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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 20-21: 269-284, 1997/1998.

FEITIOS DE MATEBA .
POESIA ANGOLANA NA COMPOSIÇÃO DE UMA
IDENTIDADE NACIONAL

Maria do Socorro Fernandes CARVALHO*

“(...) Na linguagem de Camões,


o outro é uma presença que lhe dá vida e direção.
– Seja o outro a segunda pessoa do discurso
ou a própria linguagem, seja o presente ou a tradição.”
(In: Outrora Agora, Maria dos Prazeres Gomes)

RESUMO: A composição de uma identidade nacional em Angola prossegue em compasso


com a evolução das formas artísticas. A poesia, especificamente, tem sido um instrumental
na construção de uma literatura identificada com a cultura angolana. Tendo início com a
voga jornalística da segunda metade do século XIX, com o romance nos anos trinta deste
século e amadurecendo com a poesia a partir dos anos 50, o conjunto da literatura angola-
na tem por base dois pilares entre si conflitantes e, ao mesmo tempo, complementares: a
tradição da cultura oral e a herança literária da língua portuguesa. Alguns textos dos poetas
contemporâneos Arlindo Barbeitos e David Mestre, aqui analisados, apresentam essa
antinomia, cuja síntese parece estar na imbricação dos elementos nativos com os herdados.

Palavras-chave: Angola; Identidade nacional; Literatura; Poesia

A criação de uma literatura identificada com a cultura nacional foi, e tal-


vez continue sendo, um instrumental dos intelectuais progressistas ou aberta-

(*) Universidade de São Paulo.


Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...

mente esquerdistas de Angola. Mais do que identificada, podemos dizer que a


literatura angolana está de tal forma imbricada com o projeto de reconstrução
nacional que às vezes são tomados como faces do mesmo papel. Neste trabalho
pretendemos localizar esta identificação do ponto de vista da poesia, mais pre-
cisamente da poesia de alguns poetas ‘contemporâneos’, nomeadamente Arlindo
Barbeitos e David Mestre.

I – A PROBLEMÁTICA
Curiosamente foi um romance, ‘O Segredo da Morta’, um dos primeiros
textos literários a marcar o início de um encaminhamento da literatura angola-
na em direção a uma identidade nacional. O romance de Assis Júnior, de 1929,
incorporou ao texto formas narrativas típicas da oralidade: as adivinhas (ji-non-
gongo), os mistérios e os sonhos. Os dois últimos, cifrados em código simbólico,
abrem alternativas para vários desfechos da trama. As adivinhas, “hábitos popu-
lares de tradição angolana”,1 apelam para o lúdico e o entretenimento.
É sabido que o jornalismo alcançou apogeu na segunda metade do sécu-
lo XIX. Foi ele o impulso inicial que “lançou os fundamentos para as modernas
literaturas africanas de língua portuguesa”,2 especificamente em Cabo Verde, Mo-
çambique e Angola.
A incorporação das línguas locais passa a ser, desde então, um elemento
da busca de uma identidade nacional, matriz presente na formação de pratica-
mente todos os escritores angolanos deste século e fonte de impasses ideológi-
cos quanto à filiação literária.
A Poesia é quem vai realizar e refletir este projeto. Nos anos 50, impulsi-
onado pelo “Movimento dos jovens intelectuais de Angola” e revista Mensagem, a
literatura era ‘reflexo da sociedade’ (Agostinho Neto) e havia uma ligação estreita
com as camadas populares. Os nomes mais importantes desta época são, além
do já citado poeta Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade,
entre outros. Já a revista Cultura (II) adianta a questão citando os problemas
sócio-econômicos de Angola. São representantes deste movimento: Aires de
Santos, João Abel, Arnaldo Santos, Antonio Cardoso e outros.

(1) SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: história e antologia. São Paulo, Ática, 1985,
p. 13.
(2) Op cit., p. 11.

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Nos anos 70, a poesia recebe elementos da crônica e do cinema e a litera-


tura passa a ter um caráter mais multifacetado. A partir de então instala-se o
conflito entre duas tendências. De um lado, um grupo de escritores, inseridos
no processo de modernidade da literatura angolana, aspira “à perfeição formal e
à originalidade da maneira artística”.3 Neste grupo ressaltamos Luandino Vieira,
Arnaldo Santos e os poetas Ruy Duarte, David Mestre e Arlindo Barbeitos. Do
outro lado, estão os escritores que pensam em fazer “poesia e ficção mais acessí-
veis às massas populares”. Entre eles, Uanhenga Xitu e Manuel Rui.
Podemos dizer que esta ‘querela’ ocorreu também, ressalvadas as especi-
ficidades locais, em Portugal e no Brasil. Esse mesmo conflito esteve presente
na “equação modernidade=realismo” 4 dos poetas neo-realistas portugueses nos
anos 40 e 50. Como também não foi outro o motivo da dissidência Neoconcreta
de Ferreira Gullar em relação ao movimento da Poesia Concreta na década de
cinqüenta no Brasil. Citamos dois casos mais gritantes, contudo, mesmo no
movimento ‘Tropicalismo’, este desafio esteve presente. Entre os Centros Popu-
lares de Cultura (CPCs) e a alegoria, qual realizava a síntese da cultura popular?
Convivendo mais efetivamente com a emergente cultura de massas, o Tropica-
lismo buscava o simultaneísmo da inserção nos novos tempos (o uso da guitarra
elétrica foi paradigmático) e a busca de configuração da identidade do brasilei-
ro, a grande tônica da época, desafio lançado, perseguido (e segundo alguns,
ainda em aberto) já pelo movimento Modernista dos anos 20 nas suas duas
faces também entre si conflitantes: a de Oswald e a de Mário de Andrade.
De qualquer forma, a crítica e a produção literárias nos países citados
alcançou níveis tais que as transformações daí advindas são irreversíveis. A po-
esia que se produz hoje dispõe das conquistas provenientes deste conflito. Fa-
lando a respeito da literatura brasileira do século XX depois das vanguardas
dos anos 50 e 60, Paulo Leminski diz: “depois daquelas vanguardas que mexeram
com o tecido das coisas, tudo se tornou lícito. Quer dizer, você pode partir a palavra
pelo meio. (Um livro chamado Frag) não teria lugar há quarenta anos. Agora há
lugar (...)”.5
Em Angola, com certeza a concretização de um ponto de vista mais críti-
co na observação dos fenômenos contemporâneos é aquisição inegável. Um
exemplo disto é que já começa a haver uma diferenciação terminológica entre

(3) RIAÚZOVA, Helena. Dez anos da Literatura Angolana. Luanda, UEA, 1986 p. 17. (Série Estu-
dos).
(4) MELO E CASTRO. E. M. O Próprio Poético. São Paulo, Quíron, 1973, p. 48.
(5) LEMINSKI, Paulo. Poesia, a paixão da linguagem. In: Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Cia
das Letras, 1987, p. 289.

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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...

crítica literária e crítica política e ideológica. A literatura já não precisa mais ser
‘panfletária’, ou de ‘estado soberano’. Até mesmo a divisão essencial entre “Lite-
ratura Colonial” e “Literatura Africana” começa a perder nitidez, conquanto os
limites entre uma e outra vão cedendo espaço a uma composição de elementos
genuinamente africanos com ocidentais. Não que a divisão, elaborada por Ma-
nuel Ferreira no seu livro ‘Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa’, seja invá-
lida. Ao contrário, serve-nos exatamente na diferenciação dos sujeitos do enun-
ciado. Assim, se na literatura colonial o homem negro aparece na perspectiva
eurocêntrica acidental ou marginalmente, e mesmo de maneira paternalista,
sob o ponto de vista folclórico e exótico; na literatura africana, o homem africa-
no é sujeito do enunciado, mesmo na expressão da língua portuguesa. No en-
tanto, os fenômenos da vida contemporânea exigem observações mais polissê-
micas, que comportem múltiplas perspectivas, inserindo a cultura da África na
realidade das comunidades.
Fala-se mesmo, no contexto angolano, numa “revisão crítica de valores”.
Um destes valores, a meu ver, refere-se ao ‘assimilacionismo’, ferramenta ideoló-
gica que perniciosamente contribuiu para formar a ambígua burguesia angola-
na. Hoje a realidade social é afetada diretamente pela inaptidão ou negação
desse estrato social em fazer sua própria crítica. Embora pareça evidente a dis-
tinção no caso entre burguesia econômica e intelectual, não podemos esquecer
que a literatura, após o impulso do jornalismo, era feita pela classe média –
formada na grande maioria por mestiços – e que muito da produção escrita
tinha o assimilacionismo como suporte.
Consideramos a problemática de incorporação a partir de elementos não
estritamente nacionais, o que forma uma espécie de ‘mestiçagem da série literá-
ria’. Problemática que atingiu praticamente todos os poetas nas últimas gera-
ções. O que equivale dizer que a incorporação de elementos outros não é neces-
sariamente nociva, embora não seja obrigatoriamente salutar. Depende da ma-
turidade sócio-cultural do conjunto intelectual e mesmo do processo de
reformulação da “herança cultural bifronte”,6 especificamente pelos produtores
literários, e da capacidade individual de cada escritor.
Esta antinomia parece estar presente no que Riaúzova chama de “proble-
mática do homem novo como ‘personalidade nacional’ (personalidade que pertence
à nação e em processo de formação) e a renovação e modernização dos recursos
formais (...) problemas da formação da nação como comunidade nacional, da formula-
ção de uma nova ética, da nova concepção de mundo e do fortalecimento ulterior da

(6) SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo, Ática, 1985, p. 66.

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autoconsciência pessoal e coletiva.”.7 Ao que tudo indica, o grande desafio da lite-


ratura angolana é conciliar a originalidade e a autenticidade do caráter nacional
(e africano) e a maturidade formal que a literatura exige.
Chegamos aqui ao centro da problemática. A questão da originalidade e
da autenticidade imbrica-se com a utilização das representações culturais afri-
canas. Na literatura, com a inserção das línguas nacionais. Como a tradição cul-
tural lingüística angolana é eminentemente oral, a fala é o elemento que serve
como ruptura com o modelo lingüístico e ideológico dominante. Já vimos como
a cultura oral foi importante no início do delineamento de uma literatura nacio-
nal. Essa importância continua no decorrer do século XX. Luandino Vieira, a
partir dos anos 50, contrapõe a fala, ou seja, a oralidade do quimbundo à língua
portuguesa, historicamente um elemento da dominação colonial. A marca de
sua “angolanidade” comporta uma escrita transgressiva contra os padrões
lingüísticos do português. Na novela “Nós, os do Makulusu”, a incorporação dos
elementos da fala realiza-se em diversos níveis, sendo atualizada como recurso
lingüístico dentro da tessitura da narrativa, e aí reside sua grandeza.
As especificidades da oralidade são dificilmente transpostas para o texto
escrito, que impõe condições inerentes à grafia. A resultante da inserção de
textos orais na escritura é fortemente diferenciada de um texto criado a partir
da escrita. Sem falar de perdas e ganhos, o novo texto sofre de qualquer modo
as conseqüências da mudança de código, da natureza do emissor e do receptor,
das condições de decodificação.
O grande desafio poético é criar-se um texto em que os elementos
lingüísticos e orais constituam uma teia uniforme na comunicação poética. Um
outro fator complicador é que a tradição cultural está ocasionalmente vincula-
da à tradição do conservadorismo. O passado, em Angola, às vezes reverte-se
em elemento, também ele, de dominação, revelando-se uma “instituição” políti-
co-ideológica de certa maneira reacionária. A constituição de uma identidade
nacional tem de passar necessariamente pelo equilíbrio destes dois pólos por
vezes curiosamente antagônicos.
A inversão dos valores progressistas e reacionários é um fato instigante.
Tradicionalmente a oralidade é signo de certa situação quase paradisíaca, ante-
rior à colonização. Essa indefinida harmonia social é mesmo o suporte da pre-
sença da fala popular como identificador da cultura local no texto literário, como
julgamos já ter esclarecido. A utilização da língua portuguesa é uma concessão
que o poeta faz à necessidade de compreensão. Tendo em vista a unidade

(7) RIAÚZOVA, Helena. Dez Anos de Literatura Angolana. Luanda, UEA, 1986, p. 23.

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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...

lingüística ter sido uma estratégia de unificação territorial no momento da in-


dependência da nação, pode parecer, por vezes, ser essa a única razão de utili-
zar-se o português.
Um trecho do Fragmento de ensaio de Manuel Rui pode servir para exem-
plificar tal aspiração: “Quando chegaste mais velhos contavam estórias. Tudo estava
no seu lugar. A água. O som. A luz. Na nossa harmonia. O texto oral”.8
Entretanto, a composição da identidade reserva ciladas.
O aspecto curioso que citamos é que, aquilo que por um lado funciona
como elemento libertário, de confirmação de identidade, como de fato tem sido
a incorporação da tradição oral no texto literário, pode tornar-se obstáculo à
evolução social e da crítica e produção artística quando associa-se ao
reacionarismo quer da burguesia econômica, quer da crítica estética (às vezes
restritamente nacionalista) que exige um compromisso social textualmente ex-
plícito. Por outro lado, a tendência dos poetas contemporâneos por uma poesia
de composição nacional que incorpore o outro, representado pelo presente e a
tradição, na busca da formalização poética e do específico no universal passa a
ser uma estratégia na luta anti-exclusivista. Quer dizer, parece que alguns poe-
tas angolanos apoderam-se da herança ocidental, incluindo logicamente a lín-
gua portuguesa, para realizarem sua composição do que cada um considera
como o nacional angolano. Mais ou menos como ocorrera quando da
institucionalização do português como língua nacional, na Independência, utili-
zada abertamente para dirimir disputas etno-lingüísticas e por questões de in-
serção global.
Diante da necessidade e da prática da escrita em língua portuguesa, para
alguns escritores instala-se um impasse que pode ser ilustrado neste segundo
trecho de Manuel Rui: “Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha
branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor
do código que a escrita já composta? Isso não. No texto oral já disse que não toco e não
o deixo minar pela escrita arma que eu conquistei ao outro. (...) Vou é minar a arma do
outro como todos os elementos possíveis do meu texto. Invento outro texto. Interfiro,
desescrevo para que conquiste (...) um texto escrito meu, da minha identidade (...)”.
Alguns conceitos já abordados estão contidos na definição de identida-
de nacional proposto por Edward Said,9 para quem ela não deve implicar neces-
sariamente uma “estabilidade dada e eternamente determinada”. Mas, ao contrá-

(8) RUI, Manuel. Fragmento de ensaio. In: Sonha Mamana África. MEDINA, Cremilda. São Pau-
lo/Luanda, Epopeia e UEA, 1987, p. 308.
(9) SAID, Edward. Culture and Imperialism. New York, Vintage Books, 1994, p. 4, 7, 17.

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rio, para ele a cultura deve ser a grande ‘fonte’ da identidade. Para ilustrar seu
pensamento, Said retomou o conceito de ‘senso histórico’ de T. S. Eliot, o qual
“envolve a percepção, não somente da tradição do passado, mas sua presença”. Se-
gundo Eliot, “mais importante do que o passado em si, é o suporte que ele dá às
atitudes culturais do presente”. Vale dizer, é a atualização inventiva dessa tradição.
Assim é que Said julga a função do intelectual em não aceitar a política da iden-
tidade nacional tal como é dada, mas mostrar como são construídas as repre-
sentações e suas finalidades. Porque, ainda segundo ele, o “esforço em
homogeneizar e isolar as populações em nome do nacionalismo (não da libertação)
tem levado a sacrifícios e fracassos colossais”. Pensamos agora em vários exemplos
da história, mas no Brasil lembramos que o nacionalismo localista levou, no
terreno da política, ao ‘Integralismo’ fascista de Plínio Salgado no início deste
século.
Isto parece significar que diante da problemática da hegemonia cultu-
ral, ou seja, do fato de certas formas culturais predominarem sobre outras,
diante dessa realidade cabe ao poeta trabalhar seu estoque de tradição, mas
dentro do que o presente sugere, exige e propõe. Usando palavras próximas
aos dois últimos pensadores citados, é necessário haver o complementar
dialético entre a “presentificação” do passado e a procura da realização do
futuro nesse presente.

II. O S TEXTOS

A poesia de David Mestre é vibrante. Os poemas são formas literárias de


apropriação e transformação de um universo que envolve toda sua poesia com
força vital. No livro Nas Barbas do Bando, (1985), o grande desafio que o poeta
assume é África: o “extenso vale das nossas angústias”. Angola está presente nos
microcosmos específicos: homem, fome, guerra, natureza e morte, sobretudo
no Crónica do Ghetto, livro de 1973, mais intrinsecamente ligado à questão dos
valores angolanos, à luta pela independência e, por isso mesmo, impregnado de
certo ressentimento quanto à condição colonial.
Os poemas Tambor, A Serpente e especialmente Maka Ma Muxima são exem-
plos desta tendência. Fortemente pontuados pelas formas angolanas, quanto
ao léxico incorporam palavras das línguas nacionais, debatem os temas da guerra
e do território, assimilam um ritmo poético diferenciado na língua portuguesa.
Este último texto contém três planos que podem ser nominados Angola, Guer-
ra/Morte e Mulher sobrepostos à definição de ‘senhora amada’. Os “problemas do

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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...

coração” (tradução do quimbundo para maka ma muxima) distribuem-se nos


lexemas destes planos em versos paralelos e partidos em 2, 3 ou 4 partes, muito
substantivados pelos artigos constantes. A repetição anafórica de ‘senhora ama-
da’ faz lembrar a dedicação das antigas ‘cantigas de amor’, o poema estando
porém visualmente estraçalhado: ‘a língua lasca’. Associada à divisão dos versos
está uma profusa e fragmentária sucessão de conceitos que percorrem e consti-
tuem relações internas entre as palavras.
Destacamos ainda poemas marcantemente erotizados como o Ngaieta de
Beiço, A Serpente e África, cuja sensualidade transcende o erotismo humano, im-
pregnando-se de africanidade, e reveste-se de textual libertação.
A temática da poesia de David Mestre é um atestado do debate de África
como contraponto à Europa, problemática que aparece dissolvida em alguns
tópicos. Um desses tópicos é a linguagem como resistência: “trazer nos dentes a
alegria do verde/a palavra força a estoirar na face”. A criação de uma poesia que
incorpore os elementos lingüísticos africanos e europeus não está livre de con-
tradições e desarmonias. Ao contrário, é também um componente de luta pela
imposição da africanidade.
Tentado recuperar a expressão da fala, o poeta justapõe palavras que
formam um só termo, criando assim um efeito único ao invés de fragmentar
suas cargas semânticas. É o caso de ‘céunoitediamante’, lindolongosonho’ e
‘rubisexoperfume’ do texto “Mukonda Dia Calumba”. Com efeito, a resistência
manifesta-se no debate dos problemas e especificidades africanas. A marca da
colonização é decisiva no texto Portugal Colonial:

Nada te devo
nem o sítio
onde nasci

nem a morte
que depois comi
nem a vida

repartida
plos cães
nem a notícia

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curta
a dizer-te
que morri

nada te devo
Portugal
colonial

cicatriz
doutra pele
apertada

que revê a crueldade do processo colonial, mas não deixa de revelar, na


última estrofe, a presença portuguesa como condição natural desse processo,
em versos que lembram a eloquência de Álvaro de Campos em ‘Tabacaria’: “Quan-
do quis tirar a máscara, / Estava pegada à cara”.
Um outro tópico seria a carga afetiva do passado.

Pousa o tempo
sobre os ombros
e (d)escreve
apenas
erosões
dum rastro
de Sol
na pedra lisa

Na sua Arte Poética, David Mestre expõe o peso do tempo em oposição à


leveza e fugacidade que devem compor o poema. A opção descritiva existe mas
o poeta restringe o texto ‘apenas’ a ‘erosões’ e ‘rastros’.
O tópico da intertextualidade com a poética da oralidade conforma o
poema a seguir, síntese da problemática que vimos analisando:

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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...

Feitios de Mateba

Falava dessa areia


do fim do mar
dos contornos
à tona de água

Nesses feitios lê
a língua entrançada
com a luz
nos feitios de mateba

Arde quase
pressente que oscila
ouço-a em segredo
arfar

A imagem dos feitios de mateba, artesanatos de palha para uso domésti-


co e decorativo, representa a necessidade de um texto poético em que as partes
diversas componham, umas adentrando-se em outras, um só desenho. A forma
final do produto artesanal depende da eficácia com que o artífice confecciona
uma ‘língua entrançada’ com vários materiais e matizes. Estes valores configu-
ram-se na “fala” presente na primeira estrofe e na “língua” na segunda. Ao mes-
mo tempo, recompõe o artesanato, característico da cultura popular e a leitura,
natural da escrita. Os demonstrativos do texto pressupõem um antecedente.
Do que se trata? De África ou da poesia? A última estrofe não revela mas sugere
a resposta. A configuração do texto inclui a composição dos elementos referi-
dos: a fala, o artesanato, a língua entrançada, a oscilação e finalmente o fazer
(arfar). Neste texto, que nos pareceu emblemático da condição literária em An-
gola hoje, o imbricamento entre a procura da forma poética e de uma identida-
de nacional é vital.
A nação angolana preenche todo o livro Angola, Angolê, Angolema (1976)
de Arlindo Barbeitos. Angola é um sema, uma unidade de sentido. No prefácio,
o poeta fala de poesia de confrontação, de silêncio como forma de comunica-
ção, de guerra e de esperança. Mas fala sobretudo de identidade. Na sua condi-

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ção de exilado na Alemanha, a identidade que ele traduz é necessariamente


fugaz.

a identidade
ou voo esquivo
de pássaros nocturnos
em torno da lua

A fugacidade preside a definição dessa identidade coletiva e pessoal. As-


sim, o que seria uma definição é preenchido por palavras que indicam, não uma
certeza conceitual, mas uma ausência ou pelo menos, uma obscuridade. O ‘voo’
é ‘esquivo’ feito por ‘pássaros’, porém ‘nocturnos’, ‘em torno da lua’, como se esti-
vessem circulando em torno de uma lâmpada, entre perdidos e devotos. É esta
a definição de “identidade” que Arlindo Barbeitos propõe sem, a propósito, utili-
zar o verbo de ligação ser, o que caracteriza mais ainda o (des)conceito.
A ausência é a marca do texto seguinte:

identidade
é cor
de burro fugindo

A definição, agora com o verbo de ligação, é dada pela justaposição inu-


sitada de uma abstração: ‘identidade é’, com dois componentes concretos e dís-
pares ‘cor’ e ‘de burro (fugindo)’. A fugacidade salta nesta elaboração de um pro-
vérbio popular. Frisamos ainda que o pequeno texto contém também a proble-
mática do ‘mestiço’ e a carga de indefinição que representa.
A transmissão da sabedoria, a cargo dos idosos (sobas) e feiticeiros (molo-
ges), é o tema do texto ‘à sombra da árvore velha de muitos sobas’. Como vimos, a
questão da tradição é uma face do processo de composição de identidade an-
golana. Embora Barbeitos afirme no Prefácio que não faz ‘poesia de exortação’,
este texto funciona como denúncia e pode ser considerado de resistência se
pensarmos que, além da carga semântica, o poeta utiliza uma linguagem meta-
fórica, característica da fala anímica dos sobas e o paralelismo, típico da literatu-
ra popular em língua portuguesa.
Um outro componente de ‘resistência’ são as referências à guerra, tema
de vários textos de Angolema. Contudo, Barbeitos não cai na romantização

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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...

panfletária da luta. São nesses poemas que ele realiza muito da síntese que
caracteriza o livro. Um exemplo:

ilum
ilum bum bum bum
cobra grande dos antepassados
com cara de gente
come pé comeu perna
ilum
ilum bum bum bum
comeu ventre comeu peito
ilum
ilum bum bum bum
comeu cara comeu cabeça
ilum
ilum bum bum bum
comeu soba comeu mologe
ilum
ilum bum bum bum
cobra grande dos antepassados
com cara de gente
ilum
ilum bum bum bum

A ‘cobra’ é a grande alegoria da falência de uma cultura. Carregada de


uma simbologia do maléfico, a cobra é o vilão ‘com cara de gente’ que ‘come’ a
sabedoria do povo: ‘comeu soba comeu mologe’. O ritmo muito marcante extrava-
sa o componente oral e folclórico e compassa um texto envolvente.
Apesar de declarar a necessidade de “construção do novo”, (‘eu quero escre-
ver coisas verdes’, ‘um equilíbrio de porcelana’), parece ser no livro Nzoji (1979) que
o poeta atinge uma expressão mais consistente da dicotomia entre a tradição e
o presente, matéria-prima dos poetas contemporâneos, e de como realizar tex-
tualmente esse impasse. O texto seguinte é paradigmático:

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cambaleando
por entre
o ontem e o hoje
se estatelou
ao lusco-fusco
o viajeiro

Parece que ‘o viajeiro’ é o próprio poeta ao percorrer realidades diversas.


Nzoji possui uma imagética fabular em linguagem metafórica e concisa,
plenamente em evolução quanto ao Angolema. Utilizando muito do fabulário, o
efeito alegórico, às vezes o metafórico, advém sobretudo da justaposição insó-
lita de elementos díspares. Por exemplo, com cacos de arco-íris (p. 20); borboletas
da noite (p. 15); riso húmido (p. 12); lagoa sem água (p. 8); árvores paradas em fuga
(p. 9); etc. Continua a usar muitas repetições e paralelismos, mas atinge um
aspecto mais concreto, opondo a cada substantivo apenas um adjetivo, em ge-
ral formando oxímoros.
o caso do poema em alto contraste:

pássaros de sombra
em céu azul fugindo
se vestem de nuvem
e
cobra preta da noite
em campo de algodão
se tinge de luar
amada
orvalho da madrugada
são lágrimas de vento
em teus olhos de capim

em que o efeito cromático do contraste claro X escuro recupera os pri-


meiros versos um tanto obscuros e o lirismo evanescente dos últimos.
Neste livro, Arlindo Barbeitos como que insere, em alguns poemas, a pro-
blemática da construção de uma identidade nacional numa esfera mais univer-

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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...

sal do pensamento sobre a linguagem. No texto ‘pelas palavras’ o poeta ques-


tiona a língua como emancipação histórica num país de cultura oral e com alto
índice de analfabetos. Indo além, ele questiona a própria “falácia da linguagem”
como incapacidade de representação do humano ao mesmo tempo que é espe-
rança de uma completa “adesão entre a palavra e a coisa”.
Em ‘para além’, é a condição colonial que expõe a língua (‘palavras’) como
mercadoria de troca pela patrimônio cultural dos povos angolanos. Contudo
nos textos ‘o passado’ e ‘por noites de outubro’ é que estão explícitas as referênci-
as à incorporação do passado na composição do nacional angolano. “O passado
é uma laranja amarga” deflagra o absolutismo do mundo pré-colonial.

III – A PRENDENDO A XINGAR

A condição de mestiçagem cultural é contraditória e também por isso


geradora de linhas resultantes. De tal forma que Santilli afirma: “à procura de
uma identidade nacional, esta poesia acaba por identificar-se a si própria, ao mesmo
projeto de recuperação/modernização”.10
Se o trovadorismo provençal esteve no cerne da poesia ibérica, e mesmo
da poesia européia; se a língua portuguesa foi um componente de formação do
que hoje é a nação brasileira, constituindo, com os outros elementos, nossa
condição mestiça nacional, o que forma a poesia angolana atual? Alargando a
questão ao macro-contexto continental, como faz o filósofo ganês K. A. Appiah:
“por onde se constrói a modernidade africana?” Um dos itens de sua resposta inclui
a “recriação de algumas línguas européias (o inglês, o francês e o português)”.
Em Angola, o efetivo processo de configuração de sua identidade literá-
ria e nacional tem passado exatamente pela intertextualidade e “entrançamento”
das “fontes culturais” de uma poética no horizonte do precário. “A geração de que
faz parte [David Mestre] tem consciência dos cruzamentos culturais. Brasil, Portugal,
Estados Unidos, Moçambique, França (...) A grande poesia africana não precisa mais
de um único sentido.(...)”.11
Na perspectiva contemporânea, a intertextualidade da tradição e moder-
nidade poéticas é capaz de compor a espontaneidade e frescor da cultura oral
autóctone, com a formalização na língua portuguesa, numa atitude própria de

(10) SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo, Ática, 1985, p. 70.
(11) MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana África. São Paulo/Luanda, Epopeia e UEA, 1987, p. 364.

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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 20-21: 269-284, 1997/1998.

Caliban, personagem de ‘A Tempestade’, (1612), peça de W. Shakespeare, um na-


tivo que aprende e transforma a língua do colonizador.
A imagem literária de Caliban contém a apropriação e transformação da
cultura importada e admite um ‘contra-ataque’ da cultura autóctone. Este revidar
está impregnado de ressentimento, como frisamos, e há quem veja certo senti-
mento de submissão ideologicamente circunscrita à condição de selvagem. No
conjunto, contudo, é a imagem de uma literatura rebelada e criativa que, passo-
a-passo, vai definindo e impondo seu modo de tecer poeticamente ‘feitios de
mateba’.

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ABSTRACT: The composition of Angola’s national identity comes along with the evolu-
tion of artistic forms. Poetry has been an instrument on construction of literature in
Angola. Angola’s literature has started with journalism at the final of XIX century, has
grown with the novel at our thirties years and has been properly arrived at adult life with
the poetry at 50s. The totality of national literature has two pillars: the tradition of ‘oral
culture’ and the literary heritage from Portuguese language. Some texts from the poets
Arlindo Barbeitos and David Mestre show this conflict which solution can be at the syn-
thesis of native (African) and inherited (Portuguese) elements. Edward Said’s Nationalism
concept, applied to this case, is also discussed.

Keywords: Angola, National identity; Literature; Poetry.

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