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DOI: 10.1590/1807-57622016.

0767

A contribuição da Educação Popular

editorial
para a formação profissional em saúde

No campo educacional brasileiro, o setor saúde tem se destacado pela amplitude


e radicalidade das mudanças em relação aos processos pedagógicos voltados para
a formação de seus profissionais, tanto no ensino técnico e universitário como
nas ações educativas para os trabalhadores de suas políticas públicas.
Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1988, oportunizou-se
uma grande expansão de serviços de atenção primária à saúde, cujos serviços
estão muito inseridos na dinâmica da vida comunitária. Isso tem demandado
novas necessidades de abordagem e ação profissional, bem como tem desvelado,
de maneira mais contundente, pressões e demandas da população que a
tradição teórica e prática das diversas profissões de saúde não está preparada
para responder. Insatisfações, cobranças e insuficiências quanto aos modos de
agir em saúde no cotidiano dos serviços e territórios criaram um clima cultural e
político propício para a expansão de muitas iniciativas e propostas de mudança
no ensino.
O Ministério da Saúde (MS) foi provocado, como nenhum outro setor das
políticas sociais, a intervir diretamente nos currículos dos cursos universitários
e técnicos, que antes eram orientados apenas pelas intervenções do Ministério
da Educação. Nesse processo, houve incentivo para que secretarias estaduais e
municipais de saúde passassem a investir amplamente em processos formativos,
que passaram a se orientar pela Política Nacional de Educação Permanente em
Saúde no SUS.
Tanto no ensino universitário e técnico, quanto nas ações formativas para
os profissionais dos serviços, assistiu-se a uma ampla difusão de inovações
metodológicas das práticas pedagógicas e formativas, com grande valorização
do que se passou a denominar, de maneira genérica, como metodologias ativas
e problematizadoras. Na maioria das vezes, as práticas educativas que utilizam
essa denominação pouco valorizam uma leitura crítica da realidade concreta
onde os educandos estão inseridos e nem priorizam o debate e a explicitação
dos interesses e das intencionalidades políticas presentes nas questões discutidas.
A desvalorização dessa discussão mais ampla é conveniente para grupos
interessados em fazer mudanças apenas operacionais das práticas profissionais,
buscando, sobretudo, o aumento da eficácia técnica às novas demandas sem
questionar os contextos, objetivos e interesses institucionais.
Apesar da grande difusão das metodologias ativas e problematizadoras, é
ainda dominante, nas práticas educativas concretas do SUS, uma pedagogia
centrada na difusão autoritária de informações e condutas, realizada sem
mesmo esta preocupação de renovação metodológica acrítica e que Paulo Freire
denominaria de educação bancária. Nela, profissionais de saúde e gestores se
veem como portadores de verdades que precisam ser inculcadas e generalizadas
na população e nos profissionais subalternos. São práticas pedagógicas que
se reproduzem a partir da falta de investimento no estudo crítico dos desafios
pedagógicos presentes no trabalho em saúde.
Mas vêm crescendo o debate e a constituição de ações mais elaboradas de
educação permanente no SUS, em que tem predominado a visão de autores
articulados, sobretudo, pela linha de Pesquisa Micropolítica do Trabalho e do
Cuidado em Saúde. Esse predomínio teórico e político tem gerado, muitas
vezes, a noção de que há uma equivalência entre ela e o conceito de educação
permanente. Internacionalmente, no entanto, o conceito de educação

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permanente é campo de disputa de várias correntes pedagógicas e políticas. A
percepção dessa equivalência só existe na saúde pública brasileira.
O movimento de renovação do ensino universitário e técnico por meio de
metodologias ativas e problematizadoras tem acontecido, sobretudo, por meio
da concepção educativa denominada Pedagogia Baseada em Problemas (PBL). É
uma corrente pedagógica centrada no ensino mais dinâmico de conhecimentos
considerados importantes, mas que desvaloriza a discussão crítica dos contextos
mais gerais implicados no ensino e no trabalho em saúde
Até recentemente, a Educação Popular (EP) vinha sendo pouco considerada
no debate conceitual sobre educação permanente e reorientação curricular
dos cursos de graduação e técnicos do setor saúde. Tal fato se deve, em parte,
pelo predomínio da noção de que a EP se orienta apenas para ações educativas
voltadas para o público popular. Contudo, o termo Popular não se refere ao
público a que se destina a prática formativa, mas, sim, aos pressupostos éticos, à
perspectiva política e às abordagens metodológicas que a orientam. Refere-se à
valorização dos saberes e das iniciativas dos educandos nos processos educativos,
sobretudo pela construção compartilhada do conhecimento, com o compromisso
explícito de fortalecimento do protagonismo das classes populares para o
enfrentamento das iniquidades e situações de exclusão social, para a construção
de uma sociedade justa, solidária e democrática.
A EP é uma proposta teórica e prática de condução de processos pedagógicos,
consolidada na América Latina a partir da década de 1960, que foi muito
importante para a formação de lideranças do movimento político que tomou
a frente do processo de criação do SUS e da luta por seu aprimoramento. Vem
orientando inúmeras práticas de atenção em saúde e ações de movimentos sociais
que se relacionam com os serviços, buscando sua ampliação, seu aperfeiçoamento
e sua construção cotidiana de modo integrado à dinâmica comunitária, de
modo valorativo dos saberes, das práticas e das prioridades das pessoas em
seus contextos territoriais. Recentemente, passou a se ocupar, também, com o
repensar da formação dos profissionais de saúde.
No movimento nacional de educadores populares da saúde, especialmente
na Rede de Educação Popular e Saúde (http://www.redepopsaude.com.br/),
têm sido crescentemente divulgadas e refletidas experiências educativas voltadas
para formar doutores e técnicos do setor saúde, como as publicadas em livros1-3,
e em vários artigos, alguns dos quais publicados pela Interface, em especial, no
suplemento sobre educação popular em saúde(a). Interface (Botucatu).
(a)

Nas universidades, iniciativas de extensão orientadas pela EP têm se 2014; 18 Supl 2,


disponível em: http://
fortalecido e já constituíram um movimento próprio, a Articulação Nacional de www.scielo.br/scielo.
Extensão Popular – ANEPOP (http://www.extensaopopular.blogspot.com) com php?script=sci_arttext
importantes publicações4-6. Disciplinas dos cursos de graduação começam a &pid=S1414-32832014
000601155 &lng=pt&
buscar na EP inspiração para se organizarem. nrm=iso&tlng=pt
Construída a partir de reivindicações e propostas dos vários movimentos
nacionais de Educação Popular em Saúde, por meio do Comitê Nacional de
Educação Popular em Saúde, a Política Nacional de Educação Popular em Saúde
(PNEPS-SUS) foi oficializada em 20137, e tem gerado muitas iniciativas de
educação permanente no SUS, como o Programa de Qualificação em Educação
Popular em Saúde EdpopSUS (http://www.edpopsus.epsjv.fiocruz.br/) e o
Projeto de Pesquisa e Extensão VEPOP-SUS: Vivências de Extensão em Educação
Popular e Saúde no SUS (www.vepopsus.blogspot.com), cuja ação é nacional,
com equipe executiva ancorada na UFPB. Por meio da PNEPS-SUS, o MS tem
também produzido publicações para fortalecer a concepção de EP no SUS, como
os Cadernos de Educação Popular em Saúde (http://pesquisa.bvsalud.org/bvsms/

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resource/pt/mis-36844). Em vários estados brasileiros estão se formando comitês
estaduais de EP para incentivar que secretarias de saúde valorizem a EP em suas
políticas de educação permanente.

Mas em que a EP contribui para a formação profissional?


Para avançar nesta questão, foi organizado em João Pessoa, no mês de
novembro de 2014, o I Seminário Nacional de Educação Popular na Formação em
Saúde (http://seminarioepsformacao.blogspot.com.br/). Desde então, o tema
passou a ser mais enfatizado nas iniciativas do movimento da EP em saúde, com
organização de mesas-redondas, cursos, oficinas e palestras em vários congressos
da saúde coletiva brasileira.
Para a EP, a problematização deixa de ser apenas uma estratégia didática,
ou, mesmo, um jeito dinâmico de ensinar, para ser um desafio de pesquisa
compartilhada entre os educadores e educandos, comprometida com problemas
concretos vividos no trabalho e na sociedade. Não é um recurso metodológico
para facilitar o ensino de conteúdos predefinidos, mas um comprometimento
com os desafios trazidos pela dinâmica de adoecimento e luta pela saúde das
pessoas e da sociedade, em um contínuo processo de reflexão, ação, reflexão.
Uma problematização aberta para o novo, o ainda não pensado, e que enfatiza
o diálogo autêntico, ou seja, aquele que parte do reconhecimento, pelo
educador, dos limites de seus conhecimentos diante dos desafios apresentados
por educandos e pela realidade. Busca não apenas o aprendizado mais intenso
de conhecimentos considerados previamente como significativos, mas o
fortalecimento do protagonismo dos educandos visando à formação de uma
sociedade participativa e democrática. A democracia é, também, construída pelo
protagonismo cognitivo dos trabalhadores nas instituições e dos cidadãos.
Pela EP, as dinâmicas ativas de ensino passam a ter o sentido de ajudar a
explicitar conhecimentos prévios, sentimentos, perplexidades e dúvidas sutis e
ainda pouco elaboradas, numa perspectiva de valorização dos saberes e interesses
dos educandos e da população, e não uma estratégia para tornar o ensino mais
interessante e alegre. Enfatiza não apenas o diálogo entre professor e aluno, pois
inclui, no processo de problematização, os saberes e reivindicações dos grupos
sociais menos favorecidos e com menor oportunidade de formulação clara e firme
de seus interesses e perspectivas. As discussões precisam buscar respostas não
apenas internamente entre os envolvidos na prática profissional local, pois elas
estão correlacionadas às dinâmicas políticas, econômicas e culturais mais gerais da
sociedade, que necessitam ser valorizadas.
Esta concepção valoriza o processo de construção conjunta do conhecimento
e das ações de saúde, respeitando a presença de elementos imprevisíveis de
emoção e afeto, presentes no encontro humano que se dá no cuidado em saúde.
Abre-se para a construção de novos caminhos e processos de cuidado por parte
dos trabalhadores a partir de suas próprias iniciativas, capacidades e de seus
anseios, de maneira autônoma e compartilhada com os usuários. Inclui, ainda,
a possibilidade de questionamento dos arranjos organizacionais dos sistemas de
saúde, negando-se a ser concebida como técnica ou tecnologia e, tampouco,
almejando ser, obrigatoriamente, seguida como algo imposto ao profissional de
(b)
Nesse sentido, saúde para o eficiente funcionamento do sistema.
ressaltamos os textos O aperfeiçoamento das ações de educação permanente não pode ficar restrito
de Pedro Demo, Moacir
Gadotti e Licínio Lima, ao debate de autores, correntes teóricas e experiências internas ao setor saúde.
disponíveis em: http:// Trata-se de um debate que atravessa os vários setores das políticas públicas e
unesdoc.unesco.org/
images/0024/002446/
os diversos continentes do planeta. É importante trazer, para o setor saúde, a
244672POR.pdf experiência e os autores desses outros campos(b).

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Nos espaços de debates e reflexões ocorridos durante o I Seminário Nacional
de Educação Popular na Formação em Saúde, priorizou-se o acolhimento e
explicitação das diferentes concepções e perspectivas para a reorientação da
formação profissional em saúde, em lugar de somente se enfatizar o pensamento
próprio da EP. Abriu-se oportunidade para apresentação de pensadores de outras
tradições pedagógicas, inclusive, representantes de órgãos governamentais,
revelando a insistência do movimento de EP em propiciar debate crítico e reflexão
conjunta e dialógica, sobre os vários caminhos de mudanças na formação
profissional em saúde.
Desse modo, acreditamos que a inclusão do movimento da EP em saúde no
debate sobre formação profissional está ajudando a explicitar essas diferentes
concepções teóricas e políticas presentes no campo.
Este debate está apenas começando. A continuidade na realização de espaços
conjuntos de reflexão entre os diferentes, assim como a sistematização de
experiências com explicitação de seus aprendizados, limites e desafios, são passos
fundamentais e atuais.

Eymard Mourão Vasconcelos


Rede de Educação Popular e Saúde. João Pessoa, PB, Brasil.
eymard.vasconcelos@gmail.com

Pedro José Santos Carneiro Cruz


Departamento de Promoção da Saúde, Centro de Ciências Médicas,
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). João Pessoa, PB, Brasil.
pedrojosecruzpb@yahoo.com.br

Ernande Valentin do Prado


Grupo de Pesquisa em Educação Popular em Saúde, UFPB. João Pessoa, PB,
Brasil. ernande.prado@gmail.com

Referências
1. Vasconcelos EM, Cruz PJ, organizadores. Educação popular na formação universitária;
reflexões com base em uma experiência. São Paulo: Hucitec; 2011.
2. Vasconcelos EM, Frota LH, Simon E, organizadores. Perplexidade na universidade;
vivências nos cursos de saúde. São Paulo: Hucitec; 2006.
3. Mano MA, Prado EV, organizadores. Vivências de educação popular na atenção primária
à saúde: a realidade e a utopia. São Carlos: EdUFSCar; 2010.
4. Melo Neto JF. Extensão Popular. João Pessoa: Editora UFPB; 2014.
5. Falcão EF. Vivência em comunidades: outra forma de ensino. João Pessoa: Editora UFPB;
2014.
6. Cruz PJSC, Vasconcelos MOD, Sarmento FIG, Marcos ML, Vasconcelos EM,
organizadores. Educação Popular na Universidade; reflexões e vivências da Articulação
Nacional de Extensão Popular (ANEPOP). São Paulo: Hucitec; 2013.
7. Portaria nº 2.761/2013. Política Nacional de Educação Popular em Saúde no SUS
(PNEPS-SUS). Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Brasília (DF): Ministério da
Saúde; 2013.

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