2017 – Estado da Questão
Coordenação editorial: José Morais Arnaud, Andrea Martins
Design gráfico: Flatland Design
Produção: Greca – Artes Gráficas, Lda.
Tiragem: 500 exemplares
Depósito Legal: 433460/17
ISBN: 978-972-9451-71-3
Associação dos Arqueólogos Portugueses
Lisboa, 2017
O conteúdo dos artigos é da inteira responsabilidade dos autores. Sendo assim a Associação dos
Arqueólogos Portugueses declina qualquer responsabilidade por eventuais equívocos ou questões de
ordem ética e legal.
Desenho de capa:
Levantamento topográfico de Vila Nova de São Pedro (J. M. Arnaud e J. L. Gonçalves, 1990). O desenho
foi retirado do artigo 48 (p. 591).
Patrocinador oficial
breve apontamento sobre a cerca
(“velha”) medieval de lagos
Ana Gonçalves1, Elena Móran2, Ricardo Costeira da Silva3
RESUMO
Apresentam-se os resultados obtidos numa pequena intervenção arqueológica realizada no centro histórico de
Lagos (Rua 5 de Outubro, n.º 36) que concorrem para aprofundar o conhecimento acerca do sistema muralhado
medieval desta cidade. A designada acção de natureza preventiva permitiu identificar e localizar, pela primeira
vez, a presença de um fosso que acompanha o pano poente do recinto defensivo. Para além das características
formais desta estrutura, expõe-se o contexto estratigráfico registado e o espólio arqueológico associado que
permite corroborar cronologicamente o ritmo das acções construtivas relacionadas com a expansão urbanística
de Lagos no período renascentista.
Palavras-chave: Lagos (Portugal), Cerca Medieval, Fosso Poente, Cerâmica (séc. XV-XVI).
ABSTRACT
This paper presents the results of a circumscribed archaeological intervention that took place in the historic
center of Lagos (Rua 5 de Outubro, n.º 36) which contributes to improve the understanding of the medieval
city wall device. In the context of this rescue intervention it was possible to identify and locate, for the first
time, the presence of a ditch that follows the west side of the defensive enclosure.
In addition to the description of the formal features of the structure, are also displayed the recorded stratigraphic context and the associated archaeological materials that allows to chronologically corroborate the
rhythm of the constructive actions related to the urban expansion of Lagos in the Renaissance period.
Keywords: Lagos (Portugal), Medieval city wall, Ditch, Pottery (15th-16th century).
1. INTRODUÇÃO
A designada Cerca “Velha” implantada na encosta
nascente de uma das mais proeminentes colinas de
Lagos, concluída no século XIV, delimitava o burgo primitivo desta cidade, conhecido como Vila
Adentro. O desenvolvimento urbano deste núcleo
leva à construção, em meados do século XVI, de
uma nova cerca muralhada (“Nova”) absorvendo o
alinhamento medieval e motivando a sua paulatina degradação e demolição. Hoje pouco resta desta
construção e embora a cartografia antiga nos forneça
uma imagem geral da sua configuração, escasseiam
as informações concretas sobre a totalidade dos seus
elementos constituintes. Entre estes alude-se agora
para a presença de um fosso que acompanha o pano
poente do recinto defensivo, posto em evidência
durante uma intervenção arqueológica preventiva
realizada na Rua 5 de Outubro (Figura 1) e cuja existência era, até então, desconhecida.
Tal como outras intervenções arqueológicas em
contexto urbano em Portugal, também esta se traduz numa acção de curto alcance e circunscrita à
necessidade específica de determinada obra. Raramente estes trabalhos permitem decifrar ou obter
uma clara compreensão dos débeis testemunhos
postos a descoberto. Neste caso, longe de serem eloquentes, os resultados obtidos contrapõem-se à exiguidade do espaço sondado. Apesar dos dados agora
apresentados serem uma “parte sem todo” foi pos-
1. Arkhaios – Profissionais de Arqueologia e Paisagem, Lda; arkhaios@sapo.pt
2. Serviço de Arqueologia Urbana / Câmara Municipal de Lagos; elena.moran@cm-lagos.pt
3. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património (CEAACP);
ricardo_silva78@hotmail.com
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Arqueologia em Portugal / 2017 – Estado da Questão
sível contextualizar e interpretar os vestígios detectados com a área envolvente e enquadrá-los historicamente devido às condições particulares de jazida
beneficiadas pela leitura clara da estratigrafia que se
encontra selada. Para além do contributo, ainda que
restrito, para o conhecimento histórico da cidade,
nomeadamente da sua cerca medieval, julgamos ser
relevante a publicação de acções arqueológicas que
embora de “circunstância” beneficiam os mecanismos de gestão e planeamento urbanístico, nomeadamente na avaliação do risco do subsolo, auxiliando, a montante, os decisores envolvidos no planeamento e apreciação de operações urbanísticas.
2. A CERCA MEDIEVAL DE LAGOS:
BREVE ENQUADRAMENTO
Os recintos amuralhados de Lagos (medieval e renascentista) têm concentrado a atenção de vários
autores e sido alvo de inúmeros estudos (Cf. a título de exemplo: Rocha, 1991: 89-91; Callixto, 1992:
56; Paula, 1992; Díaz-Guadarmino e Morán, 2008;
Parreira 2008; Pereira, 2012 e 2012/2013) que nos
dispensam, aqui, de reproduzir informação já sobejamente conhecida.
As referências mais antigas a este núcleo urbano sugerem uma fundação de raiz portuguesa: a doação
da «aldeia de Lagos», em 1253, pelo rei castelhano
Afonso X ao Bispo de Silves, Frei Roberto (Pereira,
2012: 19; 2012/2013: 138); o foral outorgado a Lagos,
por D. Afonso III, possivelmente em simultâneo
com o de Silves, em 1266, que legitima a posse da aldeia de Lagos pela Coroa portuguesa (idem); e a atribuição de jurisdição independente e do título de vila
pelo rei D. Pedro I, em 1361 (Rocha, 1991: 23; Paula,
1992: 354). É, assim, comumente aceite que a fortificação de Lagos tenha tido início ainda no séc. XIII.
Embora se desconheça a sua data precisa, é provável que remonte ao reinado de D. Dinis4 (Pereira,
2012/2013: 139). A construção da fortificação foi demorada, estando em 1332 (no reinado de Afonso IV)
ainda por concluir (Rocha, 1991: 90).
Encerrando o núcleo primitivo de Lagos conhecido
como Vila Adentro, esta cerca vilã fechava um recinto quadrangular com cerca de 200 x 300 metros
(Rocha, 1991: 89-91) que contava, provavelmente,
com cinco portas (Paula, 1992: 151).
4. Conforme se depreende das Memórias Paroquiais, vol.
19, nº 24ª, pp. 117-136 [Arquivo Nacional Torre do Tombo].
Paulatinamente, o perímetro da Cerca Velha torna-se exíguo para albergar os numerosos fogos que
cresceram como arrabaldes do burgo. Será já com D.
Manuel I, que concede novo foral a Lagos em 1504,
que se iniciará a expansão urbana, com a construção
de edifícios públicos e o enobrecimento da vila (Pereira, 2012/2013: 143). O desenvolvimento económico de Lagos, o aumento demográfico e as limitações
de uma muralha ao modo antigo incapaz de albergar
novos dispositivos de artilharia tornaram necessária
a construção de um novo perímetro defensivo, que
abrangesse os diversos núcleos urbanos e protegesse
eficazmente a zona portuária. O plano global desta
segunda cerca muralhada, conhecida como Cerca
Nova, foi traçado entre 1553 e 1555, pelo Arquitecto
Régio Miguel Arruda (Pereira, 2012/2013: 156, nota
66). O novo sistema defensivo, cuja edificação terá
sido impulsionada a partir do reinado de D. João III
(Pereira, 2012: 61-62), veio delimitar o núcleo primitivo medieval, a zona ribeirinha e a zona alta da vila,
integrando ainda a colina da Igreja de São Sebastião,
de acordo com o observado na planta do seu projeto que se encontra no Arquivo Militar de Estocolmo
(idem: 639). A construção da cerca renascentista estimula a progressiva demolição da anterior estrutura
defensiva, nomeadamente dos panos norte e poente
que não são absorvidos no novo alinhamento. Para
além disso, o desgaste dos tempos, o estrago dos
Homens e o forte impacto que o sismo de 1755 terá
tido em Lagos (Rocha, 1991; Costa e Abreu, 2005;
Almeida et alii, 2006) encarregaram-se de apagar,
quase por completo, os vestígios da cerca medieval.
Muito embora o seu traçado surja representado na
planta do projeto da cerca quinhentista (atrás mencionado) e reproduzido nos desenhos de Alessandro
Massay (Figura 2), do primeiro quartel do século
XVII, e na cópia que, em meados do século XVII,
Leonardo de Ferrari fez de um original mais antigo
(Sánchez Rubio et alii, 2004: espec. 67), não existem
informações que permitam reconstituir os elementos que se encontram omissos na cartografia antiga
(torreões, portas, fossos…).
3. INTERVENÇÃO ARQUEOLÓGICA NA RUA
5 DE OUTUBRO, N.º 36: CONTEXTO ESTRATIGRÁFICO, FOSSO E ESPÓLIO EXUMADO
A área em estudo encontra-se localizada entre as
duas cercas de Lagos: intramuros à Cerca Nova mas
extramuros à Cerca Velha (Figuras 1 e 2). Os traba-
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lhos arqueológicos foram realizados no âmbito do
processo de alteração e ampliação de um pequeno
edifício de habitação situado na Rua 5 de Outubro,
n.º 36 (Freguesia de São Gonçalo de Lagos). Tendo
em conta a sensibilidade patrimonial desta zona,
foram implementadas medidas preventivas de minimização de hipotéticos impactes da obra sobre o
património arqueológico que se consubstanciaram
na realização de uma sondagem de diagnóstico de
4m2 (2x2m) junto à fachada do edifício voltada para
a via pública (Figura 3) e no acompanhamento arqueológico de todas as acções que interferissem no
subsolo. Os resultados obtidos procedem desta sondagem que atingiu cerca de 4m de profundidade e
permitiu registar a sequência estratigráfica total do
local e identificar uma estrutura em negativo (Figura 4). O substrato geológico de natureza calcária
encontrava-se talhado e com uma pendente de cerca
de 1.40m (cota de 13.40m no topo e 12.00m no nível
mais baixo). A característica do corte da rocha sugere a existência de um fosso com orientação paralela
ao pano poente da Cerca Velha. A exiguidade da área
intervencionada e a sua implantação junto ao limite
da via pública impediram uma melhor caracterização desta estrutura. Embora não tenha sido possível
definir a extensão total do referido fosso, quer do
seu limite superior quer da sua largura ou profundidade máxima, este parece apresentar um perfil em
“U”. O troço registado corresponde ao seu limite
exterior poente, verificando -se que se prolongará
sob o traçado da actual Rua 5 de Outubro.
O referido fosso encontrava-se colmatado por vários
níveis diferenciados de aterro (Figura 4). Os níveis
de aterro mais recentes (compostos pelas u.e.s 101,
105, 107 e 108) encontram-se associados aos níveis
de construção da habitação contemporânea (edifício
existente) que parecem circunscrever-se aos finais
do séc. XIX / inícios do séc. XX. Estes sobrepõem-se aos estratos de colmatação do fosso onde se registaram duas realidades estratigráficas distintas:
um primeiro nível correspondente à desactivação
intencional do fosso composto por terra castanho
alaranjada, solta e arenosa (u.e. 111 a 1155) que é cortada, superficialmente, por uma pequena fossa detrítica / lixeira (u.e. 110).
5. Embora se tenham individualizado cinco camadas artificiais (para melhor controle da estratigrafia) durante a intervenção, estas u.e.s corresponderão a um mesmo estrato
(e acção).
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A relação estratigráfica desta lixeira constituída por
terra castanho escura solta, carvões, fauna mamalógica e malacológica, parece atestar a sua posterioridade relativamente ao enchimento original do
fosso. Este dado assume particular relevância pois
desta lixeira provém os únicos numismas exumadas
na intervenção e que se afiguram como importantes
índices cronológicos. A respectiva classificação determina a presença de um Meio -Vintém em prata e
de um ceitil, ambos do reinado de D. Manuel (1495-1521). As duas únicas moedas recuperadas reforçam
a determinação de uma cronologia para a formação
desta lixeira que, por intermédio da sua correlação
estratigráfica, pode apoiar a atribuição de uma proposta de datação para a colmatação do fosso medieval. Deste modo, poderá sugerir-se que o depósito
detrítico (u.e. 110) terá sido gerado em momento
coetâneo ou posterior a D. Manuel – ainda durante
a primeira metade do séc. XVI. Por associação e de
igual modo, determina-se que o aterro do fosso medieval se tenha realizado em momento necessariamente anterior.
Para além dos dois numismas e de outro tipo de espólio metálico (cavilha em ferro e um dedal e alfinete em bronze), o conjunto cerâmico recuperado
neste estrato, apesar de ser em número reduzido,
revela uma grande diversidade de produções. Efectivamente, para além do barro vermelho de superfícies foscas (panelas, cântaros ou caçoilas com bordo
introvertido – Figura 5, n.º 6) ou vidradas, conta-se
a presença de elementos vidrados melados, um fragmento de escudela em faiança e vários fragmentos
com superfícies vidradas de coloração verde pertencentes aos típicos alguidares de formato troncocónico e bordo pendente de secção triangular. Para além
destes, destaca-se um fundo de uma tigela com superfície interior vidrada de tonalidade melada acastanhada, com decoração a óxido de manganês (Figura 6 – n.º 5) cuja presença se testemunha igualmente
nos níveis inferiores e de colmatação do fosso (Fig. 6
– n.º 4). Este tipo de produções encontra paralelos
em contextos do século XV e XVI no castelo da vila
de Alcoutim (Catarino, 2003: 169 (Est. VI-8, Est.
VII-6 e Est. XII-5 e 6), no Poço -Cisterna de Silves
(Gomes e Gomes, 1996: 154, fig. 12 e 13) e até nos
níveis portugueses da fortaleza de Alcácer Ceguer
(Redman e Boone, 1979: 33 e fig. 19-B a E). Tratam-se
de produções sevilhanas associadas ao século XV
(Amores Carredano e Chisvert Jiménez, 1993: 292),
muito comuns entre a baixela de cerâmica domés-
tica, nomeadamente em contextos do último terço
do século XV (Lafuente Ibáñez, 2015) e que podem
alcançar os meados do séc. XVI (Gutiérrez, 2000:
44-60). Refira-se ainda a presença de um almofariz
de perfil subtroncocónico e bordo espessado com
“bico” vertedor (Figura 7 – n.º 1) que se deverá enquadrar no mesmo horizonte cronológico e ter igual
proveniência andaluza. Esta peça, com pasta de cor
creme/amarelada com desengordurantes micáceos
e quartzosos de pequena e média dimensão, apresenta evidentes semelhanças com os tipos produzidos em La Cartuja (Sevilha) no século XV (Amores
Carredano e Chisvert Jiménez, 1993: 293), sendo já
conhecidos noutras regiões do Algarve como Silves
(Gomes e Gomes, 1996: 164, fig. 17) e Tavira (Covaneiro et alii, 2010: 113) e na praça portuguesa de
Alcácer Ceguer (Redman e Boone, 1979: fig. 18-Q).
Por sua vez, o espólio recolhido (exclusivamente cerâmico) nos níveis inferiores (u.e. 111 a 115), de aterro original ou de amortização intencional do fosso
da cerca velha medieval, apresenta afinidades com
o grupo procedente da lixeira revelando, de igual
modo, alguma diversidade de produções. A par das
produções de barro vermelho de uso comum com
presença maioritária e de algumas produções em
pasta branca assiste-se á presença de louças de esmalte estanífero (faianças) provenientes da região
andaluza de Sevilha.
A cerâmica fosca de barro vermelho encontra-se representada maioritariamente por louça de cozinha
e de mesa. A forma mais representada reporta-se às
panelas que surgem com bordo moldurado (Figura 5 – n.º 7) ou cintado (Figura 5 – n.º 8). Regista-se
ainda a presença de recipientes de corpo globular e
bordo vertical (Figura 5 – n.º 1) que poderão corresponder a pequenos púcaros e caçoilas/tachos (pela
fuligem exterior) com carena e estrangulamento do
bordo (Figura 5 – n.º 5). Relativamente à louça de
mesa, para além de alguns fragmentos de pequena
dimensão referentes a abas de pratos, assinala-se a
presença de uma taça com lábio boleado destacado
por canelura (Figura 5 – n.º 4). Alista-se ainda o fragmento de bordo de alguidar de grandes dimensões
com bordo pendente de perfil triangular.
Foram contabilizados vários fragmentos de barro
vermelho com superfície interna vidrada (melada),
entre os quais se destaca uma sertã com bordo espessado (Figura 6 – n.º 7).
Para além dos fabricos em barro vermelho, adquire
alguma expressão no conjunto um tipo de produ-
ção em pasta creme ou amarelada, com superfícies
alisadas, que poderão corresponder a produtos exógenos, também de proveniência andaluza. Apesar
de maioritariamente informes e para além do almofariz já referenciado anteriormente, regista-se a
presença de um grande pote de bordo vertical, moldurado, com ressalto interno (Figura 7 – n.º 2). Apresenta semelhanças com os grandes potes, de perfil
tendencialmente ovóide, que surgem documentados em Sevilha desde o século XIV até aos inícios
do século XVI (Amores Carredano e Chisvert Jiménez, 1993: 280-281 e 305, n.º 34 e 35). Embora surjam
igualmente referenciados em Valência, associados
ao transporte de azeite, com uma cronologia geral
entre o século XIV e XV (Amigues et alii, 1995: 351-352 e fig. 2, VI, VIa e VII) deverão, também estes, ter
uma origem sevilhana (Amores Carredano e Chisvert Jiménez, 1993: 281, nota 24).
O grupo da cerâmica vidrada encontra-se bem representado. Neste particular, têm preponderância
os vidrados melados que surgem lisos sobre a forma de escudelas (Figura 6 – n.º 2 e 3), mas também
pintados a óxido de manganês sob a forma de taças
e pratos (Figura 6 – n.º 4) como já foi antes referido. Pela singularidade da forma, destaca-se o fragmento de bordo e colo canelado que poderá fazer
parte de uma infusa (Figura 6 – n.º 1). Para além dos
melados, contabilizam-se vários fragmentos com
vidrado de coloração verde pertencentes a grandes
alguidares de perfil troncocónico e bordo espessado
(Figura 6 – n.º 6).
Por fim, entre o pouco material passível de proporcionar um lastro informativo mais substancial, e
além das cerâmicas meladas com pintura a óxido de
manganês e os recipientes de pasta creme, assinala-se a presença de faianças também de produção
sevilhana. Para além de dois pratos marcados com
ônfalo bem saliente6, enquadrado por ressalto que
delimita o fundo (Figura 8 – n.º 4), cuja produção é
geralmente apelidada de série “blanca lisa” (como o
nome indica apenas revestida por esmalte estanífero
de cor esbranquiçada, lisa e sem decoração pintada),
registaram-se outros dois fabricos distintos. Um
destes encontra-se representado por uma escudela e
um fragmento de fundo de prato (Figura 8 – n.º 1 e 2
6. Este modelo é bastante comum em contextos quinhentistas no Porto (Barreira et alii, 1998: 152, fig. 13; Dórdio et
alii, 2001: 132), em Lisboa (Sabrosa, 2008: 117) ou em Silves
(Gomes e Gomes, 1996: 161, fig. 15).
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respectivamente) que combina a decoração pintada
a azul-cobalto e manganês (ou vinoso). O interior
das peças é marcado por listas largas a manganês e
dupla listagem a azul. Na face exterior da escudela
observam-se listas verticais a azul. Esta série ficou
conhecida entre os autores anglo -saxónicos como
“Blue and Purple” ou “Isabella Polychrome” (Goggin, 1968: 126-134; Gutiérrez, 2000: 48) e espanhóis como “azul y morada” e tem uma cronologia
de produção estimada entre os finais do século XV e
os meados do século XVI. Estas peças encontram-se bem documentadas em território português,
nomeadamente em contextos do século XVI. Para
além de Silves (Gomes e Gomes, 1996: 174, figs. 25 e
26), podemos mencionar, a título de exemplo, sítios
tão distintos como Coimbra (Almeida et alii, 2013:
487, fig. 6.5; Silva, 2015: 253) ou as ilhas atlânticas
(Sousa, 2011: 245-246). Ainda das oficinas de Sevilha, contemporâneas das “blancas lisas” e sobrevivendo até aos inícios do século XVI7 (Pleguezuelo e
Lafuente, 1995: 228), destaca-se um fabrico caracterizado por apresentar esmalte branco e opaco combinado com um vidrado de coloração verde, ou seja,
decorada com metades a branco e verde. Esta série
ficou conhecida por “verde de mitades” e na tradição anglo saxónica por “Columbia Plain White and
green” ou “Half-dipped White and Green” (Gutiérrez, 2000: 44, fig. 2.26). No lote em apreço, esta
produção encontra-se representada por um prato
de paredes curvas simples (Figura 8 – n.º 3). Nos últimos anos, este fabrico tem sido reconhecido um
pouco por todo o território nacional, com particular incidência da região mais meridional. Para além
de Silves (Gomes e Gomes, 1996: 160 e 162) podemos mencionar a título ilustrativo, Coimbra (Silva,
2015: 253), a ilha da Madeira (Sousa, 2011: 254-255,
fig. 705), o mosteiro de S. João de Tarouca (Castro,
2009: 252) e a olaria da Mata da Machada no Barreiro
(Carmona e Santos, 2005: 15).
Estes conjuntos sevilhanos que se inserem tradicionalmente no grupo mourisco (“Morisco Ware”)
para além de reflectirem um determinado circuito
comercial preferencial, podem assumir características de fóssil-director no esforço de atribuição
cronológica destes estratos que, por sua vez, mate7. Alexandra Gutiérrez (2000: 51) admite que possam ter
perdurado até finais do século XVI, tendo em conta o seu
aparecimento em contextos arqueológicos norte americanos assim datados.
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Arqueologia em Portugal / 2017 – Estado da Questão
rializam o aterro e consequente anulação do fosso
da Cerca Velha de Lagos. Esta situação cria algum
embaraço evidenciado pela ampla diacronia de
produção que encerram. Como foi exposto, apesar
destas séries terem uma maior prevalência durante o séc. XV, continuam a ser produzidas para além
dos inícios do séc. XVI. Neste caso teremos de nos
secundar na análise estratigráfica, onde assume particular relevância a lixeira identificada (u.e. 110). A
presença de duas moedas do reinado de D. Manuel
(1495-1521) num nível que corta (é posterior) o horizonte superior do aterro de colmatação do fosso é
um indicador seguro no estabelecimento do terminus post-quem desta acção. Deste modo, parece-nos
possível apontar para que a obliteração do fosso da
Cerca Velha possa ter ocorrido durante as primeiras
décadas do século XVI, certificando os dados históricos disponíveis e em plena harmonia com o início
da construção da Cerca Nova e consequente expansão urbanística da cidade de Lagos durante o período renascentista.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intervenção arqueológica aqui apresentada assume particular relevância pela identificação do fosso
poente da cerca medieval de Lagos, cuja existência
e localização era até então desconhecida. Embora
não se encontrem representadas nas fontes cartográficas, é possível rastrear na documentação histórica, nomeadamente em contratos de aforamento
de finais do séc. XV (Pereira, 2012/2013: 145-146),
a existência de duas alcárcovas ao longo dos panos
norte e sul da muralha medieval para drenagem das
águas pluviais, sendo a setentrional designada de
“alcárcova do Touril” (Pereira, 2012: 44-46 e 59).
O troço inédito do fosso identificado deverá ser paralelo ao pano poente da Cerca Velha, prolongando-se sob a via pública (Rua 5 de Outubro). Não são
hoje visíveis vestígios desta secção da muralha. Porém, analisando a malha urbana actual (Figuras 1 e 3),
verifica-se que o traçado da cerca primitiva terá deixado marcas no parcelário urbano. No contrato de
aforamento de um tal Fernão Ruiz Neto, datado de
1497 (Pereira, 2012/2013: 145), torna-se notório que
a muralha e rua (neste caso na zona sul) terão sido
os elementos referenciais de termo e alinhamento
das fachadas do casario, constatando -se ainda que
a alcárcova se teria transformado em rua (idem).
Processo idêntico terá ocorrido nos restantes troços
murários a norte e, como se depreende dos dados
aqui analisados, também a poente. Considerando a
topografia do terreno, o fosso ou alcárcova poente
percorreria, paralelamente ao traçado ocidental da
Cerca Velha, a ladeira norte da colina de Santa Maria, especialmente acentuada desde a actual Rua do
Adro, o que terá facilitado o escoamento das águas
precipitadas até ao fosso norte por onde circulava a
Ribeira dos Touros e que desaguava na foz da Ribeira de Bensafrim. Um troço desta alcárcova norte foi
já igualmente documentado em escavação arqueológica realizada no edifício da antiga esquadra da
PSP em Lagos (Matos et alii, 2016).
Dada a limitação da área sondada, confinante com a
via pública, não foi possível definir na sua totalidade o contorno do fosso que muito presumivelmente
apresentará um perfil em “U”. Do mesmo modo, os
resultados obtidos não colaboram para a confirmação da sua cronologia de construção que se crê, no
entanto, coetânea da fortificação medieval. Para além
da descoberta e localização do fosso poente da cerca
velha, os dados recolhidos permitem tecer algumas
considerações relativas à amortização deste espaço
e consequente desenvolvimento urbano da cidade.
Como ficou exposto, a análise do espólio recolhido
nos níveis de colmatação do fosso sugerem que a desactivação desta estrutura terá ocorrido, seguramente, na primeira metade do século XVI. Conjuntura
que se concilia harmoniosamente com os dados históricos e com a construção da Cerca Nova nos inícios
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Figura 1 – Localização da intervenção no centro histórico de Lagos (sobre base do Google Earth) com indicação
do traçado hipotético da cerca medieval (a amarelo) e da muralha renascentista (a vermelho).
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Arqueologia em Portugal / 2017 – Estado da Questão
Figura 2 – Localização da intervenção na planta das muralhas de Lagos de Alexandre Massay. Descrypção do
Reyno do Algarve, 1621. Museu da Cidade de Lisboa.
Figura 3 – Localização de pormenor do empreendimento (Rua 5 de Outubro, 36) e da sondagem 1 em excerto da
planta topográfica de Lagos, com sinalização do alinhamento hipotético da cerca medieval (a cinza).
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Figura 4 – Perfis estratigráficos da sondagem 1. À esquerda, perfil norte e à direita, perfil sul.
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Figura 5 – Cerâmica doméstica comum. (Desenhos de Sara Almeida).
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Figura 6 – Cerâmica com superfícies vidradas. (Desenhos de Sara Almeida).
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Figura 7 – Cerâmica comum importada. (Desenhos de Sara Almeida).
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Figura 8 – Produções sevilhanas. (Desenhos de Sara Almeida).
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