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Porque sou anarquista

PORQUE (AINDA) SOU ANARQUISTA Marcelo Bolshaw Gomes1 1. Introdução Em 2020, arrumei alguns desafetos devido ao texto “Porque não sou marxista (mas continuo estudando sociologia crítica)”2, em que afirmo que Pierre Bourdieu e Michel Foucault são muito mais radicais do que Marx. Entre as várias críticas que recebi, a mais interessante me acusa de confundir deliberadamente ideologia política com teoria social; e que eu deveria, ao invés de explicar “o que não sou”, dizer em que realmente acredito, uma política propositiva a partir da sociologia contemporânea. Então, surgiu a ideia deste texto, não mais voltado para mostrar ao público político uma teoria social mais crítica e contundente que o marxismo, mas, sobretudo, para repensar uma ideologia política mais completa, atual e sociologicamente fundamentada do que a professada pelo senso comum de direita e de esquerda. 1 Professor titular do Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia da UFRN, coordenador da base de pesquisa GEMINI. E cyberanarquista. 2 https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/tematica/article/view/51011 2. Autopoesis Social Quando me declaro politicamente anarquista, não é um virtude de Bakunin e Proudon. Aliás, concordo com as críticas de Marx e Lenin a esses autores. E, embora goste de Emma Godman, Piotr Kropotkin3 e de Henry David Thoreau (e concorde com suas ideias sobre feminismo, mutualismo e desobediência civil), considero que essas ideias são distorcidas e apropriadas pela direita, como, por exemplo, pelo presidente da Argentina Javier Milei e pela ideologia anarco-capitalista. Meu anarquismo tem mais a ver com a revolução espanhola4, com os índios Guaranis e Pierre Clastres (A Sociedade contra o Estado5) e, principalmente, com o conceito de ‘Autopoesis’ elaborado pela teoria da complexidade. Autopoiese é um termo que significa autoprodução, e que se refere à capacidade dos seres vivos de se produzirem a si próprios. A palavra vem do grego autós, que significa "por si próprio", e poiesis, que significa "criação, produção". Autores como Henri Atlan e Edgar Morin dão ênfase à auto-organização. Trata-se da atividade que faz um sistema ter autonomia nas interações em relação ao ser meio ambiente. Um sistema altamente organizado (ou complexo) resiste a mudanças ambientais pela sua diversidade e autonomia. Rousseau diz que a Sociedade Civil através de um contrato social entre indivíduos livres; Hobbes considera que o Estado é um acordo que impede a guerra de todos contra todos. Na primeira concepção, a Sociedade Civil precede o Estado, a cooperação frente à natureza precede a guerra e a dominação de classe. “O homem é um animal gregário”, como diz Aristóteles. Já na concepção de Hobbes (e também de Platão, Maquiavel, Marx, entre outros), “o homem é o lobo do homem” e o Estado se formou em função do conflito, antes da Sociedade Civil, que só surgiu com a propriedade privada. 3 Foi o autor de livros considerados clássicos do pensamento libertário, entre os quais se destacam A Conquista do Pão; Memórias de um Revolucionário (ambos publicados em 1892); Campos, Fábricas e Oficinas (1899); e Mutualismo: Um Fator de Evolução (1902). LEIA: Algumas considerações sobre o geógrafo anarquista Piotr Kropotkin e a comunidade rural Yuba em Mirandópolis. O documentário “Sem deuses, Sem mestres: História do Anarquismo “, de 2006, dirigido por Tancrède Ramonet (legendado em português) é subdividido em três partes – de 52 minutos cada – com a história política do movimento anarquista: A paixão por destruição (1840-1906); Terra e Liberdade (1907-1921); e Em memória do derrotado (1922-1945). 4 5 https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2017/08/clastres-a-sociedade-contra-o-estado-2.pdf “Quem veio antes” é apenas um eufemismo para duas interpretações distintas de Estado. Para Bobbio (2000b, 37), a concepção liberal considera que o Estado é formado pela defesa dos interesses coletivos de seus cidadãos enquanto a concepção totalitária entende o Estado como o conjunto funcional de todas instituições. Para direita, “o estado é a nação politicamente organizada dentro de um território” e, para esquerda, Gramsci (2000) por exemplo, tanto há “o estado ampliado” (a totalidade da superestrutura) como o “estado restrito” (as instituições jurídico-políticas e de coerção social). Já o ‘Mercado’ surgiu após o Estado e a Sociedade Civil, mas também tem várias datas em virtude de sua definição. Como espaço, o mercado é equivalente à feira e é anterior à moeda e à mediação das trocas. Como sistema acoplado, que ganhou autonomia através da auto-organização, o mercado é bem recente e se confunde com o capitalismo ou economia de mercado. Hoje, inclusive, ele se apresenta como agente com vontade própria, embora isso seja uma ilusão criada por seus porta-vozes financeiros e midiáticos. Essa subdivisão em três esferas sociais (ou do sistema social nos subsistemas econômico, político e cultural) é comum em vários autores contemporâneos, inclusive em Habermas (e na teoria da democracia deliberativa6) e em Giddens (e em sua política de terceira via7). Nesse modelo, três instâncias de auto-organização diferentes lutam entre si para absorver e controlar as outras. O Mercado quer reduzir o Estado ao mínimo; o Estado deseja controlar o Mercado; a Sociedade Civil é disputada pelos dois. ‘Democracia deliberativa’ é a democracia representativa ampliada pelos meios de comunicação, em que os debates, conflitos e as decisões parlamentares são divulgadas, testadas e legitimadas pela opinião pública. Habermas acredita na ampliação da esfera pública pela sociedade civil. 6 7 Com a proposta de uma Política de Terceira Via (2001a, 2001b), Giddens elabora uma resposta ao impasse entre a socialdemocracia tradicional (o keynisianismo e o estado do bem-estar social) e o neoliberalismo (ou o estado mínimo e aberto às trocas externas) com a ampliação do papel desempenhado pela Sociedade Civil. Nem a auto regulação selvagem dos mercados, nem o Estado inoperante e falido; apenas democratização da democracia pode mediar o conflito entre os interesses econômicos e políticos. A política de terceira via seria essa despolarização pragmática do modelo esquerda x direita, em que planejamento e a liberdade se combinem criativamente. 3. A negação da negação Há uma frase circulando pela internet, atribuída a Paulo Freire, que se uma concepção política afirma que “está acima da contradição entre direita e esquerda, então, certamente, essa concepção é de direita.” É possível que a piada se aplique à socialdemocracia europeia (na verdade, ao partido trabalhista britânico), mas, o próprio Freire afirma que “o importante para se determinar a “base ideológica” (de uma concepção de mundo) é que ela seja mais ou menos inclusiva e abrangente. Então, posto isso, é possível uma concepção mais ampla que a polaridade entre Estado e Mercado. Pensadores como Noberto Bobbio, por exemplo, colocam a teoria política acima dessa polaridade moderna, que surgiu nas bancadas do parlamento burguês na revolução francesa. Para ele, apesar de opostos, os contrários são também complementares, existindo inclusive “um movimento pendular” entre as duas posições na administração e nas eleições. A direita defende a liberdade econômica; a esquerda, a igualdade individual – mas ninguém fala da solidariedade. A direita quer cortar os gastos e esquerda deseja subir os impostos – mas todos se conformam com o endividamento público. Ou temos a regulamentação econômica com anarquia moral – como quer a esquerda; ou a anarquia econômica com fortes controles morais – como deseja a direita. São os dois lados de uma mesma moeda. E mais: para esquerda, o mal é o capitalismo, o mercado, as grandes corporações, os EUA; para direita, o mal é o estado inchado, o relativismo cultural, os imigrantes e os criminosos. Mas, o mal em si não existe e esses inimigos são apenas fantoches emocionais de manipulação. A esquerda se motiva pelo medo; a direita, pelo ódio. 4. A Era da Informação Para Pierre Levy (1998a), existem quatro “espaços antropológicos” que se sobrepõem como níveis históricos e simultâneos de virtualização: o Espaço da Terra, o Espaço do Território, o Espaço do Mercadorias e o Espaço do Saber. O Espaço da Terra ou Natureza corresponde ao meio ambiente imaginado pela comunidade primitiva. Ele não é o meio ambiente em si, mas uma representação. Em seus primeiros trabalhos (Levy, 1993), esse espaço é definido pela oralidade, pelo Mito e pela linguagem enraizada no corpo e pelo ‘eterno retorno’ de um tempo circular e cosmológico. Nesse espaço, emissor e receptor partilham um contexto único: o modelo de interação um-um. O Espaço do território (e do Estado) é marcado pelo aparecimento da vida sedentária, da agricultura, dos deuses solares, da escrita, do direito e das primeiras cidades. Esse espaço é a segunda virtualização, abstração do espaço físico e materialização cultural, é corresponde ao começo da História e da memória social. Passam a existir múltiplos contextos no espaço/tempo, constituindo um modelo de interação um-muitos. O Espaço das Mercadorias nasce de dentro do Espaço do Território, como uma estratificação sistêmica econômica, o capitalismo e sua lógica de concorrência e lucro. O mercado surge da desterritorialização do Estado, transformando todas “as posses” em mercadoria. Nesse modelo, os espaços antropológicos não são apenas fases históricas que se sobrepõem, mas realidades simultâneas em desenvolvimento, em que as últimas tentam se sobrepor e controlar as primeiras. E, finalmente, o Espaço do Saber, o ciberespaço, em que tudo se torna informação, se datifica. Nesse espaço, a organização se dá de forma flexível e complexa e por meio de redes digitais em tempo real; o modelo de interação é muitos-muitos, em que todos são interlocutores e há uma reunificação dos contextos no virtual. Ainda estamos em um momento inicial da construção desse espaço antropológico, cujo a função é controlar os espaços anteriores/exteriores: das mercadorias, dos territórios e do meio ambiente. Levy define ciberespaço como o quarto espaço antropológico, sobrepondo-se à Terra, ao Território e ao Mercado. Os Territórios são virtualização da Terra; a Mercadoria é uma virtualização dos Territórios; e o saber, uma virtualização das Mercadorias8. Nesse modelo, mais do que explicar os conflitos institucionais da sociedade, é como se habitássemos em quatro universos simultaneamente. Nosso corpo está no meio ambiente, mas também estamos em mundos subjetivos. 5. Conclusão Sou anarquista porque acredito que a Comunidade está no começo e no final da História. No começo, como comunidade primitiva anterior ao Estado; e, no final, como uma utopia democrática comunitarista, posterior ao Estado, ao Mercado e à divisão da sociedade em classes sociais. Essa utopia passa muito mais por um redimensionamento das desigualdades cognitivas que de uma redistribuição material das riquezas ou de uma reorganização das relações de força. Sou anarquista com viés feminista (acho que a dominação de gênero é a base da dominação social) e ecológico, acredito que o crescimento econômico só é legítimo através da produtividade (e não do aumento da produção). Sou favorável à automatização do trabalho manual, à diminuição progressiva das horas de trabalho, à educação integral voltada para o desenvolvimento ético, ao pleno emprego. Mas, principalmente, transparência. O controle da informação passou a ser o ponto central do meio ambiente, da democracia e do mercado. Por isso, mais do que derrubar o parlamento ou o lucro, é preciso garantir o acesso universal à informação. Esse, no entanto, é outro assunto e vai ficar para um texto futuro. 8 Um exemplo dado por Michel Serres: nosso nome e sobrenome são nossas identidades no espaço antropológico da Terra; nosso endereço, nossa identidade no espaço territorial; a profissão, a posição que ocupamos no mundo das mercadorias; e, atualmente, estamos definindo uma quarta identidade para o espaço antropológico do saber: a senha, a impressão digital do polegar, o login, o DNA. E a definição desta quarta identidade contemporânea – se individual ou coletiva, se anônima ou genética, se consciente ou involuntária – ainda está em construção. Referências bibliográficas BOBBIO, Norberto. O futuro da Democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000a. ______ Teoria geral da política. Brasília: Editora da UNB, 2000b. ______ Direita e esquerda. São Paulo: UNESP, 2001. BOBBIO, Norberto; MATTECUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário da política. Brasília: Editora da UNB, 2000c GIDDENS, Anthony. Para Além da Esquerda e da Direita. São Paulo: UNESP, 1996b. _____ A terceira via. Rio de Janeiro: Record, 2001a. _____ A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001b. _____ O Mundo em descontrole o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2003. _____ Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. GRAMSCI, Antônio. Cadernos de Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. ______ Teoria do agir comunicativo. Dois volumes. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.