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Curtoni 2024 Arqueologia, Paisagem e patrimônio

2024, LAJE Vol 3 (1) 284-299

modificação de texto de 2010 Arqueologia, paisagem e patrimônio: da colonialidade à 1 decolonialidade das práticas Rafael Pedro Curtoni Universidade Nacional do Centro da Província de Buenos Aires, Argentina TRADUÇÃO: Ariane Fagundes Braga ¡DALE!, Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Arqueologia, paisagem e patrimônio: da colonialidade à decolonialidade das práticas Resumo Não há dúvidas de que os conceitos de Paisagem, Patrimônio e Arqueologia não apenas denotam uma origem moderna, ocidental e europeia, mas também representam uma nova forma de ver associada a uma visão ideológica e de classe, inventada em um momento específico da história. Essa nova política da visão se sustentou e se reproduziu sobre uma das separações fundantes do conhecimento moderno, que é a cisão cartesiana entre mente e corpo. A partir disso, o olhar renascentista estabeleceu uma ideia de paisagem como exterioridade passível de medição, equivalente em todas as suas partes, homogêneo, constante e separado do âmbito humano. Também é verdade que essa visão buscou ser superada à luz de novas contribuições teóricas nas quais começou a ser percebido que os lugares e a paisagem tiveram e têm significados especiais para as pessoas ao longo do tempo, e que esses valores estão relacionados a práticas sociais e conotações simbólicas atribuídas ao entorno. Dessa forma, a paisagem deixou de ser considerada apenas como uma entidade física externa e passiva à qual os humanos se adaptavam para ser reconhecida como parte de um processo cultural. Palavras-chave: Paisagem, Patrimônio, Arqueologia, Colonialidade. Arqueología, paisaje y patrimonio: de la colonialidad a la decolonialidad de las prácticas Resumen No hay dudas que los conceptos de Paisaje, Patrimonio y Arqueología denotan no sólo un origen moderno, occidental y europeo, sino también representan una nueva forma de ver asociada a una visión ideológica y de clase, inventada en un momento específico de la historia. Esa nueva política de la visión se sustentó y reprodujo sobre una de las separaciones fundantes del conocimiento moderno como es la escisión cartesiana entre mente y cuerpo. A partir de allí la mirada renacentista instauró una idea de paisaje como exterioridad pasible de medición, equivalente en todas sus partes, homogéneo, constante y separado del ámbito humano. También es cierto que esa visión pretendió ser superada a la luz de nuevos aportes teóricos en los cuales se comenzó a advertir que los lugares y el paisaje tuvieron y tienen significados especiales para las personas a través del tiempo y que esos valores se relacionan con prácticas sociales y connotaciones simbólicas otorgadas al entorno. De esta manera, el paisaje dejó de ser considerado solamente como una entidad física externa y pasiva a la cual los humanos se adaptaban para ser reconocido como parte de un proceso cultural. Palabras clave: Paisaje, Patrimonio, Arqueología, Colonialidad. Archaeology, landscape, and heritage: from coloniality to decoloniality of practices Abtract There is no doubt that the concepts of Landscape, Heritage, and Archaeology not only denote a modern, Western, and European origin but also represent a new way of seeing associated with an ideological and class-based vision, invented at a specific moment in history. This new politics of vision was based on and reproduced one of the foundational separations of modern knowledge: the Cartesian split between mind and body. Since then, the Renaissance gaze established an idea of landscape as an exteriority capable of measurement, equivalent in all its parts, homogeneous, constant, and separate from the human realm. It is also true that this view sought to be overcome in light of new theoretical contributions in which it began to be perceived that places and landscape had and have special meanings for people over time, and that these values are related to social practices and symbolic connotations attributed to the environment. Thus, the landscape ceased to be considered merely as an external and passive physical entity to which humans adapted, to be recognized as part of a cultural process. Keywords: Landscape, Heritage, Archaeology, Coloniality. Introdução A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp” (Figura 1) é uma pintura realizada em 1632, por Rembrandt, que retrata um grupo de cirurgiões que presenciam uma aula-operação realizada pelo Dr. Tulp. Se considerarmos que essa obra põe em cena a obtenção de resultados e um conhecimento depois de “destruir” uma parte da evidência, ela poderia ser vista como uma metáfora da arqueologia. O “novo” conhecimento é submetido à observação de um corpo colegiado que não somente contempla, escuta, aprende e registra o saber que provém do “objeto” em estudo, mas que também autoriza e legitima a totalidade do ato de transposição do referido saber. O ato se concretiza com a participação do especialista, que é quem expressa um saber específico a um grupo de receptores exclusivos. O corpo é a paisagem sobre a qual o saber se faz disciplina. Já as partes que constituem este corpo e a totalidade do mesmo se transformam em patrimônio. Os profissionais da área, por sua vez, se convertem em legítimos guardiões e reprodutores do conhecimento ilustrado. Essa forma de transmissão do conhecimento, que é própria do século XVII, não está muito distante da dinâmica e da estrutura dos congressos atuais de arqueologia. A pintura de Rembrandt, por si só, já expressa o lugar de enunciação e de produção material, assim como as referências temporais e espaciais de sua gênese. A obra representa os processos de produção, os processos estéticos, os processos de encenação e as perspectivas eurocêntricas do mundo, que fazem referência às condições geopolíticas e de colonialidade envolvidas na geração, na instalação e na produção, na configuração e no consumo dos conhecimentos na modernidade. “ v.3 n.1 p. 284-299 2024 ISSN: 2965-4904 DOI: 10.9771/lj.v3i0.60555 Colonialidade do conhecimento Poderíamos dizer que boa parte da arqueologia moderna e ocidental está representada na “Lição de anatomia do Dr. Nicolaes Tulp”. Essa metáfora simboliza os sentidos da colonialidade que perpassam a prática arqueológica e que se expressam nas diferentes estratégias da construção do saber e do patrimônio. A separação entre o fato e o valor, a negação da contemporaneidade, a prevalência do objeto, a ruptura ontológica, a contração do presente, o eurocentrismo, a patrimonialização e a musealização, e o sentido de exclusividade e de distanciamento são os referentes de tal construção. Com base nessas premissas, configura-se um saber hegemônico e neutro que não permite a alternância de vozes nem de outras perspectivas. Na pintura de Rembrandt, essa restrição manifesta-se na articulação dos especialistas em torno de uma novidade que é reservada para quem participa da linguagem científica. A arqueologia, como ciência moderna e ocidental, submete a diferença a filtros que representam e configuram verdades absolutas que se desdobram em discursos homogêneos. Esses mecanismos para construir e manejar o saber e os patrimônios são expressões do que Quijano (2003) denominou como “colonialidade do poder e do saber”. Esse conceito representa os diferentes processos que surgiram com a nova ordem mundial derivada da expansão europeia — uma espoliação colonial legitimada pelo imaginário que estabeleceu diferenças incomensuráveis entre o colonizador e o colonizado (ibid.). As ideias de raça e de cultura funcionam como um dispositivo taxonômico que, por excelência, cria essas diferenças. Dessa forma, o colonizado aparece como “o outro da razão, justificando o exercício de um poder disciplinar por parte do colonizador” (CASTRO-GÓMEZ, 2003, p. 153). Na obra de Rembrandt, o cadáver de Aris Kindt se constitui como “o outro da razão”: o sujeito e o corpo subalternizados que habilitam a intervenção em nome do conhecimento. A dissecação, na qual o corpo é constituído como patrimônio representativo da especialidade, é legitimada pela aplicação metódica de ferramentas assépticas e universais. A expertise do profissional, por sua vez, opera sobre o corpo e destrói parte da evidência para a obtenção do saber e a fim de garantir a sua autenticidade. Em sintonia com isso, o grupo colegiado reconhece, classifica e denomina o que é extraído, de modo a determinar a sua validade e o seu alcance universal. A destruição que o Dr. Tulp exerce, assim como a encenação do corpo e das suas partes diante dos seus colegas, podem ser comparados com a prática arqueológica, na medida em que essas ações são condições necessárias para instalar o conheci- p. 291 mento. Tal processo de produção, instalação e reprodução do conhecimento está sujeito a relações de poder que validam algumas formas de saber em detrimento de outras. Nesse sentido, a colonialidade do saber é vista como um dispositivo que organiza a totalidade do espaço e do tempo de todas as culturas, de todos os povos e de todos os territórios do mundo, tanto do passado quanto do presente, em um metarrelato universal em que a sociedade industrial liberal (ou seja, a sociedade moderna europeia) é a expressão mais avançada e culminante de todo o processo. Do mesmo modo, “as formas de conhecimento desenvolvidas para a compreensão dessa sociedade transformam-se nas únicas formas válidas, objetivas e universais do conhecimento” (LANDER, 2003, p. 23). Essa perspectiva eurocêntrica do conhecimento controlou todas as formas de subjetividade, de cultura e de produção e reprodução dos saberes (QUIJANO, 2003). Não há dúvidas de que os conceitos “paisagem”, “patrimônio” e “arqueologia” não fazem referência somente a uma origem moderna, ocidental e europeia, mas também representam uma nova “forma de ver” associada a uma perspectiva ideológica e de classe, inventada em um momento específico da história. Essa nova percepção se sustentou e se reproduziu sob uma das separações fundantes do conhecimento moderno: a cisão cartesiana entre a mente e o corpo. A partir disso, o olhar renascentista instaurou uma ideia de “paisagem” como exterioridade suscetível de medição, equivalente em todas as suas partes, homogênea, constante e separada do âmbito humano. Da mesma forma, o “patrimônio” constituiu-se em um construto ocidental no qual prevaleceram critérios de autenticidade e de valorização, estabelecidos a partir da academia. Também é verdade que essas visões pretendiam ser superadas pelos novos aportes teóricos que advertiram que os lugares e a paisagem mantêm vigentes os significados especiais que as pessoas lhes atribuem; e, igualmente, que as avaliações sobre o patrimônio são dinâmicas e estão relacionadas com as práticas sociais e as conotações geradas pelos diferentes olhares. Por consequência, a paisagem deixou de ser considerada como uma entidade física externa e passiva à qual o ser humano se adaptava; agora é reconhecida como parte de um processo cultural. A construção do patrimônio começou a ser vista como parte de um contexto mais amplo, no qual participam diversos atores e interesses. p. 292 No entanto, essas abordagens também geraram esquemas produtores de uma taxonomia dissecante e que catalogam as paisagens e o patrimônio como culturais, sociais, urbanos, rurais, rituais, étnicos, políticos etc. Essas classificações excessivas não superaram o critério da exterioridade, nem a manutenção de dualismos modernos que sobrevivem no desenvolvimento teórico da relação entre arqueologia, paisagem e patrimônio. A patrimonialização e a musealização constituem formas de construção e de transmissão do saber que expressam diferentes sentidos de colonialidade na prática arqueológica. Na Argentina, alguns dos resultados mais relevantes em relação ao mundo indígena estão vinculados a processos de apropriação discursiva, tanto dos territórios quanto dos sujeitos que o ocupam. Assim, a geração de narrativas alocrônicas, vinculadas às políticas do conhecimento, subjuga e oculta os corpos, os saberes e as práticas mediante o distanciamento e a negação da contemporaneidade. Nesses casos, a alteridade é relegada a um espaço distante (o deserto, por exemplo) e a um tempo diferente do contemporâneo, que é próprio do homem branco ocidental. Vêm daí as classificações que diferenciam taxonomicamente as sociedades pré-modernas em tradicionais, primitivas, indígenas, bárbaras etc. Ao se musealizar e patrimonializar o mundo indígena, impõem-se novas identidades e novos sentidos mediante a exaltação das conquistas dos territórios, que são nomeados em termos de “outro”. Dessa maneira, na região pampiana e durante o final do século XIX e as primeiras décadas do XX, foram construídos monumentos para comemorar os feitos das conquistas territoriais. A partir de então, o Estado regulamentou a construção de estátuas, placas, bustos e monumentos na Capital Federal e em cada praça da República Argentina, para glorificar e imortalizar os heróis da conquista. Construíram-se uma paisagem e um patrimônio que se mantêm e são reproduzidos na atualidade, podendo ser caracterizados como coloniais e hegemônicos. Ao mesmo tempo, para o mundo indígena, implementam-se políticas associadas ao reconhecimento e à reparação (CURTONI; CHAPARRO, 2011). Através desses processos podem ser produzidas ideias, imagens e representações que sustentam a inexistência do sujeito evocado, paralelamente com uma postura de descrédito público e de desrespeito diante das demandas cotidianas feitas pelas próprias organizações indígenas. Um exemplo específico é a construção, feita em 2006, do monumento-mausoléu para re-enterrar o cacique Rankülche, “José Gregorio Yancamil”, na praça central da cidade de Victorica, na província de La Pampa. A praça central da cidade é chamada de Praça Heróis de Cochicó, em memória aos soldados do exército argentino que protagonizaram, no dia 19 de agosto de 1882, sob o comando de Yancamil, o que foi chamado de o último combate contra grupos indígenas da região nas imediações de Paraje Cochicó. Como parte da homenagem, foi construído, em 1922, no meio da praça, uma pirâmide comemorativa que logo foi transformada em mausoléu. A cerimônia de re-enterro e o monumento-mausoléu dedicado a Yancamil parecem orientados p. 293 por uma ideia de patrimônio que busca encenar e fornecer uma imagem “congelada” e de “uma faceta” do que é o indígena. O centro da atenção é o monumento cuja materialidade inviabiliza e objetifica o “ser” e o “estar” indígena, uma vez que congela uma dinâmica transtemporal, silencia as vozes, a cosmovisão, a percepção, as crenças e as formas de entender o mundo indígena. O monumento, enquanto “memória de pedra”, pode ser visto como um efeito da colonialidade do poder, pois está vinculado a uma ideia patrimonial que é consoante com as formas ocidentais e modernas de construção, manejo e valorização do saber (CURTONI; CHAPARRO, 2008). Sob essas formas eurocêntricas de produção e de reprodução do conhecimento, definidas a partir de um lócus de poder, utilizam-se diferentes estratégias para anular, silenciar e negar as possibilidades de existência de “outras” alternativas de construção e de circulação dos saberes. De modo vinculado, é questionada a atribuição de valores científicos ocidentais aos recursos e ao desconhecimento das diversas visões ou percepções existentes em outras culturas e em outras minorias étnicas (AYALA, 2005; BENDER, 1998; GNECCO, 2005; LAYTON, 1989). Discute-se a interferência do Estado e dos organismos internacionais na definição do patrimônio e na sua gestão. Os critérios da ciência ocidental são os que prevaleceram sob a expressão dos “especialistas”, responsáveis por verificar o cumprimento do requisito de “valor universal excepcional” ou o tão discutido critério de autenticidade (UCKO, 2000; PIAZZINI, 2008). Isso demonstra o sentido de colonialidade das práticas vinculadas às políticas patrimoniais e dos espaços acadêmicos como o da arqueologia, que serviram para a sua reprodução. Decolonialidade da prática p. 294 Até o mapa mente. Aprendemos a geografia do mundo em um mapa que não mostra o mundo tal como é, mas sim como os seus donos dizem que é. No planisfério tradicional, aquele que se usa nas escolas e em todo lugar, o Equador não está no centro, o norte ocupa dois terços e o sul, um. A América Latina ocupa, no mapa-múndi, menos espaço que a Europa e menos ainda que a soma dos Estados Unidos e do Canadá, quando, na realidade, a América Latina é duas vezes maior que a Europa e é muito maior que Estados Unidos e o Canadá. O mapa, que nos diminui, simboliza todo o resto. A geografia roubada, a economia saqueada, a história falsificada, a usurpação cotidiana da realidade. O chamado Terceiro Mundo, habitado por pessoas de terceira categoria, engloba menos, come menos, lembra menos, vive menos, diz menos. 2 Eduardo Galeano apud Lander (2003). As observações de Eduardo Galeano dão conta de representar as relações de poder e das especificidades geopolíticas associadas à produção, à distribuição, à representação e ao manejo dos conhecimentos na matriz moderno-colonial. As condições geopolíticas referem-se não somente ao espaço físico ocupado (por exemplo, um lugar no mapa), mas também aos loci históricos, sociais, culturais, epistêmicos, acadêmicos e editoriais, entre outros, por meio dos quais são criados e instalados determinados saberes em detrimento de outros. Essas determinações geo-topo-crono-políticas da geração do conhecimento pré-estabelecem a autolegitimação, a superioridade e a universalidade do saber científico moderno sob outras formas do conhecimento e, com isso, definem sua imposição global. As reflexões de Galeano sobre o “Terceiro Mundo, habitado por pessoas de terceira categoria” também descrevem um dos aspectos mais efetivos da colonialidade do poder, expressado na racialização e na dominação dos outros diferentes. Esses mecanismos formadores de alteridade implicam, finalmente, uma certa impossibilidade discursiva: o sujeito daqui, inferiorizado, “diz menos” e, consequentemente, as suas visões e os seus lugares de enunciação não existem e/ou estão inviabilizados. As geopolíticas do conhecimento não impactam somente as formas e as condições de produzir e de reproduzir o saber (por exemplo: ciência, academia, editoras), mas também a definição e o manejo de lugares de interesse (por exemplo: lugares históricos e áreas protegidas) e as materialidades (por exemplo: memoriais, monumentos, patrimônios, artefatos, museus etc.), promovidas por diferentes setores e atores com fins comemorativos, recreativos, educativos, culturais etc. Nesse contexto, a arqueologia, com sua prática, provê discursos, narrativas, formas de vida e objetos localizados no tempo e no espaço. Dessa forma, a disciplina pode ser vista como produtora de sequências de cronótopos culturais, assim constituindo um dos dispositivos de poder da modernidade encarregados de organizar e de classificar as diferenças. Sem sombra de dúvida, desde sua concepção, produção, reprodução, distribuição e consumo, os conhecimentos gerados dentro dos marcos institucionais-acadêmicos portam uma marca geopolítica, geo-histórica e geocultural. Ou seja, eles têm lugar, contexto, corpo, cor e gênero em sua origem — um processo que também é referido p. 295 como a corpo-política do saber (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; WALSH, 2007) — e, sendo assim, são contingentes, situados e atravessados por relações de espaço-poder. Essas condições de existência dos conhecimentos expressam também os sentidos de colonialidade do poder, do saber e do ser, que caracterizam as formas de conhecer desenvolvidas e impostas no marco da modernidade colonial (QUIJANO, 2003; ESCOBAR, 2005; MALDONADO-TORRES, 2007). O colonialismo epistêmico da ciência ocidental impõe-se a partir da definição do “ponto zero” como principal modelo do conhecimento, por meio do qual se pretende observar o mundo a partir de um lócus neutro, objetivo e absoluto (CASTRO-GÓMEZ, 2007). A geração do conhecimento arqueológico pode ser vista como um produto ideológico que, na maioria dos países latino-americanos, está relacionada com o imaginário colonial sustentado e reproduzido, entre outros âmbitos, nas ciências sociais. A superação da colonialidade do conhecimento exige um posicionamento ético político que, simultaneamente, inicie um processo de descolonização disciplinar. Em primeiro lugar, para descolonizar a estrutura do conhecimento moderno ocidental, é necessário evidenciar o lugar e as relações que produzem e instalam algumas formas do saber em detrimento de outras. Isso significa, em parte, visualizar as instituições produtoras ou administradoras do conhecimento, sua linguagem de transmissão, suas políticas editoriais e seus agentes-referentes associados. Por outro lado, é preciso desafiar os princípios de neutralidade valorativa, o distanciamento e a exterioridade. Dessa maneira, é possível observar as posturas éticas e as políticas da prática e buscar, por um lado, “deslocalizar” a arqueologia de sua matriz moderno-colonial de produção e, por outro lado, desarmar a associação exclusiva de passado, arqueologia e sujeitos ausentes. p. 296 O pensamento decolonial constitui uma expressão da teoria crítica contemporânea relacionada às tradições das ciências sociais e humanas da América Latina e do Caribe (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007), embora não se limite a essas regiões. Com a conceituação decolonial, questiona-se o mito da descolonização e a ideia de que a pós-modernidade implica um mundo desvinculado da colonialidade. Pelo contrário, a ordem global atual ressignifica as exclusões provocadas pelas hierarquias epistêmicas, espirituais, étnicas e de gênero que são sustentadas e reproduzidas pela modernidade. Estabelecem-se, nas discussões atuais, distinções entre os conceitos de colonialismo e colonialidade, considerando o último como um fenômeno histórico mais complexo que o primeiro e que se estende até a nossa atualidade. Desse modo, é proposta a existência de uma hierarquia de poder que possibilita a reprodução de relações de dominação territorial e epistêmica, gerando a subalternização, a negação e/ou a invisibilidade dos conhecimentos, das experiências e das formas de vida dos dominados. A perspectiva decolonial promove a prática, a discussão e a ressignificação de saberes e das ideias geradas desde a diferença colonial e impulsiona as construções do conhecimento “a partir do lugar” (CASTRO-GÓMEZ, 2003; CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007; DÁVALOS, 2005; ESCOBAR, 2005; WALSH, 2007). Concluindo, as apostas atuais giram em torno da ideia de novos modos de produção do saber e não simplesmente da busca por conhecimentos alternativos. Em outras palavras, é necessária uma reconfiguração da prática que, no caso da arqueologia, não só contemple os interesses acerca do passado, mas que também se oriente em função do presente e das necessidades dos atores e dos contextos locais com os quais interagimos. Isso significa exercer uma práxis política e crítica que construa, de maneira situada, o conhecimento (o “a partir daqui” do pensador argentino Arturo Jauretche) — ou seja, uma práxis que não seja eurocêntrica, nem baseada no racionalismo científico e asséptico da modernidade liberal. Pode-se, também, incluir o que Maritza Montero denominou como episteme latino-americana do conhecer, entre outros aspectos caracterizada por uma forma de ver, de fazer, de pensar e de sentir a partir da América Latina (LANDER, 2003). As tentativas por ressignificar a prática disciplinar têm por objetivo copromover e copotencializar espaços inclusivos que superem a endogamia acadêmica, que gerem ações com novos atores e novas situações e que caminhem em direção à coprodução de outros sentidos. As implicações disso estão vinculadas à descentralização acadêmica; à incontornável consulta, à permissão e ao consentimento das comunidades locais; ao entendimento e à promoção da transversalidade do conhecimento; à consideração das histórias e dos saberes locais em seus próprios termos; à consideração dos nossos interesses, alcances e limitações; e à busca de consensos e à visualização das práticas a partir dos contextos éticos e políticos. p. 297 Notas Referências 1 AYALA, P. Pueblos originarios y arqueología: discursos en torno al patrimonio arqueológico en San Pedro de Atacama. Textos Antropológicos, v. 15, n. 2, p. 249-261, 2005. Notas dos Editores — Este texto é uma versão ampliada, e inédita, do artigo “Paisaje, patrimonio y arqueología: de la colonialidad a la decolonialidad de la práctica. Reflexiones desde Sudamérica” publicado na revista Códice, v. 11, n. 21, p. 43-49, 2010 (ISSN 1692-3766). Agradecemos ao autor pelo envio do manuscrito tão logo nos interessamos pelo artigo. Como os demais textos deste volume da Laje que originalmente estavam em espanhol, este artigo recebeu uma última revisão técnico-acadêmica feita pelo editor-chefe Leo Name, bem como uma revisão final da tradução levada a cabo por Bruna Otani Ribeiro e Larissa Fostinone Locoselli, com equipe do Laboratório de Tradução da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA). 2 p. 298 Nota de Tradução — No Brasil, este trecho faz parte de um livro de Galeano chamado De pernas pro ar. A escola do mundo ao avesso, publicado pela L&PM em 1999. Não obtivemos, contudo, o acesso a seu conteúdo. Na internet, circula (em posts) este trecho em português: “Até o mapa mente. Aprendemos a geografia do mundo em um mapa que não mostra o mundo tal como é, mas sim como mandam que seja. No planisfério tradicional, o que se usa nas escolas e em todo lugar, o Equador não está no centro; o norte ocupa dois terços e o sul, um. A América Latina abarca no mapa-múndi menos espaço que Europa e muito menos que a soma de Estados Unidos e Canadá, quando na realidade a América Latina é duas vezes maior que a Europa e bastante maior que Estados Unidos e Canadá. O mapa, que nos diminui, simboliza todo o resto. Geografia roubada, economia saqueada, história falsificada, usurpação cotidiana da realidade: o chamado Terceiro Mundo, habitado por gente de terceira, abarca menos, come menos, recorda menos, vive menos, diz menos”. No entanto, preferiu-se uma tradução própria a partir do espanhol do que esta, que parece menos precisa (principalmente no início, ao omitir “os donos”). BENDER, B. Stonehenge. 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