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ARTÍCULOS ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 O paradoxo do limite e da potencialidade da mente frente a Deus: pequena reflexão a partir de Nicolau de Cusa " Klédson Tiago Alves de Souza Universidade de Coimbra, Portugal ORCID: 0000-0002-0422-3506 Maria Simone Marinho Nogueira Universidade Estadual da Paraíba, Brasil ORCID: 0000-0003-1141-3911 Recibido: 31 de diciembre de 2021, aceptado: 15 de marzo de2022. Resumo O presente artigo tem por objetivo expor o debate acerca do dinamismo da busca pela verdade absoluta (Deus) a partir da filosofia de Nicolau de Cusa (1401-1464). Mais que pensar sobre a existência ou não de Deus, tema recorrente e central na Filosofia da Idade Média, o filósofo alemão encontrava-se preocupado com a possibilidade do seu conhecimento. Portanto, nesse texto, nosso esforço é explicitar as nuances e o dinamismo presente no pensamento de Nicolau a partir do pressuposto da nulla proportio entre a mente humana que é finita e a verdade absoluta que é infinita. Palavras-chave: Deus; Conhecimento; Verdade; Finito; Infinito A Brief Reflection on the Paradox of the Limit and the Potenciality of the Mind towards God on Nicholas of Cusa Abstract This article aims to expose the debate about the dynamism of the search for absolute truth (God) as from on the Nicholas of Cusa’s philosophy (1401-1464). More than thinking in the existence or not of God, a recurring and central theme in the Philosophy of the Middle Ages, the German philosopher was concerned a about the possibility of his knowledge. Therefore, in this text, our effort is to make explicit the nuances and dynamism present in Nicholas’s thinking, from the presupposition of nulla proportio between the human mind that is finite and the absolute truth that is infinite. Keywords: God; Knowledge; Truth; Finite; Infinite. 5 ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) 6 PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 KLÉDSON TIAGO ALVES DE SOUZA, MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA 1. Introdução Tratar acerca de uma metafísica do conhecimento é o modo humano de falar sobre o conhecimento da transcendência de Deus, e é justamente isso que está no cerne, explicitamente, da obra filosófica de Nicolau de Cusa, i.e., mais que falar sobre a existência de Deus,1 ele concentra-se em tratar da possibilidade do conhecimento de Deus. Assim há, ao que parece, um deslocamento filosófico de um problema ontológico para um problema gnosiológico. Com isso Nicolau de Cusa não está a pôr a existência de Deus em dúvida, dado que a existência de Deus para ele é tão evidente que não necessita demonstração. O que ele faz com esse movimento é trazer a possibilidade de conhecer a Deus, enquanto verdade absoluta. Essa viragem é uma das marcas pelas quais alguns intérpretes veem no filósofo alemão o início da modernidade (cf. Volkmann-Schluck, 1949: 379-399; Schulz, 1961: 13-31; Colomer, 1964: 387-405). No processo de caça da verdade ou de Deus a mente humana deverá desdobrar-se e aperfeiçoar-se para alcançar a plenitude. Ora, no De docta ignorantia, o autor trabalha na perspectiva de propiciar uma via que eleve o engenho humano à simplicidade em que coincidem os contraditórios, isto é, o máximo ou a Verdade absoluta (De doc. ign. I, I: w., n. 3).2 Além deste problema, discute sobre o universo, como máximo contraído, e sobre Jesus, como aquele que é simultaneamente máximo absoluto e contraído. Nesse problema da busca por conhecer a Deus, queremos destacar a inflexão que acontece, chamando assim a atenção para o homem, de modo mais específico: sua mente. Para cumprir esse objetivo escolhemos três obras que nos fornecem um arco conceitual muito profundo para pensar esse movimento que toma a mente humana como o limitar entre o imanente e o transcendente. São elas: De docta ignorantia (1440), Idiota. De mente (1450) e De visione Dei (1453). Nessas obras percebemos, dado o distanciamento temporal, o esforço feito pelo autor para aclarar e desenvolver suas ideias, permitindo-nos refletir numa articulação conceitual sobre o paradoxo dos limites e potencialidades da mente na busca por conhecer a verdade. Mais do que estar preocupados com uma evolução do pensamento cusano, queremos encontrar trilhas abertas que nos ajudem a pensar como a mente pode conhecer essa verdade perseguida. 2. Da capacidade inata de julgar Nicolau de Cusa ao regressar de sua viagem a Constantinopla, por mar, fora levado a abraçar incompreensivelmente o incompreensível, como um dom do alto, do Pai das luzes, segundo narra o próprio autor em sua carta ao Cardeal Juliano. Esta cena narrada caracteriza o nascimento da busca ou da caça por compreender o máximo absoluto, que é Deus, a partir da douta ignorância. Há que se destacar o trecho dessa carta, que traz uma carga de sentido para a compreensão do pensamento filosófico 1 Este é um aspecto interessante que, ao que parece, diferencia o pensamento cusano do pensamento da escolástica. Enquanto Nicolau de Cusa propõe uma discussão voltada ao problema da gnosiologia, os pensadores da escolástica discutem, de forma mais centrada, o problema da existência de Deus. Exemplo disso é Anselmo de Aosta que no Proslogion traz essa procura ontológica e Tomás de Aquino que nas obras Summa Theologiae e Summa contra gentiles apresenta as cinco vias da existência de Deus. Agora, com isso não estamos a afirmar que o problema do conhecimento não lhes seja capital, estamos muito mais a esforçar-nos por dizer que, em um aspecto metodológico, no arcabouço conceitual destes autores ficou mais destacada a questão da prova da existência de Deus que propriamente o problema gnosiológico. Sublinhamos, portanto, apenas o enfoque dado aos temas. Nesse sentido, ressaltamos aqui a radicalidade com que Nicolau de Cusa encara o problema do conhecimento, e que essa radicalidade ao mesmo tempo que o projeta na história também o vincula à tradição neoplatônica. 2 O De docta ignorantia é citado a partir da edição Editio minor: título, livro, capítulo, w. (forma como estamos identificando a Edição Philosophisch-theologische Werke que teve P. Wilpert como tradutor dos dois primeiros livros e H. Senger como tradutor do terceiro e revisor dos anteriores), parágrafo(s). Todas as citações desta obra na língua portuguesa são da tradução de André, 2018. Os demais textos cusanos são citados a partir da Edição crítica de Heidelberg (sigla: h): título, livro, capítulo, sigla h e volumen, parágrafo, linha; à excepção de Correspondence de Nicolas de Cues avec Gaspar Aindorffer et Bernard de Waging (1451?-1456) citado a partir de Vansteenberghe, 1915. ARTÍCULOS O paradoxo do limite e da... ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 de Nicolau, quando afirma que Jesus cresceu continuamente no seu intelecto e no seu afeto pelo aumento da fé (De docta ign., Epist. auct.: w., n. 263). É importante destacar que a fé é o princípio e a guia de toda a busca filosófica de Nicolau de Cusa, dado que ela é parte de uma dimensão da mens, não sendo pois o resultado lógico do desdobramento racional, mas aquele saber que precede (praegustatio) (cf. Kremer, 2004) e implica não só a razão, mas também o intelecto (Pico Estrada, 2016).3 Nicolau de Cusa inicia o De docta ignorantia ao tratar sobre o desejo natural que há em todas as coisas, afirmando: “há em todas as coisas um desejo natural de serem do melhor modo que lhes permite a sua condição natural, que agem em ordem a esse fim e dispõem dos instrumentos adequados”. Diz mais: “a capacidade de julgar corresponde ao objectivo de conhecer, para que não seja em vão a apetência e cada um possa atingir no [objecto] amado o repouso da sua própria natureza” (De docta ign. I, I: h I, n. 2).4 Tem-se assim o “desejo de conhecer”5 que é natural ao homem, e a “capacidade de julgar” que corresponde ao objetivo de conhecer. Deste modo, a capacidade de julgar é o “instrumento” que o homem possui para que o desejo de conhecer não lhe seja vão. O desejo de conhecer e a capacidade de julgar são “dons naturais”. Neste movimento de tender para a verdade percebemos uma dimensão afetiva no iudicium cognatum, apesar do seu caráter eminentemente intelectual em que faz a mente humana repousar na felicidade de sua natureza por atingir o objeto amado. Agora, poderíamos nos perguntar, desde aqui do âmbito da especulação metafísico-antropológica cusana, se não seria a capacidade de julgar uma abertura para se perceber rasgos ou caminhos éticos imbricados no seu pensamento, de modo a compreender o percurso de busca da verdade a partir de todas as dimensões do ser humano. Ora, no De mente, nos parágrafos 77-78, ele afirma algo importante sobre um espírito que fala e que julga e que sabe definir que uma coisa é bela, justa e verdadeira. A personagem do Filósofo lança uma pergunta ao Idiota sobre qual seria a verdade acerca das teses de Aristóteles e de Platão sobre se a mente tem ou não noções (notiones) que sejam inatas. O Idiota parte de Aristóteles para mostrar a necessidade dos sentidos para a capacidade compreensiva e nocional da mente.6 Interpretando o pensamento de Aristóteles, Nicolau não nega o inatismo da capacidade de julgar da mente humana quando afirma que ela só pode cumprir suas funções a partir dos sentidos ou que tem necessidade do corpo com o fim de que a força inata chegue ao ato; concorda com o Estagirita quando afirma que a alma não possui noções inatas desde o início. Portanto, Cusano não nega o inatismo da capacidade de julgar, mas nega o inatismo de noções já feitas no interior da alma desde o início. Em sua resposta à questão apresentada, há uma substituição de termo, pois ao mesmo tempo em que nega as noções inatas, afirma a necessidade de uma força (vis) que possibilita a criação. A pergunta foi direcionada a partir do termo noção, e é convertida para força inata (vis concreata). Assim, 3 Para um debate sobre a relação fé e razão, veja Hopkins, 1996. 4 Esta nota corresponde às duas citações que são feitas separadamente no corpo do texto, porém, aqui na nota juntas. Nicolau de Cusa, De docta ign. I, I (w., n. 2): “… in rebus naturale quoddam desiderium inesse conspicimus, ut sint meliori quidem modo, quo hoc cuiusque naturae patitur condition, atque ad hunc finem operari instrumentaque habere oportuna, quibus iudicium cognatum est conveniens proposito cognoscendi, ne sit frustra appetitus et in amato pondere propriae naturae quietem attingere possit”. 5 Aristóteles, Met. 1, 980a 21: “Todos os homens, por natureza, tendem ao saber” [πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει]. 6 Nicolau de Cusa, De mente IV (h V, n. 77): “Idiota: Indubie mens mostra in hoc corpus a deo posita est ad sui profectum. Oportet igitur ipsam a deo habere omne id, sine quo profectum acquirere nequit. Non est igitur credendum animae fuisse notiones concreatas, quas in corpore perdidit, sed quia opus habet corpore, ut vis concreata ad actum pergat. Sicuti vis visiva animae non potest in operationem suam, ut actu videat, nisi excitetur ab obiecto, et non potest excitari nisi per obstaculum specierum multiplicatarum per medium organi et sic opus habet oculo, sic vis mentis, quae est vis comprehensiva rerum et notionalis, non potest in suas operationes, nisi excitetur a sensibilibus, et non potest excitari nisi mediantibus phantasmatibus sensibilibus. Opus ergo habet corpore organico, tali scilicet, sine quo excitatio fieri non posset. In hoc igitur Aristoteles videtur bene opinari animae non esse notiones ab initio concreatas, quas incorporando perdiderit”. 7 ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) 8 PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 KLÉDSON TIAGO ALVES DE SOUZA, MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA não existem noções inatas que a mente tenha esquecido ou perdido, mas existe sim uma vis concreata que necessita do estímulo do sensível para chegar ao ato. No parágrafo que iremos expor, Nicolau de Cusa demonstra o inatismo da capacidade de julgar da mente como condição de progressão a partir da própria teoria platônica do inatismo: Verum quoniam non potest proficere, si omni caret iudicio, sicut surdus numquam proficeret, ut fieret citharoedus, postquam nullum de harmonia apud se iudicium haberet, per quod iudicare posset an profecerit, quare mens mostra habet sibi concreatum iudicium, sine quo proficere nequiret. Haec vis iudiciaria est menti naturaliter concreata, per quam iudicat per se de rationibus, an sint debiles, fortes aut concludentes. Quam vim si Plato notionem nominavit concreatam, non penitus erravit (De mente IV: h V, n. 77). Mas certamente como não pode desenvolver-se se carece de todo juízo, tal como um surdo não pode progredir e chegar a ser citarista se estivesse privado da capacidade de julgar sobre a harmonia, com a qual poderia julgar se progride ou não, por essa razão nossa mente tem uma capacidade inata de juízo sem a qual não poderia progredir. Esta capacidade julgadora é por natureza criada junto com a mente, por meio da qual julga por si mesma sobre as razões, se são débeis, fortes ou conclusivas. E se Platão chamou a esta força noção inata, não esteve equivocado de todo (De mente IV: h V, n. 77).7 No contexto desse parágrafo há uma negação do inatismo no conhecimento sob a forma de noções, ao passo que há uma afirmação da capacidade inata de julgar como elemento nuclear do desenvolvimento do próprio homem; ora, é a mente que julga se algo é bom ou mau. A mente julga por si aquilo que é produzido pela razão, se estas são débeis, fortes ou conclusivas e todas as coisas por meio das quais não obteve esse julgamento da experiência (Kremer, 2004: 23). Isso porque no que diz respeito ao conhecimento, a mente não contém noções das coisas em ato, e no que diz respeito ao comportamento, a força inata não nos permite acessar um dado código que a regule. Ora, o homem não tem um conhecimento inato, tem sim um pré-saboreamento (praegustatio connaturata), elemento essencial que faz com que ele tenda para busca da sabedoria eterna. Aqui também há uma mudança de termo, pois a partir de Platão teríamos a ideia no sentido de noção inata; contudo, Nicolau de modo mais profundo e dando um dinamismo ao problema chamará de iudicium cognatum, pois esta capacidade de julgar é movida por uma força inata, mas não tem em si noções inatas sobre as coisas. Se pensarmos esse iudicium cognatum no sentido da busca da verdade, notaremos sua identificação com o connatum desiderium. Acerca disso Álvarez Gómez (2004) afirma que a relação entre ambos deve ser entendida como uma interpretação e fecundação recíprocas de modo que um não pode verificar-se sem o outro. Assim, o desejo e a capacidade de julgar são dadas por Deus que é o fim de todo desejo e de toda capacidade de julgar, e não podem ser tidas como antagônicas.8 Nessa mesma perspectiva se alinha o que disse Kremer: “sem o desejo o intelecto não conhece, como também sem conhecer não deseja. Nihil enim penitus incognitum appetitur” (2000: 134). 7 Sempre que não for referido o tradutor, a tradução é da nossa responsabilidade. 8 Acerca dessa problemática, Álvarez Gómez faz apontamentos precisos e importantes: “Dios, infinitamente superior a toda realidad, es ingustable, es decir, indeterminable en su ser proprio por ninguna clase de conocimiento. La praegustatio de que habla el Cusano, lejos de significar una experiencia directa e inmediata de Dios, nos dice que tal experiencia es imposible. Se trata de una praegustatio ingustabilis, de un ingustabiliter et a remotis gustare. Pero como praegustatio connaturalis nos remite al mismo tiempo al carácter ineludible, personal e inalienable del conocimineto de Dios. La demostración racional de su existencia no es más que el esclarecimiento de la certeza original de que existe, como por otra parte la certeza de que eso cuya existencia se demuestra racionalmente es Dios no es dada en sentido estricto por el raciocinio, sino por la praegustatio. Encontrar a Dios de cualquier forma que sea aun por el conocimiento racional, no es lo mismo que tener la seguridad de que se le ha encontrado. La praegustatio es la condición de posibilidade de la búsqueda de Dios y el criterio para saber si lo hemos encontrado” (2004: 78-79). ARTÍCULOS O paradoxo do limite e da... ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 É interessante destacarmos essas mudanças de conceitos, especialmente notio por iudicium, para não incorrermos no erro de pensar que é apenas uma mudança pela mudança. Ora, a filosofia de Nicolau de Cusa traz em sua raiz uma dinamicidade que resplandecerá em todos os âmbitos. Assim, a mudança se dá pelo fato de o conceito platônico de noção inata apresentar uma ideia de que no homem já estaria encerrada toda possibilidade nocional, nesse sentido ele só iria fazer corresponder as noções com o real, uma adequação.9 Para o Cardeal, o que de fato é inato na mente humana é a sua capacidade de julgar (iudicium cognatum), o que de certo modo dá um alcance maior à força da mente do que meramente ter noções inatas, cumprindo assim o seu lugar de imago: Experimur ex hoc mentem esse vim illam, quae licet careat omni notionali forma, potest tamen excitata se ipsam omni formae assimilare et omnium rerum notiones facere, similis quodammodo sano visui in tenebris, qui numquam fuit in luce; hic caret omni notione actuali visibilium, sed dum in lucem venit et excitatur, se assimilat visibili, ut notionem faciat (De mente IV: h V, n. 78). Experimentamos, portanto, que a mente é essa força que, embora careça de toda forma nocional, não obstante pode, estimulada, assemelhar-se a toda forma e produzir as noções de todas as coisas, semelhantes em certo modo a uma vista sã que está na escuridão e que jamais esteve na luz; essa vista está privada de toda noção atual das coisas visíveis, mas quando advém à luz e é estimulada, se assemelha ao visível para ter uma noção (De mente IV: h V, n. 78). A capacidade de julgar –iudicium cognatum– cumpre sua função sem olhar para a experiência, dado que é uma capacidade inata. Esse iudicium cognatum e a vis concreata se identificam com ao desiderium veritatis. O desejo é o impulso para a busca da verdade ou poderíamos ainda dizer que o desejo natural é movido ou estimulado, numa relação dialética, pela pregustatio naturalis, assim como a luz estimula à visão sã que antes estava privada das noções das coisas. Mesmo esse desejo estimulado pelo pré-saboreamento não garantindo o conhecimento preciso de Deus, ele garante uma busca sem fim. Álvarez Gómez (2004) aponta o homem como um ser convertido a Deus, no sentido de enquanto natureza intelectual ter um desejo congênito de conhecer a verdade. Nesse mesmo sentido, André (1997) interpreta o desejo natural como sendo desejo intelectual, e as capacidades cognitivas são como instrumentos que possibilitam a realização da condição natural do homem. Ademais, deixa claro que a dimensão específica da natureza humana se cumpre no processo de atuação das capacidades cognitivas, para poder atingir o seu respectivo fim, o saber. Pico Estrada (2016) classifica o movimento de busca da verdade como movimento intelectual e movimento amoroso (afetivo) devido ao facto de aquele buscar encontrar repouso no objeto amado. Assim, o iudicium cognatum aparece para o nosso autor como infalível, posto que é inerente ao intelecto, é intrínseco à sua própria natureza. Todavia, apresenta-se-nos a questão do como se dá a realização dessa tendência que impulsiona a mente para essa verdade, que Nicolau também chegou a chamar de lugar. A verdade, enquanto omnium locus, é onde “todas as coisas estão em repouso, e fora de seu lugar todas as 9 Platão afirma pela boca de sua personagem Sócrates que “… as coisas devem ser em si mesmas de essência permanente, não estão em relação conosco, nem na nossa dependência, nem podem ser deslocadas em todos os sentidos por nossa fantasia, porém existem por si mesmas, de acordo com sua essência natural” [… ἀλλὰ ὀρθότητά τινα τῶν ὅτι αὐτὰ αὑτῶν οὐσίαν ἔχοντά τινα βέβαιόν ἐστι τὰ πράγματα, οὐ πρὸς ἡμᾶς οὐδὲ ὑφ᾽ ἡμῶν ἑλκόμενα ἄνω καὶ κάτω τῷ ἡμετέρῳ φαντάσματι, ἀλλὰ καθ᾽ αὑτὰ πρὸς τὴν αὑτῶν οὐσίαν ἔχοντα ᾗπερ πέφυκεν] (Crat. 386d-e). Duas teses acerca da relação linguagem e realidade são rejeitadas e recebem críticas por parte de Platão, a primeira é a tese convencionalista e a segunda é a naturalista. Dessa crítica o que salta aos olhos do leitor enquanto posição ou demarcação é o entendimento de que o conhecimento humano é possível e a linguagem, enquanto instrumento, tem as devidas características ou propriedades que permitem, dada a adequação do nomos, expressar a enunciação do verdadeiro e do falso. 9 ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) 10 PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 KLÉDSON TIAGO ALVES DE SOUZA, MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA coisas estão em movimento, pois não estão naquilo para que tendem”.10 Exatamente por isso a mente encara uma busca sem fim para encontrar o seu repouso que está na verdade buscada. 3. A investigação comparativa: da lógica da razão à lógica do intelecto 3.1 A lógica da razão Para tal questão é preciso se ater à ideia de proporção comparativa que se apresenta logo no início do De docta ignorantia. No processo de conhecer há sempre uma investigação. No pensamento cusano, a investigação é comparativa e recorre à proporção em que do conhecido se avança para o desconhecido. É isto que o Cardeal tenta mostrar quando diz que “todos os que investigam julgam o incerto, comparando-o, em termos proporcionais, com pressupostos certos. Toda a investigação é, pois, comparativa e recorre à proporção”11 (De docta ign. I, I: h I, n. 2). Contudo, a proporção não pode ser entendida sem o número (ibid., n. 3),12 e este número inclui em si as coisas que são passíveis de proporção. Na investigação comparativa em que se recorre à proporção passa-se do desconhecido para o conhecido,13 comparando proporcionalmente um ao outro; porém, deve-se avaliar que nem todo desconhecido se reduz a essa proporção comparativa. Frente a este problema, surge pela primeira vez na referida obra cusana o termo infinitum. Consequentemente, surge também o problema sobre a possibilidade de conhecer este infinito. É na tentativa de se conhecer o infinito ou de se acessar cognoscitivamente a essa transcendência que se percebe os limites da finitude racional. Aí acontece uma virada filosófica em que da problemática da existência de Deus se passa à problemática do seu conhecimento (André, 1997). Já que toda investigação recorre à proporção comparativa, não havendo proporção entre o finito e o infinito, a razão não pode conhecer Deus, assim “a única maneira em que a razão pode entender tal coisa é como um absurdo” (Rusconi, 2012: 206). Se há em todas as coisas um desejo natural de serem do melhor modo e no ser humano o que lhe é natural é a capacidade de julgar, que corresponde ao objetivo de conhecer, então pode-se questionar: não estaria a natureza humana frustrada por não realizar aquilo que deveria (conhecer) do melhor modo? Tal impossibilidade não nos faria cair num ceticismo profundo ou descrença total na mente, quiçá num niilismo? A resposta a essas questões passa necessariamente pela imprecisão que há nas coisas corpóreas e mais propriamente pela desproporção entre o finito e o infinito. O movimento na investigação em que do conhecido, como pressuposto certo, se passa ao desconhecido, ultrapassa a razão humana. O ultrapassar os limites da razão não é visto pelo Cusano como algo negativo, pelo contrário, é por escapar à razão que se apodera do que ele chama de saber máximo: saber que ignoramos. É reconhecer a 10 Nicolau de Cusa, Sermo CCXVI (h XIX/1, n. 4, ll. 9-10): “ In loco enim omnia sunt in quiete, et extra locum suum omnia sunt in inquiete, quia non sunt quo tendunt”. 11 Nicolau de Cusa, De docta ign. I, I (w., n. 2): “Omnes autem investigantes in comparatione praesuppositi certi proportionabiliter incertum iudicant; comparativa igitur est omnis inquisitio, medio proportionis utens. Et dum haec, quae inquiruntur, propínqua proportionali reductione praesupposito possunt comparari, facile est apprehensionis iudicium”. 12 Ademais, é interessante o comentário que Rusconi faz referente à proporção e ao número, a partir do De mente VI (h V, n. 92), numa perspectiva sobre a música, comparando as filosofias de Boécio e Nicolau de Cusa, mostrando que se pode pensar que a proporção se segue, de Boécio a Nicolau, sendo concebida nos mesmos termos. Assim, o que se busca é saber o que Nicolau de Cusa pensa por proportio: “Es claro por otra parte que Nicolás no le da a la proporción un sentido distinto del que tiene en la matemática, puesto que la considera explícitamente como una expresión numérica. Así por ejemplo dice que: ‘el número es substrato de la proporción, pues no puede haber proporción sin número’. Ahora bien, todo número es en sí mismo la expresión de una proporción i.e. de una relación entre números. En efecto el número es un compuesto simple. Con esto se quiere decir que no es compuesto a partir de elementos distintos, sino a partir de sí mismo. Es decir que el número está compuesto a partir del número” (2012: 185). 13 Nicolau de Cusa, De docta ign. I, I (w., n. 3): “Omnis igitur inquisitio in comparativa proportione facili vel difficili existit; propter quod infinitum ut infinitum, cum omnem proportionem aufugiat, ignotum est”. ARTÍCULOS O paradoxo do limite e da... ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 transcendência de Deus. Destarte, o que se deseja na verdade, para que este desejo não seja em vão, é saber que não se sabe. Se a mente atingir este conhecimento terá ela chegado à douta ignorância (cf. De docta ign. I, I: w., n. 4).14 Esta “douta ignorância” apresenta em sua raiz um sentido dialético e dialógico, quando pensamos a partir de sua regra, i.e., a nulla proportio; que abre a possibilidade dos vários discursos sobre o mesmo princípio, num movimento de perceber a unidade do ser que se manifesta na multiplicidade do mundo. O que está por trás dessa relação de conhecimento da mente finita com o máximo absoluto é o problema que Heimsoeth (1960) elenca em Los seis grandes temas de la metafisica occidental, a relação entre unidade e multiplicidade ou ainda a relação entre o finito e o infinito.15 Este problema ganha força ao se ter a percepção dos contrários na realidade. Isto é, olhar a realidade e vê-los, mas também ver a unidade que há nesses contrários, e, segundo Heimsoeth, esse trabalho é feito pela razão, pois é ela que exige a unidade, a conexão entre tudo que existe (Heimsoeth, 1960: 34). O autor ainda realça que este problema da conciliação da unidade do mundo com a pluralidade e os contrastes desde os primeiros dias da filosofia natural grega já existia. Claro, com os gregos e os pensadores neoplatônicos a tentativa de se solucionar essa questão era na perspectiva da evolução ou da emanação (ibidem, 38-39), contudo, frente a essas doutrinas, o cristianismo apresenta a creatio ex nihilo. Nicolau de Cusa adentra nesse contexto com intuições especulativas e místicas que fundamentam sua doutrina a partir de um certo rigor, a saber, coincidentia oppositorum como lógica do intelecto e via para o conhecimento de Deus e o entendimento do mundo como explicatio Dei. O sentido que queremos pré-saborear aqui, de modo indicativo, é que nesse jogo de ocultação e mostração pela via do discurso sobre o princípio fundante, a douta ignorância traz a máxima da afirmação de que o reconhecimento do não saber gera um diálogo construtivo em que estejam afirmadas as diferenças e diferentes formas de falar do mesmo princípio, gerando assim um 14 Em 1453 havia em vigência uma polêmica acerca da via de apreensão de Deus. Em meio a essa problemática se têm dois partidários, Gerson voltado a compreender o divino pela via intelectiva e Vicente de Aggsbach pela via afetiva. Quando se trata da relação entre desejo e conhecimento podemos remeter-nos à questão levantada na Carta de Gaspar Aindorffer a Cusa sobre se uma alma devota pode, somente pela afecção, alcançar Deus e ser movida ou levada para Ele de maneira imediata: “Est autem hec quaestio utrum anima devota sine intellectus cognicione, vel etiam sine cogitacione previa vel concomitante, solo affectu seu per mentis apicem quam vocant synderesim Deum attingere possit, et in ipsum immediate moveri aut ferri” (Vansteenberghe, 1915: 110). Esta pergunta baseia-se na interpretação de Gerson, chanceler parisiense, acerca da Mystica teologia do Pseudo-Dionísio, o qual vê o conhecimento de Deus apenas pelo intellectus. André sustenta a tese de que há uma imbricação dialética entre desejo e conhecimento ao afirmar: “O desejo intelectual, tradução dessa dialética, implica um pré-conhecimento originário e inconceptualizável, sempre presente na aproximação humana de Deus, que não é conhecido senão enquanto é desejado, mas não é desejável se dele não houver qualquer conhecimento. Há uma interpenetração e fecundação recíprocas entre desejo e conhecimento” (1997: 85). Ainda nessa mesma perspectiva sobre a discussão da relação entre desejo e conhecimento. Nogueira a partir dos conceitos de intellectus e affectus dá uma interpretação plausível sobre o posicionamento de Nicolau de Cusa: “… o que podemos constatar é que a experiência humana do divino, neste autor, deixa-nos no reconhecimento dos respectivos limites tanto do affectus quanto do intellectus, tomados isoladamente, na busca de Deus, não permitindo, portanto, que o amor seja confundido com um simples sentimento voluntarista, nem tampouco o intelecto seja tomado no sentido puro de um certo intelectualismo que, em última análise, pensa poder dar conta de todas as questões que se impõem aos seres tão complexos como são os humanos. […] Ora, se o intellectus é louvado e se mostra como uma instância extremamente importante na busca que o homem faz de Deus, a experiência deste, exatamente por ser uma cognitio experimentalis dei, exige mais do que a força do intelecto, visto que ali se impõe o que Kremer chamou de “metafísica do conhecimento e da vontade” (“Erkenntnis- und Willensmetaphysik”), ou seja, sem o desejo não se compreende e sem o intelecto não se deseja” (2011: 76). Para Álvarez Gómez o desiderium intellectuale é em si conhecimento de uma forma originária e inconceitualizável e não simplesmente uma consequência de um conhecimento prévio sobre Deus; afirma ainda: “A Dios no le conocemos sino en cuanto que le deseamos, y este desearle es por su parte de índole intelectual y se verifica por tanto siempre como conocimiento. Con ello se afirma igualmente que el desiderium intellectuale no afecta sólo a las facultades de conocer y querer como realmente distintas entre sí, sino que es previo a esta distinción y afecta al ser mismo del hombre. Por eso a Dios se le conoce en todo conocimiento y se le desea en toda apetición, pero no de una manera indeterminada e implícita, sino explícita, aunque tal vez inconsciente, de forma que todo conocimiento y apetencia tiene su consistencia y su condición de posibilidad interna en este fundamental desear y conocer a Dios” (2004: 68). 15 É possível afirmar segundo Heimsoeth que houve mudanças no conceito de universo a partir de uma evolução na relação finito e infinito: “La transformación en el concepto metafísico y científico del universo, descrita hasta aquí, va acompañada de una significativa evolución en la idea de la relación entre lo finito y lo infinito” (1960: 67). Koyré, quando discute sobre a radicalíssima revolução espiritual sofrida pela ciência moderna e o modo de pensar o cosmo (universo) mostra que o homem perdeu seu lugar no mundo e que: “perdeu o próprio mundo em que vivia e sobre o qual pensava, e teve de transformar e substituir não só seus conceitos e atributos fundamentais, mas até mesmo o quadro de referência de seu pensamento” (2006: 13-14, grifo nosso). Ambos pensadores parecem concordar no que diz respeito a evolução ou transformação dos conceitos quando o assunto é universo ou relação entre o finito e o infinito. 11 ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) 12 PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 KLÉDSON TIAGO ALVES DE SOUZA, MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA dinamismo que impulsiona o homem sempre a ser do melhor modo possível ou pelo menos um ser aberto.16 O autor do De docta ignorantia perpassa pela tradição bíblica para mostrar que a alma humana não está frustrada por não conhecer o infinito que lhe é desconhecido; pelo contrário, é a partir do não saber que a alma se realiza. É o não saber, ao que parece, que move o homem e o faz ser ou exercer a sua capacidade de julgar do melhor modo. O processo, enquanto caça, é mais agradável à filosofia cusana que propriamente o fim, pois há um engenho para apreender o inapreensível.17 Desta forma, a caça é sem fim tendo em vista que: “o entendimento humano, contudo, não é a verdade; em consequência, o entendimento humano não poderia nunca apreender a verdade absoluta” como afirma Brasa Díez (1989: 131-132). É o não ter fim que motiva o homem a sempre querer ir conhecer ou contemplar o princípio. A alma se regozija em saber que não sabe. Com Teixeira Neto (2017: 114) podemos concluir duas vias de entender a douta ignorância, a primeira como a posse de um saber máximo, o infinito é desconhecido e o ignoramos, a segunda via é a posse de um saber que instrui sobre a incapacidade de conhecer o infinito em si e sobre a impossibilidade de conhecer com precisão o reino das coisas finitas e suas relações. O envolvimento presente na filosofia cusana propõe uma “vinculabilidade”, no sentido de que quem pergunta sobre Deus, pergunta sobre o seu próprio princípio e fim. Daí esse vínculo ter afinidade, ou poderíamos dizer, uma afinidade amorosa, pois se está a tratar acerca do princípio. Além disso, não se pode esquecer que a busca pelo conhecimento do princípio primeiro é sempre dentro dos limites do humano: “O homem não pode julgar a não ser humanamente. Com efeito, quando um homem te atribui uma face, não a procura fora da espécie humana, porque o seu juízo está contraído na natureza humana”.18 Percebe-se nesta premissa que quando se investiga a possibilidade de conhecer Deus estão visíveis os limites da razão já que não há como deixar ou abandonar as paixões que são inerentes à natureza humana. Os limites estão sempre presentes, até mesmo quando Nicolau de Cusa propõe uma outra lógica para buscar a verdade, isto é, a lógica do intelecto a partir da coincidentia oppositorum. Aí ele se defronta com o muro do paraíso, como poderemos perceber mais à frente. Ora, na lógica da razão existe um limite na investigação devido à disproportio (cf. De docta ign. I, III: w., n. 9)19 entre o infinito e o finito (André,1997: 90-91).20 O infinito 16 Para pensar a dimensão purgativa da nulla proportio pela via mystica, veja Führer, 1980. Para pensar os fundamentos do princípio da douta ignorância numa perspectiva mais atual, apoiado também no De pace fidei (1453) como expressão do ético-político desse princípio, no refletir e suportar um diálogo intercultural, veja André, 2019: 76-81. 17 Nicolau de Cusa tematiza essa busca do conhecimento recorrendo à caça claramente numa Carta a Gaspar Aindorffer, datada em 12 de fevereiro de 1454: “Quaeritur Deus absonditus ab oculis omnis sapientum; et quia inspirat ut quaeratur, mens avida nihil dimittit imtemptatum ut aliquando attingat ad amatum. Varie discurrit venaticus canis, dum incipit quaerere leporem quem numquam vidit; et nisi natura sua aliquam haberet impressionem speciei eius, non incitaretur ut curreret, in vacum enim laboraret si inventum ignoraret. Ita accidit intellectuali naturae nostrae, quae ad varitatem ut ad vitam suam movetur” (Vansteenberghe, 1915: 121-122). Ora, em um mesmo sentido esta imagem da caça, não fazendo uso da metáfora, aparece numa carta ao abade e aos monges de Tegernsee datada em 14 de setembro de 1453, basta observar o uso do termo reperio (achar ou encontrar) (cf. ibid.: 115). Tudo isso se consuma no De venatione sapientiae, escrito entre 1462 e 1463. 18 Nicolau de Cusa, De vis.VI (h VI, n. 19): “Homo non potest iudicare nisi humaniter. Quando enim homo tibi faciem attribuit, extra humanam speciem illam non quaerit, quia iudicium suum est infra naturam humanam contractum”. 19 Nicolau de Cusa expressa claramente nesta citação acima do De docta ignorantia o que ele apresenta como desproporção, tendo em vista que o máximo absoluto não admite o excedente e o excedido, ambos estão para o finito. É a natureza infinita do absoluto que determina os limites do conhecimento humano sobre o princípio infinito, como bem destaca Brasa Diez: “La naturaleza infinita del Absoluto determina el límite del conocimiento humano, hasta el punto que lo Absoluto sólo puede ser correctamente pensado como ocultamiento. Límite no significa una barrera entre lo trascendente, en sentido medieval, y lo inmanente, sino como el ámbito inobjetivable dentro del cual se despliega la fuerza de la razón en su progresiva aproximación a la Verdad de acuerdo a sus leyes formales” (1989: 130). 20 É observado que Nicolau de Cusa traz o termo infinito como um pressuposto absoluto e não como algo que necessite de justificativa. Afirma André: “E, face a esse absoluto pressuposto, o método humano de investigação revela-se profundamente desadequado, precisamente porque o que com esse absoluto pressuposto se confronta, é a finitude em que o homem se movimenta, ou por outras palavras, o superlativo (e o absoluto é um superlativo) não está ao alcance do comparativo por mais eminente que esse comparativo se exerça” (1997: 90-91). Há um momento no De pace fidei, obra escrita em 1453, em que o Cardeal explica que tomando Deus enquanto criador (ut creator) é trino e uno. Mas, enquanto infinito (ut infinitus) ARTÍCULOS O paradoxo do limite e da... ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 por escapar à proporção é desconhecido. Os limites da razão iniciam-se a partir deste ponto, em que não entende a coincidência de opostos.21 3.2 A lógica do intelecto e o Muro do paraíso Em De docta ignorantia pudemos observar que o problema da busca do princípio se desdobra justamente na coincidentia oppositorum, pois em Deus estão complicados todos os contrários e tudo é de acordo com a providência divina, como afirma nosso pensador: “… assim a providência de Deus complica infinitas coisas, tanto as que acontecem, como as que não acontecem mas podem acontecer, e ainda as coisas contrárias, do mesmo modo que o género complica as diferenças contrárias…”.22 Ademais, deve-se observar que: em primeiro lugar, a complicação dos opostos é o modo como Nicolau propõe aproximar-se do que ele chama de máximo absoluto e, em segundo lugar, que a razão não atinge a coincidência dos opostos, por isso a insistência de elevar o intelecto para além da força dos vocábulos. A busca pela compreensão do máximo absoluto, infinito, torna-se difícil dada a desproporção que há entre o infinito e o finito. Se a desproporção impossibilita o conhecimento de Deus, assim, também, impossibilita nomeá-lo com precisão. No âmbito do infinito ter-se-ia que encontrar um nome que seja infinito, todavia, a nomeação faz parte do processo da razão, que é finita. Destarte, sempre haverá um nome que seja mais preciso que outro. O moselano, a partir do capítulo XXIV até o final do livro I de De docta ignorantia irá investigar o nome do máximo absoluto. A natureza de Deus enquanto infinita supera a razão humana e esta não pode compreendê-Lo. Desta mesma forma Deus supera todo nome – no sentido que antecede todo nome porque antecede a própria linguagem – que a razão possa atribuir-lhe. Podemos, à luz do De coniecturis, afirmar que a coincidentia oppositorum ou máximo absoluto é o modo como no De docta ignorantia Nicolau de Cusa compreende intelectualmente o acesso a Deus. Assim, a coincidentia oppositorum no De docta ignorantia é um conceito que procura apontar significativamente para o sentido que um nome de Deus deve ter, não enquanto determinação, mas enquanto caminho que conduz ao seu fim, fim este que em si é a verdade inefável.23 não podemos dizer nada dele: “Deus, ut creator, est trinus et unus; ut infinitus, nec trinus nec unus nec quicquam eorum quae dici possunt” (De pace VII: h VII, n. 21). Nicolau de Cusa mostra, portanto, os limites e as condições dentro das quais é possível dizer de modo adequado algo sobre Deus (André, 2018). 21 D’Amico: “lo máximo absoluto es uno, es en toda oposición en tanto coincidentia oppositorum pero, por lo mismo, no es ninguno de los opuestos. Todos los nombres, puesto que tienen opuestos, deben ser predicados de él de manera trascendental y en sentido absoluto, a la manera de la predicación superlativa. Su carácter desvinculado de toda oposición hace que pueda ser llamado Uno, pero en tanto tal Uno no tenga oposición ni se multiplique” (2014: 87). D’Amico, ao exibir os pontos em que aparecem na obra cusana as referências ao Pseudo-Dionísio Areopagita, enaltece o aspecto da anterioridade de Deus. 22 Nicolau de Cusa, De docta ign. (w., I, XXII, 68): “… ita dei providentia infinita complicat tam ea quae evenient quam quae non evenient, sed evenire possunt, et contraria, sicut genus complicat contrarias differentias”. 23 A discussão sobre o nome de Deus inicia-se a partir do capítulo XXIV até o capítulo XXVI, sendo desta forma o último tema do livro primeiro da obra De docta ignorantia. Nestes capítulos Nicolau de Cusa trata dos nomes de Deus a partir da teologia afirmativa, da perspectiva dos pagãos até chegar à teologia negativa. Contudo, Nicolau de Cusa entende que “Todos esses nomes são nomes que explicam a complicação do único nome inefável” (De docta ign. I, XXV, n. 84) e, de forma conclusiva afirma que “a precisão da verdade resplandece de modo incompreensível nas trevas da nossa ignorância” (De docta ign. I, XXVI, n. 89). Destarte, o que está por trás do conceito de douta ignorância, ao que parece, é a busca pelo inominável nome de Deus. Nicolau se propusera a buscar um nome adequado para nominar o princípio divino […] mostrou-nos que a questão da nominabilidade divina ou da sua inominabilidade seguia pari passu o problema da sua incompreensibilidade, como bem destaca Teixeira Neto (2017). É o não compreender ou o compreender não compreendendo o princípio divino que está por trás da ideia da douta ignorância. Luis González em sua introdução à tradução espanhola do De non aliud afirma que a teoria filosófica de Nicolau de Cusa “podría entenderse como una doctrina sobre los nombres de Dios, una investigación de las posibles fórmulas de designación del Absoluto, que de suyo es inefable” (2005: 5). Santinello vai considerar a questão acerca da discussão entre teologia negativa ou teologia afirmativa como “molto tradizionale e quasi d’obbligo in una posizione speculativa inspirata al neoplatonismo” (1987: 39). Theruvathu após apontar a existência de uma certa tradição acerca da inefabilidade, aponta esses últimos capítulos, do De docta ignorantia que tratam dos nomes divinos, como referenciais que justificam tal tradição, até afirmar que um nome apropriado a Deus é o inefável: “In short, the ineffabilis-instances in De docta Ignorantia 1 affirm that there is only one proper name for the absolute maximum and that it is ineffable. In this context, we can determine the meaning of the term ‘ineffable’ as ‘indefinable or indescribable’” (Theruvathu, 2010: 33-34). Para um maior aprofundamento acerca da hermenêutica dos nomes divinos, veja Martínez Gómez, 1965; André, 2006 e 2010; González Ríos, 2014; Casarella, 1992 e 2017; André, 2019: 255-296. 13 ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) 14 PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 KLÉDSON TIAGO ALVES DE SOUZA, MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA No De vis., especialmente no capítulo décimo, o filósofo alemão apresenta a doutrina da coincidência dos opostos na metáfora do “muro do paraíso” em que ao discorrer o lugar onde Deus se mostra também discorre sobre a impossibilidade do acesso da razão. O Cardeal insiste em afirmar ter descoberto este lugar em que de modo desvelado e cercado pela coincidência dos contraditórios está Deus. A coincidentia oppositorum é o muro, e para Deus poder ser visto deve o olhar transpassar esse muro. É para lá da coincidentia oppositorum que se pode ver Deus, nunca aquém. Portanto, a coincidência não pode ser identificada com Deus. É necessário superar os limites do pensamento racional (ratio) e elevar-se também para lá do pensamento intelectual (intellectus).24 No De docta ignorantia Nicolau termina por estabelecer a partir do princípio da coincidentia oppositorum os limites e o alcance da mente frente ao máximo absoluto, por quanto estabelece a base de um plano metodológico em que a mente pode tomar a coincidência como parâmetro para chegar ao limiar das possibilidades onde se deparada com a sagrada obscuridade, por um lado, e, inflexivamente, a douta ignorância, por outro. André alerta que o ponto mais alto da ascensão intelectual situado acima da razão “se situaria precisamente no próprio muro em si, sendo assim a coincidência a região do intelecto” (2019: 95). No De vis., percebemos primeiro a instauração de um novo sistema lógico que não leva em conta o parâmetro dos contraditórios, mas que é já uma lógica que busca atender ao máximo absoluto ou ao infinito e essa lógica visa, no fundo, conduzir à identidade absoluta (cf. Vengeon, 2011: 31-40); agora, percebemos também que no extremo da busca da verdade, onde tudo coincide, nem a lógica da razão nem mesmo a lógica do intelecto alcançam a Deus, mas mediante esse descolamento o autor coloca-nos à porta da coincidência para que possamos compreender que o conceito de Deus é a eternidade simplíssima, o que nos permite concluir que para se ver a Deus deve-se transcender ambas as lógicas. Deus está para além da coincidentia oppositorum.25 A razão segue uma linha lógica que não permite a coincidência e sim a oposição ou a separação, o que Aristóteles já dissera em sua Metafísica quando trata sobre o princípio de não contradição (cf. Met. 4, 1005b 17-30). A razão não concebe a ideia de uma coincidência entre os opostos, tampouco entre contraditórios. Aqui é preciso deixar claro que não é que Nicolau de Cusa desvalorize ou negue a lógica de não contradição, é que ela apenas dá conta daquilo que é do âmbito da razão, mas se manifesta impotente no que tange ao conhecimento de Deus, que é transcendência, infinito.26 Por conseguinte, necessita ela ser relativizada para que se eleve o pensamento ao âmbito do intellectus. Assim, a instituição dessa nova lógica atende ao percurso metodológico de busca do máximo infinito ao passo que numa visão mais ampla acaba por complementar a lógica no âmbito da ratio. Portanto, percebamos que a razão por estar no âmbito da finitude segue o princípio lógico de não contradição, o que não lhe permite pensar para além da divisão, da separação, da nomeação. Porém, no percurso escolhido pelo Cusano se exige uma outra estrutura que faça com que a mente supere justamente a divisão. De forma 24 Para reflexão assaz interessante acerca da relação ratio e intellectus na sua dinamicidade da busca de Deus, veja André, 2019; 87-99. 25 Nicolau de Cusa, De vis. IX (h VI, n. 37): “Quapropter tibi gratias ago, deus meus, quia patefacis mihi, quod non est via alia ad te accedendi nisi illa, quae omnibus hominibus, etiam doctissimis philosophis, videtur penitus inaccessibilis et impossibilis, quoniam tu mihi ostendisti te non posse alibi videri quam ubi impossibilitas occurrit et obviat. Et animasti me, domine, qui ES cibus grandium, ut vim mihi ipsi faciam, quia impossibilitas coincidet cum necessitate. Et repperi locum in quo revelate reperieris, cinctum contradictoriorum coincidentia. Et iste est murus paradisi, in quo habitas, cuius portam custodit spiritus altissimus rationis, qui nisi vincatur, non patebit ingressus. Ultra igitur coincidentiam contradictoriorum videri poteris et nequaquam citra”. 26 Para uma leitura sobre a relação entre Aristóteles e Nicolau de Cusa, veja Vimercati - Zaffino, 2020. A obra consiste numa coletânea de artigos que tratam da recepção do pensamento do Estagirita pelo Cusano, de modo a abranger uma larga análise que perpassa pelos aspectos da lógica, da epistemologia, da física, da psicologia, da metafísica, da política e da ética. ARTÍCULOS O paradoxo do limite e da... ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 complementar, sem se desfazer da anterior, temos a lógica do intelecto que traz em si o princípio da coincidência. Agora, é importante constatarmos que a razão não alcança a coincidência dos opostos, mas o intelecto não ultrapassa a coincidência,27 onde, para além do “muro do paraíso”, está Deus. O intelecto, guiado pela coincidência, vê, mas não entende. 3.3 Desejo e conhecimento e conjectura O que motiva toda essa busca e descoberta de limites e potencialidades da mente humana frente à verdade absoluta é o desejo. Pensar a relação desejo e conhecimento no cenário filosófico cusano é, antes de tudo, pensar na relação amorosa (amor sub ratione boni) e dialógica que há entre ambos, tendo em vista que “o amor de que fala o nosso filósofo é o amor intellectualis” (Nogueira, 2011: 74). No De sap. lateja de modo veemente a relação entre desejo e conhecimento, pois o moselano vai à raiz da palavra e trata o saber ou a sapiência como sabor28 abrangendo, inclusive, a procura deste sabor mediante um pré-saboreamento,29 e é justamente esse movimento que faz com que o desejo pelo saber fique ainda mais aguçado. Cassirer ao comentar acerca da posição de Nicolau diante da discussão do conhecimento místico de Deus no século XV, entre intelecto e vontade, mostra o posicionamento do Cardeal: O verdadeiro amor de Deus é “amor Dei intellectualis”: ele abarca em si o conhecimento como momento e condição necessários, pois ninguém é capaz de amar o que já não tenha conhecido em algum sentido. O amor puro e simples, entendido como mero afeto sem qualquer envolvimento do conhecimento, seria uma contradição em si: o que se ama é colocado sob a ideia do bem, é compreendido sub ratione boni (Cassirer, 2001: 23). No De vis. Nicolau de Cusa compara este saber que não sabe com “o tesouro inexplicável” (De vis. V: h VI, n. 13).30 O homem torna-se douto na medida em que se reconhece ignorante, e o porquê disto, quiçá, está na relação do investigador para com aquilo que investiga que não é mero objeto de investigação, como afirma Álvarez Gómez: “converter a Deus em objeto da atividade intelectual equivale a anular sua transcendência, a situá-la ao nível humano” (2004: 98); por isso, muito mais do que uma investigação sobre um mero objeto, concordamos com André (1997) quando diz que há um “envolvimento filosófico” entre a investigação de Nicolau e aquilo que ele busca compreender, i.e., Deus. Do que fora dito podemos nos perguntar: qual é a relação do desejo natural do homem com o conhecer, i.e., o que o homem deseja tem relação com o que ele pode conhecer? O que ele conhece tem relação com o que ele deseja? É importante esta questão para que se clarifique a relação que há no pensamento cusano entre o desejo e o conhecimento sobre o princípio. Em A visão de Deus o que move Nicolau de Cusa a buscar a Deus é o desejo. Afirma nosso autor: Tu igitur, deus, es ipsa infinitas, quam solum in omni Desiderio desidero. Ad cuius quidem infinitatis scientiam non possum propius accedere, quam quod scio eam esse infinitam. Quanto igitur te deum meum compreendo magis incomprehensibilem, de tanto plus attingo 27 Cassirer vai colocar essa contraposição de uma lógica, a aristotélica, racional, a uma outra intelectual, de Nicolau de Cusa, nos seguintes termos: “Assim, todo e qualquer tipo de teologia ‘racional’ é rejeitado e substituído pela ‘teologia mística’. Mas da mesma forma como antes Nicolau de Cusa ultrapassara os limites do conceito tradicional de lógica, agora também seu pensamento ultrapassa os limites do conceito tradicional de mística, pois com a mesma determinação com que ele nega a compreensão do infinito através das abstrações e categorizações lógicas, ele também nega a possibilidade de sua compreensão pelo mero sentimento” (2001: 22). 28 Nicolau de Cusa, De sap. I (h V, n. 10): “Sapientia est, quae sapit, quae nihil dulcius intellectui”. 29 Nicolau de Cusa, De sap. I (h V, n. 11): “Cum enim ipsa sit vita spiritualis intellectus, qui in se habet quandam connaturatam praegustationem, per quam tanto studio inquirit fontem vitae suae, quem sine praegustatione non quaereret nec se repperisse sciret, si reperiret, hinc ad eam ut ad propriam vitam suam movetur”. 30 Para a versão em língua portuguesa do texto acima referido, optamos por usar a tradução de André, 2012. 15 ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) 16 PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 KLÉDSON TIAGO ALVES DE SOUZA, MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA te, quia plus attingo finem desiderii mei (De vis. XVI: h VI, nn. 68-69). Tu, Deus, és, pois, a própria infinidade, a única coisa que desejo em todo o desejo e não posso aproximar-me mais da ciência dessa infinidade, já que sei que ela é infinita. Por isso, quanto mais incompreensível te compreendo, Deus meu, tanto mais te atinjo, porque mais atinjo o fim do meu desejo (De vis. XVI: h VI, nn. 68-69). O desejo é em si finito mas torna-se sem fim quando este desejo está para o infinito. É pelo reconhecimento da impossibilidade de conhecer que mais se aproxima o homem de Deus. Quanto mais o homem reconhece que não sabe, mais ele desperta em si o desejo de conhecer. O fim do Desejo é Deus, mas o fim desse desejo somente pode ser atingido se se compreender Deus como inatingível. Talvez essa seja uma das delícias experienciadas pelo Cusano ao descobrir o caminho da ignorância e da ascensão moral e intelectual da mente humana como conjectura, participação de sua finitude na infinitude que é princípio e fim. 4. Consideração final Por fim, ao passarmos pela doutrina cusana da douta ignorância percebemos que não há saber mais verdadeiro que o não saber, ou seja, a ignorância, que, bem compreendida torna-se douta31 e se faz caminho conjectural para a verdade absoluta. Afinando-nos com D’Amico quando diz que “nada, portanto, com relação ao conhecimento pode acontecer sem considerar a ignorância, pois nenhum saber pode dar-se sem a consideração da regra fundamental, ou seja: a precisão da verdade é inalcançável” (2005: 267, grifo nossos) e de tudo que foi visto ao longo desse texto, nos permitimos considerar dois elementos que tomamos como importantes. O primeiro é que o movimento de busca da verdade empreendido pelo Cusano somente pode ser compreendido de forma profunda se se tiver como horizonte a douta ignorância em sua acepção hermenêutica e metodológica. O segundo, como desdobramento do primeiro, é perceber que os fundamentos filosóficos dessa hermenêutica lança luzes à compreensão do homem como um ser aberto, como um ser em processo, como um devir, como percurso. Diríamos que nessa concepção o homem torna-se um peregrino que estando a caminho encontra vestígios da verdade identificada com a sabedoria. Frente à pergunta “que douta ignorância é essa que se deve procurar?”, Nicolau de Cusa diz-nos, citando Moisés Maimónides, a quem chama Rabi Salomão: “Seja louvado o criador; na compreensão da sua essência torna-se breve a investigação das ciências, a sabedoria considera-se ignorância e a elegância das palavras vaidade”.32 É por não haver proporção entre o finito e o infinito que a mente humana se confrontará com os seus limites e, paradoxalmente, com suas potencialidades, no sentido de produção 31 A douta ignorância traz em sua raiz ética o pluralismo de ideias e expressões, e isso se dá mediante a força do princípio primeiro que não pode ser reduzido a unicamente uma expressão. Em termos atuais e religiosos, poderíamos dizer que uma religião não conseguiria sozinha abarcar a força expressiva de Deus. Aquelas que se afirmam como tal, acabam por cair num fundamentalismo. Pereira em um artigo bastante interessante afirma que: “Doutrinal e definitivo, insensível à dimensão transracional e simultaneamente temporal da própria razão, o fundamentalismo é uma anti-hermenêutica na sua recusa pertinaz de toda a interpretação, que lhe possa disputar o domínio. A absolutização de uma visão fragmentária, abstracta e acrítica, que se converte em concepção única de mundo, com exclusão e condenação de todas as que diferem, é o traço que interliga todas as variantes de fundamentalismo religioso muçulmano, protestante, católico, hinduista, budista, etc. e filosófico” (1992: 216). Em outro momento deste mesmo artigo afirma: “O grande inimigo de qualquer fundamentalismo é o pluralismo inaugurado pelas liberdades básicas do homem moderno, mormente pela liberdade de crença, pela liberdade de consciência e pela liberdade de religião” (ibid.: 223). Ora, percebe-se com isso que o princípio da “douta ignorância”, pensado no século XV, encontra-se adiantado em sua força de expressão dialética e dialógica. André, sem citar a ideia da “douta ignorância”, apresenta seus efeitos nos tempos de hoje: “… exige hoje que se não entenda a fragmentação como um ponto de chegada, mas antes como um ponto de partida para um diálogo plural e para uma educação intercultural, que, sem deixar de respeitar a diferença, potencie a sua riqueza numa fecunda concepção de unidade” (2005: 23). Ainda sobre a perspectiva da douta ignorância numa relação com o pluralismo e até o multiculturalismo, veja: André, 2000, 2007 e 2012. 32 Nicolau de Cusa, De docta ign. (w., I, XVI, 44): “Laudetur creator, in cuius essentiae comprehensione inquisitio scientiarum abbreviatur et sapientia ignorantia reputatur et elegantia verborum fatuitas”. ARTÍCULOS O paradoxo do limite e da... ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 afirmativa e criação de um mundo conjectural, que ocasiona, portanto, o reconhecimento da “douta ignorância” como saber máximo e como chave de leitura para todo o pensamento de Nicolau de Cusa. Mesmo não usando essa terminologia, ousamos ainda dizer que as construções lógicas e metodológicas do Cusano nos revelam uma espécie de itinerário da mente para Deus, não um itinerário com as mesmas preocupações e a forma de São Boaventura, mas um itinerário profundamente pautado nos fundamentos filosóficos, o qual a certa altura esbarra no próprio mistério,33 e por isso, é um itinerário também místico. Tal movimento filosófico, por tudo que comporta, faz de Nicolau de Cusa um pensador inovador, como já o dissera Mariano Álvarez Gómez (2010). 33 Nicolau de Cusa, De vis. XI (h VI, n. 45): “ut te ultra murum coincidentiae complicationis”. 17 ISSN 0325-2280 (impresa) | ISSN 2683-9636 (en línea) 18 PATRISTICAETMEDIÆVALIA43.1(enero-junio,2022):5-20 doi: 10.34096/petm.v43.n1.11672 # KLÉDSON TIAGO ALVES DE SOUZA, MARIA SIMONE MARINHO NOGUEIRA Bibliografia Fontes Edições » Nicolai de Cusa (1932 ss.). Nicolai de Cusa Opera Omnia. Eds. Hoffmann, E., Bormann, K., Klibansky, R., & der Wissenschaften, H. A. Leipzig - Hamburgo: Felix Meiner. » Nicolas de Cues (1915). Correspondance de Nicolas de Cues avec Gaspar Aindorffer et Bernard de Waging (1451?-1456). Ed. Vansteerberghe, E., Autour de la docte ignorance. Une controverse sur la théologie mystique au XV siècle. Münster: Aschendorff. » Nikolaus von Kues (1979). Philosophisch-theologische Werke Buch I. Ed. Wilpert, P. Hamburgo: Felix Meiner. Traduções » Aristóteles (2002). Metafísica. Trad. Reale, G. São Paulo: Edições Loyola. » Nicolau de Cusa (2018). A douta ignorância. Trad. André, J. M. 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