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[Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano em uma dimensão cultural sob olhar da Etnomatemática Ezequias Adolfo Domingas Cassela ezequiasadolfo@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-7703-0097 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) São Paulo, SP, Brasil Ana Lúcia Manrique analuciamanrique@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7642-0381 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) São Paulo, SP, Brasil Recibido: 30/05/2023 Aceptado: 28/06/2023 Resumo Este trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o currículo de formação de professores do 1º ciclo de ensino secundário angolano, com destaque ao de Matemática, buscando identificar as condições que concorrem para a superação das insuficiências registradas durante os últimos anos no sistema de educação angolano, bem como as aberturas que permitem o diálogo entre as diferentes culturas angolanas como fator determinante na otimização de oportunidades de aprendizagens em sala de aulas, com vista a obtenção de caminhos que valorizam o contexto sociocultural do aluno. Para tal, nos servimos de um estudo reflexivoteórico, pois tratou de apreciar criticamente o referido currículo e documentos conexos. Para a análise da literatura que sedimentou o rigor científico do referido estudo, nos servimos da pesquisa documental e bibliográfica, com enfoque qualitativo, de natureza exploratória e descritiva. Os resultados da reflexão revelam uma falta de inclusão cultural, o que levou os autores a apontar caminhos de contextualização pela via da Etnomatemática. Palavras chave: Currículo, Formação de professores de Matemática, contextualização cultural, Etnomatemática. [Re]pensar el currículo de formación de profesores de Matemáticas en el 1er ciclo de la educación secundaria angoleña en una dimensión cultural desde la perspectiva de la Etnomatemática Resumen Este trabajo tiene como objetivo reflexionar sobre el currículo de formación de profesores del 1er ciclo de la enseñanza secundaria en Angola, con énfasis en Matemáticas, buscando identificar las condiciones que contribuyen a la superación de las insuficiencias registradas durante los últimos años en el sistema educativo angoleño. así como las aperturas que permitan el diálogo entre las diferentes culturas angoleñas como factor determinante en la optimización de oportunidades de aprendizaje en el aula, con vistas a la obtención de caminos que valoren el contexto sociocultural del alumno. Para ello, se utilizó un estudio teórico-reflexivo, ya que buscó evaluar críticamente el plan de estudios antes mencionado y los documentos relacionados. Para el análisis de la literatura que consolidó el rigor científico del mencionado estudio, se utilizó investigación documental y bibliográfica, con enfoque cualitativo, de carácter exploratorio y Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 237 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique descriptivo. Los resultados de la reflexión revelan una falta de inclusión cultural, lo que llevó a los autores a señalar caminos de contextualización a través de la Etnomatemática. Palabras clave: Currículo, Formación de profesores de matemáticas, contexto cultural, Etnomatemáticas. [Re]thinking the training curriculum for Mathematics teachers in the 1st cycle of Angolan secondary education in a cultural dimension from the perspective of Ethnomathematics Abstract This work aims to reflect on the training curriculum for teachers of the 1st cycle of secondary education in Angola, with emphasis on Mathematics, seeking to identify the conditions that contribute to overcoming the insufficiencies registered during the last few years in the Angolan education system. , as well as the openings that allow dialogue between the different Angolan cultures as a determining factor in optimizing learning opportunities in the classroom, with a view to obtaining paths that value the socio-cultural context of the student. To this end, we used a reflective-theoretical study, as it sought to critically assess the aforementioned curriculum and related documents. For the analysis of the literature that consolidated the scientific rigor of the aforementioned study, we used documentary and bibliographical research, with a qualitative approach, of an exploratory and descriptive nature. The results of the reflection reveal a lack of cultural inclusion, which led the authors to point out paths of contextualization through Ethnomathematics. Keywords: Approach. Ethnomathematics. Introdução Curriculum, Mathematics teacher training, cultural context, A educação em Angola, país situado na África Austral, constitui um processo que visa preparar o indivíduo para as exigências da vida política, econômica e social, visando à formação harmoniosa e integral do homem, tendo sido consagrada por lei como um direito para todos os cidadãos, independentemente do sexo, raça, etnia e crença religiosa. Desde 1978 que o governo angolano começou a engajar-se afincadamente na implementação de um sistema educativo que estivesse em correspondência com as necessidades socioculturais do estado em oposição à um sistema educativo imposto pelo colonizador, que predominou durante um tempo de aproximadamente quinhentos (500) anos. O processo de organização com vista a pensar Angola na perspectiva de desenvolvimento em dimensões diferenciadas no período após Proclamação da Independência, ficou duramente afetado por uma outra guerra civil que teve o seu fim em 4 de abril de 2002. Esse fato influenciou negativamente o desenvolvimento progressivo da Educação no país, tornando-o dependente de modelos curriculares importados do exterior do país. Tal situação, foi 238 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano anulando em passos lentos as influências das manifestações emergentes da matriz cultural angolana no sistema educativo. No decorrer dos anos, segundo informações sistematizadas pelo Instituto Nacional de Investigação em Educação de Angola, o país começou a ressentir consideráveis consequências neste quesito, tais como: dificuldades na adaptação do currículo importado nas diferentes realidades sociais e culturais do país, identificadas fundamentalmente na gestão do processo formativo, conduzindo assim os formandos para um perfil de saída menos desejado; promoção de uma formação geral, abstrata, repetitiva, sem valorização dos conhecimentos de contexto, provocando a fraca qualidade de ensino. Movido pela intenção de inverter esse quadro, o governo angolano aprovou em 2001 uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo, Lei 13/01 de 31 de dezembro, que definiu um novo currículo para a formação de professores do 1º ciclo do Ensino Secundário. Neste sentido, é olhando neste currículo definido que pretendemos, por meio deste artigo, fazer uma reflexão com vista a apontar caminhos para a sua contextualização cultural, para tal, desenvolveu-se esta pesquisa a qual está encaminhada a responder as seguintes questões: (1) O currículo definido tem condição para superar as insuficiências anteriores? (2) O currículo permite estabelecer o diálogo entre as diferentes culturas angolanas com vista a otimização de oportunidades de aprendizagens em sala de aulas? (3) As teorias assumidas que sustentam a sua estrutura epistemológica e o seu modelo pedagógico dão conta da valorização do contexto sociocultural do aluno? (4) Que caminhos contribuem para a contextualização cultural do referido currículo? Portanto, apresenta-se inicialmente uma breve abordagem conceitual de currículo, seguida da metodologia, na sequência faz-se uma caracterização e apreciação crítica ao referido currículo, posteriormente apontam-se os caminhos para a sua contextualização, finalmente temse as considerações finais. 1. Partindo de ideias conceituais gerais de currículo para o sistema curricular de formação de professores em Angola A ideia de currículo abarca diversas reflexões encaminhadas no sentido de se minimizar as incertezas e ambiguidades que giram em torno de seus conceitos e perspectivas, bem como dos seus saberes e significados em diferentes contextos educativos. Nisto, vários autores têm se dedicado em promover discussões de várias ordens em sua volta. São exemplos disso: Grundy Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 239 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique (1998), Sacristán (2000), da Silva et. al (2012), Sacristán et. al. (2013), Araújo et. al (2020), Miranda et. al (2021). Neste sentido, consideramos importante desenvolver a presente reflexão com base ao referencial teórico desenvolvido pelos autores aludidos do ponto de vista conceitual. Para tal, referencia-se aqui a ideia de currículo, segundo escreve Sacristán et. al (2013, p.17), Em sua origem, o currículo significava o território demarcado e regrado do conhecimento correspondente aos conteúdos que professores e centros de educação deveriam cobrir; ou seja, o plano de estudos proposto e imposto pela escola aos professores (para que o ensinassem) e aos estudantes (para que o aprendessem). De tudo aquilo que sabemos e que, em tese, pode ser ensinado ou aprendido, o currículo a ensinar é uma seleção organizada dos conteúdos a aprender, os quais, por sua vez, regularão a prática didática que se desenvolve durante a escolaridade. A discussão conceitual do currículo vai se tornando amplamente difundida na medida em que se vão manifestando diferentes pontos de vistas e perspectivas alternativas que determinam a visão pedagógica em determinadas realidades específicas. Alinhados ao pensamento de Sacristán (2000), as várias reflexões vão surgindo porque ao definirmos o currículo estamos descrevendo a concretização das funções de uma escola e a forma particular de enfocá-las num contexto histórico e social determinado, para um nível ou modalidade de educação. É na base de pensar o currículo escolar dentro da matriz de uma identidade cultural específica que pretendemos desenvolver a presente reflexão sobre o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano, cuja caracterização abaixo se apresenta. 2. Breve caracterização do Currículo de formação de professores do 1º ciclo do Ensino secundário angolano Segundo o Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento da Educação (INIDE), o currículo de formação de professores do 1º ciclo do ensino secundário foi definido pela Lei de Bases do Sistema de Educação e Ensino de Angola, Lei 13/01 de 31 de dezembro, como um subsistema do ensino secundário geral a ser realizado nas Escolas de Formação de Professores, Instituto Nacional de Educação Física e Instituto Nacional de Formação Artística e Cultural, embora a atual lei (Lei nº 32/20 de 12 de agosto) aponta a sua realização para as instituições de 240 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano ensino superior, o seu funcionamento continua obedecendo os pressupostos anteriores, tendo uma duração de quatro (4) anos, correspondente ao intervalo da 10ª à 13ª classe. O respetivo currículo foi concebido com as seguintes finalidades: • Formar professores com perfil necessário para a materialização integral dos objetivos gerais da Educação e particularmente dos objetivos do 1º ciclo do Ensino Secundário; • Formar professores que encarem o Sistema Educativo, a Escola, a sala de aula e a comunidade envolvente, como espaços de formação harmoniosa dos alunos; • Formar professores com sólidos conhecimentos científicos, pedagógicos e profissionais e uma profunda consciência patriótica de modo a que assumam com responsabilidade a tarefa de educar as novas gerações, numa sociedade plural; • Formar professores que colaborem com os colegas das mesmas turmas de modo a promoverem o sucesso educativo dos alunos; • Formar professores que desenvolvam ações de permanente actualização e aperfeiçoamento dos agentes da educação e do ensino; O dito currículo considera que a formação e a melhoria da qualificação científica e técnico-pedagógica dos professores devem constituir duas das condições essenciais para a obtenção de níveis elevados de eficácia e de qualidade de ensino, adaptando-as às mudanças socioeconômicas do País. Neste sentido, para o cumprimento cabal destes propósitos, assinala que no fim da Formação dever-se-á alcançar o seguinte perfil: 1. A nível do saber: a) Conhecer a natureza fisiológica, psicológica e sociológica dos alunos do 1º ciclo do Ensino Secundário (12-15 anos de idade); b) Possuir conhecimentos científicos fundamentais tanto no âmbito da(s) especialidade(s) que vai ensinar, como nas ciências da Educação; c) Dominar os conteúdos programáticos, bem como a melhor utilização dos manuais escolares, as orientações metodológicas e outros instrumentos relativos à Educação e ao Ensino nas instituições escolares; d) Conhecer as problemáticas mais relevantes do mundo em que vivemos, cada vez mais complexo e em rápida mudança; Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 241 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique e) Conhecer as perspectivas educacionais que enformam o currículo dos alunos do 1º ciclo do Ensino Secundário. Na sequência segue apresentando, o ponto nº. 2, com as suas alinhas que vão de a) à g) atinente ao saber-fazer, e termina com o nº. 3, referente ao saber ser os quais são reproduzidos por terem alguma relevância na presente reflexão: a) Distinguir-se por um elevado sentido de responsabilidade, de idoneidade moral, cívica e deontológica, e saber transmitir estes valores aos educandos; b) Assumir uma atitude de respeito pela importância da atividade docente na formação da personalidade humana e no desenvolvimento socioeconômico da sociedade. Quanto aos planos de estudo de formação de professores do 1º ciclo do Ensino Secundário, adotou-se a formação de docentes, de um modo geral, para duas disciplinas com afinidades epistemológicas entre si, à excepção das Línguas e das Educações Física e Visual e Plástica, por acreditar, entre outras justificativas, que essa perspectiva facilita a articulação entre áreas científicas com afinidades entre si, tendo constituído quatro (4) áreas de formação tais como: formação geral, formação específica, formação profissional e ainda um novo grupo denominado de formação facultativa. Relativamente aos programas escolares de formação de professores do 1º ciclo do ensino secundário, o currículo em reflexão, os concebe como a componente fundamental de um currículo. Eles são desenvolvidos tendo em conta quer as condições da comunidade escolar no sentido restrito, quer da comunidade envolvente, para preverem o sucesso escolar educativo, apresentando a sua constituição do seguinte modo: • Introdução da disciplina; • Objetivos gerais da disciplina na Formação de Professores do 1º Ciclo do Ensino Secundário; 242 • Objetivos gerais da disciplina na classe; • Conteúdos programáticos; • Unidade; • Subunidade; • Sugestões metodológicas; • Avaliação; • Bibliografia. Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano O currículo em questão, embora admitindo algumas flexibilidades tendo em conta os diferentes contextos escolares, acredita que esta forma de organização é a mais adequada para facilitar ao professor, a compreensão da complexidade do Sistema Educativo e dos conteúdos dos diversos elementos do programa. A continuidade, são apresentados os diferentes planos de estudos de acordo com as especialidades e áreas de formação, entretanto, para o presente estudo, interessa apresentar o plano atinente a formação de professores de Matemática. Segundo informações apresentadas pelo INIDE (2004), o referido plano de estudo de formações de professores é articulado tendo como base um total de 4.712 horas para 8 semestres letivos, isto é, da 10ª Classe à 13ª Classe. As referidas horas são distribuídas para as 4 áreas de formação da seguinte forma: (1) formação geral com um total de 656 horas, as quais são distribuídas para as seguintes disciplinas: Língua Portuguesa (144 horas), Línguas estrangeiras (Francês/ Inglês) (128 horas), Filosofia (48 horas), Química (48 horas), Geometria descritiva (48 horas), Informática (48 horas) e Educação Física (192 horas). (2) Formação específica com um total de 384 horas, distribuídas para as seguintes disciplinas: Psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem (96 horas), Análise Sociológica da Educação e Administração e Gestão Escolar (96 horas), Teoria da Educação e Desenvolvimento Curricular (96 horas), Higiene e Saúde Escolar (48 horas) e Formação Pessoal, Social e Deontológica (48 horas). (3) Formação Profissional com um total de 2672 horas distribuídas nas seguintes disciplinas: Física (656 horas), Matemática (656 horas), Metodologias de Ensino da Matemática e da Física (384 horas) e Prática, Seminários e Estágio Pedagógicos (976 horas). (4) Formação Facultativa com um total de 1000 horas. Para essa área são indicadas as disciplinas de línguas nacionais, expressões artísticas e Fotografias, mas por não serem alvos de uma estruturação programática, não há uma distribuição concreta, pelo que se deixa essa área em aberto, sem uma prévia orientação que possa legitimar eventuais ações que possam ser incorporadas no currículo em questão tendo em vista a pluralidade cultural angolana. Da informação apresentada, é possível constatarmos que a maior cifra de horas é distribuída para a formação que tonifica o perfil profissional do futuro professor, o que denota um maior interesse na valorização dos aspectos conducentes a aquisição de habilidades e técnicas de conhecimentos para o exercício profissional do futuro professor. Na sequência está a formação geral e depois a formação específica que fornecerão elementos fundamentais para Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 243 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique compor a configuração do perfil de atuação docente enquanto socializador profissional. Entretanto, chama-nos atenção a área da formação facultativa que apesar de ter uma cifra de horas razoável, não apresenta uma estrutura que possibilite a reflexão sobre a possível atuação do futuro professor em contextos de diversidade social, política, econômica e cultural. Assim, a sequência das disciplinas curriculares, selecionadas para a formação de professores em análise, parece traduzir de forma redutível a formação de professores em uma ação orientada somente para propiciar a aquisição de competências, habilidades e conhecimentos técnicos, previamente estabelecidos que favoreçam a sua atuação profissional, ou seja, a sua técnica de ensinar. Haja vista que caminhando nesse sentido, o futuro professor é limitado à uma série de treinos para que seja um futuro agente de socialização e reprodução da cultura dominante, que legitima os saberes que devem ser incorporados no currículo. Vale ressaltar que estabelecer um sistema curricular conducente a formação de professores, torna-se necessário não limitar o professor simplesmente ao treino didático, com vista a ser um reprodutor profissional centrado nos padrões definidos pela cultura dominante. É fundamental que se tenha em conta, que a forma de ser, a subjetividade e a visão de mundo do futuro professor estão em íntima relação com a sua forma de fazer e de atuar. Em linhas gerais, é necessário ter presente que os sujeitos alvo da referida formação emergem de culturas diversas, com experiências e criatividades diferentes. Nesse sentido, o controle rigoroso do cumprimento das normas curriculares que não levam isso em consideração, reprime as suas formas de ser e estar, aprisionando-os em suas formas de produzir saber, cujos processos torna-os “enclausurado” e com o andar do tempo tornam-se completamente dependentes por perderem as suas verdadeiras essências 1 . Nesse sentido, pensa-se em um currículo que funcione como a água, no sentido de não obrigar os mais diversos recipientes a adotarem a sua forma, mas ela em si, adota a forma dos seus recipientes, conservando as suas alteridades. O que determina, fundamentalmente e essencialmente, a nossa ação com os outros? O que sabemos? O que aprendemos? As competências que temos? Sim, sem dúvidas tudo isso é importante. Mas o que seria de tudo isso se a nossa ação se pautasse por princípios assentes na arrogância intelectual, na exclusão dos mais fracos, no domínio sobre os outros, na negação da diferença, na injustiça? De que nos serve o saber e a 1 Termo empregado para dar o significado de que o futuro professor pode despir-se de sua subjetividade fundamentada em seus padrões culturais para ser objetado por processos rigorosamente estabelecidos por leis e princípios que regulam o sistema educativo. 244 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano experiência, se não servirem o saber e a experiência dos outros? (VIEIRA, 2006, p. 341). O argumento de Vieira (2006) reforça a ideia de se pensar em um currículo que dialogue com as culturas. Nessa perspectiva, retomando a caraterização do respetivo currículo, a continuidade, entre outros aspectos que se julgam pertinentes, apresentam-se as orientações didáticas gerais, as quais enfatizam os fatores que influenciam a seleção, organização e ordenação de conteúdos, como é o caso do modelo curricular adotado; paradigma educativo e modelo pedagógico de referência; teorias psicológicas sobre o desenvolvimento cognitivo moral; análise da estrutura conceitual lógica dos conteúdos e a análise da estrutura conceitual psicológica dos conteúdos. A teoria construtivista de Jean Piaget é assumida como a que sustenta o paradigma educativo e a estrutura epistemológica do modelo pedagógico refletido no currículo em questão. Finalmente, tem-se o sistema de avaliação bem como a descrição relativa as suas finalidades. Terminada a breve caracterização do currículo em questão, nos dedicaremos em sua apreciação crítica, inicialmente de forma geral, e posteriormente ater-nos-emos de forma particular a estrutura curricular de formação de professor de Matemática do 1º ciclo, mas antes apresenta-se a metodologia tida em consideração, cuja descrição está ao cuidado da seção que se segue. 3. Metodologia Esta pesquisa foi desenvolvida com base a um estudo teórico-reflexivo, pois tratou-se de analisar e apreciar criticamente o currículo de formação de professores do 1º ciclo do ensino secundário angolano, com um olhar atento ao de Matemática. Para a análise da literatura inerente ao estudo, cuja abordagem sedimentou o rigor científico e a sustentabilidade teórica da referida reflexão, assim como o levantamento dos documentos que conferem legitimidade na implementação do respetivo currículo, como é o caso das Leis 13/01, 17/16 e 32/20, nos servimos da pesquisa documental e bibliográfica, com enfoque qualitativo, de natureza exploratória e descritiva. A análise dos textos selecionados foi feita de acordo com a Análise de Conteúdo (AC) de Bardin (2016), que consiste em etapas de pré-análise, organização, análise e interpretação dos dados. Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 245 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique Para a seleção dos documentos normativos que regem o funcionamento da formação inicial de professores no ciclo em questão alvos da presente reflexão, foram inicialmente solicitados o currículo de formação de professores, o programa da disciplina Matemática e o Manual do aluno, em uma das escolas de formação de professores da província de Bié/Angola. Por outro lado, as leis que regem tais funcionamentos foram solicitadas na Direção provincial da educação da respetiva província, os quais foram alvos de uma pré-análise por meio de leituras flutuante com vista a serem selecionados tendo em conta os objetivos propostos no presente estudo. Neste sentido, em atenção aos objetivos da presente pesquisa, dos documentos solicitados, foram analisados o currículo de formação de professores do 1º Ciclo do Ensino Secundário, a Lei 13/01, a Lei 17/16 e a Lei 32/20. Os restantes documentos foram simplesmente objeto de consulta e sedimentações de ideias conclusivas. 4. Um olhar crítico ao Currículo de formação de professores do 1º ciclo do Ensino secundário angolano. Necessidade de sua contextualização cultural A implementação do currículo escolar, como um instrumento regulamentador do ensino e aprendizagem, deve considerar os aspectos multimodais inerentes a cultura do povo, fundamentalmente as manifestações dos princípios e valores que são transmitidos, visando a educação do povo nesse contexto. Dito de outro modo, é necessário que se tenha em conta que a visão social, histórica e cultura dos povos precede qualquer visão educativa escolar. Face ao exposto, é comum sublinhar que o conceito de educação em sentido amplo manifestou-se desde os tempos mais recuados no âmbito da matriz cultural angolana por meio de diferentes vias e formas. Cambuta (2021, p.43), em sua tese de doutorado, apresentada e defendida na Universidade Estadual Paulista, nos ajuda a ressaltar melhor este argumento, ao salientar que “[...] a educação em Angola é tão antiga quanto a existência humana, ou seja, a educação sempre existiu, embora de forma rudimentar ou não sistematizada como se verifica nos dias de hoje.” Alinhado a este pensamento, Neto (2010) leva-nos ao entendimento de que a educação dos povos de Angola nos períodos mais antigos era passada pela oralidade e contribuiu na preservação de valores referentes à cultura, à língua, bem como na orientação de diversos grupos. As abordagens apresentadas pelos referidos autores, propiciam a compreensão da existência de registros culturais, valores e significados próprios nas diferentes culturas 246 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano angolanas que não devem ser anulados ou desqualificados, pelo contrário, devem ser considerados na materialização de políticas curriculares. Importa ressaltar, neste âmbito, que não se trata de negar ou rejeitar a prática curricular prescrita, mas que a flexibilização desejada passe pelo reconhecimento de racionalidades atinentes a prática social, as crenças e valores, língua ou dialetos dos povos. Condé (2004) sedimenta esse pensamento ao pontuar que os critérios de nossa racionalidade podem estar relacionados com os padrões culturais fundamentados nos fazeres práticos de povos específicos. Trata-se de promover práticas pedagógicas que levem em conta não só a forma de como os conceitos científicos são produzidos pela ciência de referência, mas também entendendo que a formação integral dos alunos, que esteja à altura das necessidades de sua realidade, busque enquadrar o ensino das ciências dentro de contextos socioculturais específicos, sem deixar de fora as dimensões políticas, econômicas e sociais da sociedade. Nesta perspectiva, é necessário que se pense além da dimensão didática das disciplinas a serem ensinadas, os conteúdos a serem trabalhados devem ser significativos para vida do aluno e estarem vinculados aos seus contextos, por outro lado, é necessário eliminar o caráter eurocêntrico nas bases epistemológicas da estrutura curricular concebida em Angola, o qual no lugar de autorizar o aluno para uma formação cidadã, marginaliza, descrimina, nega ou rejeita os seus hábitos e costumes. Olhando para o Currículo de Formação de Professores do 1º Ciclo do Ensino Secundário, inicialmente de forma geral, e da Matemática, de forma particular, tendo em conta a sua estrutura, é comum a observância de uma tendência fundamentada em padrões ocidentais, orientada a ignorar ou mesmo menosprezar a história dos alunos, línguas, dialetos e formas de vida, por meio da perspectiva eurocêntrica do conhecimento. A soberba eurocêntrica do conhecimento científico teve as suas primeiras notoriedades na época do século XVIII, quando se criaram as condições para o surgimento da ciência moderna. (FOUCAULT, 2002) Para o referido autor a essa época, conhecida como o iluminismo, foi marcada por “um imenso e múltiplo combate dos saberes uns contra os outros” (FOUCAULT, 2002, p. 214). Na sequência o referido autor afirma que, desqualificação daqueles saberes considerados inúteis ou insignificantes; o segundo é o processo de normalização operado entre saberes para ajustá-los uns aos outros a fim de torna-los intercambiáveis; o terceiro procedimento é a classificação hierárquica, que permite distribuir os conhecimentos em escalas do mais simples ao mais complexo, ou do específico ao geral; e, por último, a centralização piramidal, que possibilita o controle e a seleção dos conteúdos que passarão a constituir a ciência (IBDEM, 2002, p. 214). Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 247 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique O pensamento, que se pode considerar olhando para a descrição de Foucault (2002), é o de que a responsabilidade inerente ao processo de organização do conhecimento, com vista a definição daquilo que pode ser chamado científico, que pode ser verdadeiro ou falso nas diferentes áreas do conhecimento, bem como a definição de disciplinas e a organização curricular, estiveram sempre ao cuidado de uma perspectiva hegemônica cultural, com nítida vantagem para a civilização ocidental. Diante deste fato, Knijnik at al. (2012, p.16), no seu livro intitulado “Etnomatemática em movimento”, buscam fazer algumas reflexões no âmbito da Educação Matemática, colocando as seguintes questões: “quais saberes contam como “verdades” nas aulas de Matemática? Quais são desqualificados como saberes matemáticos no currículo escolar? Quem tem a legitimidade para definir isso?” As questões levantadas por estes autores conduzem-nos ao entendimento de que os saberes curriculares tidos como universais, são para poucos, concebidos de acordo com o ponto de vista daqueles que têm a legitimidade de fazê-lo, excluindo deste modo os saberes nativos emergentes das culturas de povos específicos. Ginsnburg (1978, p. 42-43), em suas abordagens opõe-se a esta perspectiva, ao assinalar que, [...] ensinar as competências básicas seria mais eficaz se os currículos estivessem orientados para os estilos particulares de cada cultura”. “Para as crianças africanas, as respostas parecem óbvias: para serem eficazes, os currículos devem conseguir responder as necessidades da cultura local. O Currículo de Formação de Professores do 1º ciclo do Ensino Secundário angolano estabeleceu um plano de estudo caraterizado pela aglutinação das disciplinas em quatro grupos: formação geral (foi desenhada com objetivo de dar ao futuro professor uma visão global científica), formação específica (assegura o fundamento científico-pedagógico para o exercício da atividade docente), formação profissional (constam disciplinas que asseguram a formação profissional do candidato à docência) e, por último, tem-se a formação facultativa (inclui disciplinas como: Línguas Nacionais e Estrangeiras, Expressões Artísticas e Fotografias). Do nosso ponto de vista, as quatro áreas que compõem o plano de estudo para a Formação de Professores do 1º ciclo do Ensino Secundário angolano estão mais orientadas a conduzir os futuros professores para o domínio dos objetivos de conhecimentos e de como ensiná-los, do que para a exigência de um conhecimento largo de cultura dos povos conducentes à um prévio reconhecimento dos contextos sociais, históricos e culturais dos alunos. Embora se 248 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano tenha destacado um campo aberto relativo a formação facultativa, onde se menciona as línguas nacionais, ainda assim, tal utilidade não passa de efeitos retóricos, uma vez que não se define uma estrutura orientadora para a preparação dos futuros professores para a pesquisa de ideias e práticas nas suas comunidades culturais, étnicas e linguísticas, com vista à incorporação destas nas suas práticas de ensino. O currículo em questão não abre portas para os materiais de várias culturas, com vista a valorizar os conhecimentos culturais de seus alunos, otimizando assim oportunidades de aprendizagens autónomas por meio de elementos culturais introduzidos nos manuais didáticos. Embora na definição do perfil de saída do professor do 1º ciclo do ensino secundário, concretamente na alínea a) do ponto nº.2, referente ao nível do saber-fazer, tenha manifestado tal intenção, ainda assim, as orientações didáticas gerais não dão contam do exposto, porque para além de não deixar claro como isto será feito dentro da estrutura curricular, assume para a sua estrutura epistemológica a Teoria Construtivista de Jean Piaget, conforme o descrito que se segue: “[...] estas estruturas, para as quais o construtivismo, de J. Piaget, chamou a atenção, desempenham uma função mediadora nas relações com o meio e são, como tal determinantes na aquisição do conhecimento.” (INIDE, 2004, p. 29) Em outro momento, assinala o seguinte: Segundo o construtivismo o conhecimento implica sempre um processo de reconstrução e construção no qual o sujeito, em interação com os outros, tem o papel de ator e autor. Essa construção é consentânea com os processos de desenvolvimento e maturação do indivíduo, a sua marcha no sentido de uma autonomia cognitiva e ética em colaboração com os seus pares. (INIDE, 2004, p. 29) De ressaltar que é a teoria construtivista de Piaget que orienta a prática curricular em Angola e, em sua obediência, a transição de uma classe para outra no ensino de base está condicionada na idade do sujeito, tendo como justificativa a influência da maturação na aprendizagem, o que tem gerado muita revolta por parte dos pais de várias crianças angolanas, visto que muitas delas são obrigadas a voltar para as classes anteriores quando a sua idade é considerada inferior com respeito a idade regulamentada, mesmo tendo sido aprovadas de classe. Diante deste fato, apelamos o seguinte: embora o construtivismo de Jean Piaget conduz à construção do saber, bem como ao desenvolvimento da autonomia do aluno, como uma condição genuína para a aprendizagem, vários pesquisadores a consideram problemática, por olhar apenas as bases epistemológicas, sem considerar o conjunto de influências implícitas do Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 249 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique contexto social do aluno sobre a sua aprendizagem, conforme descreve Radford (2021, p.6465). Esse conceito de saber como construção foi apresentado por Piaget em sua epistemologia genética e foi amplamente adotado na Educação Matemática, onde foi dada ênfase à dimensão pessoal da construção do saber: você e somente você pode construir seu próprio saber. Nessa visão, o saber não é algo que alguém possa construir e passar para o outro; o que você sabe é o resultado de sua própria experiência. Como muitos pesquisadores observam, tal visão do saber é problemática por muitas razões. Por exemplo, deixa pouco espaço para explicar o importante papel dos outros e da cultura material na forma como chegamos a saber, implicando uma visão simplista da organização, interação, intersubjetividade e dimensão ética; elimina o papel crucial das instituições sociais e os valores e tensões que elas transmitem. E além disso deshistoriza o saber. Por outro lado, o referido autor afirma que “as abordagens socioculturais divergem muito das construtivistas. Convergem, porém, em sua oposição à pedagogia transmissiva e sua ênfase na importância do envolvimento dos estudantes com ele”. (RADFORD, 2021, p.45) Neste sentido, para uma formação cidadã de futuros professores do 1º ciclo do ensino secundário angolano, que visa a criação didática de sujeitos reflexivos, criativos, autônomos e que se posicionem criticamente em discursos assentes em padrões tradicionais, é necessário considerar as suas realidades política, social, histórico e cultural. Essa perspectiva caminha paralelamente com o enfoque histórico-cultural de Vygotsky o qual concebe o papel do professor como o de formar diferentes personalidades que sejam ativas, independentes, criativas, sensíveis e comprometidas com que acontece no seu contexto. Sedimentando esse ponto de vista, Radford (2021, p. 66) afirma: O saber se apresenta, portanto, como uma fonte de empoderamento. Nesse contexto, o saber não existe na cabeça dos indivíduos. Não é uma entidade psicológica ou cognitiva, mas uma entidade histórico-cultural. O saber é um arquétipo histórico de ações coletivas. O saber existe na cultura e emerge e muda continuamente por meio da atividade humana. De fato, por meio de sua atividade, os indivíduos acionam o saber e o colocam em movimento, o saber se mostra e se materializa em algo perceptível, sensível, concreto. A materialização do saber é o que chamaremos de conhecimento. Em outras palavras o conhecimento é uma encarnação do saber. Diante destas colocações, é comum admoestarmos aos especialistas o cuidado que se deve ter ao definir as bases curricular de um sistema de ensino à luz de um pressuposto teórico que o possa reger. Sacristán (2000. p.13) reforça essa chamada de atenção, ao afirmar que “é necessário certa prudência inicial frente a qualquer colocação ingênua de índole pedagógica que se apresente como capaz de reger a prática curricular ou, simplesmente, de racionalizá-la”. De 250 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano realçar que a visão que norteia essa reflexão crítica é a de lembrar de bom tom, que não se pode perder de vista a ideia de que o conhecimento é um produto da cultura e que deve se considerar isso na ideia de currículo. Portanto, em atenção ao anteriormente descrito, importa afirmar que, para que se tenha um currículo que contemple o tratamento didático, metodológico orientado para a contextualização, a diversificação cultural e a transdisciplinaridade, se torna necessário olhar para a seguinte observação de D’Ambrosio (2001, p. 43): “[...] conhecer e assimilar a cultura do dominador se torna positivo desde que as raízes do dominado sejam fortes. Na educação matemática, a etnomatemática pode fortalecer essas raízes.” É nessa perspectiva, que somos conduzidos a apontar alguns caminhos de contextualização do ensino da matemática pela via da Etnomatemática. 5. Apontando caminhos de contextualização cultural pela via da Etnomatemática Os caminhos de contextualização cultural do currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano, passa pelo estabelecimento de uma exigência larga de conhecimentos culturais na preparação dos futuros professores, com vista ao reconhecimento de outros modos de pensar matemática, que são aprendidos em determinados contextos específicos. Neste sentido, a definição de uma disciplina de consumo obrigatório na grelha curricular, com orientação teórica e prática, que trata do ensino das culturas dos povos angolanos, promovendo metodologias para a inclusão e diálogo de várias culturas em sala de aulas, seria um caminho natural. Para se conseguir tal desiderato, é necessário fazer da cultura um espaço de busca de saberes que influenciam as diversas formas de organização da vida nas culturas, principalmente aqueles que têm fundamento nas práticas de atividades sustentáveis dos membros pertencentes a estas culturas. (D’AMBROSIO, 2001) Nesta conformidade, entendemos que a Etnomatemática joga um importante papel, pois estimulará um movimento de contra conduta diante da perspectiva epistemológica dominante da Matemática escolar, levando o espaço escolar a assumir uma postura política, social, histórica e cultural. Isso ajudará os futuros professores a observar as principais atividades desenvolvidas na realidade social, cultural e natural do povo com vista a identificação de artefatos que “escondem” conhecimentos com significado matemático (Etno); a registrar toda informação e Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 251 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique técnicas ligadas a produção desses artefatos afetos a realidades desses povos (matema), bem como extrair conhecimentos matemáticos escondidos nesses artefatos para serem utilizados nas aulas de matemática (tica), em conformidade com a seguinte informação sistematizada por Bernardi e Caldeira (2011, p.13), ao afirmarem que “ [..] a Etnomatemática pretende desenvolver ações na área da Educação Matemática que permitam contextualizar os conteúdos académicos abordados na sala de aula numa dimensão sociocultural”. Gerdes (1994, p. 11), por sua vez, em suas abordagens, reforça a utilidade da Etnomatemática como uma via para a contextualização cultural do ensino de Matemática, ao pontuar o seguinte: “[...] um dos objetivos da investigação “Etnomatemática” consiste na procura de possibilidades de enquadrar melhor o ensino da Matemática no contexto cultural dos estudantes e professores”. Nesta perspectiva, a Etnomatemática é vista como uma proposta pedagógica de intervenção sociocultural com respeito ao ensino de Matemática, tal como se observa na informação que se segue: A etnomatemática propõe uma pedagogia viva, dinâmica, de fazer o novo em resposta a necessidades ambientais, sociais, culturais, dando espaço para a imaginação e para a criatividade. É por isso que na pedagogia da etnomatemática, utiliza-se muito a observação, a literatura, a leitura de periódicos e diários, os jogos, o cinema, etc. Tudo isso, que faz parte do cotidiano, tem importantes componentes matemáticos. (D’AMBROSIO, 2008, p. 4) Segundo Rodrigues, Orey e Rosa (2021, p. 6), apoiando-se nos estudos desenvolvidos por Rosa e Orey (2007), afirmam que: A utilização do Programa Etnomatemática como uma ação pedagógica deve ser direcionada para o desenvolvimento de práticas escolares que são centradas no conhecimento tacitamente adquirido pelos alunos (background) em seu próprio contexto sociocultural. Contudo, considerando também o acesso ao conjunto de oportunidades e possibilidades futuras que são oferecidas nesse contexto (foreground). Isso significa que é necessário considerar os contextos: social, cultural, político, econômico e ambiental, nos quais os alunos estão inseridos, em conjunto com as suas aspirações futuras. Nessa perspectiva, D’Ambrosio apresenta uma nova direção pela qual o currículo deve orientar-se, sugerindo uma contextualização da Matemática em uma dimensão cultural, para que os alunos saiam da escola preparados para viver em sociedade e dotados de capacidade crítica: A alternativa que proponho é orientar o currículo matemático para a criatividade, para a curiosidade e para crítica e questionamento permanentes, contribuindo para a formação de um cidadão na sua plenitude e não para ser um instrumento do interesse, da vontade e das necessidades das classes dominantes. A invenção matemática é 252 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano acessível a todo indivíduo e a importância dessa invenção depende do contexto social, político, econômico e ideológico. (D’AMBROSIO, 2008, p. 7) Concordando com essa proposta apresentada, Rosa e Orey (2012, p.876) enfatizam o seguinte: Um currículo matemático escolar baseado na perspectiva da etnomatemática combina os elementos-chave do conhecimento local com os da academia em uma abordagem dialética, permitindo que os alunos gerenciem a produção do conhecimento e dos sistemas de informações extraídas da própria realidade, e apliquem criativamente esse conhecimento em outras situações. Contudo, considera-se que dentro da Etnomatemática pode ser encontrada uma estrutura, com um sistema próprio de conhecimento tácito, capaz de dar solução a determinadas situaçõesproblema inerentes ao contexto sociocultural e que pode dialogar com o conhecimento escolar/acadêmico por meio de translações e contextualizações próprias, visando o ensino de Matemática em uma dimensão cultural. Nesse sentido, com vista a (re)pensar o currículo em questão, os autores deste artigo apontam alguns passos conducentes ao currículo desejado, tais como se mencionam: • O modelo de professor em formação deve refletir a forma de ser e estar, as necessidades e as expectativas culturais dos futuros professores, para que assumam com protagonismo a ação de educar. • O plano de estudo deve incorporar saberes desenvolvidos pelos povos angolanos, ancorados em suas práticas culturais em diálogo paralelo com os estabelecidos nos espaços escolares, legitimando, desse modo os seus costumes, tradições e línguas nativas. • Os processos de ensino e aprendizagem devem ser ativos, salvaguardando a subjetividade dos alunos e professores, por meio da incorporação de histórias de suas culturas, contos, mitos, canções, provérbios, línguas nacionais e tantas outras formas comunitárias de educação. • O currículo deve ser flexível, inclusivo, aberto ao diálogo com a diferença. • Os conhecimentos ensinados devem emergir de saberes praticados, experenciados e vividos pelos alunos em seus ambientes culturais. Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 253 Ezequias Adolfo Domingas Cassela; Ana Lúcia Manrique • O currículo deve ser um reflexo das prioridades nacionais e de interesse dos grupos culturais de Angola. Nesse sentido, no lugar de defender a hegemonia das disciplinas acadêmicas, deve atender o que as culturas esperam. (D’AMBROSIO, 2001). O papel do professor deve estar orientado a estimular um ambiente de labor conjunto entre alunos, em uma perspectiva intercultural, sem o privilégio de umas culturas em detrimento de outras. 6. Considerações finais O Estado angolano consagra a educação como um direito para todos os cidadãos, independentemente do sexo, raça, grupo étnico-cultural-linguístico, convicções políticas e crença religiosa, logo é necessário que o processo de ensino e aprendizagem levado acabo nas instituições angolanas reconheça os registros culturais, valores e significados próprios dos contextos dos alunos como fatores preponderantes para uma aprendizagem autônoma e com sentido de pertencimento. Nesse sentido, entendemos que isso implica não só pensar no conteúdo a ser ensinado, mas também refletir acerca de quem educa quem, como tal processo ocorre, que educação deve ser direcionada para povos de culturas diferentes e quem tem perfil para tal desiderato. É nesta perspectiva que este estudo procurou fazer uma reflexão em torno do currículo de formação de professores do primeiro ciclo do ensino secundário, com particular realce ao de Matemática, visando a identificação das falhas que estão na base da sua descontextualização cultural para indicação de caminhos que ajudam a reverter o quadro atual. As referências teóricas que sustentaram a base desta reflexão nos ajudaram não só a identificar as principais lacunas emolduradas no currículo em causa que fragilizam os pilares do ensino e aprendizagem, na perspectiva da contemplação da cultura do aluno, como também nos ajudaram a perceber que uma formação integral dos alunos passa pela contextualização do ensino e pela promoção de uma aprendizagem que deve ser atravessada pelas práticas culturais. A relevância desta reflexão está em apontar a Etnomatemática como uma via que ajudará os futuros professores de matemática a pensar além da dimensão didática das disciplinas a serem ensinadas e tornarem os conteúdos a serem trabalhados significativos para a vida do aluno e estarem vinculados aos seus contextos. A razão da indicação da Etnomatemática como um caminho para a contextualização cultural no tocante ao currículo analisado, parte da 254 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano consideração do vasto mosaico étnico-cultural angolano e sua influência na educação dos membros afetos aos mais diversos povos que conformam esse mosaico, no sentido de não só deslegitimar as ações que desconsideram ditas diferenças, como também reivindicar a sala de aulas de Matemática como um espaço de possibilidades e de afirmação de saberes de grupos desprivilegiados, silenciados e subalternizados. Nesse mote, pensamos que a proposta da Etnomatemática ajudará a (re)pensar a responsabilidade dos futuros professores diante do currículo de Matemática do ciclo em causa, com vista a desvelar quaisquer perspectivas de segregação, discriminação e desigualdade social na ação de educar matematicamente. Além disso, a Etnomatemática é contra todas as perspectivas de dominação e colonização do saber, ser e estar, pautando pelo diálogo paralelo entre culturas, com base na alteridade e respeito mútuo. Nesse sentido, a união na diversidade é vista como uma oportunidade para otimizar experiencias interculturais no âmbito do sistema educativo angolano. 7. Referências ARAÚJO, O. H. A.; MARTINS, E. S. Estágio curricular supervisionado como práxis: algumas perguntas e possíveis respostas. Reflexão e Ação, 28 (1), 191-203, 2020. ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA DE ANGOLA. Lei nº. 13/01 de 31 de dezembro de 2001. Lei de Base do Sistema de Ensino de Angola nº 17/16. 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Autores: Ezequias Adolfo Domingas Cassela Mestre em Matemática para professores pela Universidade da Beira Interior, Portugal Doutorando em Educação Matemática pela PUC-SP Professor da Escola Superior Pedagógica do Bié, Angola ezequiasadolfo@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-7703-0097 Ana Lúcia Manrique Bacharelado em Matemática - USP Mestrado em Ensino de Matemática - PUC-SP Doutorado em Educação: Psicologia da Educação - PUC-SP Livre Docência em Educação Matemática - PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Grupo de Pesquisa: Professor de Matemática: formação, profissão, saberes e trabalho docente - ForProfMat analuciamanrique@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-7642-0381 Como citar este artículo: CASSELA, Ezequias Adolfo Domingas; MANRIQUE, Ana Lúcia. [Re]pensando o currículo de formação de professores de Matemática do 1º ciclo do ensino secundário angolano em uma dimensão cultural sob olhar da Etnomatemática. Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro. 2, julio de 2023 / 237 – 257. DOI: 10.37618/PARADIGMA.1011-2251.2023.p237-257.id1450 Revista Paradigma, Vol. XLIV, Nro 2; Julio de 2023 / 237 – 257 257