Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
Literatura Espanhola Volume IV Rita de Cássia Miranda Diogo Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque Dilma Alexandre Figueiredo Elda Firmo Braga (Organizadoras) Diretoria da Associação Brasileira de Hispanistas - Gestão 2004-2006 Presidente: Silvia Inês Cárcamo de Arcuri (UFRJ) Vice-presidente: Magnólia Brasil do Nascimento (UFF) Primeira secretária: Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva (UFRJ) Segunda secretária: Eva Ucy Soto (Unesp) Primeiro tesoureiro: Ary Pimentel (UFRJ) Segunda secretária: Maria do Carmo Cardoso da Costa (UFRJ) Comissão Organizadora: Presidente: Maria del Carmen F. González Daher (UERJ) Vice-presidente: Vera Lucia de Albuquerque Sant’ Anna (UERJ) Secretária Executiva: Maria del Carmen Corrales (UERJ) Ana Cristina dos Santos (UERJ, UVA) Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque (UERJ) Angela Marina Chaves Ferreira (UERJ) Cristina de Souza Vergnano Junger (UERJ) Luciana Maria Almeida de Freitas (UFF) Talita de Assis Barreto (UERJ, PUC-Rio, Faetec) Rita de Cássia Miranda Diogo (UERJ) Comissão de Apoio: Dayala Paiva de Medeiros Vargens (UERJ, CPII) Dilma Alexandre Figueiredo (SEE-RJ) Elda Firmo Braga (SEE-RJ) Flávia Augusto da Silva Severino (Proatec-UERJ) Maria Cristina Giorgi (CEFET-Rio) Conselho Consultivo: Ary Pimentel (UFRJ) Cláudia Heloisa I.Luna F. da Silva (UFRJ) Lívia Reis (UFF) Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF) Marcia Paraquett (UFF) Maria do Carmo Cardoso (UFRJ) Silvia Cárcamo Arcuri (UFRJ – Presidente da ABH) UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE HISPANISTAS CNPq Literatura Espanhola Volume IV Rita de Cássia Miranda Diogo Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque Dilma Alexandre Figueiredo Elda Firmo Braga (Organizadoras) Apoio UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Editoração e criação MODO | Design Sumário APRESENTAÇÃO ..............................................................................................10 Rita de Cássia Miranda Diogo Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque Dilma Alexandre Figueiredo Elda Firmo Braga Conferência ......................................................................................................13 Relato y construcción del mundo .................................................................14 Joan Forn (escritor y traductor) Barroco e Renascimento – O Século de Ouro ...........................................31 Dorotea, heroína cervantina de la prolepsis ...............................................32 A. Robert Lauer (The University of Oklahoma) Imago mortis e as Coplas de Jorge Manrique ............................................38 Ana Paula Silva (Universidade de São Paulo) A caracterização física de Dom Quixote e Sancho Pança .......................44 Célia Navarro Flores (Universidade Federal de Sergipe) Dom Quixote de La Mancha: da leitura como perdição à leitura como cura ....................................................................................................................50 Celia Regina de Barros Mattos (UFRJ) Espaço e magia em El Mágico Prodigioso, de Calderón de la Barca........56 Danielle Velloso Lemos Schwarz (UFF) Aspectos de um mito judaico em La Celestina ...........................................61 Eleni Nogueira dos Santos (USP) O discreto em No hay burlas con el amor de Calderón de la Barca .......67 Eliane Maria Thiengo Demoraes (UCP/UFRJ) Metamorfosis: ciclos de vida en el Quijote .................................................74 Esteban Reyes Celedón (UFRJ) El cautiverio de Argel en el teatro de Cervantes: acción social, religión y alegoría ..............................................................................................................79 Heloísa Pezza Cintrão (USP) Maneirismo de Don Quijote em Dulcinea ....................................................86 Josinete Pereira dos Santos (UFF) Prólogo e Autor Anônimo no Lazarillo de Tormes ......................................92 Katia Aparecida da Silva Oliveira (USP) Juanete: ¿un gracioso sin gracia? Reflexiones sobre la figura del donaire en la tragedia calderoniana. ..........................................................................99 Liège Rinaldi (Universidad de Navarra) O discurso misógino em Celestina, de Fernando de Rojas .......................106 Lilian dos Santos Silva (USP) Mascarillas, antifaces y máscaras en la obra cervantina .......................111 María Luisa Lobato (Universidad de Burgos) EL Licenciado Vidriera de Miguel de Cervantes: agudeza e melancolia .....118 Maria Augusta da Costa Vieira (USP) El dinero en Don Quijote de la Mancha ......................................................124 María Cristina Lagreca de Olio (Universidade Presbiteriana Mackenzie) Las voces del Cántico de fray Juan de la Cruz ...........................................130 Mario M. González (USP) Diálogos espejados: La historia (interpolada) de Marcela y Grisóstomo........137 Marta Pérez Rodríguez (USP/CNPq) A autorização da escrita feminina no prólogo de Maria de Zayas y Sotomayor .................................................................................................................144 Rosangela Schardong (PPG – USP) Don Juan: alienación, narcisismo y erotismo .............................................151 Tatiana Francini Girão Barroso (Universidade Ibirapuera - SP) Oitocentismo ....................................................................................................157 Consciência de si em um personagem de Galdós .....................................158 Alexandre Fiori (USP) A representação da mulher no relato do século XIX em três narrativas galdosianas: Doña Perfecta, Tristana e Marianela....................................164 Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES /CESV) As figuras da leitura e do leitor em La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín” ......................................................................................................................170 Isabela Roque Loureiro (UFRJ) Final de Século, Novecentismo e Vanguarda ............................................177 Han pasado los bárbaros: a violência de Estado sob a perspectiva irônica dos anarquistas ................................................................................................178 Ivan Rodrigues Martin (PUC/SP) Valle-Inclán, Meyerhold e o teatro antimimético .......................................184 Joyce Rodrigues Ferraz (UFAL) Bernarda: “Tirana de todos los que la rodean...” Gênero e ação dramática na Casa de Lorca .............................................................................................190 Leonardo Nolasco-Silva (Universidade Federal Fluminense) Alberti, 1917.......................................................................................................197 Marcelo Maciel Cerigioli (USP) O logogrífico em El encaje roto de Pardo Bazán ........................................202 Maria Mirtis Caser (UFES) Acerca de la recepción del surrealismo .....................................................207 Ruben Daniel Méndez Castiglioni ( UFRGS) Escritas do exílio republicano espanhol. .....................................................214 Valeria De Marco (USP) Pós-Guerra e a Contemporâneidade ...........................................................221 A casa da Rua Aribau: metonímias da violência do estado no romance Nada de Carmen Laforet.................................................................................222 Ana Paula de Souza (UFMT) Imagens brasileiras na memória de Francisco Ayala. ..............................229 Antonio R. Esteves (UNESP/Assis) Marcas de Cervantes em Gonzalo Torrente Ballester ..............................236 Elaine de Almeida (UFRJ) El mundo poético de José Hierro y su clara visión del mundo ................242 Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES / CESV) Mimesis en Cinco horas con Mario, de Miguel Delibes ...........................249 Fernanda Deah Chichorro (UFPR) A questão do espaço em “Cinco horas con Mario” ..................................255 Izabel Sandra de Lima (USP) A força da palavra e as interlocuções interditas nos contextos opressores: uma leitura de La lengua de las mariposas, de Manuel Rivas .........262 Jorge Paulo de Oliveira Neres (UFF/UNESA) Memória e ficção em Retahílas e El Cuarto de Atrás de Carmen Martín Gaite ...................................................................................................................268 Luzimeire Lima da Silva (UNISA) Violência e memória – tambores da guerra civil espanhola no campo e na província. ...........................................................................................................274 Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF) Nada. La Novela de Carmen Laforet. Andréa (personaje, narrador, Autor) ................................................................................................................280 Manuela Pazos Conde (UNIVERCIDADE) O testemunho dos sentidos da precariedade na obra La escritura o la vida de Jorge Semprún ...........................................................................................286 Marcia Romero Marçal (USP) Luis Martín-Santos e a violência do silêncio ..............................................292 Margareth Santos (PUC) Palavra encantada em La lengua de las mariposas, de Manuel Rivas. .298 Michele Fonseca de Arruda (UFF) Enrique Vila-Matas: três narrativas de limiar .............................................303 Rita Lenira de Freitas Bittencourt (UFRGS) Modulaciones de la memoria en la ficción de J. Llamazares ..................308 Silvia Cárcamo (UFRJ) O prolongamento da noite em As mil e uma noites e El lápiz del carpintero .........................................................................................................................315 Susana Álvarez Martinez (UNIPLI/ Instituto / Lussac-Niterói) Estudos Hispânicos .........................................................................................321 D. João II, o Príncipe Perfeito, Espelho de Reis .........................................322 Andréa Conceição Braga Antunes (UFF) Plínio Barreto nos primórdios da crítica sobre Dom Quixote no Brasil ........327 André da Costa Cabral (USP) Do paraíso ao inferno: o mito do demônio no filme La lengua de las mariposas ..................................................................................................................333 Angela dos Santos (FATEC/ ZL) Barcelona en el imaginario literario .............................................................340 Carmen Izquierdo Benítez (ICRJ) y Joan Maresma Duran (ICRJ) Melancolia e crise do sujeito na modernidade (Estudo de La voluntad e Triste fim de Policarpo Quaresma)................................................................347 Cristina Bongestab (UFRJ) Un irlandés en la corte de los borbones. El ministro de estado d. Ricardo Wall ....................................................................................................................354 Diego Téllez Alarcia (Universidad de La Rioja) Tras las huellas de la Leyenda Negra: la imagen de lo hispano en La Misión de Roland Joffé ...........................................................................................360 Diego Téllez Alarcia (Universidad de La Rioja) Julio Camba, jornalismo e criatividade ........................................................366 Edna Parra Candido (UFRJ) Entre crónicas y fotos, las imágenes de Rio y Madrid en el siglo XIX ....373 Elisa Amorim Vieira (UFMG) A fenomenologia como suporte filosófico da construção do discurso da Revista de Occidente ......................................................................................380 Flavia Ferreira dos Santos (PG/UFRJ) La recuperación de la memoria histórica peninsular y de la colonia a través del teatro de Tirso de Molina y de la crónica de Guaman Poma de Ayala. .................................................................................................................385 Helena Dias dos Santos Lima (UFF) Apreciación literaria en la relectura: características del texto y expectativas del lector ....................................................................................................389 José M. Díaz y Mabel Urrutia. (Universidad de La Laguna/Islas Canarias, España) A representação da heroicidade de D. Fadrique de Toledo na produção teatral castelhana e na épica hispano-americana no séc. XVII .............396 Karla Santa Bárbara Santos (UFG) e Antón Corbacho Quintela (UFG) La España del 36 en la mirada de un cronista brasileño ...........................402 Mª Belén García Llamas (ICRJ) Cavaleiros e jagunços, espadas e carabinas em EL CANTAR DE MÍO CID E SERRA DOS PILÕES: uma leitura estilística ................................................409 Maria de Fátima Rocha Medina (Centro Universitário Luterano de Palmas /Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Paraíso ) “Passai, lembranças”: sobre a poesia de Guilherme de Almeida e a essência galego-luso-brasileira ........................................................................416 Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela) Castela e os castelhanos como alvo de troça no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (Lisboa, 1516) .................................................................423 Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela) Ecos de España en la São Paulo de 1900 ....................................................430 María de la Concepción Piñero Valverde (USP) Monumento a García Lorca, de Flávio de Carvalho: narrativas de la emigración ...............................................................................................................435 María Dolores Aybar Ramírez (UNESP) María Zambrano, el hombre y el sentimiento de lo divino ........................442 Mônica da Silva Boia (UFRJ) A literatura brasileira na Espanha: a Revista de Cultura Brasileña (19621970) ...................................................................................................................448 Ricardo Souza de Carvalho (GEBE (Grupo de Estudos Brasil-Espanha: relações literárias e culturais) / USP) El proyecto ibérico valeriano en Genio y Figura. .......................................452 Rodrigo Vasconcelos Machado (UFPR) Dos problemas de la crítica española para el establecimiento del Canon .................................................................................................................459 Romilda Mochiuti (USP/ UNICAMP/ PUC-SP) Los molinos de viento y Monteiro Lobato: La lectura en Dom Quixote das crianças de Monteiro Lobato y Don Quijote de Cervantes. ......................466 Rosa Maria Oliveira Justo (USP) Tecendo a imagem das mulheres nos tapetes espanhóis: Uma história de resistência e de identidade ............................................................................472 Suely Reis Pinheiro A escrita da Guerra Civil Espanhola por George Orwell ...........................478 Vera Maria Chalmers (DTL/ IEL/ UNICAMP) Estudos Tradutológicos ..................................................................................485 A Celestina: uma tradução de Eudinyr Fraga para os palcos brasileiros. ...............................................................................................486 Dulciane Torres Lins (USP) Un novohispano del siglo XVIII traduce y comenta a Boileau .................491 FELIPE REYES PALACIOS( Universidad Nacional Autónoma de México) Dos traducciones del Beowulf ......................................................................499 John O´Kuinghttons Rodríguez (Instituto Cervantes) Tradução dos provérbios de Sancho Pança ...............................................506 Silvia Cobelo (USP) APRESENTAÇÃO O presente livro reúne as conferências e os trabalhos selecionados dentro da linha dos Estudos literários, culturais e históricos, que foram apresentados por ocasião da realização do 4º Congresso Brasileiro de Hispanistas, ocorrido de 3 a 6 de setembro de 2006, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em sua quarta edição, o presente congresso de âmbito internacional, promovido pela Associação Brasileira de Hispanistas desde 2000, foi realizado pelo Programa de Pós-graduação em Letras e pelo Setor de Espanhol da UERJ, e congregou pesquisadores e pesquisadores em formação (Mestrandos e Doutorandos) das mais diversas áreas do Hispanismo. O evento teve como principais objetivos a promoção de intercâmbios entre pesquisas vinculadas a programas de pós-graduação stricto sensu; a troca de experiências entre pesquisadores seniores e juniores, como forma de garantir o diálogo entre linhas e programas de pesquisa; assim como a busca de uma maior aproximação entre diferentes tendências teóricas na área do Hispanismo no Brasil, tanto no que concerne aos estudos literários, quanto às diferentes linguagens e ao ensino de línguas. Esta obra pretende oferecer ao leitor uma mostra das atuais pesquisas sobre os estudos literários, culturais e históricos no âmbito do universo hispânico, desenvolvidas junto a esses Programas de Pós-graduação. Em seu conjunto, permite-nos contemplar, a partir de diferentes arcabouços conceituais, a imensa gama de problemas teóricos, metodológicos e de análise que vem se constituindo como objetos de interesse na área. Dedicado à literatura espanhola, o presente volume é fruto da valiosa contribuição de inúmeros pesquisadores que buscam entender a alma de um povo tão diverso no pensar e no fazer a sua própria cultura. Gerada a partir de diferentes povos, diferentes línguas, diferentes substratos culturais, Espanha continua a nos surpreender, seja na multiplicidade e riqueza de sua literatura, no olhar crítico de suas produções cinematográficas, na vivacidade de seu teatro, enfim, na complexidade de sua história, construída sobre a espada guerreira do cavaleiro, mas também sobre a pena sensível do poeta. Entendemos assim, que os diferentes trabalhos aqui publicados representam um esforço conjunto por refletir este complexo de vida e arte, realidade e ficção, que conforma a produção cultural espanhola. A fim de congregá-los, os textos selecionados para o presente volume estão ordenados cronologicamente, oferecendo-nos uma trajetória histórica da literatura espanhola pautada na visão crítica e atualizada de nossos hispanistas. Abrindo este volume, o escritor e tradutor argentino Joan Forn nos brinda com a sua conferência intitulada “Relato y construción del mundo”. Os demais trabalhos encontram-se divididos segundo o período literário ao qual fazem referência, quais sejam: 1.RENASCIMENTO E BARROCO - O SÉCULO DE OURO; 2. OITOCENTISMO; 3. FIM DE SÉCULO, NOVECENTISMO E VANGUARDAS; 4. PÓS-GUERRA E CONTEMPORÂNEIDADE; 5. ESTUDOS HISPÂNICOS, e por fim, uma última parte dedicada aos 6. ESTUDOS TRADUTOLÓGICOS. Entre os diferentes períodos da literatura espanhola, podemos observar a vigência das obras pertencentes ao SÉCULO DE OURO como objeto de estudo, especialmente no que se refere a DON QUIJOTE DE LA MANCHA, de Miguel de Cervantes, cuja temática, linguagem e construção narrativa continuam a nos intrigar e, acima de tudo, a nos surpreender. PÓSGUERRA E A CONTEMPORÂNEIDADE foi outro dos períodos que devemos destacar como um dos mais presentes entre os textos aqui publicados. Estes, por sua vez, demonstram que as criações de Carmen Laforet, ao lado de Manuel Rivas e Miguel Delibes, representam um mundo ficcional, cujas imagens e metáforas permanecem abertas a novas interpretações e leituras. Como vemos, a guerra civil continua marcando presença nesta literatura, revelando a dimensão que a mesma ganhou na história e na vida do homem espanhol. Quanto à parte intitulada ESTUDOS HISPÂNICOS, dedica-se aos estudos de literatura comparada, bem como às pesquisas orientadas para outros tipos de linguagem que não a literária, quais sejam, a cinematográfica, a arte dramática e a fotografia, bem como textos de caráter histórico, filosófico, ou voltados para a teoria da literatura. Não podemos deixar de destacar os inúmeros diálogos entre Espanha e Brasil, seja no âmbito literário, histórico ou de crítica literária, evidenciando o crescimento e a consolidação que as pesquisas voltadas para a área de estudos hispânicos em perspectiva comparada vêm apresentando nos últimos anos. Contribuindo para o enriquecimento e o aprofundamento dos estudos voltados para área de tradução literária, fechamos o presente volume com a parte intitulada ESTUDOS TRADUTOLÓGICOS, nos quais a prática tradutória nos é apresentada em suas diferentes vertentes, seja ela interlingüística ou semiótica. Esperamos, pois, que o nosso leitor encontre aqui uma valiosa fonte de pesquisa, a partir da qual possa produzir novas teorias e perspectivas acerca da cultura espanhola, em sua literatura e outras artes. Rita de Cássia Miranda Diogo Ana Elizabeth Dreon de Albuquerque Dilma Alexandre Figueiredo Elda Firmo Braga Conferência Hispanismo 2 0 0 6 Relato y construcción del mundo Joan Forn (escritor y traductor) Boris Pilniak era uno de los jóvenes dorados de la literatura soviética desde la aparición, en 1922, de El año desnudo, una novela que relataba con extraordinaria vividez y modernidad de recursos el efecto de la Revolución de Octubre en una pequeña ciudad de la estepa, durante los doce meses inaugurales del bolchevismo. Como sus colegas y amigos Isaak Babel y Vladimir Maiacovski, Pilniak sufrió durante los años siguientes el derrumbe de sus sueños: con el advenimiento de Stalin fue a dar con sus huesos en la Lubljanka, donde fue ejecutado en algún momento entre 1931 y 1940. El comienzo de su caída en desgracia había tenido lugar en 1926 cuando, a la vuelta de un viaje por Japón, dio a imprenta el más perfecto de sus libros, Caoba, un conjunto de cinco relatos. Ese libro le ganó instantáneamente la prohibición de publicar, a causa de su “desviacionismo ideológico”. El primero de los relatos de ese libro trataba el tema de las relaciones ruso-japonesas, con un atrevimiento sólo comparable a su destreza estilística. Se llama “Un cuento sobre cómo se escriben los cuentos” y, a la manera de las matrioshkas rusas, contiene una historia dentro de otra dentro de otra más, la última de las cuales anticipa en forma inequívoca el fin de Pilniak. Durante su viaje, en el consulado soviético de una ciudad portuaria japonesa, Pilniak descubre el legajo de una ciudadana rusa que pide ser repatriada. Sofia Vassilievna, la dama en cuestión, declara que conoció en Vladivostok, antes de la revolución, a un oficial japonés que revistaba en el ejército de ocupación que sería luego repelido por las fuerzas bolcheviques. Antes de la retirada, y aun sabiendo de la prohibición de casarse con extranjeras, el oficial Tagaki (amante confeso de la literatura rusa) le pidió a Sofia que se reuniera con él en Japón y le dejó dinero para costear el viaje. Tagaki era un admirador tan ferviente de la literatura rusa que aprovechó su tiempo en Vladivostok para aprender el idioma y así poder recitar en voz alta, a solas en su habitación, los fragmentos que más amaba de esas novelas. Así fue como Sofía reparó en él: al oírlo cuando pasaba bajo su ventana. Sofia logra llegar al Japón. Al desembarcar es interrogada por las autoridades y confiesa que el motivo de su viaje es unirse a su prometido. Tagaki es inmediatamente expulsado del ejército y desterrado a su aldea natal, donde debe esperar dos años hasta tener derecho a ver a Sofia. Ella espera en soledad hasta que se cumple el plaz y los amantes logran 14 Volume 4 | Literatura Espanhola por fin su anhelo. Viven en feliz soledad hasta que, de un día para otro, comienzan a visitarlos periodistas y fotógrafos: es que Tagaki ha publicado una novela con enorme éxito, una novela que cuenta su historia con Sofía, y la prensa quiere retratar al autor junto a su esposa rusa, ambos en kimono, contra el paisaje de fondo que contribuyó a su felicidad. En la vida y en el libro que ha escrito, Sofia encarna para Tagaki esa literatura rusa que él tanto ama. Sofia, por su parte, ama el modo en que es amada por ese hombre tan brioso como cortés. Por lealtad y devoción a su marido, accede a convertirse en ícono para la prensa japonesa y aprende lo suficiente del idioma para contestar las preguntas de los periodistas. Así es como descubre que, en ese libro que ha escrito, su marido la retrata en la más desnuda de las intimidades. Procede entonces a abandonarlo sin decir palabra, marcha hasta el lejano consulado soviético y allí relata toda esta historia a las autoridades en su pedido de repatriación a Vladivostok. Pilniak pasa entonces a describir todas las atrocidades históricas entre rusos y japoneses que Sofia y Tagaki debieron ignorar para estar juntos. Opone a estos hechos la versión del alma rusa que da Tagaki en su libro y la versión escolar de su vida que da Sofía en su legajo consular. Pilniak dice entonces: “Él escribió una novela hermosísima. Ella vivió su autobiografía hasta el fondo”. Y remata el cuento, con la frase más famosa de toda su obra: “Que sean otros quienes juzguen, no yo. Mi trabajo se reduce a meditar sobre las cosas. En particular, cómo pueden convertirse en relatos”. Fueron efectivamente otros quienes juzgaron, y condenaron, y ejecutaron a Pilniak, por esa impenitente actividad: la de meditar sobre cómo pueden las cosas convertirse en relatos. Se sabe que, durante aquel viaje por Japón, Pilniak se enamoró de una japonesa llamada Yae Banno. Esta mujer, oriunda de la ciudad portuaria de Nagasaki, era una pequeña leyenda viviente en ciertos círculos de Tokio en los años 20: durante la guerra ruso-japonesa (1904-1905), cuando tenía apenas diecisiete años y era el ama de llaves de un oficial occidental que revestía como observador internacional de dicha guerra, había tenido un romance con ese oficial que había dado por resultado un hijo. Entre la bohemia de Tokio se decía que Yae Banno era la verdadera Madame Butterfly en que se había basado la ópera del mismo nombre. Pilniak logró convertir a esta mujer al comunismo con su relato vibrante de la Revolución de Octubre, pero tuvo menos suerte en conquistar su corazón. Al parecer, ésa fue la razón por la que volvió abruptamente a Rusia. Y según los biógrafos de Pilniak, ese relato japonés que incluyó en su libro Caoba es un velado homenaje al romance que no prosperó, una especie de Butterfly al revés. 15 Hispanismo 2 0 0 6 Para conocer la génesis de Madame Butterfly, hay que remontarse al año 1885 cuando llegó a Nagasaki, a bordo del buque francés Triomphante, un teniente llamado Julien Marie Viaud, más conocido en su país como Pierre Loti, autor de coloridas novelas basadas en sus viajes y definido por Anatole France como “el sublime iletrado” y por Jean Cocteau como “el mamarracho pintarrajeado”. Si bien era conocida la práctica de Loti de presentarse cada día a formación en cubierta pulcramente maquillado, el atildado teniente frecuentaba muchachas en cada puerto donde desembarcaba y las convertía después en protagonistas de sus popularísimos folletines exóticos. Desde el año 1600 hasta poco años antes de la llegada de Loti, los shogunes del Japón cerraron la isla a todo contacto con el extranjero. Durante esa época, las autoridades sólo permitían trato con Occidente a través de la Compañía de Indias Orientales holandesa, a la cual habían autorizado a instalar una pequeña filial, convenientemente aislada, en la isla de Dejima, frente a la bahía de Nagasaki. El tránsito marítimo era escaso (no más de dos barcos por año) pero los mercaderes holandeses tenían permiso para instalarse en Dejima, sólo que sin familia: a cambio, se les permitía “casarse” con mujeres japonesas para estar acompañados durante su estancia en la isla (los shogunes no eran tontos: a través de esas mujeres, se mantenían informados de todas las actividades de los holandeses en Dejima). Con la instauración del período Meiji y la apertura al comercio con Occidente, la práctica de matrimonios temporales no sólo se mantuvo sino que se convirtió en un próspero negocio. Y, apenas llegado a Nagasaki, Loti procedió a contactar a un “agente para las relaciones interraciales” y anuncia por carta a su amiga Juliette Adam, de la revista Nouvelle Revue: “Ayer me casé ante las autoridades de este país con una muchacha de diecisiete años llamada O-Kane-san. Tuvimos un té de gala y un desfile con linternas de papel. El matrimonio cuesta veinte monedas de plata mensuales y es válido por 999 años… o por el tiempo que yo permanezca en suelo japonés”. Cuando el Triomphante estuvo listo para seguir viaje hacia China, un mes después, Loti vuelve a escribirle a Juliette Adam para informarle lacónicamente que ha abandonado a su flamante esposa “sin emoción y sin remordimiento”, y agrega que kane significa dinero en japonés, “un nombre que le calzaba como un guante a mi mousmé”, para concluir con gravedad infrecuente en él: “Es el fin de una pequeña aventura en la que jamás reincidiré”. Dos años después, en plena fascinación de Europa con el Japón, se publicó en París la nouvelle Madame Chrysanthème. En su ficción, Loti había rebautizado O-Kiku-san a su esposa japonesa (kiku significa crisan16 Volume 4 | Literatura Espanhola temo), la describía como un personaje tan fascinante como enigmático y remataba la historia contando que, en el momento de la despedida, cuando ingresó en la recámara de su esposa para decir adiós, la descubrió sentada en el piso, “tarareando alegremente y golpeando contra su oído las monedas de plata del arreglo, con un pequeño martillo característico de los cambistas callejeros”. El público femenino adoró la independencia del personaje de Chrysanthème y el libro se vendió como pan caliente. Al otro lado del Atlántico, el japonisme también hacía de las suyas. Eso explica el éxito que tuvo una serie de relatos sobre Japón publicados en la revista Century Monthly por un anónimo abogado de Filadelfia llamado John Luther Long, cuya hermana misionera acababa de volver a Estados Unidos después de vivir cinco años en Nagasaki. Con las historias relatadas por la misionera, su hermano armó rápidamente aquellos relatos, uno de los cuales se titula “Madam Butterfly”. El éxito de éste es tal que Long lo reedita en forma de libro a fines de 1898. Long no menciona en ningún momento a Loti, pero su Butterfly parece un calco de la Chrysanthème del francés. En manos de Long, Kiku-san se convierte en Cio-cio-san (cio-cio significa mariposa en japonés), el teniente Loti se convierte en el norteamericano teniente Pinkerton. El resto es casi calcado, salvo dos detalles: mientras Chrysanthème se dedicaba a criar a un hermanito menor al ser abandonada por Loti, Butterfly lo hace con una criatura que no sólo es sangre de su sangre sino también carne de su carne: el hijo que le dejó Pinkerton en el vientre. El otro detalle es que Pinkerton vuelve al Japón (a diferencia de Loti). Llega casado con una norteamericana llamada Adelaide. Y es a través de ese personaje que se produce el gran acierto dramático del texto de Long: cuando Pinkerton retorna al Japón con su flamante esposa, es Adelaide quien reclama al niño, al enterarse de su existencia, mientras Pinkerton ni se digna a volver a ver a Butterfly. Pero tampoco en el cuento de Long se suicida Butterfly: huye con el bebé, momentos antes de que Adelaide se presente a buscarlo. Long no sólo había abrevado sin pudor en el texto de Loti; además, era abogado. Y mostró su astucia de leguleyo diciendo, al final de su Butterfly, que la historia se basaba “en un hecho real ocurrido hace poco en Nagasaki”, del que tenía noticia a través de su recién llegada hermana misionera. Quizás el propio Loti no había desposado a ninguna japonesa sino que se limitó a escuchar ese relato en Nagasaki, tal como la hermana misionera de Long, y las cartas a Juliette Adam fueron simplemente los primeros borradores del libro que planeaba publicar al volver a Francia. Con Loti, todo era posible. Aun así, para reducir más el riesgo de que lo acusaran de plagio, Long inyectó de melodrama el relato, convirtiendo el 17 Hispanismo 2 0 0 6 personaje de Butterfly en mera víctima (y despojándola del misterio y el feminismo involuntario que tenía la Chrysanthéme de Loti). El éxito de la Butterfly de Long despertó el interés en David Belasco, el dramaturgo más popular de la época en Norteamérica, quien decidió llevarla al teatro. Belasco logró tal sensación con su obra que, luego de triunfar en Nueva York a principios del 1900, se estrenó en Londres con igual revuelo. Belasco era famoso por las innovaciones escénicas de sus puestas y por su falta de escrúpulos a la hora de elegir entre los golpes de efecto y la fidelidad al texto original. Ambas características había puesto en acción para convertir el soso cuento de Long en la atracción teatral del año a ambos lados del Atlántico: para representar la larga vigilia de Butterfly esperando el retorno de Pinkerton, Belasco instaló a la protagonista de espaldas a la platea, contemplando un decorado que representaba la bahía de Nagasaki y, a lo largo de catorce minutos completos, a través de cambios de luces y efectos sonoros, marcó el paso del tiempo desde un ocaso hasta un amanecer: en ese momento Butterfly se levantaba, y el público descubría su avanzado embarazo. Había otro gran golpe de efecto: la Butterfly de Belasco sí se suicidaba, al comprender que su amor estaba condenado al fracaso (y era por esa razón que Pinkerton y su esposa se quedaban con el bebé). Uno de los tantos espectadores arrobados con aquella inmolación romántica fue un director de ópera italiano que estaba en Londres por entonces, supervisando el estreno londinense de su ópera Tosca. Si bien Giacomo Puccini no entendía una palabra de inglés, quedó tan fascinado con la obra de Belasco que se precipitó a los camarines a su finalización, abrazó al auteur con lágrimas en los ojos y le rogó que le permitiera usar su Butterfly para componer “la ópera más emocionante que haya existido jamás” (la versión del hecho que da Belasco en sus memorias es bastante más sarcástica: “¿Cómo negociar con un impulsivo peninsular deshecho en llanto que en ese preciso momento tenía mi cuello entre sus poderosas zarpas?”, se limita a comentar). Cuando Puccini descubrió Butterfly en Londres, anunció a su mecenas Giulio Riccordi que ése sería su nuevo proyecto. Riccordi no creía que fuese la mejor elección para suceder el clamoroso recibimiento que había tenido La Bohéme en toda Europa (un éxito que llevó al propio George Bernard Shaw a declarar que Puccini era el heredero indiscutido de Verdi). Pero, como bien había comprobado Belasco, no era fácil disuadir a Puccini. El italiano se puso a trabajar con el mismo equipo de libretistas estrella que lo habían secundado en Manon, Bohéme y Tosca: Luigi Illica y Giusseppe Giacosa. Cuando supo de la existencia del texto de Loti, Puc18 Volume 4 | Literatura Espanhola cini dejó muy en claro que quería que la ópera se basara en la versión teatral que tanto lo había fascinado en Londres (según las malas lenguas, porque era incapaz de leer un libro, incluso uno tan corto como el de Loti). Lo cierto es que cuando Riccordi logra comprar los derechos de la obra de teatro, en abril de 1901, Illica y Giacosa (que detestaban a Belasco y se habían negado a ver la puesta londinense) dicen que no hace falta en absoluto tirar el dinero así. Según ellos, el Pinkerton de Belasco y Long era un personaje plano, mientras que el de Loti tenía el relieve “europeo” que demandaba una verdadera ópera (de hecho, el dúo convertiría en británico a Pinkerton para el fallido estreno de La Scala en 1904). Puccini empezó a pelearse con sus libretistas y a suprimir gran parte del material que éstos incorporaban. Su devoción a la obra de Belasco era tal que se negó a entrar en razones cuando Riccordi, Illica y Giacosa le suplicaron que dividiera en dos el segundo acto (ya había aceptado a regañadientes que su ópera no podía tener un solo acto, como tenía la obra que lo impactó en Londres, pero se negó a una nueva subdivisión que quebrara el crescendo entre la vigilia de Butterfly y el retorno de Pinkerton que generaría la tragedia final). Tuvo una pelea especialmente áspera con Giacosa cuando rechazó de plano la idea de darle un aria a Pinkerton luego del suicidio de Butterfly: nada debía atenuar el protagonismo de su heroína. Mucho se ha hablado del estreno de Madame Butterfly en La Scala, uno de los desastres más famosos de la historia de la ópera. El propio Puccini lo describió como “un linchamiento público de proporciones dantescas”, pero nunca se pudo determinar cuánto incidieron los defectos en sí de la puesta y cuánto se debió el boicot orquestado por sus enemigos. Según las distintas opiniones, esos enemigos incluían no sólo a los demás compositores de Riccordi (envidiosos del trato preferencial que el mecenas daba a Puccini) sino también a los propios Illica y Giacosa, heridos por el maltrato recibido. Lo cierto es que las dos grandes críticas que pulverizaron la obra coincidían con los desacuerdos entre compositor y libretistas: el desequilibrio entre los roles del tenor y la soprano, por un lado, y la demencial duración del segundo acto, gran parte del cual quedó silenciado por los abucheos y las risas. Cuando Riccordi logró hacer entrar en razón a Puccini y convencerlo de que buscara revancha de aquel fracaso, sólo tres meses después, reestrenando la versión corregida de la ópera en el Teatro Grande de Brescia (una sala más pequeña, donde podría evitarse con más facilidad la entrada de “conspiradores”), el compositor se había curado ya del “efecto Belasco”: le importaba más reivindicarse que identificarse con su 19 Hispanismo 2 0 0 6 heroína. No sólo dividió en dos partes el segundo acto y le agregó líneas al rol del tenor aquí y allá, sino que incorporó completa aquella aria final de Pinkerton que a Giacosa tanto había escarnecido que se suprimiera ( la hoy famosa “Addio, fiorito asil”). Esta vez, público y crítica aplaudieron con entusiasmo (el telón debió levantarse treinta y dos veces para que saludaran elenco y autor, y se hicieron siete bises) e inauguraron el exitoso itinerario que tendría Butterfly a partir de entonces, en Londres, París y el resto del mundo, encarnado por excelencia a la heroína romántica que se inmola por amor. Hagamos ahora un salto de casi cien años y trasladémonos a Buenos Aires en épocas recientes. Yo estaba trabajando en Radar, el suplemento cultural que había creado y dirigía para el diario Página/12. En la presentación de un libro conocí al presidente de la Academia de la Historia, un catedrático cuya especialidad era la historia naval. Tuvimos una brevísima conversación y, al despedirnos, él me preguntó mi parentesco con el almirante Domecq García, que era mi bisabuelo. “Y supongo que estará al tanto de la historia de su bisabuelo en Japón”, dijo entonces el académico. El vínculo entre mi bisabuelo y el Japón era uno de los hitos del relato mítico familiar que mis primos y yo habíamos escuchado desde chicos de boca de mi abuela, única hija del almirante, en la casona donde vivíamos todos juntos. Una casa que estaba llena de increíbles objetos japoneses, ofrendas del Imperio a mi bisabuelo, después de que él actuara como observador internacional de la Guerra Ruso-Japonesa. El Japón logró salir victorioso de aquella guerra gracias a su flota, y pocas personas conocían mejor que mi bisabuelo –por entonces capitán– la nave insignia de esa flota, el acorazado Nisshin, ya que bajo su supervisión directa se había construido en unos astilleros de Génova para el Estado argentino. En plena construcción, se firmaron los Pactos de Mayo entre Argentina y Chile, un tratado de no agresión que limitaba el armamento naval de ambos países. El Japón estaba por entonces reforzando aceleradamente su flota para hacerle la guerra a Rusia, así que su embajador en Rio de Janeiro viajó a Buenos Aires y, entre gallos y medianoche, negoció con el gobierno argentino la compra de ése y y otro acorazado. Por tal razón, mi bisabuelo recibió en Génova la orden de llevar esas naves no a la Argentina sino al Japón, y una vez allí fue invitado a permanecer como observador internacional de la guerra. A tal punto agradecía el gobierno japonés aquel gesto argentino que, terminada la guerra, invitaron a mi bisabuelo a permanecer en la isla como embajador plenipotenciario, razón por la cual el futuro almirante, que había partido de Génova hacia el Extremo Oriente cuando su mujer estaba embarazada, recién conoció a mi abuela al retornar al país, cuando ella ya tenía cuatro años. 20 Volume 4 | Literatura Espanhola Toda familia tiene su relato mítico y ése es el que habíamos escuchado desde chicos mis primos y yo de boca de nuestra abuela, corroborado y potenciado por todos los objetos japoneses que nos rodeaban en aquella casa: katanas con pendones de seda que colgaban de las paredes; vitrinas de laca y cristal donde parecían flotar en el aire las figuras talladas en marfil de samurais y dragones; acuarelas verticales con ideogramas o con un monte nevado o con la rama de un cerezo que no se sabía si estaba en flor o eran copos de nieve lo que pendía de ella; y fotos en sepia del almirante con fondos de pagodas o bahías o jardines, todas ellas en marcos increíblemente trabajados en caoba. Si bien el almirante nunca volvió al Japón después de 1907, mantuvo el resto de su vida relaciones estrechas con los representantes diplomáticos y las cabezas de la colectividad nipona en la Argentina. Tiempo después enviudó, de manera que crió casi solo a su única hija, en esa casa que albergaba todos aquellos objetos japoneses y en la que con el tiempo llegaríamos a pasar la infancia todos nosotros. Una de las razones por las que todos esos nietos adorábamos a nuestra abuela era porque se llamaba, y todos le decíamos, Akita. La historia de ese nombre también era parte del relato mítico familiar: como ya dije, el almirante conoció a la pequeña Akita al volver del Japón. De hecho, la bautizó así cuando la tuvo en sus brazos por primera vez. Akita fue su única hija, o la única que sobrevivió. En aquellos tiempos era común que en las familias se bautizara a un hijo nuevo con el nombre del que había muerto, si se daban esas tristes circunstancias, y eso fue lo que pasó con Akita: en ausencia del almirante, había recibido el nombre de la hermana que la antecedió por breve tiempo en la tierra. Pero parece que él detestaba esa costumbre, y al volver a la Argentina movió sus influencias, que no eran pocas, hasta lograr cambiarle el nombre a su hija. Ésta era la clase de cosas que adorábamos oírle contar a Akita, cuando nos dejaban estar un rato a su lado en el living de aquella casa. Ella señalaba alguno de los muchos objetos japoneses que poblaban la habitación y nos contaba quién se lo había dado al almirante, y por qué, y qué recuerdos le traía a él contemplarlo. Desparramados en la alfombra, a los pies del sillón de Akita, nosotros devorábamos aquellos relatos. Todo esto pasó en un segundo por mi mente antes de que le contestara a aquel historiador que sí, conocía bien el rol de mi bisabuelo en la Guerra Ruso-Japonesa y la relación posterior que había mantenido hasta su muerte con el Japón, si a eso se refería. Pero entonces él me dijo: “Por supuesto, pero yo me refería a otro aspecto del asunto. ¿Saben en su familia que Puccini pudo haberse basado en su bisabuelo para el Pinkerton de 21 Hispanismo 2 0 0 6 Madame Butterfly?”. Y agregó que aquella peregrina idea había echado a rodar por un dato que era vox populi en los corrillos navales de la época: el almirante había tomado esposa japonesa y tenido un hijo con ella durante su larga estancia en la isla. Al instante me acordé de algo que había escuchado de chico en esas tertulias que tenían lugar en la cocina de la casa donde pasé mi infancia, cuando las mucamas se sentaban a tomar mate a la hora de la siesta y nos ofrecían la versión no autorizada de la historia familiar: parece que poco después de la muerte de mi bisabuelo, se presentó un día en la puerta de aquella casa un oriental atildado y ceremonioso, que pidió ser recibido por el almirante. Después de cierto revuelo en la cocina, la mucama que había abierto volvió a la puerta y preguntó de parte de quién. El oriental contestó: “Del hijo japonés del almirante”. Mi abuela se negó a recibir al visitante pero éste entregó igual un sobre que llevaba en la mano, después de verificar que se trataba de la residencia del almirante. En ningún momento le dijeron que mi bisabuelo había muerto, y él se limitó a dejar la carta y retirarse tal como había llegado. Me abstuve de contarle este secreto doméstico al académico. Pero a partir de esa noche, me propuse leer cuanto libro encontrara sobre Puccini y el Japón de la era Meiji, cruzándolos con las referencias que tenía del almirante y lo que decían de él los libros de historia argentina. Rebusqué en librerías y bibliotecas, junté una buena pila de libros con los cuales empezar. Llegué a leer una biografía de Puccini y unas cuantas páginas sobre Butterfly que encontré en internet, pero ya saben cómo inciden las obligaciones cotidianas y los intereses coyunturales en esta clase de propósitos: los días fueron pasando, la pila de libros esperaba su turno en mi mesa de luz, siempre había una u otra cosa para leer que posponía el momento de atacarlos. Semanas después, estaba un día trabajando en el diario y ocurrió uno de esas pequeños terremotos cotidianos que pasan tan a menudo en el periodismo: se nos cayó la nota de tapa de Radar a horas del cierre. Desesperados, nos pusimos a buscar un reemplazo, porque así es la ley de Murphy del periodismo: la nota de tapa siempre se cae cuando uno no tiene con qué tapar el agujero. En medio de aquella locura cayó en mi mano una de las mil gacetillas que llegan por día a todos los diarios, que anunciaba una puesta de Madame Butterfly en el Teatro Colón con elenco japonés, y no lo pensé dos veces: corrí a mi departamento a buscar lo que tenía, volví a mi computadora del diario y procedí a canibalizar a toda máquina la disparatada historia de Loti, Long, Belasco y Puccini poniendo cada uno lo suyo hasta que esa mariposa llamada Butterfly emprendió vuelo. 22 Volume 4 | Literatura Espanhola Los que hayan estado alguna vez en una situación semejante en una redacción periodística, escribiendo contra reloj mientras los de taller reclaman que entreguemos de una puta vez, quizá puedan entender el modo impunemente operático con que cerré aquella nota: ¿cómo iba a perderme la presunta relación de mi bisabuelo el almirante con esa historia? ¿Cómo iba a callar aquella aparición del hijo japonés del almirante en nuestra casa, cuando mi abuela se negó a recibirlo? Si conseguía que quienes leyeran la nota sintiesen al menos el diez por ciento de lo que sentía yo en esos momentos, ¿no era poderoso terminarla con la idea de que el hijo de Madame Butterfly había peregrinado hasta el otro extremo del mundo en busca de su padre, para que su media hermana argentina se negara a recibirlo? El párrafo final decía: “Han pasado casi cincuenta años desde entonces, pero aquella desafortunada tarde en que mi abuela repudió a su medio hermano japonés (como, supongo, lo habrán repudiado en su tierra de origen por ser hijo de madre soltera y de gaijin), él quizá decidió quedarse igual en la Argentina. Y, si se quedó, debe estar esperando todavía, haciendo honor al dicho acerca de la paciencia oriental. Así que yo voy a ir a buscarlo. Y, cuando lo encuentre, en la vida real o en esa vida paralela que son las novelas para los novelistas, le diré que no hay excusas que justifiquen aquel comportamiento de mi familia. Y ojalá que él me permita escuchar de su boca la historia de su madre, la mujer que le dio al almirante un hijo en el Japón: esa versión de Butterfly que quizás a nadie en el mundo le importe pero a mí sí”. Así se publicó la nota. Pero yo no llegué a verla impresa ese domingo. Seis horas después de abandonar la redacción aquella noche, una pancreatitis me mandó en coma al hospital. El coma fue breve pero quedé internado quince días, hasta que los médicos decretaron que mi pancreatitis era un caso raro: a diferencia del 95% de los casos habituales, no había sido causada por piedras en la vesícula ni por excesos alcohólicos o de otras sustancias tóxicas. Mi colapso, según los médicos, sólo podía explicarse por stress. Y la cuestión se reducía, de ahí en adelante, a cambiar de hábitos. Más precisamente a aprender a parar antes de estar cansado: no cuando sentía el cansancio sino antes. ¿Pero cuánto antes, exactamente? ¿Y cómo se medía eso? En mi oficio, las cosas recién empiezan a funcionar cuando uno consigue olvidarse de sí mismo: cuando uno consigue entrar, sea leyendo o escribiendo. ¿Y cómo carajo iba a poder entrar, si tenía que estar listo para salir en todo momento? Para no mencionar el contexto en el que tenía que poner en práctica ese consejo: ese mundo en el que todos llevábamos tanto tiempo dándole ciegamente para adelante, que la mera noción de cansancio había desaparecido de nuestro sistema de coordenadas. 23 Hispanismo 2 0 0 6 Pero eso no era problema del hospital. Lo único que podían ofrecerme ellos, como a los demás pacientes que habían estado en coma, era un servicio optativo: unos grupos de SPT (o Síndrome Post-Traumático) en los cuales, a la manera de los grupos de Alcohólicos Anónimos, podíamos lidiar con el hecho de haber sobrevivido y la sensación simultánea de sentirnos literalmente de manteca. Supe, en esas reuniones, que yo no era el único que había quedado pedaleando en el aire. A todo comatoso le pasa más o menos lo mismo: en todos convive la sensación de que lo peor ha pasado y que lo importante es recuperarse, pero también su opuesto, que el coma es una señal y que sería muy pero muy estúpido no prestarle atención. Todos sentíamos una mezcla similar de gratitud y de ira hacia esos médicos que nos habían salvado y después se habían desentendido olímpicamente de nosotros; todos lidiábamos con esa mezcla de fastidio y afán de tranquilizar a quienes se preocupaban por nosotros; todos teníamos la certeza de venir forzando la máquina hacía un tiempo largo y el estupor de que nuestro propio cuerpo nos hubiera jugado tan mala pasada. Y, aunque fuese a regañadientes, todos preferíamos la extrañeza que producía hablar de algo tan íntimo entre desconocidos al ensordecedor ruido blanco de lidiar a solas con todo eso. Para todos los que estábamos en el grupo de SPT, el coma había sido más fácil de sobrellevar que lo que vino después, la primera noche que pasamos sin suero ni sedantes; la primera noche ya sabiendo, aunque fuera brumosamente, lo que nos había pasado: la manera en que uno terminaba de entender que había estado en coma. Porque eso eran las pesadillas, o La Pesadilla, dijo el supervisor mirándonos uno por uno, y todos supimos perfectamente de qué estaba hablando. Y en cierta forma era un alivio saber que no sólo uno sino todos los demás habían pasado también por eso. La característica definitoria de la Pesadilla, dijo el supervisor, es que nos explicaba el coma. Se la podía ver como una especie de impuesto por recobrar la conciencia, aunque había una explicación técnica: era necesario suprimir los sedantes para acompañar la evolución del paciente, para no entorpecer el retorno de los signos vitales. Lo importante, para los médicos, era primero revivirnos y después comprobar qué secuelas nos habían quedado. Y para hacerlo debían suprimir los sedantes. Una vez que esas secuelas preocupantes quedaban descartadas, una vez que recibíamos el alta, llegaba el momento de lidiar con La Pesadilla. Y para eso existían los grupos de SPT: para abarajarnos, cuando la medicina se desentendía de nosotros, y hacernos ver que se podía sacar algo en claro si nos dedicábamos pacientemente a desovillarla y proyectarla contra lo que había sido nuestra vida hasta el coma. 24 Volume 4 | Literatura Espanhola Lo que yo había soñado aquella primera noche sin suero y sin sedantes era que caminaba por una explanada o una calle peatonal y veía venir diferentes personas en mi dirección. Venían uno detrás de otro, no en tropel sino de a uno, y cuando tenía enfrente a cada uno de ellos descubría que era siempre el mismo desconocido, de rasgos orientales, que repetía la misma frase que me habían dicho los anteriores y que iban a decirme los que venían detrás de él, sin la menor exigencia pero con un desamparo insoportable: “¿Me puede decir quién soy?”. Por si hacía falta algún dato más, déjenme explicar en qué consiste la función del páncreas en nuestro organismo: es el encargado de procesar la eliminación de bilis de nuestro organismo (la pancreatitis ocurre cuando se produce un reflujo de esa sustancia tóxica y, en lugar de ser eliminada, es bombeada en la dirección opuesta). Como ustedes recordarán, bilis viene del griego, y significa malasangre. Y, por supuesto, la sangre simboliza el linaje, el árbol genealógico. Y, como ustedes sabrán de sobra, en cualquier reunión de tres argentinos, hay cuatro psicoanalizados. Y aquel grupo de SPT no era la excepción, así que imagínense el festín que se hicieron cuando, además de confesar mi pesadilla, les relaté mis horas previas al coma, escribiendo como un poseído en la redacción del diario aquella historia de Butterfly. Esa misma noche empecé a devorar uno por uno los libros que había juntado sobre el Japón, Puccini y la historia naval argentina. Además, decidí ir a visitar a la única hija de mi abuela Akita que quedaba viva, mi tía Meme, la hermana mayor de mi padre. En toda familia hay alguien así: la tía Meme es la que conserva en sus cajones y en su memoria toda la historia familiar, la tía Meme es el repositorio viviente de todo aquello que los demás miembros del clan se permiten descartar u olvidar porque saben que, si alguna vez llegan a necesitarlo, pueden acudir a ella. La tía Meme vive para esos momentos. Y hubiera preferido quedarse a mi lado, aquella tarde, cuando después de una interminable hora de charla me hizo acompañarla hasta un ropero que había al final del pasillo, señaló con su bastón unas cajas que había en el estante más alto y me hizo cargarlas hasta el living. La tía Meme estaba perfectamente al tanto de mi internación, como de todo lo demás que pasaba en la familia. Y es notable el aspecto piadoso, la convicción que puede darnos una convalecencia. La tía Meme aceptó dejarme solo con el contenido de esas cajas. La tía Meme dijo: “Confío en vos para que lo que hay acá adentro quede en esta casa. Ahora, si me disculpás, voy a recostarme un rato”, y me dejó revolver por las mías ese tesoro. Entre muchas otras cosas, en esas cajas encontré un sobre de papel madera en el cual se leían, escritas en mayúscula, en la inconfundible letra de Akita, las palabras: “Asunto Noboru Yokoi”. Adentro de ese sobre había unas hojas 25 Hispanismo 2 0 0 6 de papel muy fino y quebradizo, manuscritas con una letra cursiva que, más que escrita, parecía dibujada con meticuloso esfuerzo, fechadas en la ciudad japonesa de Nagoya en el mes de octubre de 1950, en la cuales un tal Noboru Yokoi se dirigía al almirante en castellano, con la esperanza de que esa carta llegara a sus manos, ya que había sido encomendada a un funcionario de la Asociación Argentino-Japonesa que volvía de Tokio a Buenos Aires, ahora que parecían restablecerse las relaciones entre ambos países luego de los infortunados sucesos de la guerra y por fin podía aspirar a transmitirle aquello que le había sido imposible hacer en su momento. En primer lugar Noboru se presentaba: decía que era el hijo de Yae Banno. Y con la misma delicadeza informaba que su madre había lamentablemente fallecido unos años antes, razón por la cual no había ya razón para que se reiniciara el envío de las remesas de dinero que puntualmente habían asistido a madre e hijo a lo largo de los años, desde que el almirante dejó Japón hasta que se interrumpieron las relaciones entre ambos países. Aprovechaba la oportunidad para agradecer ese gesto tan honorable, que refrendaba la altísima estima que su madre siempre sintió y supo transmitirle a él desde pequeño respecto de aquel que cuidaba de ellos aun a la distancia. Confesaba también, con indecible desazón, que todos los recuerdos materiales que su madre atesoraba del tiempo en que había vivido junto al almirante se habían perdido a causa de los bombardeos sobre la ciudad de Nagasaki, pero aun así él podía enumerarlos y describirlos con precisión, uno por uno, no sólo porque formaban parte inalterable de su memoria sino porque en los momentos de zozobra se concedía pensar que habían acompañado a su madre en los últimos instantes de su vida, durante aquellos bombardeos. Por difícil que le resultara escribir lo que venía a continuación, decía Noboru llegado a ese punto de la carta, debía confesarle al almirante que en la hora postrera no le había sido posible estar junto a su madre, faltando imperdonablemente al deber filial de velar por ella con que el almirante lo exhortaba siempre al despedirse, en las cartas que acompañaban las remesas. Se encontraba en el frente en aquel momento, sirviendo en las filas del Emperador, como debía todo japonés en condiciones de hacerlo. No había justificación para esa ausencia, lo sabía bien y cargaría con ello el resto de sus días, pero deseaba que el almirante supiera también que la vida de su madre había sido una buena vida. Para ella y para él mismo, no existía mayor honor que haber estado ligados al ilustre nombre del almirante. Ella le había inculcado desde la infancia que debía estar a la altura de ese privilegio en cada uno de los actos de su vida y esperaba que esa carta sirviera de testimonio. Ya que, si podía escribir esas líneas en castellano 26 Volume 4 | Literatura Espanhola (aunque debía confesar que lo hacía con dificultad) era porque antes de la guerra había trabajado en una academia de lenguas, aprovechando la oportunidad para aprender algo de nuestro idioma, y así había sido capaz de traducirle a su madre esas cartas que ella había atesorado a lo largo de los años. Eso era más o menos todo. Noboru cerraba su carta diciendo que, a través del portador de esa misiva, había conocido algunos detalles de ese país maravilloso llamado Argentina, y lo honraba de manera inexpresable saber que el almirante había ofrecido una tutela sin desmayo a la colectividad japonesa instalada en nuestro país. Porque sólo de esa manera, pensando cuántos hijos del Japón habían sido enaltecidos por su ayuda, podía alguien tan insignificante como él aceptar el inmerecido privilegio de ser hijo del almirante Manuel Domecq García. Déjenme agregar sólo dos cosas más. Una de las primeras misiones que le tocó a mi bisabuelo en su carrera naval fue participar de una expedición de relevamiento de los ríos Paraná Norte e Iguazú, para fijar las nuevas líneas de frontera entre Brasil, Paraguay y la Argentina después de la Guerra de la Triple Alianza. Esto fue en el año 1887. El joven oficial decidió llevar un diario de viaje y ese cuaderno manuscrito era otra de las cosas que encontré en las cajas de tía Meme. En un par de páginas de ese cuaderno más bien tedioso, hay un episodio alucinante: escribe mi bisabuelo que, poco antes de que partiera el vapor con el que la comitiva remontaría el Paraná, uno de los miembros de la tripulación hizo subir a bordo, sin permiso, a un muchacho extranjero en precario estado de salud. El comandante de la expedición supo de su presencia cuando la nave ya había zarpado. En consideración al estado físico del polizón, y al relato que éste hizo de sus penurias, aceptó llevarlo con ellos pero sólo hasta que cruzaran Iguazú. Una vez en territorio brasileño, el polizón debía valerse por las suyas, y su presencia no figuraría en el libro de bitácora. No había médico ni enfermero en la expedición y la dieta básica (charqui, fariña y porotos) no era la ideal para un enfermo; sin embargo, la salud del muchacho se mantuvo estable durante la primera parte del viaje. Pero unas prolongadas lluvias, después de repostar en Posadas, debilitaron al enfermo justo en el tramo en que la navegación se hacía más ardua. Por ser el más novato de la tripulación, mi bisabuelo había sido asignado al cuidado del enfermo. Y, en determinado momento, éste le arrancó una promesa desesperada: si llegaba a morir en el curso del viaje, le pedía que por favor le escribiera a su hermano mayor a Italia, transmitiéndole que había muerto en gracia de Dios. 27 Hispanismo 2 0 0 6 El solo hecho de encontrar un cura en medio de la selva no habría sido tarea sencilla, pero no hizo falta: unos días después, cuando llegaron a los primeros rápidos, una ola se llevó parte del material logístico y durante horas los tripulantes dedicaron todos sus desvelos a salvar lo que pudieron de las aguas. Cuando mi bisabuelo volvió al lado del enfermo, cubierto con su capote empapado, éste creyó en su delirio que tenía frente a sí a un sacerdote y le pidió la extremaunción. Mi bisabuelo no fue capaz de revelarle su verdadera identidad. Simuló cumplir con los últimos ritos y logró que el moribundo enfrentara sus últimos instantes en paz. Lo enterraron al día siguiente, en un remanso del río donde desembarcaron. En ese punto mi bisabuelo se pregunta si debe o no escribir la carta prometida: “¿Murió el pobre diablo en gracia de Dios? ¿Puedo mentirle al hermano que así me consta? Mi conciencia no sabe decirme qué hacer”, escribe mi bisabuelo y no menciona más el asunto en el resto de su diario de viaje. En todas las biografías de Puccini se dedican unas breves páginas al único hermano varón del compositor: Michele, el benjamín de la familia, en el que convivían el talento musical y la bohemia como en el hermano mayor. En vista de las penurias económicas que le deparaba la vida como músico a Giacomo, Michele decidió probar suerte en el nuevo mundo y se embarcó hacia la Argentina en 1880. Las cartas que le envía a Giacomo se interrumpen a principios de 1887, luego de anunciarle que ha conseguido un empleo interesante como maestro de música en un liceo de señoritas de Jujuy, por el cual le pagarán “trescientos escudos al mes” (a la cual responde Puccini desde Milán: “Si eso va bien, y hay trabajo también para mí, yo abandonaría todo y te seguiría. Si puedes ahorrar algo, envíamelo. O enriquécete tú, al menos. Yo no tengo esperanzas de ello”). Al parecer, Michele era tan mujeriego como su hermano mayor, y en su nuevo puesto enamoró a la prometida del gobernador de la provincia. Cuando los rumores del romance llegaron hasta la gobernación y el ofendido envió una patrulla extraoficial a escarmentar al atrevido italiano, Michele huyó a Buenos Aires con lo puesto. Pero tampoco ahí estaba a salvo: el largo brazo de Pérez (que también era senador nacional por su provincia) llegaba hasta la capital, razón por la cual el atribulado Michele intentó cruzar al Brasil en forma furtiva. En este punto hay discrepancia entre los biógrafos de Puccini: algunos dan por muerto a Michele en el accidentado trayecto por ríos y selvas; otros afirman que logró llegar hasta Rio de Janeiro, y recién allí murió, con sólo veintiséis años, víctima de las fiebres que había contraído en Buenos Aires o durante el viaje. 28 Volume 4 | Literatura Espanhola No hay manera de saber si ese polizón mencionado por mi bisabuelo en su diario de viaje era Michele Puccini, y si escribió o no aquella carta al hermano mayor. Si Puccini y el almirante tuvieron o no contacto a lo largo de sus vidas. Porque Madame Butterfly se estrenó el 17 de febrero de 1904, la guerra rusojaponesa empezó nueve días antes y los barcos que llevó el almirante llegaron ya iniciada la guerra. De manera que Yae Banno sólo fue Butterfly para Boris Pilniak y un puñado de bohemios trasnochados del Tokio de los años 20. Lo que no sabremos nunca, salvo que Noboru Yokoi quiera contárnoslo (y eso si lo sabe) es qué fue Yae Banno para el almirante. Y lo que yo le veré cómo le cuento a Noboru Yokoi, el día que lo encuentre, es que su padre, mi bisabuelo, ese hombre que a los dos nos enseñaron a venerar desde la infancia, fue, además de todo lo que he contado, el responsable de los comandos civiles de “señoritos” que salieron a hacer justicia por mano propia por las calles de Buenos Aires durante la Semana Trágica de 1919, esos días de demencia en la Argentina en que se confundió un reclamo obrero generalizado con una toma del Palacio de Invierno, y la supuesta defensa de la patria terminó convirtiéndose en el primer pogrom contra judíos en América, el Nuevo Mundo. Y, como dice Boris Pilniak: “Que sean otros quienes juzguen, no yo. Mi trabajo se reduce a meditar sobre las cosas. En particular, cómo pueden convertirse en relatos”. 29 Barroco e Renascimento O Século de Ouro Hispanismo 2 0 0 6 Dorotea, heroína cervantina de la prolepsis Dedicado a María Augusta da Costa Vieira A. Robert Lauer (The University of Oklahoma) Dorotea («don de Dios») es el personaje femenino de mayor relevancia en la primera parte de El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha (Madrid, 1605). A diferencia de Dulcinea, personaje inexistente, salvo como referente, Dorotea aparece como personaje pleno en los capítulos 24, 28, 29, 30, 35, 36, 37 y 46 de la primera parte de la novela. A la vez, su presencia se manifiesta en términos icónicos, narrativos y dramáticos. Asimismo, su carácter, clase social y aun sexo simulan ser inestables: si al principio aparece como zagal, pronto se convertirá en mayordoma, después en niña mimada y protegida, villana y cristiana vieja, mujer sensual y atrevida, amante cauta y legalista, víctima de la seducción y abandono de un noble, falsa princesa, excelente actriz, elocuente oradora y, finalmente, supuesta cónyuge de un noble. Otrosí, el género literario en el que surge parece ser susceptible al cambio: un principio lírico-pictórico pronto se convertirá en narrativo-sentimental, después en narrativo-caballeresco y por fin en dramático-forense. Acaso no sea en vano que los estudiosos hayan criticado a Dorotea por su ambición, artificio y falta de presencia logocéntrica, como diría Edward Dudley, uno de sus más aptos defensores (DUDLEY, 1997, p.235). «Ut pictura poesis», como recuerda Horacio (HORACIO, 2005, p.84) en su Arte poética. El poema, en este caso la narrativa, es en efecto como una pintura, y su captación depende del ángulo del que se vea. Es mi propósito demostrar que el asunto ontológico del material poético aquí llamado Dorotea no cambia; lo que cambia es simplemente la perspectiva del oyente o del testigo de este asunto. El problema de captación, o de recepción, es por lo tanto un asunto epistemológico y lingüístico. El material dorotesco, con una prehistoria intradiegética (narrada por Cardenio) en el capítulo 24 y un epílogo (referido por Sancho Panza) en el 46, se presenta con todo vigor en forma tripartita, razón por la cual el asunto puede confundir. A la vez, antes de ser vista, Dorotea es oída (por Cardenio, el cura y el barbero), aunque esta prioridad auditiva a la visual aparentemente no logró dar indicios de la identidad sexual del locutor a sus oyentes. Curiosa, aunque no irónicamente, la primera focalización externa de sus espectadores pone en evidencia a un mozo labrador de «hermosura incomparable» que «no es persona humana, sino divina» (CERVANTES, 1982, p.345; 1.28). Sólo después, al descubrir Dorotea sus largos y rubios cabellos, sus admiradores caerán finalmente en la cuenta de que es mujer y no hombre. O sea, si los sonidos (o el tono de la voz humana) engañan, aparentemente las manifestaciones fenomenales también, al menos en este caso y para estos tres testigos. 32 Volume 4 | Literatura Espanhola Este incidente servirá de preámbulo para la primera narrativa dorotesca (I.28), una analepsis a nivel homodiégetico, donde se pondrá en evidencia el carácter hombruno de esta actante. La segunda narrativa dorotesca, una prolepsis en forma autodiégetica (1.29-30), presenta una perspectiva emotiva y alegórica de Dorotea, quien adopta una identidad estrictamente mujeril y menesterosa. Cuando la realidad fernandesca se impone a la realidad dorotesca en 1.36, la narrativa cambia a actio y la hablante actriz, acaso por la experiencia de las previas narraciones, se comporta como hombre/mujer. Sólo el sensato Sancho se dará cuenta de la realidad de Dorotea/Micomicona al declarar que la había visto hocicándose con don Fernando, «pareciéndole que aquella desenvoltura más era de dama cortesana que de reina de tan gran reino» (CERVANTES, 1982, p.552; 1.46). Es de notar que la analepsis de Dorotea en 1.28 no puede ser contada en forma libre o espontánea. Tres veces sus curiosos e impertinentes locutores le piden que narre la historia de su vida. Dorotea duda antes de responder y sólo decide contar su historia después de recogerse los cabellos. Este gesto es importante por dos razones, pues 1) sirve como signo de discreción y recato y 2) como signo de superación masculina ante el material tan dañoso para su carácter que está a punto de narrar. La narración retrospectiva, forzosamente de tipo forense, es retóricamente extraordinaria. Se nota inmediatamente que aunque los hechos son narrados en forma estrictamente cronológica, la narración empieza alabando y censurando: 1) en primera instancia, al duque Ricardo y su hijo mayor, de buenas costumbres; 2) en segunda instancia, al hijo menor y traicionero, don Fernando. Formalmente, este principio debiera ser un preámbulo. En términos forenses, es el final al que se dirige el discurso. Su posición inicial sirve entonces para crear un prejuicio eficaz contra un enemigo. El hecho de que se alabe al padre y al primogénito tiene pues un doble propósito: 1) primero, demostrar por medio de un contraste, a un nivel lingüístico (sin evidencia alguna), el aspecto malvado del segundo hijo, pues si es evidente que el duque y su primer hijo son de «buenas costumbres» (CERVANTES, 1982, p.347; 1.28), lo opuesto, en el caso del segundón, se sugiere (lo que es cierto de A no puede ser cierto de B); 2) segundo, aparentar, especialmente por su colocación inicial, que el elogio de la casa ducal es parte de un preámbulo (el captatio benevolentiae). Sólo así ofrecerá Dorotea su suceso. Su caso, a la vez, tiene dos partes, interrumpida la segunda en un punto medio por un monólogo interno con su conciencia. En la primera parte, la historia «de mis desdichas» (CERVANTES, 1982, p.350; 1.28), Dorotea narra la prehistoria del caso. Esto es indispensable para demostrar su carácter. Sin embargo, lo primero que menciona Dorotea es su familia y que es hija de vasallos ricos del duque, labradores sin mezcla de raza mal sonante, cristia33 Hispanismo 2 0 0 6 nos viejos ranciosos, individuos que poco a poco van adquiriendo nombre de hidalguía y aun de caballeros. Obviamente, Dorotea propone que su familia, sin ser noble, es equiparable en parte a la del duque, si no en título, en poder, raza y opinión. Sólo entonces hablará de sí misma como hija única, capaz de ejercer funciones masculinas y femeninas. Como hombre, es mayordoma y señora de la propiedad de sus padres; como mujer hace aguja, lee libros devotos, toca el arpa y lleva una vida encerrada y cristiana. Al terminar esta prehistoria empiezan las «diligencias» de don Fernando, quien soborna a sus criados, ofrece mercedes a sus parientes, le ofrece a ella serenatas de noche y le manda infinitos billetes llenos de quejas y juramentos. Es de notar que aunque Dorotea diga que se endurecía, también dice que no le parecía mal la gentileza de don Fernando, ni le agobiaba ser querida «de un tan principal caballero» (CERVANTES, 1982, p.350; 1.28). Es acaso por esta razón que los padres de Dorotea le recuerdan que hay una desigualdad social entre ellos y que la podrían casar con quien ella quisiera. O sea, el caso en sí tiene su punto débil, pues no patentiza sin lugar a duda que las diligencias de don Fernando no hubieran tenido éxito, sino todo lo contrario. Si el caso muestra en parte que hubo consentimiento entre ambos, la evidencia tratará de demostrar que la entrega sexual de Dorotea se dio con ciertas condiciones. Las pruebas son patentes: 1) una promesa oral de matrimonio de parte de don Fernando, 2) el ofrecimiento de la mano, 3) juramentos ante el cielo y ante una imagen de Nuestra Señora, 4) advertencias sobre la desigualdad social y el futuro enojo del duque, 5) la criada como testigo, 6) la reiteración de don Fernando de sus promesas y 7) el ofrecimiento de un anillo, el cual don Fernando pone en el dedo de Dorotea después de su entregaa. Es importante fijarse también en que Dorotea discurre consigo misma sobre el hecho de no haber sido la primera en ascender socialmente de estado, ni él el primero en cegarse por la hermosura de una mujer para escoger compañía desigual a su grandeza. Asimismo, es significativo observar que después de la primera noche, Dorotea le informa a don Fernando que puede volver a visitarla de nuevo, lo cual éste hace una segunda y última vez. O sea, para Dorotea ha habido un auténtico casamiento (secreto) con 7 pruebas demostrables. El hecho de que don Fernando regrese a la noche siguiente confirma pues que lo que él pudiera haber considerado gozo una vez, una segunda ocasión sería prueba del consentimiento necesario para que una unión secreta se considerara matrimonio, aun después de las leyes del Concilio de Trento en contra de estas uniones. El subsiguiente abandono de don Fernando y sus segundas nupcias con Luscinda serían por lo tanto ilegales e inmorales. Esto es lo que Dorotea demuestra elocuentemente en su analepsisb. 34 Volume 4 | Literatura Espanhola En la prolepsis que sigue inmediatamente después, Dorotea demuestra su lado endeble y mujeril, así como su auténtico carácter, no como debe sino como es y desea ser. Si la analepsis constituye «la verdadera historia de mi tragedia» (p.359; 1.29), como ella indica, la prolepsis—narrativa espontánea mixta: narrada y actuada a la vez por un personaje que insiste en hacer el papel de doncella menesterosa, pues conoce los libros de caballería y sabe hacer el papel de doncella cuitada—«es todo milagro y misterio» (CERVANTES, 1982, p.376; 1.30). Cuando Don Quijote la insta a hablar, no será necesario pedírselo de nuevo. Dorotea, ahora no como labradora sino como la princesa Micomicona del reino de Micomicón, lo hará libre y espontáneamente. Si en la prolepsis primero se recoge el pelo para ocultar su lado femenino, aquí se viste de dama y muestra precisamente la indumentaria de su sexo. Si antes empezó hablando de su familia, ahora empieza primero identificándose a sí misma, aunque de repente se le olvide el nombre, tan importante a la identidad falocéntrica. Lo que antes serían lástimas y desgracias son ahora risas y acciones inverosímiles. Sin embargo, la prolepsis, narrativa sobre actos futuros, es esencialmente la historia anterior, su historia, con cambios significativos, y no la del cura, cuya función es aquí sólo de apuntador. Micomicona es ahora hija de reyes y no de labradores, de practicantes de magia y no de cristianos viejos ranciosos. A la vez, el material narrativo constituye en sí una prolepsis doble, pues Dorotea narra a don Quijote y su público, desde un tiempo ya presente o perfectivo, pero siempre anterior a un futuro hipotético, lo que ocurrirá después de la muerte de Tinacrio el Sabidor y la reina Jaramilla, sus padres. Desde el punto de vista (ya pasado) de estos últimos, el gigante Pandafilando de la Fosca Vistac usurpará el reino de Micomicón a menos que Micomicona se case con él; desde el punto de vista de Micomicona (el presente), don Quijote tendrá que degollar al gigante, y ella, si don Quijote lo desea, tendrá que casarse con él y entregarle el reino. En este material poético, la villana histórica es una princesa, la amenaza de una figura descomunal tiene solución (degollación) y el final será obligatoriamente feliz (casamiento). Si en la analepsis, de sabor forense, la precisión de los hechos es indispensable, aquí, la deliberación imprecisa reina en forma absoluta: los nombres de los principales se olvidan o se confunden (don Quijote es Don Azote o don Gigote); los lugares son imprecisos (el cura dice que Micomicona viene de Guinea y Sancho Panza que de Etiopía, Micomicana desembarca en Osuna en lugar de Málaga); y los errores e imprecisiones tienen disculpa, pues «los trabajos continuos y extraordinarios quitan la memoria al que los padece» (CERVANTES, 1982, p.376, 1.30), como dice Micomicona. Este es el mundo en el que Dorotea preferiría vivir, y no el histórico, real y forense de la analepsis o del presente, donde pronto tendrá que defenderse como 35 Hispanismo 2 0 0 6 hombre (retóricamente) y mujer (con lágrimas) ante el descomunal don Fernando, quien pronto entrará en la venta en compañía de Luscinda. En efecto, después de su asombrosa y exitosa perusasión para que don Fernando la confirme de nuevo como esposa, notamos que Dorotea sigue viviendo en el reino de Micomicón. En 1.37, sigue Dorotea llamándose Micomicona, con el permiso de don Fernando, quien en la p.461 se refiere a ella como «la señora princesa». La villana Dorotea, casada con el segundón don Fernando, jamás será duquesa en la vida real. En su imaginación y en su mundo inventado e hipotético, del cual no parece salir, siempre será princesa. Cuando el prudente Sancho ponga en duda su identidad principal en 1.46 (5 capítulos antes del final de la novela), sufrirá las consecuencias de su enfurecido amo y tendrá que aceptar las bondadosas palabras de Micomicona, que en efecto constituirán un eco de las de don Quijote: «todas las cosas van y suceden por modo de encantamento» (CERVANTES, 1982, p.553; 1.46). Por lo tanto, aunque Dorotea/Micomicona haya sido vista como personaje mercurial e inestabled, he deseado mostrar que no lo es. Las necesidades históricas hacen de ella un ser robusto y hombruno, sagaz y elocuente, de excelente y precisa memoria, cualidades necesarias para poder sobrevivir en un mundo legalista y falocéntrico. En este mundo que después la fuerza a narrar o actuar a su manera, Dorotea tiene que ocultar su sexo, apelar al pasado, seleccionar información que sea sólo estrictamente necesaria, y comportarse según las circunstancias del momento. Todo esto le da a su carácter una visión falsa o acaso simplemente incompleta. En su mundo escogido, inventado e hipotético, el de la prolepsis, Dorotea, ya no como «don de Dios» sino como mico burlón puede narrar y actuar a su gusto, vestirse como dama, inventar su identidad y la de su familia e incluso lograr cierta felicidad poética en la compañía de alguien similar a ella: finalmente, mi suerte ha sido tan buena en hallar al señor don Quijote, que ya me cuento y tengo por reina y señora de todo mi reino, pues él, por su cortesía y magnificencia, me ha prometido el don de irse conmigo adonde quiera que yo le llevare (CERVANTES, 1982, p.375; 1.30) Dorotea es la heroína cervantina de la prolepsis. Por su capacidad imaginativa, es también el único personaje equivalente a don Quijote. En ausencia de Dulcinea, Dorotea es sin duda el personaje femenino más importante de la primera parte de El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha. 36 Volume 4 | Literatura Espanhola Referencias Bibliográficas BARAHONA, Renato. Sex, Crimes, Honour, and the Law in Early Modern Spain: Viscaya, 1528-1735. Toronto: University of Toronto Press. 2003. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha. Vol. 1. Madrid: Gredos. 1982. DUDLEY, Edward. The Endless Text. Don Quijote and the Hermeneutics of Romance. New York: State University of New York Press. 1997. HORACIO. Art of Poetry. En: ADAMS, Hazard y SEARLE, Leroy, editores. Critical Theory since Plato. 3a. ed. Boston: Thomas Wadsworth. 2005. pp. 78-85. LABÈRE, Claude. Des Femmes: images et écritures. «Don Quichotte, chevalier de la triste figure, face à face avec deux femmes, Micomicona et Dulcinée». DIDIER, Béatrice, Preface. MANSAW, Andrée, Présentation. Toulouse-Le Mirail: Presses Universitaires du Mirail. 2004. pp. 25-30. QUINT, David. Cervantes’s Novel of Modern Times. A New Reading of Don Quijote. Princeton: Princeton University Press. 2003. Notas a b c d Sigue al pie de la letra la práctica de la época del perseguimiento amoroso de la dama por parte del varón, como anota el historiador Renato Barahona en su libro Sex, Crimes, Honour, and the Law in Early Modern Spain: Viscaya, 1528-1735, p.8. Por razones de tiempo no enfatizo la cólera y rabia de Dorotea—rasgos auténticamente masculinos—al enterarse de que ha sido abandonada, ni el hecho de que hace la labor de zagal de un ganadero por meses—trabajo arduo—después de haber derrumbado a su criado de un peñasco, por insolencia. Dorotea también contempla derrumbar al ganadero, quien ha descubierto que es hembra y hermosa. Si no lo hace es por no haber habido derrumbadero para despeñarlo como a su criado, como ella misma indica. Si el más delicado don Fernando hubiera usado la fuerza con esta mujer, probablemente habría sido defenestrado por ella. Como Aldonza Lorenzo, Dorotea es mujer «de pelo en pecho» (CERVANTES, 1982, p.312; 1.25). David Quint opina que Pandafilando no refleja tanto a don Fernando como a Dorotea, quien en efecto es quien ascenderá socialmente al desear casarse con don Fernando (p.59). Claude Labère llama a Dorotea «fausse princesse» en un «théâtre mental» (p.25). 37 Hispanismo 2 0 0 6 Imago mortis e as Coplas de Jorge Manrique Ana Paula Silva (Universidade de São Paulo) O objetivo deste artigo é analisar o poema Coplas por la muerte de su padre, de Manrique, para perceber como o poeta retoma a tradição medieval do tema da morte, de acordo com a História das Mentalidades, de forma a conseguir uma súmula do tema e apontar algumas conseqüências. Podemos dividir o poema em quatro partes como sugere Haro (1975). A primeira parte que aqui vamos expor se trata do sermão moral, nas primeiras 14 coplas. Esta parte traz uma reflexão sobre a efemeridade da vida e da passagem do tempo que não se detém seja para o poderoso e rico, seja para o simples e pobre. Essa é a morte das Danzas de la Muerte, sem a violência que esta representa, mas com a mesma atitude de separar o homem do Mundo. A vida e o tempo são ilusões que podem levar a um grande dano se não percebemos a tempo o seu engano. É preciso preparar-se para a morte. Desta forma, a primeira parte tem uma função didática: ensina que o mundo é um caminho para o outro, bem de acordo com a concepção da meditação ascética, das doutrinas do De contemptu mundi, de Inocêncio III e das pregações das ordens mendicantes. Sob pressão da Igreja e por medo do Além, o homem que sentia a morte chegar queria prevenir-se com as garantias espirituais. [...] essa alternativa [era] conservar o amor pelos temporalia e perder sua alma, ou a eles renunciar em nome da beatude celeste ... (ARIÈS, 2003, ps. 114-115) A segunda parte do poema, denominado por Haro (1975) de discurso histórico, engloba as coplas XV a XXIV. Este discurso serve para demonstrar de forma concreta toda abstração do discurso anterior. Na primeira parte das coplas o eu lírico tenta persuadir o leitor de que o mundo é caminho para o outro e o negar-se a seguir um princípio básico e importantíssimo pode levar ao dano eterno. Esta segunda parte trata de mostrar concretamente esta premissa. Dispensa o modelo de invocação clássico-renascentista dos personagens da Antigüidade e utiliza personagens geográfica e históricamente próximos, porque o efeito do discurso causa mais impacto. Personagens distantes tornam-se difusos, abstratos “en lugar de hacer convivir [...] a los antiguos y extranjeros con los nacionales [...] se queda solo, en su Castilla, con los suyos, y nos los empuja a la atención, a que cumplan su fúnebre oficio de escarmentadores” (SALINAS, 1952, p.168). Retoma o tema convencional do 38 Volume 4 | Literatura Espanhola ubi sunt. Neste questionamento, aparece não só a forçosa pergunta do onde estão, mas principalmente o poeta mostra a vida mundana que estes personagens viveram. A morte é personificada, igualadora, uma morte macabra, que separa os homens das coisas cotidianas. O apego aos bens materiais, ao poder, à vida, resumidamente, as temporalia, são motivo para que a morte seja mais cruel, mais dolorosa, na medida em que os homens do fim da Idade Média, encontram-se mais ligados a esses prazeresa. Na copla XXI, o poeta trata de mostrar a morte duplamente má do Condestable Álvaro de Luna: primeiro, porque é uma morte violenta, o degolam; e segundo, ao se apegar as temporalia “sus infinitos tesoros,/sus villas y sus lugares,/su mandar” pode significar uma morte má, já que o apego aos bens mundanos pode significar a perdição da alma, como ensinam as artes moriendi. A morte, macabra, é entidade que destrói os prazeres e as ambições, não aparece como repouso desejado ou liberação da vida terrena. Nestes fragmentos, Manrique revela a atitude da classe culta diante da morte, da não resignação diante do destino coletivo da espécie. A Morte macabra no sentido que Ariès (2003) interpreta, como signos de profundo amor à vida e não no sentido trágico de Huizinga (1978), de medo da morte. Outro ponto importante é que se na primeira parte a Morte é a morte da Danza General só no sentido de igualar a todos, aqui ela se mostra a Poderosa, com seus atributos, com sua flecha (DELUMEAU, 1996), destrói os prazeres e lança no esquecimento os feitos humanos. Estes personagens ganharam a segunda vida, a da Fama, mas como ela dura só um pouco mais, não é eterna, já cai no esquecimento. É preciso notar também, que apesar do caráter exemplar, concreto desta segunda parte, em nenhum momento o eu-lírico insinua uma punição transcendental para estes personagens. Sua única punição é a dor da separação dos bens mundanos e o esquecimento, entretanto, a da doutrina anteriormente por ele enunciada, não aparece. Aqui percebemos a dualidade do poeta cujo discurso cristão da primeira parte consegue disfarçar a angústia em relação ao sentimento da morte e da mortalidade humana que transparece na segunda parte. Nas duas primeiras partes do poema, Manrique trata de discorrer sobre a morte e os mortos de forma geral, para no epicendio começar a tratar de um morto em particular e motivo das coplas: o pai. Um pai sublimado, honrado, virtuoso, cavaleiro cristão que segue a doutrina não por orgulho ou ambição, mas como fiel obediente a Deus e à Igreja e servidor de seu rei, dotado de todas as virtudes de cavaleiro medieval e cristão (HAUSER, 1964, p. 242). 39 Hispanismo 2 0 0 6 Tão sublime que ultrapassa os valores meramente cristãos e engloba em si valores da Antigüidade, na medida em que o eu-lírico o compara com personagens famosos do paganismo. Alborg (1981) vê nesta comparação uma simples retomada dos modelos anteriores de plantos e endechas, destoando assim, estes fragmentos do tom cristão e contemporâneo das coplas anteriores. Somos inclinados a ver, nesta comparação, mas que obediência servil a um modelo, a tentativa de mostrar a grandiosidade de um personagem, que de forma humilde e obediente consegue reunir em si todos os elementos que caracterizam um personagem sublime, seja cristão, seja pagão. D. Rodrigo se imortaliza por seus feitos, sua bravura, sua fidelidade. Suas qualidades por méritos y ancianía bien gastada, e feitos antes da morte por fuerza de sus manos serão imortalizados em dois planos: no terreno, da Fama e no eterno, como prêmio por lutar contra os mouros. Este desfile de personagens, serve para o autor demonstrar que seu pai, possui virtudes cristãs e pagãs, por isso entra para a galeria dos imortais famosos da História e não só dos famosos cristãos. E através de suas coplas, é imortalizado também pela Literatura. A última parte do poema é o auto da morte. A Morte aparece para chamar D. Rodrigo para a última batalha. Escutamos sua voz, mas sua figura não está presente. Esta é a segunda representação da morte. Uma Morte cortês, totalmente oposta a Morte macabra. Sem representação figurativa, não causa pavor, ela aparece para consolar. Retoma o discurso da meditação ascética de desapego do mundo, qual o prêmio e a punição para os que não seguem a doutrina. Concretamente demonstra de que maneira pode-se seguramente servir a Deus e ganhar a vida eterna: sendo clérigo ou guerreiro na guerra santa contra os infiéis. A Morte conduz seu discurso para demonstrar que D. Rodrigo, por seus feitos, deve ter confiança de que ganhará a vida terceira, a eterna. A primeira, mortal, já está se esvaindo, a segunda, a da Fama, ganhou pela força do braço e pela honra, mas também logo será esquecida, como a dos personagens ilustres anteriormente citados. Como cavaleiro, lutando contra os mouros, está incluído no número dos que fizeram caminho para o outro através da guerra contra o gentil, como um cruzado. A resposta de D. Rodrigo demonstra uma total resignação à vontade divina. O Maestre se comporta segundo os rituais de morte anteriores ao século XI, aceita e segue o ritual da boa morte, faz sua oração, a commendatio animae, pedindo perdão por suas faltas, cercado pelos parentes e criados e sem mais demora entrega a alma a Deus. É importante notar que Manrique, é cuidadoso com o tratamento da morte do pai a fim de assegurar o seu 40 Volume 4 | Literatura Espanhola não-desaparecimento após a morte ou a crença na danação da sua alma. Como o poeta consegue, retoricamente, convencer o leitor, (ou convencer a si próprio) de que o pai efetivamente ganhou a terceira vida? Primeiro porque mostra um pai fiel e obediente em primeiro lugar à doutrina cristã do desapego (que qualquer um poderia seguir), mas principalmente inserido entre àqueles fiéis cuja salvação estava assegurada pelo fato de lutarem contra os infiéis. Segundo, porque o pai se prepara para morrer de forma cerimoniosa, mas não dramática. O pai de Manrique tem uma boa morte e segundo a crença popular “não era de tal forma necessário esforçar-se excessivamente em viver virtuosamente porque uma boa morte resgatava todos os erros” (ARIÈS, 2003, p.54). Pela análise do texto podemos perceber que Manrique retoma vários lugares comuns do tema da morte. A pregação cristã do desapego das coisas do mundo, como uma reflexão didático-moralizante num aspecto geral, na introdução das coplas; a Morte igualadora e macabra, que se manifesta com a flecha na mão, destruindo os prazeres e os bens mundanos, exemplificada claramente com personagens famosos da época; a boa morte, que vem de forma cortês, convidar o valoroso guerreiro para fazer a sua passagem deste mundo para o outro. Entrelaçamento das atitudes diante da morte e conseqüências No texto aparecem duas concepções da morte: a morte macabra, como ser que destrói as ambições e os prazeres e a morte consoladora. A angústia diante da morte concreta do pai leva o autor a refletir e a retomar toda a tradição do tema da morte na Idade Média e propõe uma solução para duas visões completamente diferentes sobre o mesmo fenômeno. A morte de D. Rodrigo é tradicional, bem de acordo com a atitude da primeira fase da Idade Média, na medida em que o Maestre a aceita de forma resignada e assegura sua salvação. Original em relação às artes moriendi da época, onde os personagens que invadem o quarto do moribundo são os do Juízo Final e não a própria Morte. A morte é terrível, como diz Huizinga, para os personagens que não se preocupam em seguir o discurso da pregação ascética, mas é consoladora para o pai de Manrique. As memórias do pai têm uma dupla função: servem para consolar os entes queridos e desencadeiam uma reflexão sobre a vida, o viver e a morte. Para finalizar, Manrique também enlaça a mentalidade popular e a culta. A imagem popular da morte com destino coletivo e liberação dos sofrimentos 41 Hispanismo 2 0 0 6 deste mundo, com a concepção culta, da morte que separa o homem dos prazeres, das coisas que ama, que o faz perceber a sua individualidade. Referências Bibliográficas ALBORG, Juan Luis. Historia de la literatura española: Edad Media y Renacimiento. Tomo I. 2. ed. rev. ampl. Madrid: Gredos, 1981. ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. (Trad. Priscila Viana de Siqueira) Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. CAMACHO GUIZADO, Eduardo. La elegía funeral en la poesía española. Madrid: Gredos, 1969. DELUMEAU, Jean. A História do Medo no Ocidente: 1300 – 1800 uma cidade sitiada. (trad. Maria Lúcia Machado) São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000: na pista dos nossos medos. (trad. Eugênio Michel da Silva, Maria Regina Lucena Borges-Osório; revisão do texto em português Éster Mambrini) São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. HAUSER, Arnold. Historia social de la literatura y el arte. Tomo I (trad. A. Trovar y F. P. Varas-Reyes.) Madrid: Guadarrama, 1964. HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média: um estudo das formas... (trad. Augusto Abelaira). Lisboa, RJ: Editora Ulisseia, 1978. _____ . El otoño de la Edad Media: estudio de las formas ... 4. ed. Madrid: Revista de Ocicidente, 1952. MANRIQUE, Jorge. Cancionero. Estúdio, edición y glosario por Augusto Cortina. 4. ed. Madrid: Espalsa-Calpe. 1960. _____ . Coplas a la Muerte del Maestre de Santiago, Don Rodrigo Manrique, su padre. (introdución, notas y propuestas de trabajo María del Carmen Córdoba, Graciela N. de. Quiroga e María Luisa A. De Tevere). 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Colihue, 1981. _____ . Poesia completa. 2. ed. Mdrid: Afrodisio Aguado, 1950. MENÉNDEZ PELÁEZ, Jesús. Historia de la literatura española. Volumen I: Edad Media. Madrid: Everest, 1998. PUÉRTOLAS, Júlio Rodriguez (Coord.). AGUINAGA, Carlos Blanco. ZAVALA. Iris M. Historia social de la literatura española. Tomo I (en lengua castellana). Madrid: Castalia, 1979. RIBEIRO, Daniel Valle. A cristandade do Ocidente medieval. (coord. Maria Helena Capelato, Maria Lígia Prado) – São Paulo: Atual, 1998. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: As minorias na Idade Média. (trad. Marco Antonio Esteves da Rocha e Renato Aguiar) Rio de Janeiro: 42 Volume 4 | Literatura Espanhola Jorge Zahar, 1993. SALINAS, Pedro. Jorge Manrique o tradición y originalidad. Buenos Aires: Sudamericana, 1952. SERRANO DE HARO, Antonio. Personalidad y destino de Jorge Manrique. 2. ed. Madrid: Gredos, 1975. VALBUENA PRAT, Ángel. SAZ, Agustín del. Historia de la literatura española e hispanoamericana. 4 ed. rev. e ampl. Barcelona: Juventud, 1969. Notas a Sobre a morte macabra, consciência da individualidade e amor à vida coferir ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. (Trad. Priscila Viana de Siqueira) Rio de Janeiro: Ediouro, 2003 e HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média: um estudo das formas... (trad. Augusto Abelaira). Lisboa, RJ: Editora Ulisseia, 1978. 43 Hispanismo 2 0 0 6 A caracterização física de Dom Quixote e Sancho Pança Célia Navarro Flores (Universidade Federal de Sergipe) Uma vez que nosso objeto de estudo é a iconografia do Quixote, mais especificamente, as ilustrações, buscamos no texto cervantino um dos elementos que nos parece crucial para a recriação gráfica da obra: a descrição. O artista, ao reproduzir uma cena ou uma personagem, deve levar em consideração esse aspecto fundamental da obra. Nosso propósito para este trabalho é fazer um breve estudo sobre o tema. Considerando-se o pouco tempo e espaço que temos para desenvolvê-lo aqui, vamo-nos limitar às descrições físicas dos protagonistas da obra: Dom Quixote e Sancho Pança, e apenas algumas passagens do Quixote. Levando-se em conta a imagem acabada que temos da dupla — um cavaleiro alto e magro e um escudeiro baixo e gordo — era de se esperar que, no texto cervantino, as duas personagens fossem descritas de maneira clara e convincente. No entanto, não é isso que podemos observar. Na obra de Cervantes, as descrições propriamente ditas são raras, sucintas e imprecisas; Cervantes evita o detalhismo. Uma justificativa para esse procedimento nos é dada por Riley [1981]. O crítico escocês afirma que Cervantes, embora considerasse o romance como uma prosa épica, evitava as digressões e os detalhes porque considerava que o romance era imitação da História, a qual deveria ser escrita de maneira breve. A recusa pela pormenorização dos detalhes será explicitada no capítulo dezoito da segunda parte, quando, ao descrever a casa de Dom Diego de Miranda, o tradutor omite, propositalmente, as descrições contidas na suposta obra original: Aquí pinta el autor las circunstancias de la casa de don Diego, pintándonos en ellas lo que contiene una casa de un caballero labrador y rico, pero al traductor desta historia le pareció pasar estas y otras semejantes menudencias en silencio, porque no venían bien con el propósito principal de la historia, la cual más tiene su fuerza en la verdad que en las frías digresiones. [II, 18] As descrições da casa de Don Diego são rechaçadas por serem consideradas “frías digresiones”. Além disso, não podemos nos esquecer que o mourisco que traduziu os manuscritos da história de Dom Quixote prometeu ao narrador “traducirlos bien y fielmente y con mucha brevedad” [I,9]. A brevidade anunciada no capítulo nove da primeira parte se realiza por meio de cortes nas descrições. 44 Volume 4 | Literatura Espanhola Com relação ao cavaleiro, ele é descrito de uma maneira direta no primeiro capítulo da primeira parte: “Frisaba la edad de nuestro hidalgo en los cincuenta años, era de complexión recia, seco de carnes, enjuto de rostro” [I,1]. Nessa descrição, já podemos notar uma certa tensão, pois o cavaleiro era magro, porém de compleição forte. A força de Dom Quixote é confirmada por sua sobrinha, que, no capítulo 6 da segunda parte, diz que seu tio “es valiente, siendo viejo, que tiene fuerzas estando enfermo y que endereza tuertos, estando por la edad agobiado” [II, 6]. O escudeiro, por sua vez, é descrito de maneira ambígua por meio de uma ilustração. No capítulo 9 da primeira parte, o narrador encontra o manuscrito que traz a continuação da história de Dom Quixote. Nele, há uma ilustração na qual estão representadas as personagens. Sancho é descrito da seguinte maneira: (...) Junto a él [a Rocinante] estaba Sancho Panza, que tenía del cabestro a su asno a los pies del cual estaba otro rétulo que decía “Sancho Zancas”, y debía de ser que tenía, a lo que mostraba la pintura, la barriga grande, el talle corto y las zancas largas y por esto se le debió poner nombre de “Panza” y de “Zancas”, que con estos dos sobrenombres le llama algunas veces la historia. [I, 9] Sancho é descrito, nessa passagem, de maneira indireta, pois o que temos é a descrição de uma ilustração e não a descrição da personagem. Estaria a ilustração bem feita? Além disso, ela é duvidosa, uma vez que o narrador nos diz que o mourisco traduziu toda a história em pouco mais de mês e meio “del mismo modo que aquí se refiere”. Após essa afirmação, o leitor espera que a história de Dom Quixote seja retomada, mas o que temos na seqüência é descrição da ilustração. O narrador está descrevendo uma ilustração ou está reproduzindo a tradução? Se a ilustração, de fato, existe, por que o narrador não reconheceu o manuscrito por meio dela? Lembremos que ele só reconhecerá tratar-se da história de Dom Quixote quando o mourisco cita a anotação sobre Dulcinéia que está à margem do texto manuscrito. De qualquer maneira, existindo ou não a ilustração, temos nesse fragmento uma descrição do escudeiro, que tem as pernas longas (“zancas largas”) e o tronco curto (“talle corto”). Tais características nos remetem a uma espécie de deformidade física, talvez a imagem de um anão. Poderíamos pensar que a deformação deve-se ao fato de tratar-se de um desenho mal realizado; porém, a legenda “Sancho Zancas” corrobora a intencionalidade do narrador de focalizar as pernas longas do escudeiro 45 Hispanismo 2 0 0 6 como uma característica inerente à personagem. Ao longo da obra, entretanto, em nenhum momento esse aspecto físico de Sancho é citado e ele é sempre nomeado por seu outro traço mais proeminente: a pança. É possível que Cervantes quisesse, num primeiro momento, caracterizar Sancho como um anão. Essa idéia é avalizada por Eduardo Urbina [1991], que considera Sancho uma personagem descendente do anão do ciclo artúrico. Imagem que pode ser corroborada por seus primeiros ilustradores, que retratam o escudeiro como um anão ou um duende. É possível que estes primeiros artistas tivessem a imagem do anão-escudeiro presente em suas mentes, pois eles conheciam melhor os livros de cavalaria que os ilustradores posteriores. Os demais traços, tanto físicos quanto psicológicos, do cavaleiro e escudeiro estão espalhados ao longo da obra, e são, geralmente, evocados por diferentes agentes, a saber: 1) pelas próprias personagens quando falam de si mesmas, 2) por outras personagens, 3) pelo tradutor, 4) pelo autor e 5) pelos narradores. Como restringimos este trabalho às características físicas, citemos algumas como exemplo: 1- Descrição dada pela própria personagem: Sancho se diz moreno e jovem: no episódio de Clavilenho [II, 41], Dom Quixote diz a Sancho que ele é “veridico”, o escudeiro, que não conhecia o vocábulo, compreende “verdico” por “verídico” e responde: “no soy verde, sino moreno”. No episódio dos “batanes”, Sancho pede salário e Dom Quixote lhe censura e o chama de “asno”, ao que Sancho choroso responde: “Vuestra merced me perdone y se duela de mi mocedad, y advierta que sé poco” [II, 28]. 2- Descrição por outras personagens: o Cavaleiro do Bosque e a ama descrevem Dom Quixote: No capítulo 14 da segunda parte, Dom Quixote se depara com o referido cavaleiro, que lhe diz já haver lutado e vencido o famoso Cavaleiro da Triste Figura. Dom Quixote duvida do Cavaleiro do Bosque que, para confirmar sua história, descreve o Cavaleiro da triste figura: “es un hombre alto de cuerpo, seco de rostro, estirado y avellanado de miembros, entrecano, la nariz aguileña y algo corva, de bigotes grandes, negros y caídos”. Tais características são imediatamente confirmadas por Dom Quixote: “que las señas que dél me habéis dado, tan puntuales y ciertas, no puedo pensar sino que sea el mismo que habéis vencido.”[II, 14]. No capítulo 7 da segunda parte, quando a ama descobre que Dom Quixote pretende sair novamente em busca de aventuras, recorre aflita ao bacharel Sansão Carrasco e lhe descreve as feições do cavaleiro quando ele retornou à casa, após a segunda saída: 46 Volume 4 | Literatura Espanhola (...) y venía tal el triste, que no le conociera la madre que le parió, flaco, amarillo, los ojos hundidos en los últimos caramanchones del celebro, que para haberle de volver algún tanto en sí gasté más de seiscientos huevos, como lo sabe Dios y todo el mundo, y mis gallinas, que no me dejarían mentir. [II, 7] Tal descrição, entretanto, não é plenamente confiável, pois assim como a ama exagera na quantidade de ovos, pode estar exagerando com relação ao estado físico do cavaleiro. Além disso, o que dizer de uma pessoa que pede o aval das galinhas para confirmar a veracidade de seu depoimento? Sabemos que Dom Quixote é desdentado por intermédio de seu escudeiro. Após a chuva de pedras lançadas pelos pastores das ovelhas abatidas por Dom Quixote, no episódio da batalha com o rebanho de ovelhas, o cavaleiro pede a seu escudeiro que conte quantos dentes lhe restaram, ao que Sancho responde: “Pues en esta parte de abajo — dijo Sancho — no tiene vuestra merced más de dos muelas y media, y en la de arriba, ni media ni ninguna, que todo está rasa como la palma de mi mano” [I, 18]. Vimos na primeira descrição de Sancho (a da ilustração do manuscrito) que o escudeiro pode ter as pernas longas e o tronco curto, características que nos remetem a uma espécie de nanismo; porém, nesse fragmento, o narrador não expressa se o escudeiro teria a estatura baixa ou não. As alusões à estatura de Sancho são, em geral dadas por outras personagens. Uma delas é o acadêmico de Argamasilla. No final da primeira parte, o narrador diz que não conseguiu saber o que ocorreu a Dom Quixote depois que ele voltou a sua aldeia. Os únicos documentos encontrados foram alguns poemas, que haviam sido encontrados quando derrubaram uma antiga ermida. Esses poemas foram supostamente compostos pelos Acadêmicos de Argamasilla. Em um deles, intitulado “Del burlador, académico argamasillesco, a Sancho Panza” diz: Sancho Panza es aqueste, en cuerpo chico / Pero grande en valor, ¡Milagro estraño!” [I, 52]. 3- Descrição pelo tradutor: o tradutor não faz descrições físicas, mas apenas psicológicas, quando, por exemplo, diz que o quinto capítulo da segunda parte deve ser apócrifo, porque nele Sancho fala em outro estilo “y dice cosas tan sutiles, que no tiene por posible que él las supiese”. [II, 5]. 4- Descrição pelo próprio autor: no prólogo da primeira parte, Cervantes descreve sua personagem como: “seco y avellanado1” ao perguntar: “Y así, ¿qué podía engendrar el estéril y mal cultivado ingenio mío, sino la historia de un hijo seco, avellanado, antojadizo y lleno de pensamientos varios y nunca imaginados de otro alguno?”. 5- Descrição feita pelos narradores. A primeira descrição que apresentamos no início deste texto (a do primeiro capítulo da primeira parte) é feita 47 Hispanismo 2 0 0 6 de maneira direta pelo narrador; porém, vários traços das personagens são evocados de maneira indireta pelos narradores da obra, ou seja, o narrador está relatando a história quando, para compor uma cena, menciona algum traço da personagem. Um exemplo desse é procedimento é quando, no capítulo 35 da primeira parte, o narrador descreve a cena da “batalha” de Dom Quixote com os odres de vinho, na qual ficamos sabendo que as pernas do cavaleiro eram “largas, flacas, llenas de vello y nonada limpias” [I, 35]. Outro exemplo: no palácio dos duques, procedem a uma cerimônia de lavagem das barbas de Dom Quixote, diz o narrador que “[los presentes] le veían con media vara de cuello, más que medianamente moreno, los ojos cerrados y las barbas llenas de jabón” [II, 32]. Há no Quixote um narrador que podemos chamar de “a voz popular”; em geral, ele se manifesta por meio do verbo “dizer” em terceira pessoa do plural: “dicen”. Por meio deste narrador, somos informados de diversas características, principalmente psicológicas, das personagens. É o caso do capítulo 9 da primeira parte, quando o narrador diz que encontrou o manuscrito e, nele, havia uma anotação na margem traduzida pelo mourisco: “Esta Dulcinea del Toboso, tantas veces en esta historia referida, dicen que tuvo la mejor mano para salar puercos que otra mujer de toda la Mancha” [I, 9]. No caso de Dom Quixote, temos, por exemplo, no capítulo 2 da segunda parte, a opinião dos leitores da primeira parte, na qual mencionam-se diversos atributos do cavaleiro: “Unos dicen: ‘loco, pero gracioso’; otros. ‘valiente, pero desgraciado’, otros ‘cortés, pero impertinente’” [II, 2]. A gordura de Sancho é mencionada pelo narrador, de maneira indireta, mais de uma vez na obra. Além do termo “barriga grande” do primeiro fragmento, o narrador menciona o tamanho das nádegas do escudeiro, no episódio do “batanes”, quando Sancho baixa as calças para desapertar-se: “(...) tras eso alzó la camisa lo mejor que pudo y echó al aire entrambas posaderas, que no eran muy pequeñas”. [II, 20]. Como vimos pelos fragmentos destacados, não temos no Quixote grandes descrições; as características das personagens são, em geral, apenas citadas pelos agentes acima expostos. Porém, é essa instabilidade do texto cervantino que propiciará aos ilustradores da obra uma maior liberdade na escolha dos traços a serem retratados. Podemos encontrar, ao longo dos séculos, ilustradores, principalmente alguns do século XVII, que representarão o cavaleiro como um homem forte, traço que é autorizado pelo escritor ao conceber sua personagem como de “complexión recia”, ao mesmo tempo o cavaleiro pode ser representado como sendo extremamente magro “seco de carnes”, como o Dom Quixote de Portinari ou de Picasso. Sancho, por sua vez, tanto pode ser retratado como um anão — e, de fato, o foi por alguns ilustradores do século XVII — quanto pode ser retratado como um jovem forte — observável em alguns ilustradores como Lagniet (século XVII) ou Coypel (século XVIII). 48 Volume 4 | Literatura Espanhola Cremos que essa imagem acabada que temos da dupla se deve muito mais às sucessivas reproduções iconográficas da obra do que, propriamente, ao texto cervantino. Em nosso modo de ver, na iconografia do Quixote, as ilustrações ocupam lugar de destaque uma vez que podem ser consideradas as primeiras manifestações iconográficas da obra de Cervantes e, por este motivo, influenciarão a maneira como as personagens serão representadas ao longo dos séculos. Referências Bibliográficas CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edición del Instituto Cervantes dirigida por Francisco Rico. Barcelona: Instituto Cervantes – Crítica, 1998. RILEY, Edward C. “La forma de la obra”. En Teoría de la novela en Cervantes. Versión castellana de Carlos Sahagún. Madrid: Taurus Ediciones, 1981. URBINA, Eduardo. “Gandalín modelo paródico”. En El sin par Sancho Panza: parodia y creación. Barcelona: Anthropos, 1991, pp. 47-84. 1 Notas “Avellanado” tanto pode significar “cor de avelã”, como “que está enrugado e muito magro. Na nota de rodapé da edição crítica do Instituto Cervantes, esta palavra é definida como “falto de lozanía”. 49 Hispanismo 2 0 0 6 Dom Quixote de La Mancha: da leitura como perdição à leitura como cura Celia Regina de Barros Mattos (UFRJ) Investigar esse ser literário que há quatro séculos insiste em fazer residência na terra, conquistando espaços que vão desde a geografia de La Mancha até as zonas mais profundas do imaginário e da fantasia, não é tarefa fácil; e só Deus sabe quantas tentativas! Muitos são os caminhos já percorridos; deles, muitos também percorremos. Por toda parte é fácil encontrá-lo, mas não com o frescor que buscamos. O caminho, de tão simples, sequer cogitávamos. Quem nos provocou, afinal, foi Ortega y Gasset, entre todos os guias, o mais confiável. Não só pela vizinhança, mas por seu lugar de autoridade. Não emitiu sua opinião frontalmente. Com o enviesado, que caracteriza a ironia, fez seu comentário: não era necessário ser tão suscetível à leitura, a ponto de ser por ela infectado. Ortega declarou: D. Quixote está infectado; e concordamos todos: quem está doente, procura cura. D. Quixote assentiu e partiu à procura da cura. Foi assim que o levamos ao médico para responder, na anamnese, a duas perguntas de importância capital: O que o levou a ler descontroladamente novelas de cavalaria; o que o motivou a abandonar a leitura, para vivê-la de verdade? Decidimos auxiliá-lo nas respostas; o avançado da infecção era visível, já turvava sua mente. Para a primeira, encontramos algumas respostas: o ócio que a tudo contaminava; o vazio sensível em todos os setores da vida: na Espanha do século XVI, era caçar, divertir-se em festas, ou era ler. “España andaba por el aire”. A segunda, responderemos ao longo deste trabalho. Respondidas as perguntas ao médico, logo nos demos conta de que procurávamos a cura em seu sentido ôntico. Burdach esclareceu: essa cura é a que mais imediatamente nos vem ao encontro, porque há muito circula entre nós. Nesse sentido, ela é debilidade que exige cuidados médicos e remédios. Mas que outra cura poderíamos ajudá-lo a procurar? A resposta a encontramos em Heidegger, na leitura do mito: cura é experiência do viver que acontece na existência, entre as duas pontas: nascimento e morte. Heidegger, ao investigar o ser, rejeita a participação da transcendência no mostrar-se da verdade. Então é isso, D.Quixote quer saber a verdade. Mas essa verdade não se restringe a si mesmo, sua amplitude alcança o homem. É a verdade que o fidalgo procura __ Quem sou eu? Para saber do homem, nada melhor do que começar por si mesmo. 50 Volume 4 | Literatura Espanhola E se essa verdade dispensa o transcendente, ela só pode ser alcançada na vida, na existência. Por isso é preciso passar pelos existenciais que Heidegger há muito tenta fazer-nos compreender. É bem possível que Quixote tivesse meta mais abrangente; é possível que esse desejo também fosse compartilhado pelos demais. O romance dá indícios: era um tal de perguntar, explicar e responder. Não pode ser gratuito tanto falar. E ler então? O texto é um pastiche, um aglomerado de outros textos __ documentos históricos são encontrados, cartas são trocadas, histórias são contadas, numa profusão sem fim. “Ratones de biblioteca”, assim eram chamados os daquela época. Seria a leitura, nossa questão central? É preciso olhar com cuidado. Há leituras e leituras. Voltemos a Quixote. Entra no romance lendo e enlouquece de tanto ler. Mas se é a leitura o ponto central, porque a abandona e troca o ler pelo viver? Poderíamos tentar com Sileno que assim responde à pergunta do que fazer para ser feliz: “Era melhor não ter nascido, mas já que nasceste, o melhor é morrer”. Lida por Carneiro Leão, a interpretação não é literal, só se acha na entrelinha. Descobre o autor que o vaticínio de Sileno aponta para a lida do homem no viver. Ele é ser e não ser; ele não é nada fixo, definido nem determinado. Por mais que o ocidente estivesse sempre perseguindo uma resposta para esse ser chamado homem, numa tentativa sem fim de compreender seu papel e sua função no mundo, e, fundamentalmente, sua essência, Sileno se antecipa avaliando-lhe a pesada missão no viver. Assim, o homem não nasce para ser feliz; ou melhor, para ser feliz precisa do viver e do morrer, precisa ser e não-ser, para, só assim, constituir-se no viver. Se há relação ser-viver, teria também relação o ler com o viver? Desse modo, surpreenderemos Quixote em duas leituras: D. Quixote achava que para viver era preciso ler. Mas antes é preciso esclarecer o tempo. O que se deu naquele tempo? Era tempo de abertura, e por essa abertura entrou muita coisa. Entrou a imprensa que trouxe consigo uma distinta e poderosa companheira para desbancar a leitura oral, intencionalmente preparada para essa prática – a entonação estava marcada no texto, palavra por palavra, para garantir o regozijo de todos. A nobre e poderosa companheira é a leitura silenciosa. Por isso, não só Quixote, mas todos liam. O vital da nova modalidade de leitura, Gilman nos informa: “devoraban de manera silenciosa, (...) sus labios aún se movían, (...) sus manos se contraían, (...) pasaban las noches leyendo”. Estava sendo inaugurada uma nova metodologia. Ler silenciosamente entrava na Espanha do século XVI de forma avassaladora, a ponto de ser comparada aos efeitos de “la sangre de un vampiro” (GILMAN, p.18). 51 Hispanismo 2 0 0 6 É preciso saber um pouco mais de leitura para compreender melhor esse fenômeno. Dentre os tipos apresentados por Manuel Antonio de Castro: a que cumpre o papel de informar, sem exigir do leitor nenhum esforço reflexivo; aquela que, mesmo exigindo maior esforço, não visa ao crescimento __ mexe com a emoção, envolve e leva a um fim específico, ao consumo, por exemplo; a leitura em que nem o leitor nem o receptor são o centro, mas o próprio conhecimento científico ou histórico __ sendo esta, contraditoriamente, a usada pelo ensino da própria literatura, onde a leitura, nos mesmos moldes das disciplinas históricas, se centraliza no conhecimento científico (em tudo aquilo que a estética já definiu e determinou), protegendo a obra de qualquer impressionismo. Dentre todas, há uma só que supera as demais, por seu poder de promoção. Pela avaliação de Ortega, não parece ter sido essa a leitura que D. Quixote praticava, caso contrário, não teria adoecido. Em que classificação se enquadra a novela de cavalaria? Arvale Arce nos informa que “Amadis de Gaula se convirtió en Manual de Cortesanía para las generaciones europeas subsiguientes, y un ejemplario de esfuerzo heroico para las españolas” (ARCE, p.67). Aproveitando essa pista de Arce e conjugando-a com uma marca fundamental das leituras que nos foram disponibilizadas, vemos que não passam de linguagem instrumental, um tipo que eclodiu na modernidade, que serve de instrumento com uma finalidade; por trás dela, há sempre um “para que serve?”, sempre uma utilidade. Se avançarmos um pouco mais, veremos mais. Veremos que havia uma intencionalidade naquela literatura produzida na época de Quixote, uma intencionalidade que aponta para uma finalidade. Então, é por isso que “el canônigo”, em conversa com “el cura”, reconhece “que son perjudiciales en la república estos que llaman libros de caballerías” (CERVANTES, 1a P., cap. 47). O que dizer de Quixote “que le pareció convenible y necesario, así; para el aumento de su honra como para el servicio de su república, hacerse caballero andante” (CERVANTES, 1a P., cap. 1). É intrigante que, enquanto o “canônigo” alerta para o perigo, D. Quixote assume a ação cavaleiresca, tomando-a como um mandato. É muita República para ignorarmos. E por falar em República, só Platão mesmo pode ajudar-nos. Ao avaliar a literatura bem-vinda na sua República, Platão bane o poeta. Dizia que os livros que contivessem descrições não ameaçariam o equilíbrio da polis, graças ao distanciamento dessa modalidade. Só aqueles que fossem narrativas, que acabassem conduzindo o jovem à imitação, estes 52 Volume 4 | Literatura Espanhola seriam danosos. Até aí, parece que Platão acertou em cheio: D. Quixote, vítima, enlouqueceu; foi levado à imitação; e encarnou um personagem da cavalaria. Entretanto, não é exatamente essa a causa de sua doença. D. Quixote contradiz as previsões de Platão. O que o faz enlouquecer é exatamente o que o filósofo recomendava aos jovens de sua república, considerando que os livros de cavalaria tinham um propósito igual ou semelhante ao da Paidéia platônica: o aprendizado; o exercício; o treinamento pela insistência, quando leva o leitor a envolver-se de tal forma com o enredo que dele fique tão saturado, a ponto de alienar-se de si mesmo e tornar-se outro, tornar-se o que ele mesmo não é. Agora já sabemos de onde vem essa linguagem instrumental, que expressa somente o conhecimento racional, sem dar conta do ser constitutivo do homem. Sua origem não é o século XVI, vem desde o V-VI antes de Cristo. Vamos, então, à outra leitura; quem sabe a identificamos com a única __ com aquela que, por seu poder de promoção, supera as demais __, e assim conseguimos surpreender o ser constitutivo do homem. Se para viver era preciso ler, para ler, agora, é imperativo viver. A outra leitura que faz Quixote é a que conduz à cura. Há, entretanto, uma contradição: D. Quixote quer saber de si no momento mesmo em que diz Yo sé quien soy, exatamente quando afirma saber quem é. Apesar de contraditório, tem sentido. Ser e não ser; saber e não saber __ é isso o que marca a procura de Quixote. Quando diz saber quem é, alguma coisa sabe, é verdade; mas há sempre mais a saber. Parece que, no caso de nosso herói, muito faltava pra saber. Mas isso fica por conta do jogo textual – “la mesa de trucos” armada por Cervantes. É tudo sempre contraditório: diz-se que é, não é; quando diz que sabe, não sabe. Se para ler-se é preciso viver, entremos então na vida. Farto de procurar a si mesmo no universo da cavalaria, D. Quixote, quanto mais lia, mais de si escapava, mais a máscara do outro vestia. Tentava, tentava; lia e lia; e nada de constituir-se. Assim, segue sua intuição em relação ao jogo não-ser X ser e descobre que isso só poderia ser alcançado no existir. É aí que decide sair do livro para a realidade. Mas antes sabe que precisa tomar providências. O que pretende é ser e saber-se, não é? Para ser é preciso um mundo. Não esqueçamos: estamos no universo de Heidegger e da cura, e a condição sine qua non para ser é “ser-em”, é “ser-no-mundo”. Quixote corre então, e o traz importado diretamente, e em detalhes, dos livros de cavalaria. Por esse mundo, para mantê-lo ao 53 Hispanismo 2 0 0 6 longo da novela, era capaz de morrer (até porque Espanha “andaba por el aire”; nada de sólido havia, nada em que se sustentar; Espanha não tinha chão; a rede do século XVI estava rota, seus fios sociais, culturais, econômicos __ Pierre Vilar nos contou __ estavam todos esgarçados). Sem mundo ao redor para sustentar sua experiência de existir, D. Quixote precisava construir o seu, e precisava acreditar, ele mesmo, em sua verdade; ou preservava aquele mundo, ou perdia sentido seu projeto. E ai de quem se atrevesse desmenti-lo, pagaria preço alto. Até os gênios assumem papel de grande importância nesse jogo de fortalecimento de seu mundo. Em se tratando ainda de Heidegger, fazem parte do esquema o nascimento e a morte. O homem é ser para a morte. É nesses limites que o pensador desenha seu perfil na caminhada em direção à cura. Cura é a dinâmica da existência entre vida e morte. Esses elementos estão muito bem marcados na obra. D. Quixote nasce na ficção. Não importa se, contrariando o esquema de criação da cavalaria, nasça aos 50 anos, diferente de todos os heróis tradicionais. O que importa é o momento em que o herói ingressa no circuito da cura. Na outra ponta está a morte; morte atípica, a rigor, desnecessária. Mas que se justifica plenamente por ajustar-se ao processo da cura. Bastava que caísse em si e recuperasse sua identidade de Alonso Quijano. Entretanto, faltaria esse ingrediente fundamental que marca os limites do processo de cura __ a morte. Sem contar que o atípico está na quase decisão de morrer (ninguém deita para morrer). Estabelecidas as pontas, o que mais tinha no meio da cura? Tinha também os existenciais: para ser e conhecer só na existência. Aliás, a existência é o que vai se constituindo, à medida que o homem vai sendo e conhecendo. Nesse trajeto, D. Quixote, “procurando o seu próprio”, mas estando contaminado tanto pelo mundo da cavalaria, como pela Espanha do século XVI, se lança na errância, teimando em ficar no que no mundo já estava velho, de tão estabelecido. E insiste, e insiste no lugar-comum daquilo que está disponível, ao alcance das mãos, sem permitir o abrir-se para novas experiências e descobertas. O insistir da errância tem lugar depois de cada movimento de decadência. Temos exemplo em Quixote para todos os referentes que indicam a decadência: curiosidade, falatório e ambigüidade. É assim que D. Quixote vai, no ir e vir, enlaçando sempre, no presente, o passado que lançará ao futuro; perguntando sempre ao que já sabe, o mais que precisa saber; avançando sempre a patamares onde o horizon- 54 Volume 4 | Literatura Espanhola te, ao expandir-se, segue provocador e perguntador. Até que chega ao final, embora recobrando a identidade de fidalgo, cuidadoso em afirmar saber quem é. Dessa vez já não diz quem é. Mas é claro, sabedor de muitas verdades, descobre que sua essência está intimamente relacionada com o Sileno, de Carneiro Leão, que nos informa não ser o homem um ser definitivo e acabado, e sim um ser que está sempre em processo de constituir-se na existência. Ora, se o homem é o sendo constituindo-se, sua essência não passa de possibilidade, de abertura total a todo e qualquer ser. Desse modo, já não cabe o “é”. D.Quixote, no máximo, sabe o que não é. Sabe que não é “Quijote El Malo”, de Avellaneda; sabe que não é o Quijote fidalgo __ é assim que se define no liame de seu trajeto em direção à cura. D. Quixote descobre a si mesmo na existência. Mas outras surpresas o romance nos reserva. Não satisfeito com a morte, Quixote levanta outras possibilidades ainda, o que amplia muito mais o sentido de cura: pode morrer; pode ser poeta; pode ser pastor. Essas são as alternativas do herói. Isso corrobora a essência do “poderser”, já que essa é também a essência da poiesis: a abertura total a todas as possibilidades de ser. D. Quixote, em direção à cura, leu a si mesmo no jogo do mundo. Leu, interpretou e se curou, escapando da perdição para onde o levara os livros de cavalaria. Referências Bibliográficas AVALLE-ARCE, Juan Bautista; Don Quijote como forma de vida, Editorial Castalia, Valencia, 1976. CASTRO, Manuel Antonio de; Poética da leitura e ensino da Literatura, inédito. CERVANTES, Miguel de; Don Quijote de La Mancha, Editorial Juventud, Barcelona, 1955. GILMAN, Stephen; La novela según Cervantes, Fondo de Cultura Económica, México, 1993. HEIDEGGER, Martin; Ser e tempo, Editora Vozes, Petrópolis, 1998. _____ Cartas sobre o humanismo, Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1967. LEÃO, Emmanuel Carneiro; Aprendendo a pensar, Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1977. 55 Hispanismo 2 0 0 6 Espaço e magia em El Mágico Prodigioso, de Calderón de la Barca Danielle Velloso Lemos Schwarz (UFF) A obra de Pedro Calderón de La Barca, El Mágico Prodigioso (1637), tem sido objeto de pesquisa para reflexões sobre temas filosóficos e religiosos, como o livre-arbítrio – tema recorrente em Calderón – e o mito fáustico, a partir do pacto demoníaco que se apresenta, neste drama, mesclado à hagiografia e mitologia greco-romana em sua gênese (CURLO, 2002, p. 133). Em seu texto, de conteúdo dogmático contra-reformista, composto de três jornadas, o dramaturgo apresenta a história do pagão Cipriano e da virtuosa cristã Justina, que não se deixa vencer pelas tentações do Demônio, expondo a importância do exercício da faculdade do livre-arbítrio e a misericórdia divina, tendo como objetivo maior a propagação da fé católica. Poucas obras de Calderón apresentam o diabo como protagonista (CILVETI, 1977 apud SILVA, 2003, p.233), num cômputo de sessenta e um autos e apenas seis comédias, não distinguindo Cilveti entre dramas e comédias onde isto ocorre.¹ Em El Mágico Prodigioso a atuação do Demônio, indispensável tanto no aspecto dramático quanto no teológico, desde a Jornada I até o término da terceira, conduz a intriga. Pelo destaque deste personagem tão habilidoso e enganador poderemos propor uma reflexão, na presente comunicação, sobre os recursos que este teatro dispunha para demonstrar as ações nos diferentes espaços, pela análise das didascálias, “elemento del texto dramático que inexplicablemente ha recebido esporádica atención de la crítica especializada”(SCHIMDHUBER, 2001), já que muitas mudanças sugeridas explícita e implicitamente nas didascálias e diálogos estariam, na trama, relacionadas aos poderes mágicos do diabólico personagem. Estas mudanças auxiliariam a concretização da ação dramática através de sua atuação mágica, pautada na inovação cenográfica que atinge amplo desenvolvimento neste período áureo do teatro espanhol. Enquanto período de conflito social, o Barroco predispõe ao homem europeu uma busca por “resultados mágicos” que solucionem os problemas sociais que está vivendo. Uma esperança de que algo surja, um milagre, uma resposta da natureza – prodígios mágicos (MARAVALL, 1988, p.462). Há uma disposição em tratar o campo da transcendência com os meios de experimentação, na manipulação dos segredos naturais, oriundos da magia natural de Trismegisto, Marcilio Ficino e Giordano Bruno. A existência da vertente cristã, escolástica, com a vertente renascentista, 56 Volume 4 | Literatura Espanhola neoplatônica, “expressando-se através do maravilhoso, os mirabilia, imagens, metáforas visíveis, formaliza a coexistência do maravilhoso cristão e do maravilhoso pagão em representações no teatro de Calderón”. (VIANNA PERES, 2001, p.32) Sendo uma arte paradoxal, por sua fugacidade em eterna recriação, ao mesmo tempo em que se eterniza em seu texto, o teatro apresenta um caráter duplo, em sua essência: como produção literária e representação concreta. Por esta dualidade apresenta peculiaridades próprias, compondo um sistema de signos onde, o texto e a representação, o diálogo e as didascálias terão importância na relação com a concretização da representação. Assim “o jogo entre os diálogos/ didascálias permite um percurso para a apreensão dos diversos fios que compõem a tessitura dramática, cabendo ao leitor/ espectador desvelar e revelar os condutores da expressão de uma época, sociedade”. (idem, ibidem, p.43) Para que o texto teatral exista é necessário que haja espaço físico para sua prática. Neste espaço estarão materializadas as indicações cênicas em forma de signos verbais e não verbais presentes nas descrições funcionais direcionadas a este fim. Elas indicarão o lugar, nome de personagens e forma de atuação nos espaços de representação (inclusive gestos e movimentos de deslocamento na ocupação deste espaço). Assim sendo, considerando o exposto acima, a cenografia do maravilhoso em El Mágico Prodigioso se apresenta através dos “prodígios mágicos” do Demônio, manifestados nos recursos materiais que Calderón dispunha para demonstrar seus efeitos espetaculares: pescantes, tramoyas, bofetones, escotillones, bambalinas, apariencias, sacabuches, devanaderas, bastidores, enfim, todo a maquinária com função cênica, neste teatro do século XVII. O teatro barroco usará o espaço vertical seguindo os ideais de busca por um plano superior, que atinja esferas do ultramundo; por isto o intenso uso de máquinas específicas que servirão para este fim: elevar o homem numa proximidade com o divino, para exaltar sua capacidade criadora. Diferentemente do teatro medieval, que igualmente valorizava as partes altas do espaço cênico, o teatro do século XVII queria demonstrar sua inventividade e domínio de tais recursos, para causar efeitos persuasivos no público, enquanto espetáculo de massa, a partir desta comprovação. Podemos perceber, assim, como era necessário o entendimento da Física e das artes, em geral, para se realizar uma montagem eficiente, dando-nos uma idéia aproximada do desenvolvimento da cenografia espanhola na segunda metade do século XVII que, desde a criação da Comédia Nova, com Lope de Vega, atinge seu pleno desenvolvimento com Calderón, auxiliado pelos engenheiros italianos Cosme Lotti e Baccio del Bianco. 57 Hispanismo 2 0 0 6 Em El Mágico Prodigioso o ambiente da casa é o espaço onde acontecem as cenas cômicas de esconde-aparece, portas duplas, saídas tortuosas, apresentando uma visão exagerada da confusão labiríntica que Calderón descobre no mundo humano temporal. Mundo dual que, através de seu discurso, com frases de ritmo binário e palavras antitéticas, expõe o universo claro-escuro do Barroco. No início e final das situações e entre os diálogos percebemos as didascálias que sinalizam a voz do autor e seu trabalho mental de elaboração do ato criativo, situando as ações num determinado espaço cênico: bosque, estrada, gruta, casa, e visualizando os personagens em seu cenário mental diante de um público. Vejamos, então, alguns exemplos prodigiosos, na seguinte situação da Jornada II: Múdase un monte de una parte a otra del tablado.(p.629). Aqui se percebe, nesta didascália explícita, a mudança de cenário através dos signos múdase,monte, efetuada pelo Demônio para mostrar a Cipriano uma pequena parte de seus poderes. Em seguida, quando lhe mostra Justina dormindo dentro de um penhasco, na seguinte didascália explícita: Ábrese un penhasco y está JUSTINA durmiendo, (p. 629) espaço que se apresenta em forma de visão mágica, pelo signo ábrese, ao tentálo com a aproximação da amada, por efeitos ilusórios. E já ao final desta mesma jornada, ao dialogar com Cipriano Demonio: - ... que en una cueva encerrados, sin estudiar otra cosa hemos de vivir entrambos sirviéndonos solamente a los dos este criado Saca a CLARÍN que curioso se quedó, pues con nosotros llevando su persona, este secreto de esta suerte aseguramos.(p.630) através de sua réplica observamos, na didascália implícita, a delimitação espacial, através do signo cueva, ao irem para a caverna estudar magia; e na didascália explícita, de movimento, com o signo saca, ao levar o criado Clarín, transportando-o a este mesmo ambiente para manter em segredo seu plano, concretizado no pacto efetivado com Cipriano anteriormente. Já na Jornada III, ao enganar Cipriano com a figura de Justina, vemos na didascália explícita, a situação Escóndese y sale Cipriano trayendo abrazada una persona cubierta y 58 Volume 4 | Literatura Espanhola con vestido parecido al de Justina, que es fácil siendo negro este manto y vestidos, y han de venir de suerte que con facilidad se quite todo y quede un esqueleto, que ha de volar o hundirse, como mejor pareciere, como se haga con velocidad; si bien será mejor desaparecer por el viento. (p. 635) as indicações de deslocamento através dos signos escóndese, sale, ao se esconder seu criado Clarín, enquanto Cipriano surge no aposento abraçado à figura de sua amada, que na verdade não passa de um esqueleto. Aqui, um registro do gosto pelo macabro, representado pela caveira - recurso iconográfico usado no Barroco, que articula os conceitos de tempo, mudança e caducidade à morte – “vanitas”: dirigindo-se ao público que contempla o fúnebre monumento. (MARAVALL,1988, p.341) Através dos signos volar, hundirse, de modo veloz, desaparecendo ao vento, o uso de um pescante, para conseguir o efeito desejado, de deslocamento rápido, evidenciando a mudança espacial. Concluímos, então, através de alguns exemplos de indicações cênicas, pelas didascálias e diálogos, que neste teatro do mundo tudo acontece em pequena escala, mas o nível cênico tem um simbolismo mental, espiritual, que é captado pelos sentidos que o transcendem, nos espaços anímicos, pela alegoria. O destaque dado ao personagem diabólico é essencial para demonstrar os recursos que este teatro possuía; seus” prodígios mágicos” como alegoria do grande teatro barroco deste dramaturgo, amante das artes e cenógrafo brilhante. Referências Bibliográficas CALDERÓN de La Barca, P. El Mágico Prodigioso. Obras Completas.Tomo1. Dramas. Madrid. Aguilar.1967.p.603-642 CURLO, V. El tema de Cipriano y Justina releído desde sus orígenes mitológicos hasta El Mágico Prodigioso de Calderón.In:Calderón 2000.Actas Congreso Internacional V Centenario del nacimiento de Calderón; Universidad de Navarra, Set.2000.Vol.2 Ignacio Arellano. Kassel. Ed. Reichenberger. 2002 MARAVALL, J.A. La Cultura del Barroco. Barcelona. Ed. Ariel. 1988 SILVA, María G. La función del diablo en un drama de Calderón: Las cadenas del Demonio.In:Hacia Calderón.Estudios Críticos de Literatura Española. Universidad Nacional de Mar del Plata. Vol.1. Mar del Plata. 2003.p.233-241 VIANNA PERES, L.R. O maravilhoso em Calderón de La Barca – Teatro da memória. RJ. Ágora da Ilha. 2001 59 Hispanismo 2 0 0 6 Referencia eletrônica SCHMIDHUBER de La Mora, G. Apología de las didascálias o acotaciones como elemento sine qua non del texto dramático.Sincronía. Revista de la Univ.de Guadalajara.México.Invierno.2001.Disponível em: http://sincronia. cucsh.udg.mx/schmid2.htm . Acesso em: novembro de 2005. Nota: 1 Según A.L.Cilveti, las comedias referidas son: El purgatório de San Patrício, El Mágico Prodigioso, El gran príncipe de Fez, El José de las mujeres, Las cadenas del demonio y La margarita preciosa. A.L.Cilveti, El demonio en el teatro de Calderón, Valencia. Albatros,1977,p.41-42. 60 Volume 4 | Literatura Espanhola Aspectos de um mito judaico em La Celestina Eleni Nogueira dos Santos (USP) Com este texto, temos o intuito de analisar a personagem Celestina presente na obra La Celestina de Fernando de Rojas. Nosso objetivo é apontá-la como uma possível personificação de Lilith, a primeira esposa de Adão. Para isso, levaremos em conta a obra: Lilith: A Lua Negra de Roberto Sicuteri. Como é possível perceber, em La Celestina são as mulheres quem direcionam as principais ações. Estando Celestina à frente. E é assim, direcionando ações e pessoas que ela nos chama a atenção. Por isso, tentaremos apontar algumas semelhanças entre Lilith e Celestina. Como se sabe, várias são as versões sobre o nascimento de Lilith. Um mito que, apesar de suas longínquas e obscuras origens, resistiu ao tempo, influenciou diversas culturas, como a sumeriana, a egípcia, a romana, enfim, marcou sua presença do oriente ao ocidente. E assim, chegou à Idade Média, na figura da bruxa, em uma de suas versões’ mais cruéis, não para o homem “seu inimigo em potencial”, mas para ela ou elas, as mulheres, porque milhares foram as Lilith’s queimadas durante o longo período de “caça as bruxas” medievais. Dentre algumas das versões deste mito, vejamos a proposta de Roberto Sicuteri: O mito de Lilith pertence à grande tradição dos testemunhos orais que estão reunidos nos textos da sabedoria rabínica definida na versão jeovística, que se coloca lado a lado, precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos sacerdotes. Sabemos que tais versões do Gênesis_ e particularmente o mito do nascimento da mulher_ são ricas de contradições e enigmas que se anulam. Nós deduzimos que a lenda de Lilith, primeira companheira de Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição da versão jeovística para aquela sacerdotal, que logo após sofre modificações dos Pais da Igreja. (SICUTERI, 1998, p. 23) Como podemos perceber, o mito de Lilith apesar da falta de documentos que retratam com exatidão a sua origem, costuma ser atribuído à tradição hebraica. Este mito parece ter influenciado a mente humana, ou melhor, a mente masculina a praticar atrocidades cuja explicação estaria não só no mito, mas também no pensamento misógino fortemente marcado na cultura masculina, durante a Idade Média. Nesta época, o mito deixou suas marcas na história e esta influenciou a Literatura e é na literatura, escrita durante esse período, que encontramos a fonte de uma possível e, talvez, 61 Hispanismo 2 0 0 6 não coincidente personificação de Lilith, ou seja, na obra La Celestina ou Tragicomedia de Calisto y Melibea. Para o autor Roberto Sicuteri, Lilith é “aquela apontada não como mulher, mas como demônio” (SICUTERI, 1998, p.29). Diante disso, teríamos então, a primeira semelhança entre Lilith e Celestina, pois vimos, por algumas vezes, através de Sempronio e Elicia, Celestina sendo associada ao diabo. Ela era conhecida por uma marca que trazia no rosto, um sinal que representaria um símbolo demoníaco. Trazer uma marca no corpo era, também, uma característica das bruxas. No III ato, ao fazer o conjuro a Plutão ela diz assim: “Yo, Celestina, tu más conocida clientúla...” (ROJAS, 2004, p.147). É pela boca dela também que ouvimos esta curiosa fala “Que no sólo lo que veo, oyo y cognozco, mas aun lo intrínsico con los intellectuales ojos penetro”.(ROJAS, 2004, p.117) Assim, ela parece assumir sua condição de bruxa e com isso nos faz crer que possui poderes ocultos. Não obstante, isso não parece estar relacionado somente aos poderes de uma bruxa, mas também aos poderes demoníacos. As bruxas eram, de um modo geral, pessoas pertencentes às classes sociais baixas e que eram jovens e bonitas, mas poderiam ser também, velhas e feias, às vezes, viúvas, sendo estas, as mais freqüentes e eram as que causavam maior pavor entre aqueles que acreditavam em sua existência. Como sabemos, Celestina pertencia a este último grupo. Um outro ponto que nos parece interessante, é que ao decorrer do tempo, o mito de Lilith, ficou marcado por sua recusa à submissão. Afinal de contas, foi por não aceitar a submissão, ou seja, por não atender à ordem de ficar em baixo de Adão na hora ato sexual, que ela fugiu para o Mar Vermelho e por não atender às ordens do deus Jeová para voltar e ficar ao lado de Adão é que ela passou a ser identificada como um demônio. Celestina não seguia e nem aceitava ordens de ninguém. Assim como Lilith, ela queria a igualdade e não aceitava ser inferior ao homem. Podemos perceber isso no XII ato quando ela diz a Sempronio e a Pármeno que todos eram iguais, ou seja, homens e mulheres. Foi esse modo de pensar, ou melhor, a “ousadia” de Celestina que contribuiu para sua morte e ainda sem confissão. O que significa dizer que, para época de sua escritura, a personagem também estava condenada ao inferno. Diante disso, podemos entender que Celestina almejava a independência. É claro que, durante a Idade Média, seria um exagero, ou no mínimo um tanto prematuro falar em independência feminina. Mas é possível perceber que Celestina era uma personagem bastante autônoma. Ainda que ela se utilizava das formas mais perversas possíveis, para conseguir essa autonomia. Esta 62 Volume 4 | Literatura Espanhola parece ser a característica mais interessante deste mito. Parece ter sido também a que mais irritava ou, talvez, causava pânico ao sexo oposto. Conforme Doroty S. Severin na introducción a La Celestina, “Celestina é encarregada de proferir a tradicional maldição contra a morte” a (ROJAS, 2004, p.42). No entanto, é Celestina quem morre primeiro abrindo, assim, o caminho para as seqüências de trágicas mortes que ocorrem na obra. Também, encontra se na tradição rabínica, relatos de que a mulher, seja sob o signo de Eva ou Lilith, simboliza a morteb. Como tantos outros pontos curiosos na obra, a moradia de Celestina, já foi motivo de investigações de pesquisadores, na tentativa de encontrá-la como um possível cenário real. Mas o que nos chama a atenção, neste caso, é a sua caracterização, já que os Diabos, lillim, Lilith aí compreendida, habitam... lugares sombrios, sujos e perigosos; entre as pedras, no deserto, entre as ruínas;mas particularmente próximo a água (grifos nosso)...os lugares de refúgio dos demônios são os rios, os lagos, os mares, as casas em completa ruína.(grifos nosso)... (SICUTERI, 1998, p. 45). Agora vejamos, como nos é apresentada a moradia de Celestina pela personagem Pármeno, em um diálogo com Calisto ele diz assim: “Tiene esta buena duña al cabo de la cibdad, allá cerca de las tenerías, en la cuesta del río, una casa apartada, medio caýda, poco compuesta y menos abastada (ROJAS,2004, p.110). E como se sabe, as moradias em ruínas costumavam ser, também, os lugares escolhidos para a realização dos sabás das bruxas medievais. Assim, se entende que demônios e bruxas estavam intimamente ligados.. Lilith representa o lado “negro” da vida, a parte escura da chama e Celestina, como não poderia deixar de ser, ao chegar em casa um dia á noite é recebida dessa forma por Elicia: “ Éstas son tus venidas; andar de noche es tu plazer;” (ROJAS,2004,p.209). Lembramos que em outro diálogo, na casa de Calisto, Sempronio e Pármeno se oferecem para levar Celestina em casa, porque era noite e poderia ser perigoso para ela. Porém, se ela era uma bruxa como muitos críticos consideram e ao que parece, não há dúvidas nisso, realmente as afirmações de Elicia parece fazer mais sentido. Pois se levarmos em conta o contexto desse diálogo, veremos que haviam outros interesses além da companhia oferecida a ela. Nesse sentido, abordamos mais um costume da bruxa onde é dito que ela “bebe várias misturas, talvez vinho” (SICUTERI, 1998, p.125), e desta vez é pela boca de Celestina que sai este longo fragmento a respeito dos 63 Hispanismo 2 0 0 6 benefícios do vinho, que foi dito nestes termos: [...]esto me callenta la sangre; esto me sostiene contino en un ser; esto me hace siempre alegre; esto me para fresca [...]. esto quita la risteza del coraçón mas que el oro ni el coral. Esto da esfuerço al moço y al viejo fuerça., pone color al descolorido, coraje al covarde, al floxo diligencia, conforta los celebros,saca el dríodel stómago, quita el hedor del alientos, haze potentes los fríos, haze sofrir los afanes de las labranças a los cansados segadores, haze sudar toda agua mala,sana el romadizo y las muelas, sostiene sin heder en la mar, lo qual no hace el agua.(ROJAS, 2004, p.225) Não queremos com isso, dizer que eram somente as bruxas que tomavam e sabiam valorizar o vinho, no entanto, é Celestina quem diz isso, por que não outra personagem? Parece-nos claro que Rojas procurou, a seu modo, caracterizar esta personagem, dando ao leitor indícios de que descrevia uma bruxa. Quando se fala no mito de Lilith ou mesmo de Evac, logo se traz em evidência o estereótipo da grande mãe. Não a mãe em sua essência, como é considerada hoje, ou na simbologia da Virgem Maria. Mas sim uma mãe má, ou seja, um ser que é também serpente e traz si a morte e muitos males. Muitas personagens a chamam de mãe, mas não há entre elas uma relação de mãe e filho. Se Lilith foi a primeira mulher, seria ela também a “mãe” da humanidade e era assim, como mãe que Celestina era conhecida pelas outras personagens. Não podemos deixar de falar de um outro aspecto que estava claramente relacionado, não só ao mundo das bruxas, mas também ao das mulheres em geral, a misoginia. Um pensamento que esteve presente na cultura masculina daquela época e que, sem sombra de dúvidas, manifestou-se na obra de Rojas. Dizemos isso, não só pelo discurso misógino de Sempronio no I ato, mas, também, pela caracterização das personagens femininas, que eram carregadas de maus adjetivos típicos dos discursos misóginos. Nessa perspectiva, torna-se relevante mencionar as fontes que foram usadas na obra já que, em sua grande maioria, são de autores considerados misóginos. Dentre estas fontes pode-se incluir a bíblia, já que, de acordo com alguns historiadores, ela serviu de inspiração para justificar o comportamento misógino e a caça as bruxas. Apesar de tudo isso, é inegável que Celestina nos faz rir, porém não rimos de Celestina, rimos daquilo que é dito por ela e das pessoas a quem ela se refere. Henri Bergson, em sua obra O Riso. Ensaio sobre a significação do 64 Volume 4 | Literatura Espanhola cômico, nos diz que “Uma personagem de tragédia não mudará em nada sua conduta ao saber que a julgamos”. (BERGSON, 2004, p.12). Assim é Celestina, ela sabe que muitos não aprovam o seu comportamento e, no entanto, ela não altera em nada, a sua conduta, mesmo estando consciente das burlas que sofre. Por tudo isso, acreditamos que Celestina não possui um caráter propriamente cômico, mas sim trágico. Júnia Barreto, no ensaio A mulher é o monstro: do mito de Lilith ao drama de Victor Hugo e o cinema de Babenco e Piglia, afirma que “Os excessos sexuais, a adoração do diabo e os poderes ocultos fazem da figura da bruxa uma autêntica personificação de Lilith.” (BARRETO, 2002, p.222). Podemos perceber que tais condutas são inerentes à personagem Celestina. Mais adiante a ensaísta acrescenta que a figura de Lilith se manifesta na cultura masculina ligada a dois temas, o amor e a morte, temas paradoxais que estão presentes e servem, inclusive, de alicerce para o enredo da obra de Rojas. Enfim, seja pelo comportamento, pela caracterização, pelas descrições Celestina representou uma típica bruxa da Idade Média e como bruxa personificou Lilith. E sendo Lilith aquela que “... nasce, talvez, do sonho ou da narrativa dos Rabis, nasce de uma necessidade ou de uma fantasia coletiva” (SICUTERI, 1998, p.25). Assim sendo, o sonho, a fantasia ou mito enriquecem a arte, influencia obras, como La Celestina. Mas, infelizmente, foi na história que esse mito deixou suas mais dolorosas cicatrizes, principalmente, no gênero feminino, resultado, talvez, do medo masculino ou ainda de tabus socioculturais, socioeconômicos e ou religiosos em relação ao “segundo sexo”. Referências Bibliográficas BARRETO, Júnia. A mulher é o monstro: do Mito de Lilith ao drama de Victor Hugo e o cinema de Babenco e Piglia In: DUARTE, Constância Lima, RAVETTI, Graciela, ALEXANDRE, Antônio Marcos (Orgs). Mulher e Literatura: I Gênero e Representação em Literaturas de Línguas Românicas. Editora UFMG, Belo Horizonte, 2002. Coleção Mulher & Literatura.Vol. V - 2002. pp.220-227. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1949. BERGSON, Hanri. O Riso. Ensaio sobre a significação do cômico. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo, Martins Fontes. 20004. BLOCH, R. Howard. Misoginia Medieval: A Invenção do Amor Romântico Ocidental. trad. Cláudia Morais. Ed.34 (Nova Fronteira). Rio de Janeiro. 1995. 65 Hispanismo 2 0 0 6 DUARTE, Eduardo de Assis. Representações do feminino demoníaco em O Cortiço, de Aluízio Azevedo. In revista Vivência, V.8. n.2. natal: CCHLAUFRN, 1994. FRANÇA, Júnea Lessa. Manual para Normalização de Publicaçõe Técnicocientíficas. 6ª ed. rev.amp.Belo Horizonte: editora da UFMG. 2003 . GONZÁLEZ, Mario Miguel. Celestina: o diálogo paradoxal. Cuadernos de Bienvenido nº 2: São Paulo: Departamento de letras Modernas/FFLCH/ USP,1996. Disponível em: <http://www.fflch.uso.br/dlm/espanhol/cuadernos>. Acesso em: 09 mar. 2005. MURARO, Rose Marie. Textos da Fogueira. Brasília: Livraviva, Brasília. Ilustr. 2000. ROJAS, Fernando de. La Celestina (Ed. e introd. de Dorothy S. Severin). 14ª ed. Madrid: Cátedra, 2004. SEVERIN, Dorothy S. “Introducción”, In: ROJAS, Fernando de. La Celestina.14ª ed. Madrid: Cátedra, 2004, pp. 11-44. SICUTERI, Roberto. Lilith: A Lua Negra. Trad. Norma Telles e J. Adolpho S. Gordo. 6ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. Notas a b c Celestina es la encargada de proferir la tradicional maldición contra la muerte. Conforme expõe Roberto Sicuteri e Simone Beauvoir. Vide referências bibliograficas Estamos consideramos aqui as afirmações Roberto Sicuteri , ao dizer que “ o vivido por Lilith é também o vivido por Eva” 66 Volume 4 | Literatura Espanhola O discreto em No hay burlas con el amor de Calderón de la Barca Eliane Maria Thiengo Demoraes (UCP/UFRJ) Nesta comunicação pretendemos trabalhar a personagem do discreto, “tipo católico contra-reformado”, como o define o prof. Hansen (1996, p. 79), compreendendo que era o modelo social vigente na época, mas por se estar tratando com uma obra teatral, considerar-se-á o discreto como uma personagem de teatro. A obra eleita para a apreciação do discreto é a comédia No hay burlas con el amor, de Pedro Calderón de la Barca, dramaturgo oficial da corte de Felipe IV. Presume-se que a obra tenha sido escrita em 1636 e representada em 1637, com o objetivo, como aponta Valbuena Briones (in: OC, Calderón, 1987, p. 493), de entretenimento para o público porque possui características cômicas, sem deixar, contudo, de ser uma obra ética que passa ensinamentos morais, sociais e éticos, aspecto característico nas obras de Calderón, pois, “existe en cada pieza una serie de advertencias y de lecciones que el público entendía y seguía”. Neumeister (2000, p. 9) aponta que o conceito de jogo aparecia nos dramas e comédias, pois, foram pensadas como forma de comemoração de algum fato ou data, pensadas como festa, como forma de reunião de pessoas para celebrar algum fato, ou simplesmente para distrair ou divertir. Por esta razão, revela a forma de pensar e o comportamento da época; tal fato, a insere no contexto de sociabilidade. Ressalta ainda, na p. 78, que a arte, caminhava ao lado da Igreja, não discutia nem se contrapunha à verdade absoluta ditada por ela. No hay burlas con el amor, está dividida em três atos ou “jornadas”. Na primeira, o motivo, a trama se estabelece; a personagem don Juan pede ajuda ao amigo don Alonso e a seu criado Moscatel para entregar um bilhete a sua amada; na segunda, se desenvolve com a entrega do bilhete e toda a complicação gerada por isto; para, por fim, na terceira jornada, tudo se resolver, por meio do amor. Uma comédia caracteriza-se por ser uma obra dramática, com enredo e desenlace festivo ou prazeroso. Reúne a música, a declamação, o canto e a dança, o baile, formalizando a teatralidade ou “colectivismo artístico”, ou seja, a junção das artes, como aponta Orozco Díaz (1969, p. 11). A palavra “discreto” é de origem latina, derivada de «discrëtus», particípio passado de «discernÕre», que significa distinguir; quando aplicada à pessoas corresponde a sua conduta, suas palavras, etc.; alguém, dotado de tato para fazer ou dizer o que lhe é conveniente e não causar moléstia ou desgosto a outros. Aplica-se ao que não divulga o que interessa 67 Hispanismo 2 0 0 6 manter reservado. Significa ainda, aquele que não mostra curiosidade impertinente. “No século XVII”, aponta Hansen (1996, p. 79), “é discreto o que não é vulgar”. A conveniência de não revelar o que interessa manter em sigilo remete à dissimulação e a aparência, que se compreende como outros atributos do discreto (Idem, p. 83), exemplificada, na obra de Calderón pelas personagens centrais. De acordo com Baltasar Gracián, no livro El Discreto, Cap. I, disponível em, <www.cervantesvirtual.com>, para ser discreto deve-se começar por si mesmo, “comience a saber, sabiendose”. Em Maravall (1996, p. 137), encontramos uma explicação para esta frase de Gracián. Esclarece que “vivir es vivir acechantemente entre los demás, lo que nos hace comprender que ese <<saber>> gracianesco y barroco se resuelva en un ajustado desenvolvimiento maniobrero en la existencia”. À medida que conhecemos a nós mesmos podemos, a partir daí, conhecer o universo circundante; com a recomendação de “viver acechantemente”, significando “viver cautelosamente”, compreendemos, portanto, que o discreto necessita de cautela em seus atos; ecessita de prudência para, assim, poder controlar –ou até manipular– a vida ao redor porque sua conduta implica sua moral (MARAVALL, 1996, p. 138). A obra No hay burlas..., segundo afirma Ángel Valbuena Briones (1987, p. 493), foi pensada para o entretenimento do público do palácio, ou seja, da corte. Pensa-se que foi encomendada pela corte para o simples entretenimento, pois, não aparece em nenhuma fonte pesquisada a referência a sua representação em uma ocasião especial. Sabe-se que a ostentação do luxo tinha sua função (Elias, p. 61ss), era um recurso utilizado pela corte espanhola como forma de afirmação de seu poderio, pois, no “espectáculo de la fiesta quedan cubiertos el entretenimiento y la ostentación cortesanos” (NEUMEISTER, 2000, p. 9), isto em um período em que a Espanha já estava em declínio político, econômico e militar. Mais adiante, Neumeister (Idem, p. 107), confirma este fato quando aponta que o rei cumpre seu dever, seu papel na festa, como representante da nação espanhola; acrescenta que o éxito de la fiesta de corte no se mide por el pasatiempo logrado, sino, al contrario, por la posibilidad de documentar este éxito, símbolo de un estado próspero, en relatos diplomáticos y en sueltas de lujo. Seu poder é exibido diante de um público de cortesãos, de embaixadores e de príncipes estrangeiros, porque esta festa serve para a glorificação da casa real governante e, com este fim, se encarrega, se escreve como auto representação da dinastia, se exibindo ao país e ao estrangeiro. 68 Volume 4 | Literatura Espanhola Calderón em sua obra retoma a personagem protagonista do drama El burlador de Sevilla y convidado de piedra, do frei Gabriel Télles, mais conhecido como Tirso de Molina que formaliza, pela primeira vez, a personagem mito, don Juan, em 1627. No hay burlas... recupera o don Juan dando um desfecho diferente ao de Tirso. Na obra de Tirso, a personagem don Juan brinca com o amor, despreza as damas quando se enamoram por ele. O clímax dramático se dá por meio do fogo, transmutando seus pecados. À primeira vista, a obra de Calderón conta a história de um criado, o “gracioso”, que se enamora por uma criada. Quando percebida por outro enfoque, nota-se que o mito de don Juan, de Tirso aparece retomado, na personagem don Alonso, recebendo outro tratamento. O do frei, nunca se apaixonou; o de Calderón, na primeira jornada mostra-se resistente, replicando que o amor torna o homem liberal, prudente e galã como se observa nos versos grifados ao final da citação: Juan.– ¿Qué es esto? Alon.– Es un pícaro, que ha hecho la mayor bellaquería, bajeza y alevosía que cupo en humano pecho, la más enorme traición, que haber pudo imaginado. Juan.– ¿Qué ha sido? Alon.– ¡Hase enamorado! Mirad si tengo razón de darle tan bajo nombre; traición ni bellaquería, un hombre. Juan.– Amor es quien da valor y hace al hombre liberal, cuerdo y galán. (p. 497.1; grifo meu) Em No hay burlas... encontramos o don Juan como nobre, galã, o jovem bem vestido, educado e “discreto”, nada vulgar como se verifica na réplica de don Alonso: Alon.– ................................. que vos sois noble, galán, rico, discreto, y en fin, vuestro es amar y querer; mas ¿por qué ha de encarecer el amor la gente ruin? (p. 497.2; grifo meu) 69 Hispanismo 2 0 0 6 Observa-se que a ação se dá com personagens da corte em seu movimento diário, revelando o “padrão intelectual de pensamento e ação” seiscentista (HANSEN,1996, p. 82). As personagens utilizam-se do recurso do fingimento, uma das várias facetas que apresenta o discreto. Don Juan se enamora doña Leonor e toda a trama gira em torno deste amor. Para conseguir comunicar-se com sua amada, don Juan pede ajuda a seu amigo, don Alonso, e a seu criado Moscatel, para que lhe entregue um bilhete. Doña Beatriz, irmã mais velha, figura aguda, antipática porque estudou demais (fato comum somente aos homens), rouba-lhe o bilhete e ameaça entregá-lo a seu pai. A farsa, a aparência, o fingimento aparecem, retratando o cotidiano da corte. No diálogo seguinte o fingimento se aclara: Leonor – Aunque intentes por fuerza verle, tirana, poco podré, o no has de verle. Beatriz – Deja el papel. (Sale Don Pedro a tiempo que rompen el papel, quedándose con la mitad cada una.) Pedro - ¿Qué papel es? ¿Por qué reñis, aleves? Inés. [Aparte] Cayóse la casa, como dice el fullero que pierde. Pedro – Suelta ese pedazo tú, y tú suelta esotro (p. 504.2). Na segunda jornada encontramos outra característica do discreto: no diálogo estabelecido entre don Juan e don Alonso aparece em uma frase hacer tercio, tal expressão significa, a conveniência e utilidade em uma ocasião, Juan.- En la corte, don Alonso, ¿cada día no se mira, por hacer tercio a un amigo, enamorar a una amiga? Alon. – También se mira, don Juan, en la corte cada día perder uno su dinero por hacer tercio a una rifa (p. 512.1) 70 Volume 4 | Literatura Espanhola ou seja, a cada dia, na corte, se acomodam situações de acordo com a conveniência, com o que lhes interessa. Doña Leonor declara que “esto conviene a mi honor” (Idem, p. 514.2). É na terceira jornada que o público recebe a grande “lição”, don Juan que primeiro estava apaixonado, se desengana de sua amada quando a percebe capaz de mentir e articular uma situação contra sua irmã, resultando no ferimento de seu melhor amigo, que se torna manco; portanto, este alguém não é digno de receber seu amor; don Juan a toma como fingida, manifestando o sentimento de honra. A questão do mérito, abordada por Alcir Pécora (2001, p. 124), é cabível neste momento: Mérite, portanto, no universo das máximas, longe de ser apenas uma virtude íntima ou individual, implica a cobrança de uma dívida: a exigência ou petição – para mantermos a terminologia jurídica – de uma equiparação ostensiva entre o bem inato e a sua função reparadora para o conjunto da hierarquia social. De outra maneira, são “merecimentos” que assinalam não apenas os bens ou virtudes possuídas, mas a recompensa ou castigo que recebem, isto é, a resposta social a que o bem pessoal faz jus. Don Alonso por se revelar romântico, se curva ao Amor de Beatriz, portanto, merece, se torna digno do prêmio: Alon. - ......................... Por burla al mar me entregué por burla el rayo encendí con blanca espada esgrimí, con brava fiera jugué; y así, en el mar me anegué, del rayo sentí el ardor, de acero y fiera el furor: luego si saben matar fiera, acero, rayo y mar, <<no hay burlas con el amor>> Bea. – A ese argumento... (p. 524.2; 525.1) efetivando a diferença entre a personagem sem caráter de Tirso de Molina e a moralista de Calderón de la Barca. Nota-se que doña Beatriz perde sua “agudeza”, passando, assim, a ser submissa ao amor. Por outro lado, doña Leonor merece acabar sozinha por ter-se comportado mal. Ao final da comédia sempre vence o bem. Ao criado, ao “gracioso”, ao rendido ao amor e ao poeta, cabe o arremate final da questão: 71 Hispanismo 2 0 0 6 Mosc. – En fin, el hombre más libre, de las burlas de amor sale herido, cojo y casado, que es el mayor de sus males. Inés. – En fin, la mujer más loca, más vana y más arrogante, de las burlas del amor, contra gusto suyo sale enamorada, y rendida, que es lo peor. Mosc. – Inés, dame esa mano: si há de ser, no lo pensemos, y acaben burlas de amor que son veras. Alon. – No se burle con él nadie, sino escarmentad en mí, todos del amor se guarden, y perdonad al poeta, que humilde a esas plantas yace. (p. 526.2; 527.1.2) Neste momento, cabe retomar a Gracián quando no capítulo VII, El hombre de todas las horas, escreve: “No se há de atar el Discreto a un empleo solo, ni determinar el gusto a un objeto, que es limitarlo con infelicidad; hízolo el Cielo indefinido, criolo sin términos; no se reduzca él ni se limite. O discreto, para Gracián, era aquele que vivia e agia segundo sua conveniência, por isto, não se deve atá-lo nem, tampouco, limitá-lo. O tipo, comum no século XVII, aparecia também exposto no teatro. Hansen afirma que a discrição “é uma categoria intelectual que classifica ou especifica a distinção e a superioridade de ações e palavras, aparecendo figurada no discreto, que é um tipo ou uma personagem do processo de interlocução” (HANSEN, 1996, p. 83). Como observado, o tipo retomado por Pedro Calderón de la Barca, da obra de Tirso de Molina, em No hay Burlas con el amor, teve seu desfecho alterado porque se enamorou. Atendendo ao modelo vigente, com seu teatro utilizado como matriz dos modelos (Idem, p. 86), perpetua o tipo “discreto”, uma vez que a discrição pode ser adquirida. Disse Hansen (1996, p. 84): “é discreto” aquele que “domina os protocolos dos decoros, com discernimento do que é “melhor” em cada caso”. Seguindo sua linha de pensamento, no XVII, a monarquia ibérica tinha a discrição como padrão de racionalidade de corte definindo o cortesão; o homem universal estava proposto também para todo o corpo político, por esta razão, a agudeza, a prudência, a dissimulação, o fingimento, a aparência e a honra são atributos da discrição. 72 Volume 4 | Literatura Espanhola Referências Bibliográficas CALDERÓN DE LA BARCA, Pedro. Obras completas. Comedias, Tomo I. Recopilación, Prólogo y notas por Ángel Valbuena Briones, 2ª ed. Madrid: Aguilar, 1987. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. ELLIOTT, J.H. La españa imperial. 5ª ed. 6ª reimpresión. Barcelona: Vicens Vives, 1998. GRACIÁN, Baltasar. El discreto. Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.es>. Acesso em: 26.12.05. 21:30h. HANSEN, João Adolfo. O discreto. In: NOVAES, Adauto. (org). Libertinos Libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 77-102. MARAVALL, José Antonio. La cultura del Barroco. Barcelona: Ariel, 1996. NEUMEISTER, Sebastián. Mito clásico y ostentación. Zaragoza: Reichenberger, 2000. OROZCO DIAZ, Emilio. El teatro y la teatralidad del Barroco (Ensayo de introducción al tema). Barcelona: Editorial Planeta, 1969. PÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros. São Paulo: Edusp, 2001. 73 Hispanismo 2 0 0 6 Metamorfosis: ciclos de vida en el Quijote Esteban Reyes Celedón (UFRJ) Jorge Luis Borges, lector de Cervantes, escribió un cuento con el título de Funes el memorioso. Para aquellos que no recuerdan o no leyeron el cuento de Borges: Ireneo Funes, su personaje principal, nació en 1868; fue un muchacho que sufrió un accidente, se cayó y perdió el conocimiento; cuando lo recobró, el presente le era casi intolerable de tan rico y tan nítido, y también las memorias más antiguas y más triviales. Sabía, por ejemplo, las formas de las nubes australes del amanecer del 30 de abril de 1882. Si un idioma representa y expresa el mundo capturado por los sentidos humanos, sin duda, pensó Funes, podría crearse un idioma en el que cada cosa individual, cada piedra, cada pájaro y cada rama tuvieran un nombre propio; pero lo desechó por parecerle demasiado general, demasiado ambiguo. En efecto, Funes no sólo recordaba cada hoja de cada árbol de cada monte, sino cada una de las veces que la había percibido o imaginado; y creía necesaria la existencia de un idioma que pudiera nombrar individualmente no sólo las cosas como también las percepciones que tenemos de ellas. Funes, incapaz de ideas generales, platónicas, le costaba comprender que el símbolo genérico caballero abarcara tantos individuos dispares de diversos tamaños y diversa forma; le molestaba que el Caballero de las tres y catorce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el Caballero de las tres y cuarto (visto de frente). En el abarrotado mundo de este muchacho no había sino detalles, nada de ideas o nombres generales, sólo detalles. Ireneo Funes murió en 1889, de una congestión pulmonar. Pues bien, la pregunta que nos proponemos responder y explicar en este trabajo es: ¿Habría alguna relación entre Funes el memorioso y El Ingenioso Hidalgo don Quijote de La Mancha? Creemos que sí, sería: la necesidad de dar nombres distintos a un supuesto mismo individuo. La mayoría de los humanos, que no son tan detallistas cuanto Ireneo Funes o Cervantes, pueden dar, sin ningún problema, el mismo nombre a diferentes percepciones consecutivas. De esta manera, cuando un bebé nace recibe un nombre que lo acompañará durante toda su vida; y, como si esto no fuese poco, también recibirá un apellido (que es herencia de su padre) y lo transmitirá a sus hijos, nietos, bisnietos y así sucesivamente, o sea, el apellido permanece ad aeterno, dándole de cierta forma eternidad a aquel bebé. Al contrario de los simples mortales, Cervantes, a la manera de Funes, sintió la necesidad de dar nombres distintos a distintos momentos de un supuesto mismo individuo. Así, esa “mancha” de la cual nos habla en la primera frase de su obra prima tendría, por necesidad detallista, varios nombres, todos ellos empezando con la letra “Q”. 74 Volume 4 | Literatura Espanhola Para la mayoría de las personas, un individuo (en el caso de la literatura, un personaje) tiene siempre el mismo nombre desde que nace hasta que muere, no importando si es niño o adulto, cuerdo o loco, hidalgo o caballero, si está naciendo o muriendo. Para Cervantes, no; no puede tener el mismo nombre el que nace y el que muere, el hidalgo y el caballero, son distintos, merecen tener nombres distintos. El hidalgo de las tres y catorce (visto de perfil) no puede tener el mismo nombre que el hidalgo de las tres y cuarto (visto de frente). Por eso que ese hidalgo del primer capítulo del Quijote puede ser llamado de Quijada, Quesada o Quijana, depende de cuando, donde y como fue visto. -¿Y si “verdaderamente se muere, y verdaderamente está cuerdo”? -Bueno, ahí, como es lógico para los Cervantes o Funes, tiene otro nombre, en nuestro caso específico, Quijano; pero como está en sus últimos momentos debe ser llamado por su nombre completo. ¿Qué tal darle un nombre poético o de un poeta? -Sí, puede ser el de Ercilla, el autor de La Araucana -¡Cervantes quería tanto conocer América! -Eso mismo, Alonso, Alonso Quijano; y como nadie es malo cuando la Parca lo viene a buscar, entonces llamémosle de bueno. -Merece ser llamado de Alonso Quijano el Bueno. Llamamos la atención en especial para la transformación de hidalgo en caballero o de cuerdo en loco como quieren algunos, que es, sin duda, la más relevante en la vida del personaje principal de Cervantes. Esa transformación seria una metamorfosis, como también lo es la del caballero en hidalgo, o, para usar los nombres propios, de don Quijote de la Mancha en Alonso Quijano el Bueno. La autora esclarece, habría cuatro tipos de transformaciones en El Quijote: por sucesión o secuencial, por acontecimiento o eventual, por encantamiento o retórica y por metamorfosis o esencial. Cada una de estas transformaciones merecería, por parte del autor o narrador (a veces por los propios personajes), nombres distintos. Explico las transformaciones: La primera, por sucesión o secuencial, sería, como el nombre lo indica, por continuación ininterrumpida; es la más imperceptible, la más demorada, la más conocida: la de un bebé en niño, la del niño en joven, la de Quijada en Quesada y de Quesada en Quijana. Estas transformaciones habrían ocurrido antes mismo del inicio del relato de las aventuras del caballero andante; son anteriores al primer capítulo del libro. La segunda, por acontecimiento o eventual, sería una transformación repentina y momentánea: la de sano en enfermo, de ciudadano en ministro, de 75 Hispanismo 2 0 0 6 vencedor en vencido, de caballero andante en Caballero de la Triste Figura. Duran poco tiempo y no dejan grandes marcas. Así, el enfermo recupera la salud, el ministro vuelve a ser un ciudadano común, el vencido puede ganar y la triste figura vuelve a ser alegre y muchas veces divertida, tal vez con algunos dientes a menos, pero con la misma determinación de proteger a los inocentes perseguidos en el mundo ya corrupto. La tercera, por encantamiento o retórica, sería básicamente en el ámbito del lenguaje, sin ninguna transformación sustancial: la del político en vicepresidente, del escudero en gobernador, de princesa en labradora, de Aldonza Lorenzo en Dulcinea del Toboso y, por que no, la de Miguel de Cervantes en Cide Hamete Benengeli. Por último, la cuarta transformación, la más genial, por metamorfosis o esencial, sería súbita como la segunda, sin embargo más duradera, se trataría de una transformación en la esencia de la persona (o personaje), cambio de naturaleza: la de larva en mariposa, de hombre en mujer, de hidalgo en caballero, de caballero en hidalgo, de cuerdo en loco, de loco en bueno. Esta última, por ser más duradera, puede contener a la segunda. Así, don Quijote de La Mancha por algunas veces puede ser llamado de Caballero de la Triste Figura o Caballero de los Leones, dependiendo del momento en que se encuentra y de la aventura lograda. El no tan fiel escudero puede ser, por algunos días, un sabio gobernador y después vuelve a su condición de iletrado criado. Todas estas transformaciones, y en especial la última, por metamorfosis, pueden ser consideradas ciclos de vida del personaje; y como tales, no sería sensato confundirlas o mezclarlas. Sería de poca precisión llamar, por ejemplo, al Caballero de hidalgo o al Hidalgo de caballero; como sería contradictorio llamar a un loco de cuerdo o a un cuerdo de loco. Para algunos, un objeto que relumbra podría ser llamado de yelmo de Mambrino; para otros, bacía de barbero; pero es inaceptable que se le llame de “baciyelmo”a. Esclarecimiento. En las múltiplas lecturas que hemos hecho de textos que hablan, supuestamente, del Quijote, encontramos algunas que, sin justificar su punto de vista, consideran que sea Alonso Quijano el personaje del inicio de la novela, incluso algunos llegan a nombrar a éste como se fuese el protagonista principal de toda la obra. Entre ellos están: Mario Vargas Llosa, el escritor peruano, que participa con una introducción en la respetada edición dirigida por Francisco Rico, en homenaje al cuarto centenario de la primera edición del Quijote (VARGAS LLOSA, 2005, p.14)b; y, Bruce W. Wardropper, que comenta el último capítulo de la novela, en la edición anterior de Francisco Rico para el Instituto Cervantes (WARDROPPER, 1998)c. Como bien sabemos todos los que ya hemos leído el clásico cervantino, no es Alonso Quijano quien se convierte en don Quijote, es lo contrario; y más, eso sólo ocurre al final del segundo libro, por lo cual no se puede llamar al 76 Volume 4 | Literatura Espanhola personaje de la primera parte del Quijote de Alonso Quijano. No hay como negar que es intencional el uso de varios nombres distintos para un supuesto mismo personaje. Para un desocupado lector, está claro que hay una razón para que el hidalgo al comienzo de la novela sea llamado de Quijada, Quesada o Quijana; como hay también una razón cuando se nombra al Caballero de manera distinta que al Hidalgo; y, al final de la historia, el que recupera el juicio y muere (como buen cristiano) es llamado por otro nombre, puede ser parecido a los anterior, pero es otro nombre. Todo nombre sirve para identificar una singularidad, y si intencionalmente se cambia el nombre es porque cambió el individuo al cual nos referimos. Estos cambios los consideramos como se fuesen ciclos de vida del personaje. Tendríamos entonces un personaje con varios ciclos de vida. Generalmente se habla de niñez, juventud y vida adulta. Pero en el Quijote, identificamos otras, por ejemplo: la de hidalgo, caballero, y, una vez más, hidalgo; o: la de cuerdo, loco, y la recuperación del juicio. Lo que debe quedar claro es que, al contrario de lo que nos enseña el título de la obra, el Hidalgo no se llama don Quijote de la Mancha; y, don Quijote no es hidalgo, él es caballero. Referencias Bibliográficas BORGES, Jorge Luis. “Funes el Memorioso” in Obras Completas, Buenos Aires, Emecé, 1989. Disponible en: <http://www.inicia.es/de/diego_reina/filosofia/logica/funes.htm> Acceso en: 07 jun. 2006. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Edición y notas de Francisco Rico (edición del IV centenario). Madrid: Santillana Ediciones Generales / Real Academia Española, 2004. Incluye introducción de: Mario Vargas Llosa, “Una novela para el siglo XXI”; Francisco Ayala, “La invención del ‘Quijote’”; Martín de Riquer, “Cervantes y el ‘Quijote’”. _____. Don Quijote de la Mancha. Edición y notas de Francisco Rico. Barcelona: Crítica, 1998. Disponible en: <http://cvc.cervantes.es/obref/quijote/ indice.htm> Acceso en: 07 jun. 2006. Incluye: interpretaciones, comentarios, notas y bibliografía actualizada por capítulos y asuntos. VARGAS LLOSA, Mario. “Los cuatro siglos del Quijote” in Estudios Públicos 100: El “Quijote” + 400. Santiago: CEP, 2005. pp. 5-18. Disponible en: <http:// www.cepchile.cl> Acceso en: 18 abr. 2006. WARDROPPER, Bruce W. “Capítulo LXIIII” in Don Quijote de la Mancha. Instituto Cervantes, 1998. Disponible en: <http://cvc.cervantes.es/obref/quijote/indice.htm> Acceso en: 07 jun. 2006. 77 Hispanismo 2 0 0 6 Notas a Tal vez “baciyelmo” pueda ser considerado como el producto de una transformación del tercer tipo, o sea, por retórica. “En las primeras páginas, es el alucinado Alonso Quijano quien la manifiesta”. “Al comienzo de la novela, Alonso Quijano, de cuyo nombre no querían acordarse sus vecinos, enloqueció; la historia de DQ es la de un loco”. b c 78 Volume 4 | Literatura Espanhola El cautiverio de Argel en el teatro de Cervantes: acción social, religión y alegoría Heloísa Pezza Cintrão (USP) ... sob a capa das palavras, ocultam-se as verdades, encobertas pelas variegadas formas das coisas; pois o direito público proíbe que as coisas santas sejam vulgarizadas. (Entheticus, apud Curtius, p. 266, nota 10.) El origen biográfico del tema: el cautiverio de Cervantes en Argel Entre lo poco que se sabe con seguridad de la biografía de Miguel de Cervantes Saavedra está su cautiverio, entre 1575 y 1580. Este episodio se relaciona con los servicios prestados como soldado español, referidos en sus escritos, especialmente en menciones a la batalla naval de Lepanto, en 1571. A los 28 años, tras haber actuado como soldado en diversas batallas, Cervantes fue llevado como prisionero a Argel, cuando corsarios turcos capturaron la galera donde volvía de Nápoles a España. Después de cinco años recuperó su libertad con auxilio de un fraile de la Orden de la Trinidad, dedicada al rescate de cautivos (Vieira, 1998: 29). Persuasión moral, política y social por el teatro en El trato de Argel Para Valbuena Prat (1992 [1943]: 127), Cervantes redactó El trato de Argel alrededor de 1580. De ser así, su composición: 1) fue casi inmediata al regreso de Cervantes a España, en 1580; 2) sería su primera elaboración literaria del tema del cautiverio de cristianos en Argel; y 3) también una de sus primeras obras literarias. En El trato de Argel, un matrimonio de españoles, Aurelio y Silvia, son capturados por piratas turcos. Se reencuentran en la condición de esclavos de un matrimonio de moros, que los acosan sexualmente. A lo largo de la obra, luchan por no ceder a este acoso, hasta que recuperan su libertad de manera providencial. Mientras se desarrolla este argumento central, se mencionan y se ponen en escena repetidamente la penuria, las humillaciones y el sufrimiento físico impuestos a los cautivos cristianos. Los personajes hablan de los amenazadores “peligros espirituales” a los que las tribulaciones del cautiverio exponen a los prisioneros cristianos en Argel. Se cuenta cómo son torturados, golpeados, azotados, mutilados, cómo padecen hambre y cómo sus enemigos los matan de manera lenta y dolorosa, por empalamiento, apedreamiento o en la hoguera. Se retrata así una situación inhumana de intenso sufrimiento para los españoles cautivos, mal 79 Hispanismo 2 0 0 6 vestidos, mal alimentados, sometidos al constante terror de la crueldad de sus enemigos turcos. En este escenario de horrores, los diálogos muestran con frecuencia la oscilación interior de los personajes entre dos opciones de conducta: a) librarse de los tormentos del cautiverio renegando del cristianismo o desconsiderando los preceptos cristianos; b) soportar con paciencia el cautiverio y mantenerse fieles a la fe cristiana para no perder el alma, peligro que explicitan en algunas escenas. La estructura de esta obra teatral sugiere la siguiente función informativo-persuasiva: hacer que el público español al que se dirige conozca en detalles las duras condiciones de vida de los cautivos de Argel, para moverlo a la compasión y a algún tipo de acción capaz de ayudar a resolver el problema social y espiritual del cautiverio y a rescatar a los numerosos cautivos cristianos. La función persuasiva de esta obra aparece sugerida especialmente cuando un evidente alter ego de Cervantes exhorta al rey a que organice una expedición militar para rescatar a los cautivos de Argel. Imaginando hablar directamente con Felipe II, un personaje denominado “soldado Saavedra” afirma sobre los musulmanes de Argel que: “Su gente es mucha, mas su fuerza es poca, / desnuda, mal armada, que no tiene / en su defensa fuerte muro o roca. / Cada uno mira si tu Armada viene, / para dar a los pies el cargo y cura / de conservar la vida que sostiene. / De la esquiva prisión amarga y dura, / adonde mueren quince mil cristianos / tienes la llave de su cerradura” (p. 135). Además de esta propuesta de acción política, otra propuesta, de acción social, queda sugerida en una escena en la que Aurelio ve a un niño español renegado y enaltece la importancia de las limosnas para rescatar a los cautivosa. Estas características sugieren que en buena medida El trato de Argel nace de la preocupación por hacer un teatro al servicio de una causa política y social: contribuir para ayudar a los cautivos de Argel. Sobre la alegoría en El trato de Argel y en la historia del cautivo En aquella que quizá haya sido su primera obra teatral, Cervantes se sirve de una forma muy evidente de alegoría, llevando a escena a la Necesidad y a la Oportunidad, personajes enviados directamente del infierno para convencer a Aurelio a ceder al acoso sexual de su ama mora. El protagonista no ve estas fuerzas moralmente corruptoras, pero, presentes en el escenario, hablan para ponerle ideas en la mente, ideas que 80 Volume 4 | Literatura Espanhola Aurelio repite en eco, como si pensara en voz alta. Más tarde, Cervantes se jactará del uso de este tipo de alegoría en su teatrob. No cabe en este breve ensayo discutir las dificultades de definir la alegoría, por sus relaciones con la metáfora, la analogía, el símbolo, la fábula, la parábola, en fin, con otras figuras y estructuras literarias caracterizadas por la comparación. Pero es necesario decir en líneas generales a qué llamaremos alegoría. En el teatro cervantino la alegoría se muestra en su forma más evidente: la corporificación de conceptos abstractos en personajes de la escena, con una indicación explícita, por sus nombres, de cuál es la entidad abstracta que representan. Pero consideraremos principalmente un tipo de alegoría menos ostensiva, la definida por Cícero como un “sistema integrado de metáforas” que da cuerpo y representación figurada a todo un sistema de ideas o pensamientos, en general de contenido moral, religioso, filosófico o político. Una elaboración más compleja de este tipo de alegoría, del campo de la teología y denominada “tipología”, estuvo muy presente en la Edad Media y en el Renacimiento y parece estar en la historia del capitán cautivo (Quijote I) y en la obra teatral Los baños de ArgeI. La tipología o alegoría teológica fue una alegoría interpretativa aplicada al texto bíblico, mediante la cual se establecían conexiones entre los episodios de la vida de Cristo y los elementos del Antiguo Testamento. Así, el éxodo del pueblo de Israel conducido por Moisés, se interpretó como “forma-tipo”, o incluso como una anticipación histórica, de la redención de la humanidad por Cristo. Se entendió, además, que las dos historias se interconectaban porque ambas son imágenes de la conversión por la gracia de la fe liberando el alma de la corrupción del mundo terreno, donde estaría esclavizada. Esta conexión que en la alegoría tipológica o teológica se da en forma interpretativa queda sugerida como procedimiento de composición literaria en la historia del capitán cautivo, en el Quijote I, por la presencia simultánea de ciertos elementos como: 1) la presencia reiterada de la imagen del crucifijo (sobre la que el renegado jura su lealtad a los cautivos; la cruz de cañas que la mora libertadora Zoraida muestra desde su ventana a los cautivos); 2) las asociaciones sugeridas entre Zoraida y las figuras de Moisés y de la Virgen María; 3) la conversión por la gracia como motor de la libertad del cautivo (Zoraida se convierte al cristianismo por obra de la gracia divina, según se cuenta); 4) el argumento general como el de una historia de liberación de prisioneros en un mundo espiritual y moralmente corrompido por una “falsa fe”. Así, los elementos centrales de la alegoría tipológica establecida entre 1) la fuga de Egipto en el Éxodo, 2) la salvación de la humanidad por Jesucristo, y 3) la liberación del alma de la 81 Hispanismo 2 0 0 6 corrupción terrena por medio de la gracia divina son identificables en la estructura de la historia del capitán cautivo en el Quijote I. Un discurso del renegado sobre la árabe libertadora presenta en conjunto los temas de la liberación del cautiverio y de la liberación de las penas del mundo terreno rumbo a la gloria divina: “ella es cristiana, y es la que ha sido la lima de nuestras cadenas y la libertad de nuestro cautiverio; ella va aquí de su voluntad, tan contenta, a lo que imagino, de verse en este estado, como el que sale de las tinieblas a la luz, de la muerte a la vida y de la pena a la gloria” (p. 495). Zoraida parece reunir una alegoría de la porción divina del alma y de la propia salvación por la gracia, mediante la cual había recibido la fe cristiana. Alrededor de esta “salvadora” que quiere bautizarse como “María” se construye un argumento que figurativiza las ideas católicas sobre la aventura humana en la Tierra, sistema de ideas que permite leer esta historia como alegoría de la liberación del alma por la fe. Los baños de Argel: pistas del tratamiento alegórico del cautiverio No se sabe con seguridad la fecha de composición de Los baños de Argel en relación con la de la historia del capitán cautivo, intercalada en el Quijote I, con la que tiene varias coincidencias de argumento y detalles. Valbuena Prat (1992: 321-322) opina que es una de las obras teatrales más elaboradas y maduras de lo que nos llegó del teatro de Cervantes. Por considerarla más finamente construida, cree que, de los tres textos examinados aquí, esta obra es la última elaboración del tema del cautiverio. Canavaggio sitúa su escritura entre 1606 y 1615 (MARRAST, 1984: 21). De hecho su argumento es más complejo que el de El trato de Argel y de la historia del cautivo. En la escena inicial, los turcos se llevan a varios españoles como prisioneros a Argel, donde sus historias se entrecruzan. Una de estas historias se asemeja al argumento central de El trato de Argel: un matrimonio de cristianos se reencuentra en el cautiverio como esclavos de un matrimonio de moros. Sus amos los acosan sexualmente y estos luchan para no ceder. Otro importante núcleo dramático sigue de cerca el argumento de la historia del cautivo: don Lope está en una prisión de Argel cuando ve salir de una ventana que da al patio una caña con un pañuelo atado, que contiene dinero y una nota de Zahara, mora educada secretamente por una cautiva cristiana en la doctrina católica, y que quiere vivir abiertamente su fe en tierra de cristianos. Zahara propone a don Lope pagar por su libertad con tal de que él la despose y la lleve a 82 Volume 4 | Literatura Espanhola España. Un tercer núcleo importante parece desarrollarse a partir de dos personajes secundarios de El trato de Argel, Francisquito y Juanico. En Los baños de Argel, dos niños con estos nombres son vendidos a un líder turco, y separados de sus padres cristianos. Su amo musulmán intenta seducirlos para que renieguen, valiéndose de regalos y del lujo material primero, y luego de amenazas. Los niños lo enfrentan valerosamente y este conflicto termina con el martirio de Francisquito por orden de su amo turco. Atado a una columna, lo azotan hasta la muerte. Otro importante núcleo es cómico-satírico: un sacristán sinvergüenza fastidia sin descanso a los judíos de Argel, maquinando maneras sórdidas de extorsionarlos Los personajes de estos núcleos interactúan en Argel. Tras el martirio de Francisquito, suceden prodigios que ayudan a huir a todos estos cristianos y a Zahara rumbo a España, en un barco que consigue don Lope. El padre de Francisquito va cargando los huesos de su hijo mártir en una mortaja ensangrentada. Trabajos pesados, hambre, mutilaciones, empalamiento y otros tipos de tormentos físicos, junto con la falta de esperanza de los cautivos pobres de conseguir ser rescatados, también se muestran en esta segunda obra, pero en menor escala que en la primera, y ya no se ve nada parecido a las exhortaciones a actuar en favor del rescate de los españoles cautivos. Por otra parte, la explotación alegórica del tema del cautiverio parece estar todavía más elaborada que en la historia intercalada del Quijote. La coincidencia entre la muerte del niño Francisquito y la conquista de la libertad por los demás cristianos remite al tema de la redención por la muerte de Cristo. Algunas frases de los personajes indican que esta alegoría subyace en la obra, en especial en los núcleos dramáticos de don Lope y de Francisquito. La acción de Zahara se compara explícitamente con el rescate del pueblo de Israel de la esclavitud de Egipto, llevado a cabo por Moisés, en el libro del Éxodo: “pues siendo una caña vara, / y otro nuevo Moisés Zahara / de este Egipto disoluto, / pasamos el mar enjuto / a gozar la patria cara” (p. 376). Poco antes de enfrentar a su amo turco por última vez, Francisquito dice a Juanico: “No sé yo quién me aconseja / con voz callada en el pecho, / que no la siento en la oreja, / y de morir satisfecho / y con gran gusto me deja; / dícenme, y yo de ello gusto, / que he de ser nuevo Justo [...]” (p. 361). 83 Hispanismo 2 0 0 6 Vemos a una Zahara-Moisés y a un Francisquito-Jesucristo sutilmente señalados e interconectados en esta obra. El nombre de Francisquito probablemente se inspire en el de San Francisco de Asis, “imitador de Cristo”, que desprecia las riquezas materiales para ganarse la gloria espiritual. Sobre el martirio de Francisquito en esta obra, se dice: “Atado está a una columna, hecho retrato de Cristo” (p. 371). Consideraciones finales De El trato de Argel a Los baños de Argel, en un intervalo de diez años, el tema del cautiverio se desarrolla de la siguiente manera: recibe un tratamiento más realista en la primera obra y más existencial-cristiano en la segunda, en la cual cobra la dimensión alegórica de representación de la vida humana como cautiverio en un mundo de corrupción y sufrimiento. En El trato de Argel, la vivencia reciente de Cervantes deriva en un intento de intervención concreta en la situación del cautiverio de Argel, por medio del reclamo dramático de la obra teatral. Construida de modo más documental, la primera obra llamaba al público a apoyar acciones que ayudaran a liberar a los cautivos españoles. En el momento de las otras dos elaboraciones del tema, en el Quijote I y en Los baños de Argel, ya ausente la posibilidad de intervenir en aquella realidad de 1580, y se pasa a elaborar abstractamente la experiencia del cautiverio, como una vivencia reveladora de la naturaleza de la existencia humana, desde una visión cristiana. Así, Los baños de Argel contienen otro tipo de exhortación: un tipo de llamamiento moral y espiritual a resistir a las corrupciones del mundo, manteniendo la esperanza de alcanzar la liberación espiritual por la fe y la conducta virtuosa. Creemos que el examen de estas dos obras teatrales contribuye para mostrar algunas preocupaciones temáticas e ideológicas cristianas de Cervantes, que probablemente se extienden por su obra más allá de estos textos. Pero lo más importante parece ser que el análisis integrado de estas obras y de la historia del cautivo alerta sobre el uso de la alegoría como procedimiento de creación usado por Cervantes en un período que iría de 1580 hasta el momento de las publicaciones más tardías de las Novelas ejemplares (1613) y del Quijote de 1615. Referencias Bibliográficas Alegoria. Disponible en: <http://www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/alegoria.htm>. CERVANTES, Miguel de. El trato de Argel. In: VALBUENA PRAT, Ángel (org.). Miguel de Cervantes. Obras completas. Tomo I. 18 ed. Madrid: Agui84 Volume 4 | Literatura Espanhola lar, 1992. ______. Los baños de Argel. In: VALBUENA PRAT, Ángel (org.). Miguel de Cervantes. Obras completas. Tomo I. 18 ed. Madrid: Aguilar, 1992. ______. Don Quijote de la Mancha I. ed. John Jay Allen. Madrid: Cátedra, 1994. CINTRÃO, Heloísa Pezza. O romanesco no Quixote I: o conto do capitão cativo. 1998. Dissertação (Mestrado em Literatura Espanhola). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1998. Inédita. CURTIUS, Ernst Robert. Poesia e filosofia. In: Literatura européia e Idade Média latina. São Paulo: HVCITEC/EDUSP, 1996. p. 264-274. FLETCHER, Angus. Allegory in Literary History. Disponible en: <http://etext. lib.virginia.edu/cgi-local/DHI/dhi.cgi?id-dvl-07>. MARRAST, Robert. Introducción. In: CERVANTES, Miguel de. Numancia. ed. Robert Marrast. Madrid: Cátedra, 1984. VALBUENA PRAT, Ángel. La vida y la obra de Miguel de Cervantes. In: Miguel de Cervantes. Obras completas. Tomo I. 18 ed. Madrid: Aguilar, 1992. VIEIRA, Maria Augusta da Costa. O dito pelo não dito: paradoxos de dom Quixote. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1998. WIKIPEDIA. Allegory in the Middle Ages. Disponible en: <http:// en.wikipedia.org/wiki/Allegory_in_the_Middle_Ages>. ______. Alegoria. Disponible en: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Alegoria>. Notas a b ¡Oh, cuán bien la limosna es empleada / en rescatar muchachos, que en sus pechos / no está la santa fe bien arraigada! / ¡Oh, si de hoy más, en caridad deshechos / se viesen los cristianos corazones, / y fuesen en el dar no tan estrechos, / para sacar de grillos y prisiones / al cristiano cautivo, especialmente / a los niños de flacas intenciones! / En esta santa obra así excelente, / que en ella sola están todas las obras / que a cuerpo y alma tocan juntamente. / Al que rescatas, de perdido cobras, / reduces a su patria el peregrino, / quítasle de cien mil y más zozobras: / de hambre, que le aflige de contino; / de la sed insufrible, y de consejos / que procuran cerrarle en buen camino; / de muchos y continos aparejos / que aquí el demonio tiende con que toma / a muchachos cristianos y aun a viejos. (p. 157-158) “Mostré, o, por mejor decir fui el primero que representase las imaginaciones y los pensamientos escondidos del alma, sacando figuras morales al teatro con general y gustoso aplauso de los oyentes” (Valbuena Prat, 1992 [1943]: 16). 85 Hispanismo 2 0 0 6 Maneirismo de Don Quijote em Dulcinea Josinete Pereira dos Santos (UFF) Muito se tem falado das ações de D. Quijote pelos campos “de la Mancha” desde a época da publicação de suas histórias. Motivam a perplexidade a capacidade de fantasiar sobre o real, ao criar metáforas capazes de levar o leitor ao riso e à mais profunda reflexão a respeito do ser e da condição humana, que parece indagar sobre a capacidade do intelecto para conhecer e demonstrar a verdade. Muitas dessas metáforas acabam por se fixar em nossas mentes pelo encantamento que elas possibilitam. Quem não terá sido impregnado pelas imagens dos moinhos de vento que foram transformados em desaforados gigantes com os quais arquitetou a primeira batalha em parceria com o seu fiel escudeiro? Quem não lembra do rebanho de ovelhas e carneiros que foi transformado em dois grandes exércitos prontos ao combate? E o objeto que trazia o barbeiro que foi transformado em encantado “yelmo de Mambrino”? Parece querer provar que o mundo torna-se reversível; todo objeto pode transformar-se em outro. E quem não lembra de “Dulcinea del Toboso”? “Dulcinea del Toboso” é retratada por D. Quijote como a mais bela de todas, a quem devia os vencidos apresentar as glórias do cavaleiro e submeter-se as suas vontades. É´ ela que chamada à atenção pelo “caballero andante” nos faz perceber uma maneira muito própria de idealização da mulher amada, tentando desvelar o que nela existe de maravilhoso. Formula uma linguagem própria da visão que com a representação, a intuição e a expressão se encontram identificadas na percepção objetiva de D. Quijote. E´ essa maneira de descrever, é essa força da imaginação em “el Caballero de la Triste Figura” que nos faz pensar um conceito vindo da literatura cortesã do século XII ao XV, a “maniera”. Palavra de origem italiana. A “maniera” como um tributo possível e desejável sem a sofisticação do Classicismo. É´ um termo instalado na literatura que vai representar um modo estilizado e refinado. O que pretendo nesta leitura é pensar o retrato de Dulcinea com base na visão maneirista que parece estar presente em D. Quijote que, segundo sua visualização pura, se torna produtor de imagens evoluindo como criador, conduzindo-nos a um abstracionismo. No século XVI, a “maniera” representava um atributo desejável da obra de arte que supunha um refinamento da natureza e uma abstração, e isso podia ou não ser uma boa coisa. Embora não existisse no século XVI nenhum conceito de movimento a que se pudesse dar o nome de maneirismo, foi quando mais se apreciou a “maniera”. Em pequena proporção, ela está pre86 Volume 4 | Literatura Espanhola sente em muitos períodos, principalmente no século XV, uma dose maior ou menor entre um artista e outro ou em partes de uma mesma obra. Maneirismo é um termo para uma categoria na história das artes visuais. Mais tarde transformou-se o conceito para outros campos, provocando alguma confusão, já que também se transferiram as variedades de significado que os historiadores de arte atribuem ao termo. O Maneirismo se formou numa época de crise, num período que separava o alto Renascimento do Barroco, período que deu origem a várias tendências que rivalizam entre si, uma época plena de contradições em que cada artista buscava distinguir-se dos outros. Gustav Hocke, doutor em Filosofia, afirma que Robert Curtius sugere o emprego do termo “maneirismo” para caracterizar todas as tendências literárias que se opõem ao Classicismo, sejam elas anteriores, contemporâneas ou posteriores. Parece ser uma constante na literatura européia e um fenômeno que vem a completar o Classicismo e que teria seu período de destaque no fim da Antiguidade, na Idade Média nos séculos XVI e XVII. Então, vai designar uma tendência artística e literária que vai se opor ao Classicismo e que se manifestou no auge do Renascimento até o auge do Barroco. É certo, e fica claro que cada forma maneirista ainda manifesta uma dependência em relação ao Classicismo. Só mais tarde vai se emancipar e adquire características específicas para tornar-se “expressivo”, “desfigurado”, “surreal” e “abstrato”. O Maneirismo que pretendo perceber no “caballero aventurero” é um período que se situa entre os anos 1520 e 1650, o Maneirismo consciente. O lapso de tempo existente entre o fim do Renascimento e o Barroco tardio vai ser conhecido com o nome de Maneirismo, que tentava representar de uma “maneira” pessoal o mundo que se apresentava de forma desarranjada. Nasceu num estado psicológico de tensão e desequilíbrio condicionado por uma agitada situação sócioeconômica e mental em um século de crise de identidade. Eis aí o plano de fundo do gosto literário. Parece que – sutileza – tornouse a palavra mais fascinante do maneirismo de então. O artista parece pressentir os problemas os quais o homem se confrontava, uma sociedade em que estes se dividiam por origem e por nascimento e em que a liberdade de pensamento estava em decadência, e parece pressentir, da mesma forma, os problemas que estariam no provir. A inquietude, a ansiedade, o abandono e a desinstalação manifestam-se contra a harmonia da composição, contra o ideal perfeccionista do Renascimento. Preocupado com uma nova ordem e sofrendo a angústia existencial pela agitada tensão e pela extrema ambi87 Hispanismo 2 0 0 6 güidade dos tempos vividos, o homem procura ser operário do seu próprio destino, permitindo a si uma visão crítica de sua própria realidade. A nova arte procura dar liberdade à imaginação, é um movimento para o imaginário, procurando elevar mais as reações psíquicas e as emoções que a conformidade entre o objeto e a percepção humana. Procura-se um efeito engenhoso através de algo que foi concebido com consciência e habilidade. Com a habilidade que conseguiu por meio da leitura dos livros de cavalaria e com a consciência que tem da necessidade de que todo cavaleiro necessita de uma senhora para endereçar seus feitos, o “Caballero de la Triste Figura” retrata a importância da existência da sem par Dulcinea, e isso de maneira sutil, já que na instituição dos cavaleiros da Idade Média, ele estava em contato com os ideais religiosos para garantir a proteção da religião contra as forças do mal. Rogava-se a proteção de Maria, com suas virtudes imaculadas e sua misericórdia. D. Quijote une realidade e fantasia para criar, para formar um quadro enigmático, gracioso e irônico isento de tributos e obrigações. Os pintores maneiristas detinham-se a tudo que pudesse provocar uma surpresa, sem abrir mão da graça e de certa sutileza enigmática. Assim Dulcinea surge como aparição em meio aos sonhos do seu cavaleiro. Sonho entendido como manifestação direta do inconsciente, como uma antítese libertadora do racionalismo. Nele há mais liberdade para quem cria. A realidade desperta, empírica, serviria apenas para o fornecimento de símbolos e de uma linguagem de referência para a compreensão dos fenômenos, frutos do inconsciente ou da intuição. Talvez seja no estado onírico que o homem se sinta mais livre e mais próximo da verdade e da beleza. A beleza que D. Quijote descreve ao retratar Dulcinea é produzida pela emoção interior que provém da sua inteligência. Por meio da sua imaginação cria, por meio de critérios subjetivos se refina e procura na sua individualidade uma idéia a respeito do personagem. À moda maneirista, o nosso cavaleiro prefere retratar a sua dama pelo maravilhoso, segundo suas aventuras extraordinárias, abstraídas da leitura dos livros de cavalaria e do mistério. A paisagem mágica parece predominar. O mundo para ele é um sonho, e o prodigioso será o belo. As fronteiras entre o fictício e o real já não existem, daí a necessidade de revelar o mundo subjetivo por oposição ao objetivo. Dulcinea é produto de uma idéia e deve ser encarada como fantasia. Parece ser um modelo que existe no espírito de D. Quijote, e essa idéia é por ele valorizada e legitimada. Sua imaginação é capaz de criar seres que só existem no seu imaginário. Faz parte do senso comum dizer que a obra de arte é o produto da imaginação, da idéia do artista. Ela reside no espírito humano. 88 Volume 4 | Literatura Espanhola Federico Zuccari, um dos grandes expoentes do maneirismo europeu, de acordo com a orientação aristotélica escolástica clássica, vai afirmar que: ... lo que se revela en la obra de arte debe preexistir en el espírito del artista; a esta imagen espiritual la denomina <<disegno interno>> o <<Idea>> (ya que, según su definición, el <<disegno interno>> no es sino una forma o idea de nuestro espíritu que señala con claridad y precisión las cosas por él imaginadas...(PANOFSKY, 1989. p. 81) O mistério que proporciona se situa na visão, na representação e até na fantasia. Não podemos esquecer de que é permitido ao homem manifestar-se através das imagens interiores que constrói a partir de sua experiência que a vida permite. A imagem vai ser definida por sua intenção. E será a intenção que vai permitir que a imagem seja consciência, porque só representamos por imagem aquilo que já sabemos da existência. E´ o que desejo representar para mim. Então, uma imagem não pode existir sem um saber que a construa. “O artista, no ato de criação, olhava para o interior de si próprio e procurava na Idea, iluminado por Deus, a fonte da inspiração estética.” (SERRÃO, 1983, p. 28) Para Zuccari: ...la finalidad, pues de la representación artística es en definitiva, la imitación, llevada lo más lejos posible; (...) <<He aquí la verdadera, propia y universal finalidad de la pintura, el ser imitadora de la naturaleza y de las cosas artificiales, de tal forma que ilucioa y engaña a los ojos de los hombres, incluso a los más sabios. (PANOFSKY, 1989, p.85) Mas o trágico é que ao se deixar fascinar pela imagem, cria hipérboles que fazem com que a verdade ultrapasse seus próprios limites, criando uma tensão entre o horror e o belo, entre o indivíduo e o mundo, talvez necessária numa época em que a sociedade está profundamente marcada pela injustiça e pela desigualdade. A idéia parece ser mais importante do que a natureza. Reforça-se dessa maneira a exaltação do subjetivo, do homem impotente diante de um mundo que se apresenta como imagem simbólica que determina o culto à ostentação e à imagem externa, a despeito da pobreza. Serve para reforçar as tensões sociais. Estes fatos sociais conduzem ao desenvolvimento de mecanismos visuais e de intenções que se refletem na produção. O que se pode verificar é um protesto contra o racional, há uma acentuação do oculto, a exaltação da beleza que acaba por se tornar irreal. 89 Hispanismo 2 0 0 6 Conclusão A arte da pintura possui uma categoria natural capaz de produzir efeitos de virtude; uma teológica porque inspira efeitos sobrenaturais e uma categoria de nobreza. E´ de posse destas que D. Quijote produz imagens de Dulcinea. Possui uma imaginação capaz de criar a ilusão de existência de sua amada. Ilusão porque para ele parece ser mais importante o ser, a essência como aquilo que determina a existência. Pode-se perceber que existia nele um ideal de perfeição que era o ideal clássico. O que parece tentar fazer é mostrar a tensão que existia entre o artista e a arte, tentando provar que esta se desenvolvia a partir da separação das formas da arte anterior. - Si yo pudiera sacar mi corazón y ponerle ante los ojos de vuestra grandeza, aquí, sobre esta mesa y en un plato, quitara el trabajo a mi lengua de decir lo que apenas se puede pensar, porque Vuestra Excelencia la viera en él toda retratada; pero ¿para qué es ponerme yo ahora a delinear y describir punto por punto y parte por parte la hermosura de la sin par Dulcinea, siendo carga digna de otros hombros que de los míos, empresa en quien se debían ocupar los pinceles de Parrasio, de Timantes y de Apeles, y los buriles de Lisipo, para pintarla y gravarla en tablas, en mármoles y en bronces, y la retórica ciceroniana y demostina para alabarla? (CERVANTES, 1995, p. 271, tomo II) Faz lembrar Simonides de Ceos, da antiguidade clássica, quando afirma ser a pintura uma poesia muda; e a poesia uma pintura que fala. Tenta estabelecer uma aproximação entre a poesia e a pintura sem pretender isolar o corpo da mente. Ela deve expressar as angústias e utopias, pois estas revelam a nossa impessoalidade no cotidiano, o abandono do eu diante da opressão do mundo como um todo. A partir do estado de angústia abre-se uma alternativa, superar a própria angústia, manifestando a possibilidade de transcendência sobre o mundo e sobre si, o que significa dizer que o homem está capacitado a atribuir um sentido ao ser. E parece que é isso o que faz todo o tempo a “flor de la andante caballería”. Sensível, esforça-se por nos fazer captar o fantástico. Como Michelangelo, ele abraça a idéia e procura elevar mais as emoções do que a conformidade. Trabalha com imagens sensíveis colhidas do seu mundo, e jamais podemos esquecer que o mundo é um objeto simbólico. O simbolismo vem unir o mundo material e o mundo sobrenatural. Essa linguagem de imagens e emoções possibilita falar das verdades exteriores ao homem e ao mesmo tempo interiores, acabando por expor aspectos da idéia que pretende expressar. 90 Volume 4 | Literatura Espanhola Referências Bibliográficas CERVANTES, Miguel. El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Edição de John Jay Allen. Madrid: Ediciones Cátedra Letras Hispánicas S. A., 1995 (tomos I-II). CORTÁZAR, Fernando García de. Breve Historia de España. Madrid: Alianza Editorial, S.A., 1995. FRANCASTEL, Pierre. El retrato. Trad. Esteher Alporín. 3 ed. Ediciones. Madrid: Cátedra, 1995. HOCKE, Gustav René. Maneirismo: o mundo como labirinto. Trad. Clemente Raphael Mahl. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. JONSON, H. W. Iniciação à História da Arte. Trad. Jefferson Luis Camargo. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PANOFSKY, Edwin. Idea Contribución a la historia de la teoría del arte. Trad. Maria Teresa Pumarega. 7 ed. Madrid: Cátedra, 1989. SHEARNAN, John. O Maneirismo. Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix. Ed. da Universidade de São Paulo, 1996. SERRÃO, Vitor. O Maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses. Coleção Arte e Artistas. Editor Imprensa Nacional Casa da Moeda, Ática. Lisboa: 1983. 91 Hispanismo 2 0 0 6 Prólogo e Autor Anônimo no Lazarillo de Tormes Katia Aparecida da Silva Oliveira (USP) Durante algum tempo, Lazarillo de Tormes foi considerada uma obra incompleta graças à divisão em tratados (não desenvolvidos de forma homogênea) como as edições do romance foram organizadas. Atualmente, apoiando-se principalmente em Francisco Rico, acreditase que originalmente, Lazarillo de Tormes não possuía uma divisão em tratados, e que provavelmente, tal divisão foi aplicada à obra por ocasião de sua publicação pelas mãos de seu primeiro editor em meados do século XVI (RICO, 1988, p.13). Embora acreditemos na arbitrariedade da divisão de Lazarillo em tratados, não podemos deixar de notar no seu prólogo uma ruptura discursiva. O discurso presente no prólogo da obra, tido até hoje pela maioria da crítica como parte do discurso de Lázaro de Tormes, narrador e personagem do romance, conforme notaram Mario González (GONZÁLEZ, 2005, p. 203) e Rosa Navarro Durán (NAVARRO DURÁN, 2003, p.13), entre outros, apresenta, na verdade, dois discursos: um, que pode ser atribuído ao autor anônimo do romance, e outro, de Lázaro de Tormes. Observando o prólogo de Lazarillo com atenção, podemos identificar o discurso que atribuímos ao autor anônimo pelo trecho que começa com “Yo por bien tengo que...” até “...y vean que vive un hombre con tantas fortunas peligros y adversidades” (pp. 3 a 9)a; e o trecho que consideramos ser o início do discurso de Lázaro com “Suplico a Vuestra Merced reciba este pobre servicio...”(p.9 em diante). Observemos o primeiro e o último parágrafo do trecho do prólogo que consideramos ser parte do discurso do autor anônimo, e o primeiro parágrafo que consideramos compor o discurso de Lázaro: Yo por bien tengo que cosas tan señaladas, y por ventura nunca oídas ni vistas, vengan a notícia de muchos y no se entierren en la sepultura del olvido, pues podría ser que alguno que las lea halle algo que le agrade, y a los que no ahondaren tanto los deleite. (pp. 3-4) Y todo va desta manera; que confesando yo no ser más sancto que mis vecinos, desta nonada, que en grosero estilo escribo, no me pesará que hayan parte y se huelguen con ello todos los que en ella algún gusto hallaren, y vean que vive un hombre con tantas fortunas, peligros y adversidades. (pp.8-9) Suplico a Vuestra Merced reciba el pobre servicio de mano de quien lo hiciera más rico, si su poder y deseo se conformaran. Y pues Vuestra Merced escribe se le escriba y relate el caso muy por extenso, pares- 92 Volume 4 | Literatura Espanhola cióme no tomalle por medio, sino del principio, porque se tenga entera noticia de mi persona; y también porque consideren los que heredaron nobles estados cuán poco se les debe, pues Fortuna fue con ellos parcial, y cuánto más hicieron los que siéndoles contraria, con fuerza y maña remando salieron a buen puerto. (pp. 9-11) Não podemos deixar de notar, nestes trechos, que o discurso do autor anônimo está direcionado ao público leitor da obra, enquanto que o discurso de Lázaro tem um destino certo: Vuestra Merced. Tratando da questão do público a quem os discursos presentes no prólogo de Lazarillo de Tormes estão direcionados, podemos recorrer a Fernando Cabo Aseguinolaza (ASEGUINOLAZA, 1992, p.131): (...) al considerar el prólogo, surge un problema diferente, puesto que parece plantearse allí la presencia de un doble narratario. En realidad, hasta el ‘Suplico a Vuestra Merced’ (pág. 9) del cuarto párrafo no hay ninguna reminiscencia del narratario fundamental que hemos señalado en el resto de la obra. Hasta ese momento se alude únicamente a un receptor amplio y diverso: Lázaro, o quién sea, dice buscar la honra a través de la escritura, pues, ‘si así no fuese, muy pocos escribirían para uno solo’ (pág. 5) y expresa su intensión de que ‘cosas tan señaladas, y por ventura nunca oídas ni vistas, vengan a noticias de muchos y no se entierren en la sepultura del olvido’ (pág.3). No sólo no hay coincidencia, sino que se puede hablar de una manifiesta discordancia entre los dos receptores diseñados en el texto: mientras uno subraya lo que la obra tiene de acto literario público – la enunciación, en este caso -, otro, por el contrario, incide en la comunicación privada de Lázaro con su corresponsal – es decir, la narración - . Pensar no público a quem se destina o Lazarillo a partir de seu prólogo é uma forma de identificar a grande diferença existente entre os discursos presentes nos primeiros parágrafos desse romance. Como diz Fernando Cabo, a primeira parte do prólogo do romance, a qual, neste trabalho, creditamos a seu autor anônimo, “alude únicamente a un receptor amplio”, ou seja, seu público leitor; e a segunda, pelo contrário, “incide en la comunicación privada de Lázaro con su corresponsal”, dando início ao discurso de Lázaro, direcionado, como já havíamos dito, a Vuestra Merced. Mas identificar o público a quem se destina o romance não é a única forma de justificar a tese da existência de dois discursos no prólogo do Lazarillo. No discurso do autor anônimo, podemos perceber também o topos literário da novidade de uma obra, comum aos prólogos de obras renascentistas (como por exemplo as novelas de cavalaria), e que tem origem nos autores clássicos latinos. 93 Hispanismo 2 0 0 6 Se seguirmos analisando todo o trecho do prólogo que consideramos pertencer ao autor anônimo, encontraremos muitos outros elementos comuns aos prólogos renascentistas. O autor anônimo de Lazarillo organizou o seu discurso de forma clássica, porém, a obra que anunciava não tinha nada de clássico para a época. O discurso de Lázaro, ao contrário do que notamos no discurso do autor anônimo, não apresenta elementos clássicos. Faz-se claro, como já vimos, que Lázaro direciona seu discurso a um só leitor, leitor este que lhe havia solicitado a explicação de um “caso”. Lázaro, como sabemos, escreve uma “carta” a Vuestra Merced, e nesta “carta”, dá “entera noticia” de si mesmo, para explicar melhor o “caso” em questão. Considerar a voz do autor anônimo em Lazarillo faz-nos pensar em sua influência ao longo da obra. Conhecemos leituras, como as de Rico (RICO,1988, p.157) e Castro (CASTRO, 1957, p.109), que consideram o anonimato do autor de Lazarillo um recurso para que a obra fosse lida, na ocasião de sua publicação, como um relato “real”, porém, a “descoberta” da voz do autor anônimo na obra, possibilita outra leitura da mesma. Pensar na influência do discurso do autor anônimo no Lazarillo leva-nos a considerar algumas teorias relacionadas à autoria dos romances. Para Booth, a voz do autor não pode ser ignorada em sua obra, já que “o autor está presente em todos os discursos de qualquer personagem a quem tenha sido conferido o emblema de credibilidade, seja de que modo for” (BOOTH, 1980, p. 35). Devemos esclarecer que Booth (1980, pp. 88-92) diferencia claramente o autor e o narrador de uma obra. O autor é o criador da obra, que a organiza e dá voz aos elementos que a compõem, inclusive o narrador. Booth trata também da diferença existente entre o que podemos chamar de autor real e autor implícito. O autor real é o indivíduo, a pessoa responsável pela criação de uma obra, e que, resumindo, existe no mundo “real”; o autor implícito é uma criação do autor real. Nas palavras do autor: “Enquanto escreve, o autor não cria, simplesmente, um <<homem em geral>>, impessoal, ideal, mas sim uma versão implícita de ‘si próprio’(...). Na verdade, pareceu a alguns romancistas que se estavam a descobrir ou a criar à medida que escreviam. Como diz Jessamyn West, por vezes é como se ‘só escrevendo a história o romancista pudesse descobrir não a sua história, mas o escritor, o escriba oficial, por assim dizer, para essa narrativa’. Quer adoptemos para este autor implícito a referência ‘escriba oficial’, ou o termo recentemente redescoberto por Kathleen Tillotson –o ‘alter ego’ do autor– é claro que aquilo de que o leitor se apercebe nesta presença são os efeitos mais importantes do autor. Por impessoal que ele tente ser, o leitor construirá, inevitavelmente, uma imagem do escriba 94 Volume 4 | Literatura Espanhola oficial que escreve desta maneira – e, claro, esse escriba oficial nunca será neutral em relação a todos os valores. A nossa reacção aos seus vários compromissos , secretos ou a descoberto, ajudará a determinar a nossa resposta à obra.” “O ‘autor implícito’ escolhe, consciente ou inconscientemente, aquilo que lemos; inferimo-lo como versão criada, literária, ideal dum homem real – ele é a soma das opções deste homem.” O autor implícito é uma criação literária, uma espécie de alter ego do autor real em uma obra. Assim, partindo do conceito de autor implícito, podemos dizer que uma obra possui dois autores: um real e um implícito. No Lazarillo, porém, esta questão é um pouco mais complexa. Poderíamos dizer que na primeira parte do prólogo, temos o discurso do autor implícito de Lazarillo, criação do autor real da obra. Este autor implícito seria o responsável, não só pela primeira parte do prólogo do romance, como também pela organização da obra em si e pela criação de Lázaro, narrador e personagem. Mas se pensamos que o relato de Lázaro de Tormes é um relato em primeira pessoa, no qual Lázaro escreve uma “carta” contando a sua vida a Vuestra Merced, damo-nos conta de que Lázaro é também um autor dentro da obra e, como autor, cria para si um autor implícito, que é responsável pela narração de seu passado e pela personagem que é uma representação dele mesmo mais jovem. Assim, temos o autor real de Lazarillo de Tormes, o seu autor anônimo, que cria um autor implícito, responsável pela organização da obra, e que por sua vez cria o autor explícito da obra, Lázaro de Tormes, autor da “carta” a Vuestra Merced. Lázaro como autor/narrador, ao escrever a sua autobiografia, também cria um autor implícito para si, responsável pela organização de seu relato, além de criar a personagem de sua narrativa, Lázaro de Tormes, ele mesmo. Voltando às definições de Booth, damo-nos conta de que o autor implícito deixa clara, ao longo da obra a sua posição, o seu ponto de vista, já que uma posição “nunca será neutral em relação a todos os valores” . No caso do Lazarillo isso não seria diferente. Ao longo da obra, os dois autores implícitos que a compõem manifestam a sua posição, ainda que discretamente, misturando o seu ponto de vista ao do narrador ou das personagens. Acreditamos que os autores implícitos de Lazarillo de Tormes se manifestariam a partir de intromissões, de comentários ao longo da narrativa. Assim, o autor implícito criado pelo autor real se manifestaria em comentários feitos por Lázaro-narrador em relação ao seu passado, e o autor implícito de Lázaro-autor/ narrador, se manifestaria através dos pensamentos da personagem que “cria”. 95 Hispanismo 2 0 0 6 Explicando melhor, poderíamos tentar entender a obra em dois níveis: em um primeiro nível, nos vemos frente a um autor implícito que cria um narrador em primeira pessoa que conta sua própria história, e através de sua criação, manifesta o seu ponto de vista. Em um outro nível, encontramo-nos com um narrador em primeira pessoa que escreve a sua autobiografia, este narrador também cria para si um autor implícito, que se manifesta na narrativa a partir dos pensamentos da personagem que criou, personagem que ao fim e ao cabo, é ele mesmo em outro momento temporal. Vejamos um exemplo de frase na qual encontramos um pensamento de Lázaro-personagem: “ ‘¡Cuántos debe de haber en el mundo que huyen de otros porque no se veen a sí mesmos!’” (p. 18) No trecho que citamos, encontramos um comentário crítico em relação à sociedade em que vivia a personagem. Lázaro questiona o sistema em que esta sociedade estava organizada e trata da questão da aparência na qual estavam submersas as pessoas de seu tempo, onde parecer ser algo era o mesmo que sê-lo. Ao longo da obra, os pensamentos críticos de Lázaro como personagem são mais recorrentes nos períodos de infância e adolescência da personagem, nos tratados I, II, III e V, desaparecendo nos últimos tratados. Além dos pensamentos críticos que formula em relação à organização social em que vive, são recorrentes também, nestes pensamentos, as críticas aos representantes da Igreja. Na narrativa, quando formula os seus pensamentos críticos, Lázaro é ainda um menino, mas boa parte dos pensamentos atribuídos à personagem não são condizentes à sua condição infantil. Os pensamentos de Lázaro-personagem, expressos ao longo dos cinco primeiros tratados do romance, são pensamentos de um adulto, de um autor implícito que quer tornar presente na obra o seu ponto de vista. Pensemos agora nos comentários de Lázaro-narrador ao longo da narrativa, aqueles que acreditamos ser intromissões do autor implícito criado pelo autor real de Lazarillo. Abaixo temos um exemplo desse tipo de comentário: “No nos maravillemos de un clérigo ni fraile porque el uno hurta de los pobres y el otro de casa para sus devotas y para ayuda de otro tanto, cuando a un pobre esclavo el amor le animaba a esto.” (p. 19) Os comentários de Lázaro-autor/narrador também possuem uma forte carga de crítica social, mas assim como os pensamentos de Lázaro-personagem, não se propagam por toda a obra, somente até o quinto tratado. Se analisarmos, ao longo da obra, os comentários, as intromissões dos au- 96 Volume 4 | Literatura Espanhola tores implícitos do romance, poderemos perceber que tais intromissões formam uma grande contradição. Expliquemos por partes: quando relata o seu passado, o autor implícito criado por Lázaro-autor/narrador pode inserir o seu ponto de vista na narrativa a partir dos pensamentos de Lázaro-personagem. Estes pensamentos deixam de ser expressos conforme Lázaro-personagem se aproxima do momento da enunciação do romance, quando é um adulto integrado à sociedade. O desaparecimento dos pensamentos críticos de Lázaro-personagem, é pois, justificado, já que ao narrar o seu momento presente, Lázaro narrador e personagem, já integrado à sua sociedade, assume para si os valores que antes criticava. Ao sentir-se parte dessa sociedade, Lázaro não percebe que aquilo que antes era para ele motivo de crítica, faz parte, agora, do que ele é. Tratemos dos comentários do autor implícito criado pelo autor do romance, expressos na narrativa a partir das intromissões de Lázaro-autor/narrador. Estas intromissões que revelam o ponto de vista do autor implícito de toda a obra, assim como os pensamentos de Lázaro-personagem, deixam de ser explicitadas após o quinto tratado. Ora, o autor implícito criado pelo autor real não está limitado como Lázaro-autor/narrador às suas experiências. Como organizador da obra, por que este autor implícito deixa de se pronunciar ao mesmo tempo em que o autor implícito criado por Lázaro-autor/narrador deixa de expressar seu ponto de vista? Recorremos novamente a Booth para responder essa questão. Segundo ele, o autor implícito de uma obra deve estar em conformidade com as escolhas que faz, ou seja, deve haver uma harmonia entre o autor implícito e a obra. Voltando à questão que propusemos, se o autor implícito de Lazarillo de Tormes continuasse pronunciando-se nos últimos tratados do romance, estabeleceria uma crise entre Lázaro como narrador e personagem, que neste momento coincidem. A omissão do autor anônimo da obra colabora com a formação da imagem final que temos de Lázaro: um homem que está integrado a um sistema em que parecer ser algo e sê-lo são a mesma coisa; ele parece ser um homem de bem, e isso faz com que se veja assim. É um homem que compreendeu tão bem a realidade em que vive, que se perdeu nela, a ponto de não conseguir enxergar a sua situação final. A situação contraditória presente em Lazarillo de Tormes é uma característica maneirista da obra. A partir do jogo criado pelas contradições presentes na narrativa, temos a possibilidade de formular diferentes leituras desse romance. Esta é a novidade presente em Lazarillo: ao não possibilitar um sentido único de leitura, o leitor deverá formular sua própria interpretação do romance. Esse é o início do processo de formação do leitor moderno. 97 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas ANÓNIMO. Lazarillo de Tormes. Madrid: Cátedra, 2002. BOOTH, W. C. A retórica da ficção. Lisboa: Arcádia, 1980. CABO ASEGUINOLAZA, F. El concepto de género y la literatura picaresca. Santiago de Compostela: Universidad de Santiago de Compostela, 1992. CASTRO, A. “El Lazarillo de Tormes” in Hacia Cervantes. Madrid: Taurus, 1957, p. 135-141. GONZÁLEZ, M. M. “Lazarillo de Tormes: Estudo Crítico”, In: ANÔNIMO. Lazarilho de Tormes. São Paulo: Editora 34, 2005. p. 185- 217. NAVARRO DURÁN, R .”Introducción”. In: VALDÉS, Alfonso de. La vida de Lazarillo de Tormes, y de sus fortunas y adversidades. Barcelona: Ediciones Octaedro, 2003. RICO, F. Problemas del Lazarillo. Madrid: Ediciones Cátedra, 1988. Notas a ANONIMO. Lazarillo de Tormes. Madrid: Cátedra, 2002. Os números das páginas dos trechos citados estarão ao fim de cada citação. 98 Volume 4 | Literatura Espanhola Juanete: ¿un gracioso sin gracia? Reflexiones sobre la figura del donaire en la tragedia calderoniana. Liège Rinaldi (Universidad de Navarra) La figura del donaire –personaje típico de las comedias auriseculares– no constituye un modelo único y limitado, y no se construye con los mismos fines en todas las obras. No cabe duda de que es el agente cómico por antonomasia, pero así como no es el único responsable de la risa en las comedias cómicas, no siempre conseguirá provocarla en las serias. En las obras trágicas de Calderón de la Barca encontramos varios ejemplos de graciosos que, cada cual con sus particularidades, circulan por un universo donde no hay lugar para la risa, como Clarín –en La vida es sueño–, Coquín –en El médico de su honra– y Juanete, el gracioso de El pintor de su deshonra, cuyas funciones dramáticas intentaré discutir en este trabajo. Edward Wilson y Georges Güntert dividen el papel de Juanete en dos: el de personaje-agente y el de comentador. Güntert afirma: Como personaje-agente interviene poco: descubre la presencia de Álvaro en la casa de su amo y se lo dice a éste. Es testigo de cómo alguien, disfrazado de marinero, se lleva a Serafina. Observa lo que ocurre, pero sus descubrimientos nunca resultan completos. Como ha visto muy bien Edward M. Wilson, los descubrimientos del gracioso en esta comedia no afectan casi a la acción. En cuanto personaje, Juanete no sabe más que los otros: obra a ciegas. Tanto más importa su función de comentador, su palabra. (GÜNTERT, 1980, p.362) No obstante, en una obra dramática comentar es actuar y, por ende, no se puede separar de esta manera las intervenciones del gracioso. Además, tanto en sus hechos como en sus comentarios, igualmente se equivoca o afecta de modo relevante el rumbo de la historia. Más adelante veremos cada uno de sus cuentos y podremos observar que algunos denuncian o sugieren cuestiones importantes, pero otros son simplemente bromas teatrales basadas en una visión limitada o equivocada que posee el gracioso. Y, respecto a lo que hace Juanete, ¿cómo se puede suponer que descubrir que hay otro hombre en casa de don Juan y decírselo a este no afecte casi a la acción? Aunque Juanete no logre alcanzar a don Álvaro, este descubrimiento servirá de motor para que los celos empiecen a atormentar al noble don Juan. Juanete cumple muy bien su papel de criado del noble don Juan Roca, a quien sirve con sumisión y lealtad: acompaña a su amo en cualquier situación, es su confidente, descubre que hay otro hombre en su casa y se 99 Hispanismo 2 0 0 6 lo cuenta, sigue a la máscara que cortejaba a la dama de su amo e intenta impedir que el raptor se la lleve. Pese a que se pueda equivocar y no alcanzar al ofensor de su amo, el criado ejerce muy bien su función. En el manuscrito de la Biblioteca Nacional de España, cuya autoría no se conoce, al inicio de la Segunda Jornada hay una escena que no se registra en ningún otro testimonio en la que Juanete dice a Flora, criada de Serafina, que todavía no le ha conseguido hablar. Pero no sigue adelante, pues Flora le contesta que en ese momento tampoco lo podrá hacer. Si consideramos esta escena, podremos percibir dos intenciones: la del intento de galanteo entre los criados, que es un motivo recurrente en las comedias áureas ya esperado por el espectador; y la de la imposibilidad del gracioso de encontrar un espacio en la comedia, pues, incluso cuando se dirige a un personaje de su mismo nivel social, es marginado. Salen Juanete y Flora. Juanete: Nunca he tenido lugar desde que con nuestros amos a Barcelona llegamos de poderte, Flora, hablar. Flora: Ni ahora lo podrás lograr Juanete: ¿Por qué? Flora: Porque mi señor en aqueste mirador retratando la belleza de mi ama hace fineza la habilidad de pintor. Vanse. Podemos percibir algunos rasgos de la construcción de esta figura del donaire a partir de su nombre, que es una forma diminutiva del de su amo –don Juan–, teniendo en cuenta que el sufijo diminutivo –ete posee un valor despectivo. Al considerarse su nombre desde esta perspectiva, se puede subrayar el carácter caricaturesco del gracioso. La estrecha relación entre el gracioso y su amo queda confirmada en los versos 2607-12: Don Juan: (...) De cuántos el mundo advierte infelices (¡ay de mí!) ¿habrá otro más que yo? Sale Juanete mal vestido. Juanete: Sí, pues cómplice de tu suerte tu misma vereda sigo; luego otro hay más desdichado. De acuerdo con el Tesoro de la lengua castellana, de Covarrubias, juanetes Son los hueseçuelos salidos de los dedos pulgares, assí de las manos como de los pies. Arguyen rusticidad y teniénlos ordinariamente la gente grossera; y por argüir mal ingenio se llamaron juanetes, de Juan, cuando tomamos este nombre por el simple y rústico.( COVARRUBIAS, 1976) 100 Volume 4 | Literatura Espanhola Aquí se resalta una vez más el carácter despectivo de su nombre y se destaca el gracioso como una figura que incomoda –igual que los juanetes–. El personaje Juanete incomoda en cuanto agente cómico y comentador. Como hemos visto anteriormente, es un excelente criado, pero cuando intenta hacer bromas respecto a lo que pasa en escena, sus comentarios no son bienvenidos. Una importante característica del habla de este gracioso, igual que la de otros graciosos calderonianos, son los cuentos que introduce a la historia. Cada cuento tiene una función distinta, como intentaré señalar a continuación. Al llegar a la casa de don Luís, al inicio de la Primera Jornada, Juanete dice irónicamente <<La paz sea en aquesta casa>> (v. 191), forma de saludo recomendada por Jesús Cristo a sus apóstoles, según el Evangelio de San Lucas: <<Al entrar en cualquier casa, decid ante todas cosas: La paz sea en esta casa>> (Lucas 10, 5). Esta es la presentación del gracioso, que enseguida introduce su primer cuento. Vale recordar que la presencia de la figura del donaire en las comedias –cómicas o no– correspondía a la expectativa del público áureo. Y al inicio de esta comedia la atmósfera todavía es leve y tranquila, y supuestamente ideal para que la figura del donaire demuestre su comicidad. En la Primera Jornada, por tanto, a cada momento Juanete encuentra razones para contar un cuento. El primero, que sucede al comentario de don Luís sobre el gusto que le da recibir a huéspedes, cuenta la historia de un villano que ofrece hospedaje a los soldados que llegan, pidiendo dos huéspedes, con la siguiente explicación “(…) aunque molestias me dan / cuando vienen, es muy justo / admitirlos, por el gusto / que me hacen cuando se van.” (vv. 201-204). Muchos críticos, como Wilson y Fischer, relacionan este cuento con las consecuencias de la hospitalidad de don Luís y la ven como exagerada. Dice Wilson: La hospitalidad es algo noble, pero don Luís la exagera sin ver que tal generosidad puede, de hecho, ocasionar desgracias a los huéspedes a quien quiere agasajar. Si no hubiera insistido que don Juan se quedara, Serafina no hubiera vuelto a ver a don Álvaro, ni tampoco hubiera conocido al Príncipe. (WILSON, 1970, p.81) De hecho, si estos personajes no hubieran coincidido en el mismo espacio a, el drama no habría desembocado en una tragedia. Con todo Juanete no es un genio que adivina cuál será el desenlace de la historia y en ese momento tampoco hay signos que lo puedan suponer. Lo que hace Juanete es satirizar la hospitalidad de don Luís, como si no fuera verdadera, por no conocer sus reales intenciones. Más adelante, en esa misma jornada, Juanete repetirá esa idea “Es gran placer / al ver los huéspedes / ver la recua en que se han de ir“ (vv. 310b-312). Sin embargo, don Luís es un noble y, en el siglo de Oro, ofrecer el hospedaje cumplía no solo con la ley de caridad, sino tenía también una gran importancia social. Por tanto, la hospi101 Hispanismo 2 0 0 6 talidad de don Luís nada tiene de exagerada, si la miramos bajo las convenciones de la época en que se escribió la comedia. De ese modo, podemos comprender el cuento de los soldados como una simple broma que hace el gracioso al entrar en escena. El siguiente cuento tiene, por contra, una función diferente. Cuando Porcia le pregunta a Juanete sobre la boda de don Juan y Serafina, el gracioso introduce el cuento del pollo y del vino para señalar la imprudente diferencia de edad que hay entre los esposos. En este cuento, sí, el gracioso percibe lo que los demás personajes no se dan cuenta e indica posibles consecuencias negativas. El tercer cuento responde a la pregunta de Porcia “¿Cómo Serafina viene?“ (v. 238). Juanete le contesta “En coche.“ (v. 239a), jugando con el sentido de la pregunta. Lo que Porcia quiere saber es sobre el estado anímico de Serafina y Juanete le contesta el medio de transporte en que viene la dama. Pero el gracioso justifica su juego de palabras al hablar de la felicidad y vanidad de ir en coche. Y una vez más se equivoca al suponer que Serafina está contenta con la boda e ignora su sufrimiento. La dama no está “contenta, ufana” ni “felice”, como afirma Juanete, sino desesperada por haberse casado con un hombre a quien no quiere y seguir enamorada de don Álvaro, a quien cree muerto. Al principio de la Segunda Jornada, el cuento del hombre sordo sucede la escena en que don Juan culpa a la belleza de Serafina por su incapacidad de retratarla. Juanete percibe que don Juan tiene alguna deficiencia y su cuento señala que, igual que el hombre no se daba cuenta de que estaba sordo y culpaba a los demás por no hablarle bien, don Juan no reconoce que la culpa no está en la belleza de su esposa, sino en él mismo. La deficiencia denunciada por Juanete puede ir más allá de los conocimientos de pintura de don Juan Roca y referirse a cuestiones pertinentes a su matrimonio y honra. Tras haber contado el cuento del hombre sordo, pocos versos más adelante, con motivo de un diálogo entre don Juan y Serafina, Juanete introduce el del cura que revela a un hombre que este es cornudo; y su mujer dice que el cura le ha contado su secreto de confesión. Este cuento demuestra cuándo una mujer sabe cosas sobre su marido que él mismo no sabe, es decir, cuando él es cornudo. Serafina no traiciona a don Juan y defiende su honor, por eso se puede decir que Juanete no posee la genialidad adivinadora que tantos críticos le atribuyen, pues una vez más se equivoca en cuanto a las intenciones de los personajes y, con este cuento, sugiere un adulterio que sería posible en una comedia, pero que al final no pasa en esta. Sin embargo, la función que posee este cuento es la de denunciar que allí hay una cuestión de honor marital, de consecuencias trágicas latentes. Juanete comienza a intentar contar el cuento de los “chiquillos” en la Primera Jornada y solo lo logrará decir en la Tercera, tras tres fracasados intentos. Y, como dice Wilson, este cuento solo posee sentido en la situación en que se cuenta, es 102 Volume 4 | Literatura Espanhola decir, tras Belardo haber reclamado que todavía no había recibido nada. Sin embargo, Wilson afirma también que la larga espera de Juanete se justifica en el hecho de que uno tiene que esperar para conseguir lo que desea. Pero esta afirmación no me parece adecuada a la tragedia. Y la larga espera se justificaría mejor en la repetición de los intentos de Juanete de contar su cuento como un recurso dramático. Eso es, se crea en el drama y con el espectador un pacto con un leitmotiv, y al mismo tiempo que ya se supone la interrupción del cuento cada vez que Juanete comienza a contarlo, se aumenta la curiosidad del espectador de saber cómo terminará la historia. Y, por otra parte, se intensifica la marginación del gracioso, a quien siempre le expulsan de la escena o simplemente lo ignoran cuando trata de conferir al drama un tono jocoso. En la Tercera Jornada, el Príncipe – la representación de la realeza – con su generosidad le permite hablar y, con ello, Juanete por fin logra contar su cuento y se alegra. Pero sigue sin hacer reír a los demás. Al recibir del Príncipe una joya, el gracioso se la agradece y demuestra su gusto por contar cuentos: “aunque solo oír el cuento / para mí es paga bastante” (vv. 2969-70), lo que ya había hecho en diversas ocasiones anteriores, como en los versos 548-550: “me he adelantado, creyendo / que cuando nada me valga / me valdrá contar un cuento”. No obstante, los cuentos de Juanete no encuentran lugar en el universo trágico del drama, ni siquiera en el inicio de la obra, cuando no hay todavía indicios de la tragedia; y al gracioso, siempre que se porta como tal, le hacen que se calle, lo ignoran o expulsan de escena: Porcia Deja locuras y di (v. 237) Don Juan Quita, loco. Don Pedro Aparta, necio. (v. 666) Ni siquiera le permiten hablar como un loco, como le ocurre al gracioso Pasquín, de La cisma de Inglaterra, a quien, como afirma Ruiz Ramón, “se le tolera decir la verdad que sería intolerable, y castigada, en la boca del cuerdo” (RUIZ RAMÓN, 1985, p. 107). Juanete se mueve por el universo del drama intentando encontrar lugar para expresar su papel de gracioso, pero en esta tragedia no hay lugar para lo cómico. Por lo tanto, aun cuando consigue que el Príncipe escuche lo que tiene que decir, no logra provocar la risa. Podemos acordarnos del gracioso Coquín, de El médico de su honra, que, por no conseguir hacer reír al Rey don Pedro, se arriesga a perderse los dientes, de modo que eso se convertiría en su propia tragedia. Podemos decir que la tragedia de esos graciosos consiste en su incapacidad de actuar como figuras del donaire y provocar la risa. 103 Hispanismo 2 0 0 6 Si nos preguntamos si Juanete es un gracioso con o sin gracia, tendremos que plantear dos niveles: el del drama en sí mismo y el de la recepción de su representación. Como ha sido dicho, dentro del universo del drama Juanete fracasa en cuanto gracioso, pues no consigue cumplir su función cómica y queda marginado a cada intento de hacer reír a los demás; y esto consiste en su propia desgracia y acentúa la tragedia de la obra. Sus chistes no alivian la tensión, sino muchas veces la intensifican, como en el caso del cuento del hombre cornudo. Sin embargo, podemos suponer la recepción de esta figura del donaire en las representaciones de la comedia y plantear que el público se deleitara con su presencia y sus cuentos. Al reflexionar sobre este personaje, podemos percibir que cumple, sin duda, la función de un criado ejemplar, fiel y sumiso a su amo. Es un contador de historias que algunas veces indicarán cuestiones importantes que los demás personajes no saben ver o entender, pero no lo podemos considerar un genio adivinador ni el portavoz del poeta. Es un agente de la risa, la figura del donaire que el público áureo esperaba encontrar en una comedia, pero dentro del drama no encuentra lugar para la comicidad y el hecho de que, en cuanto personaje cómico, al gracioso no se le permita formar parte de este universo dramático tiene como resultado que su función cómica se anule y llegue a convertirse en trágica, una vez que la imposibilidad de la risa refleja y refuerza el tono trágico del drama. Referencias Bibliográficas Arellano, Ignacio. Historia del teatro español del siglo XVII. Madrid: Cátedra, 1995. -----, Convención y recepción. Estudios sobre el teatro del Siglo de Oro. Madrid: Gredos, 1999. Biblia Sacra Iuxta Vulgatam Clementinam. Ed. A. Colunga y L. Turrado. Madrid: BAC, Editorial Católica, 1965. Calderón de la barca, Pedro. La cisma de Ingalaterra. Ed. J. M. Escudero. Kassel, Reichenberger, 2001. -----,La vida es sueño. Ed. Ciriaco Morón. Madrid: Cátedra, 1996. -----,. El médico de su honra. Ed. A. Armendáriz. En prensa (Biblioteca Áurea Hispánica). -----. “El pintor de su deshonra”. In: Comedias. A Facsimile Edition, ed. D. W. Cruickshank y J. E. Varey, London, Gregg – Tamesis, Vol. XVI: Séptima parte de comedias (Madrid, 1683), 1973. pp.437-480. Covarrubias, Sebastián de. Tesoro de la lengua castellana o española. Madrid: Turner, 1979. 104 Volume 4 | Literatura Espanhola Díez Borque, José María. Sociología de la comedia española del siglo XVII. Madrid: Cátedra, 1976. Fischer, Susan L. “The function and significance of the gracioso in Calderón’s El pintor de su deshonra”. In: Romance Notes, 14. 1972. pp. 334-340. Güntert, Georges. “El gracioso de Calderón: disparate e ingenio”, Actas del Sexto Congreso Internacional de Hispanistas. Toronto: Department of Spanish and Portuguese, University of Toronto, 1980. pp. 360-363. Ruiz Ramón, Francisco. “El bufón en la tragedia calderoniana”. In: Archivum Calderonianum (Hacia Calderón. Séptimo Coloquio Angloamericano. Cambridge, Stuttgart, 1984). 1985. pp. 102-109. Sloane, Robert. “On Juanete’s final story in El pintor de su deshonra”. In: Bulletin of the Comediantes, 28, 2. 1976. pp. 100-103. Wilson, Edward M. “Hacia una interpretación de El pintor de su deshonra”. In: Ábaco, 3. Madrid: Castalia, 1970, pp. 49-85. Notas a La concentración espacial como un potenciador de la tensión es una característica dramática recurrente. 105 Hispanismo 2 0 0 6 O discurso misógino em Celestina, de Fernando de Rojas Lilian dos Santos Silva (USP) O objetivo desta comunicação é a análise dos elementos misóginos presentes em diversas falas das personagens masculinas de Celestina, averiguando que essas reproduzem uma visão do feminino que retrata não somente a sociedade contemporânea espanhola, mas toda uma misoginia intrínseca ao cristianismo ocidental medieval. Avaliaremos as posturas das personagens masculinas em relação às mulheres, principalmente perante a personagem de Celestina, que tanto é estimada como uma mãe, quanto temida como uma bruxa. Essa identificação com o papel maternal, que tende a evocar o culto mariano, porém, não se constitui exatamente como um pólo oposto àquele que a considera uma velha feiticeira comparsa do demônio. Nesse entremear, onde não é possível distinguir precisamente o que seja divino e o que seja demoníaco na protagonista do texto, estará focada nossa atenção. Trataremos, pois, de defender a hipótese de que, tanto pela via de adoração, como pela via da difamação, tende-se sempre à visão da mulher como a portadora do mal para o homem. Em Celestina, podemos constatar que os homens não se limitam a vituperar a protagonista, e sim todo o gênero feminino, do qual ela parece ser considerada um exemplar que sintetiza exponencialmente todos os defeitos inerentes ao seu sexo. Temos uma boa indicação de quais seriam esses defeitos feminis na longa fala de Sempronio, quando tenta dissuadir Calisto de sua paixão por Melibea, enumerando as características que, sendo próprias do sexo, certamente estariam presentes naquela: ¿Sus disimulaciones, su lengua, su engaño, su olvido, su desamor, su ingratitud, su inconstancia, su testimoniar, su negar, su revolver, su presunción, su vanagloria, su abatimiento, su locura, su desdén, su soberbia, su sujeción, su parlería, su golosina, su lujuria y suciedad, su miedo, su atrevimiento, sus hechicerías, sus embaimientos, sus escarnios, su deslenguamiento, su desvergüenza, su alcahuetería? (ROJAS, 1997, p.84) Sempronio quer fazer com que seu amo desista de sua amada principalmente porque não considera digno de um homem a sujeição a uma mulher, alegando que “sometes la dignidad del hombre a la imperfección de la flaca mujer” (ibidem, p.82). Mais adiante, o criado cita a Bíblia, ancorando-se nos exemplos de Adão, Elias, Salomão, e Davi, além de referir-se a Aristóteles e Virgílio. Ou seja, Sempronio não fala por si só, ele é portavoz de uma tradição. 106 Volume 4 | Literatura Espanhola Essa tradição que dá o suporte ao discurso de Sempronio, portanto, não é oriunda exclusivamente do texto bíblico, mas perpassa a história européia, incluindo gregos e romanos. Um ponto comum entre todos eles parece ser a relação “natural” entre a mulher e os enganos da fala. Voltando à lista de falhas de Sempronio, vemos que grande parte delas diz respeito ao uso indevido da palavra pelas mulheres: lengua, engaño, testimoniar, negar, parlería, escarnios, deslenguamiento, alcahuetería. Essa característica de sedução feminina através da fala, que é certamente o atributo mais marcante da personagem de Celestina, portanto, não lhe é exclusiva, sendo um predicado do gênero. Essa associação é oriunda de uma longa tradição que liga o universo feminino aos ardis da palavra, facilmente encontrada na literatura antiga e medieval, tanto filosófica (ou “científica”) quanto ficcional. Podemos percebê-la, por exemplo, nas sereias de Homero, que imploram ao viajante Ulisses que se detenha para ouvir-lhes a voz. Também é perceptível em Hesíodo, que afirma a criação simultânea da mulher e da fala mentirosa na figura de Pandora. Ou, já no ocidente cristão, a culpa atribuída a Eva pela Queda, pois ela, através de sua fala sedutora, convence Adão a provar da Árvore do Conhecimento, sendo assim a responsável pela perda do Paraíso. Se há uma tendência feminina natural à mentira e ao discurso sedutor, então só podemos interpretar Celestina como uma mulher em quem esse “defeito originário, genérico” extrapolou os limites aceitáveis, moral e socialmente. Mas a fala ardilosa não é o único “dom” atribuído ao feminino. A mulher também é relacionada diretamente à corporeidade, e como sabemos, naquele universo o corpo é uma instância inferior ao espírito, sendo veículo de pecado em vários níveis: golosina, lujuria, suciedad, como defende Sempronio. A associação do homem com a racionalidade/intelectualidade e a mulher com a sensoriedade/corporeidade é um clichê cultural, mantendo uma longuísima tradição, que passa por Gregório de Nissa, Tomás de Aquino e Graciano, entre outros (BLOCH, 1995, p.38). Também está ligada a todo tipo de desvios morais: disimulaciones, desamor, ingratitud, presunción. Podemos ver que a única mulher que parece isentar-se dessas falhas é Melibea, que é uma mera vítima da persuasão da alcoviteira e do discurso pseudo-cortês de Calisto. Até mesmo sua mãe pode ser questionada quanto ao fato de admitir, em princípio, a entrada em sua casa de uma mulher com a reputação de Celestina. Alisa, em seu papel de mãe, deveria ser o exemplo supremo de dignidade e honra, não procede de acordo com sua função, a de preservar sua casa e sua filha. A figura da mãe como a portadora do amor, bondade e dignidade infinitos alude, no imaginário cristão ocidental, evidentemente ao culto à 107 Hispanismo 2 0 0 6 Virgem Maria. Essa ligação entre maternidade e elevação espiritual fazse notar até hoje, apesar das tentativas recentes de se provar a construção de um mito do amor natural das mãesa. De qualquer forma, vemos que quando algumas personagens, como Areúsa, Elicia e Sempronio, chamam Celestina de mãe, isso é, obviamente, uma forma de agradá-la: ser chamada de mãe é um elogio. É geralmente a capacidade de dar os filhos à luz o aspecto redentor das mulheres, aquilo que pode salvá-las de seus defeitos de gênero. Assim, a atribuição do epíteto “mãe” equivale a uma sublimação do feminino, segundo os lugares-comuns associados à imagem materna no contexto cristão ocidental, calcados diretamente na imagem da mãe de Cristo. Assim, poderíamos talvez supor que a visão que se tem da mulher dentro da obra de Fernando de Rojas não é exclusivamente negativa, uma vez que ela também pode apresentar qualidades sublimes, que geralmente a aproximam de um espírito de auto-sacrifício maternal. Até mesmo Sempronio, antes de desfiar a lista supracitada, diz a Calisto que há bondade em algumas mulheres: “Pero lo dicho y lo que de ellas dijeren no te contezca error de tomarlo en común; que muchas hobo y hay santas y virtuosas y notables, cuya resplandeciente corona quita el general vituperio” (ROJAS, 1997, p.84). Sim, existe de fato a possibilidade de a mulher ser “santa e virtuosa”, como enuncia o criado, o que não parece, todavia, retirar-lhe a potencialidade de causar o mal ao homem, com a qual nasceu. Vemos que nessa fala de Sempronio, a santidade é uma exceção, que “quita el general vituperio”. A exceção dentro da obra parece estar, mais uma vez, somente em Melibea, cujo deslize é fruto da armadilha em que é pega. De qualquer, porém, sua ingenuidade e virtude iniciais não impedem que ela seja o motivo indireto da morte de Calisto, e do sofrimento posterior de seu pai, decorrente de seu suicídio. Ou seja, a mulher, mesmo quando virtuosa como Melibea, guarda potencialmente a destruição do homem — como na caixinha de Pandora —, devendo ser sempre mantida sob a tutela de um varão. Isso porque, como já vimos, o homem é o representante da razão, e ele deve governar a mulher para que essa não se deixe levar pelos sentidos. Como escreveu Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica, há dois tipos de sujeição: uma é a escravidão, em que o soberano governa o súdito para seu proveito próprio, e outra é a sujeição doméstica ou civil, em que o soberano governa seu súditos para vantagem e benefícios deles: esta é a sujeição pela qual a mulher está subordinada ao homem, pois o poder de discernimento racional é naturalmente mais forte neste (TOMÁS DE AQUINO Apud BLOCH, 1995, p.39). 108 Volume 4 | Literatura Espanhola Assim, se por um lado temos a visão da mulher como poço sem fundo de vícios e defeitos genéricos, por outro também temos a visão da mulher como ser frágil, facilmente corrompível apenas por uma debilidade, uma fraqueza da qual ela não é culpada. Nesta última categoria encontraríamos Melibea. Um bom exemplo medieval do topos da mulher como ser frágil, imbecilizado e falto de orientação masculina, vemos em Rabelais, como bem nos mostra a análise de Jean Delumeau sobre a obra Tiers livre: A mulher é menos viciosa que frágil (...) por isso tem a necessidade de proteção e, em primeiro lugar, a de uma boa educação e bons pais (...) Rabelais é, além disso, muito duro no capítulo XLVIII, contra os corruptores de moças. Quando elas se tornam esposas, cabe aos maridos zelar por sua pudicícia e virtude. Mas não de uma maneira tirânica. (DELUMEAU, 1989, p.331) No pólo oposto à essa inocência está, é claro, a figura de Celestina, que é quem possibilita em termos práticos que toda a tragédia ocorra. Resta às suas “órfãs” lamentar sua perda, que é a perda do exemplo elas têm de mãe e alcoviteira, o que, segundo a visão cristã ocidental, é uma contradição em termos: a mãe não pode associar-se à prostituição, devendo ser pura como a Virgem Maria. Um dos piores xingamentos nos países de tradição católica é precisamente aquele em que se ligam maternidade e prostituição. Assim, podemos concluir que Celestina consegue encarnar magnificamente uma impossibilidade diante dos tabus da sociedade em que vive: ela é ao mesmo tempo a mãe de que todos precisam, mas, por encarnar também a bruxa e a prostituta, tem seu triste fim ao ser exterminada por seus “filhos”. Curiosamente, ao longo da história das cultura ocidentais, parece ter sido justamente a capacidade feminina de dar os filhos à luz o fato que associa a mulher aos mistérios da natureza, tornando-a mais capacitada a decifrá-los e manipulálos, como nos recorda Delumeau: O elemento materno representa a natureza e o elemento paterno a história (...). Porque mais próxima da natureza e mais bem informada de seus segredos a mulher sempre foi creditada, nas civilizações tradicionais, do poder não só de profetizar, mas também de curar ou de prejudicar por meio de misteriosas receitas. (DELUMEAU, 1989, p.311) É dessa forma, portanto, que em Celestina encarna a potencialidade feminina para o Bem e para o Mal: surgindo como uma projeção arquetípica do feminino, visto como ser ligado ao sensorial e aos mistérios da natureza. Sua pretensão em dominar esse mistério é o motivo pelo qual ela deve ser exterminada. 109 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas BADINTER, E. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Tradução de Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Ed. 37, 1995. DELUMEAU, J. O medo no ocidente: 1300-1800 uma cidade sitiada. Tradução de Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ROJAS, F. Celestina. Barcelona: Plaza & Janes, 1997. TOMÁS DE AQUINO. Summa theologiae. Parte I, vol. 13. Apud BLOCH, Howard. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Tradução de Claudia Moraes. Rio de Janeiro: Ed. 37, 1995. 110 Volume 4 | Literatura Espanhola Mascarillas, antifaces y máscaras en la obra cervantinaa María Luisa Lobato (Universidad de Burgos) No parece que se haya prestado atención a uno de los pasajes más sugerentes de Don Quijote, en el que Cervantes hace un guiño teatral. Es aquél en el que el novelista nos narra que cuando Sancho Panza descubrió un día al amanecer la nariz del escudero del Caballero de los Espejos, tan grande que casi hacía sombra a todo el cuerpo, se propuso en su corazón no luchar jamás contra aquel vestiglo. Cervantes describe entonces el apéndice, dando a sus palabras un halo legendario al iniciar el parlamento con un verbo propio de las narraciones cuentísticas: Cuéntase, en efecto, que era de demasiada grandeza, corva en la mitad y toda llena de verrugas, de color amoratado, como de berenjena; bajábale dos dedos más debajo de la boca; cuya grandeza, color, verrugas y encorvamiento así le afeaban el rostro (CERVANTES, 1999, Quijote II, XIIII, p. 740). Hasta algunos folios más adelante el lector no descubre el caso. Tiene que esperar a ver al Caballero en el suelo, vencido por don Quijote, para que el escudero, que se encarga de asegurar a su amo como Sansón Carrasco, llegue ya sin el apéndice nasal y pueda ser reconocido por Sancho: - Y viéndole Sancho sin aquella fealdad primera, le dijo: - ¿Y las narices? - A lo que él respondió. - Aquí las tengo en la faltriquera. Y echando mano a la derecha sacó unas narices de pasta y barniz, de la manifatura que quedan delineadas (CERVANTES, 1999, Quijote II, XIIII, p. 744). Sólo en ese momento Sancho descubre en el desnarigado escudero a su compadre Tomé Cecial, cuyo apellido en el que resuena el eco de “pescado salado y seco”, bien pudo corresponderse con el tipo físico que Cervantes imaginó para este personaje. No dejan de causar extrañeza al lector esas “narices de pasta y barniz” que Tomé guarda en su bolsillo, apéndice externo que podría parecer en una primera mirada superficial ajeno al género novelístico del que tratamos. Ni siquiera en el teatro áureo, donde hubiera sido más esperable, las máscaras son algo usual, aunque tampoco están totalmente ausentes de la dramaturgia de ese periodo, como en otro momento trataré. 111 Hispanismo 2 0 0 6 La máscara narigada tiene en Cervantes el fin de la disimulación, si no de la suplantación de la personalidad, de quien es cercano y conocido: Tomé Cecial, hombre rústico, vecino al cabo de Sancho, el cual, en virtud de esa semiocultación del rostro, pasa a ser el escudero que está al servicio del Caballero de los Espejos y, por tanto, cruza los límites de la realidad para formar parte del mundo caballeresco. A través de esa conversión, el escudero Tomé Cecial y el caballero Sansón Carrasco, “perpetuo trastulo y regocijador de los patios de las escuelas salmanticenses” como le llama Cervantes en una alusión a un personaje de la commedia italiana (SITO ALBA, 1983, p. 17), serán dobles del escudero Sancho Panza y del caballero Quijote. De ese modo, Carrasco y Cecial, reflejados en los espejos del disfraz de lid del caballero así llamado, podrán ser dignos oponentes en la batalla caballeresca. El enfrentamiento tiene como origen una disputa por el honor de la dama: Dulcinea del Toboso, llamada un tiempo Aldonza Lorenzo, enfrentada con Casilda, aldeana andaluza, a la que su adorador ha llamado con el apelativo más eufónico “Casildea de Vandalia”. Por tanto, dos caballeros, dos damas y dos escuderos salidos de la realidad más terrena se baten en lid aquí en un contexto caballeresco idealizado, prestos al enfrentamiento de fuerzas por una cuestión de honor. Y la máscara nariguda resulta ser el elemento distorsionador de la realidad y ocasionador de qui pro quo que confunde la identidad del escudero y, con él, la de su señor y la de la amada idealizada, de modo que la ficción caballeresca se intercale entre la realidad terrena de los personajes cercanos y la idealización del mundo de caballerías. Por otra parte, el hecho de doblar cada uno de los personajes principales de la acción facilita los diálogos entre los presentes: caballeros y escuderos, y provoca la comparación de las ausentes: Dulcinea y Casildea, pero la utilidad más importante de estas dualidades es la ya expresada, el proporcionar un espejo a cada grupo. En este sentido, todo el pasaje evoca el modo de construcción de la commedia dell´arte. En ella, como es sabido, hay una serie de personajes que aparecen a pares: viejos, amantes y criados, aunque a estos dos últimos no les corresponden dos criadas, sino sólo una, ya sea Colombina o Franceschina. Junto a ellos, el Capitano está solo. Otras, este personaje se asocia a los amantes y todo funciona como si se tratara de una coreografía. Sin embargo, este teatro italiano admite también otros esquemas que facilitan la variatio. De modo semejante, Cervantes en este capítulo especular enfrenta dualidades, de forma que el incentivo dramático se ponga en marcha. Por otra parte, el juego de espejos entre la pareja principal de la novela cervantina y la contra-pareja se refleja a su vez en la imagen desdo112 Volume 4 | Literatura Espanhola blada de dos personajes italianos a los que se ha considerado posibles génesis de la pareja cervantina: Pantalone, representado por el actor Giulio Pasquati di Padova, y sus zanni bergamescos, Simone y Gabrielle de Panzanini, personajes todos del grupo italiano I Gelosi. Un Pantalone ingenioso y menos sexualizado que el prototípico de la compañía de Alberto Nasseli, alias Ganassa, y su zanni, personaje subalterno, burlón de su amo, mensajero de amores entre éste y su dama, y caracterizado de forma carnavalesca por su apetito pantagruélico y grueso vientre (VÉLEZSAINZ, 2000, pp. 41-42). Ahora bien, a pesar de las apariencias, la máscara que oculta el rostro de Tomé Cecial para equivocar a Sancho Panza parecería una excepción en la producción literaria cervantina. No es Cervantes proclive a la utilización de máscaras en su literatura, ni siquiera en su teatro. Con la excepción de La Numancia y El rufián dichoso no se vale de esa denominación y, aún en los casos citados, las máscaras parecen cubrir el rostro completo del actor para hacer verosímil su estado de enfermedad o su condición de casi difunto por falta de alimento. No tenemos aquí espacio para ocuparnos de la utilización del recurso a la máscara en estas dos obras, lo que se hará en la versión amplia de este ensayo, pero sí cabe señalar que en ambos casos las máscaras y el disfraz propician la confusión del sexo, de modo que Hambre y Enfermedad en La Numancia pueden estar representadas por hombres y lo mismo ocurre con las ninfas lascivas en la fantasía erótica que se pergeña en El rufián dichoso. No se encuentran otras menciones al término ‘máscaras’ en la producción cervantina, aunque sí a algún objeto que podría relacionarse con ellas, como es el de la celada que oculta el rostro del protagonista en momentos claves de la novela. Además, como se ha visto, las dos muestras teatrales difieren notablemente de la que se presenta en Don Quijote. De ahí que, ante el recurso a la más escueta máscara “de pasta y barniz” que cubre parte del rostro de Tomé Cecial, podamos preguntarnos cuál pudo ser la fuente de inspiración del novelista. El adminículo evoca, desde luego, el que por aquellos años utilizaban los commediantes dell´arte, los cuales, en sus viajes por España de la segunda mitad del siglo XVI habían tenido ocasión de ser conocidos y estimados también en nuestra península, como es bien sabido. Cervantes, muy probablemente, fue uno de sus espectadores más interesados si no en ese periodo, en los años que le siguieron. De acordo com Agne Beijer, la relación entre la commedia y Cervantes fue expuesta ya en 1928 por Duchartre a partir de la figura de un Arlecchino (BEIJER, 1928, p. 5), que estuvo representado por el cómico Tristano Martinelli (1557-1630) durante un largo periodo de tiempob. El primer retrato que pa113 Hispanismo 2 0 0 6 rece conservarse es el que se guarda hoy en el Museo Baron Gérard de Bayeux (Francia), con un Martinelli-Arlecchino de diecinueve años, según las últimas interpretaciones que se han hecho del cuadro (FERRONE, 2003, pp. 110-114). El personaje aparecía en diversas representaciones enamorado de su Francischina, representada por la actriz Angela Salamone –su cuñada-, trazado con bigote y barba puntiaguda, caballero andante en un pobre rucio, con armadura y espada mellada, olla de hierro por yelmo y fingida lanza en ristre, junto al que corre un perro. Parece que ese grabado conservado en la importante colección Fossard de hacia 1584, reproduce alguna de las actuaciones de los cómicos del grupo italiano I Gelosi, dirigida por Francesco Andreini el cual, además, hacía en ella el papel de Capitán Spavento. No deja de sorprender la relación figurativa entre Arlecchino respresentado por el actor Tristano Martinelli y don Quijote, caballero de la Triste Figura. Quizá no en vano Martinelli fue contemporáneo del propio Cervantes (1547-1616) y es muy posible que sus trayectorias vitales confluyeran en algún momento, como se indicará a continuación. Como es sabido, esta compañía desarrolló su actividad especialmente en Italia y en Francia. Al hilo de la biografía de Cervantes no parece imposible que pudiera asistir a alguno de sus espectáculos, pues las fechas 114 Volume 4 | Literatura Espanhola de sus actuaciones en determinados lugares coinciden con momentos en los que Cervantes estaba allí. Así, por ejemplo, tal como nos ha recordado Vélez-Saiz, el encuentro con este grupo de I Gelosi, al que se incorporaría Martinelli, pudo ser en el carnaval de Milán (1568), en Génova (1571 y 1574) o en el carnaval de Venecia (1574), (VÉLEZ-SAIZ, 2000, p. 37). También es posible que se diese en alguna de las otras ciudades de Italia en las que Cervantes estuvo y en las que el grupo representaba, ya fuera Roma, Palermo, Florencia, Parma, Ferrara o Nápoles (CANAVAGGIO, 1987). El comediante Martinelli, alias Arlecchino, estuvo con su hermano Drusiano también en la compañía I Confidenti en Madrid en 1587 y 1588 (NICOLL, 1977, p. 171), fechas en las que pudo coincidir con Cervantes como espectador. En todo caso, es difícil pensar que nuestro autor estuviese ausente por completo de la que fue una de las novedades teatrales más importantes de su tiempo siendo como era, como él mismo reconoció, tan amigo del género: “desde mochacho fui aficionado a la carátula, y en mi mocedad se me iban los ojos tras la farándula” (Quijote, II, XI, p. 714), dice por boca de don Quijote cuando se dirige al carretero que guía el carro de las Cortes de la Muerte. Más difícil parece que Cervantes pudiese acudir a las representaciones en el periodo 1574-1584 en que el grupo de Ganassa actuó en España, con algunas interrupciones como la del luto impuesto por la muerte de la reina Ana de Austria en 1580 (GARCÍA GARCÍA, 1992-1993, p. 361). Cervantes anduvo enredado en mil quehaceres y penalidades durante ese periodo: soldado en la expedición de don Juan de Austria contra Túnez (1574) y prisionero de los corsarios berberiscos (1575) hasta su liberación en 1580 por los padres trinitarios, y encarcelado de nuevo en 1582. La compañía citada actuó en enero de 1582 en Madridc, Toledo y Guadalajara y todavía en 1584 pudo vérselos en la capitald con su teatro en el que parece que la mímica ocupaba un importante lugar. Parece más fácil que fuera en el periodo anterior, “su mocedad”, durante sus frecuentes viajes a Italia cuando tomara contacto con este tipo de teatro a través del grupo I Gelosi o ya en 1587 o 1588 en que quizá puso ver a I Confidenti, quienes dejarán improntas innegables en su producción literaria muchos años después, como es el nombre de Sancho Panza y su relación con el personaje Zan Panza di Pegora, representado por el cómico Simon de Bologna, del grupo I Gelosi (SITO ALBA, 1983, p. 15). Entre los personajes de la commedia dell´arte había uno que solía encabezar la lista de dramatis personae: el veneciano Pantalone (NICOLL, 1977, pp. 60 y ss.). Su máscara marrón oscura destacaba por la nariz aguileña y el cabello grisáceo que salía del sombrero, e iba adornada con una 115 Hispanismo 2 0 0 6 barba puntiaguda o un bigote. Se conservan de él numerosos retratos que dejan también ver en alguna ocasión gafas y una faltriquera, colocada a veces de forma que evocase un falo. Pero lo que nos llama aquí la atención es precisamente su máscara nariguda. Es por ello que nos recuerda a la máscara de Tomé Cecial que cubre solo una parte de su rostro, de modo que la voz y la entonación no perdieran fuerza. Cuando los estudiosos de este teatro tratan de interpretar el significado de las máscaras en el teatro, las respuestas son variadas, pero cabe recordar en este momento la que nos da Bragaglia cuando indica que la máscara “sirve al actor para crear un tipo surreal” y “para facilitar un viaje al mundo de la imaginación” (BRAGAGLIA, 1947, p. 63). E imaginación le hacía falta a Sancho para ver al escudero del Bosque donde solo estaba su vecino Tomé, para lo que Cervantes empleó el viejo recurso a la máscara aunque, eso sí, actualizada “a la italiana” y deformada hasta extremos inverosímiles, como prueba el texto que antes se ha leído en la que se la describe con todo detalle. Como se verá, en esta breve presentación defiendo la influencia de la commedia dell´arte, ya apuntada como posible génesis del Quijote, en el modo en que está trazado en concreto este pasaje del capítulo XIV de la Segunda Parte del libro: desde la marcada dualidad de personajes, al recurso a la media máscara irrealizadora, con la nariz prominente, incluso la referencia a la faltriquera de la que Tomé saca su máscara una vez que se la ha quitado del rostro, de modo que Sancho pueda comprobar el juego de confusión de identidades al que ha estado sometido. Y, yendo de lo particular a lo general, valga señalar que con máscara en la ficción festiva, la figura de don Quijote creó sin duda una mascara en el sentido que se daba al término en Italia: un personaje reconocible que pasa de una Primera Parte a una Segunda aunque, eso sí, obligado por el Quijote apócrifo que actúa como Arlecchino secondo. Este segundo Arlequín representado por un comediante que heredó el personaje del actor Tristano Martinello, primer Arlequín, nos permite ver la fuerza con la que las mascaras de la commedia del’ arte trazaron su camino. También don Quijote es una máscara y, cuando la máscara se esconde, nace un apócrifo el cual, a su vez, provoca el somorgujar del auténtico don Quijote. Ni siquiera la muerte del personaje en la novela, como en el caso del actor que fue Arlecchino, logró acabar con él. Su máscara atraviesa 116 Volume 4 | Literatura Espanhola la historia y la cultura con la suficiente fuerza para darnos un arquetipo humano de valor universal. Referencias Bibliográficas BRAGALIA, Anton Giulio. Le maschere romane. Roma, Colombo, 1947. BEIJER, Agne. Recueil de plusieurs fragments des premières Comédies Italiennes qui ont esté représentées en France sous le règne de Henry III. Recueil dit de Fossard conservé au Musée National de Stockhol, Suivi de Compositions de Rhétorique de M. Don Arlequin présentées par P.L. Duchartre. Paris, Duchartre et Van Buggenhoudt, 1928, p. 5 CANAVAGGIO, Jean. Cervantes. Trad. Mauro Armiño, Madrid, EspasaCalpe, 1987. CERVANTES, Miguel de, Don Quijote de La Mancha. Francisco Rico, Barcelona Crítica, 1999. FERRONE, Siro. “Lione, Anversa, Londra, Parigi: 1576-1578. Il viaggio dei comici”. En Zani Mercenario della Piazza Europea, ed. Anna Maria Testaverde, Bergamo, Moretti&Vitali, 2003, pp. 97-130. GARCÍA GARCÍA, Bernardo J. “La compañía de Ganassa en Madrid (158084): tres nuevos documentos”. Jounal of Hispanic Research, 1, 1992-1993, pp. 355-369. NICOLL, Allardyce. El mundo de Arlequín. Un estudio crítico de la commedia dell’ arte, Barcelona, Barral, 1977, p. 171. SITO ALBA, Manuel. “La ´Commedia dell´ Arte´, clave esencial de la gestación del ´Quijote´”. Arbor, 116, 456, 1983, pp. 7-30. VÉLEZ-SAINZ, Julio. “El Recueil Fossard, la compañía de los Gelosi y la génesis de Don Quijote”. Bulletin of the Cervantes Society of America, XX, 2, 2000, pp. 31-52. Notas a b c d Este trabajo forma parte de un ensayo más amplio que publicará Bulletin of the Comediantes, 59,1, 2007. La asociación entre Tristano Martinello y la máscara Arlecchino está documentada ya en el último cuarto del siglo XVI, hacia 1574. Este comediante tuvo una vida longeva, nació en 1555 y murió en 1630 con 75 años. Un documento del 1 de enero de 1646 registra la existencia de un Arlecchino Secondo al servicio del duque de Módena (Modena, Archivio di Stato - Archivio per Materie, b. Comici, cc. n.n.). Hicieron este papel, por ejemplo Giuseppe Domenico Biancolelli (c. 1637-1688) y Tommasso Visentini (1682-1739). Madrid, Archivo Regional – Diputación, Libro de Asiento de Comedias, 5084/1, c. 68r. Madrid, Biblioteca Francisco de Zabálburu, carpeta 212, doc. 63, 69-70. 117 Hispanismo 2 0 0 6 EL Licenciado Vidriera de Miguel de Cervantes: agudeza e melancolia Maria Augusta da Costa Vieira (USP) Se a literatura pode ser entendida como um oceano onde as águas se entremeiam continuamente por meio da apropriação de imagens do mundo e de estruturas textuais pré-existentes (TEIXEIRA, 2003, 53), El Licenciado Vidriera é de fato uma novela exemplar, não somente por integrar a série de narrativas cervantinas reunidas sob este título (Novelas Exemplares), mas sobretudo por compor um intricado diálogo com múltiplas formas. Como se sabe, nos tempos de Cervantes o conceito de literatura não estava delineado, assim como as distinções entre verdade histórica e verdade poética causavam impasses, apesar da circulação das idéias aristotélicas. Desse modo, o repertório textual, assim como os possíveis diálogos com variadas formas discursivas eram consideravelmente amplos e, em alguns casos, como na presente novela cervantina, cria-se uma rede de alusões e apropriações textuais, ao mesmo tempo em que se respeita determinados princípios de composição poética. Irmão menor de Dom Quixote, Tomás Rodaja - como é designado inicialmente o personagem nuclear da novela - passa por três momentos bem definidos representados pelas alterações de seu próprio nome: Tomás Rodaja, Licenciado Vidriera e Tomás Ruedas. Na primeira etapa de sua biografia, quando ainda bem jovem, encontra-se com dois cavaleiros estudantes às margens do Rio Tormes, numa provável alusão a Lazarillo. Não se recorda do nome de sua cidade de origem (mais ou menos como o narrador do Quixote em relação ao povoado originário de Alonso Quijano), no entanto manifesta com firmeza sua vontade de seguir os estudos, o que faz com que os dois jovens cavaleiros o recebam em sua casa, ao mesmo tempo em que lhe abrem as portas da Universidade de Salamanca. Rodaja torna-se famoso na universidade devido ao seu “buen ingenio y notable habilidad, que de todo género de gentes era estimado y querido” (p. 267): memória notável e talento para as letras eram suas qualidades fundamentais. Conhece um capitão de infantaria, Don Diego de Valdivia, que o convida para uma longa e detalhada viagem pela Itália, além de lhe instruir quanto ao elevado valor da carreira militar. Regressa a Salamanca e conclui seus estudos universitários reunindo, nessa primeira etapa de sua vida, amplo conhecimento acerca dos dois caminhos mais dignos para o homem renascentista: o das armas e o das letras. A segunda etapa apresenta-se como o período do amor mas em breve torna-se o tempo do desatino. Rodaja converte-se em Licenciado Vidriera 118 Volume 4 | Literatura Espanhola a partir de uma experiência nefasta que enfrenta com uma dama - não das mais sérias - que quer a todo custo seu amor. Enquanto ele se mostra interessado nos livros e não nos prazeres físicos, a dama utiliza um subterfúgio com o intuito de romper a resistência, enviando-lhe um marmelo enfeitiçado o que lhe produz um tremendo mal físico e, posteriormente, uma sorte de loucura na qual se crê um ser de vidro, intocável, mas com poderes de uma mente engenhosa, capaz de sábias e agudas palavras. Nesse período sentencia, inventa histórias, apotegmas, reproduz provérbios, critica a vida social e instrui seus ouvintes, até que um padre se encarrega de sua cura e o conduz à terceira etapa sob o nome de Licenciado Tomás Ruedas. Livre dos desatinos, não encontra meios para sobreviver uma vez que já não o seguem pelas ruas e nem desperta interesse e curiosidade nos demais. Decide deixar a corte e abraça as armas, indo para Flandres ao encontro de seu amigo, o capitão Valdivia, onde acaba morrendo deixando fama de “prudente y valentísimo soldado”. As histórias de loucos eram recorrentes na época. No próprio Quixote, nas primeiras páginas da segunda parte, aparecem as histórias do louco sevilhano, do louco cordobês e a do louco da casa de Orates. A narrativa da loucura de Vidriera tem parentesco com essa tradição popular de contos de loucos mas, ao mesmo tempo, dialoga com múltiplas ramas discursivas, a começar pela incorporação do tema da loucura como elemento central da narrativa, atribuindo a ela um viés particular, carregado de noções erasmistas em que a loucura, entre outras coisas, significa a conquista de novos horizontes predispostos não apenas ao humor, mas também a outras esferas da vida. O próprio modo de entender o cristianismo, como diz Erasmo no Enchiridion, se resume numa “locura tan cuerda” (BATAILLON, 1996, p. 204). Dom Quixote tanto quanto Vidriera em suas andanças totalmente laicas e em momentos de rematada loucura – o primeiro, vítima da loucura livresca; o segundo, da loucura vítrea - não deixam de conciliá-la com um viés de sensatez, de agudeza, de percepção radiográfica da vida e dos homens, como se fossem “locos cuerdos” ou “locos con lúcidos intervalos”. O tema da loucura vítrea, no caso do Licenciado, poderia causar surpresa pela excentricidade, no entanto, ao que tudo indica, nos séculos XVI e XVII era comum esse tipo de demência encontrado em trabalhos filosóficos como nas Meditações Metafísicas de Descartes (DESCARTES, 2005, p. 30) ou, mais especificamente, em relatos médicos da época. Um certo doutor Alfonso de Santa Cruz, que viveu em Valhadoli nos tempos em que Cervantes ali residiu, historia as manias de um paciente que julgava ser um vaso de vidro. Evitava a aproximação de qualquer pessoa 119 Hispanismo 2 0 0 6 temendo romper-se até que encontra alguma tranqüilidade quando passa a dormir num quarto repleto de palha, tal qual o Licenciado durante as estações frias. As coincidências são interessantes e não seria absurdo imaginar que o autor do Quixote tenha tido, direta ou indiretamente, notícias desse caso patológico (SERÉS, 1989, pp.62-63), o que poderia ter resultado numa possível reminiscência, interferindo no perfil anedótico da loucura de Vidriera, isto é, na sua aparência, no tipo de mania e não exatamente na essência de seu desatino. Se desde jovem o licenciado mostra-se como um tipo de rara inteligência, no momento em que passa a ser louco seu espírito crítico e satírico potencializa-se e o foco recai sobretudo nos costumes e na vida social. Tanto os relatos de Vidriera quanto seu estilo de vida têm grande familiaridade com a tradição clássica dos filósofos cínicos apresentados nas biografias de Diógenes Laércio e, em particular, com a biografia de Diógenes de Sínope, o cínico por excelência que da mesma forma tem vida excêntrica, anda pelas ruas descalço, com uma túnica sobre os ombros e utiliza aforismos e anedotas tradicionais. Traduções de algumas dessas biografias foram muito difundidas na Espanha desde o século XV e sobretudo contou com várias edições na primeira metade do XVI. Como demonstra Riley em elucidativo artigo, tanto o Quixote quanto o Licenciado Vidriera e o Coloquio de los Perros, apresentam fortes vínculos com os cínicos (RILEY, 2001, pp. 219-238). Os discursos de Vidriera, apesar de satíricos, críticos e cômicos mantêm o constante decoro de modo que as narrativas e sentenças, oriundas muitas vezes da tradição oral, são relatadas respeitando os “buenos modales”, purgando-as da vulgaridade e de tudo o que pudesse macular determinados princípios artísticos (CLOSE, 1998, p. 442). Nesse sentido, seus aforismos ou apotegmas aproximam-se muito dos de Juan Rufo, repletos de sabedoría moral, de engenhosidade e de agudeza cortesã – gênero tão difundido, especialmente, nas duas últimas décadas do século XVI (BLECUA, 1972, pp. IX-XLVIII). As coincidências temáticas são várias como por exemplo o aforismo que aparece nos Aportegmas de Rufo sobre os homens que tingem os cabelos brancos – “Dijo que teñirse las canas es como representar con barba postiza” (555) – e, por outro lado, a implicância de Vidriera com relação aos que têm o mesmo hábito de encobrir a idade, como neste fragmento: 120 “Con los que teñían las barbas tenía particular enemistad. Y riñendo una vez delante dél dos hombres, que uno era portugués, éste dijo al castellano, asiéndose de las barbas que tenía muy teñidas: - Por istas barbas que teño no rostro! A lo cual acudió Vidriera: - Ollay, home, não digáis teño, sino tiño! “ (pp. 293-294) Volume 4 | Literatura Espanhola Por meio de ironias, jogos de palavras, julgamentos radicais que não se deixam ir “con la corriente del vulgo”, estão presentes no olhar e no discurso de Vidriera as críticas agudas à vida social espanhola, examinada a partir de vários ângulos. Não fossem os gritos repentinos quando o tocavam, os trajes, os hábitos alimentares, a insistência em dormir ao relento, no verão, e num paiol, no inverno, signos de declarada loucura, como diz o narrador, “ninguno pudiera creer sino que era uno de los más cuerdos del mundo” (p. 299): uma mescla de loucura e inteligência ou, talvez melhor, de melancolia e genialidade. Os estudos sobre a melancolia, tão difundidos no chamado Século de Ouro, indicavam que era plenamente possível associar os humores e os temperamentos a determinadas disposições psicológicas e, sem dúvida, os médicos espanhóis foram os que primeiro se dedicaram a investigar tais correspondências. A melancolia era vista como um mal de fronteira, “una enfermedad de la transición”, como diz Bartra (2001, p. 31). Poderia ser desencadeada de várias formas, entre elas, pela ingestão de determinados alimentos ou mordidas de animais venenosos; no entanto, poderia ser provocada também por causas internas como “temor súbito”, “exceso de estudio”, ou devido a “la esperma retenida más allá de la medida”, o que poderia se converter em veneno, segundo afirmava Galeno (BARTRA, 2001, p. 35). No caso de Vidriera, numa abordagem de caráter mais fisiológico, parece que tanto os fatores externos quanto os internos colaboraram para seu desatino, ou seja, tanto o “membrillo” envenado oferecido por sua pretendente quanto o excesso de estudo nos tempos da Universidade de Salamanca e a retenção de líquidos no corpo - já que não era dado aos amores - poderiam ter desencadeado sua patologia. No entanto, sua enfermidade ganha dimensões surpreendentes, próximas do perfil do melancólico desenhado pelo Problema XXX, 1 - texto atribuído a Aristóteles em que se discute as relações entre o homem de gênio e a melancolia. A pergunta inicial é contundente: “Por que razão todos os que foram homens de exceção, no que concerne à filosofia, à ciência do Estado, à poesia ou às artes, são manifestamente melancólicos /.../?” (ARISTÓTELES, 1998, p.81). Assim como os efeitos produzidos pelo vinho, quando ingerido em excesso, o acúmulo da bili negra de que padecem os melancólicos, acaba transformando os caráteres em “coléricos”, “apiedados”, “audaciosos”, entre outros. No caso de Vidriera, seu estado melancólico o conduziu a uma transformação essencial - a um certo tipo de “embriaguez” - que lhe concedeu autoridade discursiva e a propriedade da agudeza, fazendo com que suas palavras penetrassem no interior dos temas tratados (VIVES, 1988, p. 121) e desse modo pudesse desvelar os verdadeiros mecanismos que regem a vida dos homens 121 Hispanismo 2 0 0 6 e da sociedade. Sua genialidade o fez dominar um amplo repertório que vai do universo letrado aos contos e aforismos da tradição oral. Enquanto esteve louco, todos o consultavam e ouviam seus discursos sentenciosos; no entanto, quando deixa de ser o Licenciado Vidreira e passa a Tomás Ruedas, sensato e plenamente curado pelas mãos de um religioso, ninguém já lhe faz perguntas, além das muitas suspeitas que vão se multiplicando em relação a sua nova condição. Numa fala próxima à de Dom Quixote já no leito de morte, quando renega a cavalaria e as andanças como cavaleiro, Tomás Ruedas trata de explicitar sua transformação, esperando que sua vida se acerte nessa nova condição de modo que não lhe aconteça que, como diz, “lo que alcancé por loco, que es el sustento, lo pierda por cuerdo” (idem, p. 300). Nem por isso, seu discurso chega a convencer porque já ninguém lhe faz caso: o “ingenio” teve que ceder a “las fuerzas de su brazo” e assim abraça a carreira militar, indo ao encontro, em terras estrangeiras, de seu amigo, o Capitão Valdivia. Nos séculos XVI e XVII a sociedade de corte estava empenhada numa certa ação educativa voltada para a formação de homens discretos que, entre outras coisas, soubessem distinguir quais seriam os gestos e palavras mais adequados nas diversas situações da vida em sociedade. Ser discreto correspondia a atuar em nome da urbanidade, da disciplina e das regras da boa convivência, de modo a se sobrepor o controle e a racionalidade às paixões (VIEIRA, 2004, p. 7). No caso do Licenciado Vidriera, a primeira e última etapa de sua biografia se constroem dentro dos parâmetros da discrição. Com engenho e agudeza, Tomás Rodaja apresenta-se na vida social de modo plenamente adequado, digno de um aprendiz da discrição. Da mesma forma, na condição de Tomás Ruedas, quando decide ir para Flandres, inclui-se na categoria dos “discretos vergonzosos” que padecem das inúmeras injustiças da corte. No entanto, no período em que foi Licenciado Vidriera e atuou como louco, praticou uma série de ações avessas a qualquer princípio de ação discreta, embora nessa condição tenha conquistado autoridade e simpatia de todos que o ouviam. O interessante é constatar que Cervantes, como sempre, surpreende seu leitor: Tomás Rodaja, assim como Tomás Ruedas, apesar de sensatos e respeitadores dos códigos de conduta, não são capazes de despertar afetos, ao contrário, certamente, do melancólico e engenhoso Licenciado Vidriera que, por mais provocadores que sejam seus juízos, sentencia com agudeza e humor. 122 Volume 4 | Literatura Espanhola Referências Bibliográficas ARISTÓTELES (1998). O Homem de Gênio e a Melancolia – O Problema XXX, 1. Trad. do grego, apresentação e notas de Jackie Pigeaud; Trad. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Lacerda Editores. BARTRA, Roger (2001). Cultura y melancolía. Barcelona: Anagrama. BATAILLON, Marcel (1996). Erasmo y España. México: Fondo de Cultura Económica, 2ª reimpresión. _____ (2000). Erasmo y el Erasmismo. Trad. Carlos Pujol. Barcelona: Crítica. CERVATES, Miguel de (2001). “El Licenciado Vidriera”. Novelas Ejemplares. Ed. de Jorge García López. Barcelona: Ed. Crítica. CLOSE, Anthony (1998). “La tradición de los motes y el Licenciado Vidriera in Actas del IV Congreso Internacional de AISO. Ed. de María Cruz García de Enterría y Alicia Cordón Mesa. Tomo I. Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá de Henares. DESCARTES, René (2005). Meditações Metafísicas. Trad. de M. Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes. HUARTE DE SAN JUAN, Juan (1989), Examen de ingenios para las ciencias. Madrid: Cátedra. LAERCIO, Diógenes, PLUTARCO, et alii (1964). Biógrafos Griegos. Madrid: Aguilar. RILEY, E. C. (2001). “Cervantes y los cínicos (El Licenciado Vidriera y el Coloquio de los perros) in La rara invención. Trad. Mar Carmen Llerena. Barcelona: Ed. Crítica. RUFO, Juan (1972). Las seiscientas apotegmas y otras obras en verso. Edición, prólogo y notas de Alberto Blecua. Madrid: Espasa-Calpe. SERÉS, Gillermo (1989). “Introducción”. Examen de ingenios para las ciencias. Madrid: Cátedra. TEIXEIRA, Ivan (2003). “Literatura como imaginário: Introdução ao Conceito de Poética Cultural”. Revista Brasileira, Ano X, n. 37, pp. 43-67. VIEIRA, Maria Augusta C (2004). “La discreción en el episodio del Caballero del Verde Gabán” in Cervantes y su mundo I. Kassel: Edition Reichenberger, pp. 3-20. VILANOVA, Antonio (1949). Erasmo y Cervantes. Barcelona: CSIC. VIVES, Juan Luis (1988). El Arte Retórica (De Ratione Dicendi). Introd. De E. Hidalgo-Serna. Trad. y notas de Ana Zisabel Camacho. Barcelona: Anthropos Editorial. 123 Hispanismo 2 0 0 6 El dinero en Don Quijote de la Mancha María Cristina Lagreca de Olio (Universidade Presbiteriana Mackenzie) Durante los siglos XVI y XVII, el contacto de los pueblos ibéricos con las culturas americanas desencadena una serie de innovaciones en la vida social de España y Portugal; la llegada de los metales preciosos a la Península Ibérica engendra riquezas para pocos y dificultades económicas para muchos. Ese desequilibrio social será abordado en tratados y arbitrios dedicados a la búsqueda de posibles salidas para la difícil situación ibérica. En el Quijote, como en varios textos de la época, se observa la presencia del dinero como punto fundamental en las relaciones sociales. En la mencionada obra de Cervantes, el tema del dinero se presenta como uno de los elementos que estructuradores de la parodia de los discursos caballerescos, en especial las relaciones entre el caballero y su escudero. La falta del dinero, además de representar la pobreza en la vida social, puede corresponder también, teniendo en cuenta el artificio literario, a provocador de la risa, poniendo en relieve el choque del inicio de los nuevos tiempos, con el sistema político, económico y social de los siglos XVI y XVII, que trae a tona el cambio de la época. El Quijote, como es sabido, abarca los más fundamentales temas de la Humanidad y como dice Fiódor Dostoiévski: No existe nada más profundo y poderoso que este libro. Representa hoy la más grandiosa y acabada expresión de la mente humana. Si el mundo terminase y en el más Allá nos preguntasen: “Entonces, que es lo que aprendió en la vida”, podríamos mostrar el Don Quijote y decir: “Esta es mi conclusión sobre la vida. ¿Y usted? ¿Qué me dice?” ¹ En este trabajo, nos detendremos en el capítulo VII de la Segunda Parte, que Carrol Johnson denomina El drama del salario de Sancho, destacando la manera como el hidalgo negocia con Sancho. Son fundamentales las ideas críticas sobre la España del siglo XVI presentadas por Cellorigo y por la Escuela de Salamanca de Economía, así como por historiadores y estudiosos tales como Bennasar, Braudel, Bataillon y varios otros. España vivía una época singular, el auge de su Imperio terrestre y de ultramar. Las colonias la abastecían de productos y en especial de metales preciosos. Esta riqueza, que llega de manera constante y abundante en este momento que nos ocupa, cambia la forma de ver, pensar y vivir de los peninsulares: dando origen a innumerables dificultades para muchos y bienestar para muy pocos. Ocasiona también cuestiones de conciencia, pues la usura era un pecado y los buenos cristianos no la debían practicar. Ese ganar dinero, ese 124 Volume 4 | Literatura Espanhola lucro, acababa en manos de extranjeros que no tenían que seguir esos rígidos principios. Es allí donde entran los teólogos de la Escuela de Salamanca de Economía, estudiosos que intentan resolver los problemas que llegan al confesionario, ante el nuevo régimen y las posibilidades de comercio que se presentaban a los españoles con el descubrimiento de América. La acción de los arbitristas, que ven como y de que manera la situación no es tan tranquila y provechosa como parece, es el tema que trata Cellorigo en su Memorial. El pensamiento de Cellorigo, diverge de las ideas de los teólogos de la Escuela de Salamanca de Economía, ya que su interés es macroeconómico y no microeconómico.. El tema central de Cellorigo es la actividad productiva y el empleo, no la ética del precio. Era un hombre cultivado, un espíritu renacentista abierto a la cultura europea, a la española y por lo tanto conocedor de los escritos de la Escuela de Salamanca de Economía. Cellorigo discrepa de ella, vinculando las alteraciones del nivel de precios a los comportamientos de ahorro e inversión en la España de fines del siglo XVI y no a los cambios en la cantidad de moneda. Es el dinero destinado al consumo el que produce la carestía, no el que se invierte. Es el dinero de los consumidores el que actúa sobre los precios, no el de los productores, el dinero que se destina al consumo. En el capítulo VII de la Segunda Parte de Don Quijote de la Mancha, amo y escudero muestran claramente sus formas de pensar y de vivir, cada uno en un régimen diferente, destacándose que el hidalgo nunca se aleja del antiguo régimen ² mientras que el escudero transita, entre el nuevo y el antiguo régimen al que pretende acceder, utilizándose de todos los medios a su alcance. Leyendo este capítulo se percibe que los argumentos de don Quijote están estrictamente dentro de su régimen con convicción y fidelidad a sus principios, pero con la desenvoltura de un hombre de la edad moderna. C. Johnson considera la relación de ambos, caballero y escudero, bajo términos socio-económicos. Caballero y escudero existen en un momento determinado en la historia, insertados imaginariamente por su autor en el flujo del tiempo, sufriendo las crisis de su contexto histórico inmediato. Según Johnson, gracias a los estudios de hispanistas europeos, tenemos un razonable conocimiento de la situación precaria en que un hidalgo vivía y como sufría la inflación provocada por el flujo de los materiales preciosos que llegaban de América. En la Primera Parte de la obra se hace referencia a la pobreza, a las ropas sencillas y a la modesta alimentación que esa gente disponía. El autor afirma que el estado de hidalgo no le permitía ser llamado de don, que don Quijote se promueve a caballero adoptando esa forma de tratamiento. Él representa la situación en que se encuentra la baja nobleza de la aristocracia feudal. Según Johnson, en general no se presta atención a Sancho Panza por no se estar ha125 Hispanismo 2 0 0 6 bituado a héroes entre los campesinos pobres, a pesar de que ambos, amo y escudero, viven en el mismo lugar, en el mismo momento histórico y sufren de las consecuencias de la misma situación socioeconómica. La conversación sobre el salario de Sancho tiene lugar cuando el caballero decide salir nuevamente en busca de aventuras, ante el horror del ama y de la sobrina. El ama sale en busca del bachiller Sansón Carrasco para que la ayude a convencer al hidalgo de no llevar a término su idea de proseguir en el mundo de la caballería en busca de aventuras. Ella quiere evitar otro desastre, que regrese nuevamente “molido a palos”, o metido en un carro de bueyes y encerrado en una jaula, como en salidas anteriores. El bachiller decide buscar al cura para relatarle todo lo que el ama de don Quijote le ha dicho. Mientras tanto el escudero y su amo continúan encerrados, conversando sobre las condiciones que pretende Sancho que el hidalgo se comprometa a cumplir antes de salir juntos otra vez. Sancho no quiere esperar a lo que la buenaventura le depare y quiere que el hidalgo le destine una cantidad de dinero que sería entregue directamente de la hacienda de don Quijote a la familia de Sancho Panza y que en caso de irles bien y tener suerte en sus aventuras, el escudero sería honesto y devolvería el importe que su familia ya hubiese recibido. Sancho desea que se le señale “salario conocido”, siendo aquí muy objetivo, durante el tiempo que permanezca sirviéndole, pues las mercedes pueden o no llegar y que si llegan serán descontadas de la cantidad que le toque en recompensa por haberle servido como escudero, a lo que don Quijote responde desde su más profunda convicción como representante del antiguo régimen, que él bien que le señalaría un salario: “…si hubiera hallado en alguna de las historias de caballeros andantes ejemplo que me descubriese y mostrase por algún pequeño resquicio qué es lo que solían ganar cada mes, o cada año; pero yo he leído todas o las más de sus historias, y no me acuerdo haber leído que ningún caballero andante haya señalado conocido salario a su escudero. Sólo que todos servían a merced, y que cuando menos se lo pensaban, si a sus señores les había corrido buena suerte, se hallaban premiados con una ínsula, o con otra cosa equivalente, y, por lo menos, quedaban con título y señoría.(..) Así que, Sancho mío, volveos a vuestra casa, y declarad a vuestra Teresa ni intención, y si ella gustare y vos gustáredes de estar a merced conmigo, bene quidem, y si no, tan amigos como antes; que si al palomar no le falta cebo, no le faltarán palomas. Y advertid, hijo, que vale más buena esperanza que ruin posesión” (CERVANTES, 2003, II, p.77) Don Quijote utiliza un lenguaje cargado de refranes populares de la misma forma que Sancho se expresa habitualmente. Es como si quisiera que no le quedase ninguna duda al escudero, que su punto de vista sea bien entendido. Sancho no espera- 126 Volume 4 | Literatura Espanhola ba que su amo siquiera pensase en salir sin él. No esconde su decepción por no ser contemplado por un salario. En este momento Sancho representa al mundo que se moderniza, es un mundo cuyo anhelo consiste en alejarse de la pobreza en que vive. Sancho es un agricultor casado y con hijos, que vive la aventura caballeresca para escapar al destino que su nacimiento humilde le ha impuesto; pertenece a la clase social más pobre, la más numerosa – un 80% de la población total -, la más explotada, la que realmente sufre la crisis de 1600. Esa crisis había surgido durante el reinado de Felipe II con la demanda de productos que, pudiendo producirse en España, eran comprados en otros países. Los personajes se enfrentan, o mejor, sus concepciones e ideas de mundo se enfrentan en este diálogo: la tradición caballeresca que nortea el hidalgo por un lado y el deseo de escapar de la precaria situación en que vive el escudero y su familia, por el otro. Cuando el bachiller Sansón Carrasco los interrumpe, está acompañado por el ama y la sobrina que desean ver con qué argumentos lo convencerá a don Quijote a no salir otra vez. Ante la sorpresa de las dos mujeres, el bachiller lo anima a salir diciendo que los oráculos así lo han determinado y ofreciéndose a servirle de escudero en caso de necesitarlo. La alegría de don Quijote es inmensa y de inmediato se dirige a Sancho diciéndole: “- ¿No te dije yo, Sancho, que me habían de sobrar escuderos?-” (idem, p.78) Sancho acepta acompañarlo, no quiere pasar por desagradecido, quiere mantener su honor y acusa a su mujer de ser la inspiradora de la idea de pedirle “salario conocido”. Sus palabras causan admiración al bachiller que no lo imaginaba tan gracioso. Amo y escudero se abrazan, quedan amigos nuevamente y resuelven salir en tres días, con el apoyo del bachiller, que los acompaña una legua a camino del Toboso. El ama y la sobrina maldicen al bachiller, se desesperan y lamentan como si el hidalgo ya estuviera muerto. Al querer mudar de vida, Sancho busca lo mismo que muchos en la época: salir de la servidumbre, contar con su propio dinero; no depender de “las mercedes” como las que don Quijote promete, pero no puede asegurar que algún día lleguen. Sancho sueña con el cambio, sueña como todos, sueña con aplicar en censos, en vivir descansadamente y formar parte de la clase que nada produce, que dedica su vida al ocio. No solamente los poderosos aristócratas, también las órdenes religiosas, los que poseen capital para invertir y todo aquel que tuviera algunos ducados desean lo mismo: el ocio, el ocio aristocrático. Eso significa que quien tiene dinero no lo emplea en la producción, en algo que produzca riquezas, como la agricultura o los productos manufacturados, lo que se quiere es especular, ganar dinero sin hacer el esfuerzo que requiere todo y cualquier trabajo. Ese no tener ocupación en el campo ocasiona el abandono de la tierra en dirección a la ciudad, en un éxodo de gente pobre que con suerte será admitida como lacayos, cocheros, porte127 Hispanismo 2 0 0 6 ros… dejando el resto en la enorme masa que no para de crecer, la de los desempleados de la clase baja. Otro hecho que ayuda a que la situación de España empeore es que la tierra, según C. Johnson, pagaba impuestos y los juros y los censos eran libres de cualquier tasación. Los juros eran la manera que el gobierno tenía para recaudar dinero. Invertir en juros como en censos no contribuye a la creación de la riqueza que el país tanto necesita. Cellorigo afirma que quien quiere trabajar no puede hacerlo, o sea, los campesinos pobres y sin tierra para cultivar; quien puede, los grandes señores de los siglos XVI y XVII, no quiere hacerlo, prefiere disfrutar del beneficio del capital aplicado, aumentando así el hambre, la muerte de los animales que nadie cuida y todo se pierde, quedando la mendicidad como único recurso. Sancho convive en los dos mundos simultáneamente: el antiguo régimen que es el que le permite trabajar la tierra de un señor, probablemente don Quijote y el del nuevo régimen, al querer recibir un “salario conocido”. Como afirma C. Johnson, él es al mismo tiempo un empleado y un sirviente; con don Quijote es sometido a términos que muestran que en la España de 1600 las dos economías subsistieron juntas. S.Hutchinson declara que es la argumentación de don Quijote en este capítulo VII de la Segunda Parte la que hace que Sancho, que quiere poner un pie en el nuevo régimen (salario), lo vuelva al antiguo (relación de vasallaje) después del argumento de don Quijote, de su persuasión de orador. En este pasaje vemos las dos economías en juego. El mundo de don Quijote, el de las relaciones sociales de vasallaje (regidas por las relaciones de poder) y de las mercedes a ser concedidas por el amo al escudero. También está presente el mundo mercantilista, el que se inicia en Europa y al que Sancho quiere penetrar al solicitar que se le otorgue “salario conocido”. Dentro de la obra vemos expuestos distintos sistemas de valores, de diferentes intereses. Don Quijote participa de los dos mundos y algunos personajes también consiguen moverse en los dos espacios. (HUTCHINSON, 2001, p. 41) La relación que don Quijote tiene con el mundo de la caballería, la que aparece en este capítulo VII de la Segunda Parte, está dentro de los límites que se imponen. Sin embargo, ni siempre el hidalgo consigue hacerlo: pues es armado caballero fuera de las normas; más adelante veremos que acaba pagando a su escudero, se enamora de una dama imaginaria creada por él mismo, dedicándole un amor leal, sincero y platónico. Según Vieira, en la Segunda Parte de la obra, más que en la Primera Parte, el hidalgo dialoga, discursa y da consejos, o sea que su vida se traduce 128 Volume 4 | Literatura Espanhola más en palabras que en obras. El dinero tiene, en esta parte, un lugar de destaque, es el intermediario de varias relaciones humanas, inclusive entre el caballero y el escudero. O sea que don Quijote lo incorpora al día a día de su vida de caballero andante. Se puede considerar ésta como una de las varias diferencias que existen entre las dos partes de la obra. Don Quijote mantiene su convicción en relación al dinero: que, a pesar de aceptar que entre en su vida, no le hace cambiar su modo de ser ni de pensar. Es un objeto que se incorpora, es una cosa que no modifica su ser, ni su espíritu, ni su clara visión de lo concreto. Es el código de la caballería andante el que lo rige, nunca incorpora el nuevo régimen que se vislumbra y que aparece cada vez más y más fuertemente en las relaciones sociales. El dinero no es un fin para el hidalgo, es única y exclusivamente un medio que la sociedad, que está en plena evolución hacia el Renacimiento, le impone lentamente. Una sociedad que refleja las mudanzas que se realizan en el periodo que nos ocupa, que tanta riqueza proporcionó para unos pocos y tantas dificultades económicas, sociales, religiosas y morales ocasionó a la gran mayoría del pueblo español. Referencias Bibliográficas CERVANTES, Miguel de Don Quijote de la Mancha. Ed. John Jay Allen. Vol. I y II Madrid: Cátedra, 2003 GONZÁLEZ de CELLORIGO, Martín Memorial de la política necesaria y útil restauración de la República de España y estados de ella y del desempeño universal de estos reinos 1600. Ed. José L. Pérez Ayala. Madrid: Antoni Bosch, 1991 GRICE-HUTCHINSON, Marjorie Economic thought in Spain. Cambridge: Unversity Press, 1993 HUTCHINSON, Steven Economía ética en Cervantes. Alcalá de Henares: Biblioteca de Estudios Cervantinos, 2001 JOHNSON, Carrol B. Cervantes and the material world. Illinois, University Press, 2000 VIEIRA, Maria Augusta da Costa O dito pelo não dito.Paradoxos de Dom Quixote.São Paulo:Edusp, 1988 1 Notas Extraído de la traducción del Quijote, realizada por Sergio Molina. São Paulo. Editora 34, 2002 2 “Antiguo régimen” será utilizado en este trabajo para referirse al sistema político, social y económico que vigoró a lo largo de los siglos XVI y XVII en España, esto es, a partir del impacto producido en la Península Ibérica con la llegada de los europeos en América. 129 Hispanismo 2 0 0 6 Las voces del Cántico de fray Juan de la Cruz Mario M. González (USP) El llamado “Cántico espiritual” a de fray Juan de la Cruz constituye uno de los más notables poemas de amor de la literatura. Y no solo eso. Como ya se ha dicho repetidas veces b, es uno de los poemas que hacen de su autor un poeta moderno, o sea, contemporáneo nuestro. El punto de partida de esa modernidad puede estar, fundamentalmente, en la pluralidad de sus sentidos que exige del lector decodificar el poema a cada nueva lectura, con lo que se nos permite recrearlo constantemente. El poema fue escrito así, con esa pluralidad que quiso ser negada por aquellos que, queriendo ver en él tan solo teología en verso, le incorporaron diversos elementos reductores de sus posibles sentidos. Todo indica que fray Juan nunca llegó a darle un título y se refería al poema como “Canciones de la esposa”. La edición de 1630, hecha en Madrid por el padre Jerónimo de San José incorporó la designación “Cántico espiritual” con que ha pasado a los dominios de la historia de la literatura c. Además de este, se le dio un subtítulo, “Canciones entre el alma y el Esposo” para reforzar el sentido religioso, único que cabría para los amanuenses y primeros editores del poema. Si eso no bastase, se colocaron al margen indicaciones de los interlocutores del “Cántico” d (y hasta del destinatario de una de las estrofas, la cuarta, “las criaturas” que responderían en la quinta) en la forma de “Esposa” y “Esposo”, siendo que el primero de esos términos solo aparece dos veces en el poema: la primera de ellas, como la promesa de la Amada, en la estrofa 18; la segunda, en la 27, en boca de lo que parece ser un narrador y como alusión al hecho que, siendo promesa de la Amada, ahora se ha cumplido en el desposorio que relata la estofa siguiente. Los interlocutores se refieren el uno a la otra y viceversa como “Amado” y “Amada”. De ese modo, si cabe identificarlos, tendría que ser mediante esas designaciones, en las que se otorga prioridad al amor y no al rito del desposorio. O sea, la rigidez establecida tanto por la definición de los interlocutores como por la caracterización semántica de estos sería ajena al poema y producto de una lectura que no tendría por qué haber prevalecido con exclusividad. Otras propuestas de lectura y distribución de interlocutores son posibles a partir de los sentidos que cabe atribuir al poema de fray Juan. Este es ante todo un poema de amor, en el que amantes dialogan. Es visible que fray Juan no quiso reducir ese amor a la alegoría de un proceso místico, aunque, lógicamente, esa lectura sea más que posible. Sin embargo, cabe discutir el sentido estrictamente alegórico del poema. Dámaso 130 Volume 4 | Literatura Espanhola Alonso (ALONSO, 1958, p. 148-150) quiso ver en el “Cántico” una alegoría simbólica. Sin embargo, una alegoría significa un sistema en el que es posible la traducción término a término de sus elementos para representar otra realidad con la misma organicidad. Cuando fray Juan tuvo que traducir sus poemas mayores para explicitar el sentido místico que se supone les cabría en primer lugar, tropezó con dificultades que tuvo que buscar como resolver, lo que no siempre consiguió. Es sabido que sus tentativas de comentar “La noche oscura” no pasaron de la segunda estrofa del poema, lo que ha llevado a entender que ese poema puede muy bien ser ajeno al universo místico del fraile poeta. Como se sabe, fray Juan intenta explicar ese poema en dos de sus cuatro tratados en prosa: Subida del monte Carmelo y Noche oscura del alma. En el primero no va más allá de comentar de manera muy genérica las dos primeras estrofas y, mucho más que explicar el sentido de éstas, las utiliza para elaborar un pensamiento teológico mediante la transformación de la imagen poética “noche oscura” en un símbolo místico. El poema como tal se pierde de vista en ese comentario. Más pormenorizado es el tratado Noche oscura del alma, que comenta esas mismas dos primeras estrofas verso a verso, mediante el procedimiento de traducir término a término cada uno de sus elementos, para transformar, de esa manera, el poema en una alegoría religiosa. De ese modo, el sentido del poema quedaría reducido a ese único significado. No deja pues de ser sintomático que el fraile no pasase de la segunda estrofa en esa tarea reductora que, según todo indica, le habría sido impuesta. En los casos de “Llama de amor viva” y del “Cántico”, la explicación de los poemas puede ser más bien ilusoria. En efecto, cabe tener presente lo expuesto por PEDRAZA JIMÉNEZ (1991: 23): Sem dúvida, há trechos dos comentários que são de uma elevada beleza. Não se pode negar que, em algumas ocasiões, aclaram passagens obscuros dos poemas. Mas, ao contrastá-los com os versos, temos que dar razão aos que opinam que São João foi um péssimo comentarista de si mesmo. [...] Sua formação era tomista e com o instrumental crítico da escolástica tentou explicar uns versos que negam as conexões lógicas do alegorismo (às vezes um tanto forçadas) e apontam em direção às fórmulas do Simbolismo. O sea, el sentido alegórico no está en esos poemas, sino que es una necesidad que les viene de fuera, de la mentalidad reductora de lectores que no podían admitirlos abiertos a la interpretación, ni aun a la interpretación religiosa, porque se correría el riesgo de excluir en ella las defini131 Hispanismo 2 0 0 6 ciones institucionales, los dogmas. El peso de ese criterio fue tan intenso que llevó a que el propio fray Juan acomodase las estrofas (en el llamado “Cántico B”, el del manuscrito de Jaén) en un orden que facilitase la tarea de alegorizar el conjunto en su comentario. Parte de esa camisa de fuerza son, sin duda las definiciones de los interlocutores, tanto en su nomenclatura cuanto en su distribución. No cabe duda que puede haber otras, tal vez mejores que las consagradas. Y más aún, nada mejor que no consagrar ninguna y dejar que el lector, a cada lectura, descubra nuevas posibilidades. Es esa nuestra propuesta en este trabajo. No caben disensiones con relación a quién abre el “Cántico”. Es claramente la Amada quien se dirige al Amado ausente: ¿Adónde te escondiste, Amado, y me dejaste con gemido? Como el ciervo huiste, habiéndome herido; salí tras ti clamando, y eras ido. La pregunta inicia el motivo de la búsqueda, que presidirá el segmento inicial del poema. Esa búsqueda tiene un carácter errático, sin mayor lógica en la secuencia de alusiones. Es un monodiálogo en el que se invocan pastores, se proponen caminos, se contempla un universo que existe en función del amor: ¡Oh bosques y espesuras, plantadas por la mano del Amado! No hay en esa estrofa 4 ninguna necesidad de entenderla como una pregunta. Hay, sí, en la invocación de la Amada una imperiosa necesidad de comprobar los vestigios del paso del Amado, que llega de inmediato en la constatación de que el Amor transforma la realidad. Pero esto llega en la estrofa 5 desde fuera del sujeto, en la voz de lo que podría ser un coro, coro que volverá a actuar otras veces en el poema. Aquí es como una voz interior que descubre la belleza incorporada al mundo en función de la imaginación de la presencia del Amado: Mil gracias derramando pasó por estos sotos con presura, y, yéndolos mirando, con sola su figura vestidos los dejó de hermosura. 132 Volume 4 | Literatura Espanhola Esa constatación lleva la Amada a reabrir la interpelación inicial al Amado ausente. Se introducen así los vestigios del ser amado, la presencia de los mensajeros que apenas son el balbuceo insuficiente. El vagar de la Amada sin rumbo cierto por ese desnudo universo de puros substantivos y verbos se retuerce en preguntas sin respuesta que amplifican la pregunta inicial del poema, en la paradójica soledad de la víctima del amor: ¿Por qué, pues has llagado aqueste corazón, no le sanaste? Y, pues me le has robado, ¿por qué así le dejaste y no tomas el robo que robaste? La interpelación al Amado culmina en los imperativos de la estrofa 10 que introducen el tema de los ojos, los ojos que no tienen sentido sin que puedan contemplar al ser querido y que remiten al tema de la fuente en la estrofa 11, la fuente en que cabría ver los ojos deseados. El ritmo acelerado de las últimas estrofas del monodiálogo de la Amada culmina en ese vuelo hacia la muerte, ya que la vida (los ojos) carece de sentido si no hay espacio para el encuentro amoroso de la contemplación mutua. La queja de amor termina así en el grito: ¡Apártalos, Amado, que voy de vuelo! El vuelo de la Amada es detenido por la voz del Amado, en una cadencia que contrasta claramente con el ritmo de la búsqueda de la Amada, que culminaría en el arrojarse verticalmente, paloma en vuelo ciego, hacia la fuente depositaria del deseo: Vuélvete, paloma, que el ciervo vulnerado por el otero asoma al aire de tu vuelo, y fresco toma. Como ya constató Dámaso Alonso (ALONSO, 1957, p. 300-301), el impacto del encuentro se traduce en la serie de las tres estrofas siguientes, sin verbos que rijan lógicamente ese discurso, en una acumulación de sintagmas nominales en que proliferan las formas adjetivas ausentes en el poema hasta la aparición del motivo de la fuente y en un discurso en que la realidad queda confinada en paradojas relativas al tiempo y al espacio del amor, que proliferan y que culminan en el escenario surrealista de la estrofa 15. 133 Hispanismo 2 0 0 6 En adelante, y hasta la estrofa 24, la voz es de la Amada. Pero la inicial claridad expositiva de una búsqueda que culmina en el encuentro deja lugar ahora a un ir y venir en el tempo, en el que el pasado, el presente y el futuro se confunden. A la figura del Amado asediado por las jóvenes, se sigue el recuerdo de la embriaguez del amor que ha dejado sin razón de ser a la pastora perdidiza y el futuro de un juego amoroso de guirnaldas presas al cabello, de miradas seductoras, hasta culminar en la transformación del ser amado en razón de la mirada del amante, en la estrofa 24. De inmediato, la estrofa 25, con los verbos y pronombre en plural, bien podría ser un dúo de ambos amantes pidiendo la intimidad propicia para el amor: Cogednos las raposas, que está ya florecida nuestra viña, en tanto que de rosas hacemos una piña, y no parezca nadie en la montiña. De inmediato, la Amada invoca el locus amoenus para la unión con el Amado. Y un coro vuelve a narrar, en la estrofa 27: Entrado se ha la esposa en el ameno huerto deseado, y a su sabor reposa, el cuello reclinado, sobre los dulces brazos del Amado. El Amado, en seguida, establece el amor como el factor de redención de la Amada y conjura a la naturaleza para la calma que permita el sueño de la Amada. Y un nuevo dúo, en la estrofa 31, incorpora la invocación de una paradójica fusión de los más distantes universos culturales (las “ninfas de Judea”) para que se posibilite el espacio íntimo del amor. En la estrofa siguiente, la Amada identifica al Amado con el Carillo del cual pide una íntima exclusividad. La estrofa de número 33, es un segmento narrativo en que la el regreso de la paloma simboliza la paz y narra el encuentro. Junto con la siguiente, en que la soledad culmina en la reunión a solas, cabe entenderlas como una nueva aparición del coro narrador. En el segmento final la unión de los amantes se realiza en un futuro hipotético, porque parece haberse realizado ya. Es como si ya no hubiese lugar para coordenadas temporales, lo que culminará en la ausencia de verbos de la estrofa 38, en la que la noche se inflama “con llama que consume y no da pena”, en explícita anulación del tiempo. 134 Volume 4 | Literatura Espanhola En ese segmento cabe imaginar diversas posibilidades combinatorias de los interlocutores del poema. Una de ellas sería poner en boca de la Amada la intensamente erótica invitación al amor: Gocémonos, Amado, y vámonos a ver en tu hermosura al monte y al collado, do mana el agua pura; entremos más adentro en la espesura. Y luego podrían alternarse las voces de ambos, el Amado en la estrofa 36, la Amada en la 37, para llegar a la 38 en un nuevo dúo culminante. La estrofa final podría atribuirse al coro narrador, dejados los amantes en la paz de su unión que se refleja en la insólita escena final, cuyo surrealismo no parece tener otro sentido que el de esa paz: Que nadie lo miraba, Aminadab tampoco parecía, y el cerco sosegaba, y la caballería a vista de las aguas descendía. Sin duda, una mayor libertad dada al lector para escoger los interlocutores del “Cántico” redunda en nuevas lecturas. La que aquí proponemos lógicamente no pretende ser la única. Trátase de una propuesta, apoyada en la percepción de un coro narrador en el poema y en la comprensión del poema como la manifestación del amor como diálogo que se intensifica y en el que caben momentos de reunión de las voces de los amantes en dúos que explicitan la unión. Como el amor, el diálogo es la realización a dos de un proyecto que poco a poco se transforma en la construcción de una historia, en la noche serena, con llama que consume y no da pena. Referencias Bibliográficas: ALONSO, Dámaso. La poesía de San Juan de la Cruz (Desde esta ladera). 3ª, Madrid: Aguilar, 1958. _____ Poesía española. Ensayo de métodos y límites estilísticos. 3ª, Madrid: Gredos, 1957. 135 Hispanismo 2 0 0 6 ASÚN, Raquel. Introducción y notas. San Juan de la Cruz: Poesía completa y comentarios en prosa. Barcelona: Planeta, 1989 BOUSOÑO,Carlos. Teoría de la expresión poética. 5ª, Madrid: Gredos, 1970 (2 vol.). JUAN DE LA CRUZ, San. Poesía completa y comentarios en prosa. Edición de Raquel Asún: Barcelona: Planeta, 1989. PEDRAZA JIMÉNEZ, Felipe. Prefacio. São João da Cruz. Poesias completas. São Paulo: Nerman / Embajada de España, 1991 (Col. Orellana, 3) Notas a b c d En nuestro estudio nos referiremos al poema de fray Juan a partir del texto del manuscrito de Sanlúcar de Barrameda (el llamado “Cántico A”) que, como se sabe, tiene 39 estrofas y un orden diferente de las estrofas 15 a la 32 que el establecido en el manuscrito de Jaén, el cual, a su vez, añade una estrofa con el número 11. Tenemos en cuenta para ello la opinión de Dámaso Alonso (1958, p. 152-153), con relación a la mayor proximidad de ese texto con relación al impulso creativo, espontáneo. Utilizamos la edición de Raquel Asún: San Juan de la Cruz: Poesía completa y comentarios en prosa. Barcelona: Planeta, 1989. Citamos el “Cántico” según consta en las páginas 5 a 10 de ese volumen, con una única alteración, por la cual eliminamos la coma colocada en esa edición tras el “pues” del primer verso de la estrofa 9, por entender que anularía el sentido de la oración. Véase, por ejemplo, Carlos Bousoño (1970, I, p. 280-302). Cf. ASÚN (1989, p. 5, n. 1). Cf. Eulogio Pacho, apud ASÚN (1989, p. 5, n. 3). 136 Volume 4 | Literatura Espanhola Diálogos espejados: La historia (interpolada) de Marcela y Grisóstomo Marta Pérez Rodríguez (USP/CNPq) Desde mis primeras lecturas del “Quijote”a, siempre se quedó un relato latente en mi interior y no era otro que la primera historia intercalada, la de Marcela y Grisóstomo, un mundo pastoril en el que subyace “la creencia de la fuerza liberadora de las propias convicciones”, ante la pregunta que cada novela intercalada plantea: “¿Qué quiere la mujer?” b Este planteamiento lo desarrollaré desde el juego de espejos que Cervantes crea porque la historia se convierte en un espacio que se llena de espejos reflejando palabras que interactúan con la riqueza de la tradición literaria. “Los espejos se multiplican, los puntos de vista, las miradas, y se insertan (…) como una variedad de autores especulares y de lectores, que incluye a los propios personajes”.c En Cervantes, “el tema pastoril (…) no constituye un ensayo juvenil abandonado en épocas de madurez, sino que se inserta con tenacidad en la médula de casi todas sus obras” (AVALLE-ARCE, 1974, p. 229). La tradición literaria pastoril se funde con los libros de caballerías dando como resultado una historia de pastores con ideales del mundo utópico de la edad dorada. El discurso de Don Quijote que encabeza el comienzo de esta historia interpolada, ya reúne un conjunto de ideales utópicos de la Edad de Oro y se presenta como un doble juego de contrastes entre lo rústico y lo elevado y el tema amoroso de la novela (CASALDUERO, 1975, p. 82): Dichosa edad y siglos dichosos aquellos a quien los antiguos pusieron nombre de dorados (…). Entonces sí que andaban las simples y hermosas zagalejas de valle en valle y de otero en otero en trenza y en cabello, sin más vestidos de aquellos que eran menester para cubrir honestamente lo que la honestidad quiere y ha querido que se cubra (…). Las doncellas y la honestidad andaban, como tengo dicho, por dondequiera, sola y señora, sin temor que la ajena desenvoltura y lascivo intento la menoscabasen (CERVANTES, 2004, p. 97 et seq). Marcela, simple y hermosa zagaleja, aparece referida por boca de terceros como hija de Guillermo, el hombre más rico de la Comarca, y de “la más honrada mujer”, mujer sin nombre que fallece en el parto. De esta pena silenciosa o silenciada, acaba muriendo el padre de Marcela, quedándose esta al cuidado de un tío suyo que es sacerdote (CERVANTES, 2004, p. 106 et seq). 137 Hispanismo 2 0 0 6 Crece la muchacha y se pone de manifiesto su descomunal belleza: “Nadie la miraba que no bendecía a Dios (…), y los más quedaban enamorados y perdidos por ella” (CERVANTES, 2004, p. 106). Ya en edad núbil, el tío quiere casarla, pero con el consentimiento de la propia Marcela. Y aquí comienza la verdadera trama. Ella no quiere casarse porque “no se [siente] hábil para llevar la carga del matrimonio” (CERVANTES, 2004, p. 107). Amanece un día hecha pastora. Todos los que la pretenden, y también los espectadores de esta historia, esperan para ver “en qué ha de parar su altivez y quién ha de ser el dichoso que ha de venir a domeñar condición tan terrible y gozar de hermosura tan extremada” (CERVANTES, 2004, p. 108). Los espejos que Marcela elige para reflejar su modus vivendi están relacionados con el locus amoenus tan característico en la novela de pastores y en su precedente: la poesía bucólica. Se trata de elementos puros y caracterizados por una preciosidad salvaje, como Marcela que, consciente dice: Hízome el cielo, según vosotros decís, hermosa (…) y a que me améis os mueve mi hermosura (…) y queréis que yo esté obligada a amaros (…) mas no alcanzo que, por razón de ser amada, esté obligado lo que es amado por hermoso a amar a quien le ama (CERVANTES, 2004, p. 125). Se percibe que en su discurso exculpatorio la hermosura es esa obligada compañera del amor y de la época (DÍAZ-PLAJA, 1996, p. 22). Cervantes inventó a la mujer moderna; (…) delineó a la mujer que quiere tomar decisiones sobre su propia vida, su propio deseo” (ZAVALA, 2005, p. 27). De entre los principales personajes femeninos, se destaca la pastora Marcela como mujer decidida e independiente. En el “Quijote” las mujeres “no son tipos, son personas (…) que deciden su propio destino. (…) Cervantes plantea, proyecta, diseña casos una por una (…) y las deja hablar (…) [para ir] descubriendo la personalidad, la unicidad de cada una (ZAVALA, 2005, p. 39 et seq). Avanza la historia. Camino del entierro de Grisóstomo todos quieren saber más sobre “el muerto pastor” y “la pastora homicida” d, pero poco más se contará hasta el momento del entierro, en el que, vulnerando la voluntad de Grisóstomo, se lee uno de sus últimos escritos que debería estar silenciándose con el fuego. Es entonces cuando aparece Marcela: Y queriendo leer otro papel de los que había reservado del fuego, lo estorbó [a Ambrosio] una maravillosa visión –que tal parecía ella- que improvisamente se les ofreció a los ojos; y que fue, por cima de la peña donde se cavaba la sepultura, pareció la pastora Marcela, tan hermosa, 138 Volume 4 | Literatura Espanhola que pasaba a su fama su hermosura. (CERVANTES, 2004, p. 124-125). Curiosamente, en ningún momento se asiste a una descripción física de la pastora. Así, cada lector, en cada lectura de cada tiempo, descubrirá la belleza que será construida por el elemento más creativo que existe: la imaginación. Cervantes libera al lector moderno de un canon (predeterminado) de belleza y, por lo tanto, de una preceptiva que cercenaría el pensamiento imaginativo y esto se percibe en la aparición de Marcela. Marcela es, entonces, esa “maravillosa visión”. ¿Qué significaría eso para un lector/oyente de la época? En el siglo XVI, “la inmensa mayoría de los piropos y elogios se dedicaban (…) a la parte descubierta de la mujer (…) [a saber] cara, cuello, manos y el contorno del pie. El resto se adivinaba con cierto respeto” (DÍAZ-PLAJA, 1996, p. 16). Por lo tanto, la belleza de Marcela, indescriptible pero sublime, provoca un efecto inusual. Nada se describe, todo se sugiere. Caterina Ruta apunta que en ningún momento se asiste a una descripción física de la pastora, “como si lo poco que de cada una [de las mujeres de la novela] se manifiesta, concurriera a formar el mosaico de la figura ideal (...) soñada por todos los hombres”.e Cervantes no se aleja en demasía de los preceptos neoplatónicos, el amor es el deseo de gozar lo que es hermoso y Marcela lo es (ALVAR, 1997, p. 242). Se pincela esa visión de una mujer espacialmente elevada, brillando con una luz epatante, que deja a todos extasiados y que hablará. Cervantes introduce, en palabras de Ruta, “lo que de ellas [las mujeres] interesa más, porque en eso reside la novedad [de la novela], su comportamiento”.f Marcela tiene un claro objetivo en su vida, es una persona feliz con lo que ha elegido, tal vez sea por este pequeño y circunstancial detalle, porque ella misma ha elegido. Respondiendo a la pregunta ¿qué quieren las mujeres? Ella manifiesta: “La conversación honesta de las zagalas de estas aldeas y el cuidado de mis cabras me entretiene” (CERVANTES, 2004, p. 127). En la Poética, Aristóteles refiriéndose a la adecuación en la construcción de personajes, califica el discurso inteligente de una mujer como “inapropiado”.g El ejemplo de Marcela será el de un discurso que expresa su deseo a través de la palabra: Digo que cuando en ese mismo lugar donde ahora se cava su sepultura me descubrió [Grisóstomo] la bondad de su intención, le dije yo que la mía era vivir en perpetua soledad, y de que sola la tierra gozase el fruto de mi recogimiento y los despojos de mi hermosura (CERVANTES, 2004, p. 127). Avalle-Arce asegura que “el episodio es nexo vital (…) que articula y vigoriza un largo tramo de la cadena ideológica cervantina [a saber, el 139 Hispanismo 2 0 0 6 libre albedrío en la mujer] que todavía animará obras muy posteriores” (1974, Cap. VIII, passim).h Javier Blasco añadirá que “no faltan en la tradición erasmista española ejemplos femeninos sobre los que asentar la demanda de libertad que Marcela hace en su discurso ante la tumba de Grisóstomo” (BLASCO, 1998, p.135). El discurso de Marcela dista de ser comedido. Ella, como culpada, enfoca su oratoria hacia alguien que escuche para persuadirle (GRIGERA, 1994, p. 20): “No vengo (…) sino a volver por mí misma, y a dar a entender cuán fuera de razón van todos aquellos que de sus penas y de la muerte de Grisóstomo me culpan” (CERVANTES, 2004, p. 125). Al término de su intervención, el espejo que refleja su ser mujer abre un camino hacia un nuevo reflejo: el de la mística. La Ética de Espinoza (1677) plantea que “la libertad en el ser humano no está ligada a su voluntad, sino a la capacidad racional de formarse ideas adecuadas sobre lo necesario y organizar (…) su deseo”i. ¿Y no expresa lo mismo Marcela en su contundente discurso cuando dice: “Tienen mis deseos por término estas montañas”? (CERVANTES, 2004, p. 127128). Pero si fallara la razón, la alternativa se forjaría en el misticismo. Así pues, su discurso se acaba transformando en un diálogo que se espeja en la tradición mística del siglo XVI, conocida por Cervantes.j En el artículo titulado “Teresa de Jesús y la emancipación de la mujer”k se encuentra una lectura sobre el ideal de libertad de la mujer en el siglo XVI al plantearse la siguiente cuestión: “¿Es justo desdeñar la deseada virtud y la fuerte humildad cuando son de mujeres?” Esta vía nos conduce al texto cervantino y, en concreto, al discurso de Marcela nuevamente, cuando dice: La honra y las virtudes son adornos del alma, sin los cuales el cuerpo, aunque lo sea, no debe de parecer hermoso. Pues si la honestidad es una de las virtudes que al cuerpo y al alma más adornan y hermosean, ¿por qué la ha de perder la que es amada por hermosa, por corresponder a la intención de aquel que, sólo por su gusto, con todas sus fuerzas e industrias procura que la pierda? (CERVANTES, 2004, p. 126). Ciertos términos en su discurso, como alma, cuerpo y honestidad, ya permiten espejarse en el mundo alegórico representado por Santa Teresa de Jesús en las Moradas del Castillo Interior (1962). En esta obra, la Santa describe los apartados del alma bajo la alegoría de un castillo en un trabajo elaborado sobre la contextualización del espíritu. A la intervención discursiva de Marcela, se añaden las palabras fortalecedoras de la Santa que asegura que: “mientras estamos en esta tierra 140 Volume 4 | Literatura Espanhola no hay cosa que más nos importe que la humildad”l. Y así, se cerrará la argüición de Marcela con el siguiente parlamento: “Tienen mis deseos por término estas montañas, y si de aquí salen, es a contemplar la hermosura del cielo, pasos con que camina el alma a su morada primera” (CERVANTES, 2004, p. 127-128). Este pasaje discursivo se erige como el reflejo más importante para este diálogo con la mística. El único camino que Marcela admitiría para sí misma, podría ser aquel que la acercase a la oración, que es el camino del ánima para alcanzar el primer estadio de gracia o la “morada primera”. Y así, se ve como del supuesto platónico del goce de lo hermoso y de la contemplación humana, ella camina, a través del discurso, hacia la contemplación divina y “el lector se halla en pleno ámbito de la doctrina del amor puro de la mística cristiana”.m Pero Marcela no espera reacciones, “sin querer oír respuesta alguna, volvió las espaldas y se entró por lo cerrado de un monte que allí cerca estaba” y la historia casi como empezó, “dejando admirados tanto de su discreción como de su hermosura a todos los que allí estaban” (CERVANTES, 2004, p. 128). Marcela es uno de los componentes que mueven a Don Quijote a acometer sus inusitadas aventuras. Él la admira porque en ella ve su propio reflejo, impregnado del ideal que le mueve a hacer todo: la libertad. “Don Quijote comprende que esa voz de mujer es también la suya porque (…) es una voz que reclama el derecho a elegir. De igual modo que él eligió ser caballero andante” (URRUTIA, 2005, p. 478). La pastora, en quien se espeja el caballero, posee valores de integridad, rectitud e intachable honorabilidad en sus decisiones y actitudes. Por eso el caballero acabará interviniendo: “Ella ha mostrado con claras y suficientes razones la poca o ninguna culpa que ha tenido en la muerte de Grisóstomo y cuán ajena vive de condescender con los deseos de ninguno de sus amantes” (CERVANTES, 2004, p. 128). La historia de Marcela representa una crítica a la novela pastoril y a su mundo, pero también es “como un espejo en el que se refleja la problemática moral de la acción principal (…) adquiriendo realce”.n El sentido moral es la advertencia de que nadie tiene el derecho de exigir lo imposible de sus semejantes y que se ha de respetar la libertad ajena. Esta lectura se podría concluir de mil maneras, pero he optado por inclinarme sobre la idea de que, el discurso de Marcela se refleja en múltiples y muy variados espejos (como el pastoril, el del libre albedrío, el de la belleza, el de la representación literaria de la mujer, el místico y, tal vez, otros que mis lecturas hayan obviado…), todos ellos en franco diálogo con la tradición literaria, lo que muestra, una vez más, la indudable maestría de Cervantes. 141 Hispanismo 2 0 0 6 Referencias Bibliográficas ALVAR, C.; MAINER; J. C.; NAVARRO, R. Breve historia de la literatura española. Madrid: Alianza, 1997. AVALLE-ARCE, J. B. La novela pastoril. Madrid: Istmo, 1974. BLASCO, J. Cervantes, raro inventor. México: Universidad de Guanajuato, 1998. CASALDUERO, J. Sentido y forma del “Quijote” (1605 - 1615). Madrid: Ínsula, 1975. CASTRO, C. “Las mujeres del Quijote. Personajes femeninos de Cervantes”. En: El Quijote en clave de mujer/es. F. Rubio (Ed.). Madrid: Complutense, 2005. pp. 165-207. CERVANTES, M. de. Don Quijote de la Mancha. Ed. del IV Centenario, Francisco Rico. São Paulo: Santillana Ediciones Generales, 2004. -----------------De Miguel de Cervantes, a los éxtasis de nuestra beata madre Teresa de Jesús. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/ servlet/SirveObras/01715418548926094100035/p0000002.htm#I_36_ DÍAZ-PLAJA, F. La vida amorosa en el Siglo de Oro. Madrid: Temas de Hoy, 1996. DOBHAN, Ulrich O. C. D. “Teresa de Jesús y la emancipación de la mujer” En: Actas del Congreso Internacional Teresiano. Salamanca, 4-7 Oct., 1982. V-I. GRIGERA, L. L. La Retórica en la España del Siglo de Oro: teoría y práctica. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1994. JESÚS, Teresa de. Obras completas. Madrid: BAC, 1962. JÖRG NEUSCHÄFER, H. “Marcela y el principio de autodeterminación”. En: El Quijote en clave de mujer/es. F. Rubio (Ed.). Madrid: Complutense, 2005. pp. 81-90. RUTA, Caterina “Implícito y explícito en la descripción de la mujer en el Quijote”. En: Actas del I Congreso Internacional de la Asociación de Cervantistas. Almagro, 24-29 de junio, 1991. URRUTIA, J. “La libertad del yo femenino o la libertad de don Quijote”. En: El Quijote en clave de mujer/es. F. Rubio (Ed.). Madrid: Complutense, 2005. pp. 475-479. ZAVALA, I. M. Leer el “Quijote”: siete tesis sobre ética y literatura. Barcelona: Anthropos, 2005. 142 Volume 4 | Literatura Espanhola Notas a b c d e f g h i j k l m n Emplearé la siguiente edición CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. Ed. del IV Centenario, Francisco Rico. São Paulo: Santillana Ediciones Generales, 2004. ZAVALA, Iris M. Leer el “Quijote”: siete tesis sobre ética y literatura. Barcelona: Anthropos, 2005. p. 104. ZAVALA, op. cit., p. 99. CERVANTES, op. cit., cap. XIII, p. 110. RUTA, Caterina. “Implícito y explícito en la descripción de la mujer en el Quijote”. En: Actas del I Congreso Internacional de la Asociación de Cervantistas. Almagro, 24-29 de junio, 1991. (p. 1112, del texto en separata). Ibidem, loc. cit. Se trata de Melanipa, apodada “la Sabia”. Personaje de una de las tragedias perdidas de Eurípides. Por ejemplo, apunta Avalle–Arce algunos pasajes de La gitanilla o los capítulos XIX – XXI de la II parte del Quijote (referentes a las bodas de Camacho y Quiteria) o también el capítulo LVIII (que cuenta la historia de la fingida Arcadia donde se liberta el idealismo del caballero). Citado por Iris M. Zavala, 2005, p. 17. Poema escrito por Cervantes dedicado a Santa Teresa de Jesús y que se titula: “De Miguel de Cervantes, a los éxtasis de nuestra beata madre Teresa de Jesús” de sus poesías sueltas. DOBHAN, Ulrich O. C. D. “Teresa de Jesús y la emancipación de la mujer” En: Actas del Congreso Internacional Teresiano. Salamanca, 4-7 Oct., 1982. V-I, pp. 121-136. TERESA DE JESÚS, Obras completas. Madrid: BAC, 1962. p. 350. AVALLE-ARCE. La novela pastoril. Madrid: Istmo, 1974, p. 242. JÖRG NEUSCHÄFER, Hans. “Marcela y el principio de autodeterminación”. En: El Quijote en clave de mujer/es. Fanny Rubio (Ed.). Madrid: Complutense, 2005. pp. 89-90 143 Hispanismo 2 0 0 6 A autorização da escrita feminina no prólogo de Maria de Zayas y Sotomayor Rosangela Schardong (PPG – USP) Convencionalmente, o prólogo é um texto breve que antecede uma obra escrita, e que serve para apresentá-la ao leitor. No entanto, no prólogo às Novelas ejemplares y amorosas (1637), Maria de Zayas faz uma declaração de intenções a respeito da recepção da obra em meio a uma arguta reflexão sobre a condição da mulher de seu tempo. Com um tom entre irônico e arrogante, Zayas pergunta: Quién duda, lector mío, que te causará admiración que una mujer tenga despejo no sólo para escribir un libro, sino para darle a la estampa (...). Quien duda, digo otra vez, que habrá muchos que atribuyan a locura esta virtuosa osadía de sacar a luz mis borrones, siendo mujer, que en opinión de algunos necios es lo mismo que una cosa incapaz (ZAYAS, 2000, p. 159). O espanto que a autora supõe em seu leitor provém, segundo ela, de três fatores: que uma mulher tenha engenhoa, que ela o aplique para escrever um livro e que esse livro tenha mérito para ser impresso. A pergunta retórica enunciada por Zayas faz referência a conceitos veiculados em textos muito difundidos, logo, conhecidos do leitor da primeira metade do século XVII, nos quais se declarava a inferioridade intelectual da mulher, sua pouca capacidade para receber educação e, portanto, para destacar-se em trabalhos que requeiram a aplicação do intelecto. É o que podemos encontrar, por exemplo, em textos de larga vigência como Formación de la mujer cristiana (1523), de Juan Luis Vives, que afirma que a formação moral das mulheres, diferentemente da dos homens, se pode conseguir com pouquíssimos preceitos, posto que “el cuidado exclusivo de la mujer es la pudicicia” (VIVES, 1947, p.986). Sendo assim, as recomendações para a instrução da mulher centram-se na leitura de livros dedicado à compostura dos costumes virtuosos, principalmente as Sagradas Escrituras e as obras dos filósofos. A inferioridade intelectual da mulher, segundo Luis Vives, está demonstrada em Gênesis, com o exemplo de Eva, que por muito pouco se deixou persuadir pelo demônio. Portanto, afirma que “la mujer es un ser flaco y no es seguro de su juicio, y muy expuesto al engaño” (VIVES, 1947, p.1001). Ele observa que “algunas mujeres (...) están mal dotadas para aprender las letras” (Idem). 144 Volume 4 | Literatura Espanhola Quanto à capacidade para escrever livros, em Examen de ingenios para las ciencias (1575), Huarte de San Juan assevera que só os indivíduos de engenho perfeito, o inventivo, devem escrever livros, porque deles vem o acrescentamento das artes. Segundo Huarte, o engenho inventivo é uma propriedade que “se halla en el ánima racional cuando tiene un celebro bien organizado y templado” (SAN JUAN, 1977, p.131). É fácil deduzir que o Doutor San Juan não atribuiria essa classe de engenho a uma mulher, posto que afirma que a diferença de engenho é coisa determinada por Deus, no paraíso, pois quando Ele encheu o primeiro homem e mulher de sabedoria, é questão averiguada que coube menos a Eva. Huarte se propõe a demonstrar que isso ocorreu porque “la compostura natural que la mujer tiene en el celebro no es capaz de mucho ingenio, ni de mucha sabiduría” (Idem, p.67). Não obstante, Zayas, com a publicação de sua obra, rejeita estas opiniões e incita o leitor a desqualificá-las, ao tachar de néscios aqueles que subestimam a mulher. Logo a autora se encarrega de responder a pergunta que inicia o prólogo. Com a resposta, ela desafia o leitor, atrelando a opinião dele acerca da autoria feminina ao seu grau de nobreza: “pero cualquiera, como no sea más de buen cortesano, no lo tendrá por novedad ni lo murmurará por desatino” (ZAYAS, 2000, p.159). A seguir, a autora aborda a questão da constituição do corpo humano, que fazia parte do extenso debate sobre a alma realizado pelos filósofos da Antigüidade, tais como Platão, Aristóteles, Heráclito e Cícero, que atribuíam à alma as atividades orgânicas, racionais e psíquicas. b Maria de Zayas apresenta o assunto por meio de uma série de hipóteses, as quais conduzem a uma interrogação: Porque si esta materia de que nos componemos los hombres y las mujeres, ya sea una trabazón de fuego y barro, o ya una masa de espíritus y terrones, no tiene más nobleza en ellos que en nosotras; si es una misma la sangre; los sentidos, las potencias y los órganos por donde se obran sus efectos, son unos mismos; la misma alma que ellos, porque las almas ni son hombres ni mujeres: ¿qué razón hay para que ellos sean sabios y presuman que nosotras no podemos serlo? (ZAYAS, 2000, p. 159) Ao enunciar a questão, Zayas relaciona os principais tópicos do debate filosófico em torno à natureza da alma: os elementos que compõem os corpos humanos, a unidade da alma, suas potências, a função dos sentidos, do sangue e dos órgãos nas operações anímicas, para, em seguida, afirmar categoricamente a igualdade da alma de homens e mulheres. Com esta afirmação contundente Zayas passa a participar do debate 145 Hispanismo 2 0 0 6 filosófico, assinalando sua opinião. Isso fica evidente se recorrermos aos tratados das autoridades, principalmente Aristóteles, cuja obra foi difundida e atualizada por São Tomás de Aquino, na Universidade de Paris, na Idade Média, especialmente no tocante à concepção da alma. c De acordo com Aristóteles, em Categorías, o indivíduo humano está incluído na espécie “homem” e o gênero a que esta espécie pertence é “animal”. d Esta definição assexuada da espécie humana encontra-se também em Acerca del alma, do filósofo grego. A divulgação da matéria, no Renascimento Espanhol, contou com o humanista cristão Juan Luis Vives, através do Tratado del alma (1538). Nestes textos, a alma é entendida como algo comum a todos os seres vivos. O que particulariza a alma dos seres humanos é possuir um grau mais elevado da alma racional. Entretanto, em textos como Formación de la mujer cristiana (1523), de Juan Luis Vives, Examen de ingenios para las ciencias (1575), de Huarte de San Juan e La perfecta casada (1583), de Frei Luis de León, dá-se a apropriação católica da matéria filosófica e a diferença entre os sexos é assinalada qualitativamente, apoiando-se no mito bíblico da expulsão do paraíso. Tendo isto em conta, podemos considerar que ao afirmar que homens e mulheres têm a mesma alma, a qual não se distingue por causa do sexo, Zayas demonstra seu profundo conhecimento sobre o assunto e participa ao leitor com qual postulado ela está de acordo. Creio que com esta interpretação paritária Zayas apresenta sua visão antropológica sobre os sexos, ponto de partida para o debate em torno da causa feminina. Seguindo a articulação do debate que permeia o prólogo, após equipar a matéria dos corpos e a potência das almas, Zayas inquire: “¿qué razón hay para que ellos sean sabios y presuman que nosotras no podemos serlo?” (ZAYAS, 2000, p.159) E ela mesma responde: Esto no tiene, a mi parecer, más respuesta que su impiedad o tiranía en encerrarnos y no darnos maestros. Y así, la verdadera causa de no ser las mujeres doctas no es defecto de caudal, sino falta de la aplicación. Porque si en nuestra crianza, como nos ponen el cambray en las almohadillas y los dibujos en el bastidor, nos dieran libros y preceptores, fuéramos tan aptas para los puestos y para las cátedras como los hombres, y quizá más agudas, por ser de natural más frío, por consistir en humedad el entendimiento, como se ve en las respuestas de repente y en los engaños de pensado, que todo lo que se hace con maña, aunque no sea virtud, es ingenio (ZAYAS, 2000, p.159-160). Zayas inicia a longa resposta denunciando a exígua educação destinada às meninas. Logo, se propõe a examinar a “verdadeira causa” que têm 146 Volume 4 | Literatura Espanhola como conseqüência o fato de as mulheres não serem doutas. Para tanto, ela reorganiza os dados da equação e rejeita que se entenda o efeito (a falta de sabedoria) como causa. O argumento seguinte aponta para a diferença sexista na educação: enquanto que os meninos recebem livros e professores, dão às meninas bastidores e bordados. A verdadeira causa, então, para que as mulheres não sejam aptas como os homens para ocupar os postos e as cátedras é a falta de educação desde a infância. Este argumento invalida as teorias que afirmam a “natural” inferioridade intelectual feminina e assinala um hábito cultural como fator determinante da desigualdade. Em seguida a autora usa outro argumento que faz referência à doutrina dos humores, atualizada, interpretada e popularizada através de Examen de ingenios para las ciencias (1575), de Huarte de San Juan. Ela afirma que, se recebessem educação, as mulheres poderiam ser mais agudas que os homens, por uma associação entre o frio e a umidade, da qual deriva o entendimento, cujo sinal visível é a rapidez das respostas e os enganos premeditados. Porém, esta fórmula não se encontra na doutrina de Huarte, nem na das autoridades que ele menciona. Luis Vives, no Tratado del alma, distingue a composição física de machos e fêmeas justamente pelo frio: Pequeña es la diferencia entre los sexos, pues la hembra no es más que un macho incompleto, porque no reunió la justa medida del calor; de modo que parece que la hembra nace de escacez. Empero la Naturaleza, señora universal, impuso el régimen y la necesidad de uno u otro sexo en los animales, y que uno nazca de las fuerzas y el otro de la debilidad, sin que falten nunca ambas concausas para engendrar el uno y el otro (VIVES, 1948, p.1157). Por conseguinte, é pelo frio que começa a desqualificação do ser feminino. No que diz respeito à agilidade mental, associada à umidade, há uma referência no Tratado del alma, quando Vives explica as funções da memória: Dos son las funciones de la memoria (...): asir y retener. Asen o aprehenden fácilmente los que tienen húmedo el cerebro. (...) Este temperamento en los niños arguye bondad de ingenio, como notó Quintiliano, por que la memoria le ayuda para percibir fácilmente lo que quiere y reproducirlo rápida y fielmente cuando es menester (VIVES, 1948, p.1186). Em Examen de ingenios, Huarte associa a agilidade mental à presença de “partes sutiles y muy delicadas” no cérebro, o que pressupõe um engenho também sutil (SAN JUAN,1977, p.94). Entre tanto, quando se reúne frio e umidade, Huarte ensina: 147 Hispanismo 2 0 0 6 También los muchachos que tienen buena voz y gorjean mucho de garganta, son ineptísimos para todas las ciencias; y es la razón que son fríos y húmidos, las cuales dos calidades, estando juntas, dijimos atrás que echan a perder la parte racional (SAN JUAN, 1977, p.173). É importante destacar que o doutor Huarte usa a mesma premissa para desqualificar os povos de terras frias, apoiando-se em Aristóteles, que teria dito que o engenho dos flamengos, alemães, ingleses e franceses é como o dos bêbados. Huarte assegura que a falta de engenho destes povos – justamente os inimigos do Rei Felipe II, a quem o Examen foi dedicado – é a muita umidade que o frio produz no cérebro e no corpo, perceptíveis pela brancura do rosto e a cor dourada do cabelo. Já os espanhóis, pela tez morena, cabelo negro e estatura mediana, demonstram ter o cérebro quente e seco, portanto, de grande entendimento (SAN JUAN, 1977, p. 175). Parece-me que Zayas, de uma forma sarcástica, usa o mesmo procedimento de Huarte de San Juan ao interpretar os antigos preceitos de forma a acomodá-los à nova doutrina que ela está propondo. No prólogo, Maria de Zayas diz ao leitor que se a lógica dos humores não vale para dar crédito às mulheres, há de valer a experiência registrada pela História, e cita uma série de mulheres célebres da Antigüidade que se dedicaram às letras: De Argentaria, esposa del poeta Lucano, refiere él mismo que le ayudó en la corrección de los tres libros de La Farsalia, y le hizo muchos versos que pasaron por suyos. Temistoclea, hermana de Pitágoras, escribió un libro doctísimo de varias sentencias. Diotima fue venerada por Sócrates por eminente. Aspano hizo muchas lecciones de opinión en las academias. Eudoxa dejó escrito un libro de consejos políticos; Cenobia, un epítome de la Historia oriental. Y Cornelia, mujer de Africano, unas epístolas familiares con suma elegancia” (ZAYAS, 2000, p. 160). Ao concluir a lista, Zayas desafia os conhecimentos do leitor com o seguinte comentário: “y otras infinitas de la antigüedad y de nuestros tiempos que paso en silencio, porque ya tendrás noticias de todo, aunque seas lego y no hayas estudiado” (ZAYAS, 2000, p.160). Logo a escritora acrescenta um novo argumento ao debate, sempre de forma polêmica: Y después que hay Polianteas en latín, y Sumas morales en romance, los seglares y las mujeres pueden ser letrados. Pues si esto es verdad, ¿qué razón hay para que no tengamos prontitud para los libros? (ZAYAS, 2000, p.160). 148 Volume 4 | Literatura Espanhola Tais obras consistiam em catálogos de sabedoria, de conteúdo poético, a primeira, e moral, a segunda, que serviam de fonte para a composição literária.e A utilização destes catálogos era corrente e adequado ao princípio poético de mimesis. Associado a ele está o de erudição, segundo o qual era necessário extrair a inspiração dos modelos clássicos, a fim de transmitir seu saber canônico e propiciar o ensino moral esperado. Porém, problematizavase a qualidade da imitação, que podia ser rebaixada a “remedo de retrato” se lhe faltasse o grau de invenção criativa. f A pergunta de Zayas talvez possa ser entendida como uma indagação irônica: a mulher não teria sequer capacidade para seguir um modelo? Se há instrumentos acessíveis, como as Polianteas e as Sumas morales, e tantos homens que se dedicam à toda sorte de imitação, por que as mulheres não podem fazê-lo?, ainda mais havendo tantos ilustres exemplos de engenho feminino que contribuíram para o acrescentamento das letras? Com a irrefutável fonte histórica, Zayas revela ao leitor sua ampla erudição, ao mesmo tempo em que o faz saber que existe tradição nas letras de punho feminino. Por meio do exemplo das mulheres célebres, Maria de Zayas desautoriza discursos como o de Frei Luis de León, que em La perfecta casada (1583) reitera a doutrina huartiana acerca da “natural” incapacidade da mulher para os estudos: Porque, así como la naturaleza, como dijimos y diremos, hizo a las mujeres para que encerradas guardasen la casa, así las obligó a que cerrasen la boca: y como las desobligó de los negocios y contrataciones de fuera, así las libertó de lo que se consigue a la contratación, que son las muchas pláticas y palabras. Porque el hablar nace del entender, y las palabras no son sino como imágines o señales de lo que el ánimo concibe en sí mismo; por donde, así como a la mujer buena y honesta la naturaleza no la hizo para el estudio de las ciencias ni para los negocios de dificultades, sino para un solo oficio simple y doméstico, así les limitó el entender, y por consiguiente, les tasó las palabras y las razones” (LEÓN, 1968, p. 124). Não por acaso, as mulheres da Antigüidade que Zayas citou pertenceram a famílias ilustres, sendo destacadas como irmã, esposa ou mãe de homens igualmente célebres, o que obriga a incluí-las na categoria de “buena y honesta” de Frei Luis. Para finalizar, Zayas usa sua experiência pessoal como prova contumaz para sua argumentação. Menciona sua afeição natural à leitura, que a levou ao gosto por compor versos, até chegar a escrever as Novelas. Termina usando o costumeiro recurso da captatio benevolentie, estimando que o 149 Hispanismo 2 0 0 6 leitor aprecie a obra. Porém, Zayas transforma o convencional topos humilitatis em um texto sexuadog: com uma audaz ironia, a autora faculta com força impositiva a autorização de sua obra, dizendo que se não pode ser apreciada por seu valor literário, deve sê-lo por causa da tradicional cortesia que se deve ao servilismo feminino: Y así pues, no has de querer ser descortés, necio, villano ni desagradecido. Te ofrezco este libro muy segura de tu bizarría y en confianza de que si te desagradare, podrás disculparme con que nací mujer, no con obligaciones de hacer buenas Novelas, sino con muchos deseos de acertar a servirte. Vale (ZAYAS, 2000, p.161). Referências Bibliográficas ARISTÓTELES, Acerca del alma. Ed. Tomás Calvo Martínez. Madrid: Gredos, 1988. BOBES, C. et. alli. Historia de la teoría literaria, II. Poéticas clasicistas. Madrid: Gredos, 1998, pp. 329-396. LEÓN, Fray Luis de. La perfecta casada. Madrid: Espasa-Calpe, 1968. LÓPEZ GRIGERA. La Retórica en la España del Siglo de Oro. Salamanca: Universidad, 1994. SAN JUAN, J. Huarte de. Examen de ingenios para las ciencias. Ed. Esteban Torre. Madrid: Nacional, 1977. VIVES, Juan Luis. Formación de la mujer cristiana, em: Obras completas. Ed. Lorenzo Riber. Madrid: Aguilar, tomo I, 1947, pp. 987-1175. _____. Tratado del alma, em: Obras Completas. Ed. Lorenzo Riber. Madrid: Aguilar, tomo II, 1948, pp. 1147-1319. ZAYAS Y SOTOMAYOR, María de. Novelas amorosas y ejemplares. Ed. Julián de Olivares. Madrid: Cátedra, 2000. a b c d e f g Notas Nos séculos XVI e XVII, o termo “engenho” era comumente usado para referir a capacidade intelectual dos indivíduos, com algumas diferenças conceptuais, entre as quais opto pela definição apresentada por Juan Luis Vives no capítulo VI, Del ingenio, do Tratado del alma: “del vigor y fuerza de nuestro entendimiento plugo llamársele ingenio” (in: Obras Completas. Ed. Lorenzo Riber. Madrid: Aguilar, tomo II, 1948, p. 1200). Cf. VIVES, Juan Luis. Tratado del alma, in: Obras Completas. Ed. Lorenzo Riber. Madrid: Aguilar, tomo II, 1948, pp. 1147-1319. Cf. “Introdução” de Luiz Jean Lauand a Sobre o ensino, de Tomás de Aquino (Martins Fontes, 2004). Apud. Tomás Calvo Martínez, “Introducción” in: ARISTÓTELES, Acerca del alma, p. 100. Sobre as Polianteas, Cf. LÓPEZ GRIGERA, La Retórica en la España del Siglo de Oro. Salamanca: Universidad, 1994, p. 179. Cf. BOBES, C. et. alli. Historia de la teoría literaria, II. Poéticas clasicistas. Madrid: Gredos, 1998, pp. 329-396. Conforme Julián Olivares, em “Introducción” a ZAYAS, Novelas amorosas y ejemplares. Madrid: Cátedra, 2000, p. 38. 150 Volume 4 | Literatura Espanhola Don Juan: alienación, narcisismo y erotismo Tatiana Francini Girão Barroso (Universidade Ibirapuera - SP) Mi objetivo es el de considerar la figura mítica de don Juan, personaje de Tirso de Molina en El burlador de Sevilla y convidado de piedra, como personaje manierista que encarna dos elementos que, según la concepción de Manierismo de Hauser, le son esenciales: el narcisismo y la alineación. (HAUSER, 1965) El erotismo nace de esa relación entre narcisismo y alineación, como pretendemos demostrar. Empecemos por la alineación. Según Hauser, “fundamental para el concepto de la alienación es siempre la vivencia del desarraigo, perplejidad e insustancialidad del individuo” (HAUSER, 1965, p. 121) y tiene su origen en la época en que la unidad orgánica del mundo espiritual empezó a desintegrarse en una multiplicidad de aspectos e intereses. Este proceso habrá comenzado en el siglo VI a.C pero, por los innúmeros cambios en el ámbito social e intelectual de la sociedad, y porque esta fecha está muy lejana para nosotros, esta época parece no tener relación con la nuestra. Como forma consciente, la alineación habrá surgido en el Renacimiento – o la crisis de Renacimiento, donde ubica el Manierismo. Como sabemos, el Renacimiento tenía como principio un retorno a la estética clásica, haciendo de la búsqueda por la unidad, de la armonía entre hombre y naturaleza, de la educación del hombre y del uso de la razón sus principales objetivos. El hombre pasa a ocupar el centro del universo: es la visión antropocéntrica que sustituye –o debería sustitui– la visión teocéntrica medieval. La libertad y con ello la noción de individuo también son tópicos fundamentales del pensamiento humanista. Los valores morales dejan de tener un origen divino y pasan a ser responsabilidad del propio hombre. Habrá una relativización pues, de los valores. Sacar a Dios del centro del mundo y poner al hombre en su lugar significa que el hombre pasa a tener responsabilidad sobre los acontecimientos y la libertad, que es un privilegio, pasa a ser también un problema. El hombre renacentista, o mejor, el hombre que sufre la crisis del renacimiento, el hombre de los siglos XVI y XVII ahora se cuestiona: ¿Puedo ser lo que quiero y actuar como quiero? ¿Qué lugar ocupo en la sociedad? ¿Qué lugar ocupo en el mundo, al fin y al cabo? Hasta la Edad Media los valores estaban determinados por la moral religiosa –o por las reglas de la cortesía– y el lugar que cada uno ocupaba en la sociedad también estaba determinado por las jerarquías. Esta estructura rígida de la sociedad, con los cambios económicos, históricos y filosóficos que se hacen evidentes en el siglo XVI está ahora en crisis: el hombre ya no está seguro de su lugar en el mundo ni 151 Hispanismo 2 0 0 6 de sus valores: la ascensión social, por ejemplo, pasa a ser un valor, sea como sea (recordemos a Lazarillo). El hombre ahora es libre, al menos en teoría, para pensar, para ser: el individuo pasa a ser más importante que lo colectivo. Estos cambios son responsables, por lo tanto, de una crisis, que será también crisis de identidad. El Manierismo surge, para Hauser, de la duda, del cuestionamiento de si alma y cuerpo eran realmente compatibles, de si era posible salvarse y perseguir la felicidad, de si la unidad y armonía propuestas por los humanistas no eran sólo ilusión, ficción. (HAUSER, 1965, p.138) De la búsqueda renacentista de libertad y razonamiento nacen el relativismo y la crisis mencionada anteriormente: los principios renacentistas son, al fin y al cabo, los fundamentos de su propia crisis. Este intento de libertad que se refleja en la concepción del individuo que ahora busca hacerse a sí mismo lo vemos en el Quijote, en Lazarillo y también en don Juan, pero estos personajes, del modo como están representados, parecen no tener conflictos, parecen estar seguros del camino que eligieron. Don Juan es un personaje que no tiene conflictos, no se importa con valores determinados, ni terrenos ni espirituales: su conciencia del tiempo, que sólo considera el presente, hace que él crea que el castigo que pueda merecer por sus actos –y Catalinón le llama siempre la atención– le parezcan demasiado lejanos o incluso imposibles. Por no importarse con valores y por creer estar ajeno a ellos y a las consecuencias de sus actos, su conciencia está libre de la culpa, lo que hace que el personaje pueda hacer lo que quiera sin preocuparse, a no ser por la satisfacción de sus deseos (la burla amorosa). Don Juan, en este sentido, es un alienado: Fundamental para el concepto de la alienación es siempre la vivencia del desarraigo, perplejidad e insustancialidad del individuo, la conciencia de haber perdido la conexión con la sociedad y la vinculación con el propio trabajo, la desesperanza de poner en consonancia las propias pretensiones, valoraciones y objetivos. (HAUSER, 1965, p.121). No tener valores y no sentirse culpable hace que él sea un individuo alienado y sin angustias existenciales: don Juan, al alienarse de la sociedad la trasciende y encarna por eso el mito del poder. Lo que impide al hombre de satisfacer sus deseos –sean cuales sean– es la conciencia de que forma parte de algo más grande que él, la sociedad en que vive, y a esa se sobrepone don Juan. La crisis, por lo tanto, no es una característica del personaje, ya que no tiene conflictos, sino de la obra que nos revela una sociedad sin leyes, sin valores, sin moral, representada de modo monstruoso por don Juan pero también por los demás personajes. Don Juan vive en un ambiente en crisis. La alienación es su superación. 152 Volume 4 | Literatura Espanhola ¿Por qué don Juan se aliena en un mundo que le es propio, el mundo de su satisfacción personal? En primer lugar, la idea de libertad y la noción de individuo (conceptos renacentistas) llevados al extremo hacen que don Juan crea ser libre para poder actuar como quiera. Uno de los temas tratados es, por lo tanto, el de la libertad individual y su relación con lo colectivo. Don Juan es un miembro de la sociedad cortesana pero se burla de la ética ya establecida: aquí la burla es siempre “amorosa”, o un juego, como en algunos momentos nos dice el propio personaje. Recordemos que en la corte eran comunes los juegos eróticos cuyas reglas ya estaban determinadas pero, engañar a las mujeres como lo hace don Juan no era cosa de hombre honrado, de un verdadero caballero. Sin embargo, aunque nuestro personaje es el principal, no es el único burlador. O sea, don Juan actúa como otros personajes de la obra. Por ejemplo, Tisbea, una de las mujeres burladas, es también una burladora, y la burla que recibe no es más que un castigo por las burlas que ha hecho: “Yo soy la que hacía siempre / de los hombres burla tanta; / que siempre las que hacen burla, / vienen a quedar burladas.” (TIRSO DE MOLINA, p.62, s.d.) Otro personaje es el conde de la Mota, que con don Juan quiere burlarse de una mujer y acaba burlado, como todos los burladores de la historia, incluso el propio don Juan, al final. Pero don Juan, aunque no es el único, no es un burlador cualquiera: “Sevilla a voces me llama / el Burlador, y el mayor / gusto en mí puede haber / es burlar una mujer / y dejalla sin honor” (TIRSO DE MOLINA, p. 74, s.d) nos dice también que “Si burlar / es hábito antiguo mío, / qué me preguntas, sabiendo / de mi condición?” (TIRSO DE MOLINA, p.59, s.d.). Don Juan encuentra en el hecho de ser un burlador su identidad y su condición en la sociedad. La búsqueda por la fama, que aquí no tiene nada que ver con la búsqueda de la honra (al menos la idea de honra ya determinada socialmente), está asociada a esa búsqueda de reconocimiento como individuo, como un ser distinto de los demás. Don Juan nos dice sobre la burla que hará a Doña Ana que “Ha de ser burla de fama” (TIRSO DE MOLINA, p. 78, s.d.) Hay, por lo tanto, un intento de mantener la fama que ya posee (una mala fama según nos cuenta la obra), pero la fama ya no es conquistada de acuerdo con los valores de la ética cortesana defendida, por ejemplo, por Castiglione en O cortesão, obra del renacimiento italiano en la que el autor intenta definir las características del cortesano ideal y que será traducida inmediatamente al español. Una de las principales características del cortesano es ser virtuoso y ser virtuoso es obrar bien, de acuerdo con valores identificados, al fin y al cabo, con valores cristianos (CASTIGLIONE, 1997). Para don Juan obrar bien es tener éxito en lo que uno se propone hacer, burlarse de las mujeres en su caso. Y más, el poder de engañar es también el poder de burlarse de las leyes, tanto terrenas como espirituales. Una sociedad sin valores ni moral, que no 153 Hispanismo 2 0 0 6 hace cumplir la ley, es el segundo motivo que hace que don Juan se crea superior a ella: la sociedad crea sus propios “monstruos”. En este sentido podemos preguntarnos: ¿Don Juan se determina o está determinado? Todo lo mencionado anteriormente tiene que ver con el narcisismo y la alienación, que para Hauser son características determinantes del Manierismo. Al ser un personaje amoral que piensa sólo en satisfacer sus deseos es a la vez un alienado y un narcisista, porque egocéntrico. La alienación nace de la crisis entre el individuo y la realidad. Recordemos que don Juan actúa como si el mundo existiera para satisfacerle, sin cuestionarse: no hay dudas, no hay conflictos, no hay culpa. Nuestro personaje ya surge en la obra con estas características mencionadas, no hay un desarrollo psicológico o social que pueda demostrarnos una crisis interior, aunque sí la obra nos demuestra una ruptura entre el personaje y lo que le rodea. Sobre la relación temporal, don Juan no está preocupado ni con el pasado ni con el futuro: vive el presente que se resume en articular las burlas, concretizarlas y huir. Hace de su imagen y de su fama su único objetivo: además de un alienado, y como consecuencia directa de esa alienación, es un narcisista, porque está volcado sobre sí mismo y nada más. Sobre el narcisista Hauser escribe: El narcisista sustituye la realidad por una ficción en cuyo centro está él mismo, y se mueve en este mundo ficticio sin preocuparse por la verdad ni verse asaltado por dudas, porque ni quiere ni puede examinar la certidumbre de los caminos que recorre. El narcisismo significa así, en último término, una crisis del sentido de la realidad, y la pérdida del objeto del amor arrastra consigo la pérdida de toda la realidad exterior” (HAUSER, 1965, p.114). ¿Habrá mejor descripción para nuestro personaje que ésta? La crisis propia del personaje, como ya hemos dicho, no aparece en la obra: don Juan ya se nos aparece como un alienado y narcisista. Hauser, en esta cita, menciona el amor, o mejor, la pérdida del objeto amoroso. En esta sociedad que define reglas para el amor (hay una ética amorosa en la ética cortesana), ¿es posible el sentimiento amoroso? ¿Él existe realmente, o el amor no pasa de una institución más, de la cual don Juan se burla? Porque el texto trata de la burla amorosa que representa, en verdad, la burla a una ética ya establecida. El amor se había transformado en una institución (o tal vez siempre lo haya sido): se casaba por dinero, por títulos, por posición social. Y cada mujer burlada esperaba ver su burla, o mejor, su honra, compensada por el matrimonio. El sentimiento amoroso, en verdad, no existe, ni para don Juan y tampoco para los demás personajes. Si el sentimiento amoroso no existe, ¿cuál es el objeto erótico de don Juan, o sea, el objeto de deseo, lo que le hace sentirse integrado con el mundo consigo mismo? La respuesta es clara: la propia bur154 Volume 4 | Literatura Espanhola la, más precisamente el acto sexual seguido de la huida. El erotismo de don Juan está directamente relacionado con su narcisismo y alienación ya que la burla amorosa, que se resuelve en acto sexual, es el modo de afirmarse, de definirse como individuo y de ser reconocido por los demás. Octavio Paz, en La doble llama, nos dice que el motor del erotismo es la imaginación y que esta transforma el acto sexual – o la burla – en ceremonia, en rito. (PAZ, 1995, p.14-17) En la obra el engaño, la conquista, posesión y huida que se repiten se transforman en rito, en ceremonia. Octavio Paz escribe también que las prácticas eróticas son un modo de subvertir las reglas sociales y morales que ahogan los deseos humanos. (PAZ, 1995, p.17-20) Las instituciones – cuyo surgimiento se intensifica en el siglo XVI - habrían sido creadas para frenar los instintos del hombre. La Iglesia es un ejemplo. Don Juan, sin ser un rebelde - porque no se rebela en ningún momento contra la sociedad, incluso porque sus leyes no sirven para castigarlo – en un subversor de las reglas. Para Octavio Paz hay dos figuras emblemáticas que definen el erotismo: la del religioso solitario y la del libertino (PAZ,1995, p.21), en la que insertamos a don Juan. Son dos figuras que buscan en el éxtasis – el instante de la satisfacción del deseo - su razón de vivir: por eso no hay pasado ni futuro, sólo presente. Ambos niegan la reproducción (única función del acto sexual, según la moral religiosa) y son intentos de salvación o libertad personal en un mundo considerado caído, perverso o irreal. El placer es la única moral, o salvación, posible tanto para el religioso como para el libertino. Don Juan representa la sociedad – esta sin leyes y sin moral – y a la vez la trasciende, por eso será condenado, pero la justicia sólo se realiza por manos divinas. Ser libre y gozar la vida, conceptos que don Juan adoptó como sus únicas reglas, su única moral, eran propuestas renacentistas que fueron condenadas por el pensamiento contrarreformista barroco. El Manierismo nace del conflicto entre estas dos visiones de mundo opuestas, inconciliables. El final de la obra, está claro, es absolutamente barroco, pues don Juan es castigado por manos del “convidado de piedra“, representante de la justicia divina. Percibimos en la obra una crítica a determinados valores de la época (o ausencia de), a la idea de matrimonio por interés conforme nos muestran los personajes femeninos de Tisbea y Aminta, o para salvar la honra (el sentimiento amoroso no importa, al fin y al cabo). Además, como ya es sabido, la obra hace una crítica también a la propia sociedad cortesana y a la justicia terrena: porque no hubo justicia terrena fue necesaria la justicia divina. Tirso de Molina, además, reafirma al final la temporalidad de la vida humana, oponiéndose a la concepción atemporal de don Juan, ya que se burlaba incluso de la muerte. La obra quiso también mostrarnos como un hombre puede ser, o estar, condicionado por esa sociedad, aunque se piense libre. El hecho 155 Hispanismo 2 0 0 6 de ser un narcisista y alienado nacen de una relación insatisfactoria con la realidad, con una moral determinada, y de la necesidad de ser más que la realización de algo ya determinado por las relaciones sociales. Por otro lado, don Juan manifiesta de modo monstruoso una de las facetas de esa misma realidad trascendida por él – el deseo de satisfacción personal a todo costo, el principio de libertad que si mal interpretado puede llevar a un narcisismo exacerbado y a la alienación - y por eso se transforma en mito: porque, al fin y al cabo, la representa. La obra al final es barroca porque reorganiza el caos establecido reafirmando valores ya determinados, pero el personaje, este que encarna el mito del poder, este héroe que es en verdad un antihéroe y que no tiene nada que ver con las ideas contrarreformistas, es manierista. El narcisismo y la alienación lo determinan, elementos estos que serán marcas de la modernidad: para Hauser, el Manierismo retrata en sus obras la crisis del hombre de los siglos XVI y XVII, cuyas características sólo serán evidentes a partir del XIX (HAUSER, 1965, p.138): don Juan, este personaje que busca el placer – la felicidad – a todo costo, pero es incapaz de satisfacerse, es uno de ellos. Es este hombre que piensa determinarse – aunque puede estar ya determinado sin saberlo; este hombre que encuentra en la marginalidad – y en el erotismo - la única posibilidad de felicidad, o simplemente la única posibilidad de existencia. Don Juan será releído y reinterpretado después por los románticos, pero esta es otra historia. Referencias Bibliográficas GONZÁLEZ, Mario. “Don Juan: burlador, seducido y seductor”. IN: Universo Hispánico: lengua, literatura y cultura. Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2001. HAUSER, Arnold. El manierismo. Madrid: Guadarrama, 1965. PAZ, Octavio. La doble llama: amor y erotismo. Barcelona: Seix Barral, 1995. TIRSO DE MOLINA. El burlador de Sevilla. Buenos Aires: Colihue. s.d. CASTIGLIONE, Baldassare – O cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 156 Oitocentismo 157 Hispanismo 2 0 0 6 Consciência de si em um personagem de Galdós Alexandre Fiori (USP) Depois do êxito de Cervantes, o romance na Espanha permaneceu quase dois séculos à margem de outras formas literárias até ser retomado por um de seus maiores representantes na história da literatura espanhola: o escritor Benito Pérez Galdós. Um aspecto que tem importância central no conjunto de sua obra é a construção do personagem. Fortunata y Jacinta1, um de seus romances que melhor representa a escritura realista do século XIX, traz em sua estrutura a questão do processo de individualização de um personagem, Fortunata. A protagonista é apresentada na obra como um personagem-tipo representante do povo, ou mesmo de uma classe social em formação na Espanha do século XIX: o proletariado urbano. Durante grande parte de sua trajetória é um personagem espectador de si mesmo, na medida em que suas imagens são compostas por seu entorno constituído de personagens da alta e baixa burguesia, no geral protagonistas dos romances de Galdós que precederam Fortunata y Jacinta. A complexidade desse personagem se concretizará como resultado de sua assimilação das imagens objetivas de si produzidas por distintos pontos de vista lançados pelas instâncias narrativas do romance. O ponto de apoio externo ao conhecimento objetivo de si do personagem central se constitui das diferentes perspectivas dos personagens que o rodeiam e dos juízos e movimentações do narrador que se desdobra em ficcionalizador do relato. O personagem de Fortunata será um particular na obra que revelará gradualmente o processo de formação da consciência de um indivíduo marginal, o que corrobora a idéia de que esse romance tem como mérito desvelar em profundidade a realidade de uma sociedade de classes. As mudanças sociais e econômicas na Espanha do século XIX foram resultado de uma evolução histórica iniciada em meados do século XVIII. Cresceu a classe média, uma burguesia comercial, financeira e industrial. Apesar de terem ocorrido com certa lentidão, a sociedade espanhola experimentou várias transformações que a levaram à Revolução Gloriosa de setembro de 1868, que supôs o ponto de partida do movimento proletário espanhol, pois se promulgaram liberdades de reunião, associação e expressão. O surgimento de um proletariado urbano fez com que a burguesia se redirecionasse a posturas mais conservadoras e propícias à restauração monárquica. Seis anos mais tarde, a Restauração Bourbônica fortaleceu a burguesia como um grupo de poder político-econômico e cuja moral refletiu uma força determinante em relação aos conceitos correntes na sociedade, dentre eles a idéia consolidada em torno da figura do povo. 158 Volume 4 | Literatura Espanhola As mudanças políticas dessa época sentaram as bases para o triunfo do romance burguês, já que os burgueses liberais que tomaram o poder começaram a influir diretamente no terreno cultural. E é desde essa burguesia que falará Galdós já no começo de sua produção artística, com La Fontana de Oro (1870). A emergência de Fortunata como um personagem representante de uma classe baixa que na Espanha ainda não tinha uma consciência de si – como acontecia com o proletariado francês, por exemplo – constitui um elemento-chave para uma mudança orgânica na obra de Galdós. A propósito, é relevante perguntar-se desde qual perspectiva falava o escritor ao reservar o papel de protagonista a um personagem como Fortunata. Muitos concordam que Galdós escrevia sobre e desde a burguesia, mas contra ela2, assumindo um ponto de vista claramente favorável ao povo em meio à tensa dinâmica social presente em Fortunata y Jacinta (CAUDET, 2000, 28; RODRÍGUEZ-PUÉRTOLAS, 1975, 92). É indiscutível que Fortunata adquire protagonismo na obra e esse papel começa a ganhar forma no momento em que esse personagem estabelece um contraponto entre sua própria visão e a do outro. E assim a marginal calada parece ganhar voz na ficção. É notável em Fortunata y Jacinta a imagem que se constrói do povo, elemento que passa a ser característico do romance como um gênero na medida em que há um claro e oficial desdobramento do sujeito burguês antes considerado o grande e talvez único protagonista da epopéia do indivíduo moderno. Pode-se afirmar que, ao longo desse romance, o burguês e o povo sintetizam forças que atuam de maneira tensa, apesar de que este último, a princípio representado por Fortunata, surgirá na obra mais como um objeto da perspectiva alheia do que como sujeito que age em torno da sua imagem objetiva reproduzida pelo outro. Partindo do enfoque dado à classe média, a dialética entre o referente sócio-histórico e o processo de criação artística de Galdós passa a prever em sua estrutura o personagem marginal, assim entendido em relação ao seu centro burguês. Na estrutura de Fortunata y Jacinta, bem como na caracterização dos personagens, a base de informações sócio-históricas desempenha função importante. O romance trata uma questão bastante característica do gênero no século XIX: a sociedade contra o indivíduo. O sujeito desvinculado do mundo existencialmente passa a estranhá-lo também em função de suas diferentes camadas sociais. E de que forma o homem das ruas e casas de Madri, desvinculado e estranho, poderá conhecer-se e ter plena consciência de si? O conhecimento de si será resultado do jogo de imagens estabelecido entre o indivíduo e a sociedade? 159 Hispanismo 2 0 0 6 No romance, a construção da consciência desse indivíduo se desenvolve fundamentalmente a partir de suas falas, da palavra, em primeira instância o material não apenas da comunicação entre os personagens, mas dos desvios e da engenhosidade do narrador-autor. A maneira como Fortunata tem conhecimento de seus “pecados”, de sua “desonra”, de sua “imoralidade” não tem outro meio senão o da palavra. Com efeito, o discurso é o meio pelo que se expressam as relações humanas, as práticas sociais. A inexorável relação entre a consciência de si e a alteridade tem, no discurso, um veículo que constitui uma verdade, uma moral e uma liberdade específicas. As relações estabelecidas entre Fortunata e seu círculo de interlocutores mostram o valor que a imagem da protagonista adquire sob o ponto de vista de quem a vê e age como se conhecesse o mundo de suas autosensações interiores, o seu universo subjetivo. O fato é que esse conhecimento se apresenta como a fusão de diferentes processos: o primeiro diz respeito a uma imagem da protagonista que ela mesma não pode ver, pois há traços seus que excedem seu campo de visão, seja ele espacial ou cognitivo. O segundo processo é o da estereotipia, segundo o qual as imagens que circulam em determinado texto ou cultura mediatizam a relação do sujeito com o que se institui como “real”. O processo de busca do personagem central por um conhecimento de si será concomitante à sua obsessão pela honra perante os que o cercam, pela dignidade moral que a colocaria no mesmo nível de seus interlocutores. Todas as qualidades atribuídas à protagonista parecem verossímeis e moralmente justificadas para os interlocutores que as proferem, responsáveis por uma espécie de fundo, social e pictórico, no qual se pode ver como a protagonista se manifesta e evolui ao longo da narrativa, aproximando-se de um conhecimento objetificado de si mesma. Precisamente arraigada no tempo e no espaço, dentro de um mundo concreto, Fortunata se mostrará um personagem particular e não restrito a um grupo social. Se por um lado a trajetória do personagem revela uma lógica própria às práticas sociais, por outro é o modelo para o estudo da construção de sentidos mediante a interação entre indivíduos que, apesar de estranhos entre si, se comunicam e servem de ponto de apoio um ao outro para a assimilação de uma auto-imagem. Fortunata é narrada por um centro enunciador burguês, que reforça os esquemas preexistentes e restringe o sentido do grupo social representado pela protagonista. Os valores pertencentes ao sujeito emergente são caracterizados por quem os narra e enforma segundo sua perspectiva e seu lugar enunciativo. Há uma questão formal desse romance 160 Volume 4 | Literatura Espanhola que intervém diretamente em um argumento da obra: o desdobramento do narrador-personagem em autor da história de Fortunata mostra que o processo de criação é dialógico e inerente à atribuição do sentido, e perpassa diferentes instâncias narrativas do romance: personagens, narrador, autor implícito e leitor. Pode-se dizer mesmo que há uma evolução poética nesse romance em relação ao conjunto das obras de Galdós: em Fortunata y Jacinta instaura-se um narrador-personagem, tecnicamente responsável por contar uma história. Entretanto, progressivamente se imprimem na narrativa as implicações do contar, e a ação de narrar revela o processo de ficcionalização característico da interpretação que o outro faz da marginal. O desdobramento do narrador em autor da história de Fortunata é exemplar para o tema do processo criativo na literatura, que absolutamente não se restringe à figura do autor “biográfico” da obra. O “saber” do narrador torna-se questão secundária no romance, pois surge como um dos temas substanciais da obra a verossimilhança como um aspecto do relato metaficcional. O ato de apropriar-se de uma experiência ao narrá-la revela o processo de arbitrariedade de quem se propõe a organizar uma história e dar-lhe acabamento estético. Desmistificase assim a proposta realista/naturalista de imparcialidade; a veracidade está na autenticidade da criação dialógica, no reconhecimento da impropriedade de chegar-se à essência do sujeito pela linguagem, responsável por forjar a realidade em diferentes graus. As imagens produzidas em torno da figura de Fortunata se mostram como reiteradas criações em relação à construção verbal de sua personalidade e expressam as mudanças que sofre um caráter representado em função de sua relação com consciências que o abarcam. A estruturação do caráter representado da protagonista não a mostra dependente do outro exatamente, mas interagindo e aproveitando-se do ponto de apoio que lhe objetifica a imagem. A consciência de si do indivíduo abarcado se constrói dialogicamente mediante o ponto de apoio externo que tem lugar no outro, responsável pela atribuição de sentido que serve de eixo ao processo inventivo em relação à figura da protagonista. A consciência de si de Fortunata está atrelada à consciência que ela tem do outro em relação a ela mesma, do que resulta a imagem objetiva de sua própria personalidade. A protagonista é uma grande espectadora de si mesma; vale-se de reflexos objetivos da sua imagem produzidos pelo ponto de vista que a determina de fora e a reinventa a cada discurso cujo tema é sua própria personalidade. Gera-se um efeito de individualidade em Fortunata na medida em que se estabelece na figura da protagonista um contraponto ao discurso monológico do outro em relação a ela 161 Hispanismo 2 0 0 6 mesma. A ação do personagem central como indivíduo se baseia na maneira como ecoa sua voz num quadro múltiplo cujo tema principal é a imagem objetiva de si produzida pelo discurso do outro. O personagem periférico torna-se centro de observação do mundo que o significa e delimita seu sentido. O protagonismo da marginal constitui-se em seu caráter responsivo no diálogo que estabelece com seus interlocutores. Emerge uma voz “estranha” no plano da autoria dos caracteres. É a partir de um efeito de multiplicidade de visões que se esboça a identidade de Fortunata, ainda que a proliferação de imagens apresente um eixo fixo dentro do romance, que é a consciência do narrador-autor. É só a partir de uma consciência de si adquirida pela própria protagonista que o leitor poderá dar acabamento ao jogo de imagens em torno do personagem central. A consciência que Fortunata adquire da síntese do jogo de suas imagens proferidas pelo outro e a compreensão das perspectivas dos que a cercam a tornam o personagem mais complexo da obra. Por transitar entre a margem e o centro, a protagonista mostra uma amplitude de conhecimento com relação à galeria de imagens objetivas dos personagens do romance. Sua visão vai do acontecimento ao panorama distanciado no tempo e no espaço. Emerge na figura da protagonista um interlocutor ativo, cuja ação se baseia na compreensão de sua imagem objetiva. Fortunata só consolida uma opinião a respeito de si mesma na medida em que compreende sua caracterização na perspectiva de quem a vê e lhe fornece versões de si mesma. Sua intensa relação com o outro na busca de sua própria personalidade dá acabamento ao sentido de sua existência. A ignorância representada em sua figura lhe atribui uma vulnerabilidade que a mostra como uma espécie de sensor das visões alheias sobre si. A partir do momento em que a protagonista passa a pensar as próprias características que lhe são dadas de fora, para aceitá-las ou rejeitá-las por não reconhecê-las em si, pode-se dizer que passa a conceber-se, adquire portanto a mesma capacidade de seus pares, a “potencialidade autora” concretiza-se em sua ação; torna-se uma espécie de autora de si mesma, na medida em que dialoga com a versão de si dada pelo outro na linguagem e pela linguagem, única forma de inteligível de auto-representação. Assim, o personagem é abarcado e enformado pela linguagem de modo a caracterizar uma dada totalidade e desse modo será reconhecido como uma existência minimamente significativa no quadro objetivo que será contemplado pelo outro. Tudo o que se refere às mobilidades do narrador-autor de Fortunata y Jacinta – o desvanecimento do participante da ação que dará veracidade 162 Volume 4 | Literatura Espanhola e impressão de onisciência ao relato, por exemplo – configura a retórica do autor implícito que gira em torno do efeito da técnica realista da objetividade e imparcialidade. Os efeitos de sentido particulares de um personagem que se converte em autor revelam que a forma desse romance intervém em um argumento: a desmistificação da existência de uma voz totalizadora que abarque inteiramente o fato externo e o descreva de forma impessoal sem nele interferir. É um participante da ação do romance que, ao contar a história, dela se apropria e passa a objetificar as consciências dos personagens, assumindo as propriedades de uma voz em terceira pessoa que converte em arte a vulgaridade da vida. E é assim que a história de Fortunata e de qualquer vida objetivamente representada se declara como um relato fundamentalmente ficcional. Referências Bibliográficas CAUDET, Francisco. “Introducción a la edición de Fortunata y Jacinta”. In: GALDÓS, Benito Pérez, Fortunata y Jacinta, 02 vol., Madrid: Cátedra, 2000. RODRIGUEZ-PUÉRTOLAS, J. “Fortunata y Jacinta: anatomía de una sociedad burguesa”. In: Galdós: burguesía y revolución. Madrid: Turner Libros, 1975?. 1 2 Notas Escritas entre 1885 e 1887, as quatro partes de Fortunata y Jacinta são publicadas ao longo dos anos de 1886 e 1887 e sua ação abarca o período que vai de 1869 a 1876, incluindo assim o reinado de Amadeo I, a Primeira República, os golpes militares de Pavía e Martínez Campos e um ano e meio de Restauração Bourbônica (RODRÍGUEZPUÉRTOLAS, 1975, 22). A questão não se restringe a Galdós, escritor, cuja biografia revela atividades jornalísticas e posição política republicana, mas à relação entre escritor, obra, contexto histórico e público leitor. Do tipo de história que o autor escolhe contar e da forma como o faz decorre a imagem de um locutor que não se confundirá com a do narrador ou a do “autor-pessoa”, ambos enunciadores. . 163 Hispanismo 2 0 0 6 A representação da mulher no relato do século XIX em três narrativas galdosianas: Doña Perfecta, Tristana e Marianela Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES /CESV) Objetivamos apresentar recursos estéticos utilizados no relato, da segunda metade do século XIX, na representação dos personagens, fazendo, a princípio, um breve retrospecto da linha filosófica e do movimento literário provocado por essa filosofia na Espanha. Porém dirigiremos o nosso olhar para a técnica ficcionista de Benito Pérez Galdós (1843 -1920), considerado pela crítica como o máximo escritor desse século, principalmente na representação de personagens, e, para isso, nos apoiaremos em três obras suas, Doña Perfecta, Tristana, Marianela, e nas personagens femininas que dão nome à obra. No período que propomos apresentar, resumidamente, prevalecia, na Europa, o ecletismo e o positivismo como filosofia e o naturalismo e o realismo como estética artística. O romance realista europeu, que obtém um grande destaque com Dickens e Balzac, tomou duas direções: a naturalista com Zola (em sua direção material, biológica) e a espiritualista dos russos com Tolstoy e Dostoievsky (na tendência anímica, psicológica). O Realismo agradou à classe média e deu início ao Naturalismo, o qual defendia a idéia de que a realidade não é objetiva. Essa teoria colocava o leitor como o elemento importante na representação da realidade, contrapondo-se à existente até essa época, de que fosse o autor/ narrador o condutor da realidade. Mas, na Espanha, o positivismo (sistema de filosofia que admite unicamente o mérito experimental, a observação direta do mundo sensível como objeto de explicações, traduções, divulgações) entrou um pouco mais tarde que nos outros países europeus, pois só começou a se firmar a partir de 1875, através do ensino acadêmico, do livro ou de revistas, se bem que com um caráter provinciano, enquanto, na França, Augusto Comte, desde 1830, já havia exposto as suas idéias. Quanto à estética impressionista, ela se manifestou, depois de 1874, na pintura e na literatura. Esta, por sua vez, sofreu, também, o empurrão da filosofia de Nietzsche ou de Bergson, da música de Wagner, do drama de Visen e dos romances de Dostoievski e Tostoi. Mas, quanto ao naturalismo, só em 1880 aconteceu a sua plenitude, sendo a maior representante na Espanha, de uma forma progressista, segundo os estudiosos, Emilia Pardo Barzán. Cabe lembrar que o regionalismo (“costumbrismo”) do relato de Fernán Caballero e o realismo psicologista dos romances de tese dessa época, como os de Valera e Alarcón, abriram o caminho para o naturalismo de Emilia Pardo Barzán e de Galdós, o mais representativo romancista 164 Volume 4 | Literatura Espanhola da fecunda geração de 1868, que abrangerá todas as vertentes. Porém o naturalismo espanhol manterá o ideal de observar a realidade (realismo passado), não como faziam os escritores regionalistas, que descreviam os tipos e caracteres populares, sem adquirir o aspecto amargo dos escritores do naturalismo francês, pois o utilizavam para servir às classes dirigentes e para descobrir a região através da paisagem, dos costumes e de seus homens. Nessa postura crítica, os escritores direcionavam os motivos sobre o adultério; a concepção política e a falta de solidariedade social, abandonando os motivos dos quadros populares de ambiente madrileno que triunfarão na zarzuela. Os elementos típicos e populares do naturalismo espanhol se encontram, com mais destaque, nos Episodios Nacionales, de Pérez Galdós, na incorporação histórica do povo ao relato histórico e na representação ficcional, até então, ocupada por reis e políticos. A observação da realidade se alcança, preferentemente, na descrição das classes populares, mas faz uma degradante descrição das marcas físicas dos aspectos imorais da sociedade burguesa, depois da Revolução de 1968. Essa obra é uma história romanceada da vida espanhola de 1873 a 1912, em que procura dar uma imagem realista desse período, não só narrando os acontecimentos políticos e militares, mas também dirigindo a sua atenção para o sentir do povo, para o seu atuar, dirigindo o seu olhar crítico, nessa época de transição social da aristocracia para a burguesia, para os grupos sociais que integram a sociedade. Mas o destaque dado ao elemento psicológico e aos costumes só aparecerá nos romances unidos à paisagem regional. O realismo representa a consciência moral do país durante o reinado de Isabel II. Nos romances se destacavam os costumes, as virtudes da mulher e familiares no lar, o ideal cristão que a classe média defendia, a preocupação pela honra, moral familiar, como aparece nas comédias de Manuel Breton de los Herreros. Mas tanto o realismo do final do século XIX como o naturalismo são formas de repudiar o idealismo dominante da primeira metade desse século. Pérez Galdós, de ideologia liberal, considerado um fecundo escritor realista, escreveu mais de 100 obras, entre elas Episodios nacionales, constituído de 10 volumes. Porém, no período em que escrevia esses episódios, produziu vários romances em que se destacam os retratos de tipos humanos que, a princípio, são figuras irônicas que, pouco a pouco, vão tomando o coração do leitor. Muitos de seus personagens lutam contra as normas que regulam a sociedade (nesse sentido, é um seguidor da arte cervantina) e, nesse aspecto, os personagens, mostrados em seus caracteres, inquietude, virtudes e defeitos, são, predominantemente, da classe média e perfilam por toda a vida espanhola tanto no aspecto público como no privado. 165 Hispanismo 2 0 0 6 Pelos romances galdosianos, passa toda a sociedade espanhola da segunda metade do século XIX: a ama de casa, a servente, a beata, o religioso, o aristocrata de moral duvidosa, o burguês político e comerciante, o agitador, os liberais (engenheiros, médicos, advogados), os militares, os funcionários públicos, o desempregado, entre outros tipos. Ele dá importância à consciência do tempo que aparece, um pouco timidamente, em Fernán Caballero, pois concebe o tempo como história e experiência e, por meio do conhecimento da experiência dos personagens, vemos o progresso do tempo. Ele dá vida ao mundo burguês, que trouxe uma nova visão do mundo, do homem, da vida, uma nova cultura. Utilizando técnicas antigas do relato e atualizando ou renovando outras, ele vai despojando o romance dos moldes tradicionais e faz o leitor entrar em contacto com os personagens pelo recurso que nos oferece, principalmente, o monólogo. Com propriedade, utiliza o diálogo, recurso narrativo introduzido em época anterior à dele, que serve para lançar a ação e para que se entre em contacto com os personagens, possibilitando a aproximação da narrativa ao drama e proporcionando um certo dramatismo à ação. Esse recurso é, também, uma característica do século XIX. Ele provoca o surgimento do romance dramatizado. Ele é encontrado em várias obras dessa época, inclusive em La Regenta de Leopoldo Alas. Mas, no final do século XIX, o romance vai-se interiorizando, vai-se fazendo mais “nivola”a, vai-se transformando mais em ação interior. Nesse processo de interiorização, tudo é visto através do narrador, ou através do que os personagens vêem. O narrador utiliza a fala dos personagens por meio do estilo indireto ou indireto livre. A utilização de um narrador pessoal (o que finge que não sabe tudo) e de um onisciente (o que sabe tudo) é um jogo de ficção que começou com Cervantes, no Quixote - lembramo-nos da cena a que D. Quixote assiste a um teatro de marionetes. Nesse jogo, entre o criador e o leitor, a ficção é mostrada como não-realidade, sendo o primeiro jogo a figura do narrador. A realidade reflete uma camuflagem de ficção e, tanto para Galdós como para Cervantes, o romance revela sempre que é uma ficção e provoca, no leitor, a vivência da experiência. O narrador tem um tom narrativo impessoal. Galdós consegue unir o realismo com o idealismo, outro recurso desse escritor que o filia a Cervantes. Ele mostra que a dicotomia realidade/imaginação não é importante. Mas a fusão das duas visões. Ele, também, dá importância à consciência do tempo, que é, para ele, história e experiência. Por meio do conhecimento da experiência dos personagens, assistimos ao progresso do tempo. 166 Volume 4 | Literatura Espanhola Nos romances galdosianos, não há teses, senão ações. Na referência à vida cotidiana, em que predomina um motivo sentimental, o diálogo lhe oferece mais dramatismo. Um exemplo desse tipo de romance é Marianela (1878) e de situação é o ocorrido com Maria Rosario em Doña Perfecta. Galdós, em seus relatos, nos fornece uma valiosa fonte da representação da mulher espanhola em pinturas, muito bem feitas. Focaliza-lhe a sensibilidade, a perspicácia, a argúcia, a maldade e a ingenuidade. Traz à luz a educação que a mulher recebia, já que era destinada a ser ama de casa ou educada para o casamento, um arsenal de saber religioso memorizado, sem refletir sobre ele; pouco conhecimento cultural, acadêmico, que não lhe permitia escrever bem e que o obtinha no teatro, por alguma comédia ou drama visto, ou em algum verniz musical. Nessa extensa galeria feminina, predomina, principalmente, a mulher da classe média e burguesa. Na obra Marianela (1878), o personagem Marianela vive miseravelmente em um povoado de mineiros, mas apresenta uma grandeza de alma unida a uma feiúra corporal. Era pobre, analfabeta, raquítica e guia de um cego, Pablo, um moço rico e bonito. Porém era ela possuidora de uma grande imaginação e de uma voz muito agradável e sabia descrever o mundo poeticamente. Pablo a imaginava com beleza corporal, adequada à espiritual que percebia existir nela. O conflito surgiu quando Pablo recuperou a visão e se assombrou com o contraste entre o que idealizou e a realidade apresentada. O desapontamento de Pablo para com o físico de Marianela leva-a à morte. Ela, no âmbito simbólico, seria a essência da forma. O romance traz uma marca de significação social, de um protesto contra o egoísmo coletivo e a falsa caridade. Pois, depois de morta, teve um nome pomposo e um rico sepulcro, tornando-se a sua vida medíocre, uma rica história lendária de incalculável imaginação. Essa obra é uma amostra do choque de atitude que se nota na dualidade da passagem da posição romântica para a realista na Espanha burguesa da Restauração. Doña Perfecta, no caminho de Pepita Jimena, de Valera a Galdós, é um romance marcante na literatura espanhola. Nele se considera a oposição de dois mundos: o tradicional, o religioso, e o moderno, o liberal, isto é, o mundo do trabalho, da ciência e do progresso, o do respeito mútuo. O problema religioso do ponto de vista social, para Galdós, equivale a fanatismo. O representante desse mundo, dos conflitos sociais e religiosos da época do autor, é Doña Perfecta, mulher odiosa, intransigente, que ocasiona a morte de seu sobrinho, um jovem engenheiro, Pepe Rey, de idéias liberais. O engenheiro simboliza a união da ciência com o progres167 Hispanismo 2 0 0 6 so. A válvula de escape de Galdós é a ironia, mas ela não é cruel, é suave. Assim, Doña Perfecta, ironicamente nominalizada pelo narrador de perfeita, é extremamente viva, hipócrita, dissimulada, “siempre haciendo la mosquita muerta”. Com palavras, gestos humildes e olhos baixos, sorriso doce e tonalidade afetuosa, ocultava os seus verdadeiros sentimentos. Mulher bonita, conservada e considerada, em boca dos serviçais, bondosa. Para Licurgo (Pedro Lucas) o tempo não passa para ela Parece que pasan años por la señora [...] Biendicen que al bueno, Dios le da larga vida. Así viviera mil años ese ángel del Señor. Si las bendiciones que le echan en la tierra fueran pluma, la señora no necesitaba más alas para subir al cielo. (p. 11) […] e, quanto à sua filha Rosario, ele diz que ela é “un vivo retrato de su madre buena prenda una chiquilla bonita como el sol (p. 26)” Galdós se aproxima dos escritores do século XX na utilização de símbolos e imagens para dizer mais. Quando descreve a sua cidade ficcional, Orbajosa, não diz que não é progressista, mas que a ela não chega o trem, a imagem do progresso. Esse meio de comunicação só chega até Villahorrenda. Galdós inverte subtemas de valores que vinham insistindo os romances espanhóis e, em Doña Perfecta, ataca a igreja com paródia. Nessa obra, pouco a pouco as frases vão se tornando mais breves e mais rápidos os parágrafos. Nota-se a técnica de tentar conseguir captar o ritmo narrativo, procedimento moderno; ele mistura história e amor. Galdós torna o diálogo mais vivo, reproduzindo a linguagem viva característica de determinada classe popular. Evita as extensas descrições dos escritores anteriores para colocá-las no diálogo entre personagens. - ¿En cuánto tiempo llegaremos a Orbajosa? - A las nueve, si Dios quiere. Poco contenta que se va a poner la señora cuando vea a su sobrino…y la señorita Rosario, que estaba ayer disponiendo el cuarto en que usted ha de vivir…como no le han visto nunca, la madre y la hija están que no viven, pensando en cómo será o cómo no será este señor don José. Ya llegó el tiempo en que callen cartas y hablen barbas. La prima verá al primo y todo será fiesta y gloria. Amanecerá Dios y medraremos, como dijo el otro. Em Tristana, Galdós, faz uma análise psicológica dos personagens e apresenta uma personagem rebelde contra as circunstâncias familiares e sociais, mas que não consegue realizar o seu desejo de independência devido à repressão social. Tristana torna-se o símbolo da tragédia da mu- 168 Volume 4 | Literatura Espanhola lher espanhola do século XIX. Ela, como conseqüência de sua educação, sofre as amarguras da mulher submissa a uma escravidão tirânica de um velho, sagaz, com vida donjuanesca que, depois da morte da mãe de Tristana, se tornou pai e amante da jovenzinha. De superior cultura, de posição privilegiada, com uma aparência de caridade e bondade, esse senhor possui, no entanto, perversão moral. Tristana luta para sair do jugo de seu “protetor”, com mentira e engano, mas fracassa. A sua inferioridade é grande e, por causa da pouca instrução, pouca coisa poderia ser. Talvez, segundo ela, artista de comédias, mas a perda de uma perna tornou essa solução irrealizável. Portanto, à mulher do décimo nono século lhe era vedada agir, pois a liberdade lhe daria a tacha de libertina. Idéias, Tristana as tinha e muitas, mas como poderia uma mulher ganhar a vida honradamente, sem ser costurando? – refletia. (p. 29-30) Assim todas as suas soluções se chocavam com a falta de preparo para efetuar a realização. Pelo exposto, podemos observar, no relato linear e ordenado galdosiano, um narrador onisciente; uma preocupação de comunicação entre o escritor e o leitor sem linguagem ambígua e personagens em ação como protagonistas e centro de toda atenção do leitor. Sua criação corresponde a um mundo de sua época para dar um marco social do que narra e, por isso, buscará dinheiro, prestígio, elevação social com meios individualistas e com competitividade. O destaque, que Galdós proporciona ao personagem, em geral jovem, com idéias progressistas, descrito com luxuosos detalhes, quase sempre, dará nome à obra. Referências Bibliográficas FAUS SEVILLA, Pilar, La sociedad española del siglo XIX en la obra de Pérez Galdós. Madrid: CSIC, 1972. PÉREZ GALDÓS, Benito. Doña Perfecta. Madrid: Alianza Editorial, 1983. ______. Tristana Madrid: Alianza Editorial, 1969. ______. Marianela. Buenos Aires: Espasa Calpe Argentina, 1961. PEERS, Allison E. Historia del movimiento romántico español. Madrid: Gredos, 1967. 2.v. UBIETO, A. et alii. Introducción a la Historia de España. Barcelona: Teide, 1967. Notas a Termologia usada por Unamuno 169 Hispanismo 2 0 0 6 As figuras da leitura e do leitor em La Regenta, de Leopoldo Alas “Clarín” Isabela Roque Loureiro (UFRJ) Contagiados pela profundidade de uma das maiores produções literárias da literatura espanhola do século XIX, o romance naturalista La Regenta (1884-1885), do escritor espanhol Leopoldo Alas “Clarín”, decidimos nos dedicar ao estudo das figuras da leitura e do leitor, tomando como base as teorias críticas de Chartier (2002), Catelli (2001) e Piglia (2005), que considera os efeitos da leitura na formação das sociedades modernas. Em nossas análises, verificamos que o ato de ler pode indiscutivelmente apresentar inúmeras conseqüências na vida do protagonista leitor, já que o imaginário alimentado pelos livros pode projetar-se em atos e fatos, e, para melhor aclará-los, decidimos tomar como referência dois dos principais protagonistas da obra: Ana Ozores que “escribe y dibuja sus síntomas según sus lecturas” (CATELLI, 2001, p.131) e dom Víctor Quintanar, personagem “muy aficionado a representar comedias” (ALAS, 1997, p.127). Analisando La Regenta, observamos que o ato de ler está muito presente nos hábitos das personagens da obra, principalmente se considerarmos o fato de que a sensibilidade moderna se educou em romances e contos que “devolvían a los lectores imágenes- nítidas, enfáticas- de los resultados de la educación por los libros” (CATELLI, 2001, p. 19). Tomando como referência a protagonista Ana Ozores, vimos que aprender a ler foi, sem dúvida, sua maior ambição: “¡Saber leer! Esta ambición fue su pasión primera. Los dolores que Doña Camila le hizo padecer antes de conseguir que aprendiera las sílabas, perdonóselos ella de todo corazón. Al final supo leer” (ALAS, 1997, p.137), e, ao estudarmos os períodos correspondente à educação da personagem, notamos que, na fase inicial, a educação que proporciona dona Camila a jovem Ozores é uma educação contra todos os princípios relacionados à natureza, já que se baseava na repressão dos instintos e na completa anulação de toda espontaneidade da personagem. A jovem fora educada sem carinho e afeto, sendo submetida, a todo instante, ao rigor e à disciplina de uma educação tradicional fundamentada nos moldes ingleses. Desta forma, chegamos à conclusão de que Ana viveu contradizendo poderosos instintos de sua natureza, visto que teve de aceitar, sem discutir, a conduta moral que arbitrariamente lhe impuseram. Com relação à segunda fase, ministrada por seu pai, o librepensador dom Carlos, notamos que esta foi uma das mais importante para a jovem. Ao entrar em contato com uma nova filosofia educacional, completamente distinta daquela ensinada por dona Camila, Ana Ozores, que já havia lido um amplo contingente de livros: fábulas gregas, poesia homérica, 170 Volume 4 | Literatura Espanhola pastoril clássica e toda classe de antologias, parnasos e livros de edificação, manifesta cada vez mais um incrível interesse pela leitura, e na busca incessante por novos livros, a jovem, que limpava as estantes da biblioteca de dom Carlos, encontra um tomo em francês de Confesiones de san Agustín. Tomada, então, por um impulso irresistível, Ana decide lê-lo imediatamente e, com “el alma agarrada a las letras” (ALAS, 1997, p.147), devora com muita intensidade página por página da obra, manifestando seu primeiro impulso místico. Vejamos, por exemplo: (...) seguía leyendo; aún estaba aturdida, casi espantada por aquella voz que oyera dentro de sí, cuando llegó al pasaje en donde el santo refiere que, paseándose él también por un jardín, oyó una voz que le decía “Tolle, lege”, y corrió al texto sagrado y leyó un versículo de la Biblia... Ana gritó, sintió un temblor por toda la piel de su cuerpo y en la raíz de los cabellos como un soplo que los erizó y los dejó erizados muchos segundos. Tuvo miedo de lo sobrenatural; creyó que iba a aparecérsele algo... Pero aquel pánico pasó, y la pobre niña sin madre sintió dulce corriente que le suavizaba el pecho al subir a las fuentes de los ojos. Las lágrimas agolpándose en ellos le quitaban la vista (ALAS, 1997, p.147). Encontrada nas santas e acolhedoras palavras de Agustín a paz que tanto buscava para suprir o vazio e a dor provenientes da falta de amor materno, notamos que Ana muito se identifica com a literatura mística, passando a ler, neste importante período de formação, obras como as de Chateaubriand, as poesias religiosas de Fray Luis de León e El Cantar de los Cantares, na versão poética de San Juan de la Cruz. É importante comentar que essas leituras foram fundamentais para a manifestação do langor místico, que revestirá a personagem, ao longo de sua trajetória como leitora, e para o enriquecimento de sua visão de mundo, tal como nos aponta Ricardo Gullóna. A partir das leituras destes livros, Ana Ozores constrói conhecimento e consegue manifestar suas tendências e aspirações pessoais, comprovando os efeitos da leitura na vida do protagonista leitor, e, para aclarar esta influência, citamos um fragmento no qual a personagem, após ter lido o Cantar de los Cantares, se sente inspirada e tenta compor versos dedicados a la Madre Celestial: Abrió un libro de memorias, lo puso en sus rodillas y escribió con lápiz en la primera página: “ A la Virgen “. Meditó, esperando la inspiración sagrada. Antes de escribir, dejó hablar el pensamiento. Cuando el lápiz trazó el primer verso, ya estaba terminada, dentro del alma, la primera estancia. Siguío el lápiz corriendo sobre el papel, pero siempre el alma iba más de prisa (ALAS, 1997, p.152). 171 Hispanismo 2 0 0 6 Outra importante manifestação ocorre no período em que a jovem esteve sob os cuidados de suas duas tias solteiras e religiosas, Águeda y Anuncia. Nesta fase, Ana volta a manifestar mais intensamente sua vocação literária. Seu espírito passa a desejar algo muito maior: ser simultaneamente criadora e fruidora da literatura religiosa que tanto a fascinou. A jovem, que já não se satisfazia somente com as leituras, queria produzir, transladando para o papel (um caderno de versos) a expressão de seus mais íntimos pensamentos e reflexões sobre a vida. Daí, surge o desejo de escrever um livro, de se tornar escritora: “salió sola, con el proyecto de empezar a escribir un libro, allá arriba, en la hondonada de los pinos que ella conocía bien; era una obra que días antes había imaginado, una colección de poesías “A la Virgen>> (ALAS, 1997, p.150) No entanto, esse desejo não coincidia com a conservadora realidade que a rodeava. Levando em consideração o fato de que “(...) las mujeres deben ocuparse en más dulces tareas; las musas no escriben, inspiran” (ALAS, 1997, p.173), vimos que Ana é obrigada a renunciar essa primeira vocação com o objetivo de evitar um grande escândalo na provinciana cidade, já que as atividades literárias não eram bem-vistas pela conservadora sociedade de Vetusta. Vejamos, por exemplo: Cuando doña Anuncia topó en la mesilla de noche de Ana con un cuaderno de versos, un tintero y una pluma, manifestó igual asombro que si hubiese visto un revólver, una baraja o una botella de aguardiente. Aquello era cosa hombruna, un vicio de hombres vulgares, plebeyos. Si hubiera fumado, no hubiera sido mayor la estupefacción de aquellas señoras. ¡Una Ozores literata! (ALAS, 1997, p.172). Assim, tão intensa foi a indignação de suas tias contra as manifestações literárias de Ana que a própria, em nome do respeito e da moral vigentes na sociedade católica do século XIX, acabou desistindo do sonho de se tornar escritora e do projeto de escrever um livro. Censuradas as habilidades literárias de Ana, não foi menor a oposição que a jovem encontrou em suas manifestações místicas, influenciadas, possivelmente, pelas leituras religiosas que tanto realizou na juventude. Com o objetivo de se livrar de suas tias e da enfadonha vida que levava no casarão dos Ozores, a jovem pensa na possibilidade dedicar-se à vida religiosa, mas é seu primeiro confessor, dom Cayetano, quem irá se opor severamente a esta idéia improvisada e sem fundamento. Com isso, notamos que todos os desejos manifestados por Ana, estes desencadeados pelas leituras realizadas pela protagonista, foram assiduamente censurados, esmagados, em prol do conservadorismo religioso e do modelo de feminilidade, baseado no recato, na contenção e no pudor, elementos que 172 Volume 4 | Literatura Espanhola se contrapunham aos anseios femininos de liberdade, de independência. Outro importante personagem influenciado pelas leituras é dom Víctor Quintanar, um magistrado “aragonés muy cabal, valiente, gran cazador, muy pundonoroso y gran aficionado de comédias” (ALAS, 1997, p.177). A partir desta definição estabelecida pelo próprio narrador de La Regenta, nos pareceu interessante comentar a grande paixão que sentia o ex-regente de Audiência pelo teatro do século XVII com o objetivo de evidenciar os efeitos da educação por meio dos livros. Vejamos: Siempre había sido muy aficionado a representar comedias, y le deleitaba especialmente el teatro del siglo diecisiete. Deliraba por las costumbres de aquel tiempo en que se sabía lo que era honor y mantenerlo. Según él, nadie como Calderón entendía en achaques del puntillo de honor, ni daba nadie las estocadas que lavan reputaciones tan a tiempo, ni en el discreteo de lo que era amor y no lo era, le llegaba autor alguno a la suela de los zapatos (ALAS, 1997, p.127). Das leituras realizadas por dom Víctor, vimos que as de Calderón de la Barca foram as que, sem dúvida, mais seduziram o personagem. Essas refletiam, em verdade, todos aqueles ideais cavalheirescos admirados por Quintanar que, por sua vez, muito se inspirava e delirava pelos costumes daquele tempo em que se sabia o que realmente significava a palavra honor. Dom Víctor lia Calderón sem se cansar, e, em várias cenas de La Regenta encontramos os resultados acarretados pelo ato de ler na vida do personagem-leitor, que teve seu imaginário alimentado pelas imortais comédias espanholas, e, para melhor corroborar essa idéia, a de que a leitura pode apresentar inúmeras conseqüências na vida do protagonista leitor, nos pareceu interessante o seguinte fragmento: “Todas las noches antes de dormir se daba un atracón de honra a la antigua, como él decía; honra habladora, así con la espada como con la discreta lengua. Quintanar manejaba el florete, la espada española, la daga (ALAS, 1997, p.128)”, evidenciando-nos, assim, os efeitos da educação feita por meio dos livros. Conclusão Em nossos estudos sobre as figuras da leitura e do leitor em La Regenta, vimos que o ato de ler pode ocasionar muitas conseqüências na vida do protagonista leitor, uma vez que o imaginário alimentado pelos livros pode projetar-se em atos e fatos. Através de Ana Ozores e de Victor Quintanar, pudemos observar esses efeitos e como eles se manifestam na vida dos mesmos, contribuindo, assim, para com a extrema profundidade do enredo de um dos mais complexos romances da literatura espanhola. 173 Hispanismo 2 0 0 6 Ana Ozores é uma personagem-leitora. Desde criança, a jovem demonstrou uma grande necessidade de saber ler, de entrar em contato com o mundo das letras. Ana via na literatura uma espécie de caminho para fugir da cruel realidade em que vivia, e através da leitura, pôde idealizar, fantasiar e se deleitar com um novo mundo. Com o pai, o librepensador Carlos Ozores, verificamos o aparecimento de uma segunda etapa na formação educacional da personagem, talvez, uma das mais importantes da obra. Nela, Ana entra em contato com uma nova filosofia educacional e também com um amplo número de livros de vários gêneros, merecendo destaque a literatura religiosa. As leituras de Confesiones de San Agustín e de El Cantar de los Cantares, na versão poética de San Juan de la Cruz, têm extrema importância na narrativa de Clarín, pois é por meio destas que a personagem passa a manifestar suas primeiras aspirações literárias e vocações religiosas. A motivação proporcionada pelas leituras é, sem dúvida, um dos aspectos mais interessantes e peculiares de toda a obra, e não só Ana como também outras personagens são envolvidas e seduzidas pelos tipos de leitura que realizam, fato que fundamenta um dos principais objetivos de nossos estudos literários: a constatação da importância da leitura no século XIX. A partir da leitura, verificamos que muitos foram os desejos manifestados por Ana, porém muitos foram os sonhos censurados e vetados por uma sociedade esmagadora, que, ao final da narrativa, comemora a completa desintegração física e moral da personagem. Todas essas contenções e imposições marcaram profundamente a trajetória de Ana Ozores que, quanto mais lia, mais manifestava aspirações e desejos de viver uma nova vida. Outro personagem-leitor que manifestava os efeitos acarretados pelas leituras que realizava era dom Victor Quintanar. Amante das obras de Calderón de la Barca, um dos maiores representantes do teatro espanhol do século XVII, pudemos observar, ao longo de nossas análises, o quanto as experiências de leitura foram fundamentais ao ex-regente de Audiência que, por sua vez, portava-se semelhantemente aos principais protagonistas das comédias, aqueles que exaltavam valores de honra e coragem (ideais cavalheirescos), evidenciando-nos, assim, a existência de uma educação feita por livros. Com isso, vimos que tanto Ana Ozores como Víctor Quintanar decifram suas vidas através das leituras que realizaram, vendo-as como modelo privilegiado de experiências reais. Desta forma, ”la vida se completa con un sentido que se toma de la que se ha leído en una ficción” (PIGLIA, 2005, p.104), e é justamente este sentido que ambos foram buscar nas obras que leram, tornando-se, assim, grandes exemplos de personagensleitores, seres que lêem para viver. 174 Volume 4 | Literatura Espanhola Referências Bibliográficas ALAS, Leopoldo. La Regenta. 26ª ed. Prólogo de Ricardo Gullón. Madrid: Alianza Editorial, 1997. AMORÓS, Andrés. Momentos mágicos de la literatura. Madrid: Castalia, 1999. CATELLI, Nora. Testimonios tangibles- Pasión y extinción de la lectura en la narrativa moderna. Barcelona: Editorial Anagrama, 2001. CAVALLO, Guglielmo & CHARTIER, Roger. História da leitura no mundo ocidental. 1ª. ed., v.1. São Paulo: Ática, 2002. CHARTIER, Anne-Marie & HÉBRARD, Jean. Discursos sobre a leitura1880-1980. 5 ª ed. Tradução de Osvaldo Biato e Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1995. CHARTIER, Roger. A aventura do livro do leitor ao navegador. 2a. ed. Tradução de Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: UNESP, 1999. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 3ª. ed. São Paulo: Cortez, 1983. GENETTE, Gerard. Figuras. São Paulo: Perspectiva, 1972. HAUSER, Arnold. Historia social da literatura e da arte. v.2. São Paulo: Mestre Jou, 1982. KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. Rio de Janeiro: Imago, 1998. KRONIK, John W. El beso del sapo: configuraciones grotescas en La Regenta. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2001. Este texto se encontra disponible en: www.cervantesvirtual.com/bib_autor/clarin MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Tradução de Pedro Maia Soares. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. OLEZA, Joan. Lecturas y lectores de Clarín. Este texto encontra-se disponível no site: www.cervantesvirtual.com PIGLIA, Ricardo. El último lector. Argentina: Editorial Anagrama, 2005. SILVA, Ezequiel T. O ato de ler, fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da leitura. 4 ª ed. São Paulo: Cortez, 1987. Notas a Ver Prólogo de Ricardo Gullón em La Regenta, de Leopoldo Alas. 26ª ed.. Madrid: Alianza Editorial, 1997, p.17 175 Final de Século, Novecentismo e Vanguarda Hispanismo 2 0 0 6 Han pasado los bárbaros: a violência de Estado sob a perspectiva irônica dos anarquistas Ivan Rodrigues Martin (PUC/SP) Em janeiro de 1933, camponeses do povoado espanhol de Casas Viejas deflagraram um processo revolucionário com vistas à coletivização das terras e ao direito ao trabalho. Prontamente, o governo republicano acionou suas forças militares que, numa covarde e sangrenta ação, produziram uma chacina a céu aberto. Sobre esse fato histórico foram publicados vários relatos. Neste trabalho, trataremos de um deles, Han pasado los bárbaros, escrito pelo militante e ficcionista anarquista Vicente Ballester. Buscaremos demonstrar como o autor libertário mobiliza os recursos discursivos da ironia para denunciar ao mundo a violência de Estado ancorada na superioridade bélica e nos aparelhos de repressão. A batalha campal ocorrida em Casas Viejas entre as forças militares do governo republicano e os camponeses andaluzes sublevados foi amplamente divulgada naqueles anos da Segunda República Espanhola. Cabe ressaltar, no entanto, que os motivos que levaram socialistas e anarquistas a traduzirem em palavras esse massacre devem-se menos à intenção de noticiar os fatos propriamente ditos do que a de pôr em relevo o enfretamento ideológico que se operava nos primeiros anos da II República, antes do início da Guerra Civil Espanhola. É sabido que as urnas que deram vitória aos socialistas e, conseqüentemente, garantiram a promulgação da República em 1931, receberam também votos de muitos anarquistas que, a despeito de sua recorrente postura de boicote às eleições, acorreram àquele pleito com o objetivo de ampliar seu espaço de atuação política, sob um regime que fosse menos autoritário do que a ditadura de Primo de Rivera que mantinha encarcerados milhares de militantes anarquistas. No entanto, após a vitória dos socialistas e a instauração da República, rapidamente vieram à tona as diferenças ideológicas entre os que efetivamente estavam no governo e os anarquistas que clamavam por mudanças mais rápidas e efetivas na estrutura daquele conservador sistema político. Dentre os muitos embates ocorridos entre os anarquistas e o governo republicano, destaca-se justamente o episódio de Casas Viejas, em que um grupo de camponeses anarquistas enfrenta os latifundiários e as forças de repressão do Estado e decide pela coletivização das terras. Imediatamente, o governo da República desloca para a região seus contingentes militares que, numa sangrenta operação, sufocam a rebelião. Se, por um lado, a profusão de relatos sobre o enfrentamento está fortemente marcada pela descrição das estratégias adotadas pelos militares republicanos e pelos sublevados e também pela divulgação dos números 178 Volume 4 | Literatura Espanhola de mortos, por outro, percebe-se neles uma clara intenção de se defender e divulgar a perspectiva ideológica das forças políticas que estiveram em combate. Exemplo disso é o relato Han Pasado los Bárbaros, publicado pela Confederación Nacional del Trabajo, dias após o massacre. Nesse texto, Ballester, o autor também seis pequenos romances anarquistas publicados pela série Novela Ideal, mescla recursos do jornalismo investigativo (para escrever seu texto o autor visita o local do conflito e entrevista as testemunhas dos fatos) e da narrativa de ficção para produzir uma bem acabada peça de propaganda ideológica, cujos objetivos são claramente enunciados no Prólogo assinado pelo Comité Regional da CNT: (...) realzar con la descripción de sus propios actos las figuras de sus héroes; grabar con caracteres indelebles, el monstruoso crimen y cooperar económicamente a la suscrición abierta para las víctimas de la represión, tal es el objetivo propuesto al editar esta obrita (…) a Dividido em doze capítulos, o texto de Ballester é construído a partir de diferentes procedimentos narrativos e o resultado da manipulação de dois gêneros, o jornalístico e o literário, possibilita a realização de um gênero híbrido, capaz de denunciar o massacre operado pela República e, ao mesmo tempo, propagar a utopia libertária. Observemos como esses procedimentos narrativos adotados pelo autor permitem tal realização. Comecemos, pois, pelo tratamento dado ao gênero jornalístico. Ainda no Prólogo, o Comitê Regional anuncia que as informações contidas no texto haviam sido colhidas in loco por um delegado enviado pela CNT ao lugar da tragédia que contou “nada más que con la cooperación de las familias de las víctimas, del pueblo todo de Casas Viejas y de los compañeros de Cádiz” (GUTIÉRREZ MOLINA, 1997, p.277). De fato, se pensamos nas informações objetivas que constituem o objeto da narrativa de Ballester (o levantamento anarquista, a rendição do prefeito, a ação da Guardia Civil, a chegada dos destacamentos da Guardia de Asalto que havia sido criada em 1931 para defender a República, a perseguição aos insurrectos, a resistência de Seisdedos e sua família e a sangrenta ação operada pelas forças de repressão da República) verificamos que elas, grosso modo, coincidem com as divulgadas em outros textos sobre o ocorrido. A título de exemplo, vale citar o texto literário de Ramón J. Sender – Viaje a la aldea del crimen – publicado em 1934; o editorial jornalístico, Los motivos del sufragio, publicado no diário ABC, no dia 10 de novembro de 1933 em que se relaciona a vitória das forças de direita nas eleições como conseqüência da ação do governo republicano em Casas Viejas; e as referências ao episódio que faz o historiador inglês Hugh Thomas, em The Spanish Civil 179 Hispanismo 2 0 0 6 War. Se nesses três textos, pertencentes respectivamente aos gêneros literário, jornalístico e historiográfico, os elementos do objeto narrado assemelham-se àqueles arrolados pelo militante anarquista, por outro lado, no entanto, o que singulariza o relato de Ballester é a intencionalidade de seu discurso que aponta para a formação de uma ideologia ácrata. Para isso, o autor articula as informações coletadas em sua investigação jornalística num texto cuja estrutura remete ao modelo literário criado pelos anarquistas para a divulgação de suas idéias. Refiro-me, aqui, aos quase seiscentos romances curtos publicados sob o selo da série Novela Ideal, entre 1925 e 1938, de cuja coleção Ballester foi um destacado autor. Ao alocar, na estrutura de um discurso literário específico, a derrota sofrida pelos anarquistas, afinal eles foram massacrados pele polícia republicana, Ballester transforma a ruína sofrida pelos camponeses rebelados em vitória dos oprimidos sobre as forças de opressão e, dessa forma, seu discurso que a princípio teria a função de noticiar o fato transforma-se num eficiente texto de propaganda ideológica. Para isso, o autor mobiliza, principalmente, três recursos literários bastante correntes na ficção anarquista. O primeiro deles diz respeito à construção maniqueísta das personagens que protagonizam o relato. No plano dos atributos descritivos, são apresentados, de um lado, los bravos escopeteros del pueblo, los valientes escopeteros, los guerrilleros de la revuelta, el buen padre y cariñoso abuelo, el venerable anciano, los valerosos adalides de la libertad, la honrada família de los Seisdedos, enfim, el campesino andaluz, rebelde por naturaleza, anarquista por temperamento. De outro, los latifundistas y grandes terratenientes, los señoritos y sus barraganas, la legión de vándalos, la guardia bisoña de la República, orgullo de los socialistas, la gente de baja estofa, el hampa uniformada, los entes de peor catadura moral, los vándalos, el energúmeno, las hienas sedientas de sangre, los émulos de Átila, la prensa mercenaria – la gran ramera, enfim, los bárbaros. Todos esses predicativos, além dos muitos sintagmas verbais que, ao longo da narrativa, os reafirmam, situam as personagens do relato em dois planos diametralmente opostos, o do bem e o do mal. Esse procedimento que reitera insistentemente o mesmo conjunto de valores, ao gosto da estética anarquista, transforma o sujeito individual em sujeito coletivo. Assim, se nas outras narrativas sobre o massacre de Casas Viejas que citamos anteriormente são postos em relevo os atributos pessoais de conhecidos nomes da militância anarquista que deflagraram o processo revolucionário e de personalidades do governo republicano que, à custa do sangue dos camponeses, restabelecem a ordem social, no texto de Ballester o uso do clichê literário – o maniqueísmo –, ao contrário do que se poderia supor, favorece uma profícua aproximação entre os procedi- 180 Volume 4 | Literatura Espanhola mentos narrativos e o objeto narrado. Ao adotar esse recurso próprio da literatura popular, o autor corrobora a perspectiva libertária, reafirmando que não se trata de um combate entre indivíduos, mas de uma luta em aberto, eminentemente ideológica, entre duas forças políticas: a do Estado controlado pelos socialistas e a da militância anarquista andaluza, organizada pela CNT. O segundo recurso utilizado por Ballester para que seu relato transcenda a mera função jornalística de noticiar a derrota dos camponeses anarquistas e cumpra a função de manter viva a utopia libertária é a inserção de alguns preceitos da filosofia ácrata ao longo da narrativa. Isso se dá basicamente de dois modos. O primeiro deles diz respeito à apresentação indireta de alguns elementos da filosofia anarquista, apreensíveis pelos que já os conhecem. Refiro-me à idealização da natureza em detrimento da suposta civilização e à associação intrínseca entre o capital econômico e o vício. O outro procedimento é a inserção ipsis literis de fragmentos discursivos em que se expõe abertamente o chamamento das classes trabalhadoras à Revolução. Vejamos num fragmento do texto, como o narrador, após descrever a miséria em que viviam as pessoas do povoado andaluz, reproduz textualmente a legitimidade da rebelião, segundo a perspectiva anarquista: [...] los campesinos de Casas Viejas mataban el hambre, mientras en sus mentes se forjaba el gran sueño, la hermosa quimera de la Revolución. Porque a un pueblo que así vive, que así vegeta, nadie puede discutirle el derecho a la rebelión, es sagrado; el cautivo ha de buscar su libertad, como el hambriento el alimento preciso para subsistir, y el que padece sed busca el remanso apacible donde aplacarla; y el pueblo de Casas Viejas, el campesino de Banalup, no menos esclavo que el resto del proletariado y como él con hambre y sed de justicia, esperaba anhelante […] el hecho definitivo que lo librara […]; la Revolución salvadora que declarara libre la tierra […] (280-1) Por fim, o terceiro e último recurso de que trataremos – a ironia - talvez seja o mais significativo. Primeiramente porque, de alguma forma, também está presente nos anteriores e depois porque está fundamentalmente inserido na estrutura do texto. Através da adoção da ironia como procedimento narrativo, o autor logra transformar a objetiva derrota dos militantes anarquistas em vitória da ideologia libertária, criando, assim, um exemplar manifesto da utopia ácrata. Verificam-se no texto de Ballester pelo menos duas atitudes eminen- 181 Hispanismo 2 0 0 6 temente irônicas que apontam para isso. A primeira delas advém da voz do narrador quando faz referências à República e às suas instituições supostamente democráticas. O questionamento, por exemplo, da falta de interesse dos representantes da República em apurar a responsabilidade pelo massacre se dá através da chave da ironia: Difícil nos hubiera sido adquirir ciertos detalles, de no haber tenido la suerte de hablar con el último superviviente, misterioso personaje a quien ni ha interrogado ni interrogará ninguna comisión por muy parlamentaria que sea. (p. 289) E é nessa mesma chave irônica que o narrador denuncia a atitude sanguinária do governo democraticamente eleito, como pode ser observado quando se refere ao poder de fogo do inimigo: [...] mientras la casa de Seisdedos era hostilizada por el fuego de las ametralladoras y de los fusiles adictos al régimen de la democracia [...] (p.291), ou neste outro fragmento em que os defensores do Estado republicano comemoram sua vitória sobre os camponeses: Este acto patriótico fue acogido con clamores de entusiasmo por la homogénea concurrencia de señoritos, que prorrumpió en vítores y aplausos al flamear triunfante la enseña de la reacción. - ¡Viva la República! ¡Vivan los guardias de asalto! El eco repetía lúgubre el graznido repulsivo de los cuervos… (p.302) Ao associar a democracia à matança dos camponeses ou, ainda, os defensores do governo republicano aos corvos, Ballester desloca os louros da vitória aos que perderam a batalha e, dessa maneira, reescreve a história a partir da perspectiva dos derrotados. Esse deslocamento de perspectiva é corroborado pela outra atitude irônica adotada por Ballester na elaboração de seu relato, ou seja, a construção de um texto que estruturalmente assemelha-se a uma epopéia, o que o distancia definitivamente de um relato jornalístico. Se pensarmos nas características gerais de um texto épico, vemos que a narrativa de Ballester comporta muitos elementos desse gênero literário já que ela evidencia as ações e os feitos memoráveis de um herói histórico, o valoroso Seisdedos, que representa uma coletividade, os camponeses anarquistas de Casas Viejas, e que tal exaltação se realiza a partir da descrição ações gloriosas, retumbantes, capazes de provocar a admiração. Porém, vale ressaltar que à diferença do texto épico em que a figura do herói está intimamente associada à daquele que triunfa sobre o caos, para utilizar uma expressão de Chevalier, neste caso é o inimigo quem triunfa. 182 Volume 4 | Literatura Espanhola O recurso à ironia, no entanto, faz com que aqueles que venceram belicamente a batalha sejam situados no campo dos derrotados moralmente, enquanto os anarquistas chacinados pelas forças de repressão do governo são alçados à condição de heróis. Esse procedimento adotado por Ballester é consoante com noção de cena da ironia, descrita por Linda Hutcheon, em Teoria e Política da Ironia. Segundo a pesquisadora canadense, trata-se de um tópico político, no sentido mais amplo da palavra [...] e envolve relações de poder baseada em relações de comunicação. Inevitavelmente, ela envolve tópicos sensíveis tais como exclusão e inclusão, intervenção e evasão. (HUTCHEON, 2000, P. 17) De fato, podemos observar no texto de Ballester a utilização desses dois movimentos dialéticos de que fala Linda Hutcheon. O binômio intervenção e evasão ocorre no tratamento dado pelo autor à matéria narrada, através da voz de seu narrador que intervém literariamente no relato jornalístico, evadindo-se da derrota concreta sofrida pelos anarquistas. E é através da inclusão da voz popular, garimpada pelas entrevistas do Ballester jornalista e elaborada pela pena do Ballester ficcionista, que o escritor consegue aproximar sua narrativa anárquica à tentativa revolucionária dos camponeses andaluzes, confirmando, assim, a avaliação que faz da obra o Comité Regional da CNT: “[...] ésta es una obra del pueblo, como obra del pueblo fue también la edificante rebelión de Casas Viejas”. (p. 277) Referências Bibliográficas BALLESTER, V. Han pasado los bárbaros (La verdad sobre Casas Viejas). En: GUTIÉRREZ MOLINA, J.L. “Se nace hombre libre”. La obra literaria de Vicente Ballester. Cádiz: Diputación de Cádiz, 1997. HUTCHEON, L. Teoria e política da ironia. Trad. de Julio Jeha. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. THOMAS, Hugh. La Guerra Civil Española. Trad. Neri Daurella. Barcelona: Grijalbo Mondadori, 1995. Notas a Utilizamos como referência o livro Se nace hombre libre. La obra literária de Vicente Ballester, em que professor José Luis Gutiérrez Molina, da Universidad de Cádiz, recopila toda a obra do autor gaditano, além de historicizar e comentar sua produção. 183 Hispanismo 2 0 0 6 Valle-Inclán, Meyerhold e o teatro antimimético Joyce Rodrigues Ferraz (UFAL) O teatro moderno surge no final do século dezenove quando os temas, a representação e o modo de organização do teatro romântico cedem lugar a um outro tipo de fazer teatral, baseado nas estéticas realista e naturalista. Os dramas que, até então, pouco ou nada tinham que ver com a realidade do espectador, passam a tratar de assuntos contemporâneos, relacionados com a vida em sociedade e as preocupações do indivíduo, e os espetáculos, antes melodramáticos e grandiloqüentes, começam a ser concebidos com base na ilusão teatral. No teatro naturalista, todos os componentes da encenação -- fábula, cenografia, linguagem, personagens -- devem apresentarse no palco não como uma representação da realidade, mas como sendo a própria realidade, de forma que o espectador tome por verdadeiro tudo o que ocorre em cena. Sendo assim, o espaço cênico tenta reproduzir fielmente os ambientes externos, com móveis, objetos e utensílios autênticos e a interpretação do ator pressupõe uma total identificação -- física, ideológica e psicológica -- com a personagem. A ambição da representação realistanaturalista é fazer com que o público, tomado pela sensação de familiaridade com ambientes, situações, atitudes e sentimentos, se reconheça no palco, como parte do espetáculo. Historicamente o naturalismo surgiu, em meio à euforia positivista, como um movimento artístico que pretendia valer-se do pensamento científico para explicar a sociedade. Depois de consolidar-se na literatura, as idéias do naturalismo chegaram ao teatro europeu por volta de 1880-1890. O ponto de partida foi dado por Émile Zola no texto O naturalismo no teatro, de 1881, no qual o escritor expunha os princípios da representação naturalista. Segundo ele, para refletir a vida cotidiana e ser verossímil, o espaço cênico não podia ser convencional, falso, pintado, com atores e atrizes maquiados e vestidos sempre de gala. Tampouco o cenário vazio de Shakespeare e os espaços convencionais e neutros dos clássicos franceses eram aceitáveis. Afinal, se o meio determina o comportamento, no palco a decoração, o vestuário e os acessórios deveriam representar esse meio. O teatro naturalista teve o mérito de romper com as barreiras moralistas do público burguês e de introduzir no mundo teatral uma objetividade até então desconhecida pela tradição cênica. No entanto, apesar dos esforços de Zola para mostrar no teatro “a dupla influência das personagens sobre os fatos e dos fatos sobre as personagens”, a representação naturalista encerrava o homem num meio imutável, num determinismo 184 Volume 4 | Literatura Espanhola não dialético e, portanto, insustentável. Contrariando-se a si mesma a estética, que repudiava a convenção e a artificialidade, dependia totalmente da convenção e da artificialidade para produzir no espectador os desejados efeitos de ilusão e reconhecimento. O grande trunfo do teatro naturalista estava em copiar fielmente a realidade e transferi-la para o palco. No entanto, faltava-lhe o essencial: arte e teatralidade. Durante as primeiras décadas do século vinte, a representação realista-naturalista manteve-se forte, mas não soberana. Nesse período, devido à proliferação de movimentos e tendências artísticas, o teatro europeu ensaiou novas linguagens, reciclou a tradição e expandiu suas possibilidades estilísticas. Contribuíram para a renovação teatral o aprimoramento dos meios de comunicação, que facilitou a divulgação de teorias e práticas até então circunscritas a limites geográficos específicos e a tradições nacionais; o desenvolvimento de técnicas de iluminação elétrica; a popularização do cinematógrafo, que, depois de libertar-se do influxo do teatro, passa a influenciá-lo; e o fortalecimento da figura do encenador ou diretor de cena. Antes do encenador, a produção do espetáculo teatral estava fragmentada em várias competências — mais ou menos prestigiosas e independentes —, cuja combinação final no palco resultava numa dissonante colcha de retalhos. Essa fragmentação hierarquizada das competências teatrais era perniciosa para o espetáculo e foi combatida pelas novas tendências do novecentos, que colocaram no mesmo patamar de importância todos os elementos relacionados com o acontecimento teatral. Do texto dramático ao maquiador, passando pelos atores e pelos técnicos, todos, se subordinariam a um único responsável pela mise-en-scène: o encenador, que, por meio de uma interpretação pessoal da obra e de um conjunto de procedimentos cênicos — técnicos e artísticos —, conferiria um sentido global não apenas à representação da obra, mas a toda a prática teatral. Um verdadeiro “autor” teatral era a síntese do que Meyerhold entendia por encenador. A ele caberia, ademais, a tarefa de “ajustar” o texto ao teatro, destacando os elementos estritamente teatrais. Nesse sentido, o diretor de cena atuaria como uma espécie de “livre tradutor” do texto dramático. Atitude inaceitável na concepção do teatro naturalista, uma vez que o espetáculo era construído totalmente em função do texto. Vsevolod Meyerhold (1874-1942) iniciou sua carreira teatral no Teatro de Arte de Moscou, onde se formou, sob a tutela de Konstantin Stanislavisk, no naturalismo cênico e no realismo psicológico. A partir de 1905, como diretor do Teatro Estúdio, Meyerhold abandonou a orientação naturalista para concentrar-se na pesquisa e na experimentação de novas formas de lingua185 Hispanismo 2 0 0 6 gem — o palco não deveria tentar reproduzir a realidade, mas expressá-la, ou simplesmente representá-la, de forma criativa e simbólica. A idéia da “convenção consciente”, princípio do teatro antinaturalista e meyerholdiano, provém do simbolismo, mas remonta às genuínas manifestações teatrais da antigüidade e dos séculos dezesseis e dezessete — a commedia dell’arte, o teatro ambulante, o teatro elisabetano, a comedia ou teatro clássico espanhol. Essas formas teatrais caracterizavam-se, em seu tempo, por algum tipo de artifício ou convenção, que, num palco simples, despojado de cenários e apetrechos, tornava possível sua encenação. O elemento essencial e comum a todas era, sem dúvida, o ator. No teatro de Shakespeare, por exemplo, o ator — com seus movimentos, gestos, vestuário e dicção adequada — concentrava em si toda a atenção do público, sem a necessidade de efeitos especiais ou mesmo de cenografia. A formação de um novo ator foi preocupação central durante todos os anos de atividade teórico-prática de Meyerhold, afinal, um teatro sem decoração, que refuta a “declamação” do texto e a atuação naturalista, precisará de um ator que afronte teatralmente a própria personagem, que invente para ela uma dicção e uma gestualidade próprias, que se movimente com liberdade num espaço simbólico e seja capaz de criar uma imagem cênica diante dos olhos do público. Eliminemos texto, vestuário, ribalta, coxias, palco; deixemos apenas o ator e o teatro continuará sendo teatro: o espectador intuirá as intenções do ator por seus movimentos, por seus gestos e por suas caretas. O ator pode construir o seu espaço cênico como e onde ele quiser. (Tradução nossa. Meyerhold, 2002, p.123) A reflexão de Meyerhold sobre técnicas de interpretação — cuja culminação é a biomecânica — pressupõe um intérprete consciente de seu potencial e dos meios expressivos de seu corpo. A exemplo do teatro dell’arte, da pantomima e do teatro ambulante, o domínio dos movimento e do ritmo, o conhecimento do próprio ponto de gravidade e a ausência de hesitação são essenciais para o desenvolvimento do ator e o conduzem ao verdadeiro teatro, ao “teatro teatral”. Enquanto, na Rússia, Meyerhold estudava e experimentava variadas possibilidades cênicas, na Espanha, Ramón del Valle-Inclán (1866-1936) debatia-se contra o conservadorismo do teatro nacional, que sufocava qualquer iniciativa inovadora para o setor. Apesar da adversidade, ValleInclán manifestou espírito renovador semelhante ao de seu contemporâneo estrangeiro ao repudiar o teatro realista-naturalista e propor no- 186 Volume 4 | Literatura Espanhola vas formas de representação, baseadas em princípios de movimento e técnicas de ator. A estética antimimética do esperpento encontra-se em perfeita consonância com a corrente européia de revitalização teatral. De acordo com Luiz Fernando Ramos, em O parto de Godot, o texto dramático possui um privilegiado ponto de interseção entre os planos literário e cênico: a rubrica ou didascália. Para ele, o estudo do teatro por meio das rubricas não prioriza a literatura dramática nem valoriza o espetáculo em detrimento do texto, mas concentra-se “nas relações e eventuais tensões entre estes dois níveis do processo teatral” (1999, p.15). Ramos defende a tese de que no espaço da rubrica o dramaturgo esboça uma primeira encenação virtual da obra, simultânea a sua criação. Depois dessa, serão possíveis muitas outras encenações virtuais realizadas pelo próprio autor e por todos os seus leitores — entre eles, os diretores, cenógrafos, atores e técnicos que concretizarão suas leituras em espetáculos teatrais. Segundo Ramos, a rubrica “será sempre o vestígio de uma encenação passada (real ou imaginária) e o mapa de todas as encenações futuras”, e acrescenta: é a informação mais aproximada de um espetáculo virtual que o dramaturgo, ou quem quer que tenha sido o responsável pela indicação de como um texto se transformará em cena, apresenta aos seus leitores (RAMOS, 1999, p.16-17). Ciente das dificuldades ou da impossibilidade de, em seu tempo, encenar suas obras, Valle-Inclán proveu o texto dramático de precisas orientações de montagem, as quais refletem a concepção antimimética do autor — “Estoy seguro que mis acotaciones darán una idea de lo que quise hacer” (apud Aznar Soler, 1992, p.126), manifestou o dramaturgo. Se Meyerhold acreditava que o modelo tradicional de ator poderia ser substituído com eficácia por um outro diferente, dotado de “rigidez” e de “disciplina instrumental” — o ator biomecânico — Valle-Inclán imaginava para as criaturas esperpênticas intérpretes capazes de intervir criativamente na caracterização das personagens e de representá-las de forma despersonalizada. Essencialmente plástico e visual, o esperpento pressupõe uma encenação baseada na teatralidade do corpo, cujo modelo se encontra na comedia dell’arte e no teatro de bonecos. A encenação do Esperpento de los cuernos de don Friolera, por exemplo, requer intérpretes que atuem como fantoches, com movimentos, gestos e atitudes que constituam a manifestação motora e plástica dessa condição. 187 Hispanismo 2 0 0 6 Don Friolera e Doña Loreta riñen a gritos, baten las puertas, entran y salen con los brazos abiertos. (...) El movimiento de las figuras, aquel entrar y salir con los brazos abiertos, tienen la sugestión de una tragedia de fantoches (...) (VALLE-INCLÁN, 1994, p.147). Esse tipo de atuação, ou intencional sobreatuação, além de opor-se à representação realística pelo viés artístico, serviria para expor visualmente tanto os conflitos interiores como a natureza — trágica e cômica — das personagens. “Yo escribo ahora siempre pensando en la posibilidad de una representación en que la emoción se dé por la visión plástica. El tono no lo da nunca la palabra, lo da el color” (apud Aznar Soler, 1994, p.22), declarou certa vez o dramaturgo. Além da visualidade, a variedade de espaços dramáticos é uma das principais chaves de acesso à estética teatral valleinclaniana. Inspirado na comedia espanhola e no drama shakespeariano, o teatro do ciclo esperpêntico baseia-se na multiplicidade de “cenários” — palavra que deve ser entendida como o “lugar da ação” e não como a infra-estrutura decorativa mimética do teatro realista —, e, por conseguinte, em suas possibilidades dinâmica e expressiva. Em Los cuernos de Don Friolera os acontecimentos se desenvolvem em variados cenários - interiores e exteriores - e num período de tempo impreciso, que transcorre numa sucessão contínua de tardes e noites. Ao longo de doze cenas, a guarita do tenente e seus arredores, as fachadas brancas das casas, o muro também branco do cemitério, a sala e o quintal dos Astete, a alcova do barbeiro, o salão do bilhar de doña Calixta, o reservado onde se reúne o “Tribunal de Honor” e a sala do Coronel Pancho Lamela ambientam a evolução das personagens. Para os padrões do teatro ilusionista, vigentes na época, era impossível criar uma estrutura cênica que desse conta de tamanha multiplicidade de lugares. Divinas palabras, Luces de bohemia, Los cuernos de Don Friolera e as outras peças do ciclo esperpêntico reclamavam alternativas cênicas mais avançadas, que tornassem possível sua encenação. Entre essas alternativas estaria o uso simbólico do palco, que podemos entender como um resgate da convenção seiscentista. Em seu isolamento espanhol, Valle-Inclán imaginou e descreveu procedimentos teatrais que possuem estreitas afinidades com as arrojadas práticas e teorias desenvolvidas por Meyerhold. Os esperpentos, sobre- 188 Volume 4 | Literatura Espanhola tudo Luces de bohemia e Los cuernos de don Friolera, combinam teoria e prática teatral e pressupõem uma representação que harmonize elementos da genuína tradição com modernas técnicas de cenografia, iluminação e interpretação. Referências Bibliográficas ALONGE, Roberto e BONINO, Guido Davico (dir). Storia del teatro moderano e contemporaneo. Avanguardie e utopie del teatro. Il novecento. Torino, Einaudi, 2001. AZNAR SOLER, Manuel. “Estética, ideología y política en Valle-Inclán”. Anthropos. Revista de documentación científica de la cultura. Madrid, Anthropos, 158-159, julio-agosto, 1994. pp.9-38. ----Guía de lectura de “Martes de carnaval”. Barcelona, Anthropos, 1992. MEYERHOLD, V. L’attore biomeccanico. Milano, Ubulibri, 2002. ----1918: Lezioni di teatro. Milano, Ubulibri, 2004. RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot e outras encenações imaginárias. A rubrica como poética da cena. São Paulo, Hucitec/FAPESP, 1999. ROUBINE, J.J. O nascimento do teatro moderno. Rio de Janeiro, Zahar, 1982. VALLE-INCLÁN, Joaquín y Javier del. Entrevistas, conferencias y cartas. Ramón María del Valle-Inclán. Valencia, Pré-Textos, 1995. VALLE-INCLÁN, Ramón del. Martes de carnaval. Esperpentos. Madrid, Espasa Calpe, 1994. ZOLA, Émile. O romance experimental e O naturalismo no teatro. São Paulo, Perspectiva, 1979. 189 Hispanismo 2 0 0 6 Bernarda: “Tirana de todos los que la rodean...”a Gênero e ação dramática na Casa de Lorca Leonardo Nolasco-Silva (Universidade Federal Fluminense) Federico García Lorca fulgura entre os dramaturgos contemporâneos como um dos grandes expoentes da literatura teatral da Espanha. Sua obra ocupa um lugar indiscutível no cenário cênico-literário mundial, e La Casa de Bernarda Alba, sua última peça, escrita pouco antes de seu assassinato, é considerada o resultado de seu aprimoramento como escritor e homem de teatro (CABALLERO et al, 1988, p. 11).b Definida pelo próprio autor como “um drama andaluz”, La Casa [...] apresenta a trajetória familiar de Bernarda e suas filhas: Angustias (39 anos), Magdalena (30 anos), Amelia (27 anos), Martirio (24 anos) e Adela (20 anos), prisioneiras no próprio lar depois da morte do patriarca Antonio María Benavides. Ainda participam da encenação a avó María Josefa, uma criada e La Poncia – empregada e profunda conhecedora da casa e dos seus segredos. O propósito desse artigo, parte da minha tese de doutorado em literatura comparadac, é verificar o desenvolvimento da ação dramática em La casa através dos conflitos que são – a meu ver – despertos por certas assimilações identitárias de um gênero feminino nem sempre coerente com os preceitos socais vigentes numa sociedade marcada pelo sexismo e pela subordinação da mulher. Tal iniciativa justifica-se pela minha trajetória acadêmica de cientista social, interessado na produção e recepção de textos teatrais pela perspectiva de gênero. Tomando como ponto de partida as contribuições de Hegel em sua Estética (Hegel, 1964), temos que a poesia dramática – um dos pilares da elaboração moderna da idéia de teatro – nasce da necessidade humana de ver uma ação representada. Essa ação – longe de ser pacífica – advém de um conflito de interesses, de paixões que localizam os agentes em pontos opostos, de difícil reaproximação. Cada agente é uma pessoa moral, com consciência de seus atos, com vontade interior, com caráter, isto é, é um indivíduo que pensa e persegue suas ambições. Toda ação da personagem está voltada para um resultado final, cabendo a ela – inevitavelmente – responder por todos os atos que pratica. Tal concepção aproxima-se dos escritos aristotélicosd sobre a matéria própria da tragédia, que tem na tensão entre vontades opostas sua força motriz. A polaridade descrita pelo grego, contudo, não está condicionada apenas ao movimento do indivíduo com suas vontades particulares, mas se encontra alimentada pelo exercício de forças divinas que interferem 190 Volume 4 | Literatura Espanhola amplamente no destino dos humanos, de forma implacável e irreversível. Nem toda informação é dada ao homem, ele não possui total conhecimento sobre a sua existência, sendo muitas vezes surpreendido pelos caminhos diante dos quais acredita ter controle. Existe um tempo humano e um tempo divino, este último, inacessível à razão que tenta apreender sua força e seu funcionamento. No drama andaluz de Lorca – que não é, por sua definição , uma tragédia como Bodas de Sangre e Yerma – oposições de vontades individuais são responsáveis pelo desenvolvimento da ação, mas dialogam, em certa medida, com uma vontade que transcende o universo particular da casa e de suas moradoras, estabelecendo regras, fabricando destinos sem, no entanto, fazer-se obra das divindades. Refiro-me à sociedade e sua atuação sobre o indivíduo, nos moldes descritos por Durkheime. Segundo o sociólogo francês (DURKHEIM, 1987), a sociedade deve ser entendida como uma força que ultrapassa o indivíduo, que atua sobre ele construindo seu caráter, sua identidade, estabelecendo suas possibilidades de movimento, direcionando-o e apresentado-lhe as regras de seu funcionamento. Inspirado pelo pensamento durkheimiano, Berger (BERGER, 1986) nos apresenta a sociedade como o grande palco onde os atores sociais desenvolvem suas cenas, devidamente situados em seus papéis, com suas potencialidades cênicas previamente elaboradas por um script aceito por contrato – o contrato social. As regras desse jogo, dessa encenação, foram estabelecidas no passado, sem nenhuma participação dos atores de agora. Como elas se mantém através do tempo? Por que não foram abandonadas em nome de uma liberdade, de uma autonomia individual? As respostas para essas indagações são de fundamental importância para a compreensão da ação desenvolvida pelas mulheres de La Casa... Para a coesão social – princípio fundador da teoria durkheimiana – caberá às instituições o controle total sobre as ações do indivíduo. Tal controle não será efetuado de maneira arbitrária, imposta, agressiva, ao contrário: o indivíduo clamará por ele, já que é através dele que sua existência é validada. Na origem das sociedades duas instituições mostraram-se eficientes no ato de modelar a personalidade humana: a família e a religião. Todavia, com o desenvolvimento das relações capitalistas, com o crescente individualismo proposto pelo movimento do mercado, os grupos sociais tornaram-se mais complexos, possibilitando a intervenção formativa de outras instituições como a educação escolar, as leis civis e criminais e, mais recentemente com força inegável, a mídia – Internet, televisão, jornais e outros. Todas essas instituições atuam sobre o indivíduo 191 Hispanismo 2 0 0 6 com intenções disciplinares, regularizadoras ou socializantes. As normas são internalizadas de forma a se fazerem críveis como manifestações de vontades particulares. São, no entanto, desígnios sociais. Berger argumenta ainda que, para ser aceito em um grupo, o indivíduo precisa ter sua identidade reconhecida e legitimada pelos pares. Uma vez retirado esse reconhecimento – por alguma transgressão do indivíduo – o agente transgressor tende a buscar sua reintegração, pois precisa do aval da sociedade para seguir em sua trajetória vivida na e pela coletividade. Em La Casa de Bernarda Alba, os ditames sociais parecem personificados na figura da matriarca, mas também se movimentam e se mostram no controle doméstico exercido por La Poncia ou nas intrigas propostas por Martirio. A construção dramatúrgica de Lorca nos revela uma pequena sociedade, com regras de funcionamento muito próximas das observadas em nosso mundo. Dentre essas regras, aquelas que falam sobre os caminhos possíveis para o masculino e o feminino são – a meu ver – as mais expressivas para o estudo da ação dramática. As filhas de Bernarda, com exceção de Adela, demonstram ter internalizadas as possibilidades de uma vivência identitária feminina. A submissão e a resignação que o modelo de mulher denota numa sociedade patriarcal são expressas na fala de Amelia: “De todo tiene la culpa esta crítica que no nos deja vivir.” Tamanho controlef é exercido diretamente por Bernarda e indiretamente pela reprodução dos discursosg que as próprias filhas empreendem: Las mujeres en la iglesia no deben mirar más hombre que al oficiante, y a ése porque tiene faldas. (Bernarda). Hilo y aguja para las hembras. Látigo y mula para el varón. Eso tiene la gente que nasce con posibles. (Bernarda). Yo hago las cosas sin fe, pero como un reloj. (Martirio). Lo que sea de una será de todas. (Amelia) Cada clase tiene que hacer lo suyo. (Magdalena). Nacer mujer es el mayor castigo. (Amelia). Y ni nuestros ojos siquiera nos pertenecen (Magdalena). A assimilação desses modelos de submissão e resignação, por vezes dialoga com certos questionamentos de Martírio, mas são contornados pelo medo que circunda a figura de Bernarda. A presença/ ausência do masculino representa o grande conflito da trama, pois diante do desconhecido – o corpo do homem – todas as irmãs se encantam e se frustram. O encantamento advém da galante presença de Pepe, el Romano, noivo de Angustias que é apenas citado. A frustração nasce da certeza de que 192 Volume 4 | Literatura Espanhola nem todas poderão desfrutar do matrimônio com ele. Um triângulo amoroso é formado por Pepe, Angustias e Adela, e paralelamente percebe-se a atuação invejosa de Martírio, que traça planos para delatar a história secreta da irmã mais nova, ao mesmo tempo que desqualifica as aptidões da primogênita de Bernarda, insinuando que o interesse de Pepe por ela é financeiro e não afetivo. O feminino representado por Angustias é aquele que poderíamos classificar de convencional, resignado. A atuação de Adela, ao contrário, é sinalizadora de uma transgressão que não reconhece a legitimidade das imposições sociais para a mulher. Martirio situa-se no meio-termo: não aceita a submissão, mas também não tem coragem para emancipar-se. No controle – ou na tentativa de controle – desse conflito, estão Bernarda e La Poncia, com seus olhares panópticos e sanções sociais aptas a serem colocadas em ação. Ainda que a presença da matriarca seja vista com temor, sendo suas regras a força motriz que constrói – ou tenta construir – a identidade daquelas mulheres, parte dessa assimilação do gênero feminino pode ser atribuída às colocações de La Poncia, funcionária da casa há mais de trinta anos. É através dela que o quadro das relações de gênero na sociedade moderna é apresentado, valendo-se de sua experiência de viúva e profunda conhecedora da moral e dos costumes daquele povoado: ... A vosotras, que sois solteras, os conviene saber de todos modos que el hombre a los quince días de boda deja la cama por la mesa, y luego la mesa por la tabernilla. Y la que no se conforma se pudre llorando en un rincón. ... Pepe hará lo que hacen todos los viudos de esta tierra: se casará con la más joven, la más hermosa, y ésa eres tú. Alimenta esa esperanza, olvídalo. Lo que quieras, pero no vayas contra la ley de Dios. Uma vez colocadas as regras socialmente aceitas para o feminino, cada personagem se comportará diferentemente frente a elas. Se Amelia e Magdalena parecem não ousar ir contra ao estabelecido em seus papéis, Martirio e Adela ensaiam algumas possibilidades. Angustias – a filha mais rica, fruto do primeiro casamento de Bernarda – também se rebela quando uma das irmãs rouba o retrato de seu noivo. Sua rebeldia, contudo, se desvanece diante da autoridade da mãe. Adela, por sua vez, mostra-se firme no propósito de não se render a um feminino submisso e dependente, desejando a liberdade concedida socialmente aos homens: 193 Hispanismo 2 0 0 6 Me gustaría segar para ir y venir. Así se olvida lo que nos muerde. Quisiera ser invisible, pasar por las habitaciones sin que me preguntarais dónde voy. Cônscia de sua vontade de liberdade, princípio que contradiz a necessidade de controle presente na atuação de Bernarda, Adela vai até as últimas conseqüências para alcançar seu objetivo: Aqui no hay ningún remedio. La que tenga que ahogarse que se ahogue. Pepe el Romano es mío. Él me lleva a los juncos de la orilla. Vamos a dormir, vamos a dejar que se case con Angustias. Ya no me importa. Pero yo me iré a una casita sola donde él me verá cuando quiera, cuando le venga en gana. Acreditando na morte de Pepe – devido a uma intriga arquitetada por Martirio – também ela experimenta o fim. Sua morte, contudo, não será divulgada à sociedade como um grito de independência diante do amor impossível. Bernarda tratará de encobrir os atos transgressores da filha em nome da moral: Ella, la hija menor de Bernarda Alba, há muerto virgen. ¿Me habéis oído? ¡Silencio, silencio he dicho! ¡Silencio! Ainda no que concerne às transgressões de gênero, ilustrativas do desenvolvimento da ação dramática na dramaturgia teatral lorquiana, em La Casa... parece-me significativa a vivência identitária de Maria Josefa, mãe de Bernarda que vive enclausurada em um dos cômodos da casa, constantemente amarrada e vigiada pela criada. Tida como loucah, ela acusa Bernarda de ser responsável pela infelicidade daquelas mulheres e sonha com um noivo que por ela espera perto do mar: No quiero ver a estas mujeres solteras, rabiando por la boda, haciéndose polvo el corazón, y yo me quiero ir a mi pueblo. ¡Bernarda, yo quiero un varón para casarme y tener alegría! ¡Quiero irme de aquí! ¡Bernarda! ¡A casarme a la orilla del mar, a la orilla del mar! No falar de Maria Josefa, se faz presente o desejo contido das netas. A idade avançada, ainda que vivenciada no cárcere privado, possibilitou o direito de expor os ideais condenados por Bernarda e, em certa medida, pela sociedade que representa. Rotulada pela loucura a avó fala o que pensa. Em nome da lucidez, as netas se calam. 194 Volume 4 | Literatura Espanhola No universo proposto por Lorca o caminho inevitável do amor é a morte. O princípio da autoridade consegue impor-se ao princípio da liberdade, e o indivíduo torna-se ínfimo diante da sociedade que o aprisiona em seus valores e regras morais. No caso das mulheres essa prisão é ainda mais rígida e o amor, ao ser experimentado por uma delas, é o prenúncio dos dias difíceis que antecedem o trágico fim. Não só em La Casa de Bernarda Alba, mas em todos os seus textos, é esse o desfecho daqueles que se enamoram: sucumbir diante da vida e dos preceitos de um mundo de injustiças... A ação dramática terá nessa certeza, nesses limites impostos ao indivíduo – no caso específico de La Casa..., às mulheres – suas possibilidades de movimento. E o “drama andaluz” de Lorca dialoga bem com a concepção hegeliana de teatro: é representação de uma ação e ação movida pela vontade de uma pessoa moral. Ao mesmo tempo, a tensão sinalizada por Aristóteles no campo das tragédias parece existir. Não mais entre o tempo humano e o tempo divino, mas entre os interesses individuais e as normas sociais de uma coletividade que vive de modelos. Dentre esses modelos, argumento ser os de gênero o alicerce sobre o qual transitam as mulheres de “La Casa de Bernarda Alba”. Nacer mujer es el mayor castigo. (Amelia). Y ni nuestros ojos siquiera nos pertenecen” (Magdalena). Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Arte Poética. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004. BELOTTI, Elena Gianini. Educar para a submissão – o descondicionamento da mulher. Petrópolis: Vozes, 1987. BERGER, Peter L. Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1986. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Betrand Brasil, 1999. DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – a história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1983. HEGEL. Estética. Poesia. Trad. Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1964. LORCA, Federico García. Obras Completas, vol. II, Madrid: Aguilar, 1973. 195 Hispanismo 2 0 0 6 PALLOTTINI, Renata. Introdução à Dramaturgia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. SÁNCHEZ, Roberto G. García Lorca: estudio sobre su teatro. Madrid: Jura, 1950. Notas a b c d e f g h Fala retirada da peça. A edição assinada por Josephs y Juan Caballero trás uma extensa análise do teatro lorquiano, além de uma introdução amplamente respaldada nos principais estudos sobre La Casa de Bernarda Alba. Pesquisa realizada na Universidade Federal Fluminense, sob orientação da profª Drª Lygia Peres. Todo estudo referente a Poética de Aristóteles teve como base as aulas do profº Fernando Muniz no primeiro semestre de 2006 na UFF. O referido professor traduziu a obra do grego para o português, oferecendo-nos subsídios para a compreensão e leitura de textos filosóficos a partir desse texto aristotélico. A sociologia durkheimiana, ainda que considerada conservadora, oferece-nos um vasto leque de opções para o entendimento da relação indivíduo x sociedade. A força da coletividade sobre o individual é apresentada com cores forte, mas elucidativas para a compreensão da teoria dos papéis e da localização social, por exemplo. Para o aprofundamento do tema “controle social” sugiro a leitura de “A dominação masculina” de Pierre Bourdieu, bem como do capítulo “O Panoptismo” do “Vigiar e Punir” de Foucault . Nesses trabalhos, a internalização dos ditames sociais é apresentada de forma clara e convincente, sinalizando, de um lado, a força dos papéis sexuais no transcorrer da vida social e, por outro, a crescente tendência a observação/ controle da vida alheia. Ainda na “Dominação Masculina”, Bourdieu argumenta que a mulher, situada de maneira inferior na hierarquia do gênero, tende a assimilar de tal forma a dominação que sofre, que reproduz através do próprio discurso as bases que mantém essa condição de assimetria. Em vários momentos da peça, as filhas assumem essa voz que determina a condição da mulher, mesmo sabendo que é essa voz a responsável pela infelicidade que experimentam. Céli Pinto argumenta em “Loucura – gênero feminino” que muitas mulheres internadas em hospícios no século XIX eram rotuladas de loucas por certas transgressões de gênero que decidiram experimentar: não casaram, saíram da casa dos pais, investiram em uma carreira profissional, não optaram pela maternidade. No caso de Maria Josefa todo seu discurso está voltado para o entendimento dos limites arbitrários da vivência feminina e ela, mesmo velha, deseja libertar-se dessas amarras e encontrar um novo amor. A realização desse desejo, contudo, não se dará naquele povoado, marcado pelo preconceito e por uma moral sexista, mas sim noutro lugar, próximo ao mar, longe do controle de Bernarda e da sociedade que representa, 196 Volume 4 | Literatura Espanhola Alberti, 1917 Marcelo Maciel Cerigioli (USP) O poeta espanhol Rafael Alberti nasceu em 1902, no Puerto de Santa Maria (Cádiz). Este poema, além de abrir o livro A la Pintura, trata de sua vida artística. 1917 representa o ano em que tudo começou, o nascimento de um artista. Desde mayo de 1917, año en que tuve que dejar, con mi familia mi ciudad natal, (...) para instalarme definitivamente en Madrid, puedo decir, sin exageración, que elegí como mi gran vivienda el Museo del Prado. Yo, entonces, no era poeta, no había despertado aún a la poesía, creyendo ciegamente que sólo iba para pintor. (...) donde llegué a dibujar, aprendiéndolas de memoria, cuantas estatuas griegas y romanas se levantaban en sus salas. (ALBERTI, 1959, 96). Rafael Alberti abandonou a pintura no início da carreira para se dedicar à poesia, entrando em contato com os que seriam os pais da geração de 27. Desde então, começou a publicar seus versos em diversas revistas. No exílio, como poeta já consagrado, decidiu unir as duas pontas de sua vida artística, publicando em 1946 um livro de poemas em homenagem à pintura, titulado A la Pintura - Poema del color y la línea. Para tanto, recorreu a sua experiência como pintor, trazendo alguns de seus recursos de expressão para a poesia. Para o autor, a pintura não foi apenas sua veia artística primeira, porém uma de suas principais vertentes e o Museu do Prado foi sua casa, com cujas obras Alberti possuía uma forte ligação emocional. En 1945, año en que terminó la Segunda Guerra Mundial, sentí que me golpeaba fuertemente mi primera vocación, porque sobre todo, la nostalgia del Museo del Prado, en donde había vivido mis más jóvenes años, se me concretó en un libro de poemas titulado A la Pintura, que me hizo volver a la experimentación de los colores y la línea, pero esta vez entremezclándolos con la palabra, es decir, con el verso. (ALBERTI, 1998, 220). A obra A la Pintura, uma homenagem à pintura, através de 57 composições, recria as impressões primeiras do estudante adolescente ao visitar o Museu do Prado, que se fundem com as suas recordações posteriores. Assim como sua vida artística começa em 1917, seu livro, que surge como referencia a sua chegada à Madri, inicia-se com um poema autobiográfico, o 1917. Este poema se divide em três partes. A primeira é composta de nove quartetos com versos de 9 sílabas, dedicados a suas recordações das primeiras aulas de pintor adolescente; a segunda, com oito quartetos, com versos também de 9 sílabas, refere-se às estátuas sob a ótica de aprendiz 197 Hispanismo 2 0 0 6 de desenhista; e a terceira, com noventa versos de tendência a catorze sílabas, agrupados em nove estrofes de extensão desigual, expressa o contato de Alberti com as obras do Museu do Prado. Enquanto as primeiras partes trabalham com quartetos de rimas interpoladas e emparelhadas, a parte final faz uso apenas de rimas emparelhadas. A primeira parte se inicia com a loucura do jovem Rafael Alberti em 1917 pela pintura, a felicidade pela lição de pintar paisagem impressionista: Mil novecientos diecisiete. Mi adolescencia: la locura por una caja de pintura, un lienzo en blanco, un caballete. Da 3ª. à 8ª. estrofe é descrito o seu deslumbramento em relação às pinceladas impressionistas com o toque radiante das cores. Na 6ª. estrofe há uma transformação. Desde o primeiro verso o verde se empalidece com o branco até que no verso final renasce e de novo reverdece, este representa uma quebra em relação aos outros versos, tanto semântica quanto metricamente, com 10 silabas, sendo o único com uma sílaba a mais: El verde como empalidece junto al feliz blanco de plata, mas ante el sol que lo aquilata renace y de nuevo reverdece. A 7ª. e a 8ª. estrofes seguem apresentando a pintura impressionista: lavadamente se disuelve: en una atmósfera que envuelve, define el cuadro y lo evapora. Na última estrofe surge um distanciamento da pintura, representado pelo uso de 2 verbos no tempo passado e 1 no infinitivo, pois nas estrofes anteriores são usados no total 18 verbos no presente, 3 no infinitivo e nenhum no tempo passado. A palavra “pincel” aqui pode ser vista como representação de “recursos” e com o surgimento da palavra “ahora” como parâmetro, o “eu-lirico” expressa que lhe deu agora a loucura que naquele tempo não tinha para pintar a Poesia com o pincel da pintura, ou seja, usando alguns recursos da Pintura na Poesia: Diérame ahora la locura que en aquel tiempo me tenía, 198 Volume 4 | Literatura Espanhola para pintar la Poesía con el pincel de la Pintura. Na segunda parte do poema surgem as estátuas do Museu do Prado, que se levantam bem alto (“se enarbola”), como do sonho de adolescente que “se enarbola / una Afrodita de escayola” (gesso): Y las estatuas. En mi sueño de adolescente se enarbola una Afrodita de escayola desnuda al ala del diseño. A 2ª. estrofe traz o deslumbramento, a “Inusitada maravilla” com que se deparava e desenhava com papel e carvão: Mi mano y Venus frente a frente con mi ilusión de adolescente: un papel y una carbonilla. As estrofes seguintes (da 3ª. à 6ª.) descrevem o desenhar do aprendiz de pintor Alberti perante às estátuas. Na 7ª. estrofe surge o distanciamento, assim como surgiu na estrofe da primeira parte. Os três verbos estão no tempo passado: Nada sabía del poema que ya en mi lápiz apuntaba. Venus tan sólo dibujaba. A última estrofe segue o distanciamento, com 2 verbos no passado, explicando como as imagens do passado (desenhista) lhe forneceram o conhecimento necessário para que florescem ao serem esquecidas: Feliz imagen que en mi vida dio su más bella luminaria a esta academia necesaria, que abre su flor cuando se olvida. A terceira parte do poema se inicia com o Museu do Prado abrindo um novo mundo, através de “cielo abierto” para Alberti: ¡El Museo del Prado! ¡Dios mío! Yo tenía pinares en los ojos y alta mar todavía con un dolor de playas de amor en un costado, cuando entré al cielo abierto del Museo del Prado. 199 Hispanismo 2 0 0 6 A segunda estrofe mostra seu assombro perante as obras de arte ao ver que eram mais claras e coloridas do que supunha anteriormente: não eram natureza morta, viviam, o que dá um tom surrealista ao poema. Os quadros passam a ser janelas abertas de onde saem personagens vivas: ¡Oh asombro! ¡Quién pensara que los viejos pintores pintaron la Pintura con tan claros colores; que de la vida hicieron una ventana abierta… Surgem então verbos de movimento, indicando ação, vida aos personagens pintados ou esculpidos: “movieron”, “corrieran”, “nadaban”, “bailaban”. Na terceira estrofe o “eu-lírico” entra, mergulha nos mitos greco-latinos. O 3º. Verso quebra como um relâmpago a métrica, com uma sílaba a mais que os demais: Y -¡oh relámpago súbito!- sentí en la sangre mia. A 4ª. estrofe diz que caminhou pelos quadros de Fra Angélico (pintor clássico que usava os conceitos da perspectiva) com uma quebra no 4º. verso, dizendo que este pintor cortava com os pincéis (“del ángel que a Fra Angélico cortaba los pinceles”). Tal corte se reflete na métrica do verso, que também possui uma sílaba a mais. A partir da 5ª. estrofe o poema adquire um tom pesado, negativo, carregado de palavras que se remetem ao diabólico, à desgraça e à escuridão: “golfo de sombra”; “violentas oquedades rasgadas por un óseo fulgor de calavera”; “ataron”; “ímprobos tormentos”; “La miseria, el desgarro, la preñez, la fatiga”; “el tracoma harapiento”; “la España mendiga”; “cuchillo”; “célica”; “rústica”; “castigado fantasmal verdiseco”; “la muerte y la vida subterránea”; “lo espantoso español más sombrío”; “clavara nocturno su espada”; “¡Oh asombro!”; “sombra”; “más siniestra charca luciferina”; “Mis oscuros demonios, mi color del infierno”; “el diablo ratoneril”; “con su químico fogón de tentaciones”; “la muerte guadaña a la jineta”, “rige en las nubes su funeral trompeta”; “llorada”; “rincones”; “la sorprendente, agónica, desvelada”; “la pena enterrada de enterrar el dolor”; “morirse”; “remordido”; “mi amor interrumpido” A última estrofe mostra um Alberti surrealista, mergulhado na ilusão de seus sonhos nos cantos do Museu do Prado. Fala também da pena de enterrar a dor, de nascer um poeta por morrer um pintor. Esse enterro pode se remeter ao fato de que Alberti deixou a pintura com a morte do seu pai, pois como não conseguiu expressar a dor que sentia pela pintura, sendo assim, enterrou-a junto ao seu pai e assim nasceu o poeta, embora ainda reste uma paixão pela pintura: 200 Volume 4 | Literatura Espanhola Alberti en los rincones del Museo del Prado; la sorprendente, agónica, desvelada alegría de buscar la Pintura y hallar la Poesía, con la pena enterrada de enterrar el dolor de nacer un poeta por morirse un pintor, hoy distantes me llevan, y en verso remordido, a decirte, ¡oh Pintura!, mi amor interrumpido. Do início do poema com traços impressionistas revivendo a sua infância de aprendiz de pintor; na segunda parte busca inspiração nos clássicos para descrever o desenhista Rafael Alberti; e na terceira parte, deixa o modelo clássico e parte para as estrofes irregulares. Com traços expressionistas (deformando a realidade exterior a partir dos sentimentos internos) e surrealistas (as personagens das obras ganham vida e saem dos quadros), a parte final vai do clássico (Fra Angélico, Mantegna, Rafael) ao Barroco (Rivera, Murillo, Zurbarán, Velázquez), criando um tom bastante realista e expressionista até os percussores do surrealismo (Patinir, poeta flamenco; Brueghel, poeta que trabalhava com figuras alegóricas e funerais e o próprio Alberti). Para criar esse aspecto sombrio, recorre a muitas palavras, citações de pintores barrocos e surrealistas. O poema vai escurecendo até chegar na morte do pintor e o nascimento do poeta. Nessa terceira parte há um grande distanciamento, não apenas nos versos finais, como ocorre com as partes anteriores, onde o poeta Alberti fala da adolescência, dos 50 verbos utilizados aqui, 31 estão no passado, inclusive desses 31, 7 estão no subjuntivo (afastamento da realidade); apenas 3 verbos estão no tempo presente; e 16 estão em formas nominais (particípio, gerúndio e infinitivo), o que reforça o distanciamento. As três partes representam fases do artista, enquanto as duas primeiras são mais simples, regulares (clássicas), inocentes, deslumbradas (impressionistas), a parte final é irregular, maior, mais complexa, representando a sua fase de poeta, mergulhada na dor, na miséria humana, dialogando com a Pintura, na busca da expressão, na deformação do sombrio e nas ilusões surrealistas. Referências Bibliográficas ALBERTI, R. A la Pintura - Poema del Color y la Línea. Madri: Alianza, 1989. ______. La Arboleda Perdida - Memorias. Barcelona: Seix Barral, 1959. ______. La Arboleda Perdida – Tercero y Cuarto Libros (1931 – 1987). Madri: Alianza, 1998. 201 Hispanismo 2 0 0 6 O logogrífico em El encaje roto de Pardo Bazán Maria Mirtis Casera (UFES) A tentativa feminina de encontrar um lugar independente do determinado pela ótica masculina alcançou, nos últimos tempos, espaço importante, mas “a dificuldade do objeto feminino que quer ser sujeito” (RAMOS & VERA, 2002) continua sendo uma realidade e existiu, de forma acentuada, em outras épocas. Os textos de Emilia Pardo Bazán e de outras escritoras de seu tempo, como Fernán Caballero, na Espanha, ou George Sand e as irmãs Brontë, na Inglaterra, atestam essa afirmativa. É o que se pode ver nos contos de Pardo Bazán, escritos na segunda metade do século XIX e inícios do século XX, tempo de grandes mudanças: a consolidação da burguesia, com a defesa de posições conservadoras, encontra enfrentamento nas classes trabalhadoras, que se organizam para reivindicar melhores condições de trabalho e de vida. Junto a essas manifestações surgem as doutrinas revolucionárias: o socialismo, o comunismo, o anarquismo, enfim, mudanças que vão marcar profundamente as relações entre as classes sociais. As mulheres reivindicam espaços que até então lhes estavam proibidos, instrução formal, trabalho, e voz, ocultada, segundo Ramos & Vera pelos saberes estabelecidos no sistema de normas e valores patriarcais. (RAMOS & VERA, 2002) A mulher tem o direito de decidir sobre própria sua vida, defende Pardo Bazán, em seus textos ficcionais e não ficcionais. São recorrentes em sua obra literária as figuras femininas que vivem uma situação, de alguma forma, perturbadora, em função de uma relação desfeita, de uma dificuldade em comunicar-se, ou de um sonho não realizado, quer emocional quer socialmente. Subjaz a essas narrativas a noção de que as verdades se constroem a partir das experiências masculinas e que à mulher cabe encontrar saídas para não ter de submeter-se a condições que lhe são, na maioria dos casos, desfavoráveis. É o que se vê no conto El encaje roto, publicado no periódico “El Liberal”, de 19 setembro 1897, às portas do século XX, portanto. A narradora, ainda que não tivesse presenciado o episódio, fala de sua perplexidade, bem como da dos demais convidados de uma boda, em que a noiva diz “não”, sem motivo aparente, à clássica pergunta do padre na hora do casamento. Ninguém entende a atitude da moça, já que o noivo é um excelente partido, e parece não haver qualquer tipo de rusga ou senão entre os namorados. Num encontro casual, algum tempo depois de o fato haver ocorrido, a própria noiva conta à narradora a causa da inesperada decisão. Havia percebido o que julgou ser a verdadeira face de seu 202 Volume 4 | Literatura Espanhola pretendente, surpreendido numa situação de tensão, quando, de forma desastrada, Micaelita rasgou o soberbo adorno de renda de seu traje de noiva - um Alençón autêntico - que o noivo lhe dera de presente. Captou então, no olhar masculino, um traço de recriminação e injúria, que o homem recolheu rapidamente, mas que não escapou ao seu olhar de mulher atenta. O que escapou foi o sentimento da moça, que o jovem não pode reconhecer, por estar ela protegida por seu véu de noiva. É duplo no caso o papel desempenhado pelo véu: ao mesmo tempo em que se presta a desvendar a alma do jovem aos olhos da amada, pois ao romper-se o véu pode ela ver o que acredita ser a verdadeira face masculina, o véu esconde o que a moça não quer revelar. O título do conto El encaje rotob aponta para algumas possibilidades: Uma renda que se rompe num infeliz acidente, envolvendo o traje da noiva? Uma relação que se rompe, porque não resiste a um acontecimento banal? E Micaelita desvenda a verdadeira face de Bernardo? Detecta-se, no decorrer da narrativa, o empenho da mulher em certificar-se de algo que ela intuía e sua frustração ao não lograr seu intento: “Lo único que sentía era no poder estudiar su carácter” [...] “pero yo le veía siempre cortés, deferente, blando como un guante.” Na verdade, a noiva temia estar sendo enganada por uma falsa visão do noivo e maldizia a sujeição da mulher solteira, impedida de estar nos mesmos lugares em que podia estar o pretendente: “Maldecía yo mil veces la sujeción de la mujer soltera, para la cual es imposible seguir los pasos a su novio, ahondar en la realidad y obtener informes leales, sinceros hasta la crudeza -los únicos que me tranquilizarían”. Com rasgar-se o véu, rompe-se a relação tecida de forma aparentemente resistente, mas frágil na realidade: ”En aquel momento solemne, al verlo (o véu) realzado por el denso raso del vestido, me pareció (..) que su tejido, tan frágil y a la vez tan resistente, prendía en sutiles mallas dos corazones” É possível constatar-se a falta de segurança de Micaelita, o que a leva a buscar elementos exteriores para dar sustentação a sua relação com Bernardo. A autora dá relevo especial neste, como em outros contos, à questão do caráter logogrífico com que é identificado o feminino. No fim da vida, Freud declara sua perplexidade diante do mundo feminino e confessa ignorar o que quer uma mulher. Deixemos falar a narradora de El encaje roto: “Y en el caso de Micaelita, al par que drama, fue logogrifo. Nunca llegó a saberse de cierto la causa de la súbita negativa”. As informações colhidas entre os conhecidos somente serviam para “... oscurecer más el extraño enigma que por largo tiempo dio pábulo a murmuración, irritada con el misterio y dispuesta a explicarlo desfavorablemente” Observe-se 203 Hispanismo 2 0 0 6 que, além do noivo, os demais envolvidos também se sentem traídos por não entenderem os motivos para a atitude tomada. A ironia perpassa essa informação, pois, na verdade, a percepção social/patriarcal é a responsável pela decisão do que pode ser considerado ou não como verdade. Com a versão pouco clara dos fatos chega-se à metade do conto, quando, de súbito, a narradora muda o tom do relato e explica os fatos, segundo o ponto de vista de Micaelita, que ela encontra “A los tres años -cuando ya casi nadie iba acordándose del sucedido de las bodas de Micaelita”. A jovem declara à narradora que não explicou o motivo de sua renúncia ao casamento porque “por su misma sensillez [...] No se hubiesen convencido jamás. Lo natural y vulgar es lo que no se admite. Preferí dejar creer que había razones de esas que llaman serias...”. Falando da verdade heraclitiana, Heidegger diz que acreditamos com excessiva rapidez naquilo que sabemos, ou seja, reconhecemos apenas o que é senso comum, o que é concreto. É preciso duvidar das nossas crenças mais arraigadas, que nos impedem viver a experiência verdadeira e fugir da representação ilusória do mundo. (HEIDEGGER 2001, p. 229) Essa rapidez de que fala Heidegger pode ser explicitada pelos estereótipos estabelecidos sobre a mulher, dos quais a autora lança mão para registrar a percepção geral acerca do comportamento da noiva: é caprichosa, duvidosa, falsa, fingida: “Micaelita se limitaba a decir que había cambiado de opinión...”; e as jovens mais próximas da noiva “referían que estaba loca de contento y tan ilusionada y satisfecha, que no se cambiaría por nadie”. Quer dizer, as próprias amigas se deixam levar pela primeira impressão, pelo mais fácil. O espanto diante do simples não se mantém e prevalece o senso comum, indiferente ao brilho do mistério na simplicidade da clareira. (HEIDEGGER, 2001, p. 249) A situação vivida por Micaelita nos remete a Poe, que, em A carta roubada, explora a idéia da verdade escancarada no “velado”, pois, como no texto do autor americano o objeto buscado passa despercebido pela excessiva evidência - estava a carta da Rainha pendurada na lareira no meio da sala, como um “enorme corpo de mulher - também na narrativa de Emilia a verdade estava ali para quem quisesse realmente vê-la: "porque el caso ocurrió allí mismo, delante de todos; solo que no se fijaron [...]. Lo natural y vulgar es lo que no se admite”. São muitos os exemplos de situações em que se pode identificar uma verdade evidente sutilmente velada na obra pardobazaniana, como no fragmento de La novia fiel: 204 Volume 4 | Literatura Espanhola Un día.... sin saber cómo, sin que ningún suceso extraordinario, ninguna conversación sorprendida la ilustrase, acabaron de rasgarse los últimos cendales del velo... Amelia veía la luz; en su alma relampagueaba la terrible noción de la realidad; y al acordarse de que poco antes admiraba la resignación de Germán y envidiaba su paciencia, y al explicarse ahora la verdadera causa de esa paciencia y esa resignación incomparables... Micaelita é uma mulher que responde aos padrões da sociedade e se encaixa nos moldes da estrutura patriarcal. O papel feminino que lhe cabe é cumprido à risca: na aliança, no vestido de noiva, na herança que trazia do tio e, principalmente, no compromisso de seguir as regras representadas pelo uso do tradicional véu da família do noivo, recebido como herança. Ela diz sim a todas as coisas, envolve-se na renda frágil que parece prendê-la, mas a renda se rompe e ela tem a coragem de dizer “não”. O romper-se da renda seria uma forma de expressar-se o desejo de Micaelita? O acontecimento teria sido desejado por ela, que afinal não estava tão entusiasmada assim com a boda. Ela “acreditava” estar apaixonada pelo noivo. A escolha de uma narradora –um ponto de vista feminino, portanto– deve ser considerada. A narradora homodiegética toma parte da história como testemunha da confissão da protagonista. Tem poder de opinar sobre os fatos junto ao leitor e pessoaliza comentários com adjetivos modalizadores: Lo peculiar de la escena provocada... Todo eso, dentro de la vida social, constituye un terrible drama. Micaelita se limitaba a decir que había cambiado de opinión y que era bien libre y dueña de volverse atrás, aunque fuese al pie del ara, mientras el “sí” no hubiera partido de sus labios.” Acredito, recorrendo a Booth, que não é importante ser a história contada em primeira ou terceira pessoa, pois o que importa é como o narrador se relaciona com certos efeitos dessa narrativa e o efeito narrativo vai depender de “o narrador ser, ou não, dramatizado individualmente e de as suas crenças e características serem, ou não, partilhadas pelo autor” (BOOTH, 1980, p. 167). A importância do narrador no conto se deve, portanto, ao fato de lhe serem permitidas crenças e opiniões acerca dos fatos. O velar/desvelar apresenta-se como uma das estratégias utilizadas pelas mulheres na tentativa de se fazerem donas de seu espaço e de seu destino, na busca de uma voz que a represente fora das normas patriarcais, tarefa levada a sério por Pardo Bazán, na construção das muitas mulheres que habitam o seu extenso mundo ficcional. 205 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas BOOTH, Wayne C. A retórica da ficção. Trad. Maria Teresa Guerreiro. Lisboa: Arcádia, 1980. GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Lisboa: Arcádia, 1979. Tradução Fernando Martins. HEIDEGGER, Martin. Aletheia (Heráclito, Fragmento 16). In: - Ensaios e conferências. 2. ed., Petrópolis: Vozes, 2001. Tradução Emmanuel C. Leão, Gilvan Fogel, Márcia Sá C. Schuback. HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000. Tradução Julio Jeha. PARDO BAZÁN, Emilia. Obras Completas: Novelas y cuentos..Madrid: Aguilar, 1947, 2 tomos. Estudio preliminar notas y prólogo de Federico Carlos Sainz de Robles. _____. Cuentos. Acesso 2004. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/bib_autor/pardo_bazan/cuentos.shtml POE, Edgar Allan. A Carta Roubada. Disponível em: http://www.ufrgs.br/ proin/versao_2/poe/index31.html RAMOS, Marai Dolores & VERA, Maria Teresa (Coord). Discursos, realidades, utopías: la construcción del sujeto femenino en los siglos XIX-XX. Barcelona: Anthropos, 2002. Notas a b Este texto faz parte da tese de Doutorado orientada pela Profª Drª Silvia Cárcamo nos cursos de Pós-Craduação da UFRJ. Cito pela edição virtual do Cervantesvirtual, indicada na referência; por esse motivo não se indicam as páginas dos fragmentos dos textos ficcionais de Pardo Bazán. 206 Volume 4 | Literatura Espanhola Acerca de la recepción del surrealismo Ruben Daniel Méndez Castiglioni ( UFRGS) Observando los comentarios e interpretaciones que se han hecho sobre el surrealismo y sus protagonistas, podemos aproximarnos a algunas conclusiones en este breve espacio acerca de cómo fue la acogida del más importante movimiento del siglo XX, es decir, cuál fue el grado de aceptación, el reconocimiento que tuvieron los surrealistas que escribían en español o bien que lo hacían en francés pero eran españoles. Hoy nos parece obvio decir que un Dalí o un Buñuel eran surrealistas de gran genio, que supieron, como ellos mismos, ser lo que fueron. Pero no les fue fácil. Hay otros autores de los cuales casi no se habla y que recibieron la poca suerte o el limitado favor de la crítica, que necesitaron pasar años hasta que sus textos, su poesía, tuvieran un cierto reconocimiento o un cierto grado de reconocimiento, por ejemplo, en Argentina, Aldo Pellegrini y Enrique Molina, en Perú, Cesar Moro, en Chile, Braulio Arenas, sólo para citar algunos de ellos. Los propios surrealistas franceses cuando comenzaron a atacar lo que consideraban valores burgueses recibieron a cambio el desdén y el silencio de los órganos de comunicación más importantes de París. En Argentina, el pionero del surrealismo en América Latina, el mencionado poeta Aldo Pellegrini aunque se hubiera dedicado por tanto tiempo a la traducción de los manifiestos franceses y a la divulgación del ideario surrealista, inclusive fundando un grupo y organizando publicaciones desde 1926, apenas en 1952 fue oficialmente mencionado. Tuvieron que pasar años para que la crítica, o más bien, el Partido Comunista Argentino acusara a los surrealistas de su país de querer “cambiar a la sociedad con una bomba onírica” (en Puyade, 1993, p.69), o para que una figura desconocida y posiblemente portavoz de lo oficial como Osiris Troiani se dedicase a decir cosas que en realidad no entendía (como ya hemos expuesto anteriormente) en una carta abierta publicada en el nº 5 (1954) de la revista Capricornio, de Buenos Aires, con el título “Epístola a los surrealistas” y que fue escrita, como se puede ver, muchos años después del último número de la revista surrealista Qué (1930), después de la publicación de las revistas (surrealistas o influenciadas por el surrealismo) Ciclo (1944-1949) A partir de cero, y Letra y línea (todas con la participación de Pellegrini y sus amigos) y después que Aldo Pellegrini publicó sus libros de poesía El muro secreto (1949) y La valija de fuego (1952). Borges y Bioy Casares tampoco se quedaron callados. Sin la guerrita de los de Martín Fierro contra los de Boedo o ya cansados de esto, 207 Hispanismo 2 0 0 6 destilaron lo que llamaron su “aporte positivo”, publicado en el nº 17 de Buenos Aires literaria y que fue respondido a su altura en el nº 4, página 16 de Letra y línea (1954). Con el título “Borges y Bioy Casares, paladines de la literatura gelatinosa”, el grupo surrealista argentino define los dos escritores como “conocidos fabricantes de repostería literaria para uso de las niñas de la buena sociedad”. No hay duda de que parte de la intelectualidad argentina se sentía incómoda con la literatura de combate de los surrealistas, con la audacia de las publicaciones que atentaban contra las llamadas buenas costumbres. Había una gran distancia y mucha intolerancia entre los surrealistas y aquellos que se sentían atacados en su prestigio y posición, que los acusaban de ser apenas seguidores de todos los pasos del surrealismo francés. Al otro lado del inmenso océano, en España, se veía al surrealismo como algo “feo” hecho por “locos” franceses. Al fin y al cabo, no era el tan español ultraísmo. Guillermo de Torre, entre idas y vueltas, calificó al surrealismo como “amanerado y estéril”, y opinaba que la escritura automática no tenía el grado de automatismo absoluto que era pregonado por los surrealistas y esto le llevaba a cuestionarse la validez de los métodos que el grupo surrealista usaba, temiendo que lo que sí hiciesen fuese incurrir en supercherías. Podemos ver en su Historia de las literaturas europeas de vanguardia (1965) la insistencia en los ataques al movimiento surrealista. Por ejemplo en la página 449 encontramos: (…) quiso ser una Weltanschauung y una praxis, una concepción y un sistema de vida y de acción peculiares. Estuvo obseso por la fusión de los contrarios y el apetito de unidad. Cambiar la vida y transformar el mundo, al parecer son metas no conciliables. El reino de la necesidad y el de la libertad no convergen. Ahora bien, lo asombroso no es su fracaso sino el mero hecho del intento. En las páginas de La Gaceta Literaria (nº 94 de 1930) Guillermo de Torre responde desde Buenos Aires a un cuestionario organizado por Miguel Pérez Ferrero con el tema ¿Qué es la vanguardia? En esta respuesta encontramos las bases del pensamiento de este critico. Manifiesta claramente que “ha existido la vanguardia como fuerza de choque contra el obstáculo de las fuerzas pasadistas”, que es algo “rebosante de desfogues líricos y vehemencias combativas” y que fue “el pronunciamiento bélico de una generación”, aunque “su existencia actual ya es algo hipotético”, pero que “existe potencialmente“. Anclada en el grupo, la vanguardia se “disuelve” cuando no “existe armonía” o “cohesión disciplinaria”, concluye. 208 Volume 4 | Literatura Espanhola Este es el pensamiento de Guillermo de Torre, pero no estaría completo sin atacar al surrealismo y sus integrantes. Siguiendo con la idea de la cohesión y la disciplina, dice: Cohesión que no puede sostenerse mucho tiempo. Empecatarse en ello es exponerse a las actitudes antipáticas, al ridículo. (Esa es, por ejemplo, la impresión que produce hoy un André Breton y la lectura de las grotescas sesiones superrealistas que causaron, no ha mucho, la definitiva escisión de su grupo. La convivencia plural solo puede ser momentánea y táctica, no espiritual. Lo ideal, es lo individual, conforme Guillermo de Torre. Otro español, José Ortega y Gasset, al referirse a lo que consideraba la deshumanización del arte, siguiendo los mismos rieles, se refería al surrealismo en España (con amplias repercusiones en América) como un “arte degenerado” o “deshumanizado”, lo que fue criticado por el surrealista argentino Aldo Pellegrini (en una conferencia pronunciada en 1964 [PELLEGRINI, 1965, p.19-21]), y por el escritor Ernesto Sábato (1986, p.35), que consideraba que no había una crisis en el arte, sino que existía un arte de la crisis. El propio Ortega y Gasset colaboró en el primer número de la más que importante revista La Gaceta Literaria, publicación madrileña que, como se sabe, contó con una nómina excelente de escritores y que fue dirigida por Ernesto Giménez Caballero, personaje extremamente importante en el ámbito de las letras como promotor, autor, director, y que también nos sirve de base para analizar los primeros impactos que ocasionaron, por ejemplo, Salvador Dalí, Luis Buñuel y el surrealismo en general en la crítica española. Giménez Caballero, desde la Gaceta literaria, editó libros, organizó banquetes y abrió la famosa “La Galería”. También incentivó exposiciones, por ejemplo la del Libro Catalán, en Madrid - 1927 - y la del Libro Portugués - 1928. En las páginas de la revista se pueden ver autores relacionados a Italia, lo que se debe a su interés por el futurismo - inclusive hay una entrevista suya a Marinetti. También se le debe atribuir, además de haber viajado a Alemania para intentar agregar a Hitler a la familia real y tratar de darle a España lo que consideraba su “rol tradicional” en el escenario mundial, otro tipo de hecho, como lo fue la fundación del primer Cine-Club de España dónde se estrenó la película Un perro andaluz. De su Gaceta Literaria salieron muchos de los formadores de la izquierda y la derecha española. Cuando se proclamó la República, en 1931, sus colaboradores le abandonaron debido a su defensa del fascismo. La revista se publicó hasta 1932, y como “Robinson literario” tuvo que escri209 Hispanismo 2 0 0 6 bir él sólo seis números. Uno de estos números, el 96 (1930), y cuyo titulo es “El escándalo de L´Age d´Or en Paris Palabras con Salvador Dalí” relata una entrevista en la casa del surrealista a cargo de Giménez Caballero. El objetivo evidente de la entrevista es el de atacar al surrealismo. Después de aparentemente elogiar a Dalí, dispara: Se diría que la escuela surrealista es un colegio más que una escuela. Desde luego no es una secta ni una facción. El surrealismo se dice a si mismo “al servicio de la revolución”. Y lo está teóricamente. Como un cristal de una mano extraña que lo quiebra de un puñetazo. El surrealismo quiere desmoralizar, destruir. Pero el superrealismo es por hoy una caza a incautos. Una morfina más, un estupefaciente más que los zorros y las zorras de siempre dan a los niños sanos de la burguesía para envenenarlos y para encanallarlos. El superrealismo es una disolución de clase burguesa, y los conejos de Indias, esos superrealistas manejados por el bolchevique, el judío o el fascista, por el camelot, por el faccioso. La entrevista se desarrolla sobre la película L´Age d´Or y el entrevistador finge no saber qué ha pasado, aunque le dice al lector que sí lo sabe. Dalí responde: Se trata de una violenta agresión de los camelots du Roi, perfectamente organizada. Sesenta camelots, a un momento dado, interrumpieron la proyección de L´Age d´Or con un formidable escándalo de silbidos y gritos, echaron tinta sobre el ecran, al mismo tiempo que bombas de gases nauseabundos. Los espectadores que trataron de reaccionar fueron violentamente agredidos. La Exposición de pintura surrealista instalada en el vestíbulo del cine, fue casi absolutamente destruida (triturada). La Exposición de libros, documentos, revistas surrealistas, instalada en el bar, fue igualmente hecha añicos. Naturalmente fueron rotos todos los cristales, fotografías de los surrealistas, etcétera, etc. (…) Después de la intervención de la policía se repararon las manchas de tinta del ecran con papel pegado, y L´Age d´Or continuó hasta el fin en una atmósfera de sobreexcitación de las más reconfortantes. Giménez Caballero retruca con la supuesta información de que en España se había creído que toda esa agresión partió de los surrealistas porque protestaban contra “el gesto de Buñuel marcharse al país del dólar en un puesto secundario e indigno de él”, y dice con ironía, “hay que hacer rectificar urgentemente”. Gimenez Caballero está dispuesto a justificar la participación de Dalí y Buñuel en el surrealismo: 210 Volume 4 | Literatura Espanhola Quiero a Buñuel con admiración. Es un alma nobilísima y la menos inmoral del mundo. El superrealismo es un refugio de su ansia moral. Es inmoralista por moralidad (subr. nosotros) Pero creo que Paris le corrompía de veras y ha hecho bien en soltar las amarras de cualquier modo, por absurdo que resulte al pronto. La agresión le hace “admirar fuertemente a los camelots du Roi”, porque habrían sido “más superrealistas que vosotros”, le dice a Dalí, provocándolo. Dalí responde que siempre estuvieron dispuestos a la batalla, pero que después de unos días de tranquilidad pensaron que nada ocurriría y bajaron la guardia, fue cuando fueron sorprendidos. A lo que Guiménez Caballero responde, o por lo menos escribe que le responde: “Querido Dalí: para ser guerrero hay que dormir en vela y no retirarse nunca. El que se retira es un cobarde, y vosotros lo habéis sido en este caso. Estoy seguro de que no preparáis revancha. De que estáis achicados.” Giménez Caballero no escribe ninguna reacción del surrealista, ninguna réplica, nada. La entrevista parece la excusa para la crítica y el (aparente) silencio del interlocutor a los ataques, dejan entrever la concordancia. O Dalí concuerda o bien Dalí ha reaccionado pero Giménez Caballero no lo dice. Prerrogativas del entrevistador y dueño de la publicación. En la entrevista a Dalí, es el surrealista quien menos ha hablado hasta el momento. Al pedírsele explicaciones acerca del film, Dalí ensaya una explicación pero Gimenez Caballero dice lo que le ha parecido a él. Y que es lo que a nosotros más nos interesa: Yo quiero ante todo decirte, Dali, que, así como Un chien Andalou vuestra violencia y vuestro instinto eran sinceros, geniales, en L´Age d´Or me parecen mixtificados. Al servicio de Víctor Basch, de la revolución francaise, anticatholique et sensuelle. Creo que es el film más profundamente burgués que se ha hecho hasta la fecha nunca. Y cuya esencia no os pertenece ni a ti ni a Buñuel. Creo que sois unas inocentes víctimas de un cabaret ideológico, de un paraíso artificial, de una edad de oro que no soñáis en el fondo, porque si la soñaseis estaríais en el arroyo de París muertos de hambre y de frío, ensuciándoos en la vida con todos vuestros espasmos intestinales. En resumen: Giménez Caballero ve a Buñuel en el surrealismo como refugio de su ansia moral (aunque lo vuelva inmoral) y Dalí es el niño sano engatusado y encanallado por los surrealistas. Ambos son víctimas, y esto los salvaría - de alguna manera. 211 Hispanismo 2 0 0 6 Tanto en España como en América, el surrealismo tuvo enemigos feroces dispuestos a frenarlo. Hoy el surrealismo es considerado por algunos como un movimiento artístico y cultural de los más (sino el más) importante del siglo XX, y por otros como un estado de espíritu que se perpetúa a través del tiempo. Las ideas que impactaron en su época hacen eco en la actualidad y el interés es notorio como pudo verse en el reciente congreso organizado en Tenerife: Surrealismo Siglo XXI. Referencias Bibliográficas Sobre el surrealismo español en general ARANDA, Francisco. El surrealismo español. Barcelona: Lumem, 1981. GARCÍA, Jesus G. La recepción del surrealismo en España. La critica de las revistas literarias en castellano y catalán. Granada: Antonio Ubago, 1984. ORTEGA Y GASSET, José. La deshumanización del arte y otros ensayos estéticos. Madrid: Revista de Occidente, 1958. Sobre el surrealismo BRETON, André. Conversaciones (1913-1952). Traducido por Leticia Hulsz Piccone. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica , 1987. -----. Manifiestos del surrealismo. Traducción, prólogo y notas de Aldo Pellegrini. Buenos Aires: Argonauta, 1992. CASTIGLIONI, Ruben Daniel Méndez. Historia y circunstancia: Ernesto Sábato,el hombre y su literatura. (Dissertação de mestrado) Porto Alegre: Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul, 1993. -----. Aldo Pellegrini, surrealista argentino. (Tesis de doctoramiento) Porto Alegre: 2000. GUIOL-BENASSAYA, Elyette. La presse face au surréalisme de 1925 à 1938. París: Éditions du Centre National de la Recherche Scientifique, 1982. PELLEGRINI, Aldo. El movimiento surrealista. Cursos y conferencias. Buenos Aires, 1950. -----. Nacimiento y evolución del movimiento surrealista. Cursos y conferencias. Buenos Aires, 1951. PONGE, Robert (Org.) O surrealismo. Porto Alegre: UFRGS, 1991. -----. Surrealismo e Novo Mundo. Porto Alegre: UFRGS, 1999. SÁBATO, Ernesto. Hombres y engranajes - Heterodoxia. Madrid: Alianza, 1993. -----. El escritor y sus fantasmas. Buenos Aires: Emecé, 1986. Sobre estética de la recepción 212 Volume 4 | Literatura Espanhola ACOSTA, Luis A. Gomez. El lector y la obra. Teoría de la recepción literaria. Madrid: Gredos,1989. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Perspectiva, 1989. Otras obras CABALLERO, Ernesto Giménez. Memorias de un dictador. Barcelona: Planeta, 1979. ORTEGA Y GASSET, José. Meditación de nuestro tiempo. Las conferencias de Buenos Aires, 1916 y 1928. México: Fondo de Cultura Económica, 1996. TORRE, Guillermo de. Historia de las literaturas de vanguardia. Madrid: Guadarrama,2001. ---. Historia de las literaturas europeas de vanguardia. Madrid: Guadarrama, 1965. ---. Literaturas europeas de vanguardia. Madrid: Caro Raggio, 1925. Revistas La Gaceta Literaria nº 1 al 123. Vaduz/Liechtenstein; Madrid: Topos Verlag AG; Turner, 1980. 391 Barcelona, Leteradura, 1977. L´Amic de les Arts. Sietges, 1929. Gaceta de Arte nº 1 al 36. (1932-1935). 213 Hispanismo 2 0 0 6 Escritas do exílio republicano espanhol. Valeria De Marco (USP) Aproximar-se à obra dos autores do exílio republicano espanhol requer do leitor um ângulo de interpretação do século XX desenhado por proposições diferentes, mas contíguas, de diversos autores. Hosbauwm observa que em nenhum outro período da história o homem usou tão intensamente sua capacidade de destruir a própria espécie. Adorno adverte que toda a atividade de reflexão depois de Auschwitz exige uma perspectiva construída a partir do evento daquela barbárie. Hannah Arendt, aponta que os métodos de extermínio nazistas não apenas trouxeram para o cenário humano a banalidade do mal, mas também revelaram que o massacre administrativo é constitutivo do nosso tempo. Agamben postula que o campo de concentração é a metáfora do estado moderno, na medida em que identifica sua formação na aporia de uma inclusão exclusiva e de uma exclusão inclusiva. Esses traços permitem reconhecer que a característica singular do século XX é a prática sistemática da violência de estado e que esta gera sua outra marca: a transformação do refugiado em fenômeno de massa, como afirmou Said e também Agamben. O exílio republicano espanhol é um terrível evento dessa história. Dele conhecemos muitas fotos que registraram momentos de evacuação ou fuga de civis motivadas pelo avanço das tropas do general Franco durante a Guerra Civil Espanhola, tropas essas apoiadas, e quase sempre também constituídas, pelos exércitos da Itália e da Alemanha em um movimento tão nítido de expansão, naquele momento, do nazi-fascismo que levaria à II Guerra Mundial. Em 37, por exemplo, da costa norte saem navios de crianças com destino à URSS. Tinham os pais a esperança de recuperálas logo, assim que o governo republicano conquistasse a vitória. E é a falta de esperança que se vê nas tantas imagens reproduzidas nos jornais e revistas de todo o mundo da caminhada de meio milhão de espanhóis que cruzaram os Pirineus nos últimos dias de janeiro e primeiros de fevereiro de 1939, logo após a entrada em Barcelona dos tanques comandados por Franco. O matiz do desespero de um enorme contingente de republicanos que, em fuga de Madri e Valência, foram encerrados no porto de Alicante inscreveu-se em imagens literárias de alguns escritores, como em Campo de los almendros de Max Aub, ou pode ser encontrado em depoimentos de sobreviventes que conseguiram depois deixar a Espanha, caso, por exemplo, do historiador Tuñon de Lara. E ainda na história dessa massa de refugiados incidiria a violência da política colaboracionista francesa e dos desastres da II Guerra Mundial. Assim, na trajetória dos exilados 214 Volume 4 | Literatura Espanhola republicanos espanhóis encontra-se não apenas a morte, mas também o lento processo de aniquilamento da condição humana que se dá na passagem deles pelos campos de concentração franceses, pela indústria bélica mantida com trabalhos forçados e pelos campos alemães. Se essa origem do êxodo espanhol torna-o exemplar da ampla série de exílios de nossa época, é preciso considerar certos elementos que caracterizam sua singularidade. O primeiro é o inegável fato de que esta enorme massa de refugiados defendera nos campos de batalha uma utopia. Soldados do exército regular, o do governo legalmente constituído, homens e mulheres comuns da Espanha bem como de outros tantos países, os que integraram as “Brigadas Internacionais”, pegaram em armas para lutar pelo direito e, não só pelo sonho, de construir um modelo social, que não era único nem consensual, pois sabemos das divergências políticas profundas constitutivas do campo republicano. No entanto, as pessoas daquele enorme contingente humano identificavam-se como integrantes de uma comunidade antifascista e sentiam-se representantes de um movimento internacional que punha a nu a hipocrisia das supostas democracias européias patrocinadoras do pacto de não intervenção na Guerra da Espanha. O segundo elemento particular do caso espanhol, estreitamente vinculado ao anterior, é o fato de haver nessa massa de refugiados um grande número de pensadores, cientistas, artistas e escritores. Em suas obras ocuparam-se tão intensamente da elaboração dessa vivência que deles herdamos uma extensa e diversificada biblioteca na qual se encontra uma ampla gama de imagens e interpretações dessa experiência histórica. E tal biblioteca se presta tanto ao conhecimento da Espanha peregrina quanto à reflexão sobre o exílio como processo histórico, como dimensão social e existencial da condição humana desta nossa época, ou ainda quanto ao estudo, no campo literário, da procura de um modo para representá-lo. Lendo diferentes textos de um mesmo autor e diversos autores pode-se montar um mosaico de percepções e concepções do exílio que se objetivam em distintas formas literárias. O percurso pode levar o leitor a apreender a referida biblioteca como uma narrativa extensa e plural, porque escrita por um coletivo de poetas, narradores, ensaístas e teatrólogos, que narra de modo fragmentário e dissonante os longos anos do exílio republicano espanhol. Um privilegiado momento inicial desta vasta obra composta a múltiplas mãos encontra-se em um livro de poemas de Alberti pouco lido e estudado. Trata-se de Vida bilingüe de un refugiado español en Francia (1939-40), título que abriga um conjunto de nove poemas nos quais encontra-se uma elaboração estética da passagem de Alberti pela França 215 Hispanismo 2 0 0 6 de onde saiu em fevereiro de 40 para a Argentina. Poucos são os textos literários que captam de modo tão intenso o desconcerto provocado por um violento deslocamento, pois este aqui se expressa na voz de um “eu” capaz de traduzi-lo na construção de um não-lugar histórico e doloroso, lócus de um contínuo despertar: Me despierto. Paris. ¿Es que vivo, es que he muerto? ¿Es que definitivamente he muerto? Mais non… C’ est la police. Mais oui, monsieur. Mais non… (Es la Francia de Daladier, la de monsieur Bonnet, la que recibe a Lequerica, la Francia de la Liberté.) (ALBERTI, 1988, p.37) Despertar nesse lugar não exige macular um topos literário e reconhecer no canto do pássaro a perversidade da traição, a traição da França da Frente Popular que fechou os olhos à ascensão do fascismo, assinou o pacto de não intervenção, reconheceu o governo de Franco um mês antes de terminar a Guerra Civil e indicou o Marechal Pétain como seu embaixador na Espanha: Mirlo mirlillo: ¿te vienes a Madrid? Canta, cuquillo, canta en francés: –Cocu, cocu, cocu! Sé que en tu canto aludes a quienes yo me sé. –Cabrón, cabrón, cabrón. Canta la traducción en honor a la Francia de la contra Revolución. (ALBERTI, 1988, p.39) 216 Volume 4 | Literatura Espanhola Despertar nesse não-lugar é conhecer a humilhação e dar-se conta que a redução do homem se faz de modo eficaz com a redução do acervo cultural: Musée du Louvre. El Prado. Una peseta. Nada. Mais ça c’est trop: 3 francos. (Il ne faut pás oublier que vous étes um pauvre émigré) (ALBERTI, 1988, p. 42) Despertar nesse não lugar é perceber que a grande pintura da Espanha apequenou-se, pois, para encontrá-la, é preciso traduzir o vasto acervo do Prado pela expressão “a escola espanhola”. E na prosaica pergunta de seu verso – “-Ou est l’école espagnole?”— o poeta macula outro topos literário: o do ub sunt, tão consolidado modo de evocar a plenitude do tempo passado. Assim, o verso alude à expropriação de um sinal de identidade do refugiado e indica que sua miséria não é apenas a falta da miudeza material de teto e comida; é a carência das formas de expressão da alma que lhe eram familiares, que haviam cultivado sua dimensão humana. A pergunta abrupta e sem resposta opera a reterritorialização do ubi sunt e lhe dá o estatuto de epifania: o real campo ou universo do refugiado configura-se como inferno porque a ele é vedada a convivência com o belo, essa produção humana social que estabelece a linha divisória entre, de um lado, a espécie animal e o reino da natureza e, de outro lado, o homem e o reino do cultivo ou da cultura. Talvez seja o acesso a esta revelação que dê ao livro de Alberti o caráter de uma reflexão sobre a ação cultural, entendida como criação ou preservação. Diferentes movimentos dos poemas alimentam essa leitura. Ora um verso reproduz uma propaganda da época: este subir y bajar las escaleras del Metropolitano, este ir leyendo sin querer DUBO DUBON DUBONNET (ALBERTI, 1988, p. 41) Ora surge o tom da evocação para resgatar um dos tantos episódios da Guerra Civil protagonizados pelos integrantes da Junta de los Intelectuales Antifascistas para salvar o patrimônio cultural de bombardeios ou pilhagens: 217 Hispanismo 2 0 0 6 Motores. ¡Alerta, milicianos! Mientras por la amenazada neblina se van perdiendo las Meninas y el Carlos V de Ticiano ¡Noche aquella sin sueño! (ALBERTI, 1988, p. 43) Ora alude-se a uma certa continuidade da mesma ação na França indicando a preocupação de intelectuais de consciência internacionalista: – Quele heure est-il, monsieur? (sic) Hora de reunirse em Comitê Para seguir salvando a la cultura De esta ola de basura Donde va a desaparecer. Moussinac. Aragón. Mañana habrá otra reunión. A tout a l’heure! (ALBERTI, 1988, p.40) No livro de Alberti, o leitor reconhece o perfil da poesia surrealista. A sobreposição não habitual de duas línguas, a superposição arbitrária de versos e de estrofes e a seqüência casual de poemas apenas numerados convidam à leitura que desrespeite a linearidade da página ou da sucessão de páginas e poemas. O livro induz ao movimento de repetir a operação de leitura praticando o jogo do cadáver esquisito e consolida seu universo como um móbile de estilhaços e de cenas que reiteram o choque de ser lançado em um mundo estranho, política, lingüística e culturalmente, de ser acossado pelo outro (“C’est la police”/ “Avez-vous vôtre récépissé”) e de sequer ter o estatuto jurídico internacionalmente reconhecido (“Vous êtes un pauvre émigré”) Assim, o recurso à condensação lírica e à arbitrariedade da pauta surrealista sustenta a eficácia estética do livro na expressão do choque como primeira percepção aguda do exílio. Figura-se um “eu” que perdeu parâmetros de tempo e de espaço, que oscila entre duas línguas e que, por causa de tantas fraturas, não pode projetar sua trajetória em um traçado contínuo ou em imagens de inteireza, mesmo que fossem elas momentâneas. Penso que o livro de Alberti propõe uma poética do choque como forma de elaboração estética da vivência do exílio. E ainda é possível lastrear essa interpretação se compararmos as escolhas feitas na composição desse conjunto de poemas a outras presentes em outros livros em que o poeta retoma a mesma vivência, mas as elabora explorando outras formas 218 Volume 4 | Literatura Espanhola literárias. Leiam-se os poemas de A la pintura, a peça Noche de guerra en el Museo del Prado, trechos memorialistas de La arboleda perdida, ou ainda o texto “Mi última visita al Museo del Prado”, publicado em 37, em El Mono Azul, periódico destinado às frentes de batalha, texto em que Alberti narra a evacuação dos quadros do Prado, ressaltando o caráter heróico dos milicianos que os salvaram dos bombardeios a Madri. Apenas para apontar outro momento significativo da vivência do exílio republicano espanhol, em seu caráter tanto individual como coletivo, menciono um dos primeiros ensaios de experimentação estética de dois outros grandes autores: José Bergamín e Max Aub. Ambos objetivaram na forma, no título e na composição de uma revista individual outra dimensão do deslocamento imposto a eles pela violência, que poderíamos considerar como subseqüente ao choque plasmado por Alberti. A revista de Bergamín ganhou o nome de El pasajero (de 1943 a 44, 3 números); a de Aub, Sala de espera (de 1948 a 51, 30 números). Não temos aqui tempo de analisar a estruturação de cada uma. Registro apenas que há uma coerência entre os títulos e a montagem de ambas. Elas expressam, cada uma a seu modo e com recursos literários também diversos, a percepção do exílio como vivência de um período temporário. Ou seja, ambos os projetos estéticos prestam-se a registrar uma expectativa coletiva de que o desterro seria breve. Para exemplificar tal leitura, pode-se comentar brevemente Tránsito, a peça em um ato que inaugura a série de Aub. O texto põe em cena, com diálogos curtíssimos, entrecortadas intervenções em tom de interpelação, a vida em suspenso de Emilio. No palco, a alternância de luz e sombra sobrepõe dois espaços: o quarto precário do México e a casa familiar deixada na Espanha. No primeiro, não há marcas da passagem do tempo enquanto que na Espanha, os filhos crescem e deixam de ter assunto para escrever ao pai. Enquanto este continua afirmando que faria o que fez na Guerra, especula sobre como teria sido a sua vida se ela não tivesse acontecido. Escrita em 1944, a peça encena o exílio como concomitâncias de espaços –México e Espanha- e de tempos: o presente de cá e de lá, as diversas camadas do passado e a agônica instância do futuro do pretérito, a da especulação: o que teria sido se não tivesse havido a sublevação fascista? Essa articulação de diferentes tempos sugere que o exílio anula o presente como lócus de construção do futuro; a sobreposição de espaços e tempos anula a possibilidade de ter no palco uma representação de percurso, de planejamento de trajeto ou de retorno, parâmetros que, por sua vez, são cânones da narrativa de viagem. Ao preterir essa sintaxe e escolher o gênero dramático, Aub contrapôs o deslocamento voluntário 219 Hispanismo 2 0 0 6 do viajante àquele imposto ao refugiado e expressou-o em uma poética do trânsito por concomitâncias. Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio Medios sin fin. Notas sobre la política. Trad. Antonio Gimeno Cuspinera Pre-textos, Valencia, 2001. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. ALBERTI, Rafael. Vida bilingüe de un refugiado español en Francia. In Poesía 1939-1963. Obras completas. Tomo II. Edición, introducción y notas de Luis García Montero. Madrid, Aguilar, 1988, pp. 37-55. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1999. AUB, Max. Transito. Obras completas. Teatro breve. Vol. VII-B. Edición crítica y estudio introductorio de Silvia Monti. Valência, Biblioteca Valenciana, Institució Alfons El Magnànim, 2002, pp. 81-93. HOBSBAWN, Eric A era dos extremos. O breve século XX (1914-1991). Trad. Marcos Santarrita. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. SAID, Edward. “Reflexões sobre o exílio” in Reflexões sobre o exílio e outros ensaios.Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, pp 46-60. 220 Pós-Guerra e a Contemporâneidade 221 Hispanismo 2 0 0 6 A casa da Rua Aribau: metonímias da violência do estado no romance Nada de Carmen Laforet Ana Paula de Souza (UFMT) Durante os primeiros anos da década de 1940, a Espanha saía da conturbada crise política que havia levado o país à deflagração de um dos mais violentos episódios da história da humanidade no século XX – a Guerra Civil Espanhola. Sob a alcunha do poder repressivo da ditadura franquista, o país assistia a uma significativa renovação estética na prosa. Denominada por críticos e estudiosos como Narrativa de pós-guerra civil, essa literatura exprimia o doloroso sentimento espanhol de derrota, a frustração dos ideais políticos e a angústia da falta de horizontes e perspectivas. A estética do tremendismoa que relatava ambientes e ações de forma exacerbada, grotesca e com fortes tons de brutalidade, foi empregada no romance precursor dessa renovação narrativa, a obra La familia de Pascual Duarte (1942) de Camilo José Cela. Seguindo pelo mesmo viés, a jovem e principiante escritora Carmen Laforet obteve o Premio Nadalb ao apresentar ao público o romance Nada (1945). Essa narrativa de título curioso propõe um enredo semelhante à trajetória de vida da própria autora: a protagonista Andrea, uma jovem órfã de apenas dezoito anos de idade, desembarca na cidade de Barcelona para cursar Letras e Filosofia, logo após o fim da Guerra Civil Espanhola. Na cidade “adorada en sus sueños por desconocida” (Laforet, 2003, p. 13), a personagem viveria com a família materna em uma casa localizada na região central da capital catalã. Uma residência que, assim como tantos outros edifícios das principais urbes espanholas, sobreviveu ao rastro de destruição provocado pela guerra, muito embora permanecessem registradas em sua materialidade as marcas da violência. Ao adentrar este espaço irreconhecível à sua memória infantil, a protagonista descobre que o edifício residencial de sua família não é o único a encontrar-se arruinado. A dignidade e a esperança de seus parentes encontram-se também destroçadas. Através do comportamento desequilibrado daquelas pessoas e das conturbadas relações familiares estabelecidas entre os mesmos, Carmen Laforet expõe uma negativa visão do mundo circundante e da vida na Espanha. Entretanto, como uma forma de compensação para a frustração latente no interior da casa da família, Andrea sente-se reconfortada nos diversos ambientes da cidade de Barcelona e, sobretudo na universidade, lugar onde mantém aprazíveis amizades e onde se permite experimentar a liberdade que sua alma juvenil anseia. 222 Volume 4 | Literatura Espanhola A narrativa constitui-se, portanto, a partir da dicotomia entre o positivo e o negativo, respectivamente representados pelas imagens dos espaços exteriores da cidade de Barcelona, e interiores da casa da Rua Aribau. Essa paradoxal duplicidade imagética leva-nos a tomar o espaço romanesco da obra Nada, como um aspecto formal que nos permite interpenetrar a multiplicidade de significações da rede interpretativa do texto laforetiano. Segundo Salvatore D’Onófrio (2004, p. 96, 97), o espaço no romance é duplamente funcional à medida que atua como parte do imaginário do escritor, ajudando a compor a instância ficcional da obra, do mesmo modo que vincula o enredo à realidade, conferindo-lhe verossimilhança. Deste modo, ao realizarmos um estudo do romance Nada, evidenciando a espacialidade em detrimento de outros elementos estilísticos da constituição narrativa, não pretendemos apenas desvendar as figuras de linguagem poeticamente criadas pela autora em suas descrições. Nosso objetivo é o de estabelecer relações de sentido entre a maneira como o espaço romanesco é configurado, a partir das coordenadas sócio-históricas que permeiam a literatura desse período, pois, conforme afirma Antonio Candido (2002, p. 4): “o externo (no caso o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.” No entanto, para além do contraste a princípio constatado entre as imagens da cidade e da casa, há outra oposição simbólica que nos desperta certa inquietação - a visão antitética por meio da qual a narradora protagonista contrapõe o edifício da casa da Rua Aribau no presente e no passado, através de suas recordações infantis. Na atualidade discursiva do romance, o aspecto exterior da casa da Rua Aribau no momento da chegada de Andrea a Barcelona, o hall de entrada onde a avó a recebe, o banheiro, o quarto improvisado e a sala de jantar, cenário dos desentendimentos familiares, são espaços que nos oferecem um conjunto de imagens negativamente construídas. A falta de claridade dos ambientes, a frieza envolta em um ar fétido e asfixiante, e a degradação dos objetos constituintes da residência, estabelecem perfeita simetria com o perfil dos seres humanos que ocupam aquele lugar. O comportamento perturbado que culmina nas extremadas e violentas discussões e agressões parecem refletir toda a deterioração do espaço físico que circunda os personagens. A todos esses signos de negatividade através dos quais a casa é representada, os interpretamos como Imagens demoníacas, emprestando o termo do crítico estadunidense Northrop Frye, que em Anatomia da crítica, assim define esse conjunto simbólico: 223 Hispanismo 2 0 0 6 Opuesta al simbolismo apocalíptico está la presentación del mundo que el deseo rechaza totalmente; el mundo de la pesadilla y del chivo expiatorio, del cautiverio, del dolor y de la confusión; el mundo tal como es antes de que la imaginación humana comience a trabajarlo y antes de que alguna imagen del deseo humano, tal como la ciudad o el jardín, se haya establecido sólidamente; mundo también del trabajo pervertido o inútil, de ruinas y catacumbas, instrumentos de tortura y monumentos de insensatez. (Frye, 1991, p. 195) Entretanto, no decorrer do romance há uma passagem na qual a narradora revela uma imagem completamente oposta à figura anteriormente descrita. Na manhã seguinte à sua chegada a Barcelona, Andrea se desperta entorpecida pelo sono mal dormido e pelo desconforto incitado pelas temerosas impressões que o aspecto decadente da casa havia lhe provocado na noite anterior. Naquele momento, a personagem experimenta instantes de semi-consciência e, como em um devaneio, retoma as prazerosas sensações pueris do passado da casa familiar. Segundo o filósofo francês Gaston Bachelard na obra A poética do espaço, as imagens poéticas advindas de situações do estado de inconsciência do sonho ou do devaneio, revelam experiências positivas sobre os espaços recordados: Por conseguinte, todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores oníricos consoantes. Já não é em sua positividade que a casa é verdadeiramente “vivida”, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. (...) E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um ânimo imemorial se abre para além da mais antiga memória. (...) É exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós. (Bachelard, 2005, p. 25, 26) Em consonância com o que afirma Bachelard sobre a positividade da qual se apropria a imagem da casa recordada, a residência na memória de Andrea é um ambiente novo, limpo e iluminado que permite, de portas e janelas escancaradas, a invasão da alegria luminosa do verão. Através dos reluzentes cristais vislumbram-se os campos dos arredores de Barcelona ainda carentes de povoamento. O elo que Andrea mantém com a casa da Rua Aribau através de suas recordações é indissolúvel em sua memória, porque tem de ser sólido para sustentar um dos principais eixos contrastivos ao redor do qual a narrativa é organizada – o paradoxo entre um presente arruinado 224 Volume 4 | Literatura Espanhola e um passado de beleza e alegria. No espaço querido do passado, Andrea era sempre bem recebida, com uma amabilidade descontraída que de certo modo a protegia. Sobre esse sentimento de aconchego transmitido pela casa através das lembranças antigas, esclarece Bachelard: Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da Infância Imóvel. Imóvel como Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade. (...) Quando se sonha com a casa natal, na extrema profundeza do devaneio, participa-se desse calor inicial, dessa matéria bem temperada do paraíso material. É nesse ambiente que vivem os seres protetores. (Bachelard, 2005, p. 25, 27) Diante do valor de segurança que a casa tem nas recordações passadas de Andrea, perguntamo-nos o que teria transformado seres protetores em seres repudiados, e um ambiente aprazível em um espaço de sofrimento? Parece-nos um tanto quanto ínfimo afirmar apenas que, a casa da Rua Aribau e o comportamento de seus habitantes se modificaram exclusivamente por causa do crescimento e da modernização da cidade de Barcelona. No entanto, encontramos no decorrer da narrativa uma informação que talvez nos possibilite elucidar essa questão. A narradora relata em uma breve passagem, que há exatamente três anos, com a morte de seu avô e o empobrecimento da família, foi tomada a decisão de permanecer apenas com uma das metades da extensão que a casa ocupava no andar do edifício. Essa alteração no modo de organizar o espaço provocou a desordem dos objetos sobrantes, e essas mudanças são explicadas por razões puramente econômicas. Entretanto é preciso que nos aprofundemos na significação dessas modificações e suas implicações no cotidiano da família da casa da Rua Aribau. É interessante observar que Andrea desembarca na Estação Ferroviária de Barcelona logo após o fim da Guerra Civil Espanhola, ou seja, no segundo semestre de 1939. Por conseguinte, podemos inferir que a morte de seu avô ocorreu exatamente no ano em que o conflito havia começado, 1936. O falecimento do patriarca da família aconteceu em um momento em que milhares de espanhóis perdiam suas vidas, sucumbindo diante da incapacidade de líderes republicanos e nacionalistas, que não tiveram habilidade para levar o país à liberdade democrática por meio de vias menos traumáticas. Com a morte do avô de Andrea, começava a derrocada do sonho republicano, e ascendia o triunfo da autoridade fascista. 225 Hispanismo 2 0 0 6 O deterioro material da casa da Rua Aribau é algo semelhante ao que se podia constatar em tantos outros edifícios da cidade de Barcelona que, segundo o historiador Martin Blinkhorn (1994, p. 61, 62), era uma das principais sedes dos aliados republicanos e palco de algumas das mais violentas batalhas travadas durante a guerra. A falta de recursos essenciais à vida humana como, luz, higiene e alimento, era uma privação que afetava a grande maioria da população espanhola e não apenas a família ficcional criada por Carmen Laforet no romance Nada. De acordo com os estudiosos Tamames e Quesada (2001, p. 126 – 127), durante os primeiros anos após o fim dos combates, o governo autoritário de Francisco Franco enfrentou uma grave crise econômica. Os gastos com o conflito foram exacerbados. As perdas humanas afetaram diretamente as camadas produtivas da sociedade. A agricultura atravessou dificuldades devido ao envolvimento dos camponeses nas batalhas no campo, e a situação foi agravada com rigorosas secas. Toda a infraestrutura do país encontrava-se desgastada e os índices de desemprego e miséria aumentavam de forma alarmante. Perante essa conjuntura social desequilibrada, a família de Andrea parece ser apenas um dos muitos exemplares das conseqüências desastrosas que a Guerra Civil Espanhola trouxe para a população daquele país. Ao analisar detidamente a ambientação ficcional criada por Carmen Laforet para o romance Nada, podemos concluir que o aconchego da casa dos avós, e o modo afável como a personagem era tratada por seus parentes durante suas viagens de férias, possibilitaram com que ela sonhasse com esse espaço como o único capaz de proporcionar-lhe um brilhante futuro. Ao retornar à cidade e ao adentrar a Rua Aribau e a casa de seus parentes, em meio à sujeira, à escuridão, à atmosfera sufocante e ao desmantelamento de móveis e objetos, Andrea assimila, aos poucos, a degradação que no transcorrer do tempo, havia tomado conta de toda a residência. Nessa narrativa, a decadência material atua como reflexo de toda a calamitosa penúria econômica pela qual passava a Espanha naqueles anos de imediato pós-guerra. E, para particularizar a realidade social espanhola no micro-cosmos representado pela família da Rua Aribau, fazendo das coordenadas sociais da época um elemento estilístico interno ao foco narrativo, a escritora escolhe o espaço romanesco como um signo representativo da miséria coletiva. Toda a realidade negativa apreendida através da descrição dos ambientes internos da casa da Rua Aribau, contrapõe-se às memórias infantis da protagonista. As mudanças sofridas pela casa e pela família por ela abrigada, têm estreita relação com o processo de desenvolvimento da própria cida226 Volume 4 | Literatura Espanhola de de Barcelona. No entanto, como marco dessa transformação, podemos apontar a morte do patriarca da família e sua referência temporal direta com o início da Guerra Civil Espanhola. O devaneio através do qual a protagonista contrasta o passado e o presente, permite-nos estabelecer as devidas distinções entre as diferentes épocas históricas da existência da família e de sua residência. Sendo assim, a Guerra Civil Espanhola e o valor negativo que ela agregou à sociedade nos anos 1940, constitui-se um importante marco divisor de águas na história daquelas personagens, metonimizada através da deterioração de seu espaço doméstico. Referências Bibliográficas BACHELARD, Gaston. (1957) A poética do espaço. (Trad. Antonio de Pádua Danesi). São Paulo: Martins Fontes, 2005. BLANCO AGUINAGA, Carlos; RODRÍGUEZ PUÉRTOLAS, Julio; M. ZAVALA, Iris. Historia social de la literatura española.2 ed. Madrid: Castalia, 1987. BLINKHORN, Martin. A guerra civil espanhola. (Trad. Sérgio Bath). São Paulo: Ática, 1994. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8 ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2002. CELA, Camilo José. (1942) La familia de Pascual Duarte. 24 ed. Barcelona: Destino, 1993. DIMAS, Antonio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1985. DOMINGO, José. La novela española del siglo XX. De la postguerra a nuestros días. Barcelona: Labor, 1973. D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do texto 1. Prolegômenos e teoria da narrativa. 2 ed. São Paulo: Ática, 2004. FRYE, Northrop. (1957) Anatomía de la crítica. 2 ed. Caracas, Venezuela: Monte Avila Editores, 1991. LAFORET, Carmen.(1945) Nada. Barcelona: Destino, 2003. MARTÍN GAITE, Carmen. Usos amorosos de la postguerra española. Barcelona: Anagrama, 1987. MARTÍNEZ CACHERO, José María. La novela española entre 1936 y 1975. Madrid: Castalia, 1979. PONTE FAR, José Antonio. Renovación de la novela en el siglo XX, del 98 a la Guerra Civil. Madrid: Anaya, 1992. RÓDENAS DE MOYA, Domingo. Noticia de Carmen Laforet y Nada. In: LAFORET, Carmen. (1942) Nada. Barcelona: Destino, 2001. TAMAMES, Ramón; QUESADA, Sebastián. Imágenes de España. Madrid: Edelsa, 2001. 227 Hispanismo 2 0 0 6 TUÑÓN DE LARA, Manuel. Historia de España. Barcelona: Labor, 1992. Notas a b Segundo Martínez Cachero (1979, p. 9), o tremendismo é uma técnica descritiva introduzida na literatura espanhola de pós-guerra pelo escritor Camilo José Cela em sua inaugural obra La familia de Pascual Duarte. Esse modelo narrativo evidencia a realidade social descrevendo-a através de caracteres repulsivos, grotescos e violentos que objetivam chocar o leitor. Esses romances apresentam uma visão negativa do mundo e do ser humano, que tem seu comportamento assemelhado ao animalesco. O personagem e suas ações estão subordinados à degradação do meio físico, constituindo-se autênticos produtos das circunstancias sociais. Para Martínez Cachero, esta estética em muito aproxima do Naturalismo do século XIX, do qual se destaca pelo aprofundamento da dimensão psicológica. Prêmio instituído por Francisco Franco no ano de 1945 para estimular a criação literária e artística na Espanha. O país vivia um momento de crise no setor cultural devido ao exílio e a morte de vários de seus melhores artistas durante a Guerra Civil. Carmen Laforet foi a primeira autora a receber o prêmio por sua primeira obra Nada, publicada no mesmo ano de fundação do prêmio que é, ainda nos dias atuais, um dos mais tradicionais naquele país. 228 Volume 4 | Literatura Espanhola Imagens brasileiras na memória de Francisco Ayala. Antonio R. Esteves (UNESP/Assis) Boa parte de sua centenária existência, Francisco Ayala passou-a em terras americanas. Nascido em Granada em 16 de março de 1906, ao escritor espanhol tocou viver os mais significativos acontecimentos de seu século. Advogado de formação, sociólogo de profissão, jornalista, tradutor e professor por necessidade e escritor por opção, teve de abandonar seu país após a derrota dos progressistas na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Trabalhou na Argentina, no Brasil, em Porto Rico e nos Estados Unidos. Com o fim da ditadura de Franco, já aposentado desde 1977, regressou definitivamente à Espanha em 1980. No processo de reintegração à vida intelectual espanhola, entre 1982 e 1988, Ayala publicou os três volumes em que recolhe suas memórias sob o título de Recuerdos y olvidos. Num estilo sintético, às vezes bastante irônico, marca de sua prosa de ficção, o escritor repassa os principais acontecimentos de sua vida e da história cultural dos países onde viveu. A partir dessas memórias, o presente trabalho pretende destacar aspectos significativos de suas lembranças do ano em que viveu no Rio de Janeiro (1945) e de suas relações com intelectuais locais. A vasta produção de Francisco Ayala abrange várias áreas do conhecimento. Sua obra ficcional, iniciada sob o impacto vanguardista nos anos 20, conta com cerca de uma dezena de títulos entre romances e volumes de narrativas curtas (novelas, contos ou relatos). Como sociólogo publicou cerca de duas dezenas de títulos e como resultado, sobretudo, das várias décadas em que exerceu o magistério na área de literatura há dezenove títulos de teoria e crítica literárias. No campo de da tradução, atividade que realizou desde os anos vinte como forma de complementação salarial, também há uma lista de dezenas de títulos, tanto em sociologia e política quanto obras literárias. Traduziu para o espanhol escritores de várias procedências, principalmente da língua alemã, como Thomas Mann (1875-195) ou Rainer Maria Rilke (1875-1926). Para a cultura brasileira merece destaque a tradução das Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida (1831-1861), publicada na Argentina em 1947. O Francisco Ayala narrador de suas memórias, que em mais de uma ocasião se refere à sua pouca memória e à falta de hábito em anotar acontecimentos do cotidiano, alinhava de forma exemplar o relato de acontecimentos dos quais participou. O resultado é uma narrativa concatenada, como um bordado executado com ponto atrás, essa modalidade 229 Hispanismo 2 0 0 6 de trabalho manual em que a agulha penetra no tecido para frente e para trás, avançando e retrocedendo ao mesmo tempo, fazendo a linha cruzar-se sem, no entanto, deixar evidência do movimento da agulha. Nesse contexto, tanto as recordações quanto os esquecimentos vão adquirindo sentido. Intelectual e escritor, Ayala acaba privilegiando, para sorte dos leitores, aspectos da vida cultural dos países em que viveu ou das rodas literárias que freqüentou. O público acaba por destacar-se, ainda que apresentado pelo prisma do privado. Como bem observa Adorno, em Mínima moralia (1993, p. 26), todo intelectual na emigração está prejudicado. No caso de Ayala, entretanto, não se pode dizer que o ambiente em que viveu durante o exílio lhe fosse totalmente incompreensível. Tanto na Argentina quanto em Porto Rico a língua usada era o seu espanhol natal, o que evidentemente facilitava a convivência com os grupos locais. Além do mais, seu prestígio intelectual facilitou senão sua completa integração nessas sociedades, ao menos conseguir trabalhar de maneira mais digna, embora o início não tenha sido fácil. Há que se considerar, também, que havia um sentimento de solidariedade por parte de setores intelectuais desses países que facilitava se não a integração e a perda da constante errância, pelo menos uma convivência menos hostil. Associada a isso, havia ainda uma vasta rede de relações solidárias estabelecida entre os próprios exilados ou no interior da comunidade de imigrantes espanhóis fixados nesses países antes da contenda que ajudava no abrandamento do sentimento de desarraigo que os exilados traziam. No hiato brasileiro, devido ao bom salário e à presença de um círculo intelectual interessante, não pesaram as diferenças lingüísticas e culturais. Francisco Ayala já era um intelectual de prestígio ao dirigir-se para o exílio em 1939. Na França consegue guarida das autoridades cubanas, partindo pouco depois para Havana. Dali se dirige à Argentina, via Chile, onde se fixa nesse mesmo ano e onde permanece até 1950. Devido a suas relações anteriores, não lhe é difícil conseguir trabalho nessa Buenos Aires que abrigava no período a vida cultural mais agitada da América Latina. Nesse período, no entanto, há o ano de 1945 que ele chama de “parêntese brasileiro”. Convidado por Benedicto Silva (1905-2000) para dar um curso de sociologia no Departamento de Administração do Serviço Público, órgão criado em 1938, com a função de preparar quadros de excelência no serviço público brasileiro, Ayala aceitou o desafio. Na antiga capital federal, após passar algum tempo em Santa Teresa, instalou-se em um confortável apartamento em Copacabana, nas proximidades do Hotel Copacabana. Como as aulas eram poucas e o salário razoável, res230 Volume 4 | Literatura Espanhola tava-lhe tempo suficiente para dedicar-se tanto a projetos pessoais quanto a uma intensa vida intelectual. Nesse período concluiu seu Manual de sociologia, um clássico na área, publicado em 1947 na Argentina. As impressões da cidade e o relato das principais atividades ali desenvolvidas estão registrados em pouco mais de vinte páginas, embora ao longo do volume apareçam referências a esse período de especial bonança para o escritor. Se bem que o salário fosse bom, tendo as economias desse ano possibilitado um especial incremento em seu nível de vida ao regressar à Argentina no ano seguinte, o sociólogo-escritor não aceitou a proposta de fixar-se no país. O principal motivo teria sido o baixo nível da educação local: ele prefere retornar a Buenos Aires onde sua filha freqüentaria um colégio inglês, o que não seria possível no Brasil. No entanto, Ayala reconhece que a estada no Brasil foi uma experiência rica em sua vida. (AYALA, 2001, p. 323). O primeiro ponto para o qual chama atenção são as impressões sensoriais muito intensas: cores, cheiros, músicas e sabores inesquecíveis. O segundo foi a vida cultural da cidade, à qual ele procurou se integrar, conhecendo de perto os intelectuais mais importantes que por ali circulavam. A lista dos contatos, apesar de não ser muito ampla, inclui os principais nomes da cultura brasileira da época. Marques Rebelo (1907-1973), José Lins do Rego (1901-1957), Aníbal Machado (1884-1964), Érico Veríssimo (1905-1975), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Gilberto Freyre (1900-1987), Cecília Meireles (1901-1964) e Manuel Bandeira (1886-1968), são os brasileiros citados. Também há alguns estrangeiros que viviam no Rio naquele momento: a chilena Gabriela Mistral, cônsul de seu país; o argentino Eugenio Julio Iglesias, agregado cultural em sua embaixada; o austríaco naturalizado brasileiro Otto Maria Carpeaux (1900-1978); o francês Georges Bernanos (1888-1948) e o português Teixeira Novais, exilados políticos. Dentre os brasileiros, quem merece maior destaque é, evidentemente, o poeta Manuel Bandeira, também professor da Universidade, onde Ayala foi convidado a dar um ciclo de conferências sobre literatura. Dessas relações, porém, o escritor espanhol dedica um espaço maior a dois estrangeiros: Gabriela Mistral que naquele ano receberia o Premio Nobel de Literatura e Otto Maria Carpeaux. Com ambos ele partilhava constantes e animadas reuniões, cujo tema variava, mas quase sempre girava em torno à arte e à cultura. Apesar de todo o respeito que tinha por Gabriela Mistral, a quem já conhecia, tanto de Madri quanto de Lisboa, o perfil que Francisco Ayala traça de Lucila Godoy Alcayaga é bastante duro. Entre outras coisas, afirma que sua obra poética tem qualidade duvidosa, devendo sua fama mais à promo231 Hispanismo 2 0 0 6 ção pessoal e ativismo político que a qualidades intrínsecas. Nesse sentido, é bastante ilustrativo o episódio da entrevista coletiva por ela oferecida quando recebeu a notícia da outorga do Premio Nobel. Na entrevista ocorrida no saguão do Hotel Copacabana, ela se deixa retratar ao lado de uma série de crianças pobres da região para as quais havia trazido presentes e para as quais nunca antes havia dedicado a mínima atenção. Ao comentar as atitudes populistas de Gabriela, Ayala aproveita para criticar, ainda com maior veemência seu compatriota Pablo Neruda (19041973), comunista notório, que também visitou o Rio de Janeiro naquele ano. Neruda era “de veras una gran poeta” (AYALA, 2001, p. 317), embora fosse um político ambicioso que em mais de uma ocasião não hesitou em colocar sua poesia a serviço de seus objetivos políticos. E narra um curioso episódio para ilustrar essa atuação. Estando no Rio de Janeiro, foi procurado por uma revista francesa para uma matéria. O autor de Canto general recolhe, então, da rua, para o ensaio fotográfico, dois mendigos, um negro e um loiro, aos quais indenizou com polpuda esmola, dispensando em seguida “a los comparsas de aquella escena conmovedora en que fraternizaban las razas y los pobres del mundo bajo el ala de la poesia”. (AYALA, 2001, p. 317) Como sociólogo sensível, chama atenção de Ayala em nosso país a mistura de povos e culturas, na qual não vê manifestações de racismo, embora não negue as tensões sociais. Ele chega mesmo a afirmar que o pretendido melting pot dos Estados Unidos ocorre verdadeiramente aqui e não lá. Pelo pouco tempo que permaneceu no país, circunscrevendo sua visita apenas à capital do país e por ser amigo explícito de Gilberto Freyre, é evidente que Ayala não estivesse preocupado em analisar de modo diferente as relações raciais do país em 1945, embora fosse bastante atento e crítico com relação às injustiças sociais. Como não poderia deixar de ser, o carnaval, também chama atenção do sociólogo-escritor, embora, também aqui fique preso à estereotipada visão de forasteiro. Não deixa de causar graça o relato da experiência pouco agradável para um homem tímido e recatado que ele era, ver-se arrastado, agarrado a Gabriela Mistral, por um cordão carnavalesco puxado por uma bailarina seminua pelas ruas centrais do Rio de Janeiro. A bailarina em questão não era outra senão a célebre Eros Volúsia (1914-2004), filha de Rodolfo Machado (1885-1923) e da poeta Gilka Machado (1893-1980), que tinha sido capa da revista norte-americana Life em 1941, dona de um estilo particular de dança e que rivalizou com Carmen Miranda por aqueles anos. A cultura brasileira, no entanto, causa boa impressão no escritor que, à sua maneira, acaba se apaixonando pelo país e por sua gente. As ima232 Volume 4 | Literatura Espanhola gens que lhe ficaram do país e que aparecem em suas memórias são positivas. Seu contato com a literatura brasileira também foi positivo, fato que pode ser constatado em, pelo menos, duas atitudes. Ao regressar a Buenos Aires dedica-se a traduzir ao espanhol as Memórias de um sargento de Milícias, ali publicadas em 1947. Dois anos mais tarde, no dia 28 de outubro de 1949, Ayala profere uma conferência a convite da Asociación Cultural Estudiantil Brasil-Argentina, na Universidad Nacional de Rosário, sobre o romance brasileiro do século XIX. Essa conferencia foi divulgada em forma mimeografada pelos Cursos libres de portugués y estudios brasileños daquela universidade e não consta da recopilação da obra ensaística do escritor. Trata-se de um texto curto, em torno de dez páginas, no qual ele traça um panorama do romance brasileiro do século XIX. Bem atinado com seu tempo, não chama atenção para as obras de José de Alencar (1829-1877), cujo Guarani seria, para ele, louvável pela paisagem luxuriosa, mas cuja originalidade é relativa. (AYALA, 1949, p. 5). No mesmo nível de O guarani ele situa o Inocência de Taunay (1843-1899), e acima deles, evidentemente, estão as Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, que acabara de traduzir ao espanhol. Pode ser que ele conhecesse do período em que viveu no Rio de Janeiro, as célebres notas de 1941, em que Mário de Andrade (1893-1945) aponta nas Memórias certo rastro picaresco. Ou se não, pelo olho crítico de leitor espanhol acostumado com aquelas leituras, observa ali a presença do pícaro, talvez seguindo mais diretamente os passos de Lesage (1668-1747), em seu Gil Blas de Santillana que as matrizes clássicas espanholas. Entretanto, ressalta o fato de que no romance de Almeida não estão presentes nem o toque moralizador nem certo humor negro, comuns àquele gênero. (AYALA, 1949, p. 07). Em um artigo publicado em 1956, Manuel Bandeira comenta a tradução feita por Ayala e o fato de ele ter reconhecido no romance uma obra-prima. (BANDEIRA, 1958, p. 485). O grande autor da narrativa brasileira do sécula XIX para Ayala é, como não poderia deixar de ser, Machado de Assis (1839-1908). O breve ensaio conclui apontando para uma obra que um bom conhecedor da literatura argentina não poderia deixar de mencionar: Os sertões, de Euclides da Cunha (1866-1909), obra monumental que para ele inicia o romance moderno no Brasil (AYALA, 1949, p. 10). Outra figura brasileira passeará pelas lembranças do escritor espanhol. Trata-se do polêmico Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo (1892-1968), dono dos Diários Associados, além de responsável pela introdução da televisão no país, com a TV Tupi. A fama do magnata 233 Hispanismo 2 0 0 6 das comunicações brasileiras, poderoso principalmente graças a suas relações com Getúlio Vargas, era conhecida de Ayala desde 1945. A oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, entretanto, apresentou-se apenas mais tarde, no período em que já vivia em Porto Rico (1950-1956). Um belo dia ali desembarcou a comitiva de Chateaubriand, “uno de esos hombres extraordinários que, con rara inteligência natural y no demasiados escrúpulos, logran levantar de la nada una enorme fortuna” (AYALA, 2001, p. 369), e o governador Muñoz Marín (1898-1980) recorreu, então, a seus préstimos como intérprete para tentar desvendar a finalidade de tão exótica visita. Entre confusos banquetes e reuniões embaraçosas, durante uma das quais o brasileiro havia presenteado o governador com uma pequena barra de ouro, os verdadeiros objetivos da visita acabam ficando mais turvos. “[…] jamás supe, ni al parecer supo nadie, la finalidad de su visita a Puerto Rico” (AYALA, 2001, p. 371), concluí o intérprete ad hoc que, no entanto, não perde oportunidade para pintar o magnata brasileiro com as cores ferozes dedicadas àqueles com cujos princípios ele não comungava. Crítico feroz dos regimes autoritários e ditadores de plantão, Ayala lança suas farpas não apenas contra Franco, Salazar ou Trujillo. Chama atenção, no entanto que quem classifica o totalitarismo italiano de grotesco, o alemão de sinistro ou o peronismo de ignóbil e abjeto, não dedique uma palavra sequer ao longo de suas memórias ao regime de Vargas, equivalente brasileiro de tais sistemas, apesar de ter vivido no país no último ano do Estado Novo. Talvez por coerência, em respeito ao fato de ter trabalhado para esse regime, muito bem remunerado, como ele mesmo afirma, prefira relegar o regime brasileiro a um significativo silêncio. Embora o ano de 1945 tenha sido um ano duro para a humanidade, com o fim do dramático conflito que deixou o mundo estilhaçado, conclui-se um capítulo feroz e abre-se a possibilidade de uma nova era, conforme todos acreditaram naquele momento. Até mesmo para o cético Francisco Ayala, pode-se dizer. Distante do centro dos acontecimentos, a poucos metros da praia de Copacabana, aonde se dirigia todas as manhãs para acompanhar a filha ainda criança, esse período realmente foi para o escritor espanhol uma espécie de parêntese em sua atribulada vida de exilado. Referências Bibliográficas ADORNO, Theodor W. Mínima moralia. Reflexões a partir da vida danificada. Trad. Luiz E. Bica. 2.ed., São Paulo: Ática, 1993. 234 Volume 4 | Literatura Espanhola AYALA, Francisco. La novela brasileña en el siglo XIX. Rosario: Cursos libres de portugués y estudios brasileños, 1949. [Mimeo.] ----- Recuerdos y olvidos. Madrid: Alianza, 2001. BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Volume II. Prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958. CARPEAUX, Otto M. Ensaios reunidos 1946-1971, Rio de Janeiro: UniverCidade; Topbooks, 2005. vol II. VARIOS. Cuadernos hispanoamericanos. n. 329-330, Madrid, nov.-dic. 1977. (Dedicado a Francisco Ayala) 235 Hispanismo 2 0 0 6 Marcas de Cervantes em Gonzalo Torrente Ballester Elaine de Almeida (UFRJ) El Quijote, considerado primeiro romance de metaficção, é pioneiro em trabalhar a tensão realidade-ficção, séculos antes do advento do Realismo como gênero literário. Além de modelo narrativo para muitos escritores, em meio ao cenário do Realismo espanhol, El Quijote servirá de modelo a uma postura e um modo de pensar contrários ao Realismo vigente entre os anos 40 e 60. Autores como Gonzalo Torrente Ballester e Juan Goytisolo fazem parte de um grupo de autores experimentalistas que adotam postura antirrealista e se voltam à tradição para propor uma nova concepção na maneira de narrar. Revisitam El Quijote por ser uma obra que reflete a si mesma e que não imita a realidade, mas toma a própria literatura e linguagem como objetos de reflexão. Essa autorreflexividade é própria da obra de metaficção, procedimento literário inaugurado com Cervantes e seguido por Gonzalo Torrente Ballester. Portanto, procuramos analisar as possíveis conexões entre El Quijote e La Isla de los Jacintos Cortados (1981), romance de Gonzalo Torrente Ballester, trabalhando a oposição realidade/fantasia, origem do jogo quixotesco, bem como a autonomia das personagens, a verossimilhança, a exigência de um leitor ativo, o irônico e o lúdico, a mitificação e desmitificação como marcas do romance metaficcional. O duelo entre razão e sonho é a chave do conflito em El Quijote: ele é o homem que quer ordenar o caos e, ao descobrir-se impotente, é derrotado pela própria vida. Dom Quixote, por não suportar a própria realidade, vai em busca de uma realidade alternativa, alimentada pela maneira como absorve a ficção. A subjetividade do mundo prometido pelos romances de cavalaria despertam naquela personagem o desejo de viver o que a realidade não lhe permite. Quixote concretiza, no mundo literário, a relação realidade-literatura, texto-mundo. Assim, El Quijote é modelo eleito pelos autores realistas experimentalistas dos anos 60, em sua tentativa de remeter-se à tradição para repensar a literatura de seu mundo. Sobretudo, essa obra cervantina é tomada como referência por sua autorreflexividade, a linguagem é seu referencial. A dimensão autorreflexiva faz com que o leitor saiba que não está diante da mímesis do real, senão de uma criação verbal. O que vem a consubstanciar a relação autor-leitor: este último sabe que não está sendo enganado e que a obra dialoga com o real, mas não pretende sê-lo. Na literatura espanhola, o franquismo exerce grande influência: a censura e o medo limitavam a criação literária. Era uma época em que 236 Volume 4 | Literatura Espanhola o mundo se voltava à Espanha e os escritores queriam contribuir com a palavra para o desenvolvimento revolucionário. Muitos artistas começam a questionar sobre a função de sua própria arte e o que ela representava na sociedade de então. Surge assim o realismo social; a manutenção da literatura como forma de resistência, a arte engajada. No entanto, esse tipo de literatura, no afã de documentar e denunciar, acaba por deixar o histórico acima do literário: “(...) el realismo social buscaba un lenguaje comunicacional aplicado a la aprehensión de la realidad y a la crítica de las condiciones de vida de los perdedores políticos y económicos”. (MONTALBÁN, 1998, p.128). Essa resposta do realismo social ao que vinha incomodando na sociedade se deu à custa do empobrecimento literário em prol do registro histórico de denúncia. Desencadeia-se, pois, uma repulsa contra o realismo social dos anos 40 e 50, o que vem a gerar posturas de determinados autores, como resposta contra toda atitude realista. Em fins dos anos 60 e ao longo dos 70, é praticamente unânime uma proposta de renovação literária, quanto à estrutura e técnica da produção dos romances. Para isso colaboraram, por exemplo, Juan e Luis Goytisolo, Juan Bennet, Javier Marías, Vicente Molina, Gonzalo Torrente Ballester etc. Para recuperar o que Espanha pudesse haver perdido em seu universo contaminado por lutas políticas, esses autores buscavam um modelo para a criação de romances, de cunho experimentalista, que procurava fazer do romance instrumento de reflexão sobre si mesmo. Esse grupo de escritores experimentalistas elegem, então, o modelo cervantino, especificamente em El Quijote, por sua autorreflexividade e por caracterizar uma atitude ideológica contra o sistema criado pelo franquismo, o imperialismo norteamericano e o totalitarismo soviético. “En 1969 teníamos ganas de recuperar nuestra memoria y convertirla en un instrumento crítico (...)” (MONTALBÁN, 1998, p. 134). Recuperar a memória da literatura espanhola era um meio de reivindicação contra o perigo do esquecimento que rondava a literatura realista que, ávida por registrar o real, fazia uso da ficção em prol do relato histórico. Em El Quijote, existe um distanciamento relativo quanto ao real para haver a autorreflexividade, o que vem a se repetir nas obras dos escritores antirrealistas dos anos 60: a obra é seu próprio referencial, a linguagem e a literatura são seu tema e objeto de contemplação, não a realidade e seus acontecimentos. A vida não é o objeto da arte; a arte é seu próprio meio e fim, nasce e se realiza em si mesma. Gonzalo Torrente Ballester faz parte do grupo de escritores vanguardistas experimentalistas dos anos 60, que adotam uma postura anti-rea237 Hispanismo 2 0 0 6 lista, retomando o modelo cervantino. Por isso, Gonzalo Torrente Ballester publica uma trilogia fantástica em meados dos anos 70 e início dos 80, constituída dos seguintes romances: La Saga-Fuga de J.B., Fragmentos de Apocalipsis e La Isla de los Jacintos Cortados. Este último, principal foco de nossa análise. Era uma época em que o modernismo já se destinava a não mais inovar e tendia ele mesmo a transformar-se em tradição: “parece no haber otra alternativa, constata Huydsen, que la de volvernos sobre el pasado para repensar la tradición, la relación del arte com la vida, y aquellas otras voces que nos llegan desde fuera de la instituición arte occidental” (OLEZA, Joan. “La Disyutiva Estética de la Posmodernidad y el Realismo” p. 7). O que deve ser levado em conta é a obra como produção humana; o que deve interessar ao leitor não é o conteúdo da obra, mas sim os mecanismos que a compõem. Segundo aqueles autores antirrealistas, a arte não deve imitar a vida, não tem que ter referentes, o referente é a linguagem. E sua proposta é elitista: há um tipo de leitor preparado para este tipo de leitura e que sabe que a obra não quer “enganá-lo”; a vanguarda necessita do tipo de leitor que aprecia estes mecanismos, o leitor ativo exigido pela metaficção, cujo papel é fundamental para a concretização do pacto autor-leitor implícito nesse tipo de obra. O jogo literário presente na relação realidade-ficção é o elo de união entre a obra de Cervantes e Torrente, já que a inter-relação de tais elementos é base da modernidade de El Quijote. Torrente procura enfatizar essa dualidade, realidade-ficção, ao longo de seus romances, buscando um equilíbrio entre ambos conceitos e desenvolvendo uma das principais características do romance de metaficção. Os mais diversos ensaios que revelam o pensamento de Torrente com respeito à sua própria maneira de escrever vêm ratificar sua forte relação com Cervantes. Torrente deixa registrado em seus ensaios a importância da “realidade suficiente” – ou seja, “condições estruturais mínimas que se exigem de algo ou alguém para que possa ser concebido como real e, logo, crível” (BALLESTER, 1984, p. 45-46), assim, a verossimilhança advém do caráter múltiplo e aberto da realidade e sua união com o fictício, o imaginário e o fantástico. La Isla de los Jacintos Cortados trata-se de uma carta de um professor direcionada à aluna Ariadna, por quem é apaixonado. Ou seja, o leitor tem acesso a páginas que não foram escritas para chegar a domínio público: um texto escrito em um momento solitário, que tem a intenção de realizar o amor através do verbo criador. Paralelo ao discurso de sedução, existe o relato sobre o livro de outra personagem – Sidney – que consiste em querer provar que Napoleão nunca existiu. Ambos os relatos se unirão 238 Volume 4 | Literatura Espanhola através de dois pontos de vista – Sidney e o narrador – e geram diversos subtemas, além do tema de Napoleão: “La oposición entre ciencia y poesía, entre la razón y la imaginación, entre lo real y lo fantástico, aparece constantemente en marcado contrapunto que enlaza los dos relatos” (LOUREIRO, 1986, p. 94). A narração, produto do amor, se realiza em paradoxos, pois apesar de originar-se do sentimento, baseia-se num discurso racional sobre o mito de Napoleão, paralelo a reflexões sobre o amor, como em O Banquete, de Platão. Outro paradoxo é que, ainda que nasça da esperança da realização do amor, o relato vai aos poucos se desenvolvendo em desilusão e frustração, por não alcançar seu objetivo. Em meio ao dualismo realidade-ficção, o mito tem papel importante e, no romance torrentino, está aliado à ironia como instrumento de crítica ao poder, que ao lado do amor, é um dos principais temas de Gonzalo Torrente Ballester. Em La Isla de Los Jacintos Cortados, o mito de Napoleão é desconstruído para fazer refletir sobre os ícones do poder e assim, desmitificando-o, provoca a reflexão, joga com o real e fictício, a verdade e a mentira, questiona o inconsciente coletivo. Neste caso, Torrente Ballester baseia-se em um fato histórico para realizar seu jogo narrativo, usando o real a serviço da ficção, num jogo entre mitificação e desmitificação. O mito, então, torna-se uma representação simbólica e deformada da realidade. Com isso, Torrente nos remete ao mundo cervantino de realidade e ficção. A dualidade realidade-ficção está inserida em El Quijote, caracterizando a obra como inovadora e moderna. Este tipo de romance auto-reflexivo consiste no próprio processo de criação do romance: ao mesmo tempo que reflete sobre a literatura, inclui outros tipos de invenções em sua narrativa. Desta maneira, cria-se um universo ficcional autônomo, com distintos níveis de criação, baseados na experiência real e na imaginação. A própria estrutura de El Quijote é metafictícia: onde há reflexões sobre a literatura, os romances de cavalaria, a intertextualidade, a autonomia das personagens, o papel ativo do leitor, o perspectivismo e a verossimilhança. Como em El Quijote, Torrente apresenta-nos o processo de criação acontecendo, nos direcionando a refletir sobre a arte literária e, ficcionalizando elementos como narrador, autor, leitor, personagens, consegue autonomia do mundo ficcional por ele criado e propõe distintos níveis de ficção. Em La Isla de los Jacintos Cortados, narrativa com estilo epistolar, o leitor é um intruso que lê uma carta direcionada à Ariadna, seu leitor fictício. A figura do narrador, a mesma do autor ficcional, em meio à sua carta de amor – subtítulo da obra - nos conta sobre as reflexões de outra personagem que argumenta a 239 Hispanismo 2 0 0 6 idéia de que Napoleão nunca existiu. A primeira intenção da carta é, portanto, ganhar o amor de Ariadna, onde observamos o uso da palavra para seduzir. Porém, o narrador parte do mito do amor platônico, não realizado e ideal, para um mito histórico, criando um pêndulo, que vai da ficção ao real e vice-versa, apresentando várias visões desses dois mundos. Dois outros conceitos imprescindíveis para a relação literária entre ambos autores são a ironia e o caráter lúdico, constantes em El Quijote e nos romances de Torrente. A maneira como Torrente possibilita estes ambos aspectos é mais um fator que determina a presença de características cervantinas ao longo de sua trajetória artística. Toda a estrutura narrativa de Torrente está fundamentada na natureza lúdica e irônica do romance cervantino. A ironia, no romance torrentino consiste na base da ficção, em recurso de verossimilhança e permite a Torrente expor sua visão múltipla da realidade, favorecendo também o caráter lúdico, nos mostrando a relatividade dos acontecimentos, as várias perspectivas de um mesmo fato e o poder de expressar o real e o fictício através da escrita. O próprio romance de metaficção está baseado na dualidade realidade-ficção e no esquema de ser um romance inserido em outro, um jogo que se conta jogando, o que nos permite ver o romance acontecendo em seu momento, como em La Isla de los Jacintos Cortados: sua estrutura se baseia numa carta que está sendo escrita, a ficção é construída diante de nossos olhos e o destino das personagens, tal como na vida real, é uma incógnita. “La Isla es un relato, pero al mismo tiempo, es una original forma de reflexión sobre la novela, un ejercício inconfesado de metaficción” (LOUREIRO, 1986, p. 97). La Isla de los Jacintos Cortados é uma obra que reflete a si mesma e à própria função de narrar, num relato que mistura ficção e realidade, onde a palavra é usada para convencer tanto a personagem leitora quanto nós, leitores reais, que nos vemos diante do mecanismo que a sugere e participamos dos elementos lúdicos que a mantêm. O leitor de Torrente é convidado ao jogo narrativo e à tênue linha entre o real e a ficção, porém sabendo não estar diante da realidade que o cerca, mas de uma realidade imaginada, sobretudo para refletir sobre o feito literário e a criação de um romance. Assim, tal obra é a concretização da idéia de revisitar Cervantes para a autorreflexão do fazer literário e faz de Gonzalo Torrente Ballester, exemplo da dimensão da função literária. 240 Volume 4 | Literatura Espanhola Referências Bibliográficas BALLESTER, Gonzalo Torrente. La Isla de los Jacintos Cortados. Barcelona: Ed.Destino, 1981. _____El Quijote como juego y otros ensayos críticos, ed. Destino, Barcelona, 1984. BAKTHIN: Mikhail. Questões de Estética e Literatura, Madrid, Taurus. 1989. BRAVO, Victor. Figuraciones del Poder y la Ironía. Venezuela, Monte Ávila Ed. Latinoamericana: 1997 CACHERO, Martinez. Historia de la Novela Española entre 1936 y 1975. Madrid, España, Ed. Castalia:1979. _____El Historia de la Novela Española entre 1936 y 1975. Madrid, España, Ed. Castalia:1979. FORSTER. E.M. A Teoria do Romance. España: Destino, 1983. GOYTISOLO, Juan. Desidencias. Barcelona: Seix-Barral, 1977. LIMA, Luís Costa. Teoria da Literatura em Suas Fontes. V. II. 2 ed. revista e ampliada. RJ: Francisco Alves, 1983. LOUREIRO, Ángel, Mentira y seducción. La trilogía fantástica de Torrente Ballester. Madrid. Castalia, 1990. _____ e outros. Revista Anthropos – revista de documentación científica de la cultura. España, 1986 MONTALBÁN, Manuel Vázquez. La Literatura en la Construcción de la Ciudad Democrática. Barcelona: Ed. Crítica ,1998. MUECKE, D.C. Ironia e o Irônico. São Paulo, SP: Ed. Perspectiva, 1995. OLEZA, Joan. “La Disyuntiva Estética de la Postmodernidad y El Realismo”. www.geocities.com/wongcampos/dicionarios.html e http://www.uv.es/entresiglos/oleza _____ . Un Realismo Posmoderno. Insula 589-590, enero-febrero, 39-42. Idem. PIGLIA, Ricardo. El Último Lector. Barcelona, Anagrama, 2005. SAAVEDRA, Miguel de Cervantes. Dom Quijote de la Mancha, Vols. I e II, Edición de John Jay Allan. Madrid, España: Ed. Cátedra Letras Hispânicas, 2000. TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo, SP: Ed. Perspectiva, 2004. ZUBIAURRE, María Teresa. El Espacio en la Novela Realista. Paisajes, miniaturas, perspectivas. México: FCE, 2000 (Caps. II e III). 241 Hispanismo 2 0 0 6 El mundo poético de José Hierro y su clara visión del mundo Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES / CESV) Ya que la fecha del Congreso (septiembre del 2006) nos acuerda los 70 años del inicio de La Guerra Civil Española, periodo negro de la historia española del siglo XX, planteamos hablar de José Hierro que, en su niñez, juventud y madurez, sintió los efectos del tormento de esa época y, a pesar de ello, se hizo un gran poeta que fue galardonado por varios premios importantes, incluso “El Cervantes”. El poeta de los años inmediatos a La Guerra Civil no se pone ajeno a su tiempo y se enfrenta con los problemas de su época y, niños, durante esa hecatombe fraticida, procuran no hablar de ella. El conflicto propicia una ruptura con el discurso estético de anteguerra. Después de la muerte de los grandes líricos: Unamuno, Antonio Machado, Valle-Inclán, Lorca, Miguel Hernández, la salida para el exilio de otros escritores, la permanencia de unos pocos, resurge una poesía con temas sociales y formas clasicistas, producto de escritores que han presenciado los efectos de la guerra en la niñez. Hacia 1950 hay tres tendencias dominantes: la poesía desarraigada, la poesía arraigada y la poesía social. La primera presenta al mundo como caos y como angustia y mediante la poesía se buscan orden y análisis. Esta corriente se agrupa alrededor de las revistas: Espadaña, Gracilazo y Escorial. El proceso de rehumanización condujo hacia una poesía testimonial y de compromiso social y político, cuya función consistió en dar cuenta de las injusticias sociales. El destinatario será el hombre de la calle, lo que explica la “estética de pobreza” con un lenguaje sencillo. Destacan poetas como José Hierro, Gabriel Celaya y Blas de Otero que plantean consolidar los recuerdos de la guerra y de la posguerra. En ellos se presenta la realidad histórica en una visión personal, haciendo testigo del tiempo en que surge su arte. Sobre esa visión personal de lo social nos aclara Ortega y Gasset (1987, p. 61) que “son humanas todas las realidades – mujer, paisaje, peripecia − cuando ofrecen el aspecto bajo el cual suele ser vividas”. Sobre la poesía traer una carga personal de quien la hace y del tiempo histórico, lo que proporciona al receptor identificarse con el autor, José Hierro considera que “[...] el poeta es un hombre sometido a circunstancias temporales, zarandeando por los hechos, igual a los demás hombres. [...]” (cervantesvirtual) Hierro, del grupo de escritores conocidos como “Los niños de la guerra”, nació en Madrid, en el día 03 de abril de 1922, y vino a fallecer el 21 de diciembre de 2002. Perteneció a la llamada Primera Generación poética de posguerra y colaboró en las revistas Escorial y Garcilazo. 242 Volume 4 | Literatura Espanhola Como el mundo de la poesía se configura con la simbiose poeta/lector; intérprete/crítico/filósofo, buscamos desentrañar la significación y el sentido del complejo verbal de José Hierro como receptores, estudiando la palabra poética con su potencial y su referencia al sujeto artístico y observando, en el mundo de la cultura humana, la transformación que el mundo poético provoca en la significación de los signos. Hierro pasó su niñez y juventud en Santander, que recordará, en muchos poemas, en el motivo marino: “[...] ¡Cómo te miro con mis pobres ojos!/ ¡Que imagen tuya la que inventa el sueño!/ ¡Qué lentamente te deshace el aire, /roto en pedazos! [...]” (p.88). Pero sus más constantes temas son el dolor por el paraíso terrenal perdido, el de la niñez y juventud, el de la muerte, el de la temporalidad, el de la naturaleza, el de la patria, el de la prisión, el del instante eterno, el de la historia y de la heroicidad, y el de los mitos y símbolos. En su juventud, forma parte del grupo poético de la revista Prole. Durante La Guerra Civil se dedicó a actividades clandestinas que motivaron su encarcelamiento. Al terminar la guerra, en 1939, fue detenido y encarcelado por cinco años por pertenecer a una organización de ayuda a los presos políticos, uno de los cuales era su propio padre. Después que salió de la prisión, fue a vivir en Valencia. Se desempeñó diversos oficios, hasta radicarse en Madrid, en donde se dedicará a escritor y hará una carrera jalonada por muchos premios y galardones. En sus primeros poemas (1936 a 1944) se notan ecos de los poetas del 27. Un ejemplo es el poema “Luna de agosto” que, por su temática, motivos, empleo de diminutivos, exclamaciones e interrogaciones, nos acuerda a Lorca: Luna de agosto/ ¿Farolillo o naranja?/ Campo con luna de agosto,/ salgo a verte oscurecer./ Eres el mismo de ayer/ pero te ha dorado el mosto./ ¡Eh, eh, eh!/ Soy recto del hombro al pie/ […] (p. 75-76) En cuanto a sus libros, los primeros Tierra sin nosotros y Alegría (1947), están dentro de la línea existencial de amarguras por las ilusiones no cumplidas y, al tiempo, una irrefrenable ansia de vivir. Se observa, en los poemas de 1947, una amargura juvenil y frustradas dichas. Pero Quinta del 42 (1953) y Cuanto sé de mí (1957) contienen poemas de carácter social. En su poesía alternan el modo realista de lo que él denomina “reportajes”, y el irracional y visionario a que denomina “alucinaciones”. Cuanto sé de mí, según Corona Marzol, (1997, p. 50), “[...] dibuja la preocupación del poeta en torno al tema de la búsqueda de la verdad, que es la clave que explica el problema del hombre y su división.” En Libro de alucinaciones (1964), hay un gran logro del verso libre, El tema de la melanco- 243 Hispanismo 2 0 0 6 lía y frustración adquiere un aire de esperanza en Agenda (1991). Según Corona Marzol (1993, p. 56), los poemas de esa obra siguen la línea del Libro de alucinaciones, pero mejores, con más plasticidad de expresión y por otra objetivación. Cuadernos de Nueva York (1998), que se publica en 1998, está compuesto por 32 poemas. La crítica considera ese libro una obra importante de la poesía contemporánea. Sobre esa obra Hierro dijo: “Mi Nueva York, [...] es un libro que tenía que haber escrito, sin desvirtuar su esencia, Federico García Lorca”. Comparando las dos obras con ese título, dijo, en Revista de Occidente, que “[...] el Nueva York de Lorca está pintado, descrito, musicado por un gran poeta imaginativo, capaz de arrastrarnos hacia el éxtasis con mil sorpresas, hallazgos, imágenes creadas, hijas del ensueño y la fantasía” mientras que el de él “pretende ser algo así como historias contadas por un borracho […] en las que el relato aparece entre sombras”[…]. En Tierra sin nosotros predominan poemas biográficos. Esos traen el tema de la prisión que se mezcla con el de la mar. Como ejemplo citamos el poema “Canción de cuna para dormir a un preso”. Y el que trae el tema de la despedida del mar de Santander: “A un lugar donde viví mucho tiempo” (p. 97). El tema de la guerra, o de esa generación que sufrió sus efectos, aparece también en esa obra, por ejemplo, en el poema “Generación”: Porque nacimos bajo el signo/ del cerebro pero ya todo/ se vino a tierra una mañana. Lo devastó un viento glorioso,/y somos ruinas o cimientos,/ algo inconcreto, algo borroso;/ tronco cortado o ras de tierra,/ que nadie sabe que fue tronco.(p. 90) En los poemas de Tierra sin nosotros, predominan los versos octosílabos, rimando los pares, o sea el romance. Hierro aprecia la “palabra” y le da doble valoración. Explica, aún, su elección por la palabra sencilla cotidiana “cargada de sentido”, para que el poema sea “tan liso y claro como un espejo ante el que sitúa el lector”(Conferencia...). Poesía es el habla cotidiana y que debe ser recuperada en la expresión lírica. La poesía dice mucho con pocas palabras, por eso, su poesía, dijo él, es “seca y desnuda, pobre de imágenes,” En el poema “Antes decía: ´Árbol`” (p. 143-144), el poeta exclama: Antes nombraba todas/ las cosas, como si ellas/ fueran mis creadoras,/ mi creación. Abría/ en ellas brechas cálidas/ y tocaba con manos/ amorosas su alma/ / ahora digo: “mar, monte,/ árbol”, como si fueran/ los olvidados muertos/ de mi mundo encendido./ […] 244 Volume 4 | Literatura Espanhola El deseo de explicar la poesía lleva a Hierro a crear poemas o a dictar conferencias. Valora la palabra. Según él (HIERRO, Antología, 1993, p. 288), la poesía da un nuevo nombre a las cosas, descubre “el nombre verdadero, tapado por los nombres falsos que ostentaban. [...]”. Ella es “una fuente cuya combinación desconocemos [...] y “ve más que el pararrayos celestes” (p. 287). Ella “no se hace con ideas [...] sino con palabras” (p. 286). La poesía dice mucho con pocas palabras. Según Heidegger, el nombre invoca. Esa invocación es la busca del origen del habla. Hierro metapoetiza en “Teoría y alucinación de Dublín” (p. 241-242): “La poesía es como el viento,/o como el fuego, o como el mar./Hace vibrar árboles, ropas,/abrasa espigas, hojas secas,/acuna en su oleaje los objetos/ que duermen en la playa./[…]”(p. 241) Hierro luce el ritmo y adecua fondo y forma. En Tierra sin nosotros, el ritmo nos acuerda el de los románticos. En el poema “Recuerdo del mar”, hay mezcla de endecasílabos y pentasílabos con acentos en la 1ª. 4ª. y 8ª sílabas. Reflexionando sobre poesía, explica el poeta: “El poema perfecto es la recta que une, perpendicularmente, el punto-poeta con la horizontal-tema. De ahí que existan tantos poemas posibles sobre un tema como poetas existan” (Cervantes vitual). En el poema “Del mar”, retoma, en el motivo marino, el tema de la despedida, del recuerdo, de la soledad y del mito del paraíso perdido: Por más que intente al despedirme / guardarte entero en mi recinto/ de soledad, por más que quiera / beber tus ojos infinitos,/ tus largas tardes plateadas, / tu vasto gesto, gris y frío,/ sé que al volver a tus orillas / nos sentiremos muy distintos. […] La metáfora ennoblece el objeto real. Ella tiene un papel de destaque en la poesía de Hierro. Ortega y Gasset (1987, p. 74, 76,151) ve la fuerza de la metáfora, su eficiencia y un fuerte “instrumento de deshumanización”. Pues cambia la perspectiva habitual, aunque en ella haya una semejanza real entre sus elementos. Ella “[...] facilita la evasión y crea entre las cosas reales arrecifes imaginarios, florecimientos de islas ingrávidas.”. Así, poeta de la sencillez que, según él, sigue dos caminos a un lado el de “reportaje” y al otro de “alucinaciones”, pero poeta de la temporalidad, describe las particularidades del otoño, lo personifica con el tema del adiós y del mar en el recuerdo, en la visión imaginativa y sensitiva de una audición dentro de la cárcel en el poema “Caballero de otoño”: “Viene, se sienta entre nosotros,/ y nadie sabe quien será,/ ni por qué cuando dice nubes/ nos llenamos de eternidad” (p. 85). Y, en el poema 245 Hispanismo 2 0 0 6 “Cumbre”, declara: “Firme, bajo mi pie, cierta y segura, /de piedra y música te tengo; /no como entonces, /cuando a cada instante /te levantabas de mi sueño/. Ahora puedo tocar tus lomas tiernas, / el verde fresco de tus aguas. / […]”. En el tema de la tierra observamos una dependencia a los escritores del 98. Sentimos ecos de Juan Ramón Jiménez, Unamuno y de Antonio Machado. En “Trébol” el tema es Castilla de 1937 “tierra seca y amarilla”. En el poema “Generación” (p. 95-98), entre otros, por ejemplo, está clara la idea desarrollada por Unamuno de la interhistoria y del hombre de carne y hueso: “[...] Éramos hombres, y el de enfrente,/aquel que hablaba con nosotros, / de su tiempo, de nuestro tiempo, /no era un ente ni un microcosmos. [...]”. El motivo del retorno, recurrente en su poesía, y el de la soledad y de la tarde, como el que aparece en “Soledad”, recuerdan a Antonio Machado y a Unamuno, el del sentimiento trágico de la vida: “La tarde muestra una luz pálida/ que viene de un reino remoto [...] voy por los campos que se funden/ en gran soledad. Me asomo/ al agua: tiene flor de ola/ su cantar para mí. […]”. Como Jiménez, Hierro se preocupa con la palabra exacta, pues condena la concepción irrealista (simbolista) de la poesía, que, según él, por “la oscuridad es defecto de expresión” y agrega la explicación: “La poesía brota donde hay un hombre con agudeza de sentido y hondos sentimientos”. Así la poesía no se hace con ideas, sino con palabras. En Alegría (1947) el tiempo se fluye: “Siento el tiempo pasar y perderse y tan sólo por fuera de mí se detiene.” (“Alucinación”, p. 112). El tema del instante eterno y fugaz aparecerá en algunos poemas, por ejemplo, en “El Buen momento”: ”Aquel momento que flota/ nos toca con su misterio,./tendremos siempre el presente/roto por aquel momento [...].” (p. 116) y el del deseo de ver volver días felices: […] ¿Te acuerdas de cómo las flores nacían?/ ¿De cómo traía el ocaso su rojo clavel en la boca? ¿De un hombre que todas las tardes tocaba el violín a la puerta?/ ¿Te acuerdas de aquello? Aquello era hermoso. […] (p. 116). Su arte poético no es una actividad filosófica, sino artística, creativa y de gran belleza, pues se trata de un conocimiento vivencial-emotivo-existencial bellamente expresado. Hierro maneja, bastante, la técnica de un “yo’ que dialoga con un “tú”. En sus obras Con las piedras, con el viento. (1950), Quinta del 42 (1952), domina un dolor existencial. En Cuanto sé de mí (1959) hay un dolor a los demás. Sus poemas lindan con la poesía social. En 1991 publicó Agenda. Según Hierro, (Conferencia etc.) el poeta testimonial es necesario en los tiempos dramáticos, son como “un tónico para la salud” y, por eso, había de ser los de la posguerra, ya que el poeta social es el intérprete de senti- 246 Volume 4 | Literatura Espanhola mientos colectivos. La poesía social tiene “su sentido ético, su afán de justicia, su solidaridad con el oprimido, su clamor contra el opresor.” En Quinta del 42 el poema “Una tarde cualquiera” (p. 163-164) trae una autobiografía, con el tema del paraíso perdido, o de la juventud y hay poemas sociales logrados como “Reportaje” (p. 166 – 170), en el que se observa el mito de Prometeo. Se puede observar, aún, una profundización del ritmo circular en el recurso del encabalgamiento en cadena, en la técnica poética de Hierro, de mezclar tiempo y espacio. En la superposición de lugares (cárcel, monte; vida interior (grifo)/ vida exterior (mar); en la variedad de sensaciones: visuales (imaginarias: mar, giro de las gaviotas); auditivas (la voz humana, el ruido del agua que sale del grifo) y táctiles (el frío del agua), sale del presente y llega a un pasado que la memoria conciente recupera. El ritmo sirve para prepararnos a las sugestiones de la poesía, para que comprendamos el valor real los elementos causan fruición de la pureza de corazón. Sirve, también, para llevar el lector a su tiempo poético, el de la inquietud, angustia, temores, esperanza, impaciencia, signos del tiempo y de la revelación del ser. La música siempre fue la expresión de sentimientos personales y Hierro la busca no sólo en el acento de sus versos para encontrar el ritmo adecuado a la palabra, sino también para homenajear a un ritmo o a un compositor. Hierro compara la música a la poesía. Dijo él que “no es que la gente no le guste, pero no todo mundo sabe leerla, al igual que no todos saben leer partituras. Por ello es muy importante que la poesía llegue al público a través de la voz, leída. Porque la poesía se entiende cuando se escucha”. En Tierra sin nosotros en el poema “Serenidad” (Lectura de madrugada), el motivo de la música justifica el tema existencial para hablar de su angustia. En Cuanto sé de mí (1957-1959) los motivos de la música aumentan. En el poema “Experiencia de sombra y música” (p. 233-236) dedica a Haendel. El poema “Torre de sueños”, tiene el subtítulo “Sinfonía a un hombre llamado Bethoven”, (p. 231-228). Los versos cantan la sordez, los temas de ese compositor y los efectos de su música: “[...] La palabra jamás interpretada,/ aún fresca del contacto celeste, fue traída/ por ti a la tierra [...] Música que era suma del tiempo. […]” En Agenda (1991) retoma el tema de la música y la duplicidad de espacio, en el poema “Doble concierto” (280-282). Así, en el mundo poético de José Hierro se observa que el poeta es un hombre de su tiempo, por la forma, por la preocupación con la metapoesía y la valoración que da al “lenguaje” exacto. Los temas se funden en la añoranza por los días felices y las angustias por el colectivo vivir de posguerra, o sea, el tema existencial se funde con la realidad histórica. Como la poesía posee el don profético de la ambigüedad, para retratar el mundo 247 Hispanismo 2 0 0 6 en el que forma parte el poeta, las metáforas los quiebros gramaticales o sintácticos, los símbolos, los motivos repetidos, son recursos para la búsqueda de la palabra poética exacta. Referencias Bibliográficas ÁNGEL DEL RÍO. Historia de la Literatura Española. Desde 1700 hasta nuestros días. Barcelona: Ediciones B, 1988, HIERRO, J. Antología poética. Edición Gonzalo Corona Marzol. Madrid: Espasa Calpe, 1993. _______. Conferencia dictada en 16/12de 1982 en la Universidad Autónoma de Madrid y noticias de EL País. Disponible en: htt://www.cervantesvirtual.com/portal/poesia/hierro. Retirada en 07/02/06, ORTEGA Y GASSET, J. La deshumanización del arte y otros ensayos de estética. Madrid: Espasa Calpe, 1987. 248 Volume 4 | Literatura Espanhola Mimesis en Cinco horas con Mario, de Miguel Delibes Fernanda Deah Chichorro (UFPR) La representación de la realidad viene mereciendo investigaciones en los estudios literarios. Auerbach, en Mimesis analiza cómo, en la literatura occidental, esta representación se transforma y adquiere distintos contornos dependiendo de la época, del contexto social y de las intenciones del autor. Hemos elegido para el presente artículo, investigar, cómo esa representación se realiza en Cinco horas con Mario, de Miguel Delibes, escrita en 1966. Se tratará de cuestiones relativas al narrador (narradores); a la personaje – cuestión individual y ésa como metonimia social; y las voces de la narrativa. La intención es la de identificar la representación en la obra y establecer posibles relaciones con algunos capítulos de Auerbach. La primera cuestión que se presenta es la configuración del narrador. En Cinco horas con Mario, la mayor parte de la novela – 27 capítulos – está narrada por Carmen (narradora-personaje). Hay, sin embargo, dos capítulos – el inicial y el final – que poseen un narrador en tercera persona, omnisciente, que realiza la mediación. La figura de Carmen, desde luego, aparece desnudándose, visto que entre el habla del narrador, cuya descripción está llena de detalles, aparece la voz de Carmen y de su familia. Es importante notar que Carmen es presentada desde el inicio como una figura de apariencias, por dentro angustia y remordimiento, y externamente delicadezas y cuidados. Se nota, con todo, que ella está genuinamente angustiada, espera el momento en el que pueda “charlar a solas” con Mario. Se reproduce a continuación un fragmento de los comienzos del capítulo en el que los familiares próximos van a descansar y se esfuerzan para que carmen haga lo mismo. La escena es la siguiente: Después de cerrar la puerta, tras la última visita, Carmen recuesta levemente la nuca en la pared hasta notar el contacto frío de su superficie y parpadea varias veces como deslumbrada. Siente la mano derecha dolorida y los labios tumefactos de tanto besar. Y como no encuentra mejor cosa que decir, repite lo mismo que lleva diciendo desde la mañana: “Aún me parece mentira, Valen fíjate, me es imposible hacerme a la idea.” Valen la toma delicadamente de la mano y la arrastra, precediéndola, sin que la otra oponga resistencia, pasillo adelante, hasta su habitación: Debes dormir un poco Menchu. Me encanta verte tan entera así, pero no te engañes, bobina, esto es completamente artificial. Pasa siempre. Los nervios no te dejan parar. Verás mañana. Carmen se sienta en el borde de la gran cama y se descalza dócilmente, empujando el zapato del pie derecho con la punta del pie izquierdo y a la inversa. Valentina la ayuda a tenderse y, luego, dobla un triángulo de colcha de manera que la cubra medio cuerpo, de la cintura a los pies. Dice 249 Hispanismo 2 0 0 6 Carmen antes de cerrar los ojos, súbitamente recelosa: - Dormir, no, Valen, no quiero dormir; tengo que estar con él. Es la última noche. Tú lo sabes. ( DELIBES, 1999, p. 9 - 10) En ese trecho aparece la aflicción que Carmen siente en la inminencia de estar con Mario. Es significativo notar que cuando su amiga le dice que aunque parezca firme, se sabe que eso es completamente artificial. Y lo es también si analizamos cómo Carmen, durante toda su vida, se comportó artificialmente, con las personas y incluso con sí misma. La artificialidad con la que vive puede ser considerada uno de sus grandes rasgos. A partir del segundo capítulo, Carmen comienza su “diálogo” con Mario. Se considera un diálogo porque es posible oír las otras “voces” del discurso. Se dice voces, en el plural, porque no es solo Mario que aparece, pero además de intercaladamente Carmen valerse de los discursos de otras personajes, lo que se configura es la presencia de las voces de la España franquista. En una lectura menos cuidada, se podría pensar que el gran tema de la novela es la tentativa de Carmen de pedirle disculpas a Mario y tranquilizar su conciencia. Aunque sea eso también, es más, la tentativa es la de justificar la traición a los principios que defendió durante toda su vida. Aún con relación a la narración, es sabido que los puntos de partida de los capítulos son trechos subrayados por Mario, en su Biblia. Éstos son bastante importantes ya que son casi siempre fragmentos que revelan opiniones y pensamientos opuestos a los de Carmen. Para ella están muy claras las diferencias de clase. Es relevante pensar que Carmen y Mario son dos seres no se realizaron como pareja, no se encontraron durante la vida. Hay que percibir que en una lectura más a fondo, teniendo en vista el contexto histórico de la época, ellos representan los dos polos de la dictadura franquista. Carmen es la representante de la escuela franquista, la chica criada para ser buena esposa, ama de casa y madre, católica “fervorosa” y seguidora de la moral y de las buenas costumbres. La grande temática de la narrativa es el diálogo imposible entre Carmen y Mario. Miguel Delibes afirma que no escribe para entretener, sino para inquietar. Y es justamente esta inquietud que él quiere provocar en sus lectores. El autor, sin embargo, no sigue con el tono pesimista hasta el final. En el último capítulo, retomado por el narrador omnisciente, aparece la figura de Mario hijo – no por acaso el mismo nombre del padre- alertando para la posibilidad de salida: la apertura para nuevas ideas y para el otro, la tentativa de hacer que su madre perciba que sus propios intereses no son necesariamente los justos. Pasada la noche en la que veló Mario (padre), es sorprendida por Mario hijo. El narrador omnisciente describe la escena en la que hijo y madre se encuentra. Para Carmen, es como si fuera imposible mirar al nuevo mundo que se prenuncia: 250 Volume 4 | Literatura Espanhola La escasa luz que entra por la ventana llena de sombras el rostro de Carmen. Cuando habla, se le abre, casi en el centro, un hueco aún más oscuro: - Las cosas no son como antes. ( DELIBES, 1999, p. 250) Carmen no sabe actuar en el mundo nuevo. Este mundo nuevo, con todo, se llena de ansia por ser visto como un mundo más posible que el otro, en el que el diálogo y la alteridad aparezcan. Es notable como Mario intenta mostrar a Carmen que es necesario abrir los ojos para cuestiones nuevas. Bajo este aspecto, es posible comparar la delicadeza de Mario (hijo) en contrpasición a la dureza del régimen totalitario, que apenas ordena y espera que se cumplan sus órdenes. Mario, al revés, intenta hacer que su madre vea los cambios y reaccione positivamente ante ellos: Mario se agarra las rodillas con sus manos morenas, jóvenes y vitales: - El mundo cambia mamá, es natural . - A peor, hijo, siempre a peor. - ¿Por qué peor? Sencillamente nos hemos dado cuenta de que lo que uno viene pensando desde hace siglos, las ideas heredadas, no son necesariamente las mejores. Es más, a veces, no son ni tan siquiera buenas, mamá. - No sé que quieres decir. Hablan a media voz. Del tono de Mario transciende un anhelo de aproximación: - Hay que escuchar a los demás, mamá, eso quiero decir. ¿No te parece significativo, por ejemplo, que el concepto de lo justo coincidiera siempre sospechosamente con nuestros intereses? La mirada de Carmen es, por momentos, más roma y desconcertada. Por contra, a medida que habla se ensancha la ingenua petulancia de Mario: - Sencillamente tratemos de abrir las ventanas. En este desdichado país nuestro no se abrían las ventanas desde el día primero de su historia, convéncete. (DELIBES, 1999, p. 250) En este punto, podemos aproximar esa conversión de imposibilidad de diálogo para una posibilidad, a manera como ocurre en Don Quijote, de Cervantes. No es exactamente ése el punto analizado por Auerbach, en el capítulo Dulcinéia Encantada, pero de alguna manera aparece reflejado allí. En Don Quijote, la imposibilidad de diálogo entre ese personaje y Sancho Panza se transforma debido a la comprensión de la alteridad hecha por Sancho. Mario González, en el prefacio al libro O diálogo impossível, de Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento afirma que al dejar entreabierta la posibilidad de diálogo: Delibes herda (...) a tese e a tática cervantina, na qual um diálogo aparentemente impossível, o de Dom Quixote com Sancho Pança, mostrou o caminho da tolerância em plena Espanha da Contra Reforma. Ao expor a impossi251 Hispanismo 2 0 0 6 bilidade do diálogo na Espanha franquista, Delibes apontava a necessidade do diálogo de quebrar o sistema que impunha a esterilidade dos monólogos e consagrava a tolerância da Espanha como base que cabia constituir depois de morto Franco. (BARBOSA DO NASCIMENTO, 2001, P. 15) Nos referimos, una vez más a esse aspecto, a la cuestión de Carmen estar en una condición social que la oprime (que es también de órden económico), como lo que ocurre con Don Quijote. Los motivos que los mueven son muy diferentes. Don Quijote se siente oprimido porque la vida que lleva: não lhe oferecia possibilidade alguma para uma atividade efetiva que correspondesse às suas capacidades; estava como que paralisado pelas limitações que lhe eram impostas, por um lado, por sua posição social, e, por outro, pela sua pobreza.(AUERBACH, 2002, p. 31) Mientras Don Quijote está lleno del ideal caballeresco y de ganas de ayudar a los demás. Carmen, por otra parte, tiene otros motivos para sentirse paralizada. El rechazo a la condición económica y social en la que se encuentra y la futilidad con que la que vive la vida puede considerarse el reflejo de la educación que tuvo. Es discutible, sin embargo, atribuir la responsabilidad al que se es solamente a la educación que se tuvo. Carmen se muestra extremadamente irónica con relación a lo que Mario realiza, no valoriza lo que para él es importante. Diferentemente de Don Quijote, que, se transforma por medio de la lectura Carmen siquiera tiene intenciones de leer. Considera los escritos del marido “bobadas”. En sus palabras: Toda relación es para vosotros como un libro sellado; se le da a leer a quien sabe leer, diciéndole: Lee esto y responde: No puedo, el libro está sellado. O se da el libro a quien no sabe leer, diciéndole: Lee esto, y responde: No sé leer. Es lo mismo que tú, Mario, que me hiciste reír, palabra, la seriedad com que dijiste en la entrevista aquella que hoy en España no se lee, que te crees que porque no te lean a ti a los demás les va a suceder lo mismo, que estoy cansada de decirte que tú, escribir, sabes escribir, que escribes con soltura y eso, pero hijo mío, de unas cosas tan aburridas y de unos tipos tan poco apetecibles que tus libros se caen de las manos, la verdad. (DELIBES, 1999, p. 230) Si, por una parte, a veces nos divertimos con Carmen, y reímos de ella, por otra, hay momentos en los que percibimos cómo ella es cruel. No solamente con Mario, sino con relación a la realidad tiene a su alrededor. No es posible tener certeza de que ella posee noción de lo que pasa a su alrededor o si está tan cerrada en sí misma que no es capaz de eso. Cuando lee un trozo de la Biblia que enuncia que solamente Yavé cesaría la guerra 252 Volume 4 | Literatura Espanhola en la Tierra, ella sigue con el contexto de la guerra que vivió (Guerra Civil Españla): ...aunque yo, por mucho que digáis, lo pasé bien bien en la guerra, oye, no sé si seré demasiado ligera o qué, pero pasé unos años estupendos, los mejores de mi vida, no me digas, todo el mundo como de vacaciones, la calle llena de chicos, y aquel barullo. Ni los bombardeos me importaban, ya ves, ni me daban miedo ni nada, que las había que chillaban como locas cada vez que sonaban las sirenas. ( DELIBES, 1999, p. 62) Es cruel la manera cómo ella encaraba la guerra y aún más cuando exige de Mario que nunca habían tenido discusiones serias sobre eso porque cuando ella comenzaba a hablar, él le ordenabaque se calara. Esa falta de contentamiento puede ser comparada a la de Madame Bovary, en el capítulo de Auerbach, en Mimesis, Na Mansão de La Mole. Carmen también se muestra infeliz, pero su infelicidad tiene nombre: Mario, mientras Emma simplemente no consigue disfrutar lo que posee y siempre desea lo que no tiene. Hay algo en sí que la impide de disfrutar lo que le ocurre. Sabemos que esto le pase durante la vida (aunque sabemos también que mucho de Madame Bovary nos queda ocultado). En Carmen, sin embargo, no hay la realización del deseo. Casarse con Mario constituyó una apuesta equivocada. Quizás si le hubiera preferido a Paco, podría haber tenido los bienes que siempre había deseado. Pero Carmen, diferentemente de Madame Bovary no se altera, no se debilita. Se mantiene como la imagem de la esposa fiel, dedicada. El acierto de cuentas se realiza en el final de la vida de los dos y, de cierta manera, contrariamente al que se esperaba de Carmen (conducta correctísima), pero con un componente bastante importante en el régimen franquista y en la doctrina católica tradicional: la culpa. Es para eximirse de esa culpa que Carmen emprende su discurso, intentando imputarle, incluso, la culpa a Mario: “...por más que conociendo como conozco a los hombres, Mario, estoy segurísima de que me la has pegado más de una vez y de dos, me juego la cabeza.” (DELIBES, 1999, p. 199) Otro aspecto bastante relevante de la narrativa es la diferenciación entre el lenguaje del narrador y el de Carmen. Para Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento, en Miguel Delibes, el instrumento lingüístico recibido es transformado, modelado y en él se infunde una vida nueva. (BARBOSA DO NASCIMENTO, 2001, p. 149). La justeza de Delibes cuanto al lenguaje es también revelada por el profundo conocimiento de la lengua de Castilla. El lenguaje usado por el personaje delibesiano permite saber a que grupo social y a que tiempo pertenece, sin perder de vista las propias representaciones atribuidas a la personaje. Reflexionando acerca de Carmen y en su discurso, lo que se deprehende de ahí es que 253 Hispanismo 2 0 0 6 a voz desta mulher insatisfeita, que não compreende nem é compreendida, é reflexo lingüístico de um modo de pensar que anda pela contramão do pensamento e da maneira de ser de Mario: Carmen e Mario falam línguas diferentes. (BARBOSA DO NASCIMENTO, 2001, p. 160) Los enunciados de Carmen están llenos de expresiones coloquiales, típicas de la oralidad, y su narrativa circular, repetitiva, cansadora, denuncia la típica manera de hablar de la burguesía. Queda claro, por lo tanto, lo que nos enseña Eni Orlandi: (...) as palavras não significam por si mas pelas pessoas que as falam, ou pela posição que ocupam os que a falam. Sendo assim, o sentidos são aqueles que a gente consegue produzir no confronto do poder das diferentes falas. (ORLANDI, 1988, p. 95) Por medio de de Cinco horas con Mario, Delibes señala aquello que es su mayor preocupación: el ser humano. Lo hace de manera fenomenal utilizando el soporte lingüístico para desvendar sus personajes y sus (im) posibilidades. Sus personajes no se destacan de la masa, hacen parte de ella, no poseen ningún diferencial. Son, a la vez, el pueblo vivo que tiene sus cuestiones narradas por medio de su escritura. A nosotros, lectores, resta adentrarnos al mundo delibesiano, tratando de entender la voz libertadora del autor que nos provoca a la inquietud reflexiva. Referencias Bibliográficas AUERBACH. Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2002. BARBOSA DO NASCIMENTO, Magnólia Assis. O diálogo impossível – A ficção de Miguel Delibes e a sociedade espanhola do franquismo. Niterói: EdUFF, 2001. DELIBES, Miguel. Cinco horas con Mario. Barcelona: Ediciones Destino, 1999. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. Campinas: Unicamp, 1988. 254 Volume 4 | Literatura Espanhola A questão do espaço em “Cinco horas con Mario” Izabel Sandra de Lima (USP) O romance Cinco horas con Mario do escritor espanhol Miguel Delibes publicado em 1966, cujo enredo é ambientado neste mesmo ano, remete-nos através das memórias da personagem Carmen Sotillo a um amplo período do contexto social e político espanhol. Após a morte de seu marido, Mario Díez Collado, Carmen recorda a vida que mantiveram em comum a partir de passagens sublinhadas na Bíblia do marido. Através de seu relato percorremos o período da II República, iniciada em 1931, a Guerra Civil Espanhola, o imediato pós-guerra e os anos que se seguem sob a ditadura franquista. Neste trabalho quando pensamos na questão do espaço na obra delibesiana nos dedicamos a observar por onde transitavam as personagens, em especial os espaços público e privado percorridos pelas personagens femininas; ao nos centrarmos na trajetória da viúva Carmen Sotillo, também chamada de “Menchu”, nosso objetivo visa observar como dados espaços contribuem para a compreensão dela enquanto uma mulher contraditória. O romance delibesiano já foi alvo de inúmeras leituras e interpretações, como por exemplo as que vêem a personagem da viúva Carmen como a – Espanha fechada / nacionalistas e a personagem Mario como a – Espanha aberta / republicana, como a Espanha que perdeu a guerra (o silêncio de Mario como indicativo da censura), a Espanha que inclusive sofre a perda da palavra. Apesar de concordarmos com todas essas leituras observamos que o romance nos permite outras interpretações, e o que nos move neste trabalho é fazermos uma releitura da personagem Carmen, buscando apresentá-la não apenas com os aspectos relacionados à uma personagem de “conciencia estrecha”, como aquela que esperava pacientemente em casa o retorno do marido, que se dedicava única e exclusivamente às tarefas do lar e aos cuidados com os filhos, uma senhora sem muito apreço pelos estudos, ou pela boa literatura. Nossa leitura não contesta tais características, mas sim busca acrescentar novos aspectos até então não trabalhados. Observamos Carmen como uma personagem contraditória, pois ao mesmo tempo em que possui características que refletem a posição submissa e inexpressiva de determinado tipo de mulher pequeno-burguesa espanhola, Menchu nos surpreende com desejos e atitudes que não convêm a uma mulher que segue a cartilha prescrita por seus pares conservadores. 255 Hispanismo 2 0 0 6 Acompanhando sua trajetória percebemos como a sociedade castradora e repressiva relegava a mulher ao segundo plano, enquanto o homem exercia papel central no âmbito da sociedade à mulher lhe restava apenas as tarefas do lar, os cuidados com os filhos e nada mais. Ao analisarmos a vida do casal através do olhar e das palavras de Carmen percebemos que apesar de Mario cumprir o papel de uma personagem cujos ideais eram contrários ao regime vigente à época, em seu relacionamento matrimonial contudo não ultrapassa as barreiras impostas pelo conservadorismo machista. Ao longo do interminável solilóquio de Carmen vamos percebendo as divisões estabelecidas entre o povo espanhol, não apenas quanto aos aspectos relacionados às tomadas de posição quanto aos grupos de direita e esquerda (nacionalistas e republicanos), mas também quanto aos papéis do homem e da mulher dentro da sociedade. Dados históricos sobre o período pré-guerra civil espanhola nos dão conta de que enquanto o grupo de esquerda (organizações sindicalistas, anarquistas, comunistas, socialistas e etc.) abria o debate sobre a questão do papel da mulher no mercado de trabalho e nos demais espaços públicos, os grupos conservadores na contramão deste movimento foram eficazes em manipular a tomada de consciência feminina e também em elaborar formas de restrição à liberdade da mulher na esfera pública. É neste contexto que a personagem Carmen Sotillo cumpre o papel de modelo da mulher espanhola católica, virtuosa e indiferente ao sexo oposto, uma mulher cuja única preocupação era o bem estar dos filhos e do marido, ou seja, voltada única e exclusivamente para o âmbito familiar, porém percebemos que ela não era tão virtuosa assim, em meio aos seus comentários preconceituosos, e entre as mesquinharias tão latentes de seu contexto social, político e econômico revela-se a insistência de chamar atenção sobre si mesma. Sempre contraditória Carmen pensa, deseja, porém se reprime, como por exemplo no prólogo quando temos a presença do narrador onisciente descrendo o momento em que Carmen dita o que deve ser escrito no anúncio fúnebre, o ímpeto que a viúva sente em fazer-se notar é rapidamente controlado: “[...] Por un momento Carmen tuvo la debilidad de sentirse protagonista y pensó: Por doña Carmen Sotillo, pero se rehizo a tiempo [...]”: (DELIBES, 2002, p.22). O escritor divide a obra em três partes; o prólogo, precedido pela notificação mortuária; o mono - diálogo de Carmen, composto de vinte e sete capítulos iniciados pelas citações bíblicas, e o épilogo. Toda a ação se desenvolve na casa do morto, entre a saída do último visitante na noite do velório, a saída do cadáver e a comitiva fúnebre na manhã seguinte, sendo que a narrativa do prólogo e do epílogo é efetuada em terceira pessoa, 256 Volume 4 | Literatura Espanhola por um narrador onisciente, exceto por alguns fragmentos deste. Durante todo o prólogo o espaço por onde Carmen se move é o espaço físico interno da casa, a cozinha, o quarto do casal, o corredor, neste momento somos apresentados a uma Carmen irrequieta e ansiosa para que as visitas se vão e que finalmente possa quedar-se a sós com seu marido. Quando prólogo encerra-se com a saída das visitas Carmen apropriase da bíblia do marido onde estão sublinhados vários fragmentos, na tentativa de pela última vez estar próxima ao esposo, entra no escritório do companheiro, fecha a porta e se inicia então seu desabafo descontrolado, como outrora recebe em troca o silêncio, porém este agora já não mais incomoda, ela discorrerá suas lamurias por toda a noite, é neste ambiente fechado e que não lhe pertence onde fará as suas queixas e sua confissão final. O epílogo inicia-se com a presença de Mario (filho) surpreendendo a mãe ajoelhada implorando perdão a Mario, nesta última porte do romance temos novamente a presença do narrador onisciente que descreve o espaço físico da casa. Pela janela se divisa a rua, a casa colorida. As cores e os sons externos vão invadindo pouco a pouco como em uma câmera lenta o luto e a reclusão de Carmen: Por la ventana se divisa ya nitidamente la casa de enfrente, con sus balcones verdes, de gresite, y sus cerradas persianas pintadas de blanco. Y cuando de pronto se abre una – una persiana – con un ruido de matraca seco, de tablillas que se juntan, parece como que la casa bosterara y desesperaze. Antes de terminar de abrirse la persiana, pertadea, abajo, en la calle estrecha, el primer motocarro. [...]. (DELIBES, 2002, p. 247) O discurso da personagem Carmen ao longo da narrativa é permeado pelo léxico coloquial, ditados populares e intermináveis reiterações, dentre elas podemos destacar outra contradição da viúva, apesar de afirmar que pouco se interessa pelo sexo oposto são infindáveis as referencias que faz aos homens que a cercam ou que a cercavam nos anos de mocidade, além disso também faz inúmeras declarações de quanto seus seios fartos causam perturbações no sexo oposto: ¡Si se le salían los ojos de las órbitas [a Evaristo] cada vez que nos decía ‘ahora, ahora sois los verdaderos guayabitos; el año pasado érais unas crías’, pero lo que él miraba era mi poitrine, que no le quitaba el ojo, que aquí, para inter nos, Mario, yo no sé qué tendrán mis pechos pero no hay hombre que se resista, mira el otro día, sin ir más lejos, un patán que estaba abriendo una zanja en la calle la Victoria, pero a voces, ‘guapa, con esa delantera, ni Ricardo Zamora!’ Sí, ya lo sé, una grosería, desde luego, pero qué le vas a pedir a esa gente [...]. (DELIBES, 2002, p. 217) 257 Hispanismo 2 0 0 6 É interessante a forma como Miguel Delibes elabora o romance, o escritor dá voz, dá a palavra à personagem feminina Carmen Sotillo, no entanto, essa voz não é uma voz de quem está refletindo, a personagem mesmo quando recorda fatos remotos de sua vida ou fatos recentes de seu cotidiano não está fazendo uma reflexão sobre o seu passado. Carmen sentada ante ao féretro do marido desborda uma torrente de histórias sem refletir sobre elas, a presença do marido ainda na casa e a bíblia (último livro que Mario havia lido) lhe servem de mote para o diálogo, no entanto como durante os vinte e três anos de sua vida de casada suas perguntas e seus anseios seguirão sem respostas. Cabe observar que o espaço escolhido pelo escritor Miguel Delibes para que a personagem Carmen fizesse a leitura da bíblia e aproveitasse os últimos minutos com o marido, não foi um espaço partilhado pelos cônjuges durante os anos de vida juntos, como por exemplo o quarto do casal ou qualquer outro cômodo da casa, pelo contrário, o escritor Vallisoletano situa Menchu no escritório de Mario, área exclusivamente masculina: Carmen se vuelve y entra en el despacho. Vacía los ceniceros en la papelera y la saca al pasillo. Con todo, huele a colillas allí, pero no le importa. Cierra la puerta y se sienta en la descalzadora. Ha apagado todas las luces menos la lámpara de pie que inunda de luz el libro que ella acaba de abrir sobre su regazo y cuyo radio alcanza hasta los pies del cadáver. [...]. (DELIBES, 1992, p.32) O espaço segundo GARRIDO DOMÍNGUEZ [...].mantiene relaciones privilegiadas con la acción y con el personaje” (WEISGERBER, 1978, p. 9 in GARRIDO DOMÍNGUEZ , 1993, p. 221). Neste sentido entendemos que o espaço escolhido para o desabafo e confissão de Carmen há que ser o espaço de Mario. O cômodo se revela exclusivamente masculino, o cheiro de cinzas de cigarro incomoda a personagem, mas ela não se importa, poderia estar em qualquer outro cômodo onde certamente estaria mais à vontade, no entanto, será no espaço alheio que ela fará sua confissão ao amanhecer. O escritório do marido funciona como um espaço de condena onde ela exprimirá toda a culpa que sente, entendemos esta área da casa como uma metáfora de prisão e condenação. A culpa que Carmen sente por seu quase adultério e o desejo de revelar o que acontecera a impulsiona a ocupar o espaço de Mario, o que tem para relatar só pode ser revelado neste ambiente. Conforme segue a narrativa a personagem vai revelando como a incomodava o descaso de Mario por seus atrativos já desde o namoro Carmen: 258 Volume 4 | Literatura Espanhola [...] en medio a todo me hacía ilusiones, pánfila de mí, total para nada, entraste y ni mirarme, sólo a tu madre, [...] Después de mucho te volviste, que yo pensé ahora, pero ya, ya, hola y ya está, siempre lo mismo, que a seco e despegado no te gana nadie,cariño. Y no es que yo pretendiera que me besases, que eso no te lo hubiera consentido ni a ti ni a nadie, estaría bueno, pero un poquirritín más efusivo, sí [...] (DELIBES, 2002, p.55) Em outro momento ela repete mais uma vez o quanto a incomodou a ausência de ardor e desejo por parte de Mario na noite de núpcias: [...]como la primera noche, ¿recuerdas?, te vas y me dejas sola tirando del carro [...] (DELIBES, 2002, p.33) Seguindo com suas reclamações sobre a frieza do marido, ela revela a falta de paixão e sensibilidade por parte dele, pois quando ela o desejava ele não correspondia, por o que Carmen conta o casal somente tinha relações sexuais quando Mario assim o queria. Ela se incomoda contudo não deixa de justificar-se dizendo que não se importava com “eso” (como sempre ela nunca usa a palavra sexo) mas não consegue esconder que interessa-se sim pelos deleites sexuais. Por o que Carmen conta o casal somente tinha relações sexuais quando Mario assim o queria. [...] Y luego, a la noche, ni caso, que no he visto hombre más apático, hijo mío, y no es que a mí eso me interese especialmente, que ni frío ni calor, ya me conoces, pero al menos contar conmigo, que los días buenos los desaprovechabas y luego, de repente, zas, el antojo, en los peores días, fíjate, no seamos mezquinos con Dios [...] (DELIBES, 2002, p. 38) Neste outro trecho suas palabras demonstram como ficava envaidecida por ser sempre notada e assediada quando sai à rua: Mira Eliseo San Juan, el de la tintorería, sin ir más lejos, no hay vez, sobre todo si salgo con el suéter azul, que no se meta conmigo: qué buena estás, qué buena estás; cada día estás más buena[...] (DELIBES, 2002, p.37) Os trechos citados nos dão conta de que apesar das repetidas intenções de Carmen em demonstrar desprezo pelo sexo oposto e pelas questões sexuais suas palavras tornam latentes o desejo e o anseio que sente pelos prazeres carnais. No entanto mesmo no aconchego de seu lar, no espaço privativo de sua casa Menchu não consegue deixar transparecer o desejo que sente. 259 Hispanismo 2 0 0 6 A falta de comunicação entre o casal é tão extrema que chega inclusive à cama, é sobretudo no espaço do quarto do casal onde se dá incompreensão de Mario, fato que mais afeta Carmen, ela vai deixando transparecer seu ressentimento, ao longo do texto conforme revela os detalhes de sua vida íntima entre os vários relatos que faz. Tomamos conhecimento de que na noite de núpcias o marido não consuma o casamento, fato que a deprime e que não consegue esquecer. Ao longo da narrativa conforme vai viajando no tempo de suas recordações Carmen vai adentrando a outros espaços, à casa dos pais, às ruas por onde caminha e é assediada, e os recantos por onde transitara quando jovem com a amiga Transi. Esta outra figura feminina torna-se um mistério para nós porque Carmen que sempre repete ser uma mulher de princípios estabelece com a amiga uma relação que beira ao lebianismo: Transi siempre fue un poco así, no te digo fresca, pero no sé, como impulsiva, que yo recuerdo sus besos cada vez que estaba algo pachucha, en la boca, ya ves, y como apretados, como de hombre, raros desde luego, ‘Menchu, tienes fiebre’, decía, pero de cariño, ¿eh? Que los hombres sois muy mal pensados. [...]. (DELIBES, 2002p. 67) Carmen Martín Gaite em Sexo y Dinero en Cinco horas con Mario aponta que “No fue um hombre sino uma mujer la primera persona a cuyos ímpetos amorosos cedió la adolescente Menchu. Y son aquellos besos de Transi los que sirven luego de referencia comparativa [...]”. Observamos também que é Transi quem proporciona a jovem Carmen conhecer espaços não convencionais como por exemplo os estúdios onde pintores mais velhos pintavam mulheres nuas, enfim esta é uma das figuras mais relevantes na obra porque em nenhum momento nossa viúva virtuosa e de “princípios” faz qualquer crítica ou observação que condene a amiga. Enfim nosso olhar percebe uma Carmen cujo discurso prima pelas convicções tradicionais, mas se observamos mais atentos as entrelinhas de seu interminável queixar-se perceberemos uma mulher cheia de contradições internas, onde a virtude exacerbada na verdade significa abnegação e dissimulação, em sua desabafo deixa transparecer certa inveja do que sua educação lhe negou. Referências Bibliográficas DELIBES, Miguel. Cinco horas con Mario. Barcelona. Ediciones Destino.2002. 260 Volume 4 | Literatura Espanhola DE MARCO, Valéria. O ângulo doméstico da era Franco. Tese de livre docência, FFLCH, USP. 1999. DO NASCIMENTO, B.B. Magnólia. O diálogo impossivél (A ficção de Miguel Delibes como representação da sociedade espanhola no franquismo), Tese (Doutorado), FFLCH, USP, 1996. MARTÍN GAITE, Carmen. Usos amorosos de la postguerra española. 5 ed. Barcelona: Editorial Anagrama, 1987. _______. Agua pasada. Barcelona. Editorial Anagrama, S.A., 1993. GARRIDO DOMÍNGUEZ, Antonio. El texto narrativo. Madrid, Editorial Síntesis, 1993. 261 Hispanismo 2 0 0 6 A força da palavra e as interlocuções interditas nos contextos opressores: uma leitura de La lengua de las mariposas, de Manuel Rivas Jorge Paulo de Oliveira Neres (UFF/UNESA) É nossa intenção, no presente trabalho, abordar a força da palavra enquanto meio de redimensionamento da realidade através da perspectiva ficcional. As motivações para tal residem no fato de que, em sua narrativa, Manuel Rivas trata fundamentalmente das interlocuções sob um contexto opressor e, neste, a palavra pode, concomitantemente, dizer o tudo em sua exatidão significativa, como, em contraposição, revestir-se do caráter plurissignificativo, abrindo margem à dubiedade, à imprecisão e, por conseguinte, apenas sugerir aquilo que efetivamente se quer dizer. Dito isto de outra maneira, a palavra, em La lengua de las mariposas, é trabalhada pelo contista, ao mesmo tempo, como força viva, quando materializada nas ações das personagens; como retórica de convencimento, quando expressa interesses práticos e imediatos e, finalmente, como enigma, quando é expressão do desencontro humano em uma realidade absurda e, porque não dizer, desencontrada, como é o contexto que antecede a Guerra civil Espanhola e os desdobramentos de sua eclosão. É pertinente assinalar que a leitura do conto de Manuel Rivas revela, antes de tudo, o poder que possui um bom texto para inserir o leitor nos contextos os mais diversos possíveis, mesmo que estes sejam cronologicamente distanciados do momento da leitura. Reverter o tempo se constitui, pois, em um dos atributos da narrativa literária, aspecto que insere o leitor no âmago da situação narrada, anula o distanciamento cronológico e confere ao texto rubricas de verossimilhança. La lengua de las mariposas, em verdade, traz ao presente uma situação problemática do passado espanhol, recuperando fatos de um período que os agentes do regime opressor insistiam em anular. Assim, o conto de Rivas trata da Guerra Civil, tornando-a objeto de conhecimento para nós, uma vez que (se) O passado realmente existiu. A questão é: como podemos conhecer esse passado hoje – e o que podemos conhecer a seu respeito? (HUTCHEON, 1991, p.126). Assim, a narrativa de Rivas, um escritor contemporâneo, nos projeta no universo de uma Espanha fracionada e sombria, que se torna objeto da necessária reflexão histórica por parte do país plural e democrático de hoje e que, ao mesmo tempo, se constitui em uma espécie de alerta para o fato de que o sonho da liberdade é construído, muitas vezes, sobre os escombros das vozes silenciadas pela intolerância e pela violência aos 262 Volume 4 | Literatura Espanhola direitos fundamentais. Desta forma, Manuel Rivas consegue, na dinâmica moderna do conto seco e contundente, transportar o leitor para o momento crucial em que a Espanha se desencontra com ela mesma: a Guerra Civil. Vários aspectos desta novela nos chamam a atenção, mas, em primeiro lugar, lembramos o fato de que a matéria narrada, de extração histórica, se reporta a um momento do passado político espanhol, sendo produzida por um escritor jovem que sequer era nascido quando dos acontecimentos. Reside nisso, em nosso entendimento, o enorme valor desta narrativa, patenteado na capacidade de o escritor, através da invenção da linguagem e da aventura verbal, recuperar um período marcado pelo obscurantismo, tornando-o límpido ao seu leitor e, sem perder os fatos da realidade empírica, conseguir redimensioná-los conferindolhes estatuto ficcional. A narrativa, ao mesmo tempo, conduz este leitor à reflexão em torno daquela circunstância histórica como se fosse uma testemunha ocular das transformações de atitudes dos protagonistas no calor da eclosão do conflito. É a capacidade impressionante de manejar a linguagem em sua configuração estética que faz Rivas transformar História em Estória para que possamos melhor compreender a História. História, aliás, de homens que efetivamente constroem o legado humano, ou seja, o homem simples do povo, a personagem central deste autor. Vale o registro de que, apesar do teor político permeador da obra, em nenhum momento o texto soa como panfletário ou mesmo partidário de A ou B. Há ali, antes de tudo, o testemunho de um povo atormentado pela incerteza do futuro, que tenta, de alguma forma, proferir seu discurso, primeiramente de forma sutil e silenciosa, sub-reptícia, para, posteriormente, na intransitividade da situação em que é mergulhado, lançar seu grito avassalador que, na verdade, se configura numa defesa instintiva da própria sobrevivência. Rivas, portanto, não põe política no seu conto, mas apresenta a repercussão da política sobre as personagens, materializada no eco das múltiplas vozes do opressor. Desta forma, o contexto dos momentos pré-Guerra Civil é o fator a delinear a trajetória das personagens e sua consubstanciação. A narrativa, em síntese, trata das relações entre um menino, Gorrión, e seu professor, Gregório, quando dos primeiros contatos do garoto com a escola, no momento em que a Guerra Civil Espanhola bate às portas da aldeia em que vivem. A tensão de um confronto que se avizinha, entre Republicanos e Nacionalistas, permeia o comportamento das personagens, com destaque para os pais de Gorrión: a mãe, mais ligada à Igreja, mais 263 Hispanismo 2 0 0 6 próxima aos ideais conservadores nacionalistas; Ramón, o pai, simpático aos princípios republicanos. A tensão alcança seu clímax quando os militares dominam o povoado, prendem os partidários republicanos – inclusive o professor Gregório – rompendo a relação afetiva que havia se estabelecido entre o menino e o professor. A partir deste momento, o discurso opressor se impõe e, numa atitude instintiva de sobrevivência, quando todos os habitantes se dirigem à praça para assistirem a prisão dos republicanos, a mãe de Gorrión impele o pai a assumir o discurso opressor, através de gritos e ofensas aos presos, e o menino é instado a imitá-lo, direcionando seus gritos agressivos justamente ao professor com o emprego pejorativo de termos científicos que este lhe havia ensinado. La lengua de las mariposas se nos apresenta como um texto que trata da força da linguagem enquanto construto de um momento histórico marcado pela linguagem da força. Daí nosso foco nas expressões “força da palavra” e “interlocuções interditas”, uma vez que a narrativa se constrói, em seu primeiro momento, na interdição do diálogo do menino com o professor, visto este como representação de um espaço – escola – hostil, a principio, à criança. Posteriormente, o diálogo é instaurado a partir da linguagem comum do conhecimento a unir o menino ao mestre, quando este apresenta os signos lingüísticos representativos da ciência ao aluno ávido por conhecer os significados das coisas. A ruptura da normalidade política interdita as interlocuções no momento em que é instaurado um discurso opressor representativo de um sistema político ditatorial decorrente da supremacia dos nacionalistas, quando a Guerra alcança o povoado. As palavras, na ficção de Rivas, assumem uma significação ampla na medida em que redimensionam o fato da realidade empírica. Em outras palavras, o conto não é uma mera narrativa de um episódio histórico passado, mas, antes de tudo, atualiza esta matéria de extração histórica e vai mais além porque penetra o âmago das personagens garantindo à narrativa um estatuto de relato dos dramas humanos, aspecto que por si só é atemporal e legível em qualquer época. Sob este ponto de vista, vislumbramos o quão eficaz é a narrativa literária quando trata de temas afins à ciência História, corroborando a idéia de que o historiador e o poeta diferem entre si, porque um escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido e por tal motivo a poesia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história(...). (ARISTÓTELES, s/d, p.306). Sob esta perspectiva, verificamos que a trama de Rivas, dadas as especificidades de ser um texto literário, confere uma plenitude ao episódio histórico difícil de ser encontrada em outros tipos de narrativa, notadamente na semiotização histórica, uma vez que a representação literária 264 Volume 4 | Literatura Espanhola da Guerra Civil tem como cerne não a Guerra em si, mas como ela se realiza no universo interior das personagens, fato que, sem dúvida, amplia seu corroborando a ide temas afins mos o qumas humanos, aspecto que por si sra alcança o povoado..presenta os signos lingstaque pa sentido, diferentemente do tratamento da História, muito mais preocupado com o fato em si. Diante disto, dois aspectos merecem nosso destaque. O primeiro, é que o texto de Rivas trata das repercussões do episódio no cotidiano de personagens que normalmente são alijadas das práticas discursivas da História, quer dizer, seu foco é o homem comum. O segundo aspecto se refere ao teor de completude do texto literário, marca que o diferencia das chamadas experiências da realidade empírica, conforme (ROSENFELD, 1972, p.45): Se reunirmos os vários momentos expostos, verificaremos que a grande obra-de-arte literária (ficcional) é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar também no sentido negativo). (...) Muitas vezes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos. (...) São momentos supremos à sua maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu fluir cinzento e cotidiano, geralmente não apresenta de um modo tão nítido e coerente, nem de forma tão transparente e seletiva que possamos perceber as motivações mais íntimas, os conflitos mais recônditos na sua concatenação e no seu desenvolvimento. Visto desta forma, o conto La lengua de las mariposas propicia ao leitor contemporâneo uma compreensão muito mais ampla da Guerra Civil Espanhola isto porque, na narrativa literária, os acontecimentos não sofrem solução de continuidade, não se fragmentam. É conveniente observar, ademais, que os registros históricos acerca do episódio sofreram a ação coercitiva da ditadura franquista que se instalou por décadas na Espanha e se encarregou de eliminar e censurar fatos que contra ela depunham, privando as gerações posteriores do contato com estas páginas da História. Rivas, com sua ficção de matéria de extração histórica, recupera a História em seu sentido lato e proporciona ao leitor um olhar diferenciado em relação ao passado omitido pelo opressor. Observamos no texto que as vozes das personagens conotam e denotam a situação sombria em que a Espanha de então começa a mergulhar. Dentre as inúmeras situações, destacamos duas delas nas quais práticas pedagógicas típicas de uma sala de aula extrapolam o aspecto denotativo 265 Hispanismo 2 0 0 6 e assumem a plurissignificação. A primeira, quando o menino recorda o momento em que o professor, no primeiro dia de aula, aponta para ele, mandando-o ficar de pé. Em sua recordação, afirma Gorrión: El destino siempre avisa. (RIVAS, cf. Web -1). A segunda, quando o narrador-personagem aponta uma das características principais de don Gregório: El modo que tenia don Gregório de mostrar um gran enfado era el silencio. (Rivas, cf. Web-2) Em ambas as situações notamos que a narrativa sugere a presença de um discurso opressor que só se materializa quando da chegada das tropas da capital, mas que, enquanto discurso, já se faz presente antes mesmo do desenlace da ação militar, pairando, onipotente, sobre todas as partes que compõem o enredo. Podemos afirmar, enfim, que a elocução das personagens em La lengua de las mariposas estabelece um diálogo permanente com o discurso opressor que se avizinha, mas que ainda não se tornou claro, pois, (...) aqui a palavra tem duplo sentido, voltado para o objeto do discurso enquanto palavra comum e para um “outro discurso”, para o “discurso de um outro”. (BAKHTIN, 2005, p.185). Concluímos, que Rivas, em sua aventura de linguagem, se utiliza de recursos estéticos e estilísticos para penetrar no universo interior das personagens massacradas pela inclemência de um momento histórico cruel, e, assim, não só desvendar como também denunciar os nós cerceadores das elocuções esmagadas por um discurso opressor que se impõe. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES. Arte retórica e poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense, 3 ed., 2005. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem”. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 3 ed., 1972. 266 Volume 4 | Literatura Espanhola Outras Referências Web – 1 / Web -2 – RIVAS, Manuel. La lengua de las mariposas: (de su libro Que me quieres, amor?) Disponível em http://www.galespa.com.ar/ bolboreta_castelan.htm (consulta em 30/08/2006). 267 Hispanismo 2 0 0 6 Memória e ficção em Retahílas e El Cuarto de Atrás de Carmen Martín Gaite Luzimeire Lima da Silva (UNISA) Em uma primeira análise de Retahílas e El cuarto de atrás, observamos a reconstrução da memória empreendida pelas personagens que resgatam a memória histórica da Espanha. Através da recuperação da memória individual, a compreensão de uma geração e o resgate da história da Espanha, desde os anos da segunda República até o final da ditadura do General Francisco Franco Bahamonte. Lendo a narrativa da escritora Carmen Martín Gaite percebemos uma marca que concerne somente a Retahílas e El cuarto de atrás: a relação quase direta entre literatura e história; no primeiro romance esta relação é apenas anunciada, enquanto, no segundo, toma quase que um tom de testemunho, de confissão. Dessa forma, a análise das obras tem a intenção de acompanhar o ir e vir das narradoras-protagonistas, recompondo, assim, um período histórico que marcou de maneira contundente o povo espanhol. Em Retahílas, a volta da narradora-protagonista Eulalia à casa que marcou sua infância junto à chegada inesperada de Germán, seu sobrinho e que, por sua vez, também será um narrador-protagonista, fazem com que tia e sobrinho ocupem a espera da morte de D. Matilde - avó de Eulalia -, através de uma noite de recordações e acertos de conta com o passado. Esta noite em vela faz com que o romance seja costurado com um dar e tomar o fio da conversa. É através deste processo que se dá a construção deste romance. A primeira marca da guerra lembrada por Eulalia é o encontro dela e da mãe com os republicanos escondidos no monte Tangaraño. Mas a narradora-protagonista menciona este episódio da mesma maneira com que se refere a outros, nem o fato de a Guerra Civil Espanhola ter dividido sua família parece ser relevante. O pai e o irmão passaram a guerra do lado republicano enquanto ela, a mãe e a avó ficaram em Louredo terreno dos nacionalistas. Eulalia faz uma outra referência quando conta sobre o passeio com o amigo Julio: No me digas que no es siniestro – dijo él – que después de tantos años lo conserven igual y hasta le hayan puesto su inscripción , pensar que cada uno de estos agujeros es la huella de un tio que dejaron seco ahí mismo.” (...) “Ya – dijo -, fantasmas del pasado, recuerdos de posguerra, 268 Volume 4 | Literatura Espanhola siempre volvemos a lo mismo, pero ya esos recuerdos ni en el café hacen gracia, empieza porque ya no va habiendo cafés de los de hablar, sólo sítios de barullo; la guerra es cosa de libros, hija mía, la tienen toda fichada los extranjeros a base de becas que les da su país. (MARTÍN GAITE, Carmen, 1995, p.74) Eulalia concorda com Julio afirmando que a guerra se havia transformado em um argumento que já não despertava nem rebeldia. Uma outra referência à Guerra Civil Espanhola é dada por Eulalia: “aquella tarde en septiembre del treinta y nueve” (MARTÍN GAITE, Carmen, 1995, p.112), quando Germán o irmão de Eulalia volta a Louredo, é o marcador temporal que anuncia o verdadeiro final da guerra para a personagem Juana. Para retratar a tarde deste regresso, a narradora utiliza-se do sensorial, como o olfato e a visão, recriando o espaço e o tempo evocados. Cada uma das meninas havia vivido a guerra de maneira diferente: o final da guerra se resumia, para Eulalia, em seu progresso no aprendizado da língua francesa, enquanto Juana queria ter a certeza de que Germán estava vivo. A diferença de classe social entre Eulalia e Juana é explícita, a primeira via nos livros a possibilidade de escapar daquele lugar que a sufocava, enquanto a segunda, consciente de sua condição social, entendia que sua vida se resumia a Louredo e, por isso, lhe interessava somente sua paixão pelo irmão de Eulalia, paixão esta, vivida intensamente por Juana, como sua única posse. Outro aspecto é o fato de Eulalia ganhar a bolsa de estudos para Grenoble e poder fugir da Espanha durante a primeira parte da ditadura franquista, abandonando para sempre a amiga de infância e todos os projetos que ela e o irmão haviam feito para Juana. Em nenhum momento pensamos em restaurar ou recuperar o passado em seu estado puro, pois sabemos ser esta uma tarefa impossível, pelo fato de a memória poder transformar o passado com lembranças superpostas, modificando-o. Outra marca deixada pela guerra é lembrada por Eulalia quando fala de sua amiga Lucía e recorda-se do dia em que a conheceu: “Al sol la conocí, un día de noviembre”, e esta lembrança traz outra questão temática: “En España, Lucía, no cabe compaginar, lo sabemos de sobra, o eres madre o te haces persona.” (MARTÍN GAITE, Carmen, 1995, p.145) Notase que Eulalia se refere aos ensinamentos da “Sección Femenina”, à ditadura franquista – por outras referências temporais é possível localizar a época em que as duas freqüentaram a faculdade em meados da década de 1940. A censura se faz presente quando Eulalia menciona um livro que seu amigo Julio lhe emprestou: “Un día trajo Julio Les liaisons dangeureuses, su padre es escritor y en casa tenían libros que circulaban poco 269 Hispanismo 2 0 0 6 por entonces.” (MARTÍN GAITE, Carmen, 1995, p.148) E com as lembranças da amiga Lucía que a narradora apresenta a maneira de pensar e agir da sociedade em relação aos amores da época a transferência do vocabulário da ‘guerra’ para as ‘relações amorosas’, como é possível notar nesta citação de Eulalia: “... cuando le escribas dile que sales con chicos tú también, es la mejor táctica”; y ella me miraba con pena ‘táctica’ Eulalia, que cosas dices, ni que estuviéramos en guerra”. (MARTÍN GAITE, Carmen, 1995, p.152) Pontuando assim, a apatia daquela geração feminina. A sala onde se encontram os narradores-protagonistas é um espaço muito restrito, se comparado ao espaço que a matéria narrada abarca. Pois a imobilidade física de Eulalia e Germán não caracteriza, em nenhum momento, uma imobilidade descritiva; enquanto narram suas memórias, abrem um leque de outros espaços. A atividade mental dos dois nos leva de um espaço a outro e, conseqüentemente, de um tempo a outro. Como se vê na narrativa de Retahílas, tempo e espaço se deslocam paralelamente, materializado na estrutura da obra o processo de rememoração. Este revela a densidade do espaço da casa como lugar povoado pelo passado familiar que ali se encontra, tanto na personagem Juana, como no baú de D. Matilde que é um depositário das recordações da vida da velha senhora e de toda sua família. A narradora-protagonista C. de El Cuarto de Atrás também passa uma noite em sua casa de Madri relembrando o passado, a chegada de um misterioso visitante fará com que a narrativa passe dos monólogos interiores aos diálogos e vice-versa. As evocações históricas são recorrentes nos monólogos de C.; a palavra ‘bombardeos’ pronunciada por ela a faz passar do diálogo ao monólogo interior, misturando seus estudos históricos às recordações de sua infância, da Guerra Civil Espanhola. C. passou os anos da guerra na cidade de Salamanca – cidade onde estava Franco com sua família – e lá a personagem vivenciou de perto os conflitos da Guerra Civil Espanhola. As idas ao refúgio, seu tio (que era membro do partido socialista e morreu fuzilado pelos nacionalistas), a perda do espaço de jogos e de sonhos, o medo e o frio são as marcas deixadas pela guerra na narradora-protagonista: “no habléis de eso”, “tened cuidado con aquello”, “no salgáis ahora”, “súbete más la bufanda”, “no contéis que han matado al tío Joaquin”. C. menina tinha consciência da guerra, mas não podemos saber que consciência é esta, pois temos no momento da enunciação a personagem adulta que fala de suas sensações na época da infância, diferentes 270 Volume 4 | Literatura Espanhola daquelas apresentadas pela adolescente que queria esquecer palavras como “fuzilamento”, “vítima”, “tirano”, “militares”, “pátria” e “história”. Entendemos o terceiro capítulo deste romance como o que marca o momento de maior introspecção da narradora-protagonista, - C. a abandona seu visitante na sala e vai até a cozinha, espaço físico que lhe permite uma volta mais profunda em seu passado; é onde narra com minúcia suas lembranças do “cuarto de atrás”. Também é através do espelho, que na literatura universal representa o conteúdo do coração e da consciência, que C. imerge em seu passado mais remoto. Através deste espaço e dos objetos e móveis que o ocupam, a narradora-protagonista mostra um panorama de sua vida e da vida de seus familiares na província; são as lembranças individuais reconstruindo um panorama do coletivo. As lições da ”Sección Femenina” somadas à postura autoritária da avó criam na personagem a rebeldia contra a ordem e a obsessão pela limpeza, ressaltando a oposição semântica ‘ordem versus desordem’. É importante pensar que o espaço que antes representava a liberdade se transformou em sinônimo de proibição. A menina vivenciou dentro da própria casa o que estava acontecendo com seu país. Percebemos nesse ponto uma oposição semântica no espaço – quarto: liberdade versus proibição, oposição que se estende por toda a Espanha. O quarto de jogos das meninas, a casa, a cidade e o país sofrem uma transformação com a chegada da Guerra Civil. É neste espaço que C. também evoca um espaço imaginário: ‘Cúnigan’, que para ela. era o símbolo da liberdade em um universo de proibições e de visitas familiares previamente marcadas. O aparador –‘antepasado de madera de castaño’ faz evocar a origem deste móvel, que também esteve ‘en el cuarto de atrás’, e os vários espaços ocupados por ele transformaram-no em testemunha dos acontecimentos da vida de C. e de seus antepassados: Ése viene de la rama materna, por ahí afluye Galicia. Estuvo muchos años en Salamanca en El cuarto de atrás, donde aprendí a jugar y a leer, bajo la presidencia de ese antepasado de madera de castaño tan estable y también tan viajero. Antes había sido de don Javier Gaite… (MARTÍN GAITE, Carmen, 1996, p.90) A lembrança dos ‘helados de limón’ é outra marca importante pois, a faz ”voltar” a Salamanca e evocar as brincadeiras infantis; utilizando os dois níveis narrativos, dando ao leitor a impressão de que está em dois lugares ao mesmo tempo. O livre fluir de sua consciência a leva até a cidade de Burgos, que visitou com o pai quando era adolescente. Nova- 271 Hispanismo 2 0 0 6 mente, a partir de um acontecimento individual, C. traz para a narrativa o referencial coletivo: a Guerra Civil Espanhola: Por la ventana llegaba un eco de botas militares, risas, un himno lejano: Yo tenía un camarada, entre todos el mejor, siempre juntos caminábamos,siempre juntos avanzábamos, al redoble del tambor… Nos asomamos, vimos a un falangista que se despedía de una rubia pintada (...) (MARTÍN GAITE, Carmen, 1996, p.111) C. adulta, ao narrar a visita a Burgos, demonstra a um leitor atento que “allí todo estaba equivocado, porque la guerra había equivocado todo” e que a cidade de Burgos já não era mais a mesma, pois “había perdido toda extravagancia” (MARTÍN GAITE, Carmen, 1996, p.113), pontuando, dessa forma, a oposição entre as duas ‘Burgos’: uma noturna cheia de luzes e mistérios que ela e a prima puderam apreciar por algum tempo na noite anterior; outra diurna e triste, representada pelo cemitério de carros. A lembrança deste espaço tem uma carga metafórica, simboliza o grande cemitério em que a Espanha havia se transformado naqueles difíceis anos da Guerra Civil. Mas esta análise é feita pela narradora-protagonista adulta. A menina não sabia exatamente por que estava em Burgos; para ela, aquela era uma viagem como outra qualquer. No momento dessas lembranças, a narradora realiza um processo de conscientização política e histórica pela rememoração. A narradora conta que ver as imagens do enterro de Franco, em que pessoas por três dias fizeram filas e filas diante do general morto, significou uma mudança de perspectiva: o tempo tomou suas próprias rédeas e seguiu adiante. Isso possibilitou enxergar a Espanha com seus próprios olhos e não através dos olhos do ‘generalísimo’. Segundo C., enquanto o caixão do exditador baixava à sepultura, sentia que não era mais preciso envelhecer com Franco às suas costas, sentia-se livre de um grande peso. (...) para el resto de los españoles había sido el motor tramposo y secreto de ese bloque de tiempo, y el jefe de máquinas, y el revisor, y el fabricante de las cadenas del engranaje, y el tiempo mismo, cuyo fluir amortiguaba , embalsaba y dirigía, con el fin de que apenas se les sintiera rebullir ni al tiempo ni a él y cayeran como del cielo las insensibles variaciones que habían de irse produciendo, según su ley, en el lenguaje, en el vestido, el la música, en las relaciones humanas, en los espetáculos, en los locales. (...) Se acabó, nunca más, el tiempo se desbloqueaba, había desaparecido el encargado de atarlo y presidirlo,… (MARTÍN GAITE, Carmen, 1996, p.137) 272 Volume 4 | Literatura Espanhola A mudança de perspectiva do tempo histórico pode ser relacionada com uma mudança de forma literária, com uma busca por romper a linearidade convencional no romance. A ditadura franquista, simbolizando esse tempo do bloqueio ou tempo morto, configurou uma lacuna na história da Espanha, representada na narrativa de Carmen Martín Gaite como a imaginação, a insônia e, paradoxalmente, refazendo, recriando o tempo morto da História na história. A personagem C., agora adulta, possui elementos para analisar este período histórico, podendo estabelecer relação com as brincadeiras que povoaram seu universo infantil. Ao compararmos os dois romances podemos perceber uma diferença na maneira das personagens se referirem à Guerra Civil Espanhola e nos fazemos a pergunta: Por que a narradora de Retahílas trata uma questão que teve repercussão mundial de uma maneira tão indiferente? Talvez a resposta esteja no fato de Eulalia ser uma representante desta Espanha adormecida, que queria fugir das discussões políticas, esquecer seu passado que consistia na Guerra Civil Espanhola e nos quase quarenta anos da ditadura franquista. Enquanto a narrativa de C. está marcada por seu despertar ao ver a morte de Franco e com esse despertar a vontade de escrever sobre este período. C. não quer somente rever seu passado, mas quer recompor um período da vida da geração a que pertenceu. Eulalia por sua vez está preocupada apenas com rever sua vida. Referências Bibliográficas MARTÍN GAITE, Carmen. El cuarto de atrás. 11. ed., Madrid, Destino, 1996. ______. Retahílas. 9. ed., Barcelona, Destino, 1995. 273 Hispanismo 2 0 0 6 Violência e memória – tambores da guerra civil espanhola no campo e na província. Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF) Quando observamos essas recordações [...], podemos entender que elas são exercícios de memória capazes de explicar, no decorrer da trama, o comportamento de muitas personagens e várias situações, formando, ao final, uma leitura do passado no presente da narrativa extremamente produtiva. (Eline Rezende) Há 70 anos uma guerra (in) civil devastou a Espanha, aprofundando a ancestral dualidade geradora da metáfora de “las dos Españas”. Ao isolar o país do mundo, a vitória dos nacionalistas o atrasou, empobrecendo-o e silenciando-o por quase quatro décadas. O olhar distanciado e atento recupera fragmentos da memória de fatos que não foram contados oficialmente a seu tempo, ou, quando o foram, envolveram-nos com o papel colorido do ufanismo ditatorial que buscava associar a Espanha da guerra civil à dos tempos gloriosos de heróis e conquistas passadas, à Espanha Imperial. Parece-nos oportuno focalizar, no curto espaço desta comunicação, a recuperação que dois escritores espanhóis de diferentes gerações: Ramon J. Sender, nascido em Huesca, Aragão, em 1901 e Manuel Rivas, nascido em La Coruña, Galícia, em 1957, fazem dos anos que precederam a guerra civil em duas obras escritas com quatro décadas de diferença: Requiem por un campesino español, um romance curto, publicado no México, em 1953, durante o exílio de Sender e o conto de Rivas: “La Lengua de las mariposas”, publicado em 1955, no original em galego, na Espanha, em plena vigência da democracia. É interessante observar que, coincidentemente, os dois ficcionistas em causa nasceram em regiões que fizeram parte do mesmo bloco, na Espanha partida em duas: rebeldes de um lado, no qual estavam a Galícia e metade de Aragão e o bloco do governo legítimo do outro. Nas obras de Ramón J. Sender e Manuel Rivas é possível recuperar e investigar, pelas artes da memória de dois de seus personagens, a violência que se instala no campo e na província, na década de 30, gerada pelo descontentamento e inquietação com as mudanças postas em cena pelos republicanos, após sua vitória nas eleições municipais nas principais cidades da Espanha. Para Todorov, o bom uso da memória é o que serve a uma causa justa, não o que se contenta em reproduzir o passado ou em alimentar a vingan- 274 Volume 4 | Literatura Espanhola ça. “A memória em si mesma, e sem qualquer outra restrição, não é boa nem má” (TODOROV, 2002, p. 193), adverte o pensador búlgaro. Com essa assertiva muito presente, nos voltamos para a obra em que Ramón J. Sender, de seu exílio mexicano, denuncia a loucura homicida que se instalara no campo. E o faz pela personagem do pároco, Monseñor Millán que, sentado na sacristia da igreja do povoado, recorda a vida de Paco, seu jovem amigo por quem celebraria uma missa de réquiem, um ano após ter sido executado pelos poderosos do lugar, sem direito a um julgamento justo. Ele próprio o delatara, confiado, talvez em que não o matariam. Um dos maiores crimes de Paco el del Molino fora o de defender o direito ao uso, por todos os camponeses da região, das terras antes pertencentes, por posse ancestral, ao Duque. Ao mesmo tempo, nos voltamos, também, para o conto de 1995: La lengua de las mariposas, do escritor galego Manuel Rivas que ainda não nascera quando da publicação de Requiem por un campesino español. No conto, o narrador se detém em sua infância, na época em que, aterrorizado pelo medo “que, como un ratón” (RIVAS, 1995, p. 25), roia-lhe as entranhas, vai pela primeira vez à escola. Percebem-se, na aldeia galega de Moncho, o pequeno Pardal, voz narradora de Manuel Rivas, indícios da presença da República e o que ela representava enquanto libertação de modelos ancestrais e luta contra o privilégio de poucos à custa da manutenção na miséria e na ignorância de uma expressiva parte do povo. Ódios antigos se acirraram nos anos 30, diante da modernização da Espanha que passava por abolir antigos privilégios da aristocracia e dos grandes proprietários de terra, além de limitar o poder do exército e da Igreja Católica. A escola laica de Moncho é um exemplo de que o ensino já não era monopólio da Igreja. As duas obras aqui focalizadas, uma escrita no exílio do autor, poucos anos depois de todos os enfrentamentos que sacudiram a Espanha, a outra quase meio século depois, coincidem em explicitar o silêncio, a omissão, o colaboracionismo, a traição, mas também a resistência, nesse período de enfrentamento. O que foi esquecido em algum momento, por conveniência, vem à tona nas narrativas de Ramón J. Sender e Manuel Rivas. Se o bom uso da memória é aquele que serve a uma causa justa, como quer Todorov, pensamos que no romance e no conto em questão, os fatos apontam para o respeito ao outro, para seu direito à liberdade. Ao contar, Sender e Rivas sublinham a intolerância geradora da febre que vitimou a Espanha no ano de 1936. Como afirma Arturo Pérez-Reverte: 275 Hispanismo 2 0 0 6 Luego, prendida la llama, la arrogancia de los privilegiados, el rencor de los humildes, la desvergüenza de los políticos, el ansia de revancha de los fuertes, la ignorancia y el odio hicieron el resto (PEREZ-REVERTE, in ESLAVA GALAN, 2006, p. 5). Medo, esperança, rancor, sentimento de impotência, solidariedade, prepotência, indignação, humilhação se alternam nas páginas de Sender e Rivas, de maneira a permitir que o leitor desentranhe das malhas de cenas e situações criadas literariamente a ânsia de liberdade e a ânsia de repressão que se alternavam e manchavam de sangue e violência “las dos Españas” de então, enfrentadas e contraditórias. Segundo Juan Eslava Galán, em Historia de la guerra civil que no va a gustar a nadie (ESLAVA GALÁN, 2006, p.54-55), a divisão do território nacional entre os dois bandos, nacionalistas e republicanos, desencadeia incontáveis tragédias pessoais. Os direitistas aprisionados na zona republicana e os esquerdistas na zona rebelde transformaram-se automaticamente em cidadãos suspeitos e inimigos da ordem estabelecida em um momento em que “la fiebre cainita desatada en el país no vacila en exterminar al adversario” (ESLAVA GALÁN, 2006, p. 54-55). Paco, el del Molino, personagem criado por Ramón Sender e o velho, justo e doce Don Gregorio, o professor de La lengua de las mariposas, convertem-se ficcionalmente, em ameaça aos antigos privilégios o que determina que, na vigência da rebelião militar, lhes “den el paseo”, metáfora impiedosa para o processo de eliminação dos adversários praticado, durante a madrugada, por um e outro bando. Desse procedimento, resultavam dezenas de cadáveres fuzilados na beira das estradas, junto aos muros dos cemitérios ou nos descampados. Assim, Paco, eleito vereador em uma Espanha nova, republicana, fora perseguido e preso quando, poucos anos depois, os opressores voltaram ao poder. Diante da morte iminente por ter ousado opor-se aos direitos do Duque aos montes, Paco, “mala hierba” para os adversários, perguntou a Mosén Millán, uma vez mais anulado diante do poder estabelecido pela violência: - ¿Por qué me matan? ¿Qué hice yo? Nosotros no matamos a nadie. Diga usted que yo no he hecho nada. Usted sabe que soy inocente, que somos inocentes los tres. - Sí, hijo. Todos sois inocentes; pero ¿qué puedo hacer yo? - Si me matan por haberme defendido en las Pardinas, bien. Pero los otros dos no han hecho nada. (SENDER, 1986, p. 82) A glorificação da violência, a reafirmação a ferro e fogo do poder de 276 Volume 4 | Literatura Espanhola poucos sobre muitos esmagava a voz plural que buscava não só agir, mas o “ser-com”, uma ação fundamentada na discussão de opiniões divergentes que aponta sempre para a opinião da maioria. A violência insidiosa presente de maneira brutal no cotidiano de um “pueblo” em sua trajetória de destruição dissemina o medo, isola os seres humanos, anula o espaço da pluralidade e impõe a desconfiança e o silêncio. Paco é executado contra o muro do cemitério da aldeia e Don Gregório, o professor que mostrava o mundo natural, mágico a seus jovens alunos em um método que privilegiava a justiça, a harmonia, a poesia, o respeito ao outro é levado pelos militares, com outros simpatizantes da República, não se sabe para onde. O olhar adulto do narrador de Manuel Rivas recorda como o menino que foi acompanhou perplexo, cada segundo de uma mudança devastadora desde que começaram os murmúrios, os movimentos apressados e um medo subterrâneo se instalou no povoado, alterando a rotina de todos. O relato faz-nos lembrar a frase de Requiem por un campesino español: “Nadie lloraba ni nadie reía en el pueblo” (SENDER, 1986, p. 71). Conta-nos o narrador de La lengua de las mariposas que um dia, a mãe voltara da missa pálida e entristecida, como se tivesse envelhecido em poucas horas. Disse ao marido que estavam acontecendo coisas terríveis e seria necessário queimar o que o comprometia: jornais, livros, tudo. Ao filho Moncho disse, com voz grave: [...] “Recuerda esto, Moncho. Papá no era republicano. Papá no era amigo del alcalde. Papá no hablaba mal de los curas. Y otra cosa muy importante, Moncho. Papá no le regaló un traje al maestro”. “Sí que lo regaló”. “No, Moncho. No se lo regaló. ¿Has entendido bien?” “¡No se lo regaló!” (RIVAS, 1995, p. 36 e 37). O conto confirma por via semelhante Eslava Galván quando comenta que os amigos que até ontem se divertiam, fazendo brincadeiras a propósito dos bandos políticos a que pertenciam se convertem repentinamente em “irreconciliables enemigos. La escisión afecta también a la família” (ESLAVA GALVÁN, 2006, p. 55). Quarenta anos se passaram entre a narrativa de Ramón Sender e Manuel Rivas. A memória de Sender transformada em palavras reconstrói de maneira poética e contundente uma época dura, de prisões, tortura e morte rotineiras a transformar o comportamento de alguns por não quererem perder seus privilégios, de outros por debilidade ou fraqueza humana ambas as possibilidades concentradas na personagem de Mosén Millán. 277 Hispanismo 2 0 0 6 Movido pelo que Todorov chama de “tentação do bem” (TODOROV, 2002, p. 193), a mesma que levou os protagonistas das ações totalitárias do século XX, começos do XXI a infligir a tortura, a deportar, humilhar e matar milhões de pessoas, o pároco indicou aos inimigos de Paco seu esconderijo, assinando, dessa maneira a sentença de morte do jovem a cuja vida estivera ligado desde antes de seu nascimento, acompanhando-o com especial carinho. Em contraponto, Ramón J. Sender elabora o elogio à liberdade e à justiça ao desenhar Paco, el del Molino de maneira dual, pela narrativa em prosa e pelo poema oral que o coroinha da Igreja canta em seu ir e vir enquanto não chegam os assistentes para a missa de Réquiem. Paco alcança a glorificação popular no canto/conto dos versos romance em que se reinventa sua história, tal como ocorreu com os heróis populares da tradição oral espanhola. Canta o coroinha: [...] Ahí va Paco el del Molino que ya ha sido sentenciado[...] En la Pardina del monte allí encontraron a Paco; date, date a la justicia, o aquí mismo te matamos (SENDER, 1986, p. 42). Na narrativa de Ramón Sender e Manuel Rivas, o espaço das letras e palavras com que ambos a tecem, em uma dimensão estética e ética, evidencia ao leitor uma Espanha partida em dois blocos. Percebe-se, pela leitura do romance e do conto, o apagamento da utopia representada pela República, que acenara para os “desposeídos” com outra possibilidade de vida e o que Azaña chamou de “odio de los soberbios, poco dispuestos a soportar la insolencia de los humildes” (AZAÑA, in ESLAVA GALÁN, 2006, p. 67). Com seu breve e intenso romance, Ramón J. Sender bem como Manuel Rivas, em seu conto, ilustram a afirmação de Jacques Leenhardt, no prefácio à Violência e Literatura, de Ronaldo Lima Lins. Leenhardt afirma que a arte e a literatura podem dizer a violência, fazê-la viver em seus vários aspectos, pela imagem, pelo deslocamento, pela obstinação, pois elas não pararam de inventar mil formas de expressar a indizível violência, de fazê-la sentir “como o verdadeiro escândalo das nossas sociedades e de todas as demais”. (LEENHARDT, in LINS E SILVA, 1990, p. 16). Em nossa leitura de Manuel Rivas e Ramón J. Sender, observamos que, passadas quatro décadas, Rivas por outra via, reconduz à reflexão o que Sender havia exposto ao ficcionalizar os acontecimentos recentes na Espanha a propósito de uma missa de réquiem. Entretanto, apesar 278 Volume 4 | Literatura Espanhola dos quarenta anos que os separam, coincidem ambos, pois elaboram nas duas obras um canto de amor ao ser humano, à justiça, à tolerância, à liberdade. Os passos do potro de Paco el del Molino que entra, de repente, na igreja vazia de amigos e da família do jovem assassinado, e as palavras encantadas incorporadas por Moncho, enquanto descobria um mundo novo pelas mãos do velho professor, transformadas repentina e desvairadamente pelo menino em ofensas agressivas e sem sentido contra seu querido professor enquanto este é levado pelas forças da opressão fazem ecoar, de forma sutil mas contundente e desconcertante a mesma denúncia contra a violência. São metáforas privilegiadas por Ramón Sender e Manuel Rivas para, poética e contundentemente, “dizer a violência” que se abateu sobre aqueles lugares e denunciar o status quo comprometido em manter o fosso entre os poderosos e os humilhados, na Espanha da década de 30. Referências Bibliográficas ARENDT, Hanna. Sobre a violência; Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. ESLAVA GALVÁN, Juan. Historia de la guerra civil que no va a gustar a nadie. Barcelona: Planeta, 2006. JULIÁ, Santos. Historia de las dos Españas. Madrid: Santillana, 2005. LEENHARD, Jacques. “Fim de século”. In: LIMA LINS, Ronaldo; Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. LIMA LINS, Ronaldo. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. MARQUES REZENDE, Eline. Manuel Vázquez Montalbán: O intelectual, a literatura e a cultura de massa. Tese de Doutorado apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da UFRJ, em 31 de agosto de 2006. RIVAS, Manuel: “La lengua de las mariposas”. In ¿Qué me quieres amor? 8 ed. Madrid: Santillana, 2001, p.21-39. SANZ VILLANUEVA, Santos. Historia de la literatura española 6/2. Literatura actual. Barcelona: Ariel, 1994. SENDER, Ramón. Réquiem por un campesino español. Madrid: Iberia, 1986, 86p. TAMAMES, Ramón. “La República. La era de Franco”. In Historia de España Alfaguara. Madrid: Alfaguara, t.7, 1979 TODOROV, Tzvetan. Memórias do mal, tentação do bem. Porto: Asa, 2002. TORRES, Rafael. Víctimas de la victoria. Madrid: Anaya, 2006. 279 Hispanismo 2 0 0 6 Nada. La Novela de Carmen Laforet. Andréa (personaje, narrador, Autor) Manuela Pazos Conde (UNIVERCIDADE) Introducción El presente trabajo tiene como objetivo hacer un breve estudio de las relaciones que se establecen en NADA, novela de Carmen Laforet, entre el autor, el narrador y el personaje central de la novela, Andrea, aquella que nos cuenta la historia. A partir de la lectura de Nada de la autora Carmen Laforet y apoyándome en algunos autores de teorías de la Literatura, que nos muestran la línea, muchas veces tenue, que separa a estos tres elementos tan importantes de la escritura, como lo son: el autor, el narrador y el personaje pretendo mostrar cómo en este romance esos elementos se confunden y se mezclan haciéndonos oír voces que nos cuestan mucha atención para percibir, en su singularidad, su procedencia. Tomaré como figura central y ejemplar para este trabajo al personaje Andrea, pues, además de ser el personaje principal, pues toda la narrativa gira alrededor de sus acciones, sentimientos y emociones, ella es también “la que cuenta la historia”. Es, por lo tanto, un narrador-personaje, ya que lo que cuenta lo hace en primera persona “El yo de la narrativa”. Es importante que nos situemos en el espacio de Andrea para entender su manera de ver el mundo, y en él, a Barcelona y a la casa de sus parientes. Al fin y al cabo, Andrea, así como la autora son parte de una generación que se solió llamar de “las niñas de la guerra”, expresión utilizada por Josefina Aldecoa, para designar el conjunto de los escritores que convivieron en su juventud con las atrocidades decurrentes de una guerra civil de las más sangrientas que el mundo tuvo noticia. El periodo de la posguerra española es un momento crucial para la cultura de aquel país. Está en el poder “El Generalísimo” y todo el pensamiento que no sea partidario y no sirva de propaganda para el régimen se ve obligado a callar. No se debe hablar de los destrozos de la guerra ni del hambre, ni de la miseria y desaliento que sufre todo el pueblo. Hay que aguantar es la máxima del gobierno y callar. España está aislada del resto del mundo y así debe permanecer para no contaminarse con las ideas comunistas que vienen de afuera. Franco se acerca a la Iglesia para sujetar al pueblo y mantenerlo preso a sus convicciones. La intelectualidad que todavía se mantiene en España, aquella que no escapó para el exilio, e intenta restablecer su vida después del hundimiento de los ideales republicanos, se ve callada por la mordaza de la 280 Volume 4 | Literatura Espanhola censura. Algunos pocos se atreven a hacer lo que mejor saben: “escribir”, pero no puede uno alejarse de lo que está ocurriendo en España en aquel momento, y si se dice algo se debe hacerlo con mucho cuidado para no herir las susceptibilidades del régimen. La ley del silencio o de aguantar y callar se hace tan fuerte en el espíritu español que lleva los escritores a crear ambientes y personajes que retraten ese ambiente y donde el lector pueda observar, en las entrelíneas, a lo que se ve reducida España y el pueblo español, un retrato de “las dos Españas”, en la casa de la calle Aribau y en sus moradores. A los 23 años, por lo tanto durante la austera censura impuesta por el generalísimo, donde solamente se podía publicar lo que fuera de interés para reforzar las ideas del régimen, y en un escenario totalmente adverso a cualquiera que se atreviese a hablar sobre la sociedad de la posguerra, sale a la luz la novela de esa autora que nos va a mostrar, justamente lo que debería permanecer oculto a los ojos del mundo: como vivía el pueblo español después de la guerra. Sorprende el hecho de que una mujer haya escrito una novela, pues “la ideología”suministrada por el régimen divulgaba la minoría intelectual de la mujer frente al varón, al que Dios había reservado “el talento creador”, respecto del que ella quedaba reducida al papel de intérprete” (MOYA, 1987, p.2). Comienzan las coincidencias: tanto la autora como el personaje Andrea, son muy jóvenes, tienen 23 años, y una sensibilidad muy particular para la observación. Además, se les nota un interés muy grande por descubrir y vivir cosas nuevas, aventurarse en la existencia. En cuanto a Carmen Laforet es lo que dice en :Noticias de Carmen Laforet y Nada. ( MOYA, Ródenas de. Pág. 220) y la misma observación la percibimos en Andrea “ Recordaba la terrible esperanza, el anhelo de vida con que las había subido por primera vez. Me marchaba ahora sin haber conocido nada de lo que confusamente esperaba: la vida en su plenitud, la alegría, el interés profundo, el amor (LAFORET, 1997, p. 316.) Tanto la una como la otra, en fin, se erigen como modelos emergentes de mujeres nuevas, creadas y supervivientes en el terrible conflicto de la guerra civil. Y es de ese periodo, como testimonio de él, que Carmen Laforet escribe Nada, una novela testimonio de la etapa de la posguerra, de sus heridas y de sus destrozos, “tan callados”. La novela de Carmen Laforet no puede llamarse una novela de crítica social, por lo menos, una crítica explícita, pues eso sería impensable en 281 Hispanismo 2 0 0 6 la España de 1944, donde la mordaza del régimen ejercía una fuerte cohesión a todo tipo de literatura que no se mostrara benevolente con él, y la depuración en la ciudad de Barcelona constituyó una prioridad en la política represiva del nuevo Estado ya que había sido sede del comité rojo en los últimos tiempos. Carmen Laforet consigue, a pesar de ello, a través de los personajes mostrados en el escenario de la casa de Aribau, en la opresión carcelaria que se vive en ella, los efectos corrosivos y las llagas dejadas por la sangrienta guerra, entre el hambre, la ruina moral y física y las patologías de unos personajes que son la expresión más real de los individuos que la guerra generó. Los personajes, más que el tema fundamental de la novela, se ven convertidos, paulatinamente en fuentes de información, juego de espejos, puesto de observación y de la intención de la narradora depende nuestra relación de lectores con los personajes. Sus posibilidades son múltiples pues, puede contar cosas que dicen respecto a otros, introducir otros personajes, y producir, con eso la polifonía de voces que escuchamos. Pues el narrador, en determinado momento echa mano a una deposición directa para causar un efecto de acceder a; la realidad del personaje “La verdad, Andrea es que en el fondo he preciado siempre tu estimación como algo extraordinario, pero nunca he querido darme cuenta (LAFORET, 1997 p. 283). El lector tiene el sentimiento de que todo lo dicho surge de la constitución intelectual del personaje, pues el narrador salvaguarda la autonomía de sus personajes respectando la complejidad de sus conciencias y busca “repetir lo que dicen ellos y su manera de decirlo”para que el lector pueda conocer los estados de ánimo de los personajes. “Como era día de Navidad, Juan se sentía muy animado. Sólo Román parecía, como siempre, lejos de la comida” ( LAFORET, 1997 p. 80). En el plano de la mutua relación e interdependencia entre narrador, autor y personaje, la novela de Carmen Laforet nos conduce mucho más que tantas otras, a la búsqueda en definir esas voces. ¿Quién cuenta la historia? Sabemos por un lado que: “el narrador permanece en el primer plano de la audición y de la conciencia” (TACCA, 1985, p. 13) y que el narrador está en primera persona, por tanto, es él el que cuenta. Por otro lado tenemos la afirmación de la propia autora cuando nos dice que: “mis novelas están hechas de mi propia sustancia y relejan ese mundo... que soy yo” (MOYA, 1987, p. 218) y además, si añadimos a eso que la autora recurre a episodios de su propia existencia para nutrir argumentalmente sus ficciones (MOYA, 1987 p. 218) nos parece percibir que hay una verdadera simbiosis entre los tres elementos ya referidos. 282 Volume 4 | Literatura Espanhola ¿Quién mejor que Carmen Laforet puede contarnos lo que siente una joven que sale del interior para una gran ciudad? Para vivir una “vida nueva, que será su salvación”. El olor especial, el gran rumor de la gente, las luces siempre tristes tenían para mi un gran encanto, ya que envolvía todas mis impresiones en la maravilla de haber llegado por fin a una ciudad grande, adorada en mis ensueños por desconocida (LAFORET. 1997, p. 11) Y ¿quién mejor para hacerlo que un narrador-personaje? Andrea, una jovencita que tiene la misma edad que tenía la autora cuando, también ella, llegó a Barcelona. La tensión de la cuerda entre autor y narrador hace que no nos demos cuenta de ella, de sus polos. El narrador disimula juicios y opiniones del autor. Pero basta que el narrador ceda un poco para que la cuerda se distienda y aparezca la flácida voz del autor.( TACCA, 1985 p. 38) Andrea llega a Barcelona para estudiar Letras. Sus ilusiones chocan, inmediatamente, con el ambiente de tensión y emociones violentas que reinan en casa de la abuela. Andrea relata el contraste entre ese sórdido microcosmos familiar – poblado de seres extraños y apasionantes – y la frágil cordialidad de sus relaciones universitarias. Carmen Laforet, así como Andrea, se marcha a Barcelona, a los dieciocho años, para vivir en casa de parientes y según su hijo “como Andrea, tuvo que darse también el choque entre una persona sin guerra y una ciudad devastada por ella”... –“llegué a Barcelona a media noche, en un tren distinto del que había anunciado, y no me esperaba nadie” ( LAFORET.1997 p.11). El personaje Andrea es una de las dimensiones fundamentales de la novela, pudiéndose distinguir dos enfoques distintos: el primero es el de Andrea personaje tema, o sea, interés central, sustancia, y el segundo es que es también un personaje que sirve de medio de exploración del mundo que se narra. Es, por lo tanto Andrea, un personaje interno que cuenta respectivamente su historia, es también “como una caja de resonancia de lo que sucede a su alrededor”pues se nos sustrae su alma y no emite un juicio explícito sobre la realidad. El narrador parece incapaz de penetrar el sentido de los hechos que refiere mientras le da al lector la omnisciencia necesaria para comprenderlos. “Historias demasiado oscuras para mí. Su olor, que era el podrido olor de mi casa, me causaba cierta náusea...” (MOYA. 1987. p. 220). Desde ambas vertientes (narrador-personaje) también se puede ver la relación entre el autor y el personaje, donde, en el primer caso se le ve 283 Hispanismo 2 0 0 6 íntimamente ligado a lo que se cuenta y en el otro, a cómo se cuenta. Las distintas formas de creación del personaje, a partir del yo, según la línea de su vida real o las infinitas direcciones de su vida posible; en fin, la confesión autobiográfica o la imaginación creadora. La alineación o la invención determinan el análisis desde el enfoque temático. Desde luego, al detenernos para observar la biografía de la autora nos damos cuenta de inmediato que hay una relación muy estrecha entre la proximidad de la vida de la autora y las peripecias de Andrea. Habiendo ambas testimoniado los efectos de la guerra es a través de Andrea que la autora nos describe la sociedad de aquel momento. Y es también a través de ella que pasamos, como lectores, a tomar contacto con los personajes de la casa de “Aribau”, metáfora de la Barcelona de la posguerra. Los novelistas raras veces hablaron de la autonomía de los personajes, y por otro lado, han consumado silenciosa y obstinadamente la desaparición del autor. Sabiendo pues, que fue muy grande la importancia que se dio a las distintas formas de creación del personaje y que ello conllevó después de la segunda Guerra Mundial a una reacción contraria que hizo con que los autores declarasen su independencia y autonomía, nos parece natural la postura de Carmen Laforet al repetir una y otra vez que: “no es una novela autobiográfica y que “sus andanzas por Barcelona poco tuvieron que ver con el año de terrible iniciación a la madurez que padece Andrea en la novela” (MOYA. 1987,p. 20). El desdoblamiento (doble registro) es un procedimiento muy utilizado en la novela , cuando el personaje cuenta hechos de su pasado conservando la relativa ajenidad que impone el tiempo. El personaje se convierte en un observador de sus azares El personaje maduro que cuenta no es el joven personaje que vivió pues lo considera desde lejos, es justo el distanciamiento entre el observador y el observado. Y eso, una vez más nos lleva a pensar en la relación existente entre el narrador, Andrea y el autor, Carmen Laforet, y si realmente no es la voz de ésta la que oímos a través de la primera. Referencias Bibliográficas ABELLÁN, Manuel L. Censura y Franquismo: ensayo de interpretación. Barcelona: 1980. CANDIDO, Antonio; Literatura e Sociedade Estudos de Teoria e Historia literária. São Paulo: T. A .Queiroz Editor Ltda, 2000. DELIBES, Miguel. La censura de los años 40 (y otros ensayos). Valladolid: Ámbito, 1985 284 Volume 4 | Literatura Espanhola GAITE, Martín. Carmen, Usos Amorosos de la Posguerra. Barcelona: Editorial Anagrama, 1987 LAFORET, Carmen. Nada. Aguilar S.A. de editores, Madrid, 1997 MOLINERO, Carmen y ISÁS, Pepe. Memorias del Franquismo y Medios de comunicación. Barcelona: Cefid - Universidad Autónoma de Barcelona, 2002. MOYA, Domingos Ródenas de. Noticias de Carmen Laforet y “Nada”. Barcelona: Editorial Anagrama, 1987. NASCIMENTO, Magnólia Brasil Barbosa do. Signos da História Recente da Espanha na Ficção de Miguel Delibes. Niteroi: EDUFF, 2002 TACCA, O. Las voces de la novela. 3ª. ed. Madrid: Gredos, 1985. TECGLEN, Eduardo. Así éramos en los años 40. El país Semanal suplemento: La España Del Desembarco. Madrid, 1994 285 Hispanismo 2 0 0 6 O testemunho dos sentidos da precariedade na obra La escritura o la vida de Jorge Semprún Marcia Romero Marçal (USP) Em La escritura o la vida, um testemunho da barbárie em forma romanesca, os sentidos do corpo assumem uma polissemia, uma sinonímia e uma funcionalidade fundamentais para se compreender a precariedade do sujeito que nele fala. O dono desta voz, um sobrevivente de Buchenwald, portador de uma angústia insuportável, não atina razão por que se enunciar através de um outro narrador, exterior aos próprios sentidos marcados por uma vivência atroz. Nos dois primeiros capítulos do livro, o olhar e a audição, respectivamente, servem de leitmotiv para as ações representadas, atuam como metonímia e metáfora da experiência do campo, sondam sua essência e conduzem o tênue fio da narrativa, porque neles estão inscritas as marcas indeléveis da catástrofe. No primeiro capítulo, “la mirada”, o personagem-narrador, no dia seguinte à libertação de Buchenwald, após passar a noite em Weimar com seus companheiros, depara-se com três oficiais das forças aliadas nas imediações do campo. Em seu olhar, ele surpreende um indecifrável horror espelhado que lhe devolve um terrível auto-estranhamento. A cena representa a ação reflexiva do olhar de estranhamento entre o outro mundo exterior e o eu sobrevivente das zonas infernais do campo. A imagem de si contida no outro envolve um processo de auto-alienação, de auto-exílio, uma personalidade dissociada de sua imagem. O outro, pois de fora do campo, espelha, por possuir a visibilidade que à testemunha falta, o que lhe está eclipsado, sua impotência de visão. Uma intercorporalidade se estabelece entre mundos diferentes: vidente e visível coexistem em um contexto em que a invidência do vidente está implicada na invisibilidade do horror. Em “La mirada” o narrador recorre aos meandros da memória do campo para compreender o ambiente do qual ela resulta. Assim, este só assume importância na medida em que expõe a razão do próprio impasse de reconhecer no outro o que traz o olhar do sujeito que vivenciou a catástrofe: o horror. Os órgãos dos sentidos embasam a narração e a reflexão daí decorrente, porque associam o mundo exterior ao interior da personagem de uma forma individualizada, subjetiva e sensível. O narrador-personagem, quarenta e sete anos depois, lança mão de um olhar sobre o universo do campo, para localizar nele o horror que não se deixa captar e expressar inteiramente pelos sentidos ou pela razão. Este olhar da memória, porém, não é contemplativo, já que a urgência do ato de testemunhar, levada a cabo pela narração das cenas em presente 286 Volume 4 | Literatura Espanhola verbal, não nos permite descansar sobre o que ele enfoca, retirando-nos desta posição relaxada, a cada quando, para a hesitação do presente. É através desta perspectiva retalhada que a composição dimana da experiência sensível do campo; os demais sentidos, o olfativo, o gustativo e o tátil, embora concorram para a representação desta realidade, vão à esteira do olhar e da audição. Uma frase enxuta, dotada de uma premência brusca, lança-nos à cena do olhar: “Están delante de mí, abriendo los ojos enormemente, y yo me veo de golpe en esa mirada de espanto: en su pavor.” (SEMPRÚN, 1995, p. 15) A simultaneidade entre o tempo do discurso e o do enunciado produz no leitor a sensação de uma falta de domínio, por parte do personagemnarrador, sobre a situação imediata em que se encontra. O “encurtamento da distância estética” tem como efeito uma percepção fragmentada, difusa, de quem está colado à circunstância, sem poder enxergar muito bem o que está narrando. Isto gera uma tensão ao texto e reduz a capacidade de ordenamento das coisas percebidas ao redor. É o choque do olhar. Impossibilitado o narrador de ver seu próprio rosto e olhar, no campo, imediatamente fora, será o olhar do outro que lhe servirá de pista para enxergar-se. Uma pista, no entanto, incerta. O jogo especular encarnado na cena do olhar reveste a situação primeira de testemunho de uma incerteza derivada da subjetividade e da objetividade da alteridade. Encontro de intimidades e de objetualidades, é justamente não confiando nesta “materialidade espiritualizada” e tendo-a como meio de conhecer a si e o mundo que lhe é dado a testemunhar que o narrador empreende uma narração na qual a dúvida não chega a dissipar-se. Embargado na confusão deste horror, o sujeito do “olhar-sensação” pressente, no outro, o pavor que de si emana. Trata-se de um reconhecimento duvidoso, pois uma das facetas do horror do campo é a familiaridade, como lei do cotidiano, de quem nele está mergulhado. Justamente no momento em que o sobrevivente pensava incluir-se na comunidade dos homens livres, familiarizar-se com eles, sente-se um estranho aos mesmos, excluído por um abismo intransponível. Sob tais condições, o narrador envereda por uma busca daquilo que pudesse ter provocado o olhar de horror nos rostos dos oficiais, e reconstitui: “Desde hacía dos años, yo vivía sin rostro. No hay espejos en Buchenwald. Veía mi cuerpo, su delgadez creciente, una vez por semana, en las duchas. Ningún rostro, sobre ese cuerpo irrisorio.” (SEMPRÚN, 1995, p.15) O sujeito que acaba de sair do campo é um sujeito sem fisionomia, desprovido do apanágio que lhe confere identidade. Em um corpo insignificante, o rosto se desfaz e desaparece. A ausência de rosto alude tanto 287 Hispanismo 2 0 0 6 à aniquilação física sofrida, bem como à impossibilidade de ver e ver-se dentro do campo. A frase “no hay espejos en Buchenwald” é colidida em seguida com a afirmação de que “se podría haber conseguido un espejo, sin duda”. Trata-se, pois, não de uma impossibilidade material de se ver e sim de outra índole. Ainda quando o narrador tivesse se fitado ao espelho, a imagem refletida não lhe devolveria um rosto. Um corpo “borroso” não sustenta um semblante, pois nele ocorre a perda da carne e da vida da individualidade. Exangue sua corporeidade, esvai-se sua humanidade. O que pode ver um homem sem rosto? A sombra de si mesmo, a massa homogênea de rostos ausentes, olhares sem força, cativos de horror, incapazes de distinguir nesta mesma massa sua própria identidade. Intrigado por uma resposta que não se conclui, o narrador levanta sucessivas hipóteses à cata da causa deste olhar. A descrição que se segue procede a essa busca atormentada. Ele renega sua cabeça raspada, a indumentária, as armas, a magreza, e supõe: “Es el horror de mi mirada lo que revela la suya, horrorizada. Si, en definitiva, mis ojos son un espejo, debo de tener una mirada de loco, de desolación.” (SEMPRÚN, 1995, p. 16) A loucura e a desolação do sobrevivente são inferidas, sem certeza -“debo de”-, pois o encontro de duas superfícies especulares, vazias de imagem, o que podem revelar? A loucura, a alienação, aquilo que está fora de si e sempre no outro, porque em si não é discernível, não se submete à razão. A desolação, a ruína do ser, o que nele está destruído, o próprio sentido que o capacita a conhecer a destruição de si. A descrição dos olhos dos oficiais insiste neste vazio do horror do campo, em sua “ceguera pavorosa”: “ojos desorbitados”, que, ao fugirem da cavidade óssea em que se alojam, revelam que a coisa vista extrapola o domínio do corpo e da compreensão. O andamento da narrativa mostra que o desejo de compreender não se dá por satisfeito. No segundo fragmento, o narrador reproduz a provocação que dirige aos “espelhos” do olhar de espanto: “Me mira, despavorido de espanto. _ ¿Qué pasa? – digo, irritado, sin duda cortante -. ¿es el silencio del bosque lo que tanto os extraña? (SEMPRÚN, 1995, p. 17) A indagação rompe a paralisia muda da situação do olhar, desvia o enfoque narrativo para a percepção auditiva. A introdução do silêncio liga-se à noção de estranhamento: o olhar provoca pavor, o silêncio, estranhamento. O sujeito do olhar de horror está circundado pela ausência de linguagem. O mundo interior da invidência se relaciona com o mundo exterior do inauditismo. Após o levantamento desta nova hipótese, o personagem-narrador explica-lhes: “_Se acabaron los pájaros (...) El humo del crematorio los ha ahuyentado, eso dicen. Nunca hay pájaros en este bosque…” (SEMPRÚN, 1995, p. 288 Volume 4 | Literatura Espanhola 17) A explicação do silêncio do bosque vincula o sentido auditivo ao olfativo, integra-os na idéia de que nem ou sobretudo os pássaros suportaram o “extraño olor” exalado pelo forno do crematório. A debandada dos pássaros, em oposição ao confinamento dos prisioneiros, representa o grau de sofrimento impingido aos últimos; comunga homem e animal na agonia da percepção. Ao apelar à sensibilidade animal e mostrar sua intolerância às emulações do forno, o narrador insinua a condição não só inumana dos prisioneiros, mas também aquém até da vida animal. Coteja e irmana vida humana e animal numa lógica que depreende da reação da última a opressão do campo sobre a existência sensível do ser humano. A “vida nua” (AGAMBEN, 2004, p.12), ponto comum entre homem e animal, revela o grau de rebaixamento extremo do indivíduo à mercê das práticas de violência perpetradas nos campos nazistas: uma condição subanimal de vida. A libertação e a sobrevivência também são plasmadas sob o signo desta cegueira. “Ninguno de nosotros, jamás, se habría atrevido a soñar algo así. Ninguno había estado lo suficientemente vivo como para soñar incluso, para arriesgarse a imaginar un porvenir.” (SEMPRÚN, 1995, p.22) A impossibilidade de sonhar a sobrevivência significa a de vislumbrar um futuro, pô-lo em perspectiva. As palavras imaginar, vislumbrar e perspectiva compartilham o mesmo campo léxico da visão. Não poder imaginar e não poder vislumbrar albergam a perda da capacidade do sentido visual. Não se ver no futuro implica que o lugar de onde se olha não dá acesso à sua perspectiva. O campo, um todo temporal só presente, suprime no indivíduo a motricidade do olhar. Este está paralisado e absorvido na hipertrofia de sua onipresença. Se o futuro não tangenciava a visão, era, então, improvisus (sem ver de antemão). Daí a libertação e a sobrevivência serem improváveis e afins a este sentido da perda de uma das faculdades do ato de olhar. Os olhares dos companheiros do campo são descritos como fraternos, mas logo o narrador se indaga: Si es que había miradas: la mayoría de los deportados carecían de ella. La tenían apagada, obnubilada, cegada por la luz cruda de la muerte. La mayoría de ellos sólo vivía debido a la inercia: luz debilitada de una estrella muerta, su mirada. (SEMPRÚN, 1995, p. 29) A imagem evocada apresenta o olhar como região de intercessão de dois focos de luz: um, interno ao sujeito, outro, externo, o do meio. A luz da morte é oriunda da invasão e ameaça constante de aniquilamento ao espaço corpóreo e psíquico do sujeito, ofuscando sua visão e luz interior. O ser dotado de luz própria aparece na metáfora da “estrella muerta”. Em processo mori- 289 Hispanismo 2 0 0 6 bundo, ele deixou de irradiá-la; daí a inércia do movimento luminoso. Aqui, o olhar desempenha sua dupla função de janela do mundo interior, obliterado, e espelho do mundo exterior, devastado. O resultado é uma cegueira dual, irreversível, que tem duas faces indissociáveis: a escuridão da vida interior e a luminosidade da morte exterior. Ambas encontram no olhar do homem o elo de sua relação dialética destrutiva, transformando-se na escuridão da vida exterior e na luminosidade da morte interior. O segundo capítulo, “el kaddish”, traz o sentido da audição no concurso da fatura da obra. Estamos em 14 de abril de 1945, no campo de concentração de Buchenwald, e a ação narrada gira em torno do salvamento de um ex-prisioneiro judeu. À espera de serem repatriados, os ex-prisioneiros membros do comitê internacional do campo fazem parte de uma ação de salvamento. O sentido auditivo aqui também catalisa e dispersa, ao mesmo tempo, as rememorações, as reflexões, as descrições e os diálogos do narrador, enfim, outras vozes e registros. Mas se o olhar de fora, “de la vida”, confunde o sujeito do olhar da catástrofe no discernimento do ser e do parecer, a voz de dentro, “de la muerte”, recoloca, dialeticamente, a identificação entre a aparência e a essência; torna idêntico o que se manifesta em sua multiplicidade aparente. Desta maneira, o capítulo começa com uma frase aparentemente homóloga à primeira frase do primeiro capítulo: “Una voz, de repente, detrás de nosotros.” (SEMPRÚN, 1995, p. 38) No entanto, ela constitui um contraponto fundado numa analogia antitética em relação àquela, num paralelismo. O movimento das ações da obra é dialético e suas contradições manifestam-se muitas vezes mediante o recurso da lei da repetição. Em seguida, o discurso sofre uma inflexão, tomando a mesma direção das indagações e incertezas: “¿Una voz? Queja inhumana, más bien. Gemido inarticulado de animal herido. Melopea fúnebre que hiela la sangre en las venas.” (SEMPRÚN, 1995, p. 38) A forma interrogativa visa, antes, a questionar o estado de quem a emite e o lugar de onde é proferida. O seu sentido dialoga com a questão de Primo Levi que deu o título ao seu livro: é isto um homem? À guisa de variação sobre o mesmo tema, forma inspirada no movimento espiralado do jazz e do próprio pensamento dialético, o narrador pergunta-se: é isto uma voz? – quando, na verdade, sua caracterização vacila a propósito do estatuto de humanidade atribuído à fonte deste som lamentoso, inarticulado, monótono. Assim, um feixe descritivo tenta definir esta voz inumana: “sollozo canturreado”, “estertor acompasado”, “rapsodia del más allá”, “melopea fantasmal”, “salmodia”. Em oposição dialética a esta sinonímia, cujo denominador comum é o tom monótono, “apenas perceptible”, de uma voz “ronca, susurrada”, decaída, vinda de uma região ultravida, o narrador salienta a loquacidade e a presença radiante da agonia da morte. A voz da morte no campo é “inagotable”, “inmortal”; sua língua: o yiddish; seu canto: uma oração fúnebre hebraica, o kaddish. 290 Volume 4 | Literatura Espanhola Semprún empreende uma busca dialética da visibilidade e da audição possíveis dessa vivência, a da morte no campo. Como torná-la visível e audível, sem que sua “oscura radiación” cegue mortalmente seu vidente e sua loquacidade petrifique seu ouvinte, constitui não somente um problema vital para este sobrevivente, mas também um aspecto de sua representação não ordinário para o escritor, já que, para ele, somente uma visão de conjunto e uma fragmentação discursiva – obtidas por intermédio da amplitude e da profundidade da reflexão– conduzem à superação da vivência em forma de experiência comunicável. A afasia traumática, a necessidade de silenciar a terrível verdade para sobreviver à sobrevivência, é bem conhecida por Semprún. Se ele procura preservar a língua de supostos limites representacionais, é porque situa seu personagem-narrador no lugar problemático de uma locução em crise e esta, como um problema interior ao sujeito que, para apoderar-se de sua expressão, não pode prescindir de experienciá-la ampla e profundamente em sua representação. A “língua órfã” do testemunho de Semprún é uma metáfora da orfandade de um homem cujo mundo morreu quando ele sobreviveu-lhe, cuja própria morte espiritual é expressa na língua também órfã de um homem, como ele próprio de seu mundo. Referências Bibliográficas ADAUTO, Novaes (org.) O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ADORNO, Theodor. Minima moralia. São Paulo: Ática, 1993. AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua I. Homo Sacer. Valencia: Pre-Textos, 2004. _____ Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Homo Sacer III. Valencia: Pre-Textos, 2000. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. DE MARCO, Valeria. “Questões sobre a literatura de testemunho” in Língua e literatura. São Paulo, no 25, 1999, 153-167. _____ “A literatura de testemunho e a violência de Estado.” In Lua nova. São Paulo, no 62, 2004, pp. 45-68. _____ “La escritura o la vida: la imposibilidad de ver”. São Paulo. Mimeografado. LEVI, Primo. É isto um homem? São Paulo: Companhia das Letras, 1997. NESTROVSKI, Arthur e SELIGMANN-SILVA, Marcio (orgs). Catástrofe e representação. São Paulo, Escuta, 2000, 201 p.. SEMPRÚN, Jorge. La escritura o la vida. Barcelona: Tusquets Editores, 1995. TODORV, Tzvetan Estruturalismo e poética. São Paulo: Cultrix, 1968. 291 Hispanismo 2 0 0 6 Luis Martín-Santos e a violência do silêncioa Margareth Santos (PUC) Insomnio Madrid es una ciudad de más de un millón de cadáveres (según las últimas estadísticas). A veces en la noche yo me revuelvo y me incorporo en este nicho en el que hace 45 años que me pudro (...) Y paso largas horas preguntándole a Dios, preguntándole por qué mil millones de cadáveres se pudren lentamente en el mundo. (Dámaso Alonso) Em Tiempo de Silencio, Martín-Santos narra a história de Pedro, um médico-cientista que, em um estudo empírico com ratos, tenta provar que o câncer é virótico e não hereditário. Nessa obra, Martín-Santos expõenos a sociedade espanhola nos chamados “años de hambre”, através de um incisivo movimento metonímico em suas descrições e de uma cuidadosa seleção de imagens, retrata um pós-guerra desolador. A partir do percurso de seu protagonista, o autor explora o espaço de maneira singular, pois, por meio dele, explicita os conflitos de seus personagens e delineia, metonimicamente, imagens que definem o caráter social e histórico de uma época, revelando a contradição entre seus personagens e os ambientes pelos quais transitam. Nesses espaços, destaca-se o olhar de Pedro analisando as células cancerígenas através de seu velho microscópio. Agigantadas, elas funcionam como metáforas que revelam a dimensão do câncer nessa sociedade e, ao fragmentá-las surgem diversas situações: o protagonista vê, entre os “farrapos-cortinas” da casa de Muecas, meninas criando ratos sob o olhar resignado de uma consorte gorda e animalizada, um pai que molesta a filha e provoca-lhe o aborto. Desumanizados, todos invertem a ordem natural entre humanos e animais; vivem e morrem como bichos. São percepções intensas de um cotidiano recoberto de ambigüidade e ironia, instrumentos de que se vale o autor para fazer-nos enxergar com proximidade o mundo do pós-guerra. Assim, Madri é vista microscopicamente, suas vísceras expostas nos mostram as minúcias de que são formados os personagens e no interior dessas minúcias, encontramos no câncer sua representação mais dilacerante. Como células cancerígenas de que se ocupa o protagonista, que proliferam vertiginosamente, a linguagem de Martín-Santos mimetiza tal processo, possibilitando que se constitua uma visão meticulosa e fragmentada de uma sociedade que vive sob o signo do silêncio. 292 Volume 4 | Literatura Espanhola Representação violenta e apropriada, as vísceras expõem um romance marcado por uma linguagem inovadora e contundente, revelando as entranhas do homem por meio da construção do espaço romanesco da cidade, criando descrições que evidenciam sua dinâmica narrativa por meio desse conjunto cru e cinzento. Esse amalgama “visceral” constitui-se como ponto inicial para apreender o tiempo de silencio que imperava no pós-guerra espanhol e refletir sobre uma violência que anula a existência humana. Nessa composição, cidade e personagens configuram, no espaço conflituoso, a realidade desoladora daquele contexto, no qual o mundo exposto revela um ar viciado pelo mutismo imposto. Nele, o calor sufocante das ruas e dos ambientes privados, conduzem seus personagens a lugares abjetos, em que há um “silencio macizo como un estuche” (MARTÍN-SANTOS, 2000, p. 87). Através dessa percepção do ambiente social, o narrador “disseca” a cidade ao construí-la através de centenas de palavras acumuladas que, em vez de ofuscá-la, manifestam os inúmeros detalhes que a compõem. Assim, ao “proliferar” a palavra, consegue uma imagem inequívoca das vísceras do pós-guerra. E, embora pareça contraditório, é na proliferação que reside o silêncio dos anos de fome, no qual o que se diz e o que se descreve condizem com o que está implícito, com o que se insinua, com o silêncio que ressoa nas múltiplas possibilidades manifestadas pelo texto. Nesse proliferar paradoxal localizamos a materialização do projeto de Pedro. Não por meio de sua pesquisa científica, mas sim pela estrutura do romance, já que sua tese comprova-se metaforicamente na construção da narrativa: ao mostrar como seus personagens vão contaminando-se ao entrar em contato com o mundo do câncer —através de diversas passagens do romance, como a da pesquisa, da venda de ratos, da quebra de hierarquia social, da promiscuidade do leito e por fim do “esgarçar” a linguagem— a “virose cancerígena” se confirma como algo que sempre esteve no ar, como uma herança social que contamina a todos. Nesse processo de contaminação são três os momentos modelares para a configuração da violência silenciosa que pairava sobre todos: o primeiro é o de Pedro na prisão, após ser capturado pela raspagem mal sucedida na filha de Muecas; outro durante o enterro vertical da jovem e o último durante a fuga de Pedro para o interior do país. No primeiro momento, vemos Pedro, que em sua cela impõe-se uma terapéutica del silencio (GOYTSOLO, 1982, p.45), que consiste em um exercício mental para não falar, não pensar e manter uma calma que, apenas aparente, faz sua cabeça continuar buscando explicações plausíveis para o que sucedeu nas últimas horas. 293 Hispanismo 2 0 0 6 Esse tempo na prisão, em meio a uma suposta quietude, passa por gradações: vai de um tiempo de palabras, para um tiempo de pensamientos e por fim um tiempo de dibujar. O primeiro ocorre durante o interrogatório, em que é exigido que diga tudo; depois, através de seus pensamentos, em que tenta entender o que acontece. No entanto, percebe que pensar é inútil e, no silêncio de sua cela exígua, começa um processo de compreensão pelo corte na parede, pelo desenho. No tiempo de dibujar, no momento do “nada”, projeta nas figuras inscritas na parede o seu entorno e seus atos. Cercado por paredes que só têm a oferecer-lhe manchas, um turbilhão de pensamentos torna-se seu único companheiro. E ele começa a desenhar, primeiro mentalmente, depois, “gravando” figuras na parede com uma ponta de metal de um cadarço, que encontra caído no chão da cela, e delineia uma sereia sem voz: Dibujar la sirena con la mancha de la pared. La pared parece una sirena. (...) Con un hierrito del cordón del zapato que se le ha caído a alguien (...) se puede rascar la pared e ir dando forma al dibujo sugerido por la mancha (MARTÍN-SANTOS, 2000, p. 209). Raspar, desenhar na parede o silêncio que reverbera dentro e fora da prisão são movimentos reveladores de um tempo no qual o que não se diz, o que não se pode dizer, está presente no corte contínuo. Nesse movimento, Pedro, ao negar a voz à sereia, concedendo-lhe apenas a deformação e a monstruosidade, reorganiza em sua mente a vivência da ditadura franquista, por meio da degeneração, inverte o mito e nos mostra que a opressão está dentro e fora da prisão. “Inscreve” em um espaço reduzido uma imagem metonímica de uma sociedade em frangalhos, de um corpo social contaminado pelo câncer da insistência em aparentar que tudo “no está tan mal cuando verdaderamente está muy mal” (MARTÍN-SANTOS, 2000, p. 18). Um ambiente em que o indivíduo lança seu olhar sobre o coletivo e tenta compreender o que a guerra fez dele e o que faz agora, em uma ditadura que limita o que se diz, em que o silêncio prevalece. Assim, os espaços pelos quais Pedro transita se reduzem a imagens metafóricas ou metonímicas. A casa de Muecas é a metonímia de uma situação de pobreza e condições subumanas em que vivem os migrantes e imigrantes no país. A prisão configura-se como o espaço do abjeto e do silêncio que percorre todo o romance. 294 Volume 4 | Literatura Espanhola Pedro, aprisionado entre o dito e o calado, integra sua situação ao seu entorno. No instante do nada, do silêncio e do espaço fechado, chega a uma aguda percepção do instante vivido. Nesse momento, entendemos porque o título original do romance era Tiempo Frustrado, pois frustrados estão todos os personagens, toda uma nação. Dentro desse sentimento de frustração chegamos ao segundo momento revelador da narrativa, quando Ricarda desesperada ante a possibilidade de que sepultem sua filha às escondidas, busca um enterro em solo sagrado para seu corpo, ainda que à custa dos chamados enterros verticais. Descritos de forma asséptica e maquinal, vemos como a promiscuidade na vida de Florita estende-se a sua morte: se antes dividia a cama com os pais e a irmã, agora, o faz com outros dois homens. Além disso, notamos que, nessa passagem, o romance apresenta uma questão que torna o pós-guerra mais agudo que a guerra: a legitimidade dos enterros verticais. Se na guerra os enterros em valas comuns eram uma contingência atroz, no pós-guerra exposto na narrativa, mais que contingentes, esses enterros eram autorizados pelo governo, que destina aos miseráveis uma vala vertical, em uma promiscuidade legalizada. Ao legitimar essa promiscuidade, a imagem da decomposição do corpo físico ganha amplitude e se transforma na expressão alegórica da nação espanhola, que se confirma pelo movimento metonímico da narrativa que vai afunilando, fechando o ângulo de visão: primeiro temos Madri, depois a família de Muecas, mais adiante o enterro vertical de Florita, a prisão de Pedro e, finalmente, apenas o câncer metafórico tomando tudo. O corpo social é totalmente arrebatado, as vísceras dos personagens e da cidade formam uma mesma representação, a da sociedade espanhola decompondo-se. Diante dessa decomposição, o poema de Dámaso Alonso faz sentido: amontoados, enterrados verticalmente, sonâmbulos pelas ruas da cidade, “se pudren más de un millón de cadáveres en esta ciudad de Madrid” (ALONSO, Dámaso 1946, p.12), em toda Espanha. Em Tiempo de Silencio, o que vemos é um espetáculo de cadáveres, conduzido pela “máquina” eficiente dos enterros silenciosos. É nesse momento de crise que chegamos ao último estágio de “contaminação textual” do câncer metafórico. À medida que os acontecimentos se agravam, as onomatopéias aumentam vertiginosamente na narrativa, estendem-se, como se o narrador perdesse o controle sobre elas, e, em mitose, fosse acelerada sua multiplicação. As palavras de Pedro e seus pensamentos vão amontoando-se —como cadáveres empilhados— em extensos parágrafos, em imagens desconexas que se unem em um longo monólogo interior, no qual as distintas imagens do câncer rodam em sua cabeça. 295 Hispanismo 2 0 0 6 Na mente de um homem dissecado “(...) reseco y carcomido, amojamado hombre de la meseta puesto a secar (...)” (MARTÍN-SANTOS, 2000, p. 215). Em uma sociedade na qual se tenta mostrar que tudo está bem, quando está muito mal, a mutilação estende-se não só ao indivíduo, mas também ao corpo social. Castram-se todos de diferentes formas, “(...) Es cómodo ser eunuco, es tranquilo, estar desprovisto de testículos, es agradable a pesar de ser castrado tomar el aire y el sol mientras uno se amojama en silencio”. (MARTÍNSANTOS, 2000, pp. 216-17). Na narrativa, a condição humana aparece enquadrada em um espaço contraditório, há um desejo de ocultar as agudas contradições que conformam uma cidade descabalada: o cientista sem escrúpulos que deseja o prêmio Nobel, o pai que molesta a filha. Aqui, todos, de uma forma ou de outra, estão marcados pelo signo do fracasso, não há horizonte possível, o que resta é a contaminação do câncer do silêncio: a guerra e o pósguerra confirmam uma situação trágica, e suas imagens se inscrevem em um espaço limitado e desolador. Nesse horizonte, a narração, como o corpo tomado pelo câncer, multiplica palavras “contaminadas”, transformam-se em um extenso monólogo pontuado por onomatopéias e grasnidos: (...) Ya estoy en el principio, ya acabó, he acabado y me voy (...) Esto es, vivisección, las sufragistas inglesas protestando, igual exactamente, igual que si fuera eso, la vivisección. Ellas adivinan que son igual que las ranas si se las desnuda, en cambio Florita, la desnuda florita en la chabola, florecita pequeña, pequeñita, florecilla le dijo la vieja, florecita la segunda que... ajjj... (MARTÍN-SANTOS, 2000, pp. 212-213). A desumanização alcança a linguagem quando o homem emite grasnidos e chega a um estado animal, já não articulando palavras. Assim, nesse contágio voraz, o discurso elaborado de Pedro encontra-se com os grunhidos de Ricarda, e o último estágio do câncer metafórico se completa. A imagem do protagonista fugindo enlouquecido, mutilado e balbuceante, torna cada vez mais aguda a voz do fracasso. O movimento fluido do trem vai de encontro às pedras do Escorial. É Pedro (do latim petra) que se depara com símbolos de uma sociedade “petrificada”: “por aquí abajo nos arrastramos y nos vamos yendo hacia el sitio donde tenemos que ponernos silenciosamente a esperar silenciosamente que los años vayan pasando (...)”. (MARTÍN-SANTOS, 2000, p.216) Assim, se dentro da cela, Pedro encontra na “estampa” de uma sereia muda a imagem emblemática do tempo de silêncio em que vive, ao ar livre reconhece um tipo de cárcere que sempre vivera, mas que até então não havia percebido; seus horizontes estreitam-se em uma prisão a céu aberto da qual não é possível escapar. 296 Volume 4 | Literatura Espanhola Complementares, o tiempo de silencio e o tiempo de frustración constituem um mesmo espaço que se fraciona e se reduz ao corpo abjeto, tomado por um enxame de palavras que, ao mesmo tempo em que corrói, constrói a visão onipresente do câncer, em que a cidade, sob o signo da ditadura, continua reproduzindo elementos de uma guerra dilacerante. Nessa reprodução, multiplicadora e cáustica, configura-se uma reflexão sobre a guerra e sua crueldade, sua injustiça e seu terror. Terror aqui entendido como um medo que pode vir de qualquer parte, que está latente no cotidiano. Assim, os mil tentáculos da ditadura franquista podem capturar a todos e atemorizar, sustentando um discurso de aparente normalidade e inteireza que oculta um ambiente violado. Dividida em mitose pela narrativa, essa sociedade se parte em estilhaços, como se fosse vista através de um microscópio. Uma vez despedaçada, o autor destrói a imagem de tranqüilidade, junta os cacos dos anos triunfais do franquismo e constitui uma nova forma literária. Nela, a compreensão vem pela inversão. Sendo assim, é necessário inverter o silêncio também, falar muito, escolher um narrador intruso, escrever muito, derramar seu câncer em páginas em branco, nas quais os personagens vagam por ruas espanholas, transformadas em hortos, em que apodrecem Floritas, Doritas, Pedros e outros corpos que adubam seus espaços de abjeção. Conjugados nessas esferas o nada e o silêncio “estampam” novas perspectivas de compreensão desses ambientes, que vão além da visão de vencidos e vencedores para configurar o desastre do pós-guerra em si. Nele, o destino de Pedro, confinado no interior do país, como um médico rural, conforma outro tipo de morte em que seus pensamentos estão fadados a rodar em redemoinho, a fazer-lhe uma autópsia metafórica para tentar entender o que se passou. Com sua castração simbólica, passa a fazer parte da morte em série, dos enterros verticais, inclui-se na imensa massa que se submete a viver em um “tiempo de silencio”. Referências Bibliográficas ALONSO, Dámaso. Los hijos de la ira. Madrid: Cátedra, 1946. GOYTISOLO, Juan. “Escribir en España”. In: El furgón de cola. Barcelona: Seix-Barral, 1982. MARTÍN-SANTOS, Luis. Tiempo de Silencio. Barcelona: Destino, 2000. Nota: a Esse texto é o resultado parcial de uma ampla pesquisa realizada nas bibliotecas espanholas graças à bolsa PDEE concedida pela CAPES entre janeiro e dezembro de 2003. 297 Hispanismo 2 0 0 6 Palavra encantada em La lengua de las mariposas, de Manuel Rivas. Michele Fonseca de Arruda (UFF) Ai, palavras, ai, palavras, Que estranha potência a vossa! (Cecília Meireles) A palavra é a materialização não apenas do pensamento humano, mas principalmente de sua ideologia. Através da palavra o homem cria, recria, forma, reforma e transforma a sociedade em que vive. Mikhail Bakhtin destaca a centralidade da linguagem na vida do homem: As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. (BAKHTIN, 1995, p.41) Segundo o pensador russo, a palavra é o elemento privilegiado da comunicação na vida cotidiana, que acompanha toda criação ideológica, presente em qualquer ato de compreensão e de interpretação. Bakhtin concebe o dialogismo como o espaço interacional entre o eu e o outro, portanto uma perspectiva do cruzamento de vozes, material significativo que entrelaça os sujeitos. Sob o prisma bakhtiniano, pensamos no diálogo entre os textos La lengua de las mariposas, conto que integra o livro intitulado ¿Qué me quieres amor? do escritor Manuel Rivas, e As Mil e Uma Noites, a mais conhecida expressão da literatura árabe até hoje. Através da leitura de ambas as obras, observamos a prática dialógica num sentido integrador, compreendendo a palavra não somente como fonte de significados e sentidos construídos, mas principalmente como facilitador das relações entre os sujeitos, material que apresenta o mundo, constitui o pensamento e a consciência. Ambientado em um pequeno povoado galego, nos anos precedentes à Guerra Civil espanhola, La lengua de las mariposas conta a história de Pardal, um menino de pouco mais de seis anos de idade, que sente verdadeiro pavor da escola, pois sempre ouvira falar da severidade com que os professores tratam os estudantes. Rapidamente Pardal percebe que 298 Volume 4 | Literatura Espanhola Don Gregorio, seu professor, é um ser amável, que não pune brutalmente seus alunos, fato que possibilita o início de uma relação amistosa entre o mestre e o até então temeroso menino. Através do contato com o professor, Pardal descobre um novo mundo: aprende quem levou batatas à Europa, descobre como um tilonorrinco corteja sua fêmea, conhece a poesia de Antonio Machado e aprende sobre a habilidade espiral da língua das borboletas. As palavras do mestre somadas às excursões que organiza para que os alunos tenham contato com a natureza, atuam como o microscópio que Don Gregorio pedira ao Ministério de Instrução Pública para observar os minúsculos insetos que ele e seus alunos capturavam no bosque. “Tanto nos hablaba de cómo se agrandaban las cosas menudas e invisibles por aquel aparato que los niños llegábamos a verlas de verdad, como si sus palabras entusiastas tuviesen el efecto de poderosas lentes”, (RIVAS, 2001, p.23) observa Pardal. Deste modo, percebemos que as palavras utilizadas pelo professor não funcionam apenas como fonte difusora de conhecimentos, mas, principalmente, como artifício de encantamento, fato que o aproxima da mítica narradora de As mil e Uma Noites. Sherazade munida apenas da habilidade de contar histórias, consegue mudar a lei mortífera de um poderoso sultão que, após descobrir a infidelidade de sua esposa e concluir que todas as mulheres são naturalmente traiçoeiras, resolve desposar uma virgem a cada noite e, na manhã seguinte, ordena sua execução, evitando assim, uma nova traição. A sultana e Don Gregorio aproximam-se de seus interlocutores pela arte de narrar, pelo uso da linguagem persuasiva, pela retórica do deslumbramento. Através do encanto da palavra, o mestre estabelece uma relação de admiração e amizade entre seus alunos, por intermédio da qual, se abrem as portas do conhecimento. Já Sherazade triunfa ao tecer com palavras inúmeras histórias, cujo encanto é capaz de postergar sua morte por mil e uma noites, ao término das quais, o sultão lhe concede a vida e renuncia definitivamente à sua sede de vingança. Importante observar que o fato da vida ser trocada por uma narrativa, demonstra o extraordinário apreço da cultura árabe pela arte da palavra. Como exemplo, tomamos uma das histórias contadas por Sherazade ao sultão, na qual registra que o Califa Harun Al-Rachid “achando, ademais, extraordinária a história, ordenou a um famoso historiador que a escrevesse com todos os pormenores. Guardou-a, depois, no seu tesouro: mas várias cópias foram tiradas do original e se tornaram públicas.” (GALLAND, 2001, p. 180, vol II) Assim como o Califa, o protagonista de La lengua de las mariposas também é um apreciador da arte narrativa. Pardal demonstra sua admiração pela habilidade de seu mestre quando comenta que “todo lo que él tocaba era un 299 Hispanismo 2 0 0 6 cuento fascinante. El cuento podia comenzar con una hoja de papel, después de pasar por el Amazonas y la sístole y diástole del corazón. Todo conectaba, todo tenía sentido (RIVAS, 2001, p.31) Tais considerações revelam uma espécie de encantamento oral utilizados por ambos os personagens para fomentar a curiosidade e o desejo de seu ouvintes. A narradora não apenas joga com a imperiosa necessidade de ficção que habita o íntimo de cada ser, como também seria a grande inventora da técnica do suspense. Sherazade pára de narrar no momento do clímax da maioria dos contos, incitando a curiosidade do sultão, pedindo, em seguida, que ele a deixe terminar a história no dia seguinte. A sultana inicia uma narrativa, aguça a curiosidade de seu ouvinte, seduz e não o satisfaz naquela noite. Desta forma, consegue adiar sua morte sempre por mais um dia. Assim como Sherazade, Don Gregorio também sabe o momento exato de silenciar. A tática utilizada pelo professor para demonstrar seu aborrecimento com a balbúrdia provocada pelos alunos era calar-se: “Si vosotros no os calláis, tendré que callarme yo”. Y se dirigía hacia el ventanal, con la mirada ausente, perdida en el Sinaí. (RIVAS, 2001, p.31). O silêncio de Don Gregorio despertava um sentimento inquietante em seus alunos que ficavam desamparados, sem a luz de suas palavras: “un silencio prolongado, descorazonador, como si nos hubiese dejado abandonados en un extraño país. Pronto me di cuenta de que el silencio del maestro era el peor castigo imaginable.” (RIVAS, 2001, p.31) Deste modo percebemos que Don Gregorio e Sherazade também se aproximam pelo silêncio, não a ausência de sons ou palavras mas o silêncio fundador do qual nos fala Eni Orlandi: “O silêncio não é o vazio, o sem-sentido; ao contrário, ele é indício de uma totalidade significativa. Isto nos leva à compreensão do “vazio” da linguagem como um horizonte e não como falta.” (ORLANDI, 1997, p.70) As obras aqui analisadas exemplificam o poder da palavra enquanto facilitadora das relações entre os sujeitos. O enunciador absorve o mundo que o cerca e se aproxima do enunciatário através das palavras. A sultana seduz Shariar através de histórias, envolve-o totalmente em sua “teia” narrativa. Seu poder concentra-se na sutileza intuitiva, na inteligência e, principalmente, em sua habilidade de contar histórias. A cadência, o suspense, a curiosidade, a promessa de episódios posteriores inesperados, extraordinários e o desejo de desnudar o conto e conhecer seu final, vão pouco a pouco encantando Shariar, que abandona sua ira. Neste sentido, relatar contos durante mil e uma noites não seria apenas um subterfúgio para salvar a si mesma e a outras mulheres da sentença de 300 Volume 4 | Literatura Espanhola morte, mas também um símbolo do poder da palavra, da arte e da literatura, enfim o poder da linguagem. Facilitado por este mesmo poder, se estabelece a amizade entre Pardal e seu professor, mas este vínculo é abalado pelo emaranhado de relações políticas e sociais, numa época em que a Espanha ferve às vésperas de sua guerra civil. Ao final do conto, começa-se a desenhar o quadro que define a ascensão do fascismo na Espanha, ao qual se aliaram a Igreja Católica, o Exército e os grandes donos de terras contra a Frente Popular, formada pelos republicanos, pelos sindicatos, pelos partidos de esquerda e pelos que defendiam a democracia. A sombra do fascismo acabará por atingir a pequena população da aldeia. Homens armados começaram a perseguir e prender os republicanos, comunistas ou simplesmente suspeitos de simpatizarem com as ideologias de esquerda, dentre os quais se encontrava Don Gregorio. A família de Pardal se sente acuada pelo clima de terror imposto pelas tropas militares, que ameaçavam até mesmo aqueles que tivessem qualquer tipo de relação com os republicanos. O povo reunido em praça pública observa os caminhões que saem carregados de prisioneiros. A fim de preservar sua própria integridade, os pais do menino demonstram repúdio aos detentos xingando-os. Pardal corre atrás do caminhão que levava Don Gregorio, buscando desesperadamente o rosto do professor. Em meio à nuvem de poeira vê o comboio ao longe e, com os punhos cerrados, só foi capaz de murmurar com raiva: “¡Sapo! ¡Tilonorrinco! ¡Iris!” (RIVAS, 2001, p.39) As palavras que saem da boca do menino são uma progressão de termos ensinados pelo mestre. Deste modo, percebemos que Pardal não esqueceu das palavras encantadas que o uniam ao seu professor e que seu comportamento não é mais que uma maneira de proteger sua família do trágico destino de Don Gregorio. Como conclusão, observamos que o próprio título do conto guarda muito do simbolismo do encanto das palavras. Através da explicação sobre “la lengua de las mariposas”, essa sensível trompa capaz de perceber gostos apenas com a extremidade do órgão, palavra polissêmica que também se refere a “lengua”, sistema de signos de que nos servimos para a comunicação, tornou-se possível a relação afetuosa entre o mestre e seu aprendiz. Através do encanto da “lengua” de Don Gregorio, a admiração de Pardal não se extingue, ainda quando as circunstâncias forçam o menino a agir violentamente contra seu professor. Toda dor das últimas palavras proferidas pelo menino, também podem ser entendidas como portas que se abrem a um território onde a amizade e a comunicação podem ser possíveis. 301 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas ANÔNIMO, Livro das Mil e Uma Noites. Tradução de Mamede Mustafá Jarouche 1ª ed. 4 vols. Vol. I. Rio de Janeiro:Editora Globo, 2005. _____, As Mil e Uma Noites, Tradução de Alberto Diniz. 2 vols. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 1995. _____ Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. 2ª. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ORLANDI, Eni P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. RIVAS, Manuel. La lengua de las mariposas, in ¿Qué me quieres, amor?, Madrid: Santillana, 2001. 302 Volume 4 | Literatura Espanhola Enrique Vila-Matas: três narrativas de limiar Rita Lenira de Freitas Bittencourt (UFRGS) O escritor espanhol Enrique Vila-Matasa vem produzindo, desde 1977, data da publicação de La asesina ilustrada, sua primeira narrativa, um conjunto extraordinário de trabalhos, de cunho ficcional, que provoca indagações, tanto em relação ao próprio “fazer” escritural, quanto a respeito de questões atuais da teoria da literatura. Leitor arguto, artista sofisticado, seus textos são, antes de tudo, incursões meta literárias, pois combinam a imaginação com a teoria e com a historiografia, numa instância de limiar, que mescla os saberes e, ao mesmo tempo, instaura uma estética narrativa transnacional e transtemporal. Este ensaio evidencia brevemente algumas destas questões a partir da leitura de três textos: História abreviada de la literatura portatil, de 1985, Bartleby y compañía, de 2000, e París no acaba nunca, de 2003. Desde a pequena e brilhante montagem de Historia abreviada de la literatura portátil, a compilação dos resultados de uma pesquisa, que conta, inclusive, nas páginas finais, com a listagem de uma bibliografia essencial, Enrique Vila-Matas explora uma série de procedimentos que, em minha tese de doutoramento Poéticas do Presente: Limiares (2005), denominei de “formas de limiar”, por participarem de uma natureza híbrida e semovente, configurando uma escritura fronteiriça, que habita um lugar de confluência de saberes, promovendo trocas entre eles. Na História abreviada, o termo “literatura portátil” refere-se a uma curiosa composição que refaz os trajetos dos artistas e escritores da primeira vanguarda, envolvidos numa conspiração sem propósitos definidos nem motivos evidentes que não sejam o próprio ato de conspirar. Tomando como ponto de partida a História portátil da literatura abreviada, do surrealista Tristan Tzara, e subvertendo o título, o narrador-pesquisador aponta as origens desta conspiração na maleta-escritório de Paul Morand, que, por sua vez, teria inspirado a boite-em-valise de Marcel Duchamp: “sem dúvida a tentativa mais genial de exaltar o portátil na arte” (VILA-MATAS, 1985, pág. 9). Munido de enxertos de textos, de textos falsos, de referências exatas e outras nem tanto, de lendas e de anedotas, o narrador descreve o movimento dos Shandysb, ou portáteis, pelo mundo - de Paris a Nova York, de Budapeste a Sevilha -, até o final da conspiração, assinalado pelo satanista inglês Alester Crowley, durante uma conferência, em 1927, sobre a obra do poeta barroco Luis de Gongora. A conjura dura três anos e dela participam artistas díspares como Duchamp, Scott Fitzgerald, Walter Benjamin, César Vallejo, Valery Larbaud, Pola Negri, Geórgia O´Keefe, entre outros. 303 Hispanismo 2 0 0 6 O escritor vale-se, habitualmente, de estratégias meta-literárias para estruturar os seus contos e romances, ou seja, toma, como pano de fundo, outros expoentes – textos, estilos, autores - da tradição da literatura e também da literatura não tradicional -, transformando-os em bases de referência ou reaproveitando-os como elementos de estruturação, interna ou externa, de seus próprios textos. Muitas vezes, também, os utiliza como mote para uma simples associação de temas, ou para uma aproximação entre personagens e/ou épocas distintas. No caso da segunda narrativa tratada aqui, Bartleby y Cia, Vila-Matas, obviamente, escolhe o conto do escritor norte-americano Herman Melville, Bartleby, the Scrivener – a story of Wall Street, publicado em 1853, para desdobrá-lo, à sua maneira, e para fazer proliferar a fórmula oralizada por Bartleby, “I would prefer not to” articulada, especificamente, ao próprio ato de escrever. A narrativa é um conjunto de 86 notas de rodapé sobre um texto invisível, a respeito de “um mal que assola as literaturas contemporâneas, a pulsão negativa ou atração pelo nada, que faz os escritores desistirem de escrever” (VILA-MATAS, p.12). O narrador, que se autodenomina um “rastreador de bartlebys” - no texto vila-matiano, o nome é grafado com minúsculas, talvez por se tratar de uma espécie muito comum no meio intelectual -, vai compilando biografias de escritores que não conseguiram terminar seus livros ou seus poemas, que nunca escreveram coisa alguma, que não se deram bem no campo das letras e foram fazer outra coisa, construindo uma série labiríntica que contraria a ordem – literária ou não - dominante, pois acumula relatos de fracasso ao invés de referir-se a trabalhos, publicações de sucesso, mas que, paradoxalmente, abrigaria em si os desejos da escritura do devir. O narrador, um corcunda, celibatário, pobre e solitário - que, além de Bartleby, tem algo de personagem do escritor argentino Roberto Arlt -, há 25 anos redigiu um pequeno romance sobre as impossibilidades do amor e, de lá pra cá, nada mais conseguiu escrever. Considera, a si mesmo, e aos outros escritores abordados na narrativa, como vítimas da “síndrome de bartleby”, a doença dos seres nos quais habita uma profunda negação do mundo. Suas notas, retomadas após o longo silêncio, têm dois propósitos: o de serem ordenadas, numeradas, em um caderno, para que possam comentar o texto principal, que é invisível; e o de provarem, de forma definitiva, ao mundo, as suas habilidades indiscutíveis de rastrear os bartlebys. Acredito que ambos os propósitos se cumprem plenamente. O texto invisível é uma obra-prima teórica a respeito do assunto, pois escritura de nenhuma outra espécie poderia ser mais eloqüente do que esta, que está ali, presente, mas que se exibe apenas nos interstícios entre as notas, nos pequenos espaços vazios, nos brancos das páginas, e que, volta e meia, en304 Volume 4 | Literatura Espanhola tre um número e outro, chama a atenção do leitor por sua ausência. Quanto à relação das vítimas da síndrome, é longa, transcontinental, detalhada e por vezes anedótica, ou seja, resulta não apenas de muita leitura, mas também de um grande esforço de pesquisa e de imaginação. Existem muitos dados a levantar em Bartleby & compañía. Muitas conexões textuais são possíveis, pois se trata de um conjunto de referências quase ilimitado, mas o que me interessa, nesta abordagem, é tornar explícita a relação do escritor com o seu próprio fazer, tendo o seu próprio meio como desculpa para a escritura. A proposta estrutural do texto torna a sua superfície fragmentada e seus relatos, ao exibirem a vida como causalidade da obra, ou das obras, sabotam tanto a pretensão linear da história quanto o afã organizatório da historiografia literária. Se a estrutura apela a superposições diferidas da forma, pode-se dizer que os relatos elaboram uma fuga para o nada, para o ponto zero, para o branco, lá onde a saturação não diz mais nada e a palavra só fala ela mesma, fazendo a narrativa operar como uma espécie de suspensão. Assim, em paralelo à trama ficcional desenvolve-se uma reflexão meta literária muito séria, que define o caminho, rigoroso e duro, que, segundo a teoria do Não, leva a um lugar sem retorno, ao limiar da morte, ao lugar nenhum a partir do qual a literatura pode pensar-se na cena contemporânea. Como numa conversa blanchotiana infinita, entre o aluno e os seus mestres, a voz de Bartleby, recuperada por Vila-Matas, ao dizer Não, acaba dizendo sim, talvez, quem sabe. Fornece material para, ainda, escrever. No limite, a grande ironia do negativo produz seus textos, os seus efeitos de leitura, a aporia, o artifício - é uma ausência que fala. Torna-se ficção, teoria: teoria ficcionalizada e/ou ficção teórica. Por fim, na terceira narrativa, París no se acaba nunca, são relatados os primeiros esforços de Enrique Vila-Matas como escritor, em Paris, na década de 70, seguindo as pegadas deixadas por Hemingway, nos anos 30, para elaborar a sua primeira novela, La asesina ilustrada, um relato impossível no qual a leitura da obra levaria à morte o leitor. A novela foi publicada em Barcelona, mas o texto que toma as circunstâncias da sua feitura, sete anos depois, como objeto, é uma espécie de autobiografia irônica, que carrega todas as marcas de ficcionalização do autor, ou seja, que joga constante e simultaneamente com os dados do experimentado ou do vivido, detalhando-os e ultrapassando-os. Assim, ao relativizar estes dados, produz outras relações de sentido. Na trama, consolida-se a instância narrativa na qual o vivido e ficcional se superpõem, o que provoca novamente aquele efeito de sabotagem das certezas, neste caso, tanto em relação ao papel formador dos anos de aprendizagem, quanto às angústias das influências – aqui direcionadas a 305 Hispanismo 2 0 0 6 um Hemingway revisitado ou a uma Marguerite Duras visitada, tornada uma insólita caseira. Os aspectos exteriores e exteriores se confundem, bem como os papéis de guia, de referência profissional e de hospedeiro. Ao superpor sua narrativa Paris não acaba nunca a Paris era uma festa, de Hemingway, Vila-Matas aproxima suas memórias das memórias de um escritor americano, na Paris no entre-guerras, quando este chega à cidade, com cartas de recomendação de Sherwood Anderson para Gertrude Stein, Sylvia Beach e Ezra Pound. Por lá também circulavam, na época, James Joyce, John dos Passos e Scott Fitzgerald e todos eles voltam à cena no texto vila-matiano. A escolha não é casual. O escritor faz uma revisão irônica dos seus próprios dias de aprendiz, quando aluga um sótão de Marguerite Duras, e pretende imitar a vida boêmia de Hemingway que afirmava ter sido, na sua época, “muito pobre e muito feliz”. Com esta frase ele encerra o romance. Vila-Matas, ao contrário, só consegue ser, como declara em seu texto, “muy pobre y muy infeliz”, mas acaba, bem ou mal, escrevendo seu primeiro livro e aproveita a idéia, neste outro, anos depois, para refazer seus próprios passos, bem como para passar em revista boa parte da escritura e da teoria telquelista da década de 70. Na referência a esta entrada, para um texto-cidade proliferante, que nunca acaba, e diante da porta desta casa, com um pequeno estúdio, no sótão, da cidade mais literária do mundo, onde um jovem, novamente, se lança ao desafio de escrever, mesmo sabendo que os tempos são outros, que as guerras são outras e que os fantasmas se multiplicaram, encerro, por enquanto, estas considerações. O limiar é uma instância penúltima, a partir da qual se pode pensar, com certo alento, o próprio lugar do fim e, quem sabe, reconfigurá-lo, nos espaços da escritura e da teoria da literatura. Referências Bibliográficas BITTENCOURT, Poéticas do presente: limiares. Florianópolis: UFSC, Pós-Graduação em Literatura, 2005. (Tese de Doutorado) HEMINGWAY, Ernest. Paris é uma festa. Trad. Ênio Silveira. 5ª ed.Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2001. JARA, René. La modernidad em litígio. Sevilla: Ediciones Alfar, 1989. LUDMER, Josefina. Temporalidades del presente. In: Márgenes/ Margens – Revista de Cultura. Belo Horizonte, Buenos Aires, Mar del Plata, Salvador. No. 2, dezembro de 2002. 306 Volume 4 | Literatura Espanhola MELVILLE, Herman. Bartleby, o escriturário. Uma história de Wall Street. Trad. Cássia Zanon. Porto Alegre: L & PM, 2003. VILA-MATAS, Henrique. Historia abreviada de la literatura portátil. Barcelona: Editorial Anagrama, 1985. _____ . La asesina ilustrada. Madrid: Ediciones Lengua de trapo, 1996. _____ . Bartleby y compañia. Barcelona: Editorial Anagrama, 2000. _____ . París no se acaba nunca. Barcelona: Editorial Anagrama, 2003. Notas a b Enrique Vila-Matas nasceu em Barcelona, em 1948. Além de romancista, é contista, ensaísta, e também escreve resenhas e artigos literários para a imprensa. É considerado “uno de los fenómenos más originales y seductores de la narrativa española de nuestros días” ( Rafael Conte, Abc, Madrid), “uno de nuestros más destacados narradores” (Miguel García-Posada, El País, Madrid), “nuestro más popular escritor em America Latina” (J.A. Masoliver Ródenas, La Vanguardia), “un escritor con una imaginación extraordinaria” (Mathieu Lindon, Libération, Paris, “el mejor narrador español en activo” (Rodrigo Fresán, Página 12, Buenos Aires), “el autor español vivo más importante” (Bernardo Atxaga, El Dominical, Barcelona). Já foram traduzidos e publicados em português: VILA-MATAS, Enrique. A viagem vertical. Trad. Laura Janina Hosiasson. São Paulo: Cosac & Naify, 2004; Bartleby e Companhia. Trad. Maria Carolina Araújo e Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac & Naify, 2005 e O mal de Montano. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. Esta denominação tem evidente relação com o romance Tristan Shandy, do escritor inglês Lawrence Sterne. No texto de Vila-Matas, o narrador observa, em nota, que Shandy é uma palavra que, em alguns lugares do condado de Yorkshire, onde Lawrence Sterne viveu grande parte de sua vida, significa indistintamente alegre, volúvel e pirado. Vale lembrar, também, que Sterne (1713-1768), um pastor anglicano, criou o livro citado dentro de uma ordem barroca do ambiente doméstico. Tristam Shandy é considerado um romance da liberdade absoluta do escritor e, por isso, pode ser associado aos ideais - ou contra-ideais - vanguardistas da conjura portátil. 307 Hispanismo 2 0 0 6 Modulaciones de la memoria en la ficción de J. Llamazares Silvia Cárcamo (UFRJ) En la obra de Julio Llamazares no sería difícil identificar una infinidad de verdaderos aforismos que vinculan la memoria a la cultura, a la historia, a la experiencia personal, a la ficción, que la piensan en relación con la ética, la política, la estética o la eficacia literaria. En su conjunto, esas reflexiones pueden ser leídas como una síntesis de un pensamiento sobre la memoria, que se halla evidentemente en el origen de su narrativa y que a la vez es alimentada por ésta. Si en los aforismos vislumbramos un pensamiento, en las novelas ese pensamiento deviene ficción en que la memoria se despliega en perspectivas múltiples como lo comprueban Luna de lobos (1985), La lluvia amarilla (1988) y Escenas del cine mudo (1994). Por un lado, ella adquiere, en la ficción del autor una dimensión autobiográfica. En su concepción, desde el momento en que la escritura existe como consecuencia de una interrogación del escritor para explicarse a sí mismo, toda obra es autobiográficaa. Motivos reincidentes en poemas, novelas, cuentos y crónicas, como la soledad y la recreación de la vida natural y humana extinguida o en proceso de extinción, con la consecuente pérdida de culturas y tradiciones, parecen inevitables en un escritor que presenció el fenómeno de despoblamiento de antiguas aldeas, como consecuencia del proceso de modernización. La desaparición de Vegamián, que el autor menciona a menudo en las entrevistas, configura el mejor símbolo, el más personal, de esos cambios: bajo las aguas del Porma quedó sepultado para siempre el pueblo donde nació en 1955. Aun aceptando la existencia de elementos autobiográficos en cualquier obra, debemos reconocer que en Escenas del cine mudo la forma autobiográfica está presente en un sentido mucho más preciso, menos general. En la obra de 1995, resulta inevitable identificar con el propio autor a ese “yo” que narra episodios de la infancia y al mismo tiempo reflexiona sobre la naturaleza del recuerdo. A pesar de que Llamazares insistiera en que Escenas del cine mudo era una novela y que por ello se hallaba sometida al pacto de lectura establecido para cualquier ficción, una pequeña nota introductoria firmada por “El autor” viene a desestabilizar ese estatuto ficcional. Ese “autor” de la nota advierte que los tiempos y los espacios del relato corresponden a la realidad y que se va a leer algo que “parece” una autobiografía pero que es ficción, que los hechos no ocurrieron exactamente como se los narra, aunque exista un “parecido” entre lo narrado y lo vivido. De esta manera, la narración deja de ser una reproducción fiel de la referencia. 308 Volume 4 | Literatura Espanhola A partir de fotografías cobrarán vida escenas de los primeros años, Los que pasé en Olleros, el poblado minero perdido entre montañas y olvidado de todos en un confín del mundo donde mi padre ejercía de maestro y donde yo aprendí, entre otras cosas, que la vida y la muerte a veces son lo mismo.” (LLAMAZARES, 1994, p. 9) Si la autobiografía supone la ficción, en la concepción del autor de Escenas del cine mudo, el recuerdo admite la invención y hasta se nutre de ella. Sin duda la reflexión sobre los mecanismos de la memoria constituye la verdadera preocupación de Escenas del cine mudo. Mostrar, por ejemplo, cómo la fotografía lleva a lo que quedó fuera de ella, transportando al sujeto rememorante a otras imágenes no registradas más que por el recuerdo; o descubrir la manera en que interviene la asociación en ese proceso. Pero es válido preguntarse también qué mundo es aquel rememorado ya que no se trata de un ensayo sobre la identidad y la memoria, sino de una novela que se propone revivir las experiencias más marcantes de la infancia y adolescencia por medio de la narración. En primer lugar, es necesario destacar el escaso espesor histórico de ese mundo. Podemos suponer que en el plano personal no hubiera demasiado para recordar de los años sesenta del franquismo, que es el tiempo del relato, en un lugar aislado de la provincia de León. La dimensión autorreflexiva se esfuerza precisamente por encontrar una teoría para esta forma singular de “presentificar” ese mundo, teoría que incluye una afirmación como la que sigue: “las fotografías más verdaderas, las más auténticas, son aquellas que reflejan escenas sin importancia o momentos de la vida intrascendentes.” (LLAMAZARES, 1994, p. 129). Ese aforismo entra en consonancia con la observación expresada un poco antes, según la cual las escenas son interpretadas desde un recuerdo poco confiable. Si leemos Escenas del cine mudo como autobiografia que relata la etapa de una existencia vivida en un contexto histórico, en un tiempo (los años 60) y en un lugar (Olleros, León), llama la atención que figuras omnipresentes de la vida política del momento, como el General Franco no se relacionen con recuerdos trascendentes vividos en la esfera familiar, que no haya opiniones a favor o en contra del sistema de gobierno, sobre las autoridades locales, que ningún acontecimiento de lo público resuene en lo privado de manera contundente. Igualmente extraña que los tormentos del sexo o de la educación severa, asuntos ineludibles como pocos cuando se cuenta el período de la adolescencia en esos años, apenas aparezcan para diluirse inmediatamente. Es como si el silencio hubiera 309 Hispanismo 2 0 0 6 impregnado ese tiempo de una manera decisiva; tal vez cabría relacionar este silencio con el título de la novela, que se refiere a la imagen sin sonido. En un mundo siempre igual, lo único que se transforma trayendo las novedades dignas de registro proviene de la técnica que crea, como anticipos del futuro, realidades virtuales: el cine, la fotografía, la radio, la televisión. De igual modo sorprende que tratándose de una autobiografía de escritor no sea esbozada ninguna escena memorable que se constituya como mito del origen del escritor, al poner en juego la lectura y la escritura. Hay escuela, camino hacia la escuela, colegas, maestro –su propio padre– pero nada que anticipe al escritor que será en el futuro ese sujeto que escribe sobre el pasado. Otra dimensión de la memoria es la desarrollada en Luna de lobos, la novela que se detiene en los años que siguieron a la derrota republicana en la Guerra. Aunque José María Izquierdo haya detectado en esa novela una visión neorromántica, la memoria dibuja en ella un sentido político muy bien delineado al centrarse en la figura de los maquis o guerrilleros antifranquistas que continuaron actuando en la década del principio de los años cuarenta. Si nos atenemos únicamente al plano de lo narrado, se puede concluir, como lo hace Izquierdo, que no hay planteos de carácter ideológico y que no se pone en cuestión el análisis político de lo que significó la resistencia antifranquista (IZQUIERDO, 1995). Creemos que una novela que gira en torno a una figura solitaria y acorralada, reducida a las necesidades más básicas de sobrevivencia, difícilmente podría conciliarse con contenidos de discusión ideológica. Nos parece preferible considerar, en cambio, otros aspectos de la cuestión. Llamazares se sitúa entre los escritores que han levantado críticas a la amnesia de la etapa que se inicia con la transición y a la propuesta de echar un manto de olvido sobre el período franquista en nombre de la conciliación política interna que permitiera lograr tanto la modernización económica como la integración a Europa. Si tenemos en cuenta lo que acabamos de decir, ya no criticaríamos el supuesto neorromanticismo de la novela y tampoco podríamos condenar su “exagerado lirismo”, como lo hace Miguel Manrique. Nos parece conveniente, más bien, reparar en el espacio de la escritura como lugar de resistencia: la elaboración minuciosa de un estilo, el tiempo lento de la novela que acompaña la tensión provocada por la presencia del silencio que se hace sentir en el plano de la narración y en la construcción de los personajes. El predominio de algunas imágenes entre las que se destacan la caverna, la tierra y la casa paterna es hondamente sugestivo. La caverna y sus equivalentes semánticos (fosa, cueva, agujero, hueco, río subterrá310 Volume 4 | Literatura Espanhola neo), refugio en la profundidad de la tierra del personaje perseguido que lucha por su vida cada vez en peores condiciones, enfrentando también el rechazo de muchos, se opone a la imagen del anhelado y prohibido regreso a la casa paterna. Por esos símbolos, la novela también propone la representación dramática (y política) del olvido situándolo en el plano histórico. Apoyados en Bachelard y su estudio de las imágenes encontraríamos el predominio de los símbolos de la intimidad, del arraigo, del reposo y del refugio, y la contraposición entre la casa familiar y la caverna provisoria en la que debe refugiarse el que perdió el lugar en su comunidad. (BACHELARD, 1948) Imágenes similares son las que reencontramos en La lluvia amarilla donde se reitera idéntica situación de soledad de un personaje enfrentado a las políticas del olvido. Sin embargo, la novela de 1988 presenta otras preocupaciones con relación a la memoria. La lluvia amarilla nos introduce en la problemática de la defensa de la memoria regional, que ha sido siempre un asunto presente en la agenda de los debates de la España moderna, y en la cuestión de la preservación ecológica, una nueva causa en la posmodernidad. El novelista parece volver a las razones esgrimidas por el poeta T.S. Eliot, quien en uno de los ensayos de Notas para la definición de la cultura defendía las singularidades regionales argumentando que “una cultura mundial que sea simplemente uniforme no será cultura en absoluto.” (ELIOT, 1984, p. 90) El ritmo lento de la prosa poética se ajusta a la historia de la novela centrada en un protagonista detenido en el pasado o en el presente del recuerdo. Ese ritmo lento y el acentuado lirismo condicen con la manera en que el autor concibe la escritura de las novelas. Al igual que muchos otros escritores, Llamazares ha usado metáforas para describir su propio oficio; ellas presuponen siempre otra lógica temporal ajena completamente a la lógica de la sociedad industrial y de la cultura del consumo: el escritor es un herrero, un artesano, un escultor y su trabajo se compara al lento y persistente trabajo de la piedra sobre el agua. (LLAMAZARES, 1999) La memoria tambiém exige su propio tiempo. A. Huyssen ha insistido últimamente sobre la centralidad de los discursos de la memoria a partir de la década del 80 como fenómeno que cree vinculado a una nueva percepción del tiempo. Mientras que la cultura de las vanguardias estuvo dominada por el imaginario del futuro, el foco se habría desplazado ahora hacia el pasado. O crítico encuentra parte de la explicación en el cuestionamiento a los cambios tecnológicos, en los medios de comunicación de masas, en los padrones de consumo y en los desplazamientos globales. HUYSSEN, 2002) En España, varios estudios han notado una preocupación 311 Hispanismo 2 0 0 6 con el pasado en autores que, como Llamazares, han comenzado a ser conocidos en los años 80. Por su parte, García Canclini, otro analista de la contemporaneidad, observó que frente a la tensión de las nuevas relaciones entre las culturas locales y la globalización, los artistas manifiestan en el cine y en la literatura una sensibilidad especial frente a las tradiciones regionales. (GARCÍA CANCLINI, 1999) La memoria compromete en este caso a la ética de las políticas de la memoria y de la identidad como forma de contrarrestar la fuga hacia el futuro impuesta por la tecnología, como constantamos en La lluvia amarilla y en las crónicas de Llamazares reunidas en Nadie escucha. En La lluvia amarilla, el protagonista paga con la muerte en soledad el apego al pasado y a la tierra. La región sugiere una imagen de intimidad, de arraigo a una cultura en extinción. Bachelard diría que la intimidad es siempre remota y que los filósofos nos explican que ella “nos será siempre oculta, que en cuanto se retira un velo se extiende otro sobre los misterios de la sustancia.” (BACHELARD, 1948, p. 4) Nicolás Miñambres, entre otros, hizo referencia a la polisemia de “la lluvia amarilla” y al color amarillo “como presagio de muerte y destrucción, descrito con un tono de salmodia monocorde del que Julio Llamazares ya había conseguido una gran expresividad en sus libros de poesía” (MIÑAMBRES, 1998, p. 20) Nos gustaría agregar a ese acertado comentario que la “lluvia amarilla” nos remite a las imágenes de la intimidad de Bachelard y que, en relación a la memoria, no sería forzoso afirmar que el “amarillo” como constante en la prosa poética de la novela recupera sentidos perdidos de la lengua: los lectores de Quevedo y del Diccionario de Covarrubiasb conocen muy bien la connotación de enfermedad, muerte y sufrimiento de ese color en la lengua española del siglo XVII. Gilbert Durand, quien como Bachelard se interesó por los arquetipos, los mitos y los símbolos, se refirió a la “ley de la paradoja cultural” (DURAND, 1993, p. 248) para caracterizar lo que sucedió en el siglo XIX, cuando en Europa el desarrollo del intimismo romántico coincidió con el auge positivista, con el iluminismo revolucionario y con la afirmación en los principios de la ciencia. Podríamos pensar que esa vuelta hacia la memoria de la región y a imágenes intimistas representaría también una paradoja cultural en el contexto del vertiginoso desarrollo español de las últimas décadas? La insistencia en la pérdida de las memorias regionales sería una reacción frente al peligro de la homogeneidad cultural de la globalización? En sus crónicas, Llamazares lanza una mirada irónica sobre ciertos efectos de la modernización y defiende el espacio para lo tradicional como una especie de memoria del pasado que sobrevive en un mundo plural. 312 Volume 4 | Literatura Espanhola En febrero de 2004, Julio Llamazares y Juan Cruz se reunieron en la Complutense de Madrid para exponer, en diálogo amigable, sus ideas acerca de la memoria. De las numerosas sentenciasc del primero referidas al tema del debate, la más bella y, sin duda, la más acertada para expresar el secreto y hondo vínculo entre memoria y literatura nos dice que: “Los recuerdos son esos vegetales que se hunden en las arenas movedizas, se pudren y con el tiempo se convierten en carbón y ese carbón es la literatura.” (CRUZ & LLAMAZARES, 2004) Referencias Bibliográficas ALONSO, Santos, “La renovación del realismo”. Insula, núm. 572-573, ag. sep. 1994. BACHELARD, Gaston, La terre et les rêveries du repos. Paris: José Corti, 1948. CRUZ, Juan y LLAMAZARES, Julio, 2004. La memoria. Foro Complutense General UCM. http://www.fundacionucm.es DURAND, Gilbert, “Los mitos y símbolos de la intimidad en el siglo XIX”. En _____ .De la mitocrítica al mitoanálisis. Barcelona: Anthropos, 1993. ELIOT, T.S. Notas para una definición de la cultura. Barcelona: Bruguera, 1984. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999. HUYSSEN, Andreas. En busca del futuro perdido. México: Fondo de Cultura Económica, 2002. IZQUIERDO, José María. “Julio Llamazares: un discurso neorromántico en la narrativa española de los ochenta”. Iberomania, Tübingen, Alemania, núm. 1, 1995, pp. 55-67. LLAMAZARES, Julio. Escenas del cine mudo. Barcelona: Seix-Barral, 1994. _____ .La lluvia amarilla. 4 ed. Barcelona: Seix-Barral, 2004. _____ .Luna de lobos. 13 ed. Barcelona: Seix-Barral, 1990. _____ .Mi visión de la realidad es poética (Entrevista de Yolanda Delgado Batista). Espéculo. Out.1999,núm. 12 http://www.ucm/info/especulo/numero12/llamazar.html MANRIQUE, Miguel. “Julio Llamazares: ‘Luna de Lobos’”. Cuadernos hispanoamericanos, núm. 438, dic, 1986, pp. 164-165. MIÑAMBRES, Nicolás. “’La lluvia amarilla’, de Julio Llamazares: el dramatismo lírico y simbólico del mundo rura”. Insula, núm. 502, oct. 1998, p. 20 [1] POZUELO YVANCOS, José María. De la autobiografía. Barcelona: Crítica, 2006. 313 Hispanismo 2 0 0 6 Notas a b c “cualquiera debería ya saber a estas alturas que una novela siempre es autobiográfica, independientemente de lo que trate. La literatura refleja siempre la vida y, aunque uno escriba de cosas aparentemente ajenas o distantes en el tiempo o sitúe sus novelas en escenarios lejanos o simplemente ficticios, acabará reflejados en ellas, (...), p. 6. J. Llamazares, en: Juan Cruz y Julio Llamazares, 2004. Foro Complutense General UCM. p. 6 http://www.fundacionucm.es .La posición de Llamazares está de acuerdo con una línea de pensamiento sobre la autobiografia que José María Pozuelo Yvancos caracteriza como “una tradición literaria que ha querido extender a toda literatura el dominio autobiográfico.” José María Pozuelo Yvancos. Barcelona, Crítica, 2006. Dice del “amarillo” que “Entre las colores se tiene por la más infelices, por ser la de la muerte, y de la larga y peligrosa enfermedad y la color de los enamorados.” Sebastián de Covarrubias. Tesoro de la lengua castellana o española. Según la impresión de 1611. Barcelona, ed. Martín de Riquer, 1943, p. 110. García Márquez hizo célebre ese artículo al comentarlo en el texto incluido como “Prólogo” en Clave.Diccionario de uso del español actual. ) “Lo único que yo he hecho es escarbar en mi memoria para contar a partir de ella.” (p. 4); “La memoria es una forma de ficción.” (p. 8); “La memoria se crea y se transforma constantemente, como la imaginación.” (p. 9); “En este país se ha mirado hacia otro lado por no mirar hacia atrás.” (p. 18); “Lo peor que le puede pasar al escritor es perder la memoria.” (p. 20); “La memoria es la potencia más revolucionaria que existe.” (p. 21); “Hay una especie como de desprestigio de la memoria. La memoria queda en manos de los viejos y a los viejos no les escucha nadie.” (p. 23) “Esta es una sociedad con una memoria inmediata agraria y rural, que está desapareciendo, pero de la que venimos en parte y de la que aborrecemos.” (p. 29). 314 Volume 4 | Literatura Espanhola O prolongamento da noite em As mil e uma noites e El lápiz del carpintero Susana Álvarez Martinez (UNIPLI/ Instituto / Lussac-Niterói) Escutar e contar histórias são atividades das mais antigas do homem. Pessoas de todas as condições sócio-culturais têm prazer de ouvir e de contar histórias. Este desejo humano de se divertir e de divertir aos outros, através da invenção, da fantasia, o terror e a fascinação, vem desde a idade mais remota da humanidade. As culturas de todos os tempos tiveram desejos de contar as suas vidas e experiências, assim como os adultos tiveram a necessidade de transmitir sua sabedoria aos mais jovens para transmitir suas observações, impressões e lembranças como depositários e transmissores da tradição oral. Narrando mitos e lendas, conservam suas tradições e seu idioma, e ensinam a respeitar as normas ético-morais, estabelecidas pela sua cultura ancestral. De geração em geração, os personagens dos contos populares eram os portadores do pensamento e do sentimento do grupo social em que eram gerados e difundidos. Segundo Juan Valera “El cuento – en general - es una narración de lo sucedido o de lo que se supone sucedido” (VALERA, 1864, p.54). Assim sendo, conto é o que se narra sobre alguma coisa que aconteceu ou que se imaginou, daí a relação entre contar e falara. No mundo do contar tudo é possível, pois tanto o enunciador como o enunciatário, sabem que esse discurso é uma ficção que toma por base a realidade, mas que com o transcurso do tempo, não tem forma definida nem única, senão flutuante e variada: à versão criada pelo primeiro enunciador são agregadas novas significações de outros enunciadores e enunciatários de forma que esse discurso vai se enriquecendo de novas significações a cada ato comunicativo. O discurso faz assim o papel de agregar visões do mundo, avaliações da vida, interpretações da morte. Sempre na dimensão do diálogo com o outro, sem o qual só poderíamos permanecer mudos. E mudos, renunciar ao pensamento. (RIBEIRO, 2006, p. 2) A origem do conto alude a tempos tão longínquos que, é difícil indicar com precisão uma data aproximada de quando alguém criou o primeiro conto. Sabe-se, no entanto, que os mais antigos e importantes criadores de contos que hoje se conhecem foram os povos orientais. Dali se estenderam para todo o mundo, narrados de pais em pais e de boca em boca. Esta origem oriental pode ser reconhecida ainda hoje em muitos dos contos que nos fascinaram desde crianças, e ainda os lemos e narramos. A vida desvendada neles é 315 Hispanismo 2 0 0 6 típica do mundo oriental, assim como a maneira de entender e de viver. São orientais seus personagens, seus nomes e sua forma de vestir, seus bosques ou suas casas e também sua maneira de se comportar, sua mentalidade e, na maioria dos casos, a “moral” do conto. A coleção mais importante e conhecida de contos orientais trazidos à Europa e da Europa para a América são “As mil e uma noites”, manuscritos do século XIV que diversos autores anônimos escreveram para transmitir as tradições orais do oriente, nos mais variados modelos narrativos e que serviram como fonte de inspiração de diferentes poetas e contistas de todos os tempos. Os contos foram motivo de versões, adaptações ou imitações pelas literaturas européias, desde as mediterrâneas até as anglo-saxão. “As mil e uma noites” é uma jóia literária que, segundo Montoya, se assemelha a uma Caixa de Pandora (MONTOYA, 2006, p.5), pois nela se encontram as figuras mais inverossímeis da imaginação e da fantasia buscadas através da curiosidade. Esta coleção de contos abre as portas de um mundo cheio de encantos e alucinações, narrações e aventuras fascinantes que procedem de diferentes séculos. A vida dos homens do Oriente, e particularmente a astúcia das mulheres do harém, aparecem carregados de um enorme poder sugestivo, apesar de que a história se inicia com um rei, que descobre que sua mulher o trai e em vingança, resolve matar a todas as outras que se casam com ele, uma vez comemoradas a noite de núpcias. Até o dia em que se casa com a filha do vizir do seu reino, Sahrazad, que para evitar a sua morte, resolve contar a sua irmã Doniazada e a seu esposo, o rei, os episódios de uma história que se prolonga durante “Mil e uma Noites”b. Sahrazad não só apazigua a crueldade do rei e salva o seu povo de um banho de sangue, se não que também tece com o novelo de sua imaginação uma história atrás da outra, onde contar é como um jogo de vida ou morte entre o enunciador, enunciatário e o enunciado, pois ter o que contar significa viver. São muitas as edições de “As mil e uma noites”, que com traduções e adaptações são destinadas a esse jogo de interesses dos curiosos sultões e habilidosas Sahrazades do mundo, que aguardam o momento do desenrolar de uma história contada através da sedução e do encantamento, em busca da salvação da sua memória. Entre tantos exemplos possíveis de escolha encontro o romance de Manuel Rivas (RIVAS, 2003) “El lápiz del carpintero” como fruto desse prolongamento da noite, onde cada amanhecer representa uma nova história a ser vivida para poder ser contada e continuada. Na estrutura do “El lápiz del carpintero”, assim como em “As mil e uma noites”, temos uma primeira história, que quando descoberta pela sedução do discurso do enunciador, surge a curiosidade do enunciatário, que quer ouvir muitas outras, e uma após outra serve como moeda para prolongar a noite 316 Volume 4 | Literatura Espanhola e comprar a vida. Em “El lápiz del carpintero”, a primeira história é narrada por Herbal para Assunção e dela surgem outras, como uma matrioskac. Cada uma delas serve de exemplo para comprar a morte, seja ela a do lápis, que vive graças à história de vida de cada um que o possuiu; a vida de Herbal o carcereiro, de Da Barca e sua amada Marisa, ou dos presos políticos que o acompanham no cárcere de Santiago de Compostela. Devido à dificuldade e a vagarosidade que seria falar de cada uma dessas histórias, utilizo a lenda das duas irmãs, que surge no quarto capítulo de “El lápiz del carpintero”. Essa lenda tem início em um dos muitos momentos em que os presos se reuniam para contar e ouvir histórias de tradição oral Galega. A discussão sempre ficava no acreditar ou não nessas lendas que transmitem a força da vida após a morte, visto que eles estavam à beira da mesma, pois a cada noite, após essas reuniões, alguns deles eram escolhidos para o fuzilamento. Então, o tipógrafo Moroño, socialista que os amigos chamavam de O’Bo, dá inicio a sua história. Por que será que quem conta neste caso é um individuo que executa ou dirige as operações para a produção de impressos? Está claro que não poderia ser outro, pois a sua profissão deixa a imagem gravada no fundo da retina, os escritos com letras de ouro, de “As mil e uma noites”, surgem neste personagem para provar que essa história terá vida para sempre, desde que a mesma seja lida e recontada para outros, pois caso contrário, esse texto não passaria da materialidade vazia da qual fala Luis Filipe Ribeiro em seu artigo Literatura, Discurso, Sociedade, sabendo que todo discurso é orientado para o outro e que ele “compreende uma tríade de que o enunciado é apenas um vértice, ainda que sua evidencia por vezes ofusque a presença dos demais” (RIBEIRO, 2006, p.2) O’Bo, enunciador deste discurso, conta para os seus enunciatários, os amigos do cárcere, a lenda Galega das duas irmãs, agregando-lhe significações e fazendo com que ela permaneça como exemplo na memória daquele grupo social. O mesmo acontece por muitas vezes em “As mil e uma noites”, como na história de “Já Far, o Vizir” e “As Três Maçãs”d, onde há a exigência da escrita do discurso. Mas, para que o discurso possa sobreviver, é necessária a presença de um enunciador e um enunciatário, que a partir desse movimento dialético, dêm vida ao enunciado. Provocando a curiosidade dos seus ouvintes, O’Bo menciona que o que vai narrar não é um conto, se não, algo que havia realmente acontecido em um lugar e em uma época. Dizendo isso, este discurso passa a ser entendido como o recorte da realidade, um exemplo que levará, pela própria autonomia e coerência do mundo ficcional criado, a conhecer, compreender e até querer transformar a realidade que a história reflete. Situando a história no seu espaço e no seu tempo, O’Bo assim como Herbal e muitos outros narradores de “El lápiz Del Carpintero” e “As mil e uma noites“, obtêm a “fidelidade” do discurso que por vez, provoca a 317 Hispanismo 2 0 0 6 curiosidade por querer conhecer o desenrolar da história. Em “As mil e uma noites” Sahrazad também começa as suas histórias plantando a semente da dúvida e da suspeita naqueles que a ouvem. Situando as suas histórias no tempo e no espaço e deixando o desenrolar para a próxima noite, ela deixa os enunciatários curiosos e ávidos por mais informação. É a condição necessária para obter uma boa história, pois ela só existe com a motivação que retira da realidade vivida, provocando a transformação. A lenda trata da história de Vida e Morte, duas irmãs que tinham feito um juramento entre si: as duas podiam flertar, e ter aventuras com homens, mas nunca poderiam separar-se uma da outra. O juramento foi cumprido até o momento em que Vida se apaixonou por um jovem pescador. Acreditando que aquele amor valia mais que todo vínculo com a sua irmã, Vida fugiu temendo a vingança de Morte pela traição do juramento feito entre ambas. A Morte realmente nunca perdoou a Vida e desde então dizem que ela vai e vem pelos caminhos, principalmente nas noites de trovoada, batendo na porta das casas e perguntando pela irmã. A quem não sabe contar nada sobre ela, a Morte mata. É nesse jogo de vida e morte que encontro o significado das duas narrativas. “As mil e uma noites” e “El lápiz del carpintero” mostram, através dos distintos exemplos de vida expostos em cada uma das histórias que vão surgindo umas dentro de outras, que quem não tem o que contar sobre a vida, morre e com ela morre a sua memória social, pois ela só vive se a sabemos contar e para isso precisamos dos ingredientes mencionados: enunciador e enunciatário num movimento dialético cheio de curiosidade, sedução, e provocação para a permanência e transformação dessa memória. Referências Bibliográficas ANÔNIMO. As mil e uma noites. Tradução de Alberto Diniz. 2 vols. Rio de Janeiro:Ediouro, 2001. _____.Livro das mil e uma noites. Tradução de Mamede Mustafá Jarouche. 1ª ed. 4 Vols. Vols I e II. Rio de Janeiro:Editora Globo, 2005 BAKHTIN, Mikhail. Maxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec, 1981. _____. Apresentação do Problema In Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, Editor: Mikhail Baktin. São Paulo / Brasília: Hucitec, 1987 _____. Questões de literatura e de estética. São Paulo, UNESP, 1993. BARTHES, Roland ett alii. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis, Vozes, 1976. BARTHES, Roland. El discurso de la história. In: - Estructuralismo y Literatura. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 1970. 318 Volume 4 | Literatura Espanhola DIMAS, Antonio. Espaço e Romance. São Paulo, Editora Ática, 1985. FOSTER, E. M. Aspectos do romance. Porto Alegre, Globo, 1969. HEISING, J. W. El cuento detrás del cuento, Ed. Guadalupe, Buenos Aires, 1976. LUKÁCS, Georg. Problemas del realismo. México / Buenos Aires. Fondo de cultura Económica, 1966. MESQUITA, Samira Nahid de. O Enredo. São Paulo, Editora Ática, 1987 MONTOYA, Victor. Las mil y uma noches. Artigo Disponível em: http://www. sololiteratura.com/mon/victormontoya.htm - Visitado 05/03/2005 RIBEIRO, Luis Filipe. Literatura, Discurso e Sociedade. Artigo disponível em: http://www.rbleditora.com/mil_e_uma/ - Visitado 10/04/2006. RIVAS, Manuel. El lápiz Del Carpintero. Tradução de Dolores Vilavedra. 18ª ed. Madrid, Punto de Lectura, 2003. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo, Perspectiva, 1969 (Coleção Debates) VALERA, Juan. Estudios críticos sobre literatura, política y costumbres de nuestros días, 1864. WELEK, René e WARREN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa, Europa-América, 1960. Notas a b c d Falar vem do latim coloquial fabulëri, dizer fabulas e Contar nesse caso, adota o significado de referir um fato, seja ele verdadeiro ou fabuloso. (Diccionario de la Real Academia Española – www. rae.es) Na verdade não são 1001 noites. Esta é uma expressão utilizada para se referir às muitas histórias contadas por Sahrazad durante muitas noites. Uma matrioska, matriosca, matrioshka, Matriochka, matrioschka ou Matryoshka (Cirílico manpëuuka ou manpeuuka) ou Boneca russa é um brinquedo tradicional da Rússia, constituída por uma série de bonecas, feitas de diversos materiais, ainda que o mais frequente seja a madeira, que são colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até à menor (a única que não é oca). A palavra provém do diminutivo do nome próprio “Matryona”. (Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre - Página visitada em 20/05/2006) Estes dois contos podem ser encontrados na edição Traduzida por Mamede MustafáJarouche. (Anônimo, 2005) 319 Estudos Hispânicos Hispanismo 2 0 0 6 D. João II, o Príncipe Perfeito, Espelho de Reis Andréa Conceição Braga Antunes (UFF) Lope Felix de Vega Carpio é um dos grandes criadores da literatura dramática do século XVII, “Século de Ouro” espanhol. Seu teatro é voltado para o popular e seus personagens representam a coletividade a que pertenciam. E dentre seus temas preferidos encontramos os voltados para a vida de grandes monarcas. Este trabalho propõe um estudo comparativo entre duas obras que constroem a imagem de um rei, D. João II, uma literária e outra histórica: El Príncipe Perfecto, obra de teatro de Lope de Vega, e a “Crônica de D. João II”, de García de Resende. E as questões abordadas resgatam, não só a figura de um rei emblemático, mas também a memória da história lusitana, pois os valores portugueses são os grandes eixos temáticos do teatro barroco espanhol. No ano de 1455, dentro do Castelo de S. Jorge, em Lisboa, veio ao mundo João, filho dos reis D. Alfonso e D. Isabel, de Portugal. Este nascimento foi motivo de grande contentamento e muitas festas foram feitas por todo o reino em sua homenagem. E sobre a figura deste Príncipe, posteriormente rei, sempre se dispensou muitas atenções. Sua fama corre por todos os rincões, ora como virtuoso e justiceiro, ora como vingativo e traidor. A peça de Lope de Vega, El Príncipe Perfecto, foi escrita numa época em que o teatro era uma das principais formas de entretenimento e propaganda. Espanha, neste momento, atravessava grave crise política e econômica. Estamos então no reinado de Felipe III, que não foi um rei associado a grandes conquistas e vitórias. Sua imagem passou para a história como um rei negligente – “rey débil” (DÍAZ-PLAJA,1997, p.3) – no que diz respeito aos assuntos públicos. Ocasião propícia para expor a figura de um rei de grandes feitos. Foi uma forma de oferecer a cena teatral como um espelho, como exemplaridade. A Crônica de D João II, de García de Resende, foi produzida no século XVI, entre os anos de 1530 e 1533, época de alterações das estruturas. Os valores seculares cediam espaço aos novos que se manifestam de uma forma contundente, constituindo-se, assim, uma obra de altíssimo valor histórico. Nela estão inseridas marcas do vivido: as mudanças culturais, o desabrochar das novas tendências políticas e a importância do poder régio. Os fatos narrados nesta obra nos revelam não apenas os feitos de um rei, mas também os aspectos físicos de um homem, pois García de Resende não compreendia a realeza sem a visão humana de D. João II. (RESENDE, 1973, p.VIII). Muitas são as situações teatrais em que Lope de Vega, através da réplica das personagens, nos mostra a magnitude da personagem de D.Juan 322 Volume 4 | Literatura Espanhola II, que não se trata de uma pessoa comum. Trata-se de um homem “adonde puso Dios grandezas tales” (VEGA, 1987, p.1117) que ultrapassam os limites do humano, alcançam o celestial. Onde virtudes como: Obediência, Justiça, Piedade e Sabedoria se mostram com toda a força na figura do príncipe. Mas o momento mais importante da obra de Lope, e que também está descrita na crônica de Garcia de Resende, é o primoroso retrato do rei D. Juan II, oferecido através da réplica da personagem D. Juan de Sosa. Na “situação” teatral nº 1, do segundo ato, encontramos os reis católicos – Don Fernando e Doña Isabel – e Don Juan de Sosa, de embaixador. Doña Isabel mostra-se curiosa quanto aos atributos físicos e morais do rei D. Juan II e busca respostas em Don Juan de Sosa. REINA. – El hombre que he deseado ver com mayor aficción es vuestro Rey. D.JUAN. – Si pintado de mi corta relación con más verdad que cuidado, señora, le queréis ver, podré, haciéndole, correr la cortina a su retrato.a Neste momento, utilizando-se de uma linguagem muito poética, iniciase a construção do rei. Todos os feitos de D. Juan II são “pintados”, revelando a magnitude da personagem, a imagem do governante ideal: El invicto Rey don Juan el Segundo, aunque el primero en el heroico valor, en el militar esfuerzo, Rey tercio de Portugal, desde el Santo Alfonso el Bueno a quien dio sus mismas llagas por armas el Rey del cielo, es hombre proporcionado de suerte en mediano cuerpo, con tal rostro e gravedad que entre mil hombres diversos le conocerán por Rey; que luego obliga a respeto. En las cosas de placer es afable, aunque modesto, Y en las que son de importancia 323 Hispanismo 2 0 0 6 humanamente severo. En lo blanco de los ojos venas de color sangriento airado le hacen temido, que pone el mirarle miedo, como alegre confianza verle cuando está contento, porque las venas de sangre vuelve de color de cielo.b Também na obra de Garcia de Resende encontramos esse mesmo “retrato”: “ El Rey Dom Ioam era homem de muyto bom parecer, e bom corpo, e de meam estatura, porem mais grande que pequeño, muyto bem feyto, e em tudo muy proporcionado, ayroso, e de tanta grauidade, e autoridade, que entre todos era logo conhecido por Rey (...)” “(...) os olhos eram pretos, graciosos, e de muyto boa vista, e as vezes tinha nas alvas huas veas de sangue, que faziam com menencoria ser muy temido, e nas cousas de prazer era alegre, e muyto bem assombrado, e muyta graça, e em tudo era muy alvo, e no rosto corado em boa maneyra (...)”c Nas duas obras o aspecto do rei, suas características físicas, já mostram que não se trata de uma pessoa comum, mas de alguém especial que será reconhecido como rei, mesmo entre muitos homens. Segundo Álvaro Pais, um rei virtuoso deve ser comedido nas suas atitudes, saber ser brando e indulgente, mas também severo e temido quando necessário. Esta perfeição moral é acompanhada pelas suas expressões faciais: “venas de sangre/ vuelve de color de cielo” (RESENDE, 1973, p.XV) um lado para punir os maus e o outro para afagar os bons. Eis uma das maiores virtudes reais: a Temperança. Além da temperança, outras virtudes reais são evidenciadas As informações contidas nesta “situação” nos remete à Prudência e a principal delas: a Justiça, que deve fazer parte da ideologia monárquica e cristã. Es justiciero y piadoso, y piadoso justiciero, de suerte, que es la prudencia de los extremos el medio: en mercedes y castigos mucho se parece al cielo. No hay excepción de personas 324 Volume 4 | Literatura Espanhola quita al malo y premia al bueno (...) Sabe todos los que son en su reino beneméritos, (...) Guarda las leyes que hace como se fuese sujeto a las leyes el que es Reyd Na obra de Resende encontramos a mesma passagem que inspirou a obra Lopesca: “Era muy justo, e amigo de justiça, e nas execuções della temperado, sem fazer diferença de pessoas altas, nem bayxas, nunca por seus desejos, nem vontade a deyxou inteiramente de comprir, e todaslas leys que fazia compria tam perfeitamente, como se fora sogeyto a ellas.”e No decorrer da réplica de D. Juan de Sosa, muitas foram as referências históricas utilizadas pelo dramaturgo para enaltecer as qualidades régias de D. Juan II. Como Salomão, que foi um rei sábio e respeitado por todas as religiões; Alexandre Magno, um grande empreendedor e pelo seu ideal guerreiro. Cita parte de “Os Lusíadas”, de Camões; Ciro, rei da Pérsia, político e expansionista; e Xenofonte, grande filósofo e discípulo de Sócrates. O que demonstra a erudição de Lope de Vega, um grande conhecedor da história clássica. Os três últimos versos da réplica de D.Juan de Sosa aos reis católicos: porque tengo por muy cierto que para ejemplo de reyes hizo este Príncipe el cielo. Com estas últimas considerações, o dramaturgo finalmente edifica a imagem de D. Juan II, um rei que foi concebido pelo divino para que fosse conhecido como modelo, exemplaridade. Nele se encerram todas as virtudes que devem permear a imagem do governante ideal, para que este possa dirigir seu reino com estabilidade: a Justiça, a Prudência, a Temperança e a Fortaleza. Os belos exemplos de conduta de D. Juan, nesta época tão conturbada pela figura inexpressiva de Felipe III, resgatam o orgulho do povo lusitano. Esta é, certamente, a intenção de Lope de Vega quando põe em cena esta obra que reacende a chama da esperança, num poder real absoluto, num líder que reúna, harmoniosamente, todas as qualidades do rei que se notabilizou com o epíteto de “O Príncipe Perfeito”. 325 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas DÍAZ-PLAJA, Fernando. La Vida y la Época de Felipe III, España, Editorial Planeta S.A, 1997. GARCIA, José Manuel. Breve Panorama Bio-bibliográfico sobre D. João II. Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1999. LE GOFF, Jacques. São Luis, tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro, Record, 1999. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa Através dos Textos. São Paulo, 14ª edição, Editora Cutrix, 1985. PERES, Lygia Vianna. A Tecedora de Espanha ou O Sonho da Infanta: Leitura de El Mejor Mozo de España de Lope de Vega, in Arrabaldes, Cadernos de História, série I, Cultura e Imaginário no Ocidente Medieval. Org. Fróes, Vânia Leite. Niteroi: ICHF/UFF, 1996 PERES, Lygia Rodrigues Vianna. La Historia en el Teatro, el Teatro de la Historia. La tradición emblemática y la representación de algunos reyes peninsulares en obras del “Siglo de Oro”.In “Actas del V Congreso de la Asociación Internacional Siglo de Oro”, Münster,Iberoamericana Vervuert,1999. PINA, Rui de. Crónicas, Porto, Lello & Irmãos – Editores, 1977. RESENDE, Garcia de.Crônica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1973. RODRIGUES, Maria Idalina Resena. De Gil Vicente a Lope de Vega: Vozes Cruzadas no Teatro Ibérico. Lisboa, Editorial Teorema Ltda, 1999. SERRÃO,Joaquim Veríssimo. História de Portugal, Volume I: Estado, Pátria e Nação (1080-1415), 2.ª ed., Lisboa, Verbo, 1978. VEGA, Lope de . El Príncipe Perfecto, en Obras Escogidas, Teatro, II, Ed. de Federico Carlos Sainz de Robles, Madrid, Aguilar, 1987. Notas a b c d e 1 VEGA, Lope de. El Príncipe Perfecto, en Obras Escogidas, Teatro II, Ed. de Federico Carlos Sainz de Robles, Madrid, Aguilar, 1987. p. 1121 2 (Ibid, p.1121) RESENDE, Garcia de. Crônica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973, p.XV VEGA, Lope de. El Príncipe Perfecto, en Obras Escogidas, Teatro II, Ed. de Federico Carlos Sainz de Robles, Madrid, Aguilar, 1987. p. 1121 RESENDE, Garcia de. Crônica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973, p.XV 326 Volume 4 | Literatura Espanhola Plínio Barreto nos primórdios da crítica sobre Dom Quixote no Brasil André da Costa Cabral (USP) O livro, Dom Quixote, sempre teve grande repercussão em diversos campos da cultura brasileira. Entretanto, esta presença nem sempre foi objeto da atenção dos principais críticos literários, sendo muitas vezes negligenciado e esquecido. Contudo, em meio deste descaso ouvem-se algumas vozes dispersas, às vezes solitárias, de críticos que se dedicaram em registrar a leitura que faziam desta obra, destacando alguns aspectos do enérgico cavaleiro de La Mancha e de seu fiel escudeiro. Muitas destas leituras estruturam-se sobre a marca do efêmero, da pluralidade, distanciando-se das tendências mais difundidas do cervantismo. Com base nesta prerrogativa é que esta comunicação pretende recuperar e analisar “D. Quixote”, ensaio do jornalista paulista Plínio Barreto (1882-1958), publicado em O Estado de S. Paulo em 28 de dezembro de 1913, com o objetivo de situar este texto na fortuna crítica brasileira sobre Dom Quixote, apreendendo neste a formulação de um método críticointerpretativo singular. Para a realização deste trabalho comentarei as principais características da crítica literária deste momento, para depois apresentar uma breve análise dos dois estudos que antecederam este ensaio e que marcam o início da crítica feita ao Dom Quixote no Brasil, são eles: “Dom Quixote” de Olavo Bilac, conferencia apresentada por volta de 1906 no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro e “Miguel de Cervantes e D. Quixote” de José Veríssimo escrito por volta de 1908. A fim de assinalar também a expressiva recepção que a crítica de Plínio Barreto teve em seu tempo, este artigo resgata duas missivas inéditas pertencentes à correspondência passiva de Plínio Barreto. O diálogo entre o crítico e seus leitores ajuda a compreender o ambiente intelectual paulista e a recepção que se fazia, neste momento, da obra de Cervantes. A crítica literária brasileira tem seus primórdios no século XIX, ganhando importância com o passar dos anos, sendo já no final deste mesmo século uma manifestação consistente. No início do século XX esta crítica já estava consolidada, sendo uma prática comum, presente nos principais jornais que circulavam por todo o país. Esta crítica do início do século XX apresentava algumas características similares, sendo denominada, por alguns críticos, como uma Crítica Impressionista, crítica que privilegiava a pessoa do “próprio crítico”. O subjetivismo desta nova concepção crítica tinha suas origens na gera327 Hispanismo 2 0 0 6 ção francesa de Anatole France, Jules Lemaitre e Remy de Gourmont, estudiosos que buscaram libertar e dar mais autonomia a literatura que estava presa às concepções críticas apoiadas nos ideais de Taine, Hennequin, Brunetière e Arnold. Esta nova vertente crítica que se expandia pelo Brasil aproximou-se a que era feita durante o Romantismo. Durante este período o fator estético, o gosto pessoal, a divagação, entravam em cena. A crítica passava a ser um passeio pelo “jardim das letras”. Inseridos neste ambiente é que são escritos os três ensaios, os quais me proponho comentar. Olavo Bilac (1865 – 1918) em seu estudo sobre Dom Quixote apresenta uma análise que compara a obra com: o contexto histórico da Espanha de Felipe II; a biografia romanceada de Miguel de Cervantes e o espírito “quixotesco” dos desbravadores do Brasil colonial. O autor, em um texto de grande força expressiva, demonstra-se um homem de muita cultura, capaz de entrelaçar conteúdos diversos com o objetivo de demonstrar a grandeza do livro de Cervantes e também apresentar as concepções ideológicas do livre-pensador republicano, defensor da república a pouco implantada em nosso país. Prova disto é o ataque, explícito, feito por Bilac, ao governo de Felipe II, o qual, segundo o crítico, perseguiu Cervantes convertendo-o em vítima dos desmandos monárquicos. Após uma apresentação da situação histórica espanhola, da época da criação do Dom Quixote, o autor prossegue seu estudo com a realização de uma biografia “romanceada” de Cervantes, relacionando características do herói D. Quixote ao seu autor, além de diversas qualidades não comprovadas como: “um brioso e galante mancebo, temido de homens e amado de mulheres”. Porém não é nestes dois aspectos que está o ponto forte do estudo de Bilac, mas sim quando, terminada a biografia, inicia-se a análise da obra considerada como a “epopéia do riso”, demonstrando que a maior qualidade do texto cervantino reside na sua força cômica. No entanto, o autor, não se detém, para fazer a sua afirmação, na pesquisa dos recursos utilizados para produzir o cômico. Comentando o contraste harmônico que rege as personagens Dom Quixote e Sancho Pança, modelos que remetem à dualidade humana, Bilac segue o seu estudo do cômico, mostrando que por trás do riso emana um sentimento de cruel melancolia. O mesmo texto que inicialmente nos faz rir, sucinta também uma reflexão distanciada de qualquer comicidade. Este elemento, a melancolia, aliado a análise subjetiva de interpretação romântica, presente no início do ensaio, dá também um caráter 328 Volume 4 | Literatura Espanhola positivista ao texto, pois ao final do mesmo o autor retoma as considerações históricas, destacando a possibilidade da transcendência da obra cervantina em nossa história, para isso resgata de nosso passado um espírito quixotesco que provém das descobertas ultramarinas portuguesas e que seguiu com os movimentos Bandeirantes rumo à colonização do sertão brasileiro, sentimento este que nos faz sofrer e nos motiva a seguir a luta de D. Quixote. Bilac encontra em nossa história colonial um sentido quixotesco como, se a partir da criação de Cervantes, a ficção houvesse inundado a realidade. Diferentemente do poeta Bilac, que buscou em seu estudo criar imagens e construir significados, o crítico José Veríssimo (1857 – 1916) demonstra o trabalho de um historiador da literatura que se preocupa com a argumentação. Inicia seu trabalho também com uma contextualização, mas não do momento histórico espanhol, e sim do gênero literário épico, o qual influenciado por mudanças sociais originou o romance, gênero que tem, por sua vez, uma linguagem mais direta. Veríssimo também recorre à biografia de Cervantes, um pouco menos romanceada que Bilac, comparando o autor ao personagem: “há na sua vida alguma coisa da do cavaleiro andante” e concorda com SainteBeuve ao considerar D. Quixote o livro da humanidade. Para o crítico o livro apresenta alguns aspectos de transcendência, pois os dois heróis, Quixote e Sancho, são representantes do povo espanhol e de maneira mais ampla, da dupla feição dos homens no seu aspecto bom e mal. O crítico discute o tema da sátira, colocando-a como elemento secundário para a transcendência, já que o objeto satirizado, a cavalaria andante, não sobreviveu à passagem dos anos. No entanto algo sobrevive na obra: a loucura de D. Quixote, o que era mais ridículo, o objeto da sátira, se transforma em valor heróico, O Sublime. O campineiro Plínio Barreto, advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, figura de grande influência na vida pública brasileira, devido à sua atuação como jornalista e posteriormente diretor do jornal O Estado de S. Paulo no qual foi responsável pela coluna forense e pela coluna literária. Ainda no início de sua carreira como crítico literário, publica o artigo intitulado “D. Quixote”. De modo diverso dos textos anteriores, Plínio Barreto não busca em seu estudo discutir a obra como um todo, demonstrando com isso a sua vasta cultura. Ao invés ele opta por selecionar duas passagens da grande obra “La cueva de Montesinos” e “el Clavileño” as quais, quando relacionadas, permitem, segundo o crítico, “rasgar uma brecha na unidade” do caráter de D. Quixote. 329 Hispanismo 2 0 0 6 Plínio parte em seu estudo de uma mesma idéia já presente em Bilac: “D. Quixote nunca mentiu; o que ele viu na cova de Montesinos foi realmente visto por seus olhos alucinados” (BILAC, 1996, p.626). Contudo se depara com um problema textual, que põe em dúvida esta “honestidade” de D. Quixote. Com um fragmento do episódio da Cova de Montesinos, Plínio demonstra que Sancho não acreditou na história contada por Quixote. Esta citação, por si só não, traz nenhum elemento novo, mas servirá para a seqüência do estudo. No episódio em que se conta a história do Clavileño aparece um pequeno desvio no caráter do herói, o qual, após não crer na história contada por Sancho sobre a viagem feita no Clavileño, faz a seguinte proposta a seu escudeiro: “– Sancho, já que quereis que se nos acredite o que viste no céu, quero me acrediteis o que eu vi na cova de Montesinos. Não vos digo mais” (BARRETO, 1913, p.5) Este é o fragmento que realmente perturba o crítico, pois para ele esta frase rompe toda a unidade moral de Dom Quixote, que estava convencido de que Sancho mentia. Crer nestas mentiras, em troca da crença de Sancho na visão que teve na Cova de Montesinos, despertaria “em Sancho e em toda a gente a suspeita de que o cavalheiro da Mancha não era mais do que um grande mistificador”. Esta inquietação de leitor motivou Plínio Barreto a buscar uma explicação para esta passagem, com o objetivo de retomar a confiança na integridade moral de seu herói. Para isso duas atitudes foram tomadas. A primeira foi a pesquisa de distintas traduções do texto cervantino e também do texto original, para buscar diferenças nesta passagem. O resultado foi que no texto espanhol como nas traduções portuguesas a passagem apresentava as mesmas características; porém na versão francesa de Florian a passagem é diferente, contudo, esta tradução francesa era criticada por nomes como Sainte-Beuve, que censuram “Florian por haver, na sua tradução, com o pretexto de lhe atenuar os defeitos, ter abreviado o D. Quixote”. Citando Sainte-Beuve Plínio diz: “o que Florian se permitiu fazer no D. Quixote constitui até um crime de ‘lesa gênio”. Seu estudo sobre as traduções do texto não pode ser mais extenso, segundo o crítico, devido à dificuldade de encontrar outras versões de D. Quixote nas livrarias e bibliotecas paulistas, além da pouca fortuna crítica existente desta grande obra: 330 Volume 4 | Literatura Espanhola “Os grandes críticos quase não se ocupam com o D. Quixote. Basta dizer que só em Scherer foi que encontrei um estudo sério sobre a maravilhosa criação... O que há de melhor sobre ele é obra de poetas: são os trabalhos, todos soberbos, de Heine, de Bilac e de Saint-Victor”. (BARRETO, 1913, p.5) A segunda atitude tomada por Plínio Barreto foi a de tentar explicar a passagem com o estudo do próprio texto. Partindo da idéia de que D. Quixote é um paranóico, o crítico lança a seguinte pergunta: “Tal vez o paranóico possa de vez em quando, volver a normalidade mental e, por instantes, adquirir a plena consciência da sua loucura a ponto de fazê-lo alvo da própria zombaria?” Porém a consulta feita ao amigo e psiquiatra Franco da Rocha (grande nome da psiquiatria Americana) impossibilitou esta teoria, pois em carta recebida em 7 de dezembro de 1913 o psiquiatra diz: “Cervantes não era psiquiatra nem tratou de estudar a loucura com rigor científico. O grande gênio percebeu aquela forma de moléstia e a descreveu maravilhosamente, desprezando, porém, particularidades que lhe não ocuparam a atenção, tal é o final do romance, que é um absurdo colossal.” (BARRETO, 1913, p.5) Por mais esforços empreendidos pelo crítico, as suas duas teorias não produziram uma conclusão, tanto o problema textual, por muitos denominados como erros, como é o caso de Veríssimo que em seu ensaio diz: “o descuido com que foram impressas a primeira e até a segunda edição, nas quais, não obstante publicadas e revistas pelo autor, escaparam erros e equívocos muito grosseiros, confusões de nomes de personagens, tempos e lugares, esquecimentos de fatos e olvido num capítulo do que ficara escrito em outro”. (VERÍSSIMO, 2003, p.442) Como a teoria da paranóia, não comprovada cientificamente, fazem com que o crítico deixe o seu texto sem uma conclusão, o que não decepciona o leitor, que é, indiretamente motivado a seguir a pesquisa. Esta motivação criada pelo ensaio incita o poeta Vicente de Carvalho a escrever uma carta, no mesmo dia da publicação do artigo, na qual se demonstra em total acordo com a inquietação do crítico, ampliando a força da discussão com a citação de uma nota escrita por Clemencin a 1ª edição de D. Quixote, que também demonstra uma estranheza com esta passagem. 331 Hispanismo 2 0 0 6 Contudo o poeta também se mostra contrário ao texto francês de Florian, resolvendo a sua inquietação como leitor da seguinte maneira: “Para mim, Cervantes, num acesso do seu gênero satírico, troçou o seu próprio personagem”. Este estudo buscou comentar como a obra Dom Quixote, apesar de pouco explorada no Brasil, era vista pela nossa crítica literária da primeira quinzena do século XX, para isso relacionou-se os textos de três autores que de modos distintos se detiveram sobre o livro de Cervantes. Fixando o estudo no texto, do hoje pouco estudado Plínio Barreto, crítico literário paulista muito elogiado por Antonio Candido, relacionando-o com os textos críticos que o antecederam e com duas das cartas pertencentes a sua Correspondência Passiva, buscou-se demonstrar a força da crítica de Plínio Barreto e o seu reflexo no ambiente cultural paulista daquele momento. Referências Bibliográficas BARRETO, Plínio. “D. Quixote”. In O Estado de S. Paulo de 28 de dezembro de 1913. p.5. BILAC, Olavo. “Dom Quixote”. In Obra reunida. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1996. p.621-632. GALVÃO, Walnice Nogueira. “Página de Livro: Página de Jornal”. In D.O.Leitura. São Paulo, Publicação cultural da Imprensa Oficial do Estado, ano 20 número 05 Maio de 2002. LIMA, Alceu de Amoroso. Decimalia: A crítica literária no Brasil. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura – Biblioteca Nacional, 1959. SÜSSEKIND, Flora. “Sobre a crítica”. In Papéis Colados. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2002. VERÍSSIMO, José. “Miguel de Cervantes e D. Quixote”. Rio de Janeiro, Topbooks, 2003. p.437-445. VIEIRA, Maria Augusta da Costa. “Crítica, Creación e Historia en la recepción del Quijote en Brasil (1890-1950). In Separata de Actas del Congreso Internacional de la Asociación de Cervantistas, 4. Palma , Universitat de les Illes Balears, 2001. p.1145-1152. 332 Volume 4 | Literatura Espanhola Do paraíso ao inferno: o mito do demônio no filme La lengua de las mariposas Angela dos Santos (FATEC/ ZL) Durante muito tempo na história da crítica costumava-se rechaçar uma adaptação cinematográfica quando esta não utilizava os critérios necessários de fidelidade ao original, tais como: a transposição dos conteúdos semânticos, as categorias temporais, as instâncias enunciativas e os processos estilísticos, no entanto hoje essa questão, para muitos críticos, já está superada, afinal o que devemos considerar na transposição é sua interpretação, o que foi privilegiado na leitura feita pelo diretor. E esse é o ponto que vamos analisar no filme La lengua de las mariposas (1999), dirigido por José Luis Cuerda, que, com a ajuda de seu roteirista José Azcona justapôs três contos do livro ¿Qué me quieres, amor? do escritor espanhol Manuel Rivas, a saber: La lengua de las mariposas, Un saxo en la niebla e Carmiña. O primeiro conta a história de um menino de seis anos chamado Moncho, que inicia sua vida escolar apavorado pela idéia de que os professores castigavam seus alunos. Depois ao perceber que Don Gregório, seu professor, tem um método diferente, descobre coisas que jamais imaginara, passa a admirá-lo e torna-se companheiro inseparável nas excursões pelo campo em busca de bichos para suas aulas de ciência natural. O segundo é a história de um saxofonista, que sem nenhuma intimidade com o instrumento musical, fingia tocar o instrumento para não desafinar o grupo da “Orquesta Azul”, mas ao apaixonar-se descobre que é capaz de tocar, só então entende o que seu professor de música Don Luis Braxe ensinou “La música tenía que tener el rostro de una mujer a la que enamorar.” e demonstrava como deveria segurar o saxofone “Cógelo así, firme e con cariño, como si fuera una chica” (RIVAS, 2000, p.44). O terceiro é sobre Carmiña uma jovem que vive com sua tia, e que no filme se converte em sua mãe. Ela excita-se com os latidos de seu cachorro, Tarzán, ao deitar-se com seu amante, O´Liz de Sésamo. Os três formam um triângulo, no qual amante e cachorro disputam o amor da jovem. Os três relatos se juntam no filme, o jovem saxofonista é Andrés irmão de Moncho e Carmiña é a filha bastarda de seu pai, fato só revelado a Moncho quando a mãe desta morre e ela vai pedir dinheiro a seu pai para o enterro. A narrativa cinematográfica transcorre em um povoado da Galícia, às vésperas da guerra civil iniciada no verão de 1936. O narrador-protagonista é um menino de aproximadamente seis anos. A narrativa se constrói 333 Hispanismo 2 0 0 6 pelo seu olhar, isso acontece tanto no filme como no conto. No filme essa perspectiva é construida de forma exemplar. Primeiro aparecem fotografias em preto e branco retratando o cotidiano de pessoas simples: lavadeiras, venda de peixes à margem do rio, homens, mulheres e crianças no campo, em praças, feiras, carnaval. Estas fotografias representam a vida simples de um pequeno povoado, as diversas imagens bucólicas retratadas contrastam com outras que mostram um grupo vestido elegantemente que provavelmente se encontram em uma reunião da alta sociedade. De repente a câmara nos mostra as personagens da história, do lado direito um homem magro costurando (Ramón) e uma mulher (Rosa) passando roupa; do outro um menino (Moncho) e um jovem (Andrés) com seu saxofone, todos olham para a câmara com uma expressão de surpresa, como se tivessem sido flagrados, captando um instante de suas vidas. A câmara movimenta-se lentamente executando uma panorâmica, nesse momento, visualizamos a moldura de um porta-retratos, e só então percebemos que o que a câmara focalizava era a fotografia encima da mesa. Acompanhamos o movimento pelo ateliê do alfaiate, pelo quarto do casal, que dorme tranqüilamente e pelo quarto dos dois irmãos. A câmara se detém em Moncho, que está acordado observando o teto, o que nos revela que a história será contada sob a perspectiva do menino. A visão ingênua do garoto, no início do filme, aos poucos se confronta com a realidade. Moncho, antes torturado pela idéia de que os professores castigavam os alunos, torna-se grande admirador de Don Gregório. Suas palavras funcionavam como um microscópio aos olhos dos alunos, “Tanto hablaba de como se agrandaba las cosas menudas e invisibles por aquel aparato que los niños llegábamos a verlas de verdade, como si sus palabras intusiastas tuviesen el efecto de poderosas lentes” (Rivas, 2000, p.23). O professor é uma personagem emblemática do espírito cultural e educativo da Segunda República e uma clara homenagem a um dos grandes poetas espanhóis, Antonio Machado, o que se comprova pela utilização de dois de seus poemas: Nuevas canciones e Recuerdo Infantil. Republicano e comprometido com a Institución Libre de Enseñanza, fundada por Francisco de los Ríos, dedicou grande parte de sua vida à educação. Antonio Machado foi uma das primeiras vítimas da guerra. Don Gregório não se preocupa em passar conhecimentos acadêmicos, está mais preocupado que seus alunos aprendam, por exemplo, qual a origem das batatas ou o porque as mariposas têm língua. Assim, leva seus alunos ao campo para que aprendam com a natureza e sua própria realidade. 334 Volume 4 | Literatura Espanhola Com isto, um novo mundo se abre para Moncho, os conhecimentos adquiridos através das aulas, e excursões pelo campo, proporcionando uma visão paradisíaca do mundo que o cerca. Uma história costumbrista que remete a um poema de Antonio Machado “Recuerdo Infantil”. De maneira irônica o poema contrasta com a própria aula dada por Don Gregório, Una tarde parda y fría De invierno. Los colegiales Estudian. Monotonía De lluvia tras los cristales. Es la clase. En un cartel Se representa a Caín Fugitivo, y muerto Abel, Junto a una mancha carmín. (CUERDA, J. L., 2003) Ao mesmo tempo em que o poema revela-nos a monotonia da aprendizagem pela memorização, o poema também introduz o tema da luta fratricida travada na guerra através da referencia ao mito de Caím e Abel “En el cartel se representa a Caín fugitivo, y muerto Abel, junto a una mancha carmín”. Esta visão paradisíaca que temos no início aos poucos se confunde com uma tensão crescente, os ecos da guerra civil permeiam o filme, muito mais visíveis que no conto, em este a informação sobre em que época se passa a história, ou seja, às vésperas da guerra civil espanhola, só nos é dada no final, não há nenhum indício do que ocorrerá ao longo da narrativa literária. Já no filme existem vários elementos: cartazes nas ruas, as conversas das mulheres depois da missa, “dicen que en Barcelona quemaron las Iglesias”, (CUERDA, J. L., 2003) e de um grupo de homens, “mal veo la cosa, yo la solución la tengo” (CUERDA, J. L., 2003), e conclui “plantarse Madrid de fuego” (CUERDA, J. L., 2003); o discurso inflamado de Don Gregório diante de pais, alunos e autoridades, sobre a liberdade, causa descontentamento e cria uma atmosfera tensa; as notícias que chegam através do rádio preocupam os homens reunidos no bar; esses elementos antecipam um fim trágico. Acreditamos que o tema central do filme, é a indagação sobre o fracasso do ideário da Segunda República. Desta forma o roteirista estabelece uma dicotomia liberdade/opressão. Para isto, utiliza-se da simbologia dos animais – cordeiro, lobo, mariposa, etc. - para plasmar a luta ideológica travada nos anos da Segunda República. O lobo representaria os pró-franquistas, o cordeiro: os republicanos ; e mariposa e outros animais que voam: a liberdade. 335 Hispanismo 2 0 0 6 No discurso de don Gregório, ele faz uma associação do lobo com o cordeiro.“En el otoño de mi vida, yo deveria ser un escéptico, y en cierto modo lo soy. El lobo nunca dormirá en la misma cama que el cordero” (CUERDA, J. L., 2003). Criando desconforto em um dos presentes que sai da sala visivelmente irritado com o discurso. Sua vestimenta chama a atenção, vestido de preto, de gestos bruscos e seu aspecto físico lembra outras personagens: Boal, marido da jovem chinesa; O´Lis quando mata a Tarzán com uma estaca, também apresenta o mesmo aspecto e atitudes agressivas. Uma outra personagem que no final do filme carrega essas características é o pai de Moncho, Ramón, ele apresenta-se com aspecto parecido a estas personagens, grita contra os que foram seus companheiros e renega suas convicções republicanas. O vestuário da família do alfaiate contrasta com dos demais, cor preta, que indica, luto, que carrega a carga negativa da morte. Desta forma os três relatos se interligam mediante a simbologia apresentada em cada um deles, construindo assim a metáfora da República. Essas personagens que apresentam características físicas e de comportamento agressivo representam o lobo, que por sua vez está simbolizado pelos pró-franquistas. Não há um meio termo, igreja, latifundiários, alta sociedade de um lado e intelectuais, pessoas simples de outro, ou seja, todos estão separados de forma que não há espaço para mostrar que alguns padres da igreja e mulheres foram personagens ativas na guerra, tanto de um lado quanto de outro. A presença da mulher é forte na narrativa. Restringida à vida doméstica e a um espaço fechado, enclausurado, contrasta com o espaço em que os homens estão inseridos: no bar, nas reuniões políticas, na rua, ou seja, espaço aberto, de “liberdade”. As três personagens mulheres – Rosa (mãe de Moncho), Carmiña e a chinesa – estão relegadas a este espaço de clausura, ainda que de maneira diferente. Há a presença da clássica dicotomia entre virgem/puta, mãe/esposa, ingênua/perversa, etc., seguindo a tradiçao do cinema, que segundo Ismail Xavier, privilegia “a divisao de papéis: quase sempre o olhar é masculino, e o objeto do olhar é a figura feminina” (XAVIER, Ismail, 2003, p.19). Carmiña encarna a puta, essa visão é dada em duas cenas; a primeira seu amante, O´Lis a define em uma conversa com Roque, o dono do bar: O´Lis - “Carmiña de Sarandón es puro fuego, puro fuego” Roque - “¿y por qué no se le ve nunca por el pueblo?” O´Lis - Ella dice que es porque no puede dejar sola nunca a su madre, pero creo que es por verguenza de la gente”. (CUERDA, J. L., 2003) 336 Volume 4 | Literatura Espanhola E em outra cena em que é revelado a Moncho, que Carmiña é sua irmã bastarda: Moncho – Un día seguimos Roque y yo a uno que se llama O´Lis hasta la casa de Carmiña. Andrés - ¿Y? Moncho – que se desnudaron y la montó Andrés – Por eso no quiere la mamá que la veamos. Moncho - ¿Por qué? Andrés – Por puta. (CUERDA, J. L., 2003) Idéia clara da imagem negativa versus imagem positiva da mulher – mae/prostituta. Carmiña, filha bastarda de Ramón, condenada pela sociedade por sua origem. Ela está confinada a um espaço, a uma zona afastada do povoado, está enclausurada, cuida de uma mãe doente que ninguém nunca viu. Outra personagem que também vive em uma zona afastada é a jovem muda de traços orientais. Marcada por uma tragédia foi atacada por lobos quando tinha apenas quatro anos. - Estábamos en un prado que lindaba con el bosque. Uno de los cabrones se dejó ver en el claro y huyó hacia el monte bajo. Los perros corrieron rabiosos detrás de él. Y yo fui detrás de los perros. La dejé ahí, sentadita encima de un saco. Fue cosa de minutos. Cuando volví, ya no estaba. ¡Cómo me la jugaron los cabrones! (CUERDA, J. L., 2003) Este relato é contado por Boal, marido da chinesa, que a toma por esposa ainda muito jovem e indefesa. É um homem rude e sem modos. Abriga em sua casa Moncho e Andrés quando estes viajam com a “Orquesta Azul”, a um lugar de difícil acesso chamado Santa Marta de Lombás. Rosa, mãe de Moncho, tem um papel fundamental no desenvolvimento e no desenlace da narrativa cinematográfica. É uma mãe, dedicada, religiosa, zela pela educação dos filhos e é a responsável por manter a família unida. O símbolo da figura mantenedora do lar. Sua posição diante dos fatos políticos é contraditória, ao mesmo tempo em que critica a República em conversa com seu marido, “La República, ya veremos donde va a parar la República y tu Don Manuel Azaña” (CUERDA, J. L., 2003), a defende em uma conversa com outras mulheres, “... gracias a la República podemos votar las mujeres” (CUERDA, J. L., 2003). Mas ao explodir a guerra civil toma a iniciativa de queimar tudo que possa comprometer 337 Hispanismo 2 0 0 6 o marido e incita a todos a fazer o que ela manda “Si alguien pregunta, decís que papá nunca habló mal de los curas y que nunca ha sido Republicano” (CUERDA, J. L., 2003) e ordena a Moncho “Papá no le regaló un traje al maestro comprendes”, desta forma salva o marido, de ser fuzilado. Na cena final fica evidente seu poder diante da impotência de um homem fraco que deixa levar-se pela covardia e nega suas convicções. Os regimes nazistas, fascistas e franquistas coincidiram em suas concepções –ao menos nas características básicas – sobre a mulher e a família. Pelas funções que desempenham na família – instituição chave para a reprodução tanto da espécie como das condições sociais – ela foi um núcleo de atenção permanente. E a igreja é a instituição que tem maior poder sobre essas mulheres. No conto, La lengua de las mariposas, isso fica bastante visível. Moncho ao perguntar se seu pai era ateu a mãe surpresa nega, depois o menino conclui “Me parecia que solo las mujeres creían en Dios.” (RIVAS, 2000, p. 30.). É possível entender a cena final do filme como uma confusão mental de um garoto que passou a primavera descobrindo a natureza ao lado de seu professor. E ao vê-lo sair da delegacia com as mãos amarradas e uma expressão de derrota, o deixa confuso. Primeiramente o vê como um amigo, e por insistência de uma mãe dominadora o leva a insultá-lo, usa as palavras “rojo”, “traidores”, depois grita as palavras aprendidas nas inesquecíveis aulas, o que estão longe de ser um insulto: “tilonorrinco”, “espiritrompa”. Atira pedras no caminhão que se afasta levando seu professor, a câmara o focaliza e aos poucos a imagem perde as cores e torna-se monocromática como as fotos do início. Ele está representado em primeiro plano. Este final tenso contrasta com toda a narrativa. A imagem do paraíso que torna-se o inferno. O que nos lembra o mito do Anjo Caído contado a Moncho por sua mãe “El demonio era un ángel, pero se hizo malo. Se rebeló contra Dios. Camino del infierno se iba poniendo pálido. Por eso le llaman el ángel de la muerte”. Enquanto escutava, Moncho observava o caldeirão fervente que fazia dançar a tampa. No conto o anjo é representado por uma mariposa “Una mariposa nocturna revoloteaba por el techo alrededor de la bombilla que colgaba del cable trenzado.”(RIVAS, 2000, p.30). E o momento da caida do anjo “La mariposa chocó con la bombilla, que se bamboleó ligeramente y desordenó las sombras.” (RIVAS, 2000, p.30). Cuerda constrói um final que representa este mito, a imagem de Moncho aos poucos perde as cores e torna-se pálido, “Camino del infierno se iba poniendo pálido” (CUERDA, J. L., 2003) Moncho vive no paraíso e se depara com o inferno, torna-se pálido como o anjo da morte. 338 Volume 4 | Literatura Espanhola O filme termina e nos deixa o final em aberto. Nos perguntamos porque Moncho insulta seu professor? Até que ponto uma pessoa arriscaria sua vida para defender uma ideologia? Uma pessoa tem o direito de converter uma outra em covarde? Fica um sentimento de derrota, de perda dos sonhos de liberdade. Mas ao mesmo tempo, pela atitude de Moncho ao gritar as palavras que tanto o fascinaram, percebemos que o esforço educativo libertário implementado pela República não foi em vão. Referências Bibliográficas La lengua de las mariposas. Dir. José Luis Cuerda. Espanha. Diario El País, n. 1. Madrid, 2003. RIVAS, Manuel. ¿Qué me quieres, amor? Madrid, Suma de Letras, 2000. XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”, in:Literatura, cinema e televisão. São Paulo, Senac, 2003, pp. 61-89. 339 Hispanismo 2 0 0 6 Barcelona en el imaginario literario Carmen Izquierdo Benítez (ICRJ) y Joan Maresma Duran (ICRJ) Barcelona, históricamente, ha tenido una relación íntima con el mundo de los libros. Sus calles han servido de inspiración para ficciones, tramas y reflexiones de multitud de escritores. Sin olvidar un gran número de literatos de fama internacional, nacidos en la propia ciudad. Todos, nativos y extranjeros, han contribuido a construir el imaginario de Barcelona en el panorama nacional e internacional. Barcelona es ya una ciudad mayor, aunque a veces parece una niña. Pero todas esas ciudades juntas que pintan los escritores como si de un cuadro se tratara, son Barcelona. La Barcelona Medieval/ Ildefonso Falcones de Sierra La catedral del mar (2006) La Barcelona Medieval ha sido retratada recientemente por un escritor, hasta ahora desconocido, que ha conseguido un enorme éxito con su primera novela. Falcones retrata la época medieval catalana recreándose en el tipo de economía de la época, ligada a la producción de la tierra y a los vínculos personales. Del mismo modo retrata, pormenorizadamente, el Derecho Local Catalán y la importancia de los Usatges de Barcelona. En este ambiente se presenta Barcelona como promesa de libertad. La Barcelona del Renacimiento/Miguel de Cervantes Don Quijote (1615) En este periodo, sin lugar a dudas, con quien primero está en deuda Barcelona es con Miguel de Cervantes. El escritor español más leído y más traducido de todos los tiempos, fue quien, a través de su ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, puso antes a Barcelona en el panorama internacional. De Barcelona, Don Quijote dice cosas tan bonitas como: “...y, así, me pasé de claro a Barcelona, archivo de la cortesía, albergue de los extranjeros, hospital de los pobres, patria de los valientes, venganza de los ofendidos y correspondencia grata de firmes amistades, y en sitio y en belleza, única...” El Quijote II, cap. LXXII, pag.1091 La Barcelona del siglo XVII, a diferencia de Valladolid, donde se recrea la mayor parte del Quijote, es una ciudad con balcones, que los ha imitado de Italia. Una ciudad muy apta para imaginar aventuras. La Barcelona de la época era también un territorio violento, por eso no es 340 Volume 4 | Literatura Espanhola de extrañar que la violencia en la novela de Cervantes aparezca en Barcelona, con el bandolero Roca Guinarda y con la batalla naval que tiene lugar en el puerto. Barcelona le planteaba a Cervantes la aventura real. Por eso la parte más intensa y más tensa del Quijote sucede en Barcelona. Cervantes aprovecha el paso de Don Quijote por tierras catalanas para tratar de dos temas muy vivos en su época: el bandolerismo y la expulsión de los moriscos. Las costas catalanas de la época estaban continuamente acechadas por corsarios y eran atacadas con bastante asiduidad. Por todo lo expuesto es fácil entender que Cervantes escogiera Barcelona para explicar este tipo de lances. Simplemente porque la ciudad de la época propiciaba más aventuras que ningún otro lugar de la Península. Voltaire (1694-1778) Historia de Jenni (1775) El cuento filosófico empieza en la ciudad de Barcelona a raíz del cerco que sufrió la ciudad en 1705, y que acabó con la derrota del virrey Fernández de Velasco, partidario del archiduque Carlos y contrario al futuro heredero Felipe V de Borbón. El cerco al que hace referencia Voltaire es el primero de los dos que sufre la ciudad durante la guerra de sucesión. Dejando atrás algunos otros testimonios literarios sobre la ciudad del siglo XVIII, cuando verdaderamente Barcelona se inscribe como ciudad literaria es en el siglo XIX, que es cuando la urbe es capaz de componer un imaginario para ser imaginada. Barcelona, durante los siglos XIX y XX, se convierte en un verdadero vivero para el imaginario de multitud de escritores. La Barcelona Modernista/Eduardo Mendoza La ciudad de los prodigios (1986) De su amplia bibliografía nos vamos a centrar en una de sus obras más emblemáticas que retrata la Barcelona modernista. Se trata de La ciudad de los prodigios. La novela es una crónica magistral de la ciudad y de una sociedad de un tiempo: la Barcelona que va desde su primera Exposición Universal en 1888 hasta la segunda en 1929. El humor, presente en buena parte de la obra, es muy catalán y echa por tierra, a veces, aspectos que se consideran consustanciales de la cultura catalana tradicional. El protagonista, Onofre Bouvila, que en 1888 casi un adolescente, llega a Barcelona, como muchos en aquella época (son las grandes migraciones del campo a la ciudad que se dieron a finales del siglo XIX y principios del XX), desde la Cataluña interior, buscando una vida mejor. 341 Hispanismo 2 0 0 6 Se describe el ascenso social de un hombre ambicioso y sin escrúpulos en la agitada Barcelona de entre siglos. A lo largo del periodo que media entre las dos exposiciones universales de la ciudad (1898 y 1929), Barcelona es un agitado cóctel de tensiones políticas y sindicales. El propio autor insinúa que en esta novela, Onofre, su protagonista, es un poco como Barcelona, que coquetea con el anarquismo, pero le interesa más el dinero. O sea, según él, la parte negativa de Barcelona. La Barcelona de preguerra/Jean Genet (1910-1986) Diario de un ladrón (1949) Novelista y dramaturgo francés, cuyas obras, tomando como referencia tanto los aspectos pintorescos como grotescos de la existencia humana, expresan una profunda rebelión contra la sociedad y sus convenciones. En Diario de un Ladrón cuenta en primera persona el retrato de los bajos fondos del barrio Chino Barcelonés. Cuenta y describe los prostíbulos, y los cabarets más emblemáticos de la Barcelona de antes de la guerra.. Sin duda deben de ser los recuerdos de la etapa en que vivió en Barcelona prostituyéndose para poder vivir, cuando dormía bajo un parapeto en plenas Ramblas, justo antes de la Guerra Civil. Por las tardes, siempre según Genet, solía dejarse caer por este conocido cabaret, sin duda el más importante de los que existían en el Barrio Chino de la Barcelona previa a la Guerra Civil. “La Criolla” y otros burdeles del Barrio Chino pueden haber servido de modelos para “La Feria”. La Barcelona Revolucionaria/G.Orwell (1903-1950) Homenaje a Cataluña (1938) De George Orwell, poco hemos de extendernos en su presentación, ya que es un autor de sobras conocido en todo el mundo. Orwell en su Homenaje a Cataluña describe la Barcelona revolucionaria. Sus páginas son un retrato fiel de esa parte de nuestra historia. Orwell se vio obligado a huir de Barcelona, cruzando la frontera hacia Francia por los Pirineos. Es un libro de gran valor para entender la posterior obra de Orwell. Claude Simon (1913-2005) Le Palace (1962). Claude Simon, escritor francés y premio Nobel de literatura en 1958, combatió junto a los republicanos en la Guerra Civil española. El autor de La Route de Flandres (1960) y de una veintena de novelas. A la vez poema, epopeya y novela, el escritor ofrece en ella tres imágenes de la guerra a lo largo de dos siglos y tres personajes principales, uno de ellos él mismo, un tercero llamado O., directa evocación de George Orwell y de su visión 342 Volume 4 | Literatura Espanhola del enfrentamiento entre comunistas y anarquistas en la Barcelona de 1936. Esta novela complementaria la de Orwell para entender la Barcelona revolucionaria. La Barcelona de Posguerra: Carmen Laforet (1921-2004) Nada (1944) La Barcelona de posguerra fue retratada por multitud de escritores, nativos y extranjeros. Vamos a centrarnos, primero, en dos de las mujeres que escribieron sobre la Barcelona de recién acabada la guerra, una desde el exilio y otra desde la Barcelona franquista. La novela, ganadora del primer premio Nadal en 1944, narrada en clave pesimista reflejando la tristeza y el desaliento de Andrea, la protagonista. Las alusiones a la guerra también están presentes en el libro, pero sin analizar ni ideologías ni relaciones conflictivas entre vencedores ni vencidos. También es una denuncia a la miseria moral y material de la burguesía catalana tras la guerra civil. Un reflejo de la decadencia de las clases medias de la época. La falta de libertad de la mujer es un rasgo marcado en toda la novela. En contraste con la Barcelona revolucionaria, donde la mujer adquiere un papel más visible y de más protagonismo. Mercè Rodoreda (1908-1983) la Plaça del Diamant (1962) Como ya indicábamos más arriba Mercè Rodoreda es una de las escritoras del exilio. La Plaça del Diamant, escrita en catalán y traducida a múltiples idiomas, es considerada como una de las novelas más importante de la narrativa catalana de posguerra. Paralelamente a los cambios personales y psicológicos de la protagonista se dan los cambios de la Barcelona de la preguerra, guerra y posguerra. La Plaza del Diamante, título en castellano de la novela, está ambientada en el barrio barcelonés de Gracia. La historia de Colometa, es la historia de una mujer como tantas otras a la que la guerra civil le destrozó la vida y las esperanzas. La novela es una crónica admirable de la Barcelona de esos años, donde los personajes de la vida cotidiana de entonces tenían que intentar sobrevivir en un paisaje urbano desolador. La Barcelona contestataria durante el Franquismo Si alguno de los barrios y ambientes barceloneses ejercieron embrujo o atracción sobre los escritores de esa época, sin duda se trata del mal llamado Barrio Chino, decimos mal llamado porque nunca habitó chino alguno en él. 343 Hispanismo 2 0 0 6 El Barrio Chino se fue definiendo poco a poco como barrio proletario desde el siglo XIX. Pero fue sobre todo a partir de la Exposición Universal de 1929, en la que Barcelona se proyectó al mundo, cuando la visión más tópica del barrio se difundió y atrajo incluso a algunos escritores extranjeros. El resultado de todo ello es una original y variada literatura que tiene por escenario las calles del barrio. André Pieyre de Mandiargues (París 1909 – 1991) Al Margen (1967) La edición original del libro, en francés, se vendía bajo mano, a escondidas, en solo dos o tres librerías de Barcelona. El libro no se tradujo al español hasta después de la muerte de Franco. Un escenario que, para ser más precisos, era la parte baja de la ciudad, colindante con el mar, entonces prácticamente invisible: el Barrio Chino, el territorio de la prostitución, una zona donde el autor, como buen surrealista, identificaba con las partes vergonzosas del hombre o de la mujer. Mandiargues, llega a Barcelona en los años sesenta y hace suya una ciudad hoy ya casi desaparecida por completo. El autor hace transitar a Sigismond Pons,- protagonista de la novela por las calles de la Barcelona canalla (hermosa y prostibularia) - con su desasosiego y su deseo a cuestas. La Barcelona proletaria / Juan Marsé (1933) Ronda del Guinardó (1984) En las obras de Marsé, casi todas inscritas en el escenario de su barrio natal, el barrio del Guinardó, donde nació y pasó su infancia. Casi todas sus novelas relatan hechos vividos en época de posguerra. También retrata la burguesía catalana de los años cincuenta y sesenta confrontada con los inmigrantes de otras zonas de España. Aparecen términos como el de “xarnego”, (mezcla de padres catalanes y castellanos, base social de la ciudad desde hace décadas). La emigración de otras partes de España fue un fenómeno muy importante durante esas décadas. La Barcelona de la transición/M.Vázquez Montalbán (1939-2003) El pianista (1985) Manuel Vázquez Montalbán tenía una gran facilidad para escribir bien y deprisa. Era capaz de escribir varios libros a la vez. El resultado es una obra amplia y variada, traducida a varios idiomas, que abarcó desde la novela policíaca al ensayo político, de la poesía a la gastronomía y del libro periodístico puro y duro al humor inteligente. El detective Carvalho es sin duda su personaje más popular, pero novelas como Galíndez o El pianista, de la que hablaremos más abajo, son obras maestras. 344 Volume 4 | Literatura Espanhola Numerosas son las obras de este autor que reflejan los sucesos ocurridos en el periodo de la transición política española. También sus novelas reflejan el clima de creciente libertad que se vivía en las calles. El pianista es una novela en tres tiempos: la Barcelona de los años 80, la de la posguerra y el Paris de poco antes de que estallara la guerra civil española. La novela empieza con un grupo de antiguos miembros de PSUC (Partido Socialista Unificado catalán) desencantados, trabajadores y nuevos socialdemócratas que recorren una noche las Ramblas de Barcelona entre la nostalgia de sus épocas universitaria y combativa. Sus libros también hacen de guía de la buena gastronomía de la ciudad. También plasmó y criticó en sus libros los cambios provocados en la capital catalana tras los juegos olímpicos del 92 y todo lo que ello supuso, criticó los cambios que, según él, han hecho de la ciudad una ciudad de diseño, pero menos humana. Las novelas de Montalbán funcionan como un diario de bitácoras donde se va anotando los cambios que se van produciendo en la ciudad. El autor es particularmente crítico con la transformación que ha ido sufriendo el barrio chino desde las célebres olimpiadas. La Barcelona posmoderna o la de la postransición Muchos son los que ha escrito describiendo este periodo: Montalbán, Maruja Torres, Mendoza, Roberto Bolaño, Empar Moliner… Referencias Bibliográfícas CERVANTES SAAVEDRA, M. Don Quijote de la Mancha, Barcelona, Alfaguara, Ed. Francisco Rico, 2005. AINAUD DE LASARTE, J. Història de les històries de Barcelona, M. B.MM Barcelona, Virus Editorial, 2004. FALCONES DE SIERRA, I. La catedral del mar Barcelona, Grijalbo, 2006. GENET, J. Diario de un ladrón, Barcelona, Seix-Barral, 1994. LAFORET, C. Nada, Barcelona, Ediciones Destino, Ed. Julio 2003. MANDIARGUES, P. Al margen, Áltera , Barcelona. 1996. MARSÉ, J. Ronda del Guinardó Barcelona, Plaza & Jané, Ed. abril 1998. MENDOZA, E. La ciudad de los Prodigios, Barcelona, Seix Barral, Ed. septiembre 2003. ORWELL, G. Orwell en España :Homenaje a Cataluña y otros escritos sobre la guerra civil española, Barcelona, Tusquets, junio 2003. 345 Hispanismo 2 0 0 6 Reflexiones abiertas desde las otras barcelonas , Unió Temporal d’Escribes (UTE), Número 65 hivern 2005. RODOREDA, M. La Plaza del Diamante, Barcelona, Ed. Edhasa, Ed. enero 2005. VÁZQUEZ MONTALBÁN, M. Un imaginario literario, El País, Cataluña, 15/3/2002. VÁZQUEZ MONTALBÁN, M. El pianista, Barcelona, Seix Barral, 1985. http://www.el-mundo.es/larevista/num85/textos/viaje.html (1 de 3)28/06/2006 12:22:34 http://www.vespito.net/mvm/restcarv.html (1 de 17)26/05/2006 3:13:59 http://www.inicia.es/de/diegoreina/cine/moliner_en_barcelona_chilaba. htm(1 de 11)04/07/2006 8:51:09 346 Volume 4 | Literatura Espanhola Melancolia e crise do sujeito na modernidade (Estudo de La voluntad e Triste fim de Policarpo Quaresma) Cristina Bongestab (UFRJ) O objetivo deste trabalho é fazer uma análise sobre a melancolia nos romances La voluntad (1902), de José Martínez Ruiz, e em Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto. O comportamento melancólico dos personagens Antonio Azorín e Policarpo Quaresma, protagonistas das respectivas obras mencionadas, escritas por dois autores do mesmo período (princípio do século XX), permite-nos aprofundar a relação entre essa doença e a expressão na literatura da crise da modernidade. Tentamos visualizar, nesta análise comparativa, a particular matriz ibérica da melancolia. Desde o nascimento do romance moderno, com Dom Quixote de La Mancha, de Cervantes, o herói já não é mais uma figura exemplar: um dos seus traços principais é ter o fracasso como destino. Derrota e comportamento melancólico nos levam a pensar em uma crise do sujeito que vem se manifestando na cultura desde a formação das sociedades modernas. Para abordar a melancolia usamos como referencial teórico, além da teoria freudiana, os estudos mais específicos sobre melancolia e literatura de Moacyr Scliar, Roger Bartra e Julio Premat Miguel de Cervantes inaugurou um novo tipo de herói. O protagonista, Dom Quixote, representa um herói fracassado. Ao narrar o confronto heróimundo e ao desconstruir o mundo das lendas medievais, o romance de Cervantes apresenta características que tipificam a crise do sujeito – crise que permeia a cultura desde a formação das sociedades modernas. A história de Dom Quixote gira em torno da melancolia, chamada de depressão na atualidade, e alguns estudos apontam Dom Quixote como maníaco-depressivo. Miguel Ahuir Denia, em O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha também era maníaco-depressivo, 2005, identifica o fato de Dom Quixote recobrar o juízo e se deprimir com tudo o que fez, como forte indício de transtorno bipolar de humor. Através da análise de La voluntad e Triste fim de Policarpo Quaresma percebemos que a melancolia e o confronto herói-mundo reaparecem no período do fim do século XIX e no princípio do século XX, e são parte do mesmo sintoma de insatisfação humana diante da modernidade. Se por um lado a modernidade abre possibilidades antes impensadas, também traz insegurança, causando a tristeza e a melancolia dos personagens Antonio Azorín e Policarpo Quaresma. Antonio Azorín, o protagonista de La voluntad, revela-se um personagem melancólico desde a primeira parte do romance. Dentre os muitos li347 Hispanismo 2 0 0 6 vros lidos por ele, encontram-se os de Schopenhauer, filósofo que herdou do seu pai a disposição para melancolia, como ressaltam suas biografias. Em linhas gerais, Azorín parece um indolente acomodado, cujos conflitos existenciais são fruto de uma sublimação cultural, em que a vida e a ação foram suplantadas pela meditação sobre os muitos livros que leu. A melancolia, que também pode estar associada ao mal do amor, pode ser resultado de uma paixão não correspondida, ou da busca de um ideal amoroso impossível de atingir. Ambos casos levam ao desânimo, falta de apetite, tristeza, desconfiança e dúvida. A segunda hipótese parece mais apropriada no caso de Azorín, pois ele é apaixonado por Justina, sobrinha de Puche, que se opõe ao casamento dos dois. Justina também gosta de Azorín, mas, influenciada pelo tio, vai para o convento e se torna noviça. A vida no convento, porém, a deixa atormentada. Sente uma grande tristeza e desconsolo, e acaba morrendo. Depois da morte de Justina, Azorín deixa o marasmo da vida provinciana de Yecla e se muda para a efervescente cidade de Madrid, onde passa dez anos atuando como jornalista revolucionário. Sozinho em Madrid, seu pessimismo e melancolia se consolidam. A tristeza, a morte e a dor aparecem e reaparecem. Pensa na dança inútil de vivos e mortos. Y ya en Madrid, rendido anonadado, postrado de la emoción tremenda de esta pesadilla de la Lujuria, el Dolor y la Muerte Azorín piensa un momento en la dolorosa, inútil y estúpida evolución de los mundos hacia la Nada [...] (AZORÍN, 1996, p. 168) Azorín, cada vez mais melancólico, pensa na dor de viver: Podrán llegar los hombres al más alto grado de bienestar, “[…] pero no serán felices: porque el tiempo, que se lleva la juventud y la belleza, trae a nosotros la añoranza melancólica […] (Ibid., p. 193). Cansado de Madrid, Azorín volta a morar em Yecla, onde cresce seu desconcerto, e suas desorientações e perplexidades se tornam mais graves. Seus dias são de eterna reflexão. Perde a fé nos livros e chega à conclusão que todos os autores dizem a mesma coisa, que de Aristóteles a Kant ninguém disse nada novo. Ao refletir sobre os livros que leu, afirma não ser mais dominado por eles: “[...] ahora domino a los libros y no ellos a mí.[...]”.(ibid.,p.221). Instala-se no convento de Santa Ana e não faz mais nada, a não ser escrever de vez em quando e refletir sobre sua vida: “[…] en mí hay dos hombres. Hay el hombre-voluntad, casi muerto, […] Hay, 348 Volume 4 | Literatura Espanhola aparte de este, el segundo hombre, el hombre-reflexión, El que domina en mí, por desgracia, es el hombre-reflexión;[…]” (Ibid., p. 226). Nessa citação temos a descrição de Azorín como homem de altos e baixos. Algumas vezes, como define o autor, homem-vontade, outras, homem-reflexão, sendo que a segunda característica é a que predomina, fazendo de Azorín um homem que questiona a razão de viver: “[...] ¿para qué la voluntad? ¿para qué este afán de que nos hace febril la vida? ¿Por qué ha de estar la felicidad en la Acción y no en el Reposo?” (ibid., p. 226) O caminho final de Azorín é a aniquilação. Casa-se com Iluminada, e com o casamento sucumbe e se abandona: nada faz, nada escreve, nada lê; enfim, vive num marasmo total. É dominado pela esposa, que cuida dos negócios da família.”[...]La mujer es la que dispone de todo, y da cuentas, toma cuentas, hace, en fin, lo que viene en mientes. Azorín deja hacer, y vive, vive como una cosa[...]”(AZORÍN, 1996, p.244) Em relação à obra Triste fim de Policarpo Quaresma, de acordo com Moacyr Scliar, 2003, Lima Barreto escreve um romance em que manifestações melancólicas e maníacas se alternam. Policarpo Quaresma, aponta Scliar, evolui através de ciclos. São ciclos de entusiasmo que se alternam com ciclos de tristeza, desânimo e depressão. Quaresma é um homem solitário que trabalha no Arsenal de Guerra. A leitura sobre as coisas da pátria era mania de Policarpo. Na sua biblioteca só havia livros sobre o Brasil: “Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política.[...]” (BARRETO, 1999, p. 18) O patriotismo leva-o a mandar um requerimento para a Câmara de Deputados. Nesse requerimento Quaresma pedia que o Congresso Nacional decretasse o tupi-guarani como língua oficial do Brasil. Publicado em vários jornais, foi alvo de comentários jocosos, fato que aborrecia profundamente o major, deixando-o triste e decepcionado. Sua reação, nesse primeiro momento, já mostra a alternância entre entusiasmo e melancolia: “Tudo isso irritava profundamente Quaresma. Vivendo há trinta anos quase só, sem se chocar com o mundo, adquirira uma sensibilidade muito viva e era capaz de sofrer profundamente com a menor cousa.” (Ibid., p. 59) Mais grave, no entanto, será o próximo episódio em que Quaresma, distraído, traduz um ofício para a língua indígena. Como punição, Quaresma é suspenso e internado em um hospício. Fracassa o primeiro projeto de Quaresma, fato que o deixa sem energia e reflexivo: “A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam a matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e importância[...]”(ibid., p. 72) 349 Hispanismo 2 0 0 6 Depois de passar seis meses no hospício, o estado melancólico de Quaresma se agrava: Saiu o major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas as cousas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais depressora e pungente..... Quaresma saiu envolvido, penetrado da tristeza do manicômio. [...] (BARRETO, 1999, p. 88) Ai sair do hospício, Quaresma se muda para o interior e, novamente entusiasmado, está resolvido a cultivar a terra.. “[...]Não lhe voltou a alegria que jamais teve, mas a taciturnidade foi-se como o abatimento moral, e veio-lhe a atividade mental cerebrina[...]”.(Ibid., p. 89) Percebemos novamente a alternância de humores. Ao retomar sua energia, Quaresma planeja a sua vida agrícola com exatidão e meticulosidade que punha em todos os seus projetos. Porém, ao resolver cultivar a terra, Quaresma se depara com uma realidade até então desconhecida: o ataque das saúvas: “[...] naquela manhã, quando contemplou o seu milharal, foi como se lhe tirassem a alma, e ficou sem ação e as lágrimas lhe vieram aos olhos.” (Ibid., p. 136) Policarpo se decepciona mais uma vez. O sonho da terra fértil e da agricultura fácil e rendosa se esvai. Decepcionado com o sonho da terra fértil, Quaresma volta ao Rio para incorporar-se às tropas que defendem o governo na Revolta da Armada. Durante a guerra, o desespero toma conta de Policarpo. Agora pensa na vida como coisa absurda e ilógica. As reflexões sobre sua vida se tornam cada vez mais pessimistas: [...] Tudo que nele pus de pensamento não foi atingido;[...] e o sofrimento que vou sofrer toda a vida foram empregados, foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol de uma tolice política qualquer... (ibid., p. 215) Policarpo se indaga sobre o verdadeiro sossego: [...] onde, na terra estava o verdadeiro sossego, onde se poderia encontrar esse repouso de alma e corpo, pelo qual tanto ansiava, depois dos sacolejamentos por que vinha passando – onde? (BARRETO, 1999, p. 216) Sentia uma sensação de fatiga, não física, mas moral e intelectual: 350 Volume 4 | Literatura Espanhola Tinha vontade de não mais pensar, de não mais amar; queria, contudo, viver, por prazer físico, pela sensação material pura e simples de viver. Assim convalesceu longamente, demoradamente, melancolicamente [...] (ibid., p.216) A Revolta acaba e Quaresma é preso. Melancólico, pensa como pôde empregar sua vida, gastar seu tempo, envelhecer atrás de tal quimera. Ressente-se de não ter enxergado a realidade e reflete tristemente sobre o que deixou para trás na vida para dedicar-se à pátria. Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira! (Ibid., p. 228) A idéia da morte era fixa. Havia gastado a mocidade e a virilidade estudando a pátria, por amá-la, por muito querê-la, e agora que estava na velhice, como seria recompensado - com a morte?: “Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha feito ele da sua vida?” (Ibid., p. 226) Sua alma está inquieta. O entusiasmo dá lugar ao desespero, ao refletir sobre todos os fracassos da sua vida. A solidão, que o acompanhou por toda vida, o faz chorar agora perto da morte: “Fora bom, fora generoso, fora honesto, fora virtuoso – ele que fora tudo isso, ia para a cova sem acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada...[...]” (Ibid., p. 228). Policarpo Quaresma, ou “Quixote brasileiro”, como é considerado por vários autores, é uma figura paradigmática. Na sua trajetória faz projetos mirabolantes, julga-se capaz de salvar o país. Diante das dificuldades, sente-se descrente de tudo. Enfim, não consegue manter a energia para levar seus projetos até o fim. Lima Barreto, segundo Moacyr Scliar (2003), inscreve-se em uma “linha melancólica”, que faz uma análise crítica e contundente de uma modernidade que emerge distorcida. Policarpo Quaresma, funcionário público, se dedica intensamente à leitura. Essa associação entre intelectualidade e melancolia está inscrita na história da melancolia. Em Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil, 2003, Scliar cita o seguinte trecho de um texto bíblico: “de livros não há fim; o estudo demasiado enfada a carne” (SCLIAR, 2003, p. 50) 351 Hispanismo 2 0 0 6 A análise dos personagens mostra, inicialmente, Dom Quixote recobrando a razão e se deprimindo com todas as suas atitudes. Em seguida, verificamos que Antonio Azorín segue o caminho da aniquilação, esquecendo-se dos seus ideais e casando-se com Iluminada. Por último, ao analisarmos Policarpo Quaresma, identificamos um personagem que, melancólico, ao se ver sem forças para continuar, pensa como pôde gastar seu tempo e envelhecer deixando sua vida para trás para dedicar-se à pátria. Tomando os estudos de Sigmund Freud como referência, podemos pensar numa definição dos três personagens como maníaco-depressivos. Eles possuem surtos de entusiasmo, que se alternam com ciclos de tristeza, desânimo e melancolia, ou seja, depressão. Dom Quixote, Antonio Azorín e Policarpo Quaresma são personagens solitários e aficionados por leitura. Essa característica, comum aos três personagens, está vinculada ao estado de ânimo deles. Em linhas gerais, podemos dizer que Dom Quixote é testemunha da crise do sujeito do século XVII, enquanto Azorín e Policarpo são testemunhas da crise do sujeito do princípio do século XX. Referências Bibliográficas AZORÍN, Antonio La Voluntad. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, S.L, 1996. BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: RECORD, 1999. BETO, Frei. A razão crítica de Cervantes através da loucura de Dom Quixote. Disponível em: www.alia2.net/article5255.html. Acesso em: 04 de jun. 2005. BARTRA, Roger. El mito de la melancolía: literatura y ciencia en el siglo de oro. Disponível em: www.herreros.com.ar/melanco/bartra.htm. Acesso em: 22 de jul. 2004. CÁRCAMO, Silvia Inês. Travessias na modernidade: a propósito dos deslocamentos de discursos e sujeito. Rio de Janeiro: [s.n], Faculdade de Letras – UFRJ, 2004. CARNERO, Guillermo. Camino hacia la aniquilación. Disponível em: www. elmundo.es/2001/11/05/cultura1068425.html. Acesso em: 20 de jan. 2004. 352 Volume 4 | Literatura Espanhola COUTINHO, Eduardo F. Literatura comparada na América Latina: ensaios. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. DENIA, Miguel Ahuir. O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha também era maníaco depressivo. Disponível em: www.angelfire.com/ak3/ transtornosdohumor/texto1.html. Acesso em: 22 de jun. 2005. FREUD, Sigmund, 1856/1939 (1992) Sigmund Freud: obras psicológicas. Antologia organizada e comentada por Peeter Gay; comentários traduzidos por Arthur Netrovsky, RJ: Imago Ed. _____. “Escritores criativos e devaneios”, In Edição standart brasileira das obras completas de Sigmund Freud, trad. Direção Geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Ed., vol. IX. _____. “Chistes e sua relação com o inconsciente”, in ºc., vol. VIII. _____. “Luto e melancolia” (1917[1915], vol.XIV, 275-293. PREMAT, Julio. La dicha de saturno: escritura y melancolía en la obra de Juan José Saer. Rosario: Beatriz Viterbo, 2002. SAER, Juan José. A moral do fracasso de Dom Quixote. Disponível em: www.revan.com.br/catalogo/0253g.htm. Acesso em: 23 de ago. 2004. SCLIAR, Moacyr. Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. _____.Pequena história da melancolia brasileira. Folha de São Paulo, São Paulo,17 de jun. de 2001.Disponível em: www.cefetsp.br/edu/eso/melancoliabrasileirascliar.html. Acesso em: 06 de jan. 2004. _____. O caso de Dom Quixote. Disponível em: www2.uol.com.br/vivermente/editorial_9.html. Acesso em: 05 de jun. 2005. 353 Hispanismo 2 0 0 6 Un irlandés en la corte de los borbones. El ministro de estado d. Ricardo Wall Diego Téllez Alarcia (Universidad de La Rioja) Esta comunicación es un resumen de los resultados alcanzados en la investigación que recientemente acabo de finalizar en forma de lectura de tesis doctoral sobre el ministro D. Ricardo Wall (TÉLLEZ, 2006). Las conclusiones de este estudio pueden dividirse en dos grupos: biográficas y generales. Biográficas: se ha esclarecido así el origen remoto familiar (Normandía, invasiones normandas de las Islas Británicas, posterior emigración a Irlanda), el origen próximo del personaje (David Wale, Kilmallock), muchos de sus lazos familiares (Baltasar, Patricio y Eduardo Wall, la marquesa de Méziéres, la princesa de Montaubán) y las circunstancias del exilio en Francia de sus padres (Matías Wall, oficial jacobita en el Regimiento de Fitz-James). Otro tanto puede indicarse de su nacimiento en Francia (5 de noviembre de 1694, en Nantes, bautizado en la Iglesia de San Nicolás) y de sus primeros pasos en este país (Saint Germain-en-Laye, paje de la duquesa de Vendôme). Finalmente, dentro de este primer capítulo biográfico, también se ha arrojado luz sobre el contexto y las causas de su paso a España (fechas exactas, entrada en el cuerpo de guardiamarinas gracias a una recomendación para Alberoni). A este conocimiento más detallado de los primeros años del irlandés, se añade una precisión en todo lo vinculado a su cursus honorum, sea militar (campañas en las que participó, fechas de los ascensos, patrocinio y protección recibidas), sea diplomático (puestos desempeñados, tareas encomendadas), sea político (nombramientos). Otro tanto cabe decir de los méritos de tipo “social” (órdenes de caballería, encomiendas). El análisis global de estas variables nos acercan a los mecanismos de ascenso social empleados por el irlandés. En su caso el patrocinio se convierte en la clave del proceso. En primer instancia de un patrocinio vinculado al origen geográfico y, por lo tanto, a la red de solidaridad jacobita establecida en la corte española. De ahí el apoyo de hombres como el duque de Liria o los hermanos Keith. En segunda instancia se tratará de un vínculo mucho más personal: la amistad con el duque de Huéscar (futuro duque de Alba). Eso sí sin desligarse del primero. También adquiere una mayor relevancia el periodo que va entre la salida del ministerio del irlandés y su muerte. Las labores que desempeña entonces en calidad de gobernador del Real Sitio del Soto de Roma, en Granada, nos aproximan a una vertiente completamente distinta del político, en una escala inferior a la de las grandes conjuras cortesanas y la 354 Volume 4 | Literatura Espanhola política internacional, haciéndolo interaccionar con los poderes fácticos locales. Incluso su fallecimiento, con el pleito por sus bienes establecido entre su confesar y su primo D. Eduardo Wall, nos ofrece la opción de comprobar hasta qué punto este asunto levantaba el interés de los contemporáneos y motivó una legislación ex professo para evitar los abusos que los confesores podían cometer sobre las delicadas conciencias de los moribundos. Su personalidad también ocupa un capítulo, en el que se desglosan algunos de sus parámetros principales. Desfilan en esas páginas rasgos como su versatilidad y su pragmatismo, pero también su propensión a las “diversiones”, su don de gentes y su capacidad. Se presta igualmente atención a sus sentimientos de “nación”, que ocupan un puesto de honor. Así mismo se repasa el giro piadoso en los últimos años de retiro. Generales: la investigación se ha extendido en buena lógica a todo el entramado político y cortesano en el que se apoyó el irlandés, bien para su ascenso al ministerio, bien para su mantenimiento al frente del mismo en los años sucesivos. La dialéctica del enfrentamiento entre los distintos grupos políticos y cortesanos es uno de los temas más apasionantes y sobre los que más luz ha arrojado este trabajo. El papel protagonista de Wall en hitos como la exoneración de Ensenada ha quedado fuera de duda. Pero no sólo eso. El propio proceso de la caída del marqués, ha sido extraordinariamente clarificado gracias al hallazgo y estudio de documentos novedosos como las órdenes de Ensenada, las copias que poseía Keene, con las que coaccionó a los ministros, o la carta que el embajador portugués, Ponte de Lima, dirigió ya en 1753 a los reyes denunciando al secretario. El posterior intento de consolidación del nuevo grupo emergente ha ocupado también numerosas páginas y ha explicado por qué, en gran medida, el segundo equipo de gobierno de Fernando VI, se halló tan condicionado políticamente. En este sentido se ha revalorizado el papel de Huéscar como motor de los cambios y figura hegemónica hasta 1757, y de Eslava y de Campo del Villar como polos de oposición. Otro tanto se ha hecho con la vitalidad del movimiento ensenadista, apoyado por el embajador francés Ossun y por otros líderes cortesanos, tras el levantamiento del exilio del marqués tras el advenimiento de Carlos III. En esta línea se ha prestado más atención al papel de las conjuras vaticanas contra Wall, al calor de la polémica desatada por la aprobación de la Pragmática Sanción. Su salida del ministerio en 1763 debe ser entroncada con estas intrigas, pero no exclusivamente, como se explica pormenorizadamente de un análisis de su personalidad y de sus graves problemas de salud a partir de 1757, año en el que ya hace una tentativa de dimisión. 355 Hispanismo 2 0 0 6 A pesar de esta renuncia, los 9 años al frente de la administración borbónica dejaron una huella profunda que había sido minusvalorada hasta la actualidad. Wall lega una nueva generación de políticos que monopolizarán el resto del reinado. Su cábala se compone por un conjunto heterogéneo de grupos de interés: el que hereda de sus protectores Huéscar y Carvajal, (Masones de Lima, Peralada, Clemente de Aróstegui, Valparaíso o Abreu), el naciente partido aragonés de Aranda, Ricla y Fuentes (GONZÁLEZ, 2005), los manteístas como Campomanes o Roda (TÉLLEZ, 2003a), el grupo irlandés de los O’Reilly, Ward, Lacy o Mahony (TÉLLEZ, 2003b), italianos como Masserano o Grimaldi y flamencos como Bournonville, Sterllinguerf o Craywinckel, consejeros como Cantos o Ric, covachuelistas como Mollinedo, Llano o Auzmendi e intelectuales como Bowles, Clavijo, Mutis, Bails o Pérez Bayer. Por otro, los ejes de su pensamiento político, la neutralidad y el regalismo, han sido despojados de los tintes negativos de las dos etiquetas que, hasta la fecha, estereotipaban su esencia. Se ha demostrado que la supuesta anglofilia y el presunto antijesuitismo del ministro no fueron más que armas políticas empleadas por sus enemigos políticos para desprestigiarle e intentar apartarle del poder. Eso sí, armas que han suministrado conceptos persistentes a la historiografía (TÉLLEZ, 2005). Al calor de esta desmitificación, se ha puesto en tela de juicio la negativa visión que se ofrece habitualmente de su ministerio, como un tiempo de entreguismo y política sin rumbo. En lo respectivo a la política exterior, se ha evidenciado que la neutralidad no fue un concepto inmóvil sino que evolucionó en el tiempo. La España de Wall basculó entre diversas posturas frente a la Guerra de los Siete Años y el propio irlandés barajó la opción de participar en el conflicto a la altura de 1757, cuando las insolencias inglesas se hacían más insoportables. La enfermedad de los reyes pospuso sine die el cambio de orientación. Sin embargo, el propio ministro lo lideraría algunos años más tarde –y no contra su voluntad, como ha querido hacerse ver- al firmar el Tercer Pacto de Familia, cuyo fracaso debe ser relativizado para el resto del reinado. Esto no ha significado, desde luego, que se haya mitificado en positivo la actuación ministerial del irlandés. A algunos éxitos como la firma de la convención con Dinamarca en 1757 o la “segunda neutralización” de Italia con el matrimonio entre la infanta María Luisa y el archiduque Leopoldo y la solución de la cuestión del Placentino, se han destacado los fracasos tanto de la neutralidad como sistema de aproximación a Inglaterra como del Tratado de Límites, anulado por la Convención del Pardo, y las lógicas consecuencias de ambas cuestiones en el imperio ultramarino (asentamientos ingleses en 356 Volume 4 | Literatura Espanhola Bélice, portugueses en la Colonia del Sacramento). En cualquier caso si se ha propuesto una cierta revalorización del personaje teniendo en cuenta éstas y otras cuestiones de su gestión al frente de la Primera Secretaría de Estado y, también de la secretaría de Guerra. Porque lo cierto es que durante su ministerio se producen reformas institucionales importantes en ambas, como la conexión de la carrera diplomática con las covachuelas de la secretaría de Estado, la preparación del Reglamento Consular, el comienzo del debate sobre la libertad de comercio con América, las reformas en la Superintendencia de Correos o en el ejército (reglamentos, institución del Monte Pío Militar, de la Academia de Segovia, preparación de las Reales Ordenanzas de 1768). Ello siempre con el oportuno contrapunto negativo: venta de grados militares, vuelta al sistema de flotas y galeones, fortalecimiento de la censura con la absorción de la Gaceta de Madrid y el Mercurio por la secretaría, etc. En esa línea de evaluación más objetiva se apunta en el haber del ministro su papel estelar en la compleja coyuntura del “Año sin Rey”, en la cual ejerce un rol protagonista como catalizador en el advenimiento de Carlos III. Pero en su debe el no haber sido capaz de sacar adelante reformas más ambiciosas, como la reforma del Consejo de Guerra o la de la Inquisición (GÓMEZ URDÁÑEZ, 2001). Finalmente cabe distinguir una serie de contribuciones que el estudio biográfico de la figura de D. Ricardo Wall ha aportado al debate general sobre el s. XVIII español. El repaso a la vida política del irlandés ofrece pistas acerca sobre dónde, cómo y quiénes ejercieron el poder durante esta época. La corte se perfila como el escenario clave, entendiendo por tal no sólo el grupo de servidores más próximos del rey, los cortesanos, sino también los ministros, las covachuelas e incluso los cargos más altos de la administración militar y regional. El vértice sobre el que gira este espacio más social que físico es la “Real Gana”, un arcano que sólo puede venerarse, jamás cuestionarse. La influencia en la voluntad del rey es el gran dividendo que todo individuo busca y los canales para poder conseguirlo múltiples. Dentro de ese complejo esquema, los secretarios de Estado se convierten en piezas claves del sistema al controlar algunos de los flujos de información que llegan al soberano, instituyéndose en muchas ocasiones en los grandes monopolistas de esa influencia sobre el rey. Por ello se habla de nuevos “validos” o de “despotismo ministerial” por los rivales políticos. Las luchas políticas y las intrigas cortesanas se consolidan lógicamente como una forma de lucha social. En este sentido la aportación que la biografía de Wall hace al debate sobre el “absolutismo / despotismo ilustrado” como categoría historio357 Hispanismo 2 0 0 6 gráfica confirma una postura equidistante tanto de los más absolutos detractores del término como de los más apasionados defensores del mismo. Que el absolutismo, como sistema político, se disfrazó con elementos procedentes de la Ilustración parece fuera de duda y el propio Wall es un perfecto ejemplo. Sin embargo sus motivaciones eran las del Estado. Wall era capaz, como político que era, de medidas recalcitrantes como las aplicadas al padre Burriel en toda la cuestión referente a la comisión de Archivos como del patrocinio a hombres como D. Francisco Manuel de Mena o a iniciativas de corte tan ilustrado como El Pensador de Clavijo y Fajardo. Ello no obsta para que se pueda reconocer la existencia de un cambio cualitativo significativo con respecto a épocas anteriores que justifique la acuñación de una nueva categoría historiográfica. En este sentido el trabajo también ahonda en una cuestión latente desde hace algunos años en la historiografía sobre el periodo: la continuidad entre los reinados de Fernando VI y Carlos III. La confirmación se hace manifiesta en el caso de Wall, que se convierte en el gozne que une ambos periodos, siendo protagonista indiscutible durante la dura transición que se produce entre éstos. Y es que gran parte de las reformas que habitualmente han pasado por ser estandartes del “reformismo borbónico” de época carolina, son planteadas en el reinado de su predecesor. En el caso que nos ocupa hay ejemplo notables como el debate sobre la libertad de comercio. Por si fuera poco, Wall se convierte en el primer eslabón de esa cadena de medidas implementadas por Carlos III y sus ministros. En otro orden de cosas, la versatilidad del irlandés y su larga poco homogénea experiencia profesional nos da la opción de diseccionar el funcionamiento de diversas instituciones españolas del XVIII, como el ejército, la diplomacia o las secretarías. El ejército se nos muestra bajo este prisma como una institución notablemente compleja, en la que se dan cita elementos retardatarios, pero también intentos de reformas novedosas y, sobre todo, en el que se nos ofrecen nuevos roles como el de servir como instrumento de integración social de los extranjeros, como mecanismo de permeabilidad social o como vivero para el mundo diplomático y político. Otro tanto sucede con la diplomacia, cuyos cambios más importantes a lo largo del XVIII, vienen de la mano de las reformas de Wall (cambio en la extracción social y en el origen geográfico de los embajadores, establecimiento del cursus honorum diplomático, ampliación de los horizontes a nuevos escenarios). Íntimamente relacionado con esta esfera institucional surgen otras reflexiones en las cuales debería profundizarse en adelante. Por ejemplo el papel de los irlandeses y, por añadido, de los extranjeros, en la sociedad hispana durante la Edad Moderna. 358 Volume 4 | Literatura Espanhola Todo lo apuntado hasta aquí contribuye decisivamente a modificar la visión que hasta fechas recientes se tenía de la España de la época, mostrando la vitalidad de un territorio en expansión, cuya élite política se hace consciente de la necesidad de cambiar la idea de una España Imperial hegemónica en el escenario internacional por una España Discreta que concentre sus esfuerzos en la recuperación interna del país y en el cuidado de las colonias si se quiere recuperar algún protagonismo en el exterior. Una mirada hacia uno mismo que fuese propuesta por los arbitristas y cuyo eco quedará mitigado al final de la centuria con el cataclismo que supondrá en todos los órdenes el estallido de la Revolución Francesa. Rfererencias Bibliográficas GÓMEZ URDÁÑEZ, José Luis y TÉLLEZ, Diego; El poder en Europa y América: Mitos, tópicos y realidades, “1759. El “Año sin rey y con rey”: la naturaleza del poder al descubierto” Bilbao, 2001, pp. 95109. GONZÁLEZ, Cristina, TARACHA, César y TÉLLEZ, Diego; Cartas desde Varsovia, Lublin, 2005. TÉLLEZ, Diego; Campomanes doscientos años después, “El joven Campomanes y el ministro Wall (1754-63)”, Oviedo, 2003a, pp. 417431. ----- Los Extranjeros en la España Moderna Actas del I Coloquio Internacional, “El grupo irlandés bajo el ministerio Wall (1754-63)”, Málaga, 2003b, pp. 737-750. ----- El Equilibrio de los Imperios: de Utrecht a Trafalgar, “La neutralidad española durante el reinado de Fernando VI. ¿‘Vigilante y armada’ o ‘inexplicable y suicida’?”, Madrid, 2005, pp. 191-206. ----- Ricardo Wall. El ministro olvidado, Tesis doctoral, Logroño, 2006. 359 Hispanismo 2 0 0 6 Tras las huellas de la Leyenda Negra: la imagen de lo hispano en La Misión de Roland Joffé Diego Téllez Alarcia (Universidad de La Rioja) El estudio de la imagen de España en el extranjero se puso de moda a partir de la obra de Julián Juderías, La Leyenda Negra, título que supuso el nacimiento de una categoría historiográfica cuyo éxito rutilante ha perdurado hasta nuestros días con notable vitalidad. Juderías, un intérprete de lenguas del Ministerio de Estado y colaborador del Instituto de Reformas Sociales, ganaba con esta obra un concurso literario celebrado en la capital madrileña en 1913 y obtenía como consecuencia directa de su publicación, el nombramiento como académico de la Historia en 1918, inaugurando una generación de intelectuales preocupada por el denominado «problema de España» (JUDERÍAS, 1914). Ricardo García Cárcel desentrañó con maestría algunos de los secretos que rodean el nacimiento del concepto. Acertadamente indica que “pocos países como el nuestro han vivido, históricamente, tan agobiados por descifrar el laberíntico mundo de sus señas de identidad y por mirarse en el espejo narcisista, cual madrastra de Blancanieves, para conocer la opinión que de sí misma se tenía más allá de sus fronteras” (GARCÍA CÁRCEL, 1998, p. 14). Este narcisismo ha llegado en algunas épocas históricas a lo patológico y ha sido entendido por algunos autores como un auténtico complejo de inferioridad (LÓPEZ IBOR, 1951). Síntomas de esa paranoia se encuentran habitualmente. No extraña encontrar en algunos autores, auténticos esbozos de teorías de la conspiración universal contra España. Así, Areilza, en el prólogo que hace en 1954 a la obra de Juderías habla de la necesidad de “la rehabilitación del buen nombre de España en el mundo”, lo que todavía “representa una batalla cotidiana (...) contra fuerzas y poderes, cuya conjura universal tiene orígenes parecidísimos” (AREILZA, 1954). Sin embargo difícilmente puede aceptarse esa animadversión universal hacia España, del mismo modo que tampoco es asumible su antagónica, la “leyenda rosa”. En palabras de Gómez Centurión, no creer lo contrario sería “infantil y ridículo” (GÓMEZ CENTURIÓN, 1995, p. 203). En opinión de Chaunu, el problema se analiza en términos de obsesión: la obsesión de España por su imagen exterior, que ha hecho que “haya afectado a España más que su imagen exterior ha afectado a cualquier otro país”. Dicho de otro modo, la leyenda negra es “el reflejo de un reflejo”, la imagen de España en el extranjero tal y como España la ve (CHAUNU, 1964). 360 Volume 4 | Literatura Espanhola Tanto la verdadera imagen exterior como el reflejo percibido en la Península son elementos que han ido evolucionando a lo largo de los siglos. García Cárcel hace un repaso magistral al recorrido y a los factores que condicionan esa evolución: la hegemonía, la decadencia, las crisis, la Guerra Civil... Sin embargo no se desglosan tan diáfanamente los diversos canales que generan o trasmiten esa imagen: la prensa, la literatura, el arte... Es evidente que, centrándonos en el siglo XX, el desarrollo de los medios de comunicación incide directamente en esa evolución. Por su relevancia, el cine es uno de esos novedosos canales de formación de opinión pública (TÉLLEZ, 2006). Nos centramos en esta comunicación en un largometraje concreto: La Misión de Roland Joffé. La interpretación o la manipulación de unos hechos históricos recreados (expulsión de los jesuitas de las misiones guaraníes a mediados del s. XVIII) se contraponen a una intencionalidad, en este caso la reivindicación de la Teología de la Liberación con una metáfora histórica pertinente (TÉLLEZ, 2004). Es un clásico ejemplo de empleo consciente de la historia con fines reivindicativos. Pero aún podemos profundizar más en algunos otros aspectos importantes. Conscientes o no, en el filme aparecen imágenes y conceptos pertenecientes a la cosmovisión del director y de los guionistas. Esas categorías pueden ser desvinculadas unas de otras y analizadas por separado. Así, por ejemplo, la imagen que de lo hispano se da en el filme, puede ser perfectamente diseccionada a partir de los tópicos que se vierten en el largometraje. Lugares comunes, mitos, prejuicios que se dan cita en los fotogramas y que inciden inconscientemente en una opinión pública de carácter global, dada el amplio ámbito geográfico que abarca la distribución de una obra de estas características. Tópicos que aparecen profundamente influenciados por la Leyenda Negra. Así sucede a pesar de la práctica ausencia de España. Ni los protagonistas son españoles (los jesuitas no son identificados con ninguna nacionalidad. Uno de ellos incluso tiene nombre anglosajón, Rodrigo, su hermano y Carlota son criollos), ni el monarca español aparece por ningún lado. Tan sólo el gobernador Cabeza y los soldados pueden ser considerados estricto sensu, como españoles. Con todo, es posible encontrar en La Misión restos de la imagen que guionista y director pretenden ofrecer de lo español y, si se quiere, por mestizaje, de lo hispano. Las cualidades personales de los personajes son un buen ejemplo, tanto en el caso de Rodrigo como en el de Cabeza. Ambos comparten no pocos epítetos con los que tradicionalmente se venía identificando al “caballero español”. Orgullo, altivez y arrogancia forman un primer con361 Hispanismo 2 0 0 6 junto de ellos. Estas características quedan suficientemente puestas de manifiesto en el enfrentamiento que ambos protagonizan. El honor y la reputación, otro de los caballos de batalla hispanos por antonomasia queda también de manifiesto en el mismo incidente, cuando Rodrigo acusa a Cabeza de mentir, la peor ofensa que podía hacerse entre caballeros españoles y que exigía inmediata satisfacción: Mendoza: “¡Eso es mentira! ¡Eso es mentira!”. Cabeza: “No quiero ni puedo aceptar la ofensa de un fraile. Su hábito le protege”. Mendoza: “Mi hábito os protege a vos, Señor Cabeza”. Cabeza: “En nombre del Rey, cuya dignidad represento, exijo disculpas. Maldito sea, discúlpese. No pienso tolerarlo”. Mendoza se ve obligado “por orden de la santa obediencia” a pedir disculpas. Pero mantiene su dignidad pidiéndole disculpas por su insolencia a Su Eminencia, a la asamblea, a sus hermanos “y a ti también te pido perdón por haber insultado a Su Excelencia” (refiriéndose a un niño guaraní). El duelo entre los hermanos parte de ese mismo elemento: una pendencia por cuestión de honor. Rodrigo provoca a un viandante, siendo finalmente retado por su propio hermano, que se sacrifica, osadamente, sin miedo a morir (el arrojo, otra cualidad imputada a los españoles, sobre todo a los conquistadores): Rodrigo: “¿Os reís?” Viandante: “¿Por qué iba a reírme amigo?” Rodrigo: “Pero os habéis reído”. Felipe: “Rodrigo por favor”. Rodrigo: “¿De quién os reís?” Felipe: “¡Rodrigo déjalo!” Rodrigo: “¿De quién os reís?” Felipe: “Rodrigo discute conmigo”. Rodrigo comparte, por tanto, en la primera parte del largometraje otras características con Cabeza. La crueldad (otro leiv motif hispano) puede apreciarse en una de las primeras escenas, donde se reproduce descarnadamente la cacería de indios guaraníes para convertirlos en esclavitud. Rodrigo de hecho trabaja para Cabeza, a quien entrega, en una escena posterior, el botín de sus correrías. No podemos olvidar que esta visión del español como exterminador y esclavizador de indios se remonta a la polémica entre Las Casas y Ginés de Sepúlveda, ya en el s. 362 Volume 4 | Literatura Espanhola XVI, de la que nacería la Brevísima descripción de la destrucción de las Indias, obra del primero y una de las mayores fuentes de inspiración de la Leyenda Negra. De hecho, Cabeza afirma que los indios son animales y, por tanto, justifica su empleo como tales en las explotaciones coloniales: P. Altamirano: “Señor Cabeza, ¿cómo os referís a este niño como si fuera un animal?”. Cabeza: “A un loro se le puede enseñar a cantar, Eminencia”. P. A.: “Sí pero podría enseñársele a cantar de una forma tan melodiosa”. Cabeza: “Eminencia, ésta es una criatura de la selva. Un animal con voz humana, si fuera humano los animales se asustarían de sus vicios. Estas criaturas son letales. Y lascivas. Habría que sojuzgarlas con la espada y someterlas a trabajos con el látigo. Lo que dicen no son más que tonterías”. (...) P. Gabriel: “(...) Ellos no son de naturaleza animal. Son de naturaleza espiritual” Funcionario: “¿Espiritual? Matan a sus propias crías”. P. G.: “Eso es cierto. ¿Puedo contestar a ello? A cada hombre y a cada mujer se les permite tener un hijo. Si nace un tercero lo matan inmediatamente pero esto no es un rito animal. Es la necesidad de sobrevivir. Solo pueden correr llevando un niño cada uno. Y, ¿por qué corren? Para huir de nosotros. Huyen de la esclavitud”. No es éste el único pecado de Rodrigo. También en La Misión encontramos el tema de la muerte pasional ligada al carácter hispano. Se trata, una vez más, de la reedición de los estereotipos, en este caso románticos, de Carmen y de D. Juan. El conflicto adopta matices más dramáticos si cabe: los contendientes son dos hermanos enamorados de la misma mujer. No es la primera vez que se relaciona a España con Caín y, desde luego, la escena del duelo entre los hermanos, Rodrigo y Felipe, es muy explícita en este sentido. Sin embargo, Rodrigo obtiene la redención a través de su valentía. Incluso de su temeridad. Otros de los valores hispanos por antonomasia. Llega incluso a convertirse, junto con el Padre Gabriel, en un D. Quijote que defiende ciegamente contra gigantes fantasmagóricos (España, Portugal y el Papa, que deliberadamente no aparecen en el film) aquello que considera justo, las misiones, estando lógicamente abocado a la derrota. Desde una perspectiva mucho más prosaica y en el ámbito de lo estético, conviene fijarse en otras escenas para apreciar cómo perciben tanto guionista como director el abigarrado mundo de la cultura hispana. En las escenas relacionadas con Asunción, la capital paraguaya, encontramos 363 Hispanismo 2 0 0 6 una ingenua y simplista interpretación de las fiestas populares hispanas, así como de su carácter. Se trata de una mezcla de lo español y la americano, de un intento de mestizaje. La escena paradigmática reúne en la misma calle un desfile de Carnaval con una procesión religiosa al más puro estilo hispano. Encontramos en esta delirante reunión un paso viviente frente a la música provocativa, a los nazarenos con capirote frente al jolgorio generalizado. En cuanto al carácter la dicotomía entre alegría y tradición no podían faltar. La fiesta se prolonga hasta altas horas de la noche, entre bailes y diversiones, pero también se encuentran muestras paralelas de fervor y piedad. Para acabar de rematar la faena, una corrida de toros. Conclusiones A la luz de todos estos datos podemos corroborar lo que otras fuentes de información afirman con rotundidad: la imagen de España continua, también en el cine, contaminada por los tópicos y estereotipos heredados del pasado, fundamentalmente en tres etapas: la Leyenda Negra antiespañola de los ss. XVI y XVII, la Leyenda Amarilla Tardorromántica (ss. XVIII y XIX) y el impacto de la Guerra Civil. La Misión nos muestra cómo es percibida la imagen de España en el ámbito cinematográfico a mediados de la década de los 80, en un momento en el que España comienza a modificar lentamente algunos aspectos de dicha imagen, sobre todo en lo concerniente a la percepción política y económica del país, seriamente mejorada tras la Transición y la entrada en la Comunidad Económica Europea. Todavía tendría que venir el enorme esfuerzo de la campaña propagandística ligada a los actos del 92. Sin embargo, sería preciso el análisis de las manifestaciones culturales posteriores a esta fecha para comprobar el verdadero impacto de dicha campaña en un mundo tan lento en evolucionar como es el de la mentalidad popular. Referencias Bibliograficas AREILZA, J. M.; JUDERÍAS, J., La Leyenda Negra, “Prólogo”, Madrid, 1954. CHAUNU, Pierre; Revue de psichologie des peuples, “La Leyenda Negra antihispanique”, en, XIX, 1964, pp. 188-233. GARCÍA CÁRCEL, Ricardo; La Leyenda Negra. Historia y Opinión, Madrid, 1998. GÓMEZ-CENTURIÓN, Carlos, Cuadernos de Historia Moderna, “Bajo el signo de Sagitario. La visión europea del poder español (siglos XVI y 364 Volume 4 | Literatura Espanhola XVII)”, 16, 1995, pp. 201-238. JUDERÍAS, Julián; La Leyenda Negra, Salamanca, 1997 (1914). LÓPEZ IBOR, J. J.; El español y su complejo de inferioridad, Madrid, 1951. TÉLLEZ ALARCIA, D., Film-Historia, “Cines y conflictos coloniales en el Nuevo Mundo a mediados del s. XVIII. La Misión y El Último Mohicano”, XIV, 2-3, 2004, pp. 1-6. TÉLLEZ ALARCIA, D., Actas del Coloquio Internacional ¿Verdades cansadas?, “Cine y estereotipos: la imagen de la América hispana en el cine extranjero de la segunda mitad del s. XX”, París, 2006. 365 Hispanismo 2 0 0 6 Julio Camba, jornalismo e criatividade Edna Parra Candido (UFRJ) Nosso estudo consta de algumas reflexões sobre a crônica jornalística como produto de processos sociais peculiares e uma observação específica sobre a escrita do cronista espanhol Julio Camba, marginalizado até muito recentemente por uma parte da crítica literária contemporânea, uma vez que algumas particularidades, como polêmicas posturas ou certas reservas –silêncios, intencionais ou não-, não se enquadram em determinados valores ditados pelos cânones. Interessa-nos, na enunciação, o tratamento privilegiado das instâncias do humor e da ironia sobre um material vasto e diversificado, sobretudo, sobre temas como as injunções do poder, a arbitrariedade e o despudor. A recepção crítica às suas crônicas foi sempre escassa. Sua obra é praticamente desconhecida, na atualidade, inclusive em seu próprio país. A maioria dos dicionários e manuais de História da Literatura não faz referência ao autor ou às obras e, quando o faz, sua presença é tão insuficiente quanto desconcertante, pelas incorreções e falta de dados (LLERA, 2004). Fazem-se necessárias leituras mais atentas e abarcadoras, que acometam a superficialidade enganosa de suas crônicas e as circunstâncias sob as quais as compôs. É nosso interesse avançar nessa direção e ao mesmo tempo apresentar à comunidade universitária no Brasil autor tão prestigiado em seu tempo e tão rapidamente ignorado pelos cânones. Com o intuito de alcançar o objetivo que nos propusemos, será necessário encaminhar e desenvolver nossa investigação em diferentes áreas: preparar uma biografia contextualizada que apresente o desconhecido cronista ao leitor, bem como as circunstâncias históricas e sociais que lhe tocou viver; apresentar a discussão sobre a questão controvertida do gênero discursivo ou classe de gênero e seus elementos constituintes, mais especificamente a intrincada relação entre Literatura e Jornalismo, em particular no que concerne à crônica; observar a influência do impacto político-social na tarefa cultural: a projeção do Novecentismo na Espanha e a inserção da obra de nosso autor em determinados pressupostos artísticos e literários; destacar a relevância da ironia e seus desdobramentos na obra de Camba como estratégia discursiva em resposta às imposições de uma dada autoridade, com destaque para a categoria estética do grotesco e demonstrar a importância do corpus dentro da lógica cultural da pós-modernidade. Camba nasce em 1884, em Villanueva de Arosa (Galícia) e morre em 1962, em Madri. Sua produção literária mais prolífica abarca pouco mais 366 Volume 4 | Literatura Espanhola de vinte anos, compreendida entre 1905 e 1930. A partir dessa data vive mais de direitos autorais que da publicação de artigos em periódicos. São cerca de quatro mil textos (ibidem, p.31), de cujo total cerca de 70% estão inventariados. O restante, talvez armazenado nas hemerotecas dos jornais com os quais colaborou, encontra-se por catalogar. O corpus que pretendemos estudar consta de mil e dezenove artigos, distribuídos em quinze obras publicadas. Terminada a Guerra Civil Espanhola, em 1939, e levando-se em conta o alinhamento dos grandes nomes a uma literatura de compromisso com a realidade, de arte “humanizada”, a expressão de sua personalidade literária passa a constituir uma deserção de tal orientação, uma vez que o autor coloca-se francamente a favor dos nacionais, o que explica a “condenação” de sua obra, a partir desse momento, ao ostracismo (LÓPEZ CRIADO, s/d), que só muito recentemente se vem revertendo. Se nos ativermos apenas à história da Espanha, Camba foi testemunha da guerra contra Marrocos, da ditadura de Rivera, do fim da monarquia e da Segunda República, da Guerra Civil e da consolidação do franquismo. Em relação às convulsões sociais e políticas no Ocidente, viu instaurar-se a experiência comunista na União Soviética, o empobrecimento da Europa como resultado da quebra da bolsa de Nova Iorque e a eclosão das duas grandes guerras mundiais. Foi correspondente em Constantinopla, Paris, Berlim, Munique, Genebra, Londres, Nova Iorque, Lisboa, Roma, Atenas (LÓPEZ GARCÍA, 2003). Alguns críticos literários o consideram como um dos expoentes da geração novecentista espanhola, por seu alinhamento à temática e expressão estética propugnadas pelo grupo (GIRÓN, 1984). Em linhas gerais, entende-se a geração novecentista espanhola como o primeiro grupo intelectual do século XX, em clara ruptura com um passado de morbidez e decadentismo que marcou a geração anterior e que opõe seus ideais aos da geração “ochocentista” (DÍAZ-PLAJA, 1975). Sua irrupção, plenitude e culminação ocupará um enclave cultural que se estende entre o declínio do Modernismo e da Geração de 98 e a eclosão poética que se conhece como Geração de 1927. Cuidadoso na adequação sistemática a um pensamento racional, exige da palavra rigor científico e aspira a estabelecer novos pressupostos e retórica, na qual assume papel preponderante a ironia. Espanha começa a cultuar os países do norte da Europa. Como havia que “regenerar e europeizar a Espanha” (ibidem), entorpecida por três séculos de cultura à margem (LOURENÇO, 1994, p. 54), busca-se o exemplo das nações que experimentam grande êxito, como Alemanha e Inglaterra. Esse é o afã do grupo novecentista, cujos ícones são Ortega 367 Hispanismo 2 0 0 6 y Gasset e d’Ors. Perseguindo esse labor, Julio Camba edifica, metaforicamente, um prédio que denomina Europa como “una casa de vecinos”; no térreo vivem os alemães, muito bem instalados; no fundo, os ingleses. Os franceses ocupam o andar principal e no segundo andar moram os italianos. Quanto aos espanhóis, [...] estamos en el desván. Vivimos entre telarañas y trastos viejos. Todos los días decimos que vamos a renovar el piso; pero no lo hacemos nunca. Nos levantamos muy tarde y tenemos una fama de vagos perfectamente justificada. Cuando alguno de nosotros va de visita al principal, o a la planta baja, o al pabellón de la familia inglesa, entra con un aire de gran señor, como si la gente que nos recibe no supiera que nuestra casa es en el desván. Luego vuelve uno al desván y lo encuentra triste. A veces quiere uno ponerse a barrer las telarañas; pero los otros protestan. No tenemos una gorda. Nos morimos de hambre. (“En la planta baja”, 1947, p. 37-38).a Vários fatores nos chamaram a atenção na escassa biografia do escritorb: a marginalidade imposta pelos cânones, a vasta experiência como correspondente de jornais, além de ser autor de artigos e ensaios, a grande popularidade e repercussão de sua obra em seu tempo, mas, sobretudo, interessou-nos a sua aposta no humor e na ironia como principais urdidores de sua argumentação. Camba utiliza trocadilhos desconcertantes, que muitas vezes desembocam no absurdo. Ao criticar os socialistas que levam a termo a segunda república espanhola, alcunhando-os de burgueses contrafeitos, que agem sob uma capa dissimuladora, condenados a predicar a revolução social para seguir desfrutando dos encantos da vida burguesa, o cronista lança mão de uma analogia, a do jejuador profissional, relatando-nos como funciona a estratégia: Pues muy sencillo, mi querido amigo –dijo Papús-. Me he hecho ayunador para no morir de hambre. Yo no tengo oficio ni beneficio, y, harto de ayunar indefinidamente en privado, me decidí a ayunar en público por períodos limitados. Cada mes de ayuno me proporciona cuatro o cinco meses de comida regular, y el ayuno viene a ser, por lo tanto, la verdadera base de mi alimentación. Crea usted que a mí me encantaría el comer a diario y sin interrupciones; pero, comiendo a diario, no tardaría en morirme de inanición, y como no quiero morir de ninguna manera, y de inanición menos que de cualquier otra, no tengo más remedio que ayunar… (“Papús y la revolución social”, 1968, p. 138). 368 Volume 4 | Literatura Espanhola Camba se apropria da crônica jornalístico/literária para dar corpo as suas idéias. De tecido complexo, misto, gênero limítrofe entre literatura e jornalismo, entre a escrita objetiva e a recriação pessoal, já foi definida de tantas maneiras como lhe permite a localização fronteiriça de sua heterogeneidade formal e enunciativa: como gênero que trabalha com a novidade, com o estranho, como lugar privilegiado para tratar da multiplicidade do sujeito literário, ou como escrita que assinala a problemática moderna da temporalidade e da narração do acontecer diário: Usted podía ponerse indistintamente a pescar noticias o a pescar sardinas, y cualquiera de las dos cosas que pescase, tenía que negociarla, forzosamente, en un término de veinticuatro horas. Transcurrido ese plazo, en efecto, las sardinas empezaban a dar demasiado olor y las noticias se pasaban del todo (“El periodismo y la pesca”, [1945], p.125), conta-nos o bem-humorado cronista sobre as matérias de que trata, artigos perecíveis cujo assunto pode perder o interesse em poucas horas. Ainda que infra-valorizada com freqüência pela crítica (CHILLÓN, 1999), a crônica vem recobrando, na literatura espanhola contemporânea, sua real importância, manifestada pela abundância e qualidade dos autores que a vêm cultivando, convertendo-se em um fenômeno significativo na história da literatura recente. A história do pensamento espanhol não se poderia reconstruir caso se limitassem os estudos sobre as colaborações em jornais e revistas literárias. Julio Camba dá uma contribuição essencial à história política, moral e à literatura de sua época: oferece uma outra visão da realidade –em detrimento à que se concedeu maior privilégio-, calcada na força do humor e da ironia como recursos para zombar de seus males: guerras mundiais, crises econômicas, integralismos, intransigências, degradações do meio ambiente, ódios nacionalistas, servidão consentida, hipocrisias. Com o exemplo do non sense, apresenta um mundo caricaturesco, retábulo burlesco do qual só se pode rir, uma vez que tal acúmulo de trapaças, equívocos e soberbas que, desembocarão em pequenas e grandes tragédias, excedem a capacidade de lamentação. Como exemplo, o fato manifesto de se usar a identidade de cidadãos espanhóis já falecidos para angariarem-se votos para os conservadores, no governo de restauração de Maura, leva o enunciador a traçar jocosamente as configurações de um mundo que salta dos eixos: Los que votan con una perfecta independencia son, precisamente, los muertos. A los muertos no se les puede emborrachar, ni se les puede 369 Hispanismo 2 0 0 6 comprar el voto por cinco duros; los muertos no necesitan caminos, puentes ni fábricas. Yo le aseguro a usted que si en las actas de los ministeriales hay algunos votos verdaderos y dignos de respeto, son los votos de los muertos. Los muertos están desligados de todo mezquino interés terrenal; no van a granjear con su voto, no van a cambiarlo por ningún beneficio inmediato, y, cuando lo depositan en la urna, lo hacen movidos por un puro ideal político que se alberga en el fondo de sus calaveras (“Diario de un escéptico”, 1907). Em seus artigos a realidade se mostra, em muitas oportunidades, como cômica, percebida e considerada no seu aspecto jocoso, de um alegre relativismo, no qual o riso ambivalente traveste o sério e o obriga a tomar ares caricatos. Sua retórica é o resultado do fruto paradoxal de um intelectualismo crítico com o mundo e crítico com a fórmula tradicional de abordar-se, por exemplo, a violência, e concretiza-se por meio de uma escrita que escolhe o humor grotesco como um dos veículos por meio do qual se brinca com o objeto temível, retirando-lhe importância, para que o terrível se transforme em um “alegre espantalho” (BAKHTIN, 1999). E o humor grotesco nos revela o modo como o autor trata sua matéria: advertem-se os fios do demiurgo, os cordões do titereiro que “manipula”, no retábulo, as suas “figurinhas de cartão” (SPERATTI PIÑERO, 1968), marionetes de um entremez que se representará: [...] pasemos a contemplar las prodigiosas criaturas y los fenómenos nunca vistos de nuestra gran barraca republicana: el divorcio, la libertad de cultos, la reforma agraria, la enseñanza laica, la secularización de los cementerios, el sufragio femenino, etc., etc… Hay para todos los gustos y para todos los bolsillos. […] ¡Pasen, señores, pasen! Pasen y podrán examinar las más flamantes novedades del país de los lapones o ver a los últimos supervivientes del krausismo marcándose un zapateado a los acordes del Himno de Riego… (“¡Pasen, señores, pasen!”, 1968, p. 24). Camba chega ao humorismo partindo da não adaptação a um mundo que não lhe compraz. Seu descontentamento o induz a empregar o humor como método de seu pensamento cético. O humor irônico, propriedade pouco ressaltada pelos teóricos da informação, converte-se em elemento indispensável no momento de analisar suas crônicas, como estratégia fundamental em sua produção. A ironia é uma arma da parcialidade, artifício persuasivo que requer a cumplicidade de um público. Se o leitor quer captar a ironia, é fundamental que conheça o contexto histórico, assim 370 Volume 4 | Literatura Espanhola como o código ideológico do autor. Enxergar os implícitos implica uma cosmovisão cultural, para que se extraia de um discurso irônico o melhor dos rendimentos, suas mostras de desacordo, cujo distanciamento admite gradações que vão do não compromisso ao desprezo visceral e a reflexão de Camba corrobora esses pressupostos: La ironía, en efecto, viene a ser a modo de un lenguaje de clave que sólo se puede utilizar con aquellas personas que conozcan su secreto [...]. Yo diría más todavía. Diría que la ironía es casi siempre un valor puramente imaginario, ya que, unas veces, está en la intención del que habla, pero no llega a la del que oye, mientras otros [sic], por el contrario, su existencia depende tan sólo de la interpretación más o menos maliciosa del oyente. (“La ironía”, 1945, p. 182-183). Pretendemos fazer um resgate da obra do autor, recuperar e retomar um diálogo crítico que gire sobre a significação histórico-literária de uma voz esquecida ou, no mínimo, relegada a segundo plano nas Letras espanholas. De modo bastante incipiente, retorna, a partir da última década, às salas de aula dos cursos de jornalismo nas universidades da Espanha. O mesmo ainda não se pode dizer de sua inserção nos livros de Literatura Espanhola ou de História da Literatura, empresa com a qual pretendemos cooperar com nosso estudo. A história das sociedades se faz por meio de um complexo emaranhado de “verdades”, não necessariamente de corte maniqueísta, mas de diferentes gradações e múltiplos arranjos. É necessário prestar atenção a outras vozes, outros modos de abordar a realidade, relegadas muitas vezes a um ostracismo intelectual, tendo-se por base determinada realidade. Não há, por exemplo, como ingenuamente se quis advertir antes, durante e após a Guerra Civil Espanhola, um simples enfrentamento entre o bom e o nocivo, a verdade e o embuste, o correto e o equivocado, como sustentaram apaixonada e contundentemente tantos escritores e filósofos provenientes da parte derrotada no conflito, realidade que o autor tratou de desmitificar. Sejam quais forem as opções e a tomada de posição, o cronista Julio Camba, personificação de estados de consciência e observador privilegiado dos fatos que teceram a história das sociedades de seu tempo, é, antes de tudo, um perturbador do status quo, que, ao prestar atenção a múltiplas vozes, provoca o seu interlocutor e desperta nele, por meio das marcas instauradas na enunciação, a hesitação e a inquietude. 371 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 4ª ed. São Paulo: Hucitec. Brasília: Universidade de Brasília, 1999. Tradução Yara Frateschi Vieira. Linguagem e Cultura – 12. CAMBA, Julio. Haciendo de República. Madrid: Plus-Ultra, 1968. _____. Etc., etc. Madrid: Plus-Ultra, [1945]. _____. “Diario de un escéptico”. España Nueva, 25 de mayo de 1907. CHILLÓN, Albert. Literatura y periodismo – una tradición de relaciones promiscuas. Barcelona: Universitat Autónoma de Barcelona. Server de Publicaciones, 1999. DÍAZ-PLAJA, Guillermo. Estructura y sentido del Novecentismo español. Madrid: Alianza Editorial, 1975. GIRÓN, Socorro. Julio Camba, escritor novecentista. Puerto Rico: Ponce, 1981. Edición facsímil. Ayuntamiento, Villanueva de Arosa, 1984. LEIRO CONDE, Benito. El hombre que no quería ser nada. Experiencia lúdico literaria. Vizcaya: El Paisaje, 1986. LLERA, José Antonio. El humor en la obra de Julio Camba. Lengua, estilo e intertextualidad. Madrid: Biblioteca Nueva, 2004. Colección Estudios Críticos de Literatura 16. LÓPEZ CRIADO, Fidel (Org.). Julio Camba: El escritor y su circunstancia. Estudios de Literatura Española Contemporánea. La Coruña: Ayuntamiento de La Coruña, Concello de A Coruña, s/d. LÓPEZ GARCÍA, Pedro Ignacio. Julio Camba. El solitario del Palace. Madrid: Espasa-Calpe, 2003. LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa e as duas razões. Lisboa, Casa da Moeda, 1994. SPERATTI PIÑERO, Emma Susana. De sonata de otoño al esperpento (aspectos del arte de Valle-Inclán). Londres: Támesis, 1968. Colección Támesis. Serie Monografías. XI. Notas a b Assinalaremos as obras de Camba, sempre que possível, com os títulos de suas crônicas, o ano da publicação e o número da página das obras de que dispomos. Tomamos por base especialmente dados contidos nas obras de S. GIRÓN (1981), P. I. LÓPEZ GARCÍA (2003) e B. LEIRO CONDE (1984), bem como a própria obra de nosso autor. 372 Volume 4 | Literatura Espanhola Entre crónicas y fotos, las imágenes de Rio y Madrid en el siglo XIX Elisa Amorim Vieira (UFMG) Dice Luis Landero que una ciudad no está del todo acabada hasta que los escritores o los pintores la colonizan imaginariamente. En lugar de pintores, podríamos pensar en los fotógrafos, especialmente aquellos de los primeros tiempos de la fotografía, que así como los cronistas del paisaje urbano, se movían por el impulso de la captura, por el proceso de profunda observación que eso requiere y la consecuente reflexión acerca del objeto capturado. Eso nos lleva a la figura que para Walter Benjamín era el verdadero ícono de la modernidad: el flâneur, el paseante citadino del siglo XIX, que, como dice Susan Buch-Morss, al contrario del académico que reflexiona en su despacho, el flâneur camina por las calles y “estudia” la multitud (BUCH-MORSS, 2002: 360). Este personaje sugiere un tiempo en que no estaba tan marcada la oposición entre lo público y lo privado y en el que el individuo experimentaba la calle como lugar de encuentro donde podía llegar a diluirse en la colectividad. Ver, examinar, observar la multitud poliforme que constituye la metrópoli; cada fragmento o aspecto del espacio urbano como deflagrador de una revelación que adviene del cotidiano. Fotógrafos y cronistas iban, así, recogiendo las imágenes de la urbe, reflexionado sobre las escenas callejeras como si se trataran de historias personales, formando, en fin, un archivo de imágenes icónicas y verbales que acaban por configurar nuestra memoria de la ciudad. Desde la descripción que hace Galdós de El Saladero, la terrible cárcel madrileña, a las escenas de los tranvías cariocas narradas por Machado de Assis; las vistas de la Rua do Ouvidor, realizadas por Marc Ferrez, o las de la construcción del Puente de los Franceses, por Charles Clifford, vamos formando nuestra percepción de este espacio en permanente mutación que es la ciudad decimonónica obsesionada por la idea del progreso. En Brasil, durante el Imperio, la imagen fotográfica se torna un importante instrumento simbólico en el proceso de configuración del proyecto de implantación de una civilización en los trópicos. Según Boris Kossoy, la “construcción de lo nacional” en la producción cultural brasileña destacaba, por un lado, la exuberancia de la naturaleza y, por otro, los hechos heroicos, como los retratados en las pinturas históricas, y el registro de escenas de progreso material. Así, serán recurrentes las imágenes que retratan las obras de implantación de ferrocarriles, la mecanización de la agricultura y todo lo que se refiere a las transformaciones urbanas: aper373 Hispanismo 2 0 0 6 turas de vías públicas, instalación de la red eléctrica, obras de ingeniería civil y de la industrialización (KOSSOY, 2002, p. 79-81). Esas temáticas no fueron exclusividad de la fotografía realizada en Brasil durante el período imperial, sino comunes a todo el mundo dicho civilizado. Cuidadosamente seleccionadas y muchas veces manipuladas, tales imágenes empezaron a circular a través de álbumes fotográficos o eran impresas en planchas litográficas. Posteriormente, cuando la técnica permitió la reproducción de las imágenes, éstas pasaron a circular también a través de tarjetas postales, revistas y libros ilustrados. Estos materiales, como observa Kossoy, muchas veces encargados por instituciones oficiales o empresas privadas, se destinaban tanto a la preservación de la memoria como a la difusión de una imagen de la identidad nacional coincidente con el ideario liberal de la época. Si comprendemos la imagen fotográfica como una compleja práctica discursiva formada en el momento de la “tomada”, la captura de la escena, y de la “retomada”, o sea, en su recepción, tendremos que observar las imágenes que heredamos de la ciudad del siglo XIX considerando no sólo los rasgos impresos de lo “real” en la foto, como también las elecciones realizadas por el fotógrafo y las lecturas de los espectadores. En este sentido, es importante observar que, además de las fotos encargadas por instituciones oficiales o empresas privadas, gran parte de la iconografía del país la realizaron viajantes europeos que llegaban a los trópicos trayendo en la maleta fantasías y estereotipos que buscaban reflejar en las imágenes que producían. Cuanto a la recepción, las fotos aquí realizadas se destinaban al público europeo y deberían corresponder a sus fantasías. La vegetación exuberante y los grupos étnicos considerados inferiores fueron los temas preferidos de ese circuito. Lo mismo acontece con otras tierras distantes y “exóticas”. La “mirada del civilizado” busca aquí o, por ejemplo, en algunas regiones de España las imágenes que reproduzcan sus “arquetipos-estereotipos”, de preferencia los símbolos moldados por la imaginación romántica. De acuerdo con Annateresa Fabris (1998, p.3233), en sus expediciones, los fotógrafos no buscaban lugares inéditos o desconocidos, sino aquellos que corroboraran una visión preexistente. Las imágenes de Rio de Janeiro van surgiendo en medio de todos esos proyectos oficiales y perspectivas que buscaban corroborar imaginarios configurados mucho antes de la invención de la cámara fotográfica. La ciudad-capital se tornó uno de los blancos preferidos de las objetivas, ya que permitía la captura de un espacio que conjugaba mar, montaña, matas, signos de progreso y de poder. Poco a poco las vistas fotográficas de la ciudad se van comercializando cada vez más y en las primeras déca374 Volume 4 | Literatura Espanhola das del siglo XX pasan a circular abundantemente a través de las tarjetas postales, que materializan el deseo de posesión simbólica de la ciudad por parte de sus ciudadanos o de los que la visitan. Además de eso, la circulación de las vistas, a través de los álbumes, de las postales o de las revistas, acaba por configurar la propia percepción del espacio urbano y, en particular, de su arquitectura. La crisis de valores que alcanza toda la sociedad en aquel momento se refleja en la propia construcción y percepción de la naciente metrópoli. De esa manera, la fotografía se muestra como una importante aliada de la arquitectura al permitir que se formara la visión de ese nuevo espacio simbólico predispuesto a mutaciones. Volviendo al imaginario romántico y pasando al otro lado del Atlántico, España, así como Brasil, hacía parte del itinerario de los viajes pintorescos y del ideario de escenarios exóticos. A pesar de la proximidad geográfica con los demás países europeos, España, heredera de la civilización árabe y hebrea, era distante culturalmente. Durante la primera mitad del siglo XIX, hubo una gran cantidad de publicaciones que trataban de esos viajes, cuyos blancos eran monumentos, paisajes y ruinas que evocaban otras épocas y distintas formaciones humanas. Ingleses, franceses y alemanes salían con sus cámaras con el objetivo de atrapar el exotismo en regiones en que la incipiente o inexistente industrialización aún no había provocado la uniformidad de los modos de vida. La leyenda de la España Negra, los vestigios de la Edad Media y de la civilización musulmana, hizo con que muchos se aventuraran por el interior del país. No obstante, el proceso de desarrollo técnico de la fotografía coincide con otras percepciones de la realidad, con nuevas necesidades artísticas y, consecuentemente, con la gradual introducción de una nueva iconografía. Al mismo tiempo en que disminuye el interés por lo pintoresco, crece la demanda de contemporaneidad y la atracción por las imágenes impregnadas de movimiento y casualidad del mundo urbano. Según Bernardo Riego (2001, p. 363), por esa época, más exactamente a partir de la década de los ochenta, son producidas las primeras instantáneas que posibilitaban la captación de la imagen en menos tiempo, lo que significaba que el movimiento pasaba a hacer parte del cuadro. Esta evolución técnica y los cambios ideológicos y estéticos que la acompañan generan las aproximaciones al paisaje urbano y cotidiano. Las imágenes de la arquitectura moderna, de las grandes obras de ingeniería y de la población de las ciudades empiezan a multiplicarse y a circular en profusión. Por su vez, las vistas de la realidad urbana difundidas y consumidas de forma masiva van configurando una mirada y una interpretación colectivas de la realidad, que transciende la experiencia personal, posibilitando la confusión que se instaura entre los acontecimientos y su representación. 375 Hispanismo 2 0 0 6 La capital española, con sus transformaciones y costumbres, pasa a ser tema de las imágenes producidas a partir de los años 70. Las vistas de la ciudad, antes de empezar a circular por las revistas ilustradas y tarjetas postales, fueron incluidas en los álbumes familiares junto a los retratos, que era el tipo más conocido de producción fotográfica de la época. Se consolida, así, la práctica de la posesión simbólica de los seres y objetos del mundo, incluso del espacio urbano. El álbum pasa a guardar de forma jerárquica las imágenes de los familiares, de los poderosos, de las celebridades, de la ciudad y de tierras lejanas, configurando, de esa manera, un verdadero “museo universal privado”. Además de posibilitar la formación de un mundo en miniatura que cabía en las páginas del álbum, también se utilizaba la fotografía como instrumento al servicio de la memoria. En esa misma época, a partir de los 70, las vistas urbanas incluyen no sólo la presencia humana como destacan los monumentos heredados del pasado y las promesas de transformación y progreso por las que pasa la ciudad. Por otro lado, ese continuo proceso de transformación es acompañado por la mirada atenta de Pérez Galdós, flâneur por excelencia del Madri decimonónico. En crónicas enviadas al periódico La Prensa, de Buenos Aires, entre diciembre de 1883 a marzo de 1894, el escritor se dedica, la mayor parte de las veces, a retratar la capital española a sus lectores de ultramar. Dividido entre la admiración por el progreso y el apego a la tradición, Galdós describe las trasformaciones arquitectónicas de la ciudad; critica la falta de un plan de urbanización y la ineficacia de la administración pública; defiende la manutención y la construcción de monumentos; lamenta la pérdida de la tradición en las fiestas religiosas y la “sombría uniformidad” de la vestimentas modernas; apunta los peligros de la industrialización y las contradicciones de la modernidad a partir del ejemplo inglés; analiza las opiniones divergentes acerca de la construcción del nuevo Ateneo; hace detalladas observaciones sobre las modalidades de ocio de la población pobre de Madrid y sobre las lujosas fiestas de una aristocracia caduca; y, entre tantos asuntos, también comenta la decadencia de las corridas de toros y la manera por la cual los madrileños homenajeaban a sus muertos. Y, como observación y reflexión caminan juntas, al lado de las descripciones de las metamorfosis del paisaje urbano, Galdós inserta sus preocupaciones y devaneos. El proceso de incesantes transformaciones le sugiere la posibilidad de la “transportabilidad” de los inmuebles: ¿Quién nos asegura que los edificios que hoy levantamos no serán inútiles dentro de medio siglo? ¿Quién nos dice que no se impondrá la necesidad de desmontar un edificio y transportarlo de una parte a otra? (PÉREZ GALDÓS, 1890 apud SHOEMAKER, 1973, P. 432-434). 376 Volume 4 | Literatura Espanhola Si en la ciudad moderna todo es mutable y transitorio y, como dice Henri Lefebvre (2002, p.26), el desarraigo es la regla, nada más natural que imaginar que incluso los bienes durables habían dejado de serlo. Así como Galdós, también Machado comentó el cotidiano de la ciudad a través de crónicas publicadas entre 1859 y 1897 en diversos periódicos de la antigua capital de Brasila. Pero, si es verdad que por medio de esos textos podemos encontrar una visualización del espacio urbano mucho más evidente que en la obra novelística del autor carioca, no siempre eso se confirma. Mientras en la ficción es posible acompañar los diversos procedimientos utilizados por el autor para “violar la fabulación” y anular el mimetismo, en la crónica se puede percibir un movimiento contrario: la práctica constante en el sentido de fabular el referente externo, transformar la ciudad en ficción e inserirla en uno más de los planos que constituyen los infinitos diálogos intertextuales que establece su texto. En las crónicas, Machado de Assis sigue profundizando su proyecto de dejar en suspenso las expectativas de sus lectores. Cambia el tema de la “conversación”, interrumpe y devanea, convocando y provocando el lector a participar de sus comentarios acerca de las costumbres, tradiciones y acontecimientos que van configurando la ciudad. No raro encontramos afirmaciones como: “Vi, não me lembra onde…É meu costume, quando não tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião, matar o tempo” (ASSIS, 1979, Vol. 3, p. 510). Y, un poco más adelante: “Mas por onde é que eu tinha principiado? Ah! Uma coisa que vi, sem saber onde…” (Ibid, p. 511). El cotidiano relatado por la crónica machadiana no se detiene en las imágenes que congelan paisajes, tipos humanos o costumbres pintorescas y emblemáticas de Rio de Janeiro, sino en el bullicio de una realidad en proceso de mutación acelerada. Lejos de ser una enumeración de novedades, los “asuntos modernos que llueven” en la Rua do Ouvidor, del nuevo banco al contraceptivo, son llevados, por la escritura de Machado, a dialogar con Camões y la remota herencia griega. La ciudad de estas crónicas se construye utilizando un proceso de colage que combina imágenes fragmentarias de acontecimientos diarios con otras originadas de los diálogos intertextuales, constantemente accionados por el autor. Los paisajes fragmentados y entrecortados por otros referenciales son testigos ora de la supervivencia ora de la pérdida o cambio de costumbres. Las varias manifestaciones de la modernidad y de los modismos que invaden la capital son observados con sarcasmo por el cronista que, de forma implícita, apunta la futilidad de la elite carioca y las contradicciones de una sociedad intolerante que ve las tradiciones populares como desvia377 Hispanismo 2 0 0 6 ción y caso de policía. Las crónicas machadianas no dejan de registrar la manera como el deseo de progreso se combina de forma inexorable a los viejos hábitos de dominación y represión de la oligarquía nacional, para quien la Abolición de la Esclavitud de 1888 no había cambiado de forma significativa las antiguas relaciones de poder. Al contrario de las cartas de Galdós a La Prensa, en que es patente el proyecto de visualización y concretización de Madri para los lectores argentinos, las crónicas de Machado de Assis utilizan el cotidiano de la ciudad como pretexto para establecer diálogos con los más diversos referenciales. Huyendo sistemáticamente de las descripciones y de la producción de imágenes acabadas, construye un mosaico difuso, pero elocuente, de la metrópoli de líneas aún indefinidas. De una forma más visible o más sutil, las imágenes urbanas creadas por Galdós y Machado a lo largo de esos textos que circulan entre un número cada más expresivo de lectores, así como las fotografías que intentan registrar los cambios impuestos por modernización o la resistencia de lo antiguo, configuran un archivo de imágenes reflexivas, dignas de ser recordadas y que sobreviven en medio a las imágenes saturadas de nuestra época. Referencias Bibliográficas ANDRADE, Ana Luiza (org.). Machado de Assis: crônicas de bond. Chapecó: Argos, 2001. ASSIS, Machado de. Obra completa. Vol 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. BUCHK-MORSS, Susan. Dialética do olhar. Walter Benjamin e o Projeto das Passagens. Trad. Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. FABRIS, Annateresa (org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1998. KOSOY, Boris. Origens e expansão da fotografia no Brasil. Século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. LANDERO, Luis. Entre líneas: el cuento o la vida. Barcelona: Tusquets, 2001. ____. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê, 2002. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. RIEGO, Bernardo. La construcción social de la realidad a través de la fotografía y el grabado informativo en la España del siglo XIX. Santander: Universidad de Cantabria, 2001. 378 Volume 4 | Literatura Espanhola SHOEMAKER, William (org.). Las cartas desconocidas de Galdós en la prensa de Buenos Aires. Madrid: Ed. Cultura Hispánica, 1973. Notas a Periódicos en los que Machado de Assis publicó sus crónicas: O Expelo (1859), Diário do Rio de Janeiro (1861-1867), O Futuro (1862-1863), Semana Ilustrada (1872-1873), Ilustração Brasileira (1876-1878), O Cruzeiro (1878) y Gazeta de Noticias (1881-1904) (ANDRADE, 2001, P. 88). 379 Hispanismo 2 0 0 6 A fenomenologia como suporte filosófico da construção do discurso da Revista de Occidente Flavia Ferreira dos Santos (PG/UFRJ) A Revista de Occidente foi uma das publicações culturais mais importantes das décadas de 20 e 30 na Espanha. Fundada por um dos principais intelectuais do país, o filósofo José Ortega y Gasset, publicou-se em edições mensais ininterruptas desde 1923 até 1936, ano em que começa a Guerra Civil Espanhola. Em seu projeto inicial a publicação pretendia trazer as novas idéias que chegavam da Europa e da América e abrir novos horizontes à intelectualidade nacional. Definia-se não como una revista “temática” – nem literária nem científica – mas sim como um espaço de preocupação com as grandes questões da época nos mais diversos campos do saber cuja única área a ser evitada era a política. A revista, assim, se definia como um espaço cosmopolita, aberto à grande diversidade de preocupações do homem moderno. De fato, os artigos vão desde publicações de poemas e romances até textos de física, incluindo a teoria da relatividade de Einstein, passando por reflexões sobre filosofia, astronomia, biologia, etc. Nosso trabalho busca mostrar, no entanto, como, tal discurso da pluralidade não é isento de valor. Por trás desta aparente diversidade de temas, a filosofia, mais especificamente a fenomenologia, ocupava um lugar central que servia de base à construção da unidade do discurso e do projeto da revista, que em última instância a legitimava dentro do campo intelectual espanhol. Uma análise atenta dos volumes de 1929, corpus de nosso trabalho, revela que a literatura dispõe de um espaço privilegiado, ocupando a metade da revista. Entre os demais encontramos um vasto material sobre diferentes assuntos, dos quais destacamos os que se referem à física e à filosofia. Se estudada separadamente, a presença de tais áreas do conhecimento talvez servisse de comprovação da “pluralidade” essencial da R. de O., levando-nos a pesquisar a trajetória de cada uma: os artigos publicados, os autores, a evolução temática. Não obstante, nos interessa observar a questão por outro ângulo, posto que é justamente na articulação dos discursos entre filosofia e ciência que se revela a perspectiva da publicação. Por este motivo a articulação entre os escritos da Revista de Occidente dificulta a classificação temática dos artigos e notas. Em alguns, o objeto de estudo foi a própria relação entre diferentes áreas do conhecimento, como no caso do artigo “Física e metafísica” (R. de O., t.xxiv, 145). Assim, entre os artigos que que predominantemente se referem à filosofia 380 Volume 4 | Literatura Espanhola surge, em comum, a preocupação pelo lugar do homem moderno e das suas relações com o mundo, e de como a filosofia lida com os tradicionais conceitos de “verdade” e “real”. A crise do capitalismo, que culmina com a primeira guerra mundial e que arrasa a Europa, não deixa somente seqüelas físicas: ela abala as estruturas ideológicas que serviam de alicerce do sistema. As ideologias das quais essa ordem habitualmente dependera, os valores culturais pelos quais era governada, também se encontravam em estágio de profunda agitação. A ciência parecia ter-se encolhido a uma posição estéril, a uma obsessão míope pela categorização dos fatos; a filosofia dividiase entre o positivismo, de um lado, e um subjetivismo indefensável de outro; predominavam formas de relativismo e irracionalismo, e a arte refletia essa espantosa crise de referências. (EAGLETON, 1997, 75) O mundo perfeito no qual a burguesia acreditava, guiado pelos princípios de liberdade, igualdade, fraternidade há muito haviam fracassado e a crença na ciência e na revolução tecnológica como portadoras do progresso e do bem estar se transformou em perplexidade diante seu lado nefasto: o poder covarde e devastador da tecnologia a serviço das disputas imperialistas, cuja guerra resultou assustadora. Assim era preciso buscar “um porto seguro”, algo em que acreditar novamente. Nesse contexto de crise ideológica generalizada da civilização européia “na verdade muito anterior ao advento de primeira guerra mundial, [...] o filósofo alemão Edmund Husserl procurou desenvolver um método filosófico que oferecesse uma certeza absoluta a uma civilização que se desintegrava” (EAGLETON, 1997, 75): a fenomenologia. Embora não apareçam textos de Husserl na R. de O. a presença da discussão fenomenológica é bastante significativa em 1929. A editora da revista publica em 1929 quatro volumes das Investigações lógicas do filósofo, além do estudo El idealismo filosófico de Husserl, de Teodoro Celm, em 1931. Outrossim, quatroa dos seis artigos de filosofia de 1929 se referem explicitamente ao tema. O primeiro é La situación presente de la fenomenología, de Arnold Metzger, que foi assistente de Husserl na Universidade de Friburgo, en Breisgau. Nesse estudo, cuja primeira parte foi publicada em novembro de 1928, Metzger aborda detalhadamente a trajetória da “teoria” em questãob, em oposição ao positivismo, e discute os problemas atuais para os estudiosos do tema. Husserl baseou a sua certeza na consciência 381 Hispanismo 2 0 0 6 [...]Tudo o que não seja ‘imanente’ à consciência deve ser rigorosamente excluído; todas as realidades devem ser tratadas como puros fenômenos [...] sendo este o único dado absoluto do qual podemos partir. [...] A fenomenologia é a ciência dos fenômenos puros. (EAGLETON, 1997, 76.) Como “ciência dos fenômenos puros” seu objetivo era buscar a essência das coisas, através da eliminação das suas qualidades individuais, até encontrar as suas características invariáveis. Tais teriam a validade de “leyes puras”, através das quais apreenderíamos “la verdad misma” (METZGER, R. de O., t. xxiii, 185). O processo de “isolamento” de tais propriedades constitui a “redução fenomenológica”, método fundamental da filosofia em questão, utilizado não por coincidência no artigo “ El asco” de Aurel Kolnai (R. de O., t. xxvi, 161 e 294). No entanto, mais do que demonstrar os usos desse método nos interessa mostrar a introdução ao texto feita pela R. de O. (t. xxvi, 161), explicando ao leitor o que é a fenomenologia e o propósito do estudo. La corriente fenomenológica suscitada en Alemania por Edmund Hüsserl (del cual esta Revista ha publicado su famosa obra Investigaciones lógicas) ha logrado sus mejores resultados en la descripción de los sentimientos humanos. Como ejemplo de análisis fenomenológico publicamos el siguiente de Aurel Kolnai sobre un sentimiento, tan indescriptible a primera vista. En este análisis se puede ver de qué manera la fenomenología descubre valores y leyes objetivas determinables científicamente en lo que, como los sentimientos, parecía vago, fluctuante, subjetivo, caprichoso. Por trás da busca de leis objetivas, inclusive em “sentimentos”, está o desejo de definir a realidade. Em vez da crença de que os objetos existem por si mesmos, independentemente de nós, e de que o que sabemos sobre eles é verdadeiro para todos, “todas as realidades devem ser tratadas como puros fenômenos, em termos de como eles se apresentam em nossa mente, sendo este o único dado do qual podemos partir.” (EAGLETON, 1997, 76) Nesse sentido, tanto a aspiração da fenomenologia a ser “ciência” quanto a desconfiança do real encontram na física moderna um importante aliado. Em 1929 se publicaram 4 artigos de física e uma nota. No século XX, as teorias de Plank (física quântica), Einstein (teoria da relatividade) e o princípio da incerteza de Heisenberg, apresentam uma nova visão da realidade. As descobertas nesse campo representam para o homem o fim do mito da “certeza” e da cega confiança no poder do ser humano, abalada quando a física (uma das ciências de mais “prestígio” e autoridade) reco- 382 Volume 4 | Literatura Espanhola nhece a sua incapacidade para determinar com exatidão, por exemplo, a posição e a velocidade exatas de uma partícula, posto que ao estudarmos o processo interferimos nele e alteramos o seu resultado. El hombre se ha dejado llevar, seducido por la precisión de los métodos matemáticos, a la idea de que las leyes matemáticas de la física, no sólo son precisas, sino también exactas. [...] Las leyes de la vieja física [...] son leyes rígidas precisas, pero, probablemente no corresponden a la verdad. Las nuevas leyes pueden tal vez corresponder a la verdad, pero han perdido algo de su anterior precisión. (RUSSELL, R. de O., t. xxiv, 150, 151) Como conseqüência, elas fornecem dados científicos para a então “abstrata filosofia”. O discurso filosófico e o discurso científico (representado pela física) se aproximam e o primeiro pode postular-se como ciência. Antes existía un abismo entre física y metafísica; ahora el abismo está a punto de cerrarse. Los metafísicos se han hecho algo menos arrogantes, y los físicos han sido obligados por sus experimentos a hacerse algo metafísicos. La consecuencia es que en la filosofía se ha infiltrado cierta solidez, procedente de la física, que nunca se encontraba en la filosofía de las épocas pasadas. (RUSSELL, R. de O., t. xxiv, 156) Isto é possível, para Torney (R. de O., t. xxiv, 103), porque cada ciência opera com alguns conceitos, e o papel da “ciência filosófica” é “asegurar la legitimidad de estos conceptos fundamentales”. Deste modo, a própria fenomenologia se autoriza como ciência. As discussões sobre a física moderna destacam-se não só pela significativa presença como pela relevância dos colaboradores envolvidos. Ademais dos comentários do espanhol Blas Cabrera, a maioria dos artigos pertence aos próprios teóricos e apresentam um panorama amplo e profundo da matéria. Além destes “la revista publica [...] artículos y reseñas de caráter epistemológicoc que van a permitir al lector no especialista de las cuestiones científicas penetrar en este dominio, y recíprocamente al lector de formación científica abordar cuestiones filosóficas” (LÓPEZ CAMPILLO, 1972, 243) Pode-se afirmar, portanto, que a presença dos artigos de física na R. de O. serve de suporte às preocupações filosóficas da publicação. Além de instruir o leitor, eles funcionam com uma espécie de “citação de autoridade” que confirma a importância de tais preocupações. A inserção da matéria no contexto da revista legitima o seu discurso dentro do campo intelectual. 383 Hispanismo 2 0 0 6 Observe-se que não nos interessa neste trabalho discutir a validez das teorias. O ponto central é como a articulação entre física e filosofia reflete o que seja talvez a grande problemática abordada pela R. de O. em 1929. Trata-se de uma espécie de fio condutor que une a suposta diversidade de temas da publicação: a preocupação com a essência do “homem moderno” e com as questões fundamentais que este devia responder, baseado na fenomenologia. A revista se transforma, por tanto, em uma autoreflexão sobre o homem e sua relação com o mundo, o que já estava nos objetivos iniciais da Revista, apresentados nos “Propósitos”. Existe en España e Hispano-América un número crecido de personas que se complacen en una gozosa y serena contemplación de las ideas y del arte. (...) Es la vital curiosidad que el individuo de nervios alerta siente por el vasto germinar de la vida en torno y es el deseo de vivir cara a cara con la honda realidad contemporánea. (R. de O., t. i, 01) Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. Campo intelectual y proyecto creador. In: Problemas del estruturalismo. México D. F.: Siglo XXI editores, 1967. CAMPILLO, E. López. La revista de Occidente y la formación de las minorías. Madrid, 1972. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 348p Propósitos. Revista de Occidente. Madrid. t. i, p. 01-03 jul-ago-sep. 1923. Revista de Occidente. Madrid. t. xxiii, ene-feb-mar 1929. 408p ______. Madrid. t. xxiv, abr-mayo-jun 1929. 400p ______. Madrid. t. xxv, jul-ago-sep 1929. 386p ______. Madrid. t. xxiv, oct-nov-dic 1929. 432p Notas a b c Na verdade são três, dado que “El asco” se publica dividido em duas partes. Metzger discute não só as idéias de Husserl, mas também as de Scheler e Bergson. Este é o caso do citado artigo “Física e metafísica”, de Bertran Russell. 384 Volume 4 | Literatura Espanhola La recuperación de la memoria histórica peninsular y de la colonia a través del teatro de Tirso de Molina y de la crónica de Guaman Poma de Ayala. Helena Dias dos Santos Lima (UFF) Las observaciones aquí señaladas forman parte de la tesis doctoral realizada en la Universidad Federal Fluminense, sobre la recuperación de la memoria histórica peninsular a través de la obra de Tirso de Molina “Trilogía de los Pizarros”, al mismo tiempo que investigamos, en el ámbito colonial, la recuperación de la memoria histórica de Perú en la obra “Nueva Corónica y Buen Gobierno” de Felipe Guaman Poma de Ayala. Basándonos en Jacques Le Goff, entendemos que la memoria forma parte del juego de poder; es la que autoriza manipulaciones conscientes o inconscientes, debiendo obedecer a los intereses individuales o colectivos. Así, la memoria es el recuerdo de un pasado vivido o imaginado y por esta razón, es siempre un fenómeno colectivo, aunque sea psicológicamente vivida como individual. La obra “Trilogía de los Pizarros” comprende los dramas Todo es dar en una cosa; Amazonas en las Indias y la Lealtad contra la envidia. Estos dramas fueron elaborados con el intento de rescatar la imagen de cada uno de los Pizarros conquistadores. En el primer drama Todo es dar en una cosa (1626-1629) no son dramatizados episodios de la conquista, sino de los años de Francisco Pizarro antes de partir hacia las Indias. Ésta es la época de la que menos noticias se tiene sobre la vida de Francisco Pizarro, así que Tirso de Molina tuvo que utilizar tanto de su imaginación como de la leyenda para construir la imagen de aquel que sería el conquistador de Perú. El segundo drama Amazonas en las Indias (1629-1632), está dedicado al enaltecimiento de la figura de Gonzalo Pizarro y en la restauración de la unión y glorias de la familia a través de las bodas de Francisca, hija de Francisco Pizarro, con su tío Hernando. Después del proceso inicial de conquista de Perú, Pizarro recibe de Carlos V el título de Marqués con veinte mil vasallos en pago a sus servicios, pero con la rebelión, en la colonia, provocada por su hermano Gonzalo, la família perdió el marquesado. El propósito, entonces, de Tirso de Molina es rescatar a través de su teatro el honor de la familia Pizarro. El tercer drama La lealtad contra la invidia (1626-1630), se refiere a Hernando Pizarro como patriarca y ascendiente de los marqueses de la conquista. En verdad, la intervención de Hernando fue totalmente negati- 385 Hispanismo 2 0 0 6 va, pues fue el responsable por las discordancias entre Pizarros y los Almagros. Aun así, Tirso nos presenta a Hernando como modelo de hidalgo con todos los atributos, valores, simpatía y fidelidad, añadiendo la idea de que todos los infortunios sufridos fueron provenientes de la invidia de los Almagros. Así, el dramaturgo tiene por finalidad la exaltación a los Pizarros atribuyéndoles cualidades ilustres a sus antepasados. A través de nuestro análisis, deprendemos que el teatro presupone una memoria cultivada en escena, pues todo teatro pertenece al terreno de la memoria, o sea, a un cierto nivel de la memoria, una especie de memoria que desvela un valor colectivo o individual y que es merecedor de ser recuperado. Este teatro asume la función de espejo y el espectador al asistirlo ve delante de si mismo una imagen de ejemplaridad y, en este paradigma escénico reposa así un orden legitimado. ¿Qué mejor recurso que el teatro, para la reformulación de una nueva imagen de los Pizarros, además de la recuperación de la memoria histórica peninsular y, en consecuencia, los dominios de la corona española? Analisado, entonces, como un documento social, el teatro deberá ser entendido como portador de relaciones sociales y si lo entendemos de esta forma, no podemos negar lo vivido, permitiendo así la reconstitución de tales relaciones para con una determinada formación histórica. En el espacio colonial del siglo XVII, investigamos la obra “Nueva Corónica y Buen Gobierno” del peruano Felipe Guaman Poma de Ayala, cuyo proyecto era denunciar al monarca español Felipe III, datos de la violencia y codicia de los que ocupaban puestos administrativos en la colonia, además de defender a los andinos como cristianos civilizados y de atacar a los españoles como pecadores desviados de la religión cristiana, concediendo al monarca español una relación de la sociedad andina antigua desde el comienzo de los tiempos hasta el reinado de los incas. No obstante, informa acerca de la profunda crisis en que se encuentra la sociedad andina como resultado de la colonización española. Guaman Poma, a lo largo de su crónica, describe las tradiciones, los hábitos, las costumbres y las creencias de los incas recomponiendo el pasado y recuperando la memoria individual que será el soporte de la memoria colectiva, correspondiendo ésta, la memoria de los miembros de la civilización incaica y de sus descendientes. En la obra “Nueva corónica...” nuestro objetivo es señalar la crónica como un instrumento literario administrativo que tal igual al teatro es portadora de memorias. Esta lectura nos permite leer con Balandier que el poder establecido se realiza y se conserva por la transposición de imágenes, por la manipulación de símbolos y su organización. 386 Volume 4 | Literatura Espanhola Guaman Poma nombra a su crónica “Nueva” por presentar una versión de la historia precolombina y de la conquista, historia esta, hasta entonces, no conocida por los que se enteraron de la historia de Perú solamente a través de narraciones bajo los principios españoles. Así va a presentar detalladamente la cosmología incaica y compararla al modelo de la historia cristiana. Para preservar su punto de vista, Guaman escribe un largo texto en prosa, escrito en español y qechua y para complementar su texto escrito intercala 398 diseños que sirven para declarar sus posiciones y argumentar sus puntos, particularmente acerca del abuso colonial de la población nativa, además de ser el modo más directo y efectivo de comunicar sus ideas al rey y persuadirlo de intervenir en la colonia particularmente acerca del abuso colonial de la población nativa. La crónica indígena, de Guaman, tuvo por condenación el anonimato por tres siglos por tratarse de una denuncia del poder centralizador en la figura del conquistador, presentando a Francisco Pizarro como el responsable por el exterminio cruel de la población de andinos, así como fomentó la institucionalización de la religión cristiana y la creación de un estado andino soberano que integrará un imperio cristiano universal. No sabemos si Felipe III recibió la carta de Guaman Poma, pero sabemos que seguramente pasó por manos aristocráticas hasta, por fin, ser levada a la Biblioteca Real de Copenhague – Dinamarca, donde fue encontrada en 1908 por Richard Pietschmann y solamente en 1936 se presentó al mundo en una edición fac-símile. Las observaciones aquí propuestas se fundamentan en la teoría de que la memoria es la responsable por conservar y recuperar elementos de experiencias internas o externas, individuales o colectivas, es la que nos permite realizar operaciones mentales aprovechando las experiencias pasadas. Sin embargo, recrear la historia pasada a través de la literatura es una forma de concebir y revivir determinados hechos que se perderían a lo largo del tiempo, entendemos que la literatura se alimenta de memoria y la reconstrucción de esta memoria es el medio de combatir el olvido. Una vez más basándonos en Jacques Le Goff, la memoria ha constituido un pilar importante en la lucha por el poder conducida por las fuerzas sociales. Apoderarse de la memoria y del olvido es una de las máximas preocupaciones de las clases, de los grupos, de los individuos que han dominado y dominan las sociedades históricas. Durante mucho tiempo se luchó contra el intento de secuestrar la memoria para hacerla desaparecer de las manos de los “vencidos” que a lo largo de los siglos vivieron del olvido y dejaron de oírse sus voces y que por veces nunca tuvieron lugar en la historia. Así devolverles la voz es devolverles la dignidad, darles cuerpo y lugar, o sea tener la posibilidad de ser un documento. 387 Hispanismo 2 0 0 6 Referencias Bibliográficas AYALA, Guaman Poma de. Nueva Corónica y Buen Gobierno. Perú. Fondo de Cultura Económica. Tomo I, 1993. 334p. ---------. Nueva Corónica y Buen Gobierno. Perú. Fondo de Cultura Económica. Tomo II, 1993. 942p. BALANDIER, George. O Poder em Cena. Brasília: Editora da Universidade de Brasília , 1982. 215p. GREEN, O H. Notes on the Pizarro Trilogy of Tirso de Molina. Madrid.Hispanic Review, 4, 1936. 201p. LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo. Unicamp, 2003. 541p. MOLINA, Tirso de. Obras Dramáticas completas. Madrid. Ed. Aguilar. Tomo III, 1968. 775p. ZUGASTI, Miguel. La Imagen de Francisco Pizarro en el teatro áureo: Tirso, Vélez de Guevara, Calderón, en las Indias (América) en la literatura del siglo de oro (actas del congreso internacional), Navarra. Reichenberger, 1992. 127-44p. -----------Edición Crítica, estudio y notas de la Trilogía de los Pizarros de Tirso de Molina. Kassel. Reichenberger, 1993. 210p. 388 Volume 4 | Literatura Espanhola Apreciación literaria en la relectura: características del texto y expectativas del lector José M. Díaz y Mabel Urrutia. (Universidad de La Laguna/Islas Canarias, España) El punto de partida de nuestra investigación es saber en qué medida el proceso de lectura de un texto literario se modifica con las sucesivas lecturas que de él se hagan. La intuición (o el sentido común) indica que debe haber algún cambio: “Un hombre culto, como tú, sabe de sobra lo mucho que ayuda la repetición de la lectura en la comprensión del contenido. La dificultad en comprender es nula o mínima, sin duda, cuando se tiene facilidad en la lectura, y ésta va en aumento a medida que la lectura se repite, como si la constancia [hiciera madurar aquello que una cierta ligereza en la lectura] hubiera dejado superficial.” Carta sobre La Ciudad de Dios (HIPONA, 1988, p.33) Paradigma de relectura (DIXON,BORTOLUSSI, 1993, p.14) Supuestos básicos LESLIE & LEUNG, 1.- “La lectura de textos literarios es, de alguna manera, distinta de la lectura de textos en general. Más precisamente, asumimos que la lectura de los primeros genera efectos literarios, distintos de otros tipos de efectos textuales.” 2.- “Un rasgo distintivo de al menos algunos efectos literarios es que no ocurren espontáneamente durante la primera lectura de un texto, sino que se generan posteriormente, mediante el estudio y la reflexión.” El paradigma de relectura se basa en la siguiente secuencia temporal: ¬ A) Lectura de un texto ¬ B) Cumplimentación de una serie de preguntas sobre su apreciación ¬ C) Segunda lectura del texto ¬ D) Respuesta a las mismas preguntas contestadas tras la primera lectura “Suponemos que el cambio de una evaluación a la siguiente refleja los efectos emergentes que se producen con la segunda lectura. Denominamos a dicho cambio profundidad de la apreciación [depth of appreciation], en el supuesto de que refleja la apreciación añadida del texto, fruto de una comprensión más profunda.” (DIXON,BORTOLUSSI, LESLIE & LEUNG,1993, p.17) 389 Hispanismo 2 0 0 6 La principal novedad de la presente investigación es que emplea el paradigma de relectura para observar los efectos de una variable que nada tiene que ver con el contenido de los textos, es decir, con su carácter literario o no literario (que es lo que hicieron originalmente Dixon, Bortolussi y sus colaboradores). Nuestro propósito, en su lugar, es registrar los cambios de apreciación que tienen lugar cuando el lector se enfrenta a un texto escrito como un poema, en comparación con los cambios asociados a la lectura del mismo texto, pero presentado como prosa. Es por ello que hablamos del papel de las expectativas del lector. Presentación en verso Y el domingo llegó. Y en su puesto el muchacho los gestos rituales, lo de siempre, ilusiones. Viste su abrigo pardo, sus mejillas recientes de jabón del afeitado […] Presentación en prosa Y el domingo llegó. Y en su puesto el muchacho los gestos rituales, lo de siempre, ilusiones. Viste su abrigo pardo, sus mejillas recientes de jabón del afeitado […] Texto elegido: La manicura, un poema de Juan Gil Albert (1904-1994), autor fundamental en la poesía española de la segunda mitad del siglo XX. Se trata de un texto aparentemente sencillo, referido a un hecho trivial (el encuentro de una pareja de novios en una cafetería), pero que permite el desarrollo de multitud de inferencias. Podemos decir, con todas las precauciones del caso, que la lectura de este poema hace pensar en relatos como los de Dublineses, de James Joyce. ¬ Participantes: 86 estudiantes de primer curso de la licenciatura en Pedagogía de la universidad de La Laguna. ¬ Procedimiento: Pequeños grupos (aproximadamente 15 sujetos en cada uno), en una aula similar a la utilizada para recibir clases. ¬ Instrucciones en el propio cuadernillo. ¬ Tiempo de lectura libre. ¬ Secuencia: lectura, contestación a las preguntas, segunda lectura, nueva contestación a las preguntas. Resultados Serán presentados en tres partes: ¬ Efectos del momento: primera lectura frente a segunda lectura. 390 Volume 4 | Literatura Espanhola ¬ Efectos del género (aparente) del texto: prosa frente a poesía. ¬ Efectos del tipo de lector: habitual frente a esporádico (es decir, alto frente a bajo en la prueba ART) (1) Efectos de la variable Momento: Comparación de las respuestas tras la primera y segunda lecturas (2) Apreciación global del texto (El promedio de los siguientes tres ítems): ¬ ¿El texto es un ejemplo de buena literatura? ¬ ¿Disfrutaste leyendo el texto? ¿Le recomendarías a alguien este texto como lectura? En los tres casos, cuanto más alta sea la puntuación más positiva es la apreciación Primera lectura Segunda lectura (F (1,81) = 9’09, p < 0’01) (2a) Efectos de la variable Género: Comparación de las respuestas tras la lectura en verso y la lectura en prosa Apreciación global del texto F (1,81) = 3’66, p < 0’05)Preguntas abiertas 391 Hispanismo 2 0 0 6 El cuestionario incluía una serie de preguntas abiertas (Por ejemplo, “¿Cuál es el hecho más importante o crucial del texto?”). Al no contestarse numéricamente en una escala (como los ítems que hemos visto hasta ahora), su interpretación es distinta. Hay que analizar los contenidos de las respuestas redactadas por los sujetos. Mientras tanto, y para tener una idea preliminar de lo que está sucediendo, ideamos el siguiente procedimiento. Hicimos una estimación del mantenimiento (o cambio) del mismo título tras la primera y segunda lecturas. El índice numérico calculado se interpreta de la siguiente manera: Cuanto más próximo a 1, mayor la frecuencia de cambios. Por el contrario, cuanto más próximo a 0, mayor la estabilidad del título dado tras la primera lectura. (2b) Efectos de la variable Género: Comparación de las respuestas tras la lectura en verso y la lectura en prosa¿Cuál podría ser un buen título para el texto? Prosa Verso ( F (1,81) = 7’30, p < 0’01) Además de lo que hemos visto ahora, el estudio incluía una estimación de los hábitos lectores de cada participante: la prueba de Reconocimiento de Autores (Author Recognition Test), ideada por STANOVICH & WEST (1989).Se trata de un check-list en el que los sujetos deben señalar los nombres de aquellos autores que identifiquen como tales, a partir de una lista en la que aparecen entremezclados con igual número de distractores (nombres que no se corresponden con autores literarios. Sus autores denominan al rendimiento en esta prueba Familiaridad con el material impreso. Se puede considerar un indicador indirecto de los hábitos lectores: quienes leen con más asiduidad tendrán más facilidad para identificar correctamente los nombres de los autores reales; quienes leen menos tendrán mayor dificultad, y su rendimiento en la prueba será peor. 392 Volume 4 | Literatura Espanhola (3a) Efectos de la variable Grupo Lector: Comparación de las respuestas de los sujetos altos y bajos en el ART¿Crees que el texto tiene más de un nivel de interpretación? F (1, 81) = 3’81; p < 0’05) (3b) Efectos de la variable Grupo Lector: Comparación de las respuestas de los sujetos altos y bajos en el ART¿En qué medida te pareció que el texto era intencionadamente ambiguo? F (1, 81) = 8’14; p < 0’01) 393 Hispanismo 2 0 0 6 (3c) Efectos de la variable Grupo Lector: Comparación de las respuestas de los sujetos altos y bajos en el ART¿En qué medida el autor da a entender cosas que no están explícitas? Bajos Altos (ART) (F (1, 81) = 4’90; p < 0’03) (3d) Efectos de la variable Grupo Lector: Comparación de las respuestas de los sujetos altos y bajos en el ART ¿Cuál es el hecho más importante o crucial del texto? Bajos – Prosa : 0’57 Altos – Prosa : 0’33 Altos – Verso : 0’83 Bajos – Verso : 0’56 (F (1, 81) = 6’00; p < 0’01) Frecuencia en el cambio (tras la segunda lectura) en la identificación del hecho más importante del texto Discusión Hemos encontrado un efecto similar al de Dixon y colaboradores (1993): la segunda lectura de un texto literario da pie a una valoración más profunda del mismo. Ahora bien, en nuestro caso el fenómeno pone de manifiesto la importancia de una característica más precisa de los textos: 394 Volume 4 | Literatura Espanhola su presentación como prosa o poesía. Esta diferencia no es superficial. El que un texto aparezca ante el lector escrito en verso es un procedimiento muy eficaz para que se ponga en marcha el proceso de desvío o extrañamiento del que ya hablaron en su momento los formalistas rusos. Hay una discusión mucho más reciente de este fenómeno en El contorno del poema (BALLART, 2005, p.51). En ella podemos leer: “Superado el blanco de la página que lo rodea y le hace de marco, el poema nos espera con su oferta de una realidad familiar y extraña a la vez (…)” . Los efectos de la variable diferencial (lectores habituales frente a los esporádicos) son independientes en buena medida de los efectos de la relectura, y apuntan claramente a un otorgamiento (o tal vez habría que decir descubrimiento) de significados no evidentes en el texto. Este fenómeno, no obstante, podría ser más complejo. Así, por ejemplo, hemos detectado que la probabilidad de cambiar el “hecho más importante” de la historia (si comparamos las respuestas tras la primera y la segunda lecturas) es mayor cuando los buenos lectores se enfrentan a un texto en verso, y no en prosa.Queda por analizar la información cualitativa de las respuestas a los ítems abiertos del cuestionario. Preguntas como las siguientes: “¿Cuál podría ser un buen título para el texto?”, “¿Qué cambiarías en el texto para mejorarlo?”, …De la misma manera, sería interesante profundizar en la naturaleza de esas expectativas de los lectores, para determinar, entre otros aspectos, si presentan algún grado de conciencia, o si por el contrario (y como parece más probable) son inconscientes. Referencias Bibliográficas BALLART, P. (2005). El contorno del poema. Barcelona: Ediciones Acantilado. DIXON, P., BORTOLUSSI, L., LESLIE, T., & LEUNG, A. (1993). Literary processing and interpretation : Towards empirical foundations. Poetics 22, 5-33. HAKEMULDER, J. (2004). Foregrounding and its effect on readers’ perception. Discourse processes, 38(2), 193-218. HIPONA, A. La ciudad de Dios. (1988) Madrid: Biblioteca de autores cristianos. STANOVICH, K.E., & WEST, R.E. (1989). Exposure to print and ortographic processing. Reading research quarterly, 24, 402-433. 395 Hispanismo 2 0 0 6 A representação da heroicidade de D. Fadrique de Toledo na produção teatral castelhana e na épica hispano-americana no séc. XVII Karla Santa Bárbara Santos (UFG) e Antón Corbacho Quintela (UFG) Na “comédia” El Brasil restituido (VEGA CARPIO, 1957, p. 257-298), do castelhano Félix Lope de Vega Carpio (Madri, 1562-1635), e no poema épico Laurentina (AYROLO, 1983), do mexicano Gabriel de Ayrolo Calar, datados, respectivamente, em 1625 e em 1624, observa-se o compartilhamento de elementos semânticos do repertório literário do sistema cultural barroco. Ambas as obras destacam a ação de Dom Fadrique de Toledo Ossorio (1580-1634), o capitão-general da Armada da União Ibérica que dirigiu, in situ, o combate contra os holandeses no Estreito de Gibraltar em 1621 e a retomada, desses mesmos inimigos, da cidade de Salvador e da Baía de Todos os Santos em 1625. Na análise apresentada a seguir ao redor da figura de D. Fadrique de Toledo mostra-se como, em dois gêneros literários postos a serviço da propaganda da monarquia absoluta de Felipe IV (Filipe III de Portugal), eram construídas as representações de paradigmas de heroicidade para as armas ibéricas. Nesse sentido, o exemplo de D. Fadrique de Toledo conforma-se como símbolo da crise econômico-social e da instabilidade política que caracterizaram o reinado do penúltimo dos Habsburgos espanhóis. D. Fadrique de Toledo, após haver recebido honras militares e benesses nobiliárias ao longo da década de 1620 e de ter sido louvado pelos literatos da corte, caiu em desgraça perante o rei; no entanto, isso não foi óbice para que, in memoriam, Francisco de Quevedo (1580-1645) lhe dedicasse, mediante um soneto, um epitáfio incluído no Parnaso español (QUEVEDO, 1999, p. 102), obra em que o poeta conceitista exalta alguns agentes do poder da União Ibérica e em que, após relacionar Fadrique de Toledo com Netuno, destaca a coragem demonstrada nos serviços prestados pelo aristocrata castelhano ao monarca hispânico em prol da defesa do império e da fé católica. D. Fadrique de Toledo Ossorio e El Brasil restituido Lope de Vega nunca esteve no Brasil e não deixou testemunhos dos que se possa inferir que alguma vez sentiu vontade, ou teve a oportunidade, de conhecer América. De fato, a única vez que, comprovadamente, o “Fênix dos engenhos espanhóis” abandonou a Península Ibérica foi para participar, em junho de 1583, em uma expedição às Açores destinada a sufocar a resistência que, sob a chefia de D. António, o prior de Crato, fora oposta à autoridade de Felipe II [Filipe I] sobre Portugal. Contudo, o 396 Volume 4 | Literatura Espanhola autor madrileno compôs três obras de teatro de temática americana: El Arauco domado (em 1596), sobre a conquista do Chile, El Nuevo Mundo descubierto por Cristóbal Colón (em 1614), sobre o início da ocupação espanhola nas Índias Ocidentais, e El Brasil restituido (em 1625). No imenso corpus literário do dramaturgo barroco – 314 obras teatrais de comprovada autoria lopesca –, El Brasil restituido é uma “comédia”, isto é, uma peça teatral longa, que compartilha temática histórica lusitana com outras quatro: El Príncipe Perfecto (primeira parte em 1614 e segunda parte em 1616), sobre o reinado de D. João II, El más galán portugués, Duque de Berganza (de 1617), El Duque de Viseo (de 1617), uma dramatização das querelas desatadas em 1483 e 1484 entre D. João II e a grande nobreza portuguesa, e La tragedia del Rey Don Sebastián y Bautismo del Príncipe de Marruecos (1618). Lope assinou El Brasil restituido aos 23 de outubro de 1625, só seis meses após as tropas ibéricas derrotarem e expulsarem da Bahia as tropas batavas – 30 de abril de 1625. Nesse sentido, na classificação do teatro de Lope elaborada por Sánchez Romeralo (1989, p. 357-36), El Brasil restituido integra o conjunto de 98 comédias relativas a crônicas e lendas da Espanha, isto é, a crítica literária espanhola não considera que, perante Lope, a invasão holandesa de Salvador fosse um acontecimento alheio aos interesses da Espanha, senão que estava estreitamente vinculado ao absolutismo de monarquia espanhola. É preciso frisar que o tema da reconquista de Salvador inspirou, além da comédia de Lope, outra obra de teatro, intitulada Pérdida y restauración de la Bahía de Todos-Santos, publicada pelo portugués Juan Antonio Correa em 1670 (LISBOA, 1961) e, pelo menos, dezessete relações e crônicas, espanholas e portuguesas, ao longo do seiscentos. Até o séc. XX, o acesso dos leitores a El Brasil restituido resultou praticamente impossível. Isso se deveu a que, apesar de se haver conservado o original autógrafo do drama, a sua publicação só aconteceu em 1902, quando foi incluído por Menéndez Pelayo (VEGA CARPIO, 1902) no volume XIII das Obras de Lope de Vega editadas pela Real Academia Espanhola entre 1890 e 1914. Nessa edição, Menéndez Pelayo assinala que a primeira encenação da comédia aconteceu em 6 de novembro de 1625, o qual permite entender as razões da abundância de dados históricos incorporados a uma obra que almejava divulgar, com credibilidade, os acontecimentos ocorridos havia pouco. Posteriormente a obra recebeu várias edições. No Brasil, a obra foi publicada, por primeira vez, em 1957, com um vastíssimo estudo prévio realizado por Pascual Núñez Arca. As vicissitudes que padeceu o manuscrito de El Brasil restituido, os três séculos transcorridos entre a composição da obra e a sua 397 Hispanismo 2 0 0 6 primeira publicação, e o interesse secundário que despertou a obra se comparado com o sucesso dos produtos literários canonizados do corpus de Lope explicam a sua relativamente escassa fortuna crítica. Todavia, em El Brasil restituido observam-se todos os traços característicos, formais e ideológicos, do teatro de Lope. Essa comédia, dividida em três atos, não respeita a regras das três unidades, mistura o trágico e o cômico, combina personagens reais e alegóricos, possui a figura do “donaire” e está escrita em verso, com predomínio do octossílabo distribuído em estrofes variadas. Lope mostra nela como, desde um teatro barroco propagandístico comprometido com os interesses do poder da nobreza, se podia adulterar a apresentação da crise geral do séc. XVII. Os problemas no reinado de Felipe IV, aquém e além-mar, irromperam como conseqüência tanto dos conflitos econômicos relativos à propriedade da terra quanto dos desarranjos e inquietações sociais; mas, em El Brasil restituído, ignorando-se as razões estruturais que geravam as ameaças à soberania ibérica no Brasil, destaca-se a eficácia da ordem inerente ao habitus aristocrático e enfatiza-se a legimitidade dos privilégios senhoriais baseados na prática da virtude, na demonstração de heroísmo e na pureza da fé. De fato, no comentário lavrado aos 26 de setembro de 1625 por Pedro de Vargas Machuca dando autorização para a encenação da comédia salientava-se que: “la juventud de Madrid ha de ver representar acciones de los que conocieron y tratan en la paz, lucidas en el valor militar sirviendo a su Rey en defensa de su Religión” (NÚÑEZ ARCA, 1957, p. 261). Assim se tratando, a invasão de Salvador pelos holandeses aparece simplesmente como uma nefasta articulação da vontade expansionista da heresia protestante com a truculenta insubmissão e o raivoso ressentimento de uns judeus baianos desleais confabulados com seus patrícios da Holanda. De todas as formas, Lope de Vega procurou manter perante o público uma aparência de verossimilhança para a sua comédia que legitimasse a exaltação da Igreja Católica e da integração do Reino de Portugal no Império Espanhol. As nuanças de objetividade as obtém aludindo a precisos acontecimentos históricos, cujas informações retirara, provavelmente, das relações do mestre de campo Diego Ruiz ou de Francisco de Avendaño y Vilela, ambos participantes da “restauração”. No Primeiro Ato, apresenta-se o judeu Bernardo, magoado com as visitações do Santo Ofício em Salvador e com o desprezo que sofrera sua filha – Guiomar – por um fidalgo cristão – Diego –, que antepõe seu credo cristão ao desejo. Bernardo maquina com um espião batavo facilitar a entrada dos soldados heréticos. A ocupação da cidade produz-se apesar da resistência do governador e seus leais, concluindo o ato com a inter398 Volume 4 | Literatura Espanhola pelação do alegórico Brasil e de dois índios – Ongol e Darin – perante a Fama para que esta implore à Monarquia a proteção da “católica lei” e da “evangélica verdade”. Nos dois seguintes atos, intervêm Dom Fadrique de Toledo e suas tropas, os que, sob a mirada de Apolo, vingam o Brasil reintegrando-o na religião e na ordem monárquica dos Áustrias. No Segundo Ato, as alusões encomiásticas a Dom Fadrique são postas em boca do Brasil e do hispano-luso Machado, personagem em quem se condensa o retrato do “donaire”. Do galhardo “general de mar e terra” destaca-se a sua prosápia, compara-se seu talante com os de Pirro, Aquiles, César, Alexandre, Cipião e Massinisa e lembra-se a sua gesta na Baía de Cádiz. No Terceiro Ato, de Dom Fadrique faz-se sobressair o exemplo de valentia, constância e prudência que ele, na guerra, dá aos seus soldados e a benevolência com que ele se comporta perante os derrotados. A comédia encerra-se com a homenagem que o Brasil e a Religião prestam a Dom Fadrique, a quem o Brasil se dirige com as seguintes palavras: “Con este laurel,/ ¡oh, generoso Toledo!/ corona tus dignas sienes/ por tantos gloriosos hechos/ el Brasil restituído,/ principio de los deseos/ de serviros, aunque fin/ de tan heroico suceso” (NÚNEZ ARCA, 1957, p. 297). D. Fadrique de Toledo Ossorio e Laurentina Quando, em 1983, os reis da Espanha, Dom Juan Carlos e Dona Sofia, visitaram o Brasil, a editora Pool, do Recife, considerou que o melhor presente com que os podia homenagear era uma edição fac-similar com transcrição paleográfica de Laurentina. Seu autor, Gabriel Ayrolo Calar, é um padre mexicano do séc. XVII que advogou nas Reais Audiências de México e de Sevilha. Na Universidade de México, estudara leis. Logo viajou a Espanha, onde residiu em Cádiz, obtendo o reconhecimento de Felipe III; após três anos na Península regressou à América ibérica e ocupou o cargo de chantre da Catedral de Guadalajara, na “Nueva España”. Laurentina foi publicado no ano de 1624, em Cádiz, no prelo de Juan de Borja; trata-se de um poema épico dividido em nove cantos compostos por um número variável (entre 35 e 40) de oitavas clássicas. O título Laurentina remete a São Lourenço, santo protetor dos Habsburgos, em cuja onomástica, 10 de agosto do ano de 1621, aconteceu o combate naval mantido por Fadrique de Toledo frente aos holandeses no estreito de Gibraltar. A estrutura deste poema épico segue o modelo clássico da epopéia ao se dividir nas três canonizadas partes: a introdução – proposição, invocação e dedicatória –, a narração e o encerramento. Neste canto propagandístico de uma presumível honrosa vitória da unidade luso-espanhola, exalta-se, do lado da monarquia e da religião, a bravura e a virtude da 399 Hispanismo 2 0 0 6 elite da aristocracia guerreira leal aos Áustrias, cujo paradigma é a Casa de Toledo representada por Pedro de Toledo e, sobretudo, seu filho, Fadrique de Toledo. De fato, a longa dedicatória do poema é dirigida a Pedro de Toledo, “Marquês de Villafranca, Conselheiro de Estado e de Guerra do rei e Capitão-general da Espanha”. Laurentina foi publicado com um enfático respaldo de algumas autoridades da Corte que vivia a transição entre os reinados de Felipe III e Felipe IV. A obra vai precedida por uns poemas laudatórios dedicados a Ayrolo compostos pelo mexicano Diego López de Herrera, “Regidor perpétuo da Imperial Cidade de Toledo”, por Lorenço Ortuño de Berrio, “Catedrático de Código da Universidade de Sevilha”, por Gerónimo de León, “Auditor da Real Armada do Estreito de Gibraltar”, e por Diego Ramírez de Haro, “Cavaleiro da Ordem de Alcántara”. A obra combina a intervenção de elementos míticos greco-romanos com um pio catolicismo, sincreticamente aliados a emulações ibéricas dos agentes históricos da heroicidade ocidental que visavam vencer os protestantes neerlandeses. Assim, enquanto os espanhóis são protegidos por São Lourenço, D. Fadrique é comparado aos deuses Marte e Apolo e aos generais César e Alexandre. Observa-se, portanto, uma intercalação de constantes referências a fitos bélicos criados no plano mitológico do maravilhoso pagão com a exposição dos fatos históricos, o qual ressalta a idéia de um destino assegurado pela fidelidade dos hispano-lusos à fé católica. Os holandeses, por sua vez, são retratados, convenientemente, como a antítese dos espanhóis. Destarte, nas alusões a eles – inumanos, cruéis e desesperados – vaticina-se a derrota natural a que estão destinados: O bárbaro Olandes, que assi contigo/ Tan inhumano fuiste amedrentado,/ A que pena mayor, a que castigo/ Te pudiera llevar mísero hado?/ No fuera tan cruel el enemigo/ Como lo fuiste tu,/ desesperado/ Contra ti mismo, nunca mano agena/ Te castiga con tan grave pena (AYROLO CALAR, 1983, p.249). No Segundo Canto, o prognóstico de um triunfo certo, porém trabalhoso, é transmitido a D. Fadrique por divindades que representam a “fama” e as “tormentas” que serão enfrentadas no mar. A exposição do enfrentamento direto com os holandeses abrange do Terceiro Canto ao Oitavo. O Terceiro e o Quarto cantos narram a recepção da primeira notícia chegada à Real Armada no estreito de Gibraltar sobre as naus holandesas e os primeiros combates. No Quinto Canto expõe-se um panegírico do general D. Carlos de Ybarra e do almirante D. Alonso de Moxica, ambos comandando a luta contra os holandeses. Os cantos seguintes dão continuidade ao relato das façanhas de D. Fadrique. No Sétimo Canto recebe-se já a 400 Volume 4 | Literatura Espanhola notícia da boa sorte da Armada hispano-lusa, à qual, no Oitavo Canto, a Cidade de Cádiz remete as suas felicitações. No hiperbólico Nono Canto realça-se a suposta justa fama de D. Fadrique e reconhece-se a valentia dos seus generais e almirantes. Nesse canto derradeiro, o autor dedica a D. Fadrique os seguintes versos: Y tu gran General, que nombre eterno/ Adquieres con tus hechos milagrosos,/ Un siglo vivas, que mejor govierno/ Eternizes tus años venturosos:/ Seras nuevo Alexandro Ioven tierno,/ Que ofrece con tus hechos valerosos,/ Vida a los tiempos, copia a grandes sumas,/ Lengua a la fama, y con que buele plumas. (AYROLO CALAR, 1983, p. 341). Do exposto, conclui-se que, tanto em El Brasil restituido quanto em Laurentina, se patenteia a barroca vontade ou, talvez, o oportunismo ou a obrigação, postos na construção de representações épicas de um aristocrata que combatia para proteger a autoridade da União Ibérica em uns domínios em que a monarquia absoluta de Felipe IV começava a experimentar uma lenta mas inevitável decadência. Referências Bibliográficas AYROLO CALAR, G. Laurentina: poema heroico de la victoria naval que tuvo contra los holandeses don Fadrique de Toledo Osorio. Recife: Pool Editorial, 1983. LISBOA, J. C. Uma Peça Desconhecida sôbre os holandeses na Bahia. Rio de Janeiro: MEC – INL, Coleção de obras raras VI, 1961. NÚÑEZ ARCA, P. Os três Felipes da Espanha que foram reis do Brasil: um capítulo esquecido da história do Brasil; reivindicação histórica dos 60 anos do período filipino. São Paulo: Edigraf, 1957. QUEVEDO, F. Sonetos de amor e de morte. Madri: La Factoría de Ediciones; Brasília: Consejería de Educación y Ciencia de la Embajada de España, 1999. SÁNCHEZ ROMERALO, A. (ed.). Lope de Vega. El teatro, vol. II. Madri: Taurus, 1989. VEGA CARPIO, F. L. Crónicas y leyendas dramáticas de España: séptima y última sección [1902]. Obras de Lope de Vega, publicadas por la Real Academia Española. Madri: Sucesores de Rivadeneyra, 1890-1913. -----. El Brasil restituido. In NÚÑEZ ARCA, P. Os três Felipes da Espanha que foram reis do Brasil: um capítulo esquecido da história do Brasil; reivindicação histórica dos 60 anos do período filipino. São Paulo: Edigraf, 1957. 401 Hispanismo 2 0 0 6 La España del 36 en la mirada de un cronista brasileño Mª Belén García Llamas (ICRJ) El marco histórico de Espanha em sangue… En esta comunicación hablaré de la Guerra Civil Española (GCE)a vista a través de la mirada de un periodista del Correio da Manhã, Soares d´Ázevedo, autor de Espanha em sangue… o que vi e soffri, un documento excepcional que retrata, desde el punto de vista de la derecha brasileña, los acontecimientos revolucionarios de los primeros meses de la guerra en el escenario de la defensa de Madrid por los milicianos, y el sufrimiento de la ciudad de Valencia atacada por las bombas. No pretendo en el pequeño espacio de esta comunicación dar cuenta de todos los temas que se desarrollan en este libro. Basta por ahora este breve esbozo para mostrar de qué manera se estaba creando una opinión sobre la GCE en el Brasil que se encaminaba al “Estado Novo”. Para analizar Espanha em sangue... tomaré a la nueva mujer surgida de la Revolución como un hilo conductor que me permitirá enlazar asuntos como la revolución social, que afectó de manera especial a las mujeres; el caso Prestes; la eliminación de los privilegios de clase; la persecución religiosa. Por supuesto, necesitaré situar mi narración en el contexto histórico en que se desarrolla, tanto en España como en Brasil. Espanha em sangue… nos permite penetrar en los escenarios cotidianos de la GCE. A través de Soares d´Azevedo, el lector puede acceder a informaciones sobre la vida diaria y la cultura vivida en los tres primeros meses de la contienda, no desde la esfera de lo oficial, y sí desde otras variables, como son las prácticas sociales; los rituales. Además, el texto nos ofrece el punto de vista de un brasileño católico partidario del golpe militar de Franco. Creo que las imágenes negativas de la Revolución Española transmitidas a los lectores brasileños bajo el gobierno de Vargas a través Espanha em sangue… tenían por objetivo formar una opinión pública brasileña favorable al establecimiento del “Estado Novo”. En 1937, Fernando Morales Llamas, representante oficial de la España republicana en Brasil, protesta por el cierre arbitrario de los centros a favor de la República Española de São Paulo y Río. En noviembre de ese año debe de nuevo reclamar al Itamaraty contra el espectáculo benéfico organizado por la Falange Española en el Teatro Municipal de Río de Janeiro. Brasil y España estaban luchando en campos idénticos de batalla y corriendo suertes parecidas. En 1936, cuando a Soares d´Azevedo le sorprende la Revolución en Madrid, Brasil estaba a las puertas de lo que sería el Estado Novo (1937-1945), y que se formalizaría a partir del golpe 402 Volume 4 | Literatura Espanhola de Getúlio Vargas el 10 de noviembre del 37. El pensamiento conservador católico estimula, bajo los auspicios de la jerarquía de la iglesia, una editorial beligerante contra las ideas racionalistas, laicas y de izquierda. Es la editorial llamada “Cruzada da Boa Imprensa”. Es esta la editorial que publica el libro de Soares d´Azevedo en Río de Janeiro en 1937. La Guerra Civil Española (1936-1939) fue un conflicto que no sólo afectó a los españoles. Ellos fueron, es verdad, los grandes afectados y sus víctimas principales. Pero esta guerra conmovió al mundo, que se movilizó con sus voluntarios para luchar en España. Aunque su gobierno no simpatizaba con la República Española, sin embargo algunos brasileños decidieron participar en el conflicto por motivaciones personales. Se alistaron judíosb y militantes de partidos de izquierda, casi todos comunistas.c Algunos continuaron su lucha participando en la Resistencia Francesa durante la II Guerra Mundial. Semblanza de un pueblo en guerra: Espanha em sangue… El autor del Prefacio de Espanha em sangue… es el P. Huberto Rohden, Director da Cruzada da Boa Imprensa, que compara el viaje de Soares a España con el de Dante a los infiernos. La prosa del P. Huberto Rohden es un sermón repleto de imágenes apocalípticas. Los temas recurrentes de Espanha em sangue… son: El caso Prestesd; las nuevas formas de convivencia revolucionaria, especialmente si las mujeres son sus protagonistas; la supresión de los derechos de clase; la persecución religiosa; el peligro de una revolución comunista en el mundo, - ahora en España, próximamente en Brasil -, que los católicos deben impedir. El periodista exhorta a los brasileños católicos a que actúen políticamente para impedir el avance de ideas peligrosas. Espanha em sangue… contiene 17 capítulos. Soares d´Azevedo realizó un trabajo periodístico considerable. Sin duda, temió por su vida en numerosas ocasiones, (era un vaticanista en medio de la revolución), estuvo en los frentes de batalla y en los bombardeos de las ciudades; entrevistó a disidentes de la República, a refugiados extranjeros, a diplomáticos de su país, a gentes del pueblo. Las crónicas debían salir por valija diplomática o a través de alguien que arriesgaba su vida, en correos aéreos o ferroviarios no siempre capaces de traspasar los frentes para alcanzar el mar.e La importancia creciente del papel de la mujer durante la II República culmina con la Revolución del 36. La Iglesia Católica y la derecha consideraban las reivindicaciones femeninas un escándalo; el lugar de la mujer estaba en su casa cuidando de su familia. Soares d´Azevedo desprecia a las mujeres emancipadas, mujeres que quieren transitar tanto en la es403 Hispanismo 2 0 0 6 fera privada como en la pública, y las que convierte en protagonistas frecuentes de sus comentarios. Así, se horroriza de esta ‘mujer nueva” que comparte tareas con los hombres y que ocupa los puestos dejados por las monjas en escuelas y enfermerías. Se burla de ellas incluso cuando le escoltan y salvan su vida en las calles de Madridf: Ha duas milicianas, que certamente têm pae, e me conduzem carinhosamente, a través do mais violento bombardeio que me feriu os ouvidos, através das “calles” madrilenhas, [...] Ellas vão de carabina, os seus grandes olhos negros vigiando as esquinas, os seus braços de jaspe presos á carabina de ultimo modelo. “Atención!”… O tiroteo prosegue desesperado, […] “Adelante, señor”… (SOARES D´AZEVEDO, 1937, p. 120-121). Brasil estaba muy presente en la España de 1936. De mujeres son las voces a favor de Prestes: […] grupos de mulheres em desalinho erguem os punhos fechados e gritam: De norte a sul, de léste a oéste, libertad de Prestes!” (SOARES D´AZEVEDO, 1937, p.17). El caso Prestes había conmovido a la opinión pública de izquierdas, y de hecho su prisión era un escollo diplomático entre el gobierno de Vargas y el gobierno de Largo Caballero. Además, Brasil abrigó durante la guerra a un gran número de refugiados acusados de crímenes políticos por el gobierno republicano. Por eso probablemente, en los primeros meses de guerra, la Embajada sufriría dos tiroteos, atribuidos a comunistas. El Embajador brasileño le dice al periodista que esto sucede: […] por causa da questão Prestes. Sua mãe e sua irmã andaram por aquí e chegaram a convulsionar a Espanha toda. O povo ficou conhecendo o Brasil como um dos acérrimos inimigos do communismo. (SOARES D´AZEVEDO, 1937, pp. 34-35). Prestes era un líder admirado en la España republicana. El “Himno a Carlos Prestes” se cantaba en las calles madrileñas del 36 y su música se reutilizó para la “Marcha de las Brigadas Internacionales”. Parte de la canción decía: EI pueblo brasileño forma sus huestes al son de la llamada de Luís Carlos Prestes. Pueblo fiel, que estuviste adormecido, se acabó tu existencia esclavizada. ¡Ayudemos al Pueblo brasileño que se apresta a librar la gran batalla!g 404 Volume 4 | Literatura Espanhola Durante la Revolución se operó un cambio en el vestido. Después del 18 de julio, hombres y mujeres visten el mono, símbolo de la clase trabajadora. Una joven avisa a Soares d´Azevedo: Tire o paletot, a gravata e o collarinho. A republica é dos operários. [...]. (SOARES D´AZEVEDO, 1937, p. 25). Es la guerra en su cara verdadera, como lucha de clases: E matavam quantos encontravam de collarinho e gravata, porque collarinho e a gravata para elles é signal de riqueza ou de abastança. (SOARES D´AZEVEDO, 1937, p. 116). El gobierno mandaba comida incautada de los palacios y restaurantes refinados de Madrid. Soares d´Azevedo se burla de cómo los milicianos mezclan comidas exquisitas con platos ordinarios en el frente de batalla de Somosierra. Los soldados bebían champán y comían chorizos con “paté de foie gras”. Escribe: “Vi um miliciano comer um grande naco de presunto acompanhado de una garrafa de “Veuve Cliquot”, um outro misturando pudim com sardinhas em lata...” (D’AZEVEDO1937, p. 69). Soares admiraba la riqueza y las maneras elegantes de la aristocracia y del cuerpo diplomático. En la Embajada brasileña, Soares puede aislarse de los ecos de la revolución, o como dice: …tenho o ineffavel prazer de me communicar com patricios… (D´AZEVEDO, 1937, p. 34). Con orgullo añade: “el mejor palacio de embajada es el nuestro” porque el Embajador Peçanha trajo consigo sus objetos de arte, diez toneladas de mármol riquísimo, un piano de alto costo, un órgano “de no sé cuántos siglos”, y mesas de altísimo lujo; etc. (D´AZEVEDO, 1937, p.73), Mientras que en Madrid falta leche, no hay verduras, el tabaco escasea, (D´AZEVEDO, 1937, p. 37), dentro del recinto diplomático el menú sigue siendo refinadísimo. En 1938 la Embajada sufre la confiscación de los objetos de arte pertenecientes al Embajador que, por cierto, terminará su labor en España sufriendo un intento de asesinato por parte de los falangistas en 1939. El brasileño desprecia “la “falta de clase” de los milicianos, pero debe reconocer su valentía. En su crónica del frente afirma: …sem a menor instrucçao militar…. [...]. Mas são valentes, …[…] De um e de outro lado da estrada, é uma chuva de balas que cai sobre elles. Morren, mas os que lhes vêm atrás os substituem pulando por cima dos cadáveres dos companheiros e avançando sempre até por sua vez serem dizimados. (Soares d´Azevedo 1937, p. 68). Las milicianas, armadas por el gobierno republicano, participaron en los primeros meses directamente en acciones de guerra. Ellas, junto a los hombres, gritaban “¡Las armas al frente!”. Al brasileño sus actividades no le parecen apropiadas para el sexo femenino: 405 Hispanismo 2 0 0 6 Contam-se por centenas as mulheres que combatem nas avançadas da serra, tanto para os lados de Somosierra como para os lados da Guadarrama, Mulheres de busto inteiramente nú, armadas até os dentes, que grimpam a montanha, arrastam-se pelo sólo, arranham a terra, praguejam e levam á bôca o punhal de aço de Toledo. Em Madrid, topo eu com ellas a cada passo, revistando os transeuntes, examinando a documentação, apalpando (cacheando) os suspeitos de fascismo: e tambem as vejo montando guarda aos estabelecimentos públicos, desfilando com garbo pelas avenidas, fiscalizando os bondes e até mesmo defendendo metralhadoras. (D´AZEVEDO, 1937, p. 43). A diferencia de las mujeres republicanas, defensoras del “amor libre”, las del frente nacional son decentes. Como dice maliciosamente Soares d´Azevedo, “las enfermeras de sus hospitales son sólo enfermeras”, (D´AZEVEDO, 1937, p. 70). A propósito del tema del honor, Soares cuenta el caso ocurrido en el Alcázar de Toledo, en que una joven esposa de un oficial sublevado, en un acto de locura, atraviesa el campo de batalla completamente desnuda. El marido, preso de vergüenza, y ante la posibilidad de que “el enemigo ponga las manos en sus carnes blancas y honestas” dispara y mata a su esposa. (D´AZEVEDO, 1937, p. 27). El pueblo revolucionario odiaba lo que representaba la Iglesia Católica. La izquierda y la Iglesia se enfrentaban principalmente por la cuestión de los privilegios de clase, la reforma agraria y por la competencia en la política educativa. Así, desde la perspectiva del periodista, el conflicto armado se transforma en una cruzada contra el ateísmo. La persecución religiosa es más abyecta cuando la ejecutan mujeres: Mais além, duas mulheres, empuñando carabinas á direita e latas de gasolina á esquerda, dirigem-se para outra igreja…” [...] Velhas viragos, de bigode, mulheres que de muhler só parece terem o sexo, abandonavam o templo revestidas dos paramentos ecclesiasticos, de pura seda, bordados riquíssimos. (D´AZEVEDO, 1937, pags. 23 e 50). La Iglesia Católica veía amenazada su hegemonía en el campo de la enseñanza, tanto en España como en Brasil. La Reforma Educativa laica de Anísio Teixeira (Secretario de Educación del Distrito Federal durante el gobierno de Pedro Ernesto Batista), llamada Movimento da Nova Escola, se levantaba sobre los mismos ideales de nuestra Institución Libre de Enseñanza: la implantación de una enseñanza pública, universal, gratuita y laica; y la creación de una universidad de alta calidad, (Universidade do Distrito Federal, fundada en 1935 y cerrada en 1937). El objetivo era idénti- 406 Volume 4 | Literatura Espanhola co: la formación de dirigentes progresistas que lideraran los cambios que ambos países necesitaban. La apuesta brasileña no pudo ser; después de la eclosión comunista de 1935 las presiones contra Anísio Teixeira fueron tan graves que Batista tuvo que destituirlo. Pocos meses después el propio Batista fue preso. En España, después de la guerra, sólo fue viable la escuela dentro del espíritu nacional-católico del franquismo. A modo de conclusión ¿Este es un episodio cerrado de la historia? No. La contienda y sus secuelas son todavía una herida abierta en la memoria de los españoles. La GCE estalló hace 70 años, y han transcurrido 75 desde la proclamación de la II República Española. En abril, después de variadas discusiones parlamentarias, el Congreso de los Diputados de España declaró el 2006 como el “Año de la Memoria Histórica” con el fin de promover actos de homenaje a las víctimas de la guerra y del franquismo. Asimismo, la quiebra de la democracia en España después de la derrota republicana cuestiona las actuaciones de los gobiernos del mundo. Por esta razón, el Parlamento Europeo en julio de este año 2006 condenó el alzamiento militar y la dictadura franquista. Con las crónicas de Soares d´Azevedo es posible reconstruir la Revolución Social con sus valores y hechos cotidianos más significativos. Espanha em sangue… representa un valioso testimonio por su carácter de crónica ciudadana de un periodista conservador brasileño; y nos proporciona un discurso polifónico porque a través de las descripciones de la población en guerra podemos conocer diferentes visiones del conflicto. Así pues, a pesar de la opinión negativa de Soares d´Azevedo, el lector actual se emociona al percibir el valor, el sufrimiento y la entrega de los que vivieron aquella experiencia histórica aún tan viva en nuestra memoria, y en especial, nos permite reencontrarnos con esos jóvenes, hombres y mujeres nuevos que nacieron –y murieron- con la Revolución Española. Referencias Bibliográficas D´AZEVEDO, Soares, Espanha em sangue... o que vivi o que soffri. Rio de Janeiro, Cruzada da Boa Imprensa, 1937. DE CARVALHO, Apolonio, Vale a pena sonhar, Rio de Janeiro, Rocco, 1998. SAMET, Henrique, Non Passaran olvidados: Judeus do Brasil na Guerra Civil Espanhola e Resistência Francesa, [Documento en red: http://www. espacoacademico.com.br/041/41csamet.htm] [Consulta: 4 / 7/ 2006. 407 Hispanismo 2 0 0 6 Notas a b c d e f g A partir de ahora, GCE. En el artículo: Non Passaran olvidados: Judeus do Brasil na Guerra Civil Espanhola e Resistência Francesa,de Henrique Samet, Profesor da Faculdade de Letras da UFRJ, se identifican 24 judíos de Rio Grande do Sul que marcharon a España [Documento en red: http://www.espacoacademico.com.br/041/41csamet.htm] [Consulta: 4 de mayo de 2006] Se habla de 16 comunistas brasileños en el artículo: Os brasileiros que enfrentaram Franco. [Documento en red: http://www.usp.br/agen/bols/2000/rede582.htm][Consulta: 6 de mayo de 2006]. Es muy recomendable la lectura de la biografía de un brigadista brasileño en la guerra de España, DE CARVALHO, Apolonio; 1998, Vale a pena sonhar,Rocco, Rio de Janeiro. También es interesante el libro de José Gay da Cunha, Um brasileiro na guerra civil espanhola, editorial Alfa-Omega. Así, el encarcelamiento y el clamor internacional por la prisión de Prestes en el prefacio se presenta como una de las señales del estallido revolucionario con los eslóganes que se oyen por toda España: Onde está o Prestes? Liberdade para o Prestes!” La conclusión del sacerdote es: O Brasil é alvo de odio da parte de Espanha sovietizada. Luis Carlos Prestes encarnava a esperanza de Moscou na América do Sul. (SOARES D´AZEVEDO, 1937, p. 9). (SOARES D´AZEVEDO, 1937, pp. 32,33,35,36,43,76,127,151,). Duas mulheres milicianas, nuas da cinta para cima, com o correame pasándo-lhes por entre os seios, apontam-me as carabinas. Digo-lhes quem sou, exhibo minha documentação, e peço me acompanhem á embaixada brasileira, o que ellas fazem com garbo.[...] Desço a Alcalá, pela Puerta del Sol. Vou pomposamente ladeado de duas jovens armadas até os dentes, cartucheira bem provida, punhal á cinta. [...] (SOARES D´AZEVEDO, 1937, pp. 31-32). En “Canciones Republicanas de la Guerra Civil Española” puede encontrarse el himno cantado y su letra. [Documento en red: http://personales.ya.com/altavoz/canciones.htm] [Consulta: 10 de juliode 2006] 408 Volume 4 | Literatura Espanhola Cavaleiros e jagunços, espadas e carabinas em EL CANTAR DE MÍO CID E SERRA DOS PILÕES: uma leitura estilística Maria de Fátima Rocha Medina (Centro Universitário Luterano de Palmas /Faculdade de Educação, Ciências e Letras de Paraíso ) Introdução Pertencentes a lugares, épocas e gêneros distintos, as obras El cantar de Mío Cid e Serra dos Pilões têm em comum o espírito da Idade Média que se caracterizou “por su visión del mundo señorial-teocéntrica” (BOUSOÑO, apud Jiménez y Cáceres, 1997, p. 12). Seja nas terras divididas da Espanha medieval ou nos isolados sertões do Tocantins, no século XX, os personagens de ambas as narrativas se articulam a fim de recuperar a honra (política e familiar) ou vingar amigos ofendidos. Originados de fatos verídicos como a participação de Rodrigo Díaz na reconquista de territórios cristãos das mãos de muçulmanos e a invasão da cidade de Pedro Afonso, por Abílio Batata, os textos constituem (re)criações literáriasa. Em versos épicos, ao cantar os feitos grandiosos do senhor, Mío Cidb, ou em parágrafos de uma narrativa realista que segue os passos do capitão Labareda, o espírito medieval se entrelaça nas duas obras. Ambas abordam o isolamento no qual viveram (ou ainda vivem) as comunidades campesinas localizadas distante das grandes cidades, como também o espírito religioso que se amalgama à coragem e ao destemor de bravos lutadores inseridos numa rígida estrutura de poder. “(...) El sentimiento religioso parece impregnar todos los órdenes de la existencia. Pero lo religioso es, para el hombre del Medievo, una compleja vivencia en que a menudo se funden lo sagrado y lo profano.” (JIMÉNEZ y CÁCERES, 1997, p.12) Com espadas ou carabinas, montados em cavalos ou em burros, matar e morrer são faces da mesma moeda para cavaleiros e jagunços que, sob a proteção de Deus, lutam pela honra a ser recuperada ou pela vingança a ser feita. Em estilos distintos, os textos relatam batalhas sangrentas cheias de matizes diversos ao sabor estético selecionado por cada escritor e revela, em pleno século XX, a visão medieval de mundo dos séculos XI e XII. De acordo com Bakhtin (1998, p.68), Todos os momentos da palavra que realizam composicionalmente a forma, transformam-se na expressão da relação criativa do autor com o conteúdo: o ritmo, agregado ao material, é levado para além dos seus limites e começa a penetrar no conteúdo por si só como uma relação criativa com ele, transfere-o para um novo plano axiológico: o plano da existência estética. 409 Hispanismo 2 0 0 6 Numa possível abordagem estilística (BAKHTIN, 1998; e WELLEK, 2003), este trabalho enfoca o ritmo ligeiro e musicalizado da obra anônima e o caráter lento e descritivista do texto de Moura Lima (2001). Cavaleiros e jagunços por vales e sertões: a rapidez dos cavalos e a lentidão dos burros Ambas as obras constroem as narrativas em torno de um chefe que, junto com cavaleiros ou jagunços, luta em campo aberto. El Cid, desterrado pelo rei Alfonso VI por questões políticas, antes de sair do reino de Castilla, rumo a terras como Zaragoza, Barcelona e, sobretudo, Valencia, reúne um pequeno grupo de amigos para segui-lo. Com a ajuda deles, o cavaleiro pretende reconquistar terras cristãs que estavam em poder de muçulmanos, uma estratégia considerada nobre, para recuperar a honra diante do monarca. Ánimo, Alvar Fáñez, ánimo, de nuestra tierra nos echan, pero cargados de honra hemos de volver a ella. (p. 9) Já o Capitão tocantinense sai em busca de Abílio Batata e seus seguidores, que se encontram escondidos na Serra do Jalapão, a fim de vingar a morte de um amigo assassinado na Vila de Pedro Afonso. Labareda leva um grupo de jagunços para ajudá-lo a realizar tal empreitada. O bando de jagunços segue a trilha, armado até os dentes, em completa algazarra. O capitão que comanda aqueles homens, de carabina atravessada nos ombros, com as cananas cheias de bala e com dois punhais na cinta... (LIMA, 2001, p.16) O fato de ambos percorrerem espaços abertos, aparentemente lineares, montados em cavalos e burros/mulas, chama atenção em uma abordagem estilística. Os animais que eles usam como meio de transporte delineiam o perfil de cavaleiros e jagunços, além de caracterizar a singularidade da própria narrativa, cujas artimanhas expressivas empregadas em cada obra estabelecem oposição entre as duas. Na obra espanhola, a história tem a rapidez, a leveza (CALVINO, 1990) e o compasso ritmado dos cavalos. Mío Cid, o cavaleiro invencível, montado em Babieca, parece transpor de forma mágica o espaço físico, enquanto a história transcende o papel para aproximar o leitor das andanças cavalheirescas. 410 Volume 4 | Literatura Espanhola (…) al llamarlo por su nombre, Babieca cabalga; echó una carrera; fue extraordinaria. Cuando terminó de correr, todos quedaron maravillados. (p. 129) Esse tipo de montaria reforça o prestígio e o espaço ocupado pelo cavaleiro na Idade Média que, geralmente, pertencia à aristocracia feudal. Por isso Cid, embora exilado, recebe o respeito e a vassalagem dos companheiros de batalha. “Ya llegais, Martín Antolínez, mi fiel vasallo” (p. 23). Seus fiéis vassalos levam bandeira erguida e espada, que resplandecem não somente no campo de batalha, fazendo tremer o inimigo muçulmano, como também iluminam a narrativa, de forma a opor o caráter sombrio caracterizador da época. A luminosidade e elegância promovidas pelos adereços e pela montaria dos cavaleiros tornam as batalhas e o longo poema dramaticamente leves e fluidos. Já no romance tocantinense, ao contrário dos cavalos velozes, prevalecem os burros e as mulas que, neste trabalho, sugerem a preferência do escritor por uma narrativa lenta como o ritmo compassado de tais animais resistentes às altas temperaturas do sertão. “Os cascos dos burros batem na areia fofa como se fossem tambores surdos, naquele baticum nervoso da marcha“ (LIMA, 2001, p.60); “o cabra Miguel do Brejo segue no trotar de pilão, como se estivesse sendo socado, no lombo do burro preto” (p.53). A história, assim, trilha vagarosamente os caminhos da narrativa na qual os jagunços se assemelham a animais rastejadores: “os corpos deslizam como cobra, por entre moitas e cipoal” (p. 168); ”o grupo continua a marcha pela trilha, que ora desaparece no capim-agreste, ora surge igual a uma serpente pela imensidão da terra arenosa” (p.153); “Labareda, naquele olhar peçonhento que derrama veneno”; “(...) nas mãos daqueles terríveis cascavéis de chocalhos acesos, prontos para o bote mortífero” (p.61). Tais comparações, freqüentes em todo o texto, sugerem uma visão negativa daqueles homens raivosos, capazes de matar sem piedade nem remorso. Em Mío Cid, a reiteração do verso “él que en buena hora nació” (p.175), do início ao final do poema funciona como um refrão que, além de promover uma intensa musicalidade, juntamente com as rimas misturadas e os encadeamentos constantes, enaltece veementemente o chefe. Tal artimanha expressiva caracteriza o ritmo popular da época; no entanto, supera-o pela eloqüência e fluidez com que é estruturado, a galope ritmado, todo o poema. Em Serra dos Pilões, ao contrário, a descrição detalhada e lenta da história torna o capitão Labareda mais cruel e temido, inclusive para seus 411 Hispanismo 2 0 0 6 próprios companheiros. “Labareda, que se encontra agachado à sombra do jatobazeiro, levanta-se e diz raivoso: - Me traga esse fio-da-puta, agora!” (...). ”– Gavião, fure o cachorro bem devagar, no sangradouro... (p. 19)”. Em vez de espada ou mesmo carabina, contra o inimigo mais desprezado os jagunços utilizam a faca, ferramenta que exige maior proximidade com a vítima e mais tempo para fazer o ‘serviço’. Além disso, enquanto os cavaleiros pertenciam a uma aristocracia, os jagunços, temidos pelas pessoas de bem, são fugitivos da lei que encontram na jagunçagem um modo de vida. A conversa entre os sertanejos Januário e Tião esclarece: - Não me conformo, a gente vive nesse mundão, isolados, como bugre, cuidando da nossa obrigação, e essa capetada aparece pra bulir com as nossas coisas. O governo tem de mandar a polícia em riba dessa jagunçada e acabar com os tutanquebas do sertão” - Concordo com seu palavreado. Mas a lei aqui é outra, é a do punhal e do rifle. (LIMA, 2001, p. 120) Em Mío Cid, a narrativa, assim como Babieca e os outros cavalos, se desfia em ‘passos’ rápidos para prender a atenção do leitor que, de “riendas sueltas” lê uma estrofe e parte para a outra com velocidade. Quando o grupo pára em algum acampamento, o processo narrativo também fica mais lento, mas não por muito tempo, porque há pressa e, para reiniciar as lutas, a estratégia é esporear o cavalo para que ele corra, juntamente com o texto. Aquel Pero Bermúdez no se pudo aguantar, el estandarte lleva en la mano, comenzó a espolear (p.61) Tantos caballos de combate, gordos y veloces Mío Cid los había ganado, que no se lo habían regalado (p.159). A leitura flui sem tropeço, de forma linear, como os cavalos correm nos vales e nas planícies da Espanha. E do mesmo modo que os cavaleiros se apressam para conquistar outro povoado ou reino, o leitor apressa-se a alcançar mais uma série de versos. A narrativa é tão veloz que o próprio tempo parece ‘voar’ ao ritmo das antíteses. El dia ya pasó y há entrado la noche, Al día siguiente, de mañana, muy claro amaneció (p.161) Já a narrativa de Moura Lima é totalmente contrária à pressa dos versos recolhidos por Per Abatt. Ela flui de acordo com o trote ou com a von412 Volume 4 | Literatura Espanhola tade dos animais, como exemplifica uma parada que o bando de Labareda faz num acampamento e, no momento de prosseguir viagem, a mula Puçá, do chefe, “deu nos cascos, abriu o pala no mundo” (p. 47) o que “significa atraso na viagem” (p.48). Como conseqüência, a obra ganha um capítulo a mais para descrever a busca do animal perdido, no qual acrescenta a história da sucuri que tenta engolir um curraleiro (p. 49-50). Assim, ao contrário de cavalos e cavaleiros velozes, (os homens) “continuam a marcha, e numa várzea encontram a mula Puçá que pasta, tranqüilamente, abanando o rabo pra espantar as mutucas” (p.51). O prolongamento da narrativa ocorre também quando o escritor pára a viagem dos jagunços e introduz um conto sobre tropeiros, no capítulo treze (p. 69), e a “lenda do romãozinho”c, no capítulo vinte (p.115). No Cantar de Mío Cid, reina um grande otimismo entre os cavaleiros que, além de pão e vinho ou grandes banquetes, recebem valiosas recompensas pelos feitos bélicos, enquanto o leitor é também recompensado pelo próprio texto que o prende numa leitura sem pausa. Salieron de Valencia y se disponen a caminar; Llevan tantas riquezas que han de protegerlas bien. Caminan días y noches (que no se dan descanso) Y ya han cruzado la sierra que separa las dos tierras. (p. 145) Em Serra dos Pilões os jagunços se escondem da polícia, reforçando que o tipo de trabalho desenvolvido é ilícito, como exemplifica um trecho de conversa entre o capitão Labareda e Gavião. “- A polícia está no meu piso em Boa Vista e também em Pedro Afonso. (...) – Num vê a lonjura do Jalapão? Me diga, Capitão, quem vai encontrar a gente?” (p. 58). Ao contrário do prestigiado cavaleiro medieval que volta ao seio da família e de sua terra natal, o jagunço se distancia cada vez mais em direção ao isolamento do sertão inóspito. Algumas vezes, paradoxalmente, ele é abençoado por promover a morte de outro jagunço que cometeu, igualmente, crime atroz contra algum sertanejo. “Mas a providência mandou aqueles homens (de Capitão Labareda) para defendê-la, protegê-la, naquela hora de tanta agonia e desespero” (p. 141), diz a professora de uma vila. Em Mío Cid, por mais trágica que seja, a matança de mouros é suavizada pela velocidade e musicalidade do poema. O ritmo veloz da narrativa e dos cavalos não permite ao narrador detalhar ações cruéis das batalhas. Cavaleiros e leitores prosseguem, armados com espadas, lanças e livro para outros campos e outras páginas. O som dos tambores não apenas anuncia, mas, sobretudo, estimula as batalhas e o leitor. 413 Hispanismo 2 0 0 6 ¡Qué aprisa cabalgan hacia los moros! Y se volvieron a armar; al ruído de los tambores, la tierra parecía temblar; viérais armarse a los moros y entrar en filas veloces! (p.59) En muy poco espacio cayeron muertos al menos mil trescientos (p.63) Não há clima de dor, medo ou sofrimento pelas mortes espalhadas nos 3.730 versos do poema. Ao contrário, a religião é pano de fundo, embala as ações por meio do refrão “Gracias al Creador” que aparece, por exemplo, três vezes na p. 71, e justifica a vitória dos cristãos sobre os mouros. Vale ressaltar a semelhança sonora entre as palavras “Creador” e “Campeador” que ratifica a estratégia narrativa de construir um cavaleiro grandioso, divinizado, como era comum nas canções de gesta da Espanha medieval: Todos oyeron la misa y en seguida cabalgaban (p.125) /Los moros gritan “Mahoma!”, y los cristianos “Santiago!” (p.63) Já em Serra dos Pilões as mortes são descritas nos mínimos detalhes, forçando o leitor a deter-se e sentir compaixão de quem morre e horror a quem mata de forma tão bárbara! O cabra balança na ponta do laço e implora o perdão. Labareda não dá ouvidos e, numa fúria de cascavel, aproxima-se do homem e, com gestos medidos, puxa o facão e, num golpe calculado – zap! E lá vai pro chão, cortado bem na junta, o pé direito, que jorrou aos esguinchos o sangue vermelho. (p. 105) Ao apresentar detalhes do modo como a vítima age e da execução do crime, o texto mais uma vez sugere a lentidão que se assemelha com o trotar dos burros. “A chibata estala com vontade no lombo dos burros; os arreios e cangalhas sacolejam ao ritmo da andadura” (p Pelas rédeas das artimanhas narrativas O caráter inusitado de rapidez e musicalidade que caracteriza El cantar de Mío Cid e a lenta narrativa de Serra dos Pilões podem-se justificar no contexto da enunciação em que ambas foram escritas. Uma, épica, exalta e enobrece não somente o cavaleiro medieval, mas também o próprio país (Espanha) em formação. A outra, romance, apresenta de maneira realista e crítica o jagunço que faz justiça com as próprias mãos, numa região subdesenvolvida do Brasil. E assim, veloz como os cavalos que conduziam os prestigiados cavaleiros aos campos de batalha na Espanha; ou lenta, mas firme, como os burros que conduzem os jagunços 414 Volume 4 | Literatura Espanhola temidos pelos sertões ainda quase inabitados, a literatura continua a ser tecida pelo mundo afora, em busca de leitores que a cavalguem. Referências bibliográficas ANÔNIMO. El cantar de Mío Cid. Madrid: Edimat Libros, 1999. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética - a teoria do romance. 4.ed. São Paulo: Unesp; Hucitec, 1998. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. CANAVAGGIO, Jean (dir.) Historia de la literatura española. Vol. I. Barcelona: Ariel, 1995. JIMÉNEZ, Felipe B. Pedraza y CÁCERES, Milagros Rodríguez. Las épocas de la literatura española. Barcelona: Ariel, 1997. LIMA, Moura. Serra dos Pilões. Jagunços e tropeiros. 3. ed. Gurupi: Gráfica e Editora Cometa, 2001. Notas a b c Segundo Bakhtin (apud Machado, 2005, p. 160) “É no processo de sua vida póstuma que as obras se enriquecem com novos significados, novos sentidos: assim as obras deixam de ser o que eram na época de sua criação...” Del árabe Saïd/Sid, ‘señor’, campi doctor - maestro en el arte de combatir. (CANAVAGGIO, 1994, p. 53) O conto “Tropeiros do Jalapão” está inserido na obra Veredão e a lenda do romãozinho está inserida na obra Negro D’água, ambas do mesmo autor de Serras dos Pilões. 415 Hispanismo 2 0 0 6 “Passai, lembranças”: sobre a poesia de Guilherme de Almeida e a essência galego-luso-brasileira Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela) Embora sem uma prática tão regular ou sem a importância quantitativa que apresentou na Galiza, também em autores portugueses e brasileiros podemos observar a vontade de versificar a partir dos temas e conforme os estilos que caracterizaram as primeiras manifestações poéticas do Ocidente peninsular. As cantigas que trovadores e jograis compuseram em longínquos tempos tornam-se objecto de atenção e admiração pelos criadores da literatura contemporânea, chegando-se mesmo a falar de neotrovadorismo. Tal termo foi cunhado pela primeira vez por M. Rodrigues Lapa no ano de 1933, concretamente ao agradecer numa carta de carácter pessoal ao poeta galego Fermín Bouza Brey o facto de lhe ter oferecido o seu livro Nao senlleira, que vinha de ser publicado. Nele reúnem-se composições com sabor medieval e inspiradas no género das cantigas de amigo tanto no que diz respeito ao plano do conteúdo quanto aos aspectos rimáticos. Assim, no texto epistolar a que acima nos referimos Fermín Bouza Brey é considerado como o líder de tal tendência que vai beber às fontes da tradição, revitalizando-a: “O meu amigo é na Galiza o chefe dum movimento lírico a que se poderia chamar neo-trovadorismo”, declara o remetente M. Rodrigues Lapa (BOUZA BREY, 1980, p.47). Mais tarde, na década de 50, o filólogo português reutiliza o vocábulo, agora num escrito de cariz público: o prólogo que redige para uma antologia da lírica medieval organizada na Galiza por Xosé Maria Álvarez Blázquez. E ainda o aplicará também em diversos ensaios de crítica literária que vêm a lume nos mesmos anos até que, posteriormente, acabou por se consolidar. Ora, tal palavra não foi a única atribuída ao fenómeno em questão, já que outras como primitivismo, cancioneirismo, neoprimitivismo, etc. encontram-se igualmente registadas em recensões ou comentários sobre textos contemporâneos em que se pode contemplar uma recriação daquele primeiro lirismo (LÓPEZ, 1997, p.18). Com maior ou menor insistência na aproximação de tópicos e técnicas e tanto num como no outro lado do Oceano, os autores lusófonos sentiram-se seduzidos pelos versos conservados nos Cancioneiros medievais. Na verdade, a operatividade da recorrência à tradição evidenciase numa vasta lista de nomes já consagrados hoje na história da literatura junto com outros menos conhecidos. Em todos eles sobressai uma autoconsciente intertextualidade que se estabelece a partir do diálogo entre 416 Volume 4 | Literatura Espanhola esse passado e as circunstâncias vitais do presente (MALEVAL, 1999, p.84). Por outro lado, resulta fácil comprovar na leitura dos textos qualificáveis como neo-trovadorescos uma preferência especial pela reescrita ou recriação das cantigas de amigo, para a qual parecem contribuir vários factores. Entre outros, o seu substrato autóctone ou a sua maior ligação à terra, aos costumes próprios, ao folclore, apresentando-se assim como dotadas de mais riqueza antropológica; o seu universo erótico e sensual; certos aspectos formais que foram muito explorados e que, para além de responderem a propósitos estéticos, se ligam a uma funcionalidade memorística –necessária dada a sua transmissão oral; e sobretudo, a sua enorme fertilidade simbólica. É claro que o elemento de cariz trovadoresco é reutilizado sob diversos modos: desde a imitação integral levada a cabo por Manuel Bandeira, que reproduz até a própria grafia da época, passando pela incorporação de certos tipos tirados do âmbito (textual ou extratextual) da lírica galegoportuguesa, ou pela citação dalguma cantiga em forma de epígrafe, ou por uma recorrência apenas limitada a técnicas e procedimentos que caracterizaram a antiga poética. Precisamente Guilherme de Almeida segue as duas últimas vias na série que intitula Cancioneirinho e que integra no seu livro Poesia Vária: “A cantiga aparece ali como uma espécie de mote que lhe dá o tom e o módulo estrutural a ser glosado. A partir daí desenvolve-se o poema em tom geralmente reflexivo, às vezes sentencioso, substituindo as referências concretas por elementos abstractos” (CORREIA, 2001, p.324). D. Sancho I, D. Denis, D. Afonso Sanches, Pedro Gonçalves Porto Carreiro, Nuno Fernandes Torneol, Pai Soares, Airas Nunes, Pero Meogo, Estevam Coelho, Meendinho e João Zorro são os trovadores e jograis escolhidos pelo cognominado Príncipe dos Poetas Brasileiros. As invocações e evocações ao amigo que os compositores medievais põem em boca de mulher transformam-se em “lembranças”, “sombras”, “tédio”... sofridos por um sujeito agora masculino. Tudo remete no Cancioneirinho para a melancolia, para a solidão, para o destino, para um paraíso perdido e para a saudade que padece um eu lírico agónico, chegando a atingir o status de isotopia. Neste sentido, cabe lembrar que o aproveitamento de tal legado se liga na obra do autor de Campinas ao Saudosismo português, até por ser ele um dos primeiros doutrinadores do idealismo/nacionalismo tradicionalista (COELHO, 1973, p.1006). Repare-se, por exemplo, na maneira como ele foca disforicamente as recordações de uma época já vivida em tardes claras de amor e como alude explícita e estrategicamente (em posição final de rima, de estrofe e de texto) às saudades: 417 Hispanismo 2 0 0 6 Passai, lembranças, que passais pelas tardes claras; tôdas as tardes de amor por mim já passaram: só fiquei eu. (...) Das tardes tôdas de amor de que vos lembrardes, dos restos todos de dor das suas saudades só fiquei eu (ALMEIDA, 1963, p.168-169)a E, ainda, no poema neotrovadoresco que intitula “Senhora Saudade” observamos tal sentimento personificado, sendo a coita amorosa da amiga substituída por uma pena existencial que envolve todos os versos e q ue contrasta com a “minha feliz mocidade”. Tenhamos em conta que essa Saudade maiusculada era identificada por Teixeira de Pascoaes, mestre e teorizador do movimento cultural denominado Renascença Portuguesa e que surgiu no Porto em 1912, com a “realidade essencial”, o “sangue espiritual da Raça”, a “íntima aspiração da alma pátria”. Este não a interpreta como um simples estado emocional ligado à particularidade de qualquer incidente. Atribui-lhe, pelo contrário, um verdadeiro alcance ontológico e reconhece-a como uma sensibilidade genuinamente nacional –o que, segundo o pensador, é testemunhado pela literatura desde os tempos mais primórdios. Sob tal óptica, reclama a sua valorização e dignificação, reservando-lhe a categoria de essência ou motor para uma renovação/regeneração (espiritual, mas não apenas) que é percebida como necessária e urgente para o Povo. A Saudade é mesmo elevada a um plano místico (relação do Homem com Deus e com o mundo, ânsia nostálgica da unidade entre o material e o mental) e torna-se assim o princípio de uma doutrina social que atenta no regresso às origens para construir um futuro próprio, esperançado e luminoso: Mas não imagine o leitor que a palavra Renascença significa simples regresso ao passado. Não! Renascer é regressar às fontes originárias da vida, para criar uma nova vida. Renascer é dar a um antigo corpo uma nova alma fraterna, em harmonia com ele (...). Fora do seu carácter, o nosso Povo nada fará de belo e duradouro. Ai dos povos que negam a sua alma e a sua tradição, e as desprezam e não querem procurar nelas as novas energias criadoras! São povos condenados irremediavelmente à morte! (GUIMARÃES, 1988, p.67). Não podemos esquecer que da vida tantas vezes tumultuada e fascinante de Guilherme de Almeida fez parte um ano de exílio em Portugal pela sua defesa da causa constitucionalista, que o levou a se alistar como soldado raso na revolução de 1932 contra a presidência de Getúlio Vargas. Na verdade, 418 Volume 4 | Literatura Espanhola ele foi recebido no país lusitano com honras de herói e como um dos maiores poetas da língua. Desde ali escreveu crónicas para alguns jornais brasileiros, que foram depois recolhidas no volume O meu Portugal e nas quais se evidencia o seu interesse pela lírica trovadoresca, pela sua linguagem, pelos seus temas, pelos seus intérpretes, etc. Aspectos esses que une à percepção e personificação da Saudade para apelar com tal amálgama à identidade ou essência do ser galego-luso-brasileiro: Quando ella veio de Portugal, era loira e leve: parecia a “velida” de D. Diniz, a “ben talhada”, a “delgada”, a “muito alongada de gente”, bailando “solo verde ramo florido”... Mas aqui, nos trópicos americanos, queimou-se de sol e amolentou-se no balanço das rêdes e das palmas. E eis, agora, regressa mais lânguida e mais humana à sua pátria... Viaja comnosco uma passageira clandestina de volta a Portugal, seu paiz de origem. Ella é a Saudade. (ALMEIDA, 1933: p.18-19) Aliás, também resulta imprescindível atentar nas relações que o paulista manteve durante esse exílio com a intelectualidade galega e galeguista. Com efeito, a revista Nós, dirigida por Vicente Risco durante vários anos de pré-guerra (1920-1936), vinculada ao pensamento nacionalista e integrada por conteúdos literários, linguísticos, artísticos, etnográficos, filosóficos e políticos, transcreveu num dos seus números a palestra “Galizza, pátria da canção”, que Guilherme de Almeida proferira em Santosb. Aceitando o convite que lhe tinha sido feito pela Sociedade Española de Socorros Mutuos e Instrucción daquela cidade, reproduz ali um texto já preparado para o Primeiro Congresso das Sociedades Espanholas do Estado de São Paulo, em que saúda a Galiza como raiz da árvore genealógica da lusofonia e dirige-se a um auditório natural das terras de AquémMinho num certo tom épico: Trazeis [galegos] no instincto, na memória do sangue, o gosto ácido da luta e ímpeto solto da aventura. Por isso tão bem vos daes e dissolveis com a gente “bandeirante”. Eu sei que, com o vosso espírito peninsular de independência, não sabeis ser apenas colonos, mas vos fazeis logo donos: mas donos que tão legitima e amorosamente vos identificaes com a vossa propriedade, que vós é que ficaes sendo propriedade della – e não deixeis São Paulo, nunca mais... E qualquer paulista que sabe a sua historia, que sabe a sua raça e que sabe a sua terra, ha de, por força, saber o muito que fizestes pela nossa historia, pela nossa raça e pela nossa terra (1935, p.46). 419 Hispanismo 2 0 0 6 Estende-lhe à Galiza braços de fraternidade, de reencontro e de reintegração, aludindo reiteradamente à função de “troncalidade” que o berço tem de exercer, unindo portugueses e brasileiros, em consonância com o ideário nacionalista de que a publicação periódica mencionada foi órgão: Não foi um puro acaso, não foi um cégo destino que para ali [para a Galiza] me levou. Foi um impulso, talvez inconsciente, instinctivo no momento; mas, depois, consciente, reflectido, proposital. Um desses súbitos retornos sobre si mesmo, em que a gente se encontra bruscamente consigo mesa, estremece estranha um instante, para logo depois se reconhecer e calmamente se admirar (1935, p.47) Ainda, quanto ao contacto de Guilherme de Almeida com a intelectualidade galeguista, destaca a sua amizade com Valentin Paz-Andrade. Para Sementeira do Vento, o livro que este autor publica em 1968, o paulista redige uma “Carta-prefácio” em que voltamos a encontrar lembranças da sua estadia em Vigo e Santiago de Compostela, assim como dos seus artistas e dos seus modos de expressão (literária e também plástica), insistindo com ênfase na admiração por tal terra-mãe: Por quê sua poesia é sangue: nosso sangue, um mesmo sangue, da matricial Gália aos filiais Portugal e Brasil ritmadamente fluido. Sinto-a em mim, palpitante mas intangível, assim como ao infante seria impossível tomar ele mesmo o pulso ao seu próprio cordão umbilical (...). Foi daquele seu Vigo de 1933 –donde vi você trovar e vi Colmeiro lavrar- que me veio a veia alimenticia d´esse sangue; assim como daquêle reino onde teve a sua corte Dom Denis, Rei Trovador e Rei Lavrador. E, pois, terra de trovas e lavras, é a Galisa, assim, uma autenticidade histórica: êsse `matriarcado, arquivo da essência de uma raça´ que marca, fundo, da primeira á última página, todo este seu livro, Valentín” (PAZ ANDRADE, 1968, p.11)c. E em 1975, aquando da reedição pentalíngue de Pranto Matricial, outra obra do poeta galego, foi Guilherme de Almeida o responsável pela adaptação à norma ortográfica brasileira. Tal facto não pode entender-se como prova de uma consciência de distância e diferenciação linguística, mas como um exercício de irmandade lusófona. Declara ali a sua vontade de homenagear duas ilustres figuras do galeguismo, Castelao e PazAndrade (“muito amigos meus desde os idos de 1933”, esclarece), assim como de sublinhar a umbilical similitude entre o tronco e o derivado, insistindo na “perenidade do galécio-português, vera fala da Raça” (TORRES FEIJÓ, 1997, p.314). Ora os textos em prosa que acima comentámos não 420 Volume 4 | Literatura Espanhola são os únicos em que o intelectual de Campinas advoga pelo (neo)trovadorismo como via de recuperação literária e ponto básico na reescrita da história. Chamado para ingressar na Academia Brasileira de Letras, lembra também Galiza no seu discurso como o espaço ibérico onde o canto provençal veio “respirar, tomar fôlego e subir no ar em planta nova e forte”, mas onde “um lirismo forte, independente, original, já aí cantava pelo ritmo mais velho dessa língua, pela monotonia plangente e repetida do verso `paralelístico´” (MALEVAL, 1999, p.136-137). Referências Bibliográficas ALMEIDA, Guilherme de. O meu Portugal. São Paulo: Editora Nacional, 1933. _____ Galizza, Pátria da Canção. Nós, Ourense, ano 17, n. 135, p.46-50, 1935. _____ Poesia Vária. 2 ed. São Paulo: Martins Editora, 1963. BOUZA BREY, Fermín, Obra literária completa. Santiago: Cerne, 1980. BUSTO ABELHA, Humberto. Galicia e Teixeira de Pascoaes. In: XORNADAS DAS LETRAS GALEGAS EN LISBOA, 1, 1998, Lisboa. Actas... Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1998, p.113-152. COELHO, Jacinto do Prado. Saudosismo. In: Dicionário de Literatura (Brasileira, Portuguesa, Galega e Estilística literária). 3 ed. Porto: Figueirinhas, 1973, p.1508-1509. CORREIA, Francisco José Gomes. O medievalismo em Guilherme de Almeida. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA ABREM, 3, 1999. Atas... Rio de Janeiro: Ágora da llha, 2001, p.321-327. GUIMARÃES, Fernando. Poética do Saudosismo, Lisboa: Presença, 1988. LÓPEZ, Teresa. O Neotrobadorismo, Vigo: A Nosa Terra, 1997. _____Lírica medieval galego-portuguesa e neotrobadorismo na “época Nós”. Coordenadas da poesia de Fermín Bouza Brey. Anuário de Estudios Literários Galegos, Vigo, v. I, p.35-68, 1992. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e Poesia, Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 1999. MORÁN CABANAS, Maria Isabel. Entre alva e cantar de amigo: poetas portugueses e brasileiros dialogam com o trovador Nuno Fernandez Torneol. In: TEACHERS OF SPANISH AND PORTUGUESE´S ANNUAL MEETING. 2002, Rio de Janeiro. Caderno de resumos, Rio de Janeiro: AATPS, 2002, s/p. PAZ-ANDRADE, Valentín. Sementeira do Vento. Vigo: Salnés, 1968. _____Pranto Matricial. Sada: Edicións do Castro, 1975. PORTELA YÁÑEZ, Charo; DÍAZ PARDO, Isaac. Epistolário [de] Valentín Paz-Andrade. Sada: Edicións do Castro, 1997. 421 Hispanismo 2 0 0 6 SODRÉ, Paulo Roberto. Um trovador na berlinda: as cantigas de Nuno Fernandez Torneol. Cotia: Íbis, 1998. TORRES FEIJÓ, Elias. Cultura, cultura galega e mundo lusófono em Valentim Paz Andrade. Alguns contributos. Agália, Corunha, n. 51, p.297-336, Outono de 1997. Notas a b c Reescreve-se aqui a famosa cantiga monologada de Nuno Fernandes Torneol, que tantas polémicas suscitou quanto ao seu significado e até à sua classificação como alva -cantiga de origem francesa, cujo tema se distingue pela presença do amanhecer, anunciado por um vigia, e da despedida descontente dos amantes, após uma noite de amor- ou como cantiga de amigo. O texto deste trovador-cavaleiro, que se abre com a cobra: “Levad´, amigo, que dormides as manhanas frias; / todalas aves do mundo dá mor dizian: / leda m´and´eu” (SODRÉ, 1998, p.73), foi recriado por autores dois dos lados do Atlântico, entre outros, pelos portugueses João de Castro Osório e Sebastião de Gama e pelos brasileiros Guilherme de Almeida e Martins Fontes (MORÁN CABANAS, 2002, s/p.). Não esqueçamos que boa parte dos trabalhos de investigação publicados na Galiza acerca da lírica dos Cancioneiros foram divulgadas nesta revista mensal e no Boletín de la Real Academia Gallega (BRAG). No primeiro recolheram-se os resultados das pesquisas de membros do Seminário de Estudos Galegos, fornecendo informações actualizadas sobre temas da produção medieval, compositores, edições, géneros, etc. (LÓPEZ, 1992, p.46-47). Pense-se que é constante a presença de escritores portugueses nas publicações galegas de préguerra, destacando particularmente a de Teixeira de Pascoaes e de autores na sua esteira: por exemplo, após uma nota editorial em que se explica o projecto da revista Nós, já aparece ali o seu poema “Fala do Sol”; também na secção chamada Os Homens, os Feitos e as Verbas dedicase-lhe mais de meia página e apresenta-se como o “Revelador da Saudade”, “cousa nossa” e “meirande poeta da Ibéria”, tanto pelo valor do seu pensamento quanto pelo tom saudoso da sua inspiração; e, ainda, em relação a esse Poeta-Profeta se recolhem cartas, palestras, caricaturas e recensões (BUSTO ABELLA, 1998, p.120-122). Precisamente quanto a este prólogo conservamos a carta que o poeta, jornalista, advogado, economista e político da Galiza enviou ao seu amigo brasileiro, agradecendo-lhe tal escrito e até sugerindo-lhe cordialmente uma mudança que, como podemos comprovar acima, ele afinal levou a cabo: “No segundo parágrafo di: `desse Vigo onde teve a sua corte Dom Denis´... Eiquí non conocemos ese feito. Temo que os eruditos non concorden. Deixo ao seu xuizo manter ou trocar a forma de tan bela cita” (PORTELA YÁÑEZ; DÍAZ PARDO, 1997, p.190). 422 Volume 4 | Literatura Espanhola Castela e os castelhanos como alvo de troça no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (Lisboa, 1516) Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela) No âmbito da literatura peninsular do século XV existiram, em geral, certos conceitos ou ideias vulgares intercambiáveis que fazem parte do que cabe denominar como rivalidades nacionais e locais. Se observarmos os comentários espalhados em obras de diferentes géneros sobre catalães, aragoneses, andaluzes, leoneses, etc., comprovamos que o tema da concorrência ou hostilidade entre povos, quer perspectivado com humor quer mais orientado para o escárnio e para a mofa, existe já desde a própria formação das suas literaturas. Proeza militar, conforto físico, prudência, crueza dos costumes e os mais diversos aspectos tornaram-se alvo deste tipo de diálogos (SHOLBERG, 1971, p.264). Com efeito, podemos verificar que algumas expressões ligadas a concorrências estabelecidas a partir de estereótipos herdados e/ou de circunstâncias que deixaram certos ressentimentos em terras fronteiriças chegaram a cristalizar com a passagem do tempo e, ainda hoje, permanecem completamente vivas na vox populi. Neste sentido, não pode esquecer-se que a poesia portuguesa produzida na segunda metade do século XV e primeiros anos do seguinte e recolhida por Garcia de Resende no seu Cancioneiro Geral se aproxima, como forma de convívio, da arte da conversação, da galanteria e também da zombaria. Longe de se pretender privada, a acção de trovar (quer dizer, poetar) vem participar ali de uma “mostrança”, de um ritual exibido nos serões celebrados no âmbito da Corte. Para além de outros factores ligados ao contexto sociopolítico daquela altura, a íntima relação entre os reinos de Portugal e de Castela por uns laços fraternais e diplomáticos até então nunca existentes, baseados sobretudo na política de casamentos entre os membros de ambas as famílias que ocupavam o trono, contribui decisivamente para a introdução e difusão de gostos, costumes e requintes. Em boa parte da colectânea em foco deparamos com textos redigidos em língua castelhana e salta aos olhos do leitor mais desprevenido o culto e a admiração que os colaboradores de Garcia de Resende sentiram perante os seus congéneres castelhanos -Juan de Mena, o Marquês de Santillana, Jorge Manrique, Juan Alfonso de Baena, Antón de Montoro fazem parte de uma longa lista de “modelos” a seguir. Até a decisão de reunir um vasto conjunto de textos e de levá-lo ao prelo em 1516 como monumento das letras portugueses e demonstração da capacidade lusitana para versificar, que entronca com uma pujante linha de cancioneiros, parece provir particularmente da publicação do chamado 423 Hispanismo 2 0 0 6 Cancioneiro General de muchos y diversos autores, o qual tinha sido publicado cinco anos antes por Hernando del Castillo (DIAS, 1998, p.72-73)a. No entanto, ao lado de uma evidente estima e veneração, registamos também nas páginas da compilação resendiana certa contestação ou impugnação da absorção dos modos e das modas castelhanas que se vivia no Portugal da época. Assim, ao longo da nossa comunicação tentaremos provar que tais críticas negativas, oscilantes entre tons que vão do escarnecimento à comicidade, podem (e devem) ser interpretadas como um meio de afirmação nacional e promoção social dos estilos próprios face aos importados. Os versos porventura mais incisivos são redigidos concretamente entre 1481 e 1483, durante a permanência do Duque D. Diogo em Castela por assuntos diplomáticos. Aparecem como resposta a um “rifam contra os portugueses” que tinha sido encontrado às portas do Paço e que dizia: “Portugueses, mantengaos Dios / y vos guarde de las manos / de los crudos castelhanos” (DIAS, ed., 1990, v. II, p.47-48), fazendo referência à famosa batalha de Toro, travada alguns anos antes. Lembre-se que o motivo de tal conflito foi a sucessão ao trono de Castela após a morte de D. Henrique IV, a qual enfrentou o bando dos partidários de Juana la Beltraneja, que Portugal apoiou, e os da sua meia-irmã Isabel a Católica. Apesar de que se chegou a um desfecho indeciso do ponto de vista militar –a ala comandada pelo príncipe herdeiro D. João conseguiu vencer, enquanto o mesmo não aconteceu com o exército do seu pai, D. Afonso V- , o resultado veio traduzir-se numa vitória política para os Reis Católicos. Embora já estivessem as pazes firmadas (Tratado de Alcáçovas-Toledo), o poeta Fernão da Silveira (apelidado o Moço, para se distinguir do seu contemporâneo e homónimo Fernão da Silveira, Coudel-Mor) decidiu responder ao rifam acima mencionado, castigar a vontade denigratória dos castelhanos e desinchar os seus ares de superioridade. Assim, também em forma rimada e no idioma dos incitadores, expressa-se nuns termos jactanciosos, trazendo-lhes à memória o grande desastre que sofreram em Aljubarrota. Ali lutaram “meus e teus avoos”: os portugueses agiram como “lindos galanos” e os castelhanos como ·”putos marranos”b. Aliás, segundo parece, não foi esta a única ocasião em que o autor referido mostrou abertamente o seu patriotismo e lusitanidade em terras de Castela. Com efeito, D. Fernando, o Católico, depois de ouvir cantar na sua presença um romance sobre a derrota sofrida por D. Afonso V, pediu-lhe um dia a sua opinião em relação a tal assunto e ele respondeu sem pejo: “Senhor, muito bem está o Romance do pay; mas faça V. A. agora a mercê que mande cantar o vilancete do filho”. Neste seria festejada aquela ala 424 Volume 4 | Literatura Espanhola do exército português que foi chefiada pelo Príncipe português e que saiu invicta do recontro travado em Toro, nas proximidades de Zamora, não longe da fronteira (VASCONCELOS, 1934, p.197). Igualmente na companhia do Duque D. Diogo e nesta mesma altura em que têm lugar as negociações de paz com Castela, partiu Henrique de Almeida para o país vizinho. Perante tal circunstância, Gil de Castro, outro colaborador no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, dirige-lhe certas trovas satíricas dando-lhe uma série de conselhos no que diz respeito à conduta que ali devia seguir. Para além de lhe explicar como se havia de comportar com as donzelas durante a viagem e de lhe revelar alguns pretextos que podiam servir-lhe para tirar ao anoitecer um prazenteiro proveito da mantilha que ia sobre a sela: “Ordenai como se deça / pera correger a cilha, / e em cima da mantilha / fazei cousa que pareça; / sendo logo percebido / que mui bem lha alimpeis, / porque nam seja sabido / nada disso que fazeis” (DIAS, ed., 1990, v. I, p.472), o autor em questão recomenda-lhe sobretudo guardar silêncio acerca do facto de ter ficado prisioneiro na batalha de Toro. Ele terá de dissimular e mesmo mostrar-se muito arrogante. Perante os castelhanos será preciso aparecer sempre com um espírito de grande vencedor e completamente capaz de tomar “a ponte e mais Çamora”. Concretamente esta última referência remete-nos à traição cometida pelos Reis Católicos contra o Príncipe D. João quando ia a Zamora, obedecendo à chamada do seu pai, que tanto ansiava vê-lo. Informados desta ida, Fernando e Isabel planejaram prendê-lo na ponte, o que não chegou a acontecer, pois o monarca português foi advertido das intenções dos seus inimigos e conseguiu mandar aviso ao filho. Sendo toda a composição repassada em boas doses de ironia, até se fornecem nela indicações sobre a língua que o destinatário deverá empregar: “Ante mordei castelhano / que falardes português”c. Com efeito, tais versos tiveram continuação noutros também compilados por Garcia de Resende e redigidos por Nuno Pereira precisamente aquando do regresso do citado Henrique de Almeida à Corte portuguesa. Denuncia-se ali o abandono a que este submeteu os costumes próprios pelos da nação alheia e pede-se-lhe que deixe já de falar sobre as qualidade das senhoras e dos ricos e poderosos que conheceu durante a sua estadia: “por isso compre calar / perante mim quanto for, / português sempre falar, / e nam tomar castelhano sem sabor” (DIAS, ed., 1990, v. I, p.290). Para além da mofa pessoal que acarretam, as palavras transcritas evidenciam a influência do estilo cortesão praticado em Castela e as reacções que provocava nos espíritos de olhar mais crítico. O indivíduo alvejado, cheio de admiração pela literatura de Juan de Mena e 425 Hispanismo 2 0 0 6 amesquinhando tudo quanto era português (especialmente a língua, tanto como veículo de comunicação social quanto artística), sempre afirma que “Castela nam tem par!” e é por isso que o texto em foco fecha-se sarcasticamente com a seguinte exclamação: “Oh, homem grande, comprido, / soes perdido / nesta terra qu´ee pequena”. Na verdade, nas páginas do Cancioneiro Geral a estima do português por tudo o que é estrangeiro em desprimor do que é legitimamente nacional é considerado um dos traços mais característicos deste povo, tanto em relação ao idioma como aos mais diversos modos de proceder no quotidiano. Assim, quanto à maneira de trajar (tema que aparece reiterada e até obsessivamente na colectânea), o poeta Duarte da Gama critica a mania dos janotas lusitanos por se apressarem a imitar tudo quanto vêem nos outros (DIAS, ed., 1993, v. III, p.54). Tão abundantes foram as influências das modas estrangeiras no vestuário português desta altura, que os indivíduos mais tradicionais e puritanos logo satirizaram aqueles que voltavam lá de fora carregados de novos estilos e maneirismos. Com efeito, o dramaturgo quinhentista Jorge Ferreira de Vasconcelos põe em relevo tal facto na sua Comedia Ulissipo e, igualmente, o seu contemporâneo, Simão Machado, encerra a Comédia Alfea com uns versos em que se denuncia com severidade tal tendência nacional para a imitação. Este fala de um pintor que em Roma tentou retratar todas as nações com os seus respectivos trajes, mas não encontrou nenhum para os portugueses: “Vê-los-heis (disse) á Francesa. / E depois à Castelhana; / Hoje andam à Valoneza, / A´manhaa à Sevilhana, / Porém nunca á Portuguesa” (apud MORÁN CABANAS, 2000, p.310-313). É sobretudo entre as maneiras de vestir portuguesas e castelhanas que se estabelecem comparações, intercambiando-se mordazmente ataques relativos à sua desconformidade em todos os níveis: no aparato, na inadequação ao corpo e no exagero. Pense-se que tal poesia se aproxima, como mais uma forma de entretenimento entre os cortesãos, de um diálogo que tenta provocar O OUTRO, desafiá-lo e até estabelecer com ele uma espécie de duelo verbal. Por exemplo, o autor castelhano António de Velasco compôs um testamento burlesco em nome do português Rui de Sande, enumerando comicamente diversas peças do vestir da época e legando ao filho mais velhos a sua própria fantasia “y alos otros mas medianos /cada uno aya sua parte / de aquel desprecio galante / que tenia de los castellanos” (FOULCHÉ-DELBOSC, ed., 1915, v. II, p.620). Ainda mais uma vez se patenteia a reputação de “maus inventores” que possuem os portugueses quanto à moda num texto de Antón de Montoro dedicado “A um português que vio vestido de muchas colores”, rubrica que provavel426 Volume 4 | Literatura Espanhola mente faz referência a um indivíduo que fez parte do cortejo da princesa Dona Joana de Portugal quando viajou a Córdova para casar com Henrique IV de Castela (CICERI; RODRÍGUEZ PUÉRTOLAS, eds., 1991, p.119). Por seu turno, os colaboradores do Cancioneiro Geral respondem a tais comentários, explicando que algumas das peças por que se tornaram objecto de riso no país contíguo nem tão sequer foram fabricadas em Portugal nem envergadas por seus manequins: “Ora crede, que somos ca tam oufanos / que nam calçamos tais panos” (DIAS, ed., 1993, vol. III, p.258). Aliás, fazem referência reiteradamente a uma diferença de conduta entre os dois povos: a má vontade de Castela perante tudo aquilo que fosse ou parecesse originário das terras próximas versus a piedade e comiseração lusa, que perdoou aos seus vizinhos certas extravagâncias dignas de serem ridiculizadas. Neste sentido, lembremos que já no corpus das cantigas medievais galego-portuguesas de escárnio e maldizer encontramos um texto em que o trovador Gil Peres Conde sublinha também o contraste entre o temperamento dos castelhanos (pelejadores e dispostos a dar sempre a “gram punhada”) e a sua própria condição de português (paciente, precavido e temeroso das consequências negativas que acarretaria uma pugna sem sentido algum) (LAPA, ed., 1970, p.253). Ainda cabe assinalar que do ponto de vista da literatura popular de regozijo são igualmente frequentes, entre outras formas de expressão, os relatos mutuamente corrosivos. Através deles acabaram por se fixar em Portugal qualificações como “espanhol rebolhudo” ou ditos como “De Espanha, nem bom vento / nem bom casamento”, enquanto em Castela deparamos com anexins como “Portugueses poços, / y eses locos”. É impressionante a quantidade de contos folclóricos que tiveram uma versão espanhola e portuguesa e que parece que pertenceram em primeiro lugar à tradição oral, sobrevivendo depois em amplas zonas geográficas (CARABÍAS TORRES, 1997, p.43). Quanto a este e a muitos outros aspectos, o Cancioneiro Geral revela-se uma importante fonte para os estudos da história quotidiana, da antropologia social e da paremiologia (particularmente para a paremiologia comparada). Nele encontramos um verdadeiro “livro-vivo” que responde a necessidades de formação, de informação e de recreio, detentor de dados que nem sempre se encontram em documentos oficiais, crónicas ou chancelarias. Apresenta competições de diversos tipos que são estruturadas em réplicas e contra-réplicas e que, apesar do bilinguismo, vêm estimuladas por vontade de prestígio pessoal e nacional –lembre-se que o seu Prólogo contém uma dedicatória ao Príncipe herdeiro e manifestações bem explícitas de um comovido orgulho do ser português. Valentia política, defesa da própria língua, habilidade para versificar, gentileza e cortesia são alguns dos motivos que se trazem à colação nas páginas do Cancioneiro Geral como vias de afirmação face AO OUTRO. 427 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas CARABÍAS TORRES, Ana Maria. Castilla y Portugal: el trajín de la cultura académica. In: ESPINOSA, Rosa; MONTENEGRO, Julia (eds.). Castilla y Portugal en los albores de la Edad Moderna. Salamanca: Junta de Castilla y León, 1997, p.31-53. CICERI, Marcella; RODRÍGUEZ PUÉRTOLAS, Julio. Cancionero [de] Antón de Montoro. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1991. DIAS, Aida (ed.). Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Maia: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, v. I, II e III, 1990/1993. _____ Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (A Temática). Maia: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. FOULCHÉ-DELBOSC, Raymond (ed.). Cancionero castellano del siglo XV. Madrid: Nueva Biblioteca de Autores Españoles, v. II, 1915. LAPA, Manuel Rodrigues (ed.). Cantigas d´escarnho e mal dizer dos cancioneiros medievais galego-portugueses. Vigo: Galáxia, 1970. MORÁN CABANAS, Maria Isabel. Traje, gentileza e poesia. Moda e vestimenta no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Lisboa: Estampa, 2000. RODRÍGUEZ, José Luís. Minorias religiosas e étnicas no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. In: RIQUER, Isabel de; LOSADA, Helena; GONZÁLEZ, Helena (eds). Professor Basilio Losada: ensinar a pensar con liberdade e risco. Barcelona: Universitat de Barcelona, 2000, p.603-623. SHOLBERG, Kenneth R. Sátira e invenctiva en la España Medieval. Madrid: Gredos, 1971. SOLÁ-SOLÉ, Josep M. Sobre árabes, judíos y marranos y su impacto en la lengua y literatura españolas. Barcelona: Puvill, 1983. VASCONCELOS, Carolina Michäelis. Estudos sobre o romanceiro peninsular. Romances velhos em Portugal. 2 ed. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934. Notas a b A simples análise externa dos dois grossos in-fólios não permite tirar outras conclusões. Fácil é, aliás, conjecturar como Garcia de Resende teve a oportunidade de ver, manusear, ler a obra e nela se inspirar para a elaboração de uma compilação análoga. Alguém que em Castela o tivesse conhecido, podê-lo-ia ter trazido a Portugal por interesse pessoal ou porque algum compatriota, sabedor da sua existência, diligenciara possuí-lo; ou, então, qualquer castelhano, frequentando a corte portuguesa, seria proprietário de um exemplar. Marrano foi um vitupério aplicado com sarcasmo a judeus e mouros convertidos, criado a partir da repugnância pela carne deste animal. Parece que o vocábulo de origem castelhana se estendeu por toda a Europa já nos finais do século XIII, tornando-se tão habitual que em certa altura passou-se a aplicar como insulto a qualquer espanhol. Igualmente, foi usado em tom pejorativo 428 Volume 4 | Literatura Espanhola c o verbo marrar com o sentido de sujar ou macular a fé cristã (RODRÍGUEZ, 2000: p.603-623 e SOLA-SOLÉ, 1983: p.121). Não é esta a única ocasião em que se usa morder em lugar do verbo falar no Cancioneiro Geral, acarretando sempre uma intenção corrosiva e aplicando-se ao idioma castelhano. Assim, quando os pretendentes da diva Leonor da Silva praguejam com despeito contra o seu marido dizem: “morda sempre´o castelhano, / vej´oo e antes d´um anno / dos pees coxos” (DIAS, ed., v. I, p.278). 429 Hispanismo 2 0 0 6 Ecos de España en la São Paulo de 1900 María de la Concepción Piñero Valverde (USP) Muchas veces se han recordado los versos con los que Mário de Andrade celebra su ciudad natal: “São Paulo! comoção de minha vida.. Galicismo a berrar nos desertos da América”. Son versos que retratan el afrancesamiento de la capital paulista aún en la década de 1920, cuando el poeta publicaba Paulicéia Desvairada. A pesar de la fisionomía cosmopolita que la ciudad iba adquiriendo desde finales del siglo XIX debido a la emigración, sobre todo de pueblos mediterráneos, era Francia hacia donde la alta sociedad de São Paulo continuaba mirando con admiración. Ejemplo de ese predominio cultural francés fue un círculo intelectual surgido en la ciudad hace cerca de cien años, en los primeros tiempos del siglo XX. Se trata de la casa del senador José de Freitas Valle (1870-1958), gaucho de nacimiento, pero desde muy pronto radicado en São Paulo. El palacete estaba situado en barrio entonces distante del centro de la ciudad y todavía casi rural, Vila Mariana. No obstante, sus salones se abrían a artistas plásticos, políticos y escritores. Entre ellos, el poeta minero Alphonsus de Guimaraens, amigo de Freitas Valle, a quien le sugerió el nombre que haría célebre aquel cenáculo de cultura: “Villa Kyrial”. No cabe aquí evocar lo que representó en el panorama cultural de la época la “Villa Kyrial”. Hoy, casi cincuenta años después de la muerte de su dueño, a la que se siguió pocos años después (1961) la desaparición de la “Villa Kyrial”, parece que finalmente se vuelve a rediscutir su importancia. Importancia que, además, no había pasado desapercibida y que desde muy pronto suscitó diferentes apreciaciones. Sin hablar de Monteiro Lobato, que llegó a comentar la efervescencia cultural del barrio de Vila Mariana, recordemos una opinión del escritor y crítico Sérgio Milliet. Para él, el ambiente de la villa de Freitas Valle era intelectualmente conservador (MILLIET, 1981, p. 257). Se explica esta afirmación si tenemos en cuenta que eran tiempos que veían surgir nuevos movimientos literarios, que poco después repercutieron en São Paulo, como el Futurismo de Marinetti. En la “Villa Kyrial”, sin embargo, era el Simbolismo de matriz francesa el movimiento poético que continuaban cultivando sus frecuentadores. Para Massaud Moisés “a Villa Kyrial [...] se tornou foco inicial e de convergência de um intenso burburinho social à luz das idéias simbolistas” (MOISÉS, 1967, p. 201). El dueño de la casa, bajo el seudónimo de Jacques d’Avray, eligió la lengua francesa para componer sus Tragipoèmes. Todo ello, como observa Antonio Candido, “foi devido não 430 Volume 4 | Literatura Espanhola apenas ao fascínio exercido então no Brasil pela França [...] mas também porque o Simbolismo deste país foi a fonte principal da poesia moderna do Ocidente” (CANDIDO, 2001, p. 13). Lo que no se puede olvidar, con todo, es que en los salones de la “Villa Kyrial”, a pesar del predonimio de la cultura francesa, no quedó ausente el diálogo de la sociedad paulista con otras grandes tradiciones culturales, en particular con otras culturas latinas, la italiana y la española. Si Jacques d´Avray era poeta en francés, como se acaba de decir, es necesario añadir que Freitas Valle dominaba también el italiano y el español, lenguas en las que escribió así mismo algunas composiciones poéticas. Pero centrándonos en nuestro tema, en español fue la lengua en que escribió Los cantares, acompañado de música originaria de su amigo y comensal el maestro Félix de Otero (CAMARGOS, 2001, p. 125). Todavía más notable es el lugar que temas hispánicos ocuparon en ciclos de conferencias presentados en la “Villa Kyrial” por intelectuales de la época. Recordemos, por ejemplo, uno dedicado a la producción literaria hispanoamericana y otro a los llamados “predestinados da Beleza e os predestinados da Fé”, entre los que se encontraba Cervantes (CAMARGOS, 2001, p. 80-81). No fueron esas las únicas señales de aprecio por lo hispánico dadas por el dueño de la casa. Ese aprecio se tradujo también en su intensa actividad de mecenas, de la que se beneficiaron artistas brasileños o extranjeros que aquí habían llegado. Basta notar que fue Freitas Valle quien promovió en Brasil el arte de dos pintores españoles, los hermanos Agustín (1861-1915) y Juan Pablo Salinas (1871-1946), que llegaron a ser grandes amigos suyos. Incluso después de volver a Europa, el dueño de la “Villa Kyrial” continuó apoyándolos, encargándose de la venta de sus cuadros en Brasil (CAMARGOS, 2001, p. 47). Se conserva en la Pinacoteca del Estado de São Paulo un retrato del senador, obra de Juan Pablo Salinas, en otro tiempo expuesto en los salones de la villa. Se sabe también que Freitas Valle concedió a un joven pintor brasileño una beca de estudios para perfeccionamiento en España, más precisamente en Ronda, en Andalucía. Y en español era como otro artista brasileño, músico iniciante, le agradecía el apoyo recibido, llamándolo de “Querido Jefe y Señor” (CAMARGOS, 2001, p. 168-169). ¿Por qué ese título de autoridad y por qué dárselo en español? La razón es curiosa. De hecho, si en casi todos los dominios de la “Villa Kyrial” era la cultura francesa la predominante, había uno en que la hegemonía era española. Y lo que es más sorprendente, ese dominio español se concedía, justamente, en un terreno en que es tradicional reconocer la fuerza de la tradición fran431 Hispanismo 2 0 0 6 cesa: la gastronomía. Sí, pues además de cenáculo de intelectuales, la “Villa Kyrial” era también punto de encuentro de gourmets, contertulios amantes del buen vino y de la buena mesa. Y esas reuniones eran tan apreciadas por los frecuentadores de los salones de Freitas Valle que, en 1914, durante uno de los ciclos de conferencias literarias, se abrió espacio para tratar de un tema tal vez inesperado: el arte de comer bien. Para cultivar tan noble arte, el mismo Freitas Valle creó una orden caballeresca, la “Hordem [sic] dos Gourmets”, presidida por él mismo, bajo el título de “jefe y señor”. Así describe Marcia Camargos las reuniones de aquellos caballeros de “forno e fogão”: A língua oficial desses encontros mensais era o espanhol e, cada vez que o chefe ia fazer uma comunicação, o mensageiro levantava-se para, solenemente, anunciar: ´Habla nuestro jefe y señor´. Ao término da mensagem, o porta-voz dizia: ´Y que se lo tengan por entendidos´ (CAMARGOS, 2001, p. 61). Se conserva una invitación que anunciaba una de aquellas reuniones, la primera de 1915. En el parte, escrito enteramente en español, se lee lo siguiente: Nuestro jefe y señor, / el heraldo y el-guardián del pabellón,/ con sus votos de felicidad en el nuevo año, piden a usted que no deje de comparecer en el primer domingo de enero de 1915. / Villa Kyrial, São Paulo (CAMARGOS, 2001, p. 62). Los pocos datos que hasta ahora hemos recogido y presentado, tal vez sean suficientes para que se perciba la importancia reconocida a la lengua y a la cultura española en aquel cenáculo paulista del alborear del siglo XX. Importancia sorprendente, no sólo –como ya se ha dicho– porque eran tiempos de absoluto predominio de la cultura francesa en Brasil, sino por ser un momento histórico en el que la cultura española estaba lejos de la expansión mundial de que goza hoy, y por ser aún tímidas las relaciones entre Brasil y los países americanos de lengua española. Sorprende, por otro lado, además, la intuición certera de Freitas Valle al asociar la lengua española no sólo a la tradición literaria (con las conferencias citadas, en particular las que trataban de la cultura hispanoamericana), sino también a otros valores de relevancia, como la tradición de las tertulias, esa convivencia entre amigos reunidos para conversaciones, en muchos casos en torno a una buena mesa. 432 Volume 4 | Literatura Espanhola Restaría saber por qué la cultura española llegó a lograr ese sorprendente lugar en los salones de “Villa Kyrial”. La respuesta exigiría más investigación, pues hablamos de un período en que la presencia de España y de lo hispánico en Brasil es aún escasamente conocida. Es probable que las raíces comunes del Simbolismo y del Modernismo de lengua española contribuyeran a despertar el interés de Freitas Valle por los poetas de la generación de Rubén Darío. La biblioteca del senador, hoy incorporada a la Academia Paulista de Letras, podrá dar indicaciones preciosas a esta investigación. Dígase, de paso, que hace muchos años visité la Academia Paulista de Letras para investigación sobre la presencia de Juan Valera en Brasil. Me quedé sorprendida entonces con la importancia del acervo de obras españolas de aquella institución, acervo que vine a saber después era, en gran parte, proveniente de la “Villa Kyrial”. Mas, volviendo a la hipótesis que se discutía, es posible también que la región fronteriza donde nació el señor de la “Villa Kyrial”, Rio Grande do Sul, tuviese algún peso en ésta su abertura a lo hispánico. Lo cierto es que él cultivó lazos de amistad con hispanoamericanos y españoles, como los ya citados hermanos Salinas y el maestro Otero. Este último, como portavoz, o “heraldo” de la Hordem dos Gourmets, puede haber ejercido influencia decisiva en la victoria gastronómica de la lengua española en las tertulias de la “Villa Kyrial”. O tal vez la idea de crear una orden de caballería, aunque dirigida principalmente al culto de la buena mesa, evocase idefectiblemente la lengua española del Quijote y las peripecias gastronómicas de Sancho. En fin, es posible que algunas circunstancias políticas de la época indicasen España como alternativa al mecenas de los artistas. En particular, la neutralidad española durante la Primera Guerra Mundial, podría explicar la elección de España, y no de Francia o de Italia, como destino del pintor brasileño patrocinado por el benefactor de São Paulo. Son hipótesis que, como acabo de decir, tendrían que ser verificadas. Pero algo se nos hace cierto. Y es que en la historia de las relaciones culturales hispanobrasileñas de principios del siglo XX, el curioso cenáculo cultural de un barrio de la capital paulista ocupa un lugar que no puede ser desconocido. Como no pueden desconocerse las tertulias que allí ocurrían sobre Cervantes y sobre autores hispanoamericanos. Tertulias alternadas con amenas reuniones de la “Hordem” caballeresca de la cual Freitas Valle, dueño de la “Villa Kyrial”, era el “querido Jefe y Señor”. 433 Hispanismo 2 0 0 6 Referencias Bibliográficas CAMARGOS, Márcia. Villa Kyrial: crônica da “belle époque” paulistana. 2. ed. São Paulo: SENAC, 2001, p. 125. CANDIDO, Antonio, Introdução: A Vida como Arte. In: CAMARGOS, Márcia. Villa Kyrial: crônica da “belle époque” paulistana. 2. ed. São Paulo: SENAC, 2001, p. 13. MILLIET, Sérgio. Diário Crítico. 2. ed. São Paulo: Martins e EDUSP, 1981, vol. I, p. 257. MILLIET, Sérgio. Diário crítico: 1940/1943. 2.ed. São Paulo: Martins e Edusp, 1981. v.1. MOISÉS, Massaud. A Literatura em São Paulo. In: BRUNO, Ernani Silva (org.). São Paulo: terra e povo. Porto Alegre: Globo, 1967, p. 201. 434 Volume 4 | Literatura Espanhola Monumento a García Lorca, de Flávio de Carvalho: narrativas de la emigración María Dolores Aybar Ramírez (UNESP) EL 1 de octubre de 1968, se inaugura en São Paulo el Monumento a García Lorca. La obra viene a la vida en uno de los momentos más polémicos de la actual historia brasileña. Su escultor, Flávio de Carvalho (1899-1973), uno de los artistas más polémicos del Brasil contemporáneo, la idealizó por encargo del Centro Democrático Español, la asociación de españoles más polémica de la capital. El futuro de la escultura, la única que posee Carvalho en plaza pública, se vio, como su nacimiento, envuelto por polémicas, valga la redundancia, que circulan del arte, de la estética del hierro y de la estética de la pluma, al arte de una política que se forja con plomo en los llamados “Anos de Chumbo” de la historia de Brasil (D’ARAUJO, 1994). En este trabajo se presentan tan sólo las notas iniciales de un vasto diálogo que construye armonías y desarmonías complejas en el pentagrama de la historia reciente de dos países: Brasil y España; España y Brasil, en momentos en que el arte plural, la estética de dos artistas, Carvalho y Lorca, posee representaciones ideológicas que transcienden lo meramente estético. El Centro Democrático español, oriundo del Centro Gallego, fundado hacia 1900, conserva del primero el activismo político. En los años 50 del pasado siglo, se produce una llegada maciza de españoles a Brasil, un Brasil sediento de mano de obra técnica, en plena expansión económica y con una relativa libertad política. En los años 50 y 60, el Centro Democrático alcanza su esplendor (GATTAZ, 1996). Hombres y mujeres de izquierda, agrupados bajo el ideario dominante, de cuño comunista –vinculado al PC de América del Sur con sede en Montevideo, desarrollan actividades recreativas, culturales y políticas (estas últimas en la clandestinidad) donde se reúnen los principales artistas e intelectuales de América Latina y de la España en el exilio (GATTAZ, 1996, p. 29). A través de estas actividades, iba forjándose una idea vasta de la exclusión sufrida por los emigrantes en el país de origen. De acuerdo con Sayad (1998), los modernos éxodos con trasfondo económico constituyen máscaras complejas de un exilio que siempre se iza en las entrelíneas de los viejos Estados represivos y de los nuevos Estados de la exclusión. El Centro Democrático pareció presentir esta estrategia y adquirió un discurso que se ajustaba más a la lógica del exilio que a la de la migración, independientemente de las razones por las que 435 Hispanismo 2 0 0 6 aquellos españoles decidieron atravesar el océano para desembarcar en los puertos de Santos o Río. La idea de la exclusión fue forjándose en tierras lejanas y, paralelamente, la idea de la solidaridad con respecto a los excluidos del régimen franquista dentro y fuera del territorio nacional. El apoyo no se limitaba a la hermandad ideológica en la distancia. Las actividades recreativas, asistencialistas y culturales del Centro camuflaban la labor política. Por debajo de los manteles de las entretenidas meriendas, se escondían los fondos destinados a los prisioneros políticos españoles y a sus familias (GATTAZ, 1996). En 1968, sin embargo, el Centro no es ya ni sombra de lo que era. En este momento preciso, el General Costa e Silva enfrenta, contra su régimen dictatorial de derechas, manifestaciones estudiantiles y huelgas de obreros. El 18 de julio de 1968, el CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, invade el teatro Ruth Escobar, en São Paulo, hiriendo a los actores que representaban Roda Viva. El uno de octubre del mismo año, el Centro Democrático inaugura el Monumento a García Lorca y un día después, muere José Guimarães, estudiante de la Facultad de Filosofía de la USP, en enfrentamiento entre policías y estudiantes. La policía decide cerrar la facultad. Estos acontecimientos, anteriores y posteriores a la inauguración del monumento, se constituyen como malos presagios. Parece una incoherencia histórica el momento elegido por el Centro Democrático para erigir una escultura-homenaje que, a través de Lorca, se destina a la memoria de las víctimas del poder franquista. Sin embargo, el Centro se resiente de un duro contragolpe histórico: “No início dos anos 70, os rumos do Brasil e da Espanha pareciam ser opostos, como haviam sido 20 anos antes, agora no entanto em direções contrárias” (GATTAZ, 1996, p. 84-85). Los miembros de la Asociación presienten lo efímero de su existencia y lanzan su particular versión del Canto del Cisne, plantando en el corazón de la capital paulista una imagen tangible de su labor ideológica en la clandestinidad. La escultura de Flávio de Carvalho se compone de tubos y chapas metálicas de hierro pintado en tonalidades vivas y fuertes, rojas y negras. Mide 4,50 x 1,80 x 2 m y se sustenta sobre una base de hormigón. Actualmente se encuentra en la Plaza de las Guianas (São Paulo), su lugar original, lo que no debe extrañarnos para una escultura, a no ser que la escultura sea ésta, fruto del sueño de una España peregrina por tierras extrañas. La vía surrealista, con una pincelada futurista, domina en esta obra moldada por Carvalho, un artista difícil de clasificar que transita por los -ismos como por las ideologías del siglo XX con su temperamento anarquista y provocador y su impermeable invisible por el que deslizan las etiquetas de los críticos. 436 Volume 4 | Literatura Espanhola No obstante, y en este monumento, es fácil notar la presencia inconfundible del Lorca dibujante y poeta. Si observamos algunos de los dibujos del poeta granadino: su Viñeta, el Marinero, o la Rua da Morte, entre otros, veremos cómo se advierten formas abstractas, oníricas y orgánicas atravesadas por delicadas líneas de tinta que sustentan estructuras redondas y macizas. La escultura de Carvalho está surcada por esas mismas líneas misteriosas, y como aquéllas, sustentan estructuras vivas, latones retorcidos que danzan al viento y formas volátiles que exponen su verticalidad efímera y fluctuante. Observa Lerner (1999, s.n.) con pertinencia que “A leveza e a originalidade de Flávio exaltavam a liberdade e a juventude de Federico Garcia Lorca” (LERNER, 1999, s.n.). Esa exaltación se propaga por las formas, mas Carvalho no se limita a las formas propias del arte de esculpir e introduce el texto lorquiano, pintado a mano con letras blancas sobre fondo negro. Carvalho escribe de su puño y letra tres versos pertenecientes al poema “Los álamos de plata”, escrito de juventud de Lorca y canto a la inmortalidad. Incluimos la estrofa completa, y marcamos, en negrita, el texto elegido por Carvalho: ¡Hay que dar el perfume/ que encierran nuestras almas!/ Hay que ser todo cantos, / todo luz y bondad./ ¡Hay que abrirse del todo/ frente a la noche negra/ para que nos llenemos de rocío inmortal! (LORCA, 1999, p. 140). Eran casi las cinco de la tarde de un diez de octubre de 1968. El Centro Democrático plantaba una histórica bandera, parcialmente extranjera, en Brasil: Quase cinco da tarde naquele gramado próximo à avenida Nove de Julho. Os amigos iam se aproximando, rindo, conversando em voz alta, formando círculos em torno do inusitado monumento na Praça das Guianas. Flávio sugeriu que Lorca, a figura central do encontro, zombava do cinza amorfo paulistano, mandando um azul andaluz... Artistas plásticos, intelectuais, alguns poetas, professores da USP, estudantes aproximavam-se daquelas originais formas moldadas em ferro pintado em vermelho e preto por Flávio de Carvalho em homenagem a Garcia Lorca (LERNER, 1999, s.n.) Eran las cinco de la tarde de un día con sol en el São Paulo plomizo de los tiempos de plomo. Gabriel Celaya acompañaba la ceremonia. Pablo Neruda pronunciaba con aquella entonación pausada, casi lánguida, el conocido discurso: “Querían matar la luz de España”: Yo comienzo por proclamar y predicar que éste es el primer monumento a su memoria. Y como este homenaje es un deber para todas las 437 Hispanismo 2 0 0 6 naciones de América, honor y amor a esta tierra que lo hace antes de todas las otras. Proclamo a San Pablo de Brasil ciudad benemérita en nombre de la poesía universal (NERUDA, 1981, p. 113). El poeta chileno inauguraba algo más que un monumento, inauguraba un símbolo plural, y él lo sabía, más sin saberlo, su discurso se tornó la matriz de un error histórico reproducido hasta hoy por organismos oficiales como la alcaldía paulista: Poucas pessoas sabem, mas São Paulo abriga a primeira obra em homenagem a Federico García Lorca no mundo e um dos poucos símbolos em memória às vítimas da Guerra Civil Espanhola (http://milpovos.prefeitura.sp.gov.br/interna.php?com=12& lang=1&id=95). El primer monumento a García Lorca en el mundo no es brasileño sino uruguayo. Se erigió en Pasos, ciudad del norte del litoral de Uruguay donde nacieron Horacio Quiroga (Salto, 1878 - Buenos Aires, 1937) y Enrique Amorim (Salto, 1900 - Salto, 1960). Este último fue amigo personal de Lorca y del propio Neruda. A él le debemos, además de uno de los escasos documentos cinematográficos en que Lorca está presente (UTRERA MACÍAS, 1987), la construcción e inauguración, ésta última, junto a Margarita Xirgú (por entonces directora de la Comedia Nacional y de la Escuela de Arte Dramático de Montevideo), del primer Monumento a García Lorca. En el epistolario de Amorim, se encuentra una carta de Rafael Alberti, fechada el 23 de marzo de 1953, en que se lee: “Te felicito nuevamente por lo que has hecho por la gloria de Federico. […] Algún día los españoles te haremos el homenaje que mereces” (ALBERTI apud GRILLO, 2002, p. 96). Nuestro homenaje, sencillo, está aquí. Muchos años después, y en la ciudad de São Paulo, se le erigía un monumento a Lorca. No era el primero, mas poseía un valor simbólico vital para una comunidad de emigrantes y exilados españoles en Brasil. Este texto artístico resultaba indispensable para corroborar la existencia histórica de la migración española que, como la emigración en general, se caracteriza por la pobreza o la ausencia documental. La oralidad, la biografía y la autobiografía, como indica Sayad (1998), son mucho más que técnicas indispensables para las nuevas ciencias sociales que estudian el fenómeno de la emigración. La necesidad imperiosa de tal recurso desenmascara “a indigencia da ciência desse objeto” (SAYAD, 1998, p. 21). La recepción de la obra de Carvalho transita entre la indigencia documental y la necesidad de reconocimiento del Centro Democrático Es438 Volume 4 | Literatura Espanhola pañol. Este reconocimiento supera con creces las bases de la estética de la recepción de Jauss (1979) ya que éste defiende la renovación del significado histórico y estético de la obra tan sólo en su diálogo con toda la producción estética. La obra de Carvalho rompe, desde el inicio, los límites de la estética de la recepción para alcanzar un sentido icónico que circula entre el arte y la expresión política de una comunidad en la que se miran o pueden mirarse otras. En 1968, además del Centro Demócratico y de intelectuales y poetas hispánicos, se movilizaron intelectuales y artistas brasileños entre los que cabría citar a Paulo Duarte, Cacilda Becker, Ruth Escobar y Renata Pallottini, presentes en el Teatro Municipal y en la Biblioteca Mário de Andrade para manifestar su apoyo a la inauguración del monumento (WILLER, 2002, s.n.). Un año más tarde, en 1969, el famoso Comando de Caça aos Comunistas ataca nuevamente: coloca explosivos en la obra de Carvalho y la destruye. Evidentemente el atentado hace saltar por los aires los límites de la estética de la recepción cuando ésta se limita a la estética. La indignación frente a la barbarie se manifiesta en el magnífico artículo de Júlio Lerner (1999), testigo ocular de la inauguración de la escultura e informante personal de Neruda, a quien le refiere la negra suerte de la obra: Contei-lhe então o que os vândalos haviam feito com a obra de Flávio aqui em São Paulo e lhe sugeri que ele enviasse alguma mensagem. O olhar de Neruda transformou-se imediatamente e passou a faiscar revolta e indignação. [...] A voz de Neruda ecoava exigente por todo o terraço, “Uma folha, uma folha!” [...] E ali mesmo, de pé, Pablo Neruda transformou-se num indignado guerreiro e escreveu com uma “caneta atômica” um dos mais apaixonados manifestos a favor da liberdade de expressão e um candente libelo contra a intolerância e a boçalidade. [...] De volta a São Paulo, toquei a campainha do apartamento de Flávio. Ninguém atendeu. Coloquei o material dentro de um grande envelope, escrevi algumas palavras e passei tudo debaixo da porta. Uma semana depois, Flávio me telefonou e disse que, dos presentes que havia ganho ao longo da vida, o de Neruda era certamente o que mais o emocionava. Flávio morreu em junho de 1973. Neruda, três meses depois. Los avatares que sufre El homenaje a Lorca, de Carvalho, desde 1969 hasta 1979, fecha en que se inicia el movimiento por su restauración, nos cuentan varias historias imbricadas: la historia de varios artistas, la historia del Brasil de los anos de chumbo o el destino de una comunidad española que ve su símbolo más expresivo destruido y escondido en un 439 Hispanismo 2 0 0 6 depósito de la alcaldía durante años. Esta comunidad consigue recuperar los restos inmortales de la obra y entre 1977 y 1978, intelectuales y artistas brasileños se movilizan para que el monumento vuelva, restaurado, a su espacio original. El sentido dialógico despertado por la obra alcanza su apoteosis en tal momento: Tais sessões nem chegavam a ter um duplo sentido, ao homenagearem Lorca e também valerem como protesto em favor da redemocratização do país (lembro-me de, na leitura de poemas de 1977, na porta da Livraria Brasiliense, organizada por mim em parceria com Ruth Escobar, haver uma quantidade de pessoas gravando e fotografando tudo, que, com certeza, não era de jornalistas, porém de informantes policiais) (WILLER, 2002, s.n.). La escultura peregrina aún anduvo expuesta en la XI Bienal Internacional de São Paulo y posteriormente, la llevaron a las galerías del Museo de Arte de São Paulo, el Masp, antes de devolverla al lugar natal, la Plaza de las Guianas. Transcurría el año 1979: Enrique Amorim, Pablo Neruda, Flavio de Carvalho, Francisco Franco y el Centro Democrático Español habían pasado de ésta para mejor vida. Lorca, transformado en mito de hierro y latón se empeñaba en resucitar, una vez más, de entre los muertos y defendía ahora una causa extranjera desde un país extranjero: la democratización de Brasil. Su monumento, que es monumento de muchos, se renueva como los misteriosos versos en él inscritos: “¡Hay que abrirse del todo/ frente a la noche negra/ para que nos llenemos de rocío inmortal!” (LORCA, 1999, p. 140). Referencias bibliográficas BERRY, John W. Migração, aculturação e adaptação. In: DEBIAGGI, Silvia Dantas; DAHER, Luiz Carlos. Flávio de Carvalho e a volúpia da forma. São Paulo: Edições MWM, 1984. D’ ARAUJO, Maria Celina. Anos de Chumbo:a memória militar sobre a repressão.São Pulo: Relume Dumará, 1994. GARCIA LORCA, Federico. Obra poética completa. São Paulo:Martins Fontes, 1999. GATTAZ, André Castanheira. Braços da resistência: uma historia oral da imigração espanhola. São Paulo: Xamã, 1996. GRILLO, Rosa María. El exilio español en Uruguay. In AZNAR SOLER, 440 Volume 4 | Literatura Espanhola Manuel. El exilio literario español de 1939: Actas del Primer Congreso Internacional (Bellaterra, 27 de noviembre- 1 de diciembre de 1995). Vol. 1. Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2002. JAUSS, Hans Robert; ISER, Wolfgang; STIERLE, Karlheinz; GUMBERECHT, Hans Ulrich. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. RIO DE JANEIRO: PAZ E TERRA, 1979. LERNER, Júlio. Um encontro e o melhor presente para uma obra destruída. Folha digital de São Paulo. Caderno Ilustrada. São Paulo, Segundafeira, 25 de Outubro de 1999. Disponible en: http://www1.folha.uol.com.br/ fsp/ilustrad/fq2510199911.htm MATTAR, Denise (org). Flávio de Carvalho 100 anos de um revolucionário romântico. São Paulo: Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado; Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1999. NERUDA, Pablo. Querían matar la luz de España. In: ___ . Para nacer he nacido. Barcelona: Bruguera, 1981, p. 113-115. OSÓRIO, Luiz Camillo. Flávio de Carvalho. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. PAIVA, Geraldo José (orgs.). Psicologia, e/imigração e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, p. 29-45. SAYAD; Abdelmalek. A emigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: EDUSP, 1998. UTRERA MACÍAS, Rafael. Federico García Lorca - cine: El cine en su obra, su obra en el cine. Sevilla, ASECAN, 1987. WILLER, Claudio. Federico García Lorca, poeta e personagem. Revista Agulha. Revista de cultura n. 28 - Fortaleza, São Paulo - setembro de 2002. Disponible en: http://www.revista.agulha.nom.br/ag28lorca.htm 441 Hispanismo 2 0 0 6 María Zambrano, el hombre y el sentimiento de lo divino Mônica da Silva Boia (UFRJ) Somos hijos del sueño, nacemos de un sueño, del sueño de nuestros padres y del sueño de la naturaleza toda, del sueño de Dios. María Zambrano: Adsum (1955) Introducción María Zambrano (1904-1991), escritora española, se ha dedicado al ejercicio de la filosofía y el ensayo en buena parte de sus obras. Su pensamiento intenta comprender elementos importantes constitutivos de la existencia humana, tales como la palabra enunciadora, la realidad y el conocimiento. La conquista que, durante años, granjeó el hombre, dentro de su recorrido histórico, le brindó el viaje de la toma de conciencia de sí y de su entorno. Esa clarificación le hizo darse cuenta de que está delante del proyecto de su perenne construcción. El hombre, en acción de desvelar sus misterios y contradicciones, se volvió el tema central de las artes contemporáneas, en las cuales las circunstancias conflictivas de la existencia conclaman a que la literatura se distinga por la búsqueda de entendimientos, que nos auxilien a leer nuestra historia y contemplar nuestras posibilidades venideras. Desde hace tiempo, el hombre dejó de presentarse en espectáculo a los dioses, para ofrecerse como atracción a sí mismo. Influenciada por Ortega y Gasset, María Zambrano discutió conceptos filosóficos de su preceptor, no obstante su obra se singulariza por una comprensión del término ‘razón-poética’, que remite a un reflexionamiento sobre la percepción vital que posee el sujeto de los acontecimientos, a partir de la continua recreación de la palabra. Al engendrar referencia a la manera con la cual contemplamos la existencia, se hace necesario aludir al espacio que la presencia de lo divino disfruta en la vida del hombre, pues la sensación de elementos preeminentes a lo humano o su ansia invade el imaginario desde tiempos inmemoriales. Ese estudio desea entablar consideraciones sobre la relación del hombre con un sentimiento de lo divino en la temática filosófica de María Zambrano. La aceptación de que estamos formados por polos terrenos y divinos, los que no son factores excluyentes dentro de la visión zambraniana, nos conduce a asimilar esos lugares no como conceptos simplemente dicotómicos, sino como nociones que pasean por una multiplicidad de interpretación. 442 Volume 4 | Literatura Espanhola De esa manera, la autora razona sobre cómo el ‘saber del alma’ apunta la magnitud del sentimiento de lo divino en el hombre y, por consiguiente, en la vida. La existencia humana también se inserta en un conocimiento simbólico de lo incognoscible, que nos indica que la realidad no está apartada de una conexión originaria y misteriosa con dioses. Lo divino y la ‘creación de la persona’ La cuestión de la ‘religión’ es, conforme afirma Nieves Herrero (1987, p.I), nuclear en los libros zambranianos. Desde una tradición clásica de la antigüedad griega, el elemento deífico integra la senda vital del hombre en distintos ámbitos. En 1973, en el prólogo a la segunda edición de El hombre y lo divino, María Zambrano comentó que el título de esa obra podría ser el binomio representante de la totalidad de su producción literaria (p.9). La idea de lo divino instiga indudablemente una noción de lo sagrado, el cual puede hacer brillar la luz, quizás santa y maldita, del conocimiento primordial, que, a su vez, figura el presupuesto fundamental de la búsqueda filosófica. El afán de desvelar la esencia sagrada se traduce de distintos modos y bajo aspectos asimismo diversos, como en los dioses, en el tiempo y en la historia. Si antes el hombre se encontraba involucrado en un universo sagrado incógnito, el despertar de la conciencia hizo que el individuo asumiera la ‘Historia’ como un medio de construir la persona. De ser así, el hombre empezó a organizar la realidad y recibió el reto de contestar a las preguntas que, en los momentos de inestabilidad, los ‘dioses’ ya no ofrecían la solución más convincente y esperada. Esa autopercepción histórica está descrita por Zambrano como el paso de una actitud poética a una actitud filosófica, ya que la poesía aparece como una posibilidad de respuesta y la filosofía se caracteriza por la pregunta. La polemización proviene de un caos, de un vacío, de una deseperanza, en el momento en que la sabiduría consagrada ya no ocasiona la satisfacción de la duda. La inquietud filosófica lleva precisamente el propósito de reestructurar el mundo y el propio hombre. Tal empresa meditativa, incentivada por el análisis crítico del discurso, brinda, en la opinión de Ruth Wodak e Michael Meyer (2003, pp. 19-20), el fondo histórico indispensable a la imagen de conjunto, que anticipa el surgimiento del ensayo y de la propia filosofía. El hombre, entonces, no es simplemente un ser histórico, incluido dentro de un tiempo que transcurre de manera sucesiva respecto a los acontecimientos; es, ante todo, un predestinado a lo divino en la transcendencia, cuya finalidad es alcanzar ir más allá de sí mismo, en un constante estado de tránsito hacia la continuidad de la existencia. La creencia de 443 Hispanismo 2 0 0 6 que el hombre es el simulacro de un ser en condición de divinización en la trascendencia significa que no terminó de construirse y, por lo tanto, irá proceder a esa misión de autocreación a la medida que existe. Si la acción de nacer sugiere emergir de un sueño divino, el acto de vivir será, poco a poco, repensar otros sueños a fuerza de consecutivos despertares. La elaboración del individuo se cimenta sobre la estructura del tiempo circunstancial, en el que están incluidos las coyunturas de la subjetividad o la misma atemporalidad psíquica. Desde el pensamiento de que el sujeto no está propiamente bajo, sino que está por encima del tiempo sucesivo, María Zambrano argumenta que esa atemporalidad divina hace viable una revelación particular o, según la escritora, la ‘creación de la persona’. Esas ocasiones de lucidez, logradas por la elevación trascendente del tiempo de la conciencia, establece vínculos, por lo tanto, con lo divino, la Historia, la fenomenología de los sueños y la ‘razón-poética’, que aparece como un método discursivo filosófico crítico de la crisis de la cultura moderna. La ‘razón-poética’ dentro de la cultura moderna La ‘razón-poética’, estilo utilizado por María Zambrano, se revela como eje fundamental para el rescate de una gastada conciencia en los tiempos modernos de la significación capital que ha tenido lo divino en la historia de la civilización. La constatación o la esperanza de lo divino, al mismo tiempo que causó al hombre terror y la sensación de pequeñez, le movió a vencer sus limitaciones y a crecer con la búsqueda de más sabiduría y libertad. Al despertar de la conciencia, el hombre genera maneras distintas de visibilidad, que instituyen una acción ética por excelencia delante de su contingencia vivencial. Tal discernimiento toma relieve en un momento en que la severa creencia en el racionalismo fragiliza al espírito humano y le oculta otras dimensiones vitales. El pensador es, como profiere Silvio de Lima (1944, pp. 1718), un inquisidor de verdades, que se atreve a ser alguien que se expresa con un tono personal y no sólo como un eco, el cual constituye, así, una revolución de sí mismo y de lo que le rodea. La situación histórica del hombre en la cultura moderna, dice Eduardo Subirats, “es la falta de ser, la nada”, instaurada por un efecto reductor puramente racionalista (1987, pp. 95-96). El yo, carente de dimensiones íntimas, realiza una proyección de su interioridad a la historia, acto que traslada su ‘mismidad’, por lo tanto, al exterior del sujeto. El concepto de semideidad con referencia a la historia comprende que la vida y la conciencia humana están arrojadas al futuro (ZAMBRANO, 1993, p.21), donde el hombre lleva la misión de dotar de sentido su existencia. La lucha que 444 Volume 4 | Literatura Espanhola enfrenta el individuo, de acuerdo con Leonardo Cammarano, no toca a las cosas, sino a los problemas que aparecen al cavilarlas: El hombre se hace independiente de los dioses; y se crea su propia soledad. La vida, otro tiempo colmada de dioses, tiende a hacerse nuevamente vacía. Se intenta colmar este vacío emergente con el “proyecto de ser hombres”. (1987, p. 102) El hecho de que se haya el hombre liberado de los dioses nominados, lo colocó, en contrapunto, ante un dios desconocido, que se manifiesta cíclicamente, proveniente de una situación primera. En medio a las novedades de la época moderna, lo divino sienta sus raíces y se actualiza en el futuro. La ‘razón-poética’ zambraniana surge como una vena cuestionadora en un entorno regido por el cientificismo, pues, de hecho, la modernidad laica no corresponde a una especificidad cultural y literaria española. La ‘razón poética’, como discurso filosófico, intenta recuperar una perspectiva personal interior, que escudriña una luz auroral, inusitada y sorprendente, como un claro en el bosque, que representa el alba de la concienciación. Dicha visión poética encierra razón y corazón, a fin de que esté presente el sujeto en su mayor plenitud. Las meditaciones filosóficas, llevadas a cabo por la escritora española en la ‘razón-poética’, sacan adelante la identificación de rasgos metafísicos en la naturaleza, defienden la idea de una realidad divina en el alma y pregonan una actitud ética, que trata de buscar el autoconocimiento humano. Queda clara la intención de alcanzar, a partir de la comunión de la filosofía con la literatura, la evolución interior y experencial del sujeto, que se contempla, en ocasiones, hacemos hincapié, desestabilizado en medio a sus contingencias, de las que es innegablemente un testigo. Como una historia de diversos testimonios, la filosofía occidental cumple el papel de la indagación y la celebración de la duda heredada de los griegos y María Zambrano no se apartará de ese legado. Últimas consideraciones El sentimiento de lo divino estuvo asiduamente, de una forma u otra, incorporado a la modernidad vivida en España e irá presentar fuerte enlace con el ensayo, actividad a la cual se ocupó tan densamente Zambrano, con la intención de reflexionar sobre asuntos filosóficos, artísticos e históricos. La fenomenología de lo divino encuentra una posible definición en Chantal Maillard (1987, p.124) como una persistente y confusa búsqueda del ser, que pretende vencer la escisión del paraíso perdido y recompletarse en una re-unión sagrada, que le pertenecía al hombre antes de la 445 Hispanismo 2 0 0 6 caída adámica y, por supuesto, anterior a la conciencia de sí. La religión, sin lugar a dudas, no fue indiferente a esas quejas relacionadas a una dimensión constantemente ausente del alma humana, originaria de una sensación de incertidumbre, cuyos parámetros se muestran inherentes a las circunstancias del hombre moderno. Dios, en amplio sentido, según Miguel de Unamuno, no es una necesidad racional, sino una condición urgente e imprescindible del ser humano. El sentimiento de lo divino puede eclipsarse o trasladarse a otras ideas en algunos momentos, en cambio, es indisociable de la vida, puesto que, como una de las bases primordiales de la existencia, simboliza, conforme Georges Bataille (1980, p.16) el tránsito de la discontinuidad hacia la continuidad, de la vida hacia la muerte, en un rito de que anhela una elevación a lo sublime. Referencias Bibliográficas BATAILLE, Georges, 1980, O erotismo, 2ª ed., Lisboa, Moraes Editora. CAMMARANO, Leonardo, Muerte y resurrección de lo sagrado, María Zambrano, Pensadora de la Aurora, Nº 70-71, Barcelona, Antrophos, pp. 99-102. CIORAN, E. M., 1989, María Zambrano: una presencia decisiva, María Zambrano, Premio Miguel de Cervantes (1988), Ministerio de Cultura, pp. 9-10. HERRERO, Nieves, 1987, El hombre, lo sagrado y lo divino, María Zambrano, Pensadora de la Aurora, Nº 70-71, Barcelona, Antrophos, I-XI. LIMA, Silvio de, 1944. Ensaio sobre a essência do ensaio, Coimbra, Armênio Amado-Editor, [Coleção Studium]. MAILLARD, Chantal, 1987, Ideas para una fenomenología de lo divino en María Zambrano, María Zambrano, Pensadora de la Aurora, Nº 70-71, Barcelona, Antrophos, pp. 123-127. _____, 1992, La creación por la metáfora. Introducción a la razón-poética, Barcelona, Anthropos. MARÍ, Antonio, 1989, Fe en el hombre, María Zambrano, Premio Miguel de Cervantes (1988), Ministerio de Cultura, pp. 25-26. SUBIRATS, Eduardo, 1987, Intermedio sobre filosofía y poesía, María Zambrano, Pensadora de la Aurora, Nº 70-71, Barcelona, Antrophos, pp. 9499. UNAMUNO, Miguel de, 1980, Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos, 2ª ed., [prólogo por el P. Félix García], Madrid, Espasa-Calpe. 446 Volume 4 | Literatura Espanhola WODAK, Ruth & MEYER, Michael, 2003, Métodos de análisis crítico del discurso, Barcelona, Editorial, S.A. ZAMBRANO, María, 1987. Claros del bosque, 2ª ed., Barcelona, Seix Barral, [traducción francesa de Marie Laffranque, Toulousse, Asociación de Publicaciones de la Universidad de Toulouse Le Mirail, 1985]. _____, 1986, De la aurora, Madrid, Turner, [traducción al francés de Marie Laffranque, Montpelier, L’Eclat, 1988]. _____, 1993, El hombre y lo divino, 2ª reimpresión, México, Fondo de Cultura Económica. _____, 1981, El nacimiento (dos escritos autobiográficos), Madrid, Entregas de la Ventura. _____, 1987, Filosofía y poesía, 3ª ed., Madrid, Fondo de Cultura Económica. _____, 1987, Adsum, María Zambrano, Antología, selección de textos, Marzo-abril, Barcelona, Antrophos, pp. 3-7. 447 Hispanismo 2 0 0 6 A literatura brasileira na Espanha: a Revista de Cultura Brasileña (1962-1970) Ricardo Souza de Carvalho (GEBE (Grupo de Estudos Brasil-Espanha: relações literárias e culturais) / USP) Entre os projetos do GEBE, desenvolvo a linha de pesquisa da recepção da literatura brasileira na Espanha: traduções, estudos e incorporações pela produção literária espanhola. Vertente praticamente inexplorada, pois prevalece apenas a natural associação Espanha-América Hispânica no âmbito latino-americano, excluindo-se o Brasil. No entanto, há atualmente no meio acadêmico espanhol um crescente interesse pelos estudos brasileiros, com a criação de centros e cátedras, e a realização de eventos como o Encuentro de brasileñistas españoles, no Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca, que está em sua segunda edição em 2006. Por outro lado, já tivemos alguns exemplos significativos de escritores e intelectuais espanhóis que se voltaram para o Brasil. Peça fundamental desse processo foi a Revista de Cultura Brasileña, editada pela Embaixada do Brasil em Madri, especialmente seus trinta primeiros números de 1962 a 1970. Apesar de algumas aparições em periódicos, a literatura brasileira mostra sua cara a partir da presença de João Cabral de Melo Neto como diplomata em solo espanhol. Primeiro em Barcelona, entre 1947 a 1950, estimulou o crítico de arte e poeta Rafael Santos Torroella a traduzir Drummond para a célebre Colección Adonais em 1951 e a poesia moderna para a Antología de la poesía brasileña, organizada por Renato de Mendonça no ano seguinte. Depois, veio a decisiva amizade com Ángel Crespo, na Madri de 1961, quando ocupava o cargo de primeiro secretário da Embaixada brasileira. Crespo iniciou sua carreira literária na década de 40, em torno ao Postismo, movimento que se proclamava sucessor dos “ismos” anteriores, para se constituir em uma das mais expressivas vozes da lírica espanhola da segunda metade do século XX. Dessa maneira, esteve à frente de periódicos que ajudam a contar a história do gênero na Espanha do período: El pájaro de paja, de 1950 a 1956, e Poesía de España, de 1960 a 1963. Paralelamente, investiu na tradução, principalmente de autores de língua portuguesa e italiana. Seu interesse pela literatura portuguesa, incluindo, entre outros, a tradução e estudo de Fernando Pessoa, pode ser considerado o ponto de partida para seu intenso trabalho com a literatura brasileira. Cabral, que desde o início de sua temporada espanhola idealizara uma revista, só chegando a publicar em Barcelona um único número de O ca448 Volume 4 | Literatura Espanhola valo de todas as cores, nesse momento pensou em um órgão privilegiado para a divulgação da literatura e cultura brasileiras, sobretudo contemporâneas, na Espanha. E convidou Crespo para assumir a direção, que possuía mais de um motivo para aceitar: (...) En primer lugar, porque la literatura brasileña, que es una de las más importantes de América, era entonces casi enteramente desconocida en España; en segundo lugar, porque creía muy conveniente que los lectores españoles tuviesen la posibilidad de compararla con la de otros países sudamericanos, objeto entonces de un alza comercial sin precedentes desde los tiempos del modernismo; en tercer lugar, porque aceptar aquella propuesta supondría para mí contar con grandes facilidades para complementar, con el estudio de la brasileña, mis trabajos sobre poesía portuguesa. (CRESPO, 2005, p. 35). A Revista de Cultura Brasileña fez parte de uma série de ações promovidas pelo Serviço de Propaganda e Expansão Comercial da Embaixada do Brasil em Madri, que envolveu exposições, como Grabados populares del Nordeste de Brasil (1962), e o periódico informativo Brasil, em cujos fascículos Crespo preparava uma história da literatura brasileira. Com uma média de três números anuais, a Revista de Cultura Brasileña abarcava a literatura, as artes plásticas, o teatro, o cinema, a arquitetura, entre outras áreas, em artigos assinados por renomados autores brasileiros e espanhóis. Traduções de poesia e estudos de maior fôlego muitas vezes ganhavam uma edição em separata, o que aumentava sua circulação. A poesia apresentou-se como o gênero por excelência nas páginas da Revista de Cultura Brasileña. Geralmente Crespo, às vezes com a colaboração de Dámaso Alonso, abria cada número com um estudo introdutório e uma seleção traduzida de um poeta, formando um cânone da poesia brasileira moderna; assim temos Murilo Mendes (n. 1, março 1962), Manuel Bandeira (n. 2, junho 1962), Carlos Drummond de Andrade (n. 3, dez. 1962), Mário de Andrade (n. 4, março 1963), Cecília Meireles (n. 6, set. 1963), Cassiano Ricardo (n. 7, dez. 1963), Jorge de Lima (n. 9, jun. 1964), Vinícius de Moraes (n. 10, out. 1964), Augusto Frederico Schmidt (n. 13, jun. 1965), Joaquim Cardozo (n. 14, set. 1965), Raul Bopp (n. 16, jun. 1966), Oswald de Andrade (n. 26, set. 1968) e Henriqueta Lisboa (n. 28, março 1969). Para completar um panorama histórico, Crespo ainda elaborou quatro antologias: Antología breve del parnasianismo brasileño (n. 17, jun. 1966), Muestrario del poema en prosa brasileño (n. 18, set. 1966), Muestrario de poemas simbolistas brasileños (n. 22, set. 1967) e Poemas románticos brasileños (n. 30, março 1970). O conjunto desse trabalho 449 Hispanismo 2 0 0 6 esteve na base da fundamental Antología de la poesía brasileña (desde el Romanticismo hasta la generación del cuarenta y cinco), lançada por Crespo em 1973. Por falar em Geração de 45, a tradução de seus poetas e contemporâneos ficou a cargo de Gabino-Alejandro Carriedo, poeta espanhol que também se dedicou à divulgação da literatura brasileira na Espanha. Entre 1965 e 1967 verteu ao espanhol: José Paulo Moreira da Fonseca (n. 13), Domingos Carvalho da Silva (n. 14), Fernando Ferreira de Loanda (n. 15), Edgar Braga (n. 16), Marcos Konder Reis (n. 17), Affonso Romano de Sant’Anna (n. 18) e Bueno de Rivera (n. 20). Além disso, um dos pontos altos da Revista de Cultura Brasileña foram os alentados estudos que Crespo e Pilar Gómez Bedate escreveram a respeito das tendências mais recentes da poesia brasileira: “Situación de la poesía concreta” (n. 5, jun. 1963), “Tendência: poesia y crítica en situación” (n. 15, dez. 1965) e “Cuestiones fundamentales de la poesía práxis” (n. 19, jun. 1966). Ao lado deles, destaca-se o número especial de dezembro de 1964, no qual promoveram uma enquête sobre a literatura brasileira de vanguarda com depoimentos de escritores e críticos como Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Haroldo de Campos, Luiz Costa Lima e José Guilherme Merquior. O objetivo principal era informar e atualizar o cenário literário espanhol, que se preocupava mais com uma poesia social sem maiores discussões estéticas: (...)di un lugar destacado en las páginas de aquella publicación a las corrientes de carácter experimental porque pensaba que, siendo como eran internacionales, es decir, muy relacionadas con las de otros países, merecía la pena informar sobre ellas a los lectores españoles. Es que continuábamos teniendo un arte de vanguardia y, paradójicamente, una literatura bastante conservadora. (CRESPO, 2005, p. 36) A Revista de Cultura Brasileña tornou-se veículo fundamental sobre a poesia concreta, movimento em que o Brasil esteve na linha de frente desde meados dos anos 50, impulsionando a poesia experimental na Espanha, cujo auge foi entre 1968 e 1975. Haroldo de Campos, que já vinha mantendo contatos desde 1959 com os espanhóis, inclusive Crespo, participou em 1965, com Augusto de Campo e Décio Pignatari, da 1ª exposição de poesia concreta na Espanha, na Galeria Grises de Bilbao. A Revista de Cultura Brasileña, além da proposta de aproximação intelectual Brasil-Espanha, pode ser considerado um dos mais importantes periódicos “espanhóis” na década de 60, uma janela para o mundo, 450 Volume 4 | Literatura Espanhola quando o país tentava sair de seu isolamento. A Espanha, que desde os tempos de Rubén Darío se abria às novidades do continente americano, buscava mais uma vez outros parâmetros para resolver seus impasses. Mas apesar da vigorosa tarefa de Angel Crespo, há um trabalho ainda por se fazer, que seria o de dimensionar as repercussões dessa presença da poesia brasileira na Espanha, fato único até os dias de hoje. Até que ponto as mudanças na poesia espanhola dos anos 60 e 70 teriam sido motivadas pela brasileira? Em uma leitura mais atenta, se podem encontrar ecos dos brasileiros nos poetas espanhóis? Abre-se assim um rico veio para os estudos comparados entre Brasil e Espanha. Referências Bibliográficas CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio e CAMPOS, Haroldo. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006. CANO, José Luis. La poesía brasileña en España (Noticia bibliográfica). Revista de Cultura Brasileña. n. 2, Madri, 1962, pp. 116-121. CARVALHO, Ricardo Souza de. Comigo e contigo a Espanha: um estudo sobre João Cabral de Melo Neto e Murilo Mendes. Tese de doutorado. FFLCH-USP. 2006. CRESPO, Ángel, “Mis caminos convergentes” In Ángel Crespo. Con el tiempo, contra el tiempo, Fundación Jorge Guillén et alli, 2005, pp.15-49. GÓMEZ BEDATE, Pilar. La Revista de Cultura Brasileña: João Cabral de Melo Neto y Ángel Crespo. Revista de Cultura Brasileña. Número especial, Madri, 1997, pp. 21-39. _____ El “poeta-artesano”: nota sobre la poética española del posguerra y la relación de Ángel Crespo y João Cabral de Melo Neto. Revista de Cultura Brasileña. n. 3, Madri, março de 2005, p. 159-168. 451 Hispanismo 2 0 0 6 El proyecto ibérico valeriano en Genio y Figura. Rodrigo Vasconcelos Machado (UFPR) Este estudio tiene como meta desdoblar las posibles relaciones entre la novela Genio y figura (1897), de Juan VALERA (1824-1905), con el proyecto ibérico valeriano que fue esbozado en los textos no ficcionales de VALERA. Valera planteaba en su proyecto la unión política y cultural entre Portugal y España. En el período que VALERA vivió en Río de Janeiro (1852-1853), hubo la reiteración de la doble perspectiva unionista, pero el desplazamiento de VALERA, influjo en la redefinición de su proposición ibérica. Podemos sugerir que la reflexión crítica sobre las producciones culturales luso-brasileñas agregó un nuevo tema a su pensamiento: el latinoamericano. La reelaboración del iberismo operó entonces con una nueva definición basada en otros hechos. La geopolítica valeriana pasó en los textos posteriores a incorporar para su iberismo las antiguas colonias hispanoamericanas. A partir de este hecho, el componente cultural determinó los imperativos ibéricos. Los cambios en el pensamiento Occidental del final del siglo XIX, principalmente con las investigaciones sobre la cuestión racial, también se configuraban en las consideraciones de VALERA. Los puntos culturales en común serían reforzados por afinidades raciales que elevarían el iberismo a una suerte de unión intercultural. Esta unión intercultural se daría por la búsqueda de continuidad de la cultura europea, sobre todo el legado peninsular. La comunidad ibérica imaginada tendría en el aspecto cultural un entrelazamiento que favorecería, en un hipotético futuro, una posible unión. El escritor operó con varios géneros en su producción escrita y por este hecho se estudia más su obra novelística que la producción epistolar. La gran parte de la obra novelística valeriana tiene como cronotopos la España decimonónica, la región de Andalucía, pero hay el caso de la novela Genio y figura, que se construye inicialmente en el espacio temporal del 2o Reinado del Brasil. Para la mayoría de los expertos valerianos este influjo del entorno del Río de Janeiro corresponde al período en que Juan Valera vivió en Brasil (1852-1853). Este hecho posibilita proponer una nueva perspectiva en las investigaciones valerianas, ya que el hecho de ser un viajero le obligó a entrar en contacto con otras culturas. La novela Genio y figura fue escrita en 1897, o sea, habían ya transcurridos más de 40 años de su permanencia en Brasil. Además, el joven escritor era ya un señor maduro que pasara por otros países para instalarse definitivamente en su tierra y dedicarse a una labor intelectual altamente productiva, principalmente como novelista. Los tiempos ya eran otros y escribir en las 452 Volume 4 | Literatura Espanhola postrimerías decimonónicas involucraba ideas distintas de las de la mitad del siglo, porque el mundo estaba cambiando. Otra explicación dada por Valera para el hecho de escribir mucho tiempo después había sido debido a consideraciones personales, ya que planteaba que no quería molestar a los que estaban involucrados en los hechos de su obra. Así, había empleado los procedimientos narrativos del roman a clef, pero conservando algunos rasgos bibliográficos que han sido identificados por sus críticos. Sin embargo, la mirada del novelista “exiliado” implicaba la conciencia de dos civilizaciones. La suya y la del país compuesto de etnias distintas y que se estaba construyendo delante de sus ojos. Por supuesto, no podemos olvidar que esta dicotomía no es una cosa estanque, mismo para el siglo XIX. La cultura española no era homogénea, ya que tenía componentes de distintas civilizaciones en sus cimientos y lo mismo pasaba con la naciente cultura brasileña. Plantear casilleros o generalizaciones cómodas comprometen los juicios críticos y según Said se pierde lo principal. Lo mejor, nos indica este estudioso, es adoptar una posición inicial y tener como perspectiva una mirada más integradora y ver las culturas como un enorme todo, cuya existencia podemos sentir e intuir (SAID, 2003, p.325). Y Valera en cierta medida tuvo la capacidad de sentir e intuir sobre los distintos matices culturales de Brasil. Sabemos que en sus cartas a su amigo y maestro Serafín Estébanez Calderón, Valera practicaba la escrita y pulía su estilo. El costumbrismo en las escenas descriptas para su confidente nos dan un parámetro de como el misivista posteriormente las empleará en su novela. Sin embargo, este quehacer en la escritura le permitía comprender otras culturas, como por ejemplo el reconocimiento del componente poético en las músicas de los esclavos negros presente en Genio y figura. La condición de viajero de Valera le consentía que rompiera las barreras y fronteras culturales. Ser un trotamundos le facilitó esta postura, es decir, era un viajero. El viajero es una persona que pertenece a una grupo que se siente cómodo en cualquier sitio, conforme plantea Said: “La imagen del viajero no depende del poder, pero del movimiento, de una disposición de irse a mundos distintos, emplear distintos idiomas y comprender una variedad de disfraces, máscaras y retóricas” (SAID, 1995, p.207). El cronotopos de las otras obras de Valera se ubica principalmente en Andalucía, cosa que no ocurre en Genio y figura. El hecho de trasladarse a otros pueblos sacará el escritor de su lugar y con ello atravesará territorios, abandonando sus antiguas posiciones fijas el tiempo todo. Por lo tanto, plantear cuál es el lugar de enunciación del polígrafo Valera es principiar por un sendero lleno de escollos, ya que sus cartas y ensayos 453 Hispanismo 2 0 0 6 están escritos bajo las incertidumbres de sus oscilaciones pendulares. Hay que hacer hincapié en la cuestión que estamos analizando son los (contra) puntos de su Iberoamericanismo no con el sentido de sugerir una homogeneización, sino destacar la diversidad de la novelística valeriana, y, a sabiendas que el esencialismo de la unión ibérica era una identidad nacional del autor y su proyecto intelectual, como atestiguan gran parte de sus escritos. En Genio y figura tenemos la presencia de un diplomático portugués, el vizconde de Goivo-Formoso, que transita en el mismo lugar de enunciación del narrador-protagonista para acompañar la vida de Rafaela, “dama” que tuvo intimidad con ambos. El enredo de la obra se desarrolla a partir de la defensa de una hipótesis de su amigo aplicada a la conducta de Rafaela: genio y figura, hasta la sepultura. El comportamiento de Rafaela afrontaba la moral de la época vitoriana, pues se preocupaba con su marido, pero tenía relaciones con varios amantes que también eran cuidados por ella. Es claro que esta defensa será el principal leitmotiv de la obra, pero constatamos que a lo largo de la experiencia brasileña adquiere matices peculiares. La aparición de Rafaela cambia el rumbo de la vida de varios personajes a través de la seducción. Las acciones de Rafaela pueden ser analizadas por una lectura en contrapunto. Valera vivió en la época de los grandes imperios europeos, pero su país ya estaba en la periferia del capitalismo. El desastre de 1898 remató las últimas posesiones de España para Estados Unidos. Este hecho de cierta forma hizo con que los pueblos hispanoamericanos volviesen su mirada para su antigua metrópoli para rechazar el nuevo agresor de turno. En el campo intelectual podemos subrayar el rol que desempeñó Valera sobre la recepción crítica de Rubén Darío y del Modernismo en España. El diálogo intercultural iba a reflejar en su praxis de intelectual cosmopolita. Este hecho clave del cosmopolitismo o como nos sugiere Said, la “mundanité”, es decir, el gusto por la vida mundana, le había facilitado la faena de observador que se desplaza y echa luces en los recovecos. Por supuesto, que la mirada valeriana estaba cargada de toda herencia cultural española y este hecho va a hacer que los juicios a veces fuesen inconstantes. Volviendo al texto, notamos que la generosidad se expande en la descripción de la sociedad que se le presenta, pero no de modo a exagerar sus bellezas adánicas o lo opuesto: ver sólo los defectos. El entorno es compaginado: “Hace ya muchos años, el vizconde y yo, jóvenes entonces ambos, vivíamos en la hermosa ciudad de Río de Janeiro, capital del Brasil, de la que estábamos encantados y se nos antojaba un paraíso, a pesar de ciertos incovenientes, faltas y aun sobras”(VALERA, 1995, p.15). Si las 454 Volume 4 | Literatura Espanhola bellezas naturales son indiscutibles, los topónimos que les nombran no son justos para el ex-poeta, es decir, le mot usada estaba lejos de captar los fragmentos de la realidad que se le ofrecían para sus ojos sensuales. Ojos que también estaban atentos para otras bellezas naturales, sobre todo volcados “donjuaneadamente” para todas las mujeres, pero delante de las españolas había mucho más que la simple satisfacción de la libido: “La afición decidida a las españolitas era entonces el más pronunciado síntoma y el más elocuente indicio de la posible unión ibérica” (VALERA, 1995, p.21). En el banquete sexual la confitura principal del plato servido era el Iberismo travestido de mujer. La seductora Rafaela es la española que seduce a todos para luego apartarles del camino y encaminar para el rumbo del iberismo. Su trayectoria de éxito empieza por la seducción del rico don Joaquín, nuevo potentado tacaño que se enamora y se convierte totalmente a la civilización y pasa incluso a ser uno de sus voceros más sinceros. La maestra influye sobre su viejo alumno de modo “decente y docentemente” según el envidioso narrador que a pesar de ser un “janota” también se sometería con inmenso gusto y provecho a este dulce cambio bajo la atenta dirección de esta Beatrice: “Pero Rafaela era insaciable en su anhelo de perfección, y, deseosa de que don Joaquín estuviese, no sólo aseado, sino chic, y cómo ella le decía hablando en portugués, muito tafulo o casquilho, hizo que le tomasen las medidas y escribió a Paris y Londres encargándole ropa que no tardaron en enviarle (VALERA, 1995, p.32). El deseo vehemente de Rafaela es “insaciable”, o sea, la búsqueda de la perfección acompaña sus acciones pedagógicas y el resultado final de su labor es el cambio comentado irónicamente por el narrador: En resolución, y para no cansar más a mis lectores, diré que antes de cumplirse el año de conocerse y tratarse don Joaquín y la bella Rafaela, el, con asombro general de sus compatriotas, parecía un hombre nuevo: era como la oruga, asquerosa y fea durante el período de nutrición y crecimiento, que por milagroso misterio de Amor, y para que se cumplan sus altos fines, transforma la mencionada deidad en brillante y pintada mariposa. (VALERA, 1995, p.32). Rafaela, “la generosa”, emplea una cantidad variada de técnicas, incluso sexuales, para enseñar sus valores. Pero, no tiene éxito inicialmente en el episodio del gaucho Pedro Lobo, que, seguro de sus convicciones no se deja captar. El epígono de Rosas propone su manera de ser y los dos sólo tienen paz cuando pasean o durante sus citas amorosas. La fuerza física no es necesaria para doblar el gaucho: la ciudad tiene otros 455 Hispanismo 2 0 0 6 procedimientos muy eficaces. Además, de la seducción por los atractivos corporales, hay la ayuda del vocero mariposa, ya que tras la transformación don Joaquín pasa también a adoptar el discurso de la conciliación. Ahora acalma los ánimos entre los “europeos” y los latinoamericanos al destacar los aspectos positivos de ambos y sugerir otro camino. El proyecto de la unión ibérica es presentado y se extiende para agregar también a los vecinos de Brasil. Sabemos que los hechos históricos de la época en que fue escrita la novela tornan la propuesta coherente. El momento delicado por que pasaba España tras su derrota frente a Estados Unidos y el inicio de la política del big stick que ya empezaba a molestar a los vecinos hispanoamericanos. Otro ejemplo en el texto que capta este instante y que es también como un banquete literario es el de como se hacían las comidas, ya que es un “cocinero cosmopolita” que va a mezclar los distintos ingredientes procedentes de Europa y de Brasil y que van a resultar en exquisitos “quitutes” (VALERA, 1995, p.36). Decir que la cocina española era “degenerada” involucra una crítica al estado por que pasaba su país, pero sabiendo que ya hubo un edad de oro de esta cocina. Este planteamiento por parte del narrador-protagonista subraya su innovación e incluso hasta una cierta modernidad. La relación entre el dominador y el colonizado deja de ser asimétrica y pasa para una nueva etapa en este momento. El hecho de estar en contacto con diferentes culturas en período de la historia cuajado de prejuicios sobre la inferioridad de los pueblos no europeos se destaca en la obra de un escritor polígrafo tan polémico como Valera, pero que debido a la generosidad de su “mundanité” pudo proponer cuestiones pertinentes y discutidas en la contemporaneidad. La praxis sugerida por el cocinero cosmopolita corresponde a lo mejor que había sido planteado por el escritor, pues algunos de sus escritos también reflejaban algunas posiciones cargadas de puntos de vista negativos sobre la inferioridad de los pueblos sometidos al dominio de Europa, es decir, el autor apenas proponía un avance para luego volver para posiciones conservadoras más confortables. Sus idiosincrasias de hijo de una familia noble y miembro del establishment le ponían en el lugar inicial. Sin embargo, al enunciar estas innovaciones, no perdía el carácter moderno para su tiempo. La preocupación que tenía Rafaela de vestir a don Joaquín de acuerdo con las modas europeas también es semejante a lo descrito en una de las cartas de Valera. En sendos registros el componente de remedo presente en la cultura brasileña se destaca ante el escritor como una 456 Volume 4 | Literatura Espanhola cosa singular e insólita. La dependencia cultural configura la presencia de conceptos ajenos insertos en un otro medio. Estas ideas alejadas de su contexto original yuxtapuestas a una sociedad patriarcal basada en el sistema de la explotación de la esclavitud engendraban distorsiones no notadas de modo irónico, pues como hemos visto antes, Rafaela logra a cambiar un pordiosero tacaño en una “pintada mariposa”. Tras su permanencia en Brasil, Rafaela seguirá sus aventuras en la ciudad más cosmopolita: París. Allá se quedará con varios recuerdos de su experiencia brasileña que irán a persistir y mantener su fuerza. El contacto intercultural había sido decisivo y se apostaba todas las fichas que ello ayudaría a la decadente Europa a recuperar su camino a partir de la superación del las mezquinas nacionalidades para hablar una lengua común a todos: “no se habla aquí de los españoles, portugueses y americanos, porque estos eran muchos y formaban la gran mayoría de tan híbrida asamblea.” (VALERA, 1995, p.123). Una posición como la que ha sido citada corrobora que Valera también participaba del “gran juego” de Kipling, pero considerando los demás pueblos que hacían parte de la historia de España en igualdades de condiciones en la “Babel” europea. Las ideas de Gobineau y otros defensores de la superioridad blanca no se verifican en la novela valeriana y lo que el escritor español planteaba era muy avanzado para su tiempo, puesto que no hay un punto de observación neutro cuando están envueltas varias culturas, principalmente en las relaciones entre potencias imperiales y no imperiales. La emoción de contemplar el Nuevo Mundo suministraba un nuevo abanico de posibilidades y fragancias para el escritor Juan Valera. El silencio de la mirada se reflejaba en una escritura que registraba una realidad sensual y exuberante de tonos coloridos y calientes. Los colores de la gris Europa estaban lejos de allí. La experiencia de vivir en un paraíso tropical sería muy distinta de la convulsionada España de la primera mitad del siglo XIX. El nuevo entorno dejaría su huella indeleble en su escritura, ya que conllevaba a una nueva aportación ficcional basada en intercambios con otras culturas y que sería clave para su proyecto ibérico que se planteaba principalmente por la unión cultural entre los pueblos de la Península ibérica y sus antiguas colonias. Referencias Bibliográficas CHACON, Vamireh. A grande Ibéria. São Paulo; Unesp/Paralelois, 2005 MARTÍN, José Luis García (coord.) Juan Valera - Cartas a Estébanez Calderón (1851-1858). Gijón: Libros del Pexe, 1996. 457 Hispanismo 2 0 0 6 MORENO-DURÁN, R.H. De la barbarie a la imaginación: la experiencia leída. México: Fondo de Cultura Económico, 2002. SAID. Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. VALERA, Juan. Genio y figura. Madrid: PML ediciones, 1995. 458 Volume 4 | Literatura Espanhola Dos problemas de la crítica española para el establecimiento del Canon Romilda Mochiuti (USP/ UNICAMP/ PUC-SP) Aludir a tan solo dos problemas de la crítica histórica española se ha convertido en una gran dificultad para el desarrollo de esta ponencia, ya que un problema conlleva otro y no es fácil divisarlos separadamente y en su totalidad. Quizás, por ello, muchos estudiosos se muestren incapaces de ponerlos abajo, no sea porque también teman la pérdida de un referencial teórico, o porque crean ser imposible repensar otra aportación o un nuevo parámetro de pensar y rescribir la historia de la literatura española o, aun, porque están en conformidad con el referencial teórico que utilizan. La tradición crítica se ha puesto de rodillas ante sus propias opciones y rechaza la postura erecta que una crítica más lúcida le cobra. El clásico ejemplo es la equivocada reincidencia en el uso del término “Generación”. Aunque ya en su origen con la expresión “Generación del 98” Azorín recibió severas críticas por parte de algunos autores asignados como miembros de aquella “generación literaria” – como Pío Baroja -, la ausencia de otra crítica que pudiera entablar un debate que llevara a cabo un estudio más detenido acerca de los fenómenos de aquel período hicieron cuajar el término tanto en el gusto popular como en la crítica, que pasó a manejarlo con cierto despropósito. Así que, al abanico de nuevas tendencias artísticas de la segunda mitad de los años 20, la crítica se apresuró también a denominar “Generación del 27”, valiéndose de los mismos equívocos cometidos por Azorín. Cabe advertir que todavía no se había asimilado o, por lo menos, llevado a cabo la discusión promovida por Azorín y Baroja y que tampoco se había detenido lo suficiente en el desarrollo de las nuevas tendencias que surgieron en el período siguiente a la “Generación del 98”, el de la primera guerra mundial. Observamos que, tras la denominada “Generación del 27”, la crítica se vuelve a la producción literaria anterior a ella y la nombra “Generación del 14” y, así, seguimos de generaciones en generaciones, divisando varias críticas contrarias al término que sin embargo e irónicamente lo siguen utilizando, como pondera Víctor G. de la Concha: Frente a quienes como Gaos [1965], estiman que nada autoriza a elevar al grupo a categoría de generación, se defina a favor del término, por entender que precisamente la ausencia de algunos de los factores clásicos petersenianos – dos, según precisa Siebenmann [1973] en su panorámico estudio de los estilos poéticos de nuestro siglo -, evidencia una comunidad de propósito trascendente de la poesía y el deseo compartido 459 Hispanismo 2 0 0 6 de lograr una obra “perfecta, humana y universal”. Todo ello los distancia, según él, del ultraísmo y los constituye en un tiempo dialéctico nuevo. Merecería este último punto precisiones críticas. Tejada [1976] ha revelado ampliamente las conexiones del primer Alberti con el ultraísmo, y las mismas en mayor o menor proporción, cabría rastrear, sin contar ya con Diego y sin perder de vista que lo básico fue el creacionismo, en los otros miembros de la generación. (CONCHA 2001, p. 249) El referido crítico se detiene aún en algunos otros estudios que argumentan que la “Generación del 27” debería clasificarse como “Generación de 1924 ó 1925”, o aún como “generación lírica de 1920”. Es curioso notar que, entre tanta crítica al término, entre todos los escritores o poetas que se incluyen o excluyen a esta o a aquella “generación” no se menciona a ninguna escritora o poeta (mujer)a. Parece que hay un vacuo entre la producción de Emilia Pardo Bazán y la novela Nada, de Carmen Laforetb. Bajo este aspecto es interesante notar que, aunque la Literatura Española tiene ya en sus orígenes una expresiva polifonía femenina (BLANCO AGUINAGA et alii: 2000: 57), son escasos los estudios que se detengan en estas voces como parte constitutiva de la Literatura Nacional. Cuando lo hace, se detienen en analizar el “yo lírico” femenino o, por otra parte, en señalar algún “rasgo peculiar” de esta “literatura” producida por mujeres, como si estuviesen a la espera de una decodificación que la condujera al merecido lugar de la Literatura propiamente dicha: El tiempo de recuperación y reconocimiento de la presencia de mujeres (algunas) creadoras en el espacio y en el tiempo de Al Andalus necesariamente tiene que sustentarse en las denominadas fuentes históricas. Hecha excepción de algunos arabistas que a principios de este siglo se acercaron al papel genérico de las mujeres de Al Andalus y también a la construcción, a veces lírica y siempre distorsionadas, que las orientalistas ofrecieron de las mujeres en el Islam, es sólo en estas últimas décadas cuando un no muy nutrido grupo de investigadoras (y algún que otro investigador) inician y encauzan un verdadero proyecto de identificación y recuperación de las mujeres en Al Andalus, tanto desde la perspectiva de las relaciones sociales como desde la singularidad de algunas figuras. (OBRA et RODRÍGUEZ DE AZA: 2000: 103-4) Por otra parte, como señala Rosa Risso “en pocos casos como en el amor cortés aparece claramente que la “mujer” es fruto de una codificación masculina” (in DÍAZ DIOCARETZ et ZAVALA: 1999, 24). En efecto, si en la Celestina ya encontramos una fuerte presencia crítica a los valores propagados por el “amor cortés”, Cervantes, a su vez, también ironiza y agudiza todavía más esta crítica al crear una Dulcinea, cuya “codificación 460 Volume 4 | Literatura Espanhola masculina” de ideal caballeresco, se choca con su realidad mimética. Si son pocas las mujeres que producen durante el Siglo de Oro, los manuales, a su vez, incurren en el mismo equívoco practicado con las poetas de Al Andaluz al no referirse a ellas o, sencillamente, omitirlasc. Este “fallo”, que notamos ser un problema de línea ideológica en la concepción e historicidad practicadas por los manuales de literatura española, adquiere más “legitimidad” con el paso del tiempo. A mediados del siglo XX, con la publicación de la novela Nada, de Laforet, y con el Premio Nadal que recibe – y a partir de ella, otras tantas novelas escritas por mujeres – la narrativa española amplia su universo de escritoras y de nuevas tendencias narrativas que coexisten, sin embargo, de forma paralela. Se cree un espacio en la Literatura Española llamado “literatura de mujeres”. La crítica, estañada a su tiempo e idiosincrasia, lee estas obras bajo la misma mirada contaminada designándoles, muchas veces, un lugar “generacional” en la “literatura escrita por mujeres”, en un claro paralelo al referencial ya constituidod. Jean Canavaggio, en su Historia de la Literatura Española, al referirse a la obra de algunas escritoras y al asignarlas bajo el subtítulo de “Literatura de las Mujeres”, escribe: Sin pretender encerrar a las mujeres en un gueto, como se hace en algunas historias literarias, reagruparemos bajo un mismo epígrafe un conjunto de importantes producciones femeninas que deben su unidad a la opción por determinados temas. (CANAVAGGIO, 1995, 321) Bajo este criterio, como ya advertimos y leemos con cierta ironía, el estudioso establece su crítica de la “literatura escrita por mujeres” según la particularidad / peculiaridad que esta producción aporta. Para ello, Canavaggio, de pronto, justifica su clasificación en un grupo aparte debido a que las obras presentan “una unidad temática”e: “inquietudes de su tiempo”, “novela de tesis”, “estudio del ambiente social”, “explotación del itinerario psicológico de la mujer”. Como si ningún otro escritor (del sexo masculino, aclaremos) no escribiera sobre la misma temática. Está clara la opción: por el hecho de que las escritoras – dicho sea de paso, el estudioso alude a un número bastante reducido – son mujeres y abordan un universo de personajes femeninos, se ordenan obras y autoras, cuando de ellas se ocupan los estudios, a un “gueto” o a cualquier otro espacio al margen del canon establecido, como el propio crítico irónicamente se auto revela. La contradicción, presente en el manual de Canavaggio, se nos presenta todavía más clara, cuando el autor trata de reseñar la obra de Ade461 Hispanismo 2 0 0 6 laida García Morales. Más específicamente, cuando reseña su novela El silencio de las sirenas: En esta novela pasamos de la tentación incestuosa de la protagonista de El Sur, a la historia de una mujer solitaria y muda, que sólo mediante hipnotismo consigue expresarse. Está enamorada de un hombre que no aparece jamás, y esa pura ausencia hace que lo ame más todavía. Si su confidente trata de interponerse o acercarla a la realidad, irrumpe la tragedia, como le ocurre a Don Quijote, que muere reconociendo al fin su locura y el peso aplastante de la realidad: el personaje de García Morales irá a morir a lo alto de una montaña, escapando de un mundo que le da miedo. Este relato de prodigiosa densidad, escrito en un estilo amortiguado, murmurado al borde del mutismo y de la herida, logra la forma perfecta de la confidencia. (CANAVAGGIO, 1995, p. 323) De la recepción de El Sur, cuyo éxito el estudioso relaciona líneas antes al hecho de haber sido adaptado al cine, a la crítica que hace a la novela El silencio de las sirenas, Canavaggio perturba al estudioso que se pregunta cómo una novela puede tener una densidad a tal punto de ser comparada al Quijote y, a la vez, estar incluida en el rol de la “literatura escrita por mujeres” debido a la similitud y unidad temática que sus obras aportan. Algunas ponderaciones en el sentido de entender la des-vinculación de la prosa escrita por mujeres del canon establecido son las de Jorge Gracia, en cuyo análisis de la prosa narrativa española – noveno volumen de Historia y Crítica de la Literatura Española dedicado a “Los nuevos nombres: 1975-2000” -, no sólo señala la vocación más individual que colectiva de las novelas de los últimos treinta años, sino que también pondera que el canon establecido desde la posguerra hasta el comienzo del milenio, se caracteriza por su inestabilidad (GRACIA, 2000, p. 208)f A este respeto, Elizabeth J. Ordóñez agrega que los escritores de la llamada “democracia española” se encuentra entre dos opciones igualmente “repugnantes”. Por un lado la teoría que, aunque llena de buenas intenciones se muestra visiblemente cansada y vacía de sentido y, por otra, volcada al mercenarismo del mercado cultural (ORDÓÑEZ, 1995, p.172). Gracia, a su vez, nos agrega algunas ponderaciones significativas: En un balance general sobre los intereses del hispanismo contemporáneo se hace difícil negar la conveniencia de estudiar la obra de Esther Tusquets, Rosa Montero o Marina Mayoral (las tres cuentan con numerosos estudios académicos). Lo menos gratificante es comprobar que estos análisis se han hecho sin que todavía se haya estudiado con algún detenimiento la obra de un extraordinario escritor, Francisco Umbral, o 462 Volume 4 | Literatura Espanhola apenas se haya abordado el poder de novelista de Juan Marsé. […] Y mientras parece muy recomendable que sigan afinándose los estudios de caracterización de la literatura femenina española – nunca tan abundante como lo ha sido en estas últimas dos décadas -, nada debería impedir que un escritor extraordinariamente dotado para la invención de personajes femeninos, como Álvaro Pombo, mereciese la atención académica desde ese punto de vista (o desde cualquier otro). (Gracia, 2000: 209) Las tablas que en un primer momento el mundo académico y el canon por él establecido presentan, no obstante aportar otras instancias, reflejan sobre todo la demanda de mudanzas ideológicas expresas en la escritura de la historia literaria española y de la percepción de esta literatura – propiamente dicha, según Antônio Candido (1964) – como una estructura que se viabilice por la vitalidad de su heterogeneidad o vertientes. Sin embargo, aunque podemos vislumbrar nuevos aires, esta mudanza tan demandada, parece estar lejos de concretarse. En tanto algunos manuales citen la obra de escritoras, sus aportaciones en gran medida se vinculan o nos remiten a estudios compendiados inicialmente en volúmenes sobre la literatura femenina o estudios feministas, en otras palabras, en guetos literarios. Como podemos notar, antes que nada, los problemas aquí aludidos son ideológicos. Aunque, actualmente el estudio de las mujeres se pone al día, estos estudios están dirigidos, en su mayoría, hacia una visión tan sectaria como la promovida por los estudios anteriores. Si se hace necesario repensar la aportación histórica de las nuevas tendencias literarias que surgieron, principalmente a fines del siglo XIX, también se hace imperiosa la inclusión de escritoras y sus respectivas obras en este amplio universo que es la Literatura Española. Referencias Bibliograficas ABAD, NEBOT, Francisco. Teoría de la novela y novela española. Madrid: UNED, 2002 BLANCO AGUINAGA, Carlos et alii. Historia social de la literatura española. Madrid: Akal, 2000 CANAVAGGIO, Jean - dir. Historia de la Literatura Española. Tomo VI. Barcelona: Ariel, 1995 CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira : Momentos Decisivos. São Paulo: Martins, 1964. CANDIDO, Antônio . Vários Escritos - 3a. ed.. São Paulo: Duas cidades, 1995 463 Hispanismo 2 0 0 6 CIPLIJAUSKAITÉ, Biruté. La novela femenina contemporánea (1970-1985): Hacia una topología de la narración en primera persona. Barcelona: Anthropos, 1994 DIÁZ-DIOCARETZ, Myrian et ZAVALA, Iris M. Coords) (1999). Breve historia feminista de la literatura española. Col. Cultura y diferencia, pensamiento crítico, utópico. Barcelona: Anthropos G. DE LA CONCHA, Víctor (dir. RICO, F.). Historia crítica de la literatura española: Época contemporánea: 1914-39. Barcelona: Crítica, vol. 7, 2001 GARRIDO, Elisa. Historia de las mujeres en España. Madrid: Síntesis, 1997 GRACIA, Jordi (dir. RICO, F.). Historia crítica de la literatura española. Los nuevos nombres: 1975-2000. Barcelona: Crítica, vol. 9/1, 2001 MONTEJO GURRUCHAGA, Lucía et BARANDA LETURIO, Nieves. Las Mujeres escritoras en la historia de la Literatura Española. Madrid: UNED Ediciones, 2002 MURIEL TAPIA, María Cruz. Antifeminismo y subestimación de la mujer en la literatura medieval. Cáceres: Ed. Guadiloba, 1991 NICHOLS, Geraldine C. “Ni Una, ni “Grande”, ni Liberada: la narrativa de mujer en la España demócrata”. In VV.AA. Del franquismo a la posmodernidad. Madrid: ed. Akal, 1995 OBRA, Sebastián de la et RODRÍGUEZ DE AZA, Rosana. “Boceto de una presencia: ‘mujeres de Al Andaluz’”. In ZAVALA, Iris M. (ed.) Feminismos, cuerpos, escrituras. Madrid: La Página Ediciones, pp. 99-120, 2000 ORDÓÑEZ, Elizabeth J. “Escribir contra el archivo: nueva narrativa de mujer”. In AA.VV. Del Franquismo a la Posmodernidad. Madrid: ediciones Akal, 1995 RUBIO, Fanny (ed.). El Quijote en clave de mujer/es. Madrid: ed. Complutense, 2005 TOLEDO, Carmen. “Féminas, femeninas, feministas que escriben.” In Leer, Junio 2000 pp. 28-31. Notas a b c Interesante notar que el término “poetisa” en el diccionario de la RAE designa “1. f. Mujer que compone obras poéticas y está dotada de las facultades necesarias para componerlas. 2. f. Mujer que escribe obras poéticas. www.rae.es Tal exclusión se sistematiza de una forma general tanto en la crítica como en la ensayística, a ejemplo de ello basta ver los diversos manuales de Literatura Española. Como respuesta a esta marginación, una otra estructura se establece a partir de los años 80, en gran parte constituida por mujeres, empeñadas en estudiar a llamada Literatura Femenina. Claro indicio de una disputa sexista de la crítica literaria que adquiere fuerza comercial. Conforme Carmen Toledo (2000, p.29) “Dejando aparte algunos ejemplos curiosos por insólitos de la aportación a la literatura de mujeres de épocas más que pretéritas como es el caso de (…) Teresa de Jesús o Sor Juana Inés de la Cruz, tenemos que pasar página hasta el siglo XIX para 464 Volume 4 | Literatura Espanhola d e f encontrarnos con apellidos ilustres, muchas veces camuflados bajo seudónimos que ocultan la condición femenina de quien escribía (…) Cecilia Böhl de Faber (Fernán Caballero), Gertrudis Gómez de Avellaneda o Emilia Pardo Bazán. Desgraciadamente más recordadas por sus vidas que por sus obras, por sus amoríos y desengaños que por sus novelas. Hasta nuestro siglo no van a aparecer figuras femeninas cuyo quehacer narrativo se sobreponga de una vez por todas de lo que hasta entonces se había tomado como un extraño fenómeno, el de la mujer novelista” Si Azorín había acuñado este término a partir de una tendencia centroeuropea para referirse a las “épocas literarias” que surgían, los estudiosos, aunque divisen que este concepto es fallo, reinciden doblemente en el equívoco. El estudioso, citando la obra de Cristina Fernández Cubas, advierte que la referida escritora “rechaza, sin duda con razón, que se le llame “feminista””. Entre tanto, al reseñar una de sus narrativas, no justifica tal posicionaiento. Notemos que, no obstante citar las novelas Mi hermana Elba, Los altillos de Brumal, Canavaggio prefiere resumir el enredo de El año de gracia, que trata de la historia de Robinsón, en otras palabras, un personaje masculino. Cabe aquí señalar a este respeto las palabras de Geraldine C. Nichols (1995, p. 198): “La narrativa de mujer en España padece de la misma binaria suerte que el sexo femenino en el discurso hegemónico: no es “narrativa”, es “narrativa femenina”, es lo no-normal, lo anormal. Se la ve en bloque; su diversidad y riqueza es invisible. Cualquiera que comprara, que leyera - ¿quizás esto es mucho pedir?- un cuento de Ana Moix y una novela de Rosa Montero, o una narración de Adelaida García Morales, otra de Luisa Echenique y una tercera de Esther Tusquets, no podría en conciencia decir que se parecen. Y eso que todas las nombradas escriben en castellano […] A pesar de la patente variedad de esta narrativa, mucha de la crítica la corta por el mismo patrón.” Gracia nos remite a varios factores que contribuyen para la dinámica y volatilidad del canon, señalando, de una forma general, las características tanto de la prosa como de la crítica establecida a partir de ella. Cabe destacar que un factor común entre ambas y que contribuye para la inestabilidad del canon es el periodismo (por extensión, la publicidad) y las fronteras porosas existentes entre a universidad y la sociedad. Con relación al primero, la relación mercantil y, por ende la literatura, entre los medios de comunicación, autores, editores y público contribuyen para que algunos profesionales del sector se incluyan en el rol de escritores. En lo que atañe al segundo, los estudiantes y la sociedad, de una forma general, establecen un vínculo bastante estrecho con los escritores a través de la promoción de coloquios, conferencias y tertulias promovidas por alguna institución financiera o editora, lo que también contribuye sobremanera para el direccionamiento de los estudios académicos. 465 Hispanismo 2 0 0 6 Los molinos de viento y Monteiro Lobato: La lectura en Dom Quixote das crianças de Monteiro Lobato y Don Quijote de Cervantes. Rosa Maria Oliveira Justo (USP) En un primer momento, cuando se piensa en Cervantes y Monteiro Lobato, no se encuentra ninguna aproximación. Aunque Cervantes y Lobato pertenezcan a poéticas distintas, sus obras Don Quijote y Dom Quixote das crianças, se relacionan y se encuentran delante de un mismo punto: la cuestión de la lectura, la preocupación con la obra y sus lectores. Así, mi presentación se detendrá solamente en el tratamiento de la lectura y más específicamente la presencia de la lectura en voz alta, o sea, como figura la cuestión de la oralidad. Demostraré de manera simplificada, la presencia de la lectura en voz alta y su importancia tanto en la obra de Lobato como en la de Cervantes, así como las diferencias entre este tipo de lectura, el contar y el decir ; todo ello, junto con el papel importante de esas prácticas en el desarrollo de nuevos lectores, principalmente en los días de hoy. Dada la importancia de un clásico como Cervantes, que lleva 400 años conquistando lectores, Monteiro Lobato preocupado con sus futuros lectores en 1936, publica la adaptación Dom Quixote das crianças. Parece importante abordar de forma sucinta la adaptación de Lobato. Ésta se basa en la traducción portuguesa de los Viscondes de Castillo, considerado un clásico en Brasil. Por lo tanto, Lobato se preocupará en adaptarla con un lenguaje más accesible, menos complejo. Esta postura del escritor contrasta con una valoración cultural francesa y una literatura aún presa a los moldes de Portugal entre los siglos XIX y comienzos del XX. Las traducciones en este período seguían el portugués de Portugal, ya que las normas lingüísticas que todavía dominaban eran las de aquel país, lo que impulsaba también la lectura de los escritores portugueses. (KOSHIYAMA, 1982, p. 28). En la obra de Lobato, Dona Benta que es la narradora, antes de empezar a contar la historia, comenta: “O Visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa. É considerado um dos melhores clássicos, isto é, um dos que escrevem em estilo perfeito”.a Sin embargo, cuando Dona Benta empieza a leerla, se inician las protestas: Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga e galgo corredor. Emilia que es una una muñeca de paño protesta: “- Ché!-exclamou 466 Volume 4 | Literatura Espanhola Emília.- Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim. Lança em cabido, adarga, galgo corredor… Não entendo essas viscondadas, não…. (LOBATO, 1988, p.144) Al tratar de ofrecer un lenguaje más accesible en su adaptación, Lobato crea una relación entre los personajes del Sitio y el libro; a través de las lecturas del personaje Dona Benta, esta por lo tanto, resulta una intermediaria entre esos dos mundos: el de la lectura (existe un contacto con las historias de los libros, en las que los personajes discuten y dialogan sobre los episodios oídos) y el de la imaginación, en el que los personajes viven las aventuras escuchadas. De esa forma, lo que Dona Benta hace es contar las historias, lo que es una marca importante de la obra de Lobato; además, el aspecto de la lectura en voz alta está bastante presente en la obra lobatina. La lectura en voz alta es una actividad que involucra la convivencia, lo que no sucede en la lectura silenciosa, que tiene como objetivo una lectura para sí. Según Elie Bajard, la lectura en voz alta ao contrário da lectura silenciosa, é uma atividade que envolve a convivencia, compartilha o conhecimento, comunica a emoção, o gosto de ler, além de posibilitar uma troca de sentimentos expressos pelo autor e o ouvinte (BAJARD, 1994, p. 43-44). En su obra, Monteiro Lobato recupera la lectura en voz alta a través de Dona Benta, que compartirá sus conocimientos con los demás personajes del Sitio. Habrá una unión entre los oyentes e incluso una preocupación por el ambiente de la lectura. Además, Dona Benta utilizará la técnica de Sherazade, haciendo siempre una interrupción en sus relatos, normalmente a las nueve de la noche, horario en el que los personajesoyentes tendrán que acostarse. Con el uso de esa “técnica”, Dona Benta consigue que sus oyentes se queden seducidos con la narración y ansiosos por oír la continuación de la misma; es más, muchas veces los personajes-oyentes se quedan tan embelesados con el relato, que escenifican algunos episodios: ...– Emília parece louca. Entrou na cozinha montada no Rabicó, toda cheia de armas pelo corpo, com uma lança e uma espada, e uma latinha na cabeça que diz que é o ‘ermo’ de Mambrino, e começou a me espetar com a lança gritando: – Miserável mágico! Por mais que te pintes de preto e ponhas sais, não me enganarás!...e uma porção de coisas assim, sem pé nem cabeça (LOBATO, 1988, 273) 467 Hispanismo 2 0 0 6 De esa forma, Lobato valora no sólo la lectura en voz alta, sino también la lectura silenciosa, pues muestra el gusto, el placer de leer del personaje Pedrinho, lo que para los lectores del escritor, no deja de ser también una forma de identificación con el personaje. ...Foi na semana em que caiu em casa aquele livrinho da história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Comecei a ler e fui me esquentando, me esquentando, me esquentando, até que não pude mais. Minha cabeça virou, ficou assim como a de Dom Quixote. Convenci-me de que era o próprio Roldão (LOBATO, 1988, 216) Por lo tanto, hay que apuntar que, además de la lectura en voz alta, se encuentra también el decir. Según Eli Bajard, leer en voz alta y decir son actividades distintas. Cuando se piensa en el decir, pronto se remite a una extensión mayor que la lectura en voz alta que ya se ha referido anteriormente; pues el decir incluye la declamación del texto aprendido de memoria, el contador ya sabe la historia y no se apoya en la escritura, o sea, sin la presencia del libro. El decir, por un lado no orienta a las actividades de lectura, pero por otro, incluye la práctica de la recitación y del arte de contar. Al fin y al cabo, es una comunicación oral que pone en juego el texto escrito. Así, en el Dom Quixote das crianças, apesar de que el personaje Dona Benta selecciona los episodios que “divierten la imaginación”, ella lee en voz alta la narrativa; de esa forma el libro está presente entre la lectora (y contadora) Dona Benta y los personajes-oyentes, o sea, ella no dice el texto, sino que lo lee . El título del segundo capítulo está: “Dona Benta começa a ler o livro”; con el empleo del verbo “leer”, se tiene la relación de Dona Benta con el libro y la lectura: “...e Dona Benta, na noite desse mesmo dia começou a ler para os meninos a história do engenhoso fidalgo da Mancha”.(LOBATO, 1988 , p.143) Por otro lado, en El Quijote de Cervantes además de la lectura en voz alta, también se valorarán en los episodios el decir. Hay que aclarar que en el Siglo de Oro (XVI - XVII), la cultura popular era muy difundida a través de la oralidad pues el índice de analfabetismo era bastante alto, no sólo en España sino en toda Europa, lo que contribuyó para promover las lecturas colectivas que eran bastantes frecuentes, principalmente entre los campesinos; Sancho es un ejemplo importante, ya que no sabe leer, pero, posee un conocimiento adquirido a través de la oralidad. En el capítulo X, primera parte, Don Quijote y Sancho empiezan a dialogar, donde éste comenta: “– La verdad sea – respondió Sancho –que yo no he leí- 468 Volume 4 | Literatura Espanhola do ninguna historia jamás, porque ni sé leer, ni escribir”. .. (CERVANTES, 1996. p.107) Las historias y los refranes contados por él, aparecen en gran parte de la obra. Bartolomé Benassar afirma que “cuando Sancho cita sus series de refranes de corrido, actúa como el portavoz de la cultura popular y, más allá aún de los proverbios, muchas de sus intervenciones se refieren a tradiciones populares” (BENNASSAR, 1983, p. 274). Al referir al decir, se piensa en la oralidad, en el oír y transmitir historias, práctica ejercida no sólo por Sancho, sino por otros personajes. En “la aventura de los batanes”, Sancho y Don Quijote cabalgan juntos cuando el caballero le pide a Sancho que cuente un cuento: (...) Si desa manera cuentas tu cuento, Sancho – dijo don Quijote –, repitiendo dos veces lo que vas diciendo, no acabarás en dos días; dilo seguidamente, y cuéntalo como hombre de entendimiento, y si no, no digas nada. – De la misma manera que yo lo cuento – respondió Sancho – se cuentan en mi tierra todas las consejas, y yo no sé contarlo de otra, ni es bien que vuestra merced me pida que haga usos nuevos... (CERVANTES, 1996. p.197) Don Quijote le pide a Sancho que siga con el cuento, pues no querría dejar de escucharlo: ...que pues la suerte quiere que no pueda dejar de escucharte, prosigue. -Así que, señor mío de mi anima-prosiguió Sancho-,que, como ya tengo dicho, este pastor, andaba enamorado de Torralba, la pastora, que era una moza rolliza, zahareña y tiraba algo a hombruna, porque tenía unos pocos de bigotes, que parece que ahora la veo. -Luego, ¿conocístela tu? –dijo don Quijote. -No la conocí yo- respondió Sancho-; pero quien me contó este cuento me dijo que era tan cierto y verdadero, que podia bien, cuando lo contase a otro, afirmar y jurar que lo había visto todo (...).(CERVANTES, 1996. p.197) Se nota en este pasaje la transmisión de la cultura popular; Sancho, una persona simple del pueblo que no sabe leer, es portavoz de una historia que alguien le contó. De acuerdo con los conceptos expuestos, Sancho dice el texto, pues lo sabe de memoria y seguramente al contarlo, lo amplía añadiendo sus propios comentarios. Otros episodios entre los que se puede destacar la oralidad, está la historia de Cardenio, un chico de linaje noble, que se encuentra con Don Quijote y Sancho en Sierra Morena. Cardenio cuenta una triste historia de amor y prepara a los oyentes (Sancho y Don Quijote) para escucharlo: 469 Hispanismo 2 0 0 6 Si gustáis, señores, que os diga en breves razones la inmensidad de mis desventuras, habéisme de prometer de que con ninguna pregunta, ni otra cosa, no interromperéis el hilo de mi triste historia porque en el punto que lo hagáis, en ése se quedará lo que fuere contando. (CERVANTES, 1996. p.242) La lectura en voz alta también aparece en la obra de Cervantes, además de demostrar una práctica común y compartir el conocimiento, consigue también insertar temas específicos como géneros literarios y el abordaje de los clásicos. En el episodio de Sierra Morena, Don Quijote encontró un soneto: “Abrióle, y lo primero que halló en él escrito, como emborrados, aunque de muy buena letra, fue un soneto, que leyéndole alto, porque Sancho también lo oyese”. (CERVANTES, 1996. p. 214). Tras la lectura, Don Quijote y Sancho intercambian ideas sobre el soneto; Sancho no comprende una sola palabra y Don Quijote comenta acerca de la calidad del poeta y de la composición del soneto, con la preocupación de descifrar o entender el texto encontrado. En otro episodio, igualmente de la primera parte, en la “Novela del curioso impertinente”, cap. XXXII, se encuentran Dorotea, el clérigo, Cardenio, el dueño de la venta y Maese Nicolás en la venta y todos atentos para oír la historia de la novela que habían encontrado. El primer comentario fue el del clérigo: “– Cierto que no me parece mal el título de esta novela, y que me viene voluntad de leella toda”. (CERVANTES, 1996. p. 344) Los demás personajes tejen sus comentarios. Cardenio había leído algunas líneas y le pareció lo mismo que al cura: “Había tomado Cardenio la novela y comenzado a leer en ella; y pareciéndole lo mismo que al cura, le rogó que la leyese de modo que todos la oyesen”. Ya Dorotea dice: “Entretener el tiempo oyendo algún cuento, pues aún no tengo el espirítu tan sosegado que me conceda dormir cuando fuera razón”. (CERVANTES, 1996. p. 345) Tras algunos comentarios más sobre la novela, todos se quedan aún más interesados en oírla. Finalmente, el cura, se dispuso a leerla: ...Pues desa manera – dijo el cura – quiero leerla, por curiosidad siquiera, quizá tendrá alguna de gusto.b Acudió maese Nicolas a rogarle de mesmo, y Sancho también; lo cual visto del cura, y entendiendo que a todos daría gusto y él le recibiría dijo: – Pues así es, esténme todos atentos; que la novela comienza desta manera. (CERVANTES, 1996. p. 345) En este episodio de la Novela del Curioso Impertinente, se destaca la lectura en voz alta, aquí, el clérigo con la novela en las manos empieza a leerla estando todos reunidos para escucharlo. A pesar de que este 470 Volume 4 | Literatura Espanhola episodio no figura en Dom Quixote das crianças, por coincidencia, es el mismo escenario, de Dona Benta cuando ésta se reúne con los personajes del Sítio y cumple esta misma función, o sea, la de contar la historia. Además de eso, se nota que la idea de socializar y compartir la lectura es la misma. Sin embargo, en Monteiro Lobato, la presencia de la lectura en voz alta se hace presente en toda la obra con el objetivo (uno de ellos) de estimular el hábito de leer, puesto que en Cervantes, en los episodios seleccionados, se muestra que ya era una práctica común en aquella época. Finalmente, se puede resaltar que es, a través de la lectura en voz alta, como se establece una importante función, la de la “convivencia” (función comunicativa) producto de un texto escrito ya preexistente. Así, en este escenario los dos Quijotes, el de Lobato y el de Cervantes se encuentran y comparten el mismo objeto: la lectura. Referencias Bibliográficas BAJARD, Elie. Ler e dizer- compreensão e comunicação do texto escrito. São Paulo:Cortez editora, 1994. BENASSAR, Bartolomé. La España del Siglo de Oro. Barcelona: Editorial Crítica, 1983. CERVANTES, Miguel. de. El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Barcelona: Planeta,15ª Ed.,1996. LOBATO, Monteiro – Dom Quixote das crianças. São Paulo: Círculo do livro, 1988. KOSHIYAMA, Alice Mitika. Monteiro Lobato intelectual, empresário, editor.São Paulo:T.A.Queiroz, editor, 1982 Notas a b LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das crianças.p.144 Segundo observação desta edição: alguna (razón) o alguna (curiosidad) 471 Hispanismo 2 0 0 6 Tecendo a imagem das mulheres nos tapetes espanhóis: Uma história de resistência e de identidade Suely Reis Pinheiro No colorido e delicado bordado dos tapetes, pode-se admirar toda uma história de identidade e de resistência das mulheres na Espanha. De temática histórica, bíblica, literária, mitológica e de costumes, a tapeçaria ilustra, com seus belos matizes, cenas do sagrado e do profano, onde a figura feminina é representada nos mais diferentes papéis: Deusa mãe, heroína, vulgar, vítima, trabalhadora da cidade, do campo. Ocupando, pois, espaços públicos e privados, a presença da mulher ajuda a contar, sob a trama da tapeçaria, cenas que são, ao longo da história, verdadeiros testemunhos do cotidiano das diversas sociedades. Os tapetes sempre foram um signo de poder e de majestade dos reis e de todos os que os exibiam e os possuíam. Feitos para cobrir e esquentar ambientes frios e austeros, tornam-se decorativos, contribuindo para que a Idade Média, em seus anos finais, deixe de ser chamada a Idade do claroescuro, para apresentar em seus magníficos tapetes, com seu caráter narrativo, todo o colorido do estilo gótico. Áulica por natureza, a tapeçaria se singularizava por sua característica móvil, uma vez que eram transportadas por ocasião das solenidades públicas, para enriquecer os ambientes. Na Real Fábrica de Tapices, em Madrid, pode-se ler que es una institución en la que pervive un oficio centenario y una singular forma de hacer las cosas. Para ilustrar tal afirmação nada melhor que o famoso quadro de Velásquez, Las Hilanderas, que imortaliza a mulher tecelã na sua função social exercendo seus direitos laborais. Também chamada La Fábula de Aracne, a obra pressupõe várias interpretações e conta duas histórias que se entrelaçam no cotidiano e no mitológico, a partir de dupla cena onde estão som ente personagens mulheres. Aracne, depois de uma disputa de poder com Palas Atenea, é transformada em aranha para tecer pelo resto da vida. E as outras mulheres não continuam tecendo? Podíamos começar nosso texto não falando da imagem da mulher, mas da importante participação da mulher na coleção de tapetes do tesouro nacional. Vivendo em uma época que não lhe era dado protagonismo feminino na política, surgem quatro mulheres que batalharam na fantástica coleção de tapetes de Flandres, na época da dominação espanhola, nos séculos XVI e XVII. Claro está que o intercâmbio com as artes dos Países Baixos foi facilitado, por circunstâncias históricas conhecidas, antes mesmo do nascimento de Isabel, a Católica, uma vez que se uniram em matrimônio, as fortunas do Condado de Flandres e o Condado de Borgonha, quando Flandres passou a fazer parte dos domínios da Casa de Áustria. 472 Volume 4 | Literatura Espanhola Para saírem do espaço sagrado do lar em direção ao espaço público, as mulheres nobres Isabel a Católica, sua filha, Juana de Castilla, sua nora Margarita de Austria, sua neta María da Hungria, foram não só as grandes promotoras do comércio de tapetes, como também as grandes colecionadoras e curadoras do patrimônio artístico espanhol. Estamos, pois, diante do que se chamou “la Intrahistoria de los tapices” que se oculta no momento da formação da Espanha, como nação e da inter-relação de parentesco entre a Dinastia Áustria. Portanto, os tapetes o “paños” representam uma relação entre os aspectos materiais, ideológicos e econômicos. Este trabalho analisa uma série de doze tapetes, de época e autores distintos e mostra a importância da tapeçaria para tecer a imagem da mulher ao longo da história. Os dois mais antigos da coleção da Coroa da Espanha são El Nacimiento de Jesús e Misa de San Gregorio. El Nacimiento de Jesús se caracteriza por sua beleza em seu primitivismo gótico. Na forma de retablo, apresenta grande suntuosidade de materiais. A Misa de San Gregorio é um paño de devoção eucarística de Isabel, a Católica, presente de sua filha Juana à mãe enferma. Igualmente belo, apresenta o êxtase de São Gregório ao contemplar o Cristo que se ergue do sepulcro. A rainha Juana, apelidada “A Louca”, mas não tão louca assim, é a que traz os Paños de Oro, também chamados de Triunfo de la Virgen, porque em sua trama tecida com lã, prata, seda, predomina o fio de ouro. Datados entre fins do século XV e princípios do XVI, são uma jóia inigualável da arte da tapeçaria. Atribuídos ao bruxelense Pierre Van Aelst, os paños bordam palavras em tons suaves, rosados e azuis, influência do estilo das “milles fleurs” francesas. São tapetes de devoção com imagens litúrgicas e cenas bíblicas, indiciando a salvação dos homens. Mulheres sempre vítimas da fé cristã, vivendo sob duplo signo - Eva pecadora e santidade de Maria -, sofreram as várias tentativas de lhes ser tirada a confiabilidade, através de situações, frases e provérbios bíblicos. Durante a Idade Média e princípios do Renascimento, ainda com o ranço propagado pela igreja como a desgraça do mundo, a presença da mulher ocupa o lugar de coadjuvante, cheia de santidade, nessas tapeçarias de devoção, com a proteção do manto da Virgem. Dessa maneira, o caráter alegórico-bíblico dos tapetes tinha a finalidade de refletir o conteúdo dos textos contemporâneos de padres e predicadores da igreja. Afinal, estamos na época da Contra-reforma. De complexidade iconográfica, os paños que tecem a história, aludem a cenas secundárias, que estão ao lado da principal com retratos de reis e rainhas, em total conjunção do divino e do humano. O hermetismo das cenas dificulta a identificação dos personagens, porque não há inscri473 Hispanismo 2 0 0 6 ções, mas no tapete La Anunciación pressupõe-se ver a dupla união entre o príncipe Juan, filho dos reis católicos, com Marguerita da Áustria, filha do Imperador Maximiliano e Maria de Borgoña e seus respectivos irmãos, Juana de Castilla y Felipe el Hermoso. Talvez este cenário fosse uma tentativa de identificar os reis aos santos, como representantes do céu na terra. A Virgem se encontra sentada com um livro no colo, acompanhada pelas Virtudes: A Temperança com o relógio, a Fé com um círio aceso, a Esperança com o peixe, a Caridade com o coração na mão, caracterizando toda uma seqüência semiótica de grande religiosidade. Mas, apesar de toda a teatralidade gestual, se discute se realmente se trata de história religiosa o que está representado. Os tapetes de devoção trazem novamente a idolatria da igreja católica, tão condenada pela Reforma de Lutero. São, eles, verdadeira propaganda eclesiástica da Contra-reforma que permitiu que a arte representasse um papel de alto interesse, qual seja o de conceber na adoração divina sua fidelidade à tradição cristã. Nos séculos XV e XVI, a tapeçaria recupera o retablo gótico e dirige o foco para o reviver religioso, o misticismo, a ânsia do espiritual e a subestimação do corpo. Com a elegância do gótico, a diversidade policromática se exprime através de uma iconografia, onde a cor dourada e as vestimentas luxuosas se enchem de pureza e de delicadeza. No tapete Coronación de la Virgen, tema central do tapete, em meio a séqüito de anjos músicos cantores, três reis coroam Maria que está amparada pelas virtudes: Justiça com a espada, Caridade com o coração, Fé com os mandamentos, Prudência com o espelho e Esperança com o peixe. Exemplo divino para Juana que, em lugar secundário do tapete, surge coroada por sua mãe Isabel la Católica, resgate de santidade no mundo terrestre. O leitor atento sabe ler, na pluralidade de cenas, o caráter narrativo dos paños com traz um tom sempre didático que alerta o homem. Na época do Renascimento e do Barroco, no meio da incoerência temática, põe-se a nu a figura da mulher e surge a representação feminina da mulher modelo nas alegorias. A Eva eterna agora desafia a ordem de Deus, a ordem do mundo como símbolo em combates e conquistas. A ela é dada a concepção mágica das forças da natureza e os mistérios maléficos são afastados. Personagens mitológicos ou sem grandes virtudes dividem o mesmo espaço, nos tapetes, com homens venerados, onde a mulher começa a ter seu espaço. Exemplificamos com outra grande participação de mulher no comércio de tapetes. Doña Isabel Clara Eugenia, governadora dos Países Baixos, encomenda a Peter Paul Rubens uma série de desenhos para servir de modelos de tapetes para o Convento de 474 Volume 4 | Literatura Espanhola las Descalzas Reales, de Madri. A série tem como tema El Triunfo de la Iglesia sobre seus diferentes inimigos: o Paganismo, a Heresia, a Ciência e a Filosofia. El Triunfo de la Eucaristía sobre la Herejía é o mais dinâmico da série. Marcado pelo claro-escuro e a intensidade da cor, nos surpreende com La Verdad, representada como uma mulher de cabelos louros, elevada acima das disputas dos homens no Tempo. A seus pés, hereges, possivelmente identificados nos rostos de Calvino e Lutero. A cena segue as linhas do desenho de tapete, com figuras simbólicas de força e astúcia, representadas pelo leão e a raposa, fora da cena principal. Chegamos ao século XVIII, quando os palácios se vestem de tapetes, tecidos sobre cartões e desenhados pelos principais pintores da corte. O Neoclassicismo trouxe luzes para iluminar os caminhos das mulheres na obra de José de Castillo e de Francisco de Goya. José de Castillo, pintor adornista, injustamente desconhecido, cujos tapetes muitas vezes confundidos com os de Goya, tem, no conjunto de suas obras, um importante acervo de cartões para tapetes onde protagoniza damas aristocráticas, majas, mulheres do povo, floristas, vendedoras de frutas. Um belo exemplo de sua arte, que apresenta una ampla galeria de motivos populares, está em La Dama y el Majo, obra de técnica fácil, alegre e luminosa. Com José de Castillo, as mulheres saem dos céus, mas ainda estão na terra. Resgata, ele, algumas das utopias medievais nas figuras alegóricas femininas de La Abundancia, La Templanza, La Sabiduría Divina, La Profecía e La Castidad, que surgem como complemento da tapeçaria José, David y Salomón, confeccionada para o quarto do rei Carlos III. Na alegoria da La Castidad, a imagem da matrona está vestida de branco, à moda antiga e apoiada em uma coluna clássica. Na sua mão direita leva um cetro e na outra, um ramo de loureiro. Vem acompanhada de anjinhos levando o símbolo da pureza que é a açucena. A Sabiduría Divina está de branco, com elmo e escudo, como a deusa Minerva, deusa guerreia da paz, quem ensinou às mulheres a fiar. Olha em direção ao alto de onde recebe luz divina representada por um cordeiro suspenso por crianças. Os velhos valores hispânicos foram questionados e criticados, no século XVIII. A classe nobiliária deixa pouco a pouco de ser referente social. Com Goya, as mulheres saem do espaço celestial e baixam definitivamente à terra. Contrariamente à Idade Média, os cartões de cenas de costumes de Goya trazem à luz uma nova imagem da mulher, com suas frivolidades, gestos sensuais, onde se encontram mulheres de todas as classes sociais. São 52 tapetes que se encontram no Museu do Prado e que representam a época de maior esplendor da manufatura da Real Fábrica de Tapices. 475 Hispanismo 2 0 0 6 O cartão para tapete La Maja y los Embozados apresenta uma mulher ao ar livre que, rodeada por quatro homens escondidos sob as capas, é o centro de atenção. Percebe-se que o tom da cena é de galanteio com um certo erotismo camuflado. O Quitasol sugere uma mulher, muito coquete, que se veste à maneira francesa com uma capa, lenço no pescoço e com um cachorrinho no colo. Segura um leque que no século XVIII servia como um meio para iniciar uma conversa. Este cartão, no qual Goya quis fazer uma referência clara à vaidade, é um belo canto à juventude, centrando sua atenção no sorriso da moça e no seu gesto sedutor. Olhando abertamente o espectador, nos coloca, ela, como participantes do galanteio, onde há ainda um jovem com uma sombrinha de cor verde que a protege do sol. Os tapetes de Goya, embora dirigidos a um público culto e erudito, são de temas populares, de costumes, de festas e de diversão, o que indicia uma sutil crítica à nobreza e à burguesia. Nesses anos em que a Ilustração desaparecia, se começa a mostrar conflitos políticos e culturais e, cada vez mais, na Espanha, se farão claras as contradições entre a vida oficial e a real. Surge então Las Lavanderas, representando cinco mulheres, felizes, alegres, livres, junto à natureza que lhes dá o bonito cromatismo nas faces. O trato amável de Goya para com a simplicidade dos personagens de classe baixa, onde duas realizam o trabalho, enquanto uma cochila e outras duas jogam, vai de encontro à reputação de tal profissão. Sob o olhar masculino, o que se reflete é a figura da mulher e sua posição na sociedade. Diversas facetas vistas em duplo olhar, duas realidades, dois mundos em confrontação, a semi-realidade, a simultaneidade de ação e amplitude de cenário. E não é assim que lemos o significativo quadro de Velásquez, Las Hilanderas, com o qual iniciamos este texto? O que vemos não é um resgate da representação da realidade - hilanderas a fiar e damas a contemplar? A mulher participou da ordem do mundo sempre em duas cenas, “ritualizando” ações, como o simbolismo do bordado, subindo e baixando, criando e recriando, fazendo e desfazendo. A trama dos tapetes assim nos contou e Minerva, deusa da sabedoria, do progresso, da intelectualidade e da tapeçaria, assim nos assegurou. 476 Volume 4 | Literatura Espanhola Referências Bibliográficas A la Manera de Flandes: tapices ricos de la corona de España. Salas de Exposiciones Temporales, Palacio Real. Madrid, 2002. HAUSER, Arnold: Historia Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1982. COSTA, Cristina: A Imagem da Mulher: um estudo da arte brasileira. Rio de Janeiro: Senac Rio, 2002. HISTORIA GERAL DA ARTE. Rio de Janeiro: Ediciones del Prado, Fernando Chinaglia Distribuidores, 1996. DE SAMBRICIO, Valentin: José Del Castillo. Madrid: Instituto Diego Velásquez, del Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1958. ESPINO NUÑO, Jesús & MORÁN TURINA, Miguel: Historia del Arte Español. Madrid: SGEL, 1996. MARIN, Manuela: Tejer y Vestir: de la Antigüedad al Islam. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2001. PERROT, Michelle: Mulheres Públicas. São Paulo: Editora UNESP, 1998. VIDEO DE LA FUNDACIÓN REAL FÁBRICA DE TAPICES. Madrid. Imagens Las Hilanderas Nacimiento de Jesús Misa de San Gregorio La Anunciación Coronación de la Virgen El Triunfo de la Eucaristía sobre la Herejía La Dama y el Majo La Castidad La Sabiduría Divina La Maja y los Embozados El Quitasol Las Lavanderas 477 Hispanismo 2 0 0 6 A escrita da Guerra Civil Espanhola por George Orwell Vera Maria Chalmers (DTL/ IEL/ UNICAMP) O livro de George Orwell, Homage to Catalonia, foi publicado na Grã Bretanha, em abril de 1938, com uma tiragem de 1.500 exemplares, cuja venda foi modesta, apesar do relativo interesse que suscitou. Os editores da obra de Orwell recusaram-se a editar este livro para não prejudicar a luta contra o fascismo, já que a obra expõe a ação dos comunistas na ofensiva contra Franco. Um outro editor, Frederic Warburg, encarregou-se de publicar o livro o qual teve uma reedição em 1951. Orwell deixou anotações para a revisão da segunda edição, antes de sua morte em janeiro de 1950. Entre as notas e as modificações introduzidas, a principal é o deslocamento dos capítulos V e XI do corpo da narrativa para depois da conclusão, como apêndices. A edição usada para meu texto segue a revisão da segunda edição (ORWELL, George, Orwell in Spain, Penguim Classics, 2001). A intervenção do autor na segunda edição produz um efeito decisivo na leitura de Homage to Catalonia, uma vez que extrai do fluxo narrativo o comentário do narrador sobre os eventos relatados. A narrativa flui sem a interferência da reflexão sobre os fatos narrados, mas talvez prejudique o acento dramático do conflito entre as milícias e o Exército Popular criado pelos comunistas, pois oculta a motivação da ação na frente de combate e na luta política na retaguarda. O silêncio em torno da edição do livro e sua discreta recepção, apesar da reedição de 1951, marcam o êxito da linha política externa do estalinismo de defesa do comunismo soviético contra o avanço do nazi-fascismo e o apagamento da memória da frustrada revolução espanhola. A narrativa cobre o período de fins de dezembro de 1936 a fins de junho de 1937, a data da partida de Barcelona não é mencionada com precisão, ao final do relato o narrador refere-se a sua permanência na Espanha por seis meses. As marcas temporais do relato contam-se às vezes por meses, às vezes por dias, alguns acontecimentos são datados com precisão, outros fundamentais para o desenrolar da narrativa são mencionados vagamente no tempo. Pois o que importa é a duração e menos a sucessão temporal. O livro é escrito seis meses depois de decorridos os acontecimentos, mas o curto lapso de tempo passado é suficiente para diferenciar o tempo do narrador do tempo do narrado. O protagonista da narrativa imerso no cotidiano da guerra civil não apresenta o distanciamento do narrador extemporâneo, portador de uma interpretação dos fatos relacionados, desconhecida ao tempo vigente. O desdobramento do narrador-protagonista no autor memorialista empresta à narrativa um 478 Volume 4 | Literatura Espanhola interesse pertinente à reflexão nele contida, a qual não diz respeito somente aos apêndices, mas aos indícios da percepção do protagonista na evolução do mesquinho cotidiano da guerra civil. O protagonista que se alista na milícia do POUM em dezembro não é mais o mesmo, ao fim de seis meses, ao dar baixa ferido, nem seis meses depois, ao escrever em retrospecto. O livro não é um diário de guerra (o qual foi confiscado pela polícia em uma batida em seu quarto no Hotel Continental), nem um livro de memórias, mas a tentativa de fixar com precisão e acuidade os sentimentos e os fatos observados. O ponto de vista é deliberadamente parcial e exíguo. A miopia do ponto de vista é uma exigência da narrativa, a qual procura registrar as modulações da subjetividade, submetida a uma situação extrema de enfrentamento da morte e mostrar seu interesse coletivo, de aderência à vivência da milícia. O deslocamento no tempo entre o tempo da enunciação e o tempo do narrado fundamenta a ironia, a qual percorre a narrativa. A ironia não é apenas o produto do conhecimento a posteriori da motivação da ação, isto é da guerra civil, mas também procede da condição de estrangeiro do narrador. O estranhamento da percepção do narrador deve-se ao deslocamento no espaço e no tempo. Mas a ironia supõe para ser eficaz uma adesão profunda ao objeto ao qual é dirigida. O movimento de mão dupla de aproximação e recuo é constante no deslocamento do foco narrativo. O qual se move para frente e para trás, apontando índices sobre o significado político da ação, adiantando aproximações sobre a motivação política da falta de ação no front de Aragão, ou retardando a percepção destes fatos ao fixar-se obsessivamente na ação cotidiana de resistência nas trincheiras, frente a frente com os fascistas. Um dos motivos da ironia do narrador é a comparação da milícia com um exército regular, embora não tenha tomado parte na Primeira Guerra Mundial. A falta de eficiência no treinamento militar na Lênin Barracks ainda em Barcelona, a falta de equipamentos e de suprimentos no front de Aragão, o contingente militar da milícia do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) composto de crianças de quinze e dezessete anos, é ironizado pelo narrador. Mas seu envolvimento na guerra sob as condições da luta na trincheira acaba por convencê-lo que a falta de ordem das tropas é a única forma de ordem possível e que a falta de hierarquia da milícia já é uma experiência de socialismo, na qual a igualdade e a camaradagem são formas avançadas de relações sociais, as quais já tinha observado no momento do seu alistamento em Barcelona, quando as bandeiras vermelhas e negras e vermelhas tremulavam pelas ruas e os anarquistas ainda conduziam a luta. Quanto ao fato de ser estrangeiro, o fato de alistar-se na milícia do POUM 479 Hispanismo 2 0 0 6 e não nas Brigadas Internacionais mostram seu empenho em diminuir a distância entre o correspondente internacional de jornais britânicos e o combatente anti-fascista. Orwell vai para o front de batalha não fica na retaguarda a divulgar as versões oficiais sobre a luta ou a espalhar boatos, como fazia a maioria da imprensa internacional. No entanto suas idiossincrasias britânicas o fazem comicamente emburrar com o que ele atribui à falta de eficiência crônica dos espanhóis como a falta de pontualidade e a procrastinação das decisões, o terrível mañana, com o qual se depara em momentos cruciais. Mas o defeito torna-se qualidade, quando, durante a luta de rua em Barcelona, ele observa no inimigo, republicano, comunista ou fascista, apesar da inspiração soviética ou da nazista, a mesma inoperância na polícia, apesar da truculência contra o POUM. A diferença entre a guerra convencional e a luta de guerrilha das milícias origina a ironia, que é o fundamento da experiência da rememoração, resultado da luta corpo a corpo do front de Aragão, cujo heroísmo não se destacava pela morte em combate, mas na resistência, no cotidiano miserável da falta de ação, cujo sentido escapava ao protagonista deste episódio. O inimigo da fronteira vizinha é solidário da falta de sentido da luta na trincheira, muitas vezes conscritos e tão miseráveis quanto os voluntários milicianos, a julgar pelos andrajos e a fome dos desertores fascistas do front de Aragão. A falta de ação provoca no protagonista um vazio preenchido pelo horror ao frio e a síndrome de abstinência pela falta de cigarros. As baixas em ação, na terra de ninguém entre as trincheiras dos milicianos e dos fascistas, eram causadas menos pela mira do inimigo do que pelo fogo amigo e pelo descuido. A falta de armamento provoca a paralisação do combate e corrói o sentido da luta frente ao inimigo na linha de fogo. O sentimento do vazio produz a automatização da luta pela sobrevivência, que a ofensiva anarquista contra Huesca vem a modificar. As tropas do POUM, em meados de fevereiro, deixam Monte Trazo para fazer parte do cerco de Huesca. Mas, até final de março não acontecia nada ao lado leste de Huesca. O alvo estratégico era a estrada para Jaca, do outro lado da posição então ocupada pelo POUM. A milícia só avança para a posição destinada, quando os anarquistas atacam efetivamente a estrada de Jaca. A missão do POUM é realizar ataques de surpresa para dividir as tropas fascistas. Em uma tarde de abril a milícia ataca um reduto fascista, consegue desalojar o inimigo, mas é forçada a recuar, quando os fascistas recebem reforço da posição vizinha, a qual a Tropa de Choque republicana não conseguira atingir, pois ficara presa no aramado da trincheira inimiga. A ofensiva dos voluntários é narrada como uma ação de destaque apesar do desfecho. Enquanto isso, a luta 480 Volume 4 | Literatura Espanhola pela tomada de Huesca prossegue, apesar das grandes perdas dos anarquistas. No final de junho,o Governo envia tropas da frente de Madri, além da aviação, mas a cidade não cai. A grande operação da frente de combate na qual se envolve o protagonista resulta em derrota. O relato das cenas de heroísmo se desagrega no desfecho trágico. Neste episódio do capítulo quinto da narrativa se articula o apêndice 1, colocado entre os capítulos quatro e cinco da primeira edição. Para a finalidade de discutir a motivação da ação, vale a pena reintroduzir o comentário em seu lugar original. O autor o suprimiu por julgar a discussão política entre os combatentes uma extrapolação desnecessária e propõe ao leitor anglo-saxão desinteressado da política, saltá-lo. Mas não se podem compreender os acontecimentos do front de Aragão sem a leitura dos apêndices. O autor responsabiliza a atuação anti-revolucionária dos comunistas em desarmar as milícias pela ausência da grande ofensiva anarquista da frente de Aragão, a qual teria rechaçado os fascistas de Bilbao e possivelmente de Madri. A falta de ação reclamada pelos milicianos e a falta de armamento nas trincheiras anarquistas e do POUM não são fatos ocasionais, mas o resultado de uma atuação política deliberada dos comunistas, que a partir de outubro-novembro de 1936, tinham o controle da guerra civil. O objetivo era desarmar os anarquistas para que não levassem adiante a luta revolucionária. O que dividia os partidos de esquerda era a compreensão do caráter da luta anti-fascista. No início da guerra, quando os anarquistas estavam à frente da luta o combate ao fascismo aliava-se à revolução. Quando os comunistas assumem o comando a palavra de ordem é a defesa da democracia, a reorganização da força militar com o desarmamento das milícias e a criação de um Exército Popular, o retorno da polícia e a aliança com a burguesia. A Revolução Espanhola não interessava à política externa soviética. O outro episódio de combate diz respeito à luta de rua em Barcelona. Logo após o episódio narrado durante o cerco de Huesca, o protagonista deixa o front, em 25 de abril, e segue de licença para Barcelona. Logo ao chegar, a transformação burguesa da cidade revolucionária de três meses atrás, chama sua atenção. A atmosfera da cidade é de extrema tensão com o acirramento da disputa entre os anarquistas e os comunistas. A propaganda pela extinção das milícias e sua integração no Exército Popular, o qual reinstaurava a hierarquia militar, espalhava-se pela cidade através da imprensa comunista. Afinal, o conflito eclode, em 3 de maio, com a invasão pela Guarda Civil, da Barcelona Telephone Exchange, controlada pela CNT (Confederación Nacional Del Trabajo), a qual resulta na luta de maio. Alertado por um miliciano, o protagonista dirige-se ao Hotel 481 Hispanismo 2 0 0 6 Falcón e atravessa a rua na direção do Comitê Local do POUM. A Guarda Civil havia tomado vários prédios em posição estratégia ao longo da Ramblas. O protagonista toma posição no telhado do edifício da Executiva do POUM em defesa do prédio. Mas nos próximos três dias nada acontece na posição ocupada, frente ao Café Moka ocupado pela Guarda de Assalto . A mudança ocorre em 5 de maio, quando correm rumores de que o POUM foi posto na ilegalidade e seus milicianos e militantes perseguidos pela polícia. A luta de rua esmorece e as barricadas são abandonadas, ao mesmo tempo em que chegam de Valencia tropas para ocupar Barcelona. A ordem é desarmar as milícias, a bandeira da República é içada nos prédios. A censura aos jornais é estabelecida e nas ruas figuram cartazes dos comunistas, nos quais uma figura do POUM é representada por trás de uma máscara com uma suástica. O POUM é declarado quinta coluna do fascismo a serviço da espionagem anti-repulicana. Logo após o episódio da luta de maio nas ruas de Barcelona se insere o Apêndice II, que se propõe a explicar a motivação da ação. O excurso é extenso e retarda a ação, pois discute a distorção dos fatos na imprensa comunista e notadamente na imprensa inglesa e visa o público inglês. De acordo com o autor, a luta de rua foi de caráter defensivo, nenhuma das partes envolvidas se propunha a derrubar o governo. No entanto, logo após o conflito cai o governo Caballero, substituído por Negrín, mais à direita. A luta foi um levante espontâneo da classe operária contra a polícia, a qual visava desarmar a CNT. Apesar do risco de uma luta civil na retaguarda,a reação popular serviu para retardar o avanço do poder político e militar dos comunistas no comando das operações militares, mas não chegou a afetar a luta no front, pois não houve deslocamento de tropas do front para a cidade. Mas o governo comunista de Valencia enviou a Guarda de Assalto para patrulhar Barcelona. O fundamental a respeito da luta de rua foi sua caracterização pela imprensa comunista como um complô do POUM a serviço dos fascistas e a designação do POUM como uma organização trotskista. A acusação tornou o clima de Barcelona insuportável devido às suspeitas quanto aos militantes do POUM e imediatamente deu início à perseguição pela polícia e à prisão de qualquer pessoa que mantivesse relações com os partidários ou combatentes da organização. O autor explica a não filiação do POUM ao trotskismo, embora contasse em suas fileiras com filiados ao partido trotskista. A associação dos trotskistas ao fascismo pela propaganda comunista resultava na política soviética de eliminação de seus adversários da linha do comunismo num só país,contra a revolução permanente pregada por Trotsky. Deste modo, apesar do POUM ser uma 482 Volume 4 | Literatura Espanhola organização pequena, mas combativa é perseguida juntamente com os anarquistas por sua perspectiva revolucionária. Logo após o final da luta, o protagonista volta ao front, onde é gravemente ferido, passa pelos hospitais de campanha e hospitais militares, até que, de volta a Barcelona, diante da propaganda comunista de conspiração fascista do POUM e prisão em massa, sem formação de culpa ou julgamento dos presos, muitos incomunicáveis, deixa a Espanha, sem data precisa, e de volta à Inglaterra, seis meses depois, inicia a redação do livro. A sua intenção é escrever um texto o mais fiel possível aos fatos observados e vividos na Espanha e desmentir a versão oficial do partido comunista sobre a guerra. O seu relato jornalístico visa restaurar a verdade, embora se refira a sua assumida parcialidade, do ponto estrito do qual observava a guerra, a trincheira do POUM. A particularidade deste escrito é que ele é o resultado de uma experiência vivida e não a correspondência de um jornalista, que escreve da retaguarda baseado nos informes do Ministério de Propaganda do Governo Espanhol, ou na imprensa comunista. Orwell chega a Espanha como correspondente estrangeiro, mas logo alista-se nas fileiras do POUM, devido aos papéis do ILP, com os quais entrara na Espanha. Ao seu texto jornalístico misturase o memorialista e depoimento daquele, que pela participação na luta, escreve a história. Ao escrever seu livro, a guerra ainda estava em curso. Mas não ficamos sabendo de mais nada do que ele não presenciou. Assim, o livro não diz nada sobre os acontecimentos deste lapso de tempo de seis meses. Mas no decorrer da narrativa ele vaticina que, o governo que se seguiria à guerra civil não seria revolucionário, nem democráticoburguês, mas uma ditadura, embora mais branda e menos anacrônica do que a de Franco. Admite que pode errar como todo mau profeta, mas parecia não vaticinar a derrota. O seu ponto de vista lúcido e corajoso sobre a guerra contradiz a versão oficial da historiografia e acentua o caráter revolucionário da luta nas fileiras anarquistas e do POUM. Referências Bibliográficas ORWELL, George. Orwell in Spain. Penguim Classics, 2001 483 Estudos Tradutológicos Hispanismo 2 0 0 6 A Celestina: uma tradução de Eudinyr Fraga para os palcos brasileiros. Dulciane Torres Lins (USP) La Celestina, como ficou conhecida a obra de Fernando de Rojas, foi publicada pela primeira vez, provavelmente, em 1499. Desde então a malfadada história de amor de Calisto e Melibea despertou o interesse de leitores e críticos, suscitando inúmeras polêmicas literárias que tratam desde a autoria do texto até a questão do gênero, entre outras. Polêmicas à parte, La Celestina é sem dúvida obra fundamental da cultura hispânica e leitura obrigatória de todos que pretendem conhecer as origens do drama moderno. Olhar a obra de Rojas como um texto essencialmente dramático interessa-nos sobremaneira, ademais foi nos palcos que, inicialmente, La Celestina foi apresentada ao grande público brasileiro. No biênio 69/70, ocorreram três montagens de La Celestina no Brasil: uma no Rio de Janeiro, outra em Porto Alegre e a terceira em São Paulo. Tanto a montagem carioca, sob direção de Martin Gonçalves, quanto a porto-alegrense, sob direção de Luis Artur Nunes, utilizaram a tradução de Walmir Ayala, posteriormente publicada pela Livraria Francisco Alves. Na montagem paulista, o Centro Cultural García Lorca contratou o professor Eudinyr Fraga1 para traduzir o texto espanhol, sendo Ziembinski o responsável pela adaptação do texto, direção da peça, além de protagonizar o papel da velha alcoviteira. O texto do professor Eudinyr Fraga apresenta como característica principal a supressão de parte do final trágico da obra de Rojas. Nesta versão não ocorrem as cenas da morte de Calisto e do suicídio de Melibea, tampouco as ações subseqüentes. Vale destacar que a decisão de eliminar tais cenas já havia sido prevista quando da contratação do tradutor. Conforme pesquisas preliminares2, a idéia era não concluir a tradução do texto para que os atores desconhecessem o desfecho e pudessem criar, coletivamente, o final da peça. Posteriormente a idéia de criação coletiva foi abandonada e o próprio Ziembinski incluiu na representação duas cenas finais de sua autoria. Essas informações indicam que a tradução de La Celestina visava à representação nos palcos brasileiros e de que o corte substancial nela operado atendia aos interesses do encenador, com a anuência do tradutor, não havendo qualquer indício da existência de outra versão contendo as cenas suprimidas3. Neste estudo utilizamos a edição crítica de La Celestina de Peter E. Russel para efeito de comparação com o texto de Eudinyr Fraga. Inicial486 Volume 4 | Literatura Espanhola mente, abordaremos alguns aspectos formais da obra e que corroboram a tese de uma tradução elaborada com a finalidade de representação nos palcos. Um aspecto que merece destaque na tradução é a forma como o texto adquire maior comunicabilidade com o público. Primeiramente, o tradutor elimina ou substitui a maioria das referências clássicas presentes no original. Por exemplo, substitui “triste Plutón” 4 (ROJAS, 1991, p.307) por “triste Belzebu” e elimina referências como “Nembrot” 5(ROJAS, 1991, p.238) e “Stige y Dite”6 (ROJAS, 1991, p.308), entre tantas. Eliminar e/ou substituir essas referências históricas ou mitológicas podem proporcionar um entendimento melhor de muitas passagens da obra, quando encenadas.. Contudo, o tradutor manteve as alusões que tinham função específica na peça. É o caso do discurso erudito utilizado pelo criado Sempronio com Calisto, no 1º. Ato, quando aquele tenta fazer valer sua argumentação contra as mulheres. Vejamos: “você nunca leu dos amores de Parsiféia com um touro e de Minerva com um cachorro? (...) os livros estão cheios de quedas de mulheres! Salomão, Sêneca, Aristóteles e Bernardo (...)”. A erudição de Sempronio, além de criar uma aproximação entre criado e senhor, também atribui ao texto um efeito cômico ao inverter os papéis sociais. Vejamos agora algumas afirmações de Henri Bérgson. Em seu estudo denominado O Riso, Bergson dedica um capítulo para discorrer sobre a comicidade das palavras, diferenciando “a comicidade que a linguagem exprime da comicidade que a linguagem cria” (BERGSON, 2004, p.76). Sem nos ater à essa diferenciação, destacamos que a comicidade expressa pela linguagem é transportável de uma língua para outra, ainda que raramente traduzível. Isso acontece devido às diferenças de contexto social e histórico. Esse aspecto foi considerado na tradução, já que Eudinyr Fraga mantém o caráter cômico presente na utilização dos ditos populares transpondo o significado deles para o contexto lingüístico brasileiro. Como exemplo, lembremos de um refrão utilizado por Celestina no momento em que explica a Sempronio como conseguirá corromper Pármeno, “a esse tal (Pármeno) dos alevosos” 7 (ROJAS, 2001, p.302). Na transposição ao português temos: “para um malandro, malandro e meio”. Muitas vezes os ditos populares assumem tom irônico no texto de Rojas, o que não foi ignorado na versão brasileira. Em determinado momento da narrativa, Melibea questiona a aparência de Celestina, destacando o seu envelhecimento. Celestina, então, responde: “senhora, faça com que 487 Hispanismo 2 0 0 6 o tempo não caminhe e eu farei com que minha feição não venha a mudar/ há um provérbio que diz: chegará o dia em que não te reconhecerás no espelho”. Esse provérbio pode ser entendido denotativamente ou, então, assumir um significado especial, já que o intuito de Celestina é enfeitiçar Melibea fazendo com que a jovem perca sua tão valiosa honra. Parece-nos que, embora haja o cuidado de não descaracterizar o texto original, Eudinyr Fraga mantém o foco da tradução na teatralidade. Nesse sentido, elimina a maior parte das sentenças e provérbios que não estejam diretamente relacionados ao desenvolvimento da ação, tornando os diálogos mais concisos e ágeis. Outro aspecto formal considerado no texto brasileiro trata da inovação lingüística presente em La Celestina. Sabemos que uma das inovações de Rojas foi a introdução no discurso literário do “tú” ao invés do “vos” . Os personagens de La Celestina só utilizam o “tu” nos diálogos, independente da classe social a que pertençam. Vejamos o que afirma Peter Russel: Semejante uso del tú era totalmente ajeno al castellano hablado o escrito de la época en que se escribían los autores de La Celestina, siendo notoria la insistencia de los españoles en que se observasen rigurosamente las reglas complicadas por las que, por medio del tratamiento, se indicaban y mantenían las disticiones sociales. (RUSSEL, 1991, p.42) Este ideal de língua mais ”democrático” foi considerado na tradução em língua portuguesa. Nela vemos a predominância do pronome de tratamento “você” como forma de indicar: intimidade, tratamento de igual para igual e de inferior para superior (em idade, classe social ou hierarquia). Mesmo quando os criados respondem aos chamados de Calisto utilizando a forma “senhor”, imediatamente voltam à intimidade do “você”. Em alguns diálogos, o tradutor foi mais audacioso, acrescentando algumas marcas de coloquialidade como: tá, pra, cara, porradas, entre outras. Até agora procuramos destacar alguns procedimentos adotados na tradução que foram relevantes para uma melhor comunicabilidade do texto no palco. Porém não poderíamos encerrar este trabalho sem tecer alguns comentários sobre a leitura da obra de Eudinyr Fraga, no que concerne ao final do texto. Já mencionamos as três encenações de La Celestina ocorridas no Brasil no final da década de 60. Esse interesse por encenar um texto espanhol do século XV leva-nos a refletir sobre qual ou quais aspectos da 488 Volume 4 | Literatura Espanhola realidade brasileira em 1969 são relevantes à compreensão de tal fenômeno. Até porque vivíamos num período contraditório marcado por forte repressão social, um certo otimismo econômico, e um movimento de liberação sexual, para mencionar o mínimo. Nesse sentido vejamos algumas considerações de Eudinyr Fraga publicadas no jornal O Estado de São Paulo. Em artigo de 06/12/1969, o professor analisa o interesse pela obra prima espanhola como reflexo do “frenesi erótico” que dominava a sociedade no fim da década de 60. Segundo ele: “o erotismo tornou-se material de consumo ao alcance de todos e explode em nossa volta, livremente, no teatro, no cinema, na literatura, na propaganda”, sendo assim o erotismo justificava o interesse por La Celestina. Ademais, o tradutor declara que a paixão amorosa é a mola propulsora do texto de Rojas, cuja “força criadora se manifesta no louvar o amor terrenal”. Essas declarações de Eudinyr Fraga não explicam totalmente o súbito interesse ocorrido em 1969 por La Celestina, até porque o texto espanhol permitiria estabelecer outros paralelos com o Brasil do regime militar. No entanto, tais declarações devem ser levadas em conta na medida em que revelam o aspecto de La Celestina que foi privilegiado na tradução. Além disso, ver o texto espanhol como um canto de louvor à paixão amorosa exclui qualquer visão moralizante que se possa atribuir a La Celestina. Com relação à temática amorosa, a versão brasileira de La Celestina nos mostra o amor como erotismo desprovido de qualquer preconceito social ou religioso. Isso talvez justifique a supressão de parte do final trágico da obra, já que o texto termina imediatamente após os jovens Calisto e Melibea viverem sua noite de amor, o que exalta ainda mais a paixão amorosa. Sabemos que na obra de Rojas os personagens principais da trama: Calisto, Melibea, Sempronio, Pármeno e Celestina morrem. Nela ricos e pobres se igualam diante da morte. No caso do texto de Eudinyr Fraga, a morte atinge somente os membros da classe social menos favorecida. A supressão do final da trama de La Celestina propicia uma interpretação particular da mesma, já que nela, o fato de a morte atingir somente determinada classe social, sugere uma posição crítica diante de uma sociedade, onde todos são movidos por interesses (monetários ou sexuais), mas somente aos poderosos é dado o direito de gozar suas conquistas impunemente. 489 Hispanismo 2 0 0 6 Referências Bibliográficas ANDRADE, Marisa S. (org.) Dicionário de Mitologia Greco-romana. São Paulo, Abril Cultural , 1973. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo, Martins Fontes, 2001. FRAGA, Eudinyr. A Celestina e o erotismo. Suplemento literário de O Estado de São Paulo, 6.12.1969, p.5. ROJAS, Fernando. La Celestina - Comedia o tragicomédia de Calisto y Melibea. Madrid, Castalia, 1991. ________. A Celestina. Trad. Eudynir Fraga. 1969, 68p. (Mimeo) RUSSEL, Peter E., “Introducción”, in ROJAS, F. La Celestina – Comedia o tragicomedia de Calisto y Melibea. 2. ed. Madri, Castalia, 1991, pp.11-158. Notas 1 2 3 4 5 6 7 Eudinyr Fraga, destacado professor da Escola de Comunicação e Arte/USP, era na época da tradução: ator, professor de teatro na Escola de Arte Dramática/USP e autor de teatro. La Celestina foi seu primeiro trabalho como tradutor. Entrevistas gravadas com pessoas que participaram direta ou indiretamente da montagem confirmam esta informação. É o caso do diretor teatral Emilio Fontana e da atriz Leda Vilela. O texto de Eudinyr Fraga encontra-se registrado na SBAT - Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Segundo o Dicionário de Mitologia Greco-Romana, p.153, Plutão é filho de Saturno e de acordo com a mitologia antiga deus dos infernos. Ibidem, p.238, Nemrod foi o fundador do império Assírio. Ibidem p.65, Estige e Dite eram duas lagoas subterrâneas de águas frias e lodosas que os antigos colocavam no inferno. Este provérbio significa que para vencer um traidor, basta a astúcia de dois traidores. 490 Volume 4 | Literatura Espanhola Un novohispano del siglo XVIII traduce y comenta a Boileau FELIPE REYES PALACIOS( Universidad Nacional Autónoma de México) Para la historia de la teoría y crítica dramática es sorprendente la existencia misma de una “traducción” del Arte poética de Boileau realizada por un novohispano en el siglo XVIII, la cual es anterior a la primera que se publicó en España de ese texto central del neoclasicismo francés,a aunque por el hecho de haber sido escrita en Italia, hacia 1776,b y haber permanecido inédita por más de un siglo, no haya podido repercutir directamente en el teatro de la Nueva España. Se trata de una versión tan libre, libérrima, que no es propiamente una traducción, sino que habría que considerarla como una versión-paráfrasis, en vista de las operaciones que Alegre ha realizado sobre el texto de Boileau: Mi traducción no será literal, ni aun casi será traducción. Hago con Boileau lo que él hizo con Horacio, esto es, tomar yo los pensamientos y los preceptos, y vertirlos a mi modo. Añado, quito, mudo, y a los ejemplos y alusiones francesas sustituyo comunmente españolas (ALEGRE, 1889, p. 2). En tanto versión o traslado de una lengua a otra su propósito sería el de servir al texto original contribuyendo a su difusión en el ámbito hispánico, así fuese pensando en los alumnos de los colegios y seminarios como receptores más probables. Ello implicaría la completa adhesión del traductor a la doctrina neoclasicista, supuesta su utilidad. Pero las operaciones parafrásticas contravienen tal finalidad dando paso a un discurso propio, provocado por la necesidad de reflexionar sobre el legado de la literatura española de los siglos anteriores, y el propósito de reivindicarla del juicio de uno de sus últimos críticos nacionales, señalado preceptista neoclásico, significativamente: De propósito no he hecho mención de [Ignacio de] Luzán ni de [Diego García] Rengifo. Ni uno ni otro para mí merece nombre entre los buenos autores. Luzán quiso parecer un gran crítico deprimiendo su propia nación, cuyo mérito él ciertamente no conocía en esta parte. Basta saber, para conocer el gusto del hombre, que una gran parte de los ejemplos que propone son sacados de Tomás Ceva, autorcillo italiano... (ALEGRE, 1889, p. 3). Además de ello el padre Alegre, como maestro que ha sido de letras humanas, tiene sus propias intenciones didácticas, de carácter enciclopédico. Concibe, pues, un cuerpo de notas en que pueda explayarse sobre todo género de poetas, dando “noticias muy verídicas y seguras de 491 Hispanismo 2 0 0 6 casi todos cuantos han escrito con alguna loa en este género [la Poesía], así en España, como en Italia, Francia, Inglaterra y Portugal” (p. 2). La explicación de los postulados neoclásicos, y su réplica, será pues llevada también a las notas, dando como resultado un texto que corresponde en un tercio al original, mientras que en su mayor parte contiene la erudición y las opiniones del padre Francisco Xavier Alegre. El meollo de su labor no consistirá entonces en tratar de adaptar a Boileau al estudio y crítica de una tradición literaria tan ajena y distante como podía serlo la española respecto de la francesa, por más que ambas, como literaturas románicas, derivasen de la tradición grecolatina. Su objetivo real, aunque soterrado, era formular una poética propia; replantear los postulados del neoclasicismo, como punto de partida, para luego definirse ante ellos, oponiendo a los criterios de Boileau los suyos propios, siempre que fuese necesario. Se trataba en última instancia de una subversión a partir de las notas; pero limitada irremediablemente a la tópica propuesta por el texto original, centrada en su contexto propio. Ciñéndonos al Canto Tercero por ser el que trata de los géneros dramáticos, tragedia y comedia, contrapuestos con la épica tal como se hace en el texto fundador de Aristóteles, doy cuenta a continuación de las principales coincidencias de Alegre con la doctrina neoclasicista de Boileau, a saber: ¬ Su concepción de la mitología grecolatina como un conjunto de historias fabulosas que tienen la virtud de despertar la imaginación y pueden constituir, por lo tanto, ornamentos legítimos para la poesía épica o dramática. Sin embargo, ambos autores se oponen a la mezcla de la dos cosmovisiones, seguros como están de la razón de su ortodoxia La consecuencia más radical de esta postura, en Boileau, es demandar de los autores que se abstengan por completo de hacer fábulas con temas sagrados, haciendo actuar a Dios, a sus santos y a sus profetas como a “esos dioses salidos del cerebro de los poetas”; demanda hecha en unos versos que curiosamente omite el jesuita Alegre: “Los misterios terribles de la fe de un cristiano no son susceptibles de alegres ornatos. El Evangelio no ofrece por todas partes al espíritu más que penitencia que hay que hacer y merecidos tormentos, y la mezcla culpable de vuestras ficciones da aire de fábula incluso a sus verdades” (González Pérez, 1977, p. 137). ¬ Su rechazo rotundo, en consecuencia, de las representaciones populares de asunto religioso. La referencia negativa de Boileau 492 Volume 4 | Literatura Espanhola a las representaciones medievales de la Pasión, y a la cofradía que de ello se encargaba en París (“estúpidamente activa en su simplicidad”), que era una reprobación basada en razones piadosas impregnadas de clasismo, le da pie a Alegre para arremeter contra el diseño de los personajes alegóricos, ahora en nombre de la razón y de la verosimilitud tan traída y tan llevada desde el redescubrimiento de Aristóteles: Sea quien fuere su autor, ni los vicios ni las virtudes son personas capaces de representarse en los teatros, ni pueden atribuírseles cualidades o aventuras que satisfagan y entretengan la atención de un hombre cuerdo (ALEGRE, 1889, p. 100). “Sea quien fuere su autor”, pues, Francisco Xavier Alegre se suma al rechazo de los autos sacramentales, compartiendo en alguna medida el criterio de quienes habían promovido su prohibición en todo territorio español, el año de 1763, bajo el reinado de Carlos III. Crímenes son del tiempo, se diría. Aunque esta frase no satisfaría a los admiradores del esplendor barroco. Siendo el auto sacramental un género énfaticamente racional, resulta al menos paradójico su rechazo por parte de los neoclasicistas españoles, que tanto apelan a la razón como su modelo francés: la raison, que no se le cae de los labios a Monsieur Boileau, comentará en su momento Gabriel Méndez Plancarte. ¬ Y también por la razón y el buen gusto, su rechazo absoluto del espíritu carnavalesco y fársico fincado en lo instintivo, como expresión que es de las “heces” de la sociedad. Pues bien está que la comedia se separe netamente de la tragedia: Mas tampoco es su empleo Entretener del público las heces Con burlas indecentes y soeces (ALEGRE, 1889, p. 92). De modo que si cuando al tratar de la comedia estos ilustrados aconsejan, siguiendo muy de cerca a Horacio: Que la Naturaleza sola sea De quien en la arte cómica se emplea El estudio y la guía (ALEGRE, 1889, p. 89), 493 Hispanismo 2 0 0 6 entienden por ello una naturaleza despojada de todo lo que es opuesto a la razón, como el espíritu que anima aquellas “mascaradas” que no debieran tener lugar ni en una plaza pública. Ignacio de Luzán distinguía por su cuenta, de similar manera, dos “especies de graciosidad”, una noble, la otra vulgar, dejando entrever la misma tendencia a la discriminación social y al autoritarismo. Hasta aquí no se diferencia mucho Alegre de Luzán, de quien dice disentir y a quien sí cita en una ocasión —a pesar de que se ha propuesto no hacerlo—, a propósito del estilo inadecuado para la comedia en que incurre Calderón de la Barca. En tanto que se afilia al neoclasicismo de Boileau, Alegre exhibe las mismas limitaciones, el mismo endurecimiento de una teoría que, como la aristotélica, no se proponía tanto dictar reglas intemporales, cuanto discernir los principales rasgos del fenómeno dramático de su tiempo, en el marco de una amplia reflexión filosófica. Pero en cuanto tiene necesidad de apartarse de Boileau, nuestro novohispano deja atrás el papel de comentarista neoclásico e historiador de la literatura española y es capaz de entrar en el terreno de la reflexión teórica original. La primera discrepancia de Alegre con el autor francés, en el terreno de la literatura dramática, tenía que ser a propósito de Lope de Vega, a quien Boileau se refiere como un poetastro que sin reparo alguno se aparta de las normas teatrales básicas que impone la preceptiva neoclásica, comenzando con la unidad de tiempo. Traducido fielmente Boileau decía: “Un rimador sin peligro, más allá de los Pirineos, encierra en escena años en un día. Allí, frecuentemente, el héroe de un espectáculo sin arte, niño en el primer acto, es anciano en el último” (González PÉREZ, 1977, p. 132). Pero en el texto de Alegre esto se convierte en una alabanza: Más allá de los montes Pirineos Un autor de fecunda y rica vena Muchos años envuelve en una escena. (ALEGRE, 1889, p. 74) Alabanza que amplía en la nota correspondiente, sin ir más allá por el momento de la apreciación de Lope como versificador, y justificando el acabado precipitado de sus comedias con lo abundante de su producción (ALEGRE, 1889, p. 94, n. 7). En su siguiente nota, Francisco Xavier Alegre señala atinadamente que la censura de Boileau no es original (¿conocería incluso a Lope de Vega?, me 494 Volume 4 | Literatura Espanhola pregunto), sino que “se la dio hecha a los franceses y extranjeros el juicioso autor del Don Quijote” en el capítulo 48 de la Parte Primera, donde el cura habla del disparate de salir en las comedias “un niño en mantillas en la primera escena del primer acto, y en la segunda salir ya hecho hombre barbado”, términos que Boileau está casi repitiendo. Y como Alegre copia in extenso el pasaje de Cervantes, recoge el noble elogio que éste hace de Lope, gallardo jerarca de la “monarquía cómica”. Como de pasada, recoge también, y esto es lo más importante, la ponderación más bien negativa que Cervantes hace del público como factor que, en un espectáculo dinámico, contribuye a determinar las convenciones en que éste se finca: Y no tienen la culpa desto los poetas que las componen, porque algunos hay dellos que conocen muy bien en lo que yerran, y saben extremadamente lo que deben hacer; pero como las comedias se han hecho mercadería vendible, dicen, y dicen verdad, que los representantes no se las comprarían, si no fuesen de aquel jaez (CERVANTES SAAVEDRA, citado por ALEGRE, 1889, p. 96). Hasta aquí tanto Cervantes como Alegre, al referirse al exitoso teatro de Lope de Vega como hecho económico, y a su amplio y heterogéneo público, parecen considerar a éste como un factor perjudicial para la higiene y pulcritud del arte dramático. Más adelante, en la extensa nota de seis páginas que Alegre dedica a la comedia, y después de recordarnos que en España hubo, ya desde antaño, una tradición humanística notable que conoció bien a Plauto y a Terencio, se formula una pregunta que resulta crucial: “El mismo Cervantes conoce los gravísimos defectos y la irregularidad de Lope de Vega, y toda la España confiesa lo mismo en D. Pedro Calderón. ¿Cómo, pues, al mismo tiempo han tenido en una nación iluminada estos autores tanto aplauso?” (p. 129). Y se contesta con el descubrimiento de Shakespeare que hizo el mismísimo Voltaire estando en Londres: En fin, yo hallé entre los ingleses lo que buscaba, y la paradoja de la reputación de Homero me fue descubierta enteramente. Shakespeare, el primer poeta trágico, casi no tiene en Inglaterra otro epíteto que el de divino. Yo jamás vi en Londres el teatro tan lleno en la Andrómaca de Racine, aunque tan bien traducida por Philips, o en el Catón de Addison, como en las antiguas piezas de Shakespeare. Estas piezas son monstruosas en materia de tragedias. Algunas hay que duran muchos años: allí se bautiza en el primer acto el héroe, que muere de vejez en el quinto. Se 495 Hispanismo 2 0 0 6 ven hechiceros, paisanos, borrachos, bufones y cavadores que abren una fosa y cantan tonos burlescos, jugando con las calaveras de los muertos. Finalmente, imagínese cuanto se quisiere de monstruoso y de absurdo, todo se hallará en Shakespeare. Cuando yo comencé a aprender la lengua inglesa, no podía comprender cómo una nación tan culta podía admirar un autor tan extravagante; pero cuando tuve mayor instrucción en el idioma conocí que los ingleses tenían razón, y que es imposible que toda una nación se engañe en punto de gusto, o finja de tener placer donde realmente no lo halla. Ellos veían como yo las faltas groseras de su autor; pero conocían mejor que yo sus bellezas tanto más singulares cuanto ellas son rayos de luz que brillaron entre las más densas tinieblas, porque ha más de ciento y cincuenta años que Shakespeare goza de su reputación. Los autores que han venido después no han servido más que a augmentarla [sic], en vez de disminuirla. (VOLTAIRE, citado por ALEGRE, 1889, p.130) Las bellezas singulares de Shakespeare a que se refiere Voltaire, según esto, se limitan al gusto por el lenguaje, al estilo, toda vez que están relacionadas con su “mayor instrucción en el idioma” y no abarcan a ninguno de los otros elementos estructurales del drama. Tratando, pues, del estilo, Alegre pasa a la comedia española; pero incluye ahora nuevos elementos que van a resultar claves en su planteamiento final: He aquí puntualmente la idea que yo me había formado de Lope de Vega y de su competidor D. Pedro Calderón. Llenos están de defectos y de irregularidad; apenas tienen pieza trabajada con reglas y con arte; sin embargo, supieron acomodarse y remedar bien el genio de su nación. Aquellas etiquetas de honor, aquellos amores metafísicos, aquellos desafíos, aquellos enredos, son muy del gusto de los españoles: nación seria, honrada, desinteresada y orgullosa. (ALEGRE, 1889, p. 131; las cursivas son mías.) Los valores, o convenciones ideológicas, del honor y del amor, de los que tanto se habla y con los que tanto se hace en la comedia de enredo o de capa y espada, y que desde luego están ahí como una concesión natural al gusto de los españoles, demandaban estructuras dramáticas distintas a las del Edipo rey de Sófocles, construidas sobre distintas convenciones espacio-temporales. El público de teatro, antes que presencia perjudicial o innecesaria al arte dramático, es justamente quien lo sostiene colaborando activamente en la definición de las convenciones que adopte. Francisco Xavier Alegre entra, pues, en terreno desconocido para la teoría dramática española anterior a él, apuntando a la necesaria correspondencia entre la convención ideológica de la realidad represen- 496 Volume 4 | Literatura Espanhola tada, con la convención propiamente teatral. Cómo era posible que unas tramas de dibujo complejo, que abundan en equívocos, aventuras y repetición de situaciones se atuvieran a las “unidades” de tiempo y lugar. Alegre así lo considera y avanza incluso a percibir el carácter espontáneo y arbitrario del signo teatral (igual que el del signo lingüístico), cuando concluye que: Es de desear, pues, la unidad de la acción o de la escena, la duración de horas o de días, y cosas semejantes. Pero no es esto sólo lo que debe decidir de la bondad de la comedia. Los Litigantes de Racine o el Misántropo de Molière no se repetirían muchas veces en Inglaterra ni en España, como ni el Conde Lucanor ni el Licenciado Vidriera en Francia. Cada nación tiene, como cada hombre, sus irregularidades y las ama, o a lo menos gusta de ver el retrato de ellas (ALEGRE, 1889, p. 132). Mirando a la distancia, y apoyándose en su experiencia, a un dramaturgo moderno (Thornton Wilder) le resulta natural concluir que: La historia del teatro nos muestra que en sus épocas de mayor esplendor la escena ha empleado el mayor número de convenciones. El arte escénico es una ficción fundamental, y extrae vigor del reconocimiento de ese hecho y de la multiplicación de ficciones adicionales (WILDER, 1981, p. 51)c Pero Francisco Xavier Alegre tiene el mérito de haber arribado a sus conclusiones a contracorriente, en lucha con sus propias convicciones, como dice Méndez Plancarte. Si acaso, tiene el antecedente de una poética derivada de la experiencia, la del propio Lope, quien concluye así su Arte nuevo de hacer comedias: Sustento, en fin, lo que escribí, y conozco Que aunque fueran mejor de otra manera No tuvieran el gusto que han tenido, Porque a veces lo que es contra lo justo Por la misma razón deleita el gusto. (VEGA, 1961, p. 28, vv. 372-376). Referencias Bibliográficas ALEGRE, Francisco Xavier. Opúsculos inéditos latinos y castellanos del P. (...) México: Francisco Díaz de León, 1889. Introd. [“Al lector”] Joaquín García Icazbalceta. “Vida del autor”: Manuel Fabri. 227 pp. 497 Hispanismo 2 0 0 6 GONZÁLEZ PÉREZ, Aníbal. Aristóteles. Horacio. Boileau. Poéticas. Madrid: Editora Nacional, 1977. Introd. y trad. de (...). 162 pp. VEGA, Lope de. Arte nuevo de hacer comedias. México: Colección Temas Teatrales, 1961. 56 pp. WILDER, Thornton. Tramoya, n. 21-22 (sep.-oct., nov.-dic., 1981). “Reflexiones sobre la composición dramática” (trad. Felipe Reyes Palacios), pp. 45-53. Notas a b c La fecha aproximada se deduce de la afirmación inicial que hace Alegre en una “Epístola dedicatoria” preliminar: “Para divertir algunos ratos melancólicos en el viaje que me fue forzoso hacer aquí a Padua para la impresión de mi latina Ilíada, traje conmigo las obras poéticas de Mr. Boileau” (1). La impresión aludida, primera de su versión de la Ilíada, está fechada en 1776, en Bolonia, y la segunda en 1788, en el Vaticano. Más aún. Del mismo párrafo se entiende que desde antes de la expulsión de los jesuitas (“el común naufragio”, 1767), Alegre había emprendido la tarea de la traducción: “Muchos años ha me había venido al pensamiento, y aun había comenzado a traducir a verso español su Arte poética; pero éste, entre otros de mis pequeños trabajos, pereció en el común naufragio” (1-2). La fecha aproximada se deduce de la afirmación inicial que hace Alegre en una “Epístola dedicatoria” preliminar: “Para divertir algunos ratos melancólicos en el viaje que me fue forzoso hacer aquí a Padua para la impresión de mi latina Ilíada, traje conmigo las obras poéticas de Mr. Boileau” (1). La impresión aludida, primera de su versión de la Ilíada, está fechada en 1776, en Bolonia, y la segunda en 1788, en el Vaticano. Más aún. Del mismo párrafo se entiende que desde antes de la expulsión de los jesuitas (“el común naufragio”, 1767), Alegre había emprendido la tarea de la traducción: “Muchos años ha me había venido al pensamiento, y aun había comenzado a traducir a verso español su Arte poética; pero éste, entre otros de mis pequeños trabajos, pereció en el común naufragio” (1-2). Antes ha afirmado que: “El teatro vive gracias a las convenciones; una convención es una falsedad propuesta de común acuerdo, una mentira permitida” (p. 51). 498 Volume 4 | Literatura Espanhola Dos traducciones del Beowulf John O´Kuinghttons Rodríguez (Instituto Cervantes) Cuando Borges publicó Literaturas Germánicas Medievales (1966) calificó de casi desconocido y remoto el material que examinaba. Agregó luego que el lector de esas literaturas era más bien improbable. Añadió después que las hazañas escandinavas irrumpieron como si en verdad nunca hubieran sido. Estas preliminares sirven para ilustrar grosso modo que nuestro ámbito hispano conoce poco y aun de forma errática y ocasional la rica y compleja literatura que se escribió en el antiguo norte. No es caudaloso el volumen de versiones castellanas de estas obras. Existen profusas y bien comentadas ediciones en inglés y en otras lenguas germánicas de las sagas de Islandia. Lo mismo cabe decir de la poesía escrita en anglosajón. Hay dos versiones de esta literatura en lengua española que desvelan una instigadora ausencia de símil. A lo que parece, la diferencia obedece a dos formas de concebir el proceso de traducción. Bien se sabe que verter a otra lengua puede comprometer experiencias que pueden llegar a ser diametrales. En un extremo encontramos la llamada traducción literal, que incurre en el arbitrio de presumir que un texto puede tener un correlato gemelo en otro idioma. En la antípoda de este ejercicio se sitúa la traducción libre, que rehace el original y sella el estilo del propio traductor. La mayor parte de las traducciones literarias toma la cautela de matizar estas esquinas. Revisaremos dos contrariedades visibles en las versiones del épico más antiguo del viejo orbe anglosajón: el Beowulf. Antes que nada, situemos la importancia de esta obra en el ámbito que la engendró. Pese a la falta de consenso, se cree que el Beowulf fue escrito a mediados del siglo VIII por un monje o por un laico que ciertamente no ignoraba las letras. Conocemos el poema por la feliz consecuencia de que en ese antaño los textos se transcribían como auxilio de la memoria y no por el fin en sí de redactarlos. No se trata de un texto rústico y fue redactado en ese latín del norte que es el anglosajón, el idioma que preparó el inglés actual. Ese parentesco es mucho más distante que el que guarda el español con el latín. La lengua de la Englaland era más afín al alemán u holandés de ahora, generosa de declinaciones y flexiones y que desde su alba se ejercitó entre la plebe, en contraste con el francés cortesano impuesto tras la batalla de Hasting. Esta identificación popular se deja sentir todavía en la lengua moderna. El inglés relega los vocablos latinos al convenio formal, mientras cede los germánicos al coloquio, menos silábicos y más económicos que los de fuente romana. Quizás por prurito histórico, los estudiosos han llamado a esta remo499 Hispanismo 2 0 0 6 ta lengua Old English. Por este criterio fundacional cabría decir que el latín es un Antiguo español o un Antiguo portugués, denominación que disuena de nuestros hábitos por la palmaria lejanía de la fuente. No es el caso ahondar en esta digresión terminológica. Baste decir que el anglosajón nos ha llegado como evidencia de la identidad común de los germanos occidentales. Este épico ha sido clasificado como la más antigua epopeya de Inglaterra y se le ha conferido la misma representatividad nacional que guardan el Kalevala para Finlandia o el Nibelungenlied para Alemania. G.T.Shepherd (1984:85) comenta que aún se discute si el Beowulf es una composición germánica o inglesa. Advirtamos primero que decir inglés supone decir germánico. El Beowulf no es una impronta exclusiva del pueblo de Inglaterra debido al idioma y a su tema, que es enteramente escandinavo. El poeta que lo escribió no debió pensar que trasuntaba un alma nacional; debió prever que en él relucía no un país sino una cultura entera. La circunstancia territorial en que se escribió el Beowulf no le imprime exclusividad territorial. La historia se concentra en el personaje que bautiza la obra, un héroe gauta que arriba a la corte danesa para salvar al pueblo del acoso de un monstruo llamado Grendel. El héroe los mata a él y a su a su madre en las profundidades de un pantano. Años después, Beowulf es investido como rey de los gautas y como rey liquida a un dragón que asola el reino. Fruto de la reyerta, Beowulf muere. Esta económica síntesis debe añadir episodios como los consejos del rey Ródgar a Beowulf, el enfrentamiento de gautas y suecos, el desprecio de Wiglaf contra los once vasallos de Beowulf, entre otros. El héroe es ciertamente sobre humano: vence portentosas criaturas de Caín con muy exiguos recursos, inerme incluso cuando lidia contra Grendel. Esta condición aventajada permite quizás entender la inoperancia de daneses y gautas para enfrentar a las criaturas que los dilaceran. En el poema no se hace nunca referencia a tácticas de defensa contra los energúmenos ni se arguyen motivos para justificar esa abulia. Estas omisiones animan dos conjeturas sobre la posible intención del anónimo poeta: que cometió un ostentoso descuido de verosimilitud o que premeditó esas conductas para refulgir la voluntariosa estatura del héroe. En lo formal, el poema adhiere a los patrones de la antigua poesía germánica: versos de metro irregular divididos en dos, con aliteraciones distribuidas en ambos hemistiquios de acuerdo al esquema de dos sílabas acentuadas en cada mitad separadas por dos sílabas intermedias. Esta distribución aliterada regalaba al oído con un ritmo que no ha mermado en el inglés actual. Si no, véase esta línea de Lewis Carrol: Humpty Dumpty sat on the wall; Humpty Dumpty had a great fall. La segunda mitad (de los hemistiquios), informa Shepherd, es más prominente que la primera. Es en 500 Volume 4 | Literatura Espanhola la segunda escisión del verso que el pensamiento se desarrolla. La primera sirve normalmente para enfatizar, modificar o cualificar pensamientos sin desenvolverlos. Estas características no suelen ser fácilmente reproducibles en la traducción. Es dable suponer que cuando un escritor opta por la prosa o el verso lo hace por imperativos de estilo o por una determinada forma de intuir el ejercicio del arte. No son pocos ni desconocidos los casos de narrativas que se han urdido por la vía del verso: El Don Juan de Byron, Paradise Lost, La Araucana, El Martín Fierro. Existe asimismo un no exiguo correlato de expresiones poéticas resueltas en prosa que comprenden operaciones tan distantes como los furiosos devaneos de Rimbaud y la exasperante y espiralada sinuosidad de Novalis. La disyuntiva de prosa o verso debió ser una de las primeras de las muchas decisiones con que se depararon Lerate y Borges al emprender la traducción del Beowulf. Para empezar el cotejo, revisemos qué dijeron ambos autores sobre su empresa. Borges no se ocupó del poema entero, sino de un episodio inicial, que refiere las exequias de un legendario rey danés. Declaró que la intención de su opúsculo no era otro que el de ser un pre gusto para la lectura integral de los textos. Asimismo, destacó que su ejecución en prosa pretendía ser literal. No es en absoluto improbable barruntar que esta deliberada opción responda a su aprecio por la antigua narrativa germánica, a la que en más de una ocasión cualificó de señera. Lerate (BEOWULF, 1974:17), en cambio, se adscribe al verso, tratando de imitar, como él mismo explica, el ritmo original mediante la preservación de los hemistiquios, con una distribución sostenida de sílabas átonas y tónicas. A poco andar la lectura, se advierte que Borges se tomó algunas licencias de las que Lerate se resguarda. La más visible es el empleo de la tercera persona. El original anglosajón está narrado en primera (ic: yo). Esta inescondida preferencia debió ser una forma de conciliar el poema con la narrativa medieval islandesa, que Borges estudió desde la juvenil lectura de la saga de Njal. Borges entendía las sagas como una demostración de arte mayor, como el testimonio infértil del nacimiento de la novela. En un pasaje (Borges, 1991:934) afirmó que estas narraciones respondían a crónicas objetiva de los hechos, lo que imponía una redacción impersonal. Este artificio de escatimar el yo puede aventurarse mediante al menos dos conocidos recursos de estilo: la elusión programada de adjetivos y el manejo de la tercera persona. Estas variables no son garante de objetividad, pero propenden a ella, como lo atestiguan los versos 38, 39 y 40, que Lerate (BEOWULF, 1974:27) traduce como 501 Hispanismo 2 0 0 6 No sé de otra nave que aquí se equipara con armas de guerra, espadas, arneses y cotas de malla… y que Borges (1991:789) imprime de este modo: No hay fama de otra nave tan airosa exornada de armas de muerte. De vestiduras de guerra, de espadas y corazas. En estas líneas, junto a la distancia signada por la tercera, damos con la expresión no hay fama, muy típica de su estilo. Como ya apuntamos, el fragmento que ahora cotejamos habla de las exequias de un rey. La ceremonia descrita acopia los elementos propios del ritual de entregar al mar el cuerpo de los caudillos a bordo de una nave pertechada de bienes. La imagen que asocia la muerte a una nave encuentra distintas variaciones en la mitología. Una muy célebre es la leyenda irlandesa de Bran, un héroe que tras un sueño emprende um periplo a las islas mágicas y que al retornar al hogar nadie lo conoce pues en verdad está muerto. (Antonio Machado se ha valido de esta imagen marina en el verso Y cuando esté al partir la nave que no ha de tornar…). En el Beowulf, las exequias reales atestiguan que las prácticas paganas aún pervivían en la memoria del siglo VII. Los trazos cristianos suelen ser accidentales e irrelevantes para los hechos, nunca se insiste en ellos, se los siente más como una obligación que una declaración de fe. No deparamos con laudaciones al perdón eterno ni reverencia a los dogmas. El autor del poema parece mirar más bien a un tímido tipo de sincretismo. Lerate (BEOWULF, 1974: 25) describe la muerte del rey así: Su hora le vino al intrépido Skild / al encuentro marchó del Señor de la Gloria. Borges (1991:789) prefiere: En la hora de su destino, Scyld, fuerte aún, buscó el amparo de su Señor. Lerate se mune de una expresión tradicional del español para referir la muerte: “llegar la hora / venir la hora” . Al interrogar el original, constatamos que el verso trece no omite el nombre de Dios (God) (BEOWULF, 1974:24). En lugar de traducirlo, Lerate lo recrea con cierto ornato con la mención Señor de la Gloria, nómine que si bien se mira se asemeja a una kenning, aquella metáfora tan cara a la artesanía de la vieja poesía del norte. Borges elude el artificio metafórico (las kenningar le desper502 Volume 4 | Literatura Espanhola taban una curiosidad de fascinado desdén) pero lo insinúa hacia el final del fragmento, cuando para hablar del rey lo llama Guerrero Armado de Lanza. Pese a la apariencia, esta alusión no conforma una kenning, pues no cumple con el requisito de la analogía. Guerrero Armado de Lanza no es otra cosa que un guerrero armado de lanza, para el caso, un guerrero egregio como el rey. Lo curioso es que esta pretendida kenning parece una interpolación de Borges, pues Lerate cumple con la designación al monarca mediante la incurrencia de pronombres (Le dejaron partir,/ lo llevaron las olas…) Los traductores también discrepan en el modo de describir la nave real. Borges la personifica, le atribuye una cierta impaciencia por zarpar. A rigor, esta personificación es una hipálage, pues los impacientes son en verdad los súbditos reales. Borges trasunta esa inquietud tan humana a la embarcación. Así, la nave se vincula al rey no solo en su nacimiento sino también en su muerte. Lerate (BEOWULF, 1974: 27) revive el verso 43 de esta forma: De rico tesoro dotaron al rey: / en nada peor al que un día a su lado / pusieron aquellos que, solo en el barco, / siendo muy niño, lo dieron al mar. En el correlato borgeano (BORGES, 1991:789) encontramos: No lo abastecieron con menos esplendor, con menos riqueza, que las que en el principio lo rodearon cuando era niño. Lerate deja suponer que el tesoro le fue ofrendado al rey por lo mismos que lo llevaron al mar, información ausente en la prosa de Borges. La asociación del rey con el barco en los polos de su vida es indicativa del aprecio e identificación que sentían ese pueblo por el mar. Sobre la transcripción del estilo, no creo precipitado afirmar que con el verso Lerate reproduce el ritmo de la poesía que traslada. Recordemos que el verso germánico se organizaba en mitades de medida irregular, con sílabas programadamente acentuadas. Lerate suele separar estas sílabas marcadas con un hiato de dos sílabas átonas. El efecto es este: Entonces un hijo le vino a nacer / Heredero en palacio. Enviábalo Dios / En alivio del pueblo: Él sabía su aprieto / De tiempos atrás, cuando muchos sufrieron. (BEOWULF, 1974::25) Esta regularidad le confiere a la traducción de Lerate una expresión muy antigua. A pesar de lo disímil, la traducción borgiana no lo es menos. 503 Hispanismo 2 0 0 6 Al elegir la prosa, Borges debió buscar un recurso que le imprimiese al texto el sabor de antaño que defiende en el exordio. Lo encontró en la frase larga y en la intercalación como lo ilustra esta frase inaugural: En la hora de su destino, Scyld, fuerte aún, buscó el amparo de su Señor. (BORGES, 1991:789) Sabemos que los poetas germanos no celebraban la rima, que reemplazaron por el verso aliterado. La literatura inglesa posterior no olvidó esta simpatía. John Milton escribió: : Ere half may days in this dark world and wide, hospitalidad que Emiliy Brontë revivió en: reckless of the lives wasting there away. A pesar de lo prescriptivo de la aliteración, este recurso no parece haber sido preocupación central de los traductores. En ciertos pasajes se deja oír la persistencia de la sibilante (ya estaba dispuesto), pero esto quizás se deba más bien a la regularidad de ese sonido en el idioma que a un artificio premeditado. Existe, empero, un pasaje (vv. 38-40) que ambos autores decidieron expresamente aliterar: Mientras Lerate (BEOWULF, 1974:27) escribe No sé de otra nave que aquí se equipara / Con armas de guerra, espadas, arneses / Y cotas de malla; repleta quedó, Borges (1991:789) ensaya No hay fama de otra nave tan airosa exornada de armas de muerte, de vestiduras de guerra, de espadas y corazas. En estos pasajes la vibrante se advierte como un sonido áspero, casi como un gruñido. Su repetición conviene mucho al contenido del verso, que retrata aperos de guerra. Vale observar que la propia palabra guerra resuena a beligerancia y que su origen es precisamente germano. Aun cuando define que su experiencia es literal, Borges osa más que Lerate. Lo evidencia su opción por la prosa, el uso de alguna expresión de su estilo y la interpolación de alusión indirecta que lo entronca con la factura poética de los escaldos. A pesar de no imitar el verso germánico, la prosa de Borges contiene el ritmo de la épica antigua por la extensión frasal y la intercalación. Su texto se amista con el tono de la declamación, tono que debió dominar en el siglo VII si se toma en cuenta que esta poesía, como la obra de Shakespare, no emergió para un lector sino para una audiencia, y que su redacción no ocurrió como expresión literaria sino como un sucedáneo de la memoria. Por su parte, al ejercitar el verso, 504 Volume 4 | Literatura Espanhola Lerate nos acerca de manera más a lo que los sajones debieron oír. Animado por una síntesis, llego a esta conclusión, que nació como sospecha y que debía constatarse para escapar del perogrullo: la traducción de Lerate es la obra de un traductor; la de Borges, la de un escritor, de un escritor que no pactúa con sus preferencias de estilo. A modo de corolario, digamos cuánto vale esperar que la obra de Snorri Sturlusson, de Saxo Gramático, y el generoso acervo de anónimos de la materia germánica abandonen su extraño puesto de célebres desconocidos. Las traducciones que hemos revisado pueden en mucho ayudar a superar este vacío que ya va tomando visos de legendario. Referencias Bibliográficas BEOWULF. Seix Barral, 1974. BORGES, Jorge Luis. Obras completas en colaboración. Emecé, 1991. SHEPHERD, G.T. et al. Medieval Literature. Penguin Books, 1984. 505 Hispanismo 2 0 0 6 Tradução dos provérbios de Sancho Pança Silvia Cobelo (USP) O presente estudo sobre o Quixote de Miguel de Cervantes se insere no campo dos estudos tradutológicos. Por meio de uma perspectiva comparativa/ contrastiva; pretende-se analisar as diversas soluções dadas em língua portuguesa aos inúmeros provérbios que aparecem no Quixote, proferidos, sobretudo, por Sancho Pança. Optamos pelo estudo comparado do capítulo XXV da primeira parte; episódio privilegiado na medida em que vários provérbios são enfileirados na fala do escudeiro. Sabemos das muitas dificuldades que surgem ao se traduzir marcas culturais, uma vez que tal prática exige, mais do que em outros enunciados, o conhecimento do contexto gerador (SANCHEZ,1987, p.45). O próprio nome “Sancho”, está relacionado a provérbios: ele é o camponês, o representante do povo espanhol. Ao discorrer sobre a fala de Sancho, Angel Rosenblat (ROSENBLAT, 1995, p.35) conta que um viajante, ao visitar a Espanha, teria dito: “los españoles gustan expresarse en dichos y refranes cortos y llenos de agudeza e intención”. Sancho não poderia falar de outra forma. Essa propriedade da linguagem de Sancho consolida-se com sua pessoa, segundo ele mesmo: “No tengo caudal alguno, sino refranes y más refranes” (DQ II,XLII). O autor mostra como Sancho, com freqüência, modifica os provérbios e os acomoda às circunstâncias, no entanto, o que mais colabora para sua imagem pitoresca é a acumulação indiscriminada e sentenças populares ditas numa ladainha, como uma verdadeira “enxurrada” que, por sua vez, produz efeitos cômicos notáveis. Márquez de Villanueva (VILLANUEVA, 1973, p.28-29), retomando uma idéia de Menéndez Pidal, relaciona o nome Sancho com o que se conhece como rústico no refraneiro espanhol. Na literatura popular e numa das continuações da Celestina aparece “Allá va Sancho con su rocino”, na Segunda Celestina temos “Con lo que Sancho adolece Domingo y Martín sana” e “No ganará contigo la dehesa, Sancha la Bermeja”. Na Comedia Thebayda aparecem “Topado ha Sancho con su rocín” e “Al buen callar llaman Sancho, al bueno, bueno, Sancho Martinez”. Maurice Molho (MOLHO, 1976, 506 Volume 4 | Literatura Espanhola p.149) cita mais alguns: “Topado ha Sancho con la horma de su sapato” e Revienta Sancho de hidalgo”. Martin de Riquer, (RIQUER, 1969, p.60) acredita que Cervantes possa ter escolhido o nome do escudeiro por um modismo da época: Alla va Sancho con su rocino”, referindo-se a duas pessoas que andam sempre juntas. Sendo uma obra clássica da literatura universal, o Quixote contou com várias traduções para o português, tanto em Portugal como no Brasil. Cada uma dessas edições tratou os provérbios de maneira distinta, dando sua própria versão de cada um deles. A pequena análise ensaiada aqui nesta apresentação mostra um grande campo de estudo. Assumindo o papel de “sondas” do texto integral, vamos cotejar as principais edições em português, lidas no Brasil. Ao analisar, comparativamente, como foram traduzidos esses provérbios, quais as soluções encontradas para cada caso tratamos de encontrar uma unidade lógica para cada tradutor, seu “idioleto”. Os provérbios são analisados dentro da teoria de modalidades de tradução revista por Francis Aubert (AUBERT, 2006, p.5-10) que supõe as alternativas de Literalidade e Equivalência. A Literalidade ocorre quando temos uma certa sinonímia interlinguística e intercultural no contexto dado. Subdivide-se em Transcrição, Palavra por Palavra, Transposição e Explicitação. Já a Equivalência engloba as modalidades que são uma reescrita interpretativa na ótica da cultura de recepção. As subdivisões são: Implicitação, Modulação, Adaptação. Pelo exíguo espaço que temos, vamos nos deter em apresentar somente as modalidades que aparecem em nosso ensaio, ou seja, Palavra por Palavra, Transposição, Modulação e Adaptação. Na Tradução Palavra por Palavra observa-se: o mesmo número de palavras, na mesma ordem sintática, empregando as mesmas categorias gramaticais e contendo sinônimos interlingüísticos e interculturais. Classifica-se como Transposição quando um ou mais critérios da tradução Palavra por Palavra não é satisfeito, quando temos, por exemplo, rearranjos morfossintáticos, ou quando ocorre alteração na ordem das palavras ou ainda quando aparece uma alteração de classe gramatical. A Modulação é considerada pelo autor como uma marca da tradução literária, quando aparecem os idiomatismos de expressão, as marcas culturais. Ocorre uma alte- 507 Hispanismo 2 0 0 6 ração perceptível na estrutura semântica conservando o mesmo sentido no contexto. Na Adaptação acontece uma assimilação cultural com uma intersecção de sentidos, não havendo mais a procura de uma equivalência plena, especialmente quando temos uma limitada equivalência cultural entre a língua de origem e a língua de chegada. Neste caso, devemos também considerar uma diacronia na tradução, envolvendo três séculos (XIX, XX e XXI) assim como uma diacronia de quatrocentos anos em relação ao próprio original. Para o presente trabalho, utilizamos como texto base em espanhol a edição dirigida por Francisco Rico da Editorial Crítica, Instituto Cervantes. Quanto às traduções, foram utilizadas: Viscondes de Castilho e Azevedo, publicada pela primeira vez em 1876/78, Portugal (é até hoje a mais editada); Almir de Andrade e Milton Amado, publicada pela José Olympio no Rio de Janeiro em 1952; Aquilino Ribeiro, escritor português, publicado em São Paulo em pela Difusão Européia do Livro em 1953; Eugenio Amado editado pela Itatiaia em 1983; Sérgio Molina publicado pela Editora 34 em 2002 e por último, Carlos Nougué e José Luis Sánchez, editados pela Record em 2005. Além destas edições será utilizada a dissertação de mestrado de Anna Sanchez (SABCHEZ, 1982, p.179-180) com traduções inéditas dos provérbios estudados. Angel Rosenblat (ROSENBLAT, 1995, p.36) crê que Cervantes descobriu o recurso dos provérbios paulatinamente. Sancho diria seu primeiro provérbio no final do capítulo XIX da primeira parte e logo se desborda no capítulo XXV da mesma parte. Fernando Carreter (CARRETER, 2001, p.21) está de acordo sobre o primeiro provérbio e mostra como Cervantes vai se firmando pouco a pouco no uso dos mesmos, até chegar ao capítulo XXV da primeira parte, quando acontece a primeira enxurrada. Isso só voltará a acontecer na segunda parte. Esse mesmo trecho do capítulo XXV no qual Sancho enfileira provérbios é parte do corpus da dissertação de mestrado de Anna Sanchez. O título do capítulo, segundo a tradução dos Viscondes, é: “Que trata das estranhas coisas que na Serra Morena sucederam ao valente cavaleiro de la Mancha, e a imitação que fez da penitência de Beltenebros.” Neste capítulo Dom Quixote resolve suspender sua busca de aventuras para fazer 508 Volume 4 | Literatura Espanhola penitência como Amadis (personagem famoso de livros de cavalaria, que adota o nome de Beltenebros ao retirar-se em penitência por amor à sua Oriana) e desatinos como Orlando Furioso de Ariosto. É um capítulo de muita importância, segundo Martin de Riquer (RIQUER, 1970, p.89), pois é a única vez em que o cavaleiro identifica Dulcinéia como a lavradora Aldonza Lorenzo. Dom Quixote escreve uma carta para sua amada e depois Sancho vai embora com Rocinante enquanto seu amo dá cambalhotas seminu para provar ao seu escudeiro que fazia loucuras por amor a Dulcinéia. O trecho estudado está logo no início do capítulo. Sancho está feliz em poder falar novamente (havia sido interditado por seu amo) e eles conversam sobre o que Cardenio, no capítulo anterior, havia dito sobre a Rainha Madásima (personagem do livro Amadis de Gaula), sugerindo ser amancebada com mestre Elisabad, o qual seria, segundo nota de Francisco Rico, aio e acompanhante de Amadis. É nesse momento que Sancho e Dom Quixote terão o diálogo em que o escudeiro justapõe uma série de provérbios: “Ni yo lo digo ni lo pienso- respondió Sancho -. Allá se lo hayan, con su pan se lo coman: si fueron amancebados o no, a Dios habrán dado la cuenta. De mis viñas vengo, no sé nada, no soy amigo de saber vidas ajenas, que el que compra y miente, en su bolsa lo siente. Cuanto más, que desnudo nací, desnudo me hallo: ni pierdo ni gano. Mas que lo fuesen, ¿qué me va a mí? Y muchos piensan que hay tocinos, y no hay estacas. Mas ¿quién puede poner puertas al campo? Cuanto más que de Dios dijeron.” ¡Válame Dios – dijo don Quijote -, y qué de necedades vas, Sancho ensartando! ¿Qué va de lo que tratamos a los refranes que enhilas? LEGENDAS: MC: Miguel de Cervantes; CA: Viscondes de Castilho e Azevedo; AA: Almir de Andrade e Milton Amado; AR: Aquilino Ribeiro; EA: Eugenio Amado; SM: Sérgio Molina; NS: Carlos Nougué e José Luis Sánchez; AS: Anna Sanchez; NE: Nota explicativa de FR: Francisco Rico (tradução livre da autora) MT: Modalidade de Tradução – PP: Palavra por palavra; T: Transposição; M: Modulação, A: Adaptação 509 Hispanismo 2 0 0 6 MC CA AA AR EA SM NS AS NE (1) Allá se lo hayan, con su pan se lo coman: os outros lá se avenham; e se meus caldos mexerem, tais os bebam. - eles que lá se avenham e com as suas linhas se cosam; Lá se avenham. Sua alma, sua palma. - eles que por lá se avenham, e que cada qual coma do seu próprio pão; - Eles lá que se amanhem e colham sua semeadura: - Eles lá que saibam as linhas com que se cosem, Eles que são brancos que se entendam; Indiferença com a qual tratamos assuntos alheios (AS) MT A A A M A A A MC CA AA AR EA SM NS AS (2) De mis viñas vengo, no sé nada, Não sei nada, das minhas vinhas venho. Venho das minhas vinhas; de nada sei; Não gosto de meter o nariz na vida alheia. De minhas vinhas cheguei, e de nada sei Eu sigo meu trilho, não sei de nada Eu sigo o meu caminho, não sei de nada, Das minhas vinhas venho, não sei de nada; Não se importa com o que acontece com os outros. (FR) Desculpas de um mal feito, geralmente dito pelo culpado. (AS) MT T T A T M M PP MC CA AA AR EA SM NS AS (3) el que compra y miente, en su bolsa lo siente. Quem compra e mente na bolsa o sente; quem compra e mente, na sua bolsa o sente. Quem compra e mente, na bolsa o sente. quem compra e mente, na sua bolsa é que sente. quem compra e mente, na bolsa o sente. quem mexe em vespeiro, picado sairá. quem compra e mente, na sua bolsa o sente. MT T PP T T T A PP NE Ostentação de falsa habilidade para os negócios. (AS) MC CA AA AR EA SM NS AS (4) desnudo nací, desnudo me hallo: ni pierdo ni gano. Nu vim ao mundo, e nu me vejo; nem perco nem ganho. nasci nu e nu me encontro; não perco nem ganho. Por mim tanto se me dá como se me deu. Pelado nasci e pelado me encontro; não perco nem ganho. Nu nasci e nu estou: não perco nem ganho. Nu nasci, nu estou: não perco nem ganho. nasci nu, nu me encontro, não perco nem ganho: Não ambição e conformismo (AS) Procedência bíblica (FR) MT M T A PP T T T (5) muchos piensan que hay tocinos, y no hay estacas. Há muitos que pensam encontrar toicinhos e não há nem estacas; Muitos pensam que há toicinhos onde só há espetos. Não há dúvida, quase sempre são mais as vozes que as nozes. Muitos pensam que há toicinho onde não existe espeto. Pois às vezes são mais as vozes que as nozes. E nem tudo o que reluz é ouro. Muitos pensam que há toicinhos, e não há estacas; Supor algo de alguém sem nenhum fundamento. (FR) MT T M A M A A PP NE NE MC CA AA AR EA SM NS AS NE 510 Volume 4 | Literatura Espanhola MC CA AA AR EA SM NS AS NE MC CA AA AR EA SM NS AS NE MT A A A T M M PP (6) ¿quién puede poner puertas al campo? quem pode ter mão em línguas de praguentos, E quem pode por cobro às más línguas, Quem pode calar as bocas do mundo?! E quem pode colocar porteiras no campo? Mas quem pode pôr rédeas ao vento? Mas quem pode pôr travas ao vento? quem pode por portas ao campo? Quem pode colocar limites à liberdade? (FR) (7) Cuanto más que de Dios dijeron. se nem Cristo se livrou delas? Depois do que disseram do próprio Deus? Pois não disseram mal de Cristo e mais era Deus?! Tanto mais, que até ao próprio Deus difamaram... Quanto mais que até Deus foi malfadado. Tanto mais que até de Deus murmuraram. Se até de Deus disseram, (com não falarão deles?) Desprezar a maledicência. (FR) Provérbios PP T M A 1 2 3 4 5 6 7 Total 0 1 2 1 1 1 0 6 0 3 4 4 1 1 0 14 1 2 0 1 2 2 6 14 6 1 1 1 3 3 1 15 Total de Literalidade 0 4 6 5 2 2 0 20 MT A M M M M M M Total de Equivalência 7 3 1 2 5 5 7 29 O provérbio 1 é o mais adaptado, com o uso da palavra “avenham” nas primeiras quatro traduções. No provérbio 2, 3 e 4 temos mais ocorrência de Literalidade que de Equivalência. No provérbio 3 e 4 e em parte do 5, quase todos os tradutores deram soluções semelhantes As traduções dos provérbios 5, 6 e 7 denotam uma preferência pela Equivalência, sendo o 7 traduzido por seis tradutores por Modulação e apenas uma Adaptação. Podemos observar também o total maior de Equivalência, de acordo com o esperado para um idiomatismo cultural como é o caso dos provérbios. O quadro abaixo sintetiza os resultados da pesquisa sobre modalidades de tradução utilizadas por cada tradutor. Tradutor CA AA AR EA SM NS AS PP 0 1 0 1 0 0 4 T 3 2 1 3 2 1 1 M 1 3 1 2 3 4 1 A 3 1 5 1 2 2 1 Total de Literalidade 3 3 1 4 2 1 5 Total de Equivalência 4 4 6 3 5 6 2 511 Hispanismo 2 0 0 6 As soluções dadas pelos diversos tradutores apresentam algumas variações. A distribuição das modalidades é um dos critérios para definir cada idioleto. As traduções dos Viscondes, de Almir de Andrade & Milton Amado e Eugênio Amado são equilibradas quanto às modalidade de tradução de Literalidade e Equivalência, no entanto, os Viscondes têm somente uma Modulação e três Adaptações, exatamente o inverso do que ocorre com as traduções de Almir de Andrade & Milton Amado. Eugenio Amado é o mais Literal deles, sendo o único (além das traduções não publicadas de Anna Sanchez) a fazer tradução Palavra por Palavra, ver o provérbio 3. Evidencia-se também uma grande similaridade nas escolhas de Almir de Andrade & Milton Amado e Eugenio Amado, ver provérbios 1,2,3,4 e 5. Como esperado, o famoso escritor Aquilino Ribeiro mostrou uma acentuada escolha de Adaptação, como podemos verificar nos provérbios 1,2,4,5 (sendo esta a mesma escolha de Sérgio Molina) e 6. As duas traduções mais recentes, a de Sérgio Molina e Carlos Nougué e José Luis Sánchez apresentam perfis parecidos, tendendo mais para Equivalência que para Literalidade, fazendo às vezes quase as mesmas escolhas (ver provérbio 2, 4 e 6). No caso da pesquisadora Anna Sanchez, as opções são quase todas com acentuada Literalidade, inclusive chegando a ser praticamente a única a traduzir Palavra por Palavra, ver provérbios 2, 3, 5, 6. Relembramos que não se trata de uma tradução comercializada ou publicada em outro formato que não o de dissertação de mestrado. Concluímos ser este um bom método para comparar as nuances entre um tradutor e outro, detectar estratégias para lidar com dificuldades como a tradução de um provérbio. É uma ferramenta para identificar traços significativos do idioleto de cada tradutor, as diferenças e semelhanças em suas escolhas para resolver o difícil desafio de traduzir uma obra clássica como o Quixote. Referências Bibliográficas AUBERT, Francis H.: Em busca das refrações na literatura brasileira traduzida – revendo a ferramenta de análise. (no prelo – Literatura e Sociedade) – 2006 _____:Traduzindo as diferenças extra-linguísticas – procedimentos e condicionantes. TradTerm 9. CITRAT/FFLCH-USP, São Paulo - 2003 _____: Modalidades de Tradução – Teoria e Resultados. TradTerm, 5. CITRAT/FFLCH-USP, São Paulo – 1998. CARRETER, Fernando Lázaro: Estudio Preliminar – El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Francisco Rico. Ed. Crítica, Barcelona – 2001. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de: El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la 512 Volume 4 | Literatura Espanhola Mancha. Edição por Francisco Rico. Ed. Crítica, Barcelona – 2001. _____:Dom Quixote de la Mancha. Trad. de Almir de Andrade e Milton Amado. José Olympio, Rio de Janeiro – 1952. _____: O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Trad. de Aquilino Ribeiro. Difusão Européia do Livro, São Paulo – 1963. _____: Dom Quixote de la Mancha. Trad. de Eugenio Amado. Villa Rica Ed., BH, RJ – 1991. _____: Dom Quixote de la Mancha. Tradução de Viscondes de Castilho e Azevedo. Abril Cultural – 1978. _____: Dom Quixote de la Mancha. Tradução de Sérgio Molina. Editora 34, São Paulo – 2002. _____: O Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha. Trad. Carlos Nougué e José Luis Sánchez. Rio de Janeiro, Record - 2005. MOLHO, Maurice: Raíces Folkloricas de Cervantes. Ed. Gredos, Madrid – 1976. RIQUER, Martin de: Aproximación al Quijote. Salvat Editores, Espanha - 1970. ROSENBLAT, Ángel: La Lengua del “Quijote”. Ed. Gredos, Madrid – 1995. SANCHEZ, Anna: Os refrãos no Discurso de Sancho Pança: Um estudo Semântico. Tese de mestrado FFLCH, USP – 1982. _____: Um Vocabulário Ideológico de Refrãos no Quixote. Tese de doutorado FFLCH, USP – 1987. VILLANUEVA, Francisco Márquez de: Fuentes Literárias Cervantinas. Ed. Gredos, Madrid – 1973. 513