OPSIS, Catalão, v. 9, n. 13, p. 155-175, jul-dez 2009
A RELAÇÃO ENTRE PINTURA E LITERATURA EM
O RETRATO DE DORIAN GRAY DE OSCAR WILDE
THE RELATIONSHIP BETWEEN PAINTING AND
LITERATURE IN “THE PICTURE OF DORIAN
GRAY” FROM OSCAR WILDE
Maria Imaculada Cavalcante1
Sidney Barbosa2
Resumo: Este artigo tem como
objetivo central analisar a relação
entre literatura e pintura, visando
compreender o processo de
construção do romance e o espaço
de representação da pintura em O
retrato de Dorian Gray (1891), do
escritor irlandês Oscar Wilde, sob a
influência dos movimentos de
vanguarda que surgiram no século
XIX,
principalmente
o
Impressionismo e o Fovismo.
Palavras-chave: Literatura, Pintura,
Representação, Oscar Wilde.
Abstract: This article aims at
examining the relationship between
literature and painting, seeking to
understand the process of
construction of the novel and space
representation of the painting in The
picture of Dorian Gray (1891), from
the Irish writer Oscar Wilde, under
the influence of the avant-garde
movements that emerged in the
nineteenth century, especially
Impressionism and Fauvism.
Keywords: Literature, Painting,
Representation, Oscar Wilde.
A modernidade é um divisor de águas entre a tradição e a
inovação, uma forma inédita de pensar o mundo que deixou de ser
simples e determinável, objetivo e explicável, para tornar-se complexo e
indeterminável, subjetivo e inexplicável. Nos séculos XVI a XVIII
grandes acontecimentos redimensionaram o pensamento e o cotidiano
do homem, quais foram: as navegações marítimas proporcionando uma
maior mobilidade, ampliando geograficamente o mundo e provocando
a revolução comercial; as descobertas científicas no campo das ciências
______________________________________________________
1
Professora Doutora do Curso de Letras e do Mestrado em Geografia do Campus de
Catalão/UFG. Este artigo é parte de um projeto de Pós-Doutorado intitulado “A
representação da pintura no romance moderno”, realizado na UNESP/Campus de
Araraquara, sob a Supervisão do Professor Livre Docente Sidney Barbosa. Email:
imaculadacavalcante@bol.com.br
2
Professor Livre Docente, membro do programa de Pós-Graduação da UNESP/
Campus de Araraquara e professor efetivo do Departamento de Letras da UNB. Email lucidney@uol.com.br
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exatas, físicas e biológicas gerando maior conforto; a queda do
feudalismo e a ascensão da burguesia redimensionando os papéis sociais;
a Reforma Protestante e a Contra-Reforma reelaborando o conceito de
fé e o poder da Igreja Católica; a implantação do Capitalismo
transformando a economia mundial; o processo vertiginoso de
urbanização com o aparecimento de cidades pólo como Paris, Londres,
Berlim; o surgimento de uma classe média que vai determinar o estilo
de vida do cidadão; o Industrialismo e o aparecimento de uma classe
trabalhadora proletária... Apenas para arrolar os fatos mais importantes.
Todas estas transformações foram determinantes para explicar o
comportamento do homem moderno.
A partir da Idade Média, com a Renascença e o Iluminismo,
esse conjunto de mudanças passou a definir a arte. No final do século
XVIII o mundo ocidental assiste a uma transformação radical nas
diversas formas de representação artística, caracterizando um movimento
de transgressão e ruptura com a tradição. Essas mudanças concentraramse com maior intensidade no Romantismo, tornaram-se enfáticas no
Modernismo e se estenderam até a contemporaneidade. Para Marshall
Bermann (1986), o que diferencia o homem moderno do homem dos
séculos anteriores é a consciência dessas transformações, pois ele ainda
se lembrava do que era viver em um mundo material e espiritual bem
definido e sabia o que era viver uma era revolucionária e explosiva em
todos os níveis de vida: pessoal, social, política, econômica, cultural e
artística, “é dessa profunda dicotomia, dessa sensação de viver em dois
mundos simultaneamente, que emerge e se desdobra a idéia de
modernismo e modernização” (BERMANN, 1986, p. 19).
Esses fatores, de ordem externa à literatura, vão concorrer para
acelerar o rompimento do artista com os valores estéticos do classicismo,
resultando em uma nova forma de ver e representar o mundo. O avanço
científico, tecnológico e econômico interferiu diretamente na arte. O
desenvolvimento industrial só beneficiou a uma minoria, surgindo graves
problemas de ordem social em relação às massas de trabalhadores,
gerando um descontentamento entre os intelectuais, provocando reações
contra o estado de miséria que se instalou. O conflito espiritual foi o
sintoma desse novo homem que não conseguiu resolver a desigualdade.
Como resultado, a sensibilidade do artista colocou-se contra esse
paradoxo criado pela má distribuição de rendas que levou à extrema
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miséria em meio à grande abundância. Diante desse estado de
contradições a ironia atuou nas artes em geral como elemento destruidor
da ordem habitual.
O sentimento de inadequação à realidade desencadeou a
desilusão e a revolta, marcadas pela contradição e pela rejeição ao
instituído. Mas o artista não se limitou a negar os valores vigentes, ele
também foi crítico e questionador, não se sujeitando às imposições do
mundo burguês e à sociedade capitalista. Demonstrando um profundo
interesse pelas transformações da época ele se pôs a retratar e a analisar
a realidade. Nesse contexto, composto por intensas transformações
sociais, políticas, econômicas e, principalmente estéticas é que se insere
Oscar Wilde e sua produção literária. Nesse artigo, em especial, pretendese analisar a relação entre literatura e pintura, no intuito de averiguar
como Wilde via as duas formas de representação artística e como ele as
apresentou no romance O retrato de Dorian Gray, visto que uma de
suas temáticas versa sobre o processo de transformação da pintura, sob
a influência dos movimentos de vanguarda que surgiam na época, como
o Impressionismo, o Decadentismo, o Simbolismo, o Fovismo, o
Expressionismo e o Cubismo.
Oscar Fingal O’Flaheritie Wills Wilde nasceu em Dublin, na
Irlanda, em 1854 e morreu em Paris em 1900. Por ser filho de mãe
escritora, revolucionária e feminista, Jane Francesca Elgee, ele teve a
oportunidade de conviver com artistas, literatos e boêmios, vivendo em
um mundo artificial, de ostentação e vaidades. Talvez, por isso,
desenvolveu um sentimento de superioridade e tornou-se um devasso
para os padrões morais da época, principalmente pela sua declarada
homossexualidade, rompendo com os padrões morais em vigência. Silva
(1996) afirma que o escritor era considerado amoral, portava-se como
um dândi, chocando os salões ingleses por sua maneira de vestir, seu
cabelo longo e cacheado, sua conduta, suas tiradas agudas e suas frases
de efeito. Dorian Gray, de certa forma, representa-o na sua maneira
de postar e de vestir, na sua beleza e na sua ostentação, ele é a
representação de sua personalidade cativante, destemida, transgressora
e, por isso mesmo, fascinante. Mas é Lorde Henry Wotton que o
representa nas suas tiradas ferinas e frases de efeito e, ambos
representam a sua amoralidade. As duas personagens presentes em O
retrato de Dorian Gray são duas facetas de sua personalidade
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complexa. Vítima do preconceito, em 1895, Wilde foi preso e
condenado por dois anos, por prática de homossexualismo, o que o
levou à obscuridade pelo resto da vida
Como conseqüência, seus livros foram retirados do mercado
e suas peças, dos teatros. Sua casa foi vendida e durante o
leilão seus bens foram pilhados pelos presentes. Nem mesmo
o sucesso de suas novas peças, encenadas naquele ano, Um
marido ideal e A importância de ser sério, puderam salválo da desgraça e do esquecimento (SILVA, 1996, p. 11).
Quando saiu da prisão Wilde não encontrou espaço na sociedade
londrina e refugiou-se em Paris, morrendo sozinho e esquecido pela
família e pelos amigos. Só mais tarde a sua obra foi retomada e
reconhecida pela crítica e pelo público.
O escritor foi poeta, teatrólogo, contista e romancista. Suas peças
de teatro foram levadas ao palco londrino e fizeram bastante sucesso,
tornando-o conhecido e apreciado. Dentre a sua obra O retrato de
Dorian Gray é uma das mais lidas pelo público atual. Escrito em 1876,
o primeiro capítulo do livro apareceu em folhetim, em janeiro de 1890;
contudo, foi publicado na íntegra só em março de 1891. O romance é
uma crítica ao estilo de vida, ao preconceito e a hipocrisia da sociedade
vitoriana. A personagem Dorian Gray é bela, sedutora, jovial,
aparentemente ingênua e perfeita, mas possui uma alma diabólica, capaz
de praticar todos os vícios e atrocidades, chegando até a cometer
assassinato sem; contudo, ser punida pela sociedade, que não conseguia
enxergar sua conduta, vendo apenas a superficialidade de sua beleza
física. Segundo Silva (1996, p. 9), o romance não foi bem recebido pela
crítica da época “principalmente pelos moralistas, que consideravam uma
obra envenenadora dos costumes. O autor, no entanto, afirmava que
seu romance era moralmente perfeito”, pois, no seu entender, vícios e
virtudes são para o artista materiais de arte.
O romance inicia com o pintor Basílio Hallward retratando o
jovem Dorian Gray. O que mais destaca no rapaz é sua extrema beleza
física, sua postura ingênua e cativante, que é eternizada em uma obra
de arte, podendo ser apreciada no ateliê do artista: “no centro do quarto,
preso a um cavalete encontrava-se o retrato, em tamanho natural, de
um jovem de extraordinária beleza” (WILDE, 1996, p. 13). Analisando
o quadro, o amigo Henry afirma que “era realmente uma estupenda
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obra de arte, e a semelhança, estupenda também./– Meu caro amigo,
permita-me que o felicite calorosamente – disse. – É o mais belo retrato
dos tempos modernos. Sr. Gray, venha contemplar-se” (WILDE, 1996,
p. 36). O quadro possui harmonia, proporção, beleza e construção
plástica, é um perfeito clássico da pintura retratista.
Basílio também se encanta com sua obra e apaixona-se pela
beleza de seu modelo, sente que realizou sua obra-prima, porém decide
que não exporá o quadro, pois ele afirma: “coloquei demasiado de mim
mesmo nele”. Ele entende que expondo sua obra se desnudará diante
do público, por isso acha que ela deve ser preservada dos olhos de
estranhos. Decide, então, presenteá-la a Dorian Gray. Essa esplêndida
obra de arte desencadeará toda a intriga do romance, pois o rapaz,
diante de tão extraordinária pintura, encanta-se com a própria beleza
eternizada na tela
Passou displicentemente na frente do retrato e depois virou-se
para ele. Ao vê-lo, recuou e, por um instante, suas faces ficaram rubras
de prazer. Uma centelha de alegria brilhou em seus olhos, como se se
tivesse reconhecido pela primeira vez. Permaneceu imóvel por algum
tempo, maravilhado, percebendo confusamente que Hallward lhe falava,
mas sem compreender o significado das suas palavras. A sensação da
sua própria beleza surgiu no seu íntimo como uma revelação. Até então
não tivera plena consciência dela (WILDE, 1996, p. 37).
Nesse momento de revelação e compreensão de si mesmo, o
rapaz se perde, deixando que a vaidade passe a reger seus passos. Ele
não só compreende que é belo, mas que a sua beleza fascina os outros,
podendo tirar proveito disso, manipulando as pessoas. Ao ser indagado
se o quadro lhe agradaria ele responde: “– Apreciá-lo? Adoro-o Basílio.
Sinto que é parte de mim mesmo” (WILDE, 1996, p. 39). E Basílio
responde: “– Bem, assim que ‘você’ estiver seco, será envernizado,
colocado numa moldura e enviado à sua casa. Você poderá, então, fazer
o que quiser de ‘você’ mesmo” (WILDE, 1996, p. 39, grifos do autor).
Mas, diante do quadro, o jovem compreende que essa beleza é efêmera
e isso o angustia, por isso expressa seu desejo em permanecer para
sempre jovem como o momento em que o retrato foi concluído e
assinado
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– Como é triste – murmurou Dorian, ainda com os olhos
fixos em seu retrato. – Como é triste! Eu me tornarei velho,
horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre
jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de
junho... Se acontecesse o contrário! Se eu ficasse sempre
jovem, e se este retrato envelhecesse! Por isso... Por isso eu
daria até a minha própria alma! (p. 38)
E, por incrível que pareça, seu desejo é atendido. A semelhança
entre o retrato e o modelo é tão grande que eles se tornam, literalmente
um; pois o retrato, a princípio imutável, passa a sofrer as transformações
que deveriam ocorrer no homem e o tempo pára para Dorian Gray
que permanecerá sempre jovem. A constatação de que o retrato passará
a assumir todas as transformações do tempo faz com que Gray leve
uma vida de devassidão e vícios, chegando ao excesso de matar Basílio
para proteger seu segredo. O mais incrível é que o retrato passa a
representar não só o processo de envelhecimento do homem, mas sua
alma corrompida e suas atitudes transgressoras. Qualquer atitude do
rapaz que fuja aos padrões morais e éticos o quadro representa, como
se um pintor fosse, minuciosamente, representando na tela a real
personalidade de Dorian Gray.
A transformação do quadro nos remete à literatura fáustica,
onde o homem faz um pacto com o diabo, vendendo sua alma para
alcançar determinados fins, como: poder, conhecimento, glória, dinheiro,
mulheres. No caso de Dorian Gray, beleza e juventude. No entanto ele
tem que pagar um preço – a perda da sua alma. O narrador onisciente,
logo nas primeiras páginas, prenuncia o resultado desse pacto diabólico
Sim, chegaria o dia em que seu rosto se enrugaria e
murcharia, seus olhos perderiam o brilho e cor e a graça de
suas faces se romperia e deformaria. O carmesim de seus
lábios iria desvanecer, da mesma forma que o ouro de seus
cabelos. A vida que devia formar sua alma iria deformar-lhe
o corpo. Tornar-se-ia horrível, disforme, grotesco (WILDE,
1996, p. 37).
O que e o narrador vaticina em relação ao homem acontece
com a pintura. A imagem refletida na tela, antes bela e perfeita
transforma-se em horripilante e grotesca. Segundo Hugo (1988, p. 31),
o grotesco tem um papel importante no pensamento moderno, pois ele
é “um tempo de parada, um termo de comparação, um ponto de partida,
de onde nos elevamos para o belo com uma percepção mais fresca e
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mais excitada. A salamandra faz sobressair a Ondina, o gnomo embeleza
o silfo”, e o retrato pintado por Basílio fez de Dorian Gray um ser
ainda mais belo. Por essa razão ele adorava confrontá-lo com a própria
imagem: “sentava-se diante do retrato, muitas vezes odiando a si mesmo,
mas, algumas outras cheio desse orgulho próprio do individualista que
é a quase fascinação do pecado, e sorria com secreto prazer àquela
sombra informe que suportava a carga que deveria caber a ele próprio”
(WILDE, 1996, p. 163).
A temática fáustica tornou-se uma tradição na literatura ocidental
a partir do século XVIII. O mito do Fausto, que vende a alma ao
diabo em troca de poder e conhecimento, foi retomada no Fausto de
Goethe, Doutor Fausto de Thomas Mann, Mon Faust de Paul Valery,
Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, só para rememorar alguns.
O resgate da lenda de Fausto determina um tipo de personagem que
representa o típico anti-herói moderno, insatisfeito com a vida em geral,
com a sociedade e seus falsos valores, com a religião e seus dogmas e
com a fugacidade da vida. A personagem fáustica procura vencer, de
todas as formas, os limites do humano para atingir seus objetivos.
Segundo Bakhtin (1988, p. 425) um dos principais temas do romance
moderno é a “inadequação de um personagem ao seu destino e à sua
situação. O homem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua
humanidade”. É essa inadequação que faz do herói fáustico um ser
desajustado, ansiando por reescrever o seu destino e superar a sua
humanidade, pois ele “não se encarna totalmente na substância sóciohistórica do seu tempo” (BAKHTIN, 1988, P. 425).
O herói fáustico é um sonhador, um utopista, um rebelde e um
transgressor. Assim é Dorian Gray, o espírito de rebeldia está em todas
as suas atitudes. Ele é um jovem individualista, narcisista, irreverente,
de alma sensivelmente abalada, cheio de imaginação e insatisfeito com
o próprio destino e com o destino do homem. Por isso a adoção de
uma temática fáustica, por parte de Wilde, explica parte da obra, pois
representa o rompimento com o cânone e o destronamento da
moralidade. No Romance, processa-se uma posição de mística invertida,
onde os componentes mais intrincados da sociedade e do bom senso
são ridicularizados e ironizados.
Outra atitude marcante em Dorian Gray, determinante de seu
anti-heroísmo, é o seu narcisismo. Assim como Narciso, ele apaixona-se
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pela a própria imagem e perde-se por ela. Narciso vê o seu rosto refletido
no lago e encanta-se com tamanha beleza. Ao perceber que apaixonara
por sua própria imagem deseja morrer. Já Dorian Gray só pode amar a
si mesmo e sente prazer nesta auto-adoração, desejando viver
intensamente. A sua beleza fascina-o o tempo todo: “uma vez, travessura
infantil de Narciso, havia beijado, ou fingido beijar, aqueles lábios
pintados que agora lhe sorriam tão cruelmente. Quantas manhãs não
passará sentado diante do retrato, maravilhado com sua beleza, e quase
apaixonado por ela!” (WILDE, 1996, p. 124). Dorian Gray comete o
pecado da vaidade e por ele barganha sua alma.
È interessante como, no romance, Wilde separa o corpo da
alma, como ele dá vida e estabelece uma representação concreta da
alma de Dorian Gray, pois retrato é, principalmente, a imagem da alma.
Em um diálogo entre Gray e Lord Harry, este pergunta: “– A propósito,
Dorian – disse, após uma pausa –, qual o proveito de um homem que
ganha o mundo inteiro, mas perde sua própria alma?” (WILDE, 1996,
p. 244/245). Gray surpreende-se com a pergunta e Harry explica que
ouviu a frase de um pregador e que teve vontade de responder que “a
arte tem uma alma, mas que o homem não a tem”, no que Dorian
responde “– Não, Harry. A alma é uma terrível realidade. Pode ser
comprada, vendida ou trocada. Uma pessoa pode envenená-la ou
aperfeiçoá-la. Cada um de nós possui uma alma. Tenho certeza.”
(WILDE, 1996, p. 245). Essa certeza é baseada na própria experiência,
pois todos os dias ele vê sua alma retratada no quadro, que vai se
transformando, corrompendo a forma original da beleza retratada na
obra de arte, tornando-se, a cada dia e a cada ação transgressora, mais
degradante e grotesca.
Segundo Hugo (1988, p. 22) a antiguidade pensava o homem
de forma completa e indissociável, podendo até aproximar-se dos deuses,
por isso os heróis gregos são semideuses, mas o Cristianismo estabeleceu
uma separação entre o homem e o seu Deus e, ainda, dividiu o homem
em dois, um constitui-se de corpo e o outro de alma. “Põe um abismo
entre a alma e o corpo, um abismo entre o homem e Deus”. O homem
perdeu o contato com os deuses pagãos e não conseguiu aproximar-se
do Deus cristão. A dicotomia entre corpo e alma deixou-o perdido,
pois o Cristianismo legou-o um dilema terrível, tendo que escolher entre
a satisfação do corpo e a purificação da alma, entre o paraíso e o
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inferno. A idéia do “pecado”, desde então, vem cerceando as ações
humanas, criando o sentimento de melancolia. Para o teórico, a
melancolia é um sentimento herdado do Cristianismo e que se perpetua
no homem moderno.
Ao final do romance Basílio vai procurar Dorian Gray para
pedir o quadro emprestado para uma exposição. Depois de tanto tempo
ele decide expor ao mundo a sua obra-prima, mas Dorian Gray, movido
pelo ódio, de certa forma culpando o pintor por toda a sua vida
desregrada, maldosamente mostra a criação ao criador. Diante de um
quadro monstruoso, apesar de estupefato, o pintor reconhece traços de
sua obra original.
Uma exclamação de horror brotou dos lábios do pintor,
quando viu, à luz débil da vela, o rosto medonho que parecia
sorrir-lhe sarcasticamente da tela. Havia alguma coisa em sua
expressão que o enchera de repugnância e aversão. Santo
Deus! Era o próprio rosto de Dorian Gray que estava vendo!
A devassidão, por maior que fosse, não tinha conseguido
corromper de todo aquela maravilha de beleza. Ainda se via
alguns cabelos dourados na cabeça e a boca sensual era ainda
vermelha. Os olhos, inchados, conservavam algo de seu azul
tão puro e ainda não haviam desaparecido as finas curvas
do nariz, delicadamente cinzelado, e as de seu bem torneado
pescoço. Sim, aquele era Dorian Gray. Mas quem fizera
aquilo? Parecia-lhe reconhecer suas próprias pinceladas e a
moldura que ele mesmo havia desenhado. A idéia era
monstruosa. Estava aterrorizado. Apanhou a vela e
aproximou-a do retrato. No ângulo esquerdo havia o seu
próprio nome, traçado em grandes letras de vermelho vivo
(WILDE, 1996, p.180).
Estarrecido, Basílio nega-se a acreditar no que via e, nesse
momento, cheio de ódio, Dorian Gray mata-o e some com o corpo. A
narrativa só termina quando Dorian Gray resolve redimir-se de todos
os “pecados” cometidos; para isso, tenta destruir o quadro, o retrato
vivo de sua alma corrompida. Contudo, ao apunhalar o quadro, no
intuito de destruí-lo, ele destrói a si mesmo. O punhal crava em seu
corpo e ele jaz morto no chão. Os empregados da casa encontram-no
caído todo deformado e velho, aos pés de seu maravilhoso retrato.
Quando entraram, encontraram pendurado na parede um
maravilhoso retrato de seu patrão, que o representava como
estavam habituados a vê-lo, em todo o esplendor de sua rara
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juventude e beleza. Estendido no chão, havia um homem
morto, em traje de cerimônia, com uma faca cravada no
coração. Era velho, cheio de rugas e seu rosto causava
repugnância. Reconheceram-no somente após terem
examinado os anéis que ele usava (WILDE, 1996, p. 256).
Dorian Gray passa toda a vida perdido na vaidade e na luxúria
e, no final, tenta se redimir e tornar-se bom, mas a sua alma está
corrompida por demais para mudar “de repente odiou sua própria beleza
e aquela juventude cuja permanência tanto implorara [...]. Por que
desejara ele conservar sua aparência, como um disfarce? Por causa dela
perdera tudo” (WILDE, 1996, p. 252). Ele deseja uma vida nova. “Sim,
ele se tornaria bondoso, e aquele hediondo objeto que se via obrigado
a ocultar não mais lhe causaria terror” (WILDE, 1996, p. 253). Nesse
momento decidiu destruir o quadro, “da mesma forma que matara o
pintor, mataria agora sua obra e tudo aquilo que ela significava” (WILDE,
1996, p. 255). Mas um pacto não se desfaz facilmente, havia chegado a
hora de Dorian Gray pagar seu preço. Dessa maneira, ao apunhalar o
quadro, apunhala-se a si mesmo. E, nesse momento, o quadro volta a
retratar o jovem “em todo o esplendor de sua rara juventude e beleza”
(WILDE, 1996, p. 256).
O processo de transformação do retrato nos remete ao processo
de transformação da arte do final do século XIX. O romance foi escrito
em um momento de grandes transformações no campo da arte literária
e pictórica. O movimento Impressionista surgia na segunda década do
século, com propostas inovadoras, pautadas em uma estética diferente
de tudo que se havia produzido até então. “O nome quase irônico, fora
inventado quando Monet apresentou o quadro Impressão: Sol
Nascente, na Exposição de Artistas Independentes, aberta em abril de
1874 no estúdio do fotógrafo Nadar” (PEREIRA, 1991, p.3). Antes
disso Manet havia provocado várias discussões e um grande
estranhamento do público e dos salões de arte ao apresentar as telas
Almoço na relva (1863) que foi muito criticada tanto pelo uso da
técnica quanto pelo motivo e Olímpia (1865) que escandalizou o público
por vulgarizar a representação do nu artístico feminino, pois o quadro
faz uma leitura intertextual da Vênus de Urbino (1538) de Ticiano, só
que não representa uma deusa, mas uma prostituta, vulgarizando o tema
e a pose clássica da deusa recostada no divã.
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O Impressionismo consiste na representação da impressão do
artista sobre o objeto. O que vale é a sensação do momento, daí a
importância da luz e da cor na construção pictórica. Os quadros, na
sua maioria, eram pintados ao ar livre, com a pretensão de retratar o
momento fugaz da luz sobre o objeto. O processo de elaboração era
inédito, confeccionado sem qualquer estudo prévio, com pinceladas
rápidas, cores intensas rompendo com o padrão cromático convencional,
desenho meio rústico, imagens retorcidas, borradas, pedaços de tela em
branco, tudo dando a impressão de inacabamento. O resultado são obras
ousadas, estranhamente belas, não pela sublimidade e pela perfeição,
mas pelo inédito, estabelecendo uma nova forma de representação do
mundo.
Já no século XVI inicia a polêmica entre a concepção tradicional
da importância da elaboração do desenho e a postura inovadora da
utilização da cor e da luz como resultado de uma nova visão da pintura.
As duas correntes seguem paralelas até o século XIX onde a cor, a luz
e a sombra são usadas na representação da realidade. Ainda neste século
persistia uma corrente academicista, que preservava a tradição, adepta
ao desenho, à geometria e à organização do espaço da tela, com a
utilização de fundo e forma e perspectiva, que repudiava o
Impressionismo. Os Impressionistas renunciaram à unidade do quadro,
à sua estrutura geométrica, criando um plano de igualdade entre os
elementos presentes na tela, dando ao desenho uma função secundária,
aberto e inconcluso, elaborado ao longo da execução da obra. A “visão,
sempre renovadora em função da luz e de suas variações, passará a ser
o verdadeiro tema do quadro. A paisagem predominará sobre toda e
qualquer outra forma pictórica, seja ela religiosa, mitológica, ou histórica”
(SERULLAZ, 1989, P. 7). No momento em que a fotografia começava
a se desenvolver, mas ainda com recursos limitados, retratando apenas
em preto e branco, “o olho de extraordinária acuidade dos
impressionistas soube ver o que ninguém ousara até então fixar numa
tela” (SERULLAZ, 1989, P. 8).
Como exemplo de pintura Impressionista, temos o quadro de
Van Gogh no seu Auto-Retrato (1887). A expressão do rosto na tela
define-se por pinceladas curtas e coloridas – uma técnica denominada
pontilhismo. O contraste entre as cores, sempre intensas, determina a
imagem na tela. A roupa, o chapéu e o fundo são elaborados da
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mesma maneira. O que dá forma a cada detalhe é a direção
determinada pelo pincel. Esse retrato quebra com a noção de beleza
clássica da arte retratista. O quadro é belo, não por ser sublime e
harmonioso, mas por ser intenso, forte, complexo e extraordinariamente
novo. A expressão do olhar que se fixa no espectador marca a tensão
interior do artista
Vincent van Gogh. Auto-retrato – 1887.
Rijksmuseum Vincent van Gogh, Amsterdan
Gombrich (1985, p. 438) afirma que Van Gogh não estava
preocupado com a representação correta e fiel do objeto, “usou cores e
formas para transmitir o que sentia a respeito das coisas que pintava e
o que desejava que os outros sentissem”. A preocupação maior do pintor
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era a retratação do que ele sentia e se a distorção ou o uso de cores
não convencional ajudassem na sua maneira particular de representação,
ele as utilizaria sem qualquer preocupação, por isso ele influenciou os
movimentos de vanguarda do início do século XX.
Assistindo às grandes mudanças da pintura, Oscar Wilde cria,
no universo da ficção, um retrato que quebra com o convencional e
rompe com a tradição. O esfacelamento do retrato de Dorian Gray
ultrapassa a visão do Impressionismo e nos remete ao Fovismo, um
movimento surgido no início do século XX, que recusa toda e qualquer
convenção acadêmica. A grande influência no movimento foi a pintura
de Van Gogh. Em Paris, nos anos de 1905, no Salão de Outono
um grupo de artistas expôs obras de tal maneira chocantes
– cores fortes e ousadas, aplicadas com espontaneidade e
aspereza – que foram imediatamente batizados como les fauves
(as feras) pelo crítico Louis Vauxcelles. Com a intensão de
ser um desmerecimento, a designação foi acolhida como uma
descrição apropriada a seus métodos e objetivos (DEMPSEY,
2003, P. 66).
O fovismo faz a opção pelo uso subjetivo da cor pura, evocando
sensações emocionais. As cores são vibrantes e pouco naturais, com
pinceladas frenéticas e com excesso de tinta, às vezes o tubo de tinta
era espremido diretamente na tela, dando idéia de desordem, consistência
e relevo. As imagens, devido ao excesso de tinta, parecem distorcidas e
grotescas. O movimento foi a primeira das manifestações do século
XX, que chocou o grande público, mas causou sensação e entusiasmo
nos colecionadores e críticos de arte. A pintura fovista pode ser
classificada como fascinante, mas faz com que o expectador aprenda a
ver e reelabore o seu conceito de beleza artística.
Henri Matisse foi um dos grandes representantes do movimento.
O seu quadro A cigana (1905/1906) é um retrato em que o pintor
recusa qualquer traço de beleza. A imagem da cigana é marcada por
borrões de tinta, pois o que importa é o jogo de cores e não a imagem,
provocando uma tensão, causando desconforto ao espectador, pois a
obra possui volume, forma, luz e sombra, quase tudo que se espera de
um quadro figurativo; contudo, não há mais a preocupação com a
perspectiva. A representação da perfeição e da realidade deixa de ser
preponderante, na verdade as técnicas tradicionais da pintura apresentamse de uma maneira bastante singular, dando à tela um sentido de
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desordem e premeditado inacabamento. A intensidade da luz sobre a
mulher, representada pela cor branca, distorce a visão A pose clássica
do nu feminino recostado em um divã com a mão direita sobre o ombro,
como que segurando a cabeça, o meio sorriso, e a flor nos cabelos
parecem ironizar a pintura acadêmica, tornando mais forte o contraste
da obra com a tradição, pois perde toda a graciosidade e sublimidade.
O rosto marcado por borrões de tintas parece mais uma caricatura. A
imagem se define pelo contraste entre o claro e o escuro, a luz e a
sombra, portanto são as cores e não o desenho que elaboram a figura.
Há uma desordem e uma profusão de tinta que, contraditoriamente se
harmonizam
Henri Matisse. A cigana – 1905/1906. Musée de L’Annonciade,
Saint-Tropez
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Outro retrato fovista que causa estranhamento é o de Maurice
Vlaminck, Sobre o zinco (1900). O quadro retrata uma prostituta com
o rosto coberto de um branco sujo, os cabelos em coque de um loiro
terroso, lábios grossos e muito vermelhos, uma flor vermelha na lapela,
um cigarro na boca e um copo de bebida vermelha ao lado. A roupa
também é de um branco sujo como o rosto. O contraste entre a imagem
da mulher mascarada de branco com o fundo escuro, quase preto, realça
a expressão de tédio e desencanto. O quadro é ao mesmo tempo
encantador e repugnante, condensa a totalidade da emoção impetuosa e
selvagem, de uma intensa força cromática, num jogo de cores entre o
claro e o escuro, que é a pura representação do grotesco. O que mais
impressiona no quadro é a expressão do olhar, de uma ferocidade
instintiva que choca o observador pela ironia presente
Maurice Vlaminck. Sobre o zinco – 1900. Musée Calvert, Avgnon.
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Assim também é o quadro de Dorian Gray depois de totalmente
transformado. A descrição do retrato faz com que o leitor estabeleça
relação com a pintura fovista, pois ele perde a harmonia, o traço perfeito,
as cores vibrantes e se torna grotesco, desfigurado, cruel, retratando o
lado tenebroso da alma humana
Contudo, ele o estava observando, com seu belo rosto
desfigurado e seu cruel sorriso. Seus cabelos loiros reluziam
à luz da manhã. Seus olhos azuis encontraram-se com os
dele. Sentiu uma infinita piedade, não por si mesmo, mas
pelo retrato. Já estava transformado e iria transformar-se mais
ainda. Seu ouro perderia o brilho, acinzentando-se. As rosas
brancas murchariam. Cada pecado que cometesse seria mais
uma mancha que acabaria por arruinar-lhe a beleza (WILDE,
1996, p. 108).
A distorção da imagem do quadro para retratar os aspectos
emocionais e a intimidade do modelo, distancia-o do conceito de beleza
e perfeição clássica. As descrições da transformação do quadro parecem
terríveis, mostrando toda a fealdade do homem, chocando o leitor.
Segundo Paz (1991, p. 145) a arte moderna abre espaço para outras
formas de representação e o conceito de belo torna-se plural,
redescobrindo “a beleza horrível de seus poderes de contágio”.
Assim como a pintura, o romance também se desenvolve nesse
período de intensas transformações. Segundo Rosenfeld (2006), a
transformação do romance é análoga à transformação da pintura. Ele
afirma que no campo das artes vai surgir o fenômeno da “desrealização”,
uma recusa à arte mimética, não mais produzindo a realidade empírica
e sensível. Esse aspecto é preponderante na pintura abstrata, mas também
na pintura figurativa do final do século XIX e início do XX, visto que
“mesmo essas correntes deixam de visar a reprodução mais ou menos
fiel da realidade empírica” (ROSENFELD, 2006, p. 76), podendo
deformar a aparência, criar contexto insólito, redução de suas
configurações, havendo, na verdade “uma negação do realismo, se
usarmos este termo no sentido mais lato, designando uma tendência de
reproduzir, de uma forma estilizada ou não, idealizada ou não, a realidade
apreendida pelos nossos sentidos” (ROSENFELD, 2006, p. 76). Esse
aspecto da desrealização pode ser visto nos quadros acima apresentados
e, também, na descrição do quadro fictício da personagem do romance
de Wilde.
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Wilde consegue ser bastante inovador ao desconstruir ou
“desrealizar” o quadro, que se projeta no futuro da pintura, em direção
ao esfacelamento da imagem. Ao transformar o quadro, ele também
transforma a personagem Dorian Gray, na verdade, a história do romance
gira em torno desta personagem controversa, que por um determinado
tempo, realiza a utopia da raça humana – permanecer sempre jovem e
belo. Hoje, em pleno século XXI, esse sonho de eterna juventude está
sendo levado às últimas conseqüências, somos o Fausto pós-moderno
que, não conseguindo resgatar Mefistófeles para barganharmos nossa
vida em troca de vaidade, entregamos nosso corpo nas mãos de um
cirurgião plástico que nos retalha e nos transforma em caricaturas,
imagens distorcidas de nós mesmos. Temos a falsa ilusão de que
poderemos parar o tempo. A tecnologia na área de cosméticos, as
pesquisas na área da biogenética e tantas outras, prometem essa façanha
fazendo-nos correr atrás do sonho da eterna juventude.
Voltando ao romance, o seu processo de “desrealização”,
estruturalmente falando, pouco se apresenta. Segundo Rosenfeld (2006,
p. 80) “as alterações ocorridas no romance não ‘dão tanto na vista’
como as de uma arte visual. Além disso, o mercado de romances é
abastecido em escala muito maior por obras de tipo tradicional” (grifos
do autor). No entanto, podemos apontar algumas mudanças expressivas,
como: uma aproximação do gênero dramático, na medida em que há
uma presença marcante de diálogos, longas discussões em que o narrador
onisciente cede a palavra às personagens, dando a elas o direito a uma
voz que se sobressai em discussões filosóficas sobre a existência, a moral,
os costumes e, essencialmente, sobre arte. Outro aspecto encontra-se
na construção do herói romanesco que vai sendo definido ao longo da
narrativa, transformando-se em anti-herói. A personagem principal perde
toda a sua heroicidade ao tornar-se um ser desprovido de moralidade,
assim como no quadro que vai deformando a imagem, a sua
personalidade também vai sendo deformada, tornando-se paradoxal.
Na concepção de Rosenfeld (2006), uma modificação do
romance análoga à pintura moderna é a eliminação do espaço, ou a
ilusão do mesmo e a descontinuidade do tempo. Em O retrato de
Dorian Gray, o espaço não é um elemento preponderante, ele apenas
delimita o local por onde transita a personagem, o importante é saber
que a ambientação é urbana e que a história se passa em uma grande
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cidade que poderia ser qualquer outra que não Londres. Os lugares se
apresentam esfacelados, pouco descritos, apenas funcionando como pano
de fundo para as ações das personagens. Já o tempo, apesar da
delimitação temporal da narrativa, pois ela acontece no final do século
XIX, na mesma época em que o romancista vivia, não há uma
preocupação em explicar a eterna juventude de Dorian Gray, tudo a
sua volta muda, as pessoas envelhecem e só ele permanece imutável. A
leitura do romance dá impressão ao leitor de que o tempo não passa,
parecendo ter-se congelado no momento em que Dorian Gray faz o
pacto de eterna juventude. O romance apresenta indícios de fluir de
tempo, mas o leitor tem a falsa sensação de imutabilidade. “Com isso,
espaço e tempo, formas relativas da nossa consciência, mas sempre
manipuladas como se fossem absolutas, são por assim dizer denunciadas
como relativas e subjetivas” (ROSENFELD, 2006, p. 80).
Para Rosenfeld (2006, p 81), o aspecto realmente novo na
construção tanto da pintura quanto da literatura não é a escolha do
tema, nem o uso de alegorias pictóricas, tampouco a elaboração da
personagem do romance, mas a “assimilação desta relatividade à própria
estrutura da obra de arte” e é isso que observamos no romance de
Wilde, que apresenta traços de inovação, inclusive no que se refere “a
visão de uma realidade mais profunda, mais real, do que a do senso
comum é incorporada à forma total da obra. É só assim que essa visão
se torna realmente válida em termos estéticos” (ROSENFELD, 2006,
p. 81). Ao retratar a personagem em todas as suas nuances, de uma
forma realista e bastante irônica, dando a ela mobilidade para exprimir
sua visão particular de mundo, tornando-a transparente para o leitor,
faz com que esse excesso de realismo se torne “mais real”, e mais
profundo, alcançando, inclusive, a esfera do fantástico.
A transformação do quadro, retratando a plenitude da
personalidade de Dorian Gray e a sua aparência imutável, é uma atitude
fantástica. Não nos cabe, aqui uma discussão sobre a literatura fantástica,
pois nosso interesse é outro, no entanto, lembrando a posição de
Todorov (1975, p. 31), o fantástico ocorre da incerteza do real com o
irreal, “é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, face um acontecimento aparentemente sobrenatural”. O
fantástico, ainda, “implica, pois uma integração do leitor no mundo das
personagens, define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor
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dos acontecimentos narrados” (TODOROV, 1975, p. 37). O leitor, ao
longo da narrativa, depara-se com uma atmosfera peculiar, carregada de
questões aparentemente inexplicáveis e absurdas, que vão se revelando
ao longo da leitura. A hesitação do leitor diante dos fatos narrados é
constante, o que segundo Todorov (1975), é a primeira condição para
que o fantástico se instale. Afinal “uma época com todos os valores em
transição e por isso incoerentes, uma realidade que deixou de ser ‘um
mundo explicado’, exige adaptações estéticas capazes de incorporar o
estado de fluxo e insegurança dentro da própria estrutura da obra”
(ROSENFELDE, 2006, p. 86, grifo do autor). A questão estética atua
como fator preponderante no romance. A maneira de ver o mundo das
personagens reflete a postura do autor diante da arte. Percebemos aí,
igualmente, a contraposição entre tradição e inovação. O romance
apresenta um interesse pelo processo de transformação e inovação tanto
da pintura quanto da literatura. Nesse sentido, temos também, o processo
de construção do romance que se dá de forma bastante inovadora.
Para finalizarmos o artigo e não o assunto, que é infindável,
pois vários pontos-de-vista podem conferir resultados positivos no
processo de análise da obra, o aspecto que mais nos chamou a atenção
foi o processo de representação da pintura no romance e a relação
entre literatura e pintura na construção do mesmo. Discussões sobre
arte perpassam todo o romance. Podemos citar como mais um exemplo
a experiência de Basílio ao executar sua obra e a sua relação com o
modelo
Dorian Gray é um simples motivo de arte para mim. Você
poderia não ver nada nele. Eu vejo tudo. Nunca está tão
presente no meu trabalho como quando não vejo nenhum
traço dele. É uma nova modalidade de influência, como lhe
disse. Percebo-o nas curvas de certas linhas, na maravilha
e na sutileza de certas cores. Isso é tudo (WILDE, 1996,
p. 23).
É interessante essa supremacia da arte, pois o homem só se
torna importante enquanto objeto artístico. Dorian Gray, com sua beleza
ímpar, foi capaz de influenciar e encantar o pintor que o transformou
em uma “estranha idolatria artística”. Dorian Gray, para Basílio, define
“as linhas de uma nova escola, de uma escola que unisse toda a paixão
do espírito romântico a toda a perfeição do espírito grego. A harmonia
do corpo e da alma” (WILDE, 1996, p. 22), mas como nem tudo pode
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ser perfeito, Basílio descobre, estarrecido, que sua obra se transformou,
perdendo perfeição, harmonia, negando o espírito grego. Afinal a arte
do século XIX, principalmente no seu final, nega a beleza e a perfeição
clássica, por isso o ideal estético de Basílio não se realiza no romance,
sua obra-prima torna-se esfacelada, bizarra, desfigurada, encerrando o
novo conceito de representação da figura humana. Nesse sentido, Paz
(1991, p. 145) afirma que, ao contrário da antiguidade clássica que sagrou
à figura humana o “cânon supremo da beleza”, a arte moderna foi
“sobretudo uma investida contra a figura humana”. Em consonância
com essa concepção de arte, Wilde desfigura a imagem de Dorian Gray,
representada na tela criada por Basílio.
Contudo, no final do romance, Wilde volta ao início e resgata
a obra, dando-a novamente uma dimensão sublime. Afinal, Dorian Gray
teve que pagar o seu preço, por isso ele teve que morrer. A partir do
momento em que ele, mesmo que involuntariamente, se mata o quadro
liberta-se da maldição e a obra de arte volta a seu esplendor e à sua
perenidade. Apesar deste final quebrar com parte da inovação, sendo
previsível e nada surpreendente, já que a solução para o pacto, o grotesco,
o esfacelamento, o fantástico foi a morte; assim mesmo, reiteramos que
a postura de Wilde é bastante inovadora. Dorian Gray é sua grande
criação, ele possui uma força indomável e amoral é a força que conduz
o gênio, distinguindo-o do homem comum, distanciando-o da
mediocridade. Ele é uma força natural, como se fosse em si a natureza,
livre dos cânones, devendo dar total vazão à emoção, rompendo
brutalmente com os padrões estabelecidos. A sua visão sobre a pintura
também deve ser destacada, pois ela ultrapassou o seu momento
histórico, em direção às propostas de uma nova estética que vai se
firmar no início do século XX, pelas mãos dos artistas adeptos do
movimento Fovista.
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Artigo recebido em 30/11/2009 e aceito para publicação em
28/12/2009.
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