 2020.
53. Guillaume Apollinaire, “Simultanisme-librettisme”. Les Soirées de Paris, n.
25 , jun. 1914.
54. Laurence Campa, op. cit., p. 51.
55. Algumas dessas conversas entreouvidas (em trens, na rua) ele costumava
publicar em sua revista, Les Soirées de Paris.
56. Maria Dario, “La Poésie d’Apollinaire à l’épreuve du journal”. Ticontre.
Teoria Testo Traduzione, Veneza, Università Ca’ Foscari di Venezia, n. 5 , p. 202 ,
maio 2016.
57. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 380.
58. Ibid.
59. Augusto de Campos, Rimbaud livre. São Paulo: Perspetiva, 2002, p. 62.
60. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 381.
61. Ibid., p. 348.
62. Willard Bohn, op. cit., pp. 61-79.
63. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 385.
64. Willard Bohn, op. cit., pp. 61-79.
65. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 386.
66. Willard Bohn, op. cit., p. 22.
67. Ibid.
68. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 387.
69. Ibid.
70. Ibid., p. 388.
71. Ibid., p. 391.
72. Id., Pintores cubistas. Trad. de Sueli Tomazini Barros Cassal. Porto Alegre:
l&pm , 1997, p. 32.
73. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 389.
74. Ibid., p. 392.
75. Alain-Marie Bassy, apud Willard Bohn, Modern Visual Poetry. Newark:
University of Delaware Press, 2001, p. 49.
76. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 392.
77. Ibid., p. 394.
78. Ibid., p. 397.
79. Guillaume Apollinaire, Zone: Selected Poems, op. cit., 2015, p. 217.
80. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
402 .
81. Id., Caligramas. Intr., org., trad. e notas de Álvaro Faleiros. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2008, p. 374.
82. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
403 .
83. Ibid., p. 405.
84. Ibid., p. 406.
85. Ibid.
86. Ibid., p. 405.
87. Ibid., p. 409.
88. Ibid., p. 415.
89. Guillaume Apollinaire, Zone: Selected Poems, op. cit., 2015, p. 233.
90. Claude Debon, Claude Debon commente Calligrammes de Guillaume
Apollinaire. Paris: Gallimard, 2004, p. 229.
91. Guillaume Apollinaire, Caligramas, op. cit., 2008, p. 179.
92. Ibid., p. 44.
93. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
420 .
94. Ibid., p. 421.
95. Ibid.
96. Ibid.
97. Id., Caligramas, op. cit., 2008, p. 109.
98. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
157 .
99. Susan Harrow, op. cit., p. 96.
100. Ibid., p. 95.
101. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 425.
102. Susan Harrow, op. cit., p. 104.
103. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 426.
104. Id., Escritos de Apollinaire. Trad., sel. e notas de Paulo Hecker Filho. Porto
Alegre: l&pm, 1984, p. 173.
105. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
433 .
106. Ibid., p. 435.
107. Ibid.
108. Ibid., p. 441.
109. Ibid., p. 442.
110. “Laurence Campa, “La Grande Guerre a nourri la littérature durant un
siècle”. Le Monde, 4 fev. 2014 . Culture. Disponível em:
<lemonde.fr/culture/article/2014/ /
02 04 /laurence-campa-la-grande-guerre-a-nourri-
la-lit­tera­ture-durant-un-siecle_4359928_3246.html>. Acesso em: 2 de jan. 2021.
111. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 449.
112. Claude Debon, op. cit., p. 139.
113. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 234.
114. Susan Harrow, op. cit., p. 95.
115. Guillaume Apollinaire, Escritos de Apollinaire, op. cit., 1984, p. 172.
116. A definição de correlato objetivo aparece pela primeira vez no ensaio
“Hamlet and His Problems”, escrito em 1919 , um ano depois da morte de
Apollinaire. Publicado em The Sacred Wood: Essays on Poetry and Criticism.
Londres: Methuen & Co. Ltd, 1920.
117. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 461.
118. Ibid., p. 463.
119. Ibid.
120. Ibid., p. 466.
121. Id., Calligrammes. Leitura acompanhada por Vincent Vivès. Paris:
Gallimard, 2003, p. 211. (La Bibliothèque Gallimard).
122. Ibid., p. 212.
123. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 475.
124. Ibid., p. 477.
125. Ibid., p. 478.
126. Ibid., p. 289.
127. Id., Caligramas, op. cit., 2008, p. 125.
128. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
479 .
129. Id., Caligramas, op. cit., 2008, p. 181.
130. “Du Coton dans les oreilles“. Disponível em:
<lsgroupe1.blogspot.com/2016/04/du-coton-dans-les-oreilles.html>. Acesso em: 20

fev 2021.
131. “Pensamentos soltos sobre as Meditações estéticas de Apollinaire”. Trad. de
Flávia Nascimento Falleiros, Lettres Françaises, Araraquara, Unesp, v. 2, n. 20, p.
286, 2019 . Disponível em: <periodicos.fclar.unesp.br/lettres/article/view/13566>.
Acesso em: 15 jan. 2021.
132. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 486.
133. Ibid., p. 486.
134. Ibid., p. 487.
135. Ibid., p. 485.
136. Ibid., p. 487.
137. Ibid., p. 488.
138. Ibid., p. 489.
139. Ibid., p. 492.
140. Ibid., p. 495.
141. Ibid.
142. Guillaume Apollinaire, La Femme assise. Paris: nrf, p. 35.
143. Id., Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916), op. cit., 1980 , p.
498 .
144. Jorge Luis Borges, “O espírito novo e os poetas”, em Willard Bohn,
Apollinaire and the International Avant-Garde. Nova York: State University of New
York, 1997, p. 245.
145. Atribuído a Bernard de Chartres por John of Salisbury em Metalogicon
(1159), livro iii , capítulo 4 , apud Édouard Jeauneau, História breve da filosofia
medieval. Lisboa: Verbo, 1968.
146. Guillaume Apollinaire, Calligrammes: Poems of Peace and War (1913-1916),
op. cit., 1980, p. 506.
147. Ibid., p. 507.
Cronologia

1858 Nasce Angelica de Kostrowitzky (anteriormente Kostrowicka),


em Sveaborg, Finlândia, então parte do Império Russo. A mãe
era descendente de uma família ancestral de aristocratas russo-
polacos. Filha de Julia, irmã de Henri e Constantin, Angelica é
colocada num convento, sendo escolarizada, mas é expulsa e
abandona os estudos. De personalidade forte, sensual, agressiva
e independente, frequenta a boa sociedade romana. Tem vários
amantes e muitos sonhos para o futuro. Por muito tempo se
acreditou que o poeta teria nascido de uma relação proibida de
Angelica com Francesco Flugi d’Aspermont, um oficial ítalo-
suíço de família aristocrata. “Não há prova alguma de que
Flugi d’Aspermont era seu pai. É uma suposição tradicional”,
informou-me sua biógrafa Laurence Campa, em e-mail de 8 de
janeiro de 2021 . Havia ainda um boato de que teria sido fruto
de incesto com outro membro da família Kostrowitzky. Em
todo caso, Apollinaire nunca conheceu o pai e nem sequer
sabia seu nome. Angelica vai ter o filho longe do Vaticano,
onde morava.
1880 8 de maio: morre Flaubert.
26 de agosto: às 5 h10, nasce no subúrbio do Trastevere, em
Roma. Inicialmente é registrado como Guillaume-Albert
Dulcigni. Em 29 de setembro do mesmo ano, é batizado na
igreja San Vito com o nome Guglielmo Alberto Wladimiro
Alessandro Apollinaire de Kostrowitzky. Em polaco, seu nome
completo é Wilhelm Apolinary Wlodimierz Aleksander de
Kostrowitzky, filho de Angelica de Kostrowitzky e pai
desconhecido. Em 2 de novembro de 1880 , Angelica reconhece
oficialmente o filho, a quem ela sempre chamaria de Wilhelm.
Laurence Campa, em Guillaume Apollinaire (Paris: Gallimard,
2013 , p. 11) levanta a possibilidade de Angelica ter pensado em
abandoná-lo ou dá-lo para adoção, pois se passaram mais de
dois meses até ela reconhecer a maternidade. Thomas Edison
inventa a lâmpada incandescente. Novembro: Verlaine publica
Sagesse.

1882 18 de junho: nasce, em Roma, o único irmão do poeta, Alberto


Eugenio Giovanni Zevini (de pai também desconhecido,
provavelmente de outro homem, fruto de uma gravidez
indesejada).

1883 4 - A família mora em Bolonha. Wilhelm aprende italiano (leitura


e escrita). Em casa, Angelica fala com os filhos em italiano e
polonês.

1886 Em 18 de setembro Jean Moréas publica, no Le Figaro, o


“Manifesto do simbolismo”.
1887 Vida precária dos Kostrowitzky. Aos sete anos, Wil­helm aprende
francês. Início do período itinerante e cosmopolita da família,
que marcará o futuro poeta.
4 de março: os três mudam-se para Mônaco, que ainda se
recuperava de um terremoto que sacudira a Riviera Francesa
no dia 23 de fevereiro. O sustento de Angelica e dos meninos
vem da ajuda de um administrador eclesiástico do Vaticano
chamado Dom Romarino, do jogo e de suas atividades de
entraîneuse de cassino (agora sob o nome de guerra “Olga
Kostrowitzky”). Vivem de quarto alugado em quarto alugado.
Angelica viaja frequentemente, sem os meninos.
Maio: quase na penúria, Angelica é fichada pela polícia como
femme galante (isto é, prostituta) e descrita em sua ficha
policial como pessoa de “natureza extremamente violenta”.
Segundo Laurence Campa (op. cit., p. 41 ), é banida do cassino
e quase deportada para a Itália por se envolver em uma briga
com garrafa com outra mulher. No outono Wilhelm e seu
irmão Alberto (ou Albert) acompanham a mãe numa viagem à
Paris.

1888 95- Seis anos depois do nascimento de Albert, Angelica decide


reconhecê-lo e lhe dar o sobrenome. Angelica consegue
matricular os filhos no Collège Saint-Charles, em Mônaco, na
Riviera Francesa, de cujos terraços se avistava o Mediterrâneo.
Primeiras amizades do poeta: James Onimus e René Dupuy (o
escritor René Dalize, seu amigo mais antigo, morto no front da
Primeira Guerra). Período de formação e devoção católica. Nos
próximos anos Wilhelm irá aprender alemão, aperfeiçoará o
francês e será um dos melhores alunos da escola, ganhando
vários prêmios. Contato com os clássicos, grande interesse por
mitos, cristianismo e lendas medievais.
10 de novembro de 1891 : em Marselha, a pouco mais de
duzentos quilômetros de Mônaco, onde vive Apollinaire, morre
Arthur Rimbaud.
26 de março de 1892 : em Candem, Estados Unidos, morre
Walt Whitman.
8 de maio de 1892 : faz primeira comunhão. Encanta­-se com a
obra de Júlio Verne. Descobre Baudelaire. Com seu colega
Onimus escreve um romance de aventuras intitulado
Orindiculo. Mergulha nas lendas medievais e escreve sobre o
mago Merlin. Primeiros exercícios poéticos usando metro e
rima. Dalize e Guillaume decidem que serão homens de letras.
Dom Romarino para de ajudar a família financeiramente, e
agora Angelica depende das jogatinas como meio de
sobrevivência. Apollinaire é reprovado nos exames para o
bacharelado. Intensas leituras e estudo do italiano.
Dezembro de 4: escreve “Noël”, um poema longo em
octossílabos, inspirado no rondó, ilustrado e desenhado por
ele.
22 de dezembro de 1894: estreia, em Paris, Prélude à l’après-
midi d’un faune, de Claude Debussy. Nesse período Apollinaire
conhece as obras de Racine, La Fontaine, Perrault, Madame
Leprince de Beaumont e Mallarmé. Recebe grande influência
do pai de James, o dr. Onimus, intelectual que lhe apresenta os
últimos avanços na ciência, tecnologia, medicina e psicologia.
Na biblioteca do dr. Onimus mergulha nos tesouros
encontrados ali: Cervantes, Goethe, Shakespeare, Villon,
Ronsard e a Pléiade. O colégio Saint-Charles é fechado em
1895 . Muitas caminhadas pela região de Mônaco. H. G. Wells
publica A máquina do tempo.
28 de dezembro: nasce o cinema; os irmãos Lumière fazem a
primeira exibição de filmes num hotel em Paris.

-
1896 8 Janeiro: morre Verlaine. Apollinaire passa a estudar no
Colégio Stanislas, em Cannes. Como acontecerá na guerra, sua
adaptação ao novo ambiente será rápida. Conhece Toussaint-
Luca. Angelica conhece Jules Weil em um cassino. Judeu de
Estrasburgo, ele é dez anos mais novo do que ela. Será seu
companheiro até a morte. Weil se muda para a casa de
Angelica, Guillaume e Albert. Os quatro passam uma
temporada em Aix-les-Bais e Lyon. Apollinaire lê
compulsivamente. Escreve e publica os primeiros poemas, sob o
pseudônimo de Guillaume Macabre.
10 de dezembro de 1896 : estreia em Paris o esquete dramático
Ubu rei, de seu futuro amigo Alfred Jarry.
Maio de 1897 : Marconi envia a primeira mensagem telegráfica
em mar aberto. Mallar­mé publica o poema revolucionário “Um
lance de dados jamais abolirá o acaso” na revista Cosmopolis.
Julho de 1897 : não passa no baccalauréat (exame que lhe
possibilitaria ingressar no ensino superior). Desiste de
prosseguir com os estudos. É o fim de sua carreira de estudante
“oficial”. Tem mais tempo livre para vadiar, estudar, ler e
escrever. O jovem Kostrowitzky frequenta a biblioteca
municipal e sua bela coleção de livros e revistas. Sonha em se
tornar jornalista. Interesse pelo anarquismo. Defesa ferrenha
do capitão Dreyfus, injustamente acusado de espionagem, num
caso célebre. Apollinaire fica fascinado com o fenômeno da
acusmatia (escuta atenta de um som cuja origem está oculta ou
se ignora e que com o aparecimento do rádio, do telefone e do
gramofone se torna realidade). “Fofocas ouvidas com um
ouvido indiscreto, palavras proferidas por santos e condenados,
vozes de poetas e profetas, todas as formas de fala o
encantavam”, descreve Laurence Campa (op. cit., p. 51 ). Esse
fenômeno alimentará, futuramente, seus “poemas-conversas” e
seu conceito de “lirismo ambiente”. Uma multiplicidade de
temas e assuntos lhe interessa: biografias, etimologia, catálogos,
jornais de medicina, livros de linguística, contos de fadas
(Grimm, Perrault), romances de aventuras, gramáticas e livros
de viagens. Como leitor, passa de um tema a outro, exercitando
a rápida associação de ideias, que será outra marca de sua
poesia. Descobre pássaros fabulosos no Journal Asiatique, que
vão figurar em sua poesia futura (como o pi-mu e o pihi).
Apaixona-se pelo formato das letras, pela caligrafia hebraica,
sânscrita e pelo ideograma chinês, que o inspirarão para a
aventura futura dos “caligramas”. Desenha e ilustra suas
próprias histórias. Compila formas fixas, acrósticos, lê poesia
síria, chinesa e coreana. Gosto por canções populares
compostas “na verdadeira língua francesa”. Encanta-se com o
charme da assonância e a inocência da rima, como mostra
Laurence Campa (op. cit., p. 52 ). Nesse período também
conhece o Inferno, de Dante, e Macbeth, de Shakespeare, os
versos de Samain e Jean Lorrain. Aprofunda-se nas leituras de
La Fontaine, Vigny, Leconte de Lisle, Baudelaire, Mallarmé,
Rimbaud, Verlaine e os simbolistas (Gustave Kahn, Moréas,
Maeterlinck, Vielé-Griffin etc.). Na prosa, descobre Balzac,
Zola, Tolstói e, sobretudo, Nerval (Sylvie).
1898 : Em Paris, primeira incursão de Santos Dumont com
ascensão aerostática.
9 de setembro: morre Mallarmé.

1899 Abril: Angelica muda-se para Paris com os filhos e Jules Weil. A
torre Eiffel, símbolo da modernidade e da belle époque, é
terminada. O jovem de dezenove anos maravilha-se com a
Cidade Luz. Total instabilidade econômica. Wilhelm frequenta
a biblioteca Mazarine e prossegue sua autoeducação. Decide
assumir, como elegante nom de plume, Guillaume Apollinaire
(seus prenomes, Wilhelm e Apollinaris, afrancesados), uma
referência também a Sidônio Apolinário, poeta gaulês-romano,
de língua latina, contemporâneo da decadência de Roma
(século v), e a Apolo (uma das principais divindades da
mitologia greco-romana, deus da poesia, da beleza, da
perfeição, da harmonia, do equilíbrio e da razão).
Julho: a mãe se muda para Spa e Ostende, na Bélgica, para
juntar-se a Jules nas jogatinas. Os filhos são instalados na
pensão Constant, em Stavelot, um vilarejo encravado na
fronteira da Prússia com a Bélgica. Primeira paixão: uma nativa
chamada Marie Dubois (“Mareye”). Nas “férias” de três
meses, explora a região a pé, descobre as lendas das Ardenas e
se encanta com o dialeto valão. Escreve contos e poemas. Data
dessa época a redação de “Que vlo-ve?” e L’Enchanteur
pourrissant (O mago apodrecido). Angelica tem seu acesso
barrado no Cassino de Spa e, tendo perdido tudo na jogatina,
volta para Paris, largando os filhos na pensão.
5 de outubro: sem dinheiro para pagar a conta, os dois irmãos
são instruídos pela mãe a fugirem. De noite, atravessam sete
quilômetros de montanha e floresta, até pegarem o trem em
Roanne-Coo. Conseguem chegar a Paris e se unem à mãe, que
está morando num hotel na rua Constantinople, no 9.
Novembro: a polícia localiza os Kostrowitsky. São
interrogados por um juiz sobre o calote na pensão em Stavelot.
Angelica promete pagar a conta.

1900 Publicação de A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud,


que Apollinaire lerá futuramente. Os Kostrowitzky têm uma
vida de pobreza, piorada pelo fato de serem estrangeiros. O
juiz perdoa a dívida.
14 de abril: é inaugurada a gigantesca Exposição Universal de
Paris, que Apollinaire visita. Ele fica fascinado com as centenas
de atrações e descobertas científicas e tecnológicas (“calçada
rolante”, luz elétrica, cinema etc.). A primeira linha do metrô
começa a circular na Cidade Luz. Apollinaire aprende
estenodatilografia e frequenta bibliotecas. Começa a prestar
serviços como ghost-writer para o folhetinista Esnard. Ainda
tem poucos amigos. Procura incessante de emprego, dificultada
pelo fato de não ter diploma nem qualificação profissional.
Escreve uma novela, mas perde os manuscritos no trem.
Explora Paris como um legítimo flâneur, acumulando
percepções e experiências que serão usadas nos poemas de
errância e deslocamento de Álcoois e Caligramas.
25 de agosto: morre Friedrich Nietzsche.

1901 Vive de bicos. Escreve uma novela erótica para reforçar o


orçamento. Apaixona-se por Linda Molina da Silva, irmã de
um amigo, mas não é correspondido. Começa a dar aulas de
francês para a filha da viscondessa alemã Elinor de Milhau,
uma viúva. Contribui para Tabarin, um semanário satírico
sediado em Montmartre.
Agosto: assina contrato de um ano para trabalhar como tutor e
professor da filha da viscondessa de Milhau, em suas
propriedades às margens do rio Reno, na Renânia (Alemanha).
Primeiro em uma casa­-castelo (Haus Neuglück, existente até
hoje, perto de Oberpleis) e mais tarde em Honnef. Passeios e
caminhadas constantes pela região. Apaixona-se imediatamente
por uma colega de trabalho, a governanta inglesa Annie
Playden. Tem seus primeiros poemas publicados, ainda
assinando Wilhelm Kostrowitzky, na revista La Grande France.

1902 Acompanha a família da viscondessa por várias cidades alemãs:


Colônia, Bonn, Düsseldorf, Coblence, Frankfurt, Nuremberg,
Hannover, Berlim, Dresden. Sozinho, visita Praga, Stuttgart e
Viena. Muitas idas a museus e explorações urbanas. Passa seis
semanas em Munique. Escreve histórias, artigos jornalísticos e
poemas inspirados por suas novas experiências (que irão
compor o “ciclo renano” de sua produção). Torna-se cada vez
mais ciumento e possessivo com Annie. Ela, que antes o
encorajava, agora o rejeita. Numa das ocasiões, ele teria pedido
sua mão no alto de um penhasco, ameaçando se jogar
dependendo da resposta. Devido à situação, a viscondessa
decide não renovar o contrato. Retorna a Paris. Faz bico em
um banco. Começo da vida boêmia. Daqui em diante, irá
participar cada vez mais dos círculos literários e artísticos de
Paris. Frequenta o Louvre, o bairro Montmartre, os
buquinistas das margens do Sena e bibliotecas como a
Mazarine, sempre em busca do esotérico, do estranho, do
surpreendente e misterioso, além de se abastecer de literatura
libertina. Vira também um aficionado de “ficção de polpa”
(assim como, em 1911 , será um aficionado das aventuras do
Fantômas, personagem de histórias policiais). Começa a
colaborar com o semanário L’Européen e publica contos na
Revue Blanche, que contava com colaboradores de peso como
Jarry, Proust e Gide. “O heresiarca” sai na revista em março:
pela primeira vez é publicado um texto seu sob a assinatura
Guillaume Apollinaire. Debussy compõe o drama lírico Pelléas
et Mélisande.
13 de abril: em Nice, Léon Serpollet bate um novo recorde de
velocidade em um carro (120,8 km/h). Além de dominar várias
línguas (francês, provençal, italiano, alemão, valão, polonês e
inglês), Apollinaire é leitor compulsivo de literatura anglo-
americana, oriental e medieval. Entre os europeus, os
preferidos são Racine, La Fontaine, Pascal (que ele
recomendará para Picasso), Shakespeare e Conrad. É a época
em que começa a compor sua vasta biblioteca.
29 de setembro: morre Zola.
11 de outubro: publica sua primeira crítica de arte. Fica amigo
do pintor norueguês Edvard Diriks. Começa a frequentar
ateliês e galerias de arte.

1903 18 de abril: é convidado para uma soirée da revista La Plume


(que reúne a nata literária parisiense). No Soleil d’Or conhece e
se torna grande amigo do lendário Alfred Jarry. Noites de
conversas, caminhadas e absinto. Conhece outro grande amigo,
André Salmon. Publica em revistas pequenas como La Revue
Blanche, La Plume, La Revue d’Art Dramatique. Primeiros
poemas na La Grande France. Ganha a vida como funcionário
de banco.
Novembro: vai a Londres para convencer Annie Playden a se
casar com ele. Ela lhe dá alguma esperança. Conhece os
pintores Derain e Vlaminck. Gertrude Stein chega a Paris e
começa sua galeria particular de arte moderna. Os salons
artísticos e literários que ela realiza em sua casa serão
frequentados por artistas como Matisse, Cézanne e Apollinaire.
Junto com Jules Weil e Salmon, ele funda a revista Le Festin
d’Ésope, que circulou até agosto de 1904 , depois de nove
edições.

1904 Janeiro: Angelica, Weil e Albert se estabelecem em Le Vésinet


(Boulevard Carnot, no 8), a dezesseis quilômetros do centro de
Paris. Apollinaire, que ainda não tem sua própria casa, divide o
tempo entre Montmartre, a casa dos amigos e Le Vésinet
(aonde vai apenas para dormir).
Fevereiro: com Jules Weil, visita Estrasburgo. Consegue
emprego num jornal de economia (Guia das Rendas), que
também tem curta duração.
Maio: viaja a Londres, novamente atrás de Annie. Ela se recusa
a casar e fugir com ele e, pouco tempo depois, se muda para os
Estados Unidos. Apollinaire escreve “A canção do mal-amado”
e “O emigrante da rua Landor”. Guerra russo-japonesa.
Colabora com vários periódicos. Frequenta as reuniões dos
poetas neossimbolistas reunidos ao redor da revista La
Phalange e os encontros no La Closerie de Lilas (reduto da
revista Vers et Prose, dirigida por Paul Fort).
Outubro: visita pela primeira vez o Salon d’Automne. Ganha
apelidos: “Kostro’’, “Cointreau-Whisky”. Sempre curioso por
tipos aventureiros, conhece o belga Géry Pieret, que o meterá
numa enrascada em 1911 (a suspeita do roubo da Mona Lisa).
Pieret servirá de modelo para o personagem barão d’Ormesan,
“um falso messias que havia vivido aventuras extraordinárias e
inventor de uma máquina de ubiquidade”. Jules Romains
publica A vida unânime.

1905 Teoria da relatividade, de Einstein.


Fevereiro: em um bar inglês no distrito de Saint­-Lazare,
conhece Pablo Picasso, pintor de 23 anos, um ano mais novo
que ele. Tornam-se imediatamente amigos. (Picasso irá
perguntar e falar de Apollinaire na manhã em que morreu, em
abril de 1973 .) Apollinaire publica dois artigos sobre o
trabalho de Picasso, um na Reviste Immoraliste e outra na La
Plume, pioneiros em abrir os olhos do público para o gênio do
espanhol. Apollinaire apresenta Picasso ao pintor Georges
Braque, iniciando assim uma das parcerias mais notáveis da
história da arte. O exemplo de Picasso teria influência nas suas
ideias estéticas, no modo de ver o mundo e mesmo na poesia
que ele escreveria dali em diante, o que o tornaria um
personagem importante da revolução estética do modernismo
nos próximos anos e o mais importante defensor de Picasso e
do cubismo. A recusa da mimese por parte dos pintores, a
exploração da chamada “quarta dimensão” e a concepção da
realidade feita de “fragmentos isolados do mundo visível”
inspirariam a poesia que passaria a escrever. Começa a
frequentar o número 13 da rua Ravignan, na colina de
Montmartre, onde ficava o Bateau-Lavoir (o Barco-Lavatório,
que concentrava ateliês de vários pintores que se tornariam
famosos.) Lá, conhece o escritor Max Jacob. Aos poucos vai se
formando “o bando de Picasso”: o espanhol, Apollinaire,
Salmon, Max Jacob, entre outros.
24 de março: morre Júlio Verne.
Junho: Picasso viaja, e Apollinaire mora por algumas semanas
em seu ateliê. Frequenta Le Chat Noir, Le Moulin de la Galette,
Moulin-Rouge, Folies Bergère e o cabaré Le Lapin Agile, além
do Circo Médrano, que funciona ao pé da colina de
Montmartre. Frequenta intensamente o bairro de
Montparnasse, sobretudo o La Closerie de Lylas. Depois, volta
a viver com a mãe, seu irmão Albert e Jules Weil em Le Vésinet.
Ocorre o terceiro Salon d’Automne, que revela o fauvismo.
Maravilha-se com a pintura de Matisse e a série de quadros de
Picasso com temas de saltimbancos e arlequins. Acompanha
atentamente as exposições e os salões de arte. Apollinaire, um
homem robusto, bom de copo e mesa, de testa e rosto grandes,
olhos expressivos, nariz imponente e boca pequena, começa a
ser retratado por inúmeros artistas.
Agosto: viaja à Holanda.
Setembro: começa a trabalhar no Banque Châteauneuf et
Poitevin. O emprego não é o bastante para lhe dar uma vida
estável. Colabora com inúmeros periódicos. Emergência do
fauvismo. Publica poemas na Vers et Prose.

1906 Ano difícil. Não consegue escrever e sente saudades de Annie.


Não publica nenhum poema e passa por uma crise poética.
Sendo um escritor, não pode contar com um mecenas ou um
marchand para bancá­-lo (como ocorre com Picasso e seus
amigos pintores). Escreve novelas eróticas para sobreviver, sob
influência de Sade e da literatura libertina, artigos sobre cultura
física, dança, esportes.
Março-abril: faz visitas frequentes ao Salão dos Independentes
e continua a frequentar as reuniões da Vers et Prose em
Montparnasse. Contatos com Jean Moréas, Mécislas Golberg e
Paul Fort.
Agosto: nova viagem de trem à Holanda.
23 de outubro: Santos Dumont faz o primeiro voo do 14 -bis,
em Paris.

1907 Ano prolífico.


Abril: finalmente consegue sair da casa da mãe em Le Vésinet e
muda-se para seu primeiro endereço parisiense, um
apartamento no no 9 da rua Leónie (hoje rua Henner), no sopé
da colina de Montmartre e perto do Bateau-Lavoir. Nesse
endereço ele vai morar até outubro de 1909 . Conhece Henri
Matisse, Robert Delaunay e Georges Braque. Publica a novela
Les Onze mille verges (As onze mil varas), assinando “G***
A***”. Mergulha no jornalismo, crônica política, polêmicas,
crítica de arte, contos e poemas. Continua frequentando os
ateliês dos amigos no Bateau-Lavoir, os círculos literários e os
pontos da boêmia parisiense. Publica artigo sobre a pintura de
Matisse em La Phalange. É desse período que data boa parte
dos poemas de Álcoois.
Maio: o amigo Picasso lhe apresenta a pintora Marie Laurencin
e Apollinaire se apaixona perdidamente. Inventa um
pseudônimo feminino (Louise Lalanne) para sua coluna
“Escritoras Mulheres” em Les Marges. Publica três poe­mas de
Lalanne (dois deles sendo de autoria de Marie Laurencin).
Deixa-se fotografar com roupas femininas num sofá, para dar
“provas” da existência da autora. Será seu relacionamento
amoroso mais intenso e longo (até começo de 1912 ). Os dois se
tornam inseparáveis. “Ela é minha contraparte feminina”, ele
dirá. A relação com Laurencin turbina sua usina poética.
Relação tumultuada, devido à possessividade e ao ciúme do
poeta.
Julho: Picasso termina a revolucionária As damas de Avignon
(em referência a uma rua de prostituição em Barcelona).
Apollinaire vê a tela em primeira mão e tem um choque. O
quadro (que só seria exibido oficialmente em 1916 ) inaugura o
cubismo, desconstrói a forma tridimensional e rompe com
séculos de convenções pictóricas. Cada vez mais a pintura
modernista vai influenciando o pensamento poético de
Apollinaire. Pensa em aplicar os múltiplos pontos de vista do
cubismo em seus poemas.
12 de outubro: primeira grande crítica sobre o Salon
d’Automne, publicada no jornal Je Dis Tout. O Salon
d’Automne realiza uma grande exposição retrospectiva das
obras de Paul Cézanne. Ofende-se com um artigo publicado
por Max Daireaux e o desafia para um duelo, o que acaba não
ocorrendo.
1o de novembro: aos 34 anos, morre Alfred Jarry.
15 de dezembro: publica um ensaio sobre a pintura de Matisse.
É o primeiro a chamar a atenção para a pintura de Rousseau,
De Chirico, Duchamp, Picabia, entre outros.

1908 Decide viver apenas de jornalismo e literatura.


Fevereiro: publica a prosa poética “Onirocritique” em La
Phalange, considerado um prelúdio do surrealismo.
Afastamento gradual do simbolismo. “O desenvolvimento de
uma nova lírica, liberta das regras clássicas, se torna cada vez
mais evidente” (Marcel Adéma, Apollinaire. Trad. de Denise
Folliot. Kingswood: William Heinemann, 1954 , p. 92 ). Ainda
que o próprio Apollinaire enxergue, em sua poesia, uma
continuidade com a poesia dos simbolistas (Griffin, Kahn, Ghil,
Moréas, Verhaeren, Régnier, Maeterlinck), em sua crítica de
arte pró-cubismo ele afirma: “Não se pode transportar consigo,
por toda parte, o cadáver do próprio pai. Ele é abandonado na
companhia de outros mortos”. Escreve o prefácio do catálogo
da exposição dos fauvistas. Organiza a coleção da Le
Bibliothèque des Curieux (edição de clássicos da erotologia).
Começa a fazer seu nome nos círculos parisienses como crítico
de arte bastante particular. Ezra Pound chega a Londres, onde
terá um papel análogo ao de Apollinaire em Paris. Em suas
visitas a Paris, Pound confirma que os franceses estão muito à
frente dos ingleses e americanos em termos estéticos.

1909 Aproxima-se do grupo e das ideias dos unanimistas. Dá uma


conferência no Salon d’Automne, ao lado de Georges Duhamel
e Jules Romains, sobre “vida imediata”. Continua sua
campanha pelos pintores da vanguarda parisiense. “Cortejo”,
“Vendémiaire” e trechos de “Zona” são escritos sob influência
do unanimismo.
Fevereiro: o conterrâneo Filippo Marinetti publica seu
“Manifesto futurista” na primeira página do Le Figaro, de
Paris, que terá grande impacto no meio artístico. Energizado,
publica seus novos poemas em veículos como Vers et Prose, La
Phalange e La Revue Immortaliste, entre outros. É convidado a
organizar e continuar a coleção Os Mestres do Amor, de
autores libertinos. Dá várias conferências em defesa dos novos
poetas.
Maio: “A canção do mal-amado” é publicada na Mercure de
France, a revista mais seletiva de seu tempo.
Novembro: publicação de L’Enchanteur pourrissant (O mago
em putrefação), escrito aos dezoito anos, ilustrado com
xilogravuras de André Derain. O pintor Robert Delaunay pinta
uma série de quadros tendo como tema a torre Eiffel. O piloto
Blériot faz a primeira travessia de avião pelo canal da Mancha.
13 de julho: a caminho de um casamento, Apollinaire escreve
uma de suas obras mais famosas, “Poema lido no casamento de
André Salmon”. O poema relembra a amizade, as longas
conversas, as bebedeiras nas “cavernas malditas” e as lutas
para manter a periodicidade da revista Festin d’Ésope. Muda-se
para o bairro de Auteuil, no 15 da rua Gros, atrás de uma
fábrica de gás (“o cenário ideal para um poeta moderno”, ele
dizia). A distância do local de trabalho exigia longas
caminhadas, feitas sobretudo à noite, as quais aguçavam seu
apetite — o poeta era um famoso gourmand e ótimo
cozinheiro, relata Marcel Adéma (op. cit., p. 122 ). Nesse ano é
responsável pelo resgate da obra do Marquês de Sade
(1740­-1814), à época totalmente desprezado e esquecido, que
ele publica pela coleção Bibliotèque des Curieux. Resgata
também a obra do italiano Pietro Aretino (1492–1556). Até
1913 , com seu conhecimento de italiano, irá publicar uma
antologia de peças italianas pouco conhecidas na França. É
presença constante em cafés, banquetes, galerias, vernissages,
redações de revistas e jornais.

1910 Uma grande enchente o faz mudar para o no 37 da rua Gros.


Suas colaborações para jornais e revistas se intensificam.
Escreve sobre sua experiência de vítima da enchente para o
jornal L’Intransigeant. Passa a colaborar regularmente com o
jornal, assinando a coluna “A Vida Artística”, aumentando
ainda mais seu público (o jornal tinha tiragem de 400 mil
exemplares). Também vira colunista de La Démocratie Sociale
e colabora com o grande Paris-Journal. Em outubro, publica
um volume de contos, L’Hérésiarque et Cie. O livro é
derrotado no Prêmio Goncourt, o que o deixa extremamente
desapontado. Grande período criativo de Braque e Picasso.
Guerra dos Bálcãs. O pintor Jean Metzinger expõe no Salão
dos Independentes o “primeiro retrato cubista”, do próprio
Apollinaire. Continua recebendo os amigos para animadas
noitadas. Tem experiências com o ópio (“o sangue negro da
papoula”).

1911 Intensa atividade jornalística e literária. Atacado por uns,


elogiado por outros, seus artigos agora aparecem nos principais
jornais diários. Escreve o prefácio da primeira exposição dos
cubistas fora de Paris (Bruxelas). Começa a escrever para a
Mercure de France. A coluna “Vida Anedótica”, que ele
manterá até sua morte, se tornará famosa. Nela, o versátil
poeta-jornalista-crítico de arte-cronista brinda os leitores com
sua inteligência enciclopédica, sua curiosidade voraz, suas
descobertas provenientes de suas explorações por Paris, seu
gosto pelo exótico, o desconhecido e o raro. Na redação da
revista conhece André Rouveyre, que se torna seu amigo mais
íntimo. Conhece Paul Guillaume, que em dez anos se tornará
um dos mais influentes e famosos galeristas e marchands da
Europa. A essa altura, Apollinaire já é bastante conhecido
como agitador cultural e especialista em arte e poesia. Picasso
faz uma caricatura do amigo como o papa do cubismo.
Março: publica seu primeiro livro de poemas, O bestiário ou
Cortejo de Orfeu. No volume, que traz xilogravuras de Raoul
Dufy, ele resgata os bestiários medievais e do século xvi (todos
escritos em quartetos octossilábicos rimados). Cria um colofão
para o editor (um brasão representando um unicórnio
emoldurado por um delta), que ele adota como lema poético:
J’émerveille [Eu maravilho].

21 de agosto: escândalo internacional: a Mona Lisa é roubada


do Museu do Louvre (só dois anos mais tarde o verdadeiro
ladrão seria capturado, em Florença). Escreve no
L’Intransigeant um artigo onde critica a falta de segurança do
museu. Dias depois a suspeita recairá sobre ele. O pivô dessa
confusão é um ex-secretário, o belga Géry Pieret, que desde
1907 vinha roubando estatuetas ibéricas do museu. Duas delas
teriam papel histórico: vendidas a Picasso e escondidas no
estúdio do espanhol, inspirariam o quadro As damas de
Avignon. Em 1911 o belga volta a atacar, dessa vez escondendo
mais uma estatueta na casa de Apollinaire. A polícia, a essa
altura, crê que o roubo das estatuetas estava ligado ao da
Mona Lisa e começa a investigar. Depois de Picasso e
Apollinaire, em pânico, pensarem em jogar as estatuetas no
Sena, na manhã do dia 5 de setembro eles decidem devolvê-las
na redação do Paris-Journal, pedindo ingenuamente para
permanecerem anônimos. Há várias versões para quem teria
devolvido as estatuetas, se Picasso, Apollinaire ou os dois
juntos.
7 de setembro: a polícia acaba chegando no poeta. Encontra
cartas de Pieret mencionando as estatuetas e o prende. Diante
do juiz, apavorado com uma possível deportação, Picasso nega
conhecer Apollinaire, seu amigo mais íntimo. Este é
encarcerado na prisão de La Santé (ver “À Saúde”) enquanto a
investigação se desenrola. Sua prisão causa grande comoção em
Paris: amigos saem em sua defesa, enquanto a imprensa
xenófoba o ataca. Uma manchete ganha as primeiras páginas
dos principais jornais: “O polonês Kostrowitzky encabeça uma
grande quadrilha internacional de ladrões de obras de arte”.
No The New York Times ele é descrito como “um literato
russo bem conhecido que vive em Paris”, segundo informa o
prefácio de Donald Revell para Alcools: Poems by Guillaume
Apollinaire (Trad. de Donald Revell. Hanover: University Press
of New England, 1995 , p. x). É libertado no dia 13 de
setembro. Esses eventos e a humilhação, a exposição pública de
sua origem nebulosa (pai desconhecido) e da ascendência russo-
polaca têm impacto profundo no poeta, que corre o risco de ser
extraditado da França. Apollinaire tenta, sem sucesso,
conseguir a nacionalidade francesa. Anuncia um novo livro de
poemas, que se chamará Eau-de-vie (aguardente, água de vida,
spirits).
Novembro: publica “Vendémiaire”, primeiro poema em que
não usa qualquer pontuação. Escreve sobre os pintores
futuristas e apresenta Severini e Boccioni a Picasso. Em outubro
Max Jacob, expert em quiromancia, lê a mão do poeta e prevê
que ele jamais entrará para a Academia, terá vida curta e será
famoso depois de sua morte. Supersticioso, Apollinaire fica
bastante incomodado. O ano termina triste para ele. “O que
farei se for expulso da França?”, pergunta, em 9 de dezembro,
ao grande amigo Tous­saint-Luca.

1912 Ano em que começa a compor os ambiciosos poemas


modernistas da primeira parte de Caligramas (“Ondas”).
Apollinaire sugere o uso do procedimento da colagem para
Picasso, Braque e Severini. “Estou extremamente cansado de
tudo”, reclama em carta a André Gide no fim de janeiro
(Laurence Campa, op. cit., p. 374 ). Vive na penúria. Com
ajuda de amigos (André Salmon, René Dalize, André Billy e
André Tudesq), e para levantar os ânimos, funda uma nova
revista, Les Soirées de Paris, que se tornará o principal
periódico de vanguarda da França. “Picasso estuda um objeto
como um cirurgião disseca um cadáver”, ele escreve no
primeiro número. Inventa o termo “orfismo”, em referência aos
quadros do casal Delaunay, Léger e Kupka. Forte atuação
como polemista e crítico de arte. Defesa apaixonada dos
cubistas e divulgação das vanguardas (sobretudo o futurismo
italiano, de Marinetti e Soffici).
11 de maio: Marinetti publica o “Manifesto técnico da
literatura futurista”. Primeiro rascunho de “Zona”. Como os
cubistas, se interessa cada vez mais pela colagem, pela não
linearidade clássica, começando uma verdadeira desconstrução
do verso. Estreita relações com pintores como Picabia, Robert e
Sonia Delaunay, Marcel Duchamp e outros cubistas. Fica
maravilhado com as pinturas de Kandinsky e Chagall.
Junho: a pintora Marie Laurencin, cansada de suas
infidelidades, possessividade e cenas de ciúmes, rompe com ele,
que fica devastado. Deprimido, evita ficar sozinho e busca a
guarida de vários amigos. Sai do apartamento no bairro de
Auteuil e passa uns meses sem casa. Deprimido, fuma ópio
para esquecer Laurencin. Artistas recusados no Salon
d’Automne montam a Section d’Or. Escreve poemas
importantes, como “A ponte Mirabeau”, “O viajante” e
“Cortejo”. No outono, um encontro fundamental: conhece o
suíço Blaise Cendrars. Toma uma decisão estética importante:
decide suprimir toda pontuação de seus poemas. Marinetti
publica Zang tumb tuuum. Adrianopoli, ottobre 1912 . Parole
in libertà. Apollinaire frequenta assiduamente o Circo Médrano
e seus palhaços, equilibristas, arlequins, que irão povoar a
pintura de Picasso do período e sua própria poesia. Dá algumas
conferências.
Setembro: recebe, pelo correio, o poema “Páscoa em Nova
Iorque”, datado “abril de 1912 ”, por Blaise Cendrars, que
pede a ajuda de Apollinaire para publicá-lo na Mercure de
France.
16 de outubro: em Berlim, estreia Pierrot lunaire, de Arnold
Schönberg.
17 de outubro: Gabrielle Buffet convida Picabia, Duchamp e
Apollinaire para passarem uns dias na casa de sua família em
Étival. Os três, mais um mecânico, partem em um possante
Peugeot 141 A, último tipo, para a região montanhosa do Jura,
perto da fronteira suíça. São dias agradáveis, de poesia, música,
pintura, gastronomia e caminhadas pela região. Em uma das
noitadas, lê “Cri” (“Grito”, poema recém-terminado e cujo
título ele mudará, durante a visita, para “Zone”). Na volta
para Paris, enquanto espera sua nova morada ser reformada,
passa dois meses morando com o casal Delaunay (no 3 da rua
des Grands Augustins). Muitas conversas sobre pintura, teoria
de cores e simultaneísmo, que, junto com o procedimento das
colagens, começam a impactar temática e estruturalmente seus
novos poemas (como “As janelas” e “Cruzando a Europa”).
Novembro: o jornal devolve o manuscrito para Cendrars. O
poema teve impacto direto em “Zona”, que ele já estava
escrevendo.

1913 Passa o réveillon naquele que será seu último endereço: o


terceiro e último andar do no 202 do Boulevard Saint­-Germain,
esquina com a Rue Saint-Guillaume. Ele apelidará o
apartamento de “pombal” (por ter um terraço com vista para a
cidade). Pinturas, esculturas, marionetes, objetos de arte naïf e
primitiva, além de uma biblioteca já considerável, disputam
espaço em seu pequeno apartamento. Ano decisivo para
Apollinaire e para o modernismo internacional. Diaguilev
estreia seus balés russos. Stravinsky causa furor com a Sagração
da primavera. Sai o primeiro volume de Em busca do tempo
perdido, de Marcel Proust. Satie volta a compor; Valéry, a
escrever. Duchamp concebe seu primeiro ready-made, Roda de
bicicleta. Ápice do cubismo. Polêmica entre cubismo e
futurismo. O irmão, Albert, parte para o México. Os dois
nunca mais se verão.
16 a 20 de janeiro: acompanha Delaunay a Berlim para uma
exposição na galeria Sturm e dá uma conferência sobre pintura
moderna. A histórica Exposição Internacional de Arte
Moderna (ou Armory Show) acontece em Nova York. Embora
continue sempre duro de grana, a essa altura Apollinaire já está
bem estabelecido como crítico de arte e jornalista. Numa rusga
com o ex-boxeador americano e escritor Arthur Cravan (que
escrevera um artigo onde o chamara de judeu e fizera
comentários obscenos sobre Laurencin), o desafia para um
duelo. Cravan se retrata. Apollinaire ajuda escritores em
dificuldade através do Conselho Central pela Defesa dos
Escritores Livres, do qual era membro ativo. Tentativa
frustrada de reaproximação com Laurencin.
Março: publica Os pintores cubistas: Meditações estéticas,
reunindo suas críticas de arte publicadas entre 1905 e 1912 .O
livro causa grande impacto. Corrige as provas de seu primeiro
livro de poemas. Na última hora, inclui “Zona”, “Cantor” e
muda o título do livro: de Eau-de-vie para Álcoois.
20 de abril: Álcoois é lançado, trazendo uma seleção não
cronológica de poemas escritos entre 1898 e 1913 . Com
tiragem de 567 exemplares, o livro traz um desenho cubista de
Apollinaire feito por Picasso. Apropriadamente, o novo título
sintetiza o momento transicional de sua poesia: a palavra traz
um quê de poesia simbolista e, ao mesmo tempo, a estranheza
do modernismo (das propagandas e cartazes, das palavras
“semafóricas”). O livro não causa muito impacto. Em todo
caso, atrai bem mais atenção do que Caligramas, que será
lançado durante a guerra. As resenhas mais entusiasmadas são
de escritores e amigos como André Gide e Cendrars. O mais
duro ataque vem do influente crítico Georges Duhamel, que
comparou o livro a um brechó (uma loja de artigos variados e
baratos, de segunda mão). Apollinaire desafia Duhamel para
um duelo, mas amigos o dissuadem. Havia, por um lado, a
cobrança de que o livro não se alinhava o bastante com a
estética simbolista e neossimbolista. Outros críticos
reclamaram que os poemas não eram suficientemente
modernos, ainda mais para um grande difusor do pensamento
das vanguardas. Já a supressão radical da pontuação divertiu e
enfureceu os tradicionalistas.
29 de junho: publica, com a ajuda do amigo Marinetti, “A
antitradição futurista: Manifesto síntese”. O manifesto firma
seu nome como líder e arauto do modernismo na França, na
pintura e na literatura.
1o de julho: a torre Eiffel, usada para uma série de
experimentos científicos, envia, pela primeira vez, seu primeiro
sinal de rádio para Arlington, Estados Unidos, anunciando o
mundo conectado do futuro.
Outubro: Cendrars publica “A prosa do Transiberiano e a
pequena Joana de França”, poema fundamental do
modernismo.
Dezembro: a Mona Lisa é encontrada em Florença e o italiano
Vicente Peruggia é preso.
1914 Como resume Hobsbawn em Era dos extremos: O breve século
xx : -
1914 1991 (Trad. de Marcos Santarrita. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994 , p. 143 ), “em 1914 praticamente
tudo que se pode chamar pelo amplo e meio indefinido termo
‘modernismo’ já se achava a postos: cubismo; expressionismo;
abstracionismo puro na pintura; funcionalismo e ausência de
ornamentos na arquitetura; o abandono da tonalidade na
música; o rompimento com a tradição na literatura”. Primeiros
filmes de Charles Chaplin. É o ano de maior aproximação entre
os futuristas italianos e a vanguarda francesa. Apollinaire tenta
novamente obter a cidadania francesa.
27 de maio: na Sorbonne, grava três poemas para o Arquivo da
Palavra: “A ponte Mirabeau”, “O viajante” e “Maria”. São os
únicos registros existentes de sua voz. A nova tecnologia de
gravação e a materialidade sonora e plástica da palavra o
fascinam. Estimulado pelos exemplos de Marinetti, e
resgatando uma paixão da juventude (os ideogramas chineses,
os caracteres das escritas árabes, os “poemas em forma de
coisas” da tradição árabe, hebraica, greco-romana e
renascentista), desenvolve o que ele chama de “ideogramas
líricos” e, posteriormente, de “caligramas”, prenunciando a
poesia visual e a poesia concreta. Ápice da polêmica sobre a
paternidade do “simultaneísmo”, que já dura um ano,
envolvendo vários artistas, franceses e italianos.
Junho: mete-se em polêmica com o escritor Henri-Martin
Barzun sobre a tendência do "simultaneísmo" na pintura e na
poesia (múltiplos pontos de vista e lugares, descontinuidade,
fragmentos desconexos de tempo etc.). No mesmo mês fica
desolado ao saber que Marie Laurencin irá se casar com o
pintor alemão Baron Otto von Waëtjen (o que ocorre em 21 do
mesmo mês). O casal muda-se para Düsseldorf, e o poeta
nunca mais a veria. Escreve poemas importantes como “Carta-
oceano” (publicado na Les Soirées de Paris em 15 de junho).
Julho: publica na Les Soirées de Paris artigo do inglês F. S. Flint
sobre os poetas “imagistas” (que discutia poemas de Richard
Aldington, H.D., William Carlos Williams e Ezra Pound). Na
metade de julho a nrf (Nouvelle Revue Française) publica uma
edição limitada de cem exemplares de Um lance de dados, de
Mallarmé. Inventa o “poema-conversas”, como “Segunda-feira
rua Cristina” (registro do “lirismo ambiente”, como definirá).
Desenvolve caligramas importantes como “Paisagem”, “A
gravata e o relógio” e “Coração coroa e espelho”. Anuncia a
preparação de um novo livro, que se chamará Eu também sou
pintor.
28 de junho: assassinato, em Sarajevo, do arquiduque da
Áustria-Hungria Francisco Ferdinando, que seria o estopim da
Primeira Guerra Mundial. Prepara uma nova edição comentada
de Ubu rei, de seu amigo Alfred Jarry.
5 de julho: em Paris, 5 mil mulheres protestam pelo direito ao
voto. No fim de julho ele parte para o balneário de Deauville,
com o amigo e desenhista André Rouveyre, para cobrir a
temporada de verão para a revista Comœdia.
29 de julho: escreve um de seus caligramas mais conhecidos,
“Ouça que chove” (posteriormente intitulado “Chove”).
Notícias da guerra iminente com a Alemanha. Rouveyre e
Apollinaire retornam às pressas para Paris (viagem que é tema
de “O pequeno automóvel”). Chegam no dia 1o de agosto, no
momento do anúncio da mobilização geral para a guerra, a ser
declarada pela França. Os dois param em uma barraca de
photo-cinéma e fazem uma sequência de fotos. São as únicas
imagens em movimento de Apollinaire, que aparece sorridente
e falante (é possível ver o resultado das fotos em: <youtube.co
m/watch?v=OSoF75wjPUM>).
3 de agosto: explode a Primeira Guerra Mundial. Fim da belle
époque e, segundo alguns historiadores, do século xix . “Demos
adeus a toda uma época”, o poeta escreve em “O pequeno
automóvel”. Otimista, ele via a Guerra Mundial não como o
fim de um mundo, como de fato o foi, mas o começo de outro.
Em The Futurist Moment: Avant-Garde, Avant­-Guerre and the
Language of Rupture (Chicago: The University of Chicago
Press, 1986 , p. xxi), Marjorie Perloff afirma que “a guerra foi
celebrada pela maioria dos poetas e pintores que se alistaram
como a culminação de uma nova e emocionante aventura com
a tecnologia; como a revolução que iria liberar a Europa de
todos os grilhões da monarquia, do papa, da estrutura de
classe”. Sendo estrangeiro, nada o obriga a ir lutar. Tomado de
fervor patriótico, tenta se alistar na Legião Estrangeira,
chegando a escrever para o ministro da Justiça. Tem o pedido
negado várias vezes. Com a eclosão do conflito, todas as
polêmicas estéticas e vanguardas se esvaziam.
2 18- de agosto: a França envia 3 781 000 homens para conter
os alemães. Voltam as dificuldades financeiras para ele, pois
editoras e jornais para os quais colaborava interrompem as
atividades. Depois da derrota em Marne, os alemães começam
a cavar trincheiras na região de Argonne. Era o começo da
“Frente Ocidental” e da “guerra de trincheira” que se
tornariam, nos próximos quatro anos, uma máquina de
massacre sem precedentes. Um milhão de soldados morreriam
no espaço de cinco meses.
30 de agosto: assustado com a aproximação dos exércitos
alemães em Paris, consegue ir para Nice, sul da França.
1o de setembro: tenta se naturalizar cidadão francês para poder
lutar pela França.
2 de setembro: os alemães já estavam em Meaux, às portas de
Paris. Quinhentas mil pessoas são evacuadas da capital
francesa.
6 de setembro: em Nice, recusa um convite de um amigo para
deixar a França via Espanha ou Suíça. Apollinaire conhece e se
apaixona perdidamente por uma aristocrata e ex-aviadora, a
condessa divorciada Louise de Coligny-Châtillon (1881-1963,
a “Lou” de seus poemas futuros). Volta a fumar ópio:
“Fumerie, cocaïnerie, a guerra está virando um paraíso
artificial”, ele escreve a um amigo, remetendo a Paraísos
artificiais, livro de Baudelaire, conforme mostra Laurence
Campa (op. cit., p. 515 ). Apollinaire insiste e consegue ser
aceito pelo Exército. Cansado das evasivas de Lou, apressa seu
alistamento.
5 de dezembro: une-se ao 38o regimento de artilharia em
Nîmes, a 280 quilômetros de Nice, e começa seu treinamento
para artilheiro (canonnier conducteur). Lou vai atrás de
Apollinaire, e os dois vivem uma semana de ópio e sexo no
Grand Hôtel du Midi, em Nîmes (existente até hoje). Para Lou,
dedicará muitos poemas e cartas eróticas. “Vista de Nice, a
guerra parece cada vez mais irreal, obsedante e fascinante”,
escreve (Laurence Campa, op. cit., p. 515 ). Nos próximos
meses vai se exercitar, aprender equitação, balística, logística, a
atirar e a manejar o canhão de 75 milímetros, o orgulho do
Exército francês. Será poupado, assim, da carnificina dos
primeiros meses do conflito. A tecnologia, que Apollinaire
tanto admirava, havia tornado a guerra algo infinitamente mais
letal: agora seria travada com metralhadoras automáticas,
aviões e zepelins, canhões poderosíssimos e armas químicas.
Algo bem menos cavalheiresco e romântico do que ele
imaginava: apenas entre agosto e dezembro, 300 mil franceses
são mortos e 600 mil, feridos. A guerra estava apenas
começando e não seria uma guerra curta, como muitos
achavam. Apollinaire continua intensa correspondência com
seus amigos. Na noite de Natal, segundo Laurence Campa (op.
cit., p. 521 ) ele recebe 42 cartas, um recorde entre todos os
regimentos de Nîmes. “Amo tanto as Artes que acabei virando
artilheiro”, escreve, sempre bem-humorado, a um amigo (op.
cit., p. 528 ). A realidade da guerra, pouco a pouco, vai
transformar sua poesia e ele mesmo.

1915 2 de janeiro: durante uma licença, no trem de Nice a Marselha,


conhece Madeleine Pagès, uma jovem professora de literatura,
com quem iniciaria uma longa correspondência. Adapta-se
perfeitamente à vida na caserna (“A vida de soldado é minha
verdadeira profissão”, chega a escrever a um amigo). A
barbárie e a carnificina da guerra ganham mais um elemento
brutal e inumano: em Ypres, na Bélgica, o Exército alemão usa
armas químicas (gás cloro) pela primeira vez em guerras
modernas. Adolf Hitler está nessa batalha.
27 28- de março: Apollinaire tira sua terceira e última licença e
vai para Marselha se encontrar com Lou. Esta é a separação
definitiva, mas os amantes prometem permanecer amigos e
correspondentes. Na Páscoa, junta-se ao seu regimento no front
da região da Champanhe (Mourmelon-le-Grand, Secteur Postal
59 ), a doze quilômetros das linhas de frente. Escreve poemas
importantes, como “Maravilha da guerra”, “Os suspiros do
atirador de Dakar” e “Festa”.
6 de abril: está no setor Beaumont-sur-Vesles/Courmelois, a
poucos quilômetros ao sul da linha de fogo. Em cartas a Lou,
descreve seu fascínio com o espetáculo noturno dos
bombardeios e da paisagem devastada da “terra de ninguém”.
17 de junho: em pleno front de batalha, imprime setenta cópias
de uma plaquete manuscrita, com 21 poemas, chamada Case
d’armons (hoje uma raridade bibliográfica). Muda de setor.
Torna-se também um agente de ligação, responsável por levar
mensagens militares para as diferentes unidades, a pé e a
cavalo.
26-28 de junho: ruma para Hurlus, onde se travam combates
ferozes.
Julho: está posicionado em Laval-sur-Tourbe. Em carta a
Madeleine, descreve a destruição dos vilarejos da Champanhe,
o caos ensurdecedor dos ataques, os foguetes noturnos, “seus
clarões como olhos de caramujos”. Adaptado à vida militar, o
cavaleiro­-artilheiro revela-se um ótimo oficial e consegue várias
promoções, que têm o efeito de o colocarem cada vez mais
perto das linhas inimigas. As licenças da caserna são poucas.
15 de agosto: é deslocado do setor 146 para uma floresta ao
lado de Beaumont-sur-Vesle. Envia a Lou o poema “Cote 146”,
onde descreve: “Consigo ouvir a voz profunda da grande
artilharia chucrute/ À minha frente na direção das trincheiras/
Há um cemitério onde quarenta e seis mil soldados foram
semeados”.
27 de agosto: ganha nova função: observar, calcular e
identificar as baterias de tiro inimigas. Os alemães inauguram
mais uma arma mortífera, o lança-chamas, que se junta a
outras tecnologias de guerra: minas terrestres e metralhadoras
agora acopladas aos aviões Fokker. Durante todo o mês sua
bateria de tiro conquista as trincheiras de Colônia, Nietzsche e
Goethe e o morro de Tahure das mãos dos alemães.
1o de setembro: é promovido a maréchal des logis, equivalente
a sargento. É um mês de batalhas ferozes por território na
ofensiva da Champanhe. Participa da Segunda Batalha da
Champanhe, um ataque geral às posições alemãs. Primeiro
contato com os prisioneiros alemães. São desse período poemas
como “Desejo”, “Mira”, “No abrigo-caverna”, “O palácio do
trovão”, “Há” e “Canção do Horizonte em Champanhe”, um
de seus últimos grandes poemas. Nele, segundo Laurence
Campa (op. cit., p. 608 ), Apollinaire “abraça a simultaneidade
gigantesca do front e orquestra múltiplas vozes, manifestando
todas as sensações, todos os significados da guerra”. Destaca-se
como contador de histórias e entreteneur de soldados.
6 de outubro: segundo ataque geral sobre o front de
Champanhe. Apollinaire volta à primeira linha, em uma bateria
de tiro perto de Somme-Tourbe. Por carta, pede a mão de
Madeleine em casamento.
Novembro: seu regimento está posicionado ao sul de Trou-
Bricot, ocupando antigas posições alemãs. A neve começa a
cair.
2 de novembro: com as sucessivas perdas humanas de oficiais,
frutos de ataques e contra-ataques, é promovido a segundo-
tenente da 96a infantaria, 6a companhia. Escreve “Exercício”.
É deslocado da artilharia para a infantaria. Volta, portanto,
para a vanguarda, para a li­nha de fogo e o inferno das
trincheiras: cadáveres, infestação de ratos, vermes, lama,
insônia e choque.
9-18 de novembro: está na trincheira de Hamburgo: “A
trincheira de calcário é ruim e vive caindo. Temos que ficar
reforçando-a com sacos de areia” (Marcel Adéma, op. cit., p.
222 ).
22 de dezembro: ganha uma licença e parte imediatamente para
Orã, na Argélia, para visitar a noiva (a quem havia visto
apenas uma vez, na viagem de trem).

1916 O ano mais mortal da Primeira Guerra Mundial.


11 de janeiro: está em Paris e visita a mãe, partindo para a
zona de guerra no dia seguinte.
21 de janeiro: está posicionado em Damery com seu regimento.
Parte novamente para a linha de frente, em Aisne.
21 de fevereiro: a leste, começa a longa e sangrenta Batalha de
Verdun (duraria até 18 de dezembro, com 1 milhão de mortos
dos dois lados do conflito).
9 de março: consegue a tão sonhada nacionalidade francesa.
15 de março: volta à linha de frente.
17 de março: às quatro da tarde, nas trincheiras de um bosque
chamado Bois-des-Bittes, Apollinaire está lendo tranquilamente
a Mercure de France quando começa um bombardeio. Um obus
de 150 milímetros cai a vinte metros de onde está. Ele se
protege e tenta retomar a leitura quando percebe seu próprio
sangue sobre a página da revista. Os estilhaços do obus haviam
furado seu capacete e atingido sua têmpora direita. É o fim da
guerra para ele. É imediatamente levado para o hospital
Château-Thierry.
29 de março: o agora subtenente Kostrowitzky é transferido
para o Hospital Italiano, anexo ao Hospital Val-de-Grâce, em
Paris. Ele guarda o cantil, o capacete furado e a Mercure
ensanguentada como lembranças.
15 de abril: Angelica visita o filho e fica desolada com seu
estado.
9 de maio: com a mão esquerda paralisada, ele precisa ser
trepanado na Villa Molière, para a retirada de mais
fragmentos. Sua recuperação será lenta e dolorosa. Escreve
“Tristeza de uma estrela”.
Junho: a revista dadaísta Cabaret Voltaire publica o importante
poema “Árvore”. No entanto, Apollinaire recusa-se a
colaborar futuramente e ter seu nome associado ao dadaísmo.
17 de junho: recebe a Cruz de Guerra.
1o de julho: começa a Batalha do Somme, que só terminaria no
dia 18 de novembro, com britânicos e franceses tentando
interromper a ofensiva dos alemães sobre Verdun. A batalha
custa à Grã-Bretanha 420 mil mortos: 60 mil só no primeiro
dia de ataque. Em Paris, Apollinaire comenta com amigos que
não se sente mais o mesmo. É um homem alquebrado. Sente-se
fraco para ler e escrever. Pinta, desenha. Recebe visitas, entre
elas de um jovem admirador, André Breton (que será o líder do
movimento surrealista). A guerra ceifara incontáveis amigos.
Seus primeiros poemas escritos nas trincheiras são publicados
na Mercure de France.
Agosto: renova os laços com a comunidade artística parisiense,
aparecendo nos cafés de uniforme militar, usando
orgulhosamente sua Cruz de Guerra, sempre com uma bandana
em volta da cabeça.
Setembro: escreve a Madeleine: “Meu regimento foi para o
sacrifício e a honra. Creio que dele não resta quase nada, mas a
bandeira obteve condecorações. Quase todos os meus
companheiros morreram” (Guillaume Apollinaire, Escritos de
Apollinaire. Trad., sel. e notas de Paulo Hecker Filho. Porto
Alegre: l&pm, 1984, p. 198).
26 de outubro: publica O poeta assassinado. O quadro As
damas de Avignon, de Picasso, é finalmente exibido ao público
pela primeira vez, na exposição “A arte moderna na França”.
No fim de novembro reencontra o velho amigo (a relação
esfriara desde o caso do roubo das estatuetas do Louvre, em
1911 ). Os dois têm uma longa conversa no apartamento de
Apollinaire. Um grande banquete é feito em sua homenagem no
réveillon. Nessa ocasião alguns dos futuros surrealistas, que
terão em Apollinaire seu baluarte, se conhecem.

1917 Um ano triste para Apollinaire, comenta seu biógrafo Marcel


Adéma: “Ameaçado de retornar ao posto de seu regimento em
Béziers, pois, apesar de seu ferimento grave, ele não fora
dispensado” (op. cit., p. 239 ). Permanece em Paris. Começa a
bater ponto todas as terças-feiras no Café de Flore, a duas
quadras de sua casa. O De Flore se tornará um point dos
futuros surrealistas e, nos anos 1940 , dos existencialistas. O já
lendário poeta-soldado é o centro das atenções.
Março: recebe a visita do jovem poeta Philippe Soupault, que
lhe pede um poema inédito para publicar em um livro sobre
escritores na guerra. Apollinaire escreve o poema “Sombra”
durante a visita, para espanto do visitante.
11 de maio: é declarado oficialmente inapto para voltar à
guerra. Não consegue ser transferido para a Imprensa Oficial,
como queria. André Billy o ajuda a ser transferido para o
Gabinete de Relações com a Imprensa, no Ministério da
Guerra. Ironicamente, para um defensor da liberdade de
expressão como ele, vira um censor militar. Volta a colaborar
para revistas e a publicar seus novos poemas.
Maio: escreve a apresentação do balé Parade, de Jean Cocteau,
onde cunha a palavra “surrealismo”. Retoma a coluna “Vida
Anedótica” na Mercure de France. Parece recuperado da
cirurgia.
Junho-julho: encenação de sua peça As mamas de Tirésias. A
ópera-bufa é um sucesso e um escândalo. Colabora para o
jornal Paris-Midi, traduzindo notícias de Londres e Nova York,
mas sempre “editadas” com pitadas da sua imaginação — “não
há jeito melhor de influenciar os acontecimentos”, comentou a
um atônito André Billy, segundo Marcel Adéma (op. cit., p.
254 ).
Outubro: acontece a Revolução Russa. No front da Primeira
Guerra, ocorrem as batalhas de Arras e Passchendaele.
Novembro: publica Vitam impendere amori, escrito em
quartetos octossílabos, com 215 cópias e desenhos de André
Rouveyre.
26 de novembro: apresenta sua conferência “O espírito novo e
os poetas” no teatro Vieux-Colombier, em Paris. Nela, defende
a invenção estética, mas sem o radicalismo de dadaístas e sem
rejeitar o passado. A síntese que propõe é de um equilíbrio,
uma conciliação, entre Ordem e Aventura. Convoca os poetas a
abraçarem um “novo lirismo”, a experimentação e inovação,
mas sem excluir a imensa tradição do verso francês. Muito
significativamente, a conferência é dedicada a Arthur Rimbaud.
Em Londres, T.S. Eliot publica Prufock e outras observações.
Apollinaire trabalha em um roteiro de cinema, o libreto de uma
ópera alimentar e um drama surrealista. Termina La Femme
assise (A mulher sentada), seu único romance, que só será
publicado em 1920 . No outono, escreve a introdução para a
primeira edição integral das obras poéticas de Baudelaire. Passa
o réveillon de cama, com febre alta.

1918 1o de janeiro: seu estado piora.


3 de janeiro: é encaminhado ao hospital militar da Villa
Molière. Passa janeiro e março no hospital, com pneumonia. A
fadiga, as sequelas do ferimento na cabeça, da trepanação e dos
gases químicos dos combates cobram sua conta ao corpo.
Organiza Caligramas. Quase morre, sendo amparado pela
presença da jovem Jacqueline Kolb (que consegue um passe
para ficar junto dele 24 horas por dia).
30-31 de janeiro: ocorrem ataques aéreos a Paris: cerca de
sessenta mortos e mais de duzentos feridos. Apollinaire escreve
o prefácio do catálogo da exposição de Matisse e Picasso.
15 de março: escreve o poema “A bela ruiva”, inspirado por
Jacqueline. Tem planos de constituir família, ter uma vida
tranquila, se estabelecer literariamente e esquecer seus amores
do passado. Publica As mamas de Tirésias, com o subtítulo:
Drama surrealista. Em dois atos e um prólogo. Na primavera a
Alemanha tenta uma última ofensiva. Apollinaire fica
amargurado com a recusa em ser agraciado com a Legião de
Honra, que fora pedido ao governo por amigos.
Abril: é transferido para o Ministério das Colônias.
6 de abril: com a entrada dos Estados Unidos na Primeira
Guerra, o fim do conflito era apenas uma questão de semanas.
Os aliados começam a avançar contra a Alemanha. Tristan
Tzara publica o “Manifesto dadá”.
15 de abril: Apollinaire publica Caligramas. Com tiragem de
1040 exemplares, traz como subtítulo Poemas da paz e da
guerra (1913-1916). O livro recebe poucas resenhas decentes e
seus experimentos com poesia visual têm recepção mista.
“Esplêndida coleção de meteoros”, “transmutação poética”,
saúda o jovem poeta e médico André Breton na revista
L’Éventail.
2 de maio: casa-se oficialmente com Jacqueline (a quem
Caligramas é dedicado), tendo os pintores Vollard e Picasso
como testemunhas (curiosamente, não há nenhuma foto em
que Picasso e Apollinaire apareçam juntos).
6 13- de maio: é internado novamente no Hospital Italiano. Na
metade de maio recebe a visita de outro poeta-soldado, o
italiano Giuseppe Ungaretti. O aumento das atividades o
deixava cansado facilmente. Mesmo sendo um homem forte, o
ferimento na testa e a trepanação o deixaram fragilizado.
12 de julho: é padrinho de casamento de Picasso e Olga
Khokhlova.
Agosto: parte com Jacqueline para Kervoyal, na Bretanha, em
um resort à beira-mar. Termina uma ópera­-bufa, Casanova, e
uma peça teatral, Couleur du temps. Planeja um livro em
parceria com Picasso.
24 de agosto: volta para Paris. A guerra se encaminha para o
fim. A gripe espanhola, trazida pelas tropas americanas no
front, chega à capital. Apollinaire a contrai. Segundo Adéma:
“Ele lutou contra a morte. Tão corajoso no inferno das
trincheiras, estava aterrorizado com a ideia de morrer.
Implorou ao médico que o tratava para que o salvasse. ‘Eu
quero viver’, ele dizia, ‘eu quero viver!’. […] Mesmo em sua
morte alegria e tristeza se misturaram no destino de
Apollinaire” (op. cit., p. 269 ). Paris celebra o fim da guerra.
Moribundo, no terceiro andar de seu “pombal” ouve, vindos
das ruas, os gritos de “Abaixo Guilherme” (em referência ao
kaiser da Alemanha).
9 de novembro: às cinco da tarde, o poeta falece. Tinha apenas
38 anos de idade. As autoridades militares o declaram “morto
pela França”.
11 de novembro: anúncio do Armistício, fim da Primeira
Guerra. Saldo: mais de 9 milhões de mortos. Uma multidão
toma a igreja de Saint-Thomas-d’Aquin para seu funeral, com
honras militares.
13 de novembro: é enterrado no cemitério Père­-Lachaise, em
Paris.
1o de dezembro: a Mercure de France publica seu ensaio­-
manifesto “O espírito novo e os poetas”, considerado seu
testamento poético.

1919 2 de março: a gripe espanhola leva também Jules Weil, o velho


companheiro da mãe de Apollinaire, aos cinquenta anos.
7 de março: aos sessenta anos, é a vez de Angelica sucumbir
com a pandemia. Semanas mais tarde, no México, morre seu
irmão Albert, provavelmente de tifo.
28 de junho: o Tratado de Versalhes é assinado.
Créditos das imagens

pp. 37 , 252 , 268 , 272 , 280 , 286 , 290 , 292 , 310 , 356 e 370 :
Calligrammes: poèmes de la paix et de la guerre (1913-1916), de
Guillaume Apollinaire. Paris: Mercure de France, 1918 . Beinecke Rare
Book and Manuscript Library, Yale University

p. 62 : Tromba marina, ilustração de Arnold van Westerhout (1722),


do livro Gabinetto Armonico, de Filippo Bonanni. Reprodução de
Lebrecht Music Arts/ Bridgeman Images/ Easypix Brasil
Copyright © 2024 by Penguin-Companhia das Letras

Copyright da tradução, introdução e dos comentários


© 2024 by Rodrigo Garcia Lopes

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Penguin and the associated logo and trade dress are registered
and/or unregistered trademarks of Penguin Books Limited and/or
Penguin Group (usa) Inc. Used with permission.

Published by Companhia das Letras in association with


Penguin Group (usa) Inc.

O tradutor agradece a Ademir Assunção, Conrado Fogagnoli,


Laurence Campa, Lawrence Flores, Maurício Arruda Mendonça,
Maurício Santana Dias e Guilherme Gontijo Flores.

Esta tradução recebeu apoio financeiro da Casa de Tradutores Looren.

Caligrama da capa (“reconnais-toi”, 1915): Se reconhece?/


essa pessoa adorável é você/ sob o grande chapéu de palha/ olho/
nariz/ boca/ aqui é o oval do teu rosto/ teu/ pescoço lindo/ Um pouco/ mais abaixo/ é
teu coração/ que bate/ Aqui enfim/ a imagem imperfeita/
do teu busto adorado/ visto como/ se através de uma nuvem.

Reprodução: Patrice Cartier/ Bridgeman Images/ Easypix Brasil

preparação

Guilherme Gontijo Flores


revisão

Jane Pessoa
Luís Eduardo Gonçalves

versão digital

Rafael Alt

isbn 978-85-8285-200-2

Todos os direitos desta edição reservados à


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