CORREIO DO POVO
SÁBADO, 30 de março de 2024
sábado
CADERNO DE
E-mail | cultura@correiodopovo.com.br
NILTON SANTOLIN / DIVULGAÇÃO / CP
SANTUATENTO
O aniversário do
diretor Quentin
Jerome Tarantino
Depois de tratar dos aniversários
de Glauber Rocha e Spike Lee,
o crítico Marcos Santuario trata
dos 61 anos do diretor de
‘Bastardos Inglórios’ e ‘Pulp
Fiction’, completados no dia 27.
PÁGINA 6
LITERATURA
Os escritos de
uma grande
crítica gaúcha
A professora e doutora em
Letras Andrea Kahmann resenha
o livro de ensaios ‘De tudo fica
um pouco’, da professora e crítica
literária Léa Masina, que foi
publicado pela editora Zouk.
PÁGINA 3
ROGÉRIO VON KRUGER / MAPA FOTOGRAFIA / CP
STREAMING
DUPLA DINÂMICA
DA MÚSICA
BRASILEIRA
Nos anos 1980, Michael Sullivan
e Paulo Massadas compuseram
os principais hits da música no
país, fato que é abordado na
série documental “Sullivan &
Massadas: Retratos e Canções”.
PÁGINA CENTRAL
LUTZENBERGER
UNIVERSAL
Mostra do artista e arquiteto José Lutzenberger abre ao
público no dia 3 abril, na Casa da Memória Unimed
Federação/RS, reunindo facetas de sua produção
PÁGINA 2
HUMOR
Marcito Castro
leva seu stand up
para Viamão
Com a linguagem da periferia e
da História, humorista do bairro
Sarandi, de 39 anos, apresenta
o espetáculo ‘Tu acha que eu
não te dole?’ neste sábado, às
20h, no Anfiteatro da Facesi.
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CORREIO DO POVO
sábado
CADERNO DE
NILTON SANTOLIN / DIVULGAÇÃO / CP
artigos
O ARTISTA DOS
DOIS MUNDOS
JOSÉ FRANCISCO ALVES
Curador da exposição ‘Lutzenberger Universal’
U
m dos grandes exemplos de imigrante com
contribuição significativa para a nossa riqueza artística foi o alemão e brasileiro José Lutzenberger, que viveu e produziu 38 anos e meio
na Europa e 31 anos no Brasil.
Trata-se de um nome que precisa ser constantemente referido
pelo significado de sua produção
intelectual, com legados originais
e únicos em dois continentes,
nas áreas de arte e arquitetura.
Por essa razão, a Casa da Memória Unimed Federação/RS o escolheu para iniciar o ano de homenagens ao bicentenário da imigração alemã, por meio da exposição “Lutzenberger Universal”.
Nasceu Joseph Lutzenberger
em 13 em janeiro de 1882, em
Altötting, reino da Baviera, Império Alemão. Teve em seu aprendizado infantojuvenil, em negócio familiar de gráfica e editora, o desenvolvimento de um talento artístico
que lhe proporcionou experiência
fundamental em desenho, diagramação e tipografia. Para sobreviver em uma profissão técnica que
incluísse arte, Lutzenberger optou
por não seguir o negócio do pai e
formou-se engenheiro-arquiteto
em Munique, em 1906.
Em seu início profissional, teve
uma carreira de projetista, em firmas e governos, em várias regiões da Alemanha e exterior (em
Praga). Em julho de 1914, Lutzenberger tinha 32 anos e meio e estourou a Primeira Guerra Mundial. Apresentou-se ao exército imperial alemão e serviu como oficial no front francês. Após a guerra, no início de 1919, Joseph voltou para a Baviera, recomeçou como projetista e voltou a ilustrar livros. Em 1920, candidatou-se a
um emprego no extremo sul do
Brasil, para cinco anos na construtora Weiss, Mennig e Cia. Profissional experimentado, Lutzenberger, aos 38 anos e meio de idade,
em 5 de agosto de 1920 desembarcou em Santos. Em seguida, estabeleceu-se em seu destino, Porto
Alegre. Aqui, de imediato, aportuguesou o seu prenome para José.
Após o seu contrato de trabalho,
com projetos importantes já realizados, aqui estabeleceu-se. Em fevereiro de 1926, casou-se em Novo
Hamburgo, com Maria Emma Elsa Kroeff (1893-1969). Ao constituir família, José Lutzenberger teve três filhos. José Antônio Lutzenberger (1926-2002) tornou-se
mais conhecido que o pai, como
ecologista de renome internacional. As filhas, Magdalena (19282017) e Rosa Maria (1929-2021),
foram professoras no Instituto de
Artes da Ufrgs.
A obra como arquiteto de José
Lutzenberger somente nas últimas
décadas teve a sua compreensão
devidamente entendida como de
grande significado, com qualidades absolutamente originais em
suas interpretações do eclético ao
moderno. Dos projetos a se destacar, podemos citar três, em Porto
Alegre: Igreja São José (1922),
Pão dos Pobres (1925) e Palácio
do Comercio (1936). Sua produção
em arte, quando jovem gráfico em
sua cidade natal, começou em desenho, principalmente como ilustrador de livros; posteriormente,
desenvolveu-se como aquarelista.
Também dominou, como evidenciam suas poucas obras na técnica, a pintura a óleo. Sua marca
distintiva, a enorme produção em
aquarela, inicialmente foi marcada
pela série realizada na Primeira
Guerra: obras que registraram o
dia a dia dos soldados, as paisagens ocupadas e as áreas devastadas, campos apocalípticos, momentos de descanso, cavalos, retratos
de seus homens, armas usadas,
etc. No Brasil, iniciou outras fases,
em segmentações e temáticas que
refletiram, obviamente, os novos
estímulos visuais, os contatos com
a nova gente, seus quotidianos, as
paisagens urbanas e rurais, os mitos e a história da nova terra.
Seus personagens, por vezes são
retratados repetidos, em situações
diferentes, em várias obras. Lutzenberger também os retrata em
feições caricaturais e situações hilárias. No seio familiar, a arte foi
também uma presença constante:
produziu cadernos absolutamente
espetaculares, que registraram o
crescimento dos filhos, em desenhos e anotações cômicas, minuciosas e descritivas.
A exposição “Lutzenberger
Universal”, que a partir de 3 de
abril estará aberta ao público,
reúne as diversas facetas de sua
‘Autorretrato na Guerra’, uma aquarela com dimensões de 27,5 x 18,5cm, proveniente de coleção particular
produção em arte e arquitetura.
São dezenas de trabalhos como
esboços iniciais, estudos intermediários e avançados, para o Palácio do Comércio (1936-1940). Este
conjunto exemplifica o seu modo
de pensar a arquitetura, por meio
de seu talento como desenhista e
aquarelista. Os desenhos arquitetônicos envolviam também a execução de apresentações e registro dos projetos como obras de artes gráficas incomuns, “cartazes”
a nanquim, aquarela e têmpera,
com emolduramentos e arabescos
desenhados com o acompanhamento de tipografia única, por ele
também desenvolvida. Uma forma de arte que tem referência em
seu ambiente formativo europeu,
em revistas de arte e arquitetura.
As aquarelas, desenhos e óleos
em Lutzenberger Universal mostram diversas fases do artista
plástico. Da produção no Velho
Continente, um dos desenhos trata-se dos mais antigos trabalhos
datados pelo artista, uma paisagem bávara de 1904. Também há
uma série de obras que retratam
as cidades que circulou, bem como as situações de guerra, já descritas. A fase brasileira é bastante
numerosa e variada em paisagens
urbanas e rurais, gaúchos, escaramuças entre farroupilhas e imperiais e desenhos insólitos, em especial o surpreendente nanquim “A
Roda da Vida”. Grande parte da
mostra, portanto, é inédita ou não
exibida nos últimos 50 anos, ou
mesmo não reproduzida em publicações, livros e catálogos. A obra
ícone da exposição é um inédito
óleo sobre tela, um retrato de 1915
do então oficial do exército do Kaiser, Joseph Lutzenberger, feito
por Hermann Klimsch (1867-1960).
Durante os meses da mostra, a Casa da Memória promoverá apresentações por especialistas sobre
a obra em arquitetura e a arte de
Lutzenberger, bem como visitas
orientadas à Igreja São José, Pão
do Pobres e Palácio do Comércio.
Para “Lutzenberger Universal”, foi produzido um catálogo
com reproduções de obras e fotografias atuais de arquitetura,
bem como um texto que busca
trazer novas informações. Uma
curiosidade na publicação é a informação de onde vem a referência ao seu indicado nome “completo” como “Joseph Franz Seraph
Lutzenberger”, jamais existente
em qualquer documento na Alemanha, após o batismo, e, obviamente, no Brasil. Aqui radicado e
incorporado à nossa cultura, nunca mais retornou a sua pátriamãe. Aos poucos, procurou naturalizar-se. Numa primeira tentativa, professor do Instituto de Belas Artes do RS, arrimo de família, esposo de brasileira e pai de
três filhos pequenos brasileiros,
teve sua naturalização negada,
em 26 de janeiro de 1940, em clima xenófobo do Brasil do período. Em 1950, a solicitou de novo e
obteve sua cidadania em 18 de setembro de 1950. Cerca de dez meses depois, a 2 de agosto de 1951,
Lutzenberger faleceu em decorrência de um câncer.
José Lutzenberger foi um dos
milhares de imigrantes germânicos crescidos na perspectiva do então – novo e efêmero – Império
Alemão (1871-1918). Com a corajosa decisão de radicar-se em um
novo país, à sua maneira ele respondeu e buscou construir a nova
identidade brasileira, sem esquecer a cultura assimilada pela vida
já plenamente formada antes, condição que não pode ser tirada da
pessoa, mesmo na construção de
um recomeço em outra nação, por
força de uma naturalização. Lutzenberger deixou memórias, cerca
de 80 páginas manuscritas, nas
quais discorreu também sobre esta situação. Excertos do conteúdo
de suas narrativas estão em trabalhos universitários que trataram
sua vida e produção intelectual,
em especial a tese de João Hecker
Luz (2023). “Lutzenberger Universal”, assim, soma-se aos esforços
precedentes em contextualizar e
divulgar a vida e obra deste notável alemão e brasileiro.