Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
· ROTEIRO · FRANCISCO DE HOLANDA EM ÉVORA Nascimento de um artista humanista · 1534-1537 / 1544-1545 FICHA TÉCNICA PUBLICAÇÃO Direção Regional de Cultura do Alentejo COORDENAÇÃO GERAL Ana Paula Amendoeira DIREÇÃO DE PROJETO Ana Cristina Pais COORDENAÇÃO CIENTÍFICA Sylvie Deswarte-Rosa, CNRS, Lyon, IHRIM TEXTOS Sylvie Deswarte-Rosa, CNRS, Lyon, IHRIM Joaquim Oliveira Caetano José d’Encarnação Manuel Branco Francisco Bilou Maria João Vilhena de Carvalho Miguel Soromenho Ricardo Branco Rafael Alfenim MAPA ÉVORA Fátima Dias Pereira Sandro Parreira REVISÃO DE BIBLIOGRAFIA E TEXTOS Ana Cristina Pais TRADUÇÕES FRANÇÊS/PORTUGUÊS José Beleza Silvina Pereira Ana Cristina Pais TRADUÇÕES DO LATIM Aires Nascimento FOTOGRAFIA Cristina Oliveira Sylvie Deswarte-Rosa, CNRS, Lyon, IHRIM Ricardo Lucas Branco Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Évora Arquivo Fotográfico DGPC Serviços de Fotografia da DGLAB - Biblioteca Nacional de Portugal e Arquivo Nacional da Torre do Tombo Arquivo Fotográfico SIPA Direção Regional de Cultura do Alentejo DESIGN GRÁFICO Rui Belo - MILIDEIAS IMPRESSÃO E ACABAMENTO Rui Belo - MILIDEIAS © Desta edição: Direção Regional de Cultura do Alentejo Évora, dezembro 2020 DEPÓSITO LEGAL 525661/23 TIRAGEM 500 exemplares UNIÃO EUROPEIA Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional 138 André de Resende e a Epigrafia Romana em Évora José d’Encarnação* 1. Introdução: a função das epígrafes Excelente historiador da Antiguidade, André de Resende depressa entendeu o relevante papel documental que os monumentos epigráficos representavam. Mesmo sem a consciência que hoje temos de estarmos perante provas singulares, originais, voluntariamente perpetuadas em material duradoiro, não hesitou em desse tipo de monumentos se socorrer para validar as suas interpretações da História e as narrativas que desejava apresentar como verdades incontestáveis em louvor da sua cidade natal. Representa a epígrafe autêntica a prova real de uma atitude, o eco imorredouro de um acontecimento, por ostentar uma inscrição sintética que foi pensada e perpetua – como escreveu Giancarlo Susini – o que o Homem, em determinado momento, quis transmitir aos vindouros. Nem sempre o cidadão comum disso se apercebe, quando, por exemplo, lê a placa toponímica de uma rua e nem se interroga acerca do seu significado: qual o porquê deste nome? De que decisão (política ou popular) é ele reflexo? No entanto, não hesitará a comunidade em mandar gravar numa placa a data e a identificação de um edifício por cuja concretização há muito ansiava, acrescentando os nomes das personalidades ou entidades que a essa concretização estiveram indissociavelmente ligadas. É o valor da epígrafe bem patente no quotidiano e o relevo que importará dar à ciência epigráfica, adequado meio de penetrar no âmago dos significados implícitos. 2. O momento político Entre 1530 e 1550, estava o frade dominicano eborense no auge da sua vida. Estudara em Espanha, estivera em Itália, na França e na Bélgi- * Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 139 ca, tivera contactos intelectuais privilegiados com os eruditos de então. E sentiria também que estava periclitante a situação política portuguesa, perante o crescente poderio de Carlos V (1500-1558), que se intitulara, à boa maneira romana, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, e perante a circunstância de el-rei D. João III ter visto falecer os filhos, um a um, por conseguinte, sem sucessor directo. Urgia, pois, atiçar o nacionalismo. E nada melhor do que empunhar as mesmas armas dos que poderiam vir a ser os inimigos de Portugal: o passado romano! Nunca teriam sido esquecidos os feitos heróicos de Viriato e de Sertório, que só pela traição haviam sido derrotados. E outras traições se não desejavam agora! Prepara, por conseguinte, o grande elogio à sua cidade natal, reclamando para ela, na História da Antiguidade da Cidade de Évora, que se publicaria pela primeira vez em 1553, os mais ilustres antecedentes1. Explica Resende por que lançou mão do empreendimento, a pedido dos «vereadores, procurador e escrivão da Câmara da muito nobre e sempre leal cidade Évora»2: «Vós me pedistes que vos quisesse comunicar o que do antigo de esta cidade Évora, nossa pátria, tinha alcançado e dar-vo-lo ler escrito: para o lançardes em tombo e memória» (p. 12). E logo para justificar o «vero nome» que os Romanos haviam dado à cidade, Ebora, é em textos epigráficos que se baseia: «Assim os livros mais emendados dos concílios e assim está em um letreiro antigo em casa do capitão dos ginetes e em três que eu em minha casa tenho e em outro da Rua da Selaria, meio quebrado e em uma coluna per que se contavam as milhas além da Tourega pela estrada antiga que ia para Alcácer» (p. 15). Mais adiante, é outro «letreiro antigo, que está em S. Bento de Pomares» que o frade traz à colação para provar que Évora já existia no tempo de Viriato, pois que um soldado, Lúcio Silão Sabino, fora «trespassado de multidão de lanças e armas, sendo em os ombros dos soldados trazido assim ferido ao pretor Gaio Pláutio». Tudo se passou «in Ebor(ae) prov(inciae) Lus(itaniae) agro» e Sabino quis ali ser sepultado, em túmulo onde não se depositasse mais ninguém; caso, todavia, doutro modo acontecesse, «quero que os ossos de quem quer que seja de minha sepultura sejam retirados», decretou, acrescentando, sintomaticamente, «se a pátria estiver em sua liberdade» (p. 19-20). 1 Sigo a edição princeps, de 116 páginas virtuais, disponibilizada na página da Biblioteca Nacional de Portugal, no endereço http://purl.pt/23305/4/. Trata-se de uma edição feita à pressa, digamos assim, sem paginação, porque André de Resende se apercebeu que, tendo entregado o texto na Câmara da cidade, pois se tratara de petição dela, o juiz Gil de Villalobos se dispunha a fazer ele a entrega ao príncipe. Assim se justificam as gralhas do título, que aqui se reproduz (Fig. 1), a título de curiosidade, até porque também assim se documenta a (hoje bastante estudada) questão dos erros em epigrafia! 2 Actualizei a escrita, não seguindo, porém, os ditames do chamado «Acordo Ortográfico» ora oficialmente imposto. Indicam-se as páginas da edição virtual, uma vez que, como se disse, não há paginação no volume. 140 História da Antiguidade da Cidade de Évora - Frontispício, Garcia de Resende, 1553, Foto BNP. Fig. 1 3. Évora e Sertório É, no entanto, ao tempo de Sertório – que viveu, recorde-se, de 122 a 72 a. C. – que a cidade de Évora houve seu auge, como o demonstram, aduz Resende, as epígrafes nela identificadas. Na cidade teria o general assentado seus arraiais: «E fez sua casa que inda agora se chama de Sertório, em a qual tinha uma mulher sua doméstica; e três libertos que com ela estavam, segundo parece ler este elegante letreiro, que haverá seis anos se descobriu, junto das mesmas casas, que diz assim: [ ]» (p. 22-23). Já veremos o texto latino (CIL II 12*), que Resende traduz desta forma: Tradução de André de Resende: «Por saúde e estabilidade da casa de Quinto Sertório: Iunia Donace sua doméstica, e Quinto Sertório Hermes, e Quinto Sertório Cepalo, e Quinto Sertório Anteros, seus libertos, à honra dos deuses Lares, em o dia da festa chamada Compitália, fizeram jogos públicos: e deram convite a todos os vizinhos» (p. 23-24). 141 Placa epigráfica Aos Lares, Museu de Évora. Foto Guilherme Cardoso. Fig. 2 Está no Museu de Évora a epígrafe (Fig. 2). Ainda que os pontos estejam a meio da altura das linhas, como é de regra nos monumentos autênticos (inclusive há uma hera no final), e também os EE tenham tendencialmente a barra intermédia igual às outras duas (mas a inferior é maior…), há, do ponto de vista paleográfico, excesso de nexos invulgares e de letras inclusas ou de módulo menor. A molduração não obedece aos cânones romanos e a tipologia (um cipo e não um altar) não se enquadra no que seria habitual. Não é, pois, um monumento originalmente romano. Poderia ser cópia, encomendada por Resende? Não se afigura plausível que, sendo assim, o próprio humanista não o tivesse referido: «Estava já danificado e eu o mandei copiar». Esta não é, no entanto, a opinião de Alicia Canto (2004, p. 281 e 331-332, nota 91), que, baseada no depoimento de John Breval (que copiou a inscrição) e argumentando que não há motivo real para não a considerar autêntica, nomeadamente no que se refere à onomástica e à fraseologia utilizada, outras vezes documentadas. Não partilho dessa opinião, perante o monumento físico que nos chegou e, sobretudo, atendendo ao contexto laudatório em que o mesmo se insere: a tentativa de guindar Évora ao mais elevado estatuto na época de Sertório! É lá verosímil que uma criada e três libertos hajam mandado gravar, nos primórdios 142 do século I a. C., uma inscrição pro salute et incolumitate da casa do seu senhor, quando essa terminologia só virá a ser usada para os imperadores do Baixo-Império?!... O conteúdo do texto poderá, por conseguinte, elucidar-nos: LARIB(us) · PRO / SALVTE ET INCOLV/MITATE DOMVVS / Q(uinti) · SERTORI / 5 COMPETALIB(us) · LVDOS / ET EPVLVM VICINEIS / IVN(ia) · DONACE · DO/MESTICA EIIVS · ET / Q(uintus) · SERTOR(ius) · HERMES / 10 Q(uintus) · SERTOR(ius) · CEPALO / Q(uintus) · SERTOR(ius) · ANTEROS / LIBERTEI (hedera) Não é frequente a invocação aos Lares sem um epíteto que os individualize. Os arcaísmos morfológicos – domuus (por domus), vicineis (por viciniis), eiius (por eius) e libertei (por liberti) – visam tornar mais «lídimo» o conjunto. As Compitália eram, de facto, festividades anuais em honra dos Lares3; contudo, esse termo surge, por isso, ligado a essas divindades (v. g.: Laribus Competalibus – CIL XIII 6731). Vicinii no sentido de «vizinhos» não está documentado nem na epigrafia romana nem nos textos clássicos. Ou seja, respeitando muito embora a opinião de Alicia Canto, afigura-se-me serem ‘originalidades’ de mais para um texto autêntico, ainda por cima supostamente mandado fazer em vida de Sertório, aí pelos anos 75-74 a. C., quando o hábito epigráfico não existia na Lusitânia!... De resto, ainda que também elas tidas por autênticas por Alicia Canto, há toda uma panóplia de epígrafes que o humanista houve por bem descrever, dando origem a inscrições reais que podem admirar-se no Museu de Évora. Em todas a mesma mui habilidosa «contaminação» de textos de aparência epigráfica com palavras de índole literária colhidas em obras correntes na sua época e a que o humanista teve acesso. E sempre para enaltecer Évora, como – é mais um testemunho – no pedestal («um formoso e elegante letreiro em um grande cipo de mármore que eu em casa tenho», p. 34-35) dedicado ao divino Júlio (César divinizado) pela Lib(eralitas) Iul(ia) Ebora, para lhe agradecer a liberalidade com que elevara Évora a município (p. 35), ob illius inmune municipium liberalitatem ex d(ecreto) d(ecurionum) d(edicavit). Esse texto (CIL II 16* – Fig. 3) não o transcreve Resende na 1ª edição (que estamos a seguir); dirá, nas p. 36-37 da 2ª edição, de 1576, que houve grande festa Inscrição epigráfica, DIVO IULIO, Museu de Évora. Foto Guilherme Cardoso. Fig. 3 3 Escreve Suetónio que o imperador Augusto «ordenou que duas vezes por ano se enfeitassem os lares compitais com flores da Primavera e do Estio»: compitales Lares ornari bis anno instituit vernis floribus et aestivis (Augusto, 31, 4). 143 nesse dia: «as matronas levaram em dom à madre Vénus uma vestidura pomposa chamada cesto»4. Venus Genitrix era a ‘padroeira’ da casa imperial de Augusto; c(a)estus, porém, não está documentado, que se saiba, em linguagem epigráfica e era, não ‘uma vestidura pomposa’, mas algo como… a luva do gladiador!... Em suma: por sobre a veste talar, envergou André de Resende o hábito do eborense convicto, cioso da imensa tradição da sua «mui nobre e sempre leal cidade». Supriu à sua maneira, autenticando-as com o incontestável valor de documentos epigráficos, as falhas de outras informações escritas. Não os tendo, não hesitou em forjá-los; se ele ou outrem tomou a iniciativa de os mandar gravar na pedra quiçá, um dia, o saberemos. O certo é que tão inteligentemente actuou que, ainda hoje, constitui motivo de controvérsia. E quem ganha? A celebridade de uma Évora que ele tanto encareceu! BIBLIOGRAFIA CANTO (Alicia M.ª), «Los viajes del caballero inglés John Breval a España y Portugal: novedades arqueológicas y epigráficas de 1726», Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 7(2) 2004 265-364 [ = HEp 14 2005 nº 440] CIL II = HÜBNER, E. (1869 e 1892), Corpus Inscriptionum Latinarum – II. Berlim. Indica-se o número da inscrição. O asterisco assinala que se trata de inscrição tida por não autêntica. EDCS = Epigraphik Daten-bank Claus / Slaby. Acessível em: http://www.manfredclauss.de/gb/ ENCARNAÇÃO (José d’), Estudos sobre Epigrafia. Coimbra, 1998. HEp = Hispania Epigraphica, revista editada pela Universidade Complutense de Madrid. Indica-se, geralmente, o número, a data da publicação e o número da inscrição. RESENDE (André de), História da Antiguidade da Cidade de Évora, Évora, 11553, 21576. SUETÓNIO, Os Doze Césares, Lisboa, Editorial Presença, 1979. [Tradução e notas de João Gaspar Simões]. 4 Vide também Encarnação 1998, p. 42-44. 144 UNIÃO EUROPEIA Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional FRANCISCO DE HOLANDA EM ÉVORA