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v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | “E a gente teve que aprender a conviver”: meninas e futsal escolar “And we had to learn to live together”: girls and school futsal “Y tuvimos que aprender a vivir juntos”: niñas y fútbol sala en la escuela ANTONIO JORGE MARTINS MALVAR1; OSMAR MOREIRA DE SOUZA JUNIOR2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS, UFSCAR, SÃO CARLOS-SP, BRASIL RESUMO O objetivo da pesquisa foi analisar a participação das meninas de uma turma de 6º ano do Ensino Fundamental na prática do futsal nas aulas de Educação Física de uma escola pública do município de Feira de Santana-BA. Utilizamos uma unidade didática da modalidade futsal, com aplicação dos modelos de ensino dos esportes Teaching Games for Understanding (TGfU) e Sport Education, acompanhada de registros em diários de aula pelo professor-pesquisador. Após a coleta e leitura do corpus de análise, os dados foram categorizados através de uma análise indutiva, sendo que para o presente estudo apresentamos as categorias “Conquistas e superações vivenciadas pelas meninas” e “Dificuldades e desafios enfrentados pelas meninas”. Palavras-chave: Educação Física Escolar. Ensino Fundamental. Futsal. Meninas. ABSTRACT The research objective was to analyze the participation of girls from a class of 6th grade of elementary school in futsal practice in Physical Education classes at a public school in the municipality of Feira de Santana – BA. We use a didactic unit of the futsal modality, with application of the teaching models of sports Teaching Games for Understanding (TGfU) and Sport Education, accompanied by records in class diaries by the teacher-researcher. After collecting and reading the analysis corpus, the data were categorized through an inductive analysis, and for the present study the categories “Achievements and overcoming experienced by girls” and “Difficulties and challenges faced by girls” are presented. Keywords: School Physical Education. Elementary School. Futsal. Girls. RESUMEN El objetivo de la investigación fue analizar la participación de niñas de una clase de 6° de primaria en la práctica de fútbol sala en las clases de Educación Física de un colegio público del municipio de Feira de Santana – BA. Usamos una unidad didáctica de la modalidad de fútbol sala, con aplicación de los modelos de enseñanza Teaching Games for Understanding (TGfU) y Sport Education, acompañada de registros en los diarios de clase del docente-investigador. Luego de recolectar y leer el corpus de análisis, los datos fueron categorizados mediante un análisis inductivo, y para el presente estudio se presentan las categorías “Logros y superaciones vividas por niñas” y “Dificultades y desafíos que enfrentan las niñas”. Palabras clave: Educación Física Escolar. Enseñanza Fundamental. Fútbol Sala. Niñas. 1 Mestre em Educação Física (ProEF/UFSCar). Professor da rede pública estadual da Bahia e da rede pública municipal de Feira de Santana-BA. E-mail: prof_malvar@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-00025536-2004. 2 Professor Associado do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana (DEFMH) da UFSCar, coordenador e professor do Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional (PROEF), polo UFSCar. E-mail: osmar.ufscar@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2915-5634. Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 107 “E a gente teve que aprender a conviver” INTRODUÇÃO O presente estudo representa um recorte da pesquisa desenvolvida por um professor-pesquisador de Educação Física (EF) da rede pública Municipal de Feira de Santana, Bahia, inserido no Programa de Mestrado Profissional em Educação Física em Rede Nacional-ProEF, núcleo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A partir de nossas experiências profissionais, observamos um crescente desinteresse das meninas em participar de novas práticas corporais, por vezes simplesmente deixando de participar das aulas práticas. O problema se agrava quando a temática é o esporte, principalmente quando práticas consideradas tradicionalmente masculinas são abordadas, como por exemplo, futebol e futsal. Buscando, entre outros aspectos, contemplar uma participação mais efetiva e, consequentemente, uma maior oportunidade de experimentação, aprendizado e aquisição de competências - principalmente por não demandar muito tempo da aula na repetição técnica de maneira separada e desvinculada da compreensão tática do jogo no âmbito da Pedagogia do Esporte surgem inúmeras propostas de ensino, dentre as quais se destacam “Teaching Games for Understanding” (TGfU) e “Sport Education”. Tais modelos de ensino abarcam um sentido de melhorar a autonomia dos(as) alunos(as) durante o processo de ensino e aprendizagem. Em seus percursos, os dois modelos indicaram ter potencial para democratizarem o esporte, através de uma maior inserção daqueles(as) considerados(as) menos habilidosos(as) e de levarem os(as) participantes a uma maior reflexão sobre sua prática dentro e fora do jogo. Partindo dessa contextualização, a situação-problema desse estudo pode ser materializada no cenário da participação limitada de meninas menos competentes esportivamente nos Jogos Esportivos Coletivos (JEC) e, mais especificamente, no futsal, nas aulas de EF. Nossa hipótese para a recorrência dessa situação-problema relaciona-se ao fato de os conteúdos esportivos, tradicionalmente predominantes nas aulas de EF e entendidos como espaços de validação da masculinidade hegemônica, gerarem um sentimento de não pertencimento, afastando as meninas das aulas. Outra hipótese que levantamos é que os modelos de ensino dos esportes TGFU e Sport Education, possam favorecer às meninas uma maior compreensão das lógicas interna e externa do futsal, por se aproximarem, respectivamente, das situações de jogo da modalidade e do engajamento proporcionado pela experiência de uma competição autêntica, estimulando a participação e a consequente apropriação desse elemento da cultura corporal de movimento pelas meninas. Considerando as hipóteses levantadas, o presente estudo se propôs a analisar a participação das meninas de uma turma de 6º ano do Ensino Fundamental na prática do futsal durante as aulas de EF de uma escola pública do município de Feira de SantanaBA. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Em nossa sociedade, as diferenças entre homens e mulheres têm sido relacionadas diretamente ao sexo, às características físicas tidas como naturais. Pautados por concepções essencialistas do que é ser homem e/ou mulher, elaboramos um sistema de discriminação entre os sexos, reforçando estereótipos, tais como, agressivos e racionais, para eles e, dóceis e afetivas para elas (VIANNA, 2003). Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 108 Antonio Jorge Martins Malvar; Osmar Moreira de Souza Junior De acordo com Souza Junior (2004), o cuidado a ser tomado com relação a estes estereótipos diz respeito à naturalização de situações e fatos que, na verdade, são culturais. Ou seja, por meio de uma cadeia de determinismo biológico assume-se que as meninas “geneticamente ou biologicamente” possuem uma predisposição a gostar de certas coisas e não gostar de outras e os meninos o contrário. O que cria as estatísticas que comprovam estas afirmações é, na verdade, o tratamento cultural que constrói as histórias de vida destas meninas e meninos oferecendo-lhes recompensas ou punições de acordo com seus comportamentos, tomando por referência padrões construídos, aceitos e prestigiados socialmente. Segundo o autor, é importante destacar que as diferenças entre meninos e meninas, “[...] mais do que biológicas são construídas socialmente, na medida em que as experiências incentivadas ou negadas para cada sexo tem um grande peso nas performances desses indivíduos na realização das diferentes práticas corporais” (SOUZA JUNIOR, 2018, p. 8). Historicamente é possível observar que em diferentes períodos da Educação Física Escolar (EFE) brasileira, a participação feminina nas práticas corporais, inicialmente com a Ginástica e posteriormente em outras manifestações, tinha o objetivo de preparálas para serem futuras mães, baseando-se no trinômio “saúde, força, beleza”, identificando o corpo feminino como local privilegiado para a construção de uma nova raça (GOELLNER, 2009). A autora também destaca que a partir das primeiras décadas do século XX houve uma maior participação feminina na prática de esportes, tanto na dimensão do Lazer, quanto da EFE e do Esporte Competitivo, e uma maior ocupação dos espaços públicos voltados ou não às práticas corporais, mas sempre com o intuito de favorecer a procriação através da melhora da condição física e da saúde, proporcionada pela prática esportiva (GOELLNER, 2009). Com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN 9.394/1996), a constituição de turmas mistas nas aulas de EF passou a ser uma prática consolidada no ensino público brasileiro (SOUZA JÚNIOR, 2018), mas que não garantiu que os(as) professores(as) a adotassem de maneira efetiva, já que não houve uma unanimidade sobre a sua aplicação. É importante ressaltar que, segundo Costa e Silva (2002), a coeducação respeita a igualdade de oportunidades entre os gêneros, não significando que escola mista e escola coeducativa sejam a mesma coisa, e que trabalhar a coeducação apenas introduzindo as meninas nas atividades, imaginando que assim está sendo garantida a igualdade de oportunidades “[...] é, no mínimo, simplista e problemático, já que isto não assegura o acesso aos diversos tipos de saberes” (COSTA; SILVA, 2002, p. 48). Muitos(as) professores(as) ainda hoje implementam atividades práticas diferentes para meninos e meninas, provavelmente embasados(as) em um viés biológico. Cremos que esse tipo de atitude só contribui para consolidar a falsa ideia de que existem práticas corporais masculinas e outras femininas, o que acaba influenciando negativamente a própria opinião das meninas e meninos sobre o tema. Um dos grandes problemas enfrentados pelos(as) professores(as) nas aulas de EFE é o crescente desinteresse dos(as) alunos(as) em participarem das práticas propostas, sejam quais forem os conteúdos da cultura corporal de movimento que possam ser abordados, incluindo-se o esporte. Quanto à exclusão por questões de gênero, Ferreira (2014) destaca que durante as aulas de EF está sempre presente uma tensão nas relações de gênero, especialmente quando se desenvolve o conteúdo esporte. Moraes e Silva (2012) afirma que os esportes são um território masculino por excelência, enfatizando que essa primazia contribui para a instituição de espaços e práticas sociais diferenciados, em que corpos femininos e masculinos raramente se misturam. Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 109 “E a gente teve que aprender a conviver” Na atualidade, pode-se constatar que ainda é hegemônica a presença masculina em quadras esportivas e espaços públicos destinados às práticas corporais, bem como em outros espaços de prática da EFE. Também observamos que, há algum tempo, a ocupação dos espaços escolares no intervalo (recreio) e horários livres é quase unicamente dos meninos, hegemonia que só é interrompida quando, eventualmente, surgem meninas que se rebelam contra esse quadro. Para Uchoga (2012), a aceitação pelas meninas de que os meninos são detentores de maior habilidade física, independente da modalidade esportiva, é a maior barreira para a prática conjunta nas aulas de EF. Seguindo nessa mesma linha argumentativa, avaliamos que esse “complexo de inferioridade” também pode representar mais uma causa da “timidez corporal” demonstrada pela maioria das meninas, que se negam a uma participação mais efetiva por se considerarem inaptas. Rangel Betti (1999) pontua que mudanças são necessárias tanto da ação prática quanto da reflexão teórica para que o aprendizado dos esportes não se restrinja ao processo ensino e aprendizagem de técnicas e gestos automatizados, onde o(a) professor(a) é aquele(a) que as conhece e domina, cabendo ao(à) aluno(a) apenas a sua execução, sem questionamentos. Nessa perspectiva, se apresenta a Pedagogia do Esporte, que considera o esporte um fenômeno complexo, que não pode ser entendido de maneira simplista, apenas pela compreensão das partes. A aproximação entre a Pedagogia do Esporte e a EFE viabiliza novas propostas de intervenção pedagógica. Dentro dessa abordagem, dois modelos de ensino chamaram nossa atenção em virtude de suas características que atendem às nossas expectativas em relação às possibilidades de fomentar a compreensão tática com vistas à competência de jogo, bem como a promover a vivência de experiências autênticas de competições. Nos referimos ao Teaching Games for Understanting (TGfU) e ao Sport Education. O Teaching Games for Understanding (TGfU), ou Ensinando Jogos para Compreensão (BUNKER; THORPE, 1982), se origina de um movimento reformador do ensino dos jogos iniciado nos fins dos anos 1960 e 1970 na universidade inglesa de Loughborough (GRAÇA; MESQUITA, 2007). Para Graça e Mesquita (2007), os autores pretendiam que o tradicional enfoque no desenvolvimento das habilidades básicas do jogo, no ensino das técnicas isoladamente, fosse deslocado para o desenvolvimento da capacidade de jogo através da compreensão tática, deixando de vê-lo apenas como um momento de aplicação de técnicas, mas como um espaço de resolução de problemas. Bunker e Thorpe (1982) esquematizaram o processo de interação entre jogoaluno(a)-professor(a) e a sequência do processo de ensino e aprendizagem, na qual o foco didático incide cíclica e sucessivamente sobre a apreciação dos aspectos que constituem o jogo; a tomada de consciência da tática do jogo; a tomada de decisão do que fazer e como fazer nas diferentes situações de jogo; os exercícios necessários para desenvolver as habilidades que melhorarão a performance no jogo; e, finalmente, a integração dos aspectos técnicos e táticos necessários à melhoria da performance no jogo. Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 110 Antonio Jorge Martins Malvar; Osmar Moreira de Souza Junior Figura 1: Modelo do TGfU. Fonte: Bunker; Thorpe (1982). Para Bolonhini e Paes (2009), um aspecto importante relacionado ao TGfU, é a presença constante de uma reflexão coletiva sobre a prática e a elaboração de estratégias para os próximos jogos, sendo a verbalização uma ferramenta importante desta proposta pedagógica, com a construção do conhecimento acontecendo a partir da conversa e análise sobre os jogos. O modelo do Sport Education, ou Educação Esportiva (SIEDENTOP, 1994 citado por MESQUITA et al., 2014) é proposto pela primeira vez em 1982 por Daryl Siedentop, tendo como objetivos solucionar, através de um ambiente que propiciasse autênticas experiências esportivas, os equívocos na relação da escola com o esporte, baseado no que ele chama de play education (educação lúdica) (GRAÇA; MESQUITA, 2007). A partir dessa proposta inicial, o modelo foi amadurecendo em sua concepção, até sua validação como ferramenta pedagógica em 1994 (GRAÇA; MESQUITA, 2007). Para Mesquita et al. (2014), este modelo humaniza e democratiza o esporte, prevenindo problemas como a injustiça, o elitismo e a trapaça, frutos de uma cultura esportiva distorcida. Siedentop (1994, citado por VARGAS et al., 2018) resgata seis características do esporte institucionalizado que considera com maior potencial educativo: a temporada esportiva, a filiação, o cronograma de jogos (competição formal), o registro estatístico, a festividade e o evento culminante. González (2014) salienta que dentro dessa proposta “original” podem ocorrer adaptações, como transformar o campeonato em festivais e/ou torneios. Pode-se destacar, dentro dessas características, a filiação que, no entender de González e Fraga (2012) pode ser uma boa oportunidade para aqueles(as) alunos(as) que não se identificam com a prática de determinada modalidade, se motivarem a participarem em funções que são preteridas pelos(as) mais habilidosos(as) e, dessa forma, se sentirem tão valorizados(as) quanto os(as) outros(as) dentro da equipe. Outro destaque está na inclusão de três eixos fundamentais, tendo como objetivos que os(as) alunos(as) se tornem competentes (Competência Esportiva), entusiastas (Entusiasmo Esportivo) e cultos esportivamente (Conhecimento Esportivo) (GRAÇA; MESQUITA, 2007). Para os autores, ser competente significa dominar habilidades técnicas e táticas que lhe façam participar do jogo de um modo satisfatório; entusiasta, sentir-se atraído(a) pelo esporte e defender os valores do esporte; culto esportivamente, conhecer e valorizar os rituais e tradições do esporte, distinguindo as boas e más práticas esportivas. Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 111 “E a gente teve que aprender a conviver” Os dois modelos trazem inovações no trato com o Esporte nas aulas de EF, colocando o(a) aluno(a) no centro do processo de ensino e aprendizagem, o(a) fazendo refletir sobre as lógicas internas 3 (TGfU e Sport Education) e externas4 (Sport Education) das modalidades e facilitando a apropriação dos saberes conceituais, procedimentais e atitudinais5, conforme o tratamento didático mediado pelo(a) professor(a), podendo contribuir para uma maior inserção daqueles(as) considerados(as) menos habilidosos(as) e que, geralmente, se sentem excluídos(as) desse processo. TRAJETÓRIA METODOLÓGICA Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo, na qual optamos por utilizar um estudo etnográfico. Segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 47) “[...] a pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento” supondo um contato direto e prolongado do(a) pesquisador(a), normalmente a partir de um intensivo trabalho de campo, com a situação e o ambiente que está sendo investigado. André (1995) esclarece que a etnografia é um esquema de pesquisa desenvolvido por antropólogos para estudar a cultura e a sociedade, significando etimologicamente “descrição cultural”. A autora sugere uma adaptação da etnografia, que tem o interesse em descrever a cultura de um grupo social, à educação, constatando que o que se faz em educação, na verdade, são estudos do tipo etnográfico e não etnografia no seu sentido exato. A pesquisa foi desenvolvida em uma escola municipal, situada na zona urbana da cidade de Feira de Santana, Bahia. Participaram da pesquisa 30 alunos e alunas de uma turma do 6º ano do Ensino Fundamental do turno vespertino. A turma foi escolhida entre outras do 6º ano por ser a que tem o maior número de estudantes, maior número de meninas (18) e a que acontecem maiores conflitos relacionados às aulas mistas. O instrumento escolhido para a coleta de dados da pesquisa foram os Diários de Aula. Os Diários de Aula são definidos por Zabalza (2004) como documentos em que professores e professoras anotam suas impressões sobre o que vai acontecendo em suas aulas. Além de registrar os fatos ocorridos no decorrer das aulas, os diários também registraram transcrições de áudios das rodas de conversa que eram usadas de forma recorrente como estratégias pedagógicas das aulas. Para Silva e Bernardes (2007), a roda de conversa é um método vantajoso para coletar informações, esclarecer ideias e posições, discutir temas emergentes, com a possibilidade de se desenvolver em um clima de informalidade. Nesse sentido, assumimos que as rodas de conversa contemplam o duplo sentido de estratégia pedagógica nas aulas e registro de dados da pesquisa. Os registros em Diários de Aula ocorreram em cada uma das aulas realizadas às segundas-feiras e às terças-feiras com base em uma Unidade Didática (UD) adaptada a partir de duas publicações que trazem proposições de UDs para o ensino do futsal 3 Trata-se dos aspectos peculiares de uma modalidade que exigem aos jogadores atuarem de um jeito específico (desde o ponto de vista do movimento realizado) durante sua prática (GONZÁLEZ; BRACHT, 2012, p. 18). 4 Refere-se às características e/ou significados sociais que uma prática esportiva apresenta ou adquire num determinado contexto histórico e cultural (GONZÁLEZ; BRACHT, 2012, p. 19). 5 Corresponde às seguintes questões: “o que se deve saber?” (dimensão conceitual); “o que se deve saber fazer?” (dimensão procedimental); e “como se deve ser?” (dimensão atitudinal), com a finalidade de alcançar os objetivos educacionais (DARIDO, 2012, p.52). Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 112 Antonio Jorge Martins Malvar; Osmar Moreira de Souza Junior (GONZÁLEZ; FRAGA, 2012; BORGES; AMORIM, 2014). A UD foi elaborada com 16 aulas, sendo escolhida a modalidade esportiva futsal, por ser a mais popular na unidade escolar e a que mais gera exclusão das meninas. A UD serviu também como roteiro para as questões disparadoras relacionadas ao tema da pesquisa e que foram utilizadas nas rodas de conversa. Além dos registros dos fatos ocorridos nas aulas e das reflexões críticas sobre os mesmos, os Diários de Aula também registraram gravações de áudios nas rodas de conversa que foram parcialmente transcritos. Para a análise dos dados dos Diários de Aula utilizamos a técnica da análise de conteúdo (GOMES, 2015) com abordagem indutiva-construtiva. Gomes (2002) esclarece que a análise de conteúdo é compreendida atualmente como um conjunto de técnicas e que há de se destacar duas funções na sua aplicação: a verificação de hipóteses e/ou questões, e a descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestos. A primeira pode nos possibilitar encontrar respostas para questões que foram colocadas e nos ajudar a confirmar ou não as hipóteses formuladas antes de irmos a campo; a segunda pode nos levar a ir além das aparências do que foi comunicado pelos sujeitos da pesquisa, podendo as duas funções se complementarem na prática (GOMES, 2002). Segundo Moraes (1999), a abordagem indutiva-construtiva da análise de conteúdo tem como ponto de partida os dados, a partir deles se constroem as categorias e a partir destas a teoria, sendo essencialmente indutiva, utilizando intensamente o conhecimento implícito do pesquisador como parâmetro para a composição das categorias, com a elaboração das regras de categorização ocorrendo ao longo da análise. Durante as aulas com a abordagem do TGfU realizamos rodas de conversa gravadas em áudio, e após estas aulas, bem como nas aulas com abordagem do Sport Education, foram feitos registros em um diário de aula. Os dados da pesquisa foram parcialmente transcritos, pois fizemos a opção por realizar a análise a partir dos próprios áudios, ouvindo-os repetidamente para selecionar e transcrever os momentos que consideramos mais significativos para compor as categorias, dando ênfase em trechos que se relacionassem ao tema da pesquisa e submetendo-os a uma análise de conteúdo simples, que obedeceu às seguintes etapas: a pré-análise; a exploração do material; o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. A partir destas etapas, reagrupamos os trechos por temas que mais se aproximassem dos objetivos da pesquisa, distribuindo-os em três categorias de análise: “Conquistas e superações vivenciadas pelas meninas”; “Dificuldades e desafios enfrentados pelas meninas”; “O olhar do professor sobre os processos de ensino do futsal”. No presente texto, trataremos das duas primeiras categorias. RESULTADOS E DISCUSSÕES Além da dissertação, o Mestrado Profissional tem como exigência a elaboração de um produto educacional, optamos por contar as histórias da pesquisa em uma linguagem artística, buscando outras formas de sensibilidade e, para tanto, produzimos um livreto de cordel, intitulado “‘E a gente teve que aprender a conviver’: a peleja de um professor no ensino do futsal”. Na apresentação e discussão dos resultados traremos algumas páginas do cordel para ilustrar essa outra linguagem e despertar essas outras sensibilidades. Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 113 “E a gente teve que aprender a conviver” Figura 2: Capa do Cordel. Fonte: Malvar; Souza Junior (2020, p. 1). CONQUISTAS E SUPERAÇÕES VIVENCIADAS PELAS MENINAS Em um processo de ensino e aprendizagem comumente ocorrerem problemas, dificuldades, divergências, mas também conquistas e superações que podem ser vivenciadas, ou não, por uma parcela significativa da turma que, frequentemente, é bastante heterogênea. Qualquer professor(a), ao escolher uma determinada metodologia para abordar um conteúdo específico, nem sempre tem a expectativa correspondida de que a maior parte dos(as) alunos(as) alcance os objetivos de aprendizagem propostos. Eventualmente, nesse contexto de heterogeneidade, alguns(mas) alunos(as) precisarão de mais tempo e dedicação para alcançar esses objetivos. Figura 3: Trecho do cordel: Mas elas também tiveram superações e conquistas. Fonte: Malvar; Souza Junior (2020, p. 8). Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 114 Antonio Jorge Martins Malvar; Osmar Moreira de Souza Junior Observamos que foram vivenciadas conquistas e superações pelas meninas, bem como aconteceram problemas, dificuldades e divergências, sendo estas em maior proporção. Aquelas mais participativas conseguiram ter uma evolução maior nos saberes procedimentais e atitudinais, enquanto a maioria não conseguiu romper com as barreiras impostas pelo sexismo estrutural e pela violência simbólica, que continuaram a desmotivá-las a uma participação mais efetiva. Na primeira aula já podemos observar que algumas meninas, aquelas que mais tarde identificaríamos como as mais participativas e questionadoras, conseguiam compreender determinados aspectos do jogo de futsal, dominar a bola e olhar antes de passar, por exemplo, bem como demonstrar atitudes de afirmação da sua capacidade, perante a falta de confiança dos meninos nas suas habilidades. Possivelmente, por demonstrarem mais interesse em aprender e se dedicarem mais, sem receio de participarem e se arriscarem em algo novo, essas meninas começaram a ter alguns avanços antes das outras colegas. Não há como saber, já que esse não era o objetivo dessa pesquisa, mas talvez esse melhor desempenho pudesse também estar relacionado a uma maior participação anterior em práticas corporais, não necessariamente no futsal, dentro e/ou fora da escola, aumentando seus repertórios motores. Quanto à questão da participação, em um estudo de Jaco (2012), conseguiu-se identificar que as meninas que, a princípio, pareciam participar das aulas, na verdade desenvolviam as atividades de maneira “mascarada”, como se fingissem participar. Em seu estudo, Jaco (2012) também constatou que a maioria das meninas que ocupava o lugar de protagonista nas aulas, teve experiências de práticas corporais em espaços fora da escola. Em uma das rodas de conversa do dia 12 de novembro de 2019, fiz a seguinte pergunta: “Na hora de você passar a bola pra o companheiro que está em melhor condição para fazer o gol importa se ele é menino ou menina, se ele tem mais habilidade ou menos habilidade?”, algumas meninas responderam em grupo “Não”, questionei “Não? Por que não importa?”. A menina C6 respondeu: “Por que a menina também aprende”. A menina A complementou: “Todos têm a mesma capacidade” (Roda de conversa inicial, aula 10). No final desta aula perguntei: “O que é que vem melhorando a cada aula? O que é que vocês acham que está melhorando a cada aula?”. A menina D respondeu: “A parceria”. Continuei questionando: “Em relação ao jogo, vocês estão conseguindo fazer mais alguma coisa que não faziam antes?”. A menina A disse: “Sim, gol” e completou “Driblar”. Perguntei: “Tão conseguindo tocar a bola?”. Responderam em coro: “Sim!”. Continuei: “Dominar a bola?”. Responderam novamente em grupo: “Sim” (Roda de conversa final, aula 10). Realmente houve uma boa evolução das meninas A, B, C e D que, não coincidentemente, foram as que mais participaram das aulas com aplicação do TGfU e dos jogos do campeonato (Sport Education), que mais prestavam atenção nas instruções e correções, respondiam e questionavam nas rodas de conversa. Registrei essa evolução no diário de aula: Algumas meninas já conseguem se posicionar corretamente no momento de compor a defesa, marcando os jogadores sem bola, bem como se posicionando para receber a bola, dominando e protegendo, olhando antes de passar (Diário de aula-14, 26 de novembro de 2019). 6 A referência às alunas será feita por letras em ordem alfabética, enquanto os alunos serão referenciados em ordem numérica por algarismos arábicos. Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 115 “E a gente teve que aprender a conviver” As outras meninas também evoluíram, porém sem tantas mudanças na maneira de jogar, além de demonstrarem não se sentirem motivadas em participar efetivamente das atividades propostas. Podemos afirmar que a maior confiança demonstrada pelas meninas que tinham participação mais ativa nas aulas diz respeito ao engajamento às atividades nas aulas. No entanto, em que pese não haver elementos para discorrermos sobre o conjunto de fatores que explicariam a diferença de engajamento entre os grupos de meninas, concordamos com Uchoga e Altmann (2016, p.167), quando afirmam que “[...] as meninas esquivam-se de certos jogos e esportes por não se sentirem capazes”, e com Souza Júnior (2003, p. 113) quando destaca que “[...] a associação do esporte – em especial o futebol – ao universo masculino, também contribui para a exclusão de algumas meninas que evidenciam um conflito entre o esporte e os padrões de feminilidade”. Em nosso estudo, podemos considerar que houve uma participação efetiva de boa parte das meninas nas atividades propostas, principalmente se levarmos em conta que o futsal era encarado por elas como uma modalidade “predominantemente masculina”, e cuja prática nos horários livres em nossa escola (intervalo, aulas vagas) sempre foi dominada pelos meninos. Além disso, consideramos relevante ressaltar o pouco ou nenhum contato, como é o caso do futsal, que essas meninas tiveram com alguma modalidade esportiva durante os anos iniciais do Ensino Fundamental, o que torna essa conquista de espaço nas aulas de EF ainda mais significativa, já que elas tiveram que enfrentar a cultura escolar e as relações de gênero vigentes. Na penúltima aula da unidade didática, na qual fizemos a avaliação final do desempenho técnico-tático, dia 02 de dezembro de 2019, pedi aos alunos e alunas que durante a nossa roda de conversa, assim que eu fizesse os questionamentos, se quisessem se manifestar levantassem o braço e eu deixaria que falassem. Iniciei perguntando: “O que vocês acharam de jogar futsal juntos?”. A menina A pediu para responder, e afirmou: “Foi bom quando os meninos ajudaram e também as meninas quiseram participar”. A menina B também quis se manifestar: “É, foi bom quando a gente jogava sem os meninos, é mais divertido”. O menino 1 também quis responder: “Foi legal porque em quase toda aula a gente jogou bola”. A menina B completou: “E a gente teve que aprender a conviver”. Meu segundo questionamento foi: “As meninas acham que as aulas e jogos contribuíram para melhorar sua forma de jogar?”. A menina C foi a primeira a responder: “Acho que as aulas ajudaram eu melhorar o passe, o chute, essas coisas aí”. A menina E emendou: “Eu fiz até gol!”. A menina A também se manifestou: “Acho que todo mundo melhorou, quer dizer, todas que participaram, porque muita gente só enrolava”. Questionei: “Então, depois dessa experiência, vocês acham que as meninas têm capacidade de aprender a jogar bem o futsal?”. A menina A foi a primeira a falar: “Sim, mas tem que gostar de jogar, porque né, tem menina que não gosta e aí não faz as ‘coisa’ pra aprender. Os meninos toda hora tão jogando”. A menina C também falou: “É isso, jogando a gente aprende, fazendo o que o professor diz lá, os exercícios, ou é difícil a gente saber jogar”. E a menina B reforçou: “Porque eu joguei mais, fiz gol, tirei bola do menino, melhorei, mas fiz tudo que o professor mandou” (Roda de conversa, aula 15). A partir dessas falas, pudemos observar que houve um aproveitamento parcial das aulas com a metodologia do TGfU e do Sport Education, com as meninas avaliando que tiveram uma melhora na execução dos gestos técnicos e da consciência tática do jogo. A fala da menina A chama a atenção para um ponto muito importante, que é a diferença cultural entre meninos e meninas relacionadas à prática do futebol. A aluna constata que Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 116 Antonio Jorge Martins Malvar; Osmar Moreira de Souza Junior os meninos possuem uma experiência prática mais vasta, enquanto as meninas precisam “gostar de jogar”, ou seja, reconhece uma relação direta entre os gostos e as experiências, que são fundamentais para a aprendizagem. Outro aspecto importante detectado é que as meninas demonstraram ter mudado sua percepção em relação à própria capacidade de aprender a jogar futsal, revelando que através do diálogo e da convivência foram desenvolvidos o respeito e a solidariedade, componentes da dimensão atitudinal, como se percebe na fala da menina B “E a gente teve que aprender a conviver”. Essa fala nos remete às dificuldades e conquistas que podem surgir ao se trabalhar com a coeducação, quando vêm à tona conflitos reforçados por estereótipos sociais discriminatórios que aparecem constantemente nas aulas de EF, mas que, através do diálogo, da convivência e da intervenção do(a) professor(a), trazendo esses conflitos para o centro da discussão, podem resultar em uma mudança de pensamentos e de atitudes. Acreditamos que, a partir de uma mudança na utilização do tempo de aula, dedicando mais tempo para jogar do que para executar gestos técnicos separadamente, inserindo e contextualizando estes gestos dentro do próprio jogo, bem como a partir da utilização de jogos em quadra reduzida, podemos estimular a participação de todos e todas ao mesmo tempo na aula. Consideramos ainda mais relevante o uso das rodas de conversa como ferramenta pedagógica, em que ocorrem importantes momentos de diálogo e reflexão, sobretudo relacionados aos saberes atitudinais. DIFICULDADES E DESAFIOS ENFRENTADOS PELAS MENINAS Nos resultados dessa categoria buscamos agrupar informações verbais dos alunos e alunas captadas nos áudios gravados nas rodas de conversa e/ou registradas no diário de aula que retratassem as dificuldades expressadas pelas meninas sobre a prática do futsal e sobre a falta de interação dos meninos com elas, bem como a opinião dos meninos sobre a capacidade das meninas em jogar futsal. Figura 4: Trechos do Cordel: O sexismo estrutural e a violência simbólica. Fonte: Malvar; Souza Junior (2020, p. 5-6). Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 117 “E a gente teve que aprender a conviver” As atitudes dos meninos, em sua maioria, foram constantemente de não valorizar e, até mesmo, menosprezar qualquer ação das meninas que envolvesse a prática do futsal nas nossas aulas. Essas manifestações de menosprezo, impaciência com os erros, comentários e expressões de ironia, conforme pode ser identificado nos trechos do cordel, acabam por fragilizar e afastar ainda mais as meninas que já se sentem inseguras em um ambiente que culturalmente é considerado de domínio masculino. A estas e outras atitudes buscamos uma analogia - sem maiores elaborações epistemológicas - do conceito de racismo estrutural7 (ALMEIDA, 2018), assumindo que este sexismo estaria instalado no tecido social, fornecendo os sentidos para a reprodução das formas de desigualdade, violência e opressão contra as mulheres. Conforme pudemos observar por meio das análises dos diários de campo, este sexismo estrutural manifestou-se sob as diferentes formas de violência simbólica (BOURDIEU, 1989)8 exercida contra a participação das meninas, tais como a falta de companheirismo, colaboração e respeito dos meninos que acabam por exclui-las do jogo efetivamente ou anulando a participação delas não lhes passando a bola sob a alegação de que elas não sabem jogar. Uma das hipóteses para que os meninos exerçam este tipo de opressão, diz respeito à percepção deles de que há uma “invasão” ao seu suposto “universo masculino”, representada pela inserção delas na prática do futsal, já que para eles as meninas “não sabem jogar”. Figura 5: Trecho do cordel: Na outra ele não joga. Fonte: Malvar; Souza Junior (2020, p. 7). 7 Para Sílvio Almeida (2018) o racismo é estrutural, na medida em que integra a organização política e econômica da sociedade, em outros termos, o autor sustenta que o racismo não pode ser encarado como um fenômeno patológico ou uma anormalidade social, na medida em que se constitui na manifestação da normalidade dessa sociedade, fornecendo o sentido para a reprodução das formas de desigualdade e violência sociais. 8 Para Bourdieu (1989), a violência simbólica consiste em uma forma de violência exercida sem a coação física, causando danos morais e psicológicos. Tal forma de violência se apoia nos processos de socialização que induzem as pessoas a se orientar por códigos e critérios do discurso dominante. A violência simbólica manifesta-se na relação de dominação masculina que pressupõe a adesão da mulher, como dominada, ao discurso dominante, como algo natural e inquestionável. Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 118 Antonio Jorge Martins Malvar; Osmar Moreira de Souza Junior Conforme é possível observar no trecho anterior do cordel, o sexismo estrutural não se reproduzia sem um tensionamento por parte das meninas da turma. O excerto do diário de aula, correspondente ao verso do cordel citado, evidencia o tensionamento entre a violência simbólica exercida pelo menino e as formas de resistência operada pela menina. Perguntei também: “Eu queria saber das meninas se elas têm se sentido incluídas?” A menina C deu a seguinte resposta: “Ontem eu não me senti não”. Perguntei “Por quê?”. Ela respondeu: “Porque o menino que é do meu time ele não passa a bola, fiquei várias vezes na frente do gol e ele nunca passou a bola pra mim, e por isso que ele não vai jogar mais, na outra que a gente vai jogar, ele não vai”. Argumentei com ela: “Por quê? Mas ele não faz parte do time? Tem que conversar com ele, tem que dialogar com ele”. Ela retrucou: “Eu tentei, só que ele vira as costas e me ignora, e como eu sou a capitã vou deixar ele sentado e outra pessoa que não jogou vai jogar” (Roda de conversa final, aula 10). Portanto, as meninas denunciam a exclusão sofrida por parte de meninos da turma, evidenciando que o exercício do sexismo estrutural não se faz sem qualquer tipo de resistência. Aliás, compreendemos que essa postura reativa da aluna C, que ameaçou retaliar o aluno que não passava a bola para ela, deixando-o de fora do jogo quando ela fosse capitã, como uma atitude de empoderamento, na medida em que anuncia uma conscientização da opressão e o enfrentamento do comportamento discriminatório dos meninos. Por fim, a roda de conversa em que realizamos a avaliação final de todo o processo foi palco de uma série de manifestações de descontentamento e de denúncias das opressões sofridas pelas meninas nas aulas, evidenciando que nosso problema de pesquisa deveria ser analisado muito além dos impactos do TGfU e do Sport Education, na medida em que os saberes atitudinais foram o que mais se fizeram presentes nas falas das participantes. Na roda de conversa realizada no dia 02 de dezembro de 2019, data da nossa avaliação final do desempenho técnico-tático, pedi que quem quisesse se pronunciar levantasse o braço antes. Fiz a primeira pergunta: “O que vocês acharam de jogar futsal juntos?” A menina F respondeu: “Foi chato, eu não gosto de futebol!” O que foi reforçado pelo menino 4: “Só era bom quando elas não jogavam atrapalhando.” A menina G também respondeu: “A gente devia ter jogado outra coisa” Continuei questionando: “As meninas acham que as aulas e jogos contribuíram para melhorar sua forma de jogar?” A menina G respondeu: “Não aprendi nada, eu não gosto!” No que foi acompanhada pela menina H: “Eu nem joguei com esses meninos chatos.” Ao serem perguntadas: “Então, depois dessa experiência, vocês acham que as meninas têm capacidade de aprender a jogar bem o futsal?” A menina F respondeu: “Nem quero aprender isso” Por sua vez a menina G também reforçou: “Só quem gosta e joga aprendeu, eu não sei nada!” (Roda de conversa, aula 15). Ao analisarmos os trechos selecionados para essa categoria, pudemos identificar a difícil relação de convivência entre meninos e meninas, entre meninos e, até mesmo, entre as próprias meninas, quando se trata de lidar com a prática do esporte, nesse caso mais especificamente do futsal, dentro de um processo de coeducação. Além da visão sexista dos meninos, que taxam as meninas como inábeis, incapazes de aprender e de alcançar supostos níveis de desempenho masculino, foi possível observar, nas atitudes e falas de algumas meninas, certa incredulidade em relação às suas próprias capacidades, Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 119 “E a gente teve que aprender a conviver” bem como a falta de empatia com as colegas que apresentavam uma maior dificuldade de aprendizado. Certamente estas não eram as respostas que esperávamos ouvir ao iniciarmos a intervenção com os modelos de ensino Sport Education e TGfU. É preciso considerar, no entanto, que a pesquisa não é feita para validar hipóteses formuladas a priori e os dados produzidos pela intervenção nos mostraram que havia algo “gritando mais alto” do que as aprendizagens técnico-táticas do futsal naquelas aulas de Educação Física. A frustração e o desgosto manifestados pelas meninas consideradas menos engajadas com as aulas são sintomáticas de um sexismo estrutural que opera no esporte escolar, que torna o ambiente do futsal em especial, um “campo minado” para que meninas sem experiência com os jogos esportivos se arrisquem a exibir publicamente sua incompetência esportiva. Figura 6: Trecho do cordel: Afinal o que seria mais desafiador... Fonte: Malvar; Souza Junior (2020, p. 9). De acordo com trecho anterior do cordel, podemos afirmar que, para as meninas da turma pesquisada, mais urgente que aprender a fazer uma linha de passe, finalizar ao gol ou fazer uma cobertura defensiva, era estabelecer um ambiente de aprendizagem que as fizesse sentirem-se seguras e acolhidas para não sofrerem bullying/sexismo pelo simples fato de errarem um chute ao gol. Portanto, não se trata simplesmente da adoção de metodologias ativas para o ensino do esporte, mas de incorporar a essas metodologias um olhar privilegiado para os saberes atitudinais que devem deixar de ser tratados de forma tangencial ou como parte do currículo oculto, para se tornarem protagonistas do currículo manifesto das aulas de EF. Historicamente, a EF, através de um viés biológico e sexista, tem contribuído para perpetuar determinados estereótipos de gênero, não oportunizando que as meninas tenham vivências corporais diversificadas. O cerceamento de oportunidades que, culturalmente esteve e, em alguns casos, permanece presente em outros setores da sociedade para além do espaço escolar, reforça essa falta de “confiança nas próprias habilidades” e na capacidade de “arriscar-se em novas aprendizagens corporais”, como Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, seç. esp., p. 106-122, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 | DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-secesp-p106-122 120 Antonio Jorge Martins Malvar; Osmar Moreira de Souza Junior bem descrito por Uchoga e Altmann (2016), dificultando a superação de barreiras entre meninos e meninas. Embora não seja o principal motivo, também não podemos deixar de considerar que o pouco tempo destinado à aplicação da UD pode ter contribuído para que não houvesse uma mudança substancial na opinião das meninas e dos meninos sobre a participação das meninas no futsal. Este pouco tempo contrasta com uma longa história cultural em que os papéis “femininos” e “masculinos” são definidos por preconceitos e estereótipos que, junto ao contexto social vigente, acabam por estabelecer um senso comum de que o futsal é uma prática eminentemente masculina. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora inicialmente tenhamos estruturado a pesquisa no sentido de investigar os impactos dos modelos de ensino TGfU e Sport Education na participação das meninas na prática do futsal nas aulas, os resultados encontrados foram redirecionando os caminhos da pesquisa ao revelarem que o TGfU e o Sport Education não tiveram uma contribuição efetiva no processo de ensino e aprendizagem do futsal pelas meninas. Um dos aspectos a serem considerados, diz respeito à quantidade pequena de aulas destinadas à UD, limitação que já havia sido identificada por outros estudos sobre os impactos dos mesmos modelos de ensino. Podemos afirmar que tanto o TGfU como o Sport Education têm potencial para auxiliar os(as) professores(as) de Educação Física no ensino do esporte na escola, tratando de forma inclusiva esse importante conteúdo da disciplina, sobretudo quando aliados a uma estratégia pedagógica como a roda de conversa dentro de um processo coeducativo. No entanto, não podemos nos furtar de admitir que os aspectos que mais se destacaram ao longo do estudo dizem respeito aos saberes atitudinais, na medida em que as situações que denotaram o sexismo, a violência simbólica, a opressão e a dominação masculina se sobrepujaram aos aspectos relativos às aprendizagens técnico-táticas. Neste sentido, consideramos que as aprendizagens que deveriam anteceder àquelas priorizadas pela Pedagogia do Esporte, demandam resgatar valores como respeito às diferenças, autonomia, interação e colaboração para estimular a participação das meninas nas aulas de EF. Uma importante sinalização de que esses valores e as competências a eles relacionadas estavam sendo elaboradas pela turma ao longo do processo de ensino e aprendizagem, pode ser identificada em nossa penúltima aula, quando a menina B, responde à pergunta sobre o que acharam de jogar futsal juntos (meninos e meninas), afirmando “a gente teve que aprender a conviver”. REFERÊNCIAS ALMEIDA, S. L. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018. ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1995. (Série Prática Pedagógica). BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994. BOLONHINI, S. Z.; PAES, R. R. A proposta pedagógica do Teaching Games For Understanding: reflexões sobre a iniciação esportiva. Pensar a Prática, v. 12, n. 2, p. 1-9, 2009. Motricidades: Rev. 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