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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM FILOSOFIA ALLAN DAVY SANTOS SENA NIETZSCHE E O TIPO PSICOLÓGICO DO REDENTOR CAMPINAS – SP 2012 FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA POR CECÍLIA MARIA JORGE NICOLAU – CRB8/3387 – BIBLIOTECA DO IFCH UNICAMP Se55n Sena, Allan Davy Santos, 1982Nietzsche e o tipo psicológico do redentor / Allan Davy Santos Sena. - - Campinas, SP: [s. n.], 2012. Orientador: Oswaldo Giacoia Junior Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm,1844-1900. 2. Psicologia. 3. Filologia. 4. Idiotia. 5. Ressentimento. I. Giacoia Junior, Oswaldo, 1954- II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título. Informação para Biblioteca Digital Título em Inglês: Nietzsche and the psychological type of the redeemer Palavras-chave em inglês: Psychology Philology Idiocy Resentment Área de concentração: Filosofia Titulação: Mestre em Filosofia Banca examinadora: Oswaldo Giacoia Junior [Orientador] Ernani Pinheiro Chaves Rogério Antônio Lopes Data da defesa: 15-08-2012 Programa de Pós-Graduação: Filosofia 2 ALLAN DAVY SANTOS SENA NIETZSCHE E 0 TIPO PSICOLOGICO DO REDENTOR Disserta<;ao apresentada ao Programa de P6s-Gradua<;ao em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obten<;ao do titulo de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior. >J \ l... ' ' Exemplar correspondente a reda<;ao final da Disserta<;ao de Mestrado defendida e aprovada pela Comiss o jカセMLN@ 15/08/2012. ' Banca: i <;:./ O Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior (Orientador) Prof. Dr. Emani Pinheiro Chaves (Membro) Prof. Dr. Rogerio Antonio Lopes (Membro) CAMPINAS - SP 2012 3 4 Para Ernani Chaves, mestre e amigo. 5 6 AGRADECIMENTOS Agradeço a orientação honrosa e primorosa do professor Oswaldo Giacoia Junior, e a oportunidade única que ele me ofereceu de buscar a liberdade e autonomia de pensamento ao trabalhar com uma temática tão próxima à sua própria pesquisa, sem nunca deixar que eu me perdesse pelo caminho, direcionando-me sempre com a maior precisão, paciência e propriedade. Ao professor Ernani Chaves, por toda a instrução na arte de ler Nietzsche, por toda a sua inapreciável ajuda, sem a qual nada disso seria possível, por seu apoio constante, por sua confiança em minha pesquisa, por seu exemplo e amizade, e por ter aceitado o convite para compor a banca de Defesa. Sou profundamente grato ao professor Henry Burnett e à sua família, Fabiana e João, por terem gentilmente me hospedado em São Paulo sempre que precisei; sem esse imenso favor eu nunca poderia ter prosseguido no Mestrado. Agradeço também ao professor Henry pela inestimável amizade e por ser um dos meus maiores modelos de educador e pesquisador, pois, mesmo sem ter tido a honra de tê-lo oficialmente como meu “professor”, nosso convívio foi e tem sido imprescindível para minha formação. Sou lhe grato também por aceitar o convite para compor a banca de Qualificação. Ao professor Peter Pál Pelbart, por ter gentilmente aceitado o convite de explorar O Anticristo, por suas observações e críticas precisas, coerentes e certeiras. Ao professor Rogério Lopes pelo exemplo e inspiração, e por ter aceitado o convite para compor a banca de Defesa, o que me deixa muito honrado. À minha mãe, Maria Celeste Santos Sena, por ter se mantido forte. Aos meus irmãos, Alex e André, pela união de forças. Aos meus sobrinhos, Lorena, Letícia, Luiz e Sara, por não se comportarem sequer um minuto. À minha namorada, Elizângela, pelo apoio, companhia, paciência e cumplicidade. Ao tio Célio, à tia Rosângela e ao Kayson. Reconheço a valorosa e inestimável amizade dos amigos Thiago Furtado (que, entre diversos outros grandes favores, cordialmente me hospedou em São Paulo durante o exame de seleção do Mestrado), Alberto Alcolumbre, Aníbal Neves e Renato Ribeiro. Ao meu velho amigo Rubem Neto, pela leitura atenta e sugestões. Ao meu grande amigo Ricardo Machado, pelo bom ano de convivência na Unicamp e pela ajuda na matrícula do Doutorado. Ao amigo Marcos Machado. Ao Renato Nunes Bittencourt, grande amigo e colega na pesquisa sobre O Anticristo, pela constante e frutífera troca de idéias. E aos amigos e colegas do CriM, Bruno Machado e Wander de Paula. Aos funcionários das Bibliotecas do IFCH, IEL e IA da UNICAMP, que muito contribuíram para a elaboração dessa pesquisa. À Sônia Cardoso e à Maria Rita da Secretaria de Pós-Graduação do IFCH da UNICAMP, por todo o auxílio prestado. Ao CNPq, pela bolsa de estudos concedida, sem a qual esta pesquisa não poderia ter sido realizada. 7 8 Na verdade, não se é filólogo e médico sem ser também anticristão. Como filólogo, olha-se por trás dos “livros sagrados”; como médico, por trás da degeneração fisiológica do cristão típico. O médico diz “incurável”; o filólogo, “fraude”... (Nietzsche, O Anticristo § 47). 9 10 RESUMO Esta Dissertação tem como objetivo apresentar o diagnóstico do tipo psicológico de Jesus feito por Nietzsche em O Anticristo. Segundo Nietzsche, uma das teses para a solução do problema da gênese do cristianismo está no entendimento de como o tipo psicológico do redentor foi adulterado pelo cristianismo eclesiástico. O tipo de Jesus é classificado por Nietzsche como idiota, ou seja, um homem portador de uma constituição fisiológica degenerada, que o torna incapaz de obter um crescimento natural; detentor de uma sensibilidade mórbida à dor, este tipo se vê impedido de entrar em contato com a realidade, o que o leva a voltar-se sobre sua própria interioridade e a não opor qualquer resistência às ameaças externas. O evangelho de Jesus representa uma prática natural e não ressentida para a décadence por meio da aceitação de seu condicionamento fisiológico, tal prática foi corrompida pelo cristianismo eclesiástico enquanto uma doutrina de salvação da alma, pela qual a vida é negada em sua totalidade. Palavras-chave: Psicologia; Filologia; Décadence; Idiotia; Ressentimento. 11 12 ABSTRACT This Dissertation aims to present the diagnosis of the psychological type of Jesus given by Nietzsche in The Antichrist. According to Nietzsche, one of the theses for the solution of the problem about the genesis of Christianity is in understanding how the psychological type of the redeemer has been adulterated by the ecclesiastical Christianity. The type of Jesus is classified by Nietzsche as idiot, namely, a man who has a degenerate physiological constitution, which makes him unable to obtain a natural growth; bearing a morbid sensitivity to pain, this type finds itself unable to make contact with reality, leading him to turn over into his own interiority, opposing no resistence to the external threats. The evangelium of Jesus represents a natural and not resentful practice to décadence through the acceptance of their physiological conditioning, such practice has been corrupted by ecclesiastical Christianity as a doctrine of salvation of the soul, by which life is denied in its totality. Keywords: Psychology; Philology; Décadence; Idiocy; Resentment. 13 14 LISTA DE ABREVIATURAS KSA – Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: DTV & Walter de Gruyter, 1980. KSB – Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe. Hrsg. Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: DTV & Walter de Gruyter, 1986. KGB – Nietzsche Briefwechsel. Kritische Gesamtausgabe. Herausgegeben von: Colli, Giorgio und Montinari, Mazzino. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1975. NT – O nascimento da tragédia FT – A filosofia na época trágica dos gregos CP – Cinco prefácios para cinco livros não escritos Co. Ext. I – Considerações Extemporâneas I: David Strauss, o confessor e o escritor Co. Ext. II – Considerações Extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da historia para a vida VM – Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral HHI – Humano, demasiado humano I OS – Humano, demasiado Humano II: Opiniões e sentenças diversas AS – Humano, demasiado Humano II: O andarilho e sua sombra A – Aurora GC – A gaia ciência ZA – Assim falou Zaratustra BM – Além de bem e mal GM – Genealogia da moral CW – O caso Wagner CI – Crepúsculo dos ídolos NW – Nietzsche contra Wagner AC – O Anticristo EH – Ecce Homo FP – Fragmentos póstumos (seguido da numeração do fragmento e da época em que foi escrito). 15 16 Nota sobre as traduções: As citações das obras de Nietzsche seguem as traduções da Coleção das Obras de Nietzsche coordenada por Paulo César de Souza publicada pela Companhia das Letras. Para os textos que não fazem parte dessa coleção, salvo indicação contrária, utilizaremos a tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho feita para o volume dedicado a Nietzsche da coleção Os Pensadores. A leitura das obras O caso Wagner, Crepúsculo dos ídolos, Ecce Homo e O Anticristo, foi freqüentemente acompanhada com a do texto original, bem como com a de outras traduções. Foram feitas, assim, em alguns momentos, poucas e ligeiras modificações na tradução dessas obras, tais modificações serão sempre indicadas. A sigla PCS refere-se às traduções de Paulo César de Souza, e a sigla RRTF, às de Rubens Rodrigues Torres Filho. No caso dos póstumos, a tradução é de nossa autoria, tendo como base o cotejo entre a edição da KSA e a da Œuvres philosophiques complètes publicadas pela Gallimard. O mesmo no que se refere às cartas, pelo cotejo, quando possível, da KSB e da KGB com as traduções consultadas, listadas nas Referências Bibliográficas. 17 18 SUMÁRIO INTRODUÇÃO, 21 1 – “VIDAS DE JESUS”, 45 1.1 – Strauss e o método histórico crítico, 45 1.2 – Strauss e a sua confissão, 47 1.3 – A primeira Extemporânea, 49 1.4 – Das Leben Jesu, exame crítico, 54 1.4.1 – O mito como criação coletiva, 61 1.4.2 – A não historicidade dos Evangelhos, 63 1.4.3 – O problema das contradições, 64 1.4.4 – As fontes do mito de Jesus, 66 1.4.5 – O mito do nascimento virginal, 70 1.4.6 – Impossibilidade de uma “vida de Jesus”, 72 1.4.7 – Edição popular de Das Leben Jesu, 74 1.5 – Crítica a Das Leben Jesu na primeira Extemporânea, 76 1.6 – Crítica a Das Leben Jesu em O Anticristo, 78 1.7 – Nietzsche e seu antípoda, Renan, 80 1.8 – Renan contra Strauss, 105 1.9 – Vie de Jésus, 115 1.9.1 – Crítica das fontes, 116 1.9.2 – O método de Renan, 119 1.9.3 – O caráter de Jesus, 120 1.9.4 – Jesus e os seus “sublimes paradoxos”, 123 1.9.5 – O estabelecimento do reino de Deus, 127 1.9.6 – O Filho de Deus, o Filho do Homem e o Messias, 130 1.9.7 – Jesus como herói, 132 1.9.8 – Jesus como gênio, 138 1.10 – O erro de Renan em questões psicológicas, 143 1.11 – Crítica ao Jesus “herói” e “gênio” de Renan, 145 2 – O PROJETO DE UMA PSICOLOGIA DO REDENTOR, 149 2.1 – A elaboração do projeto de uma psicologia do redentor, 150 2.2 – O método de Nietzsche, 161 2.3 – Wellhausen e o processo de desnaturalização dos valores naturais, 171 2.4 – A corrupção psicológica dos Evangelhos, 192 3 – FISIO-PSICOLOGIA DO TIPO JESUS, 209 3.1 – Féré, degenerescência e hiperexcitabilidade, 214 3.1.1 – Sensation e mouvement, 227 3.1.2 – Dégénéréscence et criminalité, 244 19 3.2 – Fisiologia da redenção, 254 3.3 – A idiotia como condição degenerativa, 281 3.3.1 – Desenvolvimento do conceito nosográfico de idiotia, 288 3.3.2 – A teoria da degenerescência, 313 3.3.3 – A neurastenia, 325 3.3.4 – A idiotia nas fontes de Nietzsche, 329 3.4 – O cristianismo anarquista de Tolstói, 336 3.5 – Jesus e o príncipe Míchkin de Dostoiévski, 344 3.6 – Tipo “Jesus”, 360 3.6.1 – O judaísmo como mundo tschandala, 364 3.6.2 – A realidade fisiológica do tipo Jesus, 384 CONSIDERAÇÕES FINAIS: Redenção para o “Redentor” ou redenção do redentor, 427 APÊNDICE I: A invenção do cristianismo por Paulo, 461 APÊNDICE II: O tipo psicológico do Parsifal de Wagner, 485 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 511 20 INTRODUÇÃO Em 8 de janeiro de 1889, Franz Overbeck, temendo pela sanidade de Nietzsche após este lhe enviar bilhetes estranhos, chega a Turim a fim de socorrer o amigo, mas infelizmente já o encontra tomado pelo delírio, “rodeado de um amontoado de papéis” 1, segundo o próprio testemunho do professor da Universidade de Basiléia. 2 No meio daquele aglomerado de cadernos e folhas esparsas, ele encontrou, encoberto cuidadosamente em uma capa, o manuscrito intitulado O Anticristo, assim como também achou ali os manuscritos de Ecce Homo, Crepúsculo dos Ídolos e Ditirambos de Dionísio, levando todos consigo para Basiléia. Devemos, assim, a esse gesto de valor incomensurável do fiel amigo de Nietzsche a transmissão para a posteridade do cumprimento da última filosofia daquele que se autodenominava discípulo do filósofo Dionísio. 3 O manuscrito de O Anticristo, já ordenado para publicação, continha ainda no frontispício o subtítulo “Transvaloração de todos os valores”, o qual, porém, havia sido riscado por Nietzsche, provavelmente em um dos seus últimos atos conscientes, que optou pela decisão de substituí-lo por “Maldição ao cristianismo”. Overbeck, o primeiro leitor de O Anticristo, fez uma cópia do mesmo na Basiléia. Posteriormente, enviou a Peter Gast tanto o manuscrito original quanto a cópia. Gast, por sua vez, os entregou a irmã de Nietzsche, Elisabeth, em 13 de novembro de 1893. A partir desse momento, o livro iniciará uma jornada tortuosa por um sombrio caminho de ocultamento, manipulação, incompreensão e indiferença, do qual, aos poucos, vem emergindo, não sem acabar se extraviando, volta e meia, por um trecho mais obscuro. Em um ato um tanto quanto enigmático, tendo em vista o seu forte pietismo, Elisabeth Föster-Nietzsche trouxe a público já em 1895, a primeira edição de O Anticristo. Todavia, essa primeira edição de um livro que Nietzsche deixara pronto para a publicação 1 Para mais detalhes, cf. a belíssima introdução de Andrés Sánchez Pascal, in: Nietzsche, Friedrich. El Anticristo: Maldición sobre el cristianismo. Introducción, traducción y notas de Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2003, pp. 7-25. 2 Cf. Overbeck, Franz. Souvenirs sur friedrich Nietzsche. Traduit par Jeanne Champeaux. Paris: Éditions Allia, 2000, pp. 25-30. 3 “Ao salvar esse livro [O Anticristo], Overbeck salvou a expressão mais clara, mais enérgica, mais contundente – a chave, junto com os Ditirambos de Dionísio – da última intenção de Nietzsche” (Pascual, Loc. Cit., p. 7). 21 acabou sendo o primeiro ato de manipulação operado pelo Arquivo-Nietzsche nos escritos póstumos do filósofo. O manuscrito de O Anticristo “foi examinado letra por letra. Algumas palavras foram eliminadas; alguns parágrafos, suprimidos; algumas frases, retocadas; as citações bíblicas, corrigidas quando a memória de Nietzsche parecia haver falhado”. 4 Mas o mais grave foi fazer crer que O Anticristo era o primeiro livro da suposta obra magna de Nietzsche, A vontade de poder. As duas edições subseqüentes da fraudulenta obra editada pelo Arquivo-Nietzsche sob a égide da irmã do filósofo deram início ao deslocamento do papel de O Anticristo no interior do projeto filosófico de Nietzsche. Ofuscado pela grande importância e preferência dada à suposta obra capital de Nietzsche, O Anticristo foi relegado a último plano entre as obras do filósofo. Ainda pior, passou a ser comum atribuir a “violência” das sentenças ali proferidas contra o cristianismo ao suposto estado já avançado da enfermidade de Nietzsche. Em 1961, Erich F. Podach revelou em sua publicação de O Anticristo, as adulterações feitas na obra, publicando pela primeira vez a “Lei contra o cristianismo” que a encerra. Mas foi somente com o lançamento da edição organizada por Colli e Montinari juntamente com seu aparato crítico, que se esclareceu finalmente que Nietzsche havia abandonado o seu antigo projeto intitulado A vontade de poder, bem como o projeto seguinte intitulado A transvaloração de todos os valores 5, e havia tomado a decisão de apresentar O Anticristo como sendo, somente ele, a inteira realização de A transvaloração de todos os valores 6, por último, pensada finalmente como uma necessária Maldição ao cristianismo. 7 4 Pascual, Loc. Cit, p. 12. A transvaloração de todos os valores foi projetada como sendo composta por quatro livros, dos quais O Anticristo seria inicialmente o primeiro. 6 Cf. Colli, Giorgio. Escritos sobre Nietzsche. Tradução e prefácio de Maria Filomena Molder. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2000. Ver também: Montinari, Mazzino. La volonté de puissance n’existe pas. Texte établi et postfacé par Paolo d’Iorio, traduit de l’italien et précédé d’une note par Patricia Farazzi & Michel Valensi. Paris : Editions de l’éclat, 1996. Cf. igualmente Souladié, Yannick. “Christ et Antichrist: figures de l’Inversion des valeurs chez Nietzsche”. In: Actes du premier Colloque International d’Études Midrashiques. Étel: CIEM, 2005. “Após Assim falou Zaratustra, Nietzsche decide lançar-se em um grande projeto filosófico ao qual ele dá, entre outros, o nome de Vontade de poder [puissance]. No fim de julho de 1888, abandona definitivamente esse projeto e, em 7 de setembro, inicia a redação de uma Transvaloração [Inversion] de todos os valores em quatro livros. O primeiro livro dessa Transvaloração, O Anticristo, é concluído no dia 30 de setembro. Mas, repentinamente, em 20 de novembro, em uma carta a Georg Brandes, Nietzsche apresenta O Anticristo como constituindo, somente ele, a Transvaloração de todos os valores em sua totalidade. A partir desse dia, Nietzsche considerará, em todas as suas cartas, O Anticristo como o acabamento de sua filosofia” (Souladié, Op. Cit, p. 144). A tradução de Ecce homo feita por Paulo César de Souza para a Companhia das Letras apresenta algumas decisões editoriais que vão de encontro às intenções de 5 22 Entre os trabalhos basilares para a retomada de O Anticristo como a obra que contém o autêntico acabamento da última filosofia de Nietzsche, devemos destacar as imprescindíveis contribuições de Jörg Salaquarda 8, Andreas Urs Sommer 9 e Yanick Souladié 10, na recepção européia, e de Oswaldo Giacoia Junior 11 e Fernando Barros 12 na recepção brasileira. 13 O artigo Der Antichrist de Salaquarda provavelmente representa o marco inicial na Nietzsche-Forschung para a devida reinserção de O Anticristo como ponto culminante no interior do conjunto dos últimos escritos de Nietzsche. Salaquarda mostrou que nem o título e nem o derradeiro subtítulo do livro possuem um caráter negativo, mas sim plenamente afirmativo. A maldição que Nietzsche lança contra o cristianismo é dirigida Nietzsche quanto ao papel que O Anticristo deveria assumir no conjunto de suas últimas obras. Ao que tudo indica, a edição de referência utilizada pelo tradutor foi a de Karl Schlechta. Na nota 8 (p. 120-122), PCS informa que não dispôs da edição Colli e Montinari alemã (somente de sua tradução francesa), e que considera exagerada a importância que se dá em tal edição às últimas modificações que Nietzsche havia decidido fazer em Ecce Homo no final de dezembro de 1888, encontradas por Mazzino Montinari nos espólios de Peter Gast em 1972. Assim, PCS decide não substituir o antigo terceiro parágrafo do capítulo “Por que sou tão sábio” pelo novo (no qual Nietzsche afirma que os laços de parentesco com sua mãe e irmã são a sua maior objeção ao eterno retorno), optando por reproduzi-lo apenas na referida nota, informando também que as demais diferenças entre as edições seriam assinaladas. Entretanto, duas importantes últimas alterações feitas por Nietzsche no texto de Ecce homo deixam de ser assinaladas pelo tradutor. No exergo que abre o texto, ao invés de: “O primeiro livro da Tresvaloração de todos os valores, as Canções de Zaratustra, o Crepúsculo dos ídolos, meu ensaio de filosofar com o martelo – tudo dádivas desse ano, aliás de seu último trimestre!”, Nietzsche se decidiu por: “A Transvaloração de todos os valores – os Ditirambos de Dionísio e, como recreação [zur Erholung], o Crepúsculo dos ídolos: tudo dádivas desse ano, aliás de seu último semestre”. E, em “Porque escrevo tão bons livros: Crepúsculo dos ídolos” § 3, ao invés de: “A 30 de setembro, grande vitória; o sétimo dia; ociosidade de um deus à margem do Pó”, Nietzsche se decidiu por: “A 30 de setembro, grande vitória, conclusão da Transvaloração [Beendigung der Umwerthung]; sétimo dia; ociosidade de um deus à margem do pó”. Aproveitamos o ensejo para informar que optamos por traduzir Umwerthung por transvaloração ao invés de tresvaloração. 7 “Nesse transbordamento do elemento passional, a projetada Vontade de Poder perde todo interesse aos olhos de Nietzsche e é substituída, superada e sintetizada pelo Anticristo” (Colli, Escritos sobre Nietzsche, p. 162). 8 Cf. Salaquarda, Jörg. “Der Antichrist”. In: Nietzsche Studien. Berlin: Walter de Gruyter, Band 2, 1972, pp. 91-136. 9 Cf. Sommer, Andreas Urs. Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”. Ein philosophisch historischer kommentar. Basel: Schwabe e Co. ª G./Verlag, 2000. 10 Cf., em especial, Souladié, Yannick. “Présentation : L’Inversion contra la Volonté de puissance”. In: Nietzsche – L’Inversion des valeurs. Hildesheim/Zürich/New York : Georg Olmes Verlag, 2007, pp. 03-25. 11 Cf. Giacoia Junior, Oswaldo. Labirintos da alma: Nietzsche e a auto-supressão da moral. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. 12 Cf. Barros, Fernando de Moraes. A maldição transvalorada: o problema da civilização em “O Anticristo” de Nietzsche. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2002. 13 Deve-se destacar também o recente trabalho de Renato Nunes Bittencourt, Nietzsche e a experiência religiosa da imanência na cultura trágica dos gregos e na práxis crística originária. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: IFCS / UFRJ, 2010. Em seu trabalho, Bittencourt procura mostrar que é possível afirmar que em O Anticristo há uma valorização da imanência da “práxis crística” de Jesus de modo semelhante à valorização que Nietzsche faz da cultura trágica da Grécia. 23 contra uma maldição mais original que nega o mundo, a vida enquanto vontade de poder e os valores nobres. A “maldição ao cristianismo” é, na verdade, uma negação dessa negação original e, conseqüentemente, uma afirmação. O trabalho de Salaquarda foi seguido de perto por Giacoia Junior, que mostrou a importância capital de O Anticristo para o entendimento do movimento de auto-supressão da moral no interior do último período da filosofia nietzschiana. Fernando Barros se esforçou para mostrar como O Anticristo é na verdade um Sim travestido de Não, que somente nesse dizer Não a uma negação suprema, pode-se dizer Sim em sua forma mais elevada. A obra monumental de Sommer reforçou a interpretação que vê em O Anticristo a solução mais acabada dos problemas que assaltaram Nietzsche em sua última fase, fornecendo todo o contexto cultural e o debate teórico em que os argumentos apresentados na obra se inserem. Recentemente, o trabalho de Souladié representa o avanço mais significativo na pesquisa sobre O Anticristo. Atacando principalmente as interpretações de Heidegger e Jaspers que vêem em O Anticristo uma obra eminentemente contraditória, Souladié aponta para a impossibilidade de se compreender o real significado dessa obra sem que se faça referência às fontes utilizadas pelo filósofo durante a sua elaboração, principalmente Tolstói e Dostoiévski. Segundo ele, as supostas contradições apontadas por Heidegger e Jaspers em O Anticristo são fruto da decisão de se tomar A vontade de poder como a obra principal de Nietzsche, e do fato desses autores não estabelecerem uma necessária separação entre os argumentos apresentados em “Maldição ao cristianismo” no que diz respeito a sua crítica ao cristianismo (sobretudo no que se refere à figura de Jesus), e aqueles presentes nos escritos anteriores ao contato de Nietzsche com as fontes utilizadas por ele na elaboração de seu último escrito. Denominar o amadurecimento das idéias de Nietzsche de “contradição” é ignorar o caráter perspectivista de sua filosofia e a concepção defendida pelo filósofo de que todo pensamento está em constante devir. De fato, O Anticristo representa o verdadeiro acabamento do projeto filosófico de Nietzsche. 14 E a confiança e esperança que o próprio filósofo depositava em seu último 14 Em uma declaração primorosa a respeito de O Anticristo, Pascual afirma: “Esta obra, com efeito, pedra de escândalo para todo aquele que ludicamente tenha buscado perder-se pelos labirintos do pensamento nietzschiano, porém, sem atrever-se a chegar ao último rincão em que o Minotauro tem sua morada; esta obra, arma de combate de católicos contra protestantes, de protestantes contra católicos, de crentes contra ateus, de 24 livro é atestada pela decisão de oferecer o Ecce Homo como uma espécie de “prefácio”, um “aperitivo” 15 , no qual ele apresenta um balanço de suas obras passadas e anuncia O Anticristo por vir, conferindo-lhe um lugar de destaque, ao lado de Assim falou Zaratustra, no conjunto de sua obra. E, em uma carta a Peter Gast, datada de 22 de dezembro de 1888, após a resolução de tomar O Anticristo como sendo toda A transvaloração de todos os valores, Nietzsche afirma ter passado, somente então, a compreender pela primeira vez os seus escritos. 16 Mas, sendo assim, por que O Anticristo foi tão facilmente relegado à categoria de mero panfleto, privado de qualquer conteúdo filosófico “sério”, não acrescentando nada de novo ao pensamento de Nietzsche, mesmo por importantes intérpretes do filósofo? 17 Por que, mesmo no interior da Nietzsche-Forschung atual, vários intérpretes e especialistas preferem guardar silêncio sobre O Anticristo, aptos a conferir, por outro lado, um alto valor filosófico, e em nada inferior as obras anteriores do filósofo, ao seu “prefácio” (isto é, ao Ecce Homo), e ao Crepúsculo dos Ídolos, muito embora este último seja apresentado por Nietzsche como um “descanso”, uma “recreação”, necessária antes de impor à humanidade a sua maior provação, que se daria pela apresentação de O Anticristo? 18 Em uma declaração basilar, Colli oferece uma importante pista para a compreensão desse quadro: Na realidade, quando Nietzsche escrevia o Anticristo, a violência do seu ataque podia despertar perplexidade. Essa violência pressupunha um inimigo em pleno vigor, ao passo que já naqueles tempos a doutrina cristã era mais risível do que temível [...] E, no entanto, sai o livro de Nietzsche contra o cristianismo e foi perturbador. É certo que aqui não lemos que é difícil pensar num Deus único, que esteja dividido em três pessoas: o que perturba neste livro é uma inversão teatral ateus contra crentes, de todos contra Nietzsche; esta obra, amaldiçoada, caluniada e desconhecida, é a conclusão necessária, de todo o seu caminho mental. Se o pensamento de Nietzsche não leva a O Anticristo, não leva a lugar algum” (Loc. Cit., pp. 7-8). Cf. também Winteler, Reto. “Nietzsches Antichrist als (ganze) Umwerthung aller Werthe”. In: Nietzsche-Studien. Berlin: Walter de Gruyter, Band 38, 2009, pp. 229-245. 15 Cf. carta a Heinrich Köselitz de13 novembro de 1888. 16 “Muito estranho! Faz 04 semanas que eu passei a compreender os meus próprios escritos, ainda mais, que eu os aprecio. Dito com toda a seriedade: nunca soube o que eles significam; estaria mentindo se pretendesse dizer que eles, com exceção do Zaratustra, me causaram particular impressão. É como a mãe com seus filhos: ela talvez os ame, mas na completa estupidez do que é o filho. Agora eu tenho a absoluta convicção de que tudo logrou êxito, desde o início tudo é um e quer um” (Tradução de Rogério Lopes, in: Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, 2008. p. 545). 17 Cf., por exemplo, a introdução de Walter Kaufmann para a sua tradução de O Anticristo, in: The portable Nietzsche. Selected and translated, with an introduction, prefaces and notes by Walter Kaufman. Nova York: Vinking Penguin, 1982. 18 Cf. CI, Prólogo. 25 das partes, pelas quais precisamente aqueles que precedentemente tinham dirigido ataques de todo o gênero contra o cristianismo se viam com grande surpresa arrastados na sua condenação. 19 Para Nietzsche, o cristianismo não representa de modo algum um inimigo abatido, muito pelo contrário, após a morte de Deus, a influência perniciosa dessa religião só tende a se tornar cada vez mais deletéria e prejudicial à vida. Dizer Não de forma inclemente ao cristianismo é dizer Não a todos os valores exaltados pelo homem moderno: compaixão, democracia, socialismo, altruísmo, direitos iguais, sufrágio universal, é, portanto, dizer, na perspectiva do filósofo, Sim à vida. Além disso, filosofia e ciência estão plenamente comprometidas com valores cristãos, não esquecendo que a moral ocidental, uma moral de rebanho, é um produto eminentemente cristão. Conseqüentemente, a solução de todos os problemas que Nietzsche considera como seus problemas passa necessariamente por uma crítica radical à religião cristã. Todavia, a natureza do discurso de O Anticristo, uma “natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer Sim do fazer Não” 20, foi sempre o principal argumento utilizado por aqueles que vêem nessa obra um descomedimento desnecessário e injusto da parte de Nietzsche para com o cristianismo. E supomos que uma das causas principais pela qual O Anticristo foi e tem sido visto como um livro meramente polêmico e blasfematório sem qualquer seriedade conceitual, como simples rancor e ingratidão do indivíduo Nietzsche contra a religião de seus pais e mestres, ou pior, como o primeiro sintoma do delírio que precedeu o colapso mental que o fez mergulhar na demência, é o fato de, na seção 29 do livro, ele ter denominado Jesus de idiota. Entre as palavras que a irmã do filósofo teve o cuidado de mutilar na edição de O Anticristo por ela organizada está, naturalmente, esse termo que Nietzsche utiliza para se referir à figura de Jesus. Elizabeth temia que a palavra “idiota” fosse objeto de indignação por parte dos leitores. J. Hofmiller foi quem primeiro comprovou essa deturpação em 1931, e foi igualmente o primeiro a considerar o uso do termo por parte de Nietzsche como um claro indício de seu já completo estado de delírio no momento em que escrevia o livro: “Essa passagem [foram três os termos suprimidos: “a”, “palavra”, “idiota”] deve finalmente 19 20 Colli, Op. Cit., p. 168. EH, Por que sou um destino § 2. 26 ser citada, visto que ela representa uma contribuição essencial para a constatação do estágio avançado da doença de Nietzsche. Por que até agora ela sempre foi suprimida? Evidentemente porque qualquer leitor teria dito: o homem que escreveu isso estava louco”.21 A despeito da denúncia feita por Hofmiller, nenhuma das edições posteriores reincorporou a palavra “idiota” à obra, até que Karl Schlechta o fizesse na sua. A partir de então, o termo “idiota” conferido à “pessoa” de Jesus, foi visto rapidamente e quase invariavelmente como conotando um conteúdo agressivo, ofensivo e detrator. Essa interpretação do significado desse termo perdurou de maneira hegemônica até que o trabalho “seminal” 22 de Dibelius, Der psychologische Typus des Erlösers bei F. Nietzsche, viesse a lume, esclarecendo cuidadosamente o significado com que Nietzsche utiliza o termo, remontando a influência exercida por Tolstói e Dostoiévski na escolha da palavra e ao uso recorrente da mesma, desde o século XVIII, enquanto um terminus do alemão erudito “para caracterizar o leigo, desprovido de refinamento científico ou artístico, mas também o indivíduo ‘original’, alheio à realidade prosaica dos negócios e afazeres”. 23 Dessa forma, tornou-se finalmente possível mostrar que a utilização da palavra “idiota” por parte de Nietzsche em sua interpretação de Jesus deveria ter um significado que fosse além da mera blasfêmia. Entretanto, nunca se chegou a um verdadeiro consenso sobre qual seria esse significado, e o principal ponto de discórdia diz respeito exatamente à questão de qual valor se deve conferir a essa interpretação que Nietzsche faz de Jesus, mais especificamente, se ele faz um elogio de sua “pessoa” ou, pelo contrário, se ele desfere um ataque impiedoso à mesma. Todavia, vale ressaltar que nem todos os intérpretes abordam diretamente essa questão. Ao que parece, a grande maioria toma o cuidado de apenas apresentar o modo como Nietzsche descreve e analisa Jesus e seus ensinamentos, ocupando-se em chamar a atenção principalmente para a enorme diferença que há entre a mensagem original de Jesus e aquela defendida pelo cristianismo histórico. De todo modo, gostaríamos de apontar, grosso modo, para algumas das principais posições assumidas por aqueles que se detiveram na questão acerca do valor do Jesus de Nietzsche. 21 Apud Dibelius, Martin. “‘Der psychologische Typus des Erlösers’ bei Friedrich Nietzsche”. In: Deutsche Vierteljahrsschrift für Literaturwissenchaft und Geschichte. Nº 22, 1944, p. 62. 22 Cf. Giacoia Junior, Labirintos da alma, p. 73. 23 Giacoia Junior, Ibidem. 27 Primeiramente, alguns defendem que somente um valor negativo pode surgir de tal caracterização, insistindo que a mesma é mero produto do ressentimento de Nietzsche para com o cristianismo, devido ao fato dos valores dessa religião estarem arraigados em suas convicções mais íntimas e pela necessidade que ele sentiu de ocultar de forma violenta esse sentimento cristão imperecível (Karl Jaspers) 24; ou que tal caracterização não passa de simples violência preconceituosa (Eugen Fink) 25 ; ou apenas fruto da perturbação de dúvidas lacerantes a respeito de suas convicções sobre o cristianismo, que contribuíram para o seu desarranjo mental (Copleston). 26 Por outro lado, um número um pouco maior de intérpretes tende a argumentar que se deve conferir um valor totalmente positivo para a maneira como Nietzsche interpreta Jesus. Kühneweg, por exemplo, fala de uma afinidade subterrânea que ligava Nietzsche a Jesus durante a elaboração de O Anticristo. 27 Os mais radicais são, no entanto, Ernst Benz e Eric Blondel. Para Benz, a imagem que Nietzsche oferece de Jesus representa uma contribuição positiva para a possibilidade da realização de uma nova forma de vida e de pensamentos cristãos; Nietzsche seria o profeta de uma nova possibilidade aberta ao cristianismo, ele anunciaria uma nova comunidade, formada por aqueles semelhantes a ele, para a realização de uma nova imitação de Jesus Cristo. 28 Blondel, por sua vez, afirma que O Anticristo, nada mais é do que um novo Evangelho, o Quinto Evangelho, brotado do amor que Nietzsche nutria por Jesus, um amor que sua raiva pelo cristianismo não conseguiu aplacar, por isso ele caracteriza o filósofo como um “Cristão ateu”: “Ele se crê anticristão: mas não passa de um profeta”. 29 Valadier, por outro lado, fala de um valor ambíguo, insistindo sobre a defesa que Nietzsche faz da atualidade permanente da mensagem de Jesus, mas apontando, ao mesmo 24 Cf. Jaspers, Karl. Nietzsche und das Christentum. R. Piper & Co. Verlag München, 1952. Cf. Fink, Eugen. A filosofia de Nietzsche. Tradução Joaquim Lourenço Duarte Peixoto. Lisboa: Editorial Presença, 1983. 26 Cf. Copleston, Frederick. Nietzsche, filósofo da cultura. Tradução de Eduardo Pinheiro. Porto: Tavares Martins, 1958. 27 Cf. Kühneweg, U. “Nietzsche und Jesus – Jesus bei Nietzsche”. In: Nietzsche-Studien, Band 15, 1986, pp. 391-392. 28 Cf. Benz, Ernst. Nietzsches Ideen zur Geschichte des Christentums und der Kirche. Leiden: E. J. Brill, 1956, p. 313. 29 Cf. Blondel, Eric. Nietzsche : le « cinquième ‘Évangile’ ? » Paris : Les Berges et les Mages, 1980, p. 249. Apud Souladié, Yannick. “Antichristianisme et hérésie”. In: Nietzsche – L’Inversion des valeurs. Hildesheim/Zürich/New York : Georg Olmes Verlag, 2007, p. 93. 25 28 tempo, para a ambigüidade dos argumentos do filósofo que ora exibe Jesus como aquele que mais se aproximou da verdade e “de uma verdade sempre atual”, ora como aquele que mais se enganou devido a um erro sempre possível. 30 Pacini também fala que “a contradição intrínseca e irresoluta” que se encontra no fundo do pensamento de Nietzsche, reflete-se em sua interpretação da figura de Jesus, numa relação de fascínio e rejeição, de amor e ódio. 31 Uma outra interpretação é oferecida por Souladié que defende uma indiferença por parte de Nietzsche no que diz respeito a Jesus. Segundo Souladié, não se pode falar de um ataque por parte de Nietzsche à figura de Jesus e muito menos de um elogio, pois Jesus tem um papel totalmente insignificante para o estudo da gênese do cristianismo, e o objetivo da interpretação que Nietzsche faz de Jesus em O Anticristo é justamente mostrar isso, o quanto o ideal absoluto do cristianismo, a saber, o Cristo, nem mesmo existiu, porque Jesus não pode ser considerado um Cristo, mas somente “um Galileu idiota e insignificante”. 32 Apesar de acompanharmos em grande parte os resultados obtidos por Souladié, principalmente no que se refere à impossibilidade de se atribuir à última filosofia de Nietzsche qualquer espécie de retorno à mensagem original de Jesus 33 , não podemos igualmente concordar com a idéia de que Nietzsche atribua a Jesus um papel completamente irrelevante para a compreensão da gênese do cristianismo e mesmo para a realização do projeto de uma transvaloração dos valores. Assim, adotamos como proposta interpretativa a hipótese de que se há um elogio por parte de Nietzsche a Jesus, esse elogio é no máximo relativo, e precisa ser cuidadosamente delimitado, isso porque a prática professada por Jesus representa a possibilidade para que uma forma de vida décadent como a dele possa aceitar de forma natural sua própria condição, livrando-se do ressentimento, abdicando do desejo de conservação a todo custo e aceitando a chegada de sua iminente dissolução. Porém, tal prática não se mostra adequada para um tipo de vida em ascensão, 30 Cf. Valadier, Paul. Nietzsche e la critique du christianisme. Paris : Les éditions du Cerf, 1974, p. 395. Pacini, Gianlorenzo. Nietzche lettore dei grandi russi. Roma : Armando, 2001, p. 45. 32 Souladié, Yannick. “Antichristianisme et hérésie”, p. 104. 33 Souladié, “Antichristianisme et hérésie”, pp. 98-99; pp. 104-105. 31 29 não devendo ser adotada como modelo por um tipo mais elevado de homem [höheren Typus Mensch] 34, cuja meta é a auto-superação. A necessidade imperativa apontada por Souladié de se separar os escritos anticristãos de 1888 daqueles que o precedem 35 constitui verdadeiramente o meio mais eficaz para se esclarecer qual o papel específico que a figura de Jesus desempenha na última obra de Nietzsche. Em O Anticristo, Nietzsche mostra que uma maldição ao cristianismo (condição necessária para que haja uma afirmação plena da vida) só se torna possível mediante a compreensão da gênese dessa religião enquanto ato de falsificação definitiva da realidade elaborada pela décadence ressentida, que precisa negar a vida e as suas condições de efetivação a fim de se conservar. Para tanto, é necessário revelar que essa religião brotou diretamente do solo do ressentimento judaico sacerdotal, cuja decisão de ser a todo custo mobilizou os primeiros cristãos e, sobretudo, Paulo de Tarso, a operarem uma inaudita falsificação da realidade pela desnaturalização daquilo que Jesus representou. Para Nietzsche, o grau de corrupção dessa desfiguração de quem foi Jesus, torna impossível o resgate histórico desse personagem. Sendo assim, tudo o que resta é a possibilidade de se tentar reconstituir o tipo psicológico do redentor [der psychologische Typus des Erlösers] 36 , e mostrar como e por que esse tipo precisou necessariamente ser corrompido pelo cristianismo histórico. Com isso Nietzsche crê desferir o golpe definitivo contra a interpretação cristã da existência, superando assim a hegemonia dos valores da décadence, cujo niilismo, sua lógica 37, tende a negar a vida em sua totalidade, ansiando por um mundo ilusório que representa a contradição da vida mesma, o próprio nada. Nietzsche diagnostica o tipo psicológico do redentor como idiota. Para o filósofo, o Galileu só pode ser concebido como tipo décadent detentor de uma enfermidade congênita que o impede de entrar em contato direto com a realidade por não suportar qualquer tipo de dor; sua mensagem se resume em sua prática de vida, uma conseqüência, na verdade, de sua condição fisiológica: não opor qualquer resistência, não lutar jamais, pois assim a dor é evitada e a bem aventurança é alcançada. Desse modo, em O Anticristo, Nietzsche fará uma 34 Cf. AC § 5. Cf. Souladié, “Antichristianisme et hérésie”, p. 96. 36 Cf. AC § 28. 37 Cf. Giacoia Junior, Labirintos da alma, p. 88. 35 30 clara diferenciação entre a figura de Jesus e o cristianismo histórico, entre o que a vida de Jesus significou e aquilo que os seus adeptos e Paulo inventaram, ou seja, o Messias, o Cristo, o Crucificado, o “Redentor”. Sem que se determine isso, é impossível, de acordo com Nietzsche, compreender o terreno no qual o cristianismo cresceu e qual a sua real e funesta natureza. Contudo, essa não é exatamente a imagem de Jesus que encontramos nos escritos anteriores a O Anticristo, e de fato, ao compararmos o modo como Jesus é apresentado nesses escritos precedentes e a maneira como ele passa a ser descrito em 1888, podemos entender melhor vários dos motivos que levaram certos intérpretes a afirmarem que Nietzsche se contradiz, e talvez também porque muitos insistem em defender que Nietzsche prega uma espécie de retorno aos preceitos do evangelho original de Jesus. É célebre, por exemplo, a passagem em Assim falou Zaratustra em que Nietzsche lamenta a morte prematura de Jesus: Em verdade, morreu demasiado cedo aquele hebreu a quem honram os pregadores da morte lenta: e para muitos se tornou desde então uma fatalidade que ele morresse demasiado cedo. Não conhecia ainda mais que lágrimas e melancolia próprias do hebreu, junto com o ódio dos bons e dos justos, – o hebreu Jesus: e então o acometeu o desejo da morte. Oxalá houvesse permanecido no deserto e longe dos bons e dos justos! Talvez houvesse aprendido a viver e a amar a terra – e, ademais, a rir! Crede-me, meus irmãos! Morreu cedo demais; ele mesmo teria se retratado de sua doutrina se tivesse chegado a minha idade! Era bastante nobre para se retratar! 38 Ora, mas de acordo com a análise do tipo de Jesus feita em O Anticristo, veremos que ele não poderia ter tido ódio dos bons e dos justos e tampouco poderia ser considerado nobre 39 no sentido estabelecido em Genealogia da moral. humano, Jesus é visto “como o coração mais cálido” 41 40 Em Humano, demasiado , responsável em boa parte pelo embotamento do intelecto humano.42 Em Opiniões e sentenças, “a experiência de dois milênios” elabora modestamente a seguinte pergunta: “Se Cristo realmente tinha a intenção de redimir [erlösen] 43 o mundo, não teria fracassado?” 44 Em Gaia Ciência, é dito que um 38 ZA I, Da morte livre. Tradução nossa. Cf. também FP 3 [73] da primavera de 1880 a primavera de 1881. Em HHI § 475, Jesus é tido como “o mais nobre dos homens”. Ver também BM § 60. 40 Para essa questão, cf. a análise de Barros, Op. Cit., pp. 59-62. 41 HHI § 235. 42 Cf. também HHI § 144. 43 “Salvar” em PCS. 39 31 Jesus só poderia surgir como um “milagre do ‘amor’” na sombria paisagem judia encoberta pela nuvem negra de ira de Jeová, em uma paisagem mais amena tal “raio da graça’” seria visto apenas como o normal e o cotidiano. 45 Todas essas tentativas lidam ainda com a imagem de um Jesus histórico que Nietzsche formulou sob influência, principalmente, de David Strauss, Ernest Renan e Franz Overbeck, muito distante ainda da investigação de natureza psicológica que se vê em O Anticristo. Mas o indício mais forte de que há uma distinção entre o modo como Jesus é apresentado em O Anticristo e a forma como ele aparece em escritos antecedentes, está nas declarações a respeito de quem é o verdadeiro responsável pelo surgimento do cristianismo. Em O Anticristo, Nietzsche atribuirá a Paulo a autoria principal pela invenção do cristianismo, estabelecendo uma distinção definitiva entre Jesus e a figura “mítica” criada pelo “apóstolo”, ou seja, o Crucificado, e entre a mensagem de Jesus e o cristianismo histórico. 46 Antes disso, contudo, muitas das características que Nietzsche atribuirá mais tarde exclusivamente ao cristianismo de Paulo, aparecem ainda misturadas com a prática de Jesus. 47 O Galileu é visto, por exemplo, como o “fundador” do cristianismo em diversas passagens de o Andarilho e sua sombra. No aforismo intitulado “Salvador e médico” [Heiland und Arzt] 48 , é dito, por exemplo, acerca de Jesus: “Como conhecedor da alma humana, é evidente que o fundador do cristianismo não estava livre de enormes deficiências e parcialidades, e, como médico da alma, era dado à infame e leiga crença numa medicina universal”. 49 Mas, na parábola “Os prisioneiros”, a confusão que Nietzsche ainda fazia entre os aspectos fundamentais da doutrina de Paulo e a mensagem de Jesus, algo cuidadosamente evitado em sua análise do tipo psicológico de Jesus feita em O Anticristo, mostra-se ainda mais patente. Nessa passagem, a necessidade de que se creia em Cristo para obter a salvação aparece como algo professado pelo próprio Jesus e não como um dos 44 OS § 98. GC § 137. Cf. também GC § 138. 46 Cf. Salaquarda, Jörg. “Dionysus versus the Crucified One: Nietzsche’s understanding of the Apostle Paul”. In: Conway, Daniel (ed.). Nietzsche: critical assessments. Londres/Nova York: Routledge, 1998: “É somente em O Anticristo que Nietzsche chega a uma inequívoca diferenciação dos papéis de Jesus e de Paulo na origem do cristianismo, e ao mesmo tempo, a uma irrestrita oposição ao apóstolo” (pp. 268-269). 47 Cf., por exemplo, GM, I, § 6. 48 “Redentor” em PCS. 49 AS § 83. 45 32 principais artifícios da pregação de Paulo: “sou o filho do guardião e posso tudo com ele. Posso salvá-los, quero salvá-los; mas vejam bem, apenas aqueles entre vocês que acreditam que sou o filho do guardião; os demais colherão os frutos de sua descrença”. 50 Porém, mesmo em escritos mais tardios, essa mesma confusão ainda permanece, como, por exemplo, no seguinte fragmento póstumo do outono de 1887, em que Jesus é posto ao lado de Paulo como autor do cristianismo 51: Não me agrada absolutamente nesse Jesus de Nazaré ou nesse seu apóstolo Paulo o fato deles terem enchido tanto a cabeça da gente pequena, como se suas modestas virtudes fossem de qualquer importância. Deve-se fazê-los pagar caro: pois eles difamaram as qualidades mais preciosas da virtude e do homem, eles opuseram um contra o outro a má consciência e o sentimento de si da alma nobre, eles extraviaram as propensões corajosas, magnânimas, generosas, temerárias, excessivas da alma forte, até a autodestruição... 52 No entanto, o fato de que Paulo “usou” para seus próprios fins a figura de Jesus é algo que Nietzsche sustentou desde Aurora 53, apesar de ainda não identificar claramente o que propriamente pertenceria de fato a Jesus e o que não passaria de adulteração por parte de Paulo. 54 Essa distinção entre Jesus e Paulo só se tornará mais nítida a partir de novembro de 1887, em que, aos poucos, Nietzsche passa a questionar o papel de Jesus enquanto “fundador” do cristianismo. Em um fragmento póstumo do outono de 1887, Jesus ainda é considerado sem qualquer hesitação como o fundador do cristianismo: “‘A salvação [das Heil] vem dos judeus’ – disse o fundador do cristianismo (João IV, 22). E se acreditou!!!” 55 Mas já em um fragmento de novembro de 1887 a março de 1888, Nietzsche toma o cuidado de utilizar aspas ao denominar Jesus de “fundador” do cristianismo, visto que nada daquilo que se considera como “cristianismo” foi realmente professado por Jesus: “O ‘cristianismo’ [...] é o grande movimento antipagão da Antiguidade, formulado com a utilização da vida, doutrina e palavras do ‘fundador’ do cristianismo, mas segundo uma interpretação absolutamente arbitrária, segundo o esquema de necessidades essencialmente 50 AS § 84. A autoria do cristianismo é também atribuída a Jesus, em conjunto com Paulo, em GM I, §§ 8 e 16. 52 FP (206) 10 [86] do outono de 1887. 53 Cf. A § 68. 54 Cf., por exemplo, FP 4 [261] do verão de 1880. 55 FP 10 [182] do outono de 1887. 51 33 diferentes”. 56 E, em um fragmento da primavera de 1888, essa discussão é aprofundada ainda mais. Segundo Nietzsche, é “possível que aquilo que se deve ao cristianismo não deva ser atribuído ao seu fundador, mas sim ao edifício acabado, ao todo, à Igreja que procedeu. A noção de ‘fundador’ é tão equívoca que ela pode significar até mesmo a simples causa ocasional de um movimento”. 57 Essas declarações contidas nos fragmentos póstumos de Nietzsche, juntamente com a investigação sobre a gênese do cristianismo empreendida por ele em O Anticristo, nos leva a adotar como pressuposição que, em sua última obra, o filósofo passa a considerar como sendo um juízo equivocado considerar Jesus como o fundador do cristianismo, o que em escritos anteriores ainda não havia sido definido. Dessa forma, a posição que tomamos é a de que apenas em O Anticristo ocorre a separação definitiva entre a figura de Jesus e a sua imagem enquanto “Salvador” e “Redentor” da humanidade elaborada por Paulo. Além disso, estamos de acordo com Souladié 58 a respeito da impossibilidade de se identificar a interpretação que Nietzsche faz de Jesus em O Anticristo com a figura, de cunho eminentemente eclesiástico, do Cristo. Ora, em diversas passagens de escritos mais antigos, Nietzsche não vê nenhum problema em se referir a Jesus como Cristo, e mesmo em um fragmento bastante tardio da primavera – verão de 1888, ele ainda o faz, tomando o cuidado, entretanto, de chamar atenção para o problema que há em se pensar que o cristianismo possui uma verdadeira ligação com os ensinamentos daquele que o seu nome pretende evocar, isto é, o “Cristo”: Não se deve confundir o cristianismo com essa única raiz que evoca seu nome: as outras raízes das quais ele proveio são de longe mais poderosas, mais importantes que seu núcleo; é por um abuso sem igual que essas abomináveis monstruosidades e resíduos de degenerescência que se nomeiam ‘Igreja cristã’, ‘fé cristã’, ‘vida cristã’, se aproximam desse santo nome. O que, pois, Cristo negou? – Tudo aquilo que hoje se chama cristão. 59 56 FP 11 [294] de novembro de 1887 a março de 1888. FP 15 [108] da primavera de 1888. 58 Souladié, “Antichristianisme et hérésie”, pp. 98-99. 59 FP 16 [87] da primavera – verão de 1888. Cf. também FP 15 [9] da primavera de 1888. É bastante significativa à denominação de “santo” [Heiliger], conferida por Nietzsche a Jesus algumas vezes. Dificilmente poderíamos ouvir aqui um tom de veneração por parte de Nietzsche, para tanto, basta nos remetermos às suas declarações em Ecce Homo: “Sou um discípulo do filósofo Dionísio, preferiria antes ser um sátiro a ser um santo” (EH, Prólogo § 1). Ao retornar a sua solidão, diz Nietzsche, Zaratustra se despede de seus discípulos de maneira precisamente oposta ao “que diria em tal caso qualquer ‘sábio’, ‘santo’, ‘Redentor do mundo’ [Welt-Erlöser] ou outro décadent” (EH, Prólogo § 4, “salvador do mundo” em PCS). A 57 34 No parágrafo 7 de O Anticristo, Jesus é designado pelo nome mais abrangente de “Nazareno” [Der Nazarener], no 24, de “Galileu” [Der Galiläers], e no 27, de Jesus de Nazaré. Nos parágrafos 24 e 28, Nietzsche se refere a Jesus como um redentor [Erlöser], contudo, há uma grande diferença de significado no fato do filósofo utilizar esse termo entre aspas ou não, porque a análise do tipo psicológico do redentor irá revelar que Jesus não poderia ser nenhum “Redentor” da humanidade, que essa designação é produto da falsificação de seus correligionários e de Paulo. 60 Após o início da investigação sobre o seu tipo (parágrafo 29), o idiota Jesus é denominado apenas pelo seu primeiro nome (parágrafo 40 a 43). Além disso, o fragmento póstumo supracitado é na verdade um texto preparatório aos parágrafos 36 e 39 de O Anticristo, nos quais Jesus e Cristo já aparecem como figuras distintas e não como Jesus Cristo em escritos anteriores. 62 61 , denominação utilizada algumas vezes por Nietzsche Unicamente quando vai se referir ao objeto da crença dos apóstolos e de Paulo, e isso após o término do estudo do caso “Jesus”, Nietzsche faz uso dos termos “Cristo” [Christus] 63, “Deus na cruz” [Gott am Kreuze] 64, “Messias” [Messias] 65 , “Salvador” [Heilande] 66 (entre aspas) ou “Redentor” [Erlöser] (entre aspas). 67 Sendo assim, é assaz importante para a compreensão da interpretação que Nietzsche faz de Jesus, que se entenda que ele não considera esse Galileu como um “Messias”, um palavra Übermensch “foi entendida em quase toda parte, com total inocência, no sentido daqueles valores cuja antítese foi manifesta na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo ‘idealista’ de uma mais alta espécie de homem, meio ‘santo’, meio ‘gênio’...” (EH, Por que escrevo livros tão bons § 1). E, finalmente, “Tenho um medo pavoroso de que um dia me declarem santo [...] Eu não quero ser um santo, preferiria ser um bufão... Talvez eu seja um bufão... E apesar disso, ou melhor, não apesar disso – pois até o momento nada houve mais mendaz do que os santos –, a verdade fala em mim” (EH, Por que sou um destino § 1, tradução ligeiramente modificada). Voltaremos a abordar essa questão de maneira mais detida na seção “Fisiologia da redenção”. 60 Isso pode ser conferido em AC § 24, mas essa questão será analisada mais cuidadosamente na seção “Fisiologia da redenção” e em “Considerações Finais: Redenção para o ‘Redentor’ ou redenção do redentor”. 61 O fragmento póstumo 15 [108] da primavera de 1888 é o preparatório de AC § 31, no qual o mesmo se dá. 62 Cf. FP’s 3 [73], 5 [33] de 1880 a primavera de 1881; FP 25 [491] primavera-outono de 1884; GC § 137. 63 AC § 39 e 41. 64 AC § 51 e 58. 65 AC § 31 e 40. 66 AC § 58. Heilende, Heilinger, Heilung, etc., derivam de heilen, que é curar, algo que vemos como extremamente significativo para o entendimento das realidades tanto do evangelho de Jesus quanto da doutrina cristã na perspectiva de O Anticristo. Essa questão será analisada em “Considerações finais: Redenção para o ‘Redentor’ ou redenção do redentor”. 67 AC § 42. 35 “Salvador”, um “Cristo” 68 ou mesmo um “Redentor”, e que sempre que esses termos surgem em O Anticristo, não é para fazer referência ao mestre da Galiléia investigado pelo filósofo, mas sim à imagem corrompida criada pelo cristianismo eclesiástico. 69 Sem que se identifique essa diferenciação, torna-se bem mais fácil acusar Nietzsche de contradição e ambigüidade, bem como acreditar que ele é um profeta que prega o retorno para o autêntico evangelho de “Cristo”. 70 68 Dessa forma, não há sentido em se pretender, devido ao fato de “der Christ” em alemão significar tanto cristão quanto Cristo, que a tradução correta para Der Antichrist seria “O Anticristão”. Mesmo porque o termo oficial utilizado pelos teólogos alemães da época de Nietzsche para a tradução da palavra de origem grega “antichristos”, encontrada nas duas Epístolas atribuídas a João, era “der Widerchrist” [o Contra-Cristo]. O termo “Der Antichrist”, derivado das línguas romanas e mais próximo do termo grego, era usado principalmente pelo povo e não pelos teólogos. Nietzsche escolheu voluntariamente o termo “Der Antichrist” para reforçar a origem grega do Anticristo: “eu sou, em grego, e somente em grego, o Anticristo...” (EH, Por que escrevo livros tão bons § 2). Com isso Nietzsche queria exatamente se apresentar como o “inimigo de Cristo”, que apavorava o povo de sua época e os cristãos do tempo de Nero (cf. Souladié, “Antichristianisme er hérésie”, p. 105, e “Christ et Antichrist”, pp. 144-145). A escolha do termo também é vista por Salaquarda como influência de Schopenhauer (Cf. Salaquarda, “Der Antichrist”, p. 129). Tese rebatida por Souladié, que defende uma influência muita mais significativa da obra Os demônios, de Dostoiévski (Cf. Souladié, Yanick. “Dostojewskis Antichrist”. In: Andreas Urs Sommer (Herausgegeben). Nietzsche – Philosoph der Kultur(en)? Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2008, pp. 325-334). De nossa parte, consideramos que não se pode descartar a possibilidade de que a escolha do termo também possua relação com uma confrontação com a obra L’Antéchrist, de Renan. 69 O termo “Crucificado” [Gekreuzigte] irá surgir nos póstumos (FP’s 14 [89]; 14 [91]; 14 [137]; 16 [16] do início de 1888 – começo de janeiro de 1889) e em Ecce Homo, Por que eu sou um destino § 2, para designar o nefasto símbolo criado por Paulo. 70 Em O Anticristo, Nietzsche parece fazer uma distinção entre Christenthum (cristianismo) e Christlichkeit (cristianidade, na tradução de Paulo C. de Souza). Como observou Oswaldo Giacoia Junior: “Nietzsche estabelece uma oposição entre Christenthum (Cristianismo) e Christlichkeit e Christ-sein (respectivamente Cristianicidade e ser-cristão). O Cristianismo ‘oficial’ consiste na redução do Ser-cristão, da espiritualidade própria à Cristianicidade, a dogmas, fundamento da crença eclesiástica” (“Nietzsche e o cristianismo”. In: Revista Cult, “Filosofia e fé”. São Paulo: Editora Bregantini, n. 88, janeiro de 2005). A passagem em que se dá essa diferenciação diz: “Reduzir o fato de ser cristão [Christ-sein], a cristianidade [Christlichkeit], a um tomar-por-verdadeiro, a uma mera fenomenalidade da consciência, significar negar a cristianidade” (AC § 39). Não obstante, o termo “Christlichkeit”, que Nietzsche herda de Overbeck, foi antes usado por ele para se referir ao cristianismo de Paulo (A § 58). Além disso, o termo também pode ser traduzido como “cristandade” (cf. a tradução de PCS para A § 58), que possui um significado bastante específico dentro da teologia, designando aquilo que constitui toda a forma (e poder) temporal da “Igreja de Cristo”. No fragmento póstumo 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888, Nietzsche afirma que “a cristandade [Christlichkeit] se revela enquanto conclusão lógica do judaísmo”, aqui, portanto, Christlichkeit se refere ao cristianismo eclesiástico e não ao evangelho de Jesus. Nietzsche volta a afirmar que o cristianismo eclesiástico é a conclusão do judaísmo na seção 24 de O Anticristo, mas utilizando o termo “Christenthum” ao invés de “Christlichkeit”. Já no aforismo 11 [367] do mesmo período, Nietzsche faz uma comparação esquemática entre “o primeiro budismo e a primeira cristandade [Christlichkeit]”, aqui Christlichkeit já se refere ao evangelho de Jesus; pode-se supor, assim, que, além dessa “primeira cristandade”, o filósofo também pressupõe a existência de uma “segunda cristandade”, ou seja, aquela que diz respeito ao cristianismo eclesiástico. Ademais, a expressão “Christ-sein” também surge no segundo parágrafo da “Lei contra o cristianismo” para designar não a mensagem original de Jesus, mas aquilo que é próprio do cristão (adepto do cristianismo histórico), sua realidade. Portanto, é possível afirmar que Nietzsche fala de duas Christlichkeit e 36 O que concorreu de modo definitivo para que essa distinção entre a figura de Jesus e o cristianismo de Paulo, e por fim, entre Jesus e o próprio Cristo, fosse estabelecida de duas Christ-sein, querendo designar com isso aquilo que é próprio, que se depreende necessariamente do fundamento daquilo que significa ser-cristão, de sua primeira e última, mais íntima natureza. Porém, deve-se ter em conta que se pode falar de duas realidades “cristãs”, uma que se refere à prática de Jesus (e que, portanto, é a única que deveria, em última instância, ser designada cristã – em um sentido provisório, de suspensão estratégica de assentimento – da qual Jesus é o único representante, ver AC § 39) e outra que se refere à doutrina cristã (relacionada – em um discurso pautado na realidade e não mais como fruto de uma suspensão de assentimento – ao cristianismo propriamente dito, do qual Paulo é, segundo Nietzsche, o primeiro bem como o último representante, ou seja, Paulo representaria o cristão por excelência, ver AC § 46). A despeito disso, no parágrafo 39 de O Anticristo, Nietzsche de fato utiliza Christlichkeit para se referir à realidade do evangelho de Jesus ao contrapô-la ao cristianismo eclesiástico, ao que tal cristianismo elaborou a partir dessa realidade, dessa cristandade específica, como esclareceu Giacoia Junior. Porém, supomos que se possa falar também de uma outra realidade cristã, de uma outra cristandade ou cristianidade, a saber, aquela do próprio cristianismo eclesiástico, como se pode verificar no segundo parágrafo da “Lei contra o cristianismo”. Deste modo, a distinção entre Christenthum e Christlichkeit não percorre inteiramente O Anticristo, mas se localiza apenas no parágrafo 39. Todo o referido parágrafo constitui, na verdade, um precioso exemplo da chamada “filosofia das aspas” característica de Nietzsche, isto é, a utilização de argumentos estratégicos para problematizar uma dada questão. No caso específico, a questão que se quer problematizar é justamente: afinal, o cristianismo (eclesiástico) teria mesmo o direito – no sentido mais estrito possível – de ser designado de cristianismo. É assim que, na seção 39, exatamente após ter utilizado o termo “Christlichkeit”, Nietzsche faz uso do termo “cristianismo” [Christenthum] para se referir ao evangelho de Jesus, ao afirmar que o cristianismo sempre será possível, tendo o cuidado, contudo, de alertar que está se referindo a um cristianismo “autêntico”, “original”, que mereceria de fato – nesse momento da argumentação – ser chamado de cristianismo, e não ao histórico. E, no início do mesmo parágrafo, o filósofo chega inclusive a chamar Jesus de cristão [Christen], ao dizer que só houve de fato um cristão, Jesus. Ora, porém, aqui, tanto o uso do termo Chistenthum como Christen (tal como Christlichkeit) é meramente provisório, pois sua utilização ocorre apenas nesse momento de suspensão durante essa problematização do que significa mesmo ser cristão, de como pode o cristianismo ser chamado de Cris-tianismo, atuando, desse modo, somente como pressuposto argumentativo temporário. Nietzsche não está fazendo uma confusão ou sendo pouco rigoroso em textos como esse, mas apenas exigindo que o seu leitor o leia com calma, sem pressa, com lentidão, saboreando o texto como um bom filólogo. De todo modo, como a raiz da palavra “Christlichkeit” (que na verdade, em O Anticristo, só aparece no parágrafo 39, em que seu uso é provisório) remete à figura eclesiástica do Cristo, preferimos evitar recorrer tanto a ela como a Christenthum para nos referirmos à mensagem original de Jesus no decorrer do nosso trabalho, a fim de facilitar nossa aproximação com o tema. Recorremos, assim, preferencialmente, a “evangelho” [Evangelium], palavra mais utilizada por Nietzsche (AC §§ 33-36, 39-41, 43-44), ou “alegre mensagem” [frohe Botschaft] (AC §§ 29, 33, 34 e 41-42), “boa nova” [gute Botschaft] (AC § 32) e “prática evangélica” [evangelische Praktik] (AC § 33). Já com a palavra “Evangelhos” [Evangelien] (AC 27-28, 44) queremos nos referir aos três Sinópticos e ao livro de João que compõem o Novo Testamento. A opção por “evangelho” e “alegre mensagem” também se justifica pelo fato de Nietzsche caracterizar a doutrina de Paulo como um “disangelho” [Dysangelium] (AC § 39) e uma “má nova” [schlimme Botschaft] (AC § 39, FP 11 [282] outono de 1887 a março de 1888), inclusive denominando o “13º apóstolo”, que é considerado o mais importante “evangelista” de todos os tempos, de disangelista [Dysangelist] (AC § 42). Não esquecendo também que Nietzsche se refere a si próprio como o portador da [outra] decisiva boa nova: “Eu sou um mensageiro alegre [froher Botschafter]” (EH, Por que sou um destino § 1, cf. também carta ao Kaiser Guilherme II, início de dezembro de 1888). Não há aqui, porém, nenhuma “profunda identificação” com Jesus, mas somente um importante aspecto em comum em seus respectivos papéis no interior de uma necessária transvaloração dos valores, ou seja, Jesus é o portador de uma boa nova para a décadence, pois lhe oferece uma vida bem aventurada, sem ressentimento, e Nietzsche é o arauto de uma alegre mensagem para os homens mais elevados, pois lhes oferece as esperanças, as metas, as tarefas necessárias, “o caminho reto” para a cultura (cf. EH, Crepúsculo dos ídolos § 2, ver também carta de Peter Gast a Nietzsche de 25 de outubro de 1888). 37 categoricamente por Nietzsche foi o uso que ele fez de suas fontes. A obra que deu o primeiro impulso para que Nietzsche revise a sua interpretação da figura de Jesus foi Ma religion, de Tolstói 71 , lida por Nietzsche em Nice, nos primeiros meses de 1888. A tese defendida por Tolstói de que a máxima “Não resistais ao homem mau” contém a chave que abre a compreensão para o evangelho, despertou em Nietzsche a necessidade de conduzir um exame psicológico do cristianismo primitivo e, mais tarde, do tipo de Jesus. Outra fonte que permitiu que Nietzsche encontrasse mais um elemento fundamental para a psicologia do cristianismo primitivo e para o tipo psicológico de Jesus foi uma tradução francesa de Os demônios, Les Possédés, de Dostoiévski 72 , por meio da descrição da sensação de “harmonia eterna” do personagem Kírilov. Com essa leitura, Nietzsche constatou que a máxima “O reino de Deus está dentro de vós” é a segunda chave para a compreensão do evangelho. Porém, a análise de outra obra de Dostoiévski se mostra imprescindível para a compreensão do tipo psicológico do redentor, a saber, o romance O Idiota 73. Isso porque, a despeito de não haver qualquer indício que comprove que Nietzsche tenha lido essa obra, a mesma nos oferece um caso exemplar de como o conceito nosográfico de idiotia e sua relação com o cristianismo era entendido no século XIX, por meio da descrição de seu personagem principal, o príncipe Míchkin. Outra fonte extremamente importante é a obra Prolegomena zur Geschichte Israels, de Julius Wellhausen 74, na qual Nietzsche descobre quais os mecanismos utilizados pelo código sacerdotal durante o período da diáspora para falsificar a história do reinado de Israel e operar uma verdadeira desnaturalização dos valores naturais. Nietzsche percebe, então, que esse mesmo tipo de perversão psicológica foi utilizado por Paulo para adulterar a história de Jesus e para desnaturalizar o valor natural de sua mensagem. A leitura da obra Les Sceptiques grecs, de Victor Brochard 75 , também desempenhou um papel importante para a compreensão de que Jesus não havia pregado uma doutrina, mas sim oferecido uma mensagem que estava inteiramente contida em sua prática de vida, de maneira muito semelhante a Pirro e a Epicuro. De igual 71 Cf. Tolstoï, Léon. Ma Religion. Paris : Libraire Fischbacher, 1885. Cf. Dostoïevski, Theodor. Les Possédés. Traduit par Victor Derély. Paris: Bési, 1886. 73 Cf. Dostoïevski, Theodor. L’idiot. Traduit par Victor Derély et précédé d’une préface par Melchior de Vogüé. Paris: Plon-Nourrit et Cie, 1887. 74 Cf. Wellhausen, Julius. Prolegomena zur Geschichte Israels. Berlin: G. Reimer, 1883. 75 Cf. Brochard, Victor. Les sceptiques Grecs. Paris: Imprimerie Nationale, 1886. 72 38 importância foi a obra de Louis Jacolliot, Manou, Moïse et Mahomet 76 , para a compreensão do ambiente em que Jesus surgiu como sendo constituído pela tschandala do mundo antigo. Todas essas obras contribuíram para a concepção e realização do projeto de uma psicologia do redentor. Todas elas foram identificadas pelos mais importantes intérpretes de O Anticristo como as principais fontes para a composição da última obra de Nietzsche como um todo, sendo imprescindíveis para a sua compreensão. Não obstante, outra fonte lida por Nietzsche durante a composição de O Anticristo, e que talvez represente a contribuição mais decisiva para o diagnóstico do tipo psicológico de Jesus, não foi ainda, salvo engano, identificada por nenhum dos mais importantes intérpretes de O Anticristo, a saber: a obra Sensation et mouvement, de Charles Féré. 77 Essa obra forneceu a Nietzsche o conceito de hiperexcitabilidade, que constitui a realidade somática básica dos indivíduos ditos degenerados e que condiciona sua incapacidade de resistência e de luta. Ora, é por meio do conceito de hiperexcitabilidade que Nietzsche descreve e analisa a compleição fisio-psicológica do tipo Jesus. Que Féré seja uma fonte de Nietzsche é algo que já havia sido devidamente registrado no aparato crítico de Colli e Montinari, porém, poucos discutiram sua importância para O Anticristo. Todavia, entre aqueles que estabeleceram uma ligação entre o trabalho de Féré e a interpretação que Nietzsche faz de Jesus em seus últimos escritos, nenhum, até onde pudemos constatar, fez qualquer referência à obra Sensation et mouvement, mas somente à Dégénéréscence et criminalité 78, o que, em nossa interpretação, não revela de forma satisfatória a importância de Féré para essa discussão, pois, ainda que Dégénéréscence et criminalité também desempenhe um papel extremamente relevante na compreensão de todo o aparato médico que Nietzsche irá mobilizar para diagnosticar o tipo de Jesus, é Sensation et mouvement que fornece o fundamento conceitual para a compreensão do fenômeno da degenerescência fisiológica que Nietzsche utilizará. 79 76 Cf. Jacolliot, Louis. Manou, Moïse, Mahomet. Paris: Librarie Internationale, 1876. Cf. Féré, Charles. Sensation et mouvement: études expérimentales de psycho-mécanique. Paris: Félix Alcan, 1887. 78 Cf. Féré, Charles. Dégénéréscence et criminalité : Essai physiologique. Paris: Félix Alcan, 1888. 79 Sommer faz uma breve menção a Féré ao falar da incapacidade para a luta (de Jesus) como sintoma da degenerescência, remetendo, porém, à obra Dégénérescence et criminalité. Além disso, Sommer não faz nenhuma ligação entre o conceito de hiperexcitabilidade e Sensation et mouvement, nem mesmo entre hiperexcitabilidade e Féré. (Cf. Sommer, Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”, p. 289). Já Gregory Moore 77 39 Faz-se ainda necessário destacar um segundo conjunto de fontes para a compreensão do tema abordado aqui, a saber, as obras dos principais interlocutores de Nietzsche no que se refere ao estudo da figura de Jesus, trabalhos bastante familiares para ele, mas que o filósofo sentiu necessidade de reinterpretar a luz de suas novas investigações, qual sejam, as obras dos historiadores David Strauss e Ernest Renan. Nietzsche entrou em contato com Das leben Jesus (1837) 80, de Strauss, ainda muito jovem, e a leitura desse livro provocou um grande impacto nas convicções religiosas do aspirante a teólogo, sendo a mesma em parte responsável pelo seu abandono da fé cristã. Algum tempo depois, Nietzsche leu a Vie de Jésus (1863) 81 , de Renan, admirando-se com a vivacidade com que o historiador francês descrevia a trajetória do homem Jesus, acabando por dar preferência a essa obra em detrimento do livro de Strauss. 82 Contudo, já a partir de Humano, demasiado humano, Nietzsche dará início a uma série de críticas às idéias defendidas por Renan sobre história, religião, arte e política. Porém, é munido dos resultados obtidos com aquele primeiro grupo de fontes acima referido que Nietzsche estabelece um afastamento muito mais marcante das teorias de Renan, bem como de Strauss, no que diz respeito às origens do cristianismo, realizando, durante o período de gestação de O Anticristo, uma cuidadosa releitura da Vie de Jésus, de Renan. A principal crítica que Nietzsche dirige a Strauss está na ilusória confiança que este último depositava nos métodos científicos da investigação histórica para a análise dos Evangelhos. Para Nietzsche, o grande problema a respeito dos documentos que narram a vida de Jesus não está nas suas inúmeras contradições, tão bem exibidas por Strauss, mas sim no que essas estabelece de modo muito mais preciso a conexão entre a discussão sobre o tipo de Jesus, idiotia, hiperexcitabilidade e não resistência presentes em O Anticristo e o trabalho de Féré, referindo-se, todavia, assim como Sommer, exclusivamente à Dégénérescence et criminalité (cf. Moore, Gregory. Nietzsche, Biology and Metaphor. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 149 ss.). 80 Cf. Strauss, David Friedrich. Das Leben Jesu: kritisch bearbeitet. Tübingen: C. F. Osiander, 1837. 81 Cf. Renan, Ernest. Vie de Jésus. Paris: Calman Lévy, 1883. A primeira edição dessa obra foi em 1863, porém Renan publicou em 1867 uma edição melhorada e muito ampliada, que foi a que Nietzsche utilizou. Embora Nietzsche já conhecesse Vie de Jésus desde sua juventude, foi na primavera de 1888 que ele fez um estudo intensivo dessa obra. Mesmo quando a obra é datada como sendo a primeira edição de 1863, foi a 13ª edição “revue et augmentée” que Nietzsche da fato leu. Como comprovou Giuliano Campioni em NietzcheStudien 21 (1992), p. 404 e Nietzsche-Studien 24 (1995), p. 402. Sobre as datas de emissão dessa 13ª edição, cf. Antonio Morillas, Nietzsche-Studien 35 (2006), p. 301, nota 1. 82 A influência dos escritos de Renan no pensamento de Nietzsche vai muito além das investigações acerca da origem do cristianismo. Cf. Campioni, Giuliano. Les lectures française de Nietzsche. Traduit de l’italien par Cristel Lavigne-Mouilleron. Paris: Presses Universitaires de France, 2001, Cap. II, pp. 51-107. 40 contradições deixam a revelar. Ora, e o que elas revelam é o grau de corrupção psicológica operada por seus redatores, justamente aquilo que fez com que a reconstrução da imagem histórica de Jesus feita por Renan se tornasse uma enorme incongruência psicológica. Enredado nas teias das adulterações contidas nos Evangelhos, Renan acreditou poder dar conta de reconstituir o caráter de Jesus por meio das categorias “herói” e “gênio”, algo que permitiria, segundo ele, a elaboração de uma narrativa coerente e verossímil da vida de Jesus, a despeito das contradições dos Evangelhos. Contudo, Nietzsche argumenta que somente uma investigação acerca do tipo psicológico do redentor, que ainda pode ser apreendido desse inaudito embuste que são os Evangelhos, pode nos fornecer a pista para o autêntico significado da vida e da obra de Jesus. Segundo Nietzsche, essa investigação revela que o tipo de Jesus deve ser diagnosticado como idiota, o que não se coaduna de forma alguma com os conceitos de “gênio” e “herói” utilizados por Renan em seu retrato histórico de Jesus. 83 Não obstante, todas essas fontes, tanto as do primeiro quanto do segundo conjunto, forneceram a Nietzsche diversos elementos dos quais ele se apropriou para elaborar seu diagnóstico do tipo psicológico de Jesus, e a identificação desses elementos cumpre um papel imprescindível para a compreensão de sua investigação. Por conseguinte, sem que se faça referência ao uso dessas fontes, corre-se o grande risco de se fazer um julgamento equivocado a respeito de sua interpretação de Jesus, e tende-se a considerar tal interpretação, sobretudo, como mera afronta, provocação e ultraje, ou mesmo como sintoma de delírio. Foi o exatamente o que o ocorreu quando o Arquivo-Nietzsche dirigido pela irmã do filósofo tomou a decisão de ocultar a utilização que Nietzsche fez dessas fontes por temer que a originalidade do filósofo fosse posta à prova. Não obstante, assim que O Anticristo foi lançado, vários críticos acusaram o livro de não passar de um amálgama de idéias tomadas de outros autores, o que fez com que o Arquivo-Nietzsche 83 As influências exercidas por Schleiermacher, Bruno Bauer, Hermann Lüdemann e Overbeck no estudo da gênese do cristianismo feito por Nietzsche, também poderiam ser um interessante objeto de investigação, mas isso extrapolaria nosso escopo. Ademais a importância de Strauss e Renan como principais interlocutores de Nietzsche é dada pelo próprio filósofo que faz questão de se referir diretamente aos dois no início de sua investigação sobre o tipo psicológico do redentor. Sobre Bauer e Overbeck, cf. Benz, Nietzsches Ideen zur Geschichte des Christentums und der Kirche. E sobre Lüdemann e Overbeck, cf. Havemann, Daniel. Der ‘Apostel der Rache’. Berlin: Walter de Gruyter, 2002. 41 cerrasse suas portas ainda mais. Contudo, é provável que esse tipo de crítica não tivesse surtido qualquer efeito se essas fontes fossem reveladas mais rapidamente, o que só veio a ocorrer com o lançamento da edição crítica organizadas por Colli e Montinari, que mostrou que nos escritos póstumos de Nietzsche, podem ser encontrados inúmeros indícios, por meio de várias referências diretas e extratos colhidos pelo filósofo, da leitura feita por ele dessas obras. Isso porque, dessa forma, é muito mais fácil demonstrar o grau de originalidade da obra de Nietzsche, precisamente pela comparação com as obras que lhe serviram de matéria prima. 84 Portanto, ao fazermos uma análise dessas fontes de Nietzsche não pretendemos mostrar que sua interpretação da figura de Jesus em O Anticristo carece de independência, mas sim indicar que sua investigação não só possui uma intenção filosófica séria, como também um alto rigor conceitual, ao inseri-la no interior de todo um debate teórico sobre o tema. 85 Afinal, mesmo quando Nietzsche faz empréstimo de declarações retiradas quase que literalmente das obras de Renan e Tolstói, por exemplo, as mesmas adquirem um significado novo e específico ao seu pensamento, pois são utilizadas para responder a problemas que surgem unicamente no interior de sua filosofia da vontade de poder, constituindo, portanto, assimilações e reelaborações, e não simples reproduções de idéias alheias. Como nos esclarece Giuliano Campioni, o grande herdeiro da escola Montinari, no seu livro que procura traçar as fontes francesas utilizadas por Nietzsche e averiguar o papel que as mesmas desempenharam em seu pensamento: Nossa intenção não é evidentemente diminuir a originalidade de Nietzsche – como o fazem seus ‘inimigos’ ou como podem ainda recear todos aqueles que, muito numerosos, exploram o filósofo de uma maneira estética e imediata, a procura de mestres absolutos de sabedoria ou de profetas do niilismo – e menos ainda de denunciar um gigantesco plagiador, mas de “lançar um ponto em direção a cultura dos tempos de Nietzsche” e de “conhecer o caldo cultural” (Montinari) no qual ele agiu, de uma maneira poderosamente original, e que ele, por sua vez, 84 Como bem disse Pascual: “A maneira como Nietzsche assimila as sugestões dessas obras, que ele leu de maneira simultânea, e o modo que combina tais sugestões e se serve delas pondo-as a serviço de sua intenção própria, mostra que carece de sentido a questão sobre a ‘originalidade’ de Nietzsche.” (Loc. Cit., p. 20) 85 Strauss e Renan conheciam o trabalho um do outro; Tolstói e Dostoiévski, por seu turno, conheciam as obras de ambos os historiadores; Burckhardt e Wagner, que conheciam muito bem os escritos de Schopenhauer, Strauss e Renan (este último também influenciado por Schopenhauer) reforçaram ainda mais no jovem Nietzsche o interesse por essa discussão; sem contar que todos os chamados psicólogos franceses com quem Nietzsche amadurece sua perícia no escrutínio psicológico se auto-intitulavam herdeiros de Renan. Para toda essa complexa trama, esse “filigrane” do texto, cf. o trabalho de rigor filológico impressionante de Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche. 42 estimulou. É todo esse pano de fundo que Nietzsche, assimilando e radicalmente transformando, transmitiu ao novo século. 86 Pode-se acrescentar a essa questão o fato de que em sua investigação sobre o tipo psicológico de Jesus e sobre a gênese do cristianismo, Nietzsche não toma distância apenas das posições defendidas por seus principais oponentes nessa discussão, ou seja, Strauss e Renan, mas também de Tolstói e Dostoiévski, que lhe forneceram importantes elementos para travar esse debate. E por mais que não haja exatamente o que discordar em Wellhausen, Brochard e principalmente Féré, Nietzsche vai sempre, como já comentado, resignificar os resultados obtidos por esses autores. Nesta perspectiva, o objetivo do presente trabalho é apresentar o diagnostico feito por Nietzsche do tipo psicológico do redentor, indicando a importância que tal investigação exerce para a compreensão da gênese do cristianismo, revelando, assim, o grau de permissividade que essa religião representa para a vida, o que constitui um elemento essencial para que uma transvaloração de todos os valores possa ser realizada. O trabalho está estruturado da seguinte forma. No primeiro capítulo, mostraremos as tentativas feitas por Strauss e Renan de se escrever uma “vida de Jesus” no campo da investigação histórica, empreendimento que Nietzsche considera fadado ao fracasso. No segundo capítulo, procuraremos indicar como se deu a elaboração do projeto de uma psicologia do redentor, qual o real objetivo dessa investigação e qual o método que Nietzsche lança mão a fim de realizá-la, além de destacar a importância de Wellhausen na escolha desse método. No terceiro capítulo, abordaremos quais os elementos principais da análise fisio-psicológica do tipo Jesus feita por Nietzsche, que revelam o autêntico significado de sua vida e morte, bem como a necessidade de sua falsificação por parte do cristianismo histórico. Verificaremos também, nesse último capítulo, a importância de Féré para o fornecimento de todo um aparato conceitual, médico-psiquiátrico, que Nietzsche irá mobilizar para a descrição da compleição fisio-psicológica do tipo Jesus; bem como o papel que Tolstói, Dostoiévski e Jacolliot desempenharam para a identificação da sintomatologia do tipo Jesus (o mesmo, de forma muito mais breve, no que se refere a Brochard). 86 Campioni, Ibidem, p. 3. 43 No primeiro apêndice, tentaremos mostrar como se deu, em suas linhas gerais, a invenção do cristianismo por Paulo por intermédio da idéia de que sua visão do Cristo ressuscitado era a comprovação da imortalidade da alma. Com base nisso, Paulo criou a doutrina de que a morte de Jesus representou a salvação da humanidade pela remissão de seus pecados e de que somente pela fé neste seu “Cristo Redentor” é possível obter a salvação da alma e ter acesso à vida eterna no Paraíso. Com a criação desse seu novo Deus, “o Crucificado”, Paulo promove, então, a união entre a décadence do Oriente e do Ocidente, por meio da qual a vida é negada em sua totalidade e os valores da décadence se tornam hegemônicos. No segundo apêndice, gostaríamos de propor um breve estudo sobre o tipo psicológico do Parsifal, personagem principal da obra homônima de Richard Wagner, por considerarmos a investigação sobre o tipo de Jesus um tema intimamente associado com a crítica que Nietzsche faz ao músico como grande promotor dos valores da décadence. Esse estudo também é importante para um maior aprofundamento da crítica de Nietzsche aos conceitos de “gênio” e “herói” empregados por Renan como atributos para conceber o retrato histórico de seu Jesus, o qual, por sua vez, foi utilizado por Wagner como principal molde para a composição da personalidade de seu Parsifal. 44 1 – “VIDAS DE JESUS” Em sua investigação sobre a figura de Jesus empreendida em O Anticristo, Nietzsche faz questão de nomear os seus dois principais interlocutores: Strauss e Renan. Para o filósofo, o trabalho de ambos os historiadores mostrou, por motivos diferentes, que o projeto de se escrever uma “vida de Jesus”, ou seja, uma narrativa biográfica sobre os fatos e acontecimentos que estruturam a trajetória do homem Jesus, é um empreendimento irrealizável. Na primeira versão de Das Leben Jesu, Strauss não procurou, de fato, escrever uma “vida de Jesus”, e sim muito mais determinar o caráter de incompletude e confusão dos elementos que podem ser considerados autenticamente históricos nos relatos evangélicos, preferindo não se arriscar a tentar reconstituir uma tal história de vida, propondo apenas uma interpretação que resolveria essas contradições: a explicação mitológica. Renan, por sua vez, apresentou sua Vie de Jésus como uma réplica ao livro de Strauss, tentando demonstrar como é possível complementar os elementos históricos dos Evangelhos pela intuição do caráter moral da alma de Jesus e pela exposição de como essa alma se desenvolveu em contato com a sociedade e a cultura palestina de sua época, e escrever, assim, uma verdadeira “vida de Jesus”. Ora, segundo Nietzsche, a aplicação feita por Strauss dos métodos científicos que a história dispunha na época para a análise dos Evangelhos revelou-se infrutífera, pois, a despeito do êxito obtido pelo historiador em exibir as inúmeras contradições existentes nos relatos evangélicos, sua tentativa de explicar as origens do cristianismo do ponto de vista mitológico não conseguiu atingir o cerne da questão sobre as dificuldades de se reconstituir uma “vida de Jesus”. A inépcia de Renan em questões psicológicas, por outro lado, não permitiu que o historiador percebesse que somente as manipulações operadas em torno do caráter de Jesus puderam fazer com que esse mestre da pacata Galiléia fosse confundido com algo que só poderia ser explicado mediante os atributos “gênio” e “herói”. 1.1 – Strauss e o método histórico-crítico A seção 28 de O Anticristo serve como uma espécie de preâmbulo à investigação do tipo psicológico do redentor. Nela, Nietzsche faz referência ao que talvez ele considere 45 como sendo o avanço mais significativo da historiografia moderna a respeito da explicação dos fatos que ocasionaram o nascimento da religião cristã, ou seja, aos resultados obtidos pelo historiador alemão David Strauss em sua obra Das Leben Jesu. Entretanto, para Nietzsche, a obra de Strauss também indica que a pesquisa histórica se vê, nesse caso, tolhida por diversos obstáculos, os quais a mesma se mostra incapaz de superar ao contar unicamente com o auxílio da metodologia científica moderna. De acordo com o filósofo, a obra de Strauss é bastante eficaz e mesmo edificante como exercício exegético; um exemplo extremamente instrutivo para um jovem filólogo em formação de como devem ser aplicados os métodos científicos de que dispõe em seu ofício para uma leitura crítica das fontes. Mas, para um filólogo mais experiente, que aprendeu a ler um texto também com o olhar acurado do fisiólogo e do psicólogo, a colher os sinais que revelam a intenção por trás dos textos como sintomas de uma determinada forma de vida, como uma interpretação que responde às necessidades instintuais de uma dada organização vital – para esse filólogo maduro, a obra de Strauss não passa de recreação para o entretenimento de uma douta curiosidade. Nietzsche faz questão de admitir, assim, o quanto a obra de Strauss de fato lhe proporcionou momentos de deleite em sua juventude, mas que agora uma atitude mais séria deveria ser exigida daquele que deseja revelar o que se oculta por trás dessa mentira de milênios: “Está longe o tempo em que, como todo jovem erudito, saboreei, com a sapiente lentidão de um refinado filólogo, a obra do incomparável Strauss. Tinha então vinte anos de idade: agora sou sério demais para isso.” 87 Não obstante, mesmo em seus escritos de juventude, Nietzsche já exibe uma atitude crítica com respeito à obra de Strauss, sem nunca, no entanto, desmerecer a excelência do historiador enquanto crítico das fontes. Influenciado por Renan e Wagner, Nietzsche irá criticar, em sua juventude, a interpretação que Strauss faz de Jesus como um produto mitológico criado coletivamente. Outro ataque decisivo nesse período se dirige à pretensão de Strauss em se arvorar em filósofo e profeta em seu “evangelho de cervejaria” [Bierbank-Evangeliums] neue Glaube: ein Bekenntnis 89 88 intitulado Der alte und der , que serviu a Nietzsche como objeto de escárnio dirigido 87 AC § 28. Cf. EH, As extemporâneas § 2; CI, O que falta aos alemães § 2. 89 Cf. Strauss, David Friedrich. Der alte und der neue Glaube: ein Bekenntnis. Leipzig: G. Hirzel, 1872. 88 46 contra a cultura [Bildung] alemã em sua primeira consideração extemporânea: David Strauss, o confessor e o escritor. 1.2 - Strauss e a sua confissão A obra Der alte und der neue Glaube foi primeiramente publicada em 1872, na época Strauss estava com 64 anos. Por conta desse livro, o escritor angariou subitamente um inesperado respeito entre os círculos eruditos alemães. A obra foi, na verdade, recebida com grande entusiasmo, passando a ser considerada como um clássico moderno 90 , e, em apenas três meses após o seu lançamento, já estava em sua quarta edição. Antes disso, porém, Strauss amargou um extenso período de execração, durante o qual ele foi banido diversas vezes dos postos acadêmicos que veio a ocupar, até se ver compensado unicamente com o auxílio de uma pensão. Tudo isso devido à recepção negativa, tanto entre os teólogos dogmáticos e liberais quanto entre os historiadores, de sua Das Leben Jesu, que lhe rendeu fama, mas não prestígio. 91 Em Der alte und der neue Glaube, Strauss, fortemente influenciado pela teoria darwinista, tentou expor os motivos que o levaram a abandonar a fé cristã e a adotar aquela que, segundo ele, é a única fé adequada ao grau de desenvolvimento da consciência do homem moderno, a saber, a confiança que se pode depositar nas descobertas obtidas pelas ciências naturais. Strauss apresenta o seu livro como uma “confissão”, que promete deixar exposto o pensamento que lhe guiou em sua Das Leben Jesu, ainda que em Der alte und der neue Glaube ele tente se afastar um pouco da filosofia hegeliana que lhe serviu de fundamento para a composição de seu primeiro escrito. Para Strauss, a crítica e a história haviam demonstrado que Jesus não poderia mais ser objeto de crença. A concepção de mundo que a astronomia, a física, a química e a 90 Cf. Strauss, David Friedrich. L’ancienne et la nouvelle foi: Confession. Traduit par Louis Narval, préface par E. Littré. “Quand le tumulte des premiers combats s’était assoupi, on s’était peu à peu habitué à me témoigner quelque estime; on me faisait même de différents côtés l’honneur non brigué de me traiter comme une sorte de prosateur classique” (Préface de l’auteur a la quatrième édition, pp. xxxiv-xxxv). Não tivemos acesso à quarta edição alemã. 91 Cf. Schweitzer, Albert. The quest of the historical Jesus: a critical study of its progress from Reimarus to Werde. New York: The Macmillan Company, 1950, pp. 68-96. 47 biologia haviam descoberto nada tem em comum com os dogmas da teologia cristã. Assim, Strauss estrutura sua obra em torno de quatro perguntas capitais: (1) Somos ainda cristãos? (2) Nós temos ainda uma religião? (3) Como nós concebemos o mundo? (4) Como nós ordenamos nossas vidas? A resposta para a primeira questão deve ser negativa, pois “nós”, homens modernos, diz Strauss, não podemos depositar nossa crença em uma fé que repousa sobre fábulas, dogmas incompreensíveis e contrários à ciência. Quanto à segundo questão, Strauss responde com cautela, declarando que por mais que o homem moderno não possa aceitar a crença na imortalidade da alma, ele se vê ainda como um ser dependente do universo, e tal sentimento é o fundamento de toda religião. O homem moderno ainda se mantém religioso porque, após o abandono da fé cristã, ele ainda se vê compelido a buscar uma resposta para a terceira questão, mesmo que em outro lugar que não a religião cristã. E é na ciência que ele agora encontra essa resposta, e somente ela pode agora ordenar nossas vidas (quarta questão). Apenas a ciência pode doravante ocupar o lugar de uma nova fé, substituindo a antiga como princípio organizador e regulador da vida social e moral. 92 No entanto, Strauss declara que sua confissão não quer disputar o lugar de nenhuma outra. 93 Seu “nós” faz referência apenas aqueles que, por se verem isolados, tal como ele, sentem a necessidade de unir forças em torna dessa nova fé, em busca daquilo que pode ser realizado por meio dela. Sua exposição dessa nova forma de conceber o mundo não tem como objetivo, segundo ele, a mera disputa polêmica contra a Igreja, mas somente determinar e reunir os motivos que levaram esses homens modernos a se separarem dessa instituição: “D’un côté, on avait un Christ qui ne pouvait plus être le fils de Dieu , mais un homme dans le vrai sens du mot [...] de l’autre, on se voyait de mieux en mieux préparé à expliquer la constitution de la nature dans sa diversité et sa gradation jusqu’à l'homme, sans le secours d’un créateur et sans faire appel au miracle.” 94 Strauss declara que não tem nenhuma intenção de discutir a excelência de Jesus enquanto homem, porém, fez-se dele o centro de uma Igreja e de um culto por aquilo que ele não foi, não por aquilo que ele ensinou, mas por preceitos que permanecem incompletos e, por conseqüência, falsos. E, 92 Para um estudo mais completo sobre a importância de Der alte und der neue Glaube para a crítica do cristianismo em Nietzsche, cf. Valadier, Nietzsche e la critique du christianisme, pp. 23-68; e para a recepção dos historiadores e da teologia liberal, cf. Schweitzer, Op. Cit., pp. 68-77. 93 Cf. Strauss, L’ancienne et la nouvelle foi, Préface a la quatrième édition, p. xxxi. 94 Strauss, L’ancienne et la nouvelle foi, Préface a la quatrième édition, pp. xxxvii-xxxviii. 48 mesmo assim, a excelência de um homem “n’autorise aucune prétention à l’adoration d’une église; surtout quand cette excellence, prenant son origine dans des conditions et des idées qui sont loin de nous et même en quelque sorte opposées aux nôtres, devient de jour en jour moins propre à nous servir d’exemple dans les divers moments de notre vie.” 95 Em Der alte und der neue Glaube, Strauss declara tentar confessar, portanto, a única fé que o homem moderno consegue ainda se permitir. 1.3 – A primeira Extemporânea As Extemporâneas são descritas por Nietzsche como “integralmente guerreiras”. 96 Desses quatros atentados, “o primeiro teve êxito extraordinário. O barulho que provocou foi esplêndido em todos os sentidos”. 97 Na primeira das Considerações extemporâneas: David Strauss, o confessor e o escritor, Nietzsche atacou o velho Strauss como o arauto de uma fé ilusória e otimista que uma cultura [Bildung] de eruditos nutria a respeito de si mesma. O golpe teria sido tão violento que Nietzsche chegou a acreditar que seu impiedoso ataque concorrera para fulminar definitivamente o combalido Strauss 98 , falecido um ano depois: Ewald, de Göttingen, deu a entender, afirma Nietzsche, que seu “atentado resultara mortal para Strauss”. 99 Para Nietzsche, o embate contra Strauss representou sua entrada na sociedade: “No fundo eu havia posto em prática uma máxima de Stendhal: ele aconselha a fazer a entrada na sociedade com um duelo”. 100 Muitos intérpretes costumam acatar a tese de Curt Paul Janz de que esse escrito polêmico não passaria de uma obra de encomenda que Nietzsche realizou para atender a um pedido pessoal de Wagner. Entretanto, os argumentos que Pascual utiliza para rebater essa tese mostram-se, a nosso ver, suficientemente contundentes e decisivos, mostrando que essa obra não pode ser assim tão facilmente 95 Strauss, L’ancienne et la nouvelle foi, Préface a la quatrième édition, p. lii. EH, As extemporâneas § 2. 97 Ibidem. 98 Sobre o enorme contraste que há entre o vigor da juventude que Das Leben Jesu exibe e a maneira cambiante e sem forças com que Strauss expõe sua concepção de mundo em Der alte und der neue Glaube, cf. Schweitzer, Op. Cit., p. 75-76: “There is no force and no greatness in the book [Der alte und der neue Glaube]. It was a dead book, in spite of the many editions which it went through, and the battle which raged over it was, like the fiercest of the Homeric battles, a combat over the dead.” 99 EH, As extemporâneas § 2. 100 Ibidem. 96 49 considerada como despida de toda e qualquer independência. 101 Tratava-se, como bem observou Pascual, de “uma luta de vida ou morte”: era preciso destruir aquela “culturaria” [Gebildetheit] 102 alemã caso se quisesse garantir alguma possibilidade para a implantação dos ideais nietzschianos de um projeto de Re-nascimento da cultura [Kultur] alemã assentado sobre três pilares: a Grécia pré-platônica, Schopenhauer e a sua idealização de Wagner. “Não é uma obra de encomenda. É, ainda que de maneira negativa, uma exposição do pensamento de Nietzsche, que diz: vossa arte não é a minha arte; vossa filosofia não é a minha filosofia; nem sequer estamos de acordo em como se deve escrever”. 103 Em David Strauss, o confessor e o escritor, Nietzsche toma como pretexto para atacar a cultura alemã o sucesso que o livro superficial e mal escrito de Strauss havia angariado entre os círculos eruditos que haviam festejado o seu lançamento como o advento de um novo clássico alemão, ou melhor, o primeiro clássico dessa nova cultura de escritores de periódicos e fabricantes de novelas, que celebravam a vitória da Alemanha sobre a França como constituindo igualmente uma vitória no terreno cultural. “O primeiro ataque (1873) [das Extemporâneas] dirigiu-se à cultura [Bildung] alemã, à qual já então eu descia os olhos com inexorável desprezo. Sem sentido, sem substância, sem meta: uma mera ‘opinião pública’”.104 Essa “opinião pública”, que se iludiu de tal forma a respeito de si mesma a ponto de se considerar como uma verdadeira cultura [Cultur], tal como a que a França possuía, não poderia desconfiar minimamente da ameaça nefasta que essa ilusão representava, pois essa mesma ilusão detinha o poder de, na verdade, acabar por transformar essa tão aclamada vitória em uma derrota completa: pela extirpação do espírito alemão em favor do “Reich alemão”. Daí o impacto que Nietzsche atribuía ao seu livro: “Eu havia atacado em sua ferida uma nação vitoriosa – dizia que sua vitória não era um acontecimento cultural [Cultur-Ereigniss], mas, talvez, talvez algo bem diferente...” 105 De acordo com o filósofo, a pretensa “cultura” [“Cultur”] alemã, que havia se provado, na 101 Cf. Pascual Andrés Sánchez. “Introducción”, in: Consideraciones intempestivas, 1: David Strauss, el confesor y el escritor (y fragmentos póstumos). Introducción, traducción y notas Andrés Sánchez Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 2006. 102 Cf. Co. Ext. I § 1. 103 Pascual, Loc. Cit., p. 19 104 Cf. EH, As extemporâneas § 1. 105 EH, As extemporâneas § 2. “EH, As extemporâneas § 2. Cf. também carta a Brandes de 19 de fevereiro de 1888. 50 visão dos eruditos alemães, como superior à cultura [Cultur] da França quando da derrota desta, não passava de um acúmulo de saberes desordenados e destituídos de qualquer estilo próprio, uma mera cultura [Bildung] sem centro, sem um solo próprio, que nem mesmo sabia fazer uso daquilo que ela havia desterrado de outros povos e pátrias e declarado como seu, estando muito mais próxima de uma barbárie do que de uma cultura [Kultur] autêntica. Semelhante cultura [Bildung] alemã representa, pelo contrário, exatamente a antítese daquilo que constituí uma verdadeira cultura [Kultur] segundo a célebre conceituação feita por Nietzsche nessa primeira Extemporânea sob a influência de Jacob Burckhardt 106: A cultura [Kultur] é antes de tudo a unidade de estilo artístico em todas as manifestações vitais de um povo. O saber muitas coisas e ter aprendido muitas coisas não constituem, contudo, um meio necessário da cultura, nem tampouco um sinal de cultura e resultam compatíveis, de forma mais precisa, com a antítese da cultura, com a barbárie, quer dizer, com a carência de estilo e com a mistura caótica de todos os estilos. 107 Essa cultura [Bildung] alemã havia erigido a obra de Strauss como o seu grande clássico, no qual ela se auto-glorificava como o próprio ápice da história universal. Sendo assim, a obra de Strauss representava o legítimo reflexo dessa cultura, a grande declaração de suas mais ousadas pretensões, a verdadeira anunciação de suas futuras e presunçosas realizações. Deste modo, na primeira Extemporânea, Nietzsche procura desferir um duro golpe contra essa cultura ao “ridicularizar” David Strauss “como o protótipo do filisteu da cultura [Bildungsphilister] alemã e satisfait”, ou seja, como o maior exemplo do erudito que nutre uma supersticiosa convicção a respeito de si mesmo que o leva a acreditar que ele é um autêntico filho das Musas. 108 Em seu “evangelho de cervejaria”, Strauss confessa essa cultura de filisteu de duas formas, com as palavras e com as obras, ou seja, “com as palavras do confessor e as obras do escritor”. 109 Seu livro é, portanto, uma confissão dessa cultura filistéia tanto naquilo que diz respeito ao seu conteúdo quanto no fato do mesmo ser o produto de um escritor, isto é, 106 Cf. Chaves, Ernani. “Cultura e política: o jovem Nietzsche e Jakob Burckhardt”. In: Cadernos Nietzsche, Vol. 9, 2000, pp. 41-66. 107 Co. Ext. I § 1. 108 Cf. Co. Ext. I § 2. 109 Co. Ext. I § 3. 51 tanto pelas idéias expostas como pelo estilo em que elas são expostas. Nietzsche pretende, assim, mostrar a superficialidade, vulgaridade e falta de substância dessa cultura [Bildung], denunciando a ligeireza das idéias de Strauss e o modo leviano com que ele as escreve. Com isso, o filósofo conta expor ao vexame a “grande” confissão dessa cultura a respeito de si mesma e o “grande” estilo que ela se crê detentora. Além de atacar a “opinião pública” alemã, que elegeu o livro de Strauss como um clássico, que acreditou que a vitória da Alemanha na guerra representava igualmente uma vitória da cultura [Bildung] alemã, de denunciar essa dita cultura como mero acúmulo de saber, privado de uma visão de conjunto, de elaborar um estudo sobre como pensa e age o filisteu da cultura, de denunciar a superficialidade de sua visão de mundo e de seu estilo, Nietzsche também irá fazer em David Strauss, o confessor e o escritor e em vários fragmentos póstumos contemporâneos a esse escrito, uma análise do último livro de Strauss como sendo, na verdade, o lamentável resultado de um avanço indevido do historiador para além dos limites da crítica historiográfica, à qual ele deveria ter se restringindo como autêntico homem da ciência: “Sua confissão é uma extrapolação [Überschreitung]: por querer aparentar que era filósofo, o douto que nele havia sucumbiu”. 110 Ora, em sua “Confissão”, Strauss sentiu necessidade de se afastar do hegelianismo, e, buscando se aproximar da visão científica do mundo que as teorias darwinistas haviam instituído, acabou se vendo presa de sua inaptidão enquanto pensador, revelando-se como desmerecedor da tarefa a que se propunha. “Até um ilustre crítico da Bíblia se põe a tagarelar como uma cozinheira saída do fogão químico quando começa pouco a pouco a dissipar-se e a apartar-se dele os vapores hegelianos”. 111 Nietzsche acusa Strauss de tentar ser o apóstolo, o Paulo, de um novo messias, do grande benfeitor da humanidade, isto é, Darwin. 112 Porém, argumenta Nietzsche, Strauss nunca conseguiu realmente se ver livre dos insalubres odores emanados pelo hegelianismo, irremediavelmente entranhados em seu tacanho espírito, isto é, ele manteve conservado o aspecto malsão de sua inspiração 110 FP 27 [2] primavera-outono de 1873. FP 19 [201] verão de 1872 – início de 1873. 112 Cf. Johnson, Dirk Robert. “Nietzsche’s early darwinism: the ‘David Strauss’ essay of 1873”. In: Nietzsche Studien, Band 30, Berlin: Walter de Gruyter, 2001, pp. 62-79. 111 52 hegeliana. 113 Ainda que a influência de Hegel tivesse sido tão pouco saudável para o jovem Strauss, ela havia permitido, por um lado, que o mesmo pudesse caminhar sobre alguma base sólida enquanto se ocupava de sua eficiente tarefa enquanto crítico da Bíblia. Porém, em Der alte und der neue Glaube, Strauss se viu sozinho com seus próprios pensamentos e, sem uma base concreta de sustentação, a exposição de sua visão de mundo se revelou assaz mesquinha e sem qualquer substância, mesmo assim, o hegelianismo [Hegelei] ainda se mostrava fantasmagoricamente presente em seu inegável otimismo, ou seja, em seu aspecto mais prejudicial. Como esclarece Nietzsche: A terrível dilapidação do hegelianismo. Quem acredita dele ter sido salvo, como Strauss, jamais estará totalmente curado. Strauss experimentou duas desventuras: em primeiro lugar, o hegelianismo lhe alcançou e lhe apequenou, numa época em que deveria deixar-se guiar por um filósofo mais sério. Em segundo lugar, foi iludido por seus adversários de que a sua causa era uma causa popular e de que ele próprio era um autor popular. Por conseguinte, nunca pôde deixar de ser um teólogo, nem se transformar num discípulo rigoroso de sua ciência. Então, ele se ocupou em abandonar o máximo possível Hegel e o teológico: em vão. O primeiro se mostra em seu rasteiro otimismo a respeito do mundo, com o Estado prussiano como ponto final da história universal, o segundo na investida excitante contra o cristianismo. 114 Sendo assim, Nietzsche vê no velho David Strauss, nada além do que um mero reflexo pálido, uma vaga lembrança do crítico criterioso e cuidadoso que expôs de forma tão eficaz as contradições da Bíblia em sua Das Leben Jesu. Contudo, nenhum auxílio pode ser oferecido a esse douto que se acreditou popular: “Não consentimos de modo algum que se simule estar filosofando acerca de algo diante de nós, não o consentimos, por exemplo, a David Strauss, ao qual não é possível prestar nenhuma ajuda quando sai da atmosfera que lhe é específica, a atmosfera histórico-crítica”. 115 Por conseguinte, Nietzsche nunca deixou de demonstrar profundo respeito ao trabalho do jovem crítico da Bíblia, Strauss (antes dele haver se tornado o velho David Strauss tão aclamado pela opinião pública), ao seu olhar acurado, cauteloso e perspicaz, que pôs tão belamente a descoberto as incongruências dos relatos evangélicos, solapando como falsas e contraditórias tanto as explicações da teologia liberal quanto do dogmatismo. Esse aspecto do trabalho de Strauss, Nietzsche jamais 113 Cf. Co. Ext. I § 9. FP 27 [30] primavera-outono de 1873. 115 FP 19 [19] verão de 1872 – início de 1873. 114 53 chegará a questionar, vendo no mesmo um estímulo salutar para a honestidade e para a seriedade intelectual na árdua tarefa da pesquisa científica, tanto durante a Primeira Extemporânea quanto na época de O Anticristo. Como o filósofo faz questão de esclarecer em David Strauss, o confessor e o escritor: Houve um tempo em que Strauss era um douto bravo, rigoroso, que trabalhava arduamente [straffgeschürzten], e que, para nós, parecia tão simpático quanto todos aqueles que na Alemanha servem com seriedade e ênfase à verdade e sabem serem senhores dentro dos seus limites; esse que agora é famoso na opinião pública com o nome de David Strauss se transmutou em uma pessoa distinta: talvez sejam os teólogos os culpados de que isso tenha ocorrido, em todo caso, no que nos diz respeito, assim como sua seriedade de outro tempo nos obrigava à seriedade e à simpatia, seus jogos de agora com a máscara do gênio [Genie-Maske] resultam para nós odiosos e ridículos. 116 Sendo assim, apesar do tom crítico com que Nietzsche se refere a Strauss em O Anticristo, a influência que ele sofreu do historiador não ficou restrita unicamente à sua adolescência, mas ainda se manteve viva mesmo em seu último período de produção, porquanto foi Strauss quem primeiro ensinou Nietzsche a manter uma atitude de constante desconfiança com relação aos Evangelhos e a sempre buscar a integridade nas coisas de espírito. 1.4 – Das Leben Jesu, exame crítico Strauss publicou a primeira edição de Das Leben Jesu: kritisch bearbeitet em 1835, aos 27 anos. Com essa obra o historiador inaugurou uma nova forma de se interpretar a vida de Jesus ao estender a explicação mitológica (já utilizada, ainda que com menos competência, por alguns historiadores na interpretação do Antigo Testamento e de alguns elementos da vida de Jesus) para todo o conjunto narrativo composto pelos Evangelhos, com bastante eficiência e clareza lógica. 117 Por romper com todos os paradigmas pré- existentes da crítica neo-testamentária, Strauss foi rechaçado igualmente por teólogos, tanto os dogmáticos quanto os liberais, e por historiadores, mas foi sua obra que trouxe um novo 116 Co. Ext. I § 10. “Considered as a literary work, Strauss's first Life of Jesus is one of the most perfect things in the whole range of learned literature” (Schweitzer, Op. Cit., p. 78). 117 54 fôlego à investigação histórica das origens do cristianismo, e vários dos resultados de sua crítica evangélica são até hoje considerados como pontos pacíficos 118 , como já admitia o próprio Renan. Das Leben Jesu teve quatro edições principais (sem contar a sua versão popular): a primeira de 1835/1836, dividida em dois volumes; uma segunda em 1837, que não continha alterações; uma terceira de 1838-1839, contendo diversas modificações em que Strauss faz uma série de concessões aos seus críticos (De Wette e Neander), sobretudo com respeito à credibilidade do Quarto Evangelho 119 ; e uma quarta, em 1840, em que ele remove essas concessões, admitindo não saber explicar como pôde ter vacilado tão rapidamente sobre o seu ponto de vista. O método utilizado por Strauss consiste em apontar as contradições externas e internas dos Evangelhos. As contradições externas dizem respeito à suposta autoria dos Evangelhos como sendo de origem apostólica ou provindas de testemunhas oculares. As contradições internas são aquelas que surgem da comparação dos relatos evangélicos entre si, bem como aquelas que podem ser verificadas no interior de cada relato tomado isoladamente. Um novo tipo de contradição surge, por sua vez, quando se tenta explicar os relatos evangélicos ou segundo a interpretação supranaturalista dos teólogos dogmáticos, ou de acordo com a interpretação naturalista e racionalista dos historiadores e teólogos 118 Segundo Schweitzer, as descobertas de Strauss: “are far from having lost their significance at the present day. They marked out the ground which is now occupied by modern critical study. And they filled in the death-certificates of a whole series of explanations which, at first sight, have all the air of being alive, but are not really so. If these continue to haunt present-day theology, it is only as ghosts, which can be put to flight by simply pronouncing the name of David Friedrich Strauss, and which would long ago have ceased to ‘walk’, if the theologians who regard Strauss’s book as obsolete would only take the trouble to read it” (Schweitzer, Op. Cit., p. 84). 119 Cf. Strauss, David Friedrich. Vie de Jésus ou Examen critique de son histoire. Traduite par E. Littré. Paris: Libraire Ladrange, tome premier: 1839, tome second: 1840. “Les caractères de ce qui est digne de foi et de ce qui ne peut être cru, de ce qui s’approche et s’éloigne de la vérité, se heurtent et se croisent d’une façon si singulière dans cet évangile [Quatrième], le plus remarquable de tous, que, dans la première rédaction de mon livre, j’avais, avec le zèle d’une polémique exclusive, mis uniquement en évidence le côté défavorable, qui me semblait avoir été négligé; mais, peu à peu, le côté favorable a repris ses droits” (tomer premier, Préface a la troisième éd., p. v-vi). A tradução de Littré, feita a partir da terceira edição de Das Leben Jesu, possui uma grande importância filológica para o nosso objeto de estudo, pois foi por meio dela que Renan teve acesso à obra de Strauss. Isso era algo que irritava o erudito alemão, que censurava Renan por conhecer unicamente entre os trabalhos exegéticos alemães, inclusive o seu, aqueles que foram traduzidos para o francês. Ver verbete “Allemagne” no “Dictionnaire par Laudyce Rétat”, in: Renan, Ernest. Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 1, 1995. Demos preferência, assim, a tradução de Littré e, sempre que possível, citaremos em nota o texto em alemão (de acordo com a segunda edição, 1837). 55 liberais. 120 Para Strauss, todas essas contradições só podem ser dissipadas de forma satisfatória mediante uma explicação mítica das narrativas evangélicas. O principal argumento de Strauss é apontar que a forma dessas narrativas segue um modelo mítico já pré-existente, ou seja, aquele que se encontra no Antigo Testamento. Vários elementos presentes nas lendas acerca da genealogia, nascimento, missão, milagres, morte, ressurreição e ascensão de Jesus, têm como fonte direta os mitos acerca dos patriarcas, dos grandes profetas, reis e heróis de Israel. A partir do momento em que se decidiu que Jesus era o Messias, tudo aquilo que a tradição esperava acerca do Messias foi transportado, ou melhor, serviu como matéria prima para a criação das lendas sobre Jesus. De acordo com Strauss, é necessário substituir tanto a interpretação ortodoxa (que admite os milagres e a intervenção sobrenatural), bem como a interpretação que tenta fazer uso dos conhecimentos das ciências naturais para explicar a história de Jesus, pela explicação mitológica. 121 Ainda que a interpretação mitológica já tivesse sido utilizada pelos predecessores de Strauss (De Wette, Eichhorn, Gabler), ela nunca fora levada totalmente às suas últimas conseqüências nem aplicada de forma tão consistente. Antes, a explicação mitológica estava confinada apenas a alguns elementos da história do nascimento e da morte de Jesus, enquanto que o verdadeiro núcleo da tradição evangélica, do Batismo à Ressurreição, havia sido deixado de fora da esfera mítica.122 Strauss esclarece que nem toda a história de Jesus deve ser considerada mitológica, mas que cada aspecto dessa história deve ser submetido ao exame crítico, a fim de saber se ele não contém nada de mitológico. A interpretação dogmática dada pela Igreja partia de duas pressuposições: primeiramente, que os Evangelhos possuíam caráter histórico e, segundo, que essa história era uma história sobrenatural. O racionalismo da teologia liberal, por sua vez, rejeita aquela segunda pressuposição do dogmatismo, prendendo-se, todavia, ainda mais à primeira, ou seja, que esses livros possuem de fato um conteúdo histórico; 120 “The supernaturalistic explanation of the events of the life of Jesus had been followed by the rationalistic, the one making everything supernatural, the other setting itself to make all the events intelligible as natural occurrences. Each had said all that it had to say. From their opposition now arises a new solution the mythological interpretation” (Schweitzer, p. 80). 121 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, Préface de la première éd., p. 6 – Das Leben Jesu, Erster Band, Vorrede zur ersten Auflage, p. x. 122 Cf. Schweitzer, Op. Cit., p. 78. 56 quanto aos aspectos que a teologia dogmática atribuía ao sobrenatural, a teologia liberal busca explicá-los a partir de causas naturais. Strauss, porém, argumenta: “La science ne peut ainsi rester à mi-chemin; il faut encore laisser tomber l’autre supposition; il faut rechercher si et jusqu’à quel point nous sommes, dans les évangiles, sur un terrain historique; c’est là la marche naturelle des choses.” 123 Ora, de acordo com Strauss, a grande maioria dos relatos evangélicos não contém somente uma multidão de julgamentos errôneos, o que, de todo modo, é sempre fácil verificar em qualquer relato feito por testemunhas oculares, mas também, não raramente, fatos falsos e acontecimentos impossíveis, que nunca poderiam ter sido narrados por testemunhas oculares, e, dado que somente uma tradição é capaz de formar esse tipo de ficção, é necessário concebê-los de uma maneira mítica. 124 Strauss define o mito como um relato fantástico de um fato ou a apresentação de um pensamento sob uma forma aparentemente histórica e que determina o gênio e a linguagem simbólica e cheia de imaginação de uma dada tradição. 125 O conteúdo em si de uma narrativa mítica não pode ser considerado histórico, mas somente uma exposição simbólica e fantasiosa de como uma determinada tradição interpreta os eventos e as idéias que lhe definem enquanto memória viva de um povo. 126 Conforme o historiador, o mito diferenciase da lenda, visto que o primeiro se constitui na invenção de um fato com o auxílio de uma idéia, a lenda, por outro lado, tem como ponto de partida um fato do qual uma idéia é intuída, no entanto, essa mesma idéia servirá como fonte principal para a transmissão do fato, dando origem a um relato de caráter igualmente não histórico, que pode se tornar mítico quando também passar a conter fatos inventados. A explicação natural dos teólogos liberais parte do pressuposto de que as narrativas evangélicas possuem um conteúdo 123 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, Préface de la première éd., p. 7. “So kann auf diesem halben Wege die Wissenschaft nicht stehen bleiben, sondern es mufs auch die andere Voraussetzung fallen gelassen, und erst untersucht werden, ob und wie weit wir überhaupt in den Evangelien auf historischem Grund und Boden stehen. Diefs ist der natürliche Gang der Sache” (Das Leben Jesu, Erster Band, Vorrede zur ersten Auflage, p. xi). 124 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 47 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 41. 125 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 39 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 32. 126 “Then, too, the offence of the word myth disappears for any one who has gained an insight into the essential character of religious myth. It is nothing else than the clothing in historic form of religious ideas, shaped by the unconsciously inventive power of legend, and embodied in a historic personality. Even on a priori grounds we are almost compelled to assume that the historic Jesus will meet us in the garb of old Testament Messianic ideas and primitive Christian expectations” (Schweitzer, p. 79). 57 estritamente histórico, buscando interpretar os fenômenos sobrenaturais que elas relatam por meio de explicações científicas. Já a explicação mítica de Strauss, detém-se sobre a formação dessas narrativas, como, por que e por quem elas foram elaboradas. Strauss esclarece que essa explicação mítica parte do princípio de que a narração, apesar de conter algo aparentemente histórico, é desenvolvida por um espírito superior (tradição) em favor de uma verdade ou opinião que se localiza para além da história. Strauss também vê como problemática a posição adotada pelo ponto de vista míticohistórico de Bauer, que tenta localizar um pano de fundo factual envolto nas narrativas fantásticas dos Evangelhos. Para Strauss a idéia de mito é de tal maneira tão pouco compreendida por Bauer: “qu’il explique l’apparition de l’ange à la naissance de Jésus par un météore enflammé; qu’il suppose, à son baptême, un éclair et un coup de tonnerre en même temps que le vol fortuit d’une colombe au-dessus de sa tête; qu’il donne un orage comme fondement de la transfiguration, et que, des anges sur le tombeau de Jésus ressuscité , il fait des linceuls blancs.” 127 Confundir de tal modo os relatos evangélicos como sendo em parte história pura e em parte mito é confundir os dois pontos de vista, é se negar a sacrificar a história e a abdicar totalmente da crítica para tentar em vão encontrar aí um meio termo. Strauss reconstrói todo o itinerário da lenta introdução da abordagem mítica no estudo histórico-crítico da Bíblia do seguinte modo: no começo, somente o Antigo Testamento foi considerado como mitológico, o Novo Testamento, porém, ainda era visto como histórico. Depois, a explicação mitológica avançou até o Novo Testamento, restringindo-se, entretanto, apenas a infância de Jesus. Logo em seguida, a história da ascensão também passou a ser considerada mítica. Por último, os milagres passaram a ser divididos em naturais (os operados por Jesus) e os míticos (que ocorreram em torno dele). 128 Strauss, por sua vez, defende ser necessário aplicar a idéia do mito a todo o conjunto da 127 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 53. “[...] am schreiendsten aber ist der Widerspruch, wenn man in einer Mythologie des N. T., wie die BAUER'sche, ein solches Nichtverstehen dessen, was ein Mythus ist, findet, dafs z. B. bei den Eltern des Täufers wirklich eine lange, unfruchtbare Ehe angenommen, die Engelerscheinung bei Jesu Geburt durch ein feuriges Phänomen erklärt, bei seiner Taufe ein Blitz und Donnerschlag sammt einer zufällig überhin fliegenden Taube vorausgesetzt, bei der Verklärung ein Gewitter zum Grunde gelegt, und die Engel im Grabe des Auferstandenen zu weissen Leintüchern gemacht werden” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 47). 128 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 56-58 – Das Leben Jesu, Erster Band, pp. 50-52. 58 história da vida de Jesus, pondo na categoria de mito não somente os milagres da infância de Jesus, mas também os da sua vida pública; não somente os milagres operados em torno dele, como também os milagres operados por ele: “En effet, du moment que l’idée du mythe est introduite dans l’histoire évangélique, aucune ligne de démarcation ne peut plus être tracée; et depuis le début jusqu’à la fin, le mythe pénètre de force jusqu’au cœur de cette histoire.” 129 De acordo com Strauss, o principal obstáculo contra a interpretação mítica da vida de Jesus é a suposição de que pelo menos dois Evangelhos, Mateus e João, são provenientes de testemunhas oculares. Ora, não há evidências suficientes que possam provar a tese de que os redatores desses Evangelhos tenham sido testemunhas oculares ou que ao menos tenham mantido contato com alguma testemunha ocular, sem contar que a atribuição da autoria desses Evangelhos a algum apóstolo é uma superstição que nenhum crítico sério ousaria tentar mais defender no estágio atual da crítica. 130 Ademais, mesmo que Jesus tenha tido uma existência histórica, e mesmo que somente uma geração se tenha passado entre sua morte e a redação dos Evangelhos, isso já seria tempo suficiente para que o material histórico se mesclasse de tal forma com o mítico, que seria impossível tentar distingui-los. Além disso, de acordo com Strauss, “durant même tout le cours de son existence politique, le peuple hébreu n’a jamais eu, à vrai dire, un sentiment net de l’histoire; ses livres historiques les plus récents, par exemple ceux des Macchabées, et même les ouvrages de Josèphe, ne sont pas exempts de récits merveilleux et extravagants.” 131 Mas, na verdade, a questão sobre a autoria dos Evangelhos é mesmo de menor monta, porque ela pouco poderia dizer em relação aos problemas que surgem do exame do 129 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 60. “In der That will sich auch, den Begriff des Mythus einmal auf die evangelische Geschichte angewendet, eine solche Schranke nirgends ziehen lassen, und so-wohl vom Anfang als vom Ende der evangelischen Geschichte dringt das Mythische mit Macht auch in den Kern derselben ein” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 54). 130 “C’est un résultat inattaquable de la critique, que les titres des livres bibliques ne supposent en eux-mêmes rien sur l’origine de ces livres, si ce n’est tantôt le dessein de l’auteur, tantôt aussi l’opinion de l’antiquité juive ou chrétienne” (Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 70). “Es ist ein unumstöfslicher Satz der Kritik, dafs die Ueberschriften der biblischen Bücher an sich vorerst nichts, als bald das Vorgeben des Verfassers, bald aber auch nur die Meinung des judischen oder christlichen Alterthums, über den Ursprung derselben enthalten” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 65). 131 Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 79. “Allein ein rein historisches Bewufstsein ist dem hebräischen Volk während der ganzen Zeit seines politischen Bestehens eigentlich niemals aufgegangen, da selbst seine spätesten Geschichtswerke, wie die Bücher der Makkabäer und sogar die Schriften des Josephus, nicht frei von wunderhaften und abenteuerlichen Erzählungen sind” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 75). 59 conteúdo em si desses relatos, ou seja, suas inúmeras contradições internas. 132 A começar pela total imprecisão geográfica a respeito de onde se passam os acontecimentos, os erros acerca de eventos históricos e sobre a política do Império; bem como a confusão de datas, de nomes, de pessoas (ora Maria Madalena é uma prostituta, ora uma discípula; ora Lázaro é um amigo próximo de Jesus, ora um quase desconhecido), da descrição de costumes em total desacordo com a época e o lugar, da descrição anacrônica dos rituais, da hierarquia e política do Templo, da quantidade de milagres de Jesus, do número de vezes que ele teria ido a Jerusalém durante sua missão pública, de como ele teria feito essa entrada, etc.; o caráter completamente fantasioso das árvores genealógicas de Jesus e a contradição entre aquela apresentada em Mateus e aquela de Lucas; a ambigüidade sobre se sua mãe e alguns de seus irmãos e irmãs o viam como um Messias ou como um louco 133, etc.; e por último, os elementos sobrenaturais contido neles, em franco desacordo com o estado atual do conhecimento científico, suas descrições e referências a fatos absurdos e falsos Assim, o método de trabalho que Strauss utiliza em seu exame sobre os relatos acerca da vida de Jesus procura seguir os princípios da dialética hegeliana 134: cada evento da vida de Jesus é considerado separadamente; primeiramente ele é analisado sob o prisma da explicação supranaturalista e, logo depois, sob o prisma da explicação racionalista ou naturalista; cada perspectiva se mostra contraditória e impossível em si mesma, acabando por se auto-anular; e, ao serem comparadas, uma perspectiva refuta a outra; Strauss, então, mostra como os elementos inexplicáveis desses relatos são, na verdade, de natureza mítica e não histórica, dissolvendo, desse modo, a contradição que deles surgem. 132 “D’après ce qui vient d’être dit, on voit que les témoignages extrinsèques sur la rédaction de nos évangiles, loin de nous forcer à croire que ces livres aient été composés par des témoins oculaires, ou seulement par des personnes bien informées, sont absolument insuffisants pour décider un problème dont la solution ne dépend plus que des raisons intrinsèques, c'est-à-dire de la nature même des récits évangéliques” (Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 80). “Da es sich nach dem Bisherigen mit den äusseren Zeugnissen für die Abfassung unsrer Evangelien von Augenzeugen oder sonst genau Unterrichteten so verhält, dafs sie, weit entfernt, uns zu dieser Annahme zu zwingen, die Entscheidung ganz auf das Ergebnifs der innern Gründe, d. h. der Beschaffenheit der evangelischen Erzählungen selbst, ausgesetzt sein lassen” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 76). 133 Uma questão que irá adquirir bastante importância nas discussões bastante em voga no final do século XIX acerca da relação entre patologias mentais e o fenômeno religioso (cf. a seção “Fisiologia da redenção” deste trabalho). 134 Cf. Schweitzer, Op. Cit., p. 84 ss. 60 1.4.1 – O mito como criação coletiva É algo que salta aos olhos, para Strauss, que os mitos evangélicos, ainda que representem coisas que jamais aconteceram, foram compostos sem uma intenção fraudulenta premeditada e foram considerados verdadeiros sem uma excessiva credulidade, porém, ao mesmo tempo, isso parece servir como objeção ao caráter mitológico desses relatos. Entretanto, se essa dificuldade fosse real, seria igualmente impossível explicar miticamente os relatos das religiões pagãs.135 De acordo com Strauss, não se pode aplicar à formação do mito a suposição de que ela consista numa invenção, ou seja, numa criação premeditada e livre pela qual o autor busca revestir de verossimilhança algo que ele próprio reconhece como sendo falso. Baseando-se nos pressupostos defendidos por Otfried Müller em sua obra Prolegomena zu einer wissenschaftlichen Mythologie, Strauss concebe o mito como uma criação coletiva elaborada por uma tradição. Por isso, a tentativa de se identificar os autores dos Evangelhos é irrelevante, já que, qualquer que sejam seus redatores eles não poderiam ser considerados de fato os autores do mito Jesus. Por conseguinte, o mito, para Strauss, não pode ser concebido como a criação individual de um homem dotado de espírito superior, por um poeta, por um gênio original, mas sim como uma criação geral e superior de um povo, de uma comunidade religiosa. 136 Contudo, como seria possível admitir a complexidade do mito, que parece exigir toda uma série de planos de elaboração e exposição, sem a suposição de que um único indivíduo espiritualmente superior é o seu autor? E, além disso, como esse mesmo indivíduo poderia conseguir convencer a todos de que sua invenção não é uma ficção? Strauss explica que os indivíduos mais dotados que conferem ao mito uma estrutura poética não podem ser considerados inventores dos mitos, visto que no exercício dessa atividade eles obedecem a impulsos que agem simultaneamente entre todos os que pertencem a uma comunidade, por isso, tais poetas não agem com o objetivo de convencer os outros, e sim sob a influência das mesmas convicções morais compartilhadas por todos. É, portanto, a tradição que dá forma ao mito, conduzida, de maneira inconsciente, por impulsos que respondem a necessidades que condicionam a existência de um povo. Assim como o desenvolvimento do mito se dá de 135 136 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 93 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 89. Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 97 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 93. 61 forma insciente pela coletividade, seus elementos ficcionais também não são elaborados de maneira arbitrária. Nesse sentido, Strauss argumenta que o grande empecilho para a compreensão do mito enquanto criação coletiva é a falsa noção de que eles são elaborados de uma única vez e não pouco a pouco e sucessivamente sob a ação e circunstâncias de acontecimentos diversos. As impressões que uma tradição elabora sob a ação desses acontecimentos permanecem continuamente vivas na mentalidade e no discurso de um povo, e, sem serem fixadas na forma escrita, estão sob constante mudança e flutuação, daí sua extrema complexidade. 137 Para Strauss, todas as ficções do mito são elaboradas de forma não premeditada e inocente, sem qualquer intenção deliberada por parte da comunidade. Como esclarece Müller, citado por Strauss: “Une certaine nécessite dans la production du mythe, l’ignorance de son caractère parmi ceux qui le produisent, telle est la double idée sur laquelle nous insistons. En la comprenant, nous comprenons en même temps que la discussion pour savoir si le mythe provient d’un individu ou de plusieurs, du poëte ou du peuple, ne porte pas, dans les cas mêmes où l’on peut la soulever, sur le fond de la question.” 138 O narrador do mito é somente o órgão pelo qual uma comunidade se auto-define, em obediência as necessidades que tornam a existência de um povo possível. Mesmo os mitos mais complicados são desenvolvidos de forma inconsciente, e sua complexidade se deve a sua lenta formação e elaboração no interior da tradição. No caso da narrativa do mito de Jesus, por mais que a sua fixação na forma escrita tenha ocorrido em um intervalo de tempo bastante breve, os elementos para a sua composição já haviam sido preparados pela tradição muito antes da própria existência histórica de Jesus. Um mito não é a produção de um indivíduo, mas de sociedades inteiras e de gerações sucessivas, transmitido oralmente e recebendo, aos poucos, um caráter mais elaborado esteticamente por um narrador ou outro, porém, sempre de maneira involuntária, às vezes, de forma mais grosseira e rústica, e, outras vezes, como objeto do trabalho poético de um indivíduo mais dotado e inspirado.139 Mesmo quando há uma adição de um elemento fictício por parte do 137 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 99 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 95. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 95. “Es ist der Begriff einer gewissen Nothwendigkeit und Unbewufstheit im Bilden der alten Mythen, auf welchen wir dringen. Haben wir diesen gefafst, so sehen wir auch ein, dafs der Streit, ob der Mythus von Einem oder Vielen, von dem Dichter oder dem Volke ausgehe, auch wo er sonst Statt hat, nicht die Hauptsache trifft” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 92). 139 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 97-98 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 94. 138 62 poeta, não se pode falar aqui, para Strauss, de uma invenção voluntária, pois, diferente da sociedade moderna, o poder da imaginação é visto em sociedades menos esclarecidas como uma faculdade divina, uma via de acesso imediato à verdade e não à ilusão.140 E quando o poeta age assim, ele está apenas dando, involuntariamente e sem premeditação, um novo movimento e configuração ao conhecimento que ele herda da tradição, a algo do qual ele não pode ser considerado, portanto, individualmente, como sendo o criador. 1.4.2 – A não historicidade dos Evangelhos Para Strauss, tanto o Antigo quanto o Novo Testamento não podem ser considerados como documentos de caráter histórico, mas como fixações na forma escrita dos mitos elaborados pela tradição de uma comunidade religiosa. No entanto, Strauss chega a admitir que nem sempre se pode estender ao conjunto dos livros bíblicos e, principalmente, aos Evangelhos o caráter que constitui o principal atributo do mito em geral, isto é, o fato de serem eles compostos sem uma intenção e sem que os autores tivessem consciência de suas próprias ficções. Isso porque, sobretudo nos ciclos lendários, ou seja, nos relatos que exprimem uma intuição de uma idéia a partir de um fato, podem ocorrer invenções premeditadas e calculadas, motivadas, sobretudo, por interesses partidários. Entretanto, ainda assim, Strauss insiste, “une fiction, même quand elle n’est pas complètement sans calcul, peut cependant encore ne comporter aucune fraude.” 141 Conforme Strauss, mesmo essa intenção partidarista ainda possui caráter mítico, porque ela surge da necessidade de um partido religioso contrapor suas próprias convicções às de outros partidos, ou seja, não como forma de adulterar um acontecimento, mas procurando exprimir a verdade segundo os sentimentos daquele grupo. Além disso, na Antiguidade, sobretudo na Antiguidade judaica, história e ficção, poesia e prosa, faziam parte de um mesmo conjunto de transmissão de conhecimento. Isso explica, por exemplo, os motivos que levaram vários escritores judeus, ainda que muito estimados, e os primeiros cristãos a publicarem seus 140 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 103 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 100-101. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 103-104. “Aber eine Dichtung, wenn sie auch nicht absichtslos ist, kann darum doch immer noch arglos sein” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 102). 141 63 livros sob um nome reputado, sem acharem que com isso estavam cometendo uma fraude. 142 1.4.3 – O problema das contradições Para Strauss, os mitos que compõem os Evangelhos podem ser classificados em: mitos evangélicos propriamente ditos, ou seja, um mito sobre Jesus que não relata um fato, mas sim uma idéia de seus primeiros seguidores; mitos puros, referentes às duas principais fontes da formação do mito de Jesus, a saber: em primeiro lugar, as expectativas sobre a chegada do Messias existentes entre os judeus antes e independente de Jesus, e, em segundo, a impressão que Jesus causou por conta de sua personalidade, de sua ação e de seu destino, sendo que tal impressão foi responsável pela modificação da idéia que seus compatriotas tinham a respeito do Messias; mitos sobre acontecimentos históricos, nos quais um fato particular serve como tema a ser revestido de concepções míticas pela imaginação tendo como base uma idéia; bem como as lendas, que são relatos fantasiosos ainda não integrados totalmente ao conjunto mítico em geral. 143 Entretanto, como é possível identificar com precisão um relato como tendo caráter mítico e não histórico. Strauss esclarece que o mito em si possui dois aspectos principais, “d’abord il n’est pas de l’histoire; secondement, il est une fiction, produit de la direction intellectuelle, d’une certaine société; par conséquent on le reconnaîtra à deux ordres de caractères, les uns négatifs, les autres positifs.” 144 As características positivas do mito mostram-se na sua forma e no seu conteúdo: sua forma é predominantemente poética; mas o que o diferencia da simples poesia é justamente o seu conteúdo, que se distingue por estar em franca concordância com as idéias que prevalecem no local em que ele nasce. Por exemplo, como os judeus apreciavam representar grandes homens como filhos de mães 142 Cf. Strauss, Vieé de Jésus, tome premier, p. 104 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 102. Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 105-106 bis – Seção ausente na segunda edição. 144 Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 107. “Wie der Mythus selbst die zwei Seiten an sich hat, erstlich nicht Geschichte, sondern zweitens eine aus der Geistesrichtung einer gewissen Gemeinschaft hervorgegangene Dichtung zu sein: so wird er eben auch an diesen zwei Seiten, mithin einerseits an negativen, andrerseits an positiven Kriterien, als solcher sich erkennen” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 103). 143 64 longamente estéreis, isso basta para desconfiarmos da historicidade, diz Strauss, do relato que mostra o nascimento de João Batista segundo esse modelo. As características negativas do mito podem ser definidas por sua oposição direta aos textos históricos. Um relato não pode ser considero histórico, ou seja, aquilo que ele conta não aconteceu, ou não aconteceu da maneira como ele conta, quando: (1) os acontecimentos relatados são incompatíveis com as leis conhecidas e universais que regulam a marcha dos acontecimentos; (2) os acontecimentos relatados são incompatíveis com relação a sua própria estrutura interna e com os outros relatos que com ele se relacionam. 145 Por conta dessa primeira lei que regula a natureza histórica de um relato, Strauss exclui da esfera histórica, portanto, todos os relatos que descrevem qualquer tipo de evento sobrenatural como real: uma interferência imediata de Deus no transcurso dos acontecimentos, um fenômeno produzido por um indivíduo dotado de poderes sobrenaturais, etc. Essa lei também regula tudo aquilo que acontece pela ordem da sucessão. Se nos é dito, por exemplo, que desde a sua infância Jesus despertou o mesmo sentimento de admiração que ele despertaria quando adulto, é necessário duvidar do caráter histórico desse relato. A ordem da sucessão deve, portanto, ter como medida principal as leis psicológicas, que não permitem conceber a existência de um homem que teria agido e pensado de maneira psicologicamente inadmissível com base no homem em geral ou nele mesmo segundo seu modo habitual de ser. Por exemplo, o relato que diz que os dirigentes do Sinédrio teriam pedido aos guardas que vigiassem a tumba de Jesus para que os discípulos deste não viessem a levantar falso testemunho sobre a sua ressurreição, mas que, com o sumiço do corpo, ao invés de acusar aqueles discípulos de terem roubado o corpo, pagam aos guardas para que eles mantenham silêncio sobre o ocorrido, não pode ser considerado, sem dificuldades, como sendo um relato histórico. Porém, Strauss esclarece que se deve agir com muita prudência na aplicação desse critério e sempre em conjunção com os outros critérios da explicação mítica, tendo em vista a constante possibilidade de acontecimentos inesperados e de que os homens ajam sem qualquer fidelidade ao seu caráter. 145 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 109 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 106. 65 A segunda lei apontada por Strauss exclui do campo histórico os relatos que se contradizem em suas relações. Por exemplo, um relato afirma que Jesus só iniciou sua pregação na Galiléia após a prisão de João Batista, porém, outros relatos dizem que ele já a teria iniciado bem antes dessa prisão. Em outros casos, dois ou mais relatos apresentam o mesmo dado de maneira diferente, esse desacordo pode estar relacionado com coisas acessórias: tempo, lugar, nomes; ou com todo o pano de fundo dos acontecimentos: por exemplo, segundo um relato, João Batista reconhece Jesus imediatamente como o Messias, em outro, ele instrui os seus seguidores a irem perguntar a Jesus se seria ele, Jesus, o Messias. Outra objeção ao caráter histórico de um relato se revela quando ele narra acontecimentos ou discursos que se passam em dois lugares diferentes de forma tão idêntica que não se pode admitir que tais acontecimentos ou discursos tenham de fato ocorrido mais de uma única vez. 146 Nos casos em que há dois relatos diferentes sobre um mesmo acontecimento, alguém poderia argumentar que pelo menos um deve ser histórico. Nessa perspectiva, o relato que deveria ser tido como o mais confiável seria aquele que menos contradiz as leis naturais. Todavia, esse não é, de acordo com Strauss, um critério válido para decidirmos sobre o caráter histórico de um relato, pois a existência de dois relatos é uma prova de que pelo menos um deles é mitológico, e se um deles é mitológico o outro possui grandes chances de também o ser. Para uma decisão mais segura, seria necessário que um relato estivesse plenamente de acordo com informações solidamente estabelecidos alhures, como, por exemplo, em relatos de caráter indubitavelmente históricos ou em dados arqueológicos. 1.4.4 – As fontes do mito de Jesus De acordo com Strauss, o mito de Jesus narrado no Novo Testamento teve como fundamento para a sua elaboração, de um lado, a grandeza de espírito e caráter de Jesus e, de outro, as opiniões já existentes acerca do Messias entre os seus compatriotas. O homem Jesus, a figura histórica que de fato deve ter existido, foi objeto de uma profunda admiração 146 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 109-110 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 107. 66 por parte daqueles que ouviram seus ensinamentos e acompanharam sua missão. Essa veneração e entusiasmo alimentados em torno desse homem fizeram com que ele fosse identificado como o Messias prometido, aquele que livraria seu povo da servidão e estabeleceria o reino de Deus. A partir do momento em que Jesus foi tido como o Messias, o seu mito começou a ser elaborado, transportando-se para a sua figura gradualmente tudo aquilo que se esperava e que caracterizava o Messias. Na fórmula cunhada por Strauss: “Telle et telle chose appartiennent au Messie; or, Jésus a été le Messie; donc, ces choses sont arrivées à Jésus.” 147 Essa fórmula é a solução principal para todos os problemas que as explicações fornecidas pelos historiadores, teólogos liberais e dogmáticos nunca puderam resolver; é a explicação que dissolve as inúmeras contradições dos Evangelhos: como entender os aspectos miraculosos a respeito do nascimento de Jesus, a anunciação, a virgindade de Maria, a estrela, os magos, o anjo, os pastores, o massacre dos recémnascidos, a fuga paro o Egito; eventos estes narrados em duas versões diferentes, sendo que, ao invés de se completarem, uma versão contradiz a outra, ambas se excluindo mutuamente. Ora, nenhum aspecto desses eventos tem qualquer fundamento histórico, todos eles possuem uma função mitológica: o nascimento do Jesus histórico não ocorreu da maneira como narram tais narrativas, as mesmas existem unicamente como resposta às expectativas populares sobre como o Messias chegaria ao mundo. Para Strauss, a primeira fonte para a elaboração do mito de Jesus, ou seja, a poderosa impressão que ele causou, é o único fundamento histórico que se pode abstrair dos Evangelhos, a segunda fonte, as crenças populares sobre o Messias, devem ser consideradas como o aspecto filosófico na criação do mito de Jesus, a união dessas duas fontes deram origem a um relato mítico sobre a sua vida e obra, um relato que, portanto, não pode ser considerado como sendo de natureza histórica. Como exemplifica Strauss: Ainsi, par exemple, le mythe de la transfiguration de Jésus a, pour fondement historique, la grande impression que Jésus fit sur ses contemporains et sur les générations suivantes; l'œuvre de la pensée seule, ou, si l’on veut, la portion philosophique, c’est que, du Messie, on attendait une ressemblance avec Moïse et Élie, et par conséquent une illumination de la face; attente qui, à son tour, avait 147 Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 102. “Mit dem Messias mufs sich das und das begeben; Jesus war der Messias: folglich wird sich jenes eben mit ihm begeben haben” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 99). 67 sa cause dans les récits, partie mythiques, partie historiques, de l’Ancien Testament sut ces deux hommes. 148 Para Strauss, antes mesmo de Jesus existir, portanto, todos os elementos necessários para a elaboração do mito do Messias já estavam plenamente desenvolvidos. Isso por conta da interpretação que a crença popular fazia do conjunto dos escritos proféticos que falavam de um rei Salvador ungido por Deus. Há diversas interpretações do porquê as profecias foram usadas como provas do caráter messiânico de Jesus. Uma ortodoxa, que diz que isso se deve simplesmente ao fato das profecias se cumprirem em Jesus. Uma racionalista, que diz que os autores do Novo Testamento sempre souberam, de fato, que as profecias não se aplicavam ao Messias. Uma mítica, que diz que as profecias possuem para os judeus um duplo sentido, um premente, sobre a chegada de um novo rei no sentido mais laico, e outro indeterminado, a respeito do reinado ideal do Messias. E uma interpretação crítica, defendida por Strauss, que diz que as profecias dos antigos profetas hebreus foram mal compreendidas pelo judaísmo da diáspora. 149 De acordo com Strauss, as interpretações do judaísmo eram más interpretações das palavras dos profetas do Antigo Testamento, pois descontextualizavam o seu sentido original, que dizia respeito a uma situação bastante concreta e específica para o momento histórico em que elas foram proferidas. A figura libertadora ao qual se referiu um Isaías ou um Daniel, por exemplo, nada mais era do que um rei no sentido propriamente político do termo, que estava destinado a resolver uma dada situação concreta em um período bastante iminente, ou seja, eram de fatos profecias, mas que diziam respeito a um futuro próximo, à primeira ou à segunda geração depois do profeta. Quando os judeus dos tempos de Jesus deslocavam essas profecias para a sua própria época e condição histórica e política, as mesmas perdiam o seu sentido original e entravam em contradição com o contexto do próprio livro em que elas surgiram, o qual se referia a uma outra época, a um outro tipo de problema que 148 Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 93. “So ist z. B. an dem Mythus von der Verklärung Jesu das Historische der grofse Eindruck, welchen die Mit- und Nachherlebenden von Jesu empfangen hatten; das blofs Gedachte, oder, wenn man will, Philosophische, das, dafs man vom Messias ein Zusammentreffen mit Moses und Elias und eine Verklärung des Angesichts erwartete, was aber selbst wieder in den theils historischen theils mythischen Erzählungen des A. T. von diesen beiden Männern seine Veranlassung hatte” (Das Leben Jesu, Erster Band, pp. 89-90). Tese muito semelhante àquela que será adotada por Wellhausen, cf. a seção “Wellhausen e o processo de desnaturalização dos valores naturais” deste trabalho. 149 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, pp. 183-187 – Das Leben Jesu, Erster Band, pp. 188-192. 68 precisava de resolução, e não aquele enfrentado pelo judaísmo da diáspora. Sendo assim, o mito do Messias foi se desenvolvendo aos poucos, por meio da má interpretação dessas profecias; uma má interpretação condicionada tanto pela nova realidade histórica em que se estava inserido quanto por influência do paganismo (nascimento virginal, nascimento na caverna, expiação, etc.), do zoroastrismo (anjos, magos, estrela guia, juízo final, ressurreição, céu, inferno, etc.), do mitraísmo (vida após a morte, julgamento, salvação da alma, etc.) e do gnosticismo (doutrina do Verbo, Evangelho de João, etc.). Contudo, foi necessário, defende Strauss, que um homem que obtivesse uma admiração tão grande por parte dos seus a ponto de ser considerado o Messias tenha de fato surgido para que essas idéias se concentrassem em torno de sua figura, adquirindo, por sua vez, uma nova configuração. Além disso, era necessário que esse mesmo homem, também imbuído daquelas mesmas interpretações equivocadas das antigas profecias, acreditasse firmemente ser ele o Messias prometido. No entanto, ainda fica sem resposta a questão de se, para Strauss, esse homem poderia ser outro além de Jesus, ou seja, se, mesmo que Jesus nunca tivesse nascido, um outro homem poderia tomar o seu lugar na criação do mito do Messias. Entretanto, não somente as profecias sobre o Messias serviram de material para a composição do mito Jesus, uma vez que a crença popular também desenvolveu a noção de que os feitos dos patriarcas, heróis, juízes, reis, dos grandes homens do passado do povo hebreu e, principalmente, dos profetas, deveriam também ser realizados pelo Messias, porém, com uma magnitude maior ainda. Os feitos de Elias e Eliseu, por exemplo, foram uma das fontes para a composição do mito do nascimento virginal, das curas, da alimentação do povo, ressuscitação dos mortos, da ascensão, etc. Assim, por exemplo, o milagre da multiplicação dos pães e peixes para alimentar o povo teve como fonte o maná de Moisés e os milagres de multiplicação de alimentos operado por Elias (1 Reis, 17, 8-16) e Eliseu (2 Reis, 4, 42 ss.).150 A transformação da água em vinho nas bodas é uma reminiscência do poder de Moisés e Eliseu de transmutar a água, etc. 151 É possível afirmar que, provavelmente, para Strauss, se não houvesse uma crença popular pré-existente a respeito de como o Messias deveria ser, o mito que se criou em 150 151 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome second, p. 231 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 240. Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome second, p. 248 – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 258. 69 torno de Jesus nunca teria sido criado, ainda que ele próprio tenha de fato existido, ou talvez, devido a poderosa impressão que sua figura causou entre os seus companheiros, um outro mito, totalmente diferente daquele que conhecemos, teria vindo à luz. A aceitação de que Jesus era verdadeiramente o Messias, por parte dele próprio e de seus seguidores, constitui o ponto inicial para a criação de seu mito: se esse é o Messias, então as profecias se cumpriram. Os Evangelhos foram escritos com essa convicção, não importando se as coisas realmente se passaram assim. 1.4.5 – O mito do nascimento virginal Um caso exemplar do método crítico e da explicação mitológica que Strauss utilizou para a resolução das contradições dos Evangelhos pode ser encontrado em sua investigação sobre o mito do nascimento virginal de Jesus. A chave de leitura para a compreensão de como esse mito foi elaborado está naquela fórmula cunhada por Strauss que diz: Jesus era o Messias; esperava-se que o Messias fosse de tal modo; logo, Jesus cumpriu tudo o que se esperava do Messias. Esse mito do nascimento virginal foi adquirindo a forma que nós conhecemos paulatinamente, pois foi só gradualmente que Jesus foi sendo visto sob um aspecto cada vez mais elevado e divino devido a sua suposta natureza enquanto filho de Deus. As narrativas de Mateus e de Lucas são contraditórias entre si porque foram elaboradas tendo como base profecias diferentes sobre o nascimento do Messias. As genealogias de Jesus já trazem a primeira contradição: se Jesus descende por parte de José da casa de Davi, se ele é filho de Davi, compartilhando seu sangue real, então, como explicar a ausência de intercurso entre José e Maria na concepção de Jesus, pois, só o fato de ele ter sido adotado por José, não lhe confere a hereditariedade necessária como atributo messiânico do sangue de Davi. 152 Portanto, a origem dessas genealogias deve remontar ao tempo em que a primeira Igreja primitiva de Jesus ainda acreditava que seu nascimento tivesse sido fruto de um intercurso natural entre José e Maria. E apesar de, após se adotar a crença no nascimento virginal, elas não serem mais necessárias, as mesmas foram aproveitadas por mera comodidade. Aos poucos, todavia, foi adquirindo força a crença de que Jesus não poderia ter tido um nascimento natural, pois os grandes homens do antigo 152 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 193 ss – Das Leben Jesu, Erster Band, p. 197 ss. 70 mundo mitológico, seja do povo hebreu, seja dos pagãos ou do oriente próximo, sempre nasceram de forma extraordinária, e as profecias sobre a chegada do Messias também vaticinavam isso: Par Matthieu, l, 22 et suiv., on voit en outre que le passage d’Isaïe, 7, 14, était rapporté à Jésus dans la première église chrétienne. Jésus, disait-on, doit, conformément à ce passage, naître, comme Messie, d’une vierge par une opération divine; ce qui devait être, concluait-on, est aussi arrivé véritablement, et de cette façon se développa un mythe philosophique (dogmatique) sur la naissance de Jésus. L’explication mythique laisse l’histoire réelle de Jésus dans sa vérité; Jésus est né d’un mariage régulier entre Joseph et Marie, ce qui sauve, ainsi qu’on le remarque avec raison, aussi bien la dignité de Jésus que le respect dû à sa mère. 153 Strauss elabora assim um interessante esquema cronológico do mito do nascimento virginal de Jesus, que não só tenta dar conta de como essa crença foi fixada nos Evangelhos, mas também como, tempos depois, ela continuou sendo desenvolvida pela Igreja cristã, até adquirir caracteres cada vez mais fantásticos e divinos. Primeiramente, entre os contemporâneos de Jesus e os redatores da genealogia: Jesus nasce das relações completamente lícitas, ou seja, sob a instituição judaica do casamento, entre José e Maria. Durante a época dos redatores dos evangelhos apócrifos sobre Maria e sobre o nascimento e infância de Jesus (fontes de Mateus e Lucas): Maria e José são apenas noivos; José não tem participação na concepção de Jesus e não mantém relações conjugais com Maria antes do nascimento do infante (logo após eles tiveram outros filhos). Época de Olshausen: mesmo após o nascimento de Jesus, José, ainda que esposo legal de Maria, não quis fazer uso de seus direitos matrimoniais. Durante Epifânio, os Protoevangelhos de Jacó e outros: José já era um ancião decrépito, não podia mais manter relações; seus filhos são de um casamento anterior; ele recebe Maria mais como guardião do que como marido. Época de Crisóstomo: não só a virgindade de Maria não foi destruída pelo nascimento de Jesus, mas também se manteve intacta após as gestações posteriores. Com São Jerônimo, finalmente, não somente 153 Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 207. “Aus Matth. 1, 22. f. sieht man ferner, dafs die Stelle Jes. 7, 14. in der ersten christlichen Kirche auf Jesum bezogen wurde. Jesus, dachte man, mufs als Messias, dieser Stelle zufolge, von einer Jungfrau durch Gotteskraft geboren sein; was sein mufste, schlofs man, ist auch wirklich geschehen, und so entstand ein philosophischer (dogmatischer) Mythus über die Geburt Jesu. Seiner wirklichen Geschichte nach ist dann Jesus, dieser Erklärungsart zufolge, aus einer ordentlichen Ehe Josephs und der Maria entsprossen, womit, wie mit Recht bemerkt wird, ebensowohl die Würde Jesu als die schuldige Achtung; gegen seine Mutter besteht” (Das Leben Jesu, Erster Band, p. 215). 71 Maria, mas também José guardou durante toda a sua vida sua virgindade, e os pretensos irmãos de Jesus não passam de primos seus. 154 1.4.6 – Impossibilidade de uma “vida de Jesus” A parte mais extensa de Das Leben Jesu de Strauss é, deste modo, dedicada à aplicação do método crítico, identificação de contradições, e explicação mítica dos elementos e episódios dos relatos evangélicos que mais inegavelmente pertencem ao registro mitológico e não histórico: a começar pela anunciação e nascimento do arauto de Jesus, isto é, João Batista; partindo para a análise da árvore genealógica de Jesus; a anunciação de seu nascimento, sua concepção; a natividade e os primeiros eventos após seu nascimento; sua infância e educação, e sua primeira visita ao templo. Todo o primeiro volume de Das Leben Jesu é dedicado a esses episódios fabulosos que, como veremos, serão completamente ignorados por Renan, com exceção da educação de Jesus que Renan tentará intuir a partir da condição social de Jesus e da análise do modelo de educação palestina naquela época, sem o recurso, portanto, dos Apócrifos. Quase a metade do segundo volume de Das Leben Jesu, por sua vez, é dedicada aos milagres de Jesus; o restante versará sobre a transfiguração, entrada em Jerusalém, paixão, morte e ressurreição. Praticamente nada é dito sobre os ensinamentos de Jesus, o que ele de fato teria professado, a não ser aquilo que diz respeito ao prenúncio de sua morte ou a introdução de elementos notavelmente gnósticos entre suas máximas. Por conseguinte, para Strauss, pelo menos na época de Das Leben Jesu, a redação de uma “vida de Jesus” propriamente dita, isto é, uma biografia detalhada tal como a que Renan tentará produzir, é praticamente impossível. 155 Strauss não se preocupou em identificar quais seriam os elementos históricos dos Evangelhos, apesar de admitir que eles existam. 156 Seu único objetivo foi mostrar que, independente dos fatos que ocasionaram a elaboração das narrativas evangélicas, as mesmas possuem uma forma cuja estrutura só pode ser plenamente compreendida segundo 154 Cf. Strauss, Vie de Jésus, tome premier, p. 218 – Das Leben Jesu, Erster Band, pp. 226-227 “A purely historical presentation of the life of Jesus was in that first period wholly impossible; what was operative was a creative reminiscence acting under the impulse of the idea which the personality of Jesus had called to life among mankind” (Schweitzer, Op. Cit., p. 80). 156 “With critical acumen he resigned the attempt to base a decision on a comparison of the historical data, and allowed the theological character of the two lines of tradition to determine the question” (Schweitzer, p. 87). 155 72 o modelo de narrativa mitológica. Sendo assim, por mais que ele tenha admitido a existência de elementos autenticamente históricos nesses relatos, os mesmos se mostram, segundo ele, tão insignificantes comparados com os mitológicos e tão intrinsecamente misturados a eles que é praticamente impossível identificá-los com precisão e certeza. Além do mais, tais conteúdos históricos são, para Strauss, quase que inteiramente irrelevantes, pois o que lhe interessa é a idéia que o mito de Jesus expressa, ou seja, a realização do que uma dada comunidade religiosa aspira como o modelo mais elevado de homem: o homem-Deus 157 , o momento que Jesus representa, de acordo com a concepção hegeliana de história que Strauss possuía, para a constituição do Espírito Absoluto. 158 Essa idéia não é obra de Jesus, mas sim de uma coletividade, da tradição que criou o seu mito. 159 O mito de Jesus seria, nesse sentido, apenas um momento da realização do Espírito Absoluto. Sendo assim, é difícil saber qual a opinião pessoal de Strauss sobre a vida factual de Jesus. 160 Ele não faz uma ligação entre os poucos indícios positivos dessa história como tentará fazer Renan. Não obstante, em momento algum, Strauss colocará em dúvida a existência histórica do homem Jesus. 161 Para Strauss, não só a existência histórica de Jesus se fez necessária para a elaboração de seu mito, quanto também o fato de que ele realmente acreditou ser o Messias segundo todas as expectativas escatológicas. 162 157 “God-manhood, the highest idea, conceived by human thought, is actually realised in the historic personality of Jesus” (Schweitzer, Op. Cit., p. 79). 158 “Religion is not concerned with supra-mundane beings and a divinely glorious future, but with present spiritual realities which appear as ‘moments’ in the eternal being and becoming of Absolute Spirit” (Schweitzer, Op. Cit., p. 73). 159 “And this idea of God-manhood the realisation of which in every personality is the ultimate goal of humanity is the eternal reality in the Person of Jesus, which no criticism can destroy” (Schweitzer, Op. Cit., p. 80). 160 “The tendency of the work to purely critical analysis, the ostentatious avoidance of any positive expression of opinion, and not least, the manner of regarding the Synoptists as mere bundles of narratives and discourses, make it difficult indeed, strictly speaking, impossible to determine Strauss’s own distinctive conception of the life of Jesus, to discover what he really thinks is moving behind the curtain of myth. According to the view taken in regard to this point his work becomes either a negative or a positive life of Jesus” (Schweitzer, Op. Cit., p. 90). 161 “To assert that Strauss dissolved the life of Jesus into myth is, in fact, an absurdity which, however often it may be repeated by people who have not read his book, or have read it only superficially, does not become any the less absurd by” (Schweitzer, Op. Cit., p. 92). 162 “The eschatological passages are therefore the most authentic of all. If there is anything historic about Jesus, it is His assertion of the claim that in the coming kingdom He would be manifested as the Son of Man” ( Schweitzer, pp. 94-95). 73 1.4.7 – Edição popular de Das Leben Jesu Incitado sobretudo pelo grande apelo popular da Vie de Jésus, de Renan, e pelas críticas que este lhe dirigiu, Strauss publicou, em 1864, apenas um ano após a publicação da obra de Renan, uma versão popular de seu livro: Das Leben Jesu für das deutsche Volk bearbeitet 163, no qual ele tentou apresentar a figura histórica de Jesus sobre caracteres mais positivos. No prefácio do livro, Strauss inclusive se refere a Renan e reconhece os grandes méritos de seu trabalho. 164 Contudo, essa versão de Das Leben Jesu foi duramente criticada, pois Strauss se mostrou completamente diletante e indeciso em suas considerações, não oferecendo, como já se poderia esperar dele, uma verdadeira “vida de Jesus”, um estudo completo acerca do Jesus histórico, mas tão somente o retrato do Jesus da teologia liberal. 165 No prefácio à quarta edição de Der alte und der neue Glaube, Strauss tentou justificar suas nebulosas considerações a respeito do Jesus histórico, argumentando que, na verdade, essa sua reconstituição do Jesus histórico é o quadro mais nítido que alguém poderia conceber dado o caráter exíguo e amplamente duvidoso dos traços que podem ser considerados autenticamente históricos nos relatos sobre sua vida. Para ele, o fato de que Jesus tenha de fato se auto-proclamado como Messias e acreditado poder realizar todas as esperanças escatológicas guarda as informações mais abrangentes que podemos ter sobre sua existência histórica, e, fazendo uma crítica sutil a Renan, afirma que já demanda esforço e arte mais do que suficiente tentar afastar de Jesus o epíteto de visionário: É verdade que nos meus escritos precedentes, e particularmente ainda na minha nova redação de A Vida de Jesus, eu fiz grandes esforços para reunir os traços dispersos nos Evangelhos, buscando formar uma figura que pudesse oferecer à natureza e à visão de Jesus uma idéia interessante do ponto de vista humano. Meus adversários acharam pálido e indeciso meu esboço de Jesus, eles exigiam traços mais vivos, mais seguros, enquanto que eu havia me confessado, pelo contrário, que em razão daquilo que sabemos realmente de Jesus, eu tinha desenhado contornos bastante ousados, muito definidos [...] Já daquela vez, os discursos de Jesus sobre a sua vinda sobre as nuvens do céu haviam me dado muito o que fazer; e, além disso, com muita dificuldade e arte, tentar afastar dele a acusação de visionário e exaltado. 166 163 Cf. Strauss, David. Das Leben Jesu für das deutsche Volk bearbeitet. Leipzig: Brodhaus, 1864. Cf. Strauss, Das Leben Jesu für das deutsche Volk bearbeitet, pp. xx-xxi. 165 Cf. Schweitzer, Op. Cit., pp. 95-96. 166 Strauss, L’ancienne et la nouvelle foi, Préface de la quatrième ed., p. li. 164 74 Talvez Nietzsche, antes de ler a primeira versão de Das Leben Jesu de Strauss, tenha lido, na verdade, esta versão popular da obra, a qual, todavia, já teria conseguido lhe causar uma forte impressão. 167 Porém, ao que parece, ele irá mais tarde considerar esta segunda versão como inferior à primeira, justamente por Strauss ter tentado nela, pela primeira vez, ultrapassar os limites de suas habilidades que deveriam permanecer restritas ao seu trabalho de crítica histórica. “Foi um lapsus de Strauss ter oferecido uma vida de Jesus. Deveria ter se limitado ao labor histórico”. 168 Além disso, bastante influenciado por Wagner 169, Nietzsche irá criticar a atitude de Strauss em querer confrontar Renan sem ter o mesmo talento do historiador francês para a elaboração de um retrato histórico de Jesus, para a descrição dos aspectos positivos dessa figura: “Foi uma insolência por parte de Strauss ter oferecido Das Leben Jesu do povo alemão como contra-réplica a Renan que é muito maior que ele.” 170 Ademais, provavelmente também como referência à versão 167 Segundo Pascual, Nietzsche teria lido Das leben Jesu, kritisch bearbeitet em Bonn durante o outono de 1864. Porém, devido à coincidência dessa data com o ano de lançamento da versão popular da obra, é muito mais provável que Nietzsche tenha lido a versão popular dela e não a primeira. Nas correspondências daqueles dias entre Nietzsche e sua irmã aparecem algumas alusões polêmicas a Das Leben Jesu (KSB II 85 e 285), e, pouco antes de começar as festividades da Páscoa de 1865, Nietzsche escreveu em uma folha solta uma lista de livros para levar nas férias, que contém duas dezenas de obras, a primeira das quais é precisamente o livro de Strauss. Durante essas férias, sem dúvida sob a influência de tal leitura, Nietzsche chegou a redigir dois pequenos ensaios, intitulados, “Sobre a vida de Jesus” e “Sobre a doutrina da ressurreição”. Em suas Erinnerungen an F. Nietzsche, Leipzig, 1901, seu amigo P. Deussen faz referência não à primeira edição de A vida de Jesus, mas sim à sua edição popular: “Um diese zeit [por volta de outubro a dezembro de 1864] war das neue Leben Jesu von Strauss erschienen. Nietzsche schaffte es sich an, und ich solgte seinem Beispiele. In unseren Gesprächen konnte ich nicht umhin, meine Zustimmung auszudrücken. Nietzsche er widerte: ‘Die Sache hat eine ernste Konsequenz; wenn Du Christus ausgiebst, wirft Du auch Gott ausgeben müssen’” (p. 20). “À cette époque était parue la nouvelle Vie de Jésus de Strauss. Nietzsche se la procura et je suivis son exemple. Dans nos conversations, je ne pouvais m’empêcher d’exprimer mon accord. Nietzsche répliqua: ‘L’affaire a une conséquence sérieuse; si tu renonces au Christ, tu devras renoncer aussi à Dieu’” (Deussen, Paul. Souvenirs sur Friedrich Nietzsche. Traduit par Jean-François Boutout. Paris: Le Promeneur, 2002, pp. 39-40). Pode ser que o livro que consta na lista de 1865, já seja a primeira versão de Das Leben Jesu. De todo modo, no ensaio “Sobre a vida de Jesus”, Nietzsche, provavelmente influenciado pelas declarações feitas por Strauss na versão popular de Das Leben Jesu, já aponta para a dificuldade de se elaborar uma reconstituição histórica da figura de Jesus (cf. KGW I/4 29 [1] de março a abril de 1865 ou Nietzsche, Friedrich. Gesammelte Werke. Erste Band. Jugendschriften (18581868). Musarion Verlag, München, 1922, p. 259). Por fim, a edição que se encontra conservada na Biblioteca pessoal de Nietzsche como parte do Acervo-Nietzsche da Biblioteca Herzogin Anna Amalia de Weimar, é precisamente a Leben Jesu für das deutsche Volk bearbeitet, de 1864. Cf. Campioni, Giuliano; D’Iorio, Paolo et allii. (Herausgegeben) Nietzsches persönliche Bibliothek (BN). Supplementa Nietzscheana, Band 6. Walter de Gruyter: Berlin, New York: 2003. 168 FP 27 [3] primavera-outono de 1873. 169 Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 57. 170 FP 27 [1] primavera-outono de 1873. 75 popular de Das Leben Jesu, Nietzsche irá acusar igualmente Strauss de nutrir uma certa inveja da extrema beleza do texto de Renan: “A elegância de Renan não deixava dormir naquela época a pluma 171 de Strauss”. 172 1.5 – Crítica a Das Leben Jesu na primeira Extemporânea As primeiras críticas que Nietzsche faz a Das Leben Jesu, de Strauss, apareceram na época da Primeira Extemporânea. Nesse período, o grande problema que o filósofo vê no livro de Strauss não está em seu caráter crítico, ou seja, nas contradições que ele aponta nos Evangelhos, e sim na sua tentativa de explicar os relatos sobre Jesus segundo a perspectiva mitológica. O principal argumento de Nietzsche se dirige contra a concepção defendida por Strauss do mito enquanto criação coletiva, juntamente com a posição adotada pelo autor de Der alte und der neue Glaube de considerar que a identificação do aspecto mítico na origem da religião cristã deveria anular o seu poder. Tanto Renan quanto Wagner foram influenciados por Schopenhauer na aposta do valor do indivíduo genial como oposição ao mito idealista e romântico de uma poesia emanada diretamente e espontaneamente do povo sem a mediação do “gênio”. As críticas que Renan dirige contra a teoria de Strauss de que o mito de Jesus foi criado inconscientemente pela tradição, de que essa idéia mais elevada do homem emanou do espírito coletivo e não do indivíduo extraordinário que foi Jesus, foram por sua vez adotadas por Wagner. Ora, a leitura do Beethoven de Wagner, fundamentado na concepção de gênio elaborada por Schopenhauer, foi decisiva para que o jovem Nietzsche aderisse ao projeto de um “re-nascimento” do espírito germânico. 173 Além disso, o elogio de Wagner ao Jesus “gênio” e “herói” de Renan contra o mito de Jesus de Strauss influenciou o jovem Nietzsche em várias de suas considerações sobre o aspecto genial do cristianismo e a relação entre mito e razão. 174 Assim, ao acreditar ter minado o poder do cristianismo pela demonstração de sua natureza mítica, Strauss teria provado, de acordo com Nietzsche, sua total incompreensão da essência da religião que está justamente em sua 171 Brincadeira recorrente de Nietzsche e Wagner que consistia em comparar o caráter de Strauss com a ave com cujo nome em alemão ele fora batizado, a saber, avestruz (Strauss). 172 FP 34 [37] primavera-verão de 1874. 173 Sobre a importância de Beethoven, de Wagner, para o jovem Nietzsche, cf. Burnett, Henry. “O BeethovenSchrift: Richard Wagner teórico”. In: Revista Trans/Form/Ação. São Paulo, n. 32, 2009, pp. 159-173. 174 Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, pp. 56-57. 76 liberdade e força capaz de produzir mitos. É nisto que reside a superioridade “ideal” do mito, mesmo cristão, sobre a ciência e sobre a razão. Strauss teria, assim, esvaziado o mito de seu significado por tentar explicar sua origem histórica: Strauss se fez a ilusão de haver destruído o cristianismo, no qual ele pretendeu demonstrar que havia mitos. Porém a essência da religião consiste precisamente nisto, em possuir uma força formadora de mitos e em ter a liberdade para formálos. Os triunfos que Strauss alardeia consistem em haver encontrado no cristianismo coisas que contradizem a razão e a ciência atual. Ele não suspeita da antinomia fundamental do idealismo nem do sentido sumamente relativo que tem toda ciência e toda razão. Ou expressado de outro modo: precisamente a razão deveria decidir quão pouco consiste o que com ela cabe decidir acerca do em-si das coisas. 175 Nesse período, Nietzsche também acusa Strauss de retratar Jesus como um lunático (por mais que o historiador tenha declarado ter tentado evitar isso). Isso se deve ao fato de que, na versão popular de Das Leben Jesu, Strauss reforça bastante que um dos únicos aspectos que podem ser considerados autenticamente históricos nos Evangelhos é a convicção que o próprio Jesus nutria a respeito de sua natureza messiânica (de que ele voltaria com todo poder, honra e glória sobre as nuvens do céu). Segundo Nietzsche, em uma provável referência à versão popular de Das Leben Jesu, a audácia louca de Strauss com as palavras o levou a descrever Jesus “como um visionário que dificilmente se livraria de um manicômio em nossa época; de maneira que se pode qualificar de ‘disparate histórico mundial’ [‘welthistorischer Humbug’] a história da ressurreição”. 176 O filósofo considera como um grave erro por parte de Strauss a suposição de que Jesus não é responsável pela criação da idéia que seu mito expressa; de que essa idéia foi elaborada inconscientemente e involuntariamente por uma coletividade e não por um único indivíduo dotado de espírito superior: “Strauss esqueceu o que há de melhor no cristianismo, os 175 FP 27 [1] primavera-outono de 1873. Cf., nesse mesmo sentido, a seguinte referência a Strauss e ao seu “evangelho de cervejaria” em O nascimento da tragédia: “Quem ousará, diante de tais tempestades ameaçadoras, apelar, com ânimo seguro, para as nossas pálidas e extenuadas religiões, as quais degeneram, em seus fundamentos, em religiões doutas: de tal modo que o mito, o pressuposto obrigatório de qualquer religião, acha-se paralisado em quase toda parte, e até nesse domínio conseguiu impor-se aquele espírito otimista que há pouco tachamos de germe da destruição de nossa sociedade” (NT § 18). 176 Co. Ext. I § 6. “Para Strauss, Jesus é um homem que ele encerraria num asilo psiquiátrico” (FP 27 [6] primavera-outono de 1873). 77 grandes eremitas e santos, esqueceu, em suma, o gênio”. 177 Portanto, é possível que, nesse período, Nietzsche pudesse conceber Jesus, senão como herói, pelo menos enquanto gênio. Sabemos que, em O Anticristo, Nietzsche não poderá mais admitir que Jesus seja tido como um gênio, difícil é saber com precisão quando exatamente seu posicionamento começa a mudar. Contudo, talvez já seja possível verificar traços de um afastamento com relação à interpretação que Renan faz de Jesus justamente quando se dá a ruptura do filósofo com Schopenhauer e Wagner, particularmente, a partir de Humano, demasiado humano, em que Nietzsche inicia uma forte crítica às concepções de “gênio” e “herói” defendidas por Wagner e Renan. 1.6 – Crítica a Das Leben Jesu em O Anticristo Em O Anticristo, ao que tudo indica, a explicação mitológica que Strauss aplica aos relatos evangélicos já não é considerada tão equivocada assim por parte de Nietzsche. Por exemplo, de acordo com o filósofo, foi somente com a decisão dos apóstolos em considerar Jesus em uma batalha contra a ordem dominante, que se transportou para o seu tipo as esperanças messiânicas de um juiz salvador, de um Messias que retornaria nas nuvens do céu para implantar o reino de Deus, um argumento que lembra bastante a fórmula cunhada por Strauss para explicar a natureza mitológica dos relatos evangélicos. Além disso, Nietzsche irá acusar Paulo de ter falsificado o tipo de Jesus com elementos [de uma corrupção] da mitologia e cultos pagãos. Todavia, se a narrativa sobre a vida de Jesus possui um caráter “mitológico”, isso só se deve a uma perversão do significado do mito por parte da religião cristã, e não de uma criação que responda a necessidades naturais da condição de existência de um povo, mesmo porque os judeus devem sua existência a uma condição desnaturalizada. 178 Portanto, o fato de tão somente se procurar uma solução para as contradições dos Evangelhos, não representa, para Nietzsche, um passo decisivo para a compreensão da verdadeira natureza da religião cristã, para o desvelamento de sua pudenda origo, por mais que essa explicação seja bem sucedida em vários aspectos. Sendo assim, a 177 FP 27 [1] da primavera-outono de 1873. Essa questão será discutida mais detidamente no capítulo “Wellhausen e o processo de desnaturalização dos valores naturais”. 178 78 grande dificuldade na leitura dos Evangelhos não tem a ver com suas inúmeras contradições, como declara Nietzsche referindo-se ao que foi demonstrado em Das Leben Jesu e celebrado em Der alte und der neue Glaube, de Strauss: “– Confesso que leio poucos livros com tantas dificuldades como leio os Evangelhos. Essas dificuldades são distintas daquelas cuja demonstração permitiu à douta curiosidade do espírito alemão celebrar um dos seus inesquecíveis triunfos”. 179 As dificuldades que Nietzsche diz se deparar ao ler o Novo Testamento se referem ao grau alarmante de corrupção psicológica levada a cabo pelos apóstolos, pela Igreja primitiva e por Paulo. Essa corrupção psicológica fez com que praticamente todo traço histórico sobre a vida de Jesus fosse apagado. Sendo assim, Nietzsche concorda com Strauss a respeito da impossibilidade de uma reconstituição histórica da vida de Jesus. Mas o grande erro de Strauss, e de Renan, foi achar que os Evangelhos são obra de uma tradição: Que me importam as contradições na “tradição” [“Überlieferung”]? Como podem lendas de santos ser denominadas “tradição”? As histórias de santos são a literatura mais equívoca existente: aplicar-lhes o método científico, na ausência de quaisquer outros documentos, parece-me de antemão condenado ao fracasso – 180 mero ócio erudito... De acordo com Nietzsche, a noção de tradição, ou seja, o conjunto das produções espirituais (narrativas míticas, relatos históricos, objetos artísticos, etc.) que conservam, transmitem, reelaboram, reinterpretam, criam e recriam toda a herança cultural de um povo, não pode ser aplicada aos Evangelhos, visto que neles não se encontra o caráter inconsciente, espontâneo, instintual, natural e sobretudo honesto de uma tradição, porquanto eles são fruto de uma milenar arte de falsificação, corrupção e adulteração consciente e intencional dos valores culturais, recorrendo às mesmas técnicas utilizadas nos Livros Sagrados judeus escritos durante a diáspora e na adulteração feita pelo código sacerdotal nessa mesma época dos escritos mais antigos do povo hebreu. 181 Todavia, não é possível verificar essa corrupção somente com o uso dos métodos científicos da crítica histórica. Strauss se enganou completamente, portanto, ao supor que os Evangelhos foram 179 AC § 28. Ibidem. 181 Cf. a seção “A corrupção psicológica dos Evangelhos” deste trabalho. 180 79 elaborados por uma tradição, ou seja, de forma inocente, ingênua, inconsciente, sem a intenção de fraude. De acordo com Nietzsche, o que ocorreu foi exatamente o oposto: – a história do cristianismo em si é precisamente a história de um embuste. 1.7 – Nietzsche e seu antípoda, Renan De acordo com Campioni 182, Nietzsche entra em contato com os escritos de Renan ainda muito jovem, durante os anos de 1860. A leitura que o filósofo faz de Renan se intensifica durante o “idílio de Tribschen”, ou seja, na época em que Nietzsche estabelece uma íntima convivência com Wagner e Cosima. Em 1873, Nietzsche pede emprestado à Cosima a obra Saint Paul, de Renan, lançada em 1869, como atesta a carta enviada a Wagner em 18 de abril de 1873, em que Nietzsche menciona a devolução deste livro. Após esse período, como testemunha o Diário de Cosima, Wagner lê e comenta com constância e continuidade os volumes da Histoire des Origenes du Christianisme, de Renan. 183 Entre outubro de 1876 e início de maio de 1877, Nietzsche passa uma estádia na vila Rubinacci em Sorrento, na companhia de Malwida von Meysenbug, Albert Brenner e Paul Rée. Nessa ocasião, ele faz uma leitura conjunta com os amigos da obra Les Évangiles, de Renan, lançada em 1877. Wagner e Cosima estavam hospedados no Hotel Vitória em Sorrento durante essa mesma temporada, e foi nesse ambiente que se deu o último encontro entre Nietzsche e Wagner. 184 O prefácio intitulado “O Estado grego”, dos Cinco prefácios para cinco livros não escritos, enviados à Cosima no natal de 1872, dá provas da influência marcante que Renan exercia sobre Nietzsche no que diz respeito às suas considerações acerca do gênio. Nesse escrito, Nietzsche denuncia a covardia e a hipocrisia do homem moderno que se esconde atrás das “alucinações conceituais” da “dignidade da vida” e da “dignidade do trabalho”. A concepção metafísica de Nietzsche nessa época, influenciada por Schopenhauer, mas também fortemente pelos Dialogues philosophiques de Renan (em que a filosofia de Schopenhauer exerce muito importância), vê como instância última e 182 Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 93 Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 53. Histoire des origines du christianisme é composta por Vie de Jésus (1ª ed. 1863 - 13ª ed. 1867), Les Apôtres (1866), Saint Paul (1869), L’Antéchrist (1873), Les Évangiles (1877), L’Église chrétienne (1879) e Marc Aurèle (1882). 184 Cf. Chaves, Ernani. “Das Tragische, das Genie, der Held: Nietzsches Auseinandersetzung mit Renan in der Götzendämmerung”. In: Nietzscheforschung. Akademie Verlag, 2010. Band 16: “Nietzsche im Film: Projektionen und Götzen-Dämmerungen”, p. 249. 183 80 necessária da realidade a produção do gênio, propondo, assim, uma dimensão mais dura e mais heróica para a humanidade do que prega aquelas “alucinações conceituais”: “cada homem, como conjunto de seus atos, tem dignidade à medida que é instrumento do gênio, de modo consciente ou inconsciente; [...] o homem só pode justificar sua existência como a de um ser totalmente determinado, servindo a finalidades inconscientes”. 185 Contudo, após o rompimento com Wagner, Nietzsche irá se distanciar cada vez mais do “Rêve” aristocrático de Renan. Bastante importante para a efetivação desse distanciamento foi à influência exercida por Burckhardt e também por Taine nas reflexões de Nietzsche sobre o gênio. 186 Apesar da independência sempre crescente de Nietzsche com relação à visão renaniana de uma aristocracia de savants, Nietzsche aparecerá comumente aos olhos de seus contemporâneos como um discípulo de Renan. Alfred Fouillée, por exemplo, fazendo referência ao diletantismo de Renan, ao estilo vacilante e flutuante que ele utiliza na exposição de suas convicções, à sua decisão de ocultar constantemente sua verdadeira face por trás de nuanças, afirma que, no caso de Nietzsche, uma espécie de “fanatismo do tipo germânico” ignora a necessidade de qualquer cálculo conciliatório, denominando sua filosofia de “renanisme exaspéré et sans nuances”. 187 Todavia, sobretudo a partir da valorização que Nietzsche faz de Descartes, mais especificamente, do papel que este atribui ao método para o estabelecimento do caminho ordenado que leva ao conhecimento, o culto ao “gênio” romântico professado por Wagner, Schopenhauer e Renan, em que o jovem Nietzsche teve sua “pátria metafísica”, é condenado pelo filósofo como uma renúncia à probidade intelectual, um querer cegar-se pela veneração. Com a influência conjunta exercida por Burckhardt, Taine e Descartes, o gênio irá, por fim, aparecer para Nietzsche não mais como um “milagre”, mas como o acabamento último do “trabalho acumulado de gerações” 189 188 , de um longo exercício de ascese, de disciplina e de canalização de energia. Entretanto, as relações entre as idéias de Renan e as de Nietzsche, que eram tão 185 CP, O Estado grego. Tradução de Pedro Süssekind. Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, pp. 59-73. 187 Cf. Fouillée, Alfred . Nietzsche et l'imoralisme. Paris, Alcan, 1902, p. 110. Para mais detalhes da crítica de Fouillée a Renan e Nietzsche, cf. Campioni, pp. 87-88. 188 FP 9 [68] da primavera de 1888. 189 Cf. o capítulo “Nietzsche, Descartes et l’esprit français”, in: Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, particularmente, p. 31-32. 186 81 evidentes para seus contemporâneos, sempre foram de fato muito estreitas. Nietzsche leu com afinco as obras de Renan, em particular, os livros que compõe a Histoire des Origenes du Christianisme e a obra Dialogues philosophiques. Além disso, os temas que foram discutidos por Renan sempre foram de modo geral objetos de interesse de Nietzsche. E, como é comum ao método de pesquisa de Nietzsche, ele fará ao longo de suas obras, marcadamente em O Anticristo, diversas apropriações de resultados obtidos por Renan, conferindo-lhes, todavia, um novo sentido adequado ao seu pensamento. Não é por acaso que Nietzsche buscará marcar a diferença de suas idéias frente àquelas de Renan, ao ponto de denominar o historiador francês em Além de bem e mal como seu antípoda. 190 Em Humano demasiado humano e em Opiniões e sentenças, aparecem alguns resquícios daquela leitura que Nietzsche fez da obra Les Évangiles na companhia dos amigos em Sorrento. 191 E em Gaia ciência, Nietzsche põe em evidência a insistência de Renan em oferecer em seus Diálogos filosóficos toda espécie de consolação metafísica diante de um fundo niilista. Com a perda da crença no velho Deus, Renan acreditava que a humanidade tiraria de si tudo o que fosse necessário para a criação de ilusões em vista do sacrifício pelos seus deveres e para o cumprimento de seu destino em direção à realização do ideal. Mas, por enquanto, declara Renan no prefácio dos Diálogos: “Nous vivons de l’ombre d’une ombre. ” 192 A imagem da “sombra de Deus” e a necessidade de superá-la aparecem também no célebre início do terceiro livro de A gaia ciência, juntamente com o anúncio da morte de Deus: “Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também sua sombra!” 193 Entretanto, ao contrário das consolações que Renan oferece, Nietzsche impõe ao homem “o maior dos pesos” 194 : “O eterno retorno impede toda escolha consoladora: ele interdita toda ‘sombra de Deus’ residual [...] e determina cada vez mais uma seleção de forças”. 195 190 Cf. BM § 48. Cf. HHI § § 113, 144 e 475; OS § 98. Sobre essas passagens, cf. Chaves, “Das Tragische, das Genie, der Held: Nietzsches Auseinandersetzung mit Renan in der Götzendämmerung”, p. 249. 192 Renan, Ernest. Dialogues et fragments philosophiques. Paris: Calmann Lévy, 1876, Préface, p. xix. 193 GC § 108. 194 GC § 341. 195 Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 100. 191 82 Mas é principalmente com a leitura da obra Essais de psychologie contemporaine, de Paul Bourget 196, lançada em 1883, que Nietzsche passa, a partir de Além de bem e mal, a criticar abertamente Renan. O primeiro contato de Nietzsche com a obra de Bourget já se dá no inverno de 1883. Os ensaios que compunham o livro de Bourget haviam sido antes publicados separadamente no periódico La Nouvelle Revue, sob o título Psychologie contemporaine: Notes et portraits, o capítulo sobre Renan fora lançado em 1882.197 No prefácio escrito em 1889, Bourget declara que sua intenção é traçar a herança de idéias e emoções que sua geração recebeu de seus mestres: Renan, Taine, Flaubert, os Goncourt, Baudelaire e Amiel. 198 Porém, a leitura dessa “psychologie vivante” (Taine) que a literatura representa deve ser desprovida de todo julgamento moral. Como Bourget esclarece: “La psychologie est à l’éthique ce que l’anatomie est à la thérapeutique. Elle la précède et s’en distingue par ce caractère de constatation inefficace, ou, si l’on veut, de diagnostic sans prescription. Mais cette attitude d’observateur qui ne conclut pas n’est jamais que momentanée.” 199 No prefácio de 1885, Bourget expõe sua tese de que os estados de alma particulares de uma nova geração estão envolvidos em gérmen nos sonhos e teorias da geração precedente, e é nas obras literárias que essa transmissão de uma herança psicológica é mais poderosa. 200 Segundo ele, uma mesma influência se deixa entrever nas obras desses autores, dolorosa, profunda e continuamente, a saber, o pessimismo. Ainda que o pessimismo existente na alma de sua geração represente, segundo Bourget, aquilo que a geração de seus mestres na verdade repugnava, ele defende que a análise psicológica da obra desses autores leva à compreensão dessa retomada inesperada daquilo que em 1830 era denominado de “le mal du siècle”. 201 Quanto ao papel de Renan nessa herança pessimista transmitida aos jovens daquela nova geração, Bourget acredita poder indicar na 196 Cf. Bourget, Paul. Essais de psychologie contemporaine. Paris : Alphonse Lemerre, 1908. Cf. Oliveira, Jelson R. de. “Bourget fonte de Nietzsche: o conceito de décadence para a exumação de um século”. In: 120 anos de “Para a genealogia da moral”. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008, pp. 107-128. 198 Cf. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, Préface, p. xi. 199 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, Préface p. xii. Em Crepúsculo dos ídolos, no aforismo intitulado “Moral para psicólogos”, Nietzsche faz uma crítica a esse tipo de psicologia “neutra” referindo-se aos irmãos Goncourt, mas que também poderia incluir Bourget: “Não cultivar psicologia barata! Nunca observar por observar! Isso produz uma ótica falsa, uma visão de soslaio, algo forçado e exagerado” (CI, Incursões de um extemporâneo § 7). 200 Cf. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, Avant-propos de 1885, p. xx. 201 Cf. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, Avant-propos de 1885, pp. xx-xxi. 197 83 obra do historiador, de modo mais grave, o gérmen da melancolia envolta em seu diletantismo. 202 Nietzsche irá utilizar vários elementos da clara análise feita por Bourget, sem aderir, contudo, ao elogio do crítico ao idealismo e ao sentimento religioso renaniano, em que todo símbolo exterior da religião é visto como uma realização do ideal. Nietzsche tampouco consegue anuir com a complacência que Bourget demonstra para com o diletantismo de Renan. Segundo Bourget, tal diletantismo é fruto do encontro ocorrido no espírito de Renan entre a sua herança céltica e a sua absorção da cultura alemã. Todavia, Bourget defende que Renan não colheu o principal defeito do diletantismo, a saber, a frivolidade, isso devido ao seu sentimento religioso, isto é, ao respeito pela antiga crença ainda que não mais a professando, não mais aderindo aos seus dogmas. Em Além de bem e mal, Nietzsche utiliza a explicação que Bourget faz da sensibilidade religiosa de Renan como uma herança de seu “sangue céltico”, que, em contato com a cultura alemã, ocasionou uma mistura de ceticismo com devoção, uma complicação psicológico que é estranha aos homens do Norte: O catolicismo parece estar mais intimamente ligado às raças latinas do que o nosso cristianismo a nós, homens do Norte; e, por conseguinte, nos países católicos a incredulidade deve ter um significado bem diverso daquele dos países protestantes – ou seja, uma espécie de revolta contra o espírito da raça, enquanto para nós é antes um retorno ao espírito (ou falta de –) da raça. Nós, do Norte, descendemos indubitavelmente de raças bárbaras, também no que se refere ao dote para a religião: somos mal dotados para ela. Pode-se abrir exceção para os celtas, que por isso mesmo proporcionaram o melhor terreno para a infecção cristã do Norte – na França o ideal cristão veio a florescer, tanto quanto permitiu o pálido sol setentrional. Mesmo esses últimos céticos franceses (Auguste Comte, Sainte Beuve), como são estranhamente piedosos para o nosso gosto, na medida em que têm algum sangue celta na origem! 203 Em Souvenir d’enfance et de jeunesse, Renan se refere aos inofensivos loucos que eram deixados vagar livremente pelas ruas de sua amada Tréguier durante sua infância, como testemunhas da “races du rêve, qui s’usent à la poursuite de l’idéal”, segundo ele, “les Bretons de ces parages, quand ils ne sont pas maintenus par une volonté énergique, s’abandonnent trop facilement à un état intermédiaire entre l’ivresse et la folie, qui n’est 202 203 Cf. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, Avant-propos de 1885, p. xxiv. BM § 48. 84 souvent que l’erreur d’un cœur inassouvi.” 204 Em La poésie des races celtiques, Renan descreve os habitantes da Bretanha como “une race timide, réservée, vivant toute au dedans, pesante en apparence, mais sentant profondément et portant dans ses instincts religieux une adorable délicatesse.” 205 Renan também jamais tentou ocultar, mas sim exibir com grande orgulho, o fato de que ele herdou essa “infinie délicatesse de sentiment qui caractérise la race celtique.” 206 Mesmo porque, diz ele: “Chez aucune race, le lien du sang n’a été plus fort, n’a créé plus de devoirs, n’a rattaché l’homme à son semblable avec autant d’étendue et de profondeur.” 207 Quanto à responsabilidade dos Celtas pela propagação do cristianismo na Europa, essa é uma tese que já servia de pano de fundo para as obras de Renan desde seu estudo sobre Francisco de Assis 208 e que conclui o último livro das Origines, isto é, Marc-Aurèle, em que Renan diminui de maneira definitiva o papel que o judaísmo desempenhou para a formação final do cristianismo: “les religions sont ce que les font les races qui les adoptent”; São Francisco de Assis e de Sales entre outros: “ne sont en rien des juifs. Ce sont des gens de notre race, sentant avec nos viscères, pensant avec notre cerveau”. A raça ariana, os gregos, e sobretudo os celtas, são responsáveis por impedir que o espírito grosseiro, estéril e isento de imaginação do oriente, representado pelo judaísmo, invadisse a Europa. Em Marc-Aurèle, o cristianismo se torna cada vez mais um fato cultural indissociável das formas da civilização ocidental: “le judaïsme n’a été que le sauvageon sur lequel la race aryenne a produit sa fleur.” 209 Para Bourget, a herança celta de Renan, o doce ambiente religioso em que ele passou sua infância, nunca o abandonou 210, mesmo quando ele “adentrou no templo” 211 da 204 Renan, Ernest. Souvenirs d’enfance et de jeunesse. Préface et commentaires de Jean Balcou. Paris : Presses Pocket, 1992, p. 56. 205 Renan, Ernest. La poésie des races celtiques. In: Œvres complètes. Édition définitive établie par Henriette Psichari. Paris : Calmann-Lévy, 1947, p. 252. 206 Renan, La poésie des races celtiques, p. 257. 207 Ibidem. 208 Cf. Renan, Ernest. François d’Assise. In : Nouvelles études d’histoire religieuse, Paris : Calmann Lévy, 1884, p. 323-352. Publicado pela primeira vez em outubro de 1866, no Journal des débats. 209 Renan, Ernest. Marc-Aurèle. In : Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 2, 1995, pp. 1059-1061, passim. 210 “Et je ne crois pas m’aventurer beaucoup en disant que si M. Renan fût demeuré dans sa ville natale, et s’il eût écrit en langue bretonne, tout naturellement il eût composé des bardits dans la tradition de ces poètes celtiques dont il a dit que personne ne les égala ‘pour les sons pénétrants qui vont au cœur’” (Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 51). 85 cultura alemã com a leitura de Herder e Goethe em 1843, fato que o levou a abandonar sua formação no seminário Saint-Sulpice. Para Bourget, a força da imaginação de Renan, capaz de trazer novamente à vida a alma dos grandes homens do passado, sua capacidade de “pénétrer, par une intuition qui ressemble au travail du poète ou du romancier, dans l’intérieur de l'ame de ce personnage”, é inata à sua raça: Il suffit de se rappeler que M. Renan est Breton, pour reconnaître que cette imagination lui vient de sa race, et il a donné lui-même la formule de sa nature d’esprit lorsqu’il a tracé, dans son étude sur la Poésie des races celtiques ce portrait, doucement idéalisé, du Breton,— mais cette idéalisation même n’est-elle pas comme un document de plus? [...] Faut-il attribuer ces prédispositions de l’âme celtique à l’héréditaire influence d’un climat mélancolique et qui multiplie autour de l’homme les impressions vagues et ensorcelantes?... 212 O encontro desse estado de alma com a filosofia alemão deu origem a um novo tipo de idealismo. Em sua primeira carta aberta a Strauss, publicada em 16 de setembro de 1870 no Journal des débats, Renan admite ao colega alemão estar em débito com a Alemanha devido a uma grande consolação, qual seja, sua filosofia, “je dirai”, ele confessa, “presque ma religion” 213 , ou seja, o idealismo: “Ma philosophie, d'ailleurs, est l'idéalisme; où je vois le bien, le beau, le vrai, là est ma patrie.” 214 Porém, o idealismo de Renan, de acordo com Bourget, “n’est pas le résultat d’un raisonnement, c’en est le principe. Ce n’est pas un effet, c’est une cause. Le drame de l’univers est à ses yeux l’épopée, tour à tour triomphante ou désespérée, de la Science et de la Vertu.” 215 O principal resultado do encontro ocorrido na alma do historiador entre a delicadeza celta e o rigor do pensamento alemão, encontra-se em seu diletantismo: “Les formules d’atténuation abondent, attestant, avec une certaine incapacité d'affirmer, un souci méticuleux de la nuance.” 211 216 Bourget Renan, Ernest. Lettres a M. Strauss. In : La réforme intellectuelle et morale. Paris: Calmann-Lévy, 1875, p. 168. “J’étais au séminaire Saint-Sulpice vers 1843, quand je commençai à connaître l’Allemagne par Goethe et Herder. Je crus entrer dans un temple, et, à partir de ce moment, tout ce que j’avais tenu jusque-là pour une pompe digne de la Divinité me fit l’effet de fleurs de papier jaunies et fanées.” 212 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, pp. 47-48. 213 Renan, Lettres a M. Strauss, p. 168. 214 Renan, Lettres a M. Strauss, pp. 177-178. 215 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 50. 216 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p.48. De modo geral, são três os estados de alma comuns à França do fim do século XIX que Renan representa: o diletantismo, o sentimento religioso e o aristocratismo intelectual, que, para Bourget, foram frutos, no espírito de Renan, de complicações psicológicas causadas pelo 86 nutre uma grande fascinação por essa forma de vida “décadent” que Renan representa e vê nele um homem superior e um mestre, a ponto de se declarar “aluno de Montaigne e do senhor Renan”. 217 Nietzsche, ao contrário, se opõe à corrupção e à falsidade do instinto renaniano que a indecisão de seu diletantismo revela, e condena a transformação da velha fé em idealismo que Bourget tanto admira: “Escarnecer dos idealistas que crêem que a ‘verdade’ se acha lá onde eles se sentem ‘bons’ ou ‘elevados’. Clássico: Renan, citado em Bourget”. 218 Nietzsche se refere aqui à longa citação que Bourget faz L’Avenir religieux des sociétés modernes 220 219 do ensaio , e que o filósofo usa em Além de bem e mal para marcar seu afastamento do sentimentalismo religioso de Renan, para exibir toda a incapacidade do historiador em compreender o que verdadeiramente se passa na “alma” alemã, mas valorizando-o, ao mesmo tempo, como seu antípoda: Quanto a Ernest Renan: como é inacessível para nós, setentrionais, a linguagem desse Renan, em que um nada de tensão religiosa vem a todo momento desequilibrar sua alma, num sentido sutil voluptuosa e amante da comodidade! Basta repetir com ele essas belas frases – e quanta malícia e petulância se agita de imediato, como resposta, em nossa alma provavelmente menos bela e mais severa, ou seja, mais alemã! – ‘[...] dison donc hardiment que la religion est un produit de l’homme normal, que l’homme est le plus dans le vrai quand il est le plus religieux et le plus assuré d’une destinée infinie... C’est quand il est bon qu’il veut que la vertu corresponde à un ordre éternal, c’est quand il contemple les choses d’une manière désintéresée qu’il trouve la mort révoltante et absurde. Comment ne pas supposer que c’est dans ces moments-là, que l’homme voit le mieux ?...’ 221 Essas frases são de tal modo antípodas aos meus ouvidos e a meus hábitos que, ao encontrá-las, meu primeiro movimento de cólera escreveu-lhes ao lado ‘la niaiserie religieuse par excellence!’ – até que a minha última cólera chegou a gostar delas, com sua verdade de cabeça para baixo! É tão agradável e tão distinto ter seus antípodas! 222 encontro entre a cultura alemã (elemento masculino) e sua herança bretã (elemento feminino). Três estados excepcionais, três formas de pensar inéditas (Cf. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 54). 217 Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 74. Cf. também o belíssimo artigo de Campioni: “‘… Vivimos a la sombra de una sombra’: el nihilismo de Renan y Taine.” Traducción Sergio Sánchez. In: Itinerarios del nihilismo: La nada como horizonte. Madrid: Arena Libros: 2009, pp. 97-118. A “sombra” do título do artigo, uma alusão ao prefácio dos Diálogos de Renan, refere-se à influência que Renan e Taine exerciam sobre Bourget e sua geração. 218 FP 43 [2] do outono de 1885. 219 Cf. Bourget, Essais de psychologie contemporaine , pp. 70-71. 220 Cf. Renan, Ernest. Questions contemporaines. In: Œvres complètes, Calman-Lévy, 1947, p. 280. 221 “Digamos então, audaciosamente, que a religião é produto do homem normal, que o homem está mais próximo à verdade quando é mais religioso e mais seguro de um destino infinito... É quando ele é bom que ele deseja que a virtude corresponda a uma ordem eterna, é quando ele contempla as coisas de uma maneira desinteressada que ele acha a morte revoltante e absurda. Como não supor que é nesses momentos que o homem enxerga melhor?” (Tradução de Paulo César de Souza). 222 BM § 48. 87 Não obstante, como já havíamos mencionado, foi esse sentimento religioso de Renan, ainda melhor, sua idéia religiosa, que tanto repugnava Nietzsche, que, para Bourget, guardou o historiador do defeito próprio do diletantismo, ou seja, a frivolidade: “L’auteur de la Vie de Jésus a toutefois été préservé de ce que le dilettantisme exagéré introduit dans l’esprit de légèreté superficielle, par la permanence en lui non seulement de la sensibilité, mais encore de l’idée religieuse.” 223 Ora, de acordo com Bourget, a crença que se espalhou na França logo após o lançamento da Vie de Jésus de que seu autor seria o continuador de Voltaire, rapidamente se mostrou fruto de uma lamentável inexperiência crítica e uma fraca preocupação para as nuanças, mas na Inglaterra, onde Renan foi convidado para dar algumas conferências, ele rapidamente se viu identificado como um pensador “profondément, intimement religieux”. 224 Essa atitude de indecisão, característica do pensamento de Renan, será vista por Nietzsche como um sintoma de uma fraqueza da vontade, de uma doença da vontade, de uma incapacidade para o ateísmo radical, de uma “tolice religiosa” desonesta consigo mesma e que ofende profundamente toda probidade intelectual. Na descrição de Bourget: “Ni haineux ni désespéré, mais respectueux et calme, tel nous apparaît M. Renan dans ses rapports avec la religion, quoiqu’il ait rompu tout pacte avec la foi dans laquelle il a grandi, et qui demeure celle d’une grande partie de ses concitoyens. C’est un hérésiarque sans haine et sans remords”. 225 O contato com Bourget levou Nietzsche a se aproximar cada vez mais da crítica literária francesa, fazendo com que, ao mesmo tempo, sua confrontação com Renan se tornasse continuamente mais acirrada, afinal, a escolha de Renan como interlocutor na investigação do tipo psicológico de Jesus possui também sua importância pelo fato de que o historiador francês foi o mestre (junto com Taine) dessa geração de “psicólogos franceses” tão elogiados por Nietzsche e que tanto lhe instruiu 226: 223 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 69. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 69-70. 225 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 71. 226 Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, pp. 74-94; e também Campioni, “… Vivimos a la sombra de una sombra”. 224 88 Não vejo absolutamente em que século da história se poderia pôr lado a lado psicólogos tão inquiridores e ao mesmo tempo tão delicados como na Paris de hoje: menciono como amostra – pois o seu número não é pequeno – os senhores Paul Bourget, Pierre Loti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lemaître, ou para destacar um de raça forte, um autêntico Latino ao qual sou especialmente afeiçoado, Guy de Maupassant. Prefiro mesmo, seja dito entre nós, esta geração aos seus grandes mestres, os quais foram todos corrompidos pela filosofia alemã (o sr. Taine, por exemplo, por Hegel, a quem deve a má compreensão de grandes homens e grandes épocas). 227 Poderíamos acrescentar à lista de Nietzsche, Barbey D’Aurevilly, Ximénès Doudan, os irmãos Goncourt e Émile De Vogüe 228 , todos eles, assim como aqueles citados por Nietzsche, tiveram como mestres, não só Taine, mas também Renan (igualmente “corrompido” pela filosofia alemã), ainda que tenham buscado superá-lo, alguns de forma mais dura, outros de forma mais grata e respeitosa. 229 Entre eles, Anatole France, Lemaître e D’Aurevilly, dedicaram em suas obras capítulos inteiros sobre Renan. Esses três, 227 EH, Por que sou tão inteligente § 3. Em um fragmento preparatório, é Bourget quem aparece em destaque: “Fromentin, Feuillet, Halévy, Meilhac, les Goncourt, Gyp, Pierre Loti — — — ou ainda, para nomear um de raça profunda, Paul Bourget, aquele que, por si mesmo, é o mais próximo de mim — — —” (FP 25 [9] dezembro de 1888 – início de janeiro de 1889). É possível que Bourget já não figure em Ecce Homo como aquele que Nietzsche mais se identifique por uma questão de cautela, ou talvez por princípios, ou quem sabe para evitar algum tipo de confusão e mal entendido. A pista para o entendimento dessa hesitação do filósofo se encontra em uma carta enviada a Nietzsche por Malwida von Meysenbug em meados de outubro de 1888, apenas em parte conservada (uma provável censura de Elizabeth), em resposta a carta que Nietzsche lhe enviara em 4 de outubro de 1888 seguida da remessa de uma cópia do Caso Wagner. Na carta de 4 de outubro, Nietzsche revela a Malwida o desejo de que Bourget pudesse traduzir o Caso Wagner caso o crítico francês não fosse alguém que não entendesse nada “in rebus musicis et musicantibus”. A carta de Malwida resultou no fim da amizade entre ela e o filósofo (que lhe respondeu de modo violento e indignado em uma carta de 18 de outubro e outra de 20 de outubro de 1888), pelo fato de ela repreendê-lo pelo modo desrespeitoso, segundo ela, com que ele tratou Wagner e Liszt em seu opúsculo, sobretudo, ao chamá-los de “bufões” [„Hanswurst“]. Após sua crítica, Malwida desencoraja Nietzsche quanto à escolha de Bourget como tradutor do Caso Wagner, por este ser, de acordo com ela, wagneriano e vendido ao gosto do público: “Agora, pois, após esse sermão (você dirá: ah! uma wagneriana, e dará de ombros, mas eu não pertenço ao séquito [Troß] e conservo minha opinião para mim, reconheço muitas coisas justas em seu escrito), quero dizer-lhe que Monod enviou 2 exemplares a 2 escritores de seu conhecimento, que conhecem perfeitamente a língua alemã e são também músicos. Aliás, há aqui um monte de wagnerianos, quase todos os jovens músicos o são, Paul Bourget o é igualmente, ele estava em Bayreuth. Ele é na verdade um decadente absoluto da modernidade ruim, que de uma maneira detestável põe seu talento ao serviço do gosto corrompido do público e, sob o título de um pretenso realismo, mergulha nos pântanos insalubres da literatura moderna, dos quais as musas puras e castas se afastam com nojo” (KGB III/6). 228 Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 74. 229 No verbete “Jugements sur Renan” do dicionário escrito por Laudyce Rétat que se encontra na edição organizada por ele das Origines, podemos encontrar longas reproduções de ensaios, cartas e diários da crítica literária francesa sobre Renan, entre esses autores, estão: Barbey D’Aurevilly, Sainte-Beuve, Charles Baudelaire, Pierre Leroux, Edmond e Jules de Goncourt, Gustave Flaubert, Anatole France. Cf. Rétat, Laudyce, “Dictionnaire”, In: Histoire des origines du christianisme, pp. cclxxv-cccxv. 89 juntamente com Bourget e Doudan, ofereceram material para a crítica que Nietzsche faz a Renan em Genealogia da moral. Em um texto sumamente importante para a relação entre Nietzsche e Renan, Gary Shapiro sugere que a visão madura de Nietzsche sobre a história, especialmente aquela expressa em Genealogia da moral e em O Anticristo, é uma crítica direta e também uma espécie de paródia da Histoire des origines du christianisme, de Renan. 230 Nietzsche formula sua genealogia, diz Shapiro, como sendo, de certa forma, uma alternativa para o modelo de história que Renan defende. A própria distinção estabelecida por Nietzsche entre os termos Herkunft [procedência] e Ursprung [origem], analisada por Foucault, já constituiria um ataque à história das origenes do cristianismo de Renan. 231 A principal diferença entre as visões de história de Nietzsche e Renan está relacionada, segundo Shapiro, com a natureza do discurso narrativo em geral e com o papel que os modelos literários, retóricos e teatrais desempenhariam na elaboração de uma narrativa histórica. A história feita por Renan é inseparável do modelo fornecido pela literatura francesa do século XIX. Para Shapiro, Nietzsche irá propor como modelo alternativo para essa história narrativa e biográfica de Renan, um modelo tipológico e não narrativo. Além disso, é significativo que boa parte do pano de fundo histórico da Genealogia da moral, mais especificamente, a guerra da “Judéia contra Roma”, seja também o palco onde se desenrolam os acontecimentos narrados por Renan nos últimos volumes de sua Histoire, isto é, L’Antéchrist, Les Évangiles, L’Église chrétienne e sobretudo Marc-Aurèle. Em Genealogia da moral, Nietzsche pergunta se na práxis da historiografia moderna pode ser encontrado um modelo de ciência que não esteja comprometida com os ideais ascéticos e que demonstre “uma maior certeza de vida”. Nietzsche provavelmente tem em mente aqui o tipo de história praticada por Ranke e seus seguidores que rejeitam todo tipo de teleologia, nada mais desejando provar, não querendo mais ser juiz. Esse tipo de história “não afirma, e tampouco nega, ela constata, ‘descreve’...”. Mas, para Nietzsche, essa história não representa uma ciência que brote da exuberância da vida: “Tudo isso é 230 Cf. Shapiro, Gary. “Nietzsche contra Renan”. In: History and Theory. Blackwell Publishing, 1982, Vol. 21, n. 2, p. 193. 231 Cf. Foucault, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: Machado, Roberto (Org.), Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 90 ascético em alto grau; ao mesmo tempo, que não haja engano, é niilista em grau ainda mais elevado!” Porém, segundo Nietzsche, existe um tipo muito mais danoso do fazer histórico, ou seja, aquele tipo de história da qual Renan é o grande representante, a chamada história “contemplativa”: Quanto àquela outra espécie de historiadores, ainda mais “moderna” talvez, espécie folgazã, voluptuosa, que flerta simultaneamente com a vida e com o ideal ascético, que usa a palavra “artista” como uma luva e que hoje monopolizou inteiramente o elogio da contemplação: oh, que saudade até mesmo de ascetas e paisagens invernais despertam esses doces espirituosos! Não! esses “contemplativos” que vão para o Diabo! Preferiria mil vezes vagar com aqueles niilistas históricos através da mais densa, cinza e fria névoa! 232 Na introdução de Les Apôtres, Renan afirma que sua intenção é escrever uma história contemplativa, sem apelo à polêmica (como ele acusa Strauss de fazê-lo), e relacioná-la com uma forma mais geral de quietismo: “Ces œuvres doivent être exécutées avec une suprême indifférence, comme si l’on écrivait pour une planète déserte.” 233 Nietzsche irá atacar a tentativa de Renan em fazer uma convergência entre religião, ciência e arte, tornando a história um palco em que o homem moderno contempla o desenrolar de acontecimentos passados como uma analogia das transformações sociais ocorridas na Europa entre os séculos XVII e XIX, no intuito de mostrar que essas mesmas transformações constituem um caminho necessário para a realização do ideal. Bourget também se detém no caráter contemplativo da história de Renan 234: “Reconnaissez-vous à ce: ‘Disons mieux, tranquille,’ la sérénité railleuse du contemplateur désabusé, qui estime qu'une âme n'est vraiment délivrée de l'universelle illusion qu'à la condition d'en avoir suivi tous les méandres?” 235 Bourget se admira com o fato deste “estranho Proteu” conseguir encontrar, na sua “voluptuosidade de artista”, a indulgência para com os culpáveis (Nero) e a severidade para com os mártires em L’Antéchrist. Ora, Renan faz isso, de acordo com Shapiro, com o objetivo de agradar sua audiência. Em L’Antéchrist, escrito 232 GM III § 26. Renan, Ernest. Les Apôtres. In : Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 1, 1995, p 327. 234 E também Anatole France : “Sa jeunesse fut vouée à un labeur acharné. Pendant vingt ans, il étudia jour et nuit, et acquit une telle habitude de l’effort qu’il put accomplir dans sa maturité de grands travaux avec la quiétude d’un génie contemplatif ” (Anatole France. La vie littéraire I. Paris : Calmann-Lévy 1921, p. 323). 235 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, pp. 57-58. 233 91 em 1873, após a derrota na guerra contra a Prússia e o início dos eventos da comuna de Paris, Renan tenta exibir uma continuidade entre a Roma do primeiro século e a Europa do século XIX, com o uso de leis da psicologia social que tornam essa continuidade inteligível. 236 Nero deveria representar, assim, a grande sensibilidade artística, mesmo que na crueldade, do ocidente, frente ao fanatismo do oriente judaico, representado pelos mártires. Essa sublimação do prazer na crueldade que o teatro de Renan tenta provocar, “transposta para o plano imaginativo e psíquico”, é condenada por Nietzsche como um narcótico prejudicial para uma platéia já suficientemente enfraquecida e afeminada. Essa afetação provocada pelas “nostalgies de la croix” 237 indispõe Nietzsche contra todo esse “espetáculo” 238: Muito piores são os “contemplativos” – nada conheço de mais nauseante que um desses “objetivos” de cátedra, um desses cheirosos hedonistas, meio pároco, meio sátiro, parfum Renan, que já com o elevado falsete de seu aplauso revela o que lhe falta, onde lhe falta, onde, nesse caso, a cruel tesoura das parcas foi manuseada de maneira oh! tão cirúrgica! Isso contraria meu gosto, e também minha paciência: que conserve sua paciência ante tais visões quem nada tem a perder – a mim me enfurece uma tal visão, tais “espectadores” me indispõe contra o “espetáculo”, mais ainda que o espetáculo. 239 A imagem de um Renan que, com sua melancólica descrição de montanhas e prados, lagos e bosques, tenta intuir o estado moral das almas dos homens do passado, 236 Cf. Shapiro, “Nietzsche contra Renan”, p. 196. Expressão que Nietzsche encontra em Bourget : “Le martyrologe ne semblera-t-il point un recueil d’indéchiffrables extravagances au regard de celui qui n’aura jamais éprouvé les nostalgiques délices de la folie de la Croix ? Il faut cependant que cette folie soit passée pour que l’intelligence et la sensibilité s’équilibrent dans une proportion qui permette la sympathie, mais lucide, et l’analyse, mais tendre. La rencontre est rare et vaut qu’on la signale non point comme une faiblesse, mais comme une force, et ce n’est pas manquer de respect au consciencieux effort de M. Renan que de distinguer chez lui cette part de l’imagination sentimentale” (Bourget, Essais de psychologie contemporainep, pp. 44-45). 238 Sobre um Renan que quer entreter sua platéia com um verdadeiro “espetáculo”, cf. Lemaìtre, Jules. Les contemporains : études e portraits littéraires I. Paris : Libraire Lecène, 1896, p. 208 : “Je soupçonne cette gaieté de n’être ni sinistre ni héroïque. Il reste donc qu’elle soit naturelle et que M. Renan se contente de l’entretenir par tout ce qu’il sait des hommes et des choses. Et cela certes est bien permis; car, si ce monde est affligeant comme énigme, il est encore assez divertissant comme spectacle.” Lemaître faz nessa obra um retrato descritivo de Renan durante suas conferências sobre a história de Israel, as quais o crítico teria assistido. O tom crítico vem de forma sutil e de maneira bastante irônica. O problema que Lemaître se ocupa é saber como Renan pode ser gai, ou seja, alegre. Para Lemaìtre, é inegável que Renan seja alegre, mas como, por que e com que direito? “Sceptique, pessimiste, nihiliste, on l’est quand on y pense: le reste du temps (et ce reste est presque toute la vie), eh bien! on vit, on va, on vient, on cause, on voyage, on a ses travaux, ses plaisirs, ses petites occupations de toute sorte” (Les contemporains, pp. 208-209). 239 GM III § 26. 237 92 parfumant com sua ternura essas paisagens, é dada a Nietzsche por Bourget. Segundo Bourget, a eterna nostalgia que nutria por sua amada Bretanha, suas rochas, charnecas, sua vista para um vasto Oceano, seu horizonte infinito, infundiu em Renan, pouco a pouco, o desejo de fuga do mundo exterior e a necessidade de dirigir todas as suas forças em torno do problema de seu destino: “Et une fleur de songe a grandi, mystérieuse comme cet Océan, triste comme ces landes, solitaire comme ces rochers. En parcourant lés livres de M. Renan, vous rencontrerez plus d'un pétale de cette fleur, pris entre les feuillets et parfumant de sa fine senteur les dissertations de l'exégèse ou les arguments de la métaphysique...” 240 Essa mesma ternura e sentimentalismo foi transportada para a maneira com que Renan compunha suas cenas, para sua mice en scéne: “Il y a dans les pages qu’il a consacrées au Martyr du Golgotha quelque chose de la ferveur des femmes qui ont lavé le corps du Sauveur pour le mettre au tombeau, et certaines de ses phrases semblent auréoler d’un nimbe parfumé les cheveux roux, le visage exsangue, la beauté mortelle du Crucifié.” 241 Como Nietzsche afirma em um fragmento póstumo, referindo-se a essa sensibilidade característica de Renan: “Renan, um tipo de Schleiermacher católico, adocicado, bonbon 242 , sensível aos aspectos sentimentais das paisagens e das religiões”. 243 Para Nietzsche, semelhante “objetividade” de Renan era, na verdade, sintoma de sua fraqueza de vontade, de sua pusilanimidade que se recusa a tomar uma decisão definitiva, de tomar partido, de agir com pulso firme, sempre floreando suas divagações com suas nuanças. Uma tal “objetividade” não passa de “contemplatividade covarde, o lúbrico ‘eunuquismo’ diante da história, o flerte com ideais ascéticos, a tartufesca equanimidade da impotência”. 244 Nietzsche irá encontrar uma interessante discussão sobre essa impotência de Renan em Barbey D’Aurevilly. 245 Esse escritor católico faz uma apologia à energia e à força face à fraqueza, à indecisão e à “flexibilidade” de Renan, incapaz de um ateísmo radical, de uma “impiedade nítida e definida” ligada a uma “ciência hercúlea”: “O escritor 240 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p, 49. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 70. 242 Sobre um Renan “bonbon”, cf.: Ximénès Doudan. Lettres. Paris : Calmann Lévy, Vol. IV, 1879, p. 140. 243 Fragmento póstumo 38 [5] outono de 1884 – outono de 1885. 244 GM III § 26. 245 Cf. D'Aurevilly, Jules Amédée Barbey. Les oeuvres et les hommes I. Paris : Amyot, 1860. Livro escrito antes da publicação de Vie de Jésus, tomando como objeto de análise a publicação de Estudes religieuses, reunião de artigos publicados em Revue de deux mondés. 241 93 da Vida de Jesus não tem o entusiasmo passional do erro, nem o ódio implacável da verdade, nem a adoração pagã do homem pelo homem, tornou-se o único Deus que poderia existir”. 246 Quanto ao indecisionismo de Renan, D’Aurevilly declara: “De fato, esse toque de crítica indecisa que se inclina cautelosamente entre os textos, em uma claridade diabólica de Voltaire ou em uma chama incendiária de Diderot, desaparece como um nada”. 247 Ao ler os trabalhos de Renan, Barbey D’Aurevilly afirma ficar à espera de um “Anticristo”, que nunca vem: “Não, nem mesmo para rir, pois ele é insosso e maçante”. 248 É também em D’Aurevilly que Nietzsche encontra a imagem de um Renan “eunuco”, vítima, segundo o filósofo, da “tesoura das parcas”. D’Aurevilly sente falta da força do ateísmo de Voltaire e lamenta o surgimento desse “retrato” cruel da história de Jesus: “Não há aqui nenhuma virilidade do temperamento, nenhuma sombra de musculatura neste talento mole [...] Sua fraqueza corresponde à fraqueza de seu século: dois anêmicos igualmente pintados! O eunuco gordo e rosado feito por Bizâncio”. 249 Como Bourget, D’Aurevilly também analisa o diletantismo de Renan, o caracterizando como medo e covardia em abandonar definitivamente suas convicções religiosas. Ele observa como Renan repreende Feuerbach por sua violência contra Deus e o acusa de ter “o pedantismo de seu ódio”. 250 Contudo, segundo D’Aurevilly, o maior desejo de Renan seria preparar um prato de ateísmo, com todos os ingredientes da erudição, de modo conveniente a fazer com que até mesmo os homens religiosos possam achar agradável a negação de Deus em nome de Deus. Bem diferente de Strauss e de outros críticos alemães de quem ele é tão devedor, denuncia D’Aurevilly, embora Renan sempre tome toda a precaução contra o tom impiedoso com que eles se dirigem contra Deus: “quand l’Allemagne elle-même attaque 246 Apud Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 76. A edição utilizada por Campioni de Les oeuvres et les hommes foi editada pela Quentin, 1887, provavelmente uma versão revista e ampliada, que já tinha igualmente como objeto de estudo a Vie de Jésus. 247 Ibidem. 248 Ibidem. 249 Ibidem. Lemaître também denuncia a ambiguidade de Renan : “Son Dieu tour à tour existe ou n’existe pas, est personnel ou impersonnel. L’immortalité dont il rêve quelquefois est tour à tour individuelle et collective. Il croit et ne croit pas au progrès. Il a la pensée triste et l’esprit plaisant. Il aime les sciences historiques et les dédaigne [...] Il a des affirmations auxquelles, au bout d’un instant, il n’a plus l’air de croire, ou, par une marche opposée, des paradoxes ironiques auxquels on dirait qu’il se laisse prendre. Mais sait-il exactement lui-même où commence et où finit son ironie? Ses opinions exotériques s’embrouillent si bien avec ses ‘pensées de derrière la tête’ que lui-même, je pense, nes’y retrouve plus et se perd avant nous dans le mystère de ces ‘nuances’” (Lemaître, Les contemporaines, p. 212). 250 D’Aurevilly, Les oeuvres et les hommes, edição de 1860, p. 128. 94 Dieu, elle n’y va pas de main morte. Elle ne lui demande pas respectueusement la permission de le jeter par la fenêtre; elle l’y jette, voilà tout, et elle ferme la porte pour l’empêcher de remonter par l’escalier.” 251 Nietzsche diz não suportar “todos esses percevejos coquetes, cuja ambição é insaciável em farejar o infinito, até por fim o infinito cheirar a percevejos”. 252 A representação de Renan como “coquete” é feita por Doudan. Em um fragmento póstumo de 1884, Nietzsche transcreve literalmente de Doudan um julgamento sobre “a grande coquete na ordem dos teólogos e sábios”: “Renan a propósito de quem Doudan diz: ‘Ele faz o gênero de sua geração naquilo que eles desejam de qualquer maneira, des bonbons, qui sentent l'infini’. ‘Ce style rêveur, doux, insinuant, tournant autour des questions sans beaucoup les serrer, à la manière des petits serpents. C’est aux sons de cette musique-là, qu’on se résigne à tant s’amuser de tout, qu’on supporte des despotismes en rêvassant la liberté.” 253 Em Anatole France, Nietzsche também encontrou uma observação semelhante sobre o estilo de Renan em sua eterna busca pelo infinito: “Aujourd’hui, tout lui est facile, et il rend tout facile. Enfin, il est artiste, il a le style, c’est-à-dire les nuances infinies de la pensée.” 254 Nietzsche também declara não gostar desses “artistas ambiciosos que posam de sacerdotes e ascetas e no fundo não passam de trágicos bufões”. 255 Quem despertou a atenção de Nietzsche para o modo como Renan conseguiu encontrar na crítica histórica um ofício pelo qual ele poderia continuar exercendo sua vocação sacerdotal é D’Aurevilly e Lemaître. Para D’Aurevilly, o rompimento com Saint-Sulpice não significou a deserção do sacerdócio, mas apenas um novo chamado para a defesa da religião em um território no qual a sua existência estava sendo ameaçada: “‘La critique des origines d’une religion, dit M. Ernest Renan, n’est pas l’œuvre du libre penseur, mais des sectateurs les plus zélés de 251 D’Aurevilly, Les oeuvres et les hommes, edição de 1860, p. 127. GM III § 26. 253 “[...] bombons, com aroma de infinito. Esse estilo sonhador, doce, insinuante, girando em torno de questões sem, contudo, lhes cerrar, à maneira de pequenas serpentes. É ao som dessa música, que tanto se resigna a se divertir com tudo, que se suportam os despotismos sonhando com a liberdade (Doudan, Lettres. p. 140). FP 26 [446] do verão – outono de 1884. 254 Anatole France, La vie littéraire I, p. 323. 255 GM III § 26. 252 95 cette religion.’ 256 C’est pour cela sans doute qu'il est sorti de Saint-Sulpice. Manière de se retrouver prêtre quand on a jeté sa soutane aux buissons du chemin!” 257 De modo semelhante, Lemaître observa como Renan permaneceu para sempre um padre católico, fundando sua própria catedral: “Mais ce philosophe a gardé l’imagination d’un catholique. Il aime toujours ce qu’il a renié. Il est resté prêtre; il donne à la négation même le tour du mysticisme chrétien. Son cerveau est une cathédrale désaffectée.”258 Mas é em Crepúsculo dos ídolos, no aforismo intitulado “Renan” 259, que Nietzsche esclarece de forma definitiva aquilo que separa sua própria filosofia das idéias defendidas pelo historiador, retomando a caracterização de Renan como sacerdote/padre católico: “De que serve todo o livre-pensamento, toda a modernidade, zombaria e volúvel flexibilidade [Wendehals-Geschmeidigkeit], se em suas entranhas o indivíduo permanece cristão, católico e até sacerdote!” philosophiques 261 260 Referindo-se, provavelmente, aos Dialogues et fragments , de Renan, em que o pensador francês teria tentado expor suas convicções de forma mais determinada e menos diletante, Nietzsche afirma: “Teologia, ou a corrupção da razão pelo ‘pecado original’ (o cristianismo) 262. Testemunha disso é Renan, que, quando arrisca um Sim ou um Não de natureza mais geral, erra o alvo com penosa regularidade”. 263 Por mais que Nietzsche diga que Renan tenha decidido se arriscar nos Dialogues, é necessário precisar o que, no caso do historiador, de fato representa quase uma 256 Citação ligeiramente imprecisa de Renan, Ernest. Les historien critiques de Jésus. In : Études d’histoire religieuse. Paris : Calmann-Lévy, 1863, p. 117. 257 D’Aurevilly, Les oeuvres et les hommes, edição de 1860, p. 136. 258 Lemaître, Les contemporaines, p. 204. 259 Cf. CI, Incursões de um extemporâneo § 2. 260 CI, Incursões de um extemporâneo § 2. “Beyle e Flaubert, pouco suspeitos nessa matéria, recomendaram, de fato, a castidade aos artistas no interesse de sua arte: eu lhes recomendaria também Renan, que dá o mesmo conselho, Renan é padre...” (FP 14 [117] da primavera de 1888). 261 Dialogues et fragments philosophiques publicado em maio de 1876, foi traduzido em alemão em 1877 por Konrad von Zdekauer (Philosophische Dialogue und Fragmente, Leipzig, Koschny). Um exemplar da tradução alemã, que apresenta numerosos traços de leitura nas margens e trechos sublinhados em lápis vermelho, pode ser encontrado na Biblioteca pessoal de Nietzsche como parte do Acervo-Nietzsche da Biblioteca Herzogin Anna Amalia de Weimar. Cf. Campioni, Giuliano; D’Iorio, Paolo et allii. (Herausgegeben) Nietzsches persönliche Bibliothek (BN). Supplementa Nietzscheana, Band 6. Walter de Gruyter: Berlin, New York: 2003. O fac-símile do exemplar pessoal de Nietzsche encontra-se disponível no site da Fundação Clássicos de Weimar: <http://oraweb.swkk.de/digimo_online/digimo.entry?source=digimo.Digitalisat_anzeigen&a_id=12975>, último acesso em: 27/06/2012. 262 Cf. AC § 5. 263 CI, Incursões de um extemporâneo § 2. 96 temeridade. No prefácio dos Dialogues, Renan explica que tentou se voltar sobre si mesmo e elaborar uma espécie de estado sumário de suas crenças filosóficas. 264 Os três diálogos que compõe o escrito teriam como objetivo apresentar uma série de idéias desenvolvidas segundo uma ordem lógica, e não de indicar uma opinião ou de professar um determinado sistema. 265 Esse encadeamento lógico teria como ponto de partida as “Certitudes”, expostas no primeiro diálogo, passando pelas “Probabilités”, propostas no segundo, até se lançar nos “Rêves”, anelados no último diálogo. Todavia, Renan diz ter que renunciar antecipadamente a atribuição direta de todas as opiniões professadas por seus personagens como sendo suas. 266 Os leitores inteligentes, esclarece Renan, para quem ele se dirige admitiriam rapidamente que ele não é solidário a nenhum de seus personagens e que ele não deve ser responsabilizado por qualquer opinião que eles exprimam: “Chacun de ces personnages représente, aux degrés divers de la certitude, de la probabilité, du rêve, les côtés successifs d’une pensée libre; aucun d’eux n’est un pseudonyme que j’aurais choisi, selon une pratique familière aux auteurs de dialogues, pour exposer mon propre sentiment.” 267 Vemos aqui, portanto, Renan fazendo uso de suas refinadas nuanças para expor aquilo que ele considera como sendo suas convicções mais íntimas, principalmente no fato dele decidir expor o próprio cerne de seu pensamento sob a categoria de Rêves, arriscando seu Sim e seu Não da única maneira que seu diletantismo o permitiria fazer, pois isso, para ele, já constitui um perigo imenso. Acerca dos Rêves de Renan, Nietzsche sentencia: “Ele gostaria, por exemplo, de unir la science e la noblesse: mas a science é coisa da democracia, isso é algo bem palpável”. 268 A relação entre ciência e democracia nos Dialogues, de Renan, também chamou a atenção de Bourget. Segundo o crítico, além de seu diletantismo e de seu sentimento religioso, Renan apresenta um terceiro estado da alma comum à França do fim do século XIX, a saber, o seu aristocratismo intelectual, fruto igualmente das complicações 264 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, préface, p. v. Renan, Dialogues et fragments philosophiques, préface, p. vi. 266 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, préface p. vii. 267 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, pp. vii-viii. 268 CI, Incursões de um extemporâneo § 2. “Ausência absoluta de instinto no senhor Renan que têm por uma só e mesma coisa a ciência e a noblesse. A ciência é essencialmente democrática e anti-oligárquica” (FP 9 [29] do outono de 1887). 265 97 psicológicas ocasionadas pelo encontro ocorrido em seu espírito do elemento masculino que a cultura alemã representa com o elemento feminino de sua herança bretã. 269 Já em La réforme intellectuelle et morale, pode-se encontrar uma vigorosa argumentação dirigida contra o próprio princípio iluminista da democracia, ou seja, a igualdade natural. 270 Mas é nos Dialogues philosophiques, especificamente na parte intitulada “Rêves”, que Renan apresenta um plano global para a escravidão da maioria por uma elite de pensadores. Uma das causas essenciais de uma tal doutrina, segundo o exame de Bourget, “la plus inconsciente sans doute, mais non pas la moins active”, é, afirma o crítico, o orgulho que Renan deposita na noção de hereditariedade. Renan “ne serait pas un savant de notre époque, s’il ne croyait pas au dogme de la sélection et à la primauté des races qui ont su durer. C’est dire qu’il constate avec une légitime fierté les titres de cette famille celtique dont il est le fils. Il signale l’inhabileté de ses congénères à la conquête de l’argent, il admire leur idéalisme invincible, leur héroïsme doux, leur antiquité ininterrompue .” 271 Bourget argumenta que a democracia parece ser, à primeira vista, o ambiente mais favorável ao talento, porque ela oferece todo tipo de oportunidade para aquele que se esforça. Porém, precisamente por isso, ela acaba acirrando de forma sempre mais exagerada a lei da concorrência, conduzindo cada vez mais à especialização, dando origem, assim, a uma casta de homens superiores. Todavia, como a democracia é fundada sob o princípio errôneo da igualdade, sua conseqüência lógica a conduz inevitavelmente a estabelecer o sufrágio universal como sua forma apropriada de representação política. Contudo, “Il ne faut pas une grande vigueur d’analyse pour reconnaître qu’inévitablement aussi le suffrage universel est hostile à l’homme supérieur.” 272 Deste modo, a civilização moderna se vê presa de um grave conflito (a saber, a divergência intrínseca entre democracia e ciência) ocasionado por sua própria condição de existência e que, mais cedo ou mais tarde, tenderá a eclodir de forma alarmante em seu interior. “Il est certain que la première tend de plus en plus à niveler, tandis que la seconde tend de plus en plus à créer des différences. ‘Savoir, 269 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 54. Renan, Ernest. La réforme intellectuelle et morale. In: La réforme intellectuelle et morale. Paris : Michel Lévy Frères, 1875. 271 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 87. 272 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 89. 270 98 c’est pouvoir,’ disait le philosophe de l’induction.” 273 Segundo Bourget, a solução encontrada por Renan para esse conflito entre democracia e ciência, com a democracia apostando na igualdade e na educação igual para todos (o que, para Renan, é impossível, pois as raças e os talentos de espírito são desiguais), e a ciência tendendo a criar uma parcela abastada de espíritos instruídos e elevados, está na previsão de que, com a propagação e consolidação da teoria evolucionista, a sociedade passará a ver cada vez mais a si mesma como um organismo em que cada parte precisa desempenhar sua função em benefício do bem estar do todo. Entretanto, a reflexão e o juízo de Nietzsche vão contra as observações de Bourget sobre esse sonho aristocrático de Renan, visto que, para o filósofo, não pode haver qualquer conflito entre democracia e ciência, mas sim uma natural associação, visto que a ciência [moderna], para ele, sempre será coisa do populacho, estando irremediavelmente associada com a democracia. 274 Para Nietzsche, a república de savants sonhada por Renan não passa de uma consolação para espíritos fracos: “Ele deseja, com ambição nada pequena, representar um aristocratismo do espírito: mas, ao mesmo tempo, põe-se de joelhos ante a doutrina oposta, o évangile des humbles, e não apenas de joelhos...” 275 Não obstante, para os contemporâneos do filósofo, como já mencionado, esse aristocratismo com nuanças de Renan teria sido levado até suas últimas conseqüências justamente pelo próprio Nietzsche. Em uma carta muito famosa enviada de Nice a George Brandes em 2 de dezembro de 1887, Nietzsche declara: “A expressão ‘radicalismo aristocrático’, que você empregou, é excelente. É, permita-me dizer, a coisa mais inteligente que eu já li a meu respeito”. Todavia, Nietzsche provavelmente não desconfiava que Brandes fez uso da expressão “radicalismo” exatamente como uma forma de acentuar a continuidade e, ao mesmo tempo, a diferença de intensidade entre o aristocratismo de Renan e o de Nietzsche. Referindo-se às declarações feitas por Nietzsche na Segunda Extemporânea a respeito da necessidade de 273 Bourget, Essais de psychologie contemporainem, p. 93. Cf. CI, Incursões de um extemporâneo § 2. 275 CI, Incursões de um extemporâneo § 2. “O cristianismo é a revolta de tudo o que rasteja no chão contra aquilo que tem altura, o evangelho dos “humildes” torna humilhado... [das Evangelium der ‘Niedrigen’ macht niedrig…]” (AC § 43). Tradução modificada. Em PCS: “o evangelho dos ‘pequenos’ torna pequeno”, tradução correta, mas optamos por aproximar o texto de O Anticristo da crítica que Nietzsche faz a Renan. Cf. também EH, O caso Wagner § 1. 274 99 que uma maioria se submeta à tarefa cultural da produção do grande homem, Brandes afirma, em um ensaio escrito em 1889: “So heisst es bei Renan fast gleichlautend : ‘In Summa ist der Zweck der Menschheit die Erzeugung grosser Menschen... nichts als grosse Menschen; die Rettung wird durch grosse Menschen kommen’.” 276 Segundo Brandes, tanto Renan quanto Flaubert “würden Nietzsche’s Grundidee unterschreiben, dass ein Volk der Umweg ist, den die Natur macht, um ein Dutzend grosser Männer hervorzubringen.” 277 Brandes aproxima o Übermensch de Nietzsche do “déva” de Renan; o pensador francês utiliza esse termo sânscrito, que designa deuses ou gênios, para se referir a uma nova espécie de homem que um dia seria desenvolvida por meio da técnica e da manipulação genética, um indivíduo dotado do máximo saber e, portanto, de poder: Nietzsche’s mit vollem Ernst ausgesprochene Zukunfts-phantasien über die Erziehung des Uebermenschen und dessen Er-greifen der Macht auf Erden, haben eine solche Aehnlichkeit mit Renan's halb scherzend, halb skeptisch entworfenen Träumereien von einem neuen Asgaard, einer wirklichen Fabrik von Äsen 278 (Dialogues phil. 117), dass man kaum an einer Beeinflussung zweifeln kann. Nur, dass Renan unter dem überwältigenden Eindruck der Commune in Paris in Dialogform so schrieb, dass Pro und Contra zu Worte kommen, während bei Nietzsche der leichte Traum sich zu einer dogmatischen Ueberzeugung krystallisirt hat. Es verwundert und verletzt daher ein wenig, dass Nietzsche nie andere Aeusserungen als antipathische über Renan vorbringt. Er berührt kaum seine geistes aristokratische Tendenz, aber er verabscheut die Ehrfurcht vor dem Evangelium der Demüthigen, die Renan überall an den Tag legt und die freilich in einem gewissen Streit mit der gehofften Errichtung einer Brutanstalt für Uebermenschen steht. 279 276 Brandes, Georg. „Friedrich Nietzsche: Eine Abhandlung ueber Aristokratischen Radicalismus“. In: Menschen und Werke, Essays. Frankfurt: Rütten & Loening, 1895, pp. 137-224 (p. 151). Brandes, George. Nietzsche: An essay on aristocratic radicalism. London: William Heinemann, 1914: “This is the same formula at which several aristocratic spirits among his contemporaries have arrived. Thus Renan says, almost in the same words : ‘In fine, the object of humanity is the production of great men . . . nothing but great men; salvation will come from great men’” (p. 12). Cf. Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 103. Cf. também, Georg, Brandes. Nietzsche: Essai sur le radicalisme aristocratique. Paris: L’Arche, 2006, pp. 27-28. 277 Brandes, “Eine Abhandlung ueber Aristokratischen Radicalismus”, p. 152. “[…] would have subscribed to Nietzsche’s fundamental idea that a nation is the roundabout way Nature goes in order to produce a dozen great men” (Brandes, An essay on aristocratic radicalism, p. 12). Cf. também: Brandes, Essai sur le radicalisme aristocratique, p. 28. 278 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 117. 279 Brandes, “Eine Abhandlung ueber Aristokratischen Radicalismus”, pp. 182-183. “Nietzsche’s visions, put forth in all seriousness, of the training of the Superman and his assumption of the mastery of the world, bear so strong a resemblance to Renan’s dreams, thrown out half in jest, of a new Asgard, a regular manufactory of AEsir, (Dialogues philosophiques, 117), that we can scarcely doubt the latter’s influence. But what Renan wrote under the overwhelming impression of the Paris Commune, and, moreover, in the form of dialogue, allowing both pro and con. to be heard, has crystallised in Nietzsche into dogmatic conviction. One is 100 Outro contemporâneo de Nietzsche, Jean Bourdeau, também defendeu a proximidade entre as idéias de Renan e a filosofia de Nietzsche: “Les vrais inspirateurs de Nietzsche ont été Schopenhauer et Renan”, diz ele. Bourdeau também identificará o Übermensch com os déva: “L’analogie avec Renan est frappante: même conception essentiellement aristocratique de l’histoire: ‘En somme, la fin de l’humanité, c’est de produire non des masses éclairées, mais quelques grands hommes... Toute civilisation est lœuvre des aristocrates.’ Même rêve de voir un jour se développer au sein de l’humanité une espèce supérieure [...] La déva de Renan, c’est l’Uebermensch de Nietzsche.” 280 Em seus Dialogues philosophiques, Renan exibe como uma “certitude” que a moral deva ser reduzida à submissão do homem aos desígnios da natureza, e que a revolta, a “revolução” contra um estado de coisas visto como engano constitui a imoralidade, o crime por excelência, o único crime 281. O engano, a ilusão é necessária para que a natureza possa cumprir seus objetivos mantendo os homens apegados à vida. O papel do grande homem é de “collaborer à la fraude qui est la base de l’univers ; le plus bel emploi du génie est d’être complice de Dieu”, de ajudar a enganar os indivíduos pelo bem do conjunto, professando aos homens a virtude, mesmo sabendo que eles não tirarão nenhum proveito dela. 282 “La vertu est un amen obstiné, dit aux fins obscures que poursuit la Providence par nous.” 283 Como “probabilités”, Renan postula que o objetivo da natureza pode ser resumido na palavra “conscience”: “Le monde aspire à être de plus en plus; or l’être dans sa plénitude, c’est l’être conscient. Tout l’effort du monde tend à se connaître, à s’aimer, à therefore surprised and hurt to find that Nietzsche never mentions Renan otherwise than grudgingly. He scarcely alludes to the aristocratic quality of his intellect, but he speaks with repugnance of that respect for the gospel of the humble which Renan everywhere discloses, and which is undeniably at variance with his hope of the foundation of a breeding establishment for supermen” (Brandes, An essay on aristocratic radicalism, pp. 36-37). Cf. também: Brandes, Essai sur le radicalisme aristocratique, p. 66. 280 Jean Bourdeau, Les maîtres de la pensée contemporaine, Paris, Alcan, 1904, pp. 129-130. Bordeau foi indicado a Nietzsche por Taine para ser o tradutor do Crepúsculo dos ídolos. Taine informara a Nietzsche que Bordeau era redator do Journal des débats e da Revue des Deux Mondes, Nietzsche, já enlevado pela grande euforia e exaltação que prenunciava a eminente catástrofe turina, referiu-se a Bordeau em diversas cartas como “redator chefe” desses célebres periódicos. Os dois chegaram a trocar cartas nessa ocasião. Cf. Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 81-82 ; Campioni, “Introduzione”, in : Lettere da Torino, pp. 28-29 ; Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Chronik zu Nietzsches Leben (KSA, 15), Turin, Dezember; cartas a Jean Bourdeau de Turim de 17 e 29 de dezembro de 1888, e primeiro de janeiro de 1889. 281 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 42. 282 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 45. 283 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 46. 101 se voir, à s’admirer.”284 Sendo assim, a conscientização do mundo se dá pela realização do ideal: “L’idéal existe; il est éternel; mais il n’est pas encore matériellement réalisé; il le sera un jour.” 285 O ideal se realizará por uma consciência análoga à humana, mas infinitamente superior. E a desigualdade das raças é o que, secretamente, move a humanidade, conferindo-lhe um objetivo a perseguir: o desenvolvimento dessa consciência superior. 286 A obra universal de tudo aquilo que vive é tornar Deus perfeito (realizar o ideal). Essa obra era, até então, realizada cegamente, mas a razão um dia assumirá para si esse grande trabalho e “après avoir organisé l’humanité, organisera Dieu”. 287 Um pequeno número de sages levará esse empreendimento adiante, enganando a massa por meio de artifícios e mecanismos cuja real natureza é conhecida apenas por essa elite. A arte serve apenas provisoriamente para o cumprimento desse objetivo, sua tendência é desaparecer; e mesmo a virtude será, por fim, suprimida pelo saber: “Le progrès de l’humanité n’est en aucune façon un progrès esthétique. La nature atteint son but par la vertu, par l’art, par la science, surtout par la science. Il viendra peut-être un temps (nous voyons poindre ce jour) où un grand artiste, un homme vertueux seront choses vieillies, presque inutiles; le savant, au contraire, vaudra toujours de plus en plus.” 288 Já em seus “Rêves”, Renan entrevê um dia, concebido por sua imaginação, em que a história do ser se passará para além da humanidade, um dia em que o universo terá um objetivo superior à humanidade. No entanto, a solução democrática jamais poderá servir para a realização desse sonho: “La démocratie sectaire et jalouse est même ce qu’on peut appeler l’erreur théologique par excellence, puisque le but poursuivi par le monde, loin d’être l’aplanissement des sommités, doit être au contraire de créer des dieux, des êtres supérieurs, que le reste des êtres conscients adorera et servira, heureux de les servir.” 289 Dessa maneira, a humanidade não possui um fim em si mesma: “En somme, la fin de l’humanité, c’est de produire des grands hommes; le grand œuvre s’accomplira par la 284 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 58. Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 78. 286 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 65. 287 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 78-79. 288 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 84. 289 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 104. 285 102 science, non par la démocratie.” 290 Quanto à felicidade individual, Renan esclarece que, na verdade, as pessoas do povo dispõem de mil prazeres e de mil compensações que os sábios se vêem impedidos de desfrutarem. O évangile des humbles que Nietzsche escarnece é aquele que deseja oferecer aos pequenos todo tipo de compensação para o alegre sacrifício em nome do ideal: “Ce monde supérieur que nous rêvons pour la réalisation de la raison pure n’aurait pas de femmes. La femme resterait la récompense des humbles, pour qu’ils eussent un motif de vivre. Ils ne seraient pas les plus à plaindre.” 291 E, finalmente, chegará o dia em que a humanidade criará Deus, em que o ideal será concretizado num ser que ultrapassará em todas as medidas o homem: Une large application des découvertes de la physiologie et du principe de sélection pourrait amener la création d’une race supérieure, ayant son droit de gouverner, non-seulement dans sa science, mais dans la supériorité même de son sang, de son cerveau et de ses nerfs. Ce seraient là des espèces de dieux ou dévas, êtres décuples en valeur de ce que nous sommes, qui pourraient être viables dans des milieux artificiels.292 Assim, esse sábio-sacerdote conclama os humildes para se oferecerem ao altar do ideal: “Consolons-nous, pauvres victimes; un Dieu se fait avec nos pleurs.” 293 Deste modo, podemos compreender melhor porque Nietzsche sente necessidade de aprofundar sua confrontação com as idéias de Renan. Fazia-se necessário marcar com nitidez a distância que ele toma das concepções defendidas por Renan, de seus “sonhos”, a fim de não se ver confundido com ele. Esse era um medo justificável na época, tendo em vista a importância do pensamento de Renan para as discussões filosóficas de então. Contudo, a oposição é aqui irredutível, em particular entre a concepção filosófica do “além do homem” e aquela do “déva” de Renan. A ascese e a consagração absoluta dos savants (que governarão por meio da ilusão estética e moral) e dos “dévas” (que exercerão seu poder tiranicamente por meio da ameaça de um “inferno efetivo”) ao “deus desconhecido” exprimem somente a 290 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 103. Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 104. 292 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 116. “Un âge se conçoit où la production d’un déva serait évaluée à un certain capital, représentant les appareils chers, les actions lentes, les sélections laborieuses, l’éducation compliquée et la conservation pénible d’un pareil être contre nature. Une fabrique d’Ases, un Asgaard, pourra être reconstitué au centre de l'Asie” (Renan, Dialogues et fragments philosophiques, pp. 116-117). 293 Renan, Dialogues et fragments philosophiques, p. 143. 291 103 profunda fidelidade de Renan aos valores cristãos, inconciliáveis com uma posição aristocrática efetivamente radical. 294 Ademais, a pressuposição de que a ciência é superior à arte, de que o verdadeiro espírito aristocrático deveria ser procurado entre os savants é uma concepção diametralmente oposta à noção de um aristocratismo criador de valores defendido por Nietzsche. Nietzsche denuncia a astúcia sacerdotal de Renan em querer seduzir para a abnegação e para o sacrifício: “Renan tem sua inventividade na sedução, exatamente como um jesuíta e um confessor; à sua espirituosidade não falta o amplo sorriso de padre – como todo sacerdote, ele se torna perigoso apenas quando ama. Ninguém o iguala nisso, em adorar de uma maneira mortalmente perigosa...” 295 Essa busca infinita de Renan pelo ideal e seu diletantismo “demasiado adocicado e ondulante [zu süsslich und undulatorisch]” 296 são vistos por Nietzsche cada vez mais como sintomas da mais vasta doença da vontade que caracteriza a época moderna: “Esse espírito de Renan, um espírito que enfraquece o nervo, é uma fatalidade mais para a pobre, doente França, doente da vontade –”. 297 Bourget também faz uso de termos parecidos para se referir à abundância das fórmulas atenuantes em Renan, sua preocupação meticulosa com as nuanças, que atestam uma certa incapacidade para afirmar: “serait terrible si, à l’incapacité d’affirmer, correspondait l’incapacité de vouloir.” 298 Embora, para Bourget, esse não seja o caso de Renan, para Nietzsche, ao contrário, é exatamente disso que aqui se trata. 294 “Escarnecer do instinto defeituoso de Renan, que amalgama noblesse e ciência. A science et la démocracie pertencem-se mutuamente (a despeito do que afirma o senhor Renan), bem como a arte e a boa sociedade” (FP 9 [20] do outono de 1887). Esse tema também está presente em Bérard-Varagnac, Émile, Portraits littéraires, pp. 280-282. 295 CI, Incursões de um extemporâneo § 2. Em um preparatório, há uma variação dessa comparação entre Renan e os que são perigosos quando amam, dessa vez, com a mulher representando estes últimos: “Renan, que tem em comum com as mulheres, o fato de não se tornar mortalmente perigoso a não ser quando ama; ele que jamais abraça um velho ídolo do ideal sem pequenos pensamentos como pano de fundo, sempre curioso em ver se aquilo que ele abraça, já não vacila...” (FP 14 [41] da primavera de 1888). Segundo Chaves, essa mudança não pode ser considerada simplesmente a substituição de um termo pelo outro. No contexto dos últimos escritos de Nietzsche, haverá uma íntima correlação entre a mulher, o sacerdote, amor e sedução, essa relação atinge sua culminância na análise do tipo psicológico de Wagner em o Caso Wagner. Cf. Chaves, “Das Tragische, das Genie, der Held: Nietzsches Auseinandersetzung mit Renan in der Götzendämmerung”, p. 256. 296 Carta a Resa Von Schirnhofer, de Paris, 11 de março de 1885. 297 CI, Incursões de um extemporâneo § 2. 298 Bourget, Essais de psychologie contemporaine, pp. 67-68. 104 1.8 – Renan contra Strauss Na introdução de sua Vie de Jésus 299 , Renan se refere a Strauss de maneira pouco favorável. Para ele, apesar de Strauss ter feito importantes e inegáveis avanços na crítica dos textos evangélicos, o historiador alemão não pôde se desvencilhar do seu ranço teológico. Strauss teria, então, ficado preso a uma análise voltada excessivamente para questionamentos que estavam limitados apenas a denunciar a incongruência dos discursos da tradição eclesiástica. Uma atitude que Renan buscará superar, almejando alcançar um ponto de vista mais independente e mais amplo do que uma mera polêmica 300 com os dogmas cristãos. Portanto, Renan informa que sua Vie de Jésus não deixa de ser uma réplica aos equívocos cometidos na Das Leben Jesu de Strauss. Como afirma o historiador francês: La critique de detáil des textes évangéliques, en particulier, a été faite par M. Strauss d’une manière qui laisse peu à désirer. Bien que M. Strauss se soit trompé d’abord dans sa théorie sur la redáction des Évangiles, et que son livre ait, selon moi, le tort de se tenir beaucoup trop sur le terrain théologique et trop peu sur le terrain historique, il est indispensable, pour se rende compte des motifs qui m’ont guidé dans une foule de minuties, de suivre la discussion toujours judicieuse, quoique parfois un peu subtile, du livre si bien traduit par mon savant confrère M Littré. 301 Porém, foi em um artigo intitulado Les historiens critiques de Jésus, publicado pela primeira vez no periódico La liberté de penser, em 1846, quinze anos antes da publicação de Vie de Jésus, que Renan criticou de forma mais detida o trabalho de Strauss, já anunciando a publicação de uma obra que seria, segundo ele, autenticamente científica e histórica, ou seja, sua Vie de Jésus, em oposição ao livro de Strauss, que teria permanecido enredado ao domínio teológico. Embora seu artigo tenha como título Les historiens critiques de Jésus, o principal alvo de Renan é mesmo Strauss. Renan se refere muito brevemente a Eichhorn como o primeiro a tentar extrair dos relatos bíblicos uma 299 Cf. Renan, Ernest. Vie de Jésus. In: Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 1, 1995. 300 “Qui ne voit, d’ailleurs, que, si mon but étaint de faire guerre aux cultes établis, je devrais procéder d’une autre manière, m’attacher uniquement à montrer les impossibilités, les contradictions de textes et des dogmes tenus pour sacrés? Cette besogne fastidieuse a été-faite mille fois et très bien faite” (Renan, Les Apôtres, introduction, p. 328). 301 Renan, Vie de Jésus, Introduction, pp. 25-26. 105 interpretação histórica; a Dr. Paulus como o primeiro a lançar as bases para uma história crítica de Jesus, a Gabler, Bauer, Vater e De Wette como precursores da interpretação mítica da Bíblia (remetendo o leitor à introdução de Das Leben Jesu de Strauss para um estudo mais completo), até chegar a Strauss como aquele que sucedeu estes últimos na explicação mítica dos Evangelhos, porém, não mais de forma eclética, e sim absoluta. 302 Contudo, é interessante que Renan tenha escolhido Strauss como seu principal interlocutor na investigação histórica sobre a vida de Jesus e que, ao mesmo tempo, insista em apresentá-lo não como historiador, mas meramente como teólogo e discípulo de Hegel: De tous les penseurs de l’Allemagne, Strauss est peut-être le plus mal apprécié en France. La plupart ne le connaissent que par les injures de ses adversaires et pour avoir entendu dire qu’un extravagant de ce nom a nié l’existence du Christ; car c’est en des termes aussi absurdes que l’on a résumé la Vie de Jésus [de Strauss]. D’un autre côté, ceux qui envisageraient Strauss comme un historien dégagé de toute préoccupation étrangère à la science, se méprendraient sur son véritable caractère. Strauss, il faut le dire, quelque surprenante que puisse paraître cette double assertion, Strauss est à la fois un théologien (pour plusieurs un théologien timide) et un philosophe de l’école de Hegel.303 No prefácio de Études d’histoire religieuse, de Renan, livro que reúne diversos artigos sobre história das religiões, incluindo Les historiens critiques de Jésus, o historiador francês rebate as acusações de que o seu trabalho tem como principal objetivo a polêmica: “Je proteste donc une fois pour toutes contre la fausse interprétation qu’on donnerait à mes travaux, si l’on prenait comme des œuvres de polémique les divers essais sur l’histoire des religions que j’ai publiés, ou que je pourrai publier à l’avenir.” 304 Fazendo uma provável alusão a Strauss, Renan reconhece que, se forem vistos como obras polêmicas, seus ensaios não dão provas de qualquer talento, e argumenta que a polêmica é totalmente alheia ao espírito científico: “La polémique exige une stratégie à laquelle je suis étranger: il faut savoir choisir le côté faible de ses adversaires, s’y tenir, ne jamais toucher aux questions incertaines, se garder de toute concession, c’est-à-dire renoncer à ce qui fait l’essence même de l’esprit scientifique. Telle n’est pas ma méthode.” 305 Expondo o seu método, que 302 Cf. Renan, Les historiens critiques de Jésus, pp. 153-154. Renan, Les historiens critiques de Jésus, pp. 154-155. 304 Renan, Études d’histoire religieuse, Préface, p. 11. 305 Renan, Études d’histoire religieuse, Préface, p. 11. 303 106 é aplicar as leis psicológicas às almas dos homens do passado em relação ao meio no qual estavam inseridas, Renan já expõe como condição de uma história de caráter científico a apreensão das nuanças que a polêmica tende a ignorar: “L’histoire de l’humanité est pour moi un vaste ensemble où tout est essentiellement inégal et divers, mais où tout est du même ordre, sort des mêmes causes, obéit aux mêmes lois. Ces lois, je les recherche sans autre intention que de découvrir l’exacte nuance de ce qui est.” 306 Novamente fazendo uma provável crítica velada a Strauss, Renan defende que a polêmica não pertence ao domínio histórico, e que, além disso, ainda que a mesma seja necessária, ela já teria sido suficientemente representada por talentos bem mais elevados, como Voltaire: “A cette polémique, dont je suis loin de contester la nécessité, mais qui n’est ni dans mes goûts ni dans mes aptitudes. Voltaire suffit. On ne peut être à la fois bon controversiste et bon historien.” 307 Renan, em uma possível referência à fama que Strauss desfrutava por conta de Das Leben Jesu, também diz que a polêmica é própria não do cientista, mas sim do escritor que almeja o reconhecimento popular. 308 Em Les historiens critiques de Jésus, Renan buscou denunciar o caráter não científico da obra de Strauss. Segundo ele, o livro do historiador alemão deve ser considerado como pertencente quase que exclusivamente ao domínio teológico: “Oui, il ne faut jamais l’oublier quand on lit la Vie de Jésus, ce livre est un livre de théologie, un livre d’exégèse sacrée, un livre du même ordre que ceux de Michaëhs, Eichhorn, Paulus, qui prétendaient bien ne pas sortir du monde théologique.”309 Longe de poder ser considerada uma obra produzida por um tipo de Anticristo, afirma Renan, Das Leben Jesu, de Strauss, só pode ser plenamente compreendida quando se identifica sua verdadeira natureza, isto é, como sendo o trabalho típico de um teólogo, com apenas um diferencial, que esse teólogo, 306 Renan, Études d’histoire religieuse, Préface, p. 12. Ibidem. A referência a Voltaire pode ser uma ironia com relação a uma possível pretensão de Strauss em tentar ser um “Voltaire da Alemanha”. Renan volta a utilizar o mesmo tom irônico em sua primeira carta a Strauss: “La France est nécessaire comme protestation contre le pédantisme, le dogmatisme, le rigorisme étroit. Vous qui avez si bien compris Voltaire devez comprendre cela. Cette légèreté qu’on nous reproche est au fond sérieuse et honnête” (Lettre a M. Strauss, p. 178). Strauss chegou a publicar o livro: Voltaire: Sechs Vorträge. Leipzig: Hirzel, 1872. 308 “La popularité, je le sais, s’attache de préférence aux écrivains qui, au lieu de poursuivre la forme la plus élevée de la vérité, s’appliquent à lutter contre les opinions de leur temps; mais, par un juste retour, ils n’ont plus de valeur dès que l’opinion qu’ils ont combattue a cessé d’être” (Renan, Études d’histoire religieuse, Préface, p. 13). 309 Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 155. 307 107 por mais paradoxal que possa parecer, é um discípulo de Hegel: “La Vie de Jésus n’est au fond que la philosophie du chef de l’école allemande contemporaine appliquée aux récits évangéliques; la christologie du théologien n’est que la traduction symbolique des thèses abstraites du philosophe.” 310 A acusação de que Strauss não passa de um teólogo hegeliano tem como principal objetivo desmascarar sua interpretação da figura de Cristo como mera abstração sem qualquer fundamento histórico: “Ce Christ à priori, on le devine bien, n’est point encore le Christ historique, celui qui a porté le nom de Jésus. C’est l’esprit humain, et l’esprit humain seul, qui réunit tous les attributs du Christ hégélien.” 311 Segundo Renan, Strauss parte desde o início de sua investigação do princípio de que nunca poderá haver um único indivíduo que contenha exclusivamente em si todos os maiores atributos da essência divina312 e humana a um só tempo, pois esse não seria o modo pelo qual a idéia se realiza. Ora, é principalmente essa tese de Strauss que provoca uma verdadeira indignação por parte de Renan e contra a qual ele se insurge com tal virulência no artigo Les historiens critiques de Jésus. Para Renan, seria quase uma injúria supor que o Jesus histórico não é o principal responsável pela “revolução” que carrega o seu nome : “Nul homme n’ayant eu et nul homme ne devant avoir un sentiment plus vif de son identité avec le Père céleste, il ne sera jamais possible de s’élever au-dessus de lui en matière de religion, quelques progrès que l’on fasse dans les autres branches de la culture intellectuelle.” 313 E, para explicar esse caráter extraordináro de Jesus, Renan já lança mão de um dos dois conceitos fundamentais que ele utilizará em sua Vie de Jésus para elaborar seu retrato do Jesus histórico, a saber, o conceito de “gênio”: “A la tête de tous les grands actes de l’humanité se trouvent des individus doués de hautes facultés, que l’on désigne d’ordinaire par le titre de génies, mais qui, lorsqu’il s’agit de créations religieuses, méritent un nom plus saint. Jésus fut de ce nombre.” A vida de Jesus não foi, para Renan, um mito elaborado por uma tradição, uma idéia já previamente em gestação pelo espírito coletivo, tal vida representa a realização inaudita operada por um indivíduo extraordinário, fundador de um culto puro. 310 Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 157. Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 158. 312 Que Jesus contenha atributos divinos é uma opinião que Renan não irá conservar em sua Vie de Jésus. 313 Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 160. 311 108 Segundo Renan, os mal-entendidos contidos na obra de Strauss também se explicam em grande parte pela escolha de seu método abstrato: “Manquant du sentiment de l’histoire et du fait, Strauss ne sort jamais des questions de mythe et de symbole: on dirait que pour lui les événements primitifs du christianisme se sont passés en dehors de l’existence réelle et de la nature.” 314 Renan argumenta que a identificação das contradições nos Evangelhos, método que serve de base para a explicação da vida de Jesus do ponto de vista mítico feito por Strauss, não apresenta um real motivo para que esses relatos possam ser tidos como desprovidos de caráter histórico. Somente alguém imbuído pelos princípios do sistema hegeliano, defende Renan, poderia chegar a uma tal conclusão: um verdadeiro historiador não seria tão parcial e taxativo. Exigindo novamente, por conta disso, que o historiador se atenha as percepções das nuanças, Renan afirma: Strauss a fort bien vu que le tissu des Évangiles prête largement à la critique, et que tous les récits des évangélistes ne peuvent être acceptés comme certains (les contradictions des quatre textes en sont la preuve évidente). Un historien conclurait-il de là que les récits évangéliques ne correspondent à aucune réalité? Non certes. Mais Strauss, dominé par ses idées théologiques et philosophiques, Strauss, exclusivement préoccupé de la nécessité de substituer un système d’exégèse à un autre, ne tient pas compte des nuances. 315 De acordo com Renan, para a compreensão da verdadeira natureza dos relatos evangélicos, é necessário que o historiador entenda que a principal característica de todas as histórias primitivas e lendas religiosas é apresentar o real e o ideal misturados em diferentes proporções, e que sua tarefa é justamente a de dar conta das nuanças desse tipo de relato.316 Em épocas e lugares em que o mito já não exercia tanta força, como na Palestina de Jesus, o maravilhoso não representa exatamente uma criação pura do espírito humano, e sim muito mais uma maneira específica de se representar fatos reais. 317 Portanto, a atribuição de mito, plenamente adequada quando aplicada às narrativas religiosas da Índia e da Grécia, é inexata quando aplicada aos relatos evangélicos, elaborados em uma época bem mais avançada e dotada de um grau de reflexão muito maior. Renan prefere, assim, classificar os Evangelhos como relatos lendários, ou seja, relatos que narram eventos factuais envoltos 314 Renan, Les historiens critiques de Jésus, pp. 161-162. Ibidem. 316 Cf. Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 162. 317 Cf. Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 163. 315 109 em elementos fantásticos. De tal modo, Renan acredita ser plenamente possível restituir a Jesus o seu papel decisivo na fundação do cristianismo: “Je préférerais pour ma part les mots de légendes et de récits légendaires, qui, en faisant une large part au travail de l’opinion, laissent subsister dans son entier l’action et le rôle personnel de Jésus.” 318 A teoria de Strauss de que o mito de Jesus teve como fonte principal as idéias que a tradição judaica havia elaborado a respeito do Messias representa, para Renan, o problema mais grave do trabalho do historiador alemão. Ainda que Strauss nunca tenha negado a existência histórica de Jesus e ainda que ele tenha afirmado que Jesus causou de fato uma forte impressão para ser tido como Messias, Renan suspeita que, para Strauss, o cristianismo bem que poderia ter surgido sem a presença de Jesus no mundo: “Il semble en le lisant que la révolution religieuse qui porte le nom du Christ se soit faite sans le Christ.” 319 A principal censura que Renan dirige a Strauss é a de que ele não se preocupou em explicar como Jesus pôde vir a ser considerado o Messias. Ora, para o historiador francês, foram unicamente as particularidades individuais de Jesus que modificaram as idéias que se tinham sobre o Messias, tais idéias não puderam, portanto, ser tão facilmente transpostas para a vida de Jesus como faz parecer Strauss. Assim, a interpretação de Strauss, declara Renan, malgrado o fato de se apresentar como uma afronta aos dogmas sagrados, deixa, contudo, uma vasta abertura para o mistério, visto que, embora negando todo tipo de milagre e ordem sobrenatural, conserva ainda como pressuposto um tipo de milagre psicológico, ou seja, o de que um mero Galileu pudesse, após uma frustrante morte na cruz, insuflar em seus discípulos a fé de que ele de fato era o Messias aguardado. 320 A única maneira de explicar, de acordo com Renan, a aparição espontânea de uma nova doutrina, o élan que a mesma erradia, o espírito de sacrifício e devoção que ela infunde, é pela compreensão de que somente por meio da ação de uma individualidade poderosa isso pode ser produzido, e não por uma idéia abstrata. Renan não nega que a utilização dos relatos evangélicos como fonte de uma investigação histórica apresente inúmeras dificuldades. Assim como para Strauss, os relatos 318 Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 164. “C’est donc le nom de légendes et non celui de mythes qu’il convient d’assigner aux récits des premières origines chrétiennes; l’idéal évangélique fut le résultat d’une transfiguration et non d’une création” (Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 178). 319 Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 167. 320 Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 180. 110 evangélicos não são tidos por Renan como fraudes ou ficções premeditadas, conscientes: “La légende naissait d’elle-même et sans préméditation mensongère” 321 . Porém, afirma o historiador francês, assim que a lenda nasce, assim que ela é aceita, ela passa imediatamente a ganhar ares cada vez mais fabulosos. Não obstante, explica ele, devido ao breve intervalo de tempo ocorrido entre o nascimento das lendas narradas nos Evangelhos e a sua redação, ainda é possível estabelecer no interior das mesmas a distinção entre fato e ficção. Para tanto, basta reconduzir as causas que explicam a aparição de um homem tal como Jesus às leis permanentes da consciência humana, sem procurá-las para além da humanidade, mas sim no seio do mundo moral. 322 Para Renan, é necessário sem dúvida reconhecer a existência em torno da vida de Jesus de um trabalho lendário muito semelhante a qualquer poema que tem como objetivo narrar os feitos extraordinários dos grandes vultos do passado, porém, e com isso ele lança mão do segundo conceito que ele irá mobilizar em sua reconstrução histórica da figura de Jesus, é igualmente necessário admitir que esse herói ideal cujos feitos são “celebrados” nessas narrativas, possui como modelo um herói real, que de fato deve ter realizado feitos memoráveis: “Il est permis de reconnaître qu’il y a eu sur la vie de Jésus un travail légendaire analogue à celui de tous les poëmes, travail au moyen duquel un héros réel devient un type idéal, sans nier pour cela la haute personnalité du sublime et vraiment divin fondateur de la foi chrétienne.” 323 Anunciando seu futuro trabalho, Renan defende que somente a França poderia oferecer um estudo verdadeiramente histórico sobre a vida de Jesus, uma investigação que de fato se ativesse aos acontecimentos que estruturam a jornada pessoal desse personagem e às causas que explicam o desenvolvimento de seu caráter e de sua doutrina, e não uma elucubração abstrata e desprovida de princípios científicos tal como aquela produzida por Strauss: On peut affirmer que si la France, mieux douée que l’Allemagne du sentiment de la vie pratique et moins portée à substituer en histoire l’action des idées au jeu des passions et des caractères individuels, eût entrepris d’écrire d’une manière scientifique la vie du Christ, elle y eût déployé une méthode plus rigoureuse, et 321 Renan, Les historiens critiques de Jésus, pp. 200-201. Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 208. 323 Renan, Les historiens critiques de Jésus, pp. 210-211. 322 111 qu’en évitant de transporter le problème, comme l’a fait Strauss, dans le domaine de la spéculation abstraite, elle se fût approchée bien plus près de la vérité. 324 Um outro argumento contra Strauss é ainda lançado por Renan em seu ensaio François d’Assise, publicado em outubro de 1866, no Journal des débats, e, posteriormente, incluído no volume Nouvelle études d’histoire religieuse. A figura de Francisco de Assis é utilizada por Renan como o grande indício histórico que desqualifica a interpretação mitológica de Jesus feita por Strauss, ou ainda, como o grande indicativo da realidade histórica de Jesus, percebido e sentido como uma “pessoa”; o acontecimento que atesta, inteira e definitivamente, a possibilidade histórica de que um homem tal como Jesus tenha de fato existido: “François d’Assise a, pour la critique religieuse, un intérêt hors ligne. C’est, après Jésus, l’homme qui a eu la conscience la plus limpide, la naïveté la plus absolue, le sentiment le plus vif de sa relation filiale avec le Père céleste.” 325 Francisco de Assis seria, assim, a prova categórica de que um ideal tão elevado de homem como aquele que Jesus representa seja continuamente possível historicamente. A noção de possibilidade de um Jesus será fundamental para a elaboração do método utilizado por Nietzsche em O Anticristo. Para o filósofo, porém, já não está mais em questão investigar quem de fato foi Jesus, o que ele afirmou, quais dos acontecimentos que estruturam sua trajetória realmente ocorreram, como ocorreram, mas sim buscar identificar um tipo, uma determinada configuração fisio-psicológica sempre possível. O principal, por conseguinte, não é buscar uma figura histórica, descobrir o homem Jesus, o indivíduo, mas sim pensar sua contínua possibilidade psicológica, sua realidade a qualquer tempo, sua presença sempre possível. É assim que Francisco de Assis também surge num momento determinante na seção 29 de O Anticristo, em que o filósofo revela seu objetivo e seu método, marcando nitidamente sua distância com relação a Renan. Para Nietzsche, ainda que os Evangelhos sejam frutos de uma magistral arte da corrupção psicológica, o tipo psicológico do redentor talvez ainda se encontre conservado neles, assim “como o de Francisco de Assis está conservado em suas lendas, apesar de suas lendas”. 324 326 Elemento Renan, Les historiens critiques de Jésus, p. 169. Renan, François d’Assise, p. 325. 326 AC § 29. “Que les Évangiles soient en partie légendaires, c’est ce qui est évident, puisqu’ils sont pleins de miracles et de surnaturel; mais il y a légende et légende. Personne ne doute des principaux traits de la vie de 325 112 fundamental em Vie de Jésus, a realidade histórica de Francisco de Assis é trazida constantemente à tona por Renan como argumento basilar de sua reconstituição da imagem histórica de Jesus. 327 Nietzsche, por outro lado, faz uso de Francisco de Assis não para demonstrar a possibilidade de um fato histórico, mas sim de uma realidade psicológica, de um determinado tipo, de uma certa configuração de vida, para mostrar que a realidade evangélica vivenciada por Jesus “sempre será possível”. 328 Segundo Renan, a mesquinhez do homem do século XIX e suas pequenas virtudes essencialmente céticas não conseguem admitir a existência histórica das grandes figuras do passado, proclamando-as como impossíveis e quiméricas. Para tais espíritos, é como se, no transcurso geral da história, nem ao menos um só grande homem pudesse ter existido. Caso lhe mostrassem a descrição de uma figura que ultrapassasse o nível ao qual estão habituados, eles rapidamente denunciariam seu caráter mítico, pois tendem a crer que todos os homens foram tão baixos quanto eles: “Et pourtant nous avons la preuve que, sauf les circonstances miraculeuses, le caractère réel de François d’Assise répond exactement au portrait qui est resté de lui. François d’Assise a toujours été une des raisons les plus fortes qui m’ont fait croire que Jésus fut à peu près tel que les évangélistes synoptiques nous le dépeignent.” 329 Para Renan, as lendas sobre Francisco de Assis mostram, então, exatamente como um relato anedótico e fabuloso pode ser “mais verdadeiro do que a verdade mesma”, como a glória de uma lenda pode pertencer a apenas um único indivíduo e não a uma tradição, como somente a ação de um homem extraordinário pode preencher os espíritos de seus admiradores com idéias extremamente elevadas, as quais, sem a real existência desse homem, eles nunca poderiam ter alcançado. Em um provável desafio a Strauss, Renan declara : “Ceux qui pensent que le caractère fabuleux d’une biographie suffit pour lui dénier toute valeur historique, devraient soutenir que François d’Assise n’a François d’Assise, quoique le surnaturel s’y rencontre à chaque pas” (Renan, Vie de Jésus, Introduction, p. 30). 327 Por exemplo: “La vie de François d’Assise n’est aussi qu’un tissu de miracles. A-t-on jamais douté cependant de l’existence et du rôle de François d’Assise? Ne disons pas que la gloire de la fondation du christianisme doit revenir à la foule des premiers chrétiens, et non à celui que la légende a déifié. L’inégalité des hommes est bien plus marquée en Orient que chez nous” (Renan, Vie de Jésus, Chap. XXVIII, p. 257). 328 Cf. AC § 39. 329 Renan, François d’Assise, pp. 325-326. 113 jamais existé, qu’il est un mythe créé pour exprimer l’idéal conçu par ses disciples.” 330 Para Renan, portanto, os relatos sobre Francisco de Assis, comprovam a existência de lendas que, sem serem de fato biográficas ou históricas, já que contém elementos sobrenaturais, são retratos extremamente verossímeis. Cabe ao historiador, entretanto, defende Renan, separar do maravilhoso o dado concreto e anedótico, que, materializando a idéia, concentra em um fato particular o traço geral do caráter de um homem, tendo em vista que esse traço geral, durante o transcurso de toda uma vida, tende a se mostrar naturalmente esparso. 331 Outro importante elemento sobre a relação entre Renan e Strauss está presente nas cartas que eles trocaram entre si durante a guerra Fraco-Prussiana de 1870-1871. Em uma carta privada a Strauss, escrita após a primeira batalha, Renan fez uma breve alusão à guerra. E em 18 de agosto de 1870, Strauss lhe responde em uma carta aberta, publicada na Augsburger Zeitung, expondo-lhe qual seria a justificativa para a Alemanha ir à guerra e propondo-lhe uma troca de idéias sobre as causas e o significado dessa guerra. Renan lhe responde em 16 de setembro de 1870, em uma carta publicada no Jornal des Débats, que também publicou a tradução da carta de Strauss. E, em 2 de outubro de 1870, Strauss publica uma nova carta na Augsburger Zeitung, mas o periódico se recusa a traduzir e publicar a carta de Renan. Devido ao rigor imposto pelos blocos prussianos, Renan só toma conhecimento da resposta de Strauss ao término da guerra, em fevereiro de 1871. E, em 15 de setembro de 1871, Renan publica uma nova carta a Strauss no Jornal des Débats, na qual repreende sutil e ironicamente a atitude de Strauss por este não ter exigido que a Augsburger Zeitung traduzisse e publicasse sua carta e por saber muito bem que ele, Renan, não poderia ler sua carta naquele estágio do combate. Outro motivo de censura por parte de Renan foi a atitude tomada por Strauss de fazer uma tradução da primeira carta do historiador francês e publicá-la em um livro, no qual também reuniu suas duas cartas endereçadas ao colega, sem o consentimento deste. 332 A posição defendida por Strauss em sua primeira carta a Renan é a de um autêntico filisteu da cultura, como diria Nietzsche, defendendo, grosso modo, que a supremacia 330 Renan, François d’Assise, p. 328. Ibidem. 332 Cf. Strauss, David. Krieg und Friede: zwei Brief an Ernst Renan. Leipzig: G. Hirzel, 1870. 331 114 alemã na guerra comprovava sua superioridade cultural. 333 Renan, por sua vez, tentou argumentar que quaisquer que fossem os defeitos do governo da França, a arrogância prussiana, sua confiança absoluta no direito dos mais fortes, constituiria a verdadeira causa da guerra. Sobre a questão da Alsácia, Renan defende que a idéia de nacionalidade não deve ser confundida com a etnografia, por mais que a Alsácia estivesse mais próxima da “raça” germânica, isso não a tornava menos francesa, e a civilização mesma só teria a ganhar com uma tal anomalia, dada a riqueza cultural capaz de ser produzida por conta dessa particularidade. Renan aconselha Strauss, de uma maneira incrivelmente semelhante ao que vai defender Nietzsche em sua primeira Extemporânea, a não confundir o sucesso de uma luta armada com um “sucesso” na esfera cultural, ressaltando a grande oposição que há entre a filosofia alemã e a política do Estado prussiano, alegando que, na verdade, é sempre a cultura que sai perdendo em qualquer guerra: “Le royaume de Dieu [isto é, o ideal] ne connaît ni vainqueurs ni vaincus; il consiste dans les joies du cœur, de l’esprit et de l’imagination, que le vaincu goûte plus que le vainqueur, s’il est plus élevé moralement et s’il a plus d’esprit.” 334 1.9 – Vie de Jésus Enquanto Strauss ocupa todo o primeiro volume de sua obra com a análise dos relatos que cercam a história da anunciação, concepção, genealogia, parentesco com João Batista, natividade, infância e juventude de Jesus, Renan dedica apenas um brevíssimo capítulo de sua Vie de Jésus à infância e juventude de Jesus, relegando todas as circunstâncias fantásticas de seu nascimento à esfera sobrenatural, desprovida de veracidade histórica, e, portanto, parece anuir tacitamente com os resultados obtidos por Strauss, apesar de sempre evitar o termo “mito” para designar qualquer evento sobrenatural que cerca a vida de Jesus. 333 Cf. Strauss, David. “Letter to Ernest Renan”. In: Letters on the war between Germany and France. London: Trübner, 1871. É de se supor, portanto, que Nietzsche tenha tido contato com essa correspondência entre Strauss e Renan, o que reforça a importância de Strauss como alvo ideal de seu “primeiro ataque (1873)” (cf. EH, As extemporâneas § 1) à cultura (Bildung) alemã. 334 Renan, Lettre a M. Strauss, p. 185. 115 1.9.1 – Crítica das fontes Em sua Vie de Jésus, Renan faz questão de salientar as dificuldades de se reconstituir um quadro histórico sobre o nascimento do cristianismo devido à escassez de documentos confiáveis. O historiador francês admite, pois, que os textos evangélicos não são documentos históricos no sentido mais estrito, isso porque, segundo ele, as primeiras comunidades cristãs, que os redigiram, tinham uma concepção de mundo inteiramente única: acreditavam que o mundo e todas as coisas estavam prestes a acabar, que Jesus retornaria para julgar os homens e que toda provisão era vã, inútil e incrédula. Registrar com minúcia e extremo cuidado os episódios da vida de Jesus e os seus ensinamentos era algo que não preocupava de modo algum os primeiros cristãos; esse seria também o motivo dos relatos evangélicos mais antigos terem sido redigidos somente há cerca de 70 anos depois dos eventos narrados. 335 Esses textos eram, pelo contrário, tidos na mais baixa estima por aqueles que guardavam na memória a imagem viva do mestre ou por aqueles que, apesar de nunca o terem visto, poderiam obter diretamente dos discípulos e dos demais seguidores de Jesus o conhecimento dos seus ensinamentos, e isso não só porque os textos evangélicos não eram para eles nítidos o suficiente, mas também justamente porque sua existência denunciava uma preocupação irrelevante com o futuro. Para Renan, portanto, os Evangelhos devem ser tratados como documentos lendários, em contraposição a Strauss, que os considerava como narrativas mitológicas. 336 Todos os Evangelhos foram escritos por razões muito específicas, geralmente por motivos políticos e partidaristas. Renan verifica que cada um dos três Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) e o Evangelho de João apresentam interesses bem particulares em seus registros sobre a existência de Jesus, respondendo somente a essas necessidades em suas narrativas e não a um retrato fiel dos acontecimentos. Outro aspecto apontado por Renan que minimiza o valor estritamente histórico dos Evangelhos é a presença constante de lendas (sobre anjos, demônios, fantasmas, sobre a árvore genealógica de Jesus, sobre a história e o local de seu nascimento, etc) e de relatos sobrenaturais (os 335 Cf. FP 11 [382] novembro de 1887 – março de 1888. “Ces sortes de documents, à demi historiques, à demi légendaires, ne peuvent être pris ni comme des légendes, ni comme de l’histoire. Presque tout y est faux dans le détail, et, néanmoins, il est permis d’en induire de précieuses vérites” (Renan, Les Apôtres, p. 322). 336 116 milagres de Jesus, eventos extraordinários no seu batismo e na sua morte, etc). Todavia, a despeito de todos esses fatores que depõem contra uma análise dos Evangelhos como documentos autenticamente históricos, Renan crê ser impossível reconstituir a origem do cristianismo sem recorrer aos mesmos. Dessa forma, contrapondo-se a Strauss, Renan não se considera um crítico radical no que diz respeito à veracidade histórica que pode vir a ser encontrada mediante o estudo dos textos bíblicos. Segundo ele, apesar das grotescas fabulações misturadas aos relatos evangélicos e dos motivos particulares por que os mesmos foram redigidos, é possível, com muita atenção e com uma leitura filológica suficientemente acurada, depurar um modelo autenticamente histórico do plano de fundo dos mesmos. Dessa forma, Renan explica no prefácio a 13º edição de Vie de Jésus: “Loin d’être accusé de scepticisme, je dois être rangé parmi les critiques modérés, puisque, au lieu de rejeter en bloc des documents affaiblis par tant d’alliage, j’essaye d’en tirer quelque chose d’historique par de délicates approximations.” 337 As aproximações das quais Renan se refere devem ser feitas entre os raros e praticamente indubitáveis dados sobre a vida de Jesus contidos em relatos de historiadores romanos e judaicos do primeiro século depois de Cristo e em vestígios arqueológicos, com os relatos dos quatro Evangelhos canônicos, de alguns evangelhos apócrifos e de diversos livros apocalípticos próximos à época de Jesus, e, por outro lado, entre as narrativas dos quatro evangelhos entre si. Segundo Renan, mesmo com a reunião de todos esses documentos, o único parecer estritamente histórico e passível de comprovação sobre a vida de Jesus pode ser posto em pouquíssimas linhas, a saber: Il a existé. Il était de Nazareth en Galilée. Il prêcha avec charme et laissa dans la mémoire de ses disciples des aphorismes qui s’y gravèrent profondément. Les deux principaux de ses disciples furent Céphas et Jean, fils de Zébédée. Il excita la haine des juifs orthodoxes, qui parvinrent à le faire mettre à mort par Pontius Pilatus, alors procurateur de Judée. Il fut crucifié hors de la porte de la ville. On crut peu après qu’il était ressuscité. 338 Fora tais certezas, nada mais pode, segundo Renan, ser dito com a mais absoluta segurança acerca da vida e da doutrina de Jesus de Nazaré. Tudo o que resta são os relatos 337 338 Renan, Vie de Jésus, Préface de la treizième édition, p. 6. Renan, Vie de Jésus, Préface, p. 13. 117 duvidosos, contraditórios e ambíguos dos três Evangelhos sinópticos e de João, pois, de acordo com o historiador, os apócrifos são menos dignos ainda de crédito, visto que neles abundam relatos lendários e miraculosos, e, por trás de cada linha, pode-se entrever o interesse político e partidarista dos sectários que os escreveram, muitos deles com o principal intuito de denegrir a imagem de Jesus e de seus seguidores. Por conseguinte, a única saída é procurar desvendar nos Evangelhos aquilo que pode ser considerado o mais provável sobre os episódios da vida de Jesus e sobre os seus ensinamentos mediante a elaboração de inúmeras hipóteses, porém, a certeza dificilmente pode ser dada aqui. Como esclarece Renan: Por moi, je pense qu’en de telles occasions il est permis de faire des conjectures, à condition de les proposer pour ce qu’elles sont. Les textes, n’étant pas historiques, ne donnent pas la certitude; mais ils donnent quelque chose. Il ne faut pas les suivre avec une confiance aveugle; il ne faut pas se priver de leur témoignage avec un injuste dédain. Il faut tâcher de deviner ce qu’ils cachent, sans jamais être absolument sûr de l’avoir trouvé. 339 Além disso, Renan assevera que para se levar a cabo uma reconstituição de quem foi Jesus a partir dos quatro Evangelhos, é imprescindível atentar, outrossim, para a especificidade de cada um deles, porquanto os mesmos foram redigidos em épocas diferentes, por pessoas com convicções distintas, e por motivos e sob condições próprias a cada um deles. Deste modo, segundo Renan, pode-se dizer que, de modo geral: o Evangelho de Mateus é o mais autorizado naquilo que diz respeito aos discursos de Jesus; o Evangelho de Marcos narra com mais precisão vários episódios da vida pública de Jesus; o Evangelho de Lucas une os dois primeiros numa única narrativa preenchendo certas lacunas segundo sua interpretação parcial (baseada, principalmente, na doutrina de Paulo); e o Evangelho de João é o mais problemático, pois distorce e recria claramente os ensinamentos legítimos de Jesus, numa linguagem por demais próxima do gnosticismo, apesar de oferecer uma impressionante precisão nos detalhes sobre os últimos dias de Jesus. 339 Renan, Vie de Jésus, Préface, p. 13. 118 1.9.2 – O método de Renan Verifica-se, dessa forma, que a metodologia empregada por Renan se distancia dos procedimentos científicos habituais que a história costumava recorrer em sua época. De acordo com ele, para que a imagem histórica de Jesus possa vir a ser explicada é necessário lançar mão de hipóteses e conjecturas. Na busca de um quadro mais coerente e provável da vida de Jesus, é imprescindível apelar para a intuição e para a adivinhação. Ademais, um retrato mais coeso dos episódios que contam o nascimento do cristianismo exige até mesmo um alto grau de criatividade. Percebe-se, assim, que, em seu método histórico, Renan parece empenhado em tentar salvar a história da condenação aristotélica de que a mesma consistiria num conhecimento cujo valor gnosiológico seria menor do que o da poesia. Como afirma o Estagirita na Poética 340: “a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular”. 341 Ou seja, por encerrar um rol de possibilidades superiores aos estudos históricos, a poesia consegue se aproximar mais de um conhecimento que abarque a essência dos acontecimentos. Tentando fazer da história uma espécie de “ciência artística”, Renan se aproxima do que Aristóteles afirma ser a natureza da poesia. Como se constata em uma passagem do prefácio à 13º edição de Vie de Jésus: “Toute circonstance vraie ou probable ou possible devait donc avoir sa place dans ma narration, avec sa nuance de probabilité. Dans une telle histoire, il fallait dire non seulement ce qui a eu lieu, mais encore ce qui a pu vraisemblablement avoir lieu.” 342 Vê-se, por conseguinte, que em sua obra, Renan pretende construir uma narrativa que se detenha na busca não da verdade, da certeza, do indubitável, do que deveras aconteceu, mas sim do que, segundo as regras do entendimento, é verossímil, possível e provável, o que poderia ter acontecido. Entretanto, dessa forma, o que Renan propõe é que o historiador se encarregue doravante do ofício próprio ao poeta de acordo com o que é defendido por Aristóteles, pois: “não é ofício do poeta narrar o que aconteceu [mas, sim, tradicionalmente, da história]; é, sim, o de representar o que poderia 340 Cf. Aristóteles. Poética. Tradução Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Aristóteles, Poética, IX, 1451 b, p. 209. 342 Renan, Vie de Jésus, Préface de la treizième édition, p. 18. 341 119 acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade”. 343 Tanto é que Renan afirma, de maneira ainda mais similar ao parecer aristotélico, ter visado pintar um quadro sobre a vida de Jesus no qual o todo transparecesse verossimilhança e necessidade, suas conjecturas visaram, segundo ele, oferecer uma imagem possível das origens do cristianismo, que exibisse uma harmonia entre luz e sombras. Como esclarece o historiador: Dans un tel effort pour faire revivre les hautes âmes du passé, une parte de divination et de conjecture doit être permise. Une grande vie est un tout organique qui ne peut se rendre par la simple agglomération de petits faits. Il faut qu’un sentiment profond embrasse l’ensemble et en fasse l’unité. La raison d’art en pareil sujet est un bon guide; le tact exquis d’un Goethe trouverait à s'y appliquer. La condition essentielle des créations de l’art est de former un système vivant dont toutes les parties s’appellent et se commandent. Dans les histories du genre de celle-ci, le grand signe qu’on tient le vrai est d’avoir réussi à combiner les textes d’une façon qui constitue un récit logique, vraisemblable, où rien ne détonne 344 1.9.3 – O caráter de Jesus O quadro geral que Renan fará da figura de Jesus leva em conta aquilo que sobreviveu à mudança operada em seu caráter desde os primeiros passos de sua jornada pública até os seus últimos momentos em Jerusalém. Renan adverte que, ao se deter sobre as almas dos homens do passado, faz-se necessário entender o meio no qual elas estavam inseridas. Ora, observa o historiador, muitos fazem de Jesus um personagem que esteja suficientemente de acordo com uma época mais recente justamente por ignorarem o meio no qual o seu espírito se desenvolveu, fazendo dele, por isso, ora um santo e moralista, ora um sábio e filósofo, ora um homem de bem e patriota. 345 Para Renan, Jesus é mal entendido mediante esses atributos, nenhum desses termos exprime o significado que sua imagem representava para a sociedade palestina de sua época. Segundo ele, Jesus era, pelo contrário, um “charmeur.” 346 Renan comenta que as pessoas que hoje se teriam na conta de loucas são tidas no oriente como seres divinos, indivíduos em contato direto e constante 343 Aristóteles, Poética, IX, 1541 a 36, p. 209. Renan, Vie de Jésus, Introduction, p. 34. 345 Não obstante, Renan será acusado de cometer justamente esse tipo de anacronismo. Cf. Schweitzer, The quest of the historical Jesus, pp. 180-192. 346 Renan, Vie de Jésus, Préface, p. 17. 344 120 com uma realidade superior. Tal foi a maneira pela qual Jesus foi percebido no seu ambiente natural. 347 De acordo com Renan, assim como também vai defender Nietzsche posteriormente, o que Jesus transmitia era muito mais uma prática do que uma nova fé. Para Jesus, Deus não deveria ser motivo de reflexões e embates verbais, pois a possibilidade do estabelecimento da relação íntima que ele vivenciava com Deus era possível a todo aquele que simplesmente o seguisse e o amasse com sinceridade. Como atesta Renan: “Pour être disciple de Jésus, il ne fallait signer aucun formulaire, ni prononcer aucune profession de foi; il ne fallait qu’une seule chose, s’attacher à lui, l’aimer. Il ne disputa jamais sur Dieu, car il le sentait directement en lui.” 348 Todas as querelas teológicas da Patrística, da Escolástica e dos reformadores protestantes, era algo inexistente no espírito de Jesus: nada disso o preocupou. Seus preceitos eram provenientes de uma vivência única e íntima com o seu Deus, nenhum deles era resultado de reflexões e eles não representavam, para Jesus, azo para debates e discussões. Isso porque, de acordo com Renan: “Jésus n’eut ni dogmes ni système; il eut une résolution personalle fixe.” 349 Renan também defende que a promessa de salvação em uma vida futura desprovida de males e dificuldades não era tampouco a preocupação de Jesus, pois tal crença não era nem mesmo recorrente no espírito judaico. Como esclarece Renan: “Délivré de l’égoïsme, source de nos tristesses, qui nous fait rechercher avec âpreté un intérêt d’outre-tombe à la vertu, il ne pensa qu’à son œvre, à sa race, à l’humanité.” 350 Somente a disseminação de sua vivência íntima com Deus era o que realmente ocupava a alma de Jesus. Diferente de outros personagens da história das religiões, como Zoroastro, Moisés, Maomé e mesmo Paulo, a relação que Jesus tem para com o seu Deus é extremamente única e original. Renan defende que Jesus se sente em uma conexão íntima com Deus, numa relação direta com ele, sem intermediações de visões e vozes exteriores. Jesus vê 347 Essa interpretação que Renan faz de Jesus está intimamente conectada com o debate em torno da relação entre patologias mentais e o fenômeno religioso bastante em voga, como já se adiantou, na segunda metade do século XIX. Cf. as seções “Fisiologia da redenção” e “A realidade fisiológica de Jesus” no presente trabalho. Ver igualmente FP 11 [382] novembro de 1887 – março de 1888. 348 Renan, Vie de Jésus, pp. 76-77. 349 Renan, Vie de Jésus, p. 77. 350 Renan, Vie de Jésus, p. 81. 121 Deus como o Pai que habita o seu interior e que preenche completamente o seu coração com o mais puro amor. Como esclarece Renan: Jésus n’a pas de visions; Dieu ne lui parle pas comme à quelqu’un hors de lui; Dieu est en lui; il se sent avec Dieu, et il tire de son cœur ce qu’il dit de son Père. Il vit au sein de Dieu par une communication de tous les instants [...] Jésus n’énonce pas un moment l’idée sacrilège qu’il soit Dieu. Il se croit en rapport direct avec Dieu, il se croit fils de Dieu. La plus haute conscience de Dieu qui ait existé au sein de l’humanité a été celle de Jésus. 351 Verifica-se, dessa maneira, que muitos resultados da investigação de Renan a respeito da relação de Jesus com Deus, do valor conferido por ele à sua própria maneira de agir e vivenciar as coisas, do seu exemplo de vida e da sua forma de estar no mundo, serão posteriormente adotados por Nietzsche em O Anticristo, todavia, o filósofo irá conferir um significado fisio-psicológico a tais resultados. Jesus não foi, para Renan, um pregador de preceitos religiosos, de dogmas, de leis divinas, sua obra era simplesmente a sua vida. Por conta disso, Renan esclarece: Dieu conçu immédiatement comme Père voilá toute la théologie de Jésus. Et cela n’était pas chez lui un pricipe théorique, une doctrine plus ou moins prouvée et qu’il cherchait à inculquer aux autres. Il ne faisait à ses disciples aucun raisonnement; il n'exigeait d'eux aucun effort d'attention. Il ne prêchait pas ses opinions, il se prêchait lui-même. 352 Dessa forma, Renan defende que nada mais estranho ao espírito de Jesus do que as formas exteriores de culto, as instituições religiosas e as ordens clericais. Seus ensinamentos representavam, segundo Renan, exatamente o oposto disso tudo, resultados que também serão adotados por Nietzsche. Na verdade, o repúdio de Jesus a necessidade de ritos e de serviços sacerdotais intermediários entre Deus e os homens foi a principal causa de sua condenação por parte da Igreja judaica. Para Jesus, nada mais disso era necessário, nenhuma Igreja poderia fornecer o que ele oferecia livremente: “Un culte pur, une religion sans prêtres et sans pratiques extérieures, reposant toute sur les sentiments du cœur.” 353 Portanto, conforme Renan, nem mesmo Jesus se apresentava como veículo entre Deus e os 351 Renan, Vie de Jésus, p. 89-90. Cf. FP 11 [389] novembro de 1887 – março de 1888. Renan, Vie de Jésus, p. 90. 353 Renan, Vie de Jésus, p. 94. 352 122 homens em um sentido sacerdotal, ele não instituiu ritos exteriores, ele desejou unicamente mostrar aos homens que Deus era o Pai de todos em consonância com o que ele próprio experimentava em seu coração, que nenhuma ponte até Deus era mais necessária. Deste modo, Renan verifica: “Jamais on n’a été moins prêtre que ne le fut Jésus, jamais plus ennemi des formes qui étouffent la religion sous pretexte de la protéger.” 354 Jesus não tinha o menor interesse em ser visto como um mero clérigo ou doutor estudioso da Lei. Aos que queriam o seu apreço chamando-lhe “Rabi, rabi”: “il les repoussait et proclamait que sa relegion, c’est de bien faire.” 355 Nenhum artigo de fé era por ele professado, nenhuma conversão a uma doutrina era por ele exigida. Para Jesus, de acordo com Renan: “La vraie fraternité s’établit entre les hommes par la charité, non par la foi religieuse.” 356 Renan explica, dessa forma, que a imagem fornecida pela cristandade de Jesus como fundador de uma nova Igreja é uma severa agressão ao caráter legítimo do mestre. Ver Jesus como o caminho da salvação, como o único e verdadeiro intermediário no sentido que a Igreja cristã deseja é um juízo grosseiro e falso, uma verdadeira inversão de tudo o que ele representou. De tal forma, assim como em Nietzsche, Renan imputa aos apóstolos, à comunidade cristã inicial e a Paulo a responsabilidade pela inteira deturpação da figura de Jesus, do significado de sua vida e de seus ensinamentos, sendo que o maior indício de uma tal falsificação é justamente o que resultou do trabalho dos evangelistas. Como assevera Renan: “Les évangélistes eux-mêmes, qui nous ont légué l’image de Jésus, sont si fort audessous de celui dont ils parlent que sans cesse ils le défigurent, faute d’atteindre à sa hauteur. Leurs écrits sont pleins d’erreurs et de contre-sens.” 357 1.9.4 – Jesus e os seus “sublimes paradoxos” A despeito de se poder traçar esse quadro geral do caráter de Jesus, Renan crê que o mesmo não se manteve de todo inalterável. Para ele, Jesus assumirá diferentes posturas ao longo de toda a sua jornada, até o ponto em que chegará a revelar “sublimes paradoxes.” 358 Essas mudanças operadas no espírito de Jesus se darão principalmente por conta da maneira 354 Renan, Vie de Jésus, p. 96. Renan, Vie de Jésus, p. 156. 356 Renan, Vie de Jésus, p. 159. 357 Renan, Vie de Jésus, p. 258. 358 Renan, Vie de Jésus, p. 197. 355 123 como sua obra é acolhida por aqueles que o escutam. Confiando inteiramente no estado de extrema beatitude que ele encontra no seio de seu Pai, Jesus terá, segundo Renan, uma extrema dificuldade em lidar com a incredulidade daqueles que o ouvem. Assim, Renan nota que vai haver um distanciamento entre aquele mestre Galileu que pregou um culto puro, de plena associação com Deus mediante uma vida dedicada ao amor universal 359 ,e aquele profeta polêmico que vai se revelar em suas estadias em cidades de pouca acolhida, como Nazaré, sua cidade natal, e Jerusalém, onde acabará encontrando seu destino final. 360 Como o mestre moralista da Galiléia, Jesus se mostrava ternamente encantado com o mundo, que, para ele, já havia sofrido a mais sublime transformação por meio do estado de bem-aventurança que ele mesmo havia alcançado e que logo todos alcançariam. Por outro lado, enquanto profeta polêmico em Jerusalém, Jesus passará a conceber o mundo como em vias da mais violenta e catastrófica transformação. Como indica Renan: “Qu’il y eut une contradiction entre le dogme d’une fin prochaine du monde et la morale habituelle de Jésus, conçue en vue d’un état stable de l’humanité, assez analogue à celui qui existe en effet, c’est ce qu’on n’essayera pas de nier.” 361 Conforme Renan, foi principalmente ao ingressar em Jerusalém, com sua missão pública já em pleno andamento, que Jesus alterou gravemente a sua maneira de ser, o tom de sua pregação e até mesmo os seus ensinamentos. Jerusalém: “Une ville de pédantisme, d’acrimonie, de disputes, de haine, de petitesse d’esprit.” 362 Nesse seu primeiro momento na cidade santa enquanto pregador, Jesus preferiu não se revelar publicamente, mas, ainda assim, previa que a incredulidade dos judeus ali residentes não traria qualquer fruto para a sua missão. “Il sentait probablement qu’il etait ici dans un monde hostile et qui ne l’accueillerait qu’avec dédain. Tout ce qu’il voyait l’indisposait.” 363 Jesus nutria um grande descontentamento para com a hipocrisia das práticas exteriores efetuadas no Templo de Jerusalém sob a organização dos sacerdotes judaicos, práticas às quais ele era obrigado a se submeter: “Le culte qu’il avait conçu pour son Père n’avait rien à faire avec des scène 359 Para Nietzsche, o que estaria mais de acordo com o tipo psicológico de Jesus. De acordo com Nietzsche, uma imagem de Jesus fruto da corrupção psicológica proveniente do sectarismo dos apóstolos. 361 Renan, Vie de Jésus, p. 112. 362 Renan, Vie de Jésus, p. 148. 363 Renan, Vie de Jésus, p. 151. 360 124 de boucherie. Toutes ces vieilles institutions juives lui déplaisaient, et il souffrait d’être obligé de s’y conformer.” 364 Jesus padecia de um grande tormento em ter que agir contra as suas convicções mais íntimas para poder ganhar o direito de exercer sua vocação livremente sem ofender, no momento inoportuno, as afetações daquela sociedade. “Ce lieu [o Templo]”, diz Renan, “a toujours été antichrétien.” 365 Saber que aquela sociedade hipócrita via a si mesma como uma nação de justos e escolhidos por Deus provocava uma grande repulsa em Jesus: “L’orgueil de juifs achevai de mécontenter Jésus et de lui rendre le séjour de Jerusalém pénible.” 366 Os principais opositores de Jesus em Jerusalém eram os saduceus, sacerdotes dirigentes do culto, e os fariseus, intérpretes da Lei. Jesus se indignava com a irreligiosidade dos saduceus, com a sua falta de senso moral, sua indiferença e materialismo econômico (viviam das taxas dos rituais de sacrifício). Com os fariseus, por sua vez, ele se mostrava extremamente irritado com seu alto grau de hipocrisia, com a sua prepotência de se outorgarem únicos mantenedores da Lei, sem realmente praticar o que diziam, e com o fato de se exaltarem constantemente acima do povo. Jesus nunca encontraria em Jerusalém qualquer recepção para os seus ensinamentos, mas só ceticismo, desafios e ocasiões para disputas e aborrecimentos. Em sua segunda e em sua terceira, e última, estada em Jerusalém, Jesus resolveu, contudo, se fazer ouvir. É sobretudo nesses momentos que sua atitude sofre uma grande mudança e que seus ensinamentos se tornam cada vez mais rígidos e ameaçadores: ele prevê um destino calamitoso para aquela sociedade ímpia. Suas doces pregações morais na Galiléia são rispidamente ignoradas e contrariadas em Jerusalém, ele se vê impossibilitado de agir como normalmente agia, para se fazer notado era necessário uma radical mudança de atitude. Em Jerusalém, Jesus se viu em um mundo de incredulidade que ele até então não havia enfrentado: “Le charmant docteur, qui pardonnait à tous pourvu qu’on l’aimât, ne pouvait trouver beaucoup d’écho dans ce sanctuaire des vaines disputes et des sacrifices vieillis.” 367 Se, até aquele momento, Jesus não havia tido nenhuma necessidade de se voltar contra o judaísmo em si, acabou percebendo que era impossível transmitir sua mensagem 364 Renan, Vie de Jésus, p. 152. Renan, Vie de Jésus, p. 152. 366 Ibidem. 367 Renan, Vie de Jésus, p. 154. 365 125 de amor puro sem atacar frontalmente tal sistema religioso, que todas as inúteis práticas exteriores que a Lei obrigava e o poder influenciador daqueles que se diziam seus mantenedores e intermediários, nublava inteiramente seu acesso ao coração das pessoas. Por conta disso, Renan declara: L’abolition des sacrifices qui lui avaient causé tant de degoût, la supression d’un sacerdoce impie et hautain, et, dans un sens general, l’abrogation de la Loi parurent d’une absolue nécessité. A partir de ce moment, ce n’est plus en réformateur juif, c’est en destructeur du judaïsme qu’il se pose 368 Desde então, Jesus já não podia mais continuar com o seu inocente plano de fundação de um mundo guiado pelo amor universal e pela comunhão absoluta com o Pai. Suas pregações vão assumindo cada vez mais um aspecto soturno e grave: “L’amertume et le reproche se faisaient de plus jour en son cœur.” 369 Somente admitia a franca e espontânea incredulidade dos “pequenos”, a quem ele admoestava com compaixão e paciência. Mas se mostrava incapaz de suportar com a mesma brandura a astúcia dos desafios lançados constantemente pelos líderes religiosos judaicos, nesses momentos, ele perdia toda calma e amabilidade: “Désespéré, poussé à bout, il ne s’appartenait plus.” 370 Respondia às provocações dos sacerdotes com ironia, apontando a hipocrisia deles e ferindo-lhes o orgulho e a vaidade. Como afirma Renan: “Ce n’était plus ce doux maître du ‘Discours sur la montagne’, n’ayant encore rencontré ni résistance ni difficulté. La passion, qui était au fond de son caractère, l’entraînait aux plus vives invectives.” 371 Jesus não se sentia à vontade ali, recordava com melancolia seus momentos de triunfo na idílica Galiléia: “Jésus était un étranger à Jérusalem. Il sentait qu’il y avait là un mur de résistance qu’il ne pénétrerait pás.” 372 Nesse ambiente, Jesus altera seu caráter e o tom de suas pregações quase que plenamente; passa a utilizar as mesmas armas de seus opositores, parece deixar para trás todo a sua ingenuidade e confiança na boa-fé dos homens: 368 Renan, Vie de Jésus, p. 155. Renan, Vie de Jésus, p. 201. 370 Renan, Vie de Jésus, p. 217. 371 Renan, Vie de Jésus, p. 201. 372 Renan, Vie de Jésus, p. 206. 369 126 “L’enseignement de Jésus, dans ce monde nouveau, se modifia nécessairement beaucoup [...] Il dut se faire controversiste, juriste, exégète, théologien.” 373 Renan observa que Jesus só voltou a si nos seus últimos momentos, sobretudo após sua dolorosa resolução, quando aceitou finalmente o seu destino final. A partir desse instante, aquele profeta polêmico que habitou seu espírito em Jerusalém abandona o seu coração, e o mestre Galileu retorna rejuvenescido. Para Renan, somente analisando todas essas metamorfoses pelas quais Jesus passou é possível depurar qual a verdadeira e mais autêntica natureza do seu caráter, que é justamente o daquele ser inspirado que encontrou a mais extrema beatitude no seio do seu Pai, tal como se revelou naqueles últimos instantes de sua vida em que, como diz Renan: Les subtilités du polémiste, la crédulité du thaumaturge et de l’exorciste sont oubliées. Il ne reste que le héros incomparable de la Passion, le fondateur des droits de la conscience libre, le modèle accompli que toutes les âmes souffrantes méditeront pour se fortifier et se consoler. 374 1.9.5 – O estabelecimento do reino de Deus Uma das mudanças mais significativas na forma como Jesus enxerga o mundo se dará, segundo Renan, num dos pilares da sua pregação, a saber, na idéia de reino de Deus. De acordo com Renan, essa idéia representava para Jesus, na primeira fase de sua pregação, que se deu na Galiléia, a propagação, que já estava ocorrendo, do sentimento de bemaventurança que preenchia todo o seu ser, em comunhão direta com o Pai, e que se manifestava em uma vida de amor pleno. Destarte, Renan atribui a Jesus, nessa etapa de sua jornada, a concepção de reino de Deus como um estado do coração, visão de suma importância para a compreensão que Nietzsche fará do tipo psicológico de Jesus. Como mostra Renan: “Accordant aux puissants de la terre, pour lui représentants de la force, un respect plein d’ironie, il fonde la consolation suprême, le recours au Père que chacun a dans le ciel, le vrai ‘royaume de Dieu’ que chacun porte en son cœur.” 375 Assim, a expressão “reino de Deus” de natureza messiânica, abstraída do livro de Daniel, escrito este bastante caro a Jesus, será utilizada por ele de uma maneira muito singular e bastante 373 Renan, Vie de Jésus, p. 210. Renan, Vie de Jésus, p. 226. 375 Renan, Vie de Jésus, p. 91. 374 127 diversa da interpretação mais tradicional, ou seja, aquela de um futuro estado político no qual os Judeus, sob a liderança de um Messias, um ser ungido por Deus, descendente da casa de Davi, teriam a supremacia total sobre todas as nações do mundo. Na consciência de Jesus, nesse momento, o reino de Deus já havia chegado, não como um estado político, mas como uma renovação moral do mundo, em que a vida dedicada ao mais absoluto amor tornaria todos os homens verdadeiramente Filhos de Deus assim como ele o era. Como nota Renan: Le nom de ‘royaume de Dieu’ ou de ‘royaume de ciel’ fut le terme favori de Jésus pour exprimer la révolution qu’il inaugurait dans le monde [...] ‘Le royaume de Dieu est parmi vous’, disait-il à ceux qui cherchaient avec subtilité des signes extérieurs de sa venue future [...] Le Jésus qui a fondé le vrai royaume de Dieu, le royaume des doux et des humbles, voilá le Jésus des premiers jours [...] 376 No entanto, a concepção de reino de Deus sofrerá transformações ao longo da vida pública de Jesus. Conforme Renan, isso ocorreu, como já foi visto, por conta da maneira como Jesus reagia às repercussões de seus ensinamentos. Nos seus primeiros dias de pregação, no norte, na Galiléia, o reino de Deus é esse mundo de mansidão, de estado de completa união com Deus, com o amor paterno, um estado de coração, de amor puro, que já havia chegado. Por conseguinte, o reino de Deus era uma renovação de caráter espiritual, não tinha a ver, em absoluto, com o estado político e material do mundo, mas com a paz de espírito plena, com a “théologie d’amour” 377 universal. Contudo, dando continuidade a sua missão, Jesus sairá da Galiléia, num primeiro momento vai a Nazaré onde é repudiado pelos seus concidadãos; depois, às margens do rio Jordão, prevê uma revolução social em que os oprimidos serão recompensados; e, já no seu último período de pregação, no sul, em Jerusalém, o ceticismo dos sacerdotes e do povo da cidade acabará por levar Jesus a afirmar a vinda de um futuro reino de Deus, no qual se veria o Filho do Homem, em todo o seu poder e glória, descer das nuvens, seguido de seu séqüito de tropas celestes, anjos e querubins, um reino onde os homens serão definitivamente julgados. Ao irmanar a sua escola com a de João Batista, logo após o seu batismo no Jordão, em busca de maior reconhecimento, prestígio e autoridade, Jesus opera a primeira mudança 376 377 Renan, Vie de Jésus, p. pp. 91-92. Cf. FP 11 [391] e 11 [392] de novembro de 1887 – março de 1888. Renan, Vie de Jésus, p. 91. 128 em torno da sua antiga concepção de reino de Deus, por um desenvolvimento e amadurecimento, que Renan crê natural, de suas idéias. Se antes o reino de Deus já estava em franca realização como um estado de plena identificação com o Pai ao alcance de todos, Jesus agora passa a concebê-lo como uma grande revolução de caráter iminente que ia inverter o estado atual do mundo e inaugurar um novo onde os “últimos serão os primeiros”: “Son mot d’ordre désormais, c’est la ‘bonne nouvelle’, l’annonce que le règne de Dieu est proche.” 378 Esse novo estado de coisas já não viria tão facilmente e sem atribulações. Ainda assim: “Son règne céleste n’avait rien de commun avec le souvenir de David, qui préoccupait la masse des juifs. Il se croyait fils de Dieu, et non pas fils de David. Son royaume et la délivrance qu’il méditait étaient d’un tout autre ordre.” 379 Dessa maneira, apesar das várias formas com que Jesus, ao longo de sua trajetória, percebe a chegada do reino de Deus, e apesar também de ele se mostrar indeciso sobre se a natureza de tal reino será um estado de coração, uma revolução social ou um tribunal divino universal, Renan defende que a visão primordial do Galileu sempre foi a de uma renovação moral absoluta. Tendo em vista isso, Renan esclarece: “La révolution qu’il voulut faire fut toujours une révolution morale; mais il n’en était pas encore arrive à se fier pour l’exécution aux anges et à la trompette finale. C’est sur les hommes et par les hommes euxmêmes qu’il voulait agir.” 380 Não obstante, pode-se afirmar que é justamente na idéia de reino de Deus que os “sublimes paradoxos” de Jesus se tornam mais patentes, porquanto, de acordo com Renan, mesmo o estado político messiânico tal qual àquele aguardado pelos judeus chegou a fazer parte da idéia que Jesus concebeu do reino de Deus, e essa visão se torna mais forte mormente na sua última viagem a Jerusalém, antes de sua resolução definitiva. Naquele momento, o grau de exaltação que Jesus acabou manifestando foi, segundo Renan, tão violento, que ele profere os mais radicais discursos sobre o seu próprio papel na história da humanidade. Conforme o historiador francês: L’idée fondamentale de Jésus fut, dès son premier jour, l’établissement du royaume Dieu. Mais ce royaume de Dieu, ainsi que nous l’avons déjà dit, Jésus 378 Renan, Vie de Jésus, pp. 107-108. Renan, Vie de Jésus, p. 162. 380 Renan, Vie de Jésus, p. 109. 379 129 paraît l’avoir entendu dans des ses très divers. Par moments, on le prendrait pour un chef démocratique, voulant tout simplement le règne des pauvres et des déshérités. D’autres fois, le royaume de Dieu est l’accomplissement littéral des visions apocalyptiques relatives au Messie. Souvent, enfin, le royaume de Dieu est le royaume des âmes,et la délivrance prochaine est la délivrance par l’esprit. La révolution voulue par Jésus est alors celle qui a eu lieu en réalité, l’établissement d’un culte nouveau, plus pur que celui de Moïse. 381 A idéia que Jesus fará do reino de Deus vai assumir, portanto, três aspectos diferentes ao longo de sua jornada, cada um obtendo maior destaque em um dos três momentos diversos dessa trajetória. Primeiramente, como pregador na Galiléia, Jesus conceberá o reino de Deus como um estado de coração, como a bem-aventurança advinda da união que se pode estabelecer com o Pai. Em seguida, como colaborador de João Batista no Jordão, Jesus anunciará a “boa nova”, a chegada iminente do reino de Deus como uma revolução social em que os papéis sociais serão invertidos. E, num último momento, como o profeta polêmico em Jerusalém, ele passará a vaticinar a vinda do reino de Deus como a realização da promessa do estado messiânico, em que os ímpios e inimigos de Deus teriam sua condenação final. Em cada uma dessas concepções, Jesus assume papéis diferentes, ora como Filho de Deus, ora como Filho do Homem e ora como Messias. 1.9.6 – O Filho de Deus, o Filho do Homem e o Messias O título de Filho de Deus é, de acordo com Renan, aquele com o qual Jesus mais se identifica nos seus primeiros momentos de pregação na Galiléia. Isso por conta da conexão íntima que ele acreditava manter constantemente com o seu Pai: “il franchissait d’un bond l’abîme, infranchissable pour la plupart, que la médiocrité des facultés humaines trace entre l’homme et Dieu.” 382 Malgrado sempre se mostrar contente quando outros lhe atribuíam a denominação de Filho de Deus, o próprio Jesus não tinha o hábito de outorgar tal título a si mesmo. Renan defende que Jesus via apenas a sua vivência como aquilo que consistia na qualidade de Filho de Deus e não a sua pessoa em especial: o atributo de Filho de Deus estava ao alcance de todos. Como mostra Renan: 381 382 Renan, Vie de Jésus, p. 177. Renan, Vie de Jésus, p. 166. 130 Que jamais Jésus n’ait songé à se faire passer pour une incarnation de Dieu luimême, c’est ce dont on ne saurait douter [...] on ne la trouve indiquée que dans les parties du quatríème Évangile qui peuvent le moins être acceptées comme un écho de la pensée de Jésus [...] Il se croit plus qu’un homme ordinaire, mais séparé de Dieu par une distance infinie. Il est fils de Dieu; mais tous les hommes le sont ou peuvent le devenir à des degrés divers 383 Apesar disso, Jesus não se importava em conferir a si mesmo o título de Filho do Homem, principalmente, durante a sua estada no Jordão. O termo, assim como o de “reino de Deus”, também era abstraído dos livros apocalípticos, e Jesus o utilizou para fundamentar sua missão de renovar e julgar o mundo na revolução social que se aproximava: “il s’appelait lui-même ‘Fils de l’homme’ et qu’il ne semble pas avoir fait le même usage du mot ‘Fils de Dieu’. Le titre de Fils de l’homme exprimait sa qualité de juge; celui de Fils de Dieu, sa participation aux desseins suprême et sa puissance.” 384 Jesus também não se mostrava contrariado, e consentia com o seu silêncio, quando lhe eram dados os títulos honoríficos de Messias e Filho de Davi. Termos que faziam igualmente parte das interpretações apocalípticas da mitologia judaica e que Jesus aceitava, conforme Renan, por mera conveniência. Isso porque, explana o historiador: “Il associait à son dogme du ‘royaume de Dieu’ tout ce qui échauffait les cœurs et les imaginations.” 385 Confiando plenamente na superioridade de sua obra e de sua missão, declara Renan, Jesus não hesitará em transpor no seu espírito, com uma tremenda facilidade e quase indiferença, às dificuldades materiais e lingüísticas interpostas no seu caminho, questão que, como se verá posteriormente, receberá igualmente destaque em Nietzsche. Renan atribui essa habilidade de Jesus ao seu forte idealismo. “La vérité matérielle a très peu de prix pour l’Oriental; il voit tout à travers ses préjugés, ses intérêts, ses passions.” 386 Ele não compreendia nada dos impedimentos que a realidade coloca nas vias de concretização de todo e qualquer sonho. Sua obra era maior do que tudo: era só o que ele conseguia perceber. Todo o resto, como, por exemplo, os sinais da chegada do reino de Deus (os milagres, os exorcismos, etc.), era utilizado por ele, afirma Renan, como mero instrumento 383 Renan, Vie de Jésus, pp. 164-165. Cf. FP 11 [389] novembro de 1887 – março de 1888. Renan, Vie de Jésus, p. 165. 385 Renan, Vie de Jésus, p. 162. 386 Renan, Vie de Jésus, p. 169. 384 131 de expressão, para que sua convicção mais íntima atingisse o coração das almas pequenas. Logo, Renan comenta: Il nous est facile à nous autres, impuissants que nous sommes, d’appeler cela mensonge, et, fiers de notre timide honnêteté, de maltraiter les héros qui ont accepté dans d’autres conditions la lutte de la vie. Quand nous aurons fait avec nos scrupules ce qu’ils firent avec leurs mensonges, nous aurons le droit d’être pour eux sévères. 387 Percebe-se, conseqüentemente, que Renan interpreta Jesus como um indivíduo convencido de sua missão enquanto transformador da ordem natural do mundo, enquanto renovador moral, a ponto de conceber “sublimes paradoxos” para que seu sonho, sua inspiração original, possa vir à luz. É essa explicação da figura de Jesus que Nietzsche considera um erro crasso em questões psicológicas por parte do historiador francês e que se vai analisar mais detalhadamente nas próximas considerações. 1.9.7 – Jesus como herói Jesus representa, para Renan, um dos grandes homens que transformaram a fisionomia do mundo na busca da concretização de um grande ideal. Suas aspirações mostraram-se tão superiores à baixeza da consciência comum que ele se viu obrigado a empreender uma luta contra a ordem das coisas, contra aqueles que sobrevivem à custa da mediocridade e da ignorância dos simples de espírito. Dessa forma, o conceito de herói funcionará para explicar tanto o caráter próprio de Jesus, quanto para mostrar o papel que sua vida representou para a humanidade. Sendo assim, Renan mostra, primeiramente, que por meio de suas intuições originais Jesus levará a humanidade a um novo estágio de conhecimento espiritual, ao estabelecimento de um culto puro, de amor absoluto, de fraternidade universal. Sua jornada se liga aos portentosos feitos dos extraordinários heróis do passado, cujos sacrifícios garantiram à humanidade os seus mais preciosos avanços. A história de Jesus é, pois, uma tragédia na qual o arquétipo do herói mitológico é destroçado como promessa de uma nova vida. Nesse sentido, ele é, então, fundamentalmente, o herói da paixão, aquele que aceita livremente a morte em nome dos seus sonhos de amor à humanidade. Por outro lado, Jesus 387 Renan, Vie de Jésus, p. 169. 132 também é aquele que buscou inverter a ordem das coisas, que pôs os pobres, as mulheres e as crianças acima dos poderosos da terra. O homem que ousou desafiar os sacerdotes judaicos, revogando seus direitos exclusivos de acesso às coisas divinas e aos poderes celestes. Nesse aspecto, Jesus é, pois, o herói revolucionário e o reformador universal, que aboliu a Lei e mostrou aos homens que todos os seus pecados estavam perdoados e que Deus era o Pai da bondade e da misericórdia suprema. O primeiro registro no qual a atribuição do termo “herói” ao tipo de Jesus se aplica está ligado igualmente ao projeto de Renan de elaborar o seu relato histórico da vida e da obra de Jesus como uma espécie de drama trágico, um retrato artístico, em que cada parte mantivesse consonância com o todo, em que cada aspecto da narrativa fizesse parte de uma unidade ordenada e organizada. 388 Esse plano está em consonância com as concepções estéticas elaboradas por Aristóteles 389 na Poética. 390 Com isso, poder-se-ia afirmar que ao buscar conceber um relato no qual houvesse um equilíbrio entre todas as partes por meio daquilo que segundo as regras da lógica fosse verossímil, possível e provável, Renan sentiu necessidade de ressaltar seu personagem principal de forma a torná-lo interessante aos seus “leitores-espectadores”: “Il fallait faire mon héros beau et charmant (car, sans contredit, il le fut); et cela, malgré des actes qui, de nos jours, seraient qualifiés d’une manière défavorable.” 391 Por conseguinte, é bem possível que Renan tivesse em mente, procurando agir como um bom poeta trágico numa visão aristotélica, compor seu herói de maneira a mostrar que, de acordo com seu caráter e suas ações “uma após outra sucedidas, conformemente à verossimilhança e à necessidade, se dê o transe da infelicidade à felicidade ou da felicidade à infelicidade” 392, de modo a apresentar, assim, a vida de Jesus envolta em uma beleza trágica tal qual nos fala Aristóteles. Afinal, é visando uma apreciação não só epistêmica, mas também estética de seus estudos históricos sobre a vida 388 Cf. Renan, Vie de Jésus, p. 18; p. 34. Para a importância de Renan enquanto estudioso da recepção de Aristóteles na obra de Averroés cf. Perez, Claude-Pierre. “Aristote dans le XIXe siècle. Lectures d’Aristote en France de Cousin à Claudel”. In: Romantisme, Année 1999, Volume 29, Numéro 103, pp. 113 – 125. Cf. também Renan, Ernest. Averroès et l’averroïsme. Paris : Calmann-Lévy, 1882; especificamente sobre a tradução da Poética de Aristóteles por Averroés, cf. p. 47-50 ; 81-82 ; 211. 390 Cf. Aristóteles. Poética, IX, 1451 b, p. 209; IX, 1541 a 36, p. 209. 391 Renan, Vie de Jésus, p. 19. 392 Aristóteles, Poética, VII, 1451 a 6, p. 208. 389 133 de Jesus que Renan procura oferecer um enredo coeso e organizado sobre as desventuras de tal personagem, buscando apresentar, para isso, “un récit vivant, humain, possible.” 393 É por conta desse paralelo que se pode notar entre os estudos históricos de Renan sobre a vida de Jesus e a concepção estética da Poética de Aristóteles, que se pode compreender melhor porque o autor buscará, sob determinado aspecto, pintar o Galileu como um herói. Ora, sabe-se que, para Aristóteles, a tragédia tem uma função catártica, que a trama dos fatos que narram o destino do herói trágico tem como fim provocar o horror e a piedade, o que proporcionaria a liberação dessas emoções cujo acúmulo é nocivo. 394 Talvez não seja o caso de se afirmar, contudo, que o objetivo da obra de Renan seja igualmente tal efeito trágico, mas que, ainda assim, Jesus, o herói da paixão, aquele que foi dilacerado para que uma vida abundante de amor, de boa vontade e de paz de espírito pudesse surgir, mereça ser tomado como um herói trágico, quiçá seja o que o autor tenta, de certa forma, sugerir. 395 Por sua vez, o traço revolucionário no caráter heróico de Jesus se desenvolve e se fortalece, segundo Renan, à medida que a consciência de sua missão toma corpo no espírito do mestre. Enquanto pregador da supressão da distância que separava os homens de Deus na pacata Galiléia, onde o encanto de sua pessoa era o suficiente para atingir os corações inocentes daqueles que o ouviam e conquistar o seu amor e dedicação, Jesus enxergava a chegada do reino de Deus que ele anunciava já em franca realização, sem que houvesse qualquer necessidade de uma bruta transformação advinda de uma luta contra a incredulidade. Todavia, Renan percebe que a partir da mudança operada na alma de Jesus desde o momento em que ele inicia suas atividades como correligionário de João no rio Jordão, o Nazareno passará a conceber o advento do reino de Deus como uma grande 393 Renan, Vie de Jésus, p. 19. Cf. Aristóteles, Poética, VI, 1449 b 24, p. 205. Essa concepção aristotélica sobre os efeitos da tragédia é duramente criticada por Nietzsche. Fugiria ao nosso escopo adentrar nessa discussão. Limitar-nos-emos aqui em remeter a Chaves, Ernani. “Ética e estética em Nietzsche: crítica da moral da compaixão como crítica aos efeitos catárticos da arte”. In: Ethica. Rio de Janeiro, 2004, vol. 11, n. 1 e 2, pp. 45-66. E no contexto de O Anticristo, ver AC § 7. 395 Para Nietzsche, isso seria impossível: nem o cristianismo é trágico e nem Jesus poderia vir a ser considerado um herói trágico. Acerca da não tragicidade do cristianismo, podemos nos remeter ao Ecce Homo, no qual Nietzsche afirma que o cristianismo “não é apolíneo nem dionisíaco; nega todos os valores estéticos (EH, O nascimento da tragédia § 1). Cf. também Chaves, “Das Tragische, das Genie, der Held”, pp. 249-258. Segundo Chaves, a crítica de Nietzsche a concepção aristotélica da tragédia pode ser igualmente lida como uma crítica a Renan. 394 134 revolução, cada vez mais iminente, que vai inverter o estado atual de todas as coisas. É mormente após esse instante, que a postura de Jesus se identifica com a de um herói revolucionário. Agora, o reino de Deus não virá mais como uma resolução pacífica que se manifestará no coração de todos os homens, pelo contrário, desde então: “L’avènement de ce règne du bien será une grande révolution subite.” 396 O reino de Deus passará doravante a ser concebido por Jesus como uma exaltação dos deserdados, oprimidos e excluídos e um aviltamento de todos aqueles que são privilegiados, ricos e poderosos: “Une immense révolution sociale, où les rangs seront intervertis, où tout ce qui est officiel en ce monde sera humilié, voilà son rêve.” 397 Deste modo, por conceber o reino de Deus como um reino dos humildes, dos pobres, das mulheres e das crianças, Jesus é, para Renan, um revolucionário social. Em seu sonho de uma comunhão integral de todos os homens com o Pai, numa vida dedicada ao amor irrestrito, Jesus não visualizava diferenças de ordem sexual, econômica, étnica e política, tudo isso seria abolido quando do estabelecimento do reino de Deus. Sendo assim, essa inversão de papéis que Jesus anunciava não era de ordem material, mas moral, ou seja, não significava que os pobres seriam os novos ricos em um sentido econômico, e sim em um sentido moral e espiritual. Como patenteia Renan, apesar da batalha de Jesus contra os chefes do mundo: “jamais la tentative de se substituer aux puissants et aux riches ne se montre chez lui. Il veut anéantir la richesse et le pouvoir, non s’en emparer.” 398 É mormente na expansão da missão de Jesus até Jerusalém que Renan nota a constituição definitiva do tipo heróico no caráter do mestre, quando este assume, então, o papel de reformador universal. Em suas primeiras viagens a Jerusalém como pregador, Jesus, apesar de não se revelar publicamente, conscientiza-se de que a Igreja judaica e os seus líderes são os maiores obstáculos na realização de seu sonho, que toda a futilidade das práticas artificiais e mecânicas que aquela hierocracia obrigava, nublava a alma dos homens para o verdadeiro culto do coração que ele instituía. Jésus rentra en Galilée ayant complétement perdu sa foi juive, et en pleine ardeur révolutionnaire. Ses idées maintenant s’expriment avec une netteté 396 Renan, Vie de Jésus, p. 108. Renan, Vie de Jésus, p. 113. 398 Renan, Vie de Jésus, p. 113. 397 135 parfaite. Les innocents aphorismes de son premier âge prophétique, en partie empruntés aux rabbis antérieurs, les belles prédication morales de sa seconde période aboutissent à une politique décidée. La Loi sera abolie; c’est lui qui l’abolira. Le Messie est venu, c’est lui qui l’est. Le royaume de Dieu va bientôt se révelér; c’est par lui qu’il se révélera. Il sait bien qu’il será victime de sa hardiesse; mais le royaume de Dieu ne peut être conquis sans violence; c’est par de crises et des déchirements qu’il doit s’établir. Le Fils de l’homme, après sa mort, viendra avec gloire, accompagné de légions d’anges, et ceux qui l’auront repoussé seront confondus. 399 Desta forma, a despeito da Lei já ter sido revogada em seu coração, Jesus percebeu que não poderia encontrar ouvidos para a sua Boa Nova enquanto o controle institucional do sistema judaico existisse e ofuscasse o coração do povo. Jesus sentiu, então, que “pour jouer un rôle de premier ordre, il fallait sortir de Galilée, et attaquer le judaïsme dans sa place forte, qui était Jerusalém.” 400 Jesus parte, assim, novamente para Jerusalém e se revela publicamente, prega no Templo e divulga o seu sonho. Mas não encontra ouvintes atentos. O poder clerical dos líderes do Templo burla constantemente qualquer sucesso. Ele passa a ser provocado e acossado por todos os lados, sai de si e muda o conteúdo e o tom de suas pregações. À medida que crescia a indiferença, o desdém e a incredulidade maliciosa dos judeus, o papel que Jesus se atribuía ganhava ares cada vez mais exacerbados e sua impaciência e irritação recrudescia, acreditava agora ser capaz de renovar todas as coisas. Como mostra Renan: Jésus ne será plus seulement un délicieux moraliste, aspirant à renfermer en quelques aphorismes vifs et courts des leçons sublimes; c’est le révolutionnaire transcendant, qui essaye de renouveler le monde en ses bases mêmes et de fonder sur terre l’idéal qu’il a conçu [...] La persuasion qu’il ferait régner Dieu s’empara de son esprit d’une manière absolue. Il s’envisagea comme l’universel réformateur [...] Dans son accés de volunté héroïque, il se croit tout-puissant [...] Une révolution radicale, embrassant jusqu’à la nature elle-même, telle fut donc la pensée fondamentale de Jésus.401 Os “inimigos” declarados de Jesus eram acima de tudo os fariseus com o seu fingimento e pedantismo, com o seu orgulho em se considerarem os intérpretes exclusivos da Lei e seus únicos cumpridores, disseminando a noção da natureza pecaminosa do homem para distanciar ainda mais Deus daqueles que são oprimidos: “Les pharisiens [...] 399 Renan, Vie de Jésus, p. 161. Cf. FP 11 [395] de novembro de 1887 – março de 1888. Renan, Vie de Jésus, p. 148. 401 Renan, Vie de Jésus, p. 109. Cf. FP 11 [395] novembro de 1887 – março de 1888. 400 136 étaient le point de mire de tout ses coups. Il les accusait d’enchérir sur la Loi, d’inventer des preceptes impossibles pour créer aux hommes des occasions de péché.” 402 Jesus pretendia libertar os homens dessas sutis armadilhas, tudo o que escandalizava a afetação dos judeus no que se refere aos seus costumes caducos, passou a ser por ele realizado, ele rompeu com todos aqueles cuidados mesquinhos quanto à alimentação, distinções sociais e nacionais, quanto aos rigores ritualísticos, que só separavam o homem de Deus: “Jésus, en d’autres termes, n’est plus juif. Il est révolutionnaire au plus haut degré; il appelle tous les hommes à un culte fondé sur leur seule qualité d’enfants de Dieu.” 403 E, por fim, no capítulo 19 de Vie de Jésus, intitulado “Progression croissante d’enthousiasme et d’exaltation”, Renan expõe uma mudança radical operada no espírito de Jesus nos seus últimos discursos: uma exaltação violenta de seu papel no mundo e da chegada iminente do reino de Deus e do julgamento dos homens levava-o ao mais puro desprezo pela terra e pelo mundo, pelas instituições humanas, pela temporalidade e pelas preocupações da vida, Jesus se torna, por assim dizer, um “louco”, um fanático, que passa a exigir “impérieusement” 404 a fé. Mas todas essas atribulações abandonam o seu espírito nos seus últimos momentos, em que ele aceita resignadamente o destino final de sua jornada, retornando à sua docilidade habitual. A condenação de Jesus a morte era, para Renan, simplesmente inevitável. A realização de seu ideal implicava necessariamente na destruição do judaísmo. Foi unicamente por tentar revogar a Lei judaica que Jesus morreu: “La loi était détestable; mais c’était la loi de la férocité antique, et le héros qui s’offrait pour l’abroger devait avant tout la subir.” 405 O poder sacerdotal era atingido em seus fundamentos pela prática de Jesus, ele não poderia viver num mundo que tinha como centro o Templo. Os pilares da noção de Igreja foram completamente rechaçados por Jesus, por isso, o fundamento de uma instituição idêntica àquela pela qual ele morreu combatendo é, para Renan, o desrespeito mais infame à sua obra. Como sentencia o historiador: 402 Renan, Vie de Jésus, p. 157. Cf. FP 11 [386] novembro de 1887 – março de 1888. Renan, Vie de Jésus, p. 155. 404 Renan, Vie de Jésus, p. 198. Cf. também Renan, Ernest. Les évangiles. In: Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 2, p. 326. 405 Renan, Vie de Jésus, p. 240.. 403 137 Les vaines pratiques des dévots, le rigorisme extérieur, qui se fie pour le salut à des simagrées, l’avaient pour mortel ennemi [...] L’amour de Dieu, la charité, le pardon réciproque, voilà toute sa loi. Rien de moins sacerdotal. Le prêtre, par état, pousse toujours au sacrifice public, dont il est le ministre obligé; il détourne de la prière privée, qui est un moyen de se passer de lui. On chercherait vainement dans l’Évangile une pratique religieuse recommandée par Jésus. Le baptème n’a pour lui qu’une importance secondaire; et quant à la prière, il ne règle rien sinon qu’elle se fasse du cœur. 406 1.9.8 – Jesus como gênio O conceito de gênio é utilizado por Renan para mostrar o significado extraordinário do ideal que Jesus procurou e, para o historiador francês, sob vários aspectos, conseguiu concretizar ao longo de sua jornada: “Le monde n’a point fini, comme Jésus l’avait annoncé, comme ses disciples le croyaient. Mais il a été renouvelé, et en un sens renouvelé comme Jésus le voulait.” 407 Dessa forma, o caráter elevado da obra de Jesus não pode ser atribuído, conforme Renan, a um simples sonho obsessivo de uma alma vulgar, a uma fantasia trivial de alguém perdido em vãs divagações. Muito pelo contrário, Renan enxerga em Jesus um gênio cujas inspirações originais levaram o conhecimento e a experiência humana em coisas religiosas a um novo e praticamente insuperável patamar. Em uma primeira instância, Renan elucida que o modelo de educação do oriente não autoriza que se considere Jesus um ignorante, a despeito dele não ter freqüentado as escolas mais nobres dos escribas. A formação de Jesus deu-se mediante o contato com as escrituras nas sinagogas e nas suas demais convivências sociais. Ademais, Jesus respirou como ninguém mais em sua época a atmosfera daquilo que se ensinava e se acreditava na Palestina naquele momento em que os preceitos de amor e caridade, tão caros a ele, já haviam sido disseminados pelo também pregador Hillel entre outros. Não obstante, Renan revela que, sob certos traços, Jesus era bastante ingênuo. A configuração do mundo fora da Galiléia, por exemplo, era-lhe totalmente desconhecida, quando não, sua visão sobre isso era de natureza completamente caricata, como indica Renan: “Qu’il n’eût aucune connaissance de l’état général du monde c’est ce qui résulte de chaque trait de ses discours les plus authentiques. La terre lui paraît encore divisée en royaumes qui se font la guerre; il semble ignorer la ‘paix romaine’, et l’état nouveau de 406 407 Renan, Vie de Jésus, p. 156. Renan, Vie de Jésus, p. 182. 138 société qu’inaugurait son siècle.” 408 Sua noção de como as sociedades eram, de modo geral, constituídas econômica e politicamente era a mais imprecisa possível, questão de grande importância para a classificação do tipo do redentor feita por Nietzsche. Jesus não tinha uma idéia clara do que significava a ambição dos homens por riqueza e poder. Como mostra Renan: “Les charmantes impossibilités dont fourmillent ses paraboles, quand il met en scène les rois et les puissants, prouvent qu’il ne conçut jamais la société aristocratique que comme un jeune villageois qui voit le monde à travers le prisme de as naïveté.” 409 Por conseguinte, a genialidade de Jesus não é de modo algum aquela que o vulgo concebe como a de um homem capaz de resolver todos os problemas de qualquer área do saber humano. O conhecimento de Jesus, ou melhor, suas sublimes intuições, restringiam-se, segundo Renan, ao que diz respeito à espiritualidade, às aspirações religiosas da espécie humana, ao seu anseio por uma realidade transcendente. E, nessa área específica da experiência humana, Jesus foi, para o historiador francês, o indivíduo mais original que já houve, aquele que conseguiu elevar a noção judaica de Deus, em si, acredita Renan, já bastante superior às até então concebidas, a um grau de perfeição inatingível 410, porquanto, justifica Renan: “Le Dieu de Jésus n’est pas le despote partial qui a choisi Israël pour son peuple et le protége envers et contre tous. C’est le Dieu de l’humanité [...] S’élevant hardiment audessus des préjugés de sa nation, il établira l’universelle paternité de Dieu.” 411 Ora, aqueles que tentam fazer de Jesus um mero taumaturgo cujo carisma e arte no convencimento iludiram os seus seguidores a ponto destes o elevarem a um status divino, agem, de acordo com Renan, por má-fé ou desnecessária petulância ante uma religião que perdurou por milênios nos corações humanos: “Un simple sorcier n’eût pas amené une révolution morale comme celle que Jésus a faite.” 412 A obra de Jesus foi um feito inédito e insuperável: “la religion de Jésus est a quelques égards la religion definitive.” 408 413 Ao lado Renan, Vie de Jésus, p. 74. Renan, Vie de Jésus, p. 74. 410 “Como pode alguém ceder ainda à simploriedade dos teólogos cristãos, e juntamente com eles decretar que a evolução do conceito de deus, do ‘Deus de Israel’, o Deus de um povo, ao Deus cristão, a quintessência de todo bem, é um progresso? – Mas até mesmo Renan faz isso. Como se Renan tivesse direito a simploriedade” (AC § 17). 411 Renan, Vie de Jésus, p. 91. 412 Renan, Vie de Jésus, p. 175. 413 Renan, Vie de Jésus, p. 255. 409 139 de outros grandes mestres e guias da humanidade, Jesus não só demarcou a história de uma área específica das práticas humanas, a saber, a religião, em antes e depois dele, como também fez o mesmo com a história de toda a civilização ocidental. E, afinal, “il a fixé pour toujours la manière dont il faut concevoir le culte pur.” 414 Assim, para Renan, Jesus uniu o homem a Deus por um elo inquebrantável, qual seja, a vida entregue ao amor. “‘Christianisme’ est ainsi devenu presque synonyme de ‘religion’ [...] Jesús a fondé la religion dans l’humanité, comme Socrate y a fondé la philosophie, comme Aristote y a fondé la science.” 415 Portanto, conclui Renan, no que se refere às coisas religiosas, a despeito dos avanços que ainda podem ser realizados: “le Sermon sur la montagne ne sera pas dépassé.” 416 Por mais difícil que seja acreditar que um único homem possa ter chegado a tal grau de elevação, Renan está convicto de que Jesus foi pessoalmente o realizador desse portentoso feito. Em resposta à teoria do mito como obra coletiva feita por Strauss em sua Das Leben Jesu, Renan atribui à mediocridade dos tempos atuais a incompreensibilidade de que um homem como outro qualquer, isto é, que não fosse uma encarnação divina ou uma mera lenda, tenha desenvolvido sozinho um ideal tão perfeito. Como o historiador afirma: A la vue des merveilleuses créations des âges de foi, deux impressions également funestes à la bonne critique historique s’élèvent dans l’esprit. D’une part, on est porté à supposer ces créations trop impersonnelles; on attribue à une action collective ce qui souvent a été l’œuvre d’une volonté puissante et d’un esprit supérieur. D’un autre côté, on se refuse à voir des hommes comme nous dans les auteurs de ces mouvements extraordinaires qui ont décidé du sort de l’humanité. 417 Renan admite que a sociedade ocidental hodierna seja incapaz de produzir esses casos formidáveis, isso porque o homem atual se vê tolhido pelas condições que a civilização lhe impõe para que o mesmo seja por ela acolhido. Em um mundo como esse, Jesus seria banido como um louco inconseqüente, não seria sequer ouvido e sua obra morreria antes mesmo de haver nascido. Mas, num tempo e num lugar em que a individualidade não é sufocada, em que os homens são livres para fazerem de si mesmos 414 Renan, Vie de Jésus, p. 256. Renan, Vie de Jésus, p. 255. Cf. FP 11 [399] de novembro de 1887 – março de 1888. 416 Renan, Vie de Jésus, p. 256. 417 Renan, Vie de Jésus, p. 257. 415 140 algo original, casos como Jesus não são de modo algum inesperados. São épocas como essas em que os gênios precisam se tornar heróis. Assim, Renan esclarece: Dégagées de nos conventions polies, exemptes de l’éducation uniforme qui nous raffine, mais qui diminue si fort notre individualité, ces âmes entières portaient dans l’action une énergie surprenante. Elles nous apparaissent comme les géants d’un âge héroïque qui n’aurait pas eu de réalité. Erreur profonde! Ces hommeslà étaient nos frères; ils eurent notre taille, sentirent et pensèrent comme nous. Mais le soufle de Dieu était libre chez eux; chez nous, il est enchaîné par les liens de fer d’une société mesquine et condamnée à une irrémédiable médiocrité. 418 O ideal de Jesus não foi, pois, concebido por um deus, e tampouco consiste numa conquista coletiva fixada na forma de um mito como o quer Strauss, foi obra de um homem. Por isso, diz Renan: “Plaçons donc au plus haut sommet de la grandeur humaine la personne de Jésus.” 419 Renan tem consciência de que muitos atribuem aos seguidores de Jesus a criação da imagem de um ser perfeito. Por isso, o historiador assevera que a despeito dos traços literalmente divinos na representação de Jesus, os seus seguidores, longe de o retratarem como um ser sublime, foram responsáveis pela depreciação e desfiguração da natureza essencial e original de sua obra. Como explica Renan: Bien loin que Jésus ait été créé par ses disciples, Jésus se montre en tout supérieur à ses disciples. Ceux-ci, saint Paul et peut-être saint Jean exceptés, étaient des hommes sans invention ni génie. Saint Paul lui-même ne supporte aucune comparaison avec Jésus, et, quant à saint Jean, il n’a guère fait, en son Apocalypse, que s’inspirer de la poésie de Jésus [...] De là ce sentiment de chute pénible qu’on éprouve en passant de l’histoire de Jésus à celle des apôtres. 420 Pior do que tentar ler Jesus nos Evangelhos, portanto, é querer lê-lo através dos escritos paulinos e joaninos, ou dos Atos dos Apóstolos de influência paulina. Nesses escritos, torna-se patente à distância entre Jesus e aqueles que pretenderam continuar sua obra. A genialidade de Jesus se ausenta inteiramente no espírito daqueles que se diziam “divinamente inspirados” na tentativa de seguir seus passos. Os próprios evangelistas se viram obrigados a rebaixar Jesus até sua própria pequenez em suas narrativas, nelas, diz Renan: 418 Renan, Vie de Jésus, p. 257. Cf. FP 11 [400] de novembro de 1887 – março de 1888. Renan, Vie de Jésus, p. 257. 420 Renan, Vie de Jésus, pp. 257-258. 419 141 On entrevoit à chaque ligne un original d’une beauté divine trahi par des rédacteurs qui ne le comprennent pas et qui substituent leurs propres idées à celles qu’ils ne saisissent qu’à demi. En somme, le caractère de Jésus, loin d’avoir été embelli par ses biographes, a été rapetissé par eux. La critique, pour le retrouver tel qu’il fut, a besoin d’écarter une série de méprises provenant de la médiocrité d’esprit des disciples. Ceux-ci l’ont peint comme ils le concevaient, et souvent, en croyant l’agrandir, l’ont en réalité amoindri. 421 Apesar de Jesus ser, para Renan, o único e legítimo fundador do culto puro, da verdadeira religião, suas inspirações não surgiram do nada, para tanto, toda a humanidade, de certa forma, colaborou. Assim como vários progressos humanos foram alcançados, por diferentes vias, quase que simultaneamente através do globo por homens que nunca tinham ouvido falar uns dos outros ou dos seus avanços particulares, o mesmo se deu no caso de Jesus: sua originalidade está em ter intuído espontaneamente os maiores avanços espirituais alcançados até então e os ter levado a um novo nível. Renan acredita que o espírito de Jesus foi um oceano para onde escoaram, por vias desconhecidas, as idéias mais importantes alcançadas ao redor do mundo por sábios inspirados, e, nele, elas se fortaleceram até adquirirem uma densidade única. Como Renan defende: Jésus ignorait jusqu’au nom de Bouddha, de Zoroastre, de Platon, il n’avait lu aucun livre grec, aucun soutra bouddhique, et cependant il y a en lui plus d’un élément qui, sans qu’il s’en doutât, venait du bouddhisme, du parsisme, de la sagesse grecque. Tout cela se faisait par des canaux secrets et par cette espèce de sympathie qui existe entre les diverses portions de l’humanité. Le grand homme, par un côté, reçoit tout de son temps ; par un autre, il domine son temps. Montrer que la religion fondée par Jésus a été la conséquence naturelle de ce qui avait précédé, ce n’est pas en diminuer l’excellence ; c’est prouver qu’elle a eu sa raison d’être, qu’elle fut légitime, c’est-à-dire conforme aux instincts et aux besoins du cœur en un siècle donné. 422 Jesus foi, então, para Renan, um gênio inspirado pelas aspirações religiosas mais sublimes já alcançadas. Ademais, seu surgimento foi fruto de um lugar e de uma época em que isso era possível e inevitável, assim como foi o surgimento dos grandes filósofos da antiguidade grega e dos brilhantes artistas do Renascimento. Em vista disso, Renan afirma: 421 422 Renan, Vie de Jésus, p. 258. Renan, Vie de Jésus, pp. 259-260. 142 Chaque branche du développement de l’humanité, art, poésie, religion, rencontre, en traversant les âges, une époque privilégiée, où elle atteint la perfection sans effort et en vertu d’une sorte d’instinct spontané. Aucun travail de réflexion ne réussit à produire ensuite les chefs-d’œuvre que la nature crée à ces moments-là par des génies inspirés. Ce que les beaux siècles de la Grèce furent pour les arts et les lettres profanes, le siècle de Jésus le fut pour la religion. La société juive offrait l’état intellectuel et moral le plus extraordinaire que l’espèce humaine ait jamais traversé. 423 Mas nada disso diminui, porém, para Renan, a realeza de Jesus. Afinal, esclarece o historiador, o aparecimento do mestre galileu na terra é o que mais dignificou a grandeza da espécie humana; em sua figura se concentraram as mais fantásticas potencialidades e esperanças da humanidade. Na luta pela realização de seu sonho, Jesus levou os homens, assim Renan acredita, ao mais próximo possível de uma realidade sagrada: “Cette sublime personne, qui chaque jour préside encore au destin du mond, il est permis de l’appeler divine, non en ce sens que Jésus ait absorbé tout le divin, ou lui ait été identique, mais en ce sens que Jésus est l’individu qui a fait faire à son spèce le plus grand pas vers le divin.” 424 1.10 – O erro de Renan em questões psicológicas A importância de Renan como interlocutor de Nietzsche na investigação sobre o tipo psicológico de Jesus encontra-se igualmente no fato de que o historiador francês também chegou a anunciar nitidamente o desejo de realizar uma tarefa muito semelhante à que o filósofo se propõe. Quando jovem, em 1845, Renan, sofrendo gravemente com crises de consciência quanto à sua convicção na fé cristã, redigiu o ensaio Examen psychologique de Jésus-Christ 425, no qual ele afirmava: “J’entreprends d’analyser Jésus-Christ comme un fait psychologique et historique, de l’apprécier, de l’expliquer s’il est explicable, et, s’il ne l’est pas, de tomber à genoux et de jeter tout entre les bras de Dieu.” 426 Portanto, existe uma certa aproximação entre o anseio de Renan ao escrever sua Vie de Jésus e a tentativa feita por Nietzsche em O Anticristo, pois a aspiração do historiador francês sempre foi a de 423 Renan, Vie de Jésus, p. 260. Renan, Vie de Jésus, p. 261. 425 Cf. a introdução feita por Laudyce Rétat, In: Renan, Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 1, 1995. 426 Apud Rétat, Loc. Cit., p. 4. 424 143 fazer uma reconstituição histórica de Jesus apoiada em observações psicológicas. Ora, Renan formula o seu problema da seguinte forma: “Voici donc la plus simple expression de mon problème. Expliquer s’il est possible par les lois psychologiques l’apparition de JésusChrist ou la rattacher aux temps et aux lieux où il a paru.” 427 Isto é, Renan deseja apreender Jesus a partir do ambiente em que o mesmo viveu. Descobrir como, de acordo com as convenções psicológicas, o espírito do mestre da Galiléia se formou a partir do contato com um lugar e com uma época determinada, mostrando como juízos préconcebidos em um período mais recente podem acabar por desfigurar o seu caráter. Esse é o procedimento que o historiador exibe diversas vezes ao longo de sua explicação das origens do cristianismo em Vie de Jésus. Como ele esclarece: L’histoire pure doit construire son édifice avec deux sortes de données, et, si j’ose le dire, deux facteurs: d’abord, l’état général de l’âme humaine en un siècle et dans un pays donnés; en second lieu, les incidents particuliers qui, se combinant avec les causes générales, ont déterminé le cours des événements. 428 Logo, o lugar, o momento, em suma, a atmosfera na qual a alma de Jesus estava inserida assume, em Vie de Jésus, uma importância decisiva para a reconstituição de seu caráter. Para Nietzsche, por sua vez, o que interessa é muito mais diagnosticar o tipo psicológico de Jesus e entender como essa constituição fisio-psicológica determinada estabelece suas relações com o ambiente externo de acordo com suas necessidades mais básicas. O que pesa nas apreciações de Nietzsche é, então, em primeiro lugar, a compleição intrínseca de Jesus, ainda que tal compleição seja, de fato, congenialmente, consequência de um meio ambiente degenerado e insalubre; tanto é assim que a identificação e compreensão de semelhante ambiente constitui um fator de extrema importância para o diagnóstico dessa mesma compleição. Dessa forma, a reconstituição histórica da alma 429 de Jesus é o primeiro deslize cometido por Renan em questões psicológicas. Como aponta Nietzsche: “As tentativas que conheço de extrair dos evangelhos até a história de uma alma me parecem prova de uma 427 Ibidem. Renan, Vie de Jésus, p. 14. 429 Em Nietzsche, está excluída qualquer possibilidade de se fazer a história de uma “alma”, pois essa noção platônico-dualista não passa de uma falsidade. Sobre essa crítica específica de Nietzsche à obra Vie de Jésus como irrisória tentativa de se extrair dos Evangelhos a história de uma “alma”, cf. Sommer, Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”, pp. 291-292. 428 144 execrável leviandade psicológica”. 430 O segundo e mais grave erro de Renan no terreno psicológico foi ter mobilizado os conceitos herói e gênio para esclarecer quem foi Jesus e qual o caráter de sua obra. Em virtude disso, Nietzsche denuncia: “O senhor Renan, esse bufão in psychologicis, utilizou em sua explicação do tipo Jesus os dois conceitos mais inadequados que pode haver nesse caso: o de gênio e o de herói (‘héros’)”. 431 1.11 – Crítica ao Jesus “herói” e “gênio” de Renan O tipo psicológico de Jesus diagnosticado por Nietzsche, qual seja, idiota, não poderia se compatibilizar com a noção de herói, isto é, alguém que, como Renan afirma, decide lutar para que o seu ideal se torne realidade, alguém que combate, alguém que não aceita, que nega as coisas tais como são e resolve mudá-las. Nada disso, na interpretação de Nietzsche, pode adequar-se ao tipo de Jesus e à realidade evangélica vivenciada por ele. 432 A não-resistência é uma condição de existência para o tipo idiota, uma condição fisiológica que se transmutou em moral. Como conceber, pois, um ser cujo instinto é nunca se opor, em pleno combate com a casta sacerdotal dos judeus e contra todos os poderosos do mundo como o quer Renan? “Fazer de Jesus um herói!” 433 , exclama Nietzsche. Ora, pelo contrário, o filósofo observa em um fragmento póstumo: “Em seus instintos mais profundos, Jesus é não-heróico [unheroisch]: não luta jamais: quem vê nele algo como um herói, como faz Renan, vulgarizou o tipo até torná-lo irreconhecível”. 434 Nietzsche admite, entretanto, que a prática de Jesus agredia necessariamente a Lei judaica, pois denunciava toda a sua crueza, incoerência e prejuízo, porém, Jesus não atacou deliberadamente a Igreja judaica, ele não poderia, não possuía constituição alguma para isso. Jesus não tinha, portanto, de acordo com Nietzsche, real consciência das conseqüências advindas de sua prática. O quadro elaborado por Renan de uma vida de Jesus concebida nos moldes de um drama trágico é uma incongruência psicológica, já que Jesus não pode ser considerado um herói, muito menos um herói trágico, isto é, um herói cujo sacrifício represente a 430 Cf. AC § 29. Cf. AC § 29. 432 Cf. AC § 29. 433 Cf. Ibidem. 434 FP 14 [38] da primavera de 1888. 431 145 perpetuação, intensificação e renovação da vida. Com isso não queremos dizer que Nietzsche faça algum tipo de condenação da morte trágica do herói em si, ou mesmo que ele critique a maneira como Renan elabora a morte de seu “herói”, a imprecisão de Renan é, nesse aspecto, muito mais psicológica do que estético-literária. Também encontramos um dado interessante sobre a não tragicidade da figura de Jesus em Crepúsculo dos ídolos: “Pode um asno ser trágico? – Sucumbir sob um fardo que não se pode levar nem deitar fora?...” 435 É provável que a palavra “asno” se refira aqui a Jesus. 436 A visão de um Jesus revolucionário proposta por Renan também irá mostrar-se como uma concepção falsa e incoerente levando-se em conta o tipo psicológico do redentor que Nietzsche diagnostica, porém, isso também não significa que o filósofo desqualifique a ação revolucionária em si, mas tão somente o retrato de Jesus como herói revolucionário feito por Renan. Jesus também não pode ser um gênio. O tipo idiota só conhece uma única realidade: suas vivências interiores. Todo o mundo exterior é, em sua efetividade, desconhecido para ele. Imaginar, como faz Renan, que Jesus tenha, mediante inspirações e intuições originais, contribuído para elevar o saber pavimentado por outros fundadores de religiões ao redor do mundo é, para Nietzsche, um total absurdo. Toda a idéia de cultivo da individualidade por meio de aquisições de conhecimentos culturais, isto é, a noção de formação espiritual, não pertence à realidade na qual o tipo psicológico de Jesus habita. Tudo aquilo que um tal tipo concebe é de fato original, mas no sentido de único, exclusivo, próprio, que jamais pertenceu a qualquer um, que não é, pois, um bem cultural nem fruto de um cultivo da individualidade. A forma como o tipo de Jesus interpreta as coisas é proveniente de um voltar-se sobre si mesmo, de um extremo cuidado para com as suas vivências íntimas, para a sua interioridade. Assim sendo, o olhar de Jesus sobre o mundo não foi, segundo 435 CI, Máximas e Flechas § 11. Como esclarece Souladié: “No Zaratustra, a heresia é simbolizada pela festa do asno, durante a qual todos os homens superiores, incluído o sábio representado pelo ‘espírito consciencioso’, vêm a se prostrar diante do ideal cristão, diante do deus morto ressuscitado sob a forma de um asno. Nessa ocasião, Zaratustra manifesta seu desprezo em relação a esses homens superiores ainda incapazes de fazerem o funeral de deus, e recusa esse ideal do asno-Cristo, fruto da negação de um mundo anterior ao cristianismo, fruto da maldição originária lançada contra o dionisíaco grego. Em Ecce Homo, Nietzsche estabelece claramente a ligação entre o asno e Cristo, sublinhando a origem grega desse Anticristo que se opõe a eles: ‘Eu sou o antiasno por excelência e nisso um monstro histórico-mundial – eu sou em grego, e somente em grego, o Anticristo....’ O Anticristo é um antiasno, seu objetivo não é restaurar a palavra original do Evangelho, como o querem Jaspers e Blondel, mas de declarar uma guerra contra o cristianismo apoiando-se nos valores dionisíacos gregos” (“Christ et Antichrist: figures de l’inversion des valeurs chez Nietzsche”, pp. 155-156). 436 146 Nietzsche, adquirido por uma formação espiritual, ou, como defendia Renan, intuído por ele ao respirar como ninguém a atmosfera do saber religioso de sua época, foi, sim, o resultado de sua percepção sobre qual seria a melhor maneira para ele, ou seja, para alguém com a sua constituição, relacionar-se com o mundo com vistas a poder experimentar a suprema beatitude. 147 148 2 – O PROJETO DE UMA PSICOLOGIA DO REDENTOR Em O Anticristo, Nietzsche afirma que a origem do cristianismo está numa rebelião das camadas mais baixas no interior do judaísmo contra a ordem sacerdotal que já exercia um poder mundano semelhante aquele contra o qual a mesma se revoltou na sua origem. Como atesta Nietzsche em O Anticristo: “Não vejo contra o que se dirigia a rebelião da qual Jesus foi entendido – ou mal-entendido – como sendo o causador, se não foi uma rebelião contra a Igreja judia”. 437 Sendo assim, é novamente como reação a uma realidade exterior que o ressentimento opera aqui uma nova e definitiva investida contra todo e qualquer poder temporal e contra todo e qualquer valor que possa vir a afirmar e legitimar uma vida ascendente a fim de que as naturezas malogradas possam se conservar e exercer um domínio qualquer. Se no judaísmo, a ânsia por poder era mitigada com a esperança em um futuro domínio terreno, no cristianismo, ela é direcionada a um outro mundo, ao mundo do além, ao próprio nada, no qual todas as mazelas e perigos do mundo efetivo encontramse ausentes e no qual a vida mesma jamais poderia vir a se efetivar. O cristianismo representa, pois, a negação suprema da vida e dos valores vitais. Entretanto, de acordo com Nietzsche, para levar a cabo essa [segunda] rebelião dos escravos na moral, o primeiro atentado operado por esse movimento precisou ter como alvo a figura de seu suposto fundador, a primeira grande vítima da distorção operada pelo ressentimento cristão. Por isso, Nietzsche problematiza: “Uma questão inteiramente outra é se ele tinha ou não consciência [Bewusstsein] dessa oposição – se foi apenas percebido [empfunden] como representando essa oposição”. 438 Sendo assim, é mister, segundo Nietzsche, reconstituir a figura de Jesus de Nazaré e diferenciá-la da imagem deturpada na qual a cristandade se funda, ou seja, o Crucificado, visto que, a partir do fatídico destino de Jesus na cruz, a sua vida, a sua obra, a sua morte e mesmo o pós-morte, foram reinterpretadas pela ótica ressentida dos apóstolos e pelo ascetismo farisaico de Paulo de Tarso. Sem que se aponte isso, é impossível, conforme o filósofo, compreender o terreno no qual o cristianismo brotou e qual a sua real e funesta natureza. 437 AC § 27. Na tradução de Paulo César de Souza, lê-se “Jesus Cristo”, mas na KSA consta apenas “Jesus”. Na tradução de Zwick consta, corretamente, apenas “Jesus”. 438 AC § 28. 149 Nietzsche sustenta, contudo, que uma reconstituição da autêntica figura de Jesus não pode ser efetuada mediante uma análise histórica, porquanto a deformação operada pela cristandade em torno da figura de Jesus, cujo maior indício são os documentos e as “tradições” que narram os episódios de sua vida e morte e que apresentam os seus supostos ensinamentos, acabou erigindo uma barreira instransponível para qualquer investigação dos dados disponíveis que recorra aos instrumentos usuais que a história costumava empregar. Ademais, saber se Jesus tinha ou não consciência da oposição das classes baixas que acabou levando o seu nome contra o estado sacerdotal judeu é uma questão de ordem completamente distante de uma análise histórica habitual. O que se exige aqui é outro tipo de abordagem, a saber, uma investigação de natureza psicológica. 439 Como esclarece Nietzsche: “E apenas nesse ponto [saber se Jesus tinha ou não consciência daquela oposição, é que] eu toco no problema da psicologia do redentor [das Problem der Psychologie des Erlösers]”. 440 Destarte, saber se Jesus fez parte conscientemente do levante que leva o seu “nome”, depende, em última instância, do conhecimento acerca de seu tipo psicológico, única via pela qual a autêntica figura de Jesus de Nazaré pode vir a ser revelada. 2.1 – A elaboração do projeto de uma psicologia do redentor Com o objetivo de acompanharmos de maneira mais atenta o desenvolvimento do pensamento de Nietzsche no que diz respeito à investigação do tipo psicológico do redentor, tentaremos traçar um breve itinerário de como esse problema começou a tomar forma e se constituir nos fragmentos finais do filósofo. De início, temos que ressaltar a necessidade de se tomar O Anticristo como sendo o acabamento e a forma definitiva dessa discussão, pois durante um intervalo de apenas um ano e meio, pode-se verificar a intensidade com que o pensamento de Nietzsche vai se alterando e amadurecendo, e como muitas das perspectivas postas em movimento nos póstumos constituem momentos 439 Para o entendimento do conceito nietzschiano de “psicologia”, Cf. Giacoia Junior, Oswaldo. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo, RS: Editora UNISINOS, 2001. 440 AC § 28. 150 provisórios na investigação, tentativas interpretativas que, mais adiante, podem receber uma nova configuração ou serem até mesmo abandonadas. Podemos fixar o fragmento 11 [236] de novembro de 1887 a março de 1888 como o marco que delimita o momento no qual o tipo psicológico do redentor começa a se constituir de forma mais clara como um problema a ser investigado. Neste fragmento, Nietzsche inicia uma série de apontamentos, que vai até o fragmento 11 [282] do mesmo período, resultantes de sua leitura da obra Ma religion, de Tolstói. Nossa escolha é sem dúvida arbitrária, porém optamos por ela por uma questão meramente metodológica, já que, por mais que não possamos precisar quando exatamente Nietzsche entra em contato com outras obras fundamentais para essa investigação, podemos estar mais seguros, por outro lado, de que é a partir desse fragmento que ele sente necessidade de revisar e registrar leituras que ele talvez já tivesse feito anteriormente. Ora, o primeiro fragmento que atesta a leitura que Nietzsche fez de Sensation et mouvement, de Féré, é o 11 [361] daquele mesmo período; dos Prolegomena, de Wellhausen, é o 11 [377]; de Les Possédés, de Dostoiévski, é o 11 [331]; da releitura de Vie de Jésus, de Renan, é o 11 [382]. Contudo, a obra Genealogia da moral já apresenta o uso de um vocabulário médico-psiquiátrico que acusa um conhecimento bem mais remoto da obra Sensation et mouvement, de Féré, o mesmo pode ser dito a respeito do fragmento 11 [228] de novembro de 1887 a março de 1888. Alguns fragmentos do outono de 1887, também já antecipam algumas teses de Wellhausen, e, ainda que Nietzsche não faça nenhuma referência direta aos Prolegomena antes do fragmento 11 [377] de novembro de 1887 a março de 1888, nossa suposição é de que ele já havia lido essa obra anteriormente. 441 Também não se sabe qual foi o número exato de obras que Nietzsche leu de Dostoiévski, nada impede, portanto, que o filósofo tenha entrado em contato com outros livros do romancista que também tenham sido importantes 441 Nietzsche parece entrar em contato com os trabalhos de Wellhausen já em 1883, ano de lançamento dos Prolegomena, como indica o fragmento póstumo 15 [60] do verão – outono de 1883, que consiste em uma lista de nome de autores, na qual figura o nome do historiador; e o fragmento 29 [67] de outono de 1884 e início de 1885, que consiste em uma lista de autores e obras, na qual Nietzsche inclui Wellhausen e sua a obra Skizzen und Vorarbeiten. Erstes Heft. Berlin: 1884. Cf. Sommer, Andreas Urs, “Beiträge zur Quellenforschung”, in: Nietzsche Studien, Band 30, 2001, e ver AC § 16 . Nietzsche também lê o terceiro volume de Skizzen und Vorarbeiten, Berlin, 1887, entre janeiro e abril de 1888 (cf. FP 11 [287-293] de novembro e março de 1888). Assim como, talvez na mesma época, Reste arabischen Heidentums, Berlin 1887, cf. Sommer, Loc. Cit., e ver AC § 42. 151 para a investigação do tipo de Jesus além de Les Possédes. Sabemos igualmente que Nietzsche já conhecia muito bem o livro de Renan, mas que sentiu necessidade de revisá-lo naquele momento, provavelmente impulsionado pela leitura de Tolstói, que trouxe um novo rumo para suas investigações. Uma dificuldade particular diz respeito aos trabalhos de Féré. A importância das obras Sensation et mouvemet e Dégénéréscence et criminalité para o embasamento médicopsiquiátrico que Nietzsche utilizará para o seu diagnóstico e interpretação do tipo do redentor é enorme. Porém, em tal caso, é extremamente difícil e arriscado estabelecer uma reconstrução cronológica mais linear, uma vez que Nietzsche parece ter retornado a essas leituras em diferentes momentos. Nossa suposição é de que pelo menos desde novembro de 1887 a março de 1888 (ou até um pouco antes) 442 , Nietzsche já havia entrado em contato com Sensation et mouvement, e, na primavera de 1888, com Dégénéréscence et criminalité. 443 Sendo assim, as leituras de todas as outras obras utilizadas como fontes para o projeto de uma psicologia do redentor estão associadas com um estudo aprofundado do trabalho de Féré (sobretudo e primeiramente, Sensation et mouvement, e, depois, Dégénéréscence et criminalité) 444, que enriqueceu essas leituras e foi por elas enriquecido, como uma espécie de pano de fundo ou fio condutor científico para todas essas discussões. As principais contribuições do trabalho de Féré para a psicologia da redenção dizem respeito aos conceitos de hiperexcitabilidade, esgotamento, induction psychomotrice, sugestão, descarga e folie circulaire. Mediante esses conceitos, Nietzsche pôde demonstrar a realidade fisiopsicológica da redenção e sua relação com estados mórbidos de sujeitos degenerados. O fenômeno da hiperexcitabilidade, particularmente, constitui a base fisiológica da chamada doutrina da redenção de Jesus, isto é, a máxima da não resistência e a noção do reino de Deus como um estado do coração. Féré também contribuiu bastante para o entendimento da idiotia como enfermidade degenerativa e seu papel para o fim da cadeia degenerativa hereditária e progressiva. 442 Cf. FP 9 [165] do outono de 1887. Cf. FP 15 [37] da primavera de 1888. 444 Principalmente porque o diagnóstico do tipo de Jesus como idiota já é dado no fragmento póstumo 14 [38] da primavera de 1888, antes, portanto, do provável início da leitura de Dégénéréscence et criminalité, cuja primeira constatação encontra-se apenas no FP 15 [37] da primavera de 1888. 443 152 Tentar rastrear a gênese do projeto de uma psicologia do redentor é também arriscado porque muitos temas que recebem uma nova configuração no último período do pensamento do filósofo já haviam sido problematizados em outras obras. Podemos destacar, como exemplo, o segundo volume de Humano, demasiado humano, particularmente, a seção “Opiniões e sentenças”, que possui bastante aproximação com os temas desenvolvidos em O Anticristo, por exemplo: sobre os “atos dos apóstolos” na falsificação da figura de Jesus assassinato” 446 445 ; sobre a morte de Jesus, um “suicídio mascarado” “de ; o poder de sedução do cristianismo enquanto “religião do amor” 447 ; o “erro” em se acreditar bem aventurado que “pode converter a promessa de Cristo em verdade” 448 ; a Bíblia como livro que exprime “a íntima e fervorosa felicidade na crença e contemplação de sua verdade como a verdade derradeira” “bálsamo e veneno” 450 449 ; o cristianismo como , etc. Contudo, apesar da proximidade temática, muitas dessas interpretações não se coadunam com a perspectiva lançada em O Anticristo. Também devemos mencionar que em alguns fragmentos anteriores ao 11 [236] de novembro de 1887 a março de 1888, já é possível verificar os primeiros movimentos que levariam Nietzsche a identificar a existência de um problema psicológico na gênese do cristianismo, sobretudo, sob o impulso de uma muito provável primeira leitura de Wellhausen. Esses fragmentos fazem parte do primeiro esboço de uma planejada obra que nunca veio a lume. Entre outubro e dezembro de 1887, em Nice, Nietzsche começa a redigir sob uma nova forma suas notas precedentes em vista à obra Vontade de poder: ensaio de uma transvaloração de todos os valores. Em uma carta a Heinrich Köselitz de 13 de fevereiro de 1888, Nietzsche afirma a respeito dessa primeira organização dos fragmentos: “Terminei a primeira redação de meu ‘Ensaio de uma transvaloração dos valores’: no geral, foi uma tortura, não tenho ainda absolutamente a coragem necessária. Farei melhor em dez anos”. E, em uma nova carta a Köselitz, datada de 26 de fevereiro de 1888, ele diz: “Não creias sobretudo que eu fiz novamente ‘literatura’: essa redação foi para 445 Cf. OS § 15. Cf. OS § 94. 447 Cf. OS § 95. 448 Cf. OS § 96. 449 Cf. OS § 98. 450 Cf. OS § 224. 446 153 mim; a partir de agora, todo inverno, redigirei assim, para mim, meu pensamento – todo idéia de ‘publicação’ está propriamente excluída”. Esse esboço abandonado da “Vontade de poder” constitui o caderno W II 1, W II 2 (ambos são os fragmentos de outono de 1887), e boa parte do W II 3 (fragmentos de novembro 1887 e março de 1888), mais precisamente, as 58 primeiras páginas do caderno, terminando no fragmento 11 [139]. Há ainda uma classificação feita por Nietzsche dos fragmentos desse esboço da “Vontade de poder” que se encontra no caderno W II 4. No registro do W II 4, Nietzsche seleciona, classifica e enumera aqueles que ele pretendia conservar para a nova obra e que ele começa a organizar em um plano (que previa quatro livros em doze capítulos). Uma numeração dos fragmentos desse esboço, feita pelo próprio Nietzsche, vai de 1 a 372. Ao lado direito dos títulos ou locuções mnemônicas da maioria dos fragmentos, Nietzsche adiciona uma numeração que vai de I a IV, muito provavelmente referente ao capítulo ao qual cada fragmento se destinava. A maioria dos fragmentos que lida com a crítica ao cristianismo estava destinada ao capítulo II. Nietzsche considera essa primeira redação concluída e acabada. Essa é a versão mais completa que resta daquilo que viria a ser a obra “Vontade de poder”, porém, Nietzsche abandona inteiramente a idéia de publicá-la sob esta forma. O restante do W II 3 (140 páginas do caderno), 277 fragmentos no total, é escrito por Nietzsche entre o início de fevereiro e o fim de março de 1888. Neste caderno, as reflexões pessoais do filósofo são freqüentemente interrompidas por extratos colhidos de suas leituras; o conteúdo dos fragmentos que possuem caráter discursivo está estreitamente ligado com a leitura dessas obras.451 E é justamente nessa segunda parte do caderno W II 3, que o projeto de uma psicologia do redentor começa a tomar forma. 452 451 A ordem cronológica dessas leituras (excetuando as obras Sensation et mouvement e Dégénéréscence et criminalité de Féré pelos motivos já mencionados) é:  Charles Baudelaire, Oeuvres posthumes et correspondances inédites, éditée par E. Crépet, Paris, 1887.  Léon Tolstoï, Ma religion, Paris, 1885  Julius Wellhausen, Skizzen und Vorarbeiten. Trosième cahier: Les survivances du paganisme arabe, Berlin, 1887 (figura na BN com numerosos traços de leitura)  Jornal des Goncourt. Premier tome: 1851-1861, Paris, 1887.  Benjamin Constant, Quelques réflexions sur le théatre allemand, Paris-Genève, 1809.  Théodor Dostoïevsky, Les possédés (Béssi). Traduit du russe par V. Derély, Paris, 1886.  Julius Wellhausen, Prolegomena zur Geschichte Israels. Seconde édition, Tome I, Berlin, 1883 (figurava na BN, com numerosos traços de leitura, infelizmente destruído em um incêndio em 2004). 154 Mas, naqueles fragmentos que faziam parte do esboço da “Vontade de poder”, Nietzsche já fala, por exemplo, da exacerbação moral e irracionalidade da máxima “amai vosso inimigo” 453; classifica Jesus como “grande democrata”, ao lado de Rousseau, Lutero e Sócrates 454; provavelmente como resultado da leitura de Wellhausen, expõe o caráter não inocente do Novo Testamento sacerdotal 456 455 ; Paulo já aparece como o maior herdeiro do código ; o filósofo faz um estudo da oposição entre “fé” e “obras” como “apóstolo do amor” 458 457 ; fala de Jesus ; faz aquilo que provavelmente é um resumo das principais teses de Wellhausen, destacando o mecanismo utilizado pelo sacerdote judeu para fazer com que sua vontade apareça como vontade de Deus 459; o papel de Paulo na fundação do cristianismo recebe grande destaque, sua vida ideal como a vida das pequenas famílias judias da diáspora e não a das famílias reinantes 460; o filósofo também lança claramente a hipótese de que a falsificação da história de Israel (Wellhausen) inaugurou os procedimentos que seriam utilizados mais tarde para falsificar as narrativas sobre a vida de Jesus 461 ; Paulo é tido cada vez mais como grande inventor do cristianismo e falsificador dos ensinamentos de Jesus 462 : “Paulo: o orgulho desenfreado, e mesmo demente, de um  Ernest Renan, Vie de Jésus (Histoire des origines du christianisme). Livre premier, Paris 1883. Entre 5 de abril e 5 de junho de 1888 nasce o Caso Wagner, e entre 6 de junho e 20 de setembro, após um último plano intitulado “Vontade de poder: ensaio de uma transvaloração de todos os valores”, e datado da mão de Nietzsche em 29 de agosto, ele se de decide pela publicação de sua filosofia in nuce (ou seja, pela obra que mais tarde será o Crepúsculo dos ídolos, e uma outra obra em quatro livros que ele nomeia “Transvaloração de todos os valores”). É a partir daquele material redigido para o primeiro esboço da “Vontade de poder”, e também dos novos cadernos, que surge uma primeira versão do Crepúsculo dos ídolos, desta primeira versão, Nietzsche separa em seguida o material que continha a crítica ao cristianismo e a utiliza para compor as 24 primeiras seções de O Anticristo. E entre 15 a 30 de setembro, O Anticristo é finalizado. Cf. para isso e para toda a discussão sobre a composição dos últimos fragmentos, Colli, Giorgio e Montinari, Mazzino, Chronik zu Nietzsches Leben (KSA, 15). Cf. também Montinari, Mazzino. “Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos Ídolos”. Tradução Ernani Chaves. In: Cadernos Nietzsche, n.º 3, São Paulo: 1997, p. 77-91. 453 Cf. FP (11) 9 [16] do outono de 1887. 454 Cf. FP 9 [25] do outono de 1887. 455 Cf. FP (39) 90 [50]; (63) 9 [88] do outono de 1887. 456 Cf. FP (82) 9 [124] do outono de 1887. 457 Cf. FP (178) 10 [49] do outono de 1887. 458 Cf. FP (180) 10 [51] do outono de 1887. 459 Cf. FP 10 [79] do outono de 1887. 460 Cf. FP (212) 10 [92] do outono de 1887. 461 Cf. FP (277) 10 [180] do outono de 1887. 462 Cf. FP (278) 10 [181]; 10 [186] do outono de 1887. 452 155 agitador; de uma astúcia refinada que não se confessa jamais aquilo que quer propriamente”. 463 Coincidentemente ou não, em um fragmento que faz parte daquele esboço da “Vontade de poder” (na verdade um preparatório da seção 45 de O Anticristo), anterior aos apontamentos que foram frutos da leitura de Ma religion, Nietzsche chega a se ocupar longamente com a moral expressa pelo Sermão da Montanha, uma moral sedutora que conclama os baixos e excluídos contra todo tipo de hierarquia, expressão de uma hostilidade profunda dos primeiros cristãos contra as práticas religiosas das “classes reinantes”, ou seja, da Igreja judia. 464 E, em um fragmento de novembro de 1887, Nietzsche afirma que o “fundador do cristianismo” (ainda identificado como Jesus) e seu evangelho do Sermão da Montanha, personificam a “perfection de la mediocrité” 465 , pela qual se explica a razão de semelhante pastor exercer um tal poder de sedução sobre toda espécie de animal gregário. 466 Ora, a tese fundamental pela qual Tolstói crê ser possível desvendar todo o Evangelho, encontra-se exatamente no Sermão da Montanha. Portanto, ainda que Nietzsche já tivesse chegado à conclusão de que há uma continuidade entre a falsificação da história do reino de Israel pelo código sacerdotal e a falsificação da história de Jesus pelos primeiros cristãos, ele ainda não havia encontrado o método que o conduziria a constatação dessa fraude, ou seja, a identificação do tipo psicológico de Jesus, visto que o filósofo ainda não havia conseguido distinguir claramente o que pertencia propriamente a Jesus e o que era fruto de adulteração, é somente após a leitura de Tolstói que Nietzsche encontrará os elementos que lhe permitirão encontrar tal método. No fragmento 11 [236] escrito entre fevereiro e março de 1888, posterior ao esboço da “Vontade de poder”, Nietzsche faz a seguinte anotação que aponta para duas fontes opostas que podem ser identificadas nos Evangelhos, produzidas por dois “partidos” antagônicos, uma constatação abstraída por ele de Ma Religion: “Um partido da paz, sem sentimentalismo, que proíbe a si e aos seus filhos de fazer guerra: que proíbe o uso dos tribunais; que provoca contra si mesmo a luta, a contradição, a perseguição [...] Adversário 463 FP (283) 10 [189] do outono de 1887. Cf. FP 10 [200] de outono de 1887. 465 No aparato crítico da KSA, volume 14, se esclarece que essa é uma referência aos irmãos Goncourt: Journal des Goncourt II, 11 março de 1862. 466 CF FP 11 [32] novembro de 1887 – março de 1888. 464 156 do sentimento de vingança e rancor. [E] Um partido da guerra que procede de um sentido oposto com o mesmo radicalismo e rigor com respeito a si mesmo –”. 467 Ora, esse mesmo antagonismo de fontes pode ser verificado no Velho Testamento, entre os escritos produzidos durante o período da diáspora e os escritos da época do Reino. Nos póstumos seguintes, o cristianismo primitivo (evangelho de Jesus) é visto como abolição do Estado, pois não presta serviço militar, não vai as assembléias, não recorre aos tribunais: interdita a defesa. 468 Sendo assim, pode-se constatar um problema psicológico na gênese do cristianismo: ele não é originalmente (com Jesus) um movimento que provenha do ressentimento, ele “luta” contra este último, busca a reconciliação com o hostil em atos e no coração como condição de distinção e conservação. Eis a dificuldade psicológica que impedia o entendimento psicológico do cristianismo original: ele não combate. Parafraseando Tolstói 470 469 , Nietzsche anota que o “discurso insolente” sobre a justificação pela fé, não passa de falta de coragem para as obras que Jesus exigia. 471 transcreve o versículo 39 do quinto capítulo de Mateus: “não resistir ‘ao mal’” do Evangelho” para Tolstói. 473 472 Nietzsche , a “chave Do então ensaísta russo, Nietzsche anota também a noção de que o cristianismo de Jesus introduz um novo “direito”, que não retribui, não se defende, em contraposição ao antigo direito do “olho por olho”. 474 Também chama a atenção de Nietzsche a tese de Tolstói de que Jesus nega Estado, arte, ciência e civilização seu reino de Deus era o estabelecimento da paz entre os homens oferecido cinco mandamentos 477 476 475 ; que o ; e que ele teria que permitiriam o acesso à “verdadeira vida”, à vida 467 FP 11 [236] de novembro de 1887 – março de 1888. Cf. FP 11 [239] de novembro de 1887 – março de 1888. 469 Cf. FP 11 [240] de novembro de 1887 – março de 1888. O fragmento tem como título “O problema psicológico do cristianismo”. 470 Tolstói, Ma religion, p. 45. 471 Cf FP 11 [243] de novembro de 1887 – março de 1888. 472 Cf. FP 11 [246] de novembro de 1887 – março de 1888. É Nietzsche que coloca “mal” entre aspas. 473 Tolstói, Ma religion, p. 12. 474 Cf. FP 11 [247] de novembro de 1887 – março de 1888. 475 Cf. FP 11 [249] de novembro de 1887 – março de 1888. 476 Cf. FP 11 [268] de novembro de 1887 – março de 1888. 477 Cf. FP 11 [269] de novembro de 1887 – março de 1888. 468 157 segundo a vontade do Senhor, em contraposição a “vida pessoal”. 478 A Igreja cristã é vista como guerra organizada contra o cristianismo (evangelho de Jesus). 479 Não obstante, é necessário salientar que até o fragmento 11 [279] (oposição entre a verdadeira vida oferecida por Jesus e a promessa de uma vida eterna), as anotações de Nietzsche acompanham muito estreitamente as opiniões do próprio Tolstói, seja copiandoas, resumindo-as ou analisando-as, seja ensaiando uma interpretação pessoal, marcando seu distanciamento, ou dando um novo significado às teses do então ensaísta russo, portanto, o conjunto desses fragmentos não pode ser tido sem dificuldades como constituindo em sua totalidade a posição que o próprio Nietzsche irá adotar. Os fragmentos 11 [280] a 11 [282], por sua vez, já mostram mais claramente como Nietzsche irá aproveitar, de acordo com suas próprias necessidades, os resultados obtidos por Tolstói. De todo modo, aquele primeiro conjunto de anotações são imprescindíveis para o entendimento de como o projeto de uma psicologia do redentor começa a ganhar forma, ou seja, com a identificação da “chave” do Evangelho, que aponta para um problema psicológico na gênese do cristianismo, qual seja, a oposição entre os ensinamentos de Jesus e a doutrina da Igreja. No fragmento 11 [280] de fevereiro a março de 1888, Nietzsche atribui ao próprio Jesus a responsabilidade por sua morte, e não aos “pecados da humanidade”, aproximandoo dos jovens niilistas russos condenados por crimes políticos. Por conta dos resultados fornecidos por Tolstói, Nietzsche identifica definitivamente Paulo como o grande inventor do cristianismo, passando a se ocupar minuciosamente com a distinção entre a doutrina que o “apóstolo” fundou e a prática vivida por Jesus. Nietzsche faz uso da tese de Tolstói de que a “verdadeira vida” oferecida por Jesus nada tem a ver com uma sobrevida pessoal, com a salvação da alma, imputando a Paulo a propagação da crença numa vida pessoal eterna, acrescida de símbolos místicos, de elementos provindos dos cultos de mistérios oriundos do paganismo subterrâneo, decadente. Paulo também introduz no cristianismo a noção de hierarquia eclesiástica, inaugura uma teologia e um sacerdócio. 480 Nietzsche aprofunda a identificação das contradições entre a prática de Jesus e a doutrina da Igreja, 478 Cf. FP 11 [271] de novembro de 1887 – março de 1888. Cf. FP 11 [276] de novembro de 1887 – março de 1888. 480 Cf. FP 11 [281] e 11 [282] de novembro de 1887 – março de 1888. 479 158 defende a tese de que a morte de Jesus não representa o fator principal do evangelho e que a crença na imortalidade da alma foi utilizada como forma de sedução das massas. 481 A investigação da psicologia do cristianismo original recebe um novo elemento com a leitura de Les possédés, de Dostoiévski, com a descrição da sensação de “harmonia eterna” do personagem Kírilov. 482 Com essa leitura, Nietzsche intui que a máxima “O reino de Deus está dentro de vós” é a “segunda chave” do Evangelho. Provavelmente um dos fatores que levou Nietzsche a reler Renan posteriormente. Com a apreensão dessa nova “chave”, Nietzsche continua a investigar os malentendidos da Igreja, que confundiu uma realidade íntima, envolta em símbolos psicológicos, com a promessa de um acontecimento temporal. 483 A verdadeira história do cristianismo é lida como uma incompreensão progressiva de um simbolismo sublime, isto é, a vivência do reino de Deus como um estado do coração. 484 A realidade psicológica do cristianismo (evangelho de Jesus) é identificada como o profundo instinto de como alguém (décadent) deve viver para se sentir no céu. 485 Nietzsche analisa a oposição entre os cinco mandamentos de Jesus e a falsificação doutrinária da Igreja. 486 Depois de reconstituído o ideal cristão (evangelho de Jesus), resta avaliá-lo. Ora, o ideal nobre é por ele negado. Ainda que esse ideal de Jesus seja realizável, ele é, porém, climaticamente condicionado, apolítico, nem agressivo nem defensivo, possível somente no interior de uma sólida organização estatal que permite que esses santos parasitas abundem à custa do interesse geral. Uma tal ideal é fruto de um pensamento baixo, pobre. 487 No fragmento 11 [361], temos a grande comprovação da leitura feita por Nietzsche da obra Sensation et mouvemet, de Féré. Este fragmento constitui em parte um extrato colhido por Nietzsche da obra de Féré e, ao mesmo tempo, um texto preparatório de O Anticristo § 7, no qual uma extrema sensibilidade à dor é tida como a causa fisiológica da 481 Cf. FP 11 [294] e 11 [295] de novembro de 1887 – março de 1888. Cf. FP 11 [337] de novembro de 1887 – março de 1888. 483 Cf. FP 11 [354] e 11 [355] de novembro de 1887 – março de 1888. 484 Cf. FP 11 [356] de novembro de 1887 – março de 1888. 485 Cf. FP 11 [357] de novembro de 1887 – março de 1888. 486 Cf. FP 11 [360] de novembro de 1887 – março de 1888. 487 Cf. FP 11 [363] de novembro de 1887 – março de 1888. 482 159 compaixão, que pode conduzir um indivíduo a uma exaustão total de forças, como no caso do Nazareno. Nietzsche se volta, então, diretamente para a investigação do tipo psicológico de Jesus, e descobre um método que pode tornar possível sua reconstituição, apesar da falsificação operada por Paulo e pela Igreja, qual seja: a depuração de traços estranhos acrescentados ao seu tipo e a restituição dos traços originais que lhe foram subtraídos. Esse método foi sugerido a Nietzsche pelo estudo da obra de Wellhausen. São três os fragmentos em que Nietzsche exercita esse método e faz uma tentativa de reconstituir o tipo psicológico de Jesus, esses fragmentos são intitulados, respectivamente: “O tipo de Jesus” 488 , “Para o tipo de Jesus” 489 e “Minha teoria do tipo Jesus”. 490 Nietzsche relê a obra Vie de Jésus, de Renan, copiando e traduzindo diversas passagens entre os fragmentos 11 [384] a 11 [405] de fevereiro a março de 1888, algumas contendo teses que o filósofo utilizará para solucionar problemas específicos de sua interpretação, outras contendo posições defendidas por Renan que Nietzsche irá criticar. Entre esses apontamentos, Nietzsche também destaca a importância, já apontada por Renan, da noção do reino de Deus como um estado do coração para a compreensão do tipo psicológico de Jesus. 491 E, no fragmento póstumo 14 [38] da primavera de 1888, intitulado “Tipo ‘Jesus’”, o tipo psicológico do redentor é, finalmente, diagnosticado: idiota. Ao contrário do que pensava Renan, Jesus não é, portanto, nem gênio e nem herói. É a identificação de suas duas realidades fisiológicas, a partir de suas duas grandes máximas, que permite reconstituir o seu tipo. Mas, Nietzsche conclui no aforismo 15 [9] da primavera de 1888, se o tipo de Jesus é idiota, então, isso significa que Dostoiévski, bem diferente de Renan, “adivinhou Cristo”. 488 Cf. FP 11 [368] de novembro 1887 – março de 1888. Cf. FP 11 [369] de novembro 1887 – março de 1888. 490 Cf. FP 11 [378] de novembro 1887 – março de 1888. 491 Cf. FP 11 [385]; 11 [391] e 11 [392] de novembro 1887 – março de 1888. 489 160 2.2 – O método de Nietzsche Para se ter uma clara noção do método utilizado por Nietzsche em sua busca pela autêntica figura de Jesus empreendida em O Anticristo, é imprescindível delimitar com precisão qual o seu objetivo, para isso é necessário identificar com que problema ele realmente se ocupa aqui, uma questão para qual parece não haver consenso entre os intérpretes que lidaram com o tema. Entre os intérpretes da recepção anglo-saxônica, por exemplo, já se tornou lugar comum ver na interpretação que Nietzsche faz da figura de Jesus uma questão de ordem predominantemente hermenêutica. 492 A investigação do tipo do redentor, em O Anticristo, tem como principal finalidade, para estudiosos como Gary Shapiro 493, demonstrar quais os limites da narrativa histórica a fim de que, com semelhante projeto, seja fundado um importante alicerce para o lançamento de uma transvaloração de todos os valores. Essa posição se baseia na afirmação de Nietzsche de que Jesus é um “grande simbolista”, pois, como idiota, só tinha conhecimento de “realidades internas” 494 , todo o resto era para ele apenas instrumento de expressão, símbolo, metáfora, nada mais do que uma questão de “semiótica”. 495 Sendo assim, a história e principalmente a tradição eclesiástica se encontram impossibilitadas de reconhecer a verdadeira face de Jesus. Somente mediante a conquista de uma visão transvalorada isso pode se tornar possível, e mostrar tal fato seria o maior objetivo de Nietzsche em sua interpretação de Jesus. Todavia, Nietzsche não discute em qualquer momento de O Anticristo a natureza do simbolismo como uma forma de expressão ou a relevância hermenêutica que poderia advir de sua investigação sobre Jesus. O que na realidade Nietzsche pretende mesmo mostrar, nessa investigação em particular, não é aquilo que seria um alicerce para uma transvaloração dos valores (ainda que a mesma investigação seja um elemento, em nossa interpretação, imprescindível para a realização desse projeto), mas tão-somente qual o tipo psicológico do redentor. 492 Cf., por exemplo, Murphy, Tim. “Nietzsche’s metaphors for Jesus”. Nietzsche, metaphor, religion. New York: State University of New York Press, 2001, Cap. 7, pp. 111-126. 493 Cf. Shapiro, Gary. “The text as graffito: historical semiotics (The Antichrist)”. In: Nietzschean narratives. Indianapolis: Indiana University Press, 1989, pp. 124-141. 494 AC § 34. 495 AC § 32. 161 Na recepção brasileira, por seu turno, o objetivo pelo qual Nietzsche empreende uma reconstituição da figura de Jesus é geralmente formulado como uma recapitulação do tipo psicológico do Jesus histórico. 496 Sendo assim, o diagnóstico do tipo psicológico de Jesus aparece como única via de acesso a um autêntico Jesus histórico; como forma exclusiva de destrinchar os verdadeiros acontecimentos que cercam a trajetória do homem Jesus, em uma clara dissonância com a tradição eclesiástica e com a historiografia moderna. Contudo, essas duas formulações mais básicas acerca do objetivo de Nietzsche ao empreender uma investigação do tipo psicológico de Jesus apresentam algumas dificuldades. A posição de Shapiro acaba sendo uma superestimação de questões de ordem hermenêutica. Com sua investigação acerca de Jesus, Nietzsche não está apenas interessado em mostrar os limites da narrativa histórica, não que ele não acabe, de fato, por fazê-lo. Não obstante, é bem verdade que uma visão transvalorada seja a condição para uma leitura que revele a autêntica figura de Jesus oculta nos Evangelhos. Sobretudo, porque, para Nietzsche, Jesus é uma espécie insólita de “espírito livre”, para compreender isso é necessário ler os Evangelhos como espírito livre 497 , a saber, entender a natureza da linguagem como instrumento de comunicação, e, por conseguinte, como limitada e falsificadora. Ademais, não se deve esquecer que Nietzsche lê os Evangelhos como uma obra prima da corrupção e da falsificação psicológica intencional “escola da sedução” 499 498 : sem o olhar acurado do filólogo ruminador , uma verdadeira 500 , é-se capturado inevitavelmente nas inúmeras armadilhas que pululam nos Evangelhos. Porém, o interesse 496 Cf., por exemplo, Barros, A maldição transvalorada, introdução, p. 19. “No tocante à tentativa de recapturar o tipo psicológico do Jesus histórico...”. 497 Cf. A § 68, para uma compreensão do modo pelo qual Nietzsche determina que se leia os Evangelhos, a saber, com “novos olhos”, como espírito livre. Ver também: Sobre verdade e mentira num sentido extramoral. 498 Ver, para isso, AC § 43. 499 É curioso notar a esse respeito que Nietzsche vê nos escritos de Wagner esse mesmo caráter, como se percebe em uma passagem em que ele, talvez, os compare aos Evangelhos: “Uma palavra sobre os escritos de Wagner: eles são entre outras coisas, uma escola da sagacidade. O sistema de procedimentos que Wagner manipula pode ser aplicado a uma centena de outros casos – quem tem ouvidos, ouça” (CW § 10). Cf. também, sobre os Evangelhos: FP 9 [50], 9 [88] do outono de 1887; 10 [73], 10 [75], 10 [77], 10 [79], 10 [93], 10 [169], 10 [183], 10 [204] do outono de 1887; 11 [115], 11 [155], 11 [319] de novembro de 1887 – março de 1888. 500 Cf. GM, prólogo § 8. 162 primordial de Nietzsche com a análise acerca do tipo de Jesus não é fazer (mais uma 501 ) demonstração da “arte de ler bem”, não que tal análise não possa servir para tanto, que não possa ser tomada como mais um precioso exemplo. A formulação que fala de um tipo psicológico do Jesus histórico, por outro lado, vai de encontro ao que é dito em O Anticristo. Afinal, Nietzsche deixa claro que a questão acerca do tipo psicológico de Jesus não se relaciona com “a verdade quanto ao que fez, o que disse, como realmente morreu”. 502 Sendo assim, a investigação de Nietzsche não pretende apresentar uma narração alternativa para os eventos que cercam a vida e a morte do homem Jesus, mas tão-somente mostrar qual o tipo do redentor e como ele, provavelmente, percebia as coisas. Saber a verdade sobre o que ele disse é algo que já foi, de antemão, rejeitado pelo filósofo como uma empreitada fadada ao fracasso quando ele recusou à história qualquer avanço nessa área. Não há, portanto, qualquer pretensão por parte de Nietzsche de oferecer um novo conteúdo biográfico sobre a vida de Jesus em seu diagnóstico do tipo psicológico do redentor. Como observa Andreas Urs Sommer: “A renúnica de Nietzsche ao paradigma ‘vida-de-Jesus’ é a mais áspera que se possa conceber”. 503 O que Nietzsche acaba fazendo, não como objetivo principal, mas para fins de ilustração, é mostrar que certos ensinamentos proferidos por Jesus, certos eventos de sua vida e certos aspectos que envolvem sua morte, estão mais de acordo com o seu tipo psicológico do que outros; são, portanto, mais prováveis, mais verossímeis, mais coerentes, menos contraditórios, psicologicamente possíveis, psicologicamente concebíveis, o que não significa que eles realmente aconteceram, que com isso sua “verdade” está ou possa ser comprovada. Para Nietzsche, portanto, a figura histórica de Jesus não pode ser reconstituída. Dessa forma, o que o filósofo tenta reconstituir é tão somente o tipo psicológico de Jesus. Ora, os tipos classificados por Nietzsche ao longo de suas obras, como por exemplo, o sacerdote asceta, o ressentido, o animal de rebanho, o animal de rapina, o cristão, etc., bem como o idiota, não se confundem com pessoas reais, com atores históricos; são, de maneira bem diversa, instâncias propedêuticas utilizadas por Nietzsche no interior de sua proposta 501 Ibidem. AC § 29. 503 Sommer, Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”, p. 286. 502 163 filosófica de vida enquanto superação de forças; são recursos interpretativos, operacionais, no interior de uma psicologia que deve ser entendida como “morfologia e teoria da evolução da vontade de poder”. 504 É o que Sommer esclarece: “Poder-se-ia perguntar como se pode derivar uma pessoa – ‘um tipo’, de um caso isolado concreto. Seria mediante um procedimento indutivo, que tem que exceder o exemplo dado? Por uma dedução de um axioma? Nenhum dos casos. Nietzsche concebe seu redentor como um tipo ideal”. 505 Tais tipos são classificações que diagnosticam diferentes manifestações de formas de vida decadentes ou ascendentes, não constituindo, pois, sujeitos históricos. No § 24 de O Anticristo, Nietzsche esclarece que é necessário postular duas teses para a solução do “problema da gênese do cristianismo [Entstehung des Christenthums]”. A primeira tese diz respeito ao terreno no qual o cristianismo brotou, ou seja, o cristianismo como uma conseqüência lógica do judaísmo. A segunda tese diz que “o tipo psicológico do Galileu continua sendo reconhecível [erkennbar], porém apenas em sua degeneração completa (que é, ao mesmo tempo, mutilação e sobrecarga de traços estranhos –) pôde ele servir para aquilo que foi usado, para o tipo de um Redentor da humanidade. –”. 506 Têm-se, assim, uma clara indicação do objetivo e dos meios empregados por Nietzsche em sua reconstituição da figura de Jesus. Como objetivo basilar, Nietzsche destaca o reconhecimento do tipo psicológico do redentor, para que, juntamente com a demonstração da primeira tese, a gênese do cristianismo seja compreendida e para que a sua autêntica natureza seja desvelada. Como metodologia, Nietzsche partirá de um procedimento duplo, que consistirá em: restituir ao tipo psicológico de Jesus os traços que lhe foram subtraídos e, ao mesmo tempo, retirar aqueles que lhe foram acrescentados indevidamente. No entanto, como esclarece Giacoia Junior: “Esse princípio metodológico está condicionado por uma questão filosófica prévia: trata-se de saber se o tipo psicológico do redentor nos é ainda representável, se ele foi, em absoluto, transmitido”. 507 Portanto, Nietzsche almeja saber se, sob o sombrio manto da corrupção psicológica dos Evangelhos, é ainda possível resgatar a autêntica figura do redentor, se, desse desastroso destino, algo 504 BM § 23. Sommer, Loc. Cit., p. 285. 506 AC § 24. 507 Giacoia Junior, Labirintos da alma, p. 70. 505 164 foi preservado, fossilizado sob uma crosta rígida e angulosa. A questão que se coloca como prerrogativa é saber se o seu tipo pode ainda ser “concebível”, se foi, de algum modo, “transmitido [überliefert]”. 508 Para os principais intérpretes do tema da psicologia do redentor, a principal ferramenta que Nietzsche lançará mão para a efetuação dessa verdadeira tarefa arqueológica, foi, de modo semelhante a Renan, a intuição. Como afirma Giacoia Junior: “A reconstituição proposta por Nietzsche para a figura histórica do redentor, isto é, a restauração de seu tipo psicológico, fundamenta-se, sobretudo, num conhecimento intuitivo, em intuições congeniais (Einfühlung)”. lançada por Dibelius 510 509 Nessa perspectiva, , seria a partir de uma espécie de sintonia com a índole própria de Jesus, apreendida a partir de certas passagens dos Evangelhos 511, que o filósofo teria obtido o genuíno viés que lhe garantiu reconstituir o tipo psicológico do redentor. Isso significaria que esse procedimento não teria sido levado a cabo com os recursos da historiografia moderna ou com o olhar crédulo e pré-definido da tradição, mas com uma sorte de “afinidade espiritual” que permitiu que Nietzsche adivinhasse Cristo, intuindo-o e apreendendo-o, a despeito dos Evangelhos. Não obstante, nossa proposta interpretativa é de que a importância de uma “intuição congenial” não deve ser superestimada, afinal, a pesquisa das fontes revela que a investigação de Nietzsche se encontra intimamente inserida em todo um debate teórico travado no final do século XIX em torno desse tema (sobretudo no que diz respeito ao estudo das psicopatologias e das suas relações com o fenômeno religioso), assim como também solidamente fundamentada nos mais importantes avanços da hermenêutica bíblica da época, tanto é assim que outros autores, contemporâneos de Nietzsche, ofereceram pareceres bem próximos aos do filósofo acerca da figura de Jesus. Como já mencionado 512 , em “Nietzsche contra Renan”, Shapiro sustenta a tese de que talvez até mesmo a possibilidade de um modelo de narrativa biográfico-histórica seja 508 AC § 29. Cf. Giacoia Junior, Op. Cit, p. 71. 510 “Neste caso, ele [Nietzsche] acredita que uma análise do instinto é mais segura como análise das fontes, é congenialmente que se compreende o instinto essencial que mais se aproxima da realidade psicológica, diferentemente do teólogo e do filólogo com sua crítica evangélica” (Dibelius, Op. Cit, p. 74). 511 Primordialmente: Mateus, V, 29; e Lucas, XVII, 21. 512 Ver a seção “Nietzsche e seu antípoda, Renan”. 509 165 posta em questão em Anticristo. Para ele, isso remonta à polêmica que Nietzsche inaugura em Genealogia da moral contra a concepção de Renan sobre a aproximação entre história e arte, que se daria por meio de princípios narrativos biográfico-históricos, nos moldes da literatura realista. 513 Para Shapiro, Nietzsche contrapõe ao modelo de uma narrativa biográfico-histórica um modelo tipológico-psicológico. Sommer parece adotar essa hipótese: “faz-se necessário um ponto de vista tipológico no lugar de um biográficohistórico, e é o que Nietzsche exercita mediante o caso de Jesus”. 514 Não obstante, não é somente o fato de Jesus ser um simbolista o que torna sua reconstituição histórica impossível como o quer Shapiro 515 , mas sim também, e principalmente, porque o atentado, impresso nos Evangelhos, operado por ressentimento contra a sua figura, impede o seu resgate histórico. Ademais, talvez o ponto de vista tipológico não deva necessariamente ser a única abordagem aplicada a toda e qualquer investigação acerca dos vultos do passado como o quer Shapiro. Todavia, acreditamos que no caso específico de Jesus, o ponto de vista tipológico-psicológico realmente precisa prevalecer sobre a abordagem histórica, tanto no que diz respeito ao historicismo de Strauss e à história sentimental de Renan, quanto também ao modelo de história inaugurado por Nietzsche, que une procedimentos históricos, filológicos, fisiológicos e psicológicos para a investigação da proveniência dos valores e para a crítica do valor desses valores. Isso se mostra devidamente expresso na recusa de Nietzsche em tentar narrar mais uma “vida de Jesus” que se acrescentaria a uma já vasta bibliografia de um modelo literário bastante em voga no século XIX, desde a publicação de Das leben Jesus, de Strauss. Para isso, basta lembrarmo-nos do § 29: “O que me importa é o tipo psicológico do redentor [...] Não a verdade quanto ao que fez, o que disse, como realmente morreu”. 516 Entretanto, o modelo tipológico-psicológico, contrariando o que Shapiro defende, também pode vir, em outros casos, acompanhado de uma abordagem histórico-narrativa, o grande exemplo são os “atos dos apóstolos”, narrados a partir do § 39 de O Anticristo. Essa narrativa não se dará, forçosamente, segundo o modelo proposto por Renan, que, apoiado na literatura realista 513 Shapiro, “Nietzsche contra Renan”. Sommer, Op. Cit., p. 286. 515 Cf. Shapiro, Nietzschean narratives (1989), p. 131. 516 AC § 29. 514 166 (Balzac, Sand), tenta reconstituir episódios históricos em narrativas biográficas a partir do meio em que as almas dos personagens estão inseridas, mediante uma comunhão sentimental que daí decorre, mas sim segundo o modelo de história proposto por Nietzsche, que leva extremamente a sério a questão sobre “quem fala” (fisiologia) e “como se fala” (filologia) no texto, ou seja, quais as implicações tipológico-psicológicas que se podem intuir a partir das intenções valorativas dos autores da escrita histórica. O que Nietzsche propõe como alternativa ao historicismo e à história de sentimentos não é, talvez, necessariamente, uma abordagem não-narrativa, e sim uma abordagem não-biográfica, que não visa os “acontecimentos”, que não pretende reconstituir a “história de uma alma”; ou seja, o que o filósofo oferece é uma abordagem tipológica, que, quando aliada à história, pode ser narrativa, como no caso dos apóstolos, mas quando impossibilitada de utilizar recursos históricos, torna-se predominantemente psicológica e não-narrativa, como no caso do tipo de Jesus. O que veio a constituir o momento de ruptura definitiva entre Nietzsche e Renan no que diz respeito à tipologia de Jesus foi a leitura dos Prolegomena zur Geschichte Israels, de Wellhausen, que lhe sugeriram como se operou a desnaturalização dos valores naturais, cometida, por ressentimento, pelo judaísmo sacerdotal, do qual o cristianismo representa a “derradeira conseqüência”. 517 Foi com Wellhausen que Nietzsche percebeu o quanto Renan fora ingênuo ao acreditar que no fundo daqueles “documentos lendários” pudesse haver alguma linha narrativa coerente, provável, possível e verossímil, alguma “tradição”. 518 Renan supôs que a linguagem lendária e contraditória dos Evangelhos é fruto da inocência dos primeiros cristãos, de sua despreocupação com o registro minucioso dos fatos para a posteridade, já que se acreditava no retorno iminente do mestre; suas deturpações foram cometidas de forma inconsciente, fruto em grande parte de sua ignorância e do caráter elevado do ideal de Jesus. Mas, para Nietzsche, não há nenhuma inocência aqui, pois: “Estamos entre judeus: primeira consideração, para ali não perder completamente o 517 AC § 24. Cf. Renan, Ernest. “De l’usage qu’il convient de faire du Quatrième Évangile em écrivant la vie de Jésus (Appendice à la Vie de Jésus, 1867) ”. In: Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 1, 1995. “Les synoptiques représentent la tradition, souvent légendaires, des deux ou trois premières générations chrétiennes sur la personne de Jésus” (p. 263). 518 167 fio da meada”. 519 Ora, isso porque, com os resultados obtidos pela leitura de Wellhausen, o filósofo percebe que, com o declínio da grande época de Israel e a ascensão do judaísmo sacerdotal, uma nova interpretação do passado, diametralmente oposta e inimiga de todo e qualquer sentido histórico, configura-se. Os judeus, “o povo mais fatídico da história universal” 520 , levando às últimas conseqüências a decisão de “ser a todo custo”, perpetraram a maior falsificação da realidade, invertendo e caluniando o valor natural da história pregressa de Israel: Não havia utilidade para toda a história de Israel: fora com ela! – Os sacerdotes realizaram esse milagre de falsificação, cujo documento é boa parte da Bíblia: com inigualável desprezo por toda tradição, por toda realidade histórica, traduziram em termos religiosos o próprio passado de seu povo, ou seja, fizeram dele um estúpido mecanismo salvador, de culpa em relação a Javé e castigo, de devoção a Javé e recompensa. 521 Ora, daí porque Nietzsche afirma a respeito dos Evangelhos que os mesmos não podem ser denominados “tradição” [Überlieferung] 522 como querem Renan e Strauss, visto que “lendas de santos” são a literatura menos inocente que pode existir, devido a tudo aquilo que se herdou do “povo santo”, do total “desprezo por toda tradição”, da mais fina e sofisticada arte na corrupção psicológica intencional da escrita “histórica”. A mesma desnaturalização dos valores naturais cometida pelo judaísmo sacerdotal a partir da história de Israel foi cometida pela comunidade cristã inicial e, principalmente, por Paulo, a partir da prática e do valor natural que a vida de Jesus provavelmente representou, caso se leve em conta o seu tipo, sendo que, sobre a veracidade dos episódios dessa “vida”, nada mais há que se falar, devido ao grau violento da corrupção psicológica que aquelas “lendas de santos” testemunham: A dissimulação de si mesmo como “sagrado”, ali tornada gênio e jamais alcançada em livros e entre homens, essa falsificação de gestos e palavras como arte, não é acidente de algum dom individual, alguma natureza de exceção. Isso requer raça. No cristianismo, como a arte de mentir santamente, o judaísmo 519 AC § 44. AC § 24. 521 AC § 26. 522 AC § 29. 520 168 inteiro, uma milenar técnica e preparação judaica da maior seriedade, atinge sua verdadeira mestria. 523 É assim que a primeira tese que Nietzsche lança para a solução do problema da gênese do cristianismo, a saber, “o cristianismo pode ser entendido unicamente a partir do solo em que cresceu – ele não é um movimento contra o instinto judeu, é sua própria conseqüência, uma inferência mais em sua lógica apavorante” 524 se liga com a segunda, ou seja, de que só por meio de uma extrema corrupção de seu tipo psicológico, Jesus pôde ser tratado como uma espécie de “Redentor” da humanidade. Visto que é ainda o instinto sacerdotal que usa a figura de Jesus para atacar e falsificar a última realidade que ainda se mantinha em pé diante do ressentimento judaico, ou seja, “‘o povo sagrado’, o ‘povo eleito’, a realidade judia mesma”.525 No cristianismo, todos os mecanismos de salvação, culpa e castigo, devoção e recompensa elaborados pelos sacerdotes judeus e que serviram para desnaturalizar os valores naturais da história de Israel atingiram seu desenvolvimento culminante na desfiguração da figura de Jesus. Portanto, os mesmos motivos que levaram o judaísmo sacerdotal a ir contra todo o sentido e realidade histórica, desconstruindo a própria noção de tradição histórica, cujo resultado é boa parte da Bíblia, levaram também Paulo e os apóstolos, como sua derradeira conseqüência lógica, a falsificarem a figura de Jesus, apagando qualquer traço histórico nos episódios que narram sua vida, desnaturalizando, de maneira definitiva, todo e qualquer valor natural, pervertendo toda noção de tradição, cuja maior comprovação é o Novo Testamento. Dessa maneira, para Nietzsche, não é possível narrar uma “vida de Jesus”. Ainda que seja possível, no entanto, narrar a história do cristianismo, contanto que se tenha em mente que tudo aquilo que passou a ser chamado de “cristianismo” a partir da morte do Galileu é o oposto do evangelho, isto é, da realidade psicológica vivenciada por Jesus. A história do cristianismo tem início somente depois da morte de Jesus na cruz, e não com sua vida: “a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história da má compreensão gradativamente mais grosseira, de um simbolismo original”. 526 Nietzsche não 523 AC § 44. AC § 24. 525 AC § 27. 526 AC § 37. 524 169 está aqui se referindo a uma guinada que ocorreu após a morte do Nazareno na “história do cristianismo”; o que ele põe entre travessões não é um episódio particular dessa história: é a sua própria e inteira extensão – a autêntica história do cristianismo inicia-se a partir da morte de Jesus e segue-se adiante, antes disso, não há uma “história” do cristianismo, só um “simbolismo original”, um “zero”. Isso significa também que não é mais possível resgatar o “Jesus histórico”. A “vida de Jesus” não pode mais ser contada, devido aos Evangelhos, entretanto, seu tipo psicológico pode ainda ser concebido, a despeito dos Evangelhos. Quando Nietzsche declara que vai: “narrar agora a história genuína do cristianismo” 527, ele não está se referindo a “vida de Jesus”, mas aos “atos dos apóstolos”. Quando se chega à seção 39 de O Anticristo, o tipo psicológico do redentor já foi diagnosticado 528 e analisado 529, o que falta agora é entender como ele foi corrompido, e é isso que se quer “narrar” doravante. Há então uma grande diferença, e mesmo uma flagrante oposição, entre o evangelho, que não pode ser narrado, mas apenas ter sua realidade psicológica diagnosticada, e o cristianismo, este sim pode ter sua história, que tem início com a morte na cruz, narrada, não, decerto, segundo os moldes da historiografia científica ou mesmo da história sentimental de Renan, e sim segundo o modelo histórico nietzschiano, no qual há uma união entre história, filologia, fisiologia e psicologia – uma narrativa tipológica e não biográfica. A narração é um recurso de caráter histórico, a tipologia se constitui numa abordagem de natureza psicológica, em Nietzsche, de modo geral, essas perspectivas estão interligadas, juntamente com a filologia e a fisiologia, mas no caso de Jesus, o ponto de vista psicológico precisa se sobrepor ao histórico, já que Jesus não está inserido em nenhuma tradição (e também, como será visto em outro momento, porque seu tipo não apresenta nenhuma evolução, o que constitui, na verdade, sua principal característica). Por conseguinte, para uma delimitação mais rigorosa e inequívoca, o objetivo de Nietzsche ao investigar a figura de Jesus e seu papel na gênese do cristianismo deve ser 527 AC § 39. Cf. AC § 29. 529 Cf. AC § 30 e ss. 528 170 formulado tão-somente da seguinte forma: diagnosticar qual o tipo psicológico de Jesus 530, pois, ao se mostrar como e por que o tipo do redentor foi falsificado, é que a verdadeira e perniciosa natureza do cristianismo pode vir a ser definitivamente desvelada. E esse objetivo remete obviamente ao procedimento genealógico adotado por Nietzsche em sua investigação sobre a moral: é somente a partir do conhecimento sobre sua proveniência e sobre o seu ulterior desenvolvimento, que a sua real natureza pode vir a ser compreendida. 2.3 – Wellhausen e o processo de desnaturalização dos valores naturais Na introdução de Prolegomena zur Geschichtes Israels 531 , Wellhausen esclarece que o seu objetivo é discutir qual o lugar que a “Lei de Moisés” deveria ocupar na história, ou, mais precisamente, considerar a seguinte questão: “se a Lei representa o ponto de partida da história do antigo reino de Israel ou, ao invés disso, da história do judaísmo, isto é, da comunidade religiosa que sobreviveu à destruição da nação pelos Assírios e os Caldeus”. Até aquele momento, a crítica bíblica, de modo geral, pressupunha que a maior parte dos livros do Antigo Testamento não apenas se referia ao período pré-exílico como também datava do mesmo. Segundo essa perspectiva, esses livros seriam remanescentes da literatura do antigo reino de Israel, tendo sido resgatados pelos judeus como uma herança do passado. Para a teologia dogmática, o judaísmo é somente um abismo que se deve saltar entre os eventos narrados no Velho Testamento e aqueles narrados no Novo. Dessa forma, a opinião comum era de que o judaísmo, ou seja, a comunidade hebraica remanescente do antigo reino, cujos maiores feitos estariam reduzidos apenas ao fato de terem recebido as Escrituras e as fixado na forma de um cânon, não teve qualquer participação na produção destes livros. Mas, para Wellhausen, o suposto livro da Lei que teria sido encontrado casualmente pelos sacerdotes sob o reinado de Josias era na verdade o Deuteronômio, 530 “O psicólogo deve se esforçar não em lançar juízo sobre a reconstituição da vida de Jesus, mas sim em responder a questão sobre se ‘o tipo psicológico do Redentor’, a despeito dos Evangelhos, ‘ser ainda concebível, de ter sido transmitido’” (Dibelius, “Der psychologische Typus des Erlösers bei F. Nietzsche”, p. 285). “Nietzsche não tenta se aproximar da figura de Jesus por meio de uma análise filológica e histórica das fontes. Ele procura muito mais reconstruir um tipo psicológico – malgrado as alterações operadas, segundo ele, pela tradição neotestámentaria – apoiando-se sobre um conhecimento intuitivo que é da ordem da Einfühlung” (Brito, Emilio. “Les motivs de la critique nietzschéenne du christianisme”. In: Ephemerides Theologicae Lovanienses. Leuven: Universiteitsbibliotheek, 2004, 80/4, pp. 293-294). 531 Cf. Wellhausen, Julius. Prolegomena to the history of Israel. Edinburg: Adam & Charles Black, 1885, p. 1. 171 escrito naquela mesma época; e a Lei lida diante do povo por Esdras após o fim do cativeiro babilônico era, na verdade, a Torá, ou seja, a parte legislativa dos quatro primeiros livros do Pentateuco e de Josué, que havia sido produzida somente na época pós-exílio. Wellhausen defende que o elemento legislativo e o elemento histórico do Pentateuco são de naturezas distintas e datam de épocas diferentes, e que a antiguidade hebraica deve ser entendida sem a Torá escrita. Há uma contradição, segundo ele, entre a história de Israel propriamente dita, narrada em Juízes, Samuel e Reis, e a história da formação da nação que viria a fundar esse reino como um cumprimento de uma suposta aliança com Yahvé, narrada no Pentateuco. As narrativas sobre o reino de Israel são documentos redigidos numa época anterior ao Pentateuco, pois se pode constatar, com base nelas, que o código mosaico não faz parte das leis da antigüidade hebraica, não por um descumprimento do “povo eleito”, mas devido simplesmente à inexistência de um tal código nessa época. Mesmo os profetas dos séculos 8 e 7 desconheciam o código mosaico. Jeremias é o primeiro profeta a reconhecer uma lei escrita e suas citações remontam ao Deuteronômio. Este livro é, portanto, a parte mais antiga da legislação contida no Pentateuco. Ezequiel também é anterior a redação do código ritualístico e das leis que definitivamente organizaram a hierarquia, ainda que suas exortações tenham conduzido, em grande parte, a formação desse código e dessas leis. 532 O Pentateuco, tal como nós o conhecemos hoje, foi redigido pela ação dos sacerdotes Esdras e Neemias. Embora os elementos históricos do Pentateuco provenham de uma fonte mais antiga, eles foram reinterpretados durante a diáspora segundo a perspectiva daquele período específico e de acordo com as necessidades daqueles que detinham o poder naquele momento, os mesmos responsáveis por sua redação definitiva, ou seja, os sacerdotes. Como conseqüência disso, a época do apogeu do reino de Israel, passou a ser vista como desobediência a uma Lei que ainda nem mesmo existia, mas que foi elaborada naquele momento, em que o sacerdote chega ao poder e necessita sancioná-lo. Para isso, ele precisou estabelecer uma Lei, da qual ele se outorgou o encargo de único e legítimo mantenedor. O período de servidão no exílio foi visto como castigo por Israel ter se afastado dessa Lei, isto é, do sacerdote, com isso essa classe conseguiu sancionar a necessidade absoluta de sua existência no poder. 532 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 4. 172 Wellhausen observa que se formos de fato confiar no que nos é narrado no Pentateuco e em Josué, devemos admitir que aquela comunidade religiosa organizada de forma tão complexa e meticulosa no deserto, com seu centro sagrado e sua organização uniforme, desapareceu sem deixar qualquer vestígio assim que Israel se estabeleceu em uma terra própria e se tornou, em seu sentido apropriado, uma nação. O período dos Juízes é descrito como uma época caótica, sem nenhuma legislação fortemente estabelecida, em que, com muito custo, uma comunidade tenta se organizar sob pressão de condições externas, mas de uma maneira natural, sem que ao menos uma vaga lembrança de uma constituição sagrada e unificada que antes teria existido viesse a lhe assaltar. A antiguidade hebraica não mostra qualquer tendência a hierocracia, o poder era exercido apenas pelos chefes de famílias e tribos e, mais tarde, pelos reis, que detinham o controle do culto religioso e nomeavam os sacerdotes, que exerciam uma influência meramente moral e não política. 533 Isso não significa que os patriarcas e Moisés não eram reverenciados ou que não houvesse nenhum costume que se acreditasse ter sido estabelecido por eles. O que não havia era uma Torá escrita que garantisse o poder do sacerdote. Todavia, se antes o mosaismo era algo apenas latente, ele emerge, subitamente, na época pós-exílica, de forma proeminente. A partir desse momento, as Escrituras passam a ser consideradas como o fundamento de toda vida elevada, e os judeus se tornam, então, como declara o Alcorão, “o povo do Livro”. É somente com o judaísmo que o passado hebreu vem a ser interpretado como sendo constituído por um regime hierocrático: “temos o santuário com seus sacerdotes e Levitas ocupando a posição central, e o povo como uma congregação acampado ao redor; e o culto, – com seus holocaustos e sacrifícios expiatórios, suas purificações e abstinência, suas celebrações e Sabás, – estritamente observado de acordo com as prescrições da Lei, torna-se agora a principal ocupação da vida”. 534 Para a época de Juízes e Reis, nada disso faz sentido. O reino de Israel pouco se diferencia de outras nações vizinhas, sua forma de prestar culto e mesmo a natureza de sua divindade nacional encontrava-se em plena consonância com as de outros povos da época. A vida não girava 533 534 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 5. Ibidem. 173 ao redor de um templo central, não era guiada pelas exigências de nenhum código litúrgico. O sacerdote não detinha qualquer poder político. Os próprios judeus perceberam muito bem essa contradição. Ao fazerem uma revisão dos livros de Juízes, Samuel e Reis, empreendida após o fim do exílio babilônico, condenaram como herética toda a era dos Reis. 535 O livro de Crônicas representa a maneira pela qual os sacerdotes passaram a interpretar a história de Israel, reescrevendo os eventos narrados em Juízes, Samuel e Reis sob a perspectiva de que a hierocracia supostamente fundada por Moisés sempre foi reconhecida como a instituição fundamental, mas que a mesma não teria sido obedecida. 536 Wellhausen esclarece que, na verdade, o livro de Josué deve ser entendido como parte constituinte, junto com Gênesis, Êxodo, Levítico e Números, de um mesmo conjunto de livros, escritos numa mesma época e de acordo com as mesmas intenções, e que já apresenta como estabelecido desde a antiguidade hebraica algo que só irá se constituir durante a diáspora, ou seja, uma hierocracia. Já o livro de Deuteronômio, o quinto livro do “Pentateuco”, faz parte de um período anterior, durante a reforma empreendida por Josias. O Deuteronômio tenta fundar algo do qual ele se refere como ainda não existente, ou seja, um governo sacerdotal, apenas ansiando por aquilo que os quatro primeiros livros do Pentateuco já pressupõem como um dado concreto. Segundo Wellhausen, os quatro primeiros livros do Pentateuco e o livro de Josué são constituídos por três fontes principais: a javista (J), mais antiga, escrita após a separação dos reinos, no século nono, em Judá, reino do sul, cuja capital era Jerusalém; a eloísta (E), escrita aproximadamente um século depois, em Israel, agora reino do norte, cuja capital era Samaria; e o código sacerdotal “puro” (Q), escrito no período pós-exílio. Esses textos não estão sempre nitidamente separados, mas muitas vezes misturados, interpolados ou amalgamados. A criação da Lei está contida nos textos do código sacerdotal “puro”, os outros textos são apresentados de forma adaptada à necessidade de se estabelecer a Lei. O resultado desse empreendimento sacerdotal que fez uso livre dessas 535 536 Ibidem. Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 6. 174 fontes com o objetivo único de tentar provar a existência ancestral da Lei é o que Wellhausen denomina de código sacerdotal em geral (RQ). A fonte eloísta, denominada assim em referência ao nome “Elohim” (plural da palavra “El”, deus) pelo qual se designava a divindade, é aquela que, segundo Wellhausen, pode ser identificada com mais facilidade, constituindo o chamado escrito básico [Grundschrift]. Essa fonte está intimamente associada com o código sacerdotal, possuindo apenas em aparência a estrutura de um escrito narrativo: seus elementos históricos servem meramente como pano de fundo para a organização do material legislativo, sua linha narrativa não apresenta uma real consistência, servindo freqüentemente apenas para preencher as lacunas cronológicas, tornado-se completa somente quando o evento possui uma conexão direta com o estabelecimento da Lei, como, por exemplo, em Gênesis, quando são mostrados os três episódios que prenunciam a aliança mosaica, isto é, os acontecimentos associados com os nomes de Adão, Noé e Abraão. Pode-se fazer uma separação entre esse documento fundamental, mais legislativo do que histórico, e o escrito provindo da fonte mais antiga, isto é, a javista, denominada assim em referência ao uso do nome Yahvé. A fonte javista possui caráter eminentemente histórico e (ao contrário daquele escrito básico e do Deuteronômio) essencialmente narrativo, está ocupada apenas em expor e preservar, sem outra preocupação particular, o material legado pela tradição. Segundo Wellhausen: “A história dos patriarcas, que pertence quase inteiramente a este documento, é o que melhor marca o seu caráter; essa história não é tratada aqui meramente como uma introdução sumária para algo de importância maior que irá se seguir, mas como um assunto de primeira importância, merecendo o tratamento mais completo possível”. 537 Os elementos legislativos foram introduzidos nessas narrativas javistas somente quando os dados cronológicos são conectados, particularmente, quando a Lei dada no Sinai é anunciada (Êxodo, 20 e ss.). Wellhausen defende que é o código sacerdotal que predomina, enquanto legislação, em força e extensão no interior do Pentateuco; ele é tido como a autoridade final em todos os assuntos, de maior ou menor importância, que orientam a vida da comunidade. Foi de acordo com o modelo fornecido por esse código que os judeus comandados por Esdras 537 Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 7. 175 organizaram sua comunidade sagrada, e a partir do qual se formou a concepção de uma teocracia fundada por Moisés, com a noção de um culto legítimo e de sua função regular, tendo o Tabernáculo como centro, o alto sacerdote como chefe e os sacerdotes e Levitas como seus auxiliares.538 O grande problema que Wellhausen diz se ocupar está exatamente na questão de como pode ser possível admitir a ancestralidade desse código, cujos preceitos, tão minuciosamente instituídos, possuem grande correspondência com a forma com que a hierocracia pós-exílica é organizada, mas nenhuma referência na legislação existente na época do antigo reino de Israel. Sobre o documento javista, Wellhausen declara que nenhuma dificuldade há em fazê-lo remontar, por conta da forma com que os eventos são narrados, da linguagem, dos costumes e de outros aspectos, à era de ouro da literatura hebraica, da qual também derivam os livros de Juízes, Samuel e boa parte dos Reis, bem como os escritos proféticos mais antigos, ou seja, o período dos reis e profetas que viveram no tempo que precedeu a dissolução dos dois reinos israelitas pelos assírios. Wellhausen explica que sua investigação se baseia na seguinte suposição: que o núcleo mais antigo e original do documento javista pertence ao decurso do período assírio, e que o Deuteronômio pertence ao fim deste mesmo período. Nesse sentido, seu método consistirá em mostrar como os elementos legislativos dos quatro primeiros livros do Pentateuco e de Josué encontram-se em franca contradição com as legislações e costumes que regulavam o Estado de Israel, portanto, esses elementos legislativos só podem ser entendidos como produto de uma obra tardia, pós-exílica, que levou a cabo um movimento cujas tendências principais foram fixadas no Deuteronômio e exigidas pelos últimos grandes profetas, tal movimento teve início com a reforma empreendida por Josias pouco antes da queda de Jerusalém e do cativeiro de Judá, quando a população israelita remanescente ficou exilada na Babilônia. Seguindo esse procedimento, Wellhausen mostrará como nos livros históricos e nos primeiros livros proféticos não há nada que indique a existência de um santuário de legitimidade exclusiva na antiguidade hebraica. Porém, a revisão empreendida pelo código sacerdotal, sobretudo no livro de Crônicas, tentará provar que Jerusalém e seu Templo sempre representaram o centro para o qual convergiam todas as principais ocupações do 538 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 8. 176 reino. Nos livros de Juízes e Samuel praticamente não se encontram menções sobre um lugar sagrado específico e muito menos sobre um altar legítimo de sacrifícios. O que se pode encontrar é uma multiplicidade de santuários, na verdade, uma herança cananéia recebida pelos hebreus, pois, ao se apropriaram de suas cidades e de sua cultura, eles igualmente tomaram posse de seus lugares sagrados. 539 Wellhausen também esclarece que o principal objetivo de Salomão na construção de um templo foi o de aumentar o atrativo da cidade em que residia. Mas, mesmo então, várias cidades principais mantinham o seu templo. E não há nada que diga que Salomão aboliu os outros santuários existentes. Foi na Judá pós-exílio que se passou a dar essa importância única ao templo de Salomão como centro exclusivo de adoração. 540 Após o reinado de Salomão, ocorre a separação entre os reinos do sul e do norte, entre Judá e Israel. No antigo reino de Israel, antes da divisão, Jerusalém nunca foi considerada o lugar que Yahvé teria escolhido como o centro de adoração; e o reino do Norte (que herdou o nome Israel), com capital em Samaria, fundado após a separação, poderia ainda menos ter chegado a conferir qualquer predominância ritualística a Jerusalém. Com a queda do reino do Norte e com a absorção dos samaritanos por outras culturas, Judá permanece como única remanescente do culto de Yahvé, e, somente então, Jerusalém e o Templo ganham importância. 541 Todavia, mesmo nos escritos proféticos de Amós e Isaías, que se referem ao período que se seguiu após a queda do reino do Norte, nada é dito sobre uma preponderância de Jerusalém como centro de adoração. Para Isaías, a importância de Jerusalém não procede do Templo de Salomão, mas do fato de que ela foi a cidade de Davi e o foco de seu reinado; o núcleo central, não do culto, mas da representação da soberania de Yahvé. 542 A eleição do Templo de Jerusalém como centro de adoração ocorre somente a partir da reforma de Josias, um pouco antes da queda de Judá. Se a fonte javista sanciona uma multiplicidade de santuários e altares, o Deuteronômio, escrito pelos sacerdotes do reino de Josias, exige uma unidade local para a adoração. O código sacerdotal (RQ), por sua vez, já 539 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 17. Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 21. 541 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 24. 542 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 25. 540 177 pressupõe essa unidade, pois, após o exílio, ela já está plenamente estabelecida, e, para sancioná-la de modo definitivo, ele transfere essa unidade para um tempo primordial, por meio da suposta instituição do Tabernáculo. A noção de que existe uma unidade de adoração percorre em sua inteira extensão os elementos legislativos (Q) dos quatro primeiros livros do Pentateuco. E com a instauração do Tabernáculo, que forma o núcleo da revelação divina no Sinai, a idéia de uma “teocracia” é definitivamente fundada. 543 Deste modo, Wellhausen conta poder demonstrar que o código sacerdotal pertence a uma época muito mais recente do que o Deuteronômio: “Neste livro a unidade do culto é ordenada, no código sacerdotal ela é pressuposta”. 544 No código sacerdotal, a concretude da unidade de culto é assumida tacitamente, ela é considerada como algo recorrente, e não como uma coisa nova ou algo que se quer estabelecer. Portanto, o código sacerdotal é o resultado do movimento iniciado com a reforma de Josias e anunciado no Deuteronômio. Se formos de fato nos basear no código sacerdotal, perceberemos que não haveria lugar para nenhuma reforma na época de Josias, pois, segundo esse código, a unidade de culto sempre existiu e nunca foi questionada. O Deuteronômio, em contrapartida, refere-se à unidade do culto como algo que nunca existiu e que só passou a se tornar uma possibilidade com a construção do Templo de Salomão. O código sacerdotal, por sua vez, não consegue admitir a possibilidade de um culto religioso sem uma centralização e não poderia de forma alguma imaginar Israel sem um único santuário, e, por isso, acaba “transferindo sua existência concreta para o início mesmo da teocracia, alterando, de acordo com isso, completamente a história antiga”.545 Ora, conforme Wellhausen, o Tabernáculo é uma cópia e não um protótipo do Templo de Jerusalém. Em Juízes e Reis, nenhuma palavra é dita sobre o Tabernáculo de Moisés. As instruções para a construção do Tabernáculo (Êxodo, 25 ss.) não se ajustam de modo algum a uma mera tenda no deserto, mas simplesmente descrevem o modelo já existente do Templo na Jerusalém da diáspora. O principal objetivo de Crônicas ao revisar a história do reino é tentar adequar essa história à Lei, tentando provar que, desde Salomão, a unidade do Templo estava estabelecida, primeiro com o Tabernáculo 543 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 34. Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 35. 545 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 36. 544 178 e, depois, com o Templo. 546 O que o livro de Crônicas nos ensina, pois, segundo Wellhausen, é “precisamente o traço distintivo dos escritores pós-exílio, o fato de eles tratarem da maneira mais livre possível, de acordo com suas próprias idéias, as instituições do passado longínquo, com o qual seu tempo já não se encontra ligado por qualquer vínculo de vida”. 547 Wellhausen utiliza o mesmo método para analisar a instituição do sacrifício, a mudança ocorrida no significado do mesmo de uma simples oferenda, em plena conexão com a vida, que se pode verificar nos escritos históricos e na fonte javista, para uma expiação, noção introduzida pelo código sacerdotal, pelo qual o sacrifício adquire um caráter artificial, privado de todo vínculo prático com vida. É também somente no código sacerdotal que se dá o estabelecimento de uma unidade de lugar para a consumação do sacrifício, a fixação dos procedimentos adequados para a sua realização e das normas que regularizam a ordenação daqueles que devem ficar a cargo de sua execução. Wellhausen esclarece que o objetivo do código sacerdotal (RQ) é tentar demonstrar que o rito sacrifical é a questão central da legislação mosaica, todavia, os escritos javistas atestam que esse tipo de ritual é uma instituição que remonta a uma época bem mais longínqua. Enquanto que o código sacerdotal se esforça em apresentar como o sacrifício deve ser executado, tanto a fonte javista quanto o Deuteronômio indicam que a única questão que chega a ser problematizada é o para quem esse sacrifício deve ser oferecido. De acordo com Wellhausen, tanto o Decálogo quanto o livro da Aliança oferecem uma pista para o entendimento da natureza específica do sacrifício na antiguidade hebraica, isto é, sua associação direta com o culto pagão no que diz respeito à forma e mesmo à intenção, tendo como única particularidade a preferência exclusiva dada a Yahvé como deidade beneficiada. Ora a porção javista do Pentateuco desconhece qualquer outra forma de adoração da divindade que não seja o sacrifício, e confere a ele tanta importância quanto o código sacerdotal. Não obstante, não se pode encontrar nenhum traço particular que demonstre uma rigorosa distinção entre o sistema sacrificial de Israel e o de qualquer outra nação, nada que indique sua legitimidade em detrimento dos sacrifícios executados por 546 547 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 40 ss. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 49. 179 outros povos. Na antiguidade hebraica: “Sacrifício é sacrifício: quando oferecido a Baal, ele é gentil; quando oferecido a Yahvé, ele é israelita”. 548 Deste modo, a adoração da deidade mediante o sacrifício sempre foi o elemento constituinte da religião de Israel, porém, na Antiguidade, esse rito era tratado como uma questão de costume, uma herança dos ancestrais, na época pós-exílica, ele passa a ser tido como uma Lei dada a Moisés por Yahvé. 549 De acordo com Wellhausen, nos dias antigos, o culto, de modo geral, emanava diretamente da vida comum e se encontrava em uma conexão íntima com os afazeres e preocupações cotidianas e efetivas. Um sacrifício nada mais era do que uma refeição, um fato que demonstrava não uma necessidade de caráter abstrato que se localiza numa instância puramente espiritual e transcendente, mas sim uma demonstração de uma alegria plenamente secular e imanente. 550 O oferecimento de um sacrifício tinha como objetivo prestar honras à divindade; uma refeição preparada com os primeiros frutos da colheita (de onde se derivou a noção de sacrifício dos primogênitos), considerado como uma parte que pertence por direito à deidade. O homem é considerado um comensal de deus e compartilha com ele o desfrute dessa refeição. A dádiva serve para reforçar o feliz cumprimento de uma promessa, celebrar um pedido atendido e, principalmente, expressar agradecimento. Como assevera Wellhausen: “O culto religioso era uma coisa natural na antiguidade hebraica; era o florescer da vida, a elevação e profundidade que lhe cabia transfigurar e glorificar”. 551 As ofertas de agradecimento davam mostras de um culto de caráter privado, no qual aquele que oferecia a dádiva também a compartilhava alegremente com a divindade. Todavia, com a introdução dos sacrifícios como uma penitência e reparação dos pecados e transgressões, o culto perde seu caráter familiar e natural, seu caráter livre e voluntário, e se torna uma obrigação. Ainda que o holocausto seja uma refeição, aquele que a oferece se vê impedido de compartilhá-la com Deus. Contudo, Wellhausen assegura que esse tipo de sacrifício, o próprio núcleo temático do código sacerdotal (RQ), encontra-se completamente ausente no que resta do Velho Testamento, mesmo no Deuteronômio, e 548 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 53. Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 61. 550 Cf. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 76. 551 Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 77. 549 180 surge somente a partir do profeta Ezequiel, que já defende os desígnios do código sacerdotal. Para Wellhausen, a centralização do culto em Jerusalém resultou na destruição da conexão do sacrifício com as ocorrências naturais da vida, fazendo com que este perdesse seu significado original. Se o Deuteronômio ainda permite o sacrifício fora de Jerusalém, o Levítico, por sua vez, torna-o definitivamente proibido, para garantir, assim, a supremacia do Templo como local exclusivo de sacrifício. Como explica Wellhausen: “A vida humana tem sua raiz em seu ambiente local, e o mesmo pode ser dito do culto antigo; ao ser transplantado de seu solo natural, ele é privado de seu nutriente natural [...] Um homem vive em Hebron, mas sacrifica em Jerusalém; vida e culto se separam”. 552 Se antes o culto era uma prática espontânea, após o estabelecimento do código sacerdotal, ele se torna uma questão de estatuto. Para Wellhausen: “A conexão de tudo isso com a tendência judaica de remover Deus para uma grande distância do homem, deve-se acrescentar, é clara”. 553 Deste modo, a espiritualização do culto parece ser uma tendência intrínseca à natureza do código sacerdotal: quanto mais abrangente sua influência, maior o grau de transcendência e artificialidade das práticas ritualísticas. Ao abstrair as atividades religiosas do transcurso natural da vida, o código sacerdotal se apropria delas como sendo um encargo que pertence unicamente aos sacerdotes. Destacamos esses dois temas da primeira parte da obra de Wellhausen, a saber, “A história do culto”, com a intenção de mostrar como o seu método de investigação irá encontrar ressonâncias naquele que Nietzsche irá adotar para reconstituir o tipo de Jesus, ou seja, a identificação no texto bíblico das diferentes fontes que estão na base de sua elaboração, que revelam intenções diversas de acordo com o uso específico que se faz delas. Nietzsche não irá exatamente discutir o método de Wellhausen, mas nossa hipótese é de que ele o pressupõe em suas análises. Assim, nossa proposta interpretativa é que, em sua investigação sobre Jesus, Nietzsche tenta aplicar o mesmo método que Wellhausen utiliza para analisar a história de Israel no Antigo Testamento em seu estudo da gênese do cristianismo no Novo Testamento, partindo do seguinte procedimento: localizar nos 552 553 Ibidem. Wellhausen, Prolegomena to the history of Israel, p. 79. 181 Evangelhos sua fonte primitiva ou original e distingui-la da fonte que é fruto do trabalho recebido como herança do código sacerdotal. Ora, Nietzsche encontrará a fonte original dos Evangelhos nas máximas de Jesus, nos discursos mais simples proferidos diretamente por ele, e que, segundo Renan e também Strauss, representam a fonte mais próxima de sua mensagem original, os chamados logia de Jesus, que abundam em Mateus, mas também em Lucas, que utilizou como fonte o mesmo material que serviu para a composição de Mateus (e Marcos). Os logia de Jesus, que devem ser separados dos seus discursos mais longos e elaborados (marcadamente aqueles proferidos no Evangelho de João, bem mais tardios e complexos, resultados da infiltração da doutrina gnóstica), equivalem, na investigação de Nietzsche, à fonte javista apontada por Wellhausen. Assim como aquela porção mais antiga do Velho Testamento, as máximas de Jesus devem ser contrapostas aos elementos introduzidos por fontes tardias de origem apostólica, gnóstica e paulina. Tal como a fonte javista, os discursos elementares de Jesus possuem um caráter eminentemente prático, em conexão direta com a vida, brotando espontaneamente de uma necessidade natural e efetiva. Por outro lado as fontes tardias do Novo Testamento – assim como o Deuteronômio, e a porção eloísta, ou seja, legislativa dos quatro primeiros livros do Pentateuco, e o código sacerdotal em geral – possuem como característica principal um avanço contínuo, por ordem de sucessão, em direção a uma interpretação cada vez mais abstrata e especulativa, divorciada da vida, desprovida de um caráter prático e de uma sintonia com as questões ocasionais da efetividade, sem nenhum valor natural. Do mesmo modo que o código sacerdotal pós-exílico retirou o culto a Yahvé de seu solo natural, interpretando-o de acordo com suas próprias necessidades e sob condições artificiais, os primeiros cristãos, herdeiros desse código, irão desterrar os ensinamentos de Jesus de seu ambiente próprio, conferindolhes uma nova configuração e um significado abstrato, alheio a toda necessidade prática e natural. Acreditamos que o que marca bastante a influência do método de Wellhausen nos procedimentos postos em ação por Nietzsche é a necessidade que o filósofo demonstra em exibir a continuidade entre o código sacerdotal e a doutrina elaborada a partir da prática de Jesus mormente por Paulo, considerado por Nietzsche como o maior sucessor do código sacerdotal. Afinal, Nietzsche não se detém tanto na interpretação gnóstica do papel supostamente divino de Jesus, o filósofo, por certo, aponta para o gnosticismo de Paulo, 182 não obstante, a introdução do gnosticismo na doutrina cristã não é propriamente uma inovação de Paulo, mas sim algo do qual ele se apropriou e reelaborou segundo suas próprias necessidades. Deste modo, podemos observar também que a decisão de Nietzsche em tomar duas máximas em particular como o cerne dos ensinamentos e da prática de Jesus (e que também revelam sua constituição fisio-psicológica), qual sejam, “não resistais ao homem mau” (Mateus) e “o reino de Deus está dentro de vós” (Lucas), não possui um caráter arbitrário, mas é fruto de um estudo cauteloso e minucioso das fontes, associado aos resultados obtidos com a leitura de Strauss, Renan, Wellhausen, Féré, Jacolliot, Brochard, Tolstói e Dostoiévski. A partir da identificação dessa porção mais primitiva, mais original, menos tardia, menos complexa e menos abstrata dos ensinamentos de Jesus, Nietzsche sustenta poder reconstituir não a história, mas o tipo psicológico do redentor, contrapondo esse tipo à doutrina cristã elaborada posteriormente e mostrando, assim como o faz Wellhausen em relação à fonte javista e ao código sacerdotal, a contradição existente entre essa doutrina tardia e aquela prática original, apontando para a impossibilidade de adequação entre o tipo original de Jesus e aquela interpretação tardia que se fez dele enquanto agitador social, revolucionário, pretenso juiz, fariseu e teólogo querelante, pregador intolerante, Messias, bode expiatório (apóstolos), Primogênito, Logos, pão da vida, fonte da água viva, luz do mundo, “o caminho, a verdade e a vida” (ou Aeon, gnosticismo), Cordeiro de Deus, Salvador, Cristo e Redentor (Paulo). Não obstante, o que Nietzsche discute de forma mais detida em seus escritos não é o método de Wellhausenm, mas sim a conseqüência apontada pelo historiador da reinterpretação feita pelos sacerdotes da história da antiguidade hebraica e do reino de Israel, a manipulação das fontes que quase conseguiu apagar completamente os dados autenticamente históricos do passado longínquo do povo hebreu não fosse à existência dos livros de Juízes, Samuel e Reis, que refutam a possibilidade de uma Antiguidade hebraica apresentada nos moldes do código sacerdotal, essa conseqüência pode ser sintetizada na expressão, cunhada pelo filósofo, “desnaturalização dos valores naturais”. Wellhausen apresenta tais conseqüências no último capítulo de seu livro, a saber, “A teocracia como idéia e como instituição”. No fragmento póstumo 11 [377] de novembro de 1887 – março de 1888, bem próximo aos dois primeiros fragmentos em que o tipo de Jesus começa a ser 183 analisado 554 , e seguido imediatamente pelo fragmento intitulado “Minha teoria do tipo Jesus”, Nietzsche faz um longo resumo das principais teorias lançados por Wellhausen nesse último capítulo dos Prolegômenos. A análise desse capítulo (juntamente com a leitura de Les Possédés) serviu de base para as seções 16 e 17 de O Anticristo, nas quais é discutida a degeneração do conceito de Deus em contradição da vida, e também, principalmente, para as seções 24 a 26, nas quais a história de Israel, que ocasionalmente resultou na chegada do sacerdote ao poder, é apresentada – com o objetivo de demonstrar a primeira tese lançada para a solução da gênese do cristianismo, ou seja, a identificação do solo no qual ele brotou – como história típica da desnaturalização dos valores naturais. No início de “A teocracia como idéia e como instituição” 555, Wellhausen esclarece que a palavra “teocracia” cunhada por Josefo para designar a comunidade sagrada de seu tempo, tal como ela existiu até o ano 70 depois de Cristo, não designa uma instituição fundada por Moisés, bem como não pode ser aplicada como referência ao antigo reino de Israel. Na antiga Israel, nunca existiu um governo de Yahvé como instituição, mas no máximo como uma idéia orientadora. Uma tal “teocracia” israelita só poderia ter sido estatuída após o exílio, porém, de forma mais rigorosa, não se pode falar aqui propriamente de uma teocracia, mas tão somente de uma hierocracia, ou seja, de um governo sacerdotal. A fundação do reino de Israel representou o passo decisivo para a consolidação do culto a Yahvé e para a consagração do mesmo como Deus exclusivo da nação israelita, de acordo com o arquétipo representado pelo velho deus do deserto. Afinal, ainda na época dos acontecimentos narrados em Juízes, havia uma forte miscigenação com os elementos provindos do culto cananeu, o que quase concorreu para a completa transformação do deus do deserto em um deus típico da agricultura e da pecuária, como Dionísio e Baal. 556 Por outro lado, com a fundação de Israel: “A relação de Iahweh com o povo e o reino 554 Cf. FP 11 [368] e 11 [369] de novembro de 1887 – março de 1888. Para este capítulo dos Prolegômenos, utilizaremos a tradução, extremamente prestativa e obsequisa para os que pesquisam O Anticristo, feita por Rodrigo Rocha, e consultamos igualmente as notas muito esclarecedoras feitas por ele: cf. Wellhausen, Julius, “A teocracia como idéia e como instituição”. In: Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, nº 5, 2010, pp. 104-118. Cf. também o riquíssimo artigo de Rodrigo Rocha, “Sobre a história de Israel como história da desnaturação dos valores naturais em O Anticristo de Nietzsche: a propósito da influência de Julius Wellhausen”. In: Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, nº 5, 2010, pp. 139-160. 556 Cf. Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 107. 555 184 permaneceu firme como uma rocha; mesmo para o pior idólatra ele era o Deus de Israel; em tempo de guerra, ninguém esperava a vitória e a salvação que não fosse de Iahweh. Isto foi o resultado de Israel ter se tornado um reino”. 557 O reinado de Yahvé é sumamente o Estado em sua forma temporal, concreta, política; ele era tido como sagrado, pois sua existência era considerada sob todos os aspectos um verdadeiro milagre, uma ajuda direta de Deus. Teocracia, nesse sentido, é simplesmente a consagração religiosa do Estado laico tal como ele se apresenta. Mesmo com a divisão do Reino e com o declínio paulatino do poder político sob a pressão externa dos Assírios, esse ideal de Estado se manteve vivo na memória do povo, que não tinha dúvidas sobre o seu retorno. Com a comparação do presente sombrio com aquele passado resplandecente, a imagem de como o Estado deveria ser, tornou-se cada vez mais nítida e distinta. Foram os primeiros profetas, Isaías, Oséias, Miquéias, que estabeleceram definitivamente o modelo teocrático. Contudo, a teocracia dos profetas não se diferenciava em sua essência da antiga e vigorosa comunidade política de outrora, pelo contrário, seus fundamentos estavam assentados nos princípios que tornaram aquela possível. Surge assim, a esperança e a idéia de um Messias restaurador: “Isaías deu a essa idéia sua forma clássica, nas imagens de futuro, que se costuma chamar de profecias messiânicas. Não eram, pois, previsões de ocorrências casuais, mas objetivos anunciados, cuja realização, é verdade, era esperada para o futuro, todavia, eram ou deviam ser válidos no presente”. 558 O Messias deveria dar conta de problemas cujas soluções exigiam uma resposta premente; a esperança de sua vinda estava relacionada a uma série de questões concretas e imediatas provocadas pela realidade enfrentada pelo Estado: a anarquia interna e a destruição externa. “A desordem do governo, o enfraquecimento da lei, a exploração dos fracos pelos poderosos, são os danos que deveriam ser reparados.” 559 O que o profeta problematiza e anuncia não é uma situação que ainda surgirá, sua referência é pura e simplesmente o efetivo imediato, uma organização política natural, e não algo que exprima uma extrema santidade apartada do mundo. Para o profeta, a lei, o direito propriamente dito, já é em si divino. Yahvé é um Deus representado pelo poder político, ele é o ideal de um rei, seu principal atributo é, por isso, a justiça, por intermédio da qual um bom governo 557 Ibidem. Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, pp. 107-108. 559 Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 108. 558 185 se realiza. E a justiça de Yahvé é uma justiça puramente laica, uma noção social, e não moral. O rei humano é o representante de Yavhé, que cumpre os seus desígnios de um governo justo, de um bom governo. O ideal de governo, cujo modelo máximo é o reinado de Davi, é aquele em que a justiça e a fidelidade se casam, em que o poderoso respeita e protege o fraco, em que as mazelas sociais são sanadas: “A oposição a este ideal é a ilegalidade e a anarquia interna, não a guerra externa; a esperança não tem em vista a paz internacional, como mostra [Isaías, 11], 1–5, e também [Isaías, 11], 9. O Messias é adornado apenas com virtudes de governante; isto é significativo para a natureza do reino no qual ele aparecerá como líder, e para a idéia de teocracia.” 560 Segundo Wellhausen, a relação de Yavhé com o seu povo era de plena associação e comunicação, nenhum tipo de intervalo os separavam. Foi somente quando a existência do Reino passou a ser ameaçada pelos invasores externos, que os últimos profetas, Elias, Amós e sobretudo Ezequiel, elevaram a divindade acima do povo, rompendo o vínculo natural entre eles, introduzindo a idéia de contrato, de obrigação moral, de recompensa e castigo. 561 Se antes a Torá de Yahvé era uma lei não escrita, uma questão de costume e de hábito social, uma orientação e uma ajuda oferecida pela divindade, ela passa agora a ser tida como um “compêndio de suas exigências, de cuja execução dependia inteiramente sua relação com Israel”. 562 Se em tempos mais antigos, o inimigo a ser combatido era sempre muito bem definido, a partir do exílio, surge a fantasia de uma união de todos os povos contra Israel, e, como conseqüência, não mais a esperança de um futuro Estado nacional, mas a expectativa de um império mundial, do qual Jerusalém surgiria como capital acima dos destroços do velho mundo. 563 Mas temeu-se que, antes disso acontecer, os judeus, assim como os samaritanos, fossem absorvidos pelos pagãos, e Israel fosse suprimida de vez da realidade. Com a ausência dos líderes reais, coube, assim, a “homens piedosos” garantir a conservação e organização do resíduo sagrado que havia restado. Todavia, a comunidade que havia existido na época do antigo reino não podia servir como modelo para essa restauração, pois as exigências divinas teriam sido negligenciadas por ela: 560 Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 109. Cf. Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 110. 562 Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 111. 563 Cf. Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 112. 561 186 “Tomou-se em consideração as palavras dos profetas, que diziam que as fortalezas, os cavalos e os guerreiros, que os reis e os príncipes não ajudavam em nada, e disso formaram-se princípios práticos; desejou-se, com seriedade, efetuar o domínio exclusivo de Iahweh.” 564 Mas, de todo modo, um Estado real não era possível, por conta do domínio estrangeiro a que se estava submetido. Desta forma, os sacerdotes alcançaram a posição de maior prestígio: somente eles conservavam o atributo de autoridade. Para o Templo se dirigem, então, todos os anseios por proteção, orientação e ordem: “Quanto mais débil se tornava o Estado, quanto mais profundamente ele se afundava após a queda de Josias, tanto maior se tornava o prestígio do templo para o povo, e tanto mais significativo e independente era o poder de seus numerosos sacerdotes”. 565 O culto de Jerusalém permaneceu como única fonte de ligação do povo judeu com sua identidade nacional, o que consolidou mais facilmente o poder da casta dos sacerdotes. Assim sendo, os elementos para uma nova formação da “comunidade” já estavam dados e serviram como meios para o estabelecimento de uma organização do “resto”. 566 Ezequiel, um sacerdote disfarçado de profeta, foi o primeiro a fazer a ligação entre a profecia e a Lei. Ele reinterpretou as idéias de seus antecessores de acordo com suas próprias necessidades sacerdotais: “Ele é, por natureza, um sacerdote, e seu mérito próprio foi o de ter incluído a alma profética no seio de uma comunidade apolítica, que tinha no templo e no culto suas bases principais”. 567 Com isso, surge a constituição sagrada do judaísmo, um produto eminentemente artificial, cuja imagem nos é apresentada pelo código sacerdotal. O antigo reino de Israel não se reduzia a uma comunidade religiosa, tal como aquela organizada pelos sacerdotes com a fundação de uma hierocracia. O sumo sacerdote e a suposta morada de Yahvé não representavam o centro ao redor do qual a vida pública se organizava. Com a imposição do culto, de suas normas e taxas, surgiu uma antítese entre sagrado e profano, entre a esfera espiritual e material. “Pode-se ir mais longe e dizer que o culto, através de sua legislação, fica alienado de sua essência própria e é superado em si 564 Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 113. Ibidem. 566 Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 114. 567 Ibidem. 565 187 mesmo.” 568 A necessidade do culto não é mais espontânea, mas resultado de coação. A ligação das festividades com a colheita e o pastoreio é eliminada, reduzem-se as mesmas à penitência e à recordação “histórica”. Os sacrifícios não atraem mais a divindade para a participação no interior da vida terrena, não são mais tentativas de agradá-la e torná-la favorável. As oferendas são reduzidas em meios divinos de graça, ordenados por Yavhé. 569 Mas, sentencia Wellhausen: “Se o valor das oferendas sagradas não está nelas mesmas, mas na obediência aos mandamentos de Deus, então o centro de gravidade do culto foi deslocado e colocado em uma esfera que lhe é estranha, a da moral.” 570 As oferendas deram lugar aos exercícios ascéticos, que antes estavam restritos a consagração dos sacerdotes para as funções religiosas, mas que agora são fixados como regras de conduta geral também para leigos, e, com isso, fica instituída a noção do sacerdócio universal. 571 O resumo feito por Nietzsche desse último capítulo dos Prolegômenos para a história de Israel, no fragmento póstumo 11 [377] de novembro 1887 – março de 1888, é bastante literal, ainda assim, já é possível identificar alguns elementos interpretativos que indicam a posição que o próprio filósofo irá adotar em O Anticristo sobre a história da desnaturalização dos valores naturais empreendida pelo judaísmo. Por exemplo, no referido fragmento, ao mencionar o antagonismo entre sagrado e profano, no qual o domínio do natural é gradualmente diminuído, Nietzsche coloca entre parênteses a expressão “ressentimento ativo”. Nesse sentido, já é possível divisarmos a resignificação que Nietzsche fará dos elementos fornecidos pelo estudo de Wellhausen. De imediato, Nietzsche irá analisar a ação dos sacerdotes na falsificação da história de Israel e o seu ataque ao natural mediante as mesmas categorias que lhe permitiram elaborar uma psicologia do sacerdote na terceira dissertação da Genealogia da moral. Nietzsche fará, assim, uma resignificação das principais teses lançadas por Wellhausen de acordo com sua filosofia da vontade de poder e com sua teoria de forças, ou seja, o filósofo oferecerá uma interpretação do condicionamento fisio-psicológico 568 Cf. Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 116. Ibidem. 570 Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 117. 571 Cf. Wellhausen, “A teocracia como idéia e como instituição”, p. 118. 569 188 dos sacerdotes judeus, tal condicionamento tem como consequência o estabelecimento da falsificação da própria realidade como meio de se alcançar o poder. Com o objetivo de expor o terreno no qual o cristianismo nasceu, na seção 24 de O Anticristo, Nietzsche explica que, como os judeus decidiram, em um dado momento de sua história, ser a todo custo, esse custo, diz o filósofo, foi “a radical falsificação de toda a natureza, naturalidade e realidade, de todo o mundo interior e também exterior [radikale Fälschung aller Natur, aller Natürlichkeit, aller Realität, der ganzen inneren Welt so gut als der äusseren]”. 572 Os judeus perceberam que só poderiam existir caso tomassem sobre seu abrigo e proteção as condições que até então eram contrárias a toda boa constituição, invertendo, para isso, “sucessivamente e de modo incurável, a religião, o culto, a moral, a história, a psicologia, tornando-os a contradição de seus valores naturais”. 573 Nietzsche atenta para o fato de que ele já havia exposto em sua Genealogia da moral, os conceitos antitéticos de uma moral nobre e de uma moral do ressentiment. A moral do ressentimento elabora como artifício de dominação e vingança um outro mundo pelo qual a vida é negada em sua totalidade. Colocado sob condições impossíveis de existência, o povo judeu, pela ação dos sacerdotes, criou condições artificiais de conservação, tomando voluntariamente “o partido de todos os instintos de décadence – não como se fosse por eles dominado, mas porque neles adivinhou um poder com o qual se pode levar a melhor contra ‘o mundo’”. 574 Na seção seguinte, Nietzsche resume as principais teses do último capítulo dos Prolegômenos, em especial a desnaturalização do conceito de Deus e da moral. O antigo reino de Israel, diz ele, mantinha uma relação natural com a ordem das coisas: “Seu Yavhé era expressão da consciência de poder, da alegria consigo, da esperança por si: nele esperava-se vitória e salvação, com ele confiava-se na natureza, que trouxesse o que o povo necessitava – chuva principalmente.” 575 Se Yahvé era o Deus de Israel, então, ele era o Deus da justiça, pois assim raciocina todo o povo que está no poder. Nas celebrações religiosas, o povo demonstrava sua gratidão pelas vicissitudes que o tornaram dominante, e também agradecia pelo ciclo anual das estações, pela colheita abundante na agricultura e 572 AC § 24. Ibidem. 574 Ibidem. 575 AC § 25. 573 189 pela boa safra na pecuária. Mas, com a decadência do reino, o velho Deus se mostrou incapaz de prestar socorro ao seu povo, o certo, e natural, teria sido abandoná-lo. Mas os sacerdotes ainda lhe reservavam uma nefasta função, garantiram-lhe uma sobrevida fantasmática e lhe negaram uma morte digna: “Que aconteceu? Mudaram seu conceito – desnaturaram seu conceito: a esse custo o mantiveram. – Yavhé, o deus da ‘justiça’ – não mais uma unidade com Israel, expressão do amor próprio de um povo: apenas um deus sujeito a condições...”. 576 O velho e poderoso deus do deserto se tornou uma entidade pálida e abstrata, um mero “instrumento nas mãos de agitadores sacerdotais, que passam a interpretar toda felicidade como recompensa, toda infelicidade como castigo por desobediência a Deus, como ‘pecado’”. 577 Essa perversão da causalidade natural fez com que a moral fosse desterrada de seu solo natural; não mais uma expressão das condições de vida e crescimento de um povo, mas sim um artifício de falsificação e vingança contra a vida, um modo de se sobrepor às suas condições de efetivação, como antítese mesmo da vida. Não obstante, o elemento que possui uma importância capital para o entendimento de como o tipo psicológico de Jesus foi corrompido pelos primeiros cristãos e, de modo mais grave, de como sua história foi de tal modo adulterada a ponto de fazer com que sua narrativa fosse praticamente impossível é desenvolvido por Nietzsche na seção 26 de O Anticristo, na qual o filósofo apresenta o sacerdote judeu como o fundador de um novo tipo de “arte”: a arte da corrupção psicológica da memória legada pela tradição – a falsificação histórica. O sacerdote judeu, com o seu código sacerdotal, inaugura uma nova forma de se interpretar o passado, uma maneira de ler os acontecimentos já decorridos, recentes ou longínquos, de forma totalmente livre, e de alterá-los deliberadamente de modo a torná-los tanto um instrumento de consolidação de poder quanto uma realidade inofensiva, que não venha a ameaçar esse poder. Deste modo, a própria essência de toda tradição, seu caráter natural e espontâneo, inocente, “inconsciente”, como diria Strauss, é pervertido pelo sacerdote judeu. Os documentos “históricos” produzidos pelo código sacerdotal possuem uma qualidade única: um grau de corrupção psicológica que não pode ser encontrada em 576 577 Ibidem. Ibidem. 190 nenhum outro documento antigo, ou seja, nos documentos que não são exatamente uma produção historiográfica, mas que podem servir de fonte para a ciência histórica. Ora, documentos como a Ilíada ou os Upanishades, ainda que não reflitam o passado com uma preocupação historiográfica, própria da modernidade, são, porém, frutos de uma tradição autêntica, e as dificuldades psicológicas que o pesquisador enfrenta ao analisá-los são extremamente inferiores àquelas encontradas pelos críticos da Bíblia. Nietzsche denuncia que a maior mentira introduzida pelo ato de falsificação da história que a Bíblia testemunha, e que a própria filosofia moderna herdou, é a noção de que os acontecimentos históricos obedecem a uma suposta “ordem moral do mundo”. Nietzsche revela, no entanto, a realidade fisio-psicológica que se esconde por trás dessa mentira: A realidade [Realität], no lugar dessa deplorável mentira, é a seguinte: uma espécie parasitária de homem, que prospera apenas à custa de todas as formas saudáveis de vida, o sacerdote, abusa do nome de Deus: ao estado de coisas em que o sacerdote define o valor das coisas ele chama “reino de Deus”; aos meios pelos quais um tal estado é alcançado ou mantido, “a vontade de Deus”; com frio cinismo ele mede os povos as épocas, os indivíduos, conforme beneficiem ou contrariem a preponderância dos sacerdotes. Observemo-los em ação: nas mãos dos sacerdotes judeus, a grande época de Israel tornou-se uma época de declínio; o exílio, a longa desventura transformou-se em eterna punição pela grande época – um tempo em que o sacerdote ainda não era nada... Conforme sua necessidade, fizeram das poderosas figuras da história de Israel, de índole bastante livre, miseráveis hipócritas e santarrões ou homens sem Deus. 578 Vemos, portanto, que o quantum de poder que a casta sacerdotal representa, avalia e interpreta toda realidade externa de acordo com o nível de ameaça para a sua configuração, ou como meio de conservação, ou ainda como possibilidade de um aumento de poder. Elegendo sua vontade como “vontade de Deus”, o sacerdote estabelece como Lei as condições que irão preservar o seu poder, faz-se necessário, então, tornar essa Lei conhecida e sancionada: “Em linguagem mais clara: requer-se uma grande falsificação literária, descobre-se uma ‘Escritura Sagrada’ – ela é tornada pública em meio a toda pompa hierática [por Esdras], com dias de penitência e gritos de lamento pelo longo período de ‘pecado’”. 579 Essa Lei, o sacerdote quer fazer crer, não surgiu naquele momento (em que ele finalmente chega ao poder), ela já havia sido revelada desde os tempos 578 579 AC § 26. Ibidem. 191 ancestrais: “A ‘vontade de Deus’ estava estabelecida havia muito tempo: todo o infortúnio está em haverem se afastado da ‘Escritura Sagrada’... A Moisés já havia se manifestado a ‘vontade de Deus’...” 580 No que consiste a Lei? Sobretudo o quinhão que pertence ao sacerdote; as grandes e pequenas taxas do culto e os mais saborosos pedaços de carne, o beefsteak. A “vontade de Deus”, em linguagem honesta, tudo o que o sacerdote quer ter. “A partir de então as coisas todas da vida se acham tão ordenadas, que o sacerdote é indispensável em toda parte; em todas as ocorrências naturais da vida, no nascimento, no casamento, na enfermidade, na morte, sem falar no sacrifício (‘a refeição’), aparece o sagrado parasita, a fim de desnaturá-las: ou, em sua linguagem, ‘santificá-las’...” 581 Tudo o que brota naturalmente de toda boa e sadia constituição social, toda exigência que o próprio instinto da vida inspira, que tem um valor em si, é desnaturado pelo sacerdote quando este lhe dá sua sanção, pois o valor que ele lhe atribui tem como critério uma instância artificial, um desígnio “superior”, uma conceituação abstrata e espiritual, isto é, a “Lei”, a vontade do sacerdote. “O sacerdote desvaloriza, dessacraliza a natureza: é a esse custo que ele existe.” 582 A noção de “pecado” é o principal mecanismo empregado pelo sacerdote para a conservação de seu poder: quem quer se ver reconciliado com Deus, deve se submeter necessariamente ao sacerdote: “Princípio supremo: ‘Deus perdoa quem faz penitência’ – em linguagem franca: quem se submete ao sacerdote –”. 583 2.4 – A corrupção psicológica dos Evangelhos Após a demonstração de como o código sacerdotal realizou uma inaudita falsificação de toda a realidade por meio da desnaturalização dos valores naturais, Nietzsche sentencia, na seção 27 de O Anticristo: “Num terreno assim falso, onde toda natureza, todo valor natural, toda realidade tinha contra si os mais profundos instintos da classe dominante, cresceu o cristianismo, uma forma de inimizade mortal à realidade [Realität], que até agora não foi superada.” O cristianismo sobrepujou o judaísmo como sistema falsificador da realidade por atacar a única realidade que o judaísmo havia deixado 580 Ibidem. Ibidem. 582 AC § 26. 583 Ibidem. 581 192 incólume, ou seja, a Igreja judia, o privilégio da casta sacerdotal, a realidade judia mesma. Para tanto, foi necessário a execução da obra mais ousada e monumental concebida pela arte da falsificação histórica fundada pelo código sacerdotal, a saber, a falsificação da figura de Jesus, de sua vida e obra. O Novo Testamento, para Nietzsche, não é o produto de uma tradição, um documento que pode ser utilizado sem maiores problemas, como várias outras narrativas mitológicas ou lendárias, como fonte do exercício historiográfico, ele é uma fraude premeditada. Caso não se leve esse posicionamento de Nietzsche em consideração, é praticamente impossível acompanhar sua investigação do tipo de Jesus, é comprometer-se inevitavelmente com a imagem legada pela “tradição” cristã, e, nesse sentido, ser levado facilmente a dirigir contra a sua interpretação de Jesus a acusação de que ela é arbitrária, mera opinião de um leitor leviano, neófito, leigo, que parece desconhecer o conteúdo dos textos Evangélicos, que nunca se empenhou a sério com o seu estudo, que aparenta fazer vista grossa para os elementos que não casam com sua visão “extremamente pessoal” das Escrituras. Acreditamos que, para o estágio em que nossa investigação se encontra, seja já dispensável apelar para dados biográficos concernentes à formação teológica de Nietzsche a fim de refutar a acusação de que ele demonstra pouca familiaridade com os textos bíblicos. Também consideramos desnecessário, dado o estágio atual da Nietzsche-Forschung, defender o filósofo da acusação de que ele tenha sido um leitor relapso. Supomos apenas que, ao remontarmos ao estudo e interpretação que Nietzsche faz de Strauss, Renan e Wellhausen, já tenhamos condições de compreender de uma maneira um tanto quanto satisfatória os motivos que levaram Nietzsche a privilegiar em sua investigação certos aspectos dos Evangelhos como sendo mais autênticos em detrimento de outros. O Novo Testamento é uma adulteração da história de Jesus, nele o sentido natural do que a vida de Jesus representou foi desnaturalizado, seu tipo foi corrompido. Isso não se deu por acidente, mas foi elaborado e executado segundo uma técnica que aqui atinge sua excelência, de acordo com os procedimentos postos em ação pela arte da falsificação histórica, da corrupção e depravação psicológica desenvolvida pelo código sacerdotal, como denuncia Nietzsche num fragmento póstumo do outono de 1887, fruto provavelmente de uma primeira leitura de Wellhausen: “Não é exatamente da mesma maneira insolente- 193 piedosa de interpretar a história (isto é, a falsificação absoluta para demonstrar a validade do código sacerdotal) que se encontra entre os intérpretes e narradores judaico-cristãos da história de Jesus? –”. 584 Strauss e Renan não poderiam estar mais enganados a respeito da índole dos redatores evangélicos, de sua aparente inocência e ingenuidade, de suas imprecisões involuntárias e espontâneas, supostamente produzidas em grande parte pelo fervor da fé depositada na figura de Jesus. “O evangelho foi lido como livro da inocência...: indício nada pequeno da mestria com que aí se representou”. 585 Ou seja, não é nem um pouco difícil se deixar enganar em semelhante caso: o ressentimento, que aí se transveste de piedade, a rebelião contra todo privilégio, contra toda altura, camuflada em humildade, não é coisa de somenos; a oração em pé dos fariseus, toda a gesticulação que acompanhava o seu ato de dar esmola, isso nada mais era do que puro amadorismo – foi o cristão que elevou a arte do fingimento a um novo patamar: “– Sem dúvida: se os víssemos, ainda que somente de passagem, todos esses prodigiosos beatos e santos artificiais, seria o fim – e justamente por isso, porque eu não leio as palavras sem ver os gestos, eu dou fim a eles... Não suporto uma certa maneira que têm de alçar os olhos. Por sorte, para a grande maioria os livros são apenas literatura. – –” 586 Não é por mero acaso que o Novo Testamento se confunde com um produto inocente, objetivou-se produzir exatamente esse efeito no ato de sua composição. Strauss se equivocou em achar que a interpretação mítica dava conta das contradições dos Evangelhos, e Renan, mal psicólogo, não desconfiou que sua imagem histórica de Jesus estivesse comprometida com uma fraude. O cristianismo, a Igreja cristã, sucedeu e superou o código sacerdotal, prova disso é o Novo Testamento: Nada de menos inocente do que o Novo Testamento. Sabe-se sobre qual solo ele foi criado. Como uma implacável vontade de si mesmo, após ter perdido todo apoio natural e, depois de longo tempo, seu direito a existência, esse povo que soube não obstante se impor em direção e contra tudo, e com esse fim teve necessidade de se edificar totalmente sobre pressupostos antinaturais, puramente imaginários (como povo escolhido, comunidade de santos, povo da promessa, como “Igreja”): esse povo manipulou a pia fraus [mentira piedosa] à perfeição, a um degrau de “boa consciência” tal que não se saberia ser tão circunspecto quando se prega a moral. Desde que os judeus se produziram enquanto a 584 FP (277) 10 [180] do outono de 1887. AC § 44. 586 Ibidem. 585 194 inocência mesma, há um grande perigo: deve-se ter sempre em reserva seu pequeno fundo de razão, de desconfiança, de malícia quando se lê o Novo Testamento. 587 Se o tipo de Jesus se encontra quase que completamente deformado no Novo Testamento, se se acrescentou a ele toda espécie de traços contrários e incongruentes, que quase chegam mesmo a anular seu aspecto original, isso não se deu simplesmente por conta do intervalo de quase um século entre sua existência histórica e a redação dos documentos que narram sua vida, isso não ocorreu apenas pela incompreensão de sua mensagem original por parte de seus correligionários, isso não aconteceu somente devido a uma já préexistência da idéia do mito messiânico, não, isso se realizou por meio dos procedimentos que caracterizam a arte da corrupção psicológica mobilizados pelo cristianismo histórico, corrupção que tem como seu maior indício justamente os Evangelhos: “– Os evangelhos são inestimáveis como testemunho da irresistível corrupção no interior da comunidade inicial”.588 O método histórico tem muito pouco a contribuir no ato de desvendar essa depravação em torno da figura de Jesus que os Evangelhos atestam. Essa não é uma tarefa que compete a um historiador não iniciado na perícia que o escrutínio psicológico exige, não é incumbência de um Strauss ou de um Renan, pois os obstáculos antepostos diante do leitor do Novo Testamento não são os mesmos presentes em outros tipos de documento, não dizem respeito particularmente às ocasionalidades históricas que envolvem sua redação. Como alerta Nietzsche “– Esses Evangelhos não podem ser lidos com suficiente cautela; por trás de cada palavra existem dificuldades”. 589 Somente um psicólogo pode dar conta dessas dificuldades, e, na verdade, os Evangelhos representam, por conta disso, um desafio ímpar para aquele que exerce esse ofício: “Confesso, e espero que isto me seja perdoado, que justamente por isso eles constituem, para um psicólogo, um prazer de primeira ordem – como o oposto de toda corrupção ingênua, como o refinamento par excellence, como talento artístico na corrupção psicológica”. 590 587 FP (39) 9 [50] do outono de 1887. AC § 44. 589 Ibidem. 590 Ibidem. 588 195 Como já havíamos mencionado, o fato de Nietzsche se referir aos Evangelhos como “lendas de santos” 591 implica necessariamente na filiação dos mesmos com o código sacerdotal, no legado recebido por eles do “povo santo”, na sua falsidade hereditária: “O cristão essa ultima ratio [razão última] da mentira, é o judeu mais uma vez – três vezes até...”. 592 Todos os mecanismos de falsificação mobilizados pelos sacerdotes judeus com o objetivo de sancionar o seu poder foram utilizados ardilosamente pelos primeiros cristãos em sua rebelião contra a própria Igreja judia, em sua adulteração da vida de Jesus: “– A vontade de em princípio usar apenas conceitos, símbolos, atitudes que foram provadas na prática do sacerdote, a rejeição instintiva de toda prática outra, toda outra perspectiva de valor e utilidade – isso não é apenas tradição, isso é herança: apenas sendo herança atua como natureza”. 593 O cristão, “um judeu de confissão ‘mais liberal’”, já sabia de antemão o caminho que o conduziria ao poder na forma de cristianismo sacerdotal de Paulo, já entendia plenamente toda a astúcia dos artifícios que alçariam sua vontade como sendo vontade de Deus: – – Não devemos deixar enganar: “não julguem!”, dizem eles, mas mandam ao inferno tudo o que lhes fica no caminho. Fazendo com que Deus julgue, eles próprios julgam; glorificando a Deus, glorificam a si mesmos; promovendo as virtudes de que são capazes – mais ainda, de que têm necessidade para ficar no topo, – dão a si mesmos a grande aparência de pelejar pela virtude. “Vivemos, morremos, sacrificamo-nos pelo bem” (– a “verdade”, a “luz”, o “reino de Deus”): na verdade, fazem o que não podem deixar de fazer. Impondo-se à maneira de hipócritas, permanecendo no canto, vivendo na sombra uma existência de sombras, fazem um dever disso tudo: como dever, sua vida aparece como humildade, é uma prova mais de devoção... Ah, essa humildade, casta, misericordiosa forma de mendacidade! “A própria virtude deve dar testemunha de nós”... (AC § 44) Os cristãos souberam, mediante a falsificação da figura de seu mestre, estabelecer como ideal de vida e de homem aquilo que na verdade representa sua própria condição degenerada e que não constitui nenhum tipo de ameaça para a sua conservação. Paulo foi quem melhor perpetrou esse embuste monumental; o cristianismo como a mais funesta 591 AC § 28. AC § 44. 593 AC § 44. 592 196 mentira, a gente pequena [kleinen Leuten] como a medida 594 pela qual toda a vida ascendente foi julgada e condenada como imoral. Como indica Nietzsche: Os cristãos também procederam como os judeus e o que eles experimentaram como condição e renovação da existência, eles colocaram na boca de seu mestre e por causa disso, eles incrustaram sua própria vida. Da mesma forma lhe restituíram toda a sabedoria dos provérbios – enfim, eles representaram sua vida afetiva e seus estratagemas como uma obediência e lhes santificaram assim pela propaganda. Tudo isso depende do que figura em Paulo: e isso é pouco. O resto é a elaboração de um tipo de santo, a partir daquilo que para eles valia como santo. Toda a “doutrina dos milagres”, incluída a ressurreição, é consecutivo à glorificação de si da comunidade, que se atribui a ela mesma aquilo que num grau superior ela atribui a seu mestre (isto é, que a partir dele ela faz decorrer sua força...) 595 Por isso, os Evangelhos são lidos por Nietzsche como livros da sedução 596 , pelos quais a moral é arrestada por essa gente pequena que se elege enquanto chave de valor, e que sabe bem que a melhor “maneira de enganar a humanidade é com a moral!” 597 Nietzsche aproxima esse aspecto sedutor dos Evangelhos, das obras de Wagner. Em um fragmento do outono de 1887, os Evangelhos são denominados de “a grande literatura da calúnia”, secundada por uma arte da calúnia, de onde provém o Parsifal de Wagner. 598 Na seção 45 de O Anticristo, Nietzsche oferece uma série de amostras retiradas dos Evangelhos que, segundo ele, indicam o grau de corrupção psicológica utilizada para a desfiguração da imagem de Jesus. Essas passagens não contêm apenas interpretações da mensagem de Jesus feitas por Paulo, particularmente na primeira Epístola aos Coríntios, mas também algumas máximas que, de acordo com o filósofo, essa gente pequena pôs “na boca de seu mestre”, porquanto as mesmas estão em pleno desacordo com o tipo psicológico de Jesus. 599 A falsificação da figura de Jesus teve início imediatamente após sua morte, pelos apóstolos e pela comunidade inicial, mas é Paulo, com sua “mentira do Jesus ressuscitado” 594 FP (285) 10 [191] do outono de 1887. FP 10 [186] do outono de 1887. 596 Cf. FP (198) 10 [73] do outono de 1887; FP (280) 10 [183] do outono de 1887. 597 AC § 44. 598 FP 10 [169] do outono de 1887. 599 Para uma amostra ainda maior dessas passagens, cf. FP (276) 10 [179]; FP (294) 10 [200] do outono de 1887. 595 197 que corrompe de vez o significado natural do que representou a vida e os ensinamentos de Jesus. Com vistas à propaganda sacerdotal, Paulo intuiu exatamente o que ele necessitava para atingir o poder: “Não a realidade, não a verdade histórica!...”, mas o que a massa de deserdados do Império ansiava: E mais uma vez o instinto sacerdotal do judeu perpetrou o mesmo enorme crime contra a história – simplesmente riscou o ontem, o anteontem do cristianismo, inventando para si uma história do cristianismo inicial. Mais ainda: falseou a história de Israel mais uma vez, para que ela aparecesse como pré-história do seu ato: todos os profetas falaram de seu “Redentor”... Depois a Igreja falseou até a história da humanidade tornando-a pré-história do cristianismo... 600 Para Nietzsche, a história do cristianismo é a história de uma fraude. O cristianismo nasce de uma falsificação, ou seja, a corrupção do tipo de Jesus; tem como principal mecanismo de consolidação uma adulteração literária, isto é, o Novo Testamento; representa o grau mais elevado a que pôde chegar a falsificação da realidade, por meio da criação de um outro mundo desprovido de dor, sofrimento e morte, mediante o qual as condições de efetivação, elevação e superação da vida são negadas como algo que não deveria pertencer necessariamente à existência, como frutos de erro, transgressão e pecado. Em O Anticristo, a filologia surge, portanto, como principal aliada e ferramenta da psicologia para a revelação dessa desmedida falsificação chamada cristianismo. Filologia entendida essencialmente como a arte de ler bem, sem pressa, com lentidão, sem impor uma interpretação arbitrária ao texto, sem falseá-lo com opiniões pré-concebidas. 601 Todavia, para tanto, é necessário que o filólogo busque constantemente a honestidade para consigo mesmo, que ele esteja comprometido com sua probidade intelectual, que ele tenha a coragem de honrar aquele sujeito em busca do conhecimento que há em si mesmo, ora, mas isso constitui propriamente a virtude por excelência do espírito livre. É o que anuncia Nietzsche: “– Somente nós, espíritos tornados livres, temos o pressuposto para entender algo que dezenove séculos entenderam errado – aquela retidão que, tornada instinto e paixão, faz guerra à ‘mentira santa’, mas ainda que a qualquer outra mentira...” 602 Enquanto mentira colossal, fingimento, hipocrisia, querer enganar e enganar-se a todo 600 AC § 42. Cf. AC § 52. 602 AC § 36. 601 198 custo, enfim, enquanto falsidade histórico-universal, o cristianismo tem como o seu inimigo natural o cético 603, e como ameaça mortal a medicina e a filologia. 604 Ao tentar abstrair o tipo psicológico do redentor que, a despeito de toda corrupção, de toda tentativa de desfiguração, pôde talvez ter sobrevivido, ter se salvado sob um abrigo qualquer, ter sido conservado em algum repositório não profanado, ter sido transmitido em caracteres sutis que se viram poupados da borracha ou do borrão manuseados pela malícia da “tradição”, no interior dos próprios Evangelhos, Nietzsche utiliza intensamente os recursos filológicos, lendo o cristianismo de modo geral como “mentira santa”, “pia fraus”, e classificando particularmente o Novo Testamento mediante os conceitos chaves dessa disciplina, ou seja, “fraude”, “falsificação”, “adulteração”, “embuste”, “palimpsesto”, etc. A denúncia filológica é acompanhada de perto pela exortação de que o espírito livre se atenha a sua integridade, honestidade, retidão, probidade intelectual; condenar o cristianismo e sua sanção, ou seja, o Novo Testamento, como falsificação, é cuidar do asseio, da higiene, do bem-estar, da limpeza da consciência. Nietzsche garante que a incumbência dessa tarefa de trazer a público essa fraude pertence propriamente ao século XIX: A Igreja jamais teve a mínima boa vontade para compreender o Novo Testamento: ela quis dele se servir para se legitimar. Ela procurou e procura um sistema teológico: ele o pressupõe, – ela crê nessa única verdade. Foi necessário primeiro o século dezenove – le siècle de l’irrespect 605 – para recuperar alguma das condições preliminares, a fim de ler esse livro enquanto livro (não enquanto verdade) de reconhecer essa história não enquanto “história santa”, mas por uma diabrura de fábulas, arranjamento, falsificação, palimpsesto, confusão, enfim, enquanto realidade [Realität]... 606 A valorização da filologia como principal arma de denúncia contra a falsidade cristã, essa restituição dos valores epistêmicos, o compromisso com a consciência intelectual, a importância conferida ao ceticismo como principal opositor do cristianismo, e a eleição da ciência como inimiga mortal do sacerdote que têm lugar em O Anticristo trazem uma grande dificuldade para o pesquisador de Nietzsche, afinal, como é possível adequar esse posicionamento com as teorias lançadas em Gaia Ciência e Genealogia da 603 Cf. AC § 54, e também, FP (318) 11 [48] Novembro de 1887-Março de 1888. Cf. AC § 47. 605 No aparato crítico da KSA, se esclarece que essa é uma referência aos irmãos Goncourt. Cf. Jornal des Goncourt, I, 63. 606 FP 11 [302] de novembro de 1887 – março de 1888. 604 199 Moral, ou seja, com a noção da íntima vinculação entre ciência e ideais ascéticos, do compromisso dos valores epistêmicos com os valores sacerdotais, e, por fim, com a teoria de uma autosupressão da moral mediante o desdobramento dialético do niilismo como lógica interna dos valores ocidentais elaborados pela décadence? Em seu excelente trabalho, Rogério Lopes sugere que Nietzsche abandona o projeto de mostrar o desdobramento dialético do niilismo na fase final de seu pensamento, particularmente em O Anticristo 607, e que, em Genealogia da moral, Nietzsche teria feito uso da hipótese de um niilismo extremo como forma de conduzir o pessimismo schopenhauriano às últimas conseqüências, de modo semelhante a Descartes no que diz respeito ao uso da dúvida hiperbólica como caminho que leva ao verdadeiro por meio de um artifício da vontade. Essa hipótese de um niilismo extremo é revista por Nietzsche em O Anticristo, no qual o cético surge como principal aliado na luta contra o cristianismo, restituindo aos valores epistêmicos uma autonomia frente aos valores morais, e, deste modo, acabando por desvincular os primeiros da dinâmica do niilismo. 608 Como esclarece Lopes: “Em O Anticristo, Nietzsche reescreve a história das relações entre cristianismo e ceticismo, de modo a dispô-los em campos antagônicos. Toda a aproximação que porventura tenha existido entre estes dois fenômenos históricos é silenciada ou então denunciada como o resultado de uma apropriação indébita. O cético é por definição um adversário do cristianismo, pois o seu compromisso com a retidão intelectual o torna um antípoda do cristão.” 609 Deste modo, em O Anticristo, Nietzsche irá rever sua interpretação do ceticismo histórico. O que concorreu de modo definitivo para isso foi a leitura feita pelo filósofo da obra Les sceptiques Grecs, de Victor Brochard, e a releitura de Geschichte des Materialismus, de Friedrich Albert Lang. 610 A hipótese proposta por Lopes possui um significativo valor para a interpretação de O Anticristo, e de fato apresenta uma preciosa solução para esse aparente impasse gerado pela oposição entre ciência e cristianismo presente na obra. De nossa parte, supomos que, talvez, O Anticristo não represente, necessariamente, o abandono total das posições adotadas em Gaia ciência e em Genealogia 607 Posicionamento também adotado por Souladié, cf. “Présentaiont: L’Inversion contra La Volonté de puissance”, Loc. Cit., pp. 24-25. 608 Cf. Lopes, Ceticismo e vida contemplativa, p. 524 ss. 609 Lopes, Ceticismo e vida contemplativa, p. 531. 610 Cf. Lopes. Loc. Cit., p. 523. 200 da moral, já que, quiçá, a ciência em seu sentido mais moderno, contemporânea de Nietzsche e herdeira direta do socratismo e da Reforma ainda continue sob a condenação de portadora, escrava e guardiã dos valores ascéticos, e que a ciência que de fato se opõe ao cristianismo seja representada eminentemente por aquela produzida pelo homem do Renascimento; ademais, vemos como algo extremamente significativo o fato de Nietzsche nomear particularmente a medicina e a filologia como inimigas naturais dos sacerdotes. 611 Algo que reforça a oposição entre a ciência do Renascimento e a ciência moderna é o fato de Nietzsche apresentar a probidade intelectual do cético enquanto antítese direta da falsidade cristã, ao mesmo tempo em que busca afastar essa retidão intelectual do espírito livre da chamada “liberdade evangélica” e da “responsabilidade diante da própria consciência” de Lutero. 612 Se, em Genealogia da moral, a honestidade intelectual remonta a Lutero, nos últimos escritos, ao que tudo indica, Nietzsche buscará romper essa filiação, pelo menos naquilo que diz respeito à retidão do espírito livre, do cético, e não dos alemães diante de sua “consciência”. Nossa proposta é que a oposição entre a probidade intelectual do cético e do homem do Renascimento frente à “consciência cristã” está na base das considerações a respeito do Renascimento como contraposição direta a Lutero e à Reforma Protestante presentes em O Anticristo 613 e em Ecce Homo 614 , bem como da ligação entre Paulo e Lutero. 615 Para um filólogo, a leitura do Novo Testamento ofende de modo violento a consciência intelectual. 616 O nível de corrupção, de desonestidade, de fingimento, de astúcia, de excelência artística na arte da falsificação que esse conjunto de livros exibe não deveria ser exposto a um filólogo de dedos demasiadamente delicados e sensíveis, de estômago fraco: “– Que resulta disso? Que convém usar luvas ao ler o Novo Testamento. A 611 Cf. AC § 47. Cf. FP (90) 9 [135] do outono de 1887; (185) 10 [57] do outono de 1887. 613 Cf. AC § 61. 614 Cf. EH, Caso Wagner § 2. Cf. também, FP (273) 10 [176] do outono de 1887; FP 22 [9] de setembro – outubro de 1888. 615 Cf. FP (263) 10 [157] (§ 2) do outono de 1887. 616 Sobre a leitura do Novo Testamento relacionada com o tema da filologia e da probidade intelectual, cf. também: FP (280) 10 [184] do outono de 1887; FP (298) 10 [204] do outono de 1887; FP 11 [319] de novembro de 1887 – março de 1888; FP 14 [60] da primavera de 1888. 612 201 proximidade de tanto desasseio [Unreinlichkeit] quase que obriga a isso”. 617 O Novo Testamento não encontra paralelo; sua ausência de limpeza, isto é, sua falta de compromisso com a retidão intelectual, sua improbidade, é alarmante: “– Em vão procurei por um único traço simpático no Novo Testamento; nada há nele que seja livre, afável, franco, reto. Ainda não se acha, ali, sequer um começo de humanidade – faltam os instintos do asseio...” 618 A arte do fingimento encontra sua maestria, sua virtuose aqui: “Tudo é covardia, tudo é fechar os olhos e enganar a si.” 619 A forma com que se ataca todo e qualquer oponente no Novo Testamento é desprovida de toda noção de honra e respeito. 620 A maneira como o ressentimento, o instinto da vingança busca aqui se passar por virtude, bondade e “santidade”, não poderia produzir nada além de repugnância e nojo revolta e indignação 622 ; aqui falta mesmo toda noção de espírito. 623 621 , de Como Nietzsche denúncia: No Novo Testamento, e especialmente nos Evangelhos, eu não ouço nada de “divino” falar: mas sim uma forma indireta da raiva da calúnia e da destruição mais dissimulada – umas das formas mais desonestas do ódio; – falta todo conhecimento das qualidades de uma natureza superior – abuso irrefletido de todo tipo de probidade; todo tesouro dos provérbios é explorado e aplicado; seria necessário que um deus viesse dizer a esse publicanos, etc.624 Como remédio para curar o mal-estar que, segundo Nietzsche, esse ar pestilento que emana do Novo Testamento provoca, o filósofo recomenda a leitura de Petrônio: “Que se leia simplesmente Petrônio imediatamente após o Novo Testamento: como se respira, como se afasta para longe de si os miasmas da maldita beatice!” 625 O possível “arbiter elegantiae” da corte de Nero de que nos fala Tácito em seus Anais 626, o autor do Satiricon, representa, para Nietzsche, toda alegria, beleza e orgulho de si da vida sadia que o 617 AC § 46. Ibidem. 619 Ibidem. 620 Cf. 11 [155] de novembro de 1887 – março de 1888. 621 Cf. FP 10 [183] do outono de 1887. 622 Cf. FP 10 [181] do outono de 1887. 623 Cf. FP 10 [185] do outono de 1887. 624 FP (63) 9 [88] do outono de 1887. 625 FP (194) 10 [69] do outono de 1887. 626 Tacite. Annales. En latin et en françois. Par J. H. Dotteville. Paris: Dauphine, 1774, tome second, livre XVI, section XVIII-XIX, pp. 363-369. 618 202 cristianismo desejou desonrar no Novo Testamento. A obra de Petrônio é a manifestação literária daquele tipo de vida mais elevada que o homem do Renascimento encarna, ou seja, assim como César Bórgia representa o tipo oposto ao ideal de homem cristão, o Satiricon representa o antípoda literário do Novo Testamento: Todo livro torna-se limpo, após termos lido o Novo Testamento: para dar um exemplo, li encantado logo depois de Paulo, aquele gracioso, petulante zombeteiro, que é Petrônio, de que se poderia dizer o que Domenico Boccaccio escreveu ao duque de Parma sobre César Bórgia: “é tutto festo” [é todo festivo] – imortalmente sadio, imortalmente alegre e bem logrado.627 Em Além de bem e mal, Petrônio surge como aquele que deteve no campo literário a mestria da rapidez e leveza com as palavras que equivalem na música ao andamento que recebe o nome de presto, chegando a alcançar até mesmo o prestissimo. Por isso, uma tradução em alemã de Petrônio é, para Nietzsche, impossível, pois o tempo de estilo de uma língua tem sua origem no caráter da raça ou “falando mais fisiologicamente, no tempo médio de seu ‘metabolismo’”. 628 O idioma alemão se mostra incapaz para o presto; esse gravíssimo entre todas as línguas demonstra a inabilidade congenial dos alemães para a agilidade temerária que o pensamento livre requer: “Quem arriscaria uma tradução alemã de Petrônio, que mais que qualquer grande músico, foi o gênio do presto, em invenção, inspiração, palavra – que importam todos os pântanos de um mundo enfermo e ruim, mesmo do ‘mundo antigo’, quando se tem, como ele, os pés de vento, o sopro e o alento, o escárnio liberador de um vento que faz tudo saudável, ao fazer tudo correr!” 629 É também apostando no parentesco de Petrônio com o homem do Renascimento que Nietzsche o contrapõe ao espírito alemão, que ensejou a Reforma. Petrônio seria o antepassado direto 627 AC § 46. BM § 28. 629 Ibidem. “A terceira impressão incomparável que eu devo aos latinos, é Petrônio. Esse prestissimo da petulância em palavras, em construções e em pensamentos saltitantes, esse refinamento na mistura do latim ‘vulgar’ e ‘cultivado’, esse exuberante bom humor, que não recua diante de nada e salta com graça sobre todas as bestialidades do mundo antigo, essa soberana liberdade diante da moral, diante das virtuosas pobrezas das ‘belas almas’ – eu não saberia citar nenhum livro que tenha produzido sobre mim uma impressão minimamente próxima” (FP 24 [1] § 7 do outubro – novembro de 1888, versão preparatória de EH, Por que sou tão inteligente, ainda que o trecho em questão surja mais como preparatório de AC § 46). Cf. também: FP 26 [428] de verão - outono de 1884. 628 203 de Maquiavel e de seu “indomável allegrissimo”. 630 É do ar fino e seco de Florença, que o Príncipe nos faz respirar, com sua absoluta liberdade diante da moral, que o Satiricon está mais próximo, e não do ar nauseante de uma Antiguidade que se fez corromper, não pela ausência de moral, mas sim pela infiltração da moral em seu seio: “Que o autor [Petrônio] seja um provençal, meu instinto mais íntimo me sussurra: é preciso ter o diabo no corpo para fazer tais saltos”. 631 Petrônio, por sua vez, tem como seu antepassado direto, na literatura grega, Aristófanes. Em Além de bem e mal, Nietzsche declara que o perdão exigido por tudo aquilo que na Grécia clama por absolvição e transfiguração, deve ser, por conta de Aristófanes, concedido. Aristófanes, assim como Petrônio, é a contraposição literária de todo tipo de Bíblia, de toda corrupção ocasionada pela infiltração da moral que já se alastrava nos subterrâneos do mundo pagão, com o egipcísmo e o pitagorísmo. E é justamente por conta dessa natureza autenticamente pagã de Aristófanes, que o enigma de Platão recebe um novo adendo: “– nada me fez refletir mais sobre a reserva e a natureza esfíngica de Platão do que esse petit fait, felizmente conservado: que sob o travesseiro de seu leito de morte não se encontrou nenhuma ‘Bíblia’, nada egípcio, pitagórico, platônico, – mas sim Aristófanes. Como poderia até mesmo um Platão suportar a vida – uma vida grega, à qual ele disse ‘não’ – sem um Aristófanes?”. 632 Petrônio também exerce uma importância fundamental, como grande exemplo de força e saúde do mundo antigo, para o argumento de que não foi a chamada “corrupção” do Império Romano que tornou o cristianismo possível, mas sim a moralização do homem antigo, a interpretação dos seus instintos naturais como vícios. 633 Na mesma época em que toda a massa de deserdados do mundo antigo se cristianizava, o tipo nobre de homem se manifestava em sua forma mais elevada 634 , prova disso, para Nietzsche, é Petrônio. O Satiricon e o Novo Testamento representam dois mundos opostos, duas Antiguidades 630 BM § 28. FP 24 [1] § 7 do outubro – novembro de 1888. Cf. também sobre o ar provençal da obra de Petrônio: FP 34 [102] outono de 1884 – outono de 1885. 632 BM § 28. Sobre o parentesco entre Petrônio e Aristófanes, seu apreço pelo trivial em contraposição ao louvor da grandeza feito por Homero, cf. FP 34 [80] outono de 1884 – outono de 1885. 633 Cf. FP (17) 9 [22] do outono de 1887. 634 Cf. AC § 51. 631 204 antagônicas, que coexistiram em um mesmo período, a da saúde e a da doença, a da vida elevada e a da vida décadent, da tschandala. Desse modo, o alvo contra o qual esses “santos anarquistas” se rebelaram foi toda aquela alegria e leveza perante o aspecto grotesco e sórdido do mundo antigo que o Satiricon exibe; o cristão como caluniador, como envenenador da vida que prospera 635: Que ar mórbido e bolorado emana de toda essa excitação verbal de “salvação”, amor, “beatitude”, fé, verdade, “vida eterna”! Que se tome como antídoto um livro propriamente pagão, por exemplo, Petrônio, em que no fundamento nada se faz, nada se diz, nem se deseja, nem se estima, que, segundo um critério de valor beato-cristão, não seja pecado, mesmo pecado mortal. E, não obstante: que sentimento agradável de ar mais puro, da superioridade intelectual do passo acelerado, da força liberadora, superabundante, segura do porvir! Em todo o Novo Testamento não se produz uma só bouffonnerie: mas eis o que refuta um livro... Comparado a Petrônio, o Novo Testamento se torna sintoma da cultura decadente e da corrupção – e é enquanto tal que ele age, enquanto fermento da decomposição. 636 Toda a irreverência usada por Petrônio para narrar as desventuras e façanhas de um trio de farsantes, vagabundos, bandoleiros, amigos e amantes é vista por Nietzsche como uma autêntica inocência literária frente à falsidade do Novo Testamento. O filósofo apresenta o Satiricon, essa novela burlesca, divertida e privada de todo preconceito moral, como contraposição direta àquela confissão de “almas belas”, ao seu caráter fraudulento e nada inocente: “‘Inocente’ é, por exemplo, Petrônio: comparado a esse feliz, um cristão perde de uma vez por todas sua inocência”. 637 É sobretudo nas Epístolas de Paulo que a verdadeira corrupção da Antiguidade se faz presente: “Na ocasião em que tenho necessidade de me libertar de uma impressão aviltante, por exemplo, após a leitura do apóstolo Paulo, algumas páginas de Petrônio me bastam para recobrar inteiramente a saúde”. 638 Petrônio, como possível contemporâneo de 635 Cf. AC § 58. FP (96) 9 [143] do outono de 1887. “Que recreação, após o Novo Testamento, tomar em mãos Petrônio, por exemplo! Como imediatamente alguém se encontra reestabelecido! que se sente a intelectualidade sã, petulante, segura e maliciosa! – e enfim é-se detido pela questão: ‘a sujeira antiga não tem mais valor do que toda essa sabedoria pretensiosa, essa beatice cristã?’ ((213) 10 [93] do outono de 1887). 637 FP (287) 10 [193] do outono de 1887. “Baudelaire fala relativamente a Petrônio de ses terrifiantes impuretés, ses bouffonneries attristantes. Absurdidade: mas sintomático... (11 [163] novembro 1887 – março 1888). 638 FP 24 [1] § 7 do outubro – novembro de 1888. 636 205 Paulo, aquele que envia o seu Satiricon como presente ao imperador Nero quando, cumprindo a sentença de morte que este o condenara, abria e fechava as veias degustando calmamente seus últimos instantes 639 , representa todo o “mundo”, a vida em seu triunfo, que Paulo condenou e caluniou com sua doutrina. 640 Não obstante, a ousadia e despudor com que esses “santarrões” atacam é de caráter tão baixo e mesquinho, privado de honra, que tudo “que é por eles atacado é, por isso mesmo, distinguido. Um ‘primeiro cristão’ não macula a quem ataca... Ao contrário: é uma honra ter ‘primeiros cristãos’ contra si”. 641 Tudo o que tem altura, toda a vida sadia e alegre é por eles agredida com tal violência, que todos os seus verdadeiros opositores devem ser estimados quase que imediatamente segundo o critério mais elevado de valor: “Não se lê o Novo Testamento sem uma predileção pelo que nele é maltratado – para não falar da ‘sabedoria desse mundo’, que um insolente fanfarrão busca em vão arruinar ‘com tola prédica’...” 642 Mas, então, até mesmo aos escribas e fariseus devem-se reservar lugares de honra na história, afinal, “eles devem ter valido algo, para serem odiados de forma tão indecente.” 643 Conforme Nietzsche, todo esse ataque impudente aos fariseus não provém de Jesus, pois essa atitude é incongruente com o seu tipo psicológico. É marcadamente com os apóstolos que se começa a fabular a respeito de uma revolta de Jesus contra a ordem sacerdotal, contra a hipocrisia dos fariseus: “Hipocrisia – eis uma censura que os ‘primeiros cristãos’ poderiam fazer. – Afinal foram os privilegiados: isso basta, o ódio tschandala não precisa de mais razões.” 644 Ora, o que de fato se combatia aqui era o privilégio, a casta, o 639 Cf. Tacite, Loc. Cit. Como também os Padres da Igreja: “O que se deve entender pela espiritualização das concupiscências de todo gênero: a satura Menippea de Petrônio nos dá um exemplo clássico. Que se o leia paralelamente a um Padre da Igreja, e que se pergunte onde sopra o ar mais puro... Não se encontra nada que não pudesse mergulhar um velho padre no desespero, por sua imoralidade e sua impertinência lasciva” (FP 15 [104] da primavera de 1888). Satirae menippeae (Nietzsche grafa “satura”) é o modelo satírico greco-romano, em prosa e verso, composto por Varrão ao imitar as palestras satírico-sociais do filósofo grego Menipo, e que Petrônio adota de forma bastante livre em Satiricon. 641 AC § 46. 642 Ibidem. 643 Ibidem. “Nada é mais vulgar que esse combate contra os fariseus a favor de uma absurda e impraticável aparência de moral – semelhante tour de force sempre divertiu o povo. A acusação de ‘hipocrisia’! por essa boca! Nada é mais vulgar do que a maneira de tratar o adversário. – Um índice do gênero mais capcioso para discernir da nobreza ou não... Se qualquer um tivesse somente dito o centésimo ele mereceria a sua ruína, como anarquista.” (FP (63) 9 [88] do outono de 1887). 644 AC § 46. 640 206 poder: exatamente o que o código sacerdotal havia ensinado a odiar. Em uma passagem, que se lida de forma muito apressada pode levar a crer que Nietzsche está se referindo a Jesus, principalmente quando se tem em mente a seção 39 na qual ele diz que Jesus foi o único cristão que existiu (na verdade, como já foi dito, isso representa apenas um argumento hipotético provisório), Nietzsche declara que o “primeiro cristão” 645 , ou seja, Paulo, é um verdadeiro insurgente contra todo privilégio de casta, daí sua necessidade da fé em uma sobrevida pessoal, da imortalidade da alma, da “igualdade de todos perante Deus”: “O ‘primeiro cristão’ – receio que também o ‘último cristão’ que eu talvez ainda venha a conhecer – é um rebelde contra tudo privilegiado, a partir de seu mais básico instinto – ele vive, combate sempre por ‘direitos iguais’...” 646 645 Cf. A § 68. AC § 46. Na continuação dessa passagem, fica ainda mais claro que é a Paulo, e não a Jesus, que Nietzsche se refere, devido à alusão feita pelo filósofo a temas centrais da doutrina que Paulo professa em suas Epístolas: “Olhando mais detidamente, ele não tem escolha. Se alguém quer ser um ‘eleito de Deus’ – ou um ‘templo de Deus’, ou um ‘juiz dos anjos’ – qualquer outro princípio de escolha, segundo a retidão, por exemplo, segundo o espírito, a virilidade e o orgulho, a beleza e a liberdade do coração, é simplesmente ‘mundo’ – o mal em si...” 646 207 208 3 – FISIO-PSICOLOGIA DO TIPO JESUS De acordo com Andreas Urs Sommer 647 , o primeiro problema que uma psicologia do redentor traz é precisamente a atribuição do título “Erlöser” [redentor] a Jesus. Na seção 24 de O Anticristo, ao expor a primeira tese para a solução da gênese do cristianismo, ou seja, a sua herança judaica, Nietzsche sintetiza: “Na formulação do redentor: ‘a salvação [das Heil] vem dos judeus’”. Contudo, na exposição da segunda tese, Nietzsche diz que o “tipo psicológico do Galileu” só pode servir como “o tipo de um Redentor da humanidade” a partir de “sua completa degeneração [Entartung]”. Por conseguinte, a ausência de aspas na palavra “redentor” na primeira sentença parece estar em franca contradição com o que é declarado na segunda. As aspas também permanecem ausentes nas seções 28 e 29; na primeira, Nietzsche coloca como problema a ser agora investigado a psicologia do redentor e, na segunda, substitui a fórmula “tipo psicológico do Galileu” por “tipo psicológico do redentor”. Como observa Sommer 648 , a ausência de aspas parece sugerir que Nietzsche confere de fato à figura de Jesus esse atributo “cristológico” 649, porém, antes de acusarmos o filósofo de contradição, é necessário identificarmos com o que o termo “Erlöser” está associado no contexto geral de O Anticristo. Na seção 17, o filósofo afirma que é um sintoma da vida declinante o fato de que os atributos “Salvador” [Heiland] e “Redentor” (ambas as palavras colocadas entre aspas) serem tudo o que resta de predicado divino. Na seção 37, Nietzsche acusa o sentido histórico de sua época de obtusidade por ter chegado a acreditar “no absurdo de que no começo do cristianismo está a grosseira fábula do fazedor de milagres e redentor”. Mas é no artigo sexto da “Lei contra o cristianismo” que a palavra se vê esvaziada de qualquer significação dignificatória: “as palavras ‘Deus’, ‘Salvador’, ‘Redentor’, ‘Santo’ devem ser usadas como insultos, como insígnias de criminosos”. Ora, como Sommer argumenta 650 , a seção 42 põe fim a toda anfibologia, nela é dito que Paulo falsificou a história de Israel declarando que todos os profetas falaram de seu “Redentor” (entre aspas), por outro lado, Nietzsche lança a questão retórica: “O que não sacrificou ao 647 Sommer, Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”, p. 281. Idem. 649 Ou que foi corrompido pelo cristianismo. Isso será discutido em “Considerações finais: Redenção para o “Redentor” ou redenção do redentor”. 650 Idem. 648 209 ódio esse disangelista! 651 Antes de tudo o redentor: ele o pregou à sua cruz”. No primeiro caso, “Redentor”, entre aspas, designa a invenção de Paulo, um tipo pretensamente “divino”, no segundo caso, redentor, sem a ironia das aspas, refere-se a um tipo humano, demasiado humano. Assim, a aparente contradição da seção § 24 se desfaz: Jesus foi um redentor, mas não uma espécie de Redentor da humanidade, ou seja, um “Redentor” no sentido eclesiástico, aquele ser divino que libertou (curou) o homem de seus pecados. Entretanto, o que exatamente vêm a ser um redentor em um sentido humano, demasiado humano? Ora, um tipo de homem fatalmente décadent. Sendo assim, quando Jesus e sua redenção aparecem como objetos de uma investigação psicológica não se faz necessário o uso de aspas, pois logo fica claro que nenhum tipo de “redenção do mundo” pode ser encontrada neste tipo de homem. Recordemos também uma passagem acerca do tom e do significado dos discursos de Zaratustra: “Mas o que diz ele mesmo, ao retornar pela primeira vez à sua solidão? Precisamente o oposto do que diria em tal caso qualquer ‘sábio’, ‘santo’, ‘Redentor do mundo’ [Welt-Erlöser] 652 ou outro décadent...” 653 Desta forma, o redentor, sem aspas, deve ser entendido enquanto um tipo fisiologicamente degenerado; “Redentor”, entre aspas, deve ser entendido como uma falsidade cristãoteológica que fez de um décadent um tipo ideal de homem. 654 Não obstante, apesar de essa distinção ficar bem marcada na seção 42 pelo uso das aspas, o leitor nem sempre dispõe de tal ajuda. 655 Muitas vezes a diferença entre a interpretação real, ou seja, fisiológica, e a interpretação fictícia, isto é, teológica, do tipo redentor, tanto em O Anticristo quanto nos póstumos, é dada somente pelo contexto, como é o caso da seção 24 mencionada acima. Nesses casos, a distinção entre a interpretação imaginária do tipo do redentor frente àquela 651 Aspas na palavra “disangelista”, tal como se lê na tradução de Paulo César Souza, não constam na KSA. “Salvador do mundo” em PCS. 653 EH, Prólogo § 4. 654 Sobre o uso das aspas em Nietzsche e a distinção entre uma interpretação falsa e real do corpo, cf.: Blondel, Eric, Les guillemets de Nietzsche. 655 As aspas também auxiliam na leitura em Genealogia da moral, I § 8: “Esse Jesus de Nazaré, evangelho vivo do amor, esse ‘Redentor’ portador da vitória e da bem aventurança aos pobres, aos doentes e aos pecadores – não era ele a sedução em sua forma mais inquietante e irresistível, a sedução e a via sinuosa para justamente aqueles valores judeus e inovações judaicas do ideal? Não teria Israel alcançado, por via desse ‘Redentor’, desse aparente antagonista e desintegrador de Israel, a verdadeira meta de sua sublime ânsia de vingança?” 652 210 real, se faz presente geralmente quando se atribui a este tipo a capacidade de ter libertado, curado, salvado, redimido a “humanidade”. 656 A diferenciação entre uma interpretação real, que lê o corpo como uma efetivação de pulsões e conflitos de forças, e uma interpretação fictícia, privada de toda noção de causalidade natural, é dada por Nietzsche na seção 15 de O Anticristo, na qual o uso das aspas para marcar a falsidade do discurso cristão e de sua interpretação sobre a maneira como o corpo se configura e se efetiva fisiologicamente se faz fortemente presente: “Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade [Wirklichkeit]. 657 Nada senão causas imaginárias (‘Deus’, ‘alma’, ‘Eu’, ‘espírito’, ‘livre arbítrio’ – ou também ‘cativo’ [‘unfreie’]); nada senão efeitos imaginários (‘pecado’, ‘redenção’[‘Erlösung’]658, ‘graça’, ‘castigo’, ‘perdão dos pecados’)”. Toda essa psicologia imaginária, constituída por nada mais do que “mal entendidos sobre si” (ou seja, sobre o devir efetivo do corpo), “interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis”, de dor e de prazer, “com ajuda da linguagem de sinais da idiossincrasia moral-religiosa”, pode e deve ser substituída por uma psicologia, por um discurso, real. Nessa psicologia real, a redenção tem sua causalidade natural revelada. 659 Essa psicologia da redenção está intimamente associada com a tentativa empreendida por Nietzsche em seus últimos escritos de realizar uma fisiologia da religião e do homem religioso, como testemunham os seus fragmentos póstumos do ano de 1888. No contexto desses escritos, as atribuições de redentor e santo conferidas muitas vezes por Nietzsche a Jesus, longe de constituírem uma espécie de reverência ou elogio, servem muito mais para enfatizar o aspecto décadent de Jesus, e não o seu caráter “divino”. Santo equivale, nesses últimos escritos, a um tipo degenerado, pálido, mórbido, cadavérico, neurastênico, hiperexcitado, que sofre de hiperexcitabilidade nervosa, neurótico, visionário, epiléptico, idiota-entusiasta, 656 Para marcar ainda mais a distinção entre Erlöser e “Erlöser”, decidimos grafar em português o termo que designa a leitura fisio-psicológica do tipo em letra minúscula. 657 Ainda que sempre válida a observação de Rubens Rodrigues Torres Filhos sobre a especificidade semântica de Wirklichkeit, que seria mais corretamente traduzido por efetividade, optamos, por uma questão meramente estilística, seguir aqui a tradução de Paulo César de Souza, indicando entre colchetes o uso feito no original ou de Wirklichkeit ou de Realität. Andrés Sánchez Pascual também optou por “realidade”, bem como Jean-Claude Hémery. 658 “Salvação” em PCS. 659 Cf. FP 14 [181] da primavera de 1888. Preparatório da seção fundamental para o tema da redenção em O Anticristo, a saber, § 51. 211 bem como o tipo redentor, salvador, homem bom, São Francisco, Jesus, Parsifal (de Wagner). O redentor, o santo, o salvador – reais, ou seja, fisiologicamente descritos, considerados enquanto tipos eminentemente décadents, diferenciam-se do “Redentor”, do “Santo”, do “Salvador”, pois estes últimos se referem a uma interpretação falsa, a uma mentira, ou seja, a um objeto da fé cristã. 660 Com isso, também se reforça a perspectiva de que com sua investigação Nietzsche não pretende adentrar no campo da investigação histórico-biográfica. Como esclarece Sommer: “De modo mais preciso, um tal empreendimento diz respeito apenas superficialmente ao aspecto psicológico individual, pois, na realidade, o que se tem aqui é muito mais uma ‘tipologia’ histórico-moral: o redentor como um ‘tipo psicológico’”. 661 Ou seja, o projeto de uma investigação do tipo psicológico do redentor, de modo bem mais preciso, diz respeito a Jesus somente enquanto este representa um caso específico do tipo: o que se quer investigar mesmo é qual a configuração fisio-psicológica desse tipo de homem que a décadence elegeu como seu “Redentor” de modo geral, abarcando assim outros pretensos “Redentores”, como o Parsifal de Wagner, por exemplo. Ora, de acordo com Frezzatti Júnior, uma investigação fisio-psicológica representa a superação da dualidade corpo/mente, biologia/cultura, pois o que se quer com ela é descrever como se configuram hierarquicamente os impulsos em um dado organismo, seja biológico, seja cultural: “A investigação desses impulsos é realizada, pelo filósofo alemão, por algo que não é nem uma Antropologia, nem uma Biologia ou Fisiologia no sentido tradicional, mas uma nova psicologia: uma fisio-psicologia que é concebida por Nietzsche enquanto ‘morfologia e teoria do desenvolvimento da vontade de potência’”. 660 662 A Essa distinção encontra-se bem marcada em AC § 51. A diferenciação entre santo e “santo” também pode ser vista em BM § 47. Ver também o uso das aspas para distinguir uma interpretação real de uma imaginária no que diz respeito à noção de pecado em AC § 49: “Mas a ciência prospera, em geral, apenas em circusntâncias felizes – é preciso ter tempo, ter espírito de sobra, a fim de ‘conhecer’... ‘Por conseguinte, é preciso tornar o homem infeliz’ – esta foi, em todos os tempos, a lógica do sacerdote. – Já se percebe o que, conforme essa lógica, veio então ao mundo: o ‘pecado’... A noção de culpa e castigo, toda a ‘ordem moral do mundo’ foi fundada contra a ciência – contra o desligamento do homem em relação ao sacerdote... [...] – O pecado, diga-se mais uma vez, essa forma de autoviolação humana par excellence, foi inventado para tornar impossível a ciência, a cultura, toda elevação e nobreza do homem; o sacerdote domina mediante a invenção do pecado –”. 661 Sommer, Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”, p. 281. 662 Frezzatti Junior, Wilson Antonio. A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia. Ijuí: Editora Unijuí, 2006, p. 274. 212 morfologia entendida enquanto conformações dos impulsos, cuja efetivação se dá pela vontade de poder, como a busca por aumento de força, é o que vai fornecer os atributos que caracterizam os diferentes tipos psicológicos, estes se originando do desenvolvimento da vontade de poder enquanto dinâmica de luta que provoca a mudança da forma com que os impulsos se configuram numa hierarquia. Os tipos psicológicos podem, grosso modo, ser divididos em três grandes grupos, a saber, os tipos próprios da vida ascendente, os da vida média e os da vida declinante. Quando os impulsos se encontram conformados em uma hierarquia, ou seja, organizados sob o comando de um impulso ou conjunto de impulsos que fornecem uma direção para todo o organismo, temos a vida em estado ascendente, quando busca a superação, ou média, quando busca a conservação; quando os impulsos se encontram desagregados, sem uma ordem de comando que imponha um alvo para o conjunto, temos a vida em estado declinante, doentia. A despeito dessa mútua pertença entre fisiologia e psicologia na genealogia nietzschiana, arriscar-nos-emos a supor uma certa diferença de ênfase que sua investigação parece, às vezes, conferir aos aspectos fisiológicos e psicológicos. Assim, podemos nos aventurar a dizer que a psicologia do redentor é o entendimento de como a realidade evangélica vivenciada por Jesus é proveniente de um determinado corpo, de um tipo específico de vida. A fisiologia (do rendentor), por sua vez, é a descrição desse corpo, a descrição da causalidade natural da boa nova. Isso não implica que haja qualquer separação radical entre fisiologia e psicologia, mas somente que pode haver uma certa prevalência de um aspecto sobre outro nos diferentes momentos da investigação. 663 Dessa forma, em sua investigação sobre o tipo de Jesus, Nietzsche irá recorrer muito mais a termos e conceitos psiquiátricos comuns à literatura médica do final do século XIX do que a dados historiográficos, exegéticos ou arqueológicos. É no fenômeno da hiperexcitabilidade, e seu estado hereditariamente progressivo, como sintoma característico da degenerescência fisiológica, que Nietzsche encontrará o fundamento psiquiátrico para as suas considerações sobre o tipo de Jesus. A hiperexcitabilidade enquanto sintoma que 663 É assim que entendemos igualmente a diferença de ênfase entre os termos “degenerescência” e “décadence” nos escritos de Nietzsche. O primeiro termo se refere ao aspecto mais fisiológico (biológico, físico-químico, médico e psiquiátrico) do fenômeno, e o segundo, ao aspecto mais psicológico (cultural, moral, estético, etc.). 213 adquire um aspecto cada vez mais agravante de acordo com o aumento do grau de degenerescência na espécie é o conceito chave das investigações empreendidas pelo médico e psiquiatra francês Charles Féré, lido por Nietzsche entre 1887 e 1888. No trabalho de Féré, Nietzsche encontrou importantes dados que corroboraram e reforçaram suas teorias sobre o fenômeno da décadence. Chama particularmente atenção de Nietzsche a noção apresentada por Féré de que é a hiperexcitabilidade que condiciona a incapacidade de resistência e de luta por parte de um indivíduo degenerado. 664 É precisamente tendo como fundamento a noção de que o tipo de Jesus se mostra incapaz de opor resistência àqueles que lhe fazem mal e à dor de modo geral, que o filósofo irá buscar descrever a compleição fisio-psicológica do redentor. Deste modo, como esclarece Sommer: “O novo método anticristão para a investigação de Jesus não é biográfico, mas antes patográfico”. 665 Mas, como também argumenta Sommer, isso não significa que Nietzsche irá escrever uma “patografia de Jesus” (ao invés de uma “vida de Jesus”), pois, a despeito do filósofo se apoiar nas recentes descobertas da literatura médica de seu tempo, buscando sempre uma aproximação rigorosa com esse discurso, é necessário atentar para o fato de que os conceitos e teorias da medicina ou da psiquiatria que ele irá lançar mão, sempre tendem a adquirir, no interior de sua filosofia, uma nova definição e configuração justamente por conta da sua filosofia da vontade de poder e da sua teoria de forças. O que não significa que o discurso fisio-psicológico que o filósofo põe em ação possua um caráter meramente metafórico, mas somente que o mesmo não está inteiramente comprometido, ou ainda, “aprisionado” pelos limites experimentais e empíricos que regularizam o discurso propriamente médico, recorrendo também à abstração conceitual como modo de ir além do discurso científico comum. 3.1 – Féré, degenerescência e hiperexcitabilidade A tentativa de explicar o fenômeno religioso e o homem religioso segundo uma perspectiva fisio-psicológica já aparece com certa freqüência nos escritos de Nietzsche mesmo antes de 1888. Em Humano, demasiado humano, por exemplo, as experiências 664 665 Cf. FP 15 [37] da primavera de 1888. Sommer, Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”, p. 289. 214 “divinas” vivenciadas pelo santo já são vistas como sendo causadas por problemas de ordem psicológica, por patologias mentais em um sentido bastante preciso, cujas causas e sintomas já haviam sido descritos pela literatura médica: “Todas as visões, terrores, esgotamentos e êxtases do santo são estados patológicos conhecidos, que ele, a partir de arraigados erros religiosos e psicológicos, apenas interpreta de modo totalmente diverso, isto é, não como doença”. 666 E, em Além de bem e mal e Genealogia da moral, bem antes de Freud, Nietzsche já havia, não exatamente pelo mesmo caminho e pelos mesmos motivos que o psicanalista, aproximado a experiência religiosa da neurose 667 : “Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na Terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual – mas sem podermos decidir, com segurança, o que aí é causa e o que é efeito, e mesmo se existe uma relação de causa e efeito”. 668 Mas é sobretudo a partir de 1887, muito provavelmente impulsionado pela leitura das obras de Féré, que a tentativa de realizar uma fisiologia da religião e do homem religioso começa a adquirir contornos bem mais precisos e a receber um grande destaque nas discussões dos últimos escritos do filósofo. A tentativa de realizar uma fisiologia da religião faz parte do projeto maior da crítica aos “supremos valores da humanidade” como sendo valores da décadence, e, portanto, está intimamente associada com a fisiologia da arte, da moral e da filosofia, bem como com os vários subtemas em que cada uma se encontra dividida, por exemplo, na fisiologia da arte, temos a fisiologia do artista, do ator, do público, do belo, do feio e dos efeitos da arte. Os temas concernentes a fisiologia da religião, por sua vez, podem ser divididos em: fisiologia das religiões em geral, do judaísmo, do cristianismo, do budismo, do hinduísmo (código de Manu), do 666 HHI § 126. Sobre a especificidade conceitual do termo “neurose” na obra de Nietzsche e de seus contemporâneos, cf. Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 146: “What, he asks [em BM § 47] , is the cause of the oscillation between manifestations of excessive sensuality and the penitential denial of the will and world which religious fanatics exhibit? The answer which he gives here, and works out in more detail in subsequent works, is what he calls the ‘religious neurosis’ – neurosis in the original, pre-psychoanalytic sense, of course; that is, a lesion of the nervous system and thus primarily a physiological, rather than a purely mental disturbance. According to nineteenth-century medicine, neurasthenia, epilepsy and hysteria are all related forms of neurosis.” (p. 146) 668 BM § 47. Essa passagem é uma influência direta da obra Inquiries into human faculty, de Francis Galton (Cf. Haase, Marie-Luise, “Friedrich Nietzsche liest Francis Galton“. In: Nietzsche Studien, Band 18, Berlin: Walter de Gruyter, 1989). “A neurose religiosa se manifesta como uma forma de ‘ser mau’: quanto a isso não há dúvida. O que é essa neurose? Quaeritur [pergunta-se]” (GM, III § 21). 667 215 paganismo, do islamismo; fisiologia da experiência religiosa em geral, do êxtase, da fé, do pecado, da penitência, da salvação, da beatitude e da redenção; fisiologia do homem religioso em geral, do sacerdote, do crente, do santo, do redentor. A fisiologia do santo também está associada com a fisiologia da moral no que concerne à fisiologia do altruísmo, do homem bom e das “almas belas”; a fisiologia da redenção está ligada ao efeito da música de Wagner em seu público, sendo que Nietzsche considera a redenção o próprio leitmotiv do músico 669 ; e a fisiologia do redentor se encontra intimamente vinculada à fisiologia dos heróis de Wagner, mais especificamente, de Parsifal, e do tipo mesmo de Wagner. 670 A fisiologia é o principal instrumento mediante o qual Nietzsche lê o conjunto dos valores ocidentais como valores condicionados pelo fenômeno da décadence. Como Nietzsche mesmo declarou, o problema da décadence foi aquele com o qual ele mais se ocupou. 671 Sabe-se que desde os anos de 1870, Nietzsche já analisa a decadência (Verfall) ou declínio (Niedergang) de uma cultura em termos biológicos, como um fenômeno ocasionado pela desintegração de um princípio orgânico central. 672 O termo “décadence”, em sua forma francesa, já aparece no fragmento 23 [140] do final de 1876 e início de 1877, no qual o filósofo observa que Dom Quixote, de Cervantes, pertence a “décadence da cultura espanhola”. Sabe-se também da importância que o termo francês adquire nos escritos de Nietzsche a partir de seu encontro com os Essais, de Bourget, no inverno de 669 Cf. CW § 3. Embora os temas da fisiologia da redenção e do redentor estejam intimamente vinculados com a fisiologia da estética, mais particularmente, com a investigação da música de Wagner, optamos por não enveredar por esse assunto, visto que o tratamento que o mesmo exigiria não poderia ser dado satisfatoriamente aqui. Limitar-nos-emos, portanto, apenas em indicar um breve itinerário dos textos em que a associação da fisiologia da arte de Wagner e da fisiologia da redenção se dá de maneira mais clara. Sobre fisiologia da arte em geral: FP 10 [168] do outono de 1887; FP’s 14 [117], 14 [119], 14 [170], 14 [182] da primavera de 1888. Sobre a fisiologia da música de Wagner: FP’s 11 [90], 11 [312], 11 [321], 11 [322], 11 [323] de novembro de 1887 – março de 1888; FP’s 14 [42], 14 [50], 14 [165], 14 [170], 14 [222], FP 15 [111] da primavera de 1888. Sobre a fisiologia do público de Wagner: FP’s 11 [314], 11 [323] de novembro de 1887 – março de 1888; FP’s 14 [62], 14 [63], 14 [170] da primavera de 1888; FP 16 [45] primavera – verão de 1888. Sobre a fisiologia dos heróis de Wagner: FP’s 11 [322], 11 [380] novembro de 1887 – março de 1888; FP’s 14 [63],15 [15], 15 [16] § 7, 15 [99], 15 [48] da primavera de 1888. Sobre a fisiologia do Parsifal de Wagner: FP’s 11 [27], 11 [28] novembro de 1887 – março de 1888; FP’s 14 [52], 14 [63], 15 [15], 15 [17] da primavera de 1888; FP 16 [69] primavera – verão de 1888. Toda essa discussão culmina, naturalmente, em O Caso Wagner. 671 Cf. CW, Prólogo. 672 Cf., por exemplo, NT § 23. 670 216 1883. Não obstante, como defende Gregory Moore 673 , a importância de Bourget para a investigação do fenômeno da décadence nos últimos escritos de Nietzsche tem sido superestimada. Afinal, o termo “décadence”, preferido por Nietzsche, só volta a aparecer em seus trabalhos publicados e em seus póstumos apenas de forma esporádica (isso por volta de 1885 e 1886), até 1887, “quando, com a intensificação de sua crítica à modernidade e ao niilismo, o uso da palavra explode em seus cadernos”. 674 Moore tenta mostrar que a palavra “décadence” deve seu súbito reaparecimento e rápida profusão nos últimos escritos de Nietzsche não exatamente aos Essais, de Bourget, mas muito mais a obra Dégénérescence et criminalité, de Féré. É também assim que a palavra “dégénérescence”, que Nietzsche traduz por “Degenerescenz”, sinônimo de décadence para Féré e seus contemporâneos, e que surge pela primeira vez nos escritos do filósofo somente na primavera de 1888, também passa a obter grande destaque. 675 A influência quase que exclusiva, no que se refere ao fenômeno da décadence, que muitos intérpretes atribuem aos Essais de Bourget nos últimos escritos de Nietzsche, deve-se freqüentemente à famosa passagem do parágrafo 7 de O caso Wagner, na qual o filósofo descreve o que vem a ser o estilo da décadence, passagem essa que também pode ser encontrada quase que literalmente no capítulo sobre Baudelaire dos Essais. 676 Contudo, as noções de hiperexcitabilidade 677 e sensibilidade hiperexcitada 678 , de sugestão 679 , de esgotamento 673 680 , e as teorias que falam Cf. Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 120. Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 121. 675 Cf. CW § 5; CW § 7; CI, O problema de Sócrates § 9; CI, Moral como contra-natureza § 2; CI, Incursões de um extemporâneo § 20; AC § 32; FP’s 14 [74], 14 [91], 14 [113], 14 [133], 14 [209], 14 [220], 15 [36] , 15 [37], 15 [99] da primavera de 1888; FP 16 [40] primavera – verão de 1888; FP 22 [19] setembro – outubro de 1888. 676 Cf. Bourget, Essais de psychologie contemporaine, p. 20. 677 “Überreizbarkeit” – “hyperexcitabilité” em Féré. Cf. CW § 5: “Überreiztheit der nervösen Maschinerie“. 678 “Überreizte Sensibilität” – “sensibilité maladive” em Féré. Cf. Ibidem. “Sensibilidade exarcerbada” em PCS. 679 “Suggestion” – “suggestion”. Cf. Ibidem. 680 “Erschöpfung” – “épuisement”. Cf. Ibidem. Diferente dos conceitos de hiperexcitabilidade e de sugestão, o de esgotamento não é obviamente introduzido nos escritos de Nietzsche por uma influência de Féré, pois o mesmo já aparece como conceito chave para a leitura do fenômeno da decadência muito cedo nas obras do filósofo, cf., por exemplo, FP 1 [80] do outono de 1869; várias passagens de NT, por exemplo, § 22; Schopenhauer como educador, § 6; Richard Wagner em Bayreuth § 5, § 8 e § 9, etc. Porém, em CI, Os quatro grandes erros § 2, o conceito de esgotamento vem associado com uma discussão sobre a degenerescência hereditária, o vício e o luxo, extremamente próxima dos resultados obtidos pelo trabalho de Féré, o que sugere que o conceito adquire uma importância renovada após o contato do filósofo com as obras do médico francês. Paulo César de Souza traduz, em CW § 5, “Erschöpfung” por exaustão, optamos por esgotamento pela maior 674 217 de uma atração da décadence pelo que lhe causa dano estímulos fortes 682 681 e da sua necessidade por (para nos limitarmos apenas aos conceitos e teorias presentes em “Um problema para músicos”), de grande importância para o O caso Wagner (e para os últimos escritos de Nietzsche como um todo), não se encontram em Bourget, mas sim em Féré. Esses conceitos servem como fundamento das considerações de Féré sobre a criminalidade enquanto um problema de degenerescência fisiológica. Ainda que em nossos dias, o nome de Charles Féré (1852-1911) tenha sido quase que totalmente esquecido, ele foi um cientista e ensaísta bastante recolhecido e estimado pelos seus contemporâneos. Médico, fisiologista e neuro-psiquiatra, Féré foi interno no famoso hospital de Salpêtrière, então sob a direção do renomado neurologista Jean-Martin Charcot, chegando a exercer os seguintes cargos: Chef des travaux anatomo-pathologiques à la clinique des maladies du système nerveux; Vice-président de la Sociéte de Biologie, de la Société de Psychologie physiologique, de la Société pathologique de Londres, além de ter sido membro honorário da Society for Psychical Research de Londres, desde 1883, como especialista em anatomia, neurologia, oftalmologia, histeria e epilepsia. Seus primeiros escritos constituem-se em ensaios médicos tais como: Du cancer de la vessie (1881) e Contribution à l’étude des troubles fonctionnels de la vision par lésions cérébrales (1882). Muito brevemente, porém, ele se especializou no domínio da fisiologia e da psicologia. O trabalho de Féré se destacava por um intenso cuidado com a experimentação sob condições controladas em laboratório. Suas observações empíricas voltaram-se para o fenômeno do magnetismo, do hipnotismo e sobretudo para a medição da força motriz (geralmente de sujeitos histéricos) e sua relação com as representações mentais. Várias de suas publicações são resultados dessas esperiências, tais como: Le magnétisme animal (escrito em colaboração com Alfred Binet, 1887), Sensation et mouvement (1887), proximidade com “épuisement”, utilizado por Féré. Em AC § 51, PCS traduz, por outro lado, “Erschöpften” por “esgotados”, é também significativo que aí o termo apareça diretamente associado com “hiperexcitados” [“Überreizten”], (superexcitados, em PCS). 681 Cf. CW § 5. 682 Cf. Ibidem. 218 Dégénérescence et criminalité (1888), Du traitement des aliénés dans les familles (1889), Épilepsies et les épileptiques (1893), La famille névropathique (1898). 683 No fragmento póstumo 14 [119] da primavera de 1888, Nietzsche discute os efeitos sugestivos da arte, sua ação tonificante e o efeito depressivo do feio; a superabundância dos meios de comunicação do estado estético e a intensificação da força de comunicação que toda elevação da vida condiciona; é assim que a identificação com outras almas não tem em sua origem nada de moral, diz ele, “mas vem de uma fisiológica excitabilidade da sugestão” [physiologische Reizbarkeit der Suggestion]: o chamado “altruísmo” é somente uma falsa interpretação dessa relação psicomotora [psychomotorischen Rapports], e, entre parentêses, Nietzsche revela sua fonte para o entendimento desse fenômeno: “induction psychomotrice, afirma Ch. Féré”. O aparato crítico da KSA, fixado por Colli e Montinari, nos informa, equivocadamente como veremos, que a fonte em questão se trata da obra Dégénéréscence et criminalité, de Charles Féré, sem precisar a página em que o conceito surgiria na obra do médico francês, indicando também diversos outros fragmentos que atestam a leitura feita pelo filósofo dessa obra. 684 Lampl, em seu artigo, “Ex oblivione: das Féré-Palimpsest”, buscou dar uma contribuição ao trabalho iniciado por Colli e Montinari, tornando mais precisas as referências e influências de Féré nos escritos de Nietzsche, partindo da seguinte passagem de o Crepúsculo dos ídolos: “Os antropólogos entre os criminalistas dizem que o criminoso típico é feio: monstrum in fronte, monstrum in animo”. 685 Essa passagem, segundo Lampl, é aquela que traz, entre os escritos publicados de Nietzsche, a evidência mais concreta de uma contribuição de Féré, por constituir um extrato puro de Dégénéréscence et criminalité, ainda que tal passagem remonte a um pensamento de Lombroso, citado por Féré, mas não exatamente compartilhado por ele: 683 Cf. o belo trabalho de Grzelczyk, Johan, “Féré et Nietzsche. Au sujet de la décadence”. In : Association le Lisible et l’Illisible/Le philosophoire. 2005, n.º 24, pp. 188-205. Disponível em: <http://ww.hypernietzsche.org> ou < http://www.cairn.info/revue-le-philosophoire-2005-1-page-188.htm >, último acesso 27/02/2012. Ver também o trabalho seminal de Lampl, H. E., “Ex oblivione: das FéréPalimpsest”. In: Nietzsche Studien, Band 15, Berlin : Walter de Gruyter, 1986, pp. 225-264. Outro importante trabalho é de Wahrig-Schmidt, Bettina, “Irgendwie, jedenfalls physiologish. Friedrich Nietzsche, Alexandre Herzen (fils) und Charles Féré 1888“. In: Nietzsche Studien, Band 17, Berlin : Walter de Gruyter, 1988, pp. 434-464. 684 Cf. FP’s 14 [172], 14 [181] da primavera de 1888; FP’s 15 [37], 15 [40] da primavera de 1888; FP 17 [9] maio – junho de 1888. 685 CI, O problema de Sócrates § 3. 219 Ce n’est pas que je veuille amoindrir la valeur de l’œuvre de M. Lombroso et de ses émules : si nous savions que le caractère principal du criminel est, d’être laid, ‘monstrum in fronte, monstrum in animo’, les anthropologistes ont fait l’histoire naturelle de cette laideur, et personne ne peut prévoir quelle sera la portée des faits importants qu’ils ont mis en lumière. 686 Mas o fragmento póstumo 15 [37] da primavera de 1888 também possui grande importância para a comprovação da leitura de Dégénéréscence et criminalité feita por Nietzsche nesse período. O fragmento inicia com a seguinte indicação: “Féré, p. 89”; neste caso, Nietzsche está de fato se referindo à Dégénéréscence et criminalité. Nesse fragmento, Nietzsche resume e analisa as principais teses da última parte do capítulo VIII, “Épuisement et criminalité” (pp. 85-96), da obra de Féré. Mas não só Crepúsculos dos ídolos e os fragmentos finais atestam essa leitura, como também o exemplar pessoal de Nietzsche de Dégénéréscence et criminalité, que ainda hoje se encontra conservado na Biblioteca Herzogin Anna Amalia de Weimar. 687 O exemplar de Nietzsche exibe diversos traços significativos de leitura em aproximadamente cinqüenta páginas, com frases e palavras sublinhadas ou parágrafos com a margem grifada, que mostram o intenso interesse com o qual Nietzsche empreendeu a leitura dessa obra. 688 Ainda que esse encontro entre Nietzsche e Féré tenha sido de enorme importância para a interpretação que o filósofo fará do fenômeno da décadence em seus últimos escritos, Lampl afirma que, até aquele momento, o papel do médico francês enquanto fonte de Nietzsche tinha sido amplamente ignorado entre os intérpretes do filósofo e as evidências desse encontro quase que completamente apagadas (daí o título de seu artigo). Parece que esse quadro de obliteração da relevância de Féré para a fisio-psicologia dos 686 Féré, Dégénéréscence et criminalité, p. 80. As palavras sublinhadas encontram-se grifadas a lápis no exemplar pessoal de Nietzsche, e o traço vertical na margem direita também foi feito pelo filósofo em seu exemplar; a sentença em negrito corresponde à extensão do texto que o traço do filósofo destaca. Doravante, adotaremos o mesmo procedimento para exibir sinais de leituras presentes no exemplar pessoal de Nietzsche. 687 Cf. Campioni, Nietzsches persönliche Bibliothek (BN). O fac-símile do exemplar pessoal de Nietzsche encontra-se disponível no site da Fundação Clássicos de Weimar, no endereço: <http://oraweb.swkk.de/digimo_online/digimo.entry?source=digimo.Digitalisat_anzeigen&a_id=1003&p_ab= >. Último acesso 27/06/2012. 688 Sinais de leitura no exemplar pessoal de Dégénéréscence et criminalité de Nietzsche: pp. 57-59; 63-64; 70; 75-80; 82; 85; 92; 98-99; 107-114; 116-125; 128-134; 136; 139-144; 146; 149. 220 valores modernos realizada na última fase do pensamento de Nietzsche não se alterou muito desde os anos de 1980. Nossa suposição é que um dos motivos pelos quais isso ocorreu, e ainda ocorra freqüentemente, encontra-se no fato de que geralmente a única obra de Féré a qual se faz referência seja Dégénéréscence et criminalité, sendo que esse não foi o único trabalho do médico francês com o qual Nietzsche entrou em contato. Foi Lampl o primeiro a esclarecer que o conceito de induction psychomotrice com que Nietzsche trabalha no fragmento póstumo 14 [119] da primavera de 1888 não surge em Dégénéréscence et criminalité, tal como informa o aparato crítico da KSA, e sim em uma obra lançada um ano antes daquela, a saber, Sensation et mouvement. 689 Quando se toma Dégénéréscence et criminalité como fonte isolada de Nietzsche entre os escritos de Féré, fica mais difícil atribuir uma decisiva contribuição do médico francês à última fase do pensamento do filósofo. Um exemplo, além da citação de Lombroso em “O problema de Sócrates”, uma outra referência direta à Dégénéréscence et criminalité na obra publicada seria também em Crepúsculo dos ídolos, no aforismo 45 de “Incursões de um extemporâneo”, intitulado “O criminoso e o que lhe é aparentado”. Porém, longe desse aforismo aparentar possuir uma sintonia imediata com o trabalho de Féré 690 , ele acaba dando a equivocada impressão de ser uma crítica a sua principal tese, ou seja, de que a criminalidade é uma degenerescência fisiológica, já que, em tal aforismo, o criminoso é visto como “um tipo de ser humano forte”, o que talvez tenha contribuido para mitigar a importância de Féré como fonte do filósofo. Entretanto, para Nietzsche, há uma distinção entre o criminoso acidental, herdeiro de uma raça forte, que a civilização tornou doente, e o criminoso congênito, fruto da degenerescência fisiológica na espécie; é ao primeiro tipo que o filósofo se refere em Crepúsculo dos ídolos, enquanto que o segundo tipo se encontra geralmente entre aqueles descritos por Féré. 691 Mas o principal motivo pelo qual a extensão da importância dos escritos de Féré para a investigação do fenômeno da 689 Cf. Lampl, “Ex oblivione: das Féré-Palimpsest”. E ver: FP 14 [119] da primavera de 1888; FP 17 [9] maio – junho de 1888; e em Féré, Sensation et mouvement, p. 13; pp. 15-16; p. 83; p. 118; p. 132. 690 Na verdade, a principal influência de Nietzsche no referido aforismo é muito mais o trabalho de Francis Galton, Inquiries into human faculty, e a obra Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévski. Sobre a importância de Galton para esse fragmento, cf. Haase, “Friedrich Nietzsche liest Francis Galton”. 691 Cf. a carta a August Strindberg de 8 de dezembro de 1888. Ver também: Haase, “Friedrich Nietzsche liest Francis Galton”; Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 142-143; e Grzelczyk, Loc. Cit. 221 décadence nos últimos escritos de Nietzsche não pode ser corretamente medida unicamente pela análise de Dégénéréscence et criminalité, encontra-se no fato de que o fundamento conceitual que explica a efetivação fisiológica da degenerescência, e que constitui o próprio pressuposto dessa obra, é dado somente em Sensation et mouvement. Apesar de Lampl ter esclarecido a procedência do conceito de induction psychomotrice, foi somente Bettina Wahrig-Schmidt que identificou, ainda que parcialmente, uma série de fragmentos póstumos e passagens das obras publicadas de Nietzsche que atestam sua leitura de Sensation et mouvement. 692 Diferente do que ocorre com Dégénéréscence et criminalité, no qual o exemplar pessoal de Nietzsche surge como uma grande comprovação de sua leitura, Sensation et mouvement, que não se encontra na biblioteca pessoal do filósofo, só pode ser identificado como fonte de Nietzsche por meio da análise do conteúdo dos póstumos e das obras publicadas, associada com a comparação com o texto de Féré. Para Wahrig-Schmidt, os fragmentos póstumos cujos conteúdos atestam a leitura de Sensation et mouvement feita por Nietzsche se encontram localizados nos grupos 14 a 16 de 1888 (cadernos W II 5, primavera de 1888; W II 6, primavera de 1888; e W II 7, primavera-verão de 1888). 693 No entanto, esta intérprete também argumenta que em Genealogia da moral (1887), já é possível encontrar uma parte do vocabulário fisiológico que Nietzsche introduz no grupo de fragmentos 14, como o termo “degenerativo” [degenerierend] 694 , por exemplo. Assim sendo, é possível, portanto, que desde sua data de lançamento, Sensation et mouvement tenha sido uma fonte disponível para Genealogia da moral. Entretanto, Wahrig-Schmidt defende que o primeiro fragmento póstumo que pode ser considerado como uma comprovação real dessa leitura data somente de 1888, a saber, o 14 [2] da primavera. Nesse breve fragmento intitulado “Homoeopathica”, é dito que: “O efeito de doses infinitessimais é específico nos doentes nervosos: ego” [Homœopathica / Die Wirkung von Infinitesimal-Dosen ist spezifisch bei 692 Cf. Wahrig-Schmidt, “Irgendwie, jedenfalls physiologish”. Segundo Wahrig-Schmidt, nos fragmentos desse mesmo período também é possível localizar resquícios da leitura de Le cerveau et l'activité cerebrale, de Alexadre Herzen, e também Die moderne Behandlung der Nervenschwäche [O tratamento moderno da fraqueza dos nervos] de Leopold Löwenfeld. 694 Cf. GM, III § 13. 693 222 Nervenkranken: ego]. 695 Nietzsche encontrou essa hipótese em uma nota de Sensation et mouvement: “Il serait intéressant de savoir si l’action des doses infinitésimales ne se fait pas surtout ou mème exclusivement sentir chez des névropathes d’un genre particulier; quel est le processus de cette action ?” Schopenhauer 697 696 O fragmento termina com uma citação de : “é-se tanto mais infeliz quanto se é inteligente” [“man ist um so unglücklicher als man intelligent ist”]; e que também aparece em Sensation et mouvement. 698 Contudo, há motivos para supor que já é possível encontrar claros sinais de leitura de Sensation et mouvement muita antes dos fragmentos da primavera de 1888, mais especificamente a partir do fragmento 11 [228] de novembro de 1887 – março de 1888, que pertence a segunda parte do caderno W II 3, quando terminam os fragmentos que faziam parte do antigo esboço da “Vontade de poder”, e começam os fragmentos que contém reflexões pessoais do filósofo acompanhadas dos extratos de diversas leituras feitas nesse período (Baudelaire, Tolstói, Wellhausen, etc.), exatamente o grupo de fragmentos em que o projeto de uma psicologia do redentor começa a se constituir de forma mais clara. No fragmento 11 [228], Nietzsche faz uma classificação do que seriam as principais espécies de pessimismo: ele lista, em primeiro lugar, “o pessimismo da sensibilidade (a hiperexcitabilidade [überreizbarkeit] com uma preponderância das sensações de desprazer)”. O termo “hiperexcitabilidade”, que dará lugar a uma série de termos congêneres relacionados com o mesmo conceito ao qual ele faz referência, sobretudo “irritabilidade” [Irritabilität] 699 , mas também, “sensibilidade hiperexcitada” [Überreizte 695 O “ego” no final da sentença é o modo de Nietzsche escrever a expressão italiana “eco”, que ele utiliza inúmeras vezes para indicar sua concordância com as idéias expressas em um texto. 696 Féré, Sensation et mouvement, p. 76, nota 2. 697 Schopenhauer, Parerga et paralipomena, I. 698 “Les désirs s’étendent enraison de la multiplicité et de l’intensité des représentations mentales, et l’habitude, en émoussant la sensation, les rend encore nécessairement progressifs (1); or, comme les moyens de les satisfaire ne se développent pas parallèlement chez certains individus (2) il faut bien qu’ils reconnaissent leur impuissance: et c’est ainsi que Schopenhauer a pu croire qu’on est d’autant plus malheureux qu’on est plus intelligent” (Féré, Sensation et mouvement, p. 150). 699 Cf. FP 9 [165] primavera de 1887; FP’s 14 [86], FP 14 [163], FP 14 [170], FP 14 [209] da primavera de 1888; FP 15 [37] da primavera de 1888; FP’s 16 [75], FP 16 [77] primavera-verão de 1888; FP 17 [6] maiojunho de 1888, e a carta a Overbeck de 4 de junho de 1888. O termo “irritabilité” ou “faiblesse irritable” é marcadamente presente em Dégénéréscence et criminalité, mas também aparece em Sensation e mouvement. 223 Sensibilität] 700, “doentia excitabilidade” [krankhafter Reizbarkeit] 701, “extrema capacidade 702 de excitação” [extremen Reizfähigkeit] Reizbarkeit] 703 , “enorme excitabilidade” [übergrosse , entre outros, surge apenas neste fragmento e em Crepúsculo dos ídolos, “Incursões de um extemporâneo, § 37 704 apropriação do termo “hyperexcitabilité” 705 , e consiste muito provavelmente em uma , utilizado por Féré para denominar um fato fisiológico característico da degenerescência e que possui uma importância crucial para o entendimento de sua realidade. 706 Ademais, que uma excitabilidade mórbida seja a causa fisiológica do pessimismo é simplesmente a tese defendida por Féré no capítulo XXI de Sensation et mouvement, “Impuissance et pessimisme”. Mas é o fragmento 11 [361] que aumenta significativamente a probabilidade de que Sensation et mouvement tenha servido como fonte para Nietzsche desde 1887: Schopenhauer, a partir de seu niilismo, tinha perfeitamente o direito de não conservar outra virtude além da compaixão: por meio dela, com efeito, a negação da vontade de viver se encontra mais fortemente estimulada. A compaixão, a caritas, ao permitir aos deprimidos e aos fracos sobreviverem e terem uma posteridade, contraria as leis da evolução: ela acelera a decomposição, ela destrói a espécie, – ela nega a vida. Este fragmento, um preparatório da seção 7 de O Anticristo, também é uma apropriação das teorias defendidas por Féré no capítulo XXI de Sensation et mouvement, 700 Cf. CW § 5. Cf. AC § 29. 702 Cf. AC § 30. 703 Cf. AC § 20. 704 Ainda que o conceito continue a aparecer também sob a forma de: “hiperexcitados” [Überreizten]; “hiperexcitar os nervos” [Nerven überreizt]; “hiperexcitação” [Überreiztheit ou Überreizung] (dos sentidos ou da sensibilidade moral). 705 No fragmento póstumo 15 [80] da primavera de 1888, Nietzsche se vale do termo “Hyper-Reizbarkeit”, e no 14 [224], do termo “Hyper-Nervosität”, o que torna ainda mais forte a proximidade com o conceito trabalhado por Féré; daí por que também nos sentimos mais à vontade para traduzir “überreizbarkeit” e seus congêneres por “hiperexcitabilidade” e não “superexcitabilidade”, buscando evidenciar, assim, a filiação do termo com o conceito elaborado por Féré. 706 É possível ainda que mesmo o fragmento 9 [165] do outono de 1887, que faz parte do antigo esboço da “vontade de poder”, contenha também índicios da leitura de Sensation et mouvement. Nele, Nietzsche critica a indisciplina do espírito moderno, “la largeur de sympathie = um terço de indiferença, um terço de curiosidade, um terço de excitabilidade mórbida [krankhafte Erregbarkeit]”. Logo abaixo, entre as características da “modernidade”, ele inclui “a irritabilidade mórbida [krankhafte Irritabilität] (o meio como “fatum’)”. 701 224 constituindo um extrato, ainda que apenas em parte (visto que Nietzsche já reelabora essas idéias de acordo com sua própria perspectiva) da seguinte passagem: La pitié et la charité qui en découle ne sont pas pures d’égoïsme: ce sont des phénomènes physiologiques et par conséquent nécessaires. La vue de la douleur constitue une peine réelle, et ou y compatit d’autant plus que l’on peut s’en croire plus menacé. C’est à tort que Schopenhauer considère la charité comme une vertu cardinale: son action générale est de contrarier l’évolution naturelle en permettant aux dégénérés, aux improductifs, de survivre et de se reproduire; elle favorise la déchéance de l’espèce. 707 Não se pode afirmar, porém, que a leitura de Féré conduziu a filosofia da décadence de Nietzsche a um caminho radicalmente novo. O trabalho de Féré foi extremamente importante como uma confirmação rigorosamente científica das teorias que já estavam em gestação desde as Extemporâneas. Não se pode diminuir também a importância do uso de outras fontes. Em uma carta a Overbeck de 20/21 de setembro de 1881, Nietzsche declarou que todo o trabalho que sua fraca visão então permitia era quase que exclusivamente dedicado aos estudos fisiológicos e médicos. Não se pode esquecer igualmente que o fenômeno da décadence, no pensamento de Nietzsche, nunca está reduzido a um fato meramente biológico, mas se encontra também relacionado com uma realidade cultural, e que, portanto, a crítica literária francesa, sobretudo Bourget, de fato exerceu um papel decisivo para a análise da decadência cultural e dos valores que dela emanam. Deste modo, pode-se dizer que a fisiologia, em Nietzsche, engloba um aspecto biológico (daí a importância das fontes científicas), cultural (daí a importância da crítica literária), mas também de modelos interpretativos elaborados no interior de um combate de forças, de luta de quantas de poder, que interpretam, em busca de crescimento, de um aumento de poder 708 , e, nesse sentido, o filósofo confere um novo significado aos dados que suas diferentes fontes fornecem. Sendo assim, para a análise da decadência enquanto um fenômeno cultural (décadence), Bourget e os outros chamados psicológos franceses permanece sendo a sua fonte principal, contudo, para o aspecto propriamente fisiológico da decadência 707 Féré, Sensation et mouvement, pp. 131-132. Essas idéias também são discutidas no FP 14 [5] da primavera de 1888. 708 Cf. O clássico estudo de Müller-Lauter, Wolfgang. “Décadence artística enquanto décadence fisiológica: a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner”. In: Cadernos Nietzsche, n. 6, São Paulo, 1999; e também Frezzatti Junior, A fisiologia de Nietzsche. 225 (degenerescência), é Féré (entre outros) que passará a desempenhar um papel fundamental nos últimos escritos do filósofo. Não obstante, o “entusiasmo”, como afirma Grzelczyk, com que Nietzsche lê Féré é indiscutível. 709 Para Grzelczyk, isso se explica pelo fato imediato de que Nietzsche e Féré compartinham, em linhas gerais, naquilo que diz respeito ao fenômeno da décadence, de uma mesma filosofia. Lampl, por sua vez, declara que Nietzsche teria dado um diagnóstico avant la lettre da realidade fisiológica, somática, da décadence, que teria sido posteriormente constatado experimentalmente pelo trabalho de Féré. 710 Sendo assim, a contribuição decisiva de Féré para a teoria da décadence de Nietzsche diz respeito a um maior rigor no que se refere ao aspecto científico do tema, a todo um referencial teórico bem mais vasto, relevante e atual, bem como a um aperfeiçoamento de seu léxico fisio-psicológico, “incansavelmente refinado” a partir de então, como diz Lampl, que também lista parte considerável desse aprimoramento conceitual: entre as doenças nervosas, neurose, neuropatia, neurastenia, fraqueza dos nervos e epidemia nervosa; altération de la personalité, idée fixe, influx cérébral, suggestion mentale, induction psycho-motrice, pudeurs, contágio, degenerescência, folie circulaire, monomania, coma, desagregação (da vontade ou da personalidade), depressão, tonicité, hemiplegia, excremento, anestesia, hiperexcitabilidade, estímulo [Stimulus] e estimulantes, estigmas [Stigmata], secreção, dispepsia, regime preventivo [Schutzdiät], dieta fortificante [corroborirende Diät] ou regime fortificante [corroborirende Kost], régime, système fortifiant (ou corroborirenden System), sistema circulatório e nutrição cerebral [Hirnernährung], sistema gástrico, indigestão, febre intestinal, epilepsia, histeria, precocidade erótica, estímulo muscular [Muskel reize] e vascular, melancolia hereditária [erbliche Melancholie], hereditariedade [Heredität] e criminalidade, hipocondria, purgativo [Purgativ], fraqueza habitual, impotência, sonolência, sífilis, tuberculose, raquitismo, anemia, diabete, artrite, paralisia, automotismo, aborto, seleção degenerativa, etc. E, mais especificamente no que se refere aos termos e conceitos médicos mobilizados por Nietzsche para diagnosticar e analisar a fisio-psicologia do santo e do redentor, podem-se listar: 709 710 Cf. Grzelczyk, Loc. Cit. Cf. Lampl, Loc. Cit. 226 doentes crônicos, doentes mentais, doentes nervosos, neurastênicos, enervados, neuróticos, histéricos, epilépticos, idiotas; e também, esgotados, hiperexcitados, irritáveis, sugestionáveis, extáticos, entusiasmados, comovidos, excêntricos, anêmicos, preguiçosos, etc. 3.1.1 – Sensation e mouvement Logo no início de Dégénérescence et criminalité 711 , Féré declara que as teorias que ali serão expostas foram precedidas e preparadas por uma série de pesquisas fisiopsicológicas desenvolvidas em seu trabalho anterior, Sensation et mouvement. Em seu ensaio consagrado as relações existentes entre degenerescência e criminalidade, Féré parte do seguinte pressuposto : “D’une manière générale, l’intensité des représentations mentales a une influence manifeste sur l’état des forces.” 712 Ou seja, a intensidade das chamadas representações mentais (sensações, sentimentos, emoções, etc.) possuem uma correlação direta com o grau de energia consumido em um movimento físico (mecânico, muscular, químico). Féré chegou a essa conclusão com base nas experiências psico-motoras descritas e analisadas em Sensation et mouvement. Neste seu “Études expérimentales de psycho-mécanique”, o médico francês esclarece que “les représentations mentales ne sont que le résultat d’un rappel de sensation, et les modifications dynamiques qui les accompagnent consistent en réalité en transformations de mouvement consécutives à des excitations extérieures plus ou moins éloignées.” 713 Ou seja, as representações mentais são, grosso modo, traduções psíquicas das excitações exteriores. Nesse sentido, a intensidade das representações mentais depende do maior ou menor grau de sensibilidade ou excitabilidade de um indivíduo, portanto, de sua constituição fisiológica. Quanto mais sensível às excitações exteriores for um indivíduo, mais exagerada será a sensação dessas mesmas excitações nele e mais intensa será a transformação e condução dessas excitações sob a forma de representações mentais, resultando, assim, num gasto maior de energia potencial na produção do movimento solicitado por essas excitações, que surge como reposta aos estímulos, ou seja, como uma resistência às excitações. Segundo a definição 711 Cf. Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 1. Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 6. 713 Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 6. 712 227 dada por Féré, a degenerescência consiste em “une diminution de vitalité, se traduisant par une atténuation générale des fonctions organiques.” 714 Essa diminuição da vitalidade se dá, de forma mais precisa, por um aumento da sensibilidade, por uma “faiblesse irritable” ou “hyperexcitabilité”. A irritabilidade ou excitabilidade consiste na capacidade menor ou maior de um indivíduo sentir as excitações externas de maneira menos ou mais intensa. As excitações representam, para um organismo, estímulos que solicitam resposta ou que exigem resistência. Os indivíduos fisicamente fracos possuem como característica principal a elaboração de representações mentais particularmente intensas que diferem, em nível proporcionalmente superior, das representações mentais de sujeitos saudáveis expostos aos mesmos estímulos. Suas representações mentais são intensas porque sua excitabilidade é mórbida; quanto mais fraco for um indivíduo, mais sensível, mais irritável, mais excitável ele será. 715 Como os estímulos solicitam resposta, os hiperexcitados, por sentirem de forma exagerada as excitações e por as representarem mentalmente de forma igualmente intensa, respondem aos estímulos de maneira sempre desproporcional, acabando, assim, por se esgotarem. Ser resistente, então, significa poder responder às solicitações, significa, portanto, não ser vulnerável às excitações, não ser morbidamente sensível a elas 716; porém, um indivíduo esgotado, devido ao desperdício de força que sua irritabilidade lhe impõe, não consegue mais opôr resistência às excitações. Féré observa que as chamadas excitações periféricas e os fenômenos psíquicos que surgem como conseqüência das mesmas são acompanhadas de manifestações motrizes que, segundo ele, podem ser postas em evidências e mensuradas mesmo mediante procedimentos de natureza extremamente simples. Deste modo, suas observações têm como 714 Féré, Sensation et mouvement, p. 125. “Dés mes premières expériences, j’ai pu reconnaître, ce qui d’ailleurs n’avait guère besoin d’être démontré expérimentalement, que tous les sujets ne réagissent pas de la même manière à la même excitation, et qu’un bon nombre ne réagissent pas identiquement à une même excitation dans toutes les circonstances: la constitution, l’âge, le sexe, l’état de santé, les différents actes de la vie végétative, etc., sont susceptibles de faire varier la vibratilité du sujet en dehors des circonstances extérieures” (Féré, Sensation et mouvement, p. 58). 716 “Les sujets d’une constitution robuste, au contraire offrent, si on peut dire, une force statique plus considérable qui leur permet de résister aussi bien à l’excitation qu’à l’épuisement et de ne présenter, sous l’influence d’un agent quelconque, que des réactions modérées. L’impassibilité est un signe de force; et les anciens Égyptiens la symbolisaient parfaitement en représentant les puissants, dieux ou rois, assis, les membres dans une position intermédiaire à la flexion et à l’extension, le regard à l’horizon, prêts à tout et émus de rien” (Féré, Sensation et mouvement, p. 133). 715 228 base empírica a mensuração, sob condições favoráveis de experimentação, ao mesmo tempo, da excitação e da força provocada pela mesma que o indivíduo estimulado produz. 717 Féré utiliza como principal instrumento de medição da força motriz dos indivíduos o dinamômetro de Regnier. Este instrumento foi inventado e construído por Edme Régnier (1751 – 1825) por volta de 1780, encorajado pelos naturalistas Buffon e Guéneau, que desejavam um aparelho que fosse capaz de calcular a força de um homem e compará-la com a de outros, a fim de testar as habilidades relativas de homens de diferentes idades e sob vários estados de saúde. O aparelho consiste em uma mola elíptica forjada em aço e coberta por chumbo; esta mola é encimada por uma dupla escala em bronze, gravada em miriagramas (104 gramas) e em quilogramas. Uma agulha de aço com duas setas permite a medição. O aparelho possui duas escalas básicas, a primeira permite utilizar o aparelho com uma extensão para a medição da forças dos músculos da região lombar, e a segunda, para ser utilizada por compressão, especialmente para medição da força da mão. 718 Geralmente, Féré utiliza o dinamômetro para medir a força dos dedos e das mãos, mas também das pernas, fazendo sempre a distinção entre os membros da região esquerda e da direita. Uma série de diagramas exibidos ao longo de Sensation et mouvement fornecem os principais dados que Féré obteve com essas experiências. As experiências com o dinamômetro conduziram Féré a seguinte conclusão : “la plus grande énergie de l’effort momentané coïncide avec la plus grande activité des fonctions intellectuelles.” Ou seja, os sujeitos submetidos a algum tipo de exercício intelectual (fala, leitura, escrita), exibiram um aumento na pressão exercida sobre o dinamômetro em comparação com os períodos nos quais se encontravam privados de qualquer estímulo. O mesmo com relação aos sujeitos cujo trabalho intelectual era mais freqüente: a força que eles exerciam sobre o dinamômetro era maior do que aquela exercida por sujeitos menos habituados aos exercício intelectual (geralmente trabalhadores que 717 Cf. Féré, Sensation et mouvement, pp. 4-5. Cf. Aboville, F. M et allii. “Sur le dynamomètre de M. Regnier”. In: Journal des Mines. Numéro 97, Vendémiaire an 13, 1804-1805, pp. 57-76. Disponível em: < http://annales.ensmp.fr/articles/1804-1805-1/ >, último acesso em: 27/06/2012. 718 229 exerciam atividades manuais mecânicas, sem o conhecimento da técnica). 719 Segundo Féré, esse fato se encontra diretamente associado com a noção vulgar de que sob a influência de certos estados fisiológicos, como a cólera, ou estados patológicos, como a excitação maníaca, os esforços musculares adquirem uma energia inusitada. Entretanto, não é somente sob a influência de um esforço intelectual que se pode observar um aumento da força dinamométrica; certas excitações do sentido muscular podem agir da mesma maneira; mas isso, para Féré, se deve menos ao exercício muscular em si 720 do que a um aumento do trabalho intelectual, pois essa sensação muscular resulta num aumento da intensidade das representações mentais. 721 Féré também observa que os movimentos passivos (ou seja, executado pelo experimentador no sujeito experimentado) provocam os mesmos tipos de excitação funcional produzida pelos movimentos ativos. Deste modo, pode-se concluir em geral que: “toutes les sensations s’accompagnent d’un développement d’énergie potentielle qui passe à l’état cinétique et se traduit par des manifestations motrices susceptibles d’être mises en évidence même par des procédés grossiers comme la dynamométrie.” 722 Essa transformação das excitações externas em energia cinética é denominada por Féré de induction psycho-motrice. Por meio desse conceito chave, Féré irá demonstrar as diferenças existentes entre o grau de irritabilidade e, por conseguinte, da intensidade de representações mentais existentes entre os sujeitos sãos e os degenerados, sobretudos, dos neuropatas e histéricos: Sur des sujets sains les mouvements passifs de flexion des doigts peuvent augmenter l’énergie de la pression de plus d’un quart. Ce résultat acquiert une importance considérable si on le rapproche du fait suivant: l’histoire des épidémies spasmodiques nous montre que chez les névropathes, plus sensibles d’une manière générale à tous les agents excitants ou dépressifs, la seule vue d’un mouvement provoque l’exécution de ce mouvement. Ce phénomène, que l’on 719 “Sous l’influence du travail intellectuel, la force dynamométrique augmente, et dans des proportions d’un sixième, d’un cinquième, d’un quart même, suivant que l’attention a été fixée d’une façon plus ou moins soutenue” (Féré, Sensation et mouvement, p. 7). 720 “Il faut remarquer tout d’abord que, dans les recherches de dynamométrie normale, sur le même sujet, on obtient à peu près constamment le même résultat avec le même instrument: il semble que l’exercice influe peu” (Féré, Sensation et mouvement , p. 6). 721 “Chez certains individus peu sensibles aux excitations intellectuelles, on peut exagérer l’énergie de la pression manuelle en leur faisant faire un exercice violent de tout le corps : j’ai observé souvent l’augmentation de la pression dynanométrique après des exercices dits d’assouplissement” (Féré, Sensation et mouvement, p. 12). 722 Féré, Sensation et mouvement, p. 51. 230 pourrait désigner sous le nom d’induction psycho-motrice, peut se montrer à l’état sporadique, comme M. Ch. Richet en a signalé un exemple. Si, prenant un sujet de ce genre, nous le prions de regarder avec attention les mouvements de flexion que nous faisons avec notre main, au bout de quelques minutes, il déclare qu’il a la sensation que le même mouvement se fait dans sa propre main, bien qu’elle soit complètement immobile; et au bout de quelques instants en effet sa main commence à exécuter irrésistiblement des mouvements rythmiques de flexion. 723 Quanto mais intensa, quanto mais “viva” for uma representação mental, maior a força consumida no movimento que ela provoca. Ora, para Féré isso demonstra experimentalmente uma importante opinião admitida pelos psicólogos de que “l’idée du mouvement c’est déjà le mouvement qui commence.” 724 E isso também significa que quando uma idéia é suficientemente forte, a ação, que nada mais é do que sua tradução motora, acompanha-a necessariamente. Deste modo, Féré chama atenção para o poderoso papel que a induction psycho-motrice desempenha nos contágios de emoções e de sentimentos. 725 Outro importante conceito utilizado por Féré para explicar as relações psico-motoras é o de sugestão mental, que caracteriza particularmente a necessidade irresistível que conduz os indivíduos degenerados a imitarem e reproduzirem inconscientemente os movimentos que acompanham a idéia daquilo que se encontra em sua presença, sendo levados, assim, a experimentarem a mesma emoção, o mesmo pensamento que começou aquele movimento. 726 É, portanto, bastante significativo que, entre os sujeitos mais sensíveis ao fenômeno da induction psycho-motrice, as idéias que mais se tenta evitar e que se quer a todo custar silenciar são necessariamente seguidas pelo ato. 723 727 Em outras Féré, Sensation et mouvement, p. 13. Féré, Sensation et mouvement, p. 15. 725 Ibidem. 726 Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 15-16. 727 Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 16. Um exemplo bastante interessante deste fenômeno pode ser encontrado na parte final do romance O idiota de Dostoiévski, no episódio da festa de noivado entre o príncipe Míchkin e Aglaia, momento que seria crucial para que este pudesse ser introduzido na “sociedade”, no mundo dos “grandes”, dos “adultos”, mas que resultou num tal grau de excitação para ele que um estado crescente de euforia logo lhe assaltou, culminando num lastimável ataque epiléptico. Um exaltado discurso, em que o príncipe defende o ideal russo como contraposição ao Catolicismo Romano, o Cristo contra o Anticristo, termina com a quebra de um vaso, do qual ele tentará, inutilmente, manter-se afastado durante toda a cerimônia: “Ainda no início, quando o príncipe mal entrara na sala de visitas, sentou-se o mais distante que pôde do vaso chinês com o qual Aglaia tanto o assustara. Daria para acreditar que depois das palavras ditas ontem por Aglaia pousara nele uma convicção indelével, um pressentimento surpreendente e impossível de que ele iria forçosamente quebrar esse vaso no dia seguinte, por mais que se distanciasse dele, por mais que 724 231 palavras, se a idéia de um movimento já é em si o começo de um ato motor, uma idéia poderosa o suficiente é capaz de tornar a extensão física deste movimento um ato irrefreável e imediato. Mas, para Féré, a suscetibilidade de um sujeito a esse tipo de idéia ou representação mental intensa já denuncia uma pré-disposição mórbida, ou seja, uma hiperexcitabilidade. O fenômeno da induction psycho-motrice exerce um importante papel em Dégénérescence et criminalité como forma de estabelecer o vínculo, conforme Féré, necessário entre o degenerado e o criminoso. De acordo com Féré, ainda que a criminalidade não seja transmitida hereditariamente, como as outras formas de degenerescência, ela afeta prioritariamente os indivíduos que possuem pré-disposições mórbidas, e é por conta da suscetibilidade desses indivíduos à sugestão mental, que o meio em que eles vivem é capaz de exercer um papel tão determinante na origem de suas ações criminosas 728 , como se pode observar, por exemplo, nas grandes comoções sociais: “Les grandes commotions sociales, en fournissant une occasion aux instincts criminels, peuvent dans une certaine mesure mettre en lumière des monstruosités psychiques héréditaires ou congénitales, et montrer pour ainsi dire expérimentalement la parenté du crime et de la folie.” 729 Os sujeitos que sofrem de hiperexcitabilidade são extremamente sensíveis às excitações desagradáveis, às dores e às emoções depressivas, sendo que estas lhe são mais comum, por conta disso, tais sujeitos são mais propensos a compartilhar a dor e o sofrimento do próximo devido ao fenômeno da induction psycho-motrice e da sugestão mental. Deste modo, Féré sustenta que essa é a origem, puramente egoísta, do altruísmo, como ele esclarece em uma passagem de Sensation et mouvement que, naturalmente, chamou bastante a atenção de Nietzsche 730 : evitasse a desgraça? Mas foi o que aconteceu” (Dostoiévski, Fiódor. O idiota: romance em quatro partes. Tradução, prefácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 610). 728 “Les dégénérés en général subissent facilement l’influence du milieu: ils se laissent communiquer les émotions et les passions du moment, dont ils se font souvent les trop dociles instruments; on les voit sujets à la contagion du suicide comme à la contagion du meurtre” (Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 62). 729 Féré, Dégénérescence et criminalité, pp. 61-62. 730 Como visto no fragmento póstumo 14 [119] da primavera de 1888, que já citamos; precisamente o fragmento em que o conceito induction psycho-motrice foi atribuido erroneamente pelo aparato crítico de Colli e Montinari à obra Dégénérescence et criminalité. 232 L’induction réciproque multiplie l’émotion; c’est ce qu’on voit souvent dans les assemblées. L’expression du plaisir, peinte sur un autre visage, augmente notre propre plaisir; d’où il résulte que l’on a intérêt à provoquer le plaisir de l’autre pour augmenter le sien. L’origine égoïste de l’altruisme peut s’expliquer ainsi physiologiquement; et les considérations qui précèdent font soupçonner que si, comme l’a dit Littré, l’altruisme est en corrélation avec la sexualité, c’est par un procédé différent de celui qu’il indique. 731 As experiências com o dinamômetro mostraram que uma excitação enérgica é o que pode fornecer aos neuropatas e histéricos a forma e a intensidade de esforço que pode ser verificada entre os sujeitos ditos normais. Do mesmo modo, os resultados que comumente se obtém entre os histéricos e neuropatas podem ser reproduzidos quase com a mesma intensidade em um sujeito são, quando, por fadiga, chega-se a um estado de fraqueza irritável que estabelece uma hiperexcitabilidade artificial análoga àquela dos sujeitos degenerados. 732 Como esclarece Féré: Les hystériques sont dans un état permanent de fatigue psychique qui se traduit par un affaiblissement de la sensibilité, du mouvement, dé la volonté; mais des excitations diverses peuvent réveiller momentanément leur énergie. La même observation peut s’appliquer aux neurasthéniques; on peut dire que tous ces sujets ont un certain degré de paralysie psychique. 733 Féré argumenta que há uma grande importância metodológica em se submeter sujeitos neuropatas e histéricos às experiências psico-mecânicas, pois os mesmos possuem a capacidade, por conta de seu alto grau de irritabilidade, de exagerar os fenômenos que não são reconhecidos com tanta facilidade entre os sujeitos ditos normais. Os sujeitos degenerados, normalmente mais propensos a sugestão e a hipnose, revelam de modo mais claro o funcionamento do mecanismo psico-motor, que possui como elemento essencial o fenômeno da induction psycho-motrice. Les sujets affaiblis, les dégénérés, les névropathes sont plus soumis que les autres aux effets dynamogènes ou épuisants des excitations venues du dehors; ils sont sans cesse dans un état d’équilibre instable, ressemblant à une balance folle, qu’un simple attouchement suffit à faire dévier dans un sens ou dans l’autre. Aussi les voit-on soumis à la contagion des émotions et à tous les phénomènes d’induction psycho-motrice. Ce sont de mauvais accumulateurs: chez eux, 731 Féré, Sensation et mouvement, p. 16. Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 20. 733 Féré, Sensation et mouvement, p. 21. 732 233 l’impression actuelle détermine une nécessité de réaction tellement urgente et intense que la représentation mentale des conséquences de l’acte se trouve complètement effacée; et il en résulte qu’ils sont capables des plus grands écarts. 734 Nos sujeitos ditos normais, uma excitação forte que estimule tanto a vista, quanto a audição, o olfato ou o paladar determina um desvio notável da agulha do dinamômetro, ou seja, um esforço enérgico e imediato. Por conseguinte, pode-se dizer que a resistência ao estímulo varia de acordo com a intensidade da excitação. Essas observações mostram também que as sensações fornecidas pelos diferentes orgãos do sentido possuem uma mesma medida fornecida pelo dinamômetro, portanto, todas as sensações são acompanhadas por uma aumento de energia estática que parece constituir essencialmente a sensação. Ora, nos sujeitos histéricos ou neuropatas, a sensação mais sutil é capaz de produzir um aumento exponencial da força dinamométrica. 735 Para Féré, isso mostra que toda e qualquer excitação determina imediatamente uma produção de força. 736 São também os neuropatas e histéricos que melhor exibem os fenômenos de excitação e enfraquecimento das funções em relação à presensa ou ausência de estímulos externos. Estes sujeitos demonstram normalmente uma espécie de estado letárgico ou um certo grau de anestesia que se estende ao sentido muscular, provocando uma fraqueza muscular correlativa, esse estado é condicionado pelo desperdício excessivo de energia potencial que resulta em um esgotamento de todas as funções orgânicas. Porém, é possível despertar artificialmente sua sensibilidade (revelando um aumento sempre exagerado da força dinamométrica) por meio das mais leves excitações externas. 737 Por outro lado, uma 734 Féré, Sensation et mouvement , pp. 132-133. “Certains sujets déclarent qu’ils ont une sensation vague de courant d’air, de vibration, etc., et de ce que ce sont des hystériques, il ne découle pas qu’on soit en droit de nier leur dire. Ces sujets dégénérés, doués d’une vibratilité spécifique inférieure à celle des individus sains, sont ébranlés par des excitations plus faibles [...] Si on reconnaît d’ailleurs que certains sujets peuvent avoir une sensation cutanée au voisinage de l’aimant, il faudra bien reconnaître du même coup que ces sujets, somnambules, hystériques on névropathes, ces sensitifs comme disait Reichembach, sont doués d’une sensibilité exagérée et que par conséquent ils sont capables d’éprouver des sensations et des effets physiologiques différents de ceux qu’on a l’habitude d’observer chez les sujets sains ou réputés tels” (Féré, Sensation et mouvement, pp. 75-76). 736 Cf. Féré, Sensation et mouvement, pp. 32-33. 737 Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 33. “Or nous savons que certains sujets, et les hypnotiques en particulier, sont doués, dans certaines circonstances, d’une acuité sensorielle exagérée; de nombreuses observations le démontrent: il est donc possible de comprendre que ces mêmes sujets sont capables de saisir certains signes qui échappent à la plupart des individus” (Féré, Sensation et mouvement, p. 117). 735 234 excitação mais forte pode provocar uma verdadeira descarga energética, 738 uma resposta igualmente desproporcional a intensidade do estímulo, que conduz aos estados mentais patogênicos característicos dos sujeitos que Féré denomina de neuróticos: convulsões epiléptiformes, alucinações, extâse, etc.739 Contudo, esses efeitos excitantes exagerados são seguidos de efeitos depressivos igualmente exagerados, que conduzem a um esgotamento geral, uma vez que essa elevação abrupta de energia ocorre às custas de todas as reservas de força. Os degenerados não conseguem, pois, conservar sua energia. Por conseguinte, ao mesmo tempo em que os sujeitos que sofrem de uma sensibilidade mórbida são capazes de obter um aumento de sua força motora de modo constante e desproporcional, o desperdício e exauração dessa força é também, em contrapartida, extremamente contínuo e elevado. Como demonstra Féré: Si nous prions un sujet delà catégorie des hypnotisables de regarder un objet médiocrement lumineux, il se produit tout de suite une excitation motrice, qui, au bout de quelques instants, commence à décroître quand le sujet commence à se plaindre de fatigue. Si l’on prolonge l’excitation, le sommeil arrive. Un bruit continu, une vibration mécanique continue, etc., produit exactement les mêmes effets avec le même ordre de succession. Lorsque, au lieu d’une excitation modérée et prolongée, on fait une excitation brusque et très intense, le sommeil peut se produire d’emblée. 740 Sendo assim, esclarece Féré, as excitações periféricas são suscetíveis de determinar, de acordo com sua intensidade e duração, tanto efeitos excitantes, ou seja, aqueles responsáveis por provocar sensações agradáveis, por conta do aumento de força que 738 “Le système nerveux est susceptible d’une certaine tension statique qu’il ne peut dépasser sans qu’il se produise une décharge ou un épuisement qui parait rendre compte d’un bon nombre de phénomènes dits d’arrêt. Quand une irritation ou sa représentation mentale est excessive et brusque, la décharge est tellement rapide qu’elle peut paraître le premier et l’unique phénomène consécutif” (Féré, Sensation et mouvement, p. 104). 739 “Cette convulsion générale qui se produit sous l’influence des émotions vives peut nous faire comprendre comment ces émotions sont capables de déterminer la manifestation des affections spasmodiques ou convulsives, épilepsie, chorée, tics, hystérie, paralysie agitante, etc., chez les individus prédisposés: le tremblement émotionnel sert a quelque sorte d’amorce au spasme morbide en pussance. Quelques sujets exceptionnellement sensibles ont des attaques épileptiques ou hystériques sous l’influence d’une simple excitation serisoriéle même légère: une odeur désagréable” (Féré, Dégénérescence et criminalité, pp. 35-36). 740 Féré, Sensation et mouvement, p. 34. O fragmento póstumo 14 [3] da primavera de 1888 também é uma forte compravação da leitura de Sensation et mouvement, nele Nietzsche afirma: “As fases imperceptíveis: da excitação bem como do esgotamento. O sono hipnótico pode ser suscitado por toda sorte de excitações sensoriais (da vista, do ouvido, do odor), é preciso somente que elas sejam suficientemente fortes e duráveis: o primeiro efeito é sempre um aumento geral da mobilidade. Por fim, esgotamento do influx cérébral. A excitação põe em jogo uma força que se esgota...” 235 proporcionam, quanto depressivos, isto é, que acarretam o consumo elevado de energia disponível, gerando, assim, sensações dolorosas. 741 Mas uma excitação é excessiva quando ela é sentida de maneira excessiva, ou seja, a medida de sua intensidade depende do grau de excitabilidade de cada indivíduo. As sensações são, portanto, de modo geral, ou agradáveis, quando são responsáveis pelo aumento de energia estática, ou dolorosas, quando provocam a diminuição dessa mesma energia, dependendo sempre de sua intensidade e duração e, em última instância, da constituição fisiológica de cada indivíduo. Não obstante, é extremamente importante ressaltar que os efeitos dinâmicos do mecanismo psico-motor não estão restritos às manifestações musculares daquilo que Féré denomina vida de relação, isto é, da resposta motora que age diretamente sobre o ambiente externo (que é controlada pelo que se denomina atualmente sistema nervoso periférico voluntário ou somático), mas também sobre os músculos da vida orgânica, ou seja, da vida vegetativa ou autônoma (controlada pelo que se denomina atualmente sistema nervoso periférico autônomo), como se pode constatar mais facilmente na atividade sangüinea. 742 E isso é válido tanto para o que diz respeito aos efeitos excitantes (sensações agradáveis) quanto aos efeitos depressivos (sensações dolorosas). As influências das excitações periféricas sobra a atividade circulatória e, por conseqüência, nutritiva, pode, segundo Féré, ser a causa de diversos problemas ligados a modificação da circulação, nutrição, absorção de líquidos, etc. 743 Féré nota que há muito já se havia observado que, por exemplo, as pupilas se dilatam sob a influência da dor, sob a influência de emoções depressivas, como o terror, ou sob a influência da fadiga; elas se contraem, por outro lado, sob a influência de sensações e emoções excitantes, como a cólera. 744 Em Dégénérescence et criminalité, Féré volta a abordar essa questão declarando que se pode constatar que as excitações excessivas, e, portanto, dolorosas, determinam 741 Ibidem. “[...] il y a longtemps d’ailleurs que Haller a observé que le son du tambour exagérait l’écoulement de sang d’une veine ouverte [...] Magendie avait déjà remarqué les effets circulatoires des excitations périphériques, et il avait même indiqué l’hémodynamomètre comme moyen de mesurer la sensibilité. Claude Bernard avait été frappé des mêmes faits et en avait conclu que la sensibilité règle et gouverne la circulation et, par suite, la nutrition” (Féré, Sensation et mouvement, p. 56). 743 Cf. Ibidem. 744 Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 57. 742 236 efeitos dinâmicos e circulatórios depressivos. 745 As emoções agradáveis, por sua vez, são geralmente acompanhadas de uma exageração da secreção salivar, do mesmo modo como se pode observar a secura da boca durante as emoções dolorosas. 746 Féré prossegue dando outros exemplos: Les émotions agréables coïncident encore avec une augmentation de la sécrétion du suc gastrique et une augmentation corrélative des fonctions de nutrition. Les émotions pénibles au contraire altèrent en sens inverse la sécrétion gastrique. On sait que les états mélancoliques prolongés s’accompagnent de troubles digestifs marqués. [...] Les émotions, comme le travail intellectuel, augmentent aussi la sécrétion sudorale et la sécrétion urinaire. (DC, p. 21) De acordo com o que Féré nos relata, a medicina de sua época parecia ter uma tendência a atribuir ao coração a responsabilidade por esse tipo de modificação das funções da vida vegetativa. 747 Todavia, Féré argumenta que são as excitações dos orgão dos sentidos que demostram uma ação inicial e predominante sobre os fenômenos vasculares, o que o leva a presumir que o simpático (le sympathique) exerce provavelmente um importante papel nesse complexo fenomenal. 748 Essa suposição de Féré encontra-se em pleno acordo com o que atualmente é admitido pela medicina. Sabe-se que o sistema nervoso se encontra dividido em: sistema nervoso central e periférico. O sistema nervoso periférico é formado por um conjunto de nervos, localizados na medula e no tronco encefálico, que fazem as ligações entre o sistema nervoso central e o resto do corpo. O sistema nervoso periférico pode, por sua vez, ser dividido em: sistema nervoso voluntário (ou somático), que tem por função regular as ações motoras que respondem aos estímulos do ambiente externo; e sistema nervoso autônomo (ou de vida vegetativa), responsável por regular o ambiente interno do corpo, controlando as funções de respiração, nutrição, circulação do sangue, temperatura, digestão, etc. O sistema nervoso autônomo é também o principal responsável pelo controle automático do corpo frente às modificações do ambiente. O sistema nervoso autônomo se encontra 745 Cf. Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 10. Cf. Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 21. 747 “On pourrait croire que c’est le cœur qui dans tous ces phénomènes domine la situation, en modifiant l’afflux sanguin à la périphérie et par suite la sensibilité, la motilité et les sécrétions” (Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 21). 748 Cf. Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 22. 746 237 dividido, por sua vez, em: sistema nervoso simpático e sistema nervoso parasimpático. Esses dois sistemas exercem funções antagônicas, atuando normalmente de forma simultânea, corrigindo os excessos um do outro e, dessa forma, equilibrando-se mutuamente, fazendo com que o organismo esteja regulado para funcionar de acordo com as necessidades impostas pelas alterações do ambiente. O sistema nervoso simpático, de modo geral, estimula ações que mobilizam energia, permitindo ao organismo responder a situações de estresse, reduzindo, por exemplo, o funcionamento digestivo e preparando o corpo para responder adequadamente às solicitaçãos (com “luta”, “fuga” ou “medo”, por exemplo), ao mesmo tempo em que acelera os batimentos cardíacos, dilata os brônquios, aumenta a pressão arterial e a concentração de açúcar no sangue, ativando, assim, o metabolismo geral do corpo. 749 Já o sistema nervoso parassimpático tem ação inversa, estimulando principalmente atividades relaxantes, como as reduções do ritmo cardíaco e da pressão arterial, limitando as funções instintivas. 750 É do equilíbrio entre os dois sistemas que resulta o funcionamento normal dos órgãos. Por exemplo, se o sistema simpático acelera demasiadamente as batidas do coração, o sistema parassimpático entra em ação, diminuindo o ritmo cardíaco. 751 Em geral, quando os centros simpáticos cerebrais se tornam excitados, estimulam, simultaneamente, quase todos os nervos simpáticos, produzindo uma resposta maciça e disseminada que afeta todos os órgãos por ele enervados, preparando todo o corpo para a atividade. Talvez não fosse claro para Féré o funcionamento dessa resposta à excitação externa por esse movimento de ativação simultaneamente de todos os principais órgãos que regularizam a vida vegetativa, mas algumas de suas observações já apontam nessa direção, ao afirmar, por exemplo, que: “chaque fois qu’un centre cérébral entre en action, il détermine une excitation de tout 749 As principais ações do sistema nervoso simpático são: dilatação da pupila, inibição da salivação, relaxamento dos brônquios, aceleração dos batimentos cardiácos, inibição da atividade do estômago e do pâncreas, estimulação da liberação de glicose pelo fígado, estimulação da produção de adrenalina e noradrenalina, relaxamento da bexiga e promoção da ejaculação. 750 As principais ações do sistema nervoso parasimpático são: contração da pupila, estimulação da salivação, redução dos batimentos cardiácos, contração dos brônquios, estimulação da atividade do estômago e do pâncreas, estimulação da vesícula biliar, estimulação da produção de acetilcolina, contração da bexiga e promoção da ereção. 751 Alguns órgãos são duplamente inervados pelos sistemas nervosos simpáticos e parassimpáticos, como, por exemplo, as glândulas salivares, o coração, os pulmões, enquanto outros órgãos só recebem inervação de um sistema. 238 l’organisme, par un processus encore indéterminé; quand on dit que le cerveau pense, c’est tout l’être qui entre en activité.” 752 Ou seja, as modificações ocorridas no organismo em resposta às solicitações das excitações externas não ocorrem de maneira isolada, mas simultaneamente, em todo o organismo. É assim que os problemas de saúde relacionados com os distúrbios causados pelo mal funcionamento do sistema nervoso simpático (hipertensão, problemas gástricos, diabetes, etc), estão, freqüentemente, associados entre si, afetando ao mesmo tempo um mesmo indivíduo enfermo. 753 Pode-se deduzir, então, que as ações dos sistema nervoso simpático estão estreitamente relacionadas com a excitabilidade e com o fenômeno da induction psychomotrice, e que, portanto, a hiperexcitabilidade está associada com um funcionamento desregular do sistema nervoso simpático (e com um conseqüente desequilíbro de seu trabalho conjunto com o parasimpático) . O estudo das ações do sistema nervoso simpático parece ter despertado um interesse particular em Nietzsche em sua última fase. Ainda que seja muito pouco provável que Féré tenha sido sua fonte principal para o entendimento desse mecanismo fisiológico, as questões levantadas nos últimos escritos do filósofo parecem associar as modificações das atividades dos orgãos da vida vegetativa produzidas pelo sistema nervoso simpático às noções de hiperexcitabilidade e de pré-disposições mórbidas trabalhadas por Féré. Essas investigações dos mecanismos fisiológicos que regulam a capacidade de resistência de um indivíduo, seu metabolismo, como prefere denominar Nietzsche, são mobilizadas para a averiguação do problema da confusão criada em torno das noções de causa e conseqüência [Ursache und Folge]. Em Genealogia da moral, Nietzsche argumenta que a necessidade dos doentes crônicos buscarem um entorpecimento da dor pelo afeto, a verdadeira causação fisiológica do ressentimento, deve-se a uma “dor torturante, secreta, cada vez mais insuportável” (causada por uma excitabilidade mórbida e pelos afetos depressivos que um constante desgaste de força acarreta, por um verdadeiro esgotamento?), que ser quer entorpecer mediante uma emoção violenta (uma representação mental realmente intensa 752 Féré, Sensation et mouvement, p. 25. Sobre o funcionamento do sistema nervoso autônoma em geral e dos males relacionados com as suas funções, pode-se cf., como exemplo: Mccorry, Laurie Kelly. “Physiology of the autonomic nervous system”. In: American Journal of Pharmaceutical Education. 2007; 71 (4), article 78. Disponível em: <http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1959222>, último acesso em: 27/06/2012. 753 239 que possa elevar abruptamente sua reserva de energia, causando uma sensação agradável pelo aumento de força, e a cessação imediata, embora extremamente breve, dos afetos depressivos?), com a busca e descoberta de um “culpado” pelo seu mal-estar, por exemplo, capaz de lhes intoxicar com seu “próprio veneno de maldade” como diz Nietzsche. Esse tipo de raciocínio, afirma o filósofo, é alimentado pelo desconhecimento das verdadeiras causas de um debilitamento : “Alguém deve ser culpado de que eu esteja mal” – esta maneira de raciocinar é comum a todos os doentes, tanto mais quanto lhes for desconhecida a verdadeira causa de seu mal-estar, a fisiológica (– ela pode encontrar-se, digamos, numa enfermidade do nervus sympathicus, numa anormal secreção de bílis, numa pobreza de sulfato e fosfato de potássio, em estados de tensão do baixo frente que impedem a circulação do sangue, ou ainda numa degeneração dos ovários etc.) 754 Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche volta a lidar com o problemas da confusão entre causa e conseqüência na seção “Os quatro grandes erros”, que traz uma série de considerações intimamente relacionadas com os trabalhos de Féré. Segundo Nietzsche, há um enorme perigo quando a conseqüência é confundida com a causa (primeiro dos quatro erros). Um erro que se encontra no fundamento de todos os códigos elaborados pela “moral” e pela “religião”. A crença, por exemplo, de que a virtude é a causa da felicidade, quando na verdade é somente um efeito de uma felicidade, ou seja, de um ser bem logrado 755 , com uma boa constituição, com um metabolismo lento, capaz de opor resistência (às excitações externas). 756 Na subseção intitulada “Erro das causas imaginárias” (terceiro erro) 757, Nietzsche analisa como as idéias produzidas por uma certa condição tendem a ser mal-entendidas como sendo as causas dela. Como aponta o filósofo: A maioria de nossos sentimentos gerais – todo tipo de inibição, pressão, tensão, explosão no jogo dos órgãos, assim como, particularmente, o estado do nervus 754 GM III, § 15. “En somme, le malheur est le lot des individus dont l’organisme est en déficit, tandis que le bonheur est le partage des individus bien développés et bien entretenus [...] or, si toute accumulation de force constitue une satisfaction, un bonheur, si toute perte produit une peine ou le malheur, il en découle que bonheur et vertu, vice et malheur sont indissolublement liés” (Féré, Sensation et mouvement, p. 150). 756 “Um homem jovem fica prematuramente pálido e murcho. Seus amigos dizem: tal ou tal doença é responsável por isso. Eu digo: o fato de ele adoecer, de não resistir à doença, já foi conseqüência de uma vida debilitada, de um esgotamento hereditário” (CI, Os quatro grandes erros § 2). 757 O segundo dos quatros grandes erros é: “erro de uma falsa causalidade”; e o quarto é: “erro do livrearbítrio”. 755 240 sympathicus – excita nosso impulso causal: queremos uma razão para nos acharmos bem ou nos acharmos mal. Nunca nos basta simplesmente constatar o fato de que nos achamos assim ou assim: só admitimos esse fato – dele nos tornamos conscientes, – ao lhe darmos algum tipo de motivação. 758 Essa motivação pode ser dada pela recordação de estados anteriores da mesma espécie associada com as interpretações causais que a eles ligamos, não a sua causalidade, o que nos habitua a um certo tipo de interpretação causal, inibindo uma investigação da verdadeira causa. Busca-se o alívio e a tranqüilidade ao se tornar algo desconhecido conhecido, uma vez que “alguma explicação é melhor que nenhuma”. 759 Ora, as interpretações causais das quais a moral ocidental habituou os homens civilizados são precisamente as “causas imaginárias” fornecidas pela “psicologia imaginária” elaborada pelo cristianismo, como declara Nietzsche em O Anticristo: Nem a moral nem a religião, no cristianismo, têm algum ponto de contato com a realidade. [...] uma psicologia imaginária (apenas mal entendidos sobre si, interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis – dos estados do nervus sympathicus, por exemplo – com ajuda de sinais da idiossincrasia moral-religiosa – “arrependimento”, “remorso”, “tentação do demônio”, “presença de Deus”. 760 Podemos constatar, deste modo, como toda essa discussão em torno da noção de hiperexcitabilidade e das ações de resistência reguladas pelo sistema nervoso simpático 761 (os estados do nervus sympathicus), encontra-se estreitamente vinculada com a fisiopsicologia do cristianismo e, particularmente, da redenção empreendida por Nietzsche em seus últimos escritos. O cristão típico (já pré-disposto) e o ressentido típico possuem uma irritabilidade mórbida que afeta o funcionamento de seu sistema nervoso simpático, resultando em um profundo mal-estar, um enfraquecimento geral das funções orgânicas, que condiciona, em contrapartida, a elaboração de idéias e sentimentos depressivos, interpretados de acordo com o que o filósofo denomina idiossincrasia moral-religiosa. A “cura” para esse mal-estar generalizado é o que o cristianismo conhece como “redenção”, 758 CI, Os quatro grandes erros § 4. Idem. 760 AC § 15. 761 Cf. também FP 10 [144] do outono de 1887. 759 241 um efeito, por sua vez, meramente imaginário, como defende Nietzsche na seção 15 de O Anticristo. 762 Ora, Féré nos esclarece que todas as mudanças em torno da mobilidade, da sensibilidade e da circulação (da vida vegetativa), sob a influência das excitações periféricas, estão plenamente associadas com fenômenos psíquicos particulares que já há muito tempo haviam chamado atenção. 763 Os fenômenos psíquicos aos quais Féré se refere são justamente aqueles relacionados com a chamada folie circulaire 764, patologia esta que, para Nietzsche, é metodicamente alimentada pela Igreja em um solo morbidamente prédisposto e que condiciona todo o training cristão de penitência e de redenção. 765 Em Dégénérescence et criminalité, Féré define a folie circulaire ou folie à double forme como uma vesânia (termo este criado por Pinel e mais tarde substituído por psicose, que designa uma desordem mental ou enfraquecimento psíquico) constituída por períodos de exaltação e de depressão, acompanhados por problemas correlativos de nutrição. 766 A folie circulaire é, portanto, o problema mental que caracteriza todo o chamado “mundo interior” do homem religioso (décadent), e tal enfermidade psíquica está estreitamente relacionada com a hiperexcitabilidade e com o esgotamento que esta acarreta, com o desregulamento do nervus sympathicus e com os problemas nutritivos que o acompanham. O que é a penitência promovida pela Igreja? Os estados de depressão, de esgotamento geral de força e, portanto, de dor e sofrimento, condicionados por uma má constituição fisio-psicológica, por uma excitabilidade mórbida. O que é a redenção? Uma descarga de energia causada por uma excitação exagerada e por uma representação mental, por afetos, igualmente intensos, que elevam a energia potencial ao máximo, causando a cessação momentânea do desprazer, e provocando, portanto, a sensação, igualmente breve, de um aumento de força. De acordo com Féré, as sensações agradáveis de modo geral são acompanhadas por um aumento de energia e por um funcionamento regular das funções nutritivas, assim como as sensações desagradáveis resultam em uma diminuição de energia e em diversos 762 Sobre a necessidade de uma pré-disposição mórbida para o sucesso do funcionamento dos mecanismos de redenção do cristianismo, cf. AC § 51 e FP 14 [181] da primavera de 1888. 763 Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 122. 764 Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 122-123. 765 Cf. AC § 51. 766 Cf. Dégénérescence et criminalité, p. 21. 242 problemas nutritivos. Sendo assim: “La sensation de plaisir se résout donc dans une sensation de puissance; la sensation de déplaisir dans une sensation d’impuissance.” 767 Mas o que caracteriza uma sensação de prazer? Féré nos informa que toda excitação leva a um aumento da energia potencial ao ponto de provocar uma descarga, lenta, quando a excitação é moderada, ou brusca, quando a excitação é suficientemente forte. Em contrapartida: “Chaque décharge s’accompagne d’une diminution de potentiel, de sorte que, à partir d’une certaine limite, la sensation ne peut plus s’accroitre proportionnellement à l’excitation.” 768 De maneira que toda excitação excessiva ou prolongada (saciedade) constitui um desprazer, uma sensação dolorosa, já que a energia necessária para opôr resistência à mesma encontra-se exaurida, e o sujeito se acha em um estado de irritabilidade extrema, de suscetibilidade excessiva. 769 Por conseguinte, os sujeitos acometidos pela folie circulaire, por conta de sua constiuição hiperexcitável, encontram-se freqüentemente em um estado de esgotamento geral de sua energia potencial. A pouca energia que seu organismo debilitado consegue produzir pelos processos nutritivos é logo desperdiçada pelas excitações mais fracas. Sendo 767 Féré, Sensation et mouvement, p. 64. “[...] on aime et on recherche tout ce qui ajoute de la force ; on hait et on évite tout ce qui en fait perdre” (Sensation et mouvement, p. 129). Essa passagem lembra bastante a seção 2 de O Anticristo: “O que é bom ? – Tudo o que eleva o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem. O que é mau ? – Tudo o que vem da fraqueza”. 768 Féré, Sensation et mouvement, p. 65. 769 “Les observations précédentes sur les phénomènes somatiques en relations avec le plaisir qui est la manifestation interne de la puissance et avec la douleur qui n’est, au contraire, que la sensation interne de l’impuissance (soit constitutionnelle, soit acquise, fatigue, etc.), peuvent servir de base à une théorie physiologique de l’esthétique. Et d’autre part il faut remarquer que le plaisir et la douleur constituent le fond de tous les faits psychiques désignés sous le nom de sentiments, d’affections, d’affinités électives, etc. Ces derniers faits pourront donc trouver, eux aussi, dans les observations précédentes, une interprétation physiologique basée sur la constatation de faits matériels” (Féré, Sensation et mouvement, p. 67). Como fugiria ao nosso escopo, optamos por não nos aprofundarmos nas análises de Féré sobre a relação entre o feio e as sensações desagradáveis, isto é, as excitações que provocam uma diminuição da energia potencial, e entre o belo e as sensações agradáveis, ou seja, as excitações que resultam numa elevação da força, num aumento de poder. Não obstante, é patente a influência de Sensation et mouvement para o projeto de uma fisiologia da estética em Nietzsche. Podemos destacar, como exemplo mais claro, as seções 19 e 20 de “Incursões de um extemporâneo” em Crepúsculo dos ídolos : “– Fisiologicamente, tudo o que é feio debilita e aflige o ser humano. Recorda-lhe declínio, perigo, impotência; faz com que realmente perca energia. Pode-se medir com um dinamômetro [grifo nosso] o efeito do que é feio” (CI, “Incursões de um extemporâneo” § 20). Cf. O preparatório dessas seções: FP 14 [119] da primavera de 1888 (que já indicamos), em que Nietzsche nomeia Féré quando se refere ao conceito de induction psychomotrice, trabalhado pelo médico em Sensation et mouvement. A importância de Dégénérescence et criminalité é também significativa: “Il faut remarquer que cette sensibilité maladive cette diathèse d’irritabilité, qui constitue en quelque sorte le premier degré de la dégénérescence, est, en somme, la condition biologique la plus favorable à l’art, c’est-à-dire à l’ensemble des moyens d’expression et de propagation des émotions.” (p. 104) 243 assim, tais sujeitos sentem necessidade de estímulos realmente fortes, pois somente desta maneira, pela produção de uma verdadeira descarga de energia, eles conseguem elevar sua energia potencial ao máximo. Essa descarga tem o poder de elevar a atividade cerebral e os processos vitais até o paroxismo, provocando, assim, estados da mais alta exaltação (que podem se manifestar sob a forma de euforia, convulsões epilépticas, transe, êxtase, etc., o que, para Nietzsche, constitui a própria redenção cristã 770), logo seguidos, entretanto, pela mais profunda depressão. 771 3.1.2 – Dégénéréscence et criminalité A obra Dégénérescence et criminalité também possui grande importância para a fisio-psicologia do santo e do redentor, e, portanto, do tipo de Jesus, feita por Nietzsche em O Anticristo. Especificamente, alguns temas abordados no capítulo VI, Caractères anatomiques et physiologiques des criminels (pp. 71-80), e sobretudo o capítulo VIII, Épuisement et criminalité (pp. 85-96) exerceram uma grande influência sobre a maneira pela qual Nietzsche vai interpretar a Palestina da época de Jesus como um ambiente propício para o surgimento de santos idiotas. No fragmento póstumo 15 [37] da primavera de 1888, Nietzsche fará um resumo esquemático das principais teses defendidas por Féré no capítulo Épuisement et criminalité. Nesse capítulo, Féré procura demonstrar quais os principais fatores que condicionam o esgotamento responsável pelo surgimento da degenerescência. 772 Entretanto, a resposta acerca da causa do esgotamento é exposta com 770 Cf. AC § 51. “Cette corrélation entre l’état somatique et l’état psychique est surtout saisissante chez les individus atteints de formes atténuées de folie circulaire et qui sont sujets à des périodes alternantes de dépression et d'excitation. Chez les sensitifs, qui ont surtout fait le sujet de mon étude, on peut retrouver les mêmes alternatives sous l’influence d’excitations modérées ou excessives ou du défaut d’excitation. A l’exagération de la motilité, de la sensibilité, de l’afflux sanguin à la périphérie, correspond une exaltation psychique, qui se traduit par une diminution des temps de réaction en général, une exaltation de la mémoire et de l’imagination, etc.” (Féré, Sensation et mouvement, p. 123). Cf. também, Dégénérescence et criminalité, p. 38. 772 É difícil estabelecer com exatidão qual a relação de causa e conseqüência entre a hiperexcitabilidade e o esgotamento: um fenômeno sempre vem acompanhado do outro. Ainda assim, poder-se-ia arriscar em dizer que, para Féré pelo menos, é o esgotamento de energia adquirido em um sujeito (o primeiro membro de uma família de degenerados) que vai causar primeiramente a hiperexcitabilidade, esta última, por sua vez, é o que vai agravar o esgotamento, fazendo com que ele passe a ser hereditariamente transmitido, isto é, gerando o chamado esgotamento congênito. 771 244 uma certa diferença de ênfase entre Sensation et mouvement e Dégénérescence et criminalité. Em Sensation et mouvement, Féré afirma : Le défaut de parallélisme entre les besoins et les moyens de les satisfaire caractérise précisément la dégénérescence; ne voyons-nous pas que dans toutes les espèces animales les sujets ainsi constitués disparaissent parce qu’ils sont incapables de soutenir la lutte pour l’existence? Sauf des cas accidentels, on peut dire que succomber dans cette lutte est un signe de déchéance. 773 A falta de paralelismo entre as necessidades e os meios de satisfazê-las ainda aparece em Dégénérescence et criminalité como distintivo da degenerescência, entretanto, Féré torna esse parecer bem mais preciso, defendendo que é o esforço consumido na adaptação ao progresso incessante da civilização, esforço proporcional aos dispositivos naturais de cada indivíduo, que se encontra na origem de uma eventual degenerescência causada pelo esgotamento. No capítulo VI de Dégénérescence et criminalité, Féré afirma que o criminoso tem como principal característica fisiológica o enfraquecimento da sensibilidade. Os dois resultados mais expressivos desta irritabilidade do criminoso é a sua incapacidade de se aplicar ao trabalho regular e a preguiça. 774 Féré argumenta que, apesar do desejo de procurar o maior gozo possível com o mínimo de dificuldades possíveis ser natural ao homem e constituir o próprio móbil da civilização, é tal desejo que se mostra como o grande responsável pela degenerescência e, por conseqüência, pela criminalidade. Para que esse desejo dê lugar a um modo de atividade que mereça a qualificação de “social”, faz-se necessário que o mesmo não seja exagerado ao ponto em que ele só poderá ser satisfeito às custas do trabalho de outro, pois isso vai de encontro aos interesses da coletividade. Quando esses interesses são negligenciados por um indivíduo, este se torna aquilo que Féré denomina de anti-social, um nocivo [nuisible]. O desejo excessivo de prazeres com o mínimo de dor é característico dos hiperexcitados e esgotados, devido a sua extrema suscetibilidade à dor e sua necessidade de estímulos cada vez mais poderosos, todavia, sua exaustão de forças os tornam inaptos ao trabalho e à luta pela existência na civilização. 773 774 Féré, Sensation et mouvement, p. 150. Cf. Féré, Dégénéréscence et criminalité, pp. 74-75. 245 Como diz Féré: “Les antisociaux ont un caractère commun: c’est précisément l’inaptitude à une activité sociale.” 775 Deste modo, o anti-social, sendo degenerado, esgotado, incapaz de suprir seus anseios com suas próprias forças, é, portanto, um improdutivo, que depende sempre do trabalho do outro. Para Féré, isso aproxima a criminalidade da prostituição : Si l’on considère que la criminalité a en somme pour mobile principal le désir excessif de se procurer le plus de jouissance possible avec le moins de peine possible, jusqu’à prendre aux dépens du travail d’autrui, on peut dire que la prostitution a la même origine que le crime; prostituées et criminels ont pour caractère commun d’être des improductifs et par conséquent les antisociaux. La prostitution constitue donc une forme de criminalité, une criminalité d’impuissance, qui dispense la femme plus souvent que l’homme de la criminalité violente ou destructive. 776 Pode-se verificar pelos vários traços de leitura no exemplar pessoal de Nietzsche como essa passagem lhe chamou a atenção. Para Féré, não há nenhum acaso no fato de que a criminalidade esteja geralmente associada com a prostituição. O criminoso e a prostituta não só compartilham do mesmo condicionamento fisiológico como freqüentemente fazem parte da mesma família: os neurastênicos. Em Nietzsche a prostituição adquire um duplo aspecto, é tanto sintoma da décadence 777 como uma atividade que deve ser desejada e enobrecida em uma sociedade ascendente 778, dependendo de seu surgimento como fruto da fraqueza ou da força. Neste sentido, para o entendimento do projeto de uma psicologia do redentor empreendido por Nietzsche, é extremamente significativo observar, com base nos trabalhos de Féré, que o fato do evangelho de Jesus representar, segundo o filósofo, a abolição da sociedade, ao privilegiar tudo o que é rejeitado por ela, os “pecadores” os criminosos, as prostitutas 779 , etc., não é casual, mas possui uma explicação médico-psiquiátrica. Como veremos, os degenerados se buscam e se atraem, a figura do santo e do rendentor, tem o 775 Féré, Dégénéréscence et criminalité,p. 79. Esse parágrafo se encontra destacado no exemplar pessoal de Nietzsche por um traço à margem direita. 776 Féré, Dégénéréscence et criminalité, pp. 76-77. 777 Cf. FP 14 [220] da primavera de 1888. 778 Cf. FP 15 [4] da primavera de 1888. Esse fragmento pode ser considerado uma resposta às teorias de Féré sobre o parentesco entre prostituição e criminalidade e a necessicade de suprimi-las, principalmente, pela visível continuidade com o FP 15 [3], fortemente influenciado por Dégénéréscence et criminalité. 779 Cf. FP 11 [239] de novembro de 1887 – março de 1888. 246 poder de atrair em torno de si os indivíduos mais fracos e desprezados pela sociedade: mulheres, crianças, criminosos, prostitutas, “endemoniados”, etc. Ainda que Nietzsche não se ocupe em dar uma explicação fisio-psicológica para esse poder de atração do “anêmico santo de Nazaré” 780 , não se pode descartar, dado o vocabulário médico utilizado pelo filósofo, um profundo conhecimento psiquiátrico em torno deste fenômeno por parte dele. Além disso, em Nietzsche a inaptidão ao trabalho contínuo, o caráter improdutivo e, portanto, anti-social, em suma, a preguiça própria dos sujeitos degenerados, que os tornam candidatos por excelência a cometerem os chamados atos criminosos, é precisamente aquilo que também vai resultar no surgimento da figura do santo, particularmente na Palestina do primeiro século. No capítulo VIII, de Dégénérescence et criminalité, Féré esclarece que a criminalidade e a loucura estão ligadas por um parentesco evidente 781, assim como também seu desenvolvimento está subordinado às mesmas condições. A causa da loucura, da criminalidade e da degenerescência em geral deve, de acordo com o médico francês, ser buscada na civilização, em suas exigências e em suas condições de luta. Aqueles que, ao atingirem uma exaustão total de forças, não se vêem mais capazes de se empenhar na luta, que se tornam impossibilitados de resistir e de se opor e que não suportam mais essas exigências, tendem a se degenerar, a se esgotar. Ainda que a civilização e o desenvolvimento das indústrias sejam uma conseqüência natural da necessidade de adaptação ao meio, elas produzem transformações no modo de vida do ser humano que exigem modificações orgânicas que deveriam ocorrer de forma extremamente lenta de acordo com as leis evolutivas. Os homens civilizados se tornam pouco a pouco incapazes de se acomodar aos recursos que contentavam seus ancestrais. Para satisfazer suas necessidades cada vez mais múltiplas, os homens se esgotam fisicamente e recorrem aos recursos de seu espírito em busca de artifícios que supram essas necessidades. Entretanto, observa Féré: 780 Cf. FP 14 [90] primavera de 1888. “Un seul fait positif que nous avons déjà relevé, c’est la parenté de la criminalité et de la folie et de la dégénérescence en général, parenté qui se trahit par la coïncidence fréquente du crime et de la dégénèrescence, soit chez le même individu, soit dans la même famille” (Féré, Dégénéréscence et criminalité, p. 85). 781 247 Chaque effort nouveau d’adaptation, chaque progrès de ce que nous appelons la civilisation, est une nouvelle cause d’épuisement qui se manifeste toujours avec plus d’intensité sur les individus les plus affaiblis. Ces individus deviennent bientôt incapables de continuer la lutte, et succombent, soit à des troubles généraux de la nutrition, soit à des dégénérescences plus ou moins localisées, se traduisant par des affections organiques diverses ou des troubles fonctionnels prédominant vers l’organe le plus faible. 782 No fragmento em que Nietzsche esquematiza as principais conclusões desse capítulo de Dégénéréscence et criminalité, ele anota: “A inaptidão à luta: isso é degenerescência [Das Unvermögen zum Kampf: das ist Degenerescenz]”. 783 Essa sentença possui uma importância basilar para o entendimento do significado que o evangelho de Jesus possui no interior da filosofia de Nietzsche. Jesus não é herói como o quer Renan, ele não resiste porque é incapaz de lutar – seu aspecto décadent é inegável. Com o esgotamento de forças surge a necessidade de estímulos fortes que possam elevar a energia potencial. Estimulantes como o ópio, o haxixe, o café, o chá, e sobretudo o álcool, passam a ser consumidos de modo cada vez mais excessivo porque eles determinam momentaneamente uma excitação física e intelectual 784, à qual sucede, porém, um período de esgotamento que só agravará mais ainda uma excitabilidade mórbida 785: “Si ces agents peuvent être d’une certaine utilité dans la production d’un effort peu durable, ils diminuent la capacité de travail pour les ouvrages de longue haleine.” 786 O consumo do álcool será apontado por Féré como o fator principal que dará início a cadeia degenerativa da família neuropata. O indivíduo esgotado busca o álcool para elevar sua energia, e, estando intoxicado no ato de procriação, gerará filhos neuropatas. O alcoolismo passará a ser então, condicionado por um pré-disposição mórbida, e esta enfermidade possui um papel 782 Féré, Dégénéréscence et criminalité, pp. 87-88. FP 15 [37] da primavera de 1888. 784 “Les surmenés de tout ordre cherchent à lutter contre l’épuisement par des excitations diverses: luxe de l’habillement, de l’ameublement, de l’alimentation, plaisirs du corps et de l’esprit. L’alcool, le tabac, le thé, etc., semblent ranimer momentanément ces êtres dégénérés; mais, d’autant plus irritables qu’ils sont plus affaiblis, ils deviennent véritablement explosifs sous l’influence des excitations auxquelles ils sont soumis” (Féré, Dégénéréscence et criminalité, p. 91). 785 “Exaustão [Überarbeitung], esgotamento [Erschöpfung], necessidade de estimulantes [Stimulirungs] (vício), intensificação da irritabilidade [Irritabilität] e da fraqueza (ao ponto em que elas se tornam explosivas)” (FP 15 [37] da primavera de 1888) 786 Féré, Dégénéréscence et criminalité, p. 88, nota 2. 783 248 elementar na geração de sujeitos portadores de idiotia. 787 Nietzsche, por sua vez, anota: “A bebida e a desordem [Ausschweifung] intensificam a degenerescência” 788 Quem suportará os custos do trabalho de adaptação nas condições de luta pela existência nas cidades é principalmente o sistema nervoso diz Féré. Não onstante: “Un des principaux effets de l’épuisement nerveux est l’incapacité de l’effort soutenu.” 789 Ainda que os sujeitos congenialmentes sadios sofram apenas de uma fadiga geral facilmente reparável devido a um trabalho excessivo, pode ocorrer que um tremendo esforço, acompalhado de todo tipo de privação 790, resulte em um esgotamento bem mais profundo e durável, que não apenas favoreça a decadência individual como também prepare as atitudes mórbidas (o vício) 791 que dará início à degenerescência hereditária. Como observa Nietzsche no início de seu resumo: “ A inaptidão para o trabalho contínuo. Conseqüência de um trabalho excessivo com uma alimentação insuficiente, mais precisamente de um esgotamento [Erschöpfung] sempre mais profundo e mais durável, que, na geração seguinte, faz aparecer sintomas mórbidos”. 792 Féré esclarece que não é tanto por conta de uma fadiga pessoal que uma raça passa a estar sujeita à degeneração progressiva, e sim muito mais a um esgotamento hereditário, a uma exaustão capitalizada, que torna essa raça cada vez menos capaz de esforços produtivos. Como escreve Nietzsche: “nós conhecemos também uma exaustão [Überarbeitung] hereditária: causa principal da degenerescência de uma raça – e, de fato, ela se torna sempre mais incapaz de esforços produtivos”. 793 Em uma passagem lapidar, que Nietzsche fará questão de parafrasear, Féré destaca o papel da preguiça como principal fator que explica a forte tendência dos sujeitos 787 Esse estudo será desenvolvido por Féré em La famille névropathique: théorie tératologique de l'hérédité et de la prédisposition morbides et de la dégénérescence. Paris: Félix Alcan, 1894. E também em: Épilepsies et les épileptiques. Paris: Félix Alcan, 1890. O primeiro autor a desenvolver essas teorias foi Morel, principal fonte de Féré. 788 FP 15 [37] da primavera de 1888. 789 Féré, Dégénéréscence et criminalité, p. 89. 790 “Aumento das doenças pela redução da alimentação” (FP 15 [37] da primavera de 1888). 791 “Il n’y a qu’une vertu cardinale: l’énergie, se manifestant par la production sous toutes ses formes et par la modération des besoins d’excitation et des désirs qui se traduit par la sobriété relative à tous les appétits. Le vice est tout ce qui détruit, depuis l’oisiveté passive jusqu’aux appétits les plus monstrueux” (Féré, Sensation et mouvement, p. 155). 792 FP 15 [37] da primavera de 1888. 793 Idem. 249 degenerados de recorrerem a atos criminosos para suprirem suas necessidades. Como afirma Féré e como traduz livremente Nietzsche: C’est de l’incapacité d’effort soutenu que résulte la paresse si particulière aux dégénérés de tout ordre, fous moraux, criminels, etc. Or, comme il faut à ces sujets non seulement des aliments pour soutenir leur existence, mais encore des excitants spéciaux pour relever leur vitalité défaillante, la nécessité s’impose à eux de s’entretenir aux dépens d’efforts qu’ils sont incapables de produire euxmêmes, aux dépens du travail d’autrui. Ils y arrivent par la ruse, ou par l’effort violent une fois donné. 794 A preguiça [Faulheit], concebida como inaptidão a um esforço contínuo [anhaltender], é própria da degenerescência. Tais indivíduos, que têm necessidade não somente de alimentação, mas de excitantes [Reizmittel] especiais para intensificar sua força vital declinante, querem se sustentar [erhalten lassen] pelo trabalho dos outros. Para isso, eles recorrem à astúcia ou ao ato de violência (isto é, o esforço excepcional e isolado) 795 Para Nietzsche, esse argumento é de extrema importância para mostrar a realidade fisio-psicológica do santo. Não se deve perder de vista que o judaísmo representa justamente um “povo santo”, algo extremamente significativo: é justamente por conta de uma incapacidade para o esforço contínuo que a nação judia vai eleger o modo de vida do homem santo como ideal, pois semelhante tipo de vida, assim como a vida criminosa, também depende do trabalho do outro: uma “existência parasitária” como declara Nietzsche. 796 O luxo é, para Féré, um dos primeiros sintomas da degenerescência. Quanto mais uma raça se enfraquece, mais sua necessidade de excitação se torna descomedida. Quando uma nova excitação suficientemente veemente é encontrada, um esgotamento proporcional a mesma se segue, de maneira que ela precipita ainda mais o progresso da degenerescência, agravando uma sensibilidade cada vez mais doentia. É deste modo que a marcha da degenerescência em direção a sua dissolução é inevitável e parece ser conduzida por uma lei natural que leva à interrupção de sua propagação hereditária. É assim que os sujeitos degenerados, que os décadents, sentem-se inevitavelmente atraídos por aquilo que mais lhe causa dano. Como chama atenção Féré em uma passagem, naturalmente, destacada por Nietzsche em seu exemplar pessoal: 794 Féré, Dégénéréscence et criminalité, pp. 89-90. FP 15 [37] da primavera de 1888. 796 Cf. FP 11 [363] de novembro de 1887 – março de 1888. 795 250 Et, chose remarquable, ‘l’individu dégénéré, comme le fait remarquer Maudsley, est attiré par les relations hostiles à son bien-être, par celles qui augmentent sa dégénération, et qui tendent à le supprimer’. La justesse de cette observation se retrouve jusque dans le régime choisi spontanément par les dystrophiques, par les anémiques, les goutteux, les diabétiques. Il n’est pas nécessaire d’insister sur le rôle que l’abus de la boisson et de la débauche peut jouer dans l’accélération de la décadence, qui se manifeste à la fois par l’augmentation des maladies par ralentissement de la nutrition, des névroses, des psychoses, et par une recrudescence à peu près parallèle de la criminalité. 797 Essa passagem exerce uma forte influência não somente para o tema da fisiopsicologia da redenção, mas para a filosofia da décadence dos últimos escritos de Nietzsche de modo geral. Em Crepúsculo dos ídolos, por exemplo, Nietzsche afirma: “escolher instintivamente o que é prejudicial para si, ser atraído por motivos ‘desinteressados’ é praticamente a fórmula da décadence”. 798 É importante frisar que a marcha da degenerescência em direção à sua dissolução é um fenômeno que não está circunscrito apenas aos indivíduos degenerados, mas igualmente à cadeia hereditária degenerativa, à família, cuja progressão conduz inevitavelmente à esterilidade, isto é, ao fim desta cadeia. De um modo que lembra um pouco a declaração de Nietzsche a respeito de si mesmo em uma célebre passagem de Ecce homo 799 – ainda que por motivos bem diferentes – pode-se dizer que, para o filósofo, Jesus não foi um décadent, um idiota comum 800, pois, por meio de sua prática, em obediência aos seus instintos, ele conseguiu encontrar um modo de vida adequado à sua condição, ou seja, sem buscar aquilo que lhe seria prejudicial. Nietzsche, é claro, anota as principais conclusões de Féré a esse respeito: Necessidade de solicitações [Aufregungen] e de excitações [Reizen]: luxo – um dos primeiros passos da décadence. A excitação [Reizung] faz a fraqueza... Os degenerados se sentem atraídos por um regime que lhes é nocivo, que acelera a marcha [Gang] da degenerescência (os anêmicos, os histéricos, os diabéticos, os distróficos [die Anämischen, die Hysterischen, die Diabetiker, die Dystrophyker]).801 797 Féré, Dégénéréscence et criminalité , p. 92. CI, Incursões de um extemporâneo § 35. Cf. também FP’s 14 [102] e 14 [210] da primavera de 1888. 799 “Sem considerar que sou um décadent, sou também o seu contrário. Minha prova para isso é, entre outras, que instintivamente sempre escolhi os remédios certos contra os estados ruins: enquanto o décadent em si sempre escolhe os meios que o prejudicam” (EH, Por que sou tão sábio § 2). Cf. também FP’s 14 [66], 14 [211] da primavera de 1888 e CW § 5. 800 Cf. AC § 31. 801 FP 15 [37] da primavera de 1888. 798 251 A proliferação do vício e do luxo em uma sociedade como conseqüência e não como causa da décadence, como um indício de uma pré-disposição mórbida e um sinal de esgotamento, é um tema que Nietzsche vai abordar em Crepúsculo dos ídolos, na seção “Os quatro grandes erros”: “– A Igreja e a moral dizem: ‘o vício e o luxo levam uma estirpe ou um povo à ruína’. Minha razão restaurada diz: se um povo se arruína, degenera fisiologicamente, seguem-se daí o vício e o luxo (ou seja, a necessidade de estímulos cada vez mais fortes e mais freqüentes, como sabe toda natureza esgotada)”. 802 Essa declaração parece ir de encontro ao estudo acerca da ruína do Império Romano. Afinal, Nietzsche parece não enxergar exatamente o luxo ou a pompa de Roma como sintomas da décadence, mas sim o contrário, ou seja, o fato dos mesmos passarem a ser interpretados assim com o avanço do cristianismo. Para Nietzsche, é por conta de uma sensibilidade mórbida que a moral ganha terreno em uma sociedade cuja fraqueza da vontade já se tornou generalizada. O fato de a moral ter se infiltrado no paganismo já denuncia uma pré-disposição mórbida por parte deste, ademais, foi a moral, e não a “corrupção dos costumes” (incluído aí o luxo?), que acabou acelerando a desagregação do Império. 803 O luxo e a pompa também parecem adquirir, pois, um duplo aspecto na filosofia de Nietzsche, visto que, assim como a prostituição, eles também podem brotar de uma plenitude de forças 804 (o mesmo, naturalmente, não pode ser dito a respeito do vício). De acordo com Féré, os sujeitos disformes, impotentes, degenerados de toda ordem possuem como inclinação natural um modo de vida ligado a um ambiente insalubre. As condições que determinam o nascimento de indivíduos incapazes de suportar a própria sorte, produz uma outra categoria de anti-sociais, os degenerados congênitos, incapazes de se adaptarem a uma atividade social qualquer. Estes indivíduos estão condenados a se agruparem e conviverem em um meio vicioso e doentio, que tem o poder de acelerar sua ruína, uma vez que seu alto grau de sugestionabilidade torna-os extremanete sensíveis e vulneráveis à miséria do outro, fazendo com que a degenerescência se propague e se alastre. Como explica Féré : “D’ailleurs on a remarqué depuis longtemps que les aliénés se 802 Cf. CI, Os quatro grandes erros § 2. Cf. FP 9 22 de outono de 1887. Não obstante, Nietzsche também vai afirmar numa aparente autocontradição: “A corrupção dos costumes é uma conseqüência da décadence: fraqueza da vontade, necessidade de excitantes fortes...” (FP 14 [86] da primavera de 1888). 804 Cf. nesse sentido AC § 61. 803 252 cherchent et se trouvent; il n’est pas rare de trouver dans les familles de névropathes des exemples de sélection dégénérative; il n’est pas douteux que le vice et le crime donnent souvent lieu à des accouplements du même genre et tendan naturellement à la destruction.”805 Os seres degenerados, por conta de sua hiperexcitabilidade, são particularmente atraídos seja pelos estímulos fortes, seja pela visão do sofrimento alheio, essas duas fontes de atração são determinantes para a sua disssolução. Os degenerados são extremamente suscetíveis à dor mais imperceptível, por conta de seu alto grau de sugestionabilidade eles são impedidos de permanecerem indiferentes frente à miséria do outro, passando a sentir a dor do próximo como a sua própria de modo quase imediato. Como os degenerados são de modo geral os que mais sofrem, eles se sentem, pois, irresistivelmente atraídos um pelo outro, ou seja, obrigados a compartilharem a dor um do outro. Os degenerados são levados, assim, a se associarem, ou melhor, a se buscarem e se aglomerarem, procriando entre si e gerando seres cada vez mais degenerados, o que vai conduzir inevitavelmente à interrupção deste processo pelo fenômeno da infertilidade nos sujeitos que se localizam na escala mais baixa da cadeia degenerativa. Como Nietzsche escreve: Os desajustados [Mißstalteten], os degenerados e impotentes de todo gênero possuem um tipo de instinto que lhes aproxima: é desse instinto que nascem os seres anti-sociais (porque seus pais foram incapazes de se adaptar à sociedade); eles se buscam, os loucos [Irren], por exemplo; nas famílias de neuropatas [neuropathischen] há uma seleção degenerativa (Goethe, “Afinidades eletivas”)806 Essa lei da seleção degenerativa tem como fundamento fisio-psicológico, portanto, os fenômenos da induction psycho-motrice e da sugestão. A chamada neurastenia, enfermidade cujo diagnóstico e interpretação se tornou corrente a partir do século XIX, está intimamente relacionada com o fenômeno da hiperexcitabilidade. É o sistema nervoso que sofre o primeiro abalo provocado pelo esgotamento geral. Assim sendo, a neurastênia se 805 Féré, Dégénéréscence et criminalité, p. 93. FP 15 [37] da primavera de 1888. Sobre o romance de Goethe, Féré comenta em nota correspondente à passagem citada de Dégénéréscence et criminalité, p. 93: “— Gœthe (les Affinités électives) a peut-être eu en vue cette attraction morbide en nous montrant une fille sujette à des crises de somnambulisme et à des céphalées localisées, et douée d’une sensibilité métallique particulière, qui finit par se suicider après avoir allumé trois personnages, parmi lesquels un plus exalté meurt de son amour” Féré também se refere às “affinités électives” enquanto conceito, em Sensation et mouvement, p. 67. 806 253 traduz por uma fraqueza dos nervos ou fraqueza da vontade que conduz à hiperxcitabilidade, resultando em uma astenia (ausência de vigor) generalizada. É sobretudo a neurastenia que é hereditariamente transmissível. As múltiplas patologias neurológicas e psíquicas que atingem os descendentes dos que sofrem de uma fraqueza nervosa, isto é, a chamada família neuropata, têm, portanto, como causa essa mesma mazela congênita. Como veremos, é justamente a seleção degenerativa que se dá entre os membros da família neuropata que explica o nascimento dos idiotas congênitos, os últimos rebentos dessa prole. 3.2 – Fisiologia da redenção O século XIX, como nos lembra Moore 807, foi a grande era do positivismo, e muito antes de Nietzsche, grandes médicos e psiquiatras já haviam interpretado os estados extáticos da experiência religiosa como sendo causados por distúrbios fisio-psicológicos. Essa tendência, que se tornou proeminente no final do século XIX, era reflexo, segundo Moore, da necessidade de se naturalizar, patologizar e desmascarar fenômenos supostamente sobrenaturais como forma de se alcançar uma auto-afirmação profissional, uma vez que médicos e psiquiatras precisavam conquistar o papel curativo em uma área que cabia tradicionalmente ao clero. Na vanguarda deste movimento, estava justamente o grande médico francês Jean-Martin Charcot e a escola psiquiátrica de Salpêtrière (da qual Charles Féré foi um dos mais eminentes representantes). Charcot e seus alunos foram os primeiros a empreenderem uma interpretação sistemática dos fenômenos religiosos, como, por exemplo, a chamada “possessão demoníaca”, o transe, o êxtase, as experiências místicas, as visões, etc., mediante o conceito de histeria. 808 As pesquisas de Charcot eram largamente conhecidas, e Nietzsche se tornou bem familiarizado com elas por intermédio não só das obras de Féré, mas também de diversos outros internos de Salpêtrière, cujos trabalhos eram geralmente publicados pela reputada editora Félix Alcan (que sucedeu a 807 Cf. Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 144. Cf. o excelente texto de Pereira, Mario Eduardo Costa. “C’est toujours la même chose: Charcot e a descrição do Grande Ataque Histérico”. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II, 3, pp. 159-165. 808 254 Maison Baillière). Richet 810 809 A obra L’homme et l’intelligence, do fisiologista francês Charles , lida por Nietzsche provavelmente em torno de 1887 811 , exibe claramente as principais teorias do paradigma de uma psicologia da religião fundada em Salpêtrière. Assim como Dégénéréscence et criminalité, o exemplar pessoal de Nietzsche da obra L’homme et l’intelligence exibe diversos traços de leitura. 812 O capítulo V, Les démoniaques d’aujourd’hui, e o capítulo VI, Les démoniaques d’autrefois, descrevem cuidadosamente o método e as principais descobertas das experiências que Charcot realizou com os pacientes histéricos de Salpêtrière. No capítulo V, Richet descreve os sintomas psicológicos da histeria. Segundo ele: “Grâce aux médecins de la Salpétrière, qui l'ont approfondie avec beaucoup de soin, la connaissance de cette maladie a pris un développement inattendu.” 813 No capítulo VI, Richet mostrará a verdadeira natureza do mal que atingia os sujeitos acusados de possessão demoníaca e “par quelle étrange succession d'erreurs on a été amené à affirmer que le diable vient se loger dans les corps humains.” 814 De acordo com Richet, a histeria, ao contrário do que a doutrina propagada pelos escritores naturalistas afirmava, não tem necessariamente uma natureza erótica. Não há, para o médico francês, uma relação de causa e efeito entre celibato e histeria. Ela é uma doença nervosa, que não é mais lúbrica do que qualquer outra doença nervosa. 815 Em perfeita consonância com os estudo de seu colega Féré, Richet aponta como principal característica da histeria uma sensibilidade doentia: “Dire que les hystériques pleurent pour 809 Os Baillières eram os editores da Academia Imperial de Medicina. Jean-Baptiste Baillière foi o fundador da Maison Baillière, Félix Alcan foi sócio do filho deste, Gustave-Germer Baillière, fundando posteriormente sua própria editora. 810 Cf. Richet, Charles. L’homme et l’intelligence. Fragments de physiologie et de psychologie. (BN) Paris: Félix Alcan, 1884. De Richet, Nietzsche também possuia a obra Essai de psychologie générale. (BN, 1887) Paris: Félix Alcan, 1891. 811 Cf. Sommer, “Beiträge zur Quellenforschung”; e ver GM II § 7 e FP 14 [65] da primavera de 1888. 812 Sinais de leitura no exemplar pessoal de Nietzsche de L’homme et l’intelligence: pp. 18, 20-22, 24, 28, 3039, 64-65, 68-70, 74, 78, 80-81, 83, 96-97, 99-100, 104, 106, 123, 231-232, 277-278, 289, 346, 391-394, 465, 468-469, 472-476, 481-483, 490, 516-517, 519-520, 522-523, 528, 537, 542. Cf. Campioni, Nietzsches persönliche Bibliothek (BN). O fac-símile do exemplar pessoal de Nietzsche encontra-se disponível no site da Fundação Clássicos de Weimar, no endereço: <http://ora-web.swkk.de/digimo_online/digimo.entry?source=digimo.Digitalisat_anzeigen&a_id=15701>. Último acesso: 27/06/2012. 813 Richet, L’homme et l’intelligence, p. 261. 814 Ibidem. 815 Cf. Richet, L’homme et l’intelligence, p. 262. 255 peu de chose est encore exagéré, car elles pleurent pour rien ; elles se sentent tout d'un coup envahies par une douleur indéfinissable, par une tristesse incompréhensible, vague, à laquelle il n'est pas possible de résister.” 816 Segundo Richet, as mulheres são as grandes vítimas da histeria: assim como os sujeitos degenerados podem exagerar os fenômenos psico-motrices normais, tornando-os mensuráveis, as mulheres histéricas são capazes de exibir de maneira mais veemente os traços ditos obscuros do comportamento feminino: “On peut même dire que les hystériques sont femmes plus que les autres femmes.” argumenta que a principal causa da histeria é a degenerescência hereditária. 817 818 Richet A jovem histérica é a grande representante feminina dos descedentes da família neuropata, da mesma forma que o epiléptico, o louco (le fou), o imbecil e o idiota são freqüentemente os representantes masculinos. 819 Richet também afirma que as histéricas exibem aquela tendência, tão própria dos degenerados como demonstrou Féré, de buscar aquilo que lhes causa dano. 820 As representações mentais das mulheres histéricas também são apontadas por Richet como desproporcionais às excitações que as incitaram: “L’erreur, jalousie, joie, colère, amour, tout est exagéré, hors de proportion avec les sentimens justes et mesurés qu'il est convenable d'éprouver.” 821 O fenômeno da induction psycho-motrice pode ser facilmente verificado entre as histéricas pela resposta imediata e irrefreável provocada por uma idéia muito intensa : “Si la fantaisie de dire une impertinence ou une incongruité traverse leur cervelle, voilà que déjà l’impertinence où l'incongruité est lancée.” 822 816 Richet, L’homme et l’intelligence, p. 264. Richet, L’homme et l’intelligence, p. 269. 818 “L’observation médicale de plusieurs siècles se rencontre avec le bon sens vulgaire. Au temps de la sorcellerie, la fille d'une sorcière, c'est-à-dire la fille d'une hystérique, était fatalement considérée comme sorcière, et il n'était pas besoin de chercher d'autres motifs d'accusation” (Richet, L’homme et l’intelligence, p. 268). 819 Cf. Richet, L’homme et l’intelligence, pp. 267-268. 820 “En général les hystériques ont un goût très marqué pour le vinaigre, les fruits verts et à peine mûrs, régime évidemment peu favorable à la santé. Cette alimentation irrégulière et défectueuse fait que la nutrition générale périclite, et que le sang s'appauvrit. Par une sorte de cercle vicieux très commun en pathologie, cette anémie augmente l'hystérie qui l’a fait naître, et presque toujours les jeunes filles anémiques sont, plus que les autres, sujettes à l'hystérie” (Richet, L’homme et l’intelligence, p. 264). 821 Richet, L’homme et l’intelligence, p. 265. “Tout devient un sujet de drame. L'existence apparaît comme la scène d'un théâtre. La vie régulière, simple, facile, qu'amène le va-et-vient de chaque jour, est transformée par les hystériques en une série d'événemens graves propres à tous les développemens dramatiques” (Ibidem). 822 Richet, L’homme et l’intelligence, p. 266. 817 256 Uma característica marcante das mulheres histéricas, de acordo com Richet, é seu prazer em mentir, nisso elas se assemelham, segundo ele, às crianças. Richet orienta que todo o médico que vá tratar de pacientes histéricas conserve sempre na mente que elas querem enganá-lo, esconder-lhe a verdade e lhe falar de coisas que não existem. Como constata Richet : Elles ont l'amour du mensonge ou plutôt de la tromperie. Rien ne leur plaît plus que d'induire en erreur ceux qui les interrogent, de raconter des histoires absolument fausses, qui n'ont même pas l'excuse de la vraisemblance, d'énumérer tout ce qu'elles n'ont pas fait, tout ce qu'elles ont fait, avec un luxe incroyable de faux détails. Ces gros mensonges sont dits audacieusement, crûment, avec un sang-froid qui déconcerte. [...] Les enfans sont dans ce cas, et c'est une grosse erreur de les croire pourvus d'une sincérité native. Personne n'est moins sincère qu'un enfant; à cet âge on ment effrontément et pour le plaisir de mentir. 823 As mulheres nervosas podem exibir graus diferentes de histeria, que podem variar entre uma histeria ligeira a uma histeria mais grave. A forma mais grave exibe todos os sintomas presentes na forma ligeira, porém mais duráveis e profundos. Todavia, a histeria grave possui três sintomas que lhe são particulares e que lhe caracterizam, qual sejam : os estados de anestesia, totais ou parciais, os ataques convulsivos e o delírio. 824 Esses três sintomas, sobretudo os ataques e o delírio, dão conta de decifrar as causas naturais de diversos fenômenos religiosos. Os chamados ataques histérico-epilépticos da grande histeria, em especial, exibem exatamente os mesmos traços presentes na chamada possessão demoníaca e também no êxtase. 825 Durante, esses acessos, diz Richet, o corpo é agitado por tremores violentos, todos os músculos se contraem e tencionam a ponto de quase romperem; o sujeito se torna capaz de efetuar saltos prodigiosos, de proferir os gritos mais confusos e horríveis, de contorcer o corpo de maneira alarmante, etc. 826 Por mais que a energia despendida nesses ataques por um sujeito tão frágil possa, de fato, dar a impressão de que uma força estranha 823 Richet, L’homme et l’intelligence, pp. 266-267. Cf. Richet, L’homme et l’intelligence, p. 273. 825 “Les symptômes sont tout à fait les mêmes, et il suffit de lire la description de l'attaque démoniaque d'autrefois pour reconnaître qu'elle est absolument identique à l'accès hystéro-épileptique d'aujourd'hui” (Richet, L’homme et l’intelligence, p. 284). 826 Cf. Richet, L’homme et l’intelligence, p. 281-282. 824 257 esteja atuando sobre aquele corpo (o que levou a uma interpretação demonológica desses fenômenos, principalmente durante a Idade Média), sua causa é, para Richet e os demais internos de Salpêtrière, estritamente natural e está relacionada com uma fraqueza dos nervos hereditária. Ademais, a despeito dessa desordem violenta, tais ataques apresentam períodos regulares bem distintos. Cada sintoma, por mais desordenado que possa parecer, manifesta-se na hora que lhe é devida, com uma regularidade e mesmo pontualidade surpreendente. Richet nos informa que Charcot e seus alunos estabelerecem três períodos distintos para esses ataques. 827 O primeiro período é bastante similar aos ataques epilépticos propriamente ditos. Principiando por uma perda de consciência brusca, que leva o paciente a cair no chão. Os músculos se contraem e endurecem, a face fica roxa, o pescoço incha, o rosto se contorce formando caretas horríveis, os braços se flexionam, os punhos se serram. Logo em seguida, todos os músculos são animados por tremores convulsivos, intensos no início e que, aos poucos, vão diminuindo. Por fim, os músculos esgotados por esse esforço magnífico e prolongado, se relaxam : um sono completo e profundo se sucede, então, ao acesso tetânico. 828 Porém, esse sono dura pouco, dando início, logo em seguida, ao segundo ataque, denominado por Charcot de clownismo, por conta da aparência teatral de diversos comportamentos bizarros que o caracterizam. Nesse ponto dos acessos “demoníacos”, os doentes realizam saltos estupendos. O corpo se curva em um arco, apoiando-se na cama somente pela cabeça e pés. O rosto volta a exibir um aspecto medonho; às vezes, o corpo todo se eleva abruptamente e, em seguida, cai pesadamente na cama. O doente entra em fúria consigo mesmo, buscando rasgar a própria pele, arrancar os cabelos; ele profere gritos lamentáveis, bate violentamente no peito, ataca as pessoas que lhe cercam, procura mordê-las, quebra tudo ao seu redor, rasga suas próprias roupas. Logo se mete a uivar como um animal selvagem; bate com a cabeça; movimenta os braços deconexadamente, ou, sentado, balança o corpo para frente e para trás, etc. 829 Porém, ainda mais surpreendendo do que a violência desses ataques é a facilidade com que, de acordo com Richet, pode-se interrompê-lo. Todo esse estouro frenético cessa 827 Para uma descrição desses ataques feita pelo próprio Charcot cf. sua famosa lição: Charcot, Jean-Martin: “A grande histeria ou hístero-epilepsia”. Tradução de e revisão técnica do Prof. Dr. Mário Eduardo Costa Pereira In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II, 3, 166-172. 828 Cf. Richet, L’homme et l’intelligence, p. 281. 829 Cf. Richet, L’homme et l’intelligence, p. 282. 258 subitamente quando se comprime o abdômen da paciente. Ao que parece, argumenta Richet, o ponto de partida desses acessos “demoníacos” são os ovários, pois, apoiando fortemente as mãos sobre o abdômen na região onde se localizam os ovários, o ataque cessa imediatamente e a doente recupera sua consciência, mas, se a contração for interrompida, o ataque recomeça. O terceiro período dos ataques histéricos não lembra tanto a chamada possessão demoníaca, estando mais próximo do êxtase, das visões e das viagens místicas. As atitudes bizarras e acrobáticas deixam de ocorrer, os membros não são mais projetados desordenadamente. A consciência, que no início do ataque se esvai, retorna. O paciente é assaltado por todo tipo de alucinação, alegres, tristes, “tantôt amoureuses, tantôt religieuses ou extatiques”. Como descreve Richet: Chaque fois qu’une image a surgi dans l’esprit, aussitôt les mouvemens des membres, les traits de la physionomie, l’attitude générale du corps, tout se conforme à la nature de cette hallucination. Ces poses, ces attitudes passionnelles, ont une vivacité, une vigueur d’expression qu’on ne saurait retrouver ailleurs. Le plus habile acteur ne sera jamais en état de représenter l’effroi, la menace, la colère, avec autant de véracité et de puissance que ces pauvres filles hystériques, qui se démènent agitées par un furieux et mobile délire. Celle-là se croise les bras et lève les yeux aux ciel dans une attitude de religieuse admiration, comme si elle voyait les nuages s’entr’ouvrir pour lui montrer des saints ou des dieux. Cette autre parle à sa petite fille dont elle est éloignée depuis longtemps et à qui elle adresse les plus tendres paroles. Celle-ci voit des animaux immondes, des lézards an bec rouge, aux yeux tout sanglans, des chauves-souris énormes, et ses traits expriment une indicible horreur. 830 A obra de Richet certamente exerceu uma forte influência na fisiologia da religião que Nietzsche elabora em seus últimos escritos, principalmente no que diz respeito à interpretação dos estados mentais que são típicos das experiências religiosas como fenômenos relacionados com distúrbios neuróticos, como a histeria. A noção de histeria como doença feminina, como exagero da feminilidade, como um mal que se propaga a partir dos ovários, é, em especial, de suma importância para a leitura do cristianismo enquanto uma religião que emasculou o homem ocidental, uma religião que afeminiza, em contraste com o Islã, uma religião de homens. 831 Além disso, as observações de Richet a respeito de como as mulheres histéricas (e as crianças) têm uma propensão irresistível à 830 831 Richet, L’homme et l’intelligence, p. 285. Cf. AC § 60. A histeria como doença feminina exerce igual importância em o Caso Wagner. 259 mentira será de extrema importância para uma interpretação do cristianismo enquanto religião da falsidade, contrária a toda boa constituição intelectual; o cristão típico como inapto para a filologia, que mente pelo prazer de mentir, por instinto: a “fé” como uma forma de doença, a necessidade de falsificação como sintoma mesmo da degenerescência. Como aponta Nietzsche: A completa falta de asseio psicológico no sacerdote – que já se revela no olhar – é uma conseqüência da décadence, deve-se observar nas mulheres histéricas, e também nas crianças de compleição raquítica, com que regularidade o fingimento por instinto, o prazer de mentir por mentir, a incapacidade de olhares e passos retos é expressão da décadence. “Fé” significa não querer saber o que é verdadeiro. O pietista, o sacerdote de ambos os sexos, é falso porque é doente: seu instinto exige que em nenhum ponto a verdade obtenha seu direito. 832 Nietzsche, todavia, não vai compartilhar com a posição adotada por Richet naquilo que diz respeito à natureza não-erótica da histeria. A ligação entre as manifestações de excessiva sensualidade e a negação penitente da vontade e do mundo, bem como a relação causal entre abstinência sexual, histeria e fervor religioso está no cerne das discussões que o filósofo estabelece no aforismo 47 de Além de bem e mal 833, no qual ele empreende uma investigação da chamada neurose religiosa ou das religiöse Wesen. A leitura de dois importantes trabalhos foi determinante para essa íntima conexão que Nietzsche estabelece entre os fenômenos religiosos e a sensualidade, a saber: a obra Responsibility in mental disease, de Henry Maudsley 834 , lida por Nietzsche em tradução alemã desde 1881 durante a elaboração de Aurora development, de Francis Galton 837 836 835 , , e a obra Inquiries into human faculty and its , lida desde a primavera de 1883. 832 838 Os dois trabalhos, AC § 52. E também em GM, III § 14. 834 Cf. Maudsley, Henry. Responsibility in mental disease. New York: D. Appleton, 1874. Nessa obra, Maudsley busca estabelecer uma ligação entre religiosidade e doenças degenerativas, tais como a epilepsia, argumentando que é tarefa da futura psicologia indutiva, examinar “how many supposed revelations of the supernatural, and how many theological beliefs founded on such revelations, have been the results of deranged nervous function” (p. 243). Sobre a importância de Maudsley na fisiologia da religião de Nietzsche, cf. Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 145. Maudsley também é autor do livro Natural causes and supernatural seemings. London: Kegan Paul, Trench & Co, 1886. 835 Cf. Maudsley, Henry. Die Zurechnungsfahigkeit der Geisteskranken. (BN) Leipzig: F. A. Brockhaus 1875. 836 Cf. Sommer, “Beiträge zur Quellenforschung”. 837 Cf. Galton, Francis. Inquiries into human faculty and its development. (BN) London: Macmillan and Co., 1883. 833 260 sobretudo o de Francis Galton, exerceram forte influência na elaboração de Genealogia da moral e Além de bem e mal. Ambas as obras encontram-se conservadas na Biblioteca Nietzsche (no caso da obra de Maudsley, a tradução alemã). 839 Galton, em particular, forneceu a Nietzsche as três prescrições dietéticas que tornam o santo possível como diz o filósofo no aforismo 47 de Além de bem e mal, a saber: solidão, jejum e abstinência sexual. De acordo com Galton, as fases de extrema piedade, de êxtase religioso e de extremo vício, que tão rapidamente se sucedem entre os epilépticos, são acompanhas por condições orgânicas mórbidas, em primeiro lugar, por “disorders of the sexual organization”, de forma mais direta, pelo celibato. É deste modo que: “The encouragement of celibacy by the fervent leaders of most creeds, utilises in an unconscious way the morbid connection between an over-restraint of the sexual desires and impulses towards extreme devotion”. 840 Outro aspecto marcante dessas oscilações emotivas observadas entre os sujeitos insanos e epilépticos consiste nas visões estranhas acerca de sua própria individualidade, na ilusão de que seu corpo não lhes pertence ou de que ele foi tomado por uma força estranha. Esse aspecto está intimamente associado, segundo Galton, com os distúrbios do sistema digestivo, dessa maneira, “in many religions fasting has been used as an agent for detaching the thoughts from the body and for inducing ecstasy”. 841 Outra peculiaridade quase universal da loucura em geral é a tendência à segregação. 842 Segundo Galton, os hábitos sociais possuem uma forte influência curativa nas doenças mentais, daí a necessidade de que se promovam festas nos asilos 838 843 : “On the other hand, Nietzsche, não tão familiarizado com o idioma inglês, recorreu a diferentes expedientes, dado o seu interesse pela obra de Galton, para se aproximar de seu conteúdo (cf. Haase, Marie-Luise, „Friedrich Nietzsche liest Francis Galton“. In: Nietzsche Studien, Band 18, Berlin : Walter de Gruyter, 1989). 839 Cf. Campioni, Nietzsches persönliche Bibliothek (BN). E também, Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 142. 840 Galton, Inquiries into human faculty, p. 67. 841 Ibidem. 842 A necessidade de isolamento é natural entre os doentes mentais, segundo Féré, por conta de sua hiperexcitabilidade. 843 Devido ao fenômeno da sugestão mental a que estão submetidos os sujeitos degenerados, Féré defende a abolição dos hospícios e propõe como alternativa o tratamento familiar sob condições específicas, entre elas, a de que os degenerados não fiquem sob os cuidados da própria família (por conta de sua também provável degenerescência), mas de famílias voluntárias em comunidades especializadas (algo muito próximo do tratamento que o príncipe Míchkin, de Dostoiévski, recebeu antes do início da ação que se desenrola no romance O idiota). Cf. o capítulo XV, “Le traitement de la criminalité” e o capítulo XVI, “Le patronage familial des aliénés”, de Dégénéréscence et criminalité, e, principalmente, Féré, Charles. Le traitement des aliénés dans les familles. Paris: Félix Alcan, 1905. 261 the great teachers of all creeds have made seclusion a prominent religious exercise”. 844 Deste modo, o fenômeno que tanto despertou a curiosidade dos filósofos como diz Nietzsche em Além de bem e mal (com isso ele se refere muito mais a Schopenhauer do que a qualquer outro), ou seja, a existência do santo, a possibilidade da negação da vontade, esse aparente milagre da súbita sucessão de estados da alma julgados como moralmente opostos, entre “a volúpia mais repentina e extravagante” e a “convulsão de penitência e negação do mundo” 845 , tem sido, na verdade, sistematicamente produzido pela Igreja e seus métodos de salvação e redenção que têm como verdadeiro alvo tornar os homens doentes 846: “In short, by enforcing celibacy, fasting, and solitude, they have done their best towards making men mad, and they have always largely succeeded in inducing morbid mental conditions among their followers.”847 É, portanto, ainda sob a influência marcante de Richet, Maudsley e Galton, que Nietzsche fará, no fragmento póstumo 10 [51] do outono de 1887, incluído no antigo esboço da “vontade de poder”, isto é, antes que o projeto de uma psicologia do redentor começasse a tomar uma forma mais precisa, uma espécie de primeiro diagnóstico do tipo de Jesus como um santo histérico vulgar, da mesma categoria de um São Francisco de Assis ou de um São Francisco de Paula: “Os grandes eróticos do ideal, os santos da sensualidade transfigurada e mal-entendida, os apóstolos do ‘amor’”. 848 Segundo Nietzsche, a impulsão sexual nesses santos se confunde e se extravia de tal forma que “Deus”, “homem” e “natureza” passam a ser tomados como únicos e verdadeiros objetos de “amor”. A própria “unio mystica” desses santos histéricos com seu objeto de veneração nada mais é do que um orgasmo em seu funcionamento propriamente fisiológico: “Essa satisfação mesma não é apenas aparente: ela se efetua entre os extáticos da ‘unio mystica’, por mais independente que isso possa ser de sua vontade e de seu ‘entendimento’, não sem os sintomas fisiológicos concomitantes à satisfação sexual mais sensual e mais conforme a natureza.” 849 E no fragmento 10 [86] do outono de 1887, Nietzsche também afirma a respeito de Jesus: “terno, 844 Galton, Inquiries into human faculty, p. 68. BM § 47. 846 Cf. AC § 51. 847 Galton, Inquiries into human faculty, p. 68. 848 FP (180) 10 [51] do outono de 1887. 849 Ibidem. 845 262 infantil, devotado, femininamente amoroso e tímido: o charme da pré-sensualidade virginal e entusiasta – pois a castidade não é mais do que uma forma de sensualidade (– sua forma pré-existente)”. 850 Todavia, com os resultados obtidos pela leitura conjunta de Wellhausen, Féré, Tolstói, Dostoiévski e Renan, Nietzsche altera seu diagnóstico, visto que, embora idiotas e histéricos sejam membros de uma mesma família, os neuropatas, seus condicionamentos fisiológicos não se equivalem, sobretudo, naquilo que diz respeito à sensualidade. Dificilmente o Jesus idiota de O Anticristo poderia ser tido como um apóstolo do “amor”, ou seja, um histérico cuja sensualidade se transfigura em devoção religiosa. Não obstante, o aspecto infantil de Jesus vai exercer uma grande importância na compreensão de seu condicionamento fisiológico. Em um fragmento posterior, o 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888 (já com as leituras de Féré, Wellhausen, Tolstói e Dostoiévski efetuadas), Nietzsche vai dar um parecer bem mais próximo de seu diagnóstico posterior ao afirmar que Jesus foi um “neurótico, epiléptico e visionário”, ora, a epilepsia, segundo a literatura médica do final do século XIX, é uma neurose muito mais próxima da idiotia do que a histeria. Em seu diagnóstico final, portanto, Nietzsche vai continuar considerando Jesus como membro da família neuropata, porém, o que vai se alterar em sua interpretação é a gravidade da degenerescência do Nazareno. Mas isso quanto a Jesus, os santos de modo geral vão continuar sendo interpretados fisio-psicologicamente, quase que indistintamente, como neuróticos, histéricos, epilépticos, loucos, visionários ou mesmo idiotas ou, em casos ainda mais graves, como cretinos morais. O cristianismo primitivo em si, o mundo da Palestina do primeiro século, é um mundo degenerado, povoado pelas espécies que Féré considera como os verdadeiros abortos da civilização: “Os potencialmente antisociais, o doente mental, o pessimista: as três formas típicas da décadence. O cristianismo enquanto religião da décadence brotou sobre um solo no qual formigava essas três espécies de degenerados”. 851 No fragmento póstumo 14 [57] da primavera de 1888, intitulado “Sobre a psicologia de São Paulo”, em que Nietzsche discute a falácia da prova da eficácia, ou seja, a convicção de que um pensamento é provado por seus efeitos (falácia na qual a doutrina de Paulo se sustenta), o 850 851 FP (206) 10 [86] do outono de 1887. FP 11 [362] de novembro de 1887 a março de 1888. O fragmento vem acompanhado pela sigla NB. 263 santo é tido como um décadent incapaz de compreender o funcionamento de seu próprio corpo. Por conta de seu esgotamento, esses santos interpretam o súbito aumento de força que uma idéia, que um afeto poderoso, que uma representação mental exagerada ocasiona (fenômeno este condicionado por sua irritabilidade mórbida), como sendo causado por uma força estranha, superior. Como esse aumento de força provoca sentimentos agradáveis, provoca prazer, esse afeto ou pensamento é tido pelo santo como algo provado, verdadeiro, e a força superior que o provocou como algo existente e diferente dele mesmo: porque tais santos, sendo esgotados, consideram-se incapazes de possuir tamanha força. Como diz Nietzsche: Sempre que um pensamento desperta um súbito sentimento de poder em seu autor, é atribuído valor a esse pensamento – e como não se sabe honrar um pensamento de outra forma que não seja chamando-o de verdadeiro, a primeira qualidade que se lhe concede quando se quer honrá-lo é de ser verdadeiro... De que outra forma ele poderia agir? Ele é imaginado por algum poder: se ele não fosse real, não poderia ter efeito... Ele é considerado como inspiração: o efeito que ele produz é algo que subjuga como uma influência demoníaca – 852 Assim sendo, uma representação mental intensa, ocasionada por uma hiperexcitabilidade, que os santos (incluindo Paulo, que é a principal figura aqui analisada) não conseguem opor resistência por conta de seu esgotamento, é tida como verdadeira. O esgotamento como critério de valor: “Um pensamento ao qual um tal décadent não sabe resistir, ao qual ele cede inteiramente, é ‘provado’ como verdadeiro!!!” 853 Em um mundo assim, a palavra “espírito” não faz sentido, tudo é falseado, a arte de ler bem não existe, a noção de causalidade natural é ignorado e em seu lugar uma interpretação imaginária do funcionamento do corpo passa a ser tida com a única possível: “Todos esses santos epilépticos e visionários não possuem um milésimo dessa probidade na autocrítica com a qual um filólogo de hoje em dia lê um texto ou examina a realidade de um acontecimento”. 854 Frente à probidade intelectual do espírito livre, esse completo desconhecimento do funcionamento efetivo do corpo que esses santos exibem só pode ser tido como sintoma de 852 FP 14 [57] da primavera de 1888. Ibidem. 854 Ibidem. 853 264 um dos mais graves graus que a degenerescência hereditária progressiva pode atingir, a saber, o cretinismo: “Eles são, comparados a nós, crétins morais...” 855 No célebre fragmento póstumo 14 [89] da primavera de 1889, “Os dois tipos: Dionísio e o Crucificado”, Nietzsche atenta para a necessidade de se verificar se o típico homem religioso é décadent. Seu parecer final é, ao que tudo indica, negativo, pois a religiosidade do homem pagão brota da superabundância de forças e afirma a vida. Porém, “os grandes inovadores [da décadence] são, ao todo e em particular, doentios e epilépticos”. 856 No fragmento seguinte, o 14 [90] da primavera de 1889, “A falsidade fisiológica no quadro de Rafael”, Nietzsche chama Jesus de “anêmico santo de Nazaré”, o que deixa claro que o filósofo atribui ao redentor um aspecto fisiologicamente décadent, além de argumentar que um tal tipo não poderia exercer qualquer atração sobre uma natureza verdadeiramente bem constituída, pois, como demonstrou Féré, a degenerescência tem o poder de atrair a degenerescência e não a força. A falsidade fisiológica no quadro de Rafael 857 está justamento no fato de que uma natureza feliz, bem lograda, com êxito, possa se ocupar com um tipo tal como Jesus: “Uma mulher com secreção normal não tem necessidade de redenção”. 858 No fragmento póstumo 14 [182] da primavera de 1888, Nietzsche volta a se referir ao encanto que a figura do santo exerce nos sujeitos fracos, aproximando-o do “gênio” e do “criminoso”: “O tolo [Narr] e o santo – os dois tipos humanos mais interessantes... em estreito parentesco o ‘gênio’ e os grandes ‘aventureiros e criminosos’; os doentes e fracos 855 Ibidem. Cretinismo moral aqui, não se refere provavelmente a Paulo, que, ao que parece, Nietzsche considera muito mais como um simples epiléptico e como um gênio (sendo que a literatura médica do século XIX também considera o gênio como um degenerado), mas se refere possivelmente somente ao grau de degenerescência que a santidade em geral pode vir a alcançar. 856 FP 14 [89] da primavera de 1888. 857 Provavelmente ainda a pintura Trasfiguração, já discutida em NT § 4. 858 Para Nietzsche, o tema (aparentemente cristão) do quadro não é argumento contra a boa constituição de Rafael, mas sim ao contrário. Cf. CI, Incursões de um extemporâneo § 4, em que Nietzsche, em perfeita consonância com os resultados obtidos por Féré, argumenta que o forte enriquece, transforma, transfigura as coisas até espelharem seu poder, do mesmo modo que a décadence torna o mundo feio. “On peut dire que les individus bien portants, offrant une tension potentielle maxima, sont sans cesse en mesure d'ajouter une partie d'eux-mêmes atout ce qu'il s'agit d'apprécier ; tandis que les dégénérés, affaiblis autant au point de vue physique qu'au point de vue psychique, sont toujours en déficit en quelque sorte, ils ne peuvent qu'emprunter, et apprécient tout au-dessous de sa valeur” (Féré, Sensation et mouvement, p. 143). 265 tinham a fascinação por si, eles são mais interessantes do que os saudáveis”. 859 O fascínio pela figura do santo diz respeito também, para Nietzsche, ao mistério em torno da demonstração súbita e inesperada de poder que ela às vezes exibe. No fragmento póstumo 14 [68] da primavera de 1888, intitulado justamente “A religião como décadence: os malentendidos mais perigosos”, Nietzsche analisa a real causa do êxtase religioso experimentado pelos homens santos e como essa demonstração de poder ocasionada pelo esgotamento foi confundida com uma riqueza de vida, seduzindo o homem para a degradação e debilitamente do próprio corpo. De início, o filósofo aponta para as causas do esgotamento, apresentadas por Féré em Dégénéréscence et criminalité, e como esse esgotamento condiciona a maneira pela qual o indivíduo enxerga o mundo e confere valor à vida: “Existe uma noção que aparentemente não autoriza nenhuma confusão, nenhum equívoco: aquela do esgotamento. Este pode ser adquirido; pode ser herdado: em todos os casos, ele modifica o aspecto das coisas, o valor das coisas...” 860 Essa perspectiva de vida é contrária a uma outra possibilidade de se interpretar as coisas, um olhar brotado diretamente da abundância de força e saúde: “Em oposição àquele que dá involuntariamente às coisas um pouco da plenitude que ele encarna e sente, a visão mais plena, mais poderosa, mais rica do futuro – àquele que, em todo caso, sabe dar, o esgotado míngua e desfigura tudo aquilo que ele vê, ele empobrece o valor: ele é nocivo...” 861 Essas duas realidades são diametralmente opostas, representam formas diferentes de vida e resultam em valorações antagônicas, não obstante, ocorre que muitas vezes essas duas formas de vida podem manifestar fenômenos aparentemente idênticos e serem confundidas uma com a outra: “Sobre esse ponto [a diferença entre as duas formas de vida], não há erro possível: contudo, a história contém esse impressionante fato de que os esgotados sempre foram confundidos com os mais ricos, – e os mais ricos com os mais nocivos. O pobre em vida, o fraco, empobrece ainda a vida: o rico em vida, o forte, a enriquece... Como é possível confundí-los?” 862 É sobretudo no fenômeno da descarga de energia a que são 859 FP 14 [182] da primavera de 1888. As aspas nas palavras “gênio”, “aventureiros” e “criminosos”, talvez seja um indicativo de que, para Nietzsche, há também gênios, aventureiros e criminosos fortes. 860 FP 14 [68] da primavera de 1888. 861 Ibidem. Como visto, a noção de “nocivo” adquire uma grande importância em Dégénéréscence et criminalité. 862 Ibidem. 266 suscetíveis os degenerados, que a confusão entre o esgotamento e a plenitude se faz possível: “Quando o esgotado atua com os gestos da mais elevada atividade e energia: quando a degenerescência provoca nele um excesso de descarga intelectual ou nervosa, então, sempre se lhe confundiu com o rico... Ele suscitou o temor...” 863 Como já visto, as experiências descritas por Féré em Sensation et mouvement mostraram que a hiperexcitabilidade dos sujeitos degenerados os torna especialmente vulneráveis às excitações externas. Os estímulos externos exigem uma resposta; as representações mentais (sensações, emoções e afetos) produzidas pela excitação elevam a energia do sujeito a fim de que uma resistência ao estímulo seja imposta; quanto mais esgotado for um sujeito, maior sua irritabilidade e mais exagerada será sua recepção das excitações externas, que serão traduzidas em representações mentais igualmente veementes, produzindo uma resposta desproporcional à excitação, uma verdadeira descarga da (pouca) energia disponível. Os estados epileptóides, a embriaguez, o transe, o êxtase, que os sujeitos degenerados experienciam nada mais são do que manifestações dessa descarga de energia potencial, uma conseqüência, na verdade, de seu esgotamento. Esses estados extáticos são frutos da fraqueza, sintomas de uma doença nervosa, embora tenham sido vistos como manifestação de um poder sobre-humano e divino. Foi desse modo que se originou o culto ao doente mental, ao santo, ao louco, ao tolo: não por conta de sua doença, mas sim pela estranha e supostamente inesperada demonstração de poder que ela acaba proporcionando; o que passou a ser almejado não foi a fraqueza do santo, mas aquele poder, aquela riqueza “divina”: “O culto do tolo [Narren] foi sempre o culto do rico-em-vida, do poderoso; o fanático, o possesso, o epiléptico religioso, todos os excêntricos foram sempre sentidos como os tipos mais elevados do poder: como divinos”. 864 Foi assim que o louco se tornou o líder espiritual por excelência; que ele, fraco, pôde elevar-se ao ápice da hierarquia social 865 , que sua figura pôde despertar autoridade: “esse tipo de força que suscita o medo passou antes de tudo por divino: é lá que a autoridade tem sua fonte, que se interpretou, se ouviu, 863 Ibidem. Ibidem. 865 Cf. nesse sentido, o clássico estudo de Lewis, Ioan M. Êxtase religioso: Um estudo antropológico da possessão por espírito e do xamanismo. São Paulo: Perspectiva, 1977. Em especial, para a importância do êxtase como veículo de ascenção social dos mais discriminados em uma sociedade: pobres, mulheres, doentes mentais, etc. 864 267 se procurou a sabedoria...” 866 Tendo o santo, o sacerdote, o asceta, o anacoreta, etc., como tipo mais elevado, como repositório e veículo de um poder misterioso, transcendente, divino, busca-se então imitá-lo, almeja-se possuir o seu poder, em linguagem fisiológica, procura-se ficar doente tal como eles, estabelecer como alvo o debilitamento do próprio corpo, tornar-se o mais degenerado possível, para desfrutar de um poder “divino”. Como diz Nietzsche: É a partir disso, que se desenvolve, quase em todo lugar, uma vontade de “divinização”, ou seja, de degenerescência típica de espírito, do corpo e dos nervos: uma tentativa que visa encontrar a via dessa mais elevada forma de ser tornar-se doente, tornar-se louco [toll]: provocar os sintomas da ruína – isso quer dizer se tornar mais forte, mais sobre-humano, mais terrível, mais sábio 867 Para Nietzsche, o culto do tolo, do louco, do doente mental, só foi possível pela experiência da embriaguez que o fenômeno da induction psycho-motrice ocasiona entre os sujeitos hiperexcitados. Todo elevação extraordinária de poder, produz a embriaguez; por mais que a embriaguez dos neurastênicos seja real, ela é, de certo modo, como que ilegítima: ela só é alcançada por uma espécie de atalho, de subterfúgio; o corpo do sujeito degenerado não apresenta reais condições de suportá-la, por isso, seu estado degenerado só se agrava ainda mais quando a experimenta. Como esclarece Nietzsche: que se tenha tomado o tolo [Narren] por qualquer coisa de além do humano que se tenha acreditado em forças terríveis agindo sob os doentes nervosos e epilépticos Aqui, o que induziu ao erro, foi a experiência da embriaguez [Rausches]... Esta aumenta ao ponto mais alto o sentimento de poder em consequência, por um julgamento ingênuo, o poder – esse era o estado mais embriagado, o “extático”, que deveria se encontrado no mais alto grau de poder 868 O grande problema apontado por Nietzsche é o fato de que o êxtase religioso (da décadence) é uma embriaguez que não resulta de um acúmulo de poder, de uma plenitude 866 Ibidem. Ibidem. 868 Ibidem. 867 268 de vida: “há dois pontos de partida para a embriaguez: uma plenitude desmesurada de vida e um estado de alimentação doentia do cérebro”. 869 Portanto, para Nietzsche, a superabundância de poder que um tipo mais elevado de homem pode alcançar, também vai produzir a embriaguez. A diferença é que a embriaguez do homem forte não é uma descarga, um desperdício das últimas reservas de energia, mas sim uma extravagância, uma magnificência, uma ostentação de poder, que, naturalmente, não trará como conseqüência nenhum esgotamento. O mal-entendido acerca da realidade fisiológica deste fenômeno trouxe conseqüências extremamente deletérias para a superação da vida: “Nada se fez pagar mais caro do que a confusão no domínio da fisiologia”. 870 No fragmento póstumo 14 [124] da primavera de 1888, Nietzsche vai defender que essa confusão está na base da própria origem da religião. Segundo o filósofo, o homem sempre tendeu a interpretar todos os estados estranhos, “incompreensíveis”, de extrema exaltação, como uma espécie de encantamento produzido por uma entidade pessoal superior, transcendente, como efeito de uma vontade estranha: É assim que o cristão, o tipo mais ingênuo de homem e o mais atrasado de nossos dias, atribui a esperança, a calma, o sentimento de “redenção/libertação” [“Erlösung”], a uma inspiração psicológica que procede de Deus: nele, tipo essencialmente sofredor e inquieto, é normal que os sentimentos de felicidade, elevação e paz apareçam como o estrangeiro [das Fremde], aquilo que tem necessidade de ser explicado. 871 O sentimento de prazer, calma, felicidade e relaxamento que o êxtase, que a descarga de energia, provoca no homem degenerado, a “cura” (salvação) do sofrimento causado pelo seu estado de esgotamento, a “libertação” (redenção) da dor a que ele se encontra submetido devido a sua hiperexcitabilidade, é para ele algo tão estranho, tão desconhecido, tão inesperado, que ele só pode vir a entender tal fenômeno como efeito de um poder intencional alheio a ele mesmo, de uma outra vontade pessoal. Um estado é associado a uma pessoa, ou ainda, para que um tal estado tenha efeito, ele é personificado como causa. A lógica dessa psicologia se reduz, de acordo com Nietzsche, ao fato de que o 869 Ibidem. Ibidem. Sobre as conseqüências da confusão dos dois tipos de embriaguez no campo estético, cf. FP 14 [119] da primavera de 1888. 871 FP 14 [124] da primavera de 1888. 870 269 sentimento súbito e inesperado de poder suscita no homem a dúvida sobre a sua personalidade: “ele não ousa se conceber como causa desse sentimento surpreendente – é por isso que ele recorre a uma personalidade mais forte, a uma divindade, como causa”. A origem da religião, de Deus, se encontra, portanto, segundo essa perspectiva, em uma “altération de la personnalité” 872: Em suma: a origem da religião reside no sentimento extremo de poder, que surpreende o homem como o estrangeiro: é, como o doente que, sentindo um de seus membros pesado e esquisito, deduz que um outro homem está deitado sobre ele, o homo religiosus, ingênuo, se decompõe em várias pessoas. A religião é um caso de “altération de la personnalité”. Uma espécie de sentimento de medo e pavor de si mesmo... Mas também um sentimento extraordinário de felicidade e elevação... nos doentes, o sentimento de saúde basta para acreditar em Deus, na proximidade de Deus 873 Na seção 49 de O Anticristo, Nietzsche realiza uma psicologia do sacerdote com base na guerra que este último precisa travar contra a ciência, contra a “sadia noção de causa e efeito”, a fim de garantir o seu poder, a fim de impedir que o homem, ao entender o verdadeiro funcionamento de seu organismo, possa vir a se desligar dele. A noção de “pecado” é inventada como instrumento capaz de ocultar do homem a verdadeira causalidade de seu sofrimento, isto é, seu debilitamento fisiológico: “Fora com os médicos! Um salvador [Heiland] é necessário.” 874 A redenção dos pecados, a penitência, a salvação, o alívio que a Igreja oferece tem como fundamento real, fisiológico, uma descarga de energia, de afetos, dos nervos, que na verdade é condicionada pela corrupção fisiológica que a Igreja mesma promove: “– As noções de culpa e castigo, incluindo a doutrina da ‘graça’, da ‘redenção’, do ‘perdão’ – mentiras ao fim e ao cabo, sem nenhuma realidade 872 Segundo Moore, o conceito de “altération de la personnalité” foi encontrado por Nietzsche na obra Le cerveau et l’activité cérébrale, de Alexander Herzen. Cf. Moore, Nietzsche, biology and metaphor, p. 147. E ver: Herzen, Alexandre. Le cerveau et l'activité cérébrale au point de vue psycho-physiologique. Paris: Libraire J.-b. Baillière et Fils, 1887, “Troisième partie”, “Conscience er personnalité”, pp. 197-310. 873 FP 14 [124] da primavera de 1888. A origem da religião como um caso de “altération de la personnalité” também é discutida no fragmento póstumo seguinte, “Psicologia rudimentar do homem religioso”: “O cristão igualmente decompôs sua personalidade em uma mesquinha e pobre ficção que ele nomeia ‘homem’, e uma outra que ele nomeia Deus (redentor, salvador). A religião rebaixou a idéia de ‘homem’; sua conseqüência extrema é que tudo aquilo que é bom, grande e verdadeiro é sobrehumano e somente concedido pela graça” (FP 14 [125] da primavera de 1888). 874 AC § 49. 270 psicológica, – foram inventadas para destruir o sentido causal do homem: são um atentado contra a noção de causa e efeito!” 875 O pecado nada mais é do que doença; a culpa, o sofrimento; o castigo, a dor; a redenção, o alívio dos sintomas, a “cura”. Essa psicologia da doutrina da “culpa” e da “redenção” cristã como sendo assentada em estados mórbidos, começa a adquirir seus contornos mais definitivos no fragmento póstumo 14 [155] da primavera de 1888. Para Nietzsche, o remorso em si já é um sintoma de retrocesso fisiológico: “Não ser capaz de lidar com uma experiência vivida, já é um sinal de décadence.” 876 Essa auto-mortificação na reabertura de novas feridas não irá resultar em nenhuma “salvação/cura da alma” [„Heil der Seele“], mas sim numa nova doença da alma. As experiências de “cura”, de salvação que a Igreja oferece, são, na verdade, modificações de sintomas 877 , são estados que nada mais representam do que outros sintomas de uma mesma enfermidade, o sinal mesmo de que essa enfermidade atingiu um grau alarmante, variações de crises epilépticas. Como sustenta Nietzsche: Os “estados de redenção” [Erlösungs-Zustände] no cristianismo não são mais do que modificações de um só e mesmo estado doentio, – interpretações da crise epiléptica por uma fórmula particular que não é dada pela ciência, mas pela loucura [Wahn] religiosa é-se bom de uma maneira doentia, quando se é doente... nós contamos agora a maior parte do aparelho psicológico com o qual o cristianismo trabalhou entre o número de formas de histeria e epilepsia [Epilepsoidis] Como já foi mostrado, os sujeitos hiperexcitados, de acordo com Féré, são tão vulneráveis às excitações externas que são obrigados a consumir constantemente e de forma desproporcional um grande grau de energia a fim de apresentarem uma resistência desmedida aos estímulos mais fracos, esse fenômeno leva à exaustão de forças e ao agravamento de seu esgotamento. Como o aumento de forças é aquilo que produz prazer, bem como a diminuição da dor e do sofrimento, os degenerados sentem necessidade de encontrar estímulos cada vez mais fortes (afetos, sentimentos, emoções intensas, por exemplo), a fim de obrigar o próprio organismo a consumir toda a energia disponível de 875 Ibidem. FP 14 [155] da primavera de 1888. 877 Cf. Ibidem. 876 271 uma só vez para proporcionar um aumento de força, uma sensação de poder, de prazer, por meio de uma descarga, capaz de provocar estados da mais alta exaltação mental, todavia, essa descarga e esses estados de exaltação são logo acompanhados por um esgotamento profundo, que provoca estados depressivos profundos. Não obstante, Nietzsche chama atenção para o fato de que, antes que o sujeito seja assaltado por esses estados de depressão profunda, ele obtém com a descarga não só estados de exaltação, mas também, imediatamente após o seu término, um relaxamento, uma sonolência, um alívio, uma calma, uma paz. Afinal, com o esgotamento total de energia, as excitações externas não podem mais provocar nenhum efeito no sujeito, já que não há energia disponível para oferecer qualquer resposta que seja aos estímulos; as sensações cessam, a dor e o sofrimento, portanto, cessam, pelo menos até que o sujeito recobre a pouca energia que o seu organismo ainda for capaz de produzir, o que vai dar início a um novo ciclo da crise nervosa. 878 A salvação e a redenção cristã dizem respeito a esses dois estados da crise nervosa, a exaltação e o relaxamento (os estados anestésicos, que Richet aponta como um dos três sintomas característicos da histeria grave). No fragmento póstumo 14 [179] da primavera de 1888, intitulado “Da prática cristã”, Nietzsche observa como as noções de “pecado” e “culpa” são má-interpretações de conseqüências de um estado como sendo as causas desse estado. Por exemplo, uma obra bem sucedida é acompanhada de bom humor, assim, o bom humor acaba sendo interpretado como sendo causado pela obra, quando, na realidade, o sucesso da empreitada se deve aquilo que causou o bom humor, a saber, “uma feliz coordenação de forças e sistemas fisiológicos”. 879 Já uma empresa mal sucedida é acompanhada de preocupações, de autocríticas, dessa forma, essas autocríticas, esses escrúpulos resultam em um mal-estar, um sofrimento, que acaba sendo interpretado como conseqüência do “pecado”, na realidade, o pecado nada mais é do que uma má disposição 878 Esse aspecto que Nietzsche destaca nos estados epileptóides não chega a contradizer os estudos de Féré, sobretudo quando levamos em consideração outros trabalhos realizados pelo médico. 879 “Si l’influence du physique sur le moral est certain, celle du moral sur le physique ne l'est pas moins, diton ; en réalité les deux ordres de phénomènes ne sont pas dépendants l'un de l'autre, ils sont connexes. On a souvent remarqué que les sujets qui à la suite de chocs chirurgicaux, ou clans le cours de maladies graves, ont conservé un ‘bon moral’, guérissent mieux que les autres: ils guéris, sent mieux parce qu'ils sont moins malades, la supériorité de leur état dynamique est prouvée précisément par leur bonne humeur” (Féré, Charles. Sensation et mouvement, p. 143). Comparar com EH, Por que sou tão sábio § 2: “Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio”. 272 fisiológica que ocasionou o fracasso da obra e esse mal-estar, essa “culpa”. Porém, muitas vezes, logo após um esgotamento profundo, uma prostração profunda, ocorre um alívio desse mal-estar. É daí que decorre, segundo Nietzsche, toda uma prática elaborada pela Igreja que visa produzir sentimentos de pecados. Para preparar esses sentimentos de contrições, a idéia fixa do “pecado”, basta promover o debilitamento do corpo, a fraqueza dos nervos – a mortificação da carne. Logo em seguida, “oferece-se” o alívio, a “cura”, a “salvação” para esse sofrimento, para esse “pecado”, ou seja, os estados de “redenção”, de “liberdade”, fisiologiamente falando, a crise nervosa seguida dos estados anestésicos, de entorpecimento, que na verdade são condicionados pelo debilitamento do corpo, não passando de sintomas do agravamento da degenerescência fisiológica. Como declara Nietzsche: Os maus-tratos do corpo criam o terreno para a série de “sentimentos de culpa” [„Schuldgefühle“]... ou seja, um sofrimento geral que será explicado... Por outro lado, os métodos de “redenção” [die Methodik der „Erlösung“] resultam das mesmas causas: têm-se provocado por orações, por movimentos, por gestos, por juramentos, um transbordamento de sentimentos, – segue-se um esgotamento, geralmente brutal, geralmente com formas epilépticas. E, por trás do estado de profunda sonolência, aparece o clarão da cura – em termos religiosos: da “redenção” 880 Para Nietzsche, toda essa doutrina cristã da “culpa” e da “redenção” necessita de um terreno propício para dar frutos, de uma degenerescência fisiológica que também está relacionada intimamente com um debilitamento psíquico. Como já mostrado, segundo Féré, a hiperexcitabilidade vem acompanhada por um desregulamento das funções orgânicas nutritivas da vida vegetativa controladas pelo sistema nervoso simpático, por uma morbidez dos estados do nervus sympathicus como prefere Nietzsche; essa desordem fisiológica, por sua vez, está diretamente relacionada com problemas de ordem psíquica, com uma vesânia que se caracteriza pela alternância entre estados de exaltação e de depressão, a saber, com a chamada folie circulaire. A redenção cristã tem como alvo intensificar os processos vitais e acelerar a atividade cerebral até o paroxismo, a fim de provocar estados de exaltação e de tonificação fugazes por meio dos fenômenos da induction psycho-motrice e da sugestão 880 FP 14 [179] da primavera de 1888. 273 mental, fenômenos estes que o agravamento de uma sensibilidade doentia tem o poder de exagerar. Por outro lado, a eficiência dos métodos de penitência que a igreja oferece é condicionada pela diminuição dos processos vitais e pela queda das funções psíquicas, fenômeno que se agrava após os estados de paroxismo. Essa peculiaridade que caracteriza a realidade psíquica, o “mundo interior”, do homem cristão, é uma enfermidade mental que Nietzsche diagnostica como um caso de monomania, que assume uma forma circular tal como as observações de Féré demonstraram. Como declara Nietzsche no fragmento póstumo 14 [172] da primavera de 1888, em que ele nomeia diretamente Féré como sua fonte, indicando o número da página em que o conceito folie circulaire aparece na obra do médico francês (embora o filósófo não forneça o título da obra em questão, trata-se de Sensation et mouvement): “A monomania religiosa aparece habitualmente sob a forma da folie circulaire, com dois estados contraditórios, aquele da depressão e aquela da tonicidade. Féré, p. 123”. 881 Em Sensation et mouvement, Féré observa que os sujeitos acomentidos pela folie circulaire encontram-se submetidos a dois estados distintos, a saber, o de depressão melancólica e o de excitação maníaca, ambos os estados estão relacionados com mudanças da sensibilidade, da mobilidade e da nutrição, manifestando-se sob a influência das excitações periféricas. A melancolia, por exemplo, inicia-se por um estado geral de malestar, desgosto e medo, acompanhado por uma redução das funções nutritivas, das secreções e das funções gastrointestinais, por um comprometimento das funções reprodutivas, da respiração e da circulação, resultando em perda de apetite, prisão de ventre, etc. O acesso maníaco, por outro lado, caracteriza-se por uma exaltação das funções psíquicas, pela exuberância de idéias, por uma fisionomia animada, por um olhar vidrado e apaixonado, por gestos e olhares inquietos, pelo aumento da força muscular, por uma resistência maior às excitações ordinariamente dolorosas, por uma aceleração da circulação e da respiração, por um aumento das secreções, da saliva, etc. De acordo com Féré: “Cette corrélation entre l’état somatique et l’état psychique est surtout saisissante chez les individus atteints de formes atténuées de folie circulaire et qui sont sujets à des périodes 881 FP 14 [172] da primavera de 1888. 274 alternantes de dépression et d'excitation.” 882 Para Nietzsche, a folie circulaire é a enfermidade psíquica que explica a realidade fisio-psicológica dos estados de redenção que o homem religioso décadent busca a todo custo alcançar. Como bem indica o fragmento póstumo 14 [181] da primavera de 1888, preparatório da seção 51 de O Anticristo : O homem religioso como tipo da décadence os estados religiosos em seu parentesco com a insanidade [Irrsinn], com a neurastenia o momento em que a crise religiosa toma conta de um povo – histórico – a imaginação do homem religioso, imaginação do enervado e hiperexcitado [Entnervten und Überreizten] a “nervosidade moral” do cristão. Nós temos agora a tarefa de apresentar o difícil, não só para nós, e ambíguo fenômeno do cristianismo. Todo o training cristão da penitência e da redenção [Buß- und Erlösungstraining] pode ser concebido como uma folie circulaire, e, como se deve, não pode aparecer senão nos indivíduos já predestinados (ou seja, de disposições mórbidas). Essa fisiologia da redenção empreendida por Nietzsche em seus últimos escritos tem sua culminância na seção 51 de O Anticristo, que faz parte da psicologia da fé oferecida pelo filósofo, iniciada na seção 50 e que se estende pelo menos até a seção 59. Essa discussão faz parte da última grande investigação da obra, iniciada na seção 47, e que tem como alvo principal o cristianismo eclesiástico inventado por Paulo. Nessa investigação, Nietzsche procura desmascarar o principal mecanismo que o “apóstolo” utilizou para alcançar o poder, a saber, a invenção de um “Deus” (como “redentor” e “salvador”) que arruína a “sabedoria do mundo”. Inicialmente, nas seções 48 e 49, Nietzsche faz uma psicologia do sacerdote, cujo grande modelo é Paulo, psicologia esta que, segundo ele, está contida inteiramente no início da Bíblia, na verdadeira declaração de guerra que o sacerdote teve que fazer contra a ciência. O que garante o poder do sacerdote é a doutrina da “culpa” e da “redenção” (a noção de que o homem, “pecador”, precisa ser “salvo” e “liberto” de seus “pecados”), para que essa doutrina possa ter efeito é necessário ensinar o homem a mal-entender o seu próprio corpo. Deste modo, Nietzsche inicia uma psicologia da fé que 882 Féré, Sensation et movement, pp. 122-123. 275 mostrará como a “sabedoria do mundo” que Paulo condenou, mais especificamente, a filologia e a medicina, representa o verdadeiro, o único grande perigo para o sacerdote porque é o que desmascara sua necessidade de falsificar a realidade para se manter no poder. A filologia irá revelar que os “livros sagrados” são uma fraude e que o cristianismo necessita da razão doente, do desasseio intelectual, da mentira, para poder proliferar; e a medicina, por sua vez, mostrará que o cristão típico é um sujeito morbidamente prédisposto, um degenerado e um esgotado, e que o cristianismo necessita, para seu completo triunfo, que o homem desconheça o funcionamento de seu próprio corpo e que se torne cada vez mais doente. Como já adiantado, a “fé” cristã se sustenta num fantasioso critério de verdade chamado “prova de força”, isto é, num falacioso silogismo que confunde um efeito como sendo uma causa, que diz: “a fé torna bem-aventurado; – portanto, ela é verdadeira”. Mas a bem-aventurança, ou melhor, o prazer é prova apenas de prazer, ele é conseqüência de um estado, não uma causa desse estado; e como poderia o prazer ser uma prova da verdade? Ora, tão somente por meio de uma total falta de retidão nas coisas do espírito que nada mais é do que uma conseqüência da décadence: “Que a fé torne bem-aventurado em certas circunstâncias, que a bem-aventurança ainda não torne uma idéia fixa numa idéia verdadeira, que a fé não desloque montanhas, mas talvez coloque montanhas onde elas não existem: acerca disso uma rápida volta num manicômio esclarece a contento.” 883 A doutrina cristã depende, pois, da degenerescência fisiológica e psíquica; a medicina, segundo Nietzsche, pode demonstrar claramente esse fato, por isso o sacerdote a rejeita: “pois ele nega por instinto que doença seja doença, que hospício seja hospício”. 884 Sem um terreno propício, sem um solo mórbido, o cristianismo não se propaga, daí a necessidade de acelerar a décadence, o retrocesso fisiológico, de produzir estados cada vez mais deploráveis: “O cristianismo necessita da doença, mais ou menos como a cultura grega necessita de uma abundância de saúde – tornar doente é a genuína intenção oculta de todo sistema de procedimentos de salvação da Igreja [Heilsprozeduren-System’s der Kirche].” 883 884 AC § 51. Ibidem. 276 885 [ἐ A própria noção de Igreja, uma corrupção da acepção original da palavra “ekklesia” ία], é um atentado à boa saúde e à boa contituição intelectual, ao bem estar do corpo e da mente; o alvo final da humanidade pensado como abrigo definitivo dos loucos: “E a Igreja mesma – não é o hospício católico como ideal derradeiro? – A própria Terra como hospício?” 886 A Igreja só precisa de um tipo de homem, ela o acolhe, o alimenta e o adestra: “– O homem religioso, tal como a Igreja o quer, é um típico décadent”. 887 A experiência religiosa familiar ao homem décadent, seus momentos de sublime comunhão com uma força “divina”, nada mais é do que um efeito natural da fraqueza dos nervos, da neurastenia, uma crise, seja individual, seja coletiva quando ocasionada pelo efeito mórbido e exagerado do fenômeno também natural da sugestão mental: “o momento em que uma crise religiosa toma o povo é sempre marcado por epidemias nervosas [NervenEpidemien]”. 888 A realidade psicológica do cristão, seu “mundo interior”, seus afetos, sentimentos, emoções, imaginação e paixão, descomedidos, são sintomas de uma mente doentia. Uma realidade psicológica que tem como causa um esgotamento, preferencialmente hereditário, associado a uma hiperexcitabilidade, a uma extrema e mórbida irritabilidade dos nervos: “o ‘mundo interior’ [die ‘innere Welt’] do homem religioso assemelha-se totalmente ao mundo interior dos hiperexcitados [Überreizten]889 e esgotados [Erschöpften]”. 890 Os estados extáticos são tidos pelo cristianismo como alvos, como momentos “sublimes”, como bem-aventurança, isto é, o agravamento de uma moléstia física e psíquica é visto como o momento em que o poder “divino” se manifesta, em que um milagre acontece: “os estados ‘supremos’, que o cristianismo ergueu sobre a humanidade como valor entre todos os valores, são formas epileptóides”. 891 O santo como tipo ideal de homem, como mais venerável, como “herói”: “– a Igreja canonizou apenas malucos [Verrückte] ou grandes embusteiros [grosse Betrüger] in majorem dei honorem...” 885 Ibidem. Ibidem. 887 Ibidem. 888 Ibidem. 889 “Superexcitados” em PCS. 890 Ibidem. 891 “Eu me pergunto se não se podem comparar todos os valores supremos da filosofia, da moral e da religião até os nossos dias com os valores dos fracos, doentes mentais e neurastênicos: eles representam, sob uma forma atenuada, os mesmos males...” (FP14 [65] da primavera de 1888). 886 277 892 Toda essa doutrina cristã se traduz fisiologicamente, de acordo com Nietzsche, como sintoma da folie circulaire, como constante alternância entre sentimentos depressivos e sentimentos exaltados, entre dor e alívio momentâneo, entre “penitência” e “redenção”, isto é, entre esgotamento, descarga de energia e alívio: “Uma vez me permiti designar todo o training cristão de penitência e redenção [Buss- und Erlösungs-training] 893 (que hoje é estudado da melhor maneira na Inglaterra) como uma folie circulaire metodicamente produzida, claro que num solo já preparado para ela, ou seja, inteiramente mórbido”. 894 A referência à Inglaterra provavelmente remete a Galton e as suas observações a respeito de como é possível, mediante certos procedimentos dietéticos, produzir as mudanças de fase características dos estados epiletóides, entre devoção piedosa e depravação sensual extremas, algo que Nietzsche também comenta na seção 21 de O Anticristo: “Idéias sombrias e excitantes acham-se em primeiro plano; os estados mais cobiçados, designados com os mais altos nomes, são epileptóides; a dieta é escolhida de modo a favorecer manifestações mórbidas e hiperexcitar os nervos [die Nerven überreizt]”. 895 Segundo Nietzsche, o esgotamento e a hiperexcitabilidade constituem o condicionamento fisiológico que determina quem está predestinado a ser cristão. A ficção do livre arbítrio se encontra totalmente excluída da esfera da medicina 896 , um doente não pode se furtar de nutrir um olhar pessimista sobre as coisas, ninguém decide se tornar cristão; um tipo bem constituído não poderia simplesmente escolher a negação da vida 897 , não poderia decidir ser um cristão: o cristianismo como uma condição, como uma realidade fisio-psicológica mesma. O que determina o ser cristão [Christ-sein] 898 é o estado de debilitamento do corpo: “Ninguém é livre para tornar-se cristão: não se é ‘convertido’ ao cristianismo – é preciso ser doente o bastante para isso...” 899 O cristianismo representa um perigo incomensurável para a superação da vida porque ele seduz o homem para a ruína, porque ele estabeleceu a 892 Ibidem. “Salvação” em PCS. 894 Ibidem. 895 AC § 21. “Superestimular os nervos”, em PCS. 896 Uma tese que tem extrema importância para as teorias de Féré, ver a seção “Considerações finais: redenção para o ‘Redentor’ ou redenção do redentor”. 897 Cf. CI, Incursões de um extemporâneo § 4. 898 Ver “Introdução”. 899 AC § 51. Essa passagem já foi citada em parte, mas julgamos necessário reapresentá-la em seu contexto. 893 278 doença, o estado doentio, como um ideal de vida, como “divino”, porque ele dissuadiu o homem de cuidar do que realmente importa, porque o ensinou a desprezar as “coisas pequenas”, a “perder as realidades de vista”, “os assuntos fundamentais da vida mesma”: a questão da escolha adequada da alimentação, do lugar, do clima, da distração, toda a “arte de preservação de si mesmo, do amor de si”, toda a “casuística do egoísmo”, desviando o olhar do homem para noções que falsificam a realidade, que pervertem todo o sentido natural das ocupações da vida, que corrompem todo instinto sadio de vida, preocupações que retiram a vida de seu centro de gravidade, “mentiras oriundas dos instintos ruins de naturezas doentes”: “Deus”, “alma”, “pecado”, “salvação”, “redenção/libertação”, etc. 900 Como sentencia Nietzsche: Nós, outros, que temos a coragem para a saúde e também para o desprezo, como podemos, nós, desprezar uma religião que tem ensinado a mal-entender o corpo! 901 Que não quer desfazer-se da superstição da alma! Que faz da nutrição insuficiente um “mérito”! Que vê e combate na saúde uma espécie de inimigo, demônio, tentação! Que se convenceu de que é possível levar uma “alma perfeita” num corpo cadavérico, e para isso teve necessidade de aprontar um novo conceito de “perfeição”, um ente pálido, doentio, idiota-entusiasta chamado “santidade” [aspas indicando a falsidade do discurso] – santidade [falta de aspas indicando agora a interpretação pautada na realidade], apenas uma série de 902 sintomas do corpo empobrecido, enervado, incuravelmente corrompido!... Essa passagem é particularmente importante, pois pode indicar qual o papel específico que a figura de Jesus enquanto idiota representa para uma transvaloração dos valores. Será que, quando Nietzsche fala desse ente doentio idiota-entusiasta que o cristianismo elegeu como “perfeição”, um alvo que o filósofo considera pernicioso para os homens mais elevados, ele estaria excluindo Jesus, este santo idiota, e se referindo tãosomente a um tipo mais vulgar de santo? Haveria de fato alguma diferença, na perspectiva 900 Cf. EH, Por que sou tão inteligente, passim. Tradução levemente modificada. No original: “Wir Anderen, die wir den Muth zur Gesundheit und auch zur Verachtung haben, wie dürfen wir eine Religion verachten, die den Leib missverstehn lehrte!” Em PCS: “Nós, outros, que temos a coragem para a saúde e também para o desprezo, como poderíamos nós desprezar uma religião que ensina a desprezar o corpo”. Em Pascual: “Nosotros los que somos distintos, los que tenemos valor para la salud y también para el desprecio, ¡cómo nos está permitido a nosotros despreciar una religión que ha enseñado a malentender el cuerpo!”. Em Hémery: “Nous autres, qui avons le courage de la santé, et aussi du mépris, combien nous avons le droit de mépriser une religion qui a enseigné la mécompréhension du corps!” 902 AC § 51. 901 279 de O Anticristo, entre estabelecer Jesus como um tipo ideal de homem para toda a humanidade e estabelecer a degenerescência, a enfermidade, a idiotia, como alvo? E mesmo quando Nietzsche se refere ao “culto do tolo [Narren]”, não estaria ele incluindo aí também Jesus? Que essa passagem da seção 51 de O Anticristo não se refere exclusivamente a todo e qualquer santo com exceção de Jesus, mas também e, talvez, principalmente a este último, e que, caso seja assim, Jesus jamais poderia ser considerado como um tipo mais elevado de homem, é algo que, talvez, fique levemente mais acentuado em um texto preparatório, o fragmento póstumo 14 [96] da primavera de 1888 903: Eles desprezam o corpo: eles não o levam em conta: mais do que isso, eles o trataram como um inimigo. Sua loucura foi acreditar que se podia levar uma “bela alma” em uma monstruosidade cadavérica [Mißgeburt von Cadaver]... A fim de tornar isso crível igualmente para os outros, foi necessário pôr diferentemente o conceito de “bela alma”, de inverter o valor natural, até que enfim um ser pálido, doentio, idiota-entusiasta [bleiches, krankhaftes, idiotischschwärmerisches] fosse tido como a perfeição, como “angélico” [“englisch”], como transfiguração, como homem mais elevado [höherer Mensch]. Ademais, embora a análise da folie circulaire como a realidade fisiológica que está por trás dos métodos de redenção do cristianismo não se refirir exatamente à prática de Jesus, mas somente à doutrina propagada pela Igreja cristã, a redenção proposta pelo Nazareno também é um tratamento curativo que se dirige aos sujeitos que possuem uma pré-disposição mórbida, aos sujeitos já predestinados, com a diferença de que tal tratamento é muito mais recomendável, muito mais benéfico, efetivo e saudável, do que o tratamento oferecido pela Igreja. Afinal, deve-se frisar que a redenção que Jesus oferece (e representa) também surge de uma mesma necessidade de cura (salvação) e, portanto, de uma mesma realidade fisiológica que a redenção cristã, a saber, a hiperexcitabilidade e o esgotamento, com a diferença de que, no seu caso, a irritabilidade mórbida e o esgotamento atingem o seu grau mais alarmante. 904 903 Lembrando que Jesus é diagnosticado como idiota pela primeira vez no FP 14 [38] da primavera de 1888. “And on the basis of Christ’s putative degeneracy, Nietzsche attempts to account for the Christian doctrine of redemption by suggesting that what he sees as its two major components, the ‘instinctive hatred of reality’ and the gospel of love, are symptoms of the by now familiar nervous hypersensitivity characteristic of the decadent” (Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 147). 904 280 3.3 – A idiotia como condição degenerativa É na seção 29 de O Anticristo, após rejeitar as atribuições de herói e gênio à imagem histórica de Jesus feita por Renan em sua Vie de Jésus, que Nietzsche apresenta o seu diagnóstico do tipo psicológico do redentor: “Falando com o rigor do fisiólogo, caberia uma outra palavra aqui – a palavra idiota”. 905 O significado que se deve conferir ao termo “idiota” utilizado pelo filósofo nessa passagem é provavelmente a questão central no que diz respeito às discussões sobre o caráter filosófico ou não-filosófico de O Anticristo. Como já assinalado, os primeiros intérpretes da obra atribuíram a essa palavra nada além do que uma mera ofensa, uma provocação ou um artifício polêmico, considerando o escrito, sobretudo por conta disso, como um simples panfleto, carente de toda seriedade conceitual; ou ainda, viam no termo o maior indício de que o filósofo já estaria, naquele momento, sob a o efeito do delírio que precedeu o colapso mental e a demência que logo nublaria totalmente sua consciência 906 , tomando o livro quase que como um material para um 905 AC § 29. Paulo César de Souza coloca o termo “idiota” entre aspas, o mesmo foi feito na edição da Gallimard por Jean-Claude Hémery e na recente tradução brasileira, de Marcelo Zwick. Contudo, essas aspas encontram-se ausentes na KSA. Acreditamos que essa tentativa de atenuação constitua um problema, pois só tende a perpetuar a incompreensão do significado específico que o termo “idiota” assume em O Anticristo, ou seja, seu sentido fisio-psicológico. Seguimos aqui, o mesmo posicionamento adotado por Yannick Souladié: “Para Nietzsche Jesus não é um ‘idiota’, mas um idiota, no sentido estritamente fisiológico do termo. Jesus não é um corpo potente, mas um homem condenado fisiologicamente. Em O Anticristo, Nietzsche não cessa, com efeito, de lançar mão do vocabulário médico, lidando com patologias importantes para descrever Jesus” (Souladié, Antichristianisme et hérésie, p. 100). 906 Em “Nietzsche à la lettre”, a apresentação de sua tradução das últimas cartas de Nietzsche, Souladié defende que os sinais que verdadeiramente podem ser tidos como testemunhas de uma percepção alterada de certas realidades estão nas cartas de 25 de dezembro a 4 de janeiro (O Anticristo foi finalizado em 30 de setembro de 1888). Cf. Souladié, Yannick. “Nietzsche à La lettre”. In: Nietzsche, Friedrich. Dernières Lettres: hiver 1887 – hiver 1889. Traduction, présentation et notes par Yannick Souladié. Paris: Éditions Manucius, 2011, p. 14. A mesma posição é assumida por Georg Brandes, com quem Nietzsche estabeleceu uma rica amizade epistolar em seus dois últimos anos de vida consciente. O crítico dinamarquês foi um espectador privilegiado da última fase de produção do filósofo e importante testemunha de suas intenções quanto ao destino de suas últimas obras. Para Brandes, somente a última carta que Nietzsche lhe enviou exibe claros sinais de delírio, e não apenas sua “clara e delicada auto-ironia” tão comum em seus últimos escritos (mas não somente neles, como chama atenção Souladié, além disso, a auto-exaltação também é um traço constante em Wagner), não tanto pelo seu conteúdo, mas pela forma como foi postada: “Unfrankirt. Ohne genauere Adresse, ohne Datum, mit sehr grossen Buchstaben auf einem nach Kinderart mit Bleistift liniirten Stück Papier geschrieben. Poststempel, Turin, 4. Januar 1889”, e também pela sua assinatura. Eis a carta: “Dem Freunde Georg Nachdem Du mich entdeckt hast, war es kein Kunststück mich zu finden: die Schwierigkeit ist jetzt die, mich zu verlieren... Der Gekreuzigte”. Cf. Brandes, „Eine Abhandlung ueber Aristokratischen Radicalismus“, p. 224, Brandes, An essay on aristocratic radicalism, pp. 97-98, Brandes, Essai sur le radicalisme aristocratique, p. 131. Um dos amigos mais próximos de Nietzsche, Overbeck, provavelmente a testemunha mais importante sobre o colapso do filósofo, adota igualmente a mesma posição: “Sa folie, dont personne n’a vécu l’explosion d’aussi près que moi, a été, telle est ma conviction la plus 281 estudo patográfico. Com Dibelius 907 , essas primeiras interpretações revelaram-se apressadas e insustentáveis, por ignorarem todo um pano de fundo conceitual no qual a obra está assentada. Dibelius mostrou a importância de Dostoiévski e de Tolstói para a compreensão do termo, bem como a proximidade do seu uso feito por Nietzsche com o seu sentido grego original, vinculado com sua acepção enquanto um terminus do alemão erudito para designar o indivíduo leigo e, ao mesmo tempo, original, algo muito próximo do que, em alemão, se denomina Eigener (original, próprio). 908 Com isso, O Anticristo passou a ser levado em consideração enquanto uma obra filosófica, todavia não necessariamente com relação a todos os seus aspectos e muito menos como obra mais importante da última fase de Nietzsche, e, ao que parece, o diagnóstico de Jesus como idiota ainda se manteve como a causa principal para que a obra não fosse vista como filosoficamente relevante em sua completude, mas apenas como um escrito em parte conceitual e em parte literário. A aproximação com Dostoiévski e Tolstói talvez tenha, na verdade, contribuído para que o uso do termo “idiota” passasse a ser visto não como simples blasfêmia ou indício de doença, mas como um interessante recurso estilístico, como uma metáfora, o que faria com que vários argumentos estabelecidos na obra fossem relegados à mera retórica. Nietzsche teria chamado Jesus de idiota, em uma tal concepção, apenas em um sentido simbólico, uma vez que, com isso, o filósofo estava querendo dizer tão-somente que Jesus deveria ser visto como um ser puro, inocente e infantil. De fato, há naturalmente algo de simbólico no Jesus idiota de Nietzsche, afinal, trata-se aqui de um tipo psicológico, e que o redentor tenha sido um ser puro, inocente e infantil é algo que o filósofo deixa claro várias vezes durante sua investigação, no entanto, é necessário atentar para a questão do que exatamente significa uma tal pureza, inocência e infantilidade, qual a procedência de tais atributos, o que os condicionam e qual o significado que os mesmos possuem no interior da filosofia de Nietsche. Vimos, por exemplo, como o termo “santo”, em Nietzsche, deve ser analisado com extremo cuidado; como a santidade deve ser profonde, une catastrophe qui l’a frappé de manière foudroyante. Elle s’est produite entre le soir de Noël de l’année 1888 et le jour de l’Epiphanie de 1889. Il est impensable que Nietzsche ait été fou auparavant, quel qu’ait été son degré d’exaltation.” (Cf. Overbeck, Franz. Souvenirs sur friedrich Nietzsche. Traduit par Jeanne Champeaux. Paris : Éditions Allia, 2000, p. 25) 907 Cf. Dibelius, Loc. Cit., p. 62. 908 Cf. Giacoia Junior, Labirintos da alma, p. 73. 282 relacionada com uma realidade fisiológica bem específica e não com uma interpretação vinculada à tradição eclesiástica. No entanto, o que se observa geralmente é que muitos intérpretes passaram a associar vários atributos utilizados pelo filósofo para caracterizar a idiotia de Jesus com um sentido usual, e não com o sentido específico que eles possuem no interior da filosofia de Nietzsche. Dessa forma, a “pureza”, “inocência” e “infantilidade” da idiotia de Jesus passaram a ser cada vez mais relacionadas com um aspecto muito mais literário e metafórico – ou mesmo religioso (herético), justamente pelo tipo de aproximação que se faz com as obras de Dostoiévski e de Tolstói, em detrimento, portanto, do aspecto que, em nossa proposta interpretativa, deveria ser primeiramente levado em consideração, ou seja, o aspecto propriamente fisio-psicológico da investigação. Ora, consideramos extremamente relevante o fato de Nietzsche ter o cuidado de esclarecer, antes de oferecer o seu diagnóstico, que ele iria falar naquele momento com “o rigor do fisiólogo”, um alerta que, aparentemente, poucos intérpretes deram a devida importância. Nesse sentido, nossa hipótese é de que a principal referência de Nietzsche em seu diagnóstico e descrição da compleição fisio-psicológico de Jesus, seu principal recurso, sua principal base conceitual e teórica, sua fonte primordial é a psiquiatria do século XIX, sobretudo a psiquiatria francesa, elaborada no Bicêtre e, mormente, em Salpêtrière. Tolstói e Dostoiévski foram de importância crucial para o entendimento de como o evangelho de Jesus pode ser interpretado como uma prática de vida que apresenta os sinais de um tipo específico de realidade fisiológica, aquela do idiota, porém, foi na psiquiatria francesa do século XIX que Nietzsche encontrou o fundamento propriamente médico para o entendimento de uma tal realidade fisiológica e para a sua descrição. A referência à acepção grega do termo é de fato muito importante para o entendimento do desenvolvimento do conceito nosográfico do idiota, porém não esclarece suficientemente como a idiotia enquanto enfermidade era entendida pela psiquiatria, sobretudo já na segunda metade do século XIX; o mesmo no que se refere ao significado que o termo possuía no alemão erudito, um significado já tradicional e bastante independente das investigações da psiquiatria francesa iniciadas bem no fim do século XVIII e início do século XIX, e foi precisamente em todo um debate teórico da medicina francesa de seu tempo que Nietzsche se mostrou particularmente 283 interessado em sua última fase. Contudo, diferente do que parece defender Souladié 909 , intérprete que levou extremamente a sério o esclarecimento prévio de Nietzsche de que ele queria ser entendido em um sentido rigorosamente fisiológico ao tratar Jesus como idiota, consideramos que o estudo de Jesus como portador de uma tal enfermidade feito pelo filósofo, não se reduz estritamente ao discurso científico, visto que Nietzsche irá se apropriar dos resultados obtidos pela psiquiatria do século XIX, como já declaramos, conferindo-lhes sempre um significado específico ao seu pensamento e de acordo com suas necessidades teóricas, a fim de dar conta de problemas que são próprios de sua filosofia, associados com a sua teoria de forças e a doutrina da vontade de poder, o que não implica, porém, que o aspecto médico e psiquiátrico não seja considerado como algo de primeira instância e mesmo determinante, mas apenas que as investigações de Nietzsche não se manterão aprisionadas aos limites do discurso científico, oferecendo sempre uma tentativa de superação do mesmo por meio de uma rigorosa abstração conceitual. Não obstante, não se deve esquecer, naturalmente, do importante papel desempenhado por todo o conjunto de fontes utilizado por Nietzsche durante a elaboração de O Anticristo, ou seja, Renan (e mesmo Strauss), Wellhausen, Tolstói, Dostoiévski, Brochard e Jacolliot, etc. As investigações empreendidas por Nietzsche sobre as grandes questões da psiquiatria francesa do seu século, associadas com todas essas outras leituras, conduziram-no, conjuntamente, ao diagnóstico de que o tipo psicológico de Jesus é o de idiota. No entanto, o que estamos propondo é que o ponto de partida para a compreensão do que exatamente vem a ser um idiota, o fundamento propriamente científico de uma tal realidade fisiológica, o que garantiu a Nietzsche um alicerce conceitual para estabelecer semelhante hipótese, foi a psiquiatria do século XIX; com base nesse material fundamental e com a contribuição dos resultados obtidos por outras fontes, bem como com as principais linhas interpretativas de seu próprio pensamento, Nietzsche elaborou um estudo extremante original sobre como o diagnóstico dessa realidade fisio-psicológica de Jesus é a única via de acesso a sua mensagem original, a sua prática de vida, ao seu evangelho. É bem provável que Nietzsche nunca tenha entrado diretamente em contato com os principais tratados médicos acerca da idiotia, todavia, o debate teórico em torno dessa 909 Cf. Souladié, Antichristianisme et hérésie, p. 104. 284 enfermidade estava bastante em voga no final do século XIX e desempenhava, na realidade, um papel crucial para o estabelecimento da psiquiatria enquanto uma especialidade médica. Diversos problemas que ocuparam Nietzsche durante seus últimos anos de produção intelectual estavam intimamente inseridos nas principais discussões da literatura médica e psiquiátrica de sua época, com especial predileção pelos trabalhos que vinham sendo desenvolvidos na França. Sendo assim, é possível que o filósofo tenha tomado conhecimento do debate teórico em torno da idiotia por diferentes fontes, como, por exemplo, enciclopédias, dicionários, ou anais de medicina, nos quais o verbete “Idiotismo” e, posteriormente, “Idiotia” 910 passaram a figurar de forma bastante constante a partir de pelo menos 1818, com a publicação do célebre artigo escrito por Esquirol 911, e até o início do século XX. 912 Na biblioteca pessoal de Nietzsche, também se encontram, juntamente com Féré, diversas obras de literatura médica francesa do final do século XIX, como o trabalho de Charles Letourneau, Physiologie des passions, de 1868 Psychologie des grands hommes, de 1883 914 913 , e o de Henri Joly, , que exibe muitos traços de leitura; assim como os já referidos trabalhos de Charles Richet, Essai de psychologie générale e L’homme et l’intelligence, e o de Alexandre Herzen, Le cerveau et l’activité cérébrale; é necessário destacar igualmente o trabalho de Maudsley, Responsibility in mental disease, e o de 910 Cf., por exemplo, Georget. “Idiotisme”. In: Adelon, Béclard, Biett et alii. Dictionnaire de medicine. Tome 12. Paris : Béchet jeune, 1825, pp. 29-49. Nysten, Pierre-Hubert; Bricheteau et alii. Dictionnaire de médecine de chirurgie de pharmacie des sciences accessoires et de l'art vétérinaire. Paris : J. S. Chaudé ; Montpellier : Sévalle, 1833, “Idiotie” ou “idiotisme”, pp. 511-512. Landouzy. “Idiotie”. In: Beaude, Jean-Pierre (dir.). Dictionnaire de médecine usuelle. Tome II. Paris : Didier, 1849, pp. 8-12. Schnepf. “Observation d’idiotie”. In: Annales médico-psychologiques. N° 05. Paris: Masson, 1853, pp. 627-646. Littré, Emile; Robin, Charles et alii. Dictionnaire de médecine, de chirurgie, de pharmacie, des sciences accessoires et de l'art vétérinaire. 10e édition, entièrement refondue par É. Littré, Ch. Robin. Paris : J.-B. Baillière, 1855, “Idiotie”, v. “Idiotisme”, pp. 675-676. Nouveau dictionnaire de médecine de chirurgie pratiques, illustré de figures intercalées dans le texte, sous la direction du Dr. Jaccoud. Tome 18. Paris : J.-B. Baillière, 1874, “Idiotie, Imbécilité”, pp. 366-379. Labarthe, Paul. Dictionnaire populaire de médecine usuelle. Tome 2. Paris : Marpon et Flammarion, 1887, “Idiotie, Imbécilité”, pp. 93-94. Chanbard. “Idiotie”. In: Dechambre, Amédée (dir.). Dictionnaire encyclopédique des sciences médicales. Tome 15. Paris : G. Masson : P. Asselin, 1889, pp, 511-554. Textos disponíveis em: < http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/medica.htm >, último acesso 27/06/2012. 911 Esquirol. “Idiotisme”. In: Dictionnaire des sciences médicales. Vol. XXIII. Paris: C.L.F., Panckoucke, 1818. 912 Cf., por exemplo, Larousse médical illustré; sous la dir. du dr. Galtier-Boissière; nouv. éd. entièrement refondue et augmentée par le Dr. Burnier. Paris: Larousse, 1924, “Idiotie”, pp. 662-665. 913 Letourneau, Charles. Physiologie des passions. Paris: Germer Baillière, 1868. 914 Joly, Henri. Psychologie des grands hommes. Paris: Hachette : 1883. 285 Francis Galton, Inquiries into human faculty and its development; vale indicar também alguns trabalhos da psiquiatria alemã, como o de Ernst Mach, Beiträge zur Analyse der Empfindungen, de 1886 915 , e o de Leopold Löwenfeld, Die moderne Behandlung der Nervenschwäche (Neurasthenie), de 1887916, bem como a tradução do trabalho do dinamarquês Harald Höffding, Psychologie in Umrissen auf Grundlage der Erfahrung, publicado em 1887 917 , com numerosíssimos traços de leitura. 918 Em todas essas obras, sobretudo nas francesas, mas também no livro de Höffding, a figura do idiota, tal como era entendida na psiquiatria do final do século XIX, aparece com bastante freqüência, seja na forma de exemplo, seja como um objeto de discussão teórica, isto é, sempre como um conceito médico e psiquiátrico, como sinônimo de indivíduo portador de idiotia, e não como um simples adjetivo ofensivo, isto é, como termo usado para designar um indivíduo simplesmente destituído de conhecimento, tolo, ignorante ou que faz idiotices. Contudo, ao que tudo indica, a grande influência de Nietzsche em sua descrição acerca da realidade fisiológica de Jesus como sendo a de um indivíduo detentor de uma enfermidade congênita, de um estado degenerativo, isto é, do que a psiquiatria do século XIX entendia como sendo a idiotia, foi mesmo Charles Féré, que lidava com essa enfermidade sob o prisma da teoria da degeneração, desenvolvida por Morel em seu Traité des dégénérescences, publicado em 1857919 , e que se tornou o grande paradigma para a medicina e para a psiquiatria da segunda metade do século XIX, até o início do século XX, quando foi abandonada. 920 Com Morel, o idiota passa a ser considerado como o último membro da família dos degenerados, mas especificamente, da família neuropática, cujo primeiro membro é o neurastênico; a idiotia como o último mal ocasionado pela fatalidade da lei da degeneração hereditária 915 Mach, Ernst. Beiträge zur Analyse der Empfindungen. Jena: G. Fischer, 1886. Löwenfeld, Leopold. Die moderne Behandlung der Nervenschwäche (Neurasthenie), der Hysterie und verwandter Leiden. Wiesbaden: J. F. Bergmann, 1887. 917 Höffding, Harald. Psychologie in Umrissen auf Grundlage der Erfahrung. Aus dem Dänischen überg. von F. Bendixen. Leipzig: Fues’s Verlag, 1887. 918 Cf. Campioni, Nietzsches persönliche Bibliothek. 919 Morel, B. A. Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l’espèce humaine et des causes qui produisent ces variétés maladives. Paris: J. B. Baillière, 1857. 920 Para a importância da teoria da degeneração de Morel enquanto paradigma da medicina e psiquiatria do século XIX, bem como a respeito de seu abandono ocorrido nos primeiros anos do século XX, cf. Pereira, Mário Eduardo Costa. “Morel e a questão da degenerescência”. In: Revista Latinoamericana de psicopatologia fundamental. São Paulo, v. 11, n. 3, pp. 490-496, setembro, 2008. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/rlpf/v11n3/12.pdf>. Último acesso: 27/06/2012. 916 286 progressiva, o idiota como o último elo dessa cadeia degenerativa, algo que traria como conseqüência o fim da mesma. A teoria de Morel foi provavelmente o grande modelo teórico que direcionou Féré em todas as suas investigações; suas declarações sobre os idiotas e sobre a idiotia deixam bastante claro que a sua principal via interpretativa tem como fonte direta a obra de Morel, fartamente citada em quase todas as obras deste interno de Salpêtrière. Ora, em O poder psiquiátrico 921 e, logo depois, em Os anormais 922 , Foucault defende que a descoberta da figura do idiota pela psiquiatria do século XIX foi decisiva para aquilo que ele denomina de generalização do poder psiquiátrico. De acordo com Foucault, quando a idiotia foi, no início do século XIX, primeiramente, distinguida da demência, e, logo em seguida, da alienação mental, a psiquiatria se viu surpreendida por um problema mental que não envolvia a figura do louco. A idiotia passou a ser entendida, então, como um estado no qual o indivíduo permanece preso em uma fase infantil, jamais atingido a maturidade, verdadeiro caminho pelo qual a psiquiatrização da criança tornou-se possível. E foi precisamente a partir da psiquiatrização da criança, que se realizou a difusão do poder psiquiátrico, por meio da elaboração do conceito de “anormal”. Afinal, a idiotia não só passa a ser diferenciada da alienação como também de uma doença, passando a ser considerada uma enfermidade que não pode ser curada. Deste modo, a infância irá se tornar a chave interpretativa que permitirá que a psiquiatria possa avaliar o comportamento do adulto pelas categorias do “normal” e do “anormal”: o indivíduo normal seria aquele que apresenta comportamentos adequados a sua faixa etária, e o indivíduo anormal, aquele cujo comportamento denuncia um desenvolvimento irregular e inadequado. Com o estabelecimento da teoria da degeneração de Morel, na segunda metade do século XIX, a idiotia se torna algo cujo aparecimento obedece a uma lei natural, fazendo com que todos os membros da família do idiota, a família neuropata, se tornassem indivíduos dos quais a sociedade, sob proteção da psiquiatria, deveria se resguardar, indivíduos cuja reprodução entre si e entre os membros sadios do edifício social deveria ser controlada, impedida ou até 921 Cf. Foucault, Michel. O poder psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006, aula de 16 de janeiro de 1974, pp. 255-298. 922 Foucault, Michel. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010, aula de 19 de março de 1975, pp. 231-281. 287 mesmo policiada. A psiquiatria torna-se, assim, com o advento do conceito de idiotia, a especialidade médica que extrapola sua própria função primária, ou seja, a cura, e se torna um poder de proteção social, sobre o qual recai a responsabilidade de julgar quais indivíduos precisam ser separados do convívio social para a proteção deles mesmos e da parte sadia da sociedade. Os escritos de Féré estão intimamente envolvidos nesse momento final da discussão teórica em torno da figura do idiota como último membro da família dos degenerados, e é possível verificar que nos últimos escritos de Nietzsche essa discussão também vai se tornar objeto de suas preocupações, não obstante, deve-se sempre ressaltar que ele irá realizar uma apropriação e uma reelaboração de tais teorias. 3.3.1 – Desenvolvimento do conceito nosográfico de idiotia De Sauvages a Pinel O primeiro autor a introduzir o conceito nosográfico que mais tarde seria denominado de idiotia no interior da literatura médica foi, segundo Bourneville, o famoso médico e botânico francês François-Boissierde Sauvages em seu Nosologie méthodique 923, publicado em 1773, que, oferecendo uma breve descrição e classificação do mal que ele designa sob o nome de amentia, acabou por se tornar o marco delimitador da elaboração teórica da noção médica de idiotia. Nessa sua definição, Sauvages já faz uma aproximação entre aquilo que viria a ser considerado como idiotia, por um lado, e a infância, por outro, porém, ele não estabelece nenhuma distinção entre esse mal e a alienação, que, nessa época, tem como principal característica a produção do erro, assim como também não estabelece a diferença, aceita até os dias de hoje, entre a idiotia e a demência, abrangendo ambas as enfermidades sob o conceito de amentia. Sauvages estabelece doze tipos de amentia, entre os quais cumpre destacar a “Amentia senilis, Delirium senile; Etat d’enfance”. Sauvages define a amentia da seguinte maneira: 923 Sauvages, François-Boissierde. Nosologie méthodique, ou distribution des maladies en classes, en genres et en espèces, suivant l’esprit de Sydenham, et la méthode des Botanistes. Traduite sur la dernière édition latine par M. Gouvion, docteur en médecine. Lyon : J.-M. Buyset, 1773. Tome VII, page 334 à 342. O vocábulo “Amentia” foi reproduzido em: Bourneville. Recueil de mémoires, notes et observation sur le idiotie. Paris, E. Lecrosnier et Babé, 1891. 288 Amentia: en grec, Paranoia; en latin, Dementia, Fatuitas, Vecordia; en français, Imbécillité, Bêtise, Niaiserie, démence. Les malades, amentes, dementes, imbéciles, animo, fatui; Imbéciles, niais, fous, insensés. C’est une maladie qui trouble la raison et le jugement. Elle diffère de la stupidité (morosis), en ce que les personnes en démence sentent parfaitement les impressions des objets, ce que ne font pas les stupides; mais les premières n’y font aucune attention, ne s’en mettent point en peine, les regardent avec une parfaite indifférence, en méprisent les suites et ne s’en embarrassent point; en quoi ils ressemblent aux enfants qui négligent les choses les plus sérieuses et les plus importantes, pour s’occuper de bagatelles. Les personnes en démence ont de l’indifférence pour toutes choses, elles rient et chantent dans des circonstances qui affligent les personnes saines; elles sont insensibles à la faim, à la soif et au froid. Elles ne sont ni colériques ni emportées comme les maniaques, ni tristes ni pensives comme les mélancoliques. 924 Não obstante, foi com o célebre médico francês Philippe Pinel, em seu Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale 925 , publicado em 1809, que o termo “idiota” passou de fato a designar o indivíduo portador de uma inabilidade de ordem mental, utilizando, possivelmente pela primeira vez num tratado médico, um vocábulo derivado do grego “idios”, no caso, “idiotismo”, para definir uma espécie de alienação que se caracteriza pela abolição, total ou parcial, das faculdades intelectuais. Pinel, que havia trabalhado no Bicêtre e que na época exercia o cargo de Médecin en chef em Salpêtrière, sustenta que se podem observar entre as alienações mentais inúmeras variações, mas que, não obstante, é possível estabelecer dois padrões particulares nos quais se podem agrupar a maior parte delas. Sendo assim, as alienações, cuja característica principal é o delírio, poderiam se manifestar tanto sob a forma do furor quanto sob a forma da inércia, da imobilidade. Com base nesses dois padrões, Pinel estabelece as quatro principais espécies de alienação: a mania ou delírio geral, o tipo de alienação em que o delírio tende a despertar estados de furor; e os outros três tipos, nos quais a imobilidade, o estupor e a apatia vêm a assaltar o sujeito, são eles: a melancolia, em que o delírio se concentra sob um determinado objeto (aquilo que, logo mais, Esquirol designará sob o nome de lipemania), a demência e a idiotia. Deste modo, como nos relata Foucault, provavelmente se referindo a Pinel e Sauvages, até o fim do século XVIII e começo do século XIX, a chamada imbecilidade, estupidez e idiotia não tinha nenhuma característica distinta da loucura em geral. Segundo 924 925 Sauvagens, Loc. Cit., pp. 1-2. Pinel, Philippe. Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale. Paris, Brosson, 1809. 289 ele, o que havia era propriamente essa grande oposição entre a loucura sob a forma de “furor”, da violência ou agitação temporária, uma loucura em forma de “mais”, e uma loucura sob a forma de “inércia”, do abatimento e da não agitação, uma loucura em forma de “menos”, justamente aquilo que então se chamava “demência”, “estupidez”, “imbecilidade”, etc. 926 Como se pode verificar em Pinel: C’est ainsi qu’un délire général plus ou moins marqué, avec plus ou moins d’agitation, d’irascibilité ou de penchant à la fureur, a été désigné sous le nom de manie périodique ou continue. J’ai conservé le nom de délire mélancolique à celui qui étoit dirigé exclusivement sur un objet ou une série particulière d’objets, avec abattement, morosité, et plus ou moins de penchant au désespoir, surtout lorsqu’il est porté au point de devenir incompatible avec les devoirs de la société. Une débilité particulière des opérations de l’entendement et des actes de la volonté, qui prend tous les caractères d’une rêvasserie sénile, a été indiquée par le nom de démence; enfin une sorte de stupidité plus ou moins prononcée, un cercle très-borné d’idées et une nullité de caractère forme ce que j’appelle idiotisme. 927 Pinel sustenta que apesar do idioma francês tentar traçar as nuanças daquilo que a sociedade trata como fou, extravagant, insensé ou imbécille, todas essas designações podem apenas indicar o último termo da escala de graduação da razão, no entanto, essas denominações estão, para ele, longe de uma definição exata sobre esse tipo de alienação, pois a mesma não se configura como uma espécie de defeito do conhecimento, como aquilo que produz o erro. O idiotismo deve ser entendido, portanto, segundo Pinel, como uma “abolition plus ou moins absolue, soit des fonctions de l’entendement, soit des affections du cœur.” 928 O médico francês descreve a compleição do idiota da seguinte forma : “leur figure est inanimée, leurs sens hébétés, leurs mouvemens automatiques; un état habituel de stupeur, une sorte d’inertie invincible forment leur caractère.” 929 Futuramente, a psiquiatria irá distinguir a idiotia da alienação, porém, Pinel será duramente criticado por todos os principais médicos que lidaram com o problema da idiotia não tanto por ele entender a idiotia como um tipo de alienação, mas sim, principalmente, pelo fato de, apesar de ser o primeiro a buscar diferenciar a idiotia da demência, acabar por continuar 926 Foucault, O poder psiquiátrico, p. 258. Pinel, Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale, pp. 138-139. 928 Pinel, Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale, p. 181. 929 Pinel, Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale, p. 182. 927 290 confundindo as duas. Uma tal confusão pode ser verificada quando ele aponta as várias possíveis causas do idiotismo: “l’abus des plaisirs énervans, l’usage des boissons narcotiques, des coups violens reçus sur la tête, une vive frayeur ou un chagrin profond et concentré, des études forcées et dirigées sans principes, des tumeurs dans l’intérieur du crâne, une ou plusieurs attaques d’apoplexie, l’abus excessif des saignées dans le traitement des autres espèces de manie.” 930 Ora, mas, desse modo, o sujeito pode se tornar idiota em qualquer fase da vida, seja na infância, seja na idade adulta, algo que, a partir de Esquirol, não será mais admitido; a idiotia passará a ser entendida como uma enfermidade cuja manifestação ocorre durante a infância, um sujeito adulto poderá vir a se tornar apenas demente, mas não idiota. A idiotia também irá se diferenciar da demência pelo fato da primeira ser incurável, o idiota não possui capacidade de prosseguir no seu desenvolvimento, o demente, algumas vezes, sim. Pinel, entretanto, fala de casos em que o idiotismo é curado por um acesso maníaco violento, algo que, posteriormente, não será mais aceito. 931 Pinel apenas se aproxima dessa distinção entre idiotia e demência quando descreve o cretinismo, mais tarde, considerado como uma variedade específica de idiotia, por ser endêmica, ou seja, natural a certas regiões do planeta: “Cet état de dégénération et de nullité [o idiotismo] est porté encore bien plus loin dans les Crétins de la Suisse: ces derniers annoncent déjà, dès leur tendre enfance, ce qu’ils doivent étre”. 932 De Esquirol a Belhomme Essa noção de idiotismo desenvolvida por Pinel será, pouco depois, substituída pela reelaboração feita por seu aluno, Esquirol, em um importante artigo publicado no Dictionnaire des sciences médicales, em 1818, revisto e ampliado no capítulo “De l’idiotie”, da obra Des maladies mentales, publicada pela primeira vez em 1820. 933 A nosografia da idiotia estabelecida por Esquirol perdurará durante a primeira metade do século XIX, como a grande referência para aqueles que irão, a partir de então, se 930 Pinel, Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale, p. 181. Pinel, Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale, p. 186. 932 Pinel, Traité médico-philosophique sur le aliénation mentale, p. 188. 933 Esquirol, E. Des maladies mentales considérées sous les rapports médical, hygiénique et médico-légal. Tome 2. Paris: J.-B. Baillière, 1838. 931 291 especializar nesta enfermidade, o que possibilitou, gradualmente, que aos idiotas fossem reservadas alas específicas nos hospitais psiquiátricos e, futuramente, instituições voltadas exclusivamente para o seu tratamento/educação, uma vez que, até então, os idiotas eram mantidos, freqüentemente, nos mesmos locais em que eram tratados os epilépticos ou em instituições para crianças surdas-mudas. 934 Jean-Étienne Esquirol, considerado por muitos o pai do hospital psiquiátrico francês, foi responsável por aprofundar a nosologia de Pinel, com o qual trabalhou desde 1801 em Salpêtrière, sucedendo-o como médecin em chef desta instituição em 1820, logo depois, assumindo o posto de médecin en chef da Maison Royale de Charenton, hoje em dia, Hôpital Esquirol. Ele substitui o vocábulo idiotismo formado por Pinel, por idiotia, a fim de tornar a apropriação médica da derivação da palavra grega “idios” mais evidente (ainda que o título do verbete de sua autoria no “Dictionnaire des sciences médicales” seja “Idiotisme”, essa substituição já é feita neste escrito). Ele introduz a noção de ausência ou incompletude de desenvolvimento antes que o sujeito pudesse vir a atingir a puberdade como o distintivo da idiotia, e aquilo que vai diferenciá-la da loucura e da demência. Esquirol é igualmente o primeiro a definir a idiotia como enfermidade e não como doença, bem como a verificar seu caráter incurável; e também será o primeiro a classificar a idiotia em dois tipos principais com uma variável particular, quais sejam: imbecilidade e idiotia propriamente dita, na qual se incluí o cretinismo. Esquirol elenca os principais termos que antes foram utilizados na psiquiatria para se referir aquilo que, segundo ele, deve ser denominado de idiotia: “Sauvages, Sagar, Vogel ont appelé l’idiotie amentia, imbecillitas ingenii, fatuitas y Linné la nomme morosis; Cullen et Fodéré démence innée; Pinel et Dufour en ont fait un genre de folie qu’ils désignent sous le nom d’idiotisme.” 935 Todavia, em concordância com os argumentos levantados por Pinel, Esquirol considera que o significado original da raiz grega da palavra “idiota” é o que mais se aproxima da condição daqueles cujo desenvolvimento das faculdades intelectuais não ocorreu ou não se completou durante a infância. Como esclarece o 934 Cf. Bourneville, Désiré-Magloire. Assistance traitement et éducation des enfants idiots et dégénérés, rapport fait au congrès National D’Assistance Publique (Session de Lyon, Juin 1894). Paris: Félix Alcan, 1895. 935 Esquirol, Des maladies mentales, p. 238. Cf. Esquirol, “Idiotisme”, Loc. Cit., p. 507. 292 psiquiatra: “Le mot , proprius, privatus, solitarius, exprime très-bien l’état d’un homme qui, inhabile à raisonner, est, en quelque sorte, seul, isolé, détaché du reste de la nature.” 936 Da palavra ο (idios), que também pode significar precisamente sozinho, isolado, derivam: ω ό (idiotikós), particular, pessoal; atributo; ω (idiotes), indivíduo; e ἰ ώ ίω α, idioma, próprio, propriedade, (idiótis), individual, privado; este último termo também serve para designar em grego a “pessoa sem uma habilidade profissional”, “sem uma especialidade”, ou, principalmente, o “homem privado”, em contraposição ao “homem de estado”, ao homem público, ao homem político, ao cidadão; tal termo já era utilizado depreciativamente na antiga Atenas, mas para se referir a quem decidisse se apartar da vida pública. De ἰ ώ , originou-se o termo latino idiota, como referência à “pessoa do povo”, “homem comum”, “ordinário”, ou “leigo”, significado que precedeu aquele mais usual encontrado no latim tardio, a saber, “pessoa sem educação” ou “ignorante”, o primeiro significado é bem próximo do sentido que o termo assumiu no alemão erudito, o segundo, por sua vez, está mais relacionado com o sentido com o qual ele passou a ser majoritariamente associado a partir, sobretudo, do início do século XX, com a vulgarização e deturpação de seu significado psiquiátrico. É possível que seu sentido propriamente psiquiátrico já existisse desde pelo menos o século XVII, contudo, o termo “idiota” só veio a ser utilizado para exprimir uma noção autenticamente nosográfica com Pinel, que o utiliza para se referir ao indivíduo portador daquilo que ele denominou de idiotismo, “expressão desconhecida dos antigos”, segundo Esquirol. O termo “idiotia” é, então, cunhado por Esquirol como substituto de “idiotismo”, a fim de evitar qualquer confusão de ordem gramatical: “Du mot idiota y idiot, on a fait idiotisme, mais comme ce dernier mot a déjà une signification grammaticale, il m’a semblé utile de lui substituer celui d’idiotie, en le consacrant au langage medical.” 937 Esquirol assevera que a confusão reinante entre os alienistas com relação à idiotia e à demência era o grande entrave que impossibilitava a exata compreensão dessa inabilidade constitucional que só pode se manifestar durante a infância. Segundo ele, tanto Sauvages 936 Esquirol, “Idiotisme”, p. 507. Esquirol, Des maladies mentales, p. 284. “Du mot idiota, idiot, on a fait idiotisme, expression inconnue des anciens, qui n’a été adoptée que de nos jours. Pourquoi ne pas préférer le mot idiotie, qui n’eût exprimé qu’une idée médicale, et qui ne serait point, comme le mot idiotisme, réclamé par les grammairiens?” (Esquirol, “Idiotisme”, p. 507). 937 293 quanto Pinel incorreram nesse erro, apesar deste último tentar diferenciar uma incapacidade intelectual da outra. 938 Para Esquirol, a idiotia não pode ser considerada como uma simples abolição do pensamento ou obliteração das faculdades mentais, tal como defendeu Pinel, pois essa definição também abarcaria a demência e certos estados doentios passageiros; além disso, a idiotia não pode ser considerada uma doença, uma vez que não se trata de uma perturbação que desequilibra o funcionamento do organismo e provoca dor e sofrimento, mas sim uma debilidade constitucional, uma deficiência que torna o indivíduo incapaz de se desenvolver normalmente e de adquirir habilidades que se encontram naturalmente à disposição da espécie à qual pertence. Sendo assim, a idiotia é, para Esquirol, ou congênita ou adquirida antes da puberdade, isto é, antes que o indivíduo tenha tido possibilidade de alcançar o completo desenvolvimento de suas faculdades intelectuais. O idiota não se torna um adulto “completo”, pois se vê incapaz de progredir no seu desenvolvimento, de aperfeiçoar suas faculdades mentais; seu crescimento intelectual é nulo ou se deteve em um determinado momento. A idiotia é, portanto, incurável. Como sentencia Esquirol: L’idiotie n’est pas une maladie, c’est un état dans lequel les facultés intellectuelles ne se sont jamais manifestées, ou n’ont pu se développer assez pour que l’idiot ait pu acquérir les connaissances relatives à l’éducation que reçoivent les individus de son âge, et placés dans les mêmes conditions que lui. L’idiotie commence avec la vie ou dans cet âge qui précède l’entier développement des facultés intellectuelles et affectives; les idiots sont ce qu’ils doivent être pendant tout le cours de leur vie; tout décèle en eux une organisation imparfaite ou arrêtée dans son développement. On ne conçoit pas la possibilité de changer cet état. 939 Longe de propor qualquer espécie de tratamento para os idiotas, Esquirol exclui mesmo toda possibilidade de melhorar a condição destes enfermos, indicando também a baixa expectativa de vida dos mesmos: “Rien ne saurait donner aux malheureux idiots, même pour quelques instans, plus de raison, plus d’intelligence. Ils ne parviennent pas à un 938 “M. Pinel lui-même, dans la description générale, de ces deux maladies, et dans les faits qu’il rapporte à l’appui de ses descriptions, n’est pas exempt de ce reproche, quoique ce célèbre professeur ait parfaitement senti la différence qu’il y a entre la démence et l’idiotisme” (Esquirol, Dictionnaire des sciences médicales, p. 507). 939 Esquirol, Des maladies mentales, p. 284. No Dictionnaire des sciences médicales, a última sentença é “Ils sont incurables; on ne conçoit pas la possibilité de les guérir” (Esquirol, “L’idiotisme”, p. 508). 294 âge avancé; il est rare qu’ils vivent au-delà de 30 ans.” 940 Esquirol defende que a idiotia e a demência são essencialmente diferentes. A idiotia se caracteriza como uma ausência ou incompletude de desenvolvimento, como um não-movimento, ela é fundamentalmente estável, definitivamente adquirida, a demência, pelo contrário, pode exibir várias mudanças possíveis, ela pode progredir, isto é, se agravar, mas também se estabilizar ou, eventualmente, ser curada. 941 Como explica Esquirol: “La démence, comme la manie et la monomanie ne commence qu’à la puberté; elle a une période d’accroissèment plus ou moins rapide. On peut guérir de la démence, on conçoit la possibilité d’en suspendre les accidens; il y a diminution, privation de la force nécessaire pour l’exercice des facultés, mais ces facultés existent encore.” 942 Esquirol foi provavelmente um dos primeiros a observar o fato de que a idiotia freqüentemente vem acompanhada de defeitos de constituição em alguns órgãos, sobretudo, malformações congênitas do crânio: “A l’ouverture du crâne, on trouve presque toujours des vices de conformation.” 943 O mesmo, porém, não ocorre com os dementes: “A l’ouverture du corps, on trouve quelquefois des lésions organiques, mais ces lésions sont accidentelles. Ce ne sont point des vices de conformation.” 944 A idiotia, para Esquirol, não pode ser confundida com a simples ignorância, com a falta de conhecimento, muito menos como algo que produz erro ou ilusão, visto que ela se constitui, na realidade, numa impossibilidade, numa incapacidade, numa inabilidade de adquirir os conhecimentos que o homem adulto (cujo desenvolvimento das faculdades intelectuais não se deteve) possui condições de adquirir. O homem demente é aquele que chegou a adquirir conhecimentos ao alcance dos adultos, que pode ter resquícios de inteligência, a demência possui um passado, a noção de tempo existe para ela; o idiota (propriamente dito), por outro lado, é um indivíduo que não veio a adquirir nada (privado), a quem não resta nada, “cuja existência não deixou e não deixará nunca em sua memória o menor vestígio” 945, a idiotia (propriamente dita, profunda) não possui passado, 940 Esquirol, Des maladies mentales, p. 284. Em “L’idiotisme”, a previsão era de apenas 25 anos. Para Foucault, essa noção de “desenvolvimento” introduzida por Esquirol na elaboração teórica da idiotia, tornará possível o estabelecimento das noções “normal” e “anormal” no interior da psiquiatria, noções pelas quais a generalização do poder psiquiátrico irá se realizar. Cf. Foucault, O poder psiquiátrico, pp. 260-261. 942 Esquirol, Des maladies mentales, pp. 284-285. 943 Esquirol, Des maladies mentales, p. 284. 944 Esquirol, “De l’idiotisme”, p. 508. 945 Foucault, O poder psiquiátrico, p. 262. 941 295 nem mesmo presente, a noção de tempo não existe para ela. Como estabelece a declaração que se tornou célebre e canônica de Esquirol: L’homme en démence est privé des biens dont il jouissait autrefois; c’est un riche devenu pauvre: l’idiot a toujours été dans l’infortune et la misère. L’état de l’homme en démence peut varier; celui de l’idiot est toujours le même. Celui-ci a beaucoup de traits de l’enfance, celui-là conserve beaucoup de sa physionomie de l’homme fait. Chez l’un et l’autre, les sensations sont nulles ou presque nulles; mais l’homme en démence montre, dans son organisation et même dans son intelligence, quelque chose de sa perfection passée, l’idiot est ce qu’il a toujours 946 été, il est tout ce qu’il peut être relativement à son organisation primitive. De acordo com Esquirol, a idiotia apresenta dois graus bem distintos no que concerne ao desenvolvimento da inteligência. Por conta disso, ele propõe dois tipos principais de idiotia: a imbecilidade e a idiotia propriamente dita, na qual se inclui, de modo especial, o cretinismo. Esta divisão entre imbecilidade e idiotia será adotada por todos os outros psiquiatras que lidaram com tal enfermidade durante o século XIX, e, de certa forma, ainda que com uma outra nomenclatura, é aceita ainda hoje, embora, gradualmente, diversos tipos intermediários tenham sido inseridos nesta escala. O termo “imbecil”, em francês imbécille, vem do latim imbecill, fraco, de onde varia imbecillitas, fraqueza, ou mais especificamente, falta de força física e de reflexão, daí “imbecilidade”, em francês imbécillité. A imbecilidade se caracteriza, segundo Esquirol, por um desenvolvimento parcial das faculdades intelectuais e afetivas em um sujeito. Embora os imbecis possam desfrutar dessas faculdades, elas só puderam se desenvolver até um certo ponto e em um grau muito inferior ao de um sujeito dito normal. A organização de um sujeito imbecil é mais ou menos perfeita, pouco se diferenciado de uma organização considerada normal, ele não possui deformações; suas faculdades sensitivas são pouco desenvolvidas. Eles sentem, pensam e falam, ainda que somente de um modo limitado, e são, para Esquirol, suscetíveis de receberem certa educação. Como explica o médico: Sans être dépourvus de toute intelligence, ces individus n’ont jamais pu s’élever à la raison, aux connaissances auxquelles leur âge, leur éducation, leurs rapports sociaux devaient leur promettre d’atteindre. Placés dans les mêmes circonstances 946 Esquirol, Des maladies mentales, p. 285, grifo nosso. 296 que les individus de leur âge, de leur rang, ils ne font jamais le même usage de leur intelligence. 947 Esquirol esclarece que a imbecilidade oferece uma infinidade de nuances, mas o mesmo deve ser dito, segundo os seus sucessores, a respeito da idiotia em geral, que pode variar desde o estado daqueles que atingem quase que um desenvolvimento considerado normal de inteligência (e de outras faculdades), até o estado de embrutecimento absoluto daqueles que se encontram condenados a uma existência meramente vegetativa. A respeito dos imbecis, Esquirol também declara que, em alguns, as sensações são obtusas, fracas, em outros, as sensações são múltiplas; em alguns, a memória é ativa, em outros, ela é quase nula. Os imbecis podem combinar e comparar, mas eles não podem alcançar noções gerais e abstratas. Eles não são totalmente privados da palavra, e, ainda que alguns sejam mudos, eles conseguem exprimir seus pensamentos, desejos e necessidades por gestos e jogos de fisionomia. Alguns podem aprender a ler e escrever, mas somente de modo imperfeito. Abandonados à própria sorte, não saberiam se manter, se alimentar ou se defender: “faciles à conduire et à diriger, incapables d’application et de travail, ce sont des êtres parasites, qui vivent sans utilité pour eux et pour leurs semblables; s’ils travaillent, il faut les guider, les exciter sans cesse, car ils sont très paresseux.” 948 O segundo tipo de idiotia é a chamada idiotia propriamente dita, profunda. O idiota desse tipo mais extremo é o sujeito que pode ser considerado como sendo privado de faculdades intelectuais, como sendo destituído, por conseqüência, de habilidades que garantem a um ser humano normal a independência necessária para a conservação de sua própria existência, bem como a capacidade de se inserir nas práticas comuns da vida social. Como sentencia Esquirol: “Nous voilà arrivés aux derniers termes de la dégradation humaine: ici les facultés intellectuelles et morales sont presque nulles, non qu’elles aient été détruites, mais parce qu’elles n’ont jamais pu se développer.” 949 A organização do idiota é incompleta, os sentidos são praticamente obtusos, sua sensibilidade, sua atenção e memória são nulas ou praticamente nulas; o idiota é muitas vezes indiferente ao frio ou ao 947 Esquirol, Dictionnaire des sciences médicales p. 511. Esquirol, Des maladies mentales, p. 258. 949 Esquirol, Des maladies mentales, p. 304. 948 297 calor, alguns não são assaltados pela fome ou pela sede, desconhecem o pudor, muitos não controlam a excreção. Neste tipo de idiotia, a inabilidade intelectual é acompanhada por defeitos de organização, pela ausência da fala ou de qualquer capacidade de comunicação: “L’état de dégradation de quelques idiots est tel, que ces malheureux sont privés de plusieurs sens, qu’ils n’ont pas même l’instinct de leur conservation, leur existence est toute végétative.” 950 Uma categoria que deve ser considerada uma variável muito específica da idiotia propriamente dita (ou profunda), uma vez que possui, de acordo com o saber médico do século XIX, uma causalidade particular e uma incidência geograficamente restrita, é o cretinismo. Essa enfermidade é considerada endêmica, própria de regiões localizadas em encostas montanhosas, regiões de grande altitude, nos Alpes, Pirinéus, Asturias, Escócia, nas cordilheiras, etc. Muitos autores consideram o cretinismo uma situação mais grave e mais lastimável do que a idiotia propriamente dita, ainda que também no caso do cretinismo ocorram diferenças de graus. O estudo mais importante para a medicina do século XIX a respeito do cretinismo é a obra de François-Emmanuel Fodéré, Traité du goître et du crétinisme, publicada em 1800. 951 Nesse estudo, Fodéré localizou as principais regiões em que há uma grande incidência do cretinismo e verificou a íntima ligação desta enfermidade com o bócio (goître), o aumento de volume da glândula tiróide. Para Fodéré, a umidade atmosférica nessas regiões montanhosas é a causa mais provável do bócio e do cretinismo. O termo “cretino” (crétin) provém de uma palavra do dialeto franco-provençal, “chrétien”, cujo significado é extremamente importante para o tema de nosso trabalho, a saber: – cristão. Como mostra Esquirol: “On donne le nom de crétins à des idiots et à des imbécilles qui habitent ordinairement les gorges des montagnes. Ce nom vient, dit-on, du mot chrétien, parce que ces malheureux, simples et inoffensifs étaient vénérés comme de saints personnages.” 952 Com exceção da presença do bócio e de outros sintomas particulares que se verifica em alguns cretinos, a inabilidade intelectual destes sujeitos e seu 950 Esquirol, Des maladies mentales, p. 324. Cf. Fodéré, François-Emmanuel. Traité du goître et du crétinisme. Paris: Bernard, 1800. 952 Esquirol, Des maladies mentales, p. 352. 951 298 estado de degeneração constitucional, embora geralmente em um nível mais grave, é semelhante ao que se verifica nos idiotas profundos. 953 Entre as enfermidades que, durante o século XIX, foram reunidas sob a classificação de idiotia 954, o cretinismo está entre aquelas que, atualmente, são mais simples de prevenir. Sabe-se hoje que essa deficiência mental e física é causada pelo hipotireoidismo congênito, uma deficiência da tireóide, mais precisamente a falta de tiroxina, hormônio proveniente dessa glândula endócrina, que causa a inflamação da mesma. Durante o desenvolvimento do recém-nascido a ausência da tiroxina impede o amadurecimento cerebral normal. A identificação da enfermidade, que ocorre durante a gestação, é feita pelo teste do pezinho; como a enfermidade se manifesta somente depois de algumas semanas após o nascimento, é possível preveni-la nesse período pela reposição do hormônio. Mesmo com problemas na tireóide, o recém-nascido aparenta funções normais, pois foi suprido com o hormônio pela mãe. Contudo, semanas após o nascimento, o bebê já pode começar a apresentar lentidão nos movimentos, crescimento físico lento e desenvolvimento mental deficiente. As seqüelas são irreversíveis na idade adulta. A deficiência de iodo na dieta também pode causar hipotireoidismo, porém sua prevalência tem diminuído em todo o mundo devido aos programas governamentais de adição de iodo à alimentação (especialmente ao sal de cozinha). 955 De acordo com Esquirol, não se pode apontar uma relação direta e constante entre os defeitos de organização e os diversos graus de sensibilidade e de inteligência dos idiotas, entretanto, verifica-se que quanto mais considerável forem as deformidades orgânicas, mais 953 “Les crétins offrent les mêmes caractères, les mêmes variétés d’incapacité intellectuelle, d’insensibilité physique et morale, qu’on observe chez les idiots; ils se distinguent cependant de ceux-ci , parce qu’ils naissent ordinairement dans les gorges des montagnes et au milieu de circonstances locales et matérielles qui ne se rencontrent point ailleurs, parce qu’ils portent des goitres plus ou moins volumineux, parcequ’ils sont tous éminemment lymphatiques et scrofuleux, etc., etc.” (Esquirol, Des maladies mentales, p. 353). 954 Outras enfermidades são: a síndrome de Down, a síndrome alcoólico-fetal, a síndrome do X frágil, microcefalia causada por infecções virais (como a rubéola), a fenilcetonúria, deficiência na produção da enzima fenilalanina hidroxilase, intoxicação por chumbo, etc. Cf. Vasconcelos, Marcio M. “Retardo mental”. In: Jornal de Pediatria. Vol. 80, Nº 2, 2004, pp. 71-82. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/jped/v80n2s0/v80n2Sa09.pdf>. Último acesso: 27/06/2012. 955 Cf. Knobel, Meyer e Medeiros-Neto, Geraldo. “Moléstias associadas à carência crônica de iodo”. In: Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia. São Paulo, v. 48, n. 1, fevereiro de 2004. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/abem/v48n1/19519.pdf>. Último acesso: 27/06/2012. 299 pronunciadas serão as deformidades da sensibilidade e da inteligência. 956 Os idiotas são freqüentemente, segundo Esquirol, raquíticos, escrofulosos e epilépticos. Muitos possuem uma cabeça muito pequena (microcefalia) ou muito grande (hidrocefalia). A idiotia é acompanhada igualmente, de acordo com Esquirol, por problemas nos órgãos dos sentidos; os defeitos de conformações e simetria de tais órgãos indicam também uma ação imperfeita dos mesmos. Os idiotas enxergam mal ou são cegos, escutam mal ou são surdos-mudos. O paladar e o olfato também apresentam mau funcionamento. 957 As desordens quanto ao sentido do tato é o caso mais comum, apresentando variações extremas: sensibilidade exacerbada (imbecilidade), ou obtusidade extrema (idiotia). O idiota profundo representa um tal estado de insensibilidade e embrutecimento, que eles ignoram a causa da dor, se ela é externa ou interna: “ils n’ont ni douleur, ni plaisir, ni haine, ni amour”. 958 Os idiotas também podem manifestar dificuldades de locomoção, tiques, repetição de movimentos mecânicos, inabilidade para a auto-conservação, inabilidade para se alimentar, para beber, para se vestir, etc. Muitas vezes, o idiota é até mesmo privado das mais básicas faculdades instintivas: “ils sont au-dessous delà brute, car les animaux ont l’instinct de leur conservation, de là reproduction; et ces idiots n’ont pas cet instinct, ils n’ont pas le sentiment de leur existence; ce sont des êtres avortés; ce sont des monstres voués par conséquent à une mort prochaine, si la tendresse des parens, ou la commisération publique ne protégeaient pas leur existence.” 959 Entre as causas físicas e as que determinam uma pré-disposição para a idiotia, Esquirol lista as influências do solo, da água e do ar, a maneira de viver da mãe e a hereditariedade – a causa que ganhará um destaque especial a partir da segunda metade do século XIX. 960 Entre o que Esquirol chama de causas excitantes, estão: afecções morais vivas da mãe durante a gestação, que influem na organização da criança; um parto mal conduzido; baques na cabeça do infante; convulsões, sejam quais forem as causas, cuja 956 Cf. Esquirol, Des maladies mentales, p. 329. Cf. Esquirol, Des maladies mentales, p. 332. 958 Cf. Esquirol, Des maladies mentales, p. 338. 959 Cf. Esquirol, Des maladies mentales, p. 335. 960 “Il n’est pas rare qu’il y ait plusieurs idiots dans une même famille: j’ai connu deux jeunes gens, seuls héritiers d’une grande famille, qui étaient idiots” (Esquirol, Des maladies mentales, p. 341). 957 300 violência pode interromper o desenvolvimento dos órgãos e da inteligência da criança, hidrocefalia aguda e crônica, etc. 961 Esquirol defende que o idiota não pode ser confundido com o leigo, com o ignorante, com o indivíduo que não recebeu educação, que não foi instruído, com o simplório, com o ingênuo. Essa discussão é trazida à tona por ele por conta de todo o debate teórico que, desde Rousseau, envolve a figura do homem selvagem e que, para Esquirol, tem interferido prejudicialmente no avanço teórico e prático no campo psiquiátrico. A descoberta de crianças selvagens, sobretudo a partir do século XVIII, aguçou a curiosidade dos eruditos influenciados pelas teorias empiristas e iluministas, todavia, para Esquirol, essas crianças não passavam de verdadeiros idiotas. Como argumenta o psiquiatra: Et ces hommes trouvés dans les bois, sur lesquels l’éloquence des philosophes du dernier siècle a appelé l’intérêt du monde civilisé, qu’on a montrés, avec affectation, à la curiosité publique, comme des hommes parfaits, supérieurs aux Newton et aux Bossuet euxquels il ne manquait que l’éducation; ces infortunés n’étaient point des sauvages, c’étaient des idiots, des imbécilles abondonnés ou fugitifs que l’instinct de leur conservation, et mille circonstances fortuites avaient préservé de la mort. 962 Esquirol sustenta que a grande constatação deste fato se deu por intermédio das experiências empreendidas por Itard no início do século XIX, ao tentar educar o famoso Selvagem de Aveyron. Em janeiro de 1800, um menino que aparentava ter entre 10 ou 11 anos foi encontrado em um bosque localizado na região de Aveyron, França. O menino havia aparentemente sido deixado na mata entre os dois ou três anos de idade, sem laços sociais de qualquer espécie. O jovem foi logo conduzido à Paris e internado na Instituição Nacional dos Surdos-Mudos, tornando-se alvo de atração pública e de divagações eruditas, mas essa curiosidade rapidamente se esvaneceu. O garoto se mostrava absolutamente indiferente a tudo e a todos, em nada se parecendo com a noção vulgarizada que o imaginário popular havia elaborado a respeito do “bom selvagem” de Rousseau. 961 963 O Cf. Cf. Esquirol, Des maladies mentales, pp. 341-342. Cf. Esquirol, Des maladies mentales, p. 374. 963 “Mobile, farouche, mordant, égratignant, malpropre, affecté de tics convulsifs, se balançant à la façon de certains animaux de la ménagerie, toujours prêta fuir, sans attention aucune, on commença à douter de sa 962 301 garoto é, então, analisado por Pinel, que chega a conclusão de que o mesmo não era um selvagem, mas sim um idiota, em nada diferente daqueles que se encontravam naquele momento no Bicêtre e em Salpêtrière, e que não haveria qualquer possibilidade de educálo; esse provavelmente teria sido o motivo que levou os pais do menino a abandoná-lo nos bosques. 964 Jean Marc Gaspard Itard, aluno de Pinel, cirurgião de formação, e que havia sido nomeado em 1800 para o cargo de médico-residente da Instituição Nacional dos Surdos-Mudos, imbuído das idéias de Condillac, defendeu uma opinião contrária, a de que a criança poderia se aperfeiçoar e que seu estranho estado devia-se à privação social e não a uma inabilidade intelectual. Com a autorização do Estado, e ajudado por uma governanta, Madame Guérin, Itard empreende, assim, por mais de quatro anos, o que ele chamou de “tratamento moral” dessa criança. 965 Itard estabeleceu cinco metas pedagógicas que visavam desenvolver no jovem, batizado por ele de Victor, as faculdades que estavam, segundo o médico, apenas adormecidas: provocar o interesse pela vida social; despertar a sensibilidade nervosa; ampliar a esfera de idéias; levar ao uso da fala; exercitar operações da mente. 966 Todavia, Itard não obteve o sucesso esperado em sua empreitada, conseguindo apenas resultados que, para os objetivos que o médico se propôs, eram insatisfatórios. Não obstante, a experiência de Itard será posteriormente considerada como o marco inicial no tratamento-educação dos sujeitos portadores de idiotia. Victor foi mantido no Instituto de Surdos-Mudos por dez anos, ao final dos quais, dado o estágio estacionário de seus progressos e o desinteresse por parte de Itard, que o via como um fracasso pessoal, bem como os inconvenientes causados por sua presença à Instituição, é entregue definitivamente aos cuidados de Madame Guérin. Victor aprendeu a utilizar o quarto de banho, aceitou usar roupa e aprendeu a vestir-se sozinho, mas nunca foi capaz de articular mais do que um transformation rapide” (Bourneville. “Préface”. In: Itard, Jean Marc Gaspard. Rapports et mémoires sur le Sauvage de l'Aveyron, le idiotie et la surdi-mutité. Préface par Bourneville. Paris, Félix Alcan, 1894, p. xxx). 964 “Les sens en effet, étaient muets comme la sensibilité et l’intelligence. La vue errait vaguement sur les objets; les bruits les plus forts, la musique la plus douce arrivaient impunément à son oreille. Il ne discernait ni l’odeur des parfums ni les exhalaisons fétides. Sa main, saisissant les corps à sa portée, n’était guidée par aucun choix. Pour toute voix, l’émission d’un son guttural et uniforme” (Bourneville, Loc. Cit., p. xxx). 965 “En puissance virtuelle, les facultés dans l’opinion d’Itard ne seraient demeurées inertes que faute d’une stimulation fécondante. Or, bien qu’en pareil cas, le succès ait ses phases d’opportunité, l’âge du jeune sauvage ne lui a pas paru assez avancé encore pour être un obstacle absolu, moyennant de bonnes conditions à une revivifîcation intellectuelle et morale” (Bourneville, Loc. Cit., pp. xxxi-xxxii). 966 Cf. Bourneville, Loc. Cit., p. xxxii. 302 reduzido número de palavras. Com o tempo fez escassos progressos e morreu em 1828, quando tinha por volta de quarenta anos. O caso de Victor de Aveyron foi, portanto, de fundamental importância, de acordo com Esquirol, para a compreensão da idiotia como um defeito de desenvolvimento e não como o resultado de uma educação desastrosa, assim como serviu para desmistificar a figura romantizada do homem selvagem: Ce malheureux est rencontré par des chasseurs, amené dans une ville, conduit dans une capitale, placé dans une école nationale confié aux instituteurs les plus célèbres; la cour, la ville s’intéressent à son sort et à son éducation; les savans font des livres pour prouver que c’est un sauvage, qu’il deviendra un Leibnitz, un Buffon; le médecin observateur et modeste assure que c’est un idiot. On appelle de ce jugement; on fait de nouveaux écrits; on discute; les meilleures méthodes, les soins les plus éclairés sont mis en œuvre pour l’éducation du prétendu sauvage; mais, de toutes ces prétentions, de tous ces efforts, de toutes ces promesses, de toutes ces espérances, qu’est il résulté? Que le médecin observateur avait bien jugé; le prétendu sauvage n’était autre qu’un idiot. Tel avait été le jugement de Pinel sur le Sauvage de l’Aveyron. 967 Jacques Étienne Belhomme foi o seguidor direto de Esquirol, ele é também freqüentemente tido como um dos principais psiquiatras a contribuírem com o desenvolvimento da nosografia da idiotia. Aluno de Esquirol, e médico residente em Salpêtrière, desde 1824, Belhomme publica Essai sur l’idiotie, em 1824 968 , no qual ele apresenta as principais conclusões a respeito de suas observações sobre o estado em que se encontravam vários dos pacientes idiotas que estiveram sob seus cuidados. Não obstante, o fato é que os argumentos teóricos que Belhomme apresenta sobre a idiotia não constituem nenhum desenvolvimento significativo com relação ao trabalho de Esquirol. Parafraseando os principais argumentos elaborados por Esquirol, Belhomme adota a mesma definição de idiotia oferecida por seu predecessor 969 : a noção de que tal enfermidade é primitiva ou consecutiva ao nascimento antes da puberdade 970 , seu caráter distinto da alienação e da demência; o fato de ela não ser uma doença, mas um “estado constitucional”; sua divisão 967 Esquirol, Des maladies mentales, pp. 374-375. Belhomme, Jacques Étienne. Essai sur l’idiotie: propositions sur l’éducation des idiots, mise en rapport avec leur degré d’intelligence. Paris, Germer-Baillière, 1843. 969 Belhomme, Essai sur l’idiotie, p. 11. 970 “L’idiotie n’affecte pas une marche régulière. Les enfants naissent privés d’intelligence, et restent tels pendant toute leur vie ; ou bien, ils se développent jusqu’à un certain point, et restent à ce degré” (Belhomme, Essai sur l’idiotie, p. 37). 968 303 em imbecilidade, idiotia propriamente dita, e sua variação enquanto cretinismo. O único grande ponto de discordância de Belhomme com relação às teorias de Esquirol, diz respeito à possibilidade de um tratamento para esses indivíduos, um tratamento que não visa à cura, mas somente à melhoria da condição de vida dos sujeitos idiotas. Para ele, embora a idiotia seja incurável, é possível tratá-la por meio de uma educação especial, adequada ao grau de idiotia de cada paciente. 971 Contudo, Belhomme não oferece nenhuma metodologia para o tratamento dos idiotas 972, seu livro se limita, na verdade, na maior parte de seu conteúdo, a fazer descrições sintomatológicas e anatômicas, bastante acuradas e precisas, de diversos pacientes idiotas. 973 De Séguin a Voisin Após os escritos de Esquirol e Belhomme, tem início um segundo processo desse movimento de elaboração da idiotia como objeto da psiquiatria, esse processo já não é eminentemente de ordem teórica, mas principalmente da ordem da institucionalização, uma “colocação da idiotia no interior do espaço psiquiátrico, uma colonização da idiotia”. 974 As experiências de Itard com o jovem Victor de Aveyron foram, como ele próprio teve que admitir, um fracasso caso se queira ainda insistir que o jovem era somente um ignorante e não um idiota, contudo, quando se leva em conta que o mais provável é que Victor tenha realmente sido um idiota (ou uma pessoa com algum tipo de atraso intelectual) tal como 971 “Est possible, malgré le degré d’àbrutissement dans lequel se trouvent les malheureux idiots, de rendre leur sort moins affreux en les soumettant à une sorte d’éducation. Il en est peu qui soient susceptibles d’une amélioration aussi évidente, parce qu’il y a absence d’intelligence, que l’on ne peut faire naître; mais chez les imbéciles à différents degrés, l’éducation développerait certainement le peu de facultés qu’ils ont reçues de la nature, si l’on savait les diriger” (Belhomme, Essai sur l’idiotie, p. 36). 972 É bem provável que Belhomme tenha adotado esse posicionamento, em 1843, mais por influência dos trabalhos de Séguin e de Voisin, uma vez que ele tenta chamar a atenção da classe médica para o pioneirismo do seu trabalho, que teria sido obscurecido pela popularidade dos trabalhos dos outros dois. Cf. Belhomme, Essai sur l’idiotie, “Préface”. 973 “Dès les plus tendres années, les petits êtres qui doivent être frappés de cette paralysie de l’intelligence offrent des signes que leurs parents remarquent avec peine. Les sens restent inactifs; ils ne cherchent pas à s’instruire; leur physionomie n’a pas cette mobilité si remarquable dans l’enfance; on ne voit pas le développement des passions qui naissent avec l’homme, ou bien elles sont exagérées; ils sont colères, entêtés, d’une jalousie insupportable. À l’âge où les enfants commencent à parler, à marcher, à peine peuvent-ils articuler quelques mots, et se soutenir sur leurs jambes. Tristes, moroses, quelquefois presque inanimés, ils n’ont point le sentiment de la faim; leurs déjections sont involontaires” (Belhomme, Essai sur l’idiotie, pp. 37-38). 974 Foucault, O poder psiquiátrico, p. 267. 304 diagnosticara Pinel, então as experiências de Itard devem ser consideradas como o primeiro grande passo em direção a uma possibilidade de tratamento para a idiotia, um tratamento que não visava a cura, mas sim a melhoria da condição de vida dos idiotas, a saber, o tratamento pedagógico, a chamada “educação moral” dos idiotas, um método educacional que buscará se adequar ao potencial cognitivo de cada sujeito. Para Foucault, esse foi o momento em que a difusão do poder psiquiátrico se realizou, pela psiquiatrização do idiota, que resultou na psiquiatrização da criança. Quando a idiotia passou a ser excluída do campo das doenças, ela se tornou uma questão de anomalia temporal: “O idiota é um tipo de criança, não é um doente; é alguém que está mais ou menos imerso no interior de uma infância que é a própria infância normal.” 975 O idiota não vai se tornar um adulto propriamente dito, mas por não acompanhar as outras crianças, ficará limitado a um certo grau de infância, será uma variedade temporal; a idiotia passa a ser, então, uma variedade de estágio no interior do desenvolvimento normativo da criança, por isso, uma anomalia; um estado desviante em relação a duas normatividades: a das outras crianças e a do adulto; o idiota não será mais uma criança doente, e sim uma criança anormal. 976 É essa noção de “anormal” que permitirá à psiquiatria tornar-se um poder que extrapola os limites da própria prática médica, um poder de controle e correção, não mais da loucura, e sim do “anormal”; um poder que vai avançar para além dos limites do espaço hospitalar e se dirigir para o interior do espaço escolar 977; um poder que logo irá servir de suporte aos mecanismos de vigilância e controle dos sistemas de governo totalitários. É somente a partir desse momento, com a possibilidade de tratamento/educação dos idiotas, que surge a figura do especialista em idiotia. Dois psiquiatras se destacam como pioneiros nessa área, Séguin, que se tornou a grande referência na educação das crianças idiotas nos Estados Unidos, onde ainda hoje é reconhecido, e Voisin, mais influente na França. 975 Foucault, O poder psiquiátrico, p. 265. Cf. Foucault, O poder psiquiátrico, p. 266. 977 “A psiquiatria vai poder agora se ligar a toda a série de regimes disciplinares que existem em torno dela, em função do princípio de que somente ela é ao mesmo tempo a ciência e o poder do anormal. Tudo o que é anormal em relação à disciplina escolar, militar, familiar, etc., todos esses desvios, todas essas anomalias, a psiquiatria vai poder reivindicar para si. Foi pelo caminho dessa demarcação da criança anormal que se fizeram a generalização, a difusão, a disseminação do poder psiquiátrico na nossa sociedade.” (Foucault, O poder psiquiátrico, p. 281) 976 305 Édouard Séguin foi mestre-escola auxiliar de Itard no Instituto Nacional de SurdosMudos. Persuadido por Itard, e também inspirado pelos resultados que o mesmo obteve na educação do jovem Victor 978, e Esquirol, Séguin começa a se dedicar, em 1831, à educação de crianças idiotas no Bicêtre. Em 1840, passa a trabalhar no Hospício dos Incuráveis do Faubourg Saint-Martin, onde desenvolve e põe em prática seu método pedagógico. Em outubro de 1842, o Conselho Geral dos Hospícios decide transferir as crianças do hospício de Bicêtre para o serviço de Voisin, de quem Séguin se desliga em 1843, por conta de divergências profissionais. Em 1846, Séguin publica a obra Traitement moral, hygiène et éducation des idiots, em franca concorrência com o trabalho de Voisin. Em 1852, porém, ele migra para os Estados Unidos, onde funda diversas escolas em diferentes cidades para o tratamento de crianças idiotas, a mais famosa foi a Séguin Physiological School, situada em Nova York. Em 1866, publica “Idiocy: and its Treatment by the Physiological Method” 979, a obra que representa o marco do início dos trabalhos teóricos sobre a idiotia nos Estados Unidos, país que vai se tornar, durante o século XX, o principal centro de estudos sobre a idiotia. Séguin se torna o primeiro presidente da “Association of Medical Officers of American Institutions for Idiotic and Feebleminded Persons”, provavelmente a mais importante organização que tem como missão o suporte profissional para o tratamento de pessoas com inabilidade mental nos dias atuais, cuja mudança constante no nome indica a freqüente necessidade de se buscar eufemismos para classificar esse tipo de enfermidade a fim de combater/ocultar o preconceito com que a sociedade sempre lidou com essas pessoas. 980 978 “À la place des des noms que l’on a voulu attacher à la question de l’Idiotie, j’écrirai celui d’Itard, qui, le premier, par l’éducation du sauvage de l’Aveyron, a ouvert la voie dans laquelle je suis entré seul à sa suite” (Séguin, Édouard. Traitement moral, hygiène et éducation des idiots et des autres enfants arrières. Paris: J. -B. Baillière, 1846, Avant-propos, p. 4). 979 Cf. Séguin, Édouard. Idiocy and its treatment by the physiological method. New York, Teachers College, Columbia University, 1907. 980 A primeira mudança de nome da organização resultou em American Association on Mental Deficiency, em seguida, American Association on Mental Retardation. Finalmente, em julho de 2006, a organização foi rebatizada como American Association on Intellectual and Developmental Disabilities (AAIDD). Cf. o site oficial: < http://www.aaidd.org/ >, último acesso: 27/06/2012. Pode-se verificar que a definição de inabilidade intelectual proposta pela AAIDD ainda se mantém muito próxima daquilo que Esquirol um dia denominou de idiotia, segundo consta no site oficial da associação: “Intellectual disability is a disability characterized by significant limitations both in intellectual functioning and in adaptive behavior, which covers many everyday social and practical skills. This disability originates before the age of 18.” 306 O tratamento da idiotia 981 por meio de um método educacional que visa melhorar a condição de vida do sujeito que Séguin oferece tem como fundamento a noção de que esta enfermidade não se manifesta em diferentes tipos, mas sim em diferentes graus, sua classificação não é de ordem qualitativa, e sim quantitativa. Séguin, diferente de Esquirol, não crê que se possa falar de uma ausência total de desenvolvimento, mas somente de uma interrupção ou de um atraso de desenvolvimento. A noção central do método educativo de Séguin é, portanto, a de desenvolvimento. Partindo do princípio de que a idiotia consiste numa interrupção do desenvolvimento da criança, Séguin vai estabelecer uma distinção entre as crianças retardadas (retardés) ou atrasadas (arriérés) e as crianças idiotas, o que provavelmente representa sua maior contribuição para o debate teórico sobre tal enfermidade. As crianças retardadas, diferentes das idiotas, não são aquelas cujo desenvolvimento se deteve em uma determinada fase, e sim aquelas cujo desenvolvimento se dá de maneira mais lenta. 982 As crianças retardadas também apresentam níveis diferentes de atraso, algumas progridem mais lentamente que outras, e a velocidade do progresso de cada uma também pode se alterar, geralmente para um estado mais grave. Como explica Séguin: L’idiot, même superficiel, offre un arrêt de développement physiologique et psychologique; l’enfant retardé ne s’arrête pas dans le sien, seulement il se développe plus lentement que les enfants de son âge; il est en arrière sur toute la ligne de leurs progrès; et ce retard, chaque jour plus considérable, finit par établir entre lui et eux une différence énorme, une distance infranchissable. 983 981 “L’idiotie est une infirmité du système nerveux, qui a pour effet radical de soustraire tout ou partie des organes et des facultés de l’enfant à l'action régulière de sa volonté, qui le livre à ses instincts et le retranche du monde moral” (Séguin, Traitement moral, hygiène et éducation des idiots, p. 107). 982 No início do século XX, ainda que essa diferenciação não seja exatamente ignorada, os idiotas e retardados serão ambos classificados indistintamente pelo termo “retardado mental”, como podemos verificar em um dos antigos nomes da AAIDD. A idiotia propriamente dita será denominada de retardo mental profundo. Todavia, posteriormente, a idiotia passou a ser classificada como deficiência mental profunda e, atualmente, como inabilidade mental profunda. Um termo que vem ganhando certo destaque como aquele que seria o mais correto é o de oligofrenia: do grego ο ίγο (olígos), pouco, e φ ο (frenos), espírito, inteligência; o idiota seria o portador de oligofrenia profunda. A criança retardada propriamente dita é mais comumente designada, atualmente, como portadora de atraso mental ou de desenvolvimento mental lento. Os termos politicamente corretos mais recomendados por órgãos como UNICEF para ambas as inabilidades é “pessoas portadoras de necessidades especiais” ou pessoas “excepcionais”, mas estes termos estão longe de ser uma convenção (sendo muitas vezes criticados por seu alto grau de eufemismo que tenta ocultar um profundo preconceito) ou de constituir a forma definitiva para a classificação de tais enfermidades. 983 Séguin, Traitement moral, hygiène et éducation des idiots, p. 72. 307 Essa concepção de uma dimensão temporal, quantitativa, do desenvolvimento fisiopsicológico dos indivíduos que Séguin introduz na psiquiatria constitui o primeiro passo em direção à elaboração de métodos que visam medir a capacidade intelectual dos indivíduos. Esses instrumentos psicométricos irão exercer, durante todo o século XX, principalmente nos Estados Unidos, e mesmo ainda no século XXI (por mais que se denuncie sua inexatidão e seu caráter ultrapassado) 984 , uma vasta influência no campo médico, educacional, profissional, legislativo e militar. Em 1905, Alfred Binet e Théodore Simon, inspirados por Séguin, desenvolveram, a pedido da Comissão Francesa para a Investigação dos Interesses da Educação, o primeiro teste de inteligência que fornecia uma escala de classificação, tendo como base a chamada idade mental, para diferenciar crianças idiotas e retardadas das ditas normais. A escala Binet-Simon dará origem, mais tarde, ao famoso teste de Quociente de Inteligência (QI), criado em 1912 por Wilhelm Stern. O teste QI consiste numa divisão da chamada idade mental pela idade cronológica. O psiquiatra e eugenista norte-americano Henry H. Goddard, herdeiro de Séguin e autor de “The Kallikak family: a study in the heredity of feeble-mindedness” 985 , o grande clássico dos estudos norte-americanos sobre idiotia, irá introduzir o teste Binet-Simon em 1908 nos Estados Unidos. Goddard será o grande defensor do uso dos testes de inteligência em instituições sociais como hospitais, escolas, instituições legislativas e militares, e desempenhará um papel proeminente nos programas eugênicos implantados pelo governo Norte-Americano no começo do século XX, defendendo a esterilização dos ditos incapazes. Goddard classificará os inábeis mentais em morons, do grego ω ό (moros), que significa tolo, aqueles com QI entre 51 a 70, e idade mental entre 8 e 12 anos; imbecis, com QI entre 26 a 50, e idade mental entre 4 a 7 anos; e idiotas, com QI entre 0 a 25, e idade mental entre 0 a 3 anos. 986 Para Goddard, os morons e os demais indivíduos abaixo da escala de inteligência 984 Cf. a página oficial da AAIDD. Cf. Goddard, Henry Herbert. The Kallikak Family, a study in the heredity of feeble-mindedness. New York: The Macmillan Company, 1913. 986 Na página oficial da AAIDD, lê-se: “One criterion to measure intellectual functioning is an IQ test. Generally, an IQ test score of around 70 or as high as 75 indicates a limitation in intellectual functioning”. Todavia, uma nova escala promete substituir o teste QI em 2012: “AAIDD’s new Diagnostic Adaptive Behavior Scale (DABS) scheduled to be released in 2012 provides a comprehensive standardized assessment of adaptive behavior. Designed for use with individuals from 4 to 21 years old, DABS provides precise 985 308 eram inadequados para o convívio social e deveriam ser apartados, seja pela institucionalização, seja pela esterilização ou por ambas as iniciativas. 987 O segundo avanço significativo na educação de crianças idiotas e retardadas foi feito por Voisin, que publicou a obra De l’idiotie chez les enfants, também em 1843. 988 Félix Voisin, então médecin en chef da seção dos incuráveis do Bicêtre, e que também fora discípulo de Esquirol, foi o primeiro a questionar seriamente a definição de idiotia dada por este último. Para Voisin, o fato de Esquirol ficar a cargo de uma série de outras obrigações e de sentenciar os idiotas a permanecerem sem qualquer tratamento, fez com que ele não desse a devida atenção a real condição desses indivíduos. Voisin assegura que não se pode considerar a idiotia simplesmente como uma ausência ou interrupção unicamente do desenvolvimento das faculdades intelectuais, pois, segundo ele, o indivíduo idiota se vê igualmente impossibilitado de desenvolver integralmente todas as outras faculdades de que dispõe a espécie humana. Deste modo, os diferentes tipos de idiotia não podem ser determinados unicamente pelo grau de desenvolvimento cognitivo do sujeito. Para identificar as diferentes formas que a idiotia pode vir a assumir, é necessário, de acordo com Voisin, observar a natureza mesma do homem, o desenvolvimento integral de todas as faculdades que lhe são próprias; é necessário atentar para os elementos instintivos, intelectuais, morais e perceptivos que compõe sua natureza, isto é, os elementos cujo conjunto e harmonia fazem com que o homem se constitua, ao mesmo tempo, um animal, um ser moral, intelectual e perceptivo. diagnostic information around the cutoff point where an individual is deemed to have ‘significant limitations’ in adaptive behavior. The presence of such limitations is one of the measures of intellectual disability.” Adaptive behavior is the collection of conceptual, social, and practical skills that all people learn in order to function in their daily lives. DABS measures these three domains:  Conceptual skills: literacy; self-direction; and concepts of number, money, and time;  Social skills: interpersonal skills, social responsibility, self-esteem, gullibility, naïveté (i.e., wariness), social problem solving, following rules, obeying laws, and avoiding being victimized;  Practical skills: activities of daily living (personal care), occupational skills, use of money, safety, health care, travel/transportation, schedules/routines, and use of the telephone.” 987 Cf. Carlson, Licia. The faces of intellectual disability: philosophical reflections. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 2010. 988 Voisin, Félix. De l’idiotie chez les enfants et des autres particularités d’intelligence ou de caractère qui nécessitent pour eux une instruction et une éducation spéciales. De leur responsabilité morale. Paris: J. -B. Baillière, 1843. Obra integralmente reproduzida em: Bourneville. Recueil de mémoires, notes et observation sur le idiotie. Paris, E. Lecrosnier et Babé, 1891. 309 L’idiotie ne respecte aucune faculté de quelque ordre qu’elle puisse être, et n’a point de siège déterminé. Elle peut frapper l’homme partiellement ou complètement, dans toutes les virtualités de son être. Tantôt elle le frappe dans ses instincts de conservation et de reproduction; tantôt elle le frappe dans ses sentiments moraux, tantôt dans ses puissances intellectuelles et tantôt dans ses facultés de perception; elle peut le frapper dans l’un ou l’autre de ces pouvoirs fondamentaux, sans que les autres pouvoirs cessent pour cela de remplir ce que j’appellerai volontiers leurs fonctions individuelles. 989 Deste modo, as infinitas variações com que a idiotia pode se manifestar não dizem respeito apenas ao estágio de desenvolvimento de inteligência em que cada idiota se deteve, mas também aos diferentes estágios de desenvolvimento instintual, perceptivo e moral em que tal interrupção do desenvolvimento ocorreu, desde os níveis mais atenuados até os mais graves, em que a idiotia destrói todo ser instintivo, todo ser moral, todo o ser perceptivo fazendo com que “l’ombre de l’animal et de l’homme alors n’est pas même aperçu.” 990 Mas a interrupção de desenvolvimento de cada aspecto da natureza integral do homem não se dá de maneira homogênea, ou seja, simultaneamente em um mesmo indivíduo; as diferenças de graus de desenvolvimento da idiotia dizem respeito não só às diferenças existentes entre um sujeito e outro, mas também às diferenças de graus de desenvolvimento de cada faculdade em particular em um determinado sujeito: “En effet, si nous consultons les faits, nous voyons qu’on peut avoir quelquefois plus ou moins d’intelligence, et ne pas posséder, ou ne posséder qu’à un très faible degré telle et telle puissance de conservation.” 991 Essa concepção de idiotia dada por Voisin é bastante esclarecedora, pois permite que se possa compreender como um indivíduo tal como o príncipe Míchkin, de Dostoiévski, pode ser concebido como um idiota, ou seja, como um indivíduo bastante perspicaz e mesmo inteligente pode ser tido como detentor desse tipo de enfermidade. Ora, para Voisin, o grau de inteligência não basta para determinar se um indivíduo desenvolveu por completo todos os elementos que o constituem enquanto homem; por exemplo, um sujeito incapaz de buscar sua própria proteção, de se defender não conseguiu completar, na perspectiva de Voisin, seu desenvolvimento instintual; sendo assim, ainda que este indivíduo desfrute de 989 Voisin, De l’idiotie chez les enfants, p. 260. Voisin, De l'idiotie chez les enfants, idem. 991 Voisin, De l'idiotie chez les enfants, p. 261. 990 310 uma capacidade cognitiva aparentemente normal classificação de idiotia. 993 992 , sua condição também recai sob a Voisin define, por conseguinte, a idiotia da seguinte maneira: L’idiotie pourrait donc être définie, cet état particulier dans lequel les instincts de conservation et de reproduction, les sentiments moraux et les pouvoirs intellectuels et perceptifs ne se sont jamais manifestés, ou cet état particulier dans lequel ces différentes virtualités de notre être, ensemble ou séparément, ne se sont qu’imparfaitement développées. 994 Nesse sentido, a idiotia não se limita a uma inabilidade das faculdades cognitivas, sua característica primordial é mesmo uma interrupção do desenvolvimento durante a infância que impede que o sujeito complete a evolução ontogênica natural aos membros de sua espécie, ou seja, que impede que ele cresça em todos os seus aspectos, seja orgânico, instintual, perceptivo ou cognitivo, que impede que ele se torne, por fim, um autêntico exemplar do que seria um membro adulto de sua espécie. O idiota não tem uma evolução, ele não amadurece de fato, ele pode, por exemplo, ter seus instintos desenvolvidos como os de um adulto, mas a capacidade intelectual presa em um determinado estado do desenvolvimento cognitivo da criança, ou, ao contrário, ter uma capacidade intelectual que se aproxime daquilo que se acredita ser um desenvolvimento cognitivo pleno, mas possuir uma grave deficiência instintual. A psiquiatria da segunda metade do século XIX irá buscar definir a idiotia quase sempre levando em consideração esse novo aspecto introduzido por Voisin, diferenciando, por exemplo, o idiota moral do idiota intelectual ou mental (Morel e Féré), etc. Não obstante, a inabilidade intelectual ainda continuará sendo considerada como o principal atributo dos idiotas, e, durante o século XX, e mesmo no início do século XXI, a principal deficiência dos idiotas permanecerá sendo identificada como sendo muito mais de ordem cognitiva. Contudo, a definição de idiotia dada por Voisin é de suma importância para o entendimento de que o fato de alguém como Jesus ser considerado idiota não representava 992 Embora um idiota possa ser detentor de uma capacidade cognitiva que se aproxime da normalidade, o funcionamento dessa faculdade será prejudicado pela interrupção de desenvolvimento de suas outras faculdades, pela ausência de uma harmonia entre aquilo que constitui a integralidade de sua natureza. 993 “Ne peut-on pas avoir plus ou moins d'intelligence et cependant être atteint d'idiotie dans ses sentiments moraux?” (Voisin, De l'idiotie chez les enfants, p. 261). 994 Voisin, De l'idiotie chez les enfants, p. 261-262. 311 necessariamente algo exatamente tão escandaloso ou alarmante para o século XIX quanto pode ser para nossa época, ao menos naquilo que se refere a todo um debate teórico travado no interior da psiquiatria durante esse período. Da mesma forma que as investigações sobre o fenômeno da histeria possibilitaram, por exemplo, que o homem santo ou o possesso fossem tratados, na psiquiatria daquela época, como indivíduos acometidos por distúrbios mentais, não há nada de realmente surpreendente e inesperado no fato de que os grandes fundadores de religiões logo fossem submetidos ao escrutínio do exame psiquiátrico, como realmente veio a ocorrer. Em 1878, por exemplo, o médico francês Jules Soury descreveu Jesus como um “alienado e alucinado”, como “histérico e exaltado, como nervosa e mentalmente doente”. No início do século XX, estudos da psicopatologia do “caso Jesus” se tornaram extremamente comuns. Emil Rasmussen escreveu Jesus. Eine vergleichende psychopathologische Studie, publicado em 1905; George De Loosten, Jesus Christus vom Standpunkt des Psychiaters, também em 1905; Charles Binet-Sanglés, La folie de Jésus, em 1908; William Hirsch, Religion and Civilisation: The Conclusions of a Psychiatrist, em 1912. 995 Dessa maneira, um sujeito como Jesus, que não busca proteção, que parece não se preocupar com a própria conservação, que não se defende, exibe um traço de comportamento que, nessa perspectiva de idiotia elaborada por Voisin, por exemplo, poderia muito bem denunciar de fato um tipo de incapacidade, de deficiência, de inabilidade, e, portanto, de enfermidade, embora tal sujeito demonstre um tipo especial, bastante peculiar (“divino”), de inteligência: “Combien d’individus par exemple, [...] sont privés d’ambition, sont privés d’égoisme et sont morts aux amours, quoique aptes d’ailleurs à ordonner intellectuellement leurs rapports dans le monde!” 996 Outro aspecto extremamente importante nessa definição de idiotia proposta por Voisin, e que exercerá um papel fundamental no terceiro grande momento do 995 Cf. Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 148. Para Moore, a obra de De Loosten é a que mais se aproxima do diagnóstico de Nietzsche: “De Loosten suggests that Christ was ‘probably of mixed race [Mischling]’, that he was accordingly ‘tainted from birth by heredity’ and a ‘congenital degenerate’. An exaggerated self-consciousness combined with high intelligence and an only slightly developed sense of family and sex [Familien- und Geschlechtssinn], de Loosten continues, eventually evolved into a fixed delusional system, the peculiarities of which were influenced by the intensive religious tendencies of his time and by his one-sided preoccupation with the prophecies of the Old Testament.” 996 Voisin, De l’idiotie chez les enfants, p. 261. 312 desenvolvimento do conceito nosográfico de idiotia, é a noção de que a deficiência instintual e orgânica dos idiotas abrange dois elementos essenciais para a perpetuação da espécie humana, a saber, a busca por conservação, algo já apontado por Esquirol, e a capacidade de reprodução. A tese de que os idiotas possuem, em geral, uma inabilidade para a reprodução terá um importante desdobramento na teoria da degenerescência desenvolvida por Morel. 3.3.2 – A teoria da degenerescência A elaboração da teoria da degenerescência feita por Morel representa um momento decisivo para a consolidação da psiquiatria como especialidade médica e como um saber autenticamente científico, visto que essa teoria forneceu o primeiro grande paradigma que permitiu a sistematização do estudo das patologias mentais, de seu diagnóstico, classificação e tratamento; e a idiotia exerce um papel fundamental na demonstração da principal tese dessa teoria, a saber, que a degenerescência é hereditária e progressiva. Bénédict Augustin Morel foi aluno do célebre Jean-Pierre Falret em Salpêtrière, onde também trabalhou conjuntamente com Claude Bernard. Em 1848, ele se torna médecin en chef do Asile d’Aliénés de Maréville em Laxou, perto de Nancy. Em Maréville, ele realizou estudos sobre os idiotas, investigando com especial atenção o histórico familiar dos mesmos. Em 1856, é designado como médecin en chef do Asile des aliénés de SaintYon, em Rouen. Influenciado por diversas teorias pré-darwinistas, Morel publica, em 1857, seu Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l’espèce humaine 997 , no qual ele busca explicar a natureza, causas e manifestações da degenerescência humana, apontando como fator determinante na etiologia das doenças mentais a hereditariedade. Embora Pinel e Esquirol também tenham identificado um fator biológico hereditário como uma das principais causas da alienação mental (e da idiotia), tal fator não era considerado por eles como um determinante absoluto, sendo responsável apenas pela transmissão de uma certa pré-disposição que poderia ou não se tornar manifesta devido a ação de diversos outros fatores acidentais, biográficos, morais e psicológicos. Para esses 997 Morel, Bénédict Augustin. Traité des dégénérescences physiques, intellectuelles et morales de l'espèce humaine et des causes qui produisent ces variétés maladives. Paris: J. B. Baillière, 1857. 313 autores, uma pré-disposição podia de fato ser observada pela maior freqüência e semelhança clínica dos quadros psiquiátricos apresentados por membros de uma mesma linhagem familiar, mas tal pré-disposição à loucura era concebida como específica e similar, no sentido de que os traços transmitidos entre as gerações eram sempre os mesmos para um determinado tipo de condição patológica, segundo a lógica de que o semelhante gera o semelhante. 998 Com o conceito de degenerescência progressiva, introduzido por Morel, essa maneira de se conceber a herança familiar como causa da alienação mental será radicalmente alterada. O objetivo de Morel era encontrar uma unidade entre o quadro clínico, a evolução e a causa biológica de cada entidade mórbida, deste modo, a degenerescência progressiva hereditária vai se constituir, para ele, como a causa determinante das patologias mentais, que não são transmitidas de forma semelhante aos descentes, mas que dão origem, na verdade, a novas e mais graves entidades mórbidas, tese que vai garantir para a psiquiatria uma sistematização científica de suas teorias. Da mesma maneira, a etiologia da idiotia será, a partir de então, predominantemente considerada como estando intimamente relacionada com a hereditariedade e com o fenômeno da degeneração progressiva dos membros de uma mesma família. De acordo com Morel, o exame das tendências e atos dos alienados revela que os mesmos são os representantes de uma mesma causa degenerativa que se propaga em qualquer parte do globo e de forma sempre idêntica. Segundo ele, em qualquer parte do mundo, é possível observar que a alienação mental perfaz uma trajetória bastante regular: uma disseminação, entre os descendentes de uma mesma família, de distúrbios físicos, psíquicos e morais, que se manifesta de forma mais amena nos primeiros membros até atingir um estado mais grave, derradeiro e extremo nos últimos, que se vêem incapazes de dar continuidade à sua linhagem. Essa transmissão de traços mórbidos para os descendentes que caracteriza os sujeitos degenerados não ocorre, como acreditavam Pinel e Esquirol, de forma semelhante, mas sim por meio de um agravamento degenerativo, de transformações 998 Cf. o sempre essencial artigo de Pereira, Mário Eduardo Costa. “Morel e a questão da degenerescência”. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, v. 11, n. 3, pp. 490-496, setembro 2008. Disponível em:< www.scielo.br/pdf/rlpf/v11n3/12.pdf >, último acesso em: 27/06/2012. Bem como o excelente artigo de Serpa Junior, Octavio Domont. “O degenerado”. In: História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 17, supl. 2, dezembro de 2010, pp. 447-473. Disponível em: < www.scielo.br/pdf/hcsm/v17s2/11.pdf >, último acesso em: 27/06/2012. 314 patológicas, até que, finalmente, chega-se ao grau máximo de degradação possível na espécie. É assim que, segundo ele, a alienação, as neuroses, a hipocondria, a histeria e a epilepsia, sucedem-se umas as outras ao longo das gerações de determinadas famílias; cada novo membro histérico ou epiléptico de tais famílias, por exemplo, é acometido por ataques bem mais freqüentes e alarmantes do que aqueles que assaltaram seus antepassados, dando lugar, na geração seguinte, a uma paralisia geral, a um colapso generalizado de todas as forças intelectuais e físicas, que acaba por impedir toda possibilidade de cura; essa marcha inclemente em direção a degenerescência total das faculdades físicas, intelectuais, psíquicas e morais, terminará com o nascimento de indivíduos que contém em si todos os estigmas que anunciam o grau máximo de degradação na espécie, tais indivíduos são justamente os idiotas: “Enfin, l’imbécillité congénitale ou acquise, l’idiotie, et d’autres arrêts de développement plus ou moins complets du corps et des facultés intellectuelles, inaugurent, dans des progressions effroyables, l’existence d’individus qui puisent, jusque dans les conditions de la vie fœtale, le principe de leur dégénérescence.” 999 Morel esclarece que, a princípio, seus estudos estavam voltados unicamente para as causas das patologias mentais a fim de desenvolver um tratamento terapêutico destinado a vulgarizar os meios de prevenção e de combate a essas afecções, contudo, suas observações o levaram constatar que é o fenômeno hereditário das transformações patológicas que regula a propagação desses males, o que torna inseparável o estudo da patogênese das doenças mentais daquele das causas que produzem a degenerescência, por isso, seu livro visa “démontrer l’origine et la formation des variétés maladives dans l’espèce humaine.” Para Morel, isso também significa que toda terapêutica deveria ter como princípio o estabelecimento de indicações profiláticas 1000 e higiênicas, pois, segundo ele, a presença da degenerescência entre a parte sadia da população é uma situação de grande risco, uma vez que a transmissão da degenerescência não pode ser interrompida pela reprodução entre sujeitos degenerados e sadios. Morel define a degenerescência da seguinte maneira: 999 Morel, Traité des dégénérescences, préface, p. viii. “S’il en est ainsi, le traitement de l’aliénation mentale ne doit plus être regardé comme indépendant de tout ce qu’il est indispensable de tenter pour améliorer l’état intellectuel, physique et moral de l’espèce humaine” (Morel, Traité des dégénérescences, préface, p. ix). 1000 315 L’idée la plus claire que nous puissions nous former de la dégénérescence de l’espèce humaine, est de nous la représenter comme une déviation maladive d’un type primitif. Cette déviation, si simple qu’on la suppose à son origine, renferme néanmoins des éléments de transmissibilité d’une telle nature, que celui qui en porte le germe devient de plus en plus incapable de remplir sa fonction dans l’humanité, et que le progrés intellectuel déjà enrayé dans sa personne se trouve encore menacé dans celle de ses descendants. 1001 Ainda que essa definição de Morel vá ser rapidamente criticada por outros psiquiatras pelo seu forte pendor religioso, a psiquiatria da segunda metade do século XIX vai adotar como paradigma sua teoria de que a espécie pode vir a adquirir um tal grau de degeneração de suas funções mais básicas que afetará permanentemente sua capacidade reprodutiva, fazendo com que esses traços mórbidos sejam, a partir de então, transmitidos hereditariamente em uma linha progressiva de degradação. 1002 Para Morel, existe, pois, uma lei que regula a transmissão de anomalias patológicas degenerativas, a saber, a lei da degradação progressiva 1003, e, para ele, essa lei possui uma eficácia na ação bem maior do que a lei da hereditariedade natural das espécies, porquanto as degradações na espécie são transmitidas mais facilmente do que as variações naturais. Morel acredita que isso só revela a “ordem e sabedoria da natureza”, afinal, o fim da lei da degradação progressiva é impedir a propagação e conservação da degenerescência na espécie, isto é, fazer com que a própria degenerescência busque e alcance sua dissolução 1004 : o percurso natural da degenerescência na espécie é a extinção dos seres degenerados, que se dá pelo fenômeno da esterilidade, característico de seus últimos membros, ou seja, pela incapacidade congênita de darem continuidade à linhagem degenerada que lhes engendrou. Como assevera Morel: 1001 Morel, Traité des dégénérescences, p. 5. “A psiquiatria e as concepções científicas sobre a hereditariedade dos transtornos mentais estiveram profundamente marcadas, na segunda metade do século XIX, pela teoria da degenerescência. A potência explicativa da noção de degenerescência parecia não conhecer limites e todos os traços mórbidos ou aberrantes podiam ser compreendidos à luz dessa proposição.” (Pereira, “Morel e a questão da degenerescência”, p. 493) 1003 “É importante lembrar que [em Morel] todas as referências à hereditariedade subjacentes à noção de degenerescência não se apoiavam sobre uma teoria propriamente genética, sendo que mesmo os trabalhos de Mendel sobre as leis da hereditariedade, baseadas em seus experimentos com a hibridação de ervilhas, só seriam apresentados à Sociedade de Ciências Naturais em 1865 e que a própria noção de ‘gene’ só iria se consolidar no início do século XX.” (Pereira, “Morel e a questão da degenerescência”, p. 493) 1004 Vimos como Féré irá posteriormente justificar como a reprodução dos degenerados entre si não é obra do acaso, eles se buscam e, portanto, tendem naturalmente a ir em direção de sua própria dissolução. 1002 316 Un des caractères les plus essentiels des dégénérescences est celui de la transmission héréditaire, mais dans des conditions bien autrement graves que celles qui règlent les lois ordinaires de l’hérédité. L’observation rigoureuse des faits nous démontrera, qu’à moins de certaines circonstances exceptionnelles de régénération, les produits des êtres dégénérés offrent des types de dégradation progressive. Cette progression peut atteindre de telles limites que l’humanité ne se trouve préservée que par l’excès même du mal, et la raison en est simple: l’existence des êtres dégénérés est nécessairement bornée, et, chose merveilleuse, il n’est pas toujours nécessaire qu’ils arrivent au dernier degré de la dégradation pour qu’ils restent frappés de stérilité, et conséquemment incapables de transmettre le type de leur dégénérescence. 1005 De acordo com Morel, só é possível formular uma teoria completa da degenerescência na espécie humana quando se estabelece como princípio a unidade dessa espécie, somente admitindo tal unidade é que se pode compreender como determinadas causas de ordem física, moral ou psíquica podem produzir em qualquer lugar do mundo as mesmas transformações de degenerescência física e de degradação intelectual, e isso segundo “des lois uniformes chez toutes les races humaines, chez toutes les variétés de ces races et sous toutes les latitudes.” 1006 Morel admite a existência de três causas principais que concorrem para a produção de variedades na espécie, que se podem observar nos diferentes povos da terra, a saber: a influência do clima, da alimentação e dos costumes. É necessário atentar, não obstante, para o fato de que há dois tipos de modificações que podem ocorrer na espécie: as naturais, que representam essas variações na espécie, dando origem, para Morel, as diferentes raças, e que permitem que as mesmas se adéqüem às necessidades naturais específicas do meio em que habitam; e as mórbidas, que representam uma degradação, um prejuízo na espécie, um distúrbio ou uma debilidade fisiológica ou psicológica, dando origem à degeneração na espécie. Morel defende que não há nenhuma hierarquia das raças, pois todas as raças são “fortes”, no sentido de que todas elas possuem condições adequadas, adaptadas e necessárias para o seu próprio ambiente. Todas as variações na espécie humana são condicionadas por causas naturais relacionadas com o 1005 Morel, Traité des dégénérescences, p. 4-5. “D’un autre côté, dans l’état que je désigne sous le nom de dégénérescence, on ne remarque pas cette propension de l’individu à revenir à son type normal, par la raison que la dégénérescence est un état maladivement constitué, et que l’être dégénéré, s’il est abandonné à luimême, tombe dans une dégradation progressive. Il devient (et je ne crains pas de répéter cette vérité), il devient non-seulement incapable de former dans l’humanité la chaîne de transmissibilité d’un progrés, mais il est encore l’obstacle le plus grand à ce progrès, par son contact avec la partie saine de la population. La durée de son existence enfin est limitée comme celle de toutes les monstruosités” (p. 6). 1006 Morel, Traité des dégénérescences, p. 11. 317 ambiente externo, com o clima, com a alimentação e com os costumes. Não há, por conseguinte, uma raça degenerada. 1007 Porém, todas as raças possuem indivíduos degenerados. A degenerescência é condicionada por fatores não naturais, que determinam o surgimento não de variações na espécie, mas de degradações na espécie. 1008 A degenerescência é comum a toda e qualquer raça. Há menos diferença, argumenta Morel, entre um europeu forte e o membro de qualquer outra raça da espécie humana, como as ditas raças incivilizadas, primitivas ou selvagens 1009 , do que entre este mesmo europeu e seu conterrâneo degenerado. Ademais, membros de raças diferentes possuem a capacidade de se relacionarem e se reproduzirem entre si, dando origem a novos membros da espécie, que, pelo seu maior poder de adaptação, podem, talvez, virem a se constituir em indivíduos ainda mais fortes e robustos. Os indivíduos degenerados de qualquer raça, pelo contrário, ao se reproduzirem entre si, darão origem a indivíduos ainda mais degenerados, até que, com o progresso da degeneração, seus descendentes se tornem estéreis, interrompendo a propagação da degenerescência; da mesma forma, caso eles ainda possuam alguma capacidade reprodutiva e venham a se reproduzir com indivíduos sadios, acabarão dando origem a uma nova linhagem degenerativa e não a novos indivíduos sadios. 1010 De acordo com Morel, as diferentes causas responsáveis pelo surgimento de modificações mórbidas permanentes na espécie humana, que conduzem a sua degradação hereditária progressiva, são, sobretudo, intoxicações, principalmente pelo abuso do álcool, uma alimentação deficiente, um meio social miserável, a indústria, profissões insalubres, a imoralidade dos costumes, uma conduta sexual desregrada, doenças da infância e a própria 1007 “Plus la dégénérescence est profonde, plus aussi la possibilité de s’unir ensemble et de propager la grande et unique famille du genre humain, devient une chose difficile à réaliser, et les êtres maladivement dégénérés ne peuvent former des races” (Morel, Traité des dégénérescences, p. 15). 1008 “Je pense qu’il ne faut pas confondre les modifications que peuvent subir les races humaines et qui ont pour résultat d’adapter leur constitution au climat qu’elles habitent, avec ces autres modifications plus profondes et plus radicales qui sont le résultat d’un principe maladif, et qui forment pour nous la classe des dégénérescences proprement dites de l’espèce humaine” (Morel, Traité des dégénérescences, p. 26). 1009 “Les dissemblances qui existent entre elles et d’autres variétés sont les résultats nécessaires des influences extérieures, l’expression la plus frappante de cette loi naturelle qui fait que l’organisme de l’homme s’adapte au climat sous lequel il est destiné à vivre, mais encore une fois, toutes ces dissemblances ne proviennent pas d’un état maladif” (Morel, Traité des dégénérescences, pp. 34-35). 1010 Para Morel, portanto, os degenerados em si não são um perigo para a sobrevivência da espécie, eles não poderiam constituir uma casta que sobrepujaria os indivíduos saudáveis, porém, sua propagação deveria ser impedida por medidas sanitárias e educativas, isto é, pelo controle da procriação dos degenerados entre si e por meio da vigilância para que não ocorram gerações entre eles e os indivíduos sadios. 318 herança de uma carga de degenerescência (em outros termos, a degenerescência pode ser congênita ou adquirida). Entretanto, o fator hereditário acaba por percorrer todas as demais causas, uma vez que as degenerescências na espécie são transmitidas à descendência independentemente das causas que concorreram para sua origem. 1011 Morel sustenta que as exigências não naturais impostas pela civilização reúnem em si todos os principais fatores que ocasionam o fenômeno da degenerescência, tais exigências representam o exato oposto das diferentes condições naturais que originam as variações na espécie. As novas e artificiais condições a que os homens são submetidos nas sociedades civilizadas criam tipos outrora inexistentes de lutas e os expõe, por conseqüência, a novas formas de desvios mórbidos de sua natureza primitiva: “C’est dire en d’autres termes que l’exercice de professions dangereuses ou insalubres, l’habitation dans des centres trop populeux ou malsains, soumettent l’organisme à-de nouvelles causes de dépérissement et conséquemment de dégénérescence.” 1012 Para Morel, a conseqüência mais nefasta das novas condições de existência trazidas pela civilização é o alcoolismo crônico, entidade mórbida que vai preceder justamente a geração do último elo da cadeia degenerativa, isto é, o idiota. 1013 Acerca dos idiotas, Morel declara: Il est impossible de voir un exemple plus frappant de dégradation dans l’espèce. Il nous montre cette phase terminative de quelques affections mentales héréditaires dans les familles. L’enchaînement fatal des phénomènes pathologiques qui s’engendrent et se commandent réciproquement, finit par amener chez les derniers descendants d’une race maladive un état d’imbécillité et d’idiotisme incompatible avec la propagation normale de la grande famille humaine. 1014 Os idiotas são aqueles que, segundo Morel, parecem resumir em si todos os elementos degenerativos de seus ascendentes; muito mais do que uma pré-disposição, esses 1011 “Assim, a hereditariedade desempenha um duplo papel no discurso sobre a degenerescência. É tanto um fator universal de propagação, até esbarrar na esterilidade das gerações terminais, mais gravemente acometidas, quanto é um fator que define particularmente um subgrupo de degenerescências, que de alguma forma prenuncia a futura, e polêmica, categoria diagnóstica loucura hereditária.” (Pereira, “Morel e a questão da degenerescência”, p.62) O mesmo no que se refere, podemos aqui acrescentar, à idiotia, o último estágio da degenerescência hereditária. 1012 Morel, Traité des dégénérescences, p. 50. 1013 O alcoolismo ainda é considerado atualmente como uma das principais causas da inabilidade mental profunda, cf. Vasconcelos, “Retardo mental”, Loc. Cit. 1014 Morel, Traité des dégénérescences, p. 417. 319 indivíduos exibem um estado degenerativo congênito, fixo e irremediável. Eles constituem mesmo numa variedade mórbida completa na espécie. As degradações físicas, intelectuais e morais que caracterizam os idiotas apresentam uma analogia e semelhança surpreendente em qualquer parte do globo. 1015 Os indivíduos que pertencem a essa variedade patológica são incapazes de dar continuidade, em condições normais, à espécie humana. A idiotia é o destino final da degenerescência hereditária: todas as transformações pelas quais passam as patologias mentais numa mesma linhagem familiar, todas as várias entidades mórbidas que se sucedem entre os membros de uma mesma árvore genealógica, delineiam a trajetória inclemente que a degradação progressiva percorre em direção à idiotia: Les médecins aliénistes ont de plus fréquentes occasions que d’autres, peut-être, d’observer cette transmission héréditaire des dispositions organiques, ainsi que les transformations diverses qui se montrent chez les descendants. Ils savent qu’un simple état névropathique des parents peut créer chez les enfants une disposition organique qui se résume dans la manie et la mélancolie, affections nerveuses qui, à leur tour, peuvent faire naître des états dégénératifs plus graves, et se résumer dans l’idiotie ou l’imbécillité de ceux qui forment les derniers anneaux delà chaîne des transmissions héréditaires. 1016 Morel vai, portanto, identificar como causa principal da idiotia a degenerescência hereditária, e é o alcoolismo crônico a entidade mórbida que a precede diretamente e que está, naturalmente, implicado em primeira instância nesse fator hereditário: “Nous avons vu que les transformations dégénératives chez les descendants d’individus livrés aux excès de boisson, conduisent en dernier résultat à l’imbécillité et à l’idiotie.” 1017 Essa tese de Morel irá ressoar, como já foi visto, nas investigações empreendidas por Féré: quanto mais grave a degenerescência, maior a hiperexcitabilidade e o conseqüente esgotamento do sujeito, daí a necessidade de estímulos fortes: o álcool e outros agentes tóxicos, que só aceleram ainda mais a degradação. O próprio Morel já observa o fenômeno da sucessão entre estados de excitação e de depressão, que posteriormente Féré irá associar com a hiperexcitabilidade e o esgotamento, como um sintoma comum ao alcoolismo crônico: “l’alcool absorbé dans des proportions inusitées modifie d’une manière fatale les éléments constitutifs du sang, et agit sur le système nerveux à la façon d’un principe intoxicant. Les symptômes de cet 1015 Cf. Morel, Traité des dégénérescences, p. 392. Morel, Traité des dégénérescences, p. 565. 1017 Morel, Traité des dégénérescences, p. 353. 1016 320 empoisonnement se traduisent au dehors par des alternatives d’excitation et de dépression.”1018 As degradações mórbidas que o alcoolismo acarreta afeta de tal forma o organismo do sujeito, segundo Morel, que seu sistema reprodutivo é seriamente comprometido, a geração de sua prole não se dará mais sob condições adequadas e naturais, seja quando ele se encontrar em estado sóbrio, seja, o que é extremamente mais grave, quando estiver em estado de embriaguez. Para Morel, e também para Féré, é principalmente quando um ou ambos os progenitores alcoólatras encontram-se em estado de embriaguez, que os idiotas congênitos são gerados. O alcoolismo crônico é, então, a doença que, segundo Morel, vai dar origem, pela transmissão hereditária das degradações que provoca, à idiotia, ainda que não somente a ela, como ele esclarece: Il n’est [...] aucune autre maladie où les influences héréditaires soient aussi fatalement caractéristiques. Si l’imbécillité congéniale, l’idiotie sont les termes extrêmes de la dégradation chez les descendants d’individus alcoolisés, un grand nombre d’états intermédiaires se révèlent à l’observateur par des aberrations de l’intelligence et par des perversions tellement extraordinaires des sentiments, que l’on chercherait en vain la solution de ces faits anormaux dans l’étude exclusive de la nature humaine déviée de son but intellectuel et moral.1019 De acordo com Morel, o grau de degradação mórbida que caracteriza a idiotia tem como traço fundamental a esterilidade, tal traço demonstra não só o termo extremo que a degenerescência pode atingir como também representa, para ele, o maior indício de que a degenerescência na espécie é regulada pela lei da degradação progressiva, em outros termos, que o fim natural da degenerescência é a sua dissolução. Nesse sentido, a interrupção de desenvolvimento na infância que caracteriza a idiotia, diz respeito não só às faculdades intelectuais, instintivas, perceptivas, morais, etc., mas também às faculdades reprodutivas. A idiotia é, portanto, em última instância, uma interrupção global do desenvolvimento de todas as faculdades e habilidades que o ser humano adulto pode vir a usufruir. Morel afirma que o grau de degradação do idiota o torna não apenas incapaz de propagar o gênero humano sob condições adequadas, isto é, de gerar seres que não sejam congenialmente degenerados, como também o torna completamente impotente (isso 1018 1019 Morel, Traité des dégénérescences, p 79. Morel, Traité des dégénérescences, p. 80. 321 somente no caso do idiota profundo), seja em razão do não-desenvolvimento dos seus órgãos genitais, seja em razão da ausência mesma de toda faculdade prolífica. 1020 Ainda que os imbecis possam ainda ser capazes de reproduzir o que Morel denomina de a grande família do gênero humano, isso se dará unicamente, explica ele, sob condições invariáveis de uma transmissibilidade hereditária fatal para as gerações seguintes, entretanto, no caso dos idiotas profundos, “se reconnaissent au contraire à l’impuissance où ils sont de se reproduire; ils offrent le type de la dégénérescence crétineuse dans sa manifestation extrême.” 1021 O idiota profundo possui como elemento distintivo, portanto, o não desenvolvimento da puberdade, o não desenvolvimento de sua faculdades viris, como sentencia Morel: L’idiotisme a suivi une marche ascensionnelle, et ce malheureux qui, au point de vue des fonctions génératrices n’est pas plus avancé qu’un enfant de 12 ans, dont la tête est petite et mal conformée, et dont la figure imberbe ne révèle aucune expression de virilité, devait être, indépendamment de son affection mentale intercurrente, le dernier descendant de sa famille. 1022 A teoria da degenerescência de Morel trouxe, portanto, uma nova configuração teórica para a nosografia da idiotia. A etiologia desta enfermidade estará doravante, para os especialistas da idiotia, diretamente relacionada com fatores hereditários e com o alcoolismo crônico, e o sinal mais marcante de seu grau de degradação será o fenômeno da esterilidade, isto é, a idiotia será entendida como a extinção de uma linhagem degenerada.1023 Este é justamente o conceito de idiotia que será adotado por Féré. Uma questão bastante significativa para o nosso tema é o fato de Morel advertir que, por conta da idiotia ter como causa principal o alcoolismo dos pais, ela pode até mesmo se tornar endêmica em regiões em que o consumo do álcool também surge como um 1020 Cf. Morel, Traité des dégénérescences, p. 72. Morel, Traité des dégénérescences, p. 34. 1022 Morel, Traité des dégénérescences, p. 126. 1023 A obra mais importante para o entendimento da forma que o conceito nosográfico de idiotia vai assumir exatamente no final do século XIX é a de Jules Voisin, sobrinho de Félix. Cf. Voisin, Jules. L’idiotie hérédité et dégénérescence mentale psychologie et éducation de l’idiot. Félix Alcan, 1893. Segundo o médico de Salpêtrière: “Cette dégradation progressive [da degenerescência hereditária] est la règle, et la régénération d’une race est chose très difficile. — La dégradation va donc en augmentant constamment et elle peut atteindre des degrés tels qu’elle se crée des limites à elle-même et que l’humanité se trouve en quelque sorte protégée par l’excès du mal lui-même qui aboutit à la stérilité; c’est ce que nous verrons dans la dégénérescence poussée jusqu’à son dernier terme, l’idiotie crétinoïde” (Jules Voisin, L’idiotie hérédité, p. 14). 1021 322 importante fator cultural: “Nous ne serons plus surpris alors de voir l'idiotie et l'imbécillité congéniale ou consécutive, sévir avec tant de fréquence dans les pays où règne une cause de dégradation aussi active que l'alcoolisme.” 1024 Tal constatação é extremamente importante para o entendimento de como a psiquiatria da segunda metade do século XIX, de certa forma, se constituía num campo teórico bastante propício para que um diagnóstico de Jesus como idiota pudesse vir a ser concebido. Uma indicação fundamental para isso é a obra do médico Binet-Sanglé, La folie de Jésus. 1025 Binet-Sanglé perfaz boa parte do trajeto teórico empreendido por Nietzsche, entrando também em contato com as obras de Strauss, Renan e Féré, sendo diretamente influenciado por Morel. O médico parte mesmo do princípio reducionista de que os sujeitos física e mentalmente bem constituídos são terrenos impróprios para a germinação de idéias religiosas, e que, em contrapartida, essas mesmas idéias se desenvolvem ricamente até invadir o campo da consciência em certos tipos de psicopatas hereditários. 1026 Por conseguinte, Binet-Sanglé afirma: Dans mon premier livre sur les Prophètes juifs et dans mes Observations de religieuses de vocation, j’ai montré que les affections du système nerveux et surtout les troubles mentaux sont de règle chez ces sujets; que beaucoup de prophètes eussent été de nos jours internés dans des asiles d'aliénés; que prophètes et religieuses appartiennent à la famille psychopathique. Il en est de même de cet Ieschou bar-Iossef , de ce Jésus-Christ dont nous avons fait un dieu. 1027 Ainda que Binet-Sanglé não chegue a denominar Jesus de idiota, seu diagnóstico da “loucura” 1028 de Jesus é incrivelmente próximo daquele feito por Nietzsche, porquanto, para o médico, Jesus era estéril. Ora, a esterilidade é o distintivo do grau mais baixo da cadeia degenerativa, do último membro da família dos degenerados, do idiota. Jesus teria 1024 Morel, Traité des dégénérescences, p. 374. Binet-Sanglé, Charles. La folie de Jésus: son hérédité, sa constitution, sa physiologie. Paris: A. Maloine, 1908. 1026 Cf. Binet-Sanglé. La folie de Jésus, p. 1-2. 1027 Binet-Sanglé. La folie de Jésus, p. 2. 1028 Para Binet-Sanglé, a “loucura” de Jesus já era algo evidente mesmo para a mãe e os irmãos, o seu grande mote é justamente o versículo de Marcos em que isso é dito: “E, quando os parentes de Jesus ouviram isto, saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si” (Marcos 3: 21). Contudo, pré-dispostos, eles logo se renderam as pregações de Jesus: “Après ravoir traité en aliéné, sa mère et ses frères, impressionnés par ses cures réputées miraculeuses, par le nombre de ses disciples, par l'enthousiasme des foules, par l'assurance et l'autorité que lui donnait son succès, se mirent à partager sa vie errante.” (Binet-Sanglé. La folie de Jésus, p. 87) 1025 323 nascido estéril, para Binet-Sanglé, justamente por ser filho de uma provável histérica e de um alcoólatra; o alcoolismo era, para ele, uma patologia endêmica na Galiléia. Eis, para Binet-Sanglé, como se resume a patogênese da “loucura” de Jesus: Quelle intoxication avait subi Iossef? Il est plus probable que la mort précoce d’Iossef et la dégénérescence mentale de ses enfants résultèrent de l’alcoolisme chronique. J’incline à cette hypothèse pour les raisons suivantes: 1º La principale culture des nazaréens était celle de la vigne; 2º Le vin de la région est délicieux et très riche en alcool; 3º L’alcoolisme est très répandu dans les pays de bon vin; 1029 4º L’alcoolisme était très répandu chez les anciens juifs; 5º La plupart des névropathes et des psychopathes sont des descendants d’alcooliques; 6º Ieschou présentait certains caractères des hérédo-alcooliques. De l’hérédoalcoolique il avait la constitution médiocre, la faiblesse musculaire, la pauvreté des conceptions, du jugement et du raisonnement, les idées fixes, la déséquilibration intellectuelle, l’incohérence, l’hypersuggestibilité, les idées de grandeur, de persécution, mystiques, la déséquilibration émotive et sentimentale (alternances d’exaltation et de dépression, accès de tendresse, accès de colère), la tristesse chronique, l’irrésolution, le manque d’énergie, l’impulsivité, la paresse, le besoin de vagabondage, la stérilité. [...] En résumé l’hypothèse la plus vraisemblable que nous puissions faire sur le charpentier de Nazareth est qu’au moment où il engendra Iaäkob et Ieschou, il était entaché d’alcoolisme. 1030 Apesar de exercer uma importância hegemônica na psiquiatria da segunda metade do século XIX, a teoria da degenerescência de Morel foi abandonada já no início do século XX 1031 , ainda que, com conseqüências nefastas e de forma corrompida, tenha servido de base teórica para a justificativa científica, social e moral dos mecanismos de vigilância e controle de sistemas de governo totalitários, mecanismos cujo principal objetivo seria o de “defender” a sociedade. 1032 Ora, para Foucault, há uma íntima conexão entre a interpretação da idiotia como enfermidade restrita à infância (o idiota como a criança cujo desenvolvimento foi interrompido) – interpretação esta que permitiu a generalização do 1029 Interessante para essa discussão é a seguinte declaração de Jules Voisin : “L’alcoolisme et les intoxications en général, jouent en effet un rôle important dans la dégénérescence héréditaire progressive. On a voulu aller plus loin et faire des distinctions entre les enfants des buveurs de vin et ceux des buveurs d’alcool et d’absinthe. Les premiers, disait-on, sont plutôt idiots et épileptiques, et les seconds imbéciles ou hystériques. Mais c’est là une erreur; la nature du liquide n’a aucune influence, et ce qui a pu donner lieu à cette erreur, c’est que les buveurs de vin sont plus souvent des alcooliques chroniques invétérés au lieu que les buveurs d’alcool ou d’absinthe sont, plus généralement au moins, des gens qui commettent des excès de temps en temps. Vous verrez très nettement en repassant les antécédents de nos petites malades du service, que les idiotes profondes, épileptiques, ont des parents alcooliques chroniques; au lieu que les enfants de ceux qui s’enivrent de temps en temps sont imbéciles, ou hystériques, ou pervers.” (pp. 20-21) 1030 Binet-Sanglé. La folie de Jésus, pp. 161-163, grifo nosso. 1031 Cf. Serpa Junior, “O degenerado”, Loc. Cit. 1032 Cf. Foucault, Os anormais, Aula de 19 de março de 1975. 324 poder psiquiátrico, que se deu por intermédio da infantilidade como filtro funcional mediante o qual os comportamentos tidos como anormais seriam doravante analisados – com o desenvolvimento de uma teoria da degeneração feita por Morel e com o privilégio da hereditariedade como fator nuclear pelo qual o padrão normativo é primeiramente alterado. De acordo com Foucault, quando a psiquiatria se torna a ciência capaz de identificar toda forma de desvio, anomalia e retardo como sendo uma conseqüência de um estado de degeneração, ela passa a exercer um poder absoluto de ingerência nos comportamentos humanos: “Ela se dá um papel de defesa social generalizada [...] Ela se torna a ciência da proteção científica da sociedade, ela se torna a ciência da proteção biológica da espécie.” 1033 Contudo, a psiquiatria, argumenta Foucault, logo se conectou ou deu lugar, por conta da teoria da degeneração hereditária progressiva, a um “racismo étnico”, ou seja, um racismo contra o doente, o degenerado e o anormal, alimentado pela identificação dos estigmas que tais indivíduos transmitiriam aos seus descendentes. Tal racismo terá por função, deste modo, não somente a prevenção ou defesa de um grupo contra outro, mas, principalmente, a detecção, no interior desse mesmo grupo, daqueles que portam o perigo. Esse racismo, naturalmente, logo se ligou ao racismo tradicional do Ocidente, ou seja, ao racismo antisemita. Como atesta Foucault: “Que a psiquiatria alemã tenha funcionado tão espontaneamente no interior do nazismo, não há por que se surpreender. O novo racismo, o neo-racismo, o que é próprio do século XX como meio de defesa interna de uma sociedade contra seus anormais, nasceu da psiquiatria, e o nazismo nada mais fez que conectar esse novo racismo ao racismo étnico que era endêmico ao século XIX.” 1034 3.3.3 – A neurastenia Algumas décadas após a publicação da obra de Morel, um novo e importante conceito nosográfico é elaborado a fim de diagnosticar aquilo que se acreditava ser a grande patologia nervosa do mundo civilizado, a saber, a neurastenia. Essa doença passará a ser identificada como a principal origem da cadeia degenerativa hereditária. A neurastenia 1033 1034 Foucault, Os anormais, p. 276 Foucault, Os anormais, p. 277. 325 desempenhará uma importância fundamental para as investigações de Féré e para o entendimento da idiotia no final do século XIX, por meio dela, será possível estabelecer uma íntima conexão entre as novas condições de existência impostas pela civilização, o fenômeno da hiperexcitabilidade e do esgotamento, o abuso do álcool, a degenerescência progressiva hereditária, as patologias mentais, o alcoolismo crônico e a idiotia. O conceito de neurastenia foi elaborado pelo físico nova-iorquino George M. Beard em sua obra A practical treatise on nervous exhaustion (neurasthenia), publicada em 1880. 1035 Beard considerava a neurastenia uma doença distintamente americana. Ela seria resultado do esgotamento da energia nervosa individual despendida nas novas medidas de luta que as condições econômicas, o excesso de trabalho e o ritmo acelerado da vida em uma sociedade industrializada inauguravam. 1036 Em sua obra, Beard esclarece que o termo neurastenia refere-se precisamente a um tipo de “esgotamento nervoso” generalizado; derivada do grego ( υ ο , nervo, α, privação, ο , força), a palavra interpretada literalmente significa “falta de força nervosa”. A neurastenia seria, segundo ele, uma espécie de “nervosidade americana”, causada por diversos fatores próprios da cultura industrial desse país: In this country, nervous exhaustion (neurasthenia) is more common than any other form of nervous disease. With the various neuroses to which it is allied, and to which it leads, it constitutes a family of functional disorders that are of comparatively recent development, and that abound especially in the northern and eastern part of the United States. 1037 Não obstante, esse conceito logo se tornou recorrente também na Europa, e a neurastenia rapidamente foi identificada como uma doença nervosa que não era exclusivamente americana, mas sim inerente à civilização moderna ocidental. 1038 Em particular, para o entendimento de como o conceito de neurastenia será acolhido pela 1035 Beard, George M. A practical treatise on nervous exhaustion (neurasthenia): its symptoms, nature, sequences, treatment. New York: William Eood & Company, 1880. 1036 Cf. Moore, Nietzsche, Biology and Metaphor, p. 118 1037 Beard, A practical treatise on nervous exhaustion, Preface, p. v. 1038 Cf. Pereira, Mário Eduardo Costa. “George Beard: neurastenia, nervosidade e cultura”. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, V. 1, março de 2002, pp. 170-175. “Atualmente, este quadro clínico perdeu muito do interesse que outrora despertara em clínicos e pesquisadores, mas constituiu, a seu tempo, um marco nosológico decisivo na delimitação do campo dos fenômenos ansiosos e psiconeuróticos” (p. 170). 326 psiquiatria francesa do final do século XIX e vinculado com suas principais teorias, a obra La neurasthénie, de Léon Bouveret, publicada em 1891 1039 , tem uma importância crucial. Médico do L’Hôtel-Dieu de Lyon, Bouveret foi bastante influenciado pelo trabalho de Féré. Fazendo referência à obra de Beard, Bouveret explica que a neurastenia ou esgotamento nervoso é um tipo mais geral de neurose. 1040 Segundo ele, essa afecção nervosa não apresenta fenômenos mórbidos tais como os ataques convulsivos, as paralisias, as contraturas e os estados anestésicos da histeria, o que faz com que seu estudo permaneça largamente negligenciado pelos clínicos, porém, a maioria dos doentes que, após um exame muitas vezes incompleto, recebem a qualificação de nervosos, excêntricos, hipocondríacos, são, na realidade, verdadeiros neurastênicos. Bouveret define a neurastenia do seguinte modo: La neurasthénie est une affection sans lésion organique, une névrose, pouvant atteindre toutes les parties, non seulement du système cérébro-spinal, mais aussi du système de la vie organique. On la définit généralement: un affaiblissement durable de la force nerveuse. De là ces expressions de faiblesse nerveuse, à épuisement nerveux, souvent employées comme synonymes de neurasthénie. 1041 Contudo, ele esclarece que os sintomas de depressão e de enfraquecimento da força nervosa que mais caracterizam a neurastenia estão intimamente associados aos sintomas de excitação, tal associação é designada pelo nome de fraqueza irritável. Deste modo, pode-se verificar como Bouveret relaciona o conceito de neurastenia com os fenômenos psicomotrizes estudados por Féré. Conforme Bouveret, a neurastenia é uma afecção nervosa ocasionada pelo fenômeno do esgotamento de energia, e ela traz como conseqüência uma sensibilidade mórbida, uma incapacidade de opor resistência às excitações externas, precisamente o que caracteriza o fenômeno da degenerescência de acordo com Féré. Por conseguinte, o neurastênico encontra-se particularmente suscetível ao fenômeno natural da induction psychomotrice, ou seja, sua hiperexcitabilidade o torna mais vulnerável às excitações, o que trará como resultado a produção de representações mentais intensas, provocando uma resposta exagerada aos estímulos, que resulta num aumento de força e num desgaste de energia potencial, desregulando, assim, o funcionamento dos centros da 1039 Bouveret, Léon. La neurasthénie: épuisement nerveux. Paris: J. B. Baillière, 1891. Cf. Bouveret, La neurasthénie, p. 8. 1041 Bouveret, La neurasthénie, p. 11. 1040 327 vida de relação (sistema nervoso voluntário) e da vida orgânica (sistema nervoso autônomo), acelerando sua degeneração. Como mostra Bouveret: De cette insuffisance des actions modératrices procède l’exagération du pouvoir réflexe dans les centres de la vie de relation et de la vie organique. Des excitations légères qui, dans un système nerveux bien équilibré, s'épuisent rapidement et s'évanouissent sans provoquer aucune réaction, peuvent, au contraire, chez un homme frappé d'épuisement nerveux, susciter des actes réflexes nombreux et d'une énergie hors de proportion avec le degré de ces excitations elles-mêmes. C'est ainsi que nous pouvons comprendre comment des symptômes d'excitation figurent si fréquemment dans le tableau clinique de la neurasthénie. 1042 (p. 12) Para Bouveret, a neurastenia não é endêmica aos Estados Unidos, ela se constitui, na realidade, na “maladie du siècle”. A causa dessa doença deve, para ele, assim como para Beard, ser buscada nas exigências da civilização moderna. Outrora, esclarece Bouveret, as classes estavam separadas por barreiras instransponíveis, cada indivíduo sabia bem qual o lugar que lhe cabia no edifício social e não aspirava sair do meio que a sorte o havia feito nascer. Contudo, no mundo moderno, as barreiras encontram-se aplanadas, para qualquer homem dotado de alguma inteligência, o objetivo da vida agora se resume a se elevar mais alto do que seus ancestrais, mas, desta maneira: Le cerveau travaille davantage, et souvent le labeur imposé est au-dessus de ses forces. De là les préoccupations intenses, les désillusions, les revers de fortune, sources communes des passions dépressives. Le caractère s'est assombri et le système nerveux est devenu plus vulnérable. Ainsi s'explique la fréquence croissante des maladies nerveuses et particulièrement de la neurasthénie. Aussi cette névrose n'est pas seulement, suivant l'expression de Beard, un mal américain. Elle existe également en Europe et dans tous les pays civilisé où la lutte pour l’existence, de plus en plus ardente, entretient une activité exagérée des fonctions du système nerveux. 1043 A neurastenia pode se tornar, por outro lado, uma doença hereditária, quando um excesso de trabalho permanente do cérebro acaba por produzir um esgotamento mais durável. Este fato é, de acordo com Bouveret, fundamental para a patogenia das doenças nervosas. Ele argumenta que a hereditariedade desempenha um papel privilegiado no desenvolvimento dessas patologias, algo que, como ele observa, já foi bem demonstrado 1042 1043 Bouveret, La neurasthénie, p. 12. Bouveret, La neurasthénie, pp. 16-17. 328 pelos trabalhos de Morel e Féré. As patologias mentais são, como foi estabelecido por ambos os autores, pertencentes a uma mesma cadeia degenerativa, que, sob influência da hereditariedade e de condições favoráveis, se desenvolvem, se sucedem e se agravam através de várias gerações. A neurastenia adquirida, que possui uma causalidade independente de qualquer influência hereditária, representa justamente o primeiro elo da degenerescência progressiva hereditária: “La neurasthénie, qui peut naître spontanément, en dehors de toute hérédité nerveuse, constituerait le premier membre de la famille névropathique, le terrain éminemment favorable sur lequel, les circonstances aidant, vont germer et se développer, dans les générations suivantes, des affections nerveuses de gravité croissante.” 1044 É a neurastenia hereditária que dará origem, então, a neuroses mais graves, cujas transformações em novas e mais alarmantes entidades mórbidas ao longo de gerações irá conduzir ao grau extremo de degenerescência física e mental, seguida da extinção da linhagem. 1045 3.3.5 – A idiotia nas fontes de Nietzsche É possível verificar a familiaridade de Nietzsche com o conceito nosográfico de idiotia pela análise de algumas obras de medicina, psiquiatria e psicologia que ainda se encontram em sua biblioteca pessoal, embora ele muito provavelmente tenha entrado em contato com um número ainda maior de obras por empréstimos de amigos ou pela utilização de bibliotecas públicas, hábito que lhe era muito comum. Em Responsibility in mental disease, por exemplo, Maudsley defende que não pode haver nenhuma disputa com relação à irresponsabilidade dos idiotas: “deprived of understanding by a fate against which they cannot contend, it would be absurd to talk of responsibilities and obligations in connection with them”. 1046 O mesmo, porém, não pode ser dito, segundo ele, a respeito dos imbecis, pois alguns indubitavelmente possuem a capacidade de fazer uma distinção entre o certo e o errado, deste modo, deve-se reconhecer, por um lado, a existência de uma total ausência de responsabilidade e, por outro, de uma 1044 Bouveret, La neurasthénie, p. 17. Bouveret, La neurasthénie, p. 18. 1046 Maudsley, Responsibility in mental disease, p. 67. 1045 329 responsabilidade modificada, deficiente. Sendo assim, pode-se estipular que Nietzsche talvez já tivesse conhecimento do conceito psiquiátrico de idiotia e de imbecilidade desde a época da elaboração de Aurora, quando se deu sua primeira leitura de Maudsley (ainda que haja motivos para suspeitar que ele já houvesse entrado em contato com esse conceito em uma época ainda mais remota). 1047 Em outra passagem, Maudsley fala da diferença entre idiotas e dementes, tal qual foi estabelecido por Esquirol: “in the worst cases demented patients have as little intelligence as the complete idiot, from whom, however, they differ in having lost what he never possessed”. 1048 Ele também afirma que o idiota é portador de uma “perpetual infirmity” desde o seu nascimento.1049 Contudo, é na seguinte passagem que Maudsley aborda a idiotia de modo a praticamente defini-la como sendo, segundo o que era geralmente admitido em sua época, como uma inabilidade intelectual congênita, todavia, ele argumenta que a idiotia não é uma deficiência congênita apenas no que diz respeito às faculdades cognitivas, mas sim também no que se refere às faculdades morais: “No one would be found nowadays to deny the existence of a congenital deficiency or absence of intellect, or to maintain that all persons, not imbecile or idiotic, have naturally equal intellectual capacities, but there are many persons who still think moral idiocy or imbecility to be a medical crotchet.” 1050 Na obra Physiologie des passions, lida por Nietzsche provavelmente entre 1884 e 1885 1051 , Letourneau afirma que “l’idiotisme coïncide toujours avec un arrêt de développement cérébral, surtout des lobes frontaux, etc.” 1052 O termo “idiota” é também utilizado em seu sentido psiquiátrico por Jolly em Psychologie des grands hommes, lido por Nietzsche em 1885. 1053 Segundo Jolly, a idiotia apresenta as mesmas condições orgânicas que são fontes de diversos problemas morais comuns a homens que se destacam por sua excentricidade e pela originalidade de suas concepções. 1047 1054 Em Essai de psychologie Cf. Co. Ext. III 6, em que Nietzsche se refere a um “idiotismo moral”, em um sentido próximo daquilo que Maudsley observa. 1048 Maudsley, Responsibility in mental disease, p. 72. 1049 Maudsley, Responsibility in mental disease, p. 89. 1050 Maudsley, Responsibility in mental disease, p. 179. 1051 Cf. FP 29 [67] do outono de 1884 – início de 1885. 1052 Letourneau, Physiologie des passions, p. 197. Cf. também, p. 154, p. 198. 1053 Cf. Sommer, “Beiträge zur Quellenforschung”. 1054 Cf. Joly, Psychologie des grands hommes, p. 75. Cf. também, p. xi, p. 76. 330 générale, lido por Nietzsche por volta de 1887, Richet, por sua vez, afirma que, nos idiotas, as conformações teratológicas, isto é, as deformações ou monstruosidade orgânicas, são acompanhadas de todo tipo de perversão das funções psíquicas, por isso: “De même qu’il serait absurde de supposer une intelligence de vieillard dans un cerveau d’enfant, de même dans un cerveau d’idiot, une intelligence géniale ne peut exister.” 1055 Nesta passagem, a noção de idiotia como uma condição fisio-psicológica em que se permanece preso a uma fase do desenvolvimento infantil é bastante clara. Já em L’homme et l’intelligence, obra lida cuidadosamente por Nietzsche durante a composição de Genealogia da moral, Richet se refere à teoria da degenerescência progressiva hereditária como a principal causa dos distúrbios mentais e das transformações destes mesmos distúrbios em novas entidades mórbidas entre os membros de uma mesma família: Il n’est pas nécessaire que la même forme de maladie se retrouve chez les parens et chez les enfans. Pourvu qu’il y ait chez les parens du nervosisme, ce nervosisme, chez les enfans, se reproduira sous divers aspects. Par exemple un père épileptique peut avoir un fils idiot, un fils fou, et une fille hystérique. 1056 Em Psychologie in Umrissen auf Grundlage der Erfahrung, também lida por Nietzsche em 1887, e, entre as obras de literatura médica presentes na Biblioteca Pessoal de Nietzsche, aquela que apresenta o maior número de indícios de leitura, Höffding compara os idiotas com as crianças: “Ebenso wie das kleine Kind gibt auch der Idiot, der, wie Eschricht gesagt hat, ein kleines Kind im Körper eines ältern Kindes oder eines Erwachsnen ist, seinem Wohlbefinden durch Lächeln und Lachen Ausdruck.” 1057 Na obra Le cerveau et l’activité cérébrale, lida por Nietzsche em 1888, Herzen afirma, por seu turno, que os idiotas possuem um desenvolvimento cerebral bastante imperfeito e que os mesmos apresentam um atraso considerável de reação. 1058 1055 Richet, Essai de psychologie générale, p. 45. Richet, L’homme et l’intelligence, p. 268. 1057 Höffding, Psychologie in Umrissen auf Grundlage der Erfahrung, p. 369. Cf. também, p. 67, p. 371, pp. 407-408, pp. 441-442. 1058 Cf. Herzen, Le cerveau et l’activité cérébrale, p. 171. 1056 331 Mas é uma questão altamente consensual observado por Galton em uma passagem de Inquiries into human faculty and its development 1059 , que pode indicar que a grande influência para o modo como Nietzsche concebe a idiotia em O Anticristo foi mormente Féré. Para Galton e diversos outros psiquiatras, um dos sintomas mais característicos da idiotia é a insensibilidade, causada igualmente por uma interrupção no desenvolvimento das faculdades perceptivas. Por conta disso, os idiotas não são capazes de fazer qualquer distinção entre calor e frio, por exemplo, assim como parecem não apresentar qualquer suscetibilidade à sensação de dor: The discriminative faculty of idiots is curiously low; they hardly distinguish between heat and cold, and their sense of pain is so obtuse that some of the more idiotic seem hardly to know what it is. In their dull lives, such pain as can be excited in them may literally be accepted with a welcome surprise. During a visit to Earlswood Asylum I saw two boys whose toe-nails had grown into the flesh and had been excised by the surgeon. This is a horrible torture to ordinary persons, but the idiot lads were said to have shown no distress during the operation; it was not necessary to hold them, and they looked rather interested at what was being done. 1060 Todavia, Nietzsche defende que a primeira realidade fisiológica da idiotia de Jesus se traduz exatamente por uma hiperexcitabilidade, por uma suscetibilidade mórbida à dor, por uma irritabilidade doentia do sentido do tato, o que traz como conseqüência o desenvolvimento instintual de um modo de vida que busca a todo custo evitar a dor, e evitar, por conta disso, todo tipo de luta, de conflito, de resistência ao mau. Teria Nietzsche se equivocado gravemente em sua forma de conceituar a idiotia? Não necessariamente, já que Esquirol atenta para o fato de que os imbecis possuem de fato uma excitabilidade exagerada, como os histéricos. 1061 Se levarmos em conta as experiências empreendidas por 1059 Sobre o idiotismo, Galton declara: “No professor of metaphysics, psychology, or religion can claim to know the elements of what he teaches, unless he is acquainted with the ordinary phenomena of idiocy, madness, and epilepsy. He must study the manifestations of disease and congenital folly, as well as those of sanity and high intellect.” (p. 68) Cf. também, p. 23. 1060 Galton, Inquiries into human faculty and its development, p. 28. Richet também chama atenção para o mesmo fenômeno : “Il y a longtemps, alors que j'étais interne à la Salpétrière, j'ai fait de nombreuses recherches sur la sensibilité des idiotes, des imbéciles, et des très-vieilles femmes; toutes pauvres créatures dont l'intelligence débile était presque anéantie. Or, dans tous ces cas, la sensibilité à la douleur était presque nulle, en sorte qu'on aurait pu difficilement décider si elles étaient ou non insensibles. Chez les malheureux dont l'intelligence est détruite ou profondément altérée, la sensibilité consciente est aussi détruite et altérée” (Richet, L’homme et l’intelligence, p. 22). 1061 Cf. Esquirol, Des maladies mentales, p. 332. 332 Féré, veremos que quanto maior o grau de degenerescência do sujeito, maior o seu grau de hiperexcitabilidade, e nossa hipótese é a de que Nietzsche levou justamente isso em consideração na descrição da idiotia de Jesus. Ademais, uma hiperexcitabilidade extrema é igualmente acompanhada por um esgotamento extremo, já que o desperdício de energia se torna constante, não havendo nenhum tipo de acumulação. Sem energia, não há aumento de força necessário para resistir às excitações, nem mesmo para representá-las mentalmente, para senti-las, o que dá origem aos estados anestésicos, comuns entre sujeitos histéricos. No capítulo XXI de Sensation et mouvement, Féré aborda exatamente as relações entre excitação e esgotamento, que resulta na abulia, a ausência de vontade, fenômeno que preocupou particularmente Bourget em sua análise da décadence literária francesa. Segundo Féré, o esgotamento, o enfraquecimento, a exaustão de forças traz como resultado extremo a abolição da própria sensibilidade e a produção de paralisias motrizes. 1062 Eo mesmo retardo na reação que Herzen observou nos idiotas é relacionado por Féré com o enfraquecimento da sensibilidade que se verifica entre os criminosos: “Au point de vue physiologique, les criminels seraient remarquables par leur affaiblissement de la sensibilité à peu près sous toutes les formes [...] Les imbéciles et les idiots ont, comme les criminels, un retard plus ou moins considérable de la réaction.” 1063 Ora, mas a fraqueza da sensibilidade está relacionada, para Féré, a problemas da sensibilidade e da mobilidade ocasionados pela hiperexcitabilidade e pelo esgotamento, tanto que o criminoso típico possui também uma irritabilidade mórbida, um sensibilidade excessiva. 1064 São, na realidade, esses problemas da sensibilidade e da mobilidade que irão resultar na descarga de energia provocada por uma representação mental intensa. O fenômeno da descarga de energia acelera a degenerescência porque traz como conseqüência um esgotamento geral de energia. Mas, deste modo, a cada nova geração de degenerados, a energia potencial se mostra ainda mais reduzida, quanto mais próximo do fim da cadeia hereditária, mais esgotado será o indivíduo e maiores serão os problemas de sensibilidade e mobilidade que 1062 Cf. Féré, Sensation et mouvement, p. 152. Féré, Dégénéréscence et criminalité, p. 74. 1064 Cf. Dégénéréscence et criminalité, p. 75. 1063 333 ele apresenta. 1065 Para Féré: “L’hérédité de la dégénérescence est aujourd’hui un fait des mieux établis, de même que son aggravation progressive.” 1066 A realidade fisiológica que caracteriza a degenerescência é, para Féré, a hiperexcitabilidade. Quanto mais a degenerescência se agrava, mais grave se torna, portanto, a hiperexcitabilidade, bem como o conseqüente esgotamento de energia: “L’atténuation de l’énergie spécifique tend à s’accentuer à chacune des générations suivantes qui dégénère, non seulement au point de vue de l’évolution de chaque organe en particulier, mais encore au point de vue général, et finit par aboutir a la stérilité.” 1067 Sendo assim, Féré observa como a degeneração progressiva hereditária conduz necessariamente a um desenvolvimento irregular da constituição geral do indivíduo, a uma interrupção do desenvolvimento, até o grau extremo da esterilidade. Entre essas interrupções de desenvolvimento, estão incluídos, desde Félix Voisin, os órgãos da sensibilidade, as faculdades perceptivas, o que pode levar certos idiotas a apresentarem uma sensibilidade nula ou quase nula. Todavia, ainda que Féré nada diga sobre isso, podemos supor que, sobretudo no caso dos imbecis, caso haja ainda um desenvolvimento quase regular das faculdades perceptivas, o indivíduo provavelmente irá apresentar um grau extremo de hiperexcitabilidade, de esgotamento (que é comum a todos os idiotas), de problemas da sensibilidade e da mobilidade, e, portanto, uma incapacidade, uma insuficiência, uma inabilidade extrema de resistir às sensações, de resistir à dor, de lutar. 1068 Féré afirma claramente que a esterilidade é o sinal do mais baixo nível de degradação que a degenerescência atinge: “L’infécondité est le signe le plus grossier de la dégénérescence; mais elle est précédée et accompagnée de dégradations organiques qui se manifestent soit par l’incapacité de travail, par les maladies diverses, soit par les besoins d’excitations nouvelles, qui sont les causes de déperdition de forces (luxe, etc.).” 1069 Essa necessidade de novas excitações, de estímulos fortes a fim de provocar um aumento de 1065 Energy is the capacity for labour. It is consistent with all the robust virtues, and makes a large practice of them possible. It is the measure of fulness of life ; the more energy the more abundance of it ; no energy at all is death ; idiots are feeble and listless (Galton, Inquiries into human faculty and its development, p. 25). 1066 Féré, Sensation et mouvement, p. 96. 1067 Féré, Sensation et mouvement, p. 126. 1068 Segundo Séguin, esses problemas de sensibilidade são comuns mesmo aos idiotas: “Les fonctions du tact sont assez souvent lésées chez les idiots. Cette lésion se produit physiologiquement, tantôt par excès de sensibilité, tantôt par insensibilité; quelquefois les deux anomalies se rencontrent chez le même sujet, sur des organes différents” (Séguin, Traitement moral, hygiène et éducation des idiots, p. 144). 1069 Féré, Sensation et mouvement, p. 157. 334 força, que o degenerado, por conta de seu esgotamento, se vê incapaz de experimentar regularmente, conduz ao vício, principalmente ao alcoolismo crônico, que precede a geração dos idiotas 1070 : “Un bon nombre de cas d’épilepsie, d’idiotie, etc., reconnaissent pour cause l’alcoolisme des parents: tous ces troubles physiques et mentaux un peu profonds de la mère pendant la gestation peuvent agir dans le même sens.”1071 Deste modo, em seus escritos, Féré mostra que a hiperexcitabilidade é o atributo que distingue a degenerescência; que a degenerescência se transmite hereditariamente e, nisso, se agrava; que quanto mais degenerado mais suscetível será o indivíduo às excitações, mas incapaz ele será de resistir a elas; que o termo da degeneração progressiva é a infecundidade, e que esta última é geralmente precedida pelo alcoolismo; os idiotas são freqüentemente filhos de alcoólatras, portanto, a esterilidade é um fenômeno comum a eles1072, o idiota é, portanto, o último elo da cadeia degenerativa, o grau extremo de degradação: Au bas de l'échelle des dégénérés on trouve l’idiot, qui avec une déchéance psychique plus profonde présente des caractères somatiques aussi plus nets, dignes d’être mis en parallèle avec les caractères somatiques des plus inférieurs des criminels, ceux qui ont été condamnés à mort pour l’atrocité de leurs forfaits et qui peuvent être considérés comme des idiots moraux. 1073 Por conta disso, nossa suposição é que, ao afirmar que, como idiota, Jesus era detentor de uma hiperexcitabilidade, de uma irritabilidade mórbida, que o tornava particularmente sensível à dor, que fazia com que o contato com a realidade lhe fosse insuportável, Nietzsche estava se baseando particularmente nas investigações de Féré. Como o idiota se encontra na escala mais baixa dos degenerados, na última mais precisamente, ele seria aquele que deveria sofrer mais gravemente com o fenômeno da 1070 O aprofundamento dessas investigações se dá em: Féré, Charles. La famille névropathique: théorie tératologique de l'hérédité et de la prédisposition morbides et de la dégénérescence. Paris: Félix Alcan, 1894. E em: Féré, Charles. L’instinct sexuel: évolution et dissolution. Paris: Félix Alcan, 1899. 1071 Féré, Sensation et mouvement, p. 96. 1072 “Si l’on admet que les microcéphales et les imbéciles représentent au point de vue psychique quelqu’un de nos ancêtres, dira-t-on aussi que l’infécondité commune chez ces mêmes sujets est aussi la réapparition d’un caractère ancestral?” (Dégénéréscence et criminalité, p. 67). Féré rebate aqui a tese de que a idiotia é um atavismo, uma regressão do homem a uma forma ancestral. 1073 Dégénéréscence et criminalité, p. 86. 335 hiperexcitabilidade. 1074 Nietzsche sabia, porém, que a degradação fisio-psicológica do idiota pode ser tão extrema que ele nem mesmo chegue a desenvolver suas faculdades perceptivas, que ele nem sempre pode vir a apresentar, pois, uma hiperexcitabilidade? Não há como ter certeza sobre isso, assim como não podemos afirmar que ele soubesse que, segundo seus próprios argumentos, a idiotia de Jesus seria, talvez, mais corretamente classificada como imbecilidade, não unicamente por conta da questão da sensibilidade, mas também devido ao desenvolvimento aparentemente regular, ainda que não exatamente “normal”, de suas faculdades cognitivas. Não obstante, vimos que a imbecilidade nada mais é do que um tipo mais atenuado de idiotia, mas, ainda assim, uma idiotia. 3.4 – O cristianismo anarquista de Tolstói O ensaio Ma Religion, de Tolstói, não foi publicado na Rússia por ter sido censurado pelo Estado, sendo publicado diretamente na França em uma tradução corrigida e aprovada pelo autor. Por conta disso, o livro não consta em praticamente nenhuma edição de obras completas do romancista, que geralmente adotam como critério que o texto tenha sido publicado em língua russa, ainda que algumas cópias do manuscrito original em russo tenham sido feitas e circulado entre os seguidores de Tolstói. Nietzsche leu esse ensaio em sua versão francesa imediatamente após os esforços empreendidos com vistas à produção de sua planejada obra Vontade de poder. Nos fragmentos póstumos 11 [236] a 11 [282] de 1074 Séguin relata que estados mórbidos da sensibilidade podem, de fato, ser observados em certos idiotas, dando origem a manifestações bizarras do sentido do tato: “La sensibilité tactile, l’impressionnabilité au froid, à la chaleur, à l’électricité, aux divers agents atmosphériques, est souvent extrême et poussée jusqu’au merveilleux chez l’idiot, même chez celui qui offre l’exemple d’insensibilités partielles, comme quand îl se frappe ou se mord violemment” (Séguin, Traitement moral, hygiène et éducation des idiots, p. 100). “Lorsque la sensibilité tactile générale est très-vive, l’idiot se plait à la plus grande chaleur possible, et le froid l’impressionne désagréablement; on ne saurait le toucher sans surexciter son système nerveux au plus haut degré, il suffit même de toucher la chaise ou le vêtement, ou les cheveux de quelques-uns pour voir se développer en eux une excitation douloureuse, maladive, violente; mais ce n’est pas le cas le plus fréquent” (Séguin, Traitement moral, hygiène et éducation des idiots, p. 145). Segundo Séguin, quando o idiota apresenta sensibilidade, ainda que somente um desenvolvimento parcial da mesma, tal sensibilidade é geralmente exagerada; muitas vezes a hiperexcitabilidade, bem como a insensibilidade, se restringe apenas a alguns órgãos. Mas, o mais comum, é que o idiota apresente uma insensibilidade absoluta: “Quand l’insensibilité est absolue, le froid et la chaleur ne semblent avoir aucune action opposée: la peau peut être déchirée sur quelque partie de sa surface que ce soit, ou mordue jusqu’à ce qu’il s’y forme de durs calus ou jusqu’au sang, sans que l’enfant manifeste aucune douleur” (Séguin, Traitement moral, hygiène et éducation des idiots, p. 144). 336 novembro de 1887 – março de 1888, o filósofo resume, toma notas, copia e traduz diversas passagens de Ma Religion, e, em alguns momentos, faz esboços e tentativas de interpretação das idéias expostas na obra. Esse material serviu como base para diversos elementos da crítica ao cristianismo feita em O Anticristo. Vários desses apontamentos (12 no total) foram editados pela irmã do filósofo, Elizabeth Föster Nietzsche, como se fossem autênticos aforismos do filósofo, e publicados no infame embuste produzido por ela, ou seja, a pretensa Vontade de poder por ela organizada. Diversos intérpretes que alegam que Nietzsche se contradiz em sua crítica ao cristianismo tiveram a Vontade de poder como base, e, portanto, assumiram que muita das posições defendidas por Tolstói, um cristão “herético”, eram as de Nietzsche, como é o caso mais notável de Karl Jaspers e Heidegger. Contudo, é somente em outros fragmentos póstumos e, principalmente, em O Anticristo, que Nietzsche fará uma apropriação das teses defendidas por Tolstói em Ma Religion, conferindo às mesmas, entretanto, nesse movimento, um significado novo, original e próprio ao seu pensamento. Entre essas notas, uma das únicas que não se limita a reproduzir as idéias de Tolstói é o fragmento 11 [251], redigido por Nietzsche em primeira pessoa, no qual ele afirma jamais ter sido cristão uma só hora de sua vida, tal fragmento foi convenientemente suprimido da segunda edição da Vontade de poder, a mesma utilizada por Jaspers, Heidegger e vários outros intérpretes. O ensaio Ma Religion pertence ao período do chamado “segundo Tolstói” 1075 , isto é, o Tolstói posterior à sua famosa conversão ocorrida entre os seus setenta e oitenta anos, a partir da qual ele aderiu a um cristianismo de caráter anárquico e radical, cuja personificação mais patente ele encontrava entre os camponeses russos. Nessa fase, Tolstói renegou todas as suas antigas convicções a respeito da vida e da natureza da obra de arte, rejeitando os livros que o tornaram mundialmente famoso, como Guerra e Paz (1868) e Ana Karenina (1875), como vãs futilidades. O cristianismo professado por Tolstói tem como fundamento absoluto a crença de que a não-violência constitui a essência dos ensinamentos de Cristo e que, por conseguinte, toda forma institucional, eclesiástica do cristianismo é necessariamente contrária a essa doutrina, já que eleva seus alicerces por meio de procedimentos inevitavelmente coercitivos. 1075 Cf. Pacini, Op. Cit., p. 78. 337 Não há qualquer indício que indique que Dostoiévski tenha lido alguma obra de Nietzsche ou que tenha ouvido falar dele, Tolstói, por outro lado, leu ao menos Zaratustra, numa época em que a fama do filósofo já ganhava o mundo sem o conhecimento deste, o que é atestado por uma passagem dos Diários 1076, do romancista: Lu le Zarathoustra de Nietzsche et les notes de sa soeur sur la manière dont il écrivait, et resté pleinement convaincu qu’il était parfaitement fou quand Il écrivait, et fou non pás au sens métaphorique, mais au sens direct le plus précis: incohérence, brusques bonds d’une pensée qui n’aboutissent pás, sauts continus d’une idée à une autre par contraste ou par consonance, et le tout sur fond d’un centre de folie – l’idée fixe qu’en niant tous les fondements supremes de la vie et de la pensée humaines il démontre ce qu’il a de génialement surhumain. Mais que vaut la sociéte, si un pareil fou, et un fou méchant, est reconnu pour maître? 1077 E em O que é arte? 1078 , ele ataca o “elitismo” do, ainda que “inteligente”, “imoral” e “impudente” Nietzsche, que está entre aqueles que restringem o acesso à arte somente à classe superior, aos “super-homens” 1079 , por não perceberam a verdadeira natureza da obra de arte que, ao invés de ser a procura ou a contemplação do belo e do verdadeiro, é a de comunicar sentimentos e emoções que estão em consonância com os valores religiosos de uma dada época e sociedade, portanto, sendo inteligível a toda humanidade. Já em Shakespeare e o drama 1080 , ele aponta Nietzsche como um provável substituto de Hegel, Comte e Darwin, para a “exagerada devoção” de “obras insignificantes”, típica de uma sociedade em que a industrialização da imprensa faz com que o leitor passe a esquecer facilmente aqueles cujas obras já não correspondem à visão predominante de vida, e os “ensinamentos de Nietzsche que, apesar de serem perfeitamente 1076 Cf. Tolstoï, Leon. Journaux et carnets. Textes traduits et annotés par Gustave Aucouturier. Paris : Gallimard, 1980, V. II (1894 – 1904), 29 de dezembro de 1900. 1077 Tolstoï, Journaux et carnets, p. 804. 1078 Tolstoï, Comte Léon. Qu’est-ce que l’art ?. Traduit du russe et précéde d’une Introduction par Teodor de Wyzewa. Paris : Libraire Académique Didier/Perrin Et. Cie, Libraire-Éditeurs, 1898, p. 87. 1079 “Le dilemme est fatal; et c'est pour cela que des hommes intelligents et immoraux tentent d'y échapper en niant, formellement, que le commun du peuple ait aucun droit à l'art. Ces hommes proclament, avec une impudence parfaite, que seuls sont admis à participer aux jouissances de l'art les ‘beaux-esprit’ , ‘l'élite’ ou encore les ‘sur-hommes’, pour employer l'expression de Nietzsche ; et le reste des hommes, vil troupeau, incapable de goûter ces jouissances, doit se contenter de mettre ces êtres supérieurs à même d'en jouir” (Tolstói, Q’est-ce que l’art?, p. 87). 1080 Cf. Tolstöy, Leo. “Shakespeare and the drama” (1906). In: Recollections and essays. Transleted with na Introduction by Aymer Maude. London: Oxford University Press, 1961, pp. 307-383. 338 absurdos, insensatos, obscuros, e maus em seu conteúdo correspondem melhor com a visão de vida atual”. 1081 Mas é bem provável que Tolstói não tivesse conhecimento de como ele próprio contribuiu para a “loucura”, “imoralidade” e “absurdo” do pensamento de Nietzsche. Afinal, em Ma Religion, o filósofo encontrou as formulações mais importantes para o seu diagnóstico do idiotismo presente no autêntico cristianismo vivido e ensinado por Jesus. Sendo assim, Nietzsche concorda com Tolstói de que a essência do cristianismo original está contida na máxima “não resistais ao homem mau”, malgrado o fato do então ensaísta russo interpretar tal doutrina como a mais verdadeira e sublime forma de vida e não como uma conseqüência de idiotia. Por conta disso, é necessário distinguir a natureza dos conteúdos das anotações feitas por Nietzsche durante a leitura de Ma Religion, para que não se confundam as opiniões do próprio Tolstói com as análises dessas opiniões realizadas pelo filósofo. Deve-se, portanto, classificar esses fragmentos póstumos da seguinte maneira: resumos de certas passagens de Ma Religion; sentenças dessa obra que chamaram a atenção de Nietzsche; comentários e questionamentos do filósofo a respeito de certas noções ali expressas; análises propriamente nietzschianas sobre o caráter do cristianismo ali exposto, visto geralmente como um cristianismo mais próximo da mensagem original de Jesus, e, portanto, de seu idiotismo, do que aquele professado pelas tradições eclesiásticas, como a ortodoxia grega ou russa, o catolicismo e o protestantismo, sistemas decadentes ressentidos e ascéticos, e não idiotas. A primeira constatação que se pode fazer ao se comparar o ensaio de Tolstói com o diagnóstico do tipo psicológico do redentor feito por Nietzsche em O Anticristo é o caráter apolítico, natural ao tipo idiota, presente no cristianismo original. Verifica-se que a doutrina da não-resistência defendida por Tolstói como a essência do que Cristo pregou, forneceu a Nietzsche uma das bases fisiológicas por meio das quais o mesmo interpretou o caráter próprio de Jesus bem próximo àquilo que os gregos um dia designaram como “homem- 1081 “Hegel, who justified the existing order, and Comte, who denied the necessity of religious activity in humanity, and Darwin, with his law of struggle for existence, still maintain their places, but are begining to be neglected and replaced by the teachings of Nietzsche, which though perfectly absurd, unthought-out, obscure, and bad in their content, correrspond better to the present-day outlook on life” (Tolstói, Shakespeare and the drama, p. 369). 339 privado” 1082, que desconhece todo e qualquer assunto ligado à realidade externa, ao mundo público, um modo de ser que constitui a própria “abolição do Estado”. O indivíduo que “proíbe” a si mesmo a resistência, corrói inexoravelmente o próprio sustentáculo que ergue toda e qualquer instituição estatal, a saber: o juramento, o serviço militar, as assembléias e os tribunais, a defesa de si e do grupo a que se pertence, a noção de nacionalidade, e a organização social em classes hierarquizadas. Como anota Nietzsche em uma constatação das conseqüências das principais teses defendidas por Tolstói em Ma Religion: O cristianismo primitivo é abolição do Estado. ele proíbe o juramento o serviço militar os tribunais a defesa de si mesmo e a defesa de uma totalidade qualquer a distinção entre nacional e estrangeiro; bem como a hierarquia das classes O exemplo de Cristo: ele não resiste aos que lhe fazem mal (ele proíbe a defesa); ele não se defende; faz mais: “ele oferece a face esquerda”. 1083 Todo esse posicionamento “anárquico” decorre (para Jesus de maneira inconsciente) da convicção de que a máxima “Não resistais ao homem mau” – tomada não como uma 1082 Com a diferença de que no conceito de “homem-privado”, dos gregos, pode-se propor ainda uma questão de escolha, de uma atitude possivelmente consciente tomada pelo homem “idiota” ao se recusar em participar dos negócios do Estado. Tal homem poderia possuir, portanto, a capacidade de se envolver nos negócios públicos, mas se negaria a fazê-lo, o que não deixaria de constituir uma ação política, como acaba sendo o próprio anarquismo de Tolstói. Todavia, na noção nosográfica de idiotia desenvolvida pela psiquiatria do século XIX, na qual Nietzsche se fundamenta, o caráter apolítico do sujeito idiota não se relaciona com um comportamento “contra”-política, mas sim, precisamente “sem”-política; o caráter do idiota enquanto um “homem-privado”, faz-se ainda presente no conceito nosográfico de idiotia da literatura médica do século XIX, mas esse caráter é tido como uma conseqüência natural de seu condicionamento fisiológico, representa, portanto, uma incapacidade, uma deficiência que lhe é própria, não estando, de modo algum, relacionada com uma questão de escolha, política. 1083 FP 11 [239] de novembro de 1887 – março de 1888. “Nous savons parfaitament que la doctrine de Jésus a toujours compris, et comprend en les reniant, toutes les erreurs humaines, tout ce ‘tohu’, ces idoles creuses, que nous voudrions excepter du nombre des erreurs en les appelant: Église, État, culture, science, art, civilisation. Mais Jésus parle précisément contre tout cela, sans excepter n’importe quel ‘tohu’. Non seulement Jésus, mais tous les prophètes hébreux, Jean-Baptiste, tout les vrais sages du monde parlent précisément de l’Église, de l’État, de la culture et de la civilisation de leur époque en l’appelant le mal, source de perdition pour les hommes” (Tolstói, Ma Religion, p. 46). Sobre a expressão “tohu”, cf. I Samuel, 12: 21; a tradução desse termo varia: “coisas vãs”, “outros deuses”, “falsos deuses”, na Bíblia de Jerusalém recorreu-se a “ídolos de nada”, o que se adéqua ao contexto da passagem de Tolstói e se mostra mais significativo no contexto do próprio capítulo do I livro de Samuel. Entre os “verdadeiros sábios do mundo” Nietzsche introduz como exemplo em um apontamento referente a essa passagem de Ma Religion, Platão e Buda: “Jesus nega a Igreja o Estado a sociedade a arte, a ciência, a cultura, a civilização Todos os sábios, em seu tempo, assim negaram o valor da cultura e da organização do Estado. – Platão, Buda” (FP 11 [249] de novembro de 1887 – março de 1888). 340 mera sugestão de como se deve agir de maneira geral em certos momentos, e sim como o único e absoluto guia da ação humana – é a única via de acesso à bem-aventurança, ao estabelecimento da paz entre os homens, do “reino de Deus”. Como Tolstói explica: “Le passage qui devint pour moi la clef de tout fut celui qui est renfermé dans les 38e et 39e versets de Matth., v. ‘Vous avez appris qu’il été dit: Oeil pour oeil et dent pour dent: Et moi je vous dis de ne point résister au mal que l’on veut vous faire’.” 1084 A interpretação da não resistência como a “chave” do evangelho 1085 é retomado por Nietzsche como a primeiro grande conseqüência da realidade fisiológica de Jesus, da qual decorre todo o caráter apolítico de seu tipo específico. Segundo Tolstói, assim como para Nietzsche, o que distingue o autêntico cristão é tão-somente o cumprimento desse mandamento de Jesus: Je compris maintenant qu’en disant ‘Ne résistez pas au méchant’, Jésus non seulement laisse entendre à chacun ce qui résultera de l’observance de cette règle, mais qu’Il établit une nouvelle base d’existence sociale conforme à sa doctrine et opposée à la loi qui constituait la base de l’existence des sociétés humaines selon Moïse, selon le droit romain et aujourd’hui encore selon les différents codes. 1086 Por conseguinte, ser cristão, no sentido de ser como Jesus, não é acreditar em algo, mas agir de determinada maneira. Devido a isso, Nietzsche atesta que o cristianismo autêntico ainda é e sempre será possível. 1087 Aquele que se “negasse” a se defender, a pegar em armas para auxiliar os seus, a votar, a estabelecer leis, a recorrer em causa própria, seria um cristão autêntico, ou seja, seria classificável entre o tipo de Jesus. Todo esse estilo “anárquico” de vida está resumido, para Tolstói, no Sermão da Montanha, nos “cinco mandamentos” oferecidos por Jesus a quem desejasse segui-lo, considerados por Nietzsche como a prática legítima, não contraditória, do evangelho, como conseqüência “moral” da constituição própria do tipo de Jesus. Tais mandamentos é o que separa o cristão autêntico, isto é, um tipo como Jesus, de outros homens, e não, como o cristianismo eclesiástico prega, a fé em Deus e em Jesus 1084 Tolstói, Ma Religion, p. 12. “[...] ‘não resista ao mal’, a frase mais profunda dos evangelhos, sua chave, em certo sentido” (AC § 29). 1086 Tolstoï, Ma Religion, p. 42. 1087 Cf. AC § 39. “O cristianismo ainda é possível a qualquer momento... [...] Quem dissesse agora: ‘não quero ser soldado’, ‘não me preocupo com tribunais’, ‘eu não recorro aos serviços da polícia’ – este seria cristão...” (FP 11 [365] de novembro de 1887 – março de 1888). 1085 341 como “Salvador”, “Redentor da humanidade”, a crença em uma alma imortal, em recompensa e castigo após a morte. Os “cinco mandamentos” de Jesus são analisados cautelosamente por Tolstói em Ma Religion: Le premier commandement dit: ‘Soyez en paix avec tout le monde, ne vous permettez pas de considérer quelqu’un comme vil ou insensé; Math., v, 22. Si la paix est violée, mettez tout em oeuvre pour la rétablir. Le culte de Dieu est tout entier dans l’extinction de l’inimitié entre les hommes, 23, 24. Réconciliez-vous à la moindre discussion, pour ne pas perdre la paix intérieure qui est la vrai vie.’ Dans ce commandement, tout est compris; mais Jésus prévoit les tentations mondaines qui troublent la paix: Ne considérez pas la beauté du corps comme un appareil de volupté; gardez-vous de cette tentation, 28, 30; que chaque homme ait une femme, chaque femme um homme, et qu’on ne se quitte plus jamais sous aucun prétexte, 32. La seconde tentation, c’est le serment qui entraîne les hommes au péché - sachez d'avance que c'est un mal et ne vous liez jamais par aucune promesse (34-37). La troisième tentation, c'est la vegeance, qui s’intitule justice humaine; renoncez à la vegeance, ne l’exercez pas sous prétexte que vous serez molestés, – supportez les offenses et ne rendez pas le mal pour le mal (3842). La quatrième tentation, c’est la différence de nationalités, l’hostilité entre les peuples et les États. – Sachez que tous les hommes sont frères et fils du même Père; ne rompez pas la paix avec qui que ce soit au nom de la nationalité. (4348) 1088 Em seu cristianismo radical, Tolstói estava firmemente convicto de que agir de tal modo era necessário, racional e possível, e em seus últimos anos de vida procurou mostrar isso, o que lhe rendeu perseguições por parte do Estado russo, que proibiu os seus ensaios, e da Igreja ortodoxo russa, da qual foi rapidamente excomungado, já que a promulgação e a forte influência de suas idéias (Gandhi foi bastante inspirado por ele na prática da ahimsa, “a resposta pela não-violência” 1089 ) ameaçava o cerne dos interesses dessas instituições. Para Tolstói, a prática de Jesus foi tão caluniada pela Igreja que ninguém mais conseguia vê-la como algo possível de se cumprir: 1088 Tolstoï, Ma Religion, pp. 111-112. “Ces cinq commandements qui vous ont été révélés par Jésus pour votre bien: Ne vous mettez pas en colère; Ne commettez pás l’adultère; Ne prêtez pás serment; Ne vous défendez pas par la violence; Ne faites pas la guerre. Il peut arriver que vous manquiez à une de ces règles; vous céderez peut-être à l’entraînement, et vous violerez l’une d’elles comme vous violez maintenant les règles de votre religion, les articles du Code civil ou ceux du code mondain. De même, vous manquerez peutêtre, dans un moment d’entraînement, aux commandements de Jésus. Mais, dans les moments de calme, ne faites pas ce que vous faites maintenant; ne vous organisez pas une existence qui rend si difficile la tâche de ne pas se mettre em colère, de ne pas commettre l’adultère, de ne pas prêter serment, de ne pas se défendre par la violence, de ne pas faire la guerre; organisez-vous une existence qui rendrait difficile de faire tout cela” (Tolstoï, Ma Religion, p. 243-244). 1089 Cf. Tolstóy, Leo. “Gandhi Letters” (1910). In: Recollections and essays. Translated with an Introduction by Aymer Maude. London: Oxford University Press, 1961, pp. 433-439; e também: “A letter to a Hindu: the subjection of India – Its cause and cure”. With na Introduction by M. K. Gandhi. In: Loc Cit., pp. 413-432. 342 Les autres, les incrédules, les libres penseurs qui commentent la doctrine de Jésus, les historiens des religions, – les Strauss, les Renan, etc., – complètements imbus des enseignements de l’Église qui dit que la doctrine de Jésus difficilement se concilie avec notre conception de la vie, racontent en effet avec beaucoup de sérieux que la doctrine de Jésus est, en effet, une doctrine de visionnaire, consolation de esprits faibles, qu’elle était bonne à prêcher dans les hameaux de Galilée, mais que, pour nous, ce n’est qu’un doux revê du ‘charmant docteur’ 1090 , comme dit Renan. 1091 Tolstói vê no cristianismo eclesiástico não meramente uma má compreensão dos ensinamentos de Cristo1092, mas sim o mais pérfido inimigo e perseguidor do verdadeiro cristianismo 1093 , o grande responsável para que o termo “cristão” tenha se tornado uma ofensa em relação ao que a vida de Cristo de fato representou: “Et j’acquis la conviction que la doctrine de l’Église, quoiqu’elle ait pris le nom de ‘chrétienne’ ressemble singulièrement à ces ténèbres contre lesquelles il recommande à sés disciples de lutter.” 1094 Opinião corroborada por Nietzsche: Os cristãos jamais praticaram os atos que Jesus lhes prescreveu: e o discurso insolente sobre a “fé” e a “justificação pela fé” e de sua suprema e única importância é somente conseqüência do fato de que a Igreja não teve nem a coragem nem a vontade de professar as obras exigidas por Jesus. 1095 1090 Expressão de Renan, ironizada por Tolstói e Nietzsche. “Le charmant docteur, qui pardonnait à tous pourvu qu’on l’aimât, ne pouvait trouver beaucoup d’écho dans ce sanctuaire des vaines disputes et des sacrifices vieillis” (Renan, Vie de Jésus, p. 154). Cf. Tolstói, Ma Religion, p. 45. Cf. também Nietzsche, FP 11 [242] novembro de 1887 – Março 1888. É importante notar que Dostoiévski também leu Vie de Jésus, de Renan, assim como se mostrava igualmente em desacordo com várias concepções dessa obra. Cf. nota 2 dos editores em O idiota, p. 456, e também Os Demônios, pp. 13-17, em que o personagem Stiepan declara ter lido há algum tempo atrás a Vie de Jésus, de Renan. 1091 Tolstoï, Ma Religion, p. 45. 1092 “Les soi-disant croyants croient que le Christ-Dieu, seconde personne de la Trinité, est descendu sur la terre pour enseigner aux hommes par son exemple - comment il faut vivre; ils accomplissent les actes les plus compliqués pour la consommation des sacrements, l’edification des temples, l’envoi des missionnaires, l’etablissement des prêtres, l’administration des paroisses, l’exercice du culte, mais ils oublient un petit détail – de pratiquer les commandements de Jésus” (Ma Religion, p. 44). 1093 “Si étrange que cela paraisse, toute église, comme église, a toujours été et ne peut pas ne pas être une institution non seulement étrangère, mais directement opposée à la doctrine du Christ. Ce n'est pas sans motif que Voltaire l'a appelée l'infâme. Ce n'est pas sans motif que toutes ou presque toutes les prétendues sectes chrétiennes ont reconnu et reconnaissent l'église dans la grande pécheresse que prédit l'Apocalypse. Ce n'est pas sans motif que l'histoire de l'église est l'histoire des plus grandes cruautés et des pires horreurs” (Tolstoï, L., Le salut est em vous. Paris: Perrin et Cie, 1893., p. 86). 1094 Tolstoï, Ma Religion, p. 220. “– A Igreja é exatamente aquilo contra o que Jesus pregou – aquilo que ele ensinou os seus discípulos a combater –“ (FP 11 [257] de novembro de 1887 – março de 1888). 1095 FP 11 [243] de novembro de 1887 – março de 1888. A mesma opinião é expressa pelo príncipe Míchkin de O idiota a respeito do Catolicismo: “O Catolicismo romano é até pior do que o próprio ateísmo [...] O ateísmo também prega o nada, mas o Catolicismo vai além: prega um Cristo deformado, que ele mesmo 343 Isso porque a Igreja é, em sua essência, o oposto do que Jesus representava com o seu modo de viver: a prática da não violência não pode ser levada a cabo por uma instituição necessariamente coercitiva. Muito pelo contrário, uma instituição clerical precisa, para garantir sua sobrevivência, perseguir aqueles que agem e incitam a agir de tal modo. Foi justamente por conta de seu modo de viver e de ensinar os homens a se portar que Jesus morreu, não como “Salvador da humanidade”, mas como um inimigo (absolutamente inconsciente) das estruturais sociais do mundo público e político, como um “santo anarquista”: Este santo anarquista que incitou o baixo povo, os excluídos e pecadores, a contrariar a “classe dominante” – com uma linguagem que ainda hoje conduziria seu autor à Sibéria1096, – foi um criminoso político na medida em que um crime político possa ainda ser concebido sob tais circunstâncias. Isso o levou a cruz: a prova é a inscrição sobre a cruz: o rei dos judeus. Nenhuma razão permite afirmar com Paulo que Jesus morreu “pelos pecados dos outros”... ele morreu por seu próprio “pecado”.1097 3.5 – Jesus e o príncipe Míchkin de Dostoiévski São fortes os indícios que garantem que os romances de Dostoiévski foram, juntamente com o ensaio Ma religion, de Tolstói, de grande importância para o diagnóstico do tipo psicológico do redentor feito por Nietzsche em O Anticristo. Se Tolstói, com o seu cristianismo anárquico de não-resistência, forneceu uma confirmação da segunda realidade fisiológica do tipo idiota, tal como descrito no § 30 de O Anticristo, Dostoiévski lhe garantiu a precisão “clínica” (ou seja, não exatamente a precisão conceitual ou teórica, mas aquela provinda do estudo dos “casos”), para a compleição fisiológica e para a sintomatologia de semelhante tipo, e é provável que não apenas para o “caso” de Jesus, mas denegriu e profanou, um Cristo oposto! Ele prega o anticristo, eu lhe juro, lhe asseguro!” (Dostoiévski, O Idiota, p. 606). Sobre a crítica de Dostoiévski à Igreja Romana Cf. Pacini, Op. Cit., pp. 20-22, e também FP 11 [331] – 11 [351] de novembro de 1887 a março de 1888, que contém os apontamentos feitos por Nietzsche durante sua leitura do romance Os Demônios. Muitas das críticas endereçadas a Igreja em O Anticristo tiveram também como fonte inegável a leitura dessa obra, contudo, optamos aqui por destacar a influência que Tolstói exerceu neste aspecto. 1096 Referência à prisão russa para condenados políticos. 1097 FP 11 [280] de novembro de 1887 – março de 1888. Cf. AC § 27. 344 também para o de outras figuras que interagem no Novo Testamento, como indica o seguinte fragmento póstumo: não se compreende nada da psicologia da cristandade [Christlichkeit], quando a entendemos como expressão de um novo ressurgimento de uma juventude popular e de um fortalecimento de raças. Mais que isso: é uma típica forma de décadence; de amolecimento moral e histerismo de uma população mesclada [Mischmas-Bewölkerung] doentia, que se tornou cansada e sem meta. Esta estranha sociedade, que aqui se encontra à volta deste mestre da sedução do povo, pertence, de fato, sem exceção, a um romance russo; todos os doentes dos nervos marcaram um encontro com ele... 1098 A referência a um “romance russo”, em que todos os doentes dos nervos decidem marcar uma reunião em torno de seu mestre, remete às descrições que Nietzsche costumava fazer dos cenários e episódios típicos dos romances de Dostoiévski. Como se pode ver, por exemplo, no fragmento intitulado “Minha teoria do tipo de Jesus” (quase imediatamente anterior ao acima mencionado), no qual Nietzsche expressa sua infelicidade por não haver um Dostoiévski na companhia dos sectários de Jesus, pois “de fato, o que melhor corresponde a toda essa história é um romance russo”. 1099 Em outra passagem, Nietzsche deixa ainda mais claro qual a principal “ala hospitalar” que lhe forneceu os exemplos para interpretar as figuras do Novo Testamento ao se referir ao solo mórbido de onde brotou os conceitos de valores cristãos: “– os Evangelhos nos mostram exatamente os mesmos tipos fisiológicos descritos nos romances de Dostoiévski”. 1100 E, em um importante fragmento já referido, no qual argumenta que é contrário à história natural que as naturezas bem constituídas pudessem se ocupar desse “anêmico santo de Nazaré”, faz uma breve classificação das espécies que podem ser catalogadas nos romances de Dostoiévski: “Uma outra espécie lhe pertence [ao anêmico santo de Nazaré]: aquelas que Dostoiévski conhece, – comovidos, arruinados e perturbados abortos, com idiotismo e entusiasmo, com amor...” 1101 Mas, sobre o caso específico de Jesus, pode-se verificar ainda com mais clareza a confiança que Nietzsche depositava nas 1098 FP 11 [380] novembro de 1887 – março de 1888. FP 11 [378] novembro de 1887 – março de 1888. 1100 CW, “Epílogo”. 1101 FP 14 [90] primavera de 1888. 1099 345 análises psicológicas do romancista russo 1102 a respeito da constituição fisiológica e dos sintomas que tipos como o Galileu fatalmente apresentam. Como mostra o fragmento póstumo a seguir, intitulado, justamente, “Jesus: Dostoiévski”: Conheço apenas um psicólogo que viveu no mundo em que o cristianismo [Christenthum] é possível, em que um Cristo pode surgir a qualquer momento. E este é Dostoiévski. Ele adivinhou Cristo: e instintivamente permaneceu protegido, sobretudo, de apresentar esse tipo com a vulgaridade de Renan... E em Paris se crê que Renan sofre de excesso de finesses [fineza]... Mas se pode errar de maneira mais lamentável, quando de Cristo, que era um idiota, se faz um gênio? Quando de Cristo, que representa o contrário de um sentimento heróico, inventase um herói? 1103 Ao ligar, em um mesmo texto, os nomes Dostoiévski e Cristo ao termo “idiota”, ése levado inevitavelmente a pensar que Nietzsche está fazendo uma alusão direta à obra O Idiota do novelista russo, cujo personagem principal, o príncipe Míchkin , foi concebido pelo autor como um misto de Jesus e Don Quixote. Pacini, por exemplo, não hesita em tirar semelhante conclusão: “É claro que, escrevendo que Dostoiévski ‘adivinhou Cristo’, Nietzsche tem em mente o personagem do príncipe Míchkin de O Idiota”. 1104 O grande problema que há em tal dedução é que, diferente de outras obras de Dostoiévski lidas por Nietzsche, bem como do ensaio Ma religion, de Tolstói, não há qualquer comprovação, seja em póstumos ou em cartas, de que o filósofo tenha realmente lido O idiota, questão levantada por Campioni 1105 e Stellino. Como argumenta este último ao recordar a famosa carta de Nietzsche enviada a Franz Overbeck, em 23 de fevereiro de 1887, para se questionar se, no caso de Jesus, foi somente o “parentesco” que Nietzsche sentia ter com Dostoiévski que o levou a resultados tão próximos a que chegara o autor russo 1106: “Muito 1102 A respeito dessa confiança nas análises psicológicas de Dostoiévski, vale recordar a declaração de Nietzsche em Crepúsculo dos ídolos: “Para o problema que aqui se apresenta, o testemunho de Dostoiévski é imprescindível – Dostoiévski, o único psicólogo, por sinal, do qual eu tive alguma coisa a aprender” (GD/CI, “Incursões de um extemporâneo” § 45). 1103 FP 15 [9] da primavera de 1888. 1104 Pacini, G. Nietzche lettore dei grandi russi, p. 30. 1105 Cf. Campioni, Sulla strada di Nietzsche, p. 143, nota. 1106 “De Dostoiévski não conhecia até uma semana atrás nem mesmo o nome – eu, homem inculto que nunca lê jornais! Uma apanhada aleatória numa livraria me trouxe aos olhos em tradução francesa a obra L’Esprit souterrain [O espírito subterrâneo, uma versão reduzida de Memórias do subsolo juntamente com o texto integral de A senhoria] (foi exatamente isso que me ocorreu aos 21 anos com Schopenhauer e aos 35 com Stendhal!). O instinto de parentesco (ou como deveria chamá-lo?) falou imediatamente, minha alegria foi 346 mais problemática é a tentativa de estipular se a singular semelhança entre o idiota de Dostoiévski, o príncipe Míchkin, e a figura de Jesus, tal como ela é descrita em O Anticristo, é resultado desse referido parentesco entre ambos os autores ou se Nietzsche foi influenciado diretamente pelo romance O Idiota”.1107 Para Pacini, é “certo e comprovado” 1108 , que Nietzsche leu O idiota, dada a grande semelhança entre Míchkin e o Jesus de O Anticristo. Já Brito diz que “não se pode afirmar sem circunlóquios que Nietzsche emprega essa palavra [‘idiota’] no sentido do príncipe Míchkin de Dostoiévski 1109, mas isso é muito provável”. 1111 1110 Miller se mantém ainda mais cauteloso, e declara que Nietzsche “talvez” tenha lido O Idiota. 1112 Miller também afirma que o príncipe Míchkin é um tipo recorrente em outras obras de Dostoiévski, localizado, por exemplo, nas personagens Aliocha, de Humilhados e ofendidos, e Stiepan Trofímovitch, de Os Demônios 1113 , o que dá margem a que se pense que era a um ou mais desses tipos que Nietzsche estava se referindo ao afirmar que Dostoiévski “adivinhou Cristo”. 1114 Já Karl Jaspers é de opinião extraordinária: tenho que remontar até a minha leitura do Rouge et Noir [O vermelho e o negro] de Sthendal para me lembrar de alegria semelhante”. 1107 Stellino, “Jesus als ,Idiot’”, p. 204; 1108 Pacini, Op. Cit., p. 17. 1109 Justamente a conclusão de Janz: “Com essa palavra [‘idiota’] se faz perceptível a influência das leituras de Dostoiévski no pensamento e nas formulações de Nietzsche, no sentido, certamente, de um enfrentamento com a interpretação que Renan faz de Jesus como ‘herói’. Há que se ter presente tais relações e fontes se não se quer falsear o conteúdo significativo das passagens correspondentes” (Janz, Friedrich Nietzsche Biografia, vol. III, p. 519) ; e Andler: “Ele [Nietzsche] representa Jesus como uma espécie de príncipe Míchkin oriental, melhor dotado, mas da mesma compleição que o doce epiléptico retratado no romance O Idiota” (Andler, Nietzsche, sa vie et sa pensée, vol. III, p. 352). Cf. também: Andler, Charles, “Nietzsche et Dostoievsky”. In: Mélanges d’histoire littéraire générale et comparée. Offerts a Fernand Baldensperger, Paris 1930, pp. 1-14. 1110 Brito, “Les motivs de la critique nietzschéenne du christianisme”, p. 134. 1111 Miller, C. A. “Nietzsche’s ‘discovery’ of Dostoevsky”, p. 203. 1112 “Sua reação positiva para o que ele leu em L’Esprit souterrain, induziu-o, por sua vez, a continuar e ler, pelo menos: Humilhados e ofendidos, Recordações da casa dos mortos, Os demônios, provavelmente Crime e Castigo e talvez O idiota” (Miller, Ibidem). 1113 Cf. Miller, C. A. “Nietzsche’s ‘discovery’ of Dostoevsky”, p. 217. Uhl também defende algo semelhante: “Cristo, este ‘grande simbolizador’ se afigura aos olhos de Nietzsche como um ‘idiota’, na significação mais profunda e original do termo, que é uma mistura de ‘sublime, doentio e infantil’. Esta qualificação é uma caracterização excelente da figura de Cristo representada por Myschkin, mas também por Sônia [de Crime e Castigo] e Alioscha. A esse tipo de homem dedica Dostoievski a estima mais profunda. Representa ele o homem verdadeiramente belo do paraíso perdido, cujo grande amor deve tornar-se neste mundo sua loucura e crucificação, porque ele não julga e não resiste ao maligno” (Uhl, A. “Dor por Deus e dor pelo homem: Nietzsche e Dostoievski”, p. 53 [677]). 1114 É interessante notar que um dos “tipos” de Dostoiévski, no caso, o ressentido, cujo grande exemplo é o narrador de Memórias do subsolo, está presente no romance O idiota, na personagem de Hippolite. Chama atenção o fato de que Hippolite, que teve uma vida transtornada por uma saúde precária assim como a de Míchkin, não consegue gostar do príncipe, não consegue entendê-lo, apesar de respeitá-lo e de ser fascinado 347 de que seja duvidoso que Nietzsche tenha lido O Idiota, visto que a primeira tradução alemã só foi publicada em 1889. 1115 tradução francesa publicada em 1887 Não obstante, Stellino utiliza como fonte uma 1116 , justamente o ano em que o filósofo entrou em contato com a obra do romancista, justificando que seria provavelmente esta edição que Nietzsche utilizaria caso houvesse lido o romance, dado a preferência do autor pelas traduções francesas. 1117 Kaufmann, por sua vez, prefere acreditar que Nietzsche “pode até não ter lido todo o romance O Idiota, mas parecia estar familiarizado com sua concepção central”. 1118 Kühneweg se mostra inclinado a aceitar essa hipótese de Kaufmman. 1119 Dibelius, porém, acha que seria muito difícil, caso Nietzsche estivesse se referindo ao príncipe, que ele não houvesse declarado isso explicitamente em cartas, póstumos ou mesmo em O Anticristo 1120 , tal como ele de fato o fez, no calor do entusiasmo, durante a leitura de outras obras de Dostoiévski. Mas Kaufmann também chama atenção para o fato de que, a despeito de não haver menção ao romance O Idiota em póstumos ou em cartas, Nietzsche, um ano após declarar estar impressionado com as obras de Dostoiévski, inseriu em passagens anteriormente publicadas, que estavam sendo editadas para inclusão no opúsculo Nietzsche contra Wagner, a palavra “idiota”. 1121 Já para Sommer, a simples por sua figura. Hippolite se mostra incomodado justamente com a falta de resistência do príncipe, com a resignação total deste para com os males que o afligem. O que indica como a decadência se manifesta de diversos modos, e como um tipo ressentido (apóstolos) não consegue entender um tipo idiota (Jesus). Para uma análise completa do tipo ressentido em Dostoiévski e em Nietzsche, cf. Paschoal, Antonio Edmilson. “Dostoiévski e Nietzsche: anotações em torno do ‘homem do ressentimento’”. In: Estudos Nietzsche. Curitiba, v. 1, n. 1, p. 181-198, jan./jun. 2010. 1115 “É duvidoso que Nietzsche tenha lido O Idiota. A primeira tradução alemã só apareceu em 1889, de modo que não pôde conhecê-la. Não sei se já existia uma tradução francesa e se chegou em suas mãos, ou se só chegou aos seus ouvidos o título O Idiota, ou se se trata, sem que o houvesse sabido, de uma estranha coincidência” (Jaspers, K. Nietzsche und das Christentum, p. 20, nota). 1116 Dostoïevsky, M. L’idiot. Traduit par Victor Derély. Paris: Plon-Nourrit et Cle: 1887. 1117 Cf. Stellino, P. Op. Cit., p. 206. Sobre a preferência de Nietzsche pelas traduções francesas Cf. o cartão postal de 27 de março de 1887, a Heinrich Köselitz. 1118 Kaufmman, W. Nietzsche, philosopher, psychologist, antichrist, p. 340, nota 2. 1119 Cf. Kühneweg, U. “Nietzsche und Jesus – Jesus bei Nietzsche”, p. 385, nota 22. 1120 Cf. Dibelius, M. “Der psychologische Typus des Erlösers bei F. Nietzsche”, pp. 72-73. 1121 NW § 2 e § 3. Cf. Kaufmman, W. Loc. Cit., p. 345. Por conta do que foi exposto na seção anterior deste trabalho, “A idiotia nas fontes de Nietzsche”, consideramos esse argumento de Kaufmman insuficiente para atestar uma influência direta de Dostoiévski no uso da palavra “idiota” por parte de Nietzsche em seus últimos escritos. 348 existência do fragmento póstumo intitulado “Jesus: Dostoiévski” torna, por si só, toda a especulação de se Nietzsche teria ou não ouvido falar do romance O idiota, “nula”. 1122 Não obstante, nossa posição é de que a hipótese mais plausível é aquela lançada por Campioni (e que se assemelha com a de Kaufmann). Segundo Campioni, o mais provável é que Nietzsche tenha tomado conhecimento da natureza e do conteúdo principal do romance O idiota por meio de uma fonte indireta: a obra de Eugène-Melchior De Vogüe, Le roman russe, publicada em 1886, que consiste numa coletânea de artigos já antes publicados na “Revue des Deux Mondes”, periódico francês bastante lido e apreciado por Nietzsche. 1123 Na quarta seção do capítulo V de Le roman russe, intitulado “La religion de la souffrance”, De Vogüe faz uma análise do príncipe Míchkin que está bem próxima das considerações psicológicas que Nietzsche faz acerca do tipo idiota em O Anticristo. Acreditamos que essa hipótese de Campioni é muito válida. No fragmento póstumo 25 [4] do dezembro de 1888 – início de janeiro de 1889, Nietzsche faz uma menção a De Vogüe. O filósofo também faz uso da expressão “religion de la souffrance” no aforismo 21 de Além de bem e mal e em Genealogia da moral, III § 26. É possível que o uso da expressão em Além de bem e mal seja uma referência à obra Recordações da casa dos mortos, de Dostoiévski. Já o uso feito em Genealogia da moral remete provavelmente, entre outras coisas, a chamada “‘compaixão’ tolstoiana” 1124 ; sendo que De Vogüe também faz uma profunda análise psicológica do ensaio Ma religion de Tolstói no capítulo “La religion de la souffrance”. É até mesmo possível que tenha sido por intermédio do trabalho escrito por De Vogüe que Nietzsche tenha adquirido interesse pelo ensaio de Tolstói. Em Le Roman russe, de Vogüe declara a respeito de Dostoiévski: Le caractère le plus travaillé par l’écrivain, son enfant de prédilection, qui remplit à lui seul un gros volume, c’est l’Idiot. Féodor Michaïlovitch s’est peint dans ce caractère comme les auteurs se peignent, non certes tel qu’il était, mais tel qu’il aurait voulu se voir. D’abord, ‘l’idiot’ est épileptique : ses crises fournissent un dénoûment imprévu à toutes les scènes d’émotion. Le romancier s’en est donné à cœur joie de les décrire ; il nous assure qu’une extase infinie inonde tout l’être durant les quelques secondes qui précèdent l’attaque ; on peut l’en croire sur parole. Ce sobriquet, ‘l’idiot’, est resté au prince Muichkine, 1122 Sommer, A. U. Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”, p. 317. Cf. Campioni, G. Sulla strada di Nietzsche, p. 144, nota. E também Campioni, 2001, p. 2. 1124 Ver AC § 7. 1123 349 parce que, dans sa jeunesse, la maladie avait altéré ses facultés et qu’il est toujours demeuré bizarre. Ces données pathologiques une fois acceptées, ce caractère de fiction est développé avec une persistance et une vraisemblance étonnantes. Dostoïevsky s’était proposé d’abord de transporter dans la vie contemporaine le type du don Quichotte, l’idéal redresseur de torts ; ça et là, la préoccupation de ce modèle est évidente ; mais bientôt, entraîné par sa création, il vise plus haut, il ramasse dans l’âme où il s’admire lui-même les traits les plus sublimes de l’Évangile, il tente un effort désespéré pour agrandir la figure sus proportions morales d’un saint.Imaginez un être d’exception qui serait homme par la maturité de l’esprit, par la plus haute raison, tout en restant enfant par la simplicité du cœur ; qui réaliserait, en un mot, le précepte évangélique : ‘Soyez 1125 comme des petits enfants’. Tel est le prince Muichkine, ‘l’idiot’. A hipótese advinda da tese de Miller de que o tipo idiota está presente em outros romances de Dostoiévski além de O Idiota, ou seja, a suposição de que Nietzsche poderia ter “coletado” exemplos para o tipo de Jesus em outros personagens que não o príncipe Míchkin também tem bastante relevância, mas não chega a ser uma comprovação de uma influência decisiva de Dostoiévski na interpretação de Nietzsche sobre Jesus. Afinal, é possível de fato identificar algumas semelhanças entre esses personagens (e aqui, incluímos de nossa parte, Catarina Fedorovna de Humilhados e Ofendidos) e o Jesus de Nietzsche, porém nenhum parece assumir a correspondência quase explícita que há entre esse último e o príncipe Míchkin de O Idiota. Aliocha e Kátia (Catarina) são usualmente retratados como crianças 1126, o que certamente permite uma comparação com o Jesus de Nietzsche, todavia nada tão próximo do parentesco deste com o príncipe Míchkin, sobretudo no aspecto “sublime”, na vivência do “reino de Deus” como um estado do coração, na vida dedicada ao amor incondicional. Entretanto, Stiepan, de Os demônios, é descrito mais como uma “mulherzinha mexeriqueira”, um senhor histérico e mimado. Se não resiste a tirania de Varvara Pietrovna, é muito mais por pura pusilanimidade e comodismo do que por uma incapacidade de resistir, como é o caso de Míchkin e do Jesus de Nietzsche. Além do mais, ele se mostra plenamente capaz de nutrir ressentimento, algo impossível para um tipo idiota. Sendo assim, ainda que esses personagens antecipem várias características do personagem principal de O idiota, nenhum deles parece, portanto, manifestar a totalidade dos traços de que nos fala Nietzsche no § 31 de O Anticristo, “desse mundo peculiar e 1125 De Vogüe, Le roman russe, pp. 257-258. “Estou persuadido de que, quando conversavam a sós [Aliocha e Kátia] [...] deviam falar também de brinquedos” (Dostoiévski, Humilhados e ofendidos. p. 199). 1126 350 doente que os Evangelhos nos introduzem – como o de um romance russo”, nenhuma parece exercer o encanto arrebatador que uma mistura de “sublime, enfermo e infantil” (Ibidem) consegue provocar, como no caso do Jesus de Nietzsche e do príncipe Míchkin de Dostoiévski. Em outro trabalho, Miller defende que os traços do mundo doente para o qual os Evangelhos nos transportam e os do tipo psicológico do redentor, foram encontrados por Nietzsche no personagem Kirílov, de Os Demônios, e em sua descrição da experiência de “harmonia eterna” vivenciada por ele, fruto, em grande parte, da possível constituição epiléptica 1127 do personagem, algo bastante próximo das sensações que o príncipe Míchkin experimenta. Tal tese é sustentada pelo fragmento póstumo 11 [337] de novembro de 1887 – março de 1888, em que Nietzsche faz uma tradução, entre diversas outras, de uma passagem lida por ele da edição francesa de Os Demônios Chátov sua experiência de “harmonia eterna”. 1129 1128 , em que Kírilov descreve a Pode-se ressaltar igualmente a pequena distância que há entre os póstumos que são frutos de anotações provindas da leitura de Os Demônios 1130 e aqueles em que a investigação do tipo de Jesus 1131 se torna uma preocupação explícita ainda que já iniciada de certa maneira pelas notas provindas da leitura de Ma religion, de Tolstói 1132 , por mais que, nesse último caso, a investigação se volte mais para a psicologia do cristianismo primitivo de maneira geral. No entanto, Kirílov não apresenta aquele caráter de não-resistência, próprio do tipo idiota, assim como se mostra facilmente irritadiço e revoltado com o estado de coisas no mundo. 1133 1127 “A associação específica que Dostoiévski faz entre a sensação de ‘harmonia eterna’ de Kirílov com uma epilepsia latente, demonstra seu entendimento do problema fisio-psicológico que Cristo e os primeiros prosélitos possuíam [...] Esse entendimento do ‘ideal evangélico’ segundo um estudo ‘fisio-psicológico’, a representação que Dostoiévski faz de Kirílov como mistagogo da ‘harmonia eterna’, confirma a noção de Nietzsche [...] de que ele [Dostoiévski] havia ‘adivinhado’ Cristo em termos do ambiente decadente que gerou e sustentou o tipo” (Miller, “The Nihilist as Tempter-Redeemer”, p. 180). 1128 Dostoiévski, F. Les Possédés. Traduit par Victor Derély. Paris: Bési, 1886. 1129 Cf. Dostoiévski, Os Demônios, pp. 571-572. 1130 FP 11 [331-352] novembro de 1887 – março de 1888. 1131 FP 11 [368-369] e [378] novembro de 1887 – março de 1888, intitulados respectivamente de “O tipo de Jesus”, “Para o tipo de Jesus” e “Minha teoria do tipo de Jesus”. 1132 FP 11[236-282] novembro de 1887 – março de 1888. 1133 Cf., por exemplo, Dostoiévski, Os Demônios, p. 98-99. 351 Ademais, nenhum outro personagem é tão clara e constantemente denominado, seja pelo narrador, seja pelos outros personagens, de “idiota”, como o príncipe Míchkin.1134 Ora, não há dúvidas de que a leitura de Humilhados e ofendidos explica de uma maneira formidável o aspecto “infantil” da compleição de um tipo idiota, bem como sua estranheza frente ao mundo em sua efetividade e sua incapacidade em se envolver com os negócios do Estado pelas figuras de Aliocha e Kátia. 1135 Outrossim, a descrição de Kírilov sobre a sensação de “harmonia eterna” fornece um prelúdio inestimável para o entendimento da experiência de “síntese da vida” vivenciado por Míchkin, e lança luz sobre o que Nietzsche denomina o aspecto “sublime” do tipo idiota. Mas nenhum desses personagens representa melhor a “mistura” [Mischung] de que nos fala Nietzsche dos três aspectos, qual sejam, “sublime, enfermo e infantil”, presentes no tipo psicológico desse “interessantíssimo décadent” 1136 que foi Jesus, tal como é o caso do personagem principal do romance O Idiota, com o acréscimo do aspecto “enfermo”, o qual, a despeito de poder ser, de certa forma, atribuído a esses personagens de Dostoiévski acima mencionados (sobretudo no caso de Kírilov), não se mostra de maneira alguma tão grave quanto no caso de Míchkin. É, pois, de fato surpreendente que em O Anticristo, Nietzsche, lamentando o fato de que um Dostoiévski não tivesse analisado “o caso” de Jesus de perto 1137 , resume a compleição fisiológica e o quadro sintomatológico do tipo idiota de forma a fazer um retrato incrivelmente nítido do personagem descrito no romance do escritor russo: “É de 1134 De Aliocha e Kátia é dito, por exemplo, pelo príncipe Volkovski, pai do rapaz: “Aliocha e Kátia estão talhados um para o outro: ambos estúpidos quanto é possível ser” (Dostoiévski, Humilhados e ofendidos, p. 218). Em outras passagens, Aliocha é denominado de “pateta” (Idem, p. 60), de “estouvado”, “pouco razoável” (Id. p. 91), e de “simplório” (Id. p. 154). E, em apenas um único momento, o jovem faz uso do termo “idiota” para falar de si mesmo: “Porque me olhas assim, pai? Dir-se-ia que tens à tua frente um truão, um idiota!” (Id. p. 157). Kírilov, no entanto (a maior influência de Nietzsche no diagnóstico do tipo de Jesus segundo Miller), não é denominado uma única vez sequer de “idiota”. 1135 “E talvez o senhor tenha razão...”, afirma Aliocha em certa passagem, “Nada sei da vida real. É também o que Natacha me diz, e toda a gente afinal” (Dostoiévski, Humilhados e ofendidos, p. 46). E antes disso, o rapaz declara a respeito de sua promessa em casar-se com Natacha: “Deixarei de ser um garoto... isto é, hei de ser como os outros... como esses que constituem família” (Ibidem). Mas, para Natacha, isso é impossível: “É para isso que me convoca neste momento, para nos casarmos amanhã, às ocultas, no campo. Mas Aliocha nem sabe o que faz! Não faz idéia do que seja o casamento” (Idem, p. 42). 1136 AC § 31. 1137 E no fragmento intitulado “Minha teoria do tipo Jesus”, Nietzsche também afirma: “Que pena que não houvesse um Dostoiévski entre essa sociedade: de fato, o que melhor corresponde a toda essa história é um romance russo – seres enfermos, comoventes, traços isolados de sublime estranheza, em meio a coisas dissolutas e sucintamente plebéias... como Maria Madalena” (FP 11 [378] novembro de 1887 – março de 1888). 352 lamentar que um Dostoiévski não tenha vivido na proximidade desse interessantíssimo décadent – quero dizer, alguém que pudesse perceber o arrebatador encanto dessa mistura de sublime, enfermo e infantil”. 1138 Nossa hipótese, porém, é de que essa incrível semelhança entre o príncipe Míchkin de Dostoiévski e o Jesus de Nietzsche, semelhança esta bem superior àquela com outros personagens do escritor russo, não se deva, talvez, a uma influência tão direta da obra do romancista russo sobre as investigações de Nietzsche, mas sim ao fato dos dois autores estarem profundamente inseridos no debate teórico acerca da idiotia como enfermidade degenerativa, bem como no estudo das experiências religiosas como sintomas de patologias mentais em voga na literatura médico-psiquiátrica do final do século XIX. Nietzsche declarou que Dostoiévski “adivinhou” Cristo porque o filósofo soube, por fonte indireta, (acreditamos que De Vogüe seja essa fonte), que o escritor russo havia escrito um romance cujo personagem principal fora concebido como um homem ideal, de coração puro, que seria uma imagem literária de Jesus, e que tal homem – era portador de idiotia. Quanto aos outros personagens de Dostoiévski, eles foram, sem dúvida, de grande importância para um retrato literário de um mundo décadent, similar aquele dos Evangelhos, com uma acuidade psicológica capaz de revelar a realidade fisiológica dos sujeitos degenerados que o povoam, ou seja, capaz de revelar também e principalmente a realidade que se esconde por trás da corrupção psicológica dos Evangelhos. Contudo, não se pode afirmar que esse retrato, apesar de ter contribuído ricamente, tenha sido de fato decisivo para que Nietzsche chegasse ao seu diagnóstico; suas pesquisas no campo da medicina e da filologia foram, em nossa interpretação, igualmente ou talvez ainda mais importantes. Não obstante, é possível estabelecer uma análise do príncipe Míchkin como um “caso clínico” de importantíssimo valor para o esclarecimento do diagnóstico do tipo psicológico do redentor oferecido por Nietzsche, identificando no personagem os três aspectos do tipo idiota destacados pelo filósofo. Stellino perfaz um caminho semelhante ao tentar mostrar até que ponto é possível afirmar que o significado do termo “idiota” em O Anticristo é o mesmo presente no 1138 AC § 31. 353 romance O Idiota. 1139 Entretanto, seu trabalho não parte da tentativa direta de se identificar no personagem Míchkin os aspectos sublime, enfermo e infantil do tipo de Jesus destacados por Nietzsche logo após este se referir a Dostoiévski, mas sim de uma comparação mais geral entre essas duas figuras, detendo-se, sobretudo, no aspecto infantil e na constituição epiléptica que, segundo ele, encontra-se presente nas mesmas. Murphy acredita igualmente que uma comparação entre o príncipe Míchkin e o Jesus de Nietzsche revela correlações muito fortes, o que, segundo ele, reforça, mas não chega a provar a existência de uma apropriação direta ou mesmo de uma mera influência. 1140 Todavia, assim como Stellino, Murphy não se preocupa em fazer uma análise de todos os três traços do tipo idiota para aproximar o príncipe Míchkin do Jesus de O Anticristo, concentrando-se na condição de epiléptico que ele afirma poder ser observada em ambos os casos. Acreditamos que uma tentativa de verificar no personagem criado por Dostoiévski a presença dos três aspectos que caracterizam o idiota de acordo com Nietzsche pode não só demonstrar ainda com mais intensidade a semelhança que há entre o significado do termo “idiota” em O Anticristo e no romance do escritor Russo (semelhança essa, a nosso ver, causada pela proximidade de estudos de fontes médicas e psiquiátricas que foram realizados tanto pelo filósofo quanto pelo romancista) como nos garantir uma maior compreensão do uso que Nietzsche faz do termo em seus últimos escritos. O príncipe Míchkin é descrito justamente como alguém que passou a maior parte da vida terrivelmente enfermo, alguém cuja puberdade parece ter sido como que atrofiada, sendo, por vezes, acometido por violentos ataques epilépticos, em que, poucos momentos antes, experimenta uma sublime sensação de paz na alma e candura de espírito. A natureza “enferma” do príncipe é descrita por ele próprio já no início do romance, quando ele se apresenta ao marido da generala: “As freqüentes crises de sua doença fizeram dele um idiota completo (foi ‘idiota’ mesmo que ele disse)”. 1141 Ao ser deixado na presença da generala, no entanto, esta se surpreende com o seu modo polido e educado: “É muito bom que o senhor seja cortês, e estou observando que o senhor não tem nada desse... excêntrico como o apresentaram [...] Não é verdade que ele não tem nada desse... doente?”. 1139 Cf. Stellino, P. Loc. Cit., p. 206. Cf. Murphy, Nietzsche, metaphor, religion, p. 187, nota. 1141 Dostoiévski, O idiota, p. 49. 1140 354 1142 Apesar disso, o príncipe havia passado por uma infância de quase absoluto alheamento, e é para esse estado que ele retorna ao final de sua desventura. Ademais, ao ser ameaçado com uma faca por Rogójin, com quem chegara a nutrir um certo sentimento de amizade, a despeito de manter com ele uma relação constantemente perturbada pela paixão deste último por Nastácia, o príncipe sofre um terrível ataque epiléptico que quase lhe tira a vida. Míchkin parece apresentar, ao longo do romance, dois tipos de idiotia. 1143 Antes do início da história, ele era um “idiota completo”, isto é, a violência de seus ataques epilépticos tornara-o um completo alienado, totalmente apático e absorto em outro mundo, alguém incomunicável, ignorante de tudo que se passa ao seu redor. No entanto, no decorrer da história, ele é um “idiota ingênuo”, que não resiste, mas que percebe tudo com uma clareza e perspicácia extraordinária. Quando Gavrila Ardaliónovitch conduz o príncipe para a pensão de sua família, lançando-lhe vários impropérios por conta da reação indignada de Aglaia à carta da qual ele incumbira o príncipe de lhe entregar, acaba denominando-o de “idiota”, repetidas vezes. Mas, para o narrador: “foi precisamente essa fúria que o deixou cego; senão há muito tempo teria atentado para o fato de que esse ‘idiota’, que ele estava espezinhando tanto, às vezes era capaz de compreender tudo imediatamente e nas sutilezas e transmitir de maneira extremamente satisfatória.” 1144 A diferença entre o “primeiro estágio” de sua enfermidade e sua aparente recuperação, era, para o príncipe, tão clara que ele se considerava uma espécie de “ex-idiota”. Como se pode perceber na declaração de Míchkin a Gavrila naquele mesmo percurso: Eu devo observar ao senhor, Gavrila Ardaliónovitch – disse subitamente o príncipe –, que antes eu realmente era uma pessoa tão sem saúde que de fato era quase um idiota; mas hoje estou restabelecido há muito tempo e por isso acho um tanto desagradável quando me chamam de idiota na cara. 1145 1142 O Idiota, p. 77. O termo “idiota” possui, na verdade, três acepções no romance O idiota: 1) a de “tolo”, “imbecil”, “simplório”, que corresponde ao uso mais comum e ordinário do termo, designando alguém que ignora as mais básicas convenções sociais; 2) a de “ingênuo” e “inocente”, que caracteriza a pureza e a simplicidade infantil do príncipe; 3) e a de “doente mental”, “alienado”, ligada diretamente à condição de epiléptico do personagem. 1144 Dostoiévski, O Idiota, p.114. 1145 Dostoiévski, O Idiota, p. 114. 1143 355 A natureza “infantil” do príncipe é atestada, por sua vez, pelo diagnóstico que seu médico Schneider arriscara-se a lhe dar após um episódio que Míchkin vivera quando ainda estava em tratamento na Suíça, em que ele por amor (leia-se, compaixão) a uma jovem desonrada da vila em que residia, fora levado a entrar em um doloroso conflito com as crianças que sempre o admiraram, até que, por fim, acabara convencendo as mesmas a perdoarem a “falta” de Marie pouco antes de ela morrer: [...] ele [Schneider] me disse que se havia convencido inteiramente de que eu mesmo sou uma criança perfeita, isto é, plenamente criança, que apenas pelo tamanho e pelo rosto eu me pareço com um adulto, mas que pelo desenvolvimento, a alma o caráter e talvez até a inteligência eu não sou um adulto e assim o serei mesmo que viva até o sessenta anos. Eu ri muito: é claro que ele não tem razão, porque, que criança sou eu? No entanto existe aí apenas uma verdade; eu realmente não gosto de estar com adultos, com pessoas, com grandes – isso eu notei faz tempo –, não gosto porque não sei. 1146 Além disso, o caráter de “homem-privado”, apolítico do tipo idiota é perfeitamente exemplificado pela completa falta de tato, de compreensão do príncipe a respeito do mundo dos “grandes”. Como sentencia a generala a seu respeito em um dado momento: “Em primeiro lugar, esse principezinho é um idiota doente, em segundo um imbecil, não conhece nem a sociedade, não tem nem um lugar na sociedade”. 1147 Chama também atenção o fato de que as pessoas por quem o príncipe declara nutrir maior afeto são todas consideradas por ele verdadeiras “crianças”. Igualmente, tal como a literatura médica do século XIX compreendia o idiota, em tal tipo nenhum instinto viril chega a se desenvolver: “Talvez o senhor não saiba, mas por causa da minha doença congênita nunca conheci mulher”. 1148 O amor que o príncipe nutre por Aglaia e Nastácia é explicado por ele como compaixão por suas almas de criança em 1146 Dostoiévski, O idiota, pp. 98-99. Dostoiévski, O Idiota, p. 567. “Eu sei que eu... fui ofendido pela natureza [...] em sociedade eu estou sobrando” (O Idiota, p. 382). 1148 Dostoiévski, O idiota, p. 33. Com relação a isso, é muito esclarecedora a opinião de Vânia, narrador de Humilhados e ofendidos, a respeito de Kátia: “Da minha conversa de três horas com Catarina Fedorovna extraí, entre outra, a convicção curiosa e ao mesmo tempo arraigada de que ela era ainda bastante criança, a ponto de ignorar completamente as ligações secretas do homem com a mulher. Isto dava um caráter cômico a alguns dos seus raciocínios, e, em geral, ao tom sério que tomava para aflorar muitos assuntos importantes” (Dostoiévski, Humilhados e ofendidos, p. 204). 1147 356 terrível sofrimento. Nastácia acaba sendo preferida por ele porque é quem ele julga mais sofredora. 1149 Por outro lado, o príncipe é diversas vezes descrito como um indivíduo do mais circunspecto juízo e um refinado observador dos sentimentos mais profundos que afligem aqueles que o cercam e que o tomam por pueril, o que sempre os surpreende. Como declara o personagem Keller em um dado momento: “Um jeito tão simplório, tamanha ingenuidade que não se via nem na idade de ouro, e de repente penetra o homem de cabo a rabo como uma seta, com uma psicologia tão profunda na observação”. 1150 O príncipe mesmo se considera bastante inteligente e estima o seu modo de ver as coisas como o mais coerente e justo 1151, mostrando-se plenamente consciente do juízo que os outros fazem a seu respeito, o que, segundo seu próprio argumento, já revela a contradição interna desse mesmo juízo: Talvez aqui [em Petersburgo] também me achem uma criança – que achem! Também me acham idiota sabe-se lá por quê, eu realmente estive tão doente naquela época que parecia mesmo um idiota; mas que idiota sou agora, quando eu mesmo compreendo que me consideram um idiota? Entro em algum lugar e penso: “Pois bem, me consideram idiota, mas apesar de tudo eu sou inteligente e eles nem adivinham”. 1152 Esta passagem pode muito bem indicar que ao classificar Jesus como idiota, Nietzsche também não estaria simplesmente querendo lhe imputar o aspecto de “parvo”, “imbecil”, “tolo”, “estúpido”, “sem inteligência”, “ignorante”, etc. Mas alguém cujo condicionamento fisiológico o impede de interagir com a efetividade do mundo que o rodeia, de entender as necessidades, também fisiológicas, do homem público e do mundo que este constrói e habita. Mas, se Míchkin tem uma capacidade de observação tão penetrante que desarma constantemente seus interlocutores, por que, ainda assim, estes continuam tratando-o como “idiota”? O que há nele de tão simplório e frívolo aos olhos dos outros? Ora, como diz 1149 “Não a amo por amor, mas por compaixão” (Dostoiévski, O Idiota, p. 207). Dostoiévski, O Idiota, p. 348. 1151 “– Isto é, o senhor pensa que pode viver de um modo mais inteligente que todos? – perguntou Aglaia. – Sim, às vezes eu cheguei a pensar nisso. – E ainda pensa? – E ... penso” (Dostoiévski, O Idiota, p. 84). 1152 Dostoiévski, O idiota, p. 100. Aliocha, de Humilhados e ofendidos, também declara: “O imbecil que tem consciência de ser imbecil já não o é!” (Dostoiévski, Humilhados e ofendidos, p. 157). 1150 357 Stellino, “não porque ele sofre de uma idiotia fisio-psicológica, mas porque ele é ingênuo e inocente como uma criança” 1153, e porque, podemos acrescentar, ele nunca resiste aos que lhe fazem mal. Quanto à natureza “sublime” do príncipe, a mesma pode ser facilmente observada no modo como este relembra as experiências que sempre vivencia no limiar de seus ataques epilépticos, instantes de “suprema existência”, de “beleza e súplica”, de “suprema síntese da vida”, algo que remete facilmente ao “reino de Deus” que Nietzsche localiza no “coração” de Jesus, em seu mundo de profundas vivências e sentimentos interiores, o mundo do “inapreensível”, em que a realidade já não mais o fere com a sua solidez e aderência, um mundo da mais absoluta bem-aventurança, em que se ama todas as coisas incondicionalmente: Entre outras coisas, pôs-se a meditar como em seu estado epiléptico, quase no limiar do próprio ataque [...] chegara a um grau em que subitamente, em meio à tristeza, à escuridão da alma, à pressão, seu cérebro pareceu inflamar-se por instantes e todas as suas forças vitais retesaram-se ao mesmo tempo com um ímpeto incomum. A sensação de vida, de alto consciência quase decuplicou nesses instantes que tiveram a duração de um relâmpago [...] De que isso era realmente “beleza e súplica”, de que isso era realmente a “suprema síntese da vida” ele não podia nem duvidar, e aliás não podia nem admitir dúvidas [...] Se naquele segundo, isto é, no mais derradeiro momento de consciência perante o ataque ele arranjasse tempo para dizer com clareza e consciência a si mesmo: “Sim por esse instante pode-se dar a vida toda!” – então, é claro, esse momento em si valia a vida toda. 1154 O próprio príncipe Míchkin reconhece que essa experiência é conseqüência de um estado doentio, que ela traz como resultado o embotamento, a confusão e a idiotia. Contudo, para ele, essa é uma taxa justa que se paga para o acesso a uma realidade de suprema harmonia e beleza, já que o corpo não poderia deixar de ceder ao peso de uma sensação tão extraordinariamente sublime: Refletindo mais tarde sobre esse instante, já em estado sadio, ele dizia freqüentemente de: que todos esses raios e relâmpagos da suprema auto-sensação e autoconsciência e, portanto, da “suprema existência” não passam de uma doença, de perturbação do estado normal e, sendo assim, nada têm de suprema existência, devendo, ao contrário, ser incluídos na mais baixa existência. E, não obstante, ainda assim ele acabou chegando a uma conclusão extremamente 1153 1154 Stellino, P. Op. Cit., p. 210. Dostoiévski, O idiota, pp. 261-262. 358 paradoxal: “Qual é o problema de ser isso uma doença? – decidiu finalmente. – Qual é o problema se essa tensão é anormal, se o próprio resultado, se o minuto da sensação lembrada e examinada já em estado sadio vem a ser o cúmulo da harmonia, da beleza, dá uma sensação inaudita e até então inesperada de plenitude, de medida, de conciliação e de fusão extasiada e suplicante com a mais sublime síntese da vida?” 1155 Esses momentos fugazes descritos por Míchkin possuem uma incrível correspondência com o estado de bem-aventurança que Nietzsche atribui a Jesus, a vivência do próprio reino de Deus, expressa mediante signos (“pai”, “filhos de Deus”, “reino dos céus”), por “esse grande simbolista”, algo que foi totalmente corrompido pelas “cruezas eclesiásticas”, por meio de dogmas sobre um futuro acontecimento histórico. 1156 Um sentimento que pode muito bem ser esclarecido pelas sensações experimentadas por Míchkin : A mente, o coração foram iluminadas por uma luz extraordinária; todas as inquietações, todas as suas dúvidas, todas as aflições parecem apaziguadas de uma vez, redundaram em alguma paz superior, plena de uma alegria serena, harmoniosa, e de esperança, plena de razão e de causa definitiva. 1157 Esse “apaziguamento” que resulta dessa sensação de “síntese de vida” também esclarece a “falta de escopo” que, de acordo com Nietzsche, o tipo idiota assume diante das coisas: “nesse momento me fica de certo modo compreensível a expressão insólita: não ‘haverá demora’ [Apocalipse 10, 06]”. 1158 Porquanto, é como se, nesses instantes, o fim supremo já houvesse sido atingido, não havendo mais o que ansiar, o que construir, como se o homem devesse “deixar de procriar”, tal como afirma Kírilov. 1159 A conseqüência da sensação advinda desses instantes, própria de “uma típica forma de décadence”, é, como diz Nietzsche, “a ausência de tarefas, o instinto de que tudo, propriamente, estaria no fim, de que nada mais vale a pena, o contentamento num dolce far niente”. 1160 1155 Dostoiévski, O Idiota, p. 261. Cf. AC § 34. 1157 Dostoiévski, O Idiota, p. 261. 1158 Dostoiévski, O Idiota, p. 262. 1159 Dostoiévski, Os Demônios, p. 572. 1160 FP 11 [380] novembro 1887 – março 1888. “Dolce far niente”: provável alusão à obra Il dolce far niente, scene della via veneziana, de Antonio Caccianiga, Milano, 2ª Ed., 1884. Cf. carta a um desconhecido (possivelmente Reinhart von Seydlitz) de final de outubro de 1885. 1156 359 3.6 – Tipo “Jesus” Em um passagem decisiva de O Anticristo, e que consideramos uma chave para sua interpretação, Nietzsche, ao negar o Deus criado por Paulo, não por qualquer questão de ordem ontológica, mas por considerar esse conceito mesmo de Deus como extremamente danoso para a vida, delineando, assim, aquilo que separa o seu ateísmo do ateísmo moderno, afirma: “Na verdade, não se é filólogo e médico sem ser também anticristão. Como filólogo, olha-se por trás dos ‘livros sagrados’; como médico, por trás da degeneração fisiológica do cristão típico. O médico diz ‘incurável’; o filólogo, ‘fraude’...” 1161 O problema, para Nietzsche, é que esse Deus de Paulo é a expressão máxima da exigência de que a realidade seja ignorada, de que ela permaneça desconhecida, ou, ainda mais grave, de que ela seja constantemente falseada, de que a falsidade em si impere como a “verdade”, em termos mais concretos, de que o homem se submeta a vontade do sacerdote. Não obstante, a filologia e a medicina (a fisiologia), “a sabedoria do mundo” na prédica de Paulo, não são apenas os instrumentos mais salutares que o espírito livre dispõe para desvelar a corrupção que se esconde por trás do imperativo da “fé”, isto é, para comprovar o embuste que sanciona a doutrina cristã, sua “verdade”, e para diagnosticar a depravação fisio-psicológica do cristão típico, mas sim também para desvendar a gênese do próprio cristianismo, para demonstrar as duas teses que solucionam o problema dessa gênese, ou seja, para mostrar o que significou o fato dessa doutrina ter brotado diretamente do judaísmo e, na mesma medida, para identificar qual o tipo psicológico do redentor, procedimento que permite concluir que somente “em sua completa degeneração” ele pôde ser usado como um “redentor da humanidade”, isto é, como um “Redentor”. 1162 Deste modo, a filologia e a fisiologia são as duas principais disciplinas que são postas em ação por Nietzsche para a realização de sua investigação do tipo psicológico do redentor. Ao atentarmos seriamente para esse fato, verificaremos que o seu diagnóstico de Jesus como idiota nada tem de arbitrário. Em Das Leben Jesu, Strauss deixou estabelecido a não-historicidade dos relatos evangélicos, demonstrando, com extrema perícia e acuidade, as inúmeras contradições que 1161 1162 AC § 47. Cf. AC § 24. 360 tais documentos exibem. Renan, que não ignorou essas contradições, mas tentou elaborar uma narrativa coesa e verossímil ao completar as lacunas (que Strauss chamaria pura e simplesmente de contradições) dos três Sinópticos e de João, não pôde deixar de constatar que vários “Jesus” parecem se suceder nos Evangelhos: o encantador mestre da pacata Galiléia, o juiz colérico e o reformador universal. Wellhausen constatou que os textos do Antigo Testamento apresentam mais de uma camada: uma oriunda de uma fonte brotada diretamente de uma religiosidade vinculado com as necessidades naturais e práticas de toda e qualquer comunidade e da vida em si, ou seja, de uma autêntica tradição; e outra elaborada com um intuito inteiramente “espiritual” e abstrato, ou melhor, como sanção de um poder político sacerdotal, de um estado hierocrático, sendo resultado, por conseguinte, de um Código Sacerdotal, que faz uso “livre” daquela primeira fonte de acordo com seus próprios objetivos. Com Wellhausen, portanto, Nietzsche pôde concluir que é possível igualmente ler o Novo Testamento como resultado de um conflito de interesses, de forças distintas, como sinais que revelam a existência de pelo menos três vontades, de três tipos de vidas, de três condições de existência; nos Evangelhos é possível identificar, pois, os sintomas de três corpos antagônicos, quais sejam, do idiota, do correligionário e do sacerdote. Como se faz possível a identificação, o diagnóstico desses corpos? Com a fisiologia (com Féré e com a literatura médica do século XIX). Como se torna possível a distinção dos sinais que revelam a existência das três principais vontades contraditórias no texto? Com a filologia (com o auxílio de Wellhausen, Renan e Strauss). Wellhausen forneceu a Nietzsche um método. Strauss já atesta a existência de contradições nos Evangelhos, contudo, para ele, tais contradições eram próprias de toda e qualquer tradição, porém, Wellhausen vai demonstrar que não se pode falar em tradição quando se trata do Antigo Testamento (o mesmo no que se refere ao Novo Testamento para Nietzsche). Renan mostra que havia um caráter original de Jesus, mas explica, para Nietzsche, de maneira psicologicamente diletante, o que teria ocorrido com tal caráter, como ele teria se “modificado”, se “alterado”, “evoluído”. Ora, mas semelhante tipo, um idiota, não se altera, não evolui, não se desenvolve, essa é precisamente a sua realidade básica. Renan acreditou ver nos diferentes corpos, nas diferentes vontades que se deixam ler nos Evangelhos, nos “sublimes paradoxos” de Jesus, a “história de uma alma”, a evolução, as transformações 361 pelas quais o caráter de Jesus passou ao longo de sua trajetória. Entretanto, de acordo com Nietzsche, não há nos Evangelhos uma “alma que evolui”, o que há são “lendas de santos” e um símbolo original, um zero. Quem é que fornece as pistas e confirma o tipo original de Jesus, que mostra que ele é sempre possível, que atesta que sua compreensão não está em sua reconstrução histórica, mas em sua realidade psicológica, em sua permanente possibilidade? Tolstói e Dostoiévski, a circunspecção psicológica que o pessimismo russo permite. Fisiologia e filologia, as inimigas naturais do sacerdote e, por conseqüência, do cristianismo, a ciência autenticamente anticristã e do Anticristo, o saber cujo modelo maior se encontra no homem do Renascimento. É no cruzamento e no auxílio mútuo entre essas duas disciplinas (e, portanto, na dissolução da dualidade biologia e cultura, corpo e espírito), que o tipo de Jesus pode ser diagnosticado, que é possível entender como (por que e por quem) ele foi corrompido, por qual corpo, por qual vontade, por que interesse, por que partido de vida. O médico diz: “(esse tipo é) idiota”; o filólogo diz: “(esse tipo foi) adulterado”. Por conta disso, em nossa leitura, consideramos que dois fatores que contribuem para o entendimento da investigação do tipo psicológico do redentor têm sido equivocadamente superestimados, a saber, a influência de Dostoiévski (como supostamente direta e decisiva) no uso do termo “idiota” por parte de Nietzsche, e a referência à acepção original do termo grego para explicar o que consiste a idiotia que o filósofo atribui a Jesus. Como já argumentado, a principal base conceitual para o entendimento do que é um idiota foi fornecida a Nietzsche pela literatura médica do século XIX. Portanto, o uso desse termo em O Anticristo não é meramente simbólico, literário, metafórico, mas rigorosamente fisiológico, como o próprio Nietzsche deixa claro. Do mesmo modo, o caráter apolítico, de homem-privado de Jesus, não remete, como o significado original grego do termo “idiota” pode dar a entender, a uma escolha, a uma decisão consciente, a um posicionamento antipolítico ou contra-política, mas a uma degenerescência fisiológica, a uma incapacidade, a uma inabilidade congênita. A maneira como, sobretudo, a contribuição de Dostoiévski tem sido vista acabou por conduzir, de uma forma que consideramos problemática, a uma interpretação do 362 diagnóstico do tipo de Jesus feito por Nietzsche como obra quase que exclusiva da adivinhação, ou, como estabeleceu Dibelius, de uma intuição congenial, o que, rapidamente, contribuiu para que uma afinidade subterrânea entre Nietzsche e Jesus fosse tida por Kühneweg como o fator fundamental que permitiu ao filósofo intuir a vivência mais íntima do redentor. O que, forçosamente, pode muito bem acabar dando margem a que se pense que, em tal caso, a arbitrariedade é o único elemento que deveria ser, no final das contas, levado em consideração. Em nossa proposta interpretativa, vemos esse exagero da importância conferida ao papel de uma adivinhação, ou de uma intuição congenial, ou de uma sorte de afinidade subterrânea, como algo problemático e confuso, e que só acaba favorecendo a interpretação que vê na filosofia do Anticristo uma volta à mensagem original de Jesus, à sua boa nova. Nietzsche não classifica Jesus de idiota por uma questão pura e exclusivamente intuitiva. Seu diagnóstico recorre sem dúvida à abstração conceitual, em que a intuição tende, naturalmente, a exercer um grande valor, mas tal diagnóstico está devidamente ancorado em toda uma tradição teórica com respeito ao tema, ele não surge espontaneamente, repentinamente, por “caminhos ocultos”, ex nihilo. Ora, o mundo de Jesus, a Palestina de sua época, está fora da política. O judaísmo sacerdotal sobrevive sob condições antinaturais, pois só conhece a “realidade” moralreligiosa; esse mundo, portanto, está deslocado da esfera política, das práticas naturais da vida, é um mundo abstrato, um mundo privado (Wellhausen). Esse tipo de mundo condiciona a degenerescência, faz proliferar todas as formas de seres degenerados, é um mundo do tipo tschandala (conceito que, como veremos, Nietzsche vai encontrar em Jacolliott). Um sujeito que viveu na Palestina da diáspora, em pleno judaísmo sacerdotal, ou seja, num mundo retirado, desnaturalizado, abstrato e apolítico; numa província de um Império, naquilo que constitui, na verdade, o estrato mais baixa dessa sociedade, o tipo tschandala, um conglomerado de degenerados e deserdados que se buscam; numa sociedade puramente, abstratamente religiosa e moral, na qual se exclui a luta, em que a incapacidade para o trabalho e a preguiça imperam; numa sociedade que é obrigada a viver do trabalho alheio, do esforço momentâneo, que permite a existência do santo, mais ainda, que vê a vida do santo como o alvo superior (Féré); numa sociedade cuja prática de vida é a não resistência, uma prática que representa exatamente o oposto da vida política, a não 363 separação entre amigo e inimigo, a ignorância de fronteiras, o ser privado, sem posses, sem nada como seu que se deva e que se queira defender (Tolstói); um tal sujeito só poderia ser um filho de seu tempo, ou seja, um degenerado típico. Entretanto, para ter agido assim de um tal modo fora-da-esfera-política, para ter representado uma tal forma inteiramente privada de existência, tal sujeito provavelmente representa o grau máximo que a degenerescência progressiva hereditária atinge, o fim inclemente para o qual, na verdade, ela caminha; a hiperexcitabilidade desse sujeito é extrema, seu desenvolvimento é interrompido em um certo estágio da infância, ele é estéril, representa o fim da cadeia degenerativa hereditária que lhe gerou, a auto-supressão da mesma, um aborto de uma sociedade abortada, em que a cultura não existe, uma má formação de uma sociedade má constituída, ou seja, um idiota. Esse tipo não é exatamente “adivinhado” por Nietzsche, “intuído”, “inventado”, o filósofo não compartilha nenhuma “afinidade subterrânea” com ele; não, esse tipo de sujeito (que não resiste, que não luta, fruto de uma sociedade degenerada, de uma degenerescência hereditária, um sujeito incapaz de se inserir na esfera política) tem um nome desde a antiguidade grega, ele existe ainda e sempre poderá existir, ele foi objeto da medicina do século XIX: Féré e todos os psiquiatras lidos por Nietzsche o conhecem muito bem – ele é um idiota. Quem adivinhou que alguém como Jesus seria o que, no século XIX, passou a ser entendido como um idiota foi Dostoiévski, e não Nietzsche. Nietzsche não adivinhou Jesus, ele o diagnosticou, em um sentido bastante preciso. A incapacidade de resistência de Jesus, condicionada por sua hiperexcitabilidade, a característica primordial da degenerescência, que nele atinge o seu grau máximo, o incapacita para a luta, para a resistência a todo e qualquer estímulo externo, daí porque sua bem-aventurança se encontra no voltar-se sobre si mesmo, em seu reino de Deus como um estado do coração. 3.6.1 – O judaísmo como mundo tschandala A leitura de Wellhausen, Féré e, posteriormente, de Tolstói, conduziu Nietzsche à noção de que o mundo do judaísmo sacerdotal, da sociedade Palestina da diáspora, é um mundo que se encontra fora da esfera política, um mundo privado, um mundo propício a proliferação de seres degenerados. Jesus não é o único idiota que habitou neste mundo. Na 364 seção 26 de O Anticristo, Nietzsche faz referência à “idiota fórmula” do judaísmo sacerdotal de “obediência ou desobediência” a Deus, ou seja, uma fórmula que só faz sentido em um mundo retirado, abstrato, privado. Na seção 42, Nietzsche afirma que aquilo que o próprio Paulo não acreditava, “acreditavam os idiotas aos quais ele lançou a sua doutrina”. No fragmento póstumo 14 [90] da primavera de 1888, vimos que Nietzsche inclui entre as espécies que são atraídas pelo anêmico santo de Nazaré, e que eram extremamente familiares a Dostoiévski, os “comovidos, arruinados e perturbados abortos, com idiotismo e entusiasmo, com amor...” [rührende, verderbte und verdrehte Mißgeburten mit Idiotismus und Schwärmerei, mit Liebe...]. E, na seção 31 de O Anticristo, fazendo referência aos romances russos, vimos que Nietzsche fala do mundo “peculiar e doente” para o qual os Evangelhos nos transportam, em que as “doenças nervosas e o idiotismo infantil” se encontram. Em seus últimos escritos, Nietzsche parece indicar, deste modo, que o próprio mundo que cercava Jesus era um mundo da idiotia, isto é, um mundo degenerado, interrompido, no qual a não resistência surge como principal medida de conservação, um mundo que se mostra incapaz de lutar, um mundo retirado da esfera política. Jesus não é o único idiota que se pode diagnosticar nos Evangelhos, ele é somente o idiota mais especial, aquele que conseguiu encontrar, instintualmente, o caminho para a sua salvação e para aqueles fisiologicamente semelhantes a ele, tal salvação só pode significar aqui a maneira com que essa determinada forma de vida pode alcançar a sua suprema beatitude, que consiste justamente em aceitar-se enquanto tal e não evitar o seu fim. A idiotia de Jesus não é um caso isolado na Palestina de sua época, o judaísmo da diáspora condiciona a profusão de todo o tipo de degenerescência, inclusive a idiotia, que se torna bastante comum nesse ambiente. A idiotia de Jesus é fisio-culturalmente condicionada, não é mero acaso, um golpe do destino, mas algo previsível sob tais condições e, até mesmo, inevitável. 1163 No fragmento póstumo 11 [280] de novembro de 1887 a março de 1888, que delimita o momento em que Nietzsche começa a fazer uso dos resultados obtidos com a leitura de Tolstói, ou seja, exibindo não unicamente extratos e resumos de Ma religion, mas tentativas interpretativas propriamente nietzschianas sobre as questões levantadas nessa obra, o filósofo se refere a Jesus como um santo anarquista. Sua morte não representou a 1163 Cf., nesse sentido, Sommer, Friedrich Nietzsches „Der Antichrist“, pp. 288-289. 365 “redenção dos pecados” da humanidade, foi o seu próprio “pecado” que o levou à cruz. Jesus foi “um criminoso político na medida em que um crime político possa ainda ser concebido sob tais circunstâncias”. Com base em Tolstói, Nietzsche passa a considerar o caráter apolítico da mensagem evangélica de Jesus como sendo seu atributo fundamental. Como, então, é possível chamá-lo de santo anarquista? Do mesmo modo que se poderia afirmar que um crime político pudesse ter lugar no interior do judaísmo sacerdotal, ou seja, de um modo absolutamente deslocado, provisório. Jesus é um santo anarquista, mas no sentido em que o Estado, em que o Império conseguiu visualizá-lo, conseguiu julgá-lo. Império Romano e Judéia habitam mundos completamente distantes um do outro. Na colisão destes mundos, Jesus e seus correligionários só puderem ser “introduzidos” na esfera estatal mediante as noções de “desordeiros”, “agitadores”, “rebeldes”, isto é, como “criminosos”. No mundo judaico essas noções não fazem o menor sentido, e ainda menos no mundo em que Jesus habitou. O fragmento 11 [280] é um preparatório da seção 27 de O Anticristo, neste último, a dificuldade de ordem discursiva acerca de como falar sobre os motivos e os argumentos que levaram à condenação de Jesus fica ainda mais acentuada, como se pode perceber no modo como o filósofo modificou o final da sentença supracitada: “[Jesus] foi um criminoso político, na medida em que criminosos políticos eram possíveis numa comunidade absurdamente apolítica.” O judaísmo sacerdotal nada entendia das relações práticas da vida, das questões ligadas aos negócios públicos, mas tão-somente de questões “espirituais”, religiosas, morais, abstratas, antinaturais, irreais. Dessa forma, apenas de um modo, por assim dizer, figurativo, relativo, provisório, por intermédio de uma espécie de suspensão do real, é que se pode falar de um tal mundo como pertencente a qualquer esfera política, mas nunca de acordo com a realidade. De igual maneira, Jesus, apenas de modo figurativo, relativo, provisório, pode ser tomado como um santo anarquista, pois sua prática resulta de uma necessidade absolutamente deslocada de toda e qualquer esfera política, inclusive, e principalmente, de uma posição anti-política, em outras palavras, de um ato consciente e voluntário de retirada da política ou de abolição do Estado pelos seus fundamentos, de um anarquismo no exato sentido político da palavra. No fragmento póstumo 9 [50] do outono de 1887, provavelmente resultado de uma primeira leitura de Wellhausen, e que ainda faz parte do antigo esboço da “Vontade de 366 poder”, Nietzsche já afirma que no mundo do judaísmo sacerdotal não há a mínima consciência de que possam existir coisas autenticamente espirituais, ou seja, uma cultura: “a palavra ‘espírito’ não se acha jamais aqui a não ser como mal-entendido: aquilo que todo o mundo nomeia ‘espírito’ é sempre para esse povo ainda ‘carne’”. Isto é, as coisas ditas “espirituais” no mundo judaico não passam de irrealidades, não possuem ligação com os verdadeiros objetos espirituais, isto é, com o mundo da cultura. Nietzsche fará exatamente esta mesma observação a respeito da compleição fisio-psicológica de Jesus na seção 29 de O Anticristo, ao rejeitar a noção de “gênio” utilizada por Renan para explicar seu Jesus histórico. O conceito de espírito, de cultura, de ciência, de arte, não tem qualquer significado no mundo judaico, e o mesmo no que se refere ao mundo de Jesus. Isso não significa que o movimento que ensejou a criação do código sacerdotal resulte das mesmas necessidades fisiológicas representadas por Jesus, ou seja, da idiotia, mas apenas que o mundo que esse código gerou, que o tipo de vida que esse código condicionou, isto é, a sociedade Palestina da época de Jesus, é um mundo privado, apolítico, um mundo em que a degenerescência deve necessariamente proliferar, um mundo da idiotia, um mundo do tipo tschandala. 1164 No fragmento póstumo 10 [135] do outono de 1887, antes, portanto, que o projeto de uma psicologia do redentor adquirisse seus contornos mais precisos (antes da leitura de Tolstói), Nietzsche já parece falar de um cristianismo mais original, uma forma de vida privada e não ressentida condicionada por certos tipos de ambientes retirados da política. Esse cristianismo original depõe contra a total falta de asseio intelectual do cristianismo professado pelo homem moderno, esse “aborto de falsidade” 1165, contra a sua impudente desonestidade para consigo mesmo, para com sua consciência: O cristianismo é possível como a mais privada forma de existência [privateste Daseinsform]: ele supõe uma sociedade estreita, retirada, absolutamente não política – ele pertence ao conventículo. Em contrapartida um “Estado cristão”, uma “política cristã” – não são mais do que palavras de ação de graças [DankGebets-Worte] em bocas do tipo que têm razões para produzir palavras de ação 1164 Fundamental para essa discussão é a tentativa feita por Nietzsche, nos fragmentos póstumos 10 [92] e 10 [181] de novembro de 1887 a março de 1888, de demonstrar a tese de que a vida ideal proposta pelo cristianismo de Paulo é a vida representada pela pequena família judaica da diáspora e não pela sua classe reinante; a vida “dessa espécie de gente pequena [kleinen Leuten] absolutamente não política e mantida afastada” (FP 10 [181] de novembro de 1887 a março de 1888). 1165 Cf. AC § 38. 367 de graças. Que estes venham a falar de “Deus dos exércitos” enquanto chefe de Estado maior – eis o que não engana ninguém. O príncipe cristão, ele também pratica a política de Maquiavel: à condição de que ele não faça má política. Mas é no fragmento póstumo 10 [157] do outono de 1887, que o caráter apolítico da sociedade judia da diáspora é discutido mais detidamente. A tese de que o judaísmo introduz uma noção de moral como antinatureza 1166 , como irrealidade é demonstrada por Nietzsche mediante o seguinte argumento: toda lei, isto é, toda noção mundana, autenticamente política, de um código legislativo civil, é estabelecida de acordo com as necessidades impostas pela ordem natural das coisas, da naturalidade, da realidade. É com vistas à conservação de uma comunidade que certas ações são coibidas e desestimuladas, não porque o estado de espírito da qual se originaram possa ser de algum modo tido como absolutamente condenável em si, mas sim porque tais ações são perigosas e indesejáveis sempre que elas estiverem voltadas contra a comunidade. Com isso, não se quer de maneira alguma interditar a possibilidade de que o estado de espírito que enseja tais ações seja estimulado para o auxílio da comunidade, notadamente contra seus inimigos. Contudo, a moral do idealismo concebe a noção de que o estado de espírito do qual resultam tais ações é em si mesmo condenável, com isso, a lei é castrada 1167 , perde sua necessidade natural, seu apego às exigências práticas da vida. Todavia, como diz Nietzsche, “é somente nos casos de exceção em que uma comunidade vive absolutamente fora de todo constrangimento a fazer guerra por sua existência que se prega aos ouvidos semelhante coisa”. 1168 Por diversas circunstâncias singulares de sua história, a sociedade judaica da diáspora havia se tornado uma sociedade eminentemente parasitária, fora de toda preocupação política. Para Nietzsche, o cristianismo só poderia germinar em um tal solo: Esse foi o caso igualmente da primeira comunidade cristã (também da comunidade judaica), da qual a condição prévia foi o caráter absolutamente apolítico da sociedade judaica. O cristianismo não poderia crescer senão sobre o terreno do judaísmo, ou seja, no seio de um povo que já havia renunciado a sua existência política e que não levava mais do que um tipo de existência parasitária no interior da ordem romana. O cristianismo é um passo adiante nesse sentido: tem-se o direto de se “emascular” ainda mais – as circunstâncias o permitem. 1169 1166 Esse tema terá seu desenvolvimento mais acabado em CI, “Moral como antinatureza”. Cf. CI, “Moral como antinatureza” § 1. 1168 FP 10 [157] do outono de 1887. 1169 Ibidem. 1167 368 Embora, na passagem acima, Nietzsche não esteja se referindo exatamente a Jesus, mas sim ao cristianismo como sendo fruto do judaísmo, pode-se dizer que tal sociedade também representava um ambiente propício para que o nascimento de um tipo idiota viesse a ocorrer, ou seja, um mundo formado por um ajuntamento de seres degenerados de toda espécie. No fragmento póstumo 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888, que consideramos decisivo para o esclarecimento do valor que se deve conferir à mensagem original de Jesus no interior de O Anticristo, Nietzsche se pergunta: essa mensagem, essa prática de vida, esse ideal representado por Jesus é realizável? Sim, mas climaticamente condicionado... semelhante ao ideal hindu... falta o trabalho... livre de todo apego ao povo, ao Estado, a comunidade de cultura, a jurisdição, ele rejeita a instrução, o saber, a educação das boas maneiras, o ganho, o comércio... ele liquida tudo o que constitui a utilidade e o valor do homem – encerrado em uma idiossincrasia de sentimento – apolítico, antinacional, nem agressivo, nem defensivo, – possível somente no interior de uma sólida organização da vida social e do Estado, que deixa pulular esses santos parasitas às custas da comunidade... Há, nessa importante passagem, um complexo cruzamento dos resultados obtidos com pelo menos três fontes diferentes: Féré, Tolstói e Jacolliot. Vimos anteriormente como Nietzsche fará uma aproximação da figura do santo com a figura do criminoso analisada por Féré em Dégénéréscence et criminalité. 1170 Para Nietzsche, é movida pelos mesmos instintos de conservação que dá origem à criminalidade que a sociedade judaica elege a vida do santo como ideal. Tal como o criminoso, o santo é uma parasita da sociedade. Devido a sua hiperexcitabilidade e ao seu esgotamento, os sujeitos degenerados se vêem impossibilitados de continuarem na luta pela existência, mostrando-se igualmente incapazes de um esforço contínuo, inábeis para o trabalho, tomados pela preguiça, e, por conseguinte, dependentes do trabalho alheio. Enquanto “povo santo”, a sociedade judaica representa uma sociedade formada essencialmente por sujeitos degenerados. Esse povo consegue ser santo, ou seja, parasitário porque vive à custa do Império. 1171 Com Tolstói, Nietzsche viu a 1170 Cf. FP 15 [37] da primavera de 1888. “A PRESSUPOSIÇÃO PSICOLÓGICA: a ignorância e a incultura, a ignorância que desaprendeu todo pudor: a ausência total de objetivos, de tarefas reais pelas quais se requer outros meios além da costumeira beatice, – o Estado os dispensa desse trabalho; o impudente povo não fez por menos, como se dele não precisasse” (FP 10 [199] do outono de 1887). 1171 369 possibilidade psicológica de um ambiente em que toda posse, todo cuidado de si, toda defesa de um território, de uma comunidade, se vê esvaziada de sentido, de necessidade, um mundo absolutamente privado. Já a referência ao ideal hindu provém diretamente do sistema de castas propalado pelo chamado Código de Manu, que estabelece como necessidade natural a existência de um grupo desvinculado desse sistema, que se encontra ao mesmo tempo abaixo e fora da hierarquia, a saber, o grupo dos sem casta, a tschandala. Nietzsche entrou em contato com o Código de Manu por intermédio da obra Les legislateurs religieux: Manou, Moïse - Mahomet, de Louis Jacolliot 1172 , primeira e única parte de uma planejada coleção que permaneceu inacabada sobre códigos legislativos religiosos da Antiguidade e do início da Idade Média. Les legislateurs religieux contém uma pretensa tradução “crítica” do Mānava-dharma-s̊ āstra, um importante código de leis do hinduísmo em sânscrito clássico. Apesar de sua alegada antiguidade, que remontaria a quase seis mil anos antes de nossa era, o Manu-smrti, como também é conhecido, foi escrito provavelmente no primeiro século de nossa era, sendo bem posterior ao Vedas. A autoria do livro é desconhecida, embora se queira atribuí-la a Manu, uma figura mítica, pai da raça humana, sobrevivente do Dilúvio. O Código de Manu pode ser considerado um S̊ āstra, um “manual”, cujo tema é o Dharma, a “lei natural”. Ele trata das regras básicas da vida diária e da ordem social, lidando com temas como os direitos e deveres pertencentes a cada uma das castas, iniciação, casamento, hospitalidade, restrições alimentares, a conduta da mulher, etc. A tradução do Código de Manu feita por Jacolliot foi lida por Nietzsche em maio de 1888, provocando no filósofo um enorme entusiasmo, na verdade, como declarou Colli, “uma grande e mesmo exagerada impressão sobre ele” 1173, como se pode constatar em uma quantidade expressiva de extratos, comentários da obra e críticas ao Código de Manu presente nos fragmentos póstumos da primavera de 1888 1172 1174 , assim como nas seções 55 a Jacolliot, Louis. Les legislateurs religieux: Manou, Moïse – Mahomet: Traditions religieuses comparés des lois de Manou, de la Bible, du Coran, du rituel égyptien, du Zend-Avesta des parses et de traditions finnoises. Paris: A. Lacroix, 1876. 1173 Colli, KSA 13, p. 667. 1174 Cf. os fragmentos póstumos: 14 [106], 14 [175], 14 [176], 14 [177], 14 [178], 14 [191], 14 [190], 14 [192], 14 [195], 14 [196], 14 [198], 14 [199], 14 [200], 14 [202], 14 [203], 14 [204], 14 [201], 14 [213], 14 [214], 14 [215], 14 [216], 14 [217], 14 [218], 14 [220], 14 [221], 14 [224], 14 [223], 15 [24], 15 [62] da primavera de 1888. 370 57 de O Anticristo, em “Os ‘melhoradores’ da humanidade” de Crepúsculo dos ídolos, bem como no exemplar pessoal de Nietzsche de Les legislateurs religieux, conservado na Biblioteca Herzogin Anna Amalia de Weimar 1175, que apresenta uma grande quantidade de traços de leitura, e, por fim, em uma carta a Heinrich Köselitz de 31 de maio de 1888: Devo a estas últimas semanas uma lição essencial: encontrei o Código de Manu em uma tradução francesa feita na Índia sob o controle rigoroso dos mais eminentes sacerdotes e especialistas de lá. Este produto absolutamente ariano, um código sacerdotal de moral baseado no Vedas, na noção de castas, e de proveniência muito antiga – não pessimista, ainda que sempre muito sacerdotal – complementa minhas representações sobre religião de maneira extraordinária. 1176 A visão de uma sociedade dividida entre quatro castas, a saber, sacerdotes (brâmanes), guerreiros (os ksatriyas), agricultores e comerciantes (Vaisyas), e servos (sudras), além de um grupo formado por aqueles que foram proscritos, expulsos dessa hierarquia juntamente com os seus descendentes (tschandala), que está presente no Código de Manu, despertou bastante o interesse de Nietzsche, tornando-se um elemento fundamental em sua crítica ao cristianismo. Segundo o filósofo: “Respira-se aliviado, quando se deixa o ar cristão de doença e masmorra e se adentra esse mundo mais são, mais elevado, mais amplo. Quão miserável é o Novo Testamento ao lado de Manu, como cheira mal!” 1177 Para Nietzsche, o Código de Manu mente como toda moral, como tudo o que é sacerdotal, porém, para o filósofo, pouco importa que se minta, mas sim com que finalidade. O código de Manu representa uma pia fraus, uma “mentira sagrada”, que não ameaça a vida, mas a promove.1178 O código de Manu mente, mas com uma finalidade salutar, louvável, nobre, a saber: o cultivo de uma determinada espécie de homem, uma espécie nobre, mais elevada. O cristianismo, em contrapartida, mente com a finalidade de 1175 Sinais de leitura no exemplar pessoal de Nietzsche: pp. 4, 95, 98, 126, 138, 249, 250, 257, 261, 275, 292, 293, 342, 357, 364, 365, 366, 392, 393, 396, 397, 400, 402, 416, 423-430, 432-433, 438-441, 455, 462-471, 473-475, 477-478. Cf. Campioni, Nietzsches persönliche Bibliothek (BN). O fac-símile do exemplar pessoal de Nietzsche encontra-se disponível no site da Fundação Clássicos de Weimar, no endereço: < http://oraweb.swkk.de/digimo_online/digimo.entry?source=digimo.Digitalisat_anzeigen&a_id=15698 >. Último acesso: 27/06/2012. 1176 Cf. KSB 8, p. 325. 1177 CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3. 1178 Cf. AC § 56. 371 amansar a besta, para isso, quer alquebrar o homem, torná-lo doente, miserável, lastimável. 1179 “Cultivo” e “amansamento”, somente esses termos zoológicos exprimem a realidade por trás das intenções dos “melhoradores”: impor determinada condição de existência a um animal, ter controle sobre sua constituição fisiológica. Por mais que o Código de Manu não corresponda propriamente à concepção política de Nietzsche, além de contrariar sua noção de que se deve buscar sempre a criação de novos valores, tendo em vista que semelhante código evita o experimento, “conclui nada mais cria” 1180 , ele representa, para o filósofo, por outro lado, um importante recurso, um artifício, uma arma na denúncia da moral cristã como antinatural e negadora da vida. Uma legislação, uma moral, cuja finalidade é “‘eternizar’ a suprema condição para que a vida prospere” 1181 , que não nega as condições naturais de efetivação da vida, precisa ser contraposta ao cristianismo para que seu caráter deletério, venenoso, prejudicial à vida fique ainda mais evidenciado. 1182 Dois trabalhos fundamentais estabeleceram que a leitura do Código de Manu por intermédio de Jacolliot feita por Nietzsche acabou, talvez, por comprometer seriamente a própria legitimidade de seus argumentos. 1183 Em “Nietzsche und das Gesetzbuch des Manu” 1184, Annemarie Etter mostrou que a obra de Jacolliot nada tem de “crítica”, e muito menos resultou de um “controle rigoroso” como afirmou Nietzsche em sua carta a Heinrich Köselitz, mas que não passa de um trabalho pseudocientífico, que contém graves erros editoriais e de tradução. A obra corresponde apenas a uma das muitas versões disponíveis do Código de Manu, com inserções arbitrárias de Jacolliot, na forma de observações e notas, que não se encontram em nenhuma das versões do código, mas em textos de natureza 1179 Cf. CI, Os “melhoradores” da humanidade § 2. AC § 57. 1181 AC § 58. 1182 “É impossível não comparar o código de leis indiano com o cristão: não há melhor maneira de se convencer intimamente daquilo que há de imaturo e de diletante em toda a tentativa cristã” (FP 15[24] da primavera de 1888). 1183 Outro trabalho digno de nota é o de Thomas Brobjer, “The Absence of Political Ideals in Nietzsche’s Writings: The Case of the Laws of Manu and the Associated Caste-Society”. In: Nietzsche Studien. Berlin, New York: Walter de Gruyter, Band 27, 1998. Brobjer se esforça em mostrar que o Código de Manu de maneira alguma corresponderia a um ideal político que Nietzsche se propôs a defender como parte integrante de seu projeto filosófico, visto que, entre outros motivos, Nietzsche considera tal código como uma “mentira sagrada”, da mesma natureza que o cristianismo e a visão política de Platão, além disso, tal código não procura criar nada de novo, mas somente sancionar uma longa experiência de vida de uma sociedade. 1184 Cf. Etter, Annemarie. “Nietzsche und das Gesetzbuch des Manu”. In: Nietzsche Studien. Berlin, New York: Walter de Gruyter, Band 16, 1987. 1180 372 bem diferente. Segundo Etter, Jacolliot estava longe de ser um dos maiores especialistas em hinduísmo como quis acreditar Nietzsche, mas somente um estudioso entusiasmado das tradições hindu que acreditava que toda a cultura humana teve origem na Índia. Em “Manu as a Weapon against Egalitarianism” 1185 , Koenraad Elst esclareceu, por sua vez, que o problema vai muito além das imperfeições filológicas contidas na versão do Código de Manu presente na obra de Jacolliot, pois, fora essa questão, há ainda três fontes de distorção na concepção de Nietzsche sobre o sistema de castas indiano: o Código de Manu em si, uma teoria sobre a tschandala que Jacolliot desenvolve em uma de suas notas, e a própria visão que Nietzsche irá elaborar sobre o tema. De acordo com Elst, a forma como o Código de Manu interpreta o Vedas é vista como equivocada mesmo entre estudiosos indianos, e a maneira como esse código apresenta o sistema de castas não pode ser certificada como historicamente védica. Além disso, apesar de ter sido muito influente, esse código nunca exerceu o poder de um código civil tal como se entende no ocidente, possuindo apenas uma função orientadora. Mas, para Elst, é sobretudo em uma longuíssima nota escrita por Jacolliot que reside o principal motivo de Nietzsche ter desenvolvido uma visão errônea do sistema de castas indiano e da tschandala. 1186 A nota surge após a seguinte passagem: “Le brahme qui épouse une soudra est dégradé sur-le-champ, et il rabaisse sa famille à la condition servile. Il est rejeté parmi les tchandalas ou gens des classes mêlées.” O intuito da nota é, ao mesmo tempo, esclarecer melhor a extensão do conceito de tschandala e expor a tese de que a as religiões do sudoeste asiático se originaram como resultado de emigrações de populações tschandalas. Como propõe Jacolliot no início de sua nota: “Cette expression de tchandala se rencontre si souvent dans Manou que nous croyons utile de donner quelques explications sur ces gens des classes mêlées et le chemin parcouru par quelques-unes de leurs migrations les plus curieuses, émigrations sur lesquelles nous nous fondons pour donner à la Chaldéo-Babylonie l’Inde pour ancêtre.” 1187 De acordo com Elst, Nietzsche se mantém apenas parcialmente interessado no Código de Manu em si, seu principal objeto de interesse é mesmo a nota de Jacolliot e sua tese, segundo Elst, 1185 Elst, Koenraad. “Manu as a Weapon against Egalitarianism: Nietzsche and Hindu Political Philosophy”. In: Siemens, Herman W.; Roodt, Vasti (Ed.). Nietzsche, Power and Politics: Rethinking Nietzsche’s Legacy for Political Thought. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2008. 1186 Cf. Jacolliot, Louis. Les legislateurs religieux, pp. 98-120. 1187 Jacolliot, Louis. Les legislateurs religieux, pp. 98. 373 “cientificamente insustentável” e alimentada por seu anti-semitismo, de que os judeus descendem diretamente da tschandala indiana. Como se atesta na seção “Os ‘melhoradores’ da humanidade” em Crepúsculo dos ídolos, em que Nietzsche cita dois editos, um lançado, como esclarece Jacolliot 1188 , a “oito mil anos” antes de nossa era, pelo artaxchatria, “grande rei”, Pratichta, e o outro, a “seis mil anos” antes de nossa era (essas datações são muito provavelmente míticas), pelo artaxchatria Agastya, que exemplificam, segundo o filósofo, as terríveis “medidas de proteção” que o Código de Manu estabelece contra a tschandala, porém, tais editos não se encontram em nenhuma das versões desse código, mas foram retirados por Jacolliot de um texto chamado Avadana-Sastra, uma coleção de relatos históricos. 1189 1188 Jacolliot, Louis. Les legislateurs religieux, p. 102. Nietzsche cita primeiramente um edito lançado no segundo momento em que se tomou medidas contra a tschandala, sob o reinado do artaxchatria Agastya, mais precisamente o terceiro edito de um total de três (o artaxchatria Pratichta lançou somente um, o Arta, “ato justo”): “Talvez nada contrarie mais nossa sensibilidade do que essas medidas de proteção da moral indiana. O terceiro edito, por exemplo (AvadanaSastra I), o ‘dos vegetais impuros’, decreta que a única alimentação permitida aos tschandalas seja alho e cebola, visto que as escrituras sagradas proíbem dar-lhes cereais ou frutos que contenham grãos, ou água, ou fogo. O mesmo edito estabelece que a água que necessitam não pode ser retirada dos rios, nem das fontes ou dos lagos, mas somente das vias de acesso aos pântanos e dos buracos deixados pelos pés dos animais. Igualmente lhes é proibido lavar roupa e lavar a si mesmos, pois a água que lhes é concedida graciosamente pode ser usada apenas para matar a sede. Por fim, há a proibição de as mulheres sudras assistirem as mulheres tschandalas no parto, e também de essas últimas assistirem uma a outra...” (CI, Os “melhoradores da humanidade § 3). “Le troisième, appelé karana-munkundakaja, l’édit sur les légumes impurs, ‘Ordonne que la seule nourriture qu’il sera permis de leur donner consistera en ail et oignons (munkundaka, oignons), les livres sacrés défendent qu’il soit donné aux tchandalas ni grains, ni fruits portant grains, ni feu ni eaux.’ (Avadana-Sastra, 1ª partie.) La même ordonnance porte : ‘Qu’ils ne pourront prendre de l’eau pour leur subsistance, ni dans les fleuves, ni dans les sources, ni dans les étangs, mais seulement aux abords des marécages et des abreuvoirs, et dans les trous faits dans la vase par les pas des bestiaux.’ Défense fut faite également : ‘De laver leur linge et de faire leurs ablutions, l’eau croupie, qui leur était concédée, ne devait être employée qu’à éteindre leur soif.’ Il fut interdit aux femmes soudras d’accoucher les femmes tchandalas, et à ces dernières de s’aider entre elles, etc.. (Avadana-Sastra, 1ª partie)” (Jacolliot, Les legislateurs religieux, p. 106). É somente em seguida que Nietzsche cita o edito lançado no primeiro momento, sob o reinado do artaxchatria Pratichta: “– O próprio Manu diz: ‘Os tschandalas são fruto do adultério, do incesto e do crime (– esta é a conseqüência necessária do conceito de cultivo). Eles só devem ter por vestimenta os farrapos dos cadáveres; por louça, vasilhames quebrados; por adornos, pedaços velhos de ferro; por culto religioso, somente os maus espíritos. Eles devem escrever da esquerda para a direita e servir-se da mão direita para escrever: o uso da mão direita e da escrita da esquerda para a direita é reservado aos virtuosos, às pessoas de raça”. (CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3) “Manou a dit: les tchandalas naissent de l’adultère, de l’inceste et du crime. Ils ne peuvent avoir pour vêtements que les habits des morts, pour plats que des pots brisés, pour parure du fer, pour culte que celui des mauvais génies et qu’ils vaguent sans cesse d’un lieu à un autre. Il leur est interdit de prononcer le nom de Brahma, l’être existant par lui-même, et le mystérieux monosyllabe, de lire, de copier et d’enseigner le Véda, d’écrire de gauche à droite, qui est le mode réservé aux hommes vertueux des quatre castes et pour la transcription de l’Ècriture sacrée” (Jacolliot, Les legislateurs religieux, p. 102). Provavelmente Nietzsche se equivoca ao escrever “servir-se da mão direita para escrever”, quando o certo seria da “mão esquerda” como é dito por Jacolliot. Após a citação do edito do artaxchatria 1189 374 Jacolliot acredita que os tschandalas, ao longo do tempo, acabaram por se tornar uma nação dentro da própria nação. Por conta disso, a cerca de 8.000 anos antes de nossa era, foi emitido o primeiro decreto citado por Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos. Medida que teria reduzido o número de tschandalas pela metade. Entretanto, eles lentamente se recuperaram e voltaram a prosperar. Por isso, a cerca de 6.000 anos antes de nossa era, um novo decreto foi emitido, resultando em uma nova redução de seu número, seguida, anos depois, porém, de uma nova recuperação. Até que, por volta de 4.000 anos antes de nossa era, por conta do combate entre brâmanes e budistas, eles voltaram a ser perseguidos e se viram forçados a emigrar. Deslocando-se para o oeste asiático, especialmente para Sind (Paquistão) e Pérsia, como relata o Avadana-Sastra, dirigindo-se depois, como acredita Jacolliot, para as margens do Eufrates e do Tigre. 1190 Os caldeus, assírios, babilônios, sírios, fenícios e árabes seriam, portanto, somente os descendentes de várias tribos tschandalas que emigraram da Índia em diferentes momentos, os hebreus seriam, por sua vez, uma emigração dos caldeus. Assim, todos os chamados semitas seriam oriundos da tschandala, daí seu hábito de escrever com a mão esquerda, a adoção da prática da circuncisão, o modo de vida nômade, etc. Jacolliot defende que seus costumes e “comportamentos baixos”, como, por exemplo, aqueles praticados em Sodoma e Gomorra, que seriam raros entre nações européias, são uma herança de sua escravidão. Por outro lado, o Ocidente, o Egito Antigo teria sido povoado pela emigração de castas hindus mais elevadas, por isso seu costume de se alimentar e escrever com a mão direita, a Pratichta, Nietzsche acompanha a narração de Jacolliot sobre o que resultou dos três editos lançados pelo artaxchatria Agastya: “– O resultado de tal policiamento sanitário não deixou de aparecer: epidemias assassinas, horríveis doenças venéreas e, depois, novamente a ‘lei da faca’, prescrevendo a circuncisão dos meninos e a remoção dos pequenos lábios das meninas.” (CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3) “Le premier résultat de ces atroces dispositions que Avadana-Sastra signale, fut amené par la défense faite à ces malheureux de procéder à aucune ablution corporelle. En peu de temps, presque tous ces malheureux furent atteints de plaies purulentes aux parties génitales. Comme en cet état ils ne pouvaient travailler, Agastya rendit l’ordonnance appelée karana-nistrincaya, l’édit du couteau, par lequel: ‘Tout homme et tout enfant mâle en naissant furent astreints à la circoncision, et toute femme dut subir l’ablation des petites lèvres vaginales...’ (Avadana-Sastray, 1ª partie)” (Jacolliot, Les legislateurs religieux, p. 107). 1190 “A l’époque des luttes brahmaniques et bouddhistes, environ quatre mille ans avant notre ère, pris entre des ennemis aussi acharnés contre eux les uns que les autres, les tshandalas au rapport de l’Avadana-Sastra: ‘Emigrèrent en foule par le pays du Sind et d’Aria (Iran) avec leurs troupeaux, route qu’avaient déjà parcourue Harakala et ses guerriers...’ Comme on le voit, c’est le chemin de le Euphrate et du Tigre, le chemin de la Chaldée et de la Babylonie” (Jacolliot, Les legislateurs religieux, p. 109). 375 complexidade de seu culto e de suas tradições, etc. 1191 Devido ao fato de serem oriundos da tschandala, os semitas nunca puderem alcançar, de acordo com Jacolliot, o verdadeiro e elevado significado das concepções religiosas de seus mestres, elaborando somente uma imitação dos elementos exteriores do culto bramânico que eles associaram com suas próprias idéias vulgares: Les prétendus Sémites, eux-mêmes, furent si bien des esclaves tchandalas émigrés qu’ils ne purent jamais s’élever au-dessus des conceptions vulgaires qu’ils avaient emportées de la mère-patrie. Les tchandalas ignorants n’avaient guère vu dans le culte indou que les manifestations extérieures abandonnées à la plèbe, rien dans ce que nous ont laissé les Chaldéens, leurs descendants, ne prouve que sur le terrain religieux ils se soient élevés aux croyances philosophiques et spirituelles des brahmes. 1192 A maneira como Nietzsche faz uso, em Crepúsculo dos Ídolos, das prescrições que o “Código de Manu” impôs à tschandala – ou melhor, dos editos que Jacolliot encontrou no Avadana-Sastra – e da teoria de que os judeus descendem da tschandala, mostra que seu interesse em tal teoria está diretamente relacionado com sua crítica ao cristianismo, aparecendo muito mais como uma forma de denunciar a proveniência dessa religião a partir do solo do ressentimento judaico, interpretado agora pelo víeis do que ele vai denominar de pessimismo da indignação, prerrogativa de toda tschandala 1193 , afastando-se, portanto, do anti-semitismo de Jacolliot: Essas disposições são muito instrutivas: nelas temos a humanidade ariana, totalmente pura, totalmente primordial – vemos que o conceito de “sangue puro” 1191 “En présence de toutes ces preuves, il n’est pas contestable que cette foule mêlée dont parle Eschyle, cette multitude d’hommes de diverses nations, parlant des langages différents, et unis cependant par les mêmes mœurs et les mêmes croyances religieuses, qui, selon le chaldéen Bérose, vinrent coloniser la GhaldéoBabylonie, ne soient partis de l’Inde aux époques signalées par les traditions de l'Avadana-Sastra. [...] L'Egypte fut la seule de ces contrées qui fut colonisée par les castes élevées de l’lndoustan, aussi son état social, ses croyances, son culte, ses traditions furent-ils de simples reproductions, des copies des usages de la mère-patrie. Mêmes influences sacerdotales, mêmes divisions de castes, même impossibilité d'en sortir, même droit pénal qui, comme dans l’Inde, produisait cette foule de décastés et de mêmes peuples qui, ainsi que le constate la Bible, s'enfuirent de l'Egypte avec les Hébreux. [...] Les habitudes de l'esclavage, de l'isolement, la privation des femmes souvent imposée aux tchandalas pour arrêter le développement de la race, avaient fait naître chez eux des vices contre nature que Sodome et Gomorrhe n'eurent pas seules en partage, car tous les peuples dits sémitiques en furent et en sont encore infectés. Ces ignobles et dégradantes coutumes sont considérées avec horreur dans l'Inde comme des vices de pariahs, et on n'a pu les remarquer chez les nations européennes qu'à titre d'exception” (Jacolliot, Les legislateurs religieux, p. 118-119). 1192 Jacolliot, Les legislateurs religieux, pp. 114-115. 1193 Cf. AC § 57. 376 é o oposto de um conceito inócuo. Por outro lado, torna-se claro em qual povo se eternizou o ódio, o ódio de tschandala a essa “humanidade”, onde ele se tornou religião, onde se tornou gênio... Desse ponto de vista os Evangelhos são um documento de primeira ordem; e mais ainda o livro de Enoque. – O cristianismo, de raiz judaica e compreensível apenas como produto deste solo, representa o movimento oposto a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio: – é a religião antiariana par excellence: o cristianismo, a transvaloração de todos os valores arianos, o triunfo dos valores tschandalas, o Evangelho pregado aos pobres, aos baixos, a revolta geral de todos os pisoteados, miseráveis, malogrados e desfavorecidos contra a “raça” – a imorredoura vingança da tschandala como religião do amor... 1194 Não obstante, ainda permanece a questão de saber exatamente até que ponto Nietzsche levou a sério a teoria de Jacolliot. Etter chama atenção para o fato de que a tradução do Código de Manu feita por Jacolliot não era de modo algum a única e muito menos a melhor disponível em uma língua européia. Dois anos antes da publicação da tradução de Jacolliot, uma versão em inglês feita por George Buehler, que ainda hoje é utilizada, havia saído, e uma de William Jones já havia sido publicada em 1796; em francês, uma tradução de Auguste Loiseleur Deslongchamp havia sido publicada já em 1833; além disso, a tradução de William Jones foi vertida para o alemão dois anos após sua publicação. Ademais, ainda que seu amigo Paul Deussen, professor de filosofia indiana, e seu ex-colega de Schulpforta, Ernst Windisch, professor de sânscrito em Leipzig, não fossem verdadeiros especialistas em Dharma-s̊ āstras, eles poderiam facilmente identificar a verdadeira natureza do trabalho de Jacolliot, ou seja, uma publicação pseudocientífica, contendo grosseiras e enganosas conclusões baseadas em suposições completamente arbitrárias. É, pois, surpreendente, argumenta Etter, que Nietzsche não tenha se dado ao trabalho de consultá-los sobre tal questão, uma vez que sua competência enquanto filólogo deveria tê-lo alertado para o caráter amadorista do trabalho de Jacolliot. A preferência de Nietzsche pela tradução de Jacolliot, declara por sua vez Elst, constitui um verdadeiro mistério. Segundo ele, esse estranho erro de julgamento por parte de Nietzsche permanece inexplicado, o que ainda é melhor do que vê-lo simplesmente como um pródromo de sua perda de sanidade ocorrida um ano depois. Nossa hipótese é de que o entusiasmo de Nietzsche pela obra de Jacolliot está diretamente relacionado com o que ele próprio declara em sua carta a Heinrich Köselitz de 1194 CI, Os “melhoradores da humanidade § 4. 377 31 de maio de 1888, a saber, esse “Código de Manu” representava uma complementação de suas concepções sobre a religião, em particular, sobre o cristianismo. É possível perceber na forma como se dá a recepção da obra de Jacolliot nos escritos de Nietzsche, ou seja, na maneira como o filósofo se apropria das opiniões do estudioso, que tais opiniões lhe serviram como confirmações de diversos argumentos que ele havia elaborado na tentativa de realizar uma fisiologia da moral e da religião. A visão proposta por Jacolliot do sistema de castas indiano constituía uma grande complementação ou corroboração sobretudo dos resultados que Nietzsche obteve com a leitura de Féré. O que o “Código de Manu” apresenta é a naturalidade da décadence, da degenerescência fisiológica de todo organismo vital, de toda civilização, bem como a necessidade de que essa degenerescência alcance o seu devido termo, isto é, sua dissolução; tanto o fenômeno da degenerescência quanto o seu fim natural são condições de efetivação da vida. Teria Nietzsche de fato aceitado a teoria de Jacoliott sobre os judeus serem descendentes da tschandala indiana, ou essa teoria teria lhe oferecido apenas uma renovada forma de se interpretar o “instinto judaico”? Na carta a Heinrich Köselitz, ainda que só aparentemente, é a primeira alternativa que se sobressai: Confesso a impressão de que tudo o que tivemos até agora dos grandes códigos morais parece, para mim, uma imitação e mesmo uma caricatura deste último: sobretudo o egipcismo; mas mesmo Platão me parece, em todos os pontos principais, ter sido simplesmente bem instruído por um brâmane. Os judeus aparecem em tal contexto como uma raça tschandala, que aprendeu de seus senhores os princípios sob os quais uma ordem sacerdotal ascende ao poder e organiza um povo. Os chineses também parecem ter produzido seu Confúcio e Lao-Tsé sob a influência desse código clássico muito antigo. A organização medieval parece um curioso tatear para restaurar todas as idéias sobre as quais repousava esta muito antiga sociedade indo-ariana – mas com os valores pessimistas provenientes do solo da décadence das raças. Aqui também os judeus aparecem como meros “mediadores” [„Vermittler“] – eles não inventaram nada. Em outros momentos, todavia, Nietzsche se mostra muito mais cauteloso quanto a essa ascendência tschandala dos judeus. Nossa suposição é que a “tschandala” descrita na obra de Jacolliot vai lhe interessar muito mais como um tipo psicológico mesmo, e é como tipo que o conceito de “tschandala” se adéqua ao judaísmo da diáspora, como modelo de um conglomerado de degenerados no interior de uma sociedade, muito próximo daquilo que Féré anuncia, ou seja, o surgimento de sujeitos degenerados é o resultado natural de 378 toda civilização, e a tendência natural desses sujeitos é exatamente se buscarem, se juntarem, procriarem entre si, formando mesmo um “estrato” à parte, o que conduzirá inevitavelmente à sua extinção. Esse quadro desperta o interesse de Nietzsche, pois, segundo ele, foi em semelhante ambiente que o cristianismo surgiu: O movimento cristão é um movimento de degenerescência feito de todo tipo de elementos de detritos [Abfalls] e refugos [Ausschuss]: ele não exprime o declínio de uma raça, ele é desde o início uma formação agregada [Aggregat-Bildung] de estruturas de doenças [Krankheits-Gebilden] que se juntam e se buscam... E, por isso, ele não é nacional, não é ligado a uma raça: ele se endereça aos deserdados 1195 de toda parte. A definição do tipo tschandala como um esgoto mesmo da civilização é que vai, pois, despertar o interesse de Nietzsche, tornando-se um instrumento pelo qual ele vai interpretar a sociedade judaica da diáspora como um mundo da degenerescência, cuja principal conseqüência foi o cristianismo, não que os judeus um dia tenham sido verdadeiramente parte da tschandala indiana, e sim que eles tenham exercido o papel de um tipo tschandala no interior do Império Romano. Como parece sugerir o final do fragmento 14 [190] da primavera de 1888, intitulado “O problema dos oprimidos”: Eu não tenho certeza se [Ich sehe nicht ab, ob] os semitas já não estiveram, em um tempo muito remoto, sob a terrível opressão dos hindus: como tschandala, uma vez que já nessa época estavam enraizados alguns de seus traços característicos, que pertencem ao tipo de homem servil e desprezado (– como mais tarde no Egito). Posteriormente, eles se enobreceram, na medida em que eles se tornaram belicosos... E conquistaram suas próprias terras, seus próprios deuses. A formação dos deuses semitas coincide historicamente com sua entrada na história. O ‘espírito’, a paciência obstinada, o comércio desprezado. A definição oficial de tschandala é exatamente aquela de uma dejeção, de um excremento das classes superiores. 1196 Outro elemento que marca bem a distância entre a interpretação que Nietzsche faz do judaísmo como tipo tschandala e as convicções de Jacolliot está no fato de que, para o filósofo, nem todo judaísmo representa uma tschandala, porquanto ele é constituído por uma classe sacerdotal... e a tschandala, ou seja, sem classes intermediárias. O que esclarece muito porque o cristianismo é a sua conseqüência lógica. No fragmento póstumo 1195 1196 FP 14 [91] da primavera de 1888. FP 14 [190] da primavera de 1888. 379 14 [223] da primavera de 1888, Nietzsche afirma que, após o exílio babilônico, os judeus se viram “amputados”, sem uma classe guerreira e sem uma classe agricultora, tudo o que restou foram os sacerdotes e a tschandala. Como, anteriormente, durante o Reino, os sacerdotes não detinham o poder (que pertencia ao rei, ao guerreiro, ao nobre), a religião que agora eles iriam fundar, para sancionar sua inédita posição enquanto classe superior hegemônica (Wellhausen), seria baseada essencialmente na hostilidade contra a aristocracia, contra o poder, contra o privilégio, contra as classes dominantes, fomentando, assim, na tschandala, o pessimismo da indignação; tal pessimismo, na verdade, constituía o próprio baluarte do poder sacerdotal: “Com isso eles criaram uma importante nova posição: o sacerdote à frente da tschandala – contra as classes aristocráticas...” 1197 Todavia, esse mesmo pessimismo da indignação que era a fonte do poder sacerdotal trouxe como resultado inevitável o surgimento do cristianismo, que viu no sacerdote a última representação do poder, da nobreza, do privilégio de classe: “o cristianismo extraiu as últimas conseqüências desse movimento: no sacerdote judaico ele sentia ainda a casta, o privilégio, o aristocrata – ele suprimiu o sacerdote –” 1198 Foi dessa tschandala, no interior do judaísmo 1199, “conclamada” por Jesus, esse santo anarquista, contra a ordem dominante 1200 , isto é, contra o sacerdote, que o cristianismo surgiu, mas, pode-se dizer também, foi essa mesma aglomeração de degenerados no interior do judaísmo sacerdotal que possibilitou que santos idiotas pululassem em tal ambiente. Será que a arbitrariedade e a ausência de rigor da tradução de Jacolliot, bem como a total falta de seriedade científica de sua tese, comprometem definitivamente os argumentos de Nietzsche? Talvez essa questão se dissolva quando se procura verificar como e com que intenção o filósofo faz uso do que ele chama de “o Código de Manu”, em outros termos, o que importa é ver como o filósofo se apropria dessa visão que a obra de Jacolliot 1197 FP14 [223] da primavera de 1888. Ibidem. 1199 AC § 27. 1200 Pelas razões expostas mais acima, sustentamos que a afirmação de Nietzsche de que Jesus “conclamou o povo baixo, os excluídos e ‘pecadores’, a tschandala no interior do judaísmo, a contrariar a ordem dominante” (AC § 27) possui caráter meramente provisório, uma hipótese argumentativa, que, com o desenvolvimento da investigação do tipo “Jesus”, mostrar-se-á ilusória. Esse atributo “revolucionário” é incongruente com o tipo de Jesus, e só pode ser levado em consideração quando se tem em vista o modo como este “santo anarquista” seria interpretado pelo Império Romano ou por uma sociedade política qualquer, ou seja, de acordo com um discurso que estaria falseando essa realidade segundo suas próprias necessidades. 1198 380 desenvolve sobre o sistema de castas indiano, para expor o modo como o cristianismo ataca e condena a realidade, isto é, as condições naturais de efetivação da vida. Esse “Código de Manu” de Nietzsche (que tem uma função similar aos tipos interpretados por sua filosofia) ilustra qual a ordem natural das coisas, quais as leis naturais que regulam os diferentes tipos de vida, e qual o fim natural da décadence que os “valores modernos” querem impedir, ameaçando, com isso, a própria vida. 1201 O “Código de Manu” de Jacolliot, lido em maio de 1888, confirma precisamente aquilo que Nietzsche tentou discutir no fragmento póstumo 10 [157] do outono de 1887, ou seja, a noção de que a moral judaica e cristã é antinatural. Esse código mostra que o destino natural da décadence é a sua dissolução, ele sanciona esse fenômeno como uma lei civil, entende, mesmo que de forma cruel e errônea 1202 , que tal fenômeno deve inclusive ser promovido, que se deve auxiliar a própria natureza nessa tarefa. 1203 Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche se mostra particularmente interessado nas restrições alimentares e sanitárias que devem ser impostas à tschandala. 1204 Tais medidas tinham como intuito exatamente acelerar o fim da tschandala que, segundo Jacolliot, acabara se tornando uma sociedade à parte, bastante populosa e que poderia ameaçar a sociedade oficial. Essas medidas acabavam, portanto, por agravar a degradação de um condicionamento fisiológico já seriamente debilitado por conta das próprias condições de existência a que a tschandala se encontrava submetida no interior da sociedade indiana. A tschandala parece representar, assim, uma delimitação social regulamentada por lei da porção degenerada da sociedade, de seus dejetos e detritos. Ou seja, a sociedade hindu idealizada por Nietzsche seria aquela que admitiria para si mesma que o seu bom funcionamento depende da produção regular de resíduos e, mais importante, da separação desses resíduos da parte sadia da população. Uma mentalidade que se aproxima de maneira surpreendente das principais conclusões de Féré. 1201 “A ordem das castas, a lei suprema, dominante, é apenas a sanção de uma ordem natural, de leis naturais de primeira categoria, sobre as quais nenhum arbítrio, nenhuma ‘idéia moderna’ tem poder [...] A ordem das castas, a hierarquia, apenas formula a lei maior da própria vida, a separação dos três tipos é necessária para a conservação da sociedade, para possibilitar tipos mais elevados e supremos – a desigualdade dos direitos é a condição para que haja direitos” (AC § 57). 1202 Em CI, “O problema de Sócrates” § 11, Nietzsche afirma que “toda a moral do melhoramento [...] foi um mal-entendido...” 1203 Cf. AC § 2. 1204 Cf. CI, “Os ‘melhoradores’ da humanidade” § 3. 381 A tschandala não é nenhuma raça. A tschandala é um tipo de aglomeração de degenerados, de restos, de sobras, de excrementos, de dejetos de uma civilização. A “tschandala indiana” de Nietzsche é o tipo de uma aglomeração não mais apenas natural de toda sorte de degenerados, mas imposta mesmo pela classe superior da sociedade, exatamente porque o “Código de Manu” venera o natural e o erige como lei a fim de cultivar uma classe superior. Como diz Nietzsche: A noção de tschandala exprime os degenerados de todas as castas: os excrementos constantemente rejeitados [die Auswurfstoffe in Permanenz], que não cessam de se reproduzirem entre eles; contra eles fala o mais profundo instinto da saúde de uma raça. Ser duro aqui é sinônimo de ser “são”: é o desgosto diante da degenerescência, que acha aqui uma quantidade de fórmulas morais e religiosas... 1205 Na natureza, observa-se a produção regular e necessária de seres degenerados como parte da efetivação da vida; a vida não pode prescindir da degenerescência: esse fenômeno pertence necessariamente a ela como condição de superação. 1206 Entretanto, o processo degenerativo tem como fim a dissolução da própria degenerescência. A moral da compaixão propalada pelo cristianismo e pelos “valores modernos” ameaça seriamente a vida quando busca conservar a degenerescência a todo custo, fazendo com que ela se propague e predomine como única forma de vida existente. A tipologia nietzschiana do “Código de Manu”, do sistema de castas indiano, da tschandala, tem como função ilustrar exatamente essa realidade: “Os fracos e malogrados devem perecer: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E deve-se ajudá-los nisso.” 1207 Desnecessário é, dado todo o avanço atual da Nietzsche-Forschung, alertar para todo o cuidado que se deve ter com a 1205 FP 14 [224] da primavera de 1888. “O conceito de décadence – Os detritos, os escombros, os desperdícios não são algo que se deva condenar em si: são uma conseqüência necessária da vida, do crescimento da vida. O fenômeno da décadence é tão necessário como qualquer elevação e avanço da vida: não está em nossas mãos eliminá-lo. A razão quer, pelo contrário, que à décadence se outorgue o direito... É um opróbrio todos os sistemáticos e socialistas opinarem que poderia haver circunstâncias, combinações sociais, em que o vício, a enfermidade, o crime, a prostituição, a indigência, já não poderiam mais se desenvolver... Mais isso significa condenar a vida... Uma sociedade não é livre de continuar sendo jovem. E no meio de sua maior força, tem que produzir detritos e dejetos. Quanto mais enérgica e audaz proceda, tanto mais abundante será em monstros e abortos, tanto mais cercada estará de declínio... A velhice não se elimina com instituições. Tampouco a enfermidade. Tampouco o vício” (FP 14 [75] da primavera de 1888). 1207 AC § 2. 1206 382 retórica nietzschiana em tal passagem, deve-se ressaltar apenas que a tese fundamental aqui exposta gravita em torno da noção de que a compaixão para com a décadence é prejudicial à vida, que o objetivo último da vida não é a sua conservação, mas a sua superação; que a dissolução natural da degenerescência não deve ser evitada, impedida, sabotada, mas, quem sabe, facilitada. Por conseguinte, ao chamar o mundo em que Jesus habitou, o judaísmo da diáspora, de mundo tschandala, Nietzsche não está tão interessado em expor uma verdade científica, mas sim muito mais em salientar por qual forma de vida este mundo era constituído, ou seja, a degenerescência, e que tipo de interesse de vida prevalecia ali, isto é, o pessimismo da indignação contra a ordem, contra a hierarquia, contra a casta, contra o privilégio. Porém, essa forma de vida, a degenerescência, também condicionou o nascimento dos santos idiotas, e, com isso, um novo interesse de vida foi despertado, aquele do “fatalismo russo” 1208, que vê na não resistência, na aceitação de sua própria dissolução, a única forma de se alcançar a bem aventurança. Entretanto, aquele outro interesse de vida, o do pessimismo da indignação, da revolta, enfim, do ressentimento, prevaleceu e interrompeu esse processo, com o movimento que Paulo, o ódio tschandala a Roma feito carne 1209, perpetrou. Embora de maneira arriscada e reducionista, poder-se-ia levantar a hipótese de que o instinto de vida judaico que brota diretamente da puberdade interrompida, da idiotia, do mundo privado, da incapacidade de luta, seja aquele representado fundamentalmente pela Galiléia (a pequena família judia da diáspora, como diz Nietzsche), ambiente em que o idiota Jesus nasce, e, em contrapartida, o instinto de vida judaico que brota diretamente do ressentimento, do pessimismo da indignação, da revolta contra o privilégio, seja aquele representado eminentemente por Jerusalém, ambiente em que o cristianismo nasce. Ambos seriam instintos próprios de uma forma de vida declinante, de formas de existência parasitária, da tschandala, ainda que apresentem objetivos essencialmente diferentes: enquanto um representa a aceitação de sua própria constituição, outro representa a negação, enquanto um aguarda com alegria a extinção, outro busca a conservação. Talvez a influência malsã do poder sacerdotal “à frente da tschandala”, e que “toma partido de todos 1208 1209 Cf. EH, Por que sou tão sábio § 6. Cf. AC § 57. 383 os instintos da décadence – não como se fosse por eles dominados, mas porque neles adivinhou um poder” 1210 , seja o fator decisivo para que o ressentimento se torne mais predominante em Jerusalém, ao fomentar nos deserdados, baixos e excluídos, o pessimismo da indignação. Tal hipótese indicaria também mais um ponto de proximidade entre as teorias de Renan e as de Nietzsche. Para Renan, foi esse “ressentimento” que predominava em Jerusalém que fez com que o caráter de Jesus se alterasse radicalmente até que ele atingisse os seus “sublimes paradoxos”. 1211 3.6.2 – A realidade fisiológica do tipo Jesus O que na literatura médica do século XIX era chamado de idiotia, hoje é conhecido – vulgarmente – como retardo mental, deficiência mental, e, de um modo mais correto, inabilidade mental. Então, grosso modo, de uma maneira bem pouco rigorosa, é como se, para Nietzsche, Jesus fosse aquilo que vulgarmente é chamado de retardado, deficiente mental. Porém, a inabilidade mental possui variedades infinitas de tipos, causas, características, etc. Além disso, a inabilidade mental é somente um aspecto de uma condição degenerativa mais geral chamada inabilidade de desenvolvimento – conceito que mais se aproxima do estágio que o conhecimento médico sobre a idiotia atingiu bem no final do século XIX, nos escritos de Féré e de seus contemporâneos. Ou seja, o mais correto mesmo é afirmar que, para Nietzsche, Jesus era detentor de uma inabilidade de desenvolvimento, que ele foi portador de uma interrupção de desenvolvimento ocorrida antes da puberdade, enfim, que ele tenha permanecido preso numa fase infantil, que ele não tenha se tornado “adulto”. A inabilidade de desenvolvimento pode apresentar infinitas variedades quanto ao que diz respeito à fase em que essa interrupção ocorre, às faculdades que sofrem com essa interrupção, e quanto ao nível em que cada faculdade isoladamente se desenvolve em determinado indivíduo, por exemplo, um indivíduo pode apresentar uma capacidade intelectual de certa forma bem desenvolvida, mas exibir uma capacidade sensitiva, ou instintiva, ou perceptiva, ou reprodutiva, seriamente defeituosa, etc. 1210 1211 Cf. AC § 24. Cf. Renan, Vie de Jésus, chap. XIX. 384 Como já foi dito, a interpretação dos fenômenos religiosos por meio de conceitos psiquiátricos desempenhou um papel importante na consolidação dessa especialidade médica. Renan conhecia bem a maneira pela qual havia se tornado comum, na literatura médica do século XIX, interpretar os fenômenos religiosos como patologias mentais, mas, para ele, de maneira muito próxima a Dostoiévski 1212 , o grande pensamento, a grande idéia, o ideal em gestação, a ebulição do espírito era a causa da doença, da febre, das dores do corpo no homem “superior”. Renan compara mesmo a chegada das idéias elevadas no homem santo com um parto, ou seja, ele defende a noção de que o gênio e herói fundador de religião é doente ou enfermo, de que sua mente é febril, de que ele é louco porque seu corpo é meramente um frágil receptáculo, o veículo, por meio do qual uma grande idéia nasce. Como se pode verificar em uma passagem do capítulo 28 de Vie de Jésus, “Caractère essential de l’oeuvre de Jésus”: Gardons-nous donc de mutiler l’histoire pour satisfaire nos mesquines susceptibilités. Qui de nous, pygmées que nous sommes, pourrait faire ce qu’ont fait l’extravagant François d’Assise, l’hystérique sainte Thérèse? Que la médecine ait des noms pour exprimer ces grands écarts de la nature humaine; qu’elle soutienne que le génie est une maladie du cerveau; qu’elle voie dans une certaine délicatesse morale un commencement d’étisie; qu’elle classe l’enthousiasme et l’amour parmi les accidents nerveux, peu importe. Les mots de sain et de malade sont tout relatifs. Qui n’aimerait mieux être malade comme Pascal que bien portant comme le vulgaire? Les idées étroites qui se sont répandues de nos jours sur la folie égarent de la façon la plus grave nos jugements historiques dans les questions de ce genre. Un état où l’on dit des choses dont on n’a pas conscience, où la pensée se produit sans que la volonté l’appelle et la règle, expose maintenant un homme à être séquestré comme halluciné. Autrefois, cela s’appelait prophétie et inspiration. Les plus belles choses du monde sont sorties d’accès de fièvre; toute création éminente entraîne une rupture d’équilibre; l’enfantement est par loi de nature un état violent.1213 O capítulo 28 de Vie de Jésus foi objeto de grande interesse por parte de Nietzsche em sua releitura da obra em 1888, como mostram os fragmentos póstumos 11 [398] a 11 1212 Cf. Pondé, Luiz Felipe. “O sagrado e a desagregação da natureza”. In: Crítica e profecia: a filosofia da religião em Dostoiévski. São Paulo: Ed. 34, 2003, pp. 251-260. 1213 Renan, Vie de Jésus, Chap XXVIII, p. 259. “La première tâche de l’historien est de bien dessiner le milieu où se passe le fait qu’il raconte. Or, l’histoire des origines religieuses nous transporte dans un monde de femmes, d’enfants, de têtes ardentes ou égarées. [...] Toutes les tentatives religieuses que nous connaissons clairement présentent un mélange inouï de sublime et de bizarre. [...] L’islamisme, qui est le second événement de l’histoire du monde, n’existerait pas si le fils d’Amina n’avait été épileptique. Le doux et immaculé François d’Assise n’eût pas réussi sans frère Élie” (Renan, Vie de Jésus, Préface a la treizième édition, pp. 16-17). 385 [404] de novembro de 1887 a março de 1888, que apresentam diversos extratos, traduzidos ou no original, de tal capítulo. esses extratos de Vie de Jésus 1214 1215 O primeiro fragmento de todo o conjunto que compõe traz a tradução de uma passagem do prefácio a 13ª edição que também versa sobre o modo como a medicina moderna do homem ocidental tende a interpretar as experiências vivenciadas pelo homem religioso como frutos de patologias mentais, uma visão que, para Renan, não se adéqua ao modo como esses indivíduos eram tratados no Oriente. Dessa maneira, Renan defende que Jesus era visto na Palestina de sua época como um “encantador”, algo que, para a medicina do século XIX (por conta de sua mediocridade, diria Renan), seria o mesmo que doente mental: En Orient, le fou est un être privilégié: il entre dans les plus hauts conseils, sans que personne ose l’arrêter; on l’écoute, on le consulte. C’est un être qu’on croit plus près de Dieu, parce que, sa raison individuelle étant éteinte, on suppose qu’il participe à la raison divine. L’esprit, qui relève par une fine raillerie tout défaut de raisonnement, n’existe pas en Asie. 1216 Nietzsche provavelmente diria que essa interpretação de Renan é oriunda da velha confusão entre causa e conseqüência. Nos últimos escritos do filósofo, um tal “pensamento elevado” do santo e mesmo a alegre mensagem do redentor são conseqüências diretas da degenerescência, de uma vontade de poder que declina, de um retrocesso fisiológico, e não o contrário, ou seja, Jesus não foi idiota como conseqüência da realidade evangélica que ele vivenciou, isto é, sua constituição não é enferma por conta de sua alegre mensagem, de sua boa nova, é, de modo inverso, sua alegre mensagem que surge como conseqüência da idiotia, embora essa alegre mensagem constitua, sim, uma prática de grande valor para a efetivação da vida, pois ela está de acordo com a ordem natural das coisas, não constituindo nenhuma ameaça, e sim até mesmo um elemento favorável para o cultivo de um tipo mais elevado de vida (– que não é aquele representado por Jesus, mas cujo cultivo sua prática 1214 Da passagem supracitada Nietzsche extrai: “‘Qui n’aimerait mieux être malade comme Pascal que bien portant comme le vulgaire?’ Renan” (FP 11 [400] da primavera de 1888). Comparar com AC § 5. 1215 Cf. FP’s 11 [382] a 11 [405] de novembro de 1887 a março de 1888. 1216 Renan, Vie de Jésus, Préface a la treizième édition, pp. 17-18. “Renan. Im Orient ist der Narr ein priviligirtes Wesen; er tritt ein vor die höchsten Räthe, ohne daß Jemand ihn aufzuhalten wagt; man hört ihn, man befragt ihn. Das ist ein Wesen, das man Gott näher glaubt, weil man, da seine individuelle Vernunft erloschen ist, voraussetzt, daß er theil hat an der göttlichen. Der esprit, der durch einen feinen Spott jeden Fehler des raisonnements heraushebt, fehlt in Asien” (FP 11 [382] de novembro de 1887 a março de 1888). 386 favorece ao não fazer com que a décadence se conserve e se propague –) no cômputo geral da existência. O que Jesus fez e o que torna sua mensagem evangélica importante para a transvaloração dos valores foi obedecer ao seu instinto de vida mais básico, procurando aquilo que lhe era favorável de acordo com sua condição degenerativa, diferente do homem ressentido, que é atraído pelo que é prejudicial à sua constituição fisiológica degenerada. Poder-se-ia levantar a hipótese de que essa interpretação que Nietzsche faz dos relatos evangélicos mediante conceitos psiquiátricos é uma influência direta e quase exclusiva de Dostoiévski, se não, então de Renan, aliás, poder-se-ia ir mais longe e afirmar que, se Nietzsche não leu O idiota de Dostoiévski, bastaria, então, mostrar que o aspecto enfermiço da figura de Jesus foi encontrado tanto por Nietzsche quanto por Dostoiévski única e exclusivamente em Renan, uma vez que o escritor russo também havia lido com bastante interesse a obra Vie de Jésus, eis porque o Jesus de Nietzsche e o príncipe Míchkin de Dostoiévski se assemelhariam tanto. 1217 Contudo, além do fato de Renan e Dostoiévski conferirem um valor exatamente oposto ao dado por Nietzsche no que diz respeito à constituição doentia ou enferma de um homem “ideal”, de um homem “perfeito” e “puro”, em nenhum dos dois se encontra a descrição da realidade fisiológica básica que dá conta de explicar em que consistia a enfermidade de Jesus, a saber, a hiperexcitabilidade, encontrada pelo filósofo em Féré. A verdade é que esse aspecto convergente das interpretações de Renan, Doistoiévski e Nietzsche, isto é, de que um homem como Jesus seria visto pela medicina do século XIX como alguém que sofreria de algum tipo de distúrbio, transtorno, disfunção ou enfermidade mental, tem a ver muito mais com o fato de os três estarem plenamente inseridos em todo um debate teórico bastante em voga lançado pela literatura médica da época, que tendia a estreitar as relações entre religião e patologias mentais. Vimos que Binet-Sanglé, autor de La folie de Jésus, por exemplo, adota uma posição tão extrema que, para ele, toda e qualquer devoção religiosa já denota um distúrbio mental. Ademais, Binet-Sanglé praticamente diagnostica Jesus como uma pessoa portadora de idiotia ao afirmar que ele era estéril e que seu pai, José, era um alcoólatra crônico. Com 1217 Essa é exatamente a tese defendida no excelente (e de rigor filológico exemplar) trabalho de Antonio Morillas e Jordi Morillas: “Der ‘Idiot’ bei F. Nietzsche und bei F. M. Dostoevskij. Geschichte eines Irrtums”. Disponível em:<http://www.agonfilosofia.es/index.php?option=com_content&view=article&id=80%3Amordost&catid= 8&Itemid=16>. Último acesso: 27/06/2012. 387 isso, não estamos afirmando que Renan e Dostoiévski não tiveram qualquer importância na análise da figura de Jesus empreendida por Nietzsche, mas tão-somente que eles não foram sua única fonte e nem a mais decisiva, sobretudo, no que diz respeito ao que exatamente vem a ser um idiota. Em resposta a uma carta em que Nietzsche faz um elogio a Dostoiévski 1218, Georg Brandes declara ao filósofo achar estranha essa sua admiração pelo romancista russo, uma vez que “toda a sua moral é aquilo você batizou de moral de escravos”. 1219 Em outra carta, de 23 de novembro de 1888, o crítico dinamarquês expõe melhor sua opinião a respeito de Dostoiévski: “Seus heróis não são apenas pobres e lamentáveis, mas sensíveis simplórios, prostitutas nobres, freqüentemente alucinados, epilépticos dotados, candidatos entusiasmados ao martírio [begeisterte sucher des Martyriums], justamente o tipo que deveríamos supor entre os apóstolos e discípulos da primeira era cristã.” 1220 A semelhança dessa declaração de Brandes com a investigação fisio-psicológica que Nietzsche faz dos tipos que povoam os Evangelhos, aproximando-os dos tipos que Dostoiévski conhece, é impressionante, e mostra bem que essa era uma leitura feita com bastante freqüência entre a crítica literária da época (como se pode observar também em De Vogüe). O próprio Dostoiévski já direciona esse tipo de interpretação, afinal, ele sempre afirmou que seu grande sonho era encontrar um modo de conceber em seus escritos o ideal de homem puro, tendo como modelo principal Cristo, Don Quixote e os camponeses russos, e conferindolhe como sua benção a epilepsia, da qual o próprio escritor sofria, que, para ele, era o preço que o frágil corpo humano deveria pagar pela experiência sagrada que costumava preceder os seus próprios ataques. 1221 Como a redação de O Anticristo já havia sido finalizada há quase dois meses antes da carta de Brandes, não há motivo para pensar que o crítico 1218 “Creio plenamente em você quando afirma que se pode propriamente ‘renascer na Rússia’; eu conto qualquer livro russo, sobretudo Dostoiévski (traduzido em francês, graças aos céus, não em alemão!!), entre os meus maiores alívios” (carta de Nietzsche a Brandes de 20 de outubro de 1888). 1219 Carta de Brandes a Nietzsche de 16 de novembro de 1888. 1220 Carta de Brandes a Nietzsche de 23 de novembro de 1888. 1221 Cf. Frank, Joseph. “Um ideal russo”. In: Dostoiévski: os anos milagrosos, 1865-1871. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: EDUSP, 2003, pp.321-449. 388 dinamarquês tenha exercido qualquer influência na interpretação de Jesus feita pelo filósofo. 1222 Um dado ainda mais revelador sobre como o diagnóstico de Jesus como idiota feito por Nietzsche está inteiramente associado com o modo como a medicina e a psiquiatria do século XIX passaram a interpretar os fenômenos religiosos está em uma obra lançada ainda no último ano do século XVIII, a saber, Traité du goître et du crétinisme, de Fodéré, publicada em 1800, em um “Avis sur le mot crétinisme”, localizado no início da obra. Nesse aviso, Fodére esclarece que a origem do termo “cretino” utilizado para se referir a uma variável endêmica da idiotia profunda ou idiotia propriamente dita está, como Esquirol também vai observar, justamente na palavra “cristão”, no sentido mesmo de “cristão por excelência”, “cristão perfeito”, de “imitação de Cristo”: Le goître est três-connu, puisqu’on le trouve dans tous lês pays; mais tous les lecteurs ne sauront peut-être pas d’abord ce que signifie le mot crétinisme. Il dérive de crétin, nom qu’on donne dans certaines contrées à des individus qui sont tout-à-fait stupides, et qu’on appelle encore idiots, cagots, etc. Le mot crétien vient lui-même de chrétien, bon chrétien, chrétien par excellence, titre qu’on donne à ces idiots, parce que, dit-on, ils sont incapables de commettre aucun péché (dans quelques vallées, où ces maladies sont endémiques, on leur donne encore le nom de Bien-heureux, et aprés leur mort, on conserve, avec vénération, leurs béquilles et leurs vétemens). J’ai adopté ce terme de préférence à un autre, à cause que les individus auxquels il appartient, sont plus qu’idiots, et qu’ils méritent, en conséquence, une, désignation particulière. 1223 Verifica-se, dessa forma, que é somente pela reinserção do projeto de uma psicologia do redentor no interior de todo um debate médico e psiquiátrico ocorrido no século XIX a respeito da associação entre os fenômenos religiosos e as patologias mentais, que se torna possível compreender a real natureza da investigação de Nietzsche. O diagnóstico de Jesus como idiota feito por Nietzsche não possui caráter ofensivo, agressivo, detrator, não constitui uma mesquinha tentativa de polemizar, de chocar, de provocar a indignação dos cristãos ao escarnecer de seu objeto de fé; não há aqui nenhuma brincadeira, nenhuma piada de mau gosto, nem tampouco uma arbitrariedade ou um sintoma de delírio. Por outro lado, toda tentativa de suavização da classificação de Jesus como idiota, pelo uso 1222 Como já foi dito, é exatamente na carta que Nietzsche envia a Brandes em 20 de novembro de 1888, que O Anticristo é, pela primeira vez, identificado como constituindo a integralidade da Transvaloração de todos os valores, e não somente o seu primeiro livro como havia sido planejado anteriormente. 1223 Fodéré, Traité du goître et du crétinisme, p. 1. 389 das aspas, pela busca de um significado literário, metafórico, simbólico, herético, religioso, ou seja, não-médico, não-psiquiátrico, não-fisiológico, etc., representa um desvio ainda mais alarmante da real intenção de Nietzsche, intenção que ele mesmo esclarece a contento ao declarar que quer se entendido com o rigor do fisiólogo ao classificar Jesus de idiota. 1224 Desenvolvimento interrompido No fragmento póstumo 9 [140] do outono de 1887, Nietzsche afirma: “Moral essencialmente enquanto defesa, enquanto meio defensivo: nesse sentido, sintoma do homem que não atingiu a idade adulta”. Temos aqui, de certa maneira, uma antecipação do juízo que Nietzsche fará a respeito de qual o sentido fisio-psicológico da prática evangélica de Jesus. Uma moral que tem como principal preocupação a defesa, o evitar ser atingido (evitar a dor?), é sintoma de um desenvolvimento que não chegou ao seu termo. Todavia, a prática de Jesus é a própria abolição de toda defesa, porém isso não seria ainda mais grave, ainda mais “infantil”? Nietzsche possivelmente diria que sim, pois, no mesmo póstumo, ele declara: “adulto, o homem é antes de tudo possuidor de armas, é ofensivo”. 1225 No fragmento póstumo 10 [86] do outono de 1887, ao repudiar as figuras de Jesus e Paulo (antes de distingui-las) e ao condenar suas obras, Nietzsche vai chamar Jesus de “terno” e “infantil”. No fragmento póstumo 11 [365] de novembro de 1887 a março de 1888, um dos fragmentos em que Nietzsche já empreende claramente a tentativa de fazer uma psicologia do redentor, retirando os traços que lhe foram acrescentados pela “tradição”, o filósofo analisa: “falta a tarefa em semelhante vida; ela não quer nada... uma forma de ‘deuses epicúreos’; falta toda razão de possuir metas: tornar-se crianças... tudo está consumado...” Já podemos verificar aqui a influência de Les possédés de Dostoiévski 1226 na interpretação do mundo interior de Jesus, de sua vivência mais íntima, como um reino de Deus que resplandece a partir do coração, fruto de um amor pleno por tudo e por todos, em que tudo se cumpre – uma experiência condicionada pela idiotia: tal sublime vivência só está ao alcance de quem permanece como criança. A relação de causa e conseqüência entre uma 1224 Cf. AC § 29. FP 9 [140] do outono de 1887. 1226 Cf. FP 11 [331] a 11 [352] de novembro de 1887 a março de 1888. 1225 390 dada condição degenerativa e o mundo infantil de Jesus é exposta logo adiante, no fragmento póstumo 11 [368] de novembro de 1887 a março de 1888, intitulado “O tipo Jesus”, em que Nietzsche provavelmente faz uma crítica à tentativa de Renan de compor a “história da alma” de seu herói Jesus: “essa fé não é conquistada com luta, não tem uma evolução, uma catástrofe... mas antes é infantil... a infância em tais naturezas é como uma enfermidade.” Em nenhum desses fragmentos, contudo, Nietzsche identifica diretamente o mundo da infância, do desenvolvimento interrompido de Jesus, com a idiotia, isso só será feito justamente no fragmento póstumo 14 [38] da primavera de 1888, “Tipo ‘Jesus’”, em que o diagnóstico de Jesus como idiota é finalmente dado pelo filósofo. Jesus não é gênio, é um idiota, sentencia Nietzsche: “O fato de que os verdadeiros instintos viris – não somente os sexuais, mas igualmente os de luta, orgulho, heroísmo – não foram jamais despertados nele, o fato de que seja retardado [zurückgeblieben] e tenha permanecido infantilmente na fase da puberdade: eis o que é próprio de certo tipo de neurose epileptóide.” 1227 A noção de idiotia que Nietzsche expõe em tal passagem enquanto um estado degenerativo (ou seja, entendida não como um expediente simbólico, e sim como uma realidade fisiológica) em que o sujeito não desenvolve plenamente suas faculdades, em que se permanece preso numa fase infantil, em que o desenvolvimento é interrompido antes da puberdade está plenamente de acordo com o conceito nosográfico de idiotia estabelecido por Esquirol e desenvolvido por Séguin, por Félix Voisin e Jules Voisin, e cuja discussão teórica exercia uma grande importância na literatura médica do final do século XIX. Nas obras dos dois últimos médicos, sobretudo, a idiotia já não é mais unicamente entendida como uma inabilidade mental, e sim como um estado degenerativo em que a totalidade das habilidades tem o seu desenvolvimento interrompido antes que o sujeito venha a atingir a idade adulta. Félix Voisin atenta para o fato de que os instintos de conservação de diversos idiotas encontram-se praticamente ausentes. Jules Voisin, tendo como base Morel, aponta como principal característica da idiotia (profunda) a esterilidade, o não desenvolvimento da virilidade. 1227 FP 14 [38] da primavera de 1888. Sobre a relação entre idiotia e epilepsia, cf.: Féré, Charles. Épilepsies et les épileptiques. Paris: Félix Alcan, 1890, especialmente pp. 231-232. 391 Pode-se constatar igualmente nessa passagem, bem como em toda a investigação do tipo psicológico do redentor feita em O Anticristo, que Nietzsche não discute tanto a idiotia de Jesus em termos de inabilidade mental (inabilidade com que tal enfermidade é mais comumente e vulgarmente associada), mas sim, em um aspecto mais geral, de inabilidade de desenvolvimento e, em um aspecto mais específico, de inabilidade de luta, de resistência, de instinto de conservação, de instintos viris, etc. Se Jesus não é um gênio, isso se deve muito mais a sua incapacidade de entrar em contato com uma realidade qualquer (que é resultado direto de sua incapacidade de resistir às excitações externas), de, por conseqüência, entender as necessidades do homem público (que não poderiam vir a ser compartilhadas por ele), de compreender as noções de tempo e espaço, de fixidez, de identidade, de alteridade, de conhecer o que é ciência, lei, arte, política, economia, cultura, moral, lógica, conceito, doutrina, dogma, religião, etc. Mas isso não significa que ele seja um idiota completo, que sofra de idiotia profunda (na qual o sujeito vive praticamente em estado vegetativo, alheio a tudo e a todos), que ele não possa ter desenvolvido boa parte de suas faculdades cognitivas, mas apenas que, dado a incompletude de suas outras faculdades, seu intelecto não funciona “regularmente”, “normalmente”, ou seja, do mesmo modo que o de um homem público, sendo incapaz de entender a realidade em que este último habita. Como já foi dito, não se deve confundir esse desconhecimento do idiota acerca dos negócios do homem de Estado com a simples ignorância ou ingenuidade, pois ela é resultado de uma inabilidade. Por mais que Nietzsche utilize o termo “retardado” ou “retido”, “preso”, [zurückgeblieben] ao invés do termo que desde Séguin é considerado o mais correto, ou seja, “interrompido”, nota-se que sua familiaridade com o conceito nosográfico de idiotia presente na literatura médica do final do século XIX é muito grande, e vai até mesmo além daquilo que ele pôde ter encontrado em Féré, uma vez que o médico francês não chega a abordar a idiotia pelo aspecto da interrupção de desenvolvimento, e sim muito mais enquanto o fim da cadeia degenerativa hereditária, enquanto o estado degenerativo mais extremo, o que pode muito bem indicar que Féré não foi a única fonte fisiológica que o filósofo recorreu para o entendimento desse conceito nosográfico, e que, talvez, ele tenha consultado algum compêndio médico, por exemplo. 392 Em O Anticristo, a realidade fisiológica de Jesus como sendo a de uma interrupção de desenvolvimento aparece relacionada com duas fontes de Nietzsche: Dostoiévski e Renan. Como já vimos, na seção 31, Nietzsche fala tanto de um idiotismo “infantil” 1228 que lembra um romance russo, quanto de uma mistura de “sublime, enfermo e infantil” (termos estes que, embora incidam sobre Jesus, não estão aqui diretamente relacionados a ele, e sim muito mais ao mundo que o cerca e do qual faz parte) que Dostoiévski conhece como ninguém. E na seção 32, Nietzsche afirma que a boa nova de Jesus é a de que o reino de Deus pertence às crianças: “A ‘boa nova’ é justamente que não mais existem oposições; o reino do céu pertence às crianças; a fé que aí se exprime não é uma fé conquistada – ela está aí, existe desde o começo, é como que um infantilismo recuado [zurückgetretene] para o plano espiritual.” Ora, o idiotismo infantil dos romances russos e a mistura de sublime, enfermo e infantil, remontam, como já vimos, a diversos romances de Dostoiévski, particularmente a Humilhados e ofendidos, aos personagens Aliocha e Kátia, e, principalmente e de forma mais completa, ao Idiota, à figura do príncipe Míchkin, que Nietzsche talvez tenha ouvido falar. Já a noção de que a boa nova de Jesus era a de que o reino de Deus [Reich Gottes] ou o reino do céu [Himmelreich] 1229 pertence às crianças, constitui a tese defendida por Renan no capítulo XI de Vie de Jésus, “Le royaume de Dieu conçu comme l’avènement des pauvres”, de que, em seus primeiros dias de pregação, na Galiléia, após seu encontro com João Batista, Jesus concebeu tal ideal. 1230 Como se pode constatar nesta passagem fundamental: Il ne perdait aucune occasion de répéter que les petits sont des êtres sacrés, que le royaume de Dieu appartient aux enfants, qu’il faut devenir enfant pour y entrer, qu’on doit le recevoir en enfant, que le Père céleste cache ses secrets aux sages et les révèle aux petits. L’idée de ses disciples se confond presque pour lui 1228 O fato de Nietzsche utilizar o termo “idiotismo” ao invés de “idiotia”, considerado o mais correto desde Esquirol, pouco diminui seu rigor na descrição conceitual desta enfermidade. 1229 Em nota a seguinte passagem: “Le nom de ‘royaume de Dieu’ ou de ‘royaume du ciel’ fut le terme favori de Jésus pour exprimer la révolution qu’il inaugurait dans le monde.” Renan esclarece que: “Le mot ‘ciel’, dans la langue rabbinique de ce temps, est synonyme du nom de ‘Dieu’, qu’on évitait de prononcer” (Renan, Vie de Jésus, Chap. V, “Premiers aphorismes de Jésus”, p. 91, nota 3). E no fragmento 11 [391] de novembro de 1887 a março de1888, que faz parte dos extratos colhidos de Vie de Jésus, Nietzsche anota: “in der rabbinischen Sprache dieser Zeit ist ‘Himmel’ gleichbedeutend mit ‘Gott’: dessen Namen man vermied.” 1230 “Le royaume de Dieu est fait: 1° pour les enfants et pour ceux qui leur ressemblent; 2° pour les rebutés de ce monde, victimes de la morgue sociale, qui repousse l’homme bon mais humble; 3º pour les hérétiques et schismatiques, publicains, samaritains, païens de Tyr et de Sidon” (Renan, Vie de Jésus, Chap. XI, p. 136). 393 avec celle d’enfants. Un jour qu’ils avaient entre eux une de ces querelles de préséance qui n’étaient point rares, Jésus prit un enfant, le mit au milieu d’eux, et leur dit : “Voilà le plus grand; celui qui est humble comme ce petit est le plus grand dans le royaume du ciel.” C’était l’enfance, en effet, dans sa divine spontanéité, dans ses naïfs éblouissements de joie, qui prenait possession de la terre. Tous croyaient à chaque instant que le royaume tant désiré allait poindre. Chacun s’y voyait déjà assis sur un trône à côté du maître. On s’y partageait les places; on cherchait à supputer les jours. Cela s’appelait “la bonne nouvelle”; la doctrine n’avait pas d’autre nom. Un vieux mot, paradis, que l’hébreu, comme toutes les langues de l’Orient, avait emprunté à la Perse, et qui désigna d’abord les parcs des rois achéménides, résumait le rêve de tous: un jardin délicieux où l’on continuerait à jamais la vie charmante que l’on menait ici-bas. 1231 Nietzsche certamente levou a sério a observação de Renan de que de fato foi a infância que, naquele eterno momento de alegria e “ingenuidade”, reinou sobre a Terra. Todavia, ainda que Renan, com todas as suas delicadas nuanças, dê mostras de que poderia vir a admitir que um tal reino infantil fosse produto da enfermidade (caso a insignificância do homem moderno prefira assim julgar), e que Dostoiévski, por sua vez, aceite que o homem puro seja enfermo e idiota por conta da fragilidade de seu corpo diante do sagrado, poder-se-ia mesmo afirmar que um deles ou que ambos foram determinantes para que Nietzsche lesse fisiologicamente o mundo infantil de Jesus, a sua boa nova, como conseqüência da idiotia? Em nossa proposta interpretativa, sustentamos que a continuação da passagem supracitada da seção 32 de O Anticristo é uma clara indicação de que a leitura que Nietzsche fará da mensagem de Jesus como resultado de uma inabilidade de desenvolvimento vai muito além do que é abordado tanto por Renan quanto por Dostoiévski, estando muito mais fundamentada na literatura médica e psiquiátrica do século XIX: “O caso da puberdade retardada [verzögerten] e não desenvolvida [unausgebildeten] no organismo, como conseqüência da degenerescência, é familiar aos fisiologistas, pelo menos.” 1232 Ainda que Nietzsche volte aqui a fazer uso do termo pouco rigoroso “retardado” ou “atrasado” [verzögerten, termo bem menos rigoroso que zurückgeblieben] (assim como, na seção 31, do termo “idiotismo” – já há muito tempo substituído por “idiotia”), nem em Renan, nem em Dostoiévski, encontramos uma definição tão fisiologicamente precisa e correta de que ter um desenvolvimento retido antes da puberdade, de que ter permanecido como criança na puberdade é ser um idiota. Foi 1231 1232 Renan, Vie de Jésus, Chap. XI, p. 142. AC § 32, grifo nosso. 394 somente após ter identificado Jesus com o que a psiquiatria da época entendia como idiota, que Nietzsche pôde se apropriar dos resultados colhidos com a leitura de Dostoiévski e de Renan, conferindo, portanto, um novo sentido, rigorosamente fisiológico, para as noções que ele encontrou em ambos os autores. Nossa posição também é de que essa declaração na seção 32 de O Anticristo em particular desqualifica toda tentativa de atribuir um sentido meramente metafórico ou simbólico à interpretação que Nietzsche faz de Jesus como idiota. O evangelho de Jesus como conseqüência da hiperexcitabilidade Em O Anticristo, a noção de puberdade interrompida ou detida parece estar, de certo modo, subordinada ao que Nietzsche considera a realidade fisiológica fundamental do idiota, a saber, a hiperexcitabilidade, fenômeno que caracteriza a própria degenerescência para Féré, e que, para o filósofo, atinge um grau extremo em Jesus. Nietzsche apresenta essa realidade fundamental do idiota na seção 29 de O Anticristo, imediatamente após dar o diagnóstico do tipo Jesus: “Conhecemos um estado de doentia excitabilidade do sentido do tato [krankhafter Reizbarkeit des Tastsinns], no qual se recua, tremendo, ante qualquer contato, qualquer apreensão de um objeto sólido.” 1233 Segundo o filósofo essa doentia excitabilidade do sentido do tato faz com que todo e qualquer contato com a realidade provoque uma dor insuportável para Jesus, por isso, ele é obrigado a voltar-se para o seu interior e evitar toda forma de contato, de resistência, de conflito, a fim de evitar todo tipo de dor. Vimos, porém, que na literatura médica do século XIX, a incapacidade de sentir dor é apontada como um dos principais sintomas da idiotia profunda. Não obstante, entre os imbecis, portadores de um grau menor de idiotia, uma irritabilidade extrema pode de fato ser observada. Ora, o fenômeno da hiperexcitabilidade é a realidade fisiológica fundamental da degenerescência. A partir de Morel, a degenerescência passa a ser entendida como um fenômeno hereditário e progressivo. Deste modo, em Féré, quanto mais baixo o sujeito se encontrar na cadeia degenerativa, mais exagerada será sua hiperexcitabilidade (caso ele ainda tenha podido desenvolver suas capacidades sensitivas) e, por conseguinte, seu esgotamento, sua incapacidade de responder às solicitações 1233 PCS traduz “Tastsinns” unicamente por “tato”. 395 externas. Um sujeito imbecil, que pôde desenvolver suas faculdades sensitivas, seu “sentido do tato”, e que possui ainda um grau mínimo de energia potencial, poderia apresentar, então, o grau mais extremo da hiperexcitabilidade; sua sensibilidade, seu “sentido do tato” seria afetado, então, da maneira mais exagerada pelas excitações externas, o que resultaria em uma dor excruciante, insuportável. Todo sujeito degenerado se vê mais suscetível à dor, sua sensibilidade mórbida faz com que ele se encontre vulnerável a todo tipo de excitação, a intensidade com que ele representa mentalmente essas excitações exige que a elas seja dada uma resposta igualmente intensa, o que faz com que sua energia se descarregue exageradamente, levando-o a exaustão, assim, suas representações mentais, sempre mais intensas, não recebem respostas, pois sua reserva de força se encontra exaurida, predominará, então, a sensação de desprazer, de impotência, de dor. Um sujeito que apresenta um grau extremo de degenerescência, vê-se, deste modo, devido a sua hiperexcitabilidade extrema, desprotegido frente ao mundo externo, vulnerável à excitação mais sutil, mais imperceptível, não conseguindo mais, por conta de seu esgotamento, responder, resistir aos estímulos externos. Com as leituras de Wellhausen e Jacolliot, Nietzsche pôde verificar que o nascimento de um tal sujeito era inevitável na sociedade Palestina da diáspora. Mas como se poderia subordinar o entendimento da idiotia enquanto desenvolvimento interrompido à noção de hiperexcitabilidade? Vimos que Nietzsche se refere à idiotia de Jesus enquanto infância interrompida ou detida justamente quando fala do reino do céu como pertencente às crianças, como sendo uma realidade psicológica, um estado do coração. É por não suportar o contato com a realidade, que o idiota Jesus cria o seu reino de Deus em seu interior, ou seja, que ele sente necessidade de voltar-se sobre si mesmo. Poder-se-ia postular, então, que, por conta disso, em uma determinada fase da infância, ele deixou de crescer, já que se viu incapaz de enfrentar o que ele precisaria enfrentar (todo tipo de mudança e transformação) para continuar crescendo, para se tornar um adulto, “preferindo”, assim, permanecer como criança. Sem poder entrar em contato com a realidade, esse tipo teria, portanto, se prendido, se fixado, se detido em um estágio inicial, no qual sofreu apenas um contato parcial com a realidade. 396 É a noção de hiperexcitabilidade que permite identificar quais seriam as chaves para a compreensão do evangelho, tais chaves são o que possibilitam a reconstituição da autêntica mensagem de Jesus, a compreensão do verdadeiro significado de sua vida e de sua morte. Nietzsche encontra essas duas chaves interpretativas em duas máximas que conteriam em si o real fundamento de toda a boa nova anunciada por Jesus, o alegre mensageiro, são elas: “não resistais ao homem mau” 1234 e “o reino de Deus está no meio de vós” (que Nietzsche irá traduzir por “o reino de Deus está em vós). 1235 À primeira vista, pode parecer que Nietzsche escolhe essas sentenças ao acaso, por pura “intuição”, contudo, quando se faz referência a todo o pano de fundo conceitual em que o filósofo se baseou para fazer essa constatação, verificamos que não se pode falar aqui de um simples caso de arbitrariedade. Vimos que, com Féré, Nietzsche verificou que os sujeitos degenerados possuem sua força de resistência quebrada, que essa incapacidade de resistir se agrava na medida em que a degenerescência é transmitida hereditariamente; com Tolstói, o filósofo pôde conceber um cristianismo cuja realidade psicológica se caracteriza por uma existência absolutamente privada, em que se recusa a luta, em que não se procura mais a defesa, nem de si e nem dos seus; com Dostoiévski, ele viu a possibilidade de que uma constituição extremamente enferma consiga encontrar sua felicidade em sua própria interioridade; ao reler Renan, o filósofo verificou a semelhança de uma tal bem-aventurança de um sujeito extremamente enfermo com a boa nova anunciada por Jesus, seu reino de Deus; com Wellhausen e Jacolliot, Nietzsche atestou que a Palestina da diáspora é uma sociedade eminentemente apolítica, privada, constituída por um ajuntamento de degenerados de toda espécie, o lugar mais propício para que uma forma de vida degenerada ao extremo e absurdamente privada pudesse vir a nascer; um tipo de vida que não poderia mais resistir de forma alguma e que só poderia encontrar sua felicidade dentro de si mesma, em suas vivências mais íntimas, daí porque sua palavra de ordem, sua boa nova seria: “não resistais ao homem mau”, eis o único caminho para a bem aventurança, “aqui está o reino de Deus”, no amor incondicional: – “em seu coração”. Dessa maneira, essas duas máximas são as 1234 “ Eu, porém, vos digo: não resistais ao homem mau; antes, àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda [ἐ ὼ ῖ ἀ ῆ α π · ἀ ’ ὅ απ ἰ ὰ α α, α α ἄ ]” (Mateus, 5, 39). 1235 “Não se poderá dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali!’, pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós [ ἐ ἰ ὧ ἤἰ ἐ ῖ· ἰ ὰ ἡ α α Θ ἐ ἐ ]” (Lucas, 16, 21). 397 chaves interpretativas, os dados fundamentais, que permitem restituir ao tipo de Jesus os traços que lhe foram retirados e devolver-lhes aqueles que lhe foram indevidamente acrescentados pela “tradição”, ou seja, pela falsificação operada pelos apóstolos, pela comunidade inicial, por Paulo e pela Igreja. As duas máximas como sendo as chaves que abrem a compreensão do evangelho, que revelam o autêntico cristianismo inicial, ou seja, a realidade evangélica vivida por Jesus, sua alegre mensagem; tais máximas foram encontradas pelo filósofo em Renan, Tolstói e Dostoiévski, contudo, a realidade fisiológica que explica a necessidade dessas máximas foi encontrada por ele na literatura médica do século XIX, na noção de idiotia e hiperexcitabilidade (bem como na de esgotamento). Debalde seria toda tentativa de estabelecer qualquer relação de primazia cronológica a respeito desses dois aspectos da investigação, mas é certo que Nietzsche só consegue dar uma nova significação, primeiramente, ao que ele encontra em Tolstói, em seguida, em Dostoiévski, e, por último, em Renan (ao fazer uma releitura do historiador), ao associar as teorias destes com o que ele apreende a partir de suas leituras médicas e psiquiátricas. A realidade evangélica vivenciada por Jesus é resultado de um instinto básico de conservação, que faz com que essa forma degenerada de vida não mais resista e se volte para o seu interior. Sua boa nova é o anúncio, que se dá por meio de sua prática de vida, bem como por meio de sua morte, de que essa experiência beatífica, de que o seu reino de Deus está ao alcance de todos, de que todos podem vir a se tornar filhos de Deus como ele, mediante a prática da não-resistência, do amor sem subtração por tudo e por todos. É por conta de uma incapacidade de opor resistência, de lutar, própria dos sujeitos degenerados segundo Féré, mas que, de acordo com Nietzsche, aqui atinge sua culminância, que Jesus não poderia vir a ser herói como o quer Renan. Todo tipo de resistência a um obstáculo, e, portanto, a um estímulo, traria como conseqüência para o idiota Jesus uma dor lancinante: primeiro, por conta de sua hiperexcitabilidade, que torna toda sensação intensa demais, e, depois, por conta de seu esgotamento, de sua reserva mínima de força, insuficiente para responder à altura, que traz como conseqüência uma profunda sensação de impotência, de infelicidade, de desprazer, de dor. Por instinto, Jesus intuiu que sua felicidade residia em aceitar sua própria condição, convertendo o não poder resistir em “não querer” mais resistir, seja em ato, seja no coração, vendo na entrega, na 398 desistência “voluntária”, a sua única possibilidade de encontrar o prazer, a felicidade, a paz da alma. Como diz Nietzsche: “Se existe algo não evangélico, é o conceito de herói. Justamente o contrário de todo pelejar, de todo sentir-se-em-luta, tornou-se aí instinto: a incapacidade de resistência torna-se aí moral.” 1236 Jesus não se defende devido à sua compleição fisiológica degenerada, não por conta de uma simples escolha, de uma decisão refletida. A hiperexcitabilidade obriga os sujeitos degenerados a responderem constantemente aos estímulos mais sutis, às excitações mais leves, esse estado em que todo o organismo do sujeito se vê obrigado a manter uma posição permanente de defesa leva ao esgotamento, à exaustão de forças, em que toda defesa se torna inviável. Como afirma Nietzsche em Ecce homo: “Pela simples necessidade constante de defesa é possível tornarse fraco a ponto de não mais poder se defender”. 1237 No fragmento póstumo 14 [65] da primavera de 1888, intitulado justamente “Décadence”, Nietzsche fala claramente da incapacidade de resistência como sendo o constitutivo das disposições doentias, algo que, segundo ele, é transmitido hereditariamente: “Décadence. O que se transmite, não é a doença, é a disposição doentia: a incapacidade de resistir ao perigo de uma intrusão nociva, etc.; a força de resistência quebrada, – ou, moralmente falando: a resignação e a humildade diante do inimigo; o enfraquecimento como renúncia à vingança, à resistência, à hostilidade e à cólera [...] A fraqueza hereditária como sentimento dominante: causa dos supremos valores.” 1238 Deste modo, o idiota Jesus encontrou um caminho em que a não resistência, em que a aceitação de si mesmo é o fundamento da bem-aventurança; sua própria incapacidade se torna sua grande virtude: será ela que fará com que não haja mais ocasião para a dor. Por isso, o filósofo vê na prática de vida cristã descrito por Tolstói em Ma religion a representação do cristianismo mais conseqüente, mais coerente, mais lógico consigo mesmo. Tolstói estava certo, na não-resistência se encontra todo o evangelho: “(‘não resista ao mal’, a frase mais profunda dos evangelhos, sua chave, em certo sentido), a beatitude na paz, na brandura, no não poder ser inimigo.” 1236 1239 Jesus não foi o primeiro a AC § 29. EH, “Por que sou tão inteligente” § 8. 1238 Parecer semelhante também é dado em Crepúsculo dos ídolos: “Os meios radicais são indispensáveis somente aos degenerados; a fraqueza da vontade ou, mais exatamente a incapacidade de não reagir a um estímulo, é ela mesma apenas outra forma de degenerescência” (CI, “Moral como antinatureza” § 2). 1239 AC § 29. 1237 399 pregar o amor ao próximo, todavia, nele, “próximo” não significa mais o “correligionário”, o “amigo”, o “concidadão”, aquele que é “um de nós”. Em Jesus, a máxima do amor ao próximo é redimensionada, reestruturada, renovada como um amor que abrange até mesmo e principalmente o inimigo, seja pessoal, seja político, que encontra sua prova de força na não resistência ao homem mau, ao “outro”, ao “de fora”, ao estrangeiro: eis aqui um cristianismo lógico, que possui uma coerência interna que todo e qualquer cristianismo eclesiástico nunca poderá vir a obter. Em Jesus não existe mais “eu”, “ele”, “nós”, “vós”, “eles”, em Jesus só existe o amor e os objetos desse amor, somente o Pai [Abba] do céu e os seus filhos. Eis porque, como já havia dito Renan, a mensagem de Jesus não se confunde com uma doutrina, não tem a ver com dogmas, instituições, ritos, sacerdócio, com a aceitação de qualquer absurdidade fictícia, de qualquer fantasmagoria, de uma profissão de fé, de um compromisso, de uma promessa, não, a mensagem de Jesus é a sua vida, é a sua prática, é “um fazer, sobretudo um não-fazer-muitas-coisas.” 1240 É por conta disso que Nietzsche vê nos “cinco mandamentos” que, segundo Tolstói, foram oferecidos por Jesus como meio de se evitar todo tipo de conflito, de resistência ao mal, de defesa, como a descrição mais lógica sobre o modo como o idiota Jesus, um homem-privado, provavelmente agiria por instinto, ou seja, de maneira saudável, como convém a sua constituição, abolindo, com isso, de maneira inconsciente, os próprios alicerces de toda sociedade estatal, do mundo em que habita o homem público, que tem na coerção, na violência organizada 1241 , racional e sistematicamente distribuída, sua base de sustentação. Como declara Nietzsche: Não é uma “fé” que distingue o cristão: o cristão age, ele diferencia-se por agir diferentemente; por não oferecer resistência, em palavras ou no coração, àquele que é mau para com ele; por não fazer diferença entre forasteiros [Fremden] e nativos [Einheimischen], entre judeus e não judeus (“o próximo”, [antes era] na verdade o correligionário, o judeu), por não encolerizar-se com ninguém; por não se deixar ver nem invocar nos tribunais (‘não jurar’ [Mateus, V, 34]); por não separar-se de sua mulher em nenhuma circunstância, mesmo havendo provas de infidelidade da mulher. – Tudo um princípio, no fundo; tudo conseqüência de um instinto. – 1242 1240 Idem. Cf. FP 11 [252] de novembro de 1887 a março de 1888, e Tolstói, Ma religion, p. 49. 1242 AC § 33. 1241 400 A noção de idiota como homem privado, não mais como se ele pudesse escolher não participar dos negócios públicos, mas sim como sendo incapaz de se envolver com os afazeres do Estado, tem na prática de Jesus seu grande exemplo. O fundamento da política está na distinção entre as noções de “amigo” e “inimigo” 1243 : aquele que não reconhece a noção de inimigo, não vê necessidade de proteção, de defesa, ele não reconhece nenhuma posse como sendo sua, nem mesmo o seu corpo ou sua vida, nem sua esposa, seus filhos, seus vizinhos, sua casa, seu território, sua nação, seu país, ele não tem propriedade, ele é privado, está fora da esfera política, ele desconhece toda e qualquer instituição cujo objetivo é a proteção da propriedade: o juramento, o voto, os tribunais, o exército. 1244 É por isso que, em sua investigação, Nietzsche não está preocupado com o Jesus histórico, quem realmente foi esse homem, em que cidade ele nasceu, em que ano exatamente, quem foi o seu pai, qual a sua árvore genealógica, o que ele realmente fez, o que ele realmente disse, que palavras usou, quem foram os seus amigos, qual a sua relação com a sua família, se ele teve irmãos, como se deu sua educação, se ele teria viajado para além da Palestina, quem foram os seus seguidores, se ele foi um discípulo de João, como ele morreu, por que se acreditou que ele ressuscitou, o que houve com o seu corpo, etc., etc. Se o objeto de investigação de Nietzsche é o Jesus histórico, por que ele não faz uma única referência arqueológica, uma única referência a textos autenticamente históricos como, por exemplo, aos de Josefo? Não há qualquer menção a escritos apócrifos, qualquer análise mais minuciosa da situação econômica, da situação política em que Jesus viveu (ou seja, sobre a relação entre a Palestina e o Império). Strauss e Renan fazem isso constantemente, nisso consiste as ferramentas do labor histórico. É claro que Nietzsche inaugura uma nova noção de história, mas, em nossa interpretação, mesmo essa nova maneira de se fazer 1243 Cf., nesse sentido, Schmitt, Carl. La notion du politique. Traduction d’Marie-Louise Steeinhausen. Paris: Flammarion, 1992: “Um mundo onde a eventualidade da luta [armada] tiver sido inteiramente afastada e banida, um planeta definitivamente pacífico será um mundo sem discriminação de amigo e inimigo e por conseqüência um mundo sem política” (p. 93). 1244 “Depuis mon enfance jusqu’a l’âge viril, on m’a appris à vénérer ce qui est en contradiction flagrante avec la loi de Jésus: Riposter à l’agresseur, se venger; par la violence pour offenses contre ma personne, ma famille et mon peuple. [...] Tout ce qui m’entoure: ma sécurité et celle de ma famille, ma propriété, tout cela reposait donc sur une loi réprouvée par Jésus, sur la loi: ‘Dent pour dent’. [...] Je ne voyais pas qu’il était impossible de confesser Jésus-Christ, Dieu, dont la doctrine a pour base: ‘Ne résistez pas au méchant’, et en même temps de travailler avec préméditation a l’organisation de la propriété, des tribunaux, de l’État, des armées, – d’organiser, en un mot, une existence contraire à la doctrine de Jésus” (Tolstói, Ma religion, p. 20). 401 história não ajudaria muito aqui por conta da corrupção psicológica dos Evangelhos, por conta desse atentado incomparável contra todo o sentido histórico. De qualquer modo, 25 anos antes de escrever O Anticristo, Nietzsche declarou a Overbeck, em uma discussão sobre Vie de Jésus de Renan: “Escrever uma biografia de Jesus é uma aberração pela simples razão de que não se pode escrever a biografia de uma vida cuja tradição, excetuando poucas notas, compreende, com toda a probabilidade, o período de apenas um ano”. 1245 E já no calor de sua recente releitura do livro de Renan, Nietzsche expressa a Overbeck, agora em uma carta de 23 de fevereiro de 1887, a intuição de que talvez não seja somente uma história de Jesus que se mostre impossível de ser escrita: Neste inverno eu li também as Origines de Renan, com muita malícia e – pouco proveito. Toda essa história das condições e dos sentimentos da Ásia Menor me parece comicamente suspensa no ar. Finalmente, minha desconfiança chega a se perguntar se a história é em geral possível. O que se quer estabelecer? – algo que, no momento em que o evento ocorreu, não tinha nenhuma estrutura própria “estabelecida”? 1246 Essas declarações de Nietzsche reforçam a hipótese de que, na interpretação que Nietzsche faz da figura de Jesus, os aspectos tipológicos devem se sobressair aos biográficos-históricos. Isso não significa, naturalmente, que Nietzsche negue a existência do Jesus histórico: a questão também não está relacionada a isso. O que importa para Nietzsche é entender a possibilidade de um tipo, de uma realidade psicológica possível a todo instante, que sempre foi e sempre será historicamente possível. Talvez, nos Evangelhos, esse tipo possa ainda ser encontrado, por ter sido conservado, transmitido; talvez ele tenha sido salvo da corrupção psicológica, herança do código sacerdotal, posta em prática ali. O Jesus histórico (caso ele tenha mesmo existido, se é que isso de fato possa ter alguma relevância) provavelmente foi um representante de um tal tipo psicológico. Qualquer um pode ser um portador da boa nova, um alegre mensageiro, todo aquele que sente e age como Jesus é um filho de Deus como ele: 1245 1246 Apud Sommer, Op. Cit., p. 286. Carta a Franz Overbeck de 23 de fevereiro de 1887. 402 É absurdamente falso ver numa “fé”, na crença da Redenção através de Cristo [Erlösung durch Christus] 1247, por exemplo, o distintivo do cristão: apenas a prática cristã, uma vida tal como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã... Ainda hoje uma vida assim é possível, para determinadas pessoas é até necessário: o cristianismo [Christenthum] autêntico, original sempre será possível... 1248 O cristianismo [Christenthum] é ainda possível a todo instante... [...] Quem disser “eu não quero ser soldado”, “eu não me ocupo com os tribunais”, “eu não requisito os serviços da polícia” – esse será cristão... “Eu não quero nada que possa prejudicar a paz em mim mesmo: e se eu devo sofrer nada me conservará melhor a paz do que o sofrimento”... 1249 A boa nova de Jesus é de que, mediante a prática do amor incondicional, homem e Deus não se encontram separados por nenhum abismo, as noções de pecado, castigo, recompensa, juízo, salvação, redenção dos pecados já não fazem mais qualquer sentido, já nem mesmo existem: “Não se acha, em toda a psicologia do ‘evangelho’, o conceito de culpa e castigo; nem o conceito de recompensa. O ‘pecado’ qualquer relação distanciada entre Deus e homem, está abolido – justamente isso é a ‘boa nova’.” 1250 O portador da boa nova, o alegre mensageiro assevera que tudo se cumpriu, já não há tarefas, não há mais necessidade de ritos, de oração, de intermediação: “somente a prática evangélica conduz a Deus, ela justamente é Deus”. 1251 A morte de Jesus nada mais é do que o cumprimento dessa mesma prática: “A vida do redentor não foi senão essa prática – sua morte também não foi senão isso...” 1252 Ele não morreu por seus pecados, pelos pecados da humanidade, para salvar, redimir quem quer que seja – a noção de culpa, seja a sua, seja a da humanidade, nunca roçou nem levemente seu ser: “Acertou contas com a doutrina judaica de penitência e reconciliação; sabe que apenas com a prática da vida alguém pode sentir-se ‘divino’, ‘bem aventurado’, ‘evangélico’, a qualquer momento um ‘filho de Deus’”.1253 Ele nem mesmo decidiu, em última instância, ir ao encontro da morte resignadamente, porque a morte não faz parte do 1247 “Salvação” em PCS. AC § 39. 1249 FP 11 [365] de novembro de 1887 a março de 1888. 1250 AC § 33. 1251 Idem. 1252 Idem. 1253 Idem. 1248 403 seu mundo, ele desconhece a noção fisiológica de morte, o mesmo no que se refere a uma outra vida, ao além (a crença em uma vida após a morte era, de todo modo, estranha ao judaísmo). Ele só conhece sua alegria, sua bem-aventurança, e ela é eterna, não se encontra aprisionada pelas noções de tempo e espaço: “Todo o conceito de morte natural está ausente no evangelho: a morte não é uma ponte, uma passagem, ela não está presente, pois pertence a um mundo inteiramente outro, apenas aparente, útil apenas para signos. A ‘hora da morte’ não é um conceito cristão – a ‘hora’, o tempo, a vida física e suas crises não chegam a existir para aquele que ensina a ‘boa nova’...” 1254 O que Jesus oferece com sua prática, com o exemplo de sua morte, não é a promessa de uma felicidade futura, não é sobretudo uma promessa, e sim algo dado: a paz da alma, a beatitude, o reino de Deus. Não obstante, é com sua morte e por conta dela que se tem início a falsificação de sua mensagem entendida não mais como prática, e sim como doutrina, como “verdade revelada”, como promessa. Nietzsche afirma que o pressuposto para se identificar o tipo psicológico do redentor é entender que esse tipo “nos foi conservado apenas numa grande distorção”. 1255 Com Strauss Nietzsche constatou que os Evangelhos não são documentos históricos, que eles contêm uma série de contradições, que eles adulteraram a história de Jesus mediante a criação de uma “mitologia” do que significou sua vida e obra. Todavia, para Nietzsche, aqui não há nenhuma mitologia criada por uma tradição, apenas uma falsificação, uma “lenda de santo”, perpetrada, inicialmente, pelo espírito de propagando dos correligionários de Jesus, e, em seguida, de modo ainda mais grave, pelo farisaísmo de Paulo. Foi somente com a morte de Jesus, “essa morte inesperada, ignóbil”, com o paradoxo da cruz, com essa sentença de morte “geralmente reservada para a canaile”, que os apóstolos passaram a interpretar como um fracasso o empreendimento ao qual se associaram, transportando para o tipo do alegre mensageiro tudo aquilo que contraria seu instinto mais básico, ou seja, a revolta, a rebelião, a vingança, o ressentimento, o ódio: “– O destino do evangelho foi decidido com a morte – foi pendurado na ‘cruz’...” 1256 É aqui que a inépcia de Renan em questões psicológicas se revela: ele acreditou ver nessas traduções feitas de Jesus pelo cristianismo eclesiástico, as alterações, as transformações, as mudanças 1254 AC § 34. AC § 31. 1256 AC § 34. 1255 404 as evoluções, as catástrofes que constituiriam a história dessa “alma”. Os primeiros apóstolos, por exemplo, não se contentaram até fazerem desse tipo algo que pudessem compreender: “O profeta, o Messias, o futuro juiz, o pregador de moral, o fazedor de milagres, João Batista – são sempre ocasiões para desconhecer o tipo...” 1257 Renan só conseguiu ler, em tal tradução, uma mudança operada na alma de Jesus ao entrar em contato com a incredulidade de Jerusalém. De fato, como Nietzsche observa, esses dois tipos, esses “dois Jesus” coexistem nos Evangelhos, mas são sintomas de dois corpos distintos, de duas vontades distintas, do idiota e do ressentido; um Jesus querelante, hostil, revolucionário, só pôde ser concebido quando o ressentimento dos apóstolos dele teve necessidade: No momento abre-se uma contradição entre o pregador da montanha, do lago e do prado, cuja aparição faz pensar num Buda sobre um solo bem pouco indiano, e o fanático da agressão, o inimigo mortal dos teólogos e sacerdotes, que a malícia de Renan glorificou como le grand maître en ironie. 1258 Eu mesmo não duvido que essa generosa mediada de fel (e mesmo de esprit) tenha transbordado para o tipo do mestre somente a partir do agitado estado de propaganda cristã: conhecese muito bem a inescrupulosidade dos sectários em confeccionar sua própria apologia com base no mestre. “Quando a primeira comunidade necessitou, contra os teólogos, de um teólogo julgador, querelante, colérico, maldosamente sutil, criou para si seu “deus”, conforme sua necessidade: tal como lhe pôs na boca, sem hesitar, os conceitos inteiramente não evangélicos que então não podia dispensar, “o Advento”, “o Juízo Final”, toda espécie de expectativa e promessa temporal. – 1259 Jesus, enquanto um tipo idiota, não poderia ser colérico, agressivo, irônico, seu condicionamento fisiológico não permitiria, isso seria contradizer sua boa nova, sua prática de não resistência; qualquer conflito desse tipo seria azo para a dor, para o sofrimento, para 1257 AC § 31. “Mais il était juste aussi que ce grand maître en ironie payât de la vie son triomphe” ( Renan, Vie de Jésus, Chap. XX, “Progression croissante d’enthousiasme et d’exaltation”, p. 205). “‘ce grand maître en ironie’ Renan findet es billig, daß er diesen Triumph mit dem Leben zahlte” (FP 11 [385] de novembro de 1887 a março de 1888). 1259 Renan fala exatamente de Jesus como uma espécie de Buda no capítulo X, de Vie de Jésus, intitulado justamente “Prédications du lac”, ou seja, O Jesus-Buda é aquele de seus primeiros dias de pregação, ainda na Galiléia: “C’est surtout dans la parabole que le maître excellait. Rien dans le judaïsme ne lui avait donné le modèle de ce genre délicieux. C'est lui qui l'a créé. Il est vrai qu'on trouve dans les livres bouddhiques des paraboles exactement du même ton et de la même tacture que les paraboles évangéliques Mais il est difficile d'admettre qu'une influence bouddhique se soit exercée en ceci. L'esprit de mansuétude et la profondeur de sentiment qui animèrent également le christianisme naissant et le bouddhisme suffisent peut-être pour expliquer ces analogies” (p. 131). 1258 405 sensações desagradáveis que não fazem parte de seu reino de Deus: “Sou contra, repito, a inclusão do fanático no tipo do redentor: o termo impérieux, empregada por Renan anula por si só o tipo.” 1261 1260 , já Todas essas contradições são frutos da corrupção operada em torno de sua figura, cuja maior comprovação são os próprios Evangelhos. Depois dos apóstolos e da comunidade inicial, foi a vez de Paulo traduzir Jesus de acordo com suas próprias necessidades, inventado para si um novo Deus, o “Crucificado”, o “Redentor”, o “Salvador” da humanidade, o “cordeiro de Deus”, o “Unigênito de Deus” que se sacrificou para pagar nossos pecados e nos oferecer uma nova vida, não uma vida no amor sem subtração, em um reino de Deus cuja glória emana diretamente do coração, mas sim uma vida no “além”, num “Paraíso”, na “Eternidade”. Contudo, nada disso tem a ver com a morte de Jesus. Ele nem mesmo morreu porque quis, ele morreu porque não saberia, porque não “queria”, porque não poderia resistir. Ele morreu no Paraíso, ele sempre esteve lá, ele nunca saiu de lá. Seu reino de fato não era desse mundo, ele nem soube o que era “mundo”, tudo se resumia para ele em suas experiências mais íntimas, em seu reino de Deus; o caminho para esse reino é o amor incondicional, pelo inimigo, pelas excitações, ou seja, pelas sensações que lhe são insuportavelmente dolorosas, pela dor em si, pelo malvado, pelo mal; todo aquele que age e sente assim, não precisa esperar nenhum advento, nenhum grande acontecimento, nenhuma redenção, por mil anos, pois ele já se tornou uma criança, um filho de Deus, ele já está no Paraíso, eis aí o seu reino de Deus, em seu coração, iluminando todo o seu ser: Esse “portador da boa nova” morreu como viveu, como ensinou – não para “redimir os homens”, mas para mostrar como se deve viver. A prática foi o que ele deixou para a humanidade: seu comportamento ante os juízes, ante os esbirros, ante os acusadores e todo tipo de calúnia e escárnio – seu comportamento na cruz. Ele não resiste, não defende o seu direito, não dá um passo para evitar o pior, mais ainda, ele provoca o pior... E ele pede, ele sofre, ele ama com aqueles, naqueles que lhe fazem mal... As palavras que ele diz ao ladrão na cruz contêm todo o evangelho. “Este foi verdadeiramente um homem divino, um ‘filho de Deus’” – diz o ladrão. “Se sentes isso” – responde o redentor [Erlöser] 1262 –, “então estás no paraíso, és também um filho de Deus...” Não 1260 Cf. “Ce jeune Juif, à la fois doux et terrible, fin et impérieux, naïf et profond, rempli du zèle désintéressé d’une moralité sublime et de l’ardeur d’une personnahté exaltée, a bel et bien existé” (Renan, Les Évangiles. In: Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, Vol. 2, 1995, p. 326). 1261 AC § 32. 1262 “Salvador” em PCS. 406 defender-se, não encolerizar-se, não atribuir responsabilidade... Mas tampouco resistir ao mau – amá-lo... 1263 Não resistir, amar a todos sem exceção, mediante essa prática um tipo como Jesus se sente preenchido por um sentimento de profunda beatitude, de eterna alegria. Seu Pai [Abba] do céu nada mais é do que esse sentimento mesmo; a sensação de comunhão direta, imediata, com seu Pai, chama-se Filho. Na boa nova de Jesus, todo aquele que agir como ele, que não resistir ao homem mau, mas amá-lo, amar a dor que ele lhe causa, amá-lo pela dor que ele lhe causa, tornar-se-á um Filho de Deus, compartilhará com ele essa comunicação direta com o Pai: “Que significa ‘boa nova’? A vida verdadeira, a vida eterna foi encontrada – não é prometida, está aqui, está em vocês: como vida no amor, no amor sem subtração nem exclusão, sem distância. Cada um é filho de Deus – Jesus não reivindica nada apenas para si, como filho de Deus cada um é igual ao outro.” 1264 A segunda máxima, que nós denominaremos de “segunda chave” para a compreensão do evangelho, é também uma conseqüência direta de uma hiperexcitabilidade extrema do idiota Jesus. Como descreve Nietzsche na seção 29 de O Anticristo, ao rejeitar a atribuição de gênio que Renan confere a Jesus, diagnosticando o tipo do redentor como idiota e revelando qual a sua realidade fisiológica básica, isto é, uma doentia excitabilidade do sentido do tato: Traduza-se um tal habitus fisiológico [physiologischen habitus] 1265 em sua lógica derradeira – como ódio instintivo a toda realidade [Instinkt-Hass gegen jede Realität], como refúgio no “inapreensível”, no “incompreensível”, como aversão a toda fórmula, todo conceito de tempo e lugar, ao que é sólido, costume, instituição, Igreja, como estar em casa num mundo que já não é tocado por espécie nenhuma de realidade [Realität], um mundo apenas “interior”, 1263 AC § 35. AC § 29. “L’accusation de se faire Dieu ou l’égal de Dieu est présentée, même dans le quatrième Evangile, comme une calomnie des Juifs. Dans ce dernier Evangile, Jésus se déclare moindre que son Père. Ailleurs, il avoue que le Père ne lui a pas tout révélé. Il se croit plus qu’un homme ordinaire, mais séparé de Dieu par une distance infinie. Il est fils de Dieu; mais tous les hommes le sont ou peuvent le devenir à des degrés divers. Tous, chaque jour, doivent appeler Dieu leur père; tous les ressuscites seront fils de Dieu. La filiation divine était attribuée, dans l’Ancien Testament, à des êtres qu’on ne prétendait nullement égaler à Dieu. Le mot ‘fils’ a dans les langues sémitiques et dans la langue du Nouveau Testament, les sens figurés les plus larges” (Renan, Vie de Jésus, Chap. XV, p. 164). “Daß er Gott sei, gottgleich sei, war als Verleumdung der Juden dargestellt (vgl. Johannes V, 18; X, 33). Er ist weniger als der Vater: der Vater hat ihm nicht Alles offenbart. Er wehrt sich, gottgleich genannt zu werden. Er ist Gottes Sohn: alle können es werden (— so ist es jüdisch: die göttliche Sohnschaft wird mehreren Personen im alten Testament zugetheilt, von denen man durchaus nicht prätendirt, daß sie gottgleich sind) ‘Sohn’ in den semitischen Sprachen ist ein äußerst vager, freier Begriff” (FP 11 [389] de novembro de 1887 a março de 1888). 1265 PCS traduz “physiologischen habitus” por “habitus psicológico”. 1264 407 “verdadeiro”, “eterno”... “O reino de Deus está em vós” [“Das Reich Gottes ist in euch”]... A noção de que um reino de Deus – ou seja, de que uma realidade psicológica em que o sujeito se sentiria imerso em uma felicidade indescritível, sublime, como se ele fosse tomado, ou melhor, preenchido mesmo por uma força sagrada – pudesse estar ao alcance de determinadas constituições fisiológicas notadamente enfermas, como conseqüência mesmo desse seu condicionamento fisiológico degenerado, foi encontrada por Nietzsche na obra Os demônios, de Dostoiévski, na descrição feita pelo personagem Kirílov, um provável epiléptico, da sensação de harmonia eterna que freqüentemente invadia o seu ser: Existem segundos – apenas uns cinco ou seis simultâneos – em que você sente de chofre a presença de uma harmonia eterna plenamente atingida. Isso não é da terra; não estou dizendo que seja do céu, mas que o homem não consegue suportá-lo em sua forma terrestre. Precisa mudar fisicamente ou morrer. É um sentimento claro e indiscutível. É como se de súbito você sentisse toda natureza e dissesse: sim isso é verdade! Deus, quando estava criando o mundo, no fim de cada dia da criação dizia: “É, isso é verdade, isso é bom”. Isso... isso não é enternecimento, mas algo assim... uma alegria. Você não perdoa nada porque já não há o que perdoar. Não é que você ame – oh, a coisa está acima do amor! O mais terrível é que é extraordinariamente claro e há essa alegria. Se passar de cinco segundos a alma não suportará e deverá desaparecer. Nesses cinco segundos eu vivo uma existência e por eles dou toda a minha vida porque vale à pena. Para suportar dez segundos é preciso mudar fisicamente. Acho que o homem deve deixar de procriar. Para que filhos, para que desenvolvimento se o objetivo foi alcançado? No Evangelho está escrito que na ressurreição não haverá partos, serão como anjos de Deus. Uma alusão 1266 1266 Dostoiévski, Os demônios, pp. 571-572. Na tradução francesa lida por Nietzsche: “– Il y a des moments, – et cela ne dure que cinq ou six secondes de suite, où vous sentez soudain la présence de l’harmonie éternelle. Ce phénomène n’est ni terrestre, ni céleste, mais c’est quelque chose que l’homme, sous son enveloppe terrestre, ne peut supporter. Il faut se transformer physiquement ou mourir. C’est un sentiment clair et indiscutable. Il vous semble tout à coup être en contact avec toute la nature, et vous dites: Oui, cela est vrai. Quand Dieu a créé le monde, il a dit à la fin de chaque jour de la création: ‘Oui, cela est vrai, cela est bon.’ C’est... ce n’est pas de l’attendrissement, c’est de la joie. Vous ne pardonnez rien, parce qu’il n’y a plus rien à pardonner. Vous n’aimez pas non plus, oh! ce sentiment est supérieur à l’amour! Le plus terrible, c’est l’effrayante netteté avec laquelle il s’accuse, et la joie dont il vous remplit. Si cet état dure plus de cinq secondes, l’âme ne peut y résister et doit disparaître. Durant ces cinq secondes, je vis toute une existence humaine, et pour elles je donnerais toute ma vie, car ce ne serait pas les payer trop cher. Pour supporter cela pendant dix secondes, il faut se transformer physiquement. Je crois que l’homme doit cesser d’engendrer. Pourquoi des enfants, pourquoi le développement si le but est atteint? Il est dit dans l’Évangile qu’après la résurrection on n’engendrera plus, mais qu’on sera comme les anges de Dieu. C’est une figure.” (Les Possédés, Tome second, pp. 303-304). Na tradução feita por Nietzsche: “Fünf, sechs Sekunden und nicht mehr: da fühlt ihr plötzlich die Gegenwart der ewigen Harmonie. Der Mensch kann, in seiner sterblichen Hülle, das nicht aushalten; er muß sich physisch umformen oder sterben. Es ist ein klares und indiskutables Gefühl. Ihr scheint euch in Contakt mit der ganzen Natur und ihr sagt: „Ja, dies ist wahr!“ Als Gott die Welt geschaffen hatte, sagte er am Ende jedes Tags: „Ja, dies ist wahr, dies ist gut!“ Das ist nicht Rührung, das ist Freude. Ihr verzeiht nichts, weil es nichts zu verzeihen giebt. Ihr liebt nicht mehr — oh, dies Gefühl ist höher 408 Verifica-se que, para Dostoiévski, o estado de debilitamento, de enfermidade, de miséria corporal é o preço a se pagar pela sensação de harmonia eterna, uma alegria tão indescritível, uma sensação tão sublime, uma experiência tão divina que o homem tem que mudar fisicamente para experimentá-la. No entanto, para Nietzsche, um homem só poderia experimentar tal sublime experiência como conseqüência de uma hiperexcitabilidade extrema, é tal realidade fisiológica que faz com que ele “decida” não mais resistir às excitações externas, não mais enfrentar os obstáculos, não mais responder aos estímulos, voltando-se para o seu interior, e descobrindo que lá se encontra a fonte de sua felicidade, não no prazer que a sensação de aumento de poder que advém da superação de obstáculos fornece ao homem elevado, mas no amor, ou melhor, em algo que está até mesmo para além do amor. Nietzsche conclui, então, que esta é a mesma experiência que explica a realidade evangélica vivida por Jesus. Ora, mas Renan já havia dito algo semelhante. Nietzsche relê Renan um pouco depois de ler Os demônios, e, em um dos seus extratos, anota: “‘O reino de Deus esta no meio de nós’ Luc, 17, 20”. 1267 Nietzsche muito provavelmente fez essa anotação durante a leitura do capítulo XI de Vie de Jésus (o fragmento anterior, 11 [391] de novembro de 1887 a março de 1888, que versa sobre a identificação de “céu” e “Deus” na linguagem rabínica, é um extrato direto deste mesmo capítulo). Não obstante, o filósofo traduz esse versículo de modo diferente da tradução feita por Renan: “‘Le royaume de Dieu est parmi vous’ , disait-il à ceux qui cherchaient avec subtilité des signes extérieurs de sa venue future.” 1268 Contudo, é bem possível que Nietzsche faça essa alteração buscando acompanhar um parecer do próprio Renan em uma nota a essa passagem: “La traduction ‘au-dedans de vous’ est moins exacte, bien qu’elle ne als die Liebe. Das schrecklichste ist die schauerliche Bestimmtheit, mit der es sich ausdrückt und die Freude, mit der es erfüllt. Wenn das länger dauerte, könnte die Seele es nicht aushalten, sie müßte verschwinden — In diesen 5 Sekunden lebe ich eine ganze Menschen-Existenz, für sie würde ich mein ganzes Leben geben, es wäre nicht zu theuer bezahlt. Um dies länger zu ertragen, müßte man sich physisch transformiren. Ich glaube, der Mensch hört auf zu zeugen. Wozu Kinder, wenn das Ziel erreicht ist? — Verständniß des AuferstehungsSymbols: „Nach der Auferstehung wird man nicht mehr zeugen, man wird sein, wie die Engel Gottes“ d.h. das Ziel ist erreicht: wozu Kinder?… Im Kinde drückt sich die Unbefried<igun>g des Weibes aus…” (FP 11 [337] de novembro de 1887 a março de 1888). 1267 “‘Das Reich Gottes ist unter uns’ Luc. 17, 20” (FP 11 [392] de novembro de 1887 a março de 1888). 1268 Renan, Vie de Jésus, Chap. V, “Premiers aphorismes de Jésus”, p. 92, grifo nosso. 409 s’écarte pas de la pensée de Jésus en cet endroit.” 1269 E, em O Anticristo, o filósofo já opta pela tradução “o reino de Deus está em vós” 1270, que, por mais que não seja a tradução mais correta com relação aos textos evangélicos, é aquela que está mais de acordo com o evangelho de Jesus, com sua prática de não resistência, com os seus “cinco mandamentos”, e, por conseqüência, com sua realidade fisiológica que se traduz por uma irritabilidade mórbida. O motivo que leva Renan a afirmar que a tradução “o reino de Deus está dentro de vós” é aquela que está mais próxima do ideal de Jesus, é exposto por ele na seguinte passagem: Heureux qui a pu voir de ses yeux cette éclosion divine, et partager, ne fût-ce qu’un jour, cette illusion sans pareille! Mais plus heureux encore, nous dirait Jésus, celui qui, dégagé de toute illusion, reproduirait en lui-même l’apparition céleste, et, sans rêve millénaire, sans paradis chimérique, sans signes dans le ciel, par la droiture de sa volonté et la poésie de son âme, saurait de nouveau créer en son cœur le vrai royaume de Dieu! 1271 Para Renan, portanto, o reino de Deus como um estado do coração seria um ideal elaborado por um gênio original, para Nietzsche, em contrapartida, essa experiência não é um ideal, não é uma obra de um gênio, é uma conseqüência de uma constituição fisiológica enferma, de um sujeito portador de idiotia. Um tal sujeito se vê impedido, por conta de sua hiperexcitabilidade extrema, de entrar em contato com a realidade, com algo sólido, com algo fixo, isso significa, em última instância, que ele não chegou a saber o que vem a ser Estado, ciência, civilização, arte, comércio, mito, tradição, religião; a noção de cultura que faz parte da realidade básica do homem público lhe é desconhecida. Jesus vive num mundo próprio, num mundo privado, imerso em sentimentos interiores, um mundo do inapreensível, em que não há superfícies que possam provocar atrito, por isso, a tentativa de concebê-lo como um gênio é uma incongruência, uma ingenuidade psicológica: “– E que mal-entendido é sobretudo a palavra ‘gênio’! Todo o nosso conceito, nosso conceito cultural de ‘espírito’ não tem qualquer significado no mundo em que Jesus vive”. 1269 1272 O Renan, Vie de Jésus, Chap. V, “Premiers aphorismes de Jésus”, p. 92, nota 2. Cf. AC § 29. 1271 Renan, Vie de Jésus, Chap. XI, p. 142. 1272 AC § 29. A tradução dessa passagem foi modificada. Na tradução de Paulo César de Souza, a passagem ficou da seguinte maneira: “Nada de nosso conceito de ‘gênio’, um conceito de nossa cultura, tem algum 1270 410 reino de Deus encontrado por Jesus é um estado do coração porque esse tipo só pode lograr alcançar um estado de beatitude em sua própria intimidade, porque ele é incapaz de resistir, sua vontade de poder alquebrada não poderia se efetivar por meio do combate, da luta, da resistência, do domínio (nem mesmo pelo domínio de si), da superação, mas somente por meio do amor. Por esse motivo, Nietzsche concorda com Renan, ainda que por diferentes razões, que essa noção de reino de Deus (que, para o historiador, pertence ao Jesus mestre do lago e não ao Jesus revolucionário ou ao Jesus reformador universal), não tem a ver com nenhum tipo de esperança milenar, com a fundação de um reino terrestre, ou com algo que se localize em outro plano de existência, numa vida após a morte, num além, e sim com uma realidade psicológica: “O ‘reino do céu’ é um estado do coração – não algo que virá ‘acima da Terra’ ou ‘após a morte’ [...] O ‘reino de Deus’ não é nada que se espere; não possui ontem nem depois de amanhã, não virá em ‘mil anos’ – é a experiência de um coração; está em toda parte, está em nenhum lugar...” 1273 A linguagem de um tal tipo psicológico também é definida a partir de seu condicionamento fisiológico: “Essa fé se opõe a fórmulas”. 1275 1274 também não formula a si mesma – ela vive, ela Isso porque uma fórmula é algo fixo, algo que provocaria, portanto, um doloroso atrito. A linguagem do idiota é também privada, original, própria, provinda de seu mundo interior e das sensações que daí decorrem, por isso flutuante, leve, flexível, indolor. “– Seria possível”, arrisca-se Nietzsche, “com alguma tolerância de expressão, chamar Jesus um ‘espírito livre’ – ele não faz caso do que é fixo: a palavra mata, sentido no mundo em que vive Jesus” (p. 36). No original alemão está: “Unser ganzer Begriff, unser CulturBegriff ‘Geist’ hat in der Welt, in der Jesus lebt, gar keinen Sinn” (KSA 6, p. 200). Neste caso, acreditamos que a tradução de PCS acabou substituindo equivocadamente o termo “espírito” por “gênio”. Na mais recente tradução brasileira do Anticristo, feita por Zwick, a palavra foi corretamente traduzida: “Todo o nosso conceito de ‘espírito’, um conceito de nossa cultura, não tinha qualquer sentido no mundo em que Jesus vivia”. Entretanto, a tradução de Zwick se equivoca ao colocar no passado (“vivia”), o verbo “leben” conjugado por Nietzsche no presente (“lebt”). Neste aspecto, a tradução de Paulo César de Souza é correta. 1273 AC § 34. “O reino do céu é um estado de coração (– é dito das crianças ‘que o reino do céu lhes pertence’); nada disso está ‘acima da terra’. O reino de Deus ‘vem’ não no sentido cronológico-histórico, nem após o calendário, nem como alguma coisa que será um dia, mas que ainda não é: mas é uma ‘modificação do sentido no indivíduo particular’, qualquer coisa que chega a todo o momento e que em nenhum momento ainda não se encontra lá...” (FP 11 [354] de novembro de 1887 a março de 1888) “[...] de uma realidade psicológica se forma uma crença, a espera de uma realidade que deveria surgir a qualquer momento, ‘um retorno’” (FP 11 [383] de novembro de 1887 a março de 1888). 1274 Nietzsche se refere apenas provisoriamente aqui a boa nova de Jesus como uma sendo uma “fé”, e não uma prática. 1275 AC § 32. 411 tudo o que é fixo mata [2 Coríntios, 3, 6]”. 1276 Nesse aspecto, Nietzsche se aproxima de Renan, já que para o historiador o ideal que Jesus concebeu não poderia ser expresso sob a forma da linguagem denotativa. 1277 Não obstante, Nietzsche não atribui isso à “natureza elevada” do “ideal” de Jesus, pois, para ele, Jesus não era um gênio, não tinha qualquer conhecimento no campo do “espírito”, tudo que conhecia eram sensações internas, movimentos interiores. Jesus é aqui chamado de “espírito livre” apenas de modo provisório, porque essa sua “liberdade” não provém de um excesso de força, mas sim de sua idiotia, de uma compleição fisiológica degenerada. Ademais, Nietzsche vai mais longe com o simbolismo de Jesus, chegando a abarcar nele expressões típicas do Evangelho de João (livro execrado por Renan como aquele que mais deliberadamente inventou expressões que eram totalmente estranhas a Jesus), como se vê na seguinte passagem: “Ele fala apenas do que é mais íntimo: ‘vida’, ‘verdade’, ‘luz’1278 é sua palavra para o que é mais íntimo – todo o resto, a realidade inteira, toda a natureza, a própria linguagem, tem para ele apenas o valor de um signo, de uma metáfora”. 1279 Assim, o que Renan atribuía à obra do gnosticismo infiltrado nos ensinamentos de Jesus, Nietzsche confere à experiência de homem privado do Galileu, para quem apenas “luzes” interiores faziam sentido. Palavras tais como “Pai”, “Filho”, “Filho do Homem”, “Messias”, eram, de acordo com Nietzsche, utilizadas por Jesus sem qualquer precisão farisaica, constituindo apenas símbolos usados por ele para falar de sensações abrigadas no seu coração, no interior de seu “reino de Deus”. “Mas guardemo-nos”, assevera Nietzsche, “de ver nisso mais do que uma linguagem de sinais, uma semiótica, uma ocasião para metáforas. Para esse antirealista, a precondição para poder falar é justamente que nenhuma palavra seja tomada literalmente”. 1280 O que determina os caracteres utilizados por esse simbolista é a sua formação prévia no interior do sistema conceitual judaico, em um outro ambiente, outros sinais lingüísticos 1276 Ibidem. Cf. Renan, Vie de Jésus, pp. 168-169. Interessante notar também que o príncipe Míchkin de O Idiota lamenta não poder expressar claramente os seus “pensamentos” como eles o merecem e como ele o desejaria (p. 382-383). 1278 “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6). “Eu sou a luz do mundo” (João 8:12). 1279 AC § 32. 1280 AC § 32. 1277 412 seriam postos a seu serviço 1281 ; não há erro maior do que estabelecer dogmas a partir dos signos dos quais ele fez uso livre: Não se pode absolutamente errar nesse ponto, embora seja grande a sedução que há no preconceito cristão, isto é, eclesiástico: um tal simbolismo par excellence está fora de toda religião, de todos os conceitos do culto, toda história, toda ciência natural, toda experiência do mundo, todos os conhecimentos, toda política, toda psicologia, todos os livros, toda arte – seu ‘saber’ é justamente a pura tolice [reine Thorheit] 1282 quanto ao fato de que algo assim existe. 1283 Nessa passagem, fica patente mais uma vez por que Nietzsche considera uma incongruência chamar Jesus de gênio como o faz Renan. Todo o saber cultural, espiritual, é desconhecido por Jesus, ele só conhece suas vivências internas, todo “conceito espiritual” mobilizado por ele não é entendido como tal: “Se entendo algo desse grande simbolista, é que ele tomou apenas realidades internas como realidades, como ‘verdades’ – que entendeu todo o resto, todo natural, temporal, espacial, histórico, apenas como signo, como ocasião para metáforas.” 1284 Como idiota, e não como gênio, Jesus utiliza palavras postas em circulação, palavras da moda até, mas não as compreende como qualquer um, toma-as emprestadas para falar de algo que experimenta em seu interior, em seu mundo privado: Jesus é o contrário de um gênio: é um idiota. Nota-se sua incapacidade para compreender uma única realidade: gira em torno de cinco ou seis conceitos, que outrora tinha ouvido e que pouco a pouco tinha entendido, quer dizer, entendido falsamente – neles têm sua experiência, seu universo, sua verdade – o resto lhe é estranho. Pronuncia palavras usadas por qualquer um – mas não as entende como qualquer um, ele entende somente seus cinco ou seis conceitos vagos. [...] Notase, por outro lado, sua incapacidade para compreender algo espiritual: na sua boca a palavra espírito se converte em um verdadeiro contra senso! Nem o mais leve sopro de ciência, gosto, disciplina espiritual, lógica, chegou até este santo idiota: de igual modo que tampouco a vida lhe tenha tocado. 1285 Dessa forma, Nietzsche atribui a Jesus um tipo de “habilidade” ímpar na arte da comunicação simbólica. Todavia, deve-se evitar toda confusão também aqui: uma coisa é Nietzsche afirmar que Jesus era um simbolista sem igual, outra, totalmente diferente e 1281 Cf. AC § 32; FP 11 [368] de novembro de 1887 – março de 1888. Referência ao Parsifal de Wagner. O músico defendia que a raiz etimológica para “Parsifal” remontava ao árabe, significando “puro tolo”, casto, ingênuo. Cf. nota 74 da tradução de Pascual para O Anticristo. 1283 AC § 32. 1284 AC § 34. 1285 FP 14 [38] da primavera de 1888. 1282 413 equivocada, é dizer que a interpretação que o filósofo faz do tipo do redentor é meramente simbólica. Foi justamente essa descrição da linguagem de Jesus como exclusivamente simbólica que levou Shapiro, entre outros, a privilegiar essa discussão no tema do tipo psicológico do redentor. Contudo, Jesus não procede assim por escolha própria, por uma decisão refletida sobre os limites da linguagem, mas sim, por sua total falta de compreensão de como a linguagem “deve” ser utilizada no mundo da cultura, da função referencial da linguagem. Sua constituição fisiológica só permite apreender parte do que vem a ser ordinariamente a função comunicativa da linguagem, ou seja, daquilo que Nietzsche incita o espírito livre a se libertar, a saber, do “peso da palavra”, Jesus já teria nascido “livre”, no entanto, sem qualquer consciência disso. Seu dialeto é único, só seu, original, exclusivo, um idioma privado, um Idiotikon, como Nietzsche dá a conhecer no seguinte trecho do Caso Wagner em que acusa o músico de seduzir o seu ouvinte para a décadence, para a exaustão de forças: A tal ponto já nos tornamos puros tolos... Jamais houve um mestre maior em vagos aromas hieráticos – jamais viveu um conhecedor igual de todos os ínfimos infinitos, todos os tremores e transes, todos os feminismos do Idiotikon [dialeto próprio] 1286 da felicidade [...] Em nenhuma outra parte acharão modo mais agradável de enervar seu espírito, de esquecer sua virilidade sob um arbusto de rosas... Ah, esse velho mago! Esse Klingsor de todos os Klingsors! Como ele assim faz a guerra contra nós! nós, os espíritos livres! 1287 Verifica-se, portanto, que é somente pelo diagnóstico do tipo psicológico do redentor como idiota, pela descrição de sua realidade fisiológica fundamental como sendo a de uma hiperexcitabilidade exagerada, um condicionamento degenerativo que o deteve em uma fase infantil e que o torna incapaz de resistir ao mau, de lutar, de entrar em conflito, de responder às excitações externas, e que o obriga a voltar-se sobre si mesmo, sobre suas sensações mais íntimas, encontrando sua bem aventurança nesses sentimentos interiores, em seu reino de Deus como amor sem exclusão, que Nietzsche pôde decifrar a alegre mensagem de Jesus, que ele pôde restaurar os traços que lhe foram subtraídos e retirar aqueles que lhe foram acrescentados, que o filósofo pôde reconstituir o verdadeiro 1286 Cf. nota 46 de Paulo César de Souza em CW, p. 86. Souza traduz Idiotikon por “dialeto”, optou-se aqui por conservar o termo original, ver KSA 6, p. 43. 1287 CW, Pós-escrito. 414 significado da mensagem de Jesus, de sua vida e de sua morte. Se, na seção 29 de O Anticristo, Nietzsche apresenta a realidade fisiológica da idiotia de Jesus de modo a já associá-la diretamente à experiência evangélica vivenciada por ele, fazendo, pois, nesse movimento, uma apropriação e uma reconfiguração das teorias de Féré e do conceito nosográfico de idiotia presente na literatura médica do século XIX, na seção 30, por outro lado, o filósofo descreve essa realidade fisiológica de maneira muito mais precisa, rigorosa, “científica”, embora ainda estabelecendo uma relação com o evangelho de Jesus, mais especificamente, com as duas chaves que desvendam o seu significado: O ódio instintivo à realidade [Der Instinkt-Hass gegen die Realität]: conseqüência de uma extrema excitabilidade e sensibilidade à dor [extremen Leid- und Reizfähigkeit] 1288, que não mais quer ser “tocada”, pois sente qualquer toque profundamente demais. A exclusão instintiva de toda antipatia, toda inimizade, todas as fronteiras e distâncias do sentimento [Die Instinkt-Ausschliessung aller Abneigung, aller Feindschaft, aller Grenzen und Distanzen im Gefühl]: conseqüência de uma extrema excitabilidade e sensibilidade à dor [Folge einer extremen Leid- und Reizfähigkeit], que já sente como insuportável desprazer (isto é, como nocivo, como desaconselhado pelo instinto de autoconservação) o opor-se, ter de opor-se, e acha beatitude (prazer) apenas em não resistir mais, a ninguém mais, nem a desgraça, nem ao mal – o amor como única, como última possibilidade de vida... Eis as duas realidades fisiológicas [physiologischen Realitäten] nas quais, a partir das quais cresceu a doutrina da redenção. 1289 É verdade que Nietzsche não fala aqui de uma realidade fisiológica fundamental, mas sim de duas realidades fisiológicas, todavia, essas duas realidades fisiológicas são apresentadas como conseqüências de um mesmo dado fisiológico, a saber, uma hiperexcitabilidade extrema, se utilizarmos a linguagem de Féré, visto que Nietzsche prefere apresentar esse conceito, de acordo com suas próprias necessidades, ou seja, fazendo uma apropriação do mesmo, pela expressão: extrema excitabilidade e sensibilidade à dor. Essas duas realidades fisiológicas podem, pois, ser reconduzidas a uma única realidade fisiológica mais fundamental. Por conseguinte, a prática da não resistência e a 1288 Em PCS: “extrema capacidade de sofrimento e excitação”; em Masini: “conseguenza di una esasperata capacità di sofferenza ed eccitabilità”; em Hémery: “conséquence d’une extreme sensibilité à la douleur et aux excitations” ; em Pascual: “consecuencia de una extrema capacidad de sufrimiento y de excitación”; em Kaufmann: “a consequence of an extreme capacity for suffering and excitement”; em Zwick: “conseqüência de uma extrema suscetibilidade ao sofrimento e à excitação”. Consideramos correta a tradução de PCS, mas optamos por traduzir esses termos de modo a tentar aproximá-los dos conceitos utilizados por Féré, uma tradução mais semelhante à versão italiana. 1289 AC § 30. 415 vivência do reino de deus como um estado do coração são manifestações duplas de uma só realidade fisiológica fundamental. Nietzsche apresenta a hiperexcitabilidade em um duplo aspecto para dar conta de explicar qual a necessidade fisiológica que está por trás de cada uma das duas máximas que desvendam todo o evangelho: elas traduzem, primeiramente, uma prática de vida e, em segundo lugar, a experiência beatífica que resulta dessa prática. Um homem elevado jamais poderia reconhecer nessas máximas o fundamento de sua virtude, pois elas não traduzem uma vida que busca a superação, mas sim a “paz da alma”, mediante a aceitação de sua própria condição degenerada, e, portanto, de sua extinção eminente, encontrando nisso – e somente nisso – a sua bem aventurança. A seção 30 de O Anticristo também enseja uma comparação com outro tipo de bem aventurança para a degenerescência, outra prática de vida que não promete, mas cumpre, a saber: o budismo. Na seção 20 de O Anticristo, Nietzsche faz uma comparação entre o budismo e o cristianismo (eclesiástico), duas religiões niilistas, ambas fruto da décadence, porém, enquanto o cristianismo representa uma religião ressentida, que busca a conservação a todo custo, o budismo é uma religião do cansaço, da maturidade, que procura um meio de ir ao encontro de sua extinção de modo saudável, sem sofrimento, com prazer, excluindo todo sentimento de hostilidade, de ressentimento. Uma comparação entre o budismo e o evangelho de Jesus também é, naturalmente, possível, e o grau de semelhança entre os dois é muito mais significativo, sobretudo porque ambos possuem objetivos muito próximos, embora apresentando razões diferentes: um busca o apaziguamento, o outro, a paz da alma. 1290 A primeira grande semelhança entre o budismo e a alegre mensagem de Jesus está na descrição da realidade fisiológica que condiciona o primeiro, realidade esta que também é apresentada por Nietzsche em um duplo aspecto: – Os dois dados fisiológicos [physiologischen Thatsachen] em que ele repousa e que não perde de vista são: primeiro, uma enorme excitabilidade da sensibilidade [übergrosse Reizbarkeit der Sensibilität], que se exprime como refinada suscetibilidade à dor [raffinirte Schmerzfähigkeit ausdrückt]; depois uma hiperespiritualização, uma demasiada permanência entre conceitos e procedimentos lógicos, na qual o instinto pessoal se prejudicou em favor da coisa “impessoal” (– ambos são estados que ao menos alguns de meus leitores, os “objetivos” como eu mesmo, conhecerão por experiência). A partir dessas 1290 “A prática do cristianismo [evangelho de Jesus] não é uma mera fantasmagoria assim como tampouco o é a do budismo: ela constitui um meio de ser feliz...” (FP 11 [365] de novembro de 1887 a março de 1888). 416 condições fisiológicas surge uma depressão, contra a qual Buda procede higienicamente. 1291 Como se vê, a primeira realidade fisiológica do budismo equivale exatamente à primeira realidade fisiológica do evangelho: é também em uma hiperexcitabilidade extrema que se encontra a gênese de toda a doutrina budista. Entretanto, enquanto a segunda realidade fisiológica do evangelho se traduz em um voltar-se sobre sua própria interioridade, que significa, em última instância, uma fuga no inapreensível em que toda a noção de cultura se encontra ausente, o budismo é fruto, inversamente, de um florescimento cultural que atingiu o seu apogeu, seu grau mais elevado, mais maduro e que, por isso, começa a fenecer. Que significado nós poderíamos abstrair dessa distinção entre a segunda realidade do budismo e do evangelho? Tentaremos lançar uma hipótese que se afasta um pouco de algumas declarações que Nietzsche faz, principalmente em seus fragmentos póstumos, mas que procura se basear em toda a discussão teórica que conduziu ao diagnóstico do tipo psicológico do redentor, qual seja: o evangelho representa uma condição degenerativa congênita de uma forma de vida cujo desenvolvimento foi interrompido ou detido, em outros termos, o evangelho é fruto da idiotia, ele está relacionado com a infância, ainda que se trate de uma infância “anormal”; o budismo, em contrapartida, representa uma condição degenerativa de uma forma de vida que atingiu seu pleno desenvolvimento, em outras palavras, o budismo é fruto da senilidade, ele está relacionado com a velhice, com o cansaço. Isso também significa que, a despeito de ambos serem portadores de uma extrema hiperexcitabilidade, tal sintoma é aí condicionado por dois tipos diferentes de degenerescência, ou seja, por uma puberdade interrompida, em um caso, e pela senilidade, em outro. Tanto o budismo quanto o evangelho brotaram de um ambiente que lhes era propício, ou seja, o primeiro de uma sociedade, de uma civilização que alcançou o seu máximo vigor e agora se debilita, o segundo de uma sociedade apolítica, privada, cujo desenvolvimento foi interrompido (pela queda do Reino) e em que a palavra cultura não faz qualquer sentido. 1292 Todavia, nos fragmentos póstumos, Nietzsche 1291 AC § 20, PCS não traduz “Sensibilität”. A cultura hebraica não teve um amadurecimento, não alcançou a velhice, ela morreu abruptamente quando o reinado ruiu e o seu povo caiu na servidão do exílio, o que sobrou foram os infantes órfãos que os 1292 417 parece ir de encontro a essa hipótese quando fala a respeito da absurda tentativa de se converter os povos germânicos ao evangelho de Jesus: muito estranho! uma beatitude final, pastoral, da tarde [isto é, o evangelho de Jesus], pregada a bárbaros, a germanos! Como foi necessário que tudo fosse desde o início germanizado, barbarizado! pregar àqueles que tinham sonhado com um Walhalla... –: que encontravam toda a felicidade na guerra! – uma religião SUPRAnacional, pregada em pleno caos, onde não existia ainda nenhuma nação – 1293 Não obstante, ao lidar com essa mesma questão na seção 22 de O Anticristo, Nietzsche afirma: “O budismo é uma religião para o final e o cansaço da civilização, o cristianismo ainda não a encontra – funda-a, em determinadas circunstâncias.” Ainda que muito provavelmente Nietzsche esteja se referindo aqui apenas ao cristianismo histórico, talvez se possa arriscar em dizer que, em O Anticristo, essa estranha (dado todo o percurso teórico da investigação do tipo psicológico do redentor) aproximação entre o evangelho e o budismo enquanto religiões do cansaço tenha dado lugar à noção de que o evangelho de Jesus também (assim como o cristianismo histórico) brotou de uma sociedade interrompida, em que uma civilização ainda não teria sido fundada, ao invés de uma sociedade do fim, como no caso do budismo. Outro dado importante para o entendimento do budismo como sendo fruto de uma degenerescência da senilidade e o evangelho como sendo conseqüência de uma degenerescência da puberdade interrompida, em que se permanece preso em uma fase infantil, está na forma como Nietzsche se refere aos povos germânicos, a saber, um povo jovem, cuja degenerescência se encontra no despertar, na irrupção violenta de suas paixões, um povo de homens “interiormente selvagens e dilacerados – o homem forte, mas malogrado” 1294 , um tipo de homem que tem sua fonte de dor na necessidade premente de desafogar suas paixões, “a tensão interior em atos e idéias hostis”. 1295 Para se assenhorar desse tipo de homem, o cristianismo precisou também se barbarizar: “o sacrifício de primogênitos, o ato de beber sangue na ceia, o desprezo do espírito e da cultura; a tortura sacerdotes adotaram. A sociedade judia da diáspora é, dessa forma, uma sociedade apolítica, idiota, interrompida. 1293 FP 11 [370] de novembro de 1887 – a março de 1888. 1294 AC § 22. 1295 Idem. 418 em todas as formas, físicas e não físicas; a grande pompa do culto”. 1296 Ora, se há uma décadence da má-constituição, ligada à infância (idiotia), uma décadence do fim, do cansaço, ligada à velhice (senilidade), e uma décadence da irrupção desmesurada das paixões, ligada à juventude, é possível, então, pensar em tipos de vida ideal (ou seja, em metas, alvos, tarefas, etc.) adequadas a cada uma dessas formas de décadence. Deste modo, não há, em última instância, uma única prática de vida natural e adequada à décadence em geral. Nossa suposição, portanto, é de que o evangelho de Jesus não só não é adequado para nenhum tipo mais elevado de vida, como também não se mostra como algo recomendável para todo e qualquer tipo de décadence, e sim, preferencialmente, para aquela que apontamos como a décadence da má-constituição. Para a décadence do fim, por outra lado, o budismo representa o modelo histórico mais interessante, e, para a décadence da irrupção violenta das paixões, por sua vez, é justamente um Walhalla, uma Ilha dos Bem Aventurados (como Nietzsche aponta no fragmento póstumo 11 [370] de novembro de 1887 – a março de 1888, referido mais acima) aquilo que deveria constituir o sonho 1297 mais almejado. Após a descrição das duas realidades fisiológicas do tipo Jesus, Nietzsche afirma ainda na seção 30 de O Anticristo: Eis as duas realidades fisiológicas nas quais, a partir das quais cresceu a doutrina da redenção. Eu as chamo de um sublime desenvolvimento do hedonismo sobre uma base inteiramente mórbida. A elas estreitamente aparentado, ainda que com generoso acréscimo de vitalidade e energia nervosa grega, é o epicurismo, a doutrina redentora do paganismo. Epicuro é um típico décadent: fui o primeiro a reconhecê-lo como tal. O hedonismo, a doutrina que diz que o objetivo da vida se encontra na busca do prazer, na felicidade, na beatitude, na bem aventurança, é, para Nietzsche, sintoma de uma forma de vida décadent, de uma vontade de poder que declina, de uma hiperexcitabilidade, de um irritabilidade mórbida: “as doenças, e sobretudo as doenças nervosas e mentais, são 1296 Idem. A leitura da obra Skizzen und Vorarbeiten, de Wellhausen, foi de fundamental importância para o entendimento dessa barbarização do cristianismo. Cf. FP’s 11 [287-293]. “Uma religião niilista emanada de um povo de tenacidade senil, conseguiu sobreviver a todos os instintos fortes e assim – transferida pouco a pouco a outros milieux, penetrou enfim entre povos jovens que ainda não haviam vivido –” (FP 11 [370] de novembro de 1887 a março de 1888). 1297 Cf. FP 11 [278] de novembro de 1887 a março de 1888. 419 sinais de que falta a força defensiva da natureza forte; é isto que indica justamente a irritabilidade, de maneira que prazer e desprazer se tornam os problemas primordiais.” 1298 Ora, sendo o evangelho de Jesus “uma conseqüência da vontade de prazer e de nenhuma outra” 1299, Epicuro aparece, para Nietzsche, como a sua contraparte grega 1300, isto é, como a versão grega do modo de vida experimentado e professado por Jesus, “ainda que com generoso acréscimo de vitalidade e energia nervosa grega”. Ora, o fundamento da doutrina de Epicuro está na busca pelo supremo prazer (o que exclui vários prazeres e inclui vários desprazeres). Contudo, para Nietzsche, a busca exclusiva pelo prazer é um claro sintoma de vida degenerada 1301, uma vida ascendente e saudável almeja o prazer e o desprazer em igual medida como condições de superação, deste modo, a dor e o sofrimento passam a ser desejados como estímulos que incitam ao combate e que levam à superação. Em Epicuro, o apogeu do prazer será alcançado quando todas as dores forem eliminadas. Para Nietzsche, entretanto, eliminar a dor é eliminar a vida 1302, já que está inclui necessariamente a dor e o sofrimento como condição de efetivação, como aquilo que a constitui, pois é a partir do enfrentamento com esses fatores que a vida se torna mais, se supera. Aceitar a vida em todos os seus aspectos, incluindo a dor, o sofrimento e a morte é o que Nietzsche denomina afirmação dionisíaca 1303 , reservada apenas às naturezas mais bem constituídas, assim, o autor de Zaratustra afirma que aprendeu “a conhecer gradualmente Epicuro, como o oposto de um grego dionisíaco.” 1304 E, em um fragmento esquemático, Nietzsche anota: A filosofia antiga a partir de Sócrates tem os estigmas da décadence: moralismo e felicidade. O ponto culminante. Pirro. Alcançando o nível do budismo Epicurismo no cristianismo Caminhos da felicidade: signo de todas as forças essenciais da vida esgotada 1305 1298 FP 14 [86] da primavera de 1888. FP 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888. 1300 Sobre o aspecto décadent de Epicuro, cf., por exemplo: FP 14 [99] da primavera de 1888. 1301 Sobre hedonismo, fraqueza, niilismo, pessimismo e décadence, Cf.: FP 9 [107] de outono de 1887; 11 [104] e 11 [112] de novembro de 1887 – março de 1888. 1302 Cf. BM § 225. 1303 Cf. CI, O que devo aos antigos § 5. E também FP 14 [89] da primavera de 1888. 1304 NW, “Nós antípodas”, texto reelaborado por Nietzsche a partir de GC § 370. 1305 14 [87] da primavera de 1888. 1299 420 O cético grego Pirro se torna um personagem atual para Nietzsche durante a primavera de 1888, por conta da leitura que ele faz da obra Les Sceptiques grecs 1306 , de Victor Brochard. A leitura dessa obra por parte de Nietzsche desempenhou um papel importante para a compreensão de que Jesus não havia pregado uma doutrina, mas sim oferecido uma mensagem que estava inteiramente contida em sua prática de vida, de maneira muito semelhante a Pirro e a Epicuro. De acordo com Lopes, é a figura de Pirro que adquire um papel de destaque nos fragmentos póstumos do filósofo, como aquela que mais se aproxima da figura de Jesus. De fato, Brochard declara a respeito de Pirro: “Sa vie, bien plutôt que ses théories, ses actes bien plutôt que ses paroles, sont l’enseignement qu’il a laissé à ses disciples.” 1307 A semelhança dessa afirmação com a maneira com que Nietzsche entende a mensagem de Jesus é patente. A respeito da importância que a figura de Pirro assume nos últimos escritos de Nietzsche, Lopes assevera de maneira formidável: Nietzsche o relaciona a uma galeria de outros personagens pelos quais ele cultiva certa admiração, mas não uma adesão entusiástica: trata-se dos tipos decadentes da história da cultura que não sucumbiram ao equívoco de interpretar moralmente a sua própria décadence, e que justamente por esta razão foram capazes de encontrar a via adequada para lidar com este fenômeno de natureza fisiológica: a via da não oposição, da não resistência; a via do hedonismo em bases mórbidas. Buda, o Jesus histórico, Epicuro e Pirro representam os tipos nobres da décadence. 1308 Todavia, por que Nietzsche teria dado preferência a Epicuro e não a Pirro ao decidir fazer uma aproximação entre o evangelho e o hedonismo grego? De acordo com Lopes, esse seria um movimento meramente estratégico: Nietzsche precisava manter todo o ceticismo, incluindo Pirro, como aliado em sua crítica ao cristianismo como uma falsificação desmedida da realidade.1309 Não obstante, esclarece Lopes, na interpretação que Nietzsche faz da realidade evangélica vivenciada por Jesus em O Anticristo, há pelo menos 1306 Cf. Brochard, Victor. Les sceptiques Grecs. Paris: Imprimerie Nationale, 1886. Brochard, Les sceptiques Grecs, p. 67. 1308 Lopes, Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche, p. 546. Em nossa interpretação, a definição: “tipos nobres da décadence”, não é a mais adequada para se referir ao papel que as figuras de Jesus, Buda, Pirro e Epicuro exercem no interior do projeto filosófico de Nietzsche. Em nossa proposta interpretativa, preferimos adotar a definição provisória (admitindo, porém, seu caráter igualmente problemático): “tipos ideais da décadence”. Com o termo “ideal” queremos nos referir tão somente aquilo que deveria ser tido como o alvo da décadence, ou ainda, à prática de vida mais adequada à décadence. 1309 Cf. Lopes, Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche, p. 547. 1307 421 dois elementos fundamentais que são claramente inspirados pela leitura que o filósofo faz de Pirro por intermédio de Brochard, a saber: o desprezo pela dialética, pela demonstração, pela fórmula e uma mensagem entendida não como doutrina, mas como prática. 1310 Nietzsche encerra a seção 30 de O Anticristo com a seguinte declaração, que reforça a tese de que o evangelho de Jesus é conseqüência de uma hiperexcitabilidade extrema e de uma vontade de prazer própria da fraqueza: “– O medo da dor, até do infinitamente pequeno na dor – não pode acabar de outro modo que não numa religião do amor...” 1311 Para entendermos essa sentença, é necessário recorrermos ao fragmento póstumo 14 [130] da primavera de 1888, em que Nietzsche faz um esboço esquemático de uma tentativa de demonstração dessa tese. O fragmento tem como título “Reação: religião. Moral como décadence”. Em seu início, Nietzsche anota: “Reação da gente pequena”; e, na outra linha: “o amor dá o mais alto sentimento de poder”. No fragmento póstumo 10 [86] do outono de 1887, Nietzsche estabelece claramente a ligação entre Jesus e a gente pequena, a quem ele e Paulo teriam enchido a cabeça com ilusões de grandeza. A gente pequena é aquele tipo de gente mansa, retirada, privada, aquele tipo de gente, como o filósofo explica no fragmento 10 [92] da mesma época, que compunha a pequena família judia da diáspora, do lago, da Galiléia, ambiente em que Jesus nasce. O que essa gente décadent conseguiu encontrar como fonte de poder: o amor. No prosseguimento de suas anotações no fragmento 14 [130] da primavera de 1888, Nietzsche avisa: “Entender em que medida não é o homem em geral que aqui fala, mas um certo tipo de homem. Deve-se escrutar esse tipo um pouco mais de perto. ” Ou seja, esse expediente com que a gente pequena funda a sua moral, não está reservada a todo o tipo de homem, não se dirige de modo algum ao homem elevado, nem ao homem médio e muito dificilmente ao tipo ressentido de homem décadent, ao tipo cristão; não se trata aqui daquele amor que brotou como a coroa do ódio judeu de que fala Nietzsche na seção 8 da primeira dissertação da Genealogia da moral, nem a terceira das três virtudes (espertezas) cristãs (fé, esperança e amor), analisadas na seção 23 de O Anticristo; esse amor que o filósofo trata aqui é propriamente o amor que nasce do medo 1310 1311 Cf. Idem. AC § 30. 422 profundo à dor, o amor incondicional de Jesus. 1312 O que provoca a dor no degenerado: as excitações, os estímulos, as sensações externas, a realidade. Todo obstáculo é um estímulo, ele exige resistência, ele exige resposta, mas o sujeito degenerado é incapaz de dar tal resposta, esse obstáculo exaure, então, sua escassa reserva de energia, resultando numa sensação desagradável de perda de poder, provocando, assim, a dor. Deste modo, o agressor, tudo o que agride (toda realidade, portanto) incita, no agredido, uma resistência, uma resposta, uma defesa, da qual o degenerado se mostra incapaz. O degenerado se vê, então, com apenas duas opções: ressentir ou amar. O ressentimento produz um conflito interno (que em algumas naturezas pode até vir a constituir uma fonte de poder), produzindo, por conseguinte, novamente a dor. Um sujeito com uma hiperexcitabilidade extrema, com uma irritabilidade mórbida que atingiu seu paroxismo, não suportaria nem mesmo esse tipo de dor. Como seria possível, então, para um tal sujeito, evitar toda e qualquer dor, a dor mais infinitesimal: evitando todo e qualquer conflito, seja externo, seja interno. Como evitar, por sua vez, todo e qualquer tipo de conflito: eliminando os sentimentos de hostilidade, os instintos agressivos, o ressentimento; não mais resistindo, não mais respondendo (evitar todo desperdício de força), seja em ato, seja em coração, seja externamente, seja internamente. Como isso pode ser feito? Pela aceitação, pelo amor daquilo/daquele que agride, daquilo/daquele que provoca dor e sofrimento, algo como o fatalismo russo 1313: “‘somos divinos no amor, tornamo-nos filhos de Deus, Deus nos ama e nada exige de nós, a não ser o amor’”. 1314 Mas eis, então, o que ocorre: o amor vem a produzir sentimentos agradáveis, o amor traz paz à alma, beatifica, o amor faz com que a dor cesse – o que isso quer mesmo dizer: o amor produz um sentimento de poder. Como anota Nietzsche: isto é: toda moral, toda obediência e ação não produz um sentimento de poder e de liberdade como o que o amor produz 1312 O fato desse amor, ou ainda, o fato do evangelho não ser exclusividade de Jesus, mas ser comum a um tipo de gente pequena que habitava a Palestina naquela época, já é tido como um dado histórico desde Renan, ou seja, já faz bastante tempo que os historiadores vêm chamando atenção para a existência de diversos antecessores de Jesus, o que constitui, na verdade, um importante argumento para aqueles que defendem a não existência histórica de Jesus. 1313 Cf. EH, Por que sou tão sábio § 6. 1314 FP 14 [130] da primavera de 1888. Cf. 1 Espístola de João 3:1. 423 – por amor não se faz nenhuma maldade, faz-se muito mais do que se faria por obediência e virtude – aqui, a felicidade gregária, o sentimento de solidariedade nas grandes e pequenas coisas, o sentimento vivo de unidade é experimentado como suma do sentimento de viver. – ajudar, cuidar, servir, tudo isso estimula constantemente o sentimento de poder, o sucesso aparente, a expressão de alegria enfatiza o sentimento de poder – o orgulho não está ausente, enquanto comunidade, enquanto morada de Deus, enquanto “escolhido” 1315 Não obstante, esse amor, esse poder tão elevado que esse sujeito de compleição fisiológica degenerada não consegue reconhecer como absolutamente seu, que parece tomar conta de seu ser a partir de seu interior, mas que, ao mesmo tempo, se apresenta como uma força superior, como “Pai”, não poderia vir, tal sujeito acredita, de si próprio, esse amor só pode vir do seu Pai que está no céu, de seu querido Abba (Paizinho), esse amor é a manifestação do poder, da glória, do reino de Deus. Pelo amor, ele se torna filho de Deus. Seu reino de Deus é esse sentimento de profunda comunhão com todas as coisas, com Deus, de amor por todas as coisas, por Deus: E, de fato, o homem mais uma vez sofreu uma alteração de personalidade: desta vez, o seu sentimento de amor ele chamou de Deus deve-se imaginar o despertar de um tal sentimento, uma espécie de êxtase, um discurso estrangeiro [eine fremde Rede], um “evangelho” é esta novidade [Neuheit] que não o permite atribuir-se o amor: – ele pensa que Deus traçou o seu caminho, e se tornou vivo nele – 1316 Ora, quando Nietzsche fala de uma outra alteração de personalidade, ele muito provavelmente tem em mente a alteração de personalidade do homem santo, conseqüência da folie circulaire, que está na base dos mecanismos de penitência e de redenção cristã, em que se busca intensificar a alternância entre os estados de depressão e excitação próprios da degenerescência, agravando ainda mais um condicionamento fisiológico debilitado na busca da sensação fugaz de um aumento de poder, que o homem santo acredita não ser seu. Sendo assim, a doutrina cristã e a redenção oferecida por Jesus, que na verdade deveria ser classificado mais corretamente por salvação [Heil], repousam sobre a mesma realidade fisiológica, ou seja, a hiperexcitabilidade, porém, apresentam maneiras diferentes de se 1315 1316 FP 14 [130] da primavera de 1888. Idem. 424 lidar com esse condicionamento: uma maneira antinatural e nociva e outra, saudável e não prejudicial. Em um sujeito como Jesus, esse amor, ou melhor, esse sentimento de poder se manifesta, ou ainda, é condicionado pela existência do outro, do próprio agressor, do próximo, do “inimigo”, do “homem mau”; o próximo, o amor ao próximo, torna-se, então, o seu Deus, pois é por meio dele que se alcança a paz da alma, a bem aventurança, a sensação de poder, que se vive no reino de Deus: “‘Deus vem aos homens’, o ‘próximo’ [para Jesus] é transfigurado em um Deus (na medida em que o sentimento do amor se revela em sua presença)”. 1317 Em um outro momento, “Jesus é [se torna] o próximo, uma vez que este [Jesus] foi repensado como divindade, como causa excitante de um sentimento de poder”. 1318 Eis o verdadeiro significado da mensagem evangélica de Jesus: não é uma doutrina, não é algo que tenha a ver com a fé, é a obediência mais profunda de um tipo de homem décadent aos seus mais básicos instintos, ou seja, uma forma natural de agir, pela qual uma décadence se aceita enquanto tal, pela qual uma décadence interpreta seu próprio condicionamento sem recorrer à moral, mas sim à própria realidade, alcançando, com isso, a mais suprema forma de bem-aventurança que se encontra ao seu alcance: “O profundo instinto para como alguém deve viver a fim de sentir-se ‘no céu’, sentir-se ‘eterno’, enquanto, conduzindo-se de qualquer outro modo, não se sente absolutamente no ‘céu’: apenas esta é a realidade psicológica da ‘redenção’. – Uma nova conduta, não uma fé.” 1319 1317 Idem. Idem. “Amor: o estado ideal do animal gregário que não quer mais ter inimigo de sorte que se elevou em ideal tudo aquilo que abaixa e arruína o homem” (FP 11 [278] de novembro de 1887 a março de 1888). 1319 AC § 33. Cf. FP 11 [357] de novembro de 1887 a março de 1888. 1318 425 426 CONSIDERAÇÕES FINAIS Redenção para o “Redentor” ou redenção do redentor Na segunda parte de Assim falou Zaratustra, no capítulo intitulado “Dos sacerdotes”, o anunciador do além-do-homem diz aos seus discípulos: “Ali estão sacerdotes: e, embora sejam meus inimigos, passai por eles em silêncio e com a espada na bainha!” Ainda que, continua o mestre do eterno retorno, sejam maus inimigos, o sangue daqueles sacerdotes é aparentado com o dele próprio, e, por isso, ele deseja ver o sangue dele honrado neles. Não obstante, quando os sacerdotes se afastam, Zaratustra é tomado por um negro sentimento de pena: aqueles homens são prisioneiros e estigmatizados, estão sob o jugo de falsos valores e palavras ilusórias, grilhões com os quais aquele a quem chamam de Redentor lhes algemou: “Cadeias de falsos valores e palavras ilusórias! Ah, se alguém os redimisse de seu Redentor!” 1320 Nietzsche inverte aqui a expressão “redenção para o Redentor” que encerra o último ato do Parsifal de Wagner, e que também foi escrita na coroa de flores mortuária depositada no túmulo do músico pela Sociedade Wagner de Munique. 1321 Com sua última obra, Wagner acreditava ter resgatado o autêntico cristianismo, um culto puro ao ideal, criação da raça ariana, que se encontrava prisioneiro do otimismo de raiz semita. Quando Parsifal finalmente aprende o significado da compaixão e desvela o mistério do Graal, que havia permanecido encoberto devido à queda de seu antigo protetor, seduzido pela vontade, o Redentor é libertado, vendo-se finalmente livre das mãos impuras que o mantinham prisioneiro, em linguagem mais clara, o cristianismo é finalmente libertado do otimismo semita e reconduzido às mãos arianas: o ideal em toda a sua glória é finalmente revelado, exigindo que a vontade seja sacrificada em seu nome. Em O caso Wagner, Nietzsche apresenta a redenção como o leitmotiv de 1320 ZA, II, Dos sacerdotes. “In Banden falscher Werthe und Wahn-Worte! Ach dass Einersie noch von ihrem Erlöser erlöste!” 1321 “O leitmotiv de meu gracejo ruim, ‘Wagner como redentor’, refere-se naturalmente à inscrição na coroa da Sociedade Wagner de Munique, ‘redenção para o Redentor” (carta a Heirich Köselitz, 11 de agosto de 1888, tradução de PCS no “Apêndice” de CW). “‘Para Creta!’ – é um famoso coro de A bela Helena. Digolhe por malícia, depois que você me ‘instruiu’ sobre as palavras finais de Parsifal. Essas ‘últimas palavras’ de Wagner eram meu leitmotiv, afinal... (Carta a Heirich Köselitz de 24 de agosto de 1888, tradução de PCS no Apêndice de CW) 427 Wagner: “sua ópera é a ópera da redenção [...] em Wagner há sempre alguém que deseja ser redimido [...] este é o problema dele”. 1322 Mas Wagner, esse bufão, nada entendia da real necessidade da redenção cristã: Se Wagner era um cristão, então Liszt era talvez um pai da Igreja! – A necessidade de redenção, a quintessência de todas as necessidades cristãs, nada tem a ver com tais bufões: é a mais honesta expressão da décadence, é a mais dedicada e dolorosa afirmação dela, em forma de sublimes símbolos e práticas. O cristão quer desvencilhar-se de si mesmo. Le moi est toujours haïssable. 1323 Ao que tudo indica, Nietzsche não se refere aqui à redenção oferecida por Jesus, que aceita seu próprio condicionamento décadent, que aceita o moi que causou tanta repugnância a Pascal, mas à folie circulaire que fundamenta os mecanismos de redenção da Igreja. Entretanto, tanto o evangelho de Jesus quanto à doutrina cristã são conseqüências de uma mesma necessidade de redenção, de uma mesma pré-disposição mórbida, ou seja, da hiperexcitabilidade, de um condicionamento fisiológico degenerado. Se Wagner nada entende da real necessidade de redenção do homem décadent, ele não poderia compreender também minimamente algo sobre o evangelho, o que ele de fato significa, e, sobretudo, se ele precisa ser redimido ou se, pelo contrário, é dele que se deve buscar redenção, liberação. Em Assim falou Zaratustra, a expressão “redenção do Redentor”, muito provavelmente não se refere a Jesus, mas à figura eclesiástica do Cristo. Mas o que essa figura quer, afinal, significar? Nós nos ateremos à possibilidade interpretativa de que a figura do Cristo seja vista por Nietzsche em seus últimos escritos como uma corrupção do evangelho de Jesus também no sentido de que tal evangelho possa e deva ser tido como o ideal para todo e qualquer tipo de homem, para toda a humanidade. O que é o “Redentor”, é, também, a desnaturalização da prática evangélica de Jesus como moral universal, como algo abstrato, como doutrina religiosa, uma falsificação da realidade operada com os mesmos instrumentos inventados pelo código sacerdotal para desnaturalizar os valores da antiga sociedade hebraica, do antigo Reino, como bem demonstrou Wellhausen; é a tentativa de fazer de Jesus o Cristo, o redentor da humanidade; é a tentativa de fazer da idiotia a grande meta da humanidade. Se alguém de fato “precisa” de uma redenção, de 1322 1323 CW § 3. CW, Epílogo. 428 uma libertação, é certo tipo de homem diante desse “ideal da humanidade”. A proposta interpretativa que adotamos aqui, portanto, é de que certos tipos de homens bem que “precisariam” ser redimidos desse redentor, “precisariam” ser redimidos do evangelho de Jesus, “precisariam” ser redimidos da noção de que os valores da idiotia sejam os valores supremos da humanidade, sejam os seus valores, sejam uma representação da sua virtude, tenham a ver com a sua felicidade. Pascal, talvez, seja o grande exemplo desse tipo de homem (pelo menos de um tipo de homem mais espiritual) que deveria ter sido redimido de uma tal redenção. 1324 A redenção de Jesus não precisa ser redimida, pois consiste numa realidade psicológica sempre possível: o redentor ou, ainda melhor, o salvador [Heilande] Jesus não precisa ser redimido enquanto “Redentor”, ou seja, enquanto verdadeiro alvo da humanidade. Nietzsche não realiza, por conseguinte, nenhuma redenção para o “Redentor” em O Anticristo, como um mero cristão herético poderia fazer, como Tolstói o faz de certa maneira, como a lógica interna do cristianismo constantemente exige, sendo que essa lógica consiste exatamente naquilo que fez com que essa religião perdurasse na história. O objetivo do filósofo não é anunciar uma nova possibilidade de vida cristã para a humanidade, mas somente para certos tipos de homem, ele não é nenhum profeta que prega o retorno ao evangelho original de Jesus como o tipo de vida mais elevada. Nietzsche faz, sim, um tipo de elogio a Jesus, a interpretação que ele faz dessa figura possui certo caráter positivo, certa admiração, exerce determinada importância para o seu projeto de transvaloração de todos os valores, porém, tudo isso deve ser cuidadosamente delimitado: por oferecer ao homem décadent uma salvação, uma cura para o seu ressentimento, Jesus representa um tipo ideal de vida décadent – e nada mais. Consideramos o fragmento póstumo 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888, em parte já citado ao longo do trabalho, o texto mais esclarecedor a respeito de como se deve determinar o valor que a realidade evangélica vivida por Jesus possui no interior do projeto filosófico de Nietzsche. O texto, em parte esquemático, inicia-se com a seguinte declaração: “Nós reconstituímos o ideal cristão: resta determinar seu valor.” Esse ideal cristão que Nietzsche se refere aqui nada mais é do que o evangelho de Jesus. Como se pode constatar isso? Primeiramente, pela localização do fragmento no caderno do filósofo. 1324 Cf. AC § 5; FP 11 [55] e 11 [408] da primavera de 1888. 429 Em que contexto problemático ele surge? O fragmento 11 [352], da mesma época, é o último de uma série de extratos (iniciada no fragmento 11 [331]) feitos durante a leitura de Os demônios, de Dostoiévski, em que o que chamamos de segunda chave do evangelho (o reino de Deus como um estado do coração) foi finalmente encontrada, tal chave, juntamente com a primeira (não resistência), permitiu que a reconstituição do evangelho de Jesus fosse levada a cabo (ainda que o diagnóstico de seu tipo fosse dado somente na primavera de 1888). Os fragmentos 11 [354], 11 [355], 11 [356], 11 [357], 11 [358], 11 [359] e 11 [360] são todos escritos preparatórios de O Anticristo (respectivamente, AC § 34 e 35; AC § 34, AC § 33, AC § 33, AC § 38, AC § 45), todos buscam retirar os traços estranhos que foram adicionados ao tipo de Jesus e restaurar os que lhe foram subtraídos, denunciando todos os “mal entendidos cristãos” (título do fragmento 11 [354]) a partir de um simbolismo original. O fragmento póstumo que vem exatamente após o fragmento 11 [363], dá continuidade a esse mesmo trabalho de reconstituição do evangelho original de Jesus e se intitula “Para a história do cristianismo”; essa história tem início com a corrupção da mensagem original de Jesus: “O tipo ‘cristão’ se assimila progressivamente a tudo aquilo que ele nega na origem (na negação do que ele mesmo consiste –); o cristão se torna cidadão, soldado...” 1325 Outro motivo que nos leva a afirmar que o “ideal cristão” de que Nietzsche fala no fragmento 11 [363] é o evangelho de Jesus, está na seguinte declaração, no último dos três pontos argumentativo do referido texto, que diz que semelhante ideal: 3. é uma conseqüência da vontade de prazer – e de nenhuma outra! a “beatitude” vale por qualquer coisa provada por si mesma, que não tem necessidade de nenhuma justificação, – todo o resto (a maneira de viver e deixar viver) não é mais do que meio ao objetivo... 1326 Como vimos, é nesses mesmos termos que Nietzsche se refere ao evangelho de Jesus em O Anticristo, particularmente na seção 30, em que, após descrever a realidade fisiológica desse evangelho, ele o compara ao hedonismo grego. Ora, o motivo de Nietzsche falar de um “ideal cristão”, e não de uma “mensagem de Jesus” ou de um “ideal 1325 1326 FP 11 [364] de novembro de 1887 a março de 1888. FP 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888. 430 de Jesus”, deve-se ao fato de que a separação entre Cristo e Jesus, entre cristianismo e evangelho, entre cristão e alegre mensageiro, ainda não havia sido claramente feita, além disso, de todo modo, em momentos provisórios de O Anticristo, o filósofo se refere a Jesus como “cristão”, a sua prática como “cristianismo”, mas isso somente como um recurso argumentativo temporário. Desta maneira, sobre o valor do evangelho de Jesus, Nietzsche afirma, no primeiro ponto argumentativo do fragmento póstumo 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888: 1. Quais os valores que por ele são negados: que contém o ideal antagonista? Orgulho, pathos da distância, a grande responsabilidade, a exuberância, a esplêndida animalidade, os instintos de guerra e da conquista, a divinização da paixão, da vingança, da astúcia, da cólera, da volúpia, da aventura, do conhecimento... : o ideal nobre é negado 1327: beleza, sabedoria, poder, esplendor e risco do tipo homem: o homem “por vir” [“zukünftige”], possuidor de alvos (– aqui a cristandade [Christlichkeit] se revela enquanto conclusão lógica do judaísmo –) O segundo ponto argumentativo, já citado no corpo do trabalho, é aquele que diz: “2. Ele é realizável? Sim, mas climaticamente condicionado... [...] ele liquida tudo o que constitui a utilidade e o valor do homem – encerrado em uma idiossincrasia de sentimento – apolítico, antinacional, nem agressivo, nem defensivo...” E, em uma declaração que se segue aos três pontos argumentativos e que encerra o fragmento, é dito que esse ideal de Jesus até pode ser realizado: – Mas isso é pensamento baixo: o medo da dor, da infecção [Verunreinigung], da corrupção mesmo, enquanto motivo suficiente para deixar tudo correr... Eis aí uma pobre maneira de pensar... Signo de uma raça esgotada... Não se deve deixar enganar (“se tornar como as crianças”) – as naturezas aparentadas: Francisco de Assis (neurótico, epiléptico, visionário, como Jesus) Quem não se deve deixar enganar aqui? Quem não deve desejar se tornar como as crianças, ter como alvo a idiotia? Certos tipos de homens, um tipo mais elevado. Nietzsche abandona essa sua rejeição ao ideal de Jesus em O Anticristo? Nossa hipótese é de que não. Então por que ele não se dá ao trabalho de falar diretamente contra esse ideal nessa sua 1327 Grifo nosso. 431 “Maldição ao cristianismo”? Por julgar absolutamente desnecessário, tendo em vista a quem este livro se dirige. No “Prólogo”, o filósofo alerta exatamente para isso: “Este livro é para pouquíssimos. E talvez eles ainda não vivam. Seriam aqueles que compreendem meu Zaratustra”. Um tipo mais elevado de homem, um tipo bem logrado, uma felicidade 1328 , jamais poderia confundir o alvo de Jesus com o seu alvo, isso seria contrariar os seus mais básicos instintos, seria já ser, pois, um homem corrompido. 1329 Todo o esclarecimento necessário a respeito de qual deve ser o alvo da filosofia nietzschiana é satisfatoriamente oferecido por aquele que se autodenominava o discípulo de Dionísio na seção 2 de sua “Maldição ao cristianismo”: O que é bom? – Tudo o que eleva o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem. O que é ruim [schlecht] 1330? – Tudo o que vem da fraqueza. O que é felicidade? – O sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência é superada. Não a satisfação, mas mais poder; sobretudo não a paz, mas a guerra; não a virtude, mas a capacidade [Tüchtigkeit] (virtude à maneira da Renascença, virtù, virtude isenta de moralina). Os fracos e malogrados devem perecer: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E deve-se ajudá-los nisso. O que é mais nocivo do que qualquer vício? – A ativa compaixão por todos os malogrados e fracos – o cristianismo... 1331 Como seria possível conceber o idiota Jesus, que não resiste, que busca a “paz da alma”, cuja prática de vida é conseqüência da fraqueza, da incapacidade, como uma representação desse alvo, dessa felicidade? O que a filosofia de Nietzsche traça como meta é o cultivo de um tipo de homem de “mais alto valor, mais digno de vida, mais certo de futuro” 1332 , não mais como mero acaso, mas como algo querido. Não se deve confundir uma tal meta com as esperanças do animal gregário relacionadas com as idéias de progresso, evolução, supremacia racial, nacionalismo: 1328 “En somme, le malheur est le lot des individus dont l’organisme est en déficit, tandis que le bonheur est le partage des individus bien développés et bien entretenus” (Féré, Sensation et mouvement, p. 150). 1329 “– o egoísmo agressivo e o egoísmo defensivo não são uma questão de escolha nem mesmo de “livre arbítrio”, mas a fatalidade mesma da vida. [...] Uma sociedade que, definitivamente e por instinto, recusa a guerra e a conquista está em declínio: ela está madura para a democracia e o governo de mercearia...” (FP 14 [192] da primavera de 1888). 1330 “Mau” em PCS. 1331 AC § 2. 1332 AC § 3. 432 Num outro sentido se acha um contínuo êxito de casos particulares, nos mais diversos lugares da Terra e nas mais diversas culturas, nos quais um tipo mais elevado [höherer Typus] realmente se manifesta: algo que, em relação à humanidade como um todo, é uma espécie de além-do-homem. 1333 Tais acasos felizes de grande êxito sempre foram possíveis e talvez sempre serão. E tribos, estirpes, povos inteiros podem, em algumas circunstâncias, representar um tal acerto [Treffer]. 1334 Todavia, tal tipo mais elevado de homem tem sido até agora o mais temido, o mais evitado, o mais combatido; devido a esse temor quis se cultivar o seu oposto. É por isso que não se deve perdoar o cristianismo, não se deve tentar adorná-lo (como o faz Renan) 1335 , porque ele declarou uma guerra de morte [Todkrieg] contra esse tipo mais elevado 1336 , porque “se convenceu de que é possível levar uma ‘alma perfeita’ num corpo cadavérico” e, para isso, inventou um novo conceito de “perfeição”, “um ente pálido, doentio, idiotaentusiasta” 1337, porque ele “toma o partido de tudo idiota.” 1338 A figura de Jesus e sua salvação não representam o alvo que a filosofia nietzschiana lança como proposta, ou seja, Jesus não representa um tipo mais elevado de homem – a bem da verdade, ele representa exatamente o extremo oposto disso, pois está localizado na escala mais baixa da cadeia degenerativa: “‘Se vós não vos tornardes como as crianças’ 1339 : oh, como estamos longe dessa ingenuidade psicológica.” 1340 Não obstante, Jesus desempenha um papel essencial para que a meta nietzschiana seja perseguida, a saber: ele representa a manifestação de uma décadence que não impede a superação da vida, que não impede o surgimento de um tipo de homem mais elevado, como o faz o cristianismo eclesiástico. A prática de Jesus serve, portanto, como uma contraposição à doutrina cristã, pois oferece um fim digno para a décadence, isto é, a aceitação bem aventurada de sua dissolução. A doutrina cristã, brotada do ressentimento e do ódio contra a vida, pelo contrário, busca a conservação a todo custo, esse custo é precisamente a possibilidade de 1333 “Super-homem” em PCS. AC § 4. 1335 Cf. FP 11 [408] de novembro de 1887 a março de 1888. 1336 AC § 5. 1337 AC § 52. 1338 AC § 52. Cf. também: FP 14 [91] da primavera de 1888. 1339 Cf. Mateus 18: 3. 1340 FP 10 [198] de novembro de 1887 a março de 1888. 1334 433 que a vida se supere. Jesus é importante para o projeto de uma transvaloração dos valores porque sua prática mostra a possibilidade de que a décadence se aceite como tal, não negando sua natureza e não negando, assim, a própria vida, não se ressentido dela e de suas condições, ao aceitar o seu fim. Com a décadence indo ao encontro de seu fim, transformando isso em sua própia moral, o surgimento de um tipo mais elevado de homem torna-se, então, novamente possível e não mais um evento constantemente sabotado. Nietzsche não faz um elogio irrestrito a Jesus e a sua mensagem, pois Jesus representa tãosomente a possibilidade de uma vida bem aventurada para a décadence e não para toda e qualquer constituição vital, haja vista que uma vida em ascensão busca se superar mediante a resistência, mediante o combate, e um tipo mais elevado de homem só pode vir a surgir mediante esse jogo de forças. No fragmento póstumo 14 [29] da primavera de 1888, Nietzsche fala da necessidade de uma religião do “amor” que possa aplacar o egoísmo desenfreado em busca de conservação daqueles que representam “a linhagem descendente, o declínio, a doença crônica”, “quer se trate de indivíduos isolados ou de camadas inteiras de população que se degradam e estiolam”, pois uma tal religião “reprime os sentimentos de rivalidade e de ressentiment”, fazendo com que, ao indivíduo bem logrado, que “representa a ascensão da linhagem humana”, seja subtraído o mínimo possível “de força e de raios de sol”, pois somente tal indivíduo tem direito ao egoísmo da conservação e da superação. A falsificação do tipo de Jesus não foi um acidente, não se deu por descuido ou inocência, pela necessidade antropológica, política e social do sincretismo, ela foi necessária, ela foi o ato criador do cristianismo. Jesus representou a mais perfeita forma pela qual a décadence poderia aceitar a sua própria condição, querê-la, amá-la mesmo, e com isso caminhar, beatificamente, para a sua dissolução final, livre do ressentimento, libertando-se do desejo de conservação. A prática de Jesus era a maneira natural para que um mundo de malogrados, interrompidos, retardados e mal constituídos pudesse obter sua bem aventurança: a aceitação de sua própria condição e a aquiescência de seu fim. Jesus representava a forma mais natural de existência para esse mundo de deserdados, por isso o ressentimento existente no canto mais obscuro, subterrâneo desse mundo malogrado precisou dirigir toda a sua força nesse grande ato de falsificação que foi a corrupção do tipo 434 psicológico de Jesus, como vingança mesmo daquilo que Jesus representava, como vingança ao natural, à naturalidade, ou seja, ao modo de vida natural que Jesus oferecia com sua prática para essa décadence; um convite, uma sedução, uma última tentação para tal décadence aceitar o seu destino, o seu fatum, aceitar sair da existência a fim de que a vida se renove, negar o seu desejo de conservação, de permanência a todo custo. Desse modo, falsificar o tipo de Jesus foi o último e mais mortal ato de vingança contra a realidade, contra a natureza, contra a vida; negá-la, reprová-la, condená-la, mesmo quando ela oferece o último recurso de existência bem aventurada para aquilo que representa seu próprio malogro. Ao negar o que a vida de Jesus de fato representou por meio da falsificação do seu tipo, a décadence malograda do tipo ressentida obtém a vingança plena e última contra a realidade, e elimina o último grande perigo, a última grande tentação, para a sua conservação, ou seja, a prática de Jesus, pois ela representava uma dissolução bem aventurada para esse tipo de décadence, que não a quis, preferindo buscar sua conservação a todo custo, nascendo assim o cristianismo, a maldição absoluta lançada contra a vida. Por isso, o projeto de uma psicologia do redentor não é irrelevante, mas é a condição para que a essência mesma do cristianismo seja desvelada, para que sua pudenda origo seja desnudada. O caminho natural para a décadence é chegar ao seu fim, esse é o seu maior bem, porém a décadence tem como tendência básica querer aquilo que lhe causa mal, aquilo que mais lhe prejudica, que lhe é mais danoso, ou seja, querer sua conservação, a permanência de seu estado. Por isso Jesus foi uma tentação, uma sedução, porque convidava a décadence a seguir o seu caminho natural, obtendo com isso sua bem-aventurança. Uma vida plena de felicidade, sem dor, pois a dor deixa de ser enfrentada, deixa de ser vista como um mal, e passa a ser desejada e amada: uma vida breve. E a maior felicidade dessa vida está justamente no fato de ela ser breve, pois isso é o bem para a décadence, ou seja, esse é o seu curso natural. A vida adquire sua auto-superação com o fim da décadence, pois isso condiciona o novo. No zen-budismo, a concepção de que o nosso corpo está em constante processo de morte e renascimento até a chegada da morte propriamente dita é bastante natural. E na 435 filosofia de Nietzsche também não há uma separação radical entre morte e vida. A morte é um aspecto natural para a existência do mundo orgânico, a sua própria condição, aliás. Fim da décadence tampouco quer significar o fim definitivo, total de todo e qualquer elemento décadent na economia global da vida, pois o surgimento de elementos décadents é natural, constante e de extrema necessidade para a efetivação da vida. Na verdade quanto maior o grau de pujança em um organismo, maior será a sua produção de dejetos. Todavia, o estado décadent não deve ser conservado, não deve ser visto como alvo, mas superado. O grande malefício que representa o cristianismo para a vida é que ele, além de querer conservá-la em estado décadent, almeja tornar o mundo todo décadent, tornando os organismos sadios doentes, ou seja, “convertendo-os” ao cristianismo. Jesus é o grande exemplo de como a décadence malograda pode ter sua manifestação natural, bem como Buda é o grande exemplo de como a décadence do cansaço, do fim, pode ter sua manifestação mais saudável, menos prejudicial. O alvo da filosofia de Nietzsche é o ápice da vida, o cume, e não o declínio, apesar dele ser natural. Jesus e Buda estão em O Anticristo para mostrar que a décadence não precisa ser necessariamente perigosa para a vida. Ela pode ter um sentido natural, que possa permitir que a vida siga o seu transcurso natural em direção ao seu ápice, que é o seu objetivo. A positividade de Jesus para Nietzsche está justamente no fato de que ele não impede que esse ápice seja atingido. Jesus é de fato, em um sentido nietzschiano, um tipo ideal de homem décadent, mas apenas de homem décadent, e não de um tipo mais elevado de homem, ser como Jesus deveria ser o alvo de toda a décadence, porém, esse não tem sido o caso há mais de dois mil anos. Existem, em linhas gerais, três tipos básicos de vida, e, portanto, três constituições fisiológicas básicas: a vida ascendente, a vida média e a vida décadent; existem, pois, grosso modo, três tipos de homens, o homem elevado, o homem médio e o homem décadent; pode-se falar, portanto, de três tipos de felicidades, de três tipos de alvos; deste modo, faz-se necessário três tipos ideais de homem, isto é, um tipo de homem que o indivíduo elevado deveria almejar ser, um tipo de homem que o medíocre deveria almejar ser, e um tipo de homem que a décadence deveria almejar ser: Jesus é o tipo ideal de homem para a décadence, e não para a vida ascendente, para o indivíduo superior, para um tipo mais elevado de homem, e nem para a vida média. Dizer que a prática evangélica de 436 Jesus deve ser o alvo de toda a humanidade, dizer que a humanidade precisa mesmo ser “redimida”, “melhorada”, é negar a desigualdade dos tipos, é negar toda a necessidade de hierarquia, é negar a morfologia da vontade de poder, é querer arruinar, portanto, a vida. Nietzsche geralmente se ocupa dos dois tipos mais extremos, mas ele também chega a falar, na seção 57 de O Anticristo, em sua apresentação do “sistema de castas indiano”, da importância do homem médio, dos privilégios do medíocre, do tipo de felicidade, de alvo, que ele necessita, a saber, servir de esteio a um tipo mais elevado – o pessimismo da indignação não é de modo algum prerrogativa do homem mediano: “Há uma destinação natural no fato de alguém ser uma utilidade pública, uma roda, uma função: não é a sociedade, é o tipo de felicidade de que a grande maioria dos homens é capaz que faz deles máquinas inteligentes. Para o mediano, ser mediano é uma felicidade; a mestria numa só coisa, a especialidade, um instinto natural.” 1341 Se há um tipo de homem cuja meta deve ser a conservação, é o homem mediano: “Seria totalmente indigno de um espírito profundo ver já na mediania em si uma objeção. Ela é, inclusive, a necessidade primeira para que possam existir exceções: depende dela uma cultura elevada.” 1342 Já o tipo ideal de homem elevado, cujo cultivo é o alvo do projeto filosófico nietzschiano, apontado pelo filósofo em seus últimos escritos como contraposição direta ao tipo ideal de vida décadent, encontra-se em seu César Bórgia, não propriamente em uma figura histórica, mas em uma ilusão estética. Que a décadence seja um fenômeno natural da vida, e que não se pode de modo algum simplesmente pensar em extirpá-la, mas somente em não buscar conservá-la, não incentivar sua propagação, não permitir que os seus valores se tornem hegemônicos, evitando a contaminação da parte sadia de um organismo, é dito por Nietzsche no fragmento póstumo 14 [75] da primavera de 1888: O conceito de décadence – Os detritos, os escombros, os desperdícios não são algo que se deva condenar em si: são uma conseqüência necessária da vida, do crescimento da vida. O fenômeno da décadence é tão necessário como qualquer elevação e avanço da vida: não está em nossas mãos eliminá-lo. A razão quer, pelo contrário, que à décadence se outorgue o direito... 1341 1342 AC § 57. AC § 57. 437 É um opróbrio que todos os sistemáticos e socialistas opinem que poderia haver circunstâncias, combinações sociais, em que o vício, a enfermidade, o crime, a prostituição, a indigência, já não poderiam mais se desenvolver... Mais isso significa condenar a vida... Uma sociedade não é livre de continuar sendo jovem. E no meio de sua maior força, tem que produzir detritos e dejetos. Quanto mais enérgica e audaz proceda, tanto mais abundante será em aberrações e malformações, tanto mais cercada estará de declínio... A velhice não se elimina com instituições. Tampouco a enfermidade. Tampouco o vício Nietzsche encontrou a fundamentação fisiológica para essa tese em Féré. Para o médico francês, a sociedade precisa de uma vez por todas reconhecer a sua responsabilidade na produção dos seres degenerados; o seu próprio funcionamento condiciona o surgimento da criminalidade, da prostituição e do vício. Faz-se necessário que a sociedade assuma como seu dever a proteção da parte sadia da população contra os seres nocivos que ela mesma tem que gerar continuamente. Féré defende que o Estado não deve ser ater ao castigo, à punição, mas à proteção: Les impotents, les aliénés, criminels ou décadents de tout ordre, doivent être considérés comme des déchets de l’adaptation, les invalides de la civilisation. Ils ne méritent ni haine ni colère; mais la société doit, si elle ne veut pas voir précipiter sa propre décadence, se prémunir indistinctement contre eux et les mettre hors d’état de nuire. 1343 Féré também diz claramente que não se deve pensar em suprimir os degenerados, mas evitar que eles se tornem nocivos, de maneira a ameaçar a degenerescência do todo, evitando sua propagação, evitando o ajuntamento desses seres nos ambientes insalubres para os quais eles se sentem naturalmente atraídos, impondo medidas sanitárias, desestimulando sua reprodução, e evitando sua sobrevida que se dá por intermédio de todo tipo de ações caridosas. Como esclarece Féré em uma passagem bastante sublinhada por Nietzsche em seu exemplar de Dégénérescence et criminalité: Il est certain que la misère et ses satellites fidèles, le crime et la maladie, ne peuvent disparaître, sans cesse alimentés qu’ils sont par l’épuisement qui résulte de l’exagération croissante des efforts d’adaptation. Les dégénérescences, déchets de la civilisation, se produisent nécessairement; leur augmentation est d’autant plus rapide qu’elle est favorisée par la partie plus vivace de la société qui regarde impassiblement non seulement cette production en quelque sorte 1343 Féré, Dégénérescence et criminalité, pp. 103-104. E também: Féré, Sensation et mouvement, p. 158. 438 mécanique et nécessaire, mais qui encourage sa repullulation dans des milieux favorables, et aide leur survivance par des mesures de charité mal éclairée. 1344 No fragmento póstumo 15 [110] da primavera de 1888, Nietzsche fala da importância do sacrifício, mas não no sentido cristão. A moral do altruísmo propalada pelo cristianismo nada mais representa do que a “intensificação do egoísmo, do egoísmo individual levado ao extremo (ao extremo da imortalidade individual).” A igualdade das almas diante de Deus, a importância dada à pessoa, aquilo que na verdade representa o oposto da realidade evangélica vivida por Jesus, impede, ao contrário do que se quer fazer acreditar, todo sacrifício. Se todo indivíduo possui o mesmo valor, então, nenhum indivíduo pode ser sacrificado em nome do que realmente importa, ou seja, em nome do interesse da espécie: “mas a espécie sobrevive apenas através dos sacrifícios humanos.” O que precisa ser sacrificado em nome da espécie? Seus membros degenerados, a fim de que a espécie mesma não venha a sucumbir, a se arruinar, a se extinguir. Dizer que o homem degenerado (“o cristão”) vale o mesmo que o homem sadio (“o pagão”), e que, portanto, o primeiro não deve ser sacrificado, é anelar pela derrocada da própria espécie, é impedir “a marcha natural da evolução e fazer da contra-natureza uma lei...” O que essa filantropia busca, no fundamento, é a proteção de todos os sofredores, malogrados e degenerados, é garantir sua conservação, sua sobrevida, sua permanência, é inculcar a crença de que a natureza está errada, de que ela é injusta para com os seres degenerados, de que eles não podem ser sacrificados em seu interesse, mas isso é ameaçar a conservação e, principalmente, a elevação da espécie. 1345 Como denuncia Nietzsche em Ecce homo: Quando, no interior do organismo o órgão mais insignificante descura, mesmo por um mínimo, de impor com total segurança sua autoconservação, sua renovação de forças, seu “egoísmo”, o todo degenera. O fisiólogo exige a extirpação da parte degenerada, ele nega qualquer solidariedade ao degenerado, está o mais longe possível da compaixão por ele. Mas o sacerdote quer exatamente a degeneração do todo, da humanidade: por isso conserva o que degenera – a este preço ele a domina. 1346 1344 Dégénérescence et criminalité, pp. 124-125. Cf. FP 15 [10] da primavera de 1888. 1346 EH, Por que escrevo tão bons livros: “Aurora” § 2. Cf. também FP 15 [13] da primavera de 1888. 1345 439 A declaração de que o fisiólogo exige a extirpação da parte degenerada do organismo é também fundamentada nos escritos de Féré. Para o médico, a dissolução da degenerescência não é uma questão de ordem moral, é uma lei natural. Como ele sentencia: “Il faut que le faible périsse, telle est la loi fatale.” 1347 A caridade excessiva representa também, para o interno de Salpêtrière, uma ameaça a toda espécie: “Il ne faut pas se laisser aller au sentimentalisme, la protection excessive des nuisibles qui ne peuvent que dégénérer est une cause de souffrance pour l’humanité tout entière.” 1348 Os teóricos da fraternidade, declara Féré, acreditam que o princípio da mesma repousa na solidariedade da grande família humana, por isso, dever-se-ia buscar organizar a sociedade, obra dos homens, segundo o modelo do corpo humano, obra de Deus. No entanto, argumenta Féré: Les inventeurs de systèmes sociaux basés sur ce principe paraissent ignorer que le corps humain ne survit que lorsque tous ses organes sont bien constitués et en pleine santé; si l’un d’eux a subi une altération quelconque, l’ensemble en souffre, et souvent la mort s’ensuit. Lorsqu’une partie du corps est le siège d’une désorganisation profonde, la guérison ne s’obtient que par élimination de la partie malade. Il n’y a pas dans ce processus de base physiologique pour le principe de la fraternité comme on le comprend quelquefois. 1349 É importante salientar, entretanto, que tanto Féré como Nietzsche entendem que a assistência aos doentes é um benefício e um dever social, uma necessidade natural, sobretudo aos doentes acidentais, ou seja, aqueles que não são congenialmente degenerados, mas também a estes últimos não se pode negar a assistência. 1350 Afinal, é impossível prever, argumenta Féré, se eles não poderão vir a trazer uma grande contribuição à sociedade, principalmente no que se refere ao campo das ciências e das artes, como a história bem tem mostrado. 1351 No fragmento póstumo 15 [41] da primavera de 1888, Nietzsche argumenta que a sensibilidade ante o sofrimento alheio nada mais é do que sintoma da degenerescência, o sinal de que falta toda a força necessária para resistir ao fenômeno da induction 1347 Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 110, e também: Sensation et mouvement, p. 161. Féré, Sensation et mouvement, p. 158. 1349 Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 106, ver também: Sensation et mouvement, pp. 158-159. 1350 Cf., por exemplo, AC § 27, EH, Por que escrevo tão bons livros: “O nascimento da tragédia” § 4. 1351 Cf. Féré, Dégénérescence et criminalité, pp. 109-110 e 1348 440 psychomotrice, ao contágio dos sentimentos depressivos, das emoções dolorosas. 1352 Quanto maior o grau de degenerescência em um sujeito, mais grave será o seu nível de suscetibilidade à dor do próximo; mesmo a visão mais infinitesimal do sofrimento alheio pode provocar em tal sujeito uma dor que ultrapassa em todas as medidas a dor que o sujeito que é objeto de sua compaixão de fato sentiu. É assim que, na seção 7 de O Anticristo, em que se dá a crítica mais incisiva à moral da compaixão, Nietzsche apresenta a morte do Nazareno sob uma perspectiva diferente daquela apresentada na seção 35, embora também coerente com seu diagnóstico do tipo psicológico do redentor: “O próprio padecer torna-se contagioso através do compadecer; em determinadas circunstâncias podese atingir com ele uma perda geral de vida e energia vital, numa proporção absurda com o quantum da causa (– o caso da morte do Nazareno).” 1353 É ainda baseado na fisiologia de Féré que Nietzsche declara: “a compaixão entrava a lei da evolução, que é a lei da seleção. Conserva o que está maduro para o desaparecimento, peleja a favor dos deserdados e condenados da vida, pela abundância dos malogrados de toda espécie que mantêm vivos”. 1354 A moral da compaixão busca conservar aquilo que deve perecer, condenando, impedindo, sabotando aquilo que deve ser conservado em nome da elevação da vida: “esse instinto depressivo e contagioso entrava os instintos que tendem à conservação e elevação do valor da vida: é um instrumento capital na intensificação da décadence, como multiplicador da miséria e como conservador de tudo que é miserável”. 1355 No fragmento póstumo 15 [41] da primavera de 1888, Nietzsche afirma: “Não é a natureza que é imoral quando ela é sem piedade para com os degenerados: é, inversamente, o crescimento dos males fisiológicos e morais na raça humana que é a conseqüência de uma moral doentia e contra a natureza”. Essa declaração é também uma influência direta de Féré: 1352 “Minha experiência me dá o direito de desconfiar em princípio dos impulsos chamados ‘desinteressados’, de todo o ‘amor ao próximo’, sempre disposto à palavra e ao ato. Eu o vejo em si como fraqueza, como caso especial da incapacidade de resistência aos estímulos – a compaixão passa por virtude apenas entre os décadents” (EH, Por que sou tão sábio § 4). 1353 AC § 7. 1354 Idem. 1355 Idem. 441 Les types zoologiques qui se sont conservés à travers les âges n’ont pu persister que grâce à cette circonstance que les dégénérés, les individus et les espèces incapables de s’adapter aux modifications du milieu ont nécessairement succombé. C’est parce que cette élimination naturelle a été troublée dans notre espèce que nous la voyons de plus en plus sujette à une quantité croissante de maux physique et moraux. La nature est sans pitié pour les dégénérés; mais c’est à tort qu’on pourrait soutenir que la nature est insensible et immorale; il est plus exact de dire que la sensibilité d’un grand nombre d’individus et la morale qui en découle s’écartent de la nature et sont maladives. 1356 Ainda no fragmento póstumo 15 [41] da primavera de 1888, Nietzsche defende que não pode existir solidariedade em uma sociedade em que o número de elementos improdutivos e destrutivos é alarmante, em que a degenerescência atingiu um tal grau que, aqueles que já não nascem estéreis, não podem gerar nada mais do que novos seres degenerados, colocando em risco, assim, o destino de toda uma geração futura. Afinal, como diz Féré, embora não seja possível estabelecer nenhuma lei que venha a interditar a união entre seres degenerados, pois, “qui serait en mesure de décider à quel degré de dégénérescence il faut s’arrêter?”, não se deve favorecer sua reprodução, que só pode ocorrer sob condições irregulares, e, além disso: “Il ne faut pas laisser s’accréditer cette erreur qu’une infusion de sang nouveau peut faire remonter à une famille l’échelle de la dégénérescence: à ces croisements, les races déchues ne gagnent pas ce que les bonnes perdent.” 1357 Verifica-se, dessa forma, que algumas discussões levantadas por Nietzsche nos textos de seus últimos meses de vida consciente, que poderiam ser facilmente e equivocadamente atribuídas ao delírio, estão rigorosamente embasadas em todo um debate teórico travado no interior da literatura médica do final do século XIX, inclusive no que diz respeito à teoria da lei da degenerescência progressiva e hereditária desenvolvida por Morel. Isso significa que Nietzsche, possivelmente, compreendia que, para a medicina de sua época, o fim da cadeia degenerativa, sua conseqüência mais agravante é a esterilidade, fenômeno este que representa o grande argumento a favor da tese que diz que a dissolução da degenerescência constitui uma lei da natureza. Ao que tudo indica, para Nietzsche, há um grave perigo para a perpetuação da vida quando essa lei é burlada, quando seu funcionamento é sabotado, pela procriação entre seres degenerados e sadios, por exemplo, 1356 1357 Féré, Dégénérescence et criminalité, p. 104. DC, p. 110. 442 que protela o fim da cadeia degenerativa. Segundo Féré, o único meio de evitar a reprodução dos degenerados é “d’instruire le public, de lui apprendre par tous les moyens, comme une notion de nécessité urgente, les lois fatales de l’hérédité et de la dégénérescence, de sorte que les moins atteints sachent se mettre en garde.” Todavia, Nietzsche é bem mais enérgico em sua solução. No fragmento póstumo 22 [23] de setembro a outubro de 1888, o filósofo decreta: A interdição bíblica “tu não matarás” é uma ingenuidade comparada a minha interdição aos décadents: “vós não procriarás!” – ela é ainda pior, ela representa sua antítese... A lei suprema da vida, formulada por Zaratustra, exige que não se tenha piedade por todo excremento e dejeto da vida – que se elimine aquilo que, para a vida em ascensão, não seria mais do que estorvo, veneno, conspiração, hostilidade subterrânea – em uma palavra, cristianismo... é imoral, no sentido mais profundo, dizer: não matarás Nietzsche fará ainda, em um mesmo fragmento póstumo, o 23 [10] de outubro de 1888, mais quatro tentativas de elaborar essa sua interdição, todas elas iniciando com a mesma sentença. Não obstante, no fragmento póstumo 23 [1] do mesmo período, essa interdição é apresentada de um modo menos taxativo e mais orientador, propondo uma solução mais próxima daquela proposta por Féré para o impedimento da propagação da degenerescência, uma solução mais instrutiva e, ao mesmo tempo, de certa maneira, mais demagógica: Ainda um mandamento da filantropia. – Há casos em que uma criança seria um crime: entre os doentes crônicos e os neurastênicos até o terceiro grau. O que se deve fazer? – Encorajá-los à castidade, por exemplo, com ajuda da música de Parsifal, poder-se-ia tentar sempre: Parsifal ele próprio, esse típico idiota, não tinha mais do que muitas razões para não se reproduzir. Esse fragmento é extremamente significativo para o entendimento do valor que Nietzsche confere ao evangelho de Jesus. Se Parsifal é um típico idiota e, ao que parece, um estéril 1358, é provável, então, que Nietzsche considere Jesus, esse outro inocente da vila 1359 , esse outro puro tolo, um estéril, o que estaria plenamente de acordo com a definição do conceito nosográfico de idiotia do final do século XIX. Os neurastênicos são o início da 1358 Sobre a provável esterilidade de um tipo como Parsifal, cf. CW § 9 e FP 16 [69] primavera – verão de 1888. 1359 Cf. FP 14 [163] da primavera de 1888. 443 degenerescência hereditária. O idiota, que está no fim dessa cadeia, significa a esterilização da mesma, sua dissolução, sua auto-supressão. Com Parsifal, é possível convencer os neurastênicos a nem mesmo darem início a essa cadeia. Dessa maneira, assim como, para Nietzsche, o idiota Parsifal composto por Wagner tem como função dissuadir os neurastênicos de darem início a cadeia degenerativa hereditária, o mesmo vale para Jesus. Como idiota estéril, ele também tem como importante função conduzir a degenerescência a sua dissolução, a sua não procriação, aquilo que deveria ser o seu ideal, a sua felicidade. Por que esse ideal não pode ser compartilhado por um tipo de vida ascendente? No fragmento póstumo 11 [367] de novembro de 1887 a março de 1888, intitulado “Christianismi et buddhismi Essentia”, Nietzsche procura fazer uma comparação entre o primeiro budismo e a alegre mensagem de Jesus, apontando os seus traços em comum e aqueles que os distingue. Seus traços em comum são a luta contra o sentimento de hostilidade e a busca da felicidade no interior. O que os distingue é o fato de que um é resultado de um alto grau de espiritualidade e o outro, de uma incultura profunda. Ora, tanto no budismo quanto no evangelho: “Os instintos mais fortes da vida não [são] mais experimentados como alegrias, mas como causas de sofrimento”. No budista, na medida em que tais instintos incitam à ação, no evangelho, na medida em que esses instintos dão lugar à hostilidade e à contradição: “o fato de ser inimigo, de fazer o mal, no entanto, vale como desprazer, como perturbação da ‘paz da alma’”. Ora, mas somente uma degenerescência do cansaço ou uma degenerescência do malogro pode ver nos instintos mais fortes da vida a fonte de sua infelicidade. Uma vida bem constituída afirma esses instintos precisamente por conta de suas conseqüências, que, para ela, proporcionam o máximo de prazer, encerram a sua felicidade, isso porque tal vida já é em si mesma uma felicidade: “um bom soldado [Ein tüchtiger Soldat], em contrapartida, não encontra nenhum prazer a não ser num fazer guerra justa e num querer ser inimigo.” 1360 Nesse mesmo sentido, vale lembrar também do fragmento póstumo 14 [90] da primavera de 1888, em que Nietzsche diz ser falso que alguma natureza com êxito ou vantajosa, que uma felicidade, possa um dia vir a se preocupar com o anêmico santo de Nazaré. 1360 FP 11 [367] de novembro de 1887 a março de 1888. 444 O efetivar-se da vida é sua constante auto-superação, a vida se supera mediante o confronto, por meio da resistência aos obstáculos, é por isso que Nietzsche afirma: “A inaptidão para a luta: isto é degenerescência”. 1361 A vontade de poder procura a resistência, procura o conflito, o antagonismo, a hostilidade, a luta. 1362 É impossível, então, querer afirmar que a prática evangélica de Jesus possa ter brotado da força, que ela seja uma conseqüência de um acúmulo, de um extravasamento de poder: nada poderia ser mais incongruente com a filosofia de Nietzsche, nada poderia ser mais inconcebível. “Ninguém, talvez, cresceu tão perigosamente junto ao wagnerismo”, confessa Nietzsche a seu próprio respeito, “ninguém lhe resistiu mais duramente, ninguém se alegrou tanto por livrar-se dele.” 1363 Ou seja, a medida de força de um bom europeu, para o filósofo, está nessa capacidade de resistência, nessa sensibilidade forte, saudável, nesse metabolismo vigoroso, que impede que se sucumba à sedução da obra de arte wagneriana; eis a pedra de toque de uma constituição bem lograda, bem lograda no fundamento: “Como Wagner deve ter afinidade com a décadence européia em geral [...] – Pois o fato de não lhe oporem resistência já é, em si, um sinal de décadence.” 1364 Em Ecce homo, no capítulo “Por que sou tão sábio”, Nietzsche faz sua famosa declaração de que, embora possa, por um lado, ser considerado um décadent, ele é, ao mesmo tempo, o contrário disso. Isso porque ele soube tomar partido contra tudo aquilo que nele era décadent, porque ele soube escolher “os remédios certos contra os estados ruins” 1365 : isso significa ser sadio no fundamento. De acordo com Nietzsche: “Se existe algo em absoluto a objetar no estado de doença e de fraqueza, é que nele esmorece no homem o verdadeiro instinto de cura, ou seja, o instinto de defesa e ofensa. Não se sabe nada rechaçar, de nada se desvencilhar, de nada dar conta – tudo fere.” 1366 A capacidade de resistência quebrada, a hiperexcitabilidade: essa é a realidade básica da fraqueza, da degenerescência. Para o doente, nada é pior do que negar o seu próprio estado, negar a sua 1361 FP 15 [37] da primavera de 1888. Cf., por exemplo, FP’s 9 [151], 10 [44], 10 [103] do outono de 1887 ; FP’s 11 [77], 11 [78], 11 [111] de novembro de 1887 a março de 1888. 1363 CW, Prólogo. 1364 CW § 5. 1365 EH, Por que sou tão sábio § 2. 1366 EH, Por que sou tão sábio § 6. 1362 445 doença, porque a doença seduz o doente para tudo aquilo que lhe arruína, em primeiro lugar, para o ressentimento: “Estar doente é em si uma forma de ressentimento.” Qual o grande remédio que o doente dispõe? Aceitar sua própria condição, aceitar que ele não pode e não deve resistir: “Tomar a si mesmo como um fado, não se querer ‘diferente’ – em tais condições isso é a grande sensatez mesma.” 1367 Ora, é nisso que consiste exatamente a redenção ou, de maneira mais correta, a salvação/cura (Heil) oferecida por Jesus: o não mais resistir, a exclusão dos sentimentos de hostilidade, de ressentimento. Sobre o grande mal do doente, o ressentimento, Nietzsche declara: – Contra isso o doente tem apenas um grande remédio – eu o chamo de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com o qual o soldado russo para quem a campanha torna-se muito dura finalmente deita-se na neve. Absolutamente nada mais em si aceitar, acolher, engolir – não mais reagir absolutamente... A grande sensatez desse fatalismo, que nem sempre é apenas coragem para morte, mas conservação da vida nas circunstâncias vitais mais perigosas, é a diminuição do metabolismo, seu retardamento, uma espécie de vontade de hibernação. 1368 É necessário, todavia, evitar toda confusão aqui, o evangelho de Jesus é a salvação para os degenerados, para aqueles que possuem uma pré-disposição mórbida, para aqueles que são décadents no fundamento, e não para aqueles que se encontram meramente doentes, para os quais a doença é apenas um momento, ou melhor, para os quais a doença é meramente um meio. Todavia, o remédio, a cura, seja para a doença, seja na degenerescência, é uma só: libertar-se do ressentimento. Dito de outro modo, aquilo que representa “o proibido em si para o doente” 1369, também o é para o degenerado, ou seja, o ressentimento 1370 , infelizmente ele constitui igualmente a inclinação mais natural para ambos. Muitos poderiam tentar ver nisso aquela “afinidade subterrânea” que Nietzsche nutriria por Jesus, nada mais incabível aqui: 1367 Idem. Idem. 1369 Idem. 1370 “E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quantos os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido – para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo” (Idem). 1368 446 Outra coisa é a guerra. Sou por natureza guerreiro. Agredir é parte de meus instintos. Poder ser inimigo, ser inimigo – isso pressupõe talvez uma natureza forte, é em todo caso condição de toda natureza forte. Ela necessita de resistências, portanto busca resistência: o pathos agressivo está ligado tão necessariamente à força quanto os sentimentos de vingança e rancor [e, por que não, de amor] à fraqueza. 1371 Mas não é só essa necessidade momentânea de não resistência no indivíduo doente que pode gerar confusão. A necessidade de não resistência pode ainda se apresentar no indivíduo forte como conseqüência de dois outros fenômenos, a saber, tanto como sintoma do cansaço, quanto como em decorrência de um excesso de poder. Assim como no caso da doença, nenhuma dessas duas formas de não resistência equivale exatamente à necessidade de não resistência no degenerado congênito. No fragmento póstumo 11 [278] de novembro de 1887 a março de 1888, Nietzsche afirma que o homem forte, mas já cansado, tomado pela fadiga, também tem necessidade do “ideal”, nesse “ideal”, tal homem diviniza: “a cessação do trabalho, da luta, das paixões, da tensão, dos antagonismos, em suma, da ‘realidade’...”. O “ideal”, nesse caso, é propriamente uma forma de sonho, de fadiga, de descanso. É por isso que Nietzsche vai afirmar que, talvez, a Europa do fim do século XIX já estivesse preparada para um budismo que pudesse lhe salvar do ressentimento, uma prática de vida natural tal qual o evangelho de Jesus: “Nossa época está em certo sentido madura [reif] (ou seja, décadent) como estava aquela de Buda... Portanto, uma cristandade [Christlichkeit] é possível sem os dogmas absurdos...” 1372 Não obstante, é a terceira forma de não resistência no indivíduo forte que, ao que parece, tem sido mais comumente confundida com a não resistência posta em prática por Jesus, ainda que essa não resistência do forte represente, na realidade, a forma diametralmente oposta à não resistência desse alegre mensageiro, a saber, uma resistência que brota diretamente de um excesso de poder. Toda constituição saudável responde de maneira adequada às excitações, ou seja, na medida correta em relação ao quantum da causa, quanto mais forte o organismo, menor será a necessidade de responder a qualquer excitação. Eis a razão da não resistência no mais forte, da não resistência da força, ainda 1371 1372 EH, Por que sou tão sábio § 7. 11 [366] de novembro de 1887 a março de 1888. 447 que essa não resistência seja, no fundo, apenas aparente, porque a força gasta para opor resistência à maioria das excitações é tão irrelevante para um organismo forte que ele não exibe claros sinais de resistência. É Féré quem diz: Les sujets d’une constitution robuste, au contraire offrent, si on peut dire, une force statique plus considérable qui leur permet de résister aussi bien à l’excitation qu’à l’épuisement et de ne présenter, sous l’influence d’un agent quelconque, que des réactions modérées. L’impassibilité est un signe de force; et les anciens Égyptiens la symbolisaient parfaitement en représentant les puissants, dieux ou rois, assis, les membres dans une position intermédiaire à la flexion et à l’extension, le regard à l’horizon, prêts à tout et émus de rien. 1373 Novamente, um excesso de poder, um transbordamento de força, faz com que um ser extremamente poderoso não sinta necessidade de “se mover” por qualquer coisa, porque sua força é tão grande que não há nem mesmo a necessidade de responder a grande maioria dos estímulos, que, para ele, não representam verdadeiras excitações, solicitações, ameaças. É como a não resistência dos gigantes dos universos mitológicos e das fábulas populares ante os ataques de homens pequenos, seres, para eles, tão insignificantes quanto o menor dos vermes. Esse tipo de não-resistência não representa, portanto, nenhum tipo de redenção, de cura, mas tão-somente uma questão de indiferença, de ausência de necessidade, em suma, de plenitude de poder. É claro que a busca por um estímulo, por um obstáculo, ainda existe nesse caso, mas, enquanto um adversário digno não for encontrado, nenhum movimento se faz necessário. É insustentável, portanto, toda tentativa de atribuir a prática da não resistência de Jesus a um acúmulo de forças. Como patenteia Nietzsche, deve-se evitar a todo custo: “A confusão entre dois estados totalmente diferentes: por exemplo, a calma da força, que, essencialmente, se abstém de reagir, o tipo de deuses que nada agita... e a calma do esgotamento, o entorpecimento até a anestesia”. 1374 Na seção 57 de O Anticristo, Nietzsche fala da realidade de toda casta mais elevada, de seu direito à felicidade, à beleza, à bondade, uma vez que “apenas neles a bondade não é fraqueza”. Há, dessa forma, uma bondade da fraqueza e uma bondade da força, não se deve confundi-las: 1373 1374 SM, p. 133. FP 14 [65] da primavera de 1888. 448 O “homem bom” como produto da décadence, que “se rende” [„sich ergiebt“,], que compreende o inconveniente da hostilidade, da cólera e da vontade de se vingar, – que é muito fraco, de nervos muito fracos para isso... O “homem bom”, pela força, pela plenitude de poder, enquanto tipo dominador, que selecionou para si uma existência que lhe alivia da necessidade de ter sentimentos agressivos e defensivos...; que encarregou uma casta mesmo desses sentimentos... 1375 Tal homem cria então um “deus” a sua imagem – – Para ele, o mundo também é justificado: o mal [Übel] tem uma finalidade pedagógica, isto é, uma finalidade punitiva... 1376 A confusão causada entre fenômenos aparentemente idênticos que resultam, no entanto, de razões exatamente opostas, a saber, de uma total ausência de forças, por um lado, e de um transbordamento de forças, por outro, não é, como visto no decorrer do trabalho, exclusividade do fenômeno da não resistência. O mesmo pode também ser observado em relação à embriaguez, ao êxtase, ao luxo, à criminalidade, à prostituição e à liberdade de espírito. Essas conseqüências, que podem se seguir tanto como causa de um retrocesso fisiológico quanto de um transbordamento de poder, só traz na aparência um resultado idêntico para ambos os casos, ou seja, não se pode dizer que a liberdade de espírito, a não-resistência e a embriaguez da vida elevada equivalem àquelas da vida degenerada, que possuam o mesmo significado, o mesmo valor. Por exemplo, quer-se amiúde argumentar a favor de uma interpretação (absolutamente) positiva da figura de Jesus por parte de Nietzsche por conta do fato de ele ter classificado Jesus como um tipo de “espírito livre”. Esquece-se facilmente que Nietzsche utiliza essa expressão, que funciona quase como uma figura de linguagem em semelhante caso (é extremamente significativo que a expressão esteja entre aspas) para se referir ao estado de liberdade de Jesus frente ao discurso denotativo, uma situação que é condicionada, na verdade, por sua idiotia e não por uma superabundância de forças, como ocorre no caso de um verdadeiro espírito livre (o espírito livre sem aspas), que realmente teve que se libertar de algo, de um peso. Jesus se vê livre desse “peso” porque nem ao menos possuía condições de sentir o “quanto ele pesa”, e não como resultado de um exercício de poder. 1375 Esse fragmento póstumo está localizado entre os comentários e extratos que resultaram da leitura de Jacolliot, sendo assim, muito provavelmente, a casta encarregada dos sentimentos de agressividade e vingança é a dos guerreiros (ksatriyas), e a casta que seleciona uma existência que lhe alivia desses sentimentos é a dos sacerdotes (brâmanes). 1376 FP 14 [218] da primavera de 1888. 449 Um último motivo devido ao qual Jesus não pode ser tido como um tipo mais elevado de homem é o fato de que ele não pode dizer Não, fazer o não... para afirmar. Todavia, Nietzsche diz expressamente: “eu ensino o Não a tudo aquilo que torna fraco e esgota... eu ensino o Sim...” 1377 Uma afirmação plena da vida traz como condição indispensável a capacidade de condenar, destruir, amaldiçoar antigos valores, os chamados “supremos valores da humanidade”, os valores cristãos. Jesus, como tipo de homem que tudo aceita, como tipo de homem que não condena, não destrói, como inofensivo, não pode ser tido como o ideal de uma vida elevada: Eu nego, por um lado, um tipo de homem que até agora foi tido como o mais elevado, os bons, os benévolos, os benéficos; nego, por outro lado, uma espécie de moral que alcançou vigência e domínio como moral em si – a moral de décadence, falando de modo mais tangível, a moral cristã. Seria legítimo ver a segunda contestação como a mais decisiva, pois a superestimação da bondade e da benevolência já me parece, de modo geral, conseqüência da décadence, sintoma da fraqueza, incompatível com uma vida ascendente e afirmadora: o negar e o destruir são condição para o afirmar. 1378 No texto introdutório à seção “Por que escrevo tão bons livros” de Ecce homo, referindo-se à soberba negligência com que seus livros foram interpretados pelos homens “modernos”, à abundante pura tolice que seus poucos leitores deram mostras, alemães ou não, Nietzsche afirma que um livro, tal como o seu Zaratustra, que se encontra para além de todas as possibilidades mais raras de vivência, não será de modo algum ouvido, afinal, não se tem ouvido para aquilo que não se tem vivência. Exemplo disso é a designação de “idealista” que aqueles que julgaram havê-lo compreendido lhe imputaram. Até mesmo sua palavra para a designação de um tipo mais elevado de homem, ou seja, “além-do-homem”, posta na boca de seu Zaratustra, foi lida com a mais absoluta pura tolice, a saber: “como tipo ‘idealista’ de uma mais alta espécie de homem, meio ‘santo’, meio ‘gênio’...” Seu além-do-homem foi visto até mesmo como uma reforma do “culto do herói” fundado por Carlyle, este grande falsário que teve a ousadia de chamar até mesmo Lutero de herói. Nada há de mais ofensivo, para Nietzsche, portanto, do que ser confundido com este Carlyle, uma vez que aquilo que o autor de Zaratustra estabelece como alvo é tudo o que Lutero, aquele 1377 1378 FP 14 [13] da primavera de 1888. Cf. Também FP 14 [113] da primavera de 1888. EH, Por que sou um destino § 4. 450 monge alemão, aquele santarrão, pôs abaixo ao restaurar o cristianismo quando atacou a Igreja, que, naquele momento, já havia sido tomada pelo paganismo, já havia se rendido à altura. Mas Lutero, este homem baixo e vulgar, tomado por instintos ainda mais baixos e vulgares, voltou-se contra todo aquele esplendor renascentista, contra toda a virtú, contra tudo aquilo que representava a própria auto-supressão do cristianismo: César Bórgia como papa! Em sua carta a Georg Brandes de 20 de novembro de 1888, Nietzsche declara: – Você adivinha o que leva a pior em “Ecce homo”? Como o tipo mais ambíguo de homem, como a raça mais execrável da história em relação ao cristianismo? Os senhores alemães! – Eu lhes disse coisas terríveis... Os alemães têm em sua consciência, por exemplo, o fato de terem desviado em seu sentido a última grande época da história, a Renascença – no momento em que os valores cristãos, os valores da décadence vinham abaixo, em que os instintos do mais elevado clero [Geistlichkeit] tinham sido superados pelos instintos contrários, os instintos da vida!... Atacar a Igreja – isso quer dizer restaurar o cristianismo. – César Bórgia como papa – isto seria o sentido do Renascimento, seu autêntico 1379 símbolo... Carlyle, que bem poderia ter visto em Wagner um apóstolo e no Parsifal deste um novo objeto de adoração, um novo herói, nunca poderia compreender o significado da palavra “além-do-homem”. Como declara Nietzsche, em tal palavra reconheceu-se “até mesmo o ‘culto do herói’, por mim tão desdenhosamente rejeitado, daquele grande falsário inconsciente e involuntário, Carlyle. A quem sussurrei que deveria procurar em torno por um Cesare Borgia, não por um Parsifal, este não confiou em seu ouvido.” 1380 Vimos que, para Nietzsche, o Parsifal de Wagner não passa de um tipo idiota, sua “pura tolice” e “castidade” possuem um fundamento fisiológico já bem conhecido da medicina. É neste tipo de homem que se encontra o ideal de Wagner, o seu “gênio e herói revolucionário”. Em uma carta a Reinhart Von Seydlitz de 24 de fevereiro de 1887, Nietzsche chama Wagner de glorificador [verherrlicher] da “pura tolice”; Nietzsche estaria, em O Anticristo, sendo também um glorificador da “pura tolice”, de Parsifal, da idiotia, de 1379 “– César Bórgia como papa... Compreendem-me? Pois bem, essa teria sido a vitória pela qual hoje anseio –: com ela o cristianismo estaria abolido! – O que aconteceu? Um monge alemão, Lutero, foi a Roma. Esse monge, tendo nele todos os instintos vingativos de um sacerdote fracassado, indignou-se em Roma contra o Renascimento...” (AC § 61) 1380 EH, Por que escrevo tão bons livros § 1. 451 Jesus? Ora: “Se Wagner”, com essa sua glorificação da “pura tolice”, “pode passar por um redentor, quem nos libertará de tal redenção, desse redentor quem nos libertará?...” 1381 O que Nietzsche diz querer com seu Ecce homo é evitar confusões com seu nome, evitar que se abuse de seu nome, evitar que seu nome seja vinculado, entre todas as outras coisas com as quais ele foi e tem sido vinculado, com o “idealismo”, com o “culto do herói”, com Renan, com Wagner, com a glorificação da “pura tolice”. Provavelmente um dos principais motivos para Nietzsche decidir escrever Ecce homo, decidir procurar evitar, pois, a confusão com o seu nome, foi a última carta que Malwida von Meysenbug enviou para o filósofo, apenas em parte conservada, em meados de 1888, em resposta a uma carta de 4 de outubro em que o filósofo lhe adverte sobre o envio de três exemplares de O Caso Wagner por intermédio de seu editor, anunciando-lhe também o término daquele que ainda era tido como o primeiro livro de sua Transvaloração de todos os valores, a saber, O Anticristo. Essa carta de Malwida deixou Nietzsche extremamente irritado, culminando no fim da longa amizade entre os dois. Na carta, Malwida diz: Também sou de opinião que não se deve tratar um velho amor, mesmo já extinto, da maneira como você trata W.[agner]; ofende-se a si próprio dessa forma, pois um dia se amou da mesma maneira plena e inteiramente, e o objeto desse amor não era um fantasma, mas sim uma realidade [Wirklichkeit] plena e inteira. A expressão “bufão” [„Hanswurst“] para W. e Liszt é absolutamente repulsiva [abscheulich]. Em carta a seu editor, Constantin Georg Naumann, de 6 de novembro 1888, Nietzsche explica que um escrito preparatório à Transvaloração, fazia-se necessário, por isso teria vindo à luz o Ecce homo, redigido, segundo o filósofo, entre 15 de outubro, data em que completava 44 anos, a 4 de novembro. É possível, portanto, que Nietzsche tenha iniciado a redação de Ecce homo imediatamente após ter lido a carta de Malwida. Afinal, em uma carta de 5 de novembro de 1888, Nietzsche faz questão de anunciar a Malwida, de forma enigmática, o término de sua autobiografia, com uma alusão, sempre significativa, a Pascal: “Espere só um pouco, muito honorável amiga! Dar-lhe-ei ainda a prova de que ‘Nietzsche est toujours haïssable’.” 1381 FP 14 [52] da primavera de 1888. 452 Após uma ríspida e impetuosa resposta a carta de Malwida, em 18 de outubro de 1888 1382 , Nietzsche lhe envia uma segunda carta, não menos violenta, porém menos lacônica, em 20 de outubro de 1888, em que declara ter sido obrigado a suprimir progressivamente quase todas as suas relações “por repugnância [aus Ekel]”, diz ele, “de ser tomado por algo que não sou”. Nietzsche confessa que já aguardava o dia em que Malwida finalmente declarasse sobre os seus escritos, com inocência e lealdade, “eu perhorrescire [abomino] cada palavra”, visto ser ela uma “idealista”, e, sentencia o filósofo, “eu trato o idealismo como uma insinceridade tornada instinto, como vontade de não enxergar a realidade [Realität] a todo custo: cada frase de meus escritos contém o desprezo ao idealismo.” Será que ela não pôde compreender nada de sua tarefa? O que bem pode significar transvaloração de todos os valores? Qual o tipo de homem cujo cultivo sua filosofia trata como meta? O que significa a palavra “além-do-homem”? Que tal palavra não se refere a nenhum monstro moral 1383 , a nenhum animal de orelhas compridas, a nenhum asno 1384, a nenhum Parsifal, a nenhum idiota: Você confeccionou [zurechtgemacht] – coisa que jamais irei perdoar – a partir de meu conceito de além-do-homem, uma nova “suprema impostura”, qualquer coisa que se avizinha a sibilas e profetas: enquanto todo leitor sério de meus livros sabe que o tipo de homem que não me causa repugnância [Ekel] é precisamente o tipo oposto aos ídolos ideais de outrora, um tipo cem vezes mais similar a um César Bórgia do que a um Cristo. Ora, nesse período, a distinção entre Jesus e Cristo, segundo nossa hipótese interpretativa, já havia sido estabelecida por Nietzsche. Dessa forma, alguém poderia argumentar que não há nesse caso um juízo a respeito da figura de Jesus. Que não é Jesus que está sendo contraposto a figura de César Bórgia. Entretanto, qual o significado de “Cristo” no estágio final da crítica de Nietzsche ao cristianismo? O termo “Cristo” refere1382 “Venerável amiga, estas não são coisas sobre as quais admito contradição. Eu sou, em questões de décadence, a maior autoridade que há sobre a Terra. Esses homens de hoje, com sua lastimável degeneração do instinto [Instinkt-Entartung], devem considerar-se felizes em ter alguém que lhes sirva um vinho puro em casos mais obscuros. O fato deste bufão [Hanswurst] ter sido capaz de despertar para si a fé (como você expressou com uma inocência digna de respeito) de ter sido “a última expressão da natureza criativa”, sua “palavra final” por assim dizer, exige, de fato, gênio, mas um gênio da mentira... Quanto a mim, tenho a honra de ser algo oposto – um gênio da verdade – –” 1383 Cf. EH, Prólogo § 2. 1384 Cf. EH, Por que sou um destino § 2. 453 se, entre outras coisas, à noção de que Jesus, de que um idiota, é o salvador da humanidade, de todos os homens, de que sua redenção se dirige a todos. De fato, não é Jesus, em sua idiotia e em sua prática evangélica em si, adequada e natural a uma forma de vida décadent como a dele, que está sendo contraposto a César Bórgia, mas sim a idéia de que este idiota congênito e o caminho apropriado que ele encontrou para uma vida bem aventurada segundo sua condição possam servir como modelo tanto para um tipo mediano quanto para um tipo superior de homem e de vida. Já há uma perversão no tipo de Jesus e no que sua vida significou na idéia de que ele e sua prática representam uma espécie de “Redenção” da humanidade, ou seja, na idéia de que ele foi o Cristo: – o idiota, o nível mais baixo da cadeia degenerativa progressiva e hereditária, como modelo universal, como meta. Daí o mote de Nietzsche: “não se dever perdoar o cristianismo”. Os textos que tratam da questão acerca do caráter imperdoável do cristianismo 1385 gravitam sempre em torno de duas questões principais: não se deve perdoá-lo porque ele estabeleceu como ideal de homem tudo aquilo que contraria os instintos de uma vida forte e nobre; e também não se deve perdoá-lo porque ele escolheu a razão doente como razão cristã, a neurastenia, os estados extáticos e epileptóides, a idiotia. 1386 Uma religião cuja efetivação mesma se dá pela falsificação da realidade tem na incapacidade de conhecer a realidade seu ideal supremo. É assim que Pascal sempre surge como a grande vítima do cristianismo em um tal aspecto, porque ele foi um tipo de homem mais elevado espiritualmente, um tipo de homem que tinha a maior capacidade de conhecer a realidade, mas que viu nessa sua grande capacidade o seu grande pecado, o que havia de mais odioso em si. Como sentencia Nietzsche: Não se deve embelezar e ataviar o cristianismo: ele travou uma guerra de morte contra esse tipo mais elevado de homem, ele proscreveu todos os instintos fundamentais desse tipo, ele destilou desses instintos o mal, o homem mau – o ser forte como o tipicamente reprovável, o “réprobo”: O cristianismo tomou o partido de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou em ideal aquilo que contraria os instintos de conservação da vida forte; corrompeu a própria razão das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a perceber como pecaminosos, como enganosos, como tentações os valores supremos do espírito. O exemplo mais lastimável – a corrupção de Pascal, que acreditava na corrupção 1385 1386 Cf. AC § 5, FP’s 11 [55] e 11 [408] de novembro de 1887 a março de 1888. Cf. AC § 51. 454 de sua razão pelo pecado original, quando ela fora corrompida apenas por seu cristianismo! – 1387 Segundo Campioni, é sobretudo com Burckhardt e Taine que Nietzsche descobre o Renascimento latino e a era clássica, em oposição direta ao “Re-nascimento” germânico prometido pela ilusão wagneriana. Em Burckhardt, ele encontra o homem individual e o “poeta filólogo” e consome a ruptura com o mito germânico do Volk. Nietzsche opõe à corrupção psicológica décadent de um Parsifal a ilusão estética sadia de um César Bórgia. Em contraposição ao Parsifal de Wagner, “esse típico idiota”, o filósofo apresenta César Bórgia, esse centro de energia imoralista, essa “ave de rapina”; não uma figura histórica, mas um mito consciente, que perdeu, devido a sua larga exploração literária e estética, suas características históricas precisas, tornando-se um símbolo da vida em seu estado mais elevado. 1388 Ora, o que significa, então, César Bórgia contra Cristo: uma ilusão estética afirmadora da vida contra uma falsificação psicológica negadora da vida (falsificação também no sentido de dizer que na idiotia se encontra a redenção da humanidade); significa César Bórgia, o personagem histórico esteticamente louvado enquanto tipo mais elevado de homem, contra o tipo de Jesus psicologicamente corrompido como um “Redentor”; significa um ponto culminante de força tido como ideal de vida contra a configuração fisiológica mais degenerada, ou seja, a idiotia, tida como tipo ideal de vida. 1389 Na seção “Nós, antípodas”, de Nietzsche contra Wagner, uma reelaboração do aforismo 370 de A gaia ciência, Nietzsche explica que há dois tipos de sofredores: os que sofrem de esgotamento de poder e os que sofrem de um excesso de poder. Há, portanto, a necessidade de dois tipos de remédios, cada um correspondendo à necessidade de determinado tipo de sofredor: Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remédio [Heil] e socorro de vida em crescimento ou em declínio: elas pressupõem sempre sofrimento e sofredores. 1387 AC § 5. “Creio absolutamente [unbedingt] no que você disse a respeito de Dostoiévski, eu o estimo, por outro lado, como o mais valoroso material psicológico que eu conheço, – eu lhe sou estranhamente grato, ainda que ele vá de encontro aos meus instintos mais profundos. Mais ou menos como a minha relação com Pascal, a quem eu quase amo, por ter me ensinado uma infinidade de coisas; o único cristão lógico...” (Carta, a Georg Brandes de Turim em 20 de novembro de 1888). 1388 Ver para isso, Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 154. 1389 Sobre César Bórgia como ideal de um tipo mais elevado de homem, cf. AC § 46, AC § 61, BM § 197; CI, Incursões de um Extemporâneo § 37; e FP 11 [153] de novembro de 1887 a março de 1888. 455 Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de superabundância [Überfülle] de vida, que querem uma arte de dionisíaca, e desse modo uma compreensão e perspectiva trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento [Verarmung] de vida, que requerem da arte e da filosofia silêncio, quietude, mar liso, ou embriaguez, entorpecimento, convulsão. 1390 Embora Nietzsche não estabeleça uma clara distinção entre redenção [Erlösung] e salvação [Heil], entre redentor [Erlöser] e salvador [Heiland], supomos que seja possível fazer uma tal distinção com base em certas passagens de suas últimas obras e, principalmente, com base na raiz etimológica dos dois termos. Ainda que o filósofo, em “Nós, antípodas”, fale de uma cura para homens dionisíacos e para homens décadents, acreditamos que a arte, filosofia ou religião que mais merece o epíteto de “cura” é aquela que brota diretamente do declínio, da décadence, seja a do malogro, ou seja, da idiotia e do ressentimento (evangelho de Jesus e o cristianismo), seja a do cansaço (budismo). Em “Nós, antípodas”, as curas [Heil] sobre as quais Nietzsche se refere, podem ser traduzidas também por necessidades, por alvos. E a meta do homem dionisíaco, sua “cura” não é exatamente conseguir eliminar sua dor, seu sofrimento, mas a transfiguração do aspecto terrível da vida, a libertação do horror da existência, a Redenção, ou seja, a dissolução das dicotomias, que mostra a necessidade da dor e do prazer para a elevação da vida. Neste sentido, a única Redenção autêntica é a Redenção dionisíaca, o único Redentor é o deus Dionísio. O que o homem que sofre de abundância de vida necessita: – Aquele mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação – nele o mal, sem sentido e feio, aparece como sendo permitido, em virtude de um excedente de forças geradoras, restauradoras, capazes de transformar todo o deserto em exuberante pomar. O homem dionisíaco, portanto, não busca o fim da dor, a “paz da alma”, a “beatitude”, a “bem aventurança”, mas até mesmo a intensificação da dor e do sofrimento; ele anseia por uma arte que transfigure o aspecto terrível da existência. Ele não busca ser resgatado, ele não quer ser salvo, ele não espera por um salvador, ele não procura, no fundo, nem mesmo uma cura em um sentido mais exato, mas a real Redenção, que não se confunde, de modo algum, com a “Redenção” cristã. 1390 NW, Nós, antípodas. 456 Segundo Nietzsche, o pobre em vida, por outro lado, busca como cura – e aqui em um sentido mais preciso de fim da dor e do sofrimento – dois tipos de estados: a calma, a quietude (a “paz da alma”) ou a embriaguez, a convulsão, que são seguidas pelo entorpecimento (os “estados elevados”, a “santidade”). Esses estados representam, portanto, por um lado, aquilo que a prática de Jesus oferece e, por outro, aquilo que a doutrina cristã promete. Deste modo, tanto o evangelho de Jesus quanto o cristianismo se adéquam muito mais à designação de salvação/cura [Heil] do que a arte dionisíaca. Mas será que não há aqui também uma diferença? Vimos que, para Nietzsche, os métodos de “penitência” e “redenção” do cristianismo se tornam cada vez mais “eficientes”, ou seja, funcionais, à medida que o homem santo vai se tornando mais doente, à medida que o debilitamento de seu corpo vai se agravando. O cristianismo visa, assim, tornar o homem sempre mais doente, é desse modo que o sacerdote se mantém no poder. A “cura”, a “salvação” que o cristianismo oferece não é real, ela não passa de uma falsificação da realidade. Qual a real necessidade do homem décadent: Inversamente o que mais sofre, o mais pobre de vida necessitaria ao máximo de brandura, paz e bondade – do que hoje se denomina humanidade – tanto no pensar como no agir, e, se possível, de um deus que é propriamente um deus para doentes, um salvador [Heiland], assim como também da lógica, a compreensibilidade conceitual da existência até para idiotas – os típicos “livrespensadores”, como os “idealistas” e “almas belas”, são todos décadents –, em suma, de uma certa estreiteza cálida e que afasta o medo, um encerrar-se em horizontes otimistas, que permite o embotamento... 1391 Por conseguinte, é a prática de Jesus que mais merece ser chamada de salvação/cura, pois ela oferece ao décadent exatamente o que ele precisa, pois ela não nega a realidade da décadence. 1392 A “salvação/cura” que o cristianismo promete, não passa de uma modificação de sintomas, de um agravamento da degenerescência fisiológica. 1391 1393 A NW, Nós, antípodas. Sobre a proximidade entre os termos “salvação” e “cura”, entre “salvador” e “curador/médico”, cf., por exemplo, OS § 83, intitulado “Salvador e médico” [Heiland und Arzt], em que Jesus é denominado de “médico da alma”. 1393 Assim como a “salvação” de Sócrates: “Indiquei como Sócrates fascinava: ele parecia ser um médico, um salvador [Heiland]. É necessário também apontar o erro que havia em sua crença na ‘racionalidade a qualquer preço’ – Os filósofos e moralistas enganam a si mesmos, crendo sair da décadence ao fazer-lhe guerra. Sair dela está fora de suas forças: o que elegem como meio, como salvação, é apenas mais uma expressão da décadence – eles mudam sua expressão, mas não a eliminam. Sócrates foi um mal-entendido: toda a moral do 1392 457 Redenção dionisíaca liberta o tipo de homem mais elevado do terror, do sofrimento de ter que encarar o aspecto mais sombrio da existência, ao transfigurar esse aspecto, fazendo com que este homem se concilie com a vida, com esse seu aspecto terrível. A raiz etimológica da palavra “redenção” [Erlösung] está intimamente relacionada ao nome de Dionísio, como Dionísio Lusos, Dionísio Liber, aquele que soluciona, aquele que liberta, que traz uma resolução pela dissolução das divergências. O cristianismo de Paulo corrompeu o sentido original do termo ao associá-lo com sua noção de um Deus “Salvador”, a degeneração mais corrupta que já houve sobre a Terra do conceito de deus, ao ponto em que este se torna uma mera função de solicitude para seres fracos; um deus cujo principal atributo não está mais relacionado com o poder, com a força e com a saúde, mas sim com a fraqueza e com a doença. Um povo forte quer antes de mais nada agradecer, ser grato por sua existência. Seres fracos querem antes de mais nada auxílio, ajuda, uma cura, uma salvação, de seu sofrimento. 1394 Dionísio, como deus que liberta, logo acabou sendo identificado pelo cristianismo nascente, por uma religião de escravos, como o equivalente ao seu “Deus Salvador” que lhes liberta da escravidão, da dor, do sofrimento. O conceito cristão de Deus já corrompido, corrompeu, por sua vez, o conceito pagão de deus, o conceito de deus que era a representação por excelência do paganismo: eis a gênese do Crucificado inventado por Paulo. Na seção 6 de O Anticristo, Nietzsche sentencia: “Eu chamo um animal, uma espécie, um indivíduo corrupto quando perde seus instintos, quando escolhe, se prefere, o que é prejudicial.” 1395 O que torna a salvação de Jesus mais honesta e natural, e efetivamente saudável, é justamente o fato de que com ela o Galileu pôde aceitar, preferir e buscar o que lhe era vantajoso, seguir o seu mais básico instinto de vida, aceitar com amor, com bem aventurança sua dissolução. Precisamente o oposto do que a “salvação” pregada pelo cristianismo almeja. Quando a décadence busca a sua própria conservação ela não só aperfeiçoamento, também a cristã, foi um mal-entendido ... A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença, uma outra doença – e de modo algum um caminho de volta à ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade ... Ter de combater os instintos - eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto. –” (CI, O problema de Sócrates § 11) 1394 Cf. AC § 17. 1395 Cf. AC 6. 458 escolhe o que lhe é prejudicial e desvantajoso como põe em risco a própria superação da vida, pelo contágio dos afetos nocivos e depressivos, do pessimismo, da dor e da doença, enfim, da fraqueza. A conservação da décadence (pela moral da compaixão) possibilita sua propagação e evita que a natureza siga o seu curso natural, ou seja, a degeneração progressiva hereditária que conduz à esterilidade, a interrupção da cadeia degenerativa. A “salvação” cristã e a salvação de Jesus se dirigem ao mesmo tipo de homem, é necessário antes de tudo, pois, ser carente deste tipo de cura, ser enfermo ou doente mesmo, possuir uma pré-disposição mórbida, uma degenerescência hereditária (preferencialmente), para que se possa ser “salvado” ou curado. 1396 e congênita Jesus está para Cristo assim como salvador está para “Redentor”, ou seja, o Jesus de O Anticristo é uma interpretação real, uma descrição fisio-psicológica de um tipo, pautada na causalidade natural; o Cristo é uma interpretação fictícia, uma corrupção psicológica do que significa este tipo de homem, ou seja, do que significa ser idiota. 1396 “O médico diz”, para o cristão, “‘incurável’” (AC § 47). “Ninguém é livre para tornar-se cristão: não se é ‘convertido’ ao cristianismo – é preciso ser doente o bastante para isso...” (AC § 51) “A decisão é dada, ninguém é livre para ainda escolher. Ou se é tschandala ou não se é...” (AC § 60). “Não se refuta o cristianismo, não se refuta uma doença dos olhos.” (CW. Epílogo) 459 460 APÊNDICE I A invenção do cristianismo por Paulo Em um artigo fundamental para a Nietzsche-Forschung, particularmente no que diz respeito ao tema Nietzsche e Paulo, Jörg Salaquarda faz uma declaração um tanto ousada: “Quando Nietzsche fala dos grandes representantes e promulgadores dos valores da décadence, ele indica sobretudo Sócrates e o ‘fundador do cristianismo’ (isto é, Jesus ou Paulo; por fim, Paulo apenas). No fim, Paulo aparentemente se torna mais importante para Nietzsche do que Sócrates – isso, pelo menos, parece evidente para mim.” 1397 De fato, se o confronto com Sócrates, apontado como o grande sintoma e instrumento da dissolução no interior da cultura grega desde O nascimento da tragédia, não se arrefece em seu último período de produção, como bem se constata na seção “O problema de Sócrates” em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche parece, no entanto, estar plenamente convencido, na obra que constitui a realização de sua Transvaloração de todos os valores, ou seja, em O Anticristo, do papel muito mais decisivo que Paulo desempenhou para a consolidação dos valores da décadence no mundo ocidental. Isso porque, na perspectiva de Nietzsche, Paulo não foi apenas o autor de um movimento decadente restrito a uma determinada sociedade, mas sim aquele que conseguiu agregar e sintetizar todas as características básicas dos grandes movimentos decadentes do mundo ocidental e do mundo oriental da antiguidade, incluído aí o movimento impulsionado por Sócrates, em um único movimento, um movimento cosmopolita, universal, que não pertence a nenhuma nação específica, isto é, o cristianismo, e são justamente os valores dessa religião que estão na base de toda a cultura ocidental até então. Apesar disso, parece que pouca importância tem sido dada para a interpretação que Nietzsche faz de Paulo 1398 , e a ousadia da declaração supracitada de Salaquarda aparece sob uma luz mais clara quando se destaca o fato de que um mero “santo”, “apóstolo”, 1397 Salaquarda, “Dionysus versus the Crucified One”, p. 275. Recentemente, parece que a maior exceção disso tem sido o trabalho de Daniel Havemann em sua obra Der ‘Apostel der Rache’ (Berlin: Walter de Gruyter, 2002); e em seu artigo “Evangelische polemik: Nietzsches Paulusdeutung” (in: Nietzsche-Studien, 2000, pp. 175-186). 1398 461 fundador de religião possa vir a assumir no pensamento de um filósofo mais importância do que Sócrates. Parece que, nesse caso, há um grande receio de que a “seriedade” do filósofo seja posta em dúvida. Ainda mais quando é em O Anticristo que a crítica a Paulo ganha sua expressão mais efusiva. O Anticristo, livro cuja intensidade contida em seu discurso foi durante muito tempo vista como indício dos primeiros sinais de delírio que precedeu o colapso mental na qual mergulhou o filósofo poucos meses após a conclusão definitiva da obra. Em Ecce Homo, Nietzsche avalia sua própria importância histórica como transvalorador de todos os valores. Ora, essa mesma importância Nietzsche confere a Paulo, considerado por ele como o transvalorador dos antigos valores nobres em prol dos valores da décadence 1399, e aquele que dividiu a história em antes e depois dele da maneira mais radical. Como esclarece Salaquarda: Se é no cristianismo que a moral da décadence, hostil à vida, recebe expressão especialmente clara, e se ela mostrou ter sido nessa forma um fator na história como nenhum outro, então é compreensível que o ‘transvalorador’ Nietzsche veja Paulo, o ‘inventor’ do cristianismo, como um dos seus grandes adversários, e finalmente como o grande adversário. 1400 Sendo assim, para que uma Transvaloração de todos os valores, que irá suplantar os valores da décadence e instaurar novos valores afirmadores da vida enquanto vontade de poder, seja levada a cabo, é necessário derrubar os fundamentos da religião inventada pelo transvalorador Paulo. Paulo é visto por Nietzsche como o inventor do cristianismo exatamente porque foi ele o principal responsável pela falsificação do que representou a vida e sobretudo a morte de Jesus, dando origem, assim, a figura do Cristo ou do Crucificado. Portanto, ao concluir Ecce Homo com uma sentença que parece conter o resumo de toda sua empreitada filosófica, qual seja: “–Fui compreendido? – Dionísio contra o Crucificado...” 1401 , o filósofo não está se referindo, como pretende Karl Jaspers 1399 Cf.GM, I, § 8. Cf. também, Salaquarda, “Dionysus versus the Crucified One”, p. 281. Salaquarda, “Dionysus versus the Crucified One”, p. 273. 1401 EH, Por que sou um destino § 9. 1400 462 1402 , a Jesus, mas sim tão-somente ao símbolo criado por Paulo, ou seja, ao Crucificado, ao Cristo morto na cruz para a remissão dos pecados, expressão máxima da negação da vida e dos valores vitais, o maior resultado desse grande ato de falsificação e deturpação de um simbolismo original, isto é, da realidade evangélica vivida por Jesus. Se Nietzsche confere a Paulo a autoria do símbolo do Crucificado, e se ele se refere a si próprio como “o último discípulo do filósofo Dionísio” 1403 , então, é possível afirmar que na fórmula “Dionísio contra o Crucificado”, o que está contraposto são duas transvalorações antagônicas 1404 : a que deve ocorrer em nome dos valores da vida ascendente, por meio do transvalorador Nietzsche, e a que ocorreu em nome dos valores da vida declinante, mediante o transvalorador Paulo. Portanto, a sentença que fecha Ecce homo e que sintetiza o projeto filosófico de Nietzsche, também poderia significar: “Nietzsche contra Paulo”. Desse modo, para se compreender toda a importância que a crítica a Paulo exerce para a realização do projeto da transvaloração de todos os valores, que consiste justamente em O Anticristo, é fundamental que se entenda como e por que Paulo empreendeu a elaboração dessa religião que representa a suprema consagração dos valores decadentes e negadores da vida, inteiramente contidos em seu símbolo máximo, ou seja, no Crucificado, ao qual Nietzsche opõe um outro símbolo, originário de uma manifestação religiosa plena de valores nobres e afirmadores da vida, ou seja, Dionísio. O primeiro grande confronto de Nietzsche com Paulo se deu em Aurora, no aforismo intitulado “O primeiro cristão”. Nesse momento, Nietzsche apresenta pela primeira vez a tese de que se deve atribuir não a Jesus, mas sim a Paulo a invenção do cristianismo. Segundo o filósofo: “[...] sem essa notável história, sem os desconcertos e arrebatamentos de um tal espírito, de uma alma tal, não haveria o cristianismo; mal saberíamos de uma pequena seita judia cujo mestre morreu na cruz”. 1405 Nietzsche elabora, assim, uma psicologia de Paulo, na qual o mesmo é visto como alguém que se encontrava 1402 “A grande figura oposta a Jesus é, para Nietzsche, Dionísio. Quase todas as declarações de Nietzsche são contra Jesus, a favor de Dionísio” (Jaspers, Nietzsche und das Christentum, p. 60). 1403 CI, O que devo aos antigos § 5. Cf. também, Salaquarda, “Der Antichrist”, pp. 91-136. 1404 Como o próprio título de um artigo de Souladié sustenta: “Cristo e Anticristo: figuras da Transvaloração (Inversion) dos valores”. 1405 A § 68. 463 completamente aprisionado por uma “idéia fixa”, a saber: o caráter inerentemente inobservável da Lei. Paulo, movido por sua desenfreada ânsia de domínio, que se manifestava em sua necessidade angustiada por distinção, bem de acordo com o seu instinto judaico (que via na grandeza moral o grau máximo de elevação), havia se tornado o mais “fanático defensor e guarda de honra desse Deus e da sua Lei, continuamente à espreita e em luta contra os que a infringiam e questionavam, duro e mau para com eles, e inclinado a extremos de castigos”. 1406 Mas Paulo finalmente se deu conta de que, devido ao seu amor pelo poder, ele próprio se sentia constantemente incitado a transgredir essa mesma Lei que tão ardorosamente defendia. Esse era o aguilhão que lhe feria a consciência. “A Lei era a cruz a que se sentia pregado: como a odiava! Como lhe guardava rancor! como olhava em torno, a buscar um meio de destruí-la – não mais de cumpri-la em sua pessoa!” 1407 Paulo se viu desolado, a contradição em seu ser era insuportável: o motivo que o levava a defender a Lei, ou seja, o poder advindo da distinção, já era em si uma infração da Lei: E enfim surgiu-lhe o pensamento salvador, acompanhado de uma visão, como teria de ser com esse epiléptico: a ele, o furibundo zelador da Lei, totalmente cansado dela no seu íntimo, apareceu-lhe em estrada solitária o Cristo, o rosto brilhando com a luz divina, e Paulo ouviu as palavras: “Por que me persegues?”. O que ali se deu, no essencial, foi isto: sua mente ficou clara; “é irracional”, falou consigo, “perseguir justamente esse Cristo! Eis a escapatória, eis a vingança perfeita, eis aqui, somente aqui, o destruidor da Lei!” 1408 Finalmente ele intuiu como poderia se ver livre do tormento provocado pela Lei que tanto amou e odiou. Por que perseguir esse inimigo da Lei, se tal inimigo era a grande solução para o seu enigma, para a tortura que era a sua inobservância, para o fato de que nunca poderia haver salvação pela Lei. Esse Jesus representava justamente o fim da Lei, o fim de sua aflição, ou seja, o cumprimento da Lei a partir de sua abolição mesma: “Doente da mais atormentada soberba, de repente sente-se restabelecido, o desespero moral se foi, pois a moral se foi, foi destruída – isto é, cumprida, lá na cruz!”. 1409 Eis a sua idéia sublime, o “pensamento abissal” intuído naquela sua experiência de Damasco. De acordo com a análise que Nietzsche empreende em Aurora, foi somente a partir dessa interpretação 1406 A § 68. Ibidem. 1408 Ibidem. 1409 Ibidem. 1407 464 feita por Paulo do que de fato representou a morte de Jesus na Cruz, que o cristianismo tomou sua verdadeira forma. Como Nietzsche afirma: “– Este é o primeiro cristão, o inventor da cristandade! [Der Erfinder der Christlichkeit!]. Até então havia apenas alguns sectários judeus. –” 1410 Durante a elaboração de Aurora, o principal impulso para as reflexões de Nietzsche sobre o papel desempenhado por Paulo na origem do cristianismo proveio da obra Die Anthropologie des Apostels Paulus, de Hermann Lüdermann. 1411 Antes disso, o entendimento de Nietzsche sobre Paulo provavelmente tinha sofrido influência da obra Saint Paul, de Ernest Renan, e das discussões com seu amigo Franz Overbeck, autor de Studien zur Geschichte der Alten Kirche. 1412 Mas é com Lüdermann que seu interesse sobre Paulo ganha novo ímpeto. Segundo Salaquarda 1413, o que mais despertou o interesse de Nietzsche foi a tese de Lüdermann de que, para Paulo, não havia possibilidade de salvação por intermédio da Lei, esse era o seu axioma. É em torno dessa tese que se concentram os excertos que Nietzsche extrai do livro de Lüdermann. Nietzsche elabora uma série de reflexões 1415 1414 A partir daí, , em que ele, afastando-se de Lüdermann, conclui que Paulo encontrou a solução para o caráter incumprível da Lei na morte de Cristo, o destruidor da Lei. Contudo, como já dissemos, durante o período que vai de 1887 a 1889, em conjunção com a produção do material com vistas a sua planejada obra Vontade de poder, e mais tarde, para a Transvaloração de todos os valores, Nietzsche entra em contato com novas fontes, que o conduzirão a uma nova e radical diferenciação entre as figuras de Paulo e Jesus. Salvo engano, a obra de maior envergadura inteiramente dedicada ao tema Nietzsche e Paulo é a de Daniel Havemann, Der ‘Apostel der Rache’ [O ‘apóstolo da 1410 Ibidem. Lüdermann, Hermann. Die Anthropologie des Apostels Paulus und ihre Stellung innerhalb seiner Heilslehre. Kiel: Universitäts-Buchhandkung, 1872. Nietzsche tomou conhecimento dessa obra por intermédio de Overbeck. Cf. as cartas de Nietzsche a Overbeck em 22 de junho, 7 de julho e 19 de julho de 1880. 1412 Overbeck, Franz. Studien sur Geschichte der alten Kirche. Schloss-Chemnitz: Ernst Schmeitzner, 1875. 1413 Cf. Salaquarda, “Dionysus versus the Crucified One”, p. 269. 1414 Cf. FP 4 [217], FP 4 [218] e FP 4 [219] do verão de 1880. 1415 Cf. FP 4 [220], FP 4 [231], FP 4 [253-255] e FP 4 [258] do verão de 1880. 1411 465 vingança’]. Nesse livro, Havemann parece analisar minuciosamente as fontes de Nietzsche até a época de Aurora, sobretudo Lüdermann, Overbeck e Renan, bem como seus antecessores no estudo histórico e psicológico sobre o apóstolo. Todavia, Havemann parece não se ocupar de maneira tão detida nas fontes do último período de produção do filósofo. O que é um problema, pois acreditamos que é principalmente a partir da leitura de Ma religion, de Tolstói, que uma nova ênfase é dada sobre como ocorreu a invenção do cristianismo por Paulo. Apesar de Nietzsche, ao que tudo indica, não rejeitar a sua tese elaborada em Aurora de que a idéia genial de Paulo consistiu na interpretação da morte de Cristo na cruz como a destruição da Lei, em O Anticristo, uma outra idéia de Paulo, na verdade, talvez uma variação daquela idéia inicial, ganha muito mais destaque e passa a ser vista como a grande intuição advinda de sua experiência de Damasco: a idéia de que a visão de Jesus ressuscitado (a sua alucinação) é a prova da imortalidade pessoal, pois é a partir dessa concepção que Paulo elabora toda a sua doutrina de salvação da alma, vida eterna, juízo final, recompensa e castigo. Segundo Nietzsche, foi com esse grande ato de falsificação que o sacerdote Paulo finalmente conseguiu adquirir o poder tão desejado, conclamando toda a massa de deserdados do Império Romano, e mais tarde, toda a barbárie do mundo antigo, em um único e monstruoso movimento décadent, que logrou se tornar senhor de Roma, estabelecendo os valores da vida degenerada como os únicos válidos até hoje. Nas duas teses lançadas por Nietzsche na seção 24 de O Anticristo para a solução do problema da gênese do cristianismo está também definido exatamente qual foi o papel desempenhado por Paulo na história dessa gênese: primeiramente é ele o grande herdeiro da habilidade ímpar dos judeus em falsificarem a realidade, só que, dessa vez, toda a realidade é por ele adulterada e negada, inclusive o próprio judaísmo sacerdotal; em segundo lugar, foi Paulo o principal autor da degeneração, corrupção e falsificação da figura de Jesus, foi ele quem o transformou em um “Redentor”. Nietzsche argumenta que quando o cristianismo iniciou de fato sua história nenhuma importância foi realmente dada aos ensinamentos de Jesus, desde o início toda atenção esteve voltada para a sua morte na cruz. “– O destino do evangelho foi decidido 466 com a morte – foi pendurado na ‘cruz’...” 1416 Foi a partir dessa morte e da tentativa de se buscar uma explicação para o seu significado que o evangelho, isto é, a experiência de beatitude vivida por Jesus, foi gradualmente escamoteado, primeiramente, pelos apóstolos e pela comunidade inicial e, mais tarde, por Paulo, o maior embusteiro dessa fatídica história. A resposta que os apóstolos e a comunidade inicial encontraram para o enigma da cruz introduziu o primeiro elemento totalmente alheio ao evangelho de Jesus e ao seu tipo, a saber, o ressentimento. O judaísmo dominante foi visto, então, como o principal inimigo de Jesus e o responsável por sua morte: “Nesse instante sentiram-se em revolta contra a ordem, entenderam Jesus, em retrospecto, como em revolta contra a ordem”. 1417 Foi transferido, assim, para o tipo de Jesus todo esse sentimento de revolta e vingança que tomou conta dos apóstolos. Jesus se torna, dessa forma, um querelante. Todo o desprezo e amargor que a comunidade sentia contra os fariseus e teólogos transformaram Jesus em um fariseu e teólogo. A noção de “Messias” foi posta em primeiro plano para a compreensão de sua “autêntica missão”. Entretanto, restava ainda um grave problema, como pôde Deus permitir sua morte: “A perturbada razão da pequena comunidade deu-lhe uma resposta assustadoramente absurda: Deus deu seu filho em sacrifício para o perdão dos pecados. De uma só vez acabou-se o evangelho!”. 1418 A idéia de culpa e reparação estava ausente no evangelho de Jesus, nada separava Deus dos homens, essa era a sua “boa nova”. Com Paulo a idéia da morte de Jesus como sacrifício corrompe definitivamente o sentido natural do que representou a vida de Jesus, ou seja, a possibilidade de uma decadência inofensiva, que não apresenta qualquer ameaça à vida, que não impede que a vida atinja seu ápice mais elevado, como o faz o cristianismo. Como afirma Nietzsche: – A “boa nova” foi imediatamente seguida pela pior de todas: a de Paulo. Em Paulo se incorpora o tipo contrário ao “portador da boa nova”, o gênio em matéria de ódio, na visão do ódio, na implacável lógica do ódio. O que não sacrificou ao ódio esse disangelista! Antes de tudo o redentor: ele o pregou à sua cruz. A vida, o exemplo, a doutrina, a morte, o sentido e o direito de todo o evangelho – nada mais restou, quando esse falsário inspirado pelo ódio percebeu o que apenas ele podia necessitar.1419 1416 AC § 41. AC § 41. 1418 Ibidem. 1419 AC § 42. 1417 467 De acordo com Nietzsche, Paulo estava longe de ser um idiota como Jesus. Na verdade, segundo o filósofo, o apóstolo foi um gênio: “Jesus é o contrário de um gênio: é um idiota [...] É preciso reter isso: ele é um idiota no meio de um povo muito esperto... Somente seus discípulos não o foram, – Paulo não era de modo algum um idiota! – disso depende a história do cristianismo”. 1420 Em O andarilho e sua sombra, Nietzsche oferece uma definição lapidar sobre o que significa ser um gênio: “– Querer uma meta elevada e os meios para atingi-la”. 1421 Desde Aurora, Nietzsche entende que a grande meta de Paulo sempre foi o poder: “– Sua necessidade era o poder, com Paulo o sacerdote quis novamente chegar ao poder”. 1422 Sua genialidade consistiu no fato de ter encontrado o meio mais eficaz para alguém como ele obter o poder ao intuir uma poderosa idéia, um pensamento original. Essa intuição sempre esteve ligada para Nietzsche à experiência de Damasco do apóstolo, não que ele acreditasse que Paulo tenha sido de fato tomado por uma tal visão, mas foi por meio desse seu relato que Paulo pretendeu justificar sua autoridade como apóstolo e a veracidade de seu principal engodo, portanto, a chave para a compreensão de sua empreitada se encontra nesse momento decisivo. A grande idéia de Paulo sempre esteve ligada também à morte de Jesus na Cruz, com o seu significado, como se verifica nesse fragmento esquemático: “Sobre a psicologia de Paulo. O fato é a morte de Jesus. Resta interpretá-la...” 1423 A vida, o sentido da vida e os ensinamentos de Jesus nunca fizeram parte de suas preocupações, ele não precisava disso: “No fundo, ele não tinha necessidade da vida do redentor – precisava da morte na cruz e algumas coisas mais...” 1424 Contudo, se em Aurora, a grande idéia de Paulo, seu meio para atingir o poder, era entendida por Nietzsche na fórmula Cristo na cruz como a destruição da Lei, em O Anticristo, um novo enfoque é dado para a conseqüência que Paulo tira da morte de Jesus e, principalmente, de sua pós-morte: a aparição do “Cristo ressuscitado” lhe revelou antes de tudo a imortalidade da vida pessoal, com base nisso, o apóstolo passou a entender que a morte na cruz 1420 FP 14 [38] da primavera de 1888. OS § 378. 1422 AC § 42. 1423 FP 14 [57] da primavera de 1888. 1424 AC § 42. “Que se pense na liberdade com que Paulo trata e, quase escamoteia, o problema da pessoa de Jesus – Alguém que morreu, que foi visto após sua morte, alguém de cuja morte os judeus são responsáveis... Um simples ‘motivo’: a música é ele que acrescenta... No início, um zero –” (FP 15 [108] da primavera de 1888). 1421 468 significou a remissão dos pecados da humanidade e a possibilidade de salvação eterna. Sendo assim, a morte na cruz ainda é o principal a ser interpretado, mas a chave de sua interpretação é dada a Paulo por sua alucinação: o cristo ressuscitado, a “prova” da imortalidade pessoal. Toda a doutrina paulina se origina ao redor desse pressuposto fundamental, dele se segue a necessidade de reparação, sacrifício, salvação, juízo, punição e castigo. Todo o evangelho de Jesus foi, dessa forma, corrompido por essa teologia elucubrada por Paulo: O tipo do redentor, a doutrina, a prática, a morte, o sentido da morte, até mesmo o após a morte – nada permaneceu intacto, nada permaneceu próximo da realidade. Paulo simplesmente deslocou o centro de gravidade de toda aquela existência para trás dessa existência – na mentira do Jesus “ressuscitado”. 1425 Por conseguinte, com a pregação de que é necessário, antes de tudo, a fé em Cristo como o Salvador para a obtenção da salvação da alma, Paulo cria toda uma teologia que se afasta radicalmente daquilo que Jesus de fato ensinou, isto é, de que é somente pela prática da não-resistência e do amor incondicional que se pode alcançar a bem-aventurança, e isso nesta vida: a crença em uma vida após a morte nunca fez parte do mundo em que Jesus habitou. 1426 A tese de que com a doutrina da imortalidade pessoal, de que com a crença em uma sobrevida eterna, desloca-se o “centro de gravidade” do evangelho de Jesus é uma influência direta da leitura que Nietzsche fez do ensaio Ma religion, de Tolstói1427. Para Tolstói, a crença em uma outra vida não se encontra nos ensinamentos de Jesus, ela está ausente mesmo entre os judeus. A noção de Paraíso e Inferno é tão somente uma invenção da Igreja e uma má interpretação do que seria a entrada na verdadeira vida que Jesus oferecia. Essa verdadeira vida é, de acordo com Tolstói, exatamente o oposto da imortalidade pessoal, significa justamente o abandono total de sua própria pessoa: uma conseqüência lógica da máxima “Não resistais ao homem mau”. Pois quem não resiste nega todo o seu direito à posse, desconhece a noção de propriedade, família, Estado, nação. De 1425 AC § 42. Cf. AC §§ 33-35, AC 39, AC 42; FP (277) 10 [180], FP (284) 10 [190], FP (283) 10 [189] de outono de 1887; FP 11 [282], FP 11 [295], FP 11 [356], FP 11 [365], FP 11 [368], FP 11 [369], FP 11 [378], FP 11 [383] de novembro 1887 – março de 1888; etc. 1427 Cf. Tolstói, Ma religion, p. 170; 222; e FP 11 [279] de novembro de 1887 – março de 1888. 1426 469 tal forma, seu corpo não lhe pertence, nem mesmo sua vida. Segundo Tolstói, a vida pessoal é um erro comprovado pela morte. Trabalhar para si é inútil, pois nenhuma bem aventurança resultará disso. Deus conferiu a vida ao homem não para o seu usufruto pessoal, mas para o bem dos homens em geral. A entrada na verdadeira vida é, dessa maneira, render-se à vontade de Deus, que é a de que o Homem viva: A verdadeira vida é aquela que acrescenta algo ao bem acumulado pelas gerações passadas, que aumenta essa herança no presente e a lega as gerações futuras. Para estar associado a essa vida, o homem deverá de boa vontade renunciar a sua vontade pessoal para observar a vontade do Pai, que deu a vida aos Filhos (do homem) [isto é, a humanidade]. 1428 Essa interpretação de Tolstói acerca do verdadeiro sentido do acesso a uma nova vida ensinado por Jesus fez Nietzsche notar o quão absurdo foi a falsificação operada por Paulo com relação ao significado da vida de Jesus, inteiramente nublada pela sombra da cruz e ofuscada pelo brilho da alucinação do Cristo ressuscitado. “A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão, toda natureza no instinto – tudo de benéfico, promovedor da vida, garantidor de futuro nos instintos passa a despertar suspeita”. 1429 Com isso, a vida perde sua meta e os instintos anárquicos passam a imperar: “Viver de modo que já não há sentido de viver, isso torna-se o sentido da vida... Para que sentido comunitário, para que gratidão com ascendência e ancestrais, para que colaborar, confiar, fomentar e ter em vista um bem comum?...” 1430 Segundo Nietzsche, as conseqüências nefastas disso até hoje estão na base de todos os grandes movimentos políticos: democracia, socialismo e anarquia. A discussão sobre as conseqüências políticas dessa teologia de Paulo baseada na imortalidade recebe um grande destaque nos últimos fragmentos póstumos de Nietzsche e tem o seu acabamento final na seção 43 de O Anticristo. 1431 Essa diferença de ênfase que há entre Aurora e O Anticristo acerca do significado da experiência de Damasco parece não ter sido notada por Salaquarda. Segundo ele, é 1428 Tolstói, Ma religion, p. 144. AC § 43. 1430 Ibidem. 1431 “A ‘imortalidade’ concebida a todo Pedro e Paulo foi, até agora, o maior, mais maligno atentado à humanidade nobre. – E não subestimemos a fatalidade que do cristianismo se insinuou para a política! Hoje ninguém mais tem coragem para direitos especiais, para direitos de senhor, para páthos da distância... Nossa política está doente dessa falta de coragem!” (AC § 43). 1429 470 justamente na intuição advinda da experiência de Damasco descrita em Aurora que se pode atestar o principal paralelo que Nietzsche fará entre a sua tarefa enquanto transvalorador e a de Paulo. Afinal, em Aurora, Nietzsche caracteriza a idéia de Paulo como a “idéia das idéias”, a mesma expressão que ele utiliza para falar do eterno retorno, o pensamento abissal que tomou conta de seu ser em Sils Maria. 1432 Salaquarda também argumenta que, assim como Nietzsche nomeia Paulo o “mestre da destruição da Lei”, o filósofo designa a si mesmo como o “mestre do eterno retorno”. Não obstante, apesar de ainda ser possível traçar um paralelo entre Damasco e Sils Maria, é preciso levar em conta que a idéia intuída por Paulo em Damasco ganha uma nova configuração em O Anticristo, isto é, o Cristo ressuscitado como prova da imortalidade pessoal, o que levou Paulo a concluir, em seguida, que a morte na cruz significou não apenas a destruição da lei, mas sobretudo a promessa de uma nova vida em um além mundo, a possibilidade de salvação da alma. Foi com a doutrina da imortalidade pessoal, muito mais do que com a doutrina da abolição da Lei, que Paulo finalmente encontrou o grande instrumento que o conduziria ao poder, o seu “centro de gravidade”. Com essa crença em outra vida ele conseguiu atrair para si toda a massa de insatisfeitos e desesperançados do mundo antigo. Ele logrou, assim, formar um verdadeiro rebanho, uma massa de degenerados que iria, por fim, assenhorar-se do Império Romano. O que ele mais tinha necessidade era de símbolos adequados para seduzir os deserdados do mundo antigo e reuni-los sob a sua égide. Como esclarece Nietzsche: Paulo quis os fins, portanto quis também os meios... O que ele mesmo não acreditava, acreditavam os idiotas aos quais ele lançou a sua doutrina [...] – ele tinha utilidade apenas para conceitos, doutrinas, símbolos com que são tiranizadas as massas, são formados os rebanhos. Qual a única coisa que Maomé tomaria depois ao cristianismo? A invenção de Paulo, seu meio para a tirania sacerdotal, para a formação de rebanho: a fé na imortalidade – ou seja, a doutrina do “juízo”... 1433 Por conseguinte, para Nietzsche o grande papel de Paulo foi elaborar um movimento decadente em escala universal. O que Paulo conseguiu foi promover um fatídico segundo encontro entre Oriente e Ocidente, que deu origem a um movimento 1432 1433 Cf. Salaquarda, “Dionysus versus the Crucified One”, p. 284. AC § 42. 471 decadente colossal, o qual se tornou hegemônico e o único instaurador de valores no mundo ocidental, fazendo com que a décadence, que é um fenômeno natural, passasse a representar uma ameaça à própria vida. O primeiro encontro entre Oriente e Ocidente teve lugar na Grécia: um deus bárbaro, feroz e incivilizado, Dionísio, com capacidade para abolir a helenidade, foi assimilado e reelaborado pela cultura grega na Tragédia, o ponto mais elevado dessa civilização. Porém, em Paulo, um segundo encontro acontece, cujo principal resultado é o símbolo do Crucificado, sob esse símbolo se reconhecem e se reagrupam todas as formas de decadência do mundo antigo: a decadência judia, helênica e pagã. O cristianismo é, em sentido estrito, o que resultou da união entre o oriente decadente (judaísmo sacerdotal) e o ocidente decadente (filosofia pós-socrática e o paganismo degenerado, aquele que pertencia às massas). Tanto na filosofia grega decadente quanto no paganismo decadente a crença no além, na salvação da alma, já estava plenamente desenvolvida, o que restou a Paulo foi reinterpretá-la e incorporá-la ao seu judaísmo sacerdotal. “Esse foi seu instante de Damasco: ele compreendeu que necessitava da fé na imortalidade para tirar o valor do ‘mundo’, que o conceito de ‘inferno’ ainda se tornaria senhor de Roma – que com o ‘além’ se mata a vida...” 1434 Essa é a principal resposta para o avanço vitorioso do cristianismo no mundo antigo: a união de todos os movimentos decadentes em torno de um mesmo núcleo, e esse feito assombroso é visto por Nietzsche como sendo a grande obra de Paulo, uma fusão de movimentos decadentes, o judaísmo sacerdotal, a filosofia pós-socrática e o paganismo, tudo isso foi sintetizado na figura do Crucificado. Mas um outro fator foi também de suma importância para o sucesso da expedição de Paulo em direção ao poder, a saber, a escolha de seu público alvo: “O movimento cristão, enquanto movimento europeu, é desde o início um movimento geral dos elementos de refugo e dejeto de todo tipo: – esses querem chegar ao poder com o cristianismo”. 1435 A reunião de toda a massa de deserdados em torno de uma mesma crença foi essencial para o crescimento do cristianismo. Com o cristianismo, um novo tipo de religião havia sido criado, uma religião que não pertencia a nenhuma sociedade específica, a nenhum Estado, a 1434 1435 AC § 58. AC § 51. 472 nenhuma nação, e sim a portentosa massa de degenerados de todo a antiguidade: “Ele não expressa o declínio de uma raça, é um agregado de formas de décadence de toda parte que se aglomeram e se buscam”. 1436 Ele surge para suprir o anseio dos desamparados, ele se dirigia aos esteios mais insignificantes da sociedade, à tschandala, para a qual toda esperança de uma melhora de vida estava há muito tempo perdida: “No cristianismo, os instintos dos sujeitados e oprimidos vêm ao primeiro plano: são as classes mais baixas que neles buscam sua salvação”. 1437 A vitória do cristianismo sobre Roma não teve como causa a corrupção do Império, muito pelo contrário, naquele momento o Império nunca foi mais pleno de pujança e saúde, seus valores eram os de uma classe nobre: “Nos tempos em que as camadas chandalas doentes, estragadas, cristianizavam-se em todo o império, o tipo oposto, a nobreza, estava presente em sua mais bela e madura forma”. 1438 A vida em sua forma mais sublime, animada pelo mais intenso vigor: – isso foi Roma. Contudo, o poder de agregação dos elementos mais fracos, miseráveis, e baixos da sociedade que o cristianismo possuía se mostrou invencível. Sua capacidade de transpor qualquer fronteira fez com que a decadência invadisse e dominasse todo o mundo antigo. “O cristianismo não era ‘nacional’, não era determinado pela raça – dirigia-se a toda espécie de deserdados da vida, tinha seus aliados em toda parte”. 1439 Todavia, esse avanço inexorável do cristianismo precisou tomar um novo direcionamento quando ele se infiltrou no mundo bárbaro. 1440 O que houve, portanto, foi um duplo movimento: primeiro a necessidade das camadas mais baixas trouxe consigo a necessidade de vulgarizar o cristianismo; em seguida, a necessidade das camadas bárbaras provocou a necessidade de barbarizar o cristianismo. 1441 Paulo exerceu um papel fundamental nesse duplo movimento, visto que a barbarização do cristianismo também é obra sua. Os cultos subterrâneos do Império Romano, seu rituais de iniciação, a crença na necessidade de salvação da alma, tudo isso foi muito bem aproveitado por Paulo: 1436 AC § 51. AC § 21. 1438 AC § 51. 1439 AC § 51. 1440 AC § 37. 1441 Cf. FP 11 [356] de novembro de 1887 – março de 1888. 1437 473 O cristianismo tinha necessidade de conceitos e valores bárbaros para assenhorar-se de bárbaros: o sacrifício de primogênitos, o ato de beber sangue na ceia, o desprezo do espírito e da cultura; a tortura em todas as formas, físicas e não físicas; a grande pompa do culto. 1442 Aquele movimento de deserdados logrou se assenhorar daquilo “que lá estava aere perennius [mais duradouros que o bronze], o Imperium Romanum...”. Roma, o paganismo na sua forma mais elevada, o autêntico paganismo, não o paganismo degenerado. Ora, a decadência do helenismo, da Antigüidade, foi posta em seus limites por Roma, ou seja, relegado a certas camadas sociais. Os movimentos decadentes eram e deveriam ser ou passageiros ou mantidos sob controle. Mas no cristianismo de Paulo todos os movimentos decadentes se fundem e suprimem o poder de Roma, atingindo todas as camadas sociais e perdurando até agora. Entre os movimentos decadentes que mais contribuíram para o surgimento do cristianismo, estão os cultos subterrâneos, sintomas da decadência no interior do próprio paganismo, algo já plenamente infiltrado no seio do Império Romano, ainda que mantido sob controle por ele, mas que, com os novos símbolos trazidos pelo cristianismo de Paulo, acabou por suplantar o Império: A tortuosidade de santarrões, a sigilosidade do conventículo, conceitos sombrios como inferno, sacrifício do inocente, unio mystica ao beber o sangue, sobretudo o fogo da vingança lentamente avivado, a vingança chandala – isto assenhorou-se de Roma, o mesmo tipo de religião que, em sua forma preexistente, Epicuro havia combatido. 1443 Epicuro surge aqui, como aquele que já então previra a catástrofe que estava à espreita do mundo antigo. Foi ele que mais duramente combateu e tentou remediar a decadência do paganismo, ou seja, o seu cristianismo pré-existente: “Leia-se Lucrécio, para entender contra o que Epicuro lutou, não o paganismo, mas o ‘cristianismo’, ou seja, a ruína das almas mediante os conceitos de culpa, castigo e imortalidade. 1444 Seu alvo principal era sobretudo a crença na imortalidade da alma advinda dos cultos de mistério, a doutrina da salvação. “– Ele fez guerra aos cultos subterrâneos, a todo o cristianismo 1442 AC § 22. AC § 58. 1444 Ibidem. 1443 474 latente – negar a imortalidade já foi, então, uma verdadeira redenção”. 1445 E a filosofia de Epicuro, sua luta contra a superstição, estava ganhando terreno, até a chegada de Paulo: “– E Epicuro teria vencido, todo o espírito respeitável no Império Romano era epicúrio: então surgiu Paulo... Paulo, o ódio tschandala a Roma, ao ‘mundo’, feito carne, feito gênio, o judeu, o judeu eterno par excellence...” 1446 Nietzsche considera que o principal motivo da decadência do paganismo 1447 e do helenismo não foi sua “corrupção”, ou seja, sua perversão moral, mas sim, exatamente o contrário disso, a saber, a introdução da moralidade em seu seio. 1448 Talvez seja possível traçar uma trajetória para esse movimento de dissolução no interior do paganismo tendo como ponto de partida a introdução de elementos da religião zoroastrista no interior dos cultos de mistério, bem como de elementos do que Nietzsche chama de “egipcismo”, ou seja, a doutrina de juízo, castigo, recompensa e salvação da alma que foi transportada para os rituais de iniciação dos cultos subterrâneos a partir do orfismo. 1449 É provável que o próprio culto de Dionísio tenha sido infectado com essa doença moral. Foi aí também que pela primeira vez se desnaturalizou a prática da ascese provinda da Ásia 1450 , antes um caminho para o neófito encontrar seu lugar na vastidão do universo, agora transformada em uma prática de renúncia e fuga do mundo. Esse movimento adquire um novo aspecto na escola pitagórica, passando por Parmênides e desembocando, naturalmente, em Platão “esse antiheleno e semita de instinto...” 1451 Os cultos subterrâneos propagados na Roma antiga representavam, portanto, o declínio do paganismo, e foi isso que Paulo aproveitou em seu cristianismo. Na verdade, 1445 Ibidem. AC § 58. 1447 Sobre o autêntico paganismo, cf. FP (314) 11 [35] de novembro 1887 – março 1888. 1448 Cf. FP (17) 9 [22] de outono de 1887; FP 11 [294] de novembro de 1887 – março de 1888. 1449 Cf. Campbell, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia ocidental. Tradução Carmen Fischer. São Paulo: Palas Athena, 2004, p. 156. 1450 Nietzsche fala da necessidade de renaturalizar o ascetismo. Cf. FP (66) 9 [93] outono de 1887. 1451 FP 11 [294] novembro de 1887 – março de 1888. “O elemento egípcio (‘a vida após a morte’ enquanto julgamento...). Os pitagóricos, os cultos subterrâneos, o silêncio, os meios do temor do além; a matemática: apreciação religiosa, tipo de comércio com a totalidade cósmico. O elemento sacerdotal, ascético, transcendente –. A dialética, – penso que já havia em Platão um repugnante e pedante descascar de conceitos?” (FP 11 [375] novembro de 1887 – março de 1888). 1446 475 com sua doutrina de salvação da alma pela fé em Cristo 1452 , pela fé na remissão dos pecados pelo sacrifício de Cristo na Cruz, ele conseguiu suplantar todos os cultos de mistérios, eliminando, assim, qualquer concorrência: – O cristianismo como fórmula para suplantar os cultos subterrâneos de toda espécie, os de Osíris, da Grande Mãe, de Mitra, por exemplo – e juntá-los: nessa percepção está o gênio de Paulo. Seu instinto foi tão seguro nisso que ele tomou as idéias com que aquelas religiões chandalas fascinavam e as pôs, violentando implacavelmente a verdade, na boca do salvador que inventara, e não apenas na boca – fez dele algo que também um sacerdote de Mitra podia entender... 1453 Além da decadência pagã, outro elemento essencial para a elaboração do cristianismo de Paulo foi a utilização da “razão doente”, ou seja, da filosofia pós-socrática. “A aparição dos filósofos gregos a partir de Sócrates é um sintoma de décadence: os instintos antihelênicos tomam à dianteira...” 1454 Além da dialética grega, o principal elemento de corrosão da cultura helênica que o cristianismo herdou foi a filosofia platônica1455, corrompida desde o seu nascimento por seu pitagorismo. Pode-se dizer que, a despeito do uso da filosofia platônica pelo cristianismo ter ganhado seu caráter definitivo no trabalho dos Padres da Igreja, o direcionamento que fez do cristianismo um “platonismo para o ‘povo’” 1456 já havia sido dado por Paulo. 1457 O fato de Paulo ter tido contato não só com a filosofia grega decadente, mas também com os filósofos da escola alexandrina é, de acordo com Nietzsche, uma das maiores provas da total ausência de honestidade de seu caráter: “Ver como honesto um Paulo que tinha o seu lar no principal centro de iluminismo estóico, quando ele faz de uma alucinação a prova de que o redentor ainda vive, ou mesmo dar crédito ao relato de que teve 1452 “Mas em todo lugar do mundo em que existem cultos secretos, crê-se nessa sobrevida, e isso numa perspectiva de recompensa e castigo [...] O artifício de Paulo foi elucubrar a crença que Cristo teria sido visto depois da morte (quer dizer o fato de uma alucinação coletiva) em uma lógica teológica, como se a imortalidade e a ressurreição fossem os fatos capitais e por assim dizer a pedra angular da ordem de chegada de Jesus (– desde modo, toda a doutrina e a prática da comunidade primitiva foram postas de ponta cabeça)” (FP 11 [281] novembro de 1887 – março de 1888). 1453 AC § 58. Cf. também A § 70; A § 72. 1454 FP 11 [375] novembro de 1887 – março de 1888. 1455 Para o caráter pré-cristão de Platão, cf. CI, O que devo aos antigos § 2; FP 11 [294] de novembro de 1887 – março de 1888; FP 16 [15] primavera – verão de 1888; FP 24 [1] 8 de outubro novembro de 1888. 1456 BM, Prólogo. 1457 “O platonismo paulino, o platonismo agostiniano –: até que finalmente se construiu essa impudica caricatura de filosofia e rabinismo que é a teologia cristã...” (FP 11 [356] novembro de 1887 – março de 1888). 476 essa alucinação, seria uma autêntica niaiserie [tolice] por parte de um psicólogo”. 1458 Como já havíamos mencionado a leitura de Brochard e Lang trouxe a Nietzsche uma nova concepção do ceticismo da antiguidade 1459 e reavivou a sua vertente filológica. A leitura de Wellhaussen também foi fundamental para isso, por meio dela, Nietzsche percebeu que o maior de todos os talentos do judaísmo sacerdotal é a sua arte em falsificar a realidade, o maior indício dessa mestria judaica é justamente a Bíblia. Paulo, como herdeiro dessa arte, operou a definitiva falsificação da realidade que se chama cristianismo, tendo como base a deturpação do que representou a vida de Jesus e a adulteração de seu tipo. Portanto, é ainda o instinto sacerdotal que usa a figura de Jesus para atacar e falsificar a última realidade que ainda se mantinha em pé diante do ressentimento judaico, ou seja, “‘o povo sagrado’, o ‘povo eleito’” 1460, a Igreja judia. E é por meio de procedimentos filológicos que Nietzsche desvenda essa fraude. Por meio da arte de ler bem 1461, sem falsear, sem adulterar o material original com interpretações arbitrárias, tendo como pedra de toque sua própria consciência intelectual. É com asseio intelectual que Nietzsche identifica a contradição, a incoerência em como o tipo de Jesus é apresentado nos Evangelhos. 1462 De acordo com Nietzsche, toda a teologia de Paulo tem como ponto de apoio a falsidade, sem ela sua doutrina não se sustentaria. Não só a desfiguração do tipo de Jesus é desvendada por Nietzsche por meio de procedimentos filológicos, mas também o uso que Paulo faz da fé como o distintivo do cristão. Ora, Paulo precisa negar a “sabedoria do mundo”, isso significa, para Nietzsche, que ele tem que negar, em primeiro lugar, a medicina e a filologia, visto que, com sua fé, o cristão precisará negar a noção de causalidade natural, isto é, ele precisa ver sua condição decadente como causada por uma escolha pessoal, por sua crença, e não ver que essa mesma crença é, pelo contrário, causada por sua condição decadente. 1463 O uso de causas imaginárias, sobretudo a idéia de pecado, 1458 AC § 42. Cf. AC § 12; AC § 54. Para o entendimento do desenvolvimento da compreensão do ceticismo em Nietzsche, e a culminante oposição entre ceticismo e cristianismo que se dá em O Anticristo, cf. Lopes, Rogério Antônio, Ceticismo e vida contemplativa em Nietzsche, p. 530 ss. 1460 AC § 27. 1461 Cf. A § 5. 1462 Sobre a noção dos Evangelhos como fraude, cf. FP (39) 9 [50], FP (63) 9 [88] do outono de 1887; FP 11 [302] novembro de 1887 – março de 1888. 1463 Cf. CI, Os quatro grandes erros. 1459 477 para explicar a sensação de desgraça e bem aventurança, só pode funcionar mediante essa negação da causalidade natural: “Que é moral judaica, que é moral cristã? O acaso despojado de sua inocência; a infelicidade manchada com o conceito de ‘pecado’; o sentirse bem como perigo, como ‘tentação’; a indisposição fisiológica envenenada com o vermeconsciência...” 1464 Sendo assim, para o sacerdote, ou seja, para Paulo poder garantir o seu poder é necessário que ele seja desonesto e inapto para a filologia: “Fé” significa não querer saber o que é verdadeiro. [...] Não ter escolha senão a mentira – nisso percebo quem é predestinado a teólogo. Uma outra marca do teólogo é sua inaptidão para a filologia. Por filologia entenda-se aqui, em sentido bastante geral, a arte de ler bem – ser capaz de ler fatos sem falseá-los com interpretação, sem perder a cautela, paciência, finura, no anseio de compreensão.1465 Dessa forma, Nietzsche fará, em O Anticristo, o desmascaramento das três virtudes cardinais do cristão estabelecidas por Paulo, a saber, a fé, o amor e a esperança, como as três grandes “espertezas cristãs” 1466, como algo que tem como seu fundamento a falsidade. Contudo, é sobretudo no que diz respeito à fé que a crítica de Nietzsche se torna mais contundente. Em O Anticristo, ele elabora uma psicologia da fé 1467 , mostrando que o critério de verdade da mesma, isto é, a sua prova de força, só pode provir de um absurdo desasseio intelectual oriundo de um condicionamento fisiológico degenerado. Não esquecendo que o próprio ato de tornar uma fé o elemento distintivo do cristão já constitui uma fraude com relação aos ensinamentos de Jesus, que visava estabelecer uma prática, um fazer, “sobretudo um não-fazer-muitas-coisas”. 1468 Toda essa discussão sobre retidão intelectual versus fé conduz à fórmula cunhada por Nietzsche: “deus, qualem Paulus creavit, dei negation [Deus, tal como Paulo o criou, é a negação de Deus]”. 1469 Esse Deus criado por Paulo é o Deus que precisa necessariamente negar a “sabedoria do mundo”: – O Deus que Paulo inventou, um Deus que “arruína” a “sabedoria do mundo” (em sentido estrito, as duas grandes adversárias de toda superstição, a filologia e a medicina), é, na verdade, apenas a resoluta decisão do próprio Paulo: chamar 1464 AC § 25. AC § 52. 1466 AC § 23. 1467 Cf. AC § 9; AC § 50; AC § 55. 1468 AC § 39. 1469 AC § 47. 1465 478 “Deus” sua própria vontade, Torah [Lei], isso é primordialmente judaico. Paulo quis arruinar a “sabedoria do mundo”: seus inimigos foram os bons filólogos e médicos de formação alexandrina – contra ele fez a guerra. 1470 É ainda como crítica à teologia paulina que Nietzsche fará uma interpretação de Gênesis como o livro que revela o medo infernal de Deus (e, portanto, do sacerdote), à ciência, à sabedoria do mundo, em suma, à medicina e à filologia: “A ciência é o primeiro pecado, o gérmen de todos os pecados, o pecado original. Apenas isso é moral”. 1471 No livro de Gênesis, Nietzsche encontra toda a psicologia do sacerdote. Contra a manutenção do seu poder, o sacerdote tem como principal rival a ciência. Como a ciência prospera no ócio, ele deve expulsar o homem de seu Paraíso, isto é, torná-lo infeliz, atormentando-o com as noções de pecado, culpa e castigo. “A noção de culpa e castigo, toda a ‘ordem moral do mundo’ foi fundada contra a ciência – contra o desligamento do homem em relação ao sacerdote...” 1472 É somente com o uso da filologia e do compromisso com sua própria retidão intelectual que um indivíduo tornado espírito livre pode vir a desvendar essa assombrosa adulteração, esse embuste colossal que é o cristianismo de Paulo. Essa inaudita falsificação da realidade elaborada por Paulo tem como resultado principal o símbolo que expressa a negação absoluta da vida e de todos os aspectos que a condicionam: o Crucificado. No símbolo do Crucificado, na visão do Cristo, o “primogênito de Deus”, morto na cruz, por amor à humanidade, todos os malogrados enxergam a sacralização de seu estado debilitado, deplorável, miserável: “– Deus na cruz – não se compreende ainda o terrível pensamento por trás desse símbolo? – Tudo o que sofre, tudo o que está na cruz é divino...” 1473 Na morte de Cristo na cruz, a dor e o sofrimento são divinizados como vias de salvação, como veículos de fuga do mundo, mas, sendo assim, devem ser vistos, ao mesmo tempo, como sendo a própria refutação da vida, ao invés de ser sua condição mesma. Contra esse símbolo funesto, Nietzsche irá contrapor o símbolo do deus pagão Dionísio. O símbolo do deus Dionísio na última fase do pensamento de Nietzsche está 1470 Ibidem. AC § 48. 1472 AC § 49. 1473 AC § 51. 1471 479 intimamente relacionado à noção de afirmação dionisíaca da vida. 1474 O dionisíaco se torna cada vez mais a manifestação e aceitação da única realidade existente. O dizer Sim incondicional, ilimitado, inabalável à vida, a todos os seus aspectos, a tudo aquilo que ela tem a oferecer, sobretudo à dor, ao sofrimento e à morte, pois esses não são fatores negativos, mas sim a condição mesma pela qual a vida pode vir a se efetivar. Essa afirmação absoluta da vida está contida na figura de Dionísio, esse deus oriundo do mais autêntico sentimento religioso pagão. No mito que narra o sacrifício de Dionísio, Nietzsche encontra o exemplo mais elevado do louvor à vida e da consagração de sua efetividade, de seu vir-a-ser: a dor e a morte vistas como condições e possibilidades de intensificação da própria vida. Exatamente o oposto do que está contido no mito que narra o sacrifício do Cristo: a dor e a morte vistas como refutação da vida e veículos para o alcance de uma outra vida, o além, isto é, o próprio nada. Os motivos narrativos são os mesmos, provindos de uma mesma modalidade arquetípica, todavia, o significado contido em um sacrifício representa exatamente o contrário daquilo que está contido no outro. Como Nietzsche deixa claro em um fragmento póstumo esquemático fundamental para a compreensão da oposição entre Dionísio e o Crucificado: Dionísio contra o “crucificado”: aí tendes a oposição. Não é uma diferença quanto ao martírio, – é só que ele tem outro sentido. A vida mesma, sua eterna fecundidade e retorno, condiciona o tormento, a destruição, a vontade de aniquilamento... No outro caso, o sofrer, o “crucificado como inocente”, vale como objeção contra esta vida, como fórmula de sua condenação. Adivinha-se: o problema é o do sentido do sofrer: se é um sentido cristão, se é um sentido pagão. No primeiro caso, deve ser o caminho para um ser que seja santo; no segundo, o ser vale como santo o bastante para justificar ainda uma monstruosidade de sofrimento. O homem trágico afirma ainda o mais acerbo sofrer: ele é forte, pleno, divinizante o bastante para isso. O cristão nega ainda a sorte mais feliz sobre a terra: ele é fraco, pobre, deserdado o bastante, para em cada forma ainda sofrer com a vida. O deus na cruz é uma maldição sobre a vida, um dedo apontado para redimir-se dela. O Dionisio cortado em pedaços é uma promessa de vida: eternamente renascerá e voltará da destruição.1475 Não obstante, apesar da diferença de significado que há em cada sacrifício, como explicar tamanha proximidade de temas narrativos em símbolos tão antagônicos? Ora, a 1474 1475 Cf. CI, O que devo aos antigos § 4; NT, Tentativa de autocrítica § 4. FP 14 [89] da primavera de 1888, tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 480 visão de Jesus como herói não foi exatamente inventada por Renan, pois o próprio imaginário cristão elaborou uma figura “mitológica”, isto é, o Cristo, o Crucificado, segundo o modelo da narrativa do herói presente em diversas religiões do mundo. Todavia, nem Jesus e nem Cristo podem ser considerados heróis, nem psicologicamente falando, nem mitologicamente. Esse símbolo cristão do herói, o Crucificado, é, pelo contrário, uma desnaturalização e falsificação do mito do herói. Muito do que existe na narrativa “heróica” sobre a jornada, morte e ressurreição do Cristo foi acrescentado bem depois de Paulo. Como provavelmente é o caso, por exemplo, do mito do nascimento de Cristo, inteiramente de acordo com o mito do nascimento do herói 1476 ; a transformação de Maria em mãe e consorte do deus-menino, morto e ressuscitado nos moldes dos cultos subterrâneos do paganismo, de adoração à Grande Mãe, de Osíris, Mitra e do próprio Dionísio; com o acréscimo das lendas dos santos católicos e da adoção de um calendário segundo o ciclo de celebração dos rituais pagãos, como o 25 de dezembro, em que se comemorava o nascimento do deus-menino Mitra, etc. Entretanto, todo esse imenso poder de sincretismo que garantiu ao cristianismo seu crescimento exponencial e sua hegemonia no mundo ocidental, foi obra de Paulo. Ora, foi o apóstolo que promoveu o encontro entre Oriente e Ocidente decadentes que se personificou na figura do Crucificado. O próprio Crucificado já foi criado por Paulo como uma tentativa de suplantar os cultos subterrâneos, em que o mito do herói, do deus-menino, morto e ressuscitado, era um dos principais elementos dos mistérios da iniciação. Sendo assim, pode-se dizer que o símbolo do Crucificado surge mesmo como uma tentativa de resposta, como uma imitação e depravação do símbolo de Dionísio. Como se pode ver em alguns indícios deixados pelo próprio Nietzsche em um fragmento póstumo: Paulo parte da necessidade de mistérios das grandes massas religiosamente excitadas: ele busca uma vítima sacrificial, uma fantasmagoria sangrenta que sustente a concorrência com as imagens dos cultos secretos: Deus na cruz do qual se bebe o sangue, a unio mystica com a “vítima”. Ele procura estabelecer a sobrevida (a sobrevida bem-aventurosa, purificada, da alma individual) como ressurreição, em relação causal com aquela vítima sacrificial (segundo o tipo de Dionísio, Mitra, Osíris). 1477 1476 Para isso, cf. Rank, Otto. El mito del nacimiento del heroe. Traducción Enrique Butelman. Buenos Aires: Paidos, 1961. 1477 FP 11 [282] de novembro de 1887 – março de 1888. 481 A prática de Jesus e a doutrina cristã deveriam ser designadas mais corretamente pela palavra Heilligen (salvar, curar) e não por Erlösung (redimir, libertar). Há uma grande probabilidade de que a palavra “Erlösung” e seu radical “lösen” estejam diretamente ligados a “Liber” [liberador], o nome romano de Dionísio, identificado assim por uma associação com Liber Pater, um antigo deus da agricultura italiano. Era sob essa forma que Dionísio era geralmente celebrado nos cultos de mistérios romanos. A popularidade de seu culto era grande entre escravos, por conta de seu atributo enquanto “aquele que liberta”. O Dionísio foi identificado como Liber entre os romanos, por outro lado, devido a sua representação nos cultos de mistérios gregos sob a forma de Lusios (ou Lusos), cujo nome tem sua origem na palavra “Λυ ” (Lusei), que significa justamente resolver, liberar, de onde deriva “Λυ ό ” [Lusos ou Lysos], liberador. 1478 Ora, o termo alemão “lösen” pode significar resolver, dissolver, desenlaçar, anular. Ou seja, “lösen”, significa, de forma geral, solucionar, resolver um problema, ou uma contrariedade, ao dissolvê-lo, anulá-lo. O Dionísio Erlösung, isto é, aquele evocado nos últimos escritos de Nietzsche, seria aquele que libera o [tipo elevado de] homem do grande terror ao dissolver as contrariedades, ou anulando as dicotomias, mostrando a necessidade da dor, do sofrimento e da morte para a vida, melhor ainda, mostrando que prazer e dor, sofrimento e felicidade, vida e morte se pertencem mutuamente, são indissociáveis, um aspecto condiciona o outro e torna a existência possível. Erlöser, Erlösung, erlösen, em alemão, remete também sempre a um duplo movimento, ao mesmo tempo de reunir e dispersar, de criar e destruir. Assim, a idéia de uma redenção dionisíaca se opõe a da “redenção” cristão, pois esta elimina, em nome do Paraíso, este duplo movimento. Enquanto a “redenção” cristã supõe a eternidade, a redenção dionisíaca supõe o devir permanente. O símbolo do Crucificado é, portanto, uma corrupção, uma distorção, uma inversão do símbolo de Dionísio. É como caricatura, como paródia de um símbolo mais original, que o símbolo do Crucificado foi criado, como manifestação de um novo encontro entre Oriente e Ocidente, que dessa vez se dá entre as camadas decadentes, e não entre as fortes como se 1478 Cf. Seaford, Richard. Dionysos. London and New York: Routledge, 2006, p. 29, p. 70-72, et alli. 482 deu na Grécia trágica. Existe uma conexão direta entre Dionísio e o Crucificado 1479, sendo que o segundo surge como alternativa ao primeiro que é o original. O Crucificado, porém, não cumpre e não pode cumprir o mesmo papel, não pode conter o mesmo significado de Dionísio. O Crucificado é uma invenção de Paulo para fins de propaganda. Ele fez do símbolo de Dionísio um dos modelos para o seu pastiche, com isso ele desnaturalizou o valor dos cultos do paganismo autêntico. Mas ele só pôde obter sucesso nessa empreitada porque os cultos de mistérios que se alastravam no Império Romano e que lhe serviram de modelo já eram sintomas da decadência das religiões pagãs, fruto da infecção moral provinda do zoroastrismo e do egipcismo. O próprio culto a Dionísio convertido em orfismo já fazia parte dessa degenerescência. Essa decadência dos cultos subterrâneos (em que a afirmação da vida mediante a aceitação da dor e do sofrimento como sua própria condição, simbolizada pelo Dionísio despedaçado que renasce eternamente, foi transmutada em renúncia à vida, em que a dor e o sofrimento são vistos apenas como meio de se chegar à verdadeira vida, ao além) foi absorvida por Pitágoras, depois por Platão e teve sua confluência máxima, com o acréscimo do judaísmo sacerdotal, no cristianismo de Paulo, na figura do Crucificado. Paulo inventou o seu próprio deus, ou seja, o Crucificado, por meio de uma espécie de cópia reversa do deus Dionísio, o que nos permite compreender melhor o alcance da oposição expressa na fórmula Dionísio contra o Crucificado. 1479 Cf. Campbell, Op. Cit., p. 33. 483 484 APÊNDICE II O tipo psicológico do Parsifal de Wagner O personagem Parsifal da última obra de Wagner também é uma quimera psicológica assim como o Jesus de Renan. Um “puro tolo” jamais poderia vir a adquirir genialidade num insight, tal como ocorre com o personagem wagneriano no episódio em que este aprende o significado elevado (ideal) da compaixão, mesmo porque, de acordo com Nietzsche, não é assim, “diletantemente”, que um indivíduo se torna gênio. Um “tipo” como o Parsifal tampouco poderia se tornar um herói, um “cavalheiro de armadura negra”, que se sacrifica deliberadamente ao negar o seu “eu” para se tornar um “Redentor”, um “Salvador” dos desgraçados e sofredores, e concretizar o ideal de elevação suprema da moral (compaixão), afinal, em semelhante tipo, a virilidade necessária para ser um herói não se desenvolve, ademais uma natureza heróica é caracterizada pela ida de encontro à dor, necessidade que um tal tipo nunca manifestaria. Por isso, a comparação do Jesus de Renan com o Parsifal de Wagner, reforça a crítica de Nietzsche ao caráter décadent das obras do músico (já que este último elogia, em sua derradeira obra, uma figura tipicamente décadent, nem gênio e muito menos herói, como o modelo absoluto de “elevação” da humanidade), bem como permite um maior aprofundamento das discussões sobre o conceito de gênio e de herói que Nietzsche estabelece com Renan e Wagner, e que surgem como o pano de fundo das considerações acerca do tipo de Jesus em O Anticristo. Wagner e Renan Segundo Campioni 1480 , Wagner, na sua juventude, sob inspiração de Feuerbach, interpretava o cristianismo e as religiões de modo geral como alienação, repúdio à arte e negação da vida, uma afronta à “sensualidade sadia” defendida pelo músico em suas primeiras obras como lembrará Nietzsche em Genealogia da moral. 1481 De fato, em A arte 1480 1481 Cf. Campioni, Les lectures française de Nietzsche, pp. 51-107. Cf. GM III § 3. 485 e a revolução 1482 , Wagner declara, por exemplo, que “a honestidade do artista tem que reconhecer de imediato que o Cristianismo não era arte nem dispunha de quaisquer meios para produzir por si uma verdadeira força vital”. 1483 Contudo, já em uma fase mais madura, Wagner descobre Schopenhauer e Renan, e, munido das descobertas que lhe advém dessas leituras, passa a interpretar o cristianismo sob um duplo aspecto, a saber: aquele de um cristianismo deturpado pelo “otimismo” hebraico, ligado à Zivilisation, limitadora das potencialidades humanas, e aquele de um cristianismo puro e essencial, herança da sabedoria védica e do budismo, ligado à Kultur, à elevação do gênio, aquele capaz de unir a Gemeinschaft [comunidade] no sacrifício da busca pela realização do ideal. A despeito de seu desprezo pela Zivilisation francesa, Wagner se vê obrigado a admitir a agudeza das interpretações de Renan a respeito da história das origens do cristianismo, pelo menos aquelas presentes na Vie de Jésus. A esposa de Wagner chegou a anotar, por exemplo, a seguinte observação do músico: “Paris mantém-se certamente como o grande bazar do mundo inteiro, mas nós não devemos esquecer de pelo menos um francês, Renan, que escreveu o melhor livro sobre as coisas que nos interessam”. 1484 Quando ainda freqüentava a casa dos Wagner, Nietzsche participava assiduamente das discussões acerca das investigações históricas de Renan. Não é à toa que, em parte por influência do músico, Nietzsche abandona a sua admiração que nutria na juventude pelo erudito alemão Strauss e a sua célebre obra Das Leben Jesu, como já se vê na Primeira Extemporânea. Para Wagner, a obra do “maçante” 1485 Strauss era imensamente inferior a Vie de Jésus de Renan, já que, com sua racionalização e desmistificação dos eventos sobre a vida de Jesus e com sua teoria “científica” sobre as origens do mito como criação coletiva 1486 , Strauss teria eliminado o caráter essencial da religião segundo Wagner, isto é, a veneração pela misteriosa força do gênio. “Renan”, observou Wagner, “ama Jesus, o que não é o caso de Strauss”. 1487 1482 Wagner, Richard. A arte e a revolução. Tradução José M. Justo. Lisboa: Edições Antígona, 2000. Wagner, Op. Cit., p. 50. 1484 Cosima Wagner, Diário, 4 de dezembro de 1878, apud Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, pp. 52-53. 1485 Cf. Campioni, Loc. Cit, p. 53. 1486 Como vimos, o jovem Nietzsche também apóia essa crítica de Wagner, de inspiração renaniana (cf. NT § 18 e FP 27 [1] primavera verão de 1873). 1487 Cosima, Diário, 17 de abril de 1880, apud Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 53. 1483 486 O elogio feito por Renan do homem santo fundador de religião como um gênio e como um herói é acolhido favoravelmente por Wagner. O gênio é visto por Wagner como o único indivíduo capaz de unificar a comunidade “em luta contra a mediocridade niveladora” 1488 , aquele que pode rechaçar os alicerces da cadeia que representa a Zivilisation para as supremas esperanças da humanidade, que se vê presa aos grilhões do materialismo egoísta e dispersor das forças que conduziriam ao ideal. Wagner, inspirado por Renan, passa a considerar o cristianismo, desprovido de todos os artifícios falsificadores introduzidos pelos elementos semíticos, de toda espécie de fantasias miraculosas, como uma religião autêntica do espírito, como um culto puro, cujos elementos misteriosos contêm, em sua essência, a mais sublime glorificação do ideal, a mais autêntica forma de estímulo, de atração, de convocação, de condução das classes populares para a unificação de desejos e esperanças que se dá na consagração e no sacrifício pelo ideal. O cristianismo é, dessa maneira, liberto do “vínculo perigoso com os milagres da revelação”, um verdadeiro “instrumento” de “coerção social” a favor do gênio. 1489 Ainda de acordo com Campioni 1490 , a interpretação que o Wagner maduro fará do conceito de Himmelreich (reino dos céus) como uma forma “sentimental e imediata do cristianismo” é também uma ressonância da Vie de Jésus, de Renan, em que a noção de reino de Deus é enfatizada como um sentimento de completa união que Jesus “comunga” com o “Pai”. Wagner lê nessa experiência que Renan atribuía a Jesus algo análogo aos mesmos efeitos “libertadores” que a música, segundo ele, era capaz de produzir. Assim sendo, um “gênio musical” cumpriria a mesma função, quiçá ainda com mais competência, que um “gênio santo”, “fundador de religião”, pois consegue igualmente arrebatar as pessoas para a contemplação do ideal, com a diferença de que, no caso de Jesus, uma tal ficaria quase que restrita a ele, devido à falta de compreensão de seus ensinamentos por parte de seus seguidores, já o gênio musical, por outro lado, consegue, de maneira mais imediata, transmitir e provocar essa experiência. A música teria, então, como principal função, para Wagner, levar o ouvinte ao seu himmelreich interior, ao seu mais elevado 1488 Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 55. Campioni, Op. Cit., p. 56. 1490 Ibidem. 1489 487 sentimento de amor pelo ideal, assim como o faz o cristianismo essencial. Sendo assim, resta à música utilizar e intensificar a força unificadora do cristianismo no elogio ao sacrifício pela realização do ideal, pelo desejo de elevação das supremas esperanças e potencialidades humanas concebidas pelo gênio. Wagner se mostra tão satisfeito com o retrato de Jesus concebido por Renan, que elabora o personagem principal de seu último trabalho, Parsifal, juntamente com elementos da mitologia pagã céltica 1491 , da biografia de Buda, da filosofia de Schopenhauer, e do culto e imaginário católico, tendo como fonte a figura do Jesus “gênio” e “herói” mostrado pelo historiador francês, buscando oferecer ao espectador o significado profundo, puro e essencial dos mistérios cristãos. A parceria que Wagner estabelece com Renan tem fim, contudo, com a publicação da obra Marco Aurélio, do historiador francês. Nessa obra Renan passa a considerar o cristianismo, não algo completamente contrário ao judaísmo, como ele afirmava em Vie de Jésus, mas sim uma continuação e complementação da religião hebraica. O forte antisemitismo de Wagner não poderia anuir com uma tal interpretação, para ele, Renan havia lamentavelmente “se tornado judeu”. 1492 Wagner, ainda sob influência de Schopenhauer, manterá sua convicção de que o cristianismo puro, “uma religião pessimista brotada da sabedoria indiana” 1493 foi corrompido por elementos do “otimismo judaico”, agora defendidos por Renan, um otimismo “inteiramente digno de Strauss”. 1494 Crítica ao culto do gênio e do herói O pensamento do jovem Nietzsche foi fortemente influenciado pela concepção de gênio presente em Schopenhauer, Renan e Wagner, assim como pelas figuras dos heróis 1491 A principal fonte de Wagner foi o poema épico Parzival, do poeta medieval alemão Wolfran von Eschenbach, que por sua vez recorreu ao romance Perceval ou la conte du Graal, do poeta francês Chrétein de Troyes. Cf. Becket, Lucy. Richard Wagner Parsifal. New York: Cambridge University Press, 1995. A versão mais antiga encontra-se, porém nos Mabinogion, literatura romanesca kymriana (habitantes da Bretanha francesa), fixada no século XII, no conto de Pérédur do ciclo arturiano no qual de Troyes se inspirou (cf. Renan, Ernest. “La poésie des races celtiques”. In: Œvres complètes. Édition définitive établie par Henriette Psichari. Paris : Calmann-Lévy, 1947, Tome II). 1492 Cosima, Diário, 5 de janeiro de 1882 apud Campioni, Idem, p. 59. 1493 Ibidem. 1494 Wagner, Diário, 27 de janeiro de 1882 apud Campioni, Ibidem. 488 wagnerianos e pelo Jesus herói de Renan. Não obstante, já na fase intermediária de seu percurso intelectual, inaugurada com Humano, demasiado humano, Nietzsche adota uma atitude extremamente crítica com respeito ao culto do gênio e do herói, detendo-se também na análise da validade do conceito tradicional de ambos. No período da Transvaloração dos valores, sua recusa à concepção de gênio e herói assumida na juventude tem seu apogeu em Crepúsculos dos ídolos, mormente no § 44 de “Incursões de um extemporâneo” intitulado “Meu conceito de gênio”, em que é clara a sua distância com relação à “teoria do meio” de Hippolyte Taine, também defendida por Renan para explicar a origem do gênio e do herói. Sendo assim, para Nietzsche, a figura de Jesus não poderia, tanto na concepção que Renan possui de gênio e herói como na concepção que ele próprio defende, adequar-se a qualquer um desses conceitos. Por conseguinte, para uma melhor compreensão da crítica que Nietzsche faz a Renan em O Anticristo é necessário reconstituir o debate que Nietzsche travará com as teses de Renan sobre os conceitos herói e gênio, que culminará em O Anticristo. O culto ao gênio, tal como o que Renan e Wagner defendem, é visto por Nietzsche como vaidade velada, como uma forma de atenuar a sensação de frustração ante as habilidades extremamente desenvolvidas de um único indivíduo, uma maneira de tornar descabida qualquer comparação com ele, a fim de se isentar de qualquer obrigação de ter que competir com uma tal superioridade. Como acusa o filósofo: Porque pensamos bem de nós mesmos, mas não esperamos ser capazes de algum dia fazer um esboço de um quadro de Rafael ou a cena de um drama de Shakespeare, persuadimo-nos de que a capacidade para isso é algo sobremaneira maravilhoso, um acaso muito raro ou, se temos ainda sentimento religioso, uma graça dos céus. É assim que nossa vaidade, nosso amor próprio, favorece o culto ao gênio: pois só quando é pensado como algo distante de nós, como um miraculum, o gênio não fere. 1495 A maneira de considerar certos indivíduos como separados do restante da humanidade, tal como o faz Renan com a pessoa de Jesus, também surge da falsa noção sobre como os mesmos adquirem suas habilidades. Nietzsche não admite que se pense no gênio como alguém que obtém o saber mais elevado mediante clarões intuitivos, como se houvesse adquirido suas habilidades por meio de uma dádiva divina, espontaneamente, por 1495 HHI § 162, p. 124. Cf. também HHI § 461. 489 vias completamente ocultas e desconhecidas para o resto da humanidade e também para ele próprio. Como argumenta Nietzsche: A crença em espíritos grandes, superiores, fecundos, ainda está – não necessariamente, mas com muita freqüência – ligada a superstição, total ou parcialmente religiosa, de que esses espíritos são de origem sobre-humana e têm certas faculdades maravilhosas, mediante as quais chegariam a seus conhecimentos, de maneira completamente distinta da dos outros homens. 1496 Segundo Nietzsche, o saber do gênio surge de um aprimoramento obtido à custa de muito empenho e determinação. Uma espécie (imaginária) de gênio tal como a que Renan e Wagner concebem é ironicamente classificada pelo filósofo como “diletantismo insolente”, já uma espécie autêntica de gênio é vista por ele como o resultado de um “treinamento severo”. 1497 Um gênio não pode surgir como um mero truque de prestidigitador, obra do acaso, presente da natureza 1498, cumprimento de um vaticínio. O gênio, segundo Nietzsche, é um indivíduo que se faz gênio, que se constrói como obra 1499, que seleciona tarefas para si e as cumpre rigidamente a fim de atingir um objetivo por ele traçado. Aquele que obtém o mais alto conhecimento no mundo do espírito em nada se distingue do mestre de obras, do artesão ou do trabalhador manual, que se concentra em uma atividade específica, resolvendo problemas simples, errando, reiniciando, envergonhando-se dos parcos resultados, persistindo, copiando, ousando, arriscando resolver os problemas mais difíceis, até, quem sabe, obter o saber mais frutífero e seguro de si a que pode aspirar. Sendo assim, Nietzsche constata: [...] a atividade do gênio não parece de modo algum essencialmente distinta da atividade do inventor mecânico, do sábio em astronomia ou história, do mestre na tática militar. Todas essas atividades se esclarecem quando imaginamos indivíduos cujo pensamento atua numa só direção, que tudo utilizam como 1496 HHI § 164. CW, Pós-escrito. 1498 Esse não era, contudo, o posicionamento de Nietzsche em seus escritos de juventude, ainda sob a influência de Renan, Wagner e Schopenhauer, em que o gênio era visto como produto da natureza. Como se vê em Campioni: “A aposta no valor do indivíduo genial – que caracteriza Renan e Wagner, sob os traços de Schopenhauer – já é acentuado desde a lição inaugural sobre Homero, pela oposição ao mito idealista e romântico de uma poesia criada diretamente e espontaneamente pelo povo sem a mediação do “gênio”: “A natureza, que ordinariamente é avara em produzir o mais raro e o mais precioso, o gênio, terá sido, pois, nesse único caso, de uma também inexplicável prodigalidade? (Homero e a filologia clásica, 1)” (Campioni, Les lectures françaises de Nietzsche, p. 57). 1499 Cf. CI, Incursões de um extemporâneo § 45, “O Criminoso e o que lhe é aparentado”. 1497 490 matéria prima e sempre trabalhando. Toda atividade humana é assombrosamente complexa, não só a do gênio: mas nenhuma é um “milagre”. 1500 As aptidões do gênio não são de natureza inata, foram adquiridas com empenho e dedicação. Só quem observa superficialmente o trabalho do gênio acredita que sua obra é algo totalmente inatingível e sobre-humano. No entanto, caso se observe cuidadosamente como sua obra veio a ser, percebe-se quão árduo foi o processo que o levou a elaborá-la, principiando pacientemente pelas pequenas partes até atingir a grandiosidade do todo que provoca a ilusão de ser um produto de um saber inadquirível. Por conta disso, Nietzsche argumenta: Só não falem de talentos inatos! Podemos nomear grandes homens de toda espécie que foram pouco dotados. Mas adquiriram grandeza, tornaram-se ‘gênios’ (como se diz) por qualidades de cuja ausência ninguém que dela esteja cônscio gosta de falar: todos tiveram a diligente seriedade do artesão, que primeiro aprende a construir perfeitamente as partes, antes de ousar fazer um grande todo; permitiram-se tempo para isso porque tinham mais prazer em fazer bem o pequeno e secundário do que no efeito de um todo deslumbrante. 1501 Para Nietzsche, estimar o conhecimento alcançado pelo gênio como um acontecimento inexplicável, assombroso e milagroso é não apenas algo equivocado, mas também nocivo para ele próprio. O melhor para o gênio, assegura Nietzsche, é perceber o verdadeiro caminho pelo qual ele obtém a superioridade em um determinado campo do saber: Portanto, para os grandes espíritos é provavelmente mais útil que eles se dêem conta de sua força e da origem desta, que apreendam as qualidades puramente humanas que neles confluíram, as felizes circunstâncias que ali se juntaram: energia incessante, dedicação resoluta a certos fins, grande coragem pessoal; e também a fortuna de uma educação que logo ofereceu os melhores mestres, modelos e métodos. 1502 Nem mesmo a questão da “originalidade” do gênio fica impune à argúcia da investigação nietzschiana sobre a natureza do gênio. Para ele, o gênio nada mais é do que alguém que se deteve como ninguém na busca da solução de um determinado problema e que fatalmente encontrará um resultado até então inédito: “[...] alguém que se perdeu completamente ao caminhar pela floresta, mas que, com energia invulgar, se esforça 1500 HHI § 162. HHI § 163. 1502 HHI § 164. 1501 491 por achar uma saída, descobre às vezes um caminho que ninguém conhece: assim se formam os gênios, dos quais se louva a originalidade”. 1503 Assim, para Nietzsche, o que se faz de fato verdadeiramente admirável no gênio não é tanto os resultados impressionantes que sua perseverança lhe permitiu alcançar, mas exatamente essa mesma perseverança, ou seja, não é tanto a obra que ele produz com os seus aperfeiçoamentos, mas a produção de si como obra que lhe garantiu adquirir tais aperfeiçoamentos: Ah, a glória barata do “gênio”! Como foi rapidamente erguido seu trono, e sua adoração tornada costume! [...] E, assim, talvez o mais belo continue a se dar na escuridão, afundando, apenas nascido, na noite eterna – ou seja, o espetáculo daquela força que um gênio não emprega em obras, mas em si como obra, isto é, na sua própria domação, na depuração de sua fantasia, na escolha e ordenação do afluxo de tarefas e idéias. 1504 Mas é em Crepúsculo dos Ídolos, em uma seção intitulada “Meu conceito de gênio”, que se verifica como, para Nietzsche, Renan continua cometendo graves erros psicológicos quando tenta explicar a origem do gênio a partir do meio em que o mesmo vive. Viu-se que Renan acredita que a genialidade de Jesus se deveu ao fato deste ter respirado como ninguém a atmosfera da época em que viveu, de ter intuído, por vias desconhecidas e espontâneas, os maiores avanços alcançados pela humanidade no terreno religioso e eleválos drasticamente. Segundo Renan, a época e o lugar em que Jesus viveu era o terreno mais propício para que se desse a elevação do saber religioso da humanidade. Ora, de acordo com Nietzsche, porém, não só o gênio é o resultado de um trabalho zeloso e penoso, mas uma grande época também é algo construído com laboriosa dedicação, não há, portanto, civilizações e eras “milagrosas”. 1505 É por conta disso que Nietzsche declara: Os grandes homens, como as grandes épocas, são materiais explosivos em que se acha acumulada uma tremenda energia; seu pressuposto é sempre, histórica e fisiologicamente, que por um longo período se tenha juntado, poupado, reunido, preservado com vistas a ele – que por um longo período não tenha havido explosão. Se a tensão no interior da massa se tornou grande demais, o estímulo mais casual basta para trazer ao mundo o “gênio”, o “ato”, o grande destino. Que importa então o ambiente, a época, o “espírito da época”, a “opinião pública”! [...] – O fato de que hoje se pense de modo muito diferente sobre isso na França 1503 HHI § 231. A § 548. 1505 Cf. A filosofia na época trágica dos gregos. 1504 492 [Renan entre outros] (na Alemanha também [Wagner entre outros]: mas não importa), de que lá a teoria do milieu [meio], uma verdadeira teoria de neurótico, tenha se tornado sacrossanta e quase científica, achando crédito até mesmo entre os fisiólogos, isso “não cheira bem”, isso provoca tristes pensamentos [...] O grande homem é um fim; a grande época, a Renascença, por exemplo, é um fim. 1506 A afirmação de Renan de que, por conta da mediocridade que o rodeava, Jesus foi obrigado a se sacrificar em nome de seu ideal, de que um gênio busca concretizar o ideal que concebeu a todo custo a ponto de se tornar um herói que abdica deliberadamente de sua própria vida para que um novo mundo possa vir a surgir, é, para Nietzsche, uma enorme falácia. Quando um gênio se constrói como tal é necessário que ele entregue ao altar pagão do impulso que lhe guia todas as suas energias e tudo o que lhe é caro, mas tal se dá por um transbordamento de forças acumuladas com vistas a um único fim: O gênio – em obra, em ato – é necessariamente um esbanjador: no fato de ele gastar tudo está sua grandeza... O instinto de autoconservação é como que suspenso; a violenta pressão das forças que fluem não lhe permite nenhum cuidado ou prudência. As pessoas chamam isto “sacrifício”; louvam seu “heroísmo”, sua indiferença para com o próprio bem estar, sua devoção a uma idéia, uma grande causa, uma pátria: tudo mal-entendidos... Ele flui, transborda, funestamente, involuntariamente, como um extravasar de um rio se dá involuntariamente. 1507 Se o “esbanjamento” do gênio não é o que torna heróico, qual seria, então, para Nietzsche, a verdadeira característica do herói? Segundo Campioni 1508 , uma constante atravessou as preocupações da infância, adolescência e juventude de Nietzsche, a saber, a figura do herói. Seja em torno das figuras mitológicas dos heróis nórdicos ou gregos, dos grandes conquistadores ou dos personagens de Wagner, os anseios juvenis de Nietzsche eram direcionados para o encantamento e para a preocupação provocados pelas grandes paixões que essas figuras exibem: “Em torno das figuras dos heróis, se unifica a multiforme atividade do jovem: as várias tentativas de composições dramáticas, poéticas, musicais, de caráter heróico são logo sustentadas por uma análise crítica, histórica e filológica.” 1509 Desde cedo, o jovem Nietzsche buscou nos heróis os modelos que lhe explicavam o 1506 CI, Incursões de um extemporâneo § 44. CI, Incursões de um extemporâneo § 44. 1508 Cf. Campioni, Giuliano. “Nietzsche: do agonismo extemporâneo à crítica da moral heróica”. Tradução Carlos Sartori. Revisão técnica Vânia Azeredo. In: Marton, Scarlett (org.). Nietzsche pensador mediterrâneo: a recepção italiana. São Paulo: Discurso Editorial; Ijuí, RS: Editora UNIJUÍ, 2007. 1509 Cf. Capioni, “Do agonismo”, p. 125. 1507 493 temperamento que ele próprio se atribuía e que procurava constantemente dominar. Nietzsche via no típico caráter do herói a impossibilidade de que uma grande tarefa possa vir a ser realizada, pois o herói não consegue se impor uma meta que conduza as suas paixões, no herói são justamente as paixões que tomam a dianteira. Foi na busca do domínio de suas próprias paixões, anseio que Nietzsche atribuía a uma “segunda natureza”, que ele buscou desde cedo um afastamento crítico da figura do herói, pois, por falta de domínio, o herói tende a se dilacerar inevitavelmente sem chegar a estabelecer um objetivo imposto a si próprio. “Os escritos autobiográficos”, afirma Campioni, “insistem sobre os perigos da dispersão que pode se tornar desagregação”. 1510 Sendo assim, o caráter do herói é justamente o oposto do caráter do gênio. O gênio representa um acúmulo de energia em direção a uma única meta imposta por uma segunda natureza “extraída com força das inclinações ‘livres’” 1511, resultado, portanto, de uma unicidade da vontade, de uma unidade de interesses. O herói, por sua vez, representa uma dispersão de energia em várias direções sob a inclinação das paixões, logo, resultado de uma desagregação da vontade. Assim, a idéia de um gênio que se faz herói ou vice versa é algo inconcebível para Nietzsche. Além disso, o principal atributo do herói é tido por Nietzsche como sendo exatamente o inverso daquilo que caracteriza o tipo idiota: “O que torna heróico? – Ir ao encontro, simultaneamente, da sua dor suprema e da sua esperança suprema”. 1512 Ir de encontro à dor é propriamente aquilo que o idiota se vê incapaz de querer. Dessa forma, a tentativa de Renan em compor uma espécie de drama trágico, tendo como protagonista Jesus, o “herói da paixão”, é uma empresa fadada inevitavelmente ao absoluto fracasso. O herói, impulsionado por suas paixões violentas, almeja justamente a melhor oportunidade para o seu grande dilaceramento, para a sua grande dor, mas não em nome de um ideal. Como Nietzsche esclarece: – Existem homens, é verdade, que ouvem o comando oposto, ao sentir a aproximação da grande dor, e que nunca são mais orgulhosos, belicosos e felizes do que quando surge a tempestade; sim, a dor mesma lhes proporciona seus maiores momentos! São os homens heróicos, os grandes portadores de dor da 1510 Cf. Campioni, “Do agonismo”, p. 137. Cf. Campioni, Loc. Cit., p. 135. 1512 GC § 268. 1511 494 humanidade: estes seres poucos ou raros, que necessitam exatamente da mesma apologia que a dor – e, verdadeiramente, ela não lhes deve ser negada. 1513 Já em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche aponta para uma figura superior ao herói e que deve ser tomada como um modelo alternativo para as naturezas ainda mais bem constituídas. Ele esclarece que uma virtude é uma conseqüência da felicidade, da saúde e não o seu contrário. O herói luta porque ainda não possui toda força, saúde e suprema vontade que conduza seus instintos. Quem possui semelhante força? Somente os deuses, diz Nietzsche. Por isso o herói inevitavelmente se dilacera, morre jovem. “Cada erro, em todo sentido, é conseqüência da degeneração do instinto, da desagregação da vontade: com isso praticamente se define o ruim. Tudo bom é instinto – e, portanto, leve, necessário, livre”. Ou seja, os instintos dos heróis não são “bons instintos”, pois são resultados de uma desagregação da vontade, não são livres, não agem por uma necessidade auto-imposta, mas por inclinações múltiplas. “O esforço”, isto é, o agir contra algo, o ímpeto dirigido por paixões provocadas por causas alienantes e não por uma vontade que domina, “é uma objeção”, portanto, algo não necessário, não livre, não leve, “o deus se diferencia tipicamente do herói (na minha linguagem: pés ligeiros são o primeiro atributo da divindade)”. 1514 Nietzsche supera assim, sobretudo em sua última fase, o fascínio exercido pela figura do herói, o culto do herói, presente em Renan e Wagner. 1515 Vê-se, por conseguinte, que os atributos de herói e gênio conferidos por Renan à figura de Jesus, e por Wagner ao seu Parsifal, apresentam ainda uma série de complicações. Pois um gênio não adquire conhecimento por meio de intuições espontâneas, como Renan diz sobre o “gênio” Jesus e Wagner sobre o “gênio” Parsifal, mas por meio de um trabalho árduo; e um herói não se sacrifica por um ideal, como o “herói” Jesus de Renan e o “herói” Parsifal de Wagner, mas se dilacera como resultado de uma desagregação da vontade, sob o influxo de suas paixões violentas. Alguém poderia encontrar no conceito de gênio da filosofia madura de Nietzsche uma aparente aproximação ao modelo clássico apregoado pelo teatro francês a partir do 1513 GC § 318. “Diante da tragédia, o que há de guerreiro em nossa alma festeja suas saturnais; aquele que está habituado ao sofrimento, o homem heróico exalta a sua existência com a tragédia – apenas a ele o artista trágico oferece o trago desta dulcíssima crueldade –” (CI, Incursões de um extemporâneo § 24). 1514 CI, Os quatro grandes erros § 2. 1515 Cf. EH, Por que escrevo tão bons livros § 1. 495 século XVII, com a interpretação da Poética de Aristóteles feita por Boileau. 1516 Nesse sentido, Nietzsche estaria tão somente se afastando do ideal do culto ao gênio original que teve início com a recepção na Alemanha das obras de Shakespeare por Lessing e pelos autores do movimento Sturm und Drang, Herder, Goethe e Lenz que originaria o Romantismo alemão, para retornar ao modelo que seus antigos mestres combateram. Contudo, é provavelmente mais correto afirmar que Nietzsche tem como principal fonte de inspiração o modelo de gênio presente no Renascimento Italiano (influência de Burckhardt, Descartes), com Rafael e Michelangelo, pois o que está em jogo para Nietzsche não é a obediência às regras pelas quais o gênio deveria pautar sua obra, mas sim o esforço árduo empreendido na realização da mesma: a pesquisa, a repetição, o exercício constante, etc. Em Nietzsche, o método utilizado pelo gênio tem papel fundamental na caracterização mesma do próprio homem de gênio, mas cabe somente a este último criar e descobrir quais as regras que ele deve impor a si mesmo. Já que o gênio se caracteriza por ser aquele que ao encontrar sua meta sabe, pois consegue descobrir ou criar, exatamente quais devem ser os meios para alcançá-la 1517 ; esses meios não estão, portanto, pré-estabelecidos por uma tradição, visto que é justamente no ato de encontrar um caminho novo para atingir determinada meta, auto-imposta, que o seu caráter de gênio se manifesta de forma efetiva. O “puro tolo” O Parsifal foi o último trabalho de Wagner, apesar disso seu primeiro esboço em prosa data de abril de 1857. Sua primeira apresentação se deu em Bayreuth em 1882. Entre as obras de Wagner, Parsifal é a única cuja representação ficou durante vários anos restrita ao palco do Festspielhaus, em Bayreuth, para o qual foi especialmente escrito. Isso por conta de seu caráter altamente sacro. Wagner inclusive chegou a proibir os aplausos após as apresentações. Receando ser censurado pelas autoridades eclesiásticas, Wagner certa vez indagou: “Como pode uma obra em que são vividamente apresentados os mais sublimes 1516 1517 Cf. Süssekind, p. 25. Cf. HHII. 496 mistérios da fé cristã ser encenada em teatros como os nossos, lado a lado com um repertório operístico e para um público como o nosso?” 1518 A principal fonte de Wagner para Parsifal, foi o romance de cavalaria de Wolfram von Eschenbach, Parzivâl, cujo relato sofreu diversas alterações por parte do músico, que intensificou bastante a aura religiosa na sua versão da história. Segundo Hollinrake 1519 ,o Graal não é descrito por Wolfran como a “taça” na qual José de Arimatéia preservou o sangue de Jesus, e nem a lança como a que o centurião trespassou o flanco do crucificado. As procissões e os banquetes descritos por Wolfran são transformados por Wagner no rito sacramental da eucaristia segundo o credo Católico, no qual o pão e o vinho são transubstanciados em corpo e sangue do “Salvador”. Ademais, incentivado por sua crença na teoria de uma raça ariana, Wagner exila o Graal (para Wolfram um objeto ritualístico ordinário) em uma montanha na Índia, buscando estabelecer um vínculo crucial entre o cristianismo puro e as religiões védicas. A partir da leitura de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, Wagner defende uma irmandade absoluta entre o verdadeiro impulso religioso negador da vontade, visto por Schopenhauer no pessimismo hindu e budista, e o cristianismo essencial. Em uma carta a Liszt de 7 de junho de 1855, Wagner afirma: “[...] a pesquisa moderna mostrou ser o Cristianismo puro e sem mistério nada mais do que um ramo do venerável Budismo”. 1520 Wagner buscava assim fundamentar sua tese de que o cristianismo original, pessimista, de origem ariana, foi corrompido, sob a forma de religião otimista, pelos semitas. “Uma carta da época, escrita em Regent’s Park para Röckel [...] também ecoa Schopenhauer e alega ter sido estabelecido, de forma indiscutível, a origem ariana do Cristianismo, claramente distinta da semítica”. 1521 Por conseguinte, o cristianismo cujos mistérios são expostos no Parsifal é o que Wagner considera o verdadeiro, essencial e puro cristianismo, uma espécie de herança do budismo, em oposição a um cristianismo distorcido, judaizado. Os elementos que remontam à lenda de Siddharta Gautama, o Buda, presentes no Parsifal são uma das principais modificações feitas por Wagner no enredo original de 1518 Carta a Luís II da Baviera, em 28 de setembro de 1880 apud Hollinrake, Roger. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986, p. 152. 1519 Cf. Hollinrake, Op. Cit., p, 153. 1520 Apud Hollinrake, Idem, p. 154. 1521 Hollinrake, Idem, p. 154. 497 Wolfram. O personagem do mago Klingsor, por exemplo, que tem uma participação secundária em Parzivâl, é posto em destaque na trama elaborada pelo músico, por conta de suas afinidades com Mãra, o rei dos demônios, que tenta seduzir Sakhiamuni com o encanto de suas filhas a fim de desviá-lo de seu caminho em busca da iluminação. A influência de Renan na composição do personagem Parsifal é indicada pela trajetória do mesmo: um rapaz doce, ingênuo e ignorante, que concebe espontaneamente um ideal elevado e se sacrifica para que o mesmo se realize. Renan, em sua Vie de Jésus, também atribui ao Galileu, em seus primeiros dias de pregação, uma encantadora inocência, malgrado a elaboração genial e intuitiva de seu sonho ideal. Mas, ao entrar em contato com a incredulidade dos sacerdotes judaicos, Jesus se viu obrigado a alterar o tom de sua pregação, pondo-se em confronto direto com os líderes religiosos, que obstaculizavam a realização de seu ideal, sacrificando-se deliberadamente em prol da consumação de seu sonho. Jesus, segundo Renan, teria sofrido, então, ao longo de sua jornada, uma modificação operada em seu espírito, de ingênuo que concebe intuitivamente um ideal, para herói. Ora, no primeiro episódio do drama wagneriano, quando Parsifal comete o “sacrilégio” de assassinar um cisne do bosque secreto em que se localiza o castelo do Graal, destaca-se a candura natural do personagem, sobretudo sua indiferença ante o sofrimento alheio. Na profecia que vaticina a vinda de Parsifal recitada por Amfortas 1522 , ele é denominado de “o puro tolo” (der reine thor), expressão baseada numa suposta derivação etimológica do arábico que Wagner atribuía ao sentido da palavra “Parsifal”. A ingenuidade de Parsifal se torna mais clara, no entanto, pela insensibilidade que ele manifesta pela dor absurda sofrida por Amfortas, quando ele é admitido pela primeira vez no santuário do Graal. Já no segundo ato, em que Parsifal é seduzido por Kundry que o beija de forma lasciva, vê-se como o jovem intui de maneira espontânea o conhecimento moral mais elevado, na visão de Schopenhauer e Wagner, ou seja, a compaixão, ao sofrer pela dor que corroia Amfortas, o qual havia caído no mesmo truque do mago Klingsor. 1522 “Eu espero aquele que me foi apontado: ‘tornado sábio pela compaixão’ [...] ‘o puro tolo’ [Ich harre dess’, der mir bechieden: ‘durch Mitleid wissend’ [...] ‘der reine Tor’]” (Parsifal, Amfortas, Ato I, Cf. Wagner, Richard. Parsifal (Libreto bilíngüe). English Version by Stewart Robb: Nova York, 1962; e Parsifal. (DVD) Orchester der Bayreuth Festspiel, Conductor: Horst Stein, Deutsche Grammophon, s/d. 498 Nesse momento, o jovem tolo se torna um gênio, pois Parsifal não é tomado por um sentimento de compaixão qualquer, ele aprende o significado mais elevado, ideal da compaixão, a compaixão como a virtude suprema, o “fundamento da moral”, como defende Schopenhauer. 1523 E somente a Parsifal, como gênio “Redentor” compete à concretização deste ideal. Ao perceber isto, ele abdica dos prazeres oferecidos por Kundry, pois sabe que para se tornar o “Salvador”, para poder redimi-la, terá que abjurar do seu “eu”, terá que fazer o sacrifício de negar-se a si mesmo, negar a vontade. 1524 Ao se sacrificar por meio da abstenção dos prazeres egoístas e da negação de sua própria individualidade, Parsifal se torna finalmente um herói, que passará doravante por duras provações, até vir a se tornar o “cavaleiro de armadura negra”, o “Salvador” e “Redentor” novo guardião do Graal. Percebe-se, dessa forma, que o que torna Parsifal genial e heróico, a saber, a intuição do significado ideal de compaixão e o sacrifício da negação de si, é uma releitura da genialidade e do heroísmo conferido por Renan a Jesus, a partir da influência que Wagner sofreu de Schopenhauer e de seus estudos sobre o budismo. A crítica do Parsifal Parsifal representou para Nietzsche uma verdadeira tomada de consciência a respeito do caminho próprio que ele deveria finalmente trilhar. Segundo Hollirake 1525 , até então, o cristianismo parecia não ter sido levado tão a sério por Nietzsche, como um inimigo já tombado. Mas, sobretudo após Humano, demasiado humano, quando ele rompe definitivamente com Wagner e Schopenhauer, a crítica ao cristianismo se torna uma constante em seus escritos, acrescida do nome de Wagner e do ataque à compaixão como virtude. O confronto direto com Parsifal tem sua culminância, de acordo com Hollinrake, na IV parte de Assim Falou Zaratustra, na forma de uma paródia, uma inversão deliberada do Parsifal: a aprendizagem da compaixão por parte de Parsifal versus o repúdio e a superação da compaixão por parte de Zaratustra. É claro que se pode acrescentar que o significado extremamente hermético da IV parte de Zaratustra, é, em parte, esclarecido por 1523 Cf. Schopenhauer, Arthur. Sobre o fundamento da moral. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Cf. Schopenhauer, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, Livro IV. 1525 Hollinrake, Op. Cit., p. 165. 1524 499 O Anticristo. Uma célebre passagem mostra como Parsifal foi tido por Nietzsche como um verdadeiro e estridente clangor para o “combate” mais cerrado com o cristianismo: Quando finalmente me chegou às mãos o livro [Humano, demasiado humano] acabado – para o profundo espanto de um enfermo grave –, enviei dois exemplares também para Bayreuth. Por um milagre de sentido no acaso, chegavame simultaneamente um belo exemplar do texto do Parsifal, com dedicatória de Wagner a mim, “a meu caro amigo Friedrich Nietzsche, Richard Wagner, conselheiro eclesiástico”. – Esse cruzamento dos dois livros – a mim me pareceu ouvir nele um ruído ominoso. Não soava como se duas espadas se cruzassem?... De qualquer modo nós o sentimos ambos assim: pois ambos silenciamos. – Por esse tempo apareceram as primeiras Folhas de Bayreuth: eu compreendi para o que havia chegado a hora. – Incrível! Wagner havia se tornado devoto... 1526 E, em uma carta de Nietzsche a Seydlitz, após receber o exemplar com dedicatória de Wagner do texto do Parsifal, em Basiléia, nos primeiros dias de 1878, ele também afirmou: “Para mim, tão acostumado como estou à universalidade humana grega, é tudo cristão demais, muito limitado no tempo; nada mais do que psicologia fantástica; nenhuma carne e demasiado sangue (em particular a Eucaristia é excessivamente sanguinolenta para o meu gosto)”. 1527 A despeito de ter sido pouco familiarizado com a performance de Parsifal, Nietzsche, desde 1869, conhecia a sua sinopse: “Pelo diário de Cosima sabemos que, no dia de Natal de 1869, Nietzsche estava presente a uma leitura da extensa sinopse em prosa que Wagner preparara”. 1528 Ele não assistiu igualmente a estréia do Parsifal, mas três dias antes, fez uma excursão a Naumburg, onde ele leu parte da música com sua irmã, Elisabeth. 1529 Uma das primeiras críticas abertas ao Parsifal apareceu em Além de bem e mal, no momento em que Nietzsche investiga a “neurose religiosa” e suas causas, que, na verdade, se confundem com seus efeitos: solidão, jejum e abstinência sexual. Nietzsche observa que a negação mais absoluta do mundo e da vontade por parte do homem santo é conseqüência de uma voluptuosidade extremamente extravagante. Mas a incompreensão em torno de um tal fenômeno sempre perturbou o pensamento filosófico da maneira mais nociva, como foi 1526 EH, Por que escrevo tão bons livros: Humano, demasiado humano § 5. Apud Hollinrake, Op. Cit., p. 177, grifo nosso. 1528 Hollinrake, Idem, p. 147. 1529 Hollinrake, Idem, p. 150 1527 500 o caso de Schopenhauer, seguido de perto por Wagner, seu “partidário mais convicto”. Daí a questão que ecoará em Genealogia da moral: O que significam ideais ascéticos? 1530 Como é possível a negação da vontade? Como é possível o santo? – esta parece ter sido mesmo a questão pela qual Schopenhauer se tornou filósofo, e com a qual começou. E assim foi uma conseqüência genuinamente schopenhaueriana que seu partidário mais convicto (e talvez o último, no que toca à Alemanha –), ou seja, Richard Wagner, completasse a obra de sua vida justamente nesse ponto, e pusesse afinal em cena esse tipo terrível e eterno na figura de Kundry, type vécu [tipo existido], em carne e osso; na mesma época em que os alienistas de quase toda a Europa tinham oportunidade de estudá-la de perto, em todo lugar onde a neurose religiosa – ou “das religiöse Wesen”, tal como a chamo – teve, como “Exército de Salvação”, sua última irrupção e exibição epidêmica. 1531 O ideal ascético que mais preocupou Wagner em sua velhice, de acordo com Nietzsche, foi a castidade. A oposição trágica entre sensualidade e castidade é o que Nietzsche condena, pois entre ambas não há uma oposição realmente necessária. Parsifal é justamente aquele que tem que negar necessariamente a sensualidade para se tornar o “Salvador”. Como patenteia Nietzsche: O que significam ideais ascéticos? – Ou, tomando um caso individual, acerca do qual freqüentemente me pedem opinião, o que significa, por exemplo, um artista como Richard Wagner render homenagem à castidade em sua velhice? É verdade que num certo sentido ele sempre o fez; mas apenas bem no final em um sentido ascético. O que significa esta mudança de ‘senso’, esta radical reviravolta do senso? – pois isto é o que foi: Wagner virou o seu oposto [...] Mas, não há dúvida, também este ‘Casamento de Lutero’ [plano de um drama que Wagner não chegou a compor à época dos Mestres Cantores] seria um elogio da castidade. Todavia, também um elogio da sensualidade – e assim me parecia em ordem, assim seria “wagneriano”. Pois entre castidade e sensualidade não há oposição necessária; todo bom casamento, todo verdadeiro caso amoroso está além dessa oposição [...] Mesmo no caso em que há realmente oposição entre castidade e sensualidade, ela felizmente não precisa ser uma oposição trágica [...] Tais “contradições” precisamente são o que nos seduz a existir... Por outro lado, compreende-se muito bem que quando desgraçados suínos são levados a adorar a castidade [...] ele verão e adorarão nela apenas o seu oposto [...] aquela oposição penosa e supérflua, que ainda no fim da vida Richard Wagner quis inegavelmente pôr em música e levar ao palco. 1532 Verifica-se, conseqüentemente, que Nietzsche mede uma extraordinária distância entre o que é propriamente “wagneriano” e aquilo que passou a ser produzido pelo músico quando de sua descoberta de Schopenhauer. Wagner, cujos heróis eram um verdadeiro 1530 GM, III. BM § 47. 1532 GM, III § 2. 1531 501 elogio a “sensualidade sadia” defendida por Feuerbach, não poderia ousar, sem o seu funesto refúgio na filosofia pessimista de Schopenhauer, uma tal reviravolta de senso: “[...] quem poderia sequer imaginar que ele teria a coragem para um ideal ascético, sem o amparo que a filosofia de Schopenhauer lhe ofereceu, sem a autoridade de Schopenhauer”. 1533 Dessa forma, Nietzsche sustenta que Wagner desvirtuou o significado de sua própria obra ao interpretá-la sob o sombrio manto da filosofia schopenhauriana: Mas falemos do mais famoso dos schopenhauerianos vivos, de Richard Wagner. – A ele aconteceu o que já sucedeu com muitos artistas: enganou-se ao interpretar os personagens que havia criado e não compreendeu a filosofia implícita em sua arte mais característica [...] nada pode ser mais contrário ao espírito de Schopenhauer do que é propriamente wagneriano nos heróis de Wagner: quero dizer, a inocência do mais elevado amor a si, a crença na grande paixão como algo bom em si, ou, numa palavra, o que há de siegfriediano no semblante dos seus heróis. “Isso tudo cheira antes a Spinoza do que a mim” – diria antes Schopenhauer. 1534 Por conseguinte, a confrontação entre o heroísmo de Siegfried e o heroísmo de Parsifal revelaria um verdadeiro antagonismo entre o que é autenticamente “wagneriano” e o que foi feito sob a sombra de Schopenhauer. Siegfried, aquele que deve aprender o medo, versus Parsifal, aquele que deve aprender a compaixão ou o amor próprio versus a negação de si. A forma como veio ao mundo é o primeiro indício do temperamento de Siegfried: como fruto de um incesto, uma correção feita por Wagner à lenda, diz Nietzsche, e acrescenta: “Siegfried continua tal como iniciou: segue apenas o primeiro impulso, lança por terra todo recebido, toda reverência, todo temor”. 1535 A paixão violenta, principal atributo do herói para Nietzsche, é o que move Siegfried, o elogio à sensualidade era o vento que impelia a nau wagneriana. Não obstante: Por longo tempo a nave de Wagner seguiu contente esse curso. Sem dúvida, Wagner buscou nele seu mais elevado objetivo. – Que aconteceu então? Um acidente. A nave foi de encontro a um recife; Wagner encalhou. O recife era a filosofia schopenhauriana; Wagner estava encalhado numa visão de mundo contrária. O que havia ele posto em música o otimismo. Wagner se envergonhou [...] Enfim vislumbrou uma saída : o recife no qual naufragara, e se ele o interpretasse como objetivo, como intenção oculta, como verdadeiro sentido da 1533 GM, III § 5. GC § 99. 1535 CW § 4. 1534 502 sua viagem? [...] E ele traduziu o Anel em schopenhauriano [...] Wagner estava redimido... Em toda seriedade, esta foi uma redenção. 1536 E com isso surgiu o Parsifal, este infeliz “inocente da aldeia”. Entretanto, Nietzsche conjectura, como que num fio de esperança, teria Wagner, a sério, ficado lamentavelmente prostrado e vergonhosamente quebrantado diante da cruz cristã? 1537 Será que no momento em que era finalmente decente ser pagão, ele se fez cristão? 1538 Não seria tudo isso afinal o mais engenhoso engodo já armado? A Comédia que deveria se seguir à Poética? Apesar de algo difícil de acreditar, isso seria uma surpresa mais do que agradável: o momento em que o artista consegue rir de si mesmo. Como divaga Nietzsche: Mas com isso não há como fugir a esta outra questão: que tinha ele realmente a ver com este viril (oh, tão pouco viril) “inocente da aldeia”, este pobre diabo e filho da natureza, Parsifal, por ele afinal feito católico com meios tão capciosos – como? este Parsifal foi a sério? Pois seríamos tentados a supor e mesmo desejar o contrário – que o Parsifal de Wagner tenha sido brincadeira, como que epílogo e drama satírico, com o qual o trágico Wagner quis despedir-se de nós, de si mesmo, sobretudo da tragédia, de um modo para ele apropriado e dele digno, ou seja, com um excesso da mais elevada e deliberada paródia do trágico mesmo, de toda a horrível seriedade e desolação terrena de outrora, da mais crua forma da antinatureza do ideal ascético, enfim superada. Isto, como disse, teria sido propriamente digno de um grande trágico: o qual, como todo artista, somente então chega ao cume de sua grandeza, ao ver a si mesmo e à sua arte como abaixo de si – ao rir de si mesmo. Seria o Parsifal de Wagner o seu secreto riso de superioridade sobre si, o triunfo da sua conquista, última e mais elevada liberdade de artista, transcendência de artista? Gostaríamos de desejá-lo, como disse; pois o que seria um Parsifal nascido da seriedade? É realmente necessário ver nele (como me foi dito) “o rebento de um ensandecido ódio ao conhecimento, ao espírito e a sensualidade”? Uma maldição aos sentidos e ao espírito em um hausto de ódio? Uma apostasia e um retorno a ideais cristão-mórbidos e obscurantistas? E por fim até mesmo negação e cancelamento de si mesmo, por parte de um artista que com todo o poder da sua vontade até então perseguira o oposto, ou seja, a mais alta espiritualização e sensualização de sua arte? E não só da sua arte: também da sua vida. Recorde-se o entusiasmo com que uma vez Wagner seguiu as pegadas do filósofo Feuerbach: a expressão feuerbachiana “sensualidade sadia” – nos anos 30 e 40 isto soava para Wagner, e para muitos alemães (– eles se denominavam “jovens alemães”), como a própria palavra da Salvação. Teria ele afinal desaprendido isso? Ao menos parece que no fim ele teve a vontade de desensinar isso... E não apenas com as trombetas de Parsifal, de cima do palco – em seus escritos dos últimos anos, opacos, tão acanhados quanto perplexos, há uma centena de passagens que traem um desejo secreto, uma vontade timorata, insegura, inconfessa, de pregar o que seja retorno, conversão, negação, cristianismo, medievo, e de dizer a seus discípulos “não é nada! 1536 CW § 4. BM § 256. 1538 FP 6 [65] de outono de 1887. 1537 503 busquem a salvação em outra parte!”. Até o “sangue do Salvador” chega a ser invocado... 1539 Mas a verdade é que, para Nietzsche, Wagner sucumbiu da pior maneira possível, foi vítima de um mal, já há muito profetizado, que espreitava o romantismo e a sua aspiração pelo infinito. O Parsifal é a funesta prova de uma tal calamidade. Como assegura Nietzsche: – O que Goethe teria pensado de Wagner? – Uma vez ele se perguntou acerca do perigo que ameaçava os românticos: a fatalidade romântica. Sua resposta: “sufocar com a ruminação de absurdos morais e religiosos”. Numa palavra: Parsifal – – O filósofo junta um epílogo: Santidade - - - [...] Para dizê-lo de modo mais cortês: La philosophie ne suffit pas au grand nombre. Il lui faut la sainteté [A filosofia não basta para a multidão. Ela necessita de santidade]1540”. 1541 O tipo psicológico de Parsifal O “heroísmo” de Parsifal não é o mesmo presente em outros heróis wagnerianos, não se confunde, sobretudo, com aquele do personagem Siegfried, do Anel. Uma comparação entre Siegfried e Parsifal mostra como o Jesus “gênio” e “herói” de Renan foi uma das inspirações para Wagner compor o seu último personagem. Em O Caso Wagner, Nietzsche atesta como a influência malsã de Renan operou uma verdadeira “inversão de valores” nos dramas wagnerianos: “Olhar de soslaio em direção à moral dos senhores, a moral nobre (– de que a saga islandesa é talvez o mais importante documento) e ao mesmo tempo enunciar a doutrina oposta, a do ‘evangelho dos humildes’1542!...” 1543 De acordo com o filósofo, em Além do bem e do mal, um Siegfried é demasiado “setentrional”, bárbaro, para o entendimento das “raças latinas”, para o gosto de uma civilização francesa1544. O “catolicismo” que Nietzsche atribui a Renan 1545, o “sangue céltico” de que o próprio historiador se dizia ascendente em Souvenirs d’enfance et de jeunesse, vê num 1539 GM, III § 3. Essa “amável maldade de Renan” (FP 11 [402] de novembro de 1887 – março de 1888), encontra-se em Vie de Jésus, Chap. XXVIII, p. 258: “Jésus reste pour l’humanité un principe inépuisable de renaissances morales. La philosophie ne suffit pas au grand nombre . Il lui faut la sainteté. Un Apollonius de tyane, avec sa légende miraculeuse, devait avoir plus de succès qu’un Socrate avec as froide raison”. 1541 CW § 3. 1542 Cf. CI “Divagações de um extemporâneo” § 2. 1543 CW epílogo. 1544 Cf. BM § 48. 1545 Idem. 1540 504 Siegfried algo que fere de maneira inquietante o nobre sentimento “religioso”. 1546 Siegfried, um verdadeiro pecado contra o romantismo, pelo qual Wagner se penitenciou em sua última obra: Parsifal como a sua indulgência. Como argumenta Nietzsche: Numa comparação mais sutil, talvez se venha a pensar, em favor da natureza alemã de Richard Wagner, que em tudo ele foi mais ousado, mais forte, mais elevado e mais duro do que um francês do século XIX poderia ter sido – graças à circunstância de que nós, alemães, estamos ainda mais próximos à barbárie que os franceses –; e talvez seja inacessível, inimitável, “insentível” para essa inteira, tardia raça latina, para sempre e não só por hoje, a criação mais notável de Richard Wagner: a figura de Siegfried, aquele homem muito livre, que é porventura demasiado livre, demasiado duro, contente, sadio e anticatólico para o gosto de velhos e márcidos povos civilizados. Ele pode ter sido mesmo um pecado contra o romantismo, esse anti-romântico Siegfried: bem, Wagner expiou abundantemente esse pecado nos dias turvos de sua velhice, quando – antecipando um gosto que desde então se tornou política – começou, com veemência religiosa que lhe é própria, se não a percorrer, certamente a pregar o caminho para a Roma. 1547 Nietzsche chega a descrever Parsifal como “uma lamentável paródia de Siegfried” 1548 e “uma caricatura de Siegfried” 1549 . Em La poésie des races celtiques, Renan estabelece uma distinção entre os heróis das sagas germânicas e aqueles das sagas célticas: “Comparem-se [...] Beowulf e Pérédur, por exemplo. Que diferença! Lá, todo o horror da barbárie que verte sangue, a volúpia da carnificina, o gosto desinteressado, se ouso dizer, da destruição e da morte; – aqui, ao contrário, um profundo sentimento da justiça, uma grande exaltação do orgulho individual, é verdade, mas também uma grande necessidade de devoção, uma requintada lealdade”. 1550 Ora, Siegfried é um herói germânico e Parsifal um herói celta, o que já mostra como suas naturezas são contrárias. Renan exibe as variantes nórdicas para o “encantador doutor” Jesus: heróis humildes, abnegados, plenos de candura de espírito, aptos a se sacrificarem livremente pelo ideal. 1551 Um tipo que representa exatamente o oposto daquilo que se vê em um Siegfried, um herói pleno de amor próprio, orgulhoso de si, desdenhoso, altivo e arrogante, que busca dar vazão às suas violentas 1546 Uma interpretação de Renan que Nietzsche encontrou em Bourget, no capítulo “Du sentiment religieux chez M. Renan” dos Essais de psychologie contemporaine. 1547 BM § 256. 1548 Cf. FP 28 [7] de outono de 1884; 37 [15] junho – julho de 1885. 1549 Carta de Paneth a Sophie Schwab publicada em Das Leben Friedrich Nietzsche de Elizabeth FösterNietzsche apud Hollinrake, p. 195. 1550 Renan, La poésie des races celtiques, p. 263. 1551 Cf. Campioni, Do agonismo..., p. 157. 505 paixões, as quais o conduzem destemidamente ao seu dilaceramento. Como esclarece Campioni: Em A poesia das raças célticas, é significativo o confronto entre os heróis das sagas germânicas [...] e aqueles das sagas célticas [...] O herói germânico se caracteriza pela sua “brutalidade sem objeto”, pelo amor ao mal, pelo gosto desinteressado da destruição e da morte, em contraste com o herói címbrico 1552 “dominado pelo hábito da benevolência e por uma viva simpatia pelos mais fracos”, pelos animais, pela natureza, pelas pedras. O herói címbrico não se distancia do santo e é capaz de voltar sua doce piedade, como numa lenda de São Brandão, até a Judas, que sofre no inferno. 1553 Por conseguinte, verifica-se que Parsifal é uma exceção, uma figura atípica na galeria de heróis propriamente “wagnerianos”. O modelo para a sua feitura foi o Jesus “celta” proposto por Renan, acrescido de elementos da filosofia schopenhaueriana (compaixão e negação da vontade). Mas, sendo assim, os erros psicológicos que Nietzsche assegura terem sido cometidos por Renan na reconstituição histórica da figura de Jesus, a saber, as atribuições equivocadas e contraditórias dos termos “herói” e “gênio” para explicar o seu caráter, resvalaram fatalmente no tipo psicológico dado por Wagner ao Parsifal. Para Nietzsche, a obra de Wagner é condicionada fisiologicamente pela décadence. E é em Parsifal que o caráter decadente da música de Wagner assume a sua expressão mais patente e extrema. Ora, Nietzsche confere ao Parsifal um tremendo poder de sedução para a décadence, já que a degenerescência fisiológica é atraída por aquilo que mais lhe causa dano: 1554 Wagner é um sedutor em grande estilo. Nada existe de cansado, de caduco, de vitalmente perigoso e de caluniador do mundo, entre as coisas do espírito, que a sua arte não tenha secretamente tomado em proteção – é o mais negro obscurantismo, o que ele esconde nos mantos de luz do ideal. Ele incensa todo instinto niilista (– budista), e o transveste em música, ele incensa todo cristianismo, toda forma de expressão religiosa da décadence. [...] Nisto o seu último trabalho é sua maior obra-prima. Na arte da sedução o Parsifal sempre manterá a sua categoria, como o golpe de gênio em matéria de sedução... Eu admiro essa obra, gostaria de tê-la realizado eu mesmo; à falta disso, eu a compreendo... Wagner nunca esteve mais inspirado do que no fim. O refinamento na conjunção da beleza e enfermidade vai tão longe aí, que ela quase põe na 1552 Os cimbros são um povo bárbaro que invadiu as Gálias no século II a.C. Campioni, Do agonismo..., p. 157. 1554 Cf. EH, “Por que sou tão sábio” § 2. 1553 506 sombra a arte anterior de Wagner: – que fica parecendo clara demais, sadia demais. Compreendem isso? A saúde, a claridade tendo efeito de sombra? quase como objeção?... [...] Em nenhuma outra parte acharão modo mais agradável de enervar seu espírito, de esquecer sua virilidade sob um arbusto de rosas... Ah, esse velho mago! Esse Klingsor de todos os Klingsors! Como ele assim faz a guerra contra nós! nós, os espíritos livres! 1555 Assim como Jesus, o Parsifal de Wagner está muito mais para idiota do que para gênio e herói, daí o seu poder de atração, pois na arte de Wagner “se encontra, misturado de maneira mais sedutor, aquilo de que o mundo hoje”, ou seja, o mundo décadent, “tem mais necessidade – os três grandes estimulantes dos exaustos: o elemento brutal, o artificial e o inocente (idiota)”. 1556 Mas é em um fragmento póstumo (que fazia parte da cópia de Crepúsculo dos ídolos enviada à impressão, porém mais tarde retirada da versão final pelo próprio Nietzsche, no qual ele faz uma tentativa, repetida diversas outras vezes 1557 , de lançar o verdadeiro mandamento filantrópico, ao invés de “Não matarás!”, a interdição “Não procriarás!”), que Nietzsche deixa claro qual o verdadeiro caráter do personagem Parsifal, qual o seu tipo psicológico e, por conseguinte, qual o seu grau de proximidade com a figura de Jesus: – Há casos em que uma criança seria um crime: entre os doentes crônicos e os neurastênicos até o terceiro grau. O que se deve fazer? – Encorajá-los à castidade, por exemplo, com ajuda da música de Parsifal, poder-se-ia tentar sempre: Parsifal ele próprio, esse típico idiota, não tinha mais do que muitas razões para não se reproduzir. O problema é que uma certa inaptidão de se “dominar” (de não reagir aos estímulos, mesmo aos menores estímulos sexuais) faz parte das seqüelas mais regulares do esgotamento geral. 1558 Porém, como foi possível fazer com que um “puro tolo” se transformasse em gênio e herói? Ora, responderia Nietzsche, devido a uma total falta de tato em questões psicológicas, tal qual aquela que sofria Renan e, de forma ainda mais grave, Wagner. Guiado pelas considerações psicológicas de Renan, Wagner desenvolveu, de maneira ainda mais fantasiosa que antes, as motivações psicológicas dos personagens de seu último drama. Afinal, como diz Nietzsche: “– Ele não era psicólogo bastante para o drama; fugia 1555 CW pós-escrito. CW § 5. 1557 Cf. FP 22 [23] setembro-outubro de 1888 e 23 [10] outubro de 1888. 1558 FP 23 [1] outubro de 1888. 1556 507 instintivamente à motivação psicológica – como? colocando sempre a idiossincrasia no lugar dela... Muito moderno, não? muito parisiense! Muito décadent !...” 1559 Um exemplo de erro crasso em questões psicológicas: “– Por fim um fato que nos desconcerta: Parsifal é o pai de Lohengrin! Como é que ele fez isso? Devemos lembrar-nos de que ‘a castidade opera milagres’?” 1560 Wagner comete assim os mesmos erros que Renan: se o Parsifal é um “puro tolo”, um “tão pouco viril inocente da aldeia” 1561 , então ele estaria bem mais próximo do tipo idiota que Nietzsche confere a Jesus. Logo, ele não poderia ser herói, não poderia querer sair em busca de aventuras, enfrentar maléficos magos e derrotar seus guardas, passar por duras provas e se tornar o “cavaleiro de armadura negra”. Ele não poderia ser tampouco gênio, intuir espontaneamente o saber moral mais elevado, conceber o supremo ideal na forma do significado mais sublime da compaixão. Além disso, um gênio, segundo Nietzsche, não é formado acidentalmente, não é agraciado por um insight de origem desconhecida, ele é construído, modelado por si mesmo, por meio de um labor penoso e incessante, mediante um autodomínio que se impõe tarefas. Voltado para o seu “mundo interior”, o tipo idiota desconhece totalmente uma tal formação espiritual, ele só conhece suas “luzes”, suas vivências mais íntimas, consideradas por ele o verdadeiro “reino dos céus”. Da mesma forma, um herói é aquele que, movido pelas paixões mais brutais e impetuosas, parte em direção à sua dor mais lancinante. Ora, o tipo idiota é exatamente o oposto disso, é aquele cuja constituição fisiológica o leva a se voltar para um mundo próprio, por não suportar a dor que o contato com o mundo externo provoca, aquele que não resiste aos que lhe fazem mal, pois qualquer forma de conflito representa para ele azo para o sofrimento1562. Destarte, verifica-se como Wagner, pretendendo revelar o significado essencial e puro do cristianismo, seguindo as recomendações dadas por Renan, terminou elevando ao palco a mais extrema forma de corrupção psicológica a respeito do redentor, “nada mais do 1559 CW § 9. Idem. 1561 GM, III § 3. 1562 Cf. AC § 30. 1560 508 que psicologia fantástica” como afirmou Nietzsche1563. Parsifal, a história de um inocente que se torna herói e gênio, uma “conjunção de beleza e enfermidade” 1564 que atrai inexoravelmente os débeis e exaustos, alastrando e tornando ainda mais devastadora a décadence. Em sua derradeira obra, Wagner elogia, então, o cristianismo no sentido de falsificação da figura, vida, morte e ensinamentos de Jesus, operada, por ressentimento, pela “tradição”, isto é, uma religião da compaixão, uma religião niilista, sinônimo de negação da vida. 1563 1564 Carta a Seydlitz de janeiro de 1878 apud Hollinrake, Op. Cit., p. 177. CW, Pós-escrito. 509 510 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS I – OBRAS DE NIETZSCHE NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazino Montinari. Berlin/München/New York: Walter de Gruyter/DTV, Band 6, 1988. ______. Sämtliche Briefe Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazino Montinari. Berlin/München/New York: Walter de Gruyter/DTV, Band 8, 1988. ______. O Anticristo: maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. ______. El Anticristo: Maldición sobre el cristianismo. 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São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 513 ______. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ______. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ______. O caso Wagner: um problema para músicos / Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ______. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. II – FONTES DE NIETZSCHE E LEITURAS AFINS Obs. 1 : a sigla BN designa os livros cujos exemplares encontram-se conservados na Anna Amalia Bibliothek, acervo do Goethe- und Schiller-Archiv, junto ao Stiftung Weimarer Klassik em Weimar, Alemanha. Obs. 2: O principal site que disponibiliza esse tipo de material é o “The Internet Archive Text”, que oferece downloads de livros em domínio público digitalizados por organizações como: “American Libraries”; “Canadian Libraries”; “Universal Library”; “Community Texts”; “Project Gutenberg”; etc. Endereço: < http://www.archive.org/ >, último acesso em: 27/06/2012. 2.1 – Strauss STRAUSS, David Friedrich. Das Leben Jesu: kritisch bearbeitet. Zweite, verbesserte Auflage. Tübingen: C. F. Osiander, 1837. ______. Vié de Jésus ou Examen critique de son histoire. Traduite par E. Littré. Paris: Libraire Ladrange, tome premier: 1839, tome second: 1840. ______. The life of Jesus: critically Examined. Translated by George Eliot. London: George Allen, 1913. ______. Die Christliche Glaubenslehre in ihrer geschichtlichen Entwicklung ind im Kampfe mit der modernen Wissenschaft dargestellt. Tübingen: C. F. Osiander, 1841, Band 2. ______. Das Leben Jesu für das deutsche Volk bearbeitet. (BN) Leipzig: Brodhaus, 1864. ______. Krieg und Friede: zwei Brief an Ernst Renan. Leipzig: G. Hirzel, 1870. 514 ______. “Letter to Ernest Renan”. In: Letters on the war between Germany and France. London: Trübner, 1871. ______. Voltaire: Sechs Vorträge. Leipzig: Hirzel, 1872. ______. Voltaire: six conférences. Traduit par Louis Narval, précédé d'une lettre-préface de M. E. Littré. Paris: C. Reinwal et Cie, 1876. ______. Der alte und der neue Glaube: ein Bekenntnis. (BN) Leipzig: G. Hirzel, 1872. _____. L’ancienne et la nouvelle foi: Confession. Traduit par Louis Narval, préface par E. Littré. ______. The old faith and the new: a confession. Translation by Mathilde Blind. New York: Henry Holt and Company, 1873. 2.2 – Renan ______. Averroès et l’averroïsme. Paris : Calmann-Lévy, 1882. ______. Les historien critiques de Jésus. In : Études d’histoire religieuse. Paris : CalmannLévy, 1863. ______. La poésie des races celtiques. In: Œvres complètes. Édition définitive établie par Henriette Psichari. Paris : Calmann-Lévy, 1947. ______. Histoire des origines du christianisme. Paris: Robert Laffont, 2 Vol., 1995. ______. Vida de Jesus. Tradução Eliana Maria de A. Martins. São Paulo: Martin Claret, 2003. ______. Paulo: o 13º apóstolo. Tradução: Tomás de Fonseca. São Paulo: Martin Claret, 2003. ______. Vie de Jésus. Paris: Calman Lévy, 1883. ______. Questions contemporaines. In: Œvres complètes, Calman-Lévy, 1947. ______. “Lettres a M. Strauss”. In : La réforme intellectuelle et morale. Paris: CalmannLévy, 1875. ______. Dialogues et fragments philosophiques. Paris: Calmann Lévy, 1876. ______. Philosophische Dialoge und Fragmente. (BN) Mit Genehmigung des Verfassers übersetzt von Dr. Konrad von Zdekauer, Leipzig: E. Koschny, 1877. 515 ______. Souvenirs d’enfance et de jeunesse. Préface et commentaires de Jean Balcou. Paris : Presses Pocket, 1992. ______. Souvenirs d’enfance et de jeunesse. (BN) Deuxième édition, Paris: C. Lévy, 1883. ______. François d’Assise. In : Nouvelles études d’histoire religieuse, Paris : Calmann Lévy, 1884. 2.3 – Crítica literária francesa BOURGET, Paul. Essais de psychologie contemporaine. Paris: Alphonse Lemerre, 1891. ______. Essais de psychologie contemporaine. Paris : Alphonse Lemerre, 1908. ______. Nouveaux essais de psychologie contemporaine. (BN) Paris: A. Lemerre, 1886. BRUNETIERE, Ferdinand. Études critiques sur l’histoire de la littérature française. (BN) Troisième série. Paris: Hachette et C.ie, 1887. D'AUREVILLY, Jules Amédée Barbey. Les oeuvres et les hommes I. Paris : Amyot, 1860. DOUDAN, Ximénès. Lettres. (BN) Paris : Calmann Lévy, Vol. IV, 1879. FRANCE, Anatole. La vie littéraire I. Paris : Calmann-Lévy 1921. GONCOURT, Frères. Journal des Goncourt: memoires de la vie littéraire. Paris: Bibliothèque-Charpentier, 1891. LEMAÌTRE, Jules. Les contemporains : études e portraits littéraires I. Paris : Libraire Lecène, 1896. VOGÜE, Eugène-Melchior. Le roman russe. Onzième édition. Paris : Plon-Mounrit et Gle, 1912. 2.4 – Literatura médica do século XIX ABOVILLE, F. M et allii. “Sur le dynamomètre de M. Regnier”. In: Journal des Mines. Numéro 97, Vendémiaire an 13, 1804-1805, pp. 57-76. Disponível em: <http://annales.ensmp.fr/articles/1804-1805-1/>, último acesso em: 27/06/2012. BEARD, George M. A practical treatise on nervous exhaustion (neurasthenia): its symptoms, nature, sequences, treatment. New York: William Eood & Company, 1880. 516 BINET-SANGLÉ. La folie de Jésus: son hérédité, sa constitution, sa physiologie. Paris: A. Maloine, 1908. BOUVERET, L. La neurasthénie: épuisement nerveux. Paris: J. -B. Baillière, 1891. CHARCOT, Jean-Martin: “A grande histeria ou hístero-epilepsia”. Tradução e revisão técnica Mário Eduardo Costa Pereira. In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, II, 3, 166-172. FÉRÉ, Charles. Du cancer de la vessie. Paris: A. Delahaye et Lecrosnier ,1881. ______. 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