Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
Literatura: Destaques A Hora e a Vez dos Pequeninos: O Burro e o Boi no Presépio de Guimarães Rosa Michelle Jácome Valois (UFPE) My task which I am trying to achieve is, by the power of the written word, to make you hear, to make you feel – it is, before all, to make you see. (Joseph Conrad, Preface to The Nigger of the Narcissus) … e já que, o puro ofício de viver, nos bichos se cumpre melhor – o justo que haveria em estudar-se, nas condições, seu esboçar-se de alma, seu ser, seus costumes obscuros. (Guimarães Rosa, Pé-duro, chapéu-de-couro) “Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos”, diz Rosa em entrevista a Günter Lorenz (1983:67). A afirmação se aplicaria facilmente a toda a obra roseana, onde o gado, além de evocar sua longa existência simbólica, mitológica e literária, se oferece à contemplação em toda a exuberância de sua materialidade – som, cor, textura, volume, movimento, cheiro... Em O burro e o boi no presépio, a própria estrutura da obra exige essa contemplação. Nos vinte e seis poemas, os humildes coadjuvantes das Natividades de Botticelli, Schongauer, Dürer e outros, parecem aspirar a protagonistas, revestem-se do que Carlo Ginzburg chama “dimensão ostensiva” (GINZBURG 2001:119): ao “Ecce puer”, Rosa parece juntar “Ecce bos!, Ecce asinus!”. Verbo e pintura continuamente reenviam-se, ostentam-se um ao outro e, junto com a ênfase insistente nos bichos, o leitor entreouve “Ecce opera”! É nessa ekphrasis generosa, sem agon nem paragone, que cirandam os quadros, os bichos e a palavra de Rosa. Palavras chave: ekphrasis – animais – intersemiose – intertextualidade – Guimarães Rosa Abstract: “My house is a gallery hung with paintings of cows and horses”, says Rosa to Günter Lorenz in an interview (1983:67). The statement would easily apply to Rosa’s entire body of work, where horses, bulls, cows and donkeys are not only charged with symbolic meaning, but also offer themselves for contemplation in all their physical exuberance – sound, colour, texture, volume, movement, smell... In The donkey and the ox in the Nativity scene, the reader is “lured” into contemplation by the Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -1- structure of the piece itself. Each one of the twenty-six poems guides the reading of one painting, insistently emphasising the humble witnesses of the Nativity scene: “Ecce puer!”, of course, but also “Ecce bos!”, “Ecce asinus!”, they seem to be saying. Poems and paintings continually draw attention to one another, in an ekphrasis where, instead of evoking the famous “paragone” of the arts, word and image whisper in unison: “Ecce opera!” Keywords: ekphrasis – animals – intersemiosis – intertextuality – Guimarães Rosa Em entrevista concedida a Günter Lorenz, Guimarães Rosa fala do “momento em que o homem e sua biografia resultam em algo completamente novo” (ROSA&LORENZ 1983:67). Para ele enquanto escritor, esse momento é a conjunção entre suas três “personas” cardinais - médico, soldado e rebelde: “como médico ele conhece “ o valor místico do sofrimento”, “como rebelde, o valor da consciência”, “como soldado, o valor da proximidade da morte” (ROSA&LORENZ 1983:67). O quarto ponto cardinal - que Rosa deixa por último, mas recorre como um refrão na entrevista - é o que aponta para a terra: ...mas não se esqueça de meus cavalos e de minhas vacas. As vacas e os cavalos são seres maravilhosos. Minha casa é um museu de quadros de vacas e cavalos. Quem lida com eles aprende muito para sua vida e a vida dos outros. Isto pode surpreendê-lo, mas sou meio vaqueiro, e como você também é algo parecido com isto, compreenderá certamente o que quero dizer. Quando alguém me narra algum acontecimento trágico, digo-lhe apenas isto: “Se olhares nos olhos de um cavalo, verás muito da tristeza do mundo!” Eu queria que o mundo fosse habitado apenas por vaqueiros. Então tudo andaria melhor. (ROSA&LORENZ 1983: 68) Rosa não faz segredo de seu amor pelos bichos. Um amor que não é o do homem feitor da gênese, déspota esclarecido reinando benevolente sobre a criação, mas um amor de igual para igual, que ele professa escrevendo. Porque na obra de Rosa cicia-se, late-se, muge-se, pia-se, ruge-se, zumbe-se com tanta autoridade quanto se pronuncia uma momentosa sentença. E não porque de fato se pronuncie a momentosa sentença das fábulas, nem porque se alegorizem conceitos ou se ventriloquizem tipos humanos. Em Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -2- Rosa, homem e bicho pertencem juntos no mundo - na teima de se querer vivo, no gozo de beber a vida, no medo e no esforço de suportar os perigos de se viver. As desventuras, as penas, as alegrias de um e de outro se equivalem. Mas homem e bicho não são feitos à imagem e semelhança um do outro. Os homens, na verdade, fazem triste figura comparados aos bichos de Rosa – na palavra roseana o bicho é uma arquicategoria que declina a paleta toda dos sons, texturas, cores, cheiros, movimentos do que é vivo. Asas, pelos, garras, dentes, penas, bicos, chifres, caudas são a carne da beleza do mundo e da metafísica roseana. Neles se encerra o aparato todo da vida e da morte – sedução, fome, ameaça, o agon eterno, jogo e luta, que sustenta o mundo. Mas asas, bicos, chifres, penas, dentes e garras não são signos de outra coisa, sucedâneos ou arautos do termo elíptico na metáfora - eles apontam para si mesmos, para a própria materialidade. Onças, garças, cachorros, passarinhos, gatos, lontras, cigarras, serpentes, mesmo mosquitinhos se oferecem à lira de Rosa na exuberância do que são. Essa intimidade o homem ganha no trabalho com o bicho. É no trabalho que o homem espreita a besta nos menores movimentos, conhece-lhe os caprichos, os costumes, os trejeitos... É no trabalho que homem e bicho se defrontam em jogo e luta - cooperando, como com cavalo e cão, ou se batendo, como com a caça ou o gado: No descarte, no lanço do curral-de-aparta, os bois não entendiam que não devessem seguir juntos, prensavam-se avante – o retrupo, moçoroca – ferindo-se no cru dos ferros, nas choupas das varas, ou enrolando-se num remoinho metade em reviravinda, metade no mopoame da revolta. Praguejos. Catatraz de porretada no encaixe do chifre, e chuçada de topo, de arriba-à-barba. – Que’s fumega!...Defecavam mole, na fúria; cada um, com o espancar-se da cauda, todo se breava. Jogavam trampa, lama, pedaços de baba. Sangue, que escorre até ao pé da rês – fio grosso e fios finos. Outros levantavam os queixos, já inflamados, largo inchaço, ou guardavam suas caras em véus de sangue, cortinas carnais, máscaras – coagulado ou a escorrer, sangue fresco e sangue seco – placas, que os cegavam. Encostavam-se as cabeças, se uniam mais, num amparo necessitado. Separar bois, se separam as ondas do mar. (ROSA 1978: 7576) Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -3- O apartar e ferrar os bois torna-se um espetáculo doloroso de cinese, som e cromia. O suceder-se na frase de “vira”, “vinda” e “volta”, a espiral movente que o prefixo (re) repetido sugere, redundam e ampliam o movimento circular do gado a enrolar-se em remoinho. O volume pesado das ancas dos bois na horizontalidade da massa compacta tensiona com as esguias lanças que são os chuços – e Rosa parece aqui aspirar a Ucello... Movimento brusco e confuso dos bois, em centrípeto desespero; movimento ritmado, calculado dos vaqueiros, em centrífugo esforço. Sangue, trampa, lama e baba são textura, brilho, cor e pathos, os estilhaços de uma bomba viva que ameaça explodir1. O gado sofre vestido de fitas (fios grossos, finos) e máscaras rubras. O vaqueiro junta voz à percussão dos chifres - e a página de Rosa ganha ares de composição em branco e preto, porque o conto Cara de Bronze, de onde se extraiu a passagem acima, ostenta sua intersemiose no arranjo do texto, orquestrando negritos, parênteses, itálicos, caixas altas, notas de rodapé, espaços e colunas no intergênero com teatro e cinema (ROSA 1978: 71-127). O caçador é o melhor pintor possível da caça, idem para o vaqueiro e o gado. No trabalho com o gado o homem se faz centauro e minotauro, híbrido, feroz e guerreiro, mas também manso e amansador, e torna-se íntimo o bastante para transubstanciar a materialidade crua do boi em arte... Bichos e quadros. O Rosa vaqueiro não se contenta em cavalgar, ordenhar, amansar, contemplar o bicho. Ele quer um pássaro na mão, dois voando e muitos entre molduras – ele se quer também Rosa-pintor. Se sua casa é um museu de quadros de bichos, sua obra não o é menos. A Rosa sinestésica, a Rosa intersemiótica O flerte de Guimarães Rosa com as outras artes que não a escrita se vai adivinhando a cada texto. As marcas de intersemiose se sucedem numa frequência e intensidade que as elevam a “instrução” de leitura. Se na passagem analisada acima a 1 A imagem do gado junto como bomba viva aparece no Entremeio – com o vaqueiro Mariano, também com distinto acento sobre forma, movimento e som (ROSA 2001:116). Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -4- instrução de fruição intersemiótica é implícita, subentendida nas isotopias, nas redundâncias dos eixos sonoro, cinético e visual, não faltarão exemplos em que ela é escancarada no formato, confessada no texto. Basta pensar na formatação de Cara de bronze, que oscila entre uma prosa mal comportada (sempre entremeada de cantigas e extensas notas de rodapé), texto teatral e roteiro de cinema, com todo o aparato verbotécnico do meio: as indicações do autor mostram visualmente a bande son e a bande image e falam textualmente em “quadros de filmagem”, em “grande plano”,” plano ampliado”, “música-de-fundo”, “câmera lenta”... (ROSA 1978: 71-127). No conto Retábulo de São Nunca, o autor implícito confirma e sublinha a instrução intersemiótica com o comentário em itálico, entre parênteses, no canto superior direito da primeira página: “ (Políptico, excentrado em transparência, do estado de instante de um assombrado amor.)” (ROSA 2001: 291). Em Páramo, outro conto de Estas estórias, recorrem os motivos pictóricos do memento mori e da melancolia, e - em grata confirmação para o leitor temeroso do entusiasmo superinterpretativo - o narrador menciona os caprichos de Goya, comenta os pesadelos de Böcklin. Entre as muitas, inúmeras e bem-vindas “intrusões” das artes visuais na palavra roseana está O burro e o boi no presépio. Os vinte e seis poemas, reunidos pelo autor como “catálogo esparso”, remetem todos a quadros da Natividade, Adoração dos Pastores ou dos Reis. Precedendo os poemas estão os pintores, os nomes dos quadros e os museus onde se encontram. A intersemiose se insinua já no título, no subtítulo, no formato. O leitor é instruído a conjurar pelo menos três diferentes “gêneros” com suas respectivas mídias – o presépio, o catálogo, o quadro pintado. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -5- Primeiramente o presépio doméstico, os iconezinhos que fazem a história enorme, santa, trágica caber na mão de uma criança. Os registros mais longínquos da figuração do presépio, com o estábulo e os animais, são do século IV, talhados em tampas de sarcófagos. Segundo BRATTON (2007:28-29), nessas primeiras cenas da natividade os animais são representados com a dignidade de participantes nos eventos sagrados, e mesmo como tendo um certo senso dessa sacralidade. Mas a devoção ao presépio veio somente com o alvorecer do Renascimento. A lenda diz que São Francisco a instituiu num milagre, quando, tendo instalado diante de si uma pequena lapinha, o menino Jesus lhe sorriu, vivo por um instante (EARLS 1987:63). Quer se aceite ou não o elemento sobrenatural, o fato é que a devoção do presépio, do Deus feito pequenino, acolhido na casa de cada um, representa bem a nova sensibilidade religiosa que São Francisco trouxe à fé católica (EARLS 1987: xii). Num tempo em que se temia um Deus terrível, o Deus que envia peste, fome e guerra, Francisco praticava uma religião mansa, da ternura, desse calor de aconchego que se sente pelo que é pequeno e frágil, como o Jesus menino, e pelo que é singelo e humilde, como os bichos que o rodeiam no presépio. Rosa invoca a experiência desses ícones familiares, que por um lado se fazem próximos, cotidianos no manuseio, na fruição ligeira da decoração, mas por outro fazem irromper num recanto de sala o mistério do sagrado. A classificação do próprio autor, “catálogo esparso”, entre parênteses logo abaixo do título, incita o leitor a buscar os quadros, vê-los à luz dos poemas, como quem se vale da descrição e interpretação portátil que é o catálogo, guia do olhar no momento mesmo da fruição. Diferente da crítica de arte, que integra uma prática onde o texto se investe de valor e prestígio por vezes equiparáveis aos da obra descrita, o catálogo beira a Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -6- transparência – uma vez apontado o percurso da fruição, o texto se apaga ofuscado pela obra, que ele mesmo ajudou a iluminar. Mas, em O burro e o boi no presépio, junto às coordenadas dos quadros não estão os próprios quadros, e sim os poemas. Desse ângulo, não é a contiguidade do texto escrito o que prevalece, mas uma pretensa intercambialidade com o texto visual - o poema não acompanha a obra, mas ocupa o espaço dela. Entra-se aqui no terreno da ekphrasis em uma de suas versões mais tradicionais - como avatar verbal de um texto visual. Dos Eikones de Filóstrato à urna grega de Keats, essa ekphrasis aspira a re-apresentar, pelo esmero da palavra, uma obra originalmente plástica. Mais do que um exercício de retórica, a tentação da tradução pintura-poesia integra um importante embate de valores. O acento sobre a similitude ou a diferença entre poesia e pintura acaba se tingindo de uma posição defensiva, que pugna pela equivalência, ou ofensiva, propondo a superioridade de uma ou outra arte. As doutrinas do ut pictura poiesis, das sister arts e do paragone são as expressões mais conhecidas dessa tensão. Os estudos de Thomas Mitchell distinguem, tanto na aproximação quanto na diferenciação entre as duas artes, uma tendência a privilegiar a palavra em detrimento da pintura. Na equivalência ekfrástica entre poesia e pintura, por exemplo, ele aponta uma certa tendência imperialista da palavra a tratar a imagem como seu outro mudo (MITCHELL 1995). Esse verbo esmagador aparece, segundo ele (MITCHELL1985:110), também na argumentação de Lessing pelo respeito aos limites entre uma e outra: a poesia parece constelar valores como racionalidade, eloquência, infinitude, expressão e masculinidade, enquanto a pintura associa-se a corporeidade, mudez, estreiteza, imitação e feminilidade Os poemas de O burro e o boi no presépio, como as demais marcas intersemióticas na obra roseana, seriam um pobre testemunho dessa pulsão dominadora da palavra, desse agon entre as artes. O Rosa vaqueiro é um livre-estetizador do mundo. Seus bichos encarnam a estese bruta que ele amansa e doma na palavra escrita. Dessa lida amorosa o que se produz nem é “poesia muda” nem “pintura cega”, (Da VINCI In Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -7- LICHTENSTEIN 2005:19), mas uma ekphrasis inclusiva, sinestésica, generosa, pacífica, sem agon nem paragone. “Obscientes testemunhas” – o que viram eles, o que vemos nós “Na história da natividade, todo o contexto parece ter sido construído a partir de um núcleo – as citações – que, do ponto de vista do desenvolvimento, atuou como um germe”. (STENDAHL apud GINZBURG 2001:107). Carlo Ginzburg chega à mesma conclusão que Krister Stendahl quando associa a imagem de culto cristã a um emaranhado de operações textuais. Os livros das Escrituras reenviam-se uns aos outros, reforçando uma fé calcada na palavra, mas também legitimando eventos com o selo da profecia. Essa citação que legitima e unge - marca do discurso dos evangelistas e do próprio Jesus tal como retratado no Evangelhos - incrusta na diegese o que Ginzburg chama de “dimensão ostensiva” (GINZBURG 2001:119). Essa dimensão ostensiva exorta o leitor a absorver-se no momento da narrativa onde se dá a reatualização da visão profética. No discurso ele se anuncia através do “ecce” da Vulgata, introdutor das frases nominais que cravam na atenção do leitor as imagens sagradas – ecce virgo, ecce puer meus, ecce agnus Dei, ecce homo (GINZBURG 2001:115). Numa clave “lessinguiana”, poderíamos dizer que esse é o momento onde a sucessão própria ao verbo é paralisada na estase da contemplação da imagem - a pintura inocula a poesia. Ginzburg observa que esses momentos são justamente o germe das imagens mais caras à iconografia cristã - a virgem, o filho/servo, o cordeiro, o homem das dores encarnam ostensivamente no Evangelho o que fora profetizado por Isaías2. É numa dessas teias de operações textuais que o boi e o burro se integram à iconografia da Natividade. Se os evangelhos canônicos oferecem o cenário e os protagonistas humanos (o presépio, a manjedoura, os pastores em Lucas, a adoração dos 2 “Eis a virgem” – Mat 1, 22-25, Luc 1, 26-35 / Is 7, 14; “Eis meu filho/servo” – Mat 12, 18-21 / Is 42,1; “Eis o Cordeiro” Jo 1,29 / Is 53, 7; “Eis o homem” – Jo 19 / Is 53. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -8- magos em Mateus), o evangelho apócrifo do Pseudo-Mateus, escrito em torno do século VII, introduzirá os circunstantes “menores”, o boi e o burro. O capítulo XIV é inteiramente dedicado a apontar a sacralidade dessa presença: E, dois dias após o nascimento do Senhor, Maria deixou a gruta, entrou num estábulo e depôs o menino numa manjedoura, e o boi e o asno, dobrando os joelhos, o adoraram. Então foram cumpridas as palavras do profeta Isaías: “O boi conheceu seu possuidor, e o asno, o estábulo de seu dono » (Is 1,3), e esses animais, postando-se em torno dele, adoravam-no sem cessar. Então foram cumpridas as palavras do profeta Habacuc: “ Tu te manifestarás no meio de dois animais” (Hab 3,2) E José e Maria, com o menino, permaneceram ali por três dias.3 Aqui uma segunda operação textual interfere. Assim como a “cornuta facies” de Moisés fundou-se na tradução de “raios luminosos” como chifres (SCHRECKENBERG 1992: xv), a presença do boi e do burro apóia-se em outra tradução insólita – o que, em Habacuc 3,2, nos chegou como “no decorrer das idades”, a versão dos Setenta traduziu como “no meio de dois animais”. Pelo arbítrio da palavra que cita, o texto citado ganha nova coerência – o discurso citante isola, extrai, altera e conecta passagens das Escrituras, investindo-as da dimensão ostensiva que se impõe à contemplação e se plasma em imagem de culto. A consolidação e propagação dessa imagem muito deve à síntese hagiográfica efetuada por Jacques de Voragine, que, com a popularidade e circulação de sua Legenda Dourada, ajudou a construir a iconografia da arte cristã renascentista. Na seção sobre a Natividade, ele justifica a presença do burro e do boi pela necessidade bem terrena de uma montaria e um animal que a Sagrada Família pudesse vender na viagem para pagar o censo. Voragine também toma o cuidado de demonstrar como toda a hierarquia da criação - dos anjos às pedras, passando por bichos e homens - reconhece a magnitude do Messias encarnado. 3 PSEUDO MATTHIEU. Livre de la naissance de la bienheureuse Vierge Marie et de l’ enfance du sauveur. http://seigneurjesus.free.fr/evangilepseudomatthieu.htm acesso fev.2009 , tradução nossa. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 -9- Boi e burro são, aqui, mais do que a mobília de uma profecia realizada, sinais da continuidade de uma História sagrada. Os dois animais tornam-se testemunhas da encarnação. As circunstâncias particulares de cada um – do boi, do burro, tanto como da Sagrada Família conduziram-nos juntos ao presépio. Juntos eles protagonizam o mistério da Encarnação, o boi e o burro com o importante papel de embaixadores de todos os demais animais. Que se tenham ajoelhado diante do pequeno Messias, que se tenham recusado a comer do feno onde Ele se reclinou, como aponta Voragine, demonstra a “obsciência” dos simples, dos brutos, que se impõe como uma necessidade, uma “resposta sem pergunta”, “plantada na matéria”, gerada junto com a Criação. Eles estão diante (ob) e cientes do milagre. São testemunhas como nós, que contemplamos. Mas estão também diante de nós, são também observados, sua presença se nos impõe, nos interpela: se eles, pequeninos, reconheceram o milagre, reconhecemo-lo nós? III FRA FILIPPO LIPPI: Natividade – Catedral de Spoleto Obscientes sorrisos - orelhas, chifres, focinhos, claros – fortes como estrelas. Inermes, grandes. Sós com a Família (a ela se incorporam), são os que a hospedam. Alguma coisa cedem à imensa história. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 10 - Orelhas, chifres, focinhos. São eles que sublinham a centralidade dos dois animais. O ponto de intersecção entre o chifre do boi e a orelha do burro coincide com o ponto de intersecção entre o centro do eixo horizontal e a “secção dourada” no eixo vertical. Eles são os anfitriães, são eles que presidem à cena. Neles, no seu volume, na sua cor, na serena ternura que deles emana, demora-se a palavra de Rosa. Mas o poema, como o olhar do contemplador, logo põe-se em movimento de novo, guiado pelas longas caras dos bichos que apontam num sorriso para o menininho, que olha para a mãe, que nas mãos postas nos leva de volta aos bichos. Deles o olhar segue para completar a Família na figura de José. A Família que não acha abrigo entre os homens, recebem-na os “brutos”, os simples, os bichos. Cavalgados, imolados, maltrados, últimos na vida, o boi e o burro são os primeiros a acolher o milagre. Natural que presidam à primeira adoração do Deus que veio para os pobres, os simples, os pequeninos. Esse o paradoxo, o inefável da divindade – o eterno, o infinito cabendo confortável num estábulo, anunciado e protegido no sorriso dos bichos. Porque aqui são eles que iluminam, são eles que irradiam. Os sorrisos dos bichos obstam a que vejamos Deus no primeiro olhar. Eles se nos interpõem, nos apontam e nos avisam – obscientes. Não há, na pintura de Fra Filippo Lippi, a estrela que aponta o Menino. Há os bichos, claros e fortes, como estrelas, Rosa o diz. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 11 - V DOMENICO GHIRLANDAIO: Adoração dos Três Reis. Florença, Spedale degli Innocenti. Serão os pajens da Virgem, ladeiam-na como círios da paz, colunas sem esforço. Taciturnos eremitas do obscuro, se absorvem. Sua franqueza comum equilibra frêmitos e gestos circunstantes Os animais de boa vontade. Agora boi e burro cedem o centro à Virgem e o Menino. Ladeando-a, eles espelham as duas colunas do presépio estilizado, morada digna de receber reis e de acolher Aquele que é o Rei dos reis. Os dois bichos se fazem pajens da Rainha. Em torno a agitação da gente que acorre, que se precipita para a adoração do “soberano”, do “Conselheiro admirável”, do “Príncipe da Paz” (Is 9, 5). Ao fundo, à direita, os anjos advertem os pastores de que um “menino lhes nasceu” (Is 9, 5), enquanto na posição oposta à esquerda, outros meninos morrem em seu lugar, a mando de Herodes. A textualidade da pintura privilegia a simultaneidade. Todos esses eventos podem ser vistos num relance. Enquanto na palavra, cada um seria primeiramente relatado de maneira linear Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 12 - para em seguida ser posto em relação com todos os outros, a pintura oferece de início e a todo momento a visão do todo. Aqui o efeito é de frêmito, de rumor; e, com o Massacre dos Inocentes acontecendo ao fundo, e a face sombria do último profeta, o mártir João Batista, que aponta para o bebezinho, um laivo de desassossego percorre o quadro. Mas a paz virá. O leitor lê, canta talvez, a partitura dos anjos acima – “Glória no mais alto dos céus” – e adivinha o que vem a seguir: “Paz na terra aos homens de boa vontade”. As colunas trazem o olhar à terra – no topo das colunas os anjos, abaixo os bichos. Os anjos cantam a glória dos céus, os bichos, absortos na serenidade de si mesmos, “de seus costumes obscuros”, interpelam em silêncio, taciturnos, falam de uma paz possível na terra. SCHONGAUER: Adoração dos Pastores. Berlim, Deutsches Museum. Em suas caras, em seus olhos, desmede-se a ênfase de uma resposta sem pergunta. Valem entre as pessoas. Velam o Menino. São irreais como não anjos como simples notações do amor - maior que o tempo. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 13 - O percurso de leitura é balizado na redundância da linha diagonal descendente da esquerda para a direita – as vigas de madeira do telhado, o corte da rocha ao fundo do presépio, o vetor que começa na cabeça de José, passa pela de Maria e demora-se no olhar do boi, que se fixa inquietante no contemplador. O caminho alternativo dessa linha aponta da cabeça de Maria para o burro e daí o forte vetor descendente leva do olhar sereno do burro para a desmedida ênfase dos olhos do boi. O burro, que oferece as costas a todo fardo, o boi, animal dos holocaustos – eles conhecem a resposta. Ausentes os anjos, são eles, o boi e o burro, um enclave de eternidade no quadro: prefigurações do sacrifício de amor que se perpetuará no tempo. Absoluto, do centro da cruz entre as duas secções douradas, a vertical e a horizontal, o boi encara o contemplador. E encarando-o, ele o traz para dentro da cena, para valer também entre as pessoas do presépio, para velar o menino. Porque se a cada missa a suprema dor é renovada, em cada presépio o Deusinho frágil ainda está a salvo, acalentado na ternura de cada um. IX MEISTER FRANCKE Adoração do Menino Hamburgo, Kunsthalle. Surgem, assomam da terra – comem e amam mandados de Deus. Mandado de Deus do Céu desceu o Menino na lucididade. Aqui se encontram. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 14 - O poema extrapola a estase da cena, sugere a terra ainda nua, os bichos guardados na terra, o menino no céu. Captam-se os bichos no movimento de emergirem, o menino recém-descido, o raio de luz um rastro da divindade. O Verbo feito carne se anuncia em verbo na pintura – no filactério dos anjos cantando o Glória e de Maria, que se inclina para o filho enquanto adora o Senhor e o DEUS (“Dominus meus, Deus meus”, diz seu filactério). Se os anjos e a Virgem celebram na palavra o céu que o Menino trouxe em si, o boi e o burro no silêncio relembram a terra aonde Deus veio para comer e amar como os homens, como os bichos. Do céu incrustado na carne os bichos conhecem um tanto - sem a mácula da individualidade, são o Boi e o Burro eternas testemunhas do devir dos homens. Deus e bichos – os limites extremos do humano – sobre e infra – aqui se encontram, mandados do deus artifex que é o artista, poeta ou pintor. X BOTTICELLI: Natividade. Londres, National Gallery. “Gaudet asinus et bos...” Boi que atende e começa a esperar, de sua sombra, do espesso que terá de ser iluminado. Ao plano e inefável o Burrinho se curva, numa inocência de forma. Multitudo militiae coelestis. Revoavam através do nada invulneráveis anjos. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 15 - Todos os demais poemas - mesmo se com alguma referência ocasional a eventos passados - se constroem no presente, na eternidade do instante captado na imagem. Nenhum outro devassa o futuro.4 Aqui o uso do futuro reflete as notas distintamente apocalípticas da chamada Natividade Mística de Botticelli. O percurso que o poema sugere para ler o quadro inicia-se no boi e no burro, núcleos para onde converge a centrípeta alegria dos sorrisos, dos abraços que compõem os quatro pontos cardeais da imagem – “Gaudet asinus et bos”. O olhar expectante do boi, emerso do escuro atrás de si, deixa adivinhar o peso dos eventos que o circundam. Embaixo, anjos recebem os ressuscitados, que se erguem das sepulturas, ainda tontos do sono da morte, enquanto pequenos diabos fogem buscando as frestas entre as rochas. A navegação, em ziguezague ascendente, conduz à adoração de Jesus, que no sinal do silêncio, revela-se inefável Verbo (João 1, 1-18; Apoc 19, 13). A ele se curva o burrinho - inefável é o plano que guarda para o Menininho o fardo tão bruto, o cálice que Ele não pode afastar. O dorso inclinado do burrinho leva o contemplador do Advento ao Apocalipse – do presépio de Jesus ao livro de João, lido pelos anjos acima. E ao livro de João se refere a inscrição em grego na borda superior do quadro. Pintando o “illud tempus”5 da Natividade e do Apocalipse, Botticelli remete ao medo e à esperança que lhe inspiram os eventos circunscritos em seu espaço e tempo: “[...] a tribulação na Itália, no meio tempo após o tempo profetizado no 11 de João e a segunda desgraça [Apoc 11, 14] do Apocalipse, quando o demônio esteve solto na terra por três anos e meio” (EARLS 1987: 203). A alegria pelo Messias já vindo funde-se em alegria prospectiva, esperança de Seu retorno na Batalha Final profetizada. O Deus Filho que é anterior a si opera a conjunção dos tempos – Alfa e Ômega, ele iluminou e iluminará o espesso, na Gênese como no Apocalipse. Findando, o poema funde passado, presente e futuro. Levado em seu acorde final ao topo do quadro, ele suspende os anjos no pretérito imperfeito, que encerra uma ação em curso. O imperfeito, por excelência 4 No poema V, associado à Adoração dos Reis de Ghirlandaio, o “Serão os pajens da Virgem” sugere não o futuro, mas a modalização em dever ser, poder ser. 5 Illud tempus como o evento ocorrido na eternidade do mito e resgatado para a temporalidade através do rito. Ver ELIADE 1963. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 16 - o tempo que constitui background para a diegese, põe também o fruidor a esperar: o que se deu quando “revoavam através do nada invulneráveis anjos”? A Gênese comandada pelo Deus Pai? o Advento do Deus Filho? o Fim, na vitória do SER sobre o diabo? Entre o princípio e o fim dos tempos, na ternura jubilosa da Natividade Ele é aquele que É (Êx 3, 14) - Deus em latência, singelo soberano entre bichos e homens. XX HIERONYMUS BOSCH: Adoração dos Magos. Museu de Bruxelas. Cabem definitivos. Só eles podem de ronda e todo aproximar-se. São os intérpretes dos humanos em volta. Jesus ainda lhes pertence. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 17 - A de Bruxelas é uma das duas cópias conhecidas de um original que se perdeu. A composição cerrada, a proximidade entre os personagens é o que domina o quadro e o poema (“Cabem, definitivos”). Essa iminência do toque, que na Natividade é ternura e aconchego, remete - especialmente na cópia de Colônia, reproduzida ao lado - à avidez agressiva que ameaça o Jesus da “Coroação de espinhos”. Quer seja ou não deliberada em Bosch, a associação se faz relevante no contexto dos gêneros que figuram a infância do Cristo - a prefiguração do sacrifício é aí comum: seja nos atributos do Menino (uma romã aberta, anunciando as dores; um andador de madeira, sugerindo as quedas sob a cruz ); no cenário (o crucifixo decorando o próprio presépio, como na Adoração dos Reis de Rogier van der Weyden, número IV dos poemas roseanos do presépio) ou na composição, que pode evocar o Ecce homo (o Cristo apresentado ao mundo, como o Rei esperado ou impostor a executar), a Pietá (a Virgem que acalenta o Filho, Menino ou morto), ou o Cristo ao alcance das mãos dos homens, que o buscam para adorar ou atormentar, como aqui. O Jesus da Coroação de Bosch, na incomunicável solidão do sacrifício, ilhado entre seus algozes, a eles pertence. Inerme, ele encara o contemplador impotente, um momento antes de ter a fronte rompida pelos espinhos, as vestes rasgadas na mão pronta do homem em vermelho e preto, contraparte maléfica da mão hesitante de José na Adoração. Mas aqui, no presépio de Bosch, as mãos, os olhos em volta são mansos. E – é o que talvez diga o poema - o segredo, o fardo da eternidade, o Menino o divide com os bichos, eles os mais chegados, os mais singelos, os que, privados do verbo são capazes de compreender o Verbo e traduzi-lo em ternura. O burrinho, o boizinho são o acalanto. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 18 - Longe está ainda o homem mau “que vem pegar”, o Menino pode dormir seu soninho sossegado. XXIII ALBRECHT DUERER Adoração dos Reis Florença, Uffizi. Os que por oculta ciência de tudo souberam. Seus mágicos presentes, o Menino recebe-os. O colo. A mãe. O Universo. Atrás, porém, os dois – um Burro, um Boi – grimaçante e aturdido, mugínquo e mudo. Inevitáveis. Íntimos das sombras. Insubstituíveis. Simétricos no quadro – os mais humildes e os mais soberbos súditos do Senhor bichos e reis se fundem no poema, unidos nos presentes, na oculta ciência. O que os três magos aprenderam nas Estrelas, os dois animais adivinharam na carne, no “antigo amor, plantado na matéria” (ROSA 2001: 132). À frente, os três reis oferecem o ouro, o incenso e Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 19 - a mirra, a trina natureza do Messias – realeza, divindade, mortalidade. “Atrás, porém, os dois” entregam ao Menino um Infinito, um Universo que em vez de se expandir no imenso, circunscreve-se nas dobras de um Colo cósmico, um Universo plasmado em Mãe. Enquanto contemplam, ruminam - um aturdido, o outro absorto – o segredo sublime que as sombras lhes confiaram. Apresentado o Cristo agora à reverência dos homens – Ecce puer - dia virá em que será apresentado em holocausto à turba furiosa – Ecce homo. E a nós, o que se nos apresenta? O que vemos? A palavra de Rosa conduz o olhar aos pequeninos, aos invisíveis, descartáveis animais. E no poema, e no quadro transfigurado pelo poema, tudo o mais passa a gravitar em torno deles, boi e burro. Essa alquimia do olhar quem opera é a obra, é a arte, e é ela que se nos impõe. A mosquinha em trompe-l’oeil somente ecoa o que dizem as molduras, os títulos, os museus – Ecce opera. ...E também o diz o poema, ekphrasis que é, confessadamente obra sobre obra. Mas o poema e a mosca encerram ainda a astúcia, o ardil que na arte adia sempre a palavra final. Virando a página, percorrendo o livro, procurando os quadros, surpreendendo a mosquinha sobre a tela, o contemplador lembra que de uma tela se trata, que “Isto não é O presépio”. Mas a cada poema, a cada quadro, ativa-se por um instante o curto circuito em que o espaço-tempo da obra se confunde com o espaço-tempo do contemplador. A Natividade de cada quadro, captada no poema, retém o contemplador no punctum, na estase de um presente que se eterniza, convida-o a ser circunstante do Milagre. E de circunstante a protagonista – porque é um pequeno milagre o que se dá toda vez que se espanta a mosquinha. O burro, o boi e a mosca Na obra de Guimarães Rosa bichos e quadros são mais do que cenário, mais do que coadjuvantes, mais do que metáforas. Não apontam para fora de si mesmos - os bichos não Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 20 - são submissos servidores das alegorias humanas, os quadros não servem para dourar a palavra numa ekphrasis obediente a um “imperialismo” do verbo. Os bichos de Rosa recobrem todo o não-humano semovente – do zoológico ao curral, do mosquitinho à onça, da cascavel ao ratinho que ela come. E, longe de se encolherem no segundo termo das comparações com o humano, eles crescem, querem-se protagonistas, debatem-se tanto quanto o homem na comédia agridoce de viver em indivíduo e sobreviver em espécie. É o que se constata em O burro e o boi no presépio. Na iconografia tradicional, com seu dicionário de imagens, boi e burro são cifras para diversos significados: a reverência da criação pela divindade, a prefiguração do fardo (burro) e do sacrifício (boi) do Cristo, o reconhecimento dos gentios (burro zurrando) e a indiferença dos judeus (boi mudo e longínquo) pela vinda do Messias. Uma vez decifrados no quadro, invisibilizam-se quase, e o contemplador passa a outra coisa, seja à contemplação reverente da imagem de culto – Ecce puer – seja à fruição advertida do amante da arte. Mas na palavra de Rosa, os bichos, os brutos, os simples, os meros coadjuvantes, obstam à contemplação convencional da Natividade. Por vinte e seis vezes reencenada, a constelação de Deus, reis, pastores e bichos traz os últimos ao lugar dos primeiros. Obstam entre nós e aquilo que nossos olhos procuram, a representação do Deus feito homem, a Eternidade presa no tempo. Eles mesmos têm parte no Mistério, são íntimos do Segredo: neles “se retrai obscuro o poder da eternidade” (ROSA 2001:138). Essa ciência obscura, estribilho que se entreouve em todos os poemas do presépio de Guimarães Rosa, é a opaca lucidez cravada na carne dos bichos, mas é também aquela “obsciência” que a arte planta na própria matéria da arte. A arte obsta à percepção convencional, rejeita a transparência, refrata e distorce. Essa distorção aponta para si mesma, quer-se vista por sobre o que é refratado e distorcido – é na “obsciência” que ela é percebida. Os quadros de Rosa não cabem no conceito mais estreito de ekphrasis como “representação verbal da representação visual” (MITCHELL 1995: 159). Eles não buscam decalcar uma obra plástica em palavra, fazê-las intercambiáveis, muito menos esmagar a imagem sob o peso da palavra. Eles remetem a uma ekphrasis ampla, inclusiva, que acolhe Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 21 - mesmo a alusão mais sutil (YACOBI In LAGEROTH: 1997), o enclave mais discreto da obra pictural no texto escrito. Na verdade, para dar conta da intersemiose roseana, o melhor seria, junto com Peter Wagner (1996:15), adotar a ideia de iconotexto: “o uso de uma imagem (como referência ou alusão, explícita ou implícita) em um texto ou viceversa”. A alusão ou referência a textos na pintura como a imagens na palavra seriam a importação, sutil ou escancarada, não de uma arte outra, irmã ou rival, mas de diversos gêneros, artísticos ou não, com suas práticas de fruição (práticas elas mesmas multimodais, como o catálogo, por exemplo). Nessa perspectiva, a ekphrasis, ao invés de apagar-se, na busca do impossível decalque verbal da imagem, ostenta a própria diferença – afinal, é a brecha que há entre a pragmática do gênero, a especificidade do meio, a recepção da obra citada e da citante que atualiza, no jogo da recontextualização, seu sentido e encanto. Pintura e poesia têm se iluminado mutuamente desde sempre – de maneira implícita, como através da iconografia, ou explícita, como nas alusões ou enclaves de texto em imagem e de imagem em texto. Foi o que vimos, com os poemas de Rosa, mas também dentro dos próprios quadros que ele invoca. As imagens se apóiam em redes textuais cuja circulação (nos livros, mas também nos sermões, nos ritos religiosos) acaba por se tornar iconografia. Além disso, não somente encontram-se textos engastados nas imagens (como nos filactérios de Meister Francke e na inscrição de Botticelli), mas a própria prática da leitura é figurada (anjo com o livro aberto na Natividade Mística). A intimidade, o comércio espontâneo entre palavra e imagem é tão comum que acaba nos escapando, tornando-se transparência, como quando deciframos cada elemento de um quadro através de uma iconografia internalizada. Brincadeiras plástico-verbais como as de Brueghel e Bosch resgatam da invisibilidade esse elo. Se os “Provérbios holandeses” de Brueghel são tão fascinantes porque reinvestem os provérbios da força imagética que foram perdendo, os quadros de Bosch têm uma relação deliberada mas menos óbvia com a linguagem. A profusão de frutos no Jardim das Delícias, por exemplo, tem um efeito bizarro para o contemplador contemporâneo justamente porque o elo com a sexualidade, que era corrente nas canções, provérbios e obscenidades do tempo de Bosch (BOSING 1991:53), torna-se opaco, é somente pressentido. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 22 - Guimarães Rosa, como Bosch e Brueghel, tem agudo sentimento da fertilidade dessa cooperação entre palavra e imagem. Sua obra é semeada de quadros esperando serem resgatados da transparência, como o boi e o burro no presépio, como a tela que a mosquinha denuncia. Lista das ilustrações O presépio em Greccio, Giotto, Basílica de S. Francisco, Assis.........................................5 A Coroação de Espinhos, Bosch, London, National Gallery..............................................11 Adoração do Menino, Bosch, Köln, Wallraf-Richartz Museum.........................................11 Referências ARNHEIM R. Art and Visual Perception: A Psychology of the Creative Eye. University of California Press, 2004. BÍBLIA SAGRADA, São Paulo: Ave Maria, 2007 BOSING, W. Hieronymus Bosch. Köln: Taschen, 1991 BRATTON, S. P. Environmental values in Christian art. New York : SUNY Press, 2007. CIANCHETTA, R. Asís: 180 laminas en colores. Narni-Terni : Plurigraf, 1978. CLÜVER, C. 1997. Ekphrasis reconsidered. In: LAGEROTH, U-B. et al. (eds.). Interart Poetics: Essays on the Interrelations of the Arts and Media. Amsterdam and Atlanta: Rodopi EARLS, I. Renaissance art: a topical dictionary. New York: Greenwood Press, 1987. ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1963. FERREIRA, E. A mensagem e a imagem: Literatura e pintura no modernismo português. Recife: Editora Universitária, 2007. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 23 - GINZBURG, C. Ecce: Sobre as raízes culturais da imagem de culto cristã. In: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 GROULIER, J-F. Descrição e interpretação. In: A pintura: textos essenciais - Vol. 8. Descrição e interpretação. São Paulo: Ed. 34, 2005. KLAUCK, J.&McNEIL, B. Apocryphal gospels: an introduction. London/New York: Continuum International Publishing Group, 2003. LICHTENSTEIN, J. (org.) A pintura. - Vol. 7: O paralelo das artes. São Paulo: Ed.34 MANES, C. Nature and silence. In: GLOTFELTY, C. & FROMM, H. The Ecocriticism Reader: Landmarks in Literary Ecology. Athens and London: The University of Georgia Press, 1996. MITCHELL W. J. T. Iconology: Image, text, ideology. Chicago and London: University of Chicago Press, 1986 ______Picture Theory: Essays on Verbal and Visual Representation Chicago: University of Chicago Press, 1995. PSEUDO MATTHIEU. Livre de la naissance de la bienheureuse Vierge Marie et de l’ enfance du sauveur. http://seigneurjesus.free.fr/evangilepseudomatthieu.htm acesso fev.2009 RONECKER, J-P. O simbolismo animal. São Paulo: Paulus, 1997. ROSA, J.G. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo de Faria (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1983. ROSA, J.G. O burro e o boi no presépio. In: Ave palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 198-210. ______ O burro e o boi no presépio/ The ass and the ox in the nativity scene. Rio de Janeiro: Salamandra, 1983 ______ Cara de bronze In: No Urubùquaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978. ______ De stella et adventu magorum. In : Ave palavra. Rio de Janeiro : Nova fronteira, 1985 ______ Páramo. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001 ______ Pé-duro, chapéu-de-couro. In: Ave palavra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. ______ Retábulo de São Nunca. In: Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 24 - ROSA, J.G. &LORENZ, G.W. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: COUTINHO, Eduardo de Faria (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1983 ROUDAUT, J. Une ombre au tableau: littérature et peinture. Rennes : Editions Ubacs, 1988. SCHRECKENBERG, H., SCHUBERT, K., CATHEY, P.A. Jewish Historiography and Iconography in Early and Medieval Christianity, Assen and Minneapolis: Van Gorcum, 1992. VAUCHEZ, A., DOBSON, R. B., WALFORD, A., LAPIDGE, M. Encyclopedia of the Middle Ages. Chicago: Fitzroy Dearborn, 2000 VORAGINE, J. La légende dorée. http://www.abbaye-saint-benoit.ch/voragine/index.htm© Numérisation Abbaye Saint Benoît de Port-Valais en la fête de la chaire de Saint Pierre 22 février 2004 acesso fev. 2009 WAGNER, P. Introduction. Ekphrasis, iconotexts and intermediality: the state(s) of the art(s). In: WAGNER, P. (ed.) Icons, Texts, Iconotexts: Essays on Ekphrasis and Intermediality. Berlin and New York, 1996. Eutomia – Ano II, Nº 2 – Dezembro de 2009 - 25 -