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A TRADIÇÃO DA ANALOGIA NA

POESIA DE MURILO MENDES E


JORGE DE LIMA 1
[THE TRADITION OF ANALOGY IN
THE POETRY OF MURILO MENDES
AND JORGE DE LIMA]

SERGIO ASSUNÇÃO
Pós doutorando da Universidade Federal Fluminense – UFF (Niterói – RJ), professor da
Universidade Estácio de Sá - UNESA (Rio de Janeiro – RJ), e do Centro Universitário
Serra dos Órgãos – UNIFESO (Teresópolis – RJ), Rio de Janeiro, Brasil.
[scassuncao@uol.com.br]

1
Comunicação apresentada na XIII Semana de Letras – Delet – ICHS – UFOP – Culturas da
Escrita, Culturas da Oralidade – realizada no período de 24 a 27 de novembro de 2014.

Caletroscópio - ISSN 2318-4574 - Volume 2 / n. 3 / jul./dez. 2014


RESUMO
Este artigo discute a relevância da poesia de Murilo Mendes e Jorge de Lima sob
a perspectiva da tradição da analogia, além da intervenção surrealista na constru-
ção de suas poéticas, dentro do contexto da moderna poesia brasileira do século
XX.

PALAVRAS-CHAVE
Poesia; Tradição da analogia; Surrealismo; Jorge de Lima; Murilo Mendes

ABSTRACT
This article aims at discussing the relevance of the poetry of Murilo Mendes and Jorge
de Lima, from the tradition of analogy, beyond the surrealistic interference on the
building of his poetics, within the context of modern Brazilian poetry in the twentieth
century.

KEYWORDS
Poetry; Analogy tradiction; Surrealism; Jorge de Lima; Murilo Mendes

62
Introdução

Desde a Antiguidade, há uma linhagem que se constituiu no Ociden-


te pelo cultivo da experiência poética em correspondência com o sagrado,
sob a crença de que a poesia é, em sua origem, uma forma de linguagem
que visa à comunicação do homem com Deus, ou, nas palavras do poeta
William Blake (2007, P.39), “as religiões de todas as Nações derivam dos dife-
rentes modos de cada Nação receber o Gênio Poético, que é chamado em toda a
parte de o Espírito da Profecia”, tal como se a poesia fosse a religião original
da humanidade.
Em seu livro Os Filhos do Barro, o poeta mexicano Octavio Paz
(2013) rastreou essa linhagem desde a origem até sua consolidação como
uma tradição, a qual denominou, a partir da eclosão da estética romântica,
como “tradição da analogia”. Segundo ele, o Romantismo rompeu histo-
ricamente com o racionalismo e a representação clássica do Iluminismo
ao afirmar a poesia como um ato de criação, de autoconhecimento, de
profissão de fé e de intervenção na realidade, uma vez que a concepção
da poesia romântica está atrelada a uma postura, a uma ética existencial e
social e a um ato crítico e, muitas vezes, político, ao eliminar as fronteiras
entre a arte e a vida.
Segundo Octavio Paz, o princípio da analogia na poesia romântica
se constitui como elemento de consonância harmoniosa entre o homem
e o cosmos, de modo que a poesia se torna uma prosódia do Universo.
Assim sendo, o Romantismo inaugura uma nova consciência sobre o fazer
poético, renovada por uma nova sensibilidade.

A visão romântica do universo e do homem, a analogia, se apóia numa pro-


sódia. Uma visão mais sentida que pensada e mais ouvida que sentida. A ana-
logia concebe o mundo como ritmo: tudo se corresponde porque tudo ritma
e rima. A analogia não é só uma sintaxe cósmica: também é uma prosódia. Se
o universo é um texto ou trama de signos, a rotação desses signos é governada
pelo ritmo. O mundo é um poema; o poema, por sua vez é um mundo de
ritmos e símbolos. Correspondência e analogia não passam de nomes do ritmo
universal. (PAZ, 2013, p. 71).

Através dessa prosódia, a poesia desloca o centro de gravidade da


razão para os afetos, para os sonhos e para as sensações. Desse modo,
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a realidade e o conhecimento deixam de ser organizados e regulados
pela razão, conforme os princípios iluministas, e passam a ser filtrados pela
percepção sensorial e espiritualizada, introduzindo uma nova postura, uma
nova perspectiva e um novo saber universal.
Paz (2013) destaca ainda que a tradição da analogia foi confrontada
pela ironia e que esse confronto evidenciou de forma definitiva o contexto
da poesia moderna sob o signo da contradição e de uma consciência crítica
que se volta contra o racionalismo e o progressismo industrial da era mo-
derna, culminando, mais tarde, com a vanguarda surrealista no século XX.
Ao considerarmos que a poesia moderna no Ocidente resulta dessa
tensão entre o princípio da analogia e a ironia, importa-nos discutir de que
maneira, talvez, esse acirramento se fez presente em nossa poesia brasileira,
tomando por objeto as poéticas de Jorge de Lima e Murilo Mendes dentro
do contexto da poesia modernista e da vanguarda surrealista.

1 Um paradoxo arbitrário na moderna poesia brasileira

São os que gritam quando tudo se cala,


São os que vibram de si estranhos coros
Para a fala de Deus que é sua fala
Jorge de Lima (Soneto)

Seja qual for a abordagem sobre a moderna poesia brasileira do iní-


cio do século XX, ela deve partir, essencialmente, do caráter múltiplo e
polivalente de nossas produções. Desde sua primeira fase, em 1922, mar-
cada pela revolução da linguagem, pelo primitivismo associado às técnicas
vanguardistas e pela afirmação da identidade cultural nacional, a poesia
brasileira passou por transformações significativas.
A partir de 1930, nossa produção assumiu uma tonalidade crítica e
social, em meio à diversidade de estilos e produções que se sucederam, até
chegar à fase derradeira do período modernista, em 1945, marcada pela
produção experimental e pelo retorno à tradição. Nesses termos, podemos
afirmar que nossa poesia se caracterizou pela tensão permanente entre o
antigo e o novo e entre “o local e o universal”, como salienta Antônio
Candido (2011).
64
Embora possuíssemos uma diversidade de promissoras vozes poéticas
que comprovam a polivalência de nossa poesia modernista, ao avaliar a
produção intelectual literária brasileira após esse período que compreende
o processo de industrialização do país, a Revolução de 30 e as suas conse-
quências ideológicas e sociais, boa parte da nossa crítica destacou a evidên-
cia de certa polarização ideológica como cenário fundante de nossa poesia
modernista.
Antonio Candido (2011) foi quem primeiro chamou a atenção para
essa suposta divisão estética e ideológica, sendo, depois, bastante acentuada
por outros expoentes da crítica, como veremos mais adiante. Nas palavras
de Candido, tal polarização se desenhava do seguinte modo:

Como decorrência do movimento revolucionário e das suas causas, mas


também do que acontecia mais ou menos no mesmo sentido na Europa e nos
Estados Unidos, houve nos anos 30 uma espécie de convívio íntimo entre a
literatura e as ideologias políticas e religiosas. Isto, que antes era excepcional
no Brasil, se generalizou naquela altura a ponto de haver polarização dos in-
telectuais nos casos mais definidos e explícitos, a saber, os que optavam pelo
comunismo ou o fascismo. Mesmo quando não ocorria esta definição extre-
ma, e mesmo quando os intelectuais não tinham consciência clara dos matizes
ideológicos, houve penetração difusa das preocupações sociais e religiosas nos
textos, como viria a ocorrer de novo nos nossos dias em termos diversos e
maior intensidade.
Além do engajamento espiritual e social dos intelectuais católicos, houve
na literatura algo mais difuso e insinuante: a busca de uma tonalidade espiri-
tualista de tensão e mistério, que sugerisse, de um lado, o inefável, de outro, o
fervor; e que aparece em autores tão diversos quanto Octavio de Faria, Lúcio
Cardoso, Cornélio Pena, na ficção; ou Augusto Frederico Schmidt, Jorge de
Lima, Murilo Mendes, o primeiro Vinícius de Moraes, na poesia. Na crítica
e no ensaio isto se traduziu num gosto paralelo pela pesquisa da “essência”, o
“sentido”, a “vocação”, a “mensagem”, a “transcendência”, o “drama” — numa
espécie de visão amplificadora e ardente. (CANDIDO, 2011, p. 226).

Mais tarde, o crítico João Luiz Lafetá (1974), em seu livro 1930:
a crítica e o modernismo, exacerbou a visão dialética de Candido (2011),
ao afirmar que havíamos passado do “projeto estético” (1922) – quando
a produção literária era movida pela “revolução na linguagem” –, para o
projeto “ideológico” (1930), visto que a temática social se tornou predomi-
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nante em nossa literatura, tanto na prosa quanto na poesia.
Diferentemente de Lafetá (1974), a visão de Candido (2011) não
pode ser compreendida como uma tentativa de reduzir a produção poéti-
ca modernista a apenas duas correntes estético-ideológicas. Pois, segundo
aquele, o processo de desenvolvimento de nossa moderna consciência lite-
rária se iniciava justamente a partir da tensão entre o “projeto estético e o
ideológico”, apesar da diluição sofrida em função da poesia de cunho espi-
ritual, que, segundo ele, desviava o curso experimental de nossa produção
literária vanguardista.

A nossa hipótese é esta: na fase de conscientização política, de literatura par-


ticipante e de combate, o projeto ideológico colore o projeto estético impri-
mindo-lhe novos matizes que, se por um lado possibilitam realizações felizes
como as já citadas, por outro lado desviam o conjunto da produção literária
da linha de intensa experimentação que vinha seguindo e acabam por des-
truir-lhe o sentido mais íntimo de modernidade.Na poesia tal modificação
se dá principalmente por causa de uma reação de fundo “direitista”, que vem
do grupo espiritualista encabeçado por Tasso da Silveira, corre paralelamente
ao Modernismo com as revistas Terra de Sol e Festa, e vai encontrar sua rea-
lização maior nos poemas prolixos e retóricos de Schmidt. Esse poeta, tanto
como os seus seguidores de menos talento e menos técnica (e que prolifera-
ram no decênio de 30), parece-nos um bom exemplo de diluição: desejan-
do combater as “exterioridades” do Modernismo, o que fez na realidade foi
incorporar o que havia de mais propriamente exterior no movimento (verso
livre, inspiração solta, neo-romantismo), esquecendo-se do que este possuía
de mais contundente (coloquialismo, condensação, surpresa verbal, humor).
(LAFETÁ, 1974, p. 19-20).

Em seguida, no mesmo texto, Lafetá (1974) sobe mais o tom e afir-


ma que o Modernismo precisava eliminar certos “cacoetes” literários que
impediam a expressão de uma “obra equilibrada e bem realizada”, referin-
do-se à corrente espiritual na poesia e ao Neonaturalismo em nossa prosa
como elementos diluidores e desviantes de nossa evolução moderna.

A tensão que se estabelece entre o projeto estético da vanguarda (a ruptura da


linguagem através do desnudamento dos procedimentos, a criação de novos
códigos, a atitude de abertura e de auto-reflexão contidas no interior da pró-
pria obra) e o projeto ideológico (imposto pela luta política) vai ser o ponto

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em torno do qual se desenvolverá a nossa literatura por essa época. Desse
conflito é que nascerá uma opinião bastante comum nos anos 30: a suspeita
de que o Modernismo trazia consigo uma carga muito grande de cacoetes,
de “atitudes” literárias que era preciso alijar para se obter a obra equilibrada
e bem realizada. Na verdade esse questionamento tinha um ponto de razão;
mas, na medida em que foi exagerado (e nisso a consciência política, tanto de
direita quanto de esquerda, exerceu forte influência), afastou das obras então
produzidas grande parte da radicalidade da nova estética. No (bom) exemplo
que é a reação espiritualista em poesia, parece-nos que o peso da ideologia é
claramente o fator responsável pela diluição, pois insistindo em que a literatu-
ra devia tratar temas essenciais e elevados caminhou para a eloquência inflada
e superficial; no (bom) exemplo que é o romance neo-naturalista, foi também
a consciência da função social da literatura que, tomada de forma errada, con-
forme os parâmetros de um desguarnecido realismo, provocou o desvio e a
dissolução. (LAFETÁ, 1974, p. 21-2).

Mais tarde, Silviano Santiago (2002), em seu artigo A Permanência


do Discurso da Tradição no Modernismo Brasileiro, veio reafirmar essa inter-
pretação maniqueísta do período, ao dividir a poesia modernista em dois
polos, a analogia e a ironia, conforme sua interpretação da obra Os Filhos
do Barro, de Octavio Paz. Nesse texto, ao legitimar a poesia modernista sob
o paradigma da ironia, privilegiando Oswald de Andrade e sua linhagem,
Silviano atribuiu à analogia um caráter conservador, citando, inclusive,
como exemplo, o poeta Murilo Mendes.
Para Octavio Paz (2013), o projeto moderno funda outra ideia de
tradição, quando o moderno se caracteriza não pela mera novidade, mas
por sua heterogeneidade e contradição, ao reconfigurar as formas do pas-
sado pela diferença crítica, criando uma estranheza radical com o passado
e uma crise de temporalidade, sob a aceleração do tempo histórico e como
modo de ‘colonizar o futuro’, convergindo-os no agora.
Segundo Paz, na supracitada obra Os Filhos do Barro,

Pode-se concluir que a tradição moderna e as ideias e imagens contraditórias


que essa expressão suscita, não passam de consequências de um fenômeno
ainda mais perturbador: a época moderna é a época da aceleração do tem-
po histórico. Não digo, é claro, que hoje os anos e os dias transcorram mais
depressa, e sim que transcorram mais coisas neles. Transcorrem mais coisas
e todas elas transcorrem quase ao mesmo tempo, não uma atrás da outra, e

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sim simultaneamente. Aceleração é fusão: todos os tempos e todos os espaços
confluem num aqui e agora. (PAZ, 2013, p. 19).

Seguindo a clave de Paz, Santiago (2002) defendeu, em seu ensaio,


que a moderna poesia brasileira deveria ser analisada sob quatro noções
fundamentais e controversas, que são as noções de tempo, história, ética
e poética, vistas sob o confronto entre a tradição da analogia e a ironia.
Além desse ponto, ele enfatiza que o poeta moderno seria marcado por
uma relação sempre contraditória com a história, já que deveria manter
uma relação de adesão com o solo histórico e com a revolução, para depois
romper com esse mesmo elemento revolucionário, já incorporado pela tra-
dição.
Ainda no mesmo texto, ele afirma que, embora o projeto modernista
pretendesse romper com o passadismo, sua realização se deu a partir do
diálogo permanente com a tradição, no que diz respeito a dois pontos: “a
noção de tempo e a questão da utopia, em Oswald de Andrade e Murilo
Mendes”. Enquanto em Oswald essa utopia estaria associada ao matriar-
cado de Pindorama, que significa a libertação do sujeito, em oposição ao
poder patriarcal das instituições sociais dominantes, em Murilo estaria vol-
tada para o Apocalipse, sob o plano libertador da revelação cristã na eter-
nidade da Nova Jerusalém.
Como evidência de seu ponto de vista controverso, destacamos o
comentário de Silviano sobre a noção de tempo, quando ele alega que:

O poeta faz poemas com a presença forte do discurso da história políti-


ca e social, por assim dizer reduplicando-o em versos. Murilo, ao estabele-
cer uma dicotomia entre tempo e eternidade, complica o esquema tempo-
ral da história moderna. O tempo histórico caminha em linha reta, mas o
tempo cristão, redenção do tempo histórico, converte a linha reta num
círculo, que reduz o paradoxo do fim no princípio e do princípio no fim.
(SANTIAGO, 2002, p. 128).

Mais adiante no mesmo texto, que se divide entre a comunicação de


Silviano e o subsequente debate, ele afirma que “o que existe num momen-
to em que a gente faz uma reflexão mais ampla sobre a história da literatura
é que, se você faz um recorte histórico preciso, o que existe é uma coexis-
tência de muitas coisas” (SANTIAGO, 2002, p. 143), o que nos parece
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um ponto de vista muito mais coerente com a lógica moderna, marcada
pela simultaneidade e pela confluência, do que a visão maniqueísta defen-
dida anteriormente por ele.
O problema é que, ao ler a moderna poesia brasileira sob as lentes
de Octavio Paz (2013), Silviano desarticula o acirramento e a tensão
aventados pelo poeta mexicano, ao considerar que a tradição da analogia
se volta “contra os princípios revolucionários motores da modernidade”
(SANTIAGO, 2002, p. 120), tornando-se, segundo ele, reacionária e
conservadora.
Lembremos que, embora Paz (2013) reconheça o confronto entre
analogia e ironia, ele jamais estabelece entre elas uma separação, reafir-
mando que a poesia moderna deve ser vista pelo signo de uma tensão per-
manente entre analogia e ironia, ou seja, como um confronto, e não como
uma oposição.
Para Santiago (2002), o caráter moderno da poesia brasileira conso-
lidou-se pela expressão da ironia, que teria seu marco zero com a poesia de
Oswald de Andrade e, consequentemente, corroborada por seus epígonos
– como se uma linha evolutiva de nossa moderna consciência literária tão
defendida por Lafetá (1974) pudesse ser delineada ao longo do século XX
–, ao citar os concretos e a geração “mimeógrafo”, que romperam definiti-
vamente com a poesia de “analogia” com o Sagrado.

Enquanto os concretos punham todo o peso numa certa máquina do poe-


ma em Oswald de Andrade, num poema que deixava de ser mais e mais um
produto fabricado pelo homem para ser quase que um produto cibernético,
os poetas da geração mimeógrafo, creio, em lugar de ver Oswald de Andrade
como aquele autor que faz versos quase que com a perfeição de uma máquina,
o acabamento de carrosserie, como o próprio Oswald de Andrade fala, esta-
riam interessados na maneira extremamente original como ele consegue tratar
a linguagem coloquial. Os marginais retomam de Oswald de Andrade o colo-
quialismo, a grande liberdade na construção do verso, do poema, e retomam
dele, também, a idéia de que você não precisa necessariamente, para fazer um
grande poema, fazer um poema longo. Isto significa que você pode fazer uma
coisa rápida, incisiva, bem humorada, cotidiana, que não tenha aquele ranço
de ‘poesia’. (SANTIAGO, 2002, p. 139-140).

Em síntese, se de um lado ele atribui ao poeta cristão Murilo Mendes


69
tal caráter neoconservador e reacionário, devido à religiosidade declarada
de Murilo, é a Oswald e à sua linhagem que ele delegou o caráter moderno
e revolucionário, agregando sua crítica sob a mesma perspectiva arbitrária
e maniqueísta dos outros já citados.
Segundo Silviano Santiago:

À medida que Murilo vai assumindo o discurso religioso, a sua poesia vai-se
desvinculando mais e mais do contato com o tempo histórico, com o presente
imediato do poeta. [...] talvez seja irremediável o fato de que, dentro da es-
tética da ruptura característica da modernidade e do modernismo, nas vezes
em que fomos buscar o traço forte da tradição, ou até mesmo o traço pouco
vincado, nos aproximamos mais e mais de uma poesia, de uma produção poé-
tica que se desliga do social enquanto dimensão do histórico vivenciado pelo
poeta (Murilo Mendes). Isso às vezes pode beirar – e muitas vezes beira – o
neoconservadorismo.(SANTIAGO, 2002, p. 130).

Entretanto, a partir do momento em que essa perspectiva maniqueís-


ta foi sendo aceita e oficializada por parte da crítica – desde a polarização
apontada por Candido (2011), que foi extremada por Lafetá (1974) e en-
dossada por Silviano (2002) –, criou-se um paradigma formal da nossa
poesia moderna que se tornou predominante em relação às novas produ-
ções poéticas ao longo do século XX e que podemos caracterizar por três
aspectos determinantes:

1. a supervalorização da ironia pelo ‘poema piada’, pela paródiades-


sacralizadora;
2. a fragmentação, a objetividade e a compactação da linguagem
poética pelo ‘poema minuto’ e a prosa telegráfica voltadas para
uma concretude expressional;
3. a imposição da poesia de engajamento social.

Diante desse molde, questionamos, em primeiro lugar, a pertinência


da abordagem paradoxal e inflexível da poesia modernista, a qual dividiu
as produções que estariam ideologicamente à direita e as que estariam à es-
querda, como se nossa literatura estivesse submetida à separação ideológica
70
e fosse dirigida por ela entre integralistas e progressistas daquele período
histórico.
Em segundo lugar, questionamos a perspectiva extremada de
Lafetá (1974), ao diminuir as expressões espirituais e “neo naturalistas”
como “cacoetes” literários que obstruiriam a evolução da moderna literatura
brasileira – como se nossas produções literárias daquele período pudessem
ser emolduradas e compreendidas como uma unidade homogênea, e não
como um feixe de contradições que apontam para aquela que talvez seja a
expressão mais legítima de nossa identidade cultural: a diversidade.
Em terceiro, questionamos ainda a consolidação desse paradigma
que privilegia apenas a poesia de estrutura compactada e irônica, engajada
e dessacralizada como sendo a expressão legítima de nossa moderna poesia
brasileira. Pois, tal interpretação, além de impertinente, desqualifica auto-
maticamente toda e qualquer produção que seja diferente desse modelo
arbitrário, sobretudo aquelas de tonalidade espiritual, como se elas fossem
conservadoras, anacrônicas e desprovidas de senso crítico ou ironia, o que
não se comprovou.
Definitivamente, interrogar esse ponto de vista maniqueísta defendi-
do por parte da crítica, significa rechaçar a arbitrariedade dessa abordagem
que privilegiou a poesia irônica e fragmentária e relegou à analogia um
papel menor e sempre à margem de nossa poesia moderna, contrariando
o caráter múltiplo que tanto marcou nossa produção modernista, quanto
projetou, adiante, nossa poesia ao longo do século XX. Deste modo, essa
leitura impositiva e superficial revela-nosa necessidade de uma observação
mais atilada e consistente sobre a intervenção da analogia na moderna poe-
sia brasileira.
O professor José Niraldo de Farias, ao tratar da poesia de Jorge de
Lima, por exemplo, acredita que a poesia de caráter religioso foi margina-
lizada pela crítica.

Acreditamos na pertinência de tal afirmação, dado que a vocação de uma


grande parte da crítica contemporânea brasileira parece inclinar-se para textos
que possibilitem uma leitura mais ágil e apressada. Uma obra como a de Jorge
de Lima traz exigências que muitos críticos e leitores não estão dispostos a
71
cumprir. Uma grande parte das leituras apreciativas da obra do poeta sim-
plesmente ignora a questão religiosa, considerando-a como tecido necrosado,
elemento dispensável à compreensão da mesma. Esse preconceito parece estar
vinculado ao fato de seu catolicismo ser sempre associado à noção de conser-
vadorismo, de tradição. Tal ligação é sempre feita por um tipo de crítica que
prefere estereotipar, ao invés de aprofundar a análise que necessita ‘moderno-
samente’ manter-se em dia com os parâmetros teóricos mais momentosos.
(FARIAS, 2003, p. 128).

Niraldo (2003) acusa o preconceito de parte da crítica literária e aca-


dêmica que tentou estereotipar a linhagem espiritual da moderna poesia
brasileira sob o rótulo de “poesia católica” – de que seriam exemplos as
poesias de Murilo Mendes e Jorge de Lima –, limitando-se a reduzi-las,
superficialmente, a um lugar comum, como uma poesia conservadora, ou
transformando o fato, sobretudo, cultural da religiosidade em uma metá-
fora do imaginário brasileiro, o que ocasionou uma recepção periférica de
suas obras.
Pelo viés histórico, verificamos que a analogia não pode simplesmen-
te ser compreendida como uma ação isolada, reacionária e conservadora,
inserida dentro de um contexto industrial progressista que serviu de su-
porte para a eclosão do Modernismo. Pois negar o enraizamento da heran-
ça religiosa de predominância católica em nossa esfera cultural é ignorar
a influência da tradição contrarreformista portuguesa, que se constituiu
desde o primeiro momento de nossa colonização e se estendeu ao longo
de alguns séculos, além, é claro, de outras formas religiosas oriundas do
xamanismo indígena e africano.
Outro dado a ser considerado é a indiscutível tonalidade espiritual e
metafísica deixada pelas poesias simbolistas de Cruz e Souza e Alphonsus
de Guimarães – e mais tarde renegada pelos modernistas –, como fica evi-
dente entre os primeiros livros de poetas como Vinicius de Moraes, Cecília
Meireles e Manuel Bandeira, por exemplo.
Além desses dados, é importante ressaltar o surgimento da Ação
Católica Nacional em 1935, que foi um movimento de reforma e de
renovação do catolicismo brasileiro, composto por Alceu Amoroso Lima,
Octavio de Faria, Augusto Frederico Schmidt entre outros, que tinha como
finalidade deter a expansão missionária protestante em território brasileiro.

72
2 Da suprarrealidade do sagrado

Os outros que lutem para possuir o mundo


Quanto a mim, quero ver-te face a face.
Aguardo tua última vinda,
Minha forma definitiva e perfeita,
Minha justificação na tua unidade
Murilo Mendes (Antecipação)

Alinhados ao momento de renovação do catolicismo nacional na pri-


meira metade do século XX, os poetas Jorge de Lima e Murilo Mendes
lançam juntos o emblemático livro Tempo e Eternidade, em 19352, com o
propósito de “restaurar a poesia em Cristo”. Dentro da proposta de “mo-
dernização” de nossa poesia brasileira, esse livro assinala uma transforma-
ção radical na poesia de ambos, elevando as respectivas produções para
além da visão dialética que separa, de um lado, a poesia ideológica e enga-
jada e, de outro, a poesia espiritual e iluminada, embora a espiritualização
já se manifestasse nas respectivas produções antes mesmo dessa obra.
No entanto, a partir desse momento, podemos perceber que, embora
a religiosidade tenha sido determinante para a concepção plástica de Jorge
e Murilo, isso não significa que suas poesias se voltassem apenas para uma
expressão ascética. Ao contrário, ambas as poéticas, guardadas as devidas
diferenças que veremos adiante, valem-se da poesia de expressão espiritual,
em permanente tensão com a desordem material da vida cotidiana e com
a sensualidade, como no poema O Visionário, do primeiro livro de As
Metamorfoses (1938), de Murilo Mendes.

Eu vi os anjos nas cidades claras,


Nas brancas praças do país do sol.
Eu vi os anjos no meio dia intenso,
Na nuvem indecisa e na onda sensual.
(MENDES, 1994, p. 326)

Sobre a poética de Murilo, Davi Arrigucci (2000) aponta que é um


equívoco reduzi-la ao aspecto religioso ou tentar compreendê-la ignorando
2
Daqui em diante todas as obras de ambos os poetas que forem citadas no corpo do texto serão
indicadas entre parênteses, respeitando o ano de seus respectivos lançamentos, embora os frag-
mentos dos poemas citados sejam extraídos das “obras completas” de cada um deles, citadas ao
final do texto. A saber: LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997;
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa, volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
73
suas múltiplas dimensões e metamorfoses. Para ele, a busca da unidade
essencial da poesia de Murilo só pode ser feita através da analogia que,
na medida harmoniosa de seu ritmo universal, torna possível a fusão dos
contrários e dos elementos díspares que assinalam o mundo focalizado pela
lente do caos e da glória, seja pela dimensão da dicção, que funde a colo-
quialidade à erudição, do tom filosófico ao jocoso, seja pela dimensão da
materialidade da vida e sua elevação espiritual.
Segundo ele, foi somente pelo viés da analogia que Murilo pôde dar
unidade formal ao desequilíbrio paradoxal da modernidade, marcada pela
experiência vivencial do sujeito em permanente desconcerto com o mun-
do. Sob a perspectiva harmoniosa da analogia, o terrível conjuga-se com
o fantástico, o mundano com o celestial, e a instantaneidade do tempo
histórico desemboca na plenitude da eternidade.

A analogia parece uma solução instantânea para o problema formal, pois


permite descobrir, num átimo, uma imprevista harmonia em meio ao des-
concerto geral das coisas. A idéia de uma harmonia feita de tensões é cara à
sensibilidade moderna, e Murilo explorou-a ao máximo. Desse modo, por via
analógica, a sua sensibilidade, identificada com essa percepção da harmonia
tensa dos contrários, retoma uma das mais velhas idéias da tradição ocidental,
desde os gregos: a da harmonia do mundo, correlata do sentimento de frag-
mentação e dispersão do sentido que abandona o universo desencantado e em
si mesmo contraditório da modernidade. [...] A modernidade torna-se cons-
titutiva da perplexidade do poeta e também de sua busca de solução formal.
(ARRIGUCCI, 2000, p. 98).

Entre as múltiplas dimensões que compõem a complexa unidade da


poética de Murilo, uma das marcas mais constantes em sua poesia é a
expressão da inquietude provocada pela sensualidade em contraposição à
religiosidade. Novamente a dissonância e o desconcerto do homem mo-
derno em relação ao mundo são trazidos à tona, expressos pela tensão entre
a volúpia ardorosa dos impulsos carnais, vistos como tentações eróticas que
desafiam o sujeito e a sua busca de elevação espiritual, ao serem filtrados
pela religiosidade e pela renúncia.
Na poesia de Murilo, é recorrente esse estado agônico das sensações
despertadas pelo desejo, mas que, ao mesmo tempo, são elevadas à suavi-
dade transcendente de uma consciência que reconhece ser essa a condição
74
humana, ou seja, a de buscar o equilíbrio sob a tensão entre o corpo e a
alma.
Segundo observou Davi Arrigucci (2000), a analogia serviu tanto
como uma perspectiva espiritual quanto como solução estética na poe-
sia de Murilo Mendes, em sua artesania de registrar o caos e as contra-
dições da experiência humana na modernidade industrial do século XX.
Sua linguagem poética se amolda na soldagem das imagens desconexas,
suscitando um ritmo próprio, marcado pela intermitência do contratempo
entre o efêmero e o eterno, proporcionando, assim, a harmoniosa unidade
dos contrários. Como podemos perceber neste trecho de A Vocação do Poe-
ta, de Tempo e Eternidade (1935):

[...]
Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.
(MENDES, 1994, p. 248-9)

Diante da evidência de uma existência em crise, da desumanização


provocada pelo progresso industrial e pela beligerância das guerras, Murilo
Mendes coloca o insólito e o absurdo no nível cotidiano da vida moderna,
revelando o limite, a impotência e a miséria humana e contrapondo a eles
o sonho, a esperança e o anseio do homem pela promessa da vida eterna,
sob a égide da natureza infinita de Deus, como no poema A Testemunha,
do mesmo Tempo e Eternidade (1935):

[...]
Crianças nascem nos tanks ao som de um clarim.
As cidades transbordam de famintos,
Famintos de comida ou da palavra de consolo.

Poeta, cobre-te de cinzas, volta à inocência,


75
Impede que se derrame o cálice da ira de Deus,
Tu que és a testemunha sustenta o candelabro,
Monta o cavalo branco e reconstrói o altar
Onde se transforma pão e vinho,
Indica à turba as profecias que se hão de cumprir,
Revela aos presos olhando através das grades
Que o mundo será mudado pelo fogo do Espírito Santo,
Descerra os véus da criação, mostra a face do Cristo.
(MENDES, 1994, p. 262)

Assim como em Murilo Mendes, na poesia de Jorge de Lima, a ana-


logia se revela desde antes da conversão do poeta, ou seja, antes de Tempo
e Eternidade (1935). Mas é a partir desse livro que sua poética se espiri-
tualiza, articulada em torno da teologia bíblica e construída a partir de
uma linguagem barroca e alucinatória, que passa por outros livros, como
A Túnica Inconsútil (1938), Anunciação e Encontro de Mira-Celi (1942),
O Livro dos Sonetos (1949), até atingir o seu ápice em A Invenção de Orfeu
(1952).
Ao abordar a poética de Jorge de Lima, Murilo Mendes destaca, sobretudo,
a importância determinante da incorporação da técnica de fotomontagem da-
daísta e surrealista para a construção da linguagem poética de Lima. Ao ampliar
a condição humana corpórea e existencial à esfera histórica e social, universal
e metafísica, Lima utiliza esse recurso como solução formal para lidar com a
simultaneidade de planos convergentes em sua criação. Assim, sua linguagem
assume um caráter delirante e profético, produzindo uma realidade onírica, alu-
cinatória que se funde à sobrenaturalidade do sagrado, constituindo a unidade
em Cristo.

Sinto-me salivado pelo Verbo,


rodeado de presenças e mensagens,
de santuários falhados e de quedas,
de obstáculos, de limbos e de muros.

Furo as noites e vejo-te, Solstício,


ou recolho-me ao âmago das coisas,
renovo um sacrifício expiatório,
lavo as palavras como lavo as mãos.

Esta é a zona sem mar e sem distância,


76
Solidão, sumidouro, barro-vivo,
barro em que reconstruo sangues e vozes.

Não quero interromper-me nem findar-me.


Desejo respirar-me no Teu sopro,
aparecer-me em Ti, continuado.
(LIMA, 1997, p. 572)

Está claro que, tanto para Murilo Mendes quanto para Jorge de
Lima, a poesia passa, essencialmente, pela expressão de uma tensão.
Seja ela entre o homem moderno e a opressão social, entre o homem equi-
librando-se entre a queda pelo pecado e a fraqueza da carne e a redenção do
espírito pela promessa divina, ou seja, a tensão vista sob o prisma do tem-
po, ou seja, entre o tempo finito e secular e o tempo que se deseja recon-
ciliar pela transcendência da eternidade, através da relação com o sagrado.
A diferença entre as duas linguagens poéticas é que enquanto a poesia de
Murilo mira, predominantemente, a harmoniosa fusão dos contrários, a
expressão da poesia de Lima é marcada pelo acirramento e pela dramatici-
dade da experiência humana.
Além deste efeito proporcionado pelo recurso das fotomontagens em
sua linguagem poética, o poeta afixa o caráter transitório da existência, ao
recortar o insólito e soldá-lo na esfera do cotidiano, elevando-o a uma nova
dimensão, mítica e maravilhosa, que converge com o sagrado e o sobrena-
tural, ao retirar o tempo da moldura cronológica e secular e abolir as fron-
teiras da espacialidade objetiva, estendendo-as ao infinito e à eternidade.

Para dominar a desordem que se opõe à construção do insólito monumento,


arma-se o poeta de uma tesoura de condão, e fazendo cortes implacáveis no
tempo, obtém uma dimensão nova. [...] E o tempo se faz reconstruído não
apenas pela fotomontagem da infância, como também pela contínua referên-
cia da Queda do homem, cujo processo se desenrola no transcurso da história.
O espírito luciferino acena-lhe com o domínio das coisas nascidas da carne
e do sangue, mas o espírito que santifica as raízes do mundo propõe-lhe a
escolha, a opção, a renúncia dos elementos efêmeros. Entretanto, não adianta
renunciar o efêmero sem saber os valores que ele traz consigo. A solução do
problema, segundo me parece, é esta: fixar o efêmero, suas formas mutáveis,
suas categorias estéticas e sociais, e transcendê-lo. (LIMA, 2013, p. 516-7).

77
Mesmo que a expressão da poesia de Jorge de Lima passe formalmen-
te pela tensão irreconciliável do homem e da sua existência, só é possível
compreender sua analogia ao situá-la a partir do eixo cristocêntrico do
Evangelho. Afinal, é dessa forma que o poeta expressa a condição humana
daquele que reconhece o sagrado. Ou seja, ele fala do homem que é capaz
de reconhecer sua precariedade e suas limitações, ao mesmo tempo em
que está seguro do seu poder de transformá-los, movido pelo poder da fé
e fortalecido pela abnegação, ao renunciar os pecados do mundo e superar
as tribulações do corpo, como modo de elevação do espírito.
No mundo civilizado, quanto mais o homem é esmagado pelas estru-
turas sociais, reduzido ao individualismo e à competitividade, mais ele pas-
sa a ser preenchido pelo vazio, que é causado pela ansiedade, pela angústia
e frustração. Esse vazio potencializa, cada vez mais, sua solidão estéril e
materialista. Segundo o poeta cristão, o indivíduo só alcançará a paz e a
liberdade pela graça divina.
Certamente, essa condição se acentua na modernidade industrial do
século XX, de modo que o homem civilizado é marcado pelo signo da
opressão, pela moratória ilimitada e pela desumanização, ao ser robotizado
e reduzido a um objeto, a uma estatística ou a uma função produtiva.
Em face desse processo maquínico, o poeta expõe sua consciência,
acirrada pela moral social que regula e oprime o indivíduo, mas que opta
pela libertação espiritual da teologia cristã. Logo, a poesia de Jorge de Lima
revela não apenas um mundo ilusório, mas também uma consciência em
crise, dimensionada em seus poemas por um profundo sentimento de fra-
ternidade universal e cultivo espiritual.
Segundo Murilo3, sobre a poesia de Lima:

O que se acha em jogo [...] é a própria condição do homem, sua subsistência


no presente e no futuro. A questão social transformou-se na questão mesma da
humanidade. [...] Há em primeiro lugar a divisão do homem dentro de si pró-
prio: a consciência desta divisão estende-se a todos. [...] Opera-se uma revisão
total das possibilidades do homem em face da natureza e do desconhecido.
O poder político – penso particularmente no poder totalitário – é um dos
personagens principais do drama: agravamento do terror, tentativa de exone-

3
Publicado no suplemento “Letras e Artes”, de A Manhã, Rio de Janeiro, 24 de junho de 1952.
Transcrito no apêndice da primeira edição de Invenção de Orfeu, e reproduzido na novíssima
edição de 2013. In.: LIMA, Jorge de. A invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
78
ração do humanismo, eliminação das nossas tendências místicas e contem-
plativas, apelo à única força telúrica, e supressão da nossa intimidade fecunda
para se criar, através de monstruosos métodos científicos, uma solidão estéril
e desumana – o que determina o aparecimento de uma nova espécie de ho-
mem, o homem mecânico, o homem robot, o homem sozinho em face de um
Estado e de um universo hostis, fautores de um permanente estado de sítio.
(LIMA, 2013, p. 527-8).

Entretanto, na tentativa de reconhecer os procedimentos pelos quais


se transubstanciaram a analogia e a moderna poesia brasileira do século XX
a partir da relação entre o cristianismo e a cultura na poesia de Jorge de
Lima e Murilo Mendes, torna-se imprescindível abordar a experimentação
poética criada por eles, cada qual à sua maneira, entre o surrealismo e o
sagrado.
Ao inserir as poéticas de Jorge de Lima e de Murilo Mendes no con-
texto da poesia modernista, a partir da relação com a vanguarda surrealista,
partimos da seguinte questão: a qual surrealismo estamos nos referindo?
Ao surrealismo da escrita automática e da exaltação do sonho, do
Primeiro Manifesto do Surrealismo4, de André Bréton? Ao surrealismo anár-
quico e iconoclasta, mas que se tornou dogmático e ideológico, quando
Bréton se aproximou do comunismo e contrariou o espírito libertário ini-
cial? Ou seria o surrealismo dissidente de Antonin Artaud, que se aproxima
da analogia com o sagrado, pela sua experiência com o xamanismo?
Sobre a poética de Jorge de Lima, José Niraldo de Farias afirma:

Enquanto o surrealismo francês, seguindo a crença heraclitiana de que o mun-


do não foi criado por nenhum deus, insiste no comportamento insultuosoem
relação a qualquer possibilidade de um ser divino superior, Jorge de Lima
acolhe o catolicismo, incorporando-o à sua poesia e transformando-o num
trampolim para a conquista da surrealidade. Aqui, o sobrenatural confunde-se
com o surreal. Toda a riqueza litúrgica e ritualística é posta a serviço da procu-
ra pela transcendência. (FARIAS, 2003, p. 123-4).

Consideramos que, em ambos os poetas, cada qual ao seu modo,


a experimentação plástica da palavra que nos conduz ao surreal vislum-
bra, ao mesmo tempo, aproximar-nos da transcendência sobrenatural do
sagrado pela voz profética, constituindo, assim, uma dimensão poética e
4
In.: TELES, Gilberto M. Vanguardas européias e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1978.
79
beatífica que nos revela a supra realidade metafísica do que chamamos de
“poética do sagrado”.
A observação de Niraldo pode ser corroborada pelas palavras de
Murilo Mendes:

Abracei o surrealismo à moda brasileira, tomando dele o que mais me inte-


ressava: além de muitos capítulos da cartilha inconformista, a criação de uma
atmosfera poética baseada na acoplagem de elementos díspares. Tratava-se de
explorar o subconsciente; de inventar um outro frisson nouveau, extraído à
modernidade; tudo deveria contribuir para uma visão fantástica do homem e
suas possibilidades extremas. (MENDES, 1994, p. 1238-9).

Nesses termos, podemos dizer que, tanto em Jorge de Lima quanto


em Murilo Mendes, a transcendência resulta de uma concepção poética
que se origina na pintura surrealista, ao abranger elementos dissonantes
que são justapostos no texto, pela apropriação dos recursos das colagens
ou fotomontagens. A fusão desses contrários potencializa uma concepção
inteiramente nova, que visa a acolher o espírito pela evasão metafísica,
através da realidade analógica do sagrado, que se eleva pela percepção sur-
preendente e visionária do infinito, dimensionando uma suprarrealidade.
Sob outro aspecto, essa dramaticidade revela, em ambos, o caráter
conflituoso do homem moderno, considerando que as respectivas poéti-
cas transitam do cotidiano social, elevado à perspectiva imaginária, mítica
e onírica, pela dimensão metafísica, espiritual e inefável da analogia em
correspondência com o sagrado, eterno e sobrenatural, de modo que só a
poesia proporciona tal experiência de unidade suprarreal.
Mais uma vez, enquanto em Murilo Mendes a linguagem atinge um
equilíbrio mais conciso na justaposição das imagens dissonantes, em Jorge
de Lima a linguagem se acirra sob um tom mais ondulante, febril, susci-
tando um estado delirante e permeado por um barroquismo que incorpora
os elementos fragmentários e heteróclitos, mesmo quando se encontra sob
a cadência do verso metrificado.
Em Jorge de Lima, o efeito das técnicas experimentais de fotomon-
tagem e o caráter pictórico da linguagem poética talvez possam ser atribuí-
dos ao fato de o poeta ter sido também pintor e profundo conhecedor das
artes modernas, lançando, inclusive, umlivro de fotomontagens, chamado
80
A Pintura em Pânico (1943). Tanto que, em entrevista a Homero Sena,
em 1945, ao ser questionado sobre as linguagens da arte a que se dedi-
ca, o próprio poeta alagoano declara sua predileção: “ – Prefiro a poesia.
Tudo o mais que tenho tentado, inclusive a pintura, está subordinado ao
sol da poesia, são caminhos para ela, às vezes simples exercícios para confe-
rir-lhe novas dimensões, outras profundezas.” (LIMA, 1997, p. 91).
Já em Murilo Mendes, a aproximação com o surrealismo ocorreu a
partir do contato com seu amigo Ismael Nery e com artistas como Giorgio
de Chirico, Max Ernst, René Magritte e o próprio André Breton, entre
outros. Por meio da amizade e do contato com Ismael Nery, Murilo tomou
conhecimento da teoria essencialista de Ismael, que, certamente, influen-
ciou a concepção poética do poeta mineiro, ao fundir a arte e o evangelho.
Em suas palavras, Murilo afirma que o “essencialismo” foi uma teoria filo-
sófica criada por Ismael Nery, baseada na abstração do tempo e do espaço,
na seleção e no cultivo dos elementos essenciais à existência, visando ao
absoluto, ao essencial e à unidade entre o homem e Deus, por meio do
evangelho e da arte.

Ismael tinha apenas 25 ou 26 anos de idade, e já os seus próximos sabiam


que havia construído um sistema filosófico muito original, apesar de o não
escrever. Era o essencialismo, baseado na abstração do tempo e do espaço, na
seleção e cultivo dos elementos essenciais à existência, na redução do tempo à
unidade, na evolução sobre si mesmo para a descoberta do próprio essencial,
na representação das noções permanentes que darão à arte a universalidade.
(MENDES, 1996, p. 65).

Talvez seja possível consideramos, portanto, a hipótese de que as


poéticas espirituais e surrealistas de Murilo Mendes e Jorge de Lima apro-
ximam-se do“essencialismo” de Nery, visto que suas poéticas cultivam a
unidade absoluta entre poesia e sagrado, repudiando a lógica objetiva e
materialista da modernidade industrial que se consolidou como cultura
dominante em nossas produções. Antes de se tornar um conceito, um dis-
curso ou instituição, o sagrado é uma experiência vivencial que, para o cris-
tão, deve ser experimentado na vida diária, de modo que o corpo se trans-
forme em um templo vivo, como um instrumento do Espírito Divino.
Além de uma experimentação da própria materialidade verbal, da

81
criação de uma linguagem e de uma tessitura estética, reconhecemos as
poesias de Jorge de Lima e de Murilo Mendes como uma experiência ética,
vivencial, que potencializa a consciência e a sensibilidade ao dilatar o tem-
po e o espaço, ao transcender o ato cotidiano sob a perspectiva do sonho,
do imaginário e do sagrado primordial.

Considerações Finais

Ainda que o processo de industrialização tenha provocado efeitos


irreversíveis na concepção do homem moderno do século XX, ao acelerar o
tempo e desdobrar os espaços, mantendo-os imanentes e interconectados,
é preciso superar a concepção que reduz a poesia moderna brasileira a um
paradigma, colocando-a a serviço da forma, apenas como ‘produto para
consumo’, segundo a visão centralizadora de Oswald de Andrade e seus
epígonos, haja vista, por exemplo, a herança da analogia que está presente
nas poesias de Roberto Piva e de Waly Salomão, por exemplo.
Portanto, tentamos aqui demonstrar o estrabismo crítico que sempre
privilegiou o objetivismo, o engajamento social e a expressão irônica, ele-
gendo esse molde como um paradigma da poesia moderna brasileira e rele-
gando à margem toda e qualquer poesia de tonalidade espiritual e metafí-
sica, rotulando-as, preconceituosamente, de reacionária e de conservadora.
Muito embora Murilo e Jorge assumissem claramente a conversão
religiosa – o que implica, sobretudo, uma postura ética em suas respectivas
poéticas –, em nenhum momento esse fato comprometeu o caráter mo-
derno, crítico e experimental de suas produções. Ao contrário, foi a fusão
do tom profético e apocalíptico com a plasticidade surrealista que deu às
respectivas poéticas a radicalidade expressional, abrangendo a crítica ao
esfacelamento, à degradação e à desumanidade da era industrial e de suas
guerras. Pois, ao mesmo tempo em que ambas as linguagens revelam a
dimensão mítica, onírica e metafísica, ao fundirem a sobrenaturalidade
do sagrado e a suprarrealidade humana no plano cotidiano, elas almejam
proporcionar uma relação de intimidade com o sagrado que habita na inte-
rioridade da nossa escuridão, enfim, como a “noite escura” de São João da
Cruz, recorrentemente citado por Murilo Mendes, até nos reencontrarmos
82
a sós com Deus. Como no poema Terceira Meditação, do livro O Infinito
Íntimo (1948-1953), de Murilo:

Suave é o silêncio noturno


Receber o infinito íntimo
Quando a alma do homem
Despida provisoriamente da contingência
- Ocultos na penumbra o jornal e o relógio -
Se debruça sobre si mesma,
Procede à prospecção do seu pecado
E adivinha seu abismo.

[...]

Nobre é no silêncio noturno


Quando o espírito pálido percebe
As tesouras da morte se movendo
Palpar o que Deus desdobra na penumbra
Ao homem que de joelhos aceita.
[...]

Suave é no silêncio noturno


Voar sem mecânica de asas,
Voar sem remover a vidraça do quarto,
Voar sem observação e pela fé.
Pois na fé que destruiremos nosso corpo,
Que romperemos a miragem de Babilônia
E queimaremos o trajo pestífero
Herdado um dia do primeiro pai.
Pela fé vivemos: substância e criação,
Oh visibilidade do invisível,
Pórtico e prelúdio de futuros mundos...
Investimentos assim a novidade
E a totalidade do Senhor.

Nobre é no silêncio noturno


Esquadrinhar os espelhos da fé.
Pela fé viveremos em temor e tremor,
Cobertos de andrajos e de angústias,
Tidos como mortos, ainda vivos.

83
Pela fé enfrentaremos o terror atômico
E ousaremos interpelar o próprio crucifixo.
Pela fé esvaziaremos nossa habitação terrestre,
Pela fé o infinito íntimo
Se tornará nossa ração cotidiana.
(MENDES, 1994, p. 773-4)

Pois, ao compreendermos que o lugar da poesia é um espaço essen-


cialmente utópico, consideramos que há um redimensionamento das no-
ções de história, de tempo, da ética e da poética em ambas as poéticas
retratadas aqui. Assim, visto sob a perspectiva histórica, há um evidente
confronto entre a aceleração do tempo secular na modernidade industrial
e a perspectiva cristã, que é fundada na promessa da eternidade, enquanto
que, sob a perspectiva cristã, este impasse deixa de ser um confronto quan-
do o tempo é libertado pelo eterno.
Portanto, a perspectiva cristã da eternidade implica na transcendên-
cia do presente pela crença na totalidade metafísica, infinita e espiritual da
existência. Pois, ao mesmo tempo em que a poesia é elevada a um saber
universal, ela é, antes, transubstanciada na ação diária dos hábitos cotidia-
nos e da vida comum, ou seja, na esfera social com o outro.
Evidentemente, é a partir deste vórtice que as poéticas de Jorge e
Murilo atingem sua expressão mais substancial, quando o sagrado é reti-
rado da moldura discursiva e institucionalizada, para ser vivenciado sob a
experiência estética e cultural, elevando o cotidiano a uma supra realidade
metafísica através da poesia.
Em outras palavras, reconhecemos que os procedimentos desenvol-
vidos por Jorge de Lima e Murilo Mendes através da incorporação das téc-
nicas de colagem e fotomontagem da pintura surrealista substancializam a
sobrenaturalidade do sagrado à suprarrealidade da existência, dando-lhes a
unidade essencial no plano analógico de suas poesias.

Porque o sangue de Cristo


jorrou sobre os meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem porque nasço e nascerei,
84
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas,
que eu decomponho e absorvo com os sentidos,
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.
Tenho os movimentos alargados.
Sou ubíquo: estou em Deus e na matéria;
sou velhíssimo e apenas nasci ontem,
estou molhado dos limos primitivos,
e ao mesmo tempo ressoo as trombetas finais,
compreendo todas as línguas, todos os gestos, todos os signos,
tenho glóbulos de sangue das raças mais opostas.
Posso enxugar com um simples aceno
o choro de todos os irmãos distantes.
Posso estender sobre todas as cabeças um céu unânime e estrelado.
Chamo todos os mendigos para comer comigo,
e ando sobre as águas como os profetas bíblicos.
Não há escuridão mais para mim.
Opero transfusões de luz nos seres opacos,
posso mutilar-me e reproduzir meus membros como as estrelas-do-mar,
porque creio na ressurreição da carne e creio em Cristo,
e creio na vida eterna, amém.
(LIMA, 1997, p. 425)

Referências

ARRIGUCCI JR., Davi. O cacto e as ruínas. São Paulo: Duas cidades; Ed.
34: 2000.

BLAKE, William. Sete livros iluminados. Lisboa: Antígona, 2007.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. Rio de Janei-


ro: Ouro sobre azul, 2011.

FARIAS, José Niraldo de. O surrealismo na poesia de Jorge de Lima. Porto


Alegre: Edipucrs, 2003.

LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo. São Paulo: Duas


85
cidades, 1974.

LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

LIMA, Jorge de. A invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa, volume único. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1994.

MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery.São Paulo: EdUsp, 1996.

PAZ, Octavio. Os filhos do barro. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Cia Letras, 2002.

TELES, Gilberto M. Vanguardas européias e Modernismo brasileiro. Petró-


polis: Vozes, 1978.

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