[Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do
ensino secundário angolano em uma dimensão cultural sob olhar da Etnomatemática
Ezequias Adolfo Domingas Cassela
ezequiasadolfo@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7703-0097
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
São Paulo, SP, Brasil
Ana Lúcia Manrique
analuciamanrique@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-7642-0381
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
São Paulo, SP, Brasil
Recibido: 30/05/2023 Aceptado: 28/06/2023
Resumo
Este trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o currículo de formação de
professores do 1º ciclo de ensino secundário angolano, com destaque ao de Matemática,
buscando identificar as condições que concorrem para a superação das insuficiências registradas
durante os últimos anos no sistema de educação angolano, bem como as aberturas que permitem
o diálogo entre as diferentes culturas angolanas como fator determinante na otimização de
oportunidades de aprendizagens em sala de aulas, com vista a obtenção de caminhos que
valorizam o contexto sociocultural do aluno. Para tal, nos servimos de um estudo reflexivoteórico, pois tratou de apreciar criticamente o referido currículo e documentos conexos. Para a
análise da literatura que sedimentou o rigor científico do referido estudo, nos servimos da
pesquisa documental e bibliográfica, com enfoque qualitativo, de natureza exploratória e
descritiva. Os resultados da reflexão revelam uma falta de inclusão cultural, o que levou os
autores a apontar caminhos de contextualização pela via da Etnomatemática.
Palavras chave: Currículo, Formação de professores de Matemática, contextualização cultural,
Etnomatemática.
[Re]pensar el currículo de formación de profesores de Matemáticas en el 1er ciclo de la
educación secundaria angoleña en una dimensión cultural desde la perspectiva de la
Etnomatemática
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre el currículo de formación de profesores del
1er ciclo de la enseñanza secundaria en Angola, con énfasis en Matemáticas, buscando
identificar las condiciones que contribuyen a la superación de las insuficiencias registradas
durante los últimos años en el sistema educativo angoleño. así como las aperturas que permitan
el diálogo entre las diferentes culturas angoleñas como factor determinante en la optimización
de oportunidades de aprendizaje en el aula, con vistas a la obtención de caminos que valoren el
contexto sociocultural del alumno. Para ello, se utilizó un estudio teórico-reflexivo, ya que
buscó evaluar críticamente el plan de estudios antes mencionado y los documentos relacionados.
Para el análisis de la literatura que consolidó el rigor científico del mencionado estudio, se utilizó
investigación documental y bibliográfica, con enfoque cualitativo, de carácter exploratorio y
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descriptivo. Los resultados de la reflexión revelan una falta de inclusión cultural, lo que llevó a
los autores a señalar caminos de contextualización a través de la Etnomatemática.
Palabras clave: Currículo, Formación de profesores de matemáticas, contexto cultural,
Etnomatemáticas.
[Re]thinking the training curriculum for Mathematics teachers in the 1st cycle of
Angolan secondary education in a cultural dimension from the perspective of
Ethnomathematics
Abstract
This work aims to reflect on the training curriculum for teachers of the 1st cycle of secondary
education in Angola, with emphasis on Mathematics, seeking to identify the conditions that
contribute to overcoming the insufficiencies registered during the last few years in the Angolan
education system. , as well as the openings that allow dialogue between the different Angolan
cultures as a determining factor in optimizing learning opportunities in the classroom, with a
view to obtaining paths that value the socio-cultural context of the student. To this end, we used
a reflective-theoretical study, as it sought to critically assess the aforementioned curriculum and
related documents. For the analysis of the literature that consolidated the scientific rigor of the
aforementioned study, we used documentary and bibliographical research, with a qualitative
approach, of an exploratory and descriptive nature. The results of the reflection reveal a lack of
cultural inclusion, which led the authors to point out paths of contextualization through
Ethnomathematics.
Keywords: Approach.
Ethnomathematics.
Introdução
Curriculum, Mathematics teacher training, cultural
context,
A educação em Angola, país situado na África Austral, constitui um processo que visa
preparar o indivíduo para as exigências da vida política, econômica e social, visando à formação
harmoniosa e integral do homem, tendo sido consagrada por lei como um direito para todos os
cidadãos, independentemente do sexo, raça, etnia e crença religiosa. Desde 1978 que o governo
angolano começou a engajar-se afincadamente na implementação de um sistema educativo que
estivesse em correspondência com as necessidades socioculturais do estado em oposição à um
sistema educativo imposto pelo colonizador, que predominou durante um tempo de
aproximadamente quinhentos (500) anos.
O processo de organização com vista a pensar Angola na perspectiva de
desenvolvimento em dimensões diferenciadas no período após Proclamação da Independência,
ficou duramente afetado por uma outra guerra civil que teve o seu fim em 4 de abril de 2002.
Esse fato influenciou negativamente o desenvolvimento progressivo da Educação no país,
tornando-o dependente de modelos curriculares importados do exterior do país. Tal situação, foi
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anulando em passos lentos as influências das manifestações emergentes da matriz cultural
angolana no sistema educativo.
No decorrer dos anos, segundo informações sistematizadas pelo Instituto Nacional de
Investigação em Educação de Angola, o país começou a ressentir consideráveis consequências
neste quesito, tais como: dificuldades na adaptação do currículo importado nas diferentes
realidades sociais e culturais do país, identificadas fundamentalmente na gestão do processo
formativo, conduzindo assim os formandos para um perfil de saída menos desejado; promoção
de uma formação geral, abstrata, repetitiva, sem valorização dos conhecimentos de contexto,
provocando a fraca qualidade de ensino.
Movido pela intenção de inverter esse quadro, o governo angolano aprovou em 2001
uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei 13/01 de 31 de dezembro, que definiu um
novo currículo para a formação de professores do 1º ciclo do Ensino Secundário. Neste sentido,
é olhando neste currículo definido que pretendemos, por meio deste artigo, fazer uma reflexão
com vista a apontar caminhos para a sua contextualização cultural, para tal, desenvolveu-se esta
pesquisa a qual está encaminhada a responder as seguintes questões: (1) O currículo definido
tem condição para superar as insuficiências anteriores? (2) O currículo permite estabelecer o
diálogo entre as diferentes culturas angolanas com vista a otimização de oportunidades de
aprendizagens em sala de aulas? (3) As teorias assumidas que sustentam a sua estrutura
epistemológica e o seu modelo pedagógico dão conta da valorização do contexto sociocultural
do aluno? (4) Que caminhos contribuem para a contextualização cultural do referido currículo?
Portanto, apresenta-se inicialmente uma breve abordagem conceitual de currículo,
seguida da metodologia, na sequência faz-se uma caracterização e apreciação crítica ao referido
currículo, posteriormente apontam-se os caminhos para a sua contextualização, finalmente temse as considerações finais.
1. Partindo de ideias conceituais gerais de currículo para o sistema curricular de
formação de professores em Angola
A ideia de currículo abarca diversas reflexões encaminhadas no sentido de se minimizar
as incertezas e ambiguidades que giram em torno de seus conceitos e perspectivas, bem como
dos seus saberes e significados em diferentes contextos educativos. Nisto, vários autores têm se
dedicado em promover discussões de várias ordens em sua volta. São exemplos disso: Grundy
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(1998), Sacristán (2000), da Silva et. al (2012), Sacristán et. al. (2013), Araújo et. al (2020),
Miranda et. al (2021). Neste sentido, consideramos importante desenvolver a presente reflexão
com base ao referencial teórico desenvolvido pelos autores aludidos do ponto de vista
conceitual. Para tal, referencia-se aqui a ideia de currículo, segundo escreve Sacristán et. al
(2013, p.17),
Em sua origem, o currículo significava o território demarcado e regrado do
conhecimento correspondente aos conteúdos que professores e centros de educação
deveriam cobrir; ou seja, o plano de estudos proposto e imposto pela escola aos
professores (para que o ensinassem) e aos estudantes (para que o aprendessem). De
tudo aquilo que sabemos e que, em tese, pode ser ensinado ou aprendido, o currículo
a ensinar é uma seleção organizada dos conteúdos a aprender, os quais, por sua vez,
regularão a prática didática que se desenvolve durante a escolaridade.
A discussão conceitual do currículo vai se tornando amplamente difundida na medida
em que se vão manifestando diferentes pontos de vistas e perspectivas alternativas que
determinam a visão pedagógica em determinadas realidades específicas. Alinhados ao
pensamento de Sacristán (2000), as várias reflexões vão surgindo porque ao definirmos o
currículo estamos descrevendo a concretização das funções de uma escola e a forma particular
de enfocá-las num contexto histórico e social determinado, para um nível ou modalidade de
educação. É na base de pensar o currículo escolar dentro da matriz de uma identidade cultural
específica que pretendemos desenvolver a presente reflexão sobre o currículo de formação de
professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano, cuja caracterização
abaixo se apresenta.
2. Breve caracterização do Currículo de formação de professores do 1º ciclo do Ensino
secundário angolano
Segundo o Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento da Educação (INIDE),
o currículo de formação de professores do 1º ciclo do ensino secundário foi definido pela Lei de
Bases do Sistema de Educação e Ensino de Angola, Lei 13/01 de 31 de dezembro, como um
subsistema do ensino secundário geral a ser realizado nas Escolas de Formação de Professores,
Instituto Nacional de Educação Física e Instituto Nacional de Formação Artística e Cultural,
embora a atual lei (Lei nº 32/20 de 12 de agosto) aponta a sua realização para as instituições de
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ensino superior, o seu funcionamento continua obedecendo os pressupostos anteriores, tendo
uma duração de quatro (4) anos, correspondente ao intervalo da 10ª à 13ª classe.
O respetivo currículo foi concebido com as seguintes finalidades:
•
Formar professores com perfil necessário para a materialização integral dos
objetivos gerais da Educação e particularmente dos objetivos do 1º ciclo do
Ensino Secundário;
•
Formar professores que encarem o Sistema Educativo, a Escola, a sala de aula e
a comunidade envolvente, como espaços de formação harmoniosa dos alunos;
•
Formar professores com sólidos conhecimentos científicos, pedagógicos e
profissionais e uma profunda consciência patriótica de modo a que assumam com
responsabilidade a tarefa de educar as novas gerações, numa sociedade plural;
•
Formar professores que colaborem com os colegas das mesmas turmas de modo
a promoverem o sucesso educativo dos alunos;
•
Formar professores que desenvolvam ações de permanente actualização e
aperfeiçoamento dos agentes da educação e do ensino;
O dito currículo considera que a formação e a melhoria da qualificação científica e
técnico-pedagógica dos professores devem constituir duas das condições essenciais para a
obtenção de níveis elevados de eficácia e de qualidade de ensino, adaptando-as às mudanças
socioeconômicas do País. Neste sentido, para o cumprimento cabal destes propósitos, assinala
que no fim da Formação dever-se-á alcançar o seguinte perfil:
1. A nível do saber:
a) Conhecer a natureza fisiológica, psicológica e sociológica dos alunos do 1º
ciclo do Ensino Secundário (12-15 anos de idade);
b) Possuir conhecimentos científicos fundamentais tanto no âmbito da(s)
especialidade(s) que vai ensinar, como nas ciências da Educação;
c) Dominar os conteúdos programáticos, bem como a melhor utilização dos
manuais escolares, as orientações metodológicas e outros instrumentos
relativos à Educação e ao Ensino nas instituições escolares;
d) Conhecer as problemáticas mais relevantes do mundo em que vivemos, cada
vez mais complexo e em rápida mudança;
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e) Conhecer as perspectivas educacionais que enformam o currículo dos alunos
do 1º ciclo do Ensino Secundário.
Na sequência segue apresentando, o ponto nº. 2, com as suas alinhas que vão de a) à g)
atinente ao saber-fazer, e termina com o nº. 3, referente ao saber ser os quais são reproduzidos
por terem alguma relevância na presente reflexão:
a) Distinguir-se por um elevado sentido de responsabilidade, de idoneidade moral,
cívica e deontológica, e saber transmitir estes valores aos educandos;
b) Assumir uma atitude de respeito pela importância da atividade docente na formação
da personalidade humana e no desenvolvimento socioeconômico da sociedade.
Quanto aos planos de estudo de formação de professores do 1º ciclo do Ensino
Secundário, adotou-se a formação de docentes, de um modo geral, para duas disciplinas com
afinidades epistemológicas entre si, à excepção das Línguas e das Educações Física e Visual e
Plástica, por acreditar, entre outras justificativas, que essa perspectiva facilita a articulação entre
áreas científicas com afinidades entre si, tendo constituído quatro (4) áreas de formação tais
como: formação geral, formação específica, formação profissional e ainda um novo grupo
denominado de formação facultativa.
Relativamente aos programas escolares de formação de professores do 1º ciclo do ensino
secundário, o currículo em reflexão, os concebe como a componente fundamental de um
currículo. Eles são desenvolvidos tendo em conta quer as condições da comunidade escolar no
sentido restrito, quer da comunidade envolvente, para preverem o sucesso escolar educativo,
apresentando a sua constituição do seguinte modo:
•
Introdução da disciplina;
•
Objetivos gerais da disciplina na Formação de Professores do 1º Ciclo do Ensino
Secundário;
242
•
Objetivos gerais da disciplina na classe;
•
Conteúdos programáticos;
•
Unidade;
•
Subunidade;
•
Sugestões metodológicas;
•
Avaliação;
•
Bibliografia.
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O currículo em questão, embora admitindo algumas flexibilidades tendo em conta os
diferentes contextos escolares, acredita que esta forma de organização é a mais adequada para
facilitar ao professor, a compreensão da complexidade do Sistema Educativo e dos conteúdos
dos diversos elementos do programa. A continuidade, são apresentados os diferentes planos de
estudos de acordo com as especialidades e áreas de formação, entretanto, para o presente estudo,
interessa apresentar o plano atinente a formação de professores de Matemática.
Segundo informações apresentadas pelo INIDE (2004), o referido plano de estudo de
formações de professores é articulado tendo como base um total de 4.712 horas para 8 semestres
letivos, isto é, da 10ª Classe à 13ª Classe. As referidas horas são distribuídas para as 4 áreas de
formação da seguinte forma: (1) formação geral com um total de 656 horas, as quais são
distribuídas para as seguintes disciplinas: Língua Portuguesa (144 horas), Línguas estrangeiras
(Francês/ Inglês) (128 horas), Filosofia (48 horas), Química (48 horas), Geometria descritiva
(48 horas), Informática (48 horas) e Educação Física (192 horas).
(2) Formação específica com um total de 384 horas, distribuídas para as seguintes
disciplinas: Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem (96 horas), Análise Sociológica
da Educação e Administração e Gestão Escolar (96 horas), Teoria da Educação e
Desenvolvimento Curricular (96 horas), Higiene e Saúde Escolar (48 horas) e Formação
Pessoal, Social e Deontológica (48 horas).
(3) Formação Profissional com um total de 2672 horas distribuídas nas seguintes
disciplinas: Física (656 horas), Matemática (656 horas), Metodologias de Ensino da Matemática
e da Física (384 horas) e Prática, Seminários e Estágio Pedagógicos (976 horas).
(4) Formação Facultativa com um total de 1000 horas. Para essa área são indicadas as
disciplinas de línguas nacionais, expressões artísticas e Fotografias, mas por não serem alvos de
uma estruturação programática, não há uma distribuição concreta, pelo que se deixa essa área
em aberto, sem uma prévia orientação que possa legitimar eventuais ações que possam ser
incorporadas no currículo em questão tendo em vista a pluralidade cultural angolana.
Da informação apresentada, é possível constatarmos que a maior cifra de horas é
distribuída para a formação que tonifica o perfil profissional do futuro professor, o que denota
um maior interesse na valorização dos aspectos conducentes a aquisição de habilidades e
técnicas de conhecimentos para o exercício profissional do futuro professor. Na sequência está
a formação geral e depois a formação específica que fornecerão elementos fundamentais para
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compor a configuração do perfil de atuação docente enquanto socializador profissional.
Entretanto, chama-nos atenção a área da formação facultativa que apesar de ter uma cifra de
horas razoável, não apresenta uma estrutura que possibilite a reflexão sobre a possível atuação
do futuro professor em contextos de diversidade social, política, econômica e cultural.
Assim, a sequência das disciplinas curriculares, selecionadas para a formação de
professores em análise, parece traduzir de forma redutível a formação de professores em uma
ação orientada somente para propiciar a aquisição de competências, habilidades e
conhecimentos técnicos, previamente estabelecidos que favoreçam a sua atuação profissional,
ou seja, a sua técnica de ensinar. Haja vista que caminhando nesse sentido, o futuro professor é
limitado à uma série de treinos para que seja um futuro agente de socialização e reprodução da
cultura dominante, que legitima os saberes que devem ser incorporados no currículo.
Vale ressaltar que estabelecer um sistema curricular conducente a formação de
professores, torna-se necessário não limitar o professor simplesmente ao treino didático, com
vista a ser um reprodutor profissional centrado nos padrões definidos pela cultura dominante. É
fundamental que se tenha em conta, que a forma de ser, a subjetividade e a visão de mundo do
futuro professor estão em íntima relação com a sua forma de fazer e de atuar.
Em linhas gerais, é necessário ter presente que os sujeitos alvo da referida formação
emergem de culturas diversas, com experiências e criatividades diferentes. Nesse sentido, o
controle rigoroso do cumprimento das normas curriculares que não levam isso em consideração,
reprime as suas formas de ser e estar, aprisionando-os em suas formas de produzir saber, cujos
processos torna-os “enclausurado” e com o andar do tempo tornam-se completamente
dependentes por perderem as suas verdadeiras essências 1 . Nesse sentido, pensa-se em um
currículo que funcione como a água, no sentido de não obrigar os mais diversos recipientes a
adotarem a sua forma, mas ela em si, adota a forma dos seus recipientes, conservando as suas
alteridades.
O que determina, fundamentalmente e essencialmente, a nossa ação com os outros? O
que sabemos? O que aprendemos? As competências que temos? Sim, sem dúvidas
tudo isso é importante. Mas o que seria de tudo isso se a nossa ação se pautasse por
princípios assentes na arrogância intelectual, na exclusão dos mais fracos, no domínio
sobre os outros, na negação da diferença, na injustiça? De que nos serve o saber e a
1
Termo empregado para dar o significado de que o futuro professor pode despir-se de sua subjetividade
fundamentada em seus padrões culturais para ser objetado por processos rigorosamente estabelecidos por leis e
princípios que regulam o sistema educativo.
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experiência, se não servirem o saber e a experiência dos outros? (VIEIRA, 2006, p.
341).
O argumento de Vieira (2006) reforça a ideia de se pensar em um currículo que dialogue
com as culturas. Nessa perspectiva, retomando a caraterização do respetivo currículo, a
continuidade, entre outros aspectos que se julgam pertinentes, apresentam-se as orientações
didáticas gerais, as quais enfatizam os fatores que influenciam a seleção, organização e
ordenação de conteúdos, como é o caso do modelo curricular adotado; paradigma educativo e
modelo pedagógico de referência; teorias psicológicas sobre o desenvolvimento cognitivo
moral; análise da estrutura conceitual lógica dos conteúdos e a análise da estrutura conceitual
psicológica dos conteúdos. A teoria construtivista de Jean Piaget é assumida como a que sustenta
o paradigma educativo e a estrutura epistemológica do modelo pedagógico refletido no currículo
em questão. Finalmente, tem-se o sistema de avaliação bem como a descrição relativa as suas
finalidades.
Terminada a breve caracterização do currículo em questão, nos dedicaremos em sua
apreciação crítica, inicialmente de forma geral, e posteriormente ater-nos-emos de forma
particular a estrutura curricular de formação de professor de Matemática do 1º ciclo, mas antes
apresenta-se a metodologia tida em consideração, cuja descrição está ao cuidado da seção que
se segue.
3. Metodologia
Esta pesquisa foi desenvolvida com base a um estudo teórico-reflexivo, pois tratou-se de
analisar e apreciar criticamente o currículo de formação de professores do 1º ciclo do ensino
secundário angolano, com um olhar atento ao de Matemática. Para a análise da literatura inerente
ao estudo, cuja abordagem sedimentou o rigor científico e a sustentabilidade teórica da referida
reflexão, assim como o levantamento dos documentos que conferem legitimidade na
implementação do respetivo currículo, como é o caso das Leis 13/01, 17/16 e 32/20, nos
servimos da pesquisa documental e bibliográfica, com enfoque qualitativo, de natureza
exploratória e descritiva. A análise dos textos selecionados foi feita de acordo com a Análise de
Conteúdo (AC) de Bardin (2016), que consiste em etapas de pré-análise, organização, análise e
interpretação dos dados.
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Para a seleção dos documentos normativos que regem o funcionamento da formação
inicial de professores no ciclo em questão alvos da presente reflexão, foram inicialmente
solicitados o currículo de formação de professores, o programa da disciplina Matemática e o
Manual do aluno, em uma das escolas de formação de professores da província de Bié/Angola.
Por outro lado, as leis que regem tais funcionamentos foram solicitadas na Direção provincial
da educação da respetiva província, os quais foram alvos de uma pré-análise por meio de leituras
flutuante com vista a serem selecionados tendo em conta os objetivos propostos no presente
estudo. Neste sentido, em atenção aos objetivos da presente pesquisa, dos documentos
solicitados, foram analisados o currículo de formação de professores do 1º Ciclo do Ensino
Secundário, a Lei 13/01, a Lei 17/16 e a Lei 32/20. Os restantes documentos foram simplesmente
objeto de consulta e sedimentações de ideias conclusivas.
4. Um olhar crítico ao Currículo de formação de professores do 1º ciclo do Ensino
secundário angolano. Necessidade de sua contextualização cultural
A implementação do currículo escolar, como um instrumento regulamentador do ensino
e aprendizagem, deve considerar os aspectos multimodais inerentes a cultura do povo,
fundamentalmente as manifestações dos princípios e valores que são transmitidos, visando a
educação do povo nesse contexto. Dito de outro modo, é necessário que se tenha em conta que
a visão social, histórica e cultura dos povos precede qualquer visão educativa escolar.
Face ao exposto, é comum sublinhar que o conceito de educação em sentido amplo
manifestou-se desde os tempos mais recuados no âmbito da matriz cultural angolana por meio
de diferentes vias e formas. Cambuta (2021, p.43), em sua tese de doutorado, apresentada e
defendida na Universidade Estadual Paulista, nos ajuda a ressaltar melhor este argumento, ao
salientar que “[...] a educação em Angola é tão antiga quanto a existência humana, ou seja, a
educação sempre existiu, embora de forma rudimentar ou não sistematizada como se verifica
nos dias de hoje.” Alinhado a este pensamento, Neto (2010) leva-nos ao entendimento de que
a educação dos povos de Angola nos períodos mais antigos era passada pela oralidade e
contribuiu na preservação de valores referentes à cultura, à língua, bem como na orientação de
diversos grupos.
As abordagens apresentadas pelos referidos autores, propiciam a compreensão da
existência de registros culturais, valores e significados próprios nas diferentes culturas
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angolanas que não devem ser anulados ou desqualificados, pelo contrário, devem ser
considerados na materialização de políticas curriculares. Importa ressaltar, neste âmbito, que
não se trata de negar ou rejeitar a prática curricular prescrita, mas que a flexibilização desejada
passe pelo reconhecimento de racionalidades atinentes a prática social, as crenças e valores,
língua ou dialetos dos povos. Condé (2004) sedimenta esse pensamento ao pontuar que os
critérios de nossa racionalidade podem estar relacionados com os padrões culturais
fundamentados nos fazeres práticos de povos específicos.
Trata-se de promover práticas pedagógicas que levem em conta não só a forma de como
os conceitos científicos são produzidos pela ciência de referência, mas também entendendo que
a formação integral dos alunos, que esteja à altura das necessidades de sua realidade, busque
enquadrar o ensino das ciências dentro de contextos socioculturais específicos, sem deixar de
fora as dimensões políticas, econômicas e sociais da sociedade. Nesta perspectiva, é necessário
que se pense além da dimensão didática das disciplinas a serem ensinadas, os conteúdos a serem
trabalhados devem ser significativos para vida do aluno e estarem vinculados aos seus contextos,
por outro lado, é necessário eliminar o caráter eurocêntrico nas bases epistemológicas da
estrutura curricular concebida em Angola, o qual no lugar de autorizar o aluno para uma
formação cidadã, marginaliza, descrimina, nega ou rejeita os seus hábitos e costumes.
Olhando para o Currículo de Formação de Professores do 1º Ciclo do Ensino Secundário,
inicialmente de forma geral, e da Matemática, de forma particular, tendo em conta a sua
estrutura, é comum a observância de uma tendência fundamentada em padrões ocidentais,
orientada a ignorar ou mesmo menosprezar a história dos alunos, línguas, dialetos e formas de
vida, por meio da perspectiva eurocêntrica do conhecimento. A soberba eurocêntrica do
conhecimento científico teve as suas primeiras notoriedades na época do século XVIII, quando
se criaram as condições para o surgimento da ciência moderna. (FOUCAULT, 2002) Para o
referido autor a essa época, conhecida como o iluminismo, foi marcada por “um imenso e
múltiplo combate dos saberes uns contra os outros” (FOUCAULT, 2002, p. 214). Na sequência
o referido autor afirma que,
desqualificação daqueles saberes considerados inúteis ou insignificantes; o segundo é
o processo de normalização operado entre saberes para ajustá-los uns aos outros a fim
de torna-los intercambiáveis; o terceiro procedimento é a classificação hierárquica,
que permite distribuir os conhecimentos em escalas do mais simples ao mais
complexo, ou do específico ao geral; e, por último, a centralização piramidal, que
possibilita o controle e a seleção dos conteúdos que passarão a constituir a ciência
(IBDEM, 2002, p. 214).
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O pensamento, que se pode considerar olhando para a descrição de Foucault (2002), é o
de que a responsabilidade inerente ao processo de organização do conhecimento, com vista a
definição daquilo que pode ser chamado científico, que pode ser verdadeiro ou falso nas
diferentes áreas do conhecimento, bem como a definição de disciplinas e a organização
curricular, estiveram sempre ao cuidado de uma perspectiva hegemônica cultural, com nítida
vantagem para a civilização ocidental. Diante deste fato, Knijnik at al. (2012, p.16), no seu livro
intitulado “Etnomatemática em movimento”, buscam fazer algumas reflexões no âmbito da
Educação Matemática, colocando as seguintes questões: “quais saberes contam como
“verdades” nas aulas de Matemática? Quais são desqualificados como saberes matemáticos no
currículo escolar? Quem tem a legitimidade para definir isso?”
As questões levantadas por estes autores conduzem-nos ao entendimento de que os
saberes curriculares tidos como universais, são para poucos, concebidos de acordo com o ponto
de vista daqueles que têm a legitimidade de fazê-lo, excluindo deste modo os saberes nativos
emergentes das culturas de povos específicos. Ginsnburg (1978, p. 42-43), em suas abordagens
opõe-se a esta perspectiva, ao assinalar que,
[...] ensinar as competências básicas seria mais eficaz se os currículos estivessem
orientados para os estilos particulares de cada cultura”. “Para as crianças africanas, as
respostas parecem óbvias: para serem eficazes, os currículos devem conseguir
responder as necessidades da cultura local.
O Currículo de Formação de Professores do 1º ciclo do Ensino Secundário angolano
estabeleceu um plano de estudo caraterizado pela aglutinação das disciplinas em quatro grupos:
formação geral (foi desenhada com objetivo de dar ao futuro professor uma visão global
científica), formação específica (assegura o fundamento científico-pedagógico para o exercício
da atividade docente), formação profissional (constam disciplinas que asseguram a formação
profissional do candidato à docência) e, por último, tem-se a formação facultativa (inclui
disciplinas como: Línguas Nacionais e Estrangeiras, Expressões Artísticas e Fotografias).
Do nosso ponto de vista, as quatro áreas que compõem o plano de estudo para a
Formação de Professores do 1º ciclo do Ensino Secundário angolano estão mais orientadas a
conduzir os futuros professores para o domínio dos objetivos de conhecimentos e de como
ensiná-los, do que para a exigência de um conhecimento largo de cultura dos povos conducentes
à um prévio reconhecimento dos contextos sociais, históricos e culturais dos alunos. Embora se
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[Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano
tenha destacado um campo aberto relativo a formação facultativa, onde se menciona as línguas
nacionais, ainda assim, tal utilidade não passa de efeitos retóricos, uma vez que não se define
uma estrutura orientadora para a preparação dos futuros professores para a pesquisa de ideias e
práticas nas suas comunidades culturais, étnicas e linguísticas, com vista à incorporação destas
nas suas práticas de ensino.
O currículo em questão não abre portas para os materiais de várias culturas, com vista a
valorizar os conhecimentos culturais de seus alunos, otimizando assim oportunidades de
aprendizagens autónomas por meio de elementos culturais introduzidos nos manuais didáticos.
Embora na definição do perfil de saída do professor do 1º ciclo do ensino secundário,
concretamente na alínea a) do ponto nº.2, referente ao nível do saber-fazer, tenha manifestado
tal intenção, ainda assim, as orientações didáticas gerais não dão contam do exposto, porque
para além de não deixar claro como isto será feito dentro da estrutura curricular, assume para a
sua estrutura epistemológica a Teoria Construtivista de Jean Piaget, conforme o descrito que se
segue: “[...] estas estruturas, para as quais o construtivismo, de J. Piaget, chamou a atenção,
desempenham uma função mediadora nas relações com o meio e são, como tal determinantes
na aquisição do conhecimento.” (INIDE, 2004, p. 29) Em outro momento, assinala o seguinte:
Segundo o construtivismo o conhecimento implica sempre um processo de
reconstrução e construção no qual o sujeito, em interação com os outros, tem o papel
de ator e autor. Essa construção é consentânea com os processos de desenvolvimento
e maturação do indivíduo, a sua marcha no sentido de uma autonomia cognitiva e ética
em colaboração com os seus pares. (INIDE, 2004, p. 29)
De ressaltar que é a teoria construtivista de Piaget que orienta a prática curricular em
Angola e, em sua obediência, a transição de uma classe para outra no ensino de base está
condicionada na idade do sujeito, tendo como justificativa a influência da maturação na
aprendizagem, o que tem gerado muita revolta por parte dos pais de várias crianças angolanas,
visto que muitas delas são obrigadas a voltar para as classes anteriores quando a sua idade é
considerada inferior com respeito a idade regulamentada, mesmo tendo sido aprovadas de
classe. Diante deste fato, apelamos o seguinte: embora o construtivismo de Jean Piaget conduz
à construção do saber, bem como ao desenvolvimento da autonomia do aluno, como uma
condição genuína para a aprendizagem, vários pesquisadores a consideram problemática, por
olhar apenas as bases epistemológicas, sem considerar o conjunto de influências implícitas do
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contexto social do aluno sobre a sua aprendizagem, conforme descreve Radford (2021, p.6465).
Esse conceito de saber como construção foi apresentado por Piaget em sua
epistemologia genética e foi amplamente adotado na Educação Matemática, onde foi
dada ênfase à dimensão pessoal da construção do saber: você e somente você pode
construir seu próprio saber. Nessa visão, o saber não é algo que alguém possa construir
e passar para o outro; o que você sabe é o resultado de sua própria experiência. Como
muitos pesquisadores observam, tal visão do saber é problemática por muitas razões.
Por exemplo, deixa pouco espaço para explicar o importante papel dos outros e da
cultura material na forma como chegamos a saber, implicando uma visão simplista da
organização, interação, intersubjetividade e dimensão ética; elimina o papel crucial
das instituições sociais e os valores e tensões que elas transmitem. E além disso deshistoriza o saber.
Por outro lado, o referido autor afirma que “as abordagens socioculturais divergem muito
das construtivistas. Convergem, porém, em sua oposição à pedagogia transmissiva e sua ênfase
na importância do envolvimento dos estudantes com ele”. (RADFORD, 2021, p.45) Neste
sentido, para uma formação cidadã de futuros professores do 1º ciclo do ensino secundário
angolano, que visa a criação didática de sujeitos reflexivos, criativos, autônomos e que se
posicionem criticamente em discursos assentes em padrões tradicionais, é necessário considerar
as suas realidades política, social, histórico e cultural. Essa perspectiva caminha paralelamente
com o enfoque histórico-cultural de Vygotsky o qual concebe o papel do professor como o de
formar diferentes personalidades que sejam ativas, independentes, criativas, sensíveis e
comprometidas com que acontece no seu contexto. Sedimentando esse ponto de vista, Radford
(2021, p. 66) afirma:
O saber se apresenta, portanto, como uma fonte de empoderamento. Nesse contexto, o
saber não existe na cabeça dos indivíduos. Não é uma entidade psicológica ou
cognitiva, mas uma entidade histórico-cultural. O saber é um arquétipo histórico de
ações coletivas. O saber existe na cultura e emerge e muda continuamente por meio da
atividade humana. De fato, por meio de sua atividade, os indivíduos acionam o saber
e o colocam em movimento, o saber se mostra e se materializa em algo perceptível,
sensível, concreto. A materialização do saber é o que chamaremos de conhecimento.
Em outras palavras o conhecimento é uma encarnação do saber.
Diante destas colocações, é comum admoestarmos aos especialistas o cuidado que se
deve ter ao definir as bases curricular de um sistema de ensino à luz de um pressuposto teórico
que o possa reger. Sacristán (2000. p.13) reforça essa chamada de atenção, ao afirmar que “é
necessário certa prudência inicial frente a qualquer colocação ingênua de índole pedagógica que
se apresente como capaz de reger a prática curricular ou, simplesmente, de racionalizá-la”. De
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realçar que a visão que norteia essa reflexão crítica é a de lembrar de bom tom, que não se pode
perder de vista a ideia de que o conhecimento é um produto da cultura e que deve se considerar
isso na ideia de currículo.
Portanto, em atenção ao anteriormente descrito, importa afirmar que, para que se tenha
um currículo que contemple o tratamento didático, metodológico orientado para a
contextualização, a diversificação cultural e a transdisciplinaridade, se torna necessário olhar
para a seguinte observação de D’Ambrosio (2001, p. 43): “[...] conhecer e assimilar a cultura do
dominador se torna positivo desde que as raízes do dominado sejam fortes. Na educação
matemática, a etnomatemática pode fortalecer essas raízes.” É nessa perspectiva, que somos
conduzidos a apontar alguns caminhos de contextualização do ensino da matemática pela via da
Etnomatemática.
5. Apontando caminhos de contextualização cultural pela via da Etnomatemática
Os caminhos de contextualização cultural do currículo de formação de professores de
Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano, passa pelo estabelecimento de uma
exigência larga de conhecimentos culturais na preparação dos futuros professores, com vista ao
reconhecimento de outros modos de pensar matemática, que são aprendidos em determinados
contextos específicos. Neste sentido, a definição de uma disciplina de consumo obrigatório na
grelha curricular, com orientação teórica e prática, que trata do ensino das culturas dos povos
angolanos, promovendo metodologias para a inclusão e diálogo de várias culturas em sala de
aulas, seria um caminho natural.
Para se conseguir tal desiderato, é necessário fazer da cultura um espaço de busca de
saberes que influenciam as diversas formas de organização da vida nas culturas, principalmente
aqueles que têm fundamento nas práticas de atividades sustentáveis dos membros pertencentes
a estas culturas. (D’AMBROSIO, 2001)
Nesta conformidade, entendemos que a Etnomatemática joga um importante papel, pois
estimulará um movimento de contra conduta diante da perspectiva epistemológica dominante
da Matemática escolar, levando o espaço escolar a assumir uma postura política, social, histórica
e cultural. Isso ajudará os futuros professores a observar as principais atividades desenvolvidas
na realidade social, cultural e natural do povo com vista a identificação de artefatos que
“escondem” conhecimentos com significado matemático (Etno); a registrar toda informação e
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técnicas ligadas a produção desses artefatos afetos a realidades desses povos (matema), bem
como extrair conhecimentos matemáticos escondidos nesses artefatos para serem utilizados nas
aulas de matemática (tica), em conformidade com a seguinte informação sistematizada por
Bernardi e Caldeira (2011, p.13), ao afirmarem que “ [..] a Etnomatemática pretende desenvolver
ações na área da Educação Matemática que permitam contextualizar os conteúdos académicos
abordados na sala de aula numa dimensão sociocultural”.
Gerdes (1994, p. 11), por sua vez, em suas abordagens, reforça a utilidade da
Etnomatemática como uma via para a contextualização cultural do ensino de Matemática, ao
pontuar o seguinte: “[...] um dos objetivos da investigação “Etnomatemática” consiste na
procura de possibilidades de enquadrar melhor o ensino da Matemática no contexto cultural dos
estudantes e professores”.
Nesta perspectiva, a Etnomatemática é vista como uma proposta
pedagógica de intervenção sociocultural com respeito ao ensino de Matemática, tal como se
observa na informação que se segue:
A etnomatemática propõe uma pedagogia viva, dinâmica, de fazer o novo em resposta
a necessidades ambientais, sociais, culturais, dando espaço para a imaginação e para a
criatividade. É por isso que na pedagogia da etnomatemática, utiliza-se muito a
observação, a literatura, a leitura de periódicos e diários, os jogos, o cinema, etc. Tudo
isso, que faz parte do cotidiano, tem importantes componentes matemáticos.
(D’AMBROSIO, 2008, p. 4)
Segundo Rodrigues, Orey e Rosa (2021, p. 6), apoiando-se nos estudos desenvolvidos
por Rosa e Orey (2007), afirmam que:
A utilização do Programa Etnomatemática como uma ação pedagógica deve ser
direcionada para o desenvolvimento de práticas escolares que são centradas no
conhecimento tacitamente adquirido pelos alunos (background) em seu próprio
contexto sociocultural. Contudo, considerando também o acesso ao conjunto de
oportunidades e possibilidades futuras que são oferecidas nesse contexto (foreground).
Isso significa que é necessário considerar os contextos: social, cultural, político,
econômico e ambiental, nos quais os alunos estão inseridos, em conjunto com as suas
aspirações futuras.
Nessa perspectiva, D’Ambrosio apresenta uma nova direção pela qual o currículo deve
orientar-se, sugerindo uma contextualização da Matemática em uma dimensão cultural, para que
os alunos saiam da escola preparados para viver em sociedade e dotados de capacidade crítica:
A alternativa que proponho é orientar o currículo matemático para a criatividade, para
a curiosidade e para crítica e questionamento permanentes, contribuindo para a
formação de um cidadão na sua plenitude e não para ser um instrumento do interesse,
da vontade e das necessidades das classes dominantes. A invenção matemática é
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acessível a todo indivíduo e a importância dessa invenção depende do contexto social,
político, econômico e ideológico. (D’AMBROSIO, 2008, p. 7)
Concordando com essa proposta apresentada, Rosa e Orey (2012, p.876) enfatizam o
seguinte:
Um currículo matemático escolar baseado na perspectiva da etnomatemática combina
os elementos-chave do conhecimento local com os da academia em uma abordagem
dialética, permitindo que os alunos gerenciem a produção do conhecimento e dos
sistemas de informações extraídas da própria realidade, e apliquem criativamente esse
conhecimento em outras situações.
Contudo, considera-se que dentro da Etnomatemática pode ser encontrada uma estrutura,
com um sistema próprio de conhecimento tácito, capaz de dar solução a determinadas situaçõesproblema inerentes ao contexto sociocultural e que pode dialogar com o conhecimento
escolar/acadêmico por meio de translações e contextualizações próprias, visando o ensino de
Matemática em uma dimensão cultural. Nesse sentido, com vista a (re)pensar o currículo em
questão, os autores deste artigo apontam alguns passos conducentes ao currículo desejado, tais
como se mencionam:
•
O modelo de professor em formação deve refletir a forma de ser e estar, as
necessidades e as expectativas culturais dos futuros professores, para que assumam
com protagonismo a ação de educar.
•
O plano de estudo deve incorporar saberes desenvolvidos pelos povos angolanos,
ancorados em suas práticas culturais em diálogo paralelo com os estabelecidos nos
espaços escolares, legitimando, desse modo os seus costumes, tradições e línguas
nativas.
•
Os processos de ensino e aprendizagem devem ser ativos, salvaguardando a
subjetividade dos alunos e professores, por meio da incorporação de histórias de
suas culturas, contos, mitos, canções, provérbios, línguas nacionais e tantas outras
formas comunitárias de educação.
•
O currículo deve ser flexível, inclusivo, aberto ao diálogo com a diferença.
•
Os conhecimentos ensinados devem emergir de saberes praticados, experenciados e
vividos pelos alunos em seus ambientes culturais.
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•
O currículo deve ser um reflexo das prioridades nacionais e de interesse dos grupos
culturais de Angola. Nesse sentido, no lugar de defender a hegemonia das disciplinas
acadêmicas, deve atender o que as culturas esperam. (D’AMBROSIO, 2001).
O papel do professor deve estar orientado a estimular um ambiente de labor conjunto
entre alunos, em uma perspectiva intercultural, sem o privilégio de umas culturas em detrimento
de outras.
6. Considerações finais
O Estado angolano consagra a educação como um direito para todos os cidadãos,
independentemente do sexo, raça, grupo étnico-cultural-linguístico, convicções políticas e
crença religiosa, logo é necessário que o processo de ensino e aprendizagem levado acabo nas
instituições angolanas reconheça os registros culturais, valores e significados próprios dos
contextos dos alunos como fatores preponderantes para uma aprendizagem autônoma e com
sentido de pertencimento. Nesse sentido, entendemos que isso implica não só pensar no
conteúdo a ser ensinado, mas também refletir acerca de quem educa quem, como tal processo
ocorre, que educação deve ser direcionada para povos de culturas diferentes e quem tem perfil
para tal desiderato. É nesta perspectiva que este estudo procurou fazer uma reflexão em torno
do currículo de formação de professores do primeiro ciclo do ensino secundário, com particular
realce ao de Matemática, visando a identificação das falhas que estão na base da sua
descontextualização cultural para indicação de caminhos que ajudam a reverter o quadro atual.
As referências teóricas que sustentaram a base desta reflexão nos ajudaram não só a
identificar as principais lacunas emolduradas no currículo em causa que fragilizam os pilares do
ensino e aprendizagem, na perspectiva da contemplação da cultura do aluno, como também nos
ajudaram a perceber que uma formação integral dos alunos passa pela contextualização do
ensino e pela promoção de uma aprendizagem que deve ser atravessada pelas práticas culturais.
A relevância desta reflexão está em apontar a Etnomatemática como uma via que ajudará
os futuros professores de matemática a pensar além da dimensão didática das disciplinas a serem
ensinadas e tornarem os conteúdos a serem trabalhados significativos para a vida do aluno e
estarem vinculados aos seus contextos. A razão da indicação da Etnomatemática como um
caminho para a contextualização cultural no tocante ao currículo analisado, parte da
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consideração do vasto mosaico étnico-cultural angolano e sua influência na educação dos
membros afetos aos mais diversos povos que conformam esse mosaico, no sentido de não só
deslegitimar as ações que desconsideram ditas diferenças, como também reivindicar a sala de
aulas de Matemática como um espaço de possibilidades e de afirmação de saberes de grupos
desprivilegiados, silenciados e subalternizados.
Nesse mote, pensamos que a proposta da Etnomatemática ajudará a (re)pensar a
responsabilidade dos futuros professores diante do currículo de Matemática do ciclo em causa,
com vista a desvelar quaisquer perspectivas de segregação, discriminação e desigualdade social
na ação de educar matematicamente. Além disso, a Etnomatemática é contra todas as
perspectivas de dominação e colonização do saber, ser e estar, pautando pelo diálogo paralelo
entre culturas, com base na alteridade e respeito mútuo. Nesse sentido, a união na diversidade é
vista como uma oportunidade para otimizar experiencias interculturais no âmbito do sistema
educativo angolano.
7.
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Autores:
Ezequias Adolfo Domingas Cassela
Mestre em Matemática para professores pela Universidade da Beira Interior, Portugal
Doutorando em Educação Matemática pela PUC-SP
Professor da Escola Superior Pedagógica do Bié, Angola
ezequiasadolfo@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7703-0097
Ana Lúcia Manrique
Bacharelado em Matemática - USP
Mestrado em Ensino de Matemática - PUC-SP
Doutorado em Educação: Psicologia da Educação - PUC-SP
Livre Docência em Educação Matemática - PUC-SP
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Grupo de Pesquisa: Professor de Matemática: formação, profissão, saberes e trabalho docente
- ForProfMat
analuciamanrique@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-7642-0381
Como citar este artículo:
CASSELA, Ezequias Adolfo Domingas; MANRIQUE, Ana Lúcia. [Re]pensando o currículo
de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano em uma
dimensão cultural sob olhar da Etnomatemática. Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro. 2, julio
de 2023 / 237 – 257. DOI: 10.37618/PARADIGMA.1011-2251.2023.p237-257.id1450
Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257
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