Colóquio Internacional Arquitectura Popular. Tradição e Vanguarda.
Coordenação
Paula André
DINÂMIA’CET-IUL
ISCTE-IUL
2016
Título: Colóquio Internacional Arquitectura Popular. Tradição e Vanguarda.
Coordenação: Paula André
Edição: DINÂMIA’CET-IUL
ISBN: 978-989-732-985-2
Ano: 2016
Índice
Arquitectura Popular. Tradição e Vanguarda.
Paula André
Lisga - a tradição perdida, a vanguarda inexistente, o regresso à Natureza
Duarte Belo
Arquitectura Popular: totalidade e ordem implícita.
Maria Rosália Guerreiro
A preservação de um “casarão popular” do século XIX: entre ideologias,
interpretações e intervenções no Casarão Pau Preto, cidade de Indaiatuba, Brasil.
Carlos Gustavo Nóbrega de Jesus
Marcos Tognon
Guadiana, Barrera tipológica. Un estudio comparativo de las tipologías de
casa popular en el Sur Oeste de la Península Ibérica.
Vidal Gómez Martínez
María Teresa Pérez Cano
Blanca Del Espino Hidalgo
Património rural dos Açores. Proposta de inventariação e reabilitação da vila
Conceição e envolvente.
Hernâni Alves Ponte
Soraya M. Genin
Bairro dos Ilhéus na Picanceira, Mafra. A relação com a arquitectura típica
açoriana.
Bruno Furtado
Cheila Arruda
Dinis Simão
Gonçalo Lopes
Arquitetura Portuguesa de Autor: Aproximações à Arquitetura Popular.
Teresa Madeira da Silva
A Arquitetura Popular dos Povoados do Alentejo. Uma abordagem metodológica e
operativa.
José Baganha
A 2ª Geração dos arquitectos Modernos Portugueses, o Inquérito à Arquitectura
Regional e os CIAM.
António Neves
Descontextualização e impactos das casas-cueva de Galera - Granada: de moradia
popular a moradia de luxo.
María José Reche Domingo
Tomás Antonio Moreira
Bibliografia da arquitectura vernácula em Portugal – algumas considerações
José Manuel Fernandes
Arquitetura, contexto e mudança nas regiões de montanha do norte da Beira
Miguel Reimão Costa
Paradoxos entre a casa vernacular e a moderna - divergências ao longo do tempo
entre o conservadorismo e o modernismo na cultura romântica europeia.
Ana Lau
Miguel Baptista-Bastos
Telhados de Tesouro de Tavira – Modelos e Tipologias de Casas Nobres da Ribeira
com telhados múltiplos
Ana Isabel Nascimento Santos
Considerações de Raul Lino acerca das condições que influenciam a arquitectura
de cada região
Francisco Portugal e Gomes
Manter ou não manter as técnicas construtivas utilizadas na Arquitectura Popular
Portuguesa? – sua justificação à luz da contemporaneidade ecológica, filosófica e
tecnológica.
Joana Maria Freitas Mesquita
Arquitetura Vernacular Praieira – Nordeste do Brasil
Genival Costa de Barros Lima Junior
A Casa e o sagrado – A Cidade de Macuti, na Ilha de Moçambique.
Filipa Besteiro Lacerda
A operatividade do popular na conceção do erudito.
Pedro Fonseca Jorge
Arquitetura, contexto e mudança nas regiões de montanha do norte da Beira
Miguel Reimão Costa
Universidade do Algarve / Ceaacp / Cepac
mrcosta@ualg.pt
Resumo
O presente artigo incide na arquitetura vernacular das áreas de montanha no norte de Portugal
e, mais especificamente, da região setentrional da Beira, procurando caracterizar as condições
da sua permanência e mudança, a partir da importância do contexto, do povoamento e da
paisagem e considerando os diferentes ciclos de transformação características da época
contemporânea. Numa fase inicial, esta arquitetura será analisada no âmbito da organização
tradicional das áreas de recursos das aldeias serranas, desde os diferentes usos e construções
na paisagem ao sítio do assentamento. Do mesmo modo, será também caracterizada tendo em
conta a transformação destas paisagens em altitude: primeiro através da seleção de um caso de
estudo particular, tradicionalmente marcado pelo deslocamento estacional das populações
(num processo idêntico aos estudados no sistema montanhoso da Peneda-Gerês ou noutras
áreas de montanha do Mediterrâneo); e depois mediante o registo de algumas das
características particulares que as arquiteturas destas aldeias poderão adquirir, em função da
sua localização em altitude ou a cotas mais baixas.
Numa segunda fase, serão considerados alguns dos temas que marcam a transformação das
arquiteturas e aldeias serranas em época contemporânea, desde a importância da mineração,
até aos diferentes ciclos migratórios e aos processos de gradual abandono. Por fim, já numa
parte conclusiva, a transformação mais recente da arquitetura serrana será enquadrada nos
processos da redescoberta das áreas do interior, associados a projetos ou iniciativas de índole
diversa que têm contribuído para afirmar a importância e identidade de alguns destes núcleos,
num contexto de crescente e reconhecido abandono das áreas de montanha e, em especial,
daquelas mais distantes das regiões urbanas do litoral. Procurando documentar o quadro de
significativa diversidade que caracteriza as aldeias de montanha do norte da Beira serão
mencionados os casos de Covas do Monte, Mazes, Pena, Drave, Almofala, Rio de Frades,
Regoufe, Nodar e Campo Benfeito.
Palavras-chave: aldeia, paisagem rural, arquitetura vernacular, casa do emigrante, “território
vago”
211
Introdução
As aldeias de montanha em Portugal têm sido caracterizadas, em diferentes circunstâncias, a
partir da contraposição de um passado de relativo isolamento, associado à economia de
subsistência e à persistência de formas arcaicas, e um presente em que as diversas expressões
da desruralização se combinam com a generalização de novas arquiteturas. A presente
investigação procura contribuir para uma abordagem mais matizada destas regiões, capaz de
refletir a diversidade que hoje conforma os núcleos serranos de pequena dimensão,
considerando os modelos de ocupação do território, os legados da economia tradicional, os
reflexos da emigração e do abandono e, ainda, a emergência de novas propostas ou visões
para estas áreas.
Em termos metodológicos, esta investigação tem privilegiado o trabalho de campo, quer a
nível da prospeção e da visita a um número significativo de aldeias, quer a nível do
levantamento da arquitetura tradicional.1 Incide na unidade de paisagem das “montanhas do
norte da Beira e do Douro”2, compreendendo especialmente as regiões que se estendem do
Caramulo ao Montemuro, passando pelas serras da Freita e da Arada. Inscreve-se num estudo
comparado, de âmbito mais abrangente, que se estende a outras áreas de montanha do
Mediterrâneo Ocidental, procurando integrar as diversas expressões do património construído,
à escala da arquitetura, do assentamento e da paisagem. Ainda que este trabalho privilegie
assim a caracterização do património a uma abordagem mais prospetiva, procura, em qualquer
caso, contribuir para a reflexão em torno à eventual importância da sua conservação enquanto
fator de desenvolvimento das áreas designadas de Baixa Densidade. Pretende-se demonstrar
que, ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, os núcleos de montanha em estudo
remetem hoje para uma multiplicidade significativa de situações que deveria ser considerada
nas diferentes escalas de Ordenamento do Território.
Como um círculo na paisagem
As serras do norte da Beira confirmam a tendência para a organização do povoamento em
pequenos aglomerados característica das regiões de montanha. O estudo da economia
tradicional destas regiões revelará, quase sempre, essa relação primordial entre o carácter
agreste dos territórios serranos, a organização em comunidades praticamente autossuficientes
e a pequena dimensão generalizada das suas povoações. A presença da aldeia na paisagem é
aqui enfatizada pela configuração das parcelas de regadio e de sequeiro que estendem o seu
limite a um círculo largo correspondendo a um vale mais ou menos generoso e aos terraços
construídos na encosta. O desenho desse círculo resultou, na maior parte dos casos, de um
trabalho contínuo sobre o território, reconfigurado a partir da importância das culturas
regadas. As águas retidas em presas ou poças a montante são encaminhadas através de regos
para os campos delimitados nas baixas ou para as leiras construídas nas encostas. Mas a
economia de subsistência característica destes territórios remete necessariamente para uma
diversidade de recursos que tem ou tinha uma expressão evidente no modelo de organização
da paisagem: às terras do milho e das culturas regadas juntavam-se as vertentes e os terraços
de sequeiro adstritos, em grande medida, ao centeio; a proximidade da aldeia era ainda
marcada pelas vertentes florestadas de carvalhos e castanheiros (que foram perdendo
relevância durante o século passado e de forma ainda mais expressiva com a recente extensão
do eucalipto); e as vertentes e os planos mais altos dos baldios serviam aos pastos (gado
miúdo aduado e gado graúdo semiestabulado) mas também às lenhas e aos matos para as
1
No presente caso, o levantamento da arquitetura tradicional recaiu fundamentalmente na aldeia da Drave,
integralmente levantada pelo autor em parceria com Nuno Reimão de Brito Peres e João Reimão Ferreira da
Silva, a quem o presente artigo é dedicado. Cf. COSTA, M.R.– A casa de baixo e a casa de riba na Drave:
crónica de um lugar do maciço da Gralheira em Portugal.
2
RIBEIRO, O. – Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Esboço de relações geográficas, p. 188-189.
212
camas dos currais, às silhas de cortiços ou à produção de carvão. Vista do Portal do Inferno, a
aldeia de Covas do Monte na serra da Arada, regista ainda hoje esta organização (figura 1),
marcada como outras povoações pela persistência de muitos dos hábitos da economia
tradicional, desde as culturas regadas ao rebanho aduado que ainda mantem.
Figura 1 Covas do Monte, Arada; Elaborada pelo autor.
A portela do inverno
Este modelo genérico de organização da paisagem tradicional comportava, como foi notado,
por exemplo, para a serra de Montemuro, um significativo número de variantes, em função da
delimitação das diversas subunidades de paisagem – ribeira, meia serra e planalto3 – e das
limitações das diferentes culturas em altitude4. A aldeia de Mazes, localizada junto à serra do
Bigorne no extremo oriental de Montemuro, constitui um caso particular no contexto da
região, considerando justamente a transformação da paisagem com a altitude. Este lugar
comporta uma organização em diversos núcleos associada ao deslocamento estacional da sua
população, compreendendo a aldeia de Mazes, em zona de vertente, mais abrigada (entre as
cotas 730 e 800) e os núcleos das Antas, Sabugueiro e Castelo mais sujeitos aos rigores do
inverno (entre as cotas 930 e 970). O contraste entre as condições destes diferentes lugares é
registado pela expressão das gentes de Mazes quando referem, reportando-se à zona do
cruzeiro sobranceira à aldeia, que «quem não passar a portela para cima não sabe o que é o
inverno...».
Os lugares mais altos combinavam as pastagens e os fenos com as culturas dos campos –
batata, feijão, muito centeio e pouco milho – na orla da ribeira das Poldras que bordejava
também, a jusante, a aldeia de Mazes, onde o milho, a vinha e a fruta tomavam o lugar do
centeio. Se a aldeia, marcada pela presença da Igreja e dos espigueiros, não se distingue
consideravelmente das povoações vizinhas (figura 2), os lugares de cima, a mais de um
3
4
Cf. RIBEIRO, O. – Dois tipos de ocupação humana na montanha portuguesa: posição do Montemuro.
GIRÃO, A. – Montemuro: a mais desconhecida serra de Portugal, p. 121.
213
quilómetro de distância, apresentam uma estrutura bem menos formalizada marcada pela
preponderância dos currais para o gado (figura 3). As últimas décadas confirmaram, de resto,
o abandono gradual destes lugares, primeiro de Sabugueiro e Castelo, e depois das Antas.
Antes deste processo, a maior parte das famílias tinham as casas divididas nos dois lugares,
com a aldeia de Mazes a corresponder à habitação matriz e a lojas várias e os lugares de cima
a albergar o conjunto dos currais e palheiros associados frequentemente à habitação sazonal
de um único compartimento (entre algumas raras habitações de ano inteiro). Isto porque, para
além de ali se deslocarem duas vezes ao dia de modo a abrir e fechar as portas dos currais ao
gado, a população de Mazes transumava para os lugares de cima, nos meses de estio
(geralmente em Julho e Agosto). Recordando as brandas e inverneiras da serra da Peneda, o
deslocamento estacional de Mazes é mais próximo do das aldeias da região de Soajo, (onde a
inverneira, a cota mais baixa, constituía o núcleo principal), do que das de Castro Laboreiro
(onde, ao contrário, eram as brandas mais altas que correspondiam aos períodos de maior
permanência).
Figura 2 Mazes, Montemuro; Elaborada pelo autor.
Figura 3 Mazes (núcleo da Anta), Montemuro; Elaborada pelo autor.
Figura 4 Pena, Arada; Elaborada pelo autor.
Figura 5 Drave, Arada; Elaborada pelo autor.
Um número certo de casas
Uma das condições decisivas que justificam a organização da aldeia de Mazes em dois
núcleos está relacionada com a decisão de explorar as terras mais altas com maior aptidão
agrícola, o que poderá ter permitido, inclusivamente, o aumento do número de famílias ou de
casas da aldeia. Isto porque, pelas suas características específicas, os territórios de montanha
tenderão a impor, ao longo da história, um limite ao crescimento dos seus aglomerados. Ainda
que com a construção das leiras em terraço, o homem se pretenda rebelar à expressão
confinada dos vales de montanha, as povoações nunca adquirirão aqui uma dimensão
214
significativa, com as aldeias maiores a localizarem-se, quase sempre, junto às zonas mais
generosas de aluvião ou nas zonas de planalto.
Esse limite ao crescimento que o território tenderá a impor a estas aldeias, acabará por
adquirir, nalguns casos, uma expressão cultural como ocorreu no lugar da Pena localizado na
vertente norte da serra de São Macário (figura 4). Segundo a tradição ainda vigente na década
de trinta do século passado, a povoação deveria manter-se enquanto lugar de somente sete
casas, pelo que cada família casava apenas um dos filhos na aldeia, largando os restantes à
sua sorte, de modo a contrariar o parcelamento da propriedade e assegurar a viabilidade das
explorações5. Nalguns casos, esta tradição poderá ter dado sequência aos preceitos inerentes
aos contratos de emprazamento que conformavam a ocupação destas terras durante o Antigo
Regime, como ocorria com a póvoa da Drave, 6 a que voltaremos de seguida. É um costume
que enfatiza a importância do vínculo da aldeia à área de recursos que lhe estava afeta,
registando o modo como, ao contrario do que hoje sucede, o núcleo edificado e a paisagem
constituíam duas partes de um mesmo sistema, podendo, com alguma facilidade, estabelecer-se uma consonância entre a dimensão da aldeia e a generosidade das terras que se estendiam
em seu redor. É o que ocorre com a aldeia da Drave (figura 5), a poucos quilómetros da Pena,
que constitui um interessante caso de estudo para a interpretação da relação entre o território
natural e a paisagem cultural, compreendendo, entre outros temas, o sítio do assentamento, as
poças e as leiras ou as encostas de sequeiro, como a seguir se verá.
Os de Baixo e os de Riba
Figura 6 Drave, area de recursos; Elaborada pelo
autor
5
6
A paisagem da Drave é marcada pelo curso da
ribeira de Palhais, integrado na bacia
hidrográfica do rio Paiva, num vale encaixado
de ladeiras fragosas que, mais uma vez, se
traduziu, a nível do povoamento, numa aldeia de
pequena dimensão. Tal como, de um modo
geral, ocorre nas regiões montanhosas, a
construção deste lugar converte o afloramento
rochoso em fundação, modelando a sua
morfologia através da execução da plataforma e
do muro de suporte em alvenaria de pedra para
as habitações, os currais, os caminhos ou os
eirados pontuados pelos característicos canastros
onde se secava o milho.
Este processo é especialmente evidente no
núcleo edificado principal da Drave que ocupa
uma das ladeiras rochosas sobranceiras à ribeira
de Palhais (figura 6). A organização das
diferentes edificações registava ainda, em
meados do século passado (figura 7), a
importância da aldeia de outrora, conformada
pela copresença de duas casas de lavrador que as
várias fontes históricas distinguem por “casa de
Baixo” e “casa de Riba”. O mesmo ocorre a
nível da organização da paisagem em redor da
aldeia, sendo ainda possível reconstituir os
limites das parcelas pertencentes a cada uma das
GIRÃO – Montemuro: a mais desconhecida serra.... p. 124.
COSTA – A casa de baixo e a casa de riba...
215
Figura 7 Drave, planta da aldeia, pisos térreo e
superior; Elaborada pelo autor
duas casas, a partir do testemunho de antigos moradores. Na sua grande maioria, as leiras
regadas dispunham-se em três bolsas principais, correspondendo a três regos distintos
alimentados por poças encadeadas ao longo da ribeira a diferentes cotas (figura 6). Os
processos de parcelamento, por herança, destas casas maiores enfatizaram progressivamente a
importância das águas de partilha e da gestão comum de parte das estruturas construídas (que
resultavam, por exemplo, nos trabalhos, entre consortes e herdeiros, de conservação dos regos
e de reconstrução das poças).
É também o que ocorre com outras estruturas, desde as eiras e os canastros aos pequenos
moinhos de água que, já em época contemporânea, passaram a servir ao número superior de
habitações que entretanto surgiam na aldeia. Do outro lado da ribeira de Palhais, o núcleo do
Colado, constituído quase em exclusivo por currais de cabras, foi também parcelado entre
herdeiros das antigas casas maiores que procuravam manter as vantagens da sua localização
junto às terras mais aplanadas e produtivas do lugar. De facto é a maior proximidade a estas
terras associada à facilidade no transporte do estrume ali produzido que justifica a
concentração de uma parte dos currais de cabras num núcleo autónomo e apartado da aldeia.
216
217
As casas das aldeias altas
O acento na difícil condição das terras de montanha, na paisagem agreste ou no povoamento
serrano dos pequenos aglomerados terá repercussão, a nível da caracterização da arquitetura
tradicional, na referência a uma edificação pobre e austera de alvenaria de pedra aparente,
com cobertura de duas águas, frequentemente associada a um único compartimento térreo ou
sobradado sobre as lojas do gado (figura 8).7 Mas esta caracterização genérica, que se poderia
reportar indistintamente às diversas serras do norte, acabará por remeter, necessariamente,
para um quadro tipológico mais complexo de expressão diacrónica e diatópica. Uma primeira
variante poderia ser considerada, a nível dos sistemas construtivos, em resultado da
alternância entre solos de xisto e solos de granito comum à generalidade destas áreas de
montanha. À arquitetura de alvenaria irregular de xisto com telhado em lousa contrapõe-se
assim a arquitetura de aparelho frequentemente mais regular de granito com cobertura de
colmo, a que se poderá acrescentar ainda a combinação de algumas destas diferentes soluções
nas áreas de transição (figura 9).
Figura 8 Almofala, Caramulo; Elaborada pelo autor.
Figura 9 Covelo de Paivó, Freita; Elaborada pelo autor.
Figura 10 Gralheira, Montemuro; Elaborada pelo autor.
Figura 11 Gralheira, Montemuro; Elaborada pelo autor.
A arquitetura constitui também uma das expressões que regista as especificidades das diversas
subunidades geográficas a que antes fizemos referência. As aldeias dos planaltos e das
cumeadas mais altas, marcadas pela preponderância das pastagens e do centeio, tenderão a
compreender uma arquitetura tradicional mais indistinta correspondendo com frequência a
uma edificação de granito com cobertura de duas águas de colmo implantada contra a
7
Cf. AMARAL, F. K. [et al]. – Arquitectura Popular em Portugal, p. 245-247.
218
vertente. Trata-se de uma solução fundamental da arquitetura destas regiões durante todo o
Antigo Regime até ao final da primeira metade do século passado. Era esta, por exemplo, a
morfologia comum a grande parte das edificações de Almofala na serra do Caramulo (figura
8) ou da Gralheira na serra de Montemuro.
Nesta última aldeia, implantada no alto da serra a mais de 1100 metros de altitude, distingue-se uma edificação que remete para a persistência desta morfologia, com fachada principal de
alvenaria particularmente bem aparelhada, marcada por vão flanqueado por mísulas e
conformado por lintel com a data de 1758 inscrita (figura 10). Mas, para lá de uma aparência
mais formal quando comparada às demais, esta edificação, hoje arruinada, confirma uma das
mais correntes soluções na organização destas edificações que procuram beneficiar da
implantação transversal à ladeira de modo a permitir um acesso mais fácil ao piso superior. É
também esta morfologia que vemos frequentemente escondida ou dissimulada no quadro da
profunda transformação que marcará a arquitetura de muitas destas aldeias, em especial, a
partir da década de 1970 (figura 11).
As casas maiores da lavoura
Descendo a partir das cumeadas mais altas para a meia serra e para as zonas ribeirinhas, a
diversidade de tipologias que poderemos encontrar tenderá a crescer, refletindo, entre outros
fatores, a presença mais significativa da casa de lavoura associada a explorações de dimensão
significativa no contexto das áreas de montanha. A maior dimensão destas casas,
considerando não apenas os compartimentos da habitação mas as dependências agrícolas,
resultarão frequentemente na edificação sobradada implantada ao longo da encosta, de
fachada marcada por um ritmo compassado dos vãos e cobertura com quatro ou mais
vertentes associada à integração de asnas e de madeiramentos mais complexos 8 . Estas
soluções adquiriram maior relevância a partir da segunda metade do século XVIII e, em
especial, com o aproximar do final do Antigo Regime e, pontualmente, poderão mesmo ser
distinguidas pela presença de elementos de recorte barroco na fachada, do guarnecimento dos
vãos à cornija e aos cunhais. Por vezes registam também a influência da organização da casa
de lavoura do Norte Atlântico, particularmente evidente nas casas dispostas em redor de um
quinteiro, com acesso a partir de portal com data inscrita na padieira correspondendo à
primeira metade ou, com maior frequência, à segunda metade do século XIX (figura 12).
A influência da arquitetura das regiões vizinhas nestas aldeias é também evidente na
aproximação ao vale do Douro, com a presença progressivamente mais significativa das
soluções de paredes exteriores de tabique pintadas ou revestidas com telhas, soletas de
ardósia, chapas onduladas ou outros materiais (figura 13). Estas soluções contribuíram para
uma transformação da imagem das aldeias ribeirinhas ou a meia encosta, a partir da segunda
metade do século XIX, compreendendo uma arquitetura mais diversificada a nível dos
sistemas construtivos (morfologia) e dos revestimentos (cor e textura) que contrasta com a
imagem mais austera daquela que era até então a arquitetura corrente da Serra.
Os anos das minas da Freita
À economia agro-silvo-pastoril de subsistência vem-se juntar, em sobressalto, a mineração do
volfrâmio com especial impacto nas serras da Freita e da Arada da segunda guerra, quando
esta região foi marcada pela afluência significativa de gentes das regiões vizinhas que
procuravam alternativas à conjuntura de crise. O alvoroço da indústria do volfrâmio terá
como lugar central as vertentes a nascente do Alto da Freita, na área sudeste do concelho de
Arouca e, em particular, as minas em redor das aldeias de Rio de Frades (exploradas pelos
alemães) e de Regoufe (exploradas pelos ingleses). Distanciadas em cerca de cinco
8
COSTA – A casa de baixo e a casa de riba... p. 58.
219
quilómetros, estas aldeias apresentam evidentes analogias na implantação na base de uma
encosta voltada a sudeste na margem de um curso de água afluente do Paiva. Mas as
dissemelhanças que se verificam a nível da orografia destes lugares – bem mais acidentado
em Rio de Frades que em Regoufe – acabariam por contribuir para distinguir de sobremaneira
os modelos dos assentamentos mineiros de Alemães e Ingleses. No primeiro caso, a nova
povoação situada junto a um vale muito encaixado, dispersava-se em diferentes núcleos com
acesso a partir da aldeia para sul: subindo para os bairros de Cima e da Capela situados
respetivamente a meia encosta e em promontório; ou percorrendo o trajeto na margem da
ribeira para as casas da Companhia e para as instalações técnicas, de armazenagem e da
lavaria9.
Figura 12 Covas do Monte, Arada; Elaborada pelo autor.
Figura 13 Parada de Ester, Montemuro; Elaborada pelo autor.
Figura 14 Minas de Regoufe, Freita; Elaborada pelo autor.
Figura 15 Regoufe, Freita; Elaborada pelo autor.
Em Regoufe, o complexo mineiro concentra-se, em contrapartida, num único núcleo a meia
encosta, ocupando em terraços os dois flancos de uma linha de água afluente da ribeira com o
nome da aldeia. A percepção, a um único olhar, do conjunto das diferentes edificações e
estruturas deste complexo enfatiza a sua imagem assombrada e vaga, marcada pelo tempo e
pela gradual remoção de materiais reaproveitados para outras construções (figura 14). Uma
imagem de abandono que regista a condição temporal deste assento autónomo em relação à
aldeia de lavradores, situada mais abaixo. Em Rio de Frades, uma parte dos bairros operários
acabará, em contraponto, por ser integrada na aldeia agrícola, constituindo a única nota de
permanência da ligação casual entre esses dois mundos. Isto porque mesmo durante o
9
cf. SILVA, A. M. (coord.) – Memórias da terra: património arqueológico do concelho de Arouca, p. 407.
220
frenesim dos anos do minério – que acabaria por se desvanecer a partir de 1944 – as duas
aldeias manter-se-ão profundamente arreigadas às atividades tradicionais 10 , reiterando a
importância dos campos largos em Regoufe (figura 15) ou das estreitas leiras em terraço de
Rio de Frades.
Aldeias à beira e leiras a monte
À parte este período excecional de exploração do volfrâmio, também o maciço da Gralheira
confirmará as regiões de montanha enquanto áreas da emigração para o país e para o
estrangeiro. Uma das condições mais relevadas na caracterização do processo de
transformação das áreas rurais do norte do país, no século passado, é justamente a presença da
casa do emigrante. A partir de finais do século XIX, algumas das aldeias das regiões
consideradas neste artigo, serão marcadas pelo aparecimento da casa do emigrante brasileiro
de torna-viagem que frequentemente acrescentará uma dimensão mais eclética e exuberante à
arquitetura do tabique a que anteriormente fizemos referência.
Figura 16 Carvalhosa, Montemuro; Elaborada pelo autor.
Mas, como se sabe, será fundamentalmente a partir das décadas de setenta e oitenta do século
passado que se assistirá à transformação mais significativa dos conjuntos edificados serranos,
em grande parte, marcada pelo investimento nas aldeias de origem dos emigrantes que haviam
partido para o centro da Europa 11 . A afirmação das novas construções inscreve-se num
discurso de renuncia à arquitetura tradicional, convertendo grande parte das aldeias em
lugares de expressivos contrastes de volumetrias, morfologias e materialidades (figura 16).
Esta transformação não atingiu, no entanto, todas as aldeias serranas do mesmo modo,
10
Cf. VILAR, A. – O volfrâmio de Arouca no contexto da segunda guerra mundial (1939-1945), p. 174.
Cf. COSTA, M. R. – Sobre a tradição e a transformação em arquitetura: as aldeias da Beira entre a Freita e
Montemuro.
11
221
acabando por ser mais evidente nas áreas de transição para os grandes vales (nalguns casos
marcados pelos processos da rurbanização) e nos núcleos mais próximos dos eixos de escala
regional e nacional que entretanto alteraram significativamente o quadro de distâncias com o
exterior. Nos planaltos e nas zonas de vertente mais altas, as aldeias maiores assumir-se-ão
também enquanto polos dessa profunda transformação, reservando, nalguns casos, para os
aglomerados de menor dimensão uma condição diversa que tanto poderá resultar na relativa
conservação do património vernacular de conjunto como no seu abandono (figura 17).
Será, de resto, sobre alguns destes aglomerados que recairá a preferência para as novas formas
de segunda habitação que marcam um outro tempo de transformação destas aldeias, a partir
da década de noventa do século passado, registando uma alteração de discurso em relação à
arquitetura vernacular, que se passa então a admirar. Mas na realidade, a formalização desse
discurso restringir-se-á, quase sempre, a um desígnio de representação ou recriação da
arquitetura local que, privilegiando a renovação à conservação, raramente traduzirá aquelas
que são as suas características fundamentais, a nível da morfologia, da organização ou até dos
sistemas construtivos tradicionais. Por outro lado, a ocupação sazonal destas lugares, em parte
cada vez mais próximos das regiões urbanas do litoral, resultará na emancipação da aldeia em
relação à paisagem, com o abandono ou a florestação das melhores terras da povoação de
outrora.
Figura 17 Levadas, Montemuro; Elaborada pelo autor.
222
Para além de um «território vago»: uma conclusão
Como resultado das diversas circunstâncias que marcam estes territórios durante o século
passado, a condição da aldeia serrana do norte da Beira remete hoje para um quadro muito
diversificado de situações, distinguindo: lugares de ribeira e meia serra de lugares de planalto
e de cumeada; lugares que preservam traços fundamentais da economia agro-pastoril de
lugares marcados por diversas formas de abandono e desruralização; lugares caracterizados
pela justaposição dissonante de construções de lugares com valor patrimonial de conjunto;
lugares próximos dos principais eixos estruturantes de lugares mais afastados e recônditos.
Algumas outras aldeias desta região têm, ainda, acabado por acolher projetos incomuns
promovidos por diferentes instituições que importaria considerar: A Associação Binaural
desenvolve, desde 2004, a sua atividade na aldeia de Nodar, na margem esquerda do rio
Paiva, nos domínios da arte sonora experimental, com um conjunto muito diversificado de
iniciativas que incluem a organização de festivais e workshops vários ou as residências de
artistas com um número admirável de visitantes; A aldeia da Drave, na serra da Arada,
alberga desde 1992 uma base nacional de escuteiros a que acorrem todos os anos dezenas de
jovens; O Teatro Regional da serra do Montemuro desenvolve a sua atividade desde 1990 na
aldeia de Campo Benfeito, com diversas iniciativas relacionadas com a educação e a
formação ou ainda com a organização do festival Altitudes.
Partindo de uma abordagem contemporânea e procurando adquirir uma dimensão nacional ou
internacional, estes projetos estão, ao mesmo tempo, arreigados a diferentes expressões da
cultura regional, defendendo a relação profunda com as comunidades locais. A diversidade de
circunstâncias que marcam no presente as aldeias serranas, a par da implementação destes
projetos e de outras iniciativas análogas, abre a expectativa de um modelo de
desenvolvimento que considere os territórios de montanha, não isolados sobre si mesmos, mas
significativamente integrados com as regiões urbanas do litoral. Uma integração que se afirme
para lá do que poderíamos caracterizar como interesse crescente em torno a um «território
vago», ausente e expectante, remetendo para as marcas de abandono e de memória de uma
cultura do passado. É neste quadro que importa compreender de que modo poderá este
modelo resistir ao processo continuo de desaparecimento das atividades agro-pastoris e à
tendência de desvinculação da aldeia da sua paisagem ou, em contrapartida, de que forma
estará dependente da emergência de novos contextos de produção associados a comunidades
locais simultaneamente conscientes dos aspetos particulares desta cultura e deste território.
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