Organizadores:
Clotilde Perez, Eneus Trindade, Maria Immacolata
Vassallo de Lopes e Marcia Ohlson.
Comunicação
na Agenda do
Século XXI
© Vários autores, 2023
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, sem
autorização prévia por escrito da editora, sejam quais forem os meios empregados.
ORGANIZADORES
Clotilde Perez, Eneus Trindade, Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Márcia
Pinheiro Olhson
DIREÇÃO EDITORIAL
Kathia Castilho e Solange Pelinson
REVISÃO
Leoberto Balbino
PROJETO GRÁFICO E EDIÇÃO DE ARTE
Marcelo Max
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)
P958
Comunicação na agenda do século XXI /
1.ed. organizadores Clotilde Perez...
[et al.]. – 1.ed. – São Paulo : Estação
das Letras e Cores, 2023.
Outros organizadores: Eneus Trindade,
Maria Immacolata Vassallo de Lopes, Marcia Ohlson.
ISBN : 978-65-5029-031-3
1. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP – História
I. Perez, Clotilde. II. Trindade, Eneus. III. Lopes, Maria Immacolata Vassallo de
IV. Ohlson, Marcia.
06-2023/10
CDD 378.098161
Índices para catálogo sistemático:
1. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação :
Universidade de São Paulo : Educação 378.098161
Aline Graziele Benitez – Bibliotecária - CRB-1/3129
O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo
Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.
Estação das Letras e Cores Editora
Av. Real, 55 – Aldeia da Serra
06429-200 – Barueri – SP
Tel.: 55 11 4326-8200
www.estacaoletras.com.br
facebook.com/estacaodasletrasecoreseditora
@estacaodasletrasecores
Organizadores:
Clotilde Perez, Eneus Trindade,
Maria Immacolata Vassallo de
Lopes e Marcia Ohlson
Comunicação
na Agenda do
Século XXI
O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo
Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos.
2023
Obra financiada pelo:
Sumário
INTRODUÇÃO
A comunicação e os desafios contemporâneos
7
Clotilde Perez • Eneus Trindade • Maria Immacolata
Vassallo de Lopes • Marcia Ohlso
SEÇÃO 1 • Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Comunicação organizacional estratégica para sustentabilidade
e os desafios para implementação da Agenda 2030 da ONU
17
Margarida M. Krohling Kunsch
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente:
o papel das redes sociais na difusão do conceito de
Saúde Planetária a partir da experiência do PHAM2021
45
Daniela Vianna
Thaís Presa Martins
Antonio Mauro Saraiva
SEÇÃO 2 • Comunicação, tecnologias digitais e IA
A inteligência artificial como um objeto da pesquisa
comunicacional: a contribuição da semiótica peirceana
69
Vinícius Romanini
Os impactos da Inteligência Artificial e dos Sistemas de
Recomendação na comunicação em Redes Sociais
89
Diogo Cortiz
Semiótica do ensino digital
107
Massimo Leone
SEÇÃO 3 • Comunicação, sexualidades e gênero
Gêneros e sexualidades como
centrais nas pesquisas em comunicação
125
AlterGen
Sexo, gênero e ação: uma breve reflexão
sobre transvisibilidade no cinema e na televisão
Gabrielle Weber
Silvana Nascimento
143
SEÇÃO 4 • Comunicação, etnias e antirracismo
A capacidade comunicacional da publicidade
antirracista: caminhos para pesquisas e intervenções
171
Leandro Leonardo Batista
Francisco Leite
Ações antirracistas, políticas afirmativas e discussões
étnico-raciais na pesquisa em Comunicação
205
Pablo Moreno Fernandes
SEÇÃO 5 • Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
Ou a democracia se realiza na comunicação,
ou não é democracia
225
Eugênio Bucci
Comunicação e diretos humanos:
que cidadania queremos?
239
Cicilia M. Krohling Peruzzo
Comunicação dos direitos e interseccionalidade
comunicacional: desafios de uma teoria crítica
para a esfera pública digital
261
Vitor Blotta
SEÇÃO 6 • Comunicação, cultura e consumos
Os desafios epistemológicos, teóricos e metodológicos das
pesquisas em Publicidade e Consumo
273
Clotilde Perez
Tanto ao antigo quanto ao tempo que se segue: pesquisa do
consumo, solidez da história e agenda do futuro
295
Everardo Rocha
William Corbo
SEÇÃO 7 • Comunicação e Televisão Hoje
A televisão, hoje. Ou, “A televisão morreu?
Viva a televisão!”
311
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Plataformas alternativas de streaming audiovisual:
produção independente em um ecossistema
midiático em transformação
335
Minicurrículo dos autores(as)
358
Ian Abé Santiago Maffioletti
Marcel Vieira Barreto Silva
A comunicação e os desafios
contemporâneos
Clotilde Perez
Eneus Trindade
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Marcia Ohlso
Entramos na segunda década do século XXI. Os conflitos políticos, econômicos e socioculturais são atravessados por consequências
da ação humana no planeta. Temos as fortes mudanças climáticas,
com enormes consequências ambientais, depredação do meio ambiente, com as poluições atmosférica, oceânica, do solo e hidrográfica;
temos transformações tecnológicas e novas perspectivas de relações
sociais e de constituição e acesso às condições de cidadanias diversas
com vistas à conformação de sociedades mais igualitárias e mais justas na oferta de boas condições de vida para todos. Lembrando que o
exercício dessas cidadanias sofre os entraves de interesses políticos e
econômicos, dominados por grupos hegemônicos, minoritários, mas
de grande poder de decisão contra os interesses majoritários do bem
comum da maioria diversa.
É neste debate que a Organização das Nações Unidas (ONU),
atenta aos problemas do Planeta Terra, estabelece os seus Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável – ODS`s. Tais objetivos
7
conformam a Agenda ONU 2030 que tem como meta o alcance dos
objetivos do crescimento sustentável, entre os 193 países membros
da ONU, signatários do pacto global assinado durante a Cúpula das
Nações Unidas, em 2015.
A agenda é composta por 17 objetivos ambiciosos e interconectados, desdobrados em 169 metas, com foco em superar os principais desafios de desenvolvimento enfrentados por pessoas no Brasil
e no mundo, promovendo o desenvolvimento sustentável global até
2030. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável abrangem diferentes temas, relacionados a aspectos ambientais e sociais. Assim
como as metas de cada ODS, eles foram construídos de maneira interdependente. Ou seja, quando um país membro conseguir atingir
um deles, muito provavelmente terá conseguido avançar em outros.
Os 17 ODS estimulam ações relacionadas às necessidades humanas,
como a saúde e a educação. Alguns ODS também buscam a redução
de desigualdades sociais e ampliação ao acesso a direitos e serviços
básicos, tal qual alimentação.
ODS 1 – Erradicação da pobreza: acabar com a pobreza em
todas as suas formas, em todos os lugares.
ODS 2 – Fome zero e agricultura sustentável: acabar com
a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e
promover a agricultura sustentável.
ODS 3 – Saúde e bem-estar: assegurar uma vida saudável e
promover o bem-estar para todos, em todas as idades.
ODS 4 – Educação de qualidade: assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de
aprendizagem ao longo da vida para todos.
ODS 5 – Igualdade de gênero: alcançar a igualdade de gênero
e empoderar todas as mulheres e meninas.
ODS 6 – Água potável e saneamento: garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos.
ODS 7 – Energia limpa e acessível: garantir acesso à energia
barata, confiável, sustentável e renovável para todos.
8
ODS 8 – Trabalho decente e crescimento econômico: promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho decente para todos.
ODS 9 – Indústria, inovação e infraestrutura: construir infraestrutura resiliente, promover a industrialização inclusiva e sustentável, e fomentar a inovação.
ODS 10 – Redução das desigualdades: reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles.
ODS 11 – Cidades e comunidades sustentáveis: tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes
e sustentáveis.
ODS 12 – Consumo e produção responsáveis: assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.
ODS 13 – Ação contra a mudança global do clima: tomar
medidas urgentes para combater a mudança climática e seus
impactos.
ODS 14 – Vida na água: conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento
sustentável.
ODS 15 – Vida terrestre: proteger, recuperar e promover o uso
sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável
as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da Terra e deter a perda da biodiversidade.
ODS 16 – Paz, justiça e instituições eficazes: promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável,
proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições
eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.
ODS 17 – Parcerias e meios de implementação: fortalecer
os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o
desenvolvimento sustentável.
Nesse conjunto de objetivos, articulam-se novas perspectivas da organização política, social e econômica, com fortes impactos
nas culturas que não estão no mesmo patamar de desenvolvimentos
9
socioeconômico, o que torna as aspirações das populações mundiais
diversas em relação às novas práticas culturais que os ODS`s exigem.1
Soma-se a este debate o papel da comunicação na construção
de realidades mais justas. Neste sentido, por ocasião da celebração
dos seus 50 anos, o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação se lança ao desafio trazendo interlocutores competentes
convidados para discutir alguns aspectos das ODS`s que, nesta obra,
servem de referência para oferecer um norte às discussões.
É bem importante destacar que alguns eixos já são bem discutidos no PGGCOM-USP e estão destacados no seu papel de formação pós-graduada em comunicação e afinados com os ODS`s.
São eles os trabalhos de pesquisa, ensino e extensão da linha de Comunicação e institucionalidades, que dão lugar às ações dos docentes do campo da educomunicação e da comunicação organizacional
sustentável, pensando a superação das desigualdades sociais pela
linha 3 – Comunicação: Interfaces e Institucionalidades. Outros
aspectos se distribuem nas linhas 1 – Comunicação, redes e linguagens: objetos teóricos e empíricos e 2 – Processos Comunicacionais: tecnologias, produção e consumos, que oferecem espaços de
reflexão e debates sobre a qualidade e a ética na produção, circulação e consumo de informações na comunicação e também sobre o
trabalho decente e o crescimentos econômico, bem como também
discute o consumo sustentável.
Nesta proposta, buscamos apresentar em sete seções, algumas visões que consideramos prioritárias ao debate da comunicação
para a agenda do Século XXI, lembrando que esta escolha não é totalizante e não esgota todas as possibilidades de abordagens frente a
todos os ODS`s.
Assim, trabalhamos a composição deste livro do seguinte
modo: Seção 1. Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente. Esta
parte se dá com as contribuições sobre o olhar das organizações para
a sustentabilidade e a visibilidade e a propagabilidade dos sentidos da
1 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável | As Nações Unidas no Brasil.
10
saúde planetária como valores a serem perseguidos nas ações de comunicação. O primeiro texto, Comunicação organizacional estratégica para sustentabilidade e os desafios para implementação da
Agenda 2030 da ONU, de Margarida Maria Krohling Kunsch (PPGCOM-USP), traz um conjunto de elementos que permitem refletir
sobre os desafios da comunicação das organizações frente aos seus
posicionamentos e ações visando o desenvolvimento sustentável dos
contextos em que as organizações atual, sobretudo no que se refere
ao Brasil. O segundo texto, Comunicação, sustentabilidade e meio
ambiente: o papel das redes sociais na difusão do conceito de Saúde
Planetária a partir da experiência do PHAM2021, de Daniela Viana, Thaís Presa e Antonio Mauro Saraiva, traz a contribuição brasileira do Grupo Saúde Planetária (IEA-USP) e seu papel articulador
junto à Planetary Health Alliance International, a partir de ações de
comunicação que engajaram o Brasil na luta pela saúde planetária,mostrando na práticas resultados de ações de comunicação.
Na Seção 2 temos a discussão sobre inovação e tecnologia com
o eixo Comunicação, tecnologias digitais e IA. Nesta parte, trazemos
três contribuições ao debate: A inteligência artificial como um objeto
da pesquisa comunicacional: a contribuição da semiótica peirceana,
de Vinicius Romanini (PPGCOM-USP) que aborda as possibilidades
de semioses em processos mediados pela tecnologia em IA; Os impactos da Inteligência Artificial e dos Sistemas de Recomendação na comunicação em Redes Sociais, de Diogo Cortiz (PPG TIDD PUC-SP), e
a questão dos sentidos no ensino no artigo, Semiótica do ensino digital, de Massimo Leone (Universidade de Turim, Itália).
Na Seção 3. Comunicação, sexualidades e gênero, as desigualdades de gêneros são abordadas em dois aspectos. No primeiro,
Gêneros e sexualidades como centrais nas pesquisas em comunicação de Cláudia Lago (PPGCOM-USP), o tema é visto no amadurecimento e desenvolvimento de suas pesquisas no campo, e, na segunda, Sexo, gênero e ação: uma breve reflexão sobre transvisibilidade
no cinema e na televisão, de Gabriela Weber e Silvana Nascimento
(PPGDiversitas-USP), elas mostram o tipo de visibilidade dado nas
mídias audiovisuais às pessoas trângeneras.
11
Ainda na questão da superação das desigualdades, na Seção
4. Comunicação, etnias e antirracismo, a questão racial ganha lugar, mostrando num olhar pela publicidade o que se pode propagar
ou construir como realidade da comunicação antirracista. O primeiro texto, A capacidade comunicacional da publicidade antirracista:
caminhos para pesquisas e intervenções, vai além dos dignóstico e
aponta para realizações que materializam uma comunicação antirracista de Leandro Leonardo Batista (PPGCOM-USP) e Francisco
Leite (egresso PPGCOM-USP). O segundo texto, Ações antirracistas,
políticas afirmativas e discussões étnico-raciais na pesquisa em Comunicação, de Pablo Moreno Fernandes (PPGCOM-UFMG e egresso
do PPGCOM-USP), o tema é analisado criticamente nas nuanças das
abordagens da pesquisa no campo.
Também não poderia deixar de estar presente nesta discussão, a abordagem sobre o eixo da Seção 5. Comunicação e direitos
humanos: ética, cidadania e política, fundamental para entender o
papel da comunicação na luta pelos Direitos Humanos e defesas das
instituições democráticas. Nesse sentido, os textos Ou a democracia
se realiza na comunicação, ou não é democracia, de Eugênio Bucci
(PPGCOM-USP), e Comunicação e direitos humanos: que cidadania queremos?, de Cicilia M. Krohling Peruzzo (PPGCOM UFBA e
PPGCOM UERJ), cumprem o objetivo desta obra em situar o papel
da comunicação frente ao tema. E para dar desfecho a este eixo, a reflexão de Victor Blotta (PPGCOM-USP), intitulada Comunicação dos
direitos e interseccionalidade comunicacional: desafios de uma teoria crítica para a esfera pública digital, considera um modo teórico-crítico de compreensão, via interseccionalidades, a complexidade
tensiva, mediada pela presença de violências no ambiente social, entre a consciência social dos Direitos Humanos e os Direitos Humanos
comunicados, compondo assim o que ele denomina como ambiente
da esfera pública digital.
O tema da comunicação e consumo e sua relevância social
para pesquisa e para entender os tempos atuais se manifestam nos
trabalhos do eixo da Seção 6. Comunicação, cultura e consumos
12
com os textos Os desafios epistemológicos, teóricos e metodológicos das pesquisas em Publicidade e Consumo, de Clotilde Perez
(PPGCOM-USP), e Tanto ao antigo quanto ao tempo que se segue:
Pesquisa do consumo, solidez da história e agenda do futuro, de
Everardo Rocha (PPGCOM-PUC Rio) e William Corbo (UFRJ).
Por fim, a Seção 7. Comunicação e Televisão Hoje discute a
importância das transformações do fazer e do ver televisão/produtos
audiovisuais, com suas implicações aos processos produtivos, de circulação de tais produtos e seus consumos. Nessa esteira, os capítulos A
televisão, hoje. Ou, “A televisão morreu? Viva a televisão!”, de Maria
Immacolata Vassallo de Lopes (PPGCOM-USP) e Plataformas alternativas de streaming audiovisual: produção independente em um ecossistema mediático em transformação, de Ian Abé Santiago Maffioletti
e Marcel Vieira Barreto Silva (PPGCOM-UFPB), dão os contornos dos
novos modos de produzir, circular e consumo a produção audiovisual,
antes restrita ao Cinema e Televisão e que hoje tornam o consumo on-demand streaming um fato que precisa ser conhecido e discutido.
Reconhecemos que as sete seções aqui abordadas não esgotam a
totalidade dos desafios impostos à comunicação, nem muito menos dão
conta dos vínculos com todos os ODS`s. Contudo, a obra em tela busca ser norteadora de ampliações e incorporações de novos temas que
precisam ser melhor explorados na pesquisa em Comunicação, convidando os pesquisadores a pensar as agendas de suas pesquisas para o
campo frente aos temas e articulações que daqui possam emergir.
Os organizadores
13
SEÇÃO 1
Comunicação, sustentabilidade
e meio ambiente
Comunicação organizacional
estratégica para sustentabilidade
e os desafios para implementação
da Agenda 2030 da ONU
1
Margarida M. Krohling Kunsch
1. Introdução
O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
(PPGCOM), da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de
São Paulo, ao incluir a temática da Comunicação, Sustentabilidade
e Meio Ambiente na presente coletânea Comunicação na Agenda
do Século XXI, está em sintonia com a pauta mundial da atualidade.
Sinaliza, também, a urgência e a necessidade da realização de mais
pesquisas científicas sobre o papel estratégico da área das Ciências
da Comunicação na preservação do Planeta e para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da
Organização das Nações Unidas (ONU).
Procura-se, neste artigo, demonstrar como a comunicação organizacional estratégica pode contribuir na promoção da sustentabilidade
1 Este artigo foi originalmente publicado na Organicom-Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas, n. 39, v. 19, maio/ago. 2022, passou por atualizações e ajustes.
17
SEÇÃO 1
global, mediante um trabalho integrado entre os atores e o poder público, a sociedade civil e as organizações. Defende uma conexão mais
efetiva, assim como um diálogo entre esses atores, com vistas a se
buscar uma maior consciência social e política para um desenvolvimento sustentável, capaz de atender os interesses da sociedade no
presente e no futuro.
Este estudo é pautado por procedimentos metodológicos
baseados em documentos e informes produzidos pela ONU sobre a
Agenda 2030 e o Pacto Global, assim como uma pesquisa bibliográfica sobre a temática, mediante um recorte de alguns autores. Os aportes teóricos apresentados buscam sinalizar contribuições resultantes
de pesquisas bibliográficas e estudos e publicações anteriores desta
autora. Sua experiência na coordenação do Observatório de Comunicação, Responsabilidade Social e Sustentabilidade (SustenCOM),
com diversas ações realizadas em nível de extensão, assim como na
orientação de teses de doutorado do Programa de Pós-graduação em
Ciências da Comunicação (PPGCOM), da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), tem permitido interagir e refletir diretamente com este tema.
Para uma maior compreensão dos conteúdos aqui trabalhados,
são abordados os seguintes itens: Ação coletiva para a sustentabilidade
e os princípios ESG; ODS – Parceria global e as alianças entre pessoas,
poderes públicos, organizações e sociedade civil; Comunicação organizacional estratégica: concepções e abrangência; e Estratégias comunicativas para sustentabilidade social; além das considerações finais.
2. Ação coletiva para a sustentabilidade e os princípios ESG
O desenvolvimento sustentável é uma tarefa coletiva de toda a
sociedade, do Estado e das organizações públicas e privadas, e não só
de uma pessoa. Parte-se assim do princípio de que a efetiva prática da
sustentabilidade implica políticas públicas, atitudes e ações conjuntas
entre três grandes atores: Estado, organizações privadas e sociedade
civil organizada. Pressupõe-se, também, para que seja possível promover efetivamente a sustentabilidade, que a comunicação, no sentido
18
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
amplo, é imprescindível, por parte tanto dos meios, que devem contribuir na difusão de conhecimento e de práticas educativas, quanto de
toda a convergência midiática presente na era digital em que vivemos.
2.1 Sustentabilidade
São inúmeras as percepções teóricas e aplicadas sobre desenvolvimento sustentável. Embora superconhecido e referendado,
vale registrar aqui a clássica definição: desenvolvimento sustentável
é “aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer
a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias
necessidades”. Ela foi preconizada pela Conferência da Organização
das Nações Unidas realizada em Estocolmo, em 1987, no Relatório
Brundtland, que resultou no livro Nosso futuro comum, de 1999.
Sustentabilidade constitui hoje um tema recorrente de debates, achando-se na ordem do dia de governos, das organizações
e da sociedade em geral. Essa temática conta com vasta literatura
nas mais diferentes áreas de conhecimento e crescente interesse dos
estudiosos, tendo mobilizado as atenções do mundo, especialmente nas últimas três décadas. Haja vista que já se levaram a efeito 26
conferências globais de 1992 a 2021 – as chamadas Conferências das
Partes (COPs) – pela Organização das Nações Unidas (ONU), ligadas
a temas como desenvolvimento sustentável, meio ambiente, clima,
emissão do gás de efeito estufa etc., com a participação crescente de
cerca de quase 200 países. Dentre todas as conferências já realizadas,
destacam-se: Rio-92 – Rio de Janeiro, Brasil, 1992; Protocolo de Kyoto – Japão, 1997; Johanesburgo, África do Sul, 2002; Rio+10 – Rio
de Janeiro, 2002; COP 15 – Copenhagen, Dinamarca, 2009; Rio+20,
Rio de Janeiro, 2012; COP 19 – Varsóvia, Polônia, 2013; e COP 21 –
Paris, França, 2015. A última, a COP 26, sobre mudanças climáticas,
ocorreu em novembro de 2021, em Glasgow, Escocia2. Em novembro
de 2022 a COP 27 aconteceu em Sharm el-Sheikh, no Egito.
2 Em 2020, era para a COP 26 ter sido realizada em Glasgow, Escócia, mas devido à pandemia da covid-19 ela foi transferida para 2021, ocorrendo neste mesmo local.
19
SEÇÃO 1
Em que pesem todos os esforços da ONU, os quais têm mobilizado o mundo e viabilizado a produção de documentos e acordos por países
que integram as COPs, a questão da preservação do planeta Terra é crucial. Infelizmente, muitos desses acordos ficam só em acordos documentais, cartas de intenções, manifestos etc. Mesmo algumas nações mais
desenvolvidas e mais ricas do mundo, que são as mais poluentes, acabam
não se comprometendo de fato com a concretização desses acordos.
Os desafios da sustentabilidade global são muitos. As alterações climáticas, o aquecimento global, as desigualdades sociais, os
grandes desastres naturais, as devastadoras enchentes, cástrastofes
ambientais, dentre tantos outros problemas, são questões que precisam ser enfrentadas por todos os agentes, numa atuação coletiva e
integrada de todos os atores envolvidos, compreendendo o Estado, o
setor produtivo empresarial e a sociedade civil. Portanto, a questão
ambiental e a preservação do planeta Terra fazem cada vez mais parte da pauta dos grandes temas da sociedade contemporânea e exigem
respostas imediatas, que não podem ser jogadas para o futuro.
Consequência da globalização, a questão da sustentabilidade
tem sua base em um modelo econômico perverso, gerador dos aspectos centrais da insustentabilidade global, a saber, de um lado, o aquecimento global e as mudanças climáticas, devido à alta utilização de
energias fósseis e a emissão de gás de efeito estufa (GEE); e, de outro,
uma pegada ecológica que demanda um planeta e meio, o que indica
a sobre exploração e a deterioração dos serviços ecossistêmicos, os
quais são o suporte para a vida no planeta.
Novos aportes sobre sustentabilidade e sua abrangência vêm
sendo incorporados por diferentes estudiosos de diversas áreas. Autores como Enrique Leff (2007), que trata da epistemologia ambiental,
José Eli da Veiga (2010), que vê a sustentabilidade como um valor,
Leonardo Boff (2012), que questiona o que é e o que não é sustentabilidade, Arlindo Philippi Jr. e outros (2012, 2013), que tratam da
gestão de natureza pública e dos indicadores de sustentabilidade,
Fernando Almeida (2007, 2012), que analisa os rumos do desenvolvimento sustentável, são alguns dos muitos estudiosos que trazem
amplas visões sobre o tema.
20
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
A concepção da sustentabilidade é muito abrangente, não podendo ela
Ser reducionista e aplicar-se apenas ao crescimento/desenvolvimento, como é predominante nos
tempos atuais. Ela deve cobrir todos os territórios
da realidade que vão de pessoas, tomadas individualmente, às comunidades, à cultura, à política,
à indústria, às cidades e principalmente ao planeta
Terra com seus ecossistemas. Sustentabilidade é
um modo de ser e de viver que exige alinhar as práticas humanas às potencialidades das presentes e
das futuras gerações (BOFF, 2012, p. 16).
Essa percepção abrangente da sustentabilidade nos faz rever
o conceito mais aceito e assimilado, sobretudo por parte das organizações, proposto pelo reconhecido consultor inglês John Elkington3
em 1994, quando cunhou o termo triple bottom line. Na obra Canibais com garfo e faca (ELKINGTON, 2001, p. 73-99), ele apresenta
a sustentabilidade em três vertentes: a prosperidade econômica, a
qualidade ambiental e a justiça social. Isto é, defende a teoria dos
três pilares (econômico, social e ambiental) como avaliadores que devem guiar as ações de sustentabilidade das empresas. O autor analisa
como as organizações deverão proceder para sobreviver com sucesso
nos diferentes ciclos econômicos e apesar das crises que assolam de
tempos em tempos este mundo globalizado.
Este conceito foi e tem sido amplamente divulgado. Há críticas e questionamentos sobre a real aplicabilidade equitativa do triple bottom line tão propagado no mundo corporativo. Evidentemente, não é uma tarefa simples as organizações adotarem uma filosofia
e política de gestão da sustentabilidade que levem em conta esses
três pilares (econômico, social e ambiental). São vários os aspectos
3 John Elkington é consultor internacional, presidente da Volans e presidente honorário da SustainAbility. Seu último livro é Green Swans (Fast Company Press, abril de 2020).
21
SEÇÃO 1
a considerar, desde os instrumentais, como contabilidade, auditoria,
estabelecimento de indicadores, uso de certificações públicas e acompanhamento da sustentabilidade, até a complexidade da mudança de
comportamento dos principais dirigentes e de todos os agentes envolvidos. Há que se pensar como fazer tudo isto de forma integrada.
Em publicação na Harvard Business Review (2018), no artigo
“Há 25 anos, criei a frase triple bottom line. Aqui está por que é hora de
repensá-la”, John Elkington chama a atenção para o uso equivocado
e uma aplicação fragmentada do seu conceito. Sua proposta visava a
uma mudança do capitalismo. O triple bottom line não foi projetado
para ser apenas uma ferramenta de contabilidade. Era para provocar
um pensamento mais profundo sobre o capitalismo e seu futuro, mas
muitos dos primeiros adeptos entenderam o conceito como um ato de
equilíbrio, adotando uma mentalidade de troca (ELKINGTON, 2018).
Com ênfase nos pilares ambiental e social, Jefferson da Rocha
(2011, p. 15) propõe dois enfoques centrais sobre sustentabilidade:
a sustentabilidade ecológica, “que considera que o problema é, antes de tudo, ecológico, que a ameaça fundamental consta nos danos
aos quais as ações dos homens submetem a terra: patrimônio e base
de sua existência presente e futuro”; e a sustentabilidade social, que
avalia que “não têm respostas aos problemas ambientais sem tratamento dos problemas sociais”.
2.2 ESG – Environmental, social e governance
Na atualidade, ganha força uma nova configuração dos conceitos de sustentabilidade centrados nos pilares ambiental, social e
econômico com a adoção dos princípios ESG – Environmental, Social e Governance, sigla em inglês usada para se referir às melhores
práticas ambientais (E), sociais (S) e de governança (G) de um negócio. Tendo como origem a aplicação de novas práticas em instituições
financeiras, até com o intuito de diminuir os riscos em financiar investimentos que possam trazer prejuízo para os negócios, na atualidade está em franca expansão e vem sendo adotada como um guia na
gestão estratégica de grande parte das empresas mundiais.
22
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Chama a atenção a inclusão da governança, e os estudos e as
práticas têm mostrado sua grande relevância para que as empresas
realmente cumpram o que prometem nos seus propósitos como um
compromisso público, tendo como princípios a ética e os valores sociais. As empresas devem se comprometer em incorporar a sustentabilidade no sentido amplo, tanto na gestão como na avaliação de
riscos. Isso implica a adoção de boas práticas e princípios de responsabilidade pública e de governança corporativa.
A crise sanitária global desencadeada com a pandemia da covid-19, a partir de 2020, mostrou como nunca as grandes desigualdades sociais presentes na sociedade contemporânea. Esta crise sanitária, assim como a pobreza e a fome, que assolam, sobretudo, as
populações mais carentes em nível global, são os principais problemas a serem enfrentados por todos: os cidadãos, os poderes públicos,
as organizações e a sociedade.
Outro fenômeno crucial de ameaça global está relacionado
com as mudanças climáticas que assolam o Planeta. Os constantes
desastres ambientais, incêndios florestais, enchentes, secas etc. provocados pelo aquecimento global e as alterações climáticas, dentre
outros problemas, exigem respostas imediatas dos vários setores,
compreendendo o Estado, a iniciativa privada e o terceiro setor da
sociedade civil organizada. Em todo este contexto um dos pilares do
ESG que ganha força e preponderância é a governança.
As instituições públicas e as organizações em geral, como partes integrantes da sociedade, passam a ser muito mais observadas
e controladas pelos públicos com os quais interagem e pela opinião
pública. Daí a necessidade cada vez maior de se adotar uma gestão
administrativa guiada por princípios éticos de governança e de transparência, com distribuição balanceada de poder. Para Stanley Deetz
(2009, p. 94),
o valor de governança colaborativa depende da necessidade demonstrada entre organizações públicas
e privadas, de altos níveis de criatividade, compromisso, conformidade e customização. Altos níveis
23
SEÇÃO 1
de participação descentralizada e diversa são a
única forma confiável de alcançar objetivos individualmente e em seu conjunto.
Em todo esse contexto, a comunicação organizacional estratégica tem um importante papel a desempenhar. Conforme o próprio
Deetz (2009, p. 97),
é preciso adotar conceitos e práticas específicas de
comunicação para que o envolvimento dos públicos de interesse produza as inovações e a criatividade necessárias em função da inclusão mais ampla de valores que representem benefícios sociais
e econômicos.
Essa comunicação deve ser regida por uma governança integrada entre os vários atores sociais e numa perspectiva de governança global. A sociedade, os cidadãos e o interesse público devem
nortear as ações comunicativas para a promoção da sustentabilidade e para mitigar os impactos negativos dos problemas sociais
decorrentes da crise sanitária mundial e das alterações climáticas,
como já destacado.
3. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)
Em reunião da ONU para conferência do desenvolvimento
sustentável, ocorrida na sua sede em Nova York, de 25 a 27 setembro de 2015, foi aprovada a Agenda 2030, um documento firmado
entre os 193 países membros para a implantação de uma agenda de
sustentabilidade global, representada pela proposição dos Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Agenda 2030 constitui o
novo discurso da sustentabilidade global.
A Agenda tem por base os ODS que estão estruturados a partir dos princípios da sustentabilidade – inclusão social, crescimento econômico e proteção ambiental – em cinco dimensões: pessoas,
24
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
prosperidade, planeta, parceria e paz, conhecidas também como as
5Ps e organizados em 17 grupos, abrangendo no total 169 metas, tendo como temas centrais: pobreza; fome; saúde; educação; empoderamento feminino; água e saneamento; energia; trabalho; indústria
e inovação; desigualdade econômica; cidades; produção e consumo;
mudança climática; mares e oceanos; terra; paz e justiça; e parceria
global (UNITED NATIONS – ONU, 2015).4
Os 17 ODS e as suas respectivas metas, abrangem os seguintes
temas centrais: ODS1, Pobreza (Acabar com a pobreza em todas as suas
formas, em todos os lugares); ODS 2, Fome (Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura
sustentável); ODS 3, Saúde (Assegurar uma vida saudável e promover o
bem-estar para todos, em todas as idades); ODS 4, Educação (Assegurar
a educação inclusiva e equitativa de qualidade e promover oportunidades
de aprendizagem ao longo da vida para todos); ODS 5, Empoderamento
feminino (Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas); ODS 6, Água e saneamento (Assegurar a disponibilidade
e gestão sustentável da água e do saneamento para todos; ODS 7, Energia
(Assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível
à energia para todos; ODS 8, Trabalho (Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e
trabalho decente para todos); ODS 9, Indústria e inovação (Construir
infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação); ODS 10, Desigualdade econômica (Reduzir a desigualdade entre os países e dentro deles); ODS 11, Cidades
sustentáveis (Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos,
seguros, resilientes e sustentáveis); ODS 12, Produção e consumo (Assegurar padrões sustentáveis de produção e consumo); ODS 13, Mudança
climática (Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e
seus impactos, mas reconhecendo que a Convenção-Quadro das Nações
Unidas sobre a questão (UNCCC) é o principal fórum internacional e intergovernamental para negociar a resposta global à mudança climática);
4 Disponível em: http://nacoesunidas.org/pos2015/agenda2030/2015.
25
SEÇÃO 1
ODS 14, Mares e oceanos (Conservar e promover o uso sustentável dos
oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável); ODS 15,Terra e biodiversidade (Proteger, restaurar e promover o
uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável
as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da
terra e estancar a perda de biodiversidade); ODS 16, Paz e justiça (Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à Justiça para todos e construir instituições
eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis); ODS 17, Parceria
global (Fortalecer os mecanismos de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável).
Segundo o Relatório para o secretário-geral da ONU, Uma agenda de ação para o desenvolvimento sustentável (UNSDSN, 2013):
Os ODS vão contribuir para a compreensão do público dos desafios complexos de desenvolvimento
sustentável, para inspirar a ação pública e privada
e promover pensamento integrado e incentivar a
responsabilização. [...] Todas as crianças devem
conhecer os ODS para ajudá-las a compreender
os desafios que enfrentarão como adultos jovens.
(UNSDSN, 2013, p. 28).
Com vistas a criar mecanismos que viabilizem a implementação desses objetivos, especificamente o de número 17 vem praticamente enfatizar a necessidade de alianças para que os demais ODS
sejam atingidos, conforme prevê a Agenda 2030 da ONU. Esta agenda considera a necessidade de esforços sistêmicos entre governo, sociedade civil e empresas para atingir, integralmente ou parcialmente,
as metas relacionadas a cada um dos ODS.
3.2 Comunicação para alianças entre Estado, organizações e sociedade civil
Promover a sustentabilidade global e local é uma tarefa de todos
e não somente do Estado e de determinados segmentos da sociedade.
26
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
A comunicação nesse contexto tem um papel preponderante, desde
que exercida para fins de interesse público e em defesa dos valores
éticos e democráticos. A realização de projetos sociais voltados para
o desenvolvimento da sustentabilidade social e ecológica requer um
trabalho integrado entre o poder público, a sociedade civil e as organizações privadas.
Fernando Almeida (2007, p. 54), estudioso de sustentabilidade, ao falar sobre a responsabilidade no mundo tripolar, chama a
atenção de que
há formulação de políticas ou solução possível sem
envolvimento dos três atores fundamentais na
sociedade – empresas, governo e sociedade civil
–, tendo o conhecimento produzido pela ciência
como orientação.
Prosseguindo na defesa das parecerias público-privadas, ele
afirma que “estamos ainda muito distantes do entendimento e de
uma prática multissetorial que determine um ponto de inflexão na
curva de degradação dos serviços ambientais do Planeta”.
São inúmeras as possibilidades de mediação entre os três setores da sociedade. Elas estão presentes no primeiro e no segundo,
mas, sobretudo, no terceiro setor, que compreende um vasto campo
de atuação – ONGs; fundações; associações e institutos voltados para
a melhoria da qualidade de vida das pessoas, o atendimento de crianças, adolescentes e idosos, pessoas com deficiência, famílias carentes
ou em situação de risco, refugiados, pessoas encarceradas, minorias
raciais, excluídos e muitos outros grupos esquecidos pelo poder público e pela sociedade em geral.
No âmbito do Estado, quantas ações construtivas poderiam ser
realizadas para contemplar as carências e necessidades da população
e dos cidadãos! Precisamos de um Estado forte e atuante a serviço do
interesse público e da sociedade.
No trabalho de parceria entre o público e o privado, a área
de relações públicas, como parte integrada da Comunicação, poderá
27
SEÇÃO 1
desempenhar um importante papel. Por meio do ou junto com o
terceiro setor, ela poderá promover mediações entre o Estado e a iniciativa privada, repensando-se o conteúdo, as formas, as estratégias,
os instrumentos, os meios e as linguagens das ações comunicativas
com os mais diferentes grupos envolvidos, a opinião pública e a sociedade como um todo.
Nas organizações privadas, a comunidade passa a ser, hoje,
um dos públicos estratégicos mais considerados. A responsabilidade social e a cidadania tão presentes no discurso corporativo não
podem ser vistos tão somente como instrumentos a serviço de ganhos mercadológicos e de imagem institucional. Nem, muito menos,
como mais um modismo. Elas precisam ser frutos de uma filosofia de gestão. As organizações devem mostrar que assumem de fato
uma prática responsável e comprometida com a melhoria da qualidade de vida das pessoas e a diminuição das desigualdades sociais.
As Relações Públicas têm um papel importante nesse contexto. Só
assim elas cumprirão sua função social, ao lado de outras funções
estratégicas e administrativas.
Stuart Hart, no livro O capitalismo na encruzilhada (2006,
p. 37), ao chamar a atenção para a necessidade de uma nova consciência para as empresas, lembra a mentalidade que dominava no
passado: “a responsabilidade social de uma empresa era a maximização dos lucros, como defendia Milton Friedman, e parecia claro
que preocupações sociais ou ambientais só serviam para reduzir esses lucros”.
A comunicação e as organizações têm um papel fundamental
na contribuição para o alcance dos objetivos da Agenda Global 2030.
Para que seja possível promover efetivamente o desenvolvimento
sustentável de forma integral, é imprescindível que as organizações
(como agentes estratégicos de transformação nos territórios) pautem
suas ações por princípios e políticas institucionais de governança,
que permitam o monitoramento de seu impacto nas mais diversas
sociedades em que se encontram.
28
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Para isso, necessitam compreender o instrumento metodológico que a Agenda 2030 oferece ao dimensionar metas e indicadores
que permitam acompanhar e avaliar a qualidade de suas ações. Do
mesmo modo, os meios de comunicação também devem contribuir
para a difusão de conhecimento e de práticas educativas, além do fomento à convergência midiática presente na era digital para sensibilizar e visibilizar pautas que gerem a mobilização política, econômica
e cultural necessárias para o avanço dos ODS.
É o que estabelece a iniciativa do Pacto Global da ONU, que é
engajar o setor privado mundial para que desenvolva ações que contribuam para o alcance da Agenda 2030 e para que atue de acordo
com os dez Princípios Universais, derivados da Declaração Universal
de Direitos Humanos, da Declaração da Organização Internacional
do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho,
da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e da
Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção.
Os dez princípios são: 1. As empresas devem apoiar e respeitar a proteção de direitos humanos reconhecidos internacionalmente; 2. Assegurar-se de sua não participação em violações destes
direitos; 3. As empresas devem apoiar a liberdade de associação e o
reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva; 4. A eliminação de todas as formas de trabalho forçado ou compulsório; 5. A
abolição efetiva do trabalho infantil; 6. Eliminar a discriminação no
emprego; 7. As empresas devem apoiar uma abordagem preventiva
aos desafios ambientais; 8. Desenvolver iniciativas para promover
maior responsabilidade ambiental; 9. Incentivar o desenvolvimento
e a difusão de tecnologias ambientalmente amigáveis; e 10. As empresas devem combater a corrupção em todas as suas formas, inclusive extorsão e propina.
As organizações que passam a fazer parte do Pacto Global
comprometem-se a seguir esses princípios no dia a dia de suas operações. Fazem parte do Pacto empresas e redes de organizações empresariais; organizações públicas e do terceiro setor, como associações
29
SEÇÃO 1
e federações, entidades da sociedade civil; além de governos, como
cidades estados, secretarias e ministérios.
A sociedade civil mais do que nunca tem um papel preponderante nos processos de participação social em defesa da democracia,
dos direitos humanos, da cidadania, sobretudo mediante a atuação dos
movimentos sociais organizados, das organizações não governamentais
(ONGs) e do terceiro setor como um todo, que extrapolam a relação de
oposição somente com o Estado, fazendo frente para conquistas também diante do mercado.
Numa perspectiva contemporânea, é a partir de reflexões sobre as teorias acerca da sociedade civil que Liszt Vieira (2001, p. 36)
destaca a contribuição de Jürgen Habermas (espaço público) e de
Jean Cohen e Andrew Arato (reconstrução da sociedade civil) para
configuração do que chamou de “a integração de quatro esferas da sociedade: a esfera privada, a do mercado, a pública e a estatal, que permitiriam a conexão entre os conceitos de sociedade civil e cidadania”.
Isso reforça que a função da sociedade civil é, sobretudo, exercer seu papel de influência para a mudança do status quo, do poder
do Estado e do mercado para atender às demandas das necessidades
emergentes locais, nacionais, regionais e globais. É a luta pela conquista dos direitos da cidadania, da justiça e dos valores sociais.
Pode-se deduzir que, enquanto a cidadania se situa na esfera
estatal, a sociedade civil atua na esfera pública, onde associações e
organizações se engajam em debates, criam grupos e pressionam em
direção a determinadas opções políticas, produzindo, consequentemente, estruturas institucionais que favorecem a cidadania.
Para fazer as mediações entre esses atores e realizar ações
conjuntas integradas para o desenvolvimento sustentável e a consecução dos ODS, é imprescindível a existência de uma comunicação
estratégica. Consideramos que ela seja o caminho mais viável para
uma efetiva ação integrada entre o poder público, a iniciativa privada
e o terceiro setor, na busca de uma maior consciência social e de uma
educação ambiental da população sobre a necessidade da preservação e do desenvolvimento integral do planeta Terra.
30
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
4. Comunicação organizacional estratégica:
concepções e abrangência
A comunicação organizacional deve ser entendida de forma
ampla e holística5. Pode-se dizer que é uma disciplina que estuda
como se processa o fenômeno comunicacional dentro das organizações e todo o seu contexto político, econômico e social. Como fenômeno inerente à natureza das organizações e aos agrupamentos
de pessoas que a integram, a comunicação organizacional envolve
os processos comunicativos e todos os seus elementos constitutivos.
Nesse contexto, faz-se necessário ver a comunicação inserida nos
processos simbólicos e com foco nos significados dos agentes envolvidos, dos relacionamentos interpessoais e grupais, valorizando as
práticas comunicativas cotidianas e as interações nas suas mais diversas formas de manifestação e construção social. Portanto, nessa
linha de pensamento se supera a visão linear e instrumental da comunicação por uma muito mais complexa e abrangente.
Face à abrangência e à complexidade da comunicação nas
organizações, os estudiosos buscam formas para então compreender suas vertentes teóricas e as práticas do cotidiano. Linda Putnam
(2009), por exemplo, propõe sete metáforas para estudar e compreender a abrangência da comunicação nas organizações: conduíte,
processamento de informação, vínculo, discurso, símbolo, performance e voz.
Outro aspecto a considerar é a abrangência da comunicação
organizacional em termos aplicados, pois ela ocorre, acontece e se
processa em todos os tipos de instituições e organizações – públicas, privadas e do terceiro setor. Isto é, como se configuram as diferentes modalidades que permeiam sua concepção e as suas práticas.
É o que denominamos “comunicação organizacional integrada”,
5 Na obra coletiva Comunicação organizacional: histórico, fundamentos e processos. v. 1. (KUNSCH,
2009a), os autores que a integram abordam diversas percepções teóricas e aplicadas sobre a campo da
comunicação organizacional.
31
SEÇÃO 1
compreendendo a comunicação institucional, a comunicação mercadológica, a comunicação interna e a comunicação administrativa
(KUNSCH, 2003, p. 149), que acontece a partir de objetivos e propósitos específicos.
Para se chegar a essa concepção de comunicação organizacional integrada, partimos dos seguintes questionamentos: Como
as organizações se manifestam nos seus relacionamentos? Como
expressam suas mensagens? Qual é a natureza da comunicação administrativa, interna, institucional e mercadológica? Quais são os
objetivos? Quais são os públicos a serem atingidos? Qual é a filosofia que norteia a comunicação? Existe uma política de comunicação
integrada por parte das organizações? Assim, a partir destes parâmetros, as organizações irão se manifestar de acordo com a natureza da
modalidade comunicacional6 e os públicos com os quais querem se
relacionar na busca de sua eficácia comunicativa.
Na tentativa de contribuir com novos aportes para se compreender a complexidade da comunicação organizacional nos últimos
anos, por meio de estudos teóricos e aplicados (KUNSCH, 2016, 2014
e 2010), procuramos ver a comunicação organizacional sob quatro
dimensões: humana, instrumental, cultural e estratégica. Com isto,
temos buscado novos olhares para compreender como essa comunicação está configurada hoje e quais são suas dinâmicas nas práticas
organizacionais7.
4.1 Dimensões da comunicação organizacional
As organizações, como “organismos vivos”, são formadas por
pessoas que se comunicam entre si e que, por meio de processos interativos, viabilizam o sistema funcional para sobrevivência e consecução dos objetivos organizacionais em contexto de diversidades,
6 Para mais detalhes sobre essas modalidades comunicacionais, consultar Kunsch (2003, p. 152-178).
7 Estes artigos buscam fundamentar essas quatro dimensões, a partir de referências de outros autores.
Sugere-se, portanto, para maiores informações, consultá-los, pois no presente texto apresenta-se uma
visão conceitual geral.
32
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
conflitos e transações complexas. Portanto, sem comunicação as organizações não existiriam.
Ao se analisar a comunicação organizacional, naturalmente
há que se considerar a comunicação humana e a necessidade de valorizar as pessoas no ambiente de trabalho. As organizações, como fontes emissoras de informações e ao se comunicarem com seu universo
de públicos, não devem ter a ilusão de que todas as suas mensagens
discursivas são recebidas positivamente ou que são automaticamente
respondidas e aceitas da forma como foram intencionadas.
Vale lembrar que a comunicação ocorre primeiro no nível intrapessoal e subjetivo. Cada indivíduo possui seu universo cognitivo
e irá receber as mensagens, interpretá-las e dar-lhes significado a seu
modo e dentro de um determinado contexto. Quando se introduz a
comunicação na esfera das organizações, o fator humano, subjetivo,
afetivo, relacional e contextual constitui um pilar fundamental para
qualquer ação comunicativa produtiva e duradoura.
Considerar a dimensão humana da comunicação no âmbito
organizacional é uma necessidade premente para melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, em um ambiente cada vez mais complexo, competitivo e com cenários conflitantes e paradoxais, diante
das incertezas que caracterizam a sociedade globalizada na era digital, a “sociedade do cansaço”, conforme Han Byung-Chul (2015). A
humanização das organizações (KUNSCH, 2010) nunca foi tão necessária como no mundo globalizado e desigual de hoje.
A dimensão instrumental é a mais presente e predominante
nas organizações em geral. Caracteriza-se como instrumental, funcional e técnica. É aquela que é considerada mais como transmissão
de informações e como meio para viabilizar os processos e permitir
o pleno funcionamento de uma organização. Os canais utilizados são
de uma só via e a comunicação, portanto, é assimétrica. Trata-se da
visão linear da comunicação, que ignora contextos e outros aspectos
mais subjetivos. Evidentemente, ela é necessária e sempre existirá.
A dimensão cultural contempla basicamente os níveis micro e macro. O nível micro está relacionado com a cultura organizacional vigente, bem como com seus valores e princípios filosóficos.
33
SEÇÃO 1
As organizações são formadas por pessoas com diferentes culturas.
Esses indivíduos, ao se integrarem aos quadros funcionais de uma
organização, precisam se adaptar à cultura do fundador e/ou da cultura organizacional propriamente dita. Em nível macro, há que se
considerar que as organizações, por sua vez, estão situadas em um
determinado país, que possui sua cultura nacional, e, ainda, que elas
sofrem interferências de uma multicultural sociedade global. Percebe-se, portanto, que a comunicação organizacional não acontece
isolada tanto da cultura organizacional, em nível micro, como do
contexto multicultural, em nível macro. Nesse sentido, defendemos
a necessidade de as organizações e, particularmente, os seus gestores
da comunicação considerarem a dimensão cultural como parte integrante do planejamento, das ações comunicativas e dos processos de
gestão participativa.
4.2 A dimensão estratégica da comunicação organizacional
A dimensão estratégica pode ser considerada sob dois enfoques. O primeiro se baseia numa visão mais conservadora e racional,
centrada nos resultados; e o segundo, em uma perspectiva mais complexa, que leva em conta a questão humanística e as incertezas e a
busca de novas alternativas metodológicas para repensar e planejar a
comunicação estratégica.
Richard Whittington (2002, p. 1-48) propõe quatro abordagens genéricas de estratégia: 1. Clássica: seria a mais antiga, influente
e muito utilizada no planejamento estratégico; 2. Evolucionária: está
centrada na sobrevivência e relacionada com a evolução biológica;
3. Processual: tem a ver com a natureza imperfeita da vida humana,
como um processo falível e capaz de errar; 4. Sistêmica: relativista,
na qual os fins e meios da estratégia estão ligados à grande estrutura
e aos sistemas sociais locais onde se desenvolve a estratégia.
Outra forma de ver a dimensão estratégica é encará-la sob
a vertente da complexidade e da nueva teoría estratégica (NTE)
proposta por Rafael Pérez (2008), e Rafael Pérez e Sandra Massoni
(2009). São inúmeros os fundamentos teóricos destacados por esses
34
autores, que defendem outras perspectivas e novos paradigmas para
conceber e praticar a comunicação estratégica nas mais diferentes
esferas sociais, políticas e econômicas. Busca-se assim desenvolver
novas metodologias de como planejar a comunicação estratégica de
forma mais holística e interativa entre os atores envolvidos, isto é,
propiciando ações mais integradoras e participativas entre quem a
promove e aqueles aos quais ela se destina.
Na perspectiva mais racional e clássica, a dimensão estratégica da comunicação organizacional está relacionada com a visão pragmática, com vistas à eficácia e aos resultados. É dominada por uma
visão mais verticalizada e centrada na racionalidade, como se tudo
fosse acontecer como planejado, dando pouca atenção às incertezas
dos cenários externos e outros possíveis fatores condicionantes que
poderão interferir nos processos e na implementação e nos resultados. Trata-se de uma perspectiva dominante e que atua como fator
estratégico que busca agregar valor aos negócios corporativos. Evidentemente, é uma forma correta de considerá-la e aplicá-la, só que
é preciso levar em conta, também, outras metodologias mais participativas que valorizem o ambiente sociocultural das organizações,
envolvendo mais as pessoas no processo e aqueles públicos que serão
os sujeitos dos programas das ações propostas.
Ivone de Lourdes Oliveira e Maria Aparecida de Paula (2007,
p. 44-52) descrevem os cinco componentes da comunicação estratégica: 1. Tratamento processual da comunicação – Abordagem como
um processo, numa visão ampla e integrada, e não a partir de aplicação de atividades isoladas ou desarticuladas das subáreas de Comunicação: Relações Públicas, Jornalismo e Publicidade/Propaganda;
2. Inserção na cadeia de decisões – A alta direção reconhece a função estratégica da comunicação e reconhece seu valor no processo
de gestão organizacional; 3. Gestão de relacionamentos – Enfatiza
oportunidades de interação e diálogo da organização com os atores
sociais ou públicos; 4. Processo planejado – Requer intencionalidade
e sistematização da comunicação, com base em metodologia do planejamento estratégico; 5. Processo monitorado – O monitoramento
deve contemplar dois níveis: o primeiro refere-se à qualidade, aos
35
impactos e aos resultados do processo comunicacional em relação a
uma situação inicial, aos objetivos estabelecidos e às referências de
mercado, e o segundo, à contribuição da comunicação para o alcance
dos objetivos organizacionais.
A partir desses enfoques, acreditamos que a dimensão estratégica da comunicação organizacional deve incorporar uma visão
muito mais complexa e valorizar, sobretudo, os aspectos humanos e
sociais, no contexto da dinâmica da história, superando a visão meramente tecnicista e da racionalidade econômica. Só assim a comunicação conseguirá fazer o tão defendido alinhamento estratégico com os
princípios organizacionais: propósito, missão, valores e visão.
5. Estratégicas comunicativas para sustentabilidade social
A comunicação exerce um papel estratégico e capaz de impulsionar e induzir novas posturas e novos comportamentos das pessoas, do poder público, da sociedade e das organizações frente a uma
nova consciência no contexto da sustentabilidade. É uma realidade
incontestável o poder que a comunicação, por suas mais variadas vertentes e tipologias, bem como pelos meios massivos tradicionais e
pelas mídias sociais da era digital, tem na sociedade contemporânea.
Manuel Castells (2009, p. 24-25) questiona “por que, como
e quem constrói e exerce as relações de poder mediante a gestão dos
processos de comunicação e de que forma os atores sociais que buscam a transformação social podem modificar essas relações influenciando na mente coletiva”.
Para ele, o “processo de comunicação opera de acordo com a
estrutura, a cultura, a organização e a tecnologia de comunicação de
uma determinada sociedade”. E “a estrutura social concreta é a da sociedade-rede, a estrutura social que caracteriza a sociedade no início
do século XXI, uma estrutura social construída ao redor das redes digitais de comunicação”. Essa nova estrutura da sociedade-rede modifica
as relações de poder no contexto organizativo e tecnológico derivado
do “auge das redes digitais de comunicação globais e se eleva no sistema de processamento de símbolos fundamental da nossa época”.
36
Nesse sentido, reitera-se que a comunicação deve ser considerada como processo social básico e como um fenômeno, vendo-se
o poder que ela e a mídia exercem na sociedade contemporânea e,
consequentemente, no contexto das organizações.
Considerando o poder e a relevância que a comunicação assume no mundo de hoje, nas organizações dos três setores, elas devem
se pautar por políticas de comunicação capazes de levar efetivamente em conta os interesses da sociedade. A ênfase e os investimentos
apenas em assessoria de imprensa, para se ter visibilidade na mídia,
bem como no uso excessivo da propaganda/publicidade, devem ser
equacionados, pois essas áreas não dão mais conta de atender às novas demandas sociais, políticas e econômicas.
Quando se fala da comunicação para a sustentabilidade, defende-se justamente uma visão interativa dessa comunicação, utilizando todos
os potenciais da comunicação participativa para geração de mudanças.
Subtende-se a aplicação do verdadeiro sentido das relações públicas comunitárias8. Isto é, relações públicas comunitárias autênticas são muito
mais do que um trabalho apenas “para” a comunidade, nos moldes tradicionais, por meio de ações sociais paternalistas, sem uma perspectiva
de atuação conjunta e comunitária de fato com os sujeitos envolvidos.
Em todo esse contexto, a prática do diálogo e da dialogicidade nas
relações entre os possíveis interlocutores se torna imprescindível. Tanto
no meio acadêmico quanto no âmbito dos movimentos sociais, o diálogo
só existirá se houver uma comunicação realmente recíproca e comprometida. No livro Extensão ou comunicação?, Paulo Freire diz que
O que caracteriza a comunicação enquanto este
comunicar comunicando-se, é que ela é diálogo,
assim como o diálogo é comunicativo. Em relação
dialógica-comunicativa, os sujeitos interlocutores
se expressam, através de um mesmo sistema de
signos” ( 1980, p. 67).
8 Para mais informações, sugere-se consultar a obra Relações públicas comunitárias: a comunicação
em uma perspectiva dialógica e transformadora (KUNSCH, Margarida; KUNSCH, Waldemar, 2007).
37
Isto, segundo o autor, “pressupõe, portanto, que os entendimentos ocorram dentro de um quadro semântico comum aos sujeitos
envolvidos”. A educação é comunicação, é diálogo à medida que não é
a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores,
que buscam a significação dos significados” (FREIRE, 1980, p. 69).
São reflexões importantes para embasar as ações comunicativas das
organizações com as comunidades locais.
Outro aspecto a considerar sobre a comunicação para a sustentabilidade social é a necessidade de se estabelecerem políticas
claras e transparentes fundamentadas em princípios éticos que vão
direcionar as estratégias e as práticas das ações comunicativas, assim
como dos recursos midiáticos que serão utilizados. Ou seja, é preciso
que haja total coerência entre o discurso institucional e mercadológico com os comportamentos e as atitudes organizacionais, contrapondo-se às abusivas práticas de greenwashing amplamente praticadas
por muitas empresas.
Nesse sentido, numa perspectiva crítica, a comunicação que
é praticada pelas organizações não pode servir de instrumento para
mascarar a realidade e enganar os públicos e a opinião pública, valendo-se de greenwashing, isto é, “marketing verde”, matérias, propagandas enganosas e subliminares, vídeos com depoimentos compensatórios, matérias jornalísticas encomendadas etc., enaltecendo
ações sociais com a concessão de prêmios e imagens deslumbrantes.
Daí a importância de uma gestão estratégica da comunicação organizacional coerente entre as práticas e atitudes comportamentais das
organizações com os enunciados discursivos do propósito, da missão,
dos valores e da visão.
Kenny Bruno e Joshua Karliner (2002), em Earthsummit.
biz: the corporate takeover of sustainable development, chamam
muito a atenção por essa constatação da incoerência entre o discurso
e a prática das empresas multinacionais, inclusive no tocante aos envolvimentos com os ODS. A análise crítica a respeito é contundente.
Para esses autores, o greenwashing pode ser considerado em
dois tipos: tradicional e profundo. No tradicional, ele se caracteriza por frases de comunicação do jargão comum, enaltecendo ações
38
sociais com a concessão de prêmios, imagens deslumbrantes. Já as
organizações se posicionam como engajadas no salvamento do Planeta, mas em toda uma cadeia de negócios, de forma que qualquer
preocupação por parte dos consumidores ou do governo pudesse ser
dispensável, já que essa cadeia estaria voluntariamente comprometida com o meio ambiente (CASTILHO, 2021). Estudos mostram que
mesmo as empresas certificadas no Sistema B Corporation (B Corp),
que requer uma série de requisitos para serem incluídas, praticam o
greenwashing9.
Na era digital e com o poder do ecossistema midiático, sobretudo das redes e mídias sociais, as empresas que acham que podem
usar a comunicação para mascarar realidades estão enganadas. Os
públicos estão muito mais atentos e exigentes, assim como a opinião
pública está sempre mais vigilante.
Na contemporaneidade, as empresas são chamadas a se conscientizarem de que precisam mudar sua mentalidade de, simplesmente, só otimizar lucros, fabricar produtos e prestar serviços. Precisam agir, também, com responsabilidade social e ter compromisso
público. Isto pode ser traduzido por meio de uma participação efetiva
de ações conjuntas com o Estado e a sociedade civil para transformar
as realidades sociais em situações de riscos ambientais e de agravamento da pobreza e da fome de populações. Sobretudo daquelas que
vivem à margem do progresso e são excluídas do desenvolvimento
econômico e tecnológico. E a comunicação verdadeira, transparente
e sedimentada na ética, poderá ser um fator estratégico e contribuir
para o alcance de tudo isto.
6. Considerações finais
A proposição dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Agenda 2030 da ONU, é altamente louvável e necessária, por tudo que já mencionamos neste artigo. Entretanto, sua
9 Ver Castilho, Laís (2021).
39
implementação real até 2030 implicará inúmeros desafios e dependerá de diversos fatores controláveis e incontroláveis, dada a complexidade que tal empreitada envolve.
É preciso compreender que as mudanças comportamentais e
culturais em prol da preservação do planeta e do alcance dos ODS
só ocorrerão a partir da mobilização e da pressão social e com ações
viáveis dos atores envolvidos das três esferas – pública, privada e da
sociedade civil organizada. Evidentemente, como já foi assinalado,
isso dependerá do engajamento e de ações coletivas de diversos atores envolvidos e de mudanças de atitudes individuais e institucionais.
Em que pesem as conquistas e os avanços conseguidos até o presente
momento, quantos acordos e decisões tomados em diferentes fóruns
nacionais e internacionais relacionados com esse assunto continuam
somente no papel sem uma aplicação efetiva!
A sustentabilidade do Planeta depende da união de forças
advindas, em primeiro lugar, de cada um de nós como pessoas e cidadãos responsáveis e comprometidos com essa causa; de políticas
públicas e privadas para um desenvolvimento sustentável integrado
nos três pilares, econômico, social e ambiental; da consciência das
organizações como geradoras de riqueza de bens produtivos e simbólicos; de uma sociedade civil organizada capaz de induzir processos
de mudanças e intervenções num mercado dominado pelos interesses de obtenção de lucros a qualquer preço; e de um Estado forte que
atenda aos interesses públicos da sociedade. A comunicação organizacional integrada na perspectiva estratégica, em todo esse contexto,
tem muitos desafios a enfrentar.
40
Referências
ALMEIDA, Fernando. Os desafios da sustentabilidade: uma ruptura urgente. Rio
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43
Comunicação, sustentabilidade e
meio ambiente: o papel das redes
sociais na difusão do conceito
de Saúde Planetária a partir da
experiência do PHAM2021
Daniela Vianna
Thaís Presa Martins
Antonio Mauro Saraiva
Resumo
Quais os princípios que devem nortear a agenda de pesquisas no campo da comunicação sobre o foco da sustentabilidade e das
questões socioambientais no século XXI? Este capítulo visa trazer
breves reflexões sobre tal questionamento a partir da análise das estratégias de comunicação desenvolvidas em torno do Fourth Planetary Health Annual Meeting (PHAM2021), realizado entre 25 e 30
de abril de 2021, e sediado virtualmente na Universidade de São Paulo (USP). O evento, o primeiro realizado no Sul Global, foi organizado
em parceria entre o Saúde Planetária Brasil, ligado ao Instituto de
Estudos Avançados da USP, e a Planetary Health Alliance, organização internacional sediada na Harvard University (EUA). O tema do
45
SEÇÃO 1
evento foi “a união de comunidades para atingir a grande transição”.
Como resultados, o plano de comunicação elaborado para o evento
contribuiu com o fortalecimento de parcerias e das relações institucionais; o aumento da audiência nas redes sociais do Saúde Planetária Brasil; a elaboração, publicação e divulgação de um documento
internacional norteador dos próximos passos – a Declaração de São
Paulo sobre Saúde Planetária; e a disseminação do conceito de saúde
planetária no Brasil. Os aprendizados mostram que a comunicação é
chave para o engajamento público e para a difusão de conceitos relacionados às mudanças urgentes, rumo a uma sociedade de baixo carbono, que se impõem para a humanidade neste século. A conferência
representou um marco histórico, tendo contado com 5.020 inscritos
de 130 países.
Palavras-chave: saúde planetária;comunicação;
PHAM2021; negacionismo científico.
Contexto
Cresce, no Brasil e no mundo, a percepção dos impactos que
nós, humanos, causamos no meio ambiente, e o quanto esses ecossistemas em desequilíbrio colocam em risco e afetam de volta nossa
saúde e nossos modos de vida. Sob esse guarda-chuva, estão a crise
climática (aumento de secas, enchentes, ondas de calor, derretimento
das calotas polares, eventos extremos) e, também, o risco da eclosão
de novas pandemias, como a da covid-19, ocorrida em 2020, cujos
impactos sociais, econômicos e na saúde humana ainda são sentidos
ao redor do mundo.
A Saúde Planetária (SP) abarca esses e outros desafios, tais
como a perda da biodiversidade, os sistemas alimentares, e a fome
que atinge um contingente massivo de pessoas em um planeta, hoje,
habitado por nove bilhões de seres humanos. Como um conceito
emergente, a Saúde Planetária, além de um campo de pesquisa, é um
espaço de ações práticas que tem como estudos basilares os relatórios
“Safeguarding human health in the Anthropocene epoch: report of
46
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
The Rockefeller Foundation-Lancet Commission on planetary health”
(WHITMEE et al., 2015) e “Connecting global priorities: biodiversity
and human health: a state of knowledge review” (ROMANELLI et al.,
2015). Em resumo, os estudos apontam que comunidades saudáveis
dependem de ecossistemas que funcionam bem, pois eles fornecem
ar puro, água potável, medicamentos e segurança alimentar, além de
limitarem a disseminação de doenças e estabilizarem o clima.
Devido à ação humana – baseada na queima de combustíveis
fósseis, no crescimento populacional e no atual sistema de extração
de matérias-primas, produção e descarte, agravados a partir da Revolução Industrial –, geramos perturbações nos ecossistemas naturais
da Terra, que, por sua vez, impactam retroativamente na saúde e no
bem-estar humanos. Se somos parte do problema, devemos ser parte
da solução. “A Saúde Planetária é, portanto, um novo esforço para
tratar a questão da sustentabilidade e da vida humana no planeta sob
ótica cada vez mais integrativa, transdisciplinar e global”, como apontado no website do Saúde Planetária Brasil, SPBr, grupo1 criado pela
comunidade científica brasileira, e abrigado no Instituto de Estudos
Avançados da USP, para estudar o impacto do ser humano nos ecossistemas e os riscos que essas intervenções apresentam para a sobrevivência da própria humanidade.
De fato, literalmente todas as áreas do saber e todas as áreas
da atividade humana são relevantes para a SP, pois é o conjunto das
ações e das escolhas humanas que nos fez chegar a esse paradoxo que
contrapõe os enormes ganhos que a humanidade obteve e, igualmente, o enorme risco em que nos colocamos. Assim, SP é muito mais que
uma questão apenas de medicina e saúde pública, ou de ciências ambientais, e envolve educação, ciências sociais, engenharias, economia,
comunicação, direito, entre outras. O Saúde Planetária Brasil está filiado à Planetary Health Alliance2, PHA, criada em 2016 e sediada na
Harvard University, em Boston, Estados Unidos, uma aliança de cerca
1 Na sua criação, em 2019, o grupo foi denominado Grupo de Estudos em Saúde Planetária (GSP), mudando para Saúde Planetária Brasil em 2023.
2 Disponível em: https://www.planetaryhealthalliance.org.
47
SEÇÃO 1
de 300 instituições em torno de 50 países, firmemente dedicadas à
difusão e incorporação do conceito e das ações de Saúde Planetária
em todas as áreas da atividade humana.
De acordo com o Fórum Econômico Mundial, a questão climática está no topo da lista dos riscos à economia global. No discurso de
abertura da 15.ª Conferência da Biodiversidade (COP15), ocorrida em
Montreal, no Canadá, no fim de 2022, o secretário-geral da ONU, Antonio Gutérres, foi enfático ao dizer que “estamos nos encaminhando
para a sexta maior extinção em massa do planeta” – a primeira provocada por uma única espécie: a humana.
Para acrescentar mais uma camada de desafios a serem enfrentados, existe a onda de negacionismo científico – incluindo o
negacionismo climático, que visa, por meio da desinformação e da
dúvida, desacelerar a urgente e necessária transição para uma sociedade de baixo carbono, embora estudos apontem, para um consenso
de 97% entre pesquisadores de clima, de que o homem é responsável
pela emergência climática que está em curso. De acordo com relatório preliminar da Organização Mundial de Meteorologia, lançado na
Conferência do Clima (COP27) de Sharm El-Sheik, no Egito, em novembro de 2022, os últimos oito anos foram os mais quentes já registrados na história, desde o início das medições, devido ao aumento
das concentrações de gases de efeito estufa acumulados na atmosfera
(WMO, 2022). Tais dados corroboram o que o pesquisador Ed Hawkins, da University of Reading, já demonstra por meio do projeto
gráfico Climate Stripes3, que apresenta, visualmente, o aumento da
temperatura média global nos últimos dois séculos.
O próprio conceito de “sustentabilidade” ainda está em evolução. A expressão, hoje incorporada pelo mundo empresarial nas
ações de ESG (Environmental, Social and Governance), ainda carece de alinhamentos e está longe de superar as lacunas entre discursos
e práticas no mundo corporativo. Grosso modo, sustentabilidade envolve aspectos econômicos, sociais e ambientais. A Global Reporting
3 Disponível em: https://www.reading.ac.uk/planet/climate-resources/climate-stripes.
48
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Initiative4 (GRI), organização internacional constituída, há 25 anos,
para nortear boas práticas de ESG, criou uma série de indicadores, inclusive setoriais, para mensurar o desempenho empresarial no caminho da sustentabilidade. Entretanto, diante da pressão por resultados
de curto prazo para acionistas e investidores, são raras as empresas
que optam pelo caminho de incorporação real da sustentabilidade no
cotidiano. Em alguns casos, como nos de extração de petróleo e produção de seus derivados, tais medidas implicaram, inclusive, na revisão, por parte de líderes, dos próprios modelos de negócio.
Por outro lado, cresce a pressão, por parte de governos e de organismos multilaterais, como é o caso da Convenção-Quadro das Nações
Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), para que as empresas
assumam um papel protagonista no caminho da necessária transição
“justa e sustentável”. A Organização das Nações Unidas (ONU), criou,
em 2015, um documento chamado “Agenda 2030”, no qual lista 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável5 (ODS), com metas a serem
alcançadas mundialmente até 2030. O Pacto Global6, criado em 2000,
visa engajar as empresas em torno desses mesmos objetivos.
Quadro teórico de partida
A Universidade de São Paulo foi escolhida pela PHA para organizar o Fourth Planetary Health Annual Meeting7 (PHAM2021), em
2021, em São Paulo. Devido à pandemia da covid-19, inesperadamente,
o evento teve que ser planejado para ocorrer totalmente on-line, o que
foi um enorme desafio e uma inovação nessa comunidade. Ao mesmo
tempo, vislumbrou-se uma grande oportunidade de dar uma escala
verdadeiramente planetária ao PHAM2021, aliando o acesso totalmente on-line com a gratuidade do evento. Essas escolhas mostravam-se,
4 Disponível em: https://www.globalreporting.org/.
5 Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs.
6 Disponível em: https://www.pactoglobal.org.br/ods.
7 Disponível em: https://www.planetaryhealthannualmeeting.com/pham2021.
49
SEÇÃO 1
também, totalmente alinhadas ao ideal da Saúde Planetária que valoriza a inclusão de todos na busca de soluções e no acesso à SP. De fato, o
tema do evento foi escolhido como “Saúde Planetária para todos: unindo comunidades para alcançar a Grande Transição”.
O momento era também de grande urgência, pois não só os
inúmeros eventos extremos que ocorriam ao redor do mundo, inclusive no Brasil, em 2019 e 2020, mas também a irrupção da pandemia,
em 2020, evidenciavam um quadro grave do ponto de vista da SP. A
oportunidade não poderia ser melhor para associar esses fatos concretos que assolavam a população com sua origem no impacto humano no planeta. No contexto brasileiro, a realização do evento, pela primeira vez no país, associada a essas condições (mudanças climáticas e
pandemia, por um lado, e negacionismo, por outro), sinalizavam uma
oportunidade única para disseminar, no Brasil, o conceito de Saúde
Planetária, e fortalecer, no país, a comunidade.
Esse quadro levou à conclusão de que era necessário o desenvolvimento de um plano estratégico de comunicação do PHAM2021,
algo inédito na comunidade, em abrangência e escala. O plano foi elaborado sob os preceitos de estudos de comunicação e de mudanças de
comportamento relacionados às mudanças climáticas (MOSER; DILLING, 2007; MCLOUGHLIN et al., 2019; MCKENZIE-MOHR, 2011),
em comunicação pública da ciência (COSTA et al., 2010); na comunicação dialógica e horizontal (MEDINA, 2006), e em práticas consolidadas no mercado de comunicação para causas (INDEPENDENT
MEDIA INSTITUTE, 2005). Partiu-se da premissa de que a discussão em torno de temas complexos, como os que estão relacionados à
Saúde Planetária, seriam mais bem compreendidos e endereçados por
diferentes audiências – influenciando mudanças de comportamento
e ações concretas – se, por meio da comunicação, fosse possível conectar tais desafios com a realidade local das pessoas, e apresentar
soluções associadas aos desafios globais.
Experiências internacionais e pesquisas no campo de mudança de comportamento demonstram que os temas relacionados à saúde
e ao bem-estar são importantes para trabalhar a percepção de riscos e
promover mudanças no estilo de vida, por exemplo, ligado a hábitos
50
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
de consumo (MCLOUGHLIN et al., 2019; TRINDADE, 2021). O plano
estratégico de comunicação contemplou, então, formas de conectar a
expertise dos diferentes profissionais que atuam em Saúde Planetária
com possíveis soluções relacionadas à temática e suas nuances no âmbito das realidades locais e nacional.
Negacionismo científico
Nos últimos anos, com o advento das mídias digitais, campanhas de divulgação de informações sem embasamento científico,
como o terraplanismo, a campanha antivacinas e o negacionismo climático, têm ganhado força no Brasil, apresentando um desafio adicional à comunicação pública da ciência. O pesquisador John Cook,
da Monash University, na Austrália, estuda o negacionismo climático,
internacionalmente, há mais de 13 anos. Segundo ele, o negacionismo
climático, principalmente nos Estados Unidos, surgiu a partir de pesados investimentos da indústria petrolífera em think tanks criadas
para desacreditar as mudanças climáticas. As estratégias utilizadas
foram as mesmas que, por décadas, foram adotadas pela indústria do
tabaco, para desacreditar as pesquisas que demonstravam cientificamente os efeitos adversos do tabagismo. Para inocular as fake news,
o Dr. Cook criou o website Skeptical Science, uma plataforma on-line
que contrapõe os argumentos negacionistas com os fatos da ciência
climática. Para ele, a comunicação é fundamental para inocular fake
news e apresentar fatos científicos (SKEPTICAL SCIENCE, 2022).
Comunicação estratégica
A comunicação dialógica e horizontal, por meio da qual o público não é tratado como mero receptor, propõe uma via de mão dupla de compartilhamento e diálogo na comunicação pública da ciência
(MEDINA, 2006; COSTA et al., 2010). Ela é considerada estratégica,
no Saúde Planetária Brasil, para o cumprimento de seus objetivos de
articulação com parceiros e com a comunidade de atores nacionais e
internacionais que estão intrinsecamente ligados à busca por soluções
51
SEÇÃO 1
dos problemas que o planeta e a sociedade enfrentam. É, ainda, norteadora da comunicação pública da ciência relacionada aos saberes da
saúde planetária, que vêm das mais diversas áreas. As estratégias de
comunicação têm potencial para trazer luz ao conceito da SP e consolidar o Saúde Planetária Brasil em uma posição de pioneirismo nesse
movimento no Brasil, na América Latina e internacionalmente.
Pesquisas internacionais relacionadas à comunicação das mudanças climáticas apontam que o contato interpessoal é mais efetivo para promover uma real mudança de comportamento. “Embora
canais mediados como televisão e jornais possam alcançar milhões e
fornecer uma fonte econômica de informações sobre a mudança climática global, eles podem não convencer os indivíduos de que tais
mudanças os influenciarão pessoalmente ou que eles podem fazer
algo pessoalmente sobre o problema. Ter um impacto nas crenças e
comportamentos pessoais de alguém pode exigir uma gama diferente
de canais de informação. Especificamente, o padrão ouro para mudança de comportamento continua sendo os canais interpessoais”,
afirma a pesquisadora Sharon Dunwoody, da Universidade de Wisconsin (DUNWOODY, 2007).
A pesquisadora identificou barreiras para campanhas que visam à mudança de comportamento e oportunidades de comunicação
para superá-las. Entre as barreiras estão: 1. crenças preexistentes, que
podem influenciar na percepção das mensagens; 2. efeitos não intencionais, como o fortalecimento de crenças ao invés de mudanças efetivas
de comportamento, dependendo da forma como a mensagem é comunicada; 3. a produção de uma mensagem única para ser disseminada em
diferentes canais; 4. foco exacerbado em dados, em vez de em experiências; 5. dificuldades em comunicar a complexidade científica para audiências acostumadas com informações rápidas e frugais; e 6. competição de atenção dos temas relativos às mudanças climáticas na imprensa,
por se tratar de uma questão de longo prazo, com as notícias factuais.
Entre as oportunidades de superar tais barreiras, Dunwoody (2007), bem como outros autores que estudam normas sociais
(MCLOUGHLIN et al., 2019; DOUG MCKENZIE-MOHR, 2011; BANDURA, 2007), sugere que a influência de um grupo pequeno de pessoas
52
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
certas (influenciadores digitais, por exemplo) pode predizer a influência de grupos maiores. Dunwoody exalta, também, a importância da
cobertura jornalística sobre o tema como forma de conscientizar os
leitores e pressionar os tomadores de decisão a endereçar o problema,
destacando o poder da narrativa.
No livro Made to Stick, os irmãos Heath abordam como essa
narrativa deve ocorrer para de fato “colar” na percepção das audiências. Em resumo, eles elencam seis princípios que uma mensagem
deve conter para ser bem-sucedida na influência positiva desejada: 1.
simplicidade; 2. imprevisibilidade; 3. concretude (materialidade); 4.
credibilidade; 5. emoção; e 6. conexão com histórias de vida (HEATH;
HEATH, 2008). Essas premissas têm sido usadas por diferentes campanhas de comunicação bem-sucedidas ao redor do mundo, como,
por exemplo, no treinamento global oferecido pelo ex-vice-presidente
norte-americano, Al Gore, por meio do projeto The Climate Reality
Leadership Corps, que formou mais de 30 mil ativistas climáticos ao
redor do mundo.
Resultados e discussão
As estratégias de comunicação do PHAM2021 foram desenhadas a partir das premissas teóricas mencionadas e da definição dos
públicos estratégicos – palestrantes convidados e suas respectivas organizações; inscritos (após cadastro); comunidade engajada em torno da Planetary Health Alliance (PHA) e do Saúde Planetária Brasil
(SPBr); organizações parceiras e financiadoras; público geral da USP
em temas correlacionados aos de Saúde Planetária; e comunidades
científicas (sociedades científicas e agências, como SBPC, FAPESP,
entre outras); mídia; e público em geral.
Definiu-se que não seriam criados canais de redes sociais próprios para o PHAM2021, mas que as comunicações seriam feitas nos
já existentes canais da PHA e do SPBr no YouTube, Facebook, Twitter,
LinkedIn e Instagram. Criou-se um website do evento, com dados sobre a programação, os palestrantes, os trabalhos acadêmicos, as inscrições e o acesso à plataforma contratada para a realização virtual do
53
SEÇÃO 1
evento. O website foi utilizado, ainda, como repositório das palestras
no período posterior ao PHAM2021.
Entendeu-se que seria importante dar uma unidade na comunicação tanto no Brasil quanto no exterior. Para tanto, a concepção e
o desenvolvimento de uma identidade visual para os materiais de divulgação nas redes sociais foram fundamentais. O projeto gráfico foi
elaborado pelo aluno Marcelo Marcelino8, sob a supervisão do Prof.
Dr. Eneus Trindade, ambos da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), e teve forte impacto, pois trouxe cores e vibração que imprimiram uma brasilidade a todo o material de comunicação criado, tendo
sido frequentemente elogiado. O professor Trindade também participou da coordenação de comunicação do evento junto com a Dra. Daniela Vianna, pesquisadora e pós-doutoranda do IEA-USP, que contou com o apoio da pesquisadora Thaís Presa Martins na produção de
conteúdos para os canais do SPBr. A Conferência foi copresidida pelo
Prof. Dr. Antonio Mauro Saraiva, coordenador do Saúde Planetária
Brasil, e pelo Dr. Sam Myers, diretor da Planetary Health Alliance.
Criaram-se templates de cards, e as peças de comunicação
foram produzidas em português, traduzidas para o inglês e disponibilizadas para serem publicadas pela PHA em seus canais próprios.
Houve a produção de kits de mídia que foram disponibilizados para
organizações parceiras e para canais de comunicação institucional e
a assessoria de imprensa da USP, na linha do que propõe Dunwoody para estratégias de relacionamento interpessoal (DUNWOODY,
2007). Comunicações sobre o PHAM2021 foram disparadas automaticamente para a comunidade USP, a partir de um mailing da Pró-Reitoria de Pesquisa, e uma série de Institutos foi adicionada à lista, a fim
de tornar a divulgação do evento na USP o mais abrangente possível.
Para a cobertura do evento, foram engajados estudantes da
primeira edição do Programa Brasileiro de Embaixadores de Saúde
Planetária e/ou membros do Clube Brasileiro de Saúde Planetária,
que receberam treinamento prévio, ministrado pelas pesquisadoras
8 Bolsista do Programa Unificado de Bolsas de Estudos para Apoio à Permanência e Formação de Estudantes de Graduação (PUB-USP), sob orientação do Prof. Dr. Eneus Trindade.
54
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Daniela Vianna e Thaís Presa Martins, sobre técnicas de cobertura
jornalística. Houve, também, o envolvimento de pós-doutorandos da
ECA-USP, designados pelo Prof. Dr. Luciano Maluly, que participaram da produção e da edição de textos disponibilizados no website do
Saúde Planetária Brasil, bem como da produção de podcasts sobre os
principais temas debatidos no evento.
Realizou-se coleta das métricas das redes sociais – Twitter, YouTube, Facebook, Instagram, e LinkedIn – do SPBr, entre outubro de 2020
e dezembro de 2022. Os dados recolhidos foram gerados e disponibilizados gratuitamente pelas próprias empresas responsáveis pelas mídias.
Twitter
A conta do Twitter, criada em 2 de agosto de 2019, passou de
211 seguidores, em fevereiro de 2021, para 294, em maio de 2021 (após
o término do PHAM2021), alcançando 315 seguidores em dezembro
de 2022. Isso parece refletir a tendência da mídia Twitter de não ser
tão popular no Brasil. Em fevereiro de 2021, o tweet mais destacado
foi “Palestra inaugural do Programa Brasileiro de Embaixadores (GSP-IEA-USP)”, com 1.021 impressões9, 53 engajamentos10, e 5,2% de
taxa de engajamento11 – demonstrando o interesse dos seguidores por
esse tema. A partir de então, os tweets subsequentes de 2021 abordaram o PHAM 2021. Durante a realização do evento, o tweet “Debate
incrível sobre o que significa ser feliz no século 21! Ao vivo agora no
PHAM 2021” foi o que mais teve impressões – 10.989 ao todo –, gerando 40 engajamentos (taxa de 0,4%). Em 2022, prosseguiu a tendência no Twitter de maior interesse da audiência por postagens relacionadas ao Programa de Embaixadores e ao PHAM2022.
9 “Impressões”, no Twitter, mostram quantas vezes as pessoas visualizaram um tweet.
10 “Engajamento”, no Twitter, diz respeito a todo tipo de interação que seu perfil recebe dentro dessa
rede social. Isso inclui curtidas, retweets, respostas e menções à sua marca, além de cliques no link,
nas hashtags e nas mídias, como fotos ou vídeos.
11 A “taxa de engajamento” é uma unidade de medida que serve para avaliar o grau de envolvimento do
público com os seus posts ou com a sua página.
55
SEÇÃO 1
YouTube
A conta YouTube foi criada em 31 de agosto de 2019 e passou de
843 inscritos, em fevereiro de 2021, para 934, em maio de 2021 (após
o PHAM2021), e para 1.232, em dezembro de 2022. Entre novembro
de 2020 e maio de 2021, o alcance do canal, mensalmente, saltou de
698 impressões12 para 5.600. As visualizações mensais apresentaram
uma escalada positiva, passando de 131, em nov./2020, para 258, em
maio de 2021, e para 311, em dezembro de 2022. Ao longo de 2022, o
canal teve 2.573 visualizações. Dessas, 1.500 foram de vídeos (57%),
1.000 de transmissões ao vivo (39%), e 83 de shorts (vídeos curtos)
(3,2%). No entanto, em 2022, houve 42% a menos de visualizações do
que no ano anterior – o que evidencia a importância da produção de
conteúdo desenvolvida pelos pesquisadores do SPBr antes, durante e
logo após o PHAM2021 como estímulo à frequência dos espectadores.
Os tipos de fontes de tráfego13, de acordo com as três medições
realizadas, também indicam que a comunicação do PHAM2021 contribuiu para fidelizar o público YouTube do SPBr. Houve uma ampliação de
acessos por meio de pesquisa no próprio YouTube, que passou de 14,5%,
em novembro de 2020, para 33%, em maio de 2021, com pequena redução para 32%, em dezembro de 2022. Em 2022, o YouTube registrou
37.800 impressões, com 3,5% de taxa de cliques14, 1.300 visualizações de
impressões15, e mais de 133 horas de tempo de exibição de impressões.
Instagram
A conta do Instagram, criada em 31 de agosto de 2019, é a mais
utilizada pelo público do SPBr, seguindo a tendência de ser uma das
12 “Impressões” significam quantas vezes suas miniaturas foram mostradas aos espectadores no YouTube por impressões registradas.
13 “Fontes de tráfego” são os locais de onde estão vindo as visualizações dos vídeos no YouTube.
14 “Taxa de cliques” refere-se à frequência com que os espectadores assistiram um vídeo depois de ver
uma miniatura.
15 “Visualização de impressões” diz respeito ao número de visualizações legítimas dos seus canais ou vídeos.
56
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
redes sociais preferidas pela população brasileira. O número de seguidores respondeu à movimentação do canal, passando de 865, em fevereiro
de 2021, para 1.410, em maio de 2021, e chegando a 1.882, em dezembro
2022. Nesse último registro, foi possível mensurar o perfil dos seguidores com relação a: a) gênero – 76% são mulheres e 24% de homens; b)
faixas etárias – predominantes entre 25-34, 35-44 e 18-24 anos (figura
1); c) países – 93,9% são do Brasil, mas também há registros de acesso
realizados nos EUA (0,7%), Portugal (0,6%), Argentina (0,4%) e Alemanha (0,3%); e d) cidades principais – com predominância de São Paulo-SP (19,2%), seguido por Porto Alegre-RS (4,8%), Rio de Janeiro-RJ
(4,1%), Fortaleza-CE (1,9%) e Belo Horizonte-MG (1,8%).
Figura 1 – Seguidores por gênero e faixa etária
no Instagram em dezembro de 2022.
Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022)
Entre outubro e dezembro de 2022, com a intensificação das
comunicações realizadas pelo SPBr no Instagram, inclusive sobre a
realização do PHAM2022, houve o incremento de 199 novos seguidores (um aumento de 32,7% em relação aos 90 dias anteriores). No
mesmo período, o alcance das postagens chegou a 2.800 (aumento
de 96,3% em relação aos 90 dias anteriores); sobretudo, mídias dos
tipos vídeos (664) e imagens (628), e do formato carrossel (1.200),
reels (664) e outros (592). Foram postados 16 stories (aumento de
57
SEÇÃO 1
77,8% em relação aos 90 dias anteriores), com alcance de 743 dos stories
(aumento de 99,2% em relação aos 90 dias anteriores); principalmente,
imagens (236) e vídeos (120). O engajamento16 registrado foi de 865 (aumento de 92,2% em relação aos 90 dias anteriores); predominantemente,
pelos tipos imagens (66) e vídeos (30), e pelo formato carrossel (290),
outros (63) e reels (30). O número de visitantes foi de 587 (aumento de
17,6% em relação aos 90 dias anteriores). A postagem com maior alcance
(1.198, 91% de aumento na média das postagens), likes (212), e comentários (4, 100% de aumento médio), foi sobre a abertura de inscrições para o
PHAM2022. O story com mais alcance (353, um aumento médio de 39%)
foi sobre as repercussões do SPBr no PHAM2022, evento ocorrido, nos
EUA, entre 31 de outubro e 02 de novembro de 2022. Os pesquisadores
brasileiros do SPBr, que estiveram no evento presencialmente, realizaram uma conversa, transmitida, pelo YouTube, em 19 de novembro, contando ao público brasileiro sobre os principais acontecimentos ocorridos
no evento internacional. Diferentemente do PHAM2021, o PHAM2022
não teve tradução simultânea para a língua portuguesa (figuras 2, 3 e 4).
Figura 2 – Alcance de postagens no Instagram
entre outubro e dezembro de 2022.
Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022)
16 “Engajamento” é a interação do público com o conteúdo nas diversas redes sociais. No Instagram é representado pelas curtidas e comentários feitos nos posts, o compartilhamento de postagens, ao salvar
um item na coleção, entre outras ações.
58
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Figura 3 - Alcance de stories no Instagram
entre outubro e dezembro de 2022.
Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022)
Figura 4 – Engajamento por tipo e formato de mídia
no Instagram (outubro a dezembro de 2022)
Fonte: Instagram do SPBr-IEA-USP (30/12/2022)
Facebook
A conta do Facebook, criada em 26 de julho de 2019, registrou
514 seguidores em outubro a dezembro de 2022. No perfil de gênero,
as mulheres representam 65,6% dessa audiência, e os homens, 34,4%.
As faixas etárias predominantes são entre 35-44, 25-34, e 45-54 anos,
com ampla maioria de perfis do Brasil, 94,2%. No período, a página
59
SEÇÃO 1
teve alcance de 636 – um aumento de 300% em relação aos três meses
anteriores –, sendo, em média, por imagens (91), por vídeos (55) e por
links (26). Em termos de engajamento17, houve um aumento de 1.100%
em comparação com os três meses anteriores (julho a setembro de2022).
A publicação com maior alcance (275 pessoas, ou seja, 227% a mais do
que a mediana (84 pessoas) e com mais reações (57% maior em relação à
mediana de reações) foi a de divulgação do Fifth Planetary Health Annual
Meeting (PHAM2022) (figuras 5, 6 e 7).
Figura 5 – Seguidores do Facebook por gênero e
idade entreoutubro e dezembro de 2022.
Fonte: Facebook do SPBr-IEA-USP (30/12/2022)
Figura 6 – Engajamento em publicações do Facebook
entre outubro e novembro de 2022.
Fonte: Facebook do SPBr-IEA-USP (30/12/2022)
17 Engajamento, no Facebook, é a quantidade de curtidas (pessoas aprovando a qualidade do post), os
comentários que geram discussão sobre o assunto e o número de compartilhamentos, que expandem
a área de atuação daquela postagem.
60
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Figura 7 – Publicações com melhor desempenho
entre outubro e novembro de 2022.
Fonte: Facebook do SPBr-IEA-USP (30/12/2022)
A observação desses dados parece indicar o padrão de sucesso de publicações sobre o PHAM, também, registrado em 2021. Em
março de 2021, a divulgação “Estão abertas as inscrições para o 2021
PHAM” teve alcance de 1.011 e 68 reações, números muito acima da
média, entre 200-300 de alcance e de 40-50 de reações. Em abril de
2021, o engajamento com publicações foi de 274, um aumento de 54%
em relação ao mês anterior (pré-PHAM2021), e, em maio de 2021, o
engajamento registrado foi de 940, um aumento ainda mais saliente,
237% em comparação com abril daquele ano.
LinkedIn
A conta mais recente do SPBr nas redes sociais foi a do LinkedIn,
criada em 02 de fevereiro de 2021, em atendimento a uma demanda dos
Embaixadores Brasileiros de Saúde Planetária, devido à característica
61
SEÇÃO 1
específica desta rede, com apelo mais profissional do que as demais.
O número de seguidores passou de 57, em fevereiro de 2021, para 119,
em maio de 2021, e para 261, em dezembro de 2022 – um incremento
de 93 novos seguidores só em 2022. A análise de métricas do LinkedIn
permite identificar o perfil dos seguidores por principais funções e setores (figura 8). Quanto às principais localidades, 50% dos seguidores
eram de São Paulo-SP, em fevereiro de 2021. Esse número caiu para
41,4%, em dezembro de 2022. O mesmo ocorreu entre os seguidores
de Porto Alegre-RS, que era de 8,33% em fevereiro de 2011, e passou
para 4,6%, em dezembro de 2022. Notou-se, por outro lado, o aumento de seguidores no Rio de Janeiro-RJ, passando de 0%, em fevereiro
de 2021, para 5,4%, em dezembro de 2022, e em Campinas-SP, de
0% para 1,9%, respectivamente. Em relação aos visitantes, a página
do LinkedIn passou de 165 (54 visitantes únicos), em fevereiro 2021,
para 80 (23 únicos), em maio de 2021, e 354 em dezembro 2022 (124
únicos).
Figura 8 - Perfil dos seguidores do canal do SPBr
no LinkedIn por funções e setores.
Principais funções (%)
Período
fev. 2021
maio 2021
dez. 2022
Educação
23,33
12,50
15,30
Pesquisa
20,00
2,08
10,3
Serviços sociais e comunitários
40,00
8,33
5,00
Meios de comunicação
3,33
10,11
5,40
Organizações de pesquisa
20,45
10,81
0
Ensino Superior
18,18
16,22
16,50/
Pesquisa
9,09
10,81
5,70
Atendimento médico e hospitalar
4,55
0
3,10
Administração pública
4,55
0
5,00
Principais setores (%)
Fonte: LinkedIn do SPBr-IEA-USP (fev. 2021, maio 2021, dez. 2022)
62
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
Considerações finais
As evidências elencadas apontam que a comunicação foi chave
para o sucesso da Conferência, tanto na divulgação de informações
sobre a realização do PHAM2021 em si, quanto na oportunidade de se
aproveitar a realização do evento para a difusão do conceito de Saúde
Planetária no Brasil e no mundo.
O PHAM2021 foi o maior evento de SP já realizado até então pela PHA, e contribuiu para a discussão de alternativas para um
mundo pós-covid. A Conferência contou com uma palestra principal,
nove painéis, cinco sessões de entrevistas, 24 lightning talks e mais
de 90 apresentações de pôsteres. Contou, ainda, com 54 eventos paralelos e 22 atividades artísticas e culturais reunidas no Festival, que
ocorreu em paralelo à Conferência, na I Semana da Saúde Planetária
(KOFFLER et al., 2022).
O fato de a Conferência ter sido virtual e gratuita possibilitou
a democratização da participação e a ampliação do acesso aos debates
para diferentes públicos, setores e geografias. Se, por um lado, houve a perda dos relacionamentos construídos a partir dos encontros
presenciais, por outro, a tecnologia permitiu que o evento extrapolasse a “bolha” do público acadêmico, alcançando diferentes setores da
sociedade – tais como representantes de governos, formuladores de
políticas públicas, lideranças de organismos multilaterais, empresas,
terceiro setor, profissionais de saúde, estudantes, cientistas e pesquisadores de diversas partes do mundo.
Contar com tradução simultânea do inglês para quatro idiomas (português, espanhol, francês e mandarim), também, contribuiu
para reduzir as barreiras que porventura poderiam ser provocadas
pela falta de domínio ou fluência em inglês. Dos 5.020 inscritos no
evento, 2.183 (43,5%) foram de registros realizados no Brasil (VIANNA, 2021). Para potencializar ainda mais o acesso ao conteúdo de
todas as sessões do evento, mesmo após a sua realização, foi editado
um livro que traz toda a programação, os textos dos abstracts aprovados e links para cada uma das gravações das sessões (KOFFLER
et al., 2022).
63
SEÇÃO 1
As análises dos dados das métricas das mídias do SPBr evidenciam a relevância do PHAM 2021, em três momentos – pré-evento, durante e após –, como propulsores do engajamento brasileiro no
tema da Saúde Planetária. A divulgação do PHAM2022, também, teve
boa repercussão nas redes sociais. Observou-se que o público-alvo das
redes sociais enquadra-se no seguinte perfil: a) gênero (mormente
composto por mulheres, mais de 70%); b) faixa etária (predominantemente jovem, entre 25-35 anos); c) país (sobretudo, brasileiros, mais
de 90% em diferentes redes sociais); d) cidades principais (maioria
oriunda da região de São Paulo-SP); e) principais funções (LinkedIn),
Educação e Pesquisa; f) principais setores (LinkedIn), Pesquisa e Ensino Superior. Além disso, o Programa Brasileiro de Embaixadores de
Saúde Planetária, uma das ramificações do SPBr, vem contribuindo,
de modo importante, para o aumento do público (majoritariamente,
entre 18 e 35 anos) e para a difusão do campo e da potência da Saúde
Planetária em âmbito nacional.
A Saúde Planetária constitui-se em um campo de pesquisas e
ações relevantes para imprimir o sentido de urgência para a Grande
Transição para uma sociedade de baixo carbono, de forma justa e sustentável. A Declaração de São Paulo em Saúde Planetária18 (MYERS;
PIVOR; SARAIVA, 2021), documento resultante do PHAM2021, estabelece diretrizes para diferentes setores, sinalizando rumo e perspectiva nessa direção. Isso requer revisão e alteração de comportamento amplas, por parte da população e de seus diferentes atores. A
comunicação, como demonstrado pela análise dos canais do SPBr, é
fundamental para informar e motivar diferentes públicos, por meio
da difusão de informações e dados baseados em ciência. Faz-se necessário o conhecimento sobre os públicos engajados nas comunicações,
como o adquirido por meio de ferramentas de análise das métricas
das redes sociais, para que se possa monitorar áreas de interesse e estabelecer estratégias eficientes de comunicação de Saúde Planetária,
no presente e no futuro. A comunicação em torno do PHAM2021 e,
18 Acesso à versão em português da Declaração de São Paulo em Saúde Planetária está disponível no
website do Saúde Planetária Brasil.
64
Comunicação, sustentabilidade e meio ambiente
também, do PHAM2022, conforme apresentado, já oferecem alguns
caminhos possíveis.
Referências
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MEDINA, Cremilda. O signo da relação: comunicação e pedagogia dos afetos. São
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65
SEÇÃO 1
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66
SEÇÃO 2
Comunicação, tecnologias digitais e IA
A inteligência artificial como
um objeto da pesquisa
comunicacional: a contribuição
da semiótica peirceana
Vinícius Romanini
Resumo
A semiótica peirceana pode ser considerada uma teoria formal, ou lógica, para o fenômeno da comunicação. De fato, semiose, ou
ação do signo, é um sinônimo para comunicação em sentido amplo,
que engloba mas ultrapassa o limiar da cultura para incluir qualquer
forma de compartilhamento de informação. É justamente por sua generalidade, formalismo e vínculo com a fenomenologia e com a cognição lato sensu que a semiótica pode oferecer uma perspectiva frutífera
para o estudo da inteligência artificial (IA). O conceito de informação
semiótica é fundamental para definir a inteligência como semiose autocontrolada. Vamos apresentar alguns resultados recentes do atual
paradigma conexionista que se baseia em redes neurais inspiradas
na atividade cerebral, que alcançaram o chamado “aprendizado profundo”. Apesar de seu inequívoco sucesso em aplicações práticas, as
redes neurais artificiais não são capazes de emular julgamentos estéticos e éticos genuínos sobre os quais se baseia uma inteligência capaz
69
SEÇÃO 2
de autocontrole. Por isso, a comunicação homem-máquina descrita
no teste de Turing continua a ser uma meta distante de ser alcançada
e a semiótica nos ajuda a entender a razão disso e talvez, também,
contribua para que essa meta seja alcançada.
Introdução
A busca pela inteligência artificial nasceu, na segunda metade
da década de 40 do século passado, junto com a teoria matemática da
informação e com a cibernética (a ciência do controle do comportamento dos animais e das máquinas por meio da comunicação). Duas
analogias animaram seus primeiros passos: a da mente humana com
o programa de um computador e a dos neurônios do cérebro humano
com conexões elétricas controladas por relés. A primeira dessas analogias é um desdobramento do racionalismo, que teve Descartes como
seu maior expoente. A segunda, se alinha mais ao empirismo, tomando as sinapses cerebrais como análogas às impressões de sentido de
Locke e Hume. Em comum, ambas surgem confrontando a psicologia
comportamentalista (Skinner, por exemplo), e adotando uma metafísica nominalista, ou seja, assumindo como premissa que questões
relacionadas à natureza da consciência e dos aspectos qualitativos da
experiência (tão caras aos filósofos da mente) não eram obstáculos
para entender e simular a inteligência em máquinas.
Cada uma dessas analogias deu origem a um paradigma de pesquisa diferente: o simbólico, para a busca de regras para a manipulação automática de símbolos na mente; e o conexionista, para a tentativa de reproduzir no computador os padrões de interação que acontecem
entre os neurônios no cérebro. Dado o limite da capacidade de memória e de cálculo das primeiras gerações de computadores, o paradigma
conexionista não apresentou resultados competitivos no curto prazo e
foi, senão inteiramente abandonado, praticamente congelado. Enquanto isso, o paradigma simbólico cresceu rapidamente baseado no cálculo
das probabilidades e na busca de uma gramática universal, essencialmente matemática, que fundamentaria todos os processos cognitivos.
Apesar de toda a promessa e entusiasmo, o paradigma simbolista
esbarrou em problemas ligados à complexidade algorítmica e aos para-
70
Comunicação, tecnologias digitais e IA
doxos lógicos ligados à completude dos sistemas simbólicos, perdendo
muita de sua força originária (HOFSTADTER, 2001). A comunicação
humana, por exemplo, é muito mais complexa do que a linguagem usada
na programação dos computadores e a gramática das línguas naturais,
usadas numa conversação simples, tem características de recursividade e
composicionalidade criativa que vai muito além da dedução dos sistemas
lógicos que provam teoremas a partir de um número finito de axiomas.
Apesar de muitos alardes falsos, os computadores ainda não
passaram no teste que Alan Turing, o pai intelectual dos computadores, desenhou para aferir se uma máquina é inteligente: a capacidade
de enganar um ser humano durante um típico papo de boteco. Parece coisa boba, mas a quantidade de implicaturas conversacionais
(GRICE, 1981), ironias contexto-dependentes, piadas de mau gosto e
asserções contrafactuais “absurdas” envolvidas em vinte minutos de
conversa fiada, em torno de um copo de cachaça, fazem com que o teste de Turing continue a ser uma barreira intransponível, até mesmo
para supercomputadores capazes de simular o inteiro universo físico.1
Numa reviravolta digna de nota, depois de quase quatro décadas
na “geladeira”, o paradigma conexionista baseado em redes neurais foi
aquecido pelo big data e pelo incremento na capacidade de computação
observados na última década e agora parece estar em clima de primavera. Hoje, há grandes expectativas de que uma máquina baseada em redes
neurais multicamadas seja capaz não apenas de “aprendizado profundo”
(ou seja, sem o supervisionamento humano), mas também de emular
artificialmente a maioria (se não todas) das faculdades mentais humanas, incluindo a capacidade de entreter um diálogo humano-máquina
convincente e produtivo, a expressão de emoções e de afetividade capazes de gerar empatia genuína de nossa parte, a ação moralmente fundamentada na tomada de decisões que traga confiança social e, até mesmo,
julgamentos estéticos que permitam a criação artística, incluindo desde
1 A razão para isso é que as leis e constantes físicas da natureza são conhecidas com exatidão. Ao definirmos de forma suficientemente completa as condições iniciais do Universo, um computador pode
simular com boa aproximação o estado atual. O problema é de complexidade polinomial (P). Já uma
conversação usando uma língua natural depende de interpretações que abrem um leque imenso de
possibilidades a cada novo ato de fala, o que rapidamente provoca uma explosão exponencial de trajetórias possíveis. O problema é de complexidade não polinomial (NP).
71
SEÇÃO 2
imagens fotográficas e cenas de filmes até a redação de peças de teatro e
roteiros para a televisão ou cinema.
Claro que a definição de inteligência é crucial quando tais afirmações são feitas. Uma anedota conhecida entre os filósofos da mente é
que “a inteligência é e continuará a ser sempre aquilo que uma máquina
não consegue fazer – ainda.” Não nos deixemos enganar pelas cenas de
ciborgues falando como humanos disponíveis nas redes sociais e, menos
ainda, pelos criativos e bem-escritos textos assinados por algoritmos de
IA que têm aparecido na imprensa. Há pouca espontaneidade e certamente nada que se assemelhe ao livre-arbítrio, à consciência e às emoções nessas manifestações dos autômatas. Ao contrário, eles são o resultado da preparação cuidadosa de imensos e caríssimos bancos de dados
usados para o treinamento das redes neurais, ou seja, para a extração
de padrões de fala e escrita que depois servirão de parâmetros para o
funcionamento dessas máquinas. E, ainda assim, o resultado final tem
a curadoria cuidadosa de uma mente humana que conduz a conversa
sabendo das limitações do repertório da máquina ou fazendo a copidescagem final para agregar diversas versões de texto numa única peça que
soe inteligível e coerente aos nossos ouvidos.
A inteligência genuína dos seres vivos, por outro lado, parece envolver inferências muito rápidas a partir da percepção imediata e da síntese de elementos qualitativos (ROMANINI, 2014a). Um microrganismo,
por exemplo, não tem cérebro e, portanto, não dispõe de padrões probabilísticos inscritos na memória das conexões de neurônios para guiar a
“tomada de decisões” necessárias para sua sobrevivência e reprodução
biológica. Muito menos manipula símbolos por meio de regras inscritas
em sua memória particular. Ainda assim, constatamos que esses seres
unicelulares são capazes de sentir flutuações significativas no gradiente
das concentrações químicas presentes no meio em que vivem e reagir instintivamente a partir de um “conhecimento” ou, se quisermos deflacionar
semanticamente, de um repertório de possíveis reações acumulado em
seu genoma ao longo de milhões de anos de evolução, em que variações
fortuitas no código genético foram naturalmente selecionadas pelo meio.
Temos, neste exemplo, um tipo de computação analógica, baseado em contínuos de variação nos estímulos sobre a totalidade da
72
Comunicação, tecnologias digitais e IA
membrana celular (ao invés de sinais discretos como ocorrem linearmente nas sinapses) e a ação de proteínas com suas formas tridimensionais,
que se parecem esculturas orgânicas esteticamente admiráveis (ao invés
das trilhas lógicas entediantes dos chips de computadores). O metabolismo celular e o sistema imunológico dependem de um tipo de inteligência
não-computável pelas estratégias implementadas até agora.
As redes neurais na ribalta
Mesmo com todas essas importantes observações, ninguém
questiona que algoritmos de redes neurais têm alcançado resultados
surpreendentes e merecem nossa atenção. Surgiram há quase 80 anos
e evoluíram a partir de trabalhos de pesquisadores como McCulloch
& Pitts (1943), Rosenblatt (1957), Hinton (1995) e Eliasmith (2012),
que tomaram o funcionamento biológico do cérebro como o protótipo
para a construção de dispositivos artificiais que emulam faculdades
mentais. Hoje, temos algoritmos de aprendizado profundo que podem não apenas dominar qualquer jogo de tabuleiro, mas também
resolver problemas difíceis de diagnóstico e síntese nos campos da
medicina, química e farmacologia (SEJNOWSKI, 2018).
No setor da produção midiática, redes neurais, como o GPT-3
(Generative Pre-Training Transformer 3, desenvolvida pela OpenAI)
demonstraram ser capazes de produzir textos significativos (em inglês,
principalmente, mas o problema de gerar textos em outras línguas é
considerado trivial e depende apenas do correto treinamento do algoritmo a partir de volumes adequados de exemplos nessas línguas) ao ponto
de se tornarem indiscerníveis de textos elaborados por inteligência humana. Não parece haver limites para o refinamento dessas tecnologias,
para além do consumo crescente de energia e a capacidade instalada de
computação e memória dos chips dos computadores onde rodam. Por
exemplo, a versão do GPT-4 é esperada com a sempre renovada promessa de passar o teste de Turing. Ela será 500 vezes mais eficaz do que
sua versão anterior e, pela primeira vez na história das redes neurais
artificiais, terá uma quantidade de parâmetros semelhante ao número
de relações que os neurônios humanos podem fazer no cérebro.
73
SEÇÃO 2
Essas redes neurais de aprendizado profundo emergem de
forma não supervisionada e seu imenso poder preditivo só é proporcional à opacidade com que operam. Isso porque o design racional
dessas redes não é possível, pois nenhum algoritmo pode prever, desde o início, qual configuração de camadas, valores e pesos terá um
desempenho ideal para um determinado conjunto de treinamento ou
um novo conjunto de dados de entrada. O número de tais algoritmos
que regem diversos aspectos da vida social humana está crescendo
rapidamente (exemplos são reconhecimento facial, diagnósticos médicos, algoritmos de marketing direcionado e de recomendação), mas
geralmente não há uma explicação boa, coerente e inteligível de por
que uma rede treinada funciona, ou como ela é capaz de fazer o que
faz. Nós as pomos para rodar e assistimos estupefatos aos resultados.
Dada a falta de transparência e, portanto, de controle social sobre esses processos, o possível impacto negativo dessas tecnologias cognitivas quando aplicadas às plataformas de redes de comunicação – ou
no trabalho desempenhado pelas redações jornalísticas e pelas agências
de criação publicitária ou de marketing político –, só agora começa a
ser entendido. Considerando que todo sistema autoritário de governo
promove a opacidade de suas próprias escolhas enquanto torna transparente a privacidade dos seus governados, as implicações sociológicas da
adoção acrítica da inteligência artificial na tomada de decisões representam uma ameaça sem precedentes às formas democráticas de organização social. Poderíamos listar muitos exemplos de crimes de racismo de
dados, manipulação de processos eleitorais e de invasão de privacidade
perpetrados por algoritmos sem que se saiba ao certo quem punir.
O que são as redes de aprendizado profundo
As redes neurais capazes de aprendizado profundo são multicamadas constituídas por arranjos de elementos (nós) que são conectados
a outros nós de camadas adjacentes. Os nós cumprem o papel dos neurônios e as conexões, o das sinapses. As informações fluem sequencialmente
da camada de entrada (input) para as intermediárias e, finalmente, para
a camada de saída (output). Usando sempre probabilidades, os nós recebem valores e as conexões entre nós recebem pesos que determinam a
74
Comunicação, tecnologias digitais e IA
estrutura relacional da rede. Numa rede neural treinável, uma estratégia
de avaliação é usada para modificar de forma adaptativa os pesos e valores de modo que seu desempenho melhore com o treinamento. No caso
do aprendizado profundo, um procedimento chamado retropropagação
(backpropagation) é usado para modificar automaticamente, sem qualquer supervisão humana, os pesos entre as conexões, movendo-se para
trás através das camadas – ou seja, no inverso do fluxo original de informações pela rede. O aprendizado ocorre por “tentativa e erro” e força bruta, normalmente exigindo um grande número de iterações de treinamento
para a rede convergir para um arranjo de pesos com melhor desempenho.
Figura 1 – Uma rede neural é uma sequência de nós por onde a informação
flui a partir dos estados de entrada (input) na direção dos estados
de saída (output). Tantos os nós quanto as conexões (representadas
por flechas) têm valores probabilísticos que são alterados ao serem
expostos a um banco de dados preparado para o treinamento.
O desenho de uma rede neural tenta reproduzir a estrutura de um
sistema conhecido pelos pesquisadores em inteligência artificial como
manta ou cobertor de Markov2 e que foi originalmente introduzido por
2 O manto de Markov leva esse nome em homenagem ao matemático russo ativo até as primeiras décadas do século XX e que estudou processos estocásticos (aleatórios). Nesses processos discretos, um
estado particular depende apenas do estado anterior, o que gera uma cadeia causal que independe de
memória de longo prazo. Tudo se resolve na interação imediata entre estados sucessivos.
75
SEÇÃO 2
Judea Pearl (1988). A manta de Markov expressa as condições mínimas
necessárias que as regiões de contorno de um estado interno (ou nó) A
de qualquer sistema devem ter para se preservar da degradação devido
ao aumento da entropia, ou seja, a tendência inexorável para a desordem que acompanha qualquer processo físico. A manta de Markov de um
conjunto de estados internos que consiste em seus genitores, suas crias
e os genitores de suas crias. Além disso, a manta é dividida em estados
perceptivos (de input), capazes de representar os estados externos selecionando as informações recebidas, e estados ativos (de output), capazes
de influenciar o ambiente transmitindo o fluxo de informações processadas pelo estado interno. A essência de todo o processo é que, se o estado
interno A “aprende” sobre seu ambiente por meio de seus genitores, ele
instrui “inteligentemente” suas crias e genitores de suas crias sobre como
agir no ambiente de forma a favorecer a continuidade do fluxo. O sistema realiza algo semelhante à homeostase dos seres vivos, garantindo que
seus estados internos gravitem em torno de parâmetros bem definidos.
Figura 2 – O manto ou cobertor de Markov é um invólucro que separa
um estado interno A de seu ambiente por meio de estados intermediários
representados dentro do círculo pontilhado. O manto consiste nos
genitores de A, nas crias de A e dos genitores das crias de A.
76
Comunicação, tecnologias digitais e IA
Do ponto de vista das ciências cognitivas clássicas, há muitas
dúvidas se devemos usar palavras como “aprendizado” e “inteligência” para definir o que fazem as redes neurais de aprendizado profundo inspiradas no manto de Markov. Essa discussão está presente
em muitos teóricos da inteligência artificial. Brian C. Smith (2019),
por exemplo, diferencia dois tipos básicos de inteligência: cálculo
(reckoning) e julgamento (judgement). Embora os computadores estejam se tornando mais potentes no processamento de informações
volumosas por meio da força bruta do cálculo matemático, eles são
incapazes de produzir inferências significativas baseadas na percepção e na experiência com o mundo real. Enquanto a máquina de Turing se restringe ao cálculo lógico, manipulando símbolos discretos,
o julgamento parece exigir um tipo de inteligência situada e incorporada, que se relacione de forma analógica com a realidade particular
a sua volta, ao mesmo tempo em que recebe influxos de leis gerais
vagas que governam níveis mais altos de um complexo hierárquico
de relações contínuas e analógicas.
Falando semioticamente, é preciso desenhar máquinas capazes de produzir informação por meio da simulação de inferências
ampliativas semelhantes às que ocorrem com os seres vivos durante
a experiência com o real (ROMANINI, 2014a). A abdução, ou inferência hipotética, permite a internalização de novidade genuína e,
por isso, o desenvolvimento dos símbolos (especialmente hábitos
mentais que chamamos de crenças) por aperfeiçoamento gradual
que busca minimizar a diferença entre a realidade experimentada
e as representações internas do sistema. A semiose é um fenômeno
distribuído que demanda uma renovação paradigmática. Por exemplo, o conceito de mente estendida atualmente em elaboração pelos
teóricos da cognição postula que a mente não é o que ocorre apenas
dentro de cacholas físicas, mas um processo relacional que não tem
contornos definidos no espaço-tempo. Estamos falando de informação semiótica e um tipo de inteligência que ultrapasse o autismo das
versões autistas e autorreferentes dos paradigmas conexionista e
simbólico clássicos.
77
SEÇÃO 2
A noção de inteligência a partir da informação semiótica
Fundamentalmente, a perspectiva semiótica parte do pressuposto metafísico de que a mente não é um epifenômeno emergente das interações neuronais, mas um componente da realidade. Em outras palavras,
consciência e qualidades de sentimento não seriam intenções secundárias
formadas a partir de impressões de sentido primárias mas, ao contrário,
manifestações fenomenológicas do que Peirce chama de primeiridade.
As ações e reações que ocorrem nas trocas energéticas dos neurônios são
classificadas como casos de secundidade. As cognições e informações, por
serem fenômenos de continuidade e mediação semelhantes aos hábitos e
padrões que regulam e governam as interações diádicas, são exemplos de
terceiridade. Se uma probabilidade indutiva tem uma força de lei típica
da secundidade, é a internalização de novidade por meio de qualidades e
possibilidades capazes de quebrar padrões estabelecidos e formar novos
hábitos que melhor define semioticamente a “mente”.
A mente se expressa na semiose, ou ação do signo. Para Peirce,
signo (usemos S para representá-lo) é justamente uma entidade cognoscível que tem a capacidade de representar alguma coisa diferente
de si mesmo – seu objeto ou, mais precisamente, seu objeto dinâmico
(Od) – para criar um efeito numa mente (ou numa quasi-mente, se
pensarmos a partir de um realismo objetivo que inclui fenômenos biológicos, químicos e até físicos). Esse efeito criado vicariamente pelo
signo é chamado de interpretante (I). Mais uma vez, não é necessário
que haja um intérprete da maneira como a psicologia define os sujeitos que interpretam signos. Basta apenas que haja potencialmente um
efeito resultante da ação sígnica (LISZKA, 1996; ROMANINI, [s.d.]).
O signo não representa seu objeto perfeitamente, mas deve
selecionar alguns aspectos, e essa imagem composta chamamos de
objeto “imediato” (Oi). A diferença entre a forma perfeita do objeto dinâmico e a imperfeita do objeto imediato precisa ser minimizada por
meio de inferências hipotéticas e correções contínuas na produção
dos interpretantes. Isso significa que temos interpretantes dinâmicos
(Id) que vão sendo aprimorados na direção de um interpretante final
(If). Embora a perfeição seja uma meta (como diz o poeta), ela é um
78
Comunicação, tecnologias digitais e IA
ideal normativo que guia a semiose. Tanto o objeto imediato quanto o
interpretante imediato são aspectos internos ao signo e, podemos dizer, apresentam uma relação de oposição complementar semelhante
ao conceito de Yin-Yang do taoísmo: o objeto imediato é o resultado
da influência do objeto dinâmico e, portanto, se refere ao passado; o
interpretante imediato representa a amplitude de interpretações possíveis do signo e, portanto, se projeta em direção ao futuro.
A qualquer momento o objeto dinâmico pode surpreender nossas representações e frustrar nossas expectativas de interpretação possível. Essa surpresa é ao mesmo tempo desejada (porque é a fonte de
toda novidade e de oportunidade de aprendizado), mas também um
estado de irritação (ou dúvida mental, como explica Peirce) que precisa ser eliminado por meio de um método de investigação preciso, chamado de pragmático. A tarefa do raciocínio autocontrolado inteligente
é justamente o de reduzir a diferença entre a forma realmente presente
no objeto dinâmico e a forma entitativamente presente no objeto imediato, produzindo um hábito mental, ou crença, que seja resiliente ao
longo da experiência com a realidade. Como explica o próprio Peirce:
[...] Eu raciocino não pelo prazer de raciocinar, mas
apenas para evitar decepções e surpresas. Conseqüentemente, devo planejar meu raciocínio para que,
evidentemente, evite essas surpresas3 . (CP 2.173)
O protagonismo do símbolo peirceano
Por símbolo entendemos, em primeiro lugar, um signo geral.
Os símbolos não têm existência per se, mas dependem de instanciações
em réplicas para ganhar corpo físico (ROMANINI, [s.d.]). O exemplo
usual é uma palavra linguística, que não depende de ser escrita ou falada
por algum indivíduo para ser real, embora apenas essas instanciações
existenciais possam torná-la efetiva. Mas um símbolo também deve
3 [...] I do reason not for the sake of my delight in reasoning, but solely to avoid disappointment and surprise.
Consequently, I ought to plan out my reasoning so that I evidently shall avoid those surprises. (CP 2.173)
79
SEÇÃO 2
representar alguns aspectos gerais do objeto que é representado – ou
do complexo de objetos, pois geralmente é esse o caso. Esse aspecto
geral, que se assemelha à noção platônica de “ideia”, é também a forma geral que o símbolo veicula. O símbolo é análogo à deusa grega de
dupla face Tyche (ROMANINI, [s.d.]). Uma de suas faces capta informações vindas do passado, que se materializam nos ícones que habitam os índices da experiência (o exemplo do catavento que traremos
mais à frente vai ajudar a esclarecer como isso acontece). Com efeito,
o que determina o símbolo é o índice que ele deve comportar, que o
liga materialmente ao contexto existencial concreto, o hic et nunc da
realidade. A outra face vislumbra o futuro e cria conjecturas tentando
trazer os ícones e índices percebidos para a unidade de um conceito
em evolução. Um símbolo vivo deve então ser explicado como um signo em evolução contínua, funcionando como veículo ou meio para um
fluxo de informação que vem de um passado completamente determinado para um futuro vago e indeterminado – o cerne da semiose.
Isso explica o crescimento dos símbolos pela incorporação
sempre imperfeita, mas também autocorretiva, das formas dos objetos
dinâmicos que eles representam. Se e quando essa incorporação for
concluída, o símbolo alcançará sua enteléquia ou o interpretante final
perfeito. Este seria seu “interpretante final último” que poderia ser definido como um hábito em perfeita harmonia com a superordem, ou
super-hábito, que rege a própria realidade que o signo professa representar. Esse hábito seria o fundamento de uma hipótese explanatória,
ou crença, inabalável a eventos futuros – o fim da semiose. Peirce:
Qual é, então, o fim de uma hipótese explicativa?
Seu objetivo é, através da sujeição ao teste da experiência, levar a evitar toda surpresa e ao estabelecimento de um hábito de expectativa positiva
que não será desapontado.4 (CP 5.197)
4 What, then, is the end of an explanatory hypothesis? Its end is, through subjection to the test of experiment, to lead to the avoidance of all surprise and to the establishment of a habit of positive expectation
that shall not be disappointed. (CP 5.197)
80
Comunicação, tecnologias digitais e IA
Vemos então que a informação é um processo intrínseco
ao símbolo, embora outros tipos de signos também desempenhem
papéis importantes por serem envolvidos nos símbolos. Ícones são
essenciais para dar corpo à forma ou ideia a ser comunicada pelo
símbolo, enquanto índices são necessários para apontar quais são
os objetos aos quais essa ideia pode ser aplicada. A parte icônica do
símbolo é chamada de compreensão, conotação ou profundidade. A
parte indicial é chamada de extensão, denotação ou amplitude. Peirce define o objeto denotado como a fonte da informação, que ocupa a
posição de emissor (Peirce usa “enunciador” para a fonte e “enunciado” para a mensagem).
Como nossa principal preocupação aqui é a informação na
comunicação, devemos considerar o que transforma um símbolo em
um transmissor de informações, como uma afirmação (a expressão de
uma crença particular em um contexto definido) ou uma proposição
(a forma geral de um símbolo informativo, geralmente diagramático,
e que pode ser afirmado em diferentes sintaxes). Esses símbolos informativos são chamados por Peirce de signos discentes (STJERNFELT,
2014). Um dos exemplos mais trabalhados por Peirce é o catavento,
dispositivo capaz de informar a direção do vento. Por ser uma máquina, oferece uma reflexão interessante no contexto da busca da inteligência artificial a partir dos pressupostos semióticos:
A referência de um signo a seu objeto ganha destaque especial em um tipo de signo cuja aptidão para
ser signo se deve ao fato de estar em uma relação
reativa real, geralmente uma relação física e dinâmica, com o objeto. Tal signo eu denomino um índice. Como exemplo, pegue um catavento. Este é um
signo do vento porque o vento o move ativamente.
Ele está voltado para a mesma direção de onde sopra o vento. Na medida em que faz isso, envolve um
ícone. O vento o obriga a ser um ícone. Uma fotografia que é compelida pelas leis óticas a ser um ícone de seu objeto diante da câmera é outro exemplo.
81
SEÇÃO 2
É dessa forma que esses índices transmitem informações. São proposições. Ou seja, eles indicam separadamente seus objetos; o catavento porque gira
com o vento e é conhecido pelo seu interpretante
por fazê-lo; a fotografia por uma razão semelhante.
Se o catavento emperrar e não girar, ou se a lente da
câmera estiver ruim, um ou outro será falso. Mas se
esse for o caso, eles se transformam imediatamente
em meros ícones, na melhor das hipóteses. Não é
essencial para um índice que ele envolva um ícone.
Só que, se não o fizer, não transmitirá nenhuma informação. (MS 7, 17-18)5
Vimos acima que um catavento funcionando corretamente se
movimenta acompanhando a forma do movimento do vento (parte
icônica, conotativa), e essa reação física o obriga a apontar para a direção para onde o vento sopra (parte indicial, denotativa). No entanto,
o catavento só é capaz de transmitir informações sobre o vento se receber o influxo de um símbolo, nesse caso imputado pela comunidade
dos interpretantes que o usam pragmaticamente para tomar decisões
inteligentes sobre a experiência cotidiana.
Se o catavento estiver funcionando corretamente,
esse índice também envolve um ícone que representa a forma real do sopro do vento. E o símbolo seria verdadeiro se o habitual “vira-a-ser” (would-be)
5 The reference of a sign to its object is brought into special prominence in a kind of sign whose fitness to
be a sign is due to its being in a real reactive relation,— generally, a physical and dynamical relation,—
with the object. Such a sign I term an index. As an example, take a weather-cock. This is a sign of the
wind because the wind actively moves it. It faces in the very direction from which the wind blows. In so
far as it does that, it involves an icon. The wind forces it to be an icon. A photograph which is compelled
by optical laws to be an icon of its object which is before the camera is another example. It is in this
way that these indices convey information. They are propositions. That is they separately indicate their
objects; the weather-cock because it turns with the wind and is known by its interpretant to do so; the
photograph for a like reason. If the weathercock sticks and fails to turn, of if the camera lens is bad,
the one or the other will be false. But if this is known to be the case, they sink at once to mere icons, at
best. It is not essential to an index that it should thus involve an icon. Only, if it does not, it will convey
no information. (MS 7, 17-18)
82
Comunicação, tecnologias digitais e IA
que o acompanha representasse corretamente essa
informação icônica apresentada pelo catavento. Em
termos lógicos, o símbolo conota verdadeiramente o
que realmente denota. Além disso, o vento que sopra
o catavento está no passado de qualquer observador concebível que colha a informação, enquanto as
consequências pragmáticas da afirmação feita pelo
aparelho estão sempre no seu futuro. Deve haver
então um esquema contínuo, ou sintaxe, ligando as
possibilidades reais do ícone no nível perceptivo ao
ícone das consequências lógicas. O primeiro entra no
conhecimento por meio de julgamentos perceptivos,
e o segundo se torna informação consciente pelo raciocínio diagramático, onde as relações são representadas na forma de pensamento. Esse fluxo de informação da forma real do objeto para a forma geral do
interpretante no símbolo deve então ser contínuo no
tempo, e o esquema lógico do tempo deve explicar o
ser de uma proposição. (MS 664, 10-13)6
O diagrama abaixo representa o fluxo de informação que parte
do vento (Od) em direção ao signo (S), composto por seus dois aspectos
internos: objeto imediato (Oi, o movimento internalizado nas engrenagens do catavento) e interpretante imediato (Ii, as indicações da ponteira
da flecha do catavento), que estão representados pelo símbolo Yin-Yang.
Da latitude de possíveis interpretações do interpretante imediato brotam
6 If the weather-cock is functioning correctly, this index also involves an icon that represents the real
form of the blow of the wind. And the symbol would be true if the habitual “would-be” that accompanies it correctly represents this iconic information presented by the weather-cock. In logical terms, the
symbol connotes truly what it truly denotes. Moreover, the wind that blows the weather-cock is in the
past of any conceivable observer that would collect the information, while the pragmatic consequences of the assertion made by the apparatus are always in its future. There must be then a continuous
schema, or syntax, linking the real possibilities of the icon at the perceptive level to the icon of the
logical consequences. The former enters the knowledge through perceptual judgments, and the latter
becomes conscious information by diagrammatic reasoning, where relations are represented in the
form of thinking. This flow of information from the real form of the object to the general form of the
interpretant in the symbol must then be continuous in time, and the logical schema of time must account for the being of a proposition (MS 664, 10-13).
83
SEÇÃO 2
os interpretantes dinâmicos. Eles seriam as interpretações informativas
efetivamente produzidas por um observador (humano ou qualquer mecanismo de registro dessas informações). Em mecanismos materiais rígidos como os cataventos, compostos por ferro e madeira, os interpretantes imediato e dinâmico seguem cadeias causais governadas por hábitos
naturais que nada mais são do que as próprias leis da física.
Figura 3 – A semiose é um processo de transmissão de informação que
parte de um emissor (Od, Objeto dinâmico) e chega ao receptor (Id,
Interpretante dinâmico) depois de ser codificado pelo signo (S) em seus
aspectos internos, o objeto imediato (Oi) e o interpretante imediato (Ii).
Já em sistemas inteligentes complexos e hipersensíveis às condições iniciais, como é o caso de mentes humanas, os estados internos do
signo (Oi e Ii) se descolam da causalidade estrita, produzindo imprevisibilidade e criatividade (PRIGOGINE, 1996). Ao invés das leis estritas da
física fundamentando os processos, temos hábitos mentais falíveis e flexíveis, como as hipóteses, crenças, conjecturas e expectativas futuras. E justamente por isso podem errar, podem ser surpreendidos por novidades
imprevistas, podem alucinar (SETH, 2021) e produzir ficções sem lastro
na realidade sensível. Só pode ser inteligente quem é livre para errar e sonhar com mundos possíveis. Até pouco tempo, não havia uma teoria que
permitisse compreender a dinâmica intrínseca aos sistemas semióticos
complexos, mas a inferência ativa proposta por Karl Friston (2009, 2010),
a partir das cadeias de Markov, permite avançar conjecturas produtivas.
84
Comunicação, tecnologias digitais e IA
O princípio da energia livre e a inferência ativa
O princípio da energia livre (PFE) foi originalmente proposto
como uma explicação de como as propriedades de certos tipos de sistemas são mantidas invariantes diante de variações contínuas nas relações desenvolvidas com seu ambiente. Como princípio, não pode ser
refutado e deve ser tratado como uma suposição metafísica. Mas isso
não significa que não deva ser considerada uma conjectura científica
legítima. Simplificando, postula que os sistemas autopoiéticos (MATURANA; VARELA, 2001) dedicam grande parte de seus recursos à
obtenção de informações que possam servir de evidência para um modelo sobre o meio ambiente. Os sistemas que sobrevivem ao longo do
tempo buscam continuamente evidências de que suas crenças sobre o
mundo externo são suficientemente corretas e, portanto, são “hábitos
mentais” que merecem ser preservados. Friston chama esse processo
de busca de inferência ativa, e sua semelhança com a inferência abdutiva de Peirce é evidente (BENI; PIETARINEN, 2021).
Conforme observado por Ramstead et al. (2020), a partir das
contribuições de Friston, as mantas de Markov podem ser interpretadas semanticamente assumindo que os estados sensoriais são representações significativas da realidade. Nesse caso, os estados ativos devem
ser considerados interpretações dinâmicas do que é representado. O
sistema, agora renomeado como “manta de Friston”, exibe muitas propriedades que são encontradas na definição de um signo. O sistema se
comporta como se estivesse escalando uma distribuição de probabilidade de estado para os estados menos prováveis. Esse comportamento
indica que a trajetória do sistema gravita em torno de um estado estacionário no espaço de fase, que é o que o mantém afastado do equilíbrio
termodinâmico. É isso o que os símbolos fazem ao internalizar informações por meio dos ícones, conectando-se fisicamente ao ambiente por
meio de índices e se auto-organizando a partir de propósitos por meio
do planejamento diagramático das ações futuras, sempre tendo em vista
o propósito da permanência e da seleção de interpretantes estéticos gerais – os nossos sentimentos lógicos (ROMANINI, 2018).
Nessa dinâmica delineada pela inferência ativa, supõe-se que
a energia livre do sistema, interpretada por Friston como medida da
85
SEÇÃO 2
complexidade de sua estrutura, forneça uma medida da rigidez da
crença que o sistema adquiriu em sua interação com o meio. Com a
ocorrência do acaso afetando as tendências do sistema, essa rigidez
é um fator negativo para sua permanência, por isso precisa ser reduzida. Crenças mais amplas e flexíveis são menos específicas, por isso
são mais bem adaptadas a quaisquer surpresas que possam ser percebidas em interações futuras onde o acaso desempenha um papel. Ao
minimizar sua energia livre, o sistema cria um modelo de mundo mais
flexível, consequentemente aumentando sua adaptabilidade no longo
prazo. Assim como na definição de símbolo de Peirce, o essere in futuro é a essência desse processo, como explicam Beni; Pietarinen (2021):
As fronteiras dos organismos caracterizados como
mantas de Markov – ou melhor, sua interpretação
realista como mantas de Friston – têm uma forma
marcadamente peirciana, irredutivelmente triádica. A própria fronteira é um mediador entre os estados externos e internos do agente. Ele fornece a
maneira como a informação flui dos estados externos para os internos, com as mudanças resultantes
no sistema de “crenças” dos agentes a respeito de
suas hipóteses, que, como Peirce observa, são aceitas “em provação” (CP 6.525), ou seja, em o que as
mudanças externas podem vir a ser no futuro.7
Conclusão
A semiose é um outro nome para comunicação. Os modelos
funcionalistas e matemáticos usados para descrever a transmissão da
7 The boundaries of organisms characterized as Markov blankets - or rather their realist interpretation as
Friston blankets - have a markedly Peircean, irreducibly triadic form. The boundary itself is a mediator
between the agent’s external and internal states. It provides the form of how information flows from
external to internal states, with the resulting changes in the ‘belief’ system of the agents concerning its
hypotheses, which as Peirce notes are accepted “on probation” (CP 6.525, 1913), namely on what the
external changes may turn out to be in the future.
86
Comunicação, tecnologias digitais e IA
informação de um emissor para um receptor por meio de uma mensagem que circula num canal sujeito a flutuações ruidosas capturam os
aspectos da comunicação que atentem aos propósitos do funcionalismo. A inteligência, seja ela natural ou artificial, depende dessa transmissão de informação por meio de símbolos e sinais codificados, mas
enfatiza os elementos qualitativos, icônicos, de primeiridade. Os limites observados nos paradigmas simbólico e conexionista na pesquisa
por inteligência artificial abrem caminho para o desenvolvimento de
um paradigma semiótico que parta de uma reflexão sobre a ontologia
dos processos comunicacionais.
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88
Os impactos da Inteligência
Artificial e dos Sistemas de
Recomendação na comunicação
em Redes Sociais
Diogo Cortiz
Introdução
A Inteligência Artificial (IA) é uma área de conhecimento que
está passando por um pico de desenvolvimento e transformando diferentes áreas da sociedade. Apesar de muitas pessoas se referirem à
IA como uma tecnologia, eu prefiro tratá-la como uma área de conhecimento que surge em paralelo com a computação. E explico o meu
motivo. Hoje, a IA se materializa de tantas diferentes formas e modalidades que fica difícil defini-la com apenas uma e singular tecnologia.
Posso dar alguns exemplos. Existem sistemas que fazem tradução a partir de textos, plataformas que fazem o reconhecimento
facial usando imagens ou então modelos que são capazes de prever
o valor de uma ação ao processar dados financeiros. O que todos eles
têm em comum? Talvez somente o fato de serem chamados de IA,
porque ao analisarmos sua anatomia percebemos que são arquiteturas, modelos e dados totalmente diferentes.
89
SEÇÃO 2
Eu pretendo discutir, neste trabalho, o impacto da IA na comunicação, com um recorte específico na comunicação digital. A história nos mostra que as novas tecnologias modificam e influenciam
o processo comunicacional. Foi assim com o surgimento da prensa
móvel de Gutenberg, o rádio, a televisão, a internet e, mais recentemente, o smartphone. No entanto, estamos acompanhando a emergência de um fenômeno interessante com a expansão do uso da IA na
comunicação, principalmente com o uso de modelos específicos que
apresentam um maior controle do fluxo informacional, muitas vezes
sem transparência e supervisão humana.
Sundar (2020) cita que a IA se torna parte integrante da comunicação mediada conforme as novas tecnologias de mídias e comunicação incorporam mais modelos de aprendizado de máquina. Ele
defende ainda que os estudos de mídias devem levar em conta o fato
de que cada vez mais um agente inteligente está mediando o conteúdo
e que é um risco assumir que as mídias são apenas canais entre emissores e receptores humanos.
As plataformas de mídias sociais inauguraram um novo paradigma na forma em como o usuário interage e consome conteúdo quando
implementaram modelos de IA em seus serviços. De uma forma mais específica, estou me referindo principalmente aos Sistemas de Recomendação, um tipo de aplicação de IA que traça um perfil dos usuários para
fazer indicação de produtos e serviços. Hoje, quase todas as plataformas
deixaram em segundo plano o feed cronológico – aquele em que as postagens aparecem de acordo com o horário – e adotaram esse tipo de sistema
para personalizar a entrega de conteúdo para cada um dos seus usuários.
Desta maneira, as plataformas buscam melhorar a experiência
de uso e maximizar o engajamento dos usuários ao supor que estão
selecionando, a partir de uma tormenta de conteúdos postados diariamente, aqueles com maior probabilidade de os usuários gostarem.
A proposta é que as plataformas atuem como um curador entre tudo o
que é produzido e consumido no meio digital.
É neste recorte dos sistemas de recomendação que iremos
aprofundar a discussão neste trabalho, no entanto é importante
90
Comunicação, tecnologias digitais e IA
esclarecer que a IA está presente também em outros processos na
comunicação digital. Um exemplo são os sistemas de moderação,
que utilizam técnicas sofisticadas de IA para auxiliar as empresas
na identificação e remoção de conteúdo que violam os termos de
uso. Ela pode ser uma estratégia para lidar com o alto volume de
dados, mas também são sensíveis do ponto de vista ético (CORTIZ;
ZUBIAGA, 2021).
Outras aplicações de IA se popularizaram recentemente na
web. Os chatbots, assistentes pessoais, sistemas de coautoria e modelos generativos que criam imagens e textos são apenas alguns dos
exemplos. A IA se insere no processo de interação e comunicação, no
dia a dia das pessoas, que interagem com e por meio dessas ferramentas para abrirem novas possibilidades. Neste capítulo, discutiremos
sobre os diferentes modos em como a IA se entrelaça com o processo
comunicacional digital e abordaremos os desafios éticos e de governança deste cenário complexo.
Conceitualização
Para facilitar a discussão, precisamos buscar uma contextualização, ainda que mínima, do papel da IA na comunicação. A partir
da análise do tipo de interação dos usuários com a IA, podemos especular sobre algumas dimensões possíveis que nos auxiliem a classificar os diferentes tipos de sistemas de IA que agem no processo
comunicacional.
É importante entendermos que as tecnologias que usam IA,
diferente de tantas outras, estão substituindo e aumentando o potencial dos interlocutores humanos. A IA não é apenas um meio para o
transporte da mensagem, mas tem o potencial de alterar o conteúdo e
o resultado do processo comunicacional.
Uma estratégia para tentar organizar o papel da IA na comunicação é se investigar suas duas principais dimensões: a sua influência
no processo comunicativo e a natureza da comunicação (SUNDAR;
LEE, 2022), conforme descrito na tabela 1.
91
SEÇÃO 2
Tabela 1 – Classificação do envolvimento da IA na comunicação
(SUNDAR; LEE, 2022)
Massa (Um-para-muitos)
Interpessoal
(Um-para-um)
Comunicador
IA Criadora
(Virtual influencer,
Repórter robô etc.)
IA Conversacional
(Chatbot, Assistentes
pessoais, etc,)
Mediador
IA Curadora
(Sistemas de recomendação,
Moderação de conteúdo)
IA Coautora
(Autocomplete,
Autocorreção)
A primeira dimensão trata do processo comunicativo, ou seja,
qual é o grau de envolvimento da IA neste fluxo. A IA poderá assumir
um papel apenas de Moderador (Mediador), selecionando e priorizando as informações entregues para o usuário, ou de Comunicador,
com mais agência, criando conteúdos e agindo como um interlocutor.
A segunda dimensão opera na natureza da comunicação. Neste caso,
a IA poderá desempenhar papel em uma comunicação de Massa (Um-para-muitos) ou Interpessoal (Um-para-um).
As aplicações específicas de IA, por sua vez, estão localizadas
no encontro entre essas duas dimensões. Por exemplo, um chatbot
está no quadrante Comunicador e Interpessoal, por ser aquele sistema com maior agência, mas cuja natureza de comunicação é de um-para-um, entre a IA e o usuário interlocutor. Um Sistema de Recomendação, por sua vez, está no quadrante de Mediador e Massa, por
ser aquele modelo que irá escolher os conteúdos para todos os usuários de uma plataforma.
Hoje, existem sistemas, aplicações e modelos de IA comerciais
em cada um dos quadrantes. Não se trata, portanto, de um quadro
especulativo, porém neste trabalho seria inviável abordar todos os
tipos de IA existentes no processo comunicacional. Neste sentido, o
escopo será focado em entender como a IA pode atuar como uma mediadora no processo comunicacional, suas potencialidades e desafios
de governança, especialmente no caso dos sistemas de recomendação
utilizados nas redes sociais.
92
Comunicação, tecnologias digitais e IA
Sistemas de Recomendação
A enxurrada de conteúdos gerados e postados todos os dias
na web demonstra a complexidade e, contradição das redes: ao mesmo tempo em que se democratizou a criação de conteúdo, como fazer
para que os usuários naveguem nessa pilha de conteúdos e descubram
aquilo que é de valor para eles?
Os Sistemas de Recomendação se tornaram populares no
mundo digital por serem ferramentas efetivas para tratar a imensa – e
crescente – quantidade de conteúdos disponíveis em diferentes fontes
e formatos. Esses sistemas são capazes de inferir as preferências das
pessoas e sugerir os conteúdos com maior probabilidade de satisfazerem as necessidades de cada um dos usuários.
Esse tipo de sistema ganhou tração com a popularização da
internet e o amadurecimento do mercado eletrônico. Um dos casos de
sucesso mais importantes para a área foi o da Amazon.com, que, no
fim dos anos 1990 personalizou a experiência de compra on-line ao
oferecer itens relacionados para cada cliente. A Amazon aumentou
a sua receita ao mesmo tempo que ofereceu uma experiência satisfatória no uso de sua plataforma. Os usuários eram levados a descobrir
novos produtos de uma forma natural e sem fricções na interação.
Este tipo de abordagem ficou conhecida como “Filtragem Colaborativa baseada em Itens” e utilizava uma técnica para prever as
preferências de um usuário e encontrar os itens que ele teria uma probabilidade maior de gostar (SMITH; LINDDEN, 2017). A ideia se popularizou e outras plataformas on-line passaram a adotar estratégias
similares em seus serviços.
Em 2010, o YouTube era a maior comunidade de vídeos on-line do mundo, quando relatou estar utilizando sistemas de recomendação para personalizar a entrega de vídeos de acordo com as
atividades dos usuários no site. Na época, apesar dos modelos não serem construídos com técnicas avançadas de IA, os resultados já eram
promissores. Pesquisadores da própria empresa reportaram que as
recomendações respondiam por cerca de 60% de todos os cliques na
home page (DAVIDSON et al., 2010).
93
SEÇÃO 2
Antes disso, o Google já havia implementado algoritmos de recomendação e personalização em seu principal produto: o buscador.
O sucesso inicial do Google foi conseguir organizar e entregar para os
usuários os conteúdos que eles estavam procurando na internet, mas
o algoritmo original não levava em consideração quem estava fazendo
a busca. Se duas pessoas pesquisassem por uma mesma palavra-chave, o resultado seria igual.
Assim como a Amazon, o Google percebeu que poderia personalizar ainda mais a experiência de seus usuários se entregasse os
resultados das pesquisas com base no perfil, interesse, localização e
outros fatores. Assim passou a adotar algoritmos de recomendação
e personalização em seu buscador, criando uma espécie de “filtro
bolha” ou “filtro invisível”, um fenômeno em que cada usuário passa a receber resultados diferentes ainda que a pesquisa seja igual
(PARISER, 2012).
Com o avanço da IA, uma quantidade maior de dados disponíveis e mais capacidade de processamento, os sistemas de recomendação passaram por um salto de desenvolvimento nos últimos anos, se
tornando cada vez mais assertivos por utilizar dados mais refinados
sobre o perfil e, comportamento do usuário. A informação que é distribuída para os usuários agora passa por uma curadoria algorítmica.
Um grupo de pesquisadores (ROBERTSON; LAZER; WILSON, 2018) auditou como o Google montava a página de resultados
para buscas sobre assuntos políticos durante a posse do ex-presidente
Donald Trump. O resultado da pesquisa revelou haver uma diferença
significativa na personalização dos resultados por tipo de consulta,
características do usuário e data.
Um ponto que chama atenção neste estudo é o fato de os pesquisadores terem identificado que a personalização era mais alta para
usuários que utilizavam mais produtos do Google (Google Docs, Google Drive e, particularmente, Google Maps), reforçando, assim, a posição de que os sistemas atuais utilizam muitos sinais sobre o nosso
comportamento, muitas vezes sem que tenhamos conhecimento explícito sobre isto.
94
Comunicação, tecnologias digitais e IA
Outro estudo exploratório (BAKER, 2018) investigou como o
buscador do Google influencia o processo criativo de diretores de artes e redatores em campanhas de publicidade. Os resultados mostram
que enquanto o buscador serve como um mecanismo eficiente para
acessar conteúdos digitais, a capacidade de personalização na entrega
de resultados limita os usuários a terem exposição a conteúdos mais
diversificados, o que impacta a produção de novas ideias.
Desta maneira, percebemos que os sistemas de recomendação
atuam como curadores e moderadores no processo de comunicação
em massa, mas com uma característica particular ao ajustar o seu papel para cada pessoa individualmente. Não se trata de um sistema em
que a moderação se dá a partir apenas do conteúdo, independente do
receptor da mensagem. O cenário atual, pelo contrário, foca na perspectiva dos usuários. Os sistemas utilizam algoritmos e modelos de IA
para entender e categorizar atributos subjetivos dos usuários, como
suas preferências, gostos, personalidades e emoções, para então decidir qual conteúdo será recomendado para cada usuário. É uma moderação em massa dos conteúdos, mas personalizada para as pessoas.
Essa configuração tem potencial de influenciar a decisão das
pessoas ao limitar quais conteúdos as pessoas terão acesso. É o sistema que mergulha no balde transbordando de informações para selecionar as mais apropriadas para cada um. Os usuários são expostos
a um catálogo de informações e conteúdos específicos, muitas vezes
sem muita diversidade, como resultado de uma curadoria maquínica
que maximiza o valor da sua entrega com base no que o sistema acha
que sabe sobre cada um.
Em um cenário em que somos rodeados por sistemas de recomendação, o poder de decisão das pessoas parece se limitar por
uma imposição da própria máquina, uma vez que o usuário não sabe
o porquê está recebendo tais recomendações e muito menos quais informações foram ocultadas. O usuário não sabe que não sabe, porque
a máquina não deixa. E essa exposição a um universo informacional
moderado e controlado tem potencial para influenciar as percepções
e decisões da humanidade.
95
SEÇÃO 2
Sistemas de Recomendação, Decisões e Comportamentos
O processo decisório é complexo, sensível e multifacetado. Como
disse Eric J. Johson, um dos maiores especialistas sobre o assunto: “É
uma ilusão, realmente, achar que sozinho determinamos o que escolhemos (JOHNSON, 2022, p. 1 – tradução nossa)”. De fato, sabemos há algum tempo que a decisão e escolha são influenciadas por muitos fatores,
principalmente fatores internos, como nossos vieses cognitivos e processos ocultos. Contudo, o autor vai além e chama atenção para o próprio
ambiente em que estamos inseridos como um mecanismo de influência.
De acordo com Johnson, a maneira como as informações e opções são mostradas para as pessoas – o que ele chamou de arquitetura
de escolha – influencia a maneira como escolhemos o que querer. E isso
pode acontecer tanto em um ambiente físico como no universo digital.
Por exemplo, se um determinado portal de e-commerce disponibiliza
um produto como destaque, essa arquitetura de escolha possivelmente
fará com que os usuários deem mais atenção para esse item, o que resultará em mais vendas. Esta é a técnica mais comum e presente no dia a
dia, mas existem um conjunto robusto de estratégias e abordagens para
aumentar a probabilidade de um determinado tipo de comportamento.
Nos últimos anos, o conceito de nudge ficou conhecido como
uma ferramenta para incentivar as pessoas a tomarem melhores decisões sem impor um comportamento específico. O termo se popularizou a partir do livro de mesmo nome (THALER; SUNSTEIN, 2008)
e se baseia em dois princípios: arquitetura de escolha e paternalismo
libertário. A arquitetura de escolha é o ambiente no qual uma pessoa está inserida, e as características desse espaço que influenciam a
sua decisão são chamadas de nudges. Um formulário on-line pode ser
considerado uma arquitetura de escolha, e o design de deixar uma opção específica predeterminada como padrão, um nudge. É importante destacar que os autores defendem que o nudge não deve forçar as
pessoas a tomarem uma decisão específica, mas apenas incentivá-las.
Isto nos leva ao princípio do paternalismo libertário, uma
ideia de possibilidade e legitimidade de que instituições privadas e
públicas afetem o comportamento das pessoas ao mesmo tempo em
96
Comunicação, tecnologias digitais e IA
que se respeite a liberdade de escolha. O conceito é que o nudge possa
ser utilizado para auxiliar as pessoas a tomarem melhores decisões, benéficas para elas e a sociedade, sem utilizar nenhum tipo de imposição.
Um exemplo de nudge pode ser as opções padrões (default)
colocadas em formulários de serviços públicos. É conhecido que países que colocam como padrão a opção de doação de órgãos, durante
a renovação da habilitação – ou seja, os usuários devem deliberadamente marcar uma opção no formulário para declarar que não desejam ser doadores de órgão – são aqueles que conseguem aumentar
a sua taxa de doadores. Uma pequena mudança na forma como o
formulário é construído – a arquitetura de escolha – pode conduzir a
população para um comportamento pró-social.
No universo digital, somos bombardeados por telas, interfaces
e formulários que podem ser customizados para funcionarem como
uma arquitetura de escolha e influenciar o nosso comportamento.
Neste sentido, surge o conceito de digital nudge, entendido como o
“uso de elementos de design de interface do usuário para orientar o
comportamento das pessoas em ambientes de escolha digital” (WEINMANN; SCHNEIDER; BROCKE, 2016).
Um dos exemplos citados pelos autores é o sistema de pagamento Square, que coloca a gorjeta como funcionalidade padrão. O
usuário que não quiser pagá-la deverá selecionar a opção “sem gorjeta” na tela de pagamento, caso contrário o sistema irá assumir que a
pessoa não se opõe ao pagamento. Essa pequena mudança na interface causou um efeito nudge significativo e aumentou as gorjetas em
lugares em que isso não era comum.
O desenho da interface pode influenciar as escolhas das pessoas em uma escala sem precedentes. No caso da Square, o nudge
foi implementado de maneira deliberada na própria interface. Porém,
esse efeito de influência pode acontecer também a partir dos conteúdos que são exibidos. Nesse caso, os sistemas de recomendação ficam
responsáveis por sugestionar os usuários ao exibir conteúdos que foram selecionados para uma finalidade específica.
Um estudo recente (JESSE; JANNACH, 2021) propôs uma revisão sistemática de literatura sobre pesquisas que tenham relatado a
97
SEÇÃO 2
análise de nudges em sistemas de recomendação. Os pesquisadores
identificaram que pelo menos 18 mecanismos diferentes de nudges
foram implementados nos sistemas pesquisados. Entre eles, destaco
o Efeito Chamariz (Decoy Effect) – quando combinamos duas opções
para fazer uma terceira parecer mais vantajosa – e o uso de apoios
visuais para aumentar a saliência, além do enquadramento e efeito de
ordem. Eles argumentaram que os resultados da eficácia dos mecanismos de nudging são promissores, posto que o impacto observado
no comportamento dos usuários foi significativo nos estudos.
Os sistemas de recomendação atuam como fábricas de nudges
digitais em tempo real. Assim emerge um cenário de interação com
a tecnologia que pode resultar em efeitos cognitivos, antropológicos
e sociológicos ainda desconhecidos. O ponto sensível deste debate é
que os sistemas de recomendação não atuam apenas como um nudge
isolado, mas como uma sequência de nudges em cascata, no qual o
anterior pode trazer consequências para o posterior.
Um sistema de recomendação funciona mostrando opções
para os usuários de acordo com a sua preferência. Mas para entender as preferências do usuário, o sistema precisa coletar informações
sobre o seu comportamento. Ao fazer uma escolha a partir do que foi
recomendado pelo sistema, o usuário então gera novos dados que serão utilizados para recomendações futuras. No entanto, esses novos
dados são de escolhas influenciadas por recomendações anteriores.
Parece então existir um círculo vicioso no qual um modelo de
IA aprende um novo padrão de comportamento do usuário influenciado pelo próprio sistema. O jornalista e especialista em tecnologia
Jacob Ward chama esse fenômeno de The Loop (WARD, 2022) e alerta para o perigo de estarmos usando as mesmas técnicas imprecisas
de decisões – atalhos mentais, vieses e processos ocultos – ao criar as
tecnologias que depois tomarão decisões por nós.
Esta situação já seria sensível se o sistema utilizasse apenas
dados comportamentais dos usuários, ou seja, escolhas feitas nas plataformas em relação apenas ao conteúdo, assim como a Amazon fez
na década de 1990. No entanto, tudo fica ainda mais frágil e perigoso
quando os modelos de IA, cada vez mais sofisticados, buscam a partir
98
Comunicação, tecnologias digitais e IA
de uma coleta massiva de dados inferir aspectos subjetivos das pessoas – preferências, personalidades e emoções.
Hoje, as grandes plataformas coletam uma quantidade imensa
e desconhecida de dados sobre nossas interações. Detalhes, como interagimos na tela, o tempo que supostamente olhamos para um conteúdo, horários e locais de acesso, são apenas alguns exemplos. Todos
esses sinais são combinados em grandes modelos de IA com o propósito de nos conhecer melhor e nossa subjetividade. O problema, no
entanto, é que esses modelos são verdadeiras caixas-pretas que estão
tomando decisões por nós sem que possamos entendê-las, principalmente no ambiente das redes sociais.
Sistemas de Recomendação nas Redes Sociais
Esse tipo de recurso está organizando todo o fluxo informacional no mundo digital. Hoje, a maioria das redes sociais usam sistemas de recomendação para decidir o que será entregue para cada
usuário, mudando a lógica do jogo comunicacional. Antes o feed das
plataformas respeitava a ordem cronológica ao mostrar os conteúdos
mais recentes em primeiro lugar, mas o crescimento do volume de
conteúdos postados diariamente fez as empresas adotarem sistemas
que recomendam os mais indicados para cada usuário.
Estamos sendo influenciados pelos algoritmos, desde o primeiro momento, ao entrar em uma rede social. Os conteúdos entregues
são cuidadosamente selecionados pelos sistemas de recomendação
com base no que eles acham que sabem sobre nós. No Instagram, por
exemplo, o sistema ordena em nosso feed os conteúdos das pessoas
que seguimos, baseando-se em uma lógica de preferência que não é
transparente. Ninguém sabe ao certo o porquê recebe a postagem de
um colega, mas não a de um parente, por exemplo. A falta de explicação é um desafio de governança que causa até mesmo uma queda de
confiança dos usuários em relação aos serviços.
No caso de algumas redes sociais, como o Instagram, Facebook, Twitter e LinkedIn, esses sistemas agem como um moderador
de conteúdo de segundo grau, porque a primeira etapa de curadoria
99
SEÇÃO 2
acontece quando o usuário decide quais perfis irá seguir. O valor das
redes sociais sempre esteve na formação de um grafo social, o processo em que um usuário passa a se conectar ao outro, formando uma
rede de conexões entre pessoas. Porém, essa lógica está mudando com
o aparecimento de novas plataformas que apostam mais em algoritmos de IA para a curadoria e entrega de conteúdos.
O TikTok é uma plataforma de vídeos curtos que se tornou um
fenômeno mundial a partir de 2020. Um de seus diferenciais está no
algoritmo de recomendação que integra aspectos de redes sociais e
análises de conteúdos e perfis para exibir os vídeos mais assertivos
para cada pessoa. Diferente das outras plataformas, que se baseiam
no grafo social, o TikTok aposta em seus modelos de IA para oferecer
a funcionalidade “For You”, um feed algoritmicamente personalizado
com base nos conteúdos. Não é por menos que a própria plataforma
se assume como um aplicativo de entretenimento e não como uma
rede social convencional.
O valor da plataforma deixa o grafo social e vai para o sistema
de recomendação. Quem um usuário segue não é sinal determinante
para que um conteúdo apareça no seu feed «For You». A maior parte
dos conteúdos consumidos são indicações do algoritmo, que aprende
o perfil do usuário a partir de suas atividades e engajamento, como
tempo de visualização, comentários, likes, compartilhamentos, entre
outros. Não sabemos ao certo todos os dados que a plataforma coleta
sobre os usuários para que o sistema aprenda a fazer recomendações,
mas sabemos que o TikTok tem um dos ambientes mais poderosos
para entender o perfil das pessoas e indicar conteúdos com um nível
de assertividade surpreendente.
Um estudo na área de neurociência (SU et al., 2021) mostrou
que os vídeos recomendados pelo algoritmo do TikTok são responsáveis por ativar as áreas do cérebro relacionadas à liberação de dopamina e sistemas de recompensa. Os autores argumentam que os
resultados da pesquisa sugerem que os modelos de IA são capazes
de descobrir os conteúdos que regulam a ativação de áreas específicas do cérebro, por isso conseguem reforçar o comportamento de
assistir cada vez mais vídeos na plataforma. É como se os Sistemas
100
Comunicação, tecnologias digitais e IA
de Recomendação baseados em IA conseguissem identificar os estímulos mais recompensadores para cada pessoa.
O design do TikTok com seus algoritmos e recomendações também traz desafios para quem estuda o processo comunicacional digital.
Isso acontece porque o fluxo de dados não é definido pela arquitetura
da rede social, mas por uma IA que cria uma espécie de rede opaca
de conteúdos recomendados para cada usuário da plataforma. É muito difícil saber quais vídeos foram entregues para cada pessoa e quais
usuários receberam cada vídeo. O fluxo informacional é determinado
por um modelo que supostamente conhece todos muito bem, mas que
não deixa transparecer o porquê entrega cada um dos seus vídeos.
O mecanismo de funcionamento do TikTok também subverte a dinâmica de produção e difusão de conteúdos. Nas redes sociais
tradicionais, como Instagram, Facebook e Twitter, a quantidade de
seguidores de um usuário é um fator determinante para o alcance de
uma postagem. Grandes influenciadores falam com muito mais pessoas do que usuários com poucos seguidores. É o efeito de rede e o
fenômeno do “vencedor leva tudo”. No TikTok, entretanto, perfis com
poucos seguidores e até mesmo contas novas têm a possibilidade de
viralizar conteúdos para milhares de pessoas porque a entrega é feita
por um algoritmo que leva em consideração a análise do conteúdo e
não exclusivamente o grafo social.
Se por um lado esse mecanismo parece democratizar a distribuição de conteúdos ao dar mais potencial de viralização, por outro há
um risco iminente de que usuários mal-intencionados utilizem essa
funcionalidade para impulsionar o espalhamento de conteúdos danosos e mensagens falsas que serão entregues de forma silenciosa para
milhares de pessoas.
Isso muda toda a dinâmica social e impõem novos desafios de
governança na área de comunicação e políticas públicas. As redes sociais não são mais apenas espaços secundários da realidade, mas são
os ambientes onde se constitui uma nova esfera pública. Para se ter
ideia da dimensão do desafio, uma pesquisa realizada pela Kapersky,
em parceria com a empresa de pesquisa Cobra, descobriu que 7 a cada
10 brasileiros se informam pelas redes sociais (KAPERSKY, 2021).
101
SEÇÃO 2
As pessoas estão se informando sobre temas sensíveis, como
saúde e política, em um espaço altamente controlado por algoritmos
opacos capazes de influenciar comportamentos e a construção de novas narrativas de entendimento do mundo. A internet e a web abriram
espaços, as redes sociais potencializaram novas formas de comunicação e agora os algoritmos controlam o fluxo informacional.
Considerações finais
A IA passa por um momento propício de avanço por muitos
motivos, como o aumento da capacidade de processamento das GPUs,
a grande quantidade de dados disponíveis e o investimento em pesquisa de novos modelos. Diferentes tecnologias de IA começam a ser
adotadas de forma comercial em aplicações presentes nos mais variados aspectos de nossa vida cotidiana. Uma das aplicações que a IA
impulsionou foi o desenvolvimento dos sistemas de recomendações,
que usam uma grande quantidade de dados e modelos mais robustos
para fazer indicações mais assertivas de conteúdos.
Os sistemas de recomendação apareceram com mais força no
mercado na década de 1990, quando se descobriu que eles poderiam
auxiliar os consumidores a descobrirem novos produtos em lojas on-line. Na época, os sistemas não utilizavam necessariamente modelos
de IA para fazer recomendação e se baseavam em algoritmos mais simples, que consumiam menos recursos computacionais. Ainda assim, as
indicações feitas pelo sistema aumentaram as vendas e o faturamento
do ecossistema de e-commerce, o que contribuiu para reforçar a ideia
de que a estratégia poderia ser utilizada em outros segmentos.
Não demorou para que outros serviços digitais começassem a
explorar o uso dos sistemas de recomendações como uma alternativa para lidar com a enxurrada de dados e conteúdos gerados diariamente. Os serviços de streaming talvez tenham sido os precursores
na adoção dos sistemas de recomendação fora do contexto de e-commerce. YouTube e Netflix, por exemplo, utilizam essas funcionalidades para tentar lidar com o paradoxo da escolha em um ambiente com
excesso de conteúdo.
102
Comunicação, tecnologias digitais e IA
As plataformas de redes sociais também notaram que os algoritmos poderiam auxiliar na montagem de feeds personalizados
para seus usuários, selecionando conteúdos com maior probabilidade de engajamento para cada pessoa. Houve então uma mudança
dos feed cronológicos, que exibiam os conteúdos na ordem de postagem, para os feeds mediados por algoritmos, em que o sistema determina o que será exibido de acordo com o conteúdo postado e as
preferências do usuário.
Agora estamos entrando em uma era ainda mais sensível. As
plataformas que estão surgindo não se baseiam mais no grafo social –
quem as pessoas seguem – para fazer a entrega de conteúdo. A aposta está no uso de modelos de IA sofisticados para criar sistemas de
recomendação que se tornam o coração da interação e comunicação
em rede. Hoje, são algoritmos opacos que controlam a circulação de
informações, o alcance e o engajamento que podem influenciar comportamentos e o entendimento do mundo.
O fluxo de informação se transformou em uma massa disforme de dados que já não flui mais livremente pela rede. Os sistemas
de recomendação com seus sofisticados modelos de IA são os protagonistas em decidir o que vale a pena ser visto e por quem. E a sensibilidade da situação fica ainda mais evidente quando notamos que
a maior parte desses algoritmos são propriedade de empresas de regiões específicas, tipicamente do Norte global, que operam camadas
invisíveis de influência no mundo todo.
Mas, pela primeira vez, os Estados Unidos perderam a sua
hegemonia. Durante décadas o país exerceu seu papel de influência
digital com empresas líderes que organizaram os dados disponíveis
e conectaram as pessoas no universo digital. Agora é o TikTok, uma
plataforma de uma empresa chinesa, que se propõe a criar inéditas
formas de interações e consumo de conteúdos. Isso está fazendo com
que as redes sociais, como é o caso do Instagram, invistam mais em
seus sistemas de recomendação. O cenário para o futuro é de uma comunicação cada vez menos baseada no grafo social e mais mediada por
algoritmos de IA. Precisamos investigar de perto como os usuários respondem a essas transformações e os riscos subjetivos para as pessoas.
103
SEÇÃO 2
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105
Semiótica do ensino digital
Massimo Leone
Eu, e milhares de outros neste país, como eu, estamos meio cozidos, porque nunca fomos autorizados a completar nossa escolaridade.
(Aravind Adiga, O tigre branco, 2008)
1. A centralidade semiótica do espaço no ensino.
O ensino on-line envolve uma semiótica do espaço significativamente diferente do ensino tradicional.1 Várias formas de ensino
à distância têm existido ao longo da história; pode-se sugerir que o
início da possibilidade de ensinar e aprender sem qualquer interação presencial coincidiu com o início da própria escrita; a invenção
dessa técnica e a extraordinária oportunidade de transcrever através
de uma forma gráfica o som e o significado de uma voz viva, também
1 A bibliografia crítica sobre o ensino on-line está se expandindo rapidamente, especialmente após a disseminação global do ensino à distância como consequência da pandemia. No entanto, ainda falta uma
reflexão “edusemiótica” adequada sobre o assunto, especialmente no que diz respeito à transformação
das espacialidades do ensino. Contribuições recentes incluem Smith; Rennie, 2019, Cleveland-Innes;
Randy Garrison, 2020, Reich, 2020 e Veletsianos 2020.
107
SEÇÃO 2
implicou na possibilidade de transmitir o conteúdo do ensino para
longe no espaço e no tempo.
Mais recentemente, muitos meios de comunicação modernos,
do serviço postal ao rádio, ampliaram o espectro do ensino à distância
com várias formas de institucionalização, desde os cursos de ensino
superior de rádio dos anos 50 até as universidades on-line de hoje.
Todas essas modalidades de ensino e aprendizagem à distância, entretanto, sempre foram consideradas como complementares e, de fato,
secundárias a um contexto mais tradicional envolvendo um ou mais
professores e um ou mais alunos compartilhando o mesmo tempo e
espaço. Esses dois elementos, que na verdade são duas dimensões – a
temporal e a espacial – devem sempre ser levados em conta ao falar
dos efeitos semióticos da educação on-line e, mais geralmente, da digitalização de qualquer atividade. De fato, é impróprio afirmar que
a digitalização funciona melhor com dois dos cinco sentidos, visão e
audição, ainda funciona imperfeitamente com o tato e o olfato, não
funciona de modo algum com o gosto e ainda luta com a propriocepção. Isto é apenas uma parte da verdade. De fato, o exame também
deve incluir tempo e espaço. A digitalização distorce profundamente
as dimensões temporais e espaciais nas quais as atividades humanas
normalmente acontecem.
Assim, no caso do ensino, o fato de professor e aluno compartilharem o mesmo espaço não é meramente incidental, mas faz deste
espaço um elemento semiótico inevitável e essencial na construção
do contexto comunicativo do ensino, bem como as condições de seu
enunciado, como diriam os semióticos. Ao contrário do tempo, aliás,
o espaço dificilmente pode ser pensado em termos puramente abstratos (embora, como será visto, até mesmo a abstração com a qual
a temporalidade do ensino pode ser imaginada é de certa forma uma
ilusão). Quando se diz que um professor compartilha o mesmo espaço físico que o aluno, os dois não são imaginados em um vácuo, mas
em um lugar, ou seja, são imaginados como cercados por um espaço
que já é material. O ensino pode “acontecer” em vários “lugares” e a
história tem registrado muitas variações na materialização física do
espaço abstrato do ensino em locais específicos, de ruas a praças, de
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Comunicação, tecnologias digitais e IA
conventos a selvas. A maioria das pessoas hoje provenientes de países
tecnologicamente avançados, no entanto, provavelmente imaginará o
ensino como inextricavelmente ligado à ideia e ao conceito de uma
sala de aula. Como professor, se eu mesmo me imagino lecionando,
tenho a tendência de me imaginar fazendo isso em uma sala de aula,
mesmo que minha primeira palestra universitária tenha realmente
acontecido em um cinema em Siena e eu tenha às vezes lecionado em
lugares alternativos, tais como prisões ou hospitais.
Uma sala de aula, entretanto, não deve ser pensada apenas
como um espaço físico com seus móveis estereotipados. Mais uma vez,
a maioria dos indivíduos contemporâneos provavelmente forneceria
sua sala de aula imaginária com uma escrivaninha, um quadro negro e
algumas mesas e cadeiras. Eles imaginariam a sala de aula como uma
sala quadrada, bem iluminada, com poucos objetos funcionais pendurados nas paredes, ou como um grande anfiteatro de madeira. Isto não
importa realmente; é irrelevante porque, do ponto de vista semiótico,
a semiótica espacial de uma cena de ensino não consiste na forma ou
tamanho da sala de aula; na qualidade e quantidade dos móveis nela
contidos; ou na tecnologia de ensino disponível – desde quadros pretos antigos até os mais recentes projetores. Isto não é essencial. É claro
que um professor pode estar ligado a alguns desses elementos e considerar que ele ou ela pode ensinar melhor se a sala de aula tiver uma
determinada forma e tamanho; se os móveis forem de um determinado tipo; se houver certa tecnologia disponível. Eu mesmo prefiro ministrar minhas aulas em uma pequena sala de aula com móveis básicos
e um quadro negro tradicional. No entanto, mais uma vez, analisando
o assunto em profundidade, isto não é de modo algum essencial. A dimensão espacial da sala de aula não é construída semioticamente e não
funciona essencialmente em virtude desses elementos.
2. Uma rede de atenção.
Uma sala de aula é feita de olhares. O espaço de ensino é composto através de olhares. Isto poderia ser dito ainda mais abstratamente, para levar em conta que a espacialidade do ensino pode tomar
109
SEÇÃO 2
forma mesmo quando não há olhares reais presentes, por exemplo,
no caso de um curso para estudantes cegos. Mesmo no caso de alunos
cegos, o espaço da sala de aula é composto por olhares, porque o que
é fundamental nesses olhares que constroem a semiótica da espacialidade do ensino não é a visão; os olhos do professor, assim como os dos
alunos, são meramente a encarnação de um princípio mais abstrato
que sustenta o funcionamento dos olhares que constroem o espaço,
e esse princípio é na verdade a direcionalidade. A direcionalidade é
o elemento-chave subjacente à constituição do lugar em que o ensino
ocorre. Na verdade, uma sala de aula nada mais é do que a encarnação física, através de uma série de figuras (cadeiras, mesas, quadros
negros etc.), de uma rede de direcionalidade. As figuras podem mudar
(alunos sentados no chão, professores em pé sobre uma mesa como
no filme A sociedade do poeta morto, projetores em vez de quadros
negros, etc., mas a direcionalidade orientada de uma sala de aula nada
mais é do que uma encarnação física de uma rede de direcionalidade),
mas a direcionalidade orientada que essas figuras manifestam deve
estar presente. Em resumo, e essencialmente, a espacialidade do ensino é constituída pelo fato de que uma mente humana ou, mais frequentemente, várias mentes humanas, dirigem-se através de seus corpos e, portanto, também através de seus sentidos de audição e visão,
em direção a uma fonte comum de conhecimento. O espaço de ensino
resulta de uma convergência física de atenções encarnadas. Na rede de
olhares – uma rede de direcionalidade – que compõem a espacialidade
do ensino, subsiste uma assimetria espacial abstrata mesmo quando
o professor está em silêncio, mesmo quando ele ainda não falou ou
terminou de falar; além disso, a rede subsiste mesmo quando o professor não está mais lá, quando os alunos já saíram. Ao entrar numa
sala de aula universitária vazia, muitas vezes, se tem a impressão de
que palavras de ensino potenciais continuam pairando no ar, assim
como sempre se tem a sensação de que a tensão sublime do desejo de
conhecimento que está por trás da rede de ensino ainda está presente,
inervando o espaço da sala de aula, mesmo quando ela está deserta.
Também deve ser enfatizado que a funcionalidade frequentemente se torna o terreno para uma relação semiótica: o guarda-chuva é
110
Comunicação, tecnologias digitais e IA
um objeto cuja morfologia deriva da necessidade de proteger o corpo
humano de agentes perigosos que se movem de acordo com a força
da gravidade (chuva, neve, granizo, mas também raios de sol na Ásia
e tomates em concertos fracassados ou com audiências hostis), mas
esta morfologia é então transformada no significante (ou representamen, para usar as palavras de Peirce) da própria função que a originou: um guarda-chuva se torna um sinal da necessidade de proteger-se de algo (a ponto de a superstição na Itália ver os guarda-chuvas
deixados abertos em casa como um mau presságio, como um sinal
do mal iminente contra o qual se deve proteger precisamente através
deste objeto). Da mesma forma, a sala de aula existe como um lugar
porque sua morfologia evoluiu ao longo do tempo para ser adaptada
espacialmente e sensorialmente à constituição efetiva daquela rede
de direcionalidade orientada que é, em última instância, o espaço do
ensino; no entanto, esta morfologia, na cultura em que tomou forma,
torna-se um sinal de sua função. Assim que se entra num espaço organizado como um lugar de ensino – ou seja, organizado como uma sala
de aula – imediatamente se tem a sensação de que este é um lugar de
ensino; que este espaço deve ser um espaço onde as mentes humanas,
através de seus corpos, são dirigidas para outra mente humana a fim
de permitir a transmissão sistemática do conhecimento, a passagem
da cultura de geração em geração, a constituição da memória não genética da humanidade.
3. A espacialidade da sala de aula como
criadora de papéis educacionais.
Mas há mais. Ao entrar em uma sala de aula, não se tem apenas a impressão de que o ensino e a aprendizagem acontecem ali. Ao
entrar nela, também se tem a sensação de que se fará pessoalmente
parte daquela rede, daquela rede de direcionalidade orientada, daquele lugar de olhares que funda a espacialidade do ensino. Isto acontece
não apenas com os alunos, mas também com os professores. Como
alunos, ao cruzar o limiar da sala de aula – um limiar que é simbólico,
mas também material físico e arquitetônico, que divide a sala de aula
111
SEÇÃO 2
do mundo exterior, por exemplo, do corredor – entra-se num espaço,
mas também num lugar, ou seja, um espaço tão física e semiologicamente arranjado que favorece a transformação dos corpos em corpos
para a aprendizagem, em corpos que se orientem de forma a facilitar
a passagem de informações do corpo do professor para o seu próprio
corpo; da mesma forma, então, atravessando o mesmo limiar, o professor vê sua pessoa completamente alterada; ele ou ela não é mais
um indivíduo; ele ou ela se torna um professor; pode ser sugerido que
um professor é sempre um professor, mesmo fora da sala de aula; e
que uma sala de aula não é realmente necessária para um indivíduo
se tornar um professor e agir como tal; isto parece ser evidente na frequente deformação profissional que faz com que os professores falem
como tal mesmo quando estão com amigos, em um tom semelhante a
uma palestra que às vezes pode ser realmente irritante. No entanto, se
esta deformação profissional existe, e com ela o tom irritante que dela
deriva, é precisamente porque ambas tomaram forma através do ensino, e foram criadas precisamente dentro da estrutura daquela rede
orientada de direcionalidade que é, em última análise, a espacialidade
do ensino. Em outras palavras, é verdade que se pode ser professor
fora da sala de aula, e que muitas vezes se é professor apesar disso,
mas a atitude profissional do professor é também uma consequência
da espacialidade em que é exercida.
4. A sala de aula como lugar sagrado
A ideia de que esta rede de direcionalidade orientada, de que
esta estrutura assimétrica de atenção pode “ocorrer sem ocorrer em
um lugar” é uma espécie de sonho idealista, implica no preconceito
de uma palavra que pode se tornar ensino, e educação, e memória, e
finalmente cultura, enquanto permanece inteiramente imaterial. Parece reproduzir, no campo da educação, o velho sonho de um sagrado
que permanece assim sem nenhuma relação com um lugar específico.
Mas existe um lugar sagrado sem um lugar sagrado? Em algumas das
mais influentes culturas religiosas da história da humanidade, não há.
Não há sacralidade católica sem espaço sagrado católico; sem lugares
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Comunicação, tecnologias digitais e IA
católicos. Mas isto também se aplica ao protestantismo, que foi capaz
de eliminar da religião humana a ideia de relíquia, de santidade, de
ícone, mas não a de lugar. Os protestantes também têm seus templos.
É impossível excluir a ideia de que a forma como muitas das
culturas fundamentais da história humana imaginaram o espaço de
sacralidade – como essencial e inextricavelmente relacionado à possibilidade de circunscrever certos lugares, à possibilidade de separar
o lugar do espaço sagrado do profano – o que influenciou profundamente as formas como essas mesmas culturas imaginaram e criaram a
espacialidade do ensino. Pode-se até sugerir que ambas as tendências,
uma certa forma de imaginar o sagrado como inseparável de um espaço circunscrito, um lugar sagrado, e uma certa forma de imaginar
o ensino acontecendo (tanto física quanto conceitualmente) em uma
sala de aula são na verdade manifestações da mesma dinâmica antropológica profundamente enraizada, uma das funções e resultados mais
fundamentais da qual é a possibilidade de conferir um papel espacial
aos seres humanos designados. É verdade que o sacerdote não é necessariamente aquele que pode acessar o espaço sagrado, mas o fato de
poder fazê-lo está essencialmente relacionado ao seu ser transubstanciado em uma pessoa diferente, em uma pessoa que não é mais simplesmente um indivíduo, mas que encarna uma função.
É por isso que talvez se deva sugerir que a existência de um limiar, que sendo um limiar é muitas vezes normativo – atravessando a
linha simbólica, mas também espacial, do qual só pode ocorrer em circunstâncias específicas – é na verdade fundamental para a criação de
uma rede de direcionalidade orientada, de uma estrutura de atenção,
ou seja, de ensino. O ensino precisa de uma sala de aula; mas a sala de
aula precisa de um limite, uma linha mais ou menos material que marque o início e o fim do círculo de ensino ou, pelo menos, o perímetro
além do qual um professor não deixa de ser professor, porque isso não
seria possível, mas deixa de agir como um só. A porta da sala de aula
que se fecha antes do início da aula é como as linhas que delimitam o
campo de futebol. Para ter um jogo adequado, essas linhas têm que
estar lá. Para ter um jogo educacional batesoniano adequado, com os
papéis apropriados de professor e aluno, a porta da sala de aula deve
113
SEÇÃO 2
estar fechada. Isto não é incompatível com as ideologias que defendem
a democratização do ensino. E, ao mesmo tempo, enfatizar a importância dessa porta não é de forma alguma conservadora. Aquelas vozes
que, especialmente a partir da segunda metade do século XX, proclamaram a necessidade ideológica de abrir a sala de aula para o mundo
exterior, e até promoveram a abolição de todas as linhas que circunscrevem seu lugar (uma tendência paralela àquela que também surgiu
nas religiões), interpretaram profundamente mal as ideias de abertura
e democratização; de fato, eram vozes ideologicamente nocivas; eles se
propunham abrir um lugar dissolvendo-o, mas ter acesso a um deserto
não é de forma alguma uma liberação; defender a democratização da
espacialidade do ensino não deveria significar a eliminação da porta ou
das paredes da sala de aula; ela é uma forma muito simplista e, de fato,
demagógica de interpretar o famoso “muro” no centro do álbum Pink
Floyd de mesmo nome.
Pelo contrário, uma educação democrática requer a construção de uma sala de aula suficientemente grande para acomodar a todos. Dissolver o perímetro simbólico da educação, que também é um
perímetro arquitetônico, na ilusão de um espaço de ensino que nunca
se torna um lugar, que se estende a toda a espacialidade imaginável
do mundo, é diluir essa rede de direções orientadas, essa estrutura de
atenções que é constitutiva tanto do ensino quanto da aprendizagem.
A educação precisa de salas de aula, assim como as religiões precisam
de templos, porque a função de transmitir a cultura de uma geração
para outra, de transformar a informação em novos conhecimentos e
o conhecimento em nova cultura, é tão delicada e, na verdade, tão sagrada quanto a função do sacerdote. A espacialidade material da sala
de aula é tão essencial para apoiar simbolicamente a formação delicada do papel do professor quanto a espacialidade material do templo
é para apoiar simbolicamente a frágil constituição de um papel que é
mais do que uma pessoa, e na verdade mais do que um indivíduo, uma
vez que assim como a última é chamada a conectar duas dimensões
que de outra forma seriam em sua maioria separadas e mutuamente
intocáveis – a da transcendência e a da imanência – também a primeira é chamada a presidir a igualmente transcendente passagem da
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Comunicação, tecnologias digitais e IA
cultura de geração em geração. A cultura é a transcendência humana
da natureza. A educação é o sacerdócio dessa transcendência. E a sala
de aula é seu templo.
5. Um templo digital de ensino? Da sala
de aula para a sala de classe
5.1 A intentio auctoris de sites de ensino on-line
Mas e quanto à possibilidade de um templo digital de ensino,
aprendizagem e educação? Um templo binário como esse pode realmente funcionar? E se não, quais são as razões subjacentes ao seu
fracasso? Dizer que o ensino on-line não tem espacialidade seria impreciso. Nada é sem espacialidade, incluindo o tempo, como a física
contemporânea sabe. A espacialidade do ensino on-line, entretanto,
é diferente da interação presencial entre professor e aluno. Isto soa
como um lugar-comum, mas somente se não for analisado minuciosamente em todos os seus componentes. Antes de tudo, o ensino
on-line também envolve um espaço físico. Professores e alunos não
se conectam a partir de um vácuo, mas de um espaço material, que
é inevitavelmente decorado com uma série de figuras, cada uma das
quais empresta uma nuança semiótica particular ao próprio espaço,
transformando-o assim em um espaço, um lugar com personalidade,
um papel espacial e, às vezes um ator espacial (se seguirmos a teoria
semiótica de Algirdas J. Greimas). Na maioria dos casos, especialmente durante a pandemia da covid-19, o lugar físico dos professores
e alunos tem sido um espaço privado, geralmente uma casa. Aqui a
famosa distinção formulada por Umberto Eco entre três tipos diferentes de intencionalidade, ou intencionalidade comunicativa, vem a
calhar. Este espaço físico doméstico de conexão é carregado, primeiro
de tudo, com uma intentio auctoris, ou seja, com o significado que o
próprio “autor” do espaço quer atribuir-lhe para que seja recebido por
seus observadores e “habitantes”, primeiro potencial e depois empírico. Aqui está a primeira diferença importante com o espaço da sala de
aula. Este espaço também é, em certo sentido, autoral. No entanto, o
115
SEÇÃO 2
autor é, em sua maioria, impessoal e coletivo. A forma e o mobiliário da
sala de aula são determinados por regulamentos estaduais e locais, regras
administrativas, exigências e iniciativas burocráticas, mais ou menos de
acordo com uma certa “moda” na arquitetura pública e, especificamente,
na construção de escolas. Para aqueles com um olho treinado, não será
muito difícil, ao entrar em uma sala de aula pela primeira vez, determinar com um certo grau de precisão a que época e estilo ela pertence. As
memórias pessoais e, consequentemente, a imaginação de como deve ser
uma sala de aula são provavelmente moldadas em torno do roteiro visual
e arquitetônico que caracteriza uma sala de aula em uma determinada
época (cadeiras de madeira desgastadas e carteiras feitas de resina são
provavelmente uma constante na imaginação escolar daqueles que entraram nela pela primeira vez nos anos 1970). Então, este lugar de ensino e aprendizado moldado por uma agentividade pública, institucional e
burocrática, assim como pela moda arquitetônica, também é modificado,
pelo menos parcialmente, pelo comportamento dos sujeitos e, sobretudo,
por suas práticas de escrita que poderiam ser vistas, seguindo Michel De
Certeau, como declinações de um lugar público de acordo com táticas
pessoais. Deve-se dizer, no entanto, de certa forma em consonância com
o próprio De Certeau, que eles nunca escapam completamente da moda
(grafites em mesas de sala de aula e até mesmo chicletes colados embaixo deles seguem tendências de moda específicas, se bem que, em sua
maioria, inconscientes, que evoluem com o tempo). As roupas dos alunos penduradas nas paredes, seus livros e cadernos, suas canetas e lápis,
assim como seus próprios corpos, completam a decoração visual da sala
de aula, que, no entanto, sempre resulta de uma agentividade coletiva
e nunca pessoal. Isto é demonstrado de forma espetacular sempre que
uma regulamentação pública para a organização da sala de aula é contrariada por uma agentividade pessoal ou corporativa. Um exemplo típico
disto é a iniciativa periódica de tal e tal indivíduo para remover o crucifixo
ou a imagem do Presidente da República das paredes de uma sala de aula
italiana, onde devem obrigatoriamente aparecer de acordo com a lei.
O espaço físico de ensino e aprendizagem on-line, ao contrário, é por definição composto por dois lugares distintos, o do
professor e o dos alunos, cada um organizado de acordo com uma
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Comunicação, tecnologias digitais e IA
intentio auctoris majoritariamente privada. Onde a webcam está
ligada, mostrando assim parcialmente o fundo por trás do professor/
estudante, isto geralmente apresenta um lugar que não é público e
coletivo, mas privado e pessoal. A moda como sempre se insinua, com
seus vários desejos de distinção – incluindo a distinção da indistinção
ostensiva – ainda que seja uma moda menos compacta, não filtrada
por regulamentos e regras administrativas estatais, mas interpretada de acordo com uma lógica multifacetada, obediente a um espectro
muito mais amplo de fatores sociológicos, incluindo o da classe socioeconômica. Enquanto a sala de aula é o espaço da sala, onde todos compartilham o mesmo lugar com o mesmo nível de estética e,
portanto, distinção socioeconômica, o espaço, ou melhor, os muitos
lugares da educação on-line são um espaço de classe, entendido como
a classificação socioeconômica e a categorização dos seres humanos.
É claro que existem salas de aula mais ricas e pobres, com móveis
mais antigos ou mais novos, com tecnologia mais ou menos avançada,
com papelaria mais elaborada ou mais mundana, com pessoas vestidas melhor ou pior, mas todos aqueles que fisicamente compartilham
o espaço da sala de aula se confrontam com o mesmo lugar, rodeiam-se dele e são convidados a considerá-lo não como seu próprio espaço
educacional individual, mas como o espaço educacional de um grupo, de uma pequena comunidade conectada com a comunidade social maior que tem sido fundamental para moldar esse mesmo lugar.
Este efeito semiótico comunitário da sala de aula foi considerado tão
importante que em algumas circunstâncias – em salas de aula italianas em diferentes épocas históricas, por exemplo – foi imposto um
avental às crianças (e suas famílias) para que suas roupas individuais
não se deteriorassem, com seu inevitável gosto pela distinção, a homogeneidade de classe da sala de aula. Como essa sala de aula física
homogênea é fragmentada e diversificada em muitos locais físicos de
conexão heterogênea eles se tornam imediata e inevitavelmente objetos de interpretação e, potencialmente, de distração.
Um estudante pode “interpretar” o espaço da sala de aula física ao entrar nela pela primeira vez, mas conforme as horas, dias e
semanas passam, esse espaço deixa de ser um objeto de interpretação
117
SEÇÃO 2
e se transforma em um “hábito espacial”, ou seja, um lugar cuja natureza semiótica não mais determina uma nova semiose interpretativa,
mas se transforma em um fundo neutro e também se torna o epítome
espacial, sensorial e visual de sua função.
O processo é melhor explicado pela comparação, mais uma
vez, com uma igreja. Ao entrar numa igreja católica pela primeira
vez, a atenção de alguém pode muito bem ser capturada pela novidade do lugar, sua morfologia, seus arranjos plásticos, seus móveis
e figuras; no entanto, para aqueles que vão à missa uma e outra vez
na mesma igreja, ela inevitavelmente também se torna um “hábito
espacial”; mesmo a igreja mais suntuosa, até mesmo a Basílica de
São Pedro, no Vaticano, se torna o lugar de sua função, não mais um
objeto a ser interpretado através de uma nova cadeia de intérpretes,
mas um vestido, o recipiente espacial de uma cerimônia. Quando o
hábito espacial da sala de aula física é fragmentado em suas contrapartidas on-line, por outro lado, nunca se tem certeza de que tipo
de fundo, se houver, aparecerá além do interlocutor. Isto se torna,
como mencionado, um objeto de interpretação e, consequentemente, também o termo de uma série de estratégias de comunicação e
efeitos de significação. Foi curioso ver, durante o confinamento devido à covid-19 e a consequente multiplicação de atividades on-line
– incluindo o ensino – quantos professores, e às vezes até alunos,
escolheram ficar em frente à webcam com um pano de fundo de prateleiras transbordando de livros. O novo hábito estético rapidamente
se tornou uma moda, depois um clichê e, com a habitual velocidade
frenética da web, um objeto para ironia e seu gênero digital mais importante, o meme. O clichê, como sempre, também deu origem a um
anticlichê que, embora mais sofisticado em suas intenções, também
foi prontamente transformado em outra tendência de moda de baixo
nível (contracultural, ou melhor, contraclichê) e, posteriormente, em
um clichê; jovens pesquisadores, que não possuíam uma grande biblioteca, ou que possuíam uma, mas adotaram um estilo de distinção
“shabby”, ostensivamente fizeram suas palestras a partir de cozinhas
desorganizadas, com o aquecedor de água pairando atrás deles como
uma referência metálica de shabby chic contracultural.
118
Comunicação, tecnologias digitais e IA
Em qualquer caso, a mudança do hábito espacial público e
coletivo para a representação espacial privada e pessoal reintroduz,
na espacialidade do ensino on-line e sua semiótica, uma dinâmica
de classe entendida como classificação socioeconômica. Muitos professores poderiam se dar ao luxo de ensinar de seus estúdios particulares, visualmente e acusticamente bem isolados do resto da casa,
protegidos das potenciais intrusões de suas famílias e, especialmente,
das crianças; de vez em quando, algumas dessas crianças ou gatos elegantemente irritados, apareciam na frente da webcam, mas isso era
apenas uma exceção, e era até mesmo exibido como mais um sinal de
distinção ainda mais sofisticada, como um elemento da escrita semiótica visual e espacial do “estúdio do estudioso”, que sempre implica
em um gato e um mínimo de caos controlado. O caos que ameaçava
os espaços de conexão de professores menos abastados, com famílias maiores e mais barulhentas, ou de estudantes em dormitórios,
ao invés de um tipo completamente diferente, era um caos que não
podia ser totalmente eliminado e que sempre pairava sobre a concentração da educação on-line, estragando sua audibilidade, distraindo
aqueles que a habitavam e seus interlocutores, impossível de perceber
em qualquer dos polos de comunicação como um sinal voluntário de
distinção e imediatamente transformado, ao invés disso, em um elemento de aborrecimento.
5.2 A intentio lectoris dos sites de ensino on-line.
Mesmo para aqueles que podiam pagar uma biblioteca ou
transformar sua ausência em sinal de distinção nãoconformista, o resultado semiótico do arranjo de lugar na interação nunca foi certo. De
fato, a teoria semiótica de interpretação de Eco é clara a este respeito: a
intentio auctoris, a intencionalidade de significado do autor, nem sempre coincide com a intentio lectoris, ou seja, a forma como o receptor
acaba se apropriando do significado anexado a uma mensagem. Assim, os professores esnobes que desejassem significar sua própria distinção e cultura poderiam encontrar espectadores que interpretassem
suas prateleiras cheias de livros como um sinal de arrogância vazia;
119
SEÇÃO 2
os jovens pesquisadores underdog poderiam passar por indivíduos
mal humorados sem qualquer redenção não conformista; além disso,
mesmo nesta comunicação em particular, um grau zero de fundo não
era possível: algumas plataformas de videoconferência ofereciam a
possibilidade de transformar a própria imagem em uma imagem embaçada, ou mesmo substituí-la por um pano de fundo tropical, mas
em ambas as circunstâncias não havia como evitar que ela fosse recebida como a acrobacia de alguém cujo verdadeiro pano de fundo tinha
algo errado, algo a esconder.
Da mesma forma, a opção de desligar a câmera só era aceitável se acompanhada da desculpa de que a conexão era muito fraca
para permitir que o vídeo fosse transmitido. Em alguns casos, no entanto, esta era a verdade. Especialmente no início do confinamento,
após a primeira onda da pandemia, professores e alunos, assim como
os gerentes das instituições educacionais, ainda sonhavam em criar
uma espécie de novo panóptico no qual todos os professores e todos
os alunos pudessem realmente ser visíveis uns aos outros e olharem-se como se estivessem no espaço físico de uma sala de aula, com as
únicas limitações inevitáveis sendo os cantos escuros das câmeras.
Logo se percebeu, porém, que tal panóptico não passava de um sonho ilusório de digitalização pré-pandêmico; a largura de banda da
conexão era, na maioria dos casos, insuficiente para permitir que as
pessoas mostrassem a imagem em movimento de seus rostos; muitos
então haviam sido pegos no confinamento com pouca ou nenhuma
familiaridade com as ferramentas de videoconferência e ensino on-line,
bem como presos em locais com conexão insuficiente ou sem conexão.
A primeira lacuna havia sido preenchida apressadamente através de
cursos introdutórios de edição de vídeo, muitas vezes complementados
por conselhos ansiosamente solicitados por parentes e amigos com mais
experiência; a segunda lacuna, por outro lado, era muito mais difícil de
preencher; não era fácil e, em muitos casos, muito caro estabelecer uma
conexão de fibra de internet. Uma outra diferença de classe surgiu então
na sala de aula digital, onde indivíduos com conexões lentas começaram
a ser temidos em reuniões de todos os tipos, sua cintilação de vídeo, sua
120
Comunicação, tecnologias digitais e IA
voz intermitente, suas mensagens cada vez mais associadas às más condições de transmissão. Um novo tipo de blefe começou a tomar forma,
onde é muito fácil evitar mostrar o rosto em vídeo, ou mesmo falar, ou
pular uma reunião inteira, com a desculpa de que “a conexão web é
fraca hoje em dia”.
5.3 A intentio operis dos sites de ensino on-line
A semiótica então enfatiza que a troca de significado implica não apenas uma intentio auctoris e uma intentio lectoris, mas
também uma intentio operis, o significado exsudando da própria estrutura da mensagem dada a comunidade de intérpretes em que ela
circula. É evidente que por mais que muitos professores e alunos possam organizar a morada física de sua interlocução virtual, qualquer
que seja o contexto que escolham e qualquer que seja a estratégia que
adotem, eles não poderiam evitar uma limitação intrínseca da intentio operis do ensino on-line: a casa não é uma escola; o escritório
particular de um professor não é uma universidade; a cozinha de um
estudante não é uma sala de aula; não importa o quanto a retórica do
encontro virtual entre professor e aluno possa enfatizar sua normalidade e continuidade com a interação presencial na sala de aula, não
há como, durante a pandemia, tanto professores quanto alunos possam esquecer que estão se conectando on-line de casa precisamente
porque um vírus pernicioso os impede de se encontrarem onde deveriam, ou seja, em um espaço designado, no lugar onde a história, a
cultura, e sobretudo o resultado de sua sedimentação – ou seja, uma
comunidade de intérpretes – define como o lugar onde a educação
realmente tem que ocorrer, onde os indivíduos podem ser transfigurados em professores e estudantes, onde eles podem se encontrar não
como indivíduos com suas estantes, cozinhas, aquecedores de água
e gatos ou crianças, mas como atores sociais, como encarnações das
macrofunções culturais; como emissores e destinatários no processo
narrativo – abrangendo várias gerações – que transmite a memória
não genética da humanidade através do tempo.
121
SEÇÃO 2
O estudo particular de um estudioso pode muito bem ser delimitado por paredes, e a cozinha de um estudante tem uma porta, mas
caminhar através dessas paredes, ou através dessa porta, não implica o ritual de eficácia simbólica que é necessário para efetuar a transformação de uma pessoa em um professor, de um indivíduo em um
estudante. O professor on-line pode muito bem ser, ou melhor, permanecer um professor, mas somente em virtude da memória do que
esse professor era no mundo físico, antes da pandemia, quando ele
ou ela teria entrado na sala de aula e assim teria sido transfigurado
em uma encarnação da função de professor. Com o passar do tempo,
e se persistir a impossibilidade de retornar ao ensino presencial, essa
memória pode tornar-se cada vez mais pálida, gradualmente desvanecer-se, tornar-se uma relíquia cultural, a ponto de ser esquecida
pela comunidade interpretativa e eliminada de sua semiosfera.
Referências
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VELETSIANOS, G. Learning Online: The Student Experience. Baltimor, MD: Johns
Hopkins University Press, 2020.
122
SEÇÃO 3
Comunicação, sexualidades e gênero
Gêneros e sexualidades
como centrais nas pesquisas
em comunicação
AlterGen1
Introdução
Várias autores e autores do campo da comunicação têm se detido, há algum tempo, a pensar como o gênero e outros marcadores
se entrelaçam com o campo. A começar pelo aspecto óbvio, o de como
as produções midiáticas são atravessadas e se relacionam ao sistema
gênero/sexualidade/raça (LUGONES, 2008) que têm gerado uma
série de trabalhos de diagnóstico, voltados para as mais distintas mídias, colocando em cena metodologias inúmeras e aportes teóricos
diversos. São trabalhos que produzem uma espécie de cacofonia, um
ruído que alerta o campo desta presença, mas que não têm produzido
ainda mudanças substanciais nos procedimentos e nos cânones de
pesquisa. Além deste tipo quase que hegemônico de produção, também temos pesquisas que pensam os atravessamentos nas relações
1 Este texto é parte dos trabalhos realizados na Linha Alteridade, subjetividades e estudos de gênero em
narrativas não ficcionais do grupo AlterGen. Foi produzido por Cláudia Lago, líder do grupo e professora do PPGCOM; contou com a participação de Anderson Melo, Evelyn Kazan, Isabella Bergo Crosta, Manuela Thamani, Natália Sierpinski, mestres pelo PPGCOM; Cíntia Gomes, Elisa Canjani, Ilton
Porto, Janaina Gallo, alunos do PPGCOM; e Letícia Barros, aluna de graduação em Educomunicação.
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SEÇÃO 3
de constituição dos ambientes profissionais e outros que olham para a
prática de produção das pesquisas em comunicação, constituindo mapeamentos de como nos relacionamos, enquanto pesquisadores e pesquisadoras, com a temática e com as perspectivas a ela relacionadas.
Sobre esse último aspecto, o que os levantamentos têm apontado, apesar de interrogarem bases diversas, a partir de lugares distintos, é a pouca presença de pesquisas que se relacionam ao que indico
como o campo dos estudos de gênero. Um trabalho recente de fôlego
que demonstra esta premissa é o de Tainan Pauli Tomazetti, que analisou como se deu a incorporação, apropriações e tensionamentos na
relação com o campo de estudo de gênero nas dissertações e teses em
comunicação no Brasil de 1972 a 2015 (TOMAZETTI, 2019). Em seu
estudo detectou-se que das 13.265 pesquisas produzidas no período,
apenas 316 se relacionaram de alguma forma ao campo de estudos de
gênero. O trabalho também indica duas vertentes das pesquisas na
comunicação que se apropriam dos estudos de gênero: a mais consolidada, relacionada aos estudos feministas, com 240 teses e/ou dissertações, que se organizam especialmente pensando as condições de
representação assimétricas, entre masculino e feminino, as violências
contra mulheres, o universo da emancipação. A outra vertente se organizaria em pesquisas com o que chama de “viés LGBT e/ou queer”,
com 62 pesquisas, buscando articular os processos de generificação e
a produção de gênero e sexualidade.
Além da exiguidade dos trabalhos frente ao universo produzido pela comunicação no período, o autor indica também para a
adesão das questões apontadas pelos estudos de gênero como apenas
inscritas nos objetos empírico e não como possibilidade de aportes
epistemológicos, o que se relaciona, em sua opinião, à marginalidade
destes estudos na comunicação.
Em mapeamentos de menor vulto, que temos realizado coletivamente, estas indicações também aparecem, apesar da diferença das
bases e dos aportes. Assim, mais recentemente, olhando para a base
de dados dos grupos de pesquisa da Intercom de 2016 a 2020 (MARTINEZ; LAGO; HEIDEMANN, 2022) se, por um lado, percebemos
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Comunicação, sexualidades e gênero
um aumento que prevíamos em levantamento anterior (MARTINEZ,
LAGO; LAGO, 2016), por outro lado também apontamos que a integração teórica dos campos de estudos (comunicação e estudos de gênero), ainda se dá de forma tênue. Prevalecem trabalhos descritivos,
sem uma apropriação efetiva em termos epistemológicos dos tensionamentos que propõem os estudos de gênero. Ao mesmo tempo, a
desproporcionalidade quantitativa das pesquisas, em relação ao universo do que é produzido enquanto conhecimento na comunicação,
também indica outro limitador: o gênero/raça e a sexualidade, totalmente imbrincados na prática do campo da comunicação, não são devidamente percebidos enquanto tal no subcampo da pesquisa. O que
é um paradoxo se pensarmos na centralidade dos aparatos midiáticos
para a constituição de gênero/raça e sexualidade.
Comunicação, gênero/raça e sexualidade:
o lugar da Comunicação
Em um texto basilar para pensar as questões de gênero, Teresa
De Lauretis (2019) indica, a partir de sua leitura de Michel Foucault,
que a mídia é uma importante “tecnologia de gênero”. O que ela quer
dizer com isso? Em primeiro lugar é importante situar o texto na década de 80 do século XX, em que as discussões da incorporação do
conceito de gênero como categoria de análise (SCOTT, 2019) inundavam as perspectivas feministas na academia. Tratava-se de abandonar radicalmente o determinismo biológico, que, por outro lado,
também se manifestava em posições essenciais do feminismo, posto
que ancorava a defesa intransigente do direito das “mulheres” – que
precisavam se constituir enquanto tal para reivindicar seus direitos
e que em muitas situações eram construídos como universais, numa
contraposição direta entre masculino universal x feminino universal.
Apesar da discussão ter avançado e muito desde então, ainda
temos ecos e sombras dela nos nossos escritos e uma grande impressão em nossas pesquisas.
A perspectiva de De Lauretis é
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SEÇÃO 3
[...] conceber o sujeito social as relações da subjetividade com a sociedade de outra forma: um sujeito
constituído no gênero, sem dúvida, mas não apenas
pela diferença sexual, e sim por meio de códigos
linguísticos e representações culturais; um sujeito
engendrado não apenas nas relações de sexo, mas
também nas de raça e classe: um sujeito, portanto,
múltiplo em vez de único, e contraditório em vez de
simplesmente dividido. (2019, p. 123)
A autora propõe um conceito de gênero que não se confunda
meramente com a diferença entre sexos, quer dizer, que não seja uma
mera derivação dessa diferença. Para desimbricar gênero e diferença
sexual advoga a utilização da perspectiva foucaultiana que vê a sexualidade como uma tecnologia sexual. Desta forma, propõe que “também o gênero, como representação e autorrepresentação (é) produto
de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de
discursos e epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem
como das práticas da vida cotidiana.” (idem, idem)2. Para De Lauretis,
gênero é representação; representação que é construída; representação que é construída invariavelmente no tempo e em espaços os mais
diversos, mídia, escolas, família, espaços jurídicos, mas também na
academia, no feminismo, na arte. Significativo, pontua que a construção de gênero constantemente se faz também pela sua desconstrução,
por meio de qualquer discurso que o veja como uma construção. Quer
dizer, a construção de gênero posta sempre está a ponto de ser rompida, desestabilizada e refeita.
Neste sentido, há uma disputa constante entre grupos que
percebem as construções sobre gênero a partir de lugares distintos e
antagônicos – construções essas que são vividas com a intensidade da
realidade para a maioria das pessoas, não nos esqueçamos. Nesta disputa então em jogo as representações constituídas na e pelos aparatos
2 De Lauretis observa que sua proposição vai além de Foucault, que não levava em consideração em sua
compreensão da tecnologia sexual apelos diferenciados para sujeitos masculinos e femininos.
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Comunicação, sexualidades e gênero
midiáticos, dentro do campo da comunicação. E aí a importância de
pensarmos que, se é possível desvincular gênero da sexualidade, não
é possível pensar gênero sem pensar nas tecnologias que o produzem,
reproduzem, constituem e por ele também são constituídas. E aqui
percebemos, então, a centralidade do que nos ocupa enquanto campo
de pesquisa, neste processo.
Cabe aqui, então, pensar. Por que esta relação não é enfatizada
no campo de pesquisa? Por que não está presente enquanto atravessamento necessário quando olhamos para nossos objetos? Por que
não aparece e relaciona os demais marcadores que informam a constituição do sistema sexo-gênero/raça e classe? Respostas a essas perguntas são necessariamente hipóteses. A certeza está em que devemos
ampliar estas relações.
Uma convocação necessária
Mesmo que fiquemos dentro de um polo que não aponta para
uma ruptura radical para pensar o sistema sexo-gênero/raça como
construção, há uma série de convocações feitas ao campo da comunicação, na contemporaneidade, para pensar este sistema.
Uma das mais conhecidas se relaciona ao aparato colocado em
cena a partir das Conferências das Nações Unidas, ainda dentro da
lógica dos direitos iguais para homens e mulheres. Premissas que irão
se desdobrar nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 3,
que têm implicado em orientações para desenvolvimento de pesquisas em vários campos. Dentre os dezessete ODS, o de número cinco é
o de Igualdade de Gênero, e estabelece a meta de alcançar a igualdade
de gênero e empoderar mulheres e meninas.
A Conferência de Bangkok, a Women Empowering Communicaton foi a primeira em nível global a relacionar mulheres e comunicação. Organizada pela World Association for Christian Communication
3 ODS fazem parte da Agenda 2030 da ONU, e é um pacto assinado, em 2015, pelos 193 países membros
reunidos na Cúpula das Nações Unidas. São 17 objetivos que se desdobram em 169 metas em direção
ao crescimento global sustentável.
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SEÇÃO 3
(WACC) junto com ISIS International Philippines e o International
Women’s Tribune Centre-New York, a conferência reuniu mais de
430 pessoas de 80 países que produziram uma declaração em que
afirmam a necessidade de:
Promover formas de comunicação que não apenas
desafiem a natureza patriarcal da mídia, mas busquem descentralizá-la e democratizá-la: criar mídias
que estimulem o diálogo e o debate; mídia que promove a criatividade das mulheres e das pessoas; mídias que reafirmam a sabedoria e o conhecimento das
mulheres, e que fazem das pessoas sujeitos ao invés
de objetos ou alvos de comunicação. Meios de comunicação que respondem às necessidades das pessoas.4
Ao mesmo tempo, a Conferência de Bangkcok apontou a necessidade de responsabilizar os sistemas midiáticos pela relação com
a equidade de gênero, exortando as entidades envolvidas a realizarem
diagnósticos para perceber o lugar das mulheres nas mídias.
No ano seguinte, estas premissas são fortalecidas e ampliadas na 4.ª Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada, em
setembro de 1995, em Beijing, por isso conhecida como Conferência
de Pequim. Mais de 30 mil ativistas e representantes de 189 nações
construíram a Declaração e a Plataforma de Ação de Pequim, em que
estabelecem uma agenda muito abrangente sobre as metas e ações a
serem implementadas para a equidade de gêneros.
A Plataforma de Pequim5 estabeleceu 12 áreas prioritárias de
intervenção, com objetivos e ações a serem desenvolvidas em cada
4 Tradução nossa de: “Promote forms of communication that not only challenge the patriarchal nature
of media but strive to decentralise and democratise them: to create media that encourage dialogue and
debate; media that advance women and peoples’ creativity; media that reaffirm women’s wisdom and
knowledge, and that make people into subjects rather than objects or targets of communication. Media
which are responsive to people’s needs”. Disponível em: https://waccglobal.org/return-to-bangkoktwo-decades-of-interventions-on-gender-and-media/.
5 Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/declaracao_beijing.pdf.
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Comunicação, sexualidades e gênero
uma delas. As áreas são: Mulheres e pobreza; Educação e capacitação
de mulheres; Mulheres e saúde; Violência contra as mulheres; Mulheres e conflitos armados; Mulheres e economia; Mulheres no poder e
na liderança; Mecanismos institucionais para o avanço das mulheres;
Direitos humanos das mulheres; Mulheres e mídia (grifo nosso);
Mulheres e meio ambiente; Direitos das meninas.
Com o documento evidenciou-se o entrelaçamento dos sistemas de comunicação na propagação das desigualdades. Antes de entrar na área específica Mulheres e Mídia, é importante mencionar que
a atuação em relação às mídias passou a ser considerada em várias das
ações e não apenas neste tópico específico. Preocupações com a mídia
compõem objetivo estratégico da área da Violência contra mulheres,
indicando a necessidade de:
j) despertar consciência da responsabilidade dos
meios de comunicação na promoção de imagens
não estereotipadas de mulheres e homens e na
eliminação de padrões de conduta geradores de
violência, assim como estimular os responsáveis
pelo conteúdo do material difundido pela mídia
a estabelecer diretrizes e códigos de conduta profissionais; e despertar também consciência da importante função dos meios de comunicação no seu
papel de informar e educar a população acerca das
causas e dos efeitos da violência contra a mulher
bem como de estimular o debate público sobre a
matéria. (Declaração de Beijing, p. 194)
Em relação à área Mulheres e Meios de Comunicação, após
contextualizar a relação, a Plataforma estabelece dois objetivos estratégicos, começando por ampliar o acesso de mulheres tanto do ponto
de vista da expressão individual e coletiva quanto nas “[...] tomadas
de decisões na mídia e nas novas tecnologias de comunicações, aumentar também sua participação nessas áreas, bem como aumentar
a possibilidade para elas se expressarem pelos meios de comunicação
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SEÇÃO 3
e as novas tecnologias de comunicação” (p. 232) e “Promover uma
imagem equilibrada e não-estereotipada da mulher nos meios de comunicação”(p. 234), com uma série de ações por parte de governos,
sociedade civil, setor privado e empresas midiáticas e publicitárias.
Relacionado a essa área, foram desenvolvidas ações globais de
mapeamento da relação das mulheres com os sistemas midiáticos, o
maior e mais longevo Global Media Monitoring Project (GMMP) que,
desde 1995, efetua monitoramento nas mídias jornalísticas no mundo
todo, a cada cinco anos, a partir de um protocolo de pesquisa que se
atualiza em cada edição da pesquisa6. Plantado a partir de Bangkok, o
monitoramento analisa toda a produção midiática noticiosa veiculada
em diversos veículos (impressos, on-line, rádio, TV) no mesmo dia no
mundo inteiro.
O último monitoramento foi realizado, em 2020, em plena
pandemia. Após ter ficado ausente do anterior, em 2015, o Brasil retornou com o trabalho de uma grande equipe, com pesquisadoras(es)
voluntárias(os) de várias regiões do país e de Portugal7.
Naquele ano, 116 países participaram da coleta de dados, que
aconteceu no dia 29 de setembro. Nesse dia, voluntários(as) do mundo inteiro se reuniram e, a partir dos protocolos únicos, se debruçaram sobre as mídias de seus países, depois codificadas em tabelas,
gerando um volume imenso de dados, quantitativos e qualitativos,
sobre as notícias daquele dia, que são consolidados e depois geram
relatórios global, regionais e nacionais.
No Brasil, foram formados 12 grupos, nas cinco regiões do país
e dois em Portugal, com voluntárias(os) de três países, num total de
88 pessoas. Foram monitoradas 23 mídias, entre jornais, rádios, TVs,
perfis no Twitter e portais de notícias8. Em São Paulo a equipe ficou
6 Disponível em: https://whomakesthenews.org/.
7 Até 2010, o trabalho foi feito por equipes que não renovaram o esforço em 2015. Em 2020, colegas
portuguesas convidaram e incentivaram brasileiras a retornarem ao mapeamento. Agradecemos às
colegas portuguesas, na figura de Maria João Silveirinha, pela iniciativa, convite e encorajamento.
8 Conforme apresentação de Elizângela Noronha, coordenadora das equipes Brasil, em mesa de debates
no FZDZ Gênero na ECA. A mesa está disponível no canal Diversidade na ECA: https://www.youtube.
com/watch?v=Wt3ITlwRrsY&list=PLvczGKT7m6lKz3Cxk8sHXIWUkWufcT0kM&index=1.
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Comunicação, sexualidades e gênero
responsável por investigar, UOL e o Jornal da Manhã, da Rádio Jovem Pan, e contou com 18 voluntários(as)9.
Em termos globais10, o GMMP aponta que no atual ritmo só
será possível falar em equidade de gênero nos meios tradicionais daqui a 67 anos. Atualmente, apenas 25% dos sujeitos e fontes das matérias são mulheres.
Como não poderia deixar de ser, este mapeamento mostrou a
supremacia das notícias sobre saúde relacionadas ao covid – no entanto, esta ampliação correspondeu à diminuição das vozes das mulheres e da visibilidade delas nas narrativas. Como já discutimos em
artigo anterior (LAGO; NONATO; CANJANI; BERGO, 2020) isto se
deve não apenas à concentração de fontes especialistas entre homens,
mas também ao enquadramento de guerra das notícias.
Mesmo nas notícias que falam de violência de gênero, que dificilmente são matérias de destaque nos noticiários, há uma sub-representação das mulheres como fontes. Ainda sobre a representação de mulheres, quando elas aparecem nos noticiários como sujeitos ou fontes,
geralmente o são como fornecedoras de experiências pessoais ou como
formadoras de opinião popular – em muito menor número como especialistas, apesar de esforços realizados nos veículos por conta de pressões externas. Em 2020, entre especialistas de diversos assuntos, 24%
são mulheres, contra 19% em 2015. Mesmo com um crescimento de cinco pontos, o número está longe de espelhar uma equidade.
Com isso as mídias reforçam perspectivas patriarcais, que relacionam as mulheres ao privado, ao doméstico, enquanto os homens
são chamados para falar do que é público, geral e coletivo. Neste sentido, o mapeamento não percebeu diferença após cinco anos em um dos
itens, qual seja, notícias que desafiam estereótipos de gênero:
9 O relatório Brasil pode ser acessado em: https://whomakesthenews.org/wp-content/uploads/2021/07/
1-Relatorio-GMMP-Brasil-portugues-12-07-21-completo-1.pdf.
10 Principais resultados disponíveis em: https://whomakesthenews.org/wp-content/uploads/2021/08/
GMMP-2020.Highlights.spa_.FINAL_.pdf.
133
SEÇÃO 3
Entre sete e nove em cada dez histórias sobre assédio sexual, estupro ou outras formas de violência
de gênero e questões específicas da desigualdade
de gênero, reforçam ou não fazem nada para desafiar estereótipos de gênero, com as consequentes
implicações de normalização e continuidade das
injustiças que constituem o foco da história. Menos da metade das histórias relacionadas ao gênero (assédio estupro, outras formas de violência de
gênero... ) destacam questões de (des)igualdade
de gênero11.
O GMMP é uma resposta à convocação do campo da Comunicação, ainda majoritariamente dentro de uma lógica binária, que
transita em torno de mulheres e homens a se reposicionar em relação
às questões de gênero, tanto do ponto de vista da práxis profissional,
quanto da produção em pesquisa.
É neste sentido que passamos a narrar como algumas e alguns
de nós, pesquisadoras e pesquisadores da Comunicação, dentro do
PPGCOM, encaminhamos a resposta a esta convocação.
Nossa parte no latifúndio: ações e
pesquisas do AlterGen no PPGCOM
Em 2021, por meio de projeto de iniciação científica vinculado
ao Programa Unificado de Bolsas (PUB) da USP, Letícia Barros fez
um levantamento da produção em teses e dissertações produzidas na
ECA-USP, entre 2016 e 2021. Utilizando o termo gênero como chave
de pesquisa, foram encontradas 81 produções. Separando aquelas que
11 Tradução nossa do original: Entre siete y nueve de cada diez historias sobre acoso sexual, violación u
otras formas de violencia de género y cuestiones específicas de desigualdad de género, refuerzan o no
hacen nada para desafiar los estereotipos de género, con las consecuentes implicaciones de normalización y continuidad de las injusticias que constituyen el foco de las historias. Menos de la mitad de
las historias relacionadas con el género (acoso sexual, violación, otras formas de violencia de género…)
realmente destacan cuestiones de (des)igualdad de género. Disponível em https://whomakesthenews.
org/wp-content/uploads/2021/08/GMMP-2020.Highlights.spa_.FINAL_.pdf. p. 3.
134
Comunicação, sexualidades e gênero
se referem a gênero como estilo textual, sobram 21. Apesar de não ter
sido possível, no estágio da pesquisa12, identificar o volume total de
produções, ele provavelmente é diminuto em relação ao que é produzido pelos programas de pós da ECA. Interessante notar também que
as pesquisas são realizadas em sua maioria por mulheres (16). Das(os)
20 orientadores(as), 15 são mulheres também. As temáticas, objetos,
metodologias são as mais variadas, mas, em geral, percebemos uma
pouca adesão ao campo de estudos de gênero, repetindo o já indicado
nos mapeamentos anteriores citados neste texto. Com isso, as pesquisas também não se beneficiam da amplitude epistemológica proposta
por este campo.
Dentro deste contexto já intuído foi que, em 2017, sentimos a
necessidade de um grupo de pesquisa voltado especificamente para
atuar na relação entre Comunicação, Artes e Estudos de Gênero. Assim criamos o Grupo, registrado no CNPq Alteridade, subjetividades,
estudos de gênero e performances nas Comunicações e nas Artes (AlterGen) relacionado também ao Projeto de Extensão Diversidade na
ECA13. Desde então, ações e pesquisas se aglutinam, e mobilizam não
apenas pessoas diretamente ligadas aos grupos, mas também parceiros e parceiras inestimáveis no percurso.14
Um exemplo foi o trabalho de pesquisa realizado por conta do
GMMP, quando o AlterGen mobilizou 18 voluntárias(os) em São Paulo para a coleta de dados e discussões do resultado. Ou a realização,
desde 2017, do FZDZ Gênero na ECA, encontro que reúne pesquisadoras(es) que trabalham a interface gênero, comunicação e/ou artes,
12 Como é um trabalho de IC, optamos por focar na leitura das teses e dissertações e análise do material
obtido. Para conseguir o volume de teses e dissertações produzidas no período, teríamos que falar
separadamente com cada PPG.
13 O projeto Diversidade na ECA existe desde 2017, a partir de bolsas do PUB. Desenvolve várias atividades para promoção da diversidade, como o Fazendo e Desfazendo Gênero na ECA (FZDZ), desde 2017.
14 Mencionamos aqui especialmente Gean Gonçalves e Fernanda Castilho, coordenadores do FZDZ desde seu início; Cláudia Nonato, Monica Martinez, e Mara Lago, coautoras de várias pesquisas; Marcia
Veiga, ingressante na equipe do FZDZ este ano. Especialmente, as amigas da Rede Não Cala USP,
parceiras de publicações, lutas, projetos e que sempre generosamente se engajam nas atividades da
ECA. E os alunes querides, que estiveram no começo e no meio do Diversidade, especialmente Gabriel
Razo, Denise Teófilo, Rafaela Treib-Stella e Adda Cruz. E as bolsistas atuais, que estão tocando o barco,
Rosa Miranda e Thaynara Silva.
135
SEÇÃO 3
em vários níveis, para discutir e difundir suas pesquisas. Também importante mencionar a parceria com o Observatório de Comunicação,
Liberdade de Expressão e Censura (OBCOM), que atualmente realiza
pesquisas dentro da perspectiva do Safety on Journalism – e os atravessamentos de gênero são inegáveis dentro desta discussão.
Em termos da relação com o PPGCOM, importante ressaltar
as pesquisas desenvolvidas dentro do Programa, vinculadas à Linha
Alteridade, subjetividades e estudos de gênero em narrativas não ficcionais do AlterGen.
Também aqui podemos observar uma amplitude de métodos e
objetos – contudo há uma preocupação constante em realmente fazer
uso das perspectivas abertas pelo campo de estudos de gênero, por si
só transdisciplinar.
Em termos de pesquisas já finalizadas, tivemos trabalhos que
se detiveram a pensar mídias, as mais variadas, bem como trabalhos
que olharam para grupos sociais em seus entrelaçamentos com mídias. Em Mulheres Periféricas e autorrepresentação: uma análise do
Nós, Mulheres da Periferia, Evelyn Kazan (2020) analisou o arranjo
jornalístico alternativo Nós, Mulheres da Periferia, refletindo sobre
o sujeito periférico generificado “olhando-o a partir das complexidades, multiplicidades e dos diversos marcadores da diferença que os
subscrevem, permeados pela condição periférica, por relações étnico-raciais, de gênero, de sexualidade, geracionais, dentre outras”. Como
resultado, observou que “o coletivo representa as mulheres periféricas
a partir de sua multiplicidade, atravessadas pelas interseccionalidades: são, majoritariamente, mulheres negras, lutadoras, sujeitas ao
sexismo e racismo e em relação com o território periférico.”
Manuela Thamani (2021), em Futuro se faz com a história e
história com o povo dentro: Movimentos Negros na interface da Comunicação e Educação, analisa experiências ancoradas na práxis do
movimento negro educador, que “dialogam com os preceitos educomunicativos na mesma medida que propugnam pela valorização da
história e cultura afro-brasileira e africana”. Tratou-se de ampliar a
literatura educomunicativa em sua relação com as questões étnico-raciais e, mesmo que gênero não tenha sido foco central, ele transparece
136
Comunicação, sexualidades e gênero
nas análises, que adotam uma perspectiva interseccional para pensar
os objetos.
Natalia Sierpinski (2021), em Autoria de Mulheres nas HQs
no Brasil: contranarrativas das autoras premiadas na última década pelo Troféu HQ Mix, identifica mulheres premiadas em categorias
específicas da maior premiação da área, mostrando como estas histórias se relacionam com o universo feminista contemporâneo, tecendo
contranarrativas ao universo patriarcal.
Da mesma forma, Isabella Bergo Crosta (2022) mergulha nos
novos feminismos, analisando dois arranjos jornalísticos em Coletivos
Feministas no Instagram: análise do Feminacida (Argentina) e do Portal Catarinas (Brasil), pensando como os coletivos usam “os recursos
digitais da rede Instagram para realizar uma prática comunicativa capaz
de transgredir as lógicas comunicacionais hegemônicas” e “como (e se)
referem-se às questões do feminismo decolonial latino-americano”.
Também com uma matriz que se relaciona a feminismos decolonias, Elisa Canjani (2021) analisa o uso do WhatsApp por mulheres migrantes em Resistências femininas: redes de comunicação
de mulheres migrantes latino-americanas na Região Metropolitana
de São Paulo. O trabalho, etnográfico, além de somar-se aos estudos
sobre migrações femininas, identifica “a compreensão das possibilidades de resistência e ressignificação das mulheres migrantes, ampliadas pelo uso das redes sociais digitais na construção de espaços de
encontro, reflexão, organização e constituição de cidadãs de direitos”.
No campo das resistências, Anderson Luiz de Melo (2022), em
Marcos Paulo, Britney e Michelly: transfemininas em telenovelas, os corpos de um novo tempo, uma análise interpretativa, pensa corpos transfemininos em novelas atuais, analisando as construções e comparando-as a
outras mais antigas e mais problemáticas, identificando o imbricamento
entre militância trans e mudança das representações nas novelas.
Nas pesquisas em andamento15, além dos resultados de pesquisas produzidos no âmbito dos projetos “Narrativas não ficcionais
15 Este apanhado baseia-se nos projetos de pesquisa, não disponíveis para o público.
137
SEÇÃO 3
midiáticas e Alteridade de Gênero: a perspectiva educomunicativa,
e monitoramento nos sistemas midiáticos de Gênero, Sexualidades,
Raça e outros marcadores” (onde se inserem, por exemplo, as parcerias com o OBCOM e o trabalho junto ao GMMP), existem pesquisas
relacionadas ao PPGCOM em desenvolvimento, todas entrelaçadas
com o campo de estudos de gênero.
Assim, Elisa Canjani, com o projeto Das Evas, Madalenas
e Marias: ideário cristão e migração feminina nas redes digitais,
aprofunda seu trabalho inicial, agora buscando entender como “as
imagens do feminino construídas na cristandade e difundidas através
das missões religiosas no período colonial permeiam, na atualidade
– o universo migratório das mulheres bolivianas inseridas no nicho
laboral da costura na cidade de São Paulo”.
Ilton Porto busca as Marcas de resistência dos jornalistas
LGBTQIA+ à cisheteronormatividade na profissão: um estudo das
redações paulistas, tentando perceber essas marcas a partir dos relatos de profissionais, amparando-se na teoria queer.
Também Cintia Gomes olha para jornalistas, em Gênero e
raça: quem são as jornalistas negras na cobertura educativa brasileira, analisa “quem são as jornalistas negras especializadas na cobertura
de educação, além de identificar em quais veículos de comunicação”
atuam e “compreender como a questão de gênero e raça está relacionada com aspectos sociais, culturais e econômicos na profissão.”
Relacionada diretamente ao esforço de monitoramento dos sistemas midiáticos, Janaina Soares Gallo desenvolve a pesquisa Mídia, gênero e direitos humanos: uma análise a partir da metodologia do GMMP,
em que busca entender “a relação dos direitos das mulheres com os meios
de comunicação, de modo que seja garantido o exercício pleno de seus
direitos e alcance do seu desenvolvimento integral como pessoas”.
Este apanhado, sucinto, tem por objetivo identificar um esforço específico, relacionado ao PPGCOM, de intercambiar o campo da
comunicação com os estudos de gênero. Neste esforço, ficam evidentes as amplitudes – já que o campo de estudos de gênero é extremamente vasto em seus enquadramentos teórico-metodológicos, assim
como a comunicação.
138
Comunicação, sexualidades e gênero
No entanto, é importante frisar que há linhas de confluência
entre os vários empreendimentos de pesquisa listados, a começar pela
perspectiva de se relacionar com os estudos de gênero não apenas de
forma tangencial, mas mergulhando nas inúmeras revisões epistemológicas que ele propõe, a começar pelo lugar da produção do conhecimento, desnaturalizando as engrenagens de um conhecimento produzido a partir de matrizes eurocêntricas tão somente, masculinistas,
brancas, cisheteronormativas.
Neste sentido, as pesquisas são atravessadas pela perspectiva
da interseccionalidade (CRENSHAW, 2002) e, a passos largos, têm
incorporado a decolonialidade (LUGONES, 2008; PAREDES, 2019)
como um pressuposto.
Para finalizar: várias teorias, muitas metodologias,
inúmeros objetos e um só caminho
Desde que nossas inquietações, porque todo trabalho de pesquisa parte de inquietações, nos trouxeram para este lugar de pensar
a necessidade de desnaturalizar as estruturas sociais, os dispositivos
que constituem nossas formas de viver, que se amparam na segregação e na normatização dos corpos a partir de uma régua excludente,
já que toma como ponto de referência apenas homens, brancos, de
camadas médias/altas, heterocisnormativos, relacionados a um imaginário eurocêntrico e que, portanto, deixa de fora a maioria das pessoas (inclusive a nós todas/os do grupo), temos empreendidos esforços coletivos de ampliação dos olhares sobre o campo da comunicação
(e seus objetos) a partir do campo de estudos de gênero.
Tentando responder a pergunta norteadora deste texto, qual
seja, quais seriam os princípios que devem nortear a agenda de pesquisas no campo da comunicação, a partir da temática Comunicação,
sexualidade e gênero, entendemos que sexualidade e gênero não são
apenas temáticas dentro do campo. São atravessamentos que indagam o campo e as pesquisas do ponto de vista ético, transversais às
temáticas, como a amplitude teórico/metodológica de nossos trabalhos, mesmo que em número reduzido, indicam. Atravessamentos
139
SEÇÃO 3
que questionam, por exemplo, em outros espaços e temáticas, a necessidade de ampliar as bibliografias, inserir não apenas autores homens eurocêntricos (mesmo que deles não se possa abrir mão). Que
se relacionam às políticas de ações afirmativas para trazer para dentro
do ambiente de produção de conhecimento grupos que deles, ainda
hoje, são excluídos.
Ao mesmo tempo, defendemos que o princípio da produção
em rede, em parceria (como também indicam nossas produções compartilhadas) é essencial, para trabalhar a reflexividade (BOURDIEU,
2004) necessária nas pesquisas e para construir pontes necessárias
junto aos movimentos que estão na raiz de nossas inquietações. Feministas, de pessoas negras, LGBTQIAPN+, os corpos dissidentes, as
vozes dissonantes que causam tanta reação pelo simples fato de se
colocarem na cena e exigirem seu lugar e seus direitos. Como demarca
a filosofia ubuntu, eu sou porque nós somos, e essa premissa deve ser,
a nosso ver, incorporada em nosso ato de pesquisar.
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142
Sexo, gênero e ação: uma breve
reflexão sobre transvisibilidade
no cinema e na televisão
Gabrielle Weber
Silvana Nascimento
Juntes coordenam o projeto de pesquisa e extensão “Corpas
Trans e Travestis na USP”.
Introdução
As mídias de massa, notadamente a televisão e o cinema, fornecem, por muitas vezes, as únicas oportunidades que, muites1 de
nós, pessoas trans, temos para sermos representades para fora de
nossos refúgios por meio de imagens e personagens em filmes, séries de ficção, telenovelas, animações, etc. A forma com a qual essas
imagens são criadas, produzidas e veiculadas nos meios midiáticos
1 Ao longo do texto, utilizaremos a linguagem neutra, notadamente o sistema elu/delu, para não reproduzir binarismos de gênero tão impregnados em nossa língua portuguesa, que reproduzem muitas
desigualdades de gênero e uma predominância do masculino.
143
SEÇÃO 3
pode exercer um impacto profundo em como vemos e, principalmente, classificamos e julgamos pessoas trans e das demais letras da comunidade LGBTQIA+2. Assim, é necessário um maior cuidado para
não empregarmos estereótipos negativos e simplistas que possam
sedimentar preconceitos e fundamentar discursos de ódio. (REITZ,
2017; LESTER, 2015).
Historicamente, pessoas LGBTQIA+ e, em particular, pessoas
3
trans , têm sido representadas de uma maneira deveras caricata e extremamente superficial pela mídia. Muitos desses estereótipos envolvem a vitimização, a vilanização ou a ridicularização das pessoas trans,
além de insistirem na exotificação, fetichização, objetificação, patologização e domesticação de seus corpos a partir de uma ótica cisheteronormativa4, o que reforça o imaginário popular de uma personificação
paradoxal da fascinação e do nojo, do desejo e da perversão (LESTER,
2015). Tais ferramentas são empregadas não apenas para tornar os corpos trans inteligíveis para uma população majoritariamente cisgênera
e que, por isso, nunca refletiu sobre as opressões da cisheteronorma,
como também para policiar as identidades cisheteronormativas, mostrando, por contraste, o que é socialmente aceitável (MILLER, 2015).
A partir da virada do milênio e, mais proeminentemente,
na última década houve um aumento significativo da presença tanto de personagens quanto de atories trans em filmes e produções
televisivas. Contudo, será que essa melhora quantitativa também
2 Relegamos a discussão mais aprofundada sobre as definições relacionadas à trinca sexo, gênero e sexualidade, bem como ao acrônimo LGBTQIA+ para a seção “Sexo, Gênero e Ação”.
3 Utilizamos a categoria pessoa trans ou trangênero como auto-identificações que se pautam pela recusa
ou pela dissidência em relação ao gênero imposto ao nascimento pelos poderes médicos. Referem-se
a auto-definições, que são atribuídas pelas próprias pessoas, que podem ser transfemininas, travestis,
mulheres trans, mulheres transexuais, transmasculinas, boycetas, homens trans, homens transexuais,
não-bináries, entre outras denominações que compõem um multiverso complexo de vivências e identidades trans.
4 A expressão “cisheteronormatividade” refere-se a um conjunto de normas e práticas produzidas socialmente que produzem as identidades cisgênero, quer dizer, que se identificam com o gênero imposto
no nascimento, pelos poderes médicos, e que também se sentem como heterosexuais. A cisheteronormatividade expressa relações de poder presentes em diferentes instâncias da sociedade, que também
são reproduzidas pela branquitude, pelo racismo e pelo sexismo, e que excluem pessoas trans deste
cistema.
144
Comunicação, sexualidades e gênero
reflete uma melhora qualitativa da representatividade? Pesquisas
de opinião realizadas pela GLAAD5, uma organização não governamental, fundada em 1985, com o intuito de monitorar a forma com
que a mídia retrata as pessoas LGBTQIA+, têm mostrado indicadores positivos.
O estudo “Inclusão LGBTQ na Mídia e na Propaganda”, realizado pela GLAAD em parceria com a Procter & Gamble, envolvendo
2031 estadunidenses não LGBTQIA+ maiores de 18 anos, entre 20 de
novembro e 3 de dezembro de 2019, ajuda a entender um pouco melhor o cenário (P&G, 2020). Enquanto que cerca de 86% des respondentes afirmam conhecer pessoalmente uma pessoa LGBTQIA+, apenas 34% conhecem uma pessoa transgênero pessoalmente. Portanto,
a única forma de contato e, consequentemente, de aproximação com
a realidade das pessoas trans que a maioria da população tem ainda
é através da mídia, ressaltando a importância de uma representação
adequada e que fuja dos estereótipos nocivos.
Além disso, esse estudo ajuda a corroborar a hipótese de que a
representação de pessoas LGBTQIA+ na mídia está relacionada com
uma maior aceitação dessa comunidade, indicando pelo menos um
sucesso parcial das representações contemporâneas. Notadamente,
pessoas não LGBTQIA+ que foram expostas a imagens de pessoas
LGBTQIA+ na mídia nos três meses anteriores à pesquisa reportaram
uma maior aceitação, quando comparadas com pessoas não LGBTQIA+ que não foram expostas. Em particular, a aceitação de pessoas
trans sobe de 33% (no grupo não exposto) para 44% (no grupo exposto). Finalmente, esse estudo mostra também que 76% des respondentes estão confortáveis com a presença de personagens LGBTQIA+ no
cinema e na televisão.
Uma outra pesquisa de opinião da GLAAD, realizada em 2020,
em parceria com a Netflix e envolvendo mais de seis mil adultos em países da América Latina, como Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México
e Peru, avaliou positivamente o impacto da diversidade em filmes e na
5 GLAAD é um acrônimo para Aliança Gay e Lésbica contra a difamação, do inglês, Gay & Lesbian Alliance Against Defamation.
145
SEÇÃO 3
televisão (GLAAD, 2021). Para 68% des participantes, assistir filmes
ou séries propiciou um melhor entendimento da comunidade LGBTQIA+. Em particular, 73% des respondentes não LGBTQIA+ afirmaram que ver personagens LGBTQIA+ nas telas lhes deixou mais
confortáveis com pessoas LGBTQIA+ de um modo geral. Já, 75% des
participantes LGBTQIA+ reportaram sentir que a representatividade na mídia facilitou o entendimento da comunidade LGBTQIA+ por
parte de suas famílias e, além disso, 87% desses respondentes relataram que, ao longo dos dois anos que precederam à pesquisa, houve uma melhora na forma com que a mídia apresenta a comunidade
LGBTQIA+.
Mas de que forma essa mudança na representação de pessoas
trans na mídia tem realmente ajudado a combater o preconceito e aumentar a aceitação de pessoas trans na sociedade? Será que representatividade basta para garantir uma existência digna às pessoas trans?
Trata-se de duas perguntas cruciais no contexto geopolítico atual, em
que assistimos uma avassaladora onda conservadora abalar diversas
democracias no mundo e colocar em risco a já frágil legitimidade das
corpas trans.
As imagens produzidas pelas mídias, levando em conta quem
está por trás da elaboração do roteiro, da produção, das câmeras e
da direção, possuem uma força de representação e de representatividade que pode afetar, profundamente, quem as vê. Como será que
pessoas trans se sentem ao verem outras pessoas trans serem representadas nos filmes e na televisão? São espelho do que desejam para
elas mesmas? São personagens que permitem oferecer perspectivas
variadas sobre elas? São imagens que reproduzem repulsa ou chacota? Fazem rir? Fazem temer? Criam projetos de futuro ou reproduzem preconceitos?
Para iniciar a conversa, representação e representatividade
não são necessariamente sinônimos. Durante muito tempo, grande
parte das personagens trans no cinema e na televisão eram representadas por pessoas cisgêneras de forma estereotipada e só muito
recentemente passaram a ser interpretadas por pessoas trans. Mas,
não necessariamente são imagens positivas ou mais próximas da
146
Comunicação, sexualidades e gênero
experiência cotidiana delas. Como elaborar mídias de forma ética e
responsável que possam efetivamente criar mecanismos de combate
à homofobia e à transfobia?
Uma questão primordial para se pensar na valorização da visibilidade trans refere-se ao respeito ao processo de autodeterminação:
O conceito de autodeterminação nos coloca como
protagonistas de nossas experiências subjetivas,
retirando a autoridade que, na sociedade vigente,
ainda está tutelada por instituições médicas, jurídicas, religiosas e estatais, que nos delimitam em
uma condição subalterna, patológica, criminosa e
imoral. Quando os corpos trans* assumem processos de produções discursivas sobre suas subjetividades, passam a rechaçar o pensamento colonizador e os processos de patologização (Leticia
Carolina Nascimento, 2021, p. 107)
Desse modo, é essencial levar em conta as autodefinições e
as autoidentificações das pessoas trans para que elas mesmas possam construir imagens de si que escapem às cisheteronormatividades e não criem imagens de controle que reproduzam desigualdades
e violências. Essas imagens de controle, segundo Patricia Hill Colins
(2019), criam figuras reificadas e estereotipadas que se reiteram ad
nauseam e não permitem que experiências vividas em sua multiplicidade possam ser reconhecidas. Para perceber essas experiências
de forma ampla, reconhecendo a personitude e a singularidade das
transgeneridades possíveis, é preciso captar, produzir e veicular imagens por meio de uma perspectiva interseccional (COLINS, 2019), e
possibilitar cruzamentos entre gênero, raça, classe, geração, sexualidade, nação, entre outros marcadores sociais da diferença.
Neste capítulo, pretendemos analisar, de forma panorâmica e
preliminar, como a representação e a visibilidade trans na comunicação, notadamente no cinema e na televisão, têm sido elaboradas sob
uma perspectiva transinclusiva. Não temos a pretensão de dar conta
147
SEÇÃO 3
da produção que tem sido realizada no contexto nacional e internacional, tampouco fazer uma análise especializada do ponto de vista audiovisual, mas apontar para questões transversais que possam colaborar para produtos que, concretamente, possam valorizar processos
subjetivos e socio-históricos de autodeterminação de pessoas trans.
E, para iniciar a conversa, apresentamos uma discussão sobre sexo,
gênero e sexualidade.
Sexo, Gênero e Atração
Sexo, gênero e desejo são três elementos observáveis independentes nas dinâmicas socioculturais humanas. Eles criam relações
afetivas, sexuais e/ou românticas que, não necessariamente nesta
ordem, também produzem normatividades em relação a identidades,
subjetividades, formas de família, modos de dominação e desigualdade, práticas e comportamentos, etc.
No modelo binário cisheteronormativo, a correlação entre
esses elementos foi erroneamente promovida a uma relação de causalidade a partir da naturalização de sua articulação. Para podermos
melhor descrever a diversidade humana e entender as limitações
preconceituosas do modelo cisheteronormativo vigente, precisamos
primeiramente definir tais conceitos de maneira precisa e estudar
suas relações. Antes de mais nada, há diferentes teorias que versam
sobre sexo, gênero, sexualidade e desejo que estão sendo elaboradas e debatidas por variadas disciplinas, desde as ciências sociais e
humanas até as ciências exatas e biológicas. E não existe uma única
versão considerada verdadeira, mas variadas perspectivas que podem colaborar para uma compreensão cada vez mais global de como
as diferenças entre esses elementos produziram, ao longo da história, e em diferentes contextos culturais, desigualdades e criaram
hierarquias entre aquelas práticas consideradas “normais” e outras
dissidentes (FOUCAULT, 2001).
Do ponto de vista da biologia (BHARGAVA, 2021; FROMHAGE, 2016; WHITFIELD, 2004), sexo é uma forma de reprodução na
qual o material genético de dois organismos é misturado. A maioria
148
Comunicação, sexualidades e gênero
dos seres vivos multicelulares se reproduz por um tipo de reprodução
sexuada conhecida como anisogamia, que consiste na fusão de dois
gametas distintos, classificados apenas de acordo com o seu tamanho.
Organismos que produzem os gametas pequenos (espermatozoides)
são, então, denominados machos, enquanto que organismos que produzem gametas grandes (ovos) são denominados fêmeas. É essa, e
apenas essa, dicotomia que determina o famigerado “sexo biológico”
de um ser humano. Em outras palavras, sexo é inerentemente binário.
Na maioria das espécies animais, indivíduos exibem diferenças físicas e comportamentais que se correlacionam com o seu sexo.
Essas diferenças físicas, sejam elas cerebrais, cromossômicas, genitais, gonadais ou na proporção dos chamados hormônios sexuais6, são
muitas vezes utilizadas para a identificação do sexo e, por isso, erroneamente tomadas como em correspondência biunívoca com o sexo
do indivíduo. É exatamente ao promover essas correlações fortuitas
a uma série de pseudobijeções7 que se origina o binário de gênero e
a cisheteronorma. Dessa forma, nossa sociedade está alicerçada na
premissa de que indivíduos que nascem com um pênis são machos e,
por isso, devem apresentar o comportamento esperado de homens,
incluindo a atração sexual por mulheres. Elas, as fêmeas, por sua vez,
são indivíduos que nascem com uma vagina, cujo comportamento esperado é definido em oposição ao masculino.
Contudo, essas características físicas que se correlacionam com
o sexo de um indivíduo não são sequer binárias, podendo, muitas vezes,
ser exibidas na forma de um espectro contínuo, interpolando aquelas que
são usualmente atribuídas a machos e fêmeas. Nesse contexto, uma das
perguntas fundamentais da biologia é como a anisogamia se correlaciona
com a diversidade dessas diferenças físicas e comportamentais, como o
6 Ambos os sexos produzem estrógenos, andrógenos e progestinas, porém tipicamente em proporções
diferentes.
7 Na matemática, uma bijeção, ou relação biunívoca, é uma correspondência entre elementos de dois
conjuntos através da qual cada elemento de um dos conjuntos é pareado com um e apenas um elemento do outro e vice-versa. De uma maneira mais informal, podemos pensar que uma bijeção constitui
um dicionário perfeito entre dois conjuntos. Por outro lado, pseudo é um prefixo grego que significa
falso. Assim, da justaposição de pseudo com bijeção, temos uma relação que parece colocar elementos
de dois conjuntos como sinônimos, mas que, de fato, não o faz.
149
SEÇÃO 3
investimento no cuidado parental. Até os anos 1980, mesmo nas ciências humanas, especificamente nos estudos feministas, procurava-se
diferenciar sexo de gênero para mostrar que, a despeito das características biológicas, gênero era uma construção sócio-histórica que
revelava profundas desigualdades entre homens e mulheres (SCOTT,
1994; RUBIN, 2017).
Em mamíferos, incluindo seres humanos, a determinação do
sexo no desenvolvimento de um indíviduo começa com a herença de
alguma combinação dos cromossomos X e Y,8 o chamado sexo cariótipo. As demais características sexuais (cerebrais, genitais, gonadais e
secundárias) são então determinadas pela expressão gênica modulada por diversos aspectos ambientais em uma complexa interação que
está longe de ser completamente elucidada. É exatamente essa complexidade emergente na determinação e diferenciação sexual que dá
origem a toda a diversidade de corpos sexuados que não pode ser acuradamente descrita pela simplicidade desnecessária de um binário.
Agora, com uma definição do que é sexo e de como ele se correlaciona com as diversas características sexuais, podemos definir gênero.
No contexto deste artigo, entendemos a identidade de gênero de uma
pessoa como a sua percepção sobre a sua existência sexuada em um dado
contexto ambiental, cultural e social. Em outras palavras, como ela interpreta as suas demais características sexuais levando em conta aspectos
do ambiente, cultura e sociedade na qual está inserida. Dessa forma, não
apenas a identidade de gênero emerge de uma complexa relação entre
fatores ambientais, biológicos, culturais e sociais, como pode ser apenas
autodeterminada. Definimos, então, gênero como o conjunto de todas
as identidades de gênero possíveis dotado de relações que possibilitam
inúmeras combinações que envolvem subjetividades, construções corporais, comportamentos, desejos, formas de expressão, formas de aliança,
diferenciações, relações multiespécie etc. (STRATHERN, 1988).
Se a diversidade de corpos sexuados já não admite uma descrição binária, o gênero, que emerge a partir dela através de uma
8 As combinações XX e XY são apenas as mais comuns, mas outras combinações, como X, XXX, XXY e
XYY, são possíveis.
150
Comunicação, sexualidades e gênero
complexa interação com o ambiente e a sociedade, muito menos. Assim, em conformidade com o que observamos na natureza tal como a
pensada pelas ciências biológicas, existe uma infinidade de gêneros
cuja descrição transcende em muito a simplicidade daquela descrita
pelo modelo binário envolvendo apenas homem e mulher. Contudo,
vislumbrar, nomear e catalogar tamanha infinitude com mentes tão
doutrinadas por essa construção binária, que nos foi forçada desde a
mais tenra infância, é uma tarefa deveras complicada. Portanto, para
os fins deste capítulo, contentamo-nos apenas a admitir a existência
de infinitos gêneros, dois dos quais são homem e mulher.
Por atração sexual, afetiva ou romântica, entendemos o conjunto de gêneros que despertam desejo em uma dada pessoa, que é
mais comumente chamada de “orientação sexual”. Não há uma determinação daquilo que cada ume faz com sua sexualidade ou com
seu desejo por outrem. Do ponto de vista filosófico, o desejo pode ser
imaginado como um fluxo, que não necessariamente é controlado
ou escolhido (DELEUZE; GUATTARI, 2017; BUTLER, 2003). Já, do
ponto de vista biológico, a atração sexual ou romântica também depende de uma interação complexa entre os hormônios sexuais e os
hormônios peptídicos (como a oxitocina e a vasopressina) modulada
pela cultura, que encoraja certos tipos de comportamento em detrimento de outros. Usualmente, empregamos o gênero como referência
para classificar uma sexualidade. Assim, a atração ou desejo por pessoas do mesmo gênero são denominadas homossexuais9, enquanto
que pessoas que se atraem por outros gêneros, heterossexuais10. Já,
pessoas que sentem atração por múltiplos gêneros se encaixam em alguma das multissexualidades, como bissexualidade e pansexualidade.
Finalmente, existem pessoas que sentem pouca ou nenhuma atração
sexual, denominadas assexuais. Neste sentido, a relação entre sexo,
9 As identidades prevalentes nesse contexto são a gay e a lésbica. A primeira reservada para pessoas
alinhadas ao masculino, por exemplo, homens, que se atraem por pessoas alinhadas ao masculino,
enquanto que a segunda para pessoas alinhadas ao feminino, por exemplo, mulheres, que se atraem
por pessoas alinhadas ao feminino.
10 Note que aqui já estendemos o conceito usual de heterossexualidade que, normalmente, é reservado
para descrever apenas a atração de homens (mulheres) por mulheres (homens).
151
SEÇÃO 3
gênero e desejo não é linear muito menos causal, mas permite infinitas combinações (BUTLER, 2003).
Ao empregar as pseudobijeções para amarrar genitália (pênis
ou vagina) e gênero (homem ou mulher) com a heterossexualidade,
nossa sociedade cria a chamada cisheteronorma que privilegia duas
classes de corpos em detrimento de uma miríade de corpas que se
tornam, pois, ininteligíveis socialmente. São exatamente essas corpas
marginalizadas que constituem a chamada comunidade LGBTQIA+,
compostas por pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexuais, assexuais, entre outras sexualidades e gêneros que transcendem a cisheteronorma. Neste contexto, entendemos uma pessoa
transgênero ou, mais simplesmente, trans, aquela cujo gênero não
corresponde ao atribuído ao nascimento através da pseudobijeção entre genitália e gênero11. Reciprocamente, uma pessoa que não é trans
é denominada cisgênero ou, mais simplesmente, cis.
Representação e Visibilidade Trans nas Telas
A representação acurada de pessoas trans na televisão enfrenta
diversos problemas, cuja origem pode ser traçada, de acordo com Booth
(2015), por uma interação destrutiva entre a cisnormatividade e a dependência intrínseca desta mídia em imagens. Em particular, espectadores necessitam de uma confirmação visual da identidade de gênero
para tornar os personagens exibidos na tela inteligíveis. Além da grande
dificuldade em apresentar identidades de gênero que não correspondam
imediatamente à aparência física como acontece, notadamente, com
pessoas trans não passáveis ou não-binárias, isso propicia uma caracterização que superenfatiza, de modo muitas vezes caricato, os estereótipos de gênero cisnormativos, como o uso exagerado de maquiagem e a
interpretação de personagens trans por parte de atories cisgênero.
Grande parte des personsagens trans que surgiram nas telenovelas e nos filmes, até os anos 2000, eram representados por profisisonais
11 Consequentemente, qualquer identidade de gênero que não seja a de homem ou a de mulher é, de
acordo com a nossa definição, necessariamente trans, incluindo, por exemplo, pessoas não-binárias.
152
Comunicação, sexualidades e gênero
cis, criando, na maioria das vezes, imagens muito exageradas e cômicas, sobretudo de pessoas transfemininas, como foi o caso da personsagem Ana Bela, interpretada por Ney Latorraca, na novela Um Sonho
a Mais, de 1985, dirigida por Lauro Cesar Muniz, que fazia o público
rir. Segundo pesquisas de Anderson Luiz de Mello, “Entre 1985 e 2020
foram mais de vinte personagens trans em telenovelas nacionais, a
maioria expressiva delas interpretadas por mulheres e homens cis.
Nas poucas ocasiões em que a regra foi quebrada, uma mesma atriz
trans, Rogéria, foi escalada para três desses papéis, em Tieta (1989),
Paraíso Tropical (2007) e Babilônia (2015)” (2022, p. 32). Rogéria,
conhecida como “a travesti da família brasileira”, falecida em 2017,
foi maquiadora, atriz, transformista e participou de diversas novelas
e filmes, entre eles a famosa novela Tieta com a personagem Ninete12.
Atrizes e modelos transfemininas que passaram a adquirir visibilidade nas telas estavam voltadas, sobretudo, para o mundo do carnaval
e da moda, reproduzindo, de certo modo, um desejo objetificante de
espectadores curioses e desejantes por corpas exóticas, que podiam
fazer rir e divertir a plateia13. Além disso, elas estavam sempre sob
suspeita e se tentava revelar seu “verdadeiro sexo”, tanto com relação
a modelos, como Roberta Close, quanto em relação às personagens
nas novelas, como Ninete (MELLO, 2022). “Será que ela é?”. E, portanto, ainda não havia espaço para visibilidades trans que pudessem
contemplar outras experiências e expressões de gênero.
Só mais recentemente, em 2009, uma primeira atriz trans, Fabiana Brazil, em novela do SBT, interpretou uma personagem trans,
com uma pequena participação especial, na novela Vende-se um Véu
de Noiva, dirigida por Íris Abravanel. Conforme Anderson Mello, “desde a estreia de Rogéria em Tieta no ano de 1989, e suas participações
12 Naquele momento, no Brasil, muitas travestis estavam em destaque na mídia, como Roberta Close e
Telma Lipp. Para Lux Lima, nesse período, “a atenção midiática e o regime discursivo biomédico que
circulava na imprensa tiveram relevância no imaginário popular ao produzirem uma imagem ambivalente da travestilidade, evidenciando o pressuposto de relação opositiva entre verdade, permanência
e natureza, de um lado, e falsidade, contingência e construção social de outro.” (LIMA, 2022, p. 122).
13 Nos anos 1990, havia também uma forte presença de drag queens em programas de auditório, tal
como a figura de Vera Verão (Jorge Lafond), um dos poucos atores negros e gays que circulava por
emissoras importantes.
153
SEÇÃO 3
em outras obras ao longo de quase três décadas, nenhuma outra telenovela da Rede Globo contou com atores ou atrizes transexuais no
elenco, até Salve Jorge (Rede Globo, 2012-2013)” (2022, p. 50). Nessa
novela, dirigida por Gloria Perez, a atriz trans Maria Clara Spinelli interpretou Alice, uma mulher trans que foi vítima de uma rede internacional de tráfico humano, tema que reproduz imagens de controle em
relação a pessoas transfemininas, relacionadas à exploração sexual.
Além de Alice, também havia uma personsagem cis e lésbica que foi
interpretada por Thammy Miranda, atualmente vereador pela cidade de São Paulo, que se identifica como homem trans. Essa diretora
também foi a primeira que introduziu um personagem transmasculino nas telenovelas, mas que foi interpretado por uma atriz cisgênera,
Carol Duarte, em Força do Querer, em 2017.
Em meio a inúmeros personsagens trans interpretados por atories cis, em 2018, a novela O Sétimo Guardião, dirigida por Aguinaldo Silva, contou com a participação da conhecida Nany People, mulher
trans, humorista, que interpretou o papel de Marcos Paulo, supostamente uma pessoa transfeminina, mas que manteve o pronome masculino, o que mostra uma questão altamente problemática e desrespeitosa
para pessoas trans, para as quais os direitos ao uso do nome social e à
mudança do nome civil são fundamentais. E, por fim, mais recentemente, duas atrizes transfemininas puderam interpretar papéis de personsagens transfemininas: Glamour Garcia, em A Dona do Pedaço (Walcir Carrasco, Rede Globo, 2019), com a personsagem Britney, que sofre
com as agruras de não ter sua identidade de gênero respeitada pelo seu
amado, um homem cisgênero heterosexual, e Gabrielle Joie, em Bom
Sucesso (Luiz Henrique Rios, Rede Globo, 2019-2020), que interpretou
a adolescente Michelly, que sofre transfobia no ambiente escolar.
Nesses exemplos citados, é notório como ainda é incipiente a representatividade trans nas telenovelas brasileiras e uma quase ausência
de transmasculinidades nos elencos e nos enredos. Há também um reforço das cisheteronormatividades pela insistência da presença de atories cisgênero interpretando todos os papéis e, sobremaneira, pessoas
brancas. Assim, reforça-se uma imagem falseada – transfake – que
esbarra também em black face, essa última tão presente na história
154
Comunicação, sexualidades e gênero
do cinema ocidental. Essa questão toca em um tema extremamente
delicado para pessoas trans, que é o da passabilidade. Esse conceito
originou-se em discursos raciais e, desde então, tem sido aplicado a
situações nas quais um indivíduo de um grupo marginalizado é lido
ou percebido como parte do grupo dominante e, com isso, recebe condicionalmente os privilégios associados ao grupo dominante.
No caso de pessoas trans, passar significa ser lida e tratada como
cis e, com isso, evitar que seu gênero seja questionado ou considerado
não natural ou uma cópia de segunda categoria dos gêneros ditos “verdadeiros”. Muitas vezes, a passabilidade significa tentar sobreviver em
meio a um ambiente extremamente hostil, violento e transfóbico. Não
obstante, as narrativas envolvendo pessoas trans utilizam recorrentemente intervenções cirúrgicas como ritos de passagem para validar as
identidades trans. Afinal, no contexto do binário cisheteronormativo,
um gênero só é inteligível se corresponder ao conjunto “correto” de
genitais. Além de contribuir para a patologização das existências trans,
tais narrrativas criam toda uma fetichização em torno das cirurgias popularmente conhecidas como de “mudança de sexo”.14
O filme a Garota Dinamarquesa15, que retrata a vida da pintora e mulher trans Lili Elbe e sua esposa Gerda Wegener, é um exemplo
paradigmático da visão cisnormativa sobre as narrativas trans. Para
começar, há um foco desnecessário na obsessão de Lili com a sua aparência, notadamente, antes de sua cirurgia de readequação genital, reforçando a visão de que se trata de um homem se vestindo de mulher.
Representação que, em particular, reduz todo o complexo processo
de se entender uma pessoa trans em um breve e raso momento de
epifania, quando ela veste roupas femininas pela primeira vez. A sua
cirurgia serve, então, como rito de passagem para consertar o seu
14 Além de biologicamente incorreto, já que tais cirurgias não permitem a produção do outro conjunto
de gametas, trata-se de um termo extremamente transfóbico e depreciativo. A nomenclatura correta
e transinclusiva para tais procedimentos é cirurgia de (re)adequação genital. Outros termos como cirurgia de confirmação de gênero, apesar de empregados parcialmente pela própria comunidade trans,
também são problemáticos, ao deixar subentendida a sua necessidade para que o gênero de uma pessoa seja confirmado. Colocar qualquer procedimento médico como uma condição necessária para o
reconhecimento de uma identidade trans corresponde a patologização dessas existências.
15 Danish Girl, Tom Hooper, 2015.
155
SEÇÃO 3
corpo defeituoso e lhe validar como mulher. A centralidade da cirurgia na narrativa serve para enfatizar o tropo cisnormativo do “nascida no corpo errado” e corroborar a medicalização e a patologização
das identidades trans16.
A questão da passabilidade também revela que, em muitas
situações, as transgeneridades também estão diretamente relacionadas a questões racializadas (SNORTON, 2017). Como demonstra o
documentário Disclosure (SAM FEDER, 2020), personagens trans e
negres são retratados nas mesmas chaves estereotipadas, entre a chacota, a repulsa e fetichização e revelam que há a construção de um
gênero racializado, onde corporeidades consideradas dissidentes, que
não estão ajustadas às normas da branquitude e da cisheteronormatividade, rapidamente são reproduzidas como exotizantes, anormais,
irreais. Raça e gênero aqui se encontram, para além da cor da pele.
Desde 2005, a GLAAD tem acompanhado anualmente a diversidade das séries televisivas quanto à presença de personagens
LGBTQIA+ regulares, isto é, aqueles personagens principais ou secundários que aparecem regularmente nos episódios. Os relatórios
analisavam inicialmente apenas os seriados veiculados no horário
nobre (prime time) por canais abertos estadunidenses (ABC, CBS,
FOX, NBC, The WB, UPN). A partir de 2007, passaram também a
contemplar a programação da televisão a cabo e, a partir de 2015, dos
canais de streaming.
Na figura 1, exibimos a sequência temporal do número de personagens LGBQIA+ (linha vermelha) e trans (linha azul) por temporada. Ambas as curvas mostram tendências quadráticas similares de
crescimento, com a relação da representatividade trans crescendo ao
longo dos últimos anos, correspondendo a cerca de 10% do número de personagens LGBQIA+ no relatório da temporada 2021-2022.
Esse aumento substancial da representatividade LGBTQIA+ e, em
particular, trans na temporada de 2015-2016 pode ser atribuído à
16 Outro filme que trata do drama da cirurgia de readequação genital é Girl, drama belga, de Lukas
Dhont, de 2018, que centraliza sua narrativa na questão da disforia de gênero da personagem e, de um
modo pouco problematizado, na genitalização da identidade de gênero transfeminina.
156
Comunicação, sexualidades e gênero
inclusão dos canais de streaming na contabilidade de personagens
LGBTQIA+. Já a queda de representatividade em 2020-2021 pode ser
creditada aos impactos da pandemia de covid-19.
Figura 1 – Gŕafico em escala logarítmica da representatividade
LGBQIA+ (vermelho) e representatividade trans (azul) em
programas de televisão (canais abertos estadunidenses, cabo e
streaming), de 2005 a 2022, de acordo com os relatórios “Where
we are on TV” da GLAAD de 2005 a 2022. Em vermelho (resp.
vermelho) mais claro estão as linhas quadráticas de tendência.
É importante ressaltar que essa maior representatividade trans
encontrada em serviços de streaming não pode ser necessariamente atribuída a um melhor entendimento ou aceitação da diversidade.
Canais de streaming operam sob um sistema de negócio diferente da
televisão aberta e a cabo e, por isso, não estão sujeitos aos mesmos vínculos comerciais. Booth (2015) argumenta que a natureza comercial da
televisão molda sua programação de forma a manter em sua audiência
o maior número simultâneo de consumidores possíveis assistindo ao
mesmo programa. Em outras palavras, eles não querem que os detentores de dinheiro mudem de canal. Consequentemente, não basta que
157
SEÇÃO 3
sua programação seja apenas inteligível para a camada dominante da
população, mas que, sobretudo, agrade seus interesses. Dada a hegemonia da pseudo bijeção sexo-gênero-sexualidade em nossa sociedade ocidental, os produtores são, de certa forma, obrigados a favorecer a zona
de conforto cisheteronormativa, em detrimento dos interesses e necessidade de públicos marginalizados, como a população trans. Por outro
lado, serviços de streaming não estão sujeitos à opressão da mudança
de canal, dada a forma como o conteúdo disponível em tais plataformas
é acessado e consumido de forma individualizada. Assim, para essas empresas, é mais proveitoso comercialmente ter uma maior diversidade em
seu repertório e com isso agradar as mais diversas parcelas da população.
Já na figura 2, analisamos separadamente a contribuição das identidades
não binárias, transfemininas e transmasculinas, à representatividade
trans. Os gráficos evidenciam uma nítida predominância da representação das identidades transfemininas perante às demais até a temporada
de 2021-2022, quando as identidades não-binárias ganham um ímpeto de representatividade surpreendente. As temporadas de 2010-2011,
2011-2012 e 2014-2015, em que a representatividade transmasculina
domina, podem ser consideradas valores atípicos e atribuídas ao impacto da variação estatística em um conjunto com poucos elementos.
Figura 2 – Gráfico da representatividade trans em programas de
televisão (canais abertos estadunidenses, cabo e streaming) de 2005 a
2022, de acordo com os relatórios “Where we are on TV” da GLAAD de
2005 a 2022. A curva rosa corresponde a personagens transfemininas17,
a azul, a transmasculinos, e a roxa, a não bináries. As curvas suaves
correspondem às respectivas linhas de tendência quadráticas.
17 Por pessoas transfemininas (respectivamente, transmasculinas), entendemos pessoas trans cuja
identidade de gênero esteja alinhada ao feminino (masculino). Preferimos o uso desses termos, em
contraponto aos comumente empregados, mulheres trans e homens trans, em virtude de sua maior
generalidade. Notadamente, nem toda travesti se identifica como mulher e, por isso, o termo mulher
trans não lhe descreve. Consequentemente, se queremos denunciar a má representação, tanto de travestis quanto de mulheres trans, o termo mais adequado é pessoas transfemininas.
158
Comunicação, sexualidades e gênero
Serano (2007) argumenta que a disparidade de representação
entre transmasculinos e transfemininas na mídia está intimamente ligada à diferença de valores que a nossa sociedade associa à masculinidade e
à feminilidade, em outras palavras, ao sexismo. Assim, ao considerarmos
características tipicamente associadas ao masculino superiores às tipicamente associadas ao feminino, torna-se incompreensível por que uma
pessoa abriria mão dos privilégios masculinos para se “transformar”18 em
uma mulher. Isso torna as transfeminilidades escandalosas e passíveis de
serem sensacionalizadas pela mídia. Por outro lado, pessoas transmasculinas são vistas como subindo na escala de privilégio social, algo não
apenas normal, mas esperado. Ademais, é impossível sensacionalizar
as transmasculinidades sem colocar a própria masculinidade em questão. Resta, portanto, que o único motivo para uma pessoa transfeminina
transicionar seria obter o único tipo de poder que mulheres têm em nossa
sociedade: a habilidade de expressar a feminilidade e para atrair homens.
Ao reduzir as identidades transfemininas a meros fetiches e perversões
18 Empregamos a palavra transformar entre aspas, pois, apesar de não corresponder à forma como a
maioria das pessoas trans compreende a sua transição, trata-se da visão mais socialmente difundida ou, ao menos, daquela que é na maioria das vezes retratada em obras ficcionais. A pessoa trans,
notadamente as binárias, são representadas como homens que se transformaram em mulheres ou,
reciprocamente, mulheres que se transformaram em homens.
159
SEÇÃO 3
sexuais, a mídia garante que pessoas transfemininas não têm nenhum
valor além do seu potencial de sexualização.
Esse potencial é então explorado através da representação de personagens transfemininas como interessadas única e exclusivamente em
atingir uma aparência ultrafeminina. Serano (2007) aponta a existência
de dois arquétipos principais: a transexual enganadora e a transexual
patética19, cuja diferença consiste primordialmente em sua passabilidade. As enganadoras, usualmente interpretadas por mulheres cis, são
consideradas uma ameaça, por usarem a sua passabilidade completa e,
consequentemente, a sua beleza e sensualidade dentro dos padrões cisheteronormativos para enganarem homens cisgênero e heterossexuais a se
apaixonarem por um outro “homem”. A revelação de sua transgeneridade
é, então, empregada como um plot twist para evocar nojo nes expectadories. Esse nojo, de acordo com Lester (2015), dispara respostas emocionais e físicas perenes que evocam ódio e promovem a mercantilização da
violência contra pessoas trans como forma de entretenimento.
Serano (2007) cita dois exemplos paradigmáticos desse arquétipo enganador. O primeiro é a personagem Dil do filme Traídos pelo
Desejo20, que tem a sua transgeneridade revelada durante uma cena
de amor com o protagonista masculino Fergus. Ao descobrir que Dil é
biologicamente macho, Fergus dá um tapa em Dil e corre para vomitar no banheiro. O segundo é a tenente Lois Einhorn, vilã do filme Ace
Ventura – Um Detetive Animal21, cuja genitália aquendada é exibida
ao final do filme como parte das evidências usadas para desmantelar
um esquema criminoso. Na sequência, todos os policiais presentes vomitam ao som do tema de Traídos pelo Desejo.
Por outro lado, as patéticas são pessoas transfemininas que, apesar de todo o esforço em performar a feminilidade, são extremamente não
passáveis, seja por exibirem características físicas ou comportamentais
19 Optamos excepcionalmente por empregar o termo transexual nesse caso, por, além de ter sido a palavra originalmente utilizada por Serano, enfatizar a patologização das identidades trans representadas.
20 The Crying Game, Neil Jordan, 1992.
21 Ace Ventura: Pet Detective, Tom Shadyac, 1994.
160
Comunicação, sexualidades e gênero
usualmente atribuídas a homens. É exatamente dessa contradição violenta entre a identidade de gênero e a aparência física que surge, de acordo
com Miller (2015), um humor fársico, ou seja, aquele que resulta de uma
identidade equivocada, disfarce ou outra situação improvável, já que, apesar do desejo (e esforço) de serem mulheres, elas não conseguem mudar o
fato de que são homens. Assim, ao rir da patética, a audiência se distancia
dela, subentendendo que é socialmente aceitável zombar de identidades
trans. Exemplos de personagens patéticas são Roberta de O Mundo Segundo Garp22, Bernadette de Priscilla, A Rainha do Deserto23 e Henrietta
de As Aventuras de Sebastian Cole24. Diferentemente, do que acontece
com as enganadoras, cujo pênis é revelado em um momento crítico da
história para evocar nojo e violência, a genitália das patéticas, usualmente
representada após algum procedimento como castração ou cirurgia de redesignação genital é empregada como um alívio cômico.
Assim, Serano (2007) aponta que, independentemente do arquétipo adotado, a representação de pessoas transfemininas é sempre
projetada para validar a percepção de que pessoas transfemininas são
de fato homens. Nas palavras dela:
As patéticas podem até querer ser mulheres, mas as
suas aparências e os seus comportamentos masculinos
sempre as denunciam. Por outro lado, enquanto as enganadoras são, inicialmente, lidas como mulheres de
“verdade”, elas são, eventualmente, reveladas como lobos em pele de cordeiro – uma ilusão que é o produto
de mentiras e das tecnologias médicas modernas – e,
por isso, punidas de acordo.25 (SERANO, 2007)
22 The World According to Garp, George Roy Hill, 1982.
23 The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, Stephan Elliott, 1994.
24 The Adventures of Sebastian Cole, Tod Williams, 1998.
25 Tradução de “ ‘Pathetic’ transsexuals may want to be female, but their masculine appearances and mannerisms always give them away. And while the ‘deceiver’ is initially perceived to be a ‘real’ female, she is
eventually revealed as a wolf in sheep’s clothing—an illusion that is the product of lies and modern medical
technology—and she is usually punished accordingly.”
161
SEÇÃO 3
Além dos problemáticos arquétipos que acabamos de discutir, ao analisar 102 episódios de séries de televisão envolvendo
pessoas trans exibidos no período de 2002 a 2012, a GLAAD identificou que26:
•
•
•
•
em 40% dos episódios, a pessoa trans é colocada no papel de
vítima;
em 21% dos episódios, a pessoa trans é colocada no papel de
vilã ou assassina;
em 20% dos episódios, a pessoa trans é descrita como uma trabalhadora sexual;
em 61% dos episódios, é empregado termos transfóbicos.
Ademais, Reitz (2017) aponta que seriados policiais, como
Law & Order (1990-2010), CSI (2000-2015), NCIS (2003-) e The
Closer (2005-2012), não apenas representam usualmente pessoas
transfemininas como vítimas, seja de homicídio ou de crimes sexuais, mas também mostram o tratamento desumano que lhes é
dispensado pelas forças policiais. O assédio é constante e envolve
tanto o uso de pronomes masculinos e o do nome morto27 quanto
de termos ofensivos. A reiteração de personagens transfemininas
como vítimas de assassinatos e como suspeitas de crimes reforça
as imagens de controle que as associam a pessoas a quem se deve
temer e não proteger, justamente uma realidade contrária a que
vivem, por exemplo, no Brasil, travestis negras, que são as maiores
vítimas de transfeminicídio perpetrados por homens cisgêneros.
Além disso, esta associação a uma suspeição de seus comportamentos também reforçam políticas transexcludentes, que são cada
26 GLAAD, Victims or Villains: Examining Ten Years of Transgender Images on Television. Disponível em: https://www.glaad.org/publications/victims-or-villains-examining-ten-years-transgender-images-television.
27 Nome morto refere-se ao nome de registro, no caso de pessoas trans que ainda não retificaram os seus
documentos, ou ao nome anterior, no caso daquelas que retificaram, no lugar de seu nome verdadeiro
sem o seu consentimento.
162
Comunicação, sexualidades e gênero
vez mais reivindicadas por feministas radicais28 e outros setores
conservadores.
Conclusão: e para além das telas?
Ao longo deste capítulo, apontamos diversas situações em que
a representação de pessoas trans nas telas é derrogatória e fomenta a
manutenção de preconceitos e a propagação de discurso de ódio contra uma das subpopulações mais marginalizadas. Em outras palavras,
falamos o que não deve ser feito e seu porquê. Mas, se queremos melhorar esse cenário, resta a pergunta: o que es produtories de conteúdo devem fazer?
Um bom começo é empregar atories trans para representar
personagens trans. Mas, como a série Orange Is The New Black (OITNB, 2013-2019) exemplifica, trata-se de uma condição necessária,
porém não suficiente. Em OITNB, vemos pela primeira vez uma atriz
trans e negra, Laverne Cox, interpretando uma mulher trans negra, a
detenta Sophia Burset, que foi presa por fraude bancária para pagar
por sua cirurgia. Apesar de ter sido considerada como o melhor exemplo de representatividade trans na televisão, a série cai em diversos dos
tropos que discutimos anteriormente, como: um foco desnecessário na
transição, o contraste do antes e depois, a narrativa de ter nascido no
corpo errado, objetificação e sexualização de seu corpo, e a simultânea
vitimização e vilanização das identidades trans (MCLAREN, 2021).
28 As feministas radiciais, notadamente as chamadas transexcludentes, bastante atuantes nas redes digitais, têm ressuscitado, de forma anacrônica e descontextualizada, debates que nasceram de certos
movimentos feministas dos anos 1980 sobretudo no combate à exploração sexual e à pornografia e
que, hoje, terminam por reforçar essencialismos sobre o que se entende por mulher, mulheridade e feminilidade. Organizadas principalmente por meio de publicações, páginas e comunidades em distintas
redes sociais, fazem constantemente ataques à legitimidade dos transfeminismos com o argumento de
que corpos transfemininos não poderiam ser identificados como mulheres, pois essas, segundo elas,
definir-se-iam fundamentalmente pela presença de seus órgãos genitais e reprodutivos. Nessa linha
de pensamento, pessoas transfemininas, inclusive, seriam vistas como “falsas mulheres”, o que reforça
inúmeras formas de transfobia e de sexismo. Além disso, do ponto de vista do feminismo radical,
a prostituição é vista, essencialmente, como objetificação e exploração do corpo feminino, retirando
toda a agência daquelas que oferecem serviços voltados aos mercados do sexo.
163
SEÇÃO 3
Lançada em 2015 às sombras de OITNB, a série Sense8 (20152018) revolucionou a representação trans na mídia como nunca antes
visto. Foi a primeira série televisiva a possuir uma protagonista trans
(Nomi Marks) interpretada por uma atriz trans (Jamie Clayton) e a ser
criada, escrita e dirigida por pessoas trans (as irmãs Lana e Lilly Wachowsky). Talvez, por essa combinação até então impensada, a série
consegue não apenas escapar dos tropos usuais, mas reinterpretá-los
de uma maneira a apresentar narrativas inovadoras em que a transgeneridade surge como uma forma de percepção que transcende os limites de raça, gênero, corpo e cultura (KEEGAN, 2016). Diferentemente
de outras personagens trans, Nomi não é definida pela sua transgeneridade, muito pelo contrário, trata-se de apenas mais um aspecto de
sua vivência, que inclui ser uma hacker, ativista e blogueira política.
Ela também tem um relacionamento saudável com a sua namorada
Amanita, com quem casa no final da série, mostrando não apenas que
pessoas trans merecem ser amadas, mas também quebrando a heteronormatividade com que são frequentemente representadas.
Há também outras produções que apontam caminhos mais
próximos da multitude de experiências trans, e que oferecem possibilidades de construção de redes de afeto e de apoio, de formação de
famílias escolhidas, de novas formas de paternidade e maternidade
possíveis, de processos de envelhecimento com respeito e dignidade,
etc. Esse é o caso de Manhãs de Setembro, uma série brasileira criada
por Luís Pinheiro e Dainara Toffoli (Prime Video, 2021), cuja protagonista principal é a mulher trans Cassandra, interpretada pela cantora
e atriz Liniker. Aqui, mostra-se, entre outras temáticas, as complexidades de uma maternidade possível e ambivalente de Cassandra, e de
uma história afetiva que é narrada a partir de um olhar cuidadoso e
nada romantizado de diferentes personagens.
Outro exemplo, é a série Pose (2018 - 2021), criada a partir do
documentário Paris is Burning (Jennie Livingston, 1980), que traz à
cena diversas atrizes trans, que interpretam personagens trans, que
vivenciam o mundo extraordinário da cultura ballroom, bailes negros
gays e trans, nos anos 1980 e 1990, em Nova Yorque. Entre a busca
164
Comunicação, sexualidades e gênero
por reconhecimento nos bailes e seu mundo legendário, a situação de
precariedade social e econômica e a pandemia da Aids, a série revela
os desafios e desejos de ser quem se é e sonhar com a possibilidade de
outros mundos possíveis, outras formas de família e cuidados maternos (nas houses), e lidar com a sociedade cisheteronormativa e branca
de modo jocoso e irônico, apontando também as contradições entre a
fama e a invisibilidade.
Todavia, se as séries têm sido um espaço importante para a
representatividade e a representação trans, elas não estão disponíveis
nos canais abertos e só podem ser veiculadas para um público mais
restrito. São telas trans inclusivas para um nicho reduzido de espectadories, enquanto que nas telenovelas ainda se mantém a presença trans de forma residual. Como ampliar a veiculação de produções
para além dos canais de streaming?
Boas práticas deveriam identificar as principais pautas dos
movimentos trans – suas reivindicações, direitos, desafios, anseios –
e respeitar contextos locais nos quais essas problemáticas têm sido
produzidas; respeitar e valorizar as autoidentificações e as múltiplas
identidades trans, incluindo questões étnico-raciais e interseccionais;
possibilitar uma maior visibilidade às pessoas transmasculinas e à
construção de masculinidades não hegemônicas; dar voz e, principalmente, dar ouvidos a pessoas trans que são profissionais de comunicação e incluí-las em todos os processos de produção cinematográfica
e televisiva.
Pessoas trans sempre estiveram presentes nas telas, como
profissionais e, também, foram espectadoras, projetando seus medos, expectativas, frustrações e, antes de mais, ansiando que houvesse
imagens nas quais elas se sentissem representadas e reconhecidas. E
você, profissional e estudante de comunicação, tem colaborado para
quais imagens? Se tornará ume aliade?
165
SEÇÃO 3
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167
SEÇÃO 4
Comunicação, etnias e antirracismo
A capacidade comunicacional da
publicidade antirracista: caminhos
para pesquisas e intervenções
Leandro Leonardo Batista
Francisco Leite
Resumo
O objetivo deste capítulo é compartilhar a organização de uma
estrutura teórica para pesquisas antirracistas na propaganda, que informe o campo sobre os estudos que estão produzindo conhecimentos
para a compreensão das expressões e efeitos da articulação entre publicidade e antirracismo. De cunho teórico, este trabalho se organiza metodologicamente a partir de um levantamento da literatura, no
qual são considerados especialmente como fontes meta-análises recentes, revisões e estudos experimentais (empíricos e de laboratório)
identificados e oriundos do campo das pesquisas da publicidade e de
outras áreas do saber, como, por exemplo, a educação e a psicologia
social e cognitiva. Implicações teóricas e práticas são discutidas em
diálogos com autores de várias partes do mundo que, a partir de distintos contextos de pesquisas, falam de uma diversa gama de pontos
de partida teóricos e metodológicos, tensionando assim os caminhos
e os desafios do engajamento da publicidade às práticas antirracistas.
Palavras-chave: publicidade; antirracismo;
racismo; mudanças sociais.
171
SEÇÃO 4
Introdução
Este capítulo é um convite à reflexão e um chamado urgente
para o exercício de repensar os espaços publicitários, da produção
aos consumos (material e imaterial), considerando, em seus fluxos,
perspectivas e ações antirracistas, que colaborem para o enfrentamento e a superação do racismo nesses espaços, inscrevendo espelhamentos e mudanças na sociedade. Verificando o passado recente
e projetando olhares para o futuro, parece não haver dúvida que a
sociedade atravessa um período de profundas transformações, no
qual o passado e o presente estão sendo acionados e interrogados por
revisões e reparações urgentes acerca dos efeitos de seus processos
e ações históricos de opressão, como, por exemplo, o racismo estrutural. Essas mudanças vêm exigindo da conjuntura social reconhecimento e práticas que fomentem exercícios de repensar, reimaginar e
construir um futuro imediato no qual a justiça social e a justiça racial,
efetivamente, sejam paradigmas do desenvolvimento de outros horizontes civilizatórios.
O racismo, conforme Patricia Hill Collins (2000), pode ser
entendido como um sistema de poder e privilégio díspares no qual
os indivíduos são divididos em grupos ou “raças”1 e as recompensas
sociais, isto é, as vantagens, benefícios e cortesias são distribuídas de
modo desigual, considerando a classificação racial desses indivíduos.
Rashawn Ray e Genesis Fuentes (2020), pelas lentes da Critical Race Theory (Teoria Crítica Racial), explanam que os indivíduos
brancos frequentemente se beneficiam dessas recompensas e privilégios sociais, econômicos e culturais. Desse modo, o racismo reflete estruturas sociais racializadas de poder baseadas no privilégio dos
brancos e na perpetuação da marginalização e opressão de pessoas não
brancas. Essa marginalização e opressão, de populações negras, por
exemplo, revelam expressivamente um racismo estrutural e sistêmico,
1 O uso desse termo segue a orientação de Pedersen, Walker e Wise (2005), que reconhecem os problemas associados ao seu uso, o que implica uma realidade biológica que é refutada por biólogos e
geneticistas. No entanto, adota-se este termo para consistência com pesquisas anteriores e com o uso
coloquial contemporâneo.
172
Comunicação, etnias e antirracismo
que tem as suas raízes nos resultados das longas histórias europeias
de escravidão transatlântica, genocídio e colonialismo.
John Solomos (2020) observando as primeiras duas décadas do
século XXI, em diversas partes do mundo, aponta que, naquele período, o racismo seguiu operando, se adaptando e se fortalecendo diante
das questões das diferenças raciais e identidades nacionais, atualizando
a operação de suas formas com novas pautas, como as questões acerca
da imigração, refugiados, terrorismo e multiculturalismo, entre outras.
Nesse prisma, é pertinente também ressaltar que essas ideias
e narrativas racistas articulam imagens de controle estereotipadas
associadas aos negros e às negras, conforme há tempos alerta Patricia Hill Collins (2019). Essas imagens de controle, ainda segundo
Collins, vêm refletindo, portanto, ao longo da história, informações
e conteúdos produzidos pelas políticas e práticas racistas, que acomodam um repertório racional, nefasto e contínuo de justificativas
ideológicas poderosas.
Essas narrativas e ideias, continuamente, também vêm informando e fomentando o desenvolvimento de vieses implícitos (implicit
bias), que acabam por influenciar consciente ou inconscientemente as
percepções e as interpretações sociais. Esses vieses implícitos podem
ser observados, grosso modo, também como “distorções” ou “vícios
cognitivos”, que tais narrativas buscam condicionar socialmente de
modo individual e coletivo.
Essa dinâmica de construção de sentidos espelha e dialoga
com as ideias de constituição de uma ideologia, isto é, um corpo de
ideias que reflete os interesses de um grupo de pessoas, conforme Collins (2019), bem como o conceito de desenvolvimento de um complexo imaginário, como articula Almeida (2019). A exemplo de outras
produções midiáticas, a publicidade, tradicionalmente, vem apoiando
e promovendo tais problemáticas e construções simbólicas nas representações articuladas nas suas narrativas.
Nesse sentido, como agir e produzir mudanças nesse complexo imaginário? E, especificamente, como os espaços institucionais da
publicidade, em linha com o seu objetivo-fim mercadológico e limites,
poderiam colaborar para fomentar transformações desses contextos?
173
SEÇÃO 4
Almeida (2019) sugere algumas pistas para o direcionamento dessas questões, entre elas o autor argumenta que “se o racismo é
inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo
é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas”, que
combatam as expressões racistas e reflitam sentidos junto aos seus
públicos internos e externos. O conceito de antirracismo será abordado com mais atenção nos próximos tópicos.
Esse direcionamento de Almeida encontra expressão nos olhares de Thomas F. Pettigrew e Linda R. Tropp (2006), Yin Paradies
(2016) e Solomos (2020), que também ressaltam, nas duas primeiras
décadas do século XXI, frente aos avanços das expressões do racismo,
uma crescente organização social de movimentos e ideias declaradamente antirracistas, que buscam fornecer estruturas políticas e ideológicas alternativas para fomentar e ampliar debates e práticas sobre
como combater o racismo em todas as suas formas e promover modos
alternativos de convivência.
No contexto desses movimentos e ideias, como se discorrerá
neste capítulo, a publicidade também vem sendo implicada, tanto
em termos de transformações políticas e sociais, que a sua indústria
ao movimentar mercados de consumos (materiais e imateriais) pode
promover a partir dos seus espaços e práticas, quanto em relação a
agenda de pesquisa acadêmica do campo. Com efeito, é justamente
em linha com o racional dessa conjuntura, que este texto justifica o
seu objetivo de desenvolver e compartilhar a organização de uma estrutura teórica para pesquisas antirracistas na publicidade, que informe o campo sobre os estudos que estão produzindo conhecimentos
acerca dos efeitos da articulação entre publicidade e antirracismo.
Nesse sentido, seguindo orientações de Jehonathan Ben, David Kelly e Yin Paradies(2020), este capítulo de cunho teórico se organiza metodologicamente a partir de um levantamento não exaustivo
da literatura, no qual são considerados especialmente como fontes
meta-análises recentes, revisões e estudos experimentais (empíricos
e de laboratório) identificados e oriundos do campo das pesquisas da
publicidade e de outras áreas do saber como, por exemplo, a educação
e a psicologia social e cognitiva. Este trabalho, intencionalmente ao
174
Comunicação, etnias e antirracismo
reunir, articular e examinar essa produção científica constrói o seu
racional também pelo diálogo com autores de várias partes do mundo
que, a partir de distintos contextos de pesquisas, podem falar de uma
diversa gama de pontos de partida teóricos e metodológicos. A literatura explorada neste texto está publicada em inglês e português.
Desse modo, ao utilizar e evidenciar recortes das ideias presentes no conjunto de trabalhos examinados, que estão utilizados e
referenciados ao longo deste capítulo, busca-se oferecer introdutoriamente um quadro teórico e ferramentas conceituais que provoquem e
estimulem os pesquisadores da área, em suas futuras pesquisas e produções científicas, a repensar e reimaginar, crítica e criativamente, as
teorias, as práticas e os efeitos da publicidade pelas lentes e intervenções antirracistas.
Os sentidos do antirracismo
De modo amplo, conforme Bonnett (2006), o entendimento
de antirracismo pode ser delineado em referência às ideologias e práticas que afirmam e buscam possibilitar a igualdade de raças e grupos
étnicos. Nesse sentido, esse conceito pode ser definido minimamente
como formas de pensamento e/ou prática que buscam confrontar, erradicar e ou aliviar o racismo. “O antirracismo implica a capacidade
de identificar um fenômeno – o racismo – e fazer algo a respeito.”
(BONNETT 2000, p. 3, tradução livre).
Já na visão de David Gillborn (1995, 2006), o antirracismo
deve ser compreendido e defendido como “uma perspectiva crítica
preocupada com uma análise radical do poder e sua operação através
de processos racializados de exclusão e opressão” (GILLBORN, 2006,
p. 26, tradução livre).
Ibram X. Kendi (2019), ao orientar sobre como ser e agir de
modo antirracista, didaticamente, demarca que os indivíduos ou as
instituições antirracistas podem ser vistos como aqueles que apoiam
“uma política antirracista através de suas ações ou expressando um
antirracismo” (KENDI, 2019, p. 23, tradução livre). Nesse sentido,
para o delineamento dessa compreensão, Kendi pontua ser relevante
175
SEÇÃO 4
elucidar e demarcar as distinções entre ser e agir como “não racista” e
“antirracista”. Dessa maneira, ele afirma que:
O oposto de “racista” não é “não racista”. É “antirracista”. Qual é a diferença? O racista endossa
a ideia de uma hierarquia racial, já o antirracista
a igualdade racial. [...] como racista, se acredita
que os problemas estão enraizados em grupos de
pessoas e como antirracista localiza as raízes dos
problemas no poder e nas políticas. Um permite
que as desigualdades raciais persistam, como racista, ou confronta as desigualdades raciais, como
um antirracista. Não há um espaço seguro intermediário de “não racista”. A alegação de neutralidade “não racista” é uma máscara para o racismo.
(KENDI, 2019, p. 17, tradução livre)
De modo consonante, ao definir o antirracismo como algo
que promove a igualdade de oportunidades entre os grupos raciais/
étnicos, Gabrielle Berman e Yin Paradies (2010) agregam a essa compreensão pontuando que alguns estudiosos têm tentado ir além do entendimento do antirracismo como simplesmente o oposto do racismo,
para considerá-lo também como a construção de um projeto positivo
sobre o tipo de sociedade em que as pessoas podem viver juntas em
harmonia e respeito mútuo.
Nazir Carrim e Crain Soudien (1999), a partir de uma perspectiva crítica, reforçam que o antirracismo precisaria manter o foco
nas forças macros socioeconômicas e políticas e nas maneiras pelas
quais elas se cruzam e influenciam as vidas no sentido micro e individuais das pessoas. Bonnett (2000), consonantemente, considerando
as questões sociais contemporâneas, também posiciona o antirracismo para além da visão restrita de, geralmente, enquadrá-lo como
espírito desafiador e um produto da vontade individual e coletiva de
oposição ao racismo. Esse autor alerta que o antirracismo não é exclusivamente sobre resistência, mas também se ocupa da criação de
176
Comunicação, etnias e antirracismo
estados sustentáveis, da reprodução das economias modernas e do
estabelecimento de princípios de legitimidade política internacionalmente aceitos.
Atualmente, essa perspectiva vem encontrando expressão em
diversas iniciativas de grandes corporações privadas, que passam a
investir esforços para participar da retórica da igualdade racial e diversidade. Essas ações vêm ocorrendo em linha com as normativas
públicas e contextos locais, nos quais tais instituições estão estabelecidas. A iniciativa Partnering for Racial Justice in Business, anunciada
pelo World Economic Forum’s Centre for the New Economy and Society na sua conferência anual em Davos, em 2021,2 é uma importante
iniciativa que exemplifica esse movimento.
Pensando os espaços dos consumos (materiais e imateriais),
Geeta Menon e Tina Kiesler (2020) observam que tais iniciativas
como Partnering for Racial Justice in Business podem, estrategicamente, também estar refletindo as fortes e crescentes contestações
sociais por mudanças. Por exemplo, essas autoras pontuam que os
novos consumidores das gerações Y e Z, especialmente, mas não exclusivamente dos Estados Unidos da América, em comparação com
as gerações anteriores, que geralmente se satisfaziam com os tradicionais benefícios ao consumidor e a qualidade do produto, têm no
presente altas expectativas com a autenticidade das ações de marcas
das empresas acerca da justiça racial.
Menon e Kiesler reforçam essa percepção ao ressaltar uma
pesquisa, de 2020, que mostra que para 69% dos consumidores da geração Y e da geração Z as marcas devem estar ativamente envolvidas,
por exemplo, no movimento Black Lives Matter (BLM)3. Essas autoras ainda alinham a interpretação desse cenário, alertando que para
2 Disponível em: https://www.weforum.org/platforms/centre-for-the-new-economy-and-society/projects/partnering-for-racial-justice-in-business. Acesso em: 18 out. 2022.
3 O movimento de luta por liberdade, liberação e justiça #BlackLivesMatter foi fundado em 2013 em
resposta a absolvição de Trayvon Martin’s assassinato. Em 2020, o brutal assassinato de George Floyd
reacendeu e fortaleceu o movimento, que vem obtendo amplo apoio global. No entanto, o progresso de
equidade racial tem sido ainda muito lento e isolado. Disponível em: https://blacklivesmatter.com/.
Acesso em: 18 out. 2022.
177
SEÇÃO 4
se conectar com esses consumidores mais jovens, as marcas precisam
agir, se posicionar e se comunicar contra a injustiça racial com autenticidade, de modo que realmente viabilize expressar, em suas práticas
e comunicações internas e externas, o seu engajamento e contribuições para transformação e progresso social.
Avançando com o entendimento acerca das noções conceituais
de antirracismo, como já se discutiu em outras oportunidades (LEITE,
2019, 2022), Bonnett (2000) indica seis formas que ele poderia ser
praticado. Essas formas podem se cruzar e/ou se sobrepor, a saber: 1.
antirracismo cotidiano, que se refere as ações praticadas para combater o racismo por pessoas comuns ao longo das suas relações cotidianas; 2. antirracismo multicultural, que reflete às práticas que afirmam
a diversidade para viabilizar empatia e solidariedade; 3. antirracismo
psicológico, que expressa as formas de combater o racismo a partir da
consciência individual e coletiva (estrutura cognitiva); 4. antirracismo
radical, que observa as formas que identificam e desafiam as estruturas de poder e privilégio socioeconômico que fomentam e reproduzem
o racismo; 5. antirracismo, antinazismo e antifascista; e 6. a organização representativa, que foca as formas de organizações coletivas para
desmantelar o racismo, promover valores e os potenciais de grupos
sub-representados.
Significativamente, de modo combinado ou não, essas formas poderiam ser implicadas direta ou indiretamente na produção
e repercussões sociais de anúncios e comunicações de marcas para
fomentar “outras/novas” referências e narrativas com expressões
antirracistas, que ao apostar na diversidade podem produzir efeitos
cognitivos individuais e coletivos na sociedade. Esse ponto será retomado e melhor explorado nos próximos tópicos, quando se abordará
as reflexões sobre os moderadores contraestereotípicos e narrativas
contraintuitivas.
Refletindo sobre essas formas, a literatura aponta também alguns caminhos, impactos, funções e ou evidências-chave, que podem
ser geralmente produzidos pelas práticas antirracistas nos níveis micro, meso e macro social. Por exemplo, Anne Pedersen, Iain Walker
e Mike Wise (2005), a partir de uma análise da literatura, destacam
178
Comunicação, etnias e antirracismo
oito caminhos promissores para implementar estratégias e práticas
antirracistas: 1. combater falsas crenças; 2. envolver a audiência na
construção e implementação da prática antirracista; 3. invocar empatia pelos outros; 4) enfatizar comunalidades e diversidade; 5. Foco na
mudança de comportamento mais do que mudanças de atitudes; 6.
atenção às necessidades locais; 7. avaliações apropriadas; e 8. considerar o amplo contexto em vez de focar no indivíduo.
Ghassan Hage (2016) agrega a esse quadro apontando seis
funções centrais que o antirracismo poderia desempenhar: 1. reduzir
as incidências racistas; 2. promover uma cultura não racista [antirracista]; 3. apoiar as vítimas de racismo (p.ex.: acolhimento e aconselhamento); 4. fomentar o empoderamento dos grupos raciais/étnicos
sub-representados; 5. transformar as relações racistas, incentivando a
convivência e o respeito mútuo; e 6. fomentar uma cultura não racial
(a-racial culture).
Já Ingrid Lynch, Sharlene Swartza e Dane Isaacs (2017), em
um estudo que revisou mais de quinze anos de pesquisa sobre educação antirracista, que significativamente dialoga com este capítulo,
recomendam que os impactos antirracistas devem ser direcionados a
mobilizar três componentes também interligados: 1. tornar visível a
opressão sistêmica (visibilizar); 2. reconhecer a cumplicidade pessoal
na opressão por meio de privilégios não conquistados (reconhecer); e
3. desenvolver estratégias para transformar as desigualdades estruturais (estrategiar).
Com base na análise de recentes pesquisas de meta-análises,
revisões e estudos experimentais (baseados em campo e em laboratório), Jehonathan Ben, David Kelly e Yin Paradies (2020), também
refletindo sobre o antirracismo no contemporâneo, organizam um
quadro considerando algumas das suas práticas efetivas. Eles examinam quatro abordagens comumente utilizadas: 1. contato intergrupo;
2. treinamento e educação; 3. campanhas de comunicação e mídia; e
4. desenvolvimento organizacional (ações corporativas internas e externas). Essas abordagens, assim, como as formas, as funções e os caminhos apontados anteriormente também podem se sobrepor e serem
aplicadas em combinação, visando o fortalecimento de suas propostas.
179
SEÇÃO 4
A contribuição desses autores alerta para baixa cobertura, o
pouco conhecimento e as limitadas evidências sobre o que funcionaria
para o combate ao racismo e as possíveis oportunidades de sucesso de
iniciativas antirracistas para instigar a igualdade racial/étnica, reduzir os preconceitos, a discriminação e os resultados contingentes relativos ao racismo, inclusive no campo das pesquisas de comunicação,
media e publicidade. Em suma, Ben, Kelly e Paradies (2020) mostram
que as avaliações da literatura dessas abordagens são diversas, bem
como as suas conclusões.
A abordagem contato intergrupo, conforme esses autores, vem
recebendo frequentemente mais atenção no conjunto de trabalhos analisados. Como resultado, há o registro de ampla base de evidências que
sugerem que essa abordagem pode reduzir o racismo, especialmente
as suas expressões em formas de preconceitos. Ações de treinamento
e educação, especificamente, programas de competência/diversidade
cultural têm sido muito populares, porém não há muito conhecimento
sobre até que ponto, bem como acerca das condições que essas iniciativas impactariam o racismo. Desse modo, práticas antirracistas com
essa abordagem vêm causando preocupações devido aos “[...] efeitos
insignificantes e adversos que vêm tornando o treinamento em diversidade uma área particularmente controversa, como sugerido por vários títulos de estudos, como Why diversity programs fail (DOBBIN;
KALEV, 2016) e Pointless diversity training (NOON, 2018).” (BEN,
KELLY; PARADIES, 2020, p. 211, tradução livre).
As próximas duas abordagens também têm recebido pouca
cobertura e análises na literatura. Os registros acerca das abordagens com foco no desenvolvimento organizacional vêm considerando discussões individualmente, ou em articulação a iniciativas de
treinamento e educação. No entanto, conforme o conjunto de trabalhos analisados, Ben, Kelly e Paradies (2020) observam que tais
iniciativas ainda precisam ser revisadas ou avaliadas coletivamente
quanto aos seus efeitos. A literatura acerca da última abordagem de
campanhas de comunicação e mídia, que dialoga fortemente com os
objetivos deste capítulo, mostra que as iniciativas desenvolvidas com
esse foco vêm apresentando resultados promissores, porém também
180
Comunicação, etnias e antirracismo
descobertas mistas. Esses resultados quase não refletem avaliações de
fora do laboratório. Especificamente, no próximo tópico, essa abordagem será retomada e melhor explanada.
No entanto, de modo geral, Ben, Kelly e Paradies (2020) pontuam que dos trabalhos analisados poucos discerniram os efeitos
causais das intervenções antirracistas, o que limita a compreensão
da eficácia dessas iniciativas. Eles também chamam atenção para a
necessidade de mais estudos longitudinais, a exemplo de Paluck e
Green (2009); Paluck, Green e Green (2018), para orientar a compreensão sobre a extensão e as formas pelas quais o racismo pode
ser contido.
Neste ponto, informados sobre esses possíveis caminhos, impactos, funções e ou evidências-chave que o antirracismo pode desempenhar, a posteriori será resgatado o trabalho de Pedersen, Walker e Wise (2005), que estimula o avançar do racional deste trabalho,
ao pontuar que esses caminhos possíveis podem ser conformados por
estratégias antirracistas com foco individual e/ou interpessoal. Essas
estratégias, em síntese, implicariam eliminar (ou, pelo menos, modificar) crenças e/ou comportamentos racistas.
Publicidade, antirracismo e efeitos
Os estudos sobre o antirracismo ofertam importantes ferramentais teóricos e exemplos práticos, que podem apoiar a edificação
e a sustentabilidade de esforços para combater o racismo e fomentar
uma sociedade mais justa. Inclusive, nessa direção, a literatura já registra alguns poucos trabalhos que abordam em suas propostas, direta ou indiretamente, a articulação entre publicidade e antirracismo
como tópico de investigação científica.
Entre esses estudos se destaca, por exemplo, a pesquisa de
Gregory R. Maio, Susan E. Watt, Miles Hewstone e K. J. Rees (2002).
Esses autores, explicitamente, abordam as ideias de “mensagens antirracistas”, referindo-se aos editoriais cotidianos de jornais e “anúncios antirracistas” para demarcar as materialidades produzidas pela
publicidade comercial.
181
SEÇÃO 4
Nesse ponto, conforme Karim Murji (2006), que em sua investigação explora o uso de estereótipos em campanhas antirracistas,
é pertinente registrar que anteriormente Paul Gilroy (1987), ao discutir o antirracismo, no contexto britânico, já fornecia avaliações de algumas imagens usadas em propagandas do Greater London Council
na década de 1980. No entanto, ele não identifica explicitamente tais
materialidades como antirracistas como, por exemplo, fazem Maio e
colegas (2002).
Retornando ao trabalho de Gregory R. Maio, Susan E. Watt,
Miles Hewstone e K. J. Rees (2002), esses autores analisam as repercussões dessas mensagens nos indivíduos percebendo, em suma, que
elas podem produzir sim conscientização, porém algumas vezes também podem gerar efeitos adversos em indivíduos mais resistentes.
Em linha semelhante, Leite e Batista (2008) e Leite (2018)
também relatam a possibilidade de efeitos adversos, como o efeito
de ricochete (WEGNER, 1994), ao discutirem as potencialidades de
anúncios antirracista, articulados com narrativas contraintuitivas
com moderadores contraestereotípicos que, sem descolar do objetivo-fim da publicidade, também buscam produzir cognitivamente efeitos
nos conteúdos negativos de estereótipos associados tradicionalmente
aos grupos raciais/étnicos. No entanto, esses autores observam que
mesmo diante da possibilidade de efeitos negativos:
[...] os esforços [desses anúncios] para estimular uma diferenciada percepção do coletivo social
para os seus pensamentos estereotípicos talvez
sejam um passo a ser considerado como positivo,
pois, “apesar dos efeitos irônicos e indesejados,
tais mensagens podem ter as consequências desejáveis de dar ao preconceito um ‘nome mau’” [...].
Os efeitos positivos [dessas mensagens] devem ser
melhor observados para serem aprimorados com
o objetivo de amenizar a possibilidade de ocorrência de efeitos indesejados [...]. (LEITE; BATISTA,
2008, p. 164).
182
Comunicação, etnias e antirracismo
Nesse sentido, explorando de modo mais atento essas questões dos efeitos e seus impactos em crenças e preconceitos, é relevante
pontuar que os estudos acerca do papel da mídia nas relações humanas, há muito tempo despertam o interesse de pesquisadores no campo da comunicação, mídia e publicidade. A informação que circula
pelas materialidades da mídia, por exemplo, pode causar efeitos de
longo e de curto prazo, influenciando as formas como a sociedade se
vê e sugerindo aos indivíduos representações da mesma, de seus valores e de seu modo de vida (efeito de longo prazo), além de modos
momentâneos de interpretar ocorrências e informações recebidas na
vivência cotidiana (efeito de curto prazo).
Esse papel se torna ainda mais relevante nas relações sociais
conturbadas e atravessadas sistematicamente pelo racismo. Como afirmam Leite e Batista (2008) e Taylor e Costello (2017), observando a publicidade, existe uma responsabilidade social de anunciantes, bem como
da indústria em geral, meios de comunicação, empresas e agências, de
ir além da mera inclusão de grupos minorizados em conteúdos que não
promovam ou reforcem, de forma explícita ou implícita, os estereótipos,
os papéis e ambientes que esses grupos aparecem nas comunicações comerciais. Essas comunicações devem ter, principalmente, a preocupação que a sociedade como um todo (indivíduos alvos ou não de estereótipos negativos) tenha e/ou desenvolva uma percepção mais abrangente
sobre esses grupos minorizados e menos racista e estereotipada.
Segundo Muller et al. (2008), essa percepção pode gerar uma
significação das características físicas e culturais criando uma estrutura que define e causa diferenciação entre os indivíduos ou grupos
sociais, sejam mediante a atos flagrantes de discriminação e abuso,
em geral punidos por leis, sejam por interações cotidianas que tornam essas diferenciações como parte das relações sociais e focos de
brincadeiras entre amigos, assim, nessa forma são percebidas como
ameaças menores. Portanto, levando essa dinâmica em consideração,
os focos de anúncios antirracistas, implicando os seus processos de
produção e consumos (material e imaterial), bem como pesquisas que
explorem esses enquadramentos, poderiam ser observados a partir de
perspectivas e direcionamentos individuais e/ou interpessoais.
183
SEÇÃO 4
Pedersen, Walker e Wise (2005) inscrevem uma importante
reflexão sobre o quão efetiva seria ou não a implementação dessas
estratégias antirracistas para reduzir o racismo na sociedade. Dessa
forma, com base na literatura, eles explanam sobre algumas estratégias as enquadrando em duas perspectivas: individual e interpessoal.
Em relação às estratégias individuais, esses autores consideram três questões principais: 1. fornecer informações específicas
sobre questões raciais (em particular sobre falsas crenças); 2. criar
dissonância sobre ter valores diferentes (por exemplo, acredita-se ser
igualitário, mas não gosta de um certo grupo cultural); e 3. empatia.
No que tange as estratégias interpessoais, os autores destacam: 1. contato intergrupo, 2. fornecer informações consensuais (outras pessoas
concordam com a nossa opinião?); 3. benefícios do diálogo com outras pessoas; e 4. campanhas publicitárias. Pedersen, Walker e Wise
(2005) ainda reforçam a necessidade de que essas estratégias sejam
fomentadas e executadas nos níveis individual (micro), institucional
(meso) e estrutural (macro) de modo a implicar o racismo sistêmico.
Nota-se na literatura, como já pontuado, que a discussão antirracista tem recebido pouca atenção nas pesquisas da publicidade,
e comunicação e mídia em geral (BATISTA; LEITE, 2011 e LEITE;
BATISTA, 2019), tendo como consequência que os esforços observados na sua indústria representam, provavelmente, a pouca atenção dada pelos estudiosos da comunicação às estratégias necessárias
para uma atuação antirracista mais incisiva e efetiva, bem como para
os seus esforços para desenvolver e criar “outras/novas” referências
e práticas que desmantelem o racismo a partir das expressões da
área. Pedersen, Walker e Wise (2005) e Murji (2006) sugerem que
a resposta apropriada ao racismo estrutural deve focar tanto os indivíduos quanto as políticas institucionais corporativas. Desse modo,
os comportamentos e atitudes racistas não podem ser tratados como
sendo uma escolha moral pessoal, uma preferência, mas sim que o
racismo é estrutural e sistemático, bem como reproduzido nos discursos individuais e institucionais, devendo, portanto, ser combatido
nestes dois níveis.
184
Comunicação, etnias e antirracismo
Com o amparo das reflexões articuladas nesses quadros de conhecimentos acerca dos efeitos do racismo na sociedade, bem como
sobre o potencial do antirracismo como lente crítica e um caminho
para o desenvolvimento de ações para combatê-lo e desmantelá-lo, é
possível, neste ponto, avançar com mais segurança no racional deste
capítulo para pensar as expressões institucionais a partir dos sentidos
da publicidade e antirracismo, considerando as pesquisas sobre o processamento cognitivo de informação associado aos estereótipos e os
esforços contraestereotípicos.
Processamento de estereótipos e esforços
de contraestereotipagem
O processamento cognitivo de informação associado aos estereótipos, por exemplo, foi considerado, por muitos pesquisadores
e por muitos anos, como fazendo parte do que se considera processamento automático, ou seja, aquele que se faz sem esforço cognitivo e
também fora do controle do indivíduo. Assim, pesquisadores, no final
do século passado, como John A. Bargh e Tanya L. Chartrand (1999),
Patricia G. Devine (1989), Susan T. Fiske (1998), entre outros afirmavam que o culpado pelos vieses do processamento racial era a sua automaticidade, considerada como um processo inflexível, inescapável e
dominante na forma de categorização, iniciado espontaneamente em
face dos estímulos apropriados. Mais relevante do que o processamento automático era também a consideração de que esse processamento
não era sujeito a alterações, uma vez que os esforços para sua modificação seriam em vão, dado que estavam fora do alcance do indivíduo.
No entanto, conforme afirma Irene V. Blair (2002), esta associação entre processamento por estereótipos e automaticidade vem
sendo disputada por muitos pesquisadores, pela demonstração de
como esse processamento pode ser influenciado por vários fatores
associados à estratégia do indivíduo, as suas relações sociais e também ao contexto. Blair (2002) propõe cinco classes de moderadores
deste processamento, a saber: 1. motivos individuais e/ou sociais; 2.
185
SEÇÃO 4
estratégias específicas de contraestereotipagem; 3. foco da atenção; 4.
dicas do próprio estímulo; e 5. características pessoais dos indivíduos
a serem categorizados. Blair destaca ainda que essas classes de moderadores se dividem em motivação do indivíduo receptor e manipulações fora do controle desse indivíduo.
Os cinco fatores apontados podem ser facilmente associados
com a capacidade comunicacional da publicidade, tendo em vista que
o seu conteúdo geralmente tem potencial de motivação para indivíduos e coletivos. Desse modo, ela pode focar em aspectos específicos e
gerais para, direta ou indiretamente, contribuir com a redução de estereótipos negativos, bem como, através de seus formatos e conteúdos
específicos, demandar mais atenção do receptor. Também mediante
os personagens dos anúncios destacar características dos indivíduos
que estiverem sendo retratados nas narrativas.
Os estudos discutidos na revisão feita por Blair (2002) já demonstravam que era possível, por meio de foco em aspectos contraestereotípicos, exercer certa influência no processamento cognitivo automático de
estereótipos. A autora sugere, baseando-se em pesquisas realizadas por
outros autores, como Dasgupta e Greenwald (2001), Kawakami et al.
(2000) etc., que esses efeitos acontecem ao longo do tempo e, por isso,
demandam esforço específico e contínuo para sua modificação, uma vez
que podem atuar diferentemente dependendo da situação.
Um estudo que chama a atenção nesse sentido, devido à peculiaridade de seus resultados, é a pesquisa, feita por Jason P. Mitchell, Brian
A. Nosek e Mahzarin R. Banaji (2003), que distingue entre a classificação
racial per se e a categorização solicitada em uma tarefa. Usando o Implicit
Association Test (IAT) para categorizar indivíduos que eram atletas negros valorizados socialmente ou políticos brancos rejeitados socialmente,
(portanto, diretamente ligados às classes de moderadores mencionados
acima: 3. foco da atenção; 4. dicas do próprio estímulo; e 5. características
pessoais dos indivíduos a serem categorizados), observaram que, quando “raça/etnia” era saliente, atletas negros eram avaliados mais negativamente, enquanto quando o foco era em ocupação, o reverso acontecia.
Uma série de experimentos permitiu concluir que atitudes automáticas são contínuas, construídas ao longo do processamento e
186
Comunicação, etnias e antirracismo
que são inerentemente flexíveis e apropriadas, conforme a percepção
do contexto, ainda que fora do controle consciente do receptor (MITCHELL; NOSEK; BANAJI, 2003). Os autores alertam para o fato de
que, embora estas medidas aparentem representar uma modificação
na atitude do indivíduo, elas apenas se referem a uma resposta (comportamento) associada ao momento e não são uma medida de mudança de atitude na questão racial. Essa limitação ocorre porque atitudes
são articuladas por crenças que apresentam resistência à mudança
e longa durabilidade. No caso dos resultados de Mitchell, Nosek e
Banaji (2003) têm-se apenas que as reações automáticas associadas
a uma atitude atrelada ao processamento de estereótipos podem ser
modificadas. Ou seja, essas reações apresentam, claramente, uma
maleabilidade de processamento estabelecida pela situação, mas não
garantem uma mudança definitiva na avaliação de estereótipos.
Conforme Joseph E. Dunsmoor et al. (2016), uma forma importante para se esperar flexibilidade em aprendizado social é pelo estudo
do aprendizado reverso, no qual, após um aprendizado condicionado,
observa-se experimentalmente se o indivíduo pode atualizar o aprendizado (ou seja, descondicionar), dado que as condições mudaram. Esses
autores observaram, por meio de técnicas da neurofisiologia, que indivíduos brancos e amarelos que foram condicionados a esperar um choque
toda vez que observavam a foto de um homem negro, mas não a foto de
um homem branco, não conseguiram descondicionar esse medo. Enquanto isso, indivíduos de outro grupo que fizeram o experimento contrário (condicionados a esperar um choque nas fotos contendo homens
brancos, mas não nas contendo homens negros), puderam ser descondicionados. Os autores alertam e sugerem que alguns tipos de aprendizado social, como o racismo, podem ter pouca flexibilidade e, assim, seria
possível destacar, serem dependentes de uma ação mais específica.
Dessa forma, esses resultados permitem considerar que algumas campanhas consideradas antirracistas, a exemplo dos clássicos anúncios da United Colors of Benetton4, nos idos de 1980 e
4 Disponível em: https://bit.ly/3xtId9D. Acesso em: 26 nov. 2021.
187
SEÇÃO 4
1990, podem contribuir talvez para a reprodução de culturas racializadas, por identificar como sendo apenas aqueles grupos específicos
que sofrem ou fazem uso dessas formas de interação social racistas.
Assim, esses dados estimulam considerar que existe a necessidade de
articular formas mais abrangentes que conformem adequadamente o
racional de comunicações publicitárias antirracistas.
Para Ben, Kelly e Paradies (2020), os media e as suas materialidades, como os anúncios, de uma forma geral, poderiam agravar a estereotipagem, preconceito e discriminação racial, mas também podem
aumentar a percepção negativa dessa discriminação, modificar atitudes, comportamentos racistas e gerar normas sociais positivas. Esses
autores argumentam que as campanhas que acontecem na vida real
têm sido pouco avaliadas em relação ao seu impacto, seja pela amostra
estudada, em grande parte estudantes, seja pelos resultados encontrados que sugerem, mas não confirmam alguns efeitos específicos.
Observa-se na literatura uma quantidade de estudos identificando racismo em várias situações do mercado e, principalmente, na publicidade, tanto em tempos antigos como em situações mais recentes,
mas uma limitada presença de esforços antirracistas como observado
nas tradicionais campanhas da United Colors of Benetton e nas comunicações de marcas da Nike, em 2005, que mesmo promovendo o antirracismo em jogos de futebol na Europa, com a campanha Stand Up,
Speak Up5, contrasta com o intenso uso de celebridades negras para a
promoção de marcas e produtos (DAVIS, 2018), porém não apresenta
um claro objetivo antirracista e, desse modo, atende de forma muito
limitada, se é que atende, às classes identificadas por Blair (2002).
Ben, Kelly e Paradies (2020) ainda, tomando como base estudos
empíricos e experimentais realizados por outros pesquisadores, argumentam que os melhores efeitos acontecem em situações onde a comunicação enquadra aspectos negativos ao invés de construir percepções
positivas, quando foca em vários indivíduos de uma mesma raça/etnia
ao mesmo tempo do que quando propõe diversidade e multiculturalismo.
5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o8xb8tJy1VA. Acesso em: 26 nov. 2021.
188
Comunicação, etnias e antirracismo
Esses autores ressaltam ainda que tais comunicações podem
ser mais efetivas também quando identificam crenças que salientam
o racismo, quando essas comunicações desafiam o racismo e prescrevem o antirracismo como norma, estabelecendo e salientando similaridades entre os grupos estereotipados e os que estereotipam; indo
além da inclusão saliente dos grupos estereotipados nas comunicações
buscando alterar as representações midiáticas, oferecendo oportunidades para as discussões e interação entre grupos e tendo como objetivo fundamental descaracterizar argumentos racistas, mesmo que para
isso seja necessário esclarecer o significado dos conteúdos veiculados.
Exemplo nessa direção foi a campanha publicitária de natal,
da rede de supermercados Sainsbury’s6, em 2020, no Reino Unido,
protagonizada por uma família negra feliz e em celebração. Esse anúncio antirracista gerou muitos debates e manifestações, especialmente
nas redes sociais, tanto de desaprovação e ataques quanto aprovação
e suporte à marca. No Brasil, em 2018, contexto similar ocorreu, após
a veiculação de uma campanha de natal da marca de cosméticos O
Boticário, também protagonizada por uma família negra feliz e em
celebração7. Respostas sociais à campanha de aprovação e reprovação
produziram embates entre os consumidores na direção de ações de
boicote e, mais expressivamente, fomentando ações de buycott8 aos
produtos da marca.
Frente aos embates entre os consumidores envolvidos pelas
narrativas das campanhas, ambas as marcas, em suas redes sociais, defenderam as suas campanhas antirracistas, reforçando a necessidade de
uma reflexão social sobre diversidade e inclusão racial. Nessa direção,
a Sainsbury’s em seu Twitter expressou: “[…] queremos ser o varejista
mais inclusivo. É por isso que, ao longo de toda a nossa publicidade,
pretendemos representar uma Grã-Bretanha moderna, que tem uma
6 Disponível em: https://www.independent.co.uk/voices/sainsburys-christmas-advert-black-family-racism-b1724922.html. Acesso em: 26 set. 2022.
7 Disponível em: https://exame.com/marketing/o-boticario-poe-familia-negra-em-comercial-e-os-racistas-nao-gostaram/. Acesso em: 26 set. 2022.
8 Em tradução livre apoio a uma empresa ou país comprando seus produtos.
189
SEÇÃO 4
gama diversificada de comunidades”9. Já a marca brasileira O Boticário,
com posicionamento similar, declarou na época diante da comoção social gerada, que: “Não é de hoje que O Boticário trilha esse caminho de
retratar a diversidade étnica que torna nosso país tão rico e especial [...].
O Boticário se pauta pelo respeito a todas as pessoas e deseja que, muito
em breve, questões como essa não gerem mais polêmicas”10.
Jo-Yun Li, Joon Kyoung Kimb e Khalid Alharbi (2022) auxiliam
a compreensão desses contextos ao explorarem o papel do envolvimento e apego à marca na formação da resposta do consumidor às iniciativas de corporate social advocacy (CSA). Esses autores destacam o caso
da campanha publicitária da Nike em comemoração à 30.ª campanha
anual do Just Do It, em 2018, nos Estados Unidos11. A campanha estrelada por Colin Kaepernick, ex-jogador profissional da liga nacional
de futebol americano (NFL, em inglês) também gerou fortes reações
de reprovação e significativo suporte à ação da marca. Nesses cenários,
estas respostas que os consumidores vêm direcionando às marcas demandam, segundo esses autores, uma reflexão sobre o papel que as empresas deveriam assumir em termos de questões sociopolíticas.
Li, Kimb e Alharbi (2022) sugerem que o apoio dos consumidores aos esforços de CSA de uma empresa pode depender de seu envolvimento na questão social que uma marca escolheu, bem como seu envolvimento com a marca. Além disso, a interação do envolvimento com a
questão e os fatores de apego à marca podem servir como uma estratégia
de segmentação para consolidar a lealdade à marca e fortalecer o relacionamento com os interessados na marca (stakeholders, no original) nos
casos em que a atitude seja congruente com as posições da corporação.
Nestes contextos, para reflexão e percepção da complexidade que esta temática impõe, é importante ressaltar que a população
9 Disponível em: https://www.voice-online.co.uk/news/uk-news/2020/11/17/sainsburys-responds-to-those-unhappy-with-their-christmas-advert-featuring-a-black-family/. Acesso em: 26 set. 2022.
10 Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Marketing/noticia/2018/07/campanha-do-o-boticario-com-familia-negra-e-alvo-de-ataques-na-internet.html. Acesso em: 26 set. 2022.
11 Disponível em: https://www.theguardian.com/sport/2018/sep/08/colin-kaepernick-nike-ad-sales-up. Acesso em: 26 set. 2022.
190
Comunicação, etnias e antirracismo
brasileira é majoritariamente negra, diferentemente, do Reino Unido
e do Estados Unidos onde a população negra/étnica é minoritária. No
entanto, o racismo sistemático articula-se em ambos os contextos. Esses exemplos sugerem a urgência de acelerar o enfrentamento dessas
questões de modo mais amplo e cuidadoso em toda a estrutura social,
inclusive nas representações da publicidade, de modo a implicar o
“complexo imaginário” articulado pelas tradicionais narrativas de dominação e imagens de controle inscritas aos grupos oprimidos, como
adequadamente observam Collins (2019) e Almeida (2019).
Torna-se importante considerar esses efeitos como centrais
para o raciocínio proposto neste capítulo, uma vez que os estudos que
observam a relação da contraestereotipagem no âmbito dos efeitos
associados à comunicação, embora combinem vários princípios e métodos, têm como suporte a ideia de que a informação contraestereotípica é aquela que se apresenta com o propósito de desconfirmar as expectativas culturais associadas a um grupo (RAMASUBRAMANIAN
2007, 2011 etc., RAMASUBRAMANIAN; MURPHY 2014). Por exemplo, Bodenhausen et al. (1995) estudaram a questão de como imagens
de negros associadas ao sucesso afetavam as crenças sobre negros em
geral nas suas relações econômicas ou políticas. Esses autores encontraram que a exposição desses indivíduos associada ao sucesso, quando eles eram apreciados pelos receptores, aumentava a percepção de
discriminação racial em relação aos negros, o que desaparecia quando
os indivíduos (brancos) eram pré-ativados pela ideia de que esses indivíduos de sucesso eram atípicos em seu grupo social.
No entanto, Columb e Plant (2011) usaram a figura do presidente americano Barack Obama, um indivíduo atípico (exceção)
como qualquer presidente é, para testar a capacidade de redução do
preconceito implícito contra negros. Este estudo, na condição em que
os indivíduos foram pré-ativados com exemplos negativos de indivíduos da raça negra, demonstrou associações negativas em relação
aos negros, mas quando a exposição era seguida por uma apresentação do presidente Obama, as associações negativas eram menores.
Os autores comentam que esses resultados indicam a capacidade de
reduzir o preconceito com moderadores contraestereotípicos.
191
SEÇÃO 4
Os recorrentes estudos indicam que a questão da contraestereotipagem, na sua relação com a mídia, desperta muito interesse.
Segundo Ramasubramanian e Murphy (2014), estes estudos partem
de um foco em diversos aspectos teóricos, mas têm como base que a
apresentação de exemplares positivos leva à redução da estereotipia,
seja pelo uso da mensagem da mídia ou por uma mediação como, por
exemplo, a mediação de um adulto para a compreensão da mensagem
por crianças (LEITE; BATISTA, 2018). Até mesmo ler histórias sobre
celebridades de outro grupo facilita a redução de preconceito (RAMASUBRAMANIAN 2015), mas cabe lembrar que, conforme discutido, a
confirmação do estereótipo negativo nos meios midiáticos pode fortalecer o preconceito (COLUMB; PLANT, 2011).
Outro ponto bastante importante nesta discussão é apresentado por Critcher e Risen (2014), que, em uma série de experimentos,
demonstraram, sob vários aspectos, a capacidade de um exemplar
positivo agir de forma contraestereotípica, modificando a relação de
preconceito apresentada contra um grupo. No entanto, esses autores
alertam que isso não garante a redução de preconceito contra um indivíduo específico. Invocam, para isso, a falácia da inclusão, que sugere que a generalização vai de um indivíduo para todo o grupo, mas não
garante que vá de um indivíduo para outros do mesmo grupo.
Nessa mesma direção, Laura Jacobs e Meta Van der Linden
(2017) experimentaram o efeito de notícias positivas versus negativas
sobre imigrantes do norte da África. Os estudiosos observaram que os
efeitos de contraestereotipagem, em belgas, obtidos com as notícias
positivas eram estendidos para outros grupos de imigrantes presentes
na região, ainda que não envolvidos na comunicação, mas as notícias
negativas, pelo contrário, não tinham esta capacidade de generalização e eram específicas aos grupos representados.
Um ponto também relevante nesta área de estudos é trazido
por Dana Mastro e Riva Tukachinsky (2011). Esses autores salientam
a importância da qualidade do protótipo (a saber, sua representatividade) utilizado na comunicação positiva para a mudança das atitudes
em relação ao grupo. Eles identificaram que só um protótipo bastante
representativo causa o efeito, mais ainda, se o estereótipo apresentado for extremamente desconfirmatório do estereótipo da população,
192
Comunicação, etnias e antirracismo
ele tende a ser desqualificado como muito desviante da realidade. Assim, Mastro e Tukachinsky (2011) afirmam que o papel da mídia não
é só aumentar a presença de representantes positivos dos grupos minorizados que sofrem de preconceito e discriminação, mas também
conseguir incorporar novas visões no sistema cognitivo preexistente
ao nível individual e coletivo acerca desse grupo.
De forma geral, os estudos acima indicam que os conteúdos comunicacionais têm capacidade de modificar a resposta do indivíduo ao
preconceito, se observados alguns parâmetros. Por exemplo, uma maior
presença de ídolos pode combater a percepção negativa do grupo, mas
a percepção de que isto é uma exceção e não a regra pode causar até
mesmo um efeito ricochete, já observado na literatura (WEGNER, 1994,
LEITE; BATISTA, 2008). Para Wegner (1994), por outro lado, as mudanças observadas nos esforços experimentais esbarram em uma limitação que é a não generalização nem do grupo para um elemento específico, nem de grupo para grupo, quando o conteúdo era negativo.
Frente a esse quadro de estudos, é possível observar que há brechas poderosas na articulação desses espaços e ideias que podem ser
aplicados na publicidade. Essas oportunidades precisam ser crítica e
criativamente exploradas, pois elas podem, provavelmente, produzir quebras na estrutura de associações de ideias racistas que também afeta a
publicidade e, desse modo, fomentar transformações institucionais com
espelhamentos sociais relevantes. Especialmente, nesse ponto, é preciso
considerar estrategicamente a produção e a difusão de ideias e mensagens
que combatam e contraponham o complexo imaginário articulado pelas
tradicionais narrativas de dominação e estereótipos tradicionais. As ideias
contraestereotípicas, como discutido, podem conformar caminhos significativos para o desenvolvimento dessa tarefa, bem como as ideias e narrativas contraintuitivas (BOYER, 2001, BOYER; RAMBLE, 2001, FRY,
2002, UPAL, et al., 2007, UPAL, 2015, LEITE; BATISTA, 2008 etc.).
Posto isto, é importante ressaltar que a proposta de publicidade
antirracista (LEITE; BATISTA, 2019, LEITE, 2019, 2021) acolhe e articula as possibilidades que as abordagens de narrativas contraintuitivas
com moderadores contraestereotípicos podem oferecer para o estímulo e a criação de imagens mentais positivas de reorientação a partir das
materialidades de anúncios e comunicações de marcas diversas.
193
SEÇÃO 4
Deste modo, considerando o seu objetivo-fim mercadológico,
as suas funções e relações entre os espaços da produção e dos consumos (material e imaterial), a proposta de uma publicidade antirracista
pode ser, crítica e criativamente, observada como uma oportunidade
de revisão e redirecionamento da área publicitária para que as suas
ações internas e externas autenticamente (MENON; KIESLER, 2020)
viabilizem a construção de políticas, práticas e ideias antirracistas e
ou sejam meios para difundi-las e promovê-las socialmente.
Refletindo esse entendimento, é exemplar a campanha publicitária Widen the Screen, da P&G12, que além de confrontar estereótipos
contra pessoas negras estadunidenses, em uma narrativa contraintuitiva com moderadores contraestereotípicos, protagonizada por negros e
negras (intervenção específica), também fomentou a oportunidade de
toda a equipe técnica de criação da campanha fosse formada por profissionais negros (intervenção mais ampla).
Caminhos para as pesquisas (intervenções)
em publicidade antirracista
Focando na combinação teórica dos conhecimentos discutidos
anteriormente com implicações observadas na relação entre antirracismo, publicidade, efeitos e processamento de estereótipos compartilha-se, neste tópico, uma proposta de organização (alguns insights)
e articulação desse conjunto de ferramentas teóricas para instigar e
orientar pesquisas (e intervenções) sobre as expressões e a capacidade
comunicacional da publicidade antirracista considerando o raciocínio
estruturado e ilustrado na figura 1.
Fica aparente pelo discutido em Pedersen, Walker, Wise (2005),
Bodenhausen et al. (1995), Columb e Plant (2011) que uma representação
individual, celebridades, por exemplo, é diferente de uma representação
coletiva, por exemplo, pessoas comuns fazendo compras de natal, assim
se inicia a leitura desse framework com a separação demarcada: individual e coletiva/interpessoal. Existe, no entanto, um aspecto em comum
12 Disponível em: https://cnn.it/3nRBB1L. Acesso em: 26 set. 2022.
194
Comunicação, etnias e antirracismo
entre as duas formas de representação, que é central na estrutura, que é
a consideração sobre as estratégias de contraestereotipagem, conforme
discutido por Blair (2002) e outros. O foco em aspectos contraestereotípicos tem a capacidade de modificar o processamento automático de
estereótipos. Essa tentativa, possivelmente, como indicado a priori, pode
ser reforçada em combinação com narrativas contraintuitivas (LEITE;
BATISTA, 2008, LEITE, 2018).
Considerando o foco antirracista em conteúdos publicitários
utilizando-se da representação de um indivíduo, os estudos observados, principalmente por Pedersen, Walker e Wise (2005) e Hage
(2016), ressaltam a importância e a competência desta representação em tentar corrigir falsas crenças individual e coletivamente. A
qualificação/prestígio social do indivíduo alvo de estereótipos tradicionais, como discutido no parágrafo anterior, completa o quadro
para o estudo deste tipo de representação.
Figura 1 – Estrutura para pesquisas em
publicidade antirracista: uma proposta.
Fonte: Autores (2022)
195
SEÇÃO 4
A representação coletiva tem a possibilidade de oferecer ao
contato intergrupal um dos caminhos indicados pelos estudos de Ben,
Kelly e Paradies (2020), discutindo as vantagens e desvantagens da
presença de vários indivíduos das diferentes raças que se busca integrar, na promoção de similaridade entre grupos estereotipados e os
não estereotipados. Dentro desta mesma linha de estudo enquadra-se o benefício de estudar o diálogo oferecido nas formas prescritiva
e instrutiva. Completa essa perspectiva os estudos de CSA, conforme
discutido por Jo-Yun Li, Joon Kyoung Kimb e Khalid Alharbi (2022),
considerando a atitude em relação à marca (e/ou narrativa) como fator atrelado aos efeitos desejados.
Em suma, essas comunicações devem, sobretudo, ter a preocupação de que a sociedade como um todo (indivíduos estereotipados
e não estereotipados) tenha e/ou desenvolva uma percepção mais ampla desses grupos minorizados e uma visão (atitude e comportamento) menos racista e estereotipada sobre eles, mediante as mudanças
na representação midiática.
Mensurando o antirracismo na publicidade
A proposta básica de comunicações antirracistas, como os anúncios, é fomentar uma modificação da atitude e/ou comportamento em relação à avaliação de um indivíduo tendo a questão racial/étnica como fator
dominante. Portanto, como já pontuado, ela está associada às informações
que o indivíduo tem armazenado na sua memória de longa duração. Essas
memórias são ativadas pela exposição de estímulos relacionados à sugestão (cue related stimulis), no caso, conteúdo que saliente a presença de um
indivíduo ou vários indivíduos em associação com um determinado grupo racial/étnico. Comunicações antirracistas buscam a modificação desse
processamento cognitivo automático, pautado em ideias e narrativas racistas, que articulam imagens de controle (COLLINS 2019), por exemplo.
Nesse sentido, considerando os vieses implícitos (implicit bias),
que ideias e narrativas racistas buscam condicionar socialmente de
modo individual e coletivo e que acabam por influenciar consciente ou
inconscientemente as percepções e as interpretações sociais, é possível
196
Comunicação, etnias e antirracismo
associar a proposta de comunicações antirracistas aos estudos de reconsolidação de memória (FERNÁNDEZ; PEDREIRA; BOCCIA, 2017).
Estes estudos vêm demonstrando clinicamente a possibilidade de modificar atitudes e comportamentos, por exemplo, associados
ao abuso de drogas, a ansiedades, entre outros. O processo básico
do esforço de reconsolidação de memória parte do pressuposto que
o cérebro trabalha com predições do mundo e, dessa forma, quando
exposto a um estímulo, o indivíduo receptor pode gerar algumas expectativas e ideias. Logo, se essas ideias geradas confirmam as percepções anteriores somente acontece a recuperação da informação
na memória e o provável fortalecimento da atitude.
No entanto, se acontece uma falha nessa predição (o chamado
prediction error) existe, nessa oportunidade, uma motivação para o
processo de reconsolidação, uma vez que a memória se encontra em
um estado débil, possibilitando, assim, uma atualização da memória
e um ajuste para as próximas expectativas e mudando o modelo de
mundo desse indivíduo implicado.
Fernández, Pedreira e Boccia (2017) postulam que a minimização da falha de predição (predicition error minimization, no original)
é um dos mais fundamentais mecanismos cerebrais, o desencontro da
informação armazenada com novas informações pode provocar uma
aquisição ou uma atualização no armazenamento cognitivo. Dessa
forma, a publicidade antirracista pode se beneficiar dessa perspectiva
de efeitos, que se articulam estreitamente ao apontado anteriormente
com relação à articulação, por exemplo, de narrativas contraintuitivas
com moderadores contraestereotípicos.
Senholzi e Kubota (2016) reforçam que estratégias nessa direção oferecem exemplos concretos de situações nas quais o preconceito
não predomina. Esses exemplos vão desde celebridades até pessoas
desconhecidas em situações que oferecem a oportunidade de um indivíduo reconsiderar as generalizações que realiza. Esses autores afirmam que nessas situações de reconsideração, existem evidências que
o cérebro trata como novas e salientes informações, que podem atuar
de forma dinâmica na modificação das associações de sentidos nas
relações entre grupos sociais, um prediction error minimization. A
197
SEÇÃO 4
estrutura teórica articulada neste capítulo oferece caminhos para entender esses processamentos e avançar com o exame de suas implicações na produção e repercussões sociais.
Considerando esse foco, a avaliação dos efeitos dessa intervenção pode ser realizada através de estudos qualitativos (como entrevistas em profundidade) ou surveys, que avaliam atitudes explícitas, várias escalas têm sido desenvolvidas para essa finalidade. No
entanto, as melhores evidências dessas alterações são associadas aos
comportamentos, às reações emocionais como as reações neurofisiológicas (utilizando eye tracker, condutância da pele, neuroimagem,
batimentos cardíacos etc.), em geral essas evidências são limitadas
aos estudos de laboratório. Contudo, são as atitudes implícitas que
podem ser mais associadas às percepções racistas e podem ser indicativas das mudanças impetradas ou não na atitude e comportamento do indivíduo e também de fácil acesso à maioria dos pesquisadores
interessados nessa área.
Pesquisas na área de ciências cognitivas sociais já vêm estudando a relação entre atitudes explícitas e implícitas, as evidências
sugerem que atitudes reportadas por autorrelato podem não representar as atitudes implícitas, tendo como resultado uma discrepância
entre o que o indivíduo expõe abertamente e o que implicitamente
ele armazena, podendo ser um indicativo de predisposição para ação.
Assim, a combinação de medidas subjetivas e objetivas, no curto e
no longo prazos (estudos longitudinais), pode indicar a capacidade de
intervenções publicitárias específicas na formação e fortalecimento de
um pensamento antirracista, bem como a combinação de pesquisas
em laboratório com as de campo devem ser os melhores indicadores
dos caminhos mais frutíferos nessa obrigação social de tornar antirracismo o racional dominante.
Considerações finais
Em vista da baixa cobertura que a literatura dos estudos da
publicidade oferece atualmente para a articulação e desenvolvimento
de conhecimentos sobre as temáticas publicidade e antirracismo, este
198
Comunicação, etnias e antirracismo
capítulo, chamando atenção para esta lacuna, desenvolveu e compartilhou a organização de uma proposta de estrutura para pesquisas em
publicidade antirracista, que informa o campo sobre os estudos que
estão produzindo conhecimentos nessa direção, observando e tensionando questões como: a perpetuação de práticas problemáticas e
racistas em campanhas publicitárias; o engajamento e envolvimento
dos consumidores (ou não) em ações de marca consideradas oportunistas e ou autênticas; a permanente questão das representações de
grupos raciais/étnicos nas representações de campanhas publicitárias; as possibilidades das comunicações de marcas contemporâneas
afetarem e mudarem o imaginário coletivo racista, por exemplo, adotando narrativas contraintuitivas com moderadores contraestereotípicos, entre outras questões.
Em suma, a estrutura para pesquisas em publicidade antirracista compartilhada, considerando os seus limites e lacunas, implica
fortes reflexões, caminhos e desafios a serem deliberados e seguidos
na direção de auxiliar e avançar no processo de construção de conhecimentos mais amplos que inscrevam orientações contínuas sobre como comunicações publicitárias antirracistas podem colaborar
para conter e romper com o contínuo racista de décadas, direcionado à opressão de grupos raciais/étnicos em nossas sociedades. Essa
discussão precisa avançar com mais engajamento e compromisso nos
estudos da publicidade.
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203
Ações antirracistas, políticas
afirmativas e discussões
étnico-raciais na pesquisa
em Comunicação
Pablo Moreno Fernandes
Propomos neste texto reflexões sobre princípios que devem
nortear a agenda de pesquisas no campo da Comunicação Social diante dos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), conjunto de metas a serem cumpridas, até 2030, pelos países membros da
Organização das Nações Unidas (ONU). Nossa discussão pauta, especificamente, os desafios do antirracismo e do enfrentamento à discriminação étnico-racial na pesquisa em comunicação.
Nosso percurso envolve a reflexão sobre a pesquisa como etapa de formação superior no país, que passa pela formação de profissionais nas áreas de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações
Públicas, Cinema e Audiovisual, entre outras possibilidades de graduação nos cursos da área da Comunicação Social. Além disso, refletimos sobre a pesquisa como espaço de produção de conhecimento
sobre o campo, com finalidade transformadora na sociedade, a partir
das contribuições das descobertas e contribuições do trabalho acadêmico, nos Programas de Pós-graduação.
205
SEÇÃO 4
Nosso objetivo é discutir como o campo da pesquisa em Comunicação tem se movido diante das demandas expostas nos ODS,
em uma dimensão pedagógica – na constituição dos currículos –, em
uma dimensão política – na participação na implantação e ampliação
de políticas afirmativas – e em uma dimensão social e epistemológica
– na reflexão sobre a movimentação de estruturas da sociedade. De
partida, observamos o que é abordado acerca do assunto etnias e antirracismo nos ODS. Posteriormente, recorremos a documentos que
regulamentam o ensino superior em Comunicação no país, para avaliar como os princípios dos ODS podem aparecer na realidade prática
desses cursos. Por último, abordamos movimentos relativos a uma
ampliação sobre os debates acerca de pautas étnico-raciais no campo
da pesquisa em comunicação, para avaliarmos a potência transformadora dessas iniciativas.
Os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável
Os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável foram
propostos pela ONU aos 193 Estados que a integram, em 2015. Eles
correspondem a 17 pontos relacionados a desafios para o desenvolvimento dos países, diante das complexidades que se colocam como a
finitude de recursos, tensionamentos políticos, desigualdades sociais
e econômicas, desequilíbrio ambiental, entre outras preocupações de
um mundo globalizado. Os ODS são de natureza multidisciplinar e interconectados, fazendo com que a busca por sua implantação envolva
um trabalho cooperativo, complexo e coordenado dos Estados membros para que a Agenda 2030 – forma como também são conhecidos
– seja implantada no prazo de 15 anos.
As dimensões étnico-raciais aparecem, de forma explícita, no
Objetivo 10: “Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles” e
no Objetivo 17: “Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a
parceria global para o desenvolvimento sustentável”.
O Objetivo 10 propõe, em linhas gerais, caminhos para o aumento de renda das populações mais pobres no mundo, a fim de reduzir
206
Comunicação, etnias e antirracismo
desigualdades entre países, olhando também para o enfrentamento das
desigualdades internamente nos territórios membros da ONU.
Considerando os processos coloniais implantados pela Europa no mundo ao longo da história, compreende-se a instauração e a
consolidação de desigualdades internas e externas entre países. Por
meio da colonização, estabeleceu-se disputas de poder no mundo, que
produziram ideias de hierarquização dos povos, em relações de poder que conceberam categorias raciais que justificassem processos de
dominação. Alguns séculos depois, temos importantes contribuições
como as de Mbembe (2018), acerca da criação de um sujeito racial no
processo de colonização – seja como mineral, metal ou moeda –, que
é dimensão estruturante do primeiro capitalismo. A colonização foi
a base para a implantação de desigualdades raciais, sejam elas internas, sejam elas externas, entre os Estados. Dessa forma, pensar nesse
objetivo como parte de uma Agenda Global e conjunta, trata-se de
importante movimento de reparação histórica a uma das estruturas
fundadoras do mundo moderno: o racismo.
No tópico 10.2 do Objetivo, referente à Redução das Desigualdades é, apresentado como meta: “Até 2030, empoderar e promover
a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente
da idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião, condição
econômica ou outra” (ONU, 2022, on-line). O ponto é importantíssimo e fundamental para se pensar na busca por uma sociedade mais
igualitária. Porém, sem a adoção de uma postura crítica diante dessa
redação, corre-se o risco de que o tópico se perca na falsa ideia de
que todos já são iguais hoje em dia, desconsiderando os processos
históricos que estabeleceram as desigualdades, como o racismo, o
sexismo, as LGBTfobias e outras discriminações. Assim, para empoderar e promover a inclusão social e política de grupos vítimas da
discriminação étnico-raciais é preciso, primeiramente, romper com
a ideia de um sujeito universal (KILOMBA, 2019), reconhecendo a
violência racial – em todas as suas dimensões – como importante
fator na construção da subjetividade de pessoas negras, indígenas,
amarelas e racializadas.
207
SEÇÃO 4
No Objetivo 17, sobre Parcerias e Meios de Implementação, há
importante contribuição para se pensar em formas de empoderamento e de promoção de inclusão do objetivo discutido anteriormente. Em
seu tópico 18, o Objetivo 17 define como meta:
Até 2020, reforçar o apoio à capacitação para os
países em desenvolvimento, inclusive para os
países menos desenvolvidos e pequenos Estados
insulares em desenvolvimento, para aumentar
significativamente a disponibilidade de dados de
alta qualidade, atuais e confiáveis, desagregados
por renda, gênero, idade, raça, etnia, status migratório, deficiência, localização geográfica e outras
características relevantes em contextos nacionais.
(ONU, 2022, on-line)
O estabelecimento de bases de dados de alta qualidade, atuais
e confiáveis sobre raça e etnia, por exemplo, é fundamental para o planejamento, a implantação, o monitoramento e a avaliação de políticas
de inclusão. Podemos exemplificar a discussão como a importante
conquista do movimento negro brasileiro acerca da interpretação dos
dados do censo populacional com o agrupamento das categorias preto
e pardo em negro, como discutido por Nascimento (2016). Considerando os processos de construção do mito da democracia racial no
Brasil, as estratégias de miscigenação da população desenvolvidas por
meio de políticas de migração implantadas no século XX e a atuação
de um movimento eugenista no Brasil no século XIX, a população negra brasileira passou por um processo no qual negar a própria negritude era estratégia de ascensão social e, assim, surgiram diversos
eufemismos para se referir à própria cor, para evitar a negritude.
O trabalho do movimento negro na afirmação positiva de uma
identidade e na ressignificação dos signos negativos da negritude, em
busca da afirmação dela (MUNANGA, 2019), juntamente com importante interlocução de integrantes deste mesmo movimento junto aos
208
Comunicação, etnias e antirracismo
agentes públicos no reconhecimento institucional de uma maioria
populacional negra resultam em dados consolidados historicamente
sobre a população negra do país. Estes dados embasam as reivindicações do movimento em busca de políticas afirmativas e em ações no
enfrentamento ao genocídio da população negra. Podemos ilustrar a
pandemia de covid-19 como um importante momento dessa reivindicação, quando o governo, negligenciando o enfrentamento à doença, não trabalhou pelo monitoramento de dados sobre os óbitos da
doença com a extratificação racial das informações sobre as vítimas
da doença, agindo somente após pressão da Coalizão Negra Por Direitos e do Grupo de Trabalho (GT) Racismo e Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que reivindicaram a informação
sobre raça nos prontuários de atendimento da doença.
Os objetivos são mais amplos do que essa discussão, mas para
pensar nos desafios da pesquisa em comunicação acreditamos que o
recorte em tais pontos sejam fundamentais para a reflexão que vamos
desenvolver. Avançaremos agora ao segundo ponto de nosso raciocínio, no qual debateremos como o Ensino Superior – espaço onde
se realiza importante prática da construção da pesquisa em comunicação: a formação profissional – tem pensado, a partir de seus instrumentos reguladores, em estratégias de empoderamento e inclusão
social de grupos racializados.
O Ensino Superior em Comunicação no Brasil
A implantação das primeiras escolas de formação em comunicação em território brasileiro remonta ao século XX. Na segunda metade
deste século, surgem as primeiras diretrizes curriculares que regulamentam estes cursos, que passam por significativo processo de ampliação
no final do século, com a consolidação da pesquisa em comunicação, a
partir da implantação de Programas de Pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. A discussão histórico-conceitual sobre a implantação
dos cursos em Comunicação Social é feita em profundidade em Lopes
(2014), Pompeu (2013), Vitali (2007), Motta e Viana (2014).
209
SEÇÃO 4
Em atendimento à Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996,
em 2001, são apresentadas novas Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCN) para os cursos de Comunicação Social, homologadas em 2002.
Uma significativa contribuição da LDB para a educação brasileira refere-se à preocupação com a atenção à diversidade étnico-racial nos
ambientes escolares, em seus diversos níveis.
Além da LDB, a Resolução CNE/CP n.º 1/2004 institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Com essa resolução, torna-se obrigatória a inclusão do tratamento
de temáticas e questões relacionadas à população negra e afrodescendente, assim como referentes à população indígena, nos conteúdos de
disciplinas e atividades curriculares dos cursos que se ministram. A
iniciativa visa sanar processos de epistemicídio que consolidaram, no
país, a história da colonização contada sempre sob a perspectiva do
explorador europeu. Com essa resolução buscou-se resgatar a história
dos povos africanos devastados pela escravidão, que traficou milhões
de pessoas para as Américas, tendo sido o Brasil um dos países que
mais recebeu sujeitos sequestrados de seus países. Aqui instalados,
esses africanos contribuíram com seus conhecimentos na construção
do país e na formação de sua identidade. A Resolução buscava também contar a história da colonização sob outra perspectiva, ressignificando o mito fundador do Brasil, de que os portugueses descobriram
o país, visto que ele era, previamente, habitado por diversos povos
indígenas que tiveram papel fundamental na formação cultural brasileira e resistiram de diversas formas às investidas portuguesas contra
sua dizimação. Tais processos contribuem para o empoderamento de
pessoas racializadas, que começam a entender seu lugar na história,
compreendem sua identidade e passam a se orgulhar dela.
A Resolução CNE/CP n.º 1/2012, que estabelece Diretrizes
Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, também traz significativas contribuições ao debate sobre a educação como lugar de promoção de mudança e transformação social. Fundamentada em sete
tópicos, apresentados em seu artigo 3.°, ela defende:
210
Comunicação, etnias e antirracismo
I - dignidade humana;
II - igualdade de direitos;
III - reconhecimento e valorização das diferenças e
das diversidades;
IV - laicidade do Estado;
V - democracia na educação;
VI - transversalidade, vivência e globalidade; e
VII - sustentabilidade socioambiental. (BRASIL,
2012, on-line)
Dos sete pontos apresentados, podemos pensar nos três primeiros como pilares fundamentais para o empoderamento e inclusão
social de grupos racializados. O primeiro deles visa à ruptura com a
ideia de negação da humanidade dos grupos racializados, princípios
fundamentados nos processos de colonização para justificar o genocídio e a desumanização de grupos racializados (MBEMBE, 2018). O
segundo, em diálogo com o primeiro, coloca a busca da igualdade de
direitos como horizonte a ser alcançado, apesar da dívida histórica
estabelecida com esses grupos, em função de diferenças estabelecidas
nos processos coloniais. O terceiro, em diálogo com os dois primeiros,
reconhece a existência das diferenças e coloca em debate a perspectiva que rompe com a ideia de um sujeito universal e busca, no reconhecimento às diferenças, o enfrentamento das desigualdades.
Ao longo da primeira década do século XXI, discussões sobre
a separação das antigas habilitações da Comunicação Social em cursos autônomos surgem e o primeiro movimento nesse sentido foi a
aprovação das novas diretrizes curriculares de Cinema e Audiovisual,
em 2006. As novas diretrizes dos cursos de Jornalismo, homologadas
em 2013, seguem com tal movimento, assim como as de Relações Públicas, aprovadas no mesmo período. Naquele ano, teve início a discussão sobre novas DCN para os cursos de Publicidade e Propaganda,
cuja minuta foi aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE)
em 2020 e ainda aguardando homologação do MEC, até a finalização
da redação deste texto, em novembro de 2022.
211
SEÇÃO 4
Os novos textos das DCN dos cursos das áreas de Comunicação abordam de forma diversa as pautas étnico-raciais. A leitura dos
textos demonstra como a educação para as relações étnico-raciais no
ensino superior, apesar de uma obrigatoriedade, ainda não se reflete
de forma consistente nas diretrizes curriculares dos cursos dá área de
Comunicação Social. O texto das DCN de Cinema e Audiovisual, de
2006, por exemplo, não faz menção a questões relacionadas a Direitos
Humanos ou à Educação para relações étnico-raciais.
As diretrizes de Jornalismo, por sua vez, preveem, dentre seus
eixos de formação, a fundamentação humanística, que tem como um
de seus princípios a capacitação do profissional de jornalismo para
suas raízes étnicas, regiões ecológicas, cultura popular, crenças e tradições. Preveem também, dentre as competências e habilidades a
compreensão e valorização dos direitos humanos.
As DCN de Relações Públicas preveem em seu texto o desenvolvimento de competências e habilidades gerais que abordam a atuação profissional em consonância com princípios éticos, voltada aos
direitos humanos, considerando questões contemporâneas, sem fazer
menção às dimensões étnico-raciais.
As diretrizes de Publicidade e Propaganda, por sua vez, preveem dentro da linha de formação específica dos cursos a abordagem
de um eixo transversal referente às questões de gênero e étnico-raciais.
Prevê, ainda, a desconstrução de valores arraigados para valorizar a
heterogeneidade racial no Perfil Específico do egresso em Publicidade
e Propaganda, tendo o texto que apresenta de forma mais direta a menção às dimensões étnico-raciais nas reflexões sobre direitos humanos.
O que se conclui da leitura dos documentos é que há legislações consistentes sobre a inserção das discussões étnico-raciais nos
cursos superiores brasileiros, que o tema deve estar presente nos currículos dos cursos, mas que as diretrizes têm formas diversas de abordá-las e que o texto que faz mais menções ao assunto ainda não está
homologado e, portanto, ainda não está em vigor nos currículos.
Não podemos falar das relações étnico-raciais na formação superior brasileira sem olharmos para uma importante política implantada na
212
Comunicação, etnias e antirracismo
segunda década do século XXI: as cotas. A Lei n.º 12.711/2012 implantou as cotas raciais como política afirmativa para o ingresso no ensino
superior brasileiro em Instituições Públicas. No caso do ensino privado, as cotas são estabelecidas pela Lei n.º 11.096/2005, que estabelece
o Programa Universidade para todos (Prouni). Importante conquista
do movimento negro brasileiro, as cotas vieram como estratégia para
sanar dívidas históricas que impediram o acesso de negros ao ensino
superior brasileiro, as políticas de desigualdade (FABRI, 2020).
Não é exagero falar sobre a transformação dessas políticas no
ensino superior brasileiro (PIMENTA, 2022). O número de estudantes negros nas universidades brasileiras cresceu significativamente
nos últimos anos, mas a mudança não foi apenas numérica. A chegada de estudantes negros e indígenas às instituições trouxe também
novos questionamentos: a predominância de uma abordagem de caráter eurocêntrico, de autores brancos e o olhar hegemônico sobre a
construção do pensamento tornaram-se recorrentes, desafiando docentes a reinventarem seus programas, em busca de referências que
pudessem enegrecer seu pensamento, provocando uma ampliação até
então inédita no alcance e na circulação do conhecimento produzido
por pessoas racializadas.
A presença de mais universitários negros e indígenas aumentou a inserção desses corpos em programas de estágio e em espaços
de produção de conhecimento, como grupos de pesquisa, programas
de iniciação científica. Ainda que desconheçamos dados que estabeleçam relação direta entre os fenômenos, notamos que, alguns anos
após a implantação da política de cotas, emerge no Brasil, no fim da
segunda década do século XXI, um debate com alcance inédito sobre
questões étnico-raciais. Discussões acaloradas sobre representatividade, representação, lugar de fala e a compreensão do racismo como
estrutura surgem nas redes, surgem nos programas da mídia, mas
também começam a aparecer nos grupos de pesquisa, em congressos
e em revistas científicas.
A partir dos resultados obtidos pelas cotas na graduação, o receio da queda da qualidade dos cursos foi refutado como hipótese pela
213
SEÇÃO 4
prática: a sociedade assistiu às transformações que elas provocaram
na vida das famílias beneficiadas pela política ao longo dos seus 10
anos de vigência e teve início debate sobre a implantação da política
de cotas na pós-graduação. Uma portaria do MEC, de 2016, permitiu
aos programas de pós-graduação a implantação de cotas raciais em
seus processos seletivos de mestrado e doutorado. Diversos programas da área de Comunicação no Brasil implantaram as cotas, apesar de tentativa do MEC em tornar a portaria sem efeito em junho de
2020. O próprio MEC recuou da ação e tornou a portaria sem efeito,
permitindo novamente a implantação das cotas na pós-graduação.
As cotas na pós-graduação têm permitido a percepção de uma
ampliação de pesquisas que discutem temáticas étnico-raciais, realizadas por estudantes negros e indígenas, que também estudam outras
temáticas, visto que não estão restritos a este assunto. Este crescimento tem motivado reflexões sobre a presença das temáticas raciais em
congressos acadêmicos da área de comunicação e nas revistas científicas, onde se têm visto uma tendência de crescimento no número de
trabalhos que abordam temáticas étnico-raciais.
Antirracismo na comunicação
A Comunicação Social, como as demais ciências sociais no
Brasil, produziu, ao longo do século XX, seu pensamento alinhado a
uma matriz teórica que se furtou a questionar, de forma consistente, sua participação na consolidação do mito da democracia racial, do
racismo como uma das estruturas sociais que sustentam a sociedade
e na construção de um imaginário que associou à negritude signos
indesejáveis. Apesar disso, desde o final do século XX, encontram-se
trabalhos de pesquisadores que olham para as problemáticas referentes ao racismo na perspectiva comunicacional.
Olhando especificamente para o objeto de estudo de nossa afinidade – a publicidade – relembramos aqui as contribuições de alguns pesquisadores que refletiram sobre a publicidade e as relações
raciais brasileiras. Começamos por Gilberto Freyre, que publicou, em
214
Comunicação, etnias e antirracismo
1979, obra que analisava os anúncios publicitários que tinham como
objeto pessoas escravizadas. Na obra, Freyre (1979) suaviza os horrores da escravidão brasileira, chegando a afirmar que ela foi mais sutil
que nos Estados Unidos, por exemplo, consoante ao projeto político
vigente no país desde o século XIX. Apesar desse olhar, a obra é uma
importante contribuição para a reflexão do estudo da publicidade,
para a compreensão do espírito do tempo de um determinado período histórico.
Adotando perspectiva mais crítica, investigando questões relativas à representatividade (ALMEIDA, 2018), proporção numérica de
corpos negros ocupando espaços de poder ou de privilégio – no caso,
as narrativas publicitárias –, outras pessoas contribuem para pensar
a respeito da subpresença de corpos negros nas representações midiáticas. Por meio desse trabalho, refletiram como isso contribuiu para a
construção de um imaginário falseado sobre a cor da população brasileira e o quanto esse fenômeno afetou a construção de uma identidade
negra. Tais trabalhos são fundamentais para a compreensão de processos de inclusão social e empoderamento e correspondem a importante caminho para a compreensão da sociedade brasileira e exemplificamos a partir das pesquisas realizadas por Hasenbalg (1982) e
D’Adesky (2002).
Temos, portanto, indicadores de uma produção acadêmica e
bibliográfica sobre a temática que remonta ao início da consolidação
dos programas de pós-graduação em Comunicação no país. No entanto, o que se percebe é que o assunto passa a ganhar visibilidade a
partir dos anos 2000, sobretudo a partir da segunda década do século
XXI, como percebemos no aumento do volume sobre raça nos trabalhos realizados por Corrêa (2006, 2011), Miranda e Martins (2010),
Diogo (2014), Leite (2014), Sodré (2015), Leite e Batista (2018).
Esse aumento coincide com a amplificação dos debates sobre
raça nas redes, assim como com a ampliação do número de estudantes
negros no ensino superior. A demanda por essas discussões chega às
salas de aula, aos grupos de pesquisa, aos congressos da área e a comunicação passa a pensar, de formas mais complexas, nas representações
215
SEÇÃO 4
de grupos racializados em suas narrativas. Acerca desse processo, destacamos o lançamento de dois livros: Vozes Negras em Comunicação, organizado por Corrêa (2019); e Publicidade Antirracista: Reflexões, caminhos e desafios, organizado por Leite e Batista (2019). As duas obras
trazem discussões ricas e atualizadas sobre questões étnico-raciais na
comunicação brasileira, adotando uma perspectiva interseccional para
compreender o fenômeno, enriquecendo a bibliografia de cursos de graduação e trabalhos de pesquisadores em comunicação brasileiros, a partir dos textos de diversos autores publicados nas obras.
Em 2022, um importante espaço para a discussão das temáticas raciais em Comunicação é criado: O Grupo de Pesquisa (GP) Comunicação Antirracista e Pensamento Afrodiaspórico, da Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom).
Aprovado em 2021, o GP se reúne pela primeira vez, em 2022, no congresso da Associação, realizado em João Pessoa (PB). Ainda naquele
ano, é aprovado, na Associação Brasileira dos Programas de Pós-graduação em Comunicação (Compós), o GT Comunicação, Raça e Interseccionalidades, para ter seu funcionamento a partir do congresso
da associação em 2023, a ser realizado em São Paulo. Os dois grupos
são profícuos espaços para a discussão qualificada de temáticas étnico-raciais na Comunicação e podem contribuir para a ampliação do
número de trabalhos que têm o assunto como objeto de estudo.
Percebe-se, então, uma sensibilização da área da Comunicação
Social para as discussões étnico-raciais: livros sobre a temática começam a ser publicados, os primeiros grupos voltamos ao tema surgem
nos principais congressos da área, dossiês temáticos com abordagens
étnico-raciais começam a ser publicados em revistas da área, como
os publicados pelas revistas Esferas (2020), Contemporânea (2021),
Fronteiras (2022), Mídia e Cotidiano (2022), demonstrando o crescimento da relevância do tema e a conquista de espaço por ele em espaços qualificados de promoção do conhecimento. Com esse horizonte
se delineando, como responder à pergunta norteadora desse trabalho,
a ser discutida a seguir, nas considerações finais: quais os desafios da
pesquisa em comunicação diante das pautas antirracistas e do enfrentamento à discriminação étnico-racial?
216
Comunicação, etnias e antirracismo
Considerações finais: quais os desafios?
Os desafios que se colocam para a pesquisa em comunicação
diante das pautas antirracistas passam por um trabalho que deveria
ser tratado como bandeira pelo campo, considerados os dois pontos
dos ODS colocados em destaque no texto. O primeiro deles é a redução das desigualdades. Para reduzir as desigualdades, alguns passos
foram dados: a educação para as relações étnico-raciais como temática obrigatória nos currículos contribui para o conhecimento da própria história, o fortalecimento das identidades e para processos de
empoderamento e compreensão de um lugar no mundo. Esses passos,
somados às oportunidades proporcionadas pelas políticas afirmativas colocam as pessoas racializadas nas universidades e, por meio do
acesso ao ensino superior, algumas desigualdades são enfrentadas.
O processo é retroalimentado pelos próprios estudantes, que transformam as instituições de ensino, tensionando-as e provocando-as a
abordar perspectivas que fujam a olhares colonizados ou que priorizem somente o olhar do dominador.
Torna-se importante, nesse contexto, que pesquisadores docentes problematizem os programas de suas disciplinas, que debatam
os projetos pedagógicos dos cursos em que estão vinculados e reflitam
acerca de seu exercício docente: a legislação sobre Direitos Humanos,
Relações Étnico-Raciais e o ensino de cultura africana e afro-brasileira é contemplada? Sobre este ponto, é muito comum perceber que as
discussões raciais ainda aparecem, nos currículos dos cursos de graduação da área de Comunicação Social, em disciplinas optativas. Em
busca de uma atuação antirracista em comunicação (LEITE, 2022),
torna-se urgente que o pensamento sobre seus princípios esteja no
conteúdo programático de disciplinas obrigatórias, de formação teórica, de formação técnica e em laboratórios práticos. Nesse cenário, é
importante se lembrar da frase de Angela Davis (2016): “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
Assim, o compromisso com o antirracismo na comunicação é obrigação de todos os discentes da área, até porque, o volume de professores
racializados nas instituições ainda é pequeno. Dessa forma, é preciso
217
SEÇÃO 4
enegrecer as bibliografias, enquanto esses corpos ainda são minorias
neste lugar.
Isso nos leva a refletir acerca de outra insuficiência: graduados ou pós-graduados é preciso pensar em políticas que consolidem
a redução de desigualdades ocasionada pelas políticas afirmativas: é
preciso pensar em formas de ampliar o número de pessoas negras no
mercado de trabalho da comunicação em posições de poder e no corpo docente das universidades. É preciso planejar estratégias que ampliem a presença de pessoas racializadas em congressos acadêmicos
– não apenas nos grupos que discutem temáticas étnico-raciais, importante destacar, mas em todos. É preciso pensar em caminhos para
que o número de autores negros e indígenas publicados nas revistas
com melhores avaliações aumente. É preciso buscar estratégias para
que autores negros e indígenas sejam maioria nos dossiês temáticos
sobre pautas raciais. É preciso pensar em oportunidades de financiamento que contemplem pesquisadores racializados.
Pensar sobre as insuficiências acerca da redução das desigualdades nos leva a pensar, também, no objetivo 17, sobre a disponibilidade de dados de qualidade sobre questões raciais da população. É preciso problematizar, de forma sistemática, os indicadores
da pesquisa em comunicação brasileira: quantos docentes negros e
indígenas há nos departamentos de Comunicação Social das universidades? Quantos pesquisadores racializados apresentam trabalhos
nos congressos da área? Quantos autores negros e indígenas estão
publicados nas revistas da área? Quantos autores negros e indígenas aparecem nos grupos destinados às temáticas raciais nos congressos da área? E nos dossiês temáticos? Quantos trabalhos sobre
temáticas étnico-raciais estão publicados nas revistas com melhor
avaliação da área?
As insuficiências, relativas ao objetivo 10 e as perguntas que
surgem acerca do objetivo 17 são importantes caminhos para pensarmos os princípios que devem nortear a agenda das pesquisas em comunicação acerca do assunto etnias e antirracismo. Precisamos pautar as discussões étnico-raciais nos cursos, sejam eles de graduação
ou de pós-graduação, de forma consistente e responsável, assim como
218
Comunicação, etnias e antirracismo
precisamos também nos preocupar com a implantação de ações antirracistas no cotidiano da pesquisa em comunicação, nas universidades, nos congressos e nas revistas. Com tais iniciativas, as estruturas
racistas começam a se mover, como pudemos perceber nas ações já
implantadas, que já geraram resultados transformadores na educação
superior brasileira.
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SEÇÃO 4
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221
SEÇÃO 5
Comunicação e direitos humanos:
ética, cidadania e política
Ou a democracia se realiza na
comunicação, ou não é democracia
Eugênio Bucci
Resumo
O presente artigo procura destacar a centralidade da comunicação na democracia. Com esse propósito, sustenta que a política democrática só se consuma com um padrão comunicacional entre agentes (cidadãos e cidadãs) com fins de construir entendimentos racionais
compartilhados sobre os fatos que permitam soluções legítimas para
os problemas e as aspirações comuns. A noção de “verdade factual”,
desenvolvida por Hannah Arendt, é central para esse raciocínio, bem
como a noção habermasiana de que é a comunicação quem gera o espaço social a que chamamos de esfera pública. A conclusão indica que
pensar a comunicação é pensar a democracia e o poder.
Palavras-chave: democracia; esfera pública;
verdade factual; política; comunicação.
Estamos engolidos por uma obviedade ofuscante, tão ubíqua,
tão onipresente, tão intensa que dela não nos damos conta. Nós olhamos para ela sem vê-la, como se contemplássemos o ar que respiramos.
Não nos damos conta de que a democracia se traduz e se estabelece
225
SEÇÃO 5
conforme a comunicação que ela põe em marcha. A democracia só existe na sua comunicação. Logo, discutir a qualidade da democracia é discutir a qualidade da sua comunicação. Isso é tudo – e é só isso. Estamos
lidando aqui com uma relação autoevidente, exata como um cristal, que
nos determina inapelavelmente e nos escapa inexplicavelmente.
Se pensarmos agora não em democracia de forma vaga, mas na
esfera pública democrática, com seus contornos mais estritos, isto é, se
pensarmos na esfera pública de gênese liberal que se incrementou pela
incorporação dos direitos humanos e sociais em constante expansão, veremos que ela mesma, a esfera pública, nada mais é que um constructo
produzido pelo exercício da comunicação – ou, ainda, em outros termos,
pela ação comunicativa. Jürgen Habermas ensina que a comunicação,
longe de ser um dos recursos possíveis da esfera pública, longe de ser
um arcabouço ferramental para dar curso à interlocução entre os agentes, é o fator gerador da esfera pública, único e primordial. Em seus
escritos, o autor nos leva a entender que as práticas comunicativas não
são apenas fatores que integram, mas que, muito acima disso, geram a
esfera pública. Em termos expressos, o filósofo é claríssimo. Diz ele que
a esfera pública “não se refere nem às funções nem ao conteúdo da comunicação de todo dia, mas ao espaço social gerado pela comunicação”.1
Em síntese, uma esfera pública em crise é uma esfera pública
em que a comunicação (a força mesma que a engendra) está em crise.
Quando a comunicação não flui com eficiência e com sua capacidade
inerente de consolidar sentidos em âmbitos intersubjetivos, a esfera
pública entra em turbulência: tende a deixar de ser pública, de ser
inclusiva, de ser regida por parâmetros públicos.
Se agora deixarmos de falar em esfera pública e voltarmos a
falar em democracia – constataremos a mesma coisa: quando a comunicação não vai bem, a democracia não vai bem. A crise da democracia
é a crise da sua comunicação. Óbvio e simples assim.
Antes de prosseguir, convém esclarecer que o uso que se faz
aqui da palavra comunicação não difere, em sentido amplo, do senso
1 HABERMAS, 1992. (tradução livre).
226
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
comum acadêmico. Pensa-se a comunicação em sua dimensão social,
na grande malha de fluxos e circuitos de signos e sentidos que interconectam sujeitos em espaços sociais que eles reconhecem como sendo deles, por meio da língua comum (ou línguas comuns, no plural)
e demais sistemas de representação que constituam seus repertórios
coletivos. Essa comunicação institui múltiplas esferas públicas simultâneas, umas de grande envergadura, outras exíguas, que se interpenetram e se confundem, mediadas por tecnologias diversas, na totalidade do telespaço público.2
Isto posto, quando é que podemos dizer que a comunicação
nos espaços democráticos não vai bem? São muitas as situações negativas possíveis, por certo. Uma delas é a que ora se apresenta em
diversas nações que tradicionalmente são consideradas democráticas:
a difusão das fake news ou da desinformação. Em função de uma série
de contingências – cada uma delas complexa a seu modo, combinadas entre si em teias ainda mais complexas cujo conjunto se faz ainda
mais complexo –, nós temos um contexto em que a comunicação que
deveria propiciar e impulsionar o fluxo de informações confiáveis e
credíveis público se degrada em seu oposto: a desinformação. O que se
verifica, nesse caso, é uma crise grave da comunicação (especialmente no âmbito mais reduzido da esfera pública política). Ela, em lugar
de informar, passa a desinformar; em lugar de permitir a interação
dialógica entre os sujeitos acerca de seus problemas e suas soluções
de concernência comum, com base nos requisitos da razão, impulsiona e promove a corrosão dos fundamentos epistêmicos resultando
no desconhecimento dos fatos. Na crise presente – e aqui chegamos
ao núcleo do impasse lógico –, o que vemos é que as engrenagens da
comunicação social sabotam sistematicamente o acesso da sociedade
à verdade factual, nos termos de Hannah Arendt.
Numa breve recapitulação, valeria lembrar que, para a filósofa,
a verdade factual pode ser entendida como o relato veraz e verificável
sobre o que se passa ou o que se passou. Quando somos capazes de,
2 BUCCI, E. 2021.
227
SEÇÃO 5
coletivamente, ter uma percepção compartilhada sobre o estado do
clima, como quando sabemos dizer de modo aproblemático se o tempo está chuvoso ou se o dia está ensolarado, temos um acesso comum
a um nível rudimentar de verdade factual. Se chove, e todos se põem
de acordo com a percepção enunciada de que chove, essa constatação
adquire o estatuto de um fato incontestável. A essa verdade factual,
nós temos formas tacitamente legitimadas e aceitas de nos referir por
meio da linguagem que nos liga uns aos outros. Para começo de conversa, o conceito de verdade factual é tão elementar quanto isso.
Hannah Arendt sustenta que qualquer pessoa, mesmo que iletrada, tem acesso à verdade factual:
Podemos permitir-nos negligenciar a questão de
saber o que é a verdade, contentando-nos em tomar a palavra no sentido em que os homens comumente a entendem.3
Por certo, essa modalidade de verificação objetiva da realidade
não se resume às questões climáticas. Os fatos da História também
entram aqui. Um exemplo atual pode ser buscado na Guerra da Ucrânia. Existem leituras múltiplas e igualmente válidas – ainda que, por
vezes, antagônicas – do conflito, mas um fato é pacífico: foi a Rússia
que marchou com suas tropas sobre o território ucraniano, não o contrário; foi a Rússia que invadiu a Ucrânia, e não a Ucrânia que invadiu
a Rússia. Quanto a isso, tem-se um fato insofismável.
Do mesmo modo, podemos hoje afirmar com segurança que,
durante a ditadura militar, no Brasil, dissidentes políticos foram sequestrados (aprisionados sem mandado legal) por forças oficiais da
repressão política. Podemos também afirmar que os opositores do
regime foram encarcerados em presídios estatais ou em locais clandestinos controlados por agentes das forças de segurança do regime,
onde sofreram torturas e foram assassinados. Podemos ainda afirmar
3 Idem. Ibidem.
228
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
que os órgãos de repressão ocultaram cadáveres, que nunca mais seriam encontrados. Por mais constrangedores que sejam esses acontecimentos, eles hoje se impõem como fatos igualmente inegáveis e
figuram na categoria de verdade factual.
Há mais o que dizer sobre o conceito de verdade factual. Diferentemente do que se dá com outras formas de verdade, como aquelas
da Matemática (dentre as quais podemos citar a assertiva de que “dois
mais dois são quatro”), que não podem ser desmontadas por manipulações retóricas ou por artifícios de sensacionalismo (“dois mais dois”
continuarão sendo “quatro” mesmo que se mandem prender e matar
os matemáticos), a verdade factual tem fragilidades extremas. É uma
verdade, por assim dizer, vulnerável.
Nos relatos históricos, especialmente, podemos nos dar conta
disso com facilidade. Registros de um acontecimento passado podem ser
eliminados, varridos dos arquivos e dos livros. Testemunhas podem ser
silenciadas. Desse modo, um tirano pode dispor de meios para apagar ou
empalidecer os fatos. Vladimir Putin – podemos lembrá-lo para fins exclusivamente ilustrativos – vem se empenhando para impedir que se chame a Guerra da Ucrânia de “guerra”. Ele exige que as autoridades russas
se refiram à invasão armada do país vizinho como “operação especial”.4
Aliás, por ironia ou coincidência, foi também por iniciativa do
Kremlin, há coisa de quase um século, que a verdade factual passou a
ser sistematicamente vilipendiada nos livros sobre a Revolução Russa. A
máquina totalitária comandada por Joseph Stalin apagava da memória
soviética os nomes que não convinham. A própria Hannah Arendt anotou essa falsificação como uma prova de que a “verdade factual” é frágil:
E se pensamos agora em verdades de facto [verdades factuais] – em verdades tão modestas como
o papel, durante a revolução russa, de um homem
de nome Trotsky que não surge em nenhum dos
4 UOL. Putin reaparece e volta a chamar guerra com Ucrânia de “operação especial”. 27 fev 2022. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2022/02/27/putin-reaparece-e-volta-a-chamar-guerra-com-ucrania-de-operacao-especial.htm. Acesso em 20 out 2022.
229
SEÇÃO 5
livros da história da revolução soviética – vemos
imediatamente como elas são mais vulneráveis
que todas as espécies de verdades racionais tomadas no seu conjunto.5
Essa vulnerabilidade traz consequências particularmente críticas para o tema do presente artigo, uma vez que, como a filósofa cuida de observar, é ela, a verdade de fato, que vem vertebrar a política.
Na fragilidade da verdade factual repousa também a fragilidade da
política e, por extensão, da própria democracia.
A substância daquilo que é debatido na política – e do debate
político – provém da fonte exclusiva da verdade factual. A política
na modernidade democrática se ocupa precisamente de debater racionalmente os fatos com vistas à procura de soluções legítimas que
beneficiem às maiorias sem ferir os direitos das minorias ou as garantias individuais. O método pode parecer rebuscado e talvez soe
pedante, mas a boa política não conhece outro preceito. Vai daí que
se é verdade que a qualidade da comunicação se confunde com a qualidade da democracia, e se é verdade que o livre fluxo da informação
veraz e confiável, em padrões eficientes de comunicação, constitui a
pauta da política, também há de ser verdadeiro que a verdade factual
conflui para injetar densidade a nada menos que a própria política.
Ou, nas palavras da filósofa, “os fatos e os acontecimentos constituem a própria textura do domínio político”.6
Ou, ainda, nas palavras da mesma autora:
a verdade de facto [verdade factual] fornece informações ao pensamento político assim como a verdade racional fornece as suas à especulação filosófica. 7
5 Idem.
6 ARENDT, 1995. Eu mesmo me ocupo do assunto em Existe democracia sem verdade factual?, livro
publicado, em 2019, pela Editora Estação das Letras e Cores.
7 ARENDT, 1995. Ver ainda BUCCI, 2019.
230
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
Chegamos com isso, então, à comprovação, por outra via, da ideia
motriz deste artigo: a comunicação, fazendo fluir de forma consequente
e racional as informações dignas de crédito – informações verificáveis
pelos métodos de investigação empírica disponíveis no debate público
–, pode ser entendida como o fator que gera o espaço social a que damos
o nome de esfera pública, o que significa, em um plano sobreposto a
este, que a comunicação de qualidade assegura a qualidade da democracia. Em síntese, o domínio político na democracia – e, na modernidade,
como ensina Renato Janine Ribeiro, a política, só se consuma quando é
política democrática8 – há de se realizar como sendo aquela cuja textura
provém do conhecimento coletivo, comum, da verdade factual.
A partir disso, ganha mais pertinência a compreensão do estrago produzido pela desinformação – uma indústria poderosa, clandestina, tecnologicamente sofisticada e financiada com recursos de
monta – na comunicação da democracia. Mas em que consiste, mais
propriamente, o fenômeno a que designamos genericamente de desinformação? A pergunta merece considerações menos ligeiras.9
Recorramos a alguns acontecimentos recentes para divisar em
mais detalhes o quadro que tanto nos ameaça. No início de setembro
de 2016, a revista semanal britânica The Economist trouxe uma chamada de capa que retratava de modo cortante o mal da desinformação:
“A arte da mentira: a política da pós-verdade na era das redes sociais”.10
O assunto era a campanha do então candidato à presidência
dos Estados Unidos pelo Partido Republicano, Donald Trump, e a
propaganda do Brexit, que levou a população do Reino Unido a se
separar da União Europeia, ambas transcorridas naquele mesmo ano
de 2016. Tanto Trump quanto o Brexit se valeram de fraudes e manipulações industrializadas. Aos olhos do semanário The Economist,
estaria em curso uma hipertrofia do uso da mentira na política.
8 RIBEIRO, 2017. A proposição de que a política, hoje, “só pode ser democrática”, e de que “não há boa
política sem a promoção do bem comum” aparece logo na introdução da obra.
9 A seguir, serão desenvolvidas algumas proposições que constam da Conferência de Abertura do 45.º
Congresso da Intercom, proferida pelo autor em João Pessoa (PB), em 7 de setembro de 2022.
10 Art of the lie: Post truth politics in the age of social media. The Economist, 10 set. 2016.
231
SEÇÃO 5
Foi mais ou menos naquela época, em meados da segunda
década do século XXI, que a expressão fake news ganhou popularidade mundial, em todas as línguas. Interessante notar que, desde
então, muita gente começou a tomar fake news como um sinônimo
corrente da palavra “mentira”, o que, além de indevido, gerou uma
confusão conceitual considerável. Indevido porque a mentira sempre
existiu na linguagem, ao passo que as fake news apenas ganharam
existência recentemente, como uma forma historicamente determinada de mentira – e, mais especialmente, de mentira na política. As
fake news não apenas não existem desde sempre como, acima disso,
só podem existir a partir da era em que o termo “news” (que quer
dizer “notícia jornalística”) já estava assimilado no repertório das
pessoas comuns. Portanto, não pode haver fake news antes de haver
as news, mais ou menos como para haver uma nota falsa de dólar é
preciso que, antes, as pessoas tenham aprendido a confiar no valor de
uma cédula autêntica dessa moeda. Em resumo, sendo um tipo historicamente determinado de mentira, as fake news são uma falsificação de forma (a forma notícia) e somente assim conseguem fraudar
também o conteúdo.
Não obstante, o emprego da expressão como sinônimo genérico de mentira se alastrou, e a confusão conceitual não demorou a se
fazer sentir. Recordemos que, ainda como presidente, Donald Trump
chamava absurdamente de fake news o noticiário do The New York
Times, enquanto os jornalistas profissionais lançavam mão das mesmas palavras para designar as mentiras que o próprio Trump difundia, como a de que o Papa Francisco o apoiava. A mesma expressão
designava objetos antípodas. Nós sabíamos que jornais com endereço
certo e sabido podem até veicular falsidades, mas não produzem fake
news (pode haver uma notícia inverídica apurada, editada e veiculada
por uma redação verdadeira, mas essa notícia inverídica não é fake
news, pois não é uma falsificação da “forma notícia”), mas Trump,
com seu poder midiático de celebridade blonde, agia para obscurecer
esse fato e confundir a opinião pública.
Foi então que, para superar impasse conceitual que se abriu,
a pesquisadora e jornalista Claire Wardle, criadora do projeto First
232
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
Draft, passou a dar preferência ao substantivo desinformação.11 Ela
deixou de falar em fake news; falava apenas em desinformação. Com
Claire Wardle, aprendemos que a desinformação traz em si o propósito consciente de lesar direitos das pessoas para obter vantagens indevidas e se constitui na propagação massiva, com o emprego de tecnologias digitais, alcançando audiências gigantescas. O conceito supõe,
assim, o dolo (ou má-fé) e a escala massiva (virtualmente planetária).
Munidas desse conceito, pesquisas empíricas e campanhas educativas se viabilizaram. O combate à desinformação ganhou mais consistência e, como se diz, organicidade. Mas nem as pesquisas nem as
campanhas foram suficientes para remover do caminho da democracia o
monstro da desinformação. O mal-estar da comunicação, dando mais lugar à mistificação em detrimento da verdade factual, segue infectando a
democracia, que adoece a olhos vistos. Onde a informação e sua comunicação teciam a esfera pública, a desinformação incide para desagregá-la.
Onde a primeira pavimentava o caminho de acesso à verdade factual, a
segunda conduz à ignorância e ao negacionismo. Se a informação invocava a razão no sujeito, a desinformação a desativa. E tudo isso a uma
velocidade estonteante. Medições empíricas mostram que os conteúdos
desinformativos têm mais alcance e mais rapidez de propagação do que
o jornalismo.12 A esfera pública se esfacela na velocidade da luz, o que
11 A pesquisadora Claire Wardle, líder e fundadora do projeto First Draft, nos ajuda a entender esse termo
e sua prática. Ela sintetizou sete tipos e com eles classificou os “conteúdos” que sabotam o conhecimento
dos fatos. No centro de gravidade dessas sete categorias, Wardle desenhou o conceito de disinformation
(desinformação), que envolve intenção de causar danos e lesar direitos (econômicos, políticos ou pessoais).
Ao lado disso, ela chama de misinformation uma forma branda de desinformação, que não envolve necessariamente o propósito doloso. Uma terceira modalidade é a chamada malinformation, que denomina as ações que, lançando mão de informações genuínas, prepara os relatos propositadamente para gerar
mal-entendidos e obter vantagens indevidas, causando prejuízos a outras pessoas. O centro de gravidade
de todas essas práticas está a disinformation. Em seguida, a pesquisadora estabelece os sete tipos de desinformação. Os sete tipos são: sátira ou paródia (que não carregam a finalidade de desinformar, mas podem
gerar esse efeito em certos públicos), falsa conexão, conteúdo enganoso, falso contexto, conteúdo impostor,
manipulação de contexto (exemplo de malinformation) e, por fim, conteúdo fabricado. WARDLE, Claire.
Understanding Information Disorder. First Draft, Sept. 22, 2020. Disponível em: https://firstdraftnews.
org/long-form-article/understanding-information-disorder/. Ver também PIMENTA, Angela. Claire Wardle: Observatório da Imprensa, 14 nov. 2017. https://www.observatoriodaimprensa.com.br/credibilidade/claire-wardle-combater-desinformacao-e-como-varrer-as-ruas/ Acesso em: 19 jul. 2022.
12 Os primeiros levantamentos bibliográficos da pesquisa encontraram estudos sobre a questão produzidos
por pesquisadores sul-coreanos, taiwaneses e de Cingapura (Meeyoung Cha, Wei Gao, Cheng-Te Li, 2020),
do Paquistão (Qayyum, Qadir, Janjua, Sher, 2019), bem como brasileiros (Meneses Silva et al., 2020).
233
SEÇÃO 5
sinaliza que a política se desnatura e que a democracia vai se tornando
irreconhecível, até o ponto de não ser mais o que é.
Com isso, as distinções tácitas entre o estatuto do relato fatual
e o estatuto da retórica opinativa se desfazem, abrindo caminho para
que o tecido político dê lugar ao furor do fanatismo. A desinformação
é a textura do fanatismo. Não surpreende que algumas das principais
democracias do mundo sofram abalos sucessivos,13 em mais uma evidência de que a crise da comunicação se vincula – seja como causa,
seja como efeito – à crise da democracia. Assim como a comunicação
se degenera em seu oposto – como já foi mencionado no início deste
artigo –, os processos eleitorais democráticos em diversos países democráticos empossam governantes ou bancadas parlamentares que,
uma vez no cargo, investem suas energias em destroçar os processos
eleitorais pelos quais foram escolhidos. Como se deu com a comunicação, a democracia cede terreno para a sua própria negação. Estamos
assistindo a uma autofagia política.
O comportamento das forças autocráticas – a extrema-direita
antidemocrática, em diversos países – parece replicar procedimentos
fascistas. Não se trata de uma repetição do chamado fascismo histórico, conforme o modelo que triunfou na Itália dos anos 1920 e 1930,
mas de algo diferido, alterado, mais ou menos na linha daquilo que
Umberto Eco denominou de “Fascismo Eterno”, ou “Ur-Fascismo”,
que tem, entre suas características, o ódio intransigente à cultura, à
universidade e à imprensa.
A cultura é suspeita [para o Ur-Fascismo] na medida em que é identificada com atitudes críticas. Da
declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço
falar em cultura, pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “porcos intelectuais”,
13 Institutos como V-Dem, Freedom House e The Economist – Intelligence Unit publicam anualmente
pesquisas que aferem o comportamento dos indicadores da democracia e da liberdade de expressão. O
panorama mundial vem de declínio em declínio. O Brasil figura entre os piores desempenhos. A ONG
Repórteres Sem Fronteiras, bem como o Artigo 19, avaliando os riscos para a imprensa e o patamar da
liberdade de expressão, mostram a mesma paisagem sombria.
234
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
“cabeças ocas”, “esnobes radicais”, “as universidades são um ninho de comunistas”, a suspeita em
relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Ur-Fascismo. 14
Não é por acidente que o poder aja para fechar cursos de comunicação.15 Assola-nos a tão falada “guerra cultural”16, que se projeta
a partir das redes sociais. Em matéria de costurar o elo direto entre
o líder autocrata e as massas, os meios digitais do século XXI são o
sonho de consumo do bonapartismo do século XIX e dos fascistas e
nazistas do século XX.
Assim como acontecia sob o fascismo e o nazismo do século
XX, agora, na era digital, e em uma escala amplificada, as massas
colhem sua verdade na propaganda – jamais nos fatos. A verdade é
uma verdade performática, não uma verdade factual. A comunicação se deixa capturar pelo fanatismo, banindo a razão. O que vemos
hoje é, de modo amplificado e aprofundado, o que Sigmund Freud
diagnosticou no livro Psicologia das massas e análise do eu, de 1921.
As identificações libidinais que as massas mantêm com seus ídolos
se caracterizam pelo sentimento mais ou menos próximo ao amor,
sem a mediação do pensamento. Nas palavras de Freud, desejam “ser
dominadas com força irrestrita”, pois o que as move é uma “ânsia extrema de autoridade e sede de submissão”.17 Arde nelas o desejo de se
entregar a senhores violentos e implacáveis.
14 ECO, Umberto. 2019. p. 47. O prefixo alemão “Ur” significa “primitivo”, “primordial” ou, simplesmente, “original”. Na leitura de Umberto Eco, eu me valho da pesquisa da jornalista Lana Canepa, minha
orientanda de mestrado.
15 Nos dias em que termino de redigir esta conferência, no final de julho de 2022, recebo a notícia de que
a Universidade do Vale do Rio Dos Sinos (Unisinos) acaba de fechar o seu Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Comunicação, um dos mais bem avaliados do Brasil, com nota 6 na Capes. A Compós
publicou uma nota de protesto, como também a SBPC. De nada adiantou. Ao justificar a medida, a
Unisinos deu a entender que essa área da pós-graduação seria deficitária. O que aconteceu por lá foi
um desmoronamento: doze, de um total de 26 programas de pós da instituição, deixaram de existir.
Afirmo que esse fechamento integra a estratégia da desinformação em curso.
16 Veja-se CASTRO ROCHA, 2021.
17 FREUD, 2011. O trecho citado se encontra ao final do Capítulo X: “A massa e a horda primeva”.
235
SEÇÃO 5
Em 1951, Theodor Adorno, que também não estava preocupado com o fascismo de 1920, mas com a presença de ideais fascistas nos
Estados Unidos após a Segunda Guerra, advertiu:
Como seria impossível para o fascismo ganhar as
massas por meio de argumentos racionais, sua
propaganda deve necessariamente ser defletida do
pensamento discursivo; deve ser orientada psicologicamente, e tem de mobilizar processos irracionais, inconscientes e regressivos.18
A frase descreve com precisão a quase totalidade da comunicação da era digital dos nossos dias, quando já se passaram 70 anos do texto de Adorno. “Argumentos racionais” entraram em baixa, enquanto os
“processos irracionais, inconscientes e regressivos” seguem em alta.
O entretenimento melodramático, mesclado com a violência, fabrica
a desinformação e tende ao fascismo. As bases da política e da democracia vão se esmigalhando.
Mais do que nunca, para compreender, então, a crise da democracia, temos que mergulhar na crise da comunicação. Ela não se
constitui como atividade secundária em relação aos domínios do Estado e da Economia. Ao contrário do senso comum acadêmico, a comunicação não cumpre um papel acessório, qual seja, o de estabelecer
trocas de mensagens entre polos que lhe são exteriores. O que se dá
é justamente o oposto: sendo linguagem, a comunicação constitui os
sujeitos e os polos que interliga, do mesmíssimo modo que a comunicação gera o espaço social a que chamamos esfera pública. A comunicação não é somente a espuma vistosa de uma tal “superestrutura”,
mas ocupa o centro de gravidade das relações de poder, especialmente
o poder autocrático, e o centro do modo de produção do Imaginário.
Em poucas palavras, o centro do capitalismo mesmo.
18 ADORNO, T.W. 2006.
236
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
Senão, vejamos. Quais as empresas mais valiosas do planeta?
A Apple há alguns meses se tornou a primeira companhia da história a alcançar o preço de 3 trilhões de dólares19, algo equivalente ao
dobro do PIB brasileiro. Em julho de 2021, há pouco mais de um
ano, as cinco maiores big techs (Apple, Google ou Alphabet, Amazon,
Microsoft e Facebook, hoje rebatizada como Meta) bateram, juntas,
o preço de 9,3 trilhões de dólares.20 Aí está o centro do capitalismo,
nos conglomerados monopolistas globais que comandam a fabricação do Imaginário. Não é a economia, é a comunicação. Ou, melhor
dizendo, a economia que conta hoje é a comunicação. E como ela vai
mal, quando a examinamos pelo prisma dos Direitos Humanos e dos
fundamentos do Estado Democrático de Direito, a própria democracia, necessariamente, vai mal também.
19 APPLE becomes first U.S. company to reach $3 trillion market cap. CNBC, 3 jan. 2022.
Disponível em: https://www.cnbc.com/2022/01/03/apple-becomes-first-us-company-to-reach-3trillion-market-cap.html. Acesso em: 9 jun. 2022.
20 SALMON, Felix. 2021.
237
SEÇÃO 5
Referências
ADORNO, T. W. A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista (original de
1951.). Tradução de Gustavo Pedroso. In: Margem Esquerda. #7. São Paulo: Boitempo, 2006. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/25/adorno-a-psicanalise-da-adesao-ao-fascismo/. Acesso em: 30 jul. 2022.
ARENDT, Hannah. Verdade e política. Tradução de Manuel Alberto. In: Entre o passado e o futuro. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1995. Disponível em: https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2014/11/Verdade-e-pol%C3%ADtica.pdf. Acesso em: 28 jun. 2022.
BUCCI, E. Existe democracia sem verdade factual? Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2019.
BUCCI, E. A superindústria do imaginário. Belo Horizonte: Autêntica. 2021. p.
37 e seguintes.
CASTRO ROCHA, João Cezar de. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de
um Brasil pós-político. Rio de Janeiro: Caminhos Ed. e Livr., 2021.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. 2. ed. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Record, 2019. p. 47.
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos. Tradução de
Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. E-book Kindle.
HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Tradução livre. Cambridge: MIT
Press, 1992. p. 360.
PIMENTA, Angela. Claire Wardle: combater a desinformação é como varrer as ruas.
Observatório da Imprensa, 14 nov. 2017. Disponível em: https://www.observatoriodaimprensa.com.br/credibilidade/claire-wardle-combater-desinformacao-e-como-varrer-as-ruas/. Acesso em: 19 jul. 2022.
RIBEIRO, Renato Janine. A boa política: ensaios sobre a democracia na era da internet. São Paulo: Cia das Letras, 2017.
SALMON, Felix. Giant earnings growth for the world’s largest companies. Axios, 29
jul. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3AVNDeF. Acesso em: 30 set. 2021.
WARDLE, Claire. Understanding Information Disorder. First Draft, 22 set. 2020.
Disponível em: https://firstdraftnews.org/long-form-article/understanding-information-disorder/. Acesso em: 19 jul. 2022.
238
Comunicação e diretos humanos:
que cidadania queremos?
Cicilia M. Krohling Peruzzo
Introdução
Por que falar de direitos humanos em pleno século XXI? Afinal, parece haver consenso de que o respeito aos direitos fundamentais protetivos da condição humana é algo já conquistado, naturalizado e com amparo legal. Contudo, a visão em favor dos direitos pode
ser até majoritária, mas, no Brasil atual, mostra-se não consensual.
Há uma profusão de negação de direitos já assegurados pela Constituição do país, como também a propagação deliberada de pós-verdades que negam avanços sociopolíticos, fatos históricos e até comprovações científicas, por exemplo, propagando mentiras que afrontam
leis e assuntos de interesse público, como a saúde pública, um direito
constitucional e humano. São posturas preconceituosas e intolerantes de um segmento de indivíduos contrários aos direitos igualitários
para todas as pessoas, e que abalam as estruturas da alteridade e da
paz social. Desse modo, o tema dos direitos humanos, uma conquista
antiga, mas ainda não plenamente respeitada, não perde a atualidade, tanto pela necessidade de sua afirmação quanto porque ainda há
direitos a serem conquistados. Nesse embate se mesclam incontáveis
239
SEÇÃO 5
movimentos sociais e atores os mais diversos que lutam diuturnamente pela preservação das conquistas e reivindicam novos direitos.
A negação de direitos da pessoa testemunha uma crise humanitária, que em “nossa época tem, sem dúvida, sua origem na experiência da ineficácia humana que imputa a abundância de nossos
meios de atuar e a extensão de nossas ações” [...]. A própria consciência de si se desintegra (LEVINAS, ([1972] 2013, p. 84-85).
Num cenário, por um lado conflitivo e, por outro, repleto de
sinais de mudança e reivindicações pelo reconhecimento de “novos”
direitos, este texto ensaístico, baseado em pesquisa bibliográfica, objetiva discutir perspectivas de transformação na compreensão dos direitos, em especial o direito à comunicação, além de prospectar ideias
em torno da decolonialidade e de um pós-desenvolvimento como horizonte mais favorável de respeito aos direitos.
Comunicar sobre os direitos humanos e por eles
A concepção de direitos humanos na atualidade decorre de
uma construção histórica processada ao longo do tempo e em diferentes culturas, cujos contextos opressivos da condição humana do
sujeito também geraram formas de resistência e lutas por mudança
de valores e práticas sociais (PINSKY; BASSANEZI PINSKY, 2003).
Aos poucos foram agregadas novas visões de direitos (VIEIRA, 2000,
BOBBIO, 1992), percebidos como tal e conquistados “como fundamentais à condição humana e a convivência coletiva. Esses direitos
estiveram inseridos, de alguma forma, nas diversas sociedades, num
processo dialético de construção, desconstrução e reconstrução”
(KROHLING, 2009, p. 45).
Ao serem incorporados nos códigos legais, são reconhecidos
como direitos fundamentais e incorporam concepções de direitos humanos que são aqueles inerentes à própria condição de pessoa, do Ser.
A Constituição Brasileira de 1998, estabelece como direitos
e garantias fundamentais os direitos relacionados à existência (artigo 5.º); os direitos sociais (à educação, saúde, alimentação, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social e assistências)
240
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
(artigo 6.º); direitos de nacionalidade (artigo 12.º); direitos políticos
(Art.14); e os direitos relacionados à organização e a participação em
partidos políticos (artigo 17.º). Especialmente o seu artigo 5.º é explícito ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade” (CONSTITUIÇÃO..., 2016).
Nesses termos, o direito à vida pressupõe existir com dignidade, ter liberdade de ir e vir e de opinião nos termos constitucionais, ter
direito a não discriminação, à proteção física e jurídica, e à propriedade em sua função social.
Nas palavras de PINSKY (2003, p. 9),
ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei: é em resumo
ter direitos civis. É também participar dos destinos
da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos. Os direitos civis e políticos não asseguram
a democracia sem os direitos sociais, aqueles que
garantem a participação dos indivíduos na riqueza
coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é ter direitos civis, políticos
e sociais.
A convivência civilizatória requer respeito aos princípios constitucionais como conquistas da cidadania. Mas, tomando por base o
Brasil que traz violações históricas de direitos das mulheres, negros
e indígenas, nos últimos anos, recrudescem ensaios de negação da
igualdade, apesar de garantida em leis, e da responsabilidade cívica
perante o outro e ao interesse público, que se manifestam na intolerância, na discriminação e na dominação.
A dominação expressa-se em atos visando destituir conquistas
cidadãs históricas e a perpetuar as condições geradoras de desigualdades e das discriminações. Por exemplo, na edição de algumas políticas
241
SEÇÃO 5
públicas, na formulação de leis e decretos-leis que favorecem certos
segmentos do capital em detrimento do interesse público, do meio
ambiente, da paz social, dos direitos dos povos indígenas, como também da restrição da participação popular na formulação de diretrizes
para as políticas e decisões do governo.
A intolerância e a discriminação tornam-se transparentes
quando se afronta o respeito à diversidade e à dignidade como se vê
no dia a dia das relações sociais e de instituições de Estado perante a
sociedade. Afinal, existem direitos humanos comuns a todos os seres,
independente de classe social, nível de renda, cor da pele, procedência
geográfica, local de nascimento, etnia, gênero, cultura, sexualidade ou
religião, e que asseguram a dignidade humana. De fato, os direitos
humanos são inerentes à pessoa – precedem os direitos legais, de cidadania, ou seja, aqueles reconhecidos pelo Estado. São universais –
não dependem de nacionalidades e ultrapassam fronteiras de uma nação, como o direito à vida, à dignidade e a ter os direitos respeitados.
Os direitos humanos são históricos. Avançam na medida em
que são reconhecidos como direitos pela sociedade e pelo Estado.
Mas, os direitos da pessoa, inerentes à condição humana, sempre estão à frente, pois irrompem como reivindicação de necessidades não
satisfeitas (DUSSEL, 2006), em geral postulados por movimentos
sociais, portanto, precedem os direitos de cidadania, aqueles juridicamente reconhecidos. São direitos sentidos e reclamados pela sociedade civil e passam a mover o status da cidadania em determinado
contexto histórico. Por exemplo, o direito das mulheres em relação
aos dos homens1, os direitos da pessoa com deficiência física, cognitiva ou sensorial de ser conhecida como ser humano e com direito
ao convívio social, portanto, não rejeitada, abandonada ou isolada
em sanatórios ou em escolas especiais, são direitos da pessoa antes
de serem legitimados pelo Estado como direito de cidadania. Afinal,
existem preceitos, normas, declarações e leis – universais e nacionais
1 O voto feminino foi permitido só em 1932 no Brasil. A disparidade salarial entre mulheres e homens
persiste. Pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 maiores empresas (2016), do Instituto
Ethos e do BID, revelou que as mulheres recebem 70% da massa salarial obtida pelos homens.
242
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
– que asseguram direitos às pessoas e a segmentos humanos, ou seja,
são reconhecidos social e legalmente. Portanto, caracterizam-se como
direitos de cidadania e são inalienáveis.
A legitimação dos direitos – tanto os humanos como os de
cidadania – decorre de lutas sociais, que tem entre seus expoentes
os movimentos sociais (ecológicos, de mulheres, negros, indígenas,
gays, pela terra, saúde, educação, do mundo do trabalho etc.), pois só
a pressão social organizada faz avançar as visões do que se entende
por direito, por parte dos legisladores e do Estado, e na visão das próprias pessoas, às vezes imbuídas de preconceitos e visões marcadas
pelo racismo e heteropatriarcalismo, pois reproduzem concepções colonialistas do poder, do saber e ser.
No conjunto da sociedade brasileira, persistem situações concretas de preconceito, discriminação e violação do respeito aos direitos à equidade e às diferenças de diversas matrizes, especialmente de
mulheres, negros2, indígenas, pessoas LGBTQIA+3, pobres e nordestinos, apesar da existência de aparatos legais que tipificam o preconceito, a difamação, a incitação à violência, a misoginia e a discriminação
como crimes previstos pelo Código Civil, Código Penal e pela Constituição do Brasil4.
Desse modo, discutir os direitos humanos e, no contexto deles,
o papel dos meios de comunicação e da própria comunicação como
um direito humano, está na ordem do dia.
Há uma corrosão de valores no interior das culturas que urge
ser questionada. Há uma crise de humanismo (LEVINAS, ([1972]
2013), quando a consciência de si se desintegra.
2 Segundo o Atlas da Violência 2021, “em 2019, os negros (soma dos pretos e pardos da classificação do
IBGE) representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. Comparativamente, entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a
taxa foi de 11,2 para cada 100 mil, o que significa que a chance de um negro ser assassinado é 2,6 vezes
superior àquela de uma pessoa não negra”(CERQUEIRA, 2021, p. 49).
3 Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais, queer, assexuados e outros.
4 Ver artigo 5.º, inciso XLVII, artigo 3.º, inciso IV e artigo 5.º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil. E ainda o artigo 186 do Código Civil e o artigo 286 do Código Penal, além do artigo 11
da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do artigo 1.º, tópico 1, da Convenção Americana dos
Direitos Humanos, entre outros tratados.
243
SEÇÃO 5
Como já disse Paulo Freire (1996, p. 19-20, grifo da autora),
ainda nos anos 1990 e soa atual, faz parte do
pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer
forma de discriminação. A prática preconceituosa
de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a
democracia. Quão longe dela nos achamos quando
vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que
lutam por seus direitos, dos que discriminam negros, dos que inferiorizam as mulheres [...]. Pensar e fazer errado [...] não tem nada que ver com
o bom senso que regula nossos exageros e evita as
nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez.
Portanto, as práticas crescentes de racismo, de feminicídio e
de comportamentos homofóbicos e misóginos afrontam a substantividade humana, ao mesmo tempo que são criminosas, ridículas e imorais. Os direitos conquistados não têm volta, pelo contrário tendem a
crescer, queiram ou não queiram as forças simpatizantes ao extremismo e fundamentalismo de direita, de cunho colonialista e patriarcal.
Contudo, cabe dizer que negar o preconceito e a discriminação não quer dizer apenas instituir um clima cultural e político de
tolerância, mas de reconhecimento do outro em sua dignidade e, assim, avançar na concepção do respeito ao outro, em suas diferenças,
como princípio, meio e meta a ser alcançada em sua plenitude. Ou
seja, não se trata apenas de tolerar o outro, em sua diferença, por
exemplo, de cor da pele, de gênero ou condição social, mas de vê-lo
como Ser igual em sua humanidade.
O princípio da equidade é pedra angular da cidadania e da democracia, e pode ser tomado em todas as esferas da vida em sociedade. Portanto, desde o convívio familiar e social, no tratamento e nas
oportunidades no mundo do trabalho e o direito à equidade de acesso ao patrimônio socialmente construído, ou seja, todos aqueles do
244
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
universo dos direitos de cidadania – civis, políticos, sociais, bioéticos,
culturais e comunicacionais, individuais e coletivos.
Os meios de comunicação fazem parte do patrimônio social e o
acesso igualitário aos mesmos faz parte dos direitos de cidadania. No
universo dos meios de comunicação, apesar de se verificar avanços no
respeito à diversidade – por exemplo, no papel de pessoas não binárias em telenovelas e no jornalismo de referência –, ainda persistem
absurdos, principalmente em programas jornalísticos “policialescos”
na televisão e no rádio. É comum o tratamento discriminatório, preconceituoso e pejorativo sobre movimentos sociais e determinados
segmentos, em especial, os pobres, negros, mulheres e gays. Uma
pesquisa sobre “Violações dos Direitos Humanos na Mídia Brasileira”
(2015), mostra a persistência das violações de direitos humanos sobre
os quais há leis, decretos, cujo teor os reconhece como direito de cidadania, o que infringe a legislação brasileira e multilateral em vigor.
A necessidade de mudança nas estruturas geradoras e mantenedoras das desigualdades e da discriminação no conjunto da sociedade, vem acompanhada da premência da aplicação das leis para assegurar o respeito aos direitos legalmente assegurados e da mudança
de mentalidades culturais discriminatórias.
Os meios de comunicação e as profissões do campo da Comunicação têm especial responsabilidade na disseminação de conteúdos
não discriminatórios pela mídia, e no cultivo da informação fidedigna
e respeitosa sobre todos os seguimentos sociais. Já se sabe que atuam
eficazmente formando mentalidades adeptas ao consumismo e ao
conservadorismo, então podem também ajudar a cultivar valores favoráveis à dignidade humana. Para tanto, urge democratizar os meios
e a comunicação de modo a comportar a diversidade de vozes de diferentes atores sociais. Refere-se à diversificação dos meios de comunicação em termos de número e de feições dos emissores, com espaço
à comunicação pública, não só de governo, mas aquela desenvolvida
pelas organizações da sociedade civil sem fins lucrativos, ou seja, os
meios comunitários e alternativos.
Os diversos atores sociais cívicos, como os movimentos sociais, coletivos populares, conselhos, instituições educacionais e
245
SEÇÃO 5
demais organizações civis de interesse público, têm grande potencial
de contribuir mais efetivamente na disseminação de visões críticas
da realidade e para dar visibilidade às demandas por direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e comunicacionais dos setores das classes subalternizadas.
A mediação entre esses tipos de atores, a sociedade e o Estado,
é perpassada pela comunicação, o que evidencia sua importância para
a efetivação dos direitos. Comunicar sobre os direitos e pelos direitos,
tanto através dos meios tradicionais quanto das mídias digitais e dos
meios alternativos e comunitários de comunicação, significa exercitar
o direito de comunicar. Especialmente os meios populares, comunitários e alternativos desenvolvem processos de contracomunicação,
pois em geral atuam na contramão informativa e na incidência política frente às forças dominantes resistentes a mudanças estruturais no
controle da mídia, do poder econômico, político e ideológico.
Nesse âmbito são desenvolvidos processos comunicacionais
que têm como protagonistas principais os movimentos sociais e organizações civis sem interesse de lucro que desenvolvem a Comunicação
Popular, Comunitária e Alternativa, enquanto categoria abrangente
em cujo eixo central é uma comunicação emancipadora que denuncia
situações de opressão, reivindica direitos e incide politicamente para
interferir nas decisões do poder público e para instituir ou modificar
políticas públicas e exercitar o direito de participação política.
A comunicação nessa perspectiva reivindica modificação das
políticas públicas de comunicação, tema que saiu de pauta, mas o problema de concentração da mídia não foi resolvido, pois seu controle
majoritário permanece sob o poder de conglomerados econômicos.
Nessa condição, em concomitância com comunicação face a face
e à coordenação de ações, esses protagonistas empoderam-se da mídia
para poderem exercer seu dever de cidadania, o de lutar para que os demais direitos – à educação de qualidade, à terra, à vida, à igualdade de tratamento e oportunidades etc. –, sejam alcançados por todos que necessitem ter seus direitos reconhecidos. É a realização do direito de “dizer a
palavra, em um sentido verdadeiro, é o direito de expressar-se e expressar
o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar” (FREIRE, 1985, p. 49).
246
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
Que cidadania?
A cidadania é construída e seu status se modifica no embate entre as forças sociais, econômicas, políticas e jurídicas. Então, a
primeira resposta à pergunta acima é simples: a cidadania almejada
é aquela garantidora dos direitos e deveres em sua plenitude, o que
quer dizer que vão além dos direitos básicos fundamentais, discutidos
na seção anterior, portanto, incorporando progressivamente novos direitos, segundo as transformações históricas e culturais. Desse modo,
a cidadania desejada inclui a cidadania comunicacional, pois o direito à comunicação é um dos direitos desses novos tempos diante do
crescente processo de midiatização das sociedades (VERON, 2014). A
cidadania comunicacional possui, no mínimo, três dimensões.
A primeira, remete aos direitos e deveres dos agentes e protagonistas dos meios de comunicação – dos tradicionais aos modernos
que, em síntese, englobam a responsabilização sobre: a) liberdade de
expressão e garantia do acesso público à informação; b) a qualidade
dos conteúdos produzidos e difundidos – da informação, dados gerados e entretenimento; c) a veracidade – negação da desinformação,
calúnia, injúria e difamação; d) o respeito à privacidade de dados e
dos envolvidos nos processos de comunicação.
A segunda dimensão diz respeito ao direito à comunicação, o
que inclui o acesso às tecnologias de informação e comunicação também por parte das organizações coletivas sem fins lucrativos e movimentos sociais, em igualdade de condições àquelas proporcionadas
aos conglomerados de mídia e aos governos. A democratização da comunicação é um dos elementos essenciais à realização da cidadania
comunicacional, pois o reconhecimento da comunicação como um
direito, no mesmo nível dos demais, é um componente chave dos conceitos de cidadania.
O direito de comunicar está embutido nas várias gerações teóricas da cidadania (MARHALL, 1992; VIEIRA, 2000; BOBBIO, 1992)
já legitimadas pela teoria e pela sociedade. Esse direito se insere na
primeira geração e direitos – os civis e políticos reconhecidos no fim
do século XVIII e no século XIX (liberdade individual, liberdade de
247
SEÇÃO 5
expressão, de participação no exercício do poder político e de associação). Aparece também na segunda geração de direitos – os direitos
sociais reconhecidos no século XX (bem-estar, viver com dignidade,
participação na partilha do patrimônio socialmente construído...).
Faz parte também da terceira geração de direitos, aqueles que transcendem os direitos dos indivíduos e passam a ser percebidos como
dos grupos sociais os mais diversos, os quais aparecem apenas na segunda metade do século XX ganhando status de direitos de cidadania
(direitos das mulheres, negros, grupos distintos em gênero e sexualidades, direito dos países, direito à paz, à preservação e cuidados com
a vida no planeta). A comunicação também permeia a quarta geração
de direitos (VIEIRA, 2000), conferido no fim do século XX e início
do século XXI, direitos concernentes à bioética – direitos genéticos,
à vida e os demais desdobramentos perante os avanços do campo da
engenharia genética.
A essas gerações de direitos cabe ainda acrescentar, as mediações do pluriverso (KOTHARI et al., 2021): os direitos não são apenas
uma questão de direitos humanos (antropocentrismo), mas de biocentrismo pois todas as formas de vida importam (ESCOBAR, 2009).
Daí o grande avanço dos debates e exigências em torno dos critérios
ecológicos e de dignidade e valorização de todos os grupos humanos
em suas ancestralidades e distintas culturas.
Contudo, apesar de a comunicação poder ser reconhecida das
referidas dimensões de direitos, diante de sua centralidade no mundo contemporâneo e da crescente midiatização da sociedade (FERREIRA, 2016), cabe demandar uma geração específica de direitos à
comunicação, em outros termos, da cidadania comunicacional como
uma quinta geração de direitos5 (PERUZZO, 2013). Nessa geração, o
requerimento é pelo reconhecimento do direito à comunicação como
5 Existe outra abordagens sobre a elevação do direito à comunicação como geração de direitos, mas
de quarta geração de direitos (RAMOS, 2005), mas como a geração já foi ocupada pelos direitos do
campo da bioética, me parece que a quinta geração lhe caberia bem. Por outro lado, há quem defende
(BONAVIDES, 2008, FURTADO; MENDES, 2008) o direito à paz como de quinta geração, também
uma noção importante. Talvez a promoção de debates sobre essas questões poderia contribuir para
caminhos consensuais sobre as gerações de direitos na atualidade.
248
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
direito coletivo dos grupos minorizados e organizados das classes subalternizadas ao acesso ao poder de comunicar, o que quer dizer, de possuírem condições de empoderamento dos meios e tecnologias de comunicação como sujeitos, como emissores de conteúdos e gestores de seus
próprios meios e canais midiáticos e não apenas como receptores.
Na geração de direitos à comunicação incluem-se os direitos
elencados por Cees Hamelink (2002), ou seja, além dos direitos no
universo da informação, cabem os direitos culturais na preservação e
promoção da diversidade cultural e das tradições; os direitos de proteção quanto à privacidade e contra a informação enganosa e distorcida
etc.; os direitos coletivos de acesso das comunidades à comunicação
pública – às infraestruturas de comunicação, aos recursos adequados,
à distribuição do conhecimento e habilidades, à igualdade de oportunidades econômicas e a correção das desigualdades; e os direitos de
participação: direito de adquirir as capacidades necessárias para participar plenamente da comunicação pública, da tomada de decisões
públicas sobre o provimento de informação, da produção de cultura e
do conhecimento e da aplicação de tecnologias de comunicação.
Os meios de comunicação fazem parte do patrimônio social e
o acesso igualitário dos grupos humanos aos mesmos, na condição de
protagonistas, compõe o mosaico dos direitos de cidadania, o que inclui o direito à comunicação (PERUZZO, 2005, GUARESCHI, 2013).
Esse direito transcende a liberdade de expressão e o direito de receber
informações, ou seja, de ser informado e de informar. É o direito ao
acesso das pessoas e suas organizações coletivas aos meios de comunicação e às suas infraestruturas tecnológicas como protagonistas, em
um processo que ao mesmo tempo em que se exerce o direito à comunicação, esse exercício ajuda na conquista dos demais direitos. Como
disse Mattelart (2009), a construção social do direito à Comunicação é
parte integrante dos direitos humanos. O direito à comunicação significa exercitar o poder de comunicar, como sujeito, individual ou coletivo,
na condição de produtor, editor, difusor e receptor de conteúdos através do empoderamento de meios e canais comunicacionais próprios.
Portanto, a cidadania comunicacional inscreve os direitos na
perspectiva de direitos coletivos e do protagonismo popular cidadão
249
SEÇÃO 5
que tem uma potência transformadora pois é voltada à ampliação da
qualidade do status da cidadania na perspectiva cívica, o que inclui a
responsabilização sobre o interesse público como interesse das maiorias e do processo civilizatório (e não como simples liberdade de opinião, às vezes advogada mesmo tendo caráter criminoso por infringir
direitos, leis e a Constituição).
Voltando às dimensões da cidadania comunicacional, a terceira é a da participação, que se realiza no bojo e simultaneamente à
primeira (protagonismo popular) e à segunda (acesso equitativo às
tecnologias). O participar está no eixo do conceito de cidadania. Ser
cidadão, ser cidadã significa participar da vida em sociedade, mas
como se participa indica a qualidade da cidadania, pois seu exercício não tem sido igualitário a todos os segmentos sociais. Basta olhar
as desigualdades sociais, econômicas, educacionais e de domínio dos
meios de comunicação ao nosso redor para se perceber que a “distribuição” dos direitos de cidadania é desigual.
Participar nos meios de comunicação pode significar uma dezena de coisas. A palavra participação tem sido bastante simplificada ao ser usada para se falar de qualquer tipo de envolvimento nos
meios tradicionais e plataformas digitais de comunicação. De fato, o
envolvimento pode se dar quando as pessoas participam ouvindo, assistindo, lendo, enviando mensagem, pedindo música ou informando
sobre algum fato, por exemplo, sobre a situação do trânsito enquanto
se transita na cidade e se telefona ou manda uma mensagem por aplicativo para uma emissora de rádio. Ou quando alguém dá uma entrevista, posta comentários em redes de mídias digitais etc. É um tipo
de participação apenas no nível da mensagem. Mas, num nível mais
elevado, se pode participar também no planejamento, na produção e
difusão de conteúdos, como é comum nos meios populares e comunitários de comunicação. Em suma, o avanço da cidadania comunicacional requer melhoria na qualidade participativa no contexto da
práxis coletiva do movimento social ou comunidade a que se pertence.
Teoricamente existem níveis de participação – dos mais elementares aos mais avançados – e o tipo de nível revela como se participa do que fazer comunicacional. Merino Utreras (1979) traz boas
250
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
chaves de participação quando documenta as discussões sobre autogestão no Seminário Latinoamericano de Comunicación Participatória falando da participação na produção (de programas, mensagens
com apropriação do saber técnico), na tomada de decisões (sobre a
programação, controle e administração) e no planejamento da comunicação (participação na formulação de planos e políticas do próprio
meio de comunicação e em nível mais amplo).
Essas categorias permitem detalhar os vários níveis possíveis
de participação popular no processo de comunicação a partir das práticas sociais (PERUZZO, 2004, 2010): a) participação como receptor
de mensagens (quando há o consumo linear de conteúdos); b) participação no nível da mensagem, mas sem interferir no poder de decisão
sobre a edição e critérios de difusão, por exemplo, quando se participa
dando entrevistas, depoimentos etc.; c) participação na produção de
conteúdos, tais como na elaboração de notícias, poesias, desenhos,
canções; d) participação na produção de programas, vídeos, boletins
etc., o que pressupõe um envolvimento mais contundente, por exemplo, no planejamento do programa de rádio ou de um jornal definindo
a linha editorial, os objetivos, a montagem, a redação ou locução, a
edição...; e) participação no planejamento global do meio de comunicação, sua política editorial, estratégias de gestão, de sustentabilidade
e de programação; f) participação popular da gestão do veículo de
comunicação, ou seja, no seu processo de administração; g) participação da população na definição da política de comunicação local,
regional e nacional definindo seus princípios e parâmetros legais.
Como se pode perceber, excetuando os dois primeiros níveis, os demais são mais avançados e pressupõem a participação na partilha de
poder de decisão, um poder que é coletivizado e gestado na práxis dos
movimentos sociais e comunidades.
O debate e a formulação de conceitos sobre participação ativa nos meios de comunicação estiveram em evidência nos anos 1970.
Em Belgrado, capital da Sérvia, em 1977, aconteceu a Reunión sobre
Autogestión, Alcance y Participación en la Comunicación (MERINO
UTRERAS, 1988). Também se realizou o Primer Seminário Latinoamericano de Comunicación Participaria, título de uma publicação do
251
SEÇÃO 5
CIESPAL, em 1978 (CIESPAL, 1978). Eles são marcos importantes no
contexto da discussão sobre a situação de controle da circulação mundial da informação que culminaram com a realização de pesquisas e
na formulação e divulgação do Informe MacBride (UM MUNDO E
MUITAS VOZES, 1983) e na formulação de proposta de uma Nova
Ordem Mundial da Informação e Comunicação (NOMIC) (REYES
MATTA, 1980).
Os referidos documentos (CIESPAL, 1978, MERINO UTRERAS, 1988, UM MUNDO E MUITAS VOZES, 1983, REYES MATTA,
1980), entre outros, como o artigo de Luis Ramiro Beltrán (1981), com
o sugestivo título Adeus a Aristóteles: a comunicação horizontal, documentam eventos de um momento histórico ímpar de efervescência
do debate político internacional sobre os meios de comunicação, num
contexto de incremento do difusionismo desenvolvimentista e de vigência de ditaduras militares na América Latina com severas restrições à liberdade de imprensa e de organização social.
2.1 Perspectivas decoloniais
Os limites e contradições do “modelo” de desenvolvimento
em curso no contexto do neoliberalismo têm motivado movimentos
de pesquisa e políticos que buscam desvendar as configurações do
mundo atual e, ao mesmo tempo, gerar vetores capazes de elaborar
propostas de transformação. Esses vetores instigam uma segunda resposta à pergunta sobre que cidadania queremos, que, por sua vez, exige pensar sobre que sociedade queremos. Nesse sentido, os princípios
da ética a liberação (DUSSEL, 1998) e as propostas decoloniais vão
tecendo novas perspectivas civilizatórias.
O movimento investigativo e político internacional e, em especial na América Latina, vem construindo novas epistemologias científicas para entender as realidades histórica e atual marcadas pelo colonialismo ao longo dos séculos. Muitos autores, como, por exemplo,
Quijano (2005), Escobar (2009, 2012), Silva (2011) e Sousa Santos
(2010), desvendam criticamente os mecanismos estruturais e estruturantes que condicionam o capitalismo e tipo de desenvolvimento nas
252
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
sociedades do ocidente destrutivo dos ecossistemas ambientais, e se
expandem mundo afora influenciando os modos de desenvolvimento das nações e a geração do conhecimento. Simultaneamente, são
discutidas as perspectivas para necessárias transformações passando por propostas de desdesenvolvimento, pós-desenvolvimento e do
bem viver (MANCE, 2015, SILVA, 2011, ACOSTA, 2011, GUDYNAS,
2009, ESTEVA, 2009, EHLERS ZURITA, 2016, CONTRERAS 2014),
a partir de novos modos de estar e conviver no mundo implicados em
processos de decolonização.
Uma transformação nessa direção pressupõe fazer um giro
decolonial – que não é só uma referência ao passado, mas ao mundo atual – incurso na decolonização do ser e do saber (MIGNOLO,
2017, MALDONADO-TORRES, 2008) e da decolonialidade do poder
(QUIJANO, 2005).
As estruturas de poder e as estruturas de pensamento (QUIJANO, 2005) são instituidoras do domínio no mercado capitalista internacional e marcadas pelo eurocentrismo a partir da ideia classificatória de raças (inferiores e superiores) e controle das subjetividades,
culturas e produção do conhecimento desde o tempo colonial.
A colonialidade do poder, segundo Quijano (2005), configura-se como um padrão global de controle do capitalismo mundial, inclusive, das subjetividades dos povos colonizados.
A globalização em curso é, em primeiro lugar, a
culminação de um processo que começou com a
constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais de este padrão de poder é a classificação social
da população de acordo com a ideia de raça, uma
construção mental que expressa a experiência de
dominação colonial e permeia uma das dimensões más importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo
(QUIJANO, 2005, p. 117 ).
253
SEÇÃO 5
A colonialidade do saber (LANDER, 2000, MIGNOLO, 2017,
MALDONADO-TORRES, 2008, SOUSA SANTOS, 2010) diz respeito à
geopolítica do conhecimento, das concepções teóricas e políticas neoliberais de enxergar a sociedade e das formas dominantes de fazer ciência
condicionadas pelos paradigmas epistêmicos eurocêntricos do saber.
O conhecimento “está ancorado em projetos com uma orientação histórica, econômica e política. O que desvelou a ‘colonialidade’
é a dimensão imperial do conhecimento ocidental que foi construída,
transformada e disseminada durante os últimos 500 anos” (MIGNOLO, 2017, p. 24). Decolonizar o saber é desprender-se dessa colonialidade do conhecimento, que se pretende universal, de suas regras e
pressupostos epistêmicos. “Não há outra maneira de saber, fazer e ser
descolonialmente, senão mediante um compromisso com a desobediência epistemológica” (MIGNOLO, 2017, p. 23).
A colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES, 2008, MIGNOLO, 2017) é relacionada à colonialidade do poder e do saber e produz
a desqualificação e desumanização do outro em seu caráter ontológico,
portanto, enquanto Ser. “A colonialidade do ser naturaliza a escravidão e
a servidão, legitima o genocídio em nome do progresso (e de Deus) e banaliza a violência, a desigualdade e a injustiça [...]” (SILVA, 2011, p. 12).
Em síntese, “a ‘colonialidade’ equivale a ‘uma matriz ou padrão colonial de poder’, o qual ou a qual é um complexo de relações
que se esconde detrás da retórica da modernidade (o relato da salvação, progresso e felicidade) que justifica a violência da colonialidade”
(MIGNOLO, 2017, p. 13). E o conceito de
giro descolonial em sua expressão mais básica
busca colocar no centro do debate a questão da
colonização como componente constitutivo da
modernidade, e a descolonização como um sem
número indefinido de estratégias e formas contestatárias que demandam uma transformação radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser
e conhecer (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 66,
tradução minha).
254
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
Esses questionamentos confrontam o tipo de sociedade em que
vivemos, tensionam seus mecanismos estruturantes e negam o tipo de
desenvolvimento predominante, ou seja, o desenvolvimento capitalista – baseado na exploração, no individualismo, no consumismo e
na competição, sempre se reinventando para prosseguir dominante, e
propõem o pós-desenvolvimento, o bem viver ou algo a porvir.
É nessa perspectiva que se situam os debates decoloniais. O
mundo parece construir alternativas capazes de gestar uma “vida boa
em plenitude” (CONTRERAS, 2014), sem acumulação desigual e em
busca do equilíbrio nas relações com a Mãe Terra. Enfim, aspira-se
um modo de vida baseado num sistema de convivência comunal, colaborativa e solidária, desde valores ou cosmovisões ancestrais do bem
conviver e do bem viver (CONTRERAS, 2014). Como diz Ehlers Zurita
(2016), os humanos somos parte da natureza e não donos dela. Escobar (2009, p. 28) esclarece: novos tempos remetem à constituição de
uma “nova ética que subordina os objetivos econômicos aos critérios
ecológicos, de dignidade humana e o bem-estar das pessoas”, de uma
sociedade que se fundamenta no antropocentrismo (centralidade do
ser humano no universo) para uma sociedade assentada no biocentrismo (todas as formas de vida são importantes).
Considerações finais
Sobre que cidadania queremos, o desafio não é só amenizar
os problemas que afetam os grupos minorizados das classes subalternas e a sociedade como um todo fazendo valer o respeito aos direitos
humanos e cívicos. É reconhecer o papel central da comunicação. É
transformar a realidade. É pensar um novo projeto de sociedade como
construção coletiva... Então, surge nova pergunta: afinal, que sociedade queremos? Numa possível nova sociedade, tal como vislumbram as
concepções decoloniais, possivelmente o próprio conceito de cidadania em suas assertividades eurocêntricas será ressignificado.
255
SEÇÃO 5
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259
Comunicação dos direitos
e interseccionalidade
comunicacional: desafios
de uma teoria crítica para
a esfera pública digital
Vitor Blotta
Olhar crítico para o mundo a partir
do direito e da comunicação
No primeiro ano da Faculdade de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em 2001, respondi a conhecida pergunta
do professor Renan Severo Teixeira da Cunha, titular da cadeira de
Introdução ao Estudo do Direito, sobre o porquê de ter escolhido fazer
o curso: “quero entender como o mundo funciona”, disse, tentando me
distinguir dos colegas que buscavam uma carreira bem remunerada,
ou o poder de tomar decisões jurídicas efetivas sobre o mundo.
Ao longo dos anos, descobri que, embora minha preocupação
fosse legítima, o problema de como o mundo funciona é sempre envolvido pelas reivindicações de indivíduos, grupos ou instituições sobre como
ele poderia, ou deveria funcionar. É o que propõem teóricos ligados à
chamada Teoria Crítica da Sociedade: compreender de modo crítico as
261
SEÇÃO 5
relações de poder na sociedade demanda uma articulação fina entre
teoria e prática, entre o factual e o normativo, ou entre o mundo que aí
está e o mundo que tende a ser, ou que se busca realizar.1
Outra preocupação que motiva meus estudos, desde o início
da graduação, em Direito é compreender as relações entre os sistemas
de mídia e a política. Para enfrentar esse problema de modo crítico,
encontrei no campo da então emergente economia política da informação e da comunicação uma abordagem de inspiração marxista que
busca articular teoria e prática. Foi com a pergunta sobre o papel dessas indústrias e tecnologias na reestruturação produtiva do capitalismo do final do século XX, e seus reflexos sobre os direitos de comunicação, que realizei dois anos de iniciação científica sob a orientação
do professor de economia Fernando Augusto Mansor de Mattos, hoje,
professor associado da Universidade Federal Fluminense.
Nestes estudos, identifiquei, de modo semelhante às teses da
indústria cultural de Horkheimer e Adorno, que os imperativos econômicos do capitalismo tardio eram determinantes para a configuração de
um sistema de mídia mais comercial do que público ou estatal, e que os
direitos da comunicação social haviam sido capturados pelos conglomerados de mídia, realizando-se nos limites de seus interesses (MATTOS;
BLOTTA, 2005). Essa tese foi corroborada em meu trabalho de conclusão de curso, em que me debrucei sobre a legislação em comunicação
social no Brasil e na configuração do então Estado democrático de direito. Descobri que a financeirização do capital coincide com um Estado
mais policial do que promotor de políticas públicas, o que reflete nas
limitações legislativas e políticas de se assegurar de modo equânime a
liberdade de expressão, o direito à comunicação, a não discriminação, a
diversidade e o pluralismo político e cultural (BLOTTA, 2005).
Dados esses bloqueios jurídicos, políticos e econômicos para
a efetivação dos direitos e princípios da comunicação social, precisei
1 Segundo Axel Honneth, “… by a ‘critical theory of society’, we mean that type of social thought that
shares a particular form of normative critique with the Frankfurt School’s original program – indeed, perhaps, with the whole tradition of Left Hegelianism – which can also inform us about the
pre-theoretical resource (vorwissenschaftliche Instanz) in which its own critical viewpoint is anchored extratheoretically as an empirical interest or moral experience.” (HONNETH, 2007:63-64).
262
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
dar um passo atrás, com o desafio de compreender as bases filosóficas
e os diagnósticos da comunicação e da democracia. Para tanto, aprofundei-me nas teorias da razão, do direito e da esfera pública de Jürgen Habermas, durante o mestrado e o doutorado (2006 a 2012), já
no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, da Faculdade
de Direito da USP, sob a orientação do Prof. Dr. Eduardo Bittar. No
mestrado, compreendi que a normatividade, como orientação para a
ação, está presente tanto na razão e na linguagem quanto nos sistemas de ação social, como a economia, a política, o direito, a ciência, a
cultura e a comunicação, e que para o direito aplicar os princípios de
uma razão comunicativa ele teria de realizar um equilíbrio entre as diferentes normatividades que buscam incidir sobre o campo do direito.
Durante o período de estudos do doutorado, convenci-me de
que as bases faltantes da teoria e da prática da esfera pública e da democracia se encontravam, além da institucionalização dos direitos individuais à comunicação e à participação em processos deliberativos,
como proposto por Habermas em sua teoria discursiva do direito e da
democracia (HABERMAS, 1996), na própria esfera pública política. E
quando falo em esfera pública política, quero dizer, em termos normativos, as condições de possibilidade do exercício livre e equânime dos
direitos de comunicação, o que inclui os direitos às relações de reconhecimento recíproco, à personalidade, à privacidade, à expressão e
à comunicação, e nos princípios do que denomino “comunicação dos
direitos”, isto é, na atuação de agentes estatais, públicos e sociais para
a produção e a disseminação de informações confiáveis e de interesse
público, na transparência, acesso à informação e às justificativas das
decisões políticas e jurídicas, além de contribuições culturais, estéticas
e, por que não, afetivas para uma cultura política mais democrática.
O percurso do doutorado incluiu um período de pesquisa na Universidade J. W. Goethe, de Frankfurt, quando pude dialogar com pensadores, como Klaus Günther, Rainer Forst e Axel Honneth, sucessores
de Habermas respectivamente na teoria do direito, na teoria política e
na filosofia social. Foi quando comecei a me aprofundar nas dimensões
estéticas e afetivas do direito e da comunicação política e, também, na
necessidade de articulação entre as diferentes normatividades que se
263
SEÇÃO 5
digladiam na esfera pública. Vale registrar que fui também estudante de pós-graduação em cursos dos professores Eugênio Bucci e Ciro
Marcondes Filho, no PPGCOM da Escola de Comunicações e Artes da
USP, de quem, com muita honra, tornar-me-ia colega em 2014, além
de outras referências, como Dennis de Oliveira e Ricardo Alexino, que
participaram respectivamente de minhas bancas de doutorado e de
ingresso no Departamento de Jornalismo e Editoração.
Não posso deixar de mencionar que minha formação foi em
muito estimulada pela minha atuação, enquanto pesquisador, no
Núcleo de Estudos da Violência da USP, onde atuo até hoje. Lá desenvolvi projetos sobre segurança cidadã, direitos humanos e democracia, incluindo um pós-doutorado sobre a legitimidade dos direitos
humanos a partir de análises de coberturas midiáticas (2012-2015). A
partir dessa pesquisa, pude diagnosticar que, embora presentes nos
debates públicos, as reivindicações sociais e morais em relação aos
direitos humanos e ao livre e equânime exercício das liberdades de
comunicação e da comunicação dos direitos estavam, por assim dizer,
sufocadas por uma articulação cada vez mais forte entre motivações
instrumentais e punitivistas e motivações religiosas, carismáticas e
espetaculares para a garantia da ordem e a adesão política (BLOTTA,
2014). Esta tendência se mostrou verdadeira no processo de deterioração das esferas públicas e das democracias que evidenciamos na última década, no Brasil e no mundo.
Entre os direitos de comunicação e a comunicação
dos direitos: normatividades comunicativas
e interseccionalidades comunicacionais
Ao ingressar, em 2014, como docente no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, apresentei o projeto de pesquisa
“Comunicação, Violência e Direitos Humanos: estudos críticos a partir
da esfera pública política e do direito da comunicação”. Um dos estudos deste projeto, realizado como estágio pós-doutoral no Centre for
Human Rights Law, da Universidade de Nottingham, na Inglaterra, foi
264
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
sobre privacidade e liberdade de informação em debates públicos sobre regulação da comunicação na Inglaterra e no Brasil. Nela identifiquei situações de antagonismos e trade-offs de direitos fundamentais,
como entre privacidade e acesso à informação, além de tendências de
desvalorização da privacidade a partir de uma “afetivização” desse direito, e de supervalorização da liberdade de informação e de imprensa
a partir de uma “facticização” desses direitos (BLOTTA, 2015).
Em 2016, iniciei minhas contribuições ao PPGCOM da ECA-USP ministrando a disciplina “O Direito da Comunicação: esfera pública, liberdade de expressão e regulação”, que, em 2022, foi oferecida
pela sétima vez. Durante as diferentes edições deste curso, além de
atualizar anualmente as leituras diante de uma temática em constante transformação, notei que vinha fazendo um movimento pendular
de olhar tanto o campo da Comunicação, a partir do Direito, quanto
o Direito, a partir da Comunicação. Assim, temos nos debruçado no
debate teórico e público sobre esfera pública, nas diferentes perspectivas e iniciativas de regulação das liberdades, direitos e deveres de
comunicação, e nas iniciativas da comunicação que realizam direitos
humanos e princípios democráticos, inovando nessas áreas.
Outra ação importante nesse movimento entre direito e comunicação foi a criação do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e
Liberdade (JDL), no final de 2015, em parceria com Eugênio Bucci,
e ao qual se associaram diversos pesquisadores e pesquisadoras das
áreas do Jornalismo, do Direito, das Ciências Sociais, da Política e da
Filosofia. O objetivo do grupo e suas linhas de pesquisa têm sido reconstruir a história, os princípios fundadores e as teorias do jornalismo e da imprensa; monitorar os direitos e deveres da comunicação,
as iniciativas de autorregulação e regulação de diferentes setores da
comunicação; além de promover estudos sobre as relações entre informação e cultura política democrática. Minhas orientações de pesquisas de mestrado e doutorado no PPGCOM têm orbitado em torno
dessas linhas.
Um dos principais problemas de pesquisa do JDL tem sido
caracterizar as transformações do jornalismo, da esfera pública e da
265
SEÇÃO 5
cultura política a partir das mídias digitais, em especial as mídias sociais. A esse respeito, meu argumento, ainda em construção, é que
essas transformações fazem parte de processos mais longevos, anteriores à disseminação das mídias digitais no cotidiano social: primeiro, são reflexos da crise da razão moderna na filosofia, na ciência e no
jornalismo, após as críticas de teóricos pós-estruturalistas; segundo,
são as transformações econômicas e tecnológicas trazidas pela internet e era dos algoritmos; e terceiro, está ligada às reações políticas e
culturais, às lutas por direitos de diversidade e de identidade étnica,
racial, de gênero e cultural protagonizadas pelos movimentos feministas, negros, ambientalistas, de povos originários e de outros grupos
sociais marginalizados.
Outros temas que atravessam os programas anuais de trabalho do JDL são: a crise das democracias ocidentais, os direitos digitais
e os novos autoritarismos, as relações do jornalismo com imperativos
das áreas da economia, da política, da comunicação e da cultura, e
mais recentemente, as tensões entre desinformação e democracia.
Em 2018, os esforços de pesquisa do grupo Jornalismo, Direito e Liberdade foram fortalecidos pelas articulações com uma nova
linha de pesquisa no projeto CEPID FAPESP, do Núcleo de Estudos
da Violência da USP, intitulada “Opinião Pública, Cultura Política Democrática e Legitimidade”, da qual temos mapeado o debate teórico
sobre a “mudança digital da esfera pública”, e estudado o fenômeno
das milícias digitais e respostas do Estado a elas, além das relações
entre desinformação e violência contra jornalistas.
Outras duas experiências de pesquisa e docência foram fundamentais para minha formação. A primeira delas foi participar como
docente do curso de pós-graduação lato sensu em Educação, Cultura
e Relações Étnico-Raciais, oferecido pelo Centro de Estudos Latino-Americanos de Comunicação e Cultura, o Celacc, Núcleo de Apoio à
Pesquisa da ECA-USP. Poder discutir, desde 2015, as “dimensões jurídicas das relações étnico-raciais no Brasil”, com uma quase totalidade
de estudantes negros e negras, muitos dos quais professores e professoras, profissionais liberais, acadêmicos e acadêmicas e ativistas, tem
266
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
sido uma experiência de profundo aprendizado e transformação de
minhas visões acadêmicas e de mundo. Por meio dessa experiência,
tenho buscado “enegrecer” minha literatura, de formação prioritariamente anglo-europeia, masculina e branca, e passei a conhecer e
incorporar em minhas reflexões, pesquisas e cursos os pensamentos
antirracista, feminista e decolonial de teóricos como Charles Mills,
George James, Angela Davis, Patrícia Hill Collins, Lélia Gonzales,
Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro, Adilson Moreira, Grada Kilomba,
bem como Aílton Krenak e Viveiros de Castro. Esses estudos me permitiram identificar os limites e vieses do processo de racionalização
e modernização capitalista, além de promover inovações em minhas
reflexões sobre jornalismo, esferas públicas, comunicação e direito.
A segunda experiência marcante da minha trajetória enquanto
pesquisador foi o período de dois meses, entre 2015 e 2016, que passei
como professor visitante na Universidade de Zagreb, na Croácia, a fim
de desenvolver o projeto “Você nunca vai entender: narrativas sociais
sobre traumas culturais e o monopólio do lugar de fala e da verdade
histórica no Brasil e na Croácia”, dentro do programa internacional
“Social Performance of Cultural Traumas and the Rebuilding of Solid
Sovereignties” (SPeCTReSS), ligado à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP. A partir da análise de obras de literatura
de não-ficção e de quadrinhos sobre a guerra da independência da
Croácia e a ditadura militar no Brasil, pude verificar que violências
sociais, culturais e históricas são capazes de gerar vazios cognitivos,
morais e estéticos entre grupos vitimizados e quem não sofreu diretamente essas violências, vazios esses talvez somente recuperados via
esforços por uma “empatia política” que é potencialmente gerada pela
produção e recepção de obras culturais relacionadas (BLOTTA, 2016).
Feitos esses relatos sobre os percursos de pesquisa, gostaria
de trazer um esforço final de reflexão teórico-metodológica para responder à seguinte questão: quais são os elementos básicos capazes de
informar uma teoria crítica da chamada “esfera pública digital”?
As respostas que tenho dado até o momento vão na direção
de analisar as relações das pretensões normativas dos discursos em
267
SEÇÃO 5
torno dos direitos humanos, dos direitos de comunicação e da comunicação dos direitos, com os imperativos dos sistemas de ação e integração social, como da economia, da ciência, da política e da cultura.
Fazemos essas análises por meio da diferenciação dessas pretensões
normativas (como ao definir que é da ordem da explicação e da comprovação o teste da veracidade de mensagens fraudulentas, e que o
teste do interesse público sobre determinadas informações diz respeito a uma argumentação normativa sobre o que deve ser considerado
ordem pública, saúde pública ou direitos fundamentais), mas também por análises da sobreposição de normatividades (como quando o
debate sobre os direitos das trabalhadoras domésticas é enquadrado
mais como uma questão de custos para a economia ou questões das
relações familiares do que uma questão de justiça social e trabalhista). Em estudo sobre “solidariedade seletiva e modulação discursiva”,
propus que um arranjo mais legítimo das diferentes normatividades
em conflito (ou solidariedades neste caso), é aquele em que suas inter-relações estão transparentes, sujeitas a críticas e capazes de se modular a partir dessas inter-relações (BLOTTA, 2020).
No entanto, mais recentemente passei a perceber que as técnicas de diferenciação, sobreposição e modulação discursiva estão deveras presas em questões de linguagem, a qual, embora reflita as normatividades dos diversos sistemas de ação, não é capaz de revelar algumas
sobreposições que, por diferentes motivos, ainda não foram articuladas
em termos linguísticos. Por isso, cada vez mais tenho tentado abordar
as violências da comunicação a partir da perspectiva dos estudos sobre
interseccionalidade. E como, para Collins (2015, p. 1), interseccionalidade diz respeito não somente às lutas políticas de diferentes grupos sociais minorizados e ao entendimento das articulações de diferentes relações de opressão, mas também a uma “estratégia analítica que provê
diferentes ângulos de visão sobre fenômenos sociais”, tenho utilizado
esse conceito não somente para identificar as sobreposições e articulações de diferentes sistemas de opressão na comunicação, mas também
as inter-relações de violências aos direitos de comunicação e aos deveres de comunicação dos direitos, ou seja, como interseccionalidade
268
Comunicação e direitos humanos: ética, cidadania e política
comunicacional. Aqui podemos pensar, por exemplo, na articulação
de desigualdades de acesso à internet e à informação, desigualdades
de exercício do direito à comunicação e desigualdades de representação cultural nas esferas públicas, as quais precisam ser pensadas cada
vez no plural.
Para concluir essa reflexão sobre como estruturar uma teoria
crítica da esfera pública digital, recupero mais uma receita de Collins.
Em sua obra “Intersectionality as Critical Social Theory” (2019), no
capítulo 7, “Ralationality within Intersectionality”, a autora propõe
pensar a interseccionalidade a partir de três modos de relacionar as
diferentes relações de opressão: como adição de diferentes estruturas de poder a uma realidade social; como articulação de diferentes
sistemas de opressão, cujo ponto de encontro, chamado conjunção,
torna-se local prioritário para identificar como essas articulações se
manifestam; e como coformação, que permite, via o recurso a metáforas, uma visualização mais holística das interseccionalidades.
Se Collins entende a violência como um fenômeno de conjunção, podemos pensar a desinformação como uma conjunção de interseccionalidades comunicacionais, uma vez que a desinformação
articula violências epistêmicas, morais e estético-expressivas contra
a informação e a comunicação de interesse público. Assim, além de
identificar como diferentes imperativos de poder se articulam em
campanhas de desinformação, como econômicos, cognitivos, morais
e culturais, temos feito também analogias com a área ambiental para
descrever a ordem desinformativa, dado que a comunicação faz parte
de nosso ecossistema vital.
Desse modo, é possível, e talvez urgente e necessário, pensar a
desinformação enquanto um ambiente de violência sistêmica contra
a comunicação de interesse público, o que também demanda de nós,
em termos normativos, identificar as reivindicações por uma comunicação interseccional e democrática dos direitos, em sentido semelhante ao que Neha Kumar denomina, na área das interfaces humano-computador, “computação interseccional” (KUMAR, 2020), bem
como regulações ou políticas interseccionais de comunicação.
269
SEÇÃO 5
Referências
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cultural trauma narratives in Brazil. Teresa: Revista de Literatura Brasileira, v.
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direitos humanos: a ladeira escorregadia para o dilema do limite legal. In: ENCONTRO
DA INTERCOM. 38. 2015. Anais [...]. [S. l.], 2015. Disponível em: https://www.eca.
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HABERMAS, J. Between Facts and Norms: Contributions to Discourse Theory of
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MATTOS, F. BLOTTA, V. Mídia, Política e Controle Social da Informação. Revista
Far@, v. 2, n. 1-2, 2005. Disponível em: https://www.revistafaro.cl/index.php/Faro/
article/view/845. Acesso em: 7 dez. 2022).
270
SEÇÃO 6
Comunicação, cultura e consumos
Os desafios epistemológicos,
teóricos e metodológicos
das pesquisas em
Publicidade e Consumo
Clotilde Perez
Estudar o consumo é ter a convicção de que se está em uma
área de fronteiras e interseções multidisciplinares. É enfrentar a tensão dos limites, jogar com as políticas dos diferentes campos, forçar
a expansão pelas articulações e criar o novo. Nesse sentido, as potencialidades próprias da interdisciplinaridade são muitas, mas com elas
também surgem as forças contrárias, as resistências e os desafios.
Começo esta reflexão a partir dos desafios teóricos, Consumo
“sem lugar” na arqueologia do conhecimento sistematizado e a fantasmagoria do consumo, a negação de sua existência; por mais esquizofrênico que pareça, o Consumo como área de pesquisa que busca
interseção de várias regionalidades científicas, impondo a multi e a
interdisciplinaridade como fundamento é muito recente. Até bem
pouco tempo, não encontrávamos um lugar institucionalizado e reconhecido para as pesquisas em Consumo e os avanços das últimas duas
décadas são decorrentes de atuações político-estratégicas de grupos
de pesquisadores muito bem localizados institucionalmente. A seguir
apresento as considerações, potencialidades e desafios metodológicos
273
SEÇÃO 6
decorrentes dos fundamentos teóricos que impõem o repensar das
práticas de investigação e suas efetivas rentabilidades no mundo de
hoje; o que se comprovou eficaz e segue sendo e o que é insuficiente e
não atende à realidade do século XXI, atravessado e sustentado pelo
consumo no diálogo phygital.
Para finalizar, aporto considerações de cunho epistemológico
no sentido de permitir um caminho para a criação de uma epistemologia brasileira e latino-americana, na articulação de Boaventura de
Sousa Santos (2021), com as epistemologias do Sul, que aqui não se
reveste de um lugar geográfico específico, mas sim, de uma condição
histórico-semiótica que marca um estado de ser, produzir significados,
influenciar relações e pautar valores. Nesse aspecto, há certamente
aproximação com determinadas regiões do mundo, como na América
do Sul e nos países do continente africano, na total convergência com
os países do Caribe, com o México e outras regiões não sulistas com
as quais comungamos um processo de colonização massacrante ou de
dominação severa, da criação e reforço da imensa distância social e
política, com a consequente desigualdade, da produção do medo, das
mazelas da condição de inferioridade diante do outro, das dificuldades
de estruturação de um governo democrático e republicano, enfim, de
uma cidadania razoável para o bem viver (SANTOS; CUNHA, 2022).
Desafios teóricos
Consumo é uma área de pesquisa e formação multi e interdisciplinar (BATISTA; PEREZ; FARIAS, 2016). Como fenômeno
atravessado por perspectivas diversas, não encontra em uma única
regionalidade científica, os seus fundamentos. Da economia surgem
os princípios que estabelecem as relações de oferta e demanda, preço
e elasticidade, por exemplo, assim como a eterna discussão sobre a
necessidade de comprar, tendencialmente baseada na racionalidade
do consumo e do consumidor. Do marketing surgem os princípios relacionados ao produto, bem ou mercadoria, seu posicionamento, no
mercado e nas mentes das pessoas (RIES; RIES, 2004), a distribuição,
as bases da comercialização e vendas, bem como os primeiros estudos
274
Comunicação, cultura e consumos
sobre marcas, ainda muito circunscritos a instância de identificação
e distinção (AAKER, 1996). Da publicidade vem o desenvolvimento
das campanhas a partir do entendimento do consumidor, seus valores
e a entrega de caminhos possíveis para envolvê-lo e levá-lo à compra, invariavelmente pelo encantamento. Os estudos sobre persuasão
e manipulação tomaram a centralidade, principalmente a partir de
meados do século XX. O design aporta, ainda que mais recentemente,
as reflexões sobre projeto, além da articulação entre forma, função e
significado, no contexto do pensamento comunicacional e do apelo
funcional e estético ao consumo.
Da economia ao marketing e a publicidade vêm os fundamentos mais tradicionais dos estudos do consumo, ainda que nenhum deles tenha assumido esse lugar, provavelmente, pela necessidade de articulação e pela natureza formatadora, principalmente do marketing,
que sempre criou e promulgou modelos, matrizes e siglas fetichizantes como caminho para o aprisionamento, mais como possibilidade
de “sentir” o controle do que de fato de viabilizar um melhor entendimento, sem reduzir, valorecendo estratégias exitosas.
Assim, consumo é uma área de pesquisa e formação relativamente recente no país e no mundo. Por motivos diversos, que passam pelos exageros e enganosidade da publicidade que imperou no
passado, pela tendência economicista de compreender o consumo
apenas na perspectiva utilitária, o que dominou o pensamento no século XVIII, seja pelo apego a Veblen e sua concepção que relaciona
ócio com o consumo conspícuo e os consequentes julgamentos “... de
ser o ócio ainda uma prova plenamente eficaz de riqueza, tal como o
consumo” (1965, p. 95). Ainda que Veblen tivesse avançado no entendimento restrito de consumo como utilitarismo, sua compreensão levava à clareza de que o consumo era expressão da busca por
status social apenas, deixando de lado um imenso campo de motivações e significações; provavelmente esse avanço, ainda que limitado, deve-se a sua primeira formação que era em Filosofia. O prefácio
The Theory of the Leisure Class, assinado por Stuart Chase, sociólogo e economista americano, seguidor de Veblen é ainda mais ácido
na compreensão sobre o consumo “Consistem, tais meios e modos,
275
SEÇÃO 6
em despender dinheiro, tempo e esforço, quase de todo inutilmente, na agradável tarefa de inflar o próprio” (VEBLEN, 1965, p. 14),
e continua; “... A teoria da classe ociosa tem duas faces. As pessoas
superiores dominam seus inferiores em pecúnia mediante gastos supérfluos, à vista do que os inferiores movem céu a terra para melhorar
seu status, gastando até o último limite de suas posses”. E quando
surgia a temática do consumo em debates conceituais, a centralidade
da crítica vinha da sociologia, dos estudos sobre o trabalho e a produção, e a consequente influência negativa do consumo nas relações
sociais e afetivas. Deixava-se de lado o fato indissociável de que sua
existência justificava e justifica a produção, como bem atestou Karl
Marx (1984), “o trabalho só se realiza no consumo”, e todos nós no
dia a dia. Muitos sociólogos e teóricos da comunicação devem uma
leitura acurada e menos ideológica de Marx, mas parece tarefa indigesta, portanto, evitada. Campbell (2001, p. 31) segue esta perspectiva
também: “... a orientação dos economistas clássicos, as análises da
Revolução Industrial tenderam a se concentrar mais nas mudanças
das técnicas de produtos do que nas mudanças naturais da procura”.
Baudrillard (2010, p. 13), filósofo e sociólogo francês, em sua obra La
Société de Consommation, de 1970, segue a abordagem distanciada
e reducionista do consumo como pode ser observada na afirmação
que abre o livro, “À nossa volta, existe hoje uma espécie de evidência
fantástica do consumo e da abundância, criada pela multiplicação dos
objetos, dos serviços, dos bens materiais, originando como que uma
categoria de mutação fundamental na ecologia da espécie humana”.
No subitem “o estatuto miraculoso do consumo”, destila o veneno “...
as satisfações menores reduzem-se ainda a simples práticas de exorcismo, a meios de captar e conjurar o Bem-Estar total, a Beatitude”
(2010, p. 22).
Barthes, com O Sistema da Moda, inicialmente publicado em
1979, a partir de suas pesquisas de meados dos anos 1950 aos fins dos
anos 60, trouxe contribuições importantes para os estudos do consumo, principalmente na sua proposta de analisar o vestuário a partir
dos princípios da Semiologia de Saussure. O autor se debruça sobre o
vestuário como texto, fundando um caminho de investigação sobre a
276
Comunicação, cultura e consumos
moda escrita e a rede de sentidos que é capaz de gerar. A vertente da
semiologia de Saussure e seus seguidores não se mostrou rentável
aos estudos do consumo, ainda que tenha oferecido uma metodologia de análise – o quadrado semiótico – que se difundiu em alguns
segmentos de estudos da Publicidade, do Marketing e da Moda, com
contribuições importantes de J. Greimás (1987, 2014), Greimás;
Fontanille (1991), Landowski (1992, 1997, 2014), J. M. Floch (1993),
Lencastre (1997), Semprini (1995, 2000, 2006), Ceriani (2001), Ana
Claudia de Oliveira (2004, 2014), Ivan Santo Barbosa (2005) e tantos outros.
A semiótica de Peirce (1996) é o fundamento teórico de muitas
pesquisas no campo do Consumo, da Publicidade e das Marcas, com
destaque para as contribuições de Mick (1986, 1990), Sebeok (1987),
Santaella (1995), Santaella; Nöth (2010), Vieira (1997), Perez (1999,
2001, 2004, 2014, 2017, 2020), Zozzoli (2002), Jungk (2021) e, mais
recentemente, Pompeu (2018), Sato (2017), Viana (2018), Santos
(2013), Orlandini (2022), Souza (2022). Buscando a semiótica no diálogo com as pesquisas sobre sexualidade e gênero, questões étnico-raciais e públicos minorizados, destaco as contribuições de Peruzzo
(2019), Gonçalves (2022), Leite (2019) e Mozdzenski (2020).
Há que se enfatizar, que foi na Antropologia, onde surge a
abertura para o entendimento mais abrangente do Consumo, com
destaque para a obra referencial O Mundo dos Bens, de Mary Douglas e Baron Isherwood (2004), texto originalmente publicado em
1979, com a discussão sobre a proposição de uma teoria do consumo
que articulasse cultura e vida social, deslocando a fixação de pensar
o consumo apenas como ato de compra degradante, como fica claro
na afirmação, “... a abordagem antropológica captura todo o espaço
de significação em que os objetos são usados depois de comprados”
(2004, p. 41). Também Miller (2002, p.169) amplia o entendimento quando pondera: “O ato de comprar se inicia com um rito..., que
anula o mero dispêndio para obedecer aos propósitos mais elevados
da economia”. Outra contribuição fundamental de Miller (2002) aos
estudos do consumo está na obra A theory of shopping, de 1998, publicada no Brasil em 2002, com a problematização sobre as compras
277
SEÇÃO 6
não apenas como gasto, mas como uma experiência popular, como
relacionamento, como possibilidade de personalização e de maneira
absolutamente original, como expressão de amor, perspectiva inexplorada com a devida atenção e cuidado até então. Outro aporte a
partir da Antropologia em diálogo com a Arqueologia foi o estudo da
Cultura Material de Consumo, nesse eixo de reflexão Miller (2013) é
uma referência importante, mas também Appadurai (2008), Canevacci (2016, 2018), David-Ménard (2021) e outros.
A proposta de compreender o consumo em uma abordagem
ritualística, já indiciada por Mary Douglas e Miller, surge mais estrutura na obra Cultura e Consumo, de Grant McCracken (2003), estabelecendo um sistema de transferências de significado, do mundo
culturalmente constituído às pessoas, por meio de rituais de consumo diferenciados, tendo como eixos privilegiados o Sistema da Moda
e a Publicidade. Voltando aos estudos primordiais sobre os rituais,
com Van Gennep (2008), Turner (1974, 1986), DaMatta (2011, 2004,
1997), Peirano (2003) e outros, e em diálogo com Douglas e McCracken, propus uma nova abordagem aos rituais de consumo, antecipando a compreensão para os rituais de busca e postergando em direção
aos rituais de descarte e/ou ressignificação, em suas múltiplas possibilidades. Esta contribuição encontra-se na obra Há limites para o
consumo? (PEREZ, 2020).
A evolução das pesquisas em consumo, fundadas na semiótica
e na antropologia, com o método antropossemiótico se mostrando
rentável, como veremos a diante, foi fundamental no apontamento
de novos aportes teóricos, no sentido de ampliar a compreensão sobre as motivações humanas para o consumo. Esta demanda nos levou à Psicanálise, principalmente a partir das obras de Freud (1966,
1968, 2011), Lacan (2016), contemporaneamente das contribuições
de Cesarotto (2015, 2019), Dunker (2016), Chnaiderman (1989),
Khel (2018, 2020), De Santi (2011, 2016, 2022), Goldberg; Akimoto (2021) e outros. As buscas, escolhas e justificativas para o consumo, muitas vezes racionais e objetivas, em tantas outras guiadas
pelas emoções e por fundamentos inconscientes, demandavam uma
compreensão aprofundada acerca da nossa condição psíquica. As
278
Comunicação, cultura e consumos
bases teóricas necessárias para a compreensão do consumo pelo viés
psicanalítico estão no entendimento do inconsciente e de suas manifestações na linguagem, bem como na compreensão do desejo como
condição primordial humana, como falta constitutiva. Esta aproximação não é simples, principalmente pela tradição da Psicanálise e da
compreensão do consumo como sintoma. Esta posição é decorrente
da condição de escuta do psicanalista, o que chega no divã. O consumo e suas consequências – endividamento, compulsão, falências,
descontrole orçamentário... – tomam a centralidade, reforçando, inevitavelmente, o juízo negativo. O deleite, o prazer, o pertencimento, a
vivência cidadã, que também podem se dar em decorrência do consumo, provavelmente, não dominam o divã, o que é compreensível.
Outra contribuição que merece destaque está baseada na teoria das mediações de Martín-Barbero (2001), atualizada ao longo das
últimas três décadas e, posteriormente, as diferentes correntes das
mediações e midiatizações (HJARVARD, 2012; COULDRY; HEPP,
2020) também acionadas nos estudos do consumo. Em diálogo com
essa linha teórica, destaco as contribuições de Trindade e Perez (2019,
2016), Perez; Trindade (2019) e Trindade; Souza (2014).
Como vimos, o consumo demanda a multi e a interdisciplinaridade para a sua compreensão, o que nos levou a propor uma articulação possível (PEREZ, 2020, p. 52) a partir das perspectivas materiais
(produto, design, materiais, forma, serviços, acessos...), com as mercadológicas (economia, marketing, preço, distribuição, canais, publicidade, tendências...), e as semióticas (sentidos e significados demandados,
criados e compartilhados). Evoluindo nesta proposição, proponho a
expansão das articulações teóricas, incluindo a Psicanálise e o Digital.
A Psicanálise pelos motivos anteriormente apresentados, fundados na
certeza de que são somos só racionais, portanto, cientes do que precisamos, o que nos levaria a comportamentos racionais previsíveis. Consumimos por inúmeras razões e boa parte delas não são estritamente
“razões”, mas quereres, vontades, desejos, motivações emocionais que
se distanciam abismalmente de qualquer racionalidade. Já o digital impõe novos modos de existência e de relações que ultrapassam em muito
os usos e consumos clássicos, por assim dizer. Com o desenvolvimento
279
SEÇÃO 6
da inteligência artificial, do paradigma algorítmico e das enormes potencialidades proporcionadas pelo desenvolvimento tecnológico, não
é possível estudar consumo sem a pesquisa, as teorias e a empiria do
digital. As lógicas do consumo são potencializadas pelas amarras e
aprisionamentos do digital que tem a habilidade de sugerir liberdade,
promover a sensação criativa e de ativismo, quando, na verdade, a liberdade é dentro de determinados frames possibilitados pelas correlações numéricas e estatísticas do algoritmo, dominadas por imensas
corporações internacionais.
Figura 1 – Os fundamentos teóricos do consumo.
O lugar teórico multi e interdisciplinar do Consumo não se
esgota nas reflexões e análises até aqui apresentadas, adicionado ao
inevitável falibilismo de toda e qualquer ciência, em alinhamento
com Peirce (1995), novos aportes teóricos podem e devem ser acionados. Mas é certo que as articulações teóricas predeterminam metodologias de investigação, que se mostram rentáveis nas articulações e
composições, buscando a melhor forma de apreensão dos fenômenos
pesquisados. Assim, passemos às ponderações, efetividades e desafios metodológicos.
280
Comunicação, cultura e consumos
Desafios metodológicos
Há desafios teóricos e há desafios metodológicos para o estudo
do Consumo. Instaurou-se, nos últimos anos, a necessidade do desenvolvimento de metodologias de pesquisa que consigam captar as
novas lógicas de conexão e produção de significados, que acontecem
nas dinâmicas assimétricas, mas amalgamadas e em crescimento, nas
esferas físicas e digitais, que caracterizam o consumo contemporâneo,
colocadas em circulação nas redes.
O estudo do Consumo esteve centrado nas pesquisas de mercado, tanto a partir de métodos quantitativos, onde o questionário
estruturado imperou por décadas, nos inícios aplicados pessoalmente em vias de grande circulação ou mesmo em visitas domiciliares,
com perguntas fechadas apresentadas em técnicas variadas e escalas
de concordância. As metodologias qualitativas, fundadas em técnicas vindas da Psicologia, principalmente aquelas pautadas nas associações projetivas, tornaram-se a base para muitas investigações,
principalmente a partir dos anos 1950/60 com o desenvolvimento
das áreas de pesquisa das grandes multinacionais presentes no país.
As entrevistas em profundidade, os grupos de discussão e, mais tardiamente, a etnografia, se instalaram como caminhos rentáveis para
o entendimento do consumo e do consumidor. Essas metodologias
trouxeram o alargamento da compreensão sobre as motivações para
o consumo, alguns parâmetros de escolha e a certeza da necessidade
de compreender os movimentos, as aspirações e os valores sociais que
fundamentam hábitos, atitudes e comportamentos gerais, inclusive
de consumo.
Na academia, os estudos do consumo, ainda que mais focados
na Publicidade – produção e recepção – fizeram parte de importantes
projetos de investigação tendo o método semiótico como fundamento.
A semiótica de Peirce com a visão triádica do signo e o método triádico decorrente, a partir da Gramática Especulativa, permitiu imensos
avanços aos estudos do consumo, contemplando a produção e a recepção, sem negligenciar a circulação dos produtos, serviços, marcas
e significados. Peirce (1995), Sebeok (1996), Santaella (2018), Perez
281
SEÇÃO 6
(1999, 2001, 2004, 2020), Rosa (2014) e tantos outros são referências indispensáveis. A semiótica de tradição estruturalista colocou
o quadrado semiótico como parâmetro metodológico com relevantes contribuições, com destaque para Greimás (2002), Floch (1993),
Semprini (1993, 1995, e 2006), Landowisk (1992, 1997), Lencastre
(1997) e Ana Claudia de Oliveira (2004, 2014), apenas para citarmos
alguns destes aportes metodológicos. Todos esses autores estudaram
e formaram novos pesquisadores a partir dos fundamentos teóricos e
metodológicos da semiótica estruturalista, também conhecida como
semiótica discursiva ou ainda sociossemiótica.
Os estudos do Consumo já se aproximavam da Antropologia
pela adequação do método etnográfico como caminho privilegiado
para apreensão da realidade, fundamento da empiria, baseado na observação, na observação participante, nos diários de campo e na imersão sistematizada e alongada. Novamente nos últimos anos, o alinhamento teórico com a Antropologia em novos contornos, agora por
meio dos estudos sobre os rituais e a cultura material, trouxe novos
impactos metodológicos. As leituras de Mary Douglas (2004), Colin
Campbell (2001), Van Gennep (2008), Victor Turner (1974, 1986),
Roberto DaMatta (2004, 2011), Mariza Peirano (2003), Daniel Miller (1995, 2002, 2013), Daniel Roche (1989, 2000), Georg Simmel
(2006, 2013), Thorstein Veblen (1965), Grant McCracken (2003),
Massimo Canevacci (2005, 2016, 2018), Michel De Certeau (1994),
Marcel Mauss (2008) e Arjun Appadurai (2008), apenas para citar
alguns, permitiram o avanço nas reflexões sobre a cultura material
e o Consumo, com camadas de discussão acerca das tendências de
comportamento e consumo, a biografia das coisas, a fetichização dos
objetos e os rituais de consumo, sub-área de investigação privilegiada desde então.
Estas articulações teóricas permitiram o desenvolvimento do método antropossemiótico (PEREZ, 2011, 2016) ou etnosemiótico (MARSCIANI, 2012) e, com isso, a expansão das possibilidades de investigação
sobre o Consumo e os consumidores, articulando o método semiótico de
Peirce (antropossemiótica) e o quadrado semiótico de Greimás (etnosemiótica) com a etnografia, método privilegiado na Antropologia.
282
Comunicação, cultura e consumos
Com a evolução das lógicas criadas pela sociedade em rede,
conectada e em crescimento, novos desafios metodológicos se instauram. Aqui, as discussões teóricas com Henry Jenkins, Ford e Green
(2013), Manuel Castells (2013), Shirky (2011), Yuval Harari (2018),
Byung Chul-Han (2012, 2018), Cosimo Accoto (2020), Massimo Leone (2022), entre outros foram e são fundamentais para a compreensão das novas densidades do consumo, influenciadoras da construção de identidades plurais, em trânsito e fragmentadas, típicas das
ambiências digitais, agora pautadas pelas Inteligências Artificiais
e suas potencialidades e pelo paradigma algorítmico que se impõe.
Nesse sentido, destaca-se o trabalho inaugural de Robert Kozinets
(2020) a partir da publicação do livro Netnography, cuja primeira
edição data de 2009, criando as bases para os métodos qualitativos
agora contemplando as redes digitais. O autor desenvolve suas reflexões em diferentes capítulos que contemplam desde questões sociais
e éticas, até os caminhos consequentes da pesquisa netnográfica, que
ele faz questão de diferenciar de uma “simples” etnografia nas redes,
explicitando os caminhos possíveis para a coleta de dados, interação,
imersão, análise, interpretação e comunicação dos resultados. A antropologia digital e os aportes metodológicos a partir desta articulação
estão também em Pink (2012, 2015), Horst; Miller (2012), Boellstorff;
Nardi; Pearce; Taylor (2012) e outros. Além das abordagens qualitativas, com a netnografia se mostrando muito rentável, surgiram uma
infinidade de softwares, soluções de programação e apps que são capazes de complexas correlações e estudos estatísticos, caracterizando
a evolução da pesquisa quantitativa agora nas redes. Os dados, e mais
recentemente, o big data e a dataficação trouxeram complexidade,
mas também novas possibilidades investigativas que aportam o que a
pesquisa quantitativa é capaz de oferecer: as dimensões, os tamanhos
e até as projeções futuras a partir da análise passado-presente. A mais
recente contribuição de Miller; Slater (2020) traz desdobramentos da
etnografia no contexto das redes sociais digitais, a partir do texto inicial publicado em 2000.
Assim, o desafio metodológico que temos no campo dos estudos do consumo, está justamente na capacidade de articulação da
283
SEÇÃO 6
investigação teórico-qualitativa sobre o humano, as bases de sua forma de pensar e se comportar, além da formação de hábitos e atitudes,
e de seus valores, com os mais sofisticados métodos de investigação
algorítmica, a partir dos recursos da Inteligência Artificial e da imensidão de dados que poderão estar disponíveis e cada vez com maior
qualidade e capacidade correlacional.
O desafio epistemológico
Epistemologia é a reflexão sobre o conhecimento, sua natureza, limites e possibilidades. E, como vimos, o conhecimento sobre
Consumo vem sendo adensado multi e interdisciplinarmente como
caminho possível para compreensão dele que é “o fenômeno” mais
emblemático da sociedade contemporânea. Assim, na perspectiva
epistemológica, o principal desafio para o Consumo é seguir nos esforços que assegurem novas teorias a partir do Brasil e da América-Latina, sem deixar de lado os clássicos europeus e americanos, mas
construindo pertinência com consistência e rigor. Nesse sentido, as
reflexões de Boaventura de Sousa Santos (2021), com seus postulados
sobre a necessidade da afirmação de epistemologias do Sul, trouxeram aportes teóricos, metodológicos e pedagógicos, pensando tanto
na pesquisa, quanto na formação dos pesquisadores. Baseado no conhecimento advindo das experiências dos povos sulistas, colonizados,
marginalizados, oprimidos pelas lógicas colonialistas, capitalistas e
patriarcais do norte global, acredita o autor ser possível a criação de
algo totalmente novo, dando espaço para perspectivas até então apagadas, desacreditadas ou mesmo ignoradas, articulando conhecimento científicos e saberes, em uma ecologia fértil.
Falar sobre e estudar o Consumo na Europa ou nos Estados
Unidos, é falar de dinâmicas integradoras da imensa maioria da população, com pouquíssimos excluídos e, em determinadas situações,
nenhum excluído. Na Europa, ainda mais do que nos Estados Unidos
além do estado de bem-estar social que garantiu e garante acesso aos
serviços e bens essenciais de saúde e educação, por exemplo, a estabilidade econômica e social assegura a expansão dos horizontes das
284
Comunicação, cultura e consumos
populações, uma vez que elas não têm que enfrentar os dramas perversos decorrentes de séculos de apartação de uma cidadania básica
e digna, como acontece em praticamente todos os países da América
Latina e Caribe e, certamente em muitos do continente Africano. Dia
sem compras, boicotes, buycottes, cancelamentos de marcas e empresas são algumas das manifestações recorrentes nas últimas décadas
principalmente nos países do norte, que demonstram, de um lado,
uma população consumidora mais consciente e ativa, o que é ótimo, e
de outro a existência de uma “massa” de consumidores que tem força
para mudar lógicas capitalistas perversas e impor transformações no
caminho de relações de consumo mais adequadas para as pessoas e
para o planeta.
Canclini (2010, 2012) é um pesquisador que contribui de maneira destacada para o entendimento mais alargado sobre o Consumo
no contexto latino-americano, reforçando a perspectiva cidadã própria das condições de apartação vividas por milhões de pessoas. Para
o autor, consumir é expressão de cidadania, portanto, com potencialidade de construir pertinência identitária. Esta “particularidade” é
negligenciada nos contextos econômicos e sociais estáveis.
Abordagens sobre a construção das identidades estão presentes em outras contribuições, como na obra Cultura, Consumo e
Identidade, organizada por Lívia Barbosa e Colin Campbell (2006)
e Canevacci (2005). Destaco de maneira especial os aportes teóricos,
metodologias e orientações de pesquisas de Everardo Rocha (2005),
mas também de Claudia Pereira (2017) e outros, que fazem avançar
o conhecimento sobre o consumo e a publicidade e, por estarem em
universidades e entidades responsáveis por construir o campo, permitem os questionamentos sobre tais conhecimentos. A partir do estudo antropológico da Publicidade e do Consumo, Rocha e seus colaboradores nos oferecem uma abordagem que sai do midiacentrismo
ou da persuasão, abordagens tão recorrentes em estudos da Publicidade e do Consumo. Outras contribuições epistemológicas surgem
a partir de pesquisadores maduros e das investigações de grupos de
pesquisa consolidados, como REC, liderado por Guilherme Nery da
UFF e Sandro Torres da UFRJ. O grupo Observatório da Publicidade
285
SEÇÃO 6
Expandida, vinculado à UFRJ, com a liderança de Patricia Burrowes
(2018), Monica Machado e Lucimara Rett. O LACOOPS, da Patricia
Saldanha, na UFF. O grupo PHINC, dirigido por Rogério Covaleski,
UFPE, além das pesquisas de Castro (2014), Piedras (2009), Wottrich
(2019) e Domingues (2016). Nesse contexto, a atuação de quase vinte anos do GESC3 – Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação,
Cultura e Consumo, vinculado a ECA-USP, e especificamente à linha
2 do PPGCom “Processos comunicacionais: tecnologias, produção e
consumo”, tem sido determinante tanto pelas pesquisas, e formação
pós-graduada, quanto pela atuação política no campo e na reflexão
sobre a produção de conhecimento em Consumo.
No Brasil, ainda que tivéssemos experimentado importante desenvolvimento econômico e social nos inícios do novo milênio
(PEREZ, 2020), a condição política dos últimos anos agravada pela
pandemia da covid-19, por guerras em outros continentes, mas, principalmente, por um governo negacionista, anticiência e contra a razoabilidade de qualquer aspecto relacionado a cidadania, fez com que
o empobrecimento de milhões de brasileiros assolasse o país, com
aumento da miséria, da fome, com dados inimagináveis de insegurança alimentar, redução da cobertura vacinal, diminuição drástica
dos investimentos na educação, desmatamentos desenfreados. Uma
lista infindável de dramas que deixam marcas, afetam a saúde física e
mental da população e dificultam as condições de retomada da razoabilidade necessária para planejar um futuro mínimo.
Assim, se a epistemologia mais recente é entendida como “a análise das condições de produção e identificação do conhecimento válido,
bem como da crença justificada” (SANTOS, 2021, p. 19), reforço aqui o
esforço para a criação de um pensamento sobre Consumo a partir das
nossas condições de existência e reflexão, validando ou não as epistemologias dominantes, bem como reiterando a necessidade da produção de
novos conhecimentos que favoreçam e estimulem nossas capacidades
cognitivas e sensíveis. Uma contribuição nesse sentido é a pesquisa, por
mim submetida e aprovada no CNPq (edital 09/2020), intitulada “Ter,
acessar e ser: o lugar do consumo na sociedade brasileira compreendido por meio dos vínculos de sentido produzidos na ritualização de suas
286
Comunicação, cultura e consumos
práticas e na construção da identidade nacional”, que está sendo a base
da edificação de um novo pensamento sobre o conhecimento que temos
sobre o consumo e seu lugar na identidade brasileira.
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Tanto ao antigo quanto ao
tempo que se segue: pesquisa
do consumo, solidez da
história e agenda do futuro
Everardo Rocha
William Corbo
Introdução
Paris. Final do século XIX. Vendedores e vendedoras dos
grandes magazines da cidade enfrentam longas e exaustivas jornadas
de trabalho. Nos dias de folga, gastam quantias significativas de seus
salários em produtos e lazeres que remetem a hábitos, práticas e estilos de vida da alta burguesia. Em uma dessas ocasiões, Pauline e seu
namorado Baugé convidaram a amiga Denise para um passeio que teria início em um restaurante para o almoço, contaria com uma caminhada agradável pela cidade, o jantar e uma ida ao teatro para fechar
a noite. Pauline havia comprado um belo vestido de seda e bijuterias
para exibir em suas mãos e pescoço durante o passeio. Essa prática
era comum entre os funcionários do comércio, que gastavam o que
tinham e o que não tinham em roupas, acessórios e delicadas iguarias.
Detroit. Meados do século XX. Um eletricista monta um pequeno negócio e rapidamente obtém sucesso de mercado, expandindo sua
295
SEÇÃO 6
atuação e contratando funcionários. Torna-se, portanto, um empresário. Diante da ascensão econômica alcançada, muda-se com seus
filhos e esposa para um bairro do subúrbio. Quando perguntado sobre
sua classe social, o eletricista define a si mesmo e a sua família como
membros de uma classe média. Para justificar a classificação, conta
que sua casa era equipada com bens recém-lançados, seus filhos tinham brinquedos, o jardim era lugar para churrasco e banho de piscina com amigos e familiares, além de ressaltar as viagens que faziam
nas férias e feriados.
*
As duas histórias acima ilustram bem como em dois contextos
importantes da história do capitalismo o consumo desempenhou papel fundamental para a construção das fronteiras simbólicas de uma
classe média. A primeira foi retirada de O Paraíso das Damas, publicado por Émile Zola em 1883, que narra o romance da jovem vendedora Denise e Octave Mouret, proprietário de um importante grande
magazine parisiense. Entre outras coisas, descobrimos como os funcionários da loja e um significativo grupo de indivíduos de setores intermediários passam a se diferenciar do operariado tradicional por
meio da compra de produtos e serviços vendidos nos grandes magazines. A segunda história, por sua vez, foi contada por Lizabeth Cohen
em seu livro A Consumers’s Republic: The Politics of Mass Consumption in Postwar America, de 2003, um estudo sobre a expansão do
consumo nos Estados Unidos a partir da segunda metade do século
XX. A autora revela como a publicidade, o marketing, a comunicação
de massa e os shopping centers, localizados nos subúrbios, permitiram a construção da imagem da “nova classe média” norte-americana
através do mundo dos bens.
O objetivo deste artigo é destacar a centralidade do estudo
do consumo na agenda de pesquisas da Comunicação para o século
XXI, uma vez que, há mais de dois séculos, o fenômeno revela um
profundo impacto na cultura moderno-contemporânea. Falamos
aqui de suas representações e práticas sociais, dos espaços de compra, da publicidade, do marketing, do design, e afins. Os discursos
de senso comum normalmente tratam o consumo como vilão ou
296
Comunicação, cultura e consumos
mocinho. Ou o consumo é, por uma perspectiva moralista, o responsável por toda sorte de mazelas sociais ou, por uma abordagem
hedonista, o caminho para a felicidade. Aqui, nossa proposta é analisar o consumo como fato social total (MAUSS, 1925), uma porta
privilegiada que dá acesso às estruturas simbólicas, aos valores coletivos, à magia e às sensibilidades que atravessam a experiência
humana no capitalismo. Para tanto, vamos examinar como em dois
momentos históricos particulares o consumo inventou ideias de
pertencimento à classe média: o surgimento dos grandes magazines nos centros urbanos europeus do século XIX e início do XX; a
emergência dos shopping centers nos subúrbios norte-americanos
a partir dos anos 1950. Esses dois exemplos revelam as formas pelas quais o consumo incorporou volumosos segmentos da sociedade
ao mundo dos bens, ao mesmo tempo que delimitava as fronteiras
simbólicas da classe média.
As ciências sociais estudaram as classes médias tomando
como ponto de partida, mesmo que por abordagens distintas, a esfera
da produção. Os teóricos marxistas separavam as classes sociais de
acordo com o lugar que ocupavam no processo produtivo. Por isso,
defendiam ora que a classe média era parte da classe trabalhadora,
ora que era uma outra classe sem maior importância, ora algo relevante, mas de difícil definição e compreensão. Os weberianos, por sua
vez, conferiam centralidade às ocupações profissionais, aos contratos
estabelecidos, aos tipos de trabalho e às possibilidades no mercado.
Os durkheimianos defendiam a investigação das “microclasses”, valorizando as diferentes características das ocupações no mundo do
trabalho. Teóricos de todas essas tradições buscaram estabelecer critérios para definir o que seria a classe média, falando em coisas como
autoridade, modalidade de trabalho, credenciais, habilidades e propriedade. Neste artigo, vamos analisar a classe média como conceito, algo almejado por aqueles que buscam se diferenciar das camadas
populares e se aproximar dos mais abastados. Trata-se de examinar
como o consumo estimula sonhos de ascensão social e pertencimento
à classe média que se realizam por meio da compra de produtos, serviços e experiências.
297
SEÇÃO 6
Grandes magazines e classes médias na Europa
Os grandes magazines se espalharam pelas cidades europeias
entre meados do século XIX e os primeiros anos de século XX. O pioneiro Le Bon Marché foi criado em Paris por Aristide Boucicaut, em
1852. A capital francesa recebeu ainda o Louvre, em 1855, o Printemps, em 1865, e Les Galeries Lafayette, em 1895. Em Londres, a
Harrods foi criada ainda em 1848 e se expandiu em 1905, disputando a preferência dos consumidores com a Selfridges, inaugurada em
1909. Milão recebeu La Rinascente, em 1865; Amsterdam a Bijernkorf, em 1870; Berlim a Wertheim, em 1896, e a KaDeWe, em 1907
(MILLER, 1981, RAPPAPORT, 2000, ROCHA; FRID; CORBO, 2016).
Esses estabelecimentos modelaram as práticas de consumo como conhecemos hoje. Ao expandirem de maneira inédita as atividades de
compra, impulsionaram a sociabilidade feminina no espaço público
e, como aqui nos interessa, recrutaram amplos contingentes de consumidores por meio de representações de classes médias atreladas ao
mundo dos bens.
Também conhecidos como lojas de departamentos, esses espaços de compra surgiram no contexto de consolidação do processo de industrialização, do sistema de equilíbrio de poder entre as
grandes potências, do padrão internacional do ouro e da crença em
um mercado autorregulado e em um estado liberal (POLANYI, 2012
[1944]). Naquele contexto, os centros urbanos europeus se transformavam profundamente. Paris, que serviria como modelo para as
demais, passou pelas reformas do Barão Haussmann, com investimentos na iluminação pública, no sistema de águas, na instalação
de esgotos, no comércio e na construção de amplos bulevares para a
circulação das pessoas (SENNETT, 1998). Também a mídia se expandiu com o aumento no número de jornais e tipografias (DARNTON,
1996), da capacidade de tiragem e do público leitor; surgiram ainda
as agências de notícias e de publicidade (PARINET, 1993; MEYER,
1996). No mesmo diapasão, as mulheres capitaneavam movimentos
políticos pela autonomia individual, o direito ao trabalho e a participação na esfera pública.
298
Comunicação, cultura e consumos
Nesse cenário de transformações, os grandes magazines atuavam de maneira pedagógica e apresentavam novos gostos, comportamentos e valores que se materializavam nos bens que enchiam suas
prateleiras. Seus anúncios, catálogos e decoração ensinavam modos de
vida, diziam o que comprar, para quem e como usar; esse espaço de
comunicação e consumo ofertava o estilo burguês em seus produtos e
ambientes (MILLER, 1981, ROCHA; FRID; CORBO, 2016). O segredo do sucesso comercial era um modelo de negócios que tinha como
principal objetivo acelerar o percurso das mercadorias da produção
aos consumidores. Como indica Verheyde (2012), eram seis seus métodos fundamentais: o investimento em anúncios e catálogos; a fixação
e exibição dos preços; a livre entrada e circulação dos consumidores; a
divisão dos produtos em diversas seções; a política de devoluções; a redução dos preços atrelada ao aumento das vendas. Por isso, nos grandes magazines as consumidoras encontravam de tudo, desde produtos
dos mais variados até espaços de entretenimento, como restaurantes,
lanchonetes, bibliotecas, galerias de arte, salas de descanso e salões de
beleza. Assim, as mulheres das camadas médias e altas, naquele contexto ainda restritas às casas e igrejas, ganhavam um novo espaço para
sua sociabilidade; já as mulheres mais pobres encontravam oportunidade de emprego, independência financeira e ascensão social (RAPPAPORT, 2000, ROCHA; FRID; CORBO, 2016).
Para garantir o bom funcionamento desses espaços grandiosos de vendas, os grandes magazines contavam com estruturas fabris
em seus bastidores. Eram milhares de trabalhadores divididos em
tarefas para receber, organizar e distribuir os produtos pelas seções.
Essa parte das lojas não era visível para a clientela. Sua face pública
era como um universo mágico, que começava nas vitrines, passava
pela decoração de seus interiores, pela exposição de uma imensidão
de produtos e pela cortesia de vendedores, chefes de seção, gerentes e
caixas (ROCHA; FRID; CORBO, 2016). Essa arena de vendas de bens
e sonhos ritualizou as atividades de consumo, transformando feriados tradicionais em festas de compra, inventando outras ocasiões e
criando um calendário que se repetia todos os anos (ROCHA; FRID;
CORBO, 2016). No Bon Marché, por exemplo, em janeiro e fevereiro,
299
SEÇÃO 6
acontecia o dia do branco; março contava com a apresentação das
coleções de verão; em abril e maio, os produtos da coleção de inverno
entravam em liquidação; outras promoções se sucediam até outubro,
quando as novas coleções ganhavam as vitrines e prateleiras da loja;
em dezembro, as vendas atingiam números exorbitantes com o Natal
e o Ano Novo (ROCHA; FRID; CORBO, 2016).
Mas, afinal, quem eram os clientes dos grandes magazines?
Durante o século XIX, como resultado do fluxo de imigrantes das pequenas cidades e do campo, a população das capitais europeias cresceu
de maneira significativa. Em 1801, Paris contava com 547.756 habitantes; em 1896, esse número chegaria a 2.546.834. Londres, por sua vez,
mais ou menos no mesmo período, saltou de 864.845 para 4.232.118
habitantes (SENNETT, 1998). A massa de indivíduos recém-chegada
às capitais encontraria emprego nos bancos, nas seguradoras, no comércio, na administração das empresas e na burocracia do setor público, sempre em posições que gozavam de diferentes níveis de renda e
prestígio (GAY, 2002). Pensando esse segmento como uma pirâmide,
podemos encontrar professores primários, artesões qualificados e funcionários públicos com ganhos modestos; também comerciantes, médicos e advogados que variavam sua renda de acordo com a penetração que tinham nas elites; funcionários públicos em altos cargos com
ganhos significativos; até aqueles que atingiam o topo, como grandes
banqueiros, empresários e editores (GAY, 2002). Todos esses comporiam os amplos contingentes de clientes dos grandes magazines.
Como destaca Peter Gay (2002), o principal objetivo desses
indivíduos era se diferenciar dos trabalhadores fabris. Tinham múltiplas ocupações, é verdade, mas buscavam a distinção do ponto de
vista simbólico. Por isso, moravam em bairros afastados das moradias populares, escolhiam escolas diferenciadas para seus filhos e, sobretudo, marcavam sua posição social por meio dos bens. Aqui, entra
a importância dos grandes magazines e do mundo do consumo, que
serviu como plataforma de aprendizado de valores, comportamentos
e sensibilidades burguesas. Os jornais, por exemplo, projetavam sonhos de ascensão social contando histórias de sucesso de empresários
que saíam da pobreza e tornavam-se muito ricos. Entre os nomes que
300
Comunicação, cultura e consumos
ganhavam destaque estavam donos de grandes magazines como Aristide Boucicaut, que começou sua carreira como vendedor e tornou-se
um dos homens mais ricos da França, e Harry Gordon Selfridges, norte-americano que foi de um simples empregado da Marshall Field’s,
em Chicago, a dono de uma das lojas mais emblemáticas de Londres.
Se essas histórias estimulavam sonhos de ascensão social, os
anúncios dos grandes magazines ensinavam a marcar a posição social
diferenciada por meio dos bens. Ao mesmo tempo que davam significado aos produtos, contribuíam para modelar o comportamento dos consumidores. Um bom exemplo é a peça publicitária da Selfridges – “Sale
of Flannel Shirts and Finest-made Pyjamas” – publicada no jornal The
Daily Telegraph, em abril de 1910. Ela busca orientar os homens da
época em seu vestuário oferecendo produtos que seriam “da mais alta
qualidade”, “cortados à mão” e vendidos a “preços vantajosos”. Outro
bom exemplo é o anúncio publicado pelo Bon Marché no The Illustrated Sporting and Dramatic News, em maio de 1890. A peça indicava
que o catálogo do grande magazine poderia ser enviado para Londres,
para que a clientela feminina pudesse visualizar, experimentar e sentir
as amostras de sedas, vestidos, estampas, fitas e tecidos dos mais diversos. O material era acompanhado, ainda, de ilustrações das roupas
e incontáveis acessórios para mulheres, homens, meninas e meninos.
Em suma, o consumo apresentava as fronteiras simbólicas da
classe média para esse significativo grupo de indivíduos que ocupavam os centros urbanos europeus entre meados do século XIX e início
do XX. Se a preocupação era não ser confundido com o proletariado,
frequentar os grandes magazines, observar seus anúncios, consultar
seus catálogos e comprar seus produtos e serviços era acessar valores
burgueses materializados, era pertencer a uma classe média que se
expressava e existia no mundo dos bens.
Shopping centers e “nova classe
média” nos Estados Unidos
Os shopping centers surgem nos Estados Unidos a partir dos
anos 1950. Localizados nos subúrbios que se expandiam após a Segunda
301
SEÇÃO 6
Guerra Mundial, entre os pioneiros podemos citar o Northgate Mall, que
abriu as portas, em 1950 próximo à Seattle, assim como o Lakewood
Center e o Stonestown Shopping Center, inaugurados na Califórnia, em
1951 e 1952. Foram sobretudo as dezenas de shopping centers projetados pelo arquiteto Victor Green que fizeram desses espaços de compra
protagonistas na sociedade norte-americana. Entre os de maior destaque estão o Northland Center, de 1954, o Southdale Center, de 1956, o
Eastland Center, de 1957, e o South Coast Plaza, de 1967 (PADILHA,
2003, COHEN, 2004, HARDWICK, 2004). Esses estabelecimentos
comerciais vendiam produtos, serviços e sonhos, constituíam-se como
plataformas de entretenimento que faziam do consumo projeto de vida,
tudo isso atravessados por inovações diversas, pela interação com as
transformações urbanas e, principalmente, sustentando representações
de uma “nova” classe média consumidora.
O cenário no qual os shopping centers se espalham pelos Estados Unidos é marcado por mudanças importantes no tecido social.
O fim da Segunda Guerra Mundial é seguido pela consolidação dos
valores e ideologias que tomam o capitalismo como modelo e o consumo como seu principal expoente. É o momento da propaganda do
American way of life, difundido pelos meios de comunicação de massa que se expandiam, como o rádio (agora também nos automóveis),
as revistas, os jornais e a recém-chegada televisão (BRIGSS; BURKE,
2016). Para impulsionar esse estilo de vida, foi fundamental o desenvolvimento do mercado publicitário, que vive seu momento de maior
destaque com a produção de anúncios que usavam técnicas inovadoras e caíam no gosto popular. As atividades de compra também se
expandiam graças ao desenvolvimento dos supermercados (KNOKE,
1963), ao aparecimento das famosas redes de fast-food, à construção
de Las Vegas como centro de consumo repleto de hotéis e cassinos e
à inauguração da Disneyland, na Califórnia (RITZER, 2005). Nesse
contexto, também acontece o importante movimento pelos direitos
civis de negros e negras, da população homossexual, assim como a
luta pela emancipação da mulher.
Além desses fatores, outra mudança na sociedade norte-americana impulsionou o surgimento dos shopping centers e a consequente
302
Comunicação, cultura e consumos
proliferação de representações de classes médias consumidoras. Trata-se da migração de parte significativa da população para os subúrbios. Assim como faziam as classes médias europeias que vimos há
pouco, segmentos intermediários que ascendiam socialmente nos Estados Unidos buscavam se diferenciar das camadas populares. Para
tanto, iam para os subúrbios almejando uma vida distante do caos
urbano provocado pelos congestionamentos de automóveis (COHEN,
2004). A população nos subúrbios cresceu 43% entre 1947 e 1953, ano
em que atingiu 30 milhões de residentes. Diante do crescimento dos
subúrbios e da migração de segmentos intermediários para essas regiões, se fazia necessária a construção de um espaço que, sintonizado com as questões de seu tempo, contribuísse para a construção da
identidade social desses consumidores.
Os shopping centers construídos nos subúrbios eram espaços gigantescos e ofereciam todos os tipos de produtos e serviços. O
sucesso foi tão grande que, em 1967, já eram 17 mil estabelecimentos espalhados pelos Estados Unidos (COHEN, 2004). Os shopping
centers contavam com amplos estacionamentos ligados às rodovias e
tinham como protagonistas em suas estruturas as lojas âncoras (normalmente lojas de departamentos e supermercados). Também contavam com lavanderias, bancos, restaurantes, lanchonetes, correios,
agências de viagem, salões de beleza, barbearias e corretoras. Para o
lazer da clientela, cinemas, espetáculos variados, teatros, pistas de boliche, playground, shows e pistas de patinação eram comuns. Como os
grandes magazines, os shopping centers foram construídos para que
sua clientela encontrasse de tudo e pudesse passar praticamente todo
o dia em seus interiores.
Esses grandiosos estabelecimentos comerciais foram moldados para a sociabilidade das famílias suburbanas, oferecendo produtos, serviços e experiências para homens, mulheres e crianças. As
políticas de crédito na sociedade norte-americana também impulsionavam o consumo nos shoppings (COHEN, 2004). Esses centros
comerciais ritualizavam as compras através de eventos variados que
aconteciam durante o ano. Feriados já estabelecidos, como o Natal,
eram sempre celebrados nos shopping centers, com belas árvores, o
303
SEÇÃO 6
Papai Noel e promoções. Mas, também aconteciam eventos esporádicos, que marcavam o lugar como palco de atividades de entretenimento. É o caso da apresentação de circo e do rodeio realizados no
Northland, em 1960 e 1961 respectivamente, e noticiadas no Detroit
Free Press. Para se ter uma ideia, falando especificamente do segundo
evento, o jornal convidava os leitores dizendo que: “No meio de centenas de donas de casa suburbanas, você encontrará o mais rude dos
americanos, o cowboy de rodeio”. Coisas como essas aconteciam com
muita frequência nos shopping centers.
A expansão do consumo impulsionada pelos shopping centers e atrelada à publicidade e à comunicação de massa delimitava as
fronteiras simbólicas e projetava os códigos de pertencimento a uma
“nova” classe média. Como bem mostrou Wright Mills (1951), durante a primeira metade do século XX se expandiu nos Estados Unidos
o grupo de empregados de colarinhos brancos, que vão desde trabalhadores de escritório em níveis baixos (mais próximos dos operários
em seus rendimentos) até outros que, no topo da pirâmide, atuavam
como gerentes do capital. Faziam parte desse novo tipo profissional
cinco grupos de ocupações, todos empregados assalariados em corporações: o demiurgo administrativo (gerentes que comandam o trabalho de outros), mundo das antigas profissões (médicos, advogados
e professores), novas especialidades (enfermeiras, técnicos de pesquisa, especialistas, estudiosos), sociedade anônima dos intelectuais
(escritores, poetas, jornalistas e editores), mundo do grande magazine (vendedores, representantes de vendas, balconistas, supervisores
e publicitários). Esses eram os profissionais que migravam para os
subúrbios das grandes cidades e experimentavam um estilo de vida
cercado por todo tipo de bens, constituindo o que se entendia como
uma “nova” classe média.
Os shopping centers, a publicidade e a comunicação de massa
foram fundamentais nesse processo. Life, The Ladies Home Journal,
Newsweek e Redbook, por exemplo, ensinavam a como pertencer à
classe média. Suas reportagens eram pedagógicas sobre produtos e
serviços que deveriam ser consumidos e também sobre os valores, hábitos e etiquetas compartilhados. O filme In the Suburbs, produzido
304
Comunicação, cultura e consumos
pela Redbook para seus anunciantes, mostrava os detalhes da vida
desses indivíduos e suas famílias, suas expressões felizes, o lazer das
crianças, as confraternizações com os vizinhos, as obras e decorações
nas casas, a proliferação de objetos, o interesse pelas novidades, enfim, a constituição de um novo segmento de consumidores (COHEN,
2004). O consumo era de fato o protagonista, o elemento aglutinador.
Os shopping centers se encaixavam perfeitamente nesse processo e, mais do que isso, potencializavam o acesso a esse mundo de
sonhos. Na matéria “Commercialism Takes-and Wears-a New Look”,
publicada no Ladies’ Home Journal, em junho de 1954, descobrimos
que o Norhtland contava com a circulação de “40 mil a 50 mil clientes
por dia”. Uma das informantes da reportagem diz que “Quando o passageiro sai do estacionamento, ele está no paraíso das compras”. Além
de encantarem seus consumidores com as possibilidades de compras,
o entretenimento oferecido pelo teatro, cinema, pistas de boliche e
patinação, restaurantes e lanchonetes, a comodidade dos serviços de
correios e banco, os shopping centers modelavam o imaginário das
classes médias também sobre suas casas. Vemos isso em um anúncio
publicitário da Hudson’s publicado, em setembro de 1959, no Detroit
Free Press. Tratava-se de um convite para que a clientela conhecesse
a casa projetada pela loja de departamentos no shopping Eastland:
“Sim, esta é a última semana para ver como os decoradores de Hudson criaram uma nova e emocionante habitualidade em uma pequena
casa...The Eastlander – uma casa completa de 5 quartos no shopping
Eastland Center”. Mais do que produtos, a exposição da loja vendia
ideias de decoração de residências para sua clientela suburbana. Nesse mesmo sentido, eram comuns os anúncios de eletrodomésticos,
cozinhas montadas como as da Gas Kitchen, de eletrônicos, móveis e
automóveis, todos apresentados como passaporte para a vida de uma
família bem-sucedida.
Ainda mais, em meio às lutas políticas pelos direitos civis no
Estados Unidos, o consumo projetou imagens e ideias de uma classe
média negra. Ao mesmo tempo em que surgem os shopping centers e
as atividades de compra se expandem, aumenta o número de negros
como colarinhos brancos e o consumo se consolida como arena para
305
SEÇÃO 6
sua atuação política. Eram comuns, sobretudo no Sul do país, os boicotes a lojas que não empregavam e nem prestavam atendimento adequado aos negros (WEEMS JR., 1998, PARKER, 2012). Além disso, o
mundo dos bens passa a se comunicar diretamente com esses consumidores e os negros começam a aparecer nas propagandas. A Pepsi-Cola lançou, em 1948, a campanha “Leaders In His/Her Field”, que
apresentava homens e mulheres negras de amplo destaque social consumindo a bebida. A Coca-Cola não ficou atrás e contratou, no mesmo
período, celebridades negras para suas campanhas e mostrou famílias
comuns realizando atividades cotidianas, sempre em belas casas, cercadas de produtos e com o refrigerante em destaque. Outras marcas
seguiram o mesmo caminho e anunciaram na revista Ebony e em outras publicações voltadas para negros e negras nos Estados Unidos.
Enfim, em meio ao crescimento de um segmento intermediário na sociedade norte-americana, o consumo recruta esses indivíduos
como consumidores, vendendo o pertencimento a uma classe média caracterizada pela posse de determinados bens e o uso de certos serviços.
O shopping center é a principal mola propulsora nesse processo, pois
oferece para as famílias que passam a morar nos subúrbios das grandes
cidades a possibilidade de pertencer a uma “nova classe média”, que se
diferencia das camadas populares ao de certa forma realizar seus sonhos
de ascensão social comprando e vivendo o mundo dos bens.
Considerações finais
Nos dois casos apresentados, o consumo – através de seus espaços de compra em especial, mas também da propaganda e dos meios
de comunicação – delineou as fronteiras simbólicas de uma classe média que se reconhecia por meio de produtos, serviços e experiências.
Nossa intenção aqui foi destacar a possibilidade de pensar a classe média não como um grupo de pessoas que se encaixam em determinados
critérios relacionados à produção, mas sim como um conjunto de representações sociais vinculadas ao consumo. Tanto os grandes magazines quanto os shopping centers revelam essa vocação classificatória
do consumo, capaz de recrutar grupos significativos de indivíduos para
306
Comunicação, cultura e consumos
o mundo dos bens, ao ensinar modos de vida, hábitos, valores e comportamentos. Afinal, como indica Wright Mills (1969 [1951], p. 255):
Cada dia os homens vendem pequenas parcelas de
si mesmos para tentar comprá-las de novo cada
noite e fim de semana com a moeda do “divertimento”. Com as diversões, com o amor, com os filmes,
com a intimidade vivida por interposta pessoa, eles
reconstituem a integridade de seu eu, e transformam-se em pessoas diferentes. Assim, o ciclo do
trabalho e lazer dá origem a duas imagens diversas
do eu: a imagem cotidiana, ligada ao trabalho, e a
imagem de feriado, baseada no lazer. A imagem de
feriado costuma ser profundamente imbuída de aspirações e sonhos, e é, naturalmente, alimentada
pelas personalidades e acontecimentos divulgados
pelos veículos de comunicação de massa.
Com isso, entendemos que o mundo do consumo projeta sonhos de ascensão social e pertencimento à classe média que podem
ser alcançados por meio das atividades de compra. Nas lojas, nas propagandas e na comunicação de massa, vemos uma realidade sem contradições, a alegria proporcionada pelos bens e serviços.
Enfim, o exemplo das classes médias inventadas pelo consumo é bom para pensar o fenômeno como fato social total, algo que,
entre outras coisas, fala de maneira pujante sobre a sociedade. Nesse
sentido, se o estudo do consumo é capaz de explicar o que uma sociedade entende como classe média, ele também oferece caminhos para
a compreensão do que é ser criança, jovem, velho, homem, mulher,
brasileiro, minimalista, sustentável e assim por diante. Examinar o
passado é uma garantia de agenda para o futuro. De outra forma, a
investigação da história não existiria. Portanto, pela força de sua sustentação secular, é imperioso que o consumo e a narrativa publicitária
ocupem lugar de destaque na agenda de pesquisas da Comunicação
para o século XXI.
307
SEÇÃO 6
Referências
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postwar America. Nova York: Vintage Books, 2004.
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WEEMS Jr, Robert. Desegregating the Dollar: African American consumerism in
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308
SEÇÃO 7
Comunicação e Televisão Hoje
A televisão, hoje. Ou, “A televisão
morreu? Viva a televisão!”
Maria Immacolata Vassallo de Lopes
Television is the software of the earth. Television is invisible. It’s not an object. It’s not a piece
of furniture. The television set isirrelevant to the
phenomenon of television. The videosphere is the
noosphere transformed into a perceivable state.
Gene Youngblood. Expanded cinema.
Toronto: Clarke, Irwin & Company, 1970 (*).
Premissas
A premissa geral que norteia este texto1 é a de ir além da literatura e dos discursos que adotam a “morte da televisão” e faz a proposta
(*) “A televisão é o software da terra. A televisão é invisível. Não é um objeto. Não é um móvel. O aparelho
de televisão é irrelevante para o fenômeno da televisão. A videosfera é a noosfera transformada em um
estado perceptível.” (tradução nossa). Youngblood se inspira na ideia de Pierre Teilhard de Chardin
de “noosfera” como a esfera do pensamento humano, ou a inteligência organizada, que atua como uma
força real no mundo para explicar o fenômeno da televisão.
1 O presente texto é uma primeira proposta a respeito de uma nova denominação de televisão que atenda
à complexidade cada vez maior dos seus estudos e, principalmente, à velocidade das transformações que
ocorrem com esse meio audiovisual. Portanto, deve ser lido como um texto inicial, quase um conjunto
de notas, e que deve desdobrar-se em textos ulteriores mais ajustados e sistematizados. Lembro que
dotei essa mesma estratégia quando criei o duplo conceito narrativa da nação e recurso comunicativo.
311
SEÇÃO 7
de uma reflexão epistemológica com base em dados empíricos para
introduzir uma nova perspectiva – a TransTV ou Televisão Transformada – para denominar a televisão contemporânea. Trata-se, portanto, de um novo conceito e de um novo termo que vale tanto para o
discurso acadêmico como para o uso popular. Para fundamentar esse
conceito, pretendemos expor algumas das principais preocupações,
conceitos e teorias que têm marcado os nossos estudos de televisão
nos últimos anos, a fim de propor uma possível e renovada agenda de
estudos em que são analisados os principais desafios à televisão pelas
novas plataformas digitais e pelos novos usos das redes sociais. É a
emergência de um ecossistema comunicacional (imbricação do digital e a narrativa televisiva) que pode vir a qualificar a competência do
pesquisador de televisão mais ajustada às modificações aceleradas e
às inovações desse meio tornado cada vez mais complexo.
1. O Que é a Televisão, Hoje
Partimos da premissa de que os fenômenos planetários da globalização e da pandemia podem ser encarados dialeticamente como
ameaças e extinções, bem como de oportunidades e renovações. Isso
significa para nós a chance de renovar o olhar tanto sobre a prática
da televisão e da pesquisa de televisão em geral, bem como sobre a
televisão em geral e a teleficção em particular. Transmídia, práticas
de fãs, construção de mundos, transnacionalização da ficção, inovações tecnológicas, impactos da pandemia, são alguns fenômenos que
renovam hoje a importância que a teledramaturgia, sobretudo a telenovela, tem para as dinâmicas socioculturais e econômicas que incidem sobre a identidade nacional e também na economia política da
televisão no país.
A teledramaturgia, ao longo dos últimos 70 anos, vem se afirmando como produto artístico e industrial relevante na sociedade
brasileira, com grande peso na economia criativa, no mercado publicitário e com alcance transversal em todas as classes. São experiências ampliadas pelos impactos da digitalização na indústria audiovisual que vêm reconfigurando as práticas de produção, distribuição e
312
Comunicação e Televisão Hoje
consumo da ficção televisiva. Dentro desse panorama, vemos a “teledramaturgia constituir-se como recurso comunicativo que consegue
comunicar representações que atuam, ou ao menos tendem a atuar,
para a inclusão social, a responsabilidade ambiental, o respeito à diferença, a construção da cidadania” (LOPES, 2009, p. 22). Destacamos
que os conceitos narrativa da nação e recurso comunicativo (LOPES, 2003, 2009) aparecem reafirmados pela teledramaturgia, agora
no ecossistema comunicacional digital.
A televisão assume funções sociais cada vez mais importantes e
complexas no ambiente contemporâneo. O ato de assistir a conteúdos
televisivos compreende diferentes formas de entrega, do tradicional
broadcasting ao da pequena tela, às múltiplas telas e às plataformas
interconectadas. Johnson (2020) comenta que para apreender as funções sociais, culturais e políticas da televisão em um ecossistema de
rápidas e profundas mudanças é preciso adotar uma visão ampliada
das suas dimensões tecnológicas, sociais, industriais, organizacionais
e experimentais. Aqui vale a referência para quando começaram a aparecer no Brasil e no exterior os trabalhos dos grupos de pesquisa Obitel
e Obitel Brasil2, a partir dos quais fundamentaremos o presente texto.
A complexidade do fenômeno televisivo vem sendo investigada de modo transdisciplinar e multimetodológica. Como costuma se afirmar, um objeto complexo exige metodologia complexa.
A ficção televisiva, principal objeto de atenção do Obitel, é examinada numa maneira de modo a sistematizar fenômenos em torno
da produção, distribuição e consumo de conteúdos e formatos televisivos sempre a partir do “ponto de vista comunicacional”. em
diálogo com diferentes áreas do saber que convergem na ficção televisiva, tais como: memória social, narrativização, transmidiação,
criatividade e inovação nas narrativas, competências midiáticas da
2 O Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva (Obitel), criado em 2005, é formado por 11
países e publica resultados comparativos que formam bancos de dados e séries históricas de análise
da ficção ibero-americana, reunidos até agora em 15 Anuários Obitel. Disponível em: http://obitel.
net. O Obitel Brasil, Rede Brasileira de Pesquisadores de Ficção Televisiva, é o braço brasileiro do
Obitel e foi constituída em 2007, possui 10 grupos de pesquisa e publica bienalmente livros temáticos sobre a teledramaturgia brasileira, somando até o momento sete volumes. Ver: www.obitelbrasil.blogspot.com.br .
313
SEÇÃO 7
recepção, identidades e representações, entre outros. Parafraseando
Kellner (2001), o interesse está em produzir estudos que não se detenham exclusivamente nos limites de um texto, mas que procurem
saber como ele se encaixa nos sistemas de produção textual e de que
modo vários textos fazem parte de sistemas ideológicos, de gêneros
e de indústria.
Parece-nos que uma abordagem complexa da ficção televisiva
deve utilizar uma multiplicidade de perspectivas e métodos críticos,
assim como de estudos que delineiam uma ampla gama de posições
a respeito da intersecção entre o público e o conteúdo televisivo
produzido por determinada emissora, salientando temas ligados à
educação, à cidadania e à agenda de políticas públicas. Essa tarefa
requer uma abordagem transdisciplinar e multicultural que vincule
as diferentes dimensões do público (classe, raça, etnia, gênero, sexualidades) às estratégias textuais das narrativas seriadas e às estratégias produtivas da empresa, sem descuidar do exame dos impactos
da transnacionalização e da plataformização sobre os modos de criar
e consumir ficção televisiva.
Séries, novelas e minisséries são recursos capazes de fomentar no público imaginários que suscitam “alternativas às atuais condições culturais, políticas ou econômicas”, pois, “não se pode mudar
o mundo sem imaginar como seria um mundo melhor”. (JENKINS;
PETER-LARAZO; SHERSTHOVA, 2020, p. 5). É o que propriamente
caracteriza os estudos de intervenção, pelos quais as ciências sociais
e as humanidades, em que se inclui a comunicação, devem divulgar e
aplicar os resultados dessas novas abordagens e objetos que apenas
começamos a identificar no campo da comunicação.
2. TransTV: A Televisão Como
Ecossistema Digital-Narrativo
Nosso foco aqui é a televisão contemporânea com seus últimos
desenvolvimentos e tendências emergentes, notadamente os novos serviços de VoD, como Netflix, Globoplay, Prime, HBOMax, Disney+ etc.
São transformações que desafiam os discursos acadêmico e popular,
314
Comunicação e Televisão Hoje
apontando não apenas para mudanças tecnológicas da televisão e o
mercado local e transnacional, mas igualmente para mudanças nos
regimes de serialização, narrativização, práticas de visualização, consumo móvel, novos tipos de fandom, entre outras. A televisão está
passando por processos de permanentes e aceleradas mudanças e, a
despeito das variedades de enfoques, há um consenso na literatura
nacional e internacional de que, à luz das múltiplas transformações
da televisão nas últimas décadas, muitos dos principais conceitos e
suposições sobre a televisão exigem uma completa reconsideração.
Muitas expressões surgiram, como: TV de plataforma, SVoD (Serviço
de Vídeo sob Demanda), binge-viewing, TV transnacional, branding
TV, TV pós-networking, TV distribuída por internet e outras. Mas
como se tem apontado, se há uma coisa sobre a qual podemos concordar sobre a televisão contemporânea, é que ela tem sido radicalmente
afetada pela implementação das tecnologias digitais. Na verdade, o
que queremos dizer com palavra “televisão” hoje, mudou radicalmente frente ao modelo clássico da sociedade em rede de Castells (2002),
de transmissão um-para-muitos. Tanto é verdade que termos-chave
como “canais”, “públicos”, “horários”, ‘gêneros’ têm seus significados
radicalmente transformados. Essas discussões apontam para a necessidade de renovação de abordagens e de conceitos, mas que, a nosso
ver, têm ocorrido de maneira segmentada e separada. No que cabe
ao escopo do presente texto, é possível fazer apenas a crítica por relegar a um segundo plano a compreensão integrada do que chamamos
ecossistema digital-narrativo, uma perspectiva que exige a interação e a integração de estudos empíricos da indústria de televisão,
de leitura da estética televisiva e de abordagens representacionais da
suas audiências.
A proposta central é que através do conceito TransTV é possível operar intervenções nessas múltiplas transformações contemporâneas da televisão, enfatizando que elas precisam ser pensadas em
conjunto, holisticamente, como sistema, pois as discussões sobre as
transformações tecnológicas da indústria não estão separadas das
transformações estéticas e narrativas, bem como das experiências televisivas do público. Embora tanto os “estudos de produção” quanto
315
SEÇÃO 7
as viradas “estéticas” dos estudos de televisão sejam bem-vindos, eles
não devem ser vistos como empreendimentos separados, especialmente considerando as tendências convergentes dos sistemas digitais, pelos quais o conteúdo televisual está sendo distribuído de modo
contrário aos antigos modelos de redes de televisão. Mais do que isso,
estes novos modos de produção, distribuição e consumo, definidos
de acordo com os desejos de usuários ativos e de nicho, vão na contramão do modelo de transmissão controlado pela rede, sua programação e publicidade, e devem abrir novos caminhos para abordagens
convergentes e transdisciplinares.
Assim, propomos a noção de TransTV com o objetivo de que as
transformações acima apontadas – tanto da televisão quanto dos estudos
de televisão, em termos de tecnologias e sistemas de entrega, bem como
de conteúdos e estéticas e de experiências da recepção – possam ser articuladas em conjunto, em um diálogo gerado dentre os estudos inovadores da televisão sobre a produção industrial, as viradas
estéticas e as novas experiências de consumo. A característica básica do enfoque metodológico é empírico, transdisciplinar e comparativo. Os conteúdos geograficamente localizados e globalmente consumidos
exigem que as mudanças na geopolítica do transnacional sejam
estudadas na perspectiva conjunta da indústria e da academia.
Não é o caso, aqui, de fazermos o mapeamento de estudos e experiências (o que demandaria fazer uma metainvestigação sobre os estudos
de televisão), mas sim de incorporarmos, através do conceito TransTV, os acelerados impactos na produção e distribuição da televisão, e nas experiências de visualização, a fim de compreendermos o que significa “fazer, distribuir e assistir TV” no século XXI.
3. A Televisão Contemporânea
no Brasil e a TransTV
Tomamos a criação do Globoplay, plataforma de VoD do
Grupo Globo, em 2015, como marco empírico da emergência da
TransTV no Brasil, uma vez que com ele se completa o processo de
plataformização da televisão, tal como existe nos demais países. Em
outros termos, a plataforma de streaming passa a conviver com as
316
Comunicação e Televisão Hoje
duas plataformas preexistentes, a TV Aberta e a Pay TV (o conjunto
das duas é chamado de TV linear), configurando assim o ecossistema
audiovisual que temos hoje no Brasil.
Esta nossa reflexão aparece já em 2016 (LOPES et al., 2016)
sobre a presença de uma “TV Transformada”3 no Brasil. A TransTV
gerou transformações radicais tanto nos conteúdos quanto nas formas de produção, de consumo e de interação, além de ter integrado
tendências emergentes de plataformização, hibridação de gêneros e
formatos e de audiências em interação nas redes sociais digitais. O
termo TransTV, ou “TV Transformada”, também pode significar “TV
em Transição”, por apontar para o processo de aceleração na temporalidade das mudanças e do trânsito e trocas entre meios e processos
que antes não se tocavam, agora definidos pela transmidiação e pela
transdisciplinaridade. Cabe assinalar a entrada de novos players, a
partir de 2011, como Netflix, Prime Video, HBO Max e Disney+, que
deram mais peso ao que chamamos TransTV.
É interessante notar, também, que a televisão se mantém
como o principal meio de acesso aos conteúdos sob demanda – é na
TV/CTV (televisão conectada) que os brasileiros mais acessam as plataformas de streaming4.
3.1 Reconfigurações da Produção e de Gêneros e Formatos Televisivos
Dentro do Marco da TransTV no Brasil
A recorrente discussão acerca de gêneros e formatos no âmbito
televisivo nos leva a indagar quais são os parâmetros para a definição
de um e de outro desses termos. No dizer de Martín-Barbero (2001),
3 O termo “TV Transformada” (Transformed TV)” foi inspirado nas observações de Terrence Rafferty sobre as transformações no meio televisivo atual, feitas no artigo New Twists for the TV Plot, as
Viewer Habits Change. (The New York Times, 3 out. 2015, cuja síntese seria: “everything about the
medium — how we receive it, how we consume it, how we pay for it, how we interact with it — has
been altered.” (“tudo sobre o meio – como o recebemos, como o consumimos, como pagamos por ele,
como interagimos com ele – foi alterado.” - tradução nossa). Disponível em: http://www.nytimes.
com/spotlight/tv-transformed?ref=television.
4 Em 2022, considerando a participação de cada formato somente para o consumo via TV/CTVs, 87% da
audiência de vídeo consumido no domicílio foi de TV linear (TV aberta e PayTV), enquanto 13% foi de
plataformas de vídeo online. Fonte: Kantar IBOPE Media. Inside Video 2023.
317
SEÇÃO 7
os gêneros, antes de categorizar narrativas, ocupam um lugar exterior
à obra, a partir do qual o sentido da narrativa é produzido e consumido. São, portanto, estratégias de comunicabilidade, compreendidas
duplamente na dimensão estética e cultural. Os formatos, por sua vez,
estão associados a uma ritualização da ação que, engendrada tanto por tecnicidades ligadas aos modos de narrar, quanto a lógicas da
produção (operações industriais e estratégias de comercialização), dá
origem, nas suas mais diversas formas, a uma família de histórias.
A metodologia que tem sido adotada pelo Obitel está alicerçada nessas diretrizes. Ela está voltada para identificar e analisar o
gênero ficcional na televisão, o qual se realiza através de seus diversos
formatos – telenovela, série, minissérie, telefilme, sitcom, unitário,
etc. Sobrepostos aos formatos, temos, então, o gênero ficcional como
categoria classificatória das narrativas – drama, comédia, ação, aventura, terror, policial, fantasia, entre outros.
Segundo Balogh (2002), no caso da televisão, cada contexto cultural desenvolveu e sedimentou, na preferência do público, combinações particulares de gêneros e formatos televisivos: nos Estados Unidos,
o produto tradicional do prime time é o gênero drama e o formato, a
série, (com duração de 45 a 60 minutos), além da comédia, no formato
sitcom (por volta de 30 minutos). Por outro lado, na América Latina,
cuja televisão teve influência primordial da tradição radiofônica e do
folhetim literário, o prime time oferece o formato telenovela (seriado)
desenvolvido especificamente através do gênero (melo)dramático, que
mescla subgêneros diversos (humor, suspense, romance) numa única
trama, de aproximadamente 150 capítulos de 40 minutos cada.
A telenovela se desenvolveu em diferentes modelos nas regiões
do continente latino-americano5. No Brasil, a telenovela se consolidou, ao longo do tempo, como o formato mais assistido e reconhecido
pelo público por interagir com as mudanças da sociedade, incorporando-se, de vez, à cultura do país.
5 Para Mazziotti (1996), havia seis grandes modelos de produção de telenovela na América Latina: o
brasileiro (Globo), o mexicano (Televisa), o de Miami (hispânico, EUA), o argentino, o venezuelano e
o colombiano. Atualizando para hoje, esses modelos de produção são quatro: o brasileiro (Globo), o
mexicano (TelevisaUnivision), o colombiano e o argentino.
318
Comunicação e Televisão Hoje
A telenovela brasileira é, em sua essência, um compósito de
gêneros. Em geral, inicia com uma trama central dramática, marcada
por difícil resolução de um conflito romântico e/ou moral. Ao redor
dele, articulam-se diversas tramas, também chamadas de “núcleos”,
construídos cada qual por um gênero. Normalmente, há um núcleo de
humor, outro com mais ação ou mistério, outro mais romântico. São
geralmente denominadas “tramas paralelas” – que não são exatamente “paralelas”, pois delas se espera que interajam com a trama central,
contribuindo para a progressão da história como um todo. Assim, o
público de telenovela no Brasil está acostumado a acompanhar diversas tramas simultâneas em uma única narrativa de ficção.
3.2 Reconfigurações de Gêneros e Formatos nas Ficções Televisivas
Brasileiras dos Últimos Anos
Inserida no contexto das tecnologias digitais e dos fenômenos de globalização da cultura, as ficções televisivas vêm experimentando uma confluência de elementos que dão farta margem a novas
configurações de gêneros e formatos, submetida que está às velozes
mudanças nos âmbitos de sua produção, circulação e recepção. Conteúdos ficcionais em múltiplas telas e diferentes plataformas foram
percebidos como tendência desde o início da série histórica do Obitel
– e destacada a partir de 2010, através de análises mais aprofundadas
sobre a recepção transmídia. Elas revelaram ser possível visualizar os
modos como as narrativas transmídias percorrem os mais variados
dispositivos provocando transformações nos hábitos do ver e assistir
a ficção. Acaba o aprisionamento a uma grade de programação, os
horários tornam-se fluidos através do uso das mais variadas telas. Esses vetores passarão, cada vez mais, a interferir nas esferas da produção, incluindo aí a criação e concepção das narrativas, e da circulação,
através de novas formatações e plataformas.
Nesse cenário, as questões mais discutidas nos últimos tempos
transitam em torno das narrativas complexas. Mittell (2006) aponta que
a complexificação verificada em títulos da Transformed TV da televisão
americana se apoia, principalmente, na hibridização das duas formas
319
SEÇÃO 7
tradicionais de serialidade: a serial, forma contínua, capitular, na qual
há um grande arco dramático perpassando toda a narrativa, e a series,
forma episódica, em que os arcos não ultrapassam a unidade do episódio6. Também emergem importantes estudos sobre aspectos dessas narrativas complexas, como o de Silva (2014) sobre a “cultura das séries”.
Ao longo de seus 16 anos de existência, os Anuários Obitel vêm
fazendo observações sobre essas novas e cada vez maiores confluências entre gêneros e formatos nas produções nacionais.7
À luz dos exemplos apontados, a combinação e a recombinação de gêneros e formatos já consagrados em experimentos de novas
possibilidades narrativas, é hoje uma tendência global, intrinsecamente aliada às transformações de cunho sociocultural e tecnológico
em curso. Isso nos leva a concordar com Mittell (2004) no que diz
respeito aos estudos de gêneros televisivos, pois é necessário considerarmos como eles são experimentados atualmente, aprofundando
as relações entre programas, audiência e indústria televisiva. Nessas
dinâmicas inter e transgêneros, os formatos também se transfiguram,
e talvez até mais, em razão de sua tecnicidade.
Os estudos de gêneros televisivos, portanto, passam a abranger tanto o particular (ou local) como o universal (ou global), porém
sem nunca se descolar das práticas culturais. Frente a isso – e à natureza inesgotável do tema – nos deparamos com a necessidade de
pesquisas que contemplem e avancem nos casos brasileiros de ficção
televisiva, tanto na perspectiva histórica como no diálogo com a contemporaneidade, captando como incidirão, nos próximos anos, no
que diz respeito à (re)invenção de gêneros e formatos.
Verificamos que a ficção televisiva brasileira está em diálogo
constante com as tendências percebidas no mundo. E fica claro inclusive a necessidade deste diálogo se desenvolver também entre os
estudos internacionais e os que nascem dentro do contexto brasileiro, no qual a telenovela – e a própria televisão – tem natureza e papel
6 Um grave problema com que nos deparamos no Brasil é a quase completa falta de distinção entre esses
dois formatos, tanto do lado de quem produz como de quem consome.
7 Os anuários Obitel 2010, 2014, 2016, 2018, 2019, 2020 e 2022 são os que mais destacaram as transformações digitais e narrativas na televisão brasileira e estão citados ao final das Referências.
320
Comunicação e Televisão Hoje
complexos, que devem ser necessariamente conhecidos e incorporados
em benefício do próprio alcance dos estudos internacionais de gênero.
4. Uma Agenda Para os Estudos de Ficção Televisiva
na Perspectiva da TransTV. Uma Única e Diversificada
Visada Interdisciplinar dos Campos da Produção,
Distribuição Narrativização e Recepção
No ano de 2019, em que a World Wide Web (www) fez 30 anos,
a internet ainda não chegara a se afirmar como um direito na “sociedade em rede” (CASTELLS, 2002), e seu balanço vem apontando, até
hoje, tanto para a ampliação de oportunidades quanto de ameaças.
Um fato marcante tem sido a queda do rating de audiência
da televisão aberta como um fenômeno global que desafia a indústria
televisiva. Mudança de hábitos e busca de novos modelos de negócio,
integração de plataformas e geração de conteúdos de qualidade, aparecem como os pilares da transformação do audiovisual em todo o
mundo. E as mudanças se manifestam com um certo grau de diversidade, de acordo com as características econômicas e culturais de cada
sociedade, com processos mais ou menos disruptivos.
O que percebemos em anos passados como uma tendência,
podemos afirmar hoje que o contexto audiovisual no Brasil se consolida cada vez mais como um mix de produção e de consumo nas
múltiplas plataformas, praticado principalmente pela Globo, através
de uma estratégia que combina, de maneira própria, a TV aberta, a
TV paga e o VoD, e que será descrita adiante. Parece ter assomado na
indústria audiovisual a consciência de ser este o momento para investir na transição dos hábitos de consumo de conteúdos brasileiros, de
integrar nesses hábitos novos formatos e novas serialidades de ficção,
fazendo experiências em todas as plataformas.
4.1 Telenovela em Tempos de Streaming
Desde o início da série histórica, em 2007, os Anuários Obitel
têm registrado uma contínua intensificação no que diz respeito à hibridização de formas e conteúdos no cenário teleficcional brasileiro. A
321
SEÇÃO 7
partir dos anos 2010, com a popularização das séries norte-americanas,
potencializada por meio do consumo desses produtos em outros suportes, como as plataformas de streaming, identificamos a acentuação de
uma tendência a que chamamos de “serialização das telenovelas e de
telenovelização” das séries”.
Atualmente, novos formatos de narrativas televisivas e a mixagem de gêneros reconfiguram as técnicas de representação de gênero,
onde podem ser agora melhor compreendidas atentando tanto para os
progressos formais do modelo narrativo da televisão, pensado a partir
de seus contextos históricos de produção, circulação e recepção, quanto
para a transformação de normas estabelecidas por meio de uma prática criativa, como a proposta da teoria da interseccionalidade8 (COLLINS, 2019), para os estudos de comunicação. Adotamos essa teoria
no que ela pode revelar na TransTV a complexidade dos marcadores
aí existentes, como a dialética entre o local, nacional, transnacional;
a descentralização da produção televisiva que leva à ascensão inédita
das produtoras independentes no país; as invenções da narrativa ficcional digital; os novos hábitos de consumo da teleficção e as lutas por
representação e reconhecimento dos públicos e das audiências, entre
outros tantos marcadores que podem ser encontrados na TransTV.
No Brasil, esse panorama se evidencia mais fortemente na
década de 2010, a partir de tramas que investiram em plots e arcos
curtos, propiciando um fluxo dinâmico de histórias e personagens e
expressando agilidade para a ação. Exemplos desse fenômeno foram
a telenovela A Regra do Jogo (Globo, 2015), na qual cada capítulo foi
numerado e recebeu um título que aludia aos acontecimentos do dia
explicitando a tensão existente entre capítulo e episódio, e a adesão,
em 2017, à nomenclatura “supersérie” por parte da Globo para as suas
ficções do horário das 23h.
O fenômeno de “telenovelização” das séries, por sua vez, pode
ser verificado em âmbito global com a chamada “terceira era de ouro” da
televisão dos Estados Unidos (MARTIN, 2014), marcada pela estreia de
8 Essa proposta aciona categorias e marcadores da diferença (gênero, raça, classe, idade, sexualidade,
peso, geolocalização e deficiência, entre outros), reivindicando análises em conformidade com a complexidade dos marcadores e das suas estruturas de poder e de identidade.
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Comunicação e Televisão Hoje
Família Soprano (HBO, 1999-2007). Desde então, as séries passaram a
apostar cada vez mais em arcos dramáticos longos, que chegam a perpassar uma temporada, quando não a série como um todo. Sob outra perspectiva, séries como Ingobernable (México, 2017-atual) e Coisa Mais
Linda (Brasil, 2019-atual), ambas da Netflix, ilustram exemplos latino-americanos dessa tendência à “telenovelização” dos formatos de curta
serialidade, com adesão explícita a entrechos melodramáticos. A primeira é um drama mexicano de cunho político, enquanto a segunda aborda
o surgimento da bossa nova no Rio de Janeiro dos anos 1950. Assim, a
Netflix busca se aproximar do público da região por meio de equações
calcadas na noção de proximidade cultural (STRAUBHAAR, 2004).
Para Williams (2018), quanto maior a serialidade de um texto, mais ele está sujeito ao melodrama. A conformação folhetinesca
permite a articulação entre a estrutura seriada e a periodicidade do
capítulo, isto é, entre o tempo do progresso – o desenrolar das ações
– e o tempo do ciclo – a retomada de tramas e personagens que apareceram ao longo da narrativa (MARTÍN-BARBERO, 2004).
Consequência da atual abrangência e mistura de gêneros – entrelaçados, fundidos e reformulados – é que também o melodrama tem seu
sentido expandido, passando a integrar séries e outros formatos que trazem possibilidades mais fluidas de identificação (MITTELL, 2015). Dentro desse cenário, lançar luz sobre o melodrama em tempos de streaming,
especialmente sobre a telenovela, dado o espaço que ocupa no cenário audiovisual brasileiro, pode revelar o modo como se dão as reconfigurações
televisivas, uma vez que estamos lidando com conteúdos altamente flexíveis e adaptáveis às novas lógicas de produção e atividades de consumo.
Existe consenso de que a telenovela no streaming deve ser
mais curta, com menos núcleos e mais sujeita a experimentações formais. Sendo um formato culturalmente relevante para a expansão do
serviço no Brasil, é de se esperar que vejamos o surgimento de produtos híbridos e apostas de interlocução entre o formato tradicional e as
séries, com renovações estéticas e narrativas.9
9 A plataforma HBOMax está anunciando, neste ano de 2023, o início da gravação de sua primeira telenovela
brasileira exclusiva para streaming, Beleza Fatal, com a denominação de “telessérie”. Disponível em:
https://natelinha.uol.com.br/novelas/2023/01/03/novela-brasileira-da-hbo-tem-novo-titulo-e-destinodefinido-192183.php.
323
SEÇÃO 7
4.2 TransTV brasileira: Tudo Junto e Misturado
Avanços importantes na indústria do audiovisual brasileira
estão sendo dados com a incorporação acelerada e permanente da
comunicação digital. No que se refere à ficção seriada televisiva, esses avanços variam da maneira como é produzida e até como é percebida e distribuída. Esta nova ordem deve ser estudada e analisada
em detalhe, com vistas à compreensão de seus múltiplos significados
e aspectos. Se uma certeza existe, é a certeza de que a transformação
digital está em pleno vigor no Brasil: nas séries de televisão e filmes;
nas políticas de comunicação e regulação; nas mudanças do público;
nas narrativas de ficção e nas mídias sociais – numa efervescência
em que, “tudo junto e misturado”, procura se organizar uma nova
configuração de televisão – a TransTV – ainda pouco visível.
Através do conceito de “televisão distribuída por internet”
(LOTZ, 2017), percebemos que no Brasil os serviços de VoD10 apresentam formas muito variadas de oferta, como: a) serviço com acesso
gratuito, com propagandas; b) assinatura mensal, com acesso pago; c)
aluguel ou venda de conteúdo específico, acesso a serviços vinculados
com a TV paga (catch-up TV); d) combinação desses modelos, denominados híbridos.
Quase uma década após a implantação no país, a TransTV segue
demandando novos formatos de conteúdo e de modelos de negócios, além
de adequação ao contexto. São novas configurações quanto a “território,
mercado, nação e área de sinal” (LOBATO, 2019, p. 15), que incidem sobre
estruturas ainda rígidas; são padrões que se apropriam e demandam novas
percepções para as dinâmicas vigentes. Isto posto, entendemos que os participantes desse jogo integram as forças estruturais que permeiam o VoD e
as conexões entre a produção e a era das plataformas e da transmídia.
Quando Scolari (2017) trata da obra Dos Meios às Mediações,
de Martín-Barbero, ele diz que o projeto por trás do livro é interpretar
10 O Video On Demand é definido pelo Conselho Superior de Cinema como “serviço que potencializa a
circulação dos conteúdos e o consumo audiovisual dos usuários de tecnologias móveis, TVs e computadores pessoais”. Disponível em: http://www.ancine.gov.br/sites/default/files/CSC%20-%20Consolida%C3%A7%C3%A3o%20 Desafios%20VoD%2017%2012%2015_1.pdf.
324
Comunicação e Televisão Hoje
o consumo de massa de cinema, rádio, TV, inserido na vida cotidiana
popular, o que explodiria “as assepsias do discurso científico tradicional” (2017, p. 167). E propõe o conceito de hipermediações, traduzindo as mediações para a vida digital, com particular atenção àquela
que Martín-Barbero chama de tecnicidades. Elas protagonizam tão
grandes rearranjos estruturais, que se torna fundamental (re)observar as posições, lutas e características da ficção televisiva brasileira
distribuída por – e produzida para – plataformas, aplicativos e sistemas de VoD através da figura da TransTV.
Pensar, portanto, a produção, distribuição ou consumo de
VoD exige refletir sobre o próprio conceito de VoD – que pode variar conforme a geolocalização de quem produz, vende ou consome
– e preocupações quanto às possíveis terminologias para indicar esse
modo de manejo da TV, até o entendimento de que o avanço dos serviços de VoD não significa que outros modos de distribuição serão
extintos. É mais coerente pensar, advertem Lotz, Lobato e Thomas
(2018), em “camadas” que se sobrepõem, ou seja, modos diferentes
de manejar a televisão, que se hibridizam e ajustam, formando novos
modos, “juntos e misturados”. Pensar a televisão como uma opositora
contra a qual duela a nova e poderosa internet, nota Miller (2009), é
tolice. Efetivamente, “a televisão distribuída por internet” expande o
ecossistema televisivo, e é mais razoável pensar o VoD como uma camada no topo de várias outras já existentes e com interação entre elas.
Porém, as novas tecnologias e os serviços digitais ainda estão
imersos em um contexto ainda pouco regulado do ponto de vista legal e político. A pressão dos grandes representantes nacionais da radiodifusão sobre o governo brasileiro por “simetria regulatória com
empresas de internet”11, em oposição à pressão exercida pelos grandes “players internacionais”, explicita a instabilidade dos cenários
audiovisual e das telecomunicações, constituídos por luta de forças
governamentais e privadas, nacionais e estrangeiras, quanto ao tema
da regulação.
11 Disponível em: http://bit.ly/2HkVvxr.
325
SEÇÃO 7
Diríamos então que na nova indústria de televisão, nota-se a
tendência à concentração das majors internacionais. Apesar disso, é
necessário notar a grande diversidade de plataformas e outros serviços de mídia OTT. Existem emissoras broadcasting em operação
que podem combinar com produções em grade. Há que se observar
as empresas de mídia locais e as diferentes estratégias para garantir
(ou preservar) sua posição no novo cenário. Além disso, nesta era de
múltiplas plataformas digitais e redes sociais, as práticas de produção
são tão variadas quanto os hábitos de consumo e de visualização adotados pelos públicos. Estamos ainda no início de estudos focados em
frameworks que devem nos ajudar a explicar e falar sobre a televisão
em meio a tantas práticas industriais e de fruição.
A organização do mercado audiovisual promoveu novo ecossistema comunicacional, ocasionando transformações nos paradigmas de infraestrutura, narrativas, institucionalidades, sociabilidades, sensibilidades e novas tecnicidades (MARTÍN-BARBERO, 2001).
Ou seja, alterou a forma de produção, distribuição e consumo da televisão e gerou novas demandas e desafios.
Neste cenário, pontos concernentes à infraestrutura do VoD
no Brasil – como o reconhecimento dessas redes, os participantes que
compõem os setores industriais e econômicos – trazem consigo dificuldades na obtenção de informações, devido a sua opacidade e, paradoxalmente, a sua invisibilidade, tendo em vista a relativa novidade e
fluidez do setor e o fato de empresas de streaming não divulgarem dados de seu universo. A Ancine (Agência Nacional do Cinema), devido
à inexistência de regulação, não obriga que as plataformas forneçam
informações institucionais.
O streaming, modelo de tecnologia que consiste na transmissão e no fluxo de dados pelo uso da internet, não se enquadra em conceitos históricos de televisão ou cinema, porque utiliza redes de banda
larga para dar ao usuário acesso e fruição, no momento desejado, a
conteúdos audiovisuais à sua escolha. Trata-se de uma realidade de
conexões em rede, não lineares, com classificações ainda não estabelecidas, em que atores e modalidades de serviços podem pertencer a
um ou mais segmentos e a novos arranjos.
326
Comunicação e Televisão Hoje
No Brasil, a difusão dessas tecnologias se insere em quadros
que, estáveis durante muitos anos, têm sido reconfigurados também
pelas políticas de comunicação. Historicamente, TV paga e TV aberta tiveram desenvolvimento imbricado a questões infraestruturais, o
que se refletiu na produção e distribuição da ficção televisiva. Assim,
a identidade do nascente VoD no Brasil tem como pano de fundo a
hegemonia da Globo na TV aberta e a legislação da TV paga. A ficção
televisiva brasileira, por décadas, reinou nos canais abertos e foi praticamente invisível na TV paga, dominada por canais internacionais
como TNT, Fox, Warner e HBO. A Lei do Cabo, que regulamentou o
serviço de TV paga (Lei n.º 8.977/1995), alterou esse panorama ao
obrigar a produção e exibição de conteúdo brasileiro em canais pagos.
No início de 2017, a Ancine, órgão regulador do cinema e do
audiovisual brasileiros, iniciou o processo para regulamentar12 os serviços de VoD no país, mas até hoje nada foi aprovado devido a divergências de interesses das empresas de TV paga, das teles, dos arrecadadores e demais interessados quanto ao modelo e prazos a serem
adotados. Enquanto isso, é possível observar mais de 90 serviços de
diferentes modalidades de VoD no país. Nessa lista, há serviços de
VoD viabilizados por canais de TV aberta, de TV paga, operadoras de
TV paga, OTTs “puros”13 e empresas de tecnologia.
Estamos diante de alterações estruturais no campo audiovisual
em que circula a ficção televisiva, em meio a pressões mercadológicas,
demandas por conteúdo, novos modelos de produção e uma série de possibilidades de distribuição. A seguir, apresentamos um breve panorama
do VoD no país, buscando identificar as reconfigurações do cenário televisivo brasileiro a partir da análise da TV aberta, da TV paga e do VoD.
12 Regulamentação referente a catálogos de títulos disponíveis, tributação, monitoramento de informações, exposição e cotas de conteúdo nacional.
13 OTT, Over-The-Top: conteúdo, serviço ou aplicativo disponível on-line para o usuário final. Já OTTs “puros” são os que não dependem de serviços de TV paga, por exemplo: Netflix, Amazon Prime, HBO Max.
327
SEÇÃO 7
TV Aberta
O dinamismo que vem caracterizando o cenário audiovisual
brasileiro nos últimos anos revela um movimento progressivo da
simbiose entre telecomunicações, TV e informática (FECHINE; FIGUEIRÔA, 2011), onde a TV aberta, central no cenário audiovisual do
país, busca no universo digital e nas modalidades de consumo de informação e entretenimento novas experiências de narrativa televisiva
(MENDES; AMARAL, 2016).
O diálogo entre TV aberta e novas plataformas de produção, compartilhamento e consumo de vídeos começou a se intensificar quando Globo e Record entraram no YouTube, respectivamente em 2014 e 2015. Ainda neste último ano, a Record passou a disponibilizar suas ficções bíblicas
na Netflix e a Globo lançou o Globoplay, sua plataforma de streaming
Em 2016, a Globo passou a explorar o princípio do digital first,
a distribuição de conteúdos produzidos no ambiente digital antes da
TV aberta, em outros termos, o acesso integral às primeiras séries no
Globoplay antes de transmiti-las em seu canal de TV aberta (Brasil a
Bordo e Carcereiros). A alta capacidade produtiva da emissora permite que ela dialogue com o VoD de forma mais ampla que outros canais.
Telenovelas e Streaming
A aproximação entre as telenovelas e o streaming nos instigou
a pensar sobre as particularidades e diferenças entre essas e as séries
presentes na Netflix, Prime Video ou HBOMax, como uma das interseccionalidades que caracterizam a TransTV.
Em maio de 2020, a Globo anunciou o lançamento progressivo de 50 telenovelas clássicas14 no Globoplay, constituindo uma biblioteca digital de telenovelas. O lançamento de telenovelas que fizeram sucesso no passado e ficaram na memória do público voltaram a
fazer grande sucesso e são motivo de conversações nas redes sociais.
14 Disponível em: http://glo.bo/3Lc0Zbb.
328
Comunicação e Televisão Hoje
Formavam parte de um acervo raramente disponibilizado pela Globo
e que não deixa de constituir uma interessante colaboração entre produções do broadcasting e sua distribuição no streaming.
Em 2021, a empresa produziu e exibiu sua primeira telenovela para o streaming – Verdades Secretas II contou com 50 capítulos,
disponibilizados em blocos de 10 capítulos a cada 15 dias. Trata-se da
segunda temporada da original Verdades Secretas, levada ao ar na TV
Globo em junho de 2015. Uma nova telenovela, Todas as Flores, foi produzida, em 2022, diretamente para o Globoplay, com divisão em duas
partes (temporadas?) e com acentuadas características de serialização.
A Globo possui a vantagem de ter seus próprios estúdios para
produzir tanto para a TV Globo, quanto para os Canais Globo da TV
paga, como para a plataforma Globoplay. Enquanto os demais streamings são obrigados a contratar produtoras independentes locais para
a realização de ficções televisivas nacionais. Atualmente, o catálogo do
Globoplay tem uma diversidade estupenda de formatos e de nacionalidades, reunindo desde telenovelas mexicanas antigas, que já passaram
no país, a séries norte-americanas e telenovelas turcas; desde o lançamento de suas novelas icônicas inéditas, às parcerias com streamings
menores como Starz e Lionsgate, e, principalmente de todos canais da
Globo ao vivo da TV aberta e da TV paga, em seus diferentes gêneros, como humarísticos, jornalismo, esportes, variedades. Os filmes da
Globo Filmes têm destaque na Globoplay. Claro que todo esse catálogo
é distribuído em uma variedade de planos de assinaturas.
Ainda resta assinalar as estratégias dinâmicas que são criadas,
experimentadas para obter maior audiência, repercussão e rendimentos. São as vantagens de poder estrear uma ficção na TV Globo e paralelamente no Globoplay; programar os primeiros episódios de uma
série no formato de um programa da TV Globo para induzir a assistir
os demais no Globoplay. Houve estratégias opostas como lançamentos
na TV Globo que podiam ser acompanhadas como séries no Globoplay.
Apenas começamos a mapear e analisar o setor de VoD no Brasil
e sua dinâmica bastante complexa. Acompanhamos a novidade que é o
desempenho dos dois mais importantes serviços de streaming do país:
Netflix e Globoplay. O primeiro é um provedor estadunidense com a
329
SEÇÃO 7
maior penetração mundial e que entrou no Brasil em 201115; e o segundo
é um serviço nacional lançado em 2015, streaming do Grupo Globo.
Netflix
A Netflix, plataforma OTT “pura”, começou a operar no Brasil
em 2011, com catálogo de filmes, shows, programas de TV (LADEIRA,
2013). Hoje, em primeiro lugar entre os serviços de vídeo em streaming no Brasil, é utilizada por 91% do público de VoD.16.
A primeira série brasileira “original Netflix” estreou em novembro de 2016: 3%, ficção científica realizada pela produtora independente Boutique Filmes e teve quatro temporadas (2016-2020). Distribuída mundialmente, foi a série de língua não inglesa mais assistida dos
Estados Unidos17. Atualmente, a Netflix está apresentando a segunda
temporada de Cidade Invisível (2021-), produzida pela Pródigo Filmes.
A estratégia de comunicação da Netflix para obter o máximo engajamento de seu público consiste em forte apelo ao afeto, à proximidade
e à familiaridade, voltando-se para a realização de coproduções locais.
4.3 Reconfiguração e complexificação: novas dinâmicas, novos
paradigmas na TransTV
Inicialmente, vistas como rivais, as novas mídias digitais passaram a ser aliadas da TV aberta e da TV paga, reconfigurando o panorama
da ficção televisiva no Brasil na atualidade. Na TV aberta, o aumento de
ações que incentivam a participação da audiência no universo da web e
a multiplicação de telas são fatores importantes (MENDES; AMARAL,
2016). Já no tocante à TV paga, o setor amplia a aposta em VoD sem,
contudo, abrir mão do meio tradicional. Em relação à Netflix, há uma
15 Fundada em 1997, a Netflix está presente em mais de 190 países, disponível em 27 línguas e com 230
milhões de assinantes. Disponível em: https://exame.com/invest/mercados/netflix-supera-expectativas-com-mais-de-230-milhoes-de-assinantes-no-mundo/. Acesso em: mar. 2023.
16 Disponível em: http://www.b9.com.br/84968/no-brasil-97-do-publico-consome-streamings-de-video-e-netflix-e-a-queridinha-da-galera/.
17 Disponível em: http://www.huffpostbrasil.com/2017/03/17/primeira-serie-brasileira-da-netflix-3-virou-um-baita-sucess_a_21901598/.
330
Comunicação e Televisão Hoje
estratégia de estímulo ao desenvolvimento de produções locais. Por
fim, o YouTube aponta para novas ritualidades por parte da audiência, na medida em que possibilita performances e interações entre diferentes públicos.
Tais reconfigurações esbarram, ainda, na força da telenovela, que se mantém como paradigma para outros formatos, tanto em
termos de parâmetros narrativos quanto de lógicas de produção. Em
2018, o setor de “Dramaturgia Semanal” da Globo, responsável pela
gestão das séries para o canal aberto, TV paga e plataformas digitais,
foi unificado à área de “Dramaturgia Diária”18, responsável pela supervisão de telenovelas, apostando no aprofundamento do diálogo entre
os dois formatos. A partir de 2022, esses setores aparecem unificados
sob uma única denominação “Gênero Teledramaturgia”.
Já a Lei do Cabo ampliou fortemente a atuação das produtoras
independentes no sentido da criação de séries e documentários, mudando como nunca o mercado de trabalho e as possibilidades de novos modelos de negócios. Há, ainda, experimentação de novos moldes
de produção, típicos de modelos norte-americanos, que trarão novas
peças e atores para essa dinâmica.
É inquestionável que as novas plataformas audiovisuais complexificaram ainda mais as lógicas de produção e as competências de
recepção (MARTÍN-BARBERO, 2001). É necessário, porém, maior
distanciamento para observarmos devidamente como essas dinâmicas
atuarão no plano dos formatos industriais e das matrizes culturais.
Em contínua expansão, estudos e pesquisas sobre ficção televisiva estão diante de questionamentos que envolvem encaixes e ajustamentos
de paradigmas. Por isso, aqui apresentamos uma proposta em elaboração da TransTV como uma única e diversificada visada
interdisciplinar dos campos da produção, distribuição narrativa e recepção, uma vez que a questão sobre o que se considera
televisivo – na própria televisão e em outros ambientes – tende a ser
uma das mais problematizadas no campo da comunicação, especialmente no da ficção televisiva.
18 Disponível em: http://www.meioemensagem.com.br/home/ultimas-noticias/2018/03/02/globo-unifica-areas-de-dramaturgia-sob-comando-de-silvio-de-abreu.html.
331
SEÇÃO 7
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334
Plataformas alternativas de
streaming audiovisual: produção
independente em um ecossistema
midiático em transformação1
Ian Abé Santiago Maffioletti
Marcel Vieira Barreto Silva
1. Introdução
Pensar a televisão hoje passa, em larga medida, pela discussão sobre plataformização. Não apenas enquanto um fenômeno
transversal ao capitalismo contemporâneo (SRNICEK, 2017), o processo de plataformização da televisão tem se agudizado nos últimos
anos, especialmente em decorrência de transformações econômicas
(expansão dos grandes conglomerados midiáticos para o ambiente
digital), tecnológicas (apificação dos serviços), culturais (ampliação
da circulação e do consumo dos conteúdos originais, bem como a sua
inserção nas dinâmicas de consagração da mídia tradicional), políticas (disputas nacionais e transnacionais em torno da regulação dos
serviços) e mesmo epidemiológicas (aumento do consumo devido ao
1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no GT Estudos de Televisão, do XXXI Encontro da
COMPÓS, em 2022.
335
SEÇÃO 7
isolamento social da pandemia de covid-19). Esse processo se concentrou, em larga medida, na consolidação de serviços de streaming
audiovisual que chamaremos aqui de hegemônicos, tais como Netflix, Amazon Prime Video, HBOMax, Disney+ e, no caso brasileiro,
o Globoplay.
Por hegemônicas, entendemos aqui as plataformas que, ofertadas em regime de SVoD (Subscription Video on Demand), 1. operam
através de um grande poderio econômico nas mais diferentes esferas
da sua produção material (tecnologia, publicidade, licenciamento e
criação original de conteúdos, monitoramento de audiências, etc.); 2.
possuem grande capilaridade em diferentes públicos e territórios; e
3. oferecem um amplo acervo em termos de gêneros e formatos audiovisuais (filmes, séries, reality shows, eventos esportivos, etc.). Não
foram poucos os estudos recentes que se debruçaram sobre um ou
mais aspectos dessas plataformas hegemônicas, aprofundando as singularidades de uma cultura audiovisual que, ao passo que se transforma radicalmente, impõe também dificuldades para o estudo de suas
múltiplas e transientes dinâmicas (STRANGELOVE, 2015; LADEIRA,
2016, MASSAROLO; MESQUITA, 2016 e 2017, LOTZ, 2017, EVENS;
DONDERS, 2018, JENNER, 2018, LOBATO, 2019, JOHNSON, 2020,
MEIGRE; ROCHA, 2020).
Na esteira do que propõe Poell (2020), acreditamos que essas
dificuldades se concentram em três grandes desafios: primeiro a concentração das plataformas hegemônicas, nas mais diferentes áreas de
atuação dos serviços. No caso do streaming audiovisual, a inter-relação
entre canais, estúdios e mesmo plataformas de e-commerce (como a
Amazon), demanda a investigação minuciosa das novas dinâmicas de
produção, circulação e consumo, exigindo o uso integrado de metodologias que observem as lógicas infraestruturais de funcionamento dos
serviços, as formas de financiamento e de investimento em aquisição e
produção de conteúdo, e os modos de consumo, métricas de audiência
por análise de algoritmos e repercussão em redes sociais. Para tanto,
não basta apenas descrever isoladamente o funcionamento dos serviços
ofertados, mas, sobretudo, “compreender como a produção cultural é
moldada dentro do ecossistema corporativo das plataformas e quais
336
Comunicação e Televisão Hoje
são as implicações econômicas, políticas e criativas para os produtores culturais” (POELL, 2020, p. 653)2.
O segundo desafio é o da regulação. Embora a argumentação
de Poell se concentre nos problemas regulatórios causados sobretudo
para as plataformas que se baseiam em user-generated content (conteúdo gerado pelo usuário), como as tensões entre os termos e regulamentos internos às plataformas e as legislações nacionais, podemos
ampliar esse desafio para as plataformas de streaming audiovisual,
uma vez que elas operam em contextos legais bastante variados e lidam, portanto, com estratégias próprias para manter e ampliar a sua
hegemonia nos mais diferentes mercados. No caso brasileiro, como
argumenta Azevedo (2020, p. 134-135), o principal problema reside
na disparidade regulatória entre os chamados Serviços de Acesso
Condicionado (SeAC), como a TV Paga, e os serviços Over-the-Top
(OTT) de streaming, classificados como Serviços de Valor Adicionado. “Enquanto estes são ofertados sem qualquer ônus regulatórios,
aqueles – os SeAC – estão sujeitos às obrigações previstas na Lei n.o
12.451/2011 e em outras normas supralegais, de modo que se faz presente, na atualidade, um cenário de assimetria regulatória”.
O terceiro desafio apontado por Poell está na dificuldade
de surgimento de plataformas alternativas, sejam elas oriundas de
serviços de mídia pública (nacionais, regionais ou locais) ou plataformas não comerciais de interesse público. Mais uma vez, embora
Poell esteja discorrendo sobre plataformas de um modo geral, capazes de operar nos mais diferentes níveis da infraestrutura digital
contemporânea, quando relacionamos com as plataformas de streaming, o desafio se mostra também bastante presente. Pelas condições tecnológicas, culturais e econômicas das plataformas hegemônicas, a possibilidade de criação de serviços alternativos parece, em
larga medida, destinada aos temas e públicos de nicho e a tentativas
de construção de modelos de negócio inovadores no cenário da distribuição de conteúdo audiovisual. Além disso, Poell (2020, p. 654)
2 Original em inglês. Tradução nossa.
337
SEÇÃO 7
argumenta que, uma vez que as plataformas hegemônicas, muitas
vezes, possuem domínio infraestrutural sobre diferentes eixos da
economia digital, “a provisão de alternativas para as plataformas
comerciais representa mais que apenas desenvolver conteúdos originais, mas também envolve intervenções na infraestrutura on-line
através da qual os conteúdos são distribuídos e recomendados”.
São, de fato, desafios que instigam a reflexão crítica sobre o cenário atual. Para contribuir, portanto, com esse conjunto de reflexões,
propomos aqui analisar plataformas alternativas de streaming audiovisual no Brasil, tendo como corpus alguns serviços voltados para o
mercado independente. Algumas dessas plataformas surgiram durante o período de isolamento da pandemia de covid-19 e as que já existiam anteriormente tiveram que se adequar às condições particulares
desse período singular. Levando em conta, portanto, a urgência e a
atualidade do tema, nossas reflexões transitarão entre a descrição sistematizada dos serviços, a partir da metodologia proposta por Spilker
e Colbjørnsen (2020), a ponderação teórica como forma de acessar o
fenômeno e a experiência empírica dos autores como consumidores
dos serviços analisados.
De antemão, nosso objetivo não é construir um mapeamento
extenso e totalizante das plataformas alternativas hoje em operação
no mercado brasileiro, levando em conta sobretudo a dimensão e a
amplitude de tal abordagem. Nosso esforço foi o de observar plataformas que possuem como força a distribuição de produção nacional
independente, das mais diferentes matizes. A partir do modelo analítico proposto, outras plataformas podem ser analisadas, futuramente,
já que o surgimento de novos serviços parece ser uma constante no
mercado atual.
2. As cinco dimensões do streaming: um ponto de partida
No esforço de compreender as diferentes plataformas de streaming, Spilker e Colbjørnsen (2020) vão além de uma definição meramente técnica ou infraestrutural, investigando diferentes aspectos do
funcionamento desses serviços. Os autores identificam cinco dimensões
338
Comunicação e Televisão Hoje
que, segundo argumentam, são fundamentais em relação à evolução
do streaming: 1. streaming profissional versus streaming gerado pelo
usuário; 2. streaming legal versus pirataria; 3. on-demand versus streaming ao vivo; 4. streaming em plataformas focadas versus streaming
multifuncionais; 5. Público de nicho versus público geral.
Na dimensão que trata do streaming profissional versus o gerado pelo usuário, os autores tratam de modelo de negócio. Para eles, há
uma distinção marcante entre as plataformas que baseiam seu negócio
na distribuição de conteúdo produzido profissionalmente e aquelas
que dão aos seus usuários os caminhos para a produção de seus próprios conteúdos. No primeiro caso, estariam classificadas como streamings de conteúdo profissional a HBO Max e a Netflix, enquanto no
segundo caso estão o Youtube, Twitch e Soundcloud, por exemplo.
Já na segunda dimensão, os autores pontuam que tanto a legalidade quanto a pirataria têm sido um alvo em movimento no ecossistema midiático. Segundo Spilker e Colbjørnsen (2020), há dois tipos
de pirataria, a conformista e a subversiva. A primeira age como um
desvio estável que é taxado e combatido pelas autoridades. Já o subversivo “desafia com sucesso o status quo da sociedade e transforma
as regras e valores da sociedade” (p. 1.217). Através da pirataria subversiva novas formas de negócio podem surgir, a exemplo dos streamings piratas de futebol que foram absorvidos por streamings legais,
como a HBO Max.
A terceira dimensão mapeada pelos autores é composta pela
oposição entre os conteúdos ao vivo e os conteúdos disponibilizados
on-demand para os usuários. Se, por um lado, tem-se os serviços que
disponibilizam obras em catálogos que podem ser acessados a qualquer momento e ser consumidos em maratonas, de outro, estão os
serviços cuja base é fornecida ao vivo. A articulação entre essas duas
características também é uma possibilidade hoje, como ocorre, especialmente, com as ofertas de conteúdo ao vivo de eventos esportivos
e jornalísticos.
Na quarta dimensão, estão as implicações entre as plataformas tecnicamente especializadas e as multifacetadas, oferecendo diversos serviços aos usuários. É nessa dimensão que estão implicadas
339
SEÇÃO 7
as questões de plataformas que são atravessadas por modelos e práticas distintas – como as plataformas de mídias sociais que incorporaram serviços de streaming ao vivo, como o Instagram e o Facebook, ou ainda os serviços de comércio on-line que passaram também
a oferecer serviços de streaming, que tem na Amazon seu caso mais
emblemático.
Por fim, a quinta dimensão proposta por Spilker e Colbjørnsen (2020) aponta para a tensão entre as plataformas que buscam
atender necessidades específicas e as que produzem conteúdos para
um público geral. Nesse ponto, é importante destacar a busca por
novos mercados, assim como por novas funcionalidades, que fazem
com que as plataformas se expandam. Nesse contexto, apontam os
autores, as principais distinções em relação ao alcance das audiências podem ser dadas em termos de linguagem ou geografia. Diante disso, lembram os autores, a composição dos mercados varia de
acordo com o tipo de conteúdo ofertado e a abrangência de sua penetração na audiência.
Essas cinco dimensões, propõem os autores, podem guiar a
avaliação do campo de streaming de forma completa e, assim, oferecer uma compreensão do fenômeno na multiplicidade da sua manifestação. Aqui, acreditamos que essa proposta metodológica pode
ser um interessante ponto de partida para refletir sobre a realidade
brasileira, especialmente quando observamos as plataformas alternativas. Ou seja, não tomaremos essa proposta como uma tábua rasa
de categorização descritiva, mas como um modelo metodológico que
pode e deve ser tensionado, problematizado e reavaliado, considerando sobretudo a realidade específica do Brasil hoje.
3. Delimitação da amostragem: plataformas
alternativas no contexto brasileiro
Para compreender o cenário da cultura audiovisual contemporânea, especialmente aquela distribuída por plataformas, precisamos
incluir as plataformas alternativas na análise histórica, apontando as
suas condições materiais de existência e as formas com que elas se
340
Comunicação e Televisão Hoje
contrapõem, no campo da cultura, aos entes hegemônicos. Isso é particularmente importante na avaliação sincrônica de um processo cultural atualmente em curso, envolto ainda em uma dinâmica bastante
veloz de transformações tecnológicas, econômicas, políticas e culturais, e que precisa ser delineado para além dos interesses hegemônicos que as próprias corporações possuem dentro da crítica cultural.
Com isso em mente, tentamos aqui definir as plataformas alternativas precisamente na oposição aos elementos que caracterizam
as plataformas hegemônicas, ou seja, iluminando em reflexo aquilo
que as singulariza. Portanto, plataformas alternativas são aquelas
que, operando em diferentes regimes de oferta de conteúdo (assinatura, aluguel, catch-up etc.), 1. possuem um poderio econômico limitado, muitas vezes definido pelo acervo de sua biblioteca, pela sua amplitude regional ou pelo valor do serviço; 2. atendem a um público de
nicho, determinado por aspectos estéticos, temáticos ou de formatos;
e 3. possuem uma cartela restrita de obras ofertadas, muitas vezes
limitadas à distribuição da produção independente.
Desde o surgimento da Netflix no Brasil em 2011, a quantidade
de plataformas tem crescido, sendo validadas pelo aumento do consumo desses streamings em relação a outras mídias já estabelecidas.
Sobre esse contexto de expansão, Lopes e Lemos (2020) descrevem:
Nos últimos cinco anos, o consumo de vídeo pela
internet cresceu seis vezes a mais do que pela TV.
Enquanto as bilheterias dos cinemas há oito anos
vêm caindo e o percentual de usuários da TV paga,
desde 2015, encolhe gradativamente, o público do
VoD aumentou 165%. A consolidação da tecnologia streaming em 2019 foi marcada pela expansão de plataformas como Globoplay, Prime Video,
HBOGo e pelo surgimento de novas plataformas
principalmente independentes ligadas ao setor
de telecomunicações, com destaque para a Apple
TV+, lançada no Brasil em novembro. (LOPES;
LEMOS, 2020, p. 100)
341
SEÇÃO 7
Refletindo sobre esses números, pode-se acrescentar um
dado mais atual: entre 2020 e 2021, o contexto de isolamento social
forçado pela pandemia da covid-193 potencializou ainda mais o crescimento do consumo das plataformas de OTT, tornando mais fértil o
panorama nacional para o nascimento de plataformas de grande, médio e pequeno portes. Porém, em uma breve pesquisa bibliográfica,
percebe-se que o foco das pesquisas acerca do ecossistema brasileiro
está na observação de conglomerados televisivos, assim como de plataformas hegemônicas e a disputa desses atores. Exemplo disso pode
ser visto no relatório anual da Obitel (Observatório Ibero-americano
da Ficção Televisiva), de 2020, em que Lopes e Lemos comparam o
consumo das principais fontes de distribuição de conteúdo ficcional
no Brasil: os canais de televisão e as plataformas hegemônicas. Sobre
a necessidade desse estudo, as autoras pontuam:
O que analisamos como tendência em anuários
passados, podemos afirmar que, no contexto audiovisual no Brasil em 2019, se consolida cada vez
mais como um mix de produção e de consumo nas
múltiplas plataformas, praticado no país principalmente pela Globo, através de uma estratégia
que combina, de maneira própria, a TV aberta,
a TV paga e o VoD, [...]. Parece ter assomado na
indústria audiovisual a consciência de ser este o
momento para investir na transição dos hábitos
de consumo de conteúdos brasileiros, de integrar
nesses hábitos novos formatos e novas serialidades, experimentando vários segmentos além da TV
aberta. (LOPES; LEMOS, 2020, p. 84)
3 Sobre o crescimento do streaming no contexto de isolamento social. Disponível em: <https://forbes.
com.br/principal/2020/08/streaming-ganha-ainda-mais-relevancia-com-o-isolamento-social/>.
Acesso em: 20 jul. 2021.
342
Comunicação e Televisão Hoje
Percebe-se que o impulso para tal pesquisa se dá pela necessidade de compreender essa atualização mercadológica, na qual as
principais redes televisivas do país precisaram se inserir. Nesse sentido, é importante salientar que dentro do relatório há, sim, um tópico
que contempla qual é a participação das produtoras independentes
dentro desse contexto. Porém, percebe-se que são destacadas apenas
as “grandes produtoras independentes” – O2 Filmes, Conspiração Filmes, entre outras. Outro exemplo de como o foco das análises tende
a não contemplar janelas para produtos audiovisuais independentes
está em Meimaridis, Mazur e Rios (2020). Neste trabalho, os autores abordam a inserção da Netflix em países influentes em contextos
continentais periféricos, que ajudam a plataforma a estabelecer um
diálogo direto com seus países vizinhos.
Dentre as nações escolhidas, está o Brasil, influente no mercado latino-americano. A pesquisa dos autores focou na compreensão
das estratégias que a plataforma utilizou para conquistar o público
local. Dentre seus tensionamentos, os autores abordam as disputas
mercadológicas travadas entre a Netflix, outras plataformas e as grandes empresas televisivas e de comunicação brasileiras. Diante disso,
Meimaridis, Mazur e Rios (2020) percebem que dessa disputa de
mercado resulta o surgimento de plataformas das concorrentes nacionais da Netflix, como o Play Plus, da Rede Record, Telecine Play e
Globoplay, do conglomerado Globo.
O resultado dessa pesquisa sobre o enraizamento da Netflix
no Brasil aponta para algumas estratégias de fidelização do público: descontos para aquisição do serviço, forte investimentos em tradutores e dubladores para tornar o catálogo acessível, inclusão de
produções locais de relevância no acervo e produções de narrativas
locais próprias, chamadas de “originais”, com apelo para temas e códigos narrativos consagrados e reconhecidos como cativantes para
essas plateias. Netflix entendeu, segundo os autores, que, para se estabelecer nestes grandes centros, como o Brasil, precisava, além de
disseminar conteúdo estadunidense, adaptar estes conteúdos às exigências próprias de cada país, assim como oferecer conteúdos locais,
343
SEÇÃO 7
focando nas especificidades de cada nicho para produzir obras que
conquistassem esses públicos.
Nota-se que, apesar de fazer uma análise rica para todo o mercado
audiovisual brasileiro sobre o valor do produto nacional para o seu público, a pesquisa de Meimaridis, Mazur e Rios (2020) não reflete sobre a
possibilidade da oferta de obras independentes (seja por licenciamento ou
por investimento), sobretudo aquelas de produtoras de pequeno e médio
portes, assim como não apresenta nenhum olhar sobre o surgimento das
plataformas alternativas nesse ecossistema de distribuição audiovisual.
Constata-se, através desses exemplos, que as pesquisas acadêmicas
recentes tendem a focar em compreender os movimentos e tensionamento
das plataformas hegemônicas, sejam elas internacionais ou vinculadas aos
canais de TV brasileiros. Percebe-se, também, que no crescimento desse
ecossistema de OTTs surgem alternativas marginais que não anseiam disputar o domínio desse mercado, mas apenas dar visibilidade aos produtos
audiovisuais que não recebem janela nas plataformas hegemônicas.
Para definir a amostragem da nossa pesquisa, pensamos portanto em plataformas alternativas que não possuem vínculo com canais televisivos e que focam na distribuição de obras independentes
nacionais. Com base nessa definição, mapeamos iniciativas brasileiras alinhadas a esses parâmetros e encontramos dez plataformas alternativas: Brasil Paralelo, Cardume, Darkflix, Embaúba Play, LGBTFlix, Libreflix, SPCine Play, Sulflix e Todesplay4.
Percebe-se, em uma pesquisa bibliográfica preliminar, que
essas iniciativas ainda não foram mapeadas em conjunto e, também,
por isso, não foram compreendidas em sua relação com o contexto nacional. É possível, no entanto, identificar análises isoladas de algumas
dessas plataformas, mas que focam em abordagens de cunho sociológico e político em relação ao conteúdo, como é o caso do Brasil Paralelo.
Em relação a outras plataformas, não foram encontrados trabalhos que tivessem uma análise mais aprofundada sobre conteúdo,
4 Achamos importante informar que a plataforma Afroflix não integra o escopo aqui apresentado porque, no momento de redação deste capítulo, o site da Afroflix encontrava-se fora do ar. Por não saber
se se tratar de um problema temporário ou do fim da iniciativa, optamos por não adicionar, mesmo
que suas características se encaixem em nosso corpus de pesquisa.
344
Comunicação e Televisão Hoje
formatos ou modelos de negócio. Por isso, demarca-se o esforço do
mapeamento que é feito na próxima seção como uma primeira abordagem a essas plataformas, entendendo-as em conjunto a partir das
condições específicas do mercado audiovisual brasileiro.
4. Mapeamento e reflexão preliminares
Nesta seção, apresenta-se o mapeamento das informações sobre as plataformas de streaming identificadas como alternativas no
Brasil. Este primeiro momento se tratou de uma pesquisa exploratória, com base nas informações fornecidas pelos sites oficiais de cada
uma das seguintes plataformas: Brasil Paralelo, Cardume, Darkflix,
Embaúba Play, LGBTFlix, Libreflix, SPCine Play, Sulflix e Todesplay.
Após a coleta das informações, seguiu-se para uma consulta
de Pessoa Jurídica5, para indicar a localização geográfica de cada uma
das plataformas. Essa consulta foi realizada pelo número de CNPJ disponibilizado também nos sites oficiais e, quando não havia o CNPJ,
buscou-se pelo nome do responsável por cada um dos projetos. Essas
informações foram acessadas no site do Governo Federal, em sua plataforma de consulta pública.
Diante das informações coletadas, estruturou-se a tabela 1,
com as cinco dimensões propostas por Spilker e Colbjørnsen (2020),
a fim de organizar o mapeamento e classificar preliminarmente cada
um dos streamings. Ao longo dessa organização, informações que não
se encaixavam em nenhuma das dimensões foram sendo percebidas e
catalogadas, para posterior indicação. Com isso, propusemos a Tabela
2, que busca exatamente complementar a análise com especificidades
consideradas relevantes na observação das plataformas, agrupando
informações que auxiliam na compreensão do contexto brasileiro.
Antes de apresentar essas tabelas, no entanto, faz-se um trajeto pelas descrições de cada uma das plataformas analisadas, pontuando-se o tipo de conteúdo disponibilizado, o enfoque geográfico
5 Consulta pública de Cadastro de Pessoa Jurídica. Disponível em: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/redesim/consultas-pessoa-juridica. Acesso em: 1 ago. 2021.
345
SEÇÃO 7
e os principais objetivos destacados pelas plataformas em relação ao
serviço que oferecem. Para a apresentação dessas informações, segue-se a ordem alfabética.
O Brasil Paralelo (brasilparalelo.com.br) é a plataforma da
Brasil Paralelo Entretenimento e Educação S/A, que se define como
uma “empresa de entretenimento e educação” orientada “pela busca da verdade histórica”, com o propósito de “resgatar bons valores,
ideias e sentimentos no coração de todos os brasileiros” (BRASIL PARALELO, 2023, on-line). A empresa foi criada em 2016 e, de acordo com informações do site, todos os projetos do Brasil Paralelo são
feitos sem recursos públicos. Nessa conjuntura, a plataforma oferece
produções próprias e conteúdos audiovisuais selecionados por uma
curadoria exclusiva.
Além disso, o projeto faz parte de uma plataforma maior, que
oferece, além de conteúdo audiovisual, cursos e textos para consumo
dos assinantes. Em relação ao seu serviço de assinatura, ele é dividido em quatro modalidades, com valores e produtos distintos: “Acesso
total” no valor de R$59, “Intermediário” com custo de R$39 e o “Básico” por R$19. Algumas modalidades ainda são divididas em subcategorias, todas com preços específicos. A plataforma também conta
com conteúdo para acesso gratuito no YouTube. Ainda segundo o site
da empresa, o Brasil Paralelo procura revisar sobre suas perspectivas
áreas, como política, história, filosofia, economia, educação, artes e
atualidades, com uma perspectiva conservadora.
A Cardume (cardume.tv.br) se classifica como um portal de
filmes brasileiros de curta e média-metragem. Seu objetivo, tal como
consta em seu site, é difundir, fomentar e internacionalizar o audiovisual independente brasileiro. O portal oferece um catálogo com filmes nacionais premiados, por uma assinatura de R$6,20 por mês. De
acordo com a iniciativa, a arrecadação da mensalidade contribui para
promover ações de fomento, formação e impulsionamento do audiovisual brasileiro.
Dentre as ações listadas em seu site estão o Prêmio Curta em
Casa, que consiste em uma mostra com premiação para curtas produzidos durante a quarentena devido à pandemia causada pela covid-19; o
346
Comunicação e Televisão Hoje
lançamento de edital de desenvolvimento de roteiro para curtas, com
prêmio em dinheiro; debates sobre cinema entre diretores e equipes
de diferentes lugares do país; cursos e oficinas gratuitos com o intuito
de ajudar produtores na distribuição de seus filmes.
Outra informação importante destacada no site da Cardume é
a de que há a pretensão de legendar os filmes da plataforma, para fortalecer a identidade do país no exterior. O principal objetivo do portal
é ser reconhecido como “a maior plataforma de streaming especializada em curtas-metragens do Brasil para continuar fomentando novas produções brasileiras” (CARDUME, on-line).
A Darkflix (darkflix.com.br) é um canal de serviço de assinatura sob demanda focado em conteúdo de gênero. A plataforma
disponibiliza clássicos do cinema de horror, fantasia e ficção científica, assim como produções atuais nacionais e internacionais. Além de
filmes, ainda entram em seu catálogo séries dos gêneros citados que
foram produzidas para a TV. Como mencionado no início desta seção,
nesta primeira fase da pesquisa, buscou-se explorar as informações
que são disponibilizadas em cada um dos sites das respectivas plataformas. Nesse sentido, cabe destacar que o site da Darkflix é o único
que não oferece maiores informações sobre o serviço, como especificações de seu catálogo, como funciona a plataforma, modalidades de
aquisição, entre outras dúvidas.
A Embaúba Play (embaubaplay.com) disponibiliza apenas
filmes nacionais em sua plataforma. De acordo com as informações de
seu site, a plataforma tem como foco a curadoria de filmes que “investem em novas narrativas, que se destacam pela ousadia, pela experimentação, pela forma como lidam com a linguagem cinematográfica”
(EMBAÚBA, on-line). A Embaúba Play se autodenomina uma locadora de filmes pela internet, mas enfatiza que seu primeiro objetivo não
é comercial, destacando que tem como interesse principal o estímulo
na valorização do conteúdo nacional, ampliando os espaços de exibição de obras que, anteriormente, ficavam restritas apenas ao circuito
de mostras e festivais. A plataforma não cobra mensalidade. Ao se cadastrar, o consumidor passa a ter acesso para alugar os longas-metragens disponíveis no acervo pelo valor de 1,50 dólar. Após alugar, o
347
SEÇÃO 7
usuário tem até 72 horas para assistir ao filme. Além dos filmes que
são disponibilizados para aluguel, a plataforma também oferece conteúdos gratuitos, obras liberadas para exibição pelos detentores dos
seus direitos de exibição.
A LGBTFlix (votelgbt.org/flix) é uma plataforma gratuita
preocupada em distribuir conteúdo dirigido por cineastas LGBT+
ou que abordem a comunidade LGBT+ como tema. A plataforma é
uma iniciativa da #VoteLGBT que surge a partir de uma preocupação do coletivo para as consequências do isolamento social resultante da pandemia da covid-19 na vida de pessoas LGBT+. “Nesses
dias de quarentena, a sensação de isolamento que sofrem muitas
pessoas LGBT+ piora – ainda mais para aquelas que vivem em lares
opressores. Pensando nisso, nós organizamos uma galeria de filmes brasileiros de temática LGBT+ que dá pra assistir no celular.”
(LGBTFlix, on-line)
A plataforma conta com longas e curtas-metragens, porém há
uma quantidade maior de curtas em seu catálogo. A LGBTFlix é construída de forma colaborativa, na qual as obras podem ser inseridas
através do preenchimento de uma ficha de inscrição. Além disso, a
LGBTFlix é gratuita e não exige inscrição para o consumo. Vale, ainda, destacar que a plataforma não conta com aplicativos, sendo acessada apenas pelo site do coletivo #VoteLGBT.
A Libreflix (libreflix.org) também é uma plataforma construída de forma colaborativa. Segundo o site, o empreendimento defende “[...] novas formas de compartilhamento da cultura. Formas que
atinjam todas as pessoas, principalmente as que não podem pagar por
ela” (LIBREFLIX, on-line). Não apenas o acervo é aberto a colaboradores, mas o software também está disponível para desenvolvedores
interessados em contribuir como voluntários. É aberta ainda para a
indicação de obras para compor o acervo, a moderação de conteúdo, a
edição das informações das obras e o próprio financiamento do serviço. Esse último serve para pagar os custos da plataforma e são adquiridos através de campanhas de financiamento coletivo.
A Libreflix oferece documentários e ficções, curta-metragens,
longa-metragens e séries, nacionais e internacionais, que tenham livre
348
Comunicação e Televisão Hoje
exibição ou que foram autorizados para serem exibidos na plataforma. Pode-se dizer que a maioria do conteúdo é alinhada com pautas
de esquerda, já que há destaque na plataforma para categorias como
“ativismo”, “feminismo”, “veganismo” e “ocupação”. Atualmente, a
Libreflix conta apenas com aplicativo para consumo em aparelhos
com sistema Android ou pode ser acessado diretamente no computador de modo gratuito.
A Sulflix (sulflix.com.br) é uma plataforma de conteúdos produzidos exclusivamente no estado do Rio Grande do Sul. Um de seus
slogans é: “Um pouquinho do RS em qualquer lugar, a qualquer hora”
(SULFLIX, on-line). A plataforma oferece filmes novos e antigos,
dando, dessa forma, espaço para novos realizadores e executando um
trabalho de preservação da memória audiovisual local. A Sulflix não
conta apenas com filmes e séries, mas também disponibiliza shows,
clipes, programas de culinária, entrevistas e cursos. A Sulflix, segundo
a crítica Maria do Rosário Caetano, “nasce como a primeira plataforma digital destinada a divulgar a produção audiovisual e artística de
uma unidade da federação brasileira” (CAETANO, 2022, on-line). A
plataforma conta com incentivo público vindo da Pró Cultura RS, lei
de incentivo à cultura vinculada ao Governo do Estado do Rio Grande
do Sul. Por enquanto, a plataforma conta apenas com o plano de assinatura mensal, no valor de R$ 10,00. A Sulflix disponibiliza acesso
pelo computador ou por aplicativos para sistema Apple e Android.
A SPCine Play (spcineplay.com.br) se coloca como a única
plataforma pública de streaming do Brasil. Em sua curadoria, exibe
filmes oriundos de mostras e festivais de cinema de São Paulo. O conteúdo fica acessível, ao mesmo tempo, para eventos a serem vistos na
própria plataforma. Além dessa curadoria específica, a SPCine exibe
conteúdos da programação cultural da cidade de São Paulo, tais como
shows e outros espetáculos artísticos. O conteúdo da plataforma ainda engloba clássicos do cinema brasileiro e está disponível para todo
o país. De acordo com as informações disponibilizadas em seu site, a
SPCine atua como uma empresa de cinema e audiovisual de São Paulo, sendo uma iniciativa da prefeitura da cidade, através da Secretaria Municipal de Cultura. Como empresa, a SPCine tem seu escritório
349
SEÇÃO 7
voltado para o desenvolvimento, financiamento e implementação de
programas e políticas para setores de cinema, TV, games e outras mídias. A SPCine Play pode ser acessada tanto por computador quanto
por aplicativos disponíveis para Android e Apple. O consumo do conteúdo é gratuito, sendo exigido apenas o cadastro para acesso.
A Todesplay (todesplay.com.br) é uma plataforma de filmes,
séries e programas de audiovisual via streaming, gerenciada pela
A.P.A.N. – Associação de Profissionais do Audiovisual Negro. A plataforma destaca como principal objetivo contribuir para a equidade
de gênero e raça, assim como construir uma produção audiovisual
mais diversa. Em seu catálogo estão curtas, longas e séries de gêneros distintos, produzidos por realizadores negros do Brasil e do exterior. Para assistir ao conteúdo da plataforma, o usuário pode utilizar
qualquer dispositivo com acesso a internet, mas não está claro no site
se é possível acessar o catálogo de fora do país. Seu catálogo é gratuito e, segundo consta, é periodicamente alimentado, mas também
há um catálogo especial para os usuários que efetuam pagamento. O
site destaca, ainda, que não é possível fazer download das obras e que
há um sistema especial para evitar esse tipo de prática. Além disso,
a Todesplay oferece sua plataforma para mostras, festivais e eventos
audiovisuais, sendo possível enviar a solicitação de cadastro para este,
fins, utilizando o mesmo site do streaming.
Após a descrição inicial das plataformas alternativas coletadas
na amostragem, apresentamos abaixo um quadro indicativo de como
essas plataformas podem ser categorizadas de acordo com o modelo
analítico proposto por Spilker e Colbjørnsen (2020) - Tabela 1. Mais
adiante, levantamos características específicas que parecem nos escapar ao modelo metodológico proposto, de modo a ampliar a compreensão global do fenômeno – tabela 2. A partir disso, vamos fazer
algumas ponderações sobre a validade das categorias, a necessidade
de redimensionar a compreensão dos modelos de negócio e, por fim,
o desafio de fazer uma análise sincrônica da inserção dessas plataformas no ecossistema audiovisual contemporâneo.
350
Comunicação e Televisão Hoje
Tabela 1 – Dimensões do streaming de plataformas alternativas brasileiras.
Dimensão/
Plataforma
streaming
profissional
versus
streaming
gerado pelo
usuário
streaming
legal
versus
pirataria
on-demand
versus
streaming
ao vivo
streaming em
plataformas
focadas versus
streaming
multifuncionais
público de
nicho versus
streaming
de público
geral
Brasil
Paralelo (RS)
Profissional
Legal
On-demand
Streaming
multifuncional
Público de
nicho
Cardume
(MG)
Profissional
Legal
On-demand
Streaming
multifuncional
Público de
nicho
Darkflix (SP)
Profissional
Legal
On-demand
Plataforma focada
Público de
nicho
Embaúba
Play (MG)
Profissional
Legal
On-demand
Plataforma focada
Público de
nicho
LGBTFlix
(SP)
Gerado pelo
usuário
Profissional
Legal
On-demand
Streaming
multifuncional
Público de
nicho
Libreflix (PR)
Gerado pelo
usuário
Profissional
Legal
On-demand
Plataforma focada
Público de
nicho
SPCine Play
(SP)
Profissional
Legal
On-demand
Streaming
multifuncional
Público de
nicho
Sulflix (RS)
Profissional
Legal
On-demand
Plataforma focada
Público de
nicho
Todesplay
(SP)
Profissional
Legal
On-demand
Streaming
multifuncional
Público de
nicho
Fonte: Próprios autores
351
SEÇÃO 7
Tabela 2 – Características específicas das plataformas.
Plataforma
Especificidades
Brasil Paralelo
(RS)
Conteúdo nacional e estrangeiro; filmes, séries e outros produtos audiovisuais;
integração de conteúdo com outras plataformas (YouTube, Spotify, etc.)
Cardume (MG)
Promove ações de fomento; tem edital próprio; disponibiliza apenas conteúdo
brasileiro; filmes (curtas e média-metragens); oferece cadastro de obras
Darkflix (SP)
Conteúdo nacional e estrangeiro; filmes e séries de gênero
Embaúba Play
(MG)
Conteúdo nacional; apenas filmes; aluguel disponível por 72h; oferece cadastro de obras
LGBTFlix
Plataforma colaborativa; conteúdo nacional LGBT+; apenas filmes; oferece cadastro de
obras; acesso gratuito
Libreflix
Plataforma colaborativa; conteúdo nacional e estrangeiro; oferece cadastro de obras;
acesso gratuito
SPCine Play
(SP)
Plataforma pública, iniciativa da Prefeitura de São Paulo; conteúdo nacional e
estrangeiro (latino-americano) – filmes e espetáculos culturais diversos
Sulflix (RS)
Conteúdo nacional (gaúcho); filmes, séries, outros produtos audiovisuais e espetáculos
culturais diversos
Todesplay (SP)
Conteúdo nacional e estrangeiro; filmes, séries e outros produtos audiovisuais;
disponibiliza plataformas para festivais e mostras
Fonte: Próprios autores
A primeira questão que merece ser levantada a partir desses
quadros descritivos é a localização geográfica das plataformas e sua
lógica de atuação. De acordo com o levantamento realizado a partir
do CNPJ das empresas, pode-se visualizar que todos os serviços são
do sudeste e do sul do país. Por ordem de representação, têm-se São
Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul como
os únicos estados que aparecem no mapeamento. Nesse sentido, ainda cabe destacar que quatro plataformas alternativas focam apenas no
conteúdo nacional: Cardume, Embaúba Play, LGBTFlix e Sulflix. No
que diz respeito à primeira dimensão proposta por Spilker e Colbjørnsen (2020), sobre conteúdo profissional versus conteúdo gerado pelos
usuários, considerou-se que todas as plataformas oferecem conteúdo
352
Comunicação e Televisão Hoje
profissional. Mas há uma ressalva neste aspecto: a Cardume, a Embaúba, a LGBTFlix e a Libreflix oferecem cadastro de obras de maneira aberta em seu site. Isso significa que os realizadores e realizadoras
podem efetuar o cadastro de seus filmes e ter o seu título incluído no
catálogo desses serviços.
Por isso, apesar de ter sido considerado que todas as plataformas se enquadram como profissional, e não com “gerado pelo usuário”,
acredita-se que, para o caso das plataformas alternativas, é necessário
ainda propor uma subcategoria dentro dessa dimensão, para abarcar a
possibilidade de conteúdos profissionais que são indicados e/ou submetidos pelos próprios idealizadores, e não licenciados diretamente
pelas plataformas junto a distribuidoras de cinema e audiovisual.
Entende-se ainda, pela explicação de Spilker e Colbjørnsen
(2020), que as plataformas profissionais produzem seus próprios
conteúdos, conhecidos no contexto nacional como “produções originais”. Cabe, então, propor uma terceira subcategoria, que diz respeito
à aquisição de conteúdo audiovisual através de licenciamento. Este
modelo de aquisição opera a partir da compra dos direitos de exibição
de obras de terceiros. Essa compra é válida por um período estabelecido de tempo. Toda negociação pode ser feita diretamente com os
produtores ou através da mediação das distribuidoras. Neste caso, todas as plataformas aqui analisadas se enquadram nesta subcategoria.
Já em relação às segunda e terceira dimensões, que tratam da
legalidade versus pirataria e do conteúdo on-demand versus ao vivo,
todas as plataformas foram consideradas como distribuidoras de conteúdo legal e sob demanda. A Todesplay, por exemplo, deixa claro em
seu site que o download das obras veiculadas na plataforma é proibido
e que há como ser detectado pelo sistema, caso alguém infrinja a regra.
No que diz respeito à dimensão sobre streaming em plataformas
focadas versus multifuncionais, levou-se em consideração quais ofereciam
outros serviços para além do catálogo de obras. Nesse caso, a Cardume foi
considerada como multifuncional pelas oficinas que propõe com regularidade, com o objetivo de incentivar a profissionalização da área, além do
fomento gerado pelo seu primeiro edital (2021). Além dela, a SPCine Play
também foi considerada multifuncional por se colocar não apenas como
353
SEÇÃO 7
plataforma de streaming, mas como uma empresa de atuação abrangente, que desenvolve, financia e implementa programas e políticas
para o setor de cinema. A SPCine Play também oferece exibição para
festivais e mostras. Em relação à Todesplay, também foi considerado
que se trata de uma plataforma multifuncional por apresentar outros
tipos de serviços dentro do mesmo site, como a possibilidade de mediar a exibição de festivais e mostras. O mesmo se refere ao Brasil
Paralelo, que se define como uma empresa multimídia, oferecendo
além dos filmes e séries, cursos, livros, podcasts, etc. Nesse sentido,
é interessante pensar que a plataforma e a produtora se confundem
nesse modelo de negócio, colocando questões sobre a própria definição de obra independente nesse cenário pouco regulado da produção
audiovisual via streaming.
Por fim, na dimensão que observa o público de nicho versus
público geral, estabeleceu-se que todos os serviços analisados são de
nicho, o que se relaciona diretamente com o conceito de alternativo
que foi proposto neste artigo. Todas as plataformas, nesse caso, são
voltadas para públicos específicos, e podem ter essa especificidade relacionada a temáticas de obras, como a Darkflix, a recortes socioculturais, como a LGBTFlix, a Todesplay e a Brasil Paralelo, até um foco
regional como a Sulflix.
Por fim, percebeu-se ainda que algumas questões interessantes
ficaram de fora da análise e não foram enquadradas em nenhuma das
dimensões propostas. Por isso, tendo em vista a necessidade de aprofundar este trabalho no futuro e a incorporação de novas categorias,
elaborou-se um quadro com especificidades de cada uma das plataformas, trazendo para o centro da caracterização elementos que, julgamos, auxiliam na compreensão sistêmica do fenômeno. A pretensão,
com esse quadro, é que ele sirva de base para a complexificação deste
mapeamento já realizado e ao desdobramento de pesquisas futuras.
5. Considerações
Este capítulo buscou compreender a dinâmica das plataformas
alternativas de streaming audiovisual no Brasil, a partir da tipologia
proposta por Spilker e Colbjørnsen (2020). Como recorte metodológico,
354
Comunicação e Televisão Hoje
focamos em plataformas alternativas sem vínculo com cadeias televisivas e que disponibilizam, em seus catálogos, filmes de arte, filmes de
nicho e/ou que estão preocupadas em exibir a produção nacional independente que não encontra espaço nas plataformas hegemônicas.
Essa definição foi fundamental para destacar nove iniciativas nacionais: Brasil Paralelo, Cardume, Darkflix, Embaúba Play,
LGBTFlix, Libreflix, SPCine Play, Sulflix e Todesplay. Ao analisar as
descrições dos serviços e seu funcionamento operacional, elaboramos um quadro indicativo das cinco dimensões propostas na metodologia, encontrando um painel ainda limitado de informações para
compreender devidamente o fenômeno. Como resultado, tem-se o
destaque inicial de que todas as iniciativas estão sediadas nas regiões
sul e sudeste, sendo de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro ou Rio Grande do Sul. Além disso, todos os serviços se valem
de conteúdos profissionais, legalizados e sob demanda. Em relação
ao enfoque das plataformas, quatro foram consideradas multifocadas,
por oferecerem serviços que vão além de catálogo de filmes e obras
audiovisuais. Mas, como já adiantamos, as categorias propostas ainda
precisam ser ampliadas diante das características transientes de um
mercado que muda rapidamente, tanto em termos econômicos, tecnológicos e culturais, quanto diante das mudanças regulatórias que
cercam correntemente a economia criativa digital.
Por isso, propomos ao final algumas características específicas
de cada plataforma que devem ser levadas em conta para que possamos, comparativamente, observar os modelos de negócio de cada
serviço e suas estratégias de sobrevivência diante da hegemonia das
plataformas globais. Esse ponto é relevante porque o mercado de plataformas alternativas no Brasil tem crescido cada vez mais nos últimos
anos e carece de estudos que acompanhem seus desdobramentos e que
foquem na cena alternativa com o olhar atento também oferecido às
iniciativas hegemônicas. Isso significa que, como desdobramento da
presente pesquisa, vislumbramos elaborar um quadro analítico mais
completo, que leve em conta as especificidades econômicas, políticas,
culturais e tecnológicas do mercado brasileiro, a fim de compreender
mais a fundo o lugar que o consumo audiovisual mediado por plataformas de streaming ocupa na nossa experiência contemporânea.
355
SEÇÃO 7
Referências
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357
Minicurrículo dos autores(as)
Antonio Mauro Saraiva: é professor titular na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, graduado em
Engenharia de Eletricidade/Eletrônica, pela POLI-USP (1980), e em Engenharia Agronômica, pela ESALQ-USP.
É mestre, doutor e livre-docente em Engenharia Elétrica, pela POLI-USP. É coordenador do Saúde Planetária
Brasil e membro do Steering Committee da Planetary Health Alliance. Foi Pró-Reitor adjunto de Pesquisa da
USP (2014-2015).
Cicilia Maria Krohling Peruzzo: Doutora em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (ECA-USP). Bolsista Produtividade, nível 1B, do CNPq. Professora visitante do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Espírito
Santo. Autora dos livros Relações públicas no modo de produção capitalista e Comunicação nos movimentos
populares – a participação na construção na cidadania, Televisão comunitária” e “Pedagogia da Comunicação
popular e comunitária nos movimentos sociais. Organizadora de algumas coletâneas. Possui artigos publicados
em diversas revistas científicas nacionais e internacionais. Já coordenou Grupos de Trabalho sobre temas de
Comunicação e Cidadania vinculados a associações científicas, tais como ALAIC, Compós, Assibercom e Abrapcorp. Presidenta da Assibercom – Associação Ibero-Americana de Investigadores da Comunicação (2019-2023).
Coordena o Núcleo de Estudos sobre Comunicação Comunitária e Local (Comuni). E-mail: kperuzzo@uol.com.br
Cláudia Lago: Graduada em Jornalismo, pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero (1989), mestre
em Antropologia Social, pela Universidade Federal de Santa Catarina (1995) e doutora em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (2003). É professora da Escola de Comunicações e Artes, no departamento CCA, curso Licenciatura em Educomunicação, da Universidade de São Paulo, professora do Programa
de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo e foi presidente da Comissão de
Direitos Humanos da ECA-USP (2017-2020). É membra da Coordenação do Fórum das Ciências Humanas, Sociais, Sociais Aplicadas, Letras, Linguística e Artes (FCHSSALLA). Desenvolve pesquisa na área de Comunicação
tendo como foco a construção da Alteridade, especialmente relacionada aos estudos de gênero em narrativas
não ficcionais, e pesquisa e extensão em Educomunicação, relacionadas também ao estudo da Alteridade. Coordena o Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações
e Artes (AlterGen) e o projeto de Extensão Diversidade na ECA. Participa do Observatório de Comunicação,
Liberdade de Expressão e Censura (Obcom), da ECA-USP.
Clotilde Perez: Professora titular de Publicidade e Semiótica da ECA-USP (2017). Livre-docente em Ciências
da Comunicação, pela ECA-USP (2007). Bolsista Produtividade, nível 2, do CNPq. Pós-doutora em Design Thinking, pela Stanford University (2013). Pós-doutora em Comunicação, pela Universidad de Murcia, Espanha,
com bolsa da Fundación Carolina (2009). Pós-doutora pela Universidade Católica Portuguesa, Porto (2011).
Doutora em Comunicação e Semiótica (2001) e Mestre em Administração de Marketing (1998), pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Administradora formada pela PUC-SP (1994). Professora do CRP-ECA-USP (desde 2002) na graduação em Publicidade e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação. Chefe do Depto CRP – Relações Públicas, Publicidade e Turismo da ECA-USP (fev. 2017-fev.2021). Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da ECA-USP (2021-2023). Vice-presidente
da FELS - Federación Latinoamericana de Semiótica. Líder do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação,
Cultura e Consumo – GESC3. Editora da revista Signos do Consumo. Membro do Comitê Editorial da revista
Matrizes e da revista DeSignis.
Daniela Viana: É graduada em jornalismo, pela UFRGS (1998), atuando com comunicação das questões ambientais e climáticas desde 2003. Especializada em Saúde Ambiental, pela FSP-USP, é doutora em Ciências Ambientais, pelo PROCAM-USP, realizou pós-doutoramento em Comunicação Climática na George Mason University
(EUA) e atualmente é pós-doutoranda do IEA-USP, bolsista do USPSusten e membro do Saúde Planetária Brasil.
Diogo Cortiz: Professor da PUC-SP e pesquisador no Ceweb.br/NIC.br. Doutor em Tecnologias da Inteligência
e Design Digital, pela PUC-SP, com doutorado sanduíche pela Universidade de Paris-Sorbonne. Realizou estágio
pós-doutoral na Universidade de Salamanca, Espanha, e foi pesquisador visitante na Queen Mary University of
London. Atualmente, coordena o Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da
PUC-SP. Tem pesquisas na intersecção entre Design, IA e Ciência Cognitiva.
Eneus Trindade: É professor titular da Universidade de São Paulo (USP), na Escola de Comunicações e Artes
(ECA). Bolsista Produtividade (PQ), nível 2, do CNPq. Possui graduação em Comunicação Social Publicidade
e Propaganda, pela Universidade Federal de Pernambuco (1995), mestrado em Ciências da Comunicação, pela
Universidade de São Paulo (1999), doutorado em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo
(2003), pós-doutorado em Antropologia Visual, pela Universidade Aberta de Portugal (2009), livre-docência
em Ciências da Comunicação Publicitária, pela USP (2012), estágio pós-doutoral na condição de professor convidado para a Chair Numeratie Publicitaire do CELSA Sorbonne Universités Paris -FR (1S/2018), Projeto TransNum. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM-USP).
Foi coordenador do PPGCOM-USP (2013 até 2017). Co-líder do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação,
Cultura e Consumo – GESC3. Editor da revista Signos do Consumo. Atua como colaborador no Grupo Saúde
Plantária do IEA-USP e no INCT-CNPq-USP – Combate à Fome.
Eugênio Bucci: Professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). Coordenador acadêmico
da Cátedra Oscar Sala (IEA-USP) e Superintendente de Comunicação Social da USP. Escreve quinzenalmente
na seção Espaço Aberto do jornal O Estado de S. Paulo. É docente permanente do PPGCOM-USP. Docente do
Departamento de Informação e Cultura (CBD) da ECA-USP. Foi professor da ESPM, entre 2010 e 2014, onde
dirigiu o curso de Pós-graduação em Jornalismo com Ênfase em Direção Editorial, de 2011 a 2013. Foi presidente da Radiobras de 2003 a 2007. Na Editora Abril, foi diretor de redação das revistas Superinteressante e
Quatro Rodas e Secretário Editorial. Desenvolve pesquisas nas seguintes áreas: ética e imprensa, comunicação
pública, superindústria do imaginário, informação e cultura democrática. Escreveu, entre outros livros, O Estado de Narciso (Companhia das Letras, 2015) e A forma bruta dos protestos (Companhia das Letras, 2016),
Existe democracia sem verdade factual? (Estação das Letras e Cores, 2019) e A superindústria do imaginário
(Autêntica, 2021).
Everardo Rocha: Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC-Rio. Pesquisador, nível 1D, do CNPq e Cientista do Nosso Estado pela Faperj. Doutor e mestre em Antropologia Social pelo
PPGAS-Museu Nacional-UFRJ.
Francisco Leite: Doutor em Ciências da Comunicação, pela ECA-USP, com estágio de doutoramento PDSE-CAPES, na Universidade de Trento e na Universidade de Bolonha (Itália). Pós-doutorado em Comunicação
e Consumos, na USP, com bolsa FAPESP (2019-2021). É pesquisador vice-líder do grupo de pesquisa ArC2
– Estudos Antirracistas em Comunicação e Consumos ECA-USP-CNPq. Entre outras publicações, é autor de
Publicidade contraintuitiva: inovação no uso de estereótipos na comunicação (2014), coorganizador e autor de
Publicidade Antirracista: reflexões, caminhos e desafios (2019), obra finalista do prêmio Jabuti 2020. E-mail:
leitefco@gmail.com.
Gabrielle Weber: Travesti e lésbica, é professora do departamento de Ciências Básicas e Ambientais da Escola
de Engenharia de Lorena, da Universidade de São Paulo. Coordena o projeto Levantamento da Ciência LGBTQIA+ Brasileira. Trabalha com os seguintes temas: integrabilidade, materiais topológicos, gênero, sexualidade e
transfeminilidades. Faz divulgação científica inclusiva no “Mamutes na Ciência”.
Ian Abé Santiago Maffioletti: É mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba. É também realizador audiovisual e sócio-fundador da produtora Vermelho Profundo.
Leandro Leonardo Batista: Professor associado RDIDP da Escola de Comunicações e Artes da USP e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação – PPGCOM-USP. Graduado em
Educação Física, pela Universidade de São Paulo (1975), possui mestrado em Propaganda – University of North
Carolina (1990), doutorado em Comunicação Social – University of North Carolina (1996) e livre-docência
(2019), pela ECA-USP. Atualmente é professor RDIDP da Escola de Comunicações e Artes atuando como docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM-USP). Tem experiência
acadêmica e profissional na área de Comunicação, com ênfase em Relações Públicas e Propaganda, atuando
principalmente nos seguintes temas: campanhas públicas, publicidade, pesquisa de mercado, comunicação de
riscos, preconceitos sociais e comportamento do consumidor, com foco em recepção, persuasão, ciências cognitivas e neurofisiologia aplicada. Coordenador do grupo de pesquisa e do laboratório de neurofisiologia aplicada
à comunicação 4C: Centro de Ciências Cognitivas e Comunicação e do grupo de pesquisa ArC2 ? Estudos antirracistas em Comunicação e Consumos-CNPq. É um dos organizadores e autor das obras O Negro nos Espaços
359
Publicitários Brasileiros (ECA; Cone, 2011), livro finalista do Prêmio Jabuti 2012 entre os dez melhores do
campo da comunicação, bem como Publicidade Antirracista: reflexões, caminhos e desafios (ECA-USP, 2019),
obra finalista do prêmio Jabuti 2020.
Marcel Vieira Barreto Silva: É professor Associado do Departamento de Comunicação e do Programa de
Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal da Paraíba. Possui mestrado (2007) e doutorado (2011)
em Comunicação, pela Universidade Federal Fluminense. Foi membro da diretoria da COMPÓS (2019-2021) e
também coordenador do GT Estudos de Televisão. Atualmente, é membro do Comitê Científico da SOCINE.
Maria Immacolata Vassallo de Lopes: Possui graduação em Ciências Sociais, pela Universidade de São
Paulo; mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo; pós-doutorado na
Universidade de Florença, Itália. Professora titular da Escola de Comunicações e Artes da USP. Tem experiência
na área de Comunicação, com ênfase em Epistemologia da Comunicação, Teoria da Comunicação e Metodologia
da Pesquisa em Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: campo da comunicação, metodologia da comunicação, recepção da comunicação, ficção televisiva, transmidiação. Coordena o Centro de Estudos
de Telenovela da USP (CETVN) e o Centro de Estudos do Campo da Comunicação da USP (CECOM). Criadora e
coordenadora da rede internacional de pesquisa OBITEL (Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva) e
da rede nacional de pesquisa OBITEL-BRASIL. Diretora de MATRIZes, revista do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Comunicação da USP. Presidente de IBERCOM – Associação Ibero-Americana de Investigadores da Comunicação (2015-2019). Presidente da INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (1995-1997) e é vice-presidente do Conselho Curador da entidade. Presidente da Comissão
de Pós-Graduação da ECA-USP (2001-2008) e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Universidade de São Paulo (2001-2012). Representante da área de Comunicação no Comitê
Assessor CA-AC do CNPq (2004-2007). Membro do Conselho Científico de periódicos nacionais e internacionais. Publica artigos e livros no país e no exterior em suas especialidades. É pesquisadora, nível 1A, do CNPq.
Margarida Maria Krohling Kunsch: Professora emérita e pesquisadora da Escola de Comunicações e Artes
da Universidade de São Paulo (ECA-USP), da qual foi diretora de 2013 a 2017. Doutora em Ciências da Comunicação e livre-docente em Teoria da Comunicação Institucional: Políticas e Processos, pela ECA-USP. Coordenadora do Centro de Estudos de Comunicação Organizacional e Relações Públicas (Cecorp) e do Observatório de
Comunicação, Responsabilidade Social e Sustentabilidade (SustenCOM) da ECA-USP. Foi pró-reitora adjunta
de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo (2018-2021). Pesquisadora vinculada ao Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Representante da área de Comunicação e Informação no
Comitê Assessor (CA-AC) do CNPq (2019 -2022). É autora de vasta produção em Ciências da Comunicação e em
Comunicação Organizacional e Relações Públicas. Publicou livros próprios, com destaque para Planejamento
de relações públicas na comunicação integrada, 97 capítulos de livros, 90 prefácios de livros, 40 artigos em
periódicos científicos nacionais e internacionais e organizou 43 coletâneas dessas áreas. Criadora, e editora
das revistas científicas Organicom: Revista Brasileira de Comunicação Organizacional e Relações Públicas, da
ECA-USP, e Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, da Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (Alaic). Sua trajetória acadêmica e profissional foi e é marcada por uma efetiva
participação nas entidades científicas e associações de classe da área de Comunicação, no Brasil e no Exterior,
tendo participado de criação e ocupado cargos diretivos em diversas delas.
Massimo Leone: É professor de Filosofia da Comunicação, Semiótica Cultural e Semiótica Visual no Departamento de Filosofia e Ciências da Educação da Universidade de Turim, Itália, professor em tempo parcial de Semiótica no Departamento de Língua e Literatura Chinesa da Universidade de Xangai, China, membro associado
da Cambridge Digital Humanities, Universidade de Cambridge, e diretor do Instituto de Estudos Religiosos da
“Fundação Bruno Kessler”, Trento. Tem sido professor visitante em várias universidades dos cinco continentes.
É autor de quinze livros, editou mais de 50 volumes coletivos e publicou mais de 500 artigos em semiótica, estudos religiosos e estudos visuais. Foi o vencedor de uma Bolsa Consolidadora do ERC de 2018. É editor-chefe da
Lexia, a revista de Semiótica do Centro de Pesquisa Interdisciplinar em Comunicação, Universidade de Turim,
Itália, coeditor-chefe da Semiotica (De Gruyter), e coeditor das séries de livros I Saggi di Lexia (Roma: Aracne),
Semiotics of Religion (Berlim e Boston: Walter de Gruyter), e Advances in Face Studies (Londres e Nova York:
Routledge).
Pablo Moreno Fernandes: Doutor em Ciências da Comunicação, pela ECA-USP. Professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da UFMG, pesquisador permanente do Programa de PPGCOM-UFMG, vinculado à linha Processos Comunicativos e Práticas Sociais. Vice-líder do Grupo de Pesquisa em Comunicação,
Raça e Gênero (Coragem-CNPq-UFMG) e integrante do Grupo de Estudos Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo (GESC3-CNPq-USP).
360
Silvana Nascimento: Negra e não-binárie, é docente do departamento de Antropologia da Universidade de
São Paulo e coordena o grupo de pesquisa Cóccix – Estudos indisciplinares do Corpo e do Território. Trabalha
com os seguintes temas: gênero, sexualidade, corpo, território, cidade e transfeminilidades. Publicou o livro
Fernanda Benvenutty: uma política travesti (2002, Patuá, SP), entre outras publicações.
Thaís Presa Martins: É bacharela e licenciada em Ciências Biológicas, pela PUCRS; especialista em Gestão
da Qualidade para o Meio Ambiente, pela PUCRS; mestra e doutora em Educação em Ciências, pela UFRGS. É
professora de Biologia; tutora pelo Curso de Especialização em Saúde Pública da USP, e pesquisadora das áreas
de Educação em Ciências, Educação Ambiental, Educação em Saúde, e Estudos Culturais, sendo membro do
Saúde Planetária Brasil.
Victor Souza Lima Blotta: É professor Doutor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Coordena o Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA-USP). É também pesquisador associado e vice-coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP). Foi presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos – Pesquisa e Pós-Graduação – ANDHEP (2016-2018). Mestre e doutor em Direito, pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do
Direito da Faculdade de Direito da USP. Trabalha especialmente com Filosofia do Direito, Filosofia Política e
Comunicação, e discute temas como direitos humanos, democracia, esfera pública, mídia e políticas de comunicação, violência e segurança cidadã.
Vinícius Romanini: Possui graduação em Ciências da Comunicação (Jornalismo, 1990), mestrado (2001)
e doutorado (2006) em Ciências da Comunicação, todos pela Universidade de São Paulo. Pós-doutorado pela
Universidade de Indiana (EUA), em 2014. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Filosofia
e Teoria da Comunicação, Filosofia da Linguagem, Cultura e Semiótica. Como jornalista, foi repórter, editor ou
colaborador em diversos meios de comunicação, nos quais cobriu principalmente assuntos de cultura, ciência e
sustentabilidade. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Ciência Cognitiva (SBCC) para a gestão 2017-2019.
É também editor-científico da revista SEMEIOSIS (Revista Transdisciplinar de Semiótica e Design), membro
do corpo editorial da Peter Lang Book Series Reflections on Signs and Language, além dos seguintes periódicos:
Cadernos de Semiótica Aplicada (CASA), Brazilian Journal of Technology, Communication, and Cognitive
Science, Texto Livre: Linguagem e Tecnologia e da Clareira – Revista de Filosofia da Região Amazônica.
Coordenador do Grupo ECA pela Democracia. Pesquisador do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC), do Centro de Lógica e Epistemologia da Ciência (CLE/Unicamp), do Grupo
de Estudos em Sistemas Sígnicos do Design, bem como do Projeto UniTwin da Unesco (Unesp). Entre os prêmios que ganhou estão o Abril de Jornalismo, o Ethos de Jornalismo Ambiental e o Citi Journalistic Excellence
Award. Integra os programas de pós-graduação PPGCOM (Comunicação) e PGEHA (Interunidades em Estética
e Historia da Arte).
William Corbo: Professor adjunto do Departamento de Antropologia Cultural do IFCS-UFRJ. Doutor e mestre em Comunicação, pelo PPGCOM-PUC-Rio. Graduado em Ciências Sociais, pela UFRJ.
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Este obra foi composta com as tipologias Georgia
e Open Sans, e impresso em papel Offset 90 g
pela gráfica Meta Brasil.