8/1/23: A CRUELDADE COMO POLÍTICA?
Luis Maffei
Investigando a felicidade – ou melhor, o que se pode chamar de performatividade do feliz
num momento histórico ultravisual e cheio de expressividade – como uma norma de nosso
tempo, João Freire Filho faz um resumo provocativo do lugar da internet nesse processo,
e do quanto ela configura o próprio processo:
A internet sobressai, na atualidade, como o mais prodigioso arquivo e tribunal de
experiências e de manifestações emocionais – controversas, proscritas ou legitimadas
socialmente. Facebook, YouTube, blogs e comunidades online abarcam narrativas,
performances, flagrantes e testemunhos emotivos de diferentes atores e grupos sociais:
cidadãos indignados e militantes revoltados; consumidores desiludidos e enfurecidos; crentes
fervorosos e fiéis intransigentes; jornalistas coléricos ou condoídos; minorias vilipendiadas;
fãs e antifãs adolescentes; casais apaixonados; ex-parceiros amorosos que clamam por
vingança; celebridades eufóricas ou engajadas; pacientes com doenças graves, em estágio
terminal ou em momento de “superação”; vítimas de abuso sexual, assédio moral, negligência
afetiva, bullying escolar, bullying corporativo etc. (2017, p. 74, 75)
Esta mui breve investigação que ora se inicia pretendia, originalmente, se debruçar
sobre esse tribunal e algumas de suas consequências, especialmente no terreno da
linguagem. A violência que muitas vezes se encarna na miserável textualidade divulgada
online e suas consequências políticas é tópico que me interessa sobremaneira.
Mas houve o 8 de janeiro de 2023.
O 8 de janeiro talvez tenha sido, entre muitas outras coisas, a transposição de
algumas das “narrativas, performances” e “testemunhos emotivos” da rede para a
concretude da realidade. Mas foi muito além disso. Experimentarei associar a ideia de
crueldade ao 8 de janeiro, já imaginando que haverá limites duros para essa experiência;
por outro lado, haverá também possibilidades, brechas, e tentarei explorá-las.
*
Antes da crueldade, o ressentimento. É arriscado, quer dizer, parcial mirar uma realidade
histórico-política por lentes psicológicas e/ou psicanalíticas. Parcial, mas não
inapropriado. Num ensaio, publicado em 2019, que não ignora aspectos centrais da
história recente brasileira, Maria Rita Kehl pergunta: “O ressentimento chegou ao
poder?”. Comentando o conceito, a psicanalista escreve que
a lógica do ressentido ignora o sujeito – este que, para a psicanálise, atreve-se a pagar o preço
por seu desejo e, portanto, a investir em escolhas “desejantes”. A lógica do ressentimento,
que bem se adapta à demanda das sociedades capitalistas, concebe o ser humano não como
sujeito, e sim como indivíduo – este que não reconhece sua divisão subjetiva. Ocorre que
aquele que se pensa como indivíduo (i.e., indivisível, não dividido) precisa forçar-se
continuamente a estar de acordo com as determinações do superego – muitas das quais
advindas da moral comum. (2020, p. 197, 198)
Portanto, o ressentimento exige do indivíduo uma inteireza que não cabe no que
podemos chamar de realidade; não quero aqui promover uma ortopedia do que seja essa,
no fundo, (quase) abstração, entendendo-a como fato dado ou inequívoco – pelo
contrário: dotada de versões, camadas, incongruências e milhões de nuances, isso que
mais ou menos atende por realidade nos invita, justamente, à consciência de sua
inagarrabilidade, que imitamos com nossa própria divisão a fim de que não sejamos
tragados pelo ressentimento. O que Maria Rita Kehl chama de “moral comum” fornece
assento confortável para que o indivíduo não sujeitado se encontre com outros na mesma
condição, além de oferecer a ele um pretexto sólido para sua não divisão, isto é, para que
ele possa trafegar sem muitas dúvidas por rotas seguras, cheias de verdade, vazias de
qualquer hipótese de desconstrução.
O primeiro ponto de contato entre o ressentimento e a crueldade pode ser a
covardia, termo vem de Freud, que não trabalhou sobre o ressentimento stricto sensu,
porém abasteceu sua disciplina das ferramentas teóricas que permitiram o
estabelecimento e o desenvolvimento do conceito. Em outro momento de seu ensaio, Kehl
escreve:
O que Freud chamou de “covardia moral” do neurótico consiste em tais escolhas por
caminhos seguros, onde não haja riscos de deparar com nada que indique desejos contrários
ao caminho certo para uma vida “normal”. Ou seja: uma vida chata. (...) Pois é justamente
em relação às consequências dessa mesma vida chata que aquele que orientou suas escolhas
pela servidão voluntária um dia há de se ressentir. (p. 198)
A autora se refere ao título de um texto fundamental na história dos escritos sobre
obediência, e, logo, desobediência: Discurso da servidão voluntária, de Étienne de La
Boétie, cuja abertura é memorável: “Por ora gostaria apenas de entender como pode ser
que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportem às vezes um
tirano só (...)” (Apud Gros, 2018, p. 50). Vinda do Renascimento europeu, a voz de La
Boétie nos aparece como um convite à coragem, à anormalidade e ao contrário da chatice,
o que pode ser definido, talvez, como uma vida boa, subjetivada e, portanto, distante do
ressentimento, essa “covardia moral”.
E por que a crueldade possui genes covardes? Porque se baseia num radical
desequilíbrio de forças entre quem a comete e seu alvo.1 Cruel é aquele que não se oferece
1
Não espanta que a discussão sobre a vida e os hoje chamados direitos dos animais implique, quase
inevitavelmente, tocar a problemática da crueldade. Exemplo disso, entre tantos outros possíveis, é a
contemplação de atos cruéis contra animais na famosa série de gravuras setecentistas de William Hogarth,
ao combate, nem a ele se dispõe; por isso, talvez caiba entender que a crueldade não
conhece inimigos, mas vítimas. Como vou comentar o 8 de janeiro, toco desde já num
aspecto do bolsonarismo brasileiro que é, a todos os títulos, cruel e não combatente: a
defesa intransigente das armas de fogo. Hoje vinculada a uma mentalidade de extrema
direita, a ideia de que a população deve se armar não foi sempre ligada a esse tipo de
populismo. Já no século XVII, Espinosa defendia um povo armado contra a tirania, não
tão distante de um La Boétie e afastando-se de um Hobbes. Mas esse tempo está muito
distante. Um exemplo mais recente é o de Caros Marighella, segundo quem um povo
armado resistiria melhor à tirania, mas seu cenário, evidentemente, não era o nosso.
Não me interessa aqui avaliar a eventual eficácia de muita gente armada no
Seiscentos ou no século XX, apenas apontar que a vinculação da extrema direita ao
armamento de cidadãos comuns é histórica, não intrínseca. Quem combate esse ponto de
vista, atualmente, tende a contrapor a ele argumentos de caráter humanista ou ético, que
ficam evidentes em slogans que contrapõem as armas de fogo a livros – um deles diz:
“Me livro de armas, me armo de livros”. O que talvez não ocorra aos adversários do
armamento desenfreado é que o processo, se posto plenamente em prática, não seria
desenfreado em hipótese alguma, pois o acesso às armas de fogo, no “projeto” da extrema
direita brasileira, não tem qualquer feição, digamos, democrática. De modo coerente à
história da defesa pessoal, que frequentemente, ao longo dos tempos, definiu quem tem e
quem não tem direito à defesa2 (lógica que um discurso como de Marighella punha em
discussão), as armas de fogo, para o populismo bolsonarista que por aqui vigora, têm
relação direta com um entendimento elitista de propriedade, palavra mágica do
capitalismo de todos os tempos. Então, faz sentido o fazendeiro se armar, o proprietário,
o cidadão de bem que pretende defender suas posses. Pelo contrário, nem se cogita armar
os sem-terra na luta por seus direitos, ou as mulheres, a fim de que se defendam do
feminicídio (cujos perpetradores são os mesmos cidadãos de bem, os proprietários), ou
as mulheres e homens transsexuais do país que mais as e os mata no mundo.
Logo, a extrema direita não pensa em combater, em militar, mas em se livrar de
forças, por um lado, imaginárias – como o comunismo –, por outro, muito fracas no
The Four Stages of Cruelty, estudadas, entre outros, por James A. Steintrager. Ainda que os maus tratos a
bichos pertençam aos estágios iniciais, ou seja, ao indivíduo cruel em formação, são, por assim dizer, no
mínimo indicativos de uma crueldade que dificilmente deixará de marcar o temperamento do agressor
adulto.
2
Cf. DORLIN, Elsa. Autodefesa – uma filosofia da violência. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu,
2020.
território da possibilidade de violência, ainda que cheias de potência em outros, mais
bonitos; logo, não se trata de defesa, nem de luta, mas de ataque. Parte significativa da
elite brasileira apreciaria, não uma hipótese de defesa (já, por si só, possivelmente nefanda
neste momento histórico) que se distribuísse de modo equânime pela sociedade, mas um
desequilíbrio estrutural que desse mais poder ao mais poderoso, e vulnerabilizasse ainda
mais, no limite do extermínio, quem já é vulnerável. Esse desequilíbrio, claro, essa falta
de um combate minimamente compensado, é afim ao ressentimento e à crueldade.3 Maria
Rita Kehl suspeita que
uma grande parcela dos eleitores de Jair Bolsonaro seja composta de pessoas que não
conseguiram, ou não quiseram, integrar nenhuma das festas democráticas que encheram as
ruas de diversas cidades brasileiras desde os idos da Lei da Anistia, em 1979. As grandes
manifestações da redemocratização, do retorno dos exiliados ao movimento pelas diretas,
não tiveram a intenção de excluir ninguém. Tampouco o imenso ato que saudou a primeira
eleição presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em outubro de 2002.
Foram manifestações alegres, festivas, grandes confraternizações de gente que sempre lutou
contra o autoritarismo, pela liberdade e diminuição das desigualdades no Brasil. (2020, p.
202).
Agora é em Nietzsche que o texto de Kehl me faz pensar, em virtude das festas
democráticas, entre as quais poderíamos incluir a posse de Lula neste 2023. Lembro-me
da paixão do filósofo pelo vigor trágico e coletivo representado por Dioniso, deus que
motiva desde a mais furiosa abertura ao drama até a embriaguez, passando, claro, pela
loucura, transe místico que destrói e cria. E não há Dioniso, dionisismo, sem a festa, o
bacanal que traz Baco no nome. Em Nietzsche, a alegria trágica se afasta diametralmente
do ressentimento pois, já que ela não se pauta por qualquer moralidade, permite que
brotem diferentes éticas, ou maneiras de viver. A moralidade orienta uma vida chata e
plena de servidão voluntária, além de alimentar os tribunais da internet que interessaram
a João Freire Filho. Volto ao texto que citei no comecinho deste ensaio em virtude,
precisamente, do coletivo, pois penso que um dos efeitos mais sutis daquela estratégia
3
Em 7 de setembro de 2022, o compromisso de ver Dioniso, meu filho mais novo, disputar um torneio de
futebol de areia me fez estar na Praia de Icaraí justo enquanto acontecia uma manifestação bolsonarista,
organizada pelo agora deputado estadual Renan Jordy. Em certo momento, o animador do sombrio
encontro, que já garantira várias vezes a vitória de Bolsonaro no primeiro turno, conclamou a multidão não
muito significativa a “varrer a esquerda da cidade de Niterói”. Duas coisas a ler daí: primeiro, a vinculação
umbilical da extrema direita à internet não apenas a torna virulentamente judicativa e emocional, traço que,
como João Freire indica, é potencializado pela rede e suas redes, mas também, consequentemente,
desvinculada de traços importantes da velha e boa realidade, essa senhora muito idosa, escorregadia, mas,
mal ou bem, real. Digo isso porque Bolsonaro, apesar de sua surpreendente votação, não poderia vencer no
primeiro turno, e Niterói, hoje, é uma cidade com ligações claras com a esquerda – governada há tempos
pelo PDT, Lula venceu, em ambos os turnos, no município, onde seu ex-prefeito, o pedetista Rodrigo
Neves, ficou em primeiro lugar na eleição para o governo do Rio de Janeiro. A segunda coisa a ler é
precisamente a recusa da extrema direita ao combate, e sua paixão pelo extermínio: não se trata de disputar
narrativa com a esquerda, nem de enfrentar a esquerda, menos ainda de medir forças com a esquerda; tratase de varrê-la, e adversários não são varríveis.
textual que encadeia grupos pelo ponto e vírgula, desde os “cidadãos indignados e
militantes revoltados” até as “vítimas de abuso sexual, assédio moral, negligência afetiva,
bullying escolar, bullying corporativo etc.”, é indicar que não se forma coletivo nenhum.
Que isso tem a ver com ressentimento? Sabemos que a internet, especialmente o
que Jairon Lanier chama de Bummer,4 tão mais lucra quão mais gera emoções em quem
a ela se conecta, e quão mais próximas da irritação ou da indignação forem essas emoções,
maior a lucratividade. Nesse sentido, a internet e seus tribunais formam espaço profícuo
para a cultivo do ressentimento, pois participa dessa emoção atribuir sempre a um outro
a responsabilidade pela nossa dor. Não quero dizer que muita gente que participa da lista
feita por João Freire não seja realmente vítima do que revela online, mas a própria
dinâmica da internet, especialmente em suas mídias sociais, tinge a denúncia com tintas
de mera reclamação, um dos traços do ressentimento, e dificulta a construção de um
comum – não a “moral comum” referida por Maria Rita Kehl, mas a vivência partilhada
do que não pertence exclusivamente a ninguém. É também a psicanalista quem escreve
que
[o] ressentimento é o contrário da política. (...) Os ressentidos, na política, são aqueles que
abriram mão de sua condição de agentes da transformação social para esperar por direitos e
benesses garantidos por antecipação. (...) o ressentimento não é, como pode parecer, o
primeiro passo para uma efetiva virada no jogo do poder. A passividade da posição ressentida
não permite que as pessoas se percebam como agentes do jogo de forças que determina suas
vidas. O ressentimento é o terreno dos afetos reativos, da vingança imaginária e adiada, da
memória que só serve à manutenção de uma queixa repetitiva e estéril. (2020, p. 195)
O capítulo que acabo de citar, pertencente ao livro Ressentimento, intitula-se
“Políticas do ressentimento”, e, originalmente, encerra o volume, editado pela primeira
vez em 2004. A partir da 3ª edição, de 2020, o capítulo final passa a ser “O ressentimento
chegou ao poder?”, escrito em 2019. É muito interessante a sintaxe entre o antigo
encerramento do conjunto e o novo, pois o fragmento que eu trouxe acima é quase uma
preparação para se pensar um Brasil onde o ressentimento no poder criou uma espécie de
impossibilidade política, o que João Cezar de Castro Rocha não hesita em entender como
uma verdadeira pós-política (2020). Se o ressentimento “é o contrário da política”,
entendo-o como um dos (muitos) epítomes do individualismo, sem o qual o capitalismo,
menos ainda em sua versão neoliberal, não conseguiria produzir sentido: a passividade e
a vontade de vingança que caracterizam a pessoa ressentida são sentimentos que não
O acrônimo Bummer foi cunhado pelo autor a partir da expressão “Behaviors of User Modified, and Made
into na Empire for Rent”, ou seja, “Comportamentos de Usuários Modificados e Transformados em um
Império para Alugar”. Com Bummer, Lanier engloba o que, na internet, ele entende como uma máquina
estatística que visa a controlar o comportamento dos usuários. (2018, p. 42, 43)
4
podem ser levados à arena pública – ou podem, mas, ao ocuparem esse espaço onde, a
todos os títulos, não cabem, tendem a causar nele enorme dano.
Quero, como já indiquei, vincular ressentimento a crueldade. Assim como o
ressentido, o cruel não combina com nenhum princípio coletivo. O exercício de sua
crueldade costuma ser individualista, ainda que não necessariamente individual. Antes de
tudo, isso se liga à afirmação de Maria Rita Kehl, segundo a qual o ressentimento inibe a
subjetivação, mantendo a pessoa em sua condição de indivíduo. Esse indivíduo, incapaz
de se fazer sujeito, precisa se ancorar na “moral” comum, zona confortável e
necessariamente conservadora – conservar, nesse caso, é enxergar a tradição como lugar
não dialético, mas estanque, e resistir ao risco da mudança. Portanto, não é que o
ressentido e o cruel não encontrem pares – encontram-nos, aos milhões; a questão é que
seus agrupamentos não atendem a requisitos fundamentais para que comunidades plurais
se configurem justo (com a licença da redundância) em sua pluralidade. Não é espantoso
que uma das manifestações típicas da crueldade ressentida seja o linchamento – tanto o
moral5 como o físico. O último vitima corpos em cenas públicas, e esses corpos atendem,
em geral, às mesmas características: frágeis, negros, pobres, divergentes.
Recupero a associação que Maria Rita Kehl fez da democracia com a festa, e volto
à questão da alegria. O ressentimento e a crueldade não podem conviver com a festa por
uma razão mais que óbvia: festas, ao menos as populares, são inclusivas, enquanto o
ressentido e o cruel só aceitam agrupamentos fechados, separados do resto do mundo por
muros e, de preferência, grades. Comentei, em nota, sobre minha experiência no 7 de
setembro de 2022. Naquela manhã, não bonita manhã, só três “músicas” soaram do carro
de som bolsonarista: o jingle do candidato a deputado estadual Jordy, o do candidato deles
a presidente e o hino nacional brasileiro. O magote, na hora do hino, performou o
entusiasmo que lhe cabe, o que pode ser provocado por um hino nacional, qualquer que
seja.6 Imaginei-me na posição de alguém que tivesse vivido muito tempo em outro planeta
Ressalto que, em tempos de tribunais digitais, uma quantidade surpreendente de pessoas – mesmo algumas
que, a priori, não têm nada a ver com linchadores – escorregam para práticas desse tipo.
6
Após evocar Carlos Marighella, lembro-me uma cena do filme Marighella, lançado em 2021 e dirigido
por Wagner Moura, que biografa alguns momentos da trajetória do avô da atual presidenta da Funarte.
Entremeada aos créditos finais, há uma cena no filme que retrata aquele grupo de guerrilheiros, muitos com
um destino trágico já conhecido do espectador, cantando o hino nacional – gritando, bradando, chorando o
hino nacional. Há duas camadas postas em visibilidade: uma delas remete aos anos de 1970, na qual são as
personagens que vivem o hino; a outra remete ao nosso tempo, pois as personagens são vividas por atrizes
e atores cujo engajamento com a esquerda é notório. A cena é bela, comovente, pois, neste momento da
história brasileira, símbolos nacionais como o hino foram sequestrados pela extrema direita, e esbravejar
essa música junto a companheiros de luta democrática (na guerrilha ou na arte) é um modo de, por um lado,
disputar o emblema e, por outro, sentir o quanto as palavras daquela letra são traiçoeiras (“dos filhos deste
5
da galáxia e que, retornado à Terra, ao Brasil, a Niterói, deparasse aquilo, sem conhecer
nada dos conteúdos em jogo, e concluí, sem demora, que não me sentiria seduzido por
aquela cena, pelo contrário, sentiria desgosto, certa náusea e vontade de ir embora. É que
faltava a mínima gota de alegria àquele êxtase pseudopatriótico. Pelo contrário, os únicos
carnavais brasileiros a existirem plena e normalmente durante o governo Bolsonaro, os
de 2019 e 2020, não espanta que tenham sido palcos para deboches e sátiras àquele que
ocupava a presidência.
*
Ainda não há nome para o 8 de janeiro de 2023. Na tentativa de se criar um sentido cívico
para a data, o deputado Fernando Mineiro, do PT do Rio Grande do Norte, propôs uma
efeméride: o Dia (nacional) de Defesa da Democracia e do Combate ao Terrorismo e ao
Fascismo. Boa ou nem tanto, a proposta indica justamente isso: não temos um nome para
8 de janeiro; se o tivéssemos, não escorregaríamos entre (anti)democracia, terrorismo e
fascismo na proposta do deputado, e, fora dela, outras palavras também insuficientes,
como tentativa de golpe. Mas parto desta última: 8 de janeiro de 2023 não tem nada a ver
com uma tentativa de golpe de Estado, ao contrário do que tem dito a grande mídia
brasileira.
A citada mídia, aliás, se vê em palpos de aranha neste momento histórico. Em
2019, Pablo López Guelli realizou o documentário A nossa bandeira jamais será
vermelha, em que desvela o papel parcial da imprensa brasileira ao longo de décadas,
concentrando-se nas convulsões que desbloquearam as manifestações de rua para a direita
brasileira, a partir de 2013, e na corrosão, em parte artificialmente provocada, que levou
ao impeachment de Dilma Rousseff – e, consequente mas não linearmente, à eleição de
Jair Bolsonaro dois anos depois. O filme foi fortemente tocado pelo absurdo que marcou
as eleições de 2018, as mais anômalas da história da República, tão anômalas que
permitiram a Celso Rocha de Barros uma síntese ao mesmo tempo bem-humorada e
estupefata:
Um país não elege Bolsonaro sem azar. Crise econômica, crise moral, erros dos adversários,
fraudes e manipulações, loucura coletiva e burrice, com tudo isso somado você elege, no
máximo, um Jânio Quadros. Bolsonaro é outra história. Para eleger Bolsonaro, você precisa
dar azar, e não pode ser só uma vez. (2019, p. 71).
solo és mãe gentil”) ou convocatórias (“verás que um filho teu não foge à luta”). Seja como for, a emoção
naquela cena não é alegre: é intensa, excitada, mas não alegre. Talvez caiba concluir que um hino nacional,
mesmo produzindo uma emoção forte, vivaz, tem inerente dificuldade de cruzar os umbrais da alegria.
Sob os eflúvios dessa catástrofe, o documentário de López Guelli chega a um de
seus momentos mais agudos num depoimento do psicanalista Tales Ab'Sáber, cuja obra
investiga a política nacional com frequência. No momento em que vemos essa fala de
Ab’Sáber, já é unânime no filme que a imprensa oligárquica brasileira foi uma das
responsáveis pelo efeito-dominó que nos espavoriu de 2013 a 2018. E o psicanalista,
pouco depois da posse de Bolsonaro, afirma: “A mídia agora tem que desfazer o que fez
se não quiser levar o Brasil a uma ditadura”. Fato é que essa mídia até tentou desfazer o
que fez, mas, como se diz, o mal estava feito – e a grande e tradicional imprensa brasileira
não é pródiga em pedidos de desculpa ou autorrevisões profundas. Quando alguns dos
grandes veículos tentaram desfazer o mal feito, Bolsonaro já estava no poder, e, a bem da
verdade, o tom realmente só cresceu contra ele após sua saída da presidência da República
e do Brasil,7 salvo em raras gargantas mais corajosas, que abriram o verbo desde cedo.
Mas os palpos de aranha a que me referi não se devem apenas ao fato de a mídia
ter tido de desfazer o que fizera, mas também a um aspecto ligado, precisamente, a golpe:
fala-se agora, abertamente, em tentativa de golpe, golpistas etc., mas ninguém na
imprensa majoritária, ao menos que eu tenha ouvido ou lido, tem feito qualquer
articulação entre o golpe pretensamente empreendido de 2023 e o efetivo golpe de 2016,
que arrancou Dilma Rousseff da presidência. 2016, além de participar da narrativa que
culmina (esperamos) em 2023, é um exemplo claro do que seja um golpe de Estado, o
que o 8 de janeiro não é. Para pensar justamente no que seja um golpe, cito Adriano de
Freixo e Thiago Rodrigues, que, neste ponto de seu texto, dialogam com o verbete “Golpe
de Estado” do Dicionário de política que Bobbio, Matteucci e Pasquino coordenaram:
(...) houve, ao longo da história, muitas variações e adaptações do sentido para esse ato
político, sendo, apenas, um único elemento mantido inalterado em todas elas: todo Golpe de
Estado é realizado por órgãos do próprio Estado. O verbete ainda afirma que, nos dias atuais,
seria impossível a ocorrência de um Golpe de Estado sem a participação ativa de algum grupo
militar ou sem, pelo menos, a neutralidade das Forças Armadas. (2016, p. 10)
7
Eu imaginava que a rede Globo de televisão não igualaria nunca mais a surpresa que me causou em 15 de
março de 1994, quando, por ordem judicial, o Jornal Nacional teve que dar a Leonel Brizola um direito de
resposta histórico. Muitos ainda nos lembramos da voz standard de Cid Moreira lendo a carta do velho
Briza, num momento de dissociação gostosamente hilariante. Mas não era algo vindo da Globo, e sim uma
aberração ordenada judicialmente. Feito na e pela emissora foi o editorial do programa Fantástico de 8 de
janeiro de 2023, lido pela apresentadora Poliana Abritta, que se refere a um “processo eleitoral que elegeu
legitimamente Luiz Inácio Lula da Silva para seu terceiro mandato presidencial” e, sem meias palavras,
cataloga quem praticou os “atentados” como “bolsonaristas golpistas”. O texto nem é tão contundente, mas
essa piscadela de olho a Lula (Abritta pronunciou o nome completo do marido de Janja quase o silabando)
e a associação deflagrada do bolsonarismo aos atos daquele domingo me fez proferir comigo mesmo a
famosa frase “vivi para ver isso”.
Os autores, mais adiante, salientam que, após diversos processos que tiveram lugar
a partir dos anos de 1990, entre os quais o império do neoliberalismo como única
racionalidade possível para a economia e outras zonas da vida social,8 assistimos ao
“surgimento de um novo tipo de golpe utilizando outros órgãos do Estado, como o poder
judiciário ou o parlamento, o que traveste o fenômeno com uma aparência de normalidade
institucional e de cumprimento dos trâmites democráticos.” (p. 12). Bem, tudo isso
(participação do próprio Estado, aparência de normalidade, Forças Armadas em posição
neutral) aconteceu em 2016, não em 2023. Portanto, à afirmação de Lula, em 9 de janeiro,
durante reunião com os governadores dos estados e outros representantes de poderes, de
que “golpe não vai ter”, alguém poderia replicar: “nem teria havido”.
E a Forças Armadas? Penso, arriscadamente, que as Forças Armadas também
vivem seu próprio dilema aracnídeo. O vínculo entre o governo Bolsonaro, ou melhor, o
fenômeno Bolsonaro e as Forças Armadas, é óbvio. Óbvio mas, em certo aspecto,
anfractuoso. Mais de 30 anos após Figueiredo, o último general da ditadura civil-militar,
foi alçado ao poder, não um general, mas um tenente que pretendeu, quando na ativa, pôr
bombas em quartéis para reivindicar aumento de salários. Reformado como capitão para
que o Exército se visse livre dele sem precisar puni-lo de modo contundente, bem ao gosto
dessa instituição, o futuro político de baixo clero sempre foi considerado, por diversos de
seus superiores, um mau militar. Ou seja, quem ajudou a eleger Jair Bolsonaro por
nostalgia do período dos generais fez uma opção, para alguns militares, nada militarmente
correta. Por outro lado, Bolsonaro se aproveitou de uma simbologia, esta sim, óbvia, que
liga o militarismo a noções como ordem e disciplina, o que calhava bem para quem
também surfava a onda do combate à corrupção – e essa prática, por obra e graça da
imprensa recém-citada, foi colada, a partir de certo momento, na esquerda, mais
especificamente no PT. Para além da simbologia, o ex-tenente, ao assumir o poder, adulou
os militares de maneira sistemática e intensa, enchendo-os de cargos no governo,9 entre
outras benesses.
As Forças Armadas viram, a partir do final de 2022, servidões de seus quartéis
serem ocupadas por grupos alucinados, que pediam intervenção militar no Brasil para
evitar a posse de Lula. E nada fizeram. Tampouco fariam. Não há, hoje, no Brasil,
Cf. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal.
Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
9
O caso mais extremo foi o de Eduardo Pazuello, general em cujo colo caiu o ministério da saúde num
momento crucial da pandemia de Covid-19. A gestão do atual deputado federal foi, no mínimo, um desastre,
no máximo, um massacre.
8
qualquer hipótese de golpe militar, inclusive porque as Forças Armadas não têm respaldo
para isso: faltar-lhe-ia apoio maciço do empresariado (não por razões éticas, mas de
imagem) e, especialmente, cenário internacional que as apoiasse ou, ao menos, fizesse
ouvidos moucos e olhasse para o outro lado. A relação das três forças com Bolsonaro,
além de seu problema, digamos, de origem, causou um efeito legível pela noção freudiana
de ferida narcísica. Em linhas gerais, os militares se viram empoderados, ainda que de
modo um tanto equívoco (afinal, não eram os generais no poder); depois, desempoderados
pela vitória de Lula, gozavam ainda de certo prestígio junto a uma parcela da população.
Que fazer, então, diante dos acampamentos?
Nada. A única opção para as Forças Armadas era fazer nada. O problema é que
isso sugeria assumir para os acampados que partir para o golpe não era uma opção,
desmobilizando as trupes sem mobilizar as tropas. A ferida narcísica das Forças Armadas
reside justamente em ruminar sua fraqueza, percebendo que o complexo cenário da
política brasileira não está ao alcance de suas mãos. Todavia, é uma ferida tão dolorosa
que não pode ser elaborada e propagada aos quatro ventos. Os militares ainda precisam
manter a fantasia de seu poderio viva aos olhos da população, e até para os seus próprios;
por isso, não podem sair da corda bamba da ambiguidade – e não fazer nada, mas não
dizer que não se vai fazer nada, é um bom começo para não se perder a ambiguidade;
afinal, como escreveu Freud, com itálico e tudo, no ensaio aqui evocado, “o ego não é o
senhor da sua própria casa” (1995, p. 153), mas reconhecê-lo exige uma humildade
inteligente que não se encontra entre os predicados das Forças Armadas brasileiras.10
Essa menor proeminência das Forças Armadas não é a única razão por que,
imagino, o receio de Ab’Sáber não tinha pleno fundamento. O governo Bolsonaro, por
sua própria estrutura, digamos, caótica, precisou sempre adiar a ruptura, como esclarece
a lúcida leitura de Letícia Cesarino; segundo a autora, a base de significação bolsonarista,
10
Referi-me à posição neutral das Forças Armadas em 2016 e na ferida narcísica de 2022-3. Contudo, em
2018, houve um episódio menos, digamos, discreto. No dia 4 de abril, o STF julgaria o pedido de habeas
corpus preventivo impetrado pela defesa do então réu Luís Inácio Lula da Silva, que fora condenado a 12
anos e um mês de prisão pelas acusações de lavagem de dinheiro e corrupção passiva. Na véspera, Eduardo
Villas Boas, general que na altura era o comandante do Exército e que viria a ocupar o GSI do governo
Bolsonaro, escreveu dois tuítes em que tentava coagir o Supremo, indicando “que o Exército Brasileiro
julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à
Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.”
(Disponível em: <https://twitter.com/Gen_VillasBoas/status/981315180226318336.> Acesso em 19. fev.
2023). A chave retorica da intimidação está na atenção às “missões institucionais” do exército, ou seja, na
(nem tão) velada ameaça de alguma ação (golpe?) no caso de uma decisão favorável a Lula. Interrogo-me:
tratava-se de uma bravata? Na altura, ainda não pela figura de Bolsonaro, mas pelo vigor do frenesi
antipetista e “anticorrupção”, o Exército se via autoconfiante. Mas eu suspeito: confiante para bravatas
(nem tão) veladas, não para golpes de Estado.
inclusive no poder, liga-se a “significantes vazios”, como “povo, “nação [e] Deus”.
Segundo Cesarino, “embora sem conteúdo fixo, sua forma sempre aponta para uma
promessa de resolução holística da crise (...). Na prática, contudo, a promessa messiânica
de regeneração integral do sistema sócio-político não pode ser mais que isso: uma
promessa” (2022, p. 176). O governo de Bolsonaro precisava evitar que a crise, condição
indispensável para sua existência, avançasse até qualquer fratura, pois isso seria o suicídio
de governo e projeto (Cesarino, 2022). É por isso que uma das marcas daquele modo de
administrar o país foi certa lógica do não: não proteção das terras e povos indígenas, não
celeridade na vacinação contra a Covid-19, bloqueio de verbas das universidades federais,
escolha de um procurador-geral da República omisso etc. É óbvio que cada um desses
nãos gerou uma série de sins destrutivos, no limite assassinos, mas o princípio quase
sempre se fundou, covardemente, no não – ou, quiçá, no des.
Portanto, o risco não era o de uma ditadura, pois um rompimento institucional
definitivo seria a implosão da própria estrutura Bolsonaro.11 Referir-se ao risco de uma
ditadura, como fez um trêmulo Ab’Sáber, é compreensível, pois o temor do totalitarismo
à moda antiga faz parte de nosso repertório político, e ainda não foi possível conceituar
com precisão o que personagens como Bolsonaro, Trump, Erdoğan, Modi e Orbán
acionam, cada um a seu modo. Alguns deles se aproximam mais das práticas da velha
ditadura, outros menos, e por isso tateamos conceitos ainda frágeis, como democracia
iliberal e populismo de extrema direita.
*
Volto, quer dizer, chego, enfim, ao inominado (inominável?) 8 de janeiro de 2023. Uma
razão escandalosa para aquilo não ser entendido como tentativa de golpe é a inexistência
simultânea de plano, liderança e alianças – tanto que, já na noite do dia 8, nenhum quadro
político brasileiro, nem os que ainda se ligam a Bolsonaro, quis se vincular àquela versão
macabra de bebê de Rosemary. Uma mostra da completa inconsciência acerca de uma
É por isso que há um fundo de verdade quando o ex-presidente se refere às famigeradas “quatro linhas
da Constituição”. Uma ressalva importante, contudo: é claro que havia desejo, em Bolsonaro e alguns dos
seus, de ficar no poder, torcendo a legalidade, apropriando-se dela. Essa aspiração tem a ver, por um lado,
com a noção de que a lei deve estar a serviço dos valores dessa gente cujo epítome é o “cidadão de bem” –
isso ficou bastante claro aquando do desmascaramento da profunda corrupção que marcou a operação LavaJato, que, ao contrário de sujar a imagem de um Sérgio Moro, apenas forneceu argumentos a quem já o
percebia como alguém pouco cioso da letra da lei. Por outro lado, querer ficar no poder ao arrepio do que
disseram as urnas é mais um traço do consumidor endinheirado e do macho abandonado, pois aponta para
uma relação privatista com o público (caso do consumidor) ou com outra pessoa (caso do macho).
11
possibilidade qualquer de resultado, uma síntese descabelada da ausência de um mínimo
esboço de propósito, é a frase que certa mulher, com passagem pregressa pela polícia, se
gravou dizendo: ela ia, segundo a própria, “pegar o Xandão”. Nem Alexandre de Moraes,
nem um mísero buraco de alguma possibilidade golpista seria pego. E o espanto, em
grande medida didático, é que isso não fazia a menor diferença.
Outros motivos pelos quais aqueles acontecimentos em Brasília não perfizeram
um golpe de Estado já estão, suspeito, mais ou menos claros, e 2016 pode ser realmente
iluminador: golpes, atualmente, têm de usar gravata ou toga, adotar muitas mesóclises e
ganhar uma mídia mais ascética, ao menos na aparência, que a de algumas décadas atrás.
Não se faz golpe quebrando tudo, não pega bem, não funciona. E se o suposto golpe tem
a ver com Bolsonaro, menos ainda: o bolsonarismo não resistiria a uma ruptura da ordem
do golpe. E as Forças Armadas, vimos, precisa se equilibrar num quase mutismo ambíguo,
já que perdeu as chaves do poder que lhe foram dadas pelo seu mais infame representante.
Esta minha hipótese de entender o 8 de janeiro, como eu disse, passa pela
crueldade, e, consequentemente, pelo ressentimento, motor da crueldade daquelas mãos
e braços. Insisto, com João Freire, no “mais prodigioso arquivo e tribunal de experiências
e de manifestações emocionais – controversas, proscritas ou legitimadas socialmente”. O
ensaísta se refere à internet, e a internet é uma espécie de metonímia de um aspecto central
da nossa contemporaneidade: uma aceitação explícita, de limites ainda por definir, do
emocional. Nossa época valoriza noções como afeto e acolhimento, que se associam a
certo humanismo, à primeira vista, associável à esquerda. Contudo, temos perdido de
vista que o afeto, ainda mais em tempos de ciberesfera como realidade cada vez mais real
(e mais real que outras), não apenas acolhe, mas destrói, porque pode ser (não
necessariamente é, mas pode ser) porta entreaberta para a irracionalidade.
O resumo que acabo de fazer é grosseiro. Infelizmente, já que o espaço é limitado,
assim como o braço do autor que escreve estas linhas, não faço nenhuma genealogia do
afetivo, do emocional, na história recente. Mas parto dali para o ressentimento e a
crueldade: tanto uma como o outro se ligam a afetos, enquanto um golpe de Estado é ação
política. Manuel Castells nos lembra que “a política é fundamentalmente emocional, por
mais que isso pese aos racionalistas ancorados em um Iluminismo que há tempos perdeu
seu brilho.” (2018, p. 26). Sim. Mas a emoção política tem tocado níveis estratosféricos,
invadindo um território que já não é emocional, mas irracional, e mesmo que a política
seja “fundamentalmente emocional”, se não houver ideias em jogo não existe política
alguma.
Os afetos que moveram aquela gente pendularam do ressentimento para a
crueldade, que se ligam, já vimos, à covardia. Um golpe de Estado como soía prevê
confrontação; um mais atualizado, “aparência de normalidade”. Pois bem, o 8 de janeiro
não teve confrontação nem normalidade. Não comentarei as raras resistências policiais à
depredação, tampouco o papel da polícia de Brasília na não confrontação. Mas é fato que
não houve praticamente nenhum confronto. Se pensarmos na invasão ao Capitólio,
ocorrida quase literalmente dois anos antes, a 6 de janeiro de 2021, pensaremos na
ocorrência, lá, inclusive, de mortes. Aqui, mal houve ferimentos.
O ressentimento é uma covardia moral. A crueldade, uma prática covarde. Para
Schopenhauer (2001), o contrário da crueldade é a compaixão, e não nos custa concluir
que a falta de compaixão pressupõe a impossibilidade da alteridade. A compaixão, como
o étimo revela, implica dividir com outrem a sua dor; logo, implica que se considere o
outro como alguém que sente dor – reconhecer uma dor alheia é uma das bases para o
cuidado com a vida animal. Contudo, o reconhecimento da dor do outro exige o
reconhecimento do outro como, se não igual, ao menos capaz de ombrear conosco em
algum nível. E o reconhecimento do outro como dotado de alguma igualdade nos obriga
a admitir sua subjetividade. Isso é quase impossível se não admitimos a nossa própria –
estou pensando, claro, na não subjetivação da pessoa ressentida, o que a leva, no limite,
à completa atrofia do desejo.
O 8 de janeiro não foi golpe: foi uma destruição eivada de crueldade. O que
aquelas criaturas visavam atingir era um bloco multiforme composto por espectros: do
comunismo, do Lula, de minorias as mais diversas etc. etc. etc. Um dos aspectos mais
espantosos das imagens daquela tarde é a expressão de certas pessoas enquanto
quebravam coisas: muita gente sorria, muita gente vibrava – como essa gente elabora o
desejo? Como deseja? O quê? Se não há outrem, onde o desejo é posto? Em 2016, Flávio
Bolsonaro foi candidato à prefeitura do Rio de Janeiro. Durante um debate televisivo, o
atual senador sentiu-se mal e desmaiou diante das câmeras. Ato contínuo, a médica
Jandira Feghali, candidata do PCdoB, correu, como manda a ética da sua profissão, para
ajudar o adversário, mas viu Jair Bolsonaro, que estava na plateia, impedir o gesto de
cuidado com seu filho mais velho.
Como ler essa recusa? Como a vitória do ódio sobre o amor? Não. Claro que o
gesto de Bolsonaro tem ódio, mas não é bem esse o diapasão que me interessa. Leio a
cena pelo viés da alteridade. Jair Bolsonaro é o paroxismo de uma covardia moral, pois
representa toda a impossibilidade do ato de reconhecimento, inclusive do
autorreconhecimento, e essa impossibilidade marca o ressentimento e seu trânsito para a
crueldade. Nesse lugar, não existe nada ou ninguém alter, ou seja, diferente, e o desejo,
já que perguntei acima onde ele é posto por aquela gente destruidora, se move na
diferença, na falta. É que o sujeito, repito com Maria Rita Kehl, “atreve-se a pagar o preço
por seu desejo e, portanto, a investir em escolhas ‘desejantes’”: sem subjetividade (de
preferência uma que tenha abertura), não há desejo, não há falta, não há outrem. Se
Bolsonaro não tentasse impedir a ajuda de Feghali, imediatamente reconheceria aquela
mulher, médica, comunista como alguém, em sua imensa diferença, reconhecível,
portanto, igual, nem que seja tão somente na condição de ser vivo. Aí ela se tornaria tão
somente uma adversária, e entraria num regime de realidade relacional que desbarataria
princípios sem os quais o bolsonarismo não consegue se sustentar.
Faz sentido também pensar na suspeita de Kehl que liga o bolsonarismo a um total
alheamento da associação entre democracia e festa. Quem destruiu naquele dia 8 vivia
uma espécie de êxtase, mas totalmente fundado na “servidão voluntária”, não numa
vontade de revolução, menos ainda de congraçamento comunitário. Então não era êxtase,
porque a alegria estava a imensos quilômetros de distância daquela Brasília, nem loucura,
mas irracionalidade imbecilizada – ou um nível de incapacidade alterizante que leva a
dissociação cognitiva a um nível jamais imaginado.
O bolsonarismo não quer, nunca quis, o combate. O que quis, quer, é varrer as
alteridades que lhe pareçam ameaçadoras. Por isso é que o único gesto realmente violento,
coletivamente impetrado em nível mais relevante, que o bolsonarismo conseguiu realizar
foi contra coisas. Se pensarmos na simbologia daqueles objetos, perceberemos que muitos
deles, das togas dos juízes do STF a Di Cavalcanti, têm uma significação que toca, mais
ou menos diretamente, o coletivo, extrapolando sua condição meramente material.
Contudo, malgrado esse gradiente simbólico, tratava-se ainda de coisas, ao menos num
aspecto: elas não poderiam reagir aos ataques. Claro que aquela gente queria atingir, e o
via de modo muito borrado, o tal bloco multiforme, mas atingiu coisas.
Isso me devolve a Schopenhauer e, agora, à sua intraduzível noção de
Schadenfreude, que indica a alegria que o infortúnio de outrem pode causar. O filósofo
alemão (2001) diferencia a crueldade ativa da passiva, e a Schadenfreude está mais ligada
a esta última, pois o cruel nada faz para causar dano, apenas se alegra com o sofrimento
de outrem, geralmente mal querido. Nietzsche talvez não concordasse com a associação
da Schadenfreude com a alegria, a não ser que fosse uma alegria suja, em nada afirmativa,
e aí já não seria alegria. Seja como for, trata-se de uma covardia, pois a crueldade passiva
que goza com a dor do outro, além de ser quase necessariamente ressentida, pois incapaz
de protagonizar o gesto de vingança, evita o combate a todo custo. Aí eu penso: qual a
relação da Schadenfreude com o 8 de janeiro? Em princípio, nenhuma, pois aquela
multidão agiu. Mas a nuance importante reaparece: agiu contra objetos, certamente contra
uma simbologia, mas não se propôs a um real enfrentamento. Então, será que não houve,
naquela crueldade aparentemente ativa, um fundo de crueldade passiva, um odor de
Schadenfreude?
Além do mais, posso arriscar que os bolsonaristas, ao menos os que a imprensa
convencionou chamar de radicais,12 perfazem uma estranha mistura entre três tipos: a
criança mimada que não aceita perder no jogo, pois ainda não construiu plenamente sua
subjetividade e não pode, portanto, elaborar fortemente a alteridade (além do mimo,
evidentemente, que atrapalha tudo); o macho abandonado pela amada que, ferido em seu
narcisismo masculinista, reage matando-a, pois ela não é alguém, é algo, e tem dono; e o
consumidor, que tem muito de criança mimada e um pouco de macho ferido: quer tudo,
quando não gosta quer trocar, quando não se satisfaz se revolta – ainda que,
diferentemente do macho desesperado (que tem também traços da criança mimada), o
consumidor sempre pode partir pra outra.
Esse tipo complexo mas muito simplório só poderia mesmo destruir, jamais
enfrentar. Tanto que, depois de a PM assumir o controle da situação, já com a intervenção
na segurança pública do DF decretada pelo governo federal, o que se via era um
bocadinho cômico, quer dizer, ridículo: a mesma gente que manifestara força contra
coisas era apascentada, ordeiramente, para fora da Esplanada dos Ministérios. Jamais a
metáfora bovina foi tão imageticamente adequada: os agressores, ressentidos e cruéis,
voltaram à sua condição de rebanho, obedecendo sem qualquer pirraça às ordens oficiais.
Tampouco houve rebelião dentro dos ônibus que prenderam centenas: todo mundo foi,
bonitinho, aonde a polícia mandou.
*
Felipe Catalani arriscou uma hipótese interessante. A partir do final dos anos de 1970,
início dos 80, subjuga-nos uma realidade política neoliberalizada, na qual o trabalho se
12
O bolsonarismo, em certo sentido, é radical ou não é bolsonarismo. O fenômeno é de extrema direita,
não franqueia espaço para nuances. Mas entendo, ainda que meio contrariado, que existam eleitores e
eleitores de Jair Bolsonaro, isto é, mais de uma porta permite o acesso a essa escolha, e nem todos
concordam com o que aconteceu em 8 de janeiro – ainda que essa discordância me pareça incoerente.
enche de sofrimento e mesmo governos de inclinação dita “progressista” normalizam
absurdos. Esse cenário, segundo o autor, pode ser lido com a ajuda da interpretação que
Hanna Arendt formulou em seu Eichmann em Jerusalém. Arendt viu que Adolf
Eichmann, durante o julgamento desse que foi um dos agentes nazis mais importantes,
praticava sua maldade como um funcionário: ele não agia, mas simplesmente trabalhava,
em grande medida burocraticamente. Por isso a “banalidade do mal”, que invertia,
inclusive, uma lógica mais habitual da tentação – nos casos de Eichmann et caterva, a
tentação não correspondia a praticar o mal, monstruosa, diabolicamente, pois o mal era
seu trabalho mais vulgar, mas em resistir a ele. Uma tentação angelical, podemos dizer.
O texto de Catalani apresenta uma arriscada proposição:
Sem o teor teológico e de modo bastante terreno, vivemos uma peculiar desbanalização do
mal, de modo que o mal passa a ser vivido enquanto mal. Arriscaria dizer que essa é a alma
do novo inconformismo de direita, que possibilita uma reabilitação da crueldade em um
outro nível. A crueldade, extraída do chão social onde foi germinada, é levada ao âmbito da
política. A política enquanto transgressão, a política que desconhece limites (...) ressurge
enquanto desbanalização de um “mal” já fermentado no seio da máquina do mundo. Essa
possibilidade de viver o mal enquanto mal é experimentada enquanto liberação, pois é dada
às pessoas a possibilidade de serem perversas. (2021, p. 163, grifos do autor)
A extrema direita em sua versão brasileira faz isto: reabilita a crueldade levandoa a outro nível, que é o da política. Um pouco depois, escreve Catalani: “Destrói-se, matase com certo gosto pela gratuidade do ato, dada sua efemeridade e a ausência de futuro”,
o que causa não “um extermínio altamente racionalizado, tecnicizado e eficiente, mas um
deixar matar e deixar morrer” (p. 164). Penso outra vez no tesão bolsonarista pelas armas
de fogo: quem pode matar? Quem morrerá no caos de um Brasil de extrema direita? Não
se pode perder de vista a gratuidade dos atos, pois não há futuro, logo não há um projeto
bem acabado. Nesse caso, como o 8 de janeiro seria tentativa de golpe? Um golpe é um
projeto, e trabalha necessariamente com algum vislumbre de futuro. Mas a crueldade, o
mal desbanalizado, não. A crueldade e o mal dimensionam seu ressentimento matriz em
exercícios gratuitos, que não criam nenhum futuro mas alteram profundamente a
realidade, tirando dela justamente a possibilidade, muitas vezes jubilosa, extática, do
viver comunitário.
Escrevi, no começo deste texto, que haveria limites rígidos para minha proposta, mas que
eu apostava em alguma fresta. Agora, no final, deparo-me com uma tarefa que se nos
apresenta hoje. Diante da mentalidade destrutiva, ressentida e cruel que move a parte de
Brasil que o 8 de janeiro representa, é muito difícil fazer política. É que, repito, não há
contraditório, nem adversário, nem confrontação – menos ainda debate, disputa, e nem
sombra da possibilidade de reconhecimento. Qual, então, a tarefa? Fazer política em
tempos de pós-política, usar a palavra contra a crueldade, insistir no reconhecimento e no
cultivo de alguma igualdade.
Uma aporia cívica?
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