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2023 - Semiótica do ensino digital

2023, Clotilde PEREZ 2023 - Comunicação na Agenda do Século XXI

Mais recentemente, muitos meios de comunicação modernos, do serviço postal ao rádio, ampliaram o espectro do ensino à distância com várias formas de institucionalização, desde os cursos de ensino superior de rádio dos anos 50 até as universidades on-line de hoje. Todas essas modalidades de ensino e aprendizagem à distância, entre- tanto, sempre foram consideradas como complementares e, de fato, secundárias a um contexto mais tradicional envolvendo um ou mais professores e um ou mais alunos compartilhando o mesmo tempo e espaço. Esses dois elementos, que na verdade são duas dimensões – a temporal e a espacial – devem sempre ser levados em conta ao falar dos efeitos semióticos da educação on-line e, mais geralmente, da di- gitalização de qualquer atividade. De fato, é impróprio afirmar que a digitalização funciona melhor com dois dos cinco sentidos, visão e audição, ainda funciona imperfeitamente com o tato e o olfato, não funciona de modo algum com o gosto e ainda luta com a propriocep- ção. Isto é apenas uma parte da verdade. De fato, o exame também deve incluir tempo e espaço. A digitalização distorce profundamente as dimensões temporais e espaciais nas quais as atividades humanas normalmente acontecem.

Organizadores: Clotilde Perez, Eneus Trindade, Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Marcia Ohlson. Comunicação na Agenda do Século XXI © Vários autores, 2023 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem autorização prévia por escrito da editora, sejam quais forem os meios empregados. ORGANIZADORES Clotilde Perez, Eneus Trindade, Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Márcia Pinheiro Olhson DIREÇÃO EDITORIAL Kathia Castilho e Solange Pelinson REVISÃO Leoberto Balbino PROJETO GRÁFICO E EDIÇÃO DE ARTE Marcelo Max Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil) P958 Comunicação na agenda do século XXI / 1.ed. organizadores Clotilde Perez... [et al.]. – 1.ed. – São Paulo : Estação das Letras e Cores, 2023. Outros organizadores: Eneus Trindade, Maria Immacolata Vassallo de Lopes, Marcia Ohlson. ISBN : 978-65-5029-031-3 1. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP – História I. Perez, Clotilde. II. Trindade, Eneus. III. Lopes, Maria Immacolata Vassallo de IV. Ohlson, Marcia. 06-2023/10 CDD 378.098161 Índices para catálogo sistemático: 1. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação : Universidade de São Paulo : Educação 378.098161 Aline Graziele Benitez – Bibliotecária - CRB-1/3129 O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos. Estação das Letras e Cores Editora Av. Real, 55 – Aldeia da Serra 06429-200 – Barueri – SP Tel.: 55 11 4326-8200 www.estacaoletras.com.br facebook.com/estacaodasletrasecoreseditora @estacaodasletrasecores Organizadores: Clotilde Perez, Eneus Trindade, Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Marcia Ohlson Comunicação na Agenda do Século XXI O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos. 2023 Obra financiada pelo: Sumário INTRODUÇÃO A comunicação e os desafios contemporâneos 7 Clotilde Perez • Eneus Trindade • Maria Immacolata Vassallo de Lopes • Marcia Ohlso SEÇÃO 1 • Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Comunicação organizacional estratégica para sustentabilidade e os desafios para implementação da Agenda 2030 da ONU 17 Margarida M. Krohling Kunsch Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente: o papel das redes sociais na difusão do conceito de Saúde Planetária a partir da experiência do PHAM2021 45 Daniela Vianna Thaís Presa Martins Antonio Mauro Saraiva SEÇÃO 2 • Comunicação, tecnologias digitais e IA A inteligência artificial como um objeto da pesquisa comunicacional: a contribuição da semiótica peirceana 69 Vinícius Romanini Os impactos da Inteligência Artificial e dos Sistemas de Recomendação na comunicação em Redes Sociais 89 Diogo Cortiz Semiótica do ensino digital 107 Massimo Leone SEÇÃO 3 • Comunicação, sexualidades e gênero Gêneros e sexualidades como centrais nas pesquisas em comunicação 125 AlterGen Sexo, gênero e ação: uma breve reflexão sobre transvisibilidade no cinema e na televisão Gabrielle Weber Silvana Nascimento 143 SEÇÃO 4 • Comunicação, etnias e antirracismo A capacidade comunicacional da publicidade antirracista: caminhos para pesquisas e intervenções 171 Leandro Leonardo Batista Francisco Leite Ações antirracistas, políticas afirmativas e discussões étnico-raciais na pesquisa em Comunicação 205 Pablo Moreno Fernandes SEÇÃO 5 • Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política Ou a democracia se realiza na comunicação, ou não é democracia 225 Eugênio Bucci Comunicação e diretos humanos: que cidadania queremos? 239 Cicilia M. Krohling Peruzzo Comunicação dos direitos e interseccionalidade comunicacional: desafios de uma teoria crítica para a esfera pública digital 261 Vitor Blotta SEÇÃO 6 • Comunicação, cultura e consumos Os desafios epistemológicos, teóricos e metodológicos das pesquisas em Publicidade e Consumo 273 Clotilde Perez Tanto ao antigo quanto ao tempo que se segue: pesquisa do consumo, solidez da história e agenda do futuro 295 Everardo Rocha William Corbo SEÇÃO 7 • Comunicação e Televisão Hoje A televisão, hoje. Ou, “A televisão morreu? Viva a televisão!” 311 Maria Immacolata Vassallo de Lopes Plataformas alternativas de streaming audiovisual: produção independente em um ecossistema midiático em transformação 335 Minicurrículo dos autores(as) 358 Ian Abé Santiago Maffioletti Marcel Vieira Barreto Silva A comunicação e os desafios contemporâneos Clotilde Perez Eneus Trindade Maria Immacolata Vassallo de Lopes Marcia Ohlso Entramos na segunda década do século XXI. Os conflitos políticos, econômicos e socioculturais são atravessados por consequências da ação humana no planeta. Temos as fortes mudanças climáticas, com enormes consequências ambientais, depredação do meio ambiente, com as poluições atmosférica, oceânica, do solo e hidrográfica; temos transformações tecnológicas e novas perspectivas de relações sociais e de constituição e acesso às condições de cidadanias diversas com vistas à conformação de sociedades mais igualitárias e mais justas na oferta de boas condições de vida para todos. Lembrando que o exercício dessas cidadanias sofre os entraves de interesses políticos e econômicos, dominados por grupos hegemônicos, minoritários, mas de grande poder de decisão contra os interesses majoritários do bem comum da maioria diversa. É neste debate que a Organização das Nações Unidas (ONU), atenta aos problemas do Planeta Terra, estabelece os seus Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável – ODS`s. Tais objetivos 7 conformam a Agenda ONU 2030 que tem como meta o alcance dos objetivos do crescimento sustentável, entre os 193 países membros da ONU, signatários do pacto global assinado durante a Cúpula das Nações Unidas, em 2015. A agenda é composta por 17 objetivos ambiciosos e interconectados, desdobrados em 169 metas, com foco em superar os principais desafios de desenvolvimento enfrentados por pessoas no Brasil e no mundo, promovendo o desenvolvimento sustentável global até 2030. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável abrangem diferentes temas, relacionados a aspectos ambientais e sociais. Assim como as metas de cada ODS, eles foram construídos de maneira interdependente. Ou seja, quando um país membro conseguir atingir um deles, muito provavelmente terá conseguido avançar em outros. Os 17 ODS estimulam ações relacionadas às necessidades humanas, como a saúde e a educação. Alguns ODS também buscam a redução de desigualdades sociais e ampliação ao acesso a direitos e serviços básicos, tal qual alimentação. ODS 1 – Erradicação da pobreza: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares. ODS 2 – Fome zero e agricultura sustentável: acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável. ODS 3 – Saúde e bem-estar: assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades. ODS 4 – Educação de qualidade: assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos. ODS 5 – Igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. ODS 6 – Água potável e saneamento: garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos. ODS 7 – Energia limpa e acessível: garantir acesso à energia barata, confiável, sustentável e renovável para todos. 8 ODS 8 – Trabalho decente e crescimento econômico: promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho decente para todos. ODS 9 – Indústria, inovação e infraestrutura: construir infraestrutura resiliente, promover a industrialização inclusiva e sustentável, e fomentar a inovação. ODS 10 – Redução das desigualdades: reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles. ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis: tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. ODS 12 – Consumo e produção responsáveis: assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis. ODS 13 – Ação contra a mudança global do clima: tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos. ODS 14 – Vida na água: conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável. ODS 15 – Vida terrestre: proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da Terra e deter a perda da biodiversidade. ODS 16 – Paz, justiça e instituições eficazes: promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. ODS 17 – Parcerias e meios de implementação: fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável. Nesse conjunto de objetivos, articulam-se novas perspectivas da organização política, social e econômica, com fortes impactos nas culturas que não estão no mesmo patamar de desenvolvimentos 9 socioeconômico, o que torna as aspirações das populações mundiais diversas em relação às novas práticas culturais que os ODS`s exigem.1 Soma-se a este debate o papel da comunicação na construção de realidades mais justas. Neste sentido, por ocasião da celebração dos seus 50 anos, o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação se lança ao desafio trazendo interlocutores competentes convidados para discutir alguns aspectos das ODS`s que, nesta obra, servem de referência para oferecer um norte às discussões. É bem importante destacar que alguns eixos já são bem discutidos no PGGCOM-USP e estão destacados no seu papel de formação pós-graduada em comunicação e afinados com os ODS`s. São eles os trabalhos de pesquisa, ensino e extensão da linha de Comunicação e institucionalidades, que dão lugar às ações dos docentes do campo da educomunicação e da comunicação organizacional sustentável, pensando a superação das desigualdades sociais pela linha 3 – Comunicação: Interfaces e Institucionalidades. Outros aspectos se distribuem nas linhas 1 – Comunicação, redes e linguagens: objetos teóricos e empíricos e 2 – Processos Comunicacionais: tecnologias, produção e consumos, que oferecem espaços de reflexão e debates sobre a qualidade e a ética na produção, circulação e consumo de informações na comunicação e também sobre o trabalho decente e o crescimentos econômico, bem como também discute o consumo sustentável. Nesta proposta, buscamos apresentar em sete seções, algumas visões que consideramos prioritárias ao debate da comunicação para a agenda do Século XXI, lembrando que esta escolha não é totalizante e não esgota todas as possibilidades de abordagens frente a todos os ODS`s. Assim, trabalhamos a composição deste livro do seguinte modo: Seção 1. Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente. Esta parte se dá com as contribuições sobre o olhar das organizações para a sustentabilidade e a visibilidade e a propagabilidade dos sentidos da 1 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável | As Nações Unidas no Brasil. 10 saúde planetária como valores a serem perseguidos nas ações de comunicação. O primeiro texto, Comunicação organizacional estratégica para sustentabilidade e os desafios para implementação da Agenda 2030 da ONU, de Margarida Maria Krohling Kunsch (PPGCOM-USP), traz um conjunto de elementos que permitem refletir sobre os desafios da comunicação das organizações frente aos seus posicionamentos e ações visando o desenvolvimento sustentável dos contextos em que as organizações atual, sobretudo no que se refere ao Brasil. O segundo texto, Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente: o papel das redes sociais na difusão do conceito de Saúde Planetária a partir da experiência do PHAM2021, de Daniela Viana, Thaís Presa e Antonio Mauro Saraiva, traz a contribuição brasileira do Grupo Saúde Planetária (IEA-USP) e seu papel articulador junto à Planetary Health Alliance International, a partir de ações de comunicação que engajaram o Brasil na luta pela saúde planetária,mostrando na práticas resultados de ações de comunicação. Na Seção 2 temos a discussão sobre inovação e tecnologia com o eixo Comunicação, tecnologias digitais e IA. Nesta parte, trazemos três contribuições ao debate: A inteligência artificial como um objeto da pesquisa comunicacional: a contribuição da semiótica peirceana, de Vinicius Romanini (PPGCOM-USP) que aborda as possibilidades de semioses em processos mediados pela tecnologia em IA; Os impactos da Inteligência Artificial e dos Sistemas de Recomendação na comunicação em Redes Sociais, de Diogo Cortiz (PPG TIDD PUC-SP), e a questão dos sentidos no ensino no artigo, Semiótica do ensino digital, de Massimo Leone (Universidade de Turim, Itália). Na Seção 3. Comunicação, sexualidades e gênero, as desigualdades de gêneros são abordadas em dois aspectos. No primeiro, Gêneros e sexualidades como centrais nas pesquisas em comunicação de Cláudia Lago (PPGCOM-USP), o tema é visto no amadurecimento e desenvolvimento de suas pesquisas no campo, e, na segunda, Sexo, gênero e ação: uma breve reflexão sobre transvisibilidade no cinema e na televisão, de Gabriela Weber e Silvana Nascimento (PPGDiversitas-USP), elas mostram o tipo de visibilidade dado nas mídias audiovisuais às pessoas trângeneras. 11 Ainda na questão da superação das desigualdades, na Seção 4. Comunicação, etnias e antirracismo, a questão racial ganha lugar, mostrando num olhar pela publicidade o que se pode propagar ou construir como realidade da comunicação antirracista. O primeiro texto, A capacidade comunicacional da publicidade antirracista: caminhos para pesquisas e intervenções, vai além dos dignóstico e aponta para realizações que materializam uma comunicação antirracista de Leandro Leonardo Batista (PPGCOM-USP) e Francisco Leite (egresso PPGCOM-USP). O segundo texto, Ações antirracistas, políticas afirmativas e discussões étnico-raciais na pesquisa em Comunicação, de Pablo Moreno Fernandes (PPGCOM-UFMG e egresso do PPGCOM-USP), o tema é analisado criticamente nas nuanças das abordagens da pesquisa no campo. Também não poderia deixar de estar presente nesta discussão, a abordagem sobre o eixo da Seção 5. Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política, fundamental para entender o papel da comunicação na luta pelos Direitos Humanos e defesas das instituições democráticas. Nesse sentido, os textos Ou a democracia se realiza na comunicação, ou não é democracia, de Eugênio Bucci (PPGCOM-USP), e Comunicação e direitos humanos: que cidadania queremos?, de Cicilia M. Krohling Peruzzo (PPGCOM UFBA e PPGCOM UERJ), cumprem o objetivo desta obra em situar o papel da comunicação frente ao tema. E para dar desfecho a este eixo, a reflexão de Victor Blotta (PPGCOM-USP), intitulada Comunicação dos direitos e interseccionalidade comunicacional: desafios de uma teoria crítica para a esfera pública digital, considera um modo teórico-crítico de compreensão, via interseccionalidades, a complexidade tensiva, mediada pela presença de violências no ambiente social, entre a consciência social dos Direitos Humanos e os Direitos Humanos comunicados, compondo assim o que ele denomina como ambiente da esfera pública digital. O tema da comunicação e consumo e sua relevância social para pesquisa e para entender os tempos atuais se manifestam nos trabalhos do eixo da Seção 6. Comunicação, cultura e consumos 12 com os textos Os desafios epistemológicos, teóricos e metodológicos das pesquisas em Publicidade e Consumo, de Clotilde Perez (PPGCOM-USP), e Tanto ao antigo quanto ao tempo que se segue: Pesquisa do consumo, solidez da história e agenda do futuro, de Everardo Rocha (PPGCOM-PUC Rio) e William Corbo (UFRJ). Por fim, a Seção 7. Comunicação e Televisão Hoje discute a importância das transformações do fazer e do ver televisão/produtos audiovisuais, com suas implicações aos processos produtivos, de circulação de tais produtos e seus consumos. Nessa esteira, os capítulos A televisão, hoje. Ou, “A televisão morreu? Viva a televisão!”, de Maria Immacolata Vassallo de Lopes (PPGCOM-USP) e Plataformas alternativas de streaming audiovisual: produção independente em um ecossistema mediático em transformação, de Ian Abé Santiago Maffioletti e Marcel Vieira Barreto Silva (PPGCOM-UFPB), dão os contornos dos novos modos de produzir, circular e consumo a produção audiovisual, antes restrita ao Cinema e Televisão e que hoje tornam o consumo on-demand streaming um fato que precisa ser conhecido e discutido. Reconhecemos que as sete seções aqui abordadas não esgotam a totalidade dos desafios impostos à comunicação, nem muito menos dão conta dos vínculos com todos os ODS`s. Contudo, a obra em tela busca ser norteadora de ampliações e incorporações de novos temas que precisam ser melhor explorados na pesquisa em Comunicação, convidando os pesquisadores a pensar as agendas de suas pesquisas para o campo frente aos temas e articulações que daqui possam emergir. Os organizadores 13 SEÇÃO 1 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Comunicação organizacional estratégica para sustentabilidade e os desafios para implementação da Agenda 2030 da ONU 1 Margarida M. Krohling Kunsch 1. Introdução O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM), da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ao incluir a temática da Comunicação, Sustentabilidade e Meio Ambiente na presente coletânea Comunicação na Agenda do Século XXI, está em sintonia com a pauta mundial da atualidade. Sinaliza, também, a urgência e a necessidade da realização de mais pesquisas científicas sobre o papel estratégico da área das Ciências da Comunicação na preservação do Planeta e para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU). Procura-se, neste artigo, demonstrar como a comunicação organizacional estratégica pode contribuir na promoção da sustentabilidade 1 Este artigo foi originalmente publicado na Organicom-Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas, n. 39, v. 19, maio/ago. 2022, passou por atualizações e ajustes. 17 SEÇÃO 1 global, mediante um trabalho integrado entre os atores e o poder público, a sociedade civil e as organizações. Defende uma conexão mais efetiva, assim como um diálogo entre esses atores, com vistas a se buscar uma maior consciência social e política para um desenvolvimento sustentável, capaz de atender os interesses da sociedade no presente e no futuro. Este estudo é pautado por procedimentos metodológicos baseados em documentos e informes produzidos pela ONU sobre a Agenda 2030 e o Pacto Global, assim como uma pesquisa bibliográfica sobre a temática, mediante um recorte de alguns autores. Os aportes teóricos apresentados buscam sinalizar contribuições resultantes de pesquisas bibliográficas e estudos e publicações anteriores desta autora. Sua experiência na coordenação do Observatório de Comunicação, Responsabilidade Social e Sustentabilidade (SustenCOM), com diversas ações realizadas em nível de extensão, assim como na orientação de teses de doutorado do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM), da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), tem permitido interagir e refletir diretamente com este tema. Para uma maior compreensão dos conteúdos aqui trabalhados, são abordados os seguintes itens: Ação coletiva para a sustentabilidade e os princípios ESG; ODS – Parceria global e as alianças entre pessoas, poderes públicos, organizações e sociedade civil; Comunicação organizacional estratégica: concepções e abrangência; e Estratégias comunicativas para sustentabilidade social; além das considerações finais. 2. Ação coletiva para a sustentabilidade e os princípios ESG O desenvolvimento sustentável é uma tarefa coletiva de toda a sociedade, do Estado e das organizações públicas e privadas, e não só de uma pessoa. Parte-se assim do princípio de que a efetiva prática da sustentabilidade implica políticas públicas, atitudes e ações conjuntas entre três grandes atores: Estado, organizações privadas e sociedade civil organizada. Pressupõe-se, também, para que seja possível promover efetivamente a sustentabilidade, que a comunicação, no sentido 18 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente amplo, é imprescindível, por parte tanto dos meios, que devem contribuir na difusão de conhecimento e de práticas educativas, quanto de toda a convergência midiática presente na era digital em que vivemos. 2.1 Sustentabilidade São inúmeras as percepções teóricas e aplicadas sobre desenvolvimento sustentável. Embora superconhecido e referendado, vale registrar aqui a clássica definição: desenvolvimento sustentável é “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades”. Ela foi preconizada pela Conferência da Organização das Nações Unidas realizada em Estocolmo, em 1987, no Relatório Brundtland, que resultou no livro Nosso futuro comum, de 1999. Sustentabilidade constitui hoje um tema recorrente de debates, achando-se na ordem do dia de governos, das organizações e da sociedade em geral. Essa temática conta com vasta literatura nas mais diferentes áreas de conhecimento e crescente interesse dos estudiosos, tendo mobilizado as atenções do mundo, especialmente nas últimas três décadas. Haja vista que já se levaram a efeito 26 conferências globais de 1992 a 2021 – as chamadas Conferências das Partes (COPs) – pela Organização das Nações Unidas (ONU), ligadas a temas como desenvolvimento sustentável, meio ambiente, clima, emissão do gás de efeito estufa etc., com a participação crescente de cerca de quase 200 países. Dentre todas as conferências já realizadas, destacam-se: Rio-92 – Rio de Janeiro, Brasil, 1992; Protocolo de Kyoto – Japão, 1997; Johanesburgo, África do Sul, 2002; Rio+10 – Rio de Janeiro, 2002; COP 15 – Copenhagen, Dinamarca, 2009; Rio+20, Rio de Janeiro, 2012; COP 19 – Varsóvia, Polônia, 2013; e COP 21 – Paris, França, 2015. A última, a COP 26, sobre mudanças climáticas, ocorreu em novembro de 2021, em Glasgow, Escocia2. Em novembro de 2022 a COP 27 aconteceu em Sharm el-Sheikh, no Egito. 2 Em 2020, era para a COP 26 ter sido realizada em Glasgow, Escócia, mas devido à pandemia da covid-19 ela foi transferida para 2021, ocorrendo neste mesmo local. 19 SEÇÃO 1 Em que pesem todos os esforços da ONU, os quais têm mobilizado o mundo e viabilizado a produção de documentos e acordos por países que integram as COPs, a questão da preservação do planeta Terra é crucial. Infelizmente, muitos desses acordos ficam só em acordos documentais, cartas de intenções, manifestos etc. Mesmo algumas nações mais desenvolvidas e mais ricas do mundo, que são as mais poluentes, acabam não se comprometendo de fato com a concretização desses acordos. Os desafios da sustentabilidade global são muitos. As alterações climáticas, o aquecimento global, as desigualdades sociais, os grandes desastres naturais, as devastadoras enchentes, cástrastofes ambientais, dentre tantos outros problemas, são questões que precisam ser enfrentadas por todos os agentes, numa atuação coletiva e integrada de todos os atores envolvidos, compreendendo o Estado, o setor produtivo empresarial e a sociedade civil. Portanto, a questão ambiental e a preservação do planeta Terra fazem cada vez mais parte da pauta dos grandes temas da sociedade contemporânea e exigem respostas imediatas, que não podem ser jogadas para o futuro. Consequência da globalização, a questão da sustentabilidade tem sua base em um modelo econômico perverso, gerador dos aspectos centrais da insustentabilidade global, a saber, de um lado, o aquecimento global e as mudanças climáticas, devido à alta utilização de energias fósseis e a emissão de gás de efeito estufa (GEE); e, de outro, uma pegada ecológica que demanda um planeta e meio, o que indica a sobre exploração e a deterioração dos serviços ecossistêmicos, os quais são o suporte para a vida no planeta. Novos aportes sobre sustentabilidade e sua abrangência vêm sendo incorporados por diferentes estudiosos de diversas áreas. Autores como Enrique Leff (2007), que trata da epistemologia ambiental, José Eli da Veiga (2010), que vê a sustentabilidade como um valor, Leonardo Boff (2012), que questiona o que é e o que não é sustentabilidade, Arlindo Philippi Jr. e outros (2012, 2013), que tratam da gestão de natureza pública e dos indicadores de sustentabilidade, Fernando Almeida (2007, 2012), que analisa os rumos do desenvolvimento sustentável, são alguns dos muitos estudiosos que trazem amplas visões sobre o tema. 20 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente A concepção da sustentabilidade é muito abrangente, não podendo ela Ser reducionista e aplicar-se apenas ao crescimento/desenvolvimento, como é predominante nos tempos atuais. Ela deve cobrir todos os territórios da realidade que vão de pessoas, tomadas individualmente, às comunidades, à cultura, à política, à indústria, às cidades e principalmente ao planeta Terra com seus ecossistemas. Sustentabilidade é um modo de ser e de viver que exige alinhar as práticas humanas às potencialidades das presentes e das futuras gerações (BOFF, 2012, p. 16). Essa percepção abrangente da sustentabilidade nos faz rever o conceito mais aceito e assimilado, sobretudo por parte das organizações, proposto pelo reconhecido consultor inglês John Elkington3 em 1994, quando cunhou o termo triple bottom line. Na obra Canibais com garfo e faca (ELKINGTON, 2001, p. 73-99), ele apresenta a sustentabilidade em três vertentes: a prosperidade econômica, a qualidade ambiental e a justiça social. Isto é, defende a teoria dos três pilares (econômico, social e ambiental) como avaliadores que devem guiar as ações de sustentabilidade das empresas. O autor analisa como as organizações deverão proceder para sobreviver com sucesso nos diferentes ciclos econômicos e apesar das crises que assolam de tempos em tempos este mundo globalizado. Este conceito foi e tem sido amplamente divulgado. Há críticas e questionamentos sobre a real aplicabilidade equitativa do triple bottom line tão propagado no mundo corporativo. Evidentemente, não é uma tarefa simples as organizações adotarem uma filosofia e política de gestão da sustentabilidade que levem em conta esses três pilares (econômico, social e ambiental). São vários os aspectos 3 John Elkington é consultor internacional, presidente da Volans e presidente honorário da SustainAbility. Seu último livro é Green Swans (Fast Company Press, abril de 2020). 21 SEÇÃO 1 a considerar, desde os instrumentais, como contabilidade, auditoria, estabelecimento de indicadores, uso de certificações públicas e acompanhamento da sustentabilidade, até a complexidade da mudança de comportamento dos principais dirigentes e de todos os agentes envolvidos. Há que se pensar como fazer tudo isto de forma integrada. Em publicação na Harvard Business Review (2018), no artigo “Há 25 anos, criei a frase triple bottom line. Aqui está por que é hora de repensá-la”, John Elkington chama a atenção para o uso equivocado e uma aplicação fragmentada do seu conceito. Sua proposta visava a uma mudança do capitalismo. O triple bottom line não foi projetado para ser apenas uma ferramenta de contabilidade. Era para provocar um pensamento mais profundo sobre o capitalismo e seu futuro, mas muitos dos primeiros adeptos entenderam o conceito como um ato de equilíbrio, adotando uma mentalidade de troca (ELKINGTON, 2018). Com ênfase nos pilares ambiental e social, Jefferson da Rocha (2011, p. 15) propõe dois enfoques centrais sobre sustentabilidade: a sustentabilidade ecológica, “que considera que o problema é, antes de tudo, ecológico, que a ameaça fundamental consta nos danos aos quais as ações dos homens submetem a terra: patrimônio e base de sua existência presente e futuro”; e a sustentabilidade social, que avalia que “não têm respostas aos problemas ambientais sem tratamento dos problemas sociais”. 2.2 ESG – Environmental, social e governance Na atualidade, ganha força uma nova configuração dos conceitos de sustentabilidade centrados nos pilares ambiental, social e econômico com a adoção dos princípios ESG – Environmental, Social e Governance, sigla em inglês usada para se referir às melhores práticas ambientais (E), sociais (S) e de governança (G) de um negócio. Tendo como origem a aplicação de novas práticas em instituições financeiras, até com o intuito de diminuir os riscos em financiar investimentos que possam trazer prejuízo para os negócios, na atualidade está em franca expansão e vem sendo adotada como um guia na gestão estratégica de grande parte das empresas mundiais. 22 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Chama a atenção a inclusão da governança, e os estudos e as práticas têm mostrado sua grande relevância para que as empresas realmente cumpram o que prometem nos seus propósitos como um compromisso público, tendo como princípios a ética e os valores sociais. As empresas devem se comprometer em incorporar a sustentabilidade no sentido amplo, tanto na gestão como na avaliação de riscos. Isso implica a adoção de boas práticas e princípios de responsabilidade pública e de governança corporativa. A crise sanitária global desencadeada com a pandemia da covid-19, a partir de 2020, mostrou como nunca as grandes desigualdades sociais presentes na sociedade contemporânea. Esta crise sanitária, assim como a pobreza e a fome, que assolam, sobretudo, as populações mais carentes em nível global, são os principais problemas a serem enfrentados por todos: os cidadãos, os poderes públicos, as organizações e a sociedade. Outro fenômeno crucial de ameaça global está relacionado com as mudanças climáticas que assolam o Planeta. Os constantes desastres ambientais, incêndios florestais, enchentes, secas etc. provocados pelo aquecimento global e as alterações climáticas, dentre outros problemas, exigem respostas imediatas dos vários setores, compreendendo o Estado, a iniciativa privada e o terceiro setor da sociedade civil organizada. Em todo este contexto um dos pilares do ESG que ganha força e preponderância é a governança. As instituições públicas e as organizações em geral, como partes integrantes da sociedade, passam a ser muito mais observadas e controladas pelos públicos com os quais interagem e pela opinião pública. Daí a necessidade cada vez maior de se adotar uma gestão administrativa guiada por princípios éticos de governança e de transparência, com distribuição balanceada de poder. Para Stanley Deetz (2009, p. 94), o valor de governança colaborativa depende da necessidade demonstrada entre organizações públicas e privadas, de altos níveis de criatividade, compromisso, conformidade e customização. Altos níveis 23 SEÇÃO 1 de participação descentralizada e diversa são a única forma confiável de alcançar objetivos individualmente e em seu conjunto. Em todo esse contexto, a comunicação organizacional estratégica tem um importante papel a desempenhar. Conforme o próprio Deetz (2009, p. 97), é preciso adotar conceitos e práticas específicas de comunicação para que o envolvimento dos públicos de interesse produza as inovações e a criatividade necessárias em função da inclusão mais ampla de valores que representem benefícios sociais e econômicos. Essa comunicação deve ser regida por uma governança integrada entre os vários atores sociais e numa perspectiva de governança global. A sociedade, os cidadãos e o interesse público devem nortear as ações comunicativas para a promoção da sustentabilidade e para mitigar os impactos negativos dos problemas sociais decorrentes da crise sanitária mundial e das alterações climáticas, como já destacado. 3. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) Em reunião da ONU para conferência do desenvolvimento sustentável, ocorrida na sua sede em Nova York, de 25 a 27 setembro de 2015, foi aprovada a Agenda 2030, um documento firmado entre os 193 países membros para a implantação de uma agenda de sustentabilidade global, representada pela proposição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Agenda 2030 constitui o novo discurso da sustentabilidade global. A Agenda tem por base os ODS que estão estruturados a partir dos princípios da sustentabilidade – inclusão social, crescimento econômico e proteção ambiental – em cinco dimensões: pessoas, 24 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente prosperidade, planeta, parceria e paz, conhecidas também como as 5Ps e organizados em 17 grupos, abrangendo no total 169 metas, tendo como temas centrais: pobreza; fome; saúde; educação; empoderamento feminino; água e saneamento; energia; trabalho; indústria e inovação; desigualdade econômica; cidades; produção e consumo; mudança climática; mares e oceanos; terra; paz e justiça; e parceria global (UNITED NATIONS – ONU, 2015).4 Os 17 ODS e as suas respectivas metas, abrangem os seguintes temas centrais: ODS1, Pobreza (Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares); ODS 2, Fome (Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável); ODS 3, Saúde (Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades); ODS 4, Educação (Assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos); ODS 5, Empoderamento feminino (Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas); ODS 6, Água e saneamento (Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e do saneamento para todos; ODS 7, Energia (Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todos; ODS 8, Trabalho (Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho decente para todos); ODS 9, Indústria e inovação (Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação); ODS 10, Desigualdade econômica (Reduzir a desigualdade entre os países e dentro deles); ODS 11, Cidades sustentáveis (Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis); ODS 12, Produção e consumo (Assegurar padrões sustentáveis de produção e consumo); ODS 13, Mudança climática (Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos, mas reconhecendo que a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a questão (UNCCC) é o principal fórum internacional e intergovernamental para negociar a resposta global à mudança climática); 4 Disponível em: http://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/2015. 25 SEÇÃO 1 ODS 14, Mares e oceanos (Conservar e promover o uso sustentável dos oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável); ODS 15,Terra e biodiversidade (Proteger, restaurar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e estancar a perda de biodiversidade); ODS 16, Paz e justiça (Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à Justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis); ODS 17, Parceria global (Fortalecer os mecanismos de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável). Segundo o Relatório para o secretário-geral da ONU, Uma agenda de ação para o desenvolvimento sustentável (UNSDSN, 2013): Os ODS vão contribuir para a compreensão do público dos desafios complexos de desenvolvimento sustentável, para inspirar a ação pública e privada e promover pensamento integrado e incentivar a responsabilização. [...] Todas as crianças devem conhecer os ODS para ajudá-las a compreender os desafios que enfrentarão como adultos jovens. (UNSDSN, 2013, p. 28). Com vistas a criar mecanismos que viabilizem a implementação desses objetivos, especificamente o de número 17 vem praticamente enfatizar a necessidade de alianças para que os demais ODS sejam atingidos, conforme prevê a Agenda 2030 da ONU. Esta agenda considera a necessidade de esforços sistêmicos entre governo, sociedade civil e empresas para atingir, integralmente ou parcialmente, as metas relacionadas a cada um dos ODS. 3.2 Comunicação para alianças entre Estado, organizações e sociedade civil Promover a sustentabilidade global e local é uma tarefa de todos e não somente do Estado e de determinados segmentos da sociedade. 26 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente A comunicação nesse contexto tem um papel preponderante, desde que exercida para fins de interesse público e em defesa dos valores éticos e democráticos. A realização de projetos sociais voltados para o desenvolvimento da sustentabilidade social e ecológica requer um trabalho integrado entre o poder público, a sociedade civil e as organizações privadas. Fernando Almeida (2007, p. 54), estudioso de sustentabilidade, ao falar sobre a responsabilidade no mundo tripolar, chama a atenção de que há formulação de políticas ou solução possível sem envolvimento dos três atores fundamentais na sociedade – empresas, governo e sociedade civil –, tendo o conhecimento produzido pela ciência como orientação. Prosseguindo na defesa das parecerias público-privadas, ele afirma que “estamos ainda muito distantes do entendimento e de uma prática multissetorial que determine um ponto de inflexão na curva de degradação dos serviços ambientais do Planeta”. São inúmeras as possibilidades de mediação entre os três setores da sociedade. Elas estão presentes no primeiro e no segundo, mas, sobretudo, no terceiro setor, que compreende um vasto campo de atuação – ONGs; fundações; associações e institutos voltados para a melhoria da qualidade de vida das pessoas, o atendimento de crianças, adolescentes e idosos, pessoas com deficiência, famílias carentes ou em situação de risco, refugiados, pessoas encarceradas, minorias raciais, excluídos e muitos outros grupos esquecidos pelo poder público e pela sociedade em geral. No âmbito do Estado, quantas ações construtivas poderiam ser realizadas para contemplar as carências e necessidades da população e dos cidadãos! Precisamos de um Estado forte e atuante a serviço do interesse público e da sociedade. No trabalho de parceria entre o público e o privado, a área de relações públicas, como parte integrada da Comunicação, poderá 27 SEÇÃO 1 desempenhar um importante papel. Por meio do ou junto com o terceiro setor, ela poderá promover mediações entre o Estado e a iniciativa privada, repensando-se o conteúdo, as formas, as estratégias, os instrumentos, os meios e as linguagens das ações comunicativas com os mais diferentes grupos envolvidos, a opinião pública e a sociedade como um todo. Nas organizações privadas, a comunidade passa a ser, hoje, um dos públicos estratégicos mais considerados. A responsabilidade social e a cidadania tão presentes no discurso corporativo não podem ser vistos tão somente como instrumentos a serviço de ganhos mercadológicos e de imagem institucional. Nem, muito menos, como mais um modismo. Elas precisam ser frutos de uma filosofia de gestão. As organizações devem mostrar que assumem de fato uma prática responsável e comprometida com a melhoria da qualidade de vida das pessoas e a diminuição das desigualdades sociais. As Relações Públicas têm um papel importante nesse contexto. Só assim elas cumprirão sua função social, ao lado de outras funções estratégicas e administrativas. Stuart Hart, no livro O capitalismo na encruzilhada (2006, p. 37), ao chamar a atenção para a necessidade de uma nova consciência para as empresas, lembra a mentalidade que dominava no passado: “a responsabilidade social de uma empresa era a maximização dos lucros, como defendia Milton Friedman, e parecia claro que preocupações sociais ou ambientais só serviam para reduzir esses lucros”. A comunicação e as organizações têm um papel fundamental na contribuição para o alcance dos objetivos da Agenda Global 2030. Para que seja possível promover efetivamente o desenvolvimento sustentável de forma integral, é imprescindível que as organizações (como agentes estratégicos de transformação nos territórios) pautem suas ações por princípios e políticas institucionais de governança, que permitam o monitoramento de seu impacto nas mais diversas sociedades em que se encontram. 28 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Para isso, necessitam compreender o instrumento metodológico que a Agenda 2030 oferece ao dimensionar metas e indicadores que permitam acompanhar e avaliar a qualidade de suas ações. Do mesmo modo, os meios de comunicação também devem contribuir para a difusão de conhecimento e de práticas educativas, além do fomento à convergência midiática presente na era digital para sensibilizar e visibilizar pautas que gerem a mobilização política, econômica e cultural necessárias para o avanço dos ODS. É o que estabelece a iniciativa do Pacto Global da ONU, que é engajar o setor privado mundial para que desenvolva ações que contribuam para o alcance da Agenda 2030 e para que atue de acordo com os dez Princípios Universais, derivados da Declaração Universal de Direitos Humanos, da Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. Os dez princípios são: 1. As empresas devem apoiar e respeitar a proteção de direitos humanos reconhecidos internacionalmente; 2. Assegurar-se de sua não participação em violações destes direitos; 3. As empresas devem apoiar a liberdade de associação e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva; 4. A eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório; 5. A abolição efetiva do trabalho infantil; 6. Eliminar a discriminação no emprego; 7. As empresas devem apoiar uma abordagem preventiva aos desafios ambientais; 8. Desenvolver iniciativas para promover maior responsabilidade ambiental; 9. Incentivar o desenvolvimento e a difusão de tecnologias ambientalmente amigáveis; e 10. As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão e propina. As organizações que passam a fazer parte do Pacto Global comprometem-se a seguir esses princípios no dia a dia de suas operações. Fazem parte do Pacto empresas e redes de organizações empresariais; organizações públicas e do terceiro setor, como associações 29 SEÇÃO 1 e federações, entidades da sociedade civil; além de governos, como cidades estados, secretarias e ministérios. A sociedade civil mais do que nunca tem um papel preponderante nos processos de participação social em defesa da democracia, dos direitos humanos, da cidadania, sobretudo mediante a atuação dos movimentos sociais organizados, das organizações não governamentais (ONGs) e do terceiro setor como um todo, que extrapolam a relação de oposição somente com o Estado, fazendo frente para conquistas também diante do mercado. Numa perspectiva contemporânea, é a partir de reflexões sobre as teorias acerca da sociedade civil que Liszt Vieira (2001, p. 36) destaca a contribuição de Jürgen Habermas (espaço público) e de Jean Cohen e Andrew Arato (reconstrução da sociedade civil) para configuração do que chamou de “a integração de quatro esferas da sociedade: a esfera privada, a do mercado, a pública e a estatal, que permitiriam a conexão entre os conceitos de sociedade civil e cidadania”. Isso reforça que a função da sociedade civil é, sobretudo, exercer seu papel de influência para a mudança do status quo, do poder do Estado e do mercado para atender às demandas das necessidades emergentes locais, nacionais, regionais e globais. É a luta pela conquista dos direitos da cidadania, da justiça e dos valores sociais. Pode-se deduzir que, enquanto a cidadania se situa na esfera estatal, a sociedade civil atua na esfera pública, onde associações e organizações se engajam em debates, criam grupos e pressionam em direção a determinadas opções políticas, produzindo, consequentemente, estruturas institucionais que favorecem a cidadania. Para fazer as mediações entre esses atores e realizar ações conjuntas integradas para o desenvolvimento sustentável e a consecução dos ODS, é imprescindível a existência de uma comunicação estratégica. Consideramos que ela seja o caminho mais viável para uma efetiva ação integrada entre o poder público, a iniciativa privada e o terceiro setor, na busca de uma maior consciência social e de uma educação ambiental da população sobre a necessidade da preservação e do desenvolvimento integral do planeta Terra. 30 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente 4. Comunicação organizacional estratégica: concepções e abrangência A comunicação organizacional deve ser entendida de forma ampla e holística5. Pode-se dizer que é uma disciplina que estuda como se processa o fenômeno comunicacional dentro das organizações e todo o seu contexto político, econômico e social. Como fenômeno inerente à natureza das organizações e aos agrupamentos de pessoas que a integram, a comunicação organizacional envolve os processos comunicativos e todos os seus elementos constitutivos. Nesse contexto, faz-se necessário ver a comunicação inserida nos processos simbólicos e com foco nos significados dos agentes envolvidos, dos relacionamentos interpessoais e grupais, valorizando as práticas comunicativas cotidianas e as interações nas suas mais diversas formas de manifestação e construção social. Portanto, nessa linha de pensamento se supera a visão linear e instrumental da comunicação por uma muito mais complexa e abrangente. Face à abrangência e à complexidade da comunicação nas organizações, os estudiosos buscam formas para então compreender suas vertentes teóricas e as práticas do cotidiano. Linda Putnam (2009), por exemplo, propõe sete metáforas para estudar e compreender a abrangência da comunicação nas organizações: conduíte, processamento de informação, vínculo, discurso, símbolo, performance e voz. Outro aspecto a considerar é a abrangência da comunicação organizacional em termos aplicados, pois ela ocorre, acontece e se processa em todos os tipos de instituições e organizações – públicas, privadas e do terceiro setor. Isto é, como se configuram as diferentes modalidades que permeiam sua concepção e as suas práticas. É o que denominamos “comunicação organizacional integrada”, 5 Na obra coletiva Comunicação organizacional: histórico, fundamentos e processos. v. 1. (KUNSCH, 2009a), os autores que a integram abordam diversas percepções teóricas e aplicadas sobre a campo da comunicação organizacional. 31 SEÇÃO 1 compreendendo a comunicação institucional, a comunicação mercadológica, a comunicação interna e a comunicação administrativa (KUNSCH, 2003, p. 149), que acontece a partir de objetivos e propósitos específicos. Para se chegar a essa concepção de comunicação organizacional integrada, partimos dos seguintes questionamentos: Como as organizações se manifestam nos seus relacionamentos? Como expressam suas mensagens? Qual é a natureza da comunicação administrativa, interna, institucional e mercadológica? Quais são os objetivos? Quais são os públicos a serem atingidos? Qual é a filosofia que norteia a comunicação? Existe uma política de comunicação integrada por parte das organizações? Assim, a partir destes parâmetros, as organizações irão se manifestar de acordo com a natureza da modalidade comunicacional6 e os públicos com os quais querem se relacionar na busca de sua eficácia comunicativa. Na tentativa de contribuir com novos aportes para se compreender a complexidade da comunicação organizacional nos últimos anos, por meio de estudos teóricos e aplicados (KUNSCH, 2016, 2014 e 2010), procuramos ver a comunicação organizacional sob quatro dimensões: humana, instrumental, cultural e estratégica. Com isto, temos buscado novos olhares para compreender como essa comunicação está configurada hoje e quais são suas dinâmicas nas práticas organizacionais7. 4.1 Dimensões da comunicação organizacional As organizações, como “organismos vivos”, são formadas por pessoas que se comunicam entre si e que, por meio de processos interativos, viabilizam o sistema funcional para sobrevivência e consecução dos objetivos organizacionais em contexto de diversidades, 6 Para mais detalhes sobre essas modalidades comunicacionais, consultar Kunsch (2003, p. 152-178). 7 Estes artigos buscam fundamentar essas quatro dimensões, a partir de referências de outros autores. Sugere-se, portanto, para maiores informações, consultá-los, pois no presente texto apresenta-se uma visão conceitual geral. 32 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente conflitos e transações complexas. Portanto, sem comunicação as organizações não existiriam. Ao se analisar a comunicação organizacional, naturalmente há que se considerar a comunicação humana e a necessidade de valorizar as pessoas no ambiente de trabalho. As organizações, como fontes emissoras de informações e ao se comunicarem com seu universo de públicos, não devem ter a ilusão de que todas as suas mensagens discursivas são recebidas positivamente ou que são automaticamente respondidas e aceitas da forma como foram intencionadas. Vale lembrar que a comunicação ocorre primeiro no nível intrapessoal e subjetivo. Cada indivíduo possui seu universo cognitivo e irá receber as mensagens, interpretá-las e dar-lhes significado a seu modo e dentro de um determinado contexto. Quando se introduz a comunicação na esfera das organizações, o fator humano, subjetivo, afetivo, relacional e contextual constitui um pilar fundamental para qualquer ação comunicativa produtiva e duradoura. Considerar a dimensão humana da comunicação no âmbito organizacional é uma necessidade premente para melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, em um ambiente cada vez mais complexo, competitivo e com cenários conflitantes e paradoxais, diante das incertezas que caracterizam a sociedade globalizada na era digital, a “sociedade do cansaço”, conforme Han Byung-Chul (2015). A humanização das organizações (KUNSCH, 2010) nunca foi tão necessária como no mundo globalizado e desigual de hoje. A dimensão instrumental é a mais presente e predominante nas organizações em geral. Caracteriza-se como instrumental, funcional e técnica. É aquela que é considerada mais como transmissão de informações e como meio para viabilizar os processos e permitir o pleno funcionamento de uma organização. Os canais utilizados são de uma só via e a comunicação, portanto, é assimétrica. Trata-se da visão linear da comunicação, que ignora contextos e outros aspectos mais subjetivos. Evidentemente, ela é necessária e sempre existirá. A dimensão cultural contempla basicamente os níveis micro e macro. O nível micro está relacionado com a cultura organizacional vigente, bem como com seus valores e princípios filosóficos. 33 SEÇÃO 1 As organizações são formadas por pessoas com diferentes culturas. Esses indivíduos, ao se integrarem aos quadros funcionais de uma organização, precisam se adaptar à cultura do fundador e/ou da cultura organizacional propriamente dita. Em nível macro, há que se considerar que as organizações, por sua vez, estão situadas em um determinado país, que possui sua cultura nacional, e, ainda, que elas sofrem interferências de uma multicultural sociedade global. Percebe-se, portanto, que a comunicação organizacional não acontece isolada tanto da cultura organizacional, em nível micro, como do contexto multicultural, em nível macro. Nesse sentido, defendemos a necessidade de as organizações e, particularmente, os seus gestores da comunicação considerarem a dimensão cultural como parte integrante do planejamento, das ações comunicativas e dos processos de gestão participativa. 4.2 A dimensão estratégica da comunicação organizacional A dimensão estratégica pode ser considerada sob dois enfoques. O primeiro se baseia numa visão mais conservadora e racional, centrada nos resultados; e o segundo, em uma perspectiva mais complexa, que leva em conta a questão humanística e as incertezas e a busca de novas alternativas metodológicas para repensar e planejar a comunicação estratégica. Richard Whittington (2002, p. 1-48) propõe quatro abordagens genéricas de estratégia: 1. Clássica: seria a mais antiga, influente e muito utilizada no planejamento estratégico; 2. Evolucionária: está centrada na sobrevivência e relacionada com a evolução biológica; 3. Processual: tem a ver com a natureza imperfeita da vida humana, como um processo falível e capaz de errar; 4. Sistêmica: relativista, na qual os fins e meios da estratégia estão ligados à grande estrutura e aos sistemas sociais locais onde se desenvolve a estratégia. Outra forma de ver a dimensão estratégica é encará-la sob a vertente da complexidade e da nueva teoría estratégica (NTE) proposta por Rafael Pérez (2008), e Rafael Pérez e Sandra Massoni (2009). São inúmeros os fundamentos teóricos destacados por esses 34 autores, que defendem outras perspectivas e novos paradigmas para conceber e praticar a comunicação estratégica nas mais diferentes esferas sociais, políticas e econômicas. Busca-se assim desenvolver novas metodologias de como planejar a comunicação estratégica de forma mais holística e interativa entre os atores envolvidos, isto é, propiciando ações mais integradoras e participativas entre quem a promove e aqueles aos quais ela se destina. Na perspectiva mais racional e clássica, a dimensão estratégica da comunicação organizacional está relacionada com a visão pragmática, com vistas à eficácia e aos resultados. É dominada por uma visão mais verticalizada e centrada na racionalidade, como se tudo fosse acontecer como planejado, dando pouca atenção às incertezas dos cenários externos e outros possíveis fatores condicionantes que poderão interferir nos processos e na implementação e nos resultados. Trata-se de uma perspectiva dominante e que atua como fator estratégico que busca agregar valor aos negócios corporativos. Evidentemente, é uma forma correta de considerá-la e aplicá-la, só que é preciso levar em conta, também, outras metodologias mais participativas que valorizem o ambiente sociocultural das organizações, envolvendo mais as pessoas no processo e aqueles públicos que serão os sujeitos dos programas das ações propostas. Ivone de Lourdes Oliveira e Maria Aparecida de Paula (2007, p. 44-52) descrevem os cinco componentes da comunicação estratégica: 1. Tratamento processual da comunicação – Abordagem como um processo, numa visão ampla e integrada, e não a partir de aplicação de atividades isoladas ou desarticuladas das subáreas de Comunicação: Relações Públicas, Jornalismo e Publicidade/Propaganda; 2. Inserção na cadeia de decisões – A alta direção reconhece a função estratégica da comunicação e reconhece seu valor no processo de gestão organizacional; 3. Gestão de relacionamentos – Enfatiza oportunidades de interação e diálogo da organização com os atores sociais ou públicos; 4. Processo planejado – Requer intencionalidade e sistematização da comunicação, com base em metodologia do planejamento estratégico; 5. Processo monitorado – O monitoramento deve contemplar dois níveis: o primeiro refere-se à qualidade, aos 35 impactos e aos resultados do processo comunicacional em relação a uma situação inicial, aos objetivos estabelecidos e às referências de mercado, e o segundo, à contribuição da comunicação para o alcance dos objetivos organizacionais. A partir desses enfoques, acreditamos que a dimensão estratégica da comunicação organizacional deve incorporar uma visão muito mais complexa e valorizar, sobretudo, os aspectos humanos e sociais, no contexto da dinâmica da história, superando a visão meramente tecnicista e da racionalidade econômica. Só assim a comunicação conseguirá fazer o tão defendido alinhamento estratégico com os princípios organizacionais: propósito, missão, valores e visão. 5. Estratégicas comunicativas para sustentabilidade social A comunicação exerce um papel estratégico e capaz de impulsionar e induzir novas posturas e novos comportamentos das pessoas, do poder público, da sociedade e das organizações frente a uma nova consciência no contexto da sustentabilidade. É uma realidade incontestável o poder que a comunicação, por suas mais variadas vertentes e tipologias, bem como pelos meios massivos tradicionais e pelas mídias sociais da era digital, tem na sociedade contemporânea. Manuel Castells (2009, p. 24-25) questiona “por que, como e quem constrói e exerce as relações de poder mediante a gestão dos processos de comunicação e de que forma os atores sociais que buscam a transformação social podem modificar essas relações influenciando na mente coletiva”. Para ele, o “processo de comunicação opera de acordo com a estrutura, a cultura, a organização e a tecnologia de comunicação de uma determinada sociedade”. E “a estrutura social concreta é a da sociedade-rede, a estrutura social que caracteriza a sociedade no início do século XXI, uma estrutura social construída ao redor das redes digitais de comunicação”. Essa nova estrutura da sociedade-rede modifica as relações de poder no contexto organizativo e tecnológico derivado do “auge das redes digitais de comunicação globais e se eleva no sistema de processamento de símbolos fundamental da nossa época”. 36 Nesse sentido, reitera-se que a comunicação deve ser considerada como processo social básico e como um fenômeno, vendo-se o poder que ela e a mídia exercem na sociedade contemporânea e, consequentemente, no contexto das organizações. Considerando o poder e a relevância que a comunicação assume no mundo de hoje, nas organizações dos três setores, elas devem se pautar por políticas de comunicação capazes de levar efetivamente em conta os interesses da sociedade. A ênfase e os investimentos apenas em assessoria de imprensa, para se ter visibilidade na mídia, bem como no uso excessivo da propaganda/publicidade, devem ser equacionados, pois essas áreas não dão mais conta de atender às novas demandas sociais, políticas e econômicas. Quando se fala da comunicação para a sustentabilidade, defende-se justamente uma visão interativa dessa comunicação, utilizando todos os potenciais da comunicação participativa para geração de mudanças. Subtende-se a aplicação do verdadeiro sentido das relações públicas comunitárias8. Isto é, relações públicas comunitárias autênticas são muito mais do que um trabalho apenas “para” a comunidade, nos moldes tradicionais, por meio de ações sociais paternalistas, sem uma perspectiva de atuação conjunta e comunitária de fato com os sujeitos envolvidos. Em todo esse contexto, a prática do diálogo e da dialogicidade nas relações entre os possíveis interlocutores se torna imprescindível. Tanto no meio acadêmico quanto no âmbito dos movimentos sociais, o diálogo só existirá se houver uma comunicação realmente recíproca e comprometida. No livro Extensão ou comunicação?, Paulo Freire diz que O que caracteriza a comunicação enquanto este comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo, assim como o diálogo é comunicativo. Em relação dialógica-comunicativa, os sujeitos interlocutores se expressam, através de um mesmo sistema de signos” ( 1980, p. 67). 8 Para mais informações, sugere-se consultar a obra Relações públicas comunitárias: a comunicação em uma perspectiva dialógica e transformadora (KUNSCH, Margarida; KUNSCH, Waldemar, 2007). 37 Isto, segundo o autor, “pressupõe, portanto, que os entendimentos ocorram dentro de um quadro semântico comum aos sujeitos envolvidos”. A educação é comunicação, é diálogo à medida que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores, que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 1980, p. 69). São reflexões importantes para embasar as ações comunicativas das organizações com as comunidades locais. Outro aspecto a considerar sobre a comunicação para a sustentabilidade social é a necessidade de se estabelecerem políticas claras e transparentes fundamentadas em princípios éticos que vão direcionar as estratégias e as práticas das ações comunicativas, assim como dos recursos midiáticos que serão utilizados. Ou seja, é preciso que haja total coerência entre o discurso institucional e mercadológico com os comportamentos e as atitudes organizacionais, contrapondo-se às abusivas práticas de greenwashing amplamente praticadas por muitas empresas. Nesse sentido, numa perspectiva crítica, a comunicação que é praticada pelas organizações não pode servir de instrumento para mascarar a realidade e enganar os públicos e a opinião pública, valendo-se de greenwashing, isto é, “marketing verde”, matérias, propagandas enganosas e subliminares, vídeos com depoimentos compensatórios, matérias jornalísticas encomendadas etc., enaltecendo ações sociais com a concessão de prêmios e imagens deslumbrantes. Daí a importância de uma gestão estratégica da comunicação organizacional coerente entre as práticas e atitudes comportamentais das organizações com os enunciados discursivos do propósito, da missão, dos valores e da visão. Kenny Bruno e Joshua Karliner (2002), em Earthsummit. biz: the corporate takeover of sustainable development, chamam muito a atenção por essa constatação da incoerência entre o discurso e a prática das empresas multinacionais, inclusive no tocante aos envolvimentos com os ODS. A análise crítica a respeito é contundente. Para esses autores, o greenwashing pode ser considerado em dois tipos: tradicional e profundo. No tradicional, ele se caracteriza por frases de comunicação do jargão comum, enaltecendo ações 38 sociais com a concessão de prêmios, imagens deslumbrantes. Já as organizações se posicionam como engajadas no salvamento do Planeta, mas em toda uma cadeia de negócios, de forma que qualquer preocupação por parte dos consumidores ou do governo pudesse ser dispensável, já que essa cadeia estaria voluntariamente comprometida com o meio ambiente (CASTILHO, 2021). Estudos mostram que mesmo as empresas certificadas no Sistema B Corporation (B Corp), que requer uma série de requisitos para serem incluídas, praticam o greenwashing9. Na era digital e com o poder do ecossistema midiático, sobretudo das redes e mídias sociais, as empresas que acham que podem usar a comunicação para mascarar realidades estão enganadas. Os públicos estão muito mais atentos e exigentes, assim como a opinião pública está sempre mais vigilante. Na contemporaneidade, as empresas são chamadas a se conscientizarem de que precisam mudar sua mentalidade de, simplesmente, só otimizar lucros, fabricar produtos e prestar serviços. Precisam agir, também, com responsabilidade social e ter compromisso público. Isto pode ser traduzido por meio de uma participação efetiva de ações conjuntas com o Estado e a sociedade civil para transformar as realidades sociais em situações de riscos ambientais e de agravamento da pobreza e da fome de populações. Sobretudo daquelas que vivem à margem do progresso e são excluídas do desenvolvimento econômico e tecnológico. E a comunicação verdadeira, transparente e sedimentada na ética, poderá ser um fator estratégico e contribuir para o alcance de tudo isto. 6. Considerações finais A proposição dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da ONU, é altamente louvável e necessária, por tudo que já mencionamos neste artigo. Entretanto, sua 9 Ver Castilho, Laís (2021). 39 implementação real até 2030 implicará inúmeros desafios e dependerá de diversos fatores controláveis e incontroláveis, dada a complexidade que tal empreitada envolve. É preciso compreender que as mudanças comportamentais e culturais em prol da preservação do planeta e do alcance dos ODS só ocorrerão a partir da mobilização e da pressão social e com ações viáveis dos atores envolvidos das três esferas – pública, privada e da sociedade civil organizada. Evidentemente, como já foi assinalado, isso dependerá do engajamento e de ações coletivas de diversos atores envolvidos e de mudanças de atitudes individuais e institucionais. Em que pesem as conquistas e os avanços conseguidos até o presente momento, quantos acordos e decisões tomados em diferentes fóruns nacionais e internacionais relacionados com esse assunto continuam somente no papel sem uma aplicação efetiva! A sustentabilidade do Planeta depende da união de forças advindas, em primeiro lugar, de cada um de nós como pessoas e cidadãos responsáveis e comprometidos com essa causa; de políticas públicas e privadas para um desenvolvimento sustentável integrado nos três pilares, econômico, social e ambiental; da consciência das organizações como geradoras de riqueza de bens produtivos e simbólicos; de uma sociedade civil organizada capaz de induzir processos de mudanças e intervenções num mercado dominado pelos interesses de obtenção de lucros a qualquer preço; e de um Estado forte que atenda aos interesses públicos da sociedade. A comunicação organizacional integrada na perspectiva estratégica, em todo esse contexto, tem muitos desafios a enfrentar. 40 Referências ALMEIDA, Fernando. Os desafios da sustentabilidade: uma ruptura urgente. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. ALMEIDA, Fernando. Desenvolvimento sustentável, 2012-2050: visão, rumos e contradições. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. BRUNO, Kenny; KARLINER, Joshua. Earthsummitbiz: the corporate takeover of sustainable development. Canada: Institute for Food and Development Policy and Corpwatch, 2002. BYUNG-CHUL, Han. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Rio de Janeiro: Vozes, 2015. CASTELLS, Manuel. Comunicación y poder. Madrid: Alianza Editorial, 2009. CASTILHO, Laís. Análise discursiva de comunicação de empresas certificadas sustentáveis pelo Sistema B-Corporation. 2021. 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O tema do 45 SEÇÃO 1 evento foi “a união de comunidades para atingir a grande transição”. Como resultados, o plano de comunicação elaborado para o evento contribuiu com o fortalecimento de parcerias e das relações institucionais; o aumento da audiência nas redes sociais do Saúde Planetária Brasil; a elaboração, publicação e divulgação de um documento internacional norteador dos próximos passos – a Declaração de São Paulo sobre Saúde Planetária; e a disseminação do conceito de saúde planetária no Brasil. Os aprendizados mostram que a comunicação é chave para o engajamento público e para a difusão de conceitos relacionados às mudanças urgentes, rumo a uma sociedade de baixo carbono, que se impõem para a humanidade neste século. A conferência representou um marco histórico, tendo contado com 5.020 inscritos de 130 países. Palavras-chave: saúde planetária;comunicação; PHAM2021; negacionismo científico. Contexto Cresce, no Brasil e no mundo, a percepção dos impactos que nós, humanos, causamos no meio ambiente, e o quanto esses ecossistemas em desequilíbrio colocam em risco e afetam de volta nossa saúde e nossos modos de vida. Sob esse guarda-chuva, estão a crise climática (aumento de secas, enchentes, ondas de calor, derretimento das calotas polares, eventos extremos) e, também, o risco da eclosão de novas pandemias, como a da covid-19, ocorrida em 2020, cujos impactos sociais, econômicos e na saúde humana ainda são sentidos ao redor do mundo. A Saúde Planetária (SP) abarca esses e outros desafios, tais como a perda da biodiversidade, os sistemas alimentares, e a fome que atinge um contingente massivo de pessoas em um planeta, hoje, habitado por nove bilhões de seres humanos. Como um conceito emergente, a Saúde Planetária, além de um campo de pesquisa, é um espaço de ações práticas que tem como estudos basilares os relatórios “Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: report of 46 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente The Rockefeller Foundation-Lancet Commission on planetary health” (WHITMEE et al., 2015) e “Connecting global priorities: biodiversity and human health: a state of knowledge review” (ROMANELLI et al., 2015). Em resumo, os estudos apontam que comunidades saudáveis dependem de ecossistemas que funcionam bem, pois eles fornecem ar puro, água potável, medicamentos e segurança alimentar, além de limitarem a disseminação de doenças e estabilizarem o clima. Devido à ação humana – baseada na queima de combustíveis fósseis, no crescimento populacional e no atual sistema de extração de matérias-primas, produção e descarte, agravados a partir da Revolução Industrial –, geramos perturbações nos ecossistemas naturais da Terra, que, por sua vez, impactam retroativamente na saúde e no bem-estar humanos. Se somos parte do problema, devemos ser parte da solução. “A Saúde Planetária é, portanto, um novo esforço para tratar a questão da sustentabilidade e da vida humana no planeta sob ótica cada vez mais integrativa, transdisciplinar e global”, como apontado no website do Saúde Planetária Brasil, SPBr, grupo1 criado pela comunidade científica brasileira, e abrigado no Instituto de Estudos Avançados da USP, para estudar o impacto do ser humano nos ecossistemas e os riscos que essas intervenções apresentam para a sobrevivência da própria humanidade. De fato, literalmente todas as áreas do saber e todas as áreas da atividade humana são relevantes para a SP, pois é o conjunto das ações e das escolhas humanas que nos fez chegar a esse paradoxo que contrapõe os enormes ganhos que a humanidade obteve e, igualmente, o enorme risco em que nos colocamos. Assim, SP é muito mais que uma questão apenas de medicina e saúde pública, ou de ciências ambientais, e envolve educação, ciências sociais, engenharias, economia, comunicação, direito, entre outras. O Saúde Planetária Brasil está filiado à Planetary Health Alliance2, PHA, criada em 2016 e sediada na Harvard University, em Boston, Estados Unidos, uma aliança de cerca 1 Na sua criação, em 2019, o grupo foi denominado Grupo de Estudos em Saúde Planetária (GSP), mudando para Saúde Planetária Brasil em 2023. 2 Disponível em: https://www.planetaryhealthalliance.org. 47 SEÇÃO 1 de 300 instituições em torno de 50 países, firmemente dedicadas à difusão e incorporação do conceito e das ações de Saúde Planetária em todas as áreas da atividade humana. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, a questão climática está no topo da lista dos riscos à economia global. No discurso de abertura da 15.ª Conferência da Biodiversidade (COP15), ocorrida em Montreal, no Canadá, no fim de 2022, o secretário-geral da ONU, Antonio Gutérres, foi enfático ao dizer que “estamos nos encaminhando para a sexta maior extinção em massa do planeta” – a primeira provocada por uma única espécie: a humana. Para acrescentar mais uma camada de desafios a serem enfrentados, existe a onda de negacionismo científico – incluindo o negacionismo climático, que visa, por meio da desinformação e da dúvida, desacelerar a urgente e necessária transição para uma sociedade de baixo carbono, embora estudos apontem, para um consenso de 97% entre pesquisadores de clima, de que o homem é responsável pela emergência climática que está em curso. De acordo com relatório preliminar da Organização Mundial de Meteorologia, lançado na Conferência do Clima (COP27) de Sharm El-Sheik, no Egito, em novembro de 2022, os últimos oito anos foram os mais quentes já registrados na história, desde o início das medições, devido ao aumento das concentrações de gases de efeito estufa acumulados na atmosfera (WMO, 2022). Tais dados corroboram o que o pesquisador Ed Hawkins, da University of Reading, já demonstra por meio do projeto gráfico Climate Stripes3, que apresenta, visualmente, o aumento da temperatura média global nos últimos dois séculos. O próprio conceito de “sustentabilidade” ainda está em evolução. A expressão, hoje incorporada pelo mundo empresarial nas ações de ESG (Environmental, Social and Governance), ainda carece de alinhamentos e está longe de superar as lacunas entre discursos e práticas no mundo corporativo. Grosso modo, sustentabilidade envolve aspectos econômicos, sociais e ambientais. A Global Reporting 3 Disponível em: https://www.reading.ac.uk/planet/climate-resources/climate-stripes. 48 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Initiative4 (GRI), organização internacional constituída, há 25 anos, para nortear boas práticas de ESG, criou uma série de indicadores, inclusive setoriais, para mensurar o desempenho empresarial no caminho da sustentabilidade. Entretanto, diante da pressão por resultados de curto prazo para acionistas e investidores, são raras as empresas que optam pelo caminho de incorporação real da sustentabilidade no cotidiano. Em alguns casos, como nos de extração de petróleo e produção de seus derivados, tais medidas implicaram, inclusive, na revisão, por parte de líderes, dos próprios modelos de negócio. Por outro lado, cresce a pressão, por parte de governos e de organismos multilaterais, como é o caso da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), para que as empresas assumam um papel protagonista no caminho da necessária transição “justa e sustentável”. A Organização das Nações Unidas (ONU), criou, em 2015, um documento chamado “Agenda 2030”, no qual lista 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável5 (ODS), com metas a serem alcançadas mundialmente até 2030. O Pacto Global6, criado em 2000, visa engajar as empresas em torno desses mesmos objetivos. Quadro teórico de partida A Universidade de São Paulo foi escolhida pela PHA para organizar o Fourth Planetary Health Annual Meeting7 (PHAM2021), em 2021, em São Paulo. Devido à pandemia da covid-19, inesperadamente, o evento teve que ser planejado para ocorrer totalmente on-line, o que foi um enorme desafio e uma inovação nessa comunidade. Ao mesmo tempo, vislumbrou-se uma grande oportunidade de dar uma escala verdadeiramente planetária ao PHAM2021, aliando o acesso totalmente on-line com a gratuidade do evento. Essas escolhas mostravam-se, 4 Disponível em: https://www.globalreporting.org/. 5 Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. 6 Disponível em: https://www.pactoglobal.org.br/ods. 7 Disponível em: https://www.planetaryhealthannualmeeting.com/pham2021. 49 SEÇÃO 1 também, totalmente alinhadas ao ideal da Saúde Planetária que valoriza a inclusão de todos na busca de soluções e no acesso à SP. De fato, o tema do evento foi escolhido como “Saúde Planetária para todos: unindo comunidades para alcançar a Grande Transição”. O momento era também de grande urgência, pois não só os inúmeros eventos extremos que ocorriam ao redor do mundo, inclusive no Brasil, em 2019 e 2020, mas também a irrupção da pandemia, em 2020, evidenciavam um quadro grave do ponto de vista da SP. A oportunidade não poderia ser melhor para associar esses fatos concretos que assolavam a população com sua origem no impacto humano no planeta. No contexto brasileiro, a realização do evento, pela primeira vez no país, associada a essas condições (mudanças climáticas e pandemia, por um lado, e negacionismo, por outro), sinalizavam uma oportunidade única para disseminar, no Brasil, o conceito de Saúde Planetária, e fortalecer, no país, a comunidade. Esse quadro levou à conclusão de que era necessário o desenvolvimento de um plano estratégico de comunicação do PHAM2021, algo inédito na comunidade, em abrangência e escala. O plano foi elaborado sob os preceitos de estudos de comunicação e de mudanças de comportamento relacionados às mudanças climáticas (MOSER; DILLING, 2007; MCLOUGHLIN et al., 2019; MCKENZIE-MOHR, 2011), em comunicação pública da ciência (COSTA et al., 2010); na comunicação dialógica e horizontal (MEDINA, 2006), e em práticas consolidadas no mercado de comunicação para causas (INDEPENDENT MEDIA INSTITUTE, 2005). Partiu-se da premissa de que a discussão em torno de temas complexos, como os que estão relacionados à Saúde Planetária, seriam mais bem compreendidos e endereçados por diferentes audiências – influenciando mudanças de comportamento e ações concretas – se, por meio da comunicação, fosse possível conectar tais desafios com a realidade local das pessoas, e apresentar soluções associadas aos desafios globais. Experiências internacionais e pesquisas no campo de mudança de comportamento demonstram que os temas relacionados à saúde e ao bem-estar são importantes para trabalhar a percepção de riscos e promover mudanças no estilo de vida, por exemplo, ligado a hábitos 50 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente de consumo (MCLOUGHLIN et al., 2019; TRINDADE, 2021). O plano estratégico de comunicação contemplou, então, formas de conectar a expertise dos diferentes profissionais que atuam em Saúde Planetária com possíveis soluções relacionadas à temática e suas nuances no âmbito das realidades locais e nacional. Negacionismo científico Nos últimos anos, com o advento das mídias digitais, campanhas de divulgação de informações sem embasamento científico, como o terraplanismo, a campanha antivacinas e o negacionismo climático, têm ganhado força no Brasil, apresentando um desafio adicional à comunicação pública da ciência. O pesquisador John Cook, da Monash University, na Austrália, estuda o negacionismo climático, internacionalmente, há mais de 13 anos. Segundo ele, o negacionismo climático, principalmente nos Estados Unidos, surgiu a partir de pesados investimentos da indústria petrolífera em think tanks criadas para desacreditar as mudanças climáticas. As estratégias utilizadas foram as mesmas que, por décadas, foram adotadas pela indústria do tabaco, para desacreditar as pesquisas que demonstravam cientificamente os efeitos adversos do tabagismo. Para inocular as fake news, o Dr. Cook criou o website Skeptical Science, uma plataforma on-line que contrapõe os argumentos negacionistas com os fatos da ciência climática. Para ele, a comunicação é fundamental para inocular fake news e apresentar fatos científicos (SKEPTICAL SCIENCE, 2022). Comunicação estratégica A comunicação dialógica e horizontal, por meio da qual o público não é tratado como mero receptor, propõe uma via de mão dupla de compartilhamento e diálogo na comunicação pública da ciência (MEDINA, 2006; COSTA et al., 2010). Ela é considerada estratégica, no Saúde Planetária Brasil, para o cumprimento de seus objetivos de articulação com parceiros e com a comunidade de atores nacionais e internacionais que estão intrinsecamente ligados à busca por soluções 51 SEÇÃO 1 dos problemas que o planeta e a sociedade enfrentam. É, ainda, norteadora da comunicação pública da ciência relacionada aos saberes da saúde planetária, que vêm das mais diversas áreas. As estratégias de comunicação têm potencial para trazer luz ao conceito da SP e consolidar o Saúde Planetária Brasil em uma posição de pioneirismo nesse movimento no Brasil, na América Latina e internacionalmente. Pesquisas internacionais relacionadas à comunicação das mudanças climáticas apontam que o contato interpessoal é mais efetivo para promover uma real mudança de comportamento. “Embora canais mediados como televisão e jornais possam alcançar milhões e fornecer uma fonte econômica de informações sobre a mudança climática global, eles podem não convencer os indivíduos de que tais mudanças os influenciarão pessoalmente ou que eles podem fazer algo pessoalmente sobre o problema. Ter um impacto nas crenças e comportamentos pessoais de alguém pode exigir uma gama diferente de canais de informação. Especificamente, o padrão ouro para mudança de comportamento continua sendo os canais interpessoais”, afirma a pesquisadora Sharon Dunwoody, da Universidade de Wisconsin (DUNWOODY, 2007). A pesquisadora identificou barreiras para campanhas que visam à mudança de comportamento e oportunidades de comunicação para superá-las. Entre as barreiras estão: 1. crenças preexistentes, que podem influenciar na percepção das mensagens; 2. efeitos não intencionais, como o fortalecimento de crenças ao invés de mudanças efetivas de comportamento, dependendo da forma como a mensagem é comunicada; 3. a produção de uma mensagem única para ser disseminada em diferentes canais; 4. foco exacerbado em dados, em vez de em experiências; 5. dificuldades em comunicar a complexidade científica para audiências acostumadas com informações rápidas e frugais; e 6. competição de atenção dos temas relativos às mudanças climáticas na imprensa, por se tratar de uma questão de longo prazo, com as notícias factuais. Entre as oportunidades de superar tais barreiras, Dunwoody (2007), bem como outros autores que estudam normas sociais (MCLOUGHLIN et al., 2019; DOUG MCKENZIE-MOHR, 2011; BANDURA, 2007), sugere que a influência de um grupo pequeno de pessoas 52 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente certas (influenciadores digitais, por exemplo) pode predizer a influência de grupos maiores. Dunwoody exalta, também, a importância da cobertura jornalística sobre o tema como forma de conscientizar os leitores e pressionar os tomadores de decisão a endereçar o problema, destacando o poder da narrativa. No livro Made to Stick, os irmãos Heath abordam como essa narrativa deve ocorrer para de fato “colar” na percepção das audiências. Em resumo, eles elencam seis princípios que uma mensagem deve conter para ser bem-sucedida na influência positiva desejada: 1. simplicidade; 2. imprevisibilidade; 3. concretude (materialidade); 4. credibilidade; 5. emoção; e 6. conexão com histórias de vida (HEATH; HEATH, 2008). Essas premissas têm sido usadas por diferentes campanhas de comunicação bem-sucedidas ao redor do mundo, como, por exemplo, no treinamento global oferecido pelo ex-vice-presidente norte-americano, Al Gore, por meio do projeto The Climate Reality Leadership Corps, que formou mais de 30 mil ativistas climáticos ao redor do mundo. Resultados e discussão As estratégias de comunicação do PHAM2021 foram desenhadas a partir das premissas teóricas mencionadas e da definição dos públicos estratégicos – palestrantes convidados e suas respectivas organizações; inscritos (após cadastro); comunidade engajada em torno da Planetary Health Alliance (PHA) e do Saúde Planetária Brasil (SPBr); organizações parceiras e financiadoras; público geral da USP em temas correlacionados aos de Saúde Planetária; e comunidades científicas (sociedades científicas e agências, como SBPC, FAPESP, entre outras); mídia; e público em geral. Definiu-se que não seriam criados canais de redes sociais próprios para o PHAM2021, mas que as comunicações seriam feitas nos já existentes canais da PHA e do SPBr no YouTube, Facebook, Twitter, LinkedIn e Instagram. Criou-se um website do evento, com dados sobre a programação, os palestrantes, os trabalhos acadêmicos, as inscrições e o acesso à plataforma contratada para a realização virtual do 53 SEÇÃO 1 evento. O website foi utilizado, ainda, como repositório das palestras no período posterior ao PHAM2021. Entendeu-se que seria importante dar uma unidade na comunicação tanto no Brasil quanto no exterior. Para tanto, a concepção e o desenvolvimento de uma identidade visual para os materiais de divulgação nas redes sociais foram fundamentais. O projeto gráfico foi elaborado pelo aluno Marcelo Marcelino8, sob a supervisão do Prof. Dr. Eneus Trindade, ambos da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), e teve forte impacto, pois trouxe cores e vibração que imprimiram uma brasilidade a todo o material de comunicação criado, tendo sido frequentemente elogiado. O professor Trindade também participou da coordenação de comunicação do evento junto com a Dra. Daniela Vianna, pesquisadora e pós-doutoranda do IEA-USP, que contou com o apoio da pesquisadora Thaís Presa Martins na produção de conteúdos para os canais do SPBr. A Conferência foi copresidida pelo Prof. Dr. Antonio Mauro Saraiva, coordenador do Saúde Planetária Brasil, e pelo Dr. Sam Myers, diretor da Planetary Health Alliance. Criaram-se templates de cards, e as peças de comunicação foram produzidas em português, traduzidas para o inglês e disponibilizadas para serem publicadas pela PHA em seus canais próprios. Houve a produção de kits de mídia que foram disponibilizados para organizações parceiras e para canais de comunicação institucional e a assessoria de imprensa da USP, na linha do que propõe Dunwoody para estratégias de relacionamento interpessoal (DUNWOODY, 2007). Comunicações sobre o PHAM2021 foram disparadas automaticamente para a comunidade USP, a partir de um mailing da Pró-Reitoria de Pesquisa, e uma série de Institutos foi adicionada à lista, a fim de tornar a divulgação do evento na USP o mais abrangente possível. Para a cobertura do evento, foram engajados estudantes da primeira edição do Programa Brasileiro de Embaixadores de Saúde Planetária e/ou membros do Clube Brasileiro de Saúde Planetária, que receberam treinamento prévio, ministrado pelas pesquisadoras 8 Bolsista do Programa Unificado de Bolsas de Estudos para Apoio à Permanência e Formação de Estudantes de Graduação (PUB-USP), sob orientação do Prof. Dr. Eneus Trindade. 54 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Daniela Vianna e Thaís Presa Martins, sobre técnicas de cobertura jornalística. Houve, também, o envolvimento de pós-doutorandos da ECA-USP, designados pelo Prof. Dr. Luciano Maluly, que participaram da produção e da edição de textos disponibilizados no website do Saúde Planetária Brasil, bem como da produção de podcasts sobre os principais temas debatidos no evento. Realizou-se coleta das métricas das redes sociais – Twitter, YouTube, Facebook, Instagram, e LinkedIn – do SPBr, entre outubro de 2020 e dezembro de 2022. Os dados recolhidos foram gerados e disponibilizados gratuitamente pelas próprias empresas responsáveis pelas mídias. Twitter A conta do Twitter, criada em 2 de agosto de 2019, passou de 211 seguidores, em fevereiro de 2021, para 294, em maio de 2021 (após o término do PHAM2021), alcançando 315 seguidores em dezembro de 2022. Isso parece refletir a tendência da mídia Twitter de não ser tão popular no Brasil. Em fevereiro de 2021, o tweet mais destacado foi “Palestra inaugural do Programa Brasileiro de Embaixadores (GSP-IEA-USP)”, com 1.021 impressões9, 53 engajamentos10, e 5,2% de taxa de engajamento11 – demonstrando o interesse dos seguidores por esse tema. A partir de então, os tweets subsequentes de 2021 abordaram o PHAM 2021. Durante a realização do evento, o tweet “Debate incrível sobre o que significa ser feliz no século 21! Ao vivo agora no PHAM 2021” foi o que mais teve impressões – 10.989 ao todo –, gerando 40 engajamentos (taxa de 0,4%). Em 2022, prosseguiu a tendência no Twitter de maior interesse da audiência por postagens relacionadas ao Programa de Embaixadores e ao PHAM2022. 9 “Impressões”, no Twitter, mostram quantas vezes as pessoas visualizaram um tweet. 10 “Engajamento”, no Twitter, diz respeito a todo tipo de interação que seu perfil recebe dentro dessa rede social. Isso inclui curtidas, retweets, respostas e menções à sua marca, além de cliques no link, nas hashtags e nas mídias, como fotos ou vídeos. 11 A “taxa de engajamento” é uma unidade de medida que serve para avaliar o grau de envolvimento do público com os seus posts ou com a sua página. 55 SEÇÃO 1 YouTube A conta YouTube foi criada em 31 de agosto de 2019 e passou de 843 inscritos, em fevereiro de 2021, para 934, em maio de 2021 (após o PHAM2021), e para 1.232, em dezembro de 2022. Entre novembro de 2020 e maio de 2021, o alcance do canal, mensalmente, saltou de 698 impressões12 para 5.600. As visualizações mensais apresentaram uma escalada positiva, passando de 131, em nov./2020, para 258, em maio de 2021, e para 311, em dezembro de 2022. Ao longo de 2022, o canal teve 2.573 visualizações. Dessas, 1.500 foram de vídeos (57%), 1.000 de transmissões ao vivo (39%), e 83 de shorts (vídeos curtos) (3,2%). No entanto, em 2022, houve 42% a menos de visualizações do que no ano anterior – o que evidencia a importância da produção de conteúdo desenvolvida pelos pesquisadores do SPBr antes, durante e logo após o PHAM2021 como estímulo à frequência dos espectadores. Os tipos de fontes de tráfego13, de acordo com as três medições realizadas, também indicam que a comunicação do PHAM2021 contribuiu para fidelizar o público YouTube do SPBr. Houve uma ampliação de acessos por meio de pesquisa no próprio YouTube, que passou de 14,5%, em novembro de 2020, para 33%, em maio de 2021, com pequena redução para 32%, em dezembro de 2022. Em 2022, o YouTube registrou 37.800 impressões, com 3,5% de taxa de cliques14, 1.300 visualizações de impressões15, e mais de 133 horas de tempo de exibição de impressões. Instagram A conta do Instagram, criada em 31 de agosto de 2019, é a mais utilizada pelo público do SPBr, seguindo a tendência de ser uma das 12 “Impressões” significam quantas vezes suas miniaturas foram mostradas aos espectadores no YouTube por impressões registradas. 13 “Fontes de tráfego” são os locais de onde estão vindo as visualizações dos vídeos no YouTube. 14 “Taxa de cliques” refere-se à frequência com que os espectadores assistiram um vídeo depois de ver uma miniatura. 15 “Visualização de impressões” diz respeito ao número de visualizações legítimas dos seus canais ou vídeos. 56 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente redes sociais preferidas pela população brasileira. O número de seguidores respondeu à movimentação do canal, passando de 865, em fevereiro de 2021, para 1.410, em maio de 2021, e chegando a 1.882, em dezembro 2022. Nesse último registro, foi possível mensurar o perfil dos seguidores com relação a: a) gênero – 76% são mulheres e 24% de homens; b) faixas etárias – predominantes entre 25-34, 35-44 e 18-24 anos (figura 1); c) países – 93,9% são do Brasil, mas também há registros de acesso realizados nos EUA (0,7%), Portugal (0,6%), Argentina (0,4%) e Alemanha (0,3%); e d) cidades principais – com predominância de São Paulo-SP (19,2%), seguido por Porto Alegre-RS (4,8%), Rio de Janeiro-RJ (4,1%), Fortaleza-CE (1,9%) e Belo Horizonte-MG (1,8%). Figura 1 – Seguidores por gênero e faixa etária no Instagram em dezembro de 2022. Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022) Entre outubro e dezembro de 2022, com a intensificação das comunicações realizadas pelo SPBr no Instagram, inclusive sobre a realização do PHAM2022, houve o incremento de 199 novos seguidores (um aumento de 32,7% em relação aos 90 dias anteriores). No mesmo período, o alcance das postagens chegou a 2.800 (aumento de 96,3% em relação aos 90 dias anteriores); sobretudo, mídias dos tipos vídeos (664) e imagens (628), e do formato carrossel (1.200), reels (664) e outros (592). Foram postados 16 stories (aumento de 57 SEÇÃO 1 77,8% em relação aos 90 dias anteriores), com alcance de 743 dos stories (aumento de 99,2% em relação aos 90 dias anteriores); principalmente, imagens (236) e vídeos (120). O engajamento16 registrado foi de 865 (aumento de 92,2% em relação aos 90 dias anteriores); predominantemente, pelos tipos imagens (66) e vídeos (30), e pelo formato carrossel (290), outros (63) e reels (30). O número de visitantes foi de 587 (aumento de 17,6% em relação aos 90 dias anteriores). A postagem com maior alcance (1.198, 91% de aumento na média das postagens), likes (212), e comentários (4, 100% de aumento médio), foi sobre a abertura de inscrições para o PHAM2022. O story com mais alcance (353, um aumento médio de 39%) foi sobre as repercussões do SPBr no PHAM2022, evento ocorrido, nos EUA, entre 31 de outubro e 02 de novembro de 2022. Os pesquisadores brasileiros do SPBr, que estiveram no evento presencialmente, realizaram uma conversa, transmitida, pelo YouTube, em 19 de novembro, contando ao público brasileiro sobre os principais acontecimentos ocorridos no evento internacional. Diferentemente do PHAM2021, o PHAM2022 não teve tradução simultânea para a língua portuguesa (figuras 2, 3 e 4). Figura 2 – Alcance de postagens no Instagram entre outubro e dezembro de 2022. Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022) 16 “Engajamento” é a interação do público com o conteúdo nas diversas redes sociais. No Instagram é representado pelas curtidas e comentários feitos nos posts, o compartilhamento de postagens, ao salvar um item na coleção, entre outras ações. 58 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Figura 3 - Alcance de stories no Instagram entre outubro e dezembro de 2022. Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022) Figura 4 – Engajamento por tipo e formato de mídia no Instagram (outubro a dezembro de 2022) Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022) Facebook A conta do Facebook, criada em 26 de julho de 2019, registrou 514 seguidores em outubro a dezembro de 2022. No perfil de gênero, as mulheres representam 65,6% dessa audiência, e os homens, 34,4%. As faixas etárias predominantes são entre 35-44, 25-34, e 45-54 anos, com ampla maioria de perfis do Brasil, 94,2%. No período, a página 59 SEÇÃO 1 teve alcance de 636 – um aumento de 300% em relação aos três meses anteriores –, sendo, em média, por imagens (91), por vídeos (55) e por links (26). Em termos de engajamento17, houve um aumento de 1.100% em comparação com os três meses anteriores (julho a setembro de2022). A publicação com maior alcance (275 pessoas, ou seja, 227% a mais do que a mediana (84 pessoas) e com mais reações (57% maior em relação à mediana de reações) foi a de divulgação do Fifth Planetary Health Annual Meeting (PHAM2022) (figuras 5, 6 e 7). Figura 5 – Seguidores do Facebook por gênero e idade entreoutubro e dezembro de 2022. Fonte: Facebook do SPBr-IEA-USP (30/12/2022) Figura 6 – Engajamento em publicações do Facebook entre outubro e novembro de 2022. Fonte: Facebook do SPBr-IEA-USP (30/12/2022) 17 Engajamento, no Facebook, é a quantidade de curtidas (pessoas aprovando a qualidade do post), os comentários que geram discussão sobre o assunto e o número de compartilhamentos, que expandem a área de atuação daquela postagem. 60 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Figura 7 – Publicações com melhor desempenho entre outubro e novembro de 2022. Fonte: Facebook do SPBr-IEA-USP (30/12/2022) A observação desses dados parece indicar o padrão de sucesso de publicações sobre o PHAM, também, registrado em 2021. Em março de 2021, a divulgação “Estão abertas as inscrições para o 2021 PHAM” teve alcance de 1.011 e 68 reações, números muito acima da média, entre 200-300 de alcance e de 40-50 de reações. Em abril de 2021, o engajamento com publicações foi de 274, um aumento de 54% em relação ao mês anterior (pré-PHAM2021), e, em maio de 2021, o engajamento registrado foi de 940, um aumento ainda mais saliente, 237% em comparação com abril daquele ano. LinkedIn A conta mais recente do SPBr nas redes sociais foi a do LinkedIn, criada em 02 de fevereiro de 2021, em atendimento a uma demanda dos Embaixadores Brasileiros de Saúde Planetária, devido à característica 61 SEÇÃO 1 específica desta rede, com apelo mais profissional do que as demais. O número de seguidores passou de 57, em fevereiro de 2021, para 119, em maio de 2021, e para 261, em dezembro de 2022 – um incremento de 93 novos seguidores só em 2022. A análise de métricas do LinkedIn permite identificar o perfil dos seguidores por principais funções e setores (figura 8). Quanto às principais localidades, 50% dos seguidores eram de São Paulo-SP, em fevereiro de 2021. Esse número caiu para 41,4%, em dezembro de 2022. O mesmo ocorreu entre os seguidores de Porto Alegre-RS, que era de 8,33% em fevereiro de 2011, e passou para 4,6%, em dezembro de 2022. Notou-se, por outro lado, o aumento de seguidores no Rio de Janeiro-RJ, passando de 0%, em fevereiro de 2021, para 5,4%, em dezembro de 2022, e em Campinas-SP, de 0% para 1,9%, respectivamente. Em relação aos visitantes, a página do LinkedIn passou de 165 (54 visitantes únicos), em fevereiro 2021, para 80 (23 únicos), em maio de 2021, e 354 em dezembro 2022 (124 únicos). Figura 8 - Perfil dos seguidores do canal do SPBr no LinkedIn por funções e setores. Principais funções (%) Período fev. 2021 maio 2021 dez. 2022 Educação 23,33 12,50 15,30 Pesquisa 20,00 2,08 10,3 Serviços sociais e comunitários 40,00 8,33 5,00 Meios de comunicação 3,33 10,11 5,40 Organizações de pesquisa 20,45 10,81 0 Ensino Superior 18,18 16,22 16,50/ Pesquisa 9,09 10,81 5,70 Atendimento médico e hospitalar 4,55 0 3,10 Administração pública 4,55 0 5,00 Principais setores (%) Fonte: LinkedIn do SPBr-IEA-USP (fev. 2021, maio 2021, dez. 2022) 62 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente Considerações finais As evidências elencadas apontam que a comunicação foi chave para o sucesso da Conferência, tanto na divulgação de informações sobre a realização do PHAM2021 em si, quanto na oportunidade de se aproveitar a realização do evento para a difusão do conceito de Saúde Planetária no Brasil e no mundo. O PHAM2021 foi o maior evento de SP já realizado até então pela PHA, e contribuiu para a discussão de alternativas para um mundo pós-covid. A Conferência contou com uma palestra principal, nove painéis, cinco sessões de entrevistas, 24 lightning talks e mais de 90 apresentações de pôsteres. Contou, ainda, com 54 eventos paralelos e 22 atividades artísticas e culturais reunidas no Festival, que ocorreu em paralelo à Conferência, na I Semana da Saúde Planetária (KOFFLER et al., 2022). O fato de a Conferência ter sido virtual e gratuita possibilitou a democratização da participação e a ampliação do acesso aos debates para diferentes públicos, setores e geografias. Se, por um lado, houve a perda dos relacionamentos construídos a partir dos encontros presenciais, por outro, a tecnologia permitiu que o evento extrapolasse a “bolha” do público acadêmico, alcançando diferentes setores da sociedade – tais como representantes de governos, formuladores de políticas públicas, lideranças de organismos multilaterais, empresas, terceiro setor, profissionais de saúde, estudantes, cientistas e pesquisadores de diversas partes do mundo. Contar com tradução simultânea do inglês para quatro idiomas (português, espanhol, francês e mandarim), também, contribuiu para reduzir as barreiras que porventura poderiam ser provocadas pela falta de domínio ou fluência em inglês. Dos 5.020 inscritos no evento, 2.183 (43,5%) foram de registros realizados no Brasil (VIANNA, 2021). Para potencializar ainda mais o acesso ao conteúdo de todas as sessões do evento, mesmo após a sua realização, foi editado um livro que traz toda a programação, os textos dos abstracts aprovados e links para cada uma das gravações das sessões (KOFFLER et al., 2022). 63 SEÇÃO 1 As análises dos dados das métricas das mídias do SPBr evidenciam a relevância do PHAM 2021, em três momentos – pré-evento, durante e após –, como propulsores do engajamento brasileiro no tema da Saúde Planetária. A divulgação do PHAM2022, também, teve boa repercussão nas redes sociais. Observou-se que o público-alvo das redes sociais enquadra-se no seguinte perfil: a) gênero (mormente composto por mulheres, mais de 70%); b) faixa etária (predominantemente jovem, entre 25-35 anos); c) país (sobretudo, brasileiros, mais de 90% em diferentes redes sociais); d) cidades principais (maioria oriunda da região de São Paulo-SP); e) principais funções (LinkedIn), Educação e Pesquisa; f) principais setores (LinkedIn), Pesquisa e Ensino Superior. Além disso, o Programa Brasileiro de Embaixadores de Saúde Planetária, uma das ramificações do SPBr, vem contribuindo, de modo importante, para o aumento do público (majoritariamente, entre 18 e 35 anos) e para a difusão do campo e da potência da Saúde Planetária em âmbito nacional. A Saúde Planetária constitui-se em um campo de pesquisas e ações relevantes para imprimir o sentido de urgência para a Grande Transição para uma sociedade de baixo carbono, de forma justa e sustentável. A Declaração de São Paulo em Saúde Planetária18 (MYERS; PIVOR; SARAIVA, 2021), documento resultante do PHAM2021, estabelece diretrizes para diferentes setores, sinalizando rumo e perspectiva nessa direção. Isso requer revisão e alteração de comportamento amplas, por parte da população e de seus diferentes atores. A comunicação, como demonstrado pela análise dos canais do SPBr, é fundamental para informar e motivar diferentes públicos, por meio da difusão de informações e dados baseados em ciência. Faz-se necessário o conhecimento sobre os públicos engajados nas comunicações, como o adquirido por meio de ferramentas de análise das métricas das redes sociais, para que se possa monitorar áreas de interesse e estabelecer estratégias eficientes de comunicação de Saúde Planetária, no presente e no futuro. A comunicação em torno do PHAM2021 e, 18 Acesso à versão em português da Declaração de São Paulo em Saúde Planetária está disponível no website do Saúde Planetária Brasil. 64 Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente também, do PHAM2022, conforme apresentado, já oferecem alguns caminhos possíveis. Referências BANDURA, Albert. Impeding ecological sustainability through selective moral disengagement. International Journal of Innovation and Sustainable Development, Genebra, v. 2, n. 1, p. 8-35, 2007. COSTA, Antonio Roberto Faustino de; SOUSA, Cidoval Moraes de; MAZOCCO, Fabricio José. Modelos de comunicação pública da ciência: agenda para um debate teórico-prático. Conexão: Comunicação e Cultura, Universidade de Caxias do Sul, v. 9, n. 18, p. 149-158, jul./dez. 2010. DUNWOODY, Sharon. The challenge of trying to make a difference using media messages. In: MOSER, Susanne C.; DILLING, Lisa (Ed.). Creating a Climate for Change: Communicating Climate Change and Facilitating Social Change. 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TRINDADE, Eneus. Recepção publicitária e práticas de consumo. Revista Fronteiras: Estudos Midiáticos, São Leopoldo: PPGCOM/UNISINOS, v. X, n.11, p. 73-80. VIANNA, Daniela. #PHAM2021 ampliar rede internacional em torno da saúde planetária. [Internet]. Disponível em: http://saudeplanetaria.iea.usp.br/pt/pham2021-ampliar-rede-internacional-em-torno-da-saude-planetaria/. Acesso em: 18 jan. 2023. WHITMEE, Sarah et al. Safeguarding human health in an Anthropocene epoch: report of The Rockefeller Foundation-Lancet Comission on planetary health. The Lancet, v. 386, p. 1973-2028, 14 nov. 2015. WORLD Meteorological Organization (WMO). Provisional State of the Global Climate in 2022. Disponível em: https://public.wmo.int/en/our-mandate/climate/wmo-statement-state-of-global-climate. Acesso em: 17 jan. 2023. 66 SEÇÃO 2 Comunicação, tecnologias digitais e IA A inteligência artificial como um objeto da pesquisa comunicacional: a contribuição da semiótica peirceana Vinícius Romanini Resumo A semiótica peirceana pode ser considerada uma teoria formal, ou lógica, para o fenômeno da comunicação. De fato, semiose, ou ação do signo, é um sinônimo para comunicação em sentido amplo, que engloba mas ultrapassa o limiar da cultura para incluir qualquer forma de compartilhamento de informação. É justamente por sua generalidade, formalismo e vínculo com a fenomenologia e com a cognição lato sensu que a semiótica pode oferecer uma perspectiva frutífera para o estudo da inteligência artificial (IA). O conceito de informação semiótica é fundamental para definir a inteligência como semiose autocontrolada. Vamos apresentar alguns resultados recentes do atual paradigma conexionista que se baseia em redes neurais inspiradas na atividade cerebral, que alcançaram o chamado “aprendizado profundo”. Apesar de seu inequívoco sucesso em aplicações práticas, as redes neurais artificiais não são capazes de emular julgamentos estéticos e éticos genuínos sobre os quais se baseia uma inteligência capaz 69 SEÇÃO 2 de autocontrole. Por isso, a comunicação homem-máquina descrita no teste de Turing continua a ser uma meta distante de ser alcançada e a semiótica nos ajuda a entender a razão disso e talvez, também, contribua para que essa meta seja alcançada. Introdução A busca pela inteligência artificial nasceu, na segunda metade da década de 40 do século passado, junto com a teoria matemática da informação e com a cibernética (a ciência do controle do comportamento dos animais e das máquinas por meio da comunicação). Duas analogias animaram seus primeiros passos: a da mente humana com o programa de um computador e a dos neurônios do cérebro humano com conexões elétricas controladas por relés. A primeira dessas analogias é um desdobramento do racionalismo, que teve Descartes como seu maior expoente. A segunda, se alinha mais ao empirismo, tomando as sinapses cerebrais como análogas às impressões de sentido de Locke e Hume. Em comum, ambas surgem confrontando a psicologia comportamentalista (Skinner, por exemplo), e adotando uma metafísica nominalista, ou seja, assumindo como premissa que questões relacionadas à natureza da consciência e dos aspectos qualitativos da experiência (tão caras aos filósofos da mente) não eram obstáculos para entender e simular a inteligência em máquinas. Cada uma dessas analogias deu origem a um paradigma de pesquisa diferente: o simbólico, para a busca de regras para a manipulação automática de símbolos na mente; e o conexionista, para a tentativa de reproduzir no computador os padrões de interação que acontecem entre os neurônios no cérebro. Dado o limite da capacidade de memória e de cálculo das primeiras gerações de computadores, o paradigma conexionista não apresentou resultados competitivos no curto prazo e foi, senão inteiramente abandonado, praticamente congelado. Enquanto isso, o paradigma simbólico cresceu rapidamente baseado no cálculo das probabilidades e na busca de uma gramática universal, essencialmente matemática, que fundamentaria todos os processos cognitivos. Apesar de toda a promessa e entusiasmo, o paradigma simbolista esbarrou em problemas ligados à complexidade algorítmica e aos para- 70 Comunicação, tecnologias digitais e IA doxos lógicos ligados à completude dos sistemas simbólicos, perdendo muita de sua força originária (HOFSTADTER, 2001). A comunicação humana, por exemplo, é muito mais complexa do que a linguagem usada na programação dos computadores e a gramática das línguas naturais, usadas numa conversação simples, tem características de recursividade e composicionalidade criativa que vai muito além da dedução dos sistemas lógicos que provam teoremas a partir de um número finito de axiomas. Apesar de muitos alardes falsos, os computadores ainda não passaram no teste que Alan Turing, o pai intelectual dos computadores, desenhou para aferir se uma máquina é inteligente: a capacidade de enganar um ser humano durante um típico papo de boteco. Parece coisa boba, mas a quantidade de implicaturas conversacionais (GRICE, 1981), ironias contexto-dependentes, piadas de mau gosto e asserções contrafactuais “absurdas” envolvidas em vinte minutos de conversa fiada, em torno de um copo de cachaça, fazem com que o teste de Turing continue a ser uma barreira intransponível, até mesmo para supercomputadores capazes de simular o inteiro universo físico.1 Numa reviravolta digna de nota, depois de quase quatro décadas na “geladeira”, o paradigma conexionista baseado em redes neurais foi aquecido pelo big data e pelo incremento na capacidade de computação observados na última década e agora parece estar em clima de primavera. Hoje, há grandes expectativas de que uma máquina baseada em redes neurais multicamadas seja capaz não apenas de “aprendizado profundo” (ou seja, sem o supervisionamento humano), mas também de emular artificialmente a maioria (se não todas) das faculdades mentais humanas, incluindo a capacidade de entreter um diálogo humano-máquina convincente e produtivo, a expressão de emoções e de afetividade capazes de gerar empatia genuína de nossa parte, a ação moralmente fundamentada na tomada de decisões que traga confiança social e, até mesmo, julgamentos estéticos que permitam a criação artística, incluindo desde 1 A razão para isso é que as leis e constantes físicas da natureza são conhecidas com exatidão. Ao definirmos de forma suficientemente completa as condições iniciais do Universo, um computador pode simular com boa aproximação o estado atual. O problema é de complexidade polinomial (P). Já uma conversação usando uma língua natural depende de interpretações que abrem um leque imenso de possibilidades a cada novo ato de fala, o que rapidamente provoca uma explosão exponencial de trajetórias possíveis. O problema é de complexidade não polinomial (NP). 71 SEÇÃO 2 imagens fotográficas e cenas de filmes até a redação de peças de teatro e roteiros para a televisão ou cinema. Claro que a definição de inteligência é crucial quando tais afirmações são feitas. Uma anedota conhecida entre os filósofos da mente é que “a inteligência é e continuará a ser sempre aquilo que uma máquina não consegue fazer – ainda.” Não nos deixemos enganar pelas cenas de ciborgues falando como humanos disponíveis nas redes sociais e, menos ainda, pelos criativos e bem-escritos textos assinados por algoritmos de IA que têm aparecido na imprensa. Há pouca espontaneidade e certamente nada que se assemelhe ao livre-arbítrio, à consciência e às emoções nessas manifestações dos autômatas. Ao contrário, eles são o resultado da preparação cuidadosa de imensos e caríssimos bancos de dados usados para o treinamento das redes neurais, ou seja, para a extração de padrões de fala e escrita que depois servirão de parâmetros para o funcionamento dessas máquinas. E, ainda assim, o resultado final tem a curadoria cuidadosa de uma mente humana que conduz a conversa sabendo das limitações do repertório da máquina ou fazendo a copidescagem final para agregar diversas versões de texto numa única peça que soe inteligível e coerente aos nossos ouvidos. A inteligência genuína dos seres vivos, por outro lado, parece envolver inferências muito rápidas a partir da percepção imediata e da síntese de elementos qualitativos (ROMANINI, 2014a). Um microrganismo, por exemplo, não tem cérebro e, portanto, não dispõe de padrões probabilísticos inscritos na memória das conexões de neurônios para guiar a “tomada de decisões” necessárias para sua sobrevivência e reprodução biológica. Muito menos manipula símbolos por meio de regras inscritas em sua memória particular. Ainda assim, constatamos que esses seres unicelulares são capazes de sentir flutuações significativas no gradiente das concentrações químicas presentes no meio em que vivem e reagir instintivamente a partir de um “conhecimento” ou, se quisermos deflacionar semanticamente, de um repertório de possíveis reações acumulado em seu genoma ao longo de milhões de anos de evolução, em que variações fortuitas no código genético foram naturalmente selecionadas pelo meio. Temos, neste exemplo, um tipo de computação analógica, baseado em contínuos de variação nos estímulos sobre a totalidade da 72 Comunicação, tecnologias digitais e IA membrana celular (ao invés de sinais discretos como ocorrem linearmente nas sinapses) e a ação de proteínas com suas formas tridimensionais, que se parecem esculturas orgânicas esteticamente admiráveis (ao invés das trilhas lógicas entediantes dos chips de computadores). O metabolismo celular e o sistema imunológico dependem de um tipo de inteligência não-computável pelas estratégias implementadas até agora. As redes neurais na ribalta Mesmo com todas essas importantes observações, ninguém questiona que algoritmos de redes neurais têm alcançado resultados surpreendentes e merecem nossa atenção. Surgiram há quase 80 anos e evoluíram a partir de trabalhos de pesquisadores como McCulloch & Pitts (1943), Rosenblatt (1957), Hinton (1995) e Eliasmith (2012), que tomaram o funcionamento biológico do cérebro como o protótipo para a construção de dispositivos artificiais que emulam faculdades mentais. Hoje, temos algoritmos de aprendizado profundo que podem não apenas dominar qualquer jogo de tabuleiro, mas também resolver problemas difíceis de diagnóstico e síntese nos campos da medicina, química e farmacologia (SEJNOWSKI, 2018). No setor da produção midiática, redes neurais, como o GPT-3 (Generative Pre-Training Transformer 3, desenvolvida pela OpenAI) demonstraram ser capazes de produzir textos significativos (em inglês, principalmente, mas o problema de gerar textos em outras línguas é considerado trivial e depende apenas do correto treinamento do algoritmo a partir de volumes adequados de exemplos nessas línguas) ao ponto de se tornarem indiscerníveis de textos elaborados por inteligência humana. Não parece haver limites para o refinamento dessas tecnologias, para além do consumo crescente de energia e a capacidade instalada de computação e memória dos chips dos computadores onde rodam. Por exemplo, a versão do GPT-4 é esperada com a sempre renovada promessa de passar o teste de Turing. Ela será 500 vezes mais eficaz do que sua versão anterior e, pela primeira vez na história das redes neurais artificiais, terá uma quantidade de parâmetros semelhante ao número de relações que os neurônios humanos podem fazer no cérebro. 73 SEÇÃO 2 Essas redes neurais de aprendizado profundo emergem de forma não supervisionada e seu imenso poder preditivo só é proporcional à opacidade com que operam. Isso porque o design racional dessas redes não é possível, pois nenhum algoritmo pode prever, desde o início, qual configuração de camadas, valores e pesos terá um desempenho ideal para um determinado conjunto de treinamento ou um novo conjunto de dados de entrada. O número de tais algoritmos que regem diversos aspectos da vida social humana está crescendo rapidamente (exemplos são reconhecimento facial, diagnósticos médicos, algoritmos de marketing direcionado e de recomendação), mas geralmente não há uma explicação boa, coerente e inteligível de por que uma rede treinada funciona, ou como ela é capaz de fazer o que faz. Nós as pomos para rodar e assistimos estupefatos aos resultados. Dada a falta de transparência e, portanto, de controle social sobre esses processos, o possível impacto negativo dessas tecnologias cognitivas quando aplicadas às plataformas de redes de comunicação – ou no trabalho desempenhado pelas redações jornalísticas e pelas agências de criação publicitária ou de marketing político –, só agora começa a ser entendido. Considerando que todo sistema autoritário de governo promove a opacidade de suas próprias escolhas enquanto torna transparente a privacidade dos seus governados, as implicações sociológicas da adoção acrítica da inteligência artificial na tomada de decisões representam uma ameaça sem precedentes às formas democráticas de organização social. Poderíamos listar muitos exemplos de crimes de racismo de dados, manipulação de processos eleitorais e de invasão de privacidade perpetrados por algoritmos sem que se saiba ao certo quem punir. O que são as redes de aprendizado profundo As redes neurais capazes de aprendizado profundo são multicamadas constituídas por arranjos de elementos (nós) que são conectados a outros nós de camadas adjacentes. Os nós cumprem o papel dos neurônios e as conexões, o das sinapses. As informações fluem sequencialmente da camada de entrada (input) para as intermediárias e, finalmente, para a camada de saída (output). Usando sempre probabilidades, os nós recebem valores e as conexões entre nós recebem pesos que determinam a 74 Comunicação, tecnologias digitais e IA estrutura relacional da rede. Numa rede neural treinável, uma estratégia de avaliação é usada para modificar de forma adaptativa os pesos e valores de modo que seu desempenho melhore com o treinamento. No caso do aprendizado profundo, um procedimento chamado retropropagação (backpropagation) é usado para modificar automaticamente, sem qualquer supervisão humana, os pesos entre as conexões, movendo-se para trás através das camadas – ou seja, no inverso do fluxo original de informações pela rede. O aprendizado ocorre por “tentativa e erro” e força bruta, normalmente exigindo um grande número de iterações de treinamento para a rede convergir para um arranjo de pesos com melhor desempenho. Figura 1 – Uma rede neural é uma sequência de nós por onde a informação flui a partir dos estados de entrada (input) na direção dos estados de saída (output). Tantos os nós quanto as conexões (representadas por flechas) têm valores probabilísticos que são alterados ao serem expostos a um banco de dados preparado para o treinamento. O desenho de uma rede neural tenta reproduzir a estrutura de um sistema conhecido pelos pesquisadores em inteligência artificial como manta ou cobertor de Markov2 e que foi originalmente introduzido por 2 O manto de Markov leva esse nome em homenagem ao matemático russo ativo até as primeiras décadas do século XX e que estudou processos estocásticos (aleatórios). Nesses processos discretos, um estado particular depende apenas do estado anterior, o que gera uma cadeia causal que independe de memória de longo prazo. Tudo se resolve na interação imediata entre estados sucessivos. 75 SEÇÃO 2 Judea Pearl (1988). A manta de Markov expressa as condições mínimas necessárias que as regiões de contorno de um estado interno (ou nó) A de qualquer sistema devem ter para se preservar da degradação devido ao aumento da entropia, ou seja, a tendência inexorável para a desordem que acompanha qualquer processo físico. A manta de Markov de um conjunto de estados internos que consiste em seus genitores, suas crias e os genitores de suas crias. Além disso, a manta é dividida em estados perceptivos (de input), capazes de representar os estados externos selecionando as informações recebidas, e estados ativos (de output), capazes de influenciar o ambiente transmitindo o fluxo de informações processadas pelo estado interno. A essência de todo o processo é que, se o estado interno A “aprende” sobre seu ambiente por meio de seus genitores, ele instrui “inteligentemente” suas crias e genitores de suas crias sobre como agir no ambiente de forma a favorecer a continuidade do fluxo. O sistema realiza algo semelhante à homeostase dos seres vivos, garantindo que seus estados internos gravitem em torno de parâmetros bem definidos. Figura 2 – O manto ou cobertor de Markov é um invólucro que separa um estado interno A de seu ambiente por meio de estados intermediários representados dentro do círculo pontilhado. O manto consiste nos genitores de A, nas crias de A e dos genitores das crias de A. 76 Comunicação, tecnologias digitais e IA Do ponto de vista das ciências cognitivas clássicas, há muitas dúvidas se devemos usar palavras como “aprendizado” e “inteligência” para definir o que fazem as redes neurais de aprendizado profundo inspiradas no manto de Markov. Essa discussão está presente em muitos teóricos da inteligência artificial. Brian C. Smith (2019), por exemplo, diferencia dois tipos básicos de inteligência: cálculo (reckoning) e julgamento (judgement). Embora os computadores estejam se tornando mais potentes no processamento de informações volumosas por meio da força bruta do cálculo matemático, eles são incapazes de produzir inferências significativas baseadas na percepção e na experiência com o mundo real. Enquanto a máquina de Turing se restringe ao cálculo lógico, manipulando símbolos discretos, o julgamento parece exigir um tipo de inteligência situada e incorporada, que se relacione de forma analógica com a realidade particular a sua volta, ao mesmo tempo em que recebe influxos de leis gerais vagas que governam níveis mais altos de um complexo hierárquico de relações contínuas e analógicas. Falando semioticamente, é preciso desenhar máquinas capazes de produzir informação por meio da simulação de inferências ampliativas semelhantes às que ocorrem com os seres vivos durante a experiência com o real (ROMANINI, 2014a). A abdução, ou inferência hipotética, permite a internalização de novidade genuína e, por isso, o desenvolvimento dos símbolos (especialmente hábitos mentais que chamamos de crenças) por aperfeiçoamento gradual que busca minimizar a diferença entre a realidade experimentada e as representações internas do sistema. A semiose é um fenômeno distribuído que demanda uma renovação paradigmática. Por exemplo, o conceito de mente estendida atualmente em elaboração pelos teóricos da cognição postula que a mente não é o que ocorre apenas dentro de cacholas físicas, mas um processo relacional que não tem contornos definidos no espaço-tempo. Estamos falando de informação semiótica e um tipo de inteligência que ultrapasse o autismo das versões autistas e autorreferentes dos paradigmas conexionista e simbólico clássicos. 77 SEÇÃO 2 A noção de inteligência a partir da informação semiótica Fundamentalmente, a perspectiva semiótica parte do pressuposto metafísico de que a mente não é um epifenômeno emergente das interações neuronais, mas um componente da realidade. Em outras palavras, consciência e qualidades de sentimento não seriam intenções secundárias formadas a partir de impressões de sentido primárias mas, ao contrário, manifestações fenomenológicas do que Peirce chama de primeiridade. As ações e reações que ocorrem nas trocas energéticas dos neurônios são classificadas como casos de secundidade. As cognições e informações, por serem fenômenos de continuidade e mediação semelhantes aos hábitos e padrões que regulam e governam as interações diádicas, são exemplos de terceiridade. Se uma probabilidade indutiva tem uma força de lei típica da secundidade, é a internalização de novidade por meio de qualidades e possibilidades capazes de quebrar padrões estabelecidos e formar novos hábitos que melhor define semioticamente a “mente”. A mente se expressa na semiose, ou ação do signo. Para Peirce, signo (usemos S para representá-lo) é justamente uma entidade cognoscível que tem a capacidade de representar alguma coisa diferente de si mesmo – seu objeto ou, mais precisamente, seu objeto dinâmico (Od) – para criar um efeito numa mente (ou numa quasi-mente, se pensarmos a partir de um realismo objetivo que inclui fenômenos biológicos, químicos e até físicos). Esse efeito criado vicariamente pelo signo é chamado de interpretante (I). Mais uma vez, não é necessário que haja um intérprete da maneira como a psicologia define os sujeitos que interpretam signos. Basta apenas que haja potencialmente um efeito resultante da ação sígnica (LISZKA, 1996; ROMANINI, [s.d.]). O signo não representa seu objeto perfeitamente, mas deve selecionar alguns aspectos, e essa imagem composta chamamos de objeto “imediato” (Oi). A diferença entre a forma perfeita do objeto dinâmico e a imperfeita do objeto imediato precisa ser minimizada por meio de inferências hipotéticas e correções contínuas na produção dos interpretantes. Isso significa que temos interpretantes dinâmicos (Id) que vão sendo aprimorados na direção de um interpretante final (If). Embora a perfeição seja uma meta (como diz o poeta), ela é um 78 Comunicação, tecnologias digitais e IA ideal normativo que guia a semiose. Tanto o objeto imediato quanto o interpretante imediato são aspectos internos ao signo e, podemos dizer, apresentam uma relação de oposição complementar semelhante ao conceito de Yin-Yang do taoísmo: o objeto imediato é o resultado da influência do objeto dinâmico e, portanto, se refere ao passado; o interpretante imediato representa a amplitude de interpretações possíveis do signo e, portanto, se projeta em direção ao futuro. A qualquer momento o objeto dinâmico pode surpreender nossas representações e frustrar nossas expectativas de interpretação possível. Essa surpresa é ao mesmo tempo desejada (porque é a fonte de toda novidade e de oportunidade de aprendizado), mas também um estado de irritação (ou dúvida mental, como explica Peirce) que precisa ser eliminado por meio de um método de investigação preciso, chamado de pragmático. A tarefa do raciocínio autocontrolado inteligente é justamente o de reduzir a diferença entre a forma realmente presente no objeto dinâmico e a forma entitativamente presente no objeto imediato, produzindo um hábito mental, ou crença, que seja resiliente ao longo da experiência com a realidade. Como explica o próprio Peirce: [...] Eu raciocino não pelo prazer de raciocinar, mas apenas para evitar decepções e surpresas. Conseqüentemente, devo planejar meu raciocínio para que, evidentemente, evite essas surpresas3 . (CP 2.173) O protagonismo do símbolo peirceano Por símbolo entendemos, em primeiro lugar, um signo geral. Os símbolos não têm existência per se, mas dependem de instanciações em réplicas para ganhar corpo físico (ROMANINI, [s.d.]). O exemplo usual é uma palavra linguística, que não depende de ser escrita ou falada por algum indivíduo para ser real, embora apenas essas instanciações existenciais possam torná-la efetiva. Mas um símbolo também deve 3 [...] I do reason not for the sake of my delight in reasoning, but solely to avoid disappointment and surprise. Consequently, I ought to plan out my reasoning so that I evidently shall avoid those surprises. (CP 2.173) 79 SEÇÃO 2 representar alguns aspectos gerais do objeto que é representado – ou do complexo de objetos, pois geralmente é esse o caso. Esse aspecto geral, que se assemelha à noção platônica de “ideia”, é também a forma geral que o símbolo veicula. O símbolo é análogo à deusa grega de dupla face Tyche (ROMANINI, [s.d.]). Uma de suas faces capta informações vindas do passado, que se materializam nos ícones que habitam os índices da experiência (o exemplo do catavento que traremos mais à frente vai ajudar a esclarecer como isso acontece). Com efeito, o que determina o símbolo é o índice que ele deve comportar, que o liga materialmente ao contexto existencial concreto, o hic et nunc da realidade. A outra face vislumbra o futuro e cria conjecturas tentando trazer os ícones e índices percebidos para a unidade de um conceito em evolução. Um símbolo vivo deve então ser explicado como um signo em evolução contínua, funcionando como veículo ou meio para um fluxo de informação que vem de um passado completamente determinado para um futuro vago e indeterminado – o cerne da semiose. Isso explica o crescimento dos símbolos pela incorporação sempre imperfeita, mas também autocorretiva, das formas dos objetos dinâmicos que eles representam. Se e quando essa incorporação for concluída, o símbolo alcançará sua enteléquia ou o interpretante final perfeito. Este seria seu “interpretante final último” que poderia ser definido como um hábito em perfeita harmonia com a superordem, ou super-hábito, que rege a própria realidade que o signo professa representar. Esse hábito seria o fundamento de uma hipótese explanatória, ou crença, inabalável a eventos futuros – o fim da semiose. Peirce: Qual é, então, o fim de uma hipótese explicativa? Seu objetivo é, através da sujeição ao teste da experiência, levar a evitar toda surpresa e ao estabelecimento de um hábito de expectativa positiva que não será desapontado.4 (CP 5.197) 4 What, then, is the end of an explanatory hypothesis? Its end is, through subjection to the test of experiment, to lead to the avoidance of all surprise and to the establishment of a habit of positive expectation that shall not be disappointed. (CP 5.197) 80 Comunicação, tecnologias digitais e IA Vemos então que a informação é um processo intrínseco ao símbolo, embora outros tipos de signos também desempenhem papéis importantes por serem envolvidos nos símbolos. Ícones são essenciais para dar corpo à forma ou ideia a ser comunicada pelo símbolo, enquanto índices são necessários para apontar quais são os objetos aos quais essa ideia pode ser aplicada. A parte icônica do símbolo é chamada de compreensão, conotação ou profundidade. A parte indicial é chamada de extensão, denotação ou amplitude. Peirce define o objeto denotado como a fonte da informação, que ocupa a posição de emissor (Peirce usa “enunciador” para a fonte e “enunciado” para a mensagem). Como nossa principal preocupação aqui é a informação na comunicação, devemos considerar o que transforma um símbolo em um transmissor de informações, como uma afirmação (a expressão de uma crença particular em um contexto definido) ou uma proposição (a forma geral de um símbolo informativo, geralmente diagramático, e que pode ser afirmado em diferentes sintaxes). Esses símbolos informativos são chamados por Peirce de signos discentes (STJERNFELT, 2014). Um dos exemplos mais trabalhados por Peirce é o catavento, dispositivo capaz de informar a direção do vento. Por ser uma máquina, oferece uma reflexão interessante no contexto da busca da inteligência artificial a partir dos pressupostos semióticos: A referência de um signo a seu objeto ganha destaque especial em um tipo de signo cuja aptidão para ser signo se deve ao fato de estar em uma relação reativa real, geralmente uma relação física e dinâmica, com o objeto. Tal signo eu denomino um índice. Como exemplo, pegue um catavento. Este é um signo do vento porque o vento o move ativamente. Ele está voltado para a mesma direção de onde sopra o vento. Na medida em que faz isso, envolve um ícone. O vento o obriga a ser um ícone. Uma fotografia que é compelida pelas leis óticas a ser um ícone de seu objeto diante da câmera é outro exemplo. 81 SEÇÃO 2 É dessa forma que esses índices transmitem informações. São proposições. Ou seja, eles indicam separadamente seus objetos; o catavento porque gira com o vento e é conhecido pelo seu interpretante por fazê-lo; a fotografia por uma razão semelhante. Se o catavento emperrar e não girar, ou se a lente da câmera estiver ruim, um ou outro será falso. Mas se esse for o caso, eles se transformam imediatamente em meros ícones, na melhor das hipóteses. Não é essencial para um índice que ele envolva um ícone. Só que, se não o fizer, não transmitirá nenhuma informação. (MS 7, 17-18)5 Vimos acima que um catavento funcionando corretamente se movimenta acompanhando a forma do movimento do vento (parte icônica, conotativa), e essa reação física o obriga a apontar para a direção para onde o vento sopra (parte indicial, denotativa). No entanto, o catavento só é capaz de transmitir informações sobre o vento se receber o influxo de um símbolo, nesse caso imputado pela comunidade dos interpretantes que o usam pragmaticamente para tomar decisões inteligentes sobre a experiência cotidiana. Se o catavento estiver funcionando corretamente, esse índice também envolve um ícone que representa a forma real do sopro do vento. E o símbolo seria verdadeiro se o habitual “vira-a-ser” (would-be) 5 The reference of a sign to its object is brought into special prominence in a kind of sign whose fitness to be a sign is due to its being in a real reactive relation,— generally, a physical and dynamical relation,— with the object. Such a sign I term an index. As an example, take a weather-cock. This is a sign of the wind because the wind actively moves it. It faces in the very direction from which the wind blows. In so far as it does that, it involves an icon. The wind forces it to be an icon. A photograph which is compelled by optical laws to be an icon of its object which is before the camera is another example. It is in this way that these indices convey information. They are propositions. That is they separately indicate their objects; the weather-cock because it turns with the wind and is known by its interpretant to do so; the photograph for a like reason. If the weathercock sticks and fails to turn, of if the camera lens is bad, the one or the other will be false. But if this is known to be the case, they sink at once to mere icons, at best. It is not essential to an index that it should thus involve an icon. Only, if it does not, it will convey no information. (MS 7, 17-18) 82 Comunicação, tecnologias digitais e IA que o acompanha representasse corretamente essa informação icônica apresentada pelo catavento. Em termos lógicos, o símbolo conota verdadeiramente o que realmente denota. Além disso, o vento que sopra o catavento está no passado de qualquer observador concebível que colha a informação, enquanto as consequências pragmáticas da afirmação feita pelo aparelho estão sempre no seu futuro. Deve haver então um esquema contínuo, ou sintaxe, ligando as possibilidades reais do ícone no nível perceptivo ao ícone das consequências lógicas. O primeiro entra no conhecimento por meio de julgamentos perceptivos, e o segundo se torna informação consciente pelo raciocínio diagramático, onde as relações são representadas na forma de pensamento. Esse fluxo de informação da forma real do objeto para a forma geral do interpretante no símbolo deve então ser contínuo no tempo, e o esquema lógico do tempo deve explicar o ser de uma proposição. (MS 664, 10-13)6 O diagrama abaixo representa o fluxo de informação que parte do vento (Od) em direção ao signo (S), composto por seus dois aspectos internos: objeto imediato (Oi, o movimento internalizado nas engrenagens do catavento) e interpretante imediato (Ii, as indicações da ponteira da flecha do catavento), que estão representados pelo símbolo Yin-Yang. Da latitude de possíveis interpretações do interpretante imediato brotam 6 If the weather-cock is functioning correctly, this index also involves an icon that represents the real form of the blow of the wind. And the symbol would be true if the habitual “would-be” that accompanies it correctly represents this iconic information presented by the weather-cock. In logical terms, the symbol connotes truly what it truly denotes. Moreover, the wind that blows the weather-cock is in the past of any conceivable observer that would collect the information, while the pragmatic consequences of the assertion made by the apparatus are always in its future. There must be then a continuous schema, or syntax, linking the real possibilities of the icon at the perceptive level to the icon of the logical consequences. The former enters the knowledge through perceptual judgments, and the latter becomes conscious information by diagrammatic reasoning, where relations are represented in the form of thinking. This flow of information from the real form of the object to the general form of the interpretant in the symbol must then be continuous in time, and the logical schema of time must account for the being of a proposition (MS 664, 10-13). 83 SEÇÃO 2 os interpretantes dinâmicos. Eles seriam as interpretações informativas efetivamente produzidas por um observador (humano ou qualquer mecanismo de registro dessas informações). Em mecanismos materiais rígidos como os cataventos, compostos por ferro e madeira, os interpretantes imediato e dinâmico seguem cadeias causais governadas por hábitos naturais que nada mais são do que as próprias leis da física. Figura 3 – A semiose é um processo de transmissão de informação que parte de um emissor (Od, Objeto dinâmico) e chega ao receptor (Id, Interpretante dinâmico) depois de ser codificado pelo signo (S) em seus aspectos internos, o objeto imediato (Oi) e o interpretante imediato (Ii). Já em sistemas inteligentes complexos e hipersensíveis às condições iniciais, como é o caso de mentes humanas, os estados internos do signo (Oi e Ii) se descolam da causalidade estrita, produzindo imprevisibilidade e criatividade (PRIGOGINE, 1996). Ao invés das leis estritas da física fundamentando os processos, temos hábitos mentais falíveis e flexíveis, como as hipóteses, crenças, conjecturas e expectativas futuras. E justamente por isso podem errar, podem ser surpreendidos por novidades imprevistas, podem alucinar (SETH, 2021) e produzir ficções sem lastro na realidade sensível. Só pode ser inteligente quem é livre para errar e sonhar com mundos possíveis. Até pouco tempo, não havia uma teoria que permitisse compreender a dinâmica intrínseca aos sistemas semióticos complexos, mas a inferência ativa proposta por Karl Friston (2009, 2010), a partir das cadeias de Markov, permite avançar conjecturas produtivas. 84 Comunicação, tecnologias digitais e IA O princípio da energia livre e a inferência ativa O princípio da energia livre (PFE) foi originalmente proposto como uma explicação de como as propriedades de certos tipos de sistemas são mantidas invariantes diante de variações contínuas nas relações desenvolvidas com seu ambiente. Como princípio, não pode ser refutado e deve ser tratado como uma suposição metafísica. Mas isso não significa que não deva ser considerada uma conjectura científica legítima. Simplificando, postula que os sistemas autopoiéticos (MATURANA; VARELA, 2001) dedicam grande parte de seus recursos à obtenção de informações que possam servir de evidência para um modelo sobre o meio ambiente. Os sistemas que sobrevivem ao longo do tempo buscam continuamente evidências de que suas crenças sobre o mundo externo são suficientemente corretas e, portanto, são “hábitos mentais” que merecem ser preservados. Friston chama esse processo de busca de inferência ativa, e sua semelhança com a inferência abdutiva de Peirce é evidente (BENI; PIETARINEN, 2021). Conforme observado por Ramstead et al. (2020), a partir das contribuições de Friston, as mantas de Markov podem ser interpretadas semanticamente assumindo que os estados sensoriais são representações significativas da realidade. Nesse caso, os estados ativos devem ser considerados interpretações dinâmicas do que é representado. O sistema, agora renomeado como “manta de Friston”, exibe muitas propriedades que são encontradas na definição de um signo. O sistema se comporta como se estivesse escalando uma distribuição de probabilidade de estado para os estados menos prováveis. Esse comportamento indica que a trajetória do sistema gravita em torno de um estado estacionário no espaço de fase, que é o que o mantém afastado do equilíbrio termodinâmico. É isso o que os símbolos fazem ao internalizar informações por meio dos ícones, conectando-se fisicamente ao ambiente por meio de índices e se auto-organizando a partir de propósitos por meio do planejamento diagramático das ações futuras, sempre tendo em vista o propósito da permanência e da seleção de interpretantes estéticos gerais – os nossos sentimentos lógicos (ROMANINI, 2018). Nessa dinâmica delineada pela inferência ativa, supõe-se que a energia livre do sistema, interpretada por Friston como medida da 85 SEÇÃO 2 complexidade de sua estrutura, forneça uma medida da rigidez da crença que o sistema adquiriu em sua interação com o meio. Com a ocorrência do acaso afetando as tendências do sistema, essa rigidez é um fator negativo para sua permanência, por isso precisa ser reduzida. Crenças mais amplas e flexíveis são menos específicas, por isso são mais bem adaptadas a quaisquer surpresas que possam ser percebidas em interações futuras onde o acaso desempenha um papel. Ao minimizar sua energia livre, o sistema cria um modelo de mundo mais flexível, consequentemente aumentando sua adaptabilidade no longo prazo. Assim como na definição de símbolo de Peirce, o essere in futuro é a essência desse processo, como explicam Beni; Pietarinen (2021): As fronteiras dos organismos caracterizados como mantas de Markov – ou melhor, sua interpretação realista como mantas de Friston – têm uma forma marcadamente peirciana, irredutivelmente triádica. A própria fronteira é um mediador entre os estados externos e internos do agente. Ele fornece a maneira como a informação flui dos estados externos para os internos, com as mudanças resultantes no sistema de “crenças” dos agentes a respeito de suas hipóteses, que, como Peirce observa, são aceitas “em provação” (CP 6.525), ou seja, em o que as mudanças externas podem vir a ser no futuro.7 Conclusão A semiose é um outro nome para comunicação. Os modelos funcionalistas e matemáticos usados para descrever a transmissão da 7 The boundaries of organisms characterized as Markov blankets - or rather their realist interpretation as Friston blankets - have a markedly Peircean, irreducibly triadic form. The boundary itself is a mediator between the agent’s external and internal states. It provides the form of how information flows from external to internal states, with the resulting changes in the ‘belief’ system of the agents concerning its hypotheses, which as Peirce notes are accepted “on probation” (CP 6.525, 1913), namely on what the external changes may turn out to be in the future. 86 Comunicação, tecnologias digitais e IA informação de um emissor para um receptor por meio de uma mensagem que circula num canal sujeito a flutuações ruidosas capturam os aspectos da comunicação que atentem aos propósitos do funcionalismo. A inteligência, seja ela natural ou artificial, depende dessa transmissão de informação por meio de símbolos e sinais codificados, mas enfatiza os elementos qualitativos, icônicos, de primeiridade. Os limites observados nos paradigmas simbólico e conexionista na pesquisa por inteligência artificial abrem caminho para o desenvolvimento de um paradigma semiótico que parta de uma reflexão sobre a ontologia dos processos comunicacionais. 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Boston: Docent Press, 2014. 88 Os impactos da Inteligência Artificial e dos Sistemas de Recomendação na comunicação em Redes Sociais Diogo Cortiz Introdução A Inteligência Artificial (IA) é uma área de conhecimento que está passando por um pico de desenvolvimento e transformando diferentes áreas da sociedade. Apesar de muitas pessoas se referirem à IA como uma tecnologia, eu prefiro tratá-la como uma área de conhecimento que surge em paralelo com a computação. E explico o meu motivo. Hoje, a IA se materializa de tantas diferentes formas e modalidades que fica difícil defini-la com apenas uma e singular tecnologia. Posso dar alguns exemplos. Existem sistemas que fazem tradução a partir de textos, plataformas que fazem o reconhecimento facial usando imagens ou então modelos que são capazes de prever o valor de uma ação ao processar dados financeiros. O que todos eles têm em comum? Talvez somente o fato de serem chamados de IA, porque ao analisarmos sua anatomia percebemos que são arquiteturas, modelos e dados totalmente diferentes. 89 SEÇÃO 2 Eu pretendo discutir, neste trabalho, o impacto da IA na comunicação, com um recorte específico na comunicação digital. A história nos mostra que as novas tecnologias modificam e influenciam o processo comunicacional. Foi assim com o surgimento da prensa móvel de Gutenberg, o rádio, a televisão, a internet e, mais recentemente, o smartphone. No entanto, estamos acompanhando a emergência de um fenômeno interessante com a expansão do uso da IA na comunicação, principalmente com o uso de modelos específicos que apresentam um maior controle do fluxo informacional, muitas vezes sem transparência e supervisão humana. Sundar (2020) cita que a IA se torna parte integrante da comunicação mediada conforme as novas tecnologias de mídias e comunicação incorporam mais modelos de aprendizado de máquina. Ele defende ainda que os estudos de mídias devem levar em conta o fato de que cada vez mais um agente inteligente está mediando o conteúdo e que é um risco assumir que as mídias são apenas canais entre emissores e receptores humanos. As plataformas de mídias sociais inauguraram um novo paradigma na forma em como o usuário interage e consome conteúdo quando implementaram modelos de IA em seus serviços. De uma forma mais específica, estou me referindo principalmente aos Sistemas de Recomendação, um tipo de aplicação de IA que traça um perfil dos usuários para fazer indicação de produtos e serviços. Hoje, quase todas as plataformas deixaram em segundo plano o feed cronológico – aquele em que as postagens aparecem de acordo com o horário – e adotaram esse tipo de sistema para personalizar a entrega de conteúdo para cada um dos seus usuários. Desta maneira, as plataformas buscam melhorar a experiência de uso e maximizar o engajamento dos usuários ao supor que estão selecionando, a partir de uma tormenta de conteúdos postados diariamente, aqueles com maior probabilidade de os usuários gostarem. A proposta é que as plataformas atuem como um curador entre tudo o que é produzido e consumido no meio digital. É neste recorte dos sistemas de recomendação que iremos aprofundar a discussão neste trabalho, no entanto é importante 90 Comunicação, tecnologias digitais e IA esclarecer que a IA está presente também em outros processos na comunicação digital. Um exemplo são os sistemas de moderação, que utilizam técnicas sofisticadas de IA para auxiliar as empresas na identificação e remoção de conteúdo que violam os termos de uso. Ela pode ser uma estratégia para lidar com o alto volume de dados, mas também são sensíveis do ponto de vista ético (CORTIZ; ZUBIAGA, 2021). Outras aplicações de IA se popularizaram recentemente na web. Os chatbots, assistentes pessoais, sistemas de coautoria e modelos generativos que criam imagens e textos são apenas alguns dos exemplos. A IA se insere no processo de interação e comunicação, no dia a dia das pessoas, que interagem com e por meio dessas ferramentas para abrirem novas possibilidades. Neste capítulo, discutiremos sobre os diferentes modos em como a IA se entrelaça com o processo comunicacional digital e abordaremos os desafios éticos e de governança deste cenário complexo. Conceitualização Para facilitar a discussão, precisamos buscar uma contextualização, ainda que mínima, do papel da IA na comunicação. A partir da análise do tipo de interação dos usuários com a IA, podemos especular sobre algumas dimensões possíveis que nos auxiliem a classificar os diferentes tipos de sistemas de IA que agem no processo comunicacional. É importante entendermos que as tecnologias que usam IA, diferente de tantas outras, estão substituindo e aumentando o potencial dos interlocutores humanos. A IA não é apenas um meio para o transporte da mensagem, mas tem o potencial de alterar o conteúdo e o resultado do processo comunicacional. Uma estratégia para tentar organizar o papel da IA na comunicação é se investigar suas duas principais dimensões: a sua influência no processo comunicativo e a natureza da comunicação (SUNDAR; LEE, 2022), conforme descrito na tabela 1. 91 SEÇÃO 2 Tabela 1 – Classificação do envolvimento da IA na comunicação (SUNDAR; LEE, 2022) Massa (Um-para-muitos) Interpessoal (Um-para-um) Comunicador IA Criadora (Virtual influencer, Repórter robô etc.) IA Conversacional (Chatbot, Assistentes pessoais, etc,) Mediador IA Curadora (Sistemas de recomendação, Moderação de conteúdo) IA Coautora (Autocomplete, Autocorreção) A primeira dimensão trata do processo comunicativo, ou seja, qual é o grau de envolvimento da IA neste fluxo. A IA poderá assumir um papel apenas de Moderador (Mediador), selecionando e priorizando as informações entregues para o usuário, ou de Comunicador, com mais agência, criando conteúdos e agindo como um interlocutor. A segunda dimensão opera na natureza da comunicação. Neste caso, a IA poderá desempenhar papel em uma comunicação de Massa (Um-para-muitos) ou Interpessoal (Um-para-um). As aplicações específicas de IA, por sua vez, estão localizadas no encontro entre essas duas dimensões. Por exemplo, um chatbot está no quadrante Comunicador e Interpessoal, por ser aquele sistema com maior agência, mas cuja natureza de comunicação é de um-para-um, entre a IA e o usuário interlocutor. Um Sistema de Recomendação, por sua vez, está no quadrante de Mediador e Massa, por ser aquele modelo que irá escolher os conteúdos para todos os usuários de uma plataforma. Hoje, existem sistemas, aplicações e modelos de IA comerciais em cada um dos quadrantes. Não se trata, portanto, de um quadro especulativo, porém neste trabalho seria inviável abordar todos os tipos de IA existentes no processo comunicacional. Neste sentido, o escopo será focado em entender como a IA pode atuar como uma mediadora no processo comunicacional, suas potencialidades e desafios de governança, especialmente no caso dos sistemas de recomendação utilizados nas redes sociais. 92 Comunicação, tecnologias digitais e IA Sistemas de Recomendação A enxurrada de conteúdos gerados e postados todos os dias na web demonstra a complexidade e, contradição das redes: ao mesmo tempo em que se democratizou a criação de conteúdo, como fazer para que os usuários naveguem nessa pilha de conteúdos e descubram aquilo que é de valor para eles? Os Sistemas de Recomendação se tornaram populares no mundo digital por serem ferramentas efetivas para tratar a imensa – e crescente – quantidade de conteúdos disponíveis em diferentes fontes e formatos. Esses sistemas são capazes de inferir as preferências das pessoas e sugerir os conteúdos com maior probabilidade de satisfazerem as necessidades de cada um dos usuários. Esse tipo de sistema ganhou tração com a popularização da internet e o amadurecimento do mercado eletrônico. Um dos casos de sucesso mais importantes para a área foi o da Amazon.com, que, no fim dos anos 1990 personalizou a experiência de compra on-line ao oferecer itens relacionados para cada cliente. A Amazon aumentou a sua receita ao mesmo tempo que ofereceu uma experiência satisfatória no uso de sua plataforma. Os usuários eram levados a descobrir novos produtos de uma forma natural e sem fricções na interação. Este tipo de abordagem ficou conhecida como “Filtragem Colaborativa baseada em Itens” e utilizava uma técnica para prever as preferências de um usuário e encontrar os itens que ele teria uma probabilidade maior de gostar (SMITH; LINDDEN, 2017). A ideia se popularizou e outras plataformas on-line passaram a adotar estratégias similares em seus serviços. Em 2010, o YouTube era a maior comunidade de vídeos on-line do mundo, quando relatou estar utilizando sistemas de recomendação para personalizar a entrega de vídeos de acordo com as atividades dos usuários no site. Na época, apesar dos modelos não serem construídos com técnicas avançadas de IA, os resultados já eram promissores. Pesquisadores da própria empresa reportaram que as recomendações respondiam por cerca de 60% de todos os cliques na home page (DAVIDSON et al., 2010). 93 SEÇÃO 2 Antes disso, o Google já havia implementado algoritmos de recomendação e personalização em seu principal produto: o buscador. O sucesso inicial do Google foi conseguir organizar e entregar para os usuários os conteúdos que eles estavam procurando na internet, mas o algoritmo original não levava em consideração quem estava fazendo a busca. Se duas pessoas pesquisassem por uma mesma palavra-chave, o resultado seria igual. Assim como a Amazon, o Google percebeu que poderia personalizar ainda mais a experiência de seus usuários se entregasse os resultados das pesquisas com base no perfil, interesse, localização e outros fatores. Assim passou a adotar algoritmos de recomendação e personalização em seu buscador, criando uma espécie de “filtro bolha” ou “filtro invisível”, um fenômeno em que cada usuário passa a receber resultados diferentes ainda que a pesquisa seja igual (PARISER, 2012). Com o avanço da IA, uma quantidade maior de dados disponíveis e mais capacidade de processamento, os sistemas de recomendação passaram por um salto de desenvolvimento nos últimos anos, se tornando cada vez mais assertivos por utilizar dados mais refinados sobre o perfil e, comportamento do usuário. A informação que é distribuída para os usuários agora passa por uma curadoria algorítmica. Um grupo de pesquisadores (ROBERTSON; LAZER; WILSON, 2018) auditou como o Google montava a página de resultados para buscas sobre assuntos políticos durante a posse do ex-presidente Donald Trump. O resultado da pesquisa revelou haver uma diferença significativa na personalização dos resultados por tipo de consulta, características do usuário e data. Um ponto que chama atenção neste estudo é o fato de os pesquisadores terem identificado que a personalização era mais alta para usuários que utilizavam mais produtos do Google (Google Docs, Google Drive e, particularmente, Google Maps), reforçando, assim, a posição de que os sistemas atuais utilizam muitos sinais sobre o nosso comportamento, muitas vezes sem que tenhamos conhecimento explícito sobre isto. 94 Comunicação, tecnologias digitais e IA Outro estudo exploratório (BAKER, 2018) investigou como o buscador do Google influencia o processo criativo de diretores de artes e redatores em campanhas de publicidade. Os resultados mostram que enquanto o buscador serve como um mecanismo eficiente para acessar conteúdos digitais, a capacidade de personalização na entrega de resultados limita os usuários a terem exposição a conteúdos mais diversificados, o que impacta a produção de novas ideias. Desta maneira, percebemos que os sistemas de recomendação atuam como curadores e moderadores no processo de comunicação em massa, mas com uma característica particular ao ajustar o seu papel para cada pessoa individualmente. Não se trata de um sistema em que a moderação se dá a partir apenas do conteúdo, independente do receptor da mensagem. O cenário atual, pelo contrário, foca na perspectiva dos usuários. Os sistemas utilizam algoritmos e modelos de IA para entender e categorizar atributos subjetivos dos usuários, como suas preferências, gostos, personalidades e emoções, para então decidir qual conteúdo será recomendado para cada usuário. É uma moderação em massa dos conteúdos, mas personalizada para as pessoas. Essa configuração tem potencial de influenciar a decisão das pessoas ao limitar quais conteúdos as pessoas terão acesso. É o sistema que mergulha no balde transbordando de informações para selecionar as mais apropriadas para cada um. Os usuários são expostos a um catálogo de informações e conteúdos específicos, muitas vezes sem muita diversidade, como resultado de uma curadoria maquínica que maximiza o valor da sua entrega com base no que o sistema acha que sabe sobre cada um. Em um cenário em que somos rodeados por sistemas de recomendação, o poder de decisão das pessoas parece se limitar por uma imposição da própria máquina, uma vez que o usuário não sabe o porquê está recebendo tais recomendações e muito menos quais informações foram ocultadas. O usuário não sabe que não sabe, porque a máquina não deixa. E essa exposição a um universo informacional moderado e controlado tem potencial para influenciar as percepções e decisões da humanidade. 95 SEÇÃO 2 Sistemas de Recomendação, Decisões e Comportamentos O processo decisório é complexo, sensível e multifacetado. Como disse Eric J. Johson, um dos maiores especialistas sobre o assunto: “É uma ilusão, realmente, achar que sozinho determinamos o que escolhemos (JOHNSON, 2022, p. 1 – tradução nossa)”. De fato, sabemos há algum tempo que a decisão e escolha são influenciadas por muitos fatores, principalmente fatores internos, como nossos vieses cognitivos e processos ocultos. Contudo, o autor vai além e chama atenção para o próprio ambiente em que estamos inseridos como um mecanismo de influência. De acordo com Johnson, a maneira como as informações e opções são mostradas para as pessoas – o que ele chamou de arquitetura de escolha – influencia a maneira como escolhemos o que querer. E isso pode acontecer tanto em um ambiente físico como no universo digital. Por exemplo, se um determinado portal de e-commerce disponibiliza um produto como destaque, essa arquitetura de escolha possivelmente fará com que os usuários deem mais atenção para esse item, o que resultará em mais vendas. Esta é a técnica mais comum e presente no dia a dia, mas existem um conjunto robusto de estratégias e abordagens para aumentar a probabilidade de um determinado tipo de comportamento. Nos últimos anos, o conceito de nudge ficou conhecido como uma ferramenta para incentivar as pessoas a tomarem melhores decisões sem impor um comportamento específico. O termo se popularizou a partir do livro de mesmo nome (THALER; SUNSTEIN, 2008) e se baseia em dois princípios: arquitetura de escolha e paternalismo libertário. A arquitetura de escolha é o ambiente no qual uma pessoa está inserida, e as características desse espaço que influenciam a sua decisão são chamadas de nudges. Um formulário on-line pode ser considerado uma arquitetura de escolha, e o design de deixar uma opção específica predeterminada como padrão, um nudge. É importante destacar que os autores defendem que o nudge não deve forçar as pessoas a tomarem uma decisão específica, mas apenas incentivá-las. Isto nos leva ao princípio do paternalismo libertário, uma ideia de possibilidade e legitimidade de que instituições privadas e públicas afetem o comportamento das pessoas ao mesmo tempo em 96 Comunicação, tecnologias digitais e IA que se respeite a liberdade de escolha. O conceito é que o nudge possa ser utilizado para auxiliar as pessoas a tomarem melhores decisões, benéficas para elas e a sociedade, sem utilizar nenhum tipo de imposição. Um exemplo de nudge pode ser as opções padrões (default) colocadas em formulários de serviços públicos. É conhecido que países que colocam como padrão a opção de doação de órgãos, durante a renovação da habilitação – ou seja, os usuários devem deliberadamente marcar uma opção no formulário para declarar que não desejam ser doadores de órgão – são aqueles que conseguem aumentar a sua taxa de doadores. Uma pequena mudança na forma como o formulário é construído – a arquitetura de escolha – pode conduzir a população para um comportamento pró-social. No universo digital, somos bombardeados por telas, interfaces e formulários que podem ser customizados para funcionarem como uma arquitetura de escolha e influenciar o nosso comportamento. Neste sentido, surge o conceito de digital nudge, entendido como o “uso de elementos de design de interface do usuário para orientar o comportamento das pessoas em ambientes de escolha digital” (WEINMANN; SCHNEIDER; BROCKE, 2016). Um dos exemplos citados pelos autores é o sistema de pagamento Square, que coloca a gorjeta como funcionalidade padrão. O usuário que não quiser pagá-la deverá selecionar a opção “sem gorjeta” na tela de pagamento, caso contrário o sistema irá assumir que a pessoa não se opõe ao pagamento. Essa pequena mudança na interface causou um efeito nudge significativo e aumentou as gorjetas em lugares em que isso não era comum. O desenho da interface pode influenciar as escolhas das pessoas em uma escala sem precedentes. No caso da Square, o nudge foi implementado de maneira deliberada na própria interface. Porém, esse efeito de influência pode acontecer também a partir dos conteúdos que são exibidos. Nesse caso, os sistemas de recomendação ficam responsáveis por sugestionar os usuários ao exibir conteúdos que foram selecionados para uma finalidade específica. Um estudo recente (JESSE; JANNACH, 2021) propôs uma revisão sistemática de literatura sobre pesquisas que tenham relatado a 97 SEÇÃO 2 análise de nudges em sistemas de recomendação. Os pesquisadores identificaram que pelo menos 18 mecanismos diferentes de nudges foram implementados nos sistemas pesquisados. Entre eles, destaco o Efeito Chamariz (Decoy Effect) – quando combinamos duas opções para fazer uma terceira parecer mais vantajosa – e o uso de apoios visuais para aumentar a saliência, além do enquadramento e efeito de ordem. Eles argumentaram que os resultados da eficácia dos mecanismos de nudging são promissores, posto que o impacto observado no comportamento dos usuários foi significativo nos estudos. Os sistemas de recomendação atuam como fábricas de nudges digitais em tempo real. Assim emerge um cenário de interação com a tecnologia que pode resultar em efeitos cognitivos, antropológicos e sociológicos ainda desconhecidos. O ponto sensível deste debate é que os sistemas de recomendação não atuam apenas como um nudge isolado, mas como uma sequência de nudges em cascata, no qual o anterior pode trazer consequências para o posterior. Um sistema de recomendação funciona mostrando opções para os usuários de acordo com a sua preferência. Mas para entender as preferências do usuário, o sistema precisa coletar informações sobre o seu comportamento. Ao fazer uma escolha a partir do que foi recomendado pelo sistema, o usuário então gera novos dados que serão utilizados para recomendações futuras. No entanto, esses novos dados são de escolhas influenciadas por recomendações anteriores. Parece então existir um círculo vicioso no qual um modelo de IA aprende um novo padrão de comportamento do usuário influenciado pelo próprio sistema. O jornalista e especialista em tecnologia Jacob Ward chama esse fenômeno de The Loop (WARD, 2022) e alerta para o perigo de estarmos usando as mesmas técnicas imprecisas de decisões – atalhos mentais, vieses e processos ocultos – ao criar as tecnologias que depois tomarão decisões por nós. Esta situação já seria sensível se o sistema utilizasse apenas dados comportamentais dos usuários, ou seja, escolhas feitas nas plataformas em relação apenas ao conteúdo, assim como a Amazon fez na década de 1990. No entanto, tudo fica ainda mais frágil e perigoso quando os modelos de IA, cada vez mais sofisticados, buscam a partir 98 Comunicação, tecnologias digitais e IA de uma coleta massiva de dados inferir aspectos subjetivos das pessoas – preferências, personalidades e emoções. Hoje, as grandes plataformas coletam uma quantidade imensa e desconhecida de dados sobre nossas interações. Detalhes, como interagimos na tela, o tempo que supostamente olhamos para um conteúdo, horários e locais de acesso, são apenas alguns exemplos. Todos esses sinais são combinados em grandes modelos de IA com o propósito de nos conhecer melhor e nossa subjetividade. O problema, no entanto, é que esses modelos são verdadeiras caixas-pretas que estão tomando decisões por nós sem que possamos entendê-las, principalmente no ambiente das redes sociais. Sistemas de Recomendação nas Redes Sociais Esse tipo de recurso está organizando todo o fluxo informacional no mundo digital. Hoje, a maioria das redes sociais usam sistemas de recomendação para decidir o que será entregue para cada usuário, mudando a lógica do jogo comunicacional. Antes o feed das plataformas respeitava a ordem cronológica ao mostrar os conteúdos mais recentes em primeiro lugar, mas o crescimento do volume de conteúdos postados diariamente fez as empresas adotarem sistemas que recomendam os mais indicados para cada usuário. Estamos sendo influenciados pelos algoritmos, desde o primeiro momento, ao entrar em uma rede social. Os conteúdos entregues são cuidadosamente selecionados pelos sistemas de recomendação com base no que eles acham que sabem sobre nós. No Instagram, por exemplo, o sistema ordena em nosso feed os conteúdos das pessoas que seguimos, baseando-se em uma lógica de preferência que não é transparente. Ninguém sabe ao certo o porquê recebe a postagem de um colega, mas não a de um parente, por exemplo. A falta de explicação é um desafio de governança que causa até mesmo uma queda de confiança dos usuários em relação aos serviços. No caso de algumas redes sociais, como o Instagram, Facebook, Twitter e LinkedIn, esses sistemas agem como um moderador de conteúdo de segundo grau, porque a primeira etapa de curadoria 99 SEÇÃO 2 acontece quando o usuário decide quais perfis irá seguir. O valor das redes sociais sempre esteve na formação de um grafo social, o processo em que um usuário passa a se conectar ao outro, formando uma rede de conexões entre pessoas. Porém, essa lógica está mudando com o aparecimento de novas plataformas que apostam mais em algoritmos de IA para a curadoria e entrega de conteúdos. O TikTok é uma plataforma de vídeos curtos que se tornou um fenômeno mundial a partir de 2020. Um de seus diferenciais está no algoritmo de recomendação que integra aspectos de redes sociais e análises de conteúdos e perfis para exibir os vídeos mais assertivos para cada pessoa. Diferente das outras plataformas, que se baseiam no grafo social, o TikTok aposta em seus modelos de IA para oferecer a funcionalidade “For You”, um feed algoritmicamente personalizado com base nos conteúdos. Não é por menos que a própria plataforma se assume como um aplicativo de entretenimento e não como uma rede social convencional. O valor da plataforma deixa o grafo social e vai para o sistema de recomendação. Quem um usuário segue não é sinal determinante para que um conteúdo apareça no seu feed «For You». A maior parte dos conteúdos consumidos são indicações do algoritmo, que aprende o perfil do usuário a partir de suas atividades e engajamento, como tempo de visualização, comentários, likes, compartilhamentos, entre outros. Não sabemos ao certo todos os dados que a plataforma coleta sobre os usuários para que o sistema aprenda a fazer recomendações, mas sabemos que o TikTok tem um dos ambientes mais poderosos para entender o perfil das pessoas e indicar conteúdos com um nível de assertividade surpreendente. Um estudo na área de neurociência (SU et al., 2021) mostrou que os vídeos recomendados pelo algoritmo do TikTok são responsáveis por ativar as áreas do cérebro relacionadas à liberação de dopamina e sistemas de recompensa. Os autores argumentam que os resultados da pesquisa sugerem que os modelos de IA são capazes de descobrir os conteúdos que regulam a ativação de áreas específicas do cérebro, por isso conseguem reforçar o comportamento de assistir cada vez mais vídeos na plataforma. É como se os Sistemas 100 Comunicação, tecnologias digitais e IA de Recomendação baseados em IA conseguissem identificar os estímulos mais recompensadores para cada pessoa. O design do TikTok com seus algoritmos e recomendações também traz desafios para quem estuda o processo comunicacional digital. Isso acontece porque o fluxo de dados não é definido pela arquitetura da rede social, mas por uma IA que cria uma espécie de rede opaca de conteúdos recomendados para cada usuário da plataforma. É muito difícil saber quais vídeos foram entregues para cada pessoa e quais usuários receberam cada vídeo. O fluxo informacional é determinado por um modelo que supostamente conhece todos muito bem, mas que não deixa transparecer o porquê entrega cada um dos seus vídeos. O mecanismo de funcionamento do TikTok também subverte a dinâmica de produção e difusão de conteúdos. Nas redes sociais tradicionais, como Instagram, Facebook e Twitter, a quantidade de seguidores de um usuário é um fator determinante para o alcance de uma postagem. Grandes influenciadores falam com muito mais pessoas do que usuários com poucos seguidores. É o efeito de rede e o fenômeno do “vencedor leva tudo”. No TikTok, entretanto, perfis com poucos seguidores e até mesmo contas novas têm a possibilidade de viralizar conteúdos para milhares de pessoas porque a entrega é feita por um algoritmo que leva em consideração a análise do conteúdo e não exclusivamente o grafo social. Se por um lado esse mecanismo parece democratizar a distribuição de conteúdos ao dar mais potencial de viralização, por outro há um risco iminente de que usuários mal-intencionados utilizem essa funcionalidade para impulsionar o espalhamento de conteúdos danosos e mensagens falsas que serão entregues de forma silenciosa para milhares de pessoas. Isso muda toda a dinâmica social e impõem novos desafios de governança na área de comunicação e políticas públicas. As redes sociais não são mais apenas espaços secundários da realidade, mas são os ambientes onde se constitui uma nova esfera pública. Para se ter ideia da dimensão do desafio, uma pesquisa realizada pela Kapersky, em parceria com a empresa de pesquisa Cobra, descobriu que 7 a cada 10 brasileiros se informam pelas redes sociais (KAPERSKY, 2021). 101 SEÇÃO 2 As pessoas estão se informando sobre temas sensíveis, como saúde e política, em um espaço altamente controlado por algoritmos opacos capazes de influenciar comportamentos e a construção de novas narrativas de entendimento do mundo. A internet e a web abriram espaços, as redes sociais potencializaram novas formas de comunicação e agora os algoritmos controlam o fluxo informacional. Considerações finais A IA passa por um momento propício de avanço por muitos motivos, como o aumento da capacidade de processamento das GPUs, a grande quantidade de dados disponíveis e o investimento em pesquisa de novos modelos. Diferentes tecnologias de IA começam a ser adotadas de forma comercial em aplicações presentes nos mais variados aspectos de nossa vida cotidiana. Uma das aplicações que a IA impulsionou foi o desenvolvimento dos sistemas de recomendações, que usam uma grande quantidade de dados e modelos mais robustos para fazer indicações mais assertivas de conteúdos. Os sistemas de recomendação apareceram com mais força no mercado na década de 1990, quando se descobriu que eles poderiam auxiliar os consumidores a descobrirem novos produtos em lojas on-line. Na época, os sistemas não utilizavam necessariamente modelos de IA para fazer recomendação e se baseavam em algoritmos mais simples, que consumiam menos recursos computacionais. Ainda assim, as indicações feitas pelo sistema aumentaram as vendas e o faturamento do ecossistema de e-commerce, o que contribuiu para reforçar a ideia de que a estratégia poderia ser utilizada em outros segmentos. Não demorou para que outros serviços digitais começassem a explorar o uso dos sistemas de recomendações como uma alternativa para lidar com a enxurrada de dados e conteúdos gerados diariamente. Os serviços de streaming talvez tenham sido os precursores na adoção dos sistemas de recomendação fora do contexto de e-commerce. YouTube e Netflix, por exemplo, utilizam essas funcionalidades para tentar lidar com o paradoxo da escolha em um ambiente com excesso de conteúdo. 102 Comunicação, tecnologias digitais e IA As plataformas de redes sociais também notaram que os algoritmos poderiam auxiliar na montagem de feeds personalizados para seus usuários, selecionando conteúdos com maior probabilidade de engajamento para cada pessoa. Houve então uma mudança dos feed cronológicos, que exibiam os conteúdos na ordem de postagem, para os feeds mediados por algoritmos, em que o sistema determina o que será exibido de acordo com o conteúdo postado e as preferências do usuário. Agora estamos entrando em uma era ainda mais sensível. As plataformas que estão surgindo não se baseiam mais no grafo social – quem as pessoas seguem – para fazer a entrega de conteúdo. A aposta está no uso de modelos de IA sofisticados para criar sistemas de recomendação que se tornam o coração da interação e comunicação em rede. Hoje, são algoritmos opacos que controlam a circulação de informações, o alcance e o engajamento que podem influenciar comportamentos e o entendimento do mundo. O fluxo de informação se transformou em uma massa disforme de dados que já não flui mais livremente pela rede. Os sistemas de recomendação com seus sofisticados modelos de IA são os protagonistas em decidir o que vale a pena ser visto e por quem. E a sensibilidade da situação fica ainda mais evidente quando notamos que a maior parte desses algoritmos são propriedade de empresas de regiões específicas, tipicamente do Norte global, que operam camadas invisíveis de influência no mundo todo. Mas, pela primeira vez, os Estados Unidos perderam a sua hegemonia. Durante décadas o país exerceu seu papel de influência digital com empresas líderes que organizaram os dados disponíveis e conectaram as pessoas no universo digital. Agora é o TikTok, uma plataforma de uma empresa chinesa, que se propõe a criar inéditas formas de interações e consumo de conteúdos. Isso está fazendo com que as redes sociais, como é o caso do Instagram, invistam mais em seus sistemas de recomendação. O cenário para o futuro é de uma comunicação cada vez menos baseada no grafo social e mais mediada por algoritmos de IA. Precisamos investigar de perto como os usuários respondem a essas transformações e os riscos subjetivos para as pessoas. 103 SEÇÃO 2 Referências BARKER, R. Trapped in the Filter Bubble? Exploring the Influence of Google Search on the Creative Process. Journal of Interactive Advertising, v. 18, n. 2, p. 85.95, 3 jul. 2018. CORTIZ, D; ZUBIAGA, A. Ethical and technical challenges of AI in tackling hate speech. 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O ensino on-line envolve uma semiótica do espaço significativamente diferente do ensino tradicional.1 Várias formas de ensino à distância têm existido ao longo da história; pode-se sugerir que o início da possibilidade de ensinar e aprender sem qualquer interação presencial coincidiu com o início da própria escrita; a invenção dessa técnica e a extraordinária oportunidade de transcrever através de uma forma gráfica o som e o significado de uma voz viva, também 1 A bibliografia crítica sobre o ensino on-line está se expandindo rapidamente, especialmente após a disseminação global do ensino à distância como consequência da pandemia. No entanto, ainda falta uma reflexão “edusemiótica” adequada sobre o assunto, especialmente no que diz respeito à transformação das espacialidades do ensino. Contribuições recentes incluem Smith; Rennie, 2019, Cleveland-Innes; Randy Garrison, 2020, Reich, 2020 e Veletsianos 2020. 107 SEÇÃO 2 implicou na possibilidade de transmitir o conteúdo do ensino para longe no espaço e no tempo. Mais recentemente, muitos meios de comunicação modernos, do serviço postal ao rádio, ampliaram o espectro do ensino à distância com várias formas de institucionalização, desde os cursos de ensino superior de rádio dos anos 50 até as universidades on-line de hoje. Todas essas modalidades de ensino e aprendizagem à distância, entretanto, sempre foram consideradas como complementares e, de fato, secundárias a um contexto mais tradicional envolvendo um ou mais professores e um ou mais alunos compartilhando o mesmo tempo e espaço. Esses dois elementos, que na verdade são duas dimensões – a temporal e a espacial – devem sempre ser levados em conta ao falar dos efeitos semióticos da educação on-line e, mais geralmente, da digitalização de qualquer atividade. De fato, é impróprio afirmar que a digitalização funciona melhor com dois dos cinco sentidos, visão e audição, ainda funciona imperfeitamente com o tato e o olfato, não funciona de modo algum com o gosto e ainda luta com a propriocepção. Isto é apenas uma parte da verdade. De fato, o exame também deve incluir tempo e espaço. A digitalização distorce profundamente as dimensões temporais e espaciais nas quais as atividades humanas normalmente acontecem. Assim, no caso do ensino, o fato de professor e aluno compartilharem o mesmo espaço não é meramente incidental, mas faz deste espaço um elemento semiótico inevitável e essencial na construção do contexto comunicativo do ensino, bem como as condições de seu enunciado, como diriam os semióticos. Ao contrário do tempo, aliás, o espaço dificilmente pode ser pensado em termos puramente abstratos (embora, como será visto, até mesmo a abstração com a qual a temporalidade do ensino pode ser imaginada é de certa forma uma ilusão). Quando se diz que um professor compartilha o mesmo espaço físico que o aluno, os dois não são imaginados em um vácuo, mas em um lugar, ou seja, são imaginados como cercados por um espaço que já é material. O ensino pode “acontecer” em vários “lugares” e a história tem registrado muitas variações na materialização física do espaço abstrato do ensino em locais específicos, de ruas a praças, de 108 Comunicação, tecnologias digitais e IA conventos a selvas. A maioria das pessoas hoje provenientes de países tecnologicamente avançados, no entanto, provavelmente imaginará o ensino como inextricavelmente ligado à ideia e ao conceito de uma sala de aula. Como professor, se eu mesmo me imagino lecionando, tenho a tendência de me imaginar fazendo isso em uma sala de aula, mesmo que minha primeira palestra universitária tenha realmente acontecido em um cinema em Siena e eu tenha às vezes lecionado em lugares alternativos, tais como prisões ou hospitais. Uma sala de aula, entretanto, não deve ser pensada apenas como um espaço físico com seus móveis estereotipados. Mais uma vez, a maioria dos indivíduos contemporâneos provavelmente forneceria sua sala de aula imaginária com uma escrivaninha, um quadro negro e algumas mesas e cadeiras. Eles imaginariam a sala de aula como uma sala quadrada, bem iluminada, com poucos objetos funcionais pendurados nas paredes, ou como um grande anfiteatro de madeira. Isto não importa realmente; é irrelevante porque, do ponto de vista semiótico, a semiótica espacial de uma cena de ensino não consiste na forma ou tamanho da sala de aula; na qualidade e quantidade dos móveis nela contidos; ou na tecnologia de ensino disponível – desde quadros pretos antigos até os mais recentes projetores. Isto não é essencial. É claro que um professor pode estar ligado a alguns desses elementos e considerar que ele ou ela pode ensinar melhor se a sala de aula tiver uma determinada forma e tamanho; se os móveis forem de um determinado tipo; se houver certa tecnologia disponível. Eu mesmo prefiro ministrar minhas aulas em uma pequena sala de aula com móveis básicos e um quadro negro tradicional. No entanto, mais uma vez, analisando o assunto em profundidade, isto não é de modo algum essencial. A dimensão espacial da sala de aula não é construída semioticamente e não funciona essencialmente em virtude desses elementos. 2. Uma rede de atenção. Uma sala de aula é feita de olhares. O espaço de ensino é composto através de olhares. Isto poderia ser dito ainda mais abstratamente, para levar em conta que a espacialidade do ensino pode tomar 109 SEÇÃO 2 forma mesmo quando não há olhares reais presentes, por exemplo, no caso de um curso para estudantes cegos. Mesmo no caso de alunos cegos, o espaço da sala de aula é composto por olhares, porque o que é fundamental nesses olhares que constroem a semiótica da espacialidade do ensino não é a visão; os olhos do professor, assim como os dos alunos, são meramente a encarnação de um princípio mais abstrato que sustenta o funcionamento dos olhares que constroem o espaço, e esse princípio é na verdade a direcionalidade. A direcionalidade é o elemento-chave subjacente à constituição do lugar em que o ensino ocorre. Na verdade, uma sala de aula nada mais é do que a encarnação física, através de uma série de figuras (cadeiras, mesas, quadros negros etc.), de uma rede de direcionalidade. As figuras podem mudar (alunos sentados no chão, professores em pé sobre uma mesa como no filme A sociedade do poeta morto, projetores em vez de quadros negros, etc., mas a direcionalidade orientada de uma sala de aula nada mais é do que uma encarnação física de uma rede de direcionalidade), mas a direcionalidade orientada que essas figuras manifestam deve estar presente. Em resumo, e essencialmente, a espacialidade do ensino é constituída pelo fato de que uma mente humana ou, mais frequentemente, várias mentes humanas, dirigem-se através de seus corpos e, portanto, também através de seus sentidos de audição e visão, em direção a uma fonte comum de conhecimento. O espaço de ensino resulta de uma convergência física de atenções encarnadas. Na rede de olhares – uma rede de direcionalidade – que compõem a espacialidade do ensino, subsiste uma assimetria espacial abstrata mesmo quando o professor está em silêncio, mesmo quando ele ainda não falou ou terminou de falar; além disso, a rede subsiste mesmo quando o professor não está mais lá, quando os alunos já saíram. Ao entrar numa sala de aula universitária vazia, muitas vezes, se tem a impressão de que palavras de ensino potenciais continuam pairando no ar, assim como sempre se tem a sensação de que a tensão sublime do desejo de conhecimento que está por trás da rede de ensino ainda está presente, inervando o espaço da sala de aula, mesmo quando ela está deserta. Também deve ser enfatizado que a funcionalidade frequentemente se torna o terreno para uma relação semiótica: o guarda-chuva é 110 Comunicação, tecnologias digitais e IA um objeto cuja morfologia deriva da necessidade de proteger o corpo humano de agentes perigosos que se movem de acordo com a força da gravidade (chuva, neve, granizo, mas também raios de sol na Ásia e tomates em concertos fracassados ou com audiências hostis), mas esta morfologia é então transformada no significante (ou representamen, para usar as palavras de Peirce) da própria função que a originou: um guarda-chuva se torna um sinal da necessidade de proteger-se de algo (a ponto de a superstição na Itália ver os guarda-chuvas deixados abertos em casa como um mau presságio, como um sinal do mal iminente contra o qual se deve proteger precisamente através deste objeto). Da mesma forma, a sala de aula existe como um lugar porque sua morfologia evoluiu ao longo do tempo para ser adaptada espacialmente e sensorialmente à constituição efetiva daquela rede de direcionalidade orientada que é, em última instância, o espaço do ensino; no entanto, esta morfologia, na cultura em que tomou forma, torna-se um sinal de sua função. Assim que se entra num espaço organizado como um lugar de ensino – ou seja, organizado como uma sala de aula – imediatamente se tem a sensação de que este é um lugar de ensino; que este espaço deve ser um espaço onde as mentes humanas, através de seus corpos, são dirigidas para outra mente humana a fim de permitir a transmissão sistemática do conhecimento, a passagem da cultura de geração em geração, a constituição da memória não genética da humanidade. 3. A espacialidade da sala de aula como criadora de papéis educacionais. Mas há mais. Ao entrar em uma sala de aula, não se tem apenas a impressão de que o ensino e a aprendizagem acontecem ali. Ao entrar nela, também se tem a sensação de que se fará pessoalmente parte daquela rede, daquela rede de direcionalidade orientada, daquele lugar de olhares que funda a espacialidade do ensino. Isto acontece não apenas com os alunos, mas também com os professores. Como alunos, ao cruzar o limiar da sala de aula – um limiar que é simbólico, mas também material físico e arquitetônico, que divide a sala de aula 111 SEÇÃO 2 do mundo exterior, por exemplo, do corredor – entra-se num espaço, mas também num lugar, ou seja, um espaço tão física e semiologicamente arranjado que favorece a transformação dos corpos em corpos para a aprendizagem, em corpos que se orientem de forma a facilitar a passagem de informações do corpo do professor para o seu próprio corpo; da mesma forma, então, atravessando o mesmo limiar, o professor vê sua pessoa completamente alterada; ele ou ela não é mais um indivíduo; ele ou ela se torna um professor; pode ser sugerido que um professor é sempre um professor, mesmo fora da sala de aula; e que uma sala de aula não é realmente necessária para um indivíduo se tornar um professor e agir como tal; isto parece ser evidente na frequente deformação profissional que faz com que os professores falem como tal mesmo quando estão com amigos, em um tom semelhante a uma palestra que às vezes pode ser realmente irritante. No entanto, se esta deformação profissional existe, e com ela o tom irritante que dela deriva, é precisamente porque ambas tomaram forma através do ensino, e foram criadas precisamente dentro da estrutura daquela rede orientada de direcionalidade que é, em última análise, a espacialidade do ensino. Em outras palavras, é verdade que se pode ser professor fora da sala de aula, e que muitas vezes se é professor apesar disso, mas a atitude profissional do professor é também uma consequência da espacialidade em que é exercida. 4. A sala de aula como lugar sagrado A ideia de que esta rede de direcionalidade orientada, de que esta estrutura assimétrica de atenção pode “ocorrer sem ocorrer em um lugar” é uma espécie de sonho idealista, implica no preconceito de uma palavra que pode se tornar ensino, e educação, e memória, e finalmente cultura, enquanto permanece inteiramente imaterial. Parece reproduzir, no campo da educação, o velho sonho de um sagrado que permanece assim sem nenhuma relação com um lugar específico. Mas existe um lugar sagrado sem um lugar sagrado? Em algumas das mais influentes culturas religiosas da história da humanidade, não há. Não há sacralidade católica sem espaço sagrado católico; sem lugares 112 Comunicação, tecnologias digitais e IA católicos. Mas isto também se aplica ao protestantismo, que foi capaz de eliminar da religião humana a ideia de relíquia, de santidade, de ícone, mas não a de lugar. Os protestantes também têm seus templos. É impossível excluir a ideia de que a forma como muitas das culturas fundamentais da história humana imaginaram o espaço de sacralidade – como essencial e inextricavelmente relacionado à possibilidade de circunscrever certos lugares, à possibilidade de separar o lugar do espaço sagrado do profano – o que influenciou profundamente as formas como essas mesmas culturas imaginaram e criaram a espacialidade do ensino. Pode-se até sugerir que ambas as tendências, uma certa forma de imaginar o sagrado como inseparável de um espaço circunscrito, um lugar sagrado, e uma certa forma de imaginar o ensino acontecendo (tanto física quanto conceitualmente) em uma sala de aula são na verdade manifestações da mesma dinâmica antropológica profundamente enraizada, uma das funções e resultados mais fundamentais da qual é a possibilidade de conferir um papel espacial aos seres humanos designados. É verdade que o sacerdote não é necessariamente aquele que pode acessar o espaço sagrado, mas o fato de poder fazê-lo está essencialmente relacionado ao seu ser transubstanciado em uma pessoa diferente, em uma pessoa que não é mais simplesmente um indivíduo, mas que encarna uma função. É por isso que talvez se deva sugerir que a existência de um limiar, que sendo um limiar é muitas vezes normativo – atravessando a linha simbólica, mas também espacial, do qual só pode ocorrer em circunstâncias específicas – é na verdade fundamental para a criação de uma rede de direcionalidade orientada, de uma estrutura de atenção, ou seja, de ensino. O ensino precisa de uma sala de aula; mas a sala de aula precisa de um limite, uma linha mais ou menos material que marque o início e o fim do círculo de ensino ou, pelo menos, o perímetro além do qual um professor não deixa de ser professor, porque isso não seria possível, mas deixa de agir como um só. A porta da sala de aula que se fecha antes do início da aula é como as linhas que delimitam o campo de futebol. Para ter um jogo adequado, essas linhas têm que estar lá. Para ter um jogo educacional batesoniano adequado, com os papéis apropriados de professor e aluno, a porta da sala de aula deve 113 SEÇÃO 2 estar fechada. Isto não é incompatível com as ideologias que defendem a democratização do ensino. E, ao mesmo tempo, enfatizar a importância dessa porta não é de forma alguma conservadora. Aquelas vozes que, especialmente a partir da segunda metade do século XX, proclamaram a necessidade ideológica de abrir a sala de aula para o mundo exterior, e até promoveram a abolição de todas as linhas que circunscrevem seu lugar (uma tendência paralela àquela que também surgiu nas religiões), interpretaram profundamente mal as ideias de abertura e democratização; de fato, eram vozes ideologicamente nocivas; eles se propunham abrir um lugar dissolvendo-o, mas ter acesso a um deserto não é de forma alguma uma liberação; defender a democratização da espacialidade do ensino não deveria significar a eliminação da porta ou das paredes da sala de aula; ela é uma forma muito simplista e, de fato, demagógica de interpretar o famoso “muro” no centro do álbum Pink Floyd de mesmo nome. Pelo contrário, uma educação democrática requer a construção de uma sala de aula suficientemente grande para acomodar a todos. Dissolver o perímetro simbólico da educação, que também é um perímetro arquitetônico, na ilusão de um espaço de ensino que nunca se torna um lugar, que se estende a toda a espacialidade imaginável do mundo, é diluir essa rede de direções orientadas, essa estrutura de atenções que é constitutiva tanto do ensino quanto da aprendizagem. A educação precisa de salas de aula, assim como as religiões precisam de templos, porque a função de transmitir a cultura de uma geração para outra, de transformar a informação em novos conhecimentos e o conhecimento em nova cultura, é tão delicada e, na verdade, tão sagrada quanto a função do sacerdote. A espacialidade material da sala de aula é tão essencial para apoiar simbolicamente a formação delicada do papel do professor quanto a espacialidade material do templo é para apoiar simbolicamente a frágil constituição de um papel que é mais do que uma pessoa, e na verdade mais do que um indivíduo, uma vez que assim como a última é chamada a conectar duas dimensões que de outra forma seriam em sua maioria separadas e mutuamente intocáveis – a da transcendência e a da imanência – também a primeira é chamada a presidir a igualmente transcendente passagem da 114 Comunicação, tecnologias digitais e IA cultura de geração em geração. A cultura é a transcendência humana da natureza. A educação é o sacerdócio dessa transcendência. E a sala de aula é seu templo. 5. Um templo digital de ensino? Da sala de aula para a sala de classe 5.1 A intentio auctoris de sites de ensino on-line Mas e quanto à possibilidade de um templo digital de ensino, aprendizagem e educação? Um templo binário como esse pode realmente funcionar? E se não, quais são as razões subjacentes ao seu fracasso? Dizer que o ensino on-line não tem espacialidade seria impreciso. Nada é sem espacialidade, incluindo o tempo, como a física contemporânea sabe. A espacialidade do ensino on-line, entretanto, é diferente da interação presencial entre professor e aluno. Isto soa como um lugar-comum, mas somente se não for analisado minuciosamente em todos os seus componentes. Antes de tudo, o ensino on-line também envolve um espaço físico. Professores e alunos não se conectam a partir de um vácuo, mas de um espaço material, que é inevitavelmente decorado com uma série de figuras, cada uma das quais empresta uma nuança semiótica particular ao próprio espaço, transformando-o assim em um espaço, um lugar com personalidade, um papel espacial e, às vezes um ator espacial (se seguirmos a teoria semiótica de Algirdas J. Greimas). Na maioria dos casos, especialmente durante a pandemia da covid-19, o lugar físico dos professores e alunos tem sido um espaço privado, geralmente uma casa. Aqui a famosa distinção formulada por Umberto Eco entre três tipos diferentes de intencionalidade, ou intencionalidade comunicativa, vem a calhar. Este espaço físico doméstico de conexão é carregado, primeiro de tudo, com uma intentio auctoris, ou seja, com o significado que o próprio “autor” do espaço quer atribuir-lhe para que seja recebido por seus observadores e “habitantes”, primeiro potencial e depois empírico. Aqui está a primeira diferença importante com o espaço da sala de aula. Este espaço também é, em certo sentido, autoral. No entanto, o 115 SEÇÃO 2 autor é, em sua maioria, impessoal e coletivo. A forma e o mobiliário da sala de aula são determinados por regulamentos estaduais e locais, regras administrativas, exigências e iniciativas burocráticas, mais ou menos de acordo com uma certa “moda” na arquitetura pública e, especificamente, na construção de escolas. Para aqueles com um olho treinado, não será muito difícil, ao entrar em uma sala de aula pela primeira vez, determinar com um certo grau de precisão a que época e estilo ela pertence. As memórias pessoais e, consequentemente, a imaginação de como deve ser uma sala de aula são provavelmente moldadas em torno do roteiro visual e arquitetônico que caracteriza uma sala de aula em uma determinada época (cadeiras de madeira desgastadas e carteiras feitas de resina são provavelmente uma constante na imaginação escolar daqueles que entraram nela pela primeira vez nos anos 1970). Então, este lugar de ensino e aprendizado moldado por uma agentividade pública, institucional e burocrática, assim como pela moda arquitetônica, também é modificado, pelo menos parcialmente, pelo comportamento dos sujeitos e, sobretudo, por suas práticas de escrita que poderiam ser vistas, seguindo Michel De Certeau, como declinações de um lugar público de acordo com táticas pessoais. Deve-se dizer, no entanto, de certa forma em consonância com o próprio De Certeau, que eles nunca escapam completamente da moda (grafites em mesas de sala de aula e até mesmo chicletes colados embaixo deles seguem tendências de moda específicas, se bem que, em sua maioria, inconscientes, que evoluem com o tempo). As roupas dos alunos penduradas nas paredes, seus livros e cadernos, suas canetas e lápis, assim como seus próprios corpos, completam a decoração visual da sala de aula, que, no entanto, sempre resulta de uma agentividade coletiva e nunca pessoal. Isto é demonstrado de forma espetacular sempre que uma regulamentação pública para a organização da sala de aula é contrariada por uma agentividade pessoal ou corporativa. Um exemplo típico disto é a iniciativa periódica de tal e tal indivíduo para remover o crucifixo ou a imagem do Presidente da República das paredes de uma sala de aula italiana, onde devem obrigatoriamente aparecer de acordo com a lei. O espaço físico de ensino e aprendizagem on-line, ao contrário, é por definição composto por dois lugares distintos, o do professor e o dos alunos, cada um organizado de acordo com uma 116 Comunicação, tecnologias digitais e IA intentio auctoris majoritariamente privada. Onde a webcam está ligada, mostrando assim parcialmente o fundo por trás do professor/ estudante, isto geralmente apresenta um lugar que não é público e coletivo, mas privado e pessoal. A moda como sempre se insinua, com seus vários desejos de distinção – incluindo a distinção da indistinção ostensiva – ainda que seja uma moda menos compacta, não filtrada por regulamentos e regras administrativas estatais, mas interpretada de acordo com uma lógica multifacetada, obediente a um espectro muito mais amplo de fatores sociológicos, incluindo o da classe socioeconômica. Enquanto a sala de aula é o espaço da sala, onde todos compartilham o mesmo lugar com o mesmo nível de estética e, portanto, distinção socioeconômica, o espaço, ou melhor, os muitos lugares da educação on-line são um espaço de classe, entendido como a classificação socioeconômica e a categorização dos seres humanos. É claro que existem salas de aula mais ricas e pobres, com móveis mais antigos ou mais novos, com tecnologia mais ou menos avançada, com papelaria mais elaborada ou mais mundana, com pessoas vestidas melhor ou pior, mas todos aqueles que fisicamente compartilham o espaço da sala de aula se confrontam com o mesmo lugar, rodeiam-se dele e são convidados a considerá-lo não como seu próprio espaço educacional individual, mas como o espaço educacional de um grupo, de uma pequena comunidade conectada com a comunidade social maior que tem sido fundamental para moldar esse mesmo lugar. Este efeito semiótico comunitário da sala de aula foi considerado tão importante que em algumas circunstâncias – em salas de aula italianas em diferentes épocas históricas, por exemplo – foi imposto um avental às crianças (e suas famílias) para que suas roupas individuais não se deteriorassem, com seu inevitável gosto pela distinção, a homogeneidade de classe da sala de aula. Como essa sala de aula física homogênea é fragmentada e diversificada em muitos locais físicos de conexão heterogênea eles se tornam imediata e inevitavelmente objetos de interpretação e, potencialmente, de distração. Um estudante pode “interpretar” o espaço da sala de aula física ao entrar nela pela primeira vez, mas conforme as horas, dias e semanas passam, esse espaço deixa de ser um objeto de interpretação 117 SEÇÃO 2 e se transforma em um “hábito espacial”, ou seja, um lugar cuja natureza semiótica não mais determina uma nova semiose interpretativa, mas se transforma em um fundo neutro e também se torna o epítome espacial, sensorial e visual de sua função. O processo é melhor explicado pela comparação, mais uma vez, com uma igreja. Ao entrar numa igreja católica pela primeira vez, a atenção de alguém pode muito bem ser capturada pela novidade do lugar, sua morfologia, seus arranjos plásticos, seus móveis e figuras; no entanto, para aqueles que vão à missa uma e outra vez na mesma igreja, ela inevitavelmente também se torna um “hábito espacial”; mesmo a igreja mais suntuosa, até mesmo a Basílica de São Pedro, no Vaticano, se torna o lugar de sua função, não mais um objeto a ser interpretado através de uma nova cadeia de intérpretes, mas um vestido, o recipiente espacial de uma cerimônia. Quando o hábito espacial da sala de aula física é fragmentado em suas contrapartidas on-line, por outro lado, nunca se tem certeza de que tipo de fundo, se houver, aparecerá além do interlocutor. Isto se torna, como mencionado, um objeto de interpretação e, consequentemente, também o termo de uma série de estratégias de comunicação e efeitos de significação. Foi curioso ver, durante o confinamento devido à covid-19 e a consequente multiplicação de atividades on-line – incluindo o ensino – quantos professores, e às vezes até alunos, escolheram ficar em frente à webcam com um pano de fundo de prateleiras transbordando de livros. O novo hábito estético rapidamente se tornou uma moda, depois um clichê e, com a habitual velocidade frenética da web, um objeto para ironia e seu gênero digital mais importante, o meme. O clichê, como sempre, também deu origem a um anticlichê que, embora mais sofisticado em suas intenções, também foi prontamente transformado em outra tendência de moda de baixo nível (contracultural, ou melhor, contraclichê) e, posteriormente, em um clichê; jovens pesquisadores, que não possuíam uma grande biblioteca, ou que possuíam uma, mas adotaram um estilo de distinção “shabby”, ostensivamente fizeram suas palestras a partir de cozinhas desorganizadas, com o aquecedor de água pairando atrás deles como uma referência metálica de shabby chic contracultural. 118 Comunicação, tecnologias digitais e IA Em qualquer caso, a mudança do hábito espacial público e coletivo para a representação espacial privada e pessoal reintroduz, na espacialidade do ensino on-line e sua semiótica, uma dinâmica de classe entendida como classificação socioeconômica. Muitos professores poderiam se dar ao luxo de ensinar de seus estúdios particulares, visualmente e acusticamente bem isolados do resto da casa, protegidos das potenciais intrusões de suas famílias e, especialmente, das crianças; de vez em quando, algumas dessas crianças ou gatos elegantemente irritados, apareciam na frente da webcam, mas isso era apenas uma exceção, e era até mesmo exibido como mais um sinal de distinção ainda mais sofisticada, como um elemento da escrita semiótica visual e espacial do “estúdio do estudioso”, que sempre implica em um gato e um mínimo de caos controlado. O caos que ameaçava os espaços de conexão de professores menos abastados, com famílias maiores e mais barulhentas, ou de estudantes em dormitórios, ao invés de um tipo completamente diferente, era um caos que não podia ser totalmente eliminado e que sempre pairava sobre a concentração da educação on-line, estragando sua audibilidade, distraindo aqueles que a habitavam e seus interlocutores, impossível de perceber em qualquer dos polos de comunicação como um sinal voluntário de distinção e imediatamente transformado, ao invés disso, em um elemento de aborrecimento. 5.2 A intentio lectoris dos sites de ensino on-line. Mesmo para aqueles que podiam pagar uma biblioteca ou transformar sua ausência em sinal de distinção nãoconformista, o resultado semiótico do arranjo de lugar na interação nunca foi certo. De fato, a teoria semiótica de interpretação de Eco é clara a este respeito: a intentio auctoris, a intencionalidade de significado do autor, nem sempre coincide com a intentio lectoris, ou seja, a forma como o receptor acaba se apropriando do significado anexado a uma mensagem. Assim, os professores esnobes que desejassem significar sua própria distinção e cultura poderiam encontrar espectadores que interpretassem suas prateleiras cheias de livros como um sinal de arrogância vazia; 119 SEÇÃO 2 os jovens pesquisadores underdog poderiam passar por indivíduos mal humorados sem qualquer redenção não conformista; além disso, mesmo nesta comunicação em particular, um grau zero de fundo não era possível: algumas plataformas de videoconferência ofereciam a possibilidade de transformar a própria imagem em uma imagem embaçada, ou mesmo substituí-la por um pano de fundo tropical, mas em ambas as circunstâncias não havia como evitar que ela fosse recebida como a acrobacia de alguém cujo verdadeiro pano de fundo tinha algo errado, algo a esconder. Da mesma forma, a opção de desligar a câmera só era aceitável se acompanhada da desculpa de que a conexão era muito fraca para permitir que o vídeo fosse transmitido. Em alguns casos, no entanto, esta era a verdade. Especialmente no início do confinamento, após a primeira onda da pandemia, professores e alunos, assim como os gerentes das instituições educacionais, ainda sonhavam em criar uma espécie de novo panóptico no qual todos os professores e todos os alunos pudessem realmente ser visíveis uns aos outros e olharem-se como se estivessem no espaço físico de uma sala de aula, com as únicas limitações inevitáveis sendo os cantos escuros das câmeras. Logo se percebeu, porém, que tal panóptico não passava de um sonho ilusório de digitalização pré-pandêmico; a largura de banda da conexão era, na maioria dos casos, insuficiente para permitir que as pessoas mostrassem a imagem em movimento de seus rostos; muitos então haviam sido pegos no confinamento com pouca ou nenhuma familiaridade com as ferramentas de videoconferência e ensino on-line, bem como presos em locais com conexão insuficiente ou sem conexão. A primeira lacuna havia sido preenchida apressadamente através de cursos introdutórios de edição de vídeo, muitas vezes complementados por conselhos ansiosamente solicitados por parentes e amigos com mais experiência; a segunda lacuna, por outro lado, era muito mais difícil de preencher; não era fácil e, em muitos casos, muito caro estabelecer uma conexão de fibra de internet. Uma outra diferença de classe surgiu então na sala de aula digital, onde indivíduos com conexões lentas começaram a ser temidos em reuniões de todos os tipos, sua cintilação de vídeo, sua 120 Comunicação, tecnologias digitais e IA voz intermitente, suas mensagens cada vez mais associadas às más condições de transmissão. Um novo tipo de blefe começou a tomar forma, onde é muito fácil evitar mostrar o rosto em vídeo, ou mesmo falar, ou pular uma reunião inteira, com a desculpa de que “a conexão web é fraca hoje em dia”. 5.3 A intentio operis dos sites de ensino on-line A semiótica então enfatiza que a troca de significado implica não apenas uma intentio auctoris e uma intentio lectoris, mas também uma intentio operis, o significado exsudando da própria estrutura da mensagem dada a comunidade de intérpretes em que ela circula. É evidente que por mais que muitos professores e alunos possam organizar a morada física de sua interlocução virtual, qualquer que seja o contexto que escolham e qualquer que seja a estratégia que adotem, eles não poderiam evitar uma limitação intrínseca da intentio operis do ensino on-line: a casa não é uma escola; o escritório particular de um professor não é uma universidade; a cozinha de um estudante não é uma sala de aula; não importa o quanto a retórica do encontro virtual entre professor e aluno possa enfatizar sua normalidade e continuidade com a interação presencial na sala de aula, não há como, durante a pandemia, tanto professores quanto alunos possam esquecer que estão se conectando on-line de casa precisamente porque um vírus pernicioso os impede de se encontrarem onde deveriam, ou seja, em um espaço designado, no lugar onde a história, a cultura, e sobretudo o resultado de sua sedimentação – ou seja, uma comunidade de intérpretes – define como o lugar onde a educação realmente tem que ocorrer, onde os indivíduos podem ser transfigurados em professores e estudantes, onde eles podem se encontrar não como indivíduos com suas estantes, cozinhas, aquecedores de água e gatos ou crianças, mas como atores sociais, como encarnações das macrofunções culturais; como emissores e destinatários no processo narrativo – abrangendo várias gerações – que transmite a memória não genética da humanidade através do tempo. 121 SEÇÃO 2 O estudo particular de um estudioso pode muito bem ser delimitado por paredes, e a cozinha de um estudante tem uma porta, mas caminhar através dessas paredes, ou através dessa porta, não implica o ritual de eficácia simbólica que é necessário para efetuar a transformação de uma pessoa em um professor, de um indivíduo em um estudante. O professor on-line pode muito bem ser, ou melhor, permanecer um professor, mas somente em virtude da memória do que esse professor era no mundo físico, antes da pandemia, quando ele ou ela teria entrado na sala de aula e assim teria sido transfigurado em uma encarnação da função de professor. Com o passar do tempo, e se persistir a impossibilidade de retornar ao ensino presencial, essa memória pode tornar-se cada vez mais pálida, gradualmente desvanecer-se, tornar-se uma relíquia cultural, a ponto de ser esquecida pela comunidade interpretativa e eliminada de sua semiosfera. Referências CAVANNA, F. Sur les murs de la classe: Avec des textes d’auteurs de la communale. Collection Albums Beaux Livres – Hoëbeke. Série École. Parigi: Gallimard, 2020. CLEVELAND-INNES, M. F.; GARRISON, D. Randy. 2020. An Introduction to Distance Education. Milton, UK: Taylor and Francis, 2020. REICH, J. Failure to Disrupt: Why Technology Alone Can’t Transform Education. 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São trabalhos que produzem uma espécie de cacofonia, um ruído que alerta o campo desta presença, mas que não têm produzido ainda mudanças substanciais nos procedimentos e nos cânones de pesquisa. Além deste tipo quase que hegemônico de produção, também temos pesquisas que pensam os atravessamentos nas relações 1 Este texto é parte dos trabalhos realizados na Linha Alteridade, subjetividades e estudos de gênero em narrativas não ficcionais do grupo AlterGen. Foi produzido por Cláudia Lago, líder do grupo e professora do PPGCOM; contou com a participação de Anderson Melo, Evelyn Kazan, Isabella Bergo Crosta, Manuela Thamani, Natália Sierpinski, mestres pelo PPGCOM; Cíntia Gomes, Elisa Canjani, Ilton Porto, Janaina Gallo, alunos do PPGCOM; e Letícia Barros, aluna de graduação em Educomunicação. 125 SEÇÃO 3 de constituição dos ambientes profissionais e outros que olham para a prática de produção das pesquisas em comunicação, constituindo mapeamentos de como nos relacionamos, enquanto pesquisadores e pesquisadoras, com a temática e com as perspectivas a ela relacionadas. Sobre esse último aspecto, o que os levantamentos têm apontado, apesar de interrogarem bases diversas, a partir de lugares distintos, é a pouca presença de pesquisas que se relacionam ao que indico como o campo dos estudos de gênero. Um trabalho recente de fôlego que demonstra esta premissa é o de Tainan Pauli Tomazetti, que analisou como se deu a incorporação, apropriações e tensionamentos na relação com o campo de estudo de gênero nas dissertações e teses em comunicação no Brasil de 1972 a 2015 (TOMAZETTI, 2019). Em seu estudo detectou-se que das 13.265 pesquisas produzidas no período, apenas 316 se relacionaram de alguma forma ao campo de estudos de gênero. O trabalho também indica duas vertentes das pesquisas na comunicação que se apropriam dos estudos de gênero: a mais consolidada, relacionada aos estudos feministas, com 240 teses e/ou dissertações, que se organizam especialmente pensando as condições de representação assimétricas, entre masculino e feminino, as violências contra mulheres, o universo da emancipação. A outra vertente se organizaria em pesquisas com o que chama de “viés LGBT e/ou queer”, com 62 pesquisas, buscando articular os processos de generificação e a produção de gênero e sexualidade. Além da exiguidade dos trabalhos frente ao universo produzido pela comunicação no período, o autor indica também para a adesão das questões apontadas pelos estudos de gênero como apenas inscritas nos objetos empírico e não como possibilidade de aportes epistemológicos, o que se relaciona, em sua opinião, à marginalidade destes estudos na comunicação. Em mapeamentos de menor vulto, que temos realizado coletivamente, estas indicações também aparecem, apesar da diferença das bases e dos aportes. Assim, mais recentemente, olhando para a base de dados dos grupos de pesquisa da Intercom de 2016 a 2020 (MARTINEZ; LAGO; HEIDEMANN, 2022) se, por um lado, percebemos 126 Comunicação, sexualidades e gênero um aumento que prevíamos em levantamento anterior (MARTINEZ, LAGO; LAGO, 2016), por outro lado também apontamos que a integração teórica dos campos de estudos (comunicação e estudos de gênero), ainda se dá de forma tênue. Prevalecem trabalhos descritivos, sem uma apropriação efetiva em termos epistemológicos dos tensionamentos que propõem os estudos de gênero. Ao mesmo tempo, a desproporcionalidade quantitativa das pesquisas, em relação ao universo do que é produzido enquanto conhecimento na comunicação, também indica outro limitador: o gênero/raça e a sexualidade, totalmente imbrincados na prática do campo da comunicação, não são devidamente percebidos enquanto tal no subcampo da pesquisa. O que é um paradoxo se pensarmos na centralidade dos aparatos midiáticos para a constituição de gênero/raça e sexualidade. Comunicação, gênero/raça e sexualidade: o lugar da Comunicação Em um texto basilar para pensar as questões de gênero, Teresa De Lauretis (2019) indica, a partir de sua leitura de Michel Foucault, que a mídia é uma importante “tecnologia de gênero”. O que ela quer dizer com isso? Em primeiro lugar é importante situar o texto na década de 80 do século XX, em que as discussões da incorporação do conceito de gênero como categoria de análise (SCOTT, 2019) inundavam as perspectivas feministas na academia. Tratava-se de abandonar radicalmente o determinismo biológico, que, por outro lado, também se manifestava em posições essenciais do feminismo, posto que ancorava a defesa intransigente do direito das “mulheres” – que precisavam se constituir enquanto tal para reivindicar seus direitos e que em muitas situações eram construídos como universais, numa contraposição direta entre masculino universal x feminino universal. Apesar da discussão ter avançado e muito desde então, ainda temos ecos e sombras dela nos nossos escritos e uma grande impressão em nossas pesquisas. A perspectiva de De Lauretis é 127 SEÇÃO 3 [...] conceber o sujeito social as relações da subjetividade com a sociedade de outra forma: um sujeito constituído no gênero, sem dúvida, mas não apenas pela diferença sexual, e sim por meio de códigos linguísticos e representações culturais; um sujeito engendrado não apenas nas relações de sexo, mas também nas de raça e classe: um sujeito, portanto, múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de simplesmente dividido. (2019, p. 123) A autora propõe um conceito de gênero que não se confunda meramente com a diferença entre sexos, quer dizer, que não seja uma mera derivação dessa diferença. Para desimbricar gênero e diferença sexual advoga a utilização da perspectiva foucaultiana que vê a sexualidade como uma tecnologia sexual. Desta forma, propõe que “também o gênero, como representação e autorrepresentação (é) produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos e epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana.” (idem, idem)2. Para De Lauretis, gênero é representação; representação que é construída; representação que é construída invariavelmente no tempo e em espaços os mais diversos, mídia, escolas, família, espaços jurídicos, mas também na academia, no feminismo, na arte. Significativo, pontua que a construção de gênero constantemente se faz também pela sua desconstrução, por meio de qualquer discurso que o veja como uma construção. Quer dizer, a construção de gênero posta sempre está a ponto de ser rompida, desestabilizada e refeita. Neste sentido, há uma disputa constante entre grupos que percebem as construções sobre gênero a partir de lugares distintos e antagônicos – construções essas que são vividas com a intensidade da realidade para a maioria das pessoas, não nos esqueçamos. Nesta disputa então em jogo as representações constituídas na e pelos aparatos 2 De Lauretis observa que sua proposição vai além de Foucault, que não levava em consideração em sua compreensão da tecnologia sexual apelos diferenciados para sujeitos masculinos e femininos. 128 Comunicação, sexualidades e gênero midiáticos, dentro do campo da comunicação. E aí a importância de pensarmos que, se é possível desvincular gênero da sexualidade, não é possível pensar gênero sem pensar nas tecnologias que o produzem, reproduzem, constituem e por ele também são constituídas. E aqui percebemos, então, a centralidade do que nos ocupa enquanto campo de pesquisa, neste processo. Cabe aqui, então, pensar. Por que esta relação não é enfatizada no campo de pesquisa? Por que não está presente enquanto atravessamento necessário quando olhamos para nossos objetos? Por que não aparece e relaciona os demais marcadores que informam a constituição do sistema sexo-gênero/raça e classe? Respostas a essas perguntas são necessariamente hipóteses. A certeza está em que devemos ampliar estas relações. Uma convocação necessária Mesmo que fiquemos dentro de um polo que não aponta para uma ruptura radical para pensar o sistema sexo-gênero/raça como construção, há uma série de convocações feitas ao campo da comunicação, na contemporaneidade, para pensar este sistema. Uma das mais conhecidas se relaciona ao aparato colocado em cena a partir das Conferências das Nações Unidas, ainda dentro da lógica dos direitos iguais para homens e mulheres. Premissas que irão se desdobrar nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3, que têm implicado em orientações para desenvolvimento de pesquisas em vários campos. Dentre os dezessete ODS, o de número cinco é o de Igualdade de Gênero, e estabelece a meta de alcançar a igualdade de gênero e empoderar mulheres e meninas. A Conferência de Bangkok, a Women Empowering Communicaton foi a primeira em nível global a relacionar mulheres e comunicação. Organizada pela World Association for Christian Communication 3 ODS fazem parte da Agenda 2030 da ONU, e é um pacto assinado, em 2015, pelos 193 países membros reunidos na Cúpula das Nações Unidas. São 17 objetivos que se desdobram em 169 metas em direção ao crescimento global sustentável. 129 SEÇÃO 3 (WACC) junto com ISIS International Philippines e o International Women’s Tribune Centre-New York, a conferência reuniu mais de 430 pessoas de 80 países que produziram uma declaração em que afirmam a necessidade de: Promover formas de comunicação que não apenas desafiem a natureza patriarcal da mídia, mas busquem descentralizá-la e democratizá-la: criar mídias que estimulem o diálogo e o debate; mídia que promove a criatividade das mulheres e das pessoas; mídias que reafirmam a sabedoria e o conhecimento das mulheres, e que fazem das pessoas sujeitos ao invés de objetos ou alvos de comunicação. Meios de comunicação que respondem às necessidades das pessoas.4 Ao mesmo tempo, a Conferência de Bangkcok apontou a necessidade de responsabilizar os sistemas midiáticos pela relação com a equidade de gênero, exortando as entidades envolvidas a realizarem diagnósticos para perceber o lugar das mulheres nas mídias. No ano seguinte, estas premissas são fortalecidas e ampliadas na 4.ª Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada, em setembro de 1995, em Beijing, por isso conhecida como Conferência de Pequim. Mais de 30 mil ativistas e representantes de 189 nações construíram a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim, em que estabelecem uma agenda muito abrangente sobre as metas e ações a serem implementadas para a equidade de gêneros. A Plataforma de Pequim5 estabeleceu 12 áreas prioritárias de intervenção, com objetivos e ações a serem desenvolvidas em cada 4 Tradução nossa de: “Promote forms of communication that not only challenge the patriarchal nature of media but strive to decentralise and democratise them: to create media that encourage dialogue and debate; media that advance women and peoples’ creativity; media that reaffirm women’s wisdom and knowledge, and that make people into subjects rather than objects or targets of communication. Media which are responsive to people’s needs”. Disponível em: https://waccglobal.org/return-to-bangkoktwo-decades-of-interventions-on-gender-and-media/. 5 Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf. 130 Comunicação, sexualidades e gênero uma delas. As áreas são: Mulheres e pobreza; Educação e capacitação de mulheres; Mulheres e saúde; Violência contra as mulheres; Mulheres e conflitos armados; Mulheres e economia; Mulheres no poder e na liderança; Mecanismos institucionais para o avanço das mulheres; Direitos humanos das mulheres; Mulheres e mídia (grifo nosso); Mulheres e meio ambiente; Direitos das meninas. Com o documento evidenciou-se o entrelaçamento dos sistemas de comunicação na propagação das desigualdades. Antes de entrar na área específica Mulheres e Mídia, é importante mencionar que a atuação em relação às mídias passou a ser considerada em várias das ações e não apenas neste tópico específico. Preocupações com a mídia compõem objetivo estratégico da área da Violência contra mulheres, indicando a necessidade de: j) despertar consciência da responsabilidade dos meios de comunicação na promoção de imagens não estereotipadas de mulheres e homens e na eliminação de padrões de conduta geradores de violência, assim como estimular os responsáveis pelo conteúdo do material difundido pela mídia a estabelecer diretrizes e códigos de conduta profissionais; e despertar também consciência da importante função dos meios de comunicação no seu papel de informar e educar a população acerca das causas e dos efeitos da violência contra a mulher bem como de estimular o debate público sobre a matéria. (Declaração de Beijing, p. 194) Em relação à área Mulheres e Meios de Comunicação, após contextualizar a relação, a Plataforma estabelece dois objetivos estratégicos, começando por ampliar o acesso de mulheres tanto do ponto de vista da expressão individual e coletiva quanto nas “[...] tomadas de decisões na mídia e nas novas tecnologias de comunicações, aumentar também sua participação nessas áreas, bem como aumentar a possibilidade para elas se expressarem pelos meios de comunicação 131 SEÇÃO 3 e as novas tecnologias de comunicação” (p. 232) e “Promover uma imagem equilibrada e não-estereotipada da mulher nos meios de comunicação”(p. 234), com uma série de ações por parte de governos, sociedade civil, setor privado e empresas midiáticas e publicitárias. Relacionado a essa área, foram desenvolvidas ações globais de mapeamento da relação das mulheres com os sistemas midiáticos, o maior e mais longevo Global Media Monitoring Project (GMMP) que, desde 1995, efetua monitoramento nas mídias jornalísticas no mundo todo, a cada cinco anos, a partir de um protocolo de pesquisa que se atualiza em cada edição da pesquisa6. Plantado a partir de Bangkok, o monitoramento analisa toda a produção midiática noticiosa veiculada em diversos veículos (impressos, on-line, rádio, TV) no mesmo dia no mundo inteiro. O último monitoramento foi realizado, em 2020, em plena pandemia. Após ter ficado ausente do anterior, em 2015, o Brasil retornou com o trabalho de uma grande equipe, com pesquisadoras(es) voluntárias(os) de várias regiões do país e de Portugal7. Naquele ano, 116 países participaram da coleta de dados, que aconteceu no dia 29 de setembro. Nesse dia, voluntários(as) do mundo inteiro se reuniram e, a partir dos protocolos únicos, se debruçaram sobre as mídias de seus países, depois codificadas em tabelas, gerando um volume imenso de dados, quantitativos e qualitativos, sobre as notícias daquele dia, que são consolidados e depois geram relatórios global, regionais e nacionais. No Brasil, foram formados 12 grupos, nas cinco regiões do país e dois em Portugal, com voluntárias(os) de três países, num total de 88 pessoas. Foram monitoradas 23 mídias, entre jornais, rádios, TVs, perfis no Twitter e portais de notícias8. Em São Paulo a equipe ficou 6 Disponível em: https://whomakesthenews.org/. 7 Até 2010, o trabalho foi feito por equipes que não renovaram o esforço em 2015. Em 2020, colegas portuguesas convidaram e incentivaram brasileiras a retornarem ao mapeamento. Agradecemos às colegas portuguesas, na figura de Maria João Silveirinha, pela iniciativa, convite e encorajamento. 8 Conforme apresentação de Elizângela Noronha, coordenadora das equipes Brasil, em mesa de debates no FZDZ Gênero na ECA. A mesa está disponível no canal Diversidade na ECA: https://www.youtube. com/watch?v=Wt3ITlwRrsY&list=PLvczGKT7m6lKz3Cxk8sHXIWUkWufcT0kM&index=1. 132 Comunicação, sexualidades e gênero responsável por investigar, UOL e o Jornal da Manhã, da Rádio Jovem Pan, e contou com 18 voluntários(as)9. Em termos globais10, o GMMP aponta que no atual ritmo só será possível falar em equidade de gênero nos meios tradicionais daqui a 67 anos. Atualmente, apenas 25% dos sujeitos e fontes das matérias são mulheres. Como não poderia deixar de ser, este mapeamento mostrou a supremacia das notícias sobre saúde relacionadas ao covid – no entanto, esta ampliação correspondeu à diminuição das vozes das mulheres e da visibilidade delas nas narrativas. Como já discutimos em artigo anterior (LAGO; NONATO; CANJANI; BERGO, 2020) isto se deve não apenas à concentração de fontes especialistas entre homens, mas também ao enquadramento de guerra das notícias. Mesmo nas notícias que falam de violência de gênero, que dificilmente são matérias de destaque nos noticiários, há uma sub-representação das mulheres como fontes. Ainda sobre a representação de mulheres, quando elas aparecem nos noticiários como sujeitos ou fontes, geralmente o são como fornecedoras de experiências pessoais ou como formadoras de opinião popular – em muito menor número como especialistas, apesar de esforços realizados nos veículos por conta de pressões externas. Em 2020, entre especialistas de diversos assuntos, 24% são mulheres, contra 19% em 2015. Mesmo com um crescimento de cinco pontos, o número está longe de espelhar uma equidade. Com isso as mídias reforçam perspectivas patriarcais, que relacionam as mulheres ao privado, ao doméstico, enquanto os homens são chamados para falar do que é público, geral e coletivo. Neste sentido, o mapeamento não percebeu diferença após cinco anos em um dos itens, qual seja, notícias que desafiam estereótipos de gênero: 9 O relatório Brasil pode ser acessado em: https://whomakesthenews.org/wp-content/uploads/2021/07/ 1-Relatorio-GMMP-Brasil-portugues-12-07-21-completo-1.pdf. 10 Principais resultados disponíveis em: https://whomakesthenews.org/wp-content/uploads/2021/08/ GMMP-2020.Highlights.spa_.FINAL_.pdf. 133 SEÇÃO 3 Entre sete e nove em cada dez histórias sobre assédio sexual, estupro ou outras formas de violência de gênero e questões específicas da desigualdade de gênero, reforçam ou não fazem nada para desafiar estereótipos de gênero, com as consequentes implicações de normalização e continuidade das injustiças que constituem o foco da história. Menos da metade das histórias relacionadas ao gênero (assédio estupro, outras formas de violência de gênero... ) destacam questões de (des)igualdade de gênero11. O GMMP é uma resposta à convocação do campo da Comunicação, ainda majoritariamente dentro de uma lógica binária, que transita em torno de mulheres e homens a se reposicionar em relação às questões de gênero, tanto do ponto de vista da práxis profissional, quanto da produção em pesquisa. É neste sentido que passamos a narrar como algumas e alguns de nós, pesquisadoras e pesquisadores da Comunicação, dentro do PPGCOM, encaminhamos a resposta a esta convocação. Nossa parte no latifúndio: ações e pesquisas do AlterGen no PPGCOM Em 2021, por meio de projeto de iniciação científica vinculado ao Programa Unificado de Bolsas (PUB) da USP, Letícia Barros fez um levantamento da produção em teses e dissertações produzidas na ECA-USP, entre 2016 e 2021. Utilizando o termo gênero como chave de pesquisa, foram encontradas 81 produções. Separando aquelas que 11 Tradução nossa do original: Entre siete y nueve de cada diez historias sobre acoso sexual, violación u otras formas de violencia de género y cuestiones específicas de desigualdad de género, refuerzan o no hacen nada para desafiar los estereotipos de género, con las consecuentes implicaciones de normalización y continuidad de las injusticias que constituyen el foco de las historias. Menos de la mitad de las historias relacionadas con el género (acoso sexual, violación, otras formas de violencia de género…) realmente destacan cuestiones de (des)igualdad de género. Disponível em https://whomakesthenews. org/wp-content/uploads/2021/08/GMMP-2020.Highlights.spa_.FINAL_.pdf. p. 3. 134 Comunicação, sexualidades e gênero se referem a gênero como estilo textual, sobram 21. Apesar de não ter sido possível, no estágio da pesquisa12, identificar o volume total de produções, ele provavelmente é diminuto em relação ao que é produzido pelos programas de pós da ECA. Interessante notar também que as pesquisas são realizadas em sua maioria por mulheres (16). Das(os) 20 orientadores(as), 15 são mulheres também. As temáticas, objetos, metodologias são as mais variadas, mas, em geral, percebemos uma pouca adesão ao campo de estudos de gênero, repetindo o já indicado nos mapeamentos anteriores citados neste texto. Com isso, as pesquisas também não se beneficiam da amplitude epistemológica proposta por este campo. Dentro deste contexto já intuído foi que, em 2017, sentimos a necessidade de um grupo de pesquisa voltado especificamente para atuar na relação entre Comunicação, Artes e Estudos de Gênero. Assim criamos o Grupo, registrado no CNPq Alteridade, subjetividades, estudos de gênero e performances nas Comunicações e nas Artes (AlterGen) relacionado também ao Projeto de Extensão Diversidade na ECA13. Desde então, ações e pesquisas se aglutinam, e mobilizam não apenas pessoas diretamente ligadas aos grupos, mas também parceiros e parceiras inestimáveis no percurso.14 Um exemplo foi o trabalho de pesquisa realizado por conta do GMMP, quando o AlterGen mobilizou 18 voluntárias(os) em São Paulo para a coleta de dados e discussões do resultado. Ou a realização, desde 2017, do FZDZ Gênero na ECA, encontro que reúne pesquisadoras(es) que trabalham a interface gênero, comunicação e/ou artes, 12 Como é um trabalho de IC, optamos por focar na leitura das teses e dissertações e análise do material obtido. Para conseguir o volume de teses e dissertações produzidas no período, teríamos que falar separadamente com cada PPG. 13 O projeto Diversidade na ECA existe desde 2017, a partir de bolsas do PUB. Desenvolve várias atividades para promoção da diversidade, como o Fazendo e Desfazendo Gênero na ECA (FZDZ), desde 2017. 14 Mencionamos aqui especialmente Gean Gonçalves e Fernanda Castilho, coordenadores do FZDZ desde seu início; Cláudia Nonato, Monica Martinez, e Mara Lago, coautoras de várias pesquisas; Marcia Veiga, ingressante na equipe do FZDZ este ano. Especialmente, as amigas da Rede Não Cala USP, parceiras de publicações, lutas, projetos e que sempre generosamente se engajam nas atividades da ECA. E os alunes querides, que estiveram no começo e no meio do Diversidade, especialmente Gabriel Razo, Denise Teófilo, Rafaela Treib-Stella e Adda Cruz. E as bolsistas atuais, que estão tocando o barco, Rosa Miranda e Thaynara Silva. 135 SEÇÃO 3 em vários níveis, para discutir e difundir suas pesquisas. Também importante mencionar a parceria com o Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (OBCOM), que atualmente realiza pesquisas dentro da perspectiva do Safety on Journalism – e os atravessamentos de gênero são inegáveis dentro desta discussão. Em termos da relação com o PPGCOM, importante ressaltar as pesquisas desenvolvidas dentro do Programa, vinculadas à Linha Alteridade, subjetividades e estudos de gênero em narrativas não ficcionais do AlterGen. Também aqui podemos observar uma amplitude de métodos e objetos – contudo há uma preocupação constante em realmente fazer uso das perspectivas abertas pelo campo de estudos de gênero, por si só transdisciplinar. Em termos de pesquisas já finalizadas, tivemos trabalhos que se detiveram a pensar mídias, as mais variadas, bem como trabalhos que olharam para grupos sociais em seus entrelaçamentos com mídias. Em Mulheres Periféricas e autorrepresentação: uma análise do Nós, Mulheres da Periferia, Evelyn Kazan (2020) analisou o arranjo jornalístico alternativo Nós, Mulheres da Periferia, refletindo sobre o sujeito periférico generificado “olhando-o a partir das complexidades, multiplicidades e dos diversos marcadores da diferença que os subscrevem, permeados pela condição periférica, por relações étnico-raciais, de gênero, de sexualidade, geracionais, dentre outras”. Como resultado, observou que “o coletivo representa as mulheres periféricas a partir de sua multiplicidade, atravessadas pelas interseccionalidades: são, majoritariamente, mulheres negras, lutadoras, sujeitas ao sexismo e racismo e em relação com o território periférico.” Manuela Thamani (2021), em Futuro se faz com a história e história com o povo dentro: Movimentos Negros na interface da Comunicação e Educação, analisa experiências ancoradas na práxis do movimento negro educador, que “dialogam com os preceitos educomunicativos na mesma medida que propugnam pela valorização da história e cultura afro-brasileira e africana”. Tratou-se de ampliar a literatura educomunicativa em sua relação com as questões étnico-raciais e, mesmo que gênero não tenha sido foco central, ele transparece 136 Comunicação, sexualidades e gênero nas análises, que adotam uma perspectiva interseccional para pensar os objetos. Natalia Sierpinski (2021), em Autoria de Mulheres nas HQs no Brasil: contranarrativas das autoras premiadas na última década pelo Troféu HQ Mix, identifica mulheres premiadas em categorias específicas da maior premiação da área, mostrando como estas histórias se relacionam com o universo feminista contemporâneo, tecendo contranarrativas ao universo patriarcal. Da mesma forma, Isabella Bergo Crosta (2022) mergulha nos novos feminismos, analisando dois arranjos jornalísticos em Coletivos Feministas no Instagram: análise do Feminacida (Argentina) e do Portal Catarinas (Brasil), pensando como os coletivos usam “os recursos digitais da rede Instagram para realizar uma prática comunicativa capaz de transgredir as lógicas comunicacionais hegemônicas” e “como (e se) referem-se às questões do feminismo decolonial latino-americano”. Também com uma matriz que se relaciona a feminismos decolonias, Elisa Canjani (2021) analisa o uso do WhatsApp por mulheres migrantes em Resistências femininas: redes de comunicação de mulheres migrantes latino-americanas na Região Metropolitana de São Paulo. O trabalho, etnográfico, além de somar-se aos estudos sobre migrações femininas, identifica “a compreensão das possibilidades de resistência e ressignificação das mulheres migrantes, ampliadas pelo uso das redes sociais digitais na construção de espaços de encontro, reflexão, organização e constituição de cidadãs de direitos”. No campo das resistências, Anderson Luiz de Melo (2022), em Marcos Paulo, Britney e Michelly: transfemininas em telenovelas, os corpos de um novo tempo, uma análise interpretativa, pensa corpos transfemininos em novelas atuais, analisando as construções e comparando-as a outras mais antigas e mais problemáticas, identificando o imbricamento entre militância trans e mudança das representações nas novelas. Nas pesquisas em andamento15, além dos resultados de pesquisas produzidos no âmbito dos projetos “Narrativas não ficcionais 15 Este apanhado baseia-se nos projetos de pesquisa, não disponíveis para o público. 137 SEÇÃO 3 midiáticas e Alteridade de Gênero: a perspectiva educomunicativa, e monitoramento nos sistemas midiáticos de Gênero, Sexualidades, Raça e outros marcadores” (onde se inserem, por exemplo, as parcerias com o OBCOM e o trabalho junto ao GMMP), existem pesquisas relacionadas ao PPGCOM em desenvolvimento, todas entrelaçadas com o campo de estudos de gênero. Assim, Elisa Canjani, com o projeto Das Evas, Madalenas e Marias: ideário cristão e migração feminina nas redes digitais, aprofunda seu trabalho inicial, agora buscando entender como “as imagens do feminino construídas na cristandade e difundidas através das missões religiosas no período colonial permeiam, na atualidade – o universo migratório das mulheres bolivianas inseridas no nicho laboral da costura na cidade de São Paulo”. Ilton Porto busca as Marcas de resistência dos jornalistas LGBTQIA+ à cisheteronormatividade na profissão: um estudo das redações paulistas, tentando perceber essas marcas a partir dos relatos de profissionais, amparando-se na teoria queer. Também Cintia Gomes olha para jornalistas, em Gênero e raça: quem são as jornalistas negras na cobertura educativa brasileira, analisa “quem são as jornalistas negras especializadas na cobertura de educação, além de identificar em quais veículos de comunicação” atuam e “compreender como a questão de gênero e raça está relacionada com aspectos sociais, culturais e econômicos na profissão.” Relacionada diretamente ao esforço de monitoramento dos sistemas midiáticos, Janaina Soares Gallo desenvolve a pesquisa Mídia, gênero e direitos humanos: uma análise a partir da metodologia do GMMP, em que busca entender “a relação dos direitos das mulheres com os meios de comunicação, de modo que seja garantido o exercício pleno de seus direitos e alcance do seu desenvolvimento integral como pessoas”. Este apanhado, sucinto, tem por objetivo identificar um esforço específico, relacionado ao PPGCOM, de intercambiar o campo da comunicação com os estudos de gênero. Neste esforço, ficam evidentes as amplitudes – já que o campo de estudos de gênero é extremamente vasto em seus enquadramentos teórico-metodológicos, assim como a comunicação. 138 Comunicação, sexualidades e gênero No entanto, é importante frisar que há linhas de confluência entre os vários empreendimentos de pesquisa listados, a começar pela perspectiva de se relacionar com os estudos de gênero não apenas de forma tangencial, mas mergulhando nas inúmeras revisões epistemológicas que ele propõe, a começar pelo lugar da produção do conhecimento, desnaturalizando as engrenagens de um conhecimento produzido a partir de matrizes eurocêntricas tão somente, masculinistas, brancas, cisheteronormativas. Neste sentido, as pesquisas são atravessadas pela perspectiva da interseccionalidade (CRENSHAW, 2002) e, a passos largos, têm incorporado a decolonialidade (LUGONES, 2008; PAREDES, 2019) como um pressuposto. Para finalizar: várias teorias, muitas metodologias, inúmeros objetos e um só caminho Desde que nossas inquietações, porque todo trabalho de pesquisa parte de inquietações, nos trouxeram para este lugar de pensar a necessidade de desnaturalizar as estruturas sociais, os dispositivos que constituem nossas formas de viver, que se amparam na segregação e na normatização dos corpos a partir de uma régua excludente, já que toma como ponto de referência apenas homens, brancos, de camadas médias/altas, heterocisnormativos, relacionados a um imaginário eurocêntrico e que, portanto, deixa de fora a maioria das pessoas (inclusive a nós todas/os do grupo), temos empreendidos esforços coletivos de ampliação dos olhares sobre o campo da comunicação (e seus objetos) a partir do campo de estudos de gênero. Tentando responder a pergunta norteadora deste texto, qual seja, quais seriam os princípios que devem nortear a agenda de pesquisas no campo da comunicação, a partir da temática Comunicação, sexualidade e gênero, entendemos que sexualidade e gênero não são apenas temáticas dentro do campo. São atravessamentos que indagam o campo e as pesquisas do ponto de vista ético, transversais às temáticas, como a amplitude teórico/metodológica de nossos trabalhos, mesmo que em número reduzido, indicam. Atravessamentos 139 SEÇÃO 3 que questionam, por exemplo, em outros espaços e temáticas, a necessidade de ampliar as bibliografias, inserir não apenas autores homens eurocêntricos (mesmo que deles não se possa abrir mão). Que se relacionam às políticas de ações afirmativas para trazer para dentro do ambiente de produção de conhecimento grupos que deles, ainda hoje, são excluídos. Ao mesmo tempo, defendemos que o princípio da produção em rede, em parceria (como também indicam nossas produções compartilhadas) é essencial, para trabalhar a reflexividade (BOURDIEU, 2004) necessária nas pesquisas e para construir pontes necessárias junto aos movimentos que estão na raiz de nossas inquietações. Feministas, de pessoas negras, LGBTQIAPN+, os corpos dissidentes, as vozes dissonantes que causam tanta reação pelo simples fato de se colocarem na cena e exigirem seu lugar e seus direitos. Como demarca a filosofia ubuntu, eu sou porque nós somos, e essa premissa deve ser, a nosso ver, incorporada em nosso ato de pesquisar. Referências BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 2004. CANJANI, Elisa Camargo. Resistências femininas: redes de comunicação de mulheres migrantes latino-americanas na Região Metropolitana de São Paulo. 2021. Dissertação (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. 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Tese (Doutorado em Comunicação e Informação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019. 142 Sexo, gênero e ação: uma breve reflexão sobre transvisibilidade no cinema e na televisão Gabrielle Weber Silvana Nascimento Juntes coordenam o projeto de pesquisa e extensão “Corpas Trans e Travestis na USP”. Introdução As mídias de massa, notadamente a televisão e o cinema, fornecem, por muitas vezes, as únicas oportunidades que, muites1 de nós, pessoas trans, temos para sermos representades para fora de nossos refúgios por meio de imagens e personagens em filmes, séries de ficção, telenovelas, animações, etc. A forma com a qual essas imagens são criadas, produzidas e veiculadas nos meios midiáticos 1 Ao longo do texto, utilizaremos a linguagem neutra, notadamente o sistema elu/delu, para não reproduzir binarismos de gênero tão impregnados em nossa língua portuguesa, que reproduzem muitas desigualdades de gênero e uma predominância do masculino. 143 SEÇÃO 3 pode exercer um impacto profundo em como vemos e, principalmente, classificamos e julgamos pessoas trans e das demais letras da comunidade LGBTQIA+2. Assim, é necessário um maior cuidado para não empregarmos estereótipos negativos e simplistas que possam sedimentar preconceitos e fundamentar discursos de ódio. (REITZ, 2017; LESTER, 2015). Historicamente, pessoas LGBTQIA+ e, em particular, pessoas 3 trans , têm sido representadas de uma maneira deveras caricata e extremamente superficial pela mídia. Muitos desses estereótipos envolvem a vitimização, a vilanização ou a ridicularização das pessoas trans, além de insistirem na exotificação, fetichização, objetificação, patologização e domesticação de seus corpos a partir de uma ótica cisheteronormativa4, o que reforça o imaginário popular de uma personificação paradoxal da fascinação e do nojo, do desejo e da perversão (LESTER, 2015). Tais ferramentas são empregadas não apenas para tornar os corpos trans inteligíveis para uma população majoritariamente cisgênera e que, por isso, nunca refletiu sobre as opressões da cisheteronorma, como também para policiar as identidades cisheteronormativas, mostrando, por contraste, o que é socialmente aceitável (MILLER, 2015). A partir da virada do milênio e, mais proeminentemente, na última década houve um aumento significativo da presença tanto de personagens quanto de atories trans em filmes e produções televisivas. Contudo, será que essa melhora quantitativa também 2 Relegamos a discussão mais aprofundada sobre as definições relacionadas à trinca sexo, gênero e sexualidade, bem como ao acrônimo LGBTQIA+ para a seção “Sexo, Gênero e Ação”. 3 Utilizamos a categoria pessoa trans ou trangênero como auto-identificações que se pautam pela recusa ou pela dissidência em relação ao gênero imposto ao nascimento pelos poderes médicos. Referem-se a auto-definições, que são atribuídas pelas próprias pessoas, que podem ser transfemininas, travestis, mulheres trans, mulheres transexuais, transmasculinas, boycetas, homens trans, homens transexuais, não-bináries, entre outras denominações que compõem um multiverso complexo de vivências e identidades trans. 4 A expressão “cisheteronormatividade” refere-se a um conjunto de normas e práticas produzidas socialmente que produzem as identidades cisgênero, quer dizer, que se identificam com o gênero imposto no nascimento, pelos poderes médicos, e que também se sentem como heterosexuais. A cisheteronormatividade expressa relações de poder presentes em diferentes instâncias da sociedade, que também são reproduzidas pela branquitude, pelo racismo e pelo sexismo, e que excluem pessoas trans deste cistema. 144 Comunicação, sexualidades e gênero reflete uma melhora qualitativa da representatividade? Pesquisas de opinião realizadas pela GLAAD5, uma organização não governamental, fundada em 1985, com o intuito de monitorar a forma com que a mídia retrata as pessoas LGBTQIA+, têm mostrado indicadores positivos. O estudo “Inclusão LGBTQ na Mídia e na Propaganda”, realizado pela GLAAD em parceria com a Procter & Gamble, envolvendo 2031 estadunidenses não LGBTQIA+ maiores de 18 anos, entre 20 de novembro e 3 de dezembro de 2019, ajuda a entender um pouco melhor o cenário (P&G, 2020). Enquanto que cerca de 86% des respondentes afirmam conhecer pessoalmente uma pessoa LGBTQIA+, apenas 34% conhecem uma pessoa transgênero pessoalmente. Portanto, a única forma de contato e, consequentemente, de aproximação com a realidade das pessoas trans que a maioria da população tem ainda é através da mídia, ressaltando a importância de uma representação adequada e que fuja dos estereótipos nocivos. Além disso, esse estudo ajuda a corroborar a hipótese de que a representação de pessoas LGBTQIA+ na mídia está relacionada com uma maior aceitação dessa comunidade, indicando pelo menos um sucesso parcial das representações contemporâneas. Notadamente, pessoas não LGBTQIA+ que foram expostas a imagens de pessoas LGBTQIA+ na mídia nos três meses anteriores à pesquisa reportaram uma maior aceitação, quando comparadas com pessoas não LGBTQIA+ que não foram expostas. Em particular, a aceitação de pessoas trans sobe de 33% (no grupo não exposto) para 44% (no grupo exposto). Finalmente, esse estudo mostra também que 76% des respondentes estão confortáveis com a presença de personagens LGBTQIA+ no cinema e na televisão. Uma outra pesquisa de opinião da GLAAD, realizada em 2020, em parceria com a Netflix e envolvendo mais de seis mil adultos em países da América Latina, como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru, avaliou positivamente o impacto da diversidade em filmes e na 5 GLAAD é um acrônimo para Aliança Gay e Lésbica contra a difamação, do inglês, Gay & Lesbian Alliance Against Defamation. 145 SEÇÃO 3 televisão (GLAAD, 2021). Para 68% des participantes, assistir filmes ou séries propiciou um melhor entendimento da comunidade LGBTQIA+. Em particular, 73% des respondentes não LGBTQIA+ afirmaram que ver personagens LGBTQIA+ nas telas lhes deixou mais confortáveis com pessoas LGBTQIA+ de um modo geral. Já, 75% des participantes LGBTQIA+ reportaram sentir que a representatividade na mídia facilitou o entendimento da comunidade LGBTQIA+ por parte de suas famílias e, além disso, 87% desses respondentes relataram que, ao longo dos dois anos que precederam à pesquisa, houve uma melhora na forma com que a mídia apresenta a comunidade LGBTQIA+. Mas de que forma essa mudança na representação de pessoas trans na mídia tem realmente ajudado a combater o preconceito e aumentar a aceitação de pessoas trans na sociedade? Será que representatividade basta para garantir uma existência digna às pessoas trans? Trata-se de duas perguntas cruciais no contexto geopolítico atual, em que assistimos uma avassaladora onda conservadora abalar diversas democracias no mundo e colocar em risco a já frágil legitimidade das corpas trans. As imagens produzidas pelas mídias, levando em conta quem está por trás da elaboração do roteiro, da produção, das câmeras e da direção, possuem uma força de representação e de representatividade que pode afetar, profundamente, quem as vê. Como será que pessoas trans se sentem ao verem outras pessoas trans serem representadas nos filmes e na televisão? São espelho do que desejam para elas mesmas? São personagens que permitem oferecer perspectivas variadas sobre elas? São imagens que reproduzem repulsa ou chacota? Fazem rir? Fazem temer? Criam projetos de futuro ou reproduzem preconceitos? Para iniciar a conversa, representação e representatividade não são necessariamente sinônimos. Durante muito tempo, grande parte das personagens trans no cinema e na televisão eram representadas por pessoas cisgêneras de forma estereotipada e só muito recentemente passaram a ser interpretadas por pessoas trans. Mas, não necessariamente são imagens positivas ou mais próximas da 146 Comunicação, sexualidades e gênero experiência cotidiana delas. Como elaborar mídias de forma ética e responsável que possam efetivamente criar mecanismos de combate à homofobia e à transfobia? Uma questão primordial para se pensar na valorização da visibilidade trans refere-se ao respeito ao processo de autodeterminação: O conceito de autodeterminação nos coloca como protagonistas de nossas experiências subjetivas, retirando a autoridade que, na sociedade vigente, ainda está tutelada por instituições médicas, jurídicas, religiosas e estatais, que nos delimitam em uma condição subalterna, patológica, criminosa e imoral. Quando os corpos trans* assumem processos de produções discursivas sobre suas subjetividades, passam a rechaçar o pensamento colonizador e os processos de patologização (Leticia Carolina Nascimento, 2021, p. 107) Desse modo, é essencial levar em conta as autodefinições e as autoidentificações das pessoas trans para que elas mesmas possam construir imagens de si que escapem às cisheteronormatividades e não criem imagens de controle que reproduzam desigualdades e violências. Essas imagens de controle, segundo Patricia Hill Colins (2019), criam figuras reificadas e estereotipadas que se reiteram ad nauseam e não permitem que experiências vividas em sua multiplicidade possam ser reconhecidas. Para perceber essas experiências de forma ampla, reconhecendo a personitude e a singularidade das transgeneridades possíveis, é preciso captar, produzir e veicular imagens por meio de uma perspectiva interseccional (COLINS, 2019), e possibilitar cruzamentos entre gênero, raça, classe, geração, sexualidade, nação, entre outros marcadores sociais da diferença. Neste capítulo, pretendemos analisar, de forma panorâmica e preliminar, como a representação e a visibilidade trans na comunicação, notadamente no cinema e na televisão, têm sido elaboradas sob uma perspectiva transinclusiva. Não temos a pretensão de dar conta 147 SEÇÃO 3 da produção que tem sido realizada no contexto nacional e internacional, tampouco fazer uma análise especializada do ponto de vista audiovisual, mas apontar para questões transversais que possam colaborar para produtos que, concretamente, possam valorizar processos subjetivos e socio-históricos de autodeterminação de pessoas trans. E, para iniciar a conversa, apresentamos uma discussão sobre sexo, gênero e sexualidade. Sexo, Gênero e Atração Sexo, gênero e desejo são três elementos observáveis independentes nas dinâmicas socioculturais humanas. Eles criam relações afetivas, sexuais e/ou românticas que, não necessariamente nesta ordem, também produzem normatividades em relação a identidades, subjetividades, formas de família, modos de dominação e desigualdade, práticas e comportamentos, etc. No modelo binário cisheteronormativo, a correlação entre esses elementos foi erroneamente promovida a uma relação de causalidade a partir da naturalização de sua articulação. Para podermos melhor descrever a diversidade humana e entender as limitações preconceituosas do modelo cisheteronormativo vigente, precisamos primeiramente definir tais conceitos de maneira precisa e estudar suas relações. Antes de mais nada, há diferentes teorias que versam sobre sexo, gênero, sexualidade e desejo que estão sendo elaboradas e debatidas por variadas disciplinas, desde as ciências sociais e humanas até as ciências exatas e biológicas. E não existe uma única versão considerada verdadeira, mas variadas perspectivas que podem colaborar para uma compreensão cada vez mais global de como as diferenças entre esses elementos produziram, ao longo da história, e em diferentes contextos culturais, desigualdades e criaram hierarquias entre aquelas práticas consideradas “normais” e outras dissidentes (FOUCAULT, 2001). Do ponto de vista da biologia (BHARGAVA, 2021; FROMHAGE, 2016; WHITFIELD, 2004), sexo é uma forma de reprodução na qual o material genético de dois organismos é misturado. A maioria 148 Comunicação, sexualidades e gênero dos seres vivos multicelulares se reproduz por um tipo de reprodução sexuada conhecida como anisogamia, que consiste na fusão de dois gametas distintos, classificados apenas de acordo com o seu tamanho. Organismos que produzem os gametas pequenos (espermatozoides) são, então, denominados machos, enquanto que organismos que produzem gametas grandes (ovos) são denominados fêmeas. É essa, e apenas essa, dicotomia que determina o famigerado “sexo biológico” de um ser humano. Em outras palavras, sexo é inerentemente binário. Na maioria das espécies animais, indivíduos exibem diferenças físicas e comportamentais que se correlacionam com o seu sexo. Essas diferenças físicas, sejam elas cerebrais, cromossômicas, genitais, gonadais ou na proporção dos chamados hormônios sexuais6, são muitas vezes utilizadas para a identificação do sexo e, por isso, erroneamente tomadas como em correspondência biunívoca com o sexo do indivíduo. É exatamente ao promover essas correlações fortuitas a uma série de pseudobijeções7 que se origina o binário de gênero e a cisheteronorma. Dessa forma, nossa sociedade está alicerçada na premissa de que indivíduos que nascem com um pênis são machos e, por isso, devem apresentar o comportamento esperado de homens, incluindo a atração sexual por mulheres. Elas, as fêmeas, por sua vez, são indivíduos que nascem com uma vagina, cujo comportamento esperado é definido em oposição ao masculino. Contudo, essas características físicas que se correlacionam com o sexo de um indivíduo não são sequer binárias, podendo, muitas vezes, ser exibidas na forma de um espectro contínuo, interpolando aquelas que são usualmente atribuídas a machos e fêmeas. Nesse contexto, uma das perguntas fundamentais da biologia é como a anisogamia se correlaciona com a diversidade dessas diferenças físicas e comportamentais, como o 6 Ambos os sexos produzem estrógenos, andrógenos e progestinas, porém tipicamente em proporções diferentes. 7 Na matemática, uma bijeção, ou relação biunívoca, é uma correspondência entre elementos de dois conjuntos através da qual cada elemento de um dos conjuntos é pareado com um e apenas um elemento do outro e vice-versa. De uma maneira mais informal, podemos pensar que uma bijeção constitui um dicionário perfeito entre dois conjuntos. Por outro lado, pseudo é um prefixo grego que significa falso. Assim, da justaposição de pseudo com bijeção, temos uma relação que parece colocar elementos de dois conjuntos como sinônimos, mas que, de fato, não o faz. 149 SEÇÃO 3 investimento no cuidado parental. Até os anos 1980, mesmo nas ciências humanas, especificamente nos estudos feministas, procurava-se diferenciar sexo de gênero para mostrar que, a despeito das características biológicas, gênero era uma construção sócio-histórica que revelava profundas desigualdades entre homens e mulheres (SCOTT, 1994; RUBIN, 2017). Em mamíferos, incluindo seres humanos, a determinação do sexo no desenvolvimento de um indíviduo começa com a herença de alguma combinação dos cromossomos X e Y,8 o chamado sexo cariótipo. As demais características sexuais (cerebrais, genitais, gonadais e secundárias) são então determinadas pela expressão gênica modulada por diversos aspectos ambientais em uma complexa interação que está longe de ser completamente elucidada. É exatamente essa complexidade emergente na determinação e diferenciação sexual que dá origem a toda a diversidade de corpos sexuados que não pode ser acuradamente descrita pela simplicidade desnecessária de um binário. Agora, com uma definição do que é sexo e de como ele se correlaciona com as diversas características sexuais, podemos definir gênero. No contexto deste artigo, entendemos a identidade de gênero de uma pessoa como a sua percepção sobre a sua existência sexuada em um dado contexto ambiental, cultural e social. Em outras palavras, como ela interpreta as suas demais características sexuais levando em conta aspectos do ambiente, cultura e sociedade na qual está inserida. Dessa forma, não apenas a identidade de gênero emerge de uma complexa relação entre fatores ambientais, biológicos, culturais e sociais, como pode ser apenas autodeterminada. Definimos, então, gênero como o conjunto de todas as identidades de gênero possíveis dotado de relações que possibilitam inúmeras combinações que envolvem subjetividades, construções corporais, comportamentos, desejos, formas de expressão, formas de aliança, diferenciações, relações multiespécie etc. (STRATHERN, 1988). Se a diversidade de corpos sexuados já não admite uma descrição binária, o gênero, que emerge a partir dela através de uma 8 As combinações XX e XY são apenas as mais comuns, mas outras combinações, como X, XXX, XXY e XYY, são possíveis. 150 Comunicação, sexualidades e gênero complexa interação com o ambiente e a sociedade, muito menos. Assim, em conformidade com o que observamos na natureza tal como a pensada pelas ciências biológicas, existe uma infinidade de gêneros cuja descrição transcende em muito a simplicidade daquela descrita pelo modelo binário envolvendo apenas homem e mulher. Contudo, vislumbrar, nomear e catalogar tamanha infinitude com mentes tão doutrinadas por essa construção binária, que nos foi forçada desde a mais tenra infância, é uma tarefa deveras complicada. Portanto, para os fins deste capítulo, contentamo-nos apenas a admitir a existência de infinitos gêneros, dois dos quais são homem e mulher. Por atração sexual, afetiva ou romântica, entendemos o conjunto de gêneros que despertam desejo em uma dada pessoa, que é mais comumente chamada de “orientação sexual”. Não há uma determinação daquilo que cada ume faz com sua sexualidade ou com seu desejo por outrem. Do ponto de vista filosófico, o desejo pode ser imaginado como um fluxo, que não necessariamente é controlado ou escolhido (DELEUZE; GUATTARI, 2017; BUTLER, 2003). Já, do ponto de vista biológico, a atração sexual ou romântica também depende de uma interação complexa entre os hormônios sexuais e os hormônios peptídicos (como a oxitocina e a vasopressina) modulada pela cultura, que encoraja certos tipos de comportamento em detrimento de outros. Usualmente, empregamos o gênero como referência para classificar uma sexualidade. Assim, a atração ou desejo por pessoas do mesmo gênero são denominadas homossexuais9, enquanto que pessoas que se atraem por outros gêneros, heterossexuais10. Já, pessoas que sentem atração por múltiplos gêneros se encaixam em alguma das multissexualidades, como bissexualidade e pansexualidade. Finalmente, existem pessoas que sentem pouca ou nenhuma atração sexual, denominadas assexuais. Neste sentido, a relação entre sexo, 9 As identidades prevalentes nesse contexto são a gay e a lésbica. A primeira reservada para pessoas alinhadas ao masculino, por exemplo, homens, que se atraem por pessoas alinhadas ao masculino, enquanto que a segunda para pessoas alinhadas ao feminino, por exemplo, mulheres, que se atraem por pessoas alinhadas ao feminino. 10 Note que aqui já estendemos o conceito usual de heterossexualidade que, normalmente, é reservado para descrever apenas a atração de homens (mulheres) por mulheres (homens). 151 SEÇÃO 3 gênero e desejo não é linear muito menos causal, mas permite infinitas combinações (BUTLER, 2003). Ao empregar as pseudobijeções para amarrar genitália (pênis ou vagina) e gênero (homem ou mulher) com a heterossexualidade, nossa sociedade cria a chamada cisheteronorma que privilegia duas classes de corpos em detrimento de uma miríade de corpas que se tornam, pois, ininteligíveis socialmente. São exatamente essas corpas marginalizadas que constituem a chamada comunidade LGBTQIA+, compostas por pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexuais, assexuais, entre outras sexualidades e gêneros que transcendem a cisheteronorma. Neste contexto, entendemos uma pessoa transgênero ou, mais simplesmente, trans, aquela cujo gênero não corresponde ao atribuído ao nascimento através da pseudobijeção entre genitália e gênero11. Reciprocamente, uma pessoa que não é trans é denominada cisgênero ou, mais simplesmente, cis. Representação e Visibilidade Trans nas Telas A representação acurada de pessoas trans na televisão enfrenta diversos problemas, cuja origem pode ser traçada, de acordo com Booth (2015), por uma interação destrutiva entre a cisnormatividade e a dependência intrínseca desta mídia em imagens. Em particular, espectadores necessitam de uma confirmação visual da identidade de gênero para tornar os personagens exibidos na tela inteligíveis. Além da grande dificuldade em apresentar identidades de gênero que não correspondam imediatamente à aparência física como acontece, notadamente, com pessoas trans não passáveis ou não-binárias, isso propicia uma caracterização que superenfatiza, de modo muitas vezes caricato, os estereótipos de gênero cisnormativos, como o uso exagerado de maquiagem e a interpretação de personagens trans por parte de atories cisgênero. Grande parte des personsagens trans que surgiram nas telenovelas e nos filmes, até os anos 2000, eram representados por profisisonais 11 Consequentemente, qualquer identidade de gênero que não seja a de homem ou a de mulher é, de acordo com a nossa definição, necessariamente trans, incluindo, por exemplo, pessoas não-binárias. 152 Comunicação, sexualidades e gênero cis, criando, na maioria das vezes, imagens muito exageradas e cômicas, sobretudo de pessoas transfemininas, como foi o caso da personsagem Ana Bela, interpretada por Ney Latorraca, na novela Um Sonho a Mais, de 1985, dirigida por Lauro Cesar Muniz, que fazia o público rir. Segundo pesquisas de Anderson Luiz de Mello, “Entre 1985 e 2020 foram mais de vinte personagens trans em telenovelas nacionais, a maioria expressiva delas interpretadas por mulheres e homens cis. Nas poucas ocasiões em que a regra foi quebrada, uma mesma atriz trans, Rogéria, foi escalada para três desses papéis, em Tieta (1989), Paraíso Tropical (2007) e Babilônia (2015)” (2022, p. 32). Rogéria, conhecida como “a travesti da família brasileira”, falecida em 2017, foi maquiadora, atriz, transformista e participou de diversas novelas e filmes, entre eles a famosa novela Tieta com a personagem Ninete12. Atrizes e modelos transfemininas que passaram a adquirir visibilidade nas telas estavam voltadas, sobretudo, para o mundo do carnaval e da moda, reproduzindo, de certo modo, um desejo objetificante de espectadores curioses e desejantes por corpas exóticas, que podiam fazer rir e divertir a plateia13. Além disso, elas estavam sempre sob suspeita e se tentava revelar seu “verdadeiro sexo”, tanto com relação a modelos, como Roberta Close, quanto em relação às personagens nas novelas, como Ninete (MELLO, 2022). “Será que ela é?”. E, portanto, ainda não havia espaço para visibilidades trans que pudessem contemplar outras experiências e expressões de gênero. Só mais recentemente, em 2009, uma primeira atriz trans, Fabiana Brazil, em novela do SBT, interpretou uma personagem trans, com uma pequena participação especial, na novela Vende-se um Véu de Noiva, dirigida por Íris Abravanel. Conforme Anderson Mello, “desde a estreia de Rogéria em Tieta no ano de 1989, e suas participações 12 Naquele momento, no Brasil, muitas travestis estavam em destaque na mídia, como Roberta Close e Telma Lipp. Para Lux Lima, nesse período, “a atenção midiática e o regime discursivo biomédico que circulava na imprensa tiveram relevância no imaginário popular ao produzirem uma imagem ambivalente da travestilidade, evidenciando o pressuposto de relação opositiva entre verdade, permanência e natureza, de um lado, e falsidade, contingência e construção social de outro.” (LIMA, 2022, p. 122). 13 Nos anos 1990, havia também uma forte presença de drag queens em programas de auditório, tal como a figura de Vera Verão (Jorge Lafond), um dos poucos atores negros e gays que circulava por emissoras importantes. 153 SEÇÃO 3 em outras obras ao longo de quase três décadas, nenhuma outra telenovela da Rede Globo contou com atores ou atrizes transexuais no elenco, até Salve Jorge (Rede Globo, 2012-2013)” (2022, p. 50). Nessa novela, dirigida por Gloria Perez, a atriz trans Maria Clara Spinelli interpretou Alice, uma mulher trans que foi vítima de uma rede internacional de tráfico humano, tema que reproduz imagens de controle em relação a pessoas transfemininas, relacionadas à exploração sexual. Além de Alice, também havia uma personsagem cis e lésbica que foi interpretada por Thammy Miranda, atualmente vereador pela cidade de São Paulo, que se identifica como homem trans. Essa diretora também foi a primeira que introduziu um personagem transmasculino nas telenovelas, mas que foi interpretado por uma atriz cisgênera, Carol Duarte, em Força do Querer, em 2017. Em meio a inúmeros personsagens trans interpretados por atories cis, em 2018, a novela O Sétimo Guardião, dirigida por Aguinaldo Silva, contou com a participação da conhecida Nany People, mulher trans, humorista, que interpretou o papel de Marcos Paulo, supostamente uma pessoa transfeminina, mas que manteve o pronome masculino, o que mostra uma questão altamente problemática e desrespeitosa para pessoas trans, para as quais os direitos ao uso do nome social e à mudança do nome civil são fundamentais. E, por fim, mais recentemente, duas atrizes transfemininas puderam interpretar papéis de personsagens transfemininas: Glamour Garcia, em A Dona do Pedaço (Walcir Carrasco, Rede Globo, 2019), com a personsagem Britney, que sofre com as agruras de não ter sua identidade de gênero respeitada pelo seu amado, um homem cisgênero heterosexual, e Gabrielle Joie, em Bom Sucesso (Luiz Henrique Rios, Rede Globo, 2019-2020), que interpretou a adolescente Michelly, que sofre transfobia no ambiente escolar. Nesses exemplos citados, é notório como ainda é incipiente a representatividade trans nas telenovelas brasileiras e uma quase ausência de transmasculinidades nos elencos e nos enredos. Há também um reforço das cisheteronormatividades pela insistência da presença de atories cisgênero interpretando todos os papéis e, sobremaneira, pessoas brancas. Assim, reforça-se uma imagem falseada – transfake – que esbarra também em black face, essa última tão presente na história 154 Comunicação, sexualidades e gênero do cinema ocidental. Essa questão toca em um tema extremamente delicado para pessoas trans, que é o da passabilidade. Esse conceito originou-se em discursos raciais e, desde então, tem sido aplicado a situações nas quais um indivíduo de um grupo marginalizado é lido ou percebido como parte do grupo dominante e, com isso, recebe condicionalmente os privilégios associados ao grupo dominante. No caso de pessoas trans, passar significa ser lida e tratada como cis e, com isso, evitar que seu gênero seja questionado ou considerado não natural ou uma cópia de segunda categoria dos gêneros ditos “verdadeiros”. Muitas vezes, a passabilidade significa tentar sobreviver em meio a um ambiente extremamente hostil, violento e transfóbico. Não obstante, as narrativas envolvendo pessoas trans utilizam recorrentemente intervenções cirúrgicas como ritos de passagem para validar as identidades trans. Afinal, no contexto do binário cisheteronormativo, um gênero só é inteligível se corresponder ao conjunto “correto” de genitais. Além de contribuir para a patologização das existências trans, tais narrrativas criam toda uma fetichização em torno das cirurgias popularmente conhecidas como de “mudança de sexo”.14 O filme a Garota Dinamarquesa15, que retrata a vida da pintora e mulher trans Lili Elbe e sua esposa Gerda Wegener, é um exemplo paradigmático da visão cisnormativa sobre as narrativas trans. Para começar, há um foco desnecessário na obsessão de Lili com a sua aparência, notadamente, antes de sua cirurgia de readequação genital, reforçando a visão de que se trata de um homem se vestindo de mulher. Representação que, em particular, reduz todo o complexo processo de se entender uma pessoa trans em um breve e raso momento de epifania, quando ela veste roupas femininas pela primeira vez. A sua cirurgia serve, então, como rito de passagem para consertar o seu 14 Além de biologicamente incorreto, já que tais cirurgias não permitem a produção do outro conjunto de gametas, trata-se de um termo extremamente transfóbico e depreciativo. A nomenclatura correta e transinclusiva para tais procedimentos é cirurgia de (re)adequação genital. Outros termos como cirurgia de confirmação de gênero, apesar de empregados parcialmente pela própria comunidade trans, também são problemáticos, ao deixar subentendida a sua necessidade para que o gênero de uma pessoa seja confirmado. Colocar qualquer procedimento médico como uma condição necessária para o reconhecimento de uma identidade trans corresponde a patologização dessas existências. 15 Danish Girl, Tom Hooper, 2015. 155 SEÇÃO 3 corpo defeituoso e lhe validar como mulher. A centralidade da cirurgia na narrativa serve para enfatizar o tropo cisnormativo do “nascida no corpo errado” e corroborar a medicalização e a patologização das identidades trans16. A questão da passabilidade também revela que, em muitas situações, as transgeneridades também estão diretamente relacionadas a questões racializadas (SNORTON, 2017). Como demonstra o documentário Disclosure (SAM FEDER, 2020), personagens trans e negres são retratados nas mesmas chaves estereotipadas, entre a chacota, a repulsa e fetichização e revelam que há a construção de um gênero racializado, onde corporeidades consideradas dissidentes, que não estão ajustadas às normas da branquitude e da cisheteronormatividade, rapidamente são reproduzidas como exotizantes, anormais, irreais. Raça e gênero aqui se encontram, para além da cor da pele. Desde 2005, a GLAAD tem acompanhado anualmente a diversidade das séries televisivas quanto à presença de personagens LGBTQIA+ regulares, isto é, aqueles personagens principais ou secundários que aparecem regularmente nos episódios. Os relatórios analisavam inicialmente apenas os seriados veiculados no horário nobre (prime time) por canais abertos estadunidenses (ABC, CBS, FOX, NBC, The WB, UPN). A partir de 2007, passaram também a contemplar a programação da televisão a cabo e, a partir de 2015, dos canais de streaming. Na figura 1, exibimos a sequência temporal do número de personagens LGBQIA+ (linha vermelha) e trans (linha azul) por temporada. Ambas as curvas mostram tendências quadráticas similares de crescimento, com a relação da representatividade trans crescendo ao longo dos últimos anos, correspondendo a cerca de 10% do número de personagens LGBQIA+ no relatório da temporada 2021-2022. Esse aumento substancial da representatividade LGBTQIA+ e, em particular, trans na temporada de 2015-2016 pode ser atribuído à 16 Outro filme que trata do drama da cirurgia de readequação genital é Girl, drama belga, de Lukas Dhont, de 2018, que centraliza sua narrativa na questão da disforia de gênero da personagem e, de um modo pouco problematizado, na genitalização da identidade de gênero transfeminina. 156 Comunicação, sexualidades e gênero inclusão dos canais de streaming na contabilidade de personagens LGBTQIA+. Já a queda de representatividade em 2020-2021 pode ser creditada aos impactos da pandemia de covid-19. Figura 1 – Gŕafico em escala logarítmica da representatividade LGBQIA+ (vermelho) e representatividade trans (azul) em programas de televisão (canais abertos estadunidenses, cabo e streaming), de 2005 a 2022, de acordo com os relatórios “Where we are on TV” da GLAAD de 2005 a 2022. Em vermelho (resp. vermelho) mais claro estão as linhas quadráticas de tendência. É importante ressaltar que essa maior representatividade trans encontrada em serviços de streaming não pode ser necessariamente atribuída a um melhor entendimento ou aceitação da diversidade. Canais de streaming operam sob um sistema de negócio diferente da televisão aberta e a cabo e, por isso, não estão sujeitos aos mesmos vínculos comerciais. Booth (2015) argumenta que a natureza comercial da televisão molda sua programação de forma a manter em sua audiência o maior número simultâneo de consumidores possíveis assistindo ao mesmo programa. Em outras palavras, eles não querem que os detentores de dinheiro mudem de canal. Consequentemente, não basta que 157 SEÇÃO 3 sua programação seja apenas inteligível para a camada dominante da população, mas que, sobretudo, agrade seus interesses. Dada a hegemonia da pseudo bijeção sexo-gênero-sexualidade em nossa sociedade ocidental, os produtores são, de certa forma, obrigados a favorecer a zona de conforto cisheteronormativa, em detrimento dos interesses e necessidade de públicos marginalizados, como a população trans. Por outro lado, serviços de streaming não estão sujeitos à opressão da mudança de canal, dada a forma como o conteúdo disponível em tais plataformas é acessado e consumido de forma individualizada. Assim, para essas empresas, é mais proveitoso comercialmente ter uma maior diversidade em seu repertório e com isso agradar as mais diversas parcelas da população. Já na figura 2, analisamos separadamente a contribuição das identidades não binárias, transfemininas e transmasculinas, à representatividade trans. Os gráficos evidenciam uma nítida predominância da representação das identidades transfemininas perante às demais até a temporada de 2021-2022, quando as identidades não-binárias ganham um ímpeto de representatividade surpreendente. As temporadas de 2010-2011, 2011-2012 e 2014-2015, em que a representatividade transmasculina domina, podem ser consideradas valores atípicos e atribuídas ao impacto da variação estatística em um conjunto com poucos elementos. Figura 2 – Gráfico da representatividade trans em programas de televisão (canais abertos estadunidenses, cabo e streaming) de 2005 a 2022, de acordo com os relatórios “Where we are on TV” da GLAAD de 2005 a 2022. A curva rosa corresponde a personagens transfemininas17, a azul, a transmasculinos, e a roxa, a não bináries. As curvas suaves correspondem às respectivas linhas de tendência quadráticas. 17 Por pessoas transfemininas (respectivamente, transmasculinas), entendemos pessoas trans cuja identidade de gênero esteja alinhada ao feminino (masculino). Preferimos o uso desses termos, em contraponto aos comumente empregados, mulheres trans e homens trans, em virtude de sua maior generalidade. Notadamente, nem toda travesti se identifica como mulher e, por isso, o termo mulher trans não lhe descreve. Consequentemente, se queremos denunciar a má representação, tanto de travestis quanto de mulheres trans, o termo mais adequado é pessoas transfemininas. 158 Comunicação, sexualidades e gênero Serano (2007) argumenta que a disparidade de representação entre transmasculinos e transfemininas na mídia está intimamente ligada à diferença de valores que a nossa sociedade associa à masculinidade e à feminilidade, em outras palavras, ao sexismo. Assim, ao considerarmos características tipicamente associadas ao masculino superiores às tipicamente associadas ao feminino, torna-se incompreensível por que uma pessoa abriria mão dos privilégios masculinos para se “transformar”18 em uma mulher. Isso torna as transfeminilidades escandalosas e passíveis de serem sensacionalizadas pela mídia. Por outro lado, pessoas transmasculinas são vistas como subindo na escala de privilégio social, algo não apenas normal, mas esperado. Ademais, é impossível sensacionalizar as transmasculinidades sem colocar a própria masculinidade em questão. Resta, portanto, que o único motivo para uma pessoa transfeminina transicionar seria obter o único tipo de poder que mulheres têm em nossa sociedade: a habilidade de expressar a feminilidade e para atrair homens. Ao reduzir as identidades transfemininas a meros fetiches e perversões 18 Empregamos a palavra transformar entre aspas, pois, apesar de não corresponder à forma como a maioria das pessoas trans compreende a sua transição, trata-se da visão mais socialmente difundida ou, ao menos, daquela que é na maioria das vezes retratada em obras ficcionais. A pessoa trans, notadamente as binárias, são representadas como homens que se transformaram em mulheres ou, reciprocamente, mulheres que se transformaram em homens. 159 SEÇÃO 3 sexuais, a mídia garante que pessoas transfemininas não têm nenhum valor além do seu potencial de sexualização. Esse potencial é então explorado através da representação de personagens transfemininas como interessadas única e exclusivamente em atingir uma aparência ultrafeminina. Serano (2007) aponta a existência de dois arquétipos principais: a transexual enganadora e a transexual patética19, cuja diferença consiste primordialmente em sua passabilidade. As enganadoras, usualmente interpretadas por mulheres cis, são consideradas uma ameaça, por usarem a sua passabilidade completa e, consequentemente, a sua beleza e sensualidade dentro dos padrões cisheteronormativos para enganarem homens cisgênero e heterossexuais a se apaixonarem por um outro “homem”. A revelação de sua transgeneridade é, então, empregada como um plot twist para evocar nojo nes expectadories. Esse nojo, de acordo com Lester (2015), dispara respostas emocionais e físicas perenes que evocam ódio e promovem a mercantilização da violência contra pessoas trans como forma de entretenimento. Serano (2007) cita dois exemplos paradigmáticos desse arquétipo enganador. O primeiro é a personagem Dil do filme Traídos pelo Desejo20, que tem a sua transgeneridade revelada durante uma cena de amor com o protagonista masculino Fergus. Ao descobrir que Dil é biologicamente macho, Fergus dá um tapa em Dil e corre para vomitar no banheiro. O segundo é a tenente Lois Einhorn, vilã do filme Ace Ventura – Um Detetive Animal21, cuja genitália aquendada é exibida ao final do filme como parte das evidências usadas para desmantelar um esquema criminoso. Na sequência, todos os policiais presentes vomitam ao som do tema de Traídos pelo Desejo. Por outro lado, as patéticas são pessoas transfemininas que, apesar de todo o esforço em performar a feminilidade, são extremamente não passáveis, seja por exibirem características físicas ou comportamentais 19 Optamos excepcionalmente por empregar o termo transexual nesse caso, por, além de ter sido a palavra originalmente utilizada por Serano, enfatizar a patologização das identidades trans representadas. 20 The Crying Game, Neil Jordan, 1992. 21 Ace Ventura: Pet Detective, Tom Shadyac, 1994. 160 Comunicação, sexualidades e gênero usualmente atribuídas a homens. É exatamente dessa contradição violenta entre a identidade de gênero e a aparência física que surge, de acordo com Miller (2015), um humor fársico, ou seja, aquele que resulta de uma identidade equivocada, disfarce ou outra situação improvável, já que, apesar do desejo (e esforço) de serem mulheres, elas não conseguem mudar o fato de que são homens. Assim, ao rir da patética, a audiência se distancia dela, subentendendo que é socialmente aceitável zombar de identidades trans. Exemplos de personagens patéticas são Roberta de O Mundo Segundo Garp22, Bernadette de Priscilla, A Rainha do Deserto23 e Henrietta de As Aventuras de Sebastian Cole24. Diferentemente, do que acontece com as enganadoras, cujo pênis é revelado em um momento crítico da história para evocar nojo e violência, a genitália das patéticas, usualmente representada após algum procedimento como castração ou cirurgia de redesignação genital é empregada como um alívio cômico. Assim, Serano (2007) aponta que, independentemente do arquétipo adotado, a representação de pessoas transfemininas é sempre projetada para validar a percepção de que pessoas transfemininas são de fato homens. Nas palavras dela: As patéticas podem até querer ser mulheres, mas as suas aparências e os seus comportamentos masculinos sempre as denunciam. Por outro lado, enquanto as enganadoras são, inicialmente, lidas como mulheres de “verdade”, elas são, eventualmente, reveladas como lobos em pele de cordeiro – uma ilusão que é o produto de mentiras e das tecnologias médicas modernas – e, por isso, punidas de acordo.25 (SERANO, 2007) 22 The World According to Garp, George Roy Hill, 1982. 23 The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, Stephan Elliott, 1994. 24 The Adventures of Sebastian Cole, Tod Williams, 1998. 25 Tradução de “ ‘Pathetic’ transsexuals may want to be female, but their masculine appearances and mannerisms always give them away. And while the ‘deceiver’ is initially perceived to be a ‘real’ female, she is eventually revealed as a wolf in sheep’s clothing—an illusion that is the product of lies and modern medical technology—and she is usually punished accordingly.” 161 SEÇÃO 3 Além dos problemáticos arquétipos que acabamos de discutir, ao analisar 102 episódios de séries de televisão envolvendo pessoas trans exibidos no período de 2002 a 2012, a GLAAD identificou que26: • • • • em 40% dos episódios, a pessoa trans é colocada no papel de vítima; em 21% dos episódios, a pessoa trans é colocada no papel de vilã ou assassina; em 20% dos episódios, a pessoa trans é descrita como uma trabalhadora sexual; em 61% dos episódios, é empregado termos transfóbicos. Ademais, Reitz (2017) aponta que seriados policiais, como Law & Order (1990-2010), CSI (2000-2015), NCIS (2003-) e The Closer (2005-2012), não apenas representam usualmente pessoas transfemininas como vítimas, seja de homicídio ou de crimes sexuais, mas também mostram o tratamento desumano que lhes é dispensado pelas forças policiais. O assédio é constante e envolve tanto o uso de pronomes masculinos e o do nome morto27 quanto de termos ofensivos. A reiteração de personagens transfemininas como vítimas de assassinatos e como suspeitas de crimes reforça as imagens de controle que as associam a pessoas a quem se deve temer e não proteger, justamente uma realidade contrária a que vivem, por exemplo, no Brasil, travestis negras, que são as maiores vítimas de transfeminicídio perpetrados por homens cisgêneros. Além disso, esta associação a uma suspeição de seus comportamentos também reforçam políticas transexcludentes, que são cada 26 GLAAD, Victims or Villains: Examining Ten Years of Transgender Images on Television. Disponível em: https://www.glaad.org/publications/victims-or-villains-examining-ten-years-transgender-images-television. 27 Nome morto refere-se ao nome de registro, no caso de pessoas trans que ainda não retificaram os seus documentos, ou ao nome anterior, no caso daquelas que retificaram, no lugar de seu nome verdadeiro sem o seu consentimento. 162 Comunicação, sexualidades e gênero vez mais reivindicadas por feministas radicais28 e outros setores conservadores. Conclusão: e para além das telas? Ao longo deste capítulo, apontamos diversas situações em que a representação de pessoas trans nas telas é derrogatória e fomenta a manutenção de preconceitos e a propagação de discurso de ódio contra uma das subpopulações mais marginalizadas. Em outras palavras, falamos o que não deve ser feito e seu porquê. Mas, se queremos melhorar esse cenário, resta a pergunta: o que es produtories de conteúdo devem fazer? Um bom começo é empregar atories trans para representar personagens trans. Mas, como a série Orange Is The New Black (OITNB, 2013-2019) exemplifica, trata-se de uma condição necessária, porém não suficiente. Em OITNB, vemos pela primeira vez uma atriz trans e negra, Laverne Cox, interpretando uma mulher trans negra, a detenta Sophia Burset, que foi presa por fraude bancária para pagar por sua cirurgia. Apesar de ter sido considerada como o melhor exemplo de representatividade trans na televisão, a série cai em diversos dos tropos que discutimos anteriormente, como: um foco desnecessário na transição, o contraste do antes e depois, a narrativa de ter nascido no corpo errado, objetificação e sexualização de seu corpo, e a simultânea vitimização e vilanização das identidades trans (MCLAREN, 2021). 28 As feministas radiciais, notadamente as chamadas transexcludentes, bastante atuantes nas redes digitais, têm ressuscitado, de forma anacrônica e descontextualizada, debates que nasceram de certos movimentos feministas dos anos 1980 sobretudo no combate à exploração sexual e à pornografia e que, hoje, terminam por reforçar essencialismos sobre o que se entende por mulher, mulheridade e feminilidade. Organizadas principalmente por meio de publicações, páginas e comunidades em distintas redes sociais, fazem constantemente ataques à legitimidade dos transfeminismos com o argumento de que corpos transfemininos não poderiam ser identificados como mulheres, pois essas, segundo elas, definir-se-iam fundamentalmente pela presença de seus órgãos genitais e reprodutivos. Nessa linha de pensamento, pessoas transfemininas, inclusive, seriam vistas como “falsas mulheres”, o que reforça inúmeras formas de transfobia e de sexismo. Além disso, do ponto de vista do feminismo radical, a prostituição é vista, essencialmente, como objetificação e exploração do corpo feminino, retirando toda a agência daquelas que oferecem serviços voltados aos mercados do sexo. 163 SEÇÃO 3 Lançada em 2015 às sombras de OITNB, a série Sense8 (20152018) revolucionou a representação trans na mídia como nunca antes visto. Foi a primeira série televisiva a possuir uma protagonista trans (Nomi Marks) interpretada por uma atriz trans (Jamie Clayton) e a ser criada, escrita e dirigida por pessoas trans (as irmãs Lana e Lilly Wachowsky). Talvez, por essa combinação até então impensada, a série consegue não apenas escapar dos tropos usuais, mas reinterpretá-los de uma maneira a apresentar narrativas inovadoras em que a transgeneridade surge como uma forma de percepção que transcende os limites de raça, gênero, corpo e cultura (KEEGAN, 2016). Diferentemente de outras personagens trans, Nomi não é definida pela sua transgeneridade, muito pelo contrário, trata-se de apenas mais um aspecto de sua vivência, que inclui ser uma hacker, ativista e blogueira política. Ela também tem um relacionamento saudável com a sua namorada Amanita, com quem casa no final da série, mostrando não apenas que pessoas trans merecem ser amadas, mas também quebrando a heteronormatividade com que são frequentemente representadas. Há também outras produções que apontam caminhos mais próximos da multitude de experiências trans, e que oferecem possibilidades de construção de redes de afeto e de apoio, de formação de famílias escolhidas, de novas formas de paternidade e maternidade possíveis, de processos de envelhecimento com respeito e dignidade, etc. Esse é o caso de Manhãs de Setembro, uma série brasileira criada por Luís Pinheiro e Dainara Toffoli (Prime Video, 2021), cuja protagonista principal é a mulher trans Cassandra, interpretada pela cantora e atriz Liniker. Aqui, mostra-se, entre outras temáticas, as complexidades de uma maternidade possível e ambivalente de Cassandra, e de uma história afetiva que é narrada a partir de um olhar cuidadoso e nada romantizado de diferentes personagens. Outro exemplo, é a série Pose (2018 - 2021), criada a partir do documentário Paris is Burning (Jennie Livingston, 1980), que traz à cena diversas atrizes trans, que interpretam personagens trans, que vivenciam o mundo extraordinário da cultura ballroom, bailes negros gays e trans, nos anos 1980 e 1990, em Nova Yorque. Entre a busca 164 Comunicação, sexualidades e gênero por reconhecimento nos bailes e seu mundo legendário, a situação de precariedade social e econômica e a pandemia da Aids, a série revela os desafios e desejos de ser quem se é e sonhar com a possibilidade de outros mundos possíveis, outras formas de família e cuidados maternos (nas houses), e lidar com a sociedade cisheteronormativa e branca de modo jocoso e irônico, apontando também as contradições entre a fama e a invisibilidade. Todavia, se as séries têm sido um espaço importante para a representatividade e a representação trans, elas não estão disponíveis nos canais abertos e só podem ser veiculadas para um público mais restrito. São telas trans inclusivas para um nicho reduzido de espectadories, enquanto que nas telenovelas ainda se mantém a presença trans de forma residual. Como ampliar a veiculação de produções para além dos canais de streaming? Boas práticas deveriam identificar as principais pautas dos movimentos trans – suas reivindicações, direitos, desafios, anseios – e respeitar contextos locais nos quais essas problemáticas têm sido produzidas; respeitar e valorizar as autoidentificações e as múltiplas identidades trans, incluindo questões étnico-raciais e interseccionais; possibilitar uma maior visibilidade às pessoas transmasculinas e à construção de masculinidades não hegemônicas; dar voz e, principalmente, dar ouvidos a pessoas trans que são profissionais de comunicação e incluí-las em todos os processos de produção cinematográfica e televisiva. Pessoas trans sempre estiveram presentes nas telas, como profissionais e, também, foram espectadoras, projetando seus medos, expectativas, frustrações e, antes de mais, ansiando que houvesse imagens nas quais elas se sentissem representadas e reconhecidas. E você, profissional e estudante de comunicação, tem colaborado para quais imagens? Se tornará ume aliade? 165 SEÇÃO 3 Referências BHARGAVA, Aditi; ARNOLD, Arthur P. et al. Considering Sex as a Biological Variable in Basic and Clinical Studies: An Endocrine Society Scientific Statement. Endocrine Reviews, 2021. DOI: https://doi.org/10.1210/endrev/bnaa034. BOOTH, E. Television: The Provisional Acknowledgment of Identity Claims in Televised Documentary. In: SPENCER, Leland G.; CAPUZZA, Jamie C. (Ed.). Transgender Communications Studies: Histories, Trends and Trajectories. [S. l.]:Lexington Books, 2015. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. COLLINS, Patricia Hill. O pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo, 2019. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. v. 4. São Paulo: Ed. 34, 2017. FROMHAGE, L.; JENNIONS, M. D. Coevolution of parental investment and sexually selected traits drives sex-role divergence. Nat Commun, 2016. 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De cunho teórico, este trabalho se organiza metodologicamente a partir de um levantamento da literatura, no qual são considerados especialmente como fontes meta-análises recentes, revisões e estudos experimentais (empíricos e de laboratório) identificados e oriundos do campo das pesquisas da publicidade e de outras áreas do saber, como, por exemplo, a educação e a psicologia social e cognitiva. Implicações teóricas e práticas são discutidas em diálogos com autores de várias partes do mundo que, a partir de distintos contextos de pesquisas, falam de uma diversa gama de pontos de partida teóricos e metodológicos, tensionando assim os caminhos e os desafios do engajamento da publicidade às práticas antirracistas. Palavras-chave: publicidade; antirracismo; racismo; mudanças sociais. 171 SEÇÃO 4 Introdução Este capítulo é um convite à reflexão e um chamado urgente para o exercício de repensar os espaços publicitários, da produção aos consumos (material e imaterial), considerando, em seus fluxos, perspectivas e ações antirracistas, que colaborem para o enfrentamento e a superação do racismo nesses espaços, inscrevendo espelhamentos e mudanças na sociedade. Verificando o passado recente e projetando olhares para o futuro, parece não haver dúvida que a sociedade atravessa um período de profundas transformações, no qual o passado e o presente estão sendo acionados e interrogados por revisões e reparações urgentes acerca dos efeitos de seus processos e ações históricos de opressão, como, por exemplo, o racismo estrutural. Essas mudanças vêm exigindo da conjuntura social reconhecimento e práticas que fomentem exercícios de repensar, reimaginar e construir um futuro imediato no qual a justiça social e a justiça racial, efetivamente, sejam paradigmas do desenvolvimento de outros horizontes civilizatórios. O racismo, conforme Patricia Hill Collins (2000), pode ser entendido como um sistema de poder e privilégio díspares no qual os indivíduos são divididos em grupos ou “raças”1 e as recompensas sociais, isto é, as vantagens, benefícios e cortesias são distribuídas de modo desigual, considerando a classificação racial desses indivíduos. Rashawn Ray e Genesis Fuentes (2020), pelas lentes da Critical Race Theory (Teoria Crítica Racial), explanam que os indivíduos brancos frequentemente se beneficiam dessas recompensas e privilégios sociais, econômicos e culturais. Desse modo, o racismo reflete estruturas sociais racializadas de poder baseadas no privilégio dos brancos e na perpetuação da marginalização e opressão de pessoas não brancas. Essa marginalização e opressão, de populações negras, por exemplo, revelam expressivamente um racismo estrutural e sistêmico, 1 O uso desse termo segue a orientação de Pedersen, Walker e Wise (2005), que reconhecem os problemas associados ao seu uso, o que implica uma realidade biológica que é refutada por biólogos e geneticistas. No entanto, adota-se este termo para consistência com pesquisas anteriores e com o uso coloquial contemporâneo. 172 Comunicação, etnias e antirracismo que tem as suas raízes nos resultados das longas histórias europeias de escravidão transatlântica, genocídio e colonialismo. John Solomos (2020) observando as primeiras duas décadas do século XXI, em diversas partes do mundo, aponta que, naquele período, o racismo seguiu operando, se adaptando e se fortalecendo diante das questões das diferenças raciais e identidades nacionais, atualizando a operação de suas formas com novas pautas, como as questões acerca da imigração, refugiados, terrorismo e multiculturalismo, entre outras. Nesse prisma, é pertinente também ressaltar que essas ideias e narrativas racistas articulam imagens de controle estereotipadas associadas aos negros e às negras, conforme há tempos alerta Patricia Hill Collins (2019). Essas imagens de controle, ainda segundo Collins, vêm refletindo, portanto, ao longo da história, informações e conteúdos produzidos pelas políticas e práticas racistas, que acomodam um repertório racional, nefasto e contínuo de justificativas ideológicas poderosas. Essas narrativas e ideias, continuamente, também vêm informando e fomentando o desenvolvimento de vieses implícitos (implicit bias), que acabam por influenciar consciente ou inconscientemente as percepções e as interpretações sociais. Esses vieses implícitos podem ser observados, grosso modo, também como “distorções” ou “vícios cognitivos”, que tais narrativas buscam condicionar socialmente de modo individual e coletivo. Essa dinâmica de construção de sentidos espelha e dialoga com as ideias de constituição de uma ideologia, isto é, um corpo de ideias que reflete os interesses de um grupo de pessoas, conforme Collins (2019), bem como o conceito de desenvolvimento de um complexo imaginário, como articula Almeida (2019). A exemplo de outras produções midiáticas, a publicidade, tradicionalmente, vem apoiando e promovendo tais problemáticas e construções simbólicas nas representações articuladas nas suas narrativas. Nesse sentido, como agir e produzir mudanças nesse complexo imaginário? E, especificamente, como os espaços institucionais da publicidade, em linha com o seu objetivo-fim mercadológico e limites, poderiam colaborar para fomentar transformações desses contextos? 173 SEÇÃO 4 Almeida (2019) sugere algumas pistas para o direcionamento dessas questões, entre elas o autor argumenta que “se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas”, que combatam as expressões racistas e reflitam sentidos junto aos seus públicos internos e externos. O conceito de antirracismo será abordado com mais atenção nos próximos tópicos. Esse direcionamento de Almeida encontra expressão nos olhares de Thomas F. Pettigrew e Linda R. Tropp (2006), Yin Paradies (2016) e Solomos (2020), que também ressaltam, nas duas primeiras décadas do século XXI, frente aos avanços das expressões do racismo, uma crescente organização social de movimentos e ideias declaradamente antirracistas, que buscam fornecer estruturas políticas e ideológicas alternativas para fomentar e ampliar debates e práticas sobre como combater o racismo em todas as suas formas e promover modos alternativos de convivência. No contexto desses movimentos e ideias, como se discorrerá neste capítulo, a publicidade também vem sendo implicada, tanto em termos de transformações políticas e sociais, que a sua indústria ao movimentar mercados de consumos (materiais e imateriais) pode promover a partir dos seus espaços e práticas, quanto em relação a agenda de pesquisa acadêmica do campo. Com efeito, é justamente em linha com o racional dessa conjuntura, que este texto justifica o seu objetivo de desenvolver e compartilhar a organização de uma estrutura teórica para pesquisas antirracistas na publicidade, que informe o campo sobre os estudos que estão produzindo conhecimentos acerca dos efeitos da articulação entre publicidade e antirracismo. Nesse sentido, seguindo orientações de Jehonathan Ben, David Kelly e Yin Paradies(2020), este capítulo de cunho teórico se organiza metodologicamente a partir de um levantamento não exaustivo da literatura, no qual são considerados especialmente como fontes meta-análises recentes, revisões e estudos experimentais (empíricos e de laboratório) identificados e oriundos do campo das pesquisas da publicidade e de outras áreas do saber como, por exemplo, a educação e a psicologia social e cognitiva. Este trabalho, intencionalmente ao 174 Comunicação, etnias e antirracismo reunir, articular e examinar essa produção científica constrói o seu racional também pelo diálogo com autores de várias partes do mundo que, a partir de distintos contextos de pesquisas, podem falar de uma diversa gama de pontos de partida teóricos e metodológicos. A literatura explorada neste texto está publicada em inglês e português. Desse modo, ao utilizar e evidenciar recortes das ideias presentes no conjunto de trabalhos examinados, que estão utilizados e referenciados ao longo deste capítulo, busca-se oferecer introdutoriamente um quadro teórico e ferramentas conceituais que provoquem e estimulem os pesquisadores da área, em suas futuras pesquisas e produções científicas, a repensar e reimaginar, crítica e criativamente, as teorias, as práticas e os efeitos da publicidade pelas lentes e intervenções antirracistas. Os sentidos do antirracismo De modo amplo, conforme Bonnett (2006), o entendimento de antirracismo pode ser delineado em referência às ideologias e práticas que afirmam e buscam possibilitar a igualdade de raças e grupos étnicos. Nesse sentido, esse conceito pode ser definido minimamente como formas de pensamento e/ou prática que buscam confrontar, erradicar e ou aliviar o racismo. “O antirracismo implica a capacidade de identificar um fenômeno – o racismo – e fazer algo a respeito.” (BONNETT 2000, p. 3, tradução livre). Já na visão de David Gillborn (1995, 2006), o antirracismo deve ser compreendido e defendido como “uma perspectiva crítica preocupada com uma análise radical do poder e sua operação através de processos racializados de exclusão e opressão” (GILLBORN, 2006, p. 26, tradução livre). Ibram X. Kendi (2019), ao orientar sobre como ser e agir de modo antirracista, didaticamente, demarca que os indivíduos ou as instituições antirracistas podem ser vistos como aqueles que apoiam “uma política antirracista através de suas ações ou expressando um antirracismo” (KENDI, 2019, p. 23, tradução livre). Nesse sentido, para o delineamento dessa compreensão, Kendi pontua ser relevante 175 SEÇÃO 4 elucidar e demarcar as distinções entre ser e agir como “não racista” e “antirracista”. Dessa maneira, ele afirma que: O oposto de “racista” não é “não racista”. É “antirracista”. Qual é a diferença? O racista endossa a ideia de uma hierarquia racial, já o antirracista a igualdade racial. [...] como racista, se acredita que os problemas estão enraizados em grupos de pessoas e como antirracista localiza as raízes dos problemas no poder e nas políticas. Um permite que as desigualdades raciais persistam, como racista, ou confronta as desigualdades raciais, como um antirracista. Não há um espaço seguro intermediário de “não racista”. A alegação de neutralidade “não racista” é uma máscara para o racismo. (KENDI, 2019, p. 17, tradução livre) De modo consonante, ao definir o antirracismo como algo que promove a igualdade de oportunidades entre os grupos raciais/ étnicos, Gabrielle Berman e Yin Paradies (2010) agregam a essa compreensão pontuando que alguns estudiosos têm tentado ir além do entendimento do antirracismo como simplesmente o oposto do racismo, para considerá-lo também como a construção de um projeto positivo sobre o tipo de sociedade em que as pessoas podem viver juntas em harmonia e respeito mútuo. Nazir Carrim e Crain Soudien (1999), a partir de uma perspectiva crítica, reforçam que o antirracismo precisaria manter o foco nas forças macros socioeconômicas e políticas e nas maneiras pelas quais elas se cruzam e influenciam as vidas no sentido micro e individuais das pessoas. Bonnett (2000), consonantemente, considerando as questões sociais contemporâneas, também posiciona o antirracismo para além da visão restrita de, geralmente, enquadrá-lo como espírito desafiador e um produto da vontade individual e coletiva de oposição ao racismo. Esse autor alerta que o antirracismo não é exclusivamente sobre resistência, mas também se ocupa da criação de 176 Comunicação, etnias e antirracismo estados sustentáveis, da reprodução das economias modernas e do estabelecimento de princípios de legitimidade política internacionalmente aceitos. Atualmente, essa perspectiva vem encontrando expressão em diversas iniciativas de grandes corporações privadas, que passam a investir esforços para participar da retórica da igualdade racial e diversidade. Essas ações vêm ocorrendo em linha com as normativas públicas e contextos locais, nos quais tais instituições estão estabelecidas. A iniciativa Partnering for Racial Justice in Business, anunciada pelo World Economic Forum’s Centre for the New Economy and Society na sua conferência anual em Davos, em 2021,2 é uma importante iniciativa que exemplifica esse movimento. Pensando os espaços dos consumos (materiais e imateriais), Geeta Menon e Tina Kiesler (2020) observam que tais iniciativas como Partnering for Racial Justice in Business podem, estrategicamente, também estar refletindo as fortes e crescentes contestações sociais por mudanças. Por exemplo, essas autoras pontuam que os novos consumidores das gerações Y e Z, especialmente, mas não exclusivamente dos Estados Unidos da América, em comparação com as gerações anteriores, que geralmente se satisfaziam com os tradicionais benefícios ao consumidor e a qualidade do produto, têm no presente altas expectativas com a autenticidade das ações de marcas das empresas acerca da justiça racial. Menon e Kiesler reforçam essa percepção ao ressaltar uma pesquisa, de 2020, que mostra que para 69% dos consumidores da geração Y e da geração Z as marcas devem estar ativamente envolvidas, por exemplo, no movimento Black Lives Matter (BLM)3. Essas autoras ainda alinham a interpretação desse cenário, alertando que para 2 Disponível em: https://www.weforum.org/platforms/centre-for-the-new-economy-and-society/projects/partnering-for-racial-justice-in-business. Acesso em: 18 out. 2022. 3 O movimento de luta por liberdade, liberação e justiça #BlackLivesMatter foi fundado em 2013 em resposta a absolvição de Trayvon Martin’s assassinato. Em 2020, o brutal assassinato de George Floyd reacendeu e fortaleceu o movimento, que vem obtendo amplo apoio global. No entanto, o progresso de equidade racial tem sido ainda muito lento e isolado. Disponível em: https://blacklivesmatter.com/. Acesso em: 18 out. 2022. 177 SEÇÃO 4 se conectar com esses consumidores mais jovens, as marcas precisam agir, se posicionar e se comunicar contra a injustiça racial com autenticidade, de modo que realmente viabilize expressar, em suas práticas e comunicações internas e externas, o seu engajamento e contribuições para transformação e progresso social. Avançando com o entendimento acerca das noções conceituais de antirracismo, como já se discutiu em outras oportunidades (LEITE, 2019, 2022), Bonnett (2000) indica seis formas que ele poderia ser praticado. Essas formas podem se cruzar e/ou se sobrepor, a saber: 1. antirracismo cotidiano, que se refere as ações praticadas para combater o racismo por pessoas comuns ao longo das suas relações cotidianas; 2. antirracismo multicultural, que reflete às práticas que afirmam a diversidade para viabilizar empatia e solidariedade; 3. antirracismo psicológico, que expressa as formas de combater o racismo a partir da consciência individual e coletiva (estrutura cognitiva); 4. antirracismo radical, que observa as formas que identificam e desafiam as estruturas de poder e privilégio socioeconômico que fomentam e reproduzem o racismo; 5. antirracismo, antinazismo e antifascista; e 6. a organização representativa, que foca as formas de organizações coletivas para desmantelar o racismo, promover valores e os potenciais de grupos sub-representados. Significativamente, de modo combinado ou não, essas formas poderiam ser implicadas direta ou indiretamente na produção e repercussões sociais de anúncios e comunicações de marcas para fomentar “outras/novas” referências e narrativas com expressões antirracistas, que ao apostar na diversidade podem produzir efeitos cognitivos individuais e coletivos na sociedade. Esse ponto será retomado e melhor explorado nos próximos tópicos, quando se abordará as reflexões sobre os moderadores contraestereotípicos e narrativas contraintuitivas. Refletindo sobre essas formas, a literatura aponta também alguns caminhos, impactos, funções e ou evidências-chave, que podem ser geralmente produzidos pelas práticas antirracistas nos níveis micro, meso e macro social. Por exemplo, Anne Pedersen, Iain Walker e Mike Wise (2005), a partir de uma análise da literatura, destacam 178 Comunicação, etnias e antirracismo oito caminhos promissores para implementar estratégias e práticas antirracistas: 1. combater falsas crenças; 2. envolver a audiência na construção e implementação da prática antirracista; 3. invocar empatia pelos outros; 4) enfatizar comunalidades e diversidade; 5. Foco na mudança de comportamento mais do que mudanças de atitudes; 6. atenção às necessidades locais; 7. avaliações apropriadas; e 8. considerar o amplo contexto em vez de focar no indivíduo. Ghassan Hage (2016) agrega a esse quadro apontando seis funções centrais que o antirracismo poderia desempenhar: 1. reduzir as incidências racistas; 2. promover uma cultura não racista [antirracista]; 3. apoiar as vítimas de racismo (p.ex.: acolhimento e aconselhamento); 4. fomentar o empoderamento dos grupos raciais/étnicos sub-representados; 5. transformar as relações racistas, incentivando a convivência e o respeito mútuo; e 6. fomentar uma cultura não racial (a-racial culture). Já Ingrid Lynch, Sharlene Swartza e Dane Isaacs (2017), em um estudo que revisou mais de quinze anos de pesquisa sobre educação antirracista, que significativamente dialoga com este capítulo, recomendam que os impactos antirracistas devem ser direcionados a mobilizar três componentes também interligados: 1. tornar visível a opressão sistêmica (visibilizar); 2. reconhecer a cumplicidade pessoal na opressão por meio de privilégios não conquistados (reconhecer); e 3. desenvolver estratégias para transformar as desigualdades estruturais (estrategiar). Com base na análise de recentes pesquisas de meta-análises, revisões e estudos experimentais (baseados em campo e em laboratório), Jehonathan Ben, David Kelly e Yin Paradies (2020), também refletindo sobre o antirracismo no contemporâneo, organizam um quadro considerando algumas das suas práticas efetivas. Eles examinam quatro abordagens comumente utilizadas: 1. contato intergrupo; 2. treinamento e educação; 3. campanhas de comunicação e mídia; e 4. desenvolvimento organizacional (ações corporativas internas e externas). Essas abordagens, assim, como as formas, as funções e os caminhos apontados anteriormente também podem se sobrepor e serem aplicadas em combinação, visando o fortalecimento de suas propostas. 179 SEÇÃO 4 A contribuição desses autores alerta para baixa cobertura, o pouco conhecimento e as limitadas evidências sobre o que funcionaria para o combate ao racismo e as possíveis oportunidades de sucesso de iniciativas antirracistas para instigar a igualdade racial/étnica, reduzir os preconceitos, a discriminação e os resultados contingentes relativos ao racismo, inclusive no campo das pesquisas de comunicação, media e publicidade. Em suma, Ben, Kelly e Paradies (2020) mostram que as avaliações da literatura dessas abordagens são diversas, bem como as suas conclusões. A abordagem contato intergrupo, conforme esses autores, vem recebendo frequentemente mais atenção no conjunto de trabalhos analisados. Como resultado, há o registro de ampla base de evidências que sugerem que essa abordagem pode reduzir o racismo, especialmente as suas expressões em formas de preconceitos. Ações de treinamento e educação, especificamente, programas de competência/diversidade cultural têm sido muito populares, porém não há muito conhecimento sobre até que ponto, bem como acerca das condições que essas iniciativas impactariam o racismo. Desse modo, práticas antirracistas com essa abordagem vêm causando preocupações devido aos “[...] efeitos insignificantes e adversos que vêm tornando o treinamento em diversidade uma área particularmente controversa, como sugerido por vários títulos de estudos, como Why diversity programs fail (DOBBIN; KALEV, 2016) e Pointless diversity training (NOON, 2018).” (BEN, KELLY; PARADIES, 2020, p. 211, tradução livre). As próximas duas abordagens também têm recebido pouca cobertura e análises na literatura. Os registros acerca das abordagens com foco no desenvolvimento organizacional vêm considerando discussões individualmente, ou em articulação a iniciativas de treinamento e educação. No entanto, conforme o conjunto de trabalhos analisados, Ben, Kelly e Paradies (2020) observam que tais iniciativas ainda precisam ser revisadas ou avaliadas coletivamente quanto aos seus efeitos. A literatura acerca da última abordagem de campanhas de comunicação e mídia, que dialoga fortemente com os objetivos deste capítulo, mostra que as iniciativas desenvolvidas com esse foco vêm apresentando resultados promissores, porém também 180 Comunicação, etnias e antirracismo descobertas mistas. Esses resultados quase não refletem avaliações de fora do laboratório. Especificamente, no próximo tópico, essa abordagem será retomada e melhor explanada. No entanto, de modo geral, Ben, Kelly e Paradies (2020) pontuam que dos trabalhos analisados poucos discerniram os efeitos causais das intervenções antirracistas, o que limita a compreensão da eficácia dessas iniciativas. Eles também chamam atenção para a necessidade de mais estudos longitudinais, a exemplo de Paluck e Green (2009); Paluck, Green e Green (2018), para orientar a compreensão sobre a extensão e as formas pelas quais o racismo pode ser contido. Neste ponto, informados sobre esses possíveis caminhos, impactos, funções e ou evidências-chave que o antirracismo pode desempenhar, a posteriori será resgatado o trabalho de Pedersen, Walker e Wise (2005), que estimula o avançar do racional deste trabalho, ao pontuar que esses caminhos possíveis podem ser conformados por estratégias antirracistas com foco individual e/ou interpessoal. Essas estratégias, em síntese, implicariam eliminar (ou, pelo menos, modificar) crenças e/ou comportamentos racistas. Publicidade, antirracismo e efeitos Os estudos sobre o antirracismo ofertam importantes ferramentais teóricos e exemplos práticos, que podem apoiar a edificação e a sustentabilidade de esforços para combater o racismo e fomentar uma sociedade mais justa. Inclusive, nessa direção, a literatura já registra alguns poucos trabalhos que abordam em suas propostas, direta ou indiretamente, a articulação entre publicidade e antirracismo como tópico de investigação científica. Entre esses estudos se destaca, por exemplo, a pesquisa de Gregory R. Maio, Susan E. Watt, Miles Hewstone e K. J. Rees (2002). Esses autores, explicitamente, abordam as ideias de “mensagens antirracistas”, referindo-se aos editoriais cotidianos de jornais e “anúncios antirracistas” para demarcar as materialidades produzidas pela publicidade comercial. 181 SEÇÃO 4 Nesse ponto, conforme Karim Murji (2006), que em sua investigação explora o uso de estereótipos em campanhas antirracistas, é pertinente registrar que anteriormente Paul Gilroy (1987), ao discutir o antirracismo, no contexto britânico, já fornecia avaliações de algumas imagens usadas em propagandas do Greater London Council na década de 1980. No entanto, ele não identifica explicitamente tais materialidades como antirracistas como, por exemplo, fazem Maio e colegas (2002). Retornando ao trabalho de Gregory R. Maio, Susan E. Watt, Miles Hewstone e K. J. Rees (2002), esses autores analisam as repercussões dessas mensagens nos indivíduos percebendo, em suma, que elas podem produzir sim conscientização, porém algumas vezes também podem gerar efeitos adversos em indivíduos mais resistentes. Em linha semelhante, Leite e Batista (2008) e Leite (2018) também relatam a possibilidade de efeitos adversos, como o efeito de ricochete (WEGNER, 1994), ao discutirem as potencialidades de anúncios antirracista, articulados com narrativas contraintuitivas com moderadores contraestereotípicos que, sem descolar do objetivo-fim da publicidade, também buscam produzir cognitivamente efeitos nos conteúdos negativos de estereótipos associados tradicionalmente aos grupos raciais/étnicos. No entanto, esses autores observam que mesmo diante da possibilidade de efeitos negativos: [...] os esforços [desses anúncios] para estimular uma diferenciada percepção do coletivo social para os seus pensamentos estereotípicos talvez sejam um passo a ser considerado como positivo, pois, “apesar dos efeitos irônicos e indesejados, tais mensagens podem ter as consequências desejáveis de dar ao preconceito um ‘nome mau’” [...]. Os efeitos positivos [dessas mensagens] devem ser melhor observados para serem aprimorados com o objetivo de amenizar a possibilidade de ocorrência de efeitos indesejados [...]. (LEITE; BATISTA, 2008, p. 164). 182 Comunicação, etnias e antirracismo Nesse sentido, explorando de modo mais atento essas questões dos efeitos e seus impactos em crenças e preconceitos, é relevante pontuar que os estudos acerca do papel da mídia nas relações humanas, há muito tempo despertam o interesse de pesquisadores no campo da comunicação, mídia e publicidade. A informação que circula pelas materialidades da mídia, por exemplo, pode causar efeitos de longo e de curto prazo, influenciando as formas como a sociedade se vê e sugerindo aos indivíduos representações da mesma, de seus valores e de seu modo de vida (efeito de longo prazo), além de modos momentâneos de interpretar ocorrências e informações recebidas na vivência cotidiana (efeito de curto prazo). Esse papel se torna ainda mais relevante nas relações sociais conturbadas e atravessadas sistematicamente pelo racismo. Como afirmam Leite e Batista (2008) e Taylor e Costello (2017), observando a publicidade, existe uma responsabilidade social de anunciantes, bem como da indústria em geral, meios de comunicação, empresas e agências, de ir além da mera inclusão de grupos minorizados em conteúdos que não promovam ou reforcem, de forma explícita ou implícita, os estereótipos, os papéis e ambientes que esses grupos aparecem nas comunicações comerciais. Essas comunicações devem ter, principalmente, a preocupação que a sociedade como um todo (indivíduos alvos ou não de estereótipos negativos) tenha e/ou desenvolva uma percepção mais abrangente sobre esses grupos minorizados e menos racista e estereotipada. Segundo Muller et al. (2008), essa percepção pode gerar uma significação das características físicas e culturais criando uma estrutura que define e causa diferenciação entre os indivíduos ou grupos sociais, sejam mediante a atos flagrantes de discriminação e abuso, em geral punidos por leis, sejam por interações cotidianas que tornam essas diferenciações como parte das relações sociais e focos de brincadeiras entre amigos, assim, nessa forma são percebidas como ameaças menores. Portanto, levando essa dinâmica em consideração, os focos de anúncios antirracistas, implicando os seus processos de produção e consumos (material e imaterial), bem como pesquisas que explorem esses enquadramentos, poderiam ser observados a partir de perspectivas e direcionamentos individuais e/ou interpessoais. 183 SEÇÃO 4 Pedersen, Walker e Wise (2005) inscrevem uma importante reflexão sobre o quão efetiva seria ou não a implementação dessas estratégias antirracistas para reduzir o racismo na sociedade. Dessa forma, com base na literatura, eles explanam sobre algumas estratégias as enquadrando em duas perspectivas: individual e interpessoal. Em relação às estratégias individuais, esses autores consideram três questões principais: 1. fornecer informações específicas sobre questões raciais (em particular sobre falsas crenças); 2. criar dissonância sobre ter valores diferentes (por exemplo, acredita-se ser igualitário, mas não gosta de um certo grupo cultural); e 3. empatia. No que tange as estratégias interpessoais, os autores destacam: 1. contato intergrupo, 2. fornecer informações consensuais (outras pessoas concordam com a nossa opinião?); 3. benefícios do diálogo com outras pessoas; e 4. campanhas publicitárias. Pedersen, Walker e Wise (2005) ainda reforçam a necessidade de que essas estratégias sejam fomentadas e executadas nos níveis individual (micro), institucional (meso) e estrutural (macro) de modo a implicar o racismo sistêmico. Nota-se na literatura, como já pontuado, que a discussão antirracista tem recebido pouca atenção nas pesquisas da publicidade, e comunicação e mídia em geral (BATISTA; LEITE, 2011 e LEITE; BATISTA, 2019), tendo como consequência que os esforços observados na sua indústria representam, provavelmente, a pouca atenção dada pelos estudiosos da comunicação às estratégias necessárias para uma atuação antirracista mais incisiva e efetiva, bem como para os seus esforços para desenvolver e criar “outras/novas” referências e práticas que desmantelem o racismo a partir das expressões da área. Pedersen, Walker e Wise (2005) e Murji (2006) sugerem que a resposta apropriada ao racismo estrutural deve focar tanto os indivíduos quanto as políticas institucionais corporativas. Desse modo, os comportamentos e atitudes racistas não podem ser tratados como sendo uma escolha moral pessoal, uma preferência, mas sim que o racismo é estrutural e sistemático, bem como reproduzido nos discursos individuais e institucionais, devendo, portanto, ser combatido nestes dois níveis. 184 Comunicação, etnias e antirracismo Com o amparo das reflexões articuladas nesses quadros de conhecimentos acerca dos efeitos do racismo na sociedade, bem como sobre o potencial do antirracismo como lente crítica e um caminho para o desenvolvimento de ações para combatê-lo e desmantelá-lo, é possível, neste ponto, avançar com mais segurança no racional deste capítulo para pensar as expressões institucionais a partir dos sentidos da publicidade e antirracismo, considerando as pesquisas sobre o processamento cognitivo de informação associado aos estereótipos e os esforços contraestereotípicos. Processamento de estereótipos e esforços de contraestereotipagem O processamento cognitivo de informação associado aos estereótipos, por exemplo, foi considerado, por muitos pesquisadores e por muitos anos, como fazendo parte do que se considera processamento automático, ou seja, aquele que se faz sem esforço cognitivo e também fora do controle do indivíduo. Assim, pesquisadores, no final do século passado, como John A. Bargh e Tanya L. Chartrand (1999), Patricia G. Devine (1989), Susan T. Fiske (1998), entre outros afirmavam que o culpado pelos vieses do processamento racial era a sua automaticidade, considerada como um processo inflexível, inescapável e dominante na forma de categorização, iniciado espontaneamente em face dos estímulos apropriados. Mais relevante do que o processamento automático era também a consideração de que esse processamento não era sujeito a alterações, uma vez que os esforços para sua modificação seriam em vão, dado que estavam fora do alcance do indivíduo. No entanto, conforme afirma Irene V. Blair (2002), esta associação entre processamento por estereótipos e automaticidade vem sendo disputada por muitos pesquisadores, pela demonstração de como esse processamento pode ser influenciado por vários fatores associados à estratégia do indivíduo, as suas relações sociais e também ao contexto. Blair (2002) propõe cinco classes de moderadores deste processamento, a saber: 1. motivos individuais e/ou sociais; 2. 185 SEÇÃO 4 estratégias específicas de contraestereotipagem; 3. foco da atenção; 4. dicas do próprio estímulo; e 5. características pessoais dos indivíduos a serem categorizados. Blair destaca ainda que essas classes de moderadores se dividem em motivação do indivíduo receptor e manipulações fora do controle desse indivíduo. Os cinco fatores apontados podem ser facilmente associados com a capacidade comunicacional da publicidade, tendo em vista que o seu conteúdo geralmente tem potencial de motivação para indivíduos e coletivos. Desse modo, ela pode focar em aspectos específicos e gerais para, direta ou indiretamente, contribuir com a redução de estereótipos negativos, bem como, através de seus formatos e conteúdos específicos, demandar mais atenção do receptor. Também mediante os personagens dos anúncios destacar características dos indivíduos que estiverem sendo retratados nas narrativas. Os estudos discutidos na revisão feita por Blair (2002) já demonstravam que era possível, por meio de foco em aspectos contraestereotípicos, exercer certa influência no processamento cognitivo automático de estereótipos. A autora sugere, baseando-se em pesquisas realizadas por outros autores, como Dasgupta e Greenwald (2001), Kawakami et al. (2000) etc., que esses efeitos acontecem ao longo do tempo e, por isso, demandam esforço específico e contínuo para sua modificação, uma vez que podem atuar diferentemente dependendo da situação. Um estudo que chama a atenção nesse sentido, devido à peculiaridade de seus resultados, é a pesquisa, feita por Jason P. Mitchell, Brian A. Nosek e Mahzarin R. Banaji (2003), que distingue entre a classificação racial per se e a categorização solicitada em uma tarefa. Usando o Implicit Association Test (IAT) para categorizar indivíduos que eram atletas negros valorizados socialmente ou políticos brancos rejeitados socialmente, (portanto, diretamente ligados às classes de moderadores mencionados acima: 3. foco da atenção; 4. dicas do próprio estímulo; e 5. características pessoais dos indivíduos a serem categorizados), observaram que, quando “raça/etnia” era saliente, atletas negros eram avaliados mais negativamente, enquanto quando o foco era em ocupação, o reverso acontecia. Uma série de experimentos permitiu concluir que atitudes automáticas são contínuas, construídas ao longo do processamento e 186 Comunicação, etnias e antirracismo que são inerentemente flexíveis e apropriadas, conforme a percepção do contexto, ainda que fora do controle consciente do receptor (MITCHELL; NOSEK; BANAJI, 2003). Os autores alertam para o fato de que, embora estas medidas aparentem representar uma modificação na atitude do indivíduo, elas apenas se referem a uma resposta (comportamento) associada ao momento e não são uma medida de mudança de atitude na questão racial. Essa limitação ocorre porque atitudes são articuladas por crenças que apresentam resistência à mudança e longa durabilidade. No caso dos resultados de Mitchell, Nosek e Banaji (2003) têm-se apenas que as reações automáticas associadas a uma atitude atrelada ao processamento de estereótipos podem ser modificadas. Ou seja, essas reações apresentam, claramente, uma maleabilidade de processamento estabelecida pela situação, mas não garantem uma mudança definitiva na avaliação de estereótipos. Conforme Joseph E. Dunsmoor et al. (2016), uma forma importante para se esperar flexibilidade em aprendizado social é pelo estudo do aprendizado reverso, no qual, após um aprendizado condicionado, observa-se experimentalmente se o indivíduo pode atualizar o aprendizado (ou seja, descondicionar), dado que as condições mudaram. Esses autores observaram, por meio de técnicas da neurofisiologia, que indivíduos brancos e amarelos que foram condicionados a esperar um choque toda vez que observavam a foto de um homem negro, mas não a foto de um homem branco, não conseguiram descondicionar esse medo. Enquanto isso, indivíduos de outro grupo que fizeram o experimento contrário (condicionados a esperar um choque nas fotos contendo homens brancos, mas não nas contendo homens negros), puderam ser descondicionados. Os autores alertam e sugerem que alguns tipos de aprendizado social, como o racismo, podem ter pouca flexibilidade e, assim, seria possível destacar, serem dependentes de uma ação mais específica. Dessa forma, esses resultados permitem considerar que algumas campanhas consideradas antirracistas, a exemplo dos clássicos anúncios da United Colors of Benetton4, nos idos de 1980 e 4 Disponível em: https://bit.ly/3xtId9D. Acesso em: 26 nov. 2021. 187 SEÇÃO 4 1990, podem contribuir talvez para a reprodução de culturas racializadas, por identificar como sendo apenas aqueles grupos específicos que sofrem ou fazem uso dessas formas de interação social racistas. Assim, esses dados estimulam considerar que existe a necessidade de articular formas mais abrangentes que conformem adequadamente o racional de comunicações publicitárias antirracistas. Para Ben, Kelly e Paradies (2020), os media e as suas materialidades, como os anúncios, de uma forma geral, poderiam agravar a estereotipagem, preconceito e discriminação racial, mas também podem aumentar a percepção negativa dessa discriminação, modificar atitudes, comportamentos racistas e gerar normas sociais positivas. Esses autores argumentam que as campanhas que acontecem na vida real têm sido pouco avaliadas em relação ao seu impacto, seja pela amostra estudada, em grande parte estudantes, seja pelos resultados encontrados que sugerem, mas não confirmam alguns efeitos específicos. Observa-se na literatura uma quantidade de estudos identificando racismo em várias situações do mercado e, principalmente, na publicidade, tanto em tempos antigos como em situações mais recentes, mas uma limitada presença de esforços antirracistas como observado nas tradicionais campanhas da United Colors of Benetton e nas comunicações de marcas da Nike, em 2005, que mesmo promovendo o antirracismo em jogos de futebol na Europa, com a campanha Stand Up, Speak Up5, contrasta com o intenso uso de celebridades negras para a promoção de marcas e produtos (DAVIS, 2018), porém não apresenta um claro objetivo antirracista e, desse modo, atende de forma muito limitada, se é que atende, às classes identificadas por Blair (2002). Ben, Kelly e Paradies (2020) ainda, tomando como base estudos empíricos e experimentais realizados por outros pesquisadores, argumentam que os melhores efeitos acontecem em situações onde a comunicação enquadra aspectos negativos ao invés de construir percepções positivas, quando foca em vários indivíduos de uma mesma raça/etnia ao mesmo tempo do que quando propõe diversidade e multiculturalismo. 5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o8xb8tJy1VA. Acesso em: 26 nov. 2021. 188 Comunicação, etnias e antirracismo Esses autores ressaltam ainda que tais comunicações podem ser mais efetivas também quando identificam crenças que salientam o racismo, quando essas comunicações desafiam o racismo e prescrevem o antirracismo como norma, estabelecendo e salientando similaridades entre os grupos estereotipados e os que estereotipam; indo além da inclusão saliente dos grupos estereotipados nas comunicações buscando alterar as representações midiáticas, oferecendo oportunidades para as discussões e interação entre grupos e tendo como objetivo fundamental descaracterizar argumentos racistas, mesmo que para isso seja necessário esclarecer o significado dos conteúdos veiculados. Exemplo nessa direção foi a campanha publicitária de natal, da rede de supermercados Sainsbury’s6, em 2020, no Reino Unido, protagonizada por uma família negra feliz e em celebração. Esse anúncio antirracista gerou muitos debates e manifestações, especialmente nas redes sociais, tanto de desaprovação e ataques quanto aprovação e suporte à marca. No Brasil, em 2018, contexto similar ocorreu, após a veiculação de uma campanha de natal da marca de cosméticos O Boticário, também protagonizada por uma família negra feliz e em celebração7. Respostas sociais à campanha de aprovação e reprovação produziram embates entre os consumidores na direção de ações de boicote e, mais expressivamente, fomentando ações de buycott8 aos produtos da marca. Frente aos embates entre os consumidores envolvidos pelas narrativas das campanhas, ambas as marcas, em suas redes sociais, defenderam as suas campanhas antirracistas, reforçando a necessidade de uma reflexão social sobre diversidade e inclusão racial. Nessa direção, a Sainsbury’s em seu Twitter expressou: “[…] queremos ser o varejista mais inclusivo. É por isso que, ao longo de toda a nossa publicidade, pretendemos representar uma Grã-Bretanha moderna, que tem uma 6 Disponível em: https://www.independent.co.uk/voices/sainsburys-christmas-advert-black-family-racism-b1724922.html. Acesso em: 26 set. 2022. 7 Disponível em: https://exame.com/marketing/o-boticario-poe-familia-negra-em-comercial-e-os-racistas-nao-gostaram/. Acesso em: 26 set. 2022. 8 Em tradução livre apoio a uma empresa ou país comprando seus produtos. 189 SEÇÃO 4 gama diversificada de comunidades”9. Já a marca brasileira O Boticário, com posicionamento similar, declarou na época diante da comoção social gerada, que: “Não é de hoje que O Boticário trilha esse caminho de retratar a diversidade étnica que torna nosso país tão rico e especial [...]. O Boticário se pauta pelo respeito a todas as pessoas e deseja que, muito em breve, questões como essa não gerem mais polêmicas”10. Jo-Yun Li, Joon Kyoung Kimb e Khalid Alharbi (2022) auxiliam a compreensão desses contextos ao explorarem o papel do envolvimento e apego à marca na formação da resposta do consumidor às iniciativas de corporate social advocacy (CSA). Esses autores destacam o caso da campanha publicitária da Nike em comemoração à 30.ª campanha anual do Just Do It, em 2018, nos Estados Unidos11. A campanha estrelada por Colin Kaepernick, ex-jogador profissional da liga nacional de futebol americano (NFL, em inglês) também gerou fortes reações de reprovação e significativo suporte à ação da marca. Nesses cenários, estas respostas que os consumidores vêm direcionando às marcas demandam, segundo esses autores, uma reflexão sobre o papel que as empresas deveriam assumir em termos de questões sociopolíticas. Li, Kimb e Alharbi (2022) sugerem que o apoio dos consumidores aos esforços de CSA de uma empresa pode depender de seu envolvimento na questão social que uma marca escolheu, bem como seu envolvimento com a marca. Além disso, a interação do envolvimento com a questão e os fatores de apego à marca podem servir como uma estratégia de segmentação para consolidar a lealdade à marca e fortalecer o relacionamento com os interessados na marca (stakeholders, no original) nos casos em que a atitude seja congruente com as posições da corporação. Nestes contextos, para reflexão e percepção da complexidade que esta temática impõe, é importante ressaltar que a população 9 Disponível em: https://www.voice-online.co.uk/news/uk-news/2020/11/17/sainsburys-responds-to-those-unhappy-with-their-christmas-advert-featuring-a-black-family/. Acesso em: 26 set. 2022. 10 Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Marketing/noticia/2018/07/campanha-do-o-boticario-com-familia-negra-e-alvo-de-ataques-na-internet.html. Acesso em: 26 set. 2022. 11 Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2018/sep/08/colin-kaepernick-nike-ad-sales-up. Acesso em: 26 set. 2022. 190 Comunicação, etnias e antirracismo brasileira é majoritariamente negra, diferentemente, do Reino Unido e do Estados Unidos onde a população negra/étnica é minoritária. No entanto, o racismo sistemático articula-se em ambos os contextos. Esses exemplos sugerem a urgência de acelerar o enfrentamento dessas questões de modo mais amplo e cuidadoso em toda a estrutura social, inclusive nas representações da publicidade, de modo a implicar o “complexo imaginário” articulado pelas tradicionais narrativas de dominação e imagens de controle inscritas aos grupos oprimidos, como adequadamente observam Collins (2019) e Almeida (2019). Torna-se importante considerar esses efeitos como centrais para o raciocínio proposto neste capítulo, uma vez que os estudos que observam a relação da contraestereotipagem no âmbito dos efeitos associados à comunicação, embora combinem vários princípios e métodos, têm como suporte a ideia de que a informação contraestereotípica é aquela que se apresenta com o propósito de desconfirmar as expectativas culturais associadas a um grupo (RAMASUBRAMANIAN 2007, 2011 etc., RAMASUBRAMANIAN; MURPHY 2014). Por exemplo, Bodenhausen et al. (1995) estudaram a questão de como imagens de negros associadas ao sucesso afetavam as crenças sobre negros em geral nas suas relações econômicas ou políticas. Esses autores encontraram que a exposição desses indivíduos associada ao sucesso, quando eles eram apreciados pelos receptores, aumentava a percepção de discriminação racial em relação aos negros, o que desaparecia quando os indivíduos (brancos) eram pré-ativados pela ideia de que esses indivíduos de sucesso eram atípicos em seu grupo social. No entanto, Columb e Plant (2011) usaram a figura do presidente americano Barack Obama, um indivíduo atípico (exceção) como qualquer presidente é, para testar a capacidade de redução do preconceito implícito contra negros. Este estudo, na condição em que os indivíduos foram pré-ativados com exemplos negativos de indivíduos da raça negra, demonstrou associações negativas em relação aos negros, mas quando a exposição era seguida por uma apresentação do presidente Obama, as associações negativas eram menores. Os autores comentam que esses resultados indicam a capacidade de reduzir o preconceito com moderadores contraestereotípicos. 191 SEÇÃO 4 Os recorrentes estudos indicam que a questão da contraestereotipagem, na sua relação com a mídia, desperta muito interesse. Segundo Ramasubramanian e Murphy (2014), estes estudos partem de um foco em diversos aspectos teóricos, mas têm como base que a apresentação de exemplares positivos leva à redução da estereotipia, seja pelo uso da mensagem da mídia ou por uma mediação como, por exemplo, a mediação de um adulto para a compreensão da mensagem por crianças (LEITE; BATISTA, 2018). Até mesmo ler histórias sobre celebridades de outro grupo facilita a redução de preconceito (RAMASUBRAMANIAN 2015), mas cabe lembrar que, conforme discutido, a confirmação do estereótipo negativo nos meios midiáticos pode fortalecer o preconceito (COLUMB; PLANT, 2011). Outro ponto bastante importante nesta discussão é apresentado por Critcher e Risen (2014), que, em uma série de experimentos, demonstraram, sob vários aspectos, a capacidade de um exemplar positivo agir de forma contraestereotípica, modificando a relação de preconceito apresentada contra um grupo. No entanto, esses autores alertam que isso não garante a redução de preconceito contra um indivíduo específico. Invocam, para isso, a falácia da inclusão, que sugere que a generalização vai de um indivíduo para todo o grupo, mas não garante que vá de um indivíduo para outros do mesmo grupo. Nessa mesma direção, Laura Jacobs e Meta Van der Linden (2017) experimentaram o efeito de notícias positivas versus negativas sobre imigrantes do norte da África. Os estudiosos observaram que os efeitos de contraestereotipagem, em belgas, obtidos com as notícias positivas eram estendidos para outros grupos de imigrantes presentes na região, ainda que não envolvidos na comunicação, mas as notícias negativas, pelo contrário, não tinham esta capacidade de generalização e eram específicas aos grupos representados. Um ponto também relevante nesta área de estudos é trazido por Dana Mastro e Riva Tukachinsky (2011). Esses autores salientam a importância da qualidade do protótipo (a saber, sua representatividade) utilizado na comunicação positiva para a mudança das atitudes em relação ao grupo. Eles identificaram que só um protótipo bastante representativo causa o efeito, mais ainda, se o estereótipo apresentado for extremamente desconfirmatório do estereótipo da população, 192 Comunicação, etnias e antirracismo ele tende a ser desqualificado como muito desviante da realidade. Assim, Mastro e Tukachinsky (2011) afirmam que o papel da mídia não é só aumentar a presença de representantes positivos dos grupos minorizados que sofrem de preconceito e discriminação, mas também conseguir incorporar novas visões no sistema cognitivo preexistente ao nível individual e coletivo acerca desse grupo. De forma geral, os estudos acima indicam que os conteúdos comunicacionais têm capacidade de modificar a resposta do indivíduo ao preconceito, se observados alguns parâmetros. Por exemplo, uma maior presença de ídolos pode combater a percepção negativa do grupo, mas a percepção de que isto é uma exceção e não a regra pode causar até mesmo um efeito ricochete, já observado na literatura (WEGNER, 1994, LEITE; BATISTA, 2008). Para Wegner (1994), por outro lado, as mudanças observadas nos esforços experimentais esbarram em uma limitação que é a não generalização nem do grupo para um elemento específico, nem de grupo para grupo, quando o conteúdo era negativo. Frente a esse quadro de estudos, é possível observar que há brechas poderosas na articulação desses espaços e ideias que podem ser aplicados na publicidade. Essas oportunidades precisam ser crítica e criativamente exploradas, pois elas podem, provavelmente, produzir quebras na estrutura de associações de ideias racistas que também afeta a publicidade e, desse modo, fomentar transformações institucionais com espelhamentos sociais relevantes. Especialmente, nesse ponto, é preciso considerar estrategicamente a produção e a difusão de ideias e mensagens que combatam e contraponham o complexo imaginário articulado pelas tradicionais narrativas de dominação e estereótipos tradicionais. As ideias contraestereotípicas, como discutido, podem conformar caminhos significativos para o desenvolvimento dessa tarefa, bem como as ideias e narrativas contraintuitivas (BOYER, 2001, BOYER; RAMBLE, 2001, FRY, 2002, UPAL, et al., 2007, UPAL, 2015, LEITE; BATISTA, 2008 etc.). Posto isto, é importante ressaltar que a proposta de publicidade antirracista (LEITE; BATISTA, 2019, LEITE, 2019, 2021) acolhe e articula as possibilidades que as abordagens de narrativas contraintuitivas com moderadores contraestereotípicos podem oferecer para o estímulo e a criação de imagens mentais positivas de reorientação a partir das materialidades de anúncios e comunicações de marcas diversas. 193 SEÇÃO 4 Deste modo, considerando o seu objetivo-fim mercadológico, as suas funções e relações entre os espaços da produção e dos consumos (material e imaterial), a proposta de uma publicidade antirracista pode ser, crítica e criativamente, observada como uma oportunidade de revisão e redirecionamento da área publicitária para que as suas ações internas e externas autenticamente (MENON; KIESLER, 2020) viabilizem a construção de políticas, práticas e ideias antirracistas e ou sejam meios para difundi-las e promovê-las socialmente. Refletindo esse entendimento, é exemplar a campanha publicitária Widen the Screen, da P&G12, que além de confrontar estereótipos contra pessoas negras estadunidenses, em uma narrativa contraintuitiva com moderadores contraestereotípicos, protagonizada por negros e negras (intervenção específica), também fomentou a oportunidade de toda a equipe técnica de criação da campanha fosse formada por profissionais negros (intervenção mais ampla). Caminhos para as pesquisas (intervenções) em publicidade antirracista Focando na combinação teórica dos conhecimentos discutidos anteriormente com implicações observadas na relação entre antirracismo, publicidade, efeitos e processamento de estereótipos compartilha-se, neste tópico, uma proposta de organização (alguns insights) e articulação desse conjunto de ferramentas teóricas para instigar e orientar pesquisas (e intervenções) sobre as expressões e a capacidade comunicacional da publicidade antirracista considerando o raciocínio estruturado e ilustrado na figura 1. Fica aparente pelo discutido em Pedersen, Walker, Wise (2005), Bodenhausen et al. (1995), Columb e Plant (2011) que uma representação individual, celebridades, por exemplo, é diferente de uma representação coletiva, por exemplo, pessoas comuns fazendo compras de natal, assim se inicia a leitura desse framework com a separação demarcada: individual e coletiva/interpessoal. Existe, no entanto, um aspecto em comum 12 Disponível em: https://cnn.it/3nRBB1L. Acesso em: 26 set. 2022. 194 Comunicação, etnias e antirracismo entre as duas formas de representação, que é central na estrutura, que é a consideração sobre as estratégias de contraestereotipagem, conforme discutido por Blair (2002) e outros. O foco em aspectos contraestereotípicos tem a capacidade de modificar o processamento automático de estereótipos. Essa tentativa, possivelmente, como indicado a priori, pode ser reforçada em combinação com narrativas contraintuitivas (LEITE; BATISTA, 2008, LEITE, 2018). Considerando o foco antirracista em conteúdos publicitários utilizando-se da representação de um indivíduo, os estudos observados, principalmente por Pedersen, Walker e Wise (2005) e Hage (2016), ressaltam a importância e a competência desta representação em tentar corrigir falsas crenças individual e coletivamente. A qualificação/prestígio social do indivíduo alvo de estereótipos tradicionais, como discutido no parágrafo anterior, completa o quadro para o estudo deste tipo de representação. Figura 1 – Estrutura para pesquisas em publicidade antirracista: uma proposta. Fonte: Autores (2022) 195 SEÇÃO 4 A representação coletiva tem a possibilidade de oferecer ao contato intergrupal um dos caminhos indicados pelos estudos de Ben, Kelly e Paradies (2020), discutindo as vantagens e desvantagens da presença de vários indivíduos das diferentes raças que se busca integrar, na promoção de similaridade entre grupos estereotipados e os não estereotipados. Dentro desta mesma linha de estudo enquadra-se o benefício de estudar o diálogo oferecido nas formas prescritiva e instrutiva. Completa essa perspectiva os estudos de CSA, conforme discutido por Jo-Yun Li, Joon Kyoung Kimb e Khalid Alharbi (2022), considerando a atitude em relação à marca (e/ou narrativa) como fator atrelado aos efeitos desejados. Em suma, essas comunicações devem, sobretudo, ter a preocupação de que a sociedade como um todo (indivíduos estereotipados e não estereotipados) tenha e/ou desenvolva uma percepção mais ampla desses grupos minorizados e uma visão (atitude e comportamento) menos racista e estereotipada sobre eles, mediante as mudanças na representação midiática. Mensurando o antirracismo na publicidade A proposta básica de comunicações antirracistas, como os anúncios, é fomentar uma modificação da atitude e/ou comportamento em relação à avaliação de um indivíduo tendo a questão racial/étnica como fator dominante. Portanto, como já pontuado, ela está associada às informações que o indivíduo tem armazenado na sua memória de longa duração. Essas memórias são ativadas pela exposição de estímulos relacionados à sugestão (cue related stimulis), no caso, conteúdo que saliente a presença de um indivíduo ou vários indivíduos em associação com um determinado grupo racial/étnico. Comunicações antirracistas buscam a modificação desse processamento cognitivo automático, pautado em ideias e narrativas racistas, que articulam imagens de controle (COLLINS 2019), por exemplo. Nesse sentido, considerando os vieses implícitos (implicit bias), que ideias e narrativas racistas buscam condicionar socialmente de modo individual e coletivo e que acabam por influenciar consciente ou inconscientemente as percepções e as interpretações sociais, é possível 196 Comunicação, etnias e antirracismo associar a proposta de comunicações antirracistas aos estudos de reconsolidação de memória (FERNÁNDEZ; PEDREIRA; BOCCIA, 2017). Estes estudos vêm demonstrando clinicamente a possibilidade de modificar atitudes e comportamentos, por exemplo, associados ao abuso de drogas, a ansiedades, entre outros. O processo básico do esforço de reconsolidação de memória parte do pressuposto que o cérebro trabalha com predições do mundo e, dessa forma, quando exposto a um estímulo, o indivíduo receptor pode gerar algumas expectativas e ideias. Logo, se essas ideias geradas confirmam as percepções anteriores somente acontece a recuperação da informação na memória e o provável fortalecimento da atitude. No entanto, se acontece uma falha nessa predição (o chamado prediction error) existe, nessa oportunidade, uma motivação para o processo de reconsolidação, uma vez que a memória se encontra em um estado débil, possibilitando, assim, uma atualização da memória e um ajuste para as próximas expectativas e mudando o modelo de mundo desse indivíduo implicado. Fernández, Pedreira e Boccia (2017) postulam que a minimização da falha de predição (predicition error minimization, no original) é um dos mais fundamentais mecanismos cerebrais, o desencontro da informação armazenada com novas informações pode provocar uma aquisição ou uma atualização no armazenamento cognitivo. Dessa forma, a publicidade antirracista pode se beneficiar dessa perspectiva de efeitos, que se articulam estreitamente ao apontado anteriormente com relação à articulação, por exemplo, de narrativas contraintuitivas com moderadores contraestereotípicos. Senholzi e Kubota (2016) reforçam que estratégias nessa direção oferecem exemplos concretos de situações nas quais o preconceito não predomina. Esses exemplos vão desde celebridades até pessoas desconhecidas em situações que oferecem a oportunidade de um indivíduo reconsiderar as generalizações que realiza. Esses autores afirmam que nessas situações de reconsideração, existem evidências que o cérebro trata como novas e salientes informações, que podem atuar de forma dinâmica na modificação das associações de sentidos nas relações entre grupos sociais, um prediction error minimization. A 197 SEÇÃO 4 estrutura teórica articulada neste capítulo oferece caminhos para entender esses processamentos e avançar com o exame de suas implicações na produção e repercussões sociais. Considerando esse foco, a avaliação dos efeitos dessa intervenção pode ser realizada através de estudos qualitativos (como entrevistas em profundidade) ou surveys, que avaliam atitudes explícitas, várias escalas têm sido desenvolvidas para essa finalidade. No entanto, as melhores evidências dessas alterações são associadas aos comportamentos, às reações emocionais como as reações neurofisiológicas (utilizando eye tracker, condutância da pele, neuroimagem, batimentos cardíacos etc.), em geral essas evidências são limitadas aos estudos de laboratório. Contudo, são as atitudes implícitas que podem ser mais associadas às percepções racistas e podem ser indicativas das mudanças impetradas ou não na atitude e comportamento do indivíduo e também de fácil acesso à maioria dos pesquisadores interessados nessa área. Pesquisas na área de ciências cognitivas sociais já vêm estudando a relação entre atitudes explícitas e implícitas, as evidências sugerem que atitudes reportadas por autorrelato podem não representar as atitudes implícitas, tendo como resultado uma discrepância entre o que o indivíduo expõe abertamente e o que implicitamente ele armazena, podendo ser um indicativo de predisposição para ação. Assim, a combinação de medidas subjetivas e objetivas, no curto e no longo prazos (estudos longitudinais), pode indicar a capacidade de intervenções publicitárias específicas na formação e fortalecimento de um pensamento antirracista, bem como a combinação de pesquisas em laboratório com as de campo devem ser os melhores indicadores dos caminhos mais frutíferos nessa obrigação social de tornar antirracismo o racional dominante. Considerações finais Em vista da baixa cobertura que a literatura dos estudos da publicidade oferece atualmente para a articulação e desenvolvimento de conhecimentos sobre as temáticas publicidade e antirracismo, este 198 Comunicação, etnias e antirracismo capítulo, chamando atenção para esta lacuna, desenvolveu e compartilhou a organização de uma proposta de estrutura para pesquisas em publicidade antirracista, que informa o campo sobre os estudos que estão produzindo conhecimentos nessa direção, observando e tensionando questões como: a perpetuação de práticas problemáticas e racistas em campanhas publicitárias; o engajamento e envolvimento dos consumidores (ou não) em ações de marca consideradas oportunistas e ou autênticas; a permanente questão das representações de grupos raciais/étnicos nas representações de campanhas publicitárias; as possibilidades das comunicações de marcas contemporâneas afetarem e mudarem o imaginário coletivo racista, por exemplo, adotando narrativas contraintuitivas com moderadores contraestereotípicos, entre outras questões. Em suma, a estrutura para pesquisas em publicidade antirracista compartilhada, considerando os seus limites e lacunas, implica fortes reflexões, caminhos e desafios a serem deliberados e seguidos na direção de auxiliar e avançar no processo de construção de conhecimentos mais amplos que inscrevam orientações contínuas sobre como comunicações publicitárias antirracistas podem colaborar para conter e romper com o contínuo racista de décadas, direcionado à opressão de grupos raciais/étnicos em nossas sociedades. Essa discussão precisa avançar com mais engajamento e compromisso nos estudos da publicidade. Referências ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural? São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. BATISTA, L. L.; LEITE, F. (Org.). O negro nos espaços publicitários brasileiros: perspectivas contemporâneas em diálogo. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2011. BARGH, J. A.; CHARTRAND, T. L. The unbearable automaticity of being. 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Além disso, refletimos sobre a pesquisa como espaço de produção de conhecimento sobre o campo, com finalidade transformadora na sociedade, a partir das contribuições das descobertas e contribuições do trabalho acadêmico, nos Programas de Pós-graduação. 205 SEÇÃO 4 Nosso objetivo é discutir como o campo da pesquisa em Comunicação tem se movido diante das demandas expostas nos ODS, em uma dimensão pedagógica – na constituição dos currículos –, em uma dimensão política – na participação na implantação e ampliação de políticas afirmativas – e em uma dimensão social e epistemológica – na reflexão sobre a movimentação de estruturas da sociedade. De partida, observamos o que é abordado acerca do assunto etnias e antirracismo nos ODS. Posteriormente, recorremos a documentos que regulamentam o ensino superior em Comunicação no país, para avaliar como os princípios dos ODS podem aparecer na realidade prática desses cursos. Por último, abordamos movimentos relativos a uma ampliação sobre os debates acerca de pautas étnico-raciais no campo da pesquisa em comunicação, para avaliarmos a potência transformadora dessas iniciativas. Os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável Os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável foram propostos pela ONU aos 193 Estados que a integram, em 2015. Eles correspondem a 17 pontos relacionados a desafios para o desenvolvimento dos países, diante das complexidades que se colocam como a finitude de recursos, tensionamentos políticos, desigualdades sociais e econômicas, desequilíbrio ambiental, entre outras preocupações de um mundo globalizado. Os ODS são de natureza multidisciplinar e interconectados, fazendo com que a busca por sua implantação envolva um trabalho cooperativo, complexo e coordenado dos Estados membros para que a Agenda 2030 – forma como também são conhecidos – seja implantada no prazo de 15 anos. As dimensões étnico-raciais aparecem, de forma explícita, no Objetivo 10: “Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles” e no Objetivo 17: “Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável”. O Objetivo 10 propõe, em linhas gerais, caminhos para o aumento de renda das populações mais pobres no mundo, a fim de reduzir 206 Comunicação, etnias e antirracismo desigualdades entre países, olhando também para o enfrentamento das desigualdades internamente nos territórios membros da ONU. Considerando os processos coloniais implantados pela Europa no mundo ao longo da história, compreende-se a instauração e a consolidação de desigualdades internas e externas entre países. Por meio da colonização, estabeleceu-se disputas de poder no mundo, que produziram ideias de hierarquização dos povos, em relações de poder que conceberam categorias raciais que justificassem processos de dominação. Alguns séculos depois, temos importantes contribuições como as de Mbembe (2018), acerca da criação de um sujeito racial no processo de colonização – seja como mineral, metal ou moeda –, que é dimensão estruturante do primeiro capitalismo. A colonização foi a base para a implantação de desigualdades raciais, sejam elas internas, sejam elas externas, entre os Estados. Dessa forma, pensar nesse objetivo como parte de uma Agenda Global e conjunta, trata-se de importante movimento de reparação histórica a uma das estruturas fundadoras do mundo moderno: o racismo. No tópico 10.2 do Objetivo, referente à Redução das Desigualdades é, apresentado como meta: “Até 2030, empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição econômica ou outra” (ONU, 2022, on-line). O ponto é importantíssimo e fundamental para se pensar na busca por uma sociedade mais igualitária. Porém, sem a adoção de uma postura crítica diante dessa redação, corre-se o risco de que o tópico se perca na falsa ideia de que todos já são iguais hoje em dia, desconsiderando os processos históricos que estabeleceram as desigualdades, como o racismo, o sexismo, as LGBTfobias e outras discriminações. Assim, para empoderar e promover a inclusão social e política de grupos vítimas da discriminação étnico-raciais é preciso, primeiramente, romper com a ideia de um sujeito universal (KILOMBA, 2019), reconhecendo a violência racial – em todas as suas dimensões – como importante fator na construção da subjetividade de pessoas negras, indígenas, amarelas e racializadas. 207 SEÇÃO 4 No Objetivo 17, sobre Parcerias e Meios de Implementação, há importante contribuição para se pensar em formas de empoderamento e de promoção de inclusão do objetivo discutido anteriormente. Em seu tópico 18, o Objetivo 17 define como meta: Até 2020, reforçar o apoio à capacitação para os países em desenvolvimento, inclusive para os países menos desenvolvidos e pequenos Estados insulares em desenvolvimento, para aumentar significativamente a disponibilidade de dados de alta qualidade, atuais e confiáveis, desagregados por renda, gênero, idade, raça, etnia, status migratório, deficiência, localização geográfica e outras características relevantes em contextos nacionais. (ONU, 2022, on-line) O estabelecimento de bases de dados de alta qualidade, atuais e confiáveis sobre raça e etnia, por exemplo, é fundamental para o planejamento, a implantação, o monitoramento e a avaliação de políticas de inclusão. Podemos exemplificar a discussão como a importante conquista do movimento negro brasileiro acerca da interpretação dos dados do censo populacional com o agrupamento das categorias preto e pardo em negro, como discutido por Nascimento (2016). Considerando os processos de construção do mito da democracia racial no Brasil, as estratégias de miscigenação da população desenvolvidas por meio de políticas de migração implantadas no século XX e a atuação de um movimento eugenista no Brasil no século XIX, a população negra brasileira passou por um processo no qual negar a própria negritude era estratégia de ascensão social e, assim, surgiram diversos eufemismos para se referir à própria cor, para evitar a negritude. O trabalho do movimento negro na afirmação positiva de uma identidade e na ressignificação dos signos negativos da negritude, em busca da afirmação dela (MUNANGA, 2019), juntamente com importante interlocução de integrantes deste mesmo movimento junto aos 208 Comunicação, etnias e antirracismo agentes públicos no reconhecimento institucional de uma maioria populacional negra resultam em dados consolidados historicamente sobre a população negra do país. Estes dados embasam as reivindicações do movimento em busca de políticas afirmativas e em ações no enfrentamento ao genocídio da população negra. Podemos ilustrar a pandemia de covid-19 como um importante momento dessa reivindicação, quando o governo, negligenciando o enfrentamento à doença, não trabalhou pelo monitoramento de dados sobre os óbitos da doença com a extratificação racial das informações sobre as vítimas da doença, agindo somente após pressão da Coalizão Negra Por Direitos e do Grupo de Trabalho (GT) Racismo e Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que reivindicaram a informação sobre raça nos prontuários de atendimento da doença. Os objetivos são mais amplos do que essa discussão, mas para pensar nos desafios da pesquisa em comunicação acreditamos que o recorte em tais pontos sejam fundamentais para a reflexão que vamos desenvolver. Avançaremos agora ao segundo ponto de nosso raciocínio, no qual debateremos como o Ensino Superior – espaço onde se realiza importante prática da construção da pesquisa em comunicação: a formação profissional – tem pensado, a partir de seus instrumentos reguladores, em estratégias de empoderamento e inclusão social de grupos racializados. O Ensino Superior em Comunicação no Brasil A implantação das primeiras escolas de formação em comunicação em território brasileiro remonta ao século XX. Na segunda metade deste século, surgem as primeiras diretrizes curriculares que regulamentam estes cursos, que passam por significativo processo de ampliação no final do século, com a consolidação da pesquisa em comunicação, a partir da implantação de Programas de Pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. A discussão histórico-conceitual sobre a implantação dos cursos em Comunicação Social é feita em profundidade em Lopes (2014), Pompeu (2013), Vitali (2007), Motta e Viana (2014). 209 SEÇÃO 4 Em atendimento à Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, em 2001, são apresentadas novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de Comunicação Social, homologadas em 2002. Uma significativa contribuição da LDB para a educação brasileira refere-se à preocupação com a atenção à diversidade étnico-racial nos ambientes escolares, em seus diversos níveis. Além da LDB, a Resolução CNE/CP n.º 1/2004 institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Com essa resolução, torna-se obrigatória a inclusão do tratamento de temáticas e questões relacionadas à população negra e afrodescendente, assim como referentes à população indígena, nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que se ministram. A iniciativa visa sanar processos de epistemicídio que consolidaram, no país, a história da colonização contada sempre sob a perspectiva do explorador europeu. Com essa resolução buscou-se resgatar a história dos povos africanos devastados pela escravidão, que traficou milhões de pessoas para as Américas, tendo sido o Brasil um dos países que mais recebeu sujeitos sequestrados de seus países. Aqui instalados, esses africanos contribuíram com seus conhecimentos na construção do país e na formação de sua identidade. A Resolução buscava também contar a história da colonização sob outra perspectiva, ressignificando o mito fundador do Brasil, de que os portugueses descobriram o país, visto que ele era, previamente, habitado por diversos povos indígenas que tiveram papel fundamental na formação cultural brasileira e resistiram de diversas formas às investidas portuguesas contra sua dizimação. Tais processos contribuem para o empoderamento de pessoas racializadas, que começam a entender seu lugar na história, compreendem sua identidade e passam a se orgulhar dela. A Resolução CNE/CP n.º 1/2012, que estabelece Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, também traz significativas contribuições ao debate sobre a educação como lugar de promoção de mudança e transformação social. Fundamentada em sete tópicos, apresentados em seu artigo 3.°, ela defende: 210 Comunicação, etnias e antirracismo I - dignidade humana; II - igualdade de direitos; III - reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades; IV - laicidade do Estado; V - democracia na educação; VI - transversalidade, vivência e globalidade; e VII - sustentabilidade socioambiental. (BRASIL, 2012, on-line) Dos sete pontos apresentados, podemos pensar nos três primeiros como pilares fundamentais para o empoderamento e inclusão social de grupos racializados. O primeiro deles visa à ruptura com a ideia de negação da humanidade dos grupos racializados, princípios fundamentados nos processos de colonização para justificar o genocídio e a desumanização de grupos racializados (MBEMBE, 2018). O segundo, em diálogo com o primeiro, coloca a busca da igualdade de direitos como horizonte a ser alcançado, apesar da dívida histórica estabelecida com esses grupos, em função de diferenças estabelecidas nos processos coloniais. O terceiro, em diálogo com os dois primeiros, reconhece a existência das diferenças e coloca em debate a perspectiva que rompe com a ideia de um sujeito universal e busca, no reconhecimento às diferenças, o enfrentamento das desigualdades. Ao longo da primeira década do século XXI, discussões sobre a separação das antigas habilitações da Comunicação Social em cursos autônomos surgem e o primeiro movimento nesse sentido foi a aprovação das novas diretrizes curriculares de Cinema e Audiovisual, em 2006. As novas diretrizes dos cursos de Jornalismo, homologadas em 2013, seguem com tal movimento, assim como as de Relações Públicas, aprovadas no mesmo período. Naquele ano, teve início a discussão sobre novas DCN para os cursos de Publicidade e Propaganda, cuja minuta foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2020 e ainda aguardando homologação do MEC, até a finalização da redação deste texto, em novembro de 2022. 211 SEÇÃO 4 Os novos textos das DCN dos cursos das áreas de Comunicação abordam de forma diversa as pautas étnico-raciais. A leitura dos textos demonstra como a educação para as relações étnico-raciais no ensino superior, apesar de uma obrigatoriedade, ainda não se reflete de forma consistente nas diretrizes curriculares dos cursos dá área de Comunicação Social. O texto das DCN de Cinema e Audiovisual, de 2006, por exemplo, não faz menção a questões relacionadas a Direitos Humanos ou à Educação para relações étnico-raciais. As diretrizes de Jornalismo, por sua vez, preveem, dentre seus eixos de formação, a fundamentação humanística, que tem como um de seus princípios a capacitação do profissional de jornalismo para suas raízes étnicas, regiões ecológicas, cultura popular, crenças e tradições. Preveem também, dentre as competências e habilidades a compreensão e valorização dos direitos humanos. As DCN de Relações Públicas preveem em seu texto o desenvolvimento de competências e habilidades gerais que abordam a atuação profissional em consonância com princípios éticos, voltada aos direitos humanos, considerando questões contemporâneas, sem fazer menção às dimensões étnico-raciais. As diretrizes de Publicidade e Propaganda, por sua vez, preveem dentro da linha de formação específica dos cursos a abordagem de um eixo transversal referente às questões de gênero e étnico-raciais. Prevê, ainda, a desconstrução de valores arraigados para valorizar a heterogeneidade racial no Perfil Específico do egresso em Publicidade e Propaganda, tendo o texto que apresenta de forma mais direta a menção às dimensões étnico-raciais nas reflexões sobre direitos humanos. O que se conclui da leitura dos documentos é que há legislações consistentes sobre a inserção das discussões étnico-raciais nos cursos superiores brasileiros, que o tema deve estar presente nos currículos dos cursos, mas que as diretrizes têm formas diversas de abordá-las e que o texto que faz mais menções ao assunto ainda não está homologado e, portanto, ainda não está em vigor nos currículos. Não podemos falar das relações étnico-raciais na formação superior brasileira sem olharmos para uma importante política implantada na 212 Comunicação, etnias e antirracismo segunda década do século XXI: as cotas. A Lei n.º 12.711/2012 implantou as cotas raciais como política afirmativa para o ingresso no ensino superior brasileiro em Instituições Públicas. No caso do ensino privado, as cotas são estabelecidas pela Lei n.º 11.096/2005, que estabelece o Programa Universidade para todos (Prouni). Importante conquista do movimento negro brasileiro, as cotas vieram como estratégia para sanar dívidas históricas que impediram o acesso de negros ao ensino superior brasileiro, as políticas de desigualdade (FABRI, 2020). Não é exagero falar sobre a transformação dessas políticas no ensino superior brasileiro (PIMENTA, 2022). O número de estudantes negros nas universidades brasileiras cresceu significativamente nos últimos anos, mas a mudança não foi apenas numérica. A chegada de estudantes negros e indígenas às instituições trouxe também novos questionamentos: a predominância de uma abordagem de caráter eurocêntrico, de autores brancos e o olhar hegemônico sobre a construção do pensamento tornaram-se recorrentes, desafiando docentes a reinventarem seus programas, em busca de referências que pudessem enegrecer seu pensamento, provocando uma ampliação até então inédita no alcance e na circulação do conhecimento produzido por pessoas racializadas. A presença de mais universitários negros e indígenas aumentou a inserção desses corpos em programas de estágio e em espaços de produção de conhecimento, como grupos de pesquisa, programas de iniciação científica. Ainda que desconheçamos dados que estabeleçam relação direta entre os fenômenos, notamos que, alguns anos após a implantação da política de cotas, emerge no Brasil, no fim da segunda década do século XXI, um debate com alcance inédito sobre questões étnico-raciais. Discussões acaloradas sobre representatividade, representação, lugar de fala e a compreensão do racismo como estrutura surgem nas redes, surgem nos programas da mídia, mas também começam a aparecer nos grupos de pesquisa, em congressos e em revistas científicas. A partir dos resultados obtidos pelas cotas na graduação, o receio da queda da qualidade dos cursos foi refutado como hipótese pela 213 SEÇÃO 4 prática: a sociedade assistiu às transformações que elas provocaram na vida das famílias beneficiadas pela política ao longo dos seus 10 anos de vigência e teve início debate sobre a implantação da política de cotas na pós-graduação. Uma portaria do MEC, de 2016, permitiu aos programas de pós-graduação a implantação de cotas raciais em seus processos seletivos de mestrado e doutorado. Diversos programas da área de Comunicação no Brasil implantaram as cotas, apesar de tentativa do MEC em tornar a portaria sem efeito em junho de 2020. O próprio MEC recuou da ação e tornou a portaria sem efeito, permitindo novamente a implantação das cotas na pós-graduação. As cotas na pós-graduação têm permitido a percepção de uma ampliação de pesquisas que discutem temáticas étnico-raciais, realizadas por estudantes negros e indígenas, que também estudam outras temáticas, visto que não estão restritos a este assunto. Este crescimento tem motivado reflexões sobre a presença das temáticas raciais em congressos acadêmicos da área de comunicação e nas revistas científicas, onde se têm visto uma tendência de crescimento no número de trabalhos que abordam temáticas étnico-raciais. Antirracismo na comunicação A Comunicação Social, como as demais ciências sociais no Brasil, produziu, ao longo do século XX, seu pensamento alinhado a uma matriz teórica que se furtou a questionar, de forma consistente, sua participação na consolidação do mito da democracia racial, do racismo como uma das estruturas sociais que sustentam a sociedade e na construção de um imaginário que associou à negritude signos indesejáveis. Apesar disso, desde o final do século XX, encontram-se trabalhos de pesquisadores que olham para as problemáticas referentes ao racismo na perspectiva comunicacional. Olhando especificamente para o objeto de estudo de nossa afinidade – a publicidade – relembramos aqui as contribuições de alguns pesquisadores que refletiram sobre a publicidade e as relações raciais brasileiras. Começamos por Gilberto Freyre, que publicou, em 214 Comunicação, etnias e antirracismo 1979, obra que analisava os anúncios publicitários que tinham como objeto pessoas escravizadas. Na obra, Freyre (1979) suaviza os horrores da escravidão brasileira, chegando a afirmar que ela foi mais sutil que nos Estados Unidos, por exemplo, consoante ao projeto político vigente no país desde o século XIX. Apesar desse olhar, a obra é uma importante contribuição para a reflexão do estudo da publicidade, para a compreensão do espírito do tempo de um determinado período histórico. Adotando perspectiva mais crítica, investigando questões relativas à representatividade (ALMEIDA, 2018), proporção numérica de corpos negros ocupando espaços de poder ou de privilégio – no caso, as narrativas publicitárias –, outras pessoas contribuem para pensar a respeito da subpresença de corpos negros nas representações midiáticas. Por meio desse trabalho, refletiram como isso contribuiu para a construção de um imaginário falseado sobre a cor da população brasileira e o quanto esse fenômeno afetou a construção de uma identidade negra. Tais trabalhos são fundamentais para a compreensão de processos de inclusão social e empoderamento e correspondem a importante caminho para a compreensão da sociedade brasileira e exemplificamos a partir das pesquisas realizadas por Hasenbalg (1982) e D’Adesky (2002). Temos, portanto, indicadores de uma produção acadêmica e bibliográfica sobre a temática que remonta ao início da consolidação dos programas de pós-graduação em Comunicação no país. No entanto, o que se percebe é que o assunto passa a ganhar visibilidade a partir dos anos 2000, sobretudo a partir da segunda década do século XXI, como percebemos no aumento do volume sobre raça nos trabalhos realizados por Corrêa (2006, 2011), Miranda e Martins (2010), Diogo (2014), Leite (2014), Sodré (2015), Leite e Batista (2018). Esse aumento coincide com a amplificação dos debates sobre raça nas redes, assim como com a ampliação do número de estudantes negros no ensino superior. A demanda por essas discussões chega às salas de aula, aos grupos de pesquisa, aos congressos da área e a comunicação passa a pensar, de formas mais complexas, nas representações 215 SEÇÃO 4 de grupos racializados em suas narrativas. Acerca desse processo, destacamos o lançamento de dois livros: Vozes Negras em Comunicação, organizado por Corrêa (2019); e Publicidade Antirracista: Reflexões, caminhos e desafios, organizado por Leite e Batista (2019). As duas obras trazem discussões ricas e atualizadas sobre questões étnico-raciais na comunicação brasileira, adotando uma perspectiva interseccional para compreender o fenômeno, enriquecendo a bibliografia de cursos de graduação e trabalhos de pesquisadores em comunicação brasileiros, a partir dos textos de diversos autores publicados nas obras. Em 2022, um importante espaço para a discussão das temáticas raciais em Comunicação é criado: O Grupo de Pesquisa (GP) Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Aprovado em 2021, o GP se reúne pela primeira vez, em 2022, no congresso da Associação, realizado em João Pessoa (PB). Ainda naquele ano, é aprovado, na Associação Brasileira dos Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós), o GT Comunicação, Raça e Interseccionalidades, para ter seu funcionamento a partir do congresso da associação em 2023, a ser realizado em São Paulo. Os dois grupos são profícuos espaços para a discussão qualificada de temáticas étnico-raciais na Comunicação e podem contribuir para a ampliação do número de trabalhos que têm o assunto como objeto de estudo. Percebe-se, então, uma sensibilização da área da Comunicação Social para as discussões étnico-raciais: livros sobre a temática começam a ser publicados, os primeiros grupos voltamos ao tema surgem nos principais congressos da área, dossiês temáticos com abordagens étnico-raciais começam a ser publicados em revistas da área, como os publicados pelas revistas Esferas (2020), Contemporânea (2021), Fronteiras (2022), Mídia e Cotidiano (2022), demonstrando o crescimento da relevância do tema e a conquista de espaço por ele em espaços qualificados de promoção do conhecimento. Com esse horizonte se delineando, como responder à pergunta norteadora desse trabalho, a ser discutida a seguir, nas considerações finais: quais os desafios da pesquisa em comunicação diante das pautas antirracistas e do enfrentamento à discriminação étnico-racial? 216 Comunicação, etnias e antirracismo Considerações finais: quais os desafios? Os desafios que se colocam para a pesquisa em comunicação diante das pautas antirracistas passam por um trabalho que deveria ser tratado como bandeira pelo campo, considerados os dois pontos dos ODS colocados em destaque no texto. O primeiro deles é a redução das desigualdades. Para reduzir as desigualdades, alguns passos foram dados: a educação para as relações étnico-raciais como temática obrigatória nos currículos contribui para o conhecimento da própria história, o fortalecimento das identidades e para processos de empoderamento e compreensão de um lugar no mundo. Esses passos, somados às oportunidades proporcionadas pelas políticas afirmativas colocam as pessoas racializadas nas universidades e, por meio do acesso ao ensino superior, algumas desigualdades são enfrentadas. O processo é retroalimentado pelos próprios estudantes, que transformam as instituições de ensino, tensionando-as e provocando-as a abordar perspectivas que fujam a olhares colonizados ou que priorizem somente o olhar do dominador. Torna-se importante, nesse contexto, que pesquisadores docentes problematizem os programas de suas disciplinas, que debatam os projetos pedagógicos dos cursos em que estão vinculados e reflitam acerca de seu exercício docente: a legislação sobre Direitos Humanos, Relações Étnico-Raciais e o ensino de cultura africana e afro-brasileira é contemplada? Sobre este ponto, é muito comum perceber que as discussões raciais ainda aparecem, nos currículos dos cursos de graduação da área de Comunicação Social, em disciplinas optativas. Em busca de uma atuação antirracista em comunicação (LEITE, 2022), torna-se urgente que o pensamento sobre seus princípios esteja no conteúdo programático de disciplinas obrigatórias, de formação teórica, de formação técnica e em laboratórios práticos. Nesse cenário, é importante se lembrar da frase de Angela Davis (2016): “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”. Assim, o compromisso com o antirracismo na comunicação é obrigação de todos os discentes da área, até porque, o volume de professores racializados nas instituições ainda é pequeno. Dessa forma, é preciso 217 SEÇÃO 4 enegrecer as bibliografias, enquanto esses corpos ainda são minorias neste lugar. Isso nos leva a refletir acerca de outra insuficiência: graduados ou pós-graduados é preciso pensar em políticas que consolidem a redução de desigualdades ocasionada pelas políticas afirmativas: é preciso pensar em formas de ampliar o número de pessoas negras no mercado de trabalho da comunicação em posições de poder e no corpo docente das universidades. É preciso planejar estratégias que ampliem a presença de pessoas racializadas em congressos acadêmicos – não apenas nos grupos que discutem temáticas étnico-raciais, importante destacar, mas em todos. É preciso pensar em caminhos para que o número de autores negros e indígenas publicados nas revistas com melhores avaliações aumente. É preciso buscar estratégias para que autores negros e indígenas sejam maioria nos dossiês temáticos sobre pautas raciais. É preciso pensar em oportunidades de financiamento que contemplem pesquisadores racializados. Pensar sobre as insuficiências acerca da redução das desigualdades nos leva a pensar, também, no objetivo 17, sobre a disponibilidade de dados de qualidade sobre questões raciais da população. É preciso problematizar, de forma sistemática, os indicadores da pesquisa em comunicação brasileira: quantos docentes negros e indígenas há nos departamentos de Comunicação Social das universidades? Quantos pesquisadores racializados apresentam trabalhos nos congressos da área? Quantos autores negros e indígenas estão publicados nas revistas da área? Quantos autores negros e indígenas aparecem nos grupos destinados às temáticas raciais nos congressos da área? E nos dossiês temáticos? Quantos trabalhos sobre temáticas étnico-raciais estão publicados nas revistas com melhor avaliação da área? As insuficiências, relativas ao objetivo 10 e as perguntas que surgem acerca do objetivo 17 são importantes caminhos para pensarmos os princípios que devem nortear a agenda das pesquisas em comunicação acerca do assunto etnias e antirracismo. Precisamos pautar as discussões étnico-raciais nos cursos, sejam eles de graduação ou de pós-graduação, de forma consistente e responsável, assim como 218 Comunicação, etnias e antirracismo precisamos também nos preocupar com a implantação de ações antirracistas no cotidiano da pesquisa em comunicação, nas universidades, nos congressos e nas revistas. Com tais iniciativas, as estruturas racistas começam a se mover, como pudemos perceber nas ações já implantadas, que já geraram resultados transformadores na educação superior brasileira. Referências ALMEIDA, S. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. BRASIL. Lei n.º 11.096, de 13 de janeiro de 2005. 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A noção de “verdade factual”, desenvolvida por Hannah Arendt, é central para esse raciocínio, bem como a noção habermasiana de que é a comunicação quem gera o espaço social a que chamamos de esfera pública. A conclusão indica que pensar a comunicação é pensar a democracia e o poder. Palavras-chave: democracia; esfera pública; verdade factual; política; comunicação. Estamos engolidos por uma obviedade ofuscante, tão ubíqua, tão onipresente, tão intensa que dela não nos damos conta. Nós olhamos para ela sem vê-la, como se contemplássemos o ar que respiramos. Não nos damos conta de que a democracia se traduz e se estabelece 225 SEÇÃO 5 conforme a comunicação que ela põe em marcha. A democracia só existe na sua comunicação. Logo, discutir a qualidade da democracia é discutir a qualidade da sua comunicação. Isso é tudo – e é só isso. Estamos lidando aqui com uma relação autoevidente, exata como um cristal, que nos determina inapelavelmente e nos escapa inexplicavelmente. Se pensarmos agora não em democracia de forma vaga, mas na esfera pública democrática, com seus contornos mais estritos, isto é, se pensarmos na esfera pública de gênese liberal que se incrementou pela incorporação dos direitos humanos e sociais em constante expansão, veremos que ela mesma, a esfera pública, nada mais é que um constructo produzido pelo exercício da comunicação – ou, ainda, em outros termos, pela ação comunicativa. Jürgen Habermas ensina que a comunicação, longe de ser um dos recursos possíveis da esfera pública, longe de ser um arcabouço ferramental para dar curso à interlocução entre os agentes, é o fator gerador da esfera pública, único e primordial. Em seus escritos, o autor nos leva a entender que as práticas comunicativas não são apenas fatores que integram, mas que, muito acima disso, geram a esfera pública. Em termos expressos, o filósofo é claríssimo. Diz ele que a esfera pública “não se refere nem às funções nem ao conteúdo da comunicação de todo dia, mas ao espaço social gerado pela comunicação”.1 Em síntese, uma esfera pública em crise é uma esfera pública em que a comunicação (a força mesma que a engendra) está em crise. Quando a comunicação não flui com eficiência e com sua capacidade inerente de consolidar sentidos em âmbitos intersubjetivos, a esfera pública entra em turbulência: tende a deixar de ser pública, de ser inclusiva, de ser regida por parâmetros públicos. Se agora deixarmos de falar em esfera pública e voltarmos a falar em democracia – constataremos a mesma coisa: quando a comunicação não vai bem, a democracia não vai bem. A crise da democracia é a crise da sua comunicação. Óbvio e simples assim. Antes de prosseguir, convém esclarecer que o uso que se faz aqui da palavra comunicação não difere, em sentido amplo, do senso 1 HABERMAS, 1992. (tradução livre). 226 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política comum acadêmico. Pensa-se a comunicação em sua dimensão social, na grande malha de fluxos e circuitos de signos e sentidos que interconectam sujeitos em espaços sociais que eles reconhecem como sendo deles, por meio da língua comum (ou línguas comuns, no plural) e demais sistemas de representação que constituam seus repertórios coletivos. Essa comunicação institui múltiplas esferas públicas simultâneas, umas de grande envergadura, outras exíguas, que se interpenetram e se confundem, mediadas por tecnologias diversas, na totalidade do telespaço público.2 Isto posto, quando é que podemos dizer que a comunicação nos espaços democráticos não vai bem? São muitas as situações negativas possíveis, por certo. Uma delas é a que ora se apresenta em diversas nações que tradicionalmente são consideradas democráticas: a difusão das fake news ou da desinformação. Em função de uma série de contingências – cada uma delas complexa a seu modo, combinadas entre si em teias ainda mais complexas cujo conjunto se faz ainda mais complexo –, nós temos um contexto em que a comunicação que deveria propiciar e impulsionar o fluxo de informações confiáveis e credíveis público se degrada em seu oposto: a desinformação. O que se verifica, nesse caso, é uma crise grave da comunicação (especialmente no âmbito mais reduzido da esfera pública política). Ela, em lugar de informar, passa a desinformar; em lugar de permitir a interação dialógica entre os sujeitos acerca de seus problemas e suas soluções de concernência comum, com base nos requisitos da razão, impulsiona e promove a corrosão dos fundamentos epistêmicos resultando no desconhecimento dos fatos. Na crise presente – e aqui chegamos ao núcleo do impasse lógico –, o que vemos é que as engrenagens da comunicação social sabotam sistematicamente o acesso da sociedade à verdade factual, nos termos de Hannah Arendt. Numa breve recapitulação, valeria lembrar que, para a filósofa, a verdade factual pode ser entendida como o relato veraz e verificável sobre o que se passa ou o que se passou. Quando somos capazes de, 2 BUCCI, E. 2021. 227 SEÇÃO 5 coletivamente, ter uma percepção compartilhada sobre o estado do clima, como quando sabemos dizer de modo aproblemático se o tempo está chuvoso ou se o dia está ensolarado, temos um acesso comum a um nível rudimentar de verdade factual. Se chove, e todos se põem de acordo com a percepção enunciada de que chove, essa constatação adquire o estatuto de um fato incontestável. A essa verdade factual, nós temos formas tacitamente legitimadas e aceitas de nos referir por meio da linguagem que nos liga uns aos outros. Para começo de conversa, o conceito de verdade factual é tão elementar quanto isso. Hannah Arendt sustenta que qualquer pessoa, mesmo que iletrada, tem acesso à verdade factual: Podemos permitir-nos negligenciar a questão de saber o que é a verdade, contentando-nos em tomar a palavra no sentido em que os homens comumente a entendem.3 Por certo, essa modalidade de verificação objetiva da realidade não se resume às questões climáticas. Os fatos da História também entram aqui. Um exemplo atual pode ser buscado na Guerra da Ucrânia. Existem leituras múltiplas e igualmente válidas – ainda que, por vezes, antagônicas – do conflito, mas um fato é pacífico: foi a Rússia que marchou com suas tropas sobre o território ucraniano, não o contrário; foi a Rússia que invadiu a Ucrânia, e não a Ucrânia que invadiu a Rússia. Quanto a isso, tem-se um fato insofismável. Do mesmo modo, podemos hoje afirmar com segurança que, durante a ditadura militar, no Brasil, dissidentes políticos foram sequestrados (aprisionados sem mandado legal) por forças oficiais da repressão política. Podemos também afirmar que os opositores do regime foram encarcerados em presídios estatais ou em locais clandestinos controlados por agentes das forças de segurança do regime, onde sofreram torturas e foram assassinados. Podemos ainda afirmar 3 Idem. Ibidem. 228 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política que os órgãos de repressão ocultaram cadáveres, que nunca mais seriam encontrados. Por mais constrangedores que sejam esses acontecimentos, eles hoje se impõem como fatos igualmente inegáveis e figuram na categoria de verdade factual. Há mais o que dizer sobre o conceito de verdade factual. Diferentemente do que se dá com outras formas de verdade, como aquelas da Matemática (dentre as quais podemos citar a assertiva de que “dois mais dois são quatro”), que não podem ser desmontadas por manipulações retóricas ou por artifícios de sensacionalismo (“dois mais dois” continuarão sendo “quatro” mesmo que se mandem prender e matar os matemáticos), a verdade factual tem fragilidades extremas. É uma verdade, por assim dizer, vulnerável. Nos relatos históricos, especialmente, podemos nos dar conta disso com facilidade. Registros de um acontecimento passado podem ser eliminados, varridos dos arquivos e dos livros. Testemunhas podem ser silenciadas. Desse modo, um tirano pode dispor de meios para apagar ou empalidecer os fatos. Vladimir Putin – podemos lembrá-lo para fins exclusivamente ilustrativos – vem se empenhando para impedir que se chame a Guerra da Ucrânia de “guerra”. Ele exige que as autoridades russas se refiram à invasão armada do país vizinho como “operação especial”.4 Aliás, por ironia ou coincidência, foi também por iniciativa do Kremlin, há coisa de quase um século, que a verdade factual passou a ser sistematicamente vilipendiada nos livros sobre a Revolução Russa. A máquina totalitária comandada por Joseph Stalin apagava da memória soviética os nomes que não convinham. A própria Hannah Arendt anotou essa falsificação como uma prova de que a “verdade factual” é frágil: E se pensamos agora em verdades de facto [verdades factuais] – em verdades tão modestas como o papel, durante a revolução russa, de um homem de nome Trotsky que não surge em nenhum dos 4 UOL. Putin reaparece e volta a chamar guerra com Ucrânia de “operação especial”. 27 fev 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/02/27/putin-reaparece-e-volta-a-chamar-guerra-com-ucrania-de-operacao-especial.htm. Acesso em 20 out 2022. 229 SEÇÃO 5 livros da história da revolução soviética – vemos imediatamente como elas são mais vulneráveis que todas as espécies de verdades racionais tomadas no seu conjunto.5 Essa vulnerabilidade traz consequências particularmente críticas para o tema do presente artigo, uma vez que, como a filósofa cuida de observar, é ela, a verdade de fato, que vem vertebrar a política. Na fragilidade da verdade factual repousa também a fragilidade da política e, por extensão, da própria democracia. A substância daquilo que é debatido na política – e do debate político – provém da fonte exclusiva da verdade factual. A política na modernidade democrática se ocupa precisamente de debater racionalmente os fatos com vistas à procura de soluções legítimas que beneficiem às maiorias sem ferir os direitos das minorias ou as garantias individuais. O método pode parecer rebuscado e talvez soe pedante, mas a boa política não conhece outro preceito. Vai daí que se é verdade que a qualidade da comunicação se confunde com a qualidade da democracia, e se é verdade que o livre fluxo da informação veraz e confiável, em padrões eficientes de comunicação, constitui a pauta da política, também há de ser verdadeiro que a verdade factual conflui para injetar densidade a nada menos que a própria política. Ou, nas palavras da filósofa, “os fatos e os acontecimentos constituem a própria textura do domínio político”.6 Ou, ainda, nas palavras da mesma autora: a verdade de facto [verdade factual] fornece informações ao pensamento político assim como a verdade racional fornece as suas à especulação filosófica. 7 5 Idem. 6 ARENDT, 1995. Eu mesmo me ocupo do assunto em Existe democracia sem verdade factual?, livro publicado, em 2019, pela Editora Estação das Letras e Cores. 7 ARENDT, 1995. Ver ainda BUCCI, 2019. 230 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política Chegamos com isso, então, à comprovação, por outra via, da ideia motriz deste artigo: a comunicação, fazendo fluir de forma consequente e racional as informações dignas de crédito – informações verificáveis pelos métodos de investigação empírica disponíveis no debate público –, pode ser entendida como o fator que gera o espaço social a que damos o nome de esfera pública, o que significa, em um plano sobreposto a este, que a comunicação de qualidade assegura a qualidade da democracia. Em síntese, o domínio político na democracia – e, na modernidade, como ensina Renato Janine Ribeiro, a política, só se consuma quando é política democrática8 – há de se realizar como sendo aquela cuja textura provém do conhecimento coletivo, comum, da verdade factual. A partir disso, ganha mais pertinência a compreensão do estrago produzido pela desinformação – uma indústria poderosa, clandestina, tecnologicamente sofisticada e financiada com recursos de monta – na comunicação da democracia. Mas em que consiste, mais propriamente, o fenômeno a que designamos genericamente de desinformação? A pergunta merece considerações menos ligeiras.9 Recorramos a alguns acontecimentos recentes para divisar em mais detalhes o quadro que tanto nos ameaça. No início de setembro de 2016, a revista semanal britânica The Economist trouxe uma chamada de capa que retratava de modo cortante o mal da desinformação: “A arte da mentira: a política da pós-verdade na era das redes sociais”.10 O assunto era a campanha do então candidato à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, Donald Trump, e a propaganda do Brexit, que levou a população do Reino Unido a se separar da União Europeia, ambas transcorridas naquele mesmo ano de 2016. Tanto Trump quanto o Brexit se valeram de fraudes e manipulações industrializadas. Aos olhos do semanário The Economist, estaria em curso uma hipertrofia do uso da mentira na política. 8 RIBEIRO, 2017. A proposição de que a política, hoje, “só pode ser democrática”, e de que “não há boa política sem a promoção do bem comum” aparece logo na introdução da obra. 9 A seguir, serão desenvolvidas algumas proposições que constam da Conferência de Abertura do 45.º Congresso da Intercom, proferida pelo autor em João Pessoa (PB), em 7 de setembro de 2022. 10 Art of the lie: Post truth politics in the age of social media. The Economist, 10 set. 2016. 231 SEÇÃO 5 Foi mais ou menos naquela época, em meados da segunda década do século XXI, que a expressão fake news ganhou popularidade mundial, em todas as línguas. Interessante notar que, desde então, muita gente começou a tomar fake news como um sinônimo corrente da palavra “mentira”, o que, além de indevido, gerou uma confusão conceitual considerável. Indevido porque a mentira sempre existiu na linguagem, ao passo que as fake news apenas ganharam existência recentemente, como uma forma historicamente determinada de mentira – e, mais especialmente, de mentira na política. As fake news não apenas não existem desde sempre como, acima disso, só podem existir a partir da era em que o termo “news” (que quer dizer “notícia jornalística”) já estava assimilado no repertório das pessoas comuns. Portanto, não pode haver fake news antes de haver as news, mais ou menos como para haver uma nota falsa de dólar é preciso que, antes, as pessoas tenham aprendido a confiar no valor de uma cédula autêntica dessa moeda. Em resumo, sendo um tipo historicamente determinado de mentira, as fake news são uma falsificação de forma (a forma notícia) e somente assim conseguem fraudar também o conteúdo. Não obstante, o emprego da expressão como sinônimo genérico de mentira se alastrou, e a confusão conceitual não demorou a se fazer sentir. Recordemos que, ainda como presidente, Donald Trump chamava absurdamente de fake news o noticiário do The New York Times, enquanto os jornalistas profissionais lançavam mão das mesmas palavras para designar as mentiras que o próprio Trump difundia, como a de que o Papa Francisco o apoiava. A mesma expressão designava objetos antípodas. Nós sabíamos que jornais com endereço certo e sabido podem até veicular falsidades, mas não produzem fake news (pode haver uma notícia inverídica apurada, editada e veiculada por uma redação verdadeira, mas essa notícia inverídica não é fake news, pois não é uma falsificação da “forma notícia”), mas Trump, com seu poder midiático de celebridade blonde, agia para obscurecer esse fato e confundir a opinião pública. Foi então que, para superar impasse conceitual que se abriu, a pesquisadora e jornalista Claire Wardle, criadora do projeto First 232 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política Draft, passou a dar preferência ao substantivo desinformação.11 Ela deixou de falar em fake news; falava apenas em desinformação. Com Claire Wardle, aprendemos que a desinformação traz em si o propósito consciente de lesar direitos das pessoas para obter vantagens indevidas e se constitui na propagação massiva, com o emprego de tecnologias digitais, alcançando audiências gigantescas. O conceito supõe, assim, o dolo (ou má-fé) e a escala massiva (virtualmente planetária). Munidas desse conceito, pesquisas empíricas e campanhas educativas se viabilizaram. O combate à desinformação ganhou mais consistência e, como se diz, organicidade. Mas nem as pesquisas nem as campanhas foram suficientes para remover do caminho da democracia o monstro da desinformação. O mal-estar da comunicação, dando mais lugar à mistificação em detrimento da verdade factual, segue infectando a democracia, que adoece a olhos vistos. Onde a informação e sua comunicação teciam a esfera pública, a desinformação incide para desagregá-la. Onde a primeira pavimentava o caminho de acesso à verdade factual, a segunda conduz à ignorância e ao negacionismo. Se a informação invocava a razão no sujeito, a desinformação a desativa. E tudo isso a uma velocidade estonteante. Medições empíricas mostram que os conteúdos desinformativos têm mais alcance e mais rapidez de propagação do que o jornalismo.12 A esfera pública se esfacela na velocidade da luz, o que 11 A pesquisadora Claire Wardle, líder e fundadora do projeto First Draft, nos ajuda a entender esse termo e sua prática. Ela sintetizou sete tipos e com eles classificou os “conteúdos” que sabotam o conhecimento dos fatos. No centro de gravidade dessas sete categorias, Wardle desenhou o conceito de disinformation (desinformação), que envolve intenção de causar danos e lesar direitos (econômicos, políticos ou pessoais). Ao lado disso, ela chama de misinformation uma forma branda de desinformação, que não envolve necessariamente o propósito doloso. Uma terceira modalidade é a chamada malinformation, que denomina as ações que, lançando mão de informações genuínas, prepara os relatos propositadamente para gerar mal-entendidos e obter vantagens indevidas, causando prejuízos a outras pessoas. O centro de gravidade de todas essas práticas está a disinformation. Em seguida, a pesquisadora estabelece os sete tipos de desinformação. Os sete tipos são: sátira ou paródia (que não carregam a finalidade de desinformar, mas podem gerar esse efeito em certos públicos), falsa conexão, conteúdo enganoso, falso contexto, conteúdo impostor, manipulação de contexto (exemplo de malinformation) e, por fim, conteúdo fabricado. WARDLE, Claire. Understanding Information Disorder. First Draft, Sept. 22, 2020. Disponível em: https://firstdraftnews. org/long-form-article/understanding-information-disorder/. Ver também PIMENTA, Angela. Claire Wardle: Observatório da Imprensa, 14 nov. 2017. https://www.observatoriodaimprensa.com.br/credibilidade/claire-wardle-combater-desinformacao-e-como-varrer-as-ruas/ Acesso em: 19 jul. 2022. 12 Os primeiros levantamentos bibliográficos da pesquisa encontraram estudos sobre a questão produzidos por pesquisadores sul-coreanos, taiwaneses e de Cingapura (Meeyoung Cha, Wei Gao, Cheng-Te Li, 2020), do Paquistão (Qayyum, Qadir, Janjua, Sher, 2019), bem como brasileiros (Meneses Silva et al., 2020). 233 SEÇÃO 5 sinaliza que a política se desnatura e que a democracia vai se tornando irreconhecível, até o ponto de não ser mais o que é. Com isso, as distinções tácitas entre o estatuto do relato fatual e o estatuto da retórica opinativa se desfazem, abrindo caminho para que o tecido político dê lugar ao furor do fanatismo. A desinformação é a textura do fanatismo. Não surpreende que algumas das principais democracias do mundo sofram abalos sucessivos,13 em mais uma evidência de que a crise da comunicação se vincula – seja como causa, seja como efeito – à crise da democracia. Assim como a comunicação se degenera em seu oposto – como já foi mencionado no início deste artigo –, os processos eleitorais democráticos em diversos países democráticos empossam governantes ou bancadas parlamentares que, uma vez no cargo, investem suas energias em destroçar os processos eleitorais pelos quais foram escolhidos. Como se deu com a comunicação, a democracia cede terreno para a sua própria negação. Estamos assistindo a uma autofagia política. O comportamento das forças autocráticas – a extrema-direita antidemocrática, em diversos países – parece replicar procedimentos fascistas. Não se trata de uma repetição do chamado fascismo histórico, conforme o modelo que triunfou na Itália dos anos 1920 e 1930, mas de algo diferido, alterado, mais ou menos na linha daquilo que Umberto Eco denominou de “Fascismo Eterno”, ou “Ur-Fascismo”, que tem, entre suas características, o ódio intransigente à cultura, à universidade e à imprensa. A cultura é suspeita [para o Ur-Fascismo] na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “porcos intelectuais”, 13 Institutos como V-Dem, Freedom House e The Economist – Intelligence Unit publicam anualmente pesquisas que aferem o comportamento dos indicadores da democracia e da liberdade de expressão. O panorama mundial vem de declínio em declínio. O Brasil figura entre os piores desempenhos. A ONG Repórteres Sem Fronteiras, bem como o Artigo 19, avaliando os riscos para a imprensa e o patamar da liberdade de expressão, mostram a mesma paisagem sombria. 234 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política “cabeças ocas”, “esnobes radicais”, “as universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. 14 Não é por acidente que o poder aja para fechar cursos de comunicação.15 Assola-nos a tão falada “guerra cultural”16, que se projeta a partir das redes sociais. Em matéria de costurar o elo direto entre o líder autocrata e as massas, os meios digitais do século XXI são o sonho de consumo do bonapartismo do século XIX e dos fascistas e nazistas do século XX. Assim como acontecia sob o fascismo e o nazismo do século XX, agora, na era digital, e em uma escala amplificada, as massas colhem sua verdade na propaganda – jamais nos fatos. A verdade é uma verdade performática, não uma verdade factual. A comunicação se deixa capturar pelo fanatismo, banindo a razão. O que vemos hoje é, de modo amplificado e aprofundado, o que Sigmund Freud diagnosticou no livro Psicologia das massas e análise do eu, de 1921. As identificações libidinais que as massas mantêm com seus ídolos se caracterizam pelo sentimento mais ou menos próximo ao amor, sem a mediação do pensamento. Nas palavras de Freud, desejam “ser dominadas com força irrestrita”, pois o que as move é uma “ânsia extrema de autoridade e sede de submissão”.17 Arde nelas o desejo de se entregar a senhores violentos e implacáveis. 14 ECO, Umberto. 2019. p. 47. O prefixo alemão “Ur” significa “primitivo”, “primordial” ou, simplesmente, “original”. Na leitura de Umberto Eco, eu me valho da pesquisa da jornalista Lana Canepa, minha orientanda de mestrado. 15 Nos dias em que termino de redigir esta conferência, no final de julho de 2022, recebo a notícia de que a Universidade do Vale do Rio Dos Sinos (Unisinos) acaba de fechar o seu Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, um dos mais bem avaliados do Brasil, com nota 6 na Capes. A Compós publicou uma nota de protesto, como também a SBPC. De nada adiantou. Ao justificar a medida, a Unisinos deu a entender que essa área da pós-graduação seria deficitária. O que aconteceu por lá foi um desmoronamento: doze, de um total de 26 programas de pós da instituição, deixaram de existir. Afirmo que esse fechamento integra a estratégia da desinformação em curso. 16 Veja-se CASTRO ROCHA, 2021. 17 FREUD, 2011. O trecho citado se encontra ao final do Capítulo X: “A massa e a horda primeva”. 235 SEÇÃO 5 Em 1951, Theodor Adorno, que também não estava preocupado com o fascismo de 1920, mas com a presença de ideais fascistas nos Estados Unidos após a Segunda Guerra, advertiu: Como seria impossível para o fascismo ganhar as massas por meio de argumentos racionais, sua propaganda deve necessariamente ser defletida do pensamento discursivo; deve ser orientada psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos.18 A frase descreve com precisão a quase totalidade da comunicação da era digital dos nossos dias, quando já se passaram 70 anos do texto de Adorno. “Argumentos racionais” entraram em baixa, enquanto os “processos irracionais, inconscientes e regressivos” seguem em alta. O entretenimento melodramático, mesclado com a violência, fabrica a desinformação e tende ao fascismo. As bases da política e da democracia vão se esmigalhando. Mais do que nunca, para compreender, então, a crise da democracia, temos que mergulhar na crise da comunicação. Ela não se constitui como atividade secundária em relação aos domínios do Estado e da Economia. Ao contrário do senso comum acadêmico, a comunicação não cumpre um papel acessório, qual seja, o de estabelecer trocas de mensagens entre polos que lhe são exteriores. O que se dá é justamente o oposto: sendo linguagem, a comunicação constitui os sujeitos e os polos que interliga, do mesmíssimo modo que a comunicação gera o espaço social a que chamamos esfera pública. A comunicação não é somente a espuma vistosa de uma tal “superestrutura”, mas ocupa o centro de gravidade das relações de poder, especialmente o poder autocrático, e o centro do modo de produção do Imaginário. Em poucas palavras, o centro do capitalismo mesmo. 18 ADORNO, T.W. 2006. 236 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política Senão, vejamos. Quais as empresas mais valiosas do planeta? A Apple há alguns meses se tornou a primeira companhia da história a alcançar o preço de 3 trilhões de dólares19, algo equivalente ao dobro do PIB brasileiro. Em julho de 2021, há pouco mais de um ano, as cinco maiores big techs (Apple, Google ou Alphabet, Amazon, Microsoft e Facebook, hoje rebatizada como Meta) bateram, juntas, o preço de 9,3 trilhões de dólares.20 Aí está o centro do capitalismo, nos conglomerados monopolistas globais que comandam a fabricação do Imaginário. Não é a economia, é a comunicação. Ou, melhor dizendo, a economia que conta hoje é a comunicação. E como ela vai mal, quando a examinamos pelo prisma dos Direitos Humanos e dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, a própria democracia, necessariamente, vai mal também. 19 APPLE becomes first U.S. company to reach $3 trillion market cap. CNBC, 3 jan. 2022. Disponível em: https://www.cnbc.com/2022/01/03/apple-becomes-first-us-company-to-reach-3trillion-market-cap.html. Acesso em: 9 jun. 2022. 20 SALMON, Felix. 2021. 237 SEÇÃO 5 Referências ADORNO, T. W. A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista (original de 1951.). Tradução de Gustavo Pedroso. In: Margem Esquerda. #7. São Paulo: Boitempo, 2006. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/25/adorno-a-psicanalise-da-adesao-ao-fascismo/. Acesso em: 30 jul. 2022. ARENDT, Hannah. Verdade e política. Tradução de Manuel Alberto. In: Entre o passado e o futuro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1995. Disponível em: https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2014/11/Verdade-e-pol%C3%ADtica.pdf. Acesso em: 28 jun. 2022. BUCCI, E. Existe democracia sem verdade factual? Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2019. BUCCI, E. A superindústria do imaginário. Belo Horizonte: Autêntica. 2021. p. 37 e seguintes. CASTRO ROCHA, João Cezar de. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político. Rio de Janeiro: Caminhos Ed. e Livr., 2021. ECO, Umberto. O fascismo eterno. 2. ed. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2019. p. 47. FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. E-book Kindle. HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Tradução livre. Cambridge: MIT Press, 1992. p. 360. PIMENTA, Angela. Claire Wardle: combater a desinformação é como varrer as ruas. Observatório da Imprensa, 14 nov. 2017. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/credibilidade/claire-wardle-combater-desinformacao-e-como-varrer-as-ruas/. Acesso em: 19 jul. 2022. RIBEIRO, Renato Janine. A boa política: ensaios sobre a democracia na era da internet. São Paulo: Cia das Letras, 2017. SALMON, Felix. Giant earnings growth for the world’s largest companies. Axios, 29 jul. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3AVNDeF. Acesso em: 30 set. 2021. WARDLE, Claire. Understanding Information Disorder. First Draft, 22 set. 2020. Disponível em: https://firstdraftnews.org/long-form-article/understanding-information-disorder/. Acesso em: 19 jul. 2022. 238 Comunicação e diretos humanos: que cidadania queremos? Cicilia M. Krohling Peruzzo Introdução Por que falar de direitos humanos em pleno século XXI? Afinal, parece haver consenso de que o respeito aos direitos fundamentais protetivos da condição humana é algo já conquistado, naturalizado e com amparo legal. Contudo, a visão em favor dos direitos pode ser até majoritária, mas, no Brasil atual, mostra-se não consensual. Há uma profusão de negação de direitos já assegurados pela Constituição do país, como também a propagação deliberada de pós-verdades que negam avanços sociopolíticos, fatos históricos e até comprovações científicas, por exemplo, propagando mentiras que afrontam leis e assuntos de interesse público, como a saúde pública, um direito constitucional e humano. São posturas preconceituosas e intolerantes de um segmento de indivíduos contrários aos direitos igualitários para todas as pessoas, e que abalam as estruturas da alteridade e da paz social. Desse modo, o tema dos direitos humanos, uma conquista antiga, mas ainda não plenamente respeitada, não perde a atualidade, tanto pela necessidade de sua afirmação quanto porque ainda há direitos a serem conquistados. Nesse embate se mesclam incontáveis 239 SEÇÃO 5 movimentos sociais e atores os mais diversos que lutam diuturnamente pela preservação das conquistas e reivindicam novos direitos. A negação de direitos da pessoa testemunha uma crise humanitária, que em “nossa época tem, sem dúvida, sua origem na experiência da ineficácia humana que imputa a abundância de nossos meios de atuar e a extensão de nossas ações” [...]. A própria consciência de si se desintegra (LEVINAS, ([1972] 2013, p. 84-85). Num cenário, por um lado conflitivo e, por outro, repleto de sinais de mudança e reivindicações pelo reconhecimento de “novos” direitos, este texto ensaístico, baseado em pesquisa bibliográfica, objetiva discutir perspectivas de transformação na compreensão dos direitos, em especial o direito à comunicação, além de prospectar ideias em torno da decolonialidade e de um pós-desenvolvimento como horizonte mais favorável de respeito aos direitos. Comunicar sobre os direitos humanos e por eles A concepção de direitos humanos na atualidade decorre de uma construção histórica processada ao longo do tempo e em diferentes culturas, cujos contextos opressivos da condição humana do sujeito também geraram formas de resistência e lutas por mudança de valores e práticas sociais (PINSKY; BASSANEZI PINSKY, 2003). Aos poucos foram agregadas novas visões de direitos (VIEIRA, 2000, BOBBIO, 1992), percebidos como tal e conquistados “como fundamentais à condição humana e a convivência coletiva. Esses direitos estiveram inseridos, de alguma forma, nas diversas sociedades, num processo dialético de construção, desconstrução e reconstrução” (KROHLING, 2009, p. 45). Ao serem incorporados nos códigos legais, são reconhecidos como direitos fundamentais e incorporam concepções de direitos humanos que são aqueles inerentes à própria condição de pessoa, do Ser. A Constituição Brasileira de 1998, estabelece como direitos e garantias fundamentais os direitos relacionados à existência (artigo 5.º); os direitos sociais (à educação, saúde, alimentação, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social e assistências) 240 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política (artigo 6.º); direitos de nacionalidade (artigo 12.º); direitos políticos (Art.14); e os direitos relacionados à organização e a participação em partidos políticos (artigo 17.º). Especialmente o seu artigo 5.º é explícito ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (CONSTITUIÇÃO..., 2016). Nesses termos, o direito à vida pressupõe existir com dignidade, ter liberdade de ir e vir e de opinião nos termos constitucionais, ter direito a não discriminação, à proteção física e jurídica, e à propriedade em sua função social. Nas palavras de PINSKY (2003, p. 9), ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é em resumo ter direitos civis. É também participar dos destinos da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação dos indivíduos na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos e sociais. A convivência civilizatória requer respeito aos princípios constitucionais como conquistas da cidadania. Mas, tomando por base o Brasil que traz violações históricas de direitos das mulheres, negros e indígenas, nos últimos anos, recrudescem ensaios de negação da igualdade, apesar de garantida em leis, e da responsabilidade cívica perante o outro e ao interesse público, que se manifestam na intolerância, na discriminação e na dominação. A dominação expressa-se em atos visando destituir conquistas cidadãs históricas e a perpetuar as condições geradoras de desigualdades e das discriminações. Por exemplo, na edição de algumas políticas 241 SEÇÃO 5 públicas, na formulação de leis e decretos-leis que favorecem certos segmentos do capital em detrimento do interesse público, do meio ambiente, da paz social, dos direitos dos povos indígenas, como também da restrição da participação popular na formulação de diretrizes para as políticas e decisões do governo. A intolerância e a discriminação tornam-se transparentes quando se afronta o respeito à diversidade e à dignidade como se vê no dia a dia das relações sociais e de instituições de Estado perante a sociedade. Afinal, existem direitos humanos comuns a todos os seres, independente de classe social, nível de renda, cor da pele, procedência geográfica, local de nascimento, etnia, gênero, cultura, sexualidade ou religião, e que asseguram a dignidade humana. De fato, os direitos humanos são inerentes à pessoa – precedem os direitos legais, de cidadania, ou seja, aqueles reconhecidos pelo Estado. São universais – não dependem de nacionalidades e ultrapassam fronteiras de uma nação, como o direito à vida, à dignidade e a ter os direitos respeitados. Os direitos humanos são históricos. Avançam na medida em que são reconhecidos como direitos pela sociedade e pelo Estado. Mas, os direitos da pessoa, inerentes à condição humana, sempre estão à frente, pois irrompem como reivindicação de necessidades não satisfeitas (DUSSEL, 2006), em geral postulados por movimentos sociais, portanto, precedem os direitos de cidadania, aqueles juridicamente reconhecidos. São direitos sentidos e reclamados pela sociedade civil e passam a mover o status da cidadania em determinado contexto histórico. Por exemplo, o direito das mulheres em relação aos dos homens1, os direitos da pessoa com deficiência física, cognitiva ou sensorial de ser conhecida como ser humano e com direito ao convívio social, portanto, não rejeitada, abandonada ou isolada em sanatórios ou em escolas especiais, são direitos da pessoa antes de serem legitimados pelo Estado como direito de cidadania. Afinal, existem preceitos, normas, declarações e leis – universais e nacionais 1 O voto feminino foi permitido só em 1932 no Brasil. A disparidade salarial entre mulheres e homens persiste. Pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas (2016), do Instituto Ethos e do BID, revelou que as mulheres recebem 70% da massa salarial obtida pelos homens. 242 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política – que asseguram direitos às pessoas e a segmentos humanos, ou seja, são reconhecidos social e legalmente. Portanto, caracterizam-se como direitos de cidadania e são inalienáveis. A legitimação dos direitos – tanto os humanos como os de cidadania – decorre de lutas sociais, que tem entre seus expoentes os movimentos sociais (ecológicos, de mulheres, negros, indígenas, gays, pela terra, saúde, educação, do mundo do trabalho etc.), pois só a pressão social organizada faz avançar as visões do que se entende por direito, por parte dos legisladores e do Estado, e na visão das próprias pessoas, às vezes imbuídas de preconceitos e visões marcadas pelo racismo e heteropatriarcalismo, pois reproduzem concepções colonialistas do poder, do saber e ser. No conjunto da sociedade brasileira, persistem situações concretas de preconceito, discriminação e violação do respeito aos direitos à equidade e às diferenças de diversas matrizes, especialmente de mulheres, negros2, indígenas, pessoas LGBTQIA+3, pobres e nordestinos, apesar da existência de aparatos legais que tipificam o preconceito, a difamação, a incitação à violência, a misoginia e a discriminação como crimes previstos pelo Código Civil, Código Penal e pela Constituição do Brasil4. Desse modo, discutir os direitos humanos e, no contexto deles, o papel dos meios de comunicação e da própria comunicação como um direito humano, está na ordem do dia. Há uma corrosão de valores no interior das culturas que urge ser questionada. Há uma crise de humanismo (LEVINAS, ([1972] 2013), quando a consciência de si se desintegra. 2 Segundo o Atlas da Violência 2021, “em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior àquela de uma pessoa não negra”(CERQUEIRA, 2021, p. 49). 3 Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais, queer, assexuados e outros. 4 Ver artigo 5.º, inciso XLVII, artigo 3.º, inciso IV e artigo 5.º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil. E ainda o artigo 186 do Código Civil e o artigo 286 do Código Penal, além do artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do artigo 1.º, tópico 1, da Convenção Americana dos Direitos Humanos, entre outros tratados. 243 SEÇÃO 5 Como já disse Paulo Freire (1996, p. 19-20, grifo da autora), ainda nos anos 1990 e soa atual, faz parte do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam negros, dos que inferiorizam as mulheres [...]. Pensar e fazer errado [...] não tem nada que ver com o bom senso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez. Portanto, as práticas crescentes de racismo, de feminicídio e de comportamentos homofóbicos e misóginos afrontam a substantividade humana, ao mesmo tempo que são criminosas, ridículas e imorais. Os direitos conquistados não têm volta, pelo contrário tendem a crescer, queiram ou não queiram as forças simpatizantes ao extremismo e fundamentalismo de direita, de cunho colonialista e patriarcal. Contudo, cabe dizer que negar o preconceito e a discriminação não quer dizer apenas instituir um clima cultural e político de tolerância, mas de reconhecimento do outro em sua dignidade e, assim, avançar na concepção do respeito ao outro, em suas diferenças, como princípio, meio e meta a ser alcançada em sua plenitude. Ou seja, não se trata apenas de tolerar o outro, em sua diferença, por exemplo, de cor da pele, de gênero ou condição social, mas de vê-lo como Ser igual em sua humanidade. O princípio da equidade é pedra angular da cidadania e da democracia, e pode ser tomado em todas as esferas da vida em sociedade. Portanto, desde o convívio familiar e social, no tratamento e nas oportunidades no mundo do trabalho e o direito à equidade de acesso ao patrimônio socialmente construído, ou seja, todos aqueles do 244 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política universo dos direitos de cidadania – civis, políticos, sociais, bioéticos, culturais e comunicacionais, individuais e coletivos. Os meios de comunicação fazem parte do patrimônio social e o acesso igualitário aos mesmos faz parte dos direitos de cidadania. No universo dos meios de comunicação, apesar de se verificar avanços no respeito à diversidade – por exemplo, no papel de pessoas não binárias em telenovelas e no jornalismo de referência –, ainda persistem absurdos, principalmente em programas jornalísticos “policialescos” na televisão e no rádio. É comum o tratamento discriminatório, preconceituoso e pejorativo sobre movimentos sociais e determinados segmentos, em especial, os pobres, negros, mulheres e gays. Uma pesquisa sobre “Violações dos Direitos Humanos na Mídia Brasileira” (2015), mostra a persistência das violações de direitos humanos sobre os quais há leis, decretos, cujo teor os reconhece como direito de cidadania, o que infringe a legislação brasileira e multilateral em vigor. A necessidade de mudança nas estruturas geradoras e mantenedoras das desigualdades e da discriminação no conjunto da sociedade, vem acompanhada da premência da aplicação das leis para assegurar o respeito aos direitos legalmente assegurados e da mudança de mentalidades culturais discriminatórias. Os meios de comunicação e as profissões do campo da Comunicação têm especial responsabilidade na disseminação de conteúdos não discriminatórios pela mídia, e no cultivo da informação fidedigna e respeitosa sobre todos os seguimentos sociais. Já se sabe que atuam eficazmente formando mentalidades adeptas ao consumismo e ao conservadorismo, então podem também ajudar a cultivar valores favoráveis à dignidade humana. Para tanto, urge democratizar os meios e a comunicação de modo a comportar a diversidade de vozes de diferentes atores sociais. Refere-se à diversificação dos meios de comunicação em termos de número e de feições dos emissores, com espaço à comunicação pública, não só de governo, mas aquela desenvolvida pelas organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, ou seja, os meios comunitários e alternativos. Os diversos atores sociais cívicos, como os movimentos sociais, coletivos populares, conselhos, instituições educacionais e 245 SEÇÃO 5 demais organizações civis de interesse público, têm grande potencial de contribuir mais efetivamente na disseminação de visões críticas da realidade e para dar visibilidade às demandas por direitos civis, políticos, econômicos, sociais e comunicacionais dos setores das classes subalternizadas. A mediação entre esses tipos de atores, a sociedade e o Estado, é perpassada pela comunicação, o que evidencia sua importância para a efetivação dos direitos. Comunicar sobre os direitos e pelos direitos, tanto através dos meios tradicionais quanto das mídias digitais e dos meios alternativos e comunitários de comunicação, significa exercitar o direito de comunicar. Especialmente os meios populares, comunitários e alternativos desenvolvem processos de contracomunicação, pois em geral atuam na contramão informativa e na incidência política frente às forças dominantes resistentes a mudanças estruturais no controle da mídia, do poder econômico, político e ideológico. Nesse âmbito são desenvolvidos processos comunicacionais que têm como protagonistas principais os movimentos sociais e organizações civis sem interesse de lucro que desenvolvem a Comunicação Popular, Comunitária e Alternativa, enquanto categoria abrangente em cujo eixo central é uma comunicação emancipadora que denuncia situações de opressão, reivindica direitos e incide politicamente para interferir nas decisões do poder público e para instituir ou modificar políticas públicas e exercitar o direito de participação política. A comunicação nessa perspectiva reivindica modificação das políticas públicas de comunicação, tema que saiu de pauta, mas o problema de concentração da mídia não foi resolvido, pois seu controle majoritário permanece sob o poder de conglomerados econômicos. Nessa condição, em concomitância com comunicação face a face e à coordenação de ações, esses protagonistas empoderam-se da mídia para poderem exercer seu dever de cidadania, o de lutar para que os demais direitos – à educação de qualidade, à terra, à vida, à igualdade de tratamento e oportunidades etc. –, sejam alcançados por todos que necessitem ter seus direitos reconhecidos. É a realização do direito de “dizer a palavra, em um sentido verdadeiro, é o direito de expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar” (FREIRE, 1985, p. 49). 246 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política Que cidadania? A cidadania é construída e seu status se modifica no embate entre as forças sociais, econômicas, políticas e jurídicas. Então, a primeira resposta à pergunta acima é simples: a cidadania almejada é aquela garantidora dos direitos e deveres em sua plenitude, o que quer dizer que vão além dos direitos básicos fundamentais, discutidos na seção anterior, portanto, incorporando progressivamente novos direitos, segundo as transformações históricas e culturais. Desse modo, a cidadania desejada inclui a cidadania comunicacional, pois o direito à comunicação é um dos direitos desses novos tempos diante do crescente processo de midiatização das sociedades (VERON, 2014). A cidadania comunicacional possui, no mínimo, três dimensões. A primeira, remete aos direitos e deveres dos agentes e protagonistas dos meios de comunicação – dos tradicionais aos modernos que, em síntese, englobam a responsabilização sobre: a) liberdade de expressão e garantia do acesso público à informação; b) a qualidade dos conteúdos produzidos e difundidos – da informação, dados gerados e entretenimento; c) a veracidade – negação da desinformação, calúnia, injúria e difamação; d) o respeito à privacidade de dados e dos envolvidos nos processos de comunicação. A segunda dimensão diz respeito ao direito à comunicação, o que inclui o acesso às tecnologias de informação e comunicação também por parte das organizações coletivas sem fins lucrativos e movimentos sociais, em igualdade de condições àquelas proporcionadas aos conglomerados de mídia e aos governos. A democratização da comunicação é um dos elementos essenciais à realização da cidadania comunicacional, pois o reconhecimento da comunicação como um direito, no mesmo nível dos demais, é um componente chave dos conceitos de cidadania. O direito de comunicar está embutido nas várias gerações teóricas da cidadania (MARHALL, 1992; VIEIRA, 2000; BOBBIO, 1992) já legitimadas pela teoria e pela sociedade. Esse direito se insere na primeira geração e direitos – os civis e políticos reconhecidos no fim do século XVIII e no século XIX (liberdade individual, liberdade de 247 SEÇÃO 5 expressão, de participação no exercício do poder político e de associação). Aparece também na segunda geração de direitos – os direitos sociais reconhecidos no século XX (bem-estar, viver com dignidade, participação na partilha do patrimônio socialmente construído...). Faz parte também da terceira geração de direitos, aqueles que transcendem os direitos dos indivíduos e passam a ser percebidos como dos grupos sociais os mais diversos, os quais aparecem apenas na segunda metade do século XX ganhando status de direitos de cidadania (direitos das mulheres, negros, grupos distintos em gênero e sexualidades, direito dos países, direito à paz, à preservação e cuidados com a vida no planeta). A comunicação também permeia a quarta geração de direitos (VIEIRA, 2000), conferido no fim do século XX e início do século XXI, direitos concernentes à bioética – direitos genéticos, à vida e os demais desdobramentos perante os avanços do campo da engenharia genética. A essas gerações de direitos cabe ainda acrescentar, as mediações do pluriverso (KOTHARI et al., 2021): os direitos não são apenas uma questão de direitos humanos (antropocentrismo), mas de biocentrismo pois todas as formas de vida importam (ESCOBAR, 2009). Daí o grande avanço dos debates e exigências em torno dos critérios ecológicos e de dignidade e valorização de todos os grupos humanos em suas ancestralidades e distintas culturas. Contudo, apesar de a comunicação poder ser reconhecida das referidas dimensões de direitos, diante de sua centralidade no mundo contemporâneo e da crescente midiatização da sociedade (FERREIRA, 2016), cabe demandar uma geração específica de direitos à comunicação, em outros termos, da cidadania comunicacional como uma quinta geração de direitos5 (PERUZZO, 2013). Nessa geração, o requerimento é pelo reconhecimento do direito à comunicação como 5 Existe outra abordagens sobre a elevação do direito à comunicação como geração de direitos, mas de quarta geração de direitos (RAMOS, 2005), mas como a geração já foi ocupada pelos direitos do campo da bioética, me parece que a quinta geração lhe caberia bem. Por outro lado, há quem defende (BONAVIDES, 2008, FURTADO; MENDES, 2008) o direito à paz como de quinta geração, também uma noção importante. Talvez a promoção de debates sobre essas questões poderia contribuir para caminhos consensuais sobre as gerações de direitos na atualidade. 248 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política direito coletivo dos grupos minorizados e organizados das classes subalternizadas ao acesso ao poder de comunicar, o que quer dizer, de possuírem condições de empoderamento dos meios e tecnologias de comunicação como sujeitos, como emissores de conteúdos e gestores de seus próprios meios e canais midiáticos e não apenas como receptores. Na geração de direitos à comunicação incluem-se os direitos elencados por Cees Hamelink (2002), ou seja, além dos direitos no universo da informação, cabem os direitos culturais na preservação e promoção da diversidade cultural e das tradições; os direitos de proteção quanto à privacidade e contra a informação enganosa e distorcida etc.; os direitos coletivos de acesso das comunidades à comunicação pública – às infraestruturas de comunicação, aos recursos adequados, à distribuição do conhecimento e habilidades, à igualdade de oportunidades econômicas e a correção das desigualdades; e os direitos de participação: direito de adquirir as capacidades necessárias para participar plenamente da comunicação pública, da tomada de decisões públicas sobre o provimento de informação, da produção de cultura e do conhecimento e da aplicação de tecnologias de comunicação. Os meios de comunicação fazem parte do patrimônio social e o acesso igualitário dos grupos humanos aos mesmos, na condição de protagonistas, compõe o mosaico dos direitos de cidadania, o que inclui o direito à comunicação (PERUZZO, 2005, GUARESCHI, 2013). Esse direito transcende a liberdade de expressão e o direito de receber informações, ou seja, de ser informado e de informar. É o direito ao acesso das pessoas e suas organizações coletivas aos meios de comunicação e às suas infraestruturas tecnológicas como protagonistas, em um processo que ao mesmo tempo em que se exerce o direito à comunicação, esse exercício ajuda na conquista dos demais direitos. Como disse Mattelart (2009), a construção social do direito à Comunicação é parte integrante dos direitos humanos. O direito à comunicação significa exercitar o poder de comunicar, como sujeito, individual ou coletivo, na condição de produtor, editor, difusor e receptor de conteúdos através do empoderamento de meios e canais comunicacionais próprios. Portanto, a cidadania comunicacional inscreve os direitos na perspectiva de direitos coletivos e do protagonismo popular cidadão 249 SEÇÃO 5 que tem uma potência transformadora pois é voltada à ampliação da qualidade do status da cidadania na perspectiva cívica, o que inclui a responsabilização sobre o interesse público como interesse das maiorias e do processo civilizatório (e não como simples liberdade de opinião, às vezes advogada mesmo tendo caráter criminoso por infringir direitos, leis e a Constituição). Voltando às dimensões da cidadania comunicacional, a terceira é a da participação, que se realiza no bojo e simultaneamente à primeira (protagonismo popular) e à segunda (acesso equitativo às tecnologias). O participar está no eixo do conceito de cidadania. Ser cidadão, ser cidadã significa participar da vida em sociedade, mas como se participa indica a qualidade da cidadania, pois seu exercício não tem sido igualitário a todos os segmentos sociais. Basta olhar as desigualdades sociais, econômicas, educacionais e de domínio dos meios de comunicação ao nosso redor para se perceber que a “distribuição” dos direitos de cidadania é desigual. Participar nos meios de comunicação pode significar uma dezena de coisas. A palavra participação tem sido bastante simplificada ao ser usada para se falar de qualquer tipo de envolvimento nos meios tradicionais e plataformas digitais de comunicação. De fato, o envolvimento pode se dar quando as pessoas participam ouvindo, assistindo, lendo, enviando mensagem, pedindo música ou informando sobre algum fato, por exemplo, sobre a situação do trânsito enquanto se transita na cidade e se telefona ou manda uma mensagem por aplicativo para uma emissora de rádio. Ou quando alguém dá uma entrevista, posta comentários em redes de mídias digitais etc. É um tipo de participação apenas no nível da mensagem. Mas, num nível mais elevado, se pode participar também no planejamento, na produção e difusão de conteúdos, como é comum nos meios populares e comunitários de comunicação. Em suma, o avanço da cidadania comunicacional requer melhoria na qualidade participativa no contexto da práxis coletiva do movimento social ou comunidade a que se pertence. Teoricamente existem níveis de participação – dos mais elementares aos mais avançados – e o tipo de nível revela como se participa do que fazer comunicacional. Merino Utreras (1979) traz boas 250 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política chaves de participação quando documenta as discussões sobre autogestão no Seminário Latinoamericano de Comunicación Participatória falando da participação na produção (de programas, mensagens com apropriação do saber técnico), na tomada de decisões (sobre a programação, controle e administração) e no planejamento da comunicação (participação na formulação de planos e políticas do próprio meio de comunicação e em nível mais amplo). Essas categorias permitem detalhar os vários níveis possíveis de participação popular no processo de comunicação a partir das práticas sociais (PERUZZO, 2004, 2010): a) participação como receptor de mensagens (quando há o consumo linear de conteúdos); b) participação no nível da mensagem, mas sem interferir no poder de decisão sobre a edição e critérios de difusão, por exemplo, quando se participa dando entrevistas, depoimentos etc.; c) participação na produção de conteúdos, tais como na elaboração de notícias, poesias, desenhos, canções; d) participação na produção de programas, vídeos, boletins etc., o que pressupõe um envolvimento mais contundente, por exemplo, no planejamento do programa de rádio ou de um jornal definindo a linha editorial, os objetivos, a montagem, a redação ou locução, a edição...; e) participação no planejamento global do meio de comunicação, sua política editorial, estratégias de gestão, de sustentabilidade e de programação; f) participação popular da gestão do veículo de comunicação, ou seja, no seu processo de administração; g) participação da população na definição da política de comunicação local, regional e nacional definindo seus princípios e parâmetros legais. Como se pode perceber, excetuando os dois primeiros níveis, os demais são mais avançados e pressupõem a participação na partilha de poder de decisão, um poder que é coletivizado e gestado na práxis dos movimentos sociais e comunidades. O debate e a formulação de conceitos sobre participação ativa nos meios de comunicação estiveram em evidência nos anos 1970. Em Belgrado, capital da Sérvia, em 1977, aconteceu a Reunión sobre Autogestión, Alcance y Participación en la Comunicación (MERINO UTRERAS, 1988). Também se realizou o Primer Seminário Latinoamericano de Comunicación Participaria, título de uma publicação do 251 SEÇÃO 5 CIESPAL, em 1978 (CIESPAL, 1978). Eles são marcos importantes no contexto da discussão sobre a situação de controle da circulação mundial da informação que culminaram com a realização de pesquisas e na formulação e divulgação do Informe MacBride (UM MUNDO E MUITAS VOZES, 1983) e na formulação de proposta de uma Nova Ordem Mundial da Informação e Comunicação (NOMIC) (REYES MATTA, 1980). Os referidos documentos (CIESPAL, 1978, MERINO UTRERAS, 1988, UM MUNDO E MUITAS VOZES, 1983, REYES MATTA, 1980), entre outros, como o artigo de Luis Ramiro Beltrán (1981), com o sugestivo título Adeus a Aristóteles: a comunicação horizontal, documentam eventos de um momento histórico ímpar de efervescência do debate político internacional sobre os meios de comunicação, num contexto de incremento do difusionismo desenvolvimentista e de vigência de ditaduras militares na América Latina com severas restrições à liberdade de imprensa e de organização social. 2.1 Perspectivas decoloniais Os limites e contradições do “modelo” de desenvolvimento em curso no contexto do neoliberalismo têm motivado movimentos de pesquisa e políticos que buscam desvendar as configurações do mundo atual e, ao mesmo tempo, gerar vetores capazes de elaborar propostas de transformação. Esses vetores instigam uma segunda resposta à pergunta sobre que cidadania queremos, que, por sua vez, exige pensar sobre que sociedade queremos. Nesse sentido, os princípios da ética a liberação (DUSSEL, 1998) e as propostas decoloniais vão tecendo novas perspectivas civilizatórias. O movimento investigativo e político internacional e, em especial na América Latina, vem construindo novas epistemologias científicas para entender as realidades histórica e atual marcadas pelo colonialismo ao longo dos séculos. Muitos autores, como, por exemplo, Quijano (2005), Escobar (2009, 2012), Silva (2011) e Sousa Santos (2010), desvendam criticamente os mecanismos estruturais e estruturantes que condicionam o capitalismo e tipo de desenvolvimento nas 252 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política sociedades do ocidente destrutivo dos ecossistemas ambientais, e se expandem mundo afora influenciando os modos de desenvolvimento das nações e a geração do conhecimento. Simultaneamente, são discutidas as perspectivas para necessárias transformações passando por propostas de desdesenvolvimento, pós-desenvolvimento e do bem viver (MANCE, 2015, SILVA, 2011, ACOSTA, 2011, GUDYNAS, 2009, ESTEVA, 2009, EHLERS ZURITA, 2016, CONTRERAS 2014), a partir de novos modos de estar e conviver no mundo implicados em processos de decolonização. Uma transformação nessa direção pressupõe fazer um giro decolonial – que não é só uma referência ao passado, mas ao mundo atual – incurso na decolonização do ser e do saber (MIGNOLO, 2017, MALDONADO-TORRES, 2008) e da decolonialidade do poder (QUIJANO, 2005). As estruturas de poder e as estruturas de pensamento (QUIJANO, 2005) são instituidoras do domínio no mercado capitalista internacional e marcadas pelo eurocentrismo a partir da ideia classificatória de raças (inferiores e superiores) e controle das subjetividades, culturas e produção do conhecimento desde o tempo colonial. A colonialidade do poder, segundo Quijano (2005), configura-se como um padrão global de controle do capitalismo mundial, inclusive, das subjetividades dos povos colonizados. A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais de este padrão de poder é a classificação social da população de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência de dominação colonial e permeia uma das dimensões más importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo (QUIJANO, 2005, p. 117 ). 253 SEÇÃO 5 A colonialidade do saber (LANDER, 2000, MIGNOLO, 2017, MALDONADO-TORRES, 2008, SOUSA SANTOS, 2010) diz respeito à geopolítica do conhecimento, das concepções teóricas e políticas neoliberais de enxergar a sociedade e das formas dominantes de fazer ciência condicionadas pelos paradigmas epistêmicos eurocêntricos do saber. O conhecimento “está ancorado em projetos com uma orientação histórica, econômica e política. O que desvelou a ‘colonialidade’ é a dimensão imperial do conhecimento ocidental que foi construída, transformada e disseminada durante os últimos 500 anos” (MIGNOLO, 2017, p. 24). Decolonizar o saber é desprender-se dessa colonialidade do conhecimento, que se pretende universal, de suas regras e pressupostos epistêmicos. “Não há outra maneira de saber, fazer e ser descolonialmente, senão mediante um compromisso com a desobediência epistemológica” (MIGNOLO, 2017, p. 23). A colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES, 2008, MIGNOLO, 2017) é relacionada à colonialidade do poder e do saber e produz a desqualificação e desumanização do outro em seu caráter ontológico, portanto, enquanto Ser. “A colonialidade do ser naturaliza a escravidão e a servidão, legitima o genocídio em nome do progresso (e de Deus) e banaliza a violência, a desigualdade e a injustiça [...]” (SILVA, 2011, p. 12). Em síntese, “a ‘colonialidade’ equivale a ‘uma matriz ou padrão colonial de poder’, o qual ou a qual é um complexo de relações que se esconde detrás da retórica da modernidade (o relato da salvação, progresso e felicidade) que justifica a violência da colonialidade” (MIGNOLO, 2017, p. 13). E o conceito de giro descolonial em sua expressão mais básica busca colocar no centro do debate a questão da colonização como componente constitutivo da modernidade, e a descolonização como um sem número indefinido de estratégias e formas contestatárias que demandam uma transformação radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser e conhecer (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66, tradução minha). 254 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política Esses questionamentos confrontam o tipo de sociedade em que vivemos, tensionam seus mecanismos estruturantes e negam o tipo de desenvolvimento predominante, ou seja, o desenvolvimento capitalista – baseado na exploração, no individualismo, no consumismo e na competição, sempre se reinventando para prosseguir dominante, e propõem o pós-desenvolvimento, o bem viver ou algo a porvir. É nessa perspectiva que se situam os debates decoloniais. O mundo parece construir alternativas capazes de gestar uma “vida boa em plenitude” (CONTRERAS, 2014), sem acumulação desigual e em busca do equilíbrio nas relações com a Mãe Terra. Enfim, aspira-se um modo de vida baseado num sistema de convivência comunal, colaborativa e solidária, desde valores ou cosmovisões ancestrais do bem conviver e do bem viver (CONTRERAS, 2014). Como diz Ehlers Zurita (2016), os humanos somos parte da natureza e não donos dela. Escobar (2009, p. 28) esclarece: novos tempos remetem à constituição de uma “nova ética que subordina os objetivos econômicos aos critérios ecológicos, de dignidade humana e o bem-estar das pessoas”, de uma sociedade que se fundamenta no antropocentrismo (centralidade do ser humano no universo) para uma sociedade assentada no biocentrismo (todas as formas de vida são importantes). Considerações finais Sobre que cidadania queremos, o desafio não é só amenizar os problemas que afetam os grupos minorizados das classes subalternas e a sociedade como um todo fazendo valer o respeito aos direitos humanos e cívicos. É reconhecer o papel central da comunicação. É transformar a realidade. É pensar um novo projeto de sociedade como construção coletiva... Então, surge nova pergunta: afinal, que sociedade queremos? Numa possível nova sociedade, tal como vislumbram as concepções decoloniais, possivelmente o próprio conceito de cidadania em suas assertividades eurocêntricas será ressignificado. 255 SEÇÃO 5 Referências ACOSTA, A. El buen (con)vivir, una utopía por (re)construir. Alcances de la Constitución de Montecristi. Obets: Revista De Ciencias Sociales, Universidad de Alicante, v. 6, n. 1, p. 35-67, 2011. BELTRÁN, L. R. Adeus a Aristóteles: a comunicação horizontal. 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Acesso em: 13 dez. 2022. 259 Comunicação dos direitos e interseccionalidade comunicacional: desafios de uma teoria crítica para a esfera pública digital Vitor Blotta Olhar crítico para o mundo a partir do direito e da comunicação No primeiro ano da Faculdade de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em 2001, respondi a conhecida pergunta do professor Renan Severo Teixeira da Cunha, titular da cadeira de Introdução ao Estudo do Direito, sobre o porquê de ter escolhido fazer o curso: “quero entender como o mundo funciona”, disse, tentando me distinguir dos colegas que buscavam uma carreira bem remunerada, ou o poder de tomar decisões jurídicas efetivas sobre o mundo. Ao longo dos anos, descobri que, embora minha preocupação fosse legítima, o problema de como o mundo funciona é sempre envolvido pelas reivindicações de indivíduos, grupos ou instituições sobre como ele poderia, ou deveria funcionar. É o que propõem teóricos ligados à chamada Teoria Crítica da Sociedade: compreender de modo crítico as 261 SEÇÃO 5 relações de poder na sociedade demanda uma articulação fina entre teoria e prática, entre o factual e o normativo, ou entre o mundo que aí está e o mundo que tende a ser, ou que se busca realizar.1 Outra preocupação que motiva meus estudos, desde o início da graduação, em Direito é compreender as relações entre os sistemas de mídia e a política. Para enfrentar esse problema de modo crítico, encontrei no campo da então emergente economia política da informação e da comunicação uma abordagem de inspiração marxista que busca articular teoria e prática. Foi com a pergunta sobre o papel dessas indústrias e tecnologias na reestruturação produtiva do capitalismo do final do século XX, e seus reflexos sobre os direitos de comunicação, que realizei dois anos de iniciação científica sob a orientação do professor de economia Fernando Augusto Mansor de Mattos, hoje, professor associado da Universidade Federal Fluminense. Nestes estudos, identifiquei, de modo semelhante às teses da indústria cultural de Horkheimer e Adorno, que os imperativos econômicos do capitalismo tardio eram determinantes para a configuração de um sistema de mídia mais comercial do que público ou estatal, e que os direitos da comunicação social haviam sido capturados pelos conglomerados de mídia, realizando-se nos limites de seus interesses (MATTOS; BLOTTA, 2005). Essa tese foi corroborada em meu trabalho de conclusão de curso, em que me debrucei sobre a legislação em comunicação social no Brasil e na configuração do então Estado democrático de direito. Descobri que a financeirização do capital coincide com um Estado mais policial do que promotor de políticas públicas, o que reflete nas limitações legislativas e políticas de se assegurar de modo equânime a liberdade de expressão, o direito à comunicação, a não discriminação, a diversidade e o pluralismo político e cultural (BLOTTA, 2005). Dados esses bloqueios jurídicos, políticos e econômicos para a efetivação dos direitos e princípios da comunicação social, precisei 1 Segundo Axel Honneth, “… by a ‘critical theory of society’, we mean that type of social thought that shares a particular form of normative critique with the Frankfurt School’s original program – indeed, perhaps, with the whole tradition of Left Hegelianism – which can also inform us about the pre-theoretical resource (vorwissenschaftliche Instanz) in which its own critical viewpoint is anchored extratheoretically as an empirical interest or moral experience.” (HONNETH, 2007:63-64). 262 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política dar um passo atrás, com o desafio de compreender as bases filosóficas e os diagnósticos da comunicação e da democracia. Para tanto, aprofundei-me nas teorias da razão, do direito e da esfera pública de Jürgen Habermas, durante o mestrado e o doutorado (2006 a 2012), já no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de Direito da USP, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Bittar. No mestrado, compreendi que a normatividade, como orientação para a ação, está presente tanto na razão e na linguagem quanto nos sistemas de ação social, como a economia, a política, o direito, a ciência, a cultura e a comunicação, e que para o direito aplicar os princípios de uma razão comunicativa ele teria de realizar um equilíbrio entre as diferentes normatividades que buscam incidir sobre o campo do direito. Durante o período de estudos do doutorado, convenci-me de que as bases faltantes da teoria e da prática da esfera pública e da democracia se encontravam, além da institucionalização dos direitos individuais à comunicação e à participação em processos deliberativos, como proposto por Habermas em sua teoria discursiva do direito e da democracia (HABERMAS, 1996), na própria esfera pública política. E quando falo em esfera pública política, quero dizer, em termos normativos, as condições de possibilidade do exercício livre e equânime dos direitos de comunicação, o que inclui os direitos às relações de reconhecimento recíproco, à personalidade, à privacidade, à expressão e à comunicação, e nos princípios do que denomino “comunicação dos direitos”, isto é, na atuação de agentes estatais, públicos e sociais para a produção e a disseminação de informações confiáveis e de interesse público, na transparência, acesso à informação e às justificativas das decisões políticas e jurídicas, além de contribuições culturais, estéticas e, por que não, afetivas para uma cultura política mais democrática. O percurso do doutorado incluiu um período de pesquisa na Universidade J. W. Goethe, de Frankfurt, quando pude dialogar com pensadores, como Klaus Günther, Rainer Forst e Axel Honneth, sucessores de Habermas respectivamente na teoria do direito, na teoria política e na filosofia social. Foi quando comecei a me aprofundar nas dimensões estéticas e afetivas do direito e da comunicação política e, também, na necessidade de articulação entre as diferentes normatividades que se 263 SEÇÃO 5 digladiam na esfera pública. Vale registrar que fui também estudante de pós-graduação em cursos dos professores Eugênio Bucci e Ciro Marcondes Filho, no PPGCOM da Escola de Comunicações e Artes da USP, de quem, com muita honra, tornar-me-ia colega em 2014, além de outras referências, como Dennis de Oliveira e Ricardo Alexino, que participaram respectivamente de minhas bancas de doutorado e de ingresso no Departamento de Jornalismo e Editoração. Não posso deixar de mencionar que minha formação foi em muito estimulada pela minha atuação, enquanto pesquisador, no Núcleo de Estudos da Violência da USP, onde atuo até hoje. Lá desenvolvi projetos sobre segurança cidadã, direitos humanos e democracia, incluindo um pós-doutorado sobre a legitimidade dos direitos humanos a partir de análises de coberturas midiáticas (2012-2015). A partir dessa pesquisa, pude diagnosticar que, embora presentes nos debates públicos, as reivindicações sociais e morais em relação aos direitos humanos e ao livre e equânime exercício das liberdades de comunicação e da comunicação dos direitos estavam, por assim dizer, sufocadas por uma articulação cada vez mais forte entre motivações instrumentais e punitivistas e motivações religiosas, carismáticas e espetaculares para a garantia da ordem e a adesão política (BLOTTA, 2014). Esta tendência se mostrou verdadeira no processo de deterioração das esferas públicas e das democracias que evidenciamos na última década, no Brasil e no mundo. Entre os direitos de comunicação e a comunicação dos direitos: normatividades comunicativas e interseccionalidades comunicacionais Ao ingressar, em 2014, como docente no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, apresentei o projeto de pesquisa “Comunicação, Violência e Direitos Humanos: estudos críticos a partir da esfera pública política e do direito da comunicação”. Um dos estudos deste projeto, realizado como estágio pós-doutoral no Centre for Human Rights Law, da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, foi 264 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política sobre privacidade e liberdade de informação em debates públicos sobre regulação da comunicação na Inglaterra e no Brasil. Nela identifiquei situações de antagonismos e trade-offs de direitos fundamentais, como entre privacidade e acesso à informação, além de tendências de desvalorização da privacidade a partir de uma “afetivização” desse direito, e de supervalorização da liberdade de informação e de imprensa a partir de uma “facticização” desses direitos (BLOTTA, 2015). Em 2016, iniciei minhas contribuições ao PPGCOM da ECA-USP ministrando a disciplina “O Direito da Comunicação: esfera pública, liberdade de expressão e regulação”, que, em 2022, foi oferecida pela sétima vez. Durante as diferentes edições deste curso, além de atualizar anualmente as leituras diante de uma temática em constante transformação, notei que vinha fazendo um movimento pendular de olhar tanto o campo da Comunicação, a partir do Direito, quanto o Direito, a partir da Comunicação. Assim, temos nos debruçado no debate teórico e público sobre esfera pública, nas diferentes perspectivas e iniciativas de regulação das liberdades, direitos e deveres de comunicação, e nas iniciativas da comunicação que realizam direitos humanos e princípios democráticos, inovando nessas áreas. Outra ação importante nesse movimento entre direito e comunicação foi a criação do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL), no final de 2015, em parceria com Eugênio Bucci, e ao qual se associaram diversos pesquisadores e pesquisadoras das áreas do Jornalismo, do Direito, das Ciências Sociais, da Política e da Filosofia. O objetivo do grupo e suas linhas de pesquisa têm sido reconstruir a história, os princípios fundadores e as teorias do jornalismo e da imprensa; monitorar os direitos e deveres da comunicação, as iniciativas de autorregulação e regulação de diferentes setores da comunicação; além de promover estudos sobre as relações entre informação e cultura política democrática. Minhas orientações de pesquisas de mestrado e doutorado no PPGCOM têm orbitado em torno dessas linhas. Um dos principais problemas de pesquisa do JDL tem sido caracterizar as transformações do jornalismo, da esfera pública e da 265 SEÇÃO 5 cultura política a partir das mídias digitais, em especial as mídias sociais. A esse respeito, meu argumento, ainda em construção, é que essas transformações fazem parte de processos mais longevos, anteriores à disseminação das mídias digitais no cotidiano social: primeiro, são reflexos da crise da razão moderna na filosofia, na ciência e no jornalismo, após as críticas de teóricos pós-estruturalistas; segundo, são as transformações econômicas e tecnológicas trazidas pela internet e era dos algoritmos; e terceiro, está ligada às reações políticas e culturais, às lutas por direitos de diversidade e de identidade étnica, racial, de gênero e cultural protagonizadas pelos movimentos feministas, negros, ambientalistas, de povos originários e de outros grupos sociais marginalizados. Outros temas que atravessam os programas anuais de trabalho do JDL são: a crise das democracias ocidentais, os direitos digitais e os novos autoritarismos, as relações do jornalismo com imperativos das áreas da economia, da política, da comunicação e da cultura, e mais recentemente, as tensões entre desinformação e democracia. Em 2018, os esforços de pesquisa do grupo Jornalismo, Direito e Liberdade foram fortalecidos pelas articulações com uma nova linha de pesquisa no projeto CEPID FAPESP, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, intitulada “Opinião Pública, Cultura Política Democrática e Legitimidade”, da qual temos mapeado o debate teórico sobre a “mudança digital da esfera pública”, e estudado o fenômeno das milícias digitais e respostas do Estado a elas, além das relações entre desinformação e violência contra jornalistas. Outras duas experiências de pesquisa e docência foram fundamentais para minha formação. A primeira delas foi participar como docente do curso de pós-graduação lato sensu em Educação, Cultura e Relações Étnico-Raciais, oferecido pelo Centro de Estudos Latino-Americanos de Comunicação e Cultura, o Celacc, Núcleo de Apoio à Pesquisa da ECA-USP. Poder discutir, desde 2015, as “dimensões jurídicas das relações étnico-raciais no Brasil”, com uma quase totalidade de estudantes negros e negras, muitos dos quais professores e professoras, profissionais liberais, acadêmicos e acadêmicas e ativistas, tem 266 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política sido uma experiência de profundo aprendizado e transformação de minhas visões acadêmicas e de mundo. Por meio dessa experiência, tenho buscado “enegrecer” minha literatura, de formação prioritariamente anglo-europeia, masculina e branca, e passei a conhecer e incorporar em minhas reflexões, pesquisas e cursos os pensamentos antirracista, feminista e decolonial de teóricos como Charles Mills, George James, Angela Davis, Patrícia Hill Collins, Lélia Gonzales, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Adilson Moreira, Grada Kilomba, bem como Aílton Krenak e Viveiros de Castro. Esses estudos me permitiram identificar os limites e vieses do processo de racionalização e modernização capitalista, além de promover inovações em minhas reflexões sobre jornalismo, esferas públicas, comunicação e direito. A segunda experiência marcante da minha trajetória enquanto pesquisador foi o período de dois meses, entre 2015 e 2016, que passei como professor visitante na Universidade de Zagreb, na Croácia, a fim de desenvolver o projeto “Você nunca vai entender: narrativas sociais sobre traumas culturais e o monopólio do lugar de fala e da verdade histórica no Brasil e na Croácia”, dentro do programa internacional “Social Performance of Cultural Traumas and the Rebuilding of Solid Sovereignties” (SPeCTReSS), ligado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. A partir da análise de obras de literatura de não-ficção e de quadrinhos sobre a guerra da independência da Croácia e a ditadura militar no Brasil, pude verificar que violências sociais, culturais e históricas são capazes de gerar vazios cognitivos, morais e estéticos entre grupos vitimizados e quem não sofreu diretamente essas violências, vazios esses talvez somente recuperados via esforços por uma “empatia política” que é potencialmente gerada pela produção e recepção de obras culturais relacionadas (BLOTTA, 2016). Feitos esses relatos sobre os percursos de pesquisa, gostaria de trazer um esforço final de reflexão teórico-metodológica para responder à seguinte questão: quais são os elementos básicos capazes de informar uma teoria crítica da chamada “esfera pública digital”? As respostas que tenho dado até o momento vão na direção de analisar as relações das pretensões normativas dos discursos em 267 SEÇÃO 5 torno dos direitos humanos, dos direitos de comunicação e da comunicação dos direitos, com os imperativos dos sistemas de ação e integração social, como da economia, da ciência, da política e da cultura. Fazemos essas análises por meio da diferenciação dessas pretensões normativas (como ao definir que é da ordem da explicação e da comprovação o teste da veracidade de mensagens fraudulentas, e que o teste do interesse público sobre determinadas informações diz respeito a uma argumentação normativa sobre o que deve ser considerado ordem pública, saúde pública ou direitos fundamentais), mas também por análises da sobreposição de normatividades (como quando o debate sobre os direitos das trabalhadoras domésticas é enquadrado mais como uma questão de custos para a economia ou questões das relações familiares do que uma questão de justiça social e trabalhista). Em estudo sobre “solidariedade seletiva e modulação discursiva”, propus que um arranjo mais legítimo das diferentes normatividades em conflito (ou solidariedades neste caso), é aquele em que suas inter-relações estão transparentes, sujeitas a críticas e capazes de se modular a partir dessas inter-relações (BLOTTA, 2020). No entanto, mais recentemente passei a perceber que as técnicas de diferenciação, sobreposição e modulação discursiva estão deveras presas em questões de linguagem, a qual, embora reflita as normatividades dos diversos sistemas de ação, não é capaz de revelar algumas sobreposições que, por diferentes motivos, ainda não foram articuladas em termos linguísticos. Por isso, cada vez mais tenho tentado abordar as violências da comunicação a partir da perspectiva dos estudos sobre interseccionalidade. E como, para Collins (2015, p. 1), interseccionalidade diz respeito não somente às lutas políticas de diferentes grupos sociais minorizados e ao entendimento das articulações de diferentes relações de opressão, mas também a uma “estratégia analítica que provê diferentes ângulos de visão sobre fenômenos sociais”, tenho utilizado esse conceito não somente para identificar as sobreposições e articulações de diferentes sistemas de opressão na comunicação, mas também as inter-relações de violências aos direitos de comunicação e aos deveres de comunicação dos direitos, ou seja, como interseccionalidade 268 Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política comunicacional. Aqui podemos pensar, por exemplo, na articulação de desigualdades de acesso à internet e à informação, desigualdades de exercício do direito à comunicação e desigualdades de representação cultural nas esferas públicas, as quais precisam ser pensadas cada vez no plural. Para concluir essa reflexão sobre como estruturar uma teoria crítica da esfera pública digital, recupero mais uma receita de Collins. Em sua obra “Intersectionality as Critical Social Theory” (2019), no capítulo 7, “Ralationality within Intersectionality”, a autora propõe pensar a interseccionalidade a partir de três modos de relacionar as diferentes relações de opressão: como adição de diferentes estruturas de poder a uma realidade social; como articulação de diferentes sistemas de opressão, cujo ponto de encontro, chamado conjunção, torna-se local prioritário para identificar como essas articulações se manifestam; e como coformação, que permite, via o recurso a metáforas, uma visualização mais holística das interseccionalidades. Se Collins entende a violência como um fenômeno de conjunção, podemos pensar a desinformação como uma conjunção de interseccionalidades comunicacionais, uma vez que a desinformação articula violências epistêmicas, morais e estético-expressivas contra a informação e a comunicação de interesse público. Assim, além de identificar como diferentes imperativos de poder se articulam em campanhas de desinformação, como econômicos, cognitivos, morais e culturais, temos feito também analogias com a área ambiental para descrever a ordem desinformativa, dado que a comunicação faz parte de nosso ecossistema vital. Desse modo, é possível, e talvez urgente e necessário, pensar a desinformação enquanto um ambiente de violência sistêmica contra a comunicação de interesse público, o que também demanda de nós, em termos normativos, identificar as reivindicações por uma comunicação interseccional e democrática dos direitos, em sentido semelhante ao que Neha Kumar denomina, na área das interfaces humano-computador, “computação interseccional” (KUMAR, 2020), bem como regulações ou políticas interseccionais de comunicação. 269 SEÇÃO 5 Referências BLOTTA, V. You Will Never Understand: the monopoly of the place of speech through cultural trauma narratives in Brazil. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, v. 17, p. 115-132, 2016. BLOTTA, V. A comunicação social no atual estado democrático de direito: por um novo controle social da informação. 2005. Trabalho Conclusão de Curso (Faculdade de Direito), Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2005. BLOTTA, V. Comunicação, violência e direitos humanos no Brasil contemporâneo: o editorial ajudou a liberar o gatilho da polícia. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO LATINO-AMERICANA DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO – ALAIC. 2014. Anais [...]. [S. l.], 2014. Disponível em: https://congreso.pucp.edu.pe/alaic2014/wp-content/ uploads/2013/11/vGT18-Vitor-Souza-Lima-Blotta.pdf. Acesso em: 7 dez. 2022. BLOTTA, V. Privacidade e liberdade de informação em tempos de antagonismos de direitos humanos: a ladeira escorregadia para o dilema do limite legal. In: ENCONTRO DA INTERCOM. 38. 2015. Anais [...]. [S. l.], 2015. Disponível em: https://www.eca. usp.br/acervo/producao-academica/003036640.pdf. Acesso em: 7 dez. 2022). BLOTTA, V. Selective Solidarity and Discursive Modulation in the Brazilian Public Sphere. Comparative Sociology, v. 19, p. 729-740, 2020. COLLINS, P. Intersectionality as Critical Social Theory. Durham; Londres: Duke University Press, 2019. COLLINS, P. Intersectionality’s Definitional Dilemmas. Annual Review of Sociology, v. 41, p. 1-20, 2015. HABERMAS, J. Between Facts and Norms: Contributions to Discourse Theory of Law and Democracy. Tradução de William Regh. Massachusetts: MIT Press, 1996. HONNETH, A. Disrespect. The Normative Foundations of Critical Theory. Cambridge: Polity Press, 2007. KUMAR, N. Taking the Long, Holistic and Intersectional View to Women’s Wellbeing. ACM Transactions on Computer-Human Interaction, v. 27, n. 4, p. 1-32, ago. 2020. MATTOS, F. BLOTTA, V. Mídia, Política e Controle Social da Informação. Revista Far@, v. 2, n. 1-2, 2005. Disponível em: https://www.revistafaro.cl/index.php/Faro/ article/view/845. Acesso em: 7 dez. 2022). 270 SEÇÃO 6 Comunicação, cultura e consumos Os desafios epistemológicos, teóricos e metodológicos das pesquisas em Publicidade e Consumo Clotilde Perez Estudar o consumo é ter a convicção de que se está em uma área de fronteiras e interseções multidisciplinares. É enfrentar a tensão dos limites, jogar com as políticas dos diferentes campos, forçar a expansão pelas articulações e criar o novo. Nesse sentido, as potencialidades próprias da interdisciplinaridade são muitas, mas com elas também surgem as forças contrárias, as resistências e os desafios. Começo esta reflexão a partir dos desafios teóricos, Consumo “sem lugar” na arqueologia do conhecimento sistematizado e a fantasmagoria do consumo, a negação de sua existência; por mais esquizofrênico que pareça, o Consumo como área de pesquisa que busca interseção de várias regionalidades científicas, impondo a multi e a interdisciplinaridade como fundamento é muito recente. Até bem pouco tempo, não encontrávamos um lugar institucionalizado e reconhecido para as pesquisas em Consumo e os avanços das últimas duas décadas são decorrentes de atuações político-estratégicas de grupos de pesquisadores muito bem localizados institucionalmente. A seguir apresento as considerações, potencialidades e desafios metodológicos 273 SEÇÃO 6 decorrentes dos fundamentos teóricos que impõem o repensar das práticas de investigação e suas efetivas rentabilidades no mundo de hoje; o que se comprovou eficaz e segue sendo e o que é insuficiente e não atende à realidade do século XXI, atravessado e sustentado pelo consumo no diálogo phygital. Para finalizar, aporto considerações de cunho epistemológico no sentido de permitir um caminho para a criação de uma epistemologia brasileira e latino-americana, na articulação de Boaventura de Sousa Santos (2021), com as epistemologias do Sul, que aqui não se reveste de um lugar geográfico específico, mas sim, de uma condição histórico-semiótica que marca um estado de ser, produzir significados, influenciar relações e pautar valores. Nesse aspecto, há certamente aproximação com determinadas regiões do mundo, como na América do Sul e nos países do continente africano, na total convergência com os países do Caribe, com o México e outras regiões não sulistas com as quais comungamos um processo de colonização massacrante ou de dominação severa, da criação e reforço da imensa distância social e política, com a consequente desigualdade, da produção do medo, das mazelas da condição de inferioridade diante do outro, das dificuldades de estruturação de um governo democrático e republicano, enfim, de uma cidadania razoável para o bem viver (SANTOS; CUNHA, 2022). Desafios teóricos Consumo é uma área de pesquisa e formação multi e interdisciplinar (BATISTA; PEREZ; FARIAS, 2016). Como fenômeno atravessado por perspectivas diversas, não encontra em uma única regionalidade científica, os seus fundamentos. Da economia surgem os princípios que estabelecem as relações de oferta e demanda, preço e elasticidade, por exemplo, assim como a eterna discussão sobre a necessidade de comprar, tendencialmente baseada na racionalidade do consumo e do consumidor. Do marketing surgem os princípios relacionados ao produto, bem ou mercadoria, seu posicionamento, no mercado e nas mentes das pessoas (RIES; RIES, 2004), a distribuição, as bases da comercialização e vendas, bem como os primeiros estudos 274 Comunicação, cultura e consumos sobre marcas, ainda muito circunscritos a instância de identificação e distinção (AAKER, 1996). Da publicidade vem o desenvolvimento das campanhas a partir do entendimento do consumidor, seus valores e a entrega de caminhos possíveis para envolvê-lo e levá-lo à compra, invariavelmente pelo encantamento. Os estudos sobre persuasão e manipulação tomaram a centralidade, principalmente a partir de meados do século XX. O design aporta, ainda que mais recentemente, as reflexões sobre projeto, além da articulação entre forma, função e significado, no contexto do pensamento comunicacional e do apelo funcional e estético ao consumo. Da economia ao marketing e a publicidade vêm os fundamentos mais tradicionais dos estudos do consumo, ainda que nenhum deles tenha assumido esse lugar, provavelmente, pela necessidade de articulação e pela natureza formatadora, principalmente do marketing, que sempre criou e promulgou modelos, matrizes e siglas fetichizantes como caminho para o aprisionamento, mais como possibilidade de “sentir” o controle do que de fato de viabilizar um melhor entendimento, sem reduzir, valorecendo estratégias exitosas. Assim, consumo é uma área de pesquisa e formação relativamente recente no país e no mundo. Por motivos diversos, que passam pelos exageros e enganosidade da publicidade que imperou no passado, pela tendência economicista de compreender o consumo apenas na perspectiva utilitária, o que dominou o pensamento no século XVIII, seja pelo apego a Veblen e sua concepção que relaciona ócio com o consumo conspícuo e os consequentes julgamentos “... de ser o ócio ainda uma prova plenamente eficaz de riqueza, tal como o consumo” (1965, p. 95). Ainda que Veblen tivesse avançado no entendimento restrito de consumo como utilitarismo, sua compreensão levava à clareza de que o consumo era expressão da busca por status social apenas, deixando de lado um imenso campo de motivações e significações; provavelmente esse avanço, ainda que limitado, deve-se a sua primeira formação que era em Filosofia. O prefácio The Theory of the Leisure Class, assinado por Stuart Chase, sociólogo e economista americano, seguidor de Veblen é ainda mais ácido na compreensão sobre o consumo “Consistem, tais meios e modos, 275 SEÇÃO 6 em despender dinheiro, tempo e esforço, quase de todo inutilmente, na agradável tarefa de inflar o próprio” (VEBLEN, 1965, p. 14), e continua; “... A teoria da classe ociosa tem duas faces. As pessoas superiores dominam seus inferiores em pecúnia mediante gastos supérfluos, à vista do que os inferiores movem céu a terra para melhorar seu status, gastando até o último limite de suas posses”. E quando surgia a temática do consumo em debates conceituais, a centralidade da crítica vinha da sociologia, dos estudos sobre o trabalho e a produção, e a consequente influência negativa do consumo nas relações sociais e afetivas. Deixava-se de lado o fato indissociável de que sua existência justificava e justifica a produção, como bem atestou Karl Marx (1984), “o trabalho só se realiza no consumo”, e todos nós no dia a dia. Muitos sociólogos e teóricos da comunicação devem uma leitura acurada e menos ideológica de Marx, mas parece tarefa indigesta, portanto, evitada. Campbell (2001, p. 31) segue esta perspectiva também: “... a orientação dos economistas clássicos, as análises da Revolução Industrial tenderam a se concentrar mais nas mudanças das técnicas de produtos do que nas mudanças naturais da procura”. Baudrillard (2010, p. 13), filósofo e sociólogo francês, em sua obra La Société de Consommation, de 1970, segue a abordagem distanciada e reducionista do consumo como pode ser observada na afirmação que abre o livro, “À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos objetos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana”. No subitem “o estatuto miraculoso do consumo”, destila o veneno “... as satisfações menores reduzem-se ainda a simples práticas de exorcismo, a meios de captar e conjurar o Bem-Estar total, a Beatitude” (2010, p. 22). Barthes, com O Sistema da Moda, inicialmente publicado em 1979, a partir de suas pesquisas de meados dos anos 1950 aos fins dos anos 60, trouxe contribuições importantes para os estudos do consumo, principalmente na sua proposta de analisar o vestuário a partir dos princípios da Semiologia de Saussure. O autor se debruça sobre o vestuário como texto, fundando um caminho de investigação sobre a 276 Comunicação, cultura e consumos moda escrita e a rede de sentidos que é capaz de gerar. A vertente da semiologia de Saussure e seus seguidores não se mostrou rentável aos estudos do consumo, ainda que tenha oferecido uma metodologia de análise – o quadrado semiótico – que se difundiu em alguns segmentos de estudos da Publicidade, do Marketing e da Moda, com contribuições importantes de J. Greimás (1987, 2014), Greimás; Fontanille (1991), Landowski (1992, 1997, 2014), J. M. Floch (1993), Lencastre (1997), Semprini (1995, 2000, 2006), Ceriani (2001), Ana Claudia de Oliveira (2004, 2014), Ivan Santo Barbosa (2005) e tantos outros. A semiótica de Peirce (1996) é o fundamento teórico de muitas pesquisas no campo do Consumo, da Publicidade e das Marcas, com destaque para as contribuições de Mick (1986, 1990), Sebeok (1987), Santaella (1995), Santaella; Nöth (2010), Vieira (1997), Perez (1999, 2001, 2004, 2014, 2017, 2020), Zozzoli (2002), Jungk (2021) e, mais recentemente, Pompeu (2018), Sato (2017), Viana (2018), Santos (2013), Orlandini (2022), Souza (2022). Buscando a semiótica no diálogo com as pesquisas sobre sexualidade e gênero, questões étnico-raciais e públicos minorizados, destaco as contribuições de Peruzzo (2019), Gonçalves (2022), Leite (2019) e Mozdzenski (2020). Há que se enfatizar, que foi na Antropologia, onde surge a abertura para o entendimento mais abrangente do Consumo, com destaque para a obra referencial O Mundo dos Bens, de Mary Douglas e Baron Isherwood (2004), texto originalmente publicado em 1979, com a discussão sobre a proposição de uma teoria do consumo que articulasse cultura e vida social, deslocando a fixação de pensar o consumo apenas como ato de compra degradante, como fica claro na afirmação, “... a abordagem antropológica captura todo o espaço de significação em que os objetos são usados depois de comprados” (2004, p. 41). Também Miller (2002, p.169) amplia o entendimento quando pondera: “O ato de comprar se inicia com um rito..., que anula o mero dispêndio para obedecer aos propósitos mais elevados da economia”. Outra contribuição fundamental de Miller (2002) aos estudos do consumo está na obra A theory of shopping, de 1998, publicada no Brasil em 2002, com a problematização sobre as compras 277 SEÇÃO 6 não apenas como gasto, mas como uma experiência popular, como relacionamento, como possibilidade de personalização e de maneira absolutamente original, como expressão de amor, perspectiva inexplorada com a devida atenção e cuidado até então. Outro aporte a partir da Antropologia em diálogo com a Arqueologia foi o estudo da Cultura Material de Consumo, nesse eixo de reflexão Miller (2013) é uma referência importante, mas também Appadurai (2008), Canevacci (2016, 2018), David-Ménard (2021) e outros. A proposta de compreender o consumo em uma abordagem ritualística, já indiciada por Mary Douglas e Miller, surge mais estrutura na obra Cultura e Consumo, de Grant McCracken (2003), estabelecendo um sistema de transferências de significado, do mundo culturalmente constituído às pessoas, por meio de rituais de consumo diferenciados, tendo como eixos privilegiados o Sistema da Moda e a Publicidade. Voltando aos estudos primordiais sobre os rituais, com Van Gennep (2008), Turner (1974, 1986), DaMatta (2011, 2004, 1997), Peirano (2003) e outros, e em diálogo com Douglas e McCracken, propus uma nova abordagem aos rituais de consumo, antecipando a compreensão para os rituais de busca e postergando em direção aos rituais de descarte e/ou ressignificação, em suas múltiplas possibilidades. Esta contribuição encontra-se na obra Há limites para o consumo? (PEREZ, 2020). A evolução das pesquisas em consumo, fundadas na semiótica e na antropologia, com o método antropossemiótico se mostrando rentável, como veremos a diante, foi fundamental no apontamento de novos aportes teóricos, no sentido de ampliar a compreensão sobre as motivações humanas para o consumo. Esta demanda nos levou à Psicanálise, principalmente a partir das obras de Freud (1966, 1968, 2011), Lacan (2016), contemporaneamente das contribuições de Cesarotto (2015, 2019), Dunker (2016), Chnaiderman (1989), Khel (2018, 2020), De Santi (2011, 2016, 2022), Goldberg; Akimoto (2021) e outros. As buscas, escolhas e justificativas para o consumo, muitas vezes racionais e objetivas, em tantas outras guiadas pelas emoções e por fundamentos inconscientes, demandavam uma compreensão aprofundada acerca da nossa condição psíquica. As 278 Comunicação, cultura e consumos bases teóricas necessárias para a compreensão do consumo pelo viés psicanalítico estão no entendimento do inconsciente e de suas manifestações na linguagem, bem como na compreensão do desejo como condição primordial humana, como falta constitutiva. Esta aproximação não é simples, principalmente pela tradição da Psicanálise e da compreensão do consumo como sintoma. Esta posição é decorrente da condição de escuta do psicanalista, o que chega no divã. O consumo e suas consequências – endividamento, compulsão, falências, descontrole orçamentário... – tomam a centralidade, reforçando, inevitavelmente, o juízo negativo. O deleite, o prazer, o pertencimento, a vivência cidadã, que também podem se dar em decorrência do consumo, provavelmente, não dominam o divã, o que é compreensível. Outra contribuição que merece destaque está baseada na teoria das mediações de Martín-Barbero (2001), atualizada ao longo das últimas três décadas e, posteriormente, as diferentes correntes das mediações e midiatizações (HJARVARD, 2012; COULDRY; HEPP, 2020) também acionadas nos estudos do consumo. Em diálogo com essa linha teórica, destaco as contribuições de Trindade e Perez (2019, 2016), Perez; Trindade (2019) e Trindade; Souza (2014). Como vimos, o consumo demanda a multi e a interdisciplinaridade para a sua compreensão, o que nos levou a propor uma articulação possível (PEREZ, 2020, p. 52) a partir das perspectivas materiais (produto, design, materiais, forma, serviços, acessos...), com as mercadológicas (economia, marketing, preço, distribuição, canais, publicidade, tendências...), e as semióticas (sentidos e significados demandados, criados e compartilhados). Evoluindo nesta proposição, proponho a expansão das articulações teóricas, incluindo a Psicanálise e o Digital. A Psicanálise pelos motivos anteriormente apresentados, fundados na certeza de que são somos só racionais, portanto, cientes do que precisamos, o que nos levaria a comportamentos racionais previsíveis. Consumimos por inúmeras razões e boa parte delas não são estritamente “razões”, mas quereres, vontades, desejos, motivações emocionais que se distanciam abismalmente de qualquer racionalidade. Já o digital impõe novos modos de existência e de relações que ultrapassam em muito os usos e consumos clássicos, por assim dizer. Com o desenvolvimento 279 SEÇÃO 6 da inteligência artificial, do paradigma algorítmico e das enormes potencialidades proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico, não é possível estudar consumo sem a pesquisa, as teorias e a empiria do digital. As lógicas do consumo são potencializadas pelas amarras e aprisionamentos do digital que tem a habilidade de sugerir liberdade, promover a sensação criativa e de ativismo, quando, na verdade, a liberdade é dentro de determinados frames possibilitados pelas correlações numéricas e estatísticas do algoritmo, dominadas por imensas corporações internacionais. Figura 1 – Os fundamentos teóricos do consumo. O lugar teórico multi e interdisciplinar do Consumo não se esgota nas reflexões e análises até aqui apresentadas, adicionado ao inevitável falibilismo de toda e qualquer ciência, em alinhamento com Peirce (1995), novos aportes teóricos podem e devem ser acionados. Mas é certo que as articulações teóricas predeterminam metodologias de investigação, que se mostram rentáveis nas articulações e composições, buscando a melhor forma de apreensão dos fenômenos pesquisados. Assim, passemos às ponderações, efetividades e desafios metodológicos. 280 Comunicação, cultura e consumos Desafios metodológicos Há desafios teóricos e há desafios metodológicos para o estudo do Consumo. Instaurou-se, nos últimos anos, a necessidade do desenvolvimento de metodologias de pesquisa que consigam captar as novas lógicas de conexão e produção de significados, que acontecem nas dinâmicas assimétricas, mas amalgamadas e em crescimento, nas esferas físicas e digitais, que caracterizam o consumo contemporâneo, colocadas em circulação nas redes. O estudo do Consumo esteve centrado nas pesquisas de mercado, tanto a partir de métodos quantitativos, onde o questionário estruturado imperou por décadas, nos inícios aplicados pessoalmente em vias de grande circulação ou mesmo em visitas domiciliares, com perguntas fechadas apresentadas em técnicas variadas e escalas de concordância. As metodologias qualitativas, fundadas em técnicas vindas da Psicologia, principalmente aquelas pautadas nas associações projetivas, tornaram-se a base para muitas investigações, principalmente a partir dos anos 1950/60 com o desenvolvimento das áreas de pesquisa das grandes multinacionais presentes no país. As entrevistas em profundidade, os grupos de discussão e, mais tardiamente, a etnografia, se instalaram como caminhos rentáveis para o entendimento do consumo e do consumidor. Essas metodologias trouxeram o alargamento da compreensão sobre as motivações para o consumo, alguns parâmetros de escolha e a certeza da necessidade de compreender os movimentos, as aspirações e os valores sociais que fundamentam hábitos, atitudes e comportamentos gerais, inclusive de consumo. Na academia, os estudos do consumo, ainda que mais focados na Publicidade – produção e recepção – fizeram parte de importantes projetos de investigação tendo o método semiótico como fundamento. A semiótica de Peirce com a visão triádica do signo e o método triádico decorrente, a partir da Gramática Especulativa, permitiu imensos avanços aos estudos do consumo, contemplando a produção e a recepção, sem negligenciar a circulação dos produtos, serviços, marcas e significados. Peirce (1995), Sebeok (1996), Santaella (2018), Perez 281 SEÇÃO 6 (1999, 2001, 2004, 2020), Rosa (2014) e tantos outros são referências indispensáveis. A semiótica de tradição estruturalista colocou o quadrado semiótico como parâmetro metodológico com relevantes contribuições, com destaque para Greimás (2002), Floch (1993), Semprini (1993, 1995, e 2006), Landowisk (1992, 1997), Lencastre (1997) e Ana Claudia de Oliveira (2004, 2014), apenas para citarmos alguns destes aportes metodológicos. Todos esses autores estudaram e formaram novos pesquisadores a partir dos fundamentos teóricos e metodológicos da semiótica estruturalista, também conhecida como semiótica discursiva ou ainda sociossemiótica. Os estudos do Consumo já se aproximavam da Antropologia pela adequação do método etnográfico como caminho privilegiado para apreensão da realidade, fundamento da empiria, baseado na observação, na observação participante, nos diários de campo e na imersão sistematizada e alongada. Novamente nos últimos anos, o alinhamento teórico com a Antropologia em novos contornos, agora por meio dos estudos sobre os rituais e a cultura material, trouxe novos impactos metodológicos. As leituras de Mary Douglas (2004), Colin Campbell (2001), Van Gennep (2008), Victor Turner (1974, 1986), Roberto DaMatta (2004, 2011), Mariza Peirano (2003), Daniel Miller (1995, 2002, 2013), Daniel Roche (1989, 2000), Georg Simmel (2006, 2013), Thorstein Veblen (1965), Grant McCracken (2003), Massimo Canevacci (2005, 2016, 2018), Michel De Certeau (1994), Marcel Mauss (2008) e Arjun Appadurai (2008), apenas para citar alguns, permitiram o avanço nas reflexões sobre a cultura material e o Consumo, com camadas de discussão acerca das tendências de comportamento e consumo, a biografia das coisas, a fetichização dos objetos e os rituais de consumo, sub-área de investigação privilegiada desde então. Estas articulações teóricas permitiram o desenvolvimento do método antropossemiótico (PEREZ, 2011, 2016) ou etnosemiótico (MARSCIANI, 2012) e, com isso, a expansão das possibilidades de investigação sobre o Consumo e os consumidores, articulando o método semiótico de Peirce (antropossemiótica) e o quadrado semiótico de Greimás (etnosemiótica) com a etnografia, método privilegiado na Antropologia. 282 Comunicação, cultura e consumos Com a evolução das lógicas criadas pela sociedade em rede, conectada e em crescimento, novos desafios metodológicos se instauram. Aqui, as discussões teóricas com Henry Jenkins, Ford e Green (2013), Manuel Castells (2013), Shirky (2011), Yuval Harari (2018), Byung Chul-Han (2012, 2018), Cosimo Accoto (2020), Massimo Leone (2022), entre outros foram e são fundamentais para a compreensão das novas densidades do consumo, influenciadoras da construção de identidades plurais, em trânsito e fragmentadas, típicas das ambiências digitais, agora pautadas pelas Inteligências Artificiais e suas potencialidades e pelo paradigma algorítmico que se impõe. Nesse sentido, destaca-se o trabalho inaugural de Robert Kozinets (2020) a partir da publicação do livro Netnography, cuja primeira edição data de 2009, criando as bases para os métodos qualitativos agora contemplando as redes digitais. O autor desenvolve suas reflexões em diferentes capítulos que contemplam desde questões sociais e éticas, até os caminhos consequentes da pesquisa netnográfica, que ele faz questão de diferenciar de uma “simples” etnografia nas redes, explicitando os caminhos possíveis para a coleta de dados, interação, imersão, análise, interpretação e comunicação dos resultados. A antropologia digital e os aportes metodológicos a partir desta articulação estão também em Pink (2012, 2015), Horst; Miller (2012), Boellstorff; Nardi; Pearce; Taylor (2012) e outros. Além das abordagens qualitativas, com a netnografia se mostrando muito rentável, surgiram uma infinidade de softwares, soluções de programação e apps que são capazes de complexas correlações e estudos estatísticos, caracterizando a evolução da pesquisa quantitativa agora nas redes. Os dados, e mais recentemente, o big data e a dataficação trouxeram complexidade, mas também novas possibilidades investigativas que aportam o que a pesquisa quantitativa é capaz de oferecer: as dimensões, os tamanhos e até as projeções futuras a partir da análise passado-presente. A mais recente contribuição de Miller; Slater (2020) traz desdobramentos da etnografia no contexto das redes sociais digitais, a partir do texto inicial publicado em 2000. Assim, o desafio metodológico que temos no campo dos estudos do consumo, está justamente na capacidade de articulação da 283 SEÇÃO 6 investigação teórico-qualitativa sobre o humano, as bases de sua forma de pensar e se comportar, além da formação de hábitos e atitudes, e de seus valores, com os mais sofisticados métodos de investigação algorítmica, a partir dos recursos da Inteligência Artificial e da imensidão de dados que poderão estar disponíveis e cada vez com maior qualidade e capacidade correlacional. O desafio epistemológico Epistemologia é a reflexão sobre o conhecimento, sua natureza, limites e possibilidades. E, como vimos, o conhecimento sobre Consumo vem sendo adensado multi e interdisciplinarmente como caminho possível para compreensão dele que é “o fenômeno” mais emblemático da sociedade contemporânea. Assim, na perspectiva epistemológica, o principal desafio para o Consumo é seguir nos esforços que assegurem novas teorias a partir do Brasil e da América-Latina, sem deixar de lado os clássicos europeus e americanos, mas construindo pertinência com consistência e rigor. Nesse sentido, as reflexões de Boaventura de Sousa Santos (2021), com seus postulados sobre a necessidade da afirmação de epistemologias do Sul, trouxeram aportes teóricos, metodológicos e pedagógicos, pensando tanto na pesquisa, quanto na formação dos pesquisadores. Baseado no conhecimento advindo das experiências dos povos sulistas, colonizados, marginalizados, oprimidos pelas lógicas colonialistas, capitalistas e patriarcais do norte global, acredita o autor ser possível a criação de algo totalmente novo, dando espaço para perspectivas até então apagadas, desacreditadas ou mesmo ignoradas, articulando conhecimento científicos e saberes, em uma ecologia fértil. Falar sobre e estudar o Consumo na Europa ou nos Estados Unidos, é falar de dinâmicas integradoras da imensa maioria da população, com pouquíssimos excluídos e, em determinadas situações, nenhum excluído. Na Europa, ainda mais do que nos Estados Unidos além do estado de bem-estar social que garantiu e garante acesso aos serviços e bens essenciais de saúde e educação, por exemplo, a estabilidade econômica e social assegura a expansão dos horizontes das 284 Comunicação, cultura e consumos populações, uma vez que elas não têm que enfrentar os dramas perversos decorrentes de séculos de apartação de uma cidadania básica e digna, como acontece em praticamente todos os países da América Latina e Caribe e, certamente em muitos do continente Africano. Dia sem compras, boicotes, buycottes, cancelamentos de marcas e empresas são algumas das manifestações recorrentes nas últimas décadas principalmente nos países do norte, que demonstram, de um lado, uma população consumidora mais consciente e ativa, o que é ótimo, e de outro a existência de uma “massa” de consumidores que tem força para mudar lógicas capitalistas perversas e impor transformações no caminho de relações de consumo mais adequadas para as pessoas e para o planeta. Canclini (2010, 2012) é um pesquisador que contribui de maneira destacada para o entendimento mais alargado sobre o Consumo no contexto latino-americano, reforçando a perspectiva cidadã própria das condições de apartação vividas por milhões de pessoas. Para o autor, consumir é expressão de cidadania, portanto, com potencialidade de construir pertinência identitária. Esta “particularidade” é negligenciada nos contextos econômicos e sociais estáveis. Abordagens sobre a construção das identidades estão presentes em outras contribuições, como na obra Cultura, Consumo e Identidade, organizada por Lívia Barbosa e Colin Campbell (2006) e Canevacci (2005). Destaco de maneira especial os aportes teóricos, metodologias e orientações de pesquisas de Everardo Rocha (2005), mas também de Claudia Pereira (2017) e outros, que fazem avançar o conhecimento sobre o consumo e a publicidade e, por estarem em universidades e entidades responsáveis por construir o campo, permitem os questionamentos sobre tais conhecimentos. A partir do estudo antropológico da Publicidade e do Consumo, Rocha e seus colaboradores nos oferecem uma abordagem que sai do midiacentrismo ou da persuasão, abordagens tão recorrentes em estudos da Publicidade e do Consumo. Outras contribuições epistemológicas surgem a partir de pesquisadores maduros e das investigações de grupos de pesquisa consolidados, como REC, liderado por Guilherme Nery da UFF e Sandro Torres da UFRJ. O grupo Observatório da Publicidade 285 SEÇÃO 6 Expandida, vinculado à UFRJ, com a liderança de Patricia Burrowes (2018), Monica Machado e Lucimara Rett. O LACOOPS, da Patricia Saldanha, na UFF. O grupo PHINC, dirigido por Rogério Covaleski, UFPE, além das pesquisas de Castro (2014), Piedras (2009), Wottrich (2019) e Domingues (2016). Nesse contexto, a atuação de quase vinte anos do GESC3 – Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo, vinculado a ECA-USP, e especificamente à linha 2 do PPGCom “Processos comunicacionais: tecnologias, produção e consumo”, tem sido determinante tanto pelas pesquisas, e formação pós-graduada, quanto pela atuação política no campo e na reflexão sobre a produção de conhecimento em Consumo. No Brasil, ainda que tivéssemos experimentado importante desenvolvimento econômico e social nos inícios do novo milênio (PEREZ, 2020), a condição política dos últimos anos agravada pela pandemia da covid-19, por guerras em outros continentes, mas, principalmente, por um governo negacionista, anticiência e contra a razoabilidade de qualquer aspecto relacionado a cidadania, fez com que o empobrecimento de milhões de brasileiros assolasse o país, com aumento da miséria, da fome, com dados inimagináveis de insegurança alimentar, redução da cobertura vacinal, diminuição drástica dos investimentos na educação, desmatamentos desenfreados. Uma lista infindável de dramas que deixam marcas, afetam a saúde física e mental da população e dificultam as condições de retomada da razoabilidade necessária para planejar um futuro mínimo. Assim, se a epistemologia mais recente é entendida como “a análise das condições de produção e identificação do conhecimento válido, bem como da crença justificada” (SANTOS, 2021, p. 19), reforço aqui o esforço para a criação de um pensamento sobre Consumo a partir das nossas condições de existência e reflexão, validando ou não as epistemologias dominantes, bem como reiterando a necessidade da produção de novos conhecimentos que favoreçam e estimulem nossas capacidades cognitivas e sensíveis. Uma contribuição nesse sentido é a pesquisa, por mim submetida e aprovada no CNPq (edital 09/2020), intitulada “Ter, acessar e ser: o lugar do consumo na sociedade brasileira compreendido por meio dos vínculos de sentido produzidos na ritualização de suas 286 Comunicação, cultura e consumos práticas e na construção da identidade nacional”, que está sendo a base da edificação de um novo pensamento sobre o conhecimento que temos sobre o consumo e seu lugar na identidade brasileira. 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Em uma dessas ocasiões, Pauline e seu namorado Baugé convidaram a amiga Denise para um passeio que teria início em um restaurante para o almoço, contaria com uma caminhada agradável pela cidade, o jantar e uma ida ao teatro para fechar a noite. Pauline havia comprado um belo vestido de seda e bijuterias para exibir em suas mãos e pescoço durante o passeio. Essa prática era comum entre os funcionários do comércio, que gastavam o que tinham e o que não tinham em roupas, acessórios e delicadas iguarias. Detroit. Meados do século XX. Um eletricista monta um pequeno negócio e rapidamente obtém sucesso de mercado, expandindo sua 295 SEÇÃO 6 atuação e contratando funcionários. Torna-se, portanto, um empresário. Diante da ascensão econômica alcançada, muda-se com seus filhos e esposa para um bairro do subúrbio. Quando perguntado sobre sua classe social, o eletricista define a si mesmo e a sua família como membros de uma classe média. Para justificar a classificação, conta que sua casa era equipada com bens recém-lançados, seus filhos tinham brinquedos, o jardim era lugar para churrasco e banho de piscina com amigos e familiares, além de ressaltar as viagens que faziam nas férias e feriados. * As duas histórias acima ilustram bem como em dois contextos importantes da história do capitalismo o consumo desempenhou papel fundamental para a construção das fronteiras simbólicas de uma classe média. A primeira foi retirada de O Paraíso das Damas, publicado por Émile Zola em 1883, que narra o romance da jovem vendedora Denise e Octave Mouret, proprietário de um importante grande magazine parisiense. Entre outras coisas, descobrimos como os funcionários da loja e um significativo grupo de indivíduos de setores intermediários passam a se diferenciar do operariado tradicional por meio da compra de produtos e serviços vendidos nos grandes magazines. A segunda história, por sua vez, foi contada por Lizabeth Cohen em seu livro A Consumers’s Republic: The Politics of Mass Consumption in Postwar America, de 2003, um estudo sobre a expansão do consumo nos Estados Unidos a partir da segunda metade do século XX. A autora revela como a publicidade, o marketing, a comunicação de massa e os shopping centers, localizados nos subúrbios, permitiram a construção da imagem da “nova classe média” norte-americana através do mundo dos bens. O objetivo deste artigo é destacar a centralidade do estudo do consumo na agenda de pesquisas da Comunicação para o século XXI, uma vez que, há mais de dois séculos, o fenômeno revela um profundo impacto na cultura moderno-contemporânea. Falamos aqui de suas representações e práticas sociais, dos espaços de compra, da publicidade, do marketing, do design, e afins. Os discursos de senso comum normalmente tratam o consumo como vilão ou 296 Comunicação, cultura e consumos mocinho. Ou o consumo é, por uma perspectiva moralista, o responsável por toda sorte de mazelas sociais ou, por uma abordagem hedonista, o caminho para a felicidade. Aqui, nossa proposta é analisar o consumo como fato social total (MAUSS, 1925), uma porta privilegiada que dá acesso às estruturas simbólicas, aos valores coletivos, à magia e às sensibilidades que atravessam a experiência humana no capitalismo. Para tanto, vamos examinar como em dois momentos históricos particulares o consumo inventou ideias de pertencimento à classe média: o surgimento dos grandes magazines nos centros urbanos europeus do século XIX e início do XX; a emergência dos shopping centers nos subúrbios norte-americanos a partir dos anos 1950. Esses dois exemplos revelam as formas pelas quais o consumo incorporou volumosos segmentos da sociedade ao mundo dos bens, ao mesmo tempo que delimitava as fronteiras simbólicas da classe média. As ciências sociais estudaram as classes médias tomando como ponto de partida, mesmo que por abordagens distintas, a esfera da produção. Os teóricos marxistas separavam as classes sociais de acordo com o lugar que ocupavam no processo produtivo. Por isso, defendiam ora que a classe média era parte da classe trabalhadora, ora que era uma outra classe sem maior importância, ora algo relevante, mas de difícil definição e compreensão. Os weberianos, por sua vez, conferiam centralidade às ocupações profissionais, aos contratos estabelecidos, aos tipos de trabalho e às possibilidades no mercado. Os durkheimianos defendiam a investigação das “microclasses”, valorizando as diferentes características das ocupações no mundo do trabalho. Teóricos de todas essas tradições buscaram estabelecer critérios para definir o que seria a classe média, falando em coisas como autoridade, modalidade de trabalho, credenciais, habilidades e propriedade. Neste artigo, vamos analisar a classe média como conceito, algo almejado por aqueles que buscam se diferenciar das camadas populares e se aproximar dos mais abastados. Trata-se de examinar como o consumo estimula sonhos de ascensão social e pertencimento à classe média que se realizam por meio da compra de produtos, serviços e experiências. 297 SEÇÃO 6 Grandes magazines e classes médias na Europa Os grandes magazines se espalharam pelas cidades europeias entre meados do século XIX e os primeiros anos de século XX. O pioneiro Le Bon Marché foi criado em Paris por Aristide Boucicaut, em 1852. A capital francesa recebeu ainda o Louvre, em 1855, o Printemps, em 1865, e Les Galeries Lafayette, em 1895. Em Londres, a Harrods foi criada ainda em 1848 e se expandiu em 1905, disputando a preferência dos consumidores com a Selfridges, inaugurada em 1909. Milão recebeu La Rinascente, em 1865; Amsterdam a Bijernkorf, em 1870; Berlim a Wertheim, em 1896, e a KaDeWe, em 1907 (MILLER, 1981, RAPPAPORT, 2000, ROCHA; FRID; CORBO, 2016). Esses estabelecimentos modelaram as práticas de consumo como conhecemos hoje. Ao expandirem de maneira inédita as atividades de compra, impulsionaram a sociabilidade feminina no espaço público e, como aqui nos interessa, recrutaram amplos contingentes de consumidores por meio de representações de classes médias atreladas ao mundo dos bens. Também conhecidos como lojas de departamentos, esses espaços de compra surgiram no contexto de consolidação do processo de industrialização, do sistema de equilíbrio de poder entre as grandes potências, do padrão internacional do ouro e da crença em um mercado autorregulado e em um estado liberal (POLANYI, 2012 [1944]). Naquele contexto, os centros urbanos europeus se transformavam profundamente. Paris, que serviria como modelo para as demais, passou pelas reformas do Barão Haussmann, com investimentos na iluminação pública, no sistema de águas, na instalação de esgotos, no comércio e na construção de amplos bulevares para a circulação das pessoas (SENNETT, 1998). Também a mídia se expandiu com o aumento no número de jornais e tipografias (DARNTON, 1996), da capacidade de tiragem e do público leitor; surgiram ainda as agências de notícias e de publicidade (PARINET, 1993; MEYER, 1996). No mesmo diapasão, as mulheres capitaneavam movimentos políticos pela autonomia individual, o direito ao trabalho e a participação na esfera pública. 298 Comunicação, cultura e consumos Nesse cenário de transformações, os grandes magazines atuavam de maneira pedagógica e apresentavam novos gostos, comportamentos e valores que se materializavam nos bens que enchiam suas prateleiras. Seus anúncios, catálogos e decoração ensinavam modos de vida, diziam o que comprar, para quem e como usar; esse espaço de comunicação e consumo ofertava o estilo burguês em seus produtos e ambientes (MILLER, 1981, ROCHA; FRID; CORBO, 2016). O segredo do sucesso comercial era um modelo de negócios que tinha como principal objetivo acelerar o percurso das mercadorias da produção aos consumidores. Como indica Verheyde (2012), eram seis seus métodos fundamentais: o investimento em anúncios e catálogos; a fixação e exibição dos preços; a livre entrada e circulação dos consumidores; a divisão dos produtos em diversas seções; a política de devoluções; a redução dos preços atrelada ao aumento das vendas. Por isso, nos grandes magazines as consumidoras encontravam de tudo, desde produtos dos mais variados até espaços de entretenimento, como restaurantes, lanchonetes, bibliotecas, galerias de arte, salas de descanso e salões de beleza. Assim, as mulheres das camadas médias e altas, naquele contexto ainda restritas às casas e igrejas, ganhavam um novo espaço para sua sociabilidade; já as mulheres mais pobres encontravam oportunidade de emprego, independência financeira e ascensão social (RAPPAPORT, 2000, ROCHA; FRID; CORBO, 2016). Para garantir o bom funcionamento desses espaços grandiosos de vendas, os grandes magazines contavam com estruturas fabris em seus bastidores. Eram milhares de trabalhadores divididos em tarefas para receber, organizar e distribuir os produtos pelas seções. Essa parte das lojas não era visível para a clientela. Sua face pública era como um universo mágico, que começava nas vitrines, passava pela decoração de seus interiores, pela exposição de uma imensidão de produtos e pela cortesia de vendedores, chefes de seção, gerentes e caixas (ROCHA; FRID; CORBO, 2016). Essa arena de vendas de bens e sonhos ritualizou as atividades de consumo, transformando feriados tradicionais em festas de compra, inventando outras ocasiões e criando um calendário que se repetia todos os anos (ROCHA; FRID; CORBO, 2016). No Bon Marché, por exemplo, em janeiro e fevereiro, 299 SEÇÃO 6 acontecia o dia do branco; março contava com a apresentação das coleções de verão; em abril e maio, os produtos da coleção de inverno entravam em liquidação; outras promoções se sucediam até outubro, quando as novas coleções ganhavam as vitrines e prateleiras da loja; em dezembro, as vendas atingiam números exorbitantes com o Natal e o Ano Novo (ROCHA; FRID; CORBO, 2016). Mas, afinal, quem eram os clientes dos grandes magazines? Durante o século XIX, como resultado do fluxo de imigrantes das pequenas cidades e do campo, a população das capitais europeias cresceu de maneira significativa. Em 1801, Paris contava com 547.756 habitantes; em 1896, esse número chegaria a 2.546.834. Londres, por sua vez, mais ou menos no mesmo período, saltou de 864.845 para 4.232.118 habitantes (SENNETT, 1998). A massa de indivíduos recém-chegada às capitais encontraria emprego nos bancos, nas seguradoras, no comércio, na administração das empresas e na burocracia do setor público, sempre em posições que gozavam de diferentes níveis de renda e prestígio (GAY, 2002). Pensando esse segmento como uma pirâmide, podemos encontrar professores primários, artesões qualificados e funcionários públicos com ganhos modestos; também comerciantes, médicos e advogados que variavam sua renda de acordo com a penetração que tinham nas elites; funcionários públicos em altos cargos com ganhos significativos; até aqueles que atingiam o topo, como grandes banqueiros, empresários e editores (GAY, 2002). Todos esses comporiam os amplos contingentes de clientes dos grandes magazines. Como destaca Peter Gay (2002), o principal objetivo desses indivíduos era se diferenciar dos trabalhadores fabris. Tinham múltiplas ocupações, é verdade, mas buscavam a distinção do ponto de vista simbólico. Por isso, moravam em bairros afastados das moradias populares, escolhiam escolas diferenciadas para seus filhos e, sobretudo, marcavam sua posição social por meio dos bens. Aqui, entra a importância dos grandes magazines e do mundo do consumo, que serviu como plataforma de aprendizado de valores, comportamentos e sensibilidades burguesas. Os jornais, por exemplo, projetavam sonhos de ascensão social contando histórias de sucesso de empresários que saíam da pobreza e tornavam-se muito ricos. Entre os nomes que 300 Comunicação, cultura e consumos ganhavam destaque estavam donos de grandes magazines como Aristide Boucicaut, que começou sua carreira como vendedor e tornou-se um dos homens mais ricos da França, e Harry Gordon Selfridges, norte-americano que foi de um simples empregado da Marshall Field’s, em Chicago, a dono de uma das lojas mais emblemáticas de Londres. Se essas histórias estimulavam sonhos de ascensão social, os anúncios dos grandes magazines ensinavam a marcar a posição social diferenciada por meio dos bens. Ao mesmo tempo que davam significado aos produtos, contribuíam para modelar o comportamento dos consumidores. Um bom exemplo é a peça publicitária da Selfridges – “Sale of Flannel Shirts and Finest-made Pyjamas” – publicada no jornal The Daily Telegraph, em abril de 1910. Ela busca orientar os homens da época em seu vestuário oferecendo produtos que seriam “da mais alta qualidade”, “cortados à mão” e vendidos a “preços vantajosos”. Outro bom exemplo é o anúncio publicado pelo Bon Marché no The Illustrated Sporting and Dramatic News, em maio de 1890. A peça indicava que o catálogo do grande magazine poderia ser enviado para Londres, para que a clientela feminina pudesse visualizar, experimentar e sentir as amostras de sedas, vestidos, estampas, fitas e tecidos dos mais diversos. O material era acompanhado, ainda, de ilustrações das roupas e incontáveis acessórios para mulheres, homens, meninas e meninos. Em suma, o consumo apresentava as fronteiras simbólicas da classe média para esse significativo grupo de indivíduos que ocupavam os centros urbanos europeus entre meados do século XIX e início do XX. Se a preocupação era não ser confundido com o proletariado, frequentar os grandes magazines, observar seus anúncios, consultar seus catálogos e comprar seus produtos e serviços era acessar valores burgueses materializados, era pertencer a uma classe média que se expressava e existia no mundo dos bens. Shopping centers e “nova classe média” nos Estados Unidos Os shopping centers surgem nos Estados Unidos a partir dos anos 1950. Localizados nos subúrbios que se expandiam após a Segunda 301 SEÇÃO 6 Guerra Mundial, entre os pioneiros podemos citar o Northgate Mall, que abriu as portas, em 1950 próximo à Seattle, assim como o Lakewood Center e o Stonestown Shopping Center, inaugurados na Califórnia, em 1951 e 1952. Foram sobretudo as dezenas de shopping centers projetados pelo arquiteto Victor Green que fizeram desses espaços de compra protagonistas na sociedade norte-americana. Entre os de maior destaque estão o Northland Center, de 1954, o Southdale Center, de 1956, o Eastland Center, de 1957, e o South Coast Plaza, de 1967 (PADILHA, 2003, COHEN, 2004, HARDWICK, 2004). Esses estabelecimentos comerciais vendiam produtos, serviços e sonhos, constituíam-se como plataformas de entretenimento que faziam do consumo projeto de vida, tudo isso atravessados por inovações diversas, pela interação com as transformações urbanas e, principalmente, sustentando representações de uma “nova” classe média consumidora. O cenário no qual os shopping centers se espalham pelos Estados Unidos é marcado por mudanças importantes no tecido social. O fim da Segunda Guerra Mundial é seguido pela consolidação dos valores e ideologias que tomam o capitalismo como modelo e o consumo como seu principal expoente. É o momento da propaganda do American way of life, difundido pelos meios de comunicação de massa que se expandiam, como o rádio (agora também nos automóveis), as revistas, os jornais e a recém-chegada televisão (BRIGSS; BURKE, 2016). Para impulsionar esse estilo de vida, foi fundamental o desenvolvimento do mercado publicitário, que vive seu momento de maior destaque com a produção de anúncios que usavam técnicas inovadoras e caíam no gosto popular. As atividades de compra também se expandiam graças ao desenvolvimento dos supermercados (KNOKE, 1963), ao aparecimento das famosas redes de fast-food, à construção de Las Vegas como centro de consumo repleto de hotéis e cassinos e à inauguração da Disneyland, na Califórnia (RITZER, 2005). Nesse contexto, também acontece o importante movimento pelos direitos civis de negros e negras, da população homossexual, assim como a luta pela emancipação da mulher. Além desses fatores, outra mudança na sociedade norte-americana impulsionou o surgimento dos shopping centers e a consequente 302 Comunicação, cultura e consumos proliferação de representações de classes médias consumidoras. Trata-se da migração de parte significativa da população para os subúrbios. Assim como faziam as classes médias europeias que vimos há pouco, segmentos intermediários que ascendiam socialmente nos Estados Unidos buscavam se diferenciar das camadas populares. Para tanto, iam para os subúrbios almejando uma vida distante do caos urbano provocado pelos congestionamentos de automóveis (COHEN, 2004). A população nos subúrbios cresceu 43% entre 1947 e 1953, ano em que atingiu 30 milhões de residentes. Diante do crescimento dos subúrbios e da migração de segmentos intermediários para essas regiões, se fazia necessária a construção de um espaço que, sintonizado com as questões de seu tempo, contribuísse para a construção da identidade social desses consumidores. Os shopping centers construídos nos subúrbios eram espaços gigantescos e ofereciam todos os tipos de produtos e serviços. O sucesso foi tão grande que, em 1967, já eram 17 mil estabelecimentos espalhados pelos Estados Unidos (COHEN, 2004). Os shopping centers contavam com amplos estacionamentos ligados às rodovias e tinham como protagonistas em suas estruturas as lojas âncoras (normalmente lojas de departamentos e supermercados). Também contavam com lavanderias, bancos, restaurantes, lanchonetes, correios, agências de viagem, salões de beleza, barbearias e corretoras. Para o lazer da clientela, cinemas, espetáculos variados, teatros, pistas de boliche, playground, shows e pistas de patinação eram comuns. Como os grandes magazines, os shopping centers foram construídos para que sua clientela encontrasse de tudo e pudesse passar praticamente todo o dia em seus interiores. Esses grandiosos estabelecimentos comerciais foram moldados para a sociabilidade das famílias suburbanas, oferecendo produtos, serviços e experiências para homens, mulheres e crianças. As políticas de crédito na sociedade norte-americana também impulsionavam o consumo nos shoppings (COHEN, 2004). Esses centros comerciais ritualizavam as compras através de eventos variados que aconteciam durante o ano. Feriados já estabelecidos, como o Natal, eram sempre celebrados nos shopping centers, com belas árvores, o 303 SEÇÃO 6 Papai Noel e promoções. Mas, também aconteciam eventos esporádicos, que marcavam o lugar como palco de atividades de entretenimento. É o caso da apresentação de circo e do rodeio realizados no Northland, em 1960 e 1961 respectivamente, e noticiadas no Detroit Free Press. Para se ter uma ideia, falando especificamente do segundo evento, o jornal convidava os leitores dizendo que: “No meio de centenas de donas de casa suburbanas, você encontrará o mais rude dos americanos, o cowboy de rodeio”. Coisas como essas aconteciam com muita frequência nos shopping centers. A expansão do consumo impulsionada pelos shopping centers e atrelada à publicidade e à comunicação de massa delimitava as fronteiras simbólicas e projetava os códigos de pertencimento a uma “nova” classe média. Como bem mostrou Wright Mills (1951), durante a primeira metade do século XX se expandiu nos Estados Unidos o grupo de empregados de colarinhos brancos, que vão desde trabalhadores de escritório em níveis baixos (mais próximos dos operários em seus rendimentos) até outros que, no topo da pirâmide, atuavam como gerentes do capital. Faziam parte desse novo tipo profissional cinco grupos de ocupações, todos empregados assalariados em corporações: o demiurgo administrativo (gerentes que comandam o trabalho de outros), mundo das antigas profissões (médicos, advogados e professores), novas especialidades (enfermeiras, técnicos de pesquisa, especialistas, estudiosos), sociedade anônima dos intelectuais (escritores, poetas, jornalistas e editores), mundo do grande magazine (vendedores, representantes de vendas, balconistas, supervisores e publicitários). Esses eram os profissionais que migravam para os subúrbios das grandes cidades e experimentavam um estilo de vida cercado por todo tipo de bens, constituindo o que se entendia como uma “nova” classe média. Os shopping centers, a publicidade e a comunicação de massa foram fundamentais nesse processo. Life, The Ladies Home Journal, Newsweek e Redbook, por exemplo, ensinavam a como pertencer à classe média. Suas reportagens eram pedagógicas sobre produtos e serviços que deveriam ser consumidos e também sobre os valores, hábitos e etiquetas compartilhados. O filme In the Suburbs, produzido 304 Comunicação, cultura e consumos pela Redbook para seus anunciantes, mostrava os detalhes da vida desses indivíduos e suas famílias, suas expressões felizes, o lazer das crianças, as confraternizações com os vizinhos, as obras e decorações nas casas, a proliferação de objetos, o interesse pelas novidades, enfim, a constituição de um novo segmento de consumidores (COHEN, 2004). O consumo era de fato o protagonista, o elemento aglutinador. Os shopping centers se encaixavam perfeitamente nesse processo e, mais do que isso, potencializavam o acesso a esse mundo de sonhos. Na matéria “Commercialism Takes-and Wears-a New Look”, publicada no Ladies’ Home Journal, em junho de 1954, descobrimos que o Norhtland contava com a circulação de “40 mil a 50 mil clientes por dia”. Uma das informantes da reportagem diz que “Quando o passageiro sai do estacionamento, ele está no paraíso das compras”. Além de encantarem seus consumidores com as possibilidades de compras, o entretenimento oferecido pelo teatro, cinema, pistas de boliche e patinação, restaurantes e lanchonetes, a comodidade dos serviços de correios e banco, os shopping centers modelavam o imaginário das classes médias também sobre suas casas. Vemos isso em um anúncio publicitário da Hudson’s publicado, em setembro de 1959, no Detroit Free Press. Tratava-se de um convite para que a clientela conhecesse a casa projetada pela loja de departamentos no shopping Eastland: “Sim, esta é a última semana para ver como os decoradores de Hudson criaram uma nova e emocionante habitualidade em uma pequena casa...The Eastlander – uma casa completa de 5 quartos no shopping Eastland Center”. Mais do que produtos, a exposição da loja vendia ideias de decoração de residências para sua clientela suburbana. Nesse mesmo sentido, eram comuns os anúncios de eletrodomésticos, cozinhas montadas como as da Gas Kitchen, de eletrônicos, móveis e automóveis, todos apresentados como passaporte para a vida de uma família bem-sucedida. Ainda mais, em meio às lutas políticas pelos direitos civis no Estados Unidos, o consumo projetou imagens e ideias de uma classe média negra. Ao mesmo tempo em que surgem os shopping centers e as atividades de compra se expandem, aumenta o número de negros como colarinhos brancos e o consumo se consolida como arena para 305 SEÇÃO 6 sua atuação política. Eram comuns, sobretudo no Sul do país, os boicotes a lojas que não empregavam e nem prestavam atendimento adequado aos negros (WEEMS JR., 1998, PARKER, 2012). Além disso, o mundo dos bens passa a se comunicar diretamente com esses consumidores e os negros começam a aparecer nas propagandas. A Pepsi-Cola lançou, em 1948, a campanha “Leaders In His/Her Field”, que apresentava homens e mulheres negras de amplo destaque social consumindo a bebida. A Coca-Cola não ficou atrás e contratou, no mesmo período, celebridades negras para suas campanhas e mostrou famílias comuns realizando atividades cotidianas, sempre em belas casas, cercadas de produtos e com o refrigerante em destaque. Outras marcas seguiram o mesmo caminho e anunciaram na revista Ebony e em outras publicações voltadas para negros e negras nos Estados Unidos. Enfim, em meio ao crescimento de um segmento intermediário na sociedade norte-americana, o consumo recruta esses indivíduos como consumidores, vendendo o pertencimento a uma classe média caracterizada pela posse de determinados bens e o uso de certos serviços. O shopping center é a principal mola propulsora nesse processo, pois oferece para as famílias que passam a morar nos subúrbios das grandes cidades a possibilidade de pertencer a uma “nova classe média”, que se diferencia das camadas populares ao de certa forma realizar seus sonhos de ascensão social comprando e vivendo o mundo dos bens. Considerações finais Nos dois casos apresentados, o consumo – através de seus espaços de compra em especial, mas também da propaganda e dos meios de comunicação – delineou as fronteiras simbólicas de uma classe média que se reconhecia por meio de produtos, serviços e experiências. Nossa intenção aqui foi destacar a possibilidade de pensar a classe média não como um grupo de pessoas que se encaixam em determinados critérios relacionados à produção, mas sim como um conjunto de representações sociais vinculadas ao consumo. Tanto os grandes magazines quanto os shopping centers revelam essa vocação classificatória do consumo, capaz de recrutar grupos significativos de indivíduos para 306 Comunicação, cultura e consumos o mundo dos bens, ao ensinar modos de vida, hábitos, valores e comportamentos. Afinal, como indica Wright Mills (1969 [1951], p. 255): Cada dia os homens vendem pequenas parcelas de si mesmos para tentar comprá-las de novo cada noite e fim de semana com a moeda do “divertimento”. Com as diversões, com o amor, com os filmes, com a intimidade vivida por interposta pessoa, eles reconstituem a integridade de seu eu, e transformam-se em pessoas diferentes. Assim, o ciclo do trabalho e lazer dá origem a duas imagens diversas do eu: a imagem cotidiana, ligada ao trabalho, e a imagem de feriado, baseada no lazer. A imagem de feriado costuma ser profundamente imbuída de aspirações e sonhos, e é, naturalmente, alimentada pelas personalidades e acontecimentos divulgados pelos veículos de comunicação de massa. Com isso, entendemos que o mundo do consumo projeta sonhos de ascensão social e pertencimento à classe média que podem ser alcançados por meio das atividades de compra. Nas lojas, nas propagandas e na comunicação de massa, vemos uma realidade sem contradições, a alegria proporcionada pelos bens e serviços. Enfim, o exemplo das classes médias inventadas pelo consumo é bom para pensar o fenômeno como fato social total, algo que, entre outras coisas, fala de maneira pujante sobre a sociedade. Nesse sentido, se o estudo do consumo é capaz de explicar o que uma sociedade entende como classe média, ele também oferece caminhos para a compreensão do que é ser criança, jovem, velho, homem, mulher, brasileiro, minimalista, sustentável e assim por diante. Examinar o passado é uma garantia de agenda para o futuro. De outra forma, a investigação da história não existiria. Portanto, pela força de sua sustentação secular, é imperioso que o consumo e a narrativa publicitária ocupem lugar de destaque na agenda de pesquisas da Comunicação para o século XXI. 307 SEÇÃO 6 Referências COHEN, Lizabeth. A consumers’ republic: the politics of mass consumption in postwar America. Nova York: Vintage Books, 2004. GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média, 18151914. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. HARDWICK, Jeffrey. Mall Maker: Victor Gruen, Architect of an American Dream. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 2004. KNOKE, William. O supermercado no Brasil e nos Estados Unidos: confrontos e contrastes. RAE: Revista Brasileira de Administração de Empresas, v. 3, n. 9, out./dez., 1963. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão troca nas sociedades arcaicas. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia, v. 2. São Paulo: EPU; EDUSP, 1974 [1925]. MILLER, Michael. The Bon Marché. Nova Jersey: Princeton University Press, 1981. MILLS, Charles Wright. A nova classe média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 [1951]. PADILHA, Valquíria. Shopping center: a catedral das mercadorias. São Paulo: Boitempo, 2006. PARKER, Traci. 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Nova York: New York University Press, 1998. 308 SEÇÃO 7 Comunicação e Televisão Hoje A televisão, hoje. Ou, “A televisão morreu? Viva a televisão!” Maria Immacolata Vassallo de Lopes Television is the software of the earth. Television is invisible. It’s not an object. It’s not a piece of furniture. The television set isirrelevant to the phenomenon of television. The videosphere is the noosphere transformed into a perceivable state. Gene Youngblood. Expanded cinema. Toronto: Clarke, Irwin & Company, 1970 (*). Premissas A premissa geral que norteia este texto1 é a de ir além da literatura e dos discursos que adotam a “morte da televisão” e faz a proposta (*) “A televisão é o software da terra. A televisão é invisível. Não é um objeto. Não é um móvel. O aparelho de televisão é irrelevante para o fenômeno da televisão. A videosfera é a noosfera transformada em um estado perceptível.” (tradução nossa). Youngblood se inspira na ideia de Pierre Teilhard de Chardin de “noosfera” como a esfera do pensamento humano, ou a inteligência organizada, que atua como uma força real no mundo para explicar o fenômeno da televisão. 1 O presente texto é uma primeira proposta a respeito de uma nova denominação de televisão que atenda à complexidade cada vez maior dos seus estudos e, principalmente, à velocidade das transformações que ocorrem com esse meio audiovisual. Portanto, deve ser lido como um texto inicial, quase um conjunto de notas, e que deve desdobrar-se em textos ulteriores mais ajustados e sistematizados. Lembro que dotei essa mesma estratégia quando criei o duplo conceito narrativa da nação e recurso comunicativo. 311 SEÇÃO 7 de uma reflexão epistemológica com base em dados empíricos para introduzir uma nova perspectiva – a TransTV ou Televisão Transformada – para denominar a televisão contemporânea. Trata-se, portanto, de um novo conceito e de um novo termo que vale tanto para o discurso acadêmico como para o uso popular. Para fundamentar esse conceito, pretendemos expor algumas das principais preocupações, conceitos e teorias que têm marcado os nossos estudos de televisão nos últimos anos, a fim de propor uma possível e renovada agenda de estudos em que são analisados os principais desafios à televisão pelas novas plataformas digitais e pelos novos usos das redes sociais. É a emergência de um ecossistema comunicacional (imbricação do digital e a narrativa televisiva) que pode vir a qualificar a competência do pesquisador de televisão mais ajustada às modificações aceleradas e às inovações desse meio tornado cada vez mais complexo. 1. O Que é a Televisão, Hoje Partimos da premissa de que os fenômenos planetários da globalização e da pandemia podem ser encarados dialeticamente como ameaças e extinções, bem como de oportunidades e renovações. Isso significa para nós a chance de renovar o olhar tanto sobre a prática da televisão e da pesquisa de televisão em geral, bem como sobre a televisão em geral e a teleficção em particular. Transmídia, práticas de fãs, construção de mundos, transnacionalização da ficção, inovações tecnológicas, impactos da pandemia, são alguns fenômenos que renovam hoje a importância que a teledramaturgia, sobretudo a telenovela, tem para as dinâmicas socioculturais e econômicas que incidem sobre a identidade nacional e também na economia política da televisão no país. A teledramaturgia, ao longo dos últimos 70 anos, vem se afirmando como produto artístico e industrial relevante na sociedade brasileira, com grande peso na economia criativa, no mercado publicitário e com alcance transversal em todas as classes. São experiências ampliadas pelos impactos da digitalização na indústria audiovisual que vêm reconfigurando as práticas de produção, distribuição e 312 Comunicação e Televisão Hoje consumo da ficção televisiva. Dentro desse panorama, vemos a “teledramaturgia constituir-se como recurso comunicativo que consegue comunicar representações que atuam, ou ao menos tendem a atuar, para a inclusão social, a responsabilidade ambiental, o respeito à diferença, a construção da cidadania” (LOPES, 2009, p. 22). Destacamos que os conceitos narrativa da nação e recurso comunicativo (LOPES, 2003, 2009) aparecem reafirmados pela teledramaturgia, agora no ecossistema comunicacional digital. A televisão assume funções sociais cada vez mais importantes e complexas no ambiente contemporâneo. O ato de assistir a conteúdos televisivos compreende diferentes formas de entrega, do tradicional broadcasting ao da pequena tela, às múltiplas telas e às plataformas interconectadas. Johnson (2020) comenta que para apreender as funções sociais, culturais e políticas da televisão em um ecossistema de rápidas e profundas mudanças é preciso adotar uma visão ampliada das suas dimensões tecnológicas, sociais, industriais, organizacionais e experimentais. Aqui vale a referência para quando começaram a aparecer no Brasil e no exterior os trabalhos dos grupos de pesquisa Obitel e Obitel Brasil2, a partir dos quais fundamentaremos o presente texto. A complexidade do fenômeno televisivo vem sendo investigada de modo transdisciplinar e multimetodológica. Como costuma se afirmar, um objeto complexo exige metodologia complexa. A ficção televisiva, principal objeto de atenção do Obitel, é examinada numa maneira de modo a sistematizar fenômenos em torno da produção, distribuição e consumo de conteúdos e formatos televisivos sempre a partir do “ponto de vista comunicacional”. em diálogo com diferentes áreas do saber que convergem na ficção televisiva, tais como: memória social, narrativização, transmidiação, criatividade e inovação nas narrativas, competências midiáticas da 2 O Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (Obitel), criado em 2005, é formado por 11 países e publica resultados comparativos que formam bancos de dados e séries históricas de análise da ficção ibero-americana, reunidos até agora em 15 Anuários Obitel. Disponível em: http://obitel. net. O Obitel Brasil, Rede Brasileira de Pesquisadores de Ficção Televisiva, é o braço brasileiro do Obitel e foi constituída em 2007, possui 10 grupos de pesquisa e publica bienalmente livros temáticos sobre a teledramaturgia brasileira, somando até o momento sete volumes. Ver: www.obitelbrasil.blogspot.com.br . 313 SEÇÃO 7 recepção, identidades e representações, entre outros. Parafraseando Kellner (2001), o interesse está em produzir estudos que não se detenham exclusivamente nos limites de um texto, mas que procurem saber como ele se encaixa nos sistemas de produção textual e de que modo vários textos fazem parte de sistemas ideológicos, de gêneros e de indústria. Parece-nos que uma abordagem complexa da ficção televisiva deve utilizar uma multiplicidade de perspectivas e métodos críticos, assim como de estudos que delineiam uma ampla gama de posições a respeito da intersecção entre o público e o conteúdo televisivo produzido por determinada emissora, salientando temas ligados à educação, à cidadania e à agenda de políticas públicas. Essa tarefa requer uma abordagem transdisciplinar e multicultural que vincule as diferentes dimensões do público (classe, raça, etnia, gênero, sexualidades) às estratégias textuais das narrativas seriadas e às estratégias produtivas da empresa, sem descuidar do exame dos impactos da transnacionalização e da plataformização sobre os modos de criar e consumir ficção televisiva. Séries, novelas e minisséries são recursos capazes de fomentar no público imaginários que suscitam “alternativas às atuais condições culturais, políticas ou econômicas”, pois, “não se pode mudar o mundo sem imaginar como seria um mundo melhor”. (JENKINS; PETER-LARAZO; SHERSTHOVA, 2020, p. 5). É o que propriamente caracteriza os estudos de intervenção, pelos quais as ciências sociais e as humanidades, em que se inclui a comunicação, devem divulgar e aplicar os resultados dessas novas abordagens e objetos que apenas começamos a identificar no campo da comunicação. 2. TransTV: A Televisão Como Ecossistema Digital-Narrativo Nosso foco aqui é a televisão contemporânea com seus últimos desenvolvimentos e tendências emergentes, notadamente os novos serviços de VoD, como Netflix, Globoplay, Prime, HBOMax, Disney+ etc. São transformações que desafiam os discursos acadêmico e popular, 314 Comunicação e Televisão Hoje apontando não apenas para mudanças tecnológicas da televisão e o mercado local e transnacional, mas igualmente para mudanças nos regimes de serialização, narrativização, práticas de visualização, consumo móvel, novos tipos de fandom, entre outras. A televisão está passando por processos de permanentes e aceleradas mudanças e, a despeito das variedades de enfoques, há um consenso na literatura nacional e internacional de que, à luz das múltiplas transformações da televisão nas últimas décadas, muitos dos principais conceitos e suposições sobre a televisão exigem uma completa reconsideração. Muitas expressões surgiram, como: TV de plataforma, SVoD (Serviço de Vídeo sob Demanda), binge-viewing, TV transnacional, branding TV, TV pós-networking, TV distribuída por internet e outras. Mas como se tem apontado, se há uma coisa sobre a qual podemos concordar sobre a televisão contemporânea, é que ela tem sido radicalmente afetada pela implementação das tecnologias digitais. Na verdade, o que queremos dizer com palavra “televisão” hoje, mudou radicalmente frente ao modelo clássico da sociedade em rede de Castells (2002), de transmissão um-para-muitos. Tanto é verdade que termos-chave como “canais”, “públicos”, “horários”, ‘gêneros’ têm seus significados radicalmente transformados. Essas discussões apontam para a necessidade de renovação de abordagens e de conceitos, mas que, a nosso ver, têm ocorrido de maneira segmentada e separada. No que cabe ao escopo do presente texto, é possível fazer apenas a crítica por relegar a um segundo plano a compreensão integrada do que chamamos ecossistema digital-narrativo, uma perspectiva que exige a interação e a integração de estudos empíricos da indústria de televisão, de leitura da estética televisiva e de abordagens representacionais da suas audiências. A proposta central é que através do conceito TransTV é possível operar intervenções nessas múltiplas transformações contemporâneas da televisão, enfatizando que elas precisam ser pensadas em conjunto, holisticamente, como sistema, pois as discussões sobre as transformações tecnológicas da indústria não estão separadas das transformações estéticas e narrativas, bem como das experiências televisivas do público. Embora tanto os “estudos de produção” quanto 315 SEÇÃO 7 as viradas “estéticas” dos estudos de televisão sejam bem-vindos, eles não devem ser vistos como empreendimentos separados, especialmente considerando as tendências convergentes dos sistemas digitais, pelos quais o conteúdo televisual está sendo distribuído de modo contrário aos antigos modelos de redes de televisão. Mais do que isso, estes novos modos de produção, distribuição e consumo, definidos de acordo com os desejos de usuários ativos e de nicho, vão na contramão do modelo de transmissão controlado pela rede, sua programação e publicidade, e devem abrir novos caminhos para abordagens convergentes e transdisciplinares. Assim, propomos a noção de TransTV com o objetivo de que as transformações acima apontadas – tanto da televisão quanto dos estudos de televisão, em termos de tecnologias e sistemas de entrega, bem como de conteúdos e estéticas e de experiências da recepção – possam ser articuladas em conjunto, em um diálogo gerado dentre os estudos inovadores da televisão sobre a produção industrial, as viradas estéticas e as novas experiências de consumo. A característica básica do enfoque metodológico é empírico, transdisciplinar e comparativo. Os conteúdos geograficamente localizados e globalmente consumidos exigem que as mudanças na geopolítica do transnacional sejam estudadas na perspectiva conjunta da indústria e da academia. Não é o caso, aqui, de fazermos o mapeamento de estudos e experiências (o que demandaria fazer uma metainvestigação sobre os estudos de televisão), mas sim de incorporarmos, através do conceito TransTV, os acelerados impactos na produção e distribuição da televisão, e nas experiências de visualização, a fim de compreendermos o que significa “fazer, distribuir e assistir TV” no século XXI. 3. A Televisão Contemporânea no Brasil e a TransTV Tomamos a criação do Globoplay, plataforma de VoD do Grupo Globo, em 2015, como marco empírico da emergência da TransTV no Brasil, uma vez que com ele se completa o processo de plataformização da televisão, tal como existe nos demais países. Em outros termos, a plataforma de streaming passa a conviver com as 316 Comunicação e Televisão Hoje duas plataformas preexistentes, a TV Aberta e a Pay TV (o conjunto das duas é chamado de TV linear), configurando assim o ecossistema audiovisual que temos hoje no Brasil. Esta nossa reflexão aparece já em 2016 (LOPES et al., 2016) sobre a presença de uma “TV Transformada”3 no Brasil. A TransTV gerou transformações radicais tanto nos conteúdos quanto nas formas de produção, de consumo e de interação, além de ter integrado tendências emergentes de plataformização, hibridação de gêneros e formatos e de audiências em interação nas redes sociais digitais. O termo TransTV, ou “TV Transformada”, também pode significar “TV em Transição”, por apontar para o processo de aceleração na temporalidade das mudanças e do trânsito e trocas entre meios e processos que antes não se tocavam, agora definidos pela transmidiação e pela transdisciplinaridade. Cabe assinalar a entrada de novos players, a partir de 2011, como Netflix, Prime Video, HBO Max e Disney+, que deram mais peso ao que chamamos TransTV. É interessante notar, também, que a televisão se mantém como o principal meio de acesso aos conteúdos sob demanda – é na TV/CTV (televisão conectada) que os brasileiros mais acessam as plataformas de streaming4. 3.1 Reconfigurações da Produção e de Gêneros e Formatos Televisivos Dentro do Marco da TransTV no Brasil A recorrente discussão acerca de gêneros e formatos no âmbito televisivo nos leva a indagar quais são os parâmetros para a definição de um e de outro desses termos. No dizer de Martín-Barbero (2001), 3 O termo “TV Transformada” (Transformed TV)” foi inspirado nas observações de Terrence Rafferty sobre as transformações no meio televisivo atual, feitas no artigo New Twists for the TV Plot, as Viewer Habits Change. (The New York Times, 3 out. 2015, cuja síntese seria: “everything about the medium — how we receive it, how we consume it, how we pay for it, how we interact with it — has been altered.” (“tudo sobre o meio – como o recebemos, como o consumimos, como pagamos por ele, como interagimos com ele – foi alterado.” - tradução nossa). Disponível em: http://www.nytimes. com/spotlight/tv-transformed?ref=television. 4 Em 2022, considerando a participação de cada formato somente para o consumo via TV/CTVs, 87% da audiência de vídeo consumido no domicílio foi de TV linear (TV aberta e PayTV), enquanto 13% foi de plataformas de vídeo online. Fonte: Kantar IBOPE Media. Inside Video 2023. 317 SEÇÃO 7 os gêneros, antes de categorizar narrativas, ocupam um lugar exterior à obra, a partir do qual o sentido da narrativa é produzido e consumido. São, portanto, estratégias de comunicabilidade, compreendidas duplamente na dimensão estética e cultural. Os formatos, por sua vez, estão associados a uma ritualização da ação que, engendrada tanto por tecnicidades ligadas aos modos de narrar, quanto a lógicas da produção (operações industriais e estratégias de comercialização), dá origem, nas suas mais diversas formas, a uma família de histórias. A metodologia que tem sido adotada pelo Obitel está alicerçada nessas diretrizes. Ela está voltada para identificar e analisar o gênero ficcional na televisão, o qual se realiza através de seus diversos formatos – telenovela, série, minissérie, telefilme, sitcom, unitário, etc. Sobrepostos aos formatos, temos, então, o gênero ficcional como categoria classificatória das narrativas – drama, comédia, ação, aventura, terror, policial, fantasia, entre outros. Segundo Balogh (2002), no caso da televisão, cada contexto cultural desenvolveu e sedimentou, na preferência do público, combinações particulares de gêneros e formatos televisivos: nos Estados Unidos, o produto tradicional do prime time é o gênero drama e o formato, a série, (com duração de 45 a 60 minutos), além da comédia, no formato sitcom (por volta de 30 minutos). Por outro lado, na América Latina, cuja televisão teve influência primordial da tradição radiofônica e do folhetim literário, o prime time oferece o formato telenovela (seriado) desenvolvido especificamente através do gênero (melo)dramático, que mescla subgêneros diversos (humor, suspense, romance) numa única trama, de aproximadamente 150 capítulos de 40 minutos cada. A telenovela se desenvolveu em diferentes modelos nas regiões do continente latino-americano5. No Brasil, a telenovela se consolidou, ao longo do tempo, como o formato mais assistido e reconhecido pelo público por interagir com as mudanças da sociedade, incorporando-se, de vez, à cultura do país. 5 Para Mazziotti (1996), havia seis grandes modelos de produção de telenovela na América Latina: o brasileiro (Globo), o mexicano (Televisa), o de Miami (hispânico, EUA), o argentino, o venezuelano e o colombiano. Atualizando para hoje, esses modelos de produção são quatro: o brasileiro (Globo), o mexicano (TelevisaUnivision), o colombiano e o argentino. 318 Comunicação e Televisão Hoje A telenovela brasileira é, em sua essência, um compósito de gêneros. Em geral, inicia com uma trama central dramática, marcada por difícil resolução de um conflito romântico e/ou moral. Ao redor dele, articulam-se diversas tramas, também chamadas de “núcleos”, construídos cada qual por um gênero. Normalmente, há um núcleo de humor, outro com mais ação ou mistério, outro mais romântico. São geralmente denominadas “tramas paralelas” – que não são exatamente “paralelas”, pois delas se espera que interajam com a trama central, contribuindo para a progressão da história como um todo. Assim, o público de telenovela no Brasil está acostumado a acompanhar diversas tramas simultâneas em uma única narrativa de ficção. 3.2 Reconfigurações de Gêneros e Formatos nas Ficções Televisivas Brasileiras dos Últimos Anos Inserida no contexto das tecnologias digitais e dos fenômenos de globalização da cultura, as ficções televisivas vêm experimentando uma confluência de elementos que dão farta margem a novas configurações de gêneros e formatos, submetida que está às velozes mudanças nos âmbitos de sua produção, circulação e recepção. Conteúdos ficcionais em múltiplas telas e diferentes plataformas foram percebidos como tendência desde o início da série histórica do Obitel – e destacada a partir de 2010, através de análises mais aprofundadas sobre a recepção transmídia. Elas revelaram ser possível visualizar os modos como as narrativas transmídias percorrem os mais variados dispositivos provocando transformações nos hábitos do ver e assistir a ficção. Acaba o aprisionamento a uma grade de programação, os horários tornam-se fluidos através do uso das mais variadas telas. Esses vetores passarão, cada vez mais, a interferir nas esferas da produção, incluindo aí a criação e concepção das narrativas, e da circulação, através de novas formatações e plataformas. Nesse cenário, as questões mais discutidas nos últimos tempos transitam em torno das narrativas complexas. Mittell (2006) aponta que a complexificação verificada em títulos da Transformed TV da televisão americana se apoia, principalmente, na hibridização das duas formas 319 SEÇÃO 7 tradicionais de serialidade: a serial, forma contínua, capitular, na qual há um grande arco dramático perpassando toda a narrativa, e a series, forma episódica, em que os arcos não ultrapassam a unidade do episódio6. Também emergem importantes estudos sobre aspectos dessas narrativas complexas, como o de Silva (2014) sobre a “cultura das séries”. Ao longo de seus 16 anos de existência, os Anuários Obitel vêm fazendo observações sobre essas novas e cada vez maiores confluências entre gêneros e formatos nas produções nacionais.7 À luz dos exemplos apontados, a combinação e a recombinação de gêneros e formatos já consagrados em experimentos de novas possibilidades narrativas, é hoje uma tendência global, intrinsecamente aliada às transformações de cunho sociocultural e tecnológico em curso. Isso nos leva a concordar com Mittell (2004) no que diz respeito aos estudos de gêneros televisivos, pois é necessário considerarmos como eles são experimentados atualmente, aprofundando as relações entre programas, audiência e indústria televisiva. Nessas dinâmicas inter e transgêneros, os formatos também se transfiguram, e talvez até mais, em razão de sua tecnicidade. Os estudos de gêneros televisivos, portanto, passam a abranger tanto o particular (ou local) como o universal (ou global), porém sem nunca se descolar das práticas culturais. Frente a isso – e à natureza inesgotável do tema – nos deparamos com a necessidade de pesquisas que contemplem e avancem nos casos brasileiros de ficção televisiva, tanto na perspectiva histórica como no diálogo com a contemporaneidade, captando como incidirão, nos próximos anos, no que diz respeito à (re)invenção de gêneros e formatos. Verificamos que a ficção televisiva brasileira está em diálogo constante com as tendências percebidas no mundo. E fica claro inclusive a necessidade deste diálogo se desenvolver também entre os estudos internacionais e os que nascem dentro do contexto brasileiro, no qual a telenovela – e a própria televisão – tem natureza e papel 6 Um grave problema com que nos deparamos no Brasil é a quase completa falta de distinção entre esses dois formatos, tanto do lado de quem produz como de quem consome. 7 Os anuários Obitel 2010, 2014, 2016, 2018, 2019, 2020 e 2022 são os que mais destacaram as transformações digitais e narrativas na televisão brasileira e estão citados ao final das Referências. 320 Comunicação e Televisão Hoje complexos, que devem ser necessariamente conhecidos e incorporados em benefício do próprio alcance dos estudos internacionais de gênero. 4. Uma Agenda Para os Estudos de Ficção Televisiva na Perspectiva da TransTV. Uma Única e Diversificada Visada Interdisciplinar dos Campos da Produção, Distribuição Narrativização e Recepção No ano de 2019, em que a World Wide Web (www) fez 30 anos, a internet ainda não chegara a se afirmar como um direito na “sociedade em rede” (CASTELLS, 2002), e seu balanço vem apontando, até hoje, tanto para a ampliação de oportunidades quanto de ameaças. Um fato marcante tem sido a queda do rating de audiência da televisão aberta como um fenômeno global que desafia a indústria televisiva. Mudança de hábitos e busca de novos modelos de negócio, integração de plataformas e geração de conteúdos de qualidade, aparecem como os pilares da transformação do audiovisual em todo o mundo. E as mudanças se manifestam com um certo grau de diversidade, de acordo com as características econômicas e culturais de cada sociedade, com processos mais ou menos disruptivos. O que percebemos em anos passados como uma tendência, podemos afirmar hoje que o contexto audiovisual no Brasil se consolida cada vez mais como um mix de produção e de consumo nas múltiplas plataformas, praticado principalmente pela Globo, através de uma estratégia que combina, de maneira própria, a TV aberta, a TV paga e o VoD, e que será descrita adiante. Parece ter assomado na indústria audiovisual a consciência de ser este o momento para investir na transição dos hábitos de consumo de conteúdos brasileiros, de integrar nesses hábitos novos formatos e novas serialidades de ficção, fazendo experiências em todas as plataformas. 4.1 Telenovela em Tempos de Streaming Desde o início da série histórica, em 2007, os Anuários Obitel têm registrado uma contínua intensificação no que diz respeito à hibridização de formas e conteúdos no cenário teleficcional brasileiro. A 321 SEÇÃO 7 partir dos anos 2010, com a popularização das séries norte-americanas, potencializada por meio do consumo desses produtos em outros suportes, como as plataformas de streaming, identificamos a acentuação de uma tendência a que chamamos de “serialização das telenovelas e de telenovelização” das séries”. Atualmente, novos formatos de narrativas televisivas e a mixagem de gêneros reconfiguram as técnicas de representação de gênero, onde podem ser agora melhor compreendidas atentando tanto para os progressos formais do modelo narrativo da televisão, pensado a partir de seus contextos históricos de produção, circulação e recepção, quanto para a transformação de normas estabelecidas por meio de uma prática criativa, como a proposta da teoria da interseccionalidade8 (COLLINS, 2019), para os estudos de comunicação. Adotamos essa teoria no que ela pode revelar na TransTV a complexidade dos marcadores aí existentes, como a dialética entre o local, nacional, transnacional; a descentralização da produção televisiva que leva à ascensão inédita das produtoras independentes no país; as invenções da narrativa ficcional digital; os novos hábitos de consumo da teleficção e as lutas por representação e reconhecimento dos públicos e das audiências, entre outros tantos marcadores que podem ser encontrados na TransTV. No Brasil, esse panorama se evidencia mais fortemente na década de 2010, a partir de tramas que investiram em plots e arcos curtos, propiciando um fluxo dinâmico de histórias e personagens e expressando agilidade para a ação. Exemplos desse fenômeno foram a telenovela A Regra do Jogo (Globo, 2015), na qual cada capítulo foi numerado e recebeu um título que aludia aos acontecimentos do dia explicitando a tensão existente entre capítulo e episódio, e a adesão, em 2017, à nomenclatura “supersérie” por parte da Globo para as suas ficções do horário das 23h. O fenômeno de “telenovelização” das séries, por sua vez, pode ser verificado em âmbito global com a chamada “terceira era de ouro” da televisão dos Estados Unidos (MARTIN, 2014), marcada pela estreia de 8 Essa proposta aciona categorias e marcadores da diferença (gênero, raça, classe, idade, sexualidade, peso, geolocalização e deficiência, entre outros), reivindicando análises em conformidade com a complexidade dos marcadores e das suas estruturas de poder e de identidade. 322 Comunicação e Televisão Hoje Família Soprano (HBO, 1999-2007). Desde então, as séries passaram a apostar cada vez mais em arcos dramáticos longos, que chegam a perpassar uma temporada, quando não a série como um todo. Sob outra perspectiva, séries como Ingobernable (México, 2017-atual) e Coisa Mais Linda (Brasil, 2019-atual), ambas da Netflix, ilustram exemplos latino-americanos dessa tendência à “telenovelização” dos formatos de curta serialidade, com adesão explícita a entrechos melodramáticos. A primeira é um drama mexicano de cunho político, enquanto a segunda aborda o surgimento da bossa nova no Rio de Janeiro dos anos 1950. Assim, a Netflix busca se aproximar do público da região por meio de equações calcadas na noção de proximidade cultural (STRAUBHAAR, 2004). Para Williams (2018), quanto maior a serialidade de um texto, mais ele está sujeito ao melodrama. A conformação folhetinesca permite a articulação entre a estrutura seriada e a periodicidade do capítulo, isto é, entre o tempo do progresso – o desenrolar das ações – e o tempo do ciclo – a retomada de tramas e personagens que apareceram ao longo da narrativa (MARTÍN-BARBERO, 2004). Consequência da atual abrangência e mistura de gêneros – entrelaçados, fundidos e reformulados – é que também o melodrama tem seu sentido expandido, passando a integrar séries e outros formatos que trazem possibilidades mais fluidas de identificação (MITTELL, 2015). Dentro desse cenário, lançar luz sobre o melodrama em tempos de streaming, especialmente sobre a telenovela, dado o espaço que ocupa no cenário audiovisual brasileiro, pode revelar o modo como se dão as reconfigurações televisivas, uma vez que estamos lidando com conteúdos altamente flexíveis e adaptáveis às novas lógicas de produção e atividades de consumo. Existe consenso de que a telenovela no streaming deve ser mais curta, com menos núcleos e mais sujeita a experimentações formais. Sendo um formato culturalmente relevante para a expansão do serviço no Brasil, é de se esperar que vejamos o surgimento de produtos híbridos e apostas de interlocução entre o formato tradicional e as séries, com renovações estéticas e narrativas.9 9 A plataforma HBOMax está anunciando, neste ano de 2023, o início da gravação de sua primeira telenovela brasileira exclusiva para streaming, Beleza Fatal, com a denominação de “telessérie”. Disponível em: https://natelinha.uol.com.br/novelas/2023/01/03/novela-brasileira-da-hbo-tem-novo-titulo-e-destinodefinido-192183.php. 323 SEÇÃO 7 4.2 TransTV brasileira: Tudo Junto e Misturado Avanços importantes na indústria do audiovisual brasileira estão sendo dados com a incorporação acelerada e permanente da comunicação digital. No que se refere à ficção seriada televisiva, esses avanços variam da maneira como é produzida e até como é percebida e distribuída. Esta nova ordem deve ser estudada e analisada em detalhe, com vistas à compreensão de seus múltiplos significados e aspectos. Se uma certeza existe, é a certeza de que a transformação digital está em pleno vigor no Brasil: nas séries de televisão e filmes; nas políticas de comunicação e regulação; nas mudanças do público; nas narrativas de ficção e nas mídias sociais – numa efervescência em que, “tudo junto e misturado”, procura se organizar uma nova configuração de televisão – a TransTV – ainda pouco visível. Através do conceito de “televisão distribuída por internet” (LOTZ, 2017), percebemos que no Brasil os serviços de VoD10 apresentam formas muito variadas de oferta, como: a) serviço com acesso gratuito, com propagandas; b) assinatura mensal, com acesso pago; c) aluguel ou venda de conteúdo específico, acesso a serviços vinculados com a TV paga (catch-up TV); d) combinação desses modelos, denominados híbridos. Quase uma década após a implantação no país, a TransTV segue demandando novos formatos de conteúdo e de modelos de negócios, além de adequação ao contexto. São novas configurações quanto a “território, mercado, nação e área de sinal” (LOBATO, 2019, p. 15), que incidem sobre estruturas ainda rígidas; são padrões que se apropriam e demandam novas percepções para as dinâmicas vigentes. Isto posto, entendemos que os participantes desse jogo integram as forças estruturais que permeiam o VoD e as conexões entre a produção e a era das plataformas e da transmídia. Quando Scolari (2017) trata da obra Dos Meios às Mediações, de Martín-Barbero, ele diz que o projeto por trás do livro é interpretar 10 O Video On Demand é definido pelo Conselho Superior de Cinema como “serviço que potencializa a circulação dos conteúdos e o consumo audiovisual dos usuários de tecnologias móveis, TVs e computadores pessoais”. Disponível em: http://www.ancine.gov.br/sites/default/files/CSC%20-%20Consolida%C3%A7%C3%A3o%20 Desafios%20VoD%2017%2012%2015_1.pdf. 324 Comunicação e Televisão Hoje o consumo de massa de cinema, rádio, TV, inserido na vida cotidiana popular, o que explodiria “as assepsias do discurso científico tradicional” (2017, p. 167). E propõe o conceito de hipermediações, traduzindo as mediações para a vida digital, com particular atenção àquela que Martín-Barbero chama de tecnicidades. Elas protagonizam tão grandes rearranjos estruturais, que se torna fundamental (re)observar as posições, lutas e características da ficção televisiva brasileira distribuída por – e produzida para – plataformas, aplicativos e sistemas de VoD através da figura da TransTV. Pensar, portanto, a produção, distribuição ou consumo de VoD exige refletir sobre o próprio conceito de VoD – que pode variar conforme a geolocalização de quem produz, vende ou consome – e preocupações quanto às possíveis terminologias para indicar esse modo de manejo da TV, até o entendimento de que o avanço dos serviços de VoD não significa que outros modos de distribuição serão extintos. É mais coerente pensar, advertem Lotz, Lobato e Thomas (2018), em “camadas” que se sobrepõem, ou seja, modos diferentes de manejar a televisão, que se hibridizam e ajustam, formando novos modos, “juntos e misturados”. Pensar a televisão como uma opositora contra a qual duela a nova e poderosa internet, nota Miller (2009), é tolice. Efetivamente, “a televisão distribuída por internet” expande o ecossistema televisivo, e é mais razoável pensar o VoD como uma camada no topo de várias outras já existentes e com interação entre elas. Porém, as novas tecnologias e os serviços digitais ainda estão imersos em um contexto ainda pouco regulado do ponto de vista legal e político. A pressão dos grandes representantes nacionais da radiodifusão sobre o governo brasileiro por “simetria regulatória com empresas de internet”11, em oposição à pressão exercida pelos grandes “players internacionais”, explicita a instabilidade dos cenários audiovisual e das telecomunicações, constituídos por luta de forças governamentais e privadas, nacionais e estrangeiras, quanto ao tema da regulação. 11 Disponível em: http://bit.ly/2HkVvxr. 325 SEÇÃO 7 Diríamos então que na nova indústria de televisão, nota-se a tendência à concentração das majors internacionais. Apesar disso, é necessário notar a grande diversidade de plataformas e outros serviços de mídia OTT. Existem emissoras broadcasting em operação que podem combinar com produções em grade. Há que se observar as empresas de mídia locais e as diferentes estratégias para garantir (ou preservar) sua posição no novo cenário. Além disso, nesta era de múltiplas plataformas digitais e redes sociais, as práticas de produção são tão variadas quanto os hábitos de consumo e de visualização adotados pelos públicos. Estamos ainda no início de estudos focados em frameworks que devem nos ajudar a explicar e falar sobre a televisão em meio a tantas práticas industriais e de fruição. A organização do mercado audiovisual promoveu novo ecossistema comunicacional, ocasionando transformações nos paradigmas de infraestrutura, narrativas, institucionalidades, sociabilidades, sensibilidades e novas tecnicidades (MARTÍN-BARBERO, 2001). Ou seja, alterou a forma de produção, distribuição e consumo da televisão e gerou novas demandas e desafios. Neste cenário, pontos concernentes à infraestrutura do VoD no Brasil – como o reconhecimento dessas redes, os participantes que compõem os setores industriais e econômicos – trazem consigo dificuldades na obtenção de informações, devido a sua opacidade e, paradoxalmente, a sua invisibilidade, tendo em vista a relativa novidade e fluidez do setor e o fato de empresas de streaming não divulgarem dados de seu universo. A Ancine (Agência Nacional do Cinema), devido à inexistência de regulação, não obriga que as plataformas forneçam informações institucionais. O streaming, modelo de tecnologia que consiste na transmissão e no fluxo de dados pelo uso da internet, não se enquadra em conceitos históricos de televisão ou cinema, porque utiliza redes de banda larga para dar ao usuário acesso e fruição, no momento desejado, a conteúdos audiovisuais à sua escolha. Trata-se de uma realidade de conexões em rede, não lineares, com classificações ainda não estabelecidas, em que atores e modalidades de serviços podem pertencer a um ou mais segmentos e a novos arranjos. 326 Comunicação e Televisão Hoje No Brasil, a difusão dessas tecnologias se insere em quadros que, estáveis durante muitos anos, têm sido reconfigurados também pelas políticas de comunicação. Historicamente, TV paga e TV aberta tiveram desenvolvimento imbricado a questões infraestruturais, o que se refletiu na produção e distribuição da ficção televisiva. Assim, a identidade do nascente VoD no Brasil tem como pano de fundo a hegemonia da Globo na TV aberta e a legislação da TV paga. A ficção televisiva brasileira, por décadas, reinou nos canais abertos e foi praticamente invisível na TV paga, dominada por canais internacionais como TNT, Fox, Warner e HBO. A Lei do Cabo, que regulamentou o serviço de TV paga (Lei n.º 8.977/1995), alterou esse panorama ao obrigar a produção e exibição de conteúdo brasileiro em canais pagos. No início de 2017, a Ancine, órgão regulador do cinema e do audiovisual brasileiros, iniciou o processo para regulamentar12 os serviços de VoD no país, mas até hoje nada foi aprovado devido a divergências de interesses das empresas de TV paga, das teles, dos arrecadadores e demais interessados quanto ao modelo e prazos a serem adotados. Enquanto isso, é possível observar mais de 90 serviços de diferentes modalidades de VoD no país. Nessa lista, há serviços de VoD viabilizados por canais de TV aberta, de TV paga, operadoras de TV paga, OTTs “puros”13 e empresas de tecnologia. Estamos diante de alterações estruturais no campo audiovisual em que circula a ficção televisiva, em meio a pressões mercadológicas, demandas por conteúdo, novos modelos de produção e uma série de possibilidades de distribuição. A seguir, apresentamos um breve panorama do VoD no país, buscando identificar as reconfigurações do cenário televisivo brasileiro a partir da análise da TV aberta, da TV paga e do VoD. 12 Regulamentação referente a catálogos de títulos disponíveis, tributação, monitoramento de informações, exposição e cotas de conteúdo nacional. 13 OTT, Over-The-Top: conteúdo, serviço ou aplicativo disponível on-line para o usuário final. Já OTTs “puros” são os que não dependem de serviços de TV paga, por exemplo: Netflix, Amazon Prime, HBO Max. 327 SEÇÃO 7 TV Aberta O dinamismo que vem caracterizando o cenário audiovisual brasileiro nos últimos anos revela um movimento progressivo da simbiose entre telecomunicações, TV e informática (FECHINE; FIGUEIRÔA, 2011), onde a TV aberta, central no cenário audiovisual do país, busca no universo digital e nas modalidades de consumo de informação e entretenimento novas experiências de narrativa televisiva (MENDES; AMARAL, 2016). O diálogo entre TV aberta e novas plataformas de produção, compartilhamento e consumo de vídeos começou a se intensificar quando Globo e Record entraram no YouTube, respectivamente em 2014 e 2015. Ainda neste último ano, a Record passou a disponibilizar suas ficções bíblicas na Netflix e a Globo lançou o Globoplay, sua plataforma de streaming Em 2016, a Globo passou a explorar o princípio do digital first, a distribuição de conteúdos produzidos no ambiente digital antes da TV aberta, em outros termos, o acesso integral às primeiras séries no Globoplay antes de transmiti-las em seu canal de TV aberta (Brasil a Bordo e Carcereiros). A alta capacidade produtiva da emissora permite que ela dialogue com o VoD de forma mais ampla que outros canais. Telenovelas e Streaming A aproximação entre as telenovelas e o streaming nos instigou a pensar sobre as particularidades e diferenças entre essas e as séries presentes na Netflix, Prime Video ou HBOMax, como uma das interseccionalidades que caracterizam a TransTV. Em maio de 2020, a Globo anunciou o lançamento progressivo de 50 telenovelas clássicas14 no Globoplay, constituindo uma biblioteca digital de telenovelas. O lançamento de telenovelas que fizeram sucesso no passado e ficaram na memória do público voltaram a fazer grande sucesso e são motivo de conversações nas redes sociais. 14 Disponível em: http://glo.bo/3Lc0Zbb. 328 Comunicação e Televisão Hoje Formavam parte de um acervo raramente disponibilizado pela Globo e que não deixa de constituir uma interessante colaboração entre produções do broadcasting e sua distribuição no streaming. Em 2021, a empresa produziu e exibiu sua primeira telenovela para o streaming – Verdades Secretas II contou com 50 capítulos, disponibilizados em blocos de 10 capítulos a cada 15 dias. Trata-se da segunda temporada da original Verdades Secretas, levada ao ar na TV Globo em junho de 2015. Uma nova telenovela, Todas as Flores, foi produzida, em 2022, diretamente para o Globoplay, com divisão em duas partes (temporadas?) e com acentuadas características de serialização. A Globo possui a vantagem de ter seus próprios estúdios para produzir tanto para a TV Globo, quanto para os Canais Globo da TV paga, como para a plataforma Globoplay. Enquanto os demais streamings são obrigados a contratar produtoras independentes locais para a realização de ficções televisivas nacionais. Atualmente, o catálogo do Globoplay tem uma diversidade estupenda de formatos e de nacionalidades, reunindo desde telenovelas mexicanas antigas, que já passaram no país, a séries norte-americanas e telenovelas turcas; desde o lançamento de suas novelas icônicas inéditas, às parcerias com streamings menores como Starz e Lionsgate, e, principalmente de todos canais da Globo ao vivo da TV aberta e da TV paga, em seus diferentes gêneros, como humarísticos, jornalismo, esportes, variedades. Os filmes da Globo Filmes têm destaque na Globoplay. Claro que todo esse catálogo é distribuído em uma variedade de planos de assinaturas. Ainda resta assinalar as estratégias dinâmicas que são criadas, experimentadas para obter maior audiência, repercussão e rendimentos. São as vantagens de poder estrear uma ficção na TV Globo e paralelamente no Globoplay; programar os primeiros episódios de uma série no formato de um programa da TV Globo para induzir a assistir os demais no Globoplay. Houve estratégias opostas como lançamentos na TV Globo que podiam ser acompanhadas como séries no Globoplay. Apenas começamos a mapear e analisar o setor de VoD no Brasil e sua dinâmica bastante complexa. Acompanhamos a novidade que é o desempenho dos dois mais importantes serviços de streaming do país: Netflix e Globoplay. O primeiro é um provedor estadunidense com a 329 SEÇÃO 7 maior penetração mundial e que entrou no Brasil em 201115; e o segundo é um serviço nacional lançado em 2015, streaming do Grupo Globo. Netflix A Netflix, plataforma OTT “pura”, começou a operar no Brasil em 2011, com catálogo de filmes, shows, programas de TV (LADEIRA, 2013). Hoje, em primeiro lugar entre os serviços de vídeo em streaming no Brasil, é utilizada por 91% do público de VoD.16. A primeira série brasileira “original Netflix” estreou em novembro de 2016: 3%, ficção científica realizada pela produtora independente Boutique Filmes e teve quatro temporadas (2016-2020). Distribuída mundialmente, foi a série de língua não inglesa mais assistida dos Estados Unidos17. Atualmente, a Netflix está apresentando a segunda temporada de Cidade Invisível (2021-), produzida pela Pródigo Filmes. A estratégia de comunicação da Netflix para obter o máximo engajamento de seu público consiste em forte apelo ao afeto, à proximidade e à familiaridade, voltando-se para a realização de coproduções locais. 4.3 Reconfiguração e complexificação: novas dinâmicas, novos paradigmas na TransTV Inicialmente, vistas como rivais, as novas mídias digitais passaram a ser aliadas da TV aberta e da TV paga, reconfigurando o panorama da ficção televisiva no Brasil na atualidade. Na TV aberta, o aumento de ações que incentivam a participação da audiência no universo da web e a multiplicação de telas são fatores importantes (MENDES; AMARAL, 2016). Já no tocante à TV paga, o setor amplia a aposta em VoD sem, contudo, abrir mão do meio tradicional. Em relação à Netflix, há uma 15 Fundada em 1997, a Netflix está presente em mais de 190 países, disponível em 27 línguas e com 230 milhões de assinantes. Disponível em: https://exame.com/invest/mercados/netflix-supera-expectativas-com-mais-de-230-milhoes-de-assinantes-no-mundo/. Acesso em: mar. 2023. 16 Disponível em: http://www.b9.com.br/84968/no-brasil-97-do-publico-consome-streamings-de-video-e-netflix-e-a-queridinha-da-galera/. 17 Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2017/03/17/primeira-serie-brasileira-da-netflix-3-virou-um-baita-sucess_a_21901598/. 330 Comunicação e Televisão Hoje estratégia de estímulo ao desenvolvimento de produções locais. Por fim, o YouTube aponta para novas ritualidades por parte da audiência, na medida em que possibilita performances e interações entre diferentes públicos. Tais reconfigurações esbarram, ainda, na força da telenovela, que se mantém como paradigma para outros formatos, tanto em termos de parâmetros narrativos quanto de lógicas de produção. Em 2018, o setor de “Dramaturgia Semanal” da Globo, responsável pela gestão das séries para o canal aberto, TV paga e plataformas digitais, foi unificado à área de “Dramaturgia Diária”18, responsável pela supervisão de telenovelas, apostando no aprofundamento do diálogo entre os dois formatos. A partir de 2022, esses setores aparecem unificados sob uma única denominação “Gênero Teledramaturgia”. Já a Lei do Cabo ampliou fortemente a atuação das produtoras independentes no sentido da criação de séries e documentários, mudando como nunca o mercado de trabalho e as possibilidades de novos modelos de negócios. Há, ainda, experimentação de novos moldes de produção, típicos de modelos norte-americanos, que trarão novas peças e atores para essa dinâmica. É inquestionável que as novas plataformas audiovisuais complexificaram ainda mais as lógicas de produção e as competências de recepção (MARTÍN-BARBERO, 2001). É necessário, porém, maior distanciamento para observarmos devidamente como essas dinâmicas atuarão no plano dos formatos industriais e das matrizes culturais. Em contínua expansão, estudos e pesquisas sobre ficção televisiva estão diante de questionamentos que envolvem encaixes e ajustamentos de paradigmas. Por isso, aqui apresentamos uma proposta em elaboração da TransTV como uma única e diversificada visada interdisciplinar dos campos da produção, distribuição narrativa e recepção, uma vez que a questão sobre o que se considera televisivo – na própria televisão e em outros ambientes – tende a ser uma das mais problematizadas no campo da comunicação, especialmente no da ficção televisiva. 18 Disponível em: http://www.meioemensagem.com.br/home/ultimas-noticias/2018/03/02/globo-unifica-areas-de-dramaturgia-sob-comando-de-silvio-de-abreu.html. 331 SEÇÃO 7 Referências BALOGH, A. M. O discurso ficcional na TV: sedução e sonho em doses homeopáticas. São Paulo: Edusp, 2002. COLLINS, P. H. Intersectionality as Critical Social Theory. Durham; London: Duke University Press, 2019. CASTELLS, M. A sociedade em rede: a era da informação. Economia, sociedade e cultura. v. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. FECHINE, I.; FIGUEIRÔA, A. 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Introdução Pensar a televisão hoje passa, em larga medida, pela discussão sobre plataformização. Não apenas enquanto um fenômeno transversal ao capitalismo contemporâneo (SRNICEK, 2017), o processo de plataformização da televisão tem se agudizado nos últimos anos, especialmente em decorrência de transformações econômicas (expansão dos grandes conglomerados midiáticos para o ambiente digital), tecnológicas (apificação dos serviços), culturais (ampliação da circulação e do consumo dos conteúdos originais, bem como a sua inserção nas dinâmicas de consagração da mídia tradicional), políticas (disputas nacionais e transnacionais em torno da regulação dos serviços) e mesmo epidemiológicas (aumento do consumo devido ao 1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no GT Estudos de Televisão, do XXXI Encontro da COMPÓS, em 2022. 335 SEÇÃO 7 isolamento social da pandemia de covid-19). Esse processo se concentrou, em larga medida, na consolidação de serviços de streaming audiovisual que chamaremos aqui de hegemônicos, tais como Netflix, Amazon Prime Video, HBOMax, Disney+ e, no caso brasileiro, o Globoplay. Por hegemônicas, entendemos aqui as plataformas que, ofertadas em regime de SVoD (Subscription Video on Demand), 1. operam através de um grande poderio econômico nas mais diferentes esferas da sua produção material (tecnologia, publicidade, licenciamento e criação original de conteúdos, monitoramento de audiências, etc.); 2. possuem grande capilaridade em diferentes públicos e territórios; e 3. oferecem um amplo acervo em termos de gêneros e formatos audiovisuais (filmes, séries, reality shows, eventos esportivos, etc.). Não foram poucos os estudos recentes que se debruçaram sobre um ou mais aspectos dessas plataformas hegemônicas, aprofundando as singularidades de uma cultura audiovisual que, ao passo que se transforma radicalmente, impõe também dificuldades para o estudo de suas múltiplas e transientes dinâmicas (STRANGELOVE, 2015; LADEIRA, 2016, MASSAROLO; MESQUITA, 2016 e 2017, LOTZ, 2017, EVENS; DONDERS, 2018, JENNER, 2018, LOBATO, 2019, JOHNSON, 2020, MEIGRE; ROCHA, 2020). Na esteira do que propõe Poell (2020), acreditamos que essas dificuldades se concentram em três grandes desafios: primeiro a concentração das plataformas hegemônicas, nas mais diferentes áreas de atuação dos serviços. No caso do streaming audiovisual, a inter-relação entre canais, estúdios e mesmo plataformas de e-commerce (como a Amazon), demanda a investigação minuciosa das novas dinâmicas de produção, circulação e consumo, exigindo o uso integrado de metodologias que observem as lógicas infraestruturais de funcionamento dos serviços, as formas de financiamento e de investimento em aquisição e produção de conteúdo, e os modos de consumo, métricas de audiência por análise de algoritmos e repercussão em redes sociais. Para tanto, não basta apenas descrever isoladamente o funcionamento dos serviços ofertados, mas, sobretudo, “compreender como a produção cultural é moldada dentro do ecossistema corporativo das plataformas e quais 336 Comunicação e Televisão Hoje são as implicações econômicas, políticas e criativas para os produtores culturais” (POELL, 2020, p. 653)2. O segundo desafio é o da regulação. Embora a argumentação de Poell se concentre nos problemas regulatórios causados sobretudo para as plataformas que se baseiam em user-generated content (conteúdo gerado pelo usuário), como as tensões entre os termos e regulamentos internos às plataformas e as legislações nacionais, podemos ampliar esse desafio para as plataformas de streaming audiovisual, uma vez que elas operam em contextos legais bastante variados e lidam, portanto, com estratégias próprias para manter e ampliar a sua hegemonia nos mais diferentes mercados. No caso brasileiro, como argumenta Azevedo (2020, p. 134-135), o principal problema reside na disparidade regulatória entre os chamados Serviços de Acesso Condicionado (SeAC), como a TV Paga, e os serviços Over-the-Top (OTT) de streaming, classificados como Serviços de Valor Adicionado. “Enquanto estes são ofertados sem qualquer ônus regulatórios, aqueles – os SeAC – estão sujeitos às obrigações previstas na Lei n.o 12.451/2011 e em outras normas supralegais, de modo que se faz presente, na atualidade, um cenário de assimetria regulatória”. O terceiro desafio apontado por Poell está na dificuldade de surgimento de plataformas alternativas, sejam elas oriundas de serviços de mídia pública (nacionais, regionais ou locais) ou plataformas não comerciais de interesse público. Mais uma vez, embora Poell esteja discorrendo sobre plataformas de um modo geral, capazes de operar nos mais diferentes níveis da infraestrutura digital contemporânea, quando relacionamos com as plataformas de streaming, o desafio se mostra também bastante presente. Pelas condições tecnológicas, culturais e econômicas das plataformas hegemônicas, a possibilidade de criação de serviços alternativos parece, em larga medida, destinada aos temas e públicos de nicho e a tentativas de construção de modelos de negócio inovadores no cenário da distribuição de conteúdo audiovisual. Além disso, Poell (2020, p. 654) 2 Original em inglês. Tradução nossa. 337 SEÇÃO 7 argumenta que, uma vez que as plataformas hegemônicas, muitas vezes, possuem domínio infraestrutural sobre diferentes eixos da economia digital, “a provisão de alternativas para as plataformas comerciais representa mais que apenas desenvolver conteúdos originais, mas também envolve intervenções na infraestrutura on-line através da qual os conteúdos são distribuídos e recomendados”. São, de fato, desafios que instigam a reflexão crítica sobre o cenário atual. Para contribuir, portanto, com esse conjunto de reflexões, propomos aqui analisar plataformas alternativas de streaming audiovisual no Brasil, tendo como corpus alguns serviços voltados para o mercado independente. Algumas dessas plataformas surgiram durante o período de isolamento da pandemia de covid-19 e as que já existiam anteriormente tiveram que se adequar às condições particulares desse período singular. Levando em conta, portanto, a urgência e a atualidade do tema, nossas reflexões transitarão entre a descrição sistematizada dos serviços, a partir da metodologia proposta por Spilker e Colbjørnsen (2020), a ponderação teórica como forma de acessar o fenômeno e a experiência empírica dos autores como consumidores dos serviços analisados. De antemão, nosso objetivo não é construir um mapeamento extenso e totalizante das plataformas alternativas hoje em operação no mercado brasileiro, levando em conta sobretudo a dimensão e a amplitude de tal abordagem. Nosso esforço foi o de observar plataformas que possuem como força a distribuição de produção nacional independente, das mais diferentes matizes. A partir do modelo analítico proposto, outras plataformas podem ser analisadas, futuramente, já que o surgimento de novos serviços parece ser uma constante no mercado atual. 2. As cinco dimensões do streaming: um ponto de partida No esforço de compreender as diferentes plataformas de streaming, Spilker e Colbjørnsen (2020) vão além de uma definição meramente técnica ou infraestrutural, investigando diferentes aspectos do funcionamento desses serviços. Os autores identificam cinco dimensões 338 Comunicação e Televisão Hoje que, segundo argumentam, são fundamentais em relação à evolução do streaming: 1. streaming profissional versus streaming gerado pelo usuário; 2. streaming legal versus pirataria; 3. on-demand versus streaming ao vivo; 4. streaming em plataformas focadas versus streaming multifuncionais; 5. Público de nicho versus público geral. Na dimensão que trata do streaming profissional versus o gerado pelo usuário, os autores tratam de modelo de negócio. Para eles, há uma distinção marcante entre as plataformas que baseiam seu negócio na distribuição de conteúdo produzido profissionalmente e aquelas que dão aos seus usuários os caminhos para a produção de seus próprios conteúdos. No primeiro caso, estariam classificadas como streamings de conteúdo profissional a HBO Max e a Netflix, enquanto no segundo caso estão o Youtube, Twitch e Soundcloud, por exemplo. Já na segunda dimensão, os autores pontuam que tanto a legalidade quanto a pirataria têm sido um alvo em movimento no ecossistema midiático. Segundo Spilker e Colbjørnsen (2020), há dois tipos de pirataria, a conformista e a subversiva. A primeira age como um desvio estável que é taxado e combatido pelas autoridades. Já o subversivo “desafia com sucesso o status quo da sociedade e transforma as regras e valores da sociedade” (p. 1.217). Através da pirataria subversiva novas formas de negócio podem surgir, a exemplo dos streamings piratas de futebol que foram absorvidos por streamings legais, como a HBO Max. A terceira dimensão mapeada pelos autores é composta pela oposição entre os conteúdos ao vivo e os conteúdos disponibilizados on-demand para os usuários. Se, por um lado, tem-se os serviços que disponibilizam obras em catálogos que podem ser acessados a qualquer momento e ser consumidos em maratonas, de outro, estão os serviços cuja base é fornecida ao vivo. A articulação entre essas duas características também é uma possibilidade hoje, como ocorre, especialmente, com as ofertas de conteúdo ao vivo de eventos esportivos e jornalísticos. Na quarta dimensão, estão as implicações entre as plataformas tecnicamente especializadas e as multifacetadas, oferecendo diversos serviços aos usuários. É nessa dimensão que estão implicadas 339 SEÇÃO 7 as questões de plataformas que são atravessadas por modelos e práticas distintas – como as plataformas de mídias sociais que incorporaram serviços de streaming ao vivo, como o Instagram e o Facebook, ou ainda os serviços de comércio on-line que passaram também a oferecer serviços de streaming, que tem na Amazon seu caso mais emblemático. Por fim, a quinta dimensão proposta por Spilker e Colbjørnsen (2020) aponta para a tensão entre as plataformas que buscam atender necessidades específicas e as que produzem conteúdos para um público geral. Nesse ponto, é importante destacar a busca por novos mercados, assim como por novas funcionalidades, que fazem com que as plataformas se expandam. Nesse contexto, apontam os autores, as principais distinções em relação ao alcance das audiências podem ser dadas em termos de linguagem ou geografia. Diante disso, lembram os autores, a composição dos mercados varia de acordo com o tipo de conteúdo ofertado e a abrangência de sua penetração na audiência. Essas cinco dimensões, propõem os autores, podem guiar a avaliação do campo de streaming de forma completa e, assim, oferecer uma compreensão do fenômeno na multiplicidade da sua manifestação. Aqui, acreditamos que essa proposta metodológica pode ser um interessante ponto de partida para refletir sobre a realidade brasileira, especialmente quando observamos as plataformas alternativas. Ou seja, não tomaremos essa proposta como uma tábua rasa de categorização descritiva, mas como um modelo metodológico que pode e deve ser tensionado, problematizado e reavaliado, considerando sobretudo a realidade específica do Brasil hoje. 3. Delimitação da amostragem: plataformas alternativas no contexto brasileiro Para compreender o cenário da cultura audiovisual contemporânea, especialmente aquela distribuída por plataformas, precisamos incluir as plataformas alternativas na análise histórica, apontando as suas condições materiais de existência e as formas com que elas se 340 Comunicação e Televisão Hoje contrapõem, no campo da cultura, aos entes hegemônicos. Isso é particularmente importante na avaliação sincrônica de um processo cultural atualmente em curso, envolto ainda em uma dinâmica bastante veloz de transformações tecnológicas, econômicas, políticas e culturais, e que precisa ser delineado para além dos interesses hegemônicos que as próprias corporações possuem dentro da crítica cultural. Com isso em mente, tentamos aqui definir as plataformas alternativas precisamente na oposição aos elementos que caracterizam as plataformas hegemônicas, ou seja, iluminando em reflexo aquilo que as singulariza. Portanto, plataformas alternativas são aquelas que, operando em diferentes regimes de oferta de conteúdo (assinatura, aluguel, catch-up etc.), 1. possuem um poderio econômico limitado, muitas vezes definido pelo acervo de sua biblioteca, pela sua amplitude regional ou pelo valor do serviço; 2. atendem a um público de nicho, determinado por aspectos estéticos, temáticos ou de formatos; e 3. possuem uma cartela restrita de obras ofertadas, muitas vezes limitadas à distribuição da produção independente. Desde o surgimento da Netflix no Brasil em 2011, a quantidade de plataformas tem crescido, sendo validadas pelo aumento do consumo desses streamings em relação a outras mídias já estabelecidas. Sobre esse contexto de expansão, Lopes e Lemos (2020) descrevem: Nos últimos cinco anos, o consumo de vídeo pela internet cresceu seis vezes a mais do que pela TV. Enquanto as bilheterias dos cinemas há oito anos vêm caindo e o percentual de usuários da TV paga, desde 2015, encolhe gradativamente, o público do VoD aumentou 165%. A consolidação da tecnologia streaming em 2019 foi marcada pela expansão de plataformas como Globoplay, Prime Video, HBOGo e pelo surgimento de novas plataformas principalmente independentes ligadas ao setor de telecomunicações, com destaque para a Apple TV+, lançada no Brasil em novembro. (LOPES; LEMOS, 2020, p. 100) 341 SEÇÃO 7 Refletindo sobre esses números, pode-se acrescentar um dado mais atual: entre 2020 e 2021, o contexto de isolamento social forçado pela pandemia da covid-193 potencializou ainda mais o crescimento do consumo das plataformas de OTT, tornando mais fértil o panorama nacional para o nascimento de plataformas de grande, médio e pequeno portes. Porém, em uma breve pesquisa bibliográfica, percebe-se que o foco das pesquisas acerca do ecossistema brasileiro está na observação de conglomerados televisivos, assim como de plataformas hegemônicas e a disputa desses atores. Exemplo disso pode ser visto no relatório anual da Obitel (Observatório Ibero-americano da Ficção Televisiva), de 2020, em que Lopes e Lemos comparam o consumo das principais fontes de distribuição de conteúdo ficcional no Brasil: os canais de televisão e as plataformas hegemônicas. Sobre a necessidade desse estudo, as autoras pontuam: O que analisamos como tendência em anuários passados, podemos afirmar que, no contexto audiovisual no Brasil em 2019, se consolida cada vez mais como um mix de produção e de consumo nas múltiplas plataformas, praticado no país principalmente pela Globo, através de uma estratégia que combina, de maneira própria, a TV aberta, a TV paga e o VoD, [...]. Parece ter assomado na indústria audiovisual a consciência de ser este o momento para investir na transição dos hábitos de consumo de conteúdos brasileiros, de integrar nesses hábitos novos formatos e novas serialidades, experimentando vários segmentos além da TV aberta. (LOPES; LEMOS, 2020, p. 84) 3 Sobre o crescimento do streaming no contexto de isolamento social. Disponível em: <https://forbes. com.br/principal/2020/08/streaming-ganha-ainda-mais-relevancia-com-o-isolamento-social/>. Acesso em: 20 jul. 2021. 342 Comunicação e Televisão Hoje Percebe-se que o impulso para tal pesquisa se dá pela necessidade de compreender essa atualização mercadológica, na qual as principais redes televisivas do país precisaram se inserir. Nesse sentido, é importante salientar que dentro do relatório há, sim, um tópico que contempla qual é a participação das produtoras independentes dentro desse contexto. Porém, percebe-se que são destacadas apenas as “grandes produtoras independentes” – O2 Filmes, Conspiração Filmes, entre outras. Outro exemplo de como o foco das análises tende a não contemplar janelas para produtos audiovisuais independentes está em Meimaridis, Mazur e Rios (2020). Neste trabalho, os autores abordam a inserção da Netflix em países influentes em contextos continentais periféricos, que ajudam a plataforma a estabelecer um diálogo direto com seus países vizinhos. Dentre as nações escolhidas, está o Brasil, influente no mercado latino-americano. A pesquisa dos autores focou na compreensão das estratégias que a plataforma utilizou para conquistar o público local. Dentre seus tensionamentos, os autores abordam as disputas mercadológicas travadas entre a Netflix, outras plataformas e as grandes empresas televisivas e de comunicação brasileiras. Diante disso, Meimaridis, Mazur e Rios (2020) percebem que dessa disputa de mercado resulta o surgimento de plataformas das concorrentes nacionais da Netflix, como o Play Plus, da Rede Record, Telecine Play e Globoplay, do conglomerado Globo. O resultado dessa pesquisa sobre o enraizamento da Netflix no Brasil aponta para algumas estratégias de fidelização do público: descontos para aquisição do serviço, forte investimentos em tradutores e dubladores para tornar o catálogo acessível, inclusão de produções locais de relevância no acervo e produções de narrativas locais próprias, chamadas de “originais”, com apelo para temas e códigos narrativos consagrados e reconhecidos como cativantes para essas plateias. Netflix entendeu, segundo os autores, que, para se estabelecer nestes grandes centros, como o Brasil, precisava, além de disseminar conteúdo estadunidense, adaptar estes conteúdos às exigências próprias de cada país, assim como oferecer conteúdos locais, 343 SEÇÃO 7 focando nas especificidades de cada nicho para produzir obras que conquistassem esses públicos. Nota-se que, apesar de fazer uma análise rica para todo o mercado audiovisual brasileiro sobre o valor do produto nacional para o seu público, a pesquisa de Meimaridis, Mazur e Rios (2020) não reflete sobre a possibilidade da oferta de obras independentes (seja por licenciamento ou por investimento), sobretudo aquelas de produtoras de pequeno e médio portes, assim como não apresenta nenhum olhar sobre o surgimento das plataformas alternativas nesse ecossistema de distribuição audiovisual. Constata-se, através desses exemplos, que as pesquisas acadêmicas recentes tendem a focar em compreender os movimentos e tensionamento das plataformas hegemônicas, sejam elas internacionais ou vinculadas aos canais de TV brasileiros. Percebe-se, também, que no crescimento desse ecossistema de OTTs surgem alternativas marginais que não anseiam disputar o domínio desse mercado, mas apenas dar visibilidade aos produtos audiovisuais que não recebem janela nas plataformas hegemônicas. Para definir a amostragem da nossa pesquisa, pensamos portanto em plataformas alternativas que não possuem vínculo com canais televisivos e que focam na distribuição de obras independentes nacionais. Com base nessa definição, mapeamos iniciativas brasileiras alinhadas a esses parâmetros e encontramos dez plataformas alternativas: Brasil Paralelo, Cardume, Darkflix, Embaúba Play, LGBTFlix, Libreflix, SPCine Play, Sulflix e Todesplay4. Percebe-se, em uma pesquisa bibliográfica preliminar, que essas iniciativas ainda não foram mapeadas em conjunto e, também, por isso, não foram compreendidas em sua relação com o contexto nacional. É possível, no entanto, identificar análises isoladas de algumas dessas plataformas, mas que focam em abordagens de cunho sociológico e político em relação ao conteúdo, como é o caso do Brasil Paralelo. Em relação a outras plataformas, não foram encontrados trabalhos que tivessem uma análise mais aprofundada sobre conteúdo, 4 Achamos importante informar que a plataforma Afroflix não integra o escopo aqui apresentado porque, no momento de redação deste capítulo, o site da Afroflix encontrava-se fora do ar. Por não saber se se tratar de um problema temporário ou do fim da iniciativa, optamos por não adicionar, mesmo que suas características se encaixem em nosso corpus de pesquisa. 344 Comunicação e Televisão Hoje formatos ou modelos de negócio. Por isso, demarca-se o esforço do mapeamento que é feito na próxima seção como uma primeira abordagem a essas plataformas, entendendo-as em conjunto a partir das condições específicas do mercado audiovisual brasileiro. 4. Mapeamento e reflexão preliminares Nesta seção, apresenta-se o mapeamento das informações sobre as plataformas de streaming identificadas como alternativas no Brasil. Este primeiro momento se tratou de uma pesquisa exploratória, com base nas informações fornecidas pelos sites oficiais de cada uma das seguintes plataformas: Brasil Paralelo, Cardume, Darkflix, Embaúba Play, LGBTFlix, Libreflix, SPCine Play, Sulflix e Todesplay. Após a coleta das informações, seguiu-se para uma consulta de Pessoa Jurídica5, para indicar a localização geográfica de cada uma das plataformas. Essa consulta foi realizada pelo número de CNPJ disponibilizado também nos sites oficiais e, quando não havia o CNPJ, buscou-se pelo nome do responsável por cada um dos projetos. Essas informações foram acessadas no site do Governo Federal, em sua plataforma de consulta pública. Diante das informações coletadas, estruturou-se a tabela 1, com as cinco dimensões propostas por Spilker e Colbjørnsen (2020), a fim de organizar o mapeamento e classificar preliminarmente cada um dos streamings. Ao longo dessa organização, informações que não se encaixavam em nenhuma das dimensões foram sendo percebidas e catalogadas, para posterior indicação. Com isso, propusemos a Tabela 2, que busca exatamente complementar a análise com especificidades consideradas relevantes na observação das plataformas, agrupando informações que auxiliam na compreensão do contexto brasileiro. Antes de apresentar essas tabelas, no entanto, faz-se um trajeto pelas descrições de cada uma das plataformas analisadas, pontuando-se o tipo de conteúdo disponibilizado, o enfoque geográfico 5 Consulta pública de Cadastro de Pessoa Jurídica. Disponível em: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/redesim/consultas-pessoa-juridica. Acesso em: 1 ago. 2021. 345 SEÇÃO 7 e os principais objetivos destacados pelas plataformas em relação ao serviço que oferecem. Para a apresentação dessas informações, segue-se a ordem alfabética. O Brasil Paralelo (brasilparalelo.com.br) é a plataforma da Brasil Paralelo Entretenimento e Educação S/A, que se define como uma “empresa de entretenimento e educação” orientada “pela busca da verdade histórica”, com o propósito de “resgatar bons valores, ideias e sentimentos no coração de todos os brasileiros” (BRASIL PARALELO, 2023, on-line). A empresa foi criada em 2016 e, de acordo com informações do site, todos os projetos do Brasil Paralelo são feitos sem recursos públicos. Nessa conjuntura, a plataforma oferece produções próprias e conteúdos audiovisuais selecionados por uma curadoria exclusiva. Além disso, o projeto faz parte de uma plataforma maior, que oferece, além de conteúdo audiovisual, cursos e textos para consumo dos assinantes. Em relação ao seu serviço de assinatura, ele é dividido em quatro modalidades, com valores e produtos distintos: “Acesso total” no valor de R$59, “Intermediário” com custo de R$39 e o “Básico” por R$19. Algumas modalidades ainda são divididas em subcategorias, todas com preços específicos. A plataforma também conta com conteúdo para acesso gratuito no YouTube. Ainda segundo o site da empresa, o Brasil Paralelo procura revisar sobre suas perspectivas áreas, como política, história, filosofia, economia, educação, artes e atualidades, com uma perspectiva conservadora. A Cardume (cardume.tv.br) se classifica como um portal de filmes brasileiros de curta e média-metragem. Seu objetivo, tal como consta em seu site, é difundir, fomentar e internacionalizar o audiovisual independente brasileiro. O portal oferece um catálogo com filmes nacionais premiados, por uma assinatura de R$6,20 por mês. De acordo com a iniciativa, a arrecadação da mensalidade contribui para promover ações de fomento, formação e impulsionamento do audiovisual brasileiro. Dentre as ações listadas em seu site estão o Prêmio Curta em Casa, que consiste em uma mostra com premiação para curtas produzidos durante a quarentena devido à pandemia causada pela covid-19; o 346 Comunicação e Televisão Hoje lançamento de edital de desenvolvimento de roteiro para curtas, com prêmio em dinheiro; debates sobre cinema entre diretores e equipes de diferentes lugares do país; cursos e oficinas gratuitos com o intuito de ajudar produtores na distribuição de seus filmes. Outra informação importante destacada no site da Cardume é a de que há a pretensão de legendar os filmes da plataforma, para fortalecer a identidade do país no exterior. O principal objetivo do portal é ser reconhecido como “a maior plataforma de streaming especializada em curtas-metragens do Brasil para continuar fomentando novas produções brasileiras” (CARDUME, on-line). A Darkflix (darkflix.com.br) é um canal de serviço de assinatura sob demanda focado em conteúdo de gênero. A plataforma disponibiliza clássicos do cinema de horror, fantasia e ficção científica, assim como produções atuais nacionais e internacionais. Além de filmes, ainda entram em seu catálogo séries dos gêneros citados que foram produzidas para a TV. Como mencionado no início desta seção, nesta primeira fase da pesquisa, buscou-se explorar as informações que são disponibilizadas em cada um dos sites das respectivas plataformas. Nesse sentido, cabe destacar que o site da Darkflix é o único que não oferece maiores informações sobre o serviço, como especificações de seu catálogo, como funciona a plataforma, modalidades de aquisição, entre outras dúvidas. A Embaúba Play (embaubaplay.com) disponibiliza apenas filmes nacionais em sua plataforma. De acordo com as informações de seu site, a plataforma tem como foco a curadoria de filmes que “investem em novas narrativas, que se destacam pela ousadia, pela experimentação, pela forma como lidam com a linguagem cinematográfica” (EMBAÚBA, on-line). A Embaúba Play se autodenomina uma locadora de filmes pela internet, mas enfatiza que seu primeiro objetivo não é comercial, destacando que tem como interesse principal o estímulo na valorização do conteúdo nacional, ampliando os espaços de exibição de obras que, anteriormente, ficavam restritas apenas ao circuito de mostras e festivais. A plataforma não cobra mensalidade. Ao se cadastrar, o consumidor passa a ter acesso para alugar os longas-metragens disponíveis no acervo pelo valor de 1,50 dólar. Após alugar, o 347 SEÇÃO 7 usuário tem até 72 horas para assistir ao filme. Além dos filmes que são disponibilizados para aluguel, a plataforma também oferece conteúdos gratuitos, obras liberadas para exibição pelos detentores dos seus direitos de exibição. A LGBTFlix (votelgbt.org/flix) é uma plataforma gratuita preocupada em distribuir conteúdo dirigido por cineastas LGBT+ ou que abordem a comunidade LGBT+ como tema. A plataforma é uma iniciativa da #VoteLGBT que surge a partir de uma preocupação do coletivo para as consequências do isolamento social resultante da pandemia da covid-19 na vida de pessoas LGBT+. “Nesses dias de quarentena, a sensação de isolamento que sofrem muitas pessoas LGBT+ piora – ainda mais para aquelas que vivem em lares opressores. Pensando nisso, nós organizamos uma galeria de filmes brasileiros de temática LGBT+ que dá pra assistir no celular.” (LGBTFlix, on-line) A plataforma conta com longas e curtas-metragens, porém há uma quantidade maior de curtas em seu catálogo. A LGBTFlix é construída de forma colaborativa, na qual as obras podem ser inseridas através do preenchimento de uma ficha de inscrição. Além disso, a LGBTFlix é gratuita e não exige inscrição para o consumo. Vale, ainda, destacar que a plataforma não conta com aplicativos, sendo acessada apenas pelo site do coletivo #VoteLGBT. A Libreflix (libreflix.org) também é uma plataforma construída de forma colaborativa. Segundo o site, o empreendimento defende “[...] novas formas de compartilhamento da cultura. Formas que atinjam todas as pessoas, principalmente as que não podem pagar por ela” (LIBREFLIX, on-line). Não apenas o acervo é aberto a colaboradores, mas o software também está disponível para desenvolvedores interessados em contribuir como voluntários. É aberta ainda para a indicação de obras para compor o acervo, a moderação de conteúdo, a edição das informações das obras e o próprio financiamento do serviço. Esse último serve para pagar os custos da plataforma e são adquiridos através de campanhas de financiamento coletivo. A Libreflix oferece documentários e ficções, curta-metragens, longa-metragens e séries, nacionais e internacionais, que tenham livre 348 Comunicação e Televisão Hoje exibição ou que foram autorizados para serem exibidos na plataforma. Pode-se dizer que a maioria do conteúdo é alinhada com pautas de esquerda, já que há destaque na plataforma para categorias como “ativismo”, “feminismo”, “veganismo” e “ocupação”. Atualmente, a Libreflix conta apenas com aplicativo para consumo em aparelhos com sistema Android ou pode ser acessado diretamente no computador de modo gratuito. A Sulflix (sulflix.com.br) é uma plataforma de conteúdos produzidos exclusivamente no estado do Rio Grande do Sul. Um de seus slogans é: “Um pouquinho do RS em qualquer lugar, a qualquer hora” (SULFLIX, on-line). A plataforma oferece filmes novos e antigos, dando, dessa forma, espaço para novos realizadores e executando um trabalho de preservação da memória audiovisual local. A Sulflix não conta apenas com filmes e séries, mas também disponibiliza shows, clipes, programas de culinária, entrevistas e cursos. A Sulflix, segundo a crítica Maria do Rosário Caetano, “nasce como a primeira plataforma digital destinada a divulgar a produção audiovisual e artística de uma unidade da federação brasileira” (CAETANO, 2022, on-line). A plataforma conta com incentivo público vindo da Pró Cultura RS, lei de incentivo à cultura vinculada ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Por enquanto, a plataforma conta apenas com o plano de assinatura mensal, no valor de R$ 10,00. A Sulflix disponibiliza acesso pelo computador ou por aplicativos para sistema Apple e Android. A SPCine Play (spcineplay.com.br) se coloca como a única plataforma pública de streaming do Brasil. Em sua curadoria, exibe filmes oriundos de mostras e festivais de cinema de São Paulo. O conteúdo fica acessível, ao mesmo tempo, para eventos a serem vistos na própria plataforma. Além dessa curadoria específica, a SPCine exibe conteúdos da programação cultural da cidade de São Paulo, tais como shows e outros espetáculos artísticos. O conteúdo da plataforma ainda engloba clássicos do cinema brasileiro e está disponível para todo o país. De acordo com as informações disponibilizadas em seu site, a SPCine atua como uma empresa de cinema e audiovisual de São Paulo, sendo uma iniciativa da prefeitura da cidade, através da Secretaria Municipal de Cultura. Como empresa, a SPCine tem seu escritório 349 SEÇÃO 7 voltado para o desenvolvimento, financiamento e implementação de programas e políticas para setores de cinema, TV, games e outras mídias. A SPCine Play pode ser acessada tanto por computador quanto por aplicativos disponíveis para Android e Apple. O consumo do conteúdo é gratuito, sendo exigido apenas o cadastro para acesso. A Todesplay (todesplay.com.br) é uma plataforma de filmes, séries e programas de audiovisual via streaming, gerenciada pela A.P.A.N. – Associação de Profissionais do Audiovisual Negro. A plataforma destaca como principal objetivo contribuir para a equidade de gênero e raça, assim como construir uma produção audiovisual mais diversa. Em seu catálogo estão curtas, longas e séries de gêneros distintos, produzidos por realizadores negros do Brasil e do exterior. Para assistir ao conteúdo da plataforma, o usuário pode utilizar qualquer dispositivo com acesso a internet, mas não está claro no site se é possível acessar o catálogo de fora do país. Seu catálogo é gratuito e, segundo consta, é periodicamente alimentado, mas também há um catálogo especial para os usuários que efetuam pagamento. O site destaca, ainda, que não é possível fazer download das obras e que há um sistema especial para evitar esse tipo de prática. Além disso, a Todesplay oferece sua plataforma para mostras, festivais e eventos audiovisuais, sendo possível enviar a solicitação de cadastro para este, fins, utilizando o mesmo site do streaming. Após a descrição inicial das plataformas alternativas coletadas na amostragem, apresentamos abaixo um quadro indicativo de como essas plataformas podem ser categorizadas de acordo com o modelo analítico proposto por Spilker e Colbjørnsen (2020) - Tabela 1. Mais adiante, levantamos características específicas que parecem nos escapar ao modelo metodológico proposto, de modo a ampliar a compreensão global do fenômeno – tabela 2. A partir disso, vamos fazer algumas ponderações sobre a validade das categorias, a necessidade de redimensionar a compreensão dos modelos de negócio e, por fim, o desafio de fazer uma análise sincrônica da inserção dessas plataformas no ecossistema audiovisual contemporâneo. 350 Comunicação e Televisão Hoje Tabela 1 – Dimensões do streaming de plataformas alternativas brasileiras. Dimensão/ Plataforma streaming profissional versus streaming gerado pelo usuário streaming legal versus pirataria on-demand versus streaming ao vivo streaming em plataformas focadas versus streaming multifuncionais público de nicho versus streaming de público geral Brasil Paralelo (RS) Profissional Legal On-demand Streaming multifuncional Público de nicho Cardume (MG) Profissional Legal On-demand Streaming multifuncional Público de nicho Darkflix (SP) Profissional Legal On-demand Plataforma focada Público de nicho Embaúba Play (MG) Profissional Legal On-demand Plataforma focada Público de nicho LGBTFlix (SP) Gerado pelo usuário Profissional Legal On-demand Streaming multifuncional Público de nicho Libreflix (PR) Gerado pelo usuário Profissional Legal On-demand Plataforma focada Público de nicho SPCine Play (SP) Profissional Legal On-demand Streaming multifuncional Público de nicho Sulflix (RS) Profissional Legal On-demand Plataforma focada Público de nicho Todesplay (SP) Profissional Legal On-demand Streaming multifuncional Público de nicho Fonte: Próprios autores 351 SEÇÃO 7 Tabela 2 – Características específicas das plataformas. Plataforma Especificidades Brasil Paralelo (RS) Conteúdo nacional e estrangeiro; filmes, séries e outros produtos audiovisuais; integração de conteúdo com outras plataformas (YouTube, Spotify, etc.) Cardume (MG) Promove ações de fomento; tem edital próprio; disponibiliza apenas conteúdo brasileiro; filmes (curtas e média-metragens); oferece cadastro de obras Darkflix (SP) Conteúdo nacional e estrangeiro; filmes e séries de gênero Embaúba Play (MG) Conteúdo nacional; apenas filmes; aluguel disponível por 72h; oferece cadastro de obras LGBTFlix Plataforma colaborativa; conteúdo nacional LGBT+; apenas filmes; oferece cadastro de obras; acesso gratuito Libreflix Plataforma colaborativa; conteúdo nacional e estrangeiro; oferece cadastro de obras; acesso gratuito SPCine Play (SP) Plataforma pública, iniciativa da Prefeitura de São Paulo; conteúdo nacional e estrangeiro (latino-americano) – filmes e espetáculos culturais diversos Sulflix (RS) Conteúdo nacional (gaúcho); filmes, séries, outros produtos audiovisuais e espetáculos culturais diversos Todesplay (SP) Conteúdo nacional e estrangeiro; filmes, séries e outros produtos audiovisuais; disponibiliza plataformas para festivais e mostras Fonte: Próprios autores A primeira questão que merece ser levantada a partir desses quadros descritivos é a localização geográfica das plataformas e sua lógica de atuação. De acordo com o levantamento realizado a partir do CNPJ das empresas, pode-se visualizar que todos os serviços são do sudeste e do sul do país. Por ordem de representação, têm-se São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul como os únicos estados que aparecem no mapeamento. Nesse sentido, ainda cabe destacar que quatro plataformas alternativas focam apenas no conteúdo nacional: Cardume, Embaúba Play, LGBTFlix e Sulflix. No que diz respeito à primeira dimensão proposta por Spilker e Colbjørnsen (2020), sobre conteúdo profissional versus conteúdo gerado pelos usuários, considerou-se que todas as plataformas oferecem conteúdo 352 Comunicação e Televisão Hoje profissional. Mas há uma ressalva neste aspecto: a Cardume, a Embaúba, a LGBTFlix e a Libreflix oferecem cadastro de obras de maneira aberta em seu site. Isso significa que os realizadores e realizadoras podem efetuar o cadastro de seus filmes e ter o seu título incluído no catálogo desses serviços. Por isso, apesar de ter sido considerado que todas as plataformas se enquadram como profissional, e não com “gerado pelo usuário”, acredita-se que, para o caso das plataformas alternativas, é necessário ainda propor uma subcategoria dentro dessa dimensão, para abarcar a possibilidade de conteúdos profissionais que são indicados e/ou submetidos pelos próprios idealizadores, e não licenciados diretamente pelas plataformas junto a distribuidoras de cinema e audiovisual. Entende-se ainda, pela explicação de Spilker e Colbjørnsen (2020), que as plataformas profissionais produzem seus próprios conteúdos, conhecidos no contexto nacional como “produções originais”. Cabe, então, propor uma terceira subcategoria, que diz respeito à aquisição de conteúdo audiovisual através de licenciamento. Este modelo de aquisição opera a partir da compra dos direitos de exibição de obras de terceiros. Essa compra é válida por um período estabelecido de tempo. Toda negociação pode ser feita diretamente com os produtores ou através da mediação das distribuidoras. Neste caso, todas as plataformas aqui analisadas se enquadram nesta subcategoria. Já em relação às segunda e terceira dimensões, que tratam da legalidade versus pirataria e do conteúdo on-demand versus ao vivo, todas as plataformas foram consideradas como distribuidoras de conteúdo legal e sob demanda. A Todesplay, por exemplo, deixa claro em seu site que o download das obras veiculadas na plataforma é proibido e que há como ser detectado pelo sistema, caso alguém infrinja a regra. No que diz respeito à dimensão sobre streaming em plataformas focadas versus multifuncionais, levou-se em consideração quais ofereciam outros serviços para além do catálogo de obras. Nesse caso, a Cardume foi considerada como multifuncional pelas oficinas que propõe com regularidade, com o objetivo de incentivar a profissionalização da área, além do fomento gerado pelo seu primeiro edital (2021). Além dela, a SPCine Play também foi considerada multifuncional por se colocar não apenas como 353 SEÇÃO 7 plataforma de streaming, mas como uma empresa de atuação abrangente, que desenvolve, financia e implementa programas e políticas para o setor de cinema. A SPCine Play também oferece exibição para festivais e mostras. Em relação à Todesplay, também foi considerado que se trata de uma plataforma multifuncional por apresentar outros tipos de serviços dentro do mesmo site, como a possibilidade de mediar a exibição de festivais e mostras. O mesmo se refere ao Brasil Paralelo, que se define como uma empresa multimídia, oferecendo além dos filmes e séries, cursos, livros, podcasts, etc. Nesse sentido, é interessante pensar que a plataforma e a produtora se confundem nesse modelo de negócio, colocando questões sobre a própria definição de obra independente nesse cenário pouco regulado da produção audiovisual via streaming. Por fim, na dimensão que observa o público de nicho versus público geral, estabeleceu-se que todos os serviços analisados são de nicho, o que se relaciona diretamente com o conceito de alternativo que foi proposto neste artigo. Todas as plataformas, nesse caso, são voltadas para públicos específicos, e podem ter essa especificidade relacionada a temáticas de obras, como a Darkflix, a recortes socioculturais, como a LGBTFlix, a Todesplay e a Brasil Paralelo, até um foco regional como a Sulflix. Por fim, percebeu-se ainda que algumas questões interessantes ficaram de fora da análise e não foram enquadradas em nenhuma das dimensões propostas. Por isso, tendo em vista a necessidade de aprofundar este trabalho no futuro e a incorporação de novas categorias, elaborou-se um quadro com especificidades de cada uma das plataformas, trazendo para o centro da caracterização elementos que, julgamos, auxiliam na compreensão sistêmica do fenômeno. A pretensão, com esse quadro, é que ele sirva de base para a complexificação deste mapeamento já realizado e ao desdobramento de pesquisas futuras. 5. Considerações Este capítulo buscou compreender a dinâmica das plataformas alternativas de streaming audiovisual no Brasil, a partir da tipologia proposta por Spilker e Colbjørnsen (2020). Como recorte metodológico, 354 Comunicação e Televisão Hoje focamos em plataformas alternativas sem vínculo com cadeias televisivas e que disponibilizam, em seus catálogos, filmes de arte, filmes de nicho e/ou que estão preocupadas em exibir a produção nacional independente que não encontra espaço nas plataformas hegemônicas. Essa definição foi fundamental para destacar nove iniciativas nacionais: Brasil Paralelo, Cardume, Darkflix, Embaúba Play, LGBTFlix, Libreflix, SPCine Play, Sulflix e Todesplay. Ao analisar as descrições dos serviços e seu funcionamento operacional, elaboramos um quadro indicativo das cinco dimensões propostas na metodologia, encontrando um painel ainda limitado de informações para compreender devidamente o fenômeno. Como resultado, tem-se o destaque inicial de que todas as iniciativas estão sediadas nas regiões sul e sudeste, sendo de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul. Além disso, todos os serviços se valem de conteúdos profissionais, legalizados e sob demanda. Em relação ao enfoque das plataformas, quatro foram consideradas multifocadas, por oferecerem serviços que vão além de catálogo de filmes e obras audiovisuais. Mas, como já adiantamos, as categorias propostas ainda precisam ser ampliadas diante das características transientes de um mercado que muda rapidamente, tanto em termos econômicos, tecnológicos e culturais, quanto diante das mudanças regulatórias que cercam correntemente a economia criativa digital. Por isso, propomos ao final algumas características específicas de cada plataforma que devem ser levadas em conta para que possamos, comparativamente, observar os modelos de negócio de cada serviço e suas estratégias de sobrevivência diante da hegemonia das plataformas globais. Esse ponto é relevante porque o mercado de plataformas alternativas no Brasil tem crescido cada vez mais nos últimos anos e carece de estudos que acompanhem seus desdobramentos e que foquem na cena alternativa com o olhar atento também oferecido às iniciativas hegemônicas. Isso significa que, como desdobramento da presente pesquisa, vislumbramos elaborar um quadro analítico mais completo, que leve em conta as especificidades econômicas, políticas, culturais e tecnológicas do mercado brasileiro, a fim de compreender mais a fundo o lugar que o consumo audiovisual mediado por plataformas de streaming ocupa na nossa experiência contemporânea. 355 SEÇÃO 7 Referências AZEVEDO, C. H. A. J. e. A regulação dos serviços over-the-top de vídeo streaming por assinatura no Brasil: uma proposta à luz do modelo de autorregulação regulada. Revista de Direito, Estado e Telecomunicações, Brasília, v. 12, n. 2, p. 133-171, out. 2020. BRASIL. Medida provisória n.º 2.228-1, de 6 de setembro de 2001. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 10 set. 2001. Seção 1, p. 3. CAETANO, M. do C. Sulflix e o livro servem de vitrine à memória e ao presente do cine gautchê. Revista de cinema, 2022. Disponível em: https://revistadecinema.com. br/. Acesso em: 11 mar. 2021. EVENS, T.; DONDERS, K. Platform power and policy in transforming television markets. Springer, 2018. JOHNSON, C. Online TV. Nova York: Routledge, 2019. JENNER, M. Netflix and the Re-Invention of Television. Cambridge: Palgrave Macmillan, 2018. LADEIRA, J. M. Imitação do excesso: televisão, streaming e o Brasil. Rio de Janeiro: Folio Digital, 2016. LOBATO, R. 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Acesso em: 11 jan. 2023. 357 Minicurrículo dos autores(as) Antonio Mauro Saraiva: é professor titular na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, graduado em Engenharia de Eletricidade/Eletrônica, pela POLI-USP (1980), e em Engenharia Agronômica, pela ESALQ-USP. É mestre, doutor e livre-docente em Engenharia Elétrica, pela POLI-USP. É coordenador do Saúde Planetária Brasil e membro do Steering Committee da Planetary Health Alliance. Foi Pró-Reitor adjunto de Pesquisa da USP (2014-2015). Cicilia Maria Krohling Peruzzo: Doutora em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Bolsista Produtividade, nível 1B, do CNPq. Professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Espírito Santo. Autora dos livros Relações públicas no modo de produção capitalista e Comunicação nos movimentos populares – a participação na construção na cidadania, Televisão comunitária” e “Pedagogia da Comunicação popular e comunitária nos movimentos sociais. Organizadora de algumas coletâneas. Possui artigos publicados em diversas revistas científicas nacionais e internacionais. Já coordenou Grupos de Trabalho sobre temas de Comunicação e Cidadania vinculados a associações científicas, tais como ALAIC, Compós, Assibercom e Abrapcorp. Presidenta da Assibercom – Associação Ibero-Americana de Investigadores da Comunicação (2019-2023). Coordena o Núcleo de Estudos sobre Comunicação Comunitária e Local (Comuni). E-mail: kperuzzo@uol.com.br Cláudia Lago: Graduada em Jornalismo, pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (1989), mestre em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995) e doutora em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (2003). É professora da Escola de Comunicações e Artes, no departamento CCA, curso Licenciatura em Educomunicação, da Universidade de São Paulo, professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo e foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da ECA-USP (2017-2020). É membra da Coordenação do Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA). Desenvolve pesquisa na área de Comunicação tendo como foco a construção da Alteridade, especialmente relacionada aos estudos de gênero em narrativas não ficcionais, e pesquisa e extensão em Educomunicação, relacionadas também ao estudo da Alteridade. Coordena o Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes (AlterGen) e o projeto de Extensão Diversidade na ECA. Participa do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom), da ECA-USP. Clotilde Perez: Professora titular de Publicidade e Semiótica da ECA-USP (2017). Livre-docente em Ciências da Comunicação, pela ECA-USP (2007). Bolsista Produtividade, nível 2, do CNPq. Pós-doutora em Design Thinking, pela Stanford University (2013). Pós-doutora em Comunicação, pela Universidad de Murcia, Espanha, com bolsa da Fundación Carolina (2009). Pós-doutora pela Universidade Católica Portuguesa, Porto (2011). Doutora em Comunicação e Semiótica (2001) e Mestre em Administração de Marketing (1998), pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Administradora formada pela PUC-SP (1994). Professora do CRP-ECA-USP (desde 2002) na graduação em Publicidade e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. Chefe do Depto CRP – Relações Públicas, Publicidade e Turismo da ECA-USP (fev. 2017-fev.2021). Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da ECA-USP (2021-2023). Vice-presidente da FELS - Federación Latinoamericana de Semiótica. Líder do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo – GESC3. Editora da revista Signos do Consumo. Membro do Comitê Editorial da revista Matrizes e da revista DeSignis. Daniela Viana: É graduada em jornalismo, pela UFRGS (1998), atuando com comunicação das questões ambientais e climáticas desde 2003. Especializada em Saúde Ambiental, pela FSP-USP, é doutora em Ciências Ambientais, pelo PROCAM-USP, realizou pós-doutoramento em Comunicação Climática na George Mason University (EUA) e atualmente é pós-doutoranda do IEA-USP, bolsista do USPSusten e membro do Saúde Planetária Brasil. Diogo Cortiz: Professor da PUC-SP e pesquisador no Ceweb.br/NIC.br. Doutor em Tecnologias da Inteligência e Design Digital, pela PUC-SP, com doutorado sanduíche pela Universidade de Paris-Sorbonne. Realizou estágio pós-doutoral na Universidade de Salamanca, Espanha, e foi pesquisador visitante na Queen Mary University of London. Atualmente, coordena o Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP. Tem pesquisas na intersecção entre Design, IA e Ciência Cognitiva. Eneus Trindade: É professor titular da Universidade de São Paulo (USP), na Escola de Comunicações e Artes (ECA). Bolsista Produtividade (PQ), nível 2, do CNPq. Possui graduação em Comunicação Social Publicidade e Propaganda, pela Universidade Federal de Pernambuco (1995), mestrado em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (1999), doutorado em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (2003), pós-doutorado em Antropologia Visual, pela Universidade Aberta de Portugal (2009), livre-docência em Ciências da Comunicação Publicitária, pela USP (2012), estágio pós-doutoral na condição de professor convidado para a Chair Numeratie Publicitaire do CELSA Sorbonne Universités Paris -FR (1S/2018), Projeto TransNum. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM-USP). Foi coordenador do PPGCOM-USP (2013 até 2017). Co-líder do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo – GESC3. Editor da revista Signos do Consumo. Atua como colaborador no Grupo Saúde Plantária do IEA-USP e no INCT-CNPq-USP – Combate à Fome. Eugênio Bucci: Professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Coordenador acadêmico da Cátedra Oscar Sala (IEA-USP) e Superintendente de Comunicação Social da USP. Escreve quinzenalmente na seção Espaço Aberto do jornal O Estado de S. Paulo. É docente permanente do PPGCOM-USP. Docente do Departamento de Informação e Cultura (CBD) da ECA-USP. Foi professor da ESPM, entre 2010 e 2014, onde dirigiu o curso de Pós-graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, de 2011 a 2013. Foi presidente da Radiobras de 2003 a 2007. Na Editora Abril, foi diretor de redação das revistas Superinteressante e Quatro Rodas e Secretário Editorial. Desenvolve pesquisas nas seguintes áreas: ética e imprensa, comunicação pública, superindústria do imaginário, informação e cultura democrática. Escreveu, entre outros livros, O Estado de Narciso (Companhia das Letras, 2015) e A forma bruta dos protestos (Companhia das Letras, 2016), Existe democracia sem verdade factual? (Estação das Letras e Cores, 2019) e A superindústria do imaginário (Autêntica, 2021). Everardo Rocha: Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio. Pesquisador, nível 1D, do CNPq e Cientista do Nosso Estado pela Faperj. Doutor e mestre em Antropologia Social pelo PPGAS-Museu Nacional-UFRJ. Francisco Leite: Doutor em Ciências da Comunicação, pela ECA-USP, com estágio de doutoramento PDSE-CAPES, na Universidade de Trento e na Universidade de Bolonha (Itália). Pós-doutorado em Comunicação e Consumos, na USP, com bolsa FAPESP (2019-2021). É pesquisador vice-líder do grupo de pesquisa ArC2 – Estudos Antirracistas em Comunicação e Consumos ECA-USP-CNPq. Entre outras publicações, é autor de Publicidade contraintuitiva: inovação no uso de estereótipos na comunicação (2014), coorganizador e autor de Publicidade Antirracista: reflexões, caminhos e desafios (2019), obra finalista do prêmio Jabuti 2020. E-mail: leitefco@gmail.com. Gabrielle Weber: Travesti e lésbica, é professora do departamento de Ciências Básicas e Ambientais da Escola de Engenharia de Lorena, da Universidade de São Paulo. Coordena o projeto Levantamento da Ciência LGBTQIA+ Brasileira. Trabalha com os seguintes temas: integrabilidade, materiais topológicos, gênero, sexualidade e transfeminilidades. Faz divulgação científica inclusiva no “Mamutes na Ciência”. Ian Abé Santiago Maffioletti: É mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba. É também realizador audiovisual e sócio-fundador da produtora Vermelho Profundo. Leandro Leonardo Batista: Professor associado RDIDP da Escola de Comunicações e Artes da USP e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação – PPGCOM-USP. Graduado em Educação Física, pela Universidade de São Paulo (1975), possui mestrado em Propaganda – University of North Carolina (1990), doutorado em Comunicação Social – University of North Carolina (1996) e livre-docência (2019), pela ECA-USP. Atualmente é professor RDIDP da Escola de Comunicações e Artes atuando como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM-USP). Tem experiência acadêmica e profissional na área de Comunicação, com ênfase em Relações Públicas e Propaganda, atuando principalmente nos seguintes temas: campanhas públicas, publicidade, pesquisa de mercado, comunicação de riscos, preconceitos sociais e comportamento do consumidor, com foco em recepção, persuasão, ciências cognitivas e neurofisiologia aplicada. Coordenador do grupo de pesquisa e do laboratório de neurofisiologia aplicada à comunicação 4C: Centro de Ciências Cognitivas e Comunicação e do grupo de pesquisa ArC2 ? Estudos antirracistas em Comunicação e Consumos-CNPq. É um dos organizadores e autor das obras O Negro nos Espaços 359 Publicitários Brasileiros (ECA; Cone, 2011), livro finalista do Prêmio Jabuti 2012 entre os dez melhores do campo da comunicação, bem como Publicidade Antirracista: reflexões, caminhos e desafios (ECA-USP, 2019), obra finalista do prêmio Jabuti 2020. Marcel Vieira Barreto Silva: É professor Associado do Departamento de Comunicação e do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba. Possui mestrado (2007) e doutorado (2011) em Comunicação, pela Universidade Federal Fluminense. Foi membro da diretoria da COMPÓS (2019-2021) e também coordenador do GT Estudos de Televisão. Atualmente, é membro do Comitê Científico da SOCINE. Maria Immacolata Vassallo de Lopes: Possui graduação em Ciências Sociais, pela Universidade de São Paulo; mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo; pós-doutorado na Universidade de Florença, Itália. Professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Epistemologia da Comunicação, Teoria da Comunicação e Metodologia da Pesquisa em Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: campo da comunicação, metodologia da comunicação, recepção da comunicação, ficção televisiva, transmidiação. Coordena o Centro de Estudos de Telenovela da USP (CETVN) e o Centro de Estudos do Campo da Comunicação da USP (CECOM). Criadora e coordenadora da rede internacional de pesquisa OBITEL (Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva) e da rede nacional de pesquisa OBITEL-BRASIL. Diretora de MATRIZes, revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP. Presidente de IBERCOM – Associação Ibero-Americana de Investigadores da Comunicação (2015-2019). Presidente da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (1995-1997) e é vice-presidente do Conselho Curador da entidade. Presidente da Comissão de Pós-Graduação da ECA-USP (2001-2008) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (2001-2012). Representante da área de Comunicação no Comitê Assessor CA-AC do CNPq (2004-2007). Membro do Conselho Científico de periódicos nacionais e internacionais. Publica artigos e livros no país e no exterior em suas especialidades. É pesquisadora, nível 1A, do CNPq. Margarida Maria Krohling Kunsch: Professora emérita e pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), da qual foi diretora de 2013 a 2017. Doutora em Ciências da Comunicação e livre-docente em Teoria da Comunicação Institucional: Políticas e Processos, pela ECA-USP. Coordenadora do Centro de Estudos de Comunicação Organizacional e Relações Públicas (Cecorp) e do Observatório de Comunicação, Responsabilidade Social e Sustentabilidade (SustenCOM) da ECA-USP. Foi pró-reitora adjunta de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo (2018-2021). Pesquisadora vinculada ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Representante da área de Comunicação e Informação no Comitê Assessor (CA-AC) do CNPq (2019 -2022). É autora de vasta produção em Ciências da Comunicação e em Comunicação Organizacional e Relações Públicas. Publicou livros próprios, com destaque para Planejamento de relações públicas na comunicação integrada, 97 capítulos de livros, 90 prefácios de livros, 40 artigos em periódicos científicos nacionais e internacionais e organizou 43 coletâneas dessas áreas. Criadora, e editora das revistas científicas Organicom: Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas, da ECA-USP, e Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (Alaic). Sua trajetória acadêmica e profissional foi e é marcada por uma efetiva participação nas entidades científicas e associações de classe da área de Comunicação, no Brasil e no Exterior, tendo participado de criação e ocupado cargos diretivos em diversas delas. Massimo Leone: É professor de Filosofia da Comunicação, Semiótica Cultural e Semiótica Visual no Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da Universidade de Turim, Itália, professor em tempo parcial de Semiótica no Departamento de Língua e Literatura Chinesa da Universidade de Xangai, China, membro associado da Cambridge Digital Humanities, Universidade de Cambridge, e diretor do Instituto de Estudos Religiosos da “Fundação Bruno Kessler”, Trento. Tem sido professor visitante em várias universidades dos cinco continentes. É autor de quinze livros, editou mais de 50 volumes coletivos e publicou mais de 500 artigos em semiótica, estudos religiosos e estudos visuais. Foi o vencedor de uma Bolsa Consolidadora do ERC de 2018. É editor-chefe da Lexia, a revista de Semiótica do Centro de Pesquisa Interdisciplinar em Comunicação, Universidade de Turim, Itália, coeditor-chefe da Semiotica (De Gruyter), e coeditor das séries de livros I Saggi di Lexia (Roma: Aracne), Semiotics of Religion (Berlim e Boston: Walter de Gruyter), e Advances in Face Studies (Londres e Nova York: Routledge). Pablo Moreno Fernandes: Doutor em Ciências da Comunicação, pela ECA-USP. Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFMG, pesquisador permanente do Programa de PPGCOM-UFMG, vinculado à linha Processos Comunicativos e Práticas Sociais. Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Raça e Gênero (Coragem-CNPq-UFMG) e integrante do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo (GESC3-CNPq-USP). 360 Silvana Nascimento: Negra e não-binárie, é docente do departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e coordena o grupo de pesquisa Cóccix – Estudos indisciplinares do Corpo e do Território. Trabalha com os seguintes temas: gênero, sexualidade, corpo, território, cidade e transfeminilidades. Publicou o livro Fernanda Benvenutty: uma política travesti (2002, Patuá, SP), entre outras publicações. Thaís Presa Martins: É bacharela e licenciada em Ciências Biológicas, pela PUCRS; especialista em Gestão da Qualidade para o Meio Ambiente, pela PUCRS; mestra e doutora em Educação em Ciências, pela UFRGS. É professora de Biologia; tutora pelo Curso de Especialização em Saúde Pública da USP, e pesquisadora das áreas de Educação em Ciências, Educação Ambiental, Educação em Saúde, e Estudos Culturais, sendo membro do Saúde Planetária Brasil. Victor Souza Lima Blotta: É professor Doutor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Coordena o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA-USP). É também pesquisador associado e vice-coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP). Foi presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-Graduação – ANDHEP (2016-2018). Mestre e doutor em Direito, pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. Trabalha especialmente com Filosofia do Direito, Filosofia Política e Comunicação, e discute temas como direitos humanos, democracia, esfera pública, mídia e políticas de comunicação, violência e segurança cidadã. Vinícius Romanini: Possui graduação em Ciências da Comunicação (Jornalismo, 1990), mestrado (2001) e doutorado (2006) em Ciências da Comunicação, todos pela Universidade de São Paulo. Pós-doutorado pela Universidade de Indiana (EUA), em 2014. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Filosofia e Teoria da Comunicação, Filosofia da Linguagem, Cultura e Semiótica. Como jornalista, foi repórter, editor ou colaborador em diversos meios de comunicação, nos quais cobriu principalmente assuntos de cultura, ciência e sustentabilidade. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Ciência Cognitiva (SBCC) para a gestão 2017-2019. É também editor-científico da revista SEMEIOSIS (Revista Transdisciplinar de Semiótica e Design), membro do corpo editorial da Peter Lang Book Series Reflections on Signs and Language, além dos seguintes periódicos: Cadernos de Semiótica Aplicada (CASA), Brazilian Journal of Technology, Communication, and Cognitive Science, Texto Livre: Linguagem e Tecnologia e da Clareira – Revista de Filosofia da Região Amazônica. Coordenador do Grupo ECA pela Democracia. Pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC), do Centro de Lógica e Epistemologia da Ciência (CLE/Unicamp), do Grupo de Estudos em Sistemas Sígnicos do Design, bem como do Projeto UniTwin da Unesco (Unesp). Entre os prêmios que ganhou estão o Abril de Jornalismo, o Ethos de Jornalismo Ambiental e o Citi Journalistic Excellence Award. Integra os programas de pós-graduação PPGCOM (Comunicação) e PGEHA (Interunidades em Estética e Historia da Arte). William Corbo: Professor adjunto do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS-UFRJ. Doutor e mestre em Comunicação, pelo PPGCOM-PUC-Rio. Graduado em Ciências Sociais, pela UFRJ. 361 Este obra foi composta com as tipologias Georgia e Open Sans, e impresso em papel Offset 90 g pela gráfica Meta Brasil.