ARTIGO
Grasiela Tebaldi Toledo*
RESUMO
A construção de uma pesquisa sobre Musealização da Arqueologia envolve diferentes
questões e enfoques, não sendo possível consolidar um modelo único de trabalho nesse
campo. A Musealização da Arqueologia mostra-se cada vez mais plural, pois os trabalhos,
mesmo sendo particularmente diferentes, norteiam-se por premissas comuns, que garantem
uma linha de pensamento e atuação que envolve a salvaguarda e a comunicação dos acervos e
sítios arqueológicos. Nesse artigo será apresentado como uma pesquisa nessa área foi
construída, contribuindo para a ampliação das discussões acerca da preservação e divulgação
de uma memória local/regional, através da pesquisa arqueológica desenvolvida na Estância
Velha do Jarau, Quaraí/RS e a investigação museológica realizada nos museus da Fronteira
Oeste do Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: Musealização, Fronteira, Memória
ABSTRACT
The building of a research about archaeological musealization involves different issues and
approaches. This way, it is important to consider that not only one model of research is
possible. The archaeological musealization has proved to be plural. This happens because the
scientific studies, even being particularly different, are guided by similar premises. These
premises ensure perspectives and actions which involve the preservation and
communication of archaeological collection and sites. This paper presents how a research in
this area was built, and how it has contributed to the broadening of discussions about
preservation and publishing/divulgation of a local/regional memory, from archaeological
research developed at Estância Velha Jarau, Quaraí/RS and museological studies conducted
in museums of the Western Frontier of Rio Grande do Sul.
Key words: Musealization, Frontier, Memory
* Doutoranda em Arqueologia – Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP). Bolsista CNPq.
E-mail: grasiela.toledo@gmail.com
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Analisar e refletir sobre a construção do próprio trabalho acadêmico é uma tarefa difícil,
porém muito instigante. É possível perceber como ocorre a elaboração, desde o projeto até
alcançar algumas conclusões, propostas e novas problemáticas.
Apresento, nesse artigo, como realizei minha pesquisa de mestrado, sendo um enfoque
possível, que carrega consigo as premissas da Musealização da Arqueologia, objetivando
consolidar uma linha de pesquisa e de atuação no cenário arqueológico brasileiro.
Vários pesquisadores, e inclusive a continuação de minhas pesquisas no doutorado,
apontam a necessidade de debater essa temática e abordar de forma ampla a Musealização da
Arqueologia, não apenas entre os pesquisadores dessa linha, mas com arqueólogos,
museólogos e outros profissionais que atuam em diferentes contextos e com variados
problemas de pesquisa. É preciso também envolver os agentes interessados no patrimônio e
no território pesquisado, para garantir a multidisciplinaridade e multivocalidade.
Como afirma Ribeiro (2012) ainda impera a ausência de comunicação entre arqueólogos
e museólogos, com incompatibilidades de recomendações que regulam as atividades de cada
área, contribuindo para o distanciamento das discussões que poderiam ampliar as noções
acerca da Musealização da Arqueologia.
O foco do projeto de mestrado era o trabalho de campo, a análise do material
arqueológico e os problemas de pesquisas voltados à compreensão do passado, versando
sobre a consolidação das estâncias na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, como uma
estratégia da coroa luso-brasileira para garantir a posse do território frente aos avanços
castelhanos.
A pesquisa arqueológica centrou-se na Estância Velha do Jarau, localizada em
Quaraí/RS, município limítrofe com Artigas no Uruguai. Esse sítio foi alvo de intervenções
desde 1997, quando iniciaram as pesquisas arqueológicas na região, através do Laboratório de
Estudos e Pesquisas Arqueológicas da Universidade Federal de Santa Maria (LEPA-UFSM).
Em especial, analisei as louças (faianças finas, grés, ironstone, porcelanas) objetivando
compreender o ambiente doméstico e familiar de uma estância fronteiriça. Outros
pesquisadores1 analisaram os vestígios faunísticos e os metais da mesma estância, sendo
possível ter uma visão mais ampla da cultura material estancieira.
Este era o trabalho inicial projetado para o mestrado – analisar as louças da Estância
Velha do Jarau, buscando ampliar o conhecimento familiar e doméstico da região da
Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, visto que a historiografia priorizou os aspectos
produtivos (criação de gado) e militares (disputas, tratados, guerras, invasões).
Nesse ponto é que entrou em cena a Musealização da Arqueologia, ou seja, a pesquisa já
tinha um território bem definido e um problema voltado para a interpretação do passado,
então procurei alternativas para que esse estudo se aproximasse da comunidade local,
estabelecesse uma relação com o presente e permitisse o entendimento sociocultural da
região analisada arqueologicamente.
1
THOMASI, 2008 e NOBRE, 2011.
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180
Essa necessidade surgiu da ideia de que é fundamental estabelecer um diálogo com a
sociedade atual afim de que ambas [comunidade e academia] alcancem o patamar necessário
para se beneficiarem da troca de conhecimentos (FERNANDES, 2007:2). As ideias
preconizadas pela Arqueologia Pública foram importantes para que a Musealização da
Arqueologia se inserisse no trabalho de forma central, mudando os rumos da pesquisa, sem
deixar de lado a investigação arqueológica que fora proposta inicialmente.
Isto significa que a Arqueologia, assim como qualquer Ciência Humana e Social, possui
um comprometimento com a formação de sujeitos históricos ou atores sociais
conscientes de seu papel na sociedade em que vivem. Este compromisso questiona a
parcialidade da ciência e demonstra a necessidade de envolvimento da Arqueologia com
questões em pauta na sociedade atual (FERNANDES, 2007:3).
Para integrar à pesquisa as premissas, da Arqueologia Pública, e mais especificamente da
Musealização da Arqueologia, a área de estudo ampliou-se, e deixou de estar focada apenas
no sítio arqueológico, inserindo a pesquisa museológica nos municípios pertencentes à
Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Assim, visitei dezenove instituições museológicas
distribuídas em sete municípios da região.
As visitas foram norteadas pela busca de elementos que se relacionassem ao ambiente de
Fronteira e aos aspectos das estâncias de criação de gado, justamente para corroborar com a
temática da pesquisa.
Essa etapa da pesquisa do mestrado, inserida a partir de uma preocupação com a função
social da Arqueologia, foi se tornando fundamental para o trabalho, sendo que as propostas
de musealização do acervo arqueológico da Estância Velha do Jarau foram norteadas pelo
diagnóstico realizado nesses museus e pela percepção do distanciamento existente entre a
Arqueologia e a Museologia.
Como conclusão da pesquisa apresentei propostas de musealização do acervo
arqueológico da Estância Velha do Jarau e também proposições e alternativas para que os
museus da região se qualificassem e pudessem exercer a função de ponte entre a Arqueologia
e a Museologia.
O PASSO A PASSO
As etapas de construção de uma pesquisa, que apresento nesse artigo, não são um
modelo a ser seguido, mas podem ser um caminho para outros trabalhos, ou mostrar como a
construção acadêmica em um campo de atuação é múltipla, com objetivos e parâmetros em
comum, porém, particulares para cada estudo de caso.
A identificação de um território patrimonial, com base em uma realidade arqueológica,
foi o primeiro momento da pesquisa, ou seja, a área a ser estudada compreende não só um
sítio arqueológico, mas o seu entorno, seu contexto, sua interferência em um ambiente maior
e sua influência na sociedade atual.
Territórios podem ser definidos como unidades espaciais que envolvem uma ampla
gama de usos da terra, bem como a história de interação humana com a paisagem (ZEDEÑO,
1997). Isso demonstra que identificar um território não é simplesmente traçar um limite, mas
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perceber as interações do ser humano com o meio e os processos históricos envolvidos no
espaço.
Uma premissa comum que norteia os trabalhos que se propõem a discutir a
Musealização da Arqueologia é traçar o perfil geo-sociocultural do território de análise,
percebendo as possibilidades de intervenções museológicas.
No caso em questão, para traçar esse perfil e contribuir com a identificação do território
patrimonial pesquisei o contexto histórico da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul,
objetivando compreender o papel do estabelecimento de estâncias na fronteira entre o Brasil
e o Uruguai, como uma das estratégias para garantir a posse de territórios nesse ambiente
marcado por disputas, guerras e acordos diplomáticos.
A partir desse contexto histórico, foi possível compreender a importância de se estudar
arqueologicamente a Estância Velha do Jarau, um estabelecimento rural que carecia de mais
explicações para compreender sua estrutura e funcionamento para além de uma estratégia
política, ampliando o conhecimento histórico, arqueológico e patrimonial da região.
Também foi analisado a construção da identidade gaúcha e como isso está diretamente
relacionado à memória preservada nos museus. Foi possível diagnosticar como as estâncias
de criação de gado são muito valorizadas, tanto econômica como culturalmente.
O contexto histórico e a organização sociocultural atual do território em que se está
empreendendo a pesquisa são dois pontos que ajudam a nortear o trabalho, tanto
arqueológico, como museológico, bem como para identificar as potencialidades patrimoniais
do espaço.
Construído esse panorama da região, busquei compreender como se estabeleceram os
museus na Fronteira Oeste, relacionando-os com a trajetória dos museus mundial e
nacionalmente, para analisar suas características e entendê-los em suas especificidades.
A pesquisa nas instituições museológicas foi determinante para o trabalho, uma vez que
permitiu expandir o conhecimento sobre a região no tocante a memória local/regional,
possibilitando compreender como os museus da Fronteira Oeste têm a potencialidade de
agregar os acervos e o conhecimento arqueológico da região.
Essa primeira parte do trabalho garantiu que se estabelecesse uma conexão entre o
passado e presente do território pesquisado, configurando suas permanências e rupturas.
A partir disso, a segunda parte da pesquisa norteou-se pela investigação arqueológica no
que se refere à análise da cultura material resgatada nas escavações realizadas na Estância
Velha do Jarau. Essa etapa do trabalho mostrou como estava configurado o espaço
estancieiro e quais louças os moradores da estância estavam utilizando e consumindo. Com
isso, foi possível chegar a importantes conclusões sobre os hábitos cotidianos de uma estância
de criação de gado na fronteira entre o Brasil e o Uruguai.
Foi caracterizado o patrimônio arqueológico da estância, pontuando a diversidade da
cultura material estancieira, bem como a necessidade de uma divulgação mais ampla dessas
pesquisas para que a comunidade local/regional possa apropriar-se do conhecimento gerado
na acadêmica e ter acesso aos seus bens que podem ser eleitos como patrimônio,
transformando-os em herança cultural.
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A terceira etapa do trabalho foi realizar as visitas às instituições museológicas, buscando
identificar suas características, principalmente no que se refere à memória estancieira e
fronteiriça, além do diagnóstico de aproximação ou distanciamento com a Arqueologia.
Essa etapa possibilitou ampliar as reflexões sobre a realidade dos museus, diagnosticar seus
formatos expositivos, os discursos presentes nas exposições, as carências e as necessidades que
enfrentam as instituições culturais de municípios do interior do estado.
Também foi possível identificar como ocorre o gerenciamento dos acervos nos museus,
quais os procedimentos são postos em prática, como são realizadas as ações educativas, a
presença ou ausência de profissionais, o investimento feito nesses espaços, qual o perfil do
público, como é organizada a exposição e quais discursos são priorizados, além de várias
outras questões conforme o contexto analisado e interesses de pesquisa.
A partir desse diagnóstico foram propostas alternativas para a aproximação da
Arqueologia e Museologia, mais especificamente acerca da utilização do acervo arqueológico
e do conhecimento produzido sobre a Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul.
A etapa final do trabalho de mestrado foi mostrar os desafios e apresentar propostas
relativas à Musealização da Arqueologia, partindo de sugestões, mas principalmente
mostrando quais premissas são fundamentais para que seja efetuado um trabalho satisfatório
no que se refere à qualificação dos espaços museais e aproximação da Arqueologia com a
sociedade.
Dessa maneira, depois de apresentadas as etapas e passos metodológicos que foram
seguidos para a construção dessa pesquisa, é possível demostrar, de forma geral, alguns
princípios fundamentais para a construção de um trabalho sobre Musealização da
Arqueologia.
Diagnosticar e investigar a realidade arqueológica e a realidade museológica, em um
território com seu o perfil histórico e geo-sociocultural é uma das premissas da Musealização
da Arqueologia.
Detalhando cada um dos pontos grifados acima, pode-se perceber a complexidade do
trabalho e todas as possibilidades de pesquisa que se descortinam frente a esses diagnósticos e
investigações.
Delimitar um território não é simplesmente escolher um local para focar os estudos, é
preciso compreender alguns conceitos (espaço, lugar, limite, fronteira, entre outros,
conforme as especificidades do trabalho) para que seja possível caracterizar um território
patrimonial, que contenha uma realidade arqueológica e museológica passível de
intervenções.
Para caracterizar um território e compreender sua realidade arqueológica e museológica
é preciso entender o contexto histórico e/ou pré-histórico, conforme as particularidades de
pesquisa, e traçar o perfil geo-sociocultural, objetivando estabelecer uma relação entre o
passado e o presente do local de estudo, justamente para compreender quais as memórias são
mais valorizadas e que bens são eleitos como patrimônio pelos moradores dos lugares
atualmente.
Construído esse panorama, analisar a realidade arqueológica e museológica, torna-se
uma tarefa mais completa e pode suscitar vários debates e interlocuções interessantes entre a
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academia e a comunidade local. Ao compreender melhor quais as características da sociedade
atualmente, o trabalho realizado torna-se mais próximo aos interesses locais.
A realidade arqueológica pode ser estudada de várias maneiras, porém, a investigação
sempre se norteará pela busca de resultados conforme os problemas e hipóteses de pesquisa,
gerando um novo conhecimento, que precisa ser documentado e divulgado.
A documentação e conservação do acervo arqueológico gerado pelas pesquisas é uma
etapa importante, tanto para a Arqueologia, bem como para as pesquisas que se preocupam
com a Musealização. Mas isso não tem sido alvo de muitos estudos ou não é uma área da
Arqueologia que apresenta atuação de seus profissionais de forma sistemática.
...são poucas as discussões em que são mescladas as áreas de arqueologia e museologia
sob este tema, ratificando uma mentalidade de acúmulo em que há um claro
descompasso entre o fluxo de entrada do material arqueológico e os fluxos de
processamento (pesquisa, conservação, documentação e comunicação) (RIBEIRO,
2012:85).
Essa faceta foi diagnosticada na pesquisa de mestrado, uma vez que isso não foi uma
preocupação constante durante as escavações arqueológicas na Estância Velha do Jarau, e,
nas etapas de laboratório, a conservação dos objetos ficou restrita a limpeza e catalogação.
Essa deficiência foi perceptível durante o trabalho de mestrado, o que tornou a questão
da documentação e conservação de acervos arqueológicos um dos problemas de pesquisa do
projeto de doutorado em andamento.
Ainda sobre a realidade arqueológica, é preciso desenvolver, além da investigação
arqueológica, formas eficazes de divulgação dos resultados, tanto entre os membros da
academia, como para a comunidade em geral.
Na questão de divulgação de resultados, é que a realidade arqueológica estreita sua
relação com a realidade museológica do território alvo das pesquisas. Pois a Museologia tem
condições de decodificar o conhecimento produzido pela Arqueologia para o grande público,
visitante de museus, ou mesmo em outras ações educativas e/ou culturais.
A realidade museológica precisa ser explorada nos trabalhos sobre Musealização da
Arqueologia, partindo da historicidade dos processos museológicos, objetivando
compreender a história dos museus locais/regionais.
Realizar diagnósticos nas instituições museológicas do território analisado é parte
fundamental do trabalho, para elaborar estratégias de intervenção nessa realidade,
conhecendo seu acervo e buscando a qualificação institucional, ou seja, o diagnóstico
museológico é o instrumento fundamental para o planejamento institucional (RIBEIRO,
2012:72).
O diagnóstico museológico pode compreender várias facetas do museu e de sua atuação
na sociedade, porém é preciso considerar a cadeia operatória de procedimentos museológicos
para perceber quais procedimentos são adotados no museu e quais suas carências.
A salvaguarda (conservação e documentação) e a comunicação (exposição e ação
educativa-cultural) deveriam ser empreendidas pelas instituições museais de forma
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equilibrada e em constante atualização, para cumprir sua função social e ser capaz de atuar
conjuntamente com a Arqueologia.
...as instituições museológicas ainda desempenham um papel social, não só preservando
as expressões materiais, mas produzindo e disseminando o conhecimento, participando
dos processos educacionais e, especialmente, interagindo com os diferentes contextos
socioculturais (BRUNO, 2009:17-18).
Assim, com essas etapas de pesquisa, constrói-se um cenário muito profícuo de análise,
sendo possível apresentar propostas de salvaguarda e comunicação do acervo arqueológico e
museológico do território patrimonial pesquisado.
Além disso, é importante aplicar as propostas quando possível, para compreender os
resultados da atuação da Arqueologia e Museologia em consonância com os anseios da
comunidade, objetivando a valorização e reconhecimento do patrimônio cultural.
O Quadro 1 apresenta as premissas citadas acima, de uma forma mais sucinta, mas que
permite uma visualização geral das questões que nortearam a pesquisa de mestrado,
objetivando construir um trabalho acadêmico em Musealização da Arqueologia.
Quadro 1 – Esquema metodológico sobre Musealização da Arqueologia
Território
Geosociocultural
Investigação
Conceitos;
Delimitação da
abrangência do
projeto;
Perfil
Histórico
Realidade
Arqueológica
Conservação
Documentação
Resultados
Divulgação
Caracterização
histórica, geográfica,
social e cultural;
Memória
local/regional;
Caracterização
como Território
Patrimonial;
Realidade
Museológica
Conexão passado–
presente;
Comunicação
Salvaguarda
Historicidade dos
processos
museológicos;
Diagnóstico;
Intervenção
museológica;
Qualificação
Propostas
- Aplicações
institucional;
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Figura 1: Estrutura da Casa-sede da Estância Velha do Jarau.
Na frente da casa, Raul Pont, autor do livro Campos Realengos – A formação da fronteira
sudoeste do Rio Grande do Sul de 1983. PONT, 1983.
A PESQUISA ARQUEOLÓGICA E MUSEOLÓGICA NA FRONTEIRA OESTE DO
RIO GRANDE DO SUL
Os procedimentos metodológicos, explicitados anteriormente, possibilitaram a
construção de conhecimento sobre as estâncias e os museus fronteiriços. Assim, apresento os
resultados, de maneira breve, da pesquisa arqueológica e museológica desenvolvida na
Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul.
A pesquisa arqueológica identificou algumas características da organização do espaço
estancieiro e, principalmente, questões relativas ao consumo e uso de louças na Estância
Velha do Jarau.
A estância tem uma pluralidade de elementos que vão configurando seu espaço
fisicamente, ou seja, há lugares para os proprietários, escravos, peões, trabalhadores
temporários, etc. o que torna a estância um grande complexo habitacional e produtivo.
Atualmente, a Estância Velha do Jarau tem somente as bases das estruturas de suas
construções, porém uma fotografia dos anos 1970 (Figura 1) mostra as ruínas da casa-sede da
estância, onde é possível perceber a simplicidade e rusticidade da construção.
Mesmo simples, a casa-sede estava posicionada em um lugar de destaque dentro do
complexo estancieiro, pois, segundo Rahmeier:
A disposição das moradias seguia um padrão no qual a casa-sede ocupava sempre um
ponto de destaque perante as demais edificações, localizando-se comumente no centro
da sede, tendo a sua volta o galpão e a senzala, ou estando posicionada de modo a
parecer projetada em meio às outras construções (2007:178).
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Essa centralidade da casa-sede da estância também pode ser visualizada na Estância Velha
do Jarau, uma vez que a casa está no centro do complexo estancieiro, tendo sua frente
projetada para a vastidão dos campos da estância.
Assim, podemos estabelecer um modelo hipotético para a Estância Velha do Jarau,
partindo da centralidade da casa-sede, constituindo nesse local o espaço de morada e trabalho
do ambiente doméstico, onde se concentraram as escavações arqueológicas.
Nesse espaço está localizada, além da casa, a cozinha, com um avarandado, uma
quinta/pomar e várias estruturas menores que podem ser consideradas os galpões. Nesses
lugares é que foram realizadas as escavações arqueológicas (Figura 2).
Figura 2: Escavação no sítio arqueológico Estância Velha do Jarau, 2003. Acervo LEPA-UFSM.
Outro espaço da estância poderia ser definido como o da produção, ou seja, os campos e
as mangueiras de pedra relacionam-se com as atividades pecuárias desenvolvidas na estância.
As mangueiras (currais) servem para cuidar e tratar do gado, sendo grandes estruturas de
pedras.
E ainda outro espaço, onde foi encontrado um cemitério, estaria relacionado,
principalmente, à fixação de pessoas nesse ambiente de fronteira. Cada um dos espaços
definidos anteriormente se inter-relaciona de maneira muito estreita, uma vez que um só
existe em decorrência do outro, ou seja, o espaço de moradia só se constitui quando aquela
porção de terra passa a ser um local de produção pecuária mais efetiva e torna-se assim uma
estância – local de morada e criação de gado.
As escavações arqueológicas realizadas no sítio trouxeram à tona uma gama variada de
objetos, porém, a pesquisa centrou-se na análise das louças, já que o objetivo era
compreender o ambiente doméstico e corriqueiro da estância, permitindo chegar a
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importantes conclusões sobre os hábitos dos moradores das estâncias fronteiriças no século
XIX.
A localização/contexto do sítio (área rural, fronteira, interior do Rio Grande do Sul,
ambiente belicoso, fixação de moradia para garantir território, entre outros fatores)
contribui para o entendimento dos vestígios materiais encontrados e pode explicar a
presença ou ausência de alguns tipos de louças.
Observa-se que o consumo está diretamente influenciado pelo contexto histórico e pela
localização dos sítios arqueológicos, sendo importante a análise histórica e cultural para
entender o que os vestígios encontrados podem significar, pois como afirma Tocchetto
(2004:183) o consumo não pode ser reduzido à exibição de status e à utilidade, mas deve ser
analisado considerando, também, a construção de significados simbólicos .
A aquisição de itens materiais em áreas rurais, como na Estância Velha do Jarau, se dava
através dos caminhos que ligavam cidades e povoados, pois habitar áreas rurais não significa
necessariamente isolamento, e nem total dificuldade de acesso a determinadas mercadorias
(Ognibeni apud Machado, 2004).
Tropeiros, mascates e viajantes percorriam os caminhos até as fazendas ou estâncias, e
levavam os objetos para o consumo dos habitantes dessas regiões mais afastadas dos centros
urbanos, como louças, bebidas, roupas, entre outros objetos (MACHADO, 2004).
O tempo e o espaço para o consumo na área rural é algo bem diverso do que em núcleos
urbanos, pois a distância a ser percorrida acarretava a demora para a chegada dos produtos.
As louças recuperadas na Estância Velha do Jarau totalizam 2.107 fragmentos, sendo a
grande maioria de faianças finas (1.881 fragmentos), e completando a amostra grés, ironstone,
porcelana brasileira, cerâmica e cerâmica vidrada. Entre os fragmentos identificados (558),
405 são côncavos (hollowware) e 153 planos/abertos (flatware), diagnosticando-se a
preponderância de objetos côncavos, que indicam a maior presença de xícaras, malgas,
canecas e outros recipientes fundos.
Segundo Symanski (1998) as malgas, ao longo do século XIX e especialmente na
primeira metade do século XX, são formas associadas a ambientes ruralizados, sendo que
assim a presença de maior quantidade de fragmentos côncavos poderia ser explicada nesses
termos.
Outra explicação plausível para a presença de maior número de recipientes côncavos é o
fato de ter sido identificado por Nobre (2011), no sítio Estância Velha do Jarau, um consumo
maior de ensopados (caldos, carnes cozidas na panela, molhos) do que de carne em forma de
churrasco, ou seja, para o consumo de líquidos e pastosos, os recipientes côncavos são mais
utilizados.
Podemos perceber uma influência, não só do acesso e disponibilidade das louças, mas
também uma preferência às formas de consumir os alimentos, mais especificamente a carne.
Isso pode sugerir uma prática cultural e social, associada à questão de gosto ou mesmo de
maneiras habituais de preparo de alimentos.
Se não posso inferir com certeza como foram usadas, como foram consumidas,
tenho sempre em mente a multifuncionalidade dos artefatos (SOUZA, 2010:275), ou
seja, devido ao contexto em que as louças estão inseridas é possível pensar na
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multifuncionalidade, pois, o acesso poderia estar marcando fortemente as escolhas de
consumo dos moradores desse espaço. Por exemplo, se não tivesse xícara para tomar
seu café poderia utilizar uma malga para cumprir essa função em determinados
momentos. Essas operações são margens de manobra permitidas aos usuários pelas
conjunturas nas quais exercem suas artes de fazer na invenção do cotidiano (SOUZA,
2010: 276).
A maioria dos fragmentos não apresenta decoração – 1.265, enquanto que 726
fragmentos apresentam alguma decoração. Identificou-se uma grande quantidade de
técnicas decorativas, inclusive a aplicação de duas ou três técnicas em um mesmo
fragmento, resultando em uma variedade de decorações na amostra do sítio
arqueológico (Gráfico 1).
Gráfico 1 – Técnicas decorativas e decorações encontradas na amostra de faianças finas do
sítio Estância Velha do Jarau.
Técnica decorativa
202
176
99
58
44
32
13
11
20
16
1
1
2
6
18
1
1
A presença de grande quantidade de fragmentos não decorados no sítio demonstra a
complexidade do acesso aos bens industrializados que eram comercializados de maneira
diversa de como ocorria nas cidades e capitais brasileiras.
O contexto rural e fronteiriço pode ajudar a compreender a presença da grande
variedade de louças nesse espaço, não pelo desejo desenfreado de consumo, mas sim pela
forma de acesso a esses itens, ou seja, a grande variedade não significa grande quantidade de
louças, mas sim que esses objetos poderiam não formar conjuntos e sim representar peças
avulsas em variadas decorações.
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Essas características fazem com que a estância tenha um aspecto rústico e pouco
requintado em relação às louças consumidas em outros contextos domésticos urbanos.
As mudanças nos hábitos e maneiras de consumo refletiram e adaptaram-se no
contexto rural de forma mais lenta e gradual, sendo mais acentuada a mudança em áreas
urbanas, mas mesmo assim, os reflexos dessa alteração podem ser visto no registro
arqueológico de sítios rurais, com a presença de produtos industrializados, como as louças,
mesmo que estas não possuam os significados europeizantes que poderiam estar sendo
adquiridos nas cidades.
Na Estância Velha do Jarau, as louças não podem ser consideradas indícios de condições
econômicas, pois conhecendo a história da estância, de seus proprietários e o contexto mais
amplo da região, sabe-se que o principal proprietário, Bento Manoel Ribeiro, possuía
riquezas, mas que possivelmente não a ostentava através desse tipo de item material,
podendo demonstrar seu status através da posse de terra e de rebanhos de gado e cavalos,
bens mais valorizados nesse contexto.
As louças podem não indicar a condição socioeconômica dos habitantes da estância, mas
sim as formas de acesso e disponibilidade desses objetos, além de indicar gostos, preferências
e práticas alimentares.
Assim, a cultura material estancieira, representada pelas louças, demonstra como os
habitantes desse espaço estavam relacionando-se com o consumo de objetos
industrializados, adquirindo-os conforme a disponibilidade e acesso, realizando
escolhas através de suas necessidades, sem preocupações em ostentar riqueza ou
distinção social através das louças, podendo estas cumprir suas funções práticas e
utilitárias do cotidiano de um ambiente doméstico rural na fronteira oeste do Rio
Grande do Sul.
Após a análise da cultura material estancieira proveniente do sítio arqueológico Estância
Velha do Jarau, foi diagnosticada como a cultura material e os discursos expositivos dos
museus tratam da temática das estâncias fronteiriças e como essas instituições estão
organizadas na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul.
Dentre as dezenove instituições museológicas visitadas, quatro foram selecionadas para a
análise mais minuciosa, por se relacionarem diretamente com a temática da pesquisa, sendo
eles, o Museu Ergológico da Estância (São Borja/RS), Museu Vasco Alves Nunes Pereira
(Alegrete/RS), Museu do Gaúcho – Ícaro Ferreira da Costa (Alegrete/RS) e o Museu Crioulo
(Uruguaiana/RS).
O Museu Ergológico da Estância reconstrói, em seu espaço expositivo, um galpão,
um armazém, quartos e cozinha. A memória estancieira preservada no museu é
justamente a memória que mostra a estância de forma dicotômica, ou seja, com os
espaços bem definidos e marcados de atuação dos sujeitos históricos que habitavam esses
lugares. (Figura 3)
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Figura 3: Reconstituição do galpão, na sala do Museu da Estância. Acervo pessoal, 2009.
A falta de profissionais da área faz com que a acervo desse museu, que é excelente para
perceber a diversidade de uma estância, fique escondido em um amontoado de objetos que às
vezes se confundem e não apresentam um discurso expográfico profícuo.
O Museu Crioulo apresenta objetos e lugares típicos das estâncias de criação de gado da
região. O galpão e o bolicho são representados no museu, em forma de remontagens.
(Figura 4)
Figura 4: Reconstrução de um galpão de estância no Museu Crioulo. Acervo pessoal, 2011.
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O museu tem um acervo muito interessante relativo às estâncias, mas que se diagnostica
novamente, a falta de profissionais da área e de maiores investimentos nos espaços de
memória para que o acervo possa ser exposto de uma maneira a gerar reflexão acerca do
passado estancieiro.
Uma problematização importante para o acervo seria o fato de as mulheres não serem
representadas em nenhum momento da exposição. Todos os objetos e ambiente remontados
referem-se às atividades masculinas da estância.
A exposição poderia problematizar essa questão se tivesse um discurso expositivo que
apontasse para a predominância de objetos e atividades relacionadas ao universo masculino,
fazendo com que o visitante pudesse perceber essa característica do acervo e relacionasse
com as questões de gênero que permeiam nossa sociedade.
O Museu do Gaúcho apresenta a história do Rio Grande do Sul, a formação do gaúcho e
a constituição das estâncias como fundamentais para a consolidação do território sul-riograndense.(Figura 5)
Figura 5: Visão geral do Museu do Gaúcho. Acervo pessoal, 2010.
O museu apresenta um painel mostrando o trabalho com o gado e a sede de uma
estância. Na vitrine referente a esse período são apresentados objetos relacionados com a
atividade no campo ou atividades bélicas. Percebe-se, novamente, que a questão doméstica
não é representada, ou seja, a memória que se preserva das estâncias é aquela relativa a
conflitos na fronteira e atividades do campo.
O Museu do Gaúcho apresenta um discurso expositivo que narra a formação histórica do
Rio Grande do Sul, centrando sua análise na figura emblemática que é o gaúcho, ou seja, o
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habitante tradicional do estado que carrega consigo valores de valentia, coragem e vida
rude, como se ainda vivesse na estâncias, trabalhando com o gado.
O Museu Vasco Alves Nunes Pereira localiza-se na área rural do município de Alegrete,
na sede de uma estância ainda em atividade – Estância Progresso. (Figura 6)
Figura 6: Área expositiva do Museu Vasco Alves. Acervo pessoal, 2010.
A localização do museu contribui para que a temática estancieira fique fortemente
marcada, pois estar inserido em uma estância em atividade faz com o que o museu tenha uma
dinâmica muito diferenciada, sendo praticamente um museu in situ.
O acervo mostra duas facetas do museu, ou seja, apresenta objetos de uso cotidiano no
trabalho do campo nas estâncias, principalmente na sala de exposição que era o antigo
galpão, e objetos referentes à Revolução Federalista, ou de maneira mais geral sobre a
belicosidade da região.
Novamente, o manejo com o gado e o ambiente do galpão da estância é que são
rememorados no espaço museal, constatando-se a ausência de objetos sobre o cotidiano
doméstico das estâncias.
Esse museu tem grande potencialidade para mostrar diversas e múltiplas características
das estâncias e da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul. Justamente por estar em uma
estância pode mostrar aos visitantes outros espaços de convívio e de trabalho, ampliando a
visão sobre o ambiente fronteiriço.
Através da análise das exposições dos museus pesquisados, pode-se perceber como a
memória das estâncias fronteiriças está sendo abordada por essas instituições, contribuindo
para entender a formação da identidade sul-rio-grandense.
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Segundo Cury (2008:77), a exposição é a síntese institucional, é a parte mais reveladora
do que seja um museu. É também – em termos de processo de trabalho - a ação que mais
mobiliza uma instituição .
Através da descrição dos museus pode-se constatar que a exposição é realmente a parte
mais reveladora, sendo que na maioria dos museus visitados, a própria exposição é o museu,
pois não há outras estruturas ou etapas de organização de uma instituição museológica. Os
museus não possuem reserva técnica, não realizam pesquisa e, portanto só comunicam seu
acervo, através da exposição, sem operar todas as etapas da cadeia operatória de
procedimentos museológicos.
Até mesmo as ações educativas são pontuais, não se configurando como um processo
comunicativo do museu. Em todas as instituições pesquisadas, houve a afirmação de que são
realizadas atividades educativas, porém nada de concreto foi apresentado e não há um
programa específico.
O que se verificou nos museus analisados é a falta de equilíbrio entre a salvaguarda e
comunicação dos acervos. Não é realizado o gerenciamento da informação e praticamente
não há manutenção dos acervos, em virtude de que estes estão sempre expostos. O discurso
expográfico também não prioriza as diversas possibilidades de significações por parte dos
visitantes do museu, fazendo com que a apropriação do patrimônio não ocorra de forma
satisfatória, sendo que na maioria das vezes prioriza um passado idealizado como sendo o
verdadeiro para o Rio Grande do Sul.
Ribeiro (2012:27) aponta que a associação da memória social à elite dominante, por
meio do acervo museológico, figura como fundamental fator de afastamento entre o grande
público e os museus .
A falta de profissionais da área nos museus da região da Fronteira Oeste do Rio Grande
do Sul compromete a organização dos mesmos, sendo que o potencial dos acervos não é
explorado de maneira eficaz. Cury (2008:77) afirma que o processo museológico e, em
particular o expográfico, envolve inúmeros atores devido à complexidade do compromisso
social do museu com relação ao seu uso público , ou seja, a eficácia de uma exposição
depende de múltiplos profissionais.
Para Bruno (2002:87), a Museologia, em sua dinâmica interdisciplinar, tem colaborado
para que os museus refinem as suas formas de representação e se estabeleçam como lugares
de contestação e negociação cultural . Porém, para que isso ocorra é necessário que ações
interdisciplinares norteiem o processo museológico de forma constante e permanente.
Bruno (2009:22) ainda aponta a descontextualizarão dos programas de formação em
Museologia em relação a acervos arqueológicos e etnológicos ocasionando dificuldades para
o desenvolvimento de projetos interdisciplinares, fundamentais para a implantação de
projetos curatoriais.
Os museus analisados têm grande potencial para comunicar memórias múltiplas das
estâncias e da fronteira, porém é necessário que haja uma construção processual realizada
pelo museu, para que o público possa receber e resignificar a exposição e compreendê-la
segundo seu universo cotidiano.
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As instituições que se relacionam com a temática da pesquisa, possuem temas em
comum: a história das estâncias, a identidade do gaúcho, a vida rural no Rio Grande do Sul.
Isto poderia servir para construir discursos expositivos que levassem o visitante a perceber
como a identidade regional foi se construindo historicamente em um ambiente de fronteira
permeado por sentimentos de pertencimento ao local, inclusive com lendas, mitos e filmes
que permanecem até os dias de hoje como sendo algo que identifica a região.
O museu é um espaço privilegiado de discussão e argumentação sobre as memórias que
são evocadas pelo acervo e coleções expostas e por isso a importância de um discurso
expositivo que priorize as tensões históricas e não o culto ao passado.
Assim, percebe-se que os museus analisados têm uma temática definida, porém não
realizam pesquisa e não buscam os trabalhos sobre o assunto realizados por historiadores,
arqueólogos, antropólogos, museólogos, entre outros profissionais que trabalham com os
temas que possam interessar a esses museus, como estância, fronteira, identidade sul-riograndense, , entre outros para que possam comunicar o acervo de forma mais plural.
Não existe a exposição ideal, e nem uma única forma expográfica, porém há referenciais
que podem contribuir para realização de uma exposição eficaz, isto é, que consiga comunicar
de forma não contemplativa e nem passiva, mas sim que o visitante possa decodificar o
discurso museológico segundo suas preferências e valores culturais.
Para que um museu apresente uma boa exposição não basta organizá-la e deixá-la falar
por si só para sempre , é preciso um trabalho constante de retroalimentação da exposição,
com pesquisas sobre o acervo, pesquisas de público, atividades educativas, exposições
temporárias, entre outras atividades que deveriam compor o cotidiano museológico.
Segundo Wichers (2010) uma gama de fatores e procedimentos associados à musealização da
arqueologia pode transformar o patrimônio arqueológico em herança.
As questões apresentadas mostram como a cadeia operatória de procedimentos
museológicos não está sendo processada de forma completa nos museus analisados. É
necessário que haja relação entre a salvaguarda e a comunicação museológica, uma vez que o
bom desempenho desses dois blocos está vinculado a problemas éticos sobre o uso da herança
patrimonial, às questões de como uma sociedade enfrenta e estabelece um diálogo com seus traços
culturais (BRUNO, 2002:91).
Possibilitar diversas interpretações seria fundamental para que a construção da
identidade do sul-rio-grandense passasse por diferentes leituras do passado, podendo assim
questionar e discutir o ser gaúcho, confirmando, refutando ou reelaborando esta identidade.
A cultura gaúcha pode ser preservada nos museus do estado e, especificamente nesse
caso, nos museus da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, porém a exposição e o discurso
museológico precisam atentar para as questões discutidas acima e transformar-se em um
espaço de multivocalidade e não apenas um lugar de culto e valorização de um passado
hegemônico.
Um ponto em que os museus estão cumprindo seu papel é o de preservar os objetos
relativos aos hábitos e costumes do gaúcho. A partir daí é necessária uma melhor formatação
museológica e de pesquisa histórica e arqueológica para que os museus possam comunicar as
variadas interpretações acerca das fronteiras, limites, consolidação das estâncias, papéis
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sociais atrelados ao espaço doméstico estancieiro, lendas e hábitos culturais atuais que
marcam a identidade sul-rio-grandense.
Bruno (2006:4) ainda afirma que apesar de ter-se avançado muito na discussão sobre
pressupostos teóricos-metodológicos da Museologia, ainda se enfrenta enormes dificuldades
para a implementação desses procedimentos nos museus. Há um desejo que as normas
técnicas, posturas metodológicas, trabalhos interdisciplinares e discursos museológicos
atendam as exigências da disciplina Museologia, porém a prática museológica brasileira
encontra-se muito longe disso.
O território museológico analisado é favorável ao sentimento de pertença, uma vez que a
população gaúcha orgulha-se de seu passado e de sua identidade, mesmo esta que prioriza as
atividades ligadas ao ambiente rural e rústico.
Deve-se, portanto aproveitar a identificação com esses traços culturais e transformar os
museus em espaços de discussão e problematização das questões identitárias do Rio Grande
do Sul. O sentimento de pertença já existe fortemente arraigado na população, é preciso
saber explorar esse sentimento para que se possam construir discursos mais heterogêneos
acerca da identidade rio-grandense.
MUSEALIZAÇÃO DA ARQUEOLOGIA – PROPOSTAS E DESAFIOS
Há diversas maneiras possíveis de musealizar o acervo arqueológico da Estância Velha do
Jarau, para que este seja comunicado de forma satisfatória e que permita reflexões e
discussões acerca das estâncias gaúchas do século XIX e como isso influência a memória da
população do estado do Rio Grande do Sul.
Promover exposições itinerantes, atividades educativas, roteiros culturais, entre outras
ações que podem ser promovidas pela instituição que detém a guarda do acervo arqueológico
são algumas sugestões simples, para retomar a aproximação da Arqueologia com a
comunidade. Porém, para que isso tenha continuidade, e não se transforme em atividades
pontuais, uma alternativa seria implantar esses projetos através do Sistema Estadual de
Museus, que pode intermediar os contatos entre depositário do acervo arqueológico e os
museus interessados em receber exposições temporárias ou outras atividades em seu espaço
expositivo.
Através da análise realizada nos museus, as quatro instituições que possuem temática
estancieira poderiam compor um circuito de museus na Fronteira Oeste do Rio Grande do
Sul, as quais poderiam receber a exposição da Estância Velha do Jarau em diversos momentos
conforme a programação dos museus.
Outra instituição museológica visitada que não possui temática estancieira, mas que
poderia receber a exposição itinerante da Estância Velha do Jarau é o Museu Militar do 5º
Regimento de Cavalaria Mecanizado do município de Quaraí, devido ao fato de ser o único
museu da cidade, na qual está localizado o sítio arqueológico que gerou o acervo para a
exposição.
A partir dessa constatação é possível que se estabeleça outra proposta para a
musealização do acervo da Estância Velha do Jarau, ou seja, o município em que o sítio
arqueológico está localizado não possui instituição museológica, a não ser a que pertence ao
Construindo um trabalho sobre musealização da arqueologia... | Grasiela Tebaldi Toledo
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Exército Brasileiro. Assim, seria interessante a organização de um museu na cidade, que
poderia até vir a ser um museu de Arqueologia, em virtude do número de sítios e pesquisas
arqueológicas já realizadas nesse município.2
Outra proposta seria musealizar o próprio sítio arqueológico e elaborar um roteiro
turístico até o local, pois o sítio fica em uma área rural, sendo necessária a disponibilização de
meio de transporte ou melhorias ao acesso e indicações para que os visitantes pudessem
chegar ao local.
Poder-se-ia continuar propondo e explicitando ideias de como comunicar o acervo da
Estância Velha do Jarau, porém não basta apenas citar diversas propostas, há alguns
parâmetros que devem ser seguidos em qualquer uma das alternativas que possam vir a ser
postas em prática.
Não basta apenas colocar os objetos arqueológicos em um museu, ou então musealizar
um sítio, é preciso que haja articulação permanente entre pesquisa e sociedade, para que a
patrimônio arqueológico seja propulsor de novas perspectivas, sejam elas identitárias ou
mesmo de desenvolvimento econômico para uma região.
É preciso que se delineiem algumas premissas para a formulação de propostas de
musealização da arqueologia, que podem iniciar com o refinamento de metodologias de
trabalho de salvaguarda e comunicação, através do exercício profissional (BRUNO, 2006).
Assim, nota-se que é necessário que haja profissionais comprometidos e atuantes, tanto na
pesquisa arqueológica quanto no gerenciamento dos acervos museológicos, para que possa
haver diálogo entre as duas áreas e tornar possível a implantação de projetos de musealização
da arqueologia.
É preciso estabelecer contato com as pesquisas históricas e arqueológicas já
desenvolvidas para aproveitar o conhecimento produzido sobre as estâncias, no sentido de
organizar as exposições, para que estas possam apresentar as problematizações sobre o
assunto, permitindo que o visitante atribua diferentes valores à memória e ao patrimônio
estancieiro do Rio Grande do Sul.
O uso de novas tecnologias pode ser uma maneira de divulgar os acervos museológicos e
arqueológicos de forma mais dinâmica e rápida, de acesso facilitado, mas que precisa de uma
constante atualização e relação com as novas pesquisas e exposições.
Identificar os limites e reciprocidades entre preservação e desenvolvimento é um
elemento que norteia qualquer ação referente à conservação de patrimônios, ou seja, é
preciso que a comunidade se envolva no processo de identificação de seus patrimônios e
perceba como estes podem ser propulsores de desenvolvimento socioeconômico e cultural,
muitas vezes impulsionando o turismo, a valorização das cidades e de seu entorno, gerando
empregos e melhorando uma região como a Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul,
atualmente empobrecida e precisando de projetos que melhorem a qualidade de vida da
população.
2
Sítio do Areal (Lemes, 2008; Marion, 2008), Sítio Saladeiro São Carlos (Volkmer e Milder, 2003), Sítio Estância Santa Clara (Pes e Milder,
2011).
Construindo um trabalho sobre musealização da arqueologia... | Grasiela Tebaldi Toledo
197
O fenômeno museológico foi reconhecido, seja através dos museus ou das várias
pesquisas empreendidas na região e percebe-se que é preciso uma intervenção nessa realidade
do ponto de vista da preservação e da educação, para que novos discursos expositivos possam
ser apresentados e que sejam formuladores de ideias, conceitos, problemas, sentidos
expressos por intermédio de vetores materiais, possibilitando a construção de identidades
plurais, que respeitem a alteridade e a diferença cultural.
É preciso ter alguns cuidados na formulação de discursos expositivos, ou seja, não se
pode apresentar uma cultura através de alguns objetos, mas sim propor que, no caso, o
acervo arqueológico da Estância Velha do Jarau pode ser uma leitura possível das estâncias,
ou mesmo, um exemplo entre tantos outros que podem ser suscitados entre os visitantes de
uma exposição.
Assim, é preciso que as propostas relativas à musealização da arqueologia sigam
referências da Museologia e da Arqueologia, e iniciem com planejamento institucional, seja
de um ou mais museus em conjunto com a instituição responsável pela guarda do acervo
arqueológico, conservando, documentando, armazenando e comunicando, através de
exposições, com ações socioeducativas culturais. E que sejam realizadas avaliações sobre os
conteúdos expostos, sobre o comportamento do público e o processo museológico de forma
ampla.
Alguns elementos norteadores para propostas de musealização da arqueologia foram
pontuados e discutidos, sem esgotar as diversas possibilidades que podem ser planejadas,
conforme as disponibilidades financeiras e de profissionais para atuar em projetos dessa
dimensão.
Portanto, pode-se sintetizar as propostas afirmando que as ações museológicas que
forem empreendidas com o acervo arqueológico da Estância Velha do Jarau, ou mesmo nos
museus de temática estancieira da região da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, devem
nortear-se para o uso qualificado do patrimônio proporcionando a problematização sobre a
identidade sul-rio-grandense.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse artigo, busquei relacionar a construção da pesquisa de mestrado, com a definição
de alguns pressupostos básicos para a construção de trabalhos que envolvam a Musealização
de Arqueologia.
A dissertação3 apresenta resultados mais detalhados, tanto da pesquisa arqueológica no
sítio Estância Velha do Jarau, como sobre os museus da Fronteira Oeste do Rio Grande do
Sul. Problematizando questões sobre espaço fronteiriço e estancieiro, sobre as louças e seus
significados e acerca da multiplicidade de espaços museais, e como estes se relacionam com o
ambiente de fronteira e com a Arqueologia.
Porém, para esse artigo, o objetivo foi mostrar como é possível construir um trabalho
reflexivo e propositivo em Musealização da Arqueologia, mesmo com um projeto que não
3
TOLEDO, 2011.
Construindo um trabalho sobre musealização da arqueologia... | Grasiela Tebaldi Toledo
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tinha como pressuposto inicial a relação dessas áreas do conhecimento e também pouca
aproximação com a comunidade.
Assim, alguns parâmetros importantes para a construção de um trabalho acadêmico em
Musealização da Arqueologia foram traçados, objetivando consolidar essa linha de pesquisa,
sem engessar um modelo único, mas suscitando o debate sobre as premissas que norteiam as
pesquisas arqueológicas no que se refere à gestão do patrimônio, a fim de envolver diferentes
agentes, tanto da academia, como das comunidades interessadas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço minha orientadora, Maria Cristina Bruno, em especial, pelo convite para
escrever esse artigo e por toda a trajetória acadêmica, que estou construindo com seu apoio.
Agradeço aos colegas pesquisadores, que também estudaram a Estância Velha do Jarau e
contribuíram para a construção de conhecimento sobre as estâncias fronteiriças.
Agradeço aos colegas de mestrado e de orientação, pelas discussões que permitiram
perceber as premissas em comum que envolviam os trabalhos sobre Musealização da
Arqueologia.
Agradeço à Susana Tebaldi Toledo e Fernanda Codevilla Soares pelas correções e
sugestões ao artigo, mas resguardo-me a responsabilidade pelas ideias e escrita do texto.
Agradeço ao meu pai, por ter ido comigo à maioria dos museus visitados durante a
pesquisa.
E um agradecimento especial a minha mãe, que mesmo tendo partido durante a escrita
desse artigo, me ajudou a ter inspiração em todos os momentos!
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