Museu virtual (e plural) de arte
AnA BEAtrIz BAhIA
Resumo
Palavras-chave:
Museu virtual, obra de arte,
Martín-Barbero
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O artigo aborda os museus virtuais de arte, interfaces online que essas instituições desenvolvem para ampliar a
comunicação com seus públicos. Evoca o conceito de museu
plural proposto por Martín-Barbero e discute iniciativas em
três tipos de interface: bancos de dados, visitas virtuais e jogos
digitais. Analisa a relação obra-espectador que se dá em cada
iniciativa, enfocando jogos de três museus: Tate Gallery de
Londres, Museu Boijmans de Roterdan e Museu Virtual de
Arte Brasileira. Conclui que o emprego de tecnologias não
é condição, sequer garantia, para realização do conceito de
museu plural, o que depende de como o museu entende seu
papel institucional e relaciona-se com seus públicos.
VISUALIDADES, Goiânia v.13 n.1 p. 146-163, jan-jun 2015
Virtual (and plural) Art Museum
AnA BEAtrIz BAhIA
Abstract
This paper is about virtual museums of art, which are web
interfaces developed by museums to interact with their
audiences. It is based on the “plural museum”, a concept
proposed by Martin-Barbero, and presents three kinds of
interfaces: databases, virtual tours, and digital games. It
analyzes the relation between artwork and audience in each
interface, then it focuses on digital games of three museums:
Tate Gallery in London, Museum Boijmans of Rotterdam,
and Virtual Museum of Brazilian Art. It concludes that the
use of technology is not necessary nor a guarantee of a “plural
museum”, as it depends on how the museum understands its
own institutional role and relates to its audiences.
VISUALIDADES, Goiânia v.13 n.1 p. 146-163, jan-jun 2015
Key words:
Virtual museum, artwork,
Martín-Barbero
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Museo virtual (y plural) de arte
AnA BEAtrIz BAhIA
Resumen
Palabras clave:
Museo virtual, obra de arte,
Martín-Barbero
148
Este artículo aborda los museos virtuales de arte, interfaces
online que esas instituciones desarrollan para ampliar la
comunicación con sus públicos. Se evoca el concepto de
museo plural propuesto por Martín-Barbero y que discute
iniciativas en tres tipos de interface: bancos de datos, visitas
virtuales y juegos digitales. Se analiza la relación obraespectador que ocurre en cada iniciativa, enfocando juegos de
tres museos: Tate Gallery de Londres, Museum Boijmans de
Róterdam y el Museu Virtual de Arte Brasileira. Finalmente, se
concluye que el empleo de tecnologías no es una condición, ni
siquiera una garantía, para la ejecución del concepto de museo
plural, el cual depende de las formas como el museo entienda
su papel institucional y se relacione con sus públicos.
VISUALIDADES, Goiânia v.13 n.1 p. 146-163, jan-jun 2015
VISUALIDADES, Goiânia v.13 n.1 p. 146-163, jan-jun 2015
A arte é uma icção histórica, como já provou Marcel Duchamp, do mesmo modo que a história da arte, o que André
Malraux descobriu sem querer quando escreveu o “museu
sem paredes”. Portanto, é uma questão de instituições e não
de conteúdo, e muito menos de método, se e como arte e história da arte sobreviverão no futuro.
(Hans Belting, O Fim da História da Arte)
Mediação em museus de arte é um tópico complexo. Para
abordá-lo, há de se tomar o Museu enquanto instituição social, entidade que tanto faz perdurar valores e hábitos culturais quanto, ao explicitar as relações de poder implícitas a tais
práticas, propicia gradual renovação. No caso dos museus de
arte, por um lado, a ação museal reairma os modos de perceber, fazer e saber arte já legitimados, por outro lado, ao provocar incômodo e despertar novas ideias, impele à transformação da própria arte. Mesmo assim, a coerência do discurso
museal nos permite encarar o museu como local de certezas,
espaço de densidade antropológica, ajudando-nos a suportar
a consciência da initude. Como bem escreveu Mário Chagas
(2005), museu é espaço de enfrentamento da morte.
Pensar desde aí instiga-nos a não encarar a tradição artística de forma tradicionalista, mas como algo que sempre está
em construção. É ainda deslocar o eixo da comunicação museal do assunto (a obra) para as experiências de cada visitante e
os processos de signiicação vividos nesse contexto institucional. É compactuar com a ideia de museu plural.
Museu plural
Museu plural foi o termo escolhido por Jesús Martín-Barbero
(2000) para propor um tipo de atuação de museus que não
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leve à pasteurização do patrimônio cultural. Martín-Barbero
é conhecido por suas pesquisas sobre processos de signiicação de mensagens televisivas. A partir desses processos ele
pensa a mediação em museus, reconhecendo perdas e danos
decorrentes da comunicação massiva. Porém, não nos deixemos iludir pelo senso comum: comunicação massiva, conforme é diagnosticada por Mantín-Barbero, não é causada por
equipamentos de áudio e vídeo usados nas salas expositivas
do museu; antes, é decorrência de paradigmas constitutivos
do museu moderno sob o ideal de “democratização do saber”.
Cabe aos museus, além de oferecer acesso aos bens culturais,
diversiicar as formas de comunicação desses bens, usando estratégias indutoras de participação efetiva da comunidade nos
processos de signiicação do patrimônio e da própria instituição museal. E, vale dizer, os equipamentos de áudio e vídeo,
quando bem empregados, contribuem para tanto.
Mantín-Barbero traçou três premissas para que se estabeleça comunicação plural entre museu e seus públicos. Primeiro, o autor solicita que o museu des-neutralize seus discursos,
trazendo à tona o aspecto ambíguo das tradições e problematizando o poder dos discursos institucionais. Segundo, que não
se apresente como “caixa-forte da tradição”, mas como espaço
de encontro e de diálogo sobre memórias. O que temos, então, é um museu des-locado, fora do “centro” (fonte da verdade)
acerca da tradição. Por im, a terceira premissa do museu plural
reairma as duas primeiras e avança no sentido prático. Aponta
para um museu des-limitado, que se deixa interpelar pelo turismo cultural e que é parceiro de organizações não governamentais, só para citar duas estratégias nessa linha. Trata-se de um
museu sem fronteiras, disposto a reinventar não apenas seus
métodos, mas sua posição na sociedade e seu espaço de atuação, sempre visando melhor dialogar com seus públicos.
A ideia de um museu des-limitado ecoa na relexão que o
próprio Martín-Barbero (2004) tece em parceria com Germán
Rey que trata da atual condição instável das instituições de legitimação do saber – como é o caso do museu. Segundo eles,
isto se deu desde o advento da televisão e, principalmente, do
computador. Mas eles encaram tal instabilidade de forma positiva, como algo que impele à salutar atualização das práticas
institucionais. Daí apontarem necessidade de incorporação da
tecnologia não apenas em sua dimensão técnica, mas comunicacional, utilizando-a para promover modos plurais de ver, de
saber e, principalmente, de conviver. São incontáveis as possi-
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bilidades de uso que estão por fazer, pois os museus somente
começaram a se apropriar das tecnologias computacionais.
Vale dizer que não são apenas as práticas museais que se
transformam com o uso de recursos tecnológicos. O contrário
também se dá. Os sentidos que entrevemos em dada tecnologia devem-se menos a sua origem e mais aos modos de uso
– ou de desuso – que dela fazemos. Portanto, o fato de a Internet e os jogos digitais terem sido desenvolvidos em contexto
de guerra não nos impede de tomá-los hoje com inalidade
cultural, artística, educacional. É isso que museus de arte de
várias partes do mundo vêm fazendo, construindo museus
virtuais e mídias interativas (hipermídias) para diversiicar e
aprofundar a comunicação com seus públicos. Esse constructo tanto proporciona novos modos de estar num museu e de
conhecer obras de arte, quanto torna mais complexo e humano o sentido que o computador tem em nossas vidas.
Museu virtual
A extensão web criada por um museu costuma ser nomeada
“museu virtual”. Sem entrar no mérito da escolha do termo virtual – o que nos reportaria ao conceito de Potência, discutido a partir da Metafísica de Aristóteles –, é sabido que um museu virtual
é muito mais que um folder eletrônico, não se limita a veicular
informações sobre as atividades realizadas no espaço tangível do
museu. Museu virtual é espaço de atuação museal, realizando
estratégias de comunicação tão efetivas – e diferenciais – como
aquelas praticadas e legitimadas nos museus-prédio.
Como detalhei anteriormente (BAHIA, 2007; 2008), os primeiros museus virtuais foram lançados quase simultaneamente
com a própria Web, no início da década de 1990. Logo despertaram maior interesse público, aqueles que ofereciam visita virtual, ou seja, hipermídia produzida a partir de fotos panorâmicas
da parte interna do museu e que permitem ao visitante perceber-se no centro de cada sala expositiva e alterar a direção do
seu olhar em até 360o. Este tipo de hipermídia continua em voga
até hoje, agora desenvolvida com alto grau de realismo, algo que
os softwares 3D e as imagens de alta resolução permitem, como
podemos conferir visitando o MUVA - Museo Virtual de Artes
El Pais (http://muva.elpais.com.uy). O exemplo citado é um
museu virtual criado para reunir obras de artistas uruguaios que
estão em coleções públicas e privadas, espalhadas pelo mundo.
Apesar da intenção arrojada, a forma do MUVA é bastante con-
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vencional; replica a estrutura de salas expositivas mesmo não
existindo um museu tangível a ele correspondente.
A visita virtual é um tipo de interface interessante para
quem planeja ir a um museu-prédio, especialmente àqueles
de grande porte e vasto acervo. Contudo, não costuma ser
bom recurso para quem quer olhar uma obra em pormenor ou
obter informações especíicas sobre ela. Exemplo está no site
do Museu do Louvre (http://www.louvre.fr), no qual a visita
virtual permite percorrer sala após sala do museu, perceber
detalhes do piso de madeira e localizar os bancos de descanso. Mas, diferindo do MUVA, as panorâmicas da visita virtual
do Louvre são de baixa resolução e as obras aparecem excessivamente diminutas. A Mona Lisa, por exemplo, é vista em
tamanho de 12 x 14 pixels – enquanto a dimensão total da tela
de computador dos usuários costuma ser de 1280 x 720 pixels,
ou mais –, icando difícil até mesmo reconhecê-la como retrato de uma senhora. Numa outra parte do site do Louvre
é possível ver a Mona Lisa em detalhe. Trata-se do banco de
dados que contem reproduções em alta resolução e informações básicas de 30.000 peças do acervo. Há motor com iltros de busca, permitindo que o visitante construa rotas de
exploração desse acervo, diferentes daquelas que a visita ao
museu-prédio proporciona. Também há recurso para acessar
simultaneamente, e na mesma tela, os dados de duas obras
distintas, facilitando o estudo comparativo. Lamentável que
a interface da visita virtual não esteja integrada a do banco
de dados no site do museu do Louvre. Seria ótimo ter ali a
possibilidade que se tem no MUVA: estar na visita virtual e,
ao clicar sobre a imagem de uma obra, acessar aos dados dessa
obra arquivados no banco de dados.
As interfaces de visita virtual e banco de dados são recorrentes nos sites de museus de arte. Por meio desse tipo
de interface on-line, os museus acabam explorando pouco a
dimensão comunicacional das tecnologias digitais. Apesar
de desenvolvidas com ferramentas computacionais, tais interfaces estão fundadas em modos de perceber e saber arte
advindos de tecnologias intelectuais modernas – como as exposições em museus-prédio e os catálogos de arte. Isso porque a interface de um objeto computacional não é algo apenas
supericial: é estrutural. Interface é o que orquestra a relação
construída entre usuário e objeto computacional e com os
conteúdos acessíveis a partir deste. Interface é ponto de encontro entre tecnologia e códigos culturais. Lev Manovich
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(2006) chega a defender que a informática não trouxe ruptura, ou choque cultural, pois os objetos computacionais, apesar
de aportarem inovação, não rompem com os hábitos culturais
pré-existentes, apenas os transcodiicam1.
Interface é dupla pele que confere estilo aos objetos computacionais. Uma pele é informatizada, a outra é cultural,
sendo que esta preserva categorias e conceitos – modos de
estruturar informações, como são os arquivos, as exposições,
os debates públicos, entre outros – estabelecidos muito antes
do advento dos computadores. A pele cultural é o que torna
as interfaces computacionais “amigáveis” ao público não especializado em informática, de modo que tem sido determinante para a tão rápida incorporação tecnológica em nossa
sociedade. Com essas duas peles os objetos computacionais
nos possibilitam viver situações familiares de um modo incontestavelmente novo. Isso explica a sensação que temos em
uma visita virtual: tanto temos clareza sobre como viver aquela experiência (sabemos que devemos transitar de uma sala a
outra, buscar entender o que caracteriza cada sala e cada zona
do museu) quanto nos percebemos inseridos na era high-tech.
Ainda, a visita virtual simula o modo de estar no museu-prédio. Isso não se deve apenas a verossimilhança entre o visual da hipermídia e as salas do museu-prédio. Como airma
Lev Manovich (2006), há dois outros aspectos que melhor
deinem simulação. Primeiro, a simulação mostra-se sempre
como continuidade do contexto no qual ela é apresentada. É
por esse motivo que as visitas virtuais costumam ser a parte
dos sites de museu de arte onde nos sentimos mais próximos
do museu-prédio, em uma experiência mais “real”. Segundo, a
simulação propicia uma experiência de imersão, o que signiica agir dentro de um sistema (computacional) que tem como
referência outro sistema, mais complexo, que é a própria realidade referente. Assim, além de mimetizar a aparência das
coisas, enquanto simulação (FRASCA, 2015), a visita virtual
plasma modelos comportamentais oriundos da visita às salas
expositivas do museu-prédio.
No MUVA, devido à integração da visita virtual com o banco
de dados, o comportamento modelado mescla o espectador-contemplador com o estudioso da arte. Já no Louvre, a própria
posição de espectador é abreviada. Devido às limitações de aproximação da imagem, a lei do “não é permitindo tocar” contamina o museu virtual. Reairma um conceito de museu pautado
na “pedagogia de olhar a arte”, no qual “os olhos e as mentes são
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bem-vindos, mas o corpo não” (FREIRE, 1999, p. 43). O problema é que, ao não conseguir se aproximar da obra, o espectador
acaba não sendo “tocado” pela imagem (BAHIA, 2008).
Interfaces plurais em museus virtuais de arte
Para além das visitas virtuais e dos bancos de dados, os museus de arte vêm experimentando formas diferenciais de dialogar com seus públicos. Lançam projetos que podem se estender do museu-prédio à sede virtual, por vezes deixando-se
permear por instituições parceiras. Assim, fazem ecoar a ideia
de museu des-limitado, de Martín-Barbero.
Exemplo é o projeto que a National Gallery de Londres
(http://www.nationalgallery.org.uk) realiza em parceria com a
Universidade Saint Martin e a Escola de Cinema, também de Londres. Os alunos destas instituições produzem mídias (animações
e vídeos de curta-metragem) que se apresentam como metatextos
de obras do acervo, já que não falam sobre obras do acervo, mas a
partir delas. Por im, as mídias são publicadas no site da National
Gallery, em seção especíica sobre este projeto, e incorporadas à
nuvem de informações on-line que circunda a coleção.
O projeto citado reairma a ideia de museu des-limitado,
não apenas por seu caráter interinstitucional, mas por não
compactuar com certos paradigmas constitutivos dos museus
modernos — como a valoração da obra de arte enquanto objeto genuíno, completo em si mesmo, e a supremacia da contemplação como modo de conhecer uma obra. Cada mídia
produzida é resultado de uma leitura de fruição2 (BARTHES,
1996) da obra vivenciada pelo aluno, de modo que exterioriza
a posição coautoral do espectador contemporâneo.
Esse não é o único exemplo de interface promotora de atuação coautoral do espectador (BARTHES, 2004). No Museu experimental, interface vinculada ao MAC Virtual (http://www.
macvirtual.usp.br) do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o visitante pode atuar como curador
de exposição on-line, deixando sua produção para ser vista por
outros visitantes. Em outros museus virtuais, o visitante pode
propor círculos de discussão que congreguem interessados em
arte de várias partes do mundo. Exemplo disso é o diretório
de comunidades virtuais Espacio abierto, vinculado ao portal
educacional do Museu Thyssen-Bornemisza de Madri (http://
www.educathyssen.org).
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É amplo o leque de exemplos que podem ser citados aqui.
Contudo, opto por destacar o gênero de interface sobre o qual
me dedico a pesquisar: jogos digitais (também denominados games) concebidos a partir de obras de arte (BAHIA, 2008; 2014).
Não interessa aqui abordar os jogos digitais nos quais a
reprodução da obra de arte paira na superfície gráica da interface, como ocorre em jogos da memória e em quebra-cabeças
apresentados isoladamente nos quais não existe nexo algum
entre a estrutura do jogo e as obras nele citadas, ou seja, caso
substituíssemos as obras a jogabilidade não seria comprometida. Sabemos que não é por “interagir” (clicando sobre coisas num ambiente digital) que o visitante museal participa do
inindável processo de signiicação da obra. De fato, é viável
jogar certos jogos digitais disponíveis na web sem sequer olhar
para a imagem artística neles citada.
Vale despender atenção aos jogos digitais cuja interface foi
concebida a partir de uma dada obra, ou de um conjunto de
obras. Nesses, a interface incorpora especiicidades semânticas
e/ou formais da/s obra/s, apresentando-se enquanto metatexto de obra. Tais jogos não desempenham a função de reprodução da obra; oferecem uma relação diferencial com o universo
imagético da obra. Ou seja, se comparados com a experiência
da contemplação, esses jogos digitais propiciam um modo mais
divertido e interativo de aproximar-se da obra. Nem por isso
desqualiicam a experiência da contemplação. Sabemos que
pessoas têm experiências efetivas com obras de arte por caminhos diversos: através de dinâmicas lúdicas e de grupo, em
experiências sinestésicas e interpessoais, ou de forma intrapessoal privilegiadora do olhar. Logo, o que os museus virtuais
que veiculam estes jogos digitais evidenciam é a importância
de oferecer pluralidade de modos de comunicar o acervo e de
promover a signiicação das obras entre os públicos visados.
Bons exemplos estão nas três interfaces de jogo digital
apresentadas na sequência. Elas foram produzidas a partir de
motivações diversas, cada qual tem uma forma própria que é
coerente com seu objetivo e diferente das demais.
Art Detective: The Case of the Mysterious Object
Produzido pela Tate Gallery de Londres, Art Detective: The
Case of the Mysterious Object (www.tate.org.uk/detective/
mysteriousobject.htm) é jogo no qual o espectador investiga a
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escultura Recumbent Figure, de 1938, obra do artista do modernismo europeu Henry Moore e que integra o acervo do museu.
O cenário do jogo é a própria sala expositiva do museu,
mas sua interface difere da estrutura de visita virtual. O olhar
do jogador não se dispersa; mantém o foco na obra. Sempre
tendo a obra no centro do seu campo de visão, o jogador usa
recursos interativos que lhe permitem aproximar, recuar e circundar a escultura. Tudo isso ganha sentido especial quando
se considera a narrativa-guia do jogo e a missão do jogador.
O jogador desempenha o papel de detetive, não de visitante
do museu, e tem a responsabilidade de resolver oito casos sobre a obra do acervo. Ele só conseguirá desvendar os mistérios
se usar tanto sua habilidade de observação quanto as informações ali disponíveis, as quais versam sobre os materiais de
confecção, o processo de criação e o autor dessa escultura.
A interface desse jogo mantém o espectador apartado da
temática da obra — uma mulher reclinada. Isso não desacredita a motivação educativa desta hipermídia. De forma muito
particular, esse jogo promove relexão de processos de abstração da forma e de pesquisa de materiais naturais vividos pelo
artista. Ele evidencia o contexto modernista no qual a obra foi
criada e promove o olhar analítico sobre a forma, o que não
deixa de aportar uma experiência signiicativa com a obra.
A lógica de jogo de investigação é recorrente em jogos
de museus virtuais destinados ao público juvenil, reairmando a ideia de obra como enigma. Por um lado, a investigação
aproxima esse público da arte, desperta interesse, instiga o
espectador a rever — conhecer de forma diferente — o antes
conhecido. Isso implica em demora do olhar, mesmo que não
seja a demora contínua da contemplação, mas a recorrência
de olhares lançados sobre dado objeto. Por outro lado, a investigação impõe ao espectador certo distanciamento em relação
à obra. Tal distanciamento é necessário para manter o “foco”
do olhar objetivo, para observar, analisar, relacionar dados e
resolver os casos criados a partir daquela obra. Ou seja, é a
capacidade de análise e a clareza intelectual que se destacam
frente a outros sentidos e habilidades cognitivas possíveis de
serem usados pelo público.
Jheronimous Bosch Adventure Game
Esse jogo também é voltado ao público juvenil, mas tem como
referência os jogos de aventura RPG (Role-Playing Game).
Oferece ao jogador uma experiência de imersão e promove um
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tipo de relação mais empática do que a vivida por meio do jogo
Art Detective. O jogo foi feito para acompanhar a exposição
com obras de Jheronimous Bosch, realizada no ano de 2000
no Museu Boijmans Van Beuningen, de Roterdan. Um ano antes do início da mostra, o museu convidou o grupo de artistas
do V2_Lab para desenvolver uma interface on-line com obras
da exposição e que fosse atrativa ao público jovem. Isso porque o museu havia constatado a perda de interesse das novas
gerações em relação ao museu. Os artistas do V2_Lab estavam
certos de que a interface de visita virtual não atrairia jovens
desmotivados a ir ao museu-prédio, por isso propuseram desenvolver um jogo digital. A ideia foi abraçada por Chris Will,
coordenador do setor educativo do museu na época, e por sua
equipe, sendo posteriormente encarada pela instituição como
referência de iniciativa bem sucedida.
Todo o conteúdo de Bosch Adventure Game — da estrutura ao layout — foi concebido a partir das obras de Bosch.
Os cenários e personagens foram feitos “recortando” e remontando, em meio digital, fragmentos de pinturas do artista. O
mundo do jogo é recriação da cidade holandesa Hertogenbosch no inal do século XV, contexto histórico e geográico
em que viveu Bosch. Tal recriação traz à tona aspectos sociais
daquela comunidade, como a tensão entre o imaginário medieval-pagão e o controle da ordem católica ali reinante. Isso
é base do universo imagético de Bosch, por isso está presente
no jogo digital (BAHIA, 2014).
O jogador depara-se com desaios espalhados nessa cidade, em locais externos e internos que icam acessíveis na
medida em que o jogador demora-se e avança no jogo. Os
desaios têm como tema situações cotidianas que despertam
desejos mundanos, mas precisam ser enfrentados sem confrontar a moral religiosa daquela época. Se isso não acontece,
o jogador precisa redimir-se dos pecados cometidos ou não
terá um bom inal de jogo.
A estrutura do jogo está pautada em duas obras de Bosch: Os sete pecados capitais e O mascate. A primeira é o eixo
do roteiro de jogo, dos ambientes e das situações interativas.
Ela é parte do acervo do Museu do Prado e traz representações dos sete Pecados Capitais em um círculo. Os pecados
são mostrados em situações corriqueiras daquela época (por
exemplo, dois bêbados brigando, para abordar a ira; e uma
freira acordando o padre, para preguiça). No centro do círculo
está o “olho” de Deus, com a inscrição: Cave, Cave, Dominus
videt (cuidado, cuidado, o Senhor vê) — a propósito, no Bosch
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Adventure Game nada do que é feito pelo jogador escapa ao
“olho”, que é a inteligência artiicial do sistema do jogo.
É importante saber que Bosch Adventure Game foi feito
com recursos tecnológicos tão inovadores quanto os usados
em jogos digitais de entretenimento do ano em que foi desenvolvido. Em 2001, o Bosch Adventure Game icou entre os sete
inalistas do prêmio Museums and Web (ICOM, UNESCO) na
categoria Melhor Aplicativo Experimental, além de ter vencido
em duas categorias do Europrix: Conhecimento, Descoberta e
Cultura, e Prêmio de Destaque do Ano. Ao justiicar a premiação, o júri argumentou que o jogo oferecia ao público maior
interatividade com a obra do artista do que uma exposição tradicional consegue oferecer, dando ao espectador possibilidade
de imersão no universo imaginado por Bosch. Para completar,
ressaltou que a iniciativa é uma variação atualizada da obra de
Bosch e desempenha, ao mesmo tempo, os papéis de hipermídia de entretenimento e educacional (V2_ARCHIVE, 2006).
É inegável que Bosch Adventure Game oferece diversão.
Nem por isso é banal. A experiência de entretenimento nos
distrai, traz alívio do esgotamento causado pelo esforço da
existência, mas isso não implica em experiência impessoal,
ou fácil de ser vivida. Paradoxalmente, a atividade que verdadeiramente nos distrai, também captura-nos por completo.
Com a promessa de ofertar descanso, ela exige de nós esforço
e dedicação em situações que não fazem parte de nosso cotidiano. A experiência de entretenimento demanda a tomada
de atitude e, muitas vezes, a angústia de estar em risco, pondo
em dúvida a nossa capacidade de enfrentar certos desaios.
Nossas melhores lembranças de entretenimento costumam
ser de jogos, e outros hobbies, que tanto mais nos dão prazer
quanto mais nos desaiam. Vividas com intensidade, atividades de entretenimento nos fazem ser mais do que éramos,
transformam o modo como signiicamos o mundo e, principalmente, como percebemos a nós mesmos e relacionamo-nos com o fragmento de mundo em que estamos envolvidos.
Unindo experiência signiicativa e entretenimento, Bosch
Adventure Game tem interface que se aproxima menos dos jogos didáticos (aqueles que prometem ensinar um conteúdo)
e mais dos jogos digitais comerciais (aqueles que prometem
uma experiência divertida). Contudo, os conteúdos apresentados (personagens, cenários, narrativa-guia e todas as demais informações verbais, imagéticas e sonoras) e as habilidades cognitivas solicitadas ao jogador estão cuidadosamente
alinhados com o objetivo do setor educativo do museu. Ainda,
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quem teve a oportunidade de jogá-lo — no período em que
esteve on-line, entre 2000 e 2004 — pode atestar: ele se destacava, em relação a outros jogos digitais de sites de museu de
arte, pelo nível de imersão proporcionado ao jogador. Aportava o reposicionamento do sujeito que se dirige ao museu e
se relaciona com as obras. Foi o que atestou Chris Will (2006),
comentando a exposição das obras de Bosch realizada no
Museu Boijmans junto ao lançamento do jogo: além do jogo
ter despertado o interesse do público jovem para a exposição
como um todo, os jovens que iam ao museu davam especial
atenção às obras citadas no jogo.
A Terceira Face da Carta
O jogo A Terceira Face da Carta proporciona um tipo de experiência diferente dos acima comentados, até mesmo por não
ser voltado a uma faixa etária e sim ao público da arte em geral.
É parte do projeto Museu Virtual de Arte Brasileira (MVAB) e
foi concebido a partir da série fotográica Antropologia da face
gloriosa do artista brasileiro Arthur Omar.
A jogabilidade é oriunda do jogo da memória. Contudo,
a tradicional estrutura do jogo foi transformada, impregnada
pela dimensão subversiva das fotograias de Omar. O resultado é um jogo digital com três fases. Na primeira fase, o jogador
precisa encontrar pares de imagens, como se costuma fazer no
modo convencional de jogar memória. Na segunda fase, precisa encontrar trios de imagens. Já na terceira fase, o jogador
segue buscando trios de imagens. Contudo, a cada lance, as
cartas mudam de lugar, subvertendo a lógica do jogo: não é
apenas a capacidade de memorização que dá ritmo ao jogar,
mas também o acaso (BAHIA, 2008).
O acaso é tão importante no processo artístico de Omar
quanto à ordem. Isso está posto não apenas na estrutura desse jogo digital, mas nos conteúdos visuais, verbais e sonoros
ali incluídos. As fotograias mostram faces em zoom, muitas
vezes em movimento, expressando a intensidade e fugacidade do momento do “transe carnavalesco”, como airma Omar
(2005a), sob o qual a imagem foi capturada. Tal ideia é potencializada com aforismos que povoam o jogo. São frases enigmáticas que aparecem cada vez que o jogador forma um par
de imagens e que se destacam quando o jogador conclui uma
fase do jogo. Exemplos de aforismo são: “Não te vejo com a
Pupila, mas com o Branco dos Olhos”, “Contemplar é um Ato
Violento” e, ainda, “Em Arte, jogamos sempre com o Acaso e
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com a Ordem”. São frases que problematizam os atos de ver e
de produzir imagem, explicitando a continuidade entre eles.
Como é dito na abertura do jogo, os aforismos são “koans de
sabedoria fotográica”.
Revelador é o fato de o próprio Omar ser coautor desse
jogo digital, de modo que o jogo se apresenta tanto como obra
quanto como metatexto. Como declarou Omar (2005a), levar
uma obra para a web não é apenas digitalizá-la e publicá-la, é
necessário tomá-la como “material”, fazê-la voltar ao “estado
puro” — a imagem — para, então, ser reunida numa nova forma. Isso é possível porque, para Omar, a imagem de uma obra
tem possibilidades ininitas de regeneração.
Ao optar pela interface de jogo digital, Omar (2005b) problematiza a crença de que o enunciado direto sobre algo é a
melhor forma de dar esse algo a conhecer — problematização
que está na base da própria atividade artística. Para ele, o melhor modo de proporcionar ao público a fruição de suas “faces
gloriosas” foi evitar reproduzir a estrutura original da obra,
deixá-la em reserva, apresentando o conteúdo reestruturado
na interface de jogo digital.
Considerações inais
A reciclagem dos modos de fazer, perceber e conhecer a obra
de arte não é prática nova. O surgimento dos modernos museus de arte desde o inal dos Setecentos, por exemplo, gerou
um conjunto de valores e hábitos em relação à arte que não
existia antes. Como disse Goethe, vivendo o contexto histórico de fundação do Louvre: o museu inaugurou uma “nova
entidade artística”, de modo que até a arte historicamente anterior tornou-se algo totalmente novo e aquilo que dela fora
removido permanecerá um mistério para as gerações futuras
(CRIMP, 2005). Goethe foi perspicaz. Hoje é difícil supor que
entendimento teríamos de arte se as obras sacras continuassem nas igrejas e conventos, se a arte da corte não tivesse
sido aberta ao público, se as pinturas de gênero continuassem
em coleções privadas, se não fosse possível percorrer “toda” a
tradição artística ocidental num único espaço. Sem espaços
como o Louvre, Manet não teria dialogado com a “arte de museu” e Hélio Oiticica teria pouco a contestar sobre os mecanismos de legitimação da arte.
Museu de arte também é instituição social e, enquanto tal,
é reciclável. Desde seu advento os museus de arte passaram
por momentos de redeinição de modelos e práticas, vivendo
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VISUALIDADES, Goiânia v.13 n.1 p. 146-163, jan-jun 2015
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um quase contínuo processo de transformação. A história da
interface “sala expositiva” é exemplo disso. A primeira versão
se desdobrou em diferentes abordagens que convivem na atualidade: paredes abarrotadas de quadros do mesmo período
histórico; a estética clean do “cubo branco”; paredes terrosas
para apresentar pinturas barrocas no intuito de recriar a luminosidade dos interiores do século XVII; a instalação de obras
da arte contemporânea em salas que expõe quadros (obras da
tradição de pintura de representação) para promover diálogo
poético e supratemporal; entre outras abordagens. Sem diminuir o caráter inovador e louvável dessas iniciativas, a posição
do espectador pouco se altera nelas.
Museus vêm criando dispositivos de deslocamento de seus
visitantes para além da posição de espectador, pluralizando as
formas de comunicar o acervo. As interfaces interativas, como
as comentadas neste ensaio, são exemplo disso. Mas vale destacar: dispositivos interativos não dependem do uso de tecnologia digital. Interativa e não contemplativa é a experiência de
passar uma tarde no museu dançando a partir de dada obra do
acervo; ou passar uma noite no museu para investigar uma trama criada pelos educadores da instituição. Tais exemplos evidenciam o papel coautoral do espectador e as inindáveis possibilidades de leitura das peças do acervo. Também faz ecoar
a ideia de museu plural de Martín-Barbero, evocada no início
deste texto. Por essa via, o museu mostra-se como espaço de
diálogo, deixa cair sua máscara de “caixa forte” da tradição. Impulsiona a transformação de hábitos e valores, injeta vitalidade
na arte e na própria instituição museal. Até porque, como colocou Hans Belting, “[...] é uma questão de instituições e não de
conteúdo, e muito menos de método, se e como arte e história
da arte sobreviverão no futuro” (2006, p. 167).
notAS
1. Transcodiicação é um dos cinco axiomas propostos por Manovich para
pensar a linguagem dos novos meios. As outras quatro são: Representação
numérica, Modulação, Automatização e Variabilidade.
2. Barthes diferenciou dois tipos de leitura: a) a leitura do prazer revela
signiicados. Quanto mais erudito for quem pratica este tipo de leitura, mais
prazer sentirá; b) a leitura praticada por aquele que deseja o texto e toma-o
como espaço para o jogo da fruição não traz apenas prazer; provoca descontentamento ao não aportar um signiicado certeiro. Ela suscita o envolvimento do leitor, o qual logo se esvai no texto. A fruição faz o leitor entrar em
crise e produzir um excesso de texto à maneira do texto desejado. É por isso
que não há incoerência em fruir o texto em profundidade e, ao mesmo tempo, em dispersão. O leitor de fruição vive o prazer da escritura. O problema,
reporta Barthes, é que em nossa “sociedade de consumo” o leitor de fruição
vive na clandestinidade, contido na promessa de produção.
Ana Beatriz Bahia . Museu virtual (e plural) de arte
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Referências
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Recebido em: 06/02/15
Aceito em: 30/03/15
AnA BEAtrIz BAhIA
bahia@casthalia.com.br
Doutora em Educação (UFSC, 2008) e Bacharel em Artes Plásticas (UDESC, 1998). Em 2000, fundou o estúdio Casthalia, junto
ao qual realiza criação, produção e implantação de tecnologias
educacionais, em especial, jogos digitais para contextos de
educação não formal. Também integra a equipe de produção
de materiais didáticos do Centro de Referência e Formação em
EaD/IFSC, atua como docente (UNISUL) e é membro do grupo
de pesquisa ÁQIS (Centro de Artes/UDESC). É autora de jogos
recomendados pelo MEC (via Guia de Tecnologias Educacionais), incluindo A mansão de Quelícera, voltado ao Ensino de
Arte. Possui artigos acadêmicos publicados em livros e em anais
de eventos nacionais e internacionais. Pesquisa a relação entre
Artes, Educação e Tecnologias Digitais.
Ana Beatriz Bahia . Museu virtual (e plural) de arte
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