Leila Linhares Barsted
Leila Linhares Barsted
Leila Linhares Barsted
1. Considerações Preliminares
1
Texto apresentado na II Jornada da Lei Maria da Penha, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça,
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e Secretaria de Reforma do Judiciário/Ministério da Justiça,
em 10 de março de 2008.
2
Advogada, Coordenadora Executiva da CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, Membro
e Ex- Coordenadora do Comitê de Especialistas da Organização dos Estados Americanos – OEA para o
monitoramento da Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres - Convenção de
Belém do Pará e Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB.
3
As Conferências Mundiais da Mulher foram realizadas no México, em 1975, em Copenhague, em 1980, em
Nairóbi, em 1985, e em Beijing, em 1995.
4
Para conhecer a situação das mulheres nos diversos países membros da ONU, acesse os Relatórios
apresentados ao Comitê da Convenção sobre todas as formas de Discriminação contras as Mulheres –
CEDAW no site WWW.un.org/womenwatch/daw/cedaw/committee.htm
5
Social Watch Report 2004 – Fear and Want: Obstacles to Human Security, pág. 30.
6
Social Watch Report 2004 – Fear and Want: Obstacles to Human Security, pág. 31.
forçar as mulheres a posições subordinadas comparada com as dos homens e que, em
muitos casos, a violência contra as mulheres e as meninas ocorre na família ou na casa,
onde muitas vezes é tolerada e silenciada. Por isso, a negligência, o abuso físico e
sexual, o estupro de meninas, crianças e mulheres por membros da família ou pessoas
próximas são sempre difíceis de serem detectados e denunciados.
No Brasil, a visibilidade desse fenômeno tem sido possível através das denúncias
dos movimentos de mulheres ao longo das últimas três décadas7, da geração de dados
estatísticos pelas Secretarias de Segurança Pública de diversos estados brasileiros, de
pesquisas de instituições não-governamentais e governamentais8 e, também, da ação por
todo o País da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM. Verifica-se que,
ao lado das desigualdades sócio-econômicas e sociais ainda vigentes, como se pode
observar através de dados do IBGE9, as mulheres, além de sofrerem tal como os homens
violências resultantes da criminalidade em geral, são as vítimas preferenciais de
violências físicas, sexuais, psicológicas e patrimoniais cometidas por pessoas que privam
de sua intimidade.
Assim, antes de assinalar os aspectos sociais da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da
Penha, pretendo, de forma resumida, relembrar o fato da violência doméstica e familiar
contra a mulher não ter sido, durante muito tempo, em nosso País, considerada como
uma questão social e sim como um assunto de natureza privada e submetido à lógica de
uma justiça privada.
De fato, até 1840, antes da entrada em vigor do 1 o. Código Criminal do Brasil
independente, vigoravam as Ordenações Filipinas que, expressamente, não
criminalizavam o marido por “matar a mulher por encontrá-la em adultério”. Existia,
portanto, uma modalidade de justiça privada com poder de aplicar a pena de morte10.
Apesar de superada tal excrescência de nosso ordenamento jurídico com o Código
Criminal de 1840, subsistiu nas práticas e representações sociais a legitimidade dessa
justiça privada, o que pode ser observado em absolvições por Tribunais do Júri de
maridos homicidas sob a égide da nefasta “tese da legítima defesa da honra”.
7
Ver a esse respeito, BARSTED, Leila Linhares (2006) A violência contra as mulheres no Brasil e a
Convenção de Belém do Pará Dez anos Depois, in O Progresso das Mulheres no Brasil, UNIFEM/Fundação
Ford/CEPIA, Brasília, 2006.
8
Em 1988, o IBGE, através de um suplemento especial da PNAD sobre justiça e vitimização,
reconheceu a existência de um padrão específico de violência contra as mulheres, distinto da
vitimização dos homens, ao apontar para a sua grande incidência nas relações domésticas e
familiares. Ver IBGE/PNAD, Participação Político-Social, vol. I Justiça e Vitimização, Rio de Janeiro, 1990.
9
Desigualdades essas ainda mais dramáticas para a população feminina negra.
Foram os movimentos de mulheres, a partir de meados da década de 1970, que
iniciaram a denúncia e a contestação contínua dessa cultura discriminatória e perversa e
introduziram a problemática da violência contra a mulher no debate público como uma
questão social de grande relevância.
No bojo do processo de redemocratização do Brasil, na década de 1980, os
movimentos de mulheres se mobilizaram para fazer avançar a cidadania feminina, ainda
constrangida em nosso país por leis discriminatórias e hierárquicas tal como o Código
Civil11 então vigente. Desse esforço, surgem, em meados da década de 1980, as
Delegacias de Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência, organismos policiais que se
constituíram em canais para que as mulheres denunciassem as violências sofridas pelo
fato de serem mulheres, especialmente a violência doméstica e a violência sexual. Os
dados dessas Delegacias vieram confirmar as denúncias dos movimentos feministas no
que se refere à manutenção de um padrão de violência de gênero para o qual se exigia tal
como ainda hoje uma ação enérgica do Estado para a sua prevenção e eliminação.
Foram criados, também, nessa mesma época, os Conselhos de Direitos das Mulheres em
diversos estados como São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e, no plano federal, o
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM. Este Conselho Nacional, articulado
aos movimentos de mulheres, elaborou a Carta das Mulheres aos Constituintes e
estimulou uma grande mobilização nacional que resultou em notável processo de
ampliação da democracia no Brasil com o reconhecimento pleno da cidadania feminina.
A Constituição Federal de 1988 é um marco na história dos direitos humanos no
Brasil e, especialmente, dos direitos humanos das mulheres. É um marco também no
repúdio à violência doméstica e familiar colocando-a como uma questão de Estado em
seu artigo 226, §8o.
Ainda no final da década de 1980, por pressão dos movimentos de mulheres,
diversas Constituições estaduais e Leis orgânicas municipais, adequando-se ao espírito
da Constituição Federal, incluíram em seus textos dispositivos com obrigações expressas
relativas à prevenção, atenção e ao combate a violência contra as mulheres.
Fato histórico foi produzido pelo Poder Judiciário, em 1991, quando o Superior
Tribunal de Justiça repudiou a nefasta “tese da legítima defesa da honra” ao caracterizá-la
10
Ver a esse respeito, HERMANN, Jacqueline e BARSTED, Leila Linhares (1995) O Judiciário e a violência
contra a Mulher – a Ordem Legal e a (des) ordem familiar, Rio de Janeiro, CEPIA.
11
Deve-se registrar que, apesar de alterações, a longa vigência do Código Civil de 1916, que legitimava a
hierarquia entre homens e mulheres marcou profundamente a maneira de pensar e de agir dos indivíduos na
sociedade brasileira.
como antijurídica e expressão tão somente do poder masculino sobre a mulher, poder
esse totalmente afastado de direito pela Constituição de 198812.
A Constituição Federal de 1988 definiu o respeito à dignidade da pessoa humana
como um valor maior e incorporou em seu texto o compromisso com os direitos humanos.
Vinculou assim o nosso ordenamento jurídico ao sistema internacional de proteção aos
direitos humanos. Reconheceu, expressamente, no §2o de seu Artigo 5o, que trata dos
direitos e garantias individuais, outros direitos declarados em tratados e convenções
internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Nesse sentido, não podemos de forma alguma, a partir de então, ignorar a
introdução na ordem jurídica nacional desses instrumentos legais de proteção aos direitos
humanos, assinados e ratificados pelo Estado brasileiro. No que se refere à violência
contra as mulheres, o Brasil assinou, como Estado Parte da ONU, em 1992, a Resolução
n. 19 sobre a violência contra a mulher. Essa Resolução dispõe que a definição de
discriminação contra a mulher, prevista no artigo 1º da Convenção sobre a Eliminação de
todas as formas Discriminação contra a Mulher – CEDAW, incluiu a violência baseada no
sexo isto é, aquela violência dirigida contra a mulher porque é mulher ou que a afeta de
forma desproporcional. Nesse sentido, estabelece que essa Convenção13 aplica-se à
violência contra a mulher perpetrada por agentes públicos ou privados. Essa Convenção,
ratificada pelo Estado brasileiro, faz parte do nosso ordenamento jurídico.
Em 1993, fruto da Conferência Mundial de Direitos Humanos, o Brasil também
assinou a Declaração aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas que define a
violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos.
Em 1994, esta Declaração da ONU subsidiou, com seus princípios e orientações,
a elaboração, pela Organização dos Estados Americanos – OEA, da Convenção Para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres - Convenção de Belém do
Pará, único instrumento internacional voltado para tratar a violência de gênero.
Reforçando a Declaração da ONU, a Convenção de Belém do Pará14 definiu a violência
contra as mulheres como
12
Ver a esse respeito HERMANN, Jacqueline e BARSTED, Leila Linhares, opus cit. (1995).
13
Essa Convenção, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1979, foi ratificada pelo Brasil
em 1984, com reserva na parte relativa ao direito de família, em função da vigência do Código Civil de 1916.
Em 1994, em consonãncia com a Constituição Federal, o Estado brasileiro retirou tal reserva e ratificou
plenamente essa Convenção. Em 2002, o Brasil assinou e ratificou o Protocolo Facultativo a essa Convenção
que estabelece procedimentos para monitorar sua aplicabilidade.
14
Essa Convenção foi assinada e ratificada pelo Estado brasileiro em 1995.
“… qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento
físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado”.
“… a violência contra as mulheres incluiu as violências física, sexual e psicológica: a) que
tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação
interpessoal em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a
mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual; b)
que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que
compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus tratos de pessoas, tráfico
de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem
como em instituições educacionais, estabelecimento de saúde ou qualquer outro lugar e
que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra” 15.
Além de conceituar a violência contra as mulheres, essa Convenção destaca um
conjunto de obrigações dos Estados-Partes a serem concretizadas em políticas públicas.
Elenca os deveres dos Estados para o seu cumprimento dentre eles o compromisso de
elaborar e aprovar legislação voltada para atingir o objetivo da Convenção – a eliminação
da violência contra a mulher.
No entanto, mesmo reconhecendo em fórum internacional e através de
convenções que se tornaram leis internas que a violência contra as mulheres é uma
violação dos direitos humanos, as modalidades mais freqüentes dessa violência - as
agressões físicas e as ameaças, em face do quantum de pena previsto para esses
delitos, a partir de 1995, passaram a ser tratadas no âmbito dos crimes considerados de
menor potencial ofensivo através da Lei 9.099/95. Isso significou um retrocesso no
tratamento legal da violência contra a mulher nas relações domésticas e familiares e um
conflito entre a Convenção de Belém do Pará e a Lei 9.099/95, com a prevalência de fato
dessa última. A partir daí, gerou-se a cultura da cesta básica que, mais uma vez,
banalizou e absolveu a violência doméstica e familiar contra as mulheres.
Em 2003, quando da apresentação do 1 o. Relatório brasileiro frente ao Comitê
CEDAW, Relatório esse elaborado em estreita colaboração com movimentos de
mulheres, o Estado brasileiro, através de dados estatísticos e pesquisas, reconheceu a
permanência de um padrão de violência contra as mulheres na nossa sociedade,
especialmente nas relações familiares, e comprometeu-se a desenvolver ações voltadas
para a alteração desse quadro.
15
Organização dos Estados Americanos – Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher, artigos 1º. e 2º.
O Comitê CEDAW, em 2003, apresentou recomendações específicas para o
Estado brasileiro incluindo a elaboração de legislação sobre violência contra as
mulheres16.
Assim, em consonância com o paradigma de proteção à dignidade da pessoa
humana e no marco dos direitos humanos, em 2006, e de acordo com as Convenções
CEDAW e Belém do Pará, o Congresso Nacional aprovou e o Presidente da República
sancionou a Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. Cumpre, assim, o Estado brasileiro
com um de seus compromissos junto à OEA, junto às Nações Unidas e, principalmente
junto às mulheres brasileiras.
16
A partir de 2004, a Lei 10.886/04, reconheceu o tipo penal “violência doméstica”, alterando a redação do
artigo 129 do Código Penal que trata da lesão corporal, para incluir os §§ 9º e 10º com a seguinte redação:
§9º Violência doméstica – Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou
companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou ainda prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: pena: detenção de seis meses a um ano; § 10º – Nos casos
previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo
17
PIOVESAN, Flávia – Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, Max Limonad, São Paulo,
1996.
18
Esse Consórcio foi formado pelas seguintes ONGs: CEPIA, CFEMEA, AGENDE, ADVOCACI,
CLADEM/IPÊ, e THEMIS, além de colaborações individuais de diversas outras profissionais do direito. Na
tramitação do Projeto de Lei outras ONGs, pesquisadoras, operadores do direito e militantes do movimento de
mulheres contribuíram para a aprovação desse Projeto de Lei.
19
Hannh Arendt (1993) , implica o sentimento de pertencimento, de identidade e de
solidariedade e o exercício de prática crítica voltada para exigir direitos e formular novos
direitos.
19
Ver a esse respeito Arendt, Hannah (1993), La condicíon Humana, Paidós, Barcelona.
20
Dentre esse se destacam o Dr. Alexandre Freitas Câmara, professor de Processo Civil da EMERJ – Escola
da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, e o Dr. Humberto Dalla, professor da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro e integrante do Ministério Público desse estado.
21
Destaco, especialmente, a contribuição da Desembargadora Dra. Shelma Lombardi de Kato, do Tribunal de
Justiça de Mato Grosso.
A concepção que orientou a elaboração da Lei 11.340/2006 tem por suporte que
as mulheres brasileiras, apesar de terem conquistado plena cidadania através da
Constituição Federal de 1988, ainda sofrem um conjunto de discriminações sociais,
econômicas, políticas e culturais que as impedem de usufruírem plenamente os direitos
conquistados. As estatísticas oficiais registram o impacto dessas discriminações nos
salários, na ascensão profissional, na vida político partidária, no acesso à terra, no acesso
a posições de poder no Estado e nas instituições da sociedade. Registram, também, o
ainda alto índice de morbi-mortalidade materna e o crescimento do HIV/AIDS entre as
mulheres. A esse quadro soma-se a violência de gênero, forma mais brutal de
discriminação que além de gerar sofrimento físico e psicológico, produzem o sentimento
de medo que está presente na vida de muitas mulheres e as impede de usufruir de seus
direitos. No âmbito das relações domésticas e familiares, as mulheres vítimas de violência
estão submetidas a uma ordem hierárquica de gênero mantida seja através da força
física, da coação psíquica, da dependência econômica ou da dependência emocional.
Apesar de importantes avanços observados no status e nas condições objetivas
das mulheres nas últimas três décadas, ainda é muito forte nas práticas, nos costumes e
nas representações sociais o peso da cultura patriarcal que foi referendada, até 1988, por
dispositivos legais nitidamente discriminatórios e hierárquicos como aqueles do Código
Civil de 1916. As mudanças culturais, ao contrário das mudanças nos planos econômicos
e políticos são lentas e, por isso mesmo, requerem ações mais contundentes, integrais,
mais complexas e articuladas. Daí que uma das respostas sociais da Lei 11.340/2006
aponta para um conjunto de ações no plano preventivo, incluindo aquelas no âmbito do
sistema educacional, por exemplo.
Outra concepção que orientou a elaboração da Lei diz respeito à constatação que
as mulheres vítimas de violência, especialmente as mulheres dos setores populares,
apresentam um conjunto maior de vulnerabilidades sociais no que diz respeito às suas
dificuldades para o acesso a emprego, renda, escolaridade, habitação, saúde,
equipamentos sociais para seus filhos, dentre outras condições necessárias à sua
cidadania. É importante observar, ainda, os efeitos do entrecruzamento das variáveis
sexo e raça na distribuição da riqueza, dos benefícios sociais, culturais e ambientais.
A prevenção e a atenção a mulheres vitimas de violência precisa ser prestada por
uma política nacional integrada nos níveis federal, estadual e municipal, e inter-setorial
abrangendo ações que diminuam tais vulnerabilidades. Esse é um grande desafio e
depende de forte vontade política dos governantes e entendimento dos operadores do
direito, em especial dos membros do Poder Judiciário.
Assim, os efeitos sociais da Lei Maria da Penha só serão alcançados com políticas
públicas que superem ou neutralizem o impacto das discriminações sócio-econômicas e,
também, das discriminações raciais22.
Uma correta interpretação do espírito da Lei através da concretização de uma
política de fato integral e articulada que possibilite às mulheres romper com a cultura de
desvalorização do feminino é um passo importante na superação dessas discriminações.
Os exemplos das experiências de atuação dos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher de Mato Grosso, Rio de Janeiro e Pernambuco revelam como a
atuação dos magistrados pode propiciar a mudança de mentalidades e comportamentos.
Essa atuação, no que diz respeito à produção de efeitos sociais, em muito
deve observar o disposto nos artigos do Título III da Lei Maria da Penha sobre a
Assistência À Mulher Em Situação De Violência Doméstica e Familiar. Assim, estão
definidas, no artigo 8, as linhas gerais de uma política pública voltada para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher que deverá articular ações governamentais
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-
governamentais, elencando diretrizes para tanto dentre as quais: a integração operacional
do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública com as áreas da segurança
pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação; a implementação de
atendimento policial especializado, em particular nas Delegacias de Atendimento às
Mulheres; a celebração de convênios, protocolos, ajustes, termos ou outros instrumentos
de promoção de parceria entre órgãos governamentais tendo por objetivo a
implementação de programas de erradicação da violência doméstica e familiar contra as
mulheres; a capacitação permanente dos integrantes do Poder Judiciário, do Ministério
Público, da Defensoria Pública, da Polícia Civil e Militar, Guarda Municipal, Corpo de
Bombeiros, em questões de gênero e de raça ou etnia; a promoção de programas
educacionais que disseminem valores éticos do irrestrito respeito à dignidade da pessoa
humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia.
22
A análise de dados estatísticos oficiais aponta que as desigualdades econômicas e sociais no Brasil se
aprofundam mais ainda quando se consideram fatores que interferem sobre o poder de barganha dos
indivíduos. Dentre esses fatores estão determinadas características tais como gênero e raça, condições
histórica e intrinsecamente articuladas no estabelecimento de hierarquias e de padrões sociais de exclusão.
Ver a esse respeito, PAIXÃO, Marcelo – Nas encruzilhadas da democracia: um olhar sobre as desigualdades
raciais no Brasil, in GONÇALVES, Eliane (org.) Desigualdades de Gênero no Brasil, Grupo Transas do Corpo,
Goiânia, 2004, pág. 72/73.
No artigo 9 desse Titulo III está definida a assistência à mulher em
situação de violência que deverá ser prestada de forma articulada e conforme os
princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema
Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, dentre outras normas e
políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso.
Com esse entendimento, por exemplo, o juiz deverá assegurar à mulher
vítima de violência doméstica e familiar não apenas as medidas protetivas de urgência
previstas na Lei, mas, também, um conjunto de outras medidas tais como: acesso
prioritário à transferência do local de trabalho quando servidora pública, integrante da
administração direta ou indireta e estabilidade, por prazo de 6 (seis) meses, por motivo de
afastamento do emprego, visando preservar sua integridade física e psicológica. Além
disso, a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar compreenderá
a inserção em programas sociais além do acesso aos benefícios decorrentes do
desenvolvimento científico e tecnológico, como aqueles prestados pelos serviços saúde
tais como a contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente
Transmissíveis – DSTs e Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - AIDS e outros
procedimentos médicos cabíveis e necessários para os casos de violência sexual.
Trata-se, portanto, de uma Lei que privilegia a proteção da vítima em
sentido amplo, considerando suas múltiplas vulnerabilidades sociais, e exorta os
profissionais do direito, especialmente os magistrados a atuarem como agentes dinâmicos
na redução dos efeitos perversos da violência doméstica e familiar.
A aplicação da Lei 11.340/2006 com tal perspectiva poderá alterar
substancialmente o quadro da violência contra as mulheres, atuar como propulsor da
eliminação das discriminações que ainda incidem sobre a população feminina no Brasil e
contribuir, de forma decisiva, para o fim da banalização, da indiferença e da impunidade
social que, condições que, historicamente, têm incentivado a prática dessa violência.