Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

A Relação Entre Pintura e Literatura Em O Retrato De Dorian Gray De Oscar Wilde

2010, OPSIS

OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 A RELAÇÃO ENTRE PINTURA E LITERATURA EM O RETRATO DE DORIAN GRAY DE OSCAR WILDE THE RELATIONSHIP BETWEEN PAINTING AND LITERATURE IN “THE PICTURE OF DORIAN GRAY” FROM OSCAR WILDE Maria Imaculada Cavalcante1 Sidney Barbosa2 Resumo: Este artigo tem como objetivo central analisar a relação entre literatura e pintura, visando compreender o processo de construção do romance e o espaço de representação da pintura em O retrato de Dorian Gray (1891), do escritor irlandês Oscar Wilde, sob a influência dos movimentos de vanguarda que surgiram no século XIX, principalmente o Impressionismo e o Fovismo. Palavras-chave: Literatura, Pintura, Representação, Oscar Wilde. Abstract: This article aims at examining the relationship between literature and painting, seeking to understand the process of construction of the novel and space representation of the painting in The picture of Dorian Gray (1891), from the Irish writer Oscar Wilde, under the influence of the avant-garde movements that emerged in the nineteenth century, especially Impressionism and Fauvism. Keywords: Literature, Painting, Representation, Oscar Wilde. A modernidade é um divisor de águas entre a tradição e a inovação, uma forma inédita de pensar o mundo que deixou de ser simples e determinável, objetivo e explicável, para tornar-se complexo e indeterminável, subjetivo e inexplicável. Nos séculos XVI a XVIII grandes acontecimentos redimensionaram o pensamento e o cotidiano do homem, quais foram: as navegações marítimas proporcionando uma maior mobilidade, ampliando geograficamente o mundo e provocando a revolução comercial; as descobertas científicas no campo das ciências ______________________________________________________ 1 Professora Doutora do Curso de Letras e do Mestrado em Geografia do Campus de Catalão/UFG. Este artigo é parte de um projeto de Pós-Doutorado intitulado “A representação da pintura no romance moderno”, realizado na UNESP/Campus de Araraquara, sob a Supervisão do Professor Livre Docente Sidney Barbosa. Email: imaculadacavalcante@bol.com.br 2 Professor Livre Docente, membro do programa de Pós-Graduação da UNESP/ Campus de Araraquara e professor efetivo do Departamento de Letras da UNB. Email lucidney@uol.com.br 155 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 exatas, físicas e biológicas gerando maior conforto; a queda do feudalismo e a ascensão da burguesia redimensionando os papéis sociais; a Reforma Protestante e a Contra-Reforma reelaborando o conceito de fé e o poder da Igreja Católica; a implantação do Capitalismo transformando a economia mundial; o processo vertiginoso de urbanização com o aparecimento de cidades pólo como Paris, Londres, Berlim; o surgimento de uma classe média que vai determinar o estilo de vida do cidadão; o Industrialismo e o aparecimento de uma classe trabalhadora proletária... Apenas para arrolar os fatos mais importantes. Todas estas transformações foram determinantes para explicar o comportamento do homem moderno. A partir da Idade Média, com a Renascença e o Iluminismo, esse conjunto de mudanças passou a definir a arte. No final do século XVIII o mundo ocidental assiste a uma transformação radical nas diversas formas de representação artística, caracterizando um movimento de transgressão e ruptura com a tradição. Essas mudanças concentraramse com maior intensidade no Romantismo, tornaram-se enfáticas no Modernismo e se estenderam até a contemporaneidade. Para Marshall Bermann (1986), o que diferencia o homem moderno do homem dos séculos anteriores é a consciência dessas transformações, pois ele ainda se lembrava do que era viver em um mundo material e espiritual bem definido e sabia o que era viver uma era revolucionária e explosiva em todos os níveis de vida: pessoal, social, política, econômica, cultural e artística, “é dessa profunda dicotomia, dessa sensação de viver em dois mundos simultaneamente, que emerge e se desdobra a idéia de modernismo e modernização” (BERMANN, 1986, p. 19). Esses fatores, de ordem externa à literatura, vão concorrer para acelerar o rompimento do artista com os valores estéticos do classicismo, resultando em uma nova forma de ver e representar o mundo. O avanço científico, tecnológico e econômico interferiu diretamente na arte. O desenvolvimento industrial só beneficiou a uma minoria, surgindo graves problemas de ordem social em relação às massas de trabalhadores, gerando um descontentamento entre os intelectuais, provocando reações contra o estado de miséria que se instalou. O conflito espiritual foi o sintoma desse novo homem que não conseguiu resolver a desigualdade. Como resultado, a sensibilidade do artista colocou-se contra esse paradoxo criado pela má distribuição de rendas que levou à extrema 156 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 miséria em meio à grande abundância. Diante desse estado de contradições a ironia atuou nas artes em geral como elemento destruidor da ordem habitual. O sentimento de inadequação à realidade desencadeou a desilusão e a revolta, marcadas pela contradição e pela rejeição ao instituído. Mas o artista não se limitou a negar os valores vigentes, ele também foi crítico e questionador, não se sujeitando às imposições do mundo burguês e à sociedade capitalista. Demonstrando um profundo interesse pelas transformações da época ele se pôs a retratar e a analisar a realidade. Nesse contexto, composto por intensas transformações sociais, políticas, econômicas e, principalmente estéticas é que se insere Oscar Wilde e sua produção literária. Nesse artigo, em especial, pretendese analisar a relação entre literatura e pintura, no intuito de averiguar como Wilde via as duas formas de representação artística e como ele as apresentou no romance O retrato de Dorian Gray, visto que uma de suas temáticas versa sobre o processo de transformação da pintura, sob a influência dos movimentos de vanguarda que surgiam na época, como o Impressionismo, o Decadentismo, o Simbolismo, o Fovismo, o Expressionismo e o Cubismo. Oscar Fingal O’Flaheritie Wills Wilde nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1854 e morreu em Paris em 1900. Por ser filho de mãe escritora, revolucionária e feminista, Jane Francesca Elgee, ele teve a oportunidade de conviver com artistas, literatos e boêmios, vivendo em um mundo artificial, de ostentação e vaidades. Talvez, por isso, desenvolveu um sentimento de superioridade e tornou-se um devasso para os padrões morais da época, principalmente pela sua declarada homossexualidade, rompendo com os padrões morais em vigência. Silva (1996) afirma que o escritor era considerado amoral, portava-se como um dândi, chocando os salões ingleses por sua maneira de vestir, seu cabelo longo e cacheado, sua conduta, suas tiradas agudas e suas frases de efeito. Dorian Gray, de certa forma, representa-o na sua maneira de postar e de vestir, na sua beleza e na sua ostentação, ele é a representação de sua personalidade cativante, destemida, transgressora e, por isso mesmo, fascinante. Mas é Lorde Henry Wotton que o representa nas suas tiradas ferinas e frases de efeito e, ambos representam a sua amoralidade. As duas personagens presentes em O retrato de Dorian Gray são duas facetas de sua personalidade 157 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 complexa. Vítima do preconceito, em 1895, Wilde foi preso e condenado por dois anos, por prática de homossexualismo, o que o levou à obscuridade pelo resto da vida Como conseqüência, seus livros foram retirados do mercado e suas peças, dos teatros. Sua casa foi vendida e durante o leilão seus bens foram pilhados pelos presentes. Nem mesmo o sucesso de suas novas peças, encenadas naquele ano, Um marido ideal e A importância de ser sério, puderam salválo da desgraça e do esquecimento (SILVA, 1996, p. 11). Quando saiu da prisão Wilde não encontrou espaço na sociedade londrina e refugiou-se em Paris, morrendo sozinho e esquecido pela família e pelos amigos. Só mais tarde a sua obra foi retomada e reconhecida pela crítica e pelo público. O escritor foi poeta, teatrólogo, contista e romancista. Suas peças de teatro foram levadas ao palco londrino e fizeram bastante sucesso, tornando-o conhecido e apreciado. Dentre a sua obra O retrato de Dorian Gray é uma das mais lidas pelo público atual. Escrito em 1876, o primeiro capítulo do livro apareceu em folhetim, em janeiro de 1890; contudo, foi publicado na íntegra só em março de 1891. O romance é uma crítica ao estilo de vida, ao preconceito e a hipocrisia da sociedade vitoriana. A personagem Dorian Gray é bela, sedutora, jovial, aparentemente ingênua e perfeita, mas possui uma alma diabólica, capaz de praticar todos os vícios e atrocidades, chegando até a cometer assassinato sem; contudo, ser punida pela sociedade, que não conseguia enxergar sua conduta, vendo apenas a superficialidade de sua beleza física. Segundo Silva (1996, p. 9), o romance não foi bem recebido pela crítica da época “principalmente pelos moralistas, que consideravam uma obra envenenadora dos costumes. O autor, no entanto, afirmava que seu romance era moralmente perfeito”, pois, no seu entender, vícios e virtudes são para o artista materiais de arte. O romance inicia com o pintor Basílio Hallward retratando o jovem Dorian Gray. O que mais destaca no rapaz é sua extrema beleza física, sua postura ingênua e cativante, que é eternizada em uma obra de arte, podendo ser apreciada no ateliê do artista: “no centro do quarto, preso a um cavalete encontrava-se o retrato, em tamanho natural, de um jovem de extraordinária beleza” (WILDE, 1996, p. 13). Analisando o quadro, o amigo Henry afirma que “era realmente uma estupenda 158 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 obra de arte, e a semelhança, estupenda também./– Meu caro amigo, permita-me que o felicite calorosamente – disse. – É o mais belo retrato dos tempos modernos. Sr. Gray, venha contemplar-se” (WILDE, 1996, p. 36). O quadro possui harmonia, proporção, beleza e construção plástica, é um perfeito clássico da pintura retratista. Basílio também se encanta com sua obra e apaixona-se pela beleza de seu modelo, sente que realizou sua obra-prima, porém decide que não exporá o quadro, pois ele afirma: “coloquei demasiado de mim mesmo nele”. Ele entende que expondo sua obra se desnudará diante do público, por isso acha que ela deve ser preservada dos olhos de estranhos. Decide, então, presenteá-la a Dorian Gray. Essa esplêndida obra de arte desencadeará toda a intriga do romance, pois o rapaz, diante de tão extraordinária pintura, encanta-se com a própria beleza eternizada na tela Passou displicentemente na frente do retrato e depois virou-se para ele. Ao vê-lo, recuou e, por um instante, suas faces ficaram rubras de prazer. Uma centelha de alegria brilhou em seus olhos, como se se tivesse reconhecido pela primeira vez. Permaneceu imóvel por algum tempo, maravilhado, percebendo confusamente que Hallward lhe falava, mas sem compreender o significado das suas palavras. A sensação da sua própria beleza surgiu no seu íntimo como uma revelação. Até então não tivera plena consciência dela (WILDE, 1996, p. 37). Nesse momento de revelação e compreensão de si mesmo, o rapaz se perde, deixando que a vaidade passe a reger seus passos. Ele não só compreende que é belo, mas que a sua beleza fascina os outros, podendo tirar proveito disso, manipulando as pessoas. Ao ser indagado se o quadro lhe agradaria ele responde: “– Apreciá-lo? Adoro-o Basílio. Sinto que é parte de mim mesmo” (WILDE, 1996, p. 39). E Basílio responde: “– Bem, assim que ‘você’ estiver seco, será envernizado, colocado numa moldura e enviado à sua casa. Você poderá, então, fazer o que quiser de ‘você’ mesmo” (WILDE, 1996, p. 39, grifos do autor). Mas, diante do quadro, o jovem compreende que essa beleza é efêmera e isso o angustia, por isso expressa seu desejo em permanecer para sempre jovem como o momento em que o retrato foi concluído e assinado 159 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 – Como é triste – murmurou Dorian, ainda com os olhos fixos em seu retrato. – Como é triste! Eu me tornarei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho... Se acontecesse o contrário! Se eu ficasse sempre jovem, e se este retrato envelhecesse! Por isso... Por isso eu daria até a minha própria alma! (p. 38) E, por incrível que pareça, seu desejo é atendido. A semelhança entre o retrato e o modelo é tão grande que eles se tornam, literalmente um; pois o retrato, a princípio imutável, passa a sofrer as transformações que deveriam ocorrer no homem e o tempo pára para Dorian Gray que permanecerá sempre jovem. A constatação de que o retrato passará a assumir todas as transformações do tempo faz com que Gray leve uma vida de devassidão e vícios, chegando ao excesso de matar Basílio para proteger seu segredo. O mais incrível é que o retrato passa a representar não só o processo de envelhecimento do homem, mas sua alma corrompida e suas atitudes transgressoras. Qualquer atitude do rapaz que fuja aos padrões morais e éticos o quadro representa, como se um pintor fosse, minuciosamente, representando na tela a real personalidade de Dorian Gray. A transformação do quadro nos remete à literatura fáustica, onde o homem faz um pacto com o diabo, vendendo sua alma para alcançar determinados fins, como: poder, conhecimento, glória, dinheiro, mulheres. No caso de Dorian Gray, beleza e juventude. No entanto ele tem que pagar um preço – a perda da sua alma. O narrador onisciente, logo nas primeiras páginas, prenuncia o resultado desse pacto diabólico Sim, chegaria o dia em que seu rosto se enrugaria e murcharia, seus olhos perderiam o brilho e cor e a graça de suas faces se romperia e deformaria. O carmesim de seus lábios iria desvanecer, da mesma forma que o ouro de seus cabelos. A vida que devia formar sua alma iria deformar-lhe o corpo. Tornar-se-ia horrível, disforme, grotesco (WILDE, 1996, p. 37). O que e o narrador vaticina em relação ao homem acontece com a pintura. A imagem refletida na tela, antes bela e perfeita transforma-se em horripilante e grotesca. Segundo Hugo (1988, p. 31), o grotesco tem um papel importante no pensamento moderno, pois ele é “um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida, de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e 160 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 mais excitada. A salamandra faz sobressair a Ondina, o gnomo embeleza o silfo”, e o retrato pintado por Basílio fez de Dorian Gray um ser ainda mais belo. Por essa razão ele adorava confrontá-lo com a própria imagem: “sentava-se diante do retrato, muitas vezes odiando a si mesmo, mas, algumas outras cheio desse orgulho próprio do individualista que é a quase fascinação do pecado, e sorria com secreto prazer àquela sombra informe que suportava a carga que deveria caber a ele próprio” (WILDE, 1996, p. 163). A temática fáustica tornou-se uma tradição na literatura ocidental a partir do século XVIII. O mito do Fausto, que vende a alma ao diabo em troca de poder e conhecimento, foi retomada no Fausto de Goethe, Doutor Fausto de Thomas Mann, Mon Faust de Paul Valery, Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, só para rememorar alguns. O resgate da lenda de Fausto determina um tipo de personagem que representa o típico anti-herói moderno, insatisfeito com a vida em geral, com a sociedade e seus falsos valores, com a religião e seus dogmas e com a fugacidade da vida. A personagem fáustica procura vencer, de todas as formas, os limites do humano para atingir seus objetivos. Segundo Bakhtin (1988, p. 425) um dos principais temas do romance moderno é a “inadequação de um personagem ao seu destino e à sua situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade”. É essa inadequação que faz do herói fáustico um ser desajustado, ansiando por reescrever o seu destino e superar a sua humanidade, pois ele “não se encarna totalmente na substância sóciohistórica do seu tempo” (BAKHTIN, 1988, P. 425). O herói fáustico é um sonhador, um utopista, um rebelde e um transgressor. Assim é Dorian Gray, o espírito de rebeldia está em todas as suas atitudes. Ele é um jovem individualista, narcisista, irreverente, de alma sensivelmente abalada, cheio de imaginação e insatisfeito com o próprio destino e com o destino do homem. Por isso a adoção de uma temática fáustica, por parte de Wilde, explica parte da obra, pois representa o rompimento com o cânone e o destronamento da moralidade. No Romance, processa-se uma posição de mística invertida, onde os componentes mais intrincados da sociedade e do bom senso são ridicularizados e ironizados. Outra atitude marcante em Dorian Gray, determinante de seu anti-heroísmo, é o seu narcisismo. Assim como Narciso, ele apaixona-se 161 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 pela a própria imagem e perde-se por ela. Narciso vê o seu rosto refletido no lago e encanta-se com tamanha beleza. Ao perceber que apaixonara por sua própria imagem deseja morrer. Já Dorian Gray só pode amar a si mesmo e sente prazer nesta auto-adoração, desejando viver intensamente. A sua beleza fascina-o o tempo todo: “uma vez, travessura infantil de Narciso, havia beijado, ou fingido beijar, aqueles lábios pintados que agora lhe sorriam tão cruelmente. Quantas manhãs não passará sentado diante do retrato, maravilhado com sua beleza, e quase apaixonado por ela!” (WILDE, 1996, p. 124). Dorian Gray comete o pecado da vaidade e por ele barganha sua alma. È interessante como, no romance, Wilde separa o corpo da alma, como ele dá vida e estabelece uma representação concreta da alma de Dorian Gray, pois retrato é, principalmente, a imagem da alma. Em um diálogo entre Gray e Lord Harry, este pergunta: “– A propósito, Dorian – disse, após uma pausa –, qual o proveito de um homem que ganha o mundo inteiro, mas perde sua própria alma?” (WILDE, 1996, p. 244/245). Gray surpreende-se com a pergunta e Harry explica que ouviu a frase de um pregador e que teve vontade de responder que “a arte tem uma alma, mas que o homem não a tem”, no que Dorian responde “– Não, Harry. A alma é uma terrível realidade. Pode ser comprada, vendida ou trocada. Uma pessoa pode envenená-la ou aperfeiçoá-la. Cada um de nós possui uma alma. Tenho certeza.” (WILDE, 1996, p. 245). Essa certeza é baseada na própria experiência, pois todos os dias ele vê sua alma retratada no quadro, que vai se transformando, corrompendo a forma original da beleza retratada na obra de arte, tornando-se, a cada dia e a cada ação transgressora, mais degradante e grotesca. Segundo Hugo (1988, p. 22) a antiguidade pensava o homem de forma completa e indissociável, podendo até aproximar-se dos deuses, por isso os heróis gregos são semideuses, mas o Cristianismo estabeleceu uma separação entre o homem e o seu Deus e, ainda, dividiu o homem em dois, um constitui-se de corpo e o outro de alma. “Põe um abismo entre a alma e o corpo, um abismo entre o homem e Deus”. O homem perdeu o contato com os deuses pagãos e não conseguiu aproximar-se do Deus cristão. A dicotomia entre corpo e alma deixou-o perdido, pois o Cristianismo legou-o um dilema terrível, tendo que escolher entre a satisfação do corpo e a purificação da alma, entre o paraíso e o 162 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 inferno. A idéia do “pecado”, desde então, vem cerceando as ações humanas, criando o sentimento de melancolia. Para o teórico, a melancolia é um sentimento herdado do Cristianismo e que se perpetua no homem moderno. Ao final do romance Basílio vai procurar Dorian Gray para pedir o quadro emprestado para uma exposição. Depois de tanto tempo ele decide expor ao mundo a sua obra-prima, mas Dorian Gray, movido pelo ódio, de certa forma culpando o pintor por toda a sua vida desregrada, maldosamente mostra a criação ao criador. Diante de um quadro monstruoso, apesar de estupefato, o pintor reconhece traços de sua obra original. Uma exclamação de horror brotou dos lábios do pintor, quando viu, à luz débil da vela, o rosto medonho que parecia sorrir-lhe sarcasticamente da tela. Havia alguma coisa em sua expressão que o enchera de repugnância e aversão. Santo Deus! Era o próprio rosto de Dorian Gray que estava vendo! A devassidão, por maior que fosse, não tinha conseguido corromper de todo aquela maravilha de beleza. Ainda se via alguns cabelos dourados na cabeça e a boca sensual era ainda vermelha. Os olhos, inchados, conservavam algo de seu azul tão puro e ainda não haviam desaparecido as finas curvas do nariz, delicadamente cinzelado, e as de seu bem torneado pescoço. Sim, aquele era Dorian Gray. Mas quem fizera aquilo? Parecia-lhe reconhecer suas próprias pinceladas e a moldura que ele mesmo havia desenhado. A idéia era monstruosa. Estava aterrorizado. Apanhou a vela e aproximou-a do retrato. No ângulo esquerdo havia o seu próprio nome, traçado em grandes letras de vermelho vivo (WILDE, 1996, p.180). Estarrecido, Basílio nega-se a acreditar no que via e, nesse momento, cheio de ódio, Dorian Gray mata-o e some com o corpo. A narrativa só termina quando Dorian Gray resolve redimir-se de todos os “pecados” cometidos; para isso, tenta destruir o quadro, o retrato vivo de sua alma corrompida. Contudo, ao apunhalar o quadro, no intuito de destruí-lo, ele destrói a si mesmo. O punhal crava em seu corpo e ele jaz morto no chão. Os empregados da casa encontram-no caído todo deformado e velho, aos pés de seu maravilhoso retrato. Quando entraram, encontraram pendurado na parede um maravilhoso retrato de seu patrão, que o representava como estavam habituados a vê-lo, em todo o esplendor de sua rara 163 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 juventude e beleza. Estendido no chão, havia um homem morto, em traje de cerimônia, com uma faca cravada no coração. Era velho, cheio de rugas e seu rosto causava repugnância. Reconheceram-no somente após terem examinado os anéis que ele usava (WILDE, 1996, p. 256). Dorian Gray passa toda a vida perdido na vaidade e na luxúria e, no final, tenta se redimir e tornar-se bom, mas a sua alma está corrompida por demais para mudar “de repente odiou sua própria beleza e aquela juventude cuja permanência tanto implorara [...]. Por que desejara ele conservar sua aparência, como um disfarce? Por causa dela perdera tudo” (WILDE, 1996, p. 252). Ele deseja uma vida nova. “Sim, ele se tornaria bondoso, e aquele hediondo objeto que se via obrigado a ocultar não mais lhe causaria terror” (WILDE, 1996, p. 253). Nesse momento decidiu destruir o quadro, “da mesma forma que matara o pintor, mataria agora sua obra e tudo aquilo que ela significava” (WILDE, 1996, p. 255). Mas um pacto não se desfaz facilmente, havia chegado a hora de Dorian Gray pagar seu preço. Dessa maneira, ao apunhalar o quadro, apunhala-se a si mesmo. E, nesse momento, o quadro volta a retratar o jovem “em todo o esplendor de sua rara juventude e beleza” (WILDE, 1996, p. 256). O processo de transformação do retrato nos remete ao processo de transformação da arte do final do século XIX. O romance foi escrito em um momento de grandes transformações no campo da arte literária e pictórica. O movimento Impressionista surgia na segunda década do século, com propostas inovadoras, pautadas em uma estética diferente de tudo que se havia produzido até então. “O nome quase irônico, fora inventado quando Monet apresentou o quadro Impressão: Sol Nascente, na Exposição de Artistas Independentes, aberta em abril de 1874 no estúdio do fotógrafo Nadar” (PEREIRA, 1991, p.3). Antes disso Manet havia provocado várias discussões e um grande estranhamento do público e dos salões de arte ao apresentar as telas Almoço na relva (1863) que foi muito criticada tanto pelo uso da técnica quanto pelo motivo e Olímpia (1865) que escandalizou o público por vulgarizar a representação do nu artístico feminino, pois o quadro faz uma leitura intertextual da Vênus de Urbino (1538) de Ticiano, só que não representa uma deusa, mas uma prostituta, vulgarizando o tema e a pose clássica da deusa recostada no divã. 164 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 O Impressionismo consiste na representação da impressão do artista sobre o objeto. O que vale é a sensação do momento, daí a importância da luz e da cor na construção pictórica. Os quadros, na sua maioria, eram pintados ao ar livre, com a pretensão de retratar o momento fugaz da luz sobre o objeto. O processo de elaboração era inédito, confeccionado sem qualquer estudo prévio, com pinceladas rápidas, cores intensas rompendo com o padrão cromático convencional, desenho meio rústico, imagens retorcidas, borradas, pedaços de tela em branco, tudo dando a impressão de inacabamento. O resultado são obras ousadas, estranhamente belas, não pela sublimidade e pela perfeição, mas pelo inédito, estabelecendo uma nova forma de representação do mundo. Já no século XVI inicia a polêmica entre a concepção tradicional da importância da elaboração do desenho e a postura inovadora da utilização da cor e da luz como resultado de uma nova visão da pintura. As duas correntes seguem paralelas até o século XIX onde a cor, a luz e a sombra são usadas na representação da realidade. Ainda neste século persistia uma corrente academicista, que preservava a tradição, adepta ao desenho, à geometria e à organização do espaço da tela, com a utilização de fundo e forma e perspectiva, que repudiava o Impressionismo. Os Impressionistas renunciaram à unidade do quadro, à sua estrutura geométrica, criando um plano de igualdade entre os elementos presentes na tela, dando ao desenho uma função secundária, aberto e inconcluso, elaborado ao longo da execução da obra. A “visão, sempre renovadora em função da luz e de suas variações, passará a ser o verdadeiro tema do quadro. A paisagem predominará sobre toda e qualquer outra forma pictórica, seja ela religiosa, mitológica, ou histórica” (SERULLAZ, 1989, P. 7). No momento em que a fotografia começava a se desenvolver, mas ainda com recursos limitados, retratando apenas em preto e branco, “o olho de extraordinária acuidade dos impressionistas soube ver o que ninguém ousara até então fixar numa tela” (SERULLAZ, 1989, P. 8). Como exemplo de pintura Impressionista, temos o quadro de Van Gogh no seu Auto-Retrato (1887). A expressão do rosto na tela define-se por pinceladas curtas e coloridas – uma técnica denominada pontilhismo. O contraste entre as cores, sempre intensas, determina a imagem na tela. A roupa, o chapéu e o fundo são elaborados da 165 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 mesma maneira. O que dá forma a cada detalhe é a direção determinada pelo pincel. Esse retrato quebra com a noção de beleza clássica da arte retratista. O quadro é belo, não por ser sublime e harmonioso, mas por ser intenso, forte, complexo e extraordinariamente novo. A expressão do olhar que se fixa no espectador marca a tensão interior do artista Vincent van Gogh. Auto-retrato – 1887. Rijksmuseum Vincent van Gogh, Amsterdan Gombrich (1985, p. 438) afirma que Van Gogh não estava preocupado com a representação correta e fiel do objeto, “usou cores e formas para transmitir o que sentia a respeito das coisas que pintava e o que desejava que os outros sentissem”. A preocupação maior do pintor 166 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 era a retratação do que ele sentia e se a distorção ou o uso de cores não convencional ajudassem na sua maneira particular de representação, ele as utilizaria sem qualquer preocupação, por isso ele influenciou os movimentos de vanguarda do início do século XX. Assistindo às grandes mudanças da pintura, Oscar Wilde cria, no universo da ficção, um retrato que quebra com o convencional e rompe com a tradição. O esfacelamento do retrato de Dorian Gray ultrapassa a visão do Impressionismo e nos remete ao Fovismo, um movimento surgido no início do século XX, que recusa toda e qualquer convenção acadêmica. A grande influência no movimento foi a pintura de Van Gogh. Em Paris, nos anos de 1905, no Salão de Outono um grupo de artistas expôs obras de tal maneira chocantes – cores fortes e ousadas, aplicadas com espontaneidade e aspereza – que foram imediatamente batizados como les fauves (as feras) pelo crítico Louis Vauxcelles. Com a intensão de ser um desmerecimento, a designação foi acolhida como uma descrição apropriada a seus métodos e objetivos (DEMPSEY, 2003, P. 66). O fovismo faz a opção pelo uso subjetivo da cor pura, evocando sensações emocionais. As cores são vibrantes e pouco naturais, com pinceladas frenéticas e com excesso de tinta, às vezes o tubo de tinta era espremido diretamente na tela, dando idéia de desordem, consistência e relevo. As imagens, devido ao excesso de tinta, parecem distorcidas e grotescas. O movimento foi a primeira das manifestações do século XX, que chocou o grande público, mas causou sensação e entusiasmo nos colecionadores e críticos de arte. A pintura fovista pode ser classificada como fascinante, mas faz com que o expectador aprenda a ver e reelabore o seu conceito de beleza artística. Henri Matisse foi um dos grandes representantes do movimento. O seu quadro A cigana (1905/1906) é um retrato em que o pintor recusa qualquer traço de beleza. A imagem da cigana é marcada por borrões de tinta, pois o que importa é o jogo de cores e não a imagem, provocando uma tensão, causando desconforto ao espectador, pois a obra possui volume, forma, luz e sombra, quase tudo que se espera de um quadro figurativo; contudo, não há mais a preocupação com a perspectiva. A representação da perfeição e da realidade deixa de ser preponderante, na verdade as técnicas tradicionais da pintura apresentamse de uma maneira bastante singular, dando à tela um sentido de 167 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 desordem e premeditado inacabamento. A intensidade da luz sobre a mulher, representada pela cor branca, distorce a visão A pose clássica do nu feminino recostado em um divã com a mão direita sobre o ombro, como que segurando a cabeça, o meio sorriso, e a flor nos cabelos parecem ironizar a pintura acadêmica, tornando mais forte o contraste da obra com a tradição, pois perde toda a graciosidade e sublimidade. O rosto marcado por borrões de tintas parece mais uma caricatura. A imagem se define pelo contraste entre o claro e o escuro, a luz e a sombra, portanto são as cores e não o desenho que elaboram a figura. Há uma desordem e uma profusão de tinta que, contraditoriamente se harmonizam Henri Matisse. A cigana – 1905/1906. Musée de L’Annonciade, Saint-Tropez 168 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 Outro retrato fovista que causa estranhamento é o de Maurice Vlaminck, Sobre o zinco (1900). O quadro retrata uma prostituta com o rosto coberto de um branco sujo, os cabelos em coque de um loiro terroso, lábios grossos e muito vermelhos, uma flor vermelha na lapela, um cigarro na boca e um copo de bebida vermelha ao lado. A roupa também é de um branco sujo como o rosto. O contraste entre a imagem da mulher mascarada de branco com o fundo escuro, quase preto, realça a expressão de tédio e desencanto. O quadro é ao mesmo tempo encantador e repugnante, condensa a totalidade da emoção impetuosa e selvagem, de uma intensa força cromática, num jogo de cores entre o claro e o escuro, que é a pura representação do grotesco. O que mais impressiona no quadro é a expressão do olhar, de uma ferocidade instintiva que choca o observador pela ironia presente Maurice Vlaminck. Sobre o zinco – 1900. Musée Calvert, Avgnon. 169 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 Assim também é o quadro de Dorian Gray depois de totalmente transformado. A descrição do retrato faz com que o leitor estabeleça relação com a pintura fovista, pois ele perde a harmonia, o traço perfeito, as cores vibrantes e se torna grotesco, desfigurado, cruel, retratando o lado tenebroso da alma humana Contudo, ele o estava observando, com seu belo rosto desfigurado e seu cruel sorriso. Seus cabelos loiros reluziam à luz da manhã. Seus olhos azuis encontraram-se com os dele. Sentiu uma infinita piedade, não por si mesmo, mas pelo retrato. Já estava transformado e iria transformar-se mais ainda. Seu ouro perderia o brilho, acinzentando-se. As rosas brancas murchariam. Cada pecado que cometesse seria mais uma mancha que acabaria por arruinar-lhe a beleza (WILDE, 1996, p. 108). A distorção da imagem do quadro para retratar os aspectos emocionais e a intimidade do modelo, distancia-o do conceito de beleza e perfeição clássica. As descrições da transformação do quadro parecem terríveis, mostrando toda a fealdade do homem, chocando o leitor. Segundo Paz (1991, p. 145) a arte moderna abre espaço para outras formas de representação e o conceito de belo torna-se plural, redescobrindo “a beleza horrível de seus poderes de contágio”. Assim como a pintura, o romance também se desenvolve nesse período de intensas transformações. Segundo Rosenfeld (2006), a transformação do romance é análoga à transformação da pintura. Ele afirma que no campo das artes vai surgir o fenômeno da “desrealização”, uma recusa à arte mimética, não mais produzindo a realidade empírica e sensível. Esse aspecto é preponderante na pintura abstrata, mas também na pintura figurativa do final do século XIX e início do XX, visto que “mesmo essas correntes deixam de visar a reprodução mais ou menos fiel da realidade empírica” (ROSENFELD, 2006, p. 76), podendo deformar a aparência, criar contexto insólito, redução de suas configurações, havendo, na verdade “uma negação do realismo, se usarmos este termo no sentido mais lato, designando uma tendência de reproduzir, de uma forma estilizada ou não, idealizada ou não, a realidade apreendida pelos nossos sentidos” (ROSENFELD, 2006, p. 76). Esse aspecto da desrealização pode ser visto nos quadros acima apresentados e, também, na descrição do quadro fictício da personagem do romance de Wilde. 170 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 Wilde consegue ser bastante inovador ao desconstruir ou “desrealizar” o quadro, que se projeta no futuro da pintura, em direção ao esfacelamento da imagem. Ao transformar o quadro, ele também transforma a personagem Dorian Gray, na verdade, a história do romance gira em torno desta personagem controversa, que por um determinado tempo, realiza a utopia da raça humana – permanecer sempre jovem e belo. Hoje, em pleno século XXI, esse sonho de eterna juventude está sendo levado às últimas conseqüências, somos o Fausto pós-moderno que, não conseguindo resgatar Mefistófeles para barganharmos nossa vida em troca de vaidade, entregamos nosso corpo nas mãos de um cirurgião plástico que nos retalha e nos transforma em caricaturas, imagens distorcidas de nós mesmos. Temos a falsa ilusão de que poderemos parar o tempo. A tecnologia na área de cosméticos, as pesquisas na área da biogenética e tantas outras, prometem essa façanha fazendo-nos correr atrás do sonho da eterna juventude. Voltando ao romance, o seu processo de “desrealização”, estruturalmente falando, pouco se apresenta. Segundo Rosenfeld (2006, p. 80) “as alterações ocorridas no romance não ‘dão tanto na vista’ como as de uma arte visual. Além disso, o mercado de romances é abastecido em escala muito maior por obras de tipo tradicional” (grifos do autor). No entanto, podemos apontar algumas mudanças expressivas, como: uma aproximação do gênero dramático, na medida em que há uma presença marcante de diálogos, longas discussões em que o narrador onisciente cede a palavra às personagens, dando a elas o direito a uma voz que se sobressai em discussões filosóficas sobre a existência, a moral, os costumes e, essencialmente, sobre arte. Outro aspecto encontra-se na construção do herói romanesco que vai sendo definido ao longo da narrativa, transformando-se em anti-herói. A personagem principal perde toda a sua heroicidade ao tornar-se um ser desprovido de moralidade, assim como no quadro que vai deformando a imagem, a sua personalidade também vai sendo deformada, tornando-se paradoxal. Na concepção de Rosenfeld (2006), uma modificação do romance análoga à pintura moderna é a eliminação do espaço, ou a ilusão do mesmo e a descontinuidade do tempo. Em O retrato de Dorian Gray, o espaço não é um elemento preponderante, ele apenas delimita o local por onde transita a personagem, o importante é saber que a ambientação é urbana e que a história se passa em uma grande 171 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 cidade que poderia ser qualquer outra que não Londres. Os lugares se apresentam esfacelados, pouco descritos, apenas funcionando como pano de fundo para as ações das personagens. Já o tempo, apesar da delimitação temporal da narrativa, pois ela acontece no final do século XIX, na mesma época em que o romancista vivia, não há uma preocupação em explicar a eterna juventude de Dorian Gray, tudo a sua volta muda, as pessoas envelhecem e só ele permanece imutável. A leitura do romance dá impressão ao leitor de que o tempo não passa, parecendo ter-se congelado no momento em que Dorian Gray faz o pacto de eterna juventude. O romance apresenta indícios de fluir de tempo, mas o leitor tem a falsa sensação de imutabilidade. “Com isso, espaço e tempo, formas relativas da nossa consciência, mas sempre manipuladas como se fossem absolutas, são por assim dizer denunciadas como relativas e subjetivas” (ROSENFELD, 2006, p. 80). Para Rosenfeld (2006, p 81), o aspecto realmente novo na construção tanto da pintura quanto da literatura não é a escolha do tema, nem o uso de alegorias pictóricas, tampouco a elaboração da personagem do romance, mas a “assimilação desta relatividade à própria estrutura da obra de arte” e é isso que observamos no romance de Wilde, que apresenta traços de inovação, inclusive no que se refere “a visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a do senso comum é incorporada à forma total da obra. É só assim que essa visão se torna realmente válida em termos estéticos” (ROSENFELD, 2006, p. 81). Ao retratar a personagem em todas as suas nuances, de uma forma realista e bastante irônica, dando a ela mobilidade para exprimir sua visão particular de mundo, tornando-a transparente para o leitor, faz com que esse excesso de realismo se torne “mais real”, e mais profundo, alcançando, inclusive, a esfera do fantástico. A transformação do quadro, retratando a plenitude da personalidade de Dorian Gray e a sua aparência imutável, é uma atitude fantástica. Não nos cabe, aqui uma discussão sobre a literatura fantástica, pois nosso interesse é outro, no entanto, lembrando a posição de Todorov (1975, p. 31), o fantástico ocorre da incerteza do real com o irreal, “é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face um acontecimento aparentemente sobrenatural”. O fantástico, ainda, “implica, pois uma integração do leitor no mundo das personagens, define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor 172 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 dos acontecimentos narrados” (TODOROV, 1975, p. 37). O leitor, ao longo da narrativa, depara-se com uma atmosfera peculiar, carregada de questões aparentemente inexplicáveis e absurdas, que vão se revelando ao longo da leitura. A hesitação do leitor diante dos fatos narrados é constante, o que segundo Todorov (1975), é a primeira condição para que o fantástico se instale. Afinal “uma época com todos os valores em transição e por isso incoerentes, uma realidade que deixou de ser ‘um mundo explicado’, exige adaptações estéticas capazes de incorporar o estado de fluxo e insegurança dentro da própria estrutura da obra” (ROSENFELDE, 2006, p. 86, grifo do autor). A questão estética atua como fator preponderante no romance. A maneira de ver o mundo das personagens reflete a postura do autor diante da arte. Percebemos aí, igualmente, a contraposição entre tradição e inovação. O romance apresenta um interesse pelo processo de transformação e inovação tanto da pintura quanto da literatura. Nesse sentido, temos também, o processo de construção do romance que se dá de forma bastante inovadora. Para finalizarmos o artigo e não o assunto, que é infindável, pois vários pontos-de-vista podem conferir resultados positivos no processo de análise da obra, o aspecto que mais nos chamou a atenção foi o processo de representação da pintura no romance e a relação entre literatura e pintura na construção do mesmo. Discussões sobre arte perpassam todo o romance. Podemos citar como mais um exemplo a experiência de Basílio ao executar sua obra e a sua relação com o modelo Dorian Gray é um simples motivo de arte para mim. Você poderia não ver nada nele. Eu vejo tudo. Nunca está tão presente no meu trabalho como quando não vejo nenhum traço dele. É uma nova modalidade de influência, como lhe disse. Percebo-o nas curvas de certas linhas, na maravilha e na sutileza de certas cores. Isso é tudo (WILDE, 1996, p. 23). É interessante essa supremacia da arte, pois o homem só se torna importante enquanto objeto artístico. Dorian Gray, com sua beleza ímpar, foi capaz de influenciar e encantar o pintor que o transformou em uma “estranha idolatria artística”. Dorian Gray, para Basílio, define “as linhas de uma nova escola, de uma escola que unisse toda a paixão do espírito romântico a toda a perfeição do espírito grego. A harmonia do corpo e da alma” (WILDE, 1996, p. 22), mas como nem tudo pode 173 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 ser perfeito, Basílio descobre, estarrecido, que sua obra se transformou, perdendo perfeição, harmonia, negando o espírito grego. Afinal a arte do século XIX, principalmente no seu final, nega a beleza e a perfeição clássica, por isso o ideal estético de Basílio não se realiza no romance, sua obra-prima torna-se esfacelada, bizarra, desfigurada, encerrando o novo conceito de representação da figura humana. Nesse sentido, Paz (1991, p. 145) afirma que, ao contrário da antiguidade clássica que sagrou à figura humana o “cânon supremo da beleza”, a arte moderna foi “sobretudo uma investida contra a figura humana”. Em consonância com essa concepção de arte, Wilde desfigura a imagem de Dorian Gray, representada na tela criada por Basílio. Contudo, no final do romance, Wilde volta ao início e resgata a obra, dando-a novamente uma dimensão sublime. Afinal, Dorian Gray teve que pagar o seu preço, por isso ele teve que morrer. A partir do momento em que ele, mesmo que involuntariamente, se mata o quadro liberta-se da maldição e a obra de arte volta a seu esplendor e à sua perenidade. Apesar deste final quebrar com parte da inovação, sendo previsível e nada surpreendente, já que a solução para o pacto, o grotesco, o esfacelamento, o fantástico foi a morte; assim mesmo, reiteramos que a postura de Wilde é bastante inovadora. Dorian Gray é sua grande criação, ele possui uma força indomável e amoral é a força que conduz o gênio, distinguindo-o do homem comum, distanciando-o da mediocridade. Ele é uma força natural, como se fosse em si a natureza, livre dos cânones, devendo dar total vazão à emoção, rompendo brutalmente com os padrões estabelecidos. A sua visão sobre a pintura também deve ser destacada, pois ela ultrapassou o seu momento histórico, em direção às propostas de uma nova estética que vai se firmar no início do século XX, pelas mãos dos artistas adeptos do movimento Fovista. Referências BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. A teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1988. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Trad. Carlos F. Moisés & Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Cia. das Letras, 1986. 174 OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009 DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos. Guia enciclopédico da arte moderna. Trad. Carlos Eugênio M. de Moura. São Paulo: Cosac Naify, 2003. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução do “Prefácio de Cromwell”. Trad. Celia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 1988. PAZ, Octavio. Convergências. Ensaios sobre arte e literatura. Trad. Moacir Wernec de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. PEREIRA, Aldo. Os impressionistas. Auguste Renoir. São Paulo: Globo, 1991. ______. Os impressionistas. Vincent Van Gogh. São Paulo: Globo, 1991. PIZZO, Esníder & MAZZOLENIS, Sheila. Matisse e os fovistas. São Paulo: Globo, 1990. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ___ Texto e contexto I. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 75-97. SERULLAZ, Maurice. O impressionismo. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. SILVA, Maria Cristina F. da. Oscar Wilde. In: WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Maria Cristina F. da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 5-12. WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Trad. Maria Cristina F. da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1996. Artigo recebido em 30/11/2009 e aceito para publicação em 28/12/2009. 175