FolhasEnvenenadas_UmMisterio_PLMatthews
FolhasEnvenenadas_UmMisterio_PLMatthews
FolhasEnvenenadas_UmMisterio_PLMatthews
Folhas Envenenadas
Um Mistério da Bruxa Verde
Copyright © 2024 by P L Matthews
This novel is entirely a work of fiction. The names, characters and incidents
portrayed in it are the work of the author's imagination. Any resemblance to
actual persons, living or dead, events or localities is entirely coincidental.
First edition
Foreword
Prólogo
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
Epílogo
Notas aos leitores
Agradecimentos
Outras obras de P L Matthews
About the Author
Foreword
Nota: Esta tradução fez uma longa jornada sob o sol escaldante da
Austrália, onde os cangurus saltam e os eucaliptos dançam. Algumas frases
podem ter se aquecido um pouco, e algumas peculiaridades australianas
podem ter se infiltrado no caminho. Então, se você se deparar com um
português meio bronzeado ou um ‘G’day’ perdido, pense que é apenas a
tradução tirando umas férias na terra dos cangurus!
Se você notar algum erro de tradução ou achar que alguma frase se
parece mais com um feitiço que deu errado, adoraria ouvir sua opinião!
Seus comentários me ajudam a manter a magia fluindo. Não hesite em me
enviar uma mensagem para o e-mail abaixo.
plm@plmatthews.com
Prólogo
R
hianne acordou com os raios de sol lhe dando um empurrão amigável
no rosto. Que estranho, ela poderia jurar que tinha fechado as
persianas na noite anterior, mas talvez Toto tivesse decidido que
preferia uma vista do nascer do sol. Olhou ao redor procurando por ele, mas
nada, nem sinal de Toto.
Levantou-se da cama, esticando os braços para cima e depois se
inclinando para tocar os dedos dos pés, um pouco difícil depois de usar
magia élfica na noite anterior. Aquilo realmente podia esgotá-la, quase
como correr uma maratona ou, sabe como é, tentar montar móveis sem as
instruções. Tinha ido dormir à meia-noite e, magia élfica ou não, sentia que
poderia dormir mais algumas horas.
Suspirou. Sempre havia uma desculpa para usar magia élfica. Magia
que não deveria ter. Mas salvar a orquídea Detra definitivamente valia a
pena. A orquídea podia curar um monte de doenças difíceis, ajudar com a
dor da artrite e aliviar os sintomas da doença de Parkinson.
Depois de tomar banho, se enrolou em uma toalha felpuda. Aproximou-
se do espelho embaçado, limpando um pedaço com o dorso da mão.
Olhando seu reflexo, se examinou. Seus olhos âmbar esverdeados, com
aquele toque travesso de marrom no centro, lhe encararam de volta,
mantendo bem escondidas suas ansiedades anteriores. Aplicou um brilho
transparente nos lábios e se sentiu um pouco melhor enquanto dava uma
última olhada no espelho. Vestiu um short cáqui e uma camiseta preta com
o logotipo do seu negócio de paisagismo, uma simples folha de chá, e
calçou um tênis.
Pegando um elástico de cabelo, prendeu o cabelo molhado em um rabo
de cavalo alto. Não atrapalharia e logo secaria com o calor.
Ao notar a hora, serviu-se de um suco de laranja e pegou uma banana
para levar.
Bem, pelo menos morava logo acima do seu local de trabalho. Há muito
tempo tinha decidido que preferia a companhia das plantas à das pessoas.
Além disso, não ter que se deslocar era uma situação em que todos
ganhavam.
Seu apartamento ficava localizado em cima da área privada do viveiro;
um aconchegante apartamento de um quarto com um generoso banheiro
completo com banheira para aqueles longos banhos contemplativos. A
cozinha de tamanho médio se gabava de eletrodomésticos modernos, onde
ocasionalmente deixava sair seu amor por preparar pratos extravagantes.
Não que tivesse um desfile de convidados, na maioria das vezes era só Nel.
Seus funcionários sabiam que seu lugar era estritamente território
proibido. Era uma regra não escrita: “Entre na toca da chefe e arrisque se
transformar em uma planta em vaso”.
Dirigiu-se ao seu viveiro privado para verificar a Orquídea Detra. Seus
ombros relaxaram quando viu que ela continuava tão brilhante e saudável
quanto da última vez que a tinha visto. Sorrindo, saiu do recinto e o trancou.
Não que não confiasse em Carl ou Alice, mas tinha algumas plantas raras e
caras lá dentro, como a Detra. Não eram ilegais, mas definitivamente
atrairiam a atenção errada.
Ao manter Carl e Alice fora, se alguém perguntasse, eles poderiam dizer
honestamente que não tinham ideia do que havia lá dentro. Embora
estivesse bem certa de que eles tinham suas suspeitas. Por que outro motivo
teria todas aquelas fechaduras extras?
Podia ouvir vozes ásperas e se dirigiu naquela direção. Carl estava
levantando vários sacos pesados de fertilizante com facilidade. A gárgula
media dois metros e era construído como um caminhão. Ao seu lado, sua
gêmea menor, Alice, estava levantando a mesma quantidade. Alice media
apenas um metro e oitenta, o que era baixo para uma gárgula, então tentava
compensar em cada oportunidade. Não importava que para Rhianne, que
media um metro e sessenta, ambos parecessem gigantes. Era como trabalhar
com um par de arranha-céus amigáveis.
— Ei, pessoal! — gritou Rhianne antes de se aproximar deles. Não
queria acabar sendo o alvo involuntário de um saco de fertilizante voador.
Tinha havido alguns casos próximos no passado, e ela preferia evitar se
tornar uma “vítima do fertilizante”.
O sorriso de Carl mudou completamente seu rosto, transformando-o de
severo para impressionante em segundos. Com seu tamanho e as
características afiadas de sua espécie, ele era bastante intimidante. Ou pelo
menos era para qualquer um que não o conhecesse. Rhianne o considerava
um ursinho de pelúcia total.
— Oi, chefe, como vai? — ele a cumprimentou com sua voz profunda.
— Estou bem, Carl. Algum sucesso com as garotas ontem à noite? —
Quando as gárgulas alcançavam a idade de cem anos, suas famílias
começavam a sério a pressioná-las para que encontrassem um parceiro para
a vida toda. Aos cento e quatro anos, tanto Carl quanto Alice eram
convidados para festas de solteiros todo mês.
O rubor de Carl era adorável, Rhianne sorriu e deu umas palmadinhas
em seu antebraço, que era o mais alto que podia alcançar.
— Não exatamente, chefe.
Alice jogou sua longa trança loira por cima do ombro.
— Para ser honesta, a maioria desses eventos é uma completa perda de
tempo — bufou. — Os potenciais parceiros só estão interessados no que
você pode fazer por eles, seja dinheiro ou conexões.
Rhianne franziu a testa diante das palavras de Alice. Embora seu
negócio de paisagismo fosse bem-sucedido, sabia que não podia se dar ao
luxo de pagar a Carl e Alice mais do que já pagava. Sentindo a hesitação de
Rhianne, Alice se apressou em acrescentar:
— Quero dizer, viemos de uma família que possui uma mina de
diamantes na fronteira vitoriana. Nunca tenho certeza se os caras me
querem por quem eu sou ou pelo dinheiro da minha família. Francamente,
preferiria ficar sozinha.
Rhianne não sabia que a família de Alice e Carl era rica. Eles nunca
tinham mencionado isso em todas as suas conversas. Pensando bem, a
maioria de suas conversas era relacionada ao trabalho.
— Talvez vocês devessem tentar explorar outras formas de conhecer
possíveis parceiros — disse Rhianne.
Carl, que estava ocupado levantando sacos, fez uma pausa por um
momento e olhou para ela.
— O que sugere, chefe?
Rhianne pensou por um momento, percebendo que tinha que oferecer
uma solução agora que tinha tocado no assunto.
— Bem, vocês já pensaram em explorar seus interesses pessoais fora do
trabalho? Fazer aulas de teatro, entrar para um clube de boliche na grama,
ou até mesmo um clube do livro poderia ser uma ótima maneira de
conhecer pessoas novas.
O rosto de Alice se iluminou com a sugestão.
— Sempre quis aprender a tricotar — disse ela, com seus olhos azuis
brilhando de emoção.
— Tricotar, Alice? Bem, nunca se sabe, você poderia encontrar o amor
da sua vida em um círculo de tricô. — Tricotar não soava como o melhor
lugar para conhecer outra gárgula na opinião de Rhianne, mas quem era ela
para discutir?
Carl, ainda segurando o saco de fertilizante, acrescentou com um
sorriso:
— E imagine os suéteres aconchegantes que você poderia fazer para o
seu futuro parceiro!
Rhianne ofereceu um sorriso divertido.
— Você deveria tentar, Alice.
Antes que Alice pudesse responder, o celular de Rhianne tocou. Rhianne
atendeu automaticamente:
— Bem-vindo à Paisagismo Folha de Chá.
—É Rhianne Alkenn? — perguntou uma voz dura e seca do outro lado.
— Sim, Rhianne falando — ela respondeu. Olhou para Alice, que tinha
levantado uma sobrancelha e articulou com os lábios: “Quem é?”. Rhianne
negou levemente com a cabeça para indicar que não sabia e se dirigiu ao
seu escritório.
— Sou o detetive, sargento-chefe Brett Johannes da Polícia de Nova
Gales do Sul. Acredito que você tenha feito consultoria para nós no
passado. Temos um caso agora. Pode vir à cena do crime na Rua George,
205, imediatamente? — Rhianne olhou fixamente para o celular por um
segundo e franziu os lábios.
— Sargento, não acho que nos conhecemos. — A audácia do sujeito,
nem sequer perguntava se ela estava interessada—. Sim, fiz algumas
consultorias para o inspetor-chefe Rowley. Do que se trata isso?
— Olhe, eu não estaria pedindo a um civil se não achasse que é
importante. Quão rápido você pode chegar aqui? — Seu tom era cortante, e
ela quase podia imaginar o estalo de suas palavras como uma armadilha se
fechando.
Rhianne sentiu os pelos se arrepiarem com seus modos bruscos. —
Bem, esta civil tem um trabalho em tempo integral, então a menos que você
possa me dar alguma ideia do porquê precisa de mim, eu sugeriria que
procurasse outro consultor. — Tudo bem, isso foi duro, mas os casos
policiais sempre lhe deixavam um gosto amargo na boca e embora o
inspetor Rowley sempre tivesse sido educado, esse cara nem estava se
esforçando.
A linha ficou em silêncio por um momento antes que o sargento
respondesse. — Minhas desculpas — ele disse—. Tenho um assassinato de
alto perfil e nossa equipe forense não tem certeza sobre a causa da morte.
Há alguns… aspectos incomuns. — Sua voz se apagou e então se firmou
novamente—. Precisamos descartar o envenenamento. Sei que com os
venenos às vezes é melhor agir rapidamente e por isso — e seguiu-se uma
pausa significativa— realmente apreciaria se você pudesse vir.
Rhianne respirou fundo. Sua curiosidade profissional e a mudança de
atitude dele a fizeram decidir-se. — Tudo bem, qual é o endereço
novamente?
Depois de dizer a Carl e Alice que precisava ir rapidamente à cidade,
Rhianne se dirigiu diretamente ao seu apartamento. Embora sua fiel picape
fosse ótima para as entregas, para uma viagem à cidade, nada superava sua
motocicleta Energica, carinhosamente apelidada de Gee. Estacionar na
cidade era tão divertido quanto um jogo de Tetris no modo difícil, e Gee era
seu código de trapaça.
Ela adorava qualquer desculpa para montá-la: a velocista elétrica podia
ir de zero a cem em tranquilos 2,6 segundos. Claro, era verão e fazia calor
suficiente para fritar um ovo na calçada, mas andar de shorts não só era um
não-não para a moto; dificilmente era apropriado para uma cena de
assassinato. Subiu correndo as escadas, trocou seus shorts por jeans,
colocou uma jaqueta de couro e calçou botas pretas.
De volta à garagem, pegou seu capacete preto e luvas, e saiu zunindo
em direção à cidade, roçando o limite de velocidade. Encontrando um
estacionamento pago perto do edifício, estacionou Gee com um sorriso
zombeteiro. O sargento poderia pagar a conta do estacionamento.
Ao se aproximar do edifício, seus olhos captaram os policiais com seus
uniformes característicos. Quando se dispôs a abrir as portas de entrada, um
policial corpulento a interceptou, bloqueando sua passagem. — Sinto
muito, mas não é permitida a entrada no edifício, senhora. — Ele estendeu
os braços.
— Estou aqui para ver o sargento Johannes — disse Rhianne.
O policial a olhou de cima a baixo de uma maneira que a fez se sentir
desconfortável. — Ele está esperando você?
Por que mais eu estaria aqui? Ela estreitou os olhos para o policial e se
endireitou.
— Ele me disse para me apressar, então você pode ser quem explica a
ele por que me atrasei. Vou sentar ali até que você fale com ele. — Rhianne
se virou.
— Espere! — Ele levantou um dedo enquanto seus olhos se dirigiam à
sua unidade de comunicação—. Vou ligar para ele agora. — O policial
franziu a testa enquanto fazia a chamada. Segundos depois, no entanto,
assentiu com a cabeça.
Johannes deveria ter enviado alguém para buscá-la se isso era realmente
tão urgente, Rhianne resmungou para si mesma. Quase como se
respondesse ao seu pensamento, uma mulher miúda com um terninho azul-
marinho saiu dos elevadores. Enquanto se aproximava, Rhianne notou que
seu cabelo estava arrumado em um coque baixo, com algumas mechas
soltas emoldurando seu rosto. A mulher tinha um nariz pequeno e olhos
escuros inclinados marcantes, que estudavam Rhianne com um toque de
curiosidade.
— Rhianne Alkenn? — perguntou a recém-chegada.
— A própria — disse Rhianne. A mulher lhe deu um olhar avaliador até
as botas e assentiu. Claramente, ela havia passado na avaliação visual.
— Sou a sargento Lisa Chen. Obrigada por vir. Quão longe você estava?
Rhianne lhe deu um breve sorriso. Pelo menos alguém era educado por
aqui. — Moro nas praias do norte — respondeu Rhianne. Claro, o distrito
das praias do norte era um longo trecho de costa, então poderia significar
qualquer lugar entre quinze e sessenta quilômetros da cidade.
— Nossa, não demorou muito.
— Tenho uma moto e testei o limite de velocidade no caminho — disse
Rhianne e notou que os olhos de Lisa brilharam com isso. O
reconhecimento a atingiu nas entranhas. Lisa era uma sobrenatural de
algum tipo, mas seria bastante descortês perguntar exatamente que tipo.
—É por isso o traje — disse Lisa—. Não é só um visual de “sou
durona”.
Rhianne não pôde evitar a risada que escapou de seus lábios enquanto
entravam no elevador. Lisa apertou o botão do último andar.
— Sou paisagista; somos conhecidas por sermos duronas. De que outra
forma eu lidaria com todos os gnomos que tentaram comer minhas rosas?
— Rhianne tentou manter um tom sério.
Lisa riu. — Os gnomos roubam vasos?
— Claro, embora prefiram as rosas, então as mantenho em um recinto
separado. — Não era uma mentira total, mas a alegria de Lisa estava
animando-a e por isso ela estava exagerando para causar efeito.
Elas estavam rindo quando entraram em um corredor fracamente
iluminado cheio de policiais. Suas risadas ecoaram no espaço, atraindo
olhares curiosos dos oficiais que perambulavam por ali.
Um homem de cabelos escuros com um terno elegante se virou, com um
profundo franzir de testa marcando o que de outra forma seria um rosto
masculino atraente. Rhianne podia sentir seu olhar desaprovador sobre elas,
mas não poderia se importar menos.
— Você é Rhianne Alkenn? — Havia uma nota de dúvida em sua voz,
uma que Rhianne já tinha ouvido antes. Ela parecia jovem para seus trinta e
seis anos. A maioria das pessoas esperava que ela parecesse idosa se fosse
uma especialista em venenos.
Rhianne estava determinada a desviar a conversa de qualquer
comentário sobre sua aparência aparentemente juvenil. Lidar com a brigada
do “muito jovem para ser boa nisso” não era novidade para ela, e ela sabia
que não seria a última vez também.
Ela estava pronta para provar que a idade era apenas um número, e no
caso dela, um bastante enganoso.
Seu franzir de testa não se suavizou. — Você tem estômago fraco? Eu
preferiria não contaminar minha cena. — Ele lhe entregou botinas e luvas
de plástico.
— Acho que depende de quão ruim é — ela deu de ombros. — Você é o
sargento Johannes?
— Em carne e osso — respondeu ele. Foi isso uma tentativa de humor?
Era difícil dizer porque seu tom continuava igualmente sério, mas ela
poderia jurar que viu um breve brilho em seus olhos.
— Mostre o caminho. — Melhor acabar logo com isso.
O escritório era opulento. As janelas elegantes davam para o porto, que
brilhava sob o sol da manhã. A mesa era de vidro e curva nas bordas. As
gavetas diagonais eram finas e feitas de madeira escura. Ela duvidava que
contivessem muito. Na parede à esquerda, havia uma enorme estante cheia
de livros que provavelmente nunca haviam sido lidos. Estavam impecáveis.
Na outra parede, penduravam-se algumas pinturas bucólicas. Nenhuma
almofada estragava as grandes poltronas de couro cor de toupeira, que
rodeavam um tapete de cor clara. Mas não foi o tapete que chamou sua
atenção. Um homem de meia-idade jazia sobre ele.
Ele vestia um terno que provavelmente custava mais do que seu
benefício mensal. Ela supôs que ele tinha uns sessenta anos e tinha
aproveitado demais a boa vida, a julgar por sua barriga proeminente. Seus
olhos estavam abertos e olhavam fixamente para o teto. Ela se aproximou
gradualmente e se ajoelhou com cuidado ao seu lado. O rigor mortis já
havia se instalado, então ele deve ter morrido na noite anterior. Suas íris
estavam dilatadas e sua pele tinha um tom azulado. O mais revelador era o
pescoço inchado. Ela se inclinou e pelo canto do olho viu Johannes
tensionando seu corpo, com a mandíbula proeminente. Ela o ignorou. Ele
estava pagando por seus serviços e ela precisava de dados. Eles poderiam
coletar uma amostra, mas ela suspeitava que poderia estar muito diluída até
lá e a equipe forense precisava saber o que procurar.
Ahá! Lá estava, um rastro muito tênue de noz-moscada. Ela recuou
lentamente, levantou-se e então começou a caminhar pelo escritório para
ver se podia detectá-lo em algum outro lugar.
Ela se aproximou de uma das paredes com um interessante quadro de
paisagem, quando de repente a parede se abriu como uma porta, quase
atingindo-a no processo.
— Uf — ela conseguiu dizer antes que um cara de jeans e uma camiseta
do Pink Floyd, olhando para baixo para um tablet em sua mão, se
interpusesse à sua frente. — Ei! Cuidado — disse Rhianne, revirando os
olhos diante da falta de atenção do cara. Ela murmurou entre os dentes: —
Deve estar navegando pelo reino digital da capa do álbum The Wall.
Ele levantou os olhos de seu tablet e deu um passo para trás,
desculpando-se.
— Desculpe, não a vi aí.
Rhianne notou seus impressionantes olhos marcantes de um azul
tempestuoso e na mecha de cabelo vermelho vibrante. Um súbito rubor
tingiu seu pescoço e bochechas de carmesim.
Ela riu; não pôde evitar.
— Bem, você sabe, portas secretas e leitura de tablets não são propícias
para ver obstáculos — com isso, ele corou ainda mais e Rhianne decidiu
que ele era bastante fofo.
Ele piscou e então sorriu.
— Não acho que eu a chamaria de obstáculo. Sou Kai — eles apertaram
as mãos.
— Sou Rhianne, suponho que você esteja com a polícia.
Ele negou com a cabeça.
— Apenas um simples consultor — disse ele. — E você?
Rhianne bufou.
— Não tenho certeza. O que há abaixo de simples consultor?
Uma tosse decidida interrompeu sua conversa. Ambos se viraram em
uníssono para olhar para o sargento Johannes, que não parecia
impressionado com a conversa deles. Talvez ele sentisse que eles estavam
desperdiçando seu tempo de consultoria.
— O que vocês encontraram? — perguntou Johannes, aparentemente a
quem quisesse responder.
Rhianne e Kai se entreolharam e ela fez um gesto para que ele fosse
primeiro. Ela ficou satisfeita que ele não discutisse. Lisa se aproximou de
Johannes e deu a Kai um pequeno aceno e um leve sorriso.
Kai olhou novamente para seu tablet.
— Não há vírus em seus dispositivos, mas alguns e-mails e arquivos
foram excluídos recentemente. E por recentemente, quero dizer ontem. A
maioria das pessoas pensa que excluir arquivos é tudo o que é necessário,
mas eles simplesmente vão para a lixeira.
Rhianne suspeitava que esta era uma frase que ele dizia com frequência
porque foi recitada em um tom quase entediado. Johannes se animou com
suas palavras.
— No entanto — continuou Kai, aparentemente alheio à clara decepção
mostrada nos rostos de Johannes e Lisa —, quem fez isso foi um pouco
mais astuto e também os excluiu da lixeira.
— Então, a informação se perdeu — disse Lisa.
— Não necessariamente — respondeu Kai.
— Não necessariamente — repetiu Lisa. Felizmente foi Lisa quem o
incentivou porque Johannes parecia pronto para sacudir Kai.
— Farei uma varredura completa. É possível que algumas coisas
tenham sido salvas anteriormente ou enviadas por e-mail, ou que haja
rascunhos. Se houver, eu os encontrarei. Claro, pode não ser nada. Arquivos
são excluídos o tempo todo — desta vez ele olhou para Johannes,
claramente conhecia o procedimento. — Vai me levar pelo menos vinte e
quatro horas e vou precisar de todos os dispositivos dele.
Johannes desviou seu olhar para Lisa.
— Consiga as permissões pertinentes — Lisa não se deteve para
questionar o que ele queria dizer. Johannes se voltou para Rhianne. — Você
encontrou algo? — seu tom implicava que ele não acreditava que ela tivesse
encontrado e seus olhos baixaram para o celular dela. Rhianne quase sorriu,
mas decidiu que seria pouco profissional.
— Na verdade, sim — os olhos de Johannes se ergueram de repente e
Kai a encarou. Lisa fez uma pausa em sua ligação telefônica e se virou para
olhá-los.
— Ele definitivamente foi envenenado — disse ela.
— Você tem certeza? — um profundo franzir de testa marcou o rosto de
Johannes.
— Sabe, você deveria tentar sorrir mais. Franzir a testa assim vai
acrescentar anos no rosto, embora sua atitude sempre alegre provavelmente
compense isso — disse Rhianne. Seu comentário provocou um sorriso
contido de Kai, que tentou escondê-lo atrás da mão, e um sorriso completo
de Lisa.
Johannes a olhou, indiferente.
— Você não teria me chamado aqui se não acreditasse que eu sei do que
estou falando — Rhianne cruzou os braços. — O veneno é provavelmente
Romin. Ele é encontrado em viveiros especializados, incluindo o meu —
ela acreditava em ser franca. — Em doses minúsculas, é usado para tratar
certos tipos de convulsões, incluindo epilepsia. Mas em uma dose
concentrada, é fatal em cerca de cinco minutos — e não teria sido uma boa
forma de morrer.
CAPÍTULO 2
***
O
escritório de Nel serviu como pano de fundo para sua sessão de
relatório. Rhianne, tendo removido tanto a peruca quanto a máscara,
agora estava recostada no sofá, tendo abandonado seus saltos altos
pelo caminho.
— Ele está completamente fascinado — declarou Nel.
— Primeiro, ninguém diz “fascinado” mais. Você está mostrando sua
idade, grandão. — Rhianne lançou-lhe um olhar de repreensão. —
Segundo, ele estava apenas intrigado por você. Logo ele vai esquecer desta
“coitadinha”.
— Não há nada de coitadinha em você — disse Nel, e Rhianne ignorou
deliberadamente a omissão de “desta” naquela declaração. — E eu não
acredito nisso. Acho que você causou uma grande impressão.
— Pensei que o tinha espantado.
— Deixe-me adivinhar, você não seguiu o roteiro e ficou mordaz com
ele.
— Prefiro dizer espirituosa, mas como quiser.
— Você o fisgou sendo você mesma. — Seus lábios se curvaram para
cima; ele estava se divertindo.
Rhianne deu de ombros.
— Não tenho certeza se aprendemos algo tão útil.
— Mas, princesa, nós aprendemos algo valioso — exclamou Nel. —
Confirmamos que ele não está nem um pouco afetado pela morte prematura
do seu querido pai. E a ex-esposa poderia estar comemorando com uma
dança de felicidade. Quanto à irmã, o júri ainda está deliberando, mas a
esposa atual… está fazendo uma atuação bastante histérica, quando isso
está fora do seu caráter.
— Parece que todos eles tinham um possível motivo. — Rhianne
levantou os dedos. — Arthur se torna CEO e não precisa mais suportar a
grosseria e provável intimidação do pai. É provável que ambos os filhos
herdem uma grande parte da fortuna. A ex-esposa provavelmente guardava
um ressentimento enorme. A esposa atual também provavelmente receberá
uma boa quantia. E isso sem contar nenhuma das pessoas que ele enganou.
— Sim, mas isso nos leva à oportunidade. O culpado deve ter sido
alguém intimamente familiarizado com ele, alguém que poderia ter
compartilhado uma xícara de café em seu escritório.
— Isso significa que podemos descartar a ex-esposa.
Nel negou com a cabeça.
— Não necessariamente. Ela poderia ter facilmente inventado uma
desculpa, como precisar discutir assuntos relacionados aos filhos. No
entanto, concordo que é menos provável que ela tenha feito isso em
comparação com os outros.
— Isso nos deixa com os meios. Quem conhecia e tinha acesso ao
Romin? — Ela fez uma pausa, considerando a situação. — Acho que se
concordarmos que eles são os culpados mais prováveis, precisamos
investigar mais a fundo seus antecedentes.
— O mais fácil é investigar o lado financeiro e confirmar um motivo.
Se o papai estava descontente com os filhos, ou se o negócio dele estava à
beira da falência, isso poderia mudar todo o panorama. Conheço alguém…
Rhianne o interrompeu:
— Você conhece todos que valem a pena conhecer em Sydney e além.
Nel riu suavemente.
— Isso pode ser verdade, mas quando se trata de assuntos financeiros e
uma investigação de assassinato em curso, fica um pouco mais delicado.
Pode me levar alguns dias para reunir as informações necessárias. Enquanto
isso, talvez você possa ver o que consegue obter do seu encontro de sábado
à noite. Suas conexões podem ser mais profundas que as minhas.
Rhianne considerou a ideia de dar-lhe um bom chute, mesmo que isso
significasse sacrificar sua posição confortável. Quase valia o esforço.
Quase.
— Também acontece que sei que nossa enlutada Sarah Parkes tem uma
consulta fixa no Spa de Luxo do Belmont todos os sábados na hora do
almoço. O que acha de se dar um mimo?
— Se ela realmente estiver tão sobrecarregada pelo luto pela morte do
marido, duvido muito que tenha vontade de aparecer no spa. — Ela admitiu
que a ideia de um dia no spa tinha certo apelo. Fazia tempo demais que não
se dava ao luxo.
— Tenho dificuldade em acreditar que alguém, particularmente sua
esposa troféu, lamentaria genuinamente a perda de Devlin Parkes — disse
Nel. — Claro, ela poderia estar fazendo uma grande atuação em benefício
dos outros, mas isso não significa necessariamente que ela abandonará sua
rotina de cuidados. Se algo, as expectativas de que ela pareça impecável no
funeral poderiam encorajá-la a se mimar ainda mais. Me disseram que ela
se esforça muito, pagando até seis meses adiantados, para garantir seu lugar
no spa e garantir que consiga sua massagista favorita.
— Lembremos também que nem a polícia nem a família emitiram uma
declaração sobre a morte, então talvez ela possa justificar dizendo que está
mantendo as aparências.
— Na pior das hipóteses, você terá duas horas para se embelezar para o
seu encontro. — Nel piscou para ela. — E depois eu levarei você para fazer
compras.
— Por que sou eu quem vai ao spa em vez de você? — perguntou
Rhianne. Embora a ideia de se mimar soasse atraente, ela não estava
totalmente certa se poderia lidar com outra entrevista. Gnomos travessos
eram mais sua especialidade do que esposas enlutadas. E dado o quão bem
ela se saiu com os gnomos…
— Você tem essa habilidade incrível de se conectar com as pessoas,
especialmente com as mulheres. Não seria muito sacrifício da sua parte,
considerando o quão bonita você descreveu que ela era — disse Rhianne.
— Ela seria relutante em falar sobre o marido recentemente falecido se
quisesse flertar comigo — disse Nel. — Além disso, você fez um trabalho
incrível com o “Art”. — Nel riu baixinho.
— Isso pode ter sido sorte, e odeio dizer isso, mas ele estava tentando
me seduzir. Você está dizendo que ela gosta de mulheres?
— Se for assim, ela mantém bem escondido, mas tenho a suspeita de
que ela estaria mais aberta com outra mulher rica da mesma idade. — Nel
levantou a mão para evitar qualquer argumento dela. — Suspeito que seu
sarcasmo também a atrairia, então não há necessidade de fingir ser tola.
— O que faz você pensar isso?
— Qualquer pessoa que tenha conseguido que Devlin Parkes se
comprometesse em outro casamento e tenha permanecido casada com ele
por cinco anos tem que ter uma inteligência séria. Acho que há muito mais
profundidade em Sarah Parkes do que ela revela.
Nel levou Rhianne para casa. Ela se inclinou e plantou um beijo em sua
bochecha.
— Pego você amanhã às dez e meia — disse Nel.
Rhianne ficou um momento vendo o carro desaparecer na esquina antes
de se virar e se dirigir para seu apartamento.
Quando Rhianne chegou às escadas que levavam ao seu apartamento,
percebeu que não havia verificado o viveiro particular para ver a planta de
Romin. Mas já passava da uma da manhã, dormir era uma prioridade mais
alta.
Toto a recebeu com um latido entusiasmado, farejando suas pernas.
— Você foi ao clube hoje?
— Por quê? Estou cheirando a Nel?
— Só um leve rastro. Pude detectar o aroma de sofás de couro e uma
colônia desconhecida, provavelmente pertencente a um homem — disse
Toto, seu tom carregando um toque de acusação.
Apesar do seu cansaço, Rhianne não pôde evitar que os cantos de sua
boca se curvassem para cima.
— Ciúmes? — zombou ela.
— Ninguém jamais poderá substituir o ilustre Toto — declarou ele. —
No entanto, eu ficaria encantado se você encontrasse um marido adequado.
Naturalmente, eu teria que dar minha aprovação primeiro. Ele deve possuir
uma beleza impressionante e um charme inegável, irradiando uma aura de
serenidade e confiabilidade. Um homem de caráter impecável, respeitado
por todos e apreciado por sua lealdade inabalável e inteligência astuta.
Rhianne bufou diante das altas expectativas.
— Nossa, Toto, que lista. Certamente há uma multidão de homens lá
fora esperando para cumprir todos os requisitos.
Toto assentiu com ar de sabedoria, alheio a qualquer indício de
sarcasmo. Rhianne não conseguia entender por que se dava ao trabalho.
— Não se preocupe com isso, Toto. Já deixei claro várias vezes que não
tenho interesse em encontrar um marido — disse ela. Havia decidido
manter em segredo seu próximo encontro com Kai. Rhianne suspeitava que
Toto poderia tomar a liberdade de ir ao restaurante e avaliar pessoalmente
Kai se soubesse. Considerou prudente mudar de assunto.
— Na verdade, Nel e eu estávamos brincando de detetives. — Ela abriu
a porta do seu apartamento e Toto a seguiu para dentro, abanando o rabo
com entusiasmo.
— É vantajoso não estar procurando ativamente, já que pode criar um
atrativo de desinteresse que tende a atrair os homens — disse Toto. — Não
há nada como um toque de desafio para captar a atenção deles.
Rhianne sorriu com ar de suficiência.
— Você é como um cão com um osso, não é?
— Ha, ha. Muito espirituosa — disse Toto, demonstrando que ao menos
entendia o humor.
As reflexões de Toto ecoavam o comentário de Nel sobre Arthur se
sentir atraído por ela. Rhianne estava bastante certa de que o interesse dele
se devia principalmente à competição masculina. No entanto, não podia
ignorar o fato de que Arthur estava disposto a desafiar a autoridade de Nel
ao persegui-la. Apesar do charme e da fineza de Arthur, qualquer um que
conhecesse Nel sabia que era melhor não se meter com ele. Sua reputação,
construída sobre inúmeras histórias, significava que ninguém em sã
consciência gostaria de enfrentá-lo.
Uma lembrança cruzou sua mente, recordando um incidente durante um
dos eventos VIP do clube. Um político de alto escalão havia lhe dado uma
forte palmada no traseiro quando ela passava. Ela havia se virado,
completamente disposta a despejar uma enxurrada verbal sobre ele. No
entanto, antes que pudesse pronunciar uma única palavra, Nel se
materializou ao seu lado, com a raiva gravada em seu rosto. Ele havia dito
ao político sem rodeios que não era bem-vindo no clube. O homem ficou
ali, atônito e nervoso, tentando fazer valer sua importância através de
balbucies incoerentes. Rhianne pensou que ele era um completo idiota por
discutir com Nel, especialmente quando notou os músculos do pescoço dele
se tensionando contra a pele. Finalmente, os seguranças do clube
intervieram, tirando o político à força enquanto ele continuava gritando
insultos e ameaças a Nel até que finalmente o arrastaram para fora.
Alguns meses depois, começaram a circular rumores de escândalo entre
o público, revelando o envolvimento do político com uma mulher casada,
uma destacada apresentadora de televisão. A notícia desencadeou uma
tempestade de controvérsia quando tanto a esposa de muitos anos do
político quanto o marido da apresentadora de TV recorreram às suas contas
de redes sociais para denunciar o romance ilícito.
A esposa distanciada do político, cortando o caos com precisão gélida,
emitiu uma declaração afirmando que a apresentadora era mais que bem-
vinda a ficar com o “inútil infiel”. Proclamou que ela e suas três filhas
estavam infinitamente melhores sem ele.
Em um gesto bastante simbólico, o marido da apresentadora optou por
uma abordagem mais visual. Compartilhou uma imagem nas redes sociais,
capturando um monte de roupas e pertences diversos espalhados pelo
jardim da frente.
Poderia ter sido uma coincidência e os boatos poderiam ter vindo à tona
de qualquer maneira, mas Rhianne não conseguia se livrar da forte suspeita
de que Nel havia desempenhado um papel em sua revelação. Fiel à sua
natureza, Nel permaneceu hermético, sem confirmar nem negar seu
envolvimento.
— Que investigação vocês dois estão conduzindo? — Toto se
acomodou em seu precioso sofá e se enrolou, com as orelhas em alerta.
— A polícia me trouxe como consultora para um caso de assassinato
que envolve um importante incorporador imobiliário do centro. Acontece
que era Romin — explicou Rhianne.
Toto levantou a cabeça.
— Você tem Romin no seu viveiro particular.
— Sim, de fato. Mas não é só o nosso viveiro; há mais meia dúzia, junto
com um punhado de químicos e hospitais. — Rhianne enrolou uma mecha
de cabelo.
— E tudo isso aconteceu logo após o incidente do intruso. Não gosto de
coincidências.
— Por isso Nel e eu estamos no caso — Rhianne pegou um copo
d’água. — Mas honestamente, estou totalmente exausta agora. É hora de
encerrar a noite. Amanhã de manhã, passarei pelo viveiro particular e verei
se algo parece fora do lugar.
Toto saltou da cama, com o rabo erguido e a seguiu até a porta do
quarto. Normalmente ele dormia em uma das poltronas da sala de estar ou
em qualquer canto afastado onde pudesse desaparecer entre as sombras.
Rhianne desabou na cama. O cansaço a invadiu, levando-a ao reino dos
sonhos. No entanto, mesmo dormindo, sua mente permaneceu inquieta,
repetindo os eventos do dia em um loop interminável. A sensação
persistente de que estava metida em algo que a superava.
Na manhã seguinte, Rhianne mal havia tomado um gole de seu café
recém-feito quando seu celular tocou abruptamente. A voz de Alice soava
urgente do outro lado.
— Temos uma situação perto dos portões. Você pode vir?
Rhianne franziu a testa.
— Que tipo de situação? — Antes que pudesse obter uma resposta, a
chamada terminou abruptamente, deixando-a apenas com o silêncio.
Praguejando baixinho, Rhianne olhou para o relógio. Eram apenas sete
da manhã. Não conseguia imaginar o que poderia ter dado errado.
Um grande caminhão de entrega ocupava uma vaga de estacionamento,
e do outro lado, Rhianne podia ouvir o som de vozes alteradas. Ela trotou
ao redor do caminhão e viu Alice, de pé frente a frente com o robusto
motorista do caminhão. Carl se mantinha alguns passos atrás de Alice,
brincando com seu boné e mudando o peso de um pé para o outro. Conflito
não era com ele, e Rhianne não podia culpá-lo por isso. Alice, por outro
lado…
— Esta é a segunda vez que você tenta passar uma mistura barata para
vasos como uma mistura especializada para mudas. Você não passa de um
trapaceiro!
— O que você sabe? Por acaso ensinam a você os diferentes sabores da
terra de onde você vem? — O rosto do motorista do caminhão ficou
vermelho de raiva, sua voz transbordava desprezo.
Alice deu um passo desafiador à frente. Antes que Rhianne pudesse
reagir, Carl se interpôs, envolvendo sua irmã com os braços, contendo-a.
— Ei! — A voz de Rhianne atravessou o alvoroço enquanto ela se
dirigia à cena. O corpulento motorista, Joe, virou bruscamente a cabeça
para olhá-la.
— Você deveria contratar melhor pessoal para o seu viveiro — zombou
Joe. — Ficar perto de pragas é desagradável, sabe? Tenha cuidado ou você
pode pegar as imundícies deles — ele franziu o nariz.
O olhar de Rhianne se aguçou enquanto ela o encarava. Contou até dez.
— Sabe de uma coisa? Você tem toda razão.
O caminhoneiro lançou um sorriso triunfante para Alice.
— Meu viveiro não fará mais negócios com a sua empresa.
A boca de Joe abriu e fechou. Carl afastou Alice e deu um passo à
frente. Joe recuou.
— Isso é uma ameaça! Vou chamar as autoridades — ele advertiu, com
a voz trêmula.
— Faça isso, Joe — disse Rhianne. — Tenho certeza de que a polícia
ficará encantada em receber notícias de um cidadão tão exemplar como
você.
Joe balbuciou algo ininteligível, subiu novamente em seu caminhão e
partiu. Rhianne voltou sua atenção para Alice e Carl, que se balançava de
um lado para o outro.
— Obrigado por nos defender — disse Carl.
Rhianne negou com a cabeça.
— Bem, certamente não foi a melhor maneira de começar a manhã.
— Sinto muito, chefe — murmurou Carl, com o olhar fixo no chão.
Alice, no entanto, continuava olhando com fúria a poeira que se erguia
após a partida do caminhão.
— Eu não sinto nada. Boa viagem — ela cuspiu.
Rhianne deixou escapar um suspiro cansado.
— De fato, boa viagem. Mas agora terei que encontrar um novo
fornecedor e, para piorar as coisas, tenho que sair às dez e meia desta
manhã — ela disse.
No entanto, não fazia sentido ficar remoendo. Rhianne foi para seu
escritório e começou a fazer ligações.
Finalmente conseguiu um fornecedor que podia organizar uma entrega
naquela mesma tarde a um preço razoável. Absorta no processo, percebeu
que não tinha tido tempo de tomar banho nem de trocar a camiseta e o
short.
— Uma manhã difícil? — perguntou Nel, apoiado no batente da porta
de seu escritório. Naquela manhã ele estava especialmente bonito, com um
blazer branco, uma camisa azul-celeste com o colarinho aberto e uma calça
azul-marinho perfeitamente cortada.
A atenção de Rhianne desviou-se de sua situação atual e ela se virou
para olhar o relógio atrás dela.
— Oh não, que horas são?
— Calma! — Nel se aproximou. Começou a massagear o pescoço e os
ombros dela, aliviando a tensão acumulada. — Acabou de dar dez e meia —
ele a tranquilizou. — Eu tinha o pressentimento de que você poderia
esquecer, então queria garantir que tivéssemos tempo de sobra para arrumar
você.
Rhianne foi relaxando aos poucos sob a hábil pressão das mãos de Nel.
— Alguém já disse a você que tem mãos absolutamente celestiais? —
ela disse. Nel riu, fazendo Rhianne corar. — Esquece — ela continuou —, é
claro que já disseram. No que eu estava pensando?
De repente, o comentário de Nel se registrou na mente de Rhianne,
quebrando sua momentânea felicidade.
— Espera aí! O que você quer dizer com “arrumar você”? Eu não vou
para um spa onde estarei praticamente seminua de qualquer jeito?
— Princesa, para o que vamos fazer, preciso que você pareça uma noiva
mimada — explicou Nel.
Rhianne arqueou uma sobrancelha, observando o traje de Nel.
— É por isso que você está vestido assim tão cedo num sábado?
Ela estava brincando porque Nel sempre se vestia elegantemente. Ele
nunca andava informal.
— Exato — Nel sorriu. — Vou interpretar o papel do noivo rico, tão
apaixonado que até acompanha a noiva ao spa.
— Hum-hum. E qual dos seus carros você trouxe para isso? —
perguntou Rhianne.
Nel tinha toda uma coleção de carros, que somava quatro, pelo menos
na última vez que ela fez o inventário. Frequentemente ela zombava dele
por ter apenas um par de mãos e pés para dirigir todos eles, mas Nel não se
abalava com tais preocupações práticas. Ele tinha uma fraqueza por seus
carros.
— Um carro tem que se adaptar à ocasião — ele argumentava.
— Vou dar a você um porta-garrafas de leite personalizado para o
cockpit no Natal — ela disse. — Assim você poderá fazer a entrega de leite
na Fórmula 1.
Nel interrompeu seus pensamentos respondendo à sua pergunta.
— O Lamborghini.
— E você o estacionou aqui? — gritou Rhianne. O Lamborghini
ocupava um lugar especial no coração de Nel, então o fato de ele decidir
estacioná-lo em seu estacionamento sem pavimentação a surpreendeu.
Nel deu de ombros.
— Estou de olho em um novo modelo que sairá daqui a alguns meses
— ele disse. — Você gostaria deste como presente de aniversário?
— Você comprou esse há menos de um ano — Rhianne estalou a língua.
— Além disso, você sabe que não curto carros de luxo.
— Só motos.
Sim, sim. Ela sabia o que ele pensava de seu meio de transporte
favorito.
Rhianne sorriu com ar de superioridade.
— Ah, é? Você se atreve a desafiar minha “simples moto” para uma
corrida de cem metros?
— Você destruiria meu frágil orgulho masculino, então prefiro
permanecer na feliz ignorância — disse Nel. Então ele levantou várias
sacolas cheias de roupas. — Vamos experimentá-las, tudo bem?
A frase do Guia do Mochileiro das Galáxias, “A resistência é inútil!”
ecoou em sua mente.
— Tudo bem — ela disse. — Deixe-me tomar um banho rápido
primeiro.
Depois de se banhar, Rhianne dedicou quinze minutos a experimentar
vários conjuntos. Ela não era particularmente exigente com suas escolhas de
roupas, mas era Nel quem estava indeciso, prolongando o processo de
tomada de decisão.
— Olha — ela disse finalmente, depois de experimentar os mesmos
quatro conjuntos pela terceira vez. — Este está bom.
Rhianne se posicionou na frente do espelho, usando uma saia curta
branca de cintura alta combinada com um top halter da mesma cor.
Nel cedeu.
— Você não vai se livrar tão facilmente quando formos às compras esta
tarde — ela o advertiu.
— Por que não posso usar um desses conjuntos para o encontro? —
perguntou Rhianne. Fez uma careta interior ao perceber que, sem querer,
havia se referido ao seu jantar com Kai como um encontro. Felizmente, Nel
pareceu não notar seu deslize.
— Estes são conjuntos de noiva mimada — explicou Nel. Ele entregou
a Rhianne uma pequena caixa, que ela abriu para revelar uma
impressionante coleção de joias. Em seu interior, aconchegavam-se brincos
de ouro delicadamente elaborados, dois colares de diferentes comprimentos,
uma pulseira delicada e um elegante anel.
Rhianne hesitou por um momento, pouco acostumada a usar tantas joias
ao mesmo tempo. No entanto, Nel insistiu. Ela colocou cuidadosamente os
brincos, sentindo seu sutil peso contra os lóbulos das orelhas, enquanto Nel
habilmente fechava os colares ao redor de seu pescoço. A pulseira adornava
seu pulso perfeitamente, e o anel deslizou suavemente em seu dedo.
De mãos dadas, Rhianne e Nel entraram no spa, com Nel lançando um
olhar adorador na direção de Rhianne. Nel havia estacionado
estrategicamente seu carro perto da entrada principal para que o pessoal da
recepção notasse o impressionante veículo e a chegada do casal.
— Marquei uma consulta para minha namorada para o pacote de ultra
luxo — disse Nel.
Um amplo sorriso se espalhou pelo rosto de Rhianne enquanto ela o
olhava radiante. — Ah, você me mima demais!
— Só o melhor para você, meu amor — Nel deu tapinhas em sua mão.
A recepcionista pigarreou. — Posso ter um nome, por favor?
— Nel Lamont — disse Nel, ainda olhando nos olhos de Rhianne.
— Sim. Tenho a consulta bem aqui — a recepcionista lançou um olhar
coquete na direção de Nel. Então, sua atenção se voltou para Rhianne e,
com um tom profissional, perguntou: — E posso ter o seu nome, senhora?
— Senhora? Uf! Não sou tão velha — queixou-se Rhianne
interiormente, sentindo um toque de irritação. — Rose — respondeu,
omitindo o sobrenome. Não tinha intenção de oferecê-lo.
Nel se inclinou para ela, sua voz mal um sussurro. — Pensei que você
odiasse ser chamada de Rose.
Rhianne deu de ombros, oferecendo um pequeno sorriso. — Melhor
manter a consistência — sussurrou em resposta.
Enquanto estavam absortos em sua troca sussurrada, sua atenção foi
desviada pelo som da porta principal se abrindo.
O sorriso da recepcionista se alargou e ela cumprimentou a recém-
chegada. — Senhora Parkes, que bom vê-la novamente. Estarei com você
em um momento — disse.
CAPÍTULO 6
R
hianne percebeu que era a oportunidade perfeita para iniciar uma
conversa. Olhou para Nel, que entendeu sua intenção e se inclinou
para lhe dar um suave beijo nos lábios.
— Vejo você em três horas, querido.
— Obrigada, amor! — Ela acariciou sua bochecha.
Enquanto Nel saía, Rhianne não pôde deixar de notar que Sarah Parkes
o observava. Quando Sarah finalmente se virou, Rhianne ergueu uma
sobrancelha, mas depois esboçou um sorriso brincalhão.
— Ele tem um traseiro incrível, não é?
Sarah caiu na gargalhada.
— Não incomoda você?
Rhianne riu.
— Significa que você tem um gosto excelente — Piscou um olho. —
Sou Rose — Parabenizou-se mentalmente por não ter se enganado e
revelado seu verdadeiro nome.
Sarah estendeu sua mão com um sorriso amigável.
— Prazer em conhecê-la, Rose. O que traz você aqui?
Rhianne deu de ombros.
— Um tratamento de três horas de algum tipo. Meu namorado que
escolheu.
A recepcionista interveio:
— Senhora Parkes, Rose terá o mesmo tratamento que a senhora.
— Excelente — Os olhos de Sarah brilharam com entusiasmo. — José é
o melhor massagista daqui. Que tal compartilharmos? Ele pode se alternar
entre nós para os diferentes tratamentos.
Rhianne sorriu.
— Me parece ótimo, e é muito gentil da sua parte — Perfeito para seus
planos, pensou.
Sarah fez um gesto despreocupado com a mão.
— Ah, não é grande coisa. Seria bom ter uma boa companhia.
Rhianne riu.
— Bem, desde que você não se importe. Já me disseram que posso ser
bastante impertinente.
A expressão de Sarah mudou.
— Foi aquele gato do seu namorado que disse isso a você?
Rhianne negou com a cabeça.
— Não, esse foi o anterior. Ainda não chegamos a essa etapa com o
atual.
— Entendo. Isso confirma. Tenho a sensação de que você e eu nos
daremos muito bem — Um sorriso caloroso iluminou seu rosto. — Vamos?
— Fez um gesto para que Rhianne avançasse em direção a uma das portas
com moldura dourada. Ao se aproximarem, um homem de cabelos escuros e
pele bronzeada abriu a porta, revelando um aconchegante espaço além.
Rhianne supôs que este devia ser José, o renomado massagista.
José tinha um charme inegável e era bastante atraente. Tinha maçãs do
rosto bem definidas e seus dentes eram de um branco imaculado e
uniforme.
Rhianne avançou com determinação, sua mente focada na tarefa que
tinha em mãos. A chave era obter respostas relevantes, passo a passo,
lembrou a si mesma.
Enquanto se acomodavam no sofá macio e lhes serviam xícaras de chá,
Rhianne lançou um olhar de admiração para o impressionante anel de
esmeralda e diamantes de Sarah.
— Nossa, que anel lindo. É sua aliança de casamento?
Sarah levantou elegantemente sua mão, permitindo que a luz capturasse
as fascinantes facetas da esmeralda.
— Não, este é meu anel de quinto aniversário — disse ela.
— Cinco anos, isso é um marco e tanto. Você recebe um anel novo todo
ano então? — perguntou.
A risada de Sarah encheu o ar, transbordando de alegria.
— Ah, recebo outros presentes, principalmente joias, mas este anel em
particular tem um significado especial. Simboliza um marco em nosso
acordo pré-nupcial.
— Hã? — Rhianne inclinou a cabeça.
— Veja bem, meu marido era rico, então insistiu para que assinássemos
um acordo pré-nupcial — disse Sarah. — A cada ano recebo algo extra. E
agora vou receber uns incríveis duzentos mil por mês, pelo resto da vida.
— E quanto aos bens dele? — Rhianne se inclinou mais perto.
José interrompeu a conversa delas.
— Senhora Parkes e senhorita Rose — dirigiu-se a elas com sotaque
latino, indicando que o seguissem. — Por favor, venham comigo aos
vestiários. Podem se despir lá e pegar toalhas para levar à mesa de
massagem — Lançou um sorriso maroto na direção de Rhianne. — Se
preferir, senhorita Rose, pode deixar a roupa íntima e posso trabalhar em
volta dela — Rhianne notou que ele não se deu ao trabalho de mencionar o
mesmo para Sarah, como se fosse algo entendido entre eles. No entanto,
não teve muito tempo para refletir sobre a postura de Sarah.
— Só atrapalha para uma boa massagem — Seu olhar avaliou Rhianne.
— Você tem um corpo lindo, e José já viu de tudo antes, não é, querido?
— Obrigada — Rhianne devolveu o sorriso a Sarah.
Sarah saiu completamente nua, contrastando com a escolha mais
modesta de Rhianne de enrolar a toalha em volta do corpo. Sarah sorriu
quando notou que ela a olhava.
— Gostou? — perguntou Sarah com um brilho nos olhos.
As sobrancelhas de Rhianne se ergueram diante do comentário
provocante de Sarah. Ela percebeu que precisava responder.
— Você está absolutamente espetacular — elogiou Rhianne. — Seu
marido é muito sortudo.
Uma sombra fugaz passou pelo rosto de Sarah, fazendo seu sorriso
vacilar momentaneamente.
— Ele faleceu recentemente, então já não importa — Com um sorriso
renovado, Sarah subiu na maca de massagem.
— Sinto muito — As palavras soaram ocas aos seus ouvidos e
insinceras mesmo enquanto saíam de seus lábios.
Sarah fez um gesto de descarte com a mão.
— Não sinta. Agora sou livre para fazer o que quiser.
— É mesmo? — O olhar de José se deteve em Sarah.
Sarah lançou um olhar fulminante para José.
— Ninguém sabe ainda que ele está morto, então espero que você
guarde essa informação para si — Seu tom havia se tornado frio e pouco
amigável.
José, que se inclinara mais perto de Sarah, deu um passo para trás.
— Claro, senhora Parkes. A discrição é de suma importância em
Belmont’s — Seu sotaque havia desaparecido por completo. A instrução de
Sarah fora dirigida unicamente a José. Será que ele tinha a língua solta?
Rhianne fez uma nota mental para lembrar dessa informação mais tarde.
— Você tem muita família que ajude você com todos os trâmites? —
Rhianne tentou soar preocupada.
Sarah soltou um suspiro. — Ah, suponho que a filha de Devlin cuidará
de tudo. Ela sempre faz isso. É uma controladora, igual ao pai. Fria e sem
emoções — Sua boca se contraiu. — Ela já encomendou um busto e uma
placa para pendurar na antiga escola dele. Minha participação
provavelmente se limitará às flores, e isso só porque Rita não dá a mínima
para elas. Também terei que encontrar um vestido que o lado da família dele
não possa criticar. Pelo visto, Arthur convidou a mãe dele para comparecer.
Rhianne notou o uso do nome completo. Não muito amigável com
‘Art’, então.
— A única razão pela qual ela viria seria para se certificar de que é ele
quem está no caixão. Dev nunca teve nada de bom para dizer sobre ela,
embora isso não diga muito. Dev criticava todo mundo.
— Incluindo você? — Rhianne se atreveu a perguntar.
— Ah, eu me certificava de interpretar o papel da boa esposa — Ela fez
um gesto com a mão percorrendo seu corpo. — Eu me via bonita e sorria e
assentia nos momentos apropriados. Mesmo assim, não estava isenta de
críticas. Não tinha sido gentil o suficiente com a esposa entediante de um
senador ou não tinha conseguido encantar o último empreiteiro dele. No
entanto, eu me saía melhor que a maioria. Para fúria de Rita ‘a Senhorita
Perfeita’, que sempre buscava a aprovação do papai, e de Arthur, que não se
encaixava na ideia de Dev do empresário implacável. Devlin estava cego
para as ambições e habilidades de sua filha e a falta delas em Arthur. No
final do dia, a única coisa que importava para Devlin era o que Arthur tinha
entre as pernas.
Era uma avaliação mordaz.
— Você tem alguém da sua própria família que possa oferecer apoio?
Os olhos de Sarah se nublaram. — Minha avó morreu há bastantes anos.
Ela me criou desde os dois anos depois que minha mãe me abandonou na
porta dela. Não sei se minha mãe está viva, mas dada sua dependência em
drogas, duvido.
— Não sei o que dizer a isso — disse Rhianne.
Ela se encontrou em um pequeno turbilhão emocional. Por um lado,
havia uma sensação de alívio de que sua própria relação tumultuada com
sua mãe não tivesse levado ao abandono, o que era certamente uma vitória
no departamento familiar. Por outro lado, um toque de amargura se infiltrou
enquanto refletia sobre o fato de que o apoio de sua mãe vinha
principalmente na forma de bens materiais; talvez ela pensasse que os
vestidos de grife fossem a chave para o vínculo maternal.
Sarah e Rhianne tomaram seus lugares nas camas de massagem, de
bruços. Fazia bastante calor na sala e Rhianne tinha decidido seguir o
conselho de Sarah e tinha colocado sua toalha em uma cadeira próxima.
— E você? — perguntou Sarah.
Rhianne achou que era melhor dizer a verdade tanto quanto possível. —
Tenho um pai ausente. Ele aparece a cada poucos anos trazendo presentes
luxuosos.
— E provavelmente pensa que isso compensa os anos intermediários —
disse Sarah.
A perspicácia de Sarah pegou Rhianne de surpresa. Era fácil descartá-la,
com sua aparência bonita e sua conversa leve. Ela também apreciou a falta
de falsa simpatia.
José derramou óleo morno nas costas de Rhianne, e só o aroma foi
suficiente para que seus ombros relaxassem. — Mais ou menos. Sempre há
desculpas, que giram em torno de obrigações familiares e profissionais.
Ela estava tentando soar casual, mas seu tom duro a teria delatado.
— E sua mãe? — perguntou Sarah.
José começou a massagear seus ombros. Ela tinha que admitir que ele
tinha muito boas mãos. — Mais forte ou mais suave? — perguntou ele.
— Mais suave, obrigada.
— Acho que eu preferiria que minha mãe estivesse ausente — Não
havia calor em suas palavras, a massagem a estava adormecendo. Talvez ela
pudesse conseguir um tratamento regular aqui como presente de aniversário
de Nel. Certamente seria mais barato que o Lamborghini. — Sei que soa
cruel, especialmente dada a sua experiência… — ela se interrompeu,
percebendo que tinha pisado na bola.
Sarah soltou uma risadinha suave. — Eu estava muito melhor com a
vovó Bae. Ela foi a pessoa mais carinhosa e atenciosa que já conheci — Sua
voz tinha um sorriso. — Ela costumava recolher todos os animais de rua do
bairro. Durante toda a minha infância, nosso lar foi um refúgio para uma
variedade de companheiros peludos, incluindo gatos e cães. Ela também
dava generosamente comida às crianças do nosso bairro, embora não
tivéssemos muito. É a razão pela qual acabei trabalhando em cuidados
geriátricos. Tenho uma profunda admiração pelas pessoas idosas. Elas não
têm medo de dizer o que pensam. E nossa, elas têm histórias para contar.
Rhianne notou que enquanto falava, Sarah estava relaxando.
Provavelmente ajudava que José agora estivesse espalhando o óleo em suas
costas. — Suponho que sua mãe não seja do tipo carinhoso.
Rhianne hesitou, pesando suas opções. O assunto era delicado, e
facilmente poderia desviá-lo ou evitá-lo. Mas algo na abertura e
vulnerabilidade que Sarah tinha mostrado a fez reconsiderar. Talvez fosse
hora de compartilhar uma parte de sua história, mesmo que fosse com uma
estranha.
Rhianne optou por se abrir. — Estou convencida de que minha mãe
tinha toda uma apresentação de PowerPoint preparada para seu plano de
vida. ‘Metas profissionais: pronto. Casa dos sonhos: pronto. Linda
descendência: ops, rodada bônus surpresa!’
— Bem-vinda ao clube, amiga — disse Sarah.
O tom de Rhianne tinha um fio de amargura. — Eu entendo. Outros
passaram por coisas piores.
— Não é isso o que eu quis dizer — respondeu Sarah.
Rhianne soltou um suspiro. — Já ouvi esse argumento inúmeras vezes
— admitiu. — Mas a verdade é que minha mãe viu uma oportunidade em
uma situação inesperada. Ela me transformou em seu elemento de
campanha.
— Ela é política?
— Algo assim, tudo foi cuidadosamente orquestrado. Enquanto outras
crianças dominavam a arte dos bolos de lama, eu aperfeiçoava minha
reverência. Em vez de parquinhos, eu dançava por salões de baile,
esquivando-me de olhares críticos como uma profissional. E esqueça a
amarelinha, meu jogo era ‘Impressione com sua conversa espirituosa’.
— Aulas de piano? — continuou ela. — Feito. E não nos esqueçamos
das lições de etiqueta. Meu avô era minha rocha numa vida cheia de festas e
eventos elegantes, mas ele morava longe. Estar com ele era como uma
lufada de ar fresco, livre do peso das expectativas. — Ela fez uma breve
pausa. — Aos quinze, eu já estava farta das expectativas da minha mãe.
Trabalhei num viveiro local e economizei cada centavo. Parei de ir aos
eventos elegantes dela. Quando meu pai me deu uma moto durante uma de
suas raras visitas, ganhei a mobilidade que tanto ansiava. Aos dezesseis,
finalmente fui embora para sempre.
Com alguma ajuda de Nel, que lhe encontrou um apartamento que um
investidor precisava manter ocupado por motivos fiscais. Só mais tarde ela
descobriu que ele era o dono. Quando o confrontou sobre isso, ele lhe disse
que havia conseguido um bom negócio e que parasse de fingir que não
precisava de ninguém.
Sarah riu e balançou a cabeça.
— Acho que ela não está exatamente concorrendo ao prêmio de Mãe do
Ano.
— Honestamente, se eu achasse que isso melhoraria suas chances, faria
sem hesitar.
— Você fala com ela?
— Sim. Ela ainda tenta me enganar para que eu vá aos eventos dela.
Mês passado, me convidou para casa para um jantar íntimo, que acabou
sendo um jantar para setenta dos seus amigos “mais próximos”!
— Você tem que admitir que ela tem coragem.
Uma risadinha escapou dos lábios de Rhianne. José havia voltado para
cuidar de suas pernas e suas panturrilhas estavam aproveitando a atenção.
— Sim, determinação não lhe falta.
— Parece que a maçã não caiu longe da árvore — disse Sarah.
Rhianne estava prestes a responder de forma leve e então parou.
— Não tinha pensado dessa forma, mas acho que você tem razão. E
você? O que vem a seguir para você?
— O plano é continuar interpretando o papel de viúva enlutada até que
tudo seja resolvido. É conveniente para mim continuar morando na casa
grande antes que todos os bens sejam distribuídos. Nem mesmo a eficiência
de Rita e os caros advogados que contratei vão resolver todos os detalhes
rapidamente. Aposto que vai levar meses. — Ela inclinou a cabeça para
Rhianne. — Tenho atuado por tanto tempo que acho que mais alguns meses
não vão me fazer mal.
— E depois? — perguntou Rhianne.
— Depois vou viajar um pouco, provavelmente arrumar um cachorro ou
dois, e eventualmente voltar a cuidar de idosos e ouvir suas histórias. Talvez
escreva um livro.
— Cachorros são ótimos. — O sorriso de Rhianne cresceu ao pensar em
Toto. Apesar de escolher aparecer como um cruzamento de maltês, Toto não
gostava de ser rotulado como um cachorro comum. Ela tinha cuidado para
não zombar dele; afinal, ele podia ser “feroz” quando se tratava de defender
sua dignidade.
Rhianne não conseguiu extrair muito mais informações de Sarah
enquanto nadavam algumas voltas na piscina seguidas de saunas
individuais. Apesar disso, Rhianne sentia que havia obtido algumas ideias
valiosas. No entanto, a pergunta permanecia: algo disso a estava
aproximando de resolver o assassinato?
Nel veio buscá-la e ela se aproximou e ficou na ponta dos pés para lhe
dar um beijo na bochecha.
— Rose!
Só quando Nel apertou sua mão e a girou suavemente é que ela
percebeu que esse deveria ser seu nome.
Enquanto Sarah ia embora, ela estendeu um cartão para Rhianne.
— Me liga algum dia. Tenho a sensação de que poderíamos ser boas
amigas — disse ela.
Rhianne sorriu e se surpreendeu ao perceber que falava sério.
— Vou ligar, Sarah. Foi um prazer conhecer você.
Nel colocou a palma da mão na parte baixa das suas costas e a guiou
suavemente para fora.
— Como foi?
— Foi fantástico! — disse Rhianne. — Prefiro uma massagem a um
Lamborghini qualquer dia.
Nel jogou a cabeça para trás e riu.
— Você sempre tem uma perspectiva única. Mas só para você saber, um
deles vale realmente mais.
— Como alguém muito sábio me disse uma vez, as coisas só valem o
que alguém está disposto a pagar por elas. Eu chamaria isso de uma boa
relação custo-benefício. Me sinto bastante relaxada.
— Isso significa que você está pronta para nossa expedição de compras?
— Nel abriu a porta do Lamborghini para ela.
— Tão pronta quanto posso estar. Você sabe que não sou a maior fã de
compras. — Rhianne suspirou, inundada por lembranças de intermináveis
horas em provadores. O constante escrutínio de sua mãe enquanto escolhia
meticulosamente cada roupa, enquanto as vendedoras competiam por sua
atenção para mostrar as últimas tendências. A presença de Rhianne se
reduzia à de um simples manequim, suportando silenciosamente o teste.
— Sim, mas ir às compras comigo é uma experiência completamente
diferente.
— Não me diga que você vai pedir minha opinião. — Rhianne levou
uma mão ao coração e arregalou os olhos para simular espanto.
Nel sentou-se no banco do motorista.
— Você tem opiniões sobre moda? — Era sua vez de parecer surpreso.
Rhianne mostrou a língua para ele.
— Muito madura, princesa.
— Maturidade é superestimada. Além disso, olha quem fala. E não nos
esqueçamos da sua obsessão por carros.
— Não é uma obsessão por carros; é uma coleção de carros. — Nel
ultrapassou um caminhão enquanto acelerava.
Rhianne bufou e agitou brincalhonamente a mão perto do lado do seu
rosto.
— É a mesma coisa.
Os olhos de Nel se estreitaram. Ela não disse mais nada enquanto ele
dirigia bem no limite da velocidade. Era difícil de acreditar, mas ela sabia
que ele nunca havia recebido uma multa por excesso de velocidade em sua
vida.
Chegaram a uma área exclusiva, conhecida por suas butiques elegantes.
As vitrines exibiam designs modernos e elegantes com linhas limpas e
grandes janelas que mostravam produtos luxuosos.
— Só para você saber, não vou usar um vestido. Vou a esse encontro na
minha moto — disse ela.
— Vou alugar um carro para levar você e trazer você de volta para que
possa usar a roupa adequada.
Rhianne ia objetar, mas Nel colocou um dedo sobre seus lábios.
— Ei, qual é o sentido de ter dinheiro se não podemos usá-lo para tratar
bem as pessoas que amamos?
— Você está jogando sujo e tentando me fazer sentir culpada.
— Obviamente. Está funcionando? — disse Nel sem vergonha.
— É muito dizer quando você é mais difícil de recusar que minha
própria mãe — disse Rhianne, surpresa consigo mesma pela comparação.
Nel lançou-lhe um olhar de soslaio enquanto a guiava para a entrada de
uma loja. — Não tenho certeza se deveria me sentir insultado ou não —
disse ele. — Quero que você se arrume para realçar sua beleza porque
quero que todos vejam o que eu vejo.
— E o que você vê, Nel? — Rhianne já sabia que deixaria ele escolher
algo para esta noite.
— Vejo um ser humano lindo, que se preocupa profundamente com os
outros, mas que tem problemas para confiar e se permitir amar.
— Não é verdade — disse Rhianne automaticamente. — Eu amo você,
o Toto e o vovô Angelo.
— Me sinto honrado de fazer parte desse grupo exclusivo, mas me
referia especificamente a parceiros românticos.
— Olha quem fala. Além disso, já tive namorados.
Nel arqueou uma sobrancelha e Rhianne soprou sua franja para afastá-la
do rosto. Seus relacionamentos passados tinham sido mais fugazes que uma
estrela cadente, durando apenas semanas em vez de meses. O compromisso
a longo prazo sempre tinha sido tão elusivo quanto encontrar um unicórnio
no supermercado. Não que ela tivesse um problema com compromisso, mas
nunca se sabia se eles ficariam, então para que se incomodar, certo?
— Você sabe que já ganhou — disse ela em vez disso.
— Não se trata de ganhar. Quero que você seja feliz.
— Eu sei — disse Rhianne e se resignou a usar um vestido esta noite.
CAPÍTULO 7
P
or sorte, Nel não exagerou ao providenciar uma limusine para o
transporte de Rhianne. Em vez disso, um elegante sedã de luxo chegou
para levá-la ao restaurante. Ela chegou pontualmente e sorriu ao ver
Kai esperando por ela na entrada do restaurante, que tinha um vibrante
letreiro de néon e um exuberante jardim.
— Olá — disse ele, percorrendo-a com o olhar e piscando. — Você está
linda.
Se outra pessoa tivesse dito isso, teria soado clichê ou flertativo, mas
vindo de Kai, soava como uma simples declaração da verdade. Ela lhe deu
um sorriso tímido.
— Bem, se eu soubesse que usar um vestido teria esse efeito, não teria
discutido tanto com Nel sobre isso.
Nel havia escolhido um vestido azul-pavão, com saia rodada e um top
justo com decote em V. A cor complementava seu tom de pele e realçava o
verde de seus olhos.
— Nel tem bom gosto. Eu deveria ficar com ciúmes? — perguntou ele.
— Nel tem um excelente gosto tanto para roupas quanto para amigos.
Ele é meu melhor amigo. Mais como um irmão mais velho, eu acho.
Ao ouvir sua resposta, Kai visivelmente relaxou, seus ombros
afrouxaram e um pequeno sorriso se formou nos cantos de seus lábios.
— Vamos? — A voz de Kai era suave enquanto ele indicava que ela
passasse à frente, sua mão pousando na parte baixa das costas de Rhianne.
O contato, fresco contra a seda macia de seu vestido, provocou um
delicioso arrepio em sua coluna.
— Espero que você goste de comida tailandesa — Rhianne olhou para
ele.
— É minha favorita. Adoro os sabores intensos e as especiarias — disse
Kai, com um sorriso genuíno iluminando seu rosto.
— Ah, então vem à tona o verdadeiro motivo pelo qual você aceitou
meu convite.
— Eu também teria aceitado um chá oolong quente, morangos cobertos
de chocolate ou uma refeição caseira — Kai sorriu marotamente.
— Nossa, um encontro barato — Rhianne fingiu surpresa e levou
dramaticamente uma mão ao coração. — Acho que vou desmaiar.
Kai riu.
— Antes que você faça isso, deixe-me dizer que estou mais do que
preparado para fazer a comida caseira, servir o chá e fornecer os morangos
cobertos de chocolate. O que você acha?
— Nem começamos este encontro e você já está me oferecendo outro?
Não se supõe que você deva se fazer de difícil? — A risada de Rhianne
preencheu o ar.
— Bem, você me convidou primeiro, então é justo que eu retribua.
— Um cavalheiro, um cozinheiro e um gênio da tecnologia. Quem está
fora da sua liga agora? — Os olhos de Rhianne brilhavam de alegria e seu
rosto se iluminou.
Enquanto seguiam o garçom pelo restaurante tenuemente iluminado,
seus olhos vagaram ao redor, absorvendo o ambiente acolhedor criado pela
iluminação suave. O brilho projetava sombras suaves nas paredes, criando
uma atmosfera íntima e romântica que envolvia o pequeno canto onde sua
mesa os esperava.
— Não se precipite, você tem que provar minha comida antes de fazer
declarações tão contundentes. Eu não poderia viver sabendo que
decepcionei você — Um largo sorriso se espalhou por seu rosto, revelando
covinhas encantadoras.
— Tenho fé absoluta em qualquer comida que você prepare, mas
mesmo se fosse terrível, o que duvido muito, não me decepcionaria — disse
ela. — Significaria que você tem um defeito e ainda bem por isso, ou então
eu começaria a me sentir insegura.
Seu sorriso se tornou tímido.
— Nesse caso, o que você acha do início da semana que vem?
— Claro, que dia? — perguntou Rhianne. Ela se sentia corajosa e
ousada, mas que diabos, ela realmente gostava do rapaz.
— Como um simples consultor, eu estabeleço meus próprios horários de
trabalho e, a menos que haja uma cena de crime, estou à sua disposição.
— Você é sempre convidado para as cenas de crime? — perguntou
Rhianne. Esta tinha sido sua primeira vez. Para os outros casos, ela apenas
havia revisado as descobertas do patologista forense.
— Acredite ou não, em aproximadamente metade dos casos eles querem
que eu compareça. Depende de vários fatores — Ele inclinou a cabeça para
o lado, seus olhos azul tempestade brilhando na luz suave do restaurante. —
Casos de alto perfil significam mais dinheiro e mais orçamento para
consultores.
— Eu diria que este é definitivamente um caso de alto perfil.
Embora estivessem sentados em um canto, ainda havia outras pessoas
no restaurante e ela não ia mencionar o nome dos Parkes em voz alta.
Kai assentiu.
— E depois há aqueles casos em que se suspeita que haja motivos
financeiros envolvidos. Está ficando cada vez mais difícil manter as
transações financeiras completamente ocultas nos dias de hoje. Claro, eles
podem tornar isso difícil, mas essa é parte da emoção do trabalho. O
dinheiro em espécie pode ser impossível de rastrear, mas ainda assim você
tem que obtê-lo de algum lugar, e hoje em dia os bancos estão vigiando as
coisas mais de perto. Eu sempre sigo o dinheiro — Enquanto Kai falava, ele
a olhou expectante, provavelmente se perguntando se ela reconhecia a
citação.
— Todos os Homens do Presidente — disse Rhianne.
— Você já assistiu? — perguntou Kai.
— Era obrigatório em nossa casa, já que tratava sobre política.
— Hã? — disse Kai.
Rhianne deixou escapar um suspiro. Tudo estava indo tão bem, e então
ela tinha que mencionar algo relacionado à sua mãe. Por que ela estava
fazendo isso ultimamente?
— Minha mãe sempre teve ambições políticas — resmungou.
— Você não parece muito entusiasmada com a ideia.
Rhianne considerou brevemente mudar de assunto, mas não importava.
Melhor tirar isso do caminho.
— Ainda não conheci nenhum político que não minta para benefício
próprio ou que se preocupe genuinamente com os cidadãos que
supostamente representa, embora eu tenha certeza de que deve haver um ou
dois.
— E sua mãe não vai ser uma dessas duas — O tom de Kai era objetivo,
desprovido de qualquer julgamento.
Suas sobrancelhas se franziram e ela deixou escapar um bufo.
— É pouco provável. Já tive minha dose de socialização forçada e não
tenho nenhum desejo de fazer parte de todo esse espetáculo — Rhianne
sacudiu a cabeça, ressurgindo lembranças de conversas forçadas e sorrisos
falsos.
— Sim, concordo. Tudo se resume a uma conversa insuportável e
estratégias frenéticas para escapar quando você se vê preso com um
completo chato — Ele riu baixinho.
Rhianne inclinou a cabeça.
— Você já participou de alguns, suponho.
Os olhos de Kai perderam o foco por um segundo.
— Alguns. Foi durante a época em que eu tentava me estabelecer como
um Tecno Mago respeitável. Meu mentor, o Arquimago da Guilda dos
Magos e conselheiro de estado como a sua mãe, acreditava que era crucial
se relacionar com pessoas influentes e fazer as conexões adequadas.
— Valeu a pena? O Arquimago estava certo?
— De certa forma — disse Kai com um brilho nos olhos que acentuava
suas covinhas mais uma vez. — Durante um evento em que executivos de
alto nível de várias indústrias estavam presentes, uma conversa derivou para
um caso significativo de fraude financeira. Um executivo compartilhou
como havia sido enganado por uma quantia substancial de dinheiro.
Rhianne se inclinou para frente.
— E o que você fez?
Um sorriso brincalhão dançou nos lábios de Kai.
— Ofereci minha ajuda. Era uma oportunidade de mostrar minhas
habilidades como Mago Tecno. Em meia hora, consegui rastrear os fundos
até uma conta nas Ilhas Cayman. O culpado acabou sendo nada menos que
o próprio sobrinho do executivo.
— E o executivo contratou você?
— Não — disse Kai. — Definitivamente houve um pouco de
desconforto devido à conexão familiar. Por sorte para mim, um dos
indivíduos em nosso grupo acabou sendo o superintendente de polícia, o
que foi bastante fortuito.
— Então, ele pediu para você consultar com a polícia?
— Sim. Embora a maior parte do meu trabalho agora venha do setor
privado, prefiro ajudar a polícia. No setor privado, a justiça muitas vezes
pode ser comprometida em favor de proteger reputações. Por isso, me
certifiquei de incluir uma cláusula em todos os meus contratos. Se eu me
deparar com atividades criminosas, as reporto às autoridades.
— Nossa, acho que vou ter que repensar essas festas. Talvez não sejam
tão inúteis quanto eu pensava.
— Tive sorte — Kai deu de ombros. — E às vezes me pergunto se valeu
a pena ter a mandíbula dolorida pelos sorrisos falsos.
O garçom apareceu para anotar seus pedidos, e Rhianne decidiu optar
por um curry vermelho de pato carregado de lichias. Enquanto isso, Kai
escolheu um laab gai de frango desfiado com ervas tailandesas.
Rhianne perguntou:
— Vamos compartilhar?
— Claro — disse Kai. — Compartilhar significa que podemos
experimentar uma variedade maior de pratos.
— Então, você gosta de experimentar coisas novas?
Kai riu.
— Para consternação dos meus pais, sim. Eu me mergulhava em
atividades diferentes a cada ano. Um ano era futebol, no seguinte polo
aquático, e depois espeleologia. Também adorava desmontar coisas e
montá-las novamente. Quer dizer, havia algo muito satisfatório em
descobrir como todas as peças se encaixavam. Adoro desafios e problemas
difíceis.
— Por que eles não gostariam disso?
Kai sorriu.
— Significava conseguir um uniforme e equipamento diferente a cada
ano, especialmente com meus frequentes crescimentos repentinos. Acho
que o que mais preocupava meus pais era a noção de maestria. Eles
acreditavam que se concentrar em um assunto e se tornar excepcional nele
era a chave para o sucesso. Mas eu queria fazer mais do que apenas
algumas coisas. Finalmente, eles chegaram a aceitar quando fui testado e
confirmado como Mago Tecno. Eles me deixaram explorar e perseguir
meus interesses. Além disso, ajudou que meu irmão mais velho escolhesse
um caminho diferente como mago metalúrgico, então eles tiveram que
dividir sua preocupação entre nós. É isso que os pais fazem.
Rhianne tomou um gole pensativo de sua água de coco, refletindo sobre
a conversa. Ela estabeleceu uma comparação com sua própria situação,
onde possuía uma gama de habilidades mágicas, mas não se destacava em
nenhuma em particular. As palavras se formaram em sua mente antes de
pronunciá-las em voz alta, com um toque de ironia em sua voz.
— Não acho que Da Vinci teria concordado.
Os olhos de Kai se enrugaram nos cantos.
— Quando você coloca dessa forma…
— Eu coloco. Vamos brindar aos renascentistas. Que vivam muito e
prosperem — ela ergueu seu copo.
Kai riu e também ergueu seu copo.
— Acho que você está misturando seus períodos de tempo e filmes.
— Por misturar as coisas — sorriu Rhianne.
— Por misturar as coisas.
Eles brindaram com seus copos.
— A propósito, Johannes me ligou para fazer um acompanhamento —
disse Kai.
— Ah, é?
— Ele não estava sendo enganado nem envolvido em transações
suspeitas. Parece estar relacionado a doações políticas perfeitamente legais
— Kai fez uma pausa para tomar um gole de sua bebida. — No entanto,
houve um gasto significativo recentemente em uma joalheria de alto padrão.
Rhianne encontrou seu olhar ansioso, sua expressão suavizando. Ela não
queria estourar sua bolha, mas estava prestes a fazê-lo de qualquer maneira.
— Provavelmente é um extravagante anel de esmeraldas e diamantes,
um luxuoso presente de aniversário de cinco anos para sua jovem e bela
esposa — disse Rhianne.
A boca de Kai se abriu.
— Uma esposa de crise da meia-idade? — Kai levantou uma
sobrancelha. — E como exatamente você sabe disso?
— Bem, deixe-me contar, tenho toda uma história para compartilhar.
Quando terminaram o jantar, Rhianne havia compartilhado todos os
detalhes sobre Sarah e Arthur com Kai. Kai sugeriu que tomassem um
sorvete e dessem um passeio tranquilo pelo calçadão. Eles se dirigiram à
sorveteria e compraram dois cones. Rhianne escolheu um de sabor coco
decorado com lascas de chocolate, enquanto Kai optou pelo refrescante
sabor de manga. Encontraram um banco aconchegante com vista para o
oceano e saborearam seus sorvetes.
De repente, Rhianne sentiu uma sensação de inquietação e começou a
escanear seus arredores. As pessoas fervilhavam ao seu redor, absortas em
suas próprias conversas e atividades, aparentemente alheias a qualquer
acontecimento incomum. Mas ela não conseguia se livrar da sensação de
que algo não estava certo.
Enquanto continuava examinando a área, sua atenção se dirigiu a um
ponto particular à frente, onde acreditou captar um fraco lampejo de magia
e o movimento de uma sombra. Seu coração acelerou, e ela estava prestes a
expressar sua suspeita quando a voz de Kai interrompeu seus pensamentos.
— Ah, acabei de perceber algo — ele refletiu, com uma expressão
pensativa em seu rosto. — Você é como um ímã para os membros da
família Parkes, não é? Posso ver por que Arthur acha você fascinante, no
entanto.
— Tenho pena dele — disse ela. — Ele tem brincado de esconde-
esconde com seu verdadeiro eu a vida toda, graças ao plano mestre do pai
dele — mordeu o lábio. — E sabe de uma coisa? Posso me identificar até
certo ponto. Minha mãe espera que eu me encaixe nesse molde da filha
‘perfeita’ de um político. Mas, como meu avô costumava dizer, a melhor
parte de envelhecer é que você começa a se preocupar menos com o que
está na moda e mais com o que tem para o jantar. Então, decidi que sou
totalmente a favor de envelhecer, enrugada e gloriosamente despreocupada.
— Tenho certeza de que ainda gostaria de você, rugas e tudo.
— Bom, isso é um alívio! Vou começar a praticar minha melhor
imitação de ‘velha ranzinza’ agora mesmo, só para estar preparada.
Ambos riram.
— Então Arthur não atendeu às expectativas do pai. Devlin Parkes
queria um clone e Arthur era muito diferente dele — disse ela depois que o
riso se acalmou.
— Sim. Além disso, fisicamente, ele não se parece em nada com o pai.
É difícil acreditar que Arthur nunca tenha questionado isso.
— Ah, o poder da negação. As pessoas têm um dom para isso. Mas sabe
de uma coisa? — Um brilho de empolgação dançou em seu olhar. — Posso
investigar e ver o que encontro. Vale a pena explorar esse ângulo. Duvido
que a polícia tenha considerado isso ainda.
Suas sobrancelhas se franziram. — Tem certeza de que quer dedicar seu
tempo a isso?
Kai descartou suas preocupações com um gesto. — Está brincando?
Isso vai ser divertido, algo um pouco diferente. Além disso, sempre posso
compartilhar o que descobrir com o Johannes. Serviria para melhorar minha
reputação, se não outra coisa.
— Isso seria fantástico! — Ela se endireitou em seu assento. — Ainda
temos outros dois suspeitos, no entanto. — Rhianne havia apresentado sua
teoria de que o veneno deve ter sido administrado por alguém próximo a
Devlin Parkes, e ele havia concordado completamente. A voz de Rhianne
tornou-se insegura. — Estou tendo dificuldade em elaborar um plano para
organizar uma conversa com a irmã ou a ex-esposa.
Os olhos de Kai brilharam no suave resplendor dos postes de luz, com
um clarão de empolgação dançando neles. — Pode ser que eu tenha uma
ideia sobre como podemos nos aproximar da irmã.
— Eu sabia que havia um motivo para eu gostar de você! — disse ela,
dando uma cotovelada no ombro de Kai.
Kai levou dramaticamente uma mão ao coração, fingindo uma
expressão magoada. — Ah, então você só está interessada no meu cérebro?
— Fingiu fazer bico.
O sorriso de Rhianne se alargou. — Ah não, não se engane — disse ela.
— Eu aprecio muitas coisas em você, homem renascentista. Seu cérebro é
apenas uma delas.
A lua cheia havia se elevado e criado um caminho até o horizonte,
apenas brevemente interrompido pelas ondas quebrando na praia. Ela sentiu
o braço de Kai pousando no encosto de seus ombros com um toque leve
como uma pena. Seu celular tocou. As sobrancelhas de Rhianne se
ergueram. Quem estaria ligando tão tarde? Seu coração acelerou enquanto
ela alcançava o celular.
— Alô.
— Chefe, você precisa vir agora. — A voz urgente de Carl atravessou a
linha telefônica, acompanhada de sons distantes de comoção e vozes ao
fundo.
— Carl, onde você está? Está tudo bem? O que está acontecendo aí? —
A torrente de perguntas saiu em rápida sucessão enquanto ela tentava
entender a situação.
— Estamos na Paisagens Folha de Chá. — Carl desligou abruptamente.
O fim repentino da chamada foi suficiente para impulsionar Rhianne à ação.
Ela se levantou de seu assento, impelida por uma sensação de urgência.
Kai, segurando seus sorvetes, a seguiu de perto enquanto começavam a
andar. Kai igualou seu passo. — O que houve?
— Era o Carl — disse ela. — Ele trabalha para mim, e parecia
absolutamente frenético. Algo ruim está acontecendo.
Uma onda de cenários passou por sua mente. Vandalismo? Não, Carl
teria cuidado disso sozinho. Então ela percebeu: por que eles estariam no
viveiro nesta hora tão tarde? Seus pensamentos corriam, buscando respostas
até que uma realização a atingiu. Ela precisava de transporte. Um carro.
Deveria chamar um? Ou talvez parar um táxi?
Antes que ela pudesse decidir, a voz tranquila de Kai atravessou seus
pensamentos ansiosos. — Meu carro está estacionado no estacionamento da
prefeitura. Eu levo você — ofereceu.
Ela parou e o abraçou. Ele pegou sua mão e a guiou até seu carro.
A intuição de Rhianne lhe dizia que o que quer que estivesse
acontecendo, não era bom. Por sorte, o viveiro ficava a apenas quinze
minutos de carro, e com um pouco de sorte, o trânsito cooperaria.
Kai navegou habilmente pela rota, chegando ao viveiro em dez minutos.
Seus movimentos focados e sua calma confiante permitiram que ela se
concentrasse nas possibilidades. Rhianne começou a contemplar vários
cenários potenciais. Talvez tivesse havido um roubo importante, e Carl
tinha sido chamado pela polícia. Mas então, por que Carl estava no viveiro?
Enquanto entravam na área de estacionamento, os olhos de Rhianne se
arregalaram ao ver quatro carros de polícia estacionados de maneira
desordenada. A cena instantaneamente aumentou sua inquietação.
No momento em que Kai pisou nos freios, Rhianne saiu disparada do
carro, impulsionada por uma onda de adrenalina. Seus pés a levaram em
direção à fonte das vozes alteradas, seu coração batendo forte. Em meio ao
barulho, ela ouviu o inconfundível rugido de Alice e a voz áspera,
ligeiramente mais calma, de Johannes. Que diabos estava acontecendo?
— Ei! — gritou Rhianne, grata pelas aulas de voz que sua mãe uma vez
insistira que ela fizesse. Apesar da atmosfera tensa e irritada, ambas as
partes viraram seus rostos para ela, surpresos pela força de sua voz.
Então, outras figuras na cena entraram em seu campo de visão. Carl
estava a alguns passos à esquerda de sua irmã, enquanto o sargento Chen se
mantinha um pouco atrás. Ao redor deles, um grupo de cerca de dez
policiais permanecia de pé, com posturas rígidas. Rhianne colocou as mãos
na cintura enquanto exigia. — O que está acontecendo aqui?
— Esse… — Alice gaguejou. — Bruto — conseguiu dizer, com os
dedos crispados. — Está lançando acusações contra mim e exigindo revistar
a propriedade.
As sobrancelhas do sargento-chefe Johannes se franziram. — Ela está
insultando um oficial da lei! — disparou.
Rhianne dirigiu seu olhar para o sargento-chefe Johannes. — Você tem
um mandado de busca? — perguntou.
Kai se manteve firmemente atrás dela, sua presença atuando como uma
âncora reconfortante. Trabalhar ao lado de Nel havia lhe proporcionado
valiosas percepções sobre o funcionamento da polícia, sua autoridade e
limitações. Rhianne estava muito consciente de que alguns oficiais
recorriam a táticas de intimidação, e embora pudesse simpatizar com suas
frustrações com o sistema legal, conhecia seus direitos e definitivamente
iria defendê-los.
Os lábios de Johannes formaram uma linha apertada, sua sobrancelha
tremendo quase imperceptivelmente. — Tem algo a esconder, senhorita
Alkenn? Eu teria pensado que uma consultora da polícia valorizaria sua
posição com a polícia e gostaria de cooperar. — Um sorriso presunçoso
brincava em seus lábios.
Rhianne endireitou sua postura, sua altura alcançando seu máximo
potencial de um metro e sessenta, com o impulso adicional de seus saltos
(pelos quais agradeceu silenciosamente a Nel).
— sargento-chefe — pronunciou o título com cuidadosa precisão,
imbuindo seu tom com um matiz desdenhoso que havia aprendido com sua
mãe. — Como oficial da lei, o senhor conhece bem o que dita a lei, e ela
claramente estabelece que se requer um mandado de busca para revistar
qualquer local.
Johannes havia aberto a boca para responder, mas antes que pudesse
pronunciar uma palavra, Rhianne o interrompeu: — E devo dizer, não estou
certa de que seu superintendente gostaria que usasse ameaças para obter
uma entrada ilegal.
Enquanto Rhianne mantinha sua posição, Kai se materializou ao seu
lado, sua presença oferecendo apoio. Seu olhar aguçado captou a dilatação
dos olhos do sargento Chen, seguida de uma sutil mudança para uma
expressão neutra. Guardou essa informação para mais tarde. Voltando sua
atenção à cena, viu Alice de pé em uma postura rígida, enquanto Carl mexia
nas mãos.
A boca de Johannes se curvou em um gesto de desaprovação; seu
maxilar se tensionou visivelmente, tanto que Rhianne quase podia ouvir o
ranger de seus dentes.
— Está insinuando que não vai cooperar?
Rhianne tomou uma respiração deliberada e calmante.
— Simplesmente perguntei se o senhor tinha um mandado de busca, e
não me respondeu. Vou assumir que não o tem, e portanto devo declinar
cortesmente a revista — disse ela. — O senhor ainda não me disse o que
está procurando?
—Isso é parte de uma investigação em andamento, e dado que agora
está implicada, sua consultoria fica revogada até que a situação seja
resolvida — as palavras de Johannes ficaram suspensas no ar.
Rhianne prendeu a respiração.
—Implicada em quê? — exigiu, cerrando os punhos.
Johannes dirigiu sua atenção a Alice.
— Alice Vargas, a senhora está detida sob suspeita do assassinato de
Devlin Parkes.
CAPÍTULO 8
Q
uando Alice soltou um rugido furioso, o caos explodiu ao seu redor.
Os policiais se lançaram sobre Carl, percebendo-o como a maior
ameaça. Alice se impulsionou para frente, mirando uma investida
completa. Johannes, demonstrando uma agilidade notável, esquivou-se do
ataque, evitando por pouco o impacto. Era uma manobra que, em outras
circunstâncias, Rhianne poderia ter admirado. Mas naquele momento, tudo
o que sentia era um ardente desejo de dar um chute ela mesma.
Arriscando sua segurança pessoal, Rhianne se posicionou diretamente
na frente de Alice; suas costas voltadas para a polícia.
— Alice, preciso que você se acalme — suplicou, com o olhar fixo no
de Alice. Recorrendo ao toque mais suave de sua magia, buscou induzir
uma sensação de relaxamento em Alice.
Nesse exato instante, Toto, latindo freneticamente, fez uma entrada
oportuna, ziguezagueando entre as pernas dos oficiais. O furacão peludo de
atividade criou confusão entre a polícia, nenhum deles parecia disposto a
machucar o pequeno e enérgico cachorro. Sua chegada inesperada concedeu
a Rhianne um tempo precioso.
Para seu alívio, a combinação de sua sutil magia e a presença de Toto
teve o efeito desejado. Os ombros tensos de Alice relaxaram ligeiramente,
embora sua expressão desafiadora permanecesse.
— Tudo vai ficar bem — tranquilizou-a Rhianne. — Conseguiremos um
advogado e vamos tirá-lo daqui num piscar de olhos. Isso é uma bobagem.
Afastando-se de Alice, Rhianne enfrentou Johannes e Chen, que
pareciam prontos para agir. Levantou ambos os braços à sua frente,
considerando brevemente a ideia de derrubá-los com um bom chute à moda
antiga. Sacudiu a cabeça, afastando o pensamento impulsivo.
— Se vocês não têm provas suficientes para um mandado de busca,
duvido muito que tenham muito para sustentar sua acusação — disse
Rhianne. — Tudo o que vocês vão conseguir é parecer tolos diante dos seus
superiores.
Chen bufou.
— Seja como for, prosseguiremos com a prisão da senhorita Vargas. Se
interferir, será acusada de obstruir uma prisão.
— Bem — o maxilar de Kai estava tenso e suas palavras cortantes. —
Felizmente, acontece que sou uma testemunha confiável que pode atestar o
contrário.
Chen lançou-lhe um olhar que poderia ter cortado o leite a vinte passos.
— Ainda é a sua palavra contra a de oficiais profissionais, Kai.
A expressão de Kai endureceu, embora permanecesse composto.
— Bom ponto, sargento. Por sorte, não teremos que confiar unicamente
na minha palavra. O juiz terá o privilégio de ver as imagens de vídeo deste
incidente.
«Que câmeras de vídeo?», perguntou-se Rhianne em silêncio.
Chen, sentindo a mudança na situação, olhou ao redor, formando-se
rugas verticais entre suas sobrancelhas.
— Você sabe que é ilegal gravar sem consentimento — disse, dando um
passo para trás.
Kai deu um passo à frente.
— Estão na propriedade da senhorita Alkenn, e ela tem todo o direito de
ter câmeras de segurança instaladas. Câmeras que foram instaladas
profissionalmente por um Mago Tecno, e são capazes de gravar tanto vídeo
quanto áudio.
As camadas de tensão subjacente e as mensagens não expressas que
pairavam no ar eram suficientes para fazer a cabeça de Rhianne girar. Era
evidente para ela que o argumento deles se estendia além da mera
legalidade das câmeras. Enquanto refletia sobre as palavras de Kai,
percebeu que ele não havia mentido, apenas usado uma linguagem
cuidadosa. Embora, por outro lado, não a surpreenderia se ele tivesse um
dispositivo de gravação instalado sem o conhecimento dela. Dadas suas
notáveis habilidades, capturar este episódio provavelmente seria moleza
para ele.
Observando a visível mudança no comportamento de Chen e Johannes,
Rhianne viu que eles também reconheciam as possíveis implicações da
declaração de Kai. Sua agressão deu lugar a uma disposição mais severa e
séria. No entanto, se acreditavam que tais táticas funcionariam com ela,
claramente subestimavam sua resistência. Anos de exposição à marca de
severidade de sua mãe a haviam tornado imune, resultando em uma
saudável falta de respeito pela autoridade.
Chen e Johannes: 0, Rhianne e Kai: 1. Fez um gesto de triunfo interno,
mas logo se acalmou e redirecionou sua atenção para Alice.
— Por favor, coopere e vá tranquilamente. Dirigiremos até a delegacia e
nos encontraremos lá com você — indicou. Alice assentiu a contragosto.
Aproveitando o momento, Johannes se adiantou, colocando as algemas
nos pulsos de Alice. O som da angústia de Carl ressoou no ar, fazendo com
que os policiais ao redor se tensionassem, um deles alcançando sua arma.
A voz de Rhianne ressoou.
— As câmeras estão capturando não só suas táticas de intimidação, mas
também seu claro preconceito contra um ser sobrenatural que não
demonstrou agressão e está desarmado — disse. Voltando seu olhar para
Johannes e Chen, emitiu um severo aviso. — Apresentarei uma queixa
formal sobre a conduta dos seus oficiais hoje. Digam a eles para recuarem
agora.
— Voltem para seus carros, oficiais — latiu Johannes, com o olhar fixo
em Rhianne enquanto ela se posicionava protetoramente na frente de Carl.
A marcante diferença de tamanho entre ela e Carl de repente lhe pareceu
absurdamente engraçada, e ela deixou escapar uma risadinha. O rosto de
Johannes enrubesceu ao ouvir o som.
— Voltarei com um mandado de busca — disparou. — Câmeras ou não,
encontrarei o que estou procurando.
Levaram Alice e se amontoaram em seus carros de polícia que
aguardavam. Com pneus cantando e sirenes soando, afastaram-se em alta
velocidade como se não pudessem esperar para escapar da cena, deixando
uma nuvem de poeira e caos em seu rastro.
Rhianne não estava dando nenhum ponto pela saída dramática.
Sacudindo-se de sua raiva, começou a pensar e se repreendeu por não
ter revisado já seu viveiro privado. Seu estômago se contorceu ao perceber
que havia perdido a oportunidade. No entanto, achava difícil acreditar que
Alice tivesse algum conhecimento sobre Romin. Poderia haver alguma
razão estranha para ela guardar rancor contra Devlin, mas planejar um
envenenamento? Isso era extremo demais e fora de caráter. Alice era do tipo
que o confrontaria em público, talvez até desse um soco ou dois, mas
assassinato direto? Não, não acreditava nisso.
Sua mente corria com perguntas.
— O que você e Alice estavam fazendo aqui tão tarde, Carl? —
perguntou. — E como vocês chegaram aqui? Você conhece algum
advogado? Nel pode ter alguns contatos.
Carl olhou timidamente para o chão. — Alice tem as chaves da van —
disse.
Ela franziu os lábios enquanto pensava em sua lenta van. Estava longe
de ser uma situação ideal.
— Eu levo você até a delegacia — ofereceu Kai, interrompendo seus
pensamentos. — Se sairmos agora, talvez cheguemos antes deles.
Rhianne subiu no banco do passageiro, percebendo que não sentia
necessidade de discutir sobre quem deveria dirigir. Bem, isso era novo. Por
alguma razão, Kai não desencadeava sua habitual necessidade de
independência. Fez uma nota mental para resolver isso mais tarde. Olhando
pelo retrovisor, notou Carl sentado no banco de trás do carro, curvado e
digitando em seu celular.
— Muito bem, confesse, Carl. O que você e Alice estavam fazendo lá?
— perguntou Rhianne.
Carl olhou para seu celular antes de responder. — Não se preocupe com
um advogado, chefe. Minha mãe está mandando um — disse.
Sem dúvida, os pais de Carl e Alice eram bem relacionados e conheciam
muita gente. Isso era uma preocupação a menos.
— Veja bem, chefe, foi a Alice. Ela perdeu um brinco mais cedo e é
uma relíquia familiar valiosa. Ela não queria esperar até amanhã para
recuperá-lo. Espero que esteja tudo bem, chefe. Ela não tinha más
intenções.
— Eu me perguntava o que os policiais planejavam fazer se não
houvesse ninguém lá para abrir o viveiro — disse em voz alta.
Um grunhido chamou sua atenção e ela se virou para olhar para Kai,
que mantinha sua atenção na estrada, mas tinha uma clara expressão
franzida.
— Espero estar errado — disse ele. — Mas você sabe como é. Às vezes
a polícia recorre a invasões “legais” se puderem argumentar que há um
crime em andamento.
Algo no tom cansado de Kai sugeriu a Rhianne que havia mais do que
parecia. Ela fez uma pausa por um momento, assimilando suas palavras.
— Entendo — disse ela. — Então, se eu entendi corretamente, foi sorte
que Carl e Alice estivessem lá, evitando que a polícia encontrasse uma
desculpa para revistar. Quem sabe o que eles esperavam descobrir. — Ela
mordeu o lábio. — Mas isso ainda não explica por que suspeitam que Alice
tenha um motivo para matar Devlin Parkes. — No retrovisor, ela notou que
Carl evitava o contato visual, olhando fixamente pela janela.
— Muito bem, Carl — disse ela. — Você precisa me dizer o que sabe.
Se vou ajudar Alice, preciso de informações.
Carl murmurou entre os dentes; suas palavras mal audíveis. — É melhor
que Alice conte a você ela mesma, chefe. Não é minha história para contar.
Rhianne rangeu os dentes. Gárgulas teimosas! Arrancar a informação de
Alice seria ainda mais difícil. — O mínimo que você pode fazer é me dizer
se ela tinha alguma conexão com Devlin Parkes.
Carl afundou-se ainda mais. — Sim, chefe. Ela tinha.
Ótimo. Rhianne gemeu internamente. Com o temperamento explosivo
de Alice, ela tinha certeza de que qualquer conexão que existisse entre eles
seria de conhecimento público e fácil de obter para a polícia. Seu olhar se
voltou para Kai. Sentindo seu intenso escrutínio, ele se arriscou a lançar-lhe
um rápido olhar de soslaio.
— Seja lá o que você estiver pensando — disse ele, voltando a focar seu
olhar na estrada enquanto manobrava habilmente entre o tráfego —, conte
comigo.
Uma onda de calor invadiu Rhianne, levantando seu ânimo. — Você
nem sabe o que vou pedir — disse ela, formando-se um sorriso em seu
rosto.
— Não importa — disse ele. — Tenho quase certeza de que estarei
disposto a fazer qualquer coisa que você sugira. Você sabe que estou
sempre pronto para novas aventuras.
Ela não pôde resistir ao impulso de estender a mão e tocar suavemente a
de Kai.
— Você soa como um escoteiro — disse ela.
Um brilho iluminou os olhos de Kai, e um sorriso puxou os cantos de
seus lábios. — Isso é porque eu fui um.
— Claro que você foi — disse Rhianne.
Kai tinha a habilidade de surpreendê-la com seus talentos ocultos,
deixando-a curiosa, animada e desafiada. O que mais haveria? O
pensamento provocou um arrepio em suas costas. O desejo de aprofundar
sua conexão persistia, fazendo-a sorrir.
Finalmente chegaram e, por algum golpe de sorte, Kai conseguiu
encontrar um lugar para estacionar a um quarteirão de distância, um
pequeno milagre em uma movimentada noite de sábado. Saíram
apressadamente do carro e correram em direção à delegacia. Quando
irromperam pela entrada, o oficial de plantão levantou o olhar, sua boca se
contorcendo para baixo. Ele os observou de trás da divisória protetora.
— Posso ajudá-los? — perguntou, seu tom neutro, mas cauteloso.
Rhianne suspeitava que ele preferiria estar fazendo qualquer outra coisa,
como organizar sua gaveta de meias por cor, antes de ajudá-los. Que pena.
Para ele.
— O sargento-chefe Johannes trouxe Alice Vargas — disse ela,
ligeiramente sem fôlego pela corrida.
O olhar do oficial os examinou, sua expressão oscilando entre o
ceticismo e a curiosidade. — O sargento-chefe Johannes ainda não
retornou. — Ele umedeceu os lábios.
— Então vamos esperar — disse Rhianne.
Quanto mais eles teriam que esperar? Talvez ela estivesse errada e Alice
estivesse sendo processada em outro lugar. Sentindo sua angústia, Kai tocou
seu braço.
— Você é um familiar ou o advogado dela? — Ele olhou por cima do
nariz, sua postura praticamente gritando: “Você não poderia ser uma
advogada”.
— Eu sou o irmão dela — interrompeu Carl, colocando-se na frente do
oficial.
Rhianne sorriu ao notar que o oficial deu um pequeno passo para trás.
— Bem, se sua irmã for processada, talvez o sargento-chefe permita que
você fale com ela — disse o oficial, seu tom perdendo um pouco de sua
arrogância.
— Talvez? — Rhianne se moveu ao lado de Carl. — E quanto tempo
vai durar esse suposto “processamento”?
A confiança do oficial vacilou enquanto ele gaguejava: — Bem, eh,
depende do oficial responsável.
Os olhos de Rhianne se estreitaram e ela deu um passo mais perto.
— Eu gostaria de ver o oficial responsável imediatamente. — Uma voz
autoritária ressoou atrás deles. Rhianne, Carl e Kai se viraram para encarar
o recém-chegado.
Uma mulher alta, com um metro e oitenta, entrou com passo firme na
recepção, vestida com um impressionante terno vermelho escuro. Em sua
mão direita, arrastava uma pesada maleta metálica. Os olhos de Carl se
arregalaram e seu queixo caiu. Rhianne observou o andar decidido da
mulher enquanto se dirigia ao balcão. Com sua pele escura e traços
angulosos, parecia ter sangue de gárgula, mas seus suaves olhos azuis
adicionavam um toque de doçura. Era como encontrar uma guerreira
amazônica com um toque de magia de gárgula. Que interessante. Uma
gárgula híbrida? Isso sim era algo que não tinha visto antes.
— Carl Vargas? — perguntou a mulher, e Carl assentiu em silêncio,
aparentemente sem palavras. Ela estendeu sua mão para ele. — Sou Marissa
Austin, advogada. Seus pais entraram em contato comigo.
Carl apertou a mão dela sem dizer palavra.
— Olá — disse Rhianne alegremente. — Sou Rhianne Alkenn. —
Estendeu sua mão e Marissa a apertou. Ela estava meio que esperando um
aperto esmagador de ossos da imponente mulher. Para sua surpresa, o
aperto de mão foi firme, mas não avassalador.
Marissa arqueou uma sobrancelha.
— E você é?
— É nossa chefe na As Folhas de Chá — Carl finalmente tinha
encontrado suas cordas vocais, mas ainda estava com os olhos muito
abertos enquanto olhava para Marissa.
Os lábios de Marissa se crisparam de diversão.
— As folhas de chá, você diz? — Reprimiu um sorriso.
— Sim, esse é o nome da minha empresa de jardinagem — disse
Rhianne. — A polícia decidiu aparecer, provavelmente esperando encontrar
alguma desculpa para revistar o local. Por sorte para mim, mas por azar
para Alice, Carl e Alice estavam lá procurando um brinco perdido.
— A polícia tinha um mandado de busca válido? — perguntou Marissa,
voltando ao seu tom profissional.
Rhianne bufou.
— Não, e quando eu disse que eles não podiam revistar sem ele,
Johannes…
— Esse seria o sargento-chefe Johannes — interveio o oficial atrás do
balcão, e diante do olhar fulminante de Marissa, se apressou a se ocupar
com alguns papéis em uma escrivaninha. Rhianne notou a tentativa do
oficial de escutar escondido enquanto mantinha uma distância prudente.
— Enfim, Johannes disse que estava prendendo Alice por suspeita de
assassinato de Devlin Parkes.
— O incorporador imobiliário? — Marissa arqueou uma sobrancelha.
— Esse mesmo — confirmou Rhianne.
Marissa inclinou a cabeça.
— Interessante, não tinha ouvido que ele tinha sido assassinado.
— Não, a polícia e a família estão mantendo tudo muito em segredo.
Não sei por quê. — Rhianne deu de ombros.
— Provavelmente para dar tempo à polícia de encontrar um suspeito
viável — disse Marissa como se não fosse nada. Ela se apoiou no balcão
com um olhar cúmplice. — Eles não gostam quando há um caso de alto
perfil e não conseguem apontar para ninguém. Faz eles parecerem
incompetentes.
— Ah, as aparências importam. — Kai estendeu sua mão. — Sou Kai
Wagner.
A mão de Marissa apertou a de Kai com firmeza, seus olhos o
avaliando.
— Bem, às vezes a aparência e as habilidades se alinham perfeitamente.
— Um sorriso se desenhou no canto de seus lábios.
Rhianne apreciou a franqueza de Marissa. Sentia-se mais otimista sobre
as chances de conseguir a liberdade sob fiança para Alice.
— Sou Mago Tecno e consultor ocasional da polícia — disse Kai. —
Por acaso estava consultando sobre o caso com Rhianne.
Marissa piscou um par de vezes. Voltou seu olhar para Rhianne, com os
olhos cheios de curiosidade. Percebendo a necessidade de ser cautelosa,
Rhianne olhou para o oficial que rondava por ali, sua presença um claro
lembrete de possíveis ouvidos indiscretos.
— Por que chamaram você como consultor? — perguntou Marissa.
Rhianne hesitou por um segundo, tentando pensar em uma forma de
equilibrar a ajuda a Alice e continuar respeitando seu acordo de
confidencialidade. Ela se aproximou mais de Marissa e baixou a voz.
— Bem, digamos que há alguns aspectos únicos neste caso que
requerem uma perspectiva diferente.
Os olhos de Marissa se estreitaram brevemente.
— O processamento levará algumas horas. Há um ótimo lugar noturno
por perto. — Sem hesitar, ela se virou e se dirigiu à saída da delegacia, com
Rhianne, Kai e Carl seguindo-a de perto.
O restaurante cubano fervilhava de animadas conversas, tilintar de
copos e as vibrantes melodias da música Nueva Trova. Marissa se
aproximou do gerente e, em questão de minutos, foram conduzidos a uma
sala reservada. Metade das paredes da sala eram sólidas, enquanto a outra
metade ostentava um treliçado coberto de hera artificial. Protegidos de
olhares indiscretos e da barulhenta música, finalmente tinham uma
aparência de privacidade.
— Pedi alguns aperitivos e bebidas. Não sei se vocês querem algo, mas
ficar acordada até tarde sempre me dá fome — disse Marissa, olhando para
Rhianne e os outros. Então, olhou para Rhianne com intenção.
Rhianne deu um gole em sua bebida.
— Bem, além do meu negócio de jardinagem, que envolve o cuidado de
plantas medicinais raras, também sou uma especialista autoproclamada em
tudo relacionado à botânica — disse ela. — Você ficaria surpresa com a
quantidade de conhecimentos que adquiri sobre essas plantas que podem
tanto curar quanto prejudicar e, às vezes, é uma linha muito tênue.
Marissa se inclinou para frente.
— Ah, o delicado equilíbrio da natureza. Fascinante — disse ela. Então
se voltou para Kai. — E você? Como se encaixa nesta intrigante mistura?
Kai deu de ombros.
— Com o motivo. Sempre há que seguir o dinheiro.
Seus lábios se curvaram em um sorriso irônico.
— Fico feliz que Alice tenha boas pessoas do seu lado. — Sua atenção
se concentrou em Carl. — Então, Carl, como Alice está envolvida?
Carl quase se engasgou com sua bebida, o que fez Rhianne dar umas
palmadinhas em suas costas para acalmá-lo.
— Bem, veja, senhorita Austin, não acho que deva compartilhar
histórias de segunda mão — balbuciou ele, evitando contato visual.
Marissa o estudou atentamente, seu olhar emoldurado por espessos
cílios.
— Carl, por favor, me chame de Marissa. Como advogada de Alice,
preciso ter pelo menos algumas informações para ajudá-la. Entendo suas
preocupações, mas sem alguns detalhes, será difícil para mim assisti-la.
Carl se remexeu nervosamente, brincando com sua bebida.
— E se isso a meter em problemas? — perguntou em voz baixa.
As sobrancelhas de Rhianne se ergueram quando a mão de Marissa
pousou sobre uma das mãos inquietas de Carl, dando-lhe um aperto
reconfortante.
— Deixa isso comigo. Farei e direi o que for melhor para Alice. Pode
confiar em mim — disse Marissa, com um tom suave e doce.
Era um lado de Marissa que Rhianne não esperava. Ela olhou para Kai,
que parecia estar esperando para ver como Carl responderia.
Carl encontrou o olhar de Marissa e respirou fundo.
— Alice disse a Devlin Parkes que ele era um homem morto há alguns
meses.
CAPÍTULO 9
R
hianne praguejou baixinho.
— Por quê? — perguntou.
Os ombros de Carl desabaram e ele deixou escapar um suspiro.
— Você tem que entender, foi no calor do momento. Alice tem um
temperamento explosivo, igual à nossa mãe. Ela diz coisas que não quer
dizer. Você acredita em mim, não é? — perguntou Carl com voz suplicante.
Rhianne estendeu a mão e deu um aperto tranquilizador no braço de
Carl.
— Claro que sim. Se Alice quisesse matá-lo, ela teria feito isso na frente
de uma multidão. Agir às escondidas não é o estilo dela.
Os lábios de Marissa se contraíram.
— Lembre-me de não pedir você como referência de caráter.
Carl pareceu alarmado.
Rhianne assentiu.
— Exatamente, Alice pode ter um temperamento forte, mas um
assassinato a sangue frio? Simplesmente não consigo imaginar.
Marissa se inclinou para frente; seu olhar fixo em Carl.
— Precisamos entender o que levou a isso. O que Devlin fez para
provocar tanta raiva em Alice?
Carl suspirou, com um toque de cansaço em sua voz.
— É uma história complicada, e eu não estava presente durante a maior
parte.
A expressão de Marissa permaneceu suave, mas havia uma firmeza
inconfundível em seu tom.
— Então é melhor você começar a nos contar.
Carl respirou fundo.
— Há cerca de um ano, Devlin Parkes procurou meus pais com uma
proposta. Ele queria comprar o terreno ao lado da mina deles para construir
um resort de golfe. Tinha esses folhetos elegantes mostrando o campo de
golfe exatamente onde fica a floresta. — Ele olhou para Rhianne. — Sei
que você tem preocupações sobre as minas e o meio ambiente.
Rhianne apertou os lábios, abstendo-se de interromper. Ela nunca tinha
sido tímida em expressar suas preocupações sobre as minas e seu impacto
na natureza ao redor. Era uma das razões pelas quais ficou surpresa quando
Alice revelou que seus pais eram donos de uma mina. Alice também tinha
demonstrado apoio à proteção do meio ambiente e tinha um profundo amor
por seu negócio de jardinagem. Talvez por isso eles tivessem mantido em
segredo a mina de seus pais, para não perturbá-la. Embora Rhianne
acreditasse que não teria ficado zangada, ela entendia a hesitação deles.
— É diferente, sabe? — continuou Carl. — Eles extraem usando
métodos tradicionais com picaretas e pás nas cavernas subterrâneas já
formadas.
Rhianne balançou a cabeça.
— Você não precisa me explicar, Carl.
Uma expressão esperançosa encheu os olhos de Carl.
— Você não se importa?
Ela lhe deu um pequeno sorriso agridoce, reconhecendo a ironia em
suas suposições.
— Por que eu me importaria com o que seus pais fazem? Eu não
gostaria que ninguém me julgasse com base na minha própria mãe.
Marissa, com os braços cruzados, assentiu, e o rosto de Carl se iluminou
de alegria.
— Obrigado, chefe, você é demais! — Ele estendeu a mão para
desarrumar o cabelo dela.
— Ei, nada de bagunçar! — protestou Rhianne, tentando fazer uma
expressão séria, mas seus lábios traíram sua diversão. Na verdade, ela
nunca conseguia ficar brava com Carl. Ele era uma mistura peculiar de
ingenuidade e sabedoria que sempre derretia seu coração.
— Muito bem, vamos voltar à história — disse Marissa.
Carl assentiu.
— Enfim, meus pais não pareciam se importar muito, mas Alice estava
furiosa com a possível perda da floresta. Ela tentou convencer nossos pais a
fazerem algo a respeito. — Ele esfregou o queixo. — Mas eles descartaram,
dizendo que não era problema deles. Isso não caiu bem para Alice, então ela
tomou o assunto em suas próprias mãos. Lançou uma campanha, colando
cartazes por toda a cidade e falando nas reuniões do conselho para reunir
apoio.
Ele fez uma breve pausa enquanto seu olhar se tornava distante, então
continuou:
— Alice estava nas nuvens quando o conselho local rejeitou o pedido.
Mas o senhor Parkes não era do tipo que aceita um “não” como resposta.
Ele escalou o assunto para o Tribunal Ambiental. Em resposta, Alice
recorreu às redes sociais e começou a mirar nos políticos, criando um
alvoroço e tanto. A publicidade negativa fez com que o Tribunal Ambiental
hesitasse em tomar uma decisão.
Carl olhou ao redor da mesa.
— Eu não estive presente durante tudo isso, então só posso compartilhar
o que ouvi. De qualquer forma, Alice recebeu uma dica de que Devlin
Parkes tinha ficado impaciente e tinha arranjado para que seus lenhadores,
armados com maquinário pesado, viessem no meio da noite e cortassem
tantas árvores quanto possível. Claro, ele seria multado, mas uma vez que
as árvores tivessem ido embora, seria tarde demais, não é?
Rhianne concordou com a percepção acertada de Carl e abriu a boca
para comentar, mas Marissa se adiantou.
— Absolutamente — interveio Marissa. — Ele teria recebido um
simples tapa no pulso, alguns milhares de dólares em multas que ele teria
visto como um pequeno preço a pagar. E então provavelmente teria
negociado um acordo, aceitando substituir algumas das árvores com a
condição de que seus planos fossem finalmente aprovados.
Carl assentiu.
— Estava caminhando nessa direção, mas Alice reuniu um grupo de
pessoas e eles correram para a floresta para detê-lo. Alguns recorreram a se
acorrentar às árvores para evitar que os lenhadores as cortassem. Para
piorar, Devlin Parkes decidiu aparecer pessoalmente, garantindo que os
lenhadores seguissem suas ordens.
Rhianne interveio:
— Talvez ele tenha pensado que alguns dos lenhadores pudessem ter
uma mudança repentina de opinião e perceber o que ele realmente estava
tramando.
Rhianne conhecia o tipo. Quando o dinheiro está envolvido, as pessoas
têm uma notável capacidade de fazer vista grossa. E neste caso, o corte de
árvores era o sustento deles.
Devlin Parkes provavelmente não era do tipo que aceita graciosamente
um “não” como resposta. Rhianne o imaginava como alguém que se sentia
com direito, sempre se esforçando para conseguir o que queria. Alice e seu
grupo teriam sido um espinho constante em seu lado, desafiando sua
autoridade a cada passo. Ela apostaria contra os gnomos que esses atrasos
na aprovação lhe custaram mais do que uma simples multa. Bem, talvez não
contra os gnomos; eles eram espertos demais para aceitar a aposta.
Provavelmente se tornou uma vendeta pessoal para ele. Ele queria provar
que podia vencer, e Rhianne podia imaginá-lo saboreando o doce gosto da
vitória em seus lábios, particularmente quando se tratava de esfregar na cara
dela.
Carl brincava com a bebida intacta à sua frente, seu olhar fixo em seu
conteúdo.
— Bem, pelo que ouvi, Alice não se conteve. Ela enfrentou Parkes cara
a cara, gritou com ele e o ameaçou.
Marissa se inclinou para frente com os olhos brilhantes.
— Você sabe por acaso o que ela disse?
Kai recuperou seu tablet e o colocou no centro da mesa, garantindo que
todos tivessem uma visão clara. Não era surpresa que alguém tivesse
captado um vídeo do incidente. Rhianne pensou que, nos dias de hoje,
quase qualquer pessoa com menos de sessenta anos imediatamente
começava a gravar. Ela prestou atenção enquanto as imagens revelavam que
Devlin Parkes tinha trazido mais do que simples lenhadores. Ao seu redor,
havia uns cinco caras corpulentos, então ele devia estar esperando
problemas; talvez até mesmo ansiando pela confrontação. Kai aumentou o
volume e ela pôde ouvir a mistura do som de motosserras e gritos. Alice
entrou no enquadramento. Ela estava gesticulando selvagemente e
caminhou diretamente em direção a Parkes. Antes que pudesse se aproximar
demais, um dos caras corpulentos se interpôs na frente dele. Parkes zombou
atrás do guarda.
Quem estava filmando se aproximou e a voz de Alice se ouviu alta e
clara:
— Você acha que é um homem corajoso vindo aqui? Não passa de um
covarde, um inútil que se esconde atrás de capangas — gritou Alice
tentando se mover para ver Parkes, mas o guarda continuava bloqueando-a.
— Isso é apenas declarar os fatos — comentou Marissa.
No vídeo, Alice continuou sua diatribe.
— Pode ser que você se sinta seguro atrás da proteção do seu capanga
por agora, mas lembre-se das minhas palavras: quando eu encontrar você,
vou fazer você em pedaços, como queria fazer com essas árvores. Vamos
ver como você gosta!
— Bem, isso poderia ser interpretado como uma ameaça de dano físico
— disse Marissa.
— É o mesmo que ameaçar assassinar alguém? — perguntou Rhianne.
Marissa franziu os lábios.
— Absolutamente não. É mais uma expressão metafórica, talvez um
pouco de licença poética no calor do momento. Vou me certificar de que o
juiz veja dessa maneira.
Kai pausou o vídeo.
— Ele se desvia para focar em uma manifestante que se acorrenta à
árvore. Vou continuar procurando para ver se consigo encontrar algo mais.
Rhianne lhe dirigiu um sorriso agradecido.
Marissa se levantou, olhando para seu relógio Longines de ouro.
— Acho que já sei o suficiente para garantir a liberação de Alice. Vamos
voltar antes que ela perca a compostura e, sem querer, dê à polícia munição
para usar contra ela. É provável que estejam atentos a qualquer passo em
falso, talvez até tentando provocá-la.
Rhianne foi pegar sua carteira e notou que Carl e Kai estavam fazendo o
mesmo. Marissa negou com a cabeça com um sorriso conhecedor.
— Ah não, esta é por minha conta, e é tudo parte da grande conta de
despesas — disse, levantando uma mão para antecipar qualquer objeção. —
Todos vocês forneceram informações inestimáveis. Confiem em mim, seus
pais ficarão mais do que felizes em pagar a conta desta refeição — piscou
um olho.
Rhianne esperava que isso significasse que Alice estaria de volta às
‘Folhas de Chá’ como de costume. Ambas eram fabulosas com as plantas.
Nunca tinha ocorrido a ela até agora que era incomum para as gárgulas.
Elas tinham uma mão verde secreta oculta sob seu exterior pétreo. Carl
podia persuadir as orquídeas mais delicadas a florescerem, enquanto Alice
tinha um dom com as flores difíceis de cultivar. A vida estava cheia de
surpresas deliciosas, e o mistério de seus talentos verdes era apenas mais
uma peça do quebra-cabeça.
Todos voltaram a entrar na delegacia.
— Estou aqui para ver o oficial responsável — anunciou Marissa assim
que cruzaram a soleira da porta.
Rhianne se perguntou se era uma tática intimidadora. Certamente
funcionava com ela. Sabia como projetar sua própria voz, mas podia
aprender uma ou duas coisas com Marissa. Viu o mesmo policial encolher-
se diante do som e voltar-se relutantemente para eles.
— Vocês voltaram — disse com um toque de resignação.
Rhianne se conteve de perguntar se ele tinha sentido falta da sua
encantadora companhia. Este era o show de Marissa.
Marissa simplesmente levantou as sobrancelhas e o encarou.
— Estou aqui para representar minha cliente. Se alguém falar com ela
sem mim, vou apresentar uma queixa ao juiz. Há alguém lá dentro falando
com ela? — Marissa fez alarde de tirar seu tablet e usar a caneta brilhante
sobre ele.
— Vou verificar — disse o policial e se apressou a sair.
Alguns minutos depois, Johannes saiu, com as sobrancelhas
profundamente franzidas. Ele se aproximou do balcão com movimentos
precisos e um tanto rígidos.
— Sou o sargento-chefe Johannes — disse.
Marissa colocou sua pasta metálica na borda do balcão, causando um
forte baque.
Rhianne estava tomando notas: ‘conseguir pasta metálica’.
Kai se apoiou contra a parede, aparentemente compartilhando sua
diversão, enquanto Carl se movia nervosamente entre seus pés.
— Marissa Austin, advogada de Alice Vargas. Estou aqui para ver
minha cliente.
Johannes passou a mão pela cabeça, embora seu cabelo fosse curto
demais para precisar de ajuste.
— Ainda estamos processando-a.
Marissa se inclinou para frente.
— Preciso saber os motivos para acusar minha cliente e a evidência que
o sustenta. Se não se sustenta, você tem duas opções: liberá-la no ato ou se
preparar para uma ordem do juiz.
Johannes apertou a mandíbula, estreitando os olhos.
— Sua cliente, Alice Vargas, está sendo acusada do assassinato de
Devlin Parkes.
Marissa permaneceu serena; seu rosto parecia tão imóvel que parecia ter
sido talhado em marfim.
— Acusada sendo a palavra-chave. Tenho certeza de que o Juiz… —
Olhou para seu celular e rolou por ele. — Hmm. — Seus olhos brilharam
com esperteza. — Se não for o Juiz Carruthers quem está de plantão. Ele
detesta tanto ser interrompido durante sua partida de bridge aos sábados à
noite.
Johannes resmungou.
— Temos testemunhas e gravações dela ameaçando violentamente a
vítima.
O sorriso de Marissa se transformou em uma expressão predatória.
— Ah, as maravilhas da evidência com marca temporal. Essa gravação a
que se refere é de onze meses atrás. Alice não encostou um dedo em
ninguém na floresta. E quanto à sua ‘ameaça’, não foi nada além de uma
metáfora engenhosa proferida em um momento de exasperação.
O rosto de Johannes tornou-se de um tom carmesim.
— Metáfora?
— Diga-me, Detetive… — Ela bateu seus longos dedos contra o balcão
e pareceu pensativa. — Desculpe, não peguei seu nome. Terei que colocá-lo
no meu relatório.
Johannes cerrou a mandíbula. — É sargento-chefe Johannes.
— Ah, estou curiosa, sargento-chefe. Pode confirmar se a vítima foi
brutalmente espancada? Veja bem, os socos de gárgula deixam uma marca
bastante distintiva.
O olhar de Johannes se voltou para Rhianne; sua expressão cheia de
advertência. — Se você revelou qualquer informação confidencial
relacionada à investigação…
— Vamos, vamos, sargento-chefe — arrulhou Marissa. — Não façamos
acusações que não podemos sustentar. A senhorita Alkenn não revelou nada
sobre a investigação. Mas sua reação me diz que a causa da morte não se
alinha facilmente com minha cliente, não é?
O rosto de Johannes tornou-se de um tom desagradável de vermelho,
seus lábios apertados em uma linha fina. — Não posso revelar detalhes da
investigação, nem mesmo ao advogado do acusado.
— Não espero que o faça — disse Marissa, com um tom que mudou
para sério e profissional. — Mas nós dois sabemos que sem provas sólidas,
o juiz Carruthers não ficará feliz. Ele é bastante próximo do seu
Comandante da Área Policial, então seria prudente que você considerasse
isso antes de manchar qualquer reputação que possa ter. Então, quando
disse que esse processamento seria concluído? — Marissa agitou seu
celular na mão.
— Vou terminá-lo agora — cuspiu Johannes e virou-se.
— Faça isso — disse Marissa.
Finalmente, a porta lateral se abriu, revelando Johannes que emergia
com uma Alice mal-humorada a tiracolo. Ela não olhou em sua direção
como se sua presença não fosse mais que um incômodo. Sem nem mesmo
um gesto de reconhecimento, ele destrancou sem cerimônia as algemas dos
pulsos de Alice.
O olhar de Johannes passou entre Marissa, Kai e Rhianne. Marissa
respondeu ao seu olhar fulminante com um sorriso tranquilo.
— Isso não é o fim — disse Johannes.
A resposta de Marissa estava impregnada de partes iguais de confiança e
provocação. — Ah, posso garantir que não é.
Eles saíram da delegacia, deixando para trás a atmosfera sufocante. Lá
fora, o ar noturno os abraçou, trazendo um toque de frescor que
proporcionava um breve alívio do calor persistente do verão.
— Você foi incrível! — soltou Carl. Todos os olhares se voltaram para
ele, e um rubor cobriu suas bochechas, contrastando com sua pele escura.
Marissa respondeu com um bater de cílios. — Ora, obrigada, Carl. —
Seu tom provocativo só aprofundou o tom carmesim no rosto de Carl.
Enquanto isso, Alice permanecia em silêncio, seu olhar fixo no vazio.
Rhianne colocou uma mão reconfortante em seu braço. — Você está bem?
Alice encontrou o olhar de Rhianne. — Sinto muito por trazer
problemas à sua porta. — Sua voz tremia.
Rhianne bufou. — Não se culpe por nada disso. A polícia passou dos
limites, e sei que você não assassinaria ninguém.
A voz de Kai se tornou dura. — Sério, Johannes passou dos limites
acusando você de violar seu acordo de confidencialidade.
Era comovente que a raiva de Kai ardesse intensamente em seu nome.
— Você se lembra do que a Li… a sargento Chen disse, certo? Ela
também ameaçou tirar seu trabalho de consultoria. Ela tem uma lasca no
ombro e está cuspindo ameaças vazias e acusações sem fundamento.
Rhianne deixou passar, mas estava bastante certa de que tinha sido
importante para Kai. Havia uma história ali.
— Ainda temos nossos empregos?
A pergunta de Alice pegou Rhianne de surpresa, e ela voltou seu olhar
bruscamente para ela. — O quê? Por que diabos você pensaria que não teria
seus empregos?
— Você não está brava que a polícia queira revistar seu lugar, que
tenham me prendido? Sei que deveria ter ficado mais calma, mas…
As palavras de Alice atingiram Rhianne profundamente, e ela sentiu
uma onda de proteção por ela e Carl. Estendeu a mão e agarrou as mãos de
Alice. — Alice, não estou brava com você. Estou furiosa com a polícia por
suas ações equivocadas e a forma como trataram você. Você é inocente,
pega na incompetência deles.
Enquanto as palavras saíam de seus lábios, Rhianne sentiu que era
invadida por uma renovada sensação de determinação. Sabia que tinha que
redobrar seus esforços para encontrar o verdadeiro assassino. Não ia ficar
de braços cruzados e deixar a polícia culpar sua gente.
— Obrigada. — A expressão abatida de Alice se iluminou.
Por outro lado, o entusiasmo de Carl era difícil de conter enquanto ele
se apressava para lhe dar um forte abraço. Rhianne se viu
momentaneamente presa em um abraço de urso que ameaçava espremer o
ar de seus pulmões.
— Argh, não consigo respirar — conseguiu protestar, sua voz abafada
pelo abraço repentino. Carl a soltou instantaneamente, seus olhos se
arregalaram alarmados.
— Eu machuquei você? — ele perguntou, segurando seus ombros como
se ela fosse um vaso frágil prestes a se quebrar. Procurou por qualquer sinal
de dano.
— Não, não machucou. Estou perfeitamente bem — ela o assegurou
com um sorriso. — Vocês dois são funcionários fantásticos, e mal posso
esperar para ver vocês dois na segunda-feira.
— Pode contar com isso, chefe. Estaremos lá com sinos e apitos —
interveio Carl.
A ideia de Carl aparecendo com sinos desencadeou uma gargalhada
espontânea de Rhianne, e ela notou que as risadas de Kai se juntavam.
Claramente, eles compartilhavam um senso de humor similar.
Marissa sorriu. — Acho melhor eu tirar minha cliente daqui e começar a
preparar alguns documentos. Posso contar com você para ser testemunha de
caráter se surgir a necessidade? — Ela fez uma pausa por um momento,
seus olhos brilhando. — É claro, vou fornecer um roteiro para você. Você
sabe, só para garantir que dê a melhor referência de caráter possível.
Instruções específicas e tudo mais.
Rhianne bufou. Quer dizer, sério, uma garota diz que Alice teria sido
mais propensa a bater no cara do que a envenená-lo e de repente você
precisa de instruções?
Depois de se despedirem, restaram apenas ela e Kai de pé na calçada.
Eles caminharam em direção ao carro de Kai, e ele hesitou por um
momento.
— Bem, certamente não era assim que eu imaginava que nossa noite se
desenrolaria — disse ele.
Rhianne sorriu e se apoiou contra o carro.
— Se você pensa em ficar por aqui, senhor Consultor Especialista, é
melhor se acostumar com a emoção e o caos que parecem me seguir aonde
quer que eu vá. Os problemas têm um jeito de me encontrar.
— Eu poderia usar um pouco de emoção, e os problemas são
subestimados — Kai piscou para ela.
Rhianne riu. Estava tentada a sugerir que ele a acompanhasse para
tomar uma bebida, mas pensou que todos poderiam usar um tempo para
processar as coisas.
— Estou ansiosa para provar sua comida caseira na próxima segunda à
noite — disse em vez disso.
Kai sorriu.
— Sem pressão, né? Mas tenho uma proposta adicional. Vamos nos
encontrar na segunda de manhã na Rueben, a confeitaria francesa na rua
Clarence.
Rhianne arqueou uma sobrancelha.
— Ah, é? E por que Rueben?
Os olhos de Kai brilharam.
— Bem, dizem por aí que a legista tem uma queda pelos croissants
fresquinhos deles.
CAPÍTULO 10
R
hianne dormiu até tarde no domingo de manhã, sentindo o efeito da
noite prolongada. Resmungou consigo mesma, percebendo que devia
estar envelhecendo se já não conseguia aguentar noites longas
seguidas. Depois de tomar banho, se vestiu e decidiu que era hora de
inspecionar o viveiro particular. Duvidava que pudessem conseguir um
mandado de busca num domingo, mas não queria tentar a sorte. Pegando
uma maçã, desceu as escadas onde Toto cochilava com as patas para cima.
— Bom dia, dorminhoco! — exclamou.
Toto se levantou num pulo e latiu furiosamente, e Rhianne riu.
— Alguém está um pouco nervoso esta manhã.
— Você também estaria se tivesse empreendido a formidável tarefa de
enfrentar todo um esquadrão de policiais sozinho — bufou Toto, com o
rabo erguido.
Os lábios de Rhianne se curvaram num sorriso.
— De fato, Toto, sua oportuna intervenção definitivamente fez a
diferença.
Toto estreitou os olhos.
— Devo dizer que seu reconhecimento da minha bravura é um
desenvolvimento bastante inesperado.
— Ah, sua bravura nunca esteve em dúvida — disse ela. Só duvidava da
magnitude de seus feitos heroicos, mas sabiamente guardou isso para si
mesma, para evitar que ele mordiscasse seus dedos.
Toto resmungou, mas se acalmou o suficiente para permitir que ela o
acariciasse.
— É certamente afortunado que Alice tenha obtido sua liberdade —
disse ele.
Rhianne o olhou.
— E como exatamente você sabe disso?
— Não deveria surpreender você que eu tenha decidido me envolver
ativamente.
Sua sobrancelha se arqueou com surpresa.
— Você foi como águia?
Ela não o tinha visto nem sentido.
Ele sorriu, claramente satisfeito consigo mesmo.
— De fato, você não esperava por isso, não é?
— Não, eu estava um pouco preocupada discutindo com aqueles
policiais grosseiros.
Rhianne recuperou a chave do viveiro particular, uma estufa de vidro
coberta com tela de sombreamento. Ao se aproximar da porta principal,
protegida por um cadeado, sentiu-se aliviada ao não ver sinais de
manipulação. Ao entrar no viveiro, dirigiu-se diretamente à seção onde
guardava os espécimes de Romin.
Havia apenas duas plantas, indistinguíveis de orquídeas para o olho
inexperiente. Avaliou sua condição, verificando o pH do solo e
inspecionando os delicados estames onde residia a substância curativa. Com
extremo cuidado, utilizou tesouras longas e finas e pinças, ciente de que
mesmo um toque de seus dedos poderia fazer com que murchassem.
Rhianne pegou seu celular, capturando múltiplas fotos dos espécimes de
Romin enquanto se certificava de que a data e a hora fossem mostradas
claramente. Para produzir o veneno, seriam necessários no mínimo três
estames. Ela exalou um suspiro que nem sequer percebera que estava
contendo. O veneno não se originara de seu próprio estoque.
O latido de Toto ressoou pela área, um claro chamado de atenção.
— Já vou! — respondeu Rhianne.
Ela se dirigiu para a extremidade oposta do amplo espaço. No entanto,
ao passar pela porta, seu olhar foi atraído por algo inesperado: uma pena
preta e brilhante presa em uma das grades de ventilação acima. Corvos não
eram comuns na área, o que a deixou perplexa.
— Talvez corvos australianos? — perguntou-se em voz alta. Ficando na
ponta dos pés, arrancou cuidadosamente a pena de onde estava presa e
continuou seu caminho.
Toto estava farejando intensamente o chão perto dos sacos de
fertilizante.
— O que foi? — perguntou ela.
— Alguém esteve presente neste lugar. Encontrei pegadas — respondeu
Toto, seu nariz ainda investigando, com uma expressão perplexa em seu
rosto peludo.
— No viveiro particular? — Sua mão voou para a garganta. — Você
sabe quem poderia ter sido?
Sua mente se encheu de perguntas. Quem esteve aqui? Para roubar o
quê e fazer o quê? Tentou lembrar a si mesma que a planta Romin não havia
sido tocada, mas a mera ideia de que alguém tivesse entrado sem permissão
em seu espaço privado era perturbadora.
Como tinham conseguido entrar sem deixar sinais de arrombamento?
Teriam forçado facilmente o triplo cadeado, ou era uma mostra de
habilidade excepcional? O cenho se aprofundou em sua testa enquanto
contemplava os diversos cenários possíveis.
— Hein? Por que não há outras pegadas que levem a este ponto desde a
porta? — Ela se ajoelhou e examinou de perto o chão, escrutinando cada
centímetro em busca de algum sinal ou pista. Seu olhar então se dirigiu ao
teto de vidro, meio esperando ver um painel quebrado, mas estava intacto.
Toto rosnou.
— Eles não entraram pela porta.
Ela esfregou as sobrancelhas e se inclinou para estudar as pegadas.
— O que você quer dizer?
— Estas pegadas pertencem a um elfo — disse Toto. — E eles
chegaram através de um portal.
— Um elfo? — Seu corpo ficou tenso. — Meu pai? — sussurrou, com
um tremor no estômago.
Toto negou com a cabeça.
— Não, não seu pai.
A garganta de Rhianne se contraiu.
— Você tem certeza?
Toto trotou até ela e lambeu sua canela. Diziam que os cães podiam
sentir as emoções de uma pessoa e, no caso de Toto, ela sabia que era
verdade.
— Eu seria capaz de reconhecer o cheiro do seu pai.
— Mas como você sabe com certeza que era um elfo? E usar um portal
não é algo que apenas poucos podem fazer? — A curiosidade de Rhianne
despertou. Ela nunca havia tentado criar um portal, em parte porque temia
os perigos de atrair atenção indesejada, mas também porque tinha medo de
não ser capaz de fazê-lo. Isso seria apenas mais uma marca em seu próprio
arsenal de autopiedade. E sua caixa de autopiedade já estava transbordando.
Toto deixou escapar um suspiro paciente.
— De fato, posso detectar sua assinatura élfica. Ela possui um aroma
distintivo que é inconfundível — explicou. — No entanto, não posso
determinar sua afiliação.
— Espera! — exclamou Rhianne. — O que você quer dizer com
afiliação? E onde meu pai se encaixa nisso?
Assim que as palavras escaparam de seus lábios, ela se arrependeu. As
lembranças de seu pai distante trouxeram sentimentos dolorosos que ela
havia trabalhado duro para enterrar.
Estava prestes a descartar a pergunta, mas a curiosidade falou mais alto.
— Só estou curiosa — acrescentou.
Toto sentou-se sobre seus quartos traseiros e limpou a garganta.
— Você tem a Corte de Verão, a Corte de Inverno, a Corte de Outono e
a Corte de Primavera — disse ele. — Além disso, tem a Alta Corte, onde a
Rainha preside. — Toto fez uma pausa antes de continuar: — Seu pai
pertence à Corte de Outono, e tanto a Corte de Outono quanto a de Inverno
geralmente são consideradas mais inclinadas à lógica e à razão e menos
propensas a demonstrações emocionais.
— E isso é verdade? — perguntou ela hesitante. Seria essa a razão pela
qual seu pai estava tão ausente de sua vida? Porque não se importava?
A expressão de Toto tornou-se séria. — Devo reconhecer minha antiga
afiliação com a Corte de Verão; no entanto, desde então escolhi o caminho
da independência. Foi uma vitória difícil porque as Cortes veem tal
independência com desdém. Consideram-na uma fraqueza.
Ela se sentou em um banco, com os olhos fixos em Toto. — Uma
fraqueza para o independente? — perguntou.
Os olhos de Toto escureceram. — Significa a ausência de lealdade a
qualquer Corte, e isso representa uma ameaça direta à autoridade delas.
Ela assentiu, assimilando as palavras de Toto. Perguntou-se se a
ausência de seu pai estava relacionada à sua afiliação à Corte.
Toto fez uma pausa. — Todas as cortes são poderosas por direito
próprio e suas forças e fraquezas são diferentes.
O celular de Rhianne tocou com a melodia de Winner Takes All. Ela
gemeu internamente, tentada a ignorar a chamada, mas sabia que não podia
evitá-la para sempre. Com um suspiro resignado, atendeu: — Alô, mãe.
— Bom dia, Rhianne. Você recebeu meu convite? — O tom de sua mãe
era profissional e eficiente.
Rhianne tentou descobrir de que convite sua mãe estava falando. Ao
pensar em sua escrivaninha bagunçada, percebeu que provavelmente tinha
muitas cartas não abertas espalhadas entre a desordem. Ela havia estado tão
ocupada com o trabalho que tinha negligenciado verificar seu correio
adequadamente. Droga!
Tentando recuperar a compostura, perguntou: — Que convite? —
Internamente, chutou-se. Acabara de admitir uma falta de etiqueta
inaceitável.
— A menos que o pombo-correio tenha se desviado no caminho, e meus
pombos são muito bem treinados, provavelmente está sentado em uma pilha
sobre sua escrivaninha. Tem meu símbolo em letras douradas, Rhianne, não
é como se você pudesse tê-lo ignorado.
De fato, ela o havia feito, mas desta vez se absteve de dizer isso.
— É no próximo sábado. O código de vestimenta é traje de gala. Dado o
que sei do seu guarda-roupa, por favor, passe amanhã na Madame
Marchant.
— Estou muito ocupada. — A resposta saiu de forma automática.
Um profundo suspiro ressoou através da linha telefônica. Sua mãe havia
aperfeiçoado a arte de transmitir uma profunda decepção. Já não funcionava
com ela. Não muito, pelo menos.
— Rhianne — disse sua mãe —, nem mesmo você pode discordar desta
reunião. É para arrecadar fundos para construir uma nova escola para
crianças sobrenaturais cujos pais não podem pagar escolas sobrenaturais
particulares.
— O que há de errado com as escolas humanas?
— Me diga — disse sua mãe. — O que acontece quando os humanos
intimidam um metamorfo lobo, ou quando uma menina maga do fogo
começa a experimentar seus poderes durante o laboratório de Química?
Rhianne beliscou o nariz. Sabia que estava perdendo terreno
rapidamente. — E quanto aos híbridos? Eles estão incluídos ou não
importam?
Este era um tema próximo ao coração de Rhianne; devido aos seus
fracos poderes sobrenaturais, as crianças híbridas frequentemente eram alvo
de zombarias tanto por parte de sobrenaturais quanto de humanos. Não só
isso, mas tecnicamente os híbridos em geral não eram realmente
representados pelo conselho estadual. Apenas aqueles que mostravam traços
suficientes eram aceitos dentro de suas alcateias ou guildas, deixando o
resto lidando com a suspeita de alguns humanos. A própria Rhianne fazia
tecnicamente parte do coven devido à influência de sua mãe, mas nunca
participava de nenhum de seus rituais ou eventos.
Sua mãe fez uma pausa como se estivesse reunindo paciência. — Você
tem essa tendência de tentar proteger a todos. Precisa perceber o que pode e
o que não pode fazer.
Rhianne tinha ouvido isso repetido tantas vezes antes, que havia
deixado de prestar atenção. Algum dia, talvez, aprenderia a escolher suas
batalhas.
— Você acredita honestamente que é prudente colocar crianças de baixa
capacidade junto com as totalmente dotadas? Elas poderiam se machucar
sem intenção — disse sua mãe. — Se puderem lidar com isso, no entanto,
terão um lugar.
Rhianne permaneceu em silêncio. Este era um jogo em que ambas se
destacavam.
— Olha — e a exasperação na voz de sua mãe se fez notar claramente
—, vou propor ao comitê uma sugestão para uma escola para híbridos.
A repentina aquiescência de sua mãe a surpreendeu, mas não ia rejeitar
uma oportunidade de vitória. — Você terá outro evento para arrecadar
fundos para a escola de híbridos também?
— Sim. — O tom de finalidade na voz de sua mãe disse a Rhianne que
a conversa havia terminado. — Nos veremos no sábado.
— Até lá — disse Rhianne, mas antes que pudesse terminar a frase, sua
mãe já tinha desligado.
Típico! Ela nem sequer havia perguntado se podia levar alguém. No
passado, ocasionalmente tinha levado Nel a esses eventos, mas era
dolorosamente claro que Nel e sua mãe não se davam exatamente bem.
Talvez desta vez pudesse levar Kai. A ideia dele em um smoking formal,
exibindo seus ombros largos, trouxe um sorriso ao seu rosto. Trancando a
porta, correu escada acima para encontrar o convite. Conhecendo sua mãe,
provavelmente havia algum encantamento que a alertaria se o convite
permanecesse sem abrir. Definitivamente não estava com disposição para
outra discussão tediosa.
O evento era no centro da cidade no último andar das Torres
Barangaroo. Essa era a boa notícia, significava que provavelmente seria um
grande evento com centenas de pessoas e ela poderia evitar sua mãe. Desde
que aparecesse e fosse vista, teria cumprido seu dever. Procurou na parte
inferior do convite e felizmente tinha o requisito “e acompanhante”.
***
R
hianne e Kai saíram do necrotério, despedindo-se de Isobel com a
promessa de voltar outro dia com mais bolos.
— Bem, isso foi interessante — disse Rhianne enquanto
caminhavam por um parque próximo—. Devo contar à polícia ou esperar
que eles se afundem ainda mais na lama?
Kai riu baixinho.
— Melhor contar à Marissa. Ela vai adorar dar a notícia com seu
característico tom mordaz.
— Queria poder ser uma mosca na parede durante essa conversa —
disse Rhianne—. Mas você tem razão.
Ela pegou o celular e discou o número de Marissa.
— Marissa Austin falando — ouviu-se a voz cortante do outro lado da
linha.
— Oi Marissa, é a Rhianne. Tenho informações relevantes para
compartilhar.
Ela contou tudo, omitindo a fonte de sua informação, e Marissa ouviu
sem interromper.
— Bem, isso vai ser bastante divertido. Vou ligar para o Johannes
imediatamente — e desligou.
— Ela não perde tempo, não é? — Rhianne estava impressionada com a
eficiência de Marissa.
— Advogados estão sempre ocupados, com faturas para preparar e
sargentos-chefes para colocar em seu lugar — Kai sorriu com ar de
suficiência.
Os lábios de Rhianne se curvaram em um sorriso.
— Mudando de assunto, você já se perguntou o que a Isobel é?
Kai arqueou uma sobrancelha.
— Você também notou? A maioria das pessoas não tem ideia. Eu só
percebi porque a tecnologia às vezes se comporta de maneira estranha ao
redor dela. Então, como você descobriu?
— Achei ter visto um breve lampejo sobre a cabeça dela. Você
perguntou que tipo de ser sobrenatural ela era?
— Perguntei. Ela me deu um olhar de repreensão e disse que uma dama
nunca revela seus segredos. Não mencionei mais o assunto, mas parecia que
ela gostou de você, então talvez você possa perguntar — sugeriu Kai.
— Você está curioso, não é? Qual é a sua teoria?
Kai acariciou o queixo.
— Não tenho certeza, e isso tem me incomodado. Descartei algumas
possibilidades. Ela não é uma metamorfa, maga ou bruxa. As gárgulas não
têm nenhuma reação a ela. Isso deixa um leque amplo de possibilidades.
Alguns demônios se adaptam bem à tecnologia, mas não sou muito versado
em todos os diferentes tipos. Também ouvi dizer que certos seres feéricos
não podem ficar perto de dispositivos eletrônicos.
Rhianne assentiu.
— Alguns seres feéricos têm aversão ao ferro, já que pode deixá-los
doentes, mas os dispositivos eletrônicos não parecem ter nenhum efeito
neles.
— Você parece saber bastante sobre os seres feéricos.
Rhianne ficou na defensiva, sua resposta instintiva desencadeada pela
menção de sua herança mista. Mas então percebeu que Kai não poderia
saber disso, além de ter as orelhas ligeiramente pontudas, nada gritava
“meio-elfa”. Raramente ela compartilhava esse lado de si mesma com os
outros.
Respirando fundo, decidiu se abrir um pouco.
— Tenho algumas conexões com os seres feéricos. O Toto é uma
espécie de ser feérico, meu avô é um dríade e meu pai é um elfo.
Ela não mencionou que mal tinha visto seu pai ao longo dos anos.
Devido às suas interações limitadas com ele, não sabia tanto quanto
provavelmente deveria sobre os elfos. Para ser justa, também não tinha
querido aprender sobre eles e sabia que era um mecanismo de defesa. Ela se
preparou para as típicas reações de incredulidade ou escárnio.
Kai assentiu.
—Isso é bastante incomum, não é? Não posso dizer que tive o prazer de
conhecer um elfo, mas já conheci alguns duendes travessos e um duende
doméstico. Um dos duendes conseguiu me enganar para que eu lhe desse
um bolo, e o duende doméstico se deu ao trabalho de livrar meu suéter de
fiapos.
Rhianne escondeu seu sorriso atrás da mão.
— Não ria — disse Kai seriamente—. O duende doméstico se propôs a
“cuidar do meu guarda-roupa” uma vez por mês.
— Deixe-me adivinhar, ele acaba limpando e organizando tudo também
— disse Rhianne, com evidente diversão.
— Você não faz ideia. Levo dias para localizar algumas das minhas
coisas depois das visitas dele, mas não posso reclamar. Ele também prepara
refeições deliciosas para mim e as guarda no freezer.
—É uma dessas refeições que você vai me dar esta noite? — perguntou
Rhianne.
Kai levou dramaticamente uma mão ao coração.
— Você me ofende! Além disso, você poderia acabar preferindo a
cozinha dele à minha, e não posso ter esse tipo de competição — seus olhos
se enrugaram de diversão.
— Com certeza estou ansiosa para experimentar.
Quando as palavras saíram de seus lábios, o celular de Kai tocou,
interrompendo o momento.
Ele ofereceu um aceno de desculpas.
— Desculpe, tenho que atender, é do trabalho.
Rhianne assentiu e se levantou.
— Vejo você à noite. Preciso levar alguma coisa?
— Só você mesma — garantiu Kai, sua voz ficando mais suave—. Isso
é mais que suficiente.
Rhianne sentiu um agradável calor se espalhando pelo peito. Ela se
despediu de Kai silenciosamente e o deixou com sua ligação. Enquanto
montava em sua moto e ajustava o capacete, uma súbita revelação a atingiu:
ela tinha se esquecido de convidá-lo para o evento beneficente.
Rhianne voltou de moto para as “Folhas de Chá”, estacionando
suavemente sua moto na garagem. Ela caminhou pelo viveiro principal,
examinando a área em busca de algum sinal de Alice. Ao virar a esquina,
seus olhos pousaram em Alice, que atendia diligentemente às árvores
frutíferas nativas.
— Ei, Alice! — chamou Rhianne.
Alice levantou o olhar e a cumprimentou com um sorriso, embora seus
olhos parecessem apagados.
— Você está bem? — perguntou Rhianne.
— Sim, é só que acabei de falar com meus pais. Eles não estão felizes
por estarmos tão longe de casa. Querem que voltemos e trabalhemos na
mina da família.
— Ah, entendo.
Ela não conseguia imaginar dirigir o viveiro sem Carl e Alice. A ideia
deixou um gosto desagradável em sua boca. Também admitiu para si
mesma que gostava de conversar com eles todos os dias. Alice com sua
energia inesgotável e conversa incessante, e Carl com seu caráter doce e
gentil. De repente, percebeu que sentiria falta deles.
Alice continuou:
— Mas eu disse a eles que as condições da fiança policial não me
permitem ir embora agora mesmo.
Rhianne inclinou a cabeça.
— Mas por que haveria condições de fiança? Eu disse à Marissa que o
Romin não poderia ter saído das “Folhas de Chá”.
— Ah, isso foi uma mentirinha e não é a verdadeira razão pela qual não
vou voltar — disse Alice com um sorriso.
Um ruído atrás dela indicou que Carl se aproximava e estava prestes a
se juntar à conversa.
— Definitivamente não é a razão pela qual eu não vou — acrescentou
Carl.
— Ah, não?
— Para ser honesta, usei isso como desculpa para me livrar deles pelo
celular. Nossos pais não entendem por que não queremos trabalhar na mina.
Acham que o trabalho no viveiro está abaixo de nós e pensam que o
negócio da mina de diamantes precisa de talento novo — explicou Alice.
Carl arqueou uma sobrancelha e limpou a garganta, imitando uma voz
profunda.
— O trabalho no viveiro não é “apropriado” para as gárgulas da
montanha — sua voz soava completamente diferente.
Rhianne olhou alternadamente para Carl e Alice.
— Essa é uma ótima imitação do papai — disse Alice, com um pequeno
sorriso nos lábios.
— Nenhuma namorada ou namorado gárgula se interessará por vocês se
continuarem evitando suas responsabilidades — sua voz adotou um tom
diferente novamente.
O queixo de Rhianne caiu e seus olhos se arregalaram. O som
inesperado de uma voz feminina profunda e áspera saindo de Carl a fez
olhar duas vezes.
A risada de Alice encheu o ar, tirando Rhianne de sua surpresa. O som
contagioso fez com que Rhianne também explodisse em gargalhadas, e logo
Carl se juntou. Rhianne se dobrou, segurando o estômago enquanto as
lágrimas de riso escorriam pelo seu rosto.
Toto, preocupado com o alvoroço, se aproximou correndo, arranhando a
perna de Rhianne.
— O que está acontecendo? Estamos sendo atacados? Alguém submeteu
vocês a um gás nocivo?
Recuperando o fôlego, Rhianne conseguiu acalmá-lo entre risadinhas.
— Estamos bem, Toto. Carl nos surpreendeu a todos com sua incrível
habilidade de imitar as pessoas. Quem imaginaria que ele tinha esse talento
oculto?
— Ele tem? — perguntou Toto, ainda olhando ao redor e estreitando os
olhos, com um toque de suspeita em sua voz.
— Eu sou o mais feroz e corajoso de todos — disse Carl, imitando
perfeitamente o tom e a cadência de Toto.
A pura precisão da imitação fez com que Alice e Rhianne explodissem
em gargalhadas novamente.
— Isso não se parece com a minha voz — disse Toto, estufando o peito.
— Sou muito mais temível.
— Então, como você soube que estava imitando você? — conseguiu
perguntar Rhianne, segurando o estômago e tentando recuperar o controle.
— Minha querida, é preciso mais do que uma simples imitação para
capturar a essência da minha ferocidade. Reconheço minha própria
grandeza mesmo nas imitações mais inexatas — Toto manteve o nariz
empinado.
Isso só alimentou ainda mais suas risadas. Rhianne sentiu uma onda de
alívio ao ver o sorriso de Alice, embora o cansaço fosse notado nas olheiras
sob seus olhos. A prisão tinha sido difícil para Alice e Carl, e lidar com pais
desaprovadores adicionava outra camada de dificuldade. No entanto, eles
persistiam em trabalhar no viveiro junto com ela. As gárgulas normalmente
se mantinham afastadas, raramente interagindo com outros seres
sobrenaturais ou humanos. Sua dedicação ao viveiro dizia muito sobre sua
resistência e lealdade.
— Ei, pessoal, que tal um almoço tardio? — sugeriu Rhianne.
Carl olhou para ela com os olhos arregalados, e até Alice pareceu
surpresa.
— Você quer dizer nós três? — perguntou Carl.
— Sim, se vocês quiserem. Acho que todos nós poderíamos usar uma
pequena recompensa — disse Rhianne.
Alice hesitou enquanto mordia o lábio inferior.
— Mas e a planta de Romin? E se a polícia voltar…?
Rhianne pegou seu celular e habilmente tocou na tela, enviando uma
série de fotos para Marissa.
— Enviei para Marissa as fotos que tirei do Romin. Elas têm data, então
se a polícia tentar algo estranho, só vão se fazer de mais bobos. Já deixamos
claro que nenhum de nós tinha acesso ao laboratório necessário. O caso
deles acabou de desmoronar.
Alice soltou um suspiro de alívio.
— Sim, é verdade.
Carl sorriu para Rhianne.
— Sempre soube que você é bem esperta, chefe.
— Hmph. Tenho compartilhado minha sabedoria e, com meu
conhecimento supremo e paciência extraordinária, ela melhorou um pouco
— disse Toto.
— Você também está convidado, Toto — disse Rhianne, estendendo a
mão para acariciar seu queixo.
— Eles poderiam oferecer frutas frescas? — Toto abanou o rabo.
— Tenho certeza que sim. É temporada de morangos — disse Rhianne
com um sorriso.
O rabo de Toto abanou com mais força.
— De fato, não me submeterei àquele touro motorizado seu. Não foi
projetado levando em conta minhas delicadas sensibilidades.
Rhianne notou que Alice revirou os olhos e reprimiu um sorriso com
uma tosse rápida.
— Não se preocupe, Toto. Vamos pegar a van de entrega.
— Suponho que as necessidades mandam — disse com um suspiro. —
Embora, eles permitem companheiros caninos?
— Está tudo bem, Toto. Esse lugar fica bem ao lado da praia e tem
assentos ao ar livre onde os cães são totalmente bem-vindos. Você pode
ficar com a gente.
Toto fez uma pausa.
— Conceda-me um momento, se me permite, por favor — sem aviso
prévio, ele se transformou em uma magnífica águia cuneiforme e se elevou
no céu. Fiel à sua palavra, retornou em alguns minutos. — Informei aos
outros para que fiquem vigilantes e me alertem se virem alguma atividade
suspeita, especialmente aqueles policiais descorteses.
— Espera, quem são esses “outros”? — perguntou Rhianne, mas Toto
ignorou sua pergunta e trotou em direção à garagem.
— Vejo vocês no café junto à praia — disse Rhianne a Carl e Alice.
Quando Rhianne se virou para ir à garagem, sentiu uma mão suave em
seu ombro.
— Rhianne — falou Alice suavemente. — Você é mais que uma boa
chefe. É uma verdadeira amiga. Obrigada.
Carl assentiu em concordância.
Amigos? Rhianne sempre foi um pouco desajeitada nesse departamento.
Na escola, tinha o talento único de não se encaixar totalmente, a maldição
de ser uma híbrida presa entre dois mundos. Mantinha-se afastada e
enfrentava os valentões lutando ferozmente. Em sua busca por descobrir
quem era, Rhianne tropeçou em algo inesperado: seu talento para desvendar
mistérios. Como o coelhinho de estimação da pequena Lila que
desapareceu. Rhianne se propôs a se tornar a detetive de animais de
estimação e encontrou o coelho trancado em um dos armários do
laboratório. Para completar, pegou o culpado graças a um embrulho de bala
que ele deixou para trás. Lila achou que Rhianne era uma verdadeira
heroína por salvar seu querido bichinho.
E depois teve aquela vez quando as coisas da professora começaram a
desaparecer, como os óculos da senhorita Trent. Logo descobriu que era um
astuto pássaro-cetim que coletava coisas para seu ninho. A partir de então, a
senhorita Trent não conseguia parar de sorrir para ela. Acabou que resolver
mistérios não era apenas um jogo divertido para Rhianne; tornou-se a sua
coisa. Mas apesar de todos os seus talentos para resolver mistérios, Rhianne
continuava um pouco solitária. Claro, havia algumas crianças que a
consideravam sua heroína, como Lila. Mas na maioria das vezes, era
rotulada como a nerd estranha e a favorita dos professores pelos outros.
Então ela se mantinha afastada.
Toto havia chegado à sua vida quando ela tinha seis anos, um fiel
companheiro que revelou sua verdadeira natureza depois de alguns anos.
Sua mãe ou não sabia ou escolheu ignorar a presença do estranho ser
feérico e Rhianne nunca o mencionou. Então veio Nel, o irmão mais velho
que ela sempre ansiara, e se tornou seu mundo por um tempo. Agora, ela
tinha duas gárgulas que a chamavam de amiga, e um possível namorado em
um Mago Tecno. Provavelmente deveria acrescentar também um advogado
meio gárgula e uma misteriosa patologista forense que poderiam se tornar
amigos também. Ter amigos era… estranho. Mas ei, quem precisa de
amizades normais quando você pode ter um grupo excêntrico?
O café estava aninhado junto à praia, onde a brisa salgada do oceano
dançava pelo ar, proporcionando uma deliciosa fuga do calor sufocante do
dia. Ela ouviu o som fraco das ondas quebrando na costa. Enquanto os
últimos dias do verão persistiam, o frio do outono não se via em lugar
algum, para o deleite de Rhianne. Ela saboreava o espírito despreocupado
da temporada.
— Bem, vamos desviar nossa atenção do caso policial — sugeriu
Rhianne quando seus pratos chegaram.
Carl e Alice se lançaram sobre seus burritos de feijão (As gárgulas eram
vegetarianas?), enquanto Rhianne saboreava sua saborosa empada de chili
com queijo.
Toto mastigava feliz os morangos e mangas que a garçonete havia
gentilmente fornecido, o que provocou um comentário dela.
— Nunca vi um cachorro devorar frutas antes. É adorável — disse com
voz divertida.
Toto a ignorou, mas se arrumou um pouco.
— Sobre o que você gostaria de falar, chefe? — perguntou Carl.
— Estamos almoçando juntos, Carl, você pode me chamar de Rhianne
— respondeu ela com um sorriso.
— Claro, chefe — disse ele, ampliando seu sorriso.
Rhianne revirou os olhos. — Que tal você me esclarecer sobre o
misterioso mundo das práticas de namoro das gárgulas? — Ela se inclinou
para frente.
Um forte gemido escapou tanto de Carl quanto de Alice, atraindo a
atenção de alguns clientes próximos. Mas assim que viram a figura
imponente de Carl, voltaram sua atenção para suas próprias refeições.
Rhianne sorriu com satisfação. Definitivamente havia algumas vantagens
em ter gárgulas por perto.
— É o pior — suspirou Alice.
— Não é para os fracos de coração, isso é certo — acrescentou Carl.
— Muito bem, vocês me intrigaram. Contem-me.
O rosto de Alice ficou vermelho brilhante, enquanto Carl exibia um
sorriso tímido. Trocaram um olhar rápido.
— As famílias apresentam seus descendentes elegíveis a partir dos cem
anos. Eles comparecem a essas grandes reuniões que são cuidadosamente
organizadas pelos casamenteiros — disse Alice.
Rhianne tomou um gole de seu mojito frutado e sem álcool, a
refrescante mistura de sabores dançando em sua língua. — Por que cem
anos? E quem são esses casamenteiros?
Alice bateu com os dedos sobre a mesa. — Veja bem, há gárgulas que se
especializam em fazer casais. Todos as respeitam por isso. Elas começam
investigando sua história familiar, remontando cerca de cinco gerações
atrás. Olham para tudo: quão forte você é, quanto pode suportar, sua altura e
até seu peso. — As mãos de Alice se moviam rapidamente. — Algumas
famílias são muito exigentes sobre com quem seus filhos acabam. Por
exemplo, uma família pode querer apenas alguém do clã das gárgulas de
montanha, enquanto outra família pode estar procurando gárgulas guardiãs,
ou talvez queiram alguém que não seja mais velho que duzentos anos.
A cabeça de Rhianne girava. — Existem gárgulas guardiãs?
Alice assentiu, com um brilho de orgulho em seus olhos. — Sim, as
gárgulas guardiãs têm um papel especial. Elas vigiam nossas comunidades.
— Quando uma gárgula completa cem anos, é algo importante, assim
como os humanos fazem alvoroço ao completar dezoito. Trata-se de
celebrar e entrar na idade adulta. No nosso mundo, as crianças são
realmente importantes. Os pais gárgulas geralmente só têm um filho em
toda a sua vida, então esse filho recebe muito amor e atenção.
Rhianne assentiu.
— E se uma gárgula perde seu parceiro, nossas regras dizem que devem
encontrar alguém novo dentro de cinco anos. Isso se aplica tanto às gárgulas
mais jovens quanto às mais velhas — disse Alice.
— Espera, então você está me dizendo que se espera que você se case
antes de completar cento e cinco anos? Quantos anos você tem agora? —
Rhianne fez uma careta, percebendo que poderia ter entrado em território de
“não é da sua conta”.
— Completamos cento e três no novembro passado — respondeu Carl
com um sorriso. — Lembra, chefe? Você conseguiu aquele incrível bolo
com camadas de chocolate, cerejas e creme. Foi absolutamente incrível.
— Ah, era um bolo Floresta Negra, não é? — Sorriu. — Estou bem
certa de que você comeu metade sozinho.
Alice interveio. — Sim, ele comeu!
Carl flexionou seu impressionante bíceps. — Ei, sou um cara grande.
Estes músculos não aparecem por mágica, sabe?
— O que acontece se você não gostar do parceiro que o casamenteiro
encontra para você?
Rhianne se perguntou quantos possíveis parceiros haveria por aí,
considerando quão poucas gárgulas viviam na cidade.
A expressão de Alice ficou séria. — Há uma imensa pressão para aceitar
as ofertas. Você pode rejeitar até três, mas depois disso, seus pais e família
começam a bombardear você com ligações e mensagens, exigindo que
desça do seu pedestal.
— Então, Alice, quantas ofertas você teve? — perguntou.
— Carl teve quatro e eu tive uma — disse Alice suavemente. — É pior
ter menos porque veem você como impossível de emparelhar.
— Bem, você ainda tinha o direito de rejeitar a oferta — disse Rhianne.
A voz de Alice baixou para um sussurro. — Eu não rejeitei —
confessou. — Ele mudou de ideia. Aparentemente, sou baixa demais e meus
“passatempos” são muito humanos.
— Que passatempos? — perguntou Rhianne. Não tinham elas
conversado recentemente sobre a ideia de procurar passatempos para
conhecer pessoas novas?
Alice suspirou. — Trabalhar no viveiro.
As sobrancelhas de Rhianne se franziram com incredulidade. — Isso
não é um passatempo, sabe? É mais uma vocação, uma nobre missão.
Somos como médicos de plantas, dando carinho a esses pequenos seres
verdes que podem fazer as pessoas se sentirem melhor. É algo importante,
não um passatempo casual.
— Estamos na mesma sintonia, chefe — disse Carl.
Rhianne inclinou a cabeça. — Por que você rejeitou suas quatro
parceiras? — perguntou.
Era uma pergunta intrometida, mas ela já tinha metido o pé na jaca.
Bem, já que estava no inferno, que abraçasse o capeta. E agora estava
misturando suas metáforas!
Carl deixou escapar um suspiro melancólico.
— Todas eram mulheres maravilhosas, fortes e ferozes. Mas todas
tinham uma condição: queriam viver nas montanhas e que eu trabalhasse na
mina.
O corpo de Rhianne se tensionou enquanto processava as palavras de
Carl. — Vocês estão me dizendo que trabalhar no viveiro está interferindo
em algumas decisões importantes da vida de vocês? — perguntou.
A ideia de que o trabalho se interpusesse no caminho da felicidade
pessoal não lhe agradava.
Carl negou com a cabeça. — Não, chefe, você não entende — disse. —
Elas não estavam interessadas em mim pelo que sou. Tudo se tratava da
segurança e da riqueza que viriam da mina. Não viam o verdadeiro Carl.
— O que os pais de vocês dizem sobre tudo isso? — perguntou,
esperando um vislumbre de compreensão ou apoio por parte das famílias
deles.
— Eles acham que estamos desperdiçando bons parceiros e que
precisamos amadurecer e encarar nossas responsabilidades.
Ai! Rhianne conhecia muito bem o peso das expectativas dos pais e a
pressão para se conformar.
— Às vezes, as pessoas que deveriam nos entender melhor podem ser as
mais difíceis — disse Alice.
A voz de Carl mudou drasticamente, adotando o tom e o sotaque de uma
mulher velha e ranzinza com um ar esnobe. — No meu tempo — disse —,
os filhos eram obedientes e leais às suas famílias e comunidades. O que
importa não é sua felicidade egoísta, mas a continuação de uma linhagem
apropriada. Seus pobres pais! Vocês estão manchando a reputação deles
com suas tolices.
O riso de Rhianne explodiu incontrolavelmente, e Alice se juntou a ela,
sua diversão ressoando por toda a cafeteria. O riso delas era tão contagioso
que a mesa tremia, fazendo com que Rhianne agarrasse rapidamente seu
copo.
CAPÍTULO 12
N
aquela noite, Rhianne estava diante do espelho, observando seu
reflexo. A palavra “encontro” pairava no ar, provocando um rebuliço
de nervos em seu estômago. Deveria chamar isso simplesmente de
um jantar na casa de um amigo? Mas isso não aliviava sua inquietação. Ela
franziu a testa enquanto examinava os três pares de jeans e as cinco blusas
espalhadas sobre sua cama. Tinha trocado de roupa várias vezes, mas
nenhuma a satisfazia. Argh, não era típico dela ser tão indecisa.
O celular de Rhianne tocou, quebrando o silêncio no quarto. Ela deixou
escapar um suspiro de alívio ao ouvir o toque geral, sabendo que não era
sua mãe nem, cruzes, Kai ligando para cancelar seus planos. Ela tinha
atribuído um toque especial para Kai. A melodia escolhida? Holding Out for
a Hero. Por sorte, Nel ainda não tinha ouvido.
Rhianne segurou a blusa verde contra seu rosto enquanto atendia o
celular.
— Alô.
— Sou eu, Marissa. Queria saber se você está disponível amanhã para
uma referência de caráter às duas horas. Compro o almoço para você como
incentivo.
— Aham — Rhianne largou a blusa e pegou um top tomara que caia
turquesa. Seu olhar desviou para o vermelho que ainda estava sobre a cama.
Será que o vermelho seria ousado demais?
— Depois levo você ao açougue — acrescentou Marissa.
— Hã, o quê? — Rhianne saiu de seus pensamentos.
— Está claro que sua cabeça está em outro lugar e você não está me
ouvindo. O que está acontecendo?
— Ah, desculpe.
— Vamos, desembucha. Não vou ter sua atenção total até que você tire
o que quer que esteja na sua cabeça.
Rhianne deixou escapar um suspiro.
— Bem, é que eu tenho uma espécie de encontro, talvez o terceiro, com
o Kai na casa dele, e não sei o que vestir — Ela mordeu o lábio e parou,
esperando que Marissa zombasse dela.
Mas em vez disso, Marissa pareceu considerar suas palavras.
— Segundo encontro, talvez terceiro encontro na casa dele requer um
visual casual, mas arrumado. Você quer parecer bonita, mas não exagerada.
Me mostra um vídeo do que você tem.
Rhianne mudou seu celular para o modo de videochamada e mostrou os
três conjuntos.
— O vermelho é um pouco ousado demais para um possível terceiro
encontro. A blusa não é sexy o suficiente — disse Marissa. — Coloque o
top turquesa com o jeans preto e opte por um salto moderadamente alto.
Rhianne assentiu, embora Marissa não pudesse vê-la.
— Sim, isso funciona, exceto que vou usar botas. Vou de moto — disse
ela. — Obrigada por me salvar da minha indecisão. Agora você tem toda a
minha atenção pelos próximos dez minutos porque não posso me atrasar de
jeito nenhum.
— Eu me sentiria mal em me interpor no caminho de um terceiro
encontro, não queria ser processada por angústia emocional — disse
Marissa.
— Ou você tem clientes interessantes ou precisa parar de ver maratonas
de séries de advogados — disse Rhianne, colocando o celular no viva-voz e
começando a se vestir.
— Cuidado, alguns desses clientes interessantes acabam sendo seus
funcionários — replicou Marissa.
— Bem, tecnicamente, os pais deles contrataram você — disse Rhianne
enquanto entrava em seu jeans preto apertado.
— Você poderia ter sido uma advogada decente se não fosse tão
apaixonada por tudo que é verde.
— Eu me esforço pela mediocridade na maior parte do tempo — disse
Rhianne, fechando o zíper do jeans.
— Garota, se o que eu vi é sua versão da mediocridade, você tem um
longo caminho pela frente.
— A mediocridade permite o anonimato — disse Rhianne, percebendo
que tinha compartilhado inadvertidamente um pouco mais do que devia. —
Você mencionou referências de caráter?
Marissa bufou.
— Ah, táticas de redirecionamento inteligentes. Você poderia ter um
futuro na política com essas habilidades.
Rhianne grunhiu.
— Agora é você quem está me causando angústia emocional.
— Ah, percebo um trauma infantil profundamente enraizado.
— Essa é uma conversa para nosso terceiro ou quarto almoço de
amizade — disse Rhianne enquanto aplicava um toque de rímel. — Seus
dez minutos estão quase acabando.
— Definitivamente material de advogada. Está bem, serei breve.
Enviarei a você por e-mail uma referência de caráter, sinta-se à vontade
para fazer as mudanças que achar necessárias. Podemos revisar amanhã no
nosso almoço. O almoço é no Luna’s, ao lado do tribunal. Nos vemos lá ao
meio-dia — disse Marissa, e antes que Rhianne pudesse concordar, a
chamada terminou abruptamente.
Rhianne olhou para seu celular e decidiu que um dia desses seria ela
quem desligaria primeiro. Pensando bem, talvez essa fosse uma meta
ambiciosa demais.
Rhianne subiu em sua moto e se dirigiu a toda velocidade para o
subúrbio à beira-mar onde Kai morava. Sua casa geminada ficava a
algumas quadras do oceano, e o som das ondas quebrando enchia o ar. O
aroma de sal marinho acompanhava a suave brisa. Ela estacionou sua moto
em um espaço estreito, uma das vantagens de ir de moto, e só teve que
andar um par de quarteirões para chegar à casa dele.
Havia um jardim bem cuidado na frente, com arbustos nativos de Lilly
Pilly que se erguiam a uma altura de um metro e meio, criando um escudo
de privacidade. Atrás deles, árvores de grama e palmeiras de sagu
cuidadosamente dispostas formavam um padrão, dando um toque tropical à
paisagem.
Rhianne se aproximou da porta, pronta para bater, mas antes que sua
mão pudesse fazer contato, Kai a abriu de repente. Naquele momento, o
tempo pareceu parar. Iluminado pelo suave brilho da lâmpada do corredor,
sua presença era cativante. Ela se sentiu momentaneamente enfeitiçada. Um
pano de cozinha descansava casualmente sobre seu ombro, e sua camiseta
justa mostrava seus ombros e peito fortes. Um largo sorriso iluminava seu
rosto, e Rhianne sentiu sua respiração falhar.
— Oi — ela conseguiu pronunciar, com voz mal audível. Seu olhar
encontrou os olhos azuis dele, deixando-a sem palavras.
— Bem-vinda! — A voz de Kai tinha um leve tom rouco.
Um caminhão barulhento passou rugindo, quebrando o encanto, e Kai
se afastou para deixá-la entrar. O aroma tentador da comida a recebeu assim
que ela cruzou a soleira. O terraço renovado revelava um design de planta
aberta. Os olhos de Rhianne percorreram a sala, notando o design
minimalista. As paredes de cor creme estavam adornadas com fotografias
de paisagens, adicionando toques de cor à paleta de resto neutra. A estética
moderna se estendia aos grandes azulejos cinza-claro do chão e às elegantes
luminárias pendentes de aço. Kai a guiou até a área da sala, onde um sofá
de couro marrom macio e uma elegante cadeira de marfim rodeavam uma
impressionante mesa de centro de eucalipto vermelho. Uma esbelta estante
de livros adornava uma parede, enquanto uma mesa lateral combinando
estava encostada na parede atrás da cadeira.
— Nossa — disse ela, com os olhos vagando pelo espaço. — Você criou
algo especial aqui.
— Ainda estou finalizando alguns detalhes, mas as mudanças
importantes já estão feitas — disse Kai, guiando-a até a ilha da cozinha.
Uma jarra de cristal com água, cheia de fatias de limão e aromática hortelã,
chamou sua atenção. — Está com sede? Tenho água aromatizada com limão
e hortelã. Ou se preferir, posso servir uma taça de vinho.
— Então será água — respondeu Rhianne com um sorriso. — Vou
dirigir, então o vinho provavelmente não é uma boa ideia. Está com um
cheiro divino aqui dentro! O que você está preparando?
— Você terá que esperar e ver — disse Kai com uma piscadela
brincalhona. Ele se virou e espalhou uma pitada de ervas em uma panela,
com movimentos rápidos e seguros. A curiosidade de Rhianne cresceu
enquanto os aromas tentadores preenchiam a cozinha.
— Posso ajudar em algo?
— Não é necessário, já estou quase terminando — respondeu Kai. Ele
serviu a comida e levou os pratos até a mesa oval. — Por favor, sente-se.
Rhianne se acomodou em seu assento à mesa, e Kai prontamente
colocou um prato à sua frente.
Os olhos de Rhianne se iluminaram de deleite ao contemplar o prato
belamente apresentado. Duas deliciosas porções de bolinhos dourados
repousavam em um simples prato branco, acompanhadas de um molho
amarelo-claro. Ela mal podia esperar para dar uma mordida.
— Isso são bolinhos de caranguejo! — exclamou. — É um dos meus
pratos favoritos. Como você sabia? — Ela cutucou Kai. — Por acaso você
espionou minha escassa presença nas redes sociais para descobrir minhas
preferências culinárias?
— Você se refere às suas empolgantes postagens sobre o viveiro ou às
fascinantes atualizações que sua mãe compartilha sobre seus intermináveis
eventos onde você parece querer estar em qualquer outro lugar? —
perguntou Kai.
— Espera, eu era tão óbvia assim?
Kai riu.
— Bem, você mencionou uma vez que não é fã das festas da sua mãe.
As fotos pareciam respeitáveis, mas seus sorrisos eram certamente…
contidos.
— Minha mãe costumava me fazer praticar na frente do espelho —
confessou. — Segundo ela, um sorriso amplo era um grande “não, não”.
Supostamente indicava ingenuidade e falta de classe.
Ela deu outra mordida e seus lábios se curvaram em um sorriso
satisfeito enquanto os lambia.
— Isso é molho holandês? É incrível!
— Molho holandês caseiro, a receita secreta da minha avó. Então, o
sorriso de lábios apertados era a escolha certa?
— Era meu compromisso; eu queria optar por uma careta, mas minha
mãe nunca me deixaria esquecer.
Antes que ela percebesse, os bolinhos de caranguejo haviam
desaparecido de seu prato, deixando apenas migalhas. Rhianne olhou para
baixo surpresa.
— Nossa, estavam incríveis! Não pude resistir. Suas habilidades
culinárias são de primeira, Kai.
Um sorriso caloroso adornou os lábios de Kai.
— Você certamente os devorou! — Ele se aproximou da geladeira e
tirou um prato de morangos cobertos de chocolate.
— Ah, você sabe como chegar ao coração de uma garota! — Ela
colocou a mão sobre o coração.
Pegou um morango do prato e notou o olhar intenso de Kai enquanto
deliberadamente dava uma mordida, saboreando-o lentamente.
O dedo de Kai roçou seus lábios.
— Você tem um pouco de chocolate bem aqui — disse ele.
Ela se inclinou para o toque dele, sentindo uma mistura de antecipação e
desejo. O aroma inebriante de cardamomo e tâmaras envolveu seus
sentidos. O mundo ao seu redor desapareceu, e a única coisa que importava
era a conexão entre seus lábios. O beijo deles começou tentativamente, mas
a intensidade cresceu. O tempo pareceu parar enquanto eles se fundiam no
abraço um do outro. Mas justo quando se perdiam no calor do momento, o
toque estridente do celular de Kai quebrou o encanto.
— Acho melhor você atender — conseguiu dizer Rhianne, com a voz
entrecortada.
A testa de Kai pressionou levemente contra a dela, e ele emitiu um
grunhido baixo de frustração.
— Isso tem que ser importante — murmurou antes de se afastar para
pegar o celular que tocava. — Wagner falando — respondeu, com voz seca.
Houve uma pausa enquanto ele escutava. — Devo estar lá em meia hora.
Rhianne percebeu sua frustração.
— É uma emergência do trabalho?
Kai passou os dedos pelo cabelo, sua decepção se refletia na sutil tensão
de seus movimentos.
— Sinto muito. É um grande caso de narcóticos, e eles acham que esta
noite tentarão lavar milhões de dólares.
— Tudo bem, eu entendo — ela o tranquilizou.
Enquanto se levantavam da mesa, Kai pegou suas chaves. Antes de
chegar à porta, ele parou, com o olhar fixo em Rhianne. Inclinando-se,
capturou os lábios dela em um beijo prolongado.
— Considere isso uma promessa de mais — sussurrou.
Permaneceram abraçados por alguns momentos. Kai deu meio passo
para trás, quebrando a magia.
— Droga, não podia ser em pior momento. A propósito, onde você
estacionou?
— Estou a uns dois quarteirões, perto do beco — disse Rhianne.
Kai estendeu a mão para pegar a dela. Seus dedos se entrelaçaram
enquanto saíam da casa e começavam a caminhar em direção à sua moto.
Ao se aproximarem do beco, uma sensação de formigamento pinicou a
nuca de Rhianne, fazendo-a parar bruscamente. Seguindo seu instinto,
apertou com força a mão de Kai, e ele se virou para ela com um olhar
interrogativo em seus olhos.
— Há algum problema? — perguntou Kai.
Ela não conseguia detectar nenhum som ou cheiro incomum, mas uma
sensação inexplicável de inquietação a invadiu. Seu coração acelerou, e
seus instintos gritavam para que ficasse alerta. No entanto, não conseguia
identificar a fonte de sua apreensão. Não queria parecer tola ou paranóica
na frente de Kai, então hesitou, mudando o peso de um pé para o outro.
Rhianne estava dividida entre descartar sua inquietação e expressar suas
preocupações. Mas então sentiu novamente: o sutil formigamento na nuca.
Sem pensar, levantou o braço em posição defensiva, bem a tempo de
bloquear um ataque surpresa direcionado à sua cabeça. A adrenalina correu
por suas veias enquanto ela respondia com um chute rápido e bem
direcionado, fazendo seu agressor tropeçar e perder o equilíbrio.
Ele grunhiu, mas sua recuperação foi rápida e desencadeou uma chuva
de socos, com seus dois companheiros atacando-os também. O coração de
Rhianne acelerou enquanto ela avaliava a situação. Esses brutamontes eram
bons lutadores, corpulentos e agressivos, mas careciam da aura sobrenatural
que ela havia aprendido a reconhecer em seres sobrenaturais.
Ela se lançou para frente, mirando um soco no estômago do primeiro
agressor. Ele esquivou-se habilmente de seu golpe, tentando agarrar seu
ombro. Antecipando seu movimento, Rhianne arqueou as costas, evadindo
seu alcance.
Enquanto isso, pelo canto do olho, viu Kai desferindo um poderoso
chute em um dos outros brutamontes, o impacto ressoando com um golpe
sólido.
Nesse segundo de distração, o perigo brilhou diante dos olhos de
Rhianne. O brutamontes se lançou sobre ela com uma faca ameaçadora,
mirando seu rosto. Reagindo com a velocidade de um raio, ela esquivou-se
por pouco do golpe mortal, mas não sem uma dor aguda que atravessou seu
braço. Sentiu o sangue que brotava do corte recente.
O cheiro penetrante de suor e fumaça de cigarro envolvia o ambiente
tenso enquanto dois dos agressores a cercavam. A adrenalina corria pelas
veias de Rhianne, aguçando seus sentidos. Ela se agachou em posição de
cócoras, lançando um chute baixo rápido e preciso. O brutamontes que
empunhava a faca conseguiu esquivar-se de seu ataque, mas seu
companheiro não teve tanta sorte. O som nauseante de ossos se quebrando
reverberou pelo beco quando ele se chocou contra o implacável pavimento.
— Maldita vadia — grunhiu o brutamontes com a faca enquanto se
lançava sobre Rhianne. Quando sua lâmina estava prestes a golpear, uma
mancha escura passou voando entre eles, desviando sua atenção. Rhianne
aproveitou a oportunidade, agachando-se e desferindo um poderoso soco
em sua virilha. O brutamontes se dobrou de dor, dando-lhe um momento
para recuperar sua postura.
Levantando-se, Rhianne seguiu com um chute no pulso que segurava a
faca, enviando a arma ao chão com um estrépito. Enquanto se preparava
para enfrentar ainda mais seu atacante, viu Kai atrás dele, com a mão
tocando o ombro do homem. Em uma exibição eletrizante, faíscas
dançaram no ar. O agressor convulsionou brevemente antes de desabar no
chão.
Pousada por perto, uma águia observava a cena com olhos aguçados.
Aterrissando com graça ao lado do brutamontes derrotado, soltou um
gorjeio satisfeito.
— Excelente trabalho — disse a águia. — Eu estava prestes a
incapacitá-lo, no entanto, parece que o rapaz apaixonado se adiantou.
O olhar de Kai passou da águia para Rhianne, com uma expressão
divertida cruzando seu rosto.
— Rapaz apaixonado? — repetiu.
— Somos atacados por três assaltantes armados e a única coisa que
preocupa você é o Toto chamar você de “rapaz apaixonado”? — soltou
Rhianne.
Kai arqueou as sobrancelhas.
— Toto?
A águia se ajeito as asas.
— Esse seria eu, senhor, sou o ami… amigo da Rhianne — terminou
sem convicção.
Rhianne notou o estranho deslize na apresentação de Toto, mas decidiu
abordá-lo mais tarde.
— Toto, apresento você ao Kai. Kai, este é o Toto, um ser feérico que
geralmente toma a forma de um cachorro pequeno — fez um gesto entre os
dois.
— Você se refere ao cachorro do viveiro?
Toto riu entre dentes.
— Ah, sem dúvida você me descobriu, querido rapaz.
Os olhos de Rhianne se estreitaram e ela lançou um olhar de advertência
a Toto.
— Kai, o nome dele é Kai — enfatizou.
Sua atenção voltou-se bruscamente para os brutamontes estendidos no
pavimento quando um gemido escapou de um dos homens. Kai se
aproximou do homem e tocou seu braço. O homem estremeceu e voltou a
ficar em silêncio.
— Esse é um truque bastante notável que você realizou. Devo dizer que
estou impressionado — disse Toto.
— É parte das habilidades do Mago Tecno — Kai deu de ombros. —
Pense nisso como a versão humana de um taser. Uso a tecnologia que
carrego para alimentá-lo.
— Isso é bem legal. Seus chutes também foram bem executados —
disse Rhianne.
— Como parte da minha missão de enlouquecer meus pais, passei uns
anos aprendendo Aikido e Karatê. Parece que não foi tudo para se exibir.
Rhianne fez uma careta.
— Acho que deveríamos chamar a polícia.
— Já os chamei — disse Kai.
Rhianne arqueou uma sobrancelha. Antes de conhecer Kai, nunca tinha
ouvido falar de Magos Tecnológicos que aproveitavam o poder de suas
mentes para controlar a tecnologia.
— É uma pena que não possamos interrogá-los e descobrir por que nos
atacaram — disse ela.
Toto se aproximou do outro lado.
— Eles exalam o inconfundível aroma da magia feérica — disse.
— Eles são elfos? — os olhos de Rhianne se abriram com surpresa.
— Não, certamente que não. Você teria percebido — Toto lançou-lhe
um olhar de reprovação. — No entanto, é evidente que eles estiveram em
estreita proximidade com a magia feérica nas últimas horas.
— Isso poderia significar qualquer coisa — disse Kai enquanto
vasculhava os bolsos do último sujeito que havia incapacitado. Tirou um
celular. — Há alguma razão pela qual você suspeita dos elfos? Eles têm
algum motivo para atacar você?
As sirenes uivaram ao longe, e Rhianne sentiu uma sensação de
urgência. Esperava que Kai se apressasse antes que a polícia chegasse e
atrapalhasse seu acesso à informação.
— Não acho que sim.
Kai se levantou quando chegou o primeiro carro de polícia, e Toto se
elevou no ar, desaparecendo de vista antes que a polícia tivesse a chance de
notar sua presença.
A cena se iluminou com luzes intermitentes, e uma voz autoritária
ressoou atrás deles.
— Mãos onde eu possa vê-las!
Rhianne e Kai levantaram as mãos imediatamente.
— Sou Kai Wagner — gritou ele—, fui eu quem chamou vocês.
A polícia se aproximou com os tasers prontos, apontando diretamente
para eles.
— Qual é a situação aqui? — exigiu o policial que os alcançou.
Kai permaneceu calmo enquanto falava.
— Esses homens nos atacaram enquanto passávamos pelo beco.
O pulso de Rhianne acelerou, mas ela confiava que Kai lidaria com a
situação.
O policial parecia cético enquanto perguntava:
— Então vocês dois conseguiram derrubá-los?
— Sou um Mago Tecno de nível cinco.
Ele tinha desviado a atenção da polícia para si mesmo e Rhianne estava
agradecida.
— Na verdade, sou consultor da polícia e atualmente estou trabalhando
em um caso de drogas de alto perfil.
Um policial mais jovem se aproximou, olhando-os com desdém.
— Ah, tá, conta outra!
— Vocês podem verificar com o Comandante de Área Johnson — disse
Kai. Seu celular tocou, quase como se fosse um sinal.
O jovem policial apontou seu taser diretamente para Kai, com o dedo
pairando sobre o gatilho.
— Não faça nenhum movimento brusco.
Quando o rádio crepitou, a atenção do policial superior mudou, e os
lábios de Kai se crisparam. O policial levantou o rádio ao ouvido, sua
expressão empalidecendo. Rhianne se esforçou para captar fragmentos da
conversa.
— Sargento Brown — seu tom tinha se elevado—. Sim, senhor.
Cuidarei disso imediatamente.
O rosto do policial superior se contorceu como se tivesse mordido um
limão azedo.
— O Comandante de Área Johnson quer que você vá para a cena do
crime de drogas — informou.
— E quanto à senhorita Alkenn? — perguntou Kai, apontando para
Rhianne.
O policial superior hesitou um momento antes de responder.
— Ele não mencionou nada sobre ela. Vamos levá-la para a delegacia.
— Então irei com ela.
O rosto do policial superior se contraiu em uma careta.
— Não, receio que o Comandante de Área ordenou explicitamente que
você vá para a cena do crime sem demora.
Kai se manteve firme.
— Vou com a senhorita Alkenn, e ficarei feliz em explicar ao
Comandante de Área por que vou me atrasar.
O olhar do sargento se deslocou entre Kai, Rhianne e os bandidos
inconscientes no chão.
— Vou precisar dos seus dados e dos dela — disse finalmente o
sargento.
— Nossos nomes e números de celular já foram enviados para a
delegacia por e-mail — ao terminar de falar, Kai estendeu a mão, pegou a
de Rhianne e a conduziu para longe.
CAPÍTULO 13
K aia adrenalina
e Rhianne caminharam em direção à moto estacionada dela. Embora
da briga começasse a dissipar, Rhianne ainda sentia uma
inquietação persistente dentro dela, mantendo seus sentidos aguçados. Não
conseguia se livrar da sensação de que alguém os estava observando.
Kai apertou suavemente sua mão. — Você atrai emoção para onde quer
que vá. Lembre-me de trazer meu guarda-costas da próxima vez.
Rhianne revirou os olhos. — Ah, claro, sou um ímã para problemas.
Deveria começar a cobrar entrada.
Kai sorriu. — Ei, você pode ter algo aí. “Excursões de Aventura da
Rhianne: Emoção Garantida que Acelera o Coração ou Devolvemos seu
Dinheiro”. É uma oportunidade de negócio. — Ele se inclinou para frente,
afastando suavemente uma mecha de cabelo do rosto dela. — Não estou
reclamando.
Pressionou seus lábios contra os dela. Rhianne derreteu-se no beijo,
sentindo o calor do toque dele. Mas quando as mãos dele roçaram seus
ombros, ela fez uma careta de dor.
— Você está machucada! — Kai franziu a testa.
Rhianne olhou para seu braço e notou um pouco de sangue. — Droga!
Eu gostava muito desta jaqueta — resmungou.
— Quer ir ao hospital para que examinem isso? — Sua testa se franziu
ainda mais.
Rhianne ergueu a mão e suavizou as linhas franzidas com seus dedos.
— É um corte pequeno, nada grave — disse. — Vou limpar e enfaixar
quando voltar. Não há necessidade de fazer alarde.
Ele respirou profundamente, apertando seu aperto na cintura dela. —
Quero ver você logo de novo — disse. — Mas esse caso de lavagem de
dinheiro vai exigir a maior parte da minha atenção nos próximos dias. Mas
prometo também investigar a informação desses celulares descartáveis.
Rhianne deu de ombros levemente. Ela entendia, mas isso não
significava que não estivesse desapontada. Inclinou-se para ele, sentindo o
calor do abraço dele envolvê-la.
— Tudo bem, podemos nos ver no próximo fim de semana… — A voz
de Rhianne sumiu.
— Há algo errado com o fim de semana? — indagou ele.
— Muito pelo contrário. Posso assumir que você tem um smoking que
possa conseguir para sábado?
— De fato — respondeu Kai com um largo sorriso. — Deixe-me
adivinhar, sua mãe arrastou você para um evento?
Rhianne deu um tapinha brincalhão no ombro dele. — Que pouca
confiança você tem em mim! É um evento beneficente.
— Hmm. Claro que sim.
— Bem, é provável que haja algum benefício político por aí, mas é
principalmente uma arrecadação de fundos para uma escola de
sobrenaturais. Também consegui arrancar uma concessão dela — disse
Rhianne.
Kai arqueou uma sobrancelha. — Isso é incomum? Conseguir uma
concessão, quero dizer.
— Muito — Assentiu. — O que me faz pensar que há algo mais em
jogo neste evento, mas ainda não decifrei que papel eu desempenho em
tudo isso. De qualquer forma, ela prometeu organizar outra arrecadação de
fundos para uma escola de híbridos, então concordei em comparecer.
— Me sentiria honrado em ser seu acompanhante — disse Kai. — E
não se preocupe, vou me certificar de revisar minhas habilidades de
conversa fiada. Como assentir nos momentos adequados da conversa.
Considere-me um especialista em assentir.
Rhianne fez uma careta. — Argh! Conversa fiada — Acariciou a
bochecha dele. — Mas se você estiver comigo, será tolerável.
— Devo passar para buscar você? — Olhou para a moto dela. — É uma
máquina linda, assim como você. Embora não tenha certeza se um smoking
sobreviveria a uma viagem nela.
Ela riu. — Nem o vestido que vou usar.
Rhianne percebeu que havia perdido o compromisso de hoje na
Madame Marchant’s. Teria que passar lá amanhã bem cedo.
— Digamos às sete.
— Às sete será. Mandarei uma mensagem para você se descobrir algo
interessante — disse, fazendo uma pausa antes de dar-lhe outro beijo breve.
— Na verdade, mandarei uma mensagem para você de qualquer jeito.
Ela sorriu radiante. — Eu gostaria disso.
Com um aceno de despedida, ela subiu na moto e partiu, o calor do
último beijo dele ainda persistia em seus lábios.
Uma sensação inebriante preencheu sua mente, com pensamentos das
palavras e do toque de Kai rodopiando em seu interior. Quando desceu da
moto, a dor em seu braço serviu como uma dura lembrança da briga.
Lá em cima em seu apartamento, Toto, agora em sua forma de cachorro,
estava sentado em seu lugar favorito.
— Obrigada pela ajuda hoje — disse Rhianne enquanto tirava a jaqueta.
— O que fez você decidir me seguir?
Toto continuou se limpando. — Você passou muito tempo se
arrumando, então deduzi que quem quer que você fosse ver era importante
o suficiente para você para merecer uma avaliação.
Ela não pôde evitar rir. — Avaliar, hein? Então, qual é o seu veredicto?
Toto levantou o olhar, fingindo indiferença. — Ele é poderoso,
composto e bastante hábil em combate. Um candidato digno, se me permite
dizer.
Os olhos dela se enrugaram nos cantos. — Você tem uma quedinha pelo
Kai?
Ela tirou o kit de primeiros socorros de um armário da cozinha e
começou a cuidar de seu ferimento.
Toto se endireitou, fingindo indignação. — Rogo-lhe que me desculpe!
É puramente uma análise objetiva de suas qualidades.
Sua brincadeira foi interrompida pelo som de um veículo estacionando
lá fora. Rhianne se dirigiu à janela para ver quem havia chegado.
— Chamei Nel — disse Toto antes que ela pudesse sequer ver o carro
que se aproximava.
— Você chamou Nel? Por que faria isso?
— Caso não tenha notado, você foi atacada por três humanos armados
há pouco tempo. Achei que era importante informar Nel imediatamente
sobre o perigo que você enfrentou. Além disso, precisamos descobrir a
razão por trás do ataque.
— Pelo amor do céu — Rhianne suspirou. — Isso poderia ter sido um
assalto aleatório, e agora Nel vai ficar todo protetor e mandão.
Ela balançou a cabeça e colocou um curativo grande no corte. Ardia,
mas sobreviveria.
— Pode parecer um evento aleatório, mas o cheiro distintivo da magia
feérica se agarrava a eles. Não qualquer forma de magia feérica, mas
especificamente, magia élfica — disse Toto.
— Magia élfica? — perguntou Nel, de pé na entrada. — Os elfos
raramente se aventuram em nosso mundo, e certamente não se envolvem
em nossa política.
— Eu achava que tinha trancado essa porta — disse Rhianne, se
acomodando novamente no sofá e cruzando os braços.
Nel se juntou a ela no sofá, sentando-se ao seu lado. — Fechaduras não
significam muito para alguém como eu, especialmente quando sou
convidado — disse e lhe deu um beijo na bochecha.
— Você não é um vampiro — resmungou Rhianne.
— Não são só os vampiros que precisam de um convite para entrar na
morada de um ser sobrenatural — disse ele, seu toque gentil enquanto
segurava seu queixo. — Você está chateada.
— Claro que estou! — Ela revirou os olhos, tentando mascarar a dor em
sua voz. — Acabei de descobrir que meu querido pai aparentemente tem um
contrato sobre mim. O que você acha como reunião familiar? — Ela piscou
para conter as lágrimas que ameaçavam escapar.
— Com certeza, não foi seu pai — disse Toto. — Se suas intenções
fossem realmente maliciosas, ele poderia ter feito seu movimento há muito
tempo. Além disso, ele nunca machucaria você.
Ela estreitou os olhos diante disso, mas deixou passar. — As pegadas no
viveiro nos dizem que alguém esteve lá, me apontando. Mas quem?
O olhar de Nel se deslocou entre Rhianne e Toto. — De que pegadas
vocês estão falando? — Suas palavras foram cortantes.
Toto soltou um suave latido e cobriu os olhos com uma pata. — Ah,
como pude ter esquecido momentaneamente! — Ele se endireitou, com
expressão concentrada. — Eu me deparei com um conjunto de pegadas
dentro do viveiro privado e a indicação de um portal élfico. No entanto,
surge uma complicação notável. — Toto fez uma pausa. — Tenho certeza
de que o elfo responsável pelas mencionadas pegadas é diferente do
indivíduo que orquestrou o ataque dos assaltantes.
Rhianne levantou as mãos exasperada. — Ótimo, então agora temos um
par de elfos nessa bagunça. Um está se esgueirando no meu espaço pessoal
como um vizinho intrometido, e o outro está brincando de ser o
manipulador desses bandidos. E pensar que o único elfo que conheci é meu
pai! — Ela se levantou e começou a andar de um lado para o outro. — Se
eles podem entrar no meu viveiro como se nada fosse, o que os impede de
fazer uma festa no meu apartamento depois?
Nel negou com a cabeça. — Não se preocupe, seu lugar está seguro
devido aos feitiços de proteção que instalei, além disso, tem sua assinatura.
Só as pessoas que você deixar entrar podem passar, e elas estão vinculadas
a você, o que torna praticamente impossível que alguém burle a segurança.
— Espera aí. Feitiços? Que feitiços?
Nel apertou seu aperto no ombro dela. — Princesa, os feitiços são parte
das medidas de segurança que instalei no seu apartamento. Eles fornecem
uma camada extra de proteção contra intrusos. Sinto não ter mencionado os
feitiços antes.
Rhianne estreitou os olhos olhando para ele, mas então seus ombros
relaxaram enquanto ela pensava. — Mas os feitiços normalmente são
reservados para lugares que requerem proteção extra, não é?
— Eu tenho no meu apartamento — disse Nel.
Rhianne respirou fundo. — Isso é porque você é um empresário de alto
perfil que conhece os segredos de todo mundo. Eu não sou ninguém.
— Você não é ninguém. Para começar, as pessoas sabem que você é
importante para mim, e isso torna você um alvo para qualquer um que
queira me atingir. Em segundo lugar, você tem alguns poderes incomuns
que poderiam torná-lo interessante para certos círculos.
— Exceto por vocês dois, as pessoas desconhecem esse fato.
— Talvez, mas se viessem a saber… — A voz de Nel se apagou.
— Você realmente acha que é isso que está acontecendo? Eu tenho sido
tão cuidadosa com o uso da minha magia — disse Rhianne.
— Não, não acho, ou pelo menos espero que não — respondeu Nel.
— Existe uma possibilidade alternativa — disse Toto.
— Bem, desembucha, velho — disse Nel, com um brilho zombeteiro
nos olhos.
Toto fingiu se ofender. — Você está insinuando que sou velho? Não há
um provérbio humano que diz “O burro falando de orelhas”?
Nel riu. — Poderíamos comparar datas, se quiser. Tenho certeza de que
você tem umas boas décadas a mais que eu.
Rhianne levantou a mão para interrompê-los. — Tá bom, chega de
brincadeiras. Qual é a outra possibilidade?
— De fato, não é raro que as facções élficas se envolvam em lutas de
poder e usem indivíduos como moeda de troca contra seus rivais. A posição
e influência do seu pai poderiam ser a razão por trás desses ataques contra
você.
— Bem, se eles acham que podem manipulá-lo através de mim, vão
levar uma surpresa. Ele não vai se importar.
— Se seu pai realmente não se preocupasse com você, ele não teria
desafiado a rainha para visitá-la — disse Toto.
Ela piscou e desejou que a ardência em seu braço lhe fornecesse uma
distração melhor para seu emaranhado de emoções. — Talvez ele tivesse
outro motivo para estar em nosso mundo — murmurou.
— Se esse fosse o caso, por que se dar ao trabalho de vir ver você? Não
acho que as coisas sejam preto no branco quando se trata do seu pai,
princesa — disse Nel.
Seus olhos brilharam com lágrimas contidas. Ela as segurou,
determinada a não desmoronar e mudou de assunto. — Você não me
explicou o que quis dizer com minha assinatura.
Nel lhe lançou um olhar conhecedor que dizia que ele tinha decidido
seguir o jogo dela, por enquanto. — Ah, sim, sua assinatura — disse ele. —
No mundo da magia, todos têm sua própria impressão mágica especial, um
pouco como uma impressão digital. Embora seus poderes mágicos possam
não ser de primeiro nível para uma bruxa, a mistura de todas as suas
diferentes habilidades compõe uma assinatura mágica única e forte.
— Eu nunca tinha ouvido falar de um híbrido com múltiplas habilidades
mágicas. Não faz sentido.
— A maioria dos híbridos não tem múltiplas habilidades — corrigiu
Nel. — Mas no seu caso, você tem uma mistura única de magias. É raro, e
devo admitir que nunca antes tinha encontrado uma combinação como a
sua.
Ela olhou para Toto.
— A amalgamação de diversas linhagens mágicas frequentemente
resulta complexa, não apenas devido aos preconceitos, mas também pela
fertilidade. É por isso que você encontra principalmente híbridos que são
metade humanos; é mais prático em termos de compatibilidade genética e
potencial mágico. A manifestação limitada de habilidades mágicas nos
híbridos provavelmente surge de ter apenas uma linhagem mágica — disse
Toto.
A boca de Rhianne formou um O enquanto as palavras de Toto
penetravam em sua mente. Ela sempre se considerara igual a qualquer outro
híbrido, mas agora entendia a singularidade de sua situação. Percebeu que
não conseguia se lembrar de nenhum outro híbrido que viesse de duas
origens sobrenaturais diferentes, exceto ela mesma e sua mãe. A
ascendência de Marissa sugeria um casal de gárgula e humano, mas
Rhianne nunca havia perguntado. A ideia de discutir um assunto tão pessoal
com Marissa a fazia se sentir um pouco desconfortável. Mas agora estava
muito curiosa.
— Eu não tinha considerado por essa perspectiva. É surpreendente que
ninguém tenha mencionado isso antes — disse finalmente.
— Provavelmente devido à desaprovação dos casamentos entre
sobrenaturais — explicou Toto—. Para muitos sobrenaturais, a ênfase está
em salvaguardar sua herança, preservar a integridade de sua linhagem
mágica e manter a pureza de sua magia. É uma forma de assegurar a
sobrevivência de sua espécie.
— Não me lembro de ter tido uma conversa com minha mãe sobre isso
— disse ela.
Nel arqueou uma sobrancelha.
— Sua mãe fala frequentemente sobre seu avô?
A voz de Rhianne tremeu.
— Ela me enviava para passar tempo com ele durante as férias
escolares… — Hesitou—. Mas nunca a ouvi mencioná-lo para ninguém
fora do nosso círculo íntimo.
Isso a fez se perguntar: sua mãe se envergonhava do que seu próprio pai
era? A voz de Rhianne se encheu de realização e frustração.
— Espera, o nível de magia da minha mãe é cinco! — Seus olhos se
arregalaram enquanto as peças começavam a se encaixar—. Não posso
acreditar que não fiz a conexão antes. Tenho evitado tudo relacionado à
minha mãe, mas deveria ter sido óbvio. Tivemos uma discussão sobre
híbridos e nem sequer a considerei como exemplo. Ela age e se comporta
como se fosse de sangue puro.
— De fato! — O rosto de Toto se iluminou como o de um professor que
finalmente vê um aluno compreender um conceito difícil—. Ela também é
híbrida, mas seu domínio do poder é verdadeiramente excepcional.
— Provavelmente ela oculta sua herança híbrida para evitar que as
pessoas questionem suas habilidades de liderança — explicou Nel—. Sua
avó era uma bruxa poderosa, e esse histórico familiar significa muito para
ela.
Toto assentiu.
— A compatibilidade entre as dríades e as bruxas verdes é amplamente
reconhecida. Se sua linhagem fosse conhecida, seus níveis de poder
provavelmente seriam atribuídos a essa mesma conexão.
— Sabe, é estranho — disse Rhianne—. Quando fiz o teste de níveis e
os resultados chegaram, pensei que minha mãe diria algo. Talvez
questionasse ou oferecesse alguma ideia, mas ela permaneceu em silêncio.
Foi como se não importasse em absoluto.
Rhianne não lhes disse que isso a havia machucado de maneira
estranha.
— Com toda honestidade, devo elogiar sua notável capacidade de
enganar tanto os Examinadores de Magos quanto sua própria mãe — disse
Toto.
O interesse de Nel se avivou.
— Você trapaceou?
— Claro que sim! Fiz isso em parte como uma forma de desafiá-la —
admitiu Rhianne—. Estava cansada de ser manipulada e controlada. Aos
doze anos, tudo o que eu queria era um pouco de paz e independência. —
Fez uma pausa, recolhendo seus pensamentos—. Também tinha medo de
que minha magia feérica surgisse, então a forcei a permanecer adormecida.
Nel plantou um suave beijo em sua bochecha.
— Você é verdadeiramente extraordinária, princesa.
— O quê? — Rhianne levantou uma sobrancelha—. Por que você diz
isso?
Nel e Toto trocaram um olhar significativo, e então o sorriso de Nel se
alargou.
—É incrivelmente difícil trapacear no teste. Muitos tentaram no
passado, mas pouquíssimos conseguiram.
— Bah! Isso é provavelmente porque a maioria deles estava tentando
obter pontuações mais altas, não mais baixas. — Rhianne cruzou os braços.
— Não, princesa, o teste é projetado para pegar os trapaceiros em
qualquer direção. Não apenas detecta tentativas de se sair melhor; o feitiço
que eles empregam anula todas as formas de engano — disse Nel. Ele se
aproximou mais, suas mãos segurando as dela—. Devo admitir que estou
genuinamente fascinado em como você conseguiu enganá-los.
— Nossa jovem dama possui qualidades extraordinárias, Nel, embora
ela resista em admiti-lo — disse Toto—. Mas devemos voltar nossa atenção
à ameaça atual.
A expressão de Nel se tornou séria enquanto acariciava suavemente as
mãos de Rhianne e se reclinava em seu assento.
Rhianne notou que a tensão voltava aos ombros de Nel.
— Você ainda não me explicou sobre minha assinatura. O que significa?
— Sua assinatura mágica é forte. Não há com o que se preocupar — ele
a tranquilizou—. Eles não saberão que é especificamente sua, apenas
sentirão a magia.
— Eles não suspeitariam que é minha porque está na minha casa? —
perguntou Rhianne.
— O mais provável é que assumam que fui eu quem a colocou lá. Tenho
proteções suficientes próprias para mascarar eficazmente sua origem.
—É a assinatura de um elfo? — sussurrou.
O que significaria se fosse? Toda a sua identidade havia sido a de uma
bruxa verde, embora com poderes menores. Ela pensara que seu lado élfico
estava adormecido na melhor das hipóteses. Ou seja, ela não era muito
élfica de forma alguma, nem na aparência nem no poder.
Toto fixou seu olhar nela, contemplando por um momento antes de
responder:
— Apenas aqueles que realmente entendem o que estão procurando
poderiam identificá-la como uma assinatura élfica.
— Outro elfo poderia — apontou Nel—. Você mencionou ter captado o
cheiro de elfo nos atacantes.
Rhianne se encolheu, abraçando os joelhos com força enquanto uma
onda de emoções a invadia. A ideia de que os elfos a estivessem espionando
e organizassem um ataque contra ela a encheu de uma profunda sensação de
raiva. Como ousavam invadir seu mundo?
Ela odiava que Kai tivesse sido apanhado no meio de tudo isso. Por
outro lado, isso lhe deu a oportunidade de vê-lo em ação. Ele tinha se
defendido, e a defendido, muito bem. Além disso, aquela coisa com o taser
de mão tinha sido bem legal.
— Não, nem todos os elfos possuem a capacidade de fazê-lo — disse
Toto.
— O que você quer dizer? — perguntou ela.
— Apenas aqueles entre as Sombras e membros seletos da nobreza
possuem essa capacidade.
Ela sentiu uma pontada de arrependimento por ter escolhido permanecer
ignorante sobre sua herança. Percebeu que essa decisão tinha sido
alimentada pelo rancor em relação a seu pai.
Em outras palavras, era inteiramente culpa dela. Qual era aquele ditado?
Ah, sim: “A vingança é o veneno que você bebe enquanto espera que seu
inimigo sofra”.
— O que é exatamente uma Sombra? — perguntou.
Nel cruzou os braços e sua boca se abriu brevemente antes de se fechar
de repente. Suas sobrancelhas franzidas e sua boca torcida revelavam sua
preocupação. Em um aviso silencioso, mas inconfundível, lançou um olhar
significativo para Toto, uma mensagem que Rhianne não deixou passar.
— Não, vocês não podem me proteger escondendo coisas de mim —
disse Rhianne. — Sou adulta agora e tenho o direito de tomar minhas
próprias decisões. — Ela apontou o dedo para Nel, movendo-o de um lado
para o outro para enfatizar.
Nel permaneceu ali, quieto e tenso, parecendo uma magnífica escultura
grega. Ela refletiu seu desafio cruzando os braços e inclinando-se para
frente, recusando-se a ser excluída. Nem pensar.
— Você pode pensar que é toda adulta, mas isso é apenas um
pensamento humano — disse Nel, fazendo uma pausa para enfatizar. — E
não nos esqueçamos que você não é humana.
Rhianne franziu os lábios.
— É verdade. Sou uma bruxa, e no mundo das bruxas, definitivamente
sou considerada uma adulta — disse ela. — Tenho trinta e seis anos, Nel.
Dirijo meu próprio negócio próspero e ganho uma renda substancial. — Seu
tom e volume se elevaram. — Ah, por favor, Nel! Tenho administrado as
contas do clube por anos e você tem ficado perfeitamente contente em me
deixar fazer isso!
Nel se livrou da rigidez, seu olhar desviando-se brevemente para o teto
como se buscasse orientação antes de voltar para Rhianne.
— Ai! Isso foi golpe baixo.
— A verdade dói — revidou ela.
Toto pulou do sofá e se aproximou de Rhianne. Lambeu-lhe o pé
afetuosamente antes de colocar suas patas sobre os joelhos dela.
— Ela tem razão — disse Toto. — Pode se defender sozinha, como
demonstrou tão habilmente hoje. Mesmo na ausência de Kai, teria derrotado
aqueles bandidos. Você deveria tê-la visto em ação, uma verdadeira
encarnação de uma guerreira graciosa! — Toto se virou para olhar para Nel.
— Você e eu ainda podemos percebê-la como a menina teimosa que uma
vez foi, e nos custa ver além dessa perspectiva. No entanto, do ponto de
vista de um elfo, ela está à beira de uma profunda transformação.
Nel passou os dedos pelo cabelo.
— Uma Sombra? Isso parece bastante extremo.
Rhianne pegou Toto, aninhando-o em seus braços enquanto ele deixava
suas patas penduradas.
— Agradeço seu voto de confiança. Podemos ir passo a passo e abordar
as coisas uma de cada vez? Parece que há coisas que eu deveria ter
aprendido há muito tempo — disse ela.
Toto inclinou a cabeça.
— Eu sei, é minha culpa — disse ela. — Você tentou me dizer coisas,
mas eu não estava pronta para ouvir. Agora, quer eu goste ou não, é hora de
eu estar melhor informada.
Ela colocou Toto de volta na almofada ao seu lado.
Toto fechou os olhos momentaneamente, um arrepio percorreu seu
corpo.
— Uma Sombra é um assassino.
CAPÍTULO 14
N
a manhã seguinte, Rhianne tomou um rápido suco de frutas e vegetais
antes de se dirigir ao viveiro principal. A perspectiva de um dia
agitado pela frente fez seus ombros caírem. Tinha papelada para
colocar em dia, entregas para verificar, uma viagem à cidade para almoçar
com Marissa, uma prova de vestido e vários mistérios para investigar. Sua
vida certamente havia dado uma reviravolta estranha. — Argh, preciso me
livrar desse humor — murmurou.
Ela viu Carl fertilizando as árvores maiores. — Oi, Carl!
Carl se virou, seu rosto se iluminou com um largo sorriso. — Olá,
chefe.
— Você tem ideia de onde está a Alice? — Sua pergunta foi
interrompida por um bipe do seu celular.
— Ela está nos fundos, preparando as entregas — respondeu Carl. — E
hoje está de muito melhor humor. Vinha cantando na van a caminho daqui.
— Parece que vou ter que deixar vocês no comando enquanto vou à
cidade para fazer algumas coisas e me encontrar com a Marissa. — Rhianne
colocou as luvas.
— Você vai se encontrar com a Marissa? — O rosto de Carl ficou
vermelho e ele parou abruptamente.
Rhianne escondeu um sorriso. — Quer que eu mande lembranças suas?
— perguntou. Ela não queria provocá-lo demais; era simplesmente
adorável.
— Não, quer dizer… talvez você possa ver como ela está? — Carl
recuou alguns passos, resmungando baixinho, antes de voltar às suas
tarefas.
Uau! Estava claro que Carl gostava da advogada. Ela fez uma nota
mental para sondar os sentimentos de Marissa.
Ao desbloquear seu celular, um sorriso se formou nos lábios de Rhianne
enquanto lia a mensagem de Kai: “Bom dia, anjo guerreira - trabalhei a
noite toda no caso. Vou abordar a questão dos celulares descartáveis depois
de descansar um pouco”.
Os dedos de Rhianne dançaram pela tela. “Bom dia, gênio alfa. Durma
primeiro!”
Alice estava, de fato, ocupada preparando as entregas.
— Bom dia — disse Rhianne. Era ótimo ver Alice sorrindo novamente.
— Bom dia. — Alice cuidava das plantas que estavam programadas
para serem recolhidas mais tarde. — Temos dois caminhões de entrega que
vêm esta manhã para o grande trabalho de paisagismo nas colinas.
— Posso ajudar em algo durante as próximas duas horas? Depois tenho
que ir à cidade.
Alice sacudiu as mãos enluvadas nas calças e se virou para Rhianne. —
Sim, Marissa me disse que você vai fazer uma referência de caráter para
mim. Muito obrigada por isso! Mas não se preocupe em ajudar, tenho tudo
sob controle aqui. Só preciso escolher algumas árvores ornamentais para a
entrega e estarei pronta para começar.
Os ombros de Rhianne relaxaram. — Me sinto um pouco redundante —
admitiu, com seu sorriso se alargando.
— Que nada, você pode cuidar de toda a papelada administrativa —
Alice piscou para ela.
— Que tal um bônus por cuidar da administração? — sugeriu Rhianne,
apenas meio brincando.
— Nem pensar. — Alice piscou novamente.
— Não se pode culpar uma garota por tentar — Rhianne deu de ombros
e se dirigiu de volta ao seu escritório. A montanha de papelada não ia se
resolver sozinha.
Algumas horas depois, ela estacionou sua moto no local designado na
parte de trás da Madame Marchant’s. As amplas vitrines da loja exibiam
impressionantes arranjos florais. No interior, dois elegantes manequins
posavam; um descansava enquanto o outro se apoiava casualmente contra
uma coluna, ancorando a exibição.
Avançando, ela se preparou, e ao entrar, o delicado tinir de um sino de
cristal ressoou, anunciando sua chegada.
Uma mulher com um elegante coque loiro saiu para receber Rhianne.
Aparentava uns quarenta anos, embora Rhianne soubesse que era mais
velha. Vestida com um impecável conjunto de calça e blazer branco, sem
uma única ruga à vista, Rhianne não pôde deixar de se perguntar se
Madame Marchant havia lançado um feitiço sobre o tecido. A mulher se
aproximou com um passo elegante, seus saltos altos não faziam nenhum
barulho sobre os macios tapetes.
— Ma chérie, cela fait si longtemps! — exclamou ao vê-la,
aproximando-se para plantar um beijo em uma bochecha e depois na outra.
As lembranças de infância de Rhianne de visitar este lugar envolviam
suportar horas aparentemente intermináveis em pé enquanto lhe tiravam
medidas e prendiam tecidos. Ela tinha odiado esses momentos, exceto
quando Madame lhe dava palmiers ou madeleines às escondidas quando
suas cuidadoras estavam distraídas. Rhianne sempre tinha admirado a
elegância sem esforço de Madame. A cadência francesa das palavras de
Madame agora, depois de todos esses anos, ainda tinha uma qualidade
reconfortante.
— A senhora me reconhece? — perguntou Rhianne.
— Bien sûr, menina. Você cresceu, mas esse espírito ardente permanece,
n’est-ce pas? — disse Madame Marchant, dando um tapinha afetuoso nas
bochechas de Rhianne. — Por que você não visitou Madame em tanto
tempo? — Seu rosto irradiava calor e gentileza.
Rhianne fez uma careta apesar de si mesma. Madame sempre tinha sido
gentil com ela.
— Não importa, ma chérie, a vida frequentemente se interpõe. Venha!
— Sem esperar uma resposta, Madame agarrou a mão de Rhianne e a
arrastou com entusiasmo para o interior, levando-a ao salão de vestuário.
— Sua maman me ligou e mencionou uma soirée no sábado — disse
Madame, seus olhos escaneando as fileiras de vestidos pendurados
enquanto caminhavam. Ela lançava rápidos olhares a Rhianne, avaliando-a
com olho crítico. — Mmm, os tons pastéis não ficarão bem em você. —
Madame tirou um vestido azul marinho do cabide. — Ela me disse que
você viria ontem. — Rhianne mordeu o lábio, mas Madame não lhe deu
oportunidade de se desculpar. Com um movimento rápido, agarrou outro
vestido, desta vez de um laranja escuro. — Será um prazer vesti-la. Você é
très belle! Com sua figura, as possibilidades são infinitas. — Seus olhos
brilhavam de emoção e deleite. De repente, a atenção de Madame foi
capturada por outro vestido, uma peça de cor bordô profundo que brilhava
sob as luzes. — Sua maman disse um vestido convencional, mais non!
Você, ma chérie, será a belle do baile. Vamos, experimente-os — insistiu,
entregando os vestidos a Rhianne.
Rhianne deslizou para dentro do vestido azul marinho, apreciando como
o tecido de cetim conferia um movimento elegante à saia de corte A. A parte
superior sem alças emergia de um amplo cinto, formando uma estrutura em
leque adornada com delicadas pregas. Ao sair do provador, ela se deparou
com uma Madame ligeiramente impaciente.
— Mmm, isso seria encantador para dançar, mas considerando a sua
tez… sim, podemos fazer melhor. Por favor, experimente o vestido laranja
escuro. — Madame agitou a mão com ar imperioso.
Rhianne obedientemente se retirou ao provador e vestiu o próximo
vestido. Mostrava um estilo grego, com um amplo cinto que acentuava sua
cintura e elegantes pregas que caíam com graça ao redor de sua figura. A
cor do vestido complementava os tons castanhos claros de seu cabelo.
Antes que tivesse a oportunidade de abrir a porta, Madame colocou a
cabeça para dentro. — Melhor — murmurou. — Agora, por favor,
experimente o vestido cor de borgonha —. Dito isso, fechou a porta.
O vestido cor de borgonha exibia um estilo sereia, adornado com um
decote plissado e elegantes mangas caídas. Madame abriu a porta de par em
par, seus olhos brilhando de satisfação. — Oh là là! Esse é o vestido para
você! — exclamou, praticamente tremendo de entusiasmo. — Saia, ma
chérie. Farei os ajustes necessários!
— Está bom em mim — protestou Rhianne.
— Mais non, deve ser a perfeição absoluta! — Madame guiou Rhianne
para que subisse no estrado de provas e gritou: — Marie, os alfinetes, por
favor —. Com uma piscadela dirigida a Rhianne, acrescentou: — E alguns
madeleines.
Marie, uma jovem miúda, entrou na sala carregando um grande
alfineteiro. Com uma reverência deferente a Rhianne, colocou o alfineteiro
ao alcance de Madame.
Enquanto Madame habilmente prendia o vestido com alfinetes, suas
palavras foram abafadas pelos alfinetes em sua boca. — Foi uma semana
bastante ocupada com esta soirée — murmurou. Ajoelhando-se para ajustar
a barra, continuou: — Outro dia veio uma cliente. Eu já havia feito um
lindo vestido dourado para ela —. Madame colocou outro alfinete. — Mas
ela insistiu em ter um preto, alegando: “Meu ex-marido está morto”.
A mente de Rhianne, que por um momento havia se distraído, voltou a
prestar atenção.
— Você pode imaginar? Eu disse a ela: “Você deve continuar amando-
o”. E sabe o que ela me respondeu? — Rhianne negou com a cabeça em
silêncio, com curiosidade. O olhar de Madame cruzou com o dela. — Ela
disse: “Eu o odiava. Queria ter visto ele se contorcer em seus últimos
momentos”.
A cabeça de Rhianne inclinou-se bruscamente em direção a Madame,
com os olhos arregalados. — Se contorcer? Ela usou essas palavras exatas?
— Por favor, mantenha a postura, ma chérie — disse Madame. — Oui,
ela usou essas mesmas palavras.
Os olhos de Rhianne piscaram enquanto ela se inclinava para frente. —
Era a senhora Andrea Parkes, por acaso?
— Pois é, de fato, ma chérie. Você a conhece? — perguntou Madame,
levantando-se com alguns alfinetes ainda entre os dedos.
— Ainda não — respondeu Rhianne, com um sorriso lento se formando
em seus lábios. — Mas estou ansiosa para conhecê-la na festa.
Os pensamentos de Rhianne começaram a unir vários detalhes. Até
sexta-feira, Andrea Parkes já havia sido informada da morte de seu ex-
marido. Era possível que um de seus filhos tivesse dado a notícia
imediatamente. Será que a polícia teria informado Arthur e Rita naquela
mesma noite que a causa da morte foi envenenamento? Parecia pouco
provável. Nem todos os venenos provocam reações violentas; alguns agem
rapidamente, enquanto outros imobilizam a vítima. No entanto,
considerando que Parkes teria lutado para respirar enquanto o Romin
fechava suas vias respiratórias, era provável que ele tivesse sofrido
convulsões. Talvez Andrea tivesse assistido a séries policiais demais; ou
talvez soubesse mais do que uma pessoa inocente deveria saber.
Ela saiu da loja de Madame com a promessa de voltar na quinta-feira
para uma prova final.
Ao chegar ao Luna’s com cinco minutos de atraso, Rhianne encontrou
Marissa já sentada em uma mesa perto da janela. Ao se aproximar, Marissa
acenou para ela, convidando-a a entrar. Rhianne entrou no Luna’s envolvida
pela sinfonia de sons ambientes: conversas murmuradas, tilintar de copos e
suave música de fundo. O tentador aroma de café recém-feito e especiarias
aromáticas impregnava o ar.
— Posso ajudá-la? — Um garçom materializou-se diante dela. Rhianne
percebeu que ele era um sobrenatural de algum tipo. Respirou fundo e
fechou os olhos por um momento, permitindo que seus sentidos se
expandissem. Um sabor distintivo de caça, reminiscente de veado assado,
chegou ao seu nariz.
— Ela está comigo —. A voz autoritária de Marissa cortou a
concentração de Rhianne. Rhianne suspirou, soltando seu controle sobre a
magia e abrindo os olhos. O garçom inclinou a cabeça.
— Permita-me acompanhá-la à sua mesa, senhora — disse o garçom.
Marissa fez um gesto em direção ao assento ao seu lado. Enquanto Rhianne
se acomodava, o garçom se aproximou e habilmente colocou um
guardanapo em seu colo.
— Nos dê um momento para decidir, por favor — disse Marissa,
lançando um breve olhar ao garçom. O garçom desapareceu tão
rapidamente quanto havia aparecido.
— Ele é rápido — Rhianne fixou seu olhar no lugar onde o garçom
estivera há um momento.
— Claro que ele é rápido; é um metamorfo de guepardo — disse
Marissa, com um sorriso irônico nos lábios. — Olá para você também.
Rhianne revirou os olhos. — Normalmente você não se preocupa com
cortesias. Como você sabe que ele é um metamorfo de guepardo?
— É verdade. Cortesia custa dinheiro e minhas taxas são bem altas.
Rhianne arqueou as sobrancelhas para ela.
Marissa jogou a cabeça para trás e riu. — Para responder à sua
pergunta, é meu trabalho saber disso. Quando trago clientes a um lugar
regularmente, sempre me certifico de que a comida seja deliciosa e o
serviço seja de primeira. Ajuda ter uma conexão com o dono e o chef, que,
a propósito, é uma gárgula e também meu cliente.
— Você traz todas as suas testemunhas de caráter aqui? Devo dizer que
estou impressionada — disse ela.
Era sua primeira vez no Luna’s, mas o ambiente opulento falava por si.
A decoração clássica, as luxuosas cadeiras estofadas de chenille em um rico
amarelo mostarda e a equipe impecavelmente uniformizada indicavam um
estabelecimento de alto nível.
Os olhos de Marissa brilharam de deleite. — Na verdade, eu trouxe
você aqui porque gosto de você.
— Me sinto lisonjeada — disse Rhianne, colocando uma mão sobre o
coração. — E quanto a Alice e Carl? Eles se qualificam? — Ela fez o
possível para manter uma expressão neutra.
Os olhos de Rhianne foram atraídos pelo sutil rubor de Marissa. Ela
observou as reações de Marissa enquanto fingia examinar o cardápio.
— Alice é minha cliente, e embora não seja um requisito que eu goste
dos clientes, acho que ela é uma boa pessoa. — Os dedos de Marissa
tamborilaram contra seu copo e seu olhar se desviou momentaneamente
para a janela antes de voltar a encontrar os olhos de Rhianne.
Marissa se remexeu em seu assento. Era fascinante ver a temível
advogada sem palavras. — Hmm, Carl é um cara encantador. Ele é bastante
diferente de outras gárgulas que conheci.
— Ah é? Em que sentido? — Rhianne se inclinou para frente, apoiando
os cotovelos na mesa e colocando seu queixo sobre suas mãos entrelaçadas.
Marissa deixou escapar um suspiro. — É difícil ser uma híbrida, como
nós. Nunca pertencemos realmente a um mundo ou ao outro. Você tem que
brilhar, ou eles mastigam você e cospem você sem pensar duas vezes.
Rhianne assentiu. Isso ela entendia bem. — Sim, eu entendo. Quando
você decide se destacar e viver a vida nos seus próprios termos, pode ser
libertador, mas também pode ser bastante solitário.
A confissão a surpreendeu e ela percebeu o quão sortuda era por ter Nel
e Toto como amigos. Agora, essas novas pessoas estavam entrando em sua
pequena bolha e mexendo com um monte de emoções dentro dela.
Marissa sorriu amplamente, mostrando todos os seus dentes. — Meu pai
é o chefe do clã das gárgulas. Ele exigiu muito de mim, quase ao ponto de
me quebrar — ela sacudiu levemente a cabeça. — Mas ele se certificou de
que todos soubessem que teriam que responder a ele se mexessem comigo.
Então eu criei meu próprio espaço, onde tudo é bonito e polido na
superfície.
— Mas?
— Mas quando se trata dos machos gárgula, geralmente é uma história
de extremos — acrescentou Marissa com um sorriso irônico. — Ou são
agressivos demais, constantemente tentando impor seu domínio e provar
que estão no comando, ou ficam intimidados demais comigo.
Rhianne bufou. — Tenho a sensação de que esses agressivos receberam
o que mereciam, não é?
O sorriso de Marissa se tornou feroz. — Pode apostar! — Sua expressão
então suavizou, e ela olhou para sua taça de cristal por um momento antes
de encontrar os olhos de Rhianne. — Carl é diferente. Ele é tímido, mas não
tem medo de mim. Está mais interessado em plantas do que em pessoas,
mas encontra alegria na vida, e é um cara realmente agradável.
— Você quer ter um relacionamento com ele.
O maxilar de Marissa se tensionou e ela ergueu o queixo. — Você diz
isso como se fosse algo ruim.
Rhianne estendeu a mão e agarrou a de Marissa. Marissa olhou
fixamente para suas mãos unidas, depois para Rhianne, piscando.
Rhianne não pôde conter sua emoção enquanto um grande sorriso
florescia em seu rosto. — Isso é ótimo! Não posso acreditar que dois dos
meus amigos possam ficar juntos! Definitivamente temos que organizar um
encontro para vocês!
Os olhos de Marissa se arregalaram e ela recuou em pânico. — Não,
quer dizer, você não pode e eu não posso!
— Hã?
— É uma coisa de gárgulas. Espera-se que o macho gárgula seja quem
dê o primeiro passo — ela disse. — Se eu iniciasse algo, seria visto como
atrevido demais ou significaria que só estou procurando uma aventura
casual.
— Mas você é atrevida! — argumentou Rhianne.
Marissa negou veementemente com a cabeça, a intensidade de seu
movimento fez Rhianne se preocupar que pudesse se desprender. — Não,
absolutamente não! Não posso ser eu quem dê os passos nesta situação. Se
nosso relacionamento vai funcionar, preciso dar um passo atrás. Se correr o
boato de que estou interessada e o perseguindo, só o envergonharia.
— Não acho que Carl se importaria.
Marissa suspirou. — Você não entende como nossa sociedade funciona.
Não estaria em jogo apenas a reputação dele, mas a de toda a família dele.
Rhianne apertou os lábios. Ela não podia argumentar contra algo que
não entendia completamente. Sentiu uma pontada de arrependimento por
não ter se mergulhado antes nos costumes e tradições de seus amigos. —
Acho que preciso que você me dê um curso intensivo sobre tudo isso — ela
exalou. — Mas, não há sempre alguma brecha legal?
O garçom reapareceu. Desta vez, Rhianne estava preparada e conseguiu
manter seu ritmo cardíaco estável.
Marissa se endireitou em sua cadeira, afastando uma mecha de cabelo
imaginária, e ofereceu ao garçom um sorriso educado. — Vou querer a
lasanha, por favor, e uma taça de pinot gris — ela disse.
— Eu vou querer os nhoque com Gorgonzola Dolce, e poderia me trazer
também uma água com limão, por favor? — Rhianne não tinha olhado o
cardápio, mas esperava que servissem o que ela tinha pedido. Felizmente, o
garçom assentiu e se foi.
Marissa olhou para Rhianne com expressão desconcertada.
Rhianne lhe ofereceu um pequeno sorriso triunfante. — Tem um sabor
de caça com um toque de erva.
Marissa arqueou as sobrancelhas.
— Não importa, é uma piada particular. Vamos voltar a falar dessa
brecha legal para que possamos fazer algo com Carl — disse Rhianne.
Marissa se animou. — A que você se refere com uma brecha legal?
— Bem, vamos pensar nisso logicamente. Você diz que não tem
permissão para convidá-lo para sair, certo?
Marissa assentiu e começou a morder o lábio inferior.
— Carl é bastante tímido, e provavelmente acredita que você não está
interessada nele.
Marissa franziu a testa. — O que você quer dizer?
— Que Carl gosta de você, mas sua timidez e sua insegurança o fazem
acreditar que você está fora do alcance dele.
— Mas isso não é verdade — a voz de Marissa falhou. — Eu sou a
híbrida aqui.
— Carl não julga pelas aparências ou pelo status social. Para ele, você é
simplesmente uma mulher bonita, inteligente e forte.
Marissa se inclinou para frente, com a voz mal acima de um sussurro.
— Você realmente acha que ele gosta de mim?
A cabeça de Rhianne se moveu para cima e para baixo. — Ah,
absolutamente! Quando eu disse a ele que íamos almoçar juntas, ele ficou
vermelho como um pimentão. Ele realmente se importa com você, mas nem
sequer conseguiu reunir coragem para me pedir para cumprimentar você.
— Então, ele é tímido demais para dar o primeiro passo, e eu não posso
fazer nada a respeito? — Marissa girou o simples anel de ouro em sua mão
direita, seus ombros caindo.
O coração de Rhianne se comoveu. — Espere! Tenho uma ideia! Posso
organizar um encontro e criar a oportunidade perfeita para você e Carl se
conectarem.
Marissa estava prestes a abrir a boca, mas então seu olhar se aguçou e
sua expressão mudou. Rhianne reconheceu a pose familiar que
internamente apelidara de “o olhar de advogada”.
— Poderíamos jantar na sua casa. Você estaria lá, então haveria uma
acompanhante — disse Marissa. — Mas, e a Alice? — seus olhos se
estreitaram. — Carl nunca faria nem diria nada na frente dela, e ela também
não pode ficar sabendo disso — advertiu.
— Não se preocupe, eu cuido disso — disse Rhianne. — Mas o desafio
para você, minha amiga, é encontrar uma forma de mostrar ao Carl que
você está interessada, enquanto se mantém dentro dos limites dessas regras
bobas.
O sorriso de Marissa se afiou, exalando um ar predatório. — Deixa
comigo. Eu convenci júris relutantes e juízes obstinados por anos. Vou
encontrar um jeito.
CAPÍTULO 16
O
aroma apetitoso da cozinha italiana pairava no ar, anunciando a
chegada do garçom. As narinas de Rhianne captaram o cheiro das
ervas aromáticas, do rico molho de tomate e do queijo, fazendo seu
estômago roncar de antecipação.
Elas desfrutaram de suas refeições em silêncio, cada uma mergulhada
em seus próprios pensamentos. Os nhoque estavam incríveis, super macios
e derretiam na boca de Rhianne como manteiga. A mistura de queijo doce e
ácido dava o toque perfeito de sabor.
— A propósito, algo aconteceu na segunda-feira à noite — Rhianne
lembrou-se de repente que precisava perguntar sobre interrogar os caras que
a atacaram.
Marissa sorriu maliciosamente. — Ah, você está se referindo ao seu
suposto “possível terceiro encontro”.
— O encontro foi maravilhoso — disse Rhianne. — Mas tivemos um
pequeno encontro com três valentões quando saímos de casa.
Marissa quase se engasgou com a comida que tinha na boca. — Espera,
o quê? Eles machucaram você ou o Kai?
Rhianne balançou a cabeça. — Ah, eles levaram muito mais do que
esperavam — respondeu. — Mas aqui está o negócio: preciso de um favor,
e não tenho certeza se você pode ou quer ajudar.
— Você quer conselho legal?
— Mais como interferência legal.
Sim, definitivamente o sorriso de Marissa parecia o de um tubarão. —
Ah, meu tipo favorito.
— Quero interrogar esses valentões sobre por que me atacaram. Tenho
certeza de que a polícia local os interrogará, mas não espero que eles
cooperem ou revelem algo significativo. E mesmo que o fizessem, duvido
que a polícia compartilharia essa informação comigo.
Os dedos de Marissa tamborilaram ritmicamente sobre a mesa. — Se
eles ainda não têm representação legal, posso fazer uma jogada e me
envolver — disse ela. — Espera! Você está sugerindo que eles estavam
atacando especificamente você ou o Kai? O que faz você pensar isso?
Os lábios de Rhianne formaram uma leve careta enquanto ela ponderava
quanto revelar a Marissa. Apesar de gostar dela, sua desconfiança inata a
continha. Optando por uma verdade parcial, decidiu por uma explicação
mais simples. — Suspeito que houve alguma magia feérica envolvida —
disse, com voz comedida.
— Entendo. — Marissa a estudou com os olhos semicerrados. Ela teria
muita experiência com pessoas evadindo a verdade, diabos, os advogados
podem não ter inventado a evasão, mas certamente a elevaram a uma arte.
— Para ser honesta, não vejo por que alguém quereria me fazer mal —
refletiu Rhianne. — Mas o trabalho de Kai poderia colocá-lo em perigo
mais do que a mim.
Os olhos de Marissa se estreitaram enquanto ela especulava. — Bem, há
uma coisa que vocês dois têm em comum: serem consultores-chave no caso
do assassinato de Parkes — disse ela. — Os seres feéricos raramente vêm
de seu reino. Eles eram humanos, não é?
Rhianne assentiu. — Sim, como você deduziu isso?
Marissa recostou-se, com uma expressão pensativa em seu rosto. —
Bem, se esses valentões fossem seres feéricos, eles não estariam detidos em
uma delegacia normal. Eles teriam sido transferidos para uma instalação
especializada, a menos que fossem seres feéricos menores — explicou ela.
Ela girou sua taça vazia. — É bastante intrigante, e eu adoro um bom
mistério. Você sabe em qual delegacia eles estão sendo detidos?
— Eles estão na mesma delegacia onde Alice estava — disse ela. Então,
mudando de assunto, acrescentou: — Falando nisso, qual é a sua tarifa?
Meu orçamento é um pouco limitado, então não posso me dar ao luxo de
muitas horas do seu tempo.
— Bobagem. Isso vai ser divertido, e além disso, você está me ajudando
com o meu caso — rebateu Marissa. Fazendo uma pausa por um momento,
ela olhou pela janela antes de se voltar para Rhianne com um sorriso
tímido. — E você sabe, amigos ajudam uns aos outros, não é?
Uma onda de calor preencheu o coração de Rhianne e um largo sorriso
se espalhou por seu rosto enquanto ela olhava para Marissa. — Sim, é isso
que os amigos fazem.
Elas acertaram os planos para o jantar, encontrando um momento que
funcionasse para ambas. Marissa concordou em ir à delegacia mais tarde,
sabendo que provavelmente os valentões seriam realocados em breve. Mas
agora era hora de assinar a referência de caráter.
Elas se aproximaram do tribunal, um magnífico edifício colonial antigo
de arenito com uma rica história. A entrada, antes adornada com grossas
portas de madeira, agora havia sido substituída por elegantes portas de
vidro que se abriam automaticamente ao se aproximar.
Uma vez que passaram pelo controle de segurança, subiram pela
escadaria de mármore. Rhianne não pôde deixar de se impressionar com o
passo rápido de Marissa, e de salto alto. Ao se aproximarem do balcão,
notaram que quatro secretários estavam absortos em seu trabalho, com a
atenção grudada nas telas à sua frente, completamente alheios à presença
delas.
Marissa limpou a garganta. Alto.
Assustada, uma das secretárias olhou para cima, com o cenho franzido
que desapareceu quando viu Marissa. O rosto da mulher de meia-idade
empalideceu, e ela imediatamente adotou um tom educado.
— Posso ajudá-la, senhorita Austin? — Seu aperto na caneta se apertou
tanto que seus nós dos dedos ficaram brancos.
Assim que ela mencionou o nome de Marissa, os outros secretários
encolheram os ombros e fingiram estar ocupados, desesperados para evitar
qualquer interação potencial. Marissa respondeu com um sorriso que
revelou uma boca cheia de dentes, mas em vez de oferecer tranquilidade,
teve o efeito oposto. A secretária intimidada se encolheu ainda mais,
aparentemente tentando se retirar de sua presença.
— Estamos aqui para apresentar uma referência de caráter — disse
Marissa.
A secretária levantou-se de seu assento e se aproximou do balcão,
segurando um formulário em suas mãos. Marissa colocou sua pesada pasta
no balcão com um baque, provocando um sobressalto coletivo dos que
estavam por perto. — Não é necessário, apenas certifique-se de identificar a
testemunha.
Levou apenas alguns minutos e todos os documentos foram assinados e
devolvidos à secretária ainda pálida.
Enquanto se afastavam do escritório, Rhianne ouviu os suspiros de
alívio vindos de trás delas. Ela se virou para Marissa com um sorriso. —
Você sabe que é bastante assustadora, não é?
— Ah, eu trabalhei duro para cultivar essa reputação. Definitivamente é
útil quando lido com meus colegas e os juízes.
Quando saíram, seus celulares celulares tocaram simultaneamente.
Marissa se despediu de Rhianne com um gesto antes de atender sua própria
ligação.
Quando a melodia familiar de Holding Out for a Hero soou de seu
celular, Rhianne atendeu com um suave — Alô. — Conseguiu dormir um
pouco?
— Dormi feito uma pedra — Um bocejo desmentiu sua afirmação.
— Mas não por muito tempo — ela o repreendeu.
— O suficiente.
Ela jurou que podia ouvir o sorriso do outro lado da linha.
— Ei, tenho algumas notícias. Quer a boa ou a má primeiro? —
perguntou Kai.
Rhianne deixou escapar um suspiro cansado, ajustando o celular na
outra orelha. — Tá bom, começa com a má notícia.
— Os celulares descartáveis foram comprados há dois dias por alguém
de moletom numa loja local — disse Kai. — Não foram nossos capangas. A
pessoa parecia ser homem, mas a roupa larga dificultava ter certeza.
— Tem certeza de que não era um dos nossos capangas? — perguntou
Rhianne, sua voz se ouvindo por cima do barulho de fundo de uma rua
movimentada enquanto esperava o sinal para atravessar.
— O cara era surpreendentemente alto e magro, apesar de usar aquela
roupa larga. Nossos capangas são mais largos, definitivamente não dessa
altura — disse Kai. Antecipando a pergunta de Rhianne, acrescentou: — E
escuta só: pagou em dinheiro, mas era evidente que não estava acostumado
a lidar com grana. Teve que pedir ajuda ao caixa.
— Conheço adolescentes que considerariam o dinheiro vivo uma
relíquia de outra época.
— Exatamente o meu ponto. Os adolescentes de hoje não se
incomodariam com dinheiro, e se o fizessem, saberiam o que fazer. Não,
tenho o palpite de que esse é o nosso enigmático elfo.
Rhianne assentiu, só para perceber que Kai não podia ver seu gesto. A
dúvida se apoderou dela, fazendo-a olhar para a tela por um momento. —
Você está me observando?
Kai riu suavemente. — Não tinha me ocorrido, mas se você quiser, eu
poderia — disse, soando esperançoso e fazendo o coração de Rhianne
palpitar.
— Estou atravessando a rua agora, então deveria me concentrar. A
propósito, essa era a boa ou a má notícia? — Ela começou a andar quando o
semáforo de pedestres ficou verde.
— Essa é a má notícia — disse Kai. — Você está ocupada na quinta à
tarde?
— Pensei que o objetivo era manter você ocupado por alguns dias —
perguntou Rhianne. Seus lábios se curvaram em um sorriso e seus olhos se
enrugaram de prazer. Vê-lo antes do esperado era definitivamente uma
agradável surpresa.
— Estou, mas aqui vem a parte da boa notícia: fui contratado pela
Empresas de Construção Parkes para investigar alguns arquivos
criptografados, e adivinha só. Tenho uma reunião com nada menos que Rita
Parkes em pessoa para discutir isso — Kai soava presunçoso a respeito.
— Como você conseguiu isso? — Pega de surpresa, ela tropeçou
momentaneamente em uma parte irregular da calçada.
— Já ouviu falar dos algoritmos que as redes sociais usam para manter
as pessoas rolando sem fim? — Kai levantou a questão, mas não fez uma
pausa para obter resposta. — É surpreendentemente simples. Você
identifica os interesses delas, depois as atrai com postagens adaptadas a
esses interesses, empurrando-as sutilmente para ações específicas. Tudo
isso enquanto elas acreditam que é completamente sua própria escolha.
Além disso, Rita Parkes já estava procurando por temas de cibersegurança e
transferências de dinheiro. Eu só a direcionei para o caminho certo.
Rhianne parou abruptamente, com o queixo caído enquanto olhava para
o celular, momentaneamente sem palavras. — Espera, pensei que você não
usasse redes sociais — conseguiu dizer.
— Não uso, e essa é precisamente uma das razões — disse Kai. — Mas
o fato de eu não usar redes sociais não significa que eu não entenda como
usar os algoritmos para influenciar sutilmente alguém.
— Gênio alfa, sem dúvida. Não sei se fico completamente horrorizada
ou totalmente impressionada.
— Eu voto na segunda opção — disse Kai.
— Um pouco dos dois — disse Rhianne, mas a risada que acompanhou
suas palavras desmentiu a afirmação. — Como você vai explicar minha
presença na entrevista?
— Ah, bem. Pessoas com dinheiro sempre esperam assistentes. Mas
devo admitir que não tenho disfarces à mão. A menos que você tenha um
estoque secreto de perucas em algum lugar?
Rhianne gemeu, percebendo que alterar sua aparência para a família
Parkes estava se tornando uma ocorrência regular. — Nel tem perucas. Vou
perguntar a ele.
— Seu melhor amigo? — O tom de Kai permaneceu em grande parte
inalterado, mas um toque de reserva se infiltrou em sua voz.
— Meu melhor amigo e para todos os efeitos, irmão — esclareceu
Rhianne. — Ele está animado para conhecer você — Ela não queria que
Kai pensasse que tinha algo com que se preocupar.
— Então eu gostaria de conhecê-lo também — A voz de Kai chegou
através de um bocejo.
— Beleza, então a que horas nos encontramos?
— A entrevista está marcada para as três. Que tal nos encontrarmos na
cafeteria em frente ao prédio às duas? — sugeriu Kai. — Assim podemos
discutir e planejar como vamos abordá-la.
— Me parece bom. Agora, vai dormir mais um pouco — disse Rhianne.
— Vou sim, mas me promete que não vai se meter em nenhuma briga
sem mim.
— O quê, acha que precisa proteger essa “pobrezinha”? — brincou
Rhianne.
Kai riu. — Não se trata só de manter você segura, Rhi. Quero participar
da ação que parece seguir você.
O sorriso de Rhianne se alargou, seu coração pulou uma batida. A forma
como Kai a chamou de “Rhi” provocou um agradável arrepio em suas
costas. Era um apelido que ela nunca tinha adotado antes, mas com ele, se
sentia bem.
— Sua ideia de diversão precisa de uma revisão — disse Rhianne.
— Eu levei uma vida protegida — Havia um toque de encolher de
ombros em sua voz.
— A gente se vê então — disse Rhianne, uma risadinha escapando de
seus lábios. Inacreditável! Kai tinha conseguido fazê-la dar risadinhas.
Sorte que nem Toto nem Nel estavam aqui para zoar com ela.
De repente, Rhianne teve a clara sensação de que estava sendo
observada. Ela escaneou discretamente as pessoas ao seu redor, mas
ninguém se destacava como suspeito. Ainda assim, havia algo na atmosfera
que se sentia estranho. E então, ela captou um fraco lampejo de magia e
notou um jogo inquietante de luz e sombras. Mas tão rápido quanto
apareceu, se desvaneceu, deixando-a questionando seus próprios sentidos.
Será que ela estava simplesmente assustada e imaginando coisas? Ela riu de
si mesma, toda essa conversa sobre as Sombras estava afetando-a.
Ela deixou para lá e discou o número de Nel. — E aí, topa uma briga,
grandão?
— O quê, nem um oi? Embora eu deva dizer que aprecio uma mulher
que sabe o que quer.
— Onde você está? — perguntou Rhianne, notando o barulho excessivo
de fundo, que parecia fora de lugar para as primeiras horas no clube.
— Acabei de me reunir com alguns dos meus contatos mais sombrios
— respondeu Nel, sua voz acompanhada por um grunhido e o estrondo de
algo pesado batendo no chão. Rhianne quase podia vê-lo se esquivando de
um soco enquanto continuava com um tom de irritação: — Eles nem sequer
têm ideia do que essa palavra significa — reclamou.
— Pode ser que não entendam as palavras, mas certamente reconhecem
o desprezo — disse Rhianne. — Você não tem senso de autopreservação.
— Se eu não tivesse, não estaria vivo, não é? — replicou Nel.
— Não, você é simplesmente excepcionalmente sortudo — rebateu
Rhianne.
— Você sabe o que dizem, princesa: a gente faz a própria sorte — Nel
evocou uma velha discussão entre eles.
— Não, a gente aproveita as oportunidades quando elas surgem —
replicou Rhianne.
— Você é jovem demais para ter uma visão tão pessimista do mundo —
Nel estalou a língua. Outro golpe ressoou ao fundo.
— Você está tendo uma briga sem me convidar? Que tipo de amigo
você é?
— É bem chata, embora você pudesse achar divertidas as táticas sujas
— disse Nel em meio a sons de caos e destruição. Ele nem sequer parecia
ofegante.
— Não me diga que você está recorrendo a táticas sujas — Rhianne
fingiu escândalo.
— Nem nos seus sonhos mais loucos! Sou um guerreiro honrado — as
palavras de Nel pingavam falsa retidão.
Um forte estrondo fez Rhianne afastar o celular do ouvido, protegendo-
o da cacofonia. — Você pode acelerar suas maneiras honradas e me
encontrar na academia em meia hora? — perguntou.
— Ah, tudo bem — disse Nel. — Mas só porque sinto sua falta —
acrescentou, um último golpe metálico marcando o fim do caos, e um
silêncio abençoado se instaurou do seu lado.
— Nem pense em usar isso como desculpa quando eu der você uma
surra mais tarde — Rhianne sorriu.
— Nossa, alguém está de bom humor — disse Nel. — Esse novo ânimo
tem algo a ver com seu guerreiro tecnológico? Começo a me sentir
supérfluo.
— Você é único, grandão, insubstituível, e sabe disso! Então não fique
buscando elogios.
— Ah, havia um toque de carinho escondido nesse insulto? — refletiu
Nel.
Ela soltou de repente: — Kai quer conhecer você — Segurou a
respiração, esperando a reação de Nel.
— Ah, é? — o tom de Nel adotou um matiz travesso. — Ele não está
com ciúmes do seu melhor amigo alto, moreno e bonito?
— De jeito nenhum — Ou pelo menos não depois que Rhianne
explicou.
— Bem, por acaso estou morrendo de vontade de conhecer o homem
que está competindo comigo pelos seus afetos — brincou Nel.
— Não há competição, você é meu irmão — disse Rhianne. — E ele
é… alguém que quero conhecer muito melhor — Suas palavras se
apagaram desajeitadamente enquanto ela lutava para definir seus
sentimentos em evolução por Kai. Em tão pouco tempo, ele tinha se tornado
muito mais do que ela inicialmente esperava.
— Já entendi — disse Nel. — Então eu também gostaria de conhecê-lo.
Te vejo em breve, princesa.
Rhianne passou a perna sobre a moto, ligou-a e agarrou o guidão. Com
uma virada decidida do acelerador, ela disparou, misturando-se às ruas
movimentadas. Enquanto navegava pela cidade, sua mente continuava
evocando imagens de Kai.
Quando Rhianne chegou à academia, viu Nel conversando com uma
atraente loira, que o olhava com adoração. Sem interromper, ela deu um
toque no ombro dele ao passar, indo direto para seu canto de luta designado.
Ao olhar para trás por um momento, captou a mulher lançando-lhe um olhar
venenoso. Rhianne bufou, já acostumada com os olhares ciumentos das
conquistas de Nel.
Dizer que Nel era fóbico a compromissos era como dizer que o oceano
estava um pouco úmido. Ele nunca ia além de um segundo encontro. Ela
supunha que ele fazia isso para suavizar o golpe quando terminava as
coisas. Mesmo assim, houve aquela vez em que uma mulher perdeu a
cabeça por causa de uma aventura de uma noite.
Assim que Nel a alcançou e eles ficaram fora do alcance de ouvidos
alheios, Rhianne perguntou: — Você já dormiu com ela?
— Ainda não, mas começo a pensar que não vou — Nel deu de ombros.
Um olhar de soslaio de Rhianne o instou a continuar: — Ela já parece
apegada demais.
A curiosidade de Rhianne, talvez alimentada por seu próprio
relacionamento incipiente com Kai, lhe deu um toque de audácia. — Elas
não se apegam todas? — perguntou, suas palavras diretas e sem filtro.
Nel fez uma careta. — É meu charme inato — Tentou minimizar.
— Inato ou mágico? E isso se aplica só aos humanos, ou afeta todos os
seres sobrenaturais?
A cabeça de Nel se virou para ela, franzindo a testa. — Você nunca
tinha perguntado antes. Está preocupada que eu possa estar influenciando
você?
Rhianne fez uma pausa, de repente consciente da delicadeza do tema
para Nel. Como isso tinha escapado dela antes? Sabia que ele raramente
falava sobre seus traços de íncubo, supondo que seu silêncio se devia às
implicações sensuais. A ideia de que ele pudesse temer sua própria
influência sobre os outros nunca tinha lhe ocorrido. E deveria ter ocorrido.
— Como se isso fosse possível, grandão! — Ela se esforçou para
manter um tom leve. — Caso contrário, eu teria muito medo de lutar sujo,
por medo de danificar as joias da coroa, e isso nunca seria bom.
Nel jogou a cabeça para trás, soltando uma risada genuína, e a tensão
que havia em seus olhos se dissipou. — Então essa é a razão pela qual você
consegue me vencer.
— Mesmo se eu não fizesse isso, você ainda perderia.
Ele balançou o dedo, recuperando sua arrogância, e embora Rhianne
gostasse desse lado mais leve dele, agora estava mais determinada a
investigar o que o assustava.
— Vamos fazer um acordo: se eu ganhar, você se abre — propôs
Rhianne.
— E se eu ganhar, você vai me deixar conseguir um carro decente para
você — contrapropôs Nel, estralando os dedos.
Sua resposta rápida e confiante plantou uma semente de dúvida nela.
Será que ele poderia ter se contido todo esse tempo, apesar de suas
negativas? Ela estava prestes a ser completamente superada? Estreitou os
olhos, avaliando-o. Conhecia bem seu estilo de luta — seu tamanho e força
— e estava ciente de que não podia superá-lo em uma batalha frontal. Se ele
estivesse se contendo, ela precisaria mudar sua estratégia, mas como?
Enquanto começavam o aquecimento, os espectadores se reuniram nas
bordas dos tatames, uma visão que irritou Rhianne. O ambiente lotado a
inquietava. Ela precisava se concentrar. Talvez essa tivesse sido a intenção
de Nel desde o início, e se fosse, ele havia conseguido. Ela necessitava de
algo que ancorasse seus pensamentos, que afastasse a inquietação que se
arrastava dentro dela.
Girando lentamente os braços, ela usou o movimento como desculpa
para buscar um ponto focal. A mulher de antes havia se posicionado na
frente e no centro com um sorriso desagradável no rosto, claramente
convencida de que Nel estava prestes a dar uma surra em Rhianne. Rhianne
estreitou os olhos, recusando-se a dar a satisfação de parecer preocupada.
Então, seu olhar se desviou para uma pequena planta em um vaso
colocado em uma das janelas altas. Era uma samambaia pendente, com
delicadas folhas que caíam pelo menos sessenta centímetros. Rhianne
estendeu seus sentidos mágicos em direção a ela, enviando uma saudação
tentativa. Para sua surpresa, a planta respondeu, como se oferecesse uma
suave carícia e um calor reconfortante em troca. A sensação calmante a
invadiu, revitalizando instantaneamente seus níveis de energia. Fechando os
olhos, ela permitiu que a sensação impregnasse seu ser, mantendo seus
movimentos enquanto realizava a rotina de aquecimento por memória
muscular e intuição.
— Pronta? — A voz de Nel quebrou o silêncio, como se apenas
segundos tivessem se passado desde que começaram a aquecer, embora
devessem ter sido os vinte minutos habituais.
O som da voz dele ressoou suavemente na mente de Rhianne, instando-
a a abrir os olhos. Sua visão havia se aguçado, permitindo-lhe ver Nel em
toda a sua magnífica glória. Ele havia tirado a camisa, revelando seu
abdômen definido e peitorais brilhantes sob as luzes do ginásio. No entanto,
o que realmente chamou sua atenção foi a aura radiante que o cercava, um
resplendor cintilante que ela nunca havia presenciado antes.
— Bonito — disse ela, percebendo só então que havia falado em voz
alta.
Nel inclinou a cabeça, e Rhianne pôde ouvir um bufo da mulher
desagradável. Ela reprimiu o impulso de rir, contentando-se em seu lugar
com um sorriso. A energia que corria por ela era inebriante, e ela se
posicionou em uma postura equilibrada e elegante. — Vamos lá — disse,
iniciando seu ataque com precisão letal, executando uma varredura alta com
a perna, um movimento inesperado que ela nunca teria empregado como
abertura. O elemento surpresa assegurou que ela conseguisse um golpe no
lado dele.
— Melhor de três? — O sorriso de Rhianne se alargou.
Nel hesitou, como se sentisse que algo não estava certo. Seus olhos
estreitados se cravaram nela, sua resposta casual traindo a tensão em sua
mandíbula. — Claro.
Rhianne deu um passo para trás, executando uma cambalhota perfeita,
acertou Nel no ombro com força e aterrissou com graça em um giro do
outro lado. Colocando-se de pé, ela não pôde evitar exibir um sorriso
triunfante nos lábios, deleitando-se com seu movimento bem-sucedido.
No entanto, sua euforia se desvaneceu quando seus olhos encontraram a
samambaia pendente. Onde uma vez havia sido vibrante e verde, agora
aparecia murcha, reduzida a uma confusão marrom e seca.
CAPÍTULO 17
R
hianne ficou boquiaberta enquanto o choque do que acabara de fazer a
sacudia. Podia sentir os calafrios percorrendo seu corpo, e seus olhos
começaram a se encher de lágrimas, à beira do choro. Então, mãos
reconfortantes pousaram em seus ombros, estabilizando-a.
— Bem feito, princesa — gritou Nel, sua voz cortando o silêncio para
que todos pudessem ouvir. — É hora de irmos comemorar. — Seu tom era
aquele tipo despreocupado e sereno que podia acalmar os nervos mais
tensos. Rhianne sentia como se seu corpo estivesse feito de chumbo de
repente, e apenas pensar em se mover era uma tarefa árdua.
As mãos de Nel deixaram seus ombros, e ela sentiu falta de sua firmeza
instantaneamente. Mas então, num piscar de olhos, se viu envolvida em um
forte abraço, dando-lhe o conforto e a força de que precisava. Rhianne se
permitiu relaxar nesse apoio, o contato trazendo-a de volta ao momento.
Ela lançou um olhar arrependido para a samambaia murcha, ciente de
que com todos olhando, não havia muito que pudesse fazer naquele
momento.
Com um ato de vontade deliberada, Rhianne reuniu sua concentração.
— Ótima ideia — disse, tentando infundir alegria em sua voz, embora
soasse frágil. — Vou me trocar e encontro vocês na entrada.
Ela se apressou para tomar banho, se trocou e saiu. Nel estava
esperando, seus olhos contendo uma mistura de perguntas e apoio
silencioso.
— Vamos sair daqui — disse ela, evitando qualquer conversa. Não aqui
com tantos olhos e ouvidos provavelmente fixos neles.
Sem dizer palavra, Nel colocou seu braço na curva do dela e a guiou
para fora. Ela não resistiu quando ele a levou até seu carro estacionado e
abriu a porta. Deslizou para o banco do passageiro, perdida em seus
pensamentos enquanto dirigiam em silêncio. Observou como o mundo
exterior se transformava de vívidos azuis para os cinzas crepusculares do
entardecer, sinalizando sua chegada ao lugar de Nel. Ao sair do carro,
seguiu-o até os elevadores, a tranquila bolha de seu isolamento um pequeno
consolo em meio ao caos de sua mente.
Com voz baixa, Rhianne finalmente perguntou: — Você viu a
samambaia?
Nel assentiu, sua expressão neutra. — Não senti nenhuma magia
acontecer.
Os pensamentos de Rhianne eram um turbilhão de teorias mágicas.
Magia verde? Sim, isso deixava um rastro claro. Mas depois havia a magia
dos elfos, aquela que Toto afirmava ter sentido nela. Essa magia tinha um
certo cheiro doce, pelo menos para Rhianne. Mas a questão era, Nel podia
captar esse aroma, ou era algo exclusivo dos elfos? E aquela estranha
energia que obteve da samambaia, não se encaixava totalmente com o resto.
— Não consigo identificar que tipo de magia foi essa. Eu estava
procurando algo para me concentrar, e a samambaia simplesmente… emitiu
esse calor reconfortante. Não queria machucá-la. — Sua voz tremeu.
— Como não senti nada familiar, suspeito que possa estar relacionado à
sua magia de dríade.
Ela deixou que o pensamento desse voltas em sua mente antes de falar.
— Não consigo distinguir entre a magia verde e a magia de dríade. Quer
dizer, acho que nunca usei magia de dríade de propósito — confessou. —
Minha magia verde tem certa sensação. E isso… não estava presente desta
vez.
A curiosidade brilhou nos olhos de Nel quando perguntou: — Então,
você já usou magia de dríade antes?
Uma vez que saíram do elevador em direção ao apartamento de Nel,
Rhianne encontrou seu caminho até a chaise longue e se deixou cair. —
Lembro de caminhar pela floresta com o vovô Angelo naqueles tempos. Ele
sempre me dizia para ouvir as árvores, para me conectar com elas. Mas
nunca peguei o jeito.
Ela omitiu o medo silencioso do fracasso e da exposição que se
interpunham em seu caminho. Mesmo quando praticava sua magia verde,
era cuidadosa, sem estar completamente certa de como suas diferentes
habilidades mágicas poderiam interagir. Manter-se sob o radar sempre
parecera a opção mais segura.
Esfregou os olhos com cansaço, deixando escapar um suave suspiro. —
Eu realmente queria curar aquela samambaia depois. Mas com todos
aqueles olhos vigilantes ao redor, não era possível. Senti como se a
samambaia… percebesse que eu precisava de um impulso, e me desse sua
força. Mas tudo o que fiz foi esgotá-la.
Nel pegou seu celular e digitou uma mensagem. — Algo incomodou
você hoje, e você parecia distraída. O que aconteceu?
Por um momento fugaz, Rhianne brincou com a ideia de desviar a
conversa e não responder. — Comecei a pensar… talvez você tenha sido
indulgente comigo todo esse tempo, porque, bem… você me ama. — Suas
palavras saíram de repente em uma torrente.
Nel deixou escapar um suspiro. — A última vez que te derrotei, você
tinha dezenove anos. Por que eu decidiria de repente aumentar seu ego
agora? Nunca tratei você com luvas de pelica.
Rhianne bufou. — Você me mimou até o extremo, como todos podem
atestar. Presentes caros, apoio financeiro para meus estudos, me ajudando a
estabelecer meu negócio…
A expressão de Nel se tornou terna. — Eu te amo você, princesa. Isso
sempre esteve à vista. Claro, te mimei com coisas e cuidei de você como
qualquer irmão faria, mas nunca te freei. Você enfrentou aqueles atacantes
porque é forte, não porque eu te protegi. Embora uma parte de mim sempre
vá te ver como minha irmãzinha, sei que você já é uma adulta.
Ela lhe lançou um olhar penetrante. — Muito bem, se você está falando
sério, me dê uma resposta direta sobre seus poderes, quer?
Nel passou uma mão pelo cabelo, um gesto de resignação, e se apoiou
contra a estante. — Você tem razão, você mereceu isso. Não me calo sobre
meus poderes porque acho que você não pode lidar com isso. A verdade é
que eles me assustam — confessou.
Ele se levantou e se arrastou até a cadeira em frente a Rhianne,
deixando-se cair com um suspiro dramático. Por um segundo, Rhianne
simplesmente piscou olhando para ele. Nel e assustado? Iam juntos como
água e óleo. Ele era o tipo que piscaria um olho e mergulharia no fundo
enquanto todos os outros ainda estavam molhando os pés.
Nel afundou-se mais na cadeira, seu tom oscilando entre rendição e
preocupação. — Estou por aqui há um tempo, e com a idade, os da nossa
espécie ficam mais fortes — disse ele—. É estranho, sabe? Você é a
primeira mulher em séculos que não foi afetada pelos meus encantos.
Diabos, tem caras que me acham irresistível, e não tem nada a ver com suas
preferências. Os humanos podem se enredar num piscar de olhos com
apenas um toque. Outras criaturas, no entanto, conseguem se livrar melhor,
especialmente as antigas ou poderosas.
Rhianne esboçou um sorriso, tentando aliviar a tensão. — Você não
quer dizer que se apaixonam? Eu vi as cartas e os poemas, sabe.
Nel deixou escapar uma risada sem humor. — Exatamente — disse ele
—. Eles confundem essa luxúria com amor. Sempre se trata do que querem
de mim, não de mim como pessoa. Claro, eu preciso dessa conexão física
para seguir em frente, mas faz muito tempo desde que senti uma
proximidade real com alguém. — Ele fez uma pausa, tomando um fôlego
que parecia conter muitas coisas não ditas—. Por isso sempre tive cuidado
para não te tocar quando começamos a passar tempo juntos.
Rhianne se remexeu desconfortável, com a mente acelerada. Ela tinha
pensado que a distância de Nel se devia ao fato de ele estar ciente da sua
juventude, tentando não lhe dar uma ideia errada. — Então, eu tenho tipo
uma… imunidade a você? É por isso que você me manteve por perto? —
Sua voz tremeu um pouco com a pergunta, insegura se queria ouvir a
resposta.
Nel negou suavemente com a cabeça enquanto um sorriso, caloroso e
genuíno, aflorava. — Não, você tem sido diferente desde o início. Não era
só sobre a imunidade, embora isso tenha me desconcertado por muito
tempo. — Um lampejo de reminiscência dançou em seus olhos—. Acho que
percebi naquele dia que fui te ajudar a se mudar.
O rosto de Rhianne se iluminou com súbita compreensão. — Ah, você
se refere ao dia em que tive aquela grande briga com minha mãe e te liguei
em pânico para vir? — perguntou ela, encaixando a lembrança.
O sorriso de Nel se alargou. — Esse mesmo — disse ele, com uma nota
calorosa em sua voz—. Você era toda fogo e espírito, mesmo então. Se
plantando na frente da sua mãe, deixando claro que não era o peão de
ninguém. Você me impressionou muito. — Seus olhos ganharam um olhar
distante—. Quando cheguei, você não hesitou, se lançou direto para me
abraçar, com a cabeça apoiada contra mim.
Rhianne não pôde evitar sorrir com a lembrança, um momento em que
se sentiu verdadeiramente apoiada. — Sim, eu me lembro — repetiu ela—.
Você me levou para o estúdio, alegando que devia um favor ao dono. Você
fez parecer como se eu estivesse fazendo um grande favor a eles, ocupando
aquele espaço para arrumá-lo.
O sorriso de Nel suavizou, as linhas de estresse relaxando ao redor de
seus olhos. — Aquele abraço foi meu momento de verdade — confessou ele
—. Você me tocou, mas não caiu rendida aos meus pés. Em vez disso,
praticamente me expulsou assim que se instalou no novo lugar. Tentei ficar
com a desculpa de ir às compras, mas você não permitiu. — Escapou-lhe
uma risada—. Sabe, ninguém tinha conseguido me expulsar daquela
maneira. Foi refrescantemente agradável. Então te observei depois disso, e
nem uma vez você agiu como se estivesse sob algum feitiço. Foi então que
soube com certeza.
Rhianne se levantou e se aproximou dele, envolvendo-o em um abraço.
— Eu te achava fascinante, só que não desse jeito — disse ela—. Espera, é
por isso que você não procura relacionamentos de longo prazo? Porque
acredita que os outros só buscam uma coisa com você?
Nel simplesmente assentiu em resposta e a garganta de Rhianne se
apertou. Rhianne empatizava com os sentimentos de Nel até certo ponto.
Essa era exatamente a razão pela qual Rhianne tinha dificuldades para
fazer amigos próximos, exceto por sua sólida conexão com Nel. O ensino
médio para ela foi cheio de amizades falsas: pessoas que eram gentis com
ela apenas para obter ajuda mágica ou se beneficiar do status da sua família.
Isso acontecia com tanta frequência que a deixou bastante cautelosa na hora
de fazer novos amigos.
Então Rhianne encontrou sua zona de conforto na biblioteca, passando o
tempo com livros em vez de pessoas. Mas não podia ficar de braços
cruzados quando via as crianças menores sendo intimidadas. Ela se tornou
sua defensora, enfrentando os valentões por elas. Ao fazer isso, encontrou
alguma autenticidade: esses estudantes mais jovens não queriam nada dela;
eles precisavam da sua ajuda, e isso era refrescantemente simples e honesto.
— Talvez — disse Nel, trazendo-a de volta das suas lembranças. Mas
num instante, sua atenção voltou para Rhianne e um sorriso travesso se
espalhou pelo seu rosto—. Ou talvez ninguém possa realmente competir
com você, princesa. Então nem me incomodo em tentar.
Ela beliscou brincalhona o antebraço dele. — Ah, vai, não tente desviar
o assunto. Conheço seus truques, senhor. Não pode enganar sua irmãzinha.
— Rhianne guardou o pensamento para comentar com Toto mais tarde.
Com seu acesso a arquivos antigos e seu vasto conhecimento, ele poderia
ter algum truque na manga que pudesse ajudar Nel a moderar seus poderes.
A risada de Nel foi leve, seu sorriso genuíno e brilhante. — Sabe, você
deveria seguir um pouco desse conselho você mesma, princesa. Quando vai
ver o quão incrível você é? Tem seu próprio negócio de sucesso e é
imbatível no ringue. Não tem nada a provar.
Rhianne exalou lentamente, sentindo o peso das palavras dele. Ela sabia
que Nel tinha razão, mas sempre havia aquela batalha interna, aquela
dúvida persistente alimentada por não atender aos altos padrões de sua mãe
e a dor da indiferença de seu pai.
Agora, no entanto, ela estava rodeada de pessoas que a apreciavam por
quem ela era, com todas as suas peculiaridades. Ela ofereceu um meio
sorriso. — Sim, eu entendo, mas é mais difícil do que você pensa se livrar
da dúvida.
Nel sorriu com ar de suficiência. — Bem, também não é fácil ser tão
bonito, talentoso e inteligente. É um fardo que carrego todos os dias.
Rhianne explodiu em gargalhadas. — Ah, o íncubo arrogante e
despreocupado que conheço e amo. — Ela deu um tapinha no ombro dele e
plantou um beijo amigável na sua bochecha.
— Falando em amor, Art tem perguntado por você no clube.
Discretamente, é o que ele acredita.
Rhianne bufou. Como se alguém pudesse fazer ou dizer algo no clube
de Nel sem que ele soubesse.
— Ele ficou bastante encantado com você — acrescentou Nel.
— Ele ficou encantado com a ideia de alguém e excitado pelo fruto
proibido. — Rhianne descartou. Ela fez uma pausa, ponderando suas
opções—. Mas se eu precisar de mais informações, talvez Rose tenha que
fazer outra aparição no clube na quinta-feira à noite.
Nel ergueu uma sobrancelha e então se inclinou para frente. — Talvez
eu possa transformar você em uma espiã afinal.
— Ah, por favor. Você é uma agência secreta por si só, grandão. Não
precisa da minha ajuda.
— Eu sempre vou precisar de você. — Ele puxou suavemente uma
mecha ondulada do cabelo dela e então a olhou com olhos inquisitivos—.
Mas a ideia tem mérito. Ter uma espiã feminina abre mais possibilidades.
— Nem pensar. Você não vai me envolver nas suas atividades
extracurriculares.
— Não descarte tão rápido. Você tem talento para extrair informações
das pessoas, e sua curiosidade insaciável é um ativo valioso. Essa é a moeda
com que trabalho.
— E que você usa a seu favor.
Ele lhe deu um largo sorriso, seus olhos brilhando com malícia leve. —
Claro, mas eu a uso para manter as pessoas certas na ponta dos pés.
Os olhos de Rhianne se estreitaram enquanto o estudava. Até que ponto
Nel estava envolvido na política? Poderia ser essa a razão pela qual sua mãe
não gostava muito dele? — O que você quer dizer exatamente com manter
as pessoas certas na ponta dos pés?
Nel levantou um dedo, um gesto brincalhão. — Só estou pedindo que
você pense nisso. Uma vez que você tem a informação, depende de você
como usá-la. Mas deixe eu te dar uma prévia: eu reuni provas sólidas contra
um notório traficante de seres feéricos e alguns outros.
Um brilho travesso dançou nos olhos de Rhianne enquanto ela se
inclinava mais perto. — E quanto a um político tarado? Você orquestrou
isso?
Nel pareceu satisfeito. — Ah, ele definitivamente mereceu.
Rhianne queria revirar os olhos, mas sua boca se contorceu e uma risada
suave escapou antes que ela pudesse contê-la. — Eu sabia! Seu demônio
astuto, vingativo e brilhante! Por que você não me contou antes?
O olhar de Nel caiu, suas mãos de repente se tornaram o centro de seu
mundo. — Eu não queria perder o seu respeito — disse ele—. Muito disso
remonta aos meus anos de juventude. — Ele fez uma pausa, perdido em
seus pensamentos por um momento—. Sabe, ser jovem e tentar descobrir
quem você é pode ser difícil. Você não tem certeza do seu próprio valor, e
sempre há aqueles que esperam se aproveitar dessa dúvida. — Um breve
vislumbre de um franzir de testa apareceu no rosto de Nel ao mencionar seu
passado, um sussurro de velhas lembranças—. Essa é parte da razão pela
qual eu entrei no jogo dos segredos. Saber o que faz os outros funcionarem
me dava algumas pistas sobre mim mesmo — disse ele—. E agora, eu
peguei gosto pelo oculto e o desconhecido. Há algo nos segredos e enigmas
que me atrai.
Um calor se espalhou por Rhianne, e ela estendeu a mão para apertar
suavemente a dele. — Eu nunca poderia pensar menos de você, seu bobo.
Nel encontrou seu olhar e lhe ofereceu um sorriso irônico. — Então,
isso significa que você vai considerar minha oferta?
Rhianne reprimiu uma risada. — Tudo bem, Nel, eu vou considerar. Na
verdade, eu posso precisar da sua ajuda com outro disfarce.
Nel inclinou a cabeça. — Ah? E de que tipo de disfarce estamos falando
desta vez?
— Kai conseguiu marcar uma entrevista com Rita Parkes, e me
convidou para acompanhá-lo.
Nel assobiou com admiração. —Impressionante. Como ele conseguiu?
— Rhianne contou a ele—. Esse seu Mago Tecno é bem engenhoso e
inteligente, não é?
Rhianne agitou o dedo para ele. — Nem pense em começar a recrutá-lo
também.
Nel fingiu inocência e deu tapinhas no queixo. — Eu nem sonharia com
isso. Pelo menos não sem o seu consentimento, é claro.
— Eu conheço esse olhar. — Rhianne franziu a testa. Ela estava pisando
com cuidado, sem querer estragar os delicados primeiros estágios com Kai.
Apaixonar-se vinha com seu próprio coquetel de emoção e nervosismo, e
ela estava disposta a ver onde esta jornada com Kai a levaria. Ela amava
Nel, de verdade, mas ele era astuto e enganoso. Com um ás sempre na
manga, às vezes ela se perguntava se ele era o equivalente humano de um
jogo de xadrez: sempre três movimentos à frente.
Nel mudou a conversa para a próxima missão. — Você vai ter que
elaborar uma estratégia para trazer à tona o assassinato — ele apontou. Ela
não tinha pensado tão à frente. Talvez Kai tivesse algumas ideias, mas Nel
estava certo: eles precisavam de uma estratégia—. Não se preocupe. As
pessoas sempre querem falar; você só precisa direcionar a conversa. — Ele
sorriu—. E como Parkes não era exatamente o senhor Simpatia, você
provavelmente encontrará pessoas mais do que dispostas a expor os podres.
Essa é a sua entrada.
Rhianne assentiu. Como assistente, ela passaria despercebida, e as
pessoas estariam mais dispostas a compartilhar informações com ela. —
Então, como você acha que uma assistente de um Mago Tecno deveria se
parecer?
Nel sorriu. — Vamos às compras.
Rhianne gemeu.
CAPÍTULO 18
O
entregador de pizza chegou com três pizzas fumegantes, mas Rhianne
logo percebeu que a comida por si só não poderia salvar a situação
desconfortável. Ela deveria ter pensado antes e comprado um pouco
de vinho para quebrar o gelo. Do jeito que as coisas estavam, ela sentia que
estava preenchendo o silêncio sozinha, tentando desesperadamente manter a
conversa fluindo. Carl e Marissa estavam sentados um de frente para o
outro, fazendo o possível para evitar qualquer contato visual significativo.
Rhianne lançava vários tópicos, mas tudo o que recebia em troca eram
respostas curtas e monossilábicas. A noite estava rapidamente se
transformando em um desastre.
Carl e Marissa alcançaram o mesmo pedaço de pizza de anchova; suas
mãos se chocaram involuntariamente. O contato repentino os assustou,
fazendo com que retirassem as mãos como se tivessem tocado um fogão
quente. Seus rostos ficaram carmesim, com rubores coincidentes se
espalhando por seus pescoços. Rhianne queria dar um tapa neles.
O som de latidos fortes quebrou o silêncio.
— É o Toto, me pergunto o que o deixou tão agitado. Talvez seja outro
intruso.
Carl olhou fixamente para ela.
— O que você quer dizer com outro intruso?
Marissa interveio.
— Você está se referindo a alguém além dos bandidos que te atacaram?
— Bandidos? Que bandidos? — perguntou Carl, seus olhos saltando de
uma para a outra.
Rhianne esfregou os olhos e se levantou.
— Essa é uma longa história. É melhor eu ir ver o que está deixando o
Toto tão agitado.
— Vou com você — Carl se levantou, com os ombros e a mandíbula
rígidos. — E quero ouvir sobre esse ataque.
— Eu também vou — disse Marissa, usando um guardanapo para
limpar a boca. — Duvido que esses bandidos tenham sido liberados da
delegacia desde que os visitei esta manhã.
Carl inclinou a cabeça e lançou um olhar penetrante para Marissa.
— Você visitou esses bandidos sozinha? — Sua voz retumbou, o mais
próximo da raiva que Rhianne já tinha ouvido dele.
Marissa jogou sua melena para o lado enquanto se juntava a eles na
porta.
— Sou advogada, lido com caras piores que esses. E esses são só os
outros advogados; nem te conto sobre alguns dos meus clientes.
Rhianne arqueou as sobrancelhas.
— É daí que vem o termo “advogado impiedoso”?
Marissa bufou.
— Como advogada, você precisa ser mestra da intimidação e da
ambiguidade. E se você é uma advogada mulher, também precisa ter a pele
grossa, tanto literal quanto figurativamente.
Rhianne teria ficado feliz por finalmente terem encontrado algo sobre o
que conversar, exceto que não era particularmente romântico e ela ainda
precisava descobrir o que estava acontecendo com o Toto. Não era típico
dele começar a latir assim. Ignorando-os, ela desceu as escadas de um salto.
Não ficou surpresa ao ouvir dois pares de passos pesados atrás dela.
Balançou a cabeça; ela nem sequer tinha conseguido que tivessem um
momento a sós.
Correu para o lugar onde Toto estava latindo, só para perceber que ele
tinha parado de repente. Seu coração batia forte no peito. Quando chegou, a
área estava inquietantemente silenciosa, e uma onda de ansiedade a invadiu.
— Toto? Cadê você? — chamou.
Um som fraco chegou aos seus ouvidos vindo da esquerda, fazendo-a
derrapar na cascalho.
— Toto? — chamou mais uma vez, com a voz trêmula.
Sob o arco de entrada de madeira, ela avistou uma pequena bola de pelo
branco. Apressou-se até lá, com os olhos fixos em sua forma imóvel, o
medo agarrando-se ao seu coração.
— Você está machucado? — perguntou.
Não houve resposta.
Carl se agachou ao lado de Toto.
— Ele está bem?
O peito de Toto subia e descia em um ritmo lento e constante. Rhianne
sentiu uma enorme onda de alívio invadi-la, ainda bem que ele estava vivo!
Mas em meio ao alívio, uma sensação de urgência ainda a corroía.
Enquanto examinava cuidadosamente Toto, não conseguiu detectar
nenhuma lesão visível, o que só aumentou sua preocupação. A pergunta
cruzou sua mente: poderia ser veneno? O mero pensamento lhe causou um
arrepio na espinha.
— Vou levantá-lo — disse Carl em um tom suave. Com cuidado, Carl
pegou Toto em seus braços, depois se virou para Rhianne. — Para onde
devemos levá-lo, chefe?
O medo se retorcia em suas entranhas, mas ela precisava manter a
compostura por Toto.
— Para o viveiro particular. Lá tenho todas as plantas curativas —
começou a caminhar para lá.
Tirou as chaves do bolso e com mãos trêmulas tentou colocar a chave
na fechadura. Xingou quando a chave parecia não querer entrar. Grunhiu de
frustração e respirou fundo. Então colocou a chave e desta vez a fechadura
se abriu com um clique. Abriu a porta com um empurrão e se dirigiu ao
canto, onde cultivava suas plantas medicinais. Era aqui que fazia sua magia,
usando essas plantas para preparar poções que podiam curar e aliviar. A
mesa estava bagunçada com vasos, mudas e tubos.
— Rápido, traga uma toalha do apartamento — instruiu, consciente de
seu tom brusco. Mas naquele momento, sua única prioridade era o bem-
estar de Toto. Marissa não precisou que lhe dissessem duas vezes e saiu
disparada sem perder um segundo. Começou a tirar coisas da mesa para
abrir espaço, enquanto seu cérebro tentava freneticamente descobrir que
tipo de tratamento tentar. Não tinha ideia de qual era o problema e se desse
algo errado… Normalmente dava remédios para humanos comuns ou seres
feéricos menores que não podiam pagar médicos e hospitais, principalmente
para problemas cotidianos menores. Independentemente de como Toto
parecesse, Rhianne tinha certeza de que ele não era apenas um ser feérico
menor comum.
Marissa colocou algumas toalhas no espaço livre, seu rosto marcado
pela preocupação. Rhianne mordeu o lábio, fazendo-o sangrar. Marissa e
Carl estavam ali; seus olhos fixos em Rhianne como se ela tivesse todas as
respostas do mundo. Dava vontade de gritar de frustração. Carl se remexia
inquieto, enquanto a mão de Marissa descansava sobre seu antebraço.
Rhianne cerrou os dentes, suas palavras saindo mais afiadas do que
pretendia.
— Vão embora — instou, seu foco unicamente em ajudar Toto. A
presença deles só servia como uma distração, atrapalhando seus
pensamentos. Seu olhar permaneceu fixo na pequena forma imóvel de Toto.
Sua respiração tinha se tornado mais trabalhosa, e ela temia que seu
coração estivesse ficando ainda mais lento. As lágrimas se acumularam em
seus olhos, mas ela as secou com as costas da mão. Chorar não salvaria
Toto; ela precisava se concentrar. Ouviu mais do que viu quando Marissa e
Carl se afastaram e quando a porta se fechou atrás deles. Um pensamento
havia plantado uma semente em seu cérebro. Era desesperado e poderia dar
errado, mas ela não sabia o que mais fazer.
Rhianne colocou as mãos sobre o peito de Toto, sentindo o ritmo lento
de seu batimento. Fez o possível para acalmar o tremor de suas mãos.
Fechou os olhos, imaginando-se em uma floresta tranquila, encontrando
conforto ao lado de uma árvore imponente. Não que estivesse tentando
ativamente acessar sua magia de dríade, mas buscava uma conexão com a
natureza.
Em sua mente, começou a se formar uma suave melodia, uma terna
invocação. Sua magia respondeu com entusiasmo, um calor crescendo em
seu ventre. Ela cantou para esse calor, acariciando-o, guiando-o para cima
através de seu peito e descendo pelos braços. Era um processo delicado,
reminiscente da cura de plantas, onde o equilíbrio adequado era crucial. A
incerteza se apoderou dela, nunca tinha usado seus poderes para curar seres
vivos.
Continuou cantando, o calor respondendo ao seu chamado, crescendo e
se expandindo. No entanto, a dúvida persistia, infiltrando-se em seus
pensamentos. E se falhasse? E se piorasse as coisas? Afastando essas
dúvidas, persistiu, mantendo um ritmo em sua mente.
Falhar não era uma opção. Não permitiria isso.
O calor chegou às pontas de seus dedos, um lampejo de luz emanando
de suas mãos enquanto abria os olhos.
Seu olhar percorreu a forma de Toto, detectando uma massa vermelha
pulsante, não maior que uma moeda de cinco centavos. Direcionou suas
mãos para ela, guiando a luz para limpar e curar. A luz emitiu um suave
assobio, e a massa vermelha começou a encolher, desaparecendo
gradualmente. Rhianne soltou um suspiro que não tinha percebido que
estava segurando, sua atenção centrada em Toto. Apesar do batimento
tranquilizador, ele continuava inconsciente.
Aliviada que a massa vermelha tinha desaparecido, Rhianne cessou sua
melodia interior, permitindo que a luz se atenuasse e o calor se retirasse. A
brisa fresca da noite acariciou seu rosto enquanto se apoiava na mesa,
inclinando a cabeça pelo esgotamento. Com sorte, Toto acordaria logo.
Ela o levantou, aninhando-o contra seu peito. Um pequeno gemido
escapou dele, fazendo seu coração se apertar. Com passos suaves, levou-o
de volta ao apartamento.
Carl e Marissa levantaram o olhar com expressões igualmente tensas
quando ela entrou, e ela lhes dedicou um pequeno sorriso cansado.
— Acho que ele ficará bem, mas precisa descansar para se recuperar.
Rhianne preparou um espaço confortável para Toto no sofá,
certificando-se de colocar almofadas ao seu redor para maior segurança
caso ele acordasse se sentindo um pouco atordoado. Enquanto o vigiava, o
cansaço começou a se apoderar dela, fazendo com que seus pensamentos
ficassem um pouco confusos. Esfregou os olhos, tentando sacudir o
esgotamento e recuperar a concentração.
— Não posso ter certeza, mas definitivamente parece um desagradável
feitiço — murmurou. — Se Toto fosse um cachorro comum, ou mesmo um
ser feérico menor, as coisas poderiam ter sido muito piores.
A ideia fez com que apertasse os punhos, cravando as unhas nas palmas.
Quem diabos machucaria deliberadamente o Toto? Ou talvez o pobre Toto
tenha se encontrado no lugar errado na hora errada, pego de surpresa pelo
intruso. A possibilidade só alimentou sua raiva. Quem quer que estivesse
por trás disso não tinha escrúpulos em causar danos colaterais. Ficou claro
que alguém havia posto os olhos nela ou em seu negócio, mas as perguntas
ardentes permaneciam: quem e por quê?
— Feriram Toto para evitar que ele me alertasse. Covardes! — Rhianne
cerrou os punhos.
— Bem, falando em exagerar, desculpe o trocadilho, chefe — disse
Carl.
Rhianne lançou-lhe um olhar rápido e então suspirou.
— Sim, é verdade — admitiu. — Usar um feitiço para matar um
cachorro durante uma invasão mostra um trabalho descuidado. Então talvez
a bruxa que criou o feitiço o tenha dado a outra pessoa. — Seus dedos
batiam nervosamente no braço do sofá; seus olhos fixos em Toto.
Marissa interveio:
— O mais provável é que o atacante seja um sobrenatural.
Rhianne arqueou uma sobrancelha.
— Hã? O que te faz dizer isso?
Marissa franziu o nariz.
— Os sobrenaturais tendem a se manter unidos. Claro, você pode
encontrar bruxas que se dedicam a vender feitiços menores aos humanos,
como melhorias de beleza ou poções de amor fracas. Mas um feitiço que
poderia matar um ser feérico menor? Isso é cruzar uma linha. Elas estariam
em apuros, enfrentando consequências graves como o exílio ou algo pior.
Rhianne recostou-se no sofá e fechou os olhos por um momento,
deixando que as palavras de Marissa penetrassem fundo. A ideia ressoou
nela: as bruxas eram conhecidas por serem muito reservadas quando se
tratava de compartilhar seus feitiços, preferindo manter seu conhecimento
dentro de seus círculos de confiança. Especialmente quando se tratava de
feitiços poderosos como esse.
— Acho que você tem razão. É um sobrenatural, mas não acho que seja
uma bruxa.
Marissa inclinou a cabeça e agitou a mão, instando Rhianne a continuar
com sua teoria.
— Sei uma coisa ou duas sobre covens. — Rhianne fez uma careta. —
Para lançar um feitiço assim, você precisa de um poder mágico sério.
Estamos falando de pelo menos um nível quatro, se não mais. Esse tipo de
poder só vem com experiência e habilidade.
Marissa zombou, mas Rhianne levantou uma mão para detê-la.
— Uma bruxa assim não usaria um feitiço tão poderoso para silenciar o
latido de um cachorro. É como usar uma arma para matar uma formiga.
— Eles poderiam ter sabido que era mais do que um simples cachorro,
ou estar mirando especificamente nele? — perguntou Carl.
Tanto Marissa quanto Rhianne se viraram bruscamente para ele,
piscando surpresas.
Rhianne mordeu o lábio inferior, ponderando suas palavras.
— Se estivessem mirando especificamente no Toto, teriam usado algo
mais potente. Toto pode não parecer poderoso, mas tenho certeza de que
não devemos subestimá-lo.
Havia muito mais em Toto do que ele deixava transparecer. Ele tinha
essa habilidade de evadir perguntas diretas sobre sua natureza. Chegaria o
dia em que teriam que sentar e ter uma conversa franca.
Primeiro o primeiro, ela tinha que se certificar de que Toto estivesse
bem. Uma vez que soubesse que ele estava são e salvo, poderia começar a
brincar de detetive e descobrir quem diabos estava por trás do ataque. Era
hora de pôr um fim às suas tolices porque, sério, ela não ia deixar que mais
ninguém que se importasse saísse ferido no fogo cruzado.
Uma pontada de culpa a atingiu diretamente no estômago, se
contorcendo. O peso da responsabilidade por colocar Kai e agora Toto em
perigo a oprimia. Rhianne se abraçou. Droga! Isso estava acontecendo em
seu próprio quintal! A culpa se transformou em uma fúria ardente, seu rosto
esquentando enquanto ela apertava o maxilar com força.
Carl tinha escapulido para a cozinha e voltado com um copo d’água,
oferecendo-o a ela. Rhianne lhe dirigiu um meio sorriso. Enquanto bebia,
seus pensamentos se desviaram para a habilidade de Toto de mascarar seu
poder. Mesmo na casa de sua mãe, um ponto de encontro para poderosas
bruxas e magos, ele tinha conseguido passar despercebido. Considerando
que a maioria dos seres sobrenaturais podia sentir a presença dos outros até
certo ponto, era extraordinário. Ela bebeu do copo e sentiu a frescura da
água deslizar por sua garganta. Sim, uma conversa com Toto era mais do
que necessária.
— Você acha que tudo isso está relacionado? — perguntou Marissa.
Carl levantou a mão e se acomodou em uma cadeira de madeira ao lado
de Toto. — Podemos começar do início?
Rhianne reprimiu uma careta quando a cadeira rangeu sob o peso de
Carl. — Bem, na verdade não há muito o que contar — começou, mas o
olhar atento de Carl a encorajou a elaborar. — Três humanos emboscaram
Kai e eu perto da casa dele. No início, só usaram os punhos, mas quando
nos defendemos… — Ela estremeceu ao lembrar. — Sacaram facas.
Carl franziu a testa.
— Não foi grande coisa; Kai e eu demos conta deles, com um pouco de
ajuda do Toto — Ela puxou o cabelo, chegando à parte mais desconcertante.
— Toto detectou magia feérica nos valentões e Marissa suspeita que foram
enfeitiçados para me atacar.
Os olhos de Carl se estreitaram até se tornarem meras fendas.
— Ou possivelmente o Kai — acrescentou.
Carl cruzou os braços. — E quando você pretendia me contar isso?
— Ah, bem…
Carl se voltou para Marissa, fulminando-a com o olhar. — Você
também sabia e não achou relevante que eu soubesse?
Nossa! Isso não parecia bom.
Marissa lhe dedicou um lento sorriso cheio de promessas. — O garoto
tem garras, quem diria? — praticamente ronronou.
Carl arregalou os olhos por um momento, mas depois apertou o maxilar
e apontou um dedo para Marissa. — Com você eu acerto as contas mais
tarde — Os olhos de Marissa se iluminaram, mas sabiamente manteve a
boca fechada.
Depois ele se concentrou em Rhianne. — Chefe — disse. — Sou uma
gárgula, o que significa que sou bastante durão, mas também significa que
ninguém mexe com minha família ou meus amigos. A partir de agora, quero
participar.
Um nó se formou na garganta de Rhianne, dificultando-lhe qualquer
palavra. Ela simplesmente assentiu com a cabeça.
CAPÍTULO 20
N
a manhã seguinte, Toto acordou enquanto Rhianne preparava seu café
da manhã. Ao vê-lo se mexer, ela se aproximou e se ajoelhou para
examinar seus olhos.
— Olá, como você está se sentindo?
Toto se espreguiçou, esticando suas patas dianteiras em um movimento
fluido. — Devo dizer que me sinto bastante descansado. A cura que você
realizou foi realmente notável.
Rhianne esfregou o pescoço dolorido tentando liberar um pouco de
tensão dos ombros. — Como você soube que fui eu quem te curou?
Toto deixou escapar uma risada suave. — Bem, sua magia tem uma
sensação distintiva, e eu estive ao seu redor tempo suficiente para
reconhecê-la. Além disso, magia curativa dessa força é rara, e há apenas
alguns que podem manejá-la com tal destreza.
Rhianne franziu a testa. — O feitiço foi projetado para matar?
Toto a corrigiu: — Era uma maldição poderosa, mas sua habilidade
curativa superou o necessário. Essa é a razão do meu sono prolongado.
Rhianne sentiu seu peito apertar. — Sinto muito, não quis exagerar.
Toto se aproximou, lambendo seu queixo com afeto. — Não se
preocupe, criança. Você fez admiravelmente, e devo dizer que me sinto
consideravelmente melhor do que tenho me sentido em bastante tempo.
Apenas tenha em mente exercer um pouco de moderação no futuro.
Rhianne colocou sua mão nas costas de Toto. — Eu estava tão
preocupada com você.
Toto deu de ombros. — Bah! Sou de fibra mais forte. O metamorfo
pode ter acertado um golpe de sorte no centro do meu peito, mas tenha
certeza de que eu teria recuperado minhas forças naturalmente em um ou
dois dias.
— Metamorfo? — A raiva subiu nela como uma maré.
— O mesmo metamorfo corvo de antes. Desta vez, eu o peguei no
flagra bisbilhotando.
— Mas por que ele te atacaria? Simplesmente poderia ter voado para
longe.
— Consegui morder uma asa dele e comecei a latir para te alertar. Deve
ter se assustado.
— Você acha que ele reconheceu sua verdadeira natureza? Essa
maldição foi brutal. — A fúria vibrava através dela.
— Apenas os elfos de alto nível possuem a capacidade de perceber
minha verdadeira forma, a menos que eu decida revelá-la a outros. O lado
positivo é que ele provavelmente acordará com um braço bem dolorido esta
manhã.
Rhianne acariciou sua cabeça. — Espero que sim. — Se isso a fazia
soar insensível, que pena.
Toto respondeu lambendo seu queixo mais uma vez. Depois de dar a
Toto seu café da manhã favorito: uma tigela de morangos, ela o deixou e se
dirigiu para baixo, ao seu escritório.
Estava sendo bastante difícil se concentrar em seu trabalho. Brincando
com seus brincos, ela deu uma rápida olhada no relógio de parede. A hora
do almoço a pegou de surpresa, e ela percebeu que não conseguiria fazer
muito mais. Em vez de se contentar com um triste almoço na mesa, tomou a
decisão espontânea de ir mais cedo para a cidade e visitar Isobel Dupre.
Algo a preocupava no fundo de sua mente sobre o veneno, e sua melhor
aposta para encontrar respostas estava com a patologista forense.
Quando Rhianne alcançava seu capacete, seu celular começou a tocar,
reproduzindo a melodia cativante de Hey Big Brother. Equilibrando o
capacete sob o braço, ela atendeu a chamada. — Olá, grandão!
— Só queria confirmar se ainda estamos de pé para nosso encontro na
academia. Ultimamente você tem me dado bolo — brincou Nel.
— Alguém tem que te manter com os pés no chão — replicou ela.
— Ah, você é minha única e verdadeira; está partindo meu coração.
— Aham. Bem, estou indo para a cidade agora mesmo. — Ela não
estava certa de quanto duraria esta visita a Isobel e não queria chegar
atrasada ao encontro com Rita Parkes.
— Ah, então você está me traindo com seu amorzinho?
— Ah, qual é. Você também? Sim, vou ver Kai mais tarde, mas neste
momento, estou a caminho do necrotério para obter informações da
patologista forense.
— Por que não me encontro com você lá e então podemos almoçar
rapidamente?
— Estou te vendo vir, senhor. Você quer conhecer Kai, não é?
— Como eu poderia resistir à oportunidade de conhecer seu amorzinho?
— Para de chamá-lo assim, ou o Toto vai ficar com ciúmes. Ele já está
no Time Kai.
— Toto pode se deixar influenciar facilmente, mas eu não. Não quando
se trata da felicidade da minha irmãzinha — disse Nel.
— Ei! Eu só estou saindo com o cara, e você não tem permissão para
assustá-lo.
— Se ele se assusta facilmente, então não vale a pena — disse Nel.
— Aham. A propósito, você sabe onde fica o necrotério?
— Eu vou achar.
— Espera — interrompeu Rhianne, lembrando-se do gosto de Isobel por
doces—. Me encontre na confeitaria Rueben em Surry Hills.
— Sobremesa antes do almoço, sério, princesa?
— Cala a boca, grandão. O caminho para o coração desta patologista
forense definitivamente passa pelos bolos de Rueben.
— Eu poderia simplesmente usar meu charme. Não há necessidade de
subornos quando você tem a mim.
— Ah, por favor. Seu charme tem seus limites. Os bolos, por outro lado,
não.
— Bem, se você insiste. Te vejo na confeitaria Rueben. Prepare-se para
um banquete tanto de doces quanto de charme.
Rhianne sorriu. — Fechado. Nos vemos lá em vinte minutos.
Rhianne encerrou a chamada, deslizando seu celular no bolso. Com o
capacete firmemente posto na cabeça, ela saiu disparada do estacionamento,
dirigindo-se para a cidade.
Nel chegou pouco depois dela na cafeteria. — Essa fila está enorme!
Ela arqueou uma sobrancelha. — Você nunca teve que esperar em uma
fila antes? — Ela bateu na testa—. A quem estou enganando? Claro que
não. Você pode esperar ali, não vou demorar muito.
Alguns minutos depois, ela saiu com seus preciosos bolos. Rhianne
tinha conseguido o último croissant de amêndoas, trocando a fatia de
baunilha por um tentador brownie. Com sorte, Nina ainda o apreciaria. Ela
olhou ao redor procurando por Nel e o encontrou conversando com um trio
de mulheres atraentes. Uma morena teve a audácia de se agarrar ao
colarinho de sua camisa, batendo os cílios. Nel respondeu com um sorriso
encantador, claramente desfrutando da atenção.
Com um revirar de olhos exasperado, Rhianne acelerou o passo e se
aproximou do grupo. — Olá, meninas. Odeio interromper, mas temos uma
reunião que não podemos perder — interveio. A morena lhe lançou um
olhar hostil e manteve seu aperto na camisa de Nel, recusando-se a ceder.
Rhianne suspirou, contemplando se deveria simplesmente ir sozinha ao
seu encontro com Isobel. Mas antes que pudesse decidir, Nel deu um passo
para trás. Ele dedicou às mulheres um sorriso de desculpas.
— Sinto muito, senhoritas. O dever me chama — explicou. A morena
fez menção de agarrá-lo novamente, mas Nel se endireitou, fazendo-a
hesitar. Com um aceno de cabeça, girou sobre os calcanhares e tomou
Rhianne pelo cotovelo.
— Não sei como você tolera algumas delas — disse Rhianne.
Nel ofereceu um dar de ombros teatral.
— São apenas parte do cardápio diário, pense nisso como lidar com
garçons entusiasmados demais em um restaurante.
— Mais para garçons que não param de encher seu copo de água,
mesmo quando já está transbordando — replicou ela.
Ao chegar ao necrotério, Nel manteve a porta aberta com um floreio,
indicando a Rhianne que entrasse na frente dele.
— Oi, Nina — cumprimentou Rhianne a recepcionista, que levantou o
olhar e a recebeu com um sorriso.
— Agora, querida, se você trouxer doces de novo, nós duas nos
tornaremos melhores amigas — os olhos de Nina brilharam. Então, seu
olhar se desviou para Nel. — Olá, bonitão — ela piscou um olho
brincalhona.
— Você realmente sabe atrair os homens bonitos — suspirou com
nostalgia. — Se eu tivesse vinte anos a menos e vinte quilos a menos.
Nel se inclinou sobre a mesa, oferecendo um sorriso tão encantador
quanto desarmante.
— Eu diria que qualquer homem seria sortudo de chamar a sua atenção.
Nina se abanou.
— Ah, é melhor você ficar de olho neste aqui.
O sorriso de Nel continuava deslumbrante, e Nina o correspondeu com
entusiasmo.
Limpando a garganta, Rhianne disse:
— Não tinham fatia de baunilha, então me arrisquei e trouxe um
brownie de macadâmia. Espero que esteja tudo bem.
— Garota, isso está mais do que bem. Qualquer coisa do Rueben será
perfeita — Nina aceitou a sacola, colocando-a em sua mesa.
— Podemos passar?
Nina fez um gesto para que avançassem.
— Vão em frente, e boa sorte! Embora, com o suficiente desses bolos,
você não vai precisar.
Rhianne acenou em agradecimento e se dirigiu às portas laterais,
ouvindo o clique quando as portas foram desbloqueadas. Ela entrou no
necrotério, com Nel seguindo-a de perto.
— Faz tempo que não estava em um necrotério — comentou Nel.
— Quero saber por que você esteve em um antes? — perguntou
Rhianne, enquanto caminhavam pelo corredor em direção ao escritório de
Isobel.
Nel soltou uma risada suave.
— Provavelmente não, a menos que você esteja pronta para uma noite
de “Contos da Cripta” acompanhada de doses de tequila.
Rhianne bateu na porta de Isobel, apenas para ser recebida por um grito
áspero de dentro.
— Fora!
Nel ergueu uma sobrancelha, e Rhianne abriu a porta com cautela,
segurando a caixa de bolos na frente dela como uma oferta de paz.
— Eu disse… — As palavras de Isobel se apagaram ao ver a caixa de
bolos, sua expressão suavizando instantaneamente. — Traga aqui — ela fez
um gesto para que Rhianne entrasse.
Rhianne colocou a caixa na mesa de Isobel, e a patologista forense não
conseguia tirar os olhos dela. Assim que a deixou, ela abriu a caixa e deixou
escapar um suspiro de satisfação.
— Eles sempre ficam sem croissants a essa hora. Como diabos você
conseguiu um? — Isobel tirou o croissant da caixa, deu uma mordida e
fechou os olhos em êxtase. — Tão bom — ela saboreou mais algumas
mordidas antes de abrir os olhos novamente. — Oi, Rhianne. É ótimo te ver.
— A mim ou aos bolos? — disse Rhianne.
Isobel riu.
— Podemos dizer que a ambos? — Seus olhos brilharam. — Você já
considerou se tornar detetive em tempo integral? Eu definitivamente
poderia me acostumar com esse tratamento.
Rhianne balançou a cabeça.
— Não sou material de detetive e estou bastante contente dirigindo meu
próprio negócio, mas sempre que estiver na cidade, ficarei feliz em trazer
guloseimas para você. Talvez você pudesse sair e pegá-las fresquinhas do
forno de vez em quando — sugeriu, com os lábios tremendo diante da
reação de olhos arregalados de Isobel.
— Está vendo este Everest de papelada? Juro que ele se reproduz
quando não estou olhando — ela levantou as mãos e os papéis soltos
voaram ao seu redor. — Quem em sã consciência pensou que um
patologista forense deveria fazer malabarismos com toda essa
administração? Há corpos reais esperando minha atenção! — Suas últimas
palavras saíram como um gemido meio suspiro.
Rhianne assentiu.
— Entendo totalmente. Talvez Kai pudesse fazer alguma mágica
tecnológica para aliviar sua carga.
Isobel olhou para Rhianne como se ela tivesse oferecido um salva-vidas.
— Isso poderia ser melhor que seus croissants, embora seja uma decisão
acirrada. Normalmente ignoro tudo, exceto os documentos mais urgentes, e
mesmo assim, só se meu chefe estiver respirando no meu pescoço.
— Então, você está me dizendo que todos estes — Rhianne fez um
gesto para a multidão de papéis espalhados pela mesa e pelo chão de Isobel
— são potencialmente urgentes?
Isobel deu de ombros.
— É difícil dizer. Passo metade do tempo procurando os papéis
urgentes, e a outra metade criando novos, só para perdê-los de novo.
— E seu chefe não se importa? — Rhianne franziu o nariz com
incredulidade.
O sorriso de Isobel se tornou predatório, mostrando todos os seus
dentes. Rhianne sentiu um leve impulso de dar um passo para trás.
— Ah, ele continua reclamando dos cortes orçamentários e de como não
pode se dar ao luxo de ter um assistente para mim. Bem, vamos ver quem
pisca primeiro — a aposta mental de Rhianne estava firmemente do lado de
Isobel.
Nel limpou a garganta, atraindo a atenção de Rhianne. Ele estava
encostado na parede, com o olhar fixo em Isobel.
— Ah, certo — Rhianne lançou a Nel um olhar de olhos semicerrados.
— Isobel, este é Nel Lamont. Nel, apresento-lhe a Dra. Isobel Dupre.
Nel deu um passo à frente, estendendo sua mão sobre a mesa de Isobel.
Isobel olhou para ela brevemente, então a apertou com uma expressão que
permaneceu estoicamente neutra.
Ela voltou sua atenção para Rhianne.
— Suponho que você não veio aqui só para me ouvir reclamar sobre
meu pesadelo de papelada, não é?
— Exato — Rhianne pegou uma pilha de pastas de uma cadeira
próxima para abrir espaço para se sentar.
Nel permaneceu onde estava, estreitando os olhos.
— Quando Kai e eu estivemos aqui da última vez, você mencionou que
a elaboração do veneno Romin exigiria um laboratório adequado.
Isobel assentiu e deu outra mordida em seu croissant.
— Mmm.
— Quão sofisticado precisa ser esse laboratório? — perguntou Rhianne.
— Você poderia dar uma lição ao Sherlock Holmes. Os outros dois?
Não reconheceriam uma pista nem se ela dançasse na frente deles de tutu.
Rhianne olhou para Nel, que ainda estava encostado na parede com os
braços cruzados, a cabeça inclinada como se estivesse mergulhado em seus
pensamentos.
— Nel, parece que você está tentando resolver os mistérios do universo
aí — brincou.
Nel simplesmente arqueou uma sobrancelha.
— Posso presumir que um laboratório escolar seria suficiente?
Isobel ficou séria.
— Sim, provavelmente serviria, mas ainda assim teriam que saber como
usá-lo.
Rhianne assentiu, confirmando sua suspeita.
— Isso abre as possibilidades, não é?
— Certamente abre — concordou Isobel. — Isso altera suas teorias
sobre o suspeito do assassinato?
O sorriso de Rhianne se alargou.
— Não, pelo contrário. Reduz nossos suspeitos a um círculo específico.
Agora, o verdadeiro desafio é identificar o correto.
— Bem, fico aliviada que alguém com cérebro esteja no caso. A
arrogância e o excesso de confiança desses detetives são mais cegantes que
um farol na neblina. E ei, não seja uma estranha, apareça de novo… com
um croissant ou dois.
— Farei isso, e falarei com Kai sobre sua situação com a papelada —
respondeu Rhianne. Ela fez uma pausa e então acrescentou com um brilho
travesso nos olhos: — A menos, é claro, que você esteja gostando do seu
pequeno jogo de gato e rato com seu chefe.
— Ah, sou tão transparente assim? — Os olhos de Isobel brilharam. —
Deve ser o efeito croissant.
Rhianne piscou um olho e se virou para sair do escritório. Nel, no
entanto, permaneceu imóvel contra a parede, parecendo incomumente
rígido. Rhianne lançou-lhe um olhar desconcertado, e quando ele não
respondeu, ela estendeu a mão, puxando seu braço. Depois de um momento,
ele saiu de seu transe, piscando rapidamente. Sem dizer uma palavra, seguiu
Rhianne para fora do escritório.
Quando chegaram à área de recepção, Nina os cumprimentou com um
gesto entusiasmado. Rhianne notou que o brownie de macadâmia agora era
apenas um punhado de migalhas.
— Apareça quando quiser, querida! — exclamou Nina com um sorriso
radiante.
— Parece que sou popular por aqui. Isobel disse a mesma coisa —
Rhianne retribuiu o cumprimento.
Nel, enquanto isso, tinha o olhar fixo à frente, com os lábios apertados
em uma linha tensa. Uma vez que estavam fora do edifício, Rhianne se
virou para ele, erguendo as mãos.
— O que há com você? Você nem sequer se despediu.
O olhar distante de Nel finalmente se clareou.
— O que ela é?
Ela estreitou os olhos.
— Você se refere à Isobel?
Ele assentiu.
— Bem, aparentemente, ela poderia nos dizer, mas então teria que nos
matar — disse Rhianne, com um sorriso brincalhão curvando seus lábios.
A expressão de Nel permaneceu pensativa, com a testa franzida.
— Muito bem, grandão — Rhianne se virou para olhá-lo diretamente.
— O que está te perturbando?
Nel abriu a boca para responder, mas hesitou, fechando-a logo em
seguida.
— Ela não reagiu — disse finalmente, com um toque de surpresa em
sua voz. — Ela não reagiu a mim de forma alguma.
Os olhos de Nel brilharam, e um pequeno sorriso deslizou em seus
lábios.
CAPÍTULO 21
R
hianne arregalou os olhos. Não se lembrava de ter visto Nel tão
surpreso ou encantado antes. — Talvez seja uma espécie de híbrida
feérica?
Nel olhou ao longe, perdido em seus pensamentos. — Não, ela não
emana uma aura élfica, e definitivamente é poderosa. Todo um enigma.
— Ui! Conheço esse olhar. Não pode se aproximar dela, incomodá-la
nem investigar seu passado. Tenho a sensação de que ela saberia se você
fizesse isso último. Preciso dela do meu lado para a investigação.
— Do que você está falando? — Nel piscou inocentemente.
— Essa rotina de inocência tem as mesmas chances de funcionar
comigo quanto com ela, grandão, então pode parar. Ela está fora dos limites
até que eu resolva esse assassinato. Além disso, gosto dela.
— Tudo bem — cedeu Nel. — Terei que me esforçar mais na
investigação. Quanto antes a resolvermos, mais cedo poderei começar
minha investigação sobre ela.
Rhianne deixou escapar um suspiro cansado. Discutir com Nel era como
tentar ensinar um gato a nadar: um esforço inútil dada sua obstinação. Mas
pelo menos ele concordou parcialmente em deixar de lado até que o caso
fosse resolvido. Isso, é claro, dependia dela resolver o assassinato, o que
nesse ritmo parecia tão provável quanto ganhar na loteria com um bilhete
que nunca comprou.
Embora Johannes e Chen pudessem ser competentes, Rhianne
suspeitava que seu foco era encerrar o caso rapidamente em vez de buscar
toda a verdade.
Olhando para seu relógio, Rhianne franziu a testa. — Ah, caramba,
tenho que ir ou vou me atrasar. — Ela agarrou a mão de Nel e o puxou,
enquanto ele continuava lançando olhares ansiosos para o edifício. Ela não
gostava da ideia de deixá-lo rondando lá fora; sua promessa de esperar
parecia tão sólida quanto um castelo de cartas. Claramente, Nel estava mais
do que um pouco intrigado, mas felizmente, sua menção de encontrar Kai o
trouxe de volta ao presente.
— Isso significa que finalmente vou conhecer o garoto dos seus sonhos?
— ele perguntou.
— Só se você se comportar e não por muito tempo. Kai e eu temos que
discutir como abordar a senhorita Parkes.
— Eu sempre me comporto. — Nel levou a mão ao coração.
Rhianne quase engasgou com essa afirmação. — Recorrendo a mentiras
agora? Nossa! Quão baixo podemos cair?
— Estou me comportando — insistiu Nel, com um brilho travesso nos
olhos. — Eu poderia me comportar muito pior.
— Nisso concordamos — disse ela. — Te vejo na cafeteria do outro
lado da rua. Me procure disfarçada.
— Me pergunto quanto tempo seu garoto vai levar para te reconhecer.
Quer fazer uma aposta? — perguntou Nel.
Rhianne exalou ruidosamente e o olhou com a testa franzida. — Sério?
Isso é um pouco infantil. Não te foi bem da última vez que apostou contra
mim.
— Vamos lá! O que aconteceu com seu senso de diversão? Desta vez
não estou apostando contra você. Estou apostando contra ele. Vamos manter
simples: se ele não te reconhecer em dez minutos, eu ganho.
— Ah, está bem! O que você quer apostar? — perguntou Rhianne.
— Se eu ganhar, terei a liberdade de, como você expressou tão
eloquentemente, “investigar” o passado da Dra. Dupre.
— De acordo, mas se eu ganhar, você será gentil com Kai e a Dra.
Dupre. Nada de investigar seus passados, pelo menos até que o caso seja
resolvido — disse Rhianne.
— Nunca disse que não seria gentil com a Dra. Dupre — replicou Nel.
— Minha definição de gentil, Nel. Não a sua.
— Eca. Você tira toda a diversão.
— Às vezes me pergunto quem é o irmão mais velho em nossa relação
— murmurou Rhianne.
Nel jogou a cabeça para trás e riu. — Acho que isso ficou estabelecido
quando você fez vinte anos. Você nasceu com alma de velha.
— Ha, é melhor você se lembrar disso na próxima vez que tentar me
“proteger”, especialmente sem me dizer.
— Não acho, princesa. Ainda me lembro daquela garota de dezesseis
anos com olhos grandes desesperada para se passar por adulta no meu
clube.
Ela mostrou a língua para ele enquanto chegavam à sua moto. — Você
nunca vai me deixar esquecer isso, não é?
— Nem em sonhos. Te vejo em breve.
Ela subiu na moto e saiu disparada para seu destino, sentindo a
emocionante onda enquanto o vento bagunçava seu cabelo. Precisava
encontrar um lugar para se trocar e colocar seu disfarce.
Uma vez que chegou, encontrou um banheiro próximo. De pé diante do
espelho, revisou seu reflexo, garantindo que cada detalhe de seu disfarce
parecesse natural e convincente. Ajustando a peruca para que ficasse
perfeita e colocando os óculos como toque final, assentiu satisfeita com o
resultado. Sentia-se confiante de que nem mesmo sua própria mãe poderia
reconhecê-la.
Ao chegar alguns minutos antes, decidiu entrar na cafeteria e esperar
Kai lá. Pediu um chá e escolheu uma mesa perto da janela. Nel já estava
sentado em uma das mesas do fundo, conversando com a garçonete. A
cafeteria estava movimentada, com a maioria das mesas ocupadas.
O aroma de cardamomo chamou sua atenção quando a porta se abriu.
Kai entrou, escaneando a cafeteria. Nel fez um sinal sutil com o dedo,
instando-a silenciosamente a não se revelar. Rhianne reprimiu um sorriso e
fingiu estar absorta em seu celular. Em segundos, Kai sentou-se à sua
frente, com um largo sorriso no rosto.
— Nossa, é um disfarce incrível, Rhi! — disse Kai.
Sem conseguir resistir, Rhianne inclinou-se ligeiramente para lançar um
olhar zombeteiro a Nel e, com um floreio, agitou os dedos. Kai franziu a
testa e se virou para ver para quem ela acenava. Nel levantou-se de seu
assento, surpreendendo a garçonete que rondava, e se aproximou com passo
tranquilo.
Nel estendeu sua mão para Kai. — Olá, sou Nel Lamont.
Kai apertou sua mão. — Ah, sim, o irmão mais velho. Sou Kai Wagner.
— Então voltou sua atenção para Rhianne, arqueando uma sobrancelha
inquisitivamente.
— Sabe, Nel estava ansioso para te conhecer. Acontece que ele acabou
de perder uma aposta comigo. De novo — disse Rhianne.
— Um conselho, amigo. Não aposte contra Rhianne, ela quase sempre
ganha. — Nel tomou assento.
Rhianne revirou os olhos.
— O que me surpreende é que, conhecendo-a tão bem, você realmente
tenha aceitado a aposta.
— Bem, para ser justo, a aposta foi ideia minha, mas não era contra ela
exatamente — confessou.
— Ah, não?
— Apostei contra você. Não achei que você a reconheceria com esta
roupa. Você não é um metamorfo, então não poderia ser seu olfato. Como
você fez isso? — perguntou Nel.
— Ah, mas revelar isso arruinaria o mistério, não acha? Um mágico
nunca revela seus segredos — Kai manteve uma cara de pôquer.
Rhianne observava a troca entre eles, sentindo-se como se estivesse em
uma partida de tênis. Nel transbordava confiança e um talento natural para
ler emoções, enquanto Kai era a imagem viva da calma e do controle. Era
como presenciar o implacável oceano tentando erodir um penhasco
inabalável.
— Você nem sequer hesitou mais que um ou dois segundos — disse
Nel.
Nel empregou aquele tom encantador e suave que frequentemente usava
quando buscava informações. Era um tom ao qual poucos podiam resistir,
impregnado com a quantidade certa de carisma e intriga.
— De fato — disse Kai.
Rhianne suspirou. Isso poderia continuar por um bom tempo, então
decidiu ir direto ao ponto. — Bem, agora que terminamos com as
apresentações, que tal falarmos sobre o caso? — Ela injetou uma dose de
falsa alegria em sua voz.
Dois pares de olhares em branco se voltaram para ela.
Kai foi o primeiro a se recuperar e lhe ofereceu um pequeno sorriso. —
Como eu disse, é um disfarce fantástico, mas tenho que dizer que prefiro a
verdadeira você, Rhi.
Nel gaguejou. — Rhi?
Rhianne lhe deu um chute na canela por baixo da mesa.
— Ai — Nel lhe dirigiu um olhar magoado.
— Obrigada, eu também gosto de ser eu mesma. Mas a pequena
assistente precisa ser o mais invisível possível.
As palavras de Rhianne foram interrompidas quando uma garçonete
chegou para anotar o pedido de Kai, seus olhos pousando coquetemente em
Nel, alheio à sua atenção.
Kai pediu um chá verde. — No mundo deles, os assistentes são parte do
cenário, mas os óculos? São um toque genial — disse ele.
Nel se pavoneou diante do elogio e lançou a Rhianne um olhar de
suficiência. — Viu? Eu te disse que os óculos funcionariam.
— Sim, sim. Acho que posso me considerar sortuda que esses óculos
não tenham lentes graduadas ou eu estaria tropeçando por todo lado. Então,
qual é o nosso plano para a entrevista?
— Rita Parkes sabe que eu tenho ajudado a polícia com o caso.
— Espera, ela quer que você investigue a morte dela?
— Não exatamente. Ela quer que alguém faça uma análise forense das
finanças. Está procurando alguém que faça uma investigação profunda.
Acho que ela tem o palpite de que algo não se encaixa ali, mas não disse
diretamente.
— Hmm, isso é interessante. Me pergunto o que a fez suspeitar e de
quem ela suspeita — refletiu ela.
— Isso é o que pretendo descobrir. As pessoas frequentemente deixam
escapar mais do que pretendem quando acreditam que você está do lado
delas, pronto para ajudar. Às vezes, até compartilham demais — disse Kai.
A garçonete retornou, colocando o chá verde de Kai na mesa com um
pequeno sorriso dirigido a Nel enquanto ia embora.
Nel se inclinou para frente, apoiando os cotovelos na mesa. — Então,
você se interessa por auditorias financeiras técnicas?
Rhianne lançou um olhar de soslaio a Nel. — O quê, você acha que não
posso lidar com as contas?
Nel riu e levantou as mãos em um gesto de paz. — Não, não, de jeito
nenhum. Precisamos de alguém que procure por spyware. Houve um
vazamento de informações confidenciais e estou tentando descobrir como
saiu.
— Poderia ser um vazamento interno. É bastante comum — Kai sorveu
seu chá.
— Talvez, mas tenho meus próprios métodos de recrutamento e não
acho que essa seja a fonte. Você está pronto para o desafio? — perguntou
Nel.
Rhianne lançou um olhar desconfiado a Nel. Era a primeira vez que
ouvia falar de algum vazamento. Ou o vazamento era recente ou ele estava
inventando como uma forma de testar Kai. Ela fez uma nota mental para
interrogar Nel mais tarde; definitivamente iam ter uma conversa.
— Claro — respondeu Kai com um dar de ombros casual. — Mas, quão
urgente é isso? Minha agenda está bastante apertada agora mesmo, e isso
inclui descobrir quem está por trás dos nossos valentões do beco — Sua voz
era firme, mas Rhianne detectou um toque de desafio em seu tom.
Nel assentiu compreensivamente. — O caso da Rhianne é a prioridade
principal, é claro. Mas quando você encontrar algum tempo, agradeceria sua
ajuda — Ele entregou a Kai um cartão de visita. Kai rapidamente tirou uma
foto com seu celular e devolveu o cartão.
Nel levantou uma sobrancelha, mas não disse nada enquanto recuperava
seu cartão.
Primeiro round para Kai.
Kai dirigiu sua atenção a Rhianne. — Sabe, Rita Parkes tem toda uma
equipe de assistentes, ou ‘gerentes de negócios’ como ela os chama — disse
ele. — Talvez você pudesse tentar falar com alguns deles, ver se consegue
descobrir algo extra.
Rhianne reconheceu a sugestão com um sorriso. — É um bom plano —
disse ela. — Embora eu não tenha ideia do que estamos procurando.
Duvido que ela tenha o veneno sentado em uma de suas gavetas.
Kai esfregou o queixo. — Se víssemos algo assim. Você seria capaz de
identificá-lo se o visse?
— Não sem abri-lo. O cheiro é bem distintivo. Suponho que a polícia
tenha feito seu trabalho e realizado uma busca exaustiva.
— Talvez, mas você tem que considerar o tamanho enorme do edifício.
É praticamente impossível que tenham revisado cada canto, mas vamos
improvisar e ver o que encontramos.
— De acordo — Rhianne olhou para seu relógio e viu que faltavam dez
minutos para as três. Melhor se pôr a caminho. Provavelmente não seria
bom fazer a Srta. Parkes esperar.
Rhianne e Kai deixaram Nel no café e atravessaram a rua. Na recepção
do prédio, receberam credenciais de visitantes e foram instruídos a subir ao
vigésimo nono andar. Rhianne não pôde deixar de pensar que era
interessante que eles estariam um andar abaixo de onde o assassinato havia
ocorrido.
Quando saíram do elevador no vigésimo nono andar, viram outro balcão
de recepção. A mulher sentada ali, com o cabelo preso em um coque
impecável e maquiagem mínima, deu-lhes um sorriso profissional enquanto
se aproximavam.
— Você é Kai Wagner, não é? — disse ela a Kai, e então lançou um
olhar curioso de cima a baixo para Rhianne.
— Sim, sou eu. E esta é minha assistente, Raine — respondeu Kai.
Rhianne se repreendeu mentalmente por não ter pensado em sincronizar
nomes falsos antes. Kai claramente havia escolhido algo próximo ao seu
nome real, provavelmente para garantir que não cometesse um deslize.
— Olá, Raine. Sou Susan — apresentou-se a mulher com um sorriso
caloroso.
— Olá, Susan. Prazer em conhecê-la — Rhianne retribuiu o sorriso.
A atenção de Susan voltou-se então para Kai. Embora seu sorriso
permanecesse, perdeu um pouco do calor anterior. Rhianne se perguntou o
que aquilo significaria. Talvez Susan não gostasse muito de executivos e
seus associados, ou talvez estivesse preocupada que Kai pudesse descobrir
algo em que ela estivesse envolvida. Ela não parecia esse tipo de pessoa,
mas, novamente, Rhianne refletiu, raramente parecem.
— A senhorita Parkes estará com vocês em breve. Por favor, sentem-se
— Susan indicou os elegantes sofás de couro bege atrás deles antes de
pegar seu celular para anunciar a chegada deles.
Depois de cinco minutos, a porta do escritório se abriu e Rita Parkes
saiu, estendendo sua mão para Kai sem sequer reconhecer a presença de
Rhianne. Tanto Kai quanto Rhianne se levantaram, e Kai apertou a mão de
Rita enquanto ela o examinava da cabeça aos pés. Rita, com
aproximadamente um metro e setenta de altura, cabelos loiros claros e pele
clara, tinha uma semelhança surpreendente com seu pai em termos de
coloração e físico. Como Nel havia mencionado, ela tinha uma figura
rechonchuda com uma cintura definida. Com um corte de cabelo mais
favorecedor, ela poderia ter sido bastante atraente. Como estava, o corte
curto estilo duende e os lábios franzidos lhe davam um ar irritado.
— Esta é minha assistente, Raine — apresentou Kai a Rhianne.
Rita ofereceu um breve aceno, mas não fez nenhuma tentativa de
apertar a mão de Rhianne. Sua atenção voltou imediatamente para Kai. —
Vamos para o meu escritório para discutir meus requisitos? — Suas
palavras foram apresentadas como uma pergunta, mas carregavam um tom
inegável de ordem.
Os irmãos não podiam ser mais diferentes em aparência e caráter,
pensou Rhianne. Rita virou-se e entrou em seu escritório sem verificar se
eles a seguiam, claramente esperando uma obediência imediata. Kai a
seguiu, enquanto Rhianne fez um esforço consciente para não fazer uma
careta e entrou em um ritmo mais lento. Ela captou um vislumbre fugaz do
que parecia ser um indício de desagrado no rosto de Susan, rapidamente
substituído por uma expressão vazia e agradável.
— Por favor, sentem-se — disse Rita, com seus penetrantes olhos azul-
claros fixos em Kai.
Rhianne se sentiu um pouco inquieta com o olhar intenso de Rita, mas
pelo menos não estava direcionado a ela. Kai se acomodou na luxuosa
poltrona de couro em frente à mesa de Rita, emanando um ar de compostura
profissional.
Rhianne ocupou o assento ao lado dele, tentando parecer uma assistente
diligente pronta com seu tablet. Na realidade, ela estava ocupada captando
os detalhes do escritório, percebendo sua aparência clínica. Lembrava-lhe o
escritório do pai de Rita, com mesas de madeira escura e molduras de aço
inoxidável. As estantes e o estilo dos móveis eram inquietantemente
semelhantes.
Ela se perguntou se era uma homenagem deliberada ao pai ou
simplesmente uma semelhança coincidente. Enquanto seus olhos
percorriam o escritório, notou a arte moderna que adornava as paredes,
adicionando um toque de sofisticação ao ambiente. Entre as obras de arte,
ela também viu dois diplomas universitários, exibidos de forma
proeminente com bordas douradas. Diferentemente do escritório do pai,
havia um porta-retratos na mesa de Rita, embora Rhianne não pudesse
distinguir a foto de sua posição.
Kai quebrou o silêncio que havia se prolongado por um momento a
mais. — Em que posso ajudá-la?
Rita fixou seu olhar em Kai, seus olhos cheios de intensidade. — O que
estou prestes a revelar deve permanecer estritamente confidencial, e espero
que tanto você quanto sua assistente — seu lábio se curvou enquanto olhava
brevemente na direção de Rhianne — assinem um acordo de
confidencialidade em relação a qualquer informação que descubram em
nossos arquivos. A discrição absoluta é primordial. — Ela se inclinou para
frente. — Oficialmente, seu papel será apresentado como assistência em
nossas medidas de cibersegurança.
Kai deu a Rita um sorriso frio. — O contrato que lhe enviei ontem
estabelece claramente que se eu me deparar com atividades criminosas
durante minha investigação, sou obrigado a informar à polícia. Isso seria
um problema para você?
Rita colocou os cotovelos sobre a mesa e entrelaçou suavemente as
mãos. — E se for algo como desvio de fundos?
— Sendo esta uma empresa privada, fica a seu critério decidir se
apresentará acusações se fundos foram roubados — disse Kai.
Então era isso que Rita suspeitava, a questão era, de quem ela
suspeitava?
Kai deve ter lido sua mente. — Apenas pessoas com acesso financeiro
suficiente podem fazer isso. Suponho que vocês tenham controles
estabelecidos.
Rita assentiu, seus dedos apertando-se entre si, fazendo com que seus
nós dos dedos ficassem brancos. Seus olhos permaneceram desprovidos de
emoção. — Aqui conduzimos um navio muito apertado.
Rhianne não tinha certeza de quem ela estava tentando convencer.
— Apenas pessoas-chave, principalmente membros da família, têm
acesso para aprovar transações — disse Rita.
Rhianne lançou um olhar rápido para Kai, que mantinha uma impecável
cara de pôquer. Ela redirecionou sua atenção para seu tablet, não querendo
deixar transparecer sua surpresa. Dado que seu pai estava morto, Rita
Parkes devia suspeitar de seu irmão.
Kai foi direto ao ponto, mas de maneira educada. — Vou precisar da sua
autorização para um acesso completo. Há mais alguém que precise aprovar
isso?
Rita franziu os lábios. — Não, minha autoridade como Diretora de
Recursos Humanos é suficiente para este assunto.
Hmm, de alguma forma Rhianne duvidava que Arthur visse as coisas
dessa maneira, particularmente se ele fosse culpado como ela parecia
suspeitar. Ou mesmo se não fosse. Rita quase agia como se fosse ela quem
dirigia o show agora.
— Vou precisar que você assine os formulários de consentimento
necessários, conforme o contrato — disse Kai.
Relaxando em sua cadeira, Rita abriu seu laptop e digitou algo. — Eu
aceitei o contrato. — Um lampejo de satisfação brilhou em seus olhos.
Rhianne observou, desconcertada. O que exatamente Rita esperava
descobrir?
Kai se inclinou e tocou alguns botões em seu celular. Rhianne estava
bem certa de que era só para aparentar; ela tinha visto o que ele podia fazer
sem nem mesmo tocar nos dispositivos. — Então eu gostaria de começar, se
estiver tudo bem para você.
— Perfeito — disse Rita. — Do que você precisa?
CAPÍTULO 22
K aiComdeuquem
uma olhada em seu celular como se estivesse verificando algo —
eu deveria consultar sobre o equipamento técnico e os
controles?
Rita parecia estar rolando um documento em seu laptop, — Vou te dar
uma lista do nosso equipamento tecnológico.
— Precisaremos de uma lista completa de todo o equipamento técnico
para identificar qualquer dispositivo que não deveria estar lá. É importante
para garantir que nossa investigação seja exaustiva — disse ele, recostando-
se.
Habilmente, ele havia colocado Rita em uma situação complicada. Se
ela dissesse que não, estaria obstruindo a investigação que ela mesma
queria em primeiro lugar. E realmente, ela não podia argumentar contra a
necessidade do que ele estava pedindo. Mas por que ela estava relutante em
deixar Kai falar com outra pessoa? Era possível que Rita estivesse tentando
acobertar seu irmão, ou que ela mesma tivesse algo a esconder.
Quase dava para ouvir as engrenagens girando na cabeça de Rita. Sua
mandíbula tinha aquela tensão sutil de alguém que tenta não ranger os
dentes, e seus lábios estavam apertados como se estivesse contendo as
palavras. Ela pegou o celular de sua mesa com um suspiro. — Susan, você
pode vir aqui, por favor? — O “por favor” soou como se ela tivesse tido
que tomar impulso para entrar na frase, provavelmente adicionado porque
Rhianne e Kai estavam lá.
Em questão de segundos, Susan entrou no escritório. Rhianne reparou
em seus sapatos sensatos e se perguntou se ela frequentemente fazia recados
para sua chefe. — Você pode mostrar, por favor…? — a voz de Rita se
apagou, franzindo a testa enquanto agitava a mão vagamente na direção de
Rhianne.
— Raine — disse Susan, acrescentando suavemente o nome à conversa.
O tom de Rita ficou cortante. — A assistente do Sr. Wagner. Ela precisa
fazer um inventário visual do equipamento.
— Claro, senhorita Parkes — respondeu Susan, lançando um olhar
rápido para Rhianne.
Rhianne se levantou de seu assento, fazendo um gesto de assentimento
para Kai antes de seguir Susan para fora do escritório.
Enquanto caminhavam pelos corredores, Rhianne disse: — Obrigada
por lembrar meu nome.
Susan, que ia à frente a passo ligeiro, olhou por cima do ombro e
respondeu com um leve sorriso: — Bem, não é ciência de foguetes se você
se esforça.
Rhianne, mantendo-se no ritmo do passo enérgico de Susan, arqueou
uma sobrancelha em sinal de interrogação. — Então, a senhorita Parkes não
se esforça? Não é esse o objetivo de Recursos Humanos?
Susan reduziu a velocidade por um momento, sua expressão vacilando
ligeiramente, antes de assentir com confiança. — Você pensaria isso. Mas
quando você usa Recursos Humanos como trampolim, se torna mais uma
questão de números.
Curiosa, Rhianne perguntou enquanto dobravam uma esquina: — Um
trampolim para o quê, exatamente?
Com um olhar cúmplice, Susan continuou caminhando. — Direto para o
topo. E que o irmão dela seja o próximo na linha de sucessão?
Provavelmente ela vê isso como um obstáculo menor.
Os olhos de Rhianne se arregalaram, exagerando o papel de assistente
inocente. — Mas nestes tempos, o gênero não deveria ser um fator, certo?
Alguém deve ver o potencial dela para tê-la colocado no comando de RH.
Ao se aproximarem do elevador, a voz de Susan baixou para um tom
mais confidencial. — Ah, ela é definitivamente inteligente. O pai dela
também sabia disso, usou isso a seu favor. É um pouco triste, na verdade —
disse Susan—. Rita idolatrava o pai. Todos nós aguentamos seus inúmeros
elogios à astúcia empresarial dele. Mas acho que nunca ouvi ele dar
nenhum crédito a ela. Ela dedicou sua vida a esta empresa. Não me lembro
dela ter saído em um encontro.
Percebendo que poderia ter falado demais, Susan limpou a garganta
apressadamente enquanto saíam do elevador. Ela guiou Rhianne através de
portas duplas para uma sala lotada cheia de cubículos. Computadores e
equipamentos tecnológicos enchiam o lugar. Todo mundo estava grudado
em suas telas, com fones de ouvido colocados, imersos em seu próprio
mundo de cliques de teclado. Nenhuma cabeça se virou quando elas
passaram.
— Eu não tinha certeza de quais áreas você queria visitar, mas achei que
o departamento de TI fazia sentido — Susan deu de ombros—. Ralph, o
CTO, era uma das poucas pessoas que o Sr. Parkes parecia respeitar.
Rhianne entrou no jogo, fingindo ignorância. — CTO?
Susan baixou a voz, embora os funcionários ao redor não prestassem
atenção à sua conversa. — Diretor de Tecnologia. Há rumores de que Ralph
estava sendo preparado para ser Diretor Geral Adjunto.
— E quanto ao herdeiro homem?
Susan fez um gesto desdenhoso com a mão. — O plano, pelo que sei,
era que ele trabalhasse junto com o garoto — Ela parecia alheia ao leve
gesto de desagrado de Rhianne diante da referência casual a Arthur como “o
garoto”—. Claramente, o Sr. Parkes não o via como o chefe supremo — No
meio da frase, Susan fez uma pausa para tirar um fiapo da manga, e então
mudou abruptamente de assunto—. Enfim, aqui estamos.
— Obrigada — respondeu Rhianne, com um leve tom de desconforto
em sua voz enquanto tentava inventar uma tarefa convincente para se
ocupar. Ela pegou seu tablet, anotou algumas notas e tirou algumas fotos do
equipamento.
— Acho que já tenho o que precisava. A propósito, você sabe onde
posso conseguir uma xícara de café? — Ela não estava com vontade de
café, mas esperava que isso proporcionasse uma oportunidade para ouvir
casualmente conversas em áreas onde as pessoas se reuniam e relaxavam.
— Claro — disse Susan—. Desde que o ogr… — ela se interrompeu e
disfarçou seu deslize com uma tosse falsa— a chefe não me chame de volta.
Susan guiou Rhianne até o elevador, trocando cumprimentos casuais
com algumas pessoas com quem cruzaram. Elas entraram em uma área
aberta decorada com mesas e cadeiras funcionais, mas atraentes. O aroma
do café recém-feito se misturava com o murmúrio dos clientes sentados nas
mesas perto das amplas janelas, desfrutando suas bebidas.
Adjacente à aconchegante área de assentos, um balcão circular atraía
com sua variedade de delícias. Três atendentes diligentes se empenhavam
em preparar café aromático, sanduíches quentes e servir tortas tentadoras à
curta fila de clientes. Enquanto Rhianne e Susan se juntavam à fila, uma
jovem apressada se posicionou atrás delas.
— Oi Susan — cumprimentou a ruiva miúda, com voz ofegante.
Susan respondeu com um entusiasmo mínimo. — Oi, Anne.
— Você recebeu meu bilhete sobre as mudanças que o senhor Parkes
quer para a festa de celebração dos investidores? — perguntou Anne.
Susan franziu a testa e lançou um olhar desdenhoso para Anne antes de
se recompor. — Passei para a senhorita Parkes. Não acho que ela estivesse
particularmente feliz com as solicitações adicionais.
Anne, aparentemente alheia ou imperturbável diante da rejeição,
manteve um sorriso radiante. — Bem, o senhor Parkes é o diretor executivo
agora. Devo informá-lo que há um problema?
— Abaixe a voz — sibilou Susan, fazendo Anne arregalar os olhos e
assentir. — Você pode dizer a ele que a senhorita Parkes entrará em contato
com ele sobre o pedido.
— Farei isso. Ei, você se importa se eu passar na frente? Art está com
pressa — Sem esperar uma resposta, Anne passou à frente de Rhianne e
Susan, procedendo a pedir dois cafés.
O celular de Rhianne tocou com o toque de Kai. — Com licença —
disse ela a Susan, afastando-se. — Sim?
— Tenho o que preciso. E você?
— Sim. Te vejo lá embaixo.
— Até mais — Kai desligou.
— Estou indo lá para baixo, Susan. Foi um prazer conhecer você —
Rhianne se despediu com a mão e ignorou o olhar interrogativo que Susan
lhe dirigiu.
Quando as portas do elevador se abriram no saguão, os olhos de
Rhianne avistaram Kai em pé perto da entrada, completamente absorto em
seu celular. Quando estava prestes a chamá-lo, outra voz se adiantou.
— Kai! — Rhianne se virou para ver um rosto familiar se dirigindo
diretamente a ele. A sargento Lisa Chen parou a um passo de Kai, e Rhianne
reduziu seu ritmo, observando silenciosamente a cena que se desenrolava.
Kai levantou o olhar, sua expressão registrando surpresa. — Lisa?
As próximas palavras de Lisa, — Sentiu minha falta? — foram
pronunciadas com um tom provocante que não agradou Rhianne.
As sobrancelhas de Rhianne se franziram. Este era um lado do
relacionamento deles que ela não tinha visto, nem mesmo suspeitado. Havia
uma história entre eles que ela desconhecia? A súbita revelação provocou
uma repentina opressão em seu peito.
Kai cruzou os braços sobre o peito. — Havia algo que você queria?
— Você tem ignorado minhas mensagens e ligações. Como saberia se
eu queria algo? — Lisa fez um beicinho, estendendo a mão para tocar o
braço de Kai. — Já se passaram dois meses desde a última vez que você
aqueceu minha cama.
— É isso que você quer? Uma cama quente? — A resposta de Kai foi
cortante, seu corpo tenso e enrolado. Ele retirou seu braço do toque de Lisa.
— Terminamos por uma razão.
— Não — Lisa ajeitou uma mecha solta de cabelo atrás da orelha. —
Você terminou comigo porque ficou um pouco irritado, mas sempre
voltamos antes. Por que você não me retornou a ligação? É por causa
daquela bruxa verde?
Rhianne se arrepiou com o desdém na voz de Lisa.
— É apenas uma aventura, e você sabe disso. Não se pode comparar
com o que temos.
Nossa, alguém não era a senhorita Confiança? Mentalmente, ela
concedeu a Lisa dez pontos por sua audácia, mesmo enquanto se perguntava
como Kai responderia a uma afirmação tão ousada.
Kai estreitou os olhos, sua voz cortante. — Você tem razão — disse ele,
e o coração de Rhianne deu um salto. — O que tenho com Rhianne é muito
melhor do que qualquer coisa que você e eu já tivemos.
Rhianne exalou lentamente, contemplando se deveria intervir ou não.
Então ela percebeu: ainda estava disfarçada. Lisa não teria ideia de quem
ela realmente era, mas falar poderia fazer com que se revelasse.
— Dois anos, você praticamente morava no meu apartamento! — A voz
de Lisa se elevou. — Como você pode dizer isso?
Rhianne deu um passo para trás, sua mente girando com a revelação.
Dois anos? Eles só tinham terminado há dois meses. Suas mãos tremeram
enquanto ela tentava se acalmar, mordendo o interior da boca em uma
tentativa de recuperar o controle. Reunindo forças, ela se obrigou a
caminhar ao redor de Kai e Lisa, dirigindo-se à saída. Cada passo parecia
uma luta enquanto ela se concentrava em criar distância entre ela e o
tumulto emocional que se desenrolava atrás dela. Quando se aproximava da
porta, suas vozes chegaram aos seus ouvidos mais uma vez.
— Fui claro, Lisa. O nosso acabou. — a voz de Kai ressoou. — Por
favor, não me contate a menos que esteja relacionado a um caso oficial.
— Ah, é assim? Então, que diabos você está fazendo aqui? — O tom de
Lisa sofreu uma rápida transformação, passando de sedutor para agressivo.
Rhianne continuou caminhando, sua mente girando com pensamentos e
emoções conflitantes. Ela resistiu ao impulso de olhar para trás, sabendo
que não mudaria nada. Agora mesmo, ela precisava encontrar uma maneira
de clarear sua mente.
Dominada pela necessidade de desabafar, ir à academia parecia uma boa
ideia. Ela deveria encontrar Nel lá mais tarde de qualquer maneira; chegar
um pouco cedo não faria mal. Com seus pensamentos ainda acelerados, ela
apressou o passo.
Quando Rhianne chegou, Nel não estava em lugar nenhum. Sem se
desanimar, ela se dirigiu aos vestiários e vestiu seu equipamento. Ao sair
dos vestiários, estava ansiosa para mergulhar em seu treino e se isolar do
mundo. Iniciando sua rotina de aquecimento, focou sua atenção unicamente
nos movimentos. Inspirar, expirar. Passo lateral, salto para trás. Chutes
altos, chutes baixos. Ela manteve seu corpo em movimento, mantendo um
fluxo constante. Mover-se e permitir que o exercício envolvesse
completamente todos os seus sentidos trouxe uma sensação de paz
momentânea.
Em algum momento, Rhianne percebeu a presença de Nel. Ele tinha se
juntado silenciosamente a ela, imitando cada um de seus movimentos.
— Algo está te incomodando — disse Nel.
Ela optou por não responder, dando de ombros e oferecendo um sorriso
trêmulo em vez disso.
Nel estreitou os olhos, sua expressão mudando. — Problemas no
paraíso tão cedo?
Rhianne respirou fundo, fazendo uma pausa para refletir sobre sua
reação enquanto observava a raiva protetora de Nel. Estava exagerando?
Claro, teria sido bom saber sobre o relacionamento passado de Kai e Lisa.
Teria sido ainda melhor ter uma cronologia mais clara do término deles.
Mas será que realmente mudava algo? Kai tinha sido muito claro sobre sua
situação. Então ela entendeu. Estava com medo. As coisas tinham ido tão
bem entre ela e Kai que tinha um temor persistente de que algo pudesse dar
errado.
Ela queria falar sobre isso com alguém, mas Nel exageraria. Não era
exatamente uma especialista em mentir, mas esperava que algumas das
lições de sua mãe sobre manter uma cara de pôquer tivessem ficado com
ela.
— Na verdade, entrevistamos Rita Parkes — disse ela em vez disso.
Nel a olhou com os lábios apertados.
— Acontece que ela suspeita que Arthur está roubando dinheiro, e por
isso contratou o Kai. Pelo que pude entender através dos boatos do
escritório, ela era definitivamente a queridinha do papai, mas era um
assunto unilateral. Tem uma ambição séria, isso eu admito. Mas me faz
pensar que eu deveria ter outra conversa com Arthur — falou rápido,
esperando mascarar seu tormento interior.
Nel ergueu uma sobrancelha.
— Então, por que isso te deixa de tão mau humor?
— Porque significa que tenho que fingir estar interessada em Arthur, e
isso não me agrada — era a verdade.
Nel assentiu lentamente, pensativo, acompanhado de um olhar curioso.
— Ah, entendo. Tem certeza de que é só isso?
O ataque era a melhor defesa.
— O que você quer dizer com “é só isso”? É horrível, e nem tenho
certeza se consigo fazer isso.
— Você estará interpretando um papel, princesa, colocando uma peruca
e uma máscara. Uma vez que tiver se transformado, pode lembrar a si
mesma que tudo é apenas uma atuação — ele lhe deu um sorriso irônico. —
Sua relutância pode te tornar mais desejável. Ele vai notar a falta de
interesse.
— Argh! Alguém já te disse que você é impiedoso?
— Não, mas já me chamaram de descarado e charmoso.
Rhianne levantou as mãos para o ar.
— Você é impossível!
Ver o sorriso maroto de Nel trouxe um toque de calor ao coração de
Rhianne. Isso a empurrou a deixar de lado suas preocupações, pelo menos
por enquanto. Uma parte dela estava um pouco animada para conversar
com Arthur novamente, curiosa para descobrir que nova informação poderia
desenterrar. Além disso, ela tinha conseguido se afastar com sucesso, tanto
ela quanto Nel, do verdadeiro problema em questão, e aquela energia
negativa inquieta que secretamente estava ansiosa para canalizar em algo…
menos dramático. E uma boa sessão de treino parecia a maneira perfeita de
canalizá-la.
— Está a fim de uma luta? — perguntou.
Enquanto Rhianne e Nel treinavam, ela se viu lutando contra algo mais
do que seu habilidoso oponente. Sua mente continuava se desviando dos
movimentos rápidos de Nel e voltando diretamente para a complicada
situação com Kai e Lisa. Estava chateada, não só por toda a questão com
Kai, mas também consigo mesma por não enfrentá-lo diretamente. O medo
do que poderia acontecer depois estava brincando com sua cabeça,
dificultando sua concentração no treino. Ela lançava chutes e manobrava ao
redor dos ataques de Nel, mas internamente, lutava com uma mistura de
emoções: frustração, uma sensação de traição e incerteza sobre o futuro. Era
como se estivesse em duas lutas ao mesmo tempo, e a emocional estava se
mostrando tão desafiadora quanto o treinamento físico.
Depois do banho, Rhianne se secou e pegou sua bolsa. Verificou seu
celular e o encontrou cheio de chamadas perdidas e mensagens de Kai, o
que desencadeou um turbilhão de emoções. Ela estava pronta para falar
com ele? E se ela errasse nas palavras, ou se ele dissesse algo que
complicasse mais as coisas? Talvez ele tivesse reconsiderado as coisas e…
Uma imagem de Kai apareceu em sua mente. Lembrou-se de seus olhos
azuis tempestuosos e como ele sempre parecia apoiá-la. Divertido, gentil,
imperturbável e, além disso, um completo nerd. Ela não pôde evitar sorrir
com o pensamento. Com todas as suas peculiaridades, Kai tinha um jeito de
fazer as situações complicadas parecerem um pouco menos avassaladoras.
Pegou seu celular e discou.
— Oi — disse ela. Parecia inadequado, o peso das palavras não ditas
pairando no ar, mas ela não conseguia encontrar as palavras certas para
expressar tudo o que estava sentindo. Tinha desaparecido sem dizer uma
palavra, deixando-o sem chance de se explicar.
— Sinto muito — disse ele.
— Eu também — respondeu ela suavemente.
— Eu deveria ter te contado — sua voz estava rouca.
— Talvez — disse ela. — Temos estado ocupados.
— Ela não é relevante — era uma súplica.
Apesar de si mesma, Rhianne sentiu os cantos de sua boca se moverem.
Lisa ficaria furiosa se o tivesse ouvido dizer isso.
— Ai!
— É a verdade.
— Eu sei — e sabia. Um dia ela perguntaria o que tinha causado o
término, mas hoje não era esse dia. Sentia-se mais leve, no entanto, com
uma sensação de estar pronta para seguir em frente. Mudando de assunto,
acrescentou: — A propósito, mencionei que Nel é dono de uma boate?
— A mesma onde você conheceu Arthur?
— Sim, essa mesma. Estou planejando voltar lá esta noite, tentar obter
mais informações. E você? Teve sorte com sua parte da investigação?
— Definitivamente há dinheiro desaparecido, e todos os sinais parecem
apontar para Arthur — admitiu Kai.
— Mas você não está convencido — disse ela.
Ouviu uma exalação profunda do outro lado.
— Não, não estou. Há dois conjuntos de transações e não batem,
desculpe a redundância. Preciso de mais detalhes — houve uma breve
pausa, e Rhianne pôde ouvir o som de movimento, como se Kai tivesse se
acomodado em uma cadeira. — Você poderia talvez descobrir o quanto
Arthur sabe sobre finanças?
— Como você sugere que eu descubra isso? — perguntou ela.
Contabilidade não era o ângulo que Kai parecia apontar, que era com o que
ela estava familiarizada.
— Talvez você possa mencionar casualmente que está pesquisando
diferentes oportunidades de investimento, ou que está procurando
aconselhamento financeiro. Preste atenção em como ele reage e no que diz.
Pode nos dar uma pista sobre o quanto ele sabe de finanças — sugeriu Kai.
— Uf. Me sinto totalmente despreparada para isso — murmurou
enquanto mordia o lábio inferior com preocupação.
— Bem — Kai fez uma pausa. — E se eu te ajudar?
— Me ajudar como?
A voz de Kai acelerou com entusiasmo.
— Ora, sugerindo os temas e a direção correta para guiar a conversa.
Posso te dar dicas para te ajudar a obter a informação que precisamos.
— Como faríamos isso?
— Posso te equipar com alguns dispositivos de comunicação discretos,
como um fone de ouvido e um microfone, e então posso te guiar enquanto
escuto a conversa.
— Nossa! Você está falando em me equipar com tecnologia de espiões?
— A ideia a fez se sentir um pouco tonta.
— Bem, não exatamente tecnologia de espiões, só um sistema de
comunicação simples. Eu teria que estar a menos de duzentos metros da sua
localização para que funcione sem problemas.
— Isso significa que você teria que estar no clube com a gente — assim
que disse isso, Rhianne decidiu que era uma boa ideia. Trabalhar juntos
nesta missão parecia um passo na direção certa para eles. — Ah, e você vai
ter que cumprir o código de vestimenta — sorriu com o breve silêncio que
se seguiu do outro lado da linha.
— Que código de vestimenta?
O sorriso de Rhianne se alargou.
— Quando foi a última vez que você foi a uma boate?
— Conta um bar do centro? — perguntou Kai.
— Não. Coloque uns jeans bonitos e uma camisa de manga comprida, e
Nel pode te fornecer algo mais se necessário. O Clube do Advogado do
Diabo é uma boate de luxo e bastante exclusiva. Que tal nos encontrarmos
no clube às nove desta noite? Fica no Distrito das Artes de Walsh Bay.
— Se é tão exclusivo, não vão me deixar entrar — disse Kai.
— Não se faça de modesto comigo, senhor consultor. Ouvi dizer que
você tem amigos nas altas esferas.
— Hmm — disse Kai. — Estarei lá com bombas e pratos.
— Tenho quase certeza de que isso não é um traje aceitável para o clube
— ela riu e se sentiu bem em se deixar levar.
— Ouvi dizer que em alguns lugares vale tudo. As pessoas respeitáveis
precisam soltar os cabelos afinal — disse Kai com seriedade.
Rhianne caiu na gargalhada, tentando recuperar o fôlego.
— Aham. Te vejo depois — conseguiu dizer entre risadinhas.
— Até mais, Rhi — respondeu Kai, e o uso de seu apelido lhe provocou
um delicioso frio na barriga.
CAPÍTULO 23
N
el e Kai fixaram seus olhares curiosos nela.
Nel falou primeiro. — Vamos, desembucha.
Rhianne olhou ao seu redor, observando o ambiente agitado da
festa. Havia muitos ouvidos indiscretos. — Aqui não.
— Na minha casa — sugeriu Nel—. É a mais próxima.
Sem hesitar, os três partiram, e Rhianne sentiu o peso do olhar
desaprovador de sua mãe queimando sua nuca. Resistiu ao impulso de olhar
para trás.
Dirigiram pela cidade, com os postes iluminando seu caminho. Logo,
estavam no estacionamento subterrâneo do prédio de Nel. Enquanto subiam
no elevador, a mente de Rhianne zumbia, juntando todas as peças do que
havia descoberto, uma energia nervosa percorria seu corpo, seus nervos
formigavam de excitação.
Ao entrar no apartamento de Nel, ele foi direto para a cozinha e voltou
com uma garrafa de vinho, uma jarra de água e alguns copos. Ele os dispôs
sobre a mesa de centro, criando um bar improvisado.
Nel se recostou em sua cadeira. — Devo admitir que estou um pouco
decepcionado por não ter podido oferecer mais ajuda com a investigação.
Rhianne lançou-lhe um olhar de soslaio. —É porque você se sente
excluído ou porque perdeu sua chance com Andrea?
— Por que não ambos? — Ele pegou uma taça de vinho para si.
Kai, por outro lado, optou por um copo de água, assim como Rhianne.
Movimento inteligente. Eles precisavam estar afiados e concentrados.
— Ou foi por perder a emoção de se envolver com uma potencial
assassina? — disse Rhianne.
Nel se engasgou com seu vinho, provocando um ataque de tosse.
Rapidamente tirou um lenço do bolso e limpou os lábios, tentando
recuperar a compostura.
Rhianne riu, e um leve tique apareceu no canto da boca de Kai.
— Para constar, não seria a primeira — disse Nel uma vez recuperado
—. Andrea fez isso?
Ela negou com a cabeça. — Não, mas preciso de provas.
Dirigiu seu olhar para Kai.
— Você sabe que estou encantado em ajudar — ele levantou as palmas
das mãos.
Rhianne sorriu. — Não se preocupe, tenho quase certeza de que você
pode conseguir a maioria do que precisamos sem quebrar nenhuma regra.
Kai coçou o queixo. Rhianne prendeu a respiração, esperando sua
reação.
— Não há melhor momento que o presente. Vamos ao trabalho.
Rhianne o envolveu com seus braços em um abraço. — Obrigada —
sussurrou, plantando um suave beijo em sua bochecha. O calor que
preencheu seu coração era suave e reconfortante.
— Me agradeça quando encontrarmos os dados — ele deu de ombros.
Nel tirou o paletó e afrouxou a gravata borboleta. — Me diga do que
você precisa.
— Eu poderia ir para casa, a menos que você tenha alguns
computadores potentes aqui — ele deu de ombros parcialmente.
Nel sorriu. — Quantos você precisa?
Acontece que Nel tinha um escritório equipado com três computadores,
que Kai considerou suficientes. Rhianne não pôde evitar conter um sorriso
nascente, enquanto Nel bufava e resmungava diante da avaliação.
Quando o relógio se aproximava das cinco da manhã, Kai levantou a
cabeça do computador, seus dedos massageando a parte de trás do pescoço.
— Tenho o que precisamos — anunciou.
Os olhos de Rhianne se abriram de repente ao ouvir sua voz, e ela os
esfregou, tendo cochilado em sua cadeira não muito tempo antes. Então as
palavras dele se registraram em sua mente. — Você tem?
Ela se levantou de um salto, sua respiração acelerou enquanto se
inclinava sobre o ombro dele para dar uma olhada na imagem congelada na
tela.
Nel se aproximou com passo despreocupado, completamente alheio a
como Rhianne mal conseguia manter as pálpebras abertas. Nel tinha as
mãos entrelaçadas atrás das costas enquanto estudava a imagem. Um sorriso
cruzou seu rosto. — Acho que você deveria entrar em contato com a
senhorita Austin e pedir que ela organize uma reunião com a polícia.
— Não é um pouco cedo? — bocejou Rhianne.
Nel soltou uma risada curta e divertida. — Advogados não dormem,
eles cobram por hora.
No final, Rhianne pensou que todos poderiam usar um bom café da
manhã, então Nel tomou a iniciativa e pediu algo para comer. Quando
Rhianne discou o número de Marissa, era o horário mais civilizado das seis
da manhã. No segundo toque, Marissa atendeu. — Bom dia, Rhianne — seu
tom era tão enérgico como sempre.
Rhianne se perguntou se Nel estava certo sobre Marissa nunca dormir.
— Você acordou cedo.
— Acorde cedo, trabalhe duro, encontre petróleo — disse Marissa.
Rhianne ergueu uma sobrancelha, mas decidiu ir direto ao ponto. —
Sabemos quem é o assassino e temos provas.
— Onde você está? — perguntou Marissa, e Rhianne forneceu o
endereço—. Dez minutos — Marissa encerrou a chamada.
Rhianne olhou para seu celular. Algum dia, ela jurava que seria ela
quem desligaria na cara de Marissa.
Doze minutos depois, o porteiro informou a Nel que sua visitante havia
chegado.
Marissa entrou, arrastando uma pesada maleta. Ela examinou o
ambiente, observando a mobília de bom gosto e a vista. Seu olhar pousou
em Nel. — Belo lugar que você tem aqui. Parece que pode pagar por um
advogado de primeira — ela entregou seu cartão a Nel.
Os lábios de Nel se curvaram em um sorriso astuto e ele estendeu sua
mão, que Marissa apertou. Rhianne fez uma careta e prendeu a respiração,
sabendo que Nel estava testando os limites de Marissa com o contato físico.
Ela fez uma nota mental para ter uma conversa séria com Nel sobre não
usar seus encantos com suas amigas.
— Sou Nel Lamont.
Marissa se tensionou momentaneamente antes de dar um passo para trás
e alisar a saia.
— Marissa Austin — ela tomou uma respiração profunda e endireitou
sua postura. Então dirigiu seu olhar para Rhianne e Kai, assentindo
decididamente—. Então, onde estão essas provas que você mencionou?
Talvez as gárgulas tivessem certa resistência ao charme do íncubo, mas
Rhianne ainda deu pontos a Marissa por sua rápida recuperação. Embora,
afinal de contas, Marissa fosse dura como aço, então provavelmente havia
desenvolvido resistência a qualquer coisa.
Kai entregou as impressões que havia coletado enquanto Rhianne
explicava a Marissa os detalhes intrincados do caso: o quem, o como e o
porquê. Embora o “porquê” fosse em grande parte especulativo da parte de
Rhianne. Era difícil se colocar no lugar de alguém disposto a matar a
sangue frio.
— Isso é um assassinato premeditado — havia um vislumbre de
surpresa por trás do olhar frio de Marissa. Depois mudou para uma
expressão de curiosidade impressionada. — Bom trabalho. Vocês
resolveram o caso enquanto a polícia andava em círculos, e têm provas
suficientes para o promotor começar a colocar as algemas.
Rhianne fechou os olhos e deixou escapar um suspiro de alívio.
— Você acha que temos o suficiente?
— Está brincando? O promotor vai te adorar. Não se pode pedir mais do
que isso. Mas no final, é o júri que determina quem é o melhor advogado: a
defesa ou a acusação.
Rhianne lançou-lhe um olhar alarmado.
— Você defenderia um assassino?
Algo parecido com pena cruzou o rosto de Marissa e ela deu umas
palmadinhas na mão de Rhianne.
— Os assassinos também merecem uma defesa, mas neste caso, mesmo
que eu quisesse, o que não quero — disse com um sorriso irônico diante da
expressão franzida de Rhianne —, eu não deveria. Meu cliente também foi
acusado do assassinato, então poderia ser visto como parcialidade ou, no
pior dos casos, um conflito de interesses.
— Qual é o nosso próximo passo? — a voz cansada de Kai
interrompeu, colocando uma pausa em qualquer réplica que Rhianne
pudesse ter tido.
— Agora vou organizar uma reunião com o sargento-chefe Johannes,
você, Rhianne e eu — fez uma pausa, voltando-se para Nel com um sorriso
cúmplice. — Desculpe, mas você seria muito distrativo.
Nel soltou uma risadinha.
— Entendido. Tenho certeza de que Kai vai gravar em vídeo para que
eu possa assistir depois.
Marissa agitou o dedo em sinal de advertência.
— Não sem o consentimento da polícia, e duvido muito que eles
concedam.
Nel e Kai trocaram um olhar rápido. Rhianne não acreditava que Kai
quebraria as regras só para agradar Nel, mas sabia que ele tinha um dom
para encontrar soluções alternativas. Um bocejo escapou dos lábios de
Rhianne, e Kai também bocejou.
Marissa franziu a testa.
— Vou agendar a reunião para mais tarde esta tarde.
Rhianne começou a protestar, ansiosa para entregar as provas à polícia o
mais rápido possível. Mas Marissa a interrompeu.
— Nem pense nisso. Você e Kai precisam descansar. Vocês têm que
estar afiados para a entrevista. O detetive Johannes não ficará feliz por
terem se adiantado a ele, e será difícil de lidar. Vocês precisarão estar
completamente lúcidos.
— Vocês dois podem ficar aqui; tenho muito espaço.
Nel surpreendeu Rhianne com sua oferta e ela olhou para Kai.
Kai esfregou o ombro, claramente exausto.
— Se você tiver um quarto sobrando onde eu possa desabar, seria mais
seguro do que se eu dirigisse.
O cansaço havia tirado o brilho de seus olhos e seu cabelo estava
espetado em desordem.
Marissa assentiu.
— Vou organizar a reunião e enviarei os detalhes para vocês.
Descansem — Com isso, pegou sua pasta e saiu.
— Você pode ficar no seu quarto habitual, Rhianne. Vou mostrar o dele
para o Kai.
— Obrigada, nos acordem na hora do almoço para não perdermos a
reunião.
Nel fez um grunhido não comprometido e Rhianne foi direto para o
quarto. Estava cansada demais para se dar ao trabalho de tomar banho.
“Mais tarde”, pensou, enquanto desabava na cama.
“Mais tarde” acabou sendo às três da tarde. Rhianne xingou baixinho e
pegou seu celular. A mensagem de Marissa era concisa: “Delegacia de
Northern Beaches às cinco em ponto. Nos vemos lá”.
Rhianne respirou aliviada, feliz por não ter perdido a reunião. Ela tomou
banho e se trocou com um conjunto de roupas que tinha guardado no
apartamento de Nel.
Seguiu seu nariz até a cozinha, de onde emanavam aromas
maravilhosos, esperando encontrar Nel. Em vez disso, viu que Kai estava
cozinhando. Seu cabelo ainda estava úmido e ele vestia roupas diferentes.
Ou tinha ido para casa se trocar ou Nel tinha emprestado algumas roupas
para ele.
Kai deve tê-la sentido porque se virou, frigideira na mão.
— Olá, dorminhoca. Como você está se sentindo? — Seus olhos
voltavam a brilhar e seu sorriso era relaxado.
Rhianne esticou os braços acima da cabeça.
— Dormi mais do que pensava. Estava preocupada que tivéssemos
perdido a reunião com a polícia.
— Nel recebeu uma mensagem de Marissa antes, então sabia que
tínhamos tempo. Ele queria nos dar a chance de nos recuperarmos —
Voltou-se para o fogão e virou uma panqueca. — Fiz panquecas, então fique
à vontade para adicionar os acompanhamentos que quiser.
No caminho para os armários, ela parou para plantar um beijo em sua
bochecha e dar-lhe um forte abraço.
— Vou queimar as panquecas — ele avisou.
— Onde está Nel? — Ela pegou geleia de morango e mel.
— Ele disse que tinha uma reunião com um cliente — disse Kai.
Ela franziu a testa, desconcertada. Nel raramente se reunia com clientes
no início da tarde; provavelmente precisava se alimentar. Deixando escapar
um suspiro, ela esfregou as têmporas, lembrando que não tinha consultado
Toto sobre o encanto do íncubo. O recente ataque a Toto a tinha
desestabilizado, e ela estivera absorta tentando descobrir algo sobre o
metamorfo corvo. Como se isso não fosse ginástica mental suficiente,
vincular seus atacantes ao caso de assassinato estava ficando mais
complicado a cada minuto. E o elusivo elfo com o portal? Esse era um
mistério que ela imaginava que resolveria ao mesmo tempo em que os
porcos começassem seu treinamento de voo. Perdida em seus pensamentos,
ela percebeu que tinha comido uma panqueca inteira sem nem mesmo notar.
Olhando para Kai, viu que ele a observava pacientemente.
— Um centavo pelos seus pensamentos — ele sorriu.
Ela devolveu o sorriso.
— Só estava pensando que estas panquecas poderiam ter precisado de
um cinto de segurança.
Ele riu, com os olhos brilhantes.
— Você as fez desaparecer como um truque de mágica. Nunca vi
panquecas com menos chances.
Rhianne sentiu suas orelhas esquentarem.
Kai estendeu a mão e segurou suavemente a dela. — Parece que vou ter
que fazer outra rodada de panquecas para você. É o café da manhã ideal,
não é? — Ele arqueou as sobrancelhas, provocando uma risada luminosa de
Rhianne.
— Pode contar comigo!
Depois de terminar o café da manhã, Kai se ofereceu para levar Rhianne
ao seu apartamento. No caminho, conversaram sobre seus planos para o dia.
Concordaram que Rhianne levaria sua motocicleta à delegacia mais tarde.
Com o caso Parkes ocupando tanto do seu tempo, Kai tinha suas próprias
tarefas para retomar após sua reunião com a polícia.
Marissa os esperava na entrada da delegacia. Ela esfregou as mãos com
alegria. —Isso vai ser divertido.
Rhianne fez uma careta. — Sua definição de diversão precisa ser
revisada.
— Johannes estava furioso com isso. Exigiu uma reunião imediata — os
olhos duros de Marissa deixaram claro o quanto isso tinha caído bem com
ela—. Eu disse a ele para se acalmar. Afinal, eles mesmos não avançaram
muito.
Rhianne só podia imaginar o mau humor em que Johannes estaria, e
lambeu os lábios nervosamente. Era hora de enfrentar as consequências.
Um jovem agente os escoltou para dentro e pareceu aliviado em se livrar
deles quando entraram na sala de conferências. Seus olhos percorreram a
sala e notaram a reação de Kai ao ver Lisa à mesa. Seu corpo ficou tenso e
seu rosto endureceu. Por sua vez, Lisa encontrou o olhar de Rhianne com
uma expressão cheia de hostilidade.
Johannes estava sentado a algumas cadeiras de distância, com a
mandíbula apertada enquanto lançava um olhar desdenhoso. Ele indicou
que se sentassem, ajustando as lapelas do paletó com irritação.
— Boa tarde, sargento-chefe e sargento — o tom de Marissa beirava o
desdenhoso, embora, novamente, esse pudesse ser seu tom habitual ao lidar
com a polícia.
— Podemos dispensar as cortesias? — Lisa se recostou em sua cadeira
e cruzou os braços—. Estamos ocupados realizando nossas investigações,
então espero sinceramente que não estejam desperdiçando nosso tempo.
— Nem sonharia com isso, oficial — disse Marissa—. Afinal, são
nossos impostos que pagam seus salários.
Kai se acomodou em seu assento, colocando uma pasta grossa e seu
laptop sobre a mesa à sua frente. Olhou para Rhianne, que respirou fundo
para se acalmar. — Temos razões para acreditar que Rita Parkes é
responsável pelo assassinato de seu pai, especificamente por envenená-lo
em seu escritório.
Lisa bufou sonoramente. — Crença é a aposta dos tolos.
— Como sua crença de que Alice era a assassina? — retrucou Rhianne
bruscamente.
— Tínhamos fortes suspeitas — sua voz carecia de qualquer indício de
desculpa.
— Nós temos evidências, não apenas suspeitas — disse Rhianne.
Johannes se animou, um lampejo de interesse brilhando em seus olhos,
enquanto Lisa a encarava fixamente.
Kai interveio: — Recentemente, descobri que Rita Parkes estava
orquestrando um plano para incriminar seu irmão Arthur em um desfalque.
Lisa se inclinou para frente, prestes a interromper. Mas Kai levantou a
mão, antecipando-se. Tirou um documento da pasta e o deslizou pela mesa.
Seu tom se manteve profissional, embora gélido.
— Antes que alguém sugira que eu estava hackeando — disse ele—,
deixe-me ser claro: a senhorita Parkes me contratou para esta investigação.
Nosso acordo especificamente me permite revelar qualquer evidência de
comportamento criminoso.
O queixo de Lisa se fechou de repente.
— E um crime foi cometido. Rita Parkes tentou incriminar seu irmão
não apenas por desfalque, mas também por fraude fiscal. Ela pensou que
poderia nos superar em astúcia, mas até os criminosos mais inteligentes
deixam rastros. Seu excesso de confiança acabou sendo sua perdição. Ela
deveria ter contratado um Mago Tecno menos competente — disse Kai.
Um canto da boca de Rhianne se contorceu.
—Isso não faz dela uma assassina — apesar da brusquidão de Johannes,
havia curiosidade na afirmação.
— Não, não faz — concordou Rhianne—. Mas levanta a questão de por
que ela iria tão longe — ela fez uma pausa para enfatizar—. O desfalque
encenado ocorreu uma semana antes do assassinato de seu pai,
cuidadosamente projetado para forçar a mão de Devlin Parkes — ela
entrelaçou os dedos e apoiou os cotovelos sobre a mesa—. Devlin Parkes
era um velho machista intolerante, convencido de que as mulheres eram
incapazes de dirigir um negócio. Rita passou toda sua vida tentando provar
a ele que era digna de ser sua legítima sucessora. Por todos os relatos, ela é
incrivelmente talentosa e tão implacável quanto seu pai. Definitivamente
tem as habilidades e a determinação para ser uma CEO bem-sucedida.
Rhianne limpou a garganta, e Marissa se levantou para buscar uma jarra
de água e copos, que encheu e colocou na frente de Rhianne e Kai.
Lisa viu uma oportunidade durante o breve silêncio e não pôde resistir a
expressar sua opinião. — Então ela estava com ciúmes do irmão, grande
coisa. Poderia simplesmente ter trabalhado mais duro e eventualmente
alcançado seus objetivos.
— Ela não teria conseguido, pelo menos não na empresa do pai. Devlin
Parkes tinha essa coisa de manter tudo em família. Era paranoico e não
confiava em estranhos. Isso o fez pensar que se descobrisse que Arthur
estava desfalcando a empresa, o deserdaria.
Eles tinham conversado e concordado em não mencionar que Rita havia
tentado provar que Arthur não era filho de Devlin, mas não conseguiu
encontrar nenhuma prova.
— Acho que Devlin riu na cara dela e disse que falaria com Arthur e
corrigiria o erro. Afinal, Arthur já tinha pego dinheiro no passado e
devolvido.
Se Arthur tinha a intenção de devolver o dinheiro ou havia sido forçado
pela intervenção de Devlin, nunca saberiam com certeza.
— Provavelmente disse a ela que mesmo se Arthur não estivesse lá, o
cargo de CEO não seria dela — Rhianne quase podia ver a cena se
desenrolando à sua frente.
Johannes cruzou os braços sobre o peito, com uma expressão cética no
rosto.
Lisa zombou. — Você está contradizendo seu próprio argumento. Se ela
estava tão certa de que suas mentiras sobre o desfalque convenceriam o pai,
por que teria precisado do veneno?
Rhianne ergueu o queixo e enfrentou o olhar de Lisa diretamente. —
Porque a vítima pretendida era Arthur.
CAPÍTULO 26
***