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FEITIOS DE MATEBA .
POESIA ANGOLANA NA COMPOSIÇÃO DE UMA
IDENTIDADE NACIONAL
I – A PROBLEMÁTICA
Curiosamente foi um romance, ‘O Segredo da Morta’, um dos primeiros
textos literários a marcar o início de um encaminhamento da literatura angola-
na em direção a uma identidade nacional. O romance de Assis Júnior, de 1929,
incorporou ao texto formas narrativas típicas da oralidade: as adivinhas (ji-non-
gongo), os mistérios e os sonhos. Os dois últimos, cifrados em código simbólico,
abrem alternativas para vários desfechos da trama. As adivinhas, “hábitos popu-
lares de tradição angolana”,1 apelam para o lúdico e o entretenimento.
É sabido que o jornalismo alcançou apogeu na segunda metade do sécu-
lo XIX. Foi ele o impulso inicial que “lançou os fundamentos para as modernas
literaturas africanas de língua portuguesa”,2 especificamente em Cabo Verde, Mo-
çambique e Angola.
A incorporação das línguas locais passa a ser, desde então, um elemento
da busca de uma identidade nacional, matriz presente na formação de pratica-
mente todos os escritores angolanos deste século e fonte de impasses ideológi-
cos quanto à filiação literária.
A Poesia é quem vai realizar e refletir este projeto. Nos anos 50, impulsi-
onado pelo “Movimento dos jovens intelectuais de Angola” e revista Mensagem, a
literatura era ‘reflexo da sociedade’ (Agostinho Neto) e havia uma ligação estreita
com as camadas populares. Os nomes mais importantes desta época são, além
do já citado poeta Agostinho Neto, Viriato da Cruz e Mário Pinto de Andrade,
entre outros. Já a revista Cultura (II) adianta a questão citando os problemas
sócio-econômicos de Angola. São representantes deste movimento: Aires de
Santos, João Abel, Arnaldo Santos, Antonio Cardoso e outros.
(1) SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: história e antologia. São Paulo, Ática, 1985,
p. 13.
(2) Op cit., p. 11.
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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 20-21: 269-284, 1997/1998.
(3) RIAÚZOVA, Helena. Dez anos da Literatura Angolana. Luanda, UEA, 1986 p. 17. (Série Estu-
dos).
(4) MELO E CASTRO. E. M. O Próprio Poético. São Paulo, Quíron, 1973, p. 48.
(5) LEMINSKI, Paulo. Poesia, a paixão da linguagem. In: Os Sentidos da Paixão. São Paulo, Cia
das Letras, 1987, p. 289.
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crítica literária e crítica política e ideológica. A literatura já não precisa mais ser
‘panfletária’, ou de ‘estado soberano’. Até mesmo a divisão essencial entre “Lite-
ratura Colonial” e “Literatura Africana” começa a perder nitidez, conquanto os
limites entre uma e outra vão cedendo espaço a uma composição de elementos
genuinamente africanos com ocidentais. Não que a divisão, elaborada por Ma-
nuel Ferreira no seu livro ‘Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa’, seja invá-
lida. Ao contrário, serve-nos exatamente na diferenciação dos sujeitos do enun-
ciado. Assim, se na literatura colonial o homem negro aparece na perspectiva
eurocêntrica acidental ou marginalmente, e mesmo de maneira paternalista,
sob o ponto de vista folclórico e exótico; na literatura africana, o homem africa-
no é sujeito do enunciado, mesmo na expressão da língua portuguesa. No en-
tanto, os fenômenos da vida contemporânea exigem observações mais polissê-
micas, que comportem múltiplas perspectivas, inserindo a cultura da África na
realidade das comunidades.
Fala-se mesmo, no contexto angolano, numa “revisão crítica de valores”.
Um destes valores, a meu ver, refere-se ao ‘assimilacionismo’, ferramenta ideoló-
gica que perniciosamente contribuiu para formar a ambígua burguesia angola-
na. Hoje a realidade social é afetada diretamente pela inaptidão ou negação
desse estrato social em fazer sua própria crítica. Embora pareça evidente a dis-
tinção no caso entre burguesia econômica e intelectual, não podemos esquecer
que a literatura, após o impulso do jornalismo, era feita pela classe média –
formada na grande maioria por mestiços – e que muito da produção escrita
tinha o assimilacionismo como suporte.
Consideramos a problemática de incorporação a partir de elementos não
estritamente nacionais, o que forma uma espécie de ‘mestiçagem da série literá-
ria’. Problemática que atingiu praticamente todos os poetas nas últimas gera-
ções. O que equivale dizer que a incorporação de elementos outros não é neces-
sariamente nociva, embora não seja obrigatoriamente salutar. Depende da ma-
turidade sócio-cultural do conjunto intelectual e mesmo do processo de
reformulação da “herança cultural bifronte”,6 especificamente pelos produtores
literários, e da capacidade individual de cada escritor.
Esta antinomia parece estar presente no que Riaúzova chama de “proble-
mática do homem novo como ‘personalidade nacional’ (personalidade que pertence
à nação e em processo de formação) e a renovação e modernização dos recursos
formais (...) problemas da formação da nação como comunidade nacional, da formula-
ção de uma nova ética, da nova concepção de mundo e do fortalecimento ulterior da
(6) SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo, Ática, 1985, p. 66.
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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 20-21: 269-284, 1997/1998.
(7) RIAÚZOVA, Helena. Dez Anos de Literatura Angolana. Luanda, UEA, 1986, p. 23.
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(8) RUI, Manuel. Fragmento de ensaio. In: Sonha Mamana África. MEDINA, Cremilda. São Pau-
lo/Luanda, Epopeia e UEA, 1987, p. 308.
(9) SAID, Edward. Culture and Imperialism. New York, Vintage Books, 1994, p. 4, 7, 17.
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rio, para ele a cultura deve ser a grande ‘fonte’ da identidade. Para ilustrar seu
pensamento, Said retomou o conceito de ‘senso histórico’ de T. S. Eliot, o qual
“envolve a percepção, não somente da tradição do passado, mas sua presença”. Se-
gundo Eliot, “mais importante do que o passado em si, é o suporte que ele dá às
atitudes culturais do presente”. Vale dizer, é a atualização inventiva dessa tradição.
Assim é que Said julga a função do intelectual em não aceitar a política da iden-
tidade nacional tal como é dada, mas mostrar como são construídas as repre-
sentações e suas finalidades. Porque, ainda segundo ele, o “esforço em
homogeneizar e isolar as populações em nome do nacionalismo (não da libertação)
tem levado a sacrifícios e fracassos colossais”. Pensamos agora em vários exemplos
da história, mas no Brasil lembramos que o nacionalismo localista levou, no
terreno da política, ao ‘Integralismo’ fascista de Plínio Salgado no início deste
século.
Isto parece significar que diante da problemática da hegemonia cultu-
ral, ou seja, do fato de certas formas culturais predominarem sobre outras,
diante dessa realidade cabe ao poeta trabalhar seu estoque de tradição, mas
dentro do que o presente sugere, exige e propõe. Usando palavras próximas
aos dois últimos pensadores citados, é necessário haver o complementar
dialético entre a “presentificação” do passado e a procura da realização do
futuro nesse presente.
II. O S TEXTOS
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Nada te devo
nem o sítio
onde nasci
nem a morte
que depois comi
nem a vida
repartida
plos cães
nem a notícia
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curta
a dizer-te
que morri
nada te devo
Portugal
colonial
cicatriz
doutra pele
apertada
Pousa o tempo
sobre os ombros
e (d)escreve
apenas
erosões
dum rastro
de Sol
na pedra lisa
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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...
Feitios de Mateba
Nesses feitios lê
a língua entrançada
com a luz
nos feitios de mateba
Arde quase
pressente que oscila
ouço-a em segredo
arfar
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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 20-21: 269-284, 1997/1998.
a identidade
ou voo esquivo
de pássaros nocturnos
em torno da lua
identidade
é cor
de burro fugindo
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Feitios de Mateba. Poesia angolana na composição...
panfletária da luta. São nesses poemas que ele realiza muito da síntese que
caracteriza o livro. Um exemplo:
ilum
ilum bum bum bum
cobra grande dos antepassados
com cara de gente
come pé comeu perna
ilum
ilum bum bum bum
comeu ventre comeu peito
ilum
ilum bum bum bum
comeu cara comeu cabeça
ilum
ilum bum bum bum
comeu soba comeu mologe
ilum
ilum bum bum bum
cobra grande dos antepassados
com cara de gente
ilum
ilum bum bum bum
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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 20-21: 269-284, 1997/1998.
cambaleando
por entre
o ontem e o hoje
se estatelou
ao lusco-fusco
o viajeiro
pássaros de sombra
em céu azul fugindo
se vestem de nuvem
e
cobra preta da noite
em campo de algodão
se tinge de luar
amada
orvalho da madrugada
são lágrimas de vento
em teus olhos de capim
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(10) SANTILLI, Maria Aparecida. Africanidade. São Paulo, Ática, 1985, p. 70.
(11) MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana África. São Paulo/Luanda, Epopeia e UEA, 1987, p. 364.
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África: Revista do Centro de Estudos Africanos. USP, S. Paulo, 20-21: 269-284, 1997/1998.
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______. Africanidade: contornos literários. São Paulo, Ática, 1985.
ABSTRACT: The composition of Angola’s national identity comes along with the evolu-
tion of artistic forms. Poetry has been an instrument on construction of literature in
Angola. Angola’s literature has started with journalism at the final of XIX century, has
grown with the novel at our thirties years and has been properly arrived at adult life with
the poetry at 50s. The totality of national literature has two pillars: the tradition of ‘oral
culture’ and the literary heritage from Portuguese language. Some texts from the poets
Arlindo Barbeitos and David Mestre show this conflict which solution can be at the syn-
thesis of native (African) and inherited (Portuguese) elements. Edward Said’s Nationalism
concept, applied to this case, is also discussed.
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