Ca p í tu l o I I
POÉTICA DA CONCENTRAÇÃO NA
INTERPRETAÇÃO E PERFORMANCE MUSICAIS
WERNER AGUIAR
INTRODUÇÃO
Desde onde o intérprete é o que é na performance da obra musical?
Quem é o intérprete? Que lugar ocupa na obra? O que diz a concentração
para além do tratamento dado pela Frenologia de maneira que seja possível associá-la à poética? Que relações há entre poesia, concentração, interpretação e performance? Como pode o intérprete se beneficiar do conhecimento e aprofundamento dessa relação?
A performance musical requer uma série de ações articuladas, entre elas, o foco contínuo voluntário na atividade mental. A despeito disso,
a concentração não é um estado mental ou, mais que isso, um modo de
envolvimento com a atividade exclusivamente da performance musical.
A concentração como estado de presença (Bastos, 2019), além de ocorrer
em diversas etapas do estudo do intérprete e na preparação da performance, também é requerida em variadas atividades. É um autoengano imaginar que a concentração pode ser treinada para a performance se estiver
ausente do cotidiano do músico. Se um indivíduo habitualmente emprega
excesso de tensão muscular na execução de variadas atividades, não há
razão para que milagrosamente ele toque ou cante livre desse excesso de
tensão. Da mesma forma, o exercício habitual da dispersão a que se deixa
levar pela quantidade avassaladora de estímulos no dia a dia molda uma
disposição mental que se torna um obstáculo à concentração.
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Concentração na Performance Musical: Conceitos e Aplicações
A concentração, conforme uma análise preliminar dos componentes da palavra, mais que um ato cerebral diz respeito a ação de trazer para o centro, um ato de reunir e combinar em torno de um ponto central
(concentrar). O intérprete então realiza um movimento em direção ao
centro que ele mesmo é. A concentração do intérprete é um ato de autocentramento, reunião com o seu próprio centro. Por isso, pergunto o que
é ou está no centro de ser intérprete ou performer?
Tradicionalmente, o intérprete tem sido compreendido a partir de
duas concepções contrastantes apontadas por Abdo (2000). São elas: a fidelidade autoral e a licença interpretativa. As definições do papel do intérprete, seja do ponto de vista da dependência autoral, seja pela perspectiva liberdade artística, complicam-se pela interseção de domínios quanto
ao uso permutável das designações de intérprete e performer. Frequentemente utilizados de modo intercambiável, acredita-se que a permuta de
um pelo outro assume que a substituição mútua não ocasiona perda de
função ou de adequação ao ato artístico da criação/recriação da obra. Isso
será detalhado adiante com especial ajuda da etimologia.
Essa ferramenta tem por objetivo rastrear sentidos para além das
definições técnicas do emprego terminológico de uma determinada área
do conhecimento. Isso é particularmente relevante e produtivo para pensar as implicações de diferentes noções que uma palavra possui. É possível contextualizar os campos de conhecimentos específicos no âmbito
mais amplo da Cultura e do Pensamento em que a experiência de um fazer se constituiu. Particularmente importante nas Ciências Humanas, Letras e Artes, a etimologia contribui para demonstrar a pertinência, a presença e o desdobramento dos diversos sentidos das palavras da linguagem
como seu modo característico estabelecer os limites de todo e qualquer
conhecimento. Em geral, esses limites são mais amplos do que as diferentes áreas de conhecimento científico delimitam. Esses limites do conhecimento, como ensina Wittgenstein (2001), são constituídos não pela
ciência, mas pelos limites da linguagem: “5.6 - Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.”
Em que pese, hoje, as atividades serem reguladas pelas convenções e terminologias acordadas nas diversas áreas de conhecimento, permanece o fato apontado por Wittgenstein de que não podemos dizer o que
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Concentração na Performance Musical: Conceitos e Aplicações
não podemos pensar. O contrário também é verdade. Como diria Hölderlin, “nenhuma coisa é onde falta a palavra” (Hölderlin apud Heidegger,
2003). Quer dizer, há uma relação entre a linguagem e as coisas. Isso vale
para as coisas no pensamento e para a representação do objeto e do real.
Dizer não significa, portanto, apenas falar ou pronunciar, mas fundamentalmente mostrar ou mostrar-se. As coisas se mostram à fala e ao pensamento na linguagem. “Que o mundo seja meu mundo, é o que se mostra
nisso: os limites da linguagem (a linguagem que, só ela, eu entendo) significam os limites de meu mundo” (Wittgenstein, 2001).
À parte das concepções terminológicas da interpretação e da performance musicais, é necessário pensar em quê a experiência da linguagem habita. Esse domínio da experiência impulsiona os limites do mundo, do conhecimento, conforme Wittgenstein manifesta na sua proposição. Essa mesma experiência de levar os limites para além do perímetro
de si mesmo (movimento contido no prefixo ex-) em consonância com o
filósofo Vienense, é o que Guimarães Rosa chama de “aspecto metafísico
da língua”, que faz com que a linguagem seja antes de tudo a linguagem
de alguém. A linguagem é um modo próprio de experienciar o real: “a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho
de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a
linguagem também deve evoluir constantemente” (Lorenz, 1991).
A linguagem corrente, esta que impera nas terminologias, de acordo com o escritor brasileiro é um monstro morto. Ao revisitar a história da
experiência humana com as diversas palavras da linguagem abre-se para
a possibilidade de repentinamente fazer a experiência própria da própria
linguagem e do próprio real. “A língua serve para expressar ideias, mas
a linguagem corrente expressa apenas clichês e não ideias; por isso está
morta, e o que está morto não pode engendrar ideias. Não se pode fazer
desta linguagem corrente uma língua literária” (Lorenz, 1991).
Há uma diferença marcante entre o uso comum e o uso estético da
linguagem escrita enquanto arte literária. Nesse caso, está pressuposto
que a linguagem é matéria de criação, isto é, fazer a passagem do não ser
para o ser, do que não é para o que é, expandir os limites de um mundo.
Platão, em O banquete (205b) (1972) definiu esse processo de criação como poiésis, poesia: “poesia é algo de múltiplo; pois toda causa de qualRay; Zanini; Aguiar (Orgs.) Publicação ABRAPEM.ORG 2020
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quer coisa passar do não-ser ao ser é poesia, de modo que as confecções
de todas as artes são poesias, e todos os seus artesãos poetas”.
Ao partir do processo etimológico a presente reflexão sobre a poética da concentração na interpretação e performance musicais visa imergir na via da experiência histórica, isto é, da e na experiência das palavras
poesia, concentração, interpretação e performance no impulso de renovar a experiência. “Somente renovando a língua é que se pode renovar o
mundo. Devemos conservar o sentido da vida, devolver-lhe esse sentido”
(Lorenz, 1991).
Não há em qualquer instância do uso corrente da linguagem a garantia de uma experiência uniforme do que é a criação artística quanto
à concentração, à interpretação e à performance. Não há no seu uso terminológico o asseguramento de uma experiência unívoca. Embora cada
termo possa ter uma definição específica – em alguns casos, como interpretação e performance, permutável – as práticas da experiência são múltiplas e variadas. A linguagem funciona em seus usos. Não cabe indagar
por seus significados, mas por seus usos na experiência. A história da experiência da palavra se constitui no panorama onde se desdobra a diversidade da experiência humana. Há uma reciprocidade entre os jogos de linguagem e os jogos das formas de vida e do seu desdobramento enquanto
experiência. Desse modo, a etimologia auxilia não tanto em estabelecer
os limites claros de cada experiência, mas em perceber que, como limiares, seus domínios implicam-se para além das definições terminológicas.
1. REFERENCIAL TEÓRICO
A noção de interpretação musical é recente, não ocorrendo antes de
1800. Ela ganhou importância especialmente em função da possibilidade
de comparação de gravações. Anteriormente a essas, Beethoven e Wagner
foram grandes incentivadores da interpretação pessoal, noção que coincidiu com o surgimento da figura do Regente (Davies & Sadie, 2001). Isto
considerado, começo pela confusão terminológica entre interpretação e
performance assinalada por (Khuen, 2012). Sua compreensão sobre a definição de interpretação musical toma a etimologia apresentada por Dourado (2004) e se coaduna não apenas com a corrente de fidelidade autoral
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apresentada por Abdo, como também supõe a referência a preceitos musicais e históricos.
A reflexão de Kuhen encontra respaldo parcial no Oxford Music
Online (Davies & Sadie, 2001) como uma das concepções possíveis. Esses autores apresentam um histórico da compreensão de interpretação na
música que parte da noção de que ela é inicialmente tratada por autores
como o estudo da prática da performance. O artigo toma o termo no seu
uso geral, partindo da compreensão de que a obra musical manifesta a
maneira como ela é executada (performed). Essa abordagem justifica a
utilização permutável entre interpretação e performance. Os autores também levantam a polêmica entre a definição do English Dictionary, a de
que a interpretação é a expressão da concepção do autor levada a termo
pelo performer. Acrescentam que o intérprete frequentemente apresenta
suas próprias ideias da obra.
A ideia romântica de interpretação que ainda está presente em algumas abordagens, como se refere Abdo, passa pela noção de que o intérprete carrega consigo algo a ser transmitido como revelação: o significado da obra. Essa condição de ser o portador da mensagem da obra é
justamente o aspecto que requer do intérprete na sua performance a capacidade de se concentrar apropriadamente ao que deseja transmitir. Sob
essa perspectiva, a percepção e atenção focalizada do ouvinte na mensagem revelada é diretamente afetada pela ação do intérprete. Esse traço geral da relação autor-obra-intérprete-ouvinte pressupõe que se compreenda que a obra somente ganha vida na sua performance. A performance é,
desse modo, o meio mais usual de acesso à obra. Certamente essa é uma
discussão que extrapola o foco do presente texto, mas vale assinalar essa
questão como relevante.
De qualquer maneira, o resultado da interpretação nesse caso seria
o de que a compreensão da obra por parte do ouvinte é intermediada pelas ações e decisões do intérprete. É preciso ressalvar que esse conjunto
de ações e decisões do intérprete é uma visão, uma perspectiva da obra
através da maneira pela qual ela é tocada e performada. As instruções e
codificações da performance na partitura subestimam os detalhes sonoros em toda sua envergadura na performance de fato. A beleza da relação
obra-interpretação-performance é justamente a de que, embora ocorram
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Concentração na Performance Musical: Conceitos e Aplicações
diferentes versões, elas todas podem se manter, ainda assim, fiéis à obra.
Essa compreensão é paradoxal; fala-se aqui da fidelidade da interpretação, que é mutável, com relação a da obra, considerada nessa perspectiva
como imutável. Isso será, porém, discutido e revisado adiante.
Davies e Sadie diferenciam a interpretação da performance, sendo
a primeira incorporada nesta última. O argumento apresentado é de que
a interpretação permanece a mesma enquanto a performance é um evento único que não pode ser reencenado, embora possa ser reproduzido por
meio de uma gravação, por exemplo. Os autores entendem que a interpretação, ao contrário, pode ser reproduzida em diferentes ocasiões de performance porque se trata do resultado de uma série de decisões que são
incorporadas pelo intérprete – performer ou regente. Eles não deixam de
ressalvar, no entanto, que uma obra é especialmente valorizada porque
enseja uma variedade de possibilidades interpretativas e, por esta razão,
nenhuma interpretação pode a rigor ser classificada como exclusivamente
correta. A despeito de várias das instruções do compositor serem consideradas como obrigatórias (alturas, por exemplo), boa parte delas deixa um
campo enorme para decisões tomadas pelo intérprete. Esse seria o motivo
pelo qual a performance é considerada um ato criativo vital. Aqui, apesar
de explicitarem a diferenciação entre interpretação e performance, quer
me parecer, ocorre novamente o uso indistinto dos dois termos.
Por outro lado, há a compreensão de que a interpretação não é algo
separado da obra. Isso decorre do fato de que a obra estaria incorporada e
instanciada na interpretação, embora esta não tenha conteúdo em si mesma, já que este seria proveniente da obra. Nesse sentido, a interpretação
revela a obra em uma iluminação puramente musical, sem que isso signifique uma descrição da mesma.
No sentido usual, para além de ser sinônimo de tocar ou cantar, no
lato sensu interpretar significa determinar o significado preciso de um
texto, dar sentido a algo, entender ou julgar, e ainda, especialmente, traduzir ou verter de uma língua para outra. Esse sentido é corroborado pela etimologia da palavra apresentada nos diversos dicionários dessa categoria. Provém do Latim interpretari – explicar, traduzir; compreender;
avaliar, decidir, expor o sentido de, deixar claro ou explícito (Dicionário
Houaiss, 2020). Dessa compreensão inicial se mantém o grau de coerênRay; Zanini; Aguiar (Orgs.) Publicação ABRAPEM.ORG 2020
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cia das principais teses contrastantes sobre a interpretação musical. Conforme Abdo, são elas: 1) a fidelidade ao autor e 2) a licença interpretativa.
A tese da reevocação do sentido autoral, com muitos adeptos, especialmente nas instituições conservatoriais brasileiras, remonta ao espiritualismo estético de Croce. A finalidade da interpretação musical seria
“reevocar fielmente o significado original recomendando-se, para tanto,
uma execução tão impessoal e objetiva quanto possível, respaldada no
exame da partitura e na investigação histórico-estilística” (Idem, p. 17).
Essa noção pode ser sintetizada na expressão por vezes ouvida nas academias de música: “tocar como o compositor tocaria”.
Nesta compreensão da ação de interpretar, percebe-se um alinhamento com a noção fornecida por meio do Latim interpretari, a saber, explicar, expor, entender e traduzir. Interpretar uma obra, como apresenta
Unes (1997) “nada mais é que um processo tradutório no seu sentido mais
amplo: para indivíduos não-treinados, o significado dos signos gráficos
(da partitura) permanece indecifrável. Para a tradução desses signos gráficos em signos acústicos, faz-se necessário um tradutor” (p. 21).
A outra corrente contraposta à ideia de fidelidade autoral é a da licença interpretativa. Fundamenta-se no “atualismo estético” de Giovanni
Gentile (Filosofia dell’Arte) e que segundo o relato de Abdo, “a obra de
arte só pode reviver mediante uma interpretação pessoal, que a reelabora
indefinidamente, tendo como único critério a subjetividade de quem interpreta” (p. 17). A interpretação continua nesse caso como ato dependente da noção de tradução, embora desta feita não seja mais uma tradução
da intenção original do autor. Esta seria impossível uma vez que o significado original estaria perdido no tempo. A interpretação teria nesse caso
igualmente o compromisso de ser uma tradução da subjetividade do intérprete.
A autora expõe nessa perspectiva o “relativismo moderado” de Gadamer (Ibidem) e de H. J. Koellreutter, o desconstrucionismo de Roland
Barthes e Jacques Derrida e o pragmatismo de Richard Rorty. Se por um
lado, no atualismo estético e no relativismo moderado o sentido é posto pela ação tradutora e atualizadora do intérprete, o desconstrucionismo
compreende o leitor (ou o ouvinte) como o agente da interpretação. Desse
modo, ao estender esse aspecto literário para a música, tudo o que precede
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a construção do sentido por parte do ouvinte, incluindo-se aí o intérprete, passa a ser visto como mero intermediário de pontos de vista alheios.
Essa compreensão ganha um reforço especial por parte da noção
originada desde a etimologia do Latim interpretari uma vez que a ênfase
no prefixo inter- responderia pelo entendimento de intérprete como aquele que ocupa a posição intermédia entre os códigos da obra e sua compreensão por parte do ouvinte. Isso está particularmente demarcado por
Klein (2003) na acepção do francês inter-pres – agente entre duas partes
(grifo nosso).
Com a palavra Performance ocorre fato semelhante. Há um uso
amplamente disseminado da palavra inglesa, inclusive nos países não falantes de língua inglesa. A adoção universal do termo para as práticas da
execução musical em variadas circunstâncias que excedem o âmbito da
intimidade do indivíduo possui extensa discussão em Ray (2015) e outros
trabalhos da mesma autora. Notadamente, a performance musical é compreendida “como o momento em que o músico (instrumentista, cantor ou
regente) executa uma obra musical exposto à crítica de outro ou outros”.
Faz parte dessa reflexão o relacionamento da performance com elementos
que interagem com ela no momento em que ocorre, tais como os aspectos
anatomofisiológicos, os de conhecimento do conteúdo, bem como os aspecto s técnicos, psicológicos e neurológicos (Ray, 2002).
Nesse campo tem se dado a reflexão sobre a performance musical sob as perspectivas da cognição, da neurociência, da psicologia e da
fisiologia, como demonstram os resultados consolidados em Williamon
(2004), Klickstein (2009), Rink (2017), apenas para mencionar alguns.
Como dizia, em todas as considerações acima elencadas, o ponto
de partida é o uso disseminado do termo performance musical já desde a
pressuposição do que significa a palavra performance. Uma revisão inicial de literatura em Filosofia da Música (Kivy, Scruton, Goehr, Levinson) também aponta para o uso do termo performance dado como tácito.
Isso não é surpresa já que o termo performance, ao contrário de interpretação, está em uso no Ocidente desde cerca de 1590:
Performance – final de 15c., “realização, conclusão” (de algo), de
executar + -ance. Significando “aquilo que é realizado, algo realiRay; Zanini; Aguiar (Orgs.) Publicação ABRAPEM.ORG 2020
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zado” é de 1590; o de “ação de executar uma peça, etc.” é da década de 1610; o de “um entretenimento público” é de 1709. O substantivo anterior no inglês médio estava executando (final de 14c.)
“estado de conclusão, realização de um ato”. (Online Etymology
Dictionary, 2020) (tradução nossa).
Abdo defende que o critério diretivo legítimo de cada execução é a
própria obra, não as intenções do compositor ou do intérprete. Para a demonstração, recorre à teoria da interpretação de Luigi Pareyson a partir
da sua Estética da Formatividade. Em primeiro lugar, Abdo destaca algo
fundamental, que nem sempre fica claro para muitos músicos: a fisicidade da obra. A obra possui um corpo próprio, ela é concreta. Esse modo de
apreender a obra é por vezes difícil, já que a música de modo geral é compreendida como a mais abstrata das artes (Swanwick, 2003).
Em segundo lugar, a forma não tem a ver com a ideia formalista.
Diferentemente do que se viu anteriormente com Davies e Sadie, de que
a obra é trazida à vida pela atividade do intérprete, a forma se constitui
como a própria vida da obra. “O seu “acabamento” não se apresenta como “perfeição estática”, mas como “perfeição dinâmica” e conflitual, que
carrega em si a tensão permanente de seus elementos constitutivos” (Abdo, 2000, p. 19). A formatividade é esse traço característico da obra em
que a forma não é formal e, portanto, não é abstrata. Por se constituir ela
mesma a vida da obra, a forma é uma forma formante. Daí o termo Formatividade. A forma é conjunta à obra, não uma representação dela.
Abdo ainda adverte que “no centro da argumentação pareysoniana,
reside o princípio da coincidência de fisicidade e espiritualidade na arte,
pelo qual, não há, na obra, sinal físico que não esteja carregado de significado espiritual nem significado espiritual que não seja presença física” (Idem, p. 19-20). Há no pensamento de Pareyson acerca da natureza
da obra de arte um movimento no sentido de superar a milenar separação
corpo e espírito. Em suma, trata-se da superação da dicotomia prototípica
do sensível e do inteligível ou ainda, do sensível versus o inteligível vigente desde o platonismo.
Em terceiro lugar, em decorrência da superação da dicotomia sensível-inteligível permite-se que se supere também as demais dicotomias
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dela decorrentes, entre elas, talvez a mais importante desde a Modernidade, a dicotomia sujeito-objeto. Interpretar não passaria, então, por decisões de um sujeito da interpretação historicamente informado e situado.
Interpretar “não significa, portanto, alcançar um significado que transcende a sua fisicidade, mas fazer falar a sua própria realidade física com sentidos espirituais” (Idem, p. 20).
Diante dessa problemática, prefiro aqui fundamentar a etimologia
de interpretação a partir da discussão de Fogel (2002) a respeito dos verbos constitutivos da existência, como apresentado adiante. Nessa perspectiva, trato nesse texto do verbo interpretar e não de interpretação, pois
ela é um substantivo verbal cuja derivação provém da ação de interpretar
e não o contrário.
2. DISCUSSÃO
A obra é um centro de convergência de toda atividade artística, seja ela a do compositor, seja ela a do intérprete, e mesmo do ouvinte (Heidegger, 2010). A isto chamo con-centração. A separação do prefixo contem como objetivo destacar a acepção etimológica de estar em conjunto
ou em reunião com o que se encontra no centro. Com isso aprofundo a
ideia de que a obra não é um objeto em si mesma, produto exclusivo de
realização do gênio autoral, interpretativo ou de consumo (fruição). Certamente ela é tudo isso, mas não cada um desses exclusivamente. A obra
é esse centro de atração para o qual convergem tanto o que entendemos
ou percebemos com o nome de arte, como a atividade desempenhada pelo artista.
Há duas consequências dessa concepção: uma, a superação da relação sujeito-objeto e outra, a posição a qual Heidegger chama de artista na
obra de arte como uma dimensão cujos limites se adensam em termos de
complexidade na Música e nas demais artes performáticas.
A superação da relação sujeito-objeto na obra implica que ela não
é mais produto, mas uma relação. Heidegger (2010) triparte esta relação
entre obra, arte e artista e repõe a unidade original entre sujeito e objeto
(Souza, 1999) assim como a proposta de uma doutrina perspectivista dos
afetos em Nietzsche (Fogel, 2002).
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A constituição da relação sujeito-objeto possui três marcos históricos. Como se sabe, contribuíram para o desenvolvimento dessa representação do real 1) o realismo, em que o mundo é disposto desde as coisas
elas mesmas (objeto), 2) o idealismo, em que o mundo se estrutura desde
a perspectiva do pensar racional do sujeito – o Cogito ergo sum cartesiano e 3) a síntese do criticismo kantiano que busca uma posição intermédia
entre sujeito e objeto consolidando essa relação como tal.
Ao observar esse processo histórico é possível apreendê-lo a partir
de uma depuração tipicamente dialética da aplicação do trinômio tese-antítese-síntese. Tal processo, em si mesmo, pareceu esgotar a questão do
dimensionamento do real através da definição dos limites do que pode ou
não ser conhecido. É precisamente nessa questão que reside o problema
dessa relação marcante no Ocidente: a delimitação da teoria do conhecimento como determinante da relação sujeito (o interior) objeto (o exterior) desde a aplicação do critério da verdade como conformidade entre o
pensar e a coisa pensada.
Na aplicação sem questionamento dessa relação, o que não se coloca em movimento é, de um lado, as condições pelas quais o sujeito pode conhecer o objeto, isto é, como estabelecer a ponte entre o interior do
sujeito e o objeto exterior; de outro, não se pergunta em primeiro lugar
porque e desde onde objeto e sujeito ocupam previamente as posições
antagônicas de tese e antítese para que em última instância venham a ser
conciliados numa síntese que, como tal, necessariamente deixa de fora
uma série de peculiaridades de cada um como aquilo que podemos ou
não conhecer.
O critério da verdade não funciona apenas com relação à adequação entre o conhecimento do sujeito e o objeto por ele conhecido. Vale
também para o modo apropriado de como o conhecimento deve ocorrer.
O conhecimento verdadeiro não apenas é aquele que apreende o objeto em sua representação – sendo que esta pode substituir o próprio objeto (Jardim, 2010), mas diz respeito igualmente à maneira correta de conhecer, isto é, à forma de como deve ocorrer: “antes de pensar é preciso
aprender a pensar corretamente” (Fogel, 2002, p. 91). O conhecimento é
instrumental e propedêutico, possui regras de como deve se dar. O conhecimento é uma ação deliberada do sujeito. É ele quem conhece o objeto
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conhecido e determina o seu escopo. O sujeito também determina com isso o que pode ser ou não ser conhecido de acordo com o critério da verdade que, como explicitado acima, é a adequação e correção entre o pensar e a coisa.
Nessa perspectiva, conhecimento se tornou instrumento que deve
então servir para realizar a ponte ente o sujeito do conhecimento e o objeto conhecido. Além do critério da verdade como correção e adequação,
o conhecimento deve ser racional, obedecendo seus princípios (identidade, não contradição, suficiência e terceiro excluído). A lógica e a teoria do
conhecimento são incorporadas como aspectos da metodologia. Esta trata
do conjunto de procedimentos e ações que visam o asseguramento prévio
e do controle do conhecimento, da verdade e do real para todos, em todos
os lugares e em todos os tempos.
A crítica de Fogel vai no sentido de que o conhecimento como pensar não pré-existe fora do pensar ele mesmo. O pensar só é enquanto se
dá. Pensar é um verbo constitutivo da existência e não uma posse que se
adquire desde a teoria do conhecimento. Verbo constitutivo da existência
quer dizer: modo de ser possível do homem, que abre um campo de relacionamentos e que vem a ser um domínio possível de realidade. O afeto
é este âmbito que, esse sim, pré-existe à teoria do conhecimento. O afeto
é o modo de experiência do real inseparável do ser humano e desde sua
precedência abre um campo de relacionamentos, ação, atividade.
Formulando melhor: por afeto cabe entender todo e cada verbo
constitutivo do existir, do viver. Verbo, isto é, todo e qualquer modo de ser possível do homem, modo este que abre um campo de relacionamentos e, a partir da ação ou da atividade que é este campo,
se instaura, vem a ser um âmbito, um domínio possível de realidade, por exemplo, pensar, escrever, pintar, caçar, guerrear, jogar...
A isso se pode também denominar força, isto é, irrupção de força,
que é um campo de relacionamento ou de instauração de uma realidade possível (Fogel, 2002, p. 94).
O elemento do afeto é o ambiente em que o ser humano já se encontra, assim como a água é o elemento do peixe. O afeto como meio não
é tratado aqui como intermediário entre dois elementos que foram artifiRay; Zanini; Aguiar (Orgs.) Publicação ABRAPEM.ORG 2020
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cialmente separados – como na relação sujeito-objeto, como o sensível-inteligível, mas como meio ambiente, circunstância, como ab-soluto, isto é, como algo que não possui referência externa. Ab-soluto quer dizer,
o que não resolve fora de si próprio, não remete para fora, para antes, depois, aquém ou além de si próprio. Como tal, o afeto é a vida e a existência das coisas que aí se dão: origem, começo, fundamento. Há um principiar arcaico no afeto.
Compor, tocar, cantar, interpretar, performar, todos se constituem
como verbos constitutivos da existência e patentemente expressam a con-centração, o movimento ab-soluto do que é próprio, intransferível e singular: o si mesmo. Há outros verbos constitutivos da existência: construir,
engenhar, curar, arquitetar, planejar, correr, pular, dançar, etc., e outros
ainda que sequer sabemos que são ou serão. São todos modos de ser
Verbos que performam o existir definem os interesses. Eles são os
interesses. Não há existência humana que não esteja em primeiro lugar,
porque desde sempre, permeada pelos interesses. A existência é interessada e seus interesses são sua realização, um modo de ser. Ser é o modo
do acontecer, do suceder. O interesse, como a palavra mesma explicita é
o modo vital de inserção no ser. O ser humano não consegue, pois, recuar
para aquém de si mesmo. Na medida em que sua vida, sua existência, já
se dão desde o afeto ou interesse, qualquer ação que ele tome já é também
sempre movida por esse afeto ou interesse. Por isso Fogel dirá que “o homem não consegue pôr-se antes ou fora do próprio homem, para assim
apreender, captar o começo do homem” (p. 98). Nesse sentido compreende-se que o ser humano é histórico, no sentido de poder ser o que é e que
sempre já se deu da maneira que é.
O fato do ser humano não conseguir observar a ele mesmo de um
ponto de vista externo subverte a relação sujeito-objeto. Não há um sujeito ao qual o afeto ou interesse são a ele agregados a posteriori, simplesmente porque o modo de ser do ser humano já é desde sempre tomado
ou tocado por afeto ou interesse. Não há um sujeito, mas tão somente um
modo de ser. Como diria Kierkegaard (2017), o homem é “a realidade da
liberdade como possibilidade para a possibilidade”.
A discussão sobre poética, interpretação, performance e concentração passa necessariamente pelo afeto, pela experiência ou pelo que Fogel
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chama de centro de interesse. A presença do artista na obra e seus verbos
constitutivos da existência são os modos arcaicos ou fundantes de sua inserção não apenas na obra, mas no ser. É nessa inserção que se configuram as possibilidades de ser do artista e da obra. Heidegger (2010) demonstra a interdependência entre obra, artista e arte que é negligenciada
toda vez que as perspectivas de compreensão tomam como ponto de partida a relação sujeito-objeto. Heidegger fala da unidade da obra e isso significa que a obra, de forma semelhante à unidade entre fisicidade e espírito em Pareyson, se dá desde a unidade de obra, artista e arte.
A obra não é tão somente produto do artista, mas ao mesmo tempo
também o produz. Não há artista que se conheça a não ser por suas obras.
A obra nos dá a conhecer o artista e nesse sentido é o que permite o artista ser o que é, isto é, experienciar o seu centro de interesse, inserir-se ele
mesmo no seu modo de ser para constituir, a partir disso, sua existência.
Esse é um movimento que está longe de ser linear e causal, pelo menos
não no sentido do sistema geral de causa e efeito. Se a obra for considerada um efeito (produto) do artista, o contrário não é menos verdadeiro.
Essa percepção aguda de Heidegger trouxe o artista desde sua posição
isolada de sujeito do conhecimento para a de co-partícipe e co-autor da
obra e de si mesmo. É na obra que o artista realiza o que ele é, não sem
ela ou afastado dela. Não há primeiro o artista e somente depois a obra.
Esta lógica simplista não se aplica à dimensão da arte porque, ao produzir a obra, esta também e de sua maneira produz o artista. Essa é uma
pro-dução mútua, um modo essencial de tornar-se, de vir a ser, tanto de
obra quanto de artista e que, há muito tempo foi nomeado com a palavra
poiésis no Ocidente (vide a afirmação de Platão acima). O exemplo dado
por Fogel pode aclarar essa afirmativa:
Por falar em Quixote, curas e barbeiros – todos aqueles que estão fora da Cavalaria Andante, o senso comum! – acreditam que
personagem, por exemplo, o próprio Quixote, é obra da fantasia,
da imaginação do autor, de Cervantes, que, sim, seria um sujeito
e preexistiria à obra. O Quixote seria invenção, projeção, podem
dizer ainda produção ou criação da mente (pois é assim que entendem criação: como “invenção”, projeção da mente!), do cérebro do autor, de Cervantes, e, como tal, efeito da causa-Cervantes.
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Mas isso é senso comum – perspectiva de curas e de barbeiros!
O Autor não pré- ou sub-existe à obra. Ao contrário, ele é obra da
obra. Cervantes, o escritor, vem a ser Cervantes, a saber, o escritor, à medida e só à medida que escreve, que se deixa tomar pela
possibilidade-Quixote e se deixa fazer pelo fazer-se do Quixote.
É o escrever que faz de Cervantes escritor e, por isso, com todo rigor, fora, antes ou depois do escrever ele não tem o direito de dizer: “eu escrevo!”. O eu é tardio, epígono. É o que resta, o que sobra, o que se cristaliza ou se coisi-fica no escrever, desde o escrever. É assim que, na obra e desde obra, fazem-se o autor e o personagem – Cervantes e o Quixote: “Que cada uno es hijo de sus
obras”! (Fogel, 2002, p. 101)
A singularidade da obra reside justamente no fato de que, isto considerado, não há lugar para a reprodução de uma interpretação ou modo
de performar a obra que sejam universais em virtude de que não apenas
a obra está a ser produzida, mas também o seu autor. No caso da performance musical da obra, cabe pensar o lugar de presença do intérprete enquanto artista. Quando Heidegger afirma que a obra tem origem no artista, assim como o artista tem sua origem na obra e, ambos, tem sua origem
mútua na arte, pergunto: quem é o artista na obra musical? O compositor?
E o intérprete? É ele também artista? Claro que sim! E assim o é também
o regente diante da orquestra e cada um de seus integrantes. A questão do
lugar do artista na obra nas artes performáticas cresce em complexidade.
Há muitas camadas de dobras sobrepostas onde se dão afeto, interesse,
experiência, interpretação e performance de cada um. Em que medida essa sobreposição de camadas está disposta nessa complexidade é algo que
podemos melhor entender se revisitarmos a etimologia da palavra interpretação, considerando o pensamento de Heidegger.
Interpretação provém do verbo interpretar. É nesse verbo que começamos a perceber outra abrangência dessa palavra que não apenas “explanação, exposição”. A definição etimológica completa de interpretar
por Klein (2003) é relevante:
interpret, tr. and intr. v. — OF. interpreter, fr. L. interpretari, ‘to
explain, expound’, fr. inter- pres, gen. -pretis, ‘an agent between
two parties, explainer, expounder’, lit. ‘mediator’. For the first eleRay; Zanini; Aguiar (Orgs.) Publicação ABRAPEM.ORG 2020
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ment see inter-. The second is rel. to L. pretium, ‘price, value’; see
price and cp. words there referred to.
Interpretar é formado pelo prefixo inter-, do Latim, e significa:
no interior de dois; entre; no espaço de; em ação recíproca, isto é, designa uma relação. O segundo elemento de interpretar é pretium, quer dizer,
preço. O preço de um artigo é assumido como sendo o seu valor. Buck
(2008) demonstra que muitas palavras para “preço” nos idiomas IndoEuropeus foram usadas para dizer o valor ou o que vale a pena (p. 825).
Pretium, valor, é constituída pela raiz Indo-Europeia *per- na sua 5ª acepção. Essa raiz é formadora de palavras para venda ou troca, um sentido
estendido da 1ª acepção dessa raiz que é “levar adiante, expedir”. Por esse viés, interpretação não se restringiria à ideia de explicar, traduzir, mas
estabelecer uma compreensão, avaliar, decidir ou ainda, expor o sentido,
deixar claro ou explícito. O intérprete (performer) é parte integrante da
obra de arte, tanto quanto o compositor. Percebe-se nisso uma ação complexa de estabelecimento de valor (da obra) mediante a relação entre as
partes. O valor apresenta ante as partes as condições de realização da própria obra. A obra requer o estabelecimento de valor.
Interpretar se tornou sinônimo de performar. De fato, como apontam Davies e Sadie, não há performance sem interpretação. A interpretação é condição para a performance e seu valor é intrinsecamente ligado
a ela (Levinson, 1987), mas não são equivalentes e uma não pode ser tomada pela outra. A interpretação em si mesma ainda não é performance.
Para que não fique a obra restrita ao que Davies e Sadie se referem como
interpretação crítica, o intérprete precisa aceder à performance.
Por isso é interessante notar que as acepções do radical Indo-Europeu *per- na 1ª e na 5ª acepção são complementares. O valor estabelecido
na e com a interpretação precisa se situar ante as partes, colocar-se diante
de cada um: diante das ideias do compositor, das expectativas dos ouvintes (se for o caso) e das condições que a própria obra requer. Para isso, ao
visar a performance o intérprete precisa saber ouvir. Desse modo, se a interpretação pode ser compreendida através da 5ª acepção etimológica de
*per-, seu complemento necessário se dá através da 1ª acepção. Por que
afirmo necessário? A via etimológica revela um detalhe que não encontraRay; Zanini; Aguiar (Orgs.) Publicação ABRAPEM.ORG 2020
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mos nas definições correntes de performance. A noção de colocar-se diante de, apresentar-se está presente, por exemplo, na palavra “perfume”. Veja que ela contém integralmente a raiz *per-. Fumaça de uma substância
em queima que se propaga diante e através. Essa a definição etimológica
de per-fume não autoriza dizer diante de quem. Do ponto de vista dessa
reflexão me interessa muito de perto outra palavra que se origina desse
radical Indo-Europeu na sua 1ª acepção, a performance, especialmente do
verbo performar.
perform, tr. and intr. v. – ME. parfourmen, per- formen, fr. OF.
parfournir, ‘to finish, accom- plish’, fr. par (fr. L. per) andfournir,
‘to furnish, complete’; see per- and furnish. The English word
was prob. influenced in form by L. per-formare, ‘to form thoroughly’. (Klein, 2003)
Da mesma forma que perfume, performance contém a noção de
“apresentar diante e através de”. Compreendendo que se trata aqui apenas
da obra, considero-a a partir da relação tripartite apontada por Heidegger,
a partir co-pertencimento de obra e artista assinalada por Fogel e da conjunção inseparável na obra de fisicidade e espírito proposta por Pareyson.
A performance é constituinte da obra, assim como a interpretação, mas
um passo adiante porque se trata do per-fazer, da realização da plenitude
da obra. Não há na etimologia nenhum elemento explícito de que a performance deva acontecer diante de terceiros. No entanto, a relação complementar de interpretação e performance é de tal ordem que não há obra
sem que ambas ocorram. Uma obra que vige apenas na interpretação não
se realiza. A interpretação é o espírito da obra. Ela proporcionará à obra a
compreensão de que precisa. A performance é o modo essencial pelo qual
esse espírito da obra ganha corpo, materializa-se concretamente na obra
que ela é e que pode ser a cada vez.
Por isso, a obra precisa de interpretação e de performance. Nesse
sentido há aqui embasamento suficiente para expandir a noção de performance como um ato que excede o âmbito da intimidade do músico para
pensá-la como o ato que corporeifica a obra, mesmo entre quatro paredes
no momento mais íntimo do intérprete. Afinal, onde está a obra, onde ela
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é o que é? Nos teatros, nos museus? Não. Quando temos contato com a
obra, ela imediatamente passa a ter vigência em cada um de nós. É dessa
intimidade da performance como ato poético de realização da obra no intérprete e em cada um de nós que se trata o que chamo aqui de concentração: con-centrar, centrar em si mesmo como ação de ser na e com a obra,
ação constitutiva da existência do intérprete em per-formar a obra que ele
mesmo é, per-formar-se. Quando elaborado desta maneira, a concentração pode ser compreendida como constitutiva da existência do performer,
técnica no seu sentido mais profundo, um modo de conhecer-se a si mesmo naquilo que faz e realiza (Heidegger, 2010).
Por isso, pensar as relações criativas, isto é, pensar as poéticas da
interpretação e da performance musicais é realizar o movimento para as
proximidades do centro da obra na interpretação e na performance. Concentração é um modo essencial de ser do intérprete e do performer na
realização da obra, o que está no centro. Interpretar e performar são os
verbos constitutivos da existência desde e com o centro, desde onde o intérprete-performer já sempre é o que é. Ser desde e com o centro, com a
obra, é o modo poético de criação tanto da obra quanto de sua interpretação e performance. Como diria Hölderlin no seu hino A migração, “dificilmente abandona o lugar o que habita perto da origem”. A con-centração é o modo de ser do performer desde a origem: sua inserção e inter-esse na obra de arte.
CONCLUSÃO
Nessa reflexão algumas questões importantes foram apontadas, especialmente as noções mais comuns da performance musical que partem
com frequência do uso permutável de seu sentido com a noção de interpretação. Foi possível esclarecer que historicamente ambas se encontraram reféns da relação sujeito-objeto na realização da obra de arte, quer
seja na ênfase à fidelidade autoral, quer seja através da exacerbação da licença interpretativa por parte do performer. Nesse sentido, a subjetividade do intérprete não é diferente da subjetividade do compositor e ambos
se sobrepõem à vida da obra.
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Podemos a partir disso considerar a ideia de mutabilidade da performance versus a imutabilidade da interpretação uma forma de idealização que delimita as ações de interpretar e performar como etapas de um
processo de produção do sujeito, seja ele compositor ou intérprete (performer). A ideia de que a interpretação é imutável e a performance sempre mutável não encontra esteio na análise etimológica empreendida na
discussão apresentada. Afinal, sendo um ato criativo vital, a interpretação também pode mudar porque faz parte da ação do intérprete a experimentação via realização de sua performance. De outro lado, a performance, como é tácito, pode ser tão bem treinada que pode ser razoavelmente repetida através da mecanização das ações, algo visado nos processos de preparação das obras e de sua performance. Desse modo, se a
performance, sobre a qual incide a necessidade do controle, a interpretação não é menos um ato de criação, um ato poético. Em geral, a performance é ensaiada justamente em função do caráter de apresentação pública a ela associado. Verifique-se o exemplo o excelente artigo de Platz e
Kopiez (2013) que leva em consideração o comportamento do performer
no momento de sua entrada no palco, sugerindo “um modelo de elaboração performática como alternativa aos modelos de comunicação musical”
(p. 167) que pode ser treinado.
Da mesma maneira, verifica-se que nada impede que a interpretação mude, a não ser como conjectura, no caso de músicos não profissionais, que possa vincular a ideia de interpretação para alavancar a performance. De resto, e aqui falo do universo violonístico do qual faço parte,
grandes intérpretes alteram constantemente sua interpretação, como são
testemunho diversas gravações de uma mesma obra no decorrer do tempo. Afirmar a imutabilidade da interpretação não leva em consideração
que ela é realizada na obra por um ser humano. Como diria Heráclito,
“não se pode entrar duas vezes no mesmo rio.”
Esse tipo de compreensão não contribui para o performer centrarse na obra desde o processo que a ela é inerente: a interpretação. E isso
porque, embora interpretar e performar não sejam a mesma coisa, fazem
parte desse mesmo processo. A questão é que na perspectiva da funcionalidade sujeito-objeto tudo se transforma num sistema de causa e efeito,
com uma coisa sempre levando a outra numa sequência lógica cartesiana
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de progressão de dificuldade. No entanto, isso é uma divisão formal que
pouco corresponde ao ato de performar a obra.
Como foi visto, a performance necessita da interpretação porque a
performance é performance da interpretação, isto é, da compreensão da
obra. Por outro lado, a interpretação necessita da performance porque esse
é o ato de corporeificação da obra para torná-la realidade concreta. Aqui
me refiro ao problema da diferença representacional entre obra e interpretação. A arte como expressão é uma recorrência da arte como produto formal. A expressão é um movimento que toma o sujeito como origem, não a
obra em sua relação de abrangência. O sujeito é o centro de emanação da
obra e não a obra o lugar de con-centração dos empenhos e desempenhos
históricos, culturais, composicionais, interpretativos e performáticos. No
caso, via de regra a obra é ex-pressão do indivíduo, de seu interior, seja o
compositor, seja o intérprete. A concepção formalista, da mesma maneira,
afirma a obra como produto do sujeito, de sua intencionalidade e de seu
gênio criador. A primazia aqui continua a do sujeito, sendo a obra mero
produto (objeto) de seu intelecto racional, sua habilidade técnica e de sua
sensibilidade. Digamos que de uma forma ou de outra, “todos os caminhos levam à Roma”. Há uma inevitabilidade, desde a Modernidade, em
se remeter a origem do mundo (dos objetos) à racionalidade do sujeito.
A forma formante (formatividade) da obra é a unidade das referências de intérpretes, performers e compositores, essencial não para a performance irrepetível, mas para per-fazer a originalidade da compreensão
na medida em que o intérprete parte da interpretação em unidade com a
obra. Como forma formante a obra nunca é algo acabado, nem na dimensão do compositor, nem na dimensão do intérprete/performer e muito menos na dimensão do ouvinte. A estética da recepção fez apenas deslocar
do compositor ou do intérprete a primazia do sujeito do conhecimento
para a posição do receptor. O receptor se tornou o sujeito da obra em virtude de ele ser quem determinará em última instância o sentido da obra e
mesmo se esta ou aquela obra é mesmo uma obra de arte.
Nessa conjuntura a etimologia dos verbos interpretar e performar
lançam um novo foco para a questão de sua interdependência fundamental na realização da obra como faces mesmo processo. Ambas articulam-se como corpo e espírito de realização desde o que está conjunto no cenRay; Zanini; Aguiar (Orgs.) Publicação ABRAPEM.ORG 2020
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tro, em torno do centro (concentração), um modo de imersão na obra como relação de copertencimento de obra-artista-arte, conjuntura inseparável na obra de fisicidade e espírito como modo de ser. A obra, em sua unidade, diz de si mesma, é pura concreção.
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