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Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci

2014, Revista Política Democrática

Karl Marx não nos legou uma teoria plenamente sistematizada da política ou do Estado, embora fosse sua vontade. Tal vazio abriu espaço para que muitas vertentes marxistas construíssem possíveis sociologias ou ciências da política a partir de suas interpretações singulares da obra do filósofo alemão. Neste breve texto sugiro o que o italiano Antônio Gramsci [1891-1937] compreendeu como sociologia e ciência política a partir de seus famosos Cadernos do Cárcere.

Fundação Astrojildo Pereira SEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504 Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – contato@fundacaoastrojildo.org.br www.fundacaoastrojildo.org.br Presidente de Honra: Armênio Guedes Presidente: Alberto Aggio Política Democrática Revista de Política e Cultura www.políticademocratica.com.br Conselho de Redação Editor Marco Antonio T. Coelho Editor Executivo Francisco Inácio de Almeida Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. Araújo Davi Emerich Dina Lida Kinoshita Ferreira Gullar George Gurgel de Oliveira Giovanni Menegoz Ivan Alves Filho Luiz Sérgio Henriques Raimundo Santos Conselho Editorial Ailton Benedito Alberto Passos G. 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No 40, dez./2014. 200p. CDU 32.008 (05) Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte. Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira TEMPO DE BATALHA DEMOCRÁTICA Dezembro /2014 Sumário EDITORIAL Os esqueletos pós-eleitorais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 I. TEMA DE CAPA: TEMPO DE BATALHA DEMOCRÁTICA Um golpe de Estado em doses homeopáticas Augusto de Franco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Rombo fiscal, petrolão, choque PMDB/PT e oposição forte Jarbas de Holanda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 A tragédia petista em três tempos Zander Navarro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Os 125 anos da República e as ameaças à democracia Maurício Rudner Huertas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 II. CONJUNTURA Quem controla a Petrobras e as empresas estatais? Gil Castello Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Continuidades e mudanças da corrupção no Brasil Antonio Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 As eleições de 2014 e a manutenção da sub-representação das mulheres em espaços institucionais de decisão política Patrícia Rangel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 Fora do eixo ou e nós aonde vamos! Zulu Araújo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 III. OBSERVATÓRIO Eleições 2014 e a cultura política brasileira Mércio Pereira Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 Os processos democráticos pressupõem o respeito às regras Luiz Carlos Azedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74 Diálogo com as esquerdas militantes Raimundo Santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Financiamento de campanha e reforma política Arlindo Fernandes de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78 83 IV. BATALHA DAS IDEIAS A precária sociedade mundial do trabalho Fabrício Maciel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 A solução está no professor Jaime Pinsky . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 Criação de novos municípios e o alto custo da máquina pública Laécio Noronha Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106 V. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIA Participação Cidadã & Estatização da Participação José Arlindo Soares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 Tráfico de mulheres Mônica Sifuentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Tribunal de Contas da União e suas nuanças José Osmar Monte Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 124 VI. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO O aquecimento global e seus danos irreversíveis José Eustáquio Diniz Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os desafios da engenharia brasileira na era contemporânea Fernando Alcoforado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 136 VII. ENSAIO Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci Theófilo Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 VIII. MUNDO Alguns sinais positivos no bilateralismo Paulo Delgado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 O emprego e os negociadores da globalização difícil José Flávio Sombra Saraiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162 IX. HOMENAGEM & MEMÓRIA O marxismo de Leandro Konder (1936-2014), ode ao pensamento crítico e à democracia Marco Aurélio Nogueira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 Os 90 anos da Coluna Prestes Arnaldo Jordy . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174 X. RESENHA O PCB: do dogmatismo à esquerda positiva Marco Antônio Franklin de Matos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Spinoza: teologia, filosofia e política César Benjamin . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A revolução irreformável Marcus Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 188 194 Autor Theófilo Rodrigues Graduado em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio . Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci Theófilo Rodrigues K arl Marx não nos legou uma teoria plenamente sistematizada da política ou do Estado, embora fosse sua vontade. Tal vazio abriu espaço para que muitas vertentes marxistas construíssem possíveis sociologias ou ciências da política a partir de suas interpretações singulares da obra do filósofo alemão. Neste breve texto sugiro o que o italiano Antônio Gramsci [1891-1937] compreendeu como sociologia e ciência política a partir de seus famosos Cadernos do Cárcere. Principal dirigente do Partido Comunista Italiano, Gramsci foi preso em 1926 de onde saiu apenas quando a morte já se aproximava em 1937. Embora seja autor de obra vastíssima que hoje está organizada e publicada em todo o mundo, o comunista da Sardenha jamais publicou um livro em vida. Seus textos publicados eram apenas informes políticos ou artigos de jornais, em especial para o L´Ordine Nuovo. Mas foi na prisão que o autor escreveu a extensa obra que o traria postumamente para o panteão dos grandes clássicos do marxismo: os Cadernos do Cárcere. Ao todo somam 33 os cadernos redigidos na prisão entre 1929 e 1935 e que tratam dos mais variados assuntos como a filosofia, a arte, a cultura, o folclore, a linguística, a religião, a história da Itália, a economia, a educação etc. Aqui, interessa-nos em especial os temas relacionados ao Estado, à ciência política e à sociologia, com ênfase no diálogo realizado com a obra de sociólogos de seu tempo. O objetivo é observar os diálogos travados por Gramsci com os seus sociólogos contemporâneos como Bukharin, Michels, Mosca, Pareto e Weber. Acrescente-se ao debate a influência de 145 Maquiavel sobre Gramsci pelo seu protagonismo como um dos fundadores da ciência política moderna. Gramsci e a ciência política de Maquiavel “Tudo começou com Maquiavel” é um importante e frequente aforismo da ciência política. Há seus motivos para sê-lo. Foi a partir de Nicolau Maquiavel [1469-1527] que os estudiosos da política passaram a dar visibilidade ao mundo real em seus estudos – aí inseridas suas contingências e circunstâncias –, ou, empreenderam críticas alicerçadas naquilo que Lênin definiu como as “análises concretas da realidade concreta”. Soma-se a isso o fato de Maquiavel ser um italiano e compreenderemos o destacado papel que o filósofo ocupou nos Cadernos do Cárcere . São muitos os cadernos onde encontramos menções ao nome de Maquiavel, mas foi indubitavelmente no Caderno 13 que Gramsci melhor dedicou-se ao estudo do filósofo de Florença. Aqui encontramos referências aos Discursos, à Arte da guerra e às Histórias florentinas, mas é em especial O Príncipe que ocupa maior destaque nos cadernos. De acordo com nosso autor, até Maquiavel a ciência política caminhava “entre a utopia e o tratado escolástico”. É a partir do Príncipe, de Maquiavel, que algo muda na exata medida em que o dever ser une-se finalmente à realidade concreta. “Maquiavel trata de como deve ser o Príncipe para conduzir um povo à fundação do novo Estado, e o tratamento é conduzido com rigor lógico, com distanciamento científico” (2007, p. 14), informa-nos Gramsci logo no início de seu texto. Ao trazer Maquiavel para o seu campo de estudo Gramsci está preocupado em apropriar-se de um elemento fundamental de sua ciência política, qual seja, a mudança histórica na forma como se dá a ação política na sociedade moderna a partir da mediação entre coerção e consenso. Gramsci percebe – influenciado por Maquiavel – que o desenvolvimento histórico obriga a ciência política a operar uma mudança radical na ação política. A “guerra de movimento” própria do Oriente onde a “sociedade civil era primitiva e gelatinosa” é substituída no Ocidente pela “guerra de posição”. Em outras palavras, a ação política direta contra um determinado Estado era possível nas sociedades atrasadas que não desenvolveram uma sociedade civil. Nas sociedades modernas, onde a sociedade civil é complexa, a disputa pelo Estado também é complexa, pois é necessário conquistar a hegemonia da sociedade civil antes de alcançar o “Palácio de Inverno”. Segundo 146 Theófilo Rodrigues Gramsci, “o Estado era apenas uma trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e casamatas” (2007, p. 262). As sociedades primitivas mantinham-se através de um máximo de coerção e um mínimo de consenso. O desenvolvimento de uma sociedade civil complexa nas sociedades modernas, ao contrário, possibilitou a manutenção do poder do Estado por um máximo de consenso e um mínimo de coerção. Mas não é apenas a natureza dúplice do Centauro maquiavélico, “ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele universal (da “Igreja” e do “Estado”), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia” (2007, p. 33) que Gramsci recolhe do autor do Príncipe. Assim como o filósofo de Florença descreveu a necessidade histórica de um Príncipe capaz de unificar a Itália, o filósofo da Sardenha depositou no partido político a tarefa de ser o moderno Príncipe, com a responsabilidade de “ser o anunciador e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa, de resto, criar o terreno para um novo desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular no sentido da realização de uma forma superior e total da civilização moderna” (GRAMSCI, 2007, p. 18). Por fim, importante ressaltar um ponto fundamental lembrado por Gramsci. O mérito da original ciência política de Maquiavel não está nos ensinamentos dados ao príncipe propriamente. Por óbvio, as táticas da política – como as da guerra – modificam-se ao longo do tempo e do espaço. O original na ciência política advinda do Príncipe está na percepção da responsabilidade histórica dos atores políticos e em como eles devem posicionar-se diante dos problemas de sua época, diante dos fatos concretos. Conforme nos indica o sardo, Maquiavel é um homem inteiramente de seu tempo e sua ciência política representa a filosofia da época que tende à organização das monarquias nacionais absolutas, a forma política que permite e facilita um novo desenvolvimento das forças produtivas burguesas. Em Maquiavel, pode-se descobrir in nuce a separação dos poderes e o parlamentarismo (o regime representativo): sua “ferocidade” está voltada contra os resíduos do mundo feudal, não contra as classes progressistas (GRAMSCI, 2007, p. 30). De Maquiavel o sardo recolhe, portanto, importantes elementos que constituirão as bases da sua nova ciência política. Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci 147 Gramsci contra a sociologia de Bukharin O debate sobre a então nascente sociologia encontrou um espaço profícuo – embora crítico – nos Cadernos do Cárcere, em especial no Caderno 11. A partir da desconstrução da principal obra do bolchevique Nikolai Bukharin [1888-1938] Gramsci apresentou alguns elementos de sua crítica da sociologia. Sendo o mais relevante construtor e difusor do que seria uma possível sociologia soviética, ou do que seria um diálogo do marxismo com a sociologia, Bukharin acabou tornando-se o alvo preferencial da crítica de Gramsci. Autor de proeminente obra teórica dentre os bolcheviques, Bukharin influenciou diretamente textos de Lênin como O Estado e a revolução e Imperialismo, fase superior do capitalismo. Contudo, foi com A teoria do materialismo histórico: manual popular de sociologia marxista publicado em 1921 que o autor encontrou de vez a sociologia e tornou-se referência teórica para grande parte dos revolucionários do período. Foi também a partir da Teoria do materialismo histórico – que ao longo do Caderno 11 aparece como Ensaio popular – que Gramsci estabeleceu seu diálogo crítico com Bukharin. De antemão, poderíamos dizer que as principais críticas formuladas por Gramsci ao Ensaio popular encontram-se em um só lugar: a relação construída por Bukharin entre sociologia e marxismo a partir da suposta falta de uma análise dialética da realidade. Logo na introdução do seu Ensaio Popular, Bukharin declarou que “a classe proletária tem sua sociologia própria, conhecida pelo nome de materialismo histórico”. Todavia, para Gramsci toda a ciência e a sociologia desenvolvidas por Bukharin não passavam de uma sociologia positivista. De forma assertiva o autor chegou a afirmar que o conceito de ciência presente no Ensaio popular “deve ser criticamente destruído; ele é pura e simplesmente recolhido das ciências naturais, como se estas fossem a única ciência, ou a ciência por excelência, tal como acreditava o positivismo” (GRAMSCI, 2011, p. 122). Tal categorização possui relação com aquilo que Gramsci definiu como a “lei dos grandes números”, ou seja, a busca científica por leis estatísticas que possam prever os resultados sociais. Se o concreto é “síntese de múltiplas determinações”, conforme asseverou Marx em sua Crítica da economia política de 1959, e se as múltiplas determinações são dinâmicas, então qualquer previsão social será sempre imprecisa, na medida em que partirá sempre de informações incompletas. Ao contrário das ciências naturais, a história não é um laboratório asséptico onde as variáveis estão sempre controladas por um analista. Deste 148 Theófilo Rodrigues modo, Gramsci apenas aceita a possibilidade de previsão da luta social, mas jamais dos seus resultados ou dos seus momentos. De forma original o italiano observa que a “lei dos grandes números”, ou melhor, que a sociologia só pode encontrar resultados reais em sociedades passivas, ou seja, em contextos em que esteja presente um determinado equilíbrio social. Utilizar a sociologia para aferir resultados de sociedades em processos de transformação certamente levará o analista ao erro. Em suas palavras, “a extensão da lei estatística à ciência e à arte política pode ter consequências muito graves se delas nos utilizarmos para construir perspectivas e programas de ação” (GRAMSCI, 2011, p. 147). A segunda crítica está na suposta falta de compreensão do processo dialético apontada por Gramsci. De fato, essa deficiência de Bukharin já havia sido registrada por Lênin em seu testamento político. Não obstante os elogios feitos à Bukharin já mencionados anteriormente, Lênin asseverou que “as suas concepções teóricas só com grandes reservas se podem qualificar de inteiramente marxistas, pois há nele qualquer coisa de escolástico – nunca estudou e penso que nunca compreendeu inteiramente a dialética” (LENINE, 1979, p. 641). Não se sabe se Gramsci chegou a conhecer o testamento de Lênin, mas a semelhança na crítica que ambos fazem à Bukharin é notável. Conforme o texto de Gramsci, “no Ensaio, inexiste qualquer tratamento da dialética” (GRAMSCI, 2011, p. 142). Mais do que isso, “deve-se dizer que escapa ao autor o próprio conceito de metafísica, na medida em que lhe escapam os conceitos de movimento histórico, de devir e, consequentemente, da própria dialética” (GRAMSCI, 2011, p. 120). Gramsci contra a teoria das elites de Mosca, Pareto e Michels Em seu cárcere, Gramsci dedicou-se a estudar profundamente a sociologia e a ciência política italiana de sua época, em especial aquela formulada pelos autores da Teoria das elites. Robert Michels [1876-1936], Vilfredo Pareto [1848-1923] e Gaetano Mosca [1858-1941] são autores de Sociologia dos partidos políticos, Tratado de sociologia geral e Elementos de ciência política respectivamente, clássicos que podem ser considerados fundadores da moderna ciência política. A inovação teórica proposta pelos três está na percepção da política dividida entre governantes e governados, divisão permanente e existente em todas as sociedades. Os três foram densamente examinados e criticados pelo sardo ao longo dos Cadernos como veremos adiante. Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci 149 Uma das críticas disferidas por Gramsci contra os autores da teoria das elites, notadamente à Michels, é aquela que também está presente na crítica à Bukharin, qual seja, a tentativa desses teóricos de constituir rígidas leis sociológicas. No Caderno 11, redigido entre 1932 e 1933, encontramos a maior parte dessas críticas. A implicância de Gramsci também está presente no Caderno 2 – escrito entre 1929 e 1933 – quando afirma que “Michels fez muito barulho na Itália por “seu” achado do “líder carismático”, que provavelmente, seria preciso verificar, já estava em Weber” (GRAMSCI, 2007, p. 162). Michels também é criticado pela superficialidade com que trata a definição teórica de partidos políticos. “Quando se quer escrever a história de um partido político, deve-se enfrentar na realidade toda uma série de problemas muito menos simples do que aqueles imaginados, por exemplo, por Robert Michels, considerado um especialista no assunto” (GRAMSCI, 2007, p. 87). Gramsci, um filósofo da totalidade, observa que a compreensão da história de um determinado partido político só é possível se forem analisados dados mais complexos e abrangentes da realidade histórica e suas relações internas e externas. Até mesmo as influências internacionais precisam ser estudadas. Antes de tudo, é necessário compreender a que grupo social cada partido pertence e como ele se coloca em antagonismo com outras forças sociais. Em suas palavras, “a história de um partido não poderá deixar de ser a história de um determinado grupo social” (GRAMSCI, 2007, p. 87). Gramsci não se contenta apenas em criticar a essência do erro de Michels. Traz para o seu alvo de ataque também a forma como o cientista político apresenta suas ideias. “A classificação que Michels faz dos partidos é muito superficial e sumária”; “O artigo [de Michels] está cheio de palavras vazias e imprecisas”; “As ideias de Michels sobre os partidos políticos são bastante confusas e esquemáticas”; “A bibliografia dos trabalhos de Michels pode ser reconstruída sempre a partir de seus próprios textos, porque ele cita a si mesmo abundantemente”; “seus escritos estão cheios de citações bibliográficas, em boa parte ociosas e confusas”; “ele apoia até ao mais banais truísmos com a autoridade dos escritores mais díspares”; “Michels deve ter organizado um imenso fichário, mas como diletante, como autodidata”; são apenas alguns exemplos do modo exagerado com o qual Gramsci trata seu adversário teórico no Caderno 2 redigido entre 1929 e 1933. Todavia, não é apenas Michels a ser criticado pela insuficiência conceitual do que seriam os partidos políticos. Mosca também é 150 Theófilo Rodrigues apresentado por Gramsci como um autor que não obteve sucesso nessa tentativa. Em seu Caderno 13 o sardo explica que “a deficiência da abordagem de Mosca reside no fato de que ele não enfrenta, em seu conjunto, o problema do partido político, o que se compreende, dado o caráter dos livros de Mosca e especialmente dos Elementi di scienza politica” (GRAMSCI, 2007, p. 22-23). Para além da crítica ao líder carismático, ao conceito de partido político ou ao positivismo sociológico que estava impregnado naqueles teóricos, Gramsci também concentra esforças em condenar a essência da teoria das elites que pode ser compreendia a partir dos conceitos de “elite” de Pareto, de “classe política” em Mosca ou de “lei de ferro das oligarquias” de Michels resguardadas suas diferenças. Como já foi dito, a teoria das elites caracteriza-se por compreender as sociedades através da divisão entre governantes e governados, dirigentes e dirigidos. Para os autores, todas as sociedades sempre terão uma minoria que ocupa o poder para dirigir uma maioria, seja nas democracias, seja nas sociedades socialistas. Essa perspectiva certamente não é compartilhada por Gramsci. Evidentemente, o sardo compreende as sociedades modernas através do binômio elitista dirigentes-dirigidos, governantes-governados. Contudo, observa que essa construção elitista é histórica e que pode ser superada na sociedade de novo tipo. Notória também é a maneira como Gramsci refere-se a Mosca de forma ríspida. Os adjetivos utilizados para descrever seus escritos assemelham-se em dureza àqueles empregados contra a obra de Bukharin. Em uma de suas obras mais maduras, o Caderno 19 – redigido entre 1934 e 1935 – trata o texto de Mosca da seguinte forma: A reedição do livro de Mosca é um dos tantos episódios da inconsciência e do diletantismo político dos liberais no período imediatamente após a guerra e no subsequente. De resto, o livro é bisonho, desordenado, escrito apressadamente por um jovem que pretende “sobressair” em seu tempo com uma atitude extremista e com palavras altissonantes e, muitas vezes, triviais em sentido reacionário. Os conceitos políticos de Mosca são vagos e oscilantes, sua preparação filosófica é nenhuma (e assim restou por toda a carreira literária de Mosca), seus princípios de técnica política também são vagos e abstratos e tem caráter acentuadamente jurídico. O conceito de “classe política”, cuja afirmação se tornará o centro de todos os escritos de ciência política de Mosca, é de uma fragilidade extrema e não é discutido nem justificado teoricamente (GRAMSCI, 2011, p. 32). Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci 151 Embora demonstre ser leitor assíduo e conhecer perfeitamente bem a literatura produzida pelos três cientistas políticos, Gramsci os trata, como vimos, com o desdém de quem os considera adversários teóricos, do mesmo modo como já havia feito com o sociólogo marxista Bukharin. Max Weber não foi destinatário dos mesmos ataques, ainda que sua sociologia estivesse muito mais próxima dos autores da teoria das elites do que de Gramsci. Aproximações com a sociologia de Max Weber Não há muitas dúvidas sobre o fato de Gramsci ter sido um conhecedor da obra do sociólogo alemão Max Weber [1864-1920], ainda que não da mesma forma profunda como a dos sociólogos anteriormente analisados. Não apenas por Weber ter sido um dos mais conhecidos fundadores da moderna sociologia, mas também pelas afinidades temáticas dos dois autores. Ao longo dos Cadernos do Cárcere encontramos algumas referências a obras do autor como Parlamentarismo e governo, Economia e sociedade e a Ética protestante e o espírito do capitalismo. Mais do que isso, mesmo em passagens sem citações, observamos nitidamente semelhanças analíticas que indicam a influência que o alemão exerceu sobre o italiano. Vejamos primeiramente as menções aos estudos de Weber sobre os partidos políticos. Logo no Caderno 2, redigido entre 1929 e 1933, Economia e sociedade de Weber surge como referência para a compreensão sociológica dos partidos políticos. Outra fonte do italiano para a questão dos partidos é o livro Parlamento e governo de Weber. No Caderno 15 de 1933 Gramsci descreve como os partidos elaboram na sociedade civil determinadas diretrizes políticas que após passarem pelo debate no Parlamento tornam-se políticas de governo de acordo com as maiorias formadas. A não existência desse debate no Parlamento oculta um regime de partidos fracos definidos por ele como de pior espécie. A referência ao livro Parlamento e governo também está presente no Caderno 12 de 1932. Ao realizar uma análise comparativa entre diversos países no que diz respeito ao papel dos intelectuais orgânicos e tradicionais – como, aliás, é uma característica do seu método – Gramsci observa como na Alemanha os junkers cumpriram papel destacado como intelectuais tradicionais. No que diz respeito à Ética protestante e o espírito do capitalismo, Gramsci provavelmente conheceu apenas a tradução italiana que havia sido publicada em 1931 na revista Nuovi Studi di Diritto, Economia e Política. No Caderno 11, redigido entre 1931 152 Theófilo Rodrigues e 1932, o autor menciona o texto de Weber ao comentar a questão do calvinismo e da difusão popular das concepções de mundo. Contudo, talvez esteja para além das citações diretas de Weber presentes nos Cadernos do Cárcere a maior afinidade entre os dois autores. Penso, em especial, na proximidade existente entre o tema da hegemonia em Gramsci e da dominação legítima em Weber. Em seu conhecido discurso conhecido como A política como vocação Weber observou que “o Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território” (WEBER, 2002, p. 56). Trata-se, portanto, de um instrumento de dominação. Todavia, essa dominação precisa ser legítima. O sociólogo descreveu então três tipos puros dessa dominação legítima: a de caráter racional; a de caráter tradicional; e a de caráter carismático. Ora, como não perceber a similitude entre o que Weber definiu como dominação legítima e o que Gramsci conceituou como hegemonia? Como já vimos na primeira seção desse artigo dedicada à Maquiavel, Gramsci apropriou-se da ideia de complementariedade entre o consenso e a coerção para compreender a formação do Estado e da hegemonia. Assim, facilmente podemos relacionar a coerção com o “monopólio do uso legítimo da força física” e o consenso com a dominação legítima. Além disso, poderíamos citar objetos de análise como a burocracia, o líder carismático, a objetividade como método e a questão da religião como exemplos de afinidades temáticas entre os dois autores na conformação de uma teoria sociológica e que certamente precisariam de uma observação mais complexa. Considerações finais Por que trabalhar a relação entre Gramsci e a Sociologia e ciência política neste breve artigo? Diria serem duas as principais razões. Em primeiro lugar, porque Gramsci trouxe no início do século XX contribuições originais para a análise do desenvolvimento das complexas sociedades modernas em diálogo permanente com a obra dos grandes sociólogos e cientistas políticos de seu tempo. Contribuições que ainda são válidas nos dias de hoje. Em segundo lugar – simples, mas verdadeiro – por serem pouquíssimos os trabalhos da literatura especializada que se debruçaram sobre o tema. Uma pesquisa mais acurada observará, por exemplo, que grande parte dos textos que trazem Gramsci para o centro da Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci 153 lupa analítica possuem alguma relação com o campo da pedagogia a partir de seus textos de educação. Muitos outros estão relacionados a problemas filosóficos ou históricos. Os que abordam as perspectivas das ciências sociais estão preocupados, em geral, com temas como hegemonia, movimentos sociais, Estado, partidos políticos e sociedade civil. Mas os que tratam especificamente da relação de Gramsci com os sociólogos e cientistas políticos da época e de suas contribuições para a pesquisa científica são raros. Percebe-se, ao longo dos Cadernos, a predileção de Gramsci pela ciência política em detrimento da sociologia. Certamente por Gramsci ter observado na sociologia de seu tempo uma certa aproximação deletéria dessa disciplina com o positivismo, seja em sua vertente marxista – notoriamente em Bukharin –, seja na versão “burguesa” de Michels, Mosca, Pareto e Weber. Daí que em suas palavras o autor diga que Se ciência política significa ciência do Estado e Estado é todo o complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados, é evidente que todas as questões essenciais da sociologia não passam de questões da ciência política (GRAMSCI, 2007, p. 331). Por fim, parece-nos que uma pequena mensagem de Aléxis de Tocqueville permanece atual, embora em outras bases. Logo no início de sua Democracia na América, Tocqueville adverte ao mundo do século XIX ser “necessária uma nova ciência política para um mundo totalmente novo” (TOCQUEVILLE, 1998, p.12). Talvez possamos dizer, com Gramsci, que essa nova ciência política iniciada no século XX e continuada no XXI passe de algum modo pela filosofia da práxis. Referências BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. COHEN, Stephen F. Bukharin: uma biografia política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. ENGELS, Friedrich. Anti-Duhring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. V. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 154 Theófilo Rodrigues ______. Cadernos do Cárcere. V. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. ______. Cadernos do Cárcere. V. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. LENINE, V.I. Obras escolhidas. Lisboa: Avante! 1979. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998. WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002. Sociologia e ciência política em Antônio Gramsci 155