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Artigo originalmente publicado in MENEZES, Albene & KOETHE, Mercedes (orgs.), BrasilAlemanha, 1827-1997: perspectivas históricas (170 anos da assinatura do 1º Tratado de Comércio e Navegação). Brasília, Ed. Thesaurus, 1997, p. 48-66. O BRASIL E O INGRESSO DA ALEMANHA NA LIGA DAS NAÇÕES: A CRISE DE MARÇO DE 1926 Eugênio Vargas Garcia "Sob a cortina das conveniências diplomáticas a verdade dos acontecimentos ficou oculta; mas um dia se saberá que, depois de longos dias de trabalho do Conselho, em busca de uma unanimidade que não era alcançada pela persistência de nossa discordância, alguma coisa se passou no fundo do pensamento de alguns outros de seus membros, pois que, longe se mostrarem pezarosos, revelaram, ao contrário, íntima satisfação no momento de nosso veto em plenário da Assembléia". Afrânio de Melo Franco, junho de 1938 (1). A ordem mundial que emergiu após a Primeira Guerra Mundial, no que se refere à diplomacia, marcou-se pelo embate entre forças contrárias de conservação e mudança. O idealismo típico da fase inicial do entreguerras esteve bem caracterizado pelo pensamento de Woodrow Wilson e a criação da Liga das Nações, a qual teve de enfrentar diversos testes em seus primeiros anos de consolidação. Um deles, que pôs à prova a capacidade daquela organização internacional de resistir aos choques da velha política de poder, verificou-se quando do encaminhamento do pedido de admissão do governo alemão na Liga, em março de 1926. Como se sabe, a Alemanha só veio a ser admitida na Liga das Nações em setembro de 1926, pois controvertida crise política inviabilizou o processo na primeira tentativa. Ao Brasil ainda é comumente atribuída a maior parcela de responsabilidade pelo ocorrido, haja vista a decisão do governo brasileiro de vetar a concessão à Alemanha de um assento permanente no Conselho da Liga. O escopo deste artigo é limitado na medida em que pretende tão-somente lançar luz sobre os acontecimentos em torno da Assembléia extraordinária que deveria ter aprovado o ingresso da Alemanha. A crise que então se instalou foi de natureza essencialmente diplomática e, como tal, será analisada com ênfase nos pouco conhecidos meandros político-diplomáticos que resultaram no episódio do veto brasileiro (2). 1. O contexto internacional: a Alemanha e os acordos de Locarno A política internacional na Europa pós-Versalhes girou em torno da "questão alemã" e da implementação dos tratados de paz. Nesse sentido, obcecada com a sua segurança, a França buscava de todos os modos garantias contra um ressurgimento alemão, como, por exemplo, no caso da cobrança das reparações de guerra. O fato de não haver 2 conseguido fazer da Liga das Nações o gendarme garantidor da paz cartaginesa de 1919 levou a França a retomar as velhas práticas da política de alianças, organizando o que René Albrecht-Carrié chamou de "sistema francês": alianças da França com a Bélgica (1920), a Polônia (1921) e a Tchecoslováquia (1924), com o intuito de controlar a Alemanha e preservar a hegemonia francesa no continente (3). Em abril de 1922, a Alemanha e a Rússia assinaram o Tratado de Rapallo, normalizando suas relações bilaterais. Essa aproximação entre as duas potências preteridas na organização da nova ordem européia foi uma reação ao isolamento ao qual ambas vinham sendo submetidas desde o fim da guerra. Naquele momento, tanto a República de Weimar quanto a Rússia bolchevique de Lênin consideravam a Liga das Nações uma coalizão de vencedores articulada exclusivamente para perpetuar as desigualdades de poder existentes. Diante da crescente hostilidade da França para com a Alemanha, como ficou bem marcado na ocupação francesa do Ruhr, em janeiro de 1923, a Grã-Bretanha passou a considerar a hipótese de reconciliar os dois países, a fim de restabelecer o equilíbrio de poder na Europa e evitar a formação de um eixo russo-germânico. Desde 1919, a política externa britânica se guiava pela idéia de promover um novo "concerto de potências" que regulasse o status quo no continente, à semelhança do ocorrido após o Congresso de Viena de 1815 (4). Assim, o Embaixador britânico em Berlim sugeriu a Gustav Stresemann, Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, que enviasse aos governos aliados uma nota de entendimento. Remetida em fevereiro de 1925, essa nota marcou o início das negociações oficiais visando a um acordo que garantisse a desmilitarização da Renânia e a inviolabilidade da fronteira franco-alemã (5). Stresemann, cuja ação foi muito criticada internamente, pretendia retirar a Alemanha da posição de inferioridade a que tinha sido relegada com a derrota, reconquistando por meios pacíficos o lugar de seu país no conjunto europeu-ocidental. Quanto à França, seu novo Chanceler, Aristide Briand, recebeu com simpatia a proposta alemã, sinalizando com isso que havia convergência de interesses rumo a uma possível reconciliação (6). A Grã-Bretanha vinha então praticando, em relação à Liga das Nações, uma versão atenuada do isolacionismo norte-americano, ou seja, não desejando assumir responsabilidades que não poderia cumprir, o governo britânico relutava em aderir a uma fórmula universal de segurança coletiva que o obrigasse a agir contra todo e qualquer agressor eventual (7). Tal ocorreu em março de 1925, quando Austen Chamberlain, titular do Foreign Office, comunicou ao Conselho da Liga que a Grã-Bretanha rejeitava o texto do Protocolo de Genebra, o qual tinha sido concebido para servir de base a um sistema de garantias mútuas (8). E sem o Protocolo como complemento, o Pacto da Liga continuava a ter um sistema de sanções precário e pouco crível. Logo após o término da 6ª Assembléia da Liga, reuniram-se separadamente em Locarno, na Suíça, os seguintes países: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Bélgica, 3 Tchecoslováquia e Polônia. Desse encontro foram aprovados, em 16 de outubro de 1925, diversos tratados que em seu conjunto representavam o triunfo da distensão política na Europa, por meio de um acordo regional de segurança aceitável para todas as partes. Dentre as medidas mais importantes estavam o reconhecimento mútuo da fronteira franco-belgaalemã, sob a garantia da Grã-Bretanha e da Itália, e o compromisso de resolver pacificamente suas disputas, para o qual foram adotadas convenções bilaterais de arbitragem (9). Segundo René Rémond, os acordos de Locarno assinalaram "a passagem de uma situação de força para um regime contratual", pois até então a Alemanha tinha apenas sofrido as conseqüências do Tratado de Versalhes, tratado este que havia assinado constrangida e forçada. Mas, a partir de agora, a Alemanha aderia livremente às suas disposições territoriais, passando-se, portanto, "da paz ditada ao acordo consentido" (10). A.J.P. Taylor foi ainda mais longe ao afirmar que Locarno terminou sendo o ponto de inflexão do período entreguerras, uma vez que a sua assinatura significou o fim de facto da Primeira Guerra Mundial e o seu repúdio, onze anos mais tarde, o começo da Segunda (11). Houve patente preocupação das potências locarnistas de vincular estreitamente os tratados ao sistema da Liga das Nações. Esperava-se que os acordos de Locarno, de escopo limitado, viessem a substituir o Protocolo de Genebra, de alcance global, na tentativa de aumentar a credibilidade da atuação da Liga nos casos de violação do Pacto. Assim, a vigência dos acordos foi textualmente condicionada ao depósito de suas ratificações em Genebra e à entrada da Alemanha na Liga, embora a concessão de um assento permanente no Conselho fosse apenas uma promessa verbal. O "espírito de Locarno", como passou a ser chamado, simbolizava não só a esperança de um novo tempo de paz no Velho Mundo, superados os rancores da guerra, mas também a expectativa de fortalecimento das instituições da Liga das Nações, a partir da adesão alemã, a ser efetivada mediante a convocação de uma reunião extraordinária da Assembléia. O Brasil, por sua vez, foi um dos primeiros países a normalizar suas relações com o governo alemão após a Primeira Guerra Mundial. A Alemanha tinha pressa em reconquistar suas antigas posições no continente sul-americano e encontrou igual disposição por parte do governo brasileiro. Já em março de 1920, Adalberto Guerra Duval era nomeado Encarregado de Negócios do Brasil em Berlim e, em dezembro daquele ano, Georg Plehn assumia seu posto como Ministro Plenipotenciário da Alemanha no Rio de Janeiro. Em mensagem ao Congresso Nacional, o Presidente Epitácio Pessoa anunciava o restabelecimento de relações diplomáticas e dizia que estavam voltando aos seus postos os cônsules que o Brasil mantinha na Alemanha antes da guerra, os quais passariam a concorrer para a retomada das "consideráveis relações comerciais" existentes entre os dois países, viabilizadas pelo livre trânsito concedido aos navios alemães em portos brasileiros (12). 2. A posição do Brasil em relação ao assento permanente da Alemanha no Conselho O governo Artur Bernardes, desde 1923, trabalhava sistematicamente no sentido de assegurar ao Brasil um lugar permanente no Conselho da Liga das Nações. 4 Nomeado pelo artigo 4º do Pacto como membro temporário daquele órgão, o Brasil vinha sendo reeleito anualmente pelo voto da Assembléia e chegou a criar uma Delegação Permanente junto à Liga, em 1924, com status de Embaixada, a primeira do gênero em Genebra. Em fins de 1925, a situação da candidatura brasileira não era animadora. Passados três anos de campanha nos bastidores, o governo Bernardes não conseguira ainda o seu intento na Liga, que a esta altura parecia mesmo inexeqüível. Como a França, a Itália e o Japão se diziam cordialmente simpáticos ao Brasil, ou ao menos não ameaçavam criar obstáculos intransponíveis, aos olhos do Itamaraty a oposição da Grã-Bretanha era o principal motivo para a falta de êxito de sua estratégia, já que o Foreign Office fechava questão em não admitir membros permanentes no Conselho que não fossem considerados, segundo os critérios da época, grandes potências. Para Stanley E. Hilton, o objetivo brasileiro era em verdade "inatingível", pois "carecia de realismo fundamental". O Brasil, apesar de sua posição na América do Sul e de sua participação na guerra ao lado dos aliados, era "um país militar e economicamente fraco, fato que praticamente garantia que os principais países europeus não o aceitariam como parceiro do mesmo nível" (13). Um dos pontos débeis da candidatura brasileira era a falta de apoio ostensivo da América hispânica. Os atritos anuais por ocasião das eleições dos membros temporários do Conselho serviam para enfraquecer ainda mais a pretensão do Brasil, que se via como o primus inter pares dentro do grupo latino-americano na Liga. Félix Pacheco, Ministro das Relações Exteriores, criticava "a ambição das pequenas nações sem responsabilidade internacional igual à nossa". Na sua visão conspiratória, existia um “plano” arquitetado contra a continuidade do Brasil no Conselho (14). Nessas condições, Afrânio de Melo Franco, chefe da Delegação Permanente, sugeriu ao Presidente Artur Bernardes que os acordos de Locarno talvez pudessem oferecer o ensejo de jogar a "cartada definitiva" na questão do assento permanente (15). Com efeito, ao Brasil havia sido continuada e insistentemente prometido que mudanças na composição do quadro permanente do Conselho seriam objeto de discussão quando do ingresso da Alemanha na Liga, agora finalmente tornado possível. Convém registrar que, em 29 de setembro de 1924, o governo alemão havia enviado um memorando aos dez países membros do Conselho, a fim de conhecer as opiniões acerca de determinadas condições para que a entrada da Alemanha na Liga se verificasse, entre elas a de que o país recebesse automaticamente um assento permanente naquele órgão (16). O Brasil respondeu à consulta alemã, em 1º de dezembro de 1924, afirmando que não se opunha "em tese" e "em princípio" à admissão da Alemanha como membro permanente do Conselho. Fez-se a ressalva, porém, de que essa questão não devia ser tratada de governo a governo, mas, de preferência, exposta e discutida em conjunto pelos Estados-membros da Liga "e no seio desta", de modo que fossem melhor conhecidos os vários aspectos do problema e os pontos de vista dos outros associados (17). 5 Durante uma sessão do Conselho, em 14 de dezembro de 1925, todos os seus membros saudaram com otimismo os acordos de Locarno, inclusive o Brasil, que elogiou o "resultado feliz" das negociações (18). Cerca de dois meses depois, em 8 de fevereiro de 1926, o governo alemão afinal solicitou formalmente a sua entrada na organização de Genebra e o Secretariado, logo em seguida, convocou a Assembléia extraordinária para o dia 8 de março (19). Tudo parecia caminhar bem até que, no início de fevereiro de 1926, insuflada pela imprensa de direita francesa, a Polônia anunciou que também se apresentava como candidata a tornar-se membro permanente do Conselho. Sentindo poder contar com a anuência tácita da França, a Polônia, que desde 1919 encontrava-se em ininterrupto conflito com a Alemanha por questões de fronteira e de minorias, argumentava que dentre os países signatários de Locarno era o único que iria ficar ausente do Conselho, sendo desde logo coerente com a eqüidade a sua entrada simultânea com a da Alemanha (20). Recorde-se que os Estados-membros do Conselho eram então a França, Grã-Bretanha, Itália e Japão (membros permanentes), além da Bélgica, Brasil, Espanha, Suécia, Tchecoslováquia e Uruguai (membros temporários). A opinião pública alemã reagiu ferozmente à pretensão polonesa. Havia razão para se acreditar que a França manobrava para colocar no Conselho um aliado fiel como contrapeso à presença da Alemanha. Aristide Briand, ao manifestar-se favorável à candidatura da Polônia, não desmentia essa hipótese (21). O Chanceler alemão, Hans Luther, declarou que não poderia concordar com essa candidatura imprevista, uma vez que em Locarno nada havia sido dito sobre isso e que, portanto, a Alemanha deveria entrar sozinha no Conselho (22). Também na Grã-Bretanha surgiram críticas à atitude da Polônia, mas Austen Chamberlain, que não desejava contrariar seu colega Briand, assumiu uma posição dúbia, de discreta complacência. A Itália, por sua vez, manifestou a intenção de apoiar a causa polonesa (23). Em pouco tempo a imprensa européia estava mergulhada em caloroso debate, que se estendia também aos parlamentos. A situação se tornou ainda mais complicada com o surgimento de novos ingredientes para a crise. A Espanha e o Brasil, aproveitando-se da oportunidade, renovaram oficiosamente suas antigas reivindicações a um posto permanente no Conselho. A China também havia declarado publicamente, através de seu representante na Liga, ChaoHsin-Chu, que pretendia insistir na obtenção de uma cadeira de membro permanente. A Bélgica fez saber que se a algum outro país, que não a Alemanha, fosse concedido um assento permanente, ela também seria candidata. A Suécia divulgou uma nota dizendo-se contrária a qualquer aumento do número de membros permanentes, só admitindo o ingresso da Alemanha (24). Em meados de fevereiro, reinava grande confusão na Europa sobre o que viria a ser resolvido na Assembléia extraordinária da Liga. Melo Franco telegrafou ao 6 Itamaraty dando conta que, para o Brasil, vivia-se o "momento agudo do dilema": ou a Liga das Nações reconhecia "o valor da nossa elevada colaboração e a importância da nossa grande pátria na comunhão internacional" ou, ao contrário, dava prova de que era "um instrumento puramente europeu e uma aliança de governos, sem lugar para a América..." (25). A admissão da Polônia no Conselho representaria aumento de seu prestígio internacional e teria o efeito de desacreditar, aos olhos da opinião pública na Alemanha, toda a política de Locarno germânica, voltada para o enfraquecimento da aliança francopolaca e a cooperação com a Grã-Bretanha na questão polonesa. A posição da Alemanha, de exigir que fosse a única a ingressar no Conselho, atendia a considerações de política européia e nenhuma relação guardava com o caso brasileiro (26). Félix Pacheco, no entanto, interpretou de forma equivocada a atitude do governo alemão, de se opor categoricamente a outras candidaturas, como direcionada a prejudicar o Brasil, qualificando-a de "desleal e injustificável". Externando uma opinião que também era compartilhada por Artur Bernardes, que apesar de se encontrar em Petrópolis já tinha o assunto pessoalmente em suas mãos, Pacheco consultou Melo Franco sobre a possibilidade de usar o direito de veto como um "contragolpe" à Alemanha (27). Melo Franco, porém, discordava dessa política e deu pelo menos três fortes razões para justificar sua posição: o Brasil já havia prometido o seu voto favorável na resposta de 1º de dezembro de 1924 à consulta alemã; o veto teria como conseqüência a queda dos acordos de Locarno, que tanta esperança haviam trazido à humanidade; e o Brasil ficaria exposto a uma situação muito desagradável e à condenação pela opinião pública mundial se assumisse esse "odioso papel" (28). Em 22 de fevereiro de 1926, Pacheco concedeu uma entrevista à United Press, na qual elogiou a obra da Liga e destacou a disposição do Brasil em "cooperar lealmente para melhorar sempre e cada vez mais o seu funcionamento", terminando por anunciar que o Brasil era abertamente candidato a um assento permanente no Conselho (29). Não obstante, o Ministro Plenipotenciário da Alemanha no Rio de Janeiro, Hubert Knipping, declarou no dia seguinte que a sua chancelaria em Berlim, na Wilhelmstrae, ignorava até aquele momento quaisquer outras candidaturas oficiais, exceto a sua própria (30). Pacheco solicitou, então, a imediata presença do diplomata alemão para dizer-lhe que, diante do fato novo produzido pela Alemanha, o Brasil não poderia sustentar inteiramente sua declaração de 1º de dezembro de 1924. Knipping acenou com a possibilidade de que, se o Brasil votasse agora a favor de seu país, a Alemanha poderia eventualmente apoiar o pleito brasileiro na próxima reunião da Assembléia, em setembro de 1926. Pacheco agradeceu a promessa de apoio, mas tentou mostrar, não sem alguma ironia, que o governo brasileiro julgava-se apto a prescindir dela. O representante alemão transmitiu o teor dessa conversa ao seu governo, que, em resposta, reafirmou que não tinha recebido até então qualquer comunicação a respeito dos "desejos brasileiros" e, em conseqüência, ainda dava como válida a declaração brasileira de 1924 (31). 7 Diante disso, Félix Pacheco enviou uma nota ao governo alemão, em 5 de março de 1926, na qual se dizia que o Brasil estava, nessa questão, "onde sempre esteve e estará", isto é, "animado da melhor boa vontade em relação à Alemanha". A nota do governo brasileiro terminava por comunicar "oficialmente" a candidatura brasileira, prometendo apoiar "com prazer" o pedido da Alemanha, desde que ela não fosse a única a ingressar como membro permanente do Conselho e não embaraçasse a "legítima aspiração do Brasil" (32). Cumpre ressaltar que, apesar da aparente rota de colisão iminente da política dos dois países na Liga, o relacionamento bilateral era mantido preservado da refrega, circunscrita ao palco de Genebra. Prevalecia o entendimento de que não havia, em rigor, segundo o próprio Chanceler brasileiro, “nenhuma questão entre o Brasil e a Alemanha, mas só entre a Alemanha e o Conselho, de um lado, e o Brasil e o Conselho, de outro” (33). Enquanto isso, por solicitação de Melo Franco, o Embaixador brasileiro em Washington, Silvino Gurgel do Amaral, procurou Frank Kellogg, Secretário de Estado, para sondar a possibilidade de que os Estados Unidos dissessem confidencialmente uma palavra a Londres, Paris, Roma, Estocolmo e Bruxelas, por intermédio dos respectivos embaixadores, insinuando que a América estava sem representante permanente no Conselho (34). Kellogg, no entanto, mostrou-se muito reticente a uma ação desse tipo, deixando a entender que o governo norte-americano não podia comprometer-se na questão (35). Da Argentina e do Chile, as notícias que chegavam também não induziam a supor que o Brasil pudesse contar com o apoio declarado daqueles países (36). O desenrolar dos acontecimentos indicava que a crise encaminhava-se para um impasse, com cada um dos muitos contendores assumindo posições de princípio inflexíveis. Em 5 de março de 1926, Artur Bernardes comunicou a Melo Franco a sua decisão sobre a conduta que o Brasil deveria seguir em Genebra: votar contra qualquer aumento do número de membros permanentes do Conselho, caso o Brasil e a Espanha não fossem contemplados (37). Para Bernardes, o Brasil não tinha sido ouvido sobre os tratados de Locarno nem sobre os compromissos deles oriundos, e por isso estava livre para votar como lhe parecesse. Nas suas próprias palavras, em suma, a questão para o Brasil cifrava-se em "vencer ou não perder" (38). 3. O veto brasileiro e o adiamento do ingresso da Alemanha na Liga das Nações A sessão extraordinária da Assembléia instalou-se em 8 de março de 1926, tendo como objetivo principal de sua pauta formalizar a admissão da Alemanha na Liga. O Conselho iria reunir-se paralelamente em sua 39ª sessão. Como sinal da importância que o governo brasileiro atribuía a essa reunião, foram designados três representantes de alta significação diplomática: Melo Franco, Raul Régis de Oliveira e Luiz Martins de Souza Dantas, os dois últimos embaixadores em Londres e Paris respectivamente. A numerosa delegação alemã havia chegado a Genebra dois dias antes em trem especial, procedente de Berlim, tendo à frente Hans Luther e Gustav Stresemann. 8 As potências locarnistas passaram a se reunir em separado, em longas negociações secretas, com o intuito de aplainar as divergências entre elas. A Alemanha rejeitava in limine qualquer proposta de ampliação do quadro permanente do Conselho que contemplasse seu ingresso simultâneo com o da Polônia, da Espanha ou do Brasil. Acreditava-se que uma vez resolvido o caso da Polônia não seria difícil obter a anuência do Conselho, pois disso dependia a implementação dos acordos de Locarno e poucos na Europa pensavam que algum país ousaria atravancar esse processo. Contudo, alheios a essas combinações sigilosas, a Espanha e o Brasil exigiam que suas pretensões fossem satisfeitas, com uma diferença fundamental: a Espanha, na voz de seu delegado, Quiñones de León, anunciava que poderia abandonar a Liga, ao passo que o Brasil ameaçava vetar realmente a entrada da Alemanha, já que a exigência de unanimidade nas decisões do Conselho, pela letra do Pacto, lhe dava essa prerrogativa (39). Diante dessa possibilidade, Austen Chamberlain chamou Régis de Oliveira para uma conversa particular e entregou-lhe um memorando que expunha o ponto de vista britânico. O documento alertava sobre os efeitos negativos que poderiam advir da atitude brasileira, inclusive sobre as relações "íntimas" entre o Brasil e a Grã-Bretanha "em outros assuntos". Em tom intimidativo, Chamberlain lembrou que haveria "um grito universal de protesto" e o Brasil não encontraria outra solução após o veto senão afastar-se da Liga das Nações, concluindo que "uma nação que se divorciasse dela praticaria certamente um suicídio em sua vida internacional". Régis de Oliveira mostrou o memorando a Melo Franco, que se recusou a aceitá-lo (40). Em 12 de março, todos os membros do Conselho declararam, em sessão a portas fechadas, votar pela Alemanha, quaisquer que fossem os sacrifícios, mas Melo Franco, obedecendo às instruções do próprio Presidente da República, afirmou que não podia aliar-se à opinião de seus colegas. Chamberlain questionou-o duramente, referindo-se a promessa anterior de Régis de Oliveira, feita em Londres, de que o Brasil jamais chegaria ao extremo do veto (41). Ao relatar o "aspecto dramático" com que se revestiu essa reunião, Melo Franco tentou pela última vez demover Artur Bernardes da sua decisão, manifestando-se desta forma em telegrama para o Rio de Janeiro: "Pus o meu esforço e a minha alma na defesa dos nossos direitos, mas diante do impasse em que nos achamos, reputo erro funesto assumirmos a responsabilidade do veto". Melo Franco advertiu que o crédito financeiro do Brasil em Londres "sofreria grave abalo", propondo afinal que o Brasil, como solução, apenas se retirasse pura e simplesmente da Liga das Nações (42). No entanto, Bernardes permaneceu irredutível, alegando que a opinião pública brasileira já encarava a questão em termos de "dignidade nacional" e que, dessa maneira, o governo não seria perdoado caso mudasse de conduta. Bernardes pensava que "sendo os países da Europa mais diretamente interessados na existência e no prestígio da Liga", não deveria partir deles a intransigência de que alguns vinham dando provas naquele momento (43). 9 Não havia, em verdade, consenso interno em relação à diplomacia do Brasil na Liga. Ao contrário, os jornais da oposição no Rio de Janeiro de há muito criticavam a política externa do governo e, em especial, o modo como o Brasil se lançou na aventura genebrina. Assis Chateaubriand, diretor-chefe d'O Jornal, era tido pelos partidários do governo como "germanófilo" e "vendido ao estrangeiro" por ter comparado o Brasil, na fábula da Arca de Noé, à pulga que, estando na frente da fila, tentava barrar a entrada do elefante, no caso, a Alemanha (44). Após mais de uma semana desde a abertura da Assembléia, que se limitava a aguardar impaciente o resultado das conversações entre os signatários dos acordos de Locarno, o quadro era difícil e complexo. A França apoiava a Polônia, mas tentava convencer a Alemanha de que não tinha agido de má-fé em Locarno ao omitir esse assunto. A Grã-Bretanha considerava a candidatura da Espanha, defendia indiretamente a da Polônia, mas não aceitava a do Brasil. A Alemanha não cedia, insistia em rejeitar a priori outras candidaturas que não a sua e ameaçava deixar Genebra, mas relutava em fazê-lo porque isso seria a ruína da política de conciliação de Stresemann. A Itália se opunha à tese alemã. A Suécia colocava-se incondicionalmente ao lado da Alemanha. A Espanha e o Brasil mantinham suas candidaturas. A China defendia que a Liga não devia deixar-se dominar apenas pela política européia e enfatizava o critério geográfico na atribuição de assentos no Conselho. O Japão, mero espectador da crise, aguardava que os locarnistas chegassem a algum acordo. Os Estados Unidos e a União Soviética, ausentes de Genebra, assistiam a tudo à distância, mal contendo a satisfação por não estarem envolvidos em tão atribulado espetáculo de intricada lógica multilateral. Com o propósito de romper o imobilismo e colaborar para algum avanço nas negociações, começou-se a considerar a hipótese de que, como solução de compromisso, fosse concedido um assento temporário à Polônia. A Bélgica fez inicialmente essa sugestão, com a qual concordaram a França, a Grã-Bretanha e a Itália. A proposta, todavia, foi logo rechaçada pela Alemanha, que ameaçou novamente retirar seu pedido de admissão naquela organização internacional (45). Exemplo eloqüente de engenharia diplomática, novo esboço de solução surgiu no dia 15 de março. A Suécia, pressionada pelas grandes potências e acusada de agir apenas como um “instrumento” da política germânica, anunciou que renunciaria espontaneamente a seu assento no Conselho. Östen Undén, delegado sueco, obteve de seu governo autorização para apresentar essa oferta, a qual abriria o caminho para que a Polônia fosse então admitida como membro temporário no Conselho, ocupando a vaga aberta pela Suécia. Mas essa troca era desvantajosa para os alemães, que veriam a saída de um país amigo para a entrada de um reconhecido desafeto. Deve-se lembrar, a propósito, que Luther e Stresemann estavam muito pressionados pelos segmentos mais nacionalistas e direitistas alemães, que não iriam admitir concessões maiores à França ou à Grã-Bretanha. Divulgou-se assim, praticamente ao mesmo tempo, a notícia de que, em nome da restauração do equilíbrio de forças no Conselho, a Tchecoslováquia também renunciaria a seu assento temporário para a eleição ou de um país neutro, que poderia ser a 10 Holanda, ou de outro país da Pequena Entente, que poderia ser a Romênia. Com isso, a Alemanha receberia imediatamente o seu assento permanente e uma comissão de estudos seria criada para analisar o alargamento do Conselho e a procedência das outras candidaturas preteridas. Esse acordo aparentemente resolveria a situação (46). Entretanto, no dia seguinte, em 16 de março, durante uma reunião do Conselho, Melo Franco voltou a sentenciar que o governo brasileiro estava determinado a votar contra o ingresso da Alemanha. A Grã-Bretanha e a França, em tentativa final de persuasão, enviam com urgência a Petrópolis seus embaixadores no Brasil, Beilby Alston e Conty, a fim de que eles entreguem a Artur Bernardes uma nota conjunta de seus governos, a qual fazia um apelo à “magnanimidade” e à “grandeza de alma” do Chefe de Estado brasileiro (47). A gestão fracassa. Pacheco relata que, à saída do Palácio Rio Negro, os dois embaixadores se despediram do Presidente “com evidente bom humor e gentileza”. Mais uma vez, o governo brasileiro confundia, como observou Ricardo Seitenfus, boas maneiras com política de Estado (48). Como os apelos de ingleses e franceses não tinham sido suficientes para sensibilizar Artur Bernardes, o Brasil se colocava, dessa forma, em oposição frontal às potências envolvidas no concerto operado em Locarno. Nesse confronto com os interesses europeus, restava ao Brasil contar com a solidariedade da América, já que sua pretensão se baseava na tese da representação continental. Mas, naquele mesmo dia, os delegados dos países latino-americanos na Liga se reuniram para trocar impressões e decidiram encaminhar por escrito um pedido ao governo brasileiro para que reconsiderasse a sua posição (49). Assim, negando explicitamente o seu apoio ao veto, o grupo latino-americano deixava o Brasil em completo isolamento na Assembléia, retirando-lhe inclusive a legitimidade e a autoridade moral para se colocar como porta-voz do continente americano. Tendo sido impossível convencer o Brasil a mudar de posição, ainda em 16 de março, no final do dia, as sete potências locarnistas divulgaram uma declaração à imprensa reafirmando o compromisso de levar adiante o "espírito de Locarno", a despeito das "dificuldades de procedimento" que haviam surgido como obstáculo à sua realização. A nota não dizia quais dificuldades ainda persistiam, mas assegurava que um acordo entre os locarnistas tinha sido alcançado (50). Em função disso, a imprensa européia, na manhã do dia seguinte, noticiou que a admissão da Alemanha na Liga seria adiada para a Assembléia de setembro daquele ano (51). Na manhã de 17 de março, às 08 horas, nova sessão do Conselho tem lugar, pouco antes da terceira e última sessão plenária da Assembléia extraordinária. Chamberlain e Briand desejavam ter a confirmação definitiva de que o Brasil usaria realmente o poder de veto, pois, afinal, as negociações entre os locarnistas já tinham sido dadas por encerradas. Melo Franco queria ainda aguardar uma última comunicação do Rio de Janeiro e prometeu dar a palavra final do governo brasileiro na Assembléia que começaria em seguida (52). A sessão da Assembléia iniciou-se às 10 horas daquele dia. Chamberlain, relator da 1ª comissão, incumbida de apresentar uma conclusão sobre a solicitação de 11 ingresso alemã, não quis pronunciar-se antes de ouvir o que tinha a dizer o representante brasileiro e a ele passou a palavra. Melo Franco dirigiu-se à tribuna e declarou que o Brasil continuava a pensar que a reforma da estrutura do Conselho não deveria ser tratada somente por alguns Estados europeus, mas por todos os membros da Liga, sem exceção, de modo que todas as opiniões pudessem ser conhecidas. Os acordos de Locarno haviam merecido o aplauso do povo brasileiro, fiel aos seus sentimentos idealistas, pacíficos e de apego ao princípio da arbitragem, mas, continuou Melo Franco, não se podia perder de vista que "a obra admirável de Locarno" devia entrar no quadro da Liga das Nações "e não a Liga das Nações na construção política de Locarno". Quanto às acusações que poderiam ser feitas ao Brasil, de que sua ação obedecia a "alguma preocupação egoísta ou a alguma inspiração de orgulho nacional mal compreendido", Melo Franco insistiu que o Brasil, enquanto parte integrante do território da América, tinha o direito de reivindicar para o seu continente "uma representação mais eqüitativa e mais numerosa no Conselho". Essa seria uma decorrência lógica da "comunidade de interesses, como de um condomínio abstrato, que o co-possuidor pode defender como seu próprio bem aquilo que é possuído em comum: res sua propria agitur". Melo Franco lamentou, enfim, que a Alemanha não tivesse entrado imediatamente na Liga e comunicou à Assembléia que as instruções do seu governo eram "irrevogáveis e definitivas" (53). Seguiram-se diversos outros pronunciamentos. Chamberlain observou que, apesar do "lamentável mal-entendido" que havia originado toda a crise, as potências locarnistas tinham conseguido chegar a um entendimento e devia-se agradecer à "generosidade" da Suécia e da Tchecoslováquia no derradeiro esforço para a obtenção do acordo que se viu frustrado pelo Brasil. Briand igualmente enalteceu o “espírito de sacrifício” daqueles dois países e considerou "inadmissível", em relação à obstrução do Brasil, o fato de que um grande organismo como a Liga se defrontasse com tais "paralisias humilhantes". Undén juntou-se ao coro que externava “profunda decepção” com o resultado da Assembléia e assinalou que “interesses particulares” se haviam sobreposto aos “interesses gerais” e ao “bem comum” da Liga das Nações. Ramón Caballero, delegado paraguaio, leu o texto do apelo feito na véspera ao Brasil pelo grupo latino-americano. Ao final, foi aprovada moção que lamentava as “dificuldades encontradas” e exprimia votos de que elas fossem resolvidas até setembro, a fim de então tornar possível a admissão da Alemanha (54). A Assembléia extraordinária chegava a seu fim sem ter podido aprovar a deliberação para a qual tinha sido convocada. Como desdobramento de sua atitude, o Brasil comunicou a sua retirada da Liga das Nações, em 12 de junho de 1926 (55). Na 7ª Assembléia, em setembro de 1926, da qual o Brasil esteve ausente, foi aprovado o relatório da comissão de estudos sobre a composição do Conselho e a Alemanha foi finalmente admitida na Liga, na qualidade de membro permanente do Conselho, assegurando assim a entrada em vigor dos acordos de Locarno (56). 12 Conclusão A crise de março de 1926 teve diversas conseqüências, inclusive a de ter desgastado a imagem da Liga das Nações perante a opinião pública mundial. A atitude das potências locarnistas de buscar em sigilo um acordo à revelia da Assembléia, negligenciando as práticas de diplomacia multilateral consagradas em Genebra, fez a Liga parecer aos olhos do mundo, segundo Frank P. Walters, um "foco de intrigas, paralizada pelas reivindicações egoístas de seus membros e pelas complicações de seu próprio procedimento" (57). O episódio do veto brasileiro pode ser interpretado diferentemente de acordo com a versão que se dê às negociações diplomáticas nos últimos dias da Assembléia extraordinária. Trata-se de saber se o esboço de solução para a crise entre os países signatários de Locarno, proposto em 15 de março, teria realmente levado a um acordo de última hora, embaraçado unicamente pelo radicalismo do Brasil. A versão difundida na Europa, endossada por autores estrangeiros que depois se dedicaram ao tema (58), sustentava que tinha havido o acordo entre as potências locarnistas, conforme expresso na declaração conjunta à imprensa em 16 de março, e que, portanto, o Brasil tinha sido o culpado pelo adiamento da admissão da Alemanha na Liga. Outra versão, levantada por alguns historiadores brasileiros, defende que não se teria chegado a esse acordo e que, desse modo, o veto brasileiro de 17 de março teria servido para salvar as aparências e esconder da opinião pública a verdadeira causa do malogro da Assembléia, ou seja, as rivalidades e os desentendimentos de bastidores entre as diplomacias européias (59). Afrânio de Melo Franco, em telegrama confidencial a Félix Pacheco, datado de 25 de março de 1926, deixou registrada sua opinião como um dos protagonistas daqueles acontecimentos. Segundo ele, "o que se representou na Assembléia foi uma ridícula comédia, em que cada participante era um tartufo". A Tchecoslováquia, membro da Pequena Entente, teria relutado em ceder seu assento temporário no Conselho, pois, conforme confidenciou Edouard BeneŠ, representante tcheco, ao próprio Melo Franco, a combinação feita para a renúncia de seu país havia sido um "ato indigno". Não concordando também com a renúncia da Suécia, a Alemanha teria continuado a bloquear a entrada da Polônia no Conselho como membro temporário, e se a candidatura polonesa fosse repelida àquela altura isso significaria uma derrota diplomática para a França e a Grã-Bretanha. Diante da perspectiva de manter-se o impasse, Melo Franco insinuou que "se o Brasil houvesse retirado o veto, todo esse imbroglio viria a público e a Assembléia talvez ainda estivesse esperando o desenlace" (60). Algumas conclusões podem ser extraídas da análise retrospectiva da crise de março de 1926. A ameaça de veto do Brasil não foi a causa da crise, como querem alguns, mas sim um fator complicador no quadro de conflito originado com a candidatura imprevista da Polônia. O Brasil não foi tampouco o foco das atenções durante a crise e mesmo depois do veto, como assinalou Norma Breda dos Santos, a imprensa européia em 13 geral estava mais empenhada em criticar a atuação de seus próprios dirigentes do que em analisar os fundamentos da atitude brasileira (61). Também não é correto afirmar que, desde o começo, Aristide Briand e Austen Chamberlain pretendiam "usar" o Brasil para salvar a face dos locarnistas, quando na realidade as potências européias tentaram por todos os meios resolver o impasse, mais atentas a suas próprias considerações de prestígio e de política interna do que preocupadas com o que pudesse fazer ou deixar de fazer um país sulamericano, periférico e totalmente estranho aos graves problemas europeus que estavam em jogo. Houve, de fato, um acordo entre os locarnistas, baseado no que de menos negativo foi possível negociar, diante de fortes pressões internas, sem pôr em risco os compromissos assumidos em Locarno. Esse acordo, porém (e este é ponto), era insatisfatório sob vários aspectos e criaria dificuldades posteriores à França e à própria Alemanha, como apontou William Rappard (62). O veto brasileiro teve algo de providencial na medida em que permitiu o adiamento da questão, o que, em política internacional, consiste em velha e conhecida tática para superar embaraços incontornáveis em negociações  adia-se para outra rodada o ponto em que nenhum dos lados deseja ceder, na expectativa de que o tempo contribua para a resolução do problema. Assim, para todos os efeitos, ao Brasil coube o ônus do veto, prestando-se ao papel não planejado de bode expiatório do fiasco de Genebra. A ironia da Assembléia de 17 de março foi a de que, vendo o que se descortinava, os líderes locarnistas mais comprometidos em salvar o que restava daquele naufrágio diplomático (Briand e Chamberlain) não viram no veto brasileiro nada de ultrajante ou de intolerável, muito pelo contrário. Toda a estrutura de Locarno saía intacta e haveria a quem culpar quando fosse necessário explicar o fracasso da Assembléia à opinião pública em seus respectivos países. Com isso em mente, compreende-se a "íntima satisfação" a que se refere Melo Franco na epígrafe do início deste artigo (63). Assinale-se, por fim, que o veto em nada afetou as relações entre o Brasil e a Alemanha. O governo brasileiro argumentou que tinha agido movido por princípios e que seu gesto não representava hostilidade contra aquele país. Após uma troca de notas confidenciais, em abril de 1926, Hubert Knipping declarou igualmente que a divergência entre os dois países tinha sido apenas o resultado de "pontos de vista diferentes em simples questão de princípio", cujo desfecho não devia e não podia atingir as “boas relações de amizade” que ligavam o Brasil e a Alemanha (64). O conflito, por conseguinte, permaneceu restrito ao plano multilateral e os interesses comerciais recíprocos não foram abalados. Desde então, os níveis de intercâmbio bilateral atingiram cifras crescentes, as quais iriam fazer da Alemanha novamente o segundo parceiro comercial do Brasil no romper da década de 1930. Brasília, 26 de maio de 1997. 14 NOTAS (1) Prefácio ao livro de Renato Almeida, A Liga das Nações: constituição, estrutura e funcionamento (RJ, A Noite, 1938), p. 7. (2) Não se tratará aqui do quadro mais amplo das relações Brasil-Alemanha no período, o qual mereceria estudo em separado. O autor aceita de antemão as críticas que lhe podem ser feitas pela ênfase talvez excessiva à reconstituição dos fatos neste caso. Para melhor contextualização das motivações para a conduta do Brasil na Liga ver, de minha autoria, “A candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho da Liga das Nações”, Revista Brasileira de Política Internacional (ano 37, n. 1, 1994, p.5-23); e A participação do Brasil na Liga das Nações (1919-1926), (Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, 1994). (3) René Albrecht-Carrié, Storia diplomatica d'Europa, 1815-1968 (Roma, Editori Laterza, 1978), p. 458. O "sistema francês" compreendia ainda a aproximação com a Grã-Bretanha e o apoio ao "cordão sanitário" de contenção da Rússia, bem como à Pequena Entente, formada pela Tchecoslováquia, Romênia e Iugoslávia. (4) Cf. John Robert Ferris, Men, money and diplomacy: the evolution of British strategic policy, 1919-1926 (Ithaca, Cornell Univ. Press, 1989), p.46 e p.148-149. (5) Jean-Baptiste Duroselle, Histoire diplomatique de 1919 à nos jours (Paris, Dalloz, 1971), p. 81. (6) Id., p.81-82; René Albrecht-Carrié, op.cit., p. 467-468. (7) Jacques Néré, História contemporânea (SP, Difel, 1981), p. 369. (8) Frank P. Walters, A history of the League of Nations (London, Oxford University Press, 1952, 2v.), vol. I, p. 284. (9) "The Locarno Pact", in Frederick H. Hartmann (ed.), Basic documents of internatinal relations (Westport, Greenwood Press, 1985), p.110-114; ver também Jon Jacobson, Locarno diplomacy: Germany and the West, 1925-1929 (Princeton, NJ, Princeton University Press, 1972). (10) René Rémond, O século XX: de 1914 aos nossos dias (SP, Cultrix, 1974), p. 54. (11) A.J.P. Taylor, The origins of the Second World War (Greenwich, Fawcett Publications, 1969), p. 57. (12) “Mensagem de 1920”, in Câmara dos Deputados, Mensagens Presidenciais (1919-1922), (Brasília, Centro de Documentação e Informação, 1978), p. 141. Stanley E. Hilton assinala que os interesses alemães no Brasil mostravam uma “surpreendente capacidade de resistência”. Em 1918, a Alemanha não fornecera nenhuma das importações brasileiras; mas, ao chegar 1929, alcançaria o terceiro lugar na lista de fornecedores ao Brasil, com 12% das importações deste país. Comprando 11% das exportações brasileiras, em 1928, a Alemanha voltava a se apresentar como o segundo principal mercado brasileiro; ver Stanley Hilton, O Brasil e as grandes potências: os aspectos políticos da rivalidade comercial (1930-1939), (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977), p. 25. (13) Stanley E. Hilton, "Afrânio de Melo Franco e a diplomacia brasileira, 1917-1943", Revista Brasileira de Política Internacional (vol.29, nº 113/114, 1986, p. 15-46), p. 19. (14) Esse era um claro indício de que a solidariedade continental, que o Brasil apregoava ser da índole pan-americana, não se estava verificando na prática. Pacheco a Melo Franco, teleg., RJ, 3 dez. 1925, Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI-RJ), 274/3/4. (15) Melo Franco a Bernardes, carta, Genebra, 12 nov. 1925, Coleção Melo Franco, Biblioteca Nacional-RJ, correspondência presidencial ativa. (16) F.P. Walters, op.cit., vol.I, p.279; Relatório do MRE (1925-1926), (RJ, Imprensa Nacional, 1927), Anexo A, nº 2, "Correspondência trocada sobre a admissão da Alemanha à Liga das Nações, publicada no Diário Oficial de 27 mar. 1926", p.114-128. Essa correspondência também foi publicada no Jornal do Commercio de 27 mar. 1926, sob o título "O Brasil na Liga das Nações: documentos oficiais". 15 (17) Pacheco a Melo Franco, despacho, RJ, 1º dez. 1924, AHI 274/2/11; ver também Relatório do MRE (1925-1926), op.cit., Anexo A, nº 2. (18) José Carlos de Macedo Soares, O Brasil e a Sociedade das Nações (Paris, A.Pedone, 1927), p. 113. (19) F.P. Walters, op.cit., vol.I, p.316-317. (20) Georges Scelle, "La réforme du Conseil de la Société des Nations", Revue Générale de Droit International Public (troisième série, Tome I, nº 34, 1927, p.769-838), p. 777. A mesma análise sobre a crise de março de 1926 está in Georges Scelle, Une crise de la Société des Nations (Paris, Les Presses Universitaires de France, 1927). (21) Id., ibid. (22) Leitão de Carvalho a Pacheco, carta confidencial, Genebra, 21 mar. 1926, AHI 274/2/10. (23) F.P. Walters, op.cit., vol.I, p.319. (24) Id., ibid. (25) Melo Franco a Pacheco, teleg., Genebra, 15 fev. 1926, apud Afonso Arinos de Melo Franco, Um estadista da República (RJ, J.Olimpio Ed., 1955, 3v), vol.III, p. 1239. (26) Ver, para maiores detalhes sobre as motivações alemãs, Harald von Riekhoff, German-Polish relations, 1918-1933 (Baltimore, Johns Hopkins Press, 1971), p. 125-130; e Gordon A. Craig, Germany, 1866-1945 (Oxford, Clarendon Press, 1978), passim. (27) Pacheco a Melo Franco, teleg., RJ, 18 fev. 1926, AHI 274/3/4. (28) Melo Franco a Pacheco, telegramas, Genebra, 20 e 28 fev. 1926, AHI 274/3/1. (29) Entrevista de Félix Pacheco publicada no Correio da Manhã de 23 fev. 1926. Essa declaração de Pacheco foi criticada por alguns jornais cariocas pelo fato de tornar público e oficial um objetivo de política externa que àquela altura parecia mais prudente perseguir em sigilo, o que daria mais liberdade de manobra à diplomacia. Sobre isso, João Pandiá Calógeras posteriormente questionou: "Teria o Brasil, nessa ocasião, a garantia do triunfo de seu anelo? E se não possuía tal segurança, com que autoridade moral se abalançava o Itamarati a lançar nosso país na aventura de uma recusa, pelo menos desagradável? (...) Seria acaso manifestação de mentalidade municipal, com o pueril e ridículo intento de pôr as nações da Liga ante um fato consumado, e contar com a repugnância natural de gente delicada em desgostar a um amigo?"; J.P. Calógeras, Res nostra... (SP, Irmãos Ferraz, 1930), p.174. (30) Entrevista de Hubert Knipping a O Jornal de 24 fev. 1926. (31) Relatório do MRE (1925-1926), op. cit., Anexo A, nº 2, p. 123. (32) Id., p. 126-128. (33) Telegrama de 2 de março de 1926 citado por Ricardo Seintefus, in José Honório Rodrigues & R. Seitenfus, Uma história diplomática do Brasil (1531-1945), (R J, Civilização Brasileira, 1995), p. 327. (34) Em troca do discreto apoio norte-americano, o Brasil propunha apoiar sem restrições a adesão dos Estados Unidos à Corte Permanente de Justiça internacional, bem como agir em cooperação amistosa com o governo norte-americano em Lima, na questão de Tacna e Arica entre o Peru e o Chile; Melo Franco a Pacheco, teleg., Genebra, 20 fev. 1926, AHI 274/3/1; Pacheco a Amaral, teleg., RJ, 23 fev. 1926, AHI 235/3/10 A. (35) Silvino Gurgel do Amaral admitiu resignado: "Não creio que possamos contar mais do que com as sinceras felicitações dos americanos para que entremos como membro permanente, mas o seu apoio por intermédio das suas missões diplomáticas exporia a administração do partido republicano a ruidosas complicações"; Amaral a Pacheco, teleg., Washington, 24 fev. 1926, AHI 235/3/10 A. (36) Teve grande repercussão a afirmação de León Suarez, internacionalista argentino, de que a presença do Brasil no quadro permanente do Conselho "romperia o equilíbrio sul-americano"; O Paiz, 20 fev. 1926. Por outro lado, tinha-se a 16 informação de que o Chile se opunha a qualquer candidatura latino-americana, desde que ele não entrasse também como membro permanente; Amaral a Pacheco, teleg. confidencial e reservadíssimo, Washington, 4 mar. 1926, AHI 235/3/10 A. (37) Bernardes se justificou: "A situação decorrente desta atitude só pode prestigiar o Brasil, ao passo que qualquer outra lhe diminui a autoridade internacional, principalmente nos meios sul-americanos, em cuja política o Brasil não pode perder o lugar que já conquistou"; Bernardes a Melo Franco, teleg., RJ, 5 mar. 1926, AHI 274/3/3 e também Coleção Melo Franco, BN/RJ, corresp. presidencial passiva. (38) Id., ibid. (39) Pacheco a Melo Franco, teleg., RJ, 7 mar. 1926, AHI 274/3/4. (40) Apud Heitor Lyra, Minha vida diplomática (Brasília, Ed.UnB, 1981, 2v), tomo II, p. 126-128. (41) Por conta desse incidente, Melo Franco desentendeu-se com Régis de Oliveira, que chegou a apresentar pedido de demissão ao Itamaraty. Heitor Lyra conta que, em verdade, havia na delegação brasileira duas correntes: “a dos que entendiam que devíamos impedir a todo transe a entrada da Alemanha na Liga, caso não nos dessem também um lugar permanente no Conselho; e a dos que pensavam que de maneira alguma deveríamos chegar a tais extremos”. Régis de Oliveira pertencia a essa última corrente. Id., ibid. (42) Melo Franco a Bernardes, teleg. absolutamente confidencial, Genebra, 12 mar. 1926, AHI 274/3/1. (43) Bernardes a Melo Franco, teleg. urgente e pessoal, RJ, 12 mar. 1926, Coleção Melo Franco, BN/RJ, corresp. presidencial passiva. (44) Cf. O Jornal, 27 fev. 1926. A imprensa carioca de oposição propunha, desde o início, que o Brasil abandonasse a Liga ao invés de pleitear um assento permanente no Conselho. O Correio da Manhã, de 16 mar. 1926, comentava o “ridículo de reclamar uma cadeira numa assembléia onde nada temos de prático e útil a fazer e onde jamais deveríamos pôr os pés”. (45) William E. Rappard, “Germany at Geneva”, Foreign Affairs (vol. IV, n. 4, July 1926, p. 535-546), p. 545. (46) Georges Scelle, "La réforme du Conseil de la Société des Nations", op.cit., p.781; F.P. Walters, op.cit., vol.I, p.320; Le Journal, Paris, 16 mar. 1926. (47) Cf. Norma Breda dos Santos, Le Brésil et la Société des Nations, 1920-1926 (Thèse de Doctorat, Université de Genève, Institut Universitaire de Hautes Études Internationales, 1996), p. 204-205. (48) José Honório Rodrigues & R. Seitenfus, Uma história diplomática do Brasil, op. cit., p. 336-337. (49) Participaram dessa reunião os seguintes países: Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Guatemala, Nicarágua, Paraguai, República Dominicana, El Salvador, Uruguai e Venezuela; Warren H. Kelchner, Latin American relations with the League of Nations (Boston, World Peace Foundation, 1930), p. 67-68; Manuel Perez-Guerrero, Les relations des Etats de l'Amérique latine avec la Société des Nations (Paris, A.Pedone, 1936), p. 23-24. (50) Georges Scelle, Une crise de la Société des Nations, op.cit., p. 44. (51) L'OEuvre, L'Echo de Paris, Le Journal, Il Messaggero, The Times, todos de 17 mar. 1926. (52) Apud Heitor Lyra, op.cit., tomo II, p. 133. (53) Journal de l'Assemblée extraordinaire de la Société des Nations, Genève, mars 1926, nº 10, Coleção Melo Franco, BN/RJ, pasta 155; ver também José Carlos de Macedo Soares, op.cit., anexo nº 3, p. 257-294. (54) Id., ibid. (55) Melo Franco a Pacheco, teleg., Genebra, 7 maio 1926, AHI 274/3/1. (56) Entrevista de H. Knipping ao jornal O Globo de 10 abr. 1926; Pacheco a Melo Franco, teleg., RJ, 11 abr. 1926, AHI 274/3/4. 17 (57) F. P. Walters, op. cit, vol. I, p. 321. (58) Podem ser citados, entre outros, Georges Scelle (1927), F. P. Walters (1952) e J.-B. Duroselle (1971). Há autores estrangeiros que, quando se referem en passant à crise de março de 1926, atribuem a responsabilidade pelo adiamento da admissão alemã indistintamente às pretensões da Polônia, Espanha e Brasil. (59) José Carlos de Macedo Soares (1927) foi o primeiro a levantar essa hipótese. Afonso Arinos de Melo Franco (1955), baseando-se na documentação deixada por seu pai, Afrânio de Melo Franco, adotou igualmente essa versão, eixo central da análise de Heitor Lyra (1981). Dois trabalhos recentes seguem a mesma linha: Francisco Luiz Teixeira Vinhosa (1990) e Rui Pinheiro de Vasconcelos (1993). As contribuições de Ricardo Seitenfus (1995) e Norma Breda dos Santos (1996) foram importantes para a consolidação do conhecimento que orienta a interpretação histórica exposta neste artigo. (60) Melo Franco a Pacheco, teleg. pessoal, estritamente confidencial, Genebra, 25 mar. 1926, AHI 274/3/1. (61) Norma B. dos Santos, Le Brésil et la Société des Nations, op. cit., p. 206. (62) W. E. Rappard, “Germany at Geneva”, op. cit., p. 546. (63) Diante de controvérsia historiográfica que não convém estimular, esta análise parece ser, pelo menos, compatível com a complexa realidade da política mundial e seus inextricáveis caminhos interpretativos. No caso que agora nos ocupa, uma interpretação abrangente do papel da diplomacia brasileira não se restringe aos fatos aqui analisados, pois dependeria de considerações outras ligadas ao contexto mais amplo das relações exteriores do Brasil no período, objeto de pesquisa ainda por ser feita. (64) Relatório do MRE (1926), (RJ, Imprensa Nacional, 1927), Anexo A, n. 1, p. 13.