artigo
Da colonialidade do ver ao cinema indígena:
apontamentos sobre a (contra) colonialidade
em Abya Yala
1
DOI
http://dx.doi.org/10.11606/16789857.ra.2022.201158
Marcos Aurélio Felipe
Universidade Federal do Rio Grande do Norte | Natal, RN, Brasil
aurelio.felipe@ufrn.br | https://orcid.org/0000-0002-5529-0100
resumo
palavras-chave
Qual é o mundo histórico (re)elaborado pelas cinematografias indígenas à contrapelo aos regimes de visualidade constitutivos da colonialidade do ver sobre os povos
originários de Abya Yala? Analisamos a (des)construção imagética do Outro, a partir
dos estudos pós-coloniais, antropológicos e de cinema. Focamos nas formas visuais
da iconografia, da fotografia e do filme, tensionadas pelo cinema indígena por um
processo de reversão formal que enseja outras variáveis históricas. Concluímos que o
cinema originário se apresenta em contraposição às perspectivas antropométricas da
pintura, da fotografia e do filme etnográfico, com operações de contracolonialidade
identificadas em obras de Vincent Carelli, Ana Vaz e Paloma Rocha e Luis Abramo; de
Takumã Kuikuro (Alto Xingu), Luis Tróchez Tunubalá (Misak), Francisco Huichaqueo
(Mapuche), Álvaro e Diego Sarmiento (Quéchua) e do Coletivo Guajajara (Jocy e
Milson).
Cinema indígena;
Colonialidade
do ver; Povos
originários;
Regimes de
visualidade;
Retratos
antropométricos
From colonialitiy of seeing to indigenous cinema: on (counter)coloniality in Abya Yala
abstract What historical world is (re)elaborated by the indigenous cinematography in opposition to the visual regimes that constitute the
coloniality of the gaze toward the First Nations Peoples of Abya Yala? The article analyzes the imagistic (de)construction of the Other, starting from
post-colonial, anthropological, and film studies perspectives. It focuses on the visual forms of the cinematographic, photographic and iconography, as construed by the cinema of First Nations Peoples, through the process of historical-formal reversal, giving rise to other historical variables.
As conclusion, it points out that indigenous cinema presents itself in opposition to the cinematographic, anthropometric perspectives of painting,
photography, and ethnographic film, with mechanisms of counter-coloniality. Such a mechanism can be identified in the works of Vincent Carelli,
Ana Vaz and Paloma Rocha, and Luis Abramo, Takumã Kuikuro (Upper Xingu), Luis Tróchez Tunubalá (Misak), Francisco Huichaqueo (Mapuche),
Álvaro and Diego Sarmiento (Quechua) and the Guajajara Collective (Jocy and Milson).
Rev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 66: e201158 | USP, 2023
keywords
Indigenous cinema. Coloniality
of the gaze. First Nations
Peoples. Visual regimes.
Anthropometric portraits.
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2
O manto tupinambá ganho comprado furtado, quem
saberá? – sabemos, é um ninho preso às paredes de outro
continente. Depois de séculos, apesar do vidro que lhes tira
o oxigênio, o vermelho sangue do guará e o azul oceano da
araruna segredam algo que excede o museu nacional de Copenhague. Todo algodão e envira, o manto tem a dimensão da
mata – vale pagar o ingresso para ver o vidro, jamais o espírito
que incendeia o egoísmo do alarme? O manto rol de esferas
arde de tanta memória. Seu lugar não é aqui, será, quem sabe?
no limo que molda todos os corpos. Imagine se insuflado no
ar rarefeito o manto se abrisse. Que tese posta à mesa explicaria os mortos, vivos enfim, em resposta ao rapto das almas? O
manto quer voar para casa. A morte de seus filhos torna inútil
sua permanência. É preciso que ele se perca para acusar os assassinos. Ante essa inominável memória algo será reiniciado
– a raiz do que já não é árvore, mas frutifica – o rugido do que
não é onça, mas afia as garras – a umidade do que não é chuva, mas afoga a mão criminosa. Exilado num continente onde
avós, para irem ao cinema, colam os netos à sombra, o manto
reflete sua natureza – ágil urna em território de neve. Ao redor
do vidro, línguas tecem em silêncio por respeito ou desprezo,
não sei – sabemos. Entre aqueles que fiaram o manto, um canto se alonga alheio ao seu sequestro. Sobre a terra desolada
um pássaro voa. Num filme etnográfico chama os culpados
pelo nome. Haverá, diante disso, ossos suficientes para serem
atirados contra o vidro? O manto tupinambá é um ninho na escuridão do mundo – respira num oceano de espelhos a sua ira.
Edimilson de Almeida Pereira
(poema De volta ao sol, 2019)
Esto hace que se sigan multiplicando las formas de intervención creativas y críticas dentro de análisis sobre la colonialidad y la decolonialidad, y que continúen surgiendo distintas
formas de aproximarse a los temas, al igual que nuevas áreas
donde detectamos el “virus” de la colonialidad.
Nelson Maldonado-Torres (2018: 17)
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Introdução
Qual é o mundo histórico (re)elaborado pelas cinematografias indígenas de Abya
Yala1 à contrapelo aos regimes de visualidade coloniais ou de colonialidade? Nesse
percurso, nossa abordagem se alimentará dos estudos de cinema e pós-coloniais, da
antropologia e das epistemologias originárias, pois esse é um campo que, necessariamente, requisita as categorias do cinema documentário, etnográfico e pós-colonial, da antropologia (histórica, visual e fílmica), da história (do colonialismo, do cinema, da arte) e da crítica pós-colonial (especialmente, em sua vertente decolonial).
Como assinala Cunha (2016), dos viajantes aos pintores acadêmicos do Século XIX,
trabalhos incontornáveis sobre a imagem do índio já foram escritos; e se, justamente por isso, não retornaremos aos regimes visuais coloniais, o cinema originário tem
se apresentado como artefato propício para se aprofundar essa problemática, ainda que, desde os anos 1990-2000 (Gallois e Carelli, 1991; Caixeta de Queiroz, 2008),
venha sendo no Brasil bastante estudado, sobretudo, a partir dos anos 2010, pelo
Grupo Poéticas da Experiência (FAFICH-UFMG) (Brasil, 2013; Guimarães, 2020; Guimarães e Flores, 2020); e, mais recentemente, por outros pesquisadores (Alvarenga,
2017; Belisário, 2018; Araújo, 2019; Felipe, 2020a).
Ao delinearmos os regimes de visualidade, conceitos como “contracolonial”
e “contracolonialidade” são centrais. Se, por um lado, encerram campo de atração
para categorias que orbitam seu entorno, como “colonialidade do ver” e “regimes de
visualidades”, por outro, organizam a tessitura fílmica indígena a partir do que se
constitui como pragmáticas fílmicas reversas. Nesse percurso, com Guimarães (2020),
localizamos as dimensões das “estéticas contra-colonizadoras” no cinema, especialmente quando situam os filmes no processo de resistência e luta pelo direito ao território e ao patrimônio cultural das comunidades. Com operações de reelaboração
do mundo histórico, compreendemos que essas estéticas contra-colonizadoras, enraizadas “desde dentro”, fundam-se em dimensões políticas e cosmológicas.2 Mas,
se a descolonização é um momento da história de libertação dos povos colonizados,
a partir do final da primeira metade do Século XX, a decolonialidade é ato permanente, pois traços materiais, epistêmicos e simbólicos do colonialismo se estendem
no tempo e marcam da modernidade ocidental, mesmo após o “fim” dos impérios
coloniais.
Portanto, se relativiza o “pós” de pós-colonial, situado como etapa histórica
e não como término dos domínios de poder, opressão e negação do Outro; contracolonial e contracolonialidade se articulam em confronto às perspectivas dos Estados-nacionais, seja no campo do político ou do simbólico. Como assinala Cusicanqui
(2015: 227-228), “la violencia de la conquista se formuló [também] en términos de
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1 | Termo do povo Kuna para
o continente americano.
2 | Em estudo anterior sobre
a perspectiva Mapuche de
Myriam Angueira, foi possível
adentrarmos os espaços
cosmológicos do cinema
indígena (Felipe, 2021a).
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una disputa simbólica. [...] Los unos entendieron su tarea como la de dominar y extirpar. Los más la entendieron como um gesto de restitución y reconstitución”. Em
consonância com esse contexto, com Gallois e Carelli (1991), compreendemos que
a contracolonialidade também está no preciso controle da imagem que os povos
originários têm sobre si: as que se destinam aos brancos e as que são produzidas
para outros indígenas – que, permanentemente, revisam os arquivos coloniais para
definirem o que deve ou não se inscrever nos filmes. Chamam ainda atenção para
a desconstrução das imagens fundadas na fascinação da ancestralidade e em certo
culturalismo, e, principalmente, para a importância do “ponto de vista do nativo”, a
quem o cinema deve se abrir para suas demandas e para a colisão das suas percepções com as perspectivas nacionais.
Nosso objetivo aqui é analisar situações específicas entre os regimes de visualidades coloniais e, em contraponto, o(s) cinema(s) indígena(s) em Abya Yala,
tensionando questões postas pela pintura, a fotografia e o filme etnográfico, do Século XIX a meados do Século XX. Ainda como lembra Cunha (2016), ressalvamos
que, distante de qualquer pretensão em realizar uma pesquisa minuciosa ou traçar um panorama da iconografia do período, limitamo-nos buscar filmes e imagens
que se coloquem em contraposição aos regimes vigentes. Nesse sentido, o corpus
desta pesquisa não almeja a totalidade, mas recortes iconográficos, fotográficos e
cinematográficos que apresentem modos (contra)coloniais sobre o mundo histórico. Assentamos ainda que as perspectivas fílmicas indígenas, ao confrontarem o
fantasma do colonialismo, constituem-se em processos contracoloniais de reversão
histórico-formal, que analisamos a partir de obras de Vincent Carelli (Vídeo nas Aldeias, VNA); Ana Vaz, Paloma Rocha e Luis Abramo; dos realizadores Jocy e Milson
Guajajara; Takumã Kuikuro (Alto Xingu); Luis Tróchez Tunubalá (Misak) além de
Francisco Huichaqueo (Mapuche).
Igualmente fundamental é o conceito de colonialidade do ver (Barriendos,
2011): maquinaria heterárquica de poder – que perdurou por séculos e que, desumanizando os povos indígenas, tem na imagem canibal (do exótico, do selvagem,
do bárbaro, do antropófago, do fantástico) operador de inferiorização, racial e epistemológica. Por isso, para Barriendos (2011: 16), em sua atemporalidade, a colonialidade do ver encerra “una serie de superposiciones, derivaciones y recombinaciones
heterárquicas, las cuales interconectan, en su discontinuidad, el siglo XV con el siglo
XXI, el XVI con el XIX”. Ocupado o Novo Mundo, os regimes de visualidade se organizaram em torno de “una doble estrategia visual/ontológica: el hacer aparecer al
objeto salvaje (el no-ser caníbal) y, al mismo tiempo, el hacerse desaparecer como
sujeto de la observación”. Por extensão, o Outro “sólo debe hacerse visible como una
forma de negación de su existência [...] [em uma operação de] exclusão inclusiva del
‘mal salvaje’ (es decir, en hacerlo desaparecer como sujeto, a través de hacerlo visible
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como objeto)” (Barriendos, 2011: 21-22-23). Em termos metodológicos, é necessário
evidenciar, genealógica e matricialmente, as estruturas da colonialidade do ver e os
dispositivos contracoloniais, a partir dos vários modos e formas visuais coloniais, o
que tentamos materializar em uma análise sempre mediada pelas abordagens antropológicas, pós-coloniais e fílmicas.
Regimes de visualidades coloniais
A partir de 1492, com a invasão da América, o colonialismo ganhou várias
facetas e, quando incidiu sobre os povos indígenas, instituiu formas de compreendê-los para controlá-los. Em um compasso biopolítico, que expurga a contraparte
bárbara, a eliminação de outros modos de vida se encontra nos processos de compreensão e controle, com o poder de erradicação que as guerras, a escravidão e as
epidemias encerraram e com conceitos postiços, como etnocídio e aculturação. Até
porque, seguindo os historiadores argentinos (Delrio; Escolar; Lenton; Malvestitti,
2018), o etnocídio é uma das etapas do genocídio ameríndio, que se correlacionam
e não constituem fenômenos distintos, mas uma biopolítica3 entre a política do conhecimento, da negação de outros saberes e epistêmes. Se pensarmos a perspectiva
pós-colonial, a invenção do Outro, modulada pela ideia de raça, aparece como significativo eixo analítico e exercício de poder, pois, para Mbembe (2018: 18), raça é uma
categoria que constitui “a sombra sempre presente no pensamento e na prática das
políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade
de povos estrangeiros – ou a dominação a ser exercida sobre eles”.
Esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica [...]. Afinal de contas, mais do
que o pensamento de classe, a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática
das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de
povos estrangeiros – ou a dominação a ser exercida sobre eles. (Mbembe, 2018: 17-18).
Com isso, estabeleceu-se a divisão hierárquica entre raça superior europeia e
raça inferior indígena, controlando as subjetividades, a cultura e a produção de conhecimento, reduzindo os povos originários à categoria “índio”: “identidade racial, colonial, negativa” (Quijano, 2005: 116). Nesse contexto, as dimensões do colonialismo
interno e no presente são centrais à perspectiva decolonial, que prefere o uso de colonialidade em suas várias dimensões: do poder, do ser, do saber – e, com Barriendos
(2011), acrescentaríamos, del ver. Em seu invólucro, como lembra Mbembe (2018: p.
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3 | Nos termos de Mbembe
(2018), a biopolítica exerce o
direito sobre a vida e sobre
a morte dos sujeitos.
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5-6, 10), sem o pressuposto do estado de direito, o espaço colonial foi locus mais que
propício para o exercício da soberania e da biopolítica: “aquele domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle”, “a instrumentalização generalizada da
existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”. Com
a iconografia, depois a fotografia e o cinema, conhecer e anular o Outro passaram
pela adoção de uma métrica colonial no campo das visualidades. O que contribuiu
para o aplacamento da agência indígena, com procedimentos de classificação, categorização e redução de povos tradicionais a condição de objeto. Sendo as relações
coloniais moduladas para eliminar a diferença, nesse front, os regimes de visualidade constituíram-se como artefatos de colonialidade próprios da modernidade, que,
não por acaso, Maldonado-Torres esgarça suas dimensões excludentes.
La modernidad es, de manera muy fundamental, un cierto tipo de actitud frente al tiempo
(un tiempo propuesto como moderno frente a uno antiguo o primitivo), al igual que una actitud con respecto al espacio (propuesto de forma hegemónica como espacio vacío que espera
a ser descubierto, manipulado o usado), y actitud con respecto a uno mismo y al otro (un yo y
otro diferenciados de múltiples maneras y definidos como aptos o no aptos para vivir en un
ambiente espacio- temporal como el antes descrito). (Maldonado-Torres, 2018: 20).
Em contraponto, apresentam-se as cinematografias indígenas como pragmáticas fílmicas reversas em um processo de contracolonialidade e decolonialidade do
ver.4 Se traçarmos caminho inverso, do início do século XX à colonização, a Comissão
Rondon é um marco das políticas da colonialidade do ver. Ao criar, em 1912, a Secção
de Cinematographia e Photographia, responde por um significativo acervo visual, no
qual os redutores de colonialidade se encaixam, em certa medida, no que Russel
(2007) chama de evocação pastoral ou etnografias do salvamento, quando situou os
povos tradicionais distante da contemporaneidade. Ao todo, produziram 12 filmes e
1515 fotografias/fotogramas, publicados na série de livros Índios do Brasil (1946, 1953
e 1956) (Tacca, 2001). Sob a direção do major Luiz Thomaz Reis, registram as expedições do Marechal Rondon, cuja missão era implantar as linhas telegráficas do Mato
Grosso, passando pela região amazônica, às fronteiras sul-americanas. Do Serviço
de Proteção ao Índio (SPI) a Inspetoria de Fronteiras (1934-38), esse acervo revela povos isolados, com pouco contato com a sociedade nacional e o “reencontro” com comunidades indígenas – na ótica dos desbravadores – do tempo do Descobrimento.
Conforme trabalhadas por Fernando de Tacca (2001), desses filmes, fotografias e fotogramas emergem três categorias imagéticas: o índio como selvagem, pacificado e integrado.
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4 | Ainda que reconheça a
distinção feita por José Jorge
de Carvalho (2023), vinculando
o primeiro conceito aos
povos que, na pele e na carne,
sofreram os efeitos diretos
do colonialismo e o segundo,
aos insurgentes pertencentes
aos grupos colonizadores
que recusam, contracolonial
e decolonial aqui são
livremente utilizados como
processos – simultâneos – em
contraponto à colonialidade da
contemporaneidade ocidental.
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Painel 1. A métrica do filme etnográfico
Fonte: Ronuro, selvas do Xingu
(1924) | © Luiz Thomaz Reis
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Da condição tribal à civilização, operando por redes de escolhas, alterando e
ausentando o real, as lentes de Thomaz Reis constituem um regime de visualidade
que não encontra reflexo no mundo indígena contemporâneo. Focando no contexto Bororo, excluem as situações de contato com os Salesianos e entregam a imagem
canibal, como se testemunhassem resíduos arqueológicos vivos no presente. Ao ser
produzidos na República, esses filmes não legavam mais visões coloniais do Outro,
mas visões escópicas de colonialidade, o que evidencia, pensando com Barriendos
(2011: 24), “[...] a força política e epistêmica da diferenciação entre regime colonial,
colonialismo e colonialidade”. Entre a imagem pré-cabralina e o civilizada, os filmes
constroem, assim, a imagem do índio conforme a etapa da conquista, com uma oscilação apenas aparente, pois “o índio travestido surge como apologia final de uma
narrativa fílmica e fotográfica em um contexto aventuroso na selva [...] [com Rondon
sendo] a cabeça-de-ponte para que essa relação aconteça pacificamente e se encarregue de apresentar o nosso mundo para os ‘selvagens’” (Tacca, 2001: 56-57).5
Se analisarmos a iconografia na História do Brasil, outras categoriais ampliam
a métrica dos regimes de visualidade redutora da agência indígena na história: ora
índios enobrecidos, com certa fidalguia e longe do nomadismo,6 ora índios coloniais
e bravos, a ser reconstituídos à semelhança do colonizador. Identifica-se ainda, à
exemplo da imagética rondoniana, o índio etnificado, localizado nas fronteiras e
florestas, do tempo do Descobrimento. Como a variação das categorias se ancora em
contextos específicos, os regimes de visualidade se organizam como regimes de memória, cujas peças integram uma totalidade a partir de uma arquitetura de memória7.
Se constituem visualidades coloniais (ou melhor, de colonialidade) sobre o mundo
originário, constituíram-se, predominantemente, no Brasil do século XIX, especialmente, no Segundo Império, com o projeto de nação – de unificação e eliminação da
diferença. Nesse sentido, para o antropólogo Pacheco de Oliveira (2016), as cenas de
fundação são centrais, com grau elaborado de ritualização, ordenando as situações
e figuras históricas, aproximando temporalidades, reelaborando o passado e ressemantizando personagens e fatos históricos.
Nesse contexto, observa-se que, a partir de 1492, com a chegada das esquadras espanholas comandadas por Cristóvão Colombo, a invasão de Abya Yala é fato,
permanentemente, reconstruído pela colonialidade do ver em seus vários domínios
(iconográficos, fotográficos e fílmicos).
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5 | Tacca (2001) se refere a
uma sequência fotográfica
publicada no volume II de
Índios do Brasil (1956), com
oito fotos apresentando
indígenas nus sendo
vestidos por um oficial.
6 | Esses cinco regimes de
memória são apresentados
em Pacheco de Oliveira
(2016) sobre os sistemas de
silenciamento da presença
indígena na História.
7 | Nos termos de Pacheco
de Oliveira (2016).
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Painel 2. Plano / Contra-plano
Dióscoro Teófilo De la
Puebla y Tolín. 1862. Primer
desembarco de Cristóbal
Colón en América. Óleo sobre
tela, 330 cm X 545 cm. Acervo
Museo del Prado, Espanha.
Jean Leon Gerome Ferris.
1912. The First Thanksgiving
1621. Óleo sobre tela.
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Pedro Pereira. 1999. A
invasão portuguesa. Acrílica
sobre tela com aplicação
de materiais. 160 cm x
145 cm. Acervo FUNCARTE
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O pintor Dióscoro Teófilo De la Puebla y Tolín, no quadro Primer desembarco de
Cristóbal Colón en América (1862), inscreve em óleo sobre tela, na pintura e na história,
o desembarque de Colombo em Abya Yala como um evento quase etéreo, sagrado
e inevitável. Entretanto, já observamos que, operando a partir de certa ritualização,
a encenação pictórica deixa escapar a dimensão hierarquizada da cena da invasão
ocidental-cristão sobre os territórios dos povos indígenas, com a centralidade e o
protagonismo europeu e o lugar subsidiário dos povos originários diante da grande
História – invisibilizados nas bordas do quadro e, vegetalmente, integrados e diluídos na paisagem. Já o pintor Jean Leon Gerome Ferris (1863-1930), com requinte e
sem pudor, celebrou a primeira comemoração do Dia de Ação de Graças dos Estados
Unidos, em 1621, em uma cena – pictórica e histórica – não menos hierarquizada, a
partir do jogo de poder entre a bondade do invasor e a subserviência dos povos nativos. Assim como na representação dioscoroliano, The First Thanksgiving 1621 (1912)
explora a ocupação colonial sem resistência indígena, simbólica e figurativamente,
alicerçada no poder de corpos sobre outros - na forma como se postam e se colocam
em relação no quadro. Após o contato com 12 comunidades no decorrer de sete anos,
registrados em seus últimos trabalhos sobre os povos amazônicos,8 o fotógrafo Sebastião Salgado imprime com requinte essa condição vegetativa pré-cabralina dos
corpos indígenas nos registros que produziu para a exposição Amazônia, que contava ainda com mapas, fotografias gigantes, projeções e música de Heitor Villa-Lobos.
Com o protagonismo anulado na forma que os apresentam, a materialidade fotográfica está em consonância com sua percepção colonial sobre as comunidades amazônicas, na qual o Outro é idealizado, com certo purismo e habitante
de um espaço paradisíaco. Não por acaso, a experiência de Salgado na Amazônia,
curiosamente, o faz concluir – pasmem – que chegou as origens de sua espécie: “a
comunidade dos humanos, a comunidade Homo-Sapiens”.9 Como marcadores de
colonialidade, que primitivizam e negam a contemporaneidade dos povos originários, as operações imagéticas redutoras perpassam séculos: dos pintores viajantes
a fotografia contemporânea. Em cada registro de Salgado, que já observamos em
outro estudo (Felipe, 2022), emergem corpos majestosos e idealizados, com certa fidalguia e nobreza (Ashaninka); naturais, ramificados e arbóreos (Awá-Guajá);
selvagens e arredios (Korubo) – localizados, quase sempre, em um mundo idílico,
entre paisagens exuberantes e sujeitos exóticos, plasticamente, delineados a partir
dos mesmos típicos claros-escuros estetizantes. Em suma, como assinala Pacheco
de Oliveira, que escreveu sobre a pictografia colonial e do estado-nação brasileiro
nascente (2016: 19), “estetizados e enobrecidos em seus costumes [...] Ao contrário,
do indígena real, caracterizado pela perda cultural e pela condição de miséria”.
Se essa observação se aplica também a fotografia salgadiana, não é meramente uma adequação referencial, pois, herdeira das visualidades coloniais, com
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8 | Imagens do último
projeto de Sebastião
Salgado (Serva, 2017).
9 | “Essas comunidades
indígenas da Amazônia
representam a pré-história
da humanidade” – Sebastião
Salgado no Podcast Matéria
Bruta (Curta!On, 2022).
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uma plasticidade que brilha de tanta pureza, a estética do eminente fotógrafo brasileiro captura um edenismo longe da problemática contemporânea, que cerca e elimina os povos tradicionais, museologizados pela sociedade nacional e combatido
com as novas espadas da mineração e do agronegócio. Jogando com artificialismos,
como a montagem de estúdios na floresta, à exemplo de Marc Ferrez (Painel 3, mais
adiante), que alinha os Bororo a artefatos diacríticos de sua cultura em um estúdio
decorado, o aclamado fotógrafo contemporâneo Sebastião Salgado fixa modelos e
não sujeitos em seu habitat histórico, colocando-os sempre em função do registro
e – sem correr qualquer risco na conclusão – sem nenhuma agência. Em contraposição às obras de Dióscoro Teófilo e Sebastião Salgado, tensionando a história do
contato distante de paisagens seminais e sem fissuras, apresenta-se o trabalho do
artista plástico potiguar Pedro Pereira com o quadro A invasão portuguesa, na ocasião
do quarto-centenário da cidade do Natal (RN).
Além de nomear o acontecimento, a plasticidade radical de Pedro Pereira inscreve a forma como ocorreu a conquista da Terra de Vera Cruz e, nominal e plasticamente, desconstrói o corolário salvacionista do Descobrimento ou, pensando com
Maldonado-Torres (2023), as doutrinas e o paradigma da “descoberta”, oportunas
para a ocupação dos territórios indígenas e o estabelecimento das noções de povos civilizados e selvagens. Trabalhando sobre um contexto geo–plástico–histórico
específico, sua perspectiva pictórica confronta os sistemas naturalizados em um
compasso paradoxal, ao justapor elementos e materiais, o idílico e o horror - e mundos em colisão. A intervenção plástica proposta, com aquele monstro encravado na
superfície de acrílica, gera uma intervenção na paisagem inicial a ser “descoberta”,
que tinha tudo para ser idílica se a violência do domínio sobre o Outro não fosse
problematizado. Ao apresentar o invasor no centro da tela, “com garfos e arames, pinos e barrote de ferro fundido, corporificando Pedro Álvares Cabral, a sobreposição
de outros materiais sobre a matéria pictórica do quadro/paisagem destrói qualquer
natureza pacífica que se queira atribuir a colonização” (Felipe, 2021b). Assim, como
já observamos, desenvolve-se aqui uma abordagem radical da arte à contrapelo às
visualidades coloniais, filiando-se às abordagens revisionistas do colonialismo.10
A métrica da fotografia e do filme etnográfico
Para Tacca (2001), o regime de visualidade do SPI pode ser dividido em dois
momentos: primeiro, o trabalho fotográfico e cinematográfico do major Luiz Thomas Reis; e, depois, a criação da Seção de Estudos, em 1942. O autor observa ainda que maior sistematização da documentação etnográfica ocorreu nessa segunda
fase, com “um arquivo precioso de atividades culturais de grupos já extintos e de
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10 | Anteriormente, em
artigo de divulgação e de
forma sintética, expusemos
nossas impressões sobre
as visualidades coloniais
e o cinema indígena
(Felipe, 2021b).
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grupos indígenas atuais. Com um volume de imagens muito maior do que o anterior
e organizado com critérios objetivos” (Tacca, 2001: 21). Nesse contexto, ao lado de
Heinz Foerthman, Nilo Veloso e Darcy Ribeiro, destaca-se o etnólogo Harald Schultz
(1909-1966, Porto Alegre/RS), com influência de Rondon e do antropólogo Curt Nimuendajú. Membro da Seção de Estudos – SE, Schultz respondeu pela documentação fotográfica e cinematográfica do SPI.11 Observando sua produção, depreende-se
que, se o Outro não era civilizado, era preciso que a imagética chegasse a sua medida, como se os filmes fossem ferramentas de classificação e, portanto, verbetes catalogados sobre a base cultural dos povos. Como já observamos em outro momento, Schultz elaborou o intricado plano de trabalho de 1942, que, se, a princípio, são
diretrizes para a fotografia, aplicaram-se aos filmes etnográficos do SPI, cujos parâmetros, no “elogio” de Tacca (2001), davam conta minuciosamente da construção de
uma casa xinguana ou de um ritual Bororo.
13
11 | Sobre Schultz no SE ver
a tese de Mendes (2006).
a) Vistas gerais e parciais das aldeias, das malocas internas e externas. Sistemas de construção, material empregado. Preparo do material de construção e métodos de empregá-lo.
b) Os índios: fotografias um por um, apresentando de frente, de trás e de perfil, inteiros e
somente a cabeça (tirar medidas etnográfico-antropológicas). Grupos de índios típicos caminhando, sentados, em palestra, no trabalho, pescando, caçando, dançando, lutando, etc. etc...
Fotografias só́ das mãos, dos pés, dos rostos, modo de sentar e de andar, nadar, etc. etc...
c) Vida social, familiar e ritos: festas de nascimento, danças, festas diversas, ritos de óbitos,
casamentos, etc. etc... Higiene e moralidade indígena. Preparo das refeições e refeições.
d) Caça e pesca: métodos de caça, sistemas de pesca. Animais de caça e pesca regionais (seus
nomes indígenas e vernáculos regionais).
e) Cultivo agrícola.
f) Objetos de uso e arte indígena (armas de caça e confecção, canoas e balsas e seu fabrico,
plumagem – fotografar em cores naturais pelo processo Kodachrome).
g) Fauna e Flora regionais.”
(Mendes, 2006: 63-64).
Já tínhamos lembrado em outro momento (Felipe, 2022) que o Institut für den
Wissenschaftlichen Film (IWF)12, da Alemanha, foi pioneiro na realização de filmes
usados como verbetes sobre vários campos da ciência. Não constituíram, na verdade, uma filmografia, a partir de etnografias ou documentos cinematográficos, mas
espécies de catálogos audiovisuais. Na década de 1950, seguindo certa métrica fílmica colonial, Schultz filmou os Huni Kuin (Acre) entre os territórios brasileiros e
peruanos, e, nos anos 1960, realizou diversas produções para o IWF. Os registros dos
Huni Kuin podem ser vistos no documentário Já me transformei em imagem (2008),
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12 | Instituto do
Filme Científico.
artigo | Marcos Aurélio Felipe |
Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
sobre a (contra) colonialidade em Abya Yala
de Zezinho Yube, que reelabora a periodização colonial da história do seu povo,
que, em uma operação de reversão fílmica contracolonial, re-semantiza o “catálogo
schultziniano” de hábitos, práticas e modos de ser.13 Não por acaso, em consonância
com a lógica de produção do IWF, o regime de visualidade schultziniano – cientificista e racializado típicos da colonialidade do ver – transporta, mecanicamente, os
povos originários para um tempo anterior a civilização, à semelhança dos redutores
figurativos de Jean de Léry (1980 [1574]) pensados para a representação de um Tupinambá (dos seus corpos, da sua cultura, da sua base material).
Se quiserdes agora figurar um índio, bastará imaginardes um homem nu, bem conformado
e proporcionado de membros, inteiramente depilado, de cabelos tosquiados como já expliquei, com lábios e faces fendidos e enfeitados de ossos e pedras verdes, com orelhas perfuradas e igualmente adornadas, de corpo pintado, coxas e pernas riscadas de preto com o suco
de jenipapo, e com colares de fragmentos de conchas pendurados ao pescoço. Colocai-lhe na
mão seu arco e suas flechas e o vereis retratado em garboso ao vosso lado. Em verdade, para
completar o quadro, devereis colocar junto a esses tupinambás uma de suas mulheres, com o
filho preso a uma cinta de algodão e abraçando-lhe as ilhargas com as pernas. Ao lado deles
ponde ainda um leito de algodão feito com rede de pescaria e suspensa no ar. E acrescentai o
fruto chamado ananás, que mais tarde descreverei que é um dos melhores da terra.
Esse o aspecto comum dos selvagens. Para imaginá-lo sob outro aspecto, tirai-lhe todos esses
adornos, untai-o com resina e cobri-lhe todo o corpo, braços e pernas, com pequenas plumas
picadas, à maneira de uma crina pintada de vermelho, e vereis como fica lindo assim, todo
coberto de penugem.
Finalmente sob um novo’ aspecto ainda podemos dizer que, deixando-o seminu, calçado e
vestido com as nossas frisas de cores, com uma das mangas verdes e outra amarela, apenas
lhe falta o cetro de palhaço.
Acrescentai-lhe agora na mão o maracá, colocai-lhe na cintura o penacho de plumas denominado araroyé e ao redor das pernas os guizos feitos de frutos e o vereis trajado para a cerimônia
da dança, do salto, da bebida e da cabriola como adiante o mostrarei.
(Lery, 1980: 97-98)
Esse paradigma de classificação do Outro, a partir da esfera das visualidades,
constata-se em outras formas e regimes visuais de colonialidade: os “retratos antropométricos” e os registros de cenários culturais in loco ou em estúdios (cartes
de visite). Antes uma construção da realidade, a serviço de instituições e governos
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13 | Ver análise sobre o
documentário Já me transformei
em imagem, a partir da
concepção de pragmática
fílmica contracolonial reversa,
que realizamos em ouro
trabalho (Felipe, 2022).
artigo | Marcos Aurélio Felipe |
Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
sobre a (contra) colonialidade em Abya Yala
(Gama, 2020), a fotografia antropológica do Século XIX era modulada para impor
uma mise en scène exterior aos povos documentados, de forma ocularcêntrica e buscando no Outro apenas sua objetualidade (Bosi apud Alvarenga, 2017), sem grandes
diferenças, parafraseando Caiuby Novaes (2010), entre o sistema sanguíneo de um
corpo humano e os cantos ancestrais Maxakali, o sistema elétrico de uma usina e a
narratividade a-cronológica Kanôe:14 Nesses regimes de visualidade, com Alvarenga
(2017), podemos dizer que a auto mise en scène do Outro é negada, justamente porque impossibilitam que o sujeito filmado e o sujeito que filma, simultaneamente,
sejam colocados como sujeitos da cena. Em sincronia com o modus ocidental de coisificar a diferença, esses retratos antropométricos marcam os acervos coloniais, com
grupos ameríndios em estúdio posando para o fotógrafo, capturando a cena primal
e o Outro, paramentado ou desnudo, em sua diacriticidade. Nos primeiros casos, as
fotografias invariavelmente são frontais e de perfis, da cabeça e de corpo inteiros,
que podem ser encontradas nos acervos coloniais os mais distintos.
Como assinala Bàez Allende (2018), esse registro buscava a dimensão antropométrica do Outro. Ao caráter artístico, sobrepunha-se uma métrica dos padrões
do corpo humano, das medidas e proporções da diversidade humana, em um século
em que a Europa estava em contato com um número significativo e variado de povos
do globo.
Las fotografías no debían medir menos que 7,62 cm de alto, la persona retratada debía
aparecer completamente desnuda o la más desprovista de ropa que fuera posible y al menos debía hacerse dos vistas de la persona: - de frente: posición firme, aunque con el brazo derecho extendido horizontalmente, la mano abierta, con los dedos extendidos [...]
- de perfil: se debía retratar el lado izquierdo del cuerpo, y el brazo izquierdo debía aparecer
flexionado por el codo, de manera que no interfiriera en la visión del contorno dorsal del tronco ni del perfil de la región pectoral.
(Báez Allende, 2018: 49).
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14 | Vejam os documentários
de Isael Maxakali e Corumbiara
(2009, Vincent Carelli).
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16
Painel 3. Regimes de visualidades antropométricas coloniais
Fonte: Koch-Grünberg, 1923
- Acervo Arquivo Nacional.
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© MARC FERREZ, Índios
Bororo, c.1880 - Acervo
Instituto Moreira Salles.
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© E. THIESSON, 1844
- Casal Botocudo
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Nesse âmbito, a métrica colonial das imagens ganha outros contornos, com
operações particulares, domínio e controle sobre o Outro. Tratando os povos originários como espécimes da ancestralidade, na conclusão de Bàez Allende (2018),
a dupla contradição dos regimes de visualidade antropológicos do século XIX foi
apresentar a grande diversidade humana e, como discurso do poder, consolidar a
ideia de inferioridade ameríndia. Se é verdade que registram modos e formas de
vida, os meios técnicos não deixam de se apropriarem do sujeito fotografado. Azoulay (apud Beiguelman, 2021: 55) chama atenção para os domínios coloniais do corpo
político: “aqueles que possuem e operam os dispositivos e se apropriam dos seus
produtos e os acumulam e aqueles cuja fisionomia, recursos ou trabalho são extraídos”. Não por acaso, os parâmetros de vigilância criminalística, com os retratos de
identificação, sistematizados por Alphonse Bertillon (1853-1914), encontram seus
alicerces “nos elementos antropológicos fundamentales” (Bàez Allende, 2018: 51).
Constituem, assim, uma biopolítica dos regimes de visualidade fundados na colonialidade do ver, a partir do domínio sobre o Outro em suas dimensões físicas e visuais.
Cinematografias indígenas de Abya Yala
Como o cinema indígena, em sua forma contracolonial, constrói estratégias
rumo a um processo de decolonialidade do ver? Em um documentário como Na Misak (2018), ao interpor seu corpo entre o específico e o comum, o cultural e o político,
entre o fato e o feito (Viveiros de Castro, 2017), o realizador Luis Tróchez Tunubalá
entra em confronto com os sistemas de verdades colombianos. Em um contexto de
colonialidade que, para Tunubalá, figura os povos originários como “museus humanos”, desconstrói o quadro clássico da métrica colonial em busca de outras variáveis
históricas. Posicionando-se, em um estúdio de TV, a partir de fragmentos (porções,
detalhes e, discretamente, partes do seu corpo), com a indumentária guambiana,
o seu corpo e a sua voz entram em performance. A partir da intertextualidade, que
joga com os retratos antropométricos, descortina, à contrapelo, a colonialidade do
seu tempo, em seus estigmas e estereótipos, que, em busca da contraparte primitiva, tenta definir o que é e o que não pode ser indígena hoje. Tunubalá problematiza
a questão identitária, a tipicidade requerida e recusa a quadratura da métrica colonial, que tenta imprimir a imagem do “índio” em sua diacriticidade, em seus trajes e
acessórios – já não tão – “originários” – assim.
A perspectiva Misak, recusa a especificidade cultural e assume o que constitui
o “plano central” a todos: o corpo – constitutivo de um habitus, pois, pensando com
Viveiros de Castro (2017), é o que singulariza o ponto de vista. Nos níveis biótico,
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Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
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fílmico e cognitivo, a performatividade de Tunubalá inscreve o corpo contracolonial,
que, ao reverter sua dimensão folclórica, destitui os descritores de Jean de Léry do
século XVI para a representação de um Tupinambá, que, como vimos, deveria ser
figurado nu, com lábios e faces fendidos, orelhas perfuradas, corpo adornado e,
naturalmente, com o seu arco-flecha. Naquela altura, Léry iniciava um regime de
visualidade colonial, com consequências para outras imagéticas coloniais: iconográficas e fotográfica, pictórica e fílmica. Em um segundo momento de Na Misak,
a performance contracolonial de Tunubalá reverte os redutores leryanos, ao impor
um corpo aberto paradoxal em resistência; para, ao despir-se, apresentar sua humanidade, inscrever seu corpo originário e uma etnicidade movediça, mesmo sem o
arco e a flecha e/ou o desiderato fossilizante sebastião-salgadiano.15
Em nossas pesquisas sobre a organização não-governamental Vídeo nas Aldeias (VNA)16, centrada na formação e produção audiovisual de povos indígenas,
foi inevitável o contato com cinematografias de outros povos de Abya Yala. Como
os coletivos e cineastas do VNA, os realizadores Mapuche, Ayamara, Kichwa, Wiwa,
Misak, Quéchua, Navajo e outros, apresentam perspectivas contracoloniais que
chamam atenção por suas operações inventivas, pungentes e cruzadas com outras
dimensões para além das questões comunitárias. Com suas escrituras contracoloniais, entraram em perspectiva os realizadores Quéchua “do” Peru, Diego e Álvaro
Sarmiento (Río Verde, 2016); Mapuche “do” Chile, Francisco Huichaqueo; Kichwa Sarayaku “do” Equador, Eriberto Gualinga; Navajo “dos” Estados Unidos, Angelo Baca
(Shásh Jaa’ – Orelhas de Urso, 2016); Kichwa de Otavalo “do” Equador; e os cineastas da
Corporación RUPAI, dentre outros.
Nesse âmbito, para demarcar o campo das cinematografias indígenas, invariavelmente, são utilizados termos como vídeo indígena, mídia indígena ou cinema
indígena. Sem querer induzir uma leitura purista, o termo “cinema originário”, como
a ele se refere a realizadora Kaiowá Gracielle Guarani, situa artefato mais próximo
às questões fundamentais e às lógicas das comunidades. No entanto, não é nosso
intento aqui definir o que é cinema indígena, apenas chamamos atenção para o seu
lugar como processo contracolonial aos regimes de visualidades de colonialidade.
Nesse âmbito, só é possível compreendê-lo em um contexto de perspectivas cruzadas, que se contaminam e interpenetram-se e, portanto, longe dos essencialismos
que o uso do termo pode pressupor. Um cinema tensionado, sobretudo, pelas problemáticas comunitárias frente aos interesses dos estados nacionais. Não se confunde
com o vídeo comunitário ou com as cinematografias contra-hegemônicas (Shohat
e Stam, 2006), que buscavam retificar o lugar do Outro nos filmes sem a sua efetiva participação. Alimenta-se, outrossim, dos modos convencionais e experimentais
do cinema e, cada vez mais, da arte contemporânea. Ao confrontar a colonialidade
do ver, a perspectiva fílmica originária se alicerça na autogestão da produção das
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15 | Em outro momento,
dedicamos um artigo a
perspectiva fílmica reversa de
Luis Tróchez Tunubalá, a partir
da análise do filme Na Misak
(2016), onde essas questões
foram desenvolvidas em maior
profundidade (Felipe, 2020b)
16 | O VNA foi criado, em 1986,
como projeto de intervenção
do Centro de Trabalho
Indigenista (CTI), e em 2000
transformou-se em ONG e
em “escola de cinema”. Sua
história analisamos no livro
Ensaios sobre cinema indígena
no Brasil e outros espelhos
pós-coloniais (Felipe, 2020a).
artigo | Marcos Aurélio Felipe |
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imagens e na ocupação dos três campos definidores de uma pragmática contracolonial de reversão histórica: “quem filma (cineastas indígenas), o que é filmado (o seu
mundo histórico) e quem é filmado (povos originários)”, como destacamos em outro
trabalho (Felipe, 2020a: 62).17
Nesse sentido, é que nos referimos a um cinema originário, que se movimenta
nessa intersecção constitutiva do sujeito indígena no campo das imagens e distante da objetualidade histórica que lhe encerrava. Cotejando as cinematografias de
Abya Yala, com seus domínios e redes de problemáticas, adentramos pragmáticas
fílmicas em permanente confronto com a colonialidade do ver, a partir das quais os
realizadores se posicionam como agentes de outras variáveis históricas e colocam-se em confronto com “la matriz de colonialidad”, que, para Barriendos (2011: 15),
“subyace a todo régimen visual basado en la polarización e inferiorización entre el
sujeto que observa y su objeto (o sujeto) observado”. Frente aos regimes visuais de
colonialidade, o cinema indígena tem se delineado em uma perspectiva contracolonial, seja quando aponta suas lentes para as instituições da sociedade nacional,
seja quando coloca em relevo seu patrimônio e completo cultural. Mas, sem encerrar uma unidade ou qualquer purismo, movimenta-se de forma plural, incluindo os
realizadores não indígenas (ou indigenistas) e os realizadores indígenas em seus
mais variados graus de contato com a história e as tradições comunitárias; com a
sociedade, a cultura e as estruturas políticas dos estados nacionais.
Em relação aos realizadores indígenas, o contato com os Estados-nacionais
tem implicações nas suas trajetórias, formação e vínculos com as matrizes originárias, sendo possível observar que, entre o seu mundo e o mundo do homem branco,
mantem relações particulares e específicas com o audiovisual. Refletindo sobre a
experiência Abya Yala, Amália Cordova (2011) chama atenção para um complexo
que coloca os cineastas em campos distintos, seja como participantes de cursos
formais em instituições de ensino, seja como participantes de – “simples” – talleres
“express” (oficinas). Com a comunidade como agente e parceiros externos na cena,
desenvolveram-se em uma perspectiva colaborativa, o que inicialmente se refletiu,
por exemplo, na finalização das obras, que, no mais das vezes, davam a sensação “de
un ejercicio en lugar de una estética más ‘pulida’” (Cordova, 2011: 92). Chama atenção ainda para a estreita relação entre cinema e movimento político indígena, com a
comunicação ganhando centralidade e as entidades provendo eventos, como la Primeira Cumbre Continental de Comunicación Indígena de Abya Yala (2010) (Cordova, 2011).
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17 | Ou, nas reflexões de Brasil
(2013) sobre o que se pode
considerar marca indelével do
cinema indígena, no campo e
no antecampo das imagens.
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Perspectivas – fílmicas – cruzadas
Se o cinema originário no Brasil não está restrito ao Vídeo nas Aldeias, não há
como abordar a autogestão das imagens indígena sem retomar à práxis VNA do fazer documentário, cujos processos formativos refletem-se nos modos e materialidades fílmicas. Isso instiga pesquisas sobre a relação entre cinema e educação em vários níveis, principalmente porque, em larga medida, os processos implementados
pelo VNA foram os responsáveis pela formação de coletivos e realizadores nas comunidades e pela produção de significativo acervo audiovisual. Assim, se é preciso
retomar o VNA, que dialoga com a tradição do documentário e estabelece pragmáticas fílmicas contracoloniais, observamos que um campo de investigação está na
continuidade dos coletivos e cineastas (Takumã Kuikuro, Kamikia Kisedje, Coletivo
Fulni-ô) e no contexto pós-VNA independente (Ascuri/Kaiowá; Beture/Kaiapó; Maxakali, Isael e Sueli; Guarani, Alberto Alvares; e Pankararu, Graci Guarani).
Nesse âmbito, um eixo articulador é a questão indígena, com o lugar do Outro
na História e o lugar que ocupa nas imagens, o que se observa no primeiro trabalho
de Vincent Carelli: A festa da moça (1987) – com o filme se transformando e os sujeitos controlando os registros de si para o mundo (Gallois e Carelli, 1995). Pensando,
inicialmente, na devolutiva das imagens, retornando aos Nambikwara os registros
anteriores, Carelli se dá conta que a questão indígena estava para além da questão
do território. Ao permitir que analisassem seus ritos e interviessem nas filmagens,
percebeu que a apropriação da imagem era crucial para que a perspectiva etnográfica ganhasse face indígena, pois, na expressão de Ailton Krenak, também é preciso
pensarmos na “demarcação das telas”.18 Estendendo a reflexão para outros cineastas,
Tentehar: arquitetura do sensível (2020), de Paloma Rocha e Luis Abramo, explora o
mundo Guajajara, da Terra Indígena (TI) Araribóia/MA, para poder chegar à questão
indígena. Nele, movimentam-se próximos das lideranças guajajara, que colocam
suas perspectivas de encontro ao nosso tempo.
Em contraponto à sociedade nacional como centro, Tentehar move-se em direção ao Brasil (urbano, político, metropolitano) com a TI Guajajara se consolidando
como campo de atração. Sob uma montagem em espiral, o habitat político originário se irradia como lugar de onde partem questões mais amplas (política, social, ambiental). Se registram a resistência dos Guardiões da Floresta, com a câmera pelas
ruas, Rocha e Abramo documentam o bolsonarismo nascente, com suas lentes se
expandindo para outras lutas e espaços (políticos, sociais e geográficos). O contexto
são as eleições de 2018, com os realizadores chegando naquele momento em que a
civilização brasileira voltava a barbárie: a negação do Outro, o desbaratamento dos
órgãos de proteção e o incentivo ao agronegócio sobre os Territórios Indígenas. Mas,
com Apiyemiyekí? (2019), de Ana Vaz, já sabemos que esse limite foi ultrapassado
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18 | Expressão produzida em
uma das suas falas para a série
“Representatividade indígena
no cinema brasileiro”, do
programa Cinejornal, do Canal
Brasil, em 2020. Para mais, ver
https://youtu.be/KcXtLlctGEI
Acesso em 13 jun. 2023.
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na história recente do Brasil, quando, na Ditadura Militar (1964-1985), os Waimiri-Atroari tornaram-se alvo do napalm sobre suas comunidades. “Por quê?” Segundo
vozes missionárias que chegaram a Vaz, essa era uma pergunta recorrente. “Por que
os brancos matam os povos indígenas?”
Tentehar encontra um espelho no documentário Zawxiperkwer Ka’a: Guardiões
da Floresta (2020), de Jocy e Milson Guajajara. Nesse caso, temos uma perspectiva
fílmica fabricada por seus próprios agentes, o que significa que ultrapassar a linha entre o campo e o fora de campo das imagens não figura apenas exercício de
filmagem. Sobretudo porque, no cinema indígena, o ato de documentar a história
não acontece sem cicatrizes e rasuras, pois se vive a feitura do filme como processo,
experienciando as próprias tensões do registro, que, sob a câmera Guajajara, “inventa uma forma não prevista de antemão, mas que emerge do próprio ato que participa”, como já observou Brasil (2020: 28 – tradução nossa). Nesse mesmo compasso,
em Martírio (2016), de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida, o fragmento final incorpora à materialidade da imagem todos os riscos do real – especialmente, no registro feito por um jovem Kaiowá com sua pequena câmera digital
do ataque à comunidade. O mesmo sentimos no fechamento de Zawxiperkwer Ka’a:
Guardiões da Floresta, com o ataque dos pistoleiros sendo desvelado na própria indefinição das imagens Guajajara, como se revivêssemos a sequência final de Martírio,
(re)experienciada, historicamente, pelos povos indígenas diante do horror.
Já em Tentehar, as tensões da hora do registro aparecem em pelo menos uma
sequência, quando seguimos os Guardiões da Floresta capturando um intruso no
interior da TI. Nesse segmento, a urgência transpira do corpo da imagem, com o real
pulsando e nos inserindo no filme e na História. Daí a unidade espacial entre o fora
e o campo da imagem ser, no cinema indígena, inerente ao ato documentário, como
se espaço fílmico e histórico se confundissem. Mas é o jovem Auro Guajajara quem
sintetiza o horror da civilização a assombrar o presente, com suas manchas de sangue e sistemática anulação da diferença. O que, afinal, é ser civilizado? A questão
é feita permanentemente pelos povos da floresta que, ao refletir sobre a história
do contato, reaparecem na fala do jovem Auro interpelando às lentes de Rocha e
Abramo quando percorrem dentro de um automóvel os diversos Brasis. O colonialismo permanentemente revivido foi confrontado pelo cineasta Kichwa de Sarayaku
Eriberto Gualinga, em Los descendientes del jaguar (2012), de uma forma em que essa
história do contato se inscreve nas imagens, a partir de registros da ocupação militarizada do território Sarayaku pelo exército equatoriano, em 2002, que subsidiou a
instalação de uma empresa privada de petróleo sem consulta prévia à comunidade.
Concluídos dez anos depois de começar a ser rodado, os arquivos audiovisuais
registram e confirma mais uma invasão da TI Sarayauku, com as imagens de um helicóptero chegando nas areias do Rio Bobonaza; os funcionários da Companhia GeRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 66: e201158 | USP, 2023
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ral de Combustíveis S.A. (CGC) ocupando o espaço e os militares equatorianos dando
proteção a situação que se abatia sobre a comunidade indígena (Província de Pastaza, Equador). Ao movimentar-se entre o fora e o campo das imagens, a pragmática
fílmica de Gualinga retoma, em 2012, não mais os acervos etnográficos, mas os que
ele mesmo produziu quando confrontou o colonialismo, inscrevendo-se no quadro,
permanentemente, em crise como a instabilidade histórica que acompanha; e com
o invasor não mais observado das bordas, mas diretamente com a obstinação, invariavelmente, irredutível do realizador indígena. Esses arquivos audiovisuais (20022003) dialogam estruturalmente com os registros da viagem realizada, uma década
depois, pelos representantes da Associação do Povo Kichwa de Sarayaku (Tayjasaruta) à capital do Equador e à Corte Interamericana de Direitos Humanos de São José
da Costa Rica, que, diante do Caso no 12.465, promoveu audiência pública em 2011.
Curiosamente, em sua abertura, Gualinga faz um recorte que aproxima Los
descendientes del jaguar das filmografias etnográficas, com sua métrica a expelir qualquer contemporaneidade dos povos originários. Como já observamos, a sequência
inicial apresenta um quadro das formas comunitárias Kichwa-Sarayaku, a partir de
planos dos seus padrões e traços culturais. São registros do mundo histórico comunal daquele território, com crianças pulando sobre o rio, os corpos sendo pintados e
o hábito de caçar capturado pela câmera de Gualinga – entre o registro e a encenação. Mas, imediatamente, com a situação de colonialidade em perspectiva, as lentes
contracoloniais indígenas rompem com esse painel próximo das pastorais de salvamento, filmando inicialmente para parecer uma estrutura comunitária quase natural e, logo, trincar o modelo de representação dos pintores viajantes. Ao dialogar
com o contexto do documentário, essa abertura se transforma em uma espécie de
exercício intertextual contracolonial com a tradição do cinema antropológico, pois,
em relação ao conjunto do filme, quebra a colonialidade da etnografia imagética
aparente, que facilmente poderia ter sido adotada pela iconografia seiscentista ou
pela fotografia salgadiana (Felipe, 2021b).
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Painel 4. Re-antropofagia Baniwa
© Denilson Baniwa
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Formado nas oficinas do VNA, Takumã Kuikuro é um dos cineastas xinguanos
que prolongou sua filmografia para além dos primeiros filmes. Em Pele de branco (Kagaiha Atipügü, 2012), registra como o Alto Xingu está imerso na tecnologia ocidental
(câmeras, motocicletas, parabólicas, notebooks) e canibaliza artefatos do cinema,
do vídeo e das tecnologias contemporâneas. Não consiste em uma constatação antropológica, a partir da indigenização dos modos ocidental, que, por apropriação,
os povos originários passaram a usar a favor das demandas comunitárias, políticas e
culturais. Trata-se de um processo, a partir da percepção do próprio cinema indígena, que, sob as lentes de Takumã, incorpora, reelabora e reverte o aparato tecnológico para contar a história desde uma perspectiva originária. Mobilizar as questões de
base, vestindo-se com a “pele de branco”, que significa vestir-se com os artefatos ocidentais, redimensionando-os para seus próprios fins, mas não como ato que se consolida; e sim, em um compasso autorreflexivo, consolidando pensamento e ação.
Entre a transcodificação de Stuart Hall e a antropologia reversa de Roy Wagner, a
escritura fílmica reversa de Takumã Kuikuro maneja a câmera, condensa o mundo
histórico e, à sua maneira, retoma e demarca o território das imagens, se voltarmos
a expressão de Ailton Krenak.
Agora, re-canibalizando os artefatos ocidentais em um movimento que quebra as etnografias pastorais de salvamento e os regimes colonizantes dos retratos
antropométricos. Juntamente com Ete London – Londres como uma aldeia (2015) e a
Ologiko – Residência artística na aldeia (2019), na formação de uma espécie de trilogia, em Pele de branco, Takumã parece querer registrar uma nova história do contato,
com deslocamentos transcontinentais para conhecer tribos inglesas, comparar seus
jogos e modos de vida com os do Xingu. Portanto, incorporando outras transfigurações culturais e se permitindo a novos escambos técnicos-artísticos em uma espécie de re-antropofagia dos domínios do Outro, entre a cabeça de Mário de Andrade
e a reconfiguração da fotografia etnográfica colonial, como explora o multiartista
Denilson Baniwa, ao devorar e entregar a arte moderna brasileira em uma bandeja. Alterando a perspectiva dos sujeitos do olhar e invertendo os polos do poder,
no cinema mais recente de Takumã, a pergunta é inevitável: quem afinal é o Outro, constitui-se como observador e observado? Ao reverter os campos da produção
de sentidos e o mundo histórico diante da câmera, configurando uma pragmática
fílmica reversa, Takumã promove um processo de ressignificação, reapropriação e
desmontagem – na expressão conceitual da colonialidade do ver.
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artigo | Marcos Aurélio Felipe |
Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
sobre a (contra) colonialidade em Abya Yala
Galáxia Mapuche Huichaqueo
Umas das escrituras fílmicas, marcadamente, contemporânea de Abya Yala,
para além dos territórios originários “do” Brasil, encontra-se no cineasta Mapuche
“do” Chile Francisco Huichaqueo, que, em diálogo com a arte contemporânea, não
perde os vínculos com as questões e dimensões comunitárias: cosmovisão, política, cultura. Ao contrário dos realizadores Zezinho Yube (Huni Kuin), Raul Mojica Gil
(Wiwa), Ariel Ortega e Patrícia Ferreira (ambos Guarani), no cinema de Huichaqueo
o mundo histórico não é tensionado estritamente pelas pressões comunitárias, que
o enquadre nos parâmetros do vídeo comunitário ou em uma “poética de los medios imperfectos” (Cordova, 2011). Realizador de obras ensaísticas, documentárias
e experimentais, curador de exposições e instalações, além de professor universitário, Francisco Huichaqueo, filho de pai Mapuche e mãe chilena, nasceu em Valdívia,
no Chile, em 1977. Com inúmeros filmes, desde os anos 2000, é um dos principais
cineastas de Abya Yala e tem suas obras exibidas em festivais, como o ImagineNATIVE, em Toronto, Canadá; Festival de Cine Latino de Toulouse, França; e no forumdoc.
bh, Festival do cinema documentário e do filme etnográfico, Brasil.
Professor da Facultad de Humanidades y Arte, da Universidad de Concepción,
tem licenciatura em Artes Visuais e mestrado em documentário pela Universidad
do Chile. Estudou na Escuela de Cine de Santo Antonio de Los Baños, em Cuba, e,
desde então, participa de residências artísticas pelo mundo: Taiwan, México, a Colômbia – das quais resultou, respectivamente, El reflejo en mi ojo (2015), Mujeres Espíritu (2019) e sua participação no filme coletivo Al Sur of the North – Al norte del sur
(2017). Como um dos agentes da Galáxia de Lumière, reinventando-a, continuamente, foi programador da mostra Primeras Naciones, do Festival Internacional de Cine
de Valdívia; membro da Asociación de Cineastas y Guionistas do Chile e é assessor
curatorial do Centro Cultural Cerrillos, em Santiago. Na bifurcação dessas práticas,
resultantes das atividades como artista, programador e docente, situa-se o cinema
de Huichaqueo em suas múltiplas formas: filme documentário, ensaístico e experimental. Como ponto fora da curva do cinema indígena de Abya Yala (político, comunal, originário), em um ponto equidistante entre o filme experimental contemporâneo e o cinema político originário, sua poética se dá no intervalo. No enclave dessas
práticas, os seus filmes se confundem com as instalações e exposições concebidas
como pragmática Mapuche.
Entre a política da arte contemporânea e a política das imagens, propomos o
percurso analítico, com o cinema ocupando o ponto de partida e de chegada. Sem a
pretensão de esgotar a problemática, chegamos a um dos seus “filmes-experiência”,
em que essas dimensões acontecem indissociáveis na obra de Huichaqueo, a envolver instalação em espaço museológico e galeria de arte e experimentação no cineRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 66: e201158 | USP, 2023
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artigo | Marcos Aurélio Felipe |
Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
sobre a (contra) colonialidade em Abya Yala
ma: Kalül Trawün – Reunión del cuerpo (2012) – no qual instalação artística e produção
fílmica se entrecruzam, confundem-se e, paradoxalmente, resultam in(ter)dependentes. A instalação consistia em um grupo de artistas em uma galeria do Museo
Nacional de Bellas Artes de Santiago, do Chile, localizada em um centro comercial.
Como se estivesse presa em um cercado, uma família Mapuche (dois homens, uma
mulher e duas crianças) reencena os zoológicos humanos do século XIX, quando
ameríndios foram expostos em parques europeus como espetáculo antropológico.19 Como assinala Huichaqueo, “tenía el fin de instalarse dentro de esta galería con
la excusa para realizar una película experimental, en la que la exhibición jugara a
modo de excusa para realizar una acción de arte político en torno a la problemática
Mapuche” (Mapuchecineasta, 2021).
Usando a instalação como pretexto, as filmagens ocorreriam em datas chaves
(natal e ano novo), já que o centro comercial tem maior circulação em períodos de
alto consumo. Não obstante pensada como ponte para um produto do cinema, a
performance em espaço cercado por arames, com elementos diacríticos e incorporando o real a mise en scène, desenvolveu-se como obra singular e à parte dos processos cinematográficos posteriores. Mais do que isso, mesmo subsidiando outra obra
de arte, a instalação figura obra independente.
La exhibición se pensó para que tuviera la función de muestra de arte contemporáneo y que
a la vez funcionara en parte como set de grabación y ambientación. Entonces se dispusieron
elementos claves de la contingencia Mapuche como los nombres de todos los prisioneros políticos de esos días, tejidos en telar, dispuestos en un muro de doce metros de la galería y en
el suelo unas piscinas con agua roja con los ocho nombres escritos con hojas de eucaliptus,
que hacía alusión a las empresas forestales con las que se tienen conflictos en el sur. [...] En
otra esquina se dispuso a modo de set y de jaula alambrada de Puás y tierra donde una familia mapuche esta dentro de ella realizando una performance musical haciendo una cita a los
zoológicos humanos exhibidos en Europa a principios del siglo XIX.
(Mapuchecineasta, 2021: s/p)
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19 | Participaram os artistas
David Aniñir, Carolina
Kabrapan, Lorena Canuiñir,
Rodrigo Contreras y
Malen Luna Aniñir
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Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
sobre a (contra) colonialidade em Abya Yala
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Painel 5. Zoológicos humanos revisitados
Fotografías de fueguinos
y mapuche en el Jardin
d’Acclimatation de
París, siglo XIX.
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Cenas de Kalül Trawün Reunión del cuerpo (2012) |
© Francisco Huichaqueo
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Em Kalül Trawün – Reunión del cuerpo, como já analisado em outro trabalho
(Felipe, 2020b), Francisco Huichaqueo mostra como a condição “incivilizada” dos
Mapuche atravessa séculos na percepção da sociedade nacional, a partir de cinco
segmentos de performance nos quais atua um grupo de artistas urbanos Mapuche
– que faz a ponte entre o Século XIX e o terceiro milênio. Cria uma situação singular,
com a montagem compilando as experiências registradas na galeria e incorporando
os principais acontecimentos indígenas na Araucania atual: os incêndios florestais,
a promoção da Lei Antiterrorista do Chile e a campanha de estereótipos da mídia.
Nesse compasso, onde a arte se desdobra em múltiplas experiências (da instalação
e do cinema, que coexistem a ponto de não ser possível delimitar suas fronteiras),
não por acaso, o realizador “Mapurbe”20 concebe Kalül Trawün como filme-experiência. Comolli (2004: 507-508) já observou que, sob o risco do real, “as condições da
experiência fazem parte da experiência [...]. Os filmes documentários não são, tão
somente, abertos ao mundo: são atravessados, perfurados, transformados. Eles entregam-se a algo mais forte, algo que os ultrapassa e ao mesmo tempo os funda”.21
Entre a instalação e o cinema, a partir de uma performance compartilhada entre artistas Mapurbe, o cineasta e o público, Huichaqueo desvela a política do Estado
nacional do Chile de negação do Outro, com seus estereótipos e estigmas. Desenvolvendo-se experiência fílmica, confronta a colonialidade colocando em diálogo passado e presente. Com as situações criadas e o contato frontal com o público, a práxis de Huichaqueo problematiza os zoológicos humanos europeus fin de siècle, mas
agora com o corpo originário reencenando, como corpo contracolonial em reverso,
a invenção do Outro no Chile contemporâneo, como se fosse, na reflexão Misak de
Luis Tróchez Tunubalá, “museus humanos” (Na Misak, 2018). A associação com os
zoológicos europeus de exposição de grupos étnicos, que perduraram até meados
do século XX, dá-se desde a abertura de Kalül Trawün - Reunión del cuerpo, quando
a fotografia histórica de sujeitos Mapuche dentro de um cercado, com seus trajes e
artefatos diacríticos, irrompe na superfície da imagem para, em seguida, surgirem
em quadro os artistas na galeria: separados do público por arames; perfilados, incialmente, e, logo depois, em conjunto, em uma clara referência aos retratos antropométricos dos fotógrafos etnográficos e viajantes.
Entre o documento e a experimentação, o registro e a performance, a história
e sua reencenação, Francisco Huichaqueo (re)elabora, (re)apropria-se e (re)inventa
o mundo histórico originário diante da câmera. Em um determinado segmento de
Kalül Trawün - Reunión del cuerpo, ao abrir espaço para outros agentes Mapuche se
colocarem confrontando a imagem canibal do presente, o cineasta Francisco Huichaqueo reverte a lógica da colonialidade do ver, que inclui excluindo, torna visível
invisibilizando os sujeitos da experiência em sua objetualidade. Nesse momento, o
poeta David Aniñir Guilitraro assume-se sujeito da cena e da história, projetando o
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20 | No neologismo do poetaperformer David Aniñir para
designar o Mapuche urbano.
21 | No original, «Les
condintions de l’experience
font partie de l’experience.
[...] Les films documentaires
ne sont pas seulement
ouverts sur le monde: ils en
sont traversés, transpercés,
transpórtes. Ils se livrent à plus
fort qu’eux, qui les dépasse et
en même temp les fonde”.
artigo | Marcos Aurélio Felipe |
Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
sobre a (contra) colonialidade em Abya Yala
poema “I.N.E (Indio No Estandarizado)” e, com seu corpo-voz, desconstrói os termos
racializantes da sociedade nacional chilena, que historicamente busca reduzir os
Mapuche a imagem canibal contemporânea. Em uma perspectiva reversa, se utilizarmos os termos de Maldonado-Torres (2018: 17), a performance de Aniñir quebra
“el ‘virus’ de la colonialidad”, a partir de formas de intervenção criativas e críticas no
campo da arte.
“Según el Censo de población y vivienda realizado en Chile Usted se considera:
Flojo
Hediondo
Borracho
Piojento
Malas pulgas
Aborigen
Cabeza de palo
Incivilizado
Canuto
Delincuente
Precolombino
Post Punx Rocker
Autóctono
Folklórico
Indígena (indigente)
Terrorista
Quema Bosques
Exótico
Ilícito Asociado
Camorrero
Muerto de Hambre
Originario
Desterrado
Natural
Salvaje (Sur bersivo)
Arcaico
Mono Sapiens
Mal vividor
Mal Moridor
Analfabeto
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artigo | Marcos Aurélio Felipe |
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Bárbaro
Inculto
Minoría étnica
Primitivo
Nativo
No nato (siempre kisistes eso)
Polígamo
Guerrero
Indómito
Raza inferior, guerrera pero inferior
Indio kuliao
O
Araucano.
Acepciones nunca consultadas a boca mapuche,
Que otro descalificativo más te queda por nombrar
Racista Fuck Triñuke....
Que te quede claro,
Demórate un poco más y di Mapuche,
La boca te quedará ahí mismo.
Recomeços ou por uma coda impossível
No tocante à antropometria dos retratos indígenas, com seus enquadramentos históricos racializados, tem no caso brasileiro um caso notório pelo pioneirismo
da produção do Outro pelas imagens (Painel 3 - C). O que concluímos que essas formas dos regimes de visualidade coloniais tratam da produção e não da representação do indígena. Considerada uma das primeiras fotografias de povos originários
do mundo, o registro do casal Botocudo – no século XIX – aponta para a dimensão
colonial de pertencimento dos índios, em suas exatas medidas, “a comunidade dos
humanos, a comunidade dos homo-sapiens”, como hoje ainda quer fazer crer Sebastião Salgado (Podcast Matéria Bruta, Curta!On, 2022). Falamos aqui da série de
sete daguerreótipos de um casal de Botocudos feita, em 1844, por E. Thiesson, que
integra a Photothèque du Musée de l’Homme, de Paris. Como escreveu Morel (2018),
naquela época, a predominância era da antropologia física, buscando a mais exata
reprodução das características antropométricas e a classificação dos tipos raciais e
humanos. No entanto, o que não conseguiam com suas vozes, os corpos Botocudo
reagiram ao regime de visualidade imposto; o que nos faz estender à ambos as paRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 66: e201158 | USP, 2023
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lavras de Morel (2018: 311) sobre as fotos de Marc Ferrez de 1876: “Eram testemunhas
vivas de uma história trágica de matanças, espoliações, capturas, trabalhos forçados, preconceitos e outras violências”.
Redução e resistência no campo da história das imagens, que, com o cinema
indígena, ganhou outros enquadramentos de reversão, a partir da (re)elaboração
em imagens do mundo histórico. Com seu olhar originário contracolonial, apresenta outros sujeitos, de outros modos e formas, a partir de outras materialidades e
variáveis históricas: agentes da história, do cinema, do espaço e do tempo. No documentário Río Verde, el tiempo de los yakurunas, de Álvaro e Diego Sarmiento, emerge um dos filmes de Abya Yala que, de forma mais coesa, trabalhou a dilatação do
tempo, o vagar das horas, o real em seu transcorrer (gestos, micro-ações, corpos
moventes, o balançar dos ventos, a extração da matéria da terra). Com a câmera no
modo observacional, em profunda atenção ao tempo do Outro (ou de si mesmos),
os cineastas Quéchuas modulam outros retratos dos povos originários. Suas lentes
contentam-se com os espaços abertos na temporalidade, talvez para reparar mais
na matéria indígena imantada na geografia. Em suas imagens, o que vemos é antes
um corpo de sensações, milimetricamente, movendo-se através do tempo Kichwa
Lamista, com suas paisagens, personagens, ações.
Os irmãos Sarmiento entram no cotidiano Lamista, coloca-o no centro da
Amazônia peruana, filmam por quase cinco anos e fazem registros do mundo particular daquela comunidade. Do início ao fim, o filme sustenta a fluidez que evita qualquer deriva. É como se, ao abrirem-se para o mundo Lamista, as lentes dos
Sarmiento habitassem cada corpo dos personagens, com suas mãos que deslizam
pelos fios de algodão; o espaço percorrido, sem alteração dos corpos que não seja a
de cultivá-lo; e com a ação anticlímax, sem progressão, desafios ou obstáculos a superar, como a narratologia de fatura clássica. Nesse campo, o cinema indígena não é
um corpo único, seja quanto as formas e os modos fílmicos, seja quanto as escrituras
de cada cineasta que podem, invariavelmente, ser compreendidos em três grupos.
No primeiro, os que tem densos vínculos com as comunidades que habitam– lócus
no qual constroem suas relações e se reconhecem como coletividade. No segundo
grupo, os que transitam entre as TI e a sociedade nacional, ou seja, entre dois mundos (a aldeia e a cidade, as tradições e as instituições nacionais, a cosmovisão do seu
povo e a epistemologia ocidental). No terceiro, os cineastas formados nas instituições ocidentais, agentes citadinos e metropolitanos, ainda que carreguem, inequivocamente, a ancestralidade em seus corpos e memória coletiva – se, às vezes, fugidias, mas suficientes para romperem as fronteiras que, apenas superficialmente,
separam passado e presente.
Por extensão, pensar o cinema originário nos impele a um movimento entre
especificidades e cruzamentos de perspectivas, o que, na complexidade desses hoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 66: e201158 | USP, 2023
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rizontes, permite-nos talvez localizar a resposta sobre como o mundo histórico é (re)
elaborado à contrapelo aos regimes de visualidade de fatura colonial. Caminhando
para um epílogo, à revelia da complexidade do que só se permite pensar em termos
de pluralidade, o plano magistral de Río Verde, el tiempo de los yakurunas acompanhando a mão da velha indígena tecendo fios de lã apresenta outros modos de colocar os corpos originários em cena. Não há espaço para a métrica imagética colonial,
na qual o Outro era encaixotado pelo enquadramento ou aprisionado pela câmera
que o capturava como objeto. Diante das lentes dos Sarmientos, a mulher Kichwa
prepara o ambiente e os instrumentos para os trabalhos, senta-se para transformar
a lã, esticando o corpo em direção ao céu, o olhar que acompanha os movimentos
dos dedos sobre o fio que nasce e renasce diante do ato de tecer. É de um lirismo físico que desafia as concepções mais comuns que tentam colocar o cinema indígena,
no mais das vezes, no quadrado reducionista do vídeo comunitário.
Sem o olhar preso a pragmática das instituições ou dos dramas políticos, a câmera dos Sarmiento, entre o fora e o campo da imagem, adentra aquela comunidade Lamista, constituindo outro movimento de cinema, longe dos “medios imperfectos” (Salazar, 2004) ou de qualquer dimensão instrumentalizante da arte. Portanto,
distante de qualquer semelhança com um mero exercício de produção audiovisual,
ainda que as formas originárias estejam lá, com o comunal perpassando os segmentos e os planos. Mas o que se subsuma ao regime de visualidade de Río Verde é a
cadência temporal primária, o artesanato e a urdidura do cotidiano imantado no
ambiente amazônico, entregando uma tapeçaria que é real e que é linguagem. E é
impressionante como o observacional, que coloca o real em seu transcorrer como
dimensão e não reflexo do mundo kichwa, vai sendo demolido pouco a pouco, tornando-se instável e se desfiando com as fusões: o leito do rio como espelho oblíquo
da floresta, as passagens do tempo, a decupagem tensionada entre a opacidade e
a transparência e a discreta (e inevitável) encenação dos personagens lamistas que
se (re)inventam diante da câmera. Não tão explícitos quanto diante das lentes de
Francisco Huichaqueo, que parte de outra chave cinematográfica para repensar as
problemáticas históricas do colonialismo.
Nessas escolhas, em cena, entra a desconstrução da métrica colonial a perscrutar o Outro, que, como analisamos, desvela a violência da relação sujeito-objeto,
configurando os retratos antropométricos, seja na fotografia histórica dos viajantes ou nos registros plásticos salgadianos, seja no filme etnográfico de ontem ou de
hoje. No cinema indígena, entre a experimentação de outras formas e a decolonialidade do ver, a adoção e a recusa de um modelo documentário, a contracolonialidade, em certos casos, é modulada de modo não, necessariamente, explícito, mas
com uma clivagem narrativa à contrapelo a colonialidade posta pelas narrativas institucionais. Contestando os redutores dos corpos amorfos e domados, decolonizar o
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ver também se dá pela experimentação contínua das formas fílmicas pressupostas e
pelo lugar que o Outro assume no campo ou no fora de campo das imagens. Intercalando o espaço fílmico e o espaço histórico, o cinema originário interpõem uma práxis
fílmica e histórica reversa. Se a perspectiva indígena, no âmbito político e cinematográfico, abre-se para a (re)elaboração do mundo histórico longe dos sistemas de
verdade, permitindo ao Outro enquadramentos de si, da história e da cultura, diversos dos regimes de visualidade coloniais, concluímos que no âmbito acadêmico o
cinema originário contribui como campo de estudos fundamental para investigarmos questões e problemas para pensarmos os modos da (contra)colonialidade dos
domínios das visualidades institucionais.
Marcos Aurelio Felipe é professor associado IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Tem graduação em história e doutorado em educação pela
UFRN e pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Comunicação – PPGCOM
da UFPE, com pesquisa sobre cinema indígena no Brasil a partir da experiência e da
produção da ONG Vídeo nas Aldeias-VNA. Integra o corpo docente do Departamento de Práticas Educacionais e Currículo-DPEC, do Centro de Educação-CE. Tem publicações em periódicos nacionais e internacionais no campo dos estudos de cinema,
especificamente sobre o filme documentário, cinematografias contemporâneas e
pós-colonial.
Contribuição de autoria: Não se Aplica
Financiamento: Não se aplica.
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artigo | Marcos Aurélio Felipe |
Da colonialidade do ver ao cinema indígena: apontamentos
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