FAMÍLIAS E CONTEMPORANEIDADE
José Outeiral*
RESUMO
O autor realiza um recorrido sobre as questões familiares, nos aspectos culturais
e psíquicos, considerando as transformações que atingem as famílias contemporâneas.
Palavras-chave: Família. Transformações familiares. Famílias contemporâneas.
Vivemos hoje na época dos objetos parciais, tijolos estilhaçados em fragmentos
e resíduos.
Deleuze
Uma breve contextualização inicial
*
Membro Titular e Didata da SPP e
Membro Convidado da SBPRJ.
Os textos onde Sigmund Freud aborda as
questões relacionadas à cultura, especialmente
aqueles escritos após a década de 20, nos revelam
uma preocupação crescente com os grupos, com
a família e com a cultura. Ao definir em Além do
princípio do prazer, por exemplo, a função da
mãe como escudo protetor ele nos dá um dos
inúmeros exemplos encontrados em sua obra da
importância daquilo que Donald Winnicott conceituará como ambiente facilitador, a família e
a sociedade.
É evidente que a psicanálise, centrada
especialmente no complexo de Édipo e pelos
acontecimentos pré-edípicos, é perpassada pelos
acontecimentos emocionais, resultado da interação entre a realidade e a fantasia, ocorrida no
âmbito do grupo familiar. Por outro lado, é oportuno não esquecer, como está escrito em um pé de
página do Caso Dora, que Freud nunca abriu mão
integralmente do trauma da sedução; o conceito
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de fantasia, que se seguiu à teoria do
trauma da sedução, não é incompatível
com acontecimentos reais. A percepção
da realidade, como sabemos, é, então,
influenciada pelos avatares do desenvolvimento e dos processos maturacionais
— a neurose infantil, por exemplo —,
ocasionando contatos tanto com objetos
subjetivamente concebidos como com
objetos objetivamente percebidos e
propiciando um espaço de transicionalidade. Espaço este onde acontecem os
objetos e fenômenos transicionais, terceiro espaço, espaço paradoxal, que não
pertence nem ao bebê nem à mãe e, ao
mesmo tempo, pertence a ambos. Espaço
que propicia o ingresso no Real. Espaço
de repouso, de amorfia, do gesto espontâneo, da criatividade e da criação da cultura (Outeiral, 2003).
Sigmund Freud era um homem erudito, conhecedor da cultura, que viveu
dentro de um contexto familiar específico: uma família judia pequeno-burguesa,
na Viena do fin du siècle XIX e nas
primeiras décadas do século XX. Seu
olhar, como não poderia ser diferente,
tem este viés. Seus biógrafos escreveram
detalhadamente sobre este tema e é desnecessário que eu me estenda além desta
breve observação.
É no conceito de desamparo, que
considero de extrema significação na obra
de Freud, tanto do ponto de vista teórico
como clínico, que encontramos outra
amarração que inevitavelmente nos leva
à importância da família em seu pensamento. Donald Winnicott, freudianamente,
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escreveu que “não existe esta coisa de
um bebê sem uma mãe”; eu acrescento,
não sendo nada original, que não existe
mãe sem pai e que mesmo a ausência
deste é, paradoxalmente, uma presença
marcante. Sigo a linha de pensamento de
Donald Winnicott, que ao escrever que
não existe bebê sem mãe está também
registrando que não existe mãe, nem bebê,
sem pai, sem família. Até agora é provável que o leitor não tenha encontrado
nenhuma novidade na leitura deste breve
ensaio: peço um pouco mais de paciência.
O que quero trazer é que Sigmund Freud
deu, sim, importância não só ao mundo
interno e à fantasia, mas reconheceu
também a existência da mãe e do pai
reais. Com a série complementar (1916)
ele nos permite mais uma articulação do
que escrevo. Na conhecida boutade de
Donald Winnicott (o mais freudiano dos
psicanalistas nascidos na Inglaterra, provoco), quando ele lembrou aos membros
da Sociedade Britânica de Psicanálise
que, a despeito das discussões que estavam sendo travadas, em torno das controvérsias Klein-Anna Freud, Londres estava sendo bombardeada naquele momento
pelos nazistas, ele registrou a importância
do Real, reafirmando, assim, como sempre o fez, sua filiação freudiana. A família
é Real: sua percepção, entretanto, nem
sempre o é.
Pelo que escrevo quero gizar o
óbvio: o ser humano depende em seu
desamparo, físico e psíquico, aspectos
que ele irá progressivamente integrando
através da personalização, de um ambi-
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ente facilitador (mãe suficientemente
boa ou mãe devotada comum) que se
revele suficientemente bom. Vou poupar o leitor de uma “revisão da literatura”
e falar de minha experiência clínica. Creio
que agora posso seguir adiante, após ter
trazido estas considerações.
A clínica do cotidiano
A clínica do cotidiano nos permite
constatar que, efetivamente, uma série de
paradigmas e valores de nossa sociedade,
circunstâncias que se mantiveram relativamente estáveis no decurso de várias
gerações que nos antecederam, estão
sendo contestados, modificados e, mesmo, substituídos por outros muito diferentes. Esta observação pode ser descrita
como o “advento” da condição pósmoderna (ou “...a lógica cultural do capitalismo tardio”, como define F. Jamelson),
ou seja, a etapa intermediária entre o
“esgotamento” da Modernidade e o período que a irá suceder e que não sabemos,
exatamente, como será. Prefiro, entretanto, usar as expressões alta modernidade ou cultura contemporânea. Peço
ao leitor que considere que as condições de
nosso país dificultam a utilização da expressão condição pós-moderna, pois a Modernidade nem bem se instalou entre nós.
Na sociedade humana, desde os
seus primórdios, sempre foi assim: durante certo espaço de tempo, às vezes, abrangendo alguns séculos, uma série de elementos sociais, econômicos e culturais
permanece aparentemente estável até
que em um determinado momento, que
poderá ocupar algumas gerações, ocorre
uma “ruptura”, surgindo momentos de
instabilidade, incertezas e mudanças bruscas, e após uma nova etapa se estabelece. Foi assim, por exemplo, ao final do
Medievo, em torno dos séculos XV e
XVI, quando a Modernidade começou a
se estruturar.
Uma metáfora que costumo utilizar para dar maior nitidez ao que escrevo
(valendo sempre lembrar, com W. Goethe, que “...a nitidez é uma conveniente
distribuição de luz e sombra...”, ou seja,
que não pretendo “explicar tudo”, deixando ao leitor parte do trabalho) é o movimento das placas tectônicas. Estas placas, que formam a superfície terrestre,
durante longos espaços de tempo, aparentemente (pois, na verdade, estão em
constante movimento e gerando quantidades fantásticas de energia), parecem
estar em repouso, até que o acúmulo de
energia produz movimentos perceptíveis
que denominamos terremotos e novas
aparentes acomodações surgem então.
Não esqueçamos que nosso continente
era unido à África e era denominado
Pangéia. Estas novas acomodações darão lugar a novos terremotos e assim
sucessivamente em um movimento contínuo. Com o desenvolvimento da sociedade humana acontece algo parecido: a
Idade Média, como comentei antes, foi
“estável” durante alguns séculos, ocorreu
então um “terremoto” que perdurou algumas gerações, e se estabeleceu, então, a
Idade Moderna.
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É possível, pensam alguns autores,
que estejamos vivendo um “terremoto”
— a condição pós-moderna, período de
transição entre a Modernidade e o que a
irá suceder... Logo surge a pergunta sobre quais fatores provocam estas “mudanças”. Voltemos, por breves instantes
e com uma lente de maior aumento, até à
Idade Média, caracterizada, especialmente, pela estrutura feudal e por uma visão
de mundo teológica. O desenvolvimento
do comércio trazido pelas grandes navegações, o avanço do conhecimento científico sobre a interpretação teológica do
mundo, a razão contra o misticismo, o
desenvolvimento das cidades e do comércio (surgem os “burgos”, as cidades, muitas
vezes cidades-Estados, e os burgueses,
uma nova classe social) provocam rupturas e mudanças. A invenção da imprensa
(a descoberta de J. Gutemberg [13971468]) colocou o conhecimento obtido
por meio de livros e da Bíblia — a primeira
Bíblia impressa surgiu em 1454 — ao
alcance de muitos. O que antes era restrito ao trabalho dos monges copistas e que
permanecia na posse da Igreja originou
transformações que o livro de Humberto
Eco, O nome da rosa, relata de forma
magnífica. São inúmeras as novas condições e na esteira deste processo surge a
Reforma Protestante; enfim, um semnúmero de fatores sociais, econômicos e
culturais se modificaram. Houve um esvaziamento do Medievo nos séculos XV,
XVI e XVII e o nascimento e o desenvolvimento da Modernidade. A Modernidade que é representada, por exemplo, pelo
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ideário da Revolução Francesa de 1779
— liberdade, igualdade e fraternidade —
propiciou o surgimento da Revolução Industrial, a noção de Estado nacional, o
respeito pelas leis constitucionais e pelo
cidadão, uma ênfase sobre a razão e no
conhecimento científico, o estabelecimento da “família burguesa”, configurando
uma visão de mundo considerada como o
Iluminismo, período das luzes, em oposição à chamada idade das trevas, a Idade
Média.
Neste período um novo conceito
de família a família burguesa, surge,
como descreve Philippe Ariès. A própria
arquitetura doméstica se modifica, aparecendo a idéia de privacidade e, por
exemplo, os quartos de dormir, o que não
existia, praticamente, até então; todos
costumavam dormir em uma mesma peça,
adultos, crianças e visitantes ocasionais,
próximos ao local das refeições, espaço
aquecido. A privacidade está ligada à
crescente noção de indivíduo; cada pessoa buscando, agora, uma individualidade, ser “diferente”, único: um sujeito.
O crescimento das cidades criou
também os sobrenomes, os nomes-defamília, pois, se nas pequenas aldeias
todos se conheciam e a genealogia era
sabida pela comunidade, na cidade era
necessário nomear a família para dar
identidade: o pescador passou a se chamar Johan Fischerman... ou o emigrante
português, vindo ao Brasil no século XVIII,
para lutar nas guerras cisplatinas, chamado Manuel e habitante da pequena Vila
dos Outeiros, região de outeiros — mor-
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ros — ao norte de Portugal e na região da
Galícia, passou a ser chamado de Manuel
Outeiral... O “al” acrescido pela influência moura de quase novecentos anos de
domínio na Ibéria. Uma consideração
interessante é que, quando o camponês
começou a migrar para a cidade e necessitou de um outro nome, a expressão
inglesa arcaica para tanto era “um eike
name” (“um outro nome”), palavras que
consignavam uma identidade. Quinhentos anos depois esta expressão deu origem a uma outra, “nickname”, apelido,
que nos remete ao falso, ao fake do
ciberespaço pós-moderno, algo que promove a descentralização e a descontextualização do sujeito e de sua identidade.
Como sempre as palavras são reveladoras.
Esta passagem não se realizou sem
“traumas”, mas sim através de “turbulências”, às vezes fraturas bruscas e outras
numa suave découpage, que envolveu,
muitas vezes, a violência: Nicolau
Copérnico e Galileu Galilei são exemplos
destes tempos de mudança. As novas
idéias colocavam em risco os paradigmas
e valores da época e muitos foram punidos, na verdade, na busca do Poder em
banir as novas idéias laicas e o espírito
científico que elas representavam. O conceito de W. Bion sobre mudança catastrófica nos auxilia a compreender, desde
o social ao individual, o significado destas
transformações.
Embora utilize, obviamente, referenciais teóricos, quero dirigir minhas idéias
e minha escrita pela clínica e pelo cotidi-
ano de minha prática, que representa
mais de três décadas de atividades como
médico, psiquiatra e psicanalista com crianças, adolescentes e suas famílias. Não
tenho o intento de estar construindo um
paper ou ser um scholar, mas sim o de
estar buscando interlocutores para discutir as experiências e buscar a síntese de
um conjunto de idéias que possa ser capaz
de realizar hoje.
Trago, agora, ao leitor algumas
considerações sobre as transformações
sofridas pelas famílias, depois de muitas
gerações com uma aparente estabilidade.
O leitor deve considerar que neste
recorrido histórico que faço, perpassado
pela busca de compreender as estruturas
familiares, busco, agora, falar das famílias contemporâneas.
Nos últimos cem anos a humanidade acumulou uma quantidade tal de novos
conhecimentos como, talvez, nunca tenha
acontecido antes. Foi possível filmar o
primeiro vôo de um aparelho mais pesado
que o ar, com Santos Dumont e o 14-Bis,
em Bagatelle, e antes de completar um
século filmar o homem pisando na Lua.
As possibilidades de comunicação tornaram-se fantásticas e a cibernética nos
deu novas dimensões nos relacionamentos e na busca de informações. Os teóricos que estudam a pós-modernidade nos
falam do apagamento da noção de sujeito, substituído pela pessoa-coisa, um
gadget. Noção de sujeito, sujeito psíquico, tão cara à Modernidade. Estes
autores comentam sobre o final da história. Referem sobre a fragmentação, da
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cultura da banalização e do descartável.
Agora temos um hipercorpo, constituído
por próteses eletrônicas, que nos ligam,
nos mantêm on-line, em um mundo globalizado. Globalização que globaliza também o desejo. A cultura da banalização e
do descartável é evidente. O tempo fast
nos apresenta uma geração delivery.
Enfim, não pretendo sobrecarregar o leitor com o já conhecido, mas colocar os
fatos que nos auxiliarão a pensar melhor
as condições do sujeito contemporâneo e
das estruturas familiares que constituem
o seu ambiente facilitador, como escreveu Donald Winnicott.
Vejamos, então.
Na década de 70 (século XX) as
questões familiares nos conduziam a refletir sobre a passagem da família patriarcal para a família nuclear. Devemos
considerar nestas mudanças múltiplos
fatores, dos quais quero referir dois. Primeiro o crescimento rápido e desordenado
dos centros urbanos à custa de um intenso
fluxo migratório vindo das zonas rurais, na
década de 1940-50. O Censo Demográfico
do IBGE, nesta ocasião, revelava que
aproximadamente 30% da população vivia nas grandes cidades, enquanto 70%
da população habitava pequenas cidades
e o campo, situação que se inverte na
passagem para o século XXI, quando
80% da população está nos grandes centros urbanos e apenas 20% nas zonas
rurais e pequenas cidades. Em segundo
lugar o ingresso da mulher no mercado de
trabalho. A família patriarcal, constituída por grupos familiares reunindo diver68
sos graus de parentesco (avós, tios, primos, etc.), habitando espaços próximos e,
muitas vezes, participantes de uma mesma atividade produtiva, oferecia à criança e ao adolescente uma rede familiar de
proteção, no caso de dificuldades por
parte dos pais, assim como um maior
número de modelos para identificação
(mais uniformes, coerentes e estáveis e
pertencentes a uma mesma cultura). Este
grupo familiar é próprio das zonas rurais
e dos pequenos vilarejos do interior. Com
a rápida migração para os grandes centros urbanos passamos a encontrar a
família nuclear, constituída por um casal
(ou somente pela mãe, em pelo menos um
terço das famílias segundo o IBGE) e um
ou dois filhos, longe do grupo familiar de
origem, anônimos, desenraizados de suas
culturas. Esta multidão, paradoxalmente,
dá ao indivíduo desamparo e isolamento.
Nas famílias mais pobres é geralmente a
avó que se faz cargo das crianças, estando os pais, ainda adolescentes, na vida das
ruas. É exatamente nesta década que
crianças e adolescentes passam a chamar de “tios” os adultos em geral e os
professores em particular. Estes novos
“tios” penso que representam uma tentativa de reconstituição de laços de parentesco, revelando uma esperança que permite sustentar, pelos menos por algum
tempo, o desamparo. Crianças, adolescentes e seus pais em busca de uma
família “perdida”.
Na década de 80 as questões diziam respeito às novas configurações familiares: famílias reconstituídas, com filhos
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de casamentos anteriores e do novo casamento, tendo este fato social o reconhecimento com a lei do divórcio. Certamente
em uma sala de aula, nas décadas anteriores, poucas crianças tinham os pais separados, enquanto hoje este é um fato
comum. As questões relacionadas às
perdas de vínculos passam a se tornar
muito importantes. O conceito de tendência anti-social, de Donald Winnicott,
resultado da deprivação (perda de um
cuidado que foi experimentado) adquire
muita atualidade. A “delinqüência” (do
latim de-linqueare, perda de vínculo), tendência anti-social que não encontrou atendimento, ocupa vários espaços sociais.
Nos últimos anos surge, então, uma
série de diferentes configurações familiares. Cada criança, em uma sala de aula,
traz uma experiência cultural familiar própria. O desenvolvimento tecnológico
aporta muitas possibilidades para a concepção de um bebê, abrindo, por exemplo,
a porta para as questões derivadas das
famílias homoparentais. A mulher obtém,
por desejo e/ou necessidade, uma definitiva inserção no mercado de trabalho e o
tempo de convivência com os filhos se
torna menor do que nas gerações anteriores. Berçários, creches e escolas infantis se tornam necessárias para pais que
“terceirizam”, cada vez mais, os cuidados
parentais. A função paterna é cada vez
mais inexistente nos grandes centros urbanos.
Os Indicadores Sociais do último
censo do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística nos revelam que a primeira
causa de morte entre catorze e vinte e
cinco anos, em nosso país, é homicídio, a
segunda causa acidentes e a terceira
causa suicídio, e só depois temos as doenças orgânicas. Este período de desamparo e de banalização da violência em
nossa sociedade revela uma encruzilhada
entre civilização e barbárie que atinge de
cheio as estruturas familiares. Muitos
problemas de desenvolvimento e de sofrimento emocional passam por estas condições: as patologias do vazio, as estruturas narcísicas, os borderlines, o sentimento de não-ser e de invisibilidade, as
adições a substâncias psicoativas e as
adições a pessoas, entre outras condições, permitem pensarmos em “patologias da contemporaneidade”.
As identificações muitas vezes
patológicas (nem todas as identificações,
como sabemos, são estruturantes) atingem crianças e adolescentes. Estes últimos, buscando seu processo identificatório, como é natural, na sociedade, mais do
que na própria família, encontram representantes sociais que não oferecem valores éticos e morais adequados. As
desidentificações de identificações
patológicas, parte do processo adolescente, não se dão adequadamente. Há um
predomínio, então, de um ego ideal sobre
o ideal de ego. O primeiro, mais ligado ao
narcisismo, ao pensamento concreto e
com uma capacidade de simbolização
incipiente e não reconhecendo adequadamente o “outro”, predomina sobre o segundo, em geral, menos narcísico, reconhecendo e respeitando o “outro” e com
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predomínio do pensamento abstrato e da
capacidade de simbolizar. Em outras situações encontramos um ideal de ego
punitivo, sádico e destrutivo, como sói
acontecer em muitas situações emocionais adversas. É possível se dizer, parodiando Freud, que onde “existe ego ideal
deveria existir ideal de ego”. O desamparo nas etapas iniciais do desenvolvimento e dos processos de maturação, a
falência da função paterna e as identificações patológicas respondem, dentre outros fatores, por estas condições. Há
dificuldades no estabelecimento de limites, entendidos aqui como holding ou
função continente. Holding, não esqueçamos, é espaço e limite, elemento
feminino puro, “ser”, e também, necessariamente, elemento masculino puro, “fazer”. Sem estes elementos a capacidade
de pensar está prejudicada e teremos a
descarga de impulsos diretamente na ação,
sem intermediação do pensamento: comunicação pela ação, agir para sentir-se
vivo. Em lugar do “penso, logo existo”
de Descartes temos o “ajo, logo existo”
ou “mato, logo existo”. Estes acontecimentos atingem os jovens de diferentes
classes sociais.
O leitor, talvez, pensará que estou
muito trágico, a despeito dos dados de
morte de jovens pelo IBGE. Mas sabe o
leitor de que morrem meninos entre cinco
e quinze anos na cidade de São Paulo?
Homicídio é a causa da morte deles. Não
esqueçam que a história do homem avança numa circular ascendente onde se
alternam civilização e barbárie.
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Quero agora, dando continuidade
às idéias sobre as famílias contemporâneas, de nossos centros urbanos, escrever
sobre algumas outras questões relacionadas às crianças e aos adolescentes. A
Organização Mundial de Saúde reconhece a adolescência como o período compreendido entre dez e vinte anos e o
Estatuto da Criança e do Adolescente
como o período compreendido entre doze
e dezoito anos. Pois nas famílias contemporâneas é possível reconhecer que a
adolescência se inicia, muitas vezes, antes dos dez anos e se prolonga muito além
dos vinte anos, em outras tantas.
Não sou um “filósofo de poltrona”,
como escreve Donald Winnicott. Ele nos
adverte, em O brincar e a realidade,
contra esta postura que evitando o empirismo se lança na teorização distanciada
da clínica. Vou escrever sobre o que
experiencio, desde que atendi, em 1971,
meus primeiros três pacientes adolescentes, sob a supervisão de Luiz Carlos Osório,
Eduardo Kalina e Luis Prego-Silva. Como
nosso tema é família, é por aí que convido
o leitor a uma interlocução.
Na década de 70, generalizando, a
criança se tornava púbere (fenômeno
biológico) e, então, adolescia (acontecimentos psicossociais). Na década de 80 a
puberdade e adolescência eram observadas concomitantemente. Nos últimos anos
observo uma conduta adolescente (interesse pela sexualidade genital, contestação das normas e combinações da família
e da escola, preocupação exagerada pelo
corpo, etc.) em indivíduos ainda não pú-
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beres, antes dos dez anos, com sete ou
oito anos. Penso, inclusive, e não vejo
originalidade nisto, que o conceito de infância, como período de desenvolvimento
com direitos e necessidades específicas,
estabelecido pelo Iluminismo, sofre a hipótese de profundas transformações.
Alguns autores referem sobre a desinvenção da infância, inclusive, sobre a
desinvenção do brincar. Temas a serem desenvolvidos em um outro momento. Há algumas décadas se transitava da
infância ao mundo adulto através de alguns rituais de iniciação e em um curto
espaço de tempo. Com o desenvolver da
adolescência, a partir da metade do século passado, com esta invadindo a infância
e o mundo adulto, temos a adolescência
não só como período de desenvolvimento,
mas, também, como um estilo de vida nas
sociedades urbanas contemporâneas. É a
“adultescência”, contração de adulto e
adolescente, palavra que consta no Dicionário Oxford. Temos também os
kidadults, adultos que abandonam sua
posição e passam a agir de uma forma
infantil. Assim, poderemos considerar a
hipótese, fazendo uma brincadeira, de
que os adultos correm o risco de se
transformarem em uma espécie em extinção, assim como o tamanduá-bandeira
e o boto-rosa... Observo, por exemplo, e
não é raro, nas escolas, o “desaparecimento” dos adultos A falência das funções de adulto origina, é óbvio, severos
problemas ao desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e profundas transformações nos papéis familiares.
O período de latência, por exemplo, sofre com estas novas condições. É
sobre ele que a adolescência lança sua
“turbulência”, antes que exista uma mente capaz de lidar com as questões desta
etapa. Abortada ou invadida a latência
deixa de cumprir suas tarefas, tão essenciais ao desenvolvimento.
Necessitamos então falar em famílias e sustentar, freqüentemente, um
não-saber sobre elas.
Arremate
Minha intenção é convidar o leitor
a realizar algumas reflexões sobre as
diferentes configurações e possibilidades
que envolvem as questões familiares. Não
busco a linearidade ou a estrutura acadêmica. Escrevo como se estivesse falando. Espero que o leitor, durante a leitura,
construa seu próprio texto; que traga suas
idéias e expresse suas discordâncias. O
que escrevi deverá ficar numa curva do
caminho.
REFERÊNCIAS
Ariès, P. (1981). A história social da
criança e da família. Rio de Janeiro: LTC.
Freud, S. (1976). Conferências introdutórias sobre psicanálise: Conferência
XXII: Algumas idéias sobre desenvolvimento e regressão. Etiologia. In
S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas com-
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pletas de Sigmund Freud (Vol. 16,
pp. 397-417). Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 19161917.)
Jamelson, F. (1997). As sementes do
tempo. São Paulo: Ática.
Outeiral, J. (2003). Adolescer. Rio de
Janeiro: Revinter.
Winnicott, D. (1975). Primitive emotional
development. In D. W. Winnicott,
Through paediatrics to psychoanalysis (pp. 145-156). London: The
Hogarth Press. (Trabalho original
publicado em 1945.)
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SUMMARY
Families and contemporary times
The author presents an investigation on family issues, approaching its cultural
and psychiatric aspects, taking into consideration the changes that effect contemporary
families.
Key words: Family. Changes within family environment. Contemporary families.
RESUMEN
Familias y contemporanedad
El autor realiza un recorrido acerca de las cuestiones familiares, sus aspectos
culturales y psíquicos, considerando las transformaciones que atingen las familias
contemporáneas.
Palabras-clave: Familia. Transformaciones en la familia. Familias contemporâneas.
José Outeiral
R. 24 de outubro, 838/302
90510-000 Porto Alegre, RS
E-mail: joseouteiral@hotmail.com
Home Page: www.joseouteiral.com
Recebido em: 31/05/07
Aceito em: 14/06/07
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