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O feminismo republicano de John Stuart Mill

Kalagatos

Este artigo sustenta que o compromisso com a igualdade de gênero e a percepção aguda da subordinação das mulheres ao patriarcado levaram John Stuart Mill a elaborar uma concepção de liberdade tributária do republicanismo. Para justificar a tese de que o conceito de liberdade exposto em A sujeição das mulheres trilharia uma via comum entre feminismo e republicanismo, destacam-se quatro semelhanças entre a filosofia política de Mill e a liberdade republicana.

Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 TRADUÇÃO 1 0F O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL [JOHN STUART MILL’S REPUBLICAN FEMINISM] Gustavo Hessmann DALAQUA Professor do curso de filosofia da Universidade Estadual do Paraná E-mail: gustavodalaqua@yahoo.com.br Resumo Este artigo sustenta que o compromisso com a igualdade de gênero e a percepção aguda da subordinação das mulheres ao patriarcado levaram John Stuart Mill a elaborar uma concepção de liberdade tributária do republicanismo. Para justificar a tese de que o conceito de liberdade exposto em A sujeição das mulheres trilharia uma via comum entre feminismo e republicanismo, destacam-se quatro semelhanças entre a filosofia política de Mill e a liberdade republicana. Palavras-chave John Stuart Mill; feminismo; republicanismo; liberdade; igualdade. Abstract This paper argues that John Stuart Mill’s commitment to gender equality and acute understanding of women’s subordination to male power led him to develop a conception of freedom that evokes republicanism. In order to substantiate the thesis that the concept of freedom put forth in The Subjection of Women steers a middle course between feminism and republicanism, four similarities between Mill’s political philosophy and republican freedom are highlighted. Keywords John Stuart Mill; feminism; republicanism; liberty; equality. 1 Esse texto é uma tradução de um artigo publicado no vol. 15 da Kalagatos e resulta de uma tese de doutorado, defendida no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2019. Pelos comentários em uma versão anterior do trabalho, agradecemos Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros, Maria Isabel Limongi e Nadia Urbinati. Quaisquer erros que constarem são de nossa responsabilidade. DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 137 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 1. Introdução Seguindo a leitura de Isaiah Berlin (2000, p. 232), alguns acadêmicos identificam Mill como um dos “pais do liberalismo”, que em hipótese alguma deve ser associado com a tradição republicana. Como um crítico comunitarista afirmou recentemente, a filosofia de Mill ilustra de maneira exemplar o conceito liberal de liberdade, cujos dois principais atributos seriam o “individualismo” e a subordinação da “comunidade [...] à vontade de indivíduos imperiosos” (GAIRDNER, 2008, pp. 11, 14). Visto que privatizaria a liberdade, o liberalismo milliano não pode ser afiliado ao republicanismo, tradição de pensamento que tende a associar a liberdade com o exercício coletivo do poder entre cidadãos que se tratam de maneira equânime. 2 Indo contra semelhante caracterização da filosofia milliana, este 1F artigo afirma que Mill formula uma concepção de liberdade que o aproxima do republicanismo. A tese que se busca provar é que, ao elaborar uma concepção de liberdade que visa à ausência de sujeição arbitrária e à igualdade de gênero, Mill formula o que podemos chamar de feminismo republicano. 2. A sujeição das mulheres e a relevância política da igualdade de gênero Dentre as obras do corpus milliano, A sujeição das mulheres (SM) foi, durante muito tempo, uma das menos estudadas. Ao publicar o livro, Mill tinha ciência de que pagaria um preço caro entre alguns círculos filosóficos de seu tempo, uma vez que o tema do feminismo não parecia ser, naquela época, digno de um pensador “sério”. Sendo assim, alguns críticos do século XIX consideraram a opção de Mill de redigir um livro sobre a questão das mulheres como “o maior erro dele enquanto pensador” (BAIN, 1882, p. 146). 2 Kenneth Minogue (1988, p. 194) e Richard Bellamy (2008, p. 43) sintetizam bem a oposição entre liberalismo e republicanismo que um número considerável de pesquisadores crê existir. Deixando de lado os possíveis méritos que tal dicotomia possa conter, o fato é que, ao menos de uma perspectiva milliana, a oposição entre republicanismo e liberalismo é insustentável. Portanto, deve-se reconhecer que, longe de antitéticos, liberalismo e republicanismo se consorciam nos trabalhos de alguns filósofos modernos, dentre os quais Mill deve ser incluído (DAGGER, 1997, cap. 1). Sobre a aliança entre liberalismo e republicanismo na filosofia moderna, cf. também Helena Rosenblatt (2018, cap. 2). DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 138 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 Foi apenas a partir da década de 1960 que o valor filosófico de SM passou a ser reconhecido (MORALES, 2005, pp. xiii-xiv). Desde então, o reconhecimento da importância do livro tem crescido. Trata-se, com efeito, de um texto filosoficamente denso, pois, ao abordar o tema da desigualdade de gênero, Mill mostra como conceitos caros da filosofia política – quais sejam, igualdade, liberdade e justiça – se imbricam mutuamente (ROSEN, 2013, p. 246). O liame que SM tece entre liberdade e igualdade nos permite matizar o feminismo de Mill como republicano. Mill pode ser enquadrado como um feminista republicano, na medida em que seu compromisso com a igualdade de gênero o levou a identificar a liberdade com a ausência de sujeição arbitrária. Ainda que dezenas de comentadores tenham se referido a Mill como um filósofo republicano ou filósofo feminista, até onde sabemos, há apenas um estudo que afirma ser Mill um feminista republicano. No livro Women’s Rights as Multicultural Claims, Monica Mookherjee (2009, p. 132) sugere que a filosofia milliana deveria ser associada ao que ela designa de “republicanismo feminista”. Por meio de uma análise do conceito de liberdade que subjaz ao feminismo de Mill, este artigo busca substanciar a breve afirmação de Mookherjee. Logo no início da SM, Mill expande o horizonte semântico da palavra “despotismo” e qualifica de despóticas as relações entre homens e mulheres que se dão na chamada “esfera privada”. “Nem uma palavra que se diz sobre o despotismo na família não se diz também sobre o despotismo político” (CW XXI, p. 286). O modo como Mill emprega o conceito de despotismo é, a um só tempo, clássico e inovador (URBINATI, 2007, p. 67). Clássico porque o associa com o domínio absoluto de uma pessoa sobre o arbítrio de outra (despotes era o termo que os gregos usavam para se referir ao dono de escravos) e inovador porque amplia sua utilização a fim de abarcar relações de submissão que os antigos viam como naturais. Ao classificar de despótica a relação entre marido e mulher, Mill vai contra a antiga ideia de que as relações praticadas no âmbito privado da casa (oikos) não poderiam ser objeto de regulamentação política. Ao exigir dos poderes políticos de seu tempo a criação de leis que impossibilitassem a sujeição das mulheres no âmbito doméstico, o filósofo põe em questão a dicotomia público vs. privado e prenuncia o lema feminista de que o privado é público. 3 O despotismo exercido sobre 2F 3 “Mill, ao contrário da maioria dos liberais, estava disposto a pensar a ideia da igualdade e da não-hierarquia no âmbito da ‘esfera privada’ e a demolir a ideia de que essa esfera deveria ser imune à regulamentação DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 139 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 as mulheres na esfera privada é de relevância pública porque a manutenção de relações desiguais no interior da casa inviabiliza a igualdade no âmbito político (MACIEL, 2014, p. 54). O emprego sui generis do termo “despotismo” permite a Mill apontar para a necessidade de se politizar áreas da vida humana consideradas até então imunes à interferência pública. A descrição da relação conjugal em termos políticos denuncia uma estratégia maior do texto, qual seja, a de expandir a manutenção das relações igualitárias para um âmbito no qual os cidadãos modernos passam cada vez mais tempo: a casa. No capítulo quatro da SM, Mill contrasta o estilo de vida dos homens modernos com a ética cavalheiresca. Em comparação com os homens de antigamente, os modernos passam mais tempo em casa com a família. Por isso mesmo, é necessário garantir a existência de relações livres no ambiente doméstico, uma vez que a convivência prolongada com relações domésticas desiguais estorva o exercício da liberdade do cidadão. Noutras palavras, não é possível manter “um governo livre” sobre a estrutura do “despotismo” familiar (CW XXI, p. 292). 4 3F As comparações entre o mundo político e o ambiente doméstico são recorrentes ao longo da SM. Primeiro, Mill estabelece que, de maneira análoga à política, o meio doméstico também é perpassado por relações de poder e que, tal qual aquela, sua divisão de “poderes e responsabilidades” deveria ser feita consensual e não despoticamente (CW XXI, p. 291). Em seguida, apresenta a tese de que “a família, constituída de maneira justa”, cumpriria a mesma função que a “cidadania” exerce: ser uma “escola da sociedade da igualdade” e “das virtudes da liberdade” (CW XXI, p. 295). Mais adiante, afirma que “a relação entre marido e mulher é muito similar àquela entre senhor e vassalo” (CW XXI, p. 325). No último capítulo, ademais, explica que a experiência familiar pode ensinar uma “faculdade de governo” fundamental para a política (CW XXI, p. 339). jurídica” (NUSSBAUM, 2005, p. 108). Sobre a problematização da dicotomia público vs. privado feita pelo feminismo milliano, ver Keith Burgess-Jackson (2005) e Maria Morales (2007, p. 46). 4 Seguindo uma prática comum entre os comentadores de Mill, quando nos referirmos à edição dos Collected Works of John Stuart Mill, usaremos a abreviação CW, enumerando, em seguida, o volume e a página (ex: CW XXI, p. 292 equivalerá a Collected Works, volume XXI, página 292). DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 140 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 “A lei da servidão no casamento é uma contradição monstruosa a todos os princípios do mundo moderno e a toda a experiência através da qual esses princípios foram gradual e dolorosamente conquistados” (CW XXI, p. 323). A igualdade e as instituições livres, implementadas pelos setores democráticos da sociedade, não foram conquistadas de maneira fácil. O fato de “as tendências da sociedade humana” serem contra “o sistema de desigualdade de direitos” não é obra do acaso (CW XXI, p. 272). A capacidade de cooperar para um propósito comum, até então um instrumento de poder monopolizado nas mãos das classes mais altas, é agora um instrumento formidável nas mãos das classes mais baixas. Sob estas influências, não é surpreendente que a sociedade tenha feito, em dez anos, mais avanços em direção ao nivelamento das desigualdades do que ultimamente se fez em um século, ou antes disso, em três ou quatro [séculos] (CW XVIII, p. 51). Quando há desigualdade, os que estão no topo dificilmente consentem em abrir mão de seus privilégios. Os que estão em cima julgam natural o poder que têm para dominar os de baixo, sendo este o motivo que levava a maioria dos homens vitorianos a nutrir “uma verdadeira antipatia” para com a ideia de que o casamento deveria ser uma relação entre iguais (CW XXI, p. 281). Ao deparar-se com semelhante atitude, Mill dispara: “Acaso já houve alguma dominação que não parecesse natural àqueles que a praticavam?” (CW XXI, p. 269). A pergunta retórica do autor faz parte de uma estratégia argumentativa que um leitor razoavelmente familiarizado com o corpus milliano consegue discernir. Se, no terceiro capítulo de Sobre a liberdade (SL), o objetivo era mostrar como a opressão contra as minorias era prejudicial à própria maioria que as oprimia, em SM, um dos propósitos de Mill é mostrar como a sujeição das mulheres é prejudicial para os homens. O que o leitor atento é capaz de perceber, tanto em SL quanto em SM, é uma característica retórica muito própria dos textos engajados, a saber, a adoção de um tom de convencimento. No afã de gerar maior impacto prático, Mill procura persuadir os perpetuadores da sujeição das mulheres a mudar de atitude. Além do tom que utiliza, o próprio momento em que decidiu publicar SM indica o anseio do autor em contribuir para uma mudança efetiva na situação das mulheres. Segundo Stefan Collini (1984, p. xii), Mill manteve o manuscrito da SM na gaveta por oito anos porque desejava publicá-lo DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 141 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 naquele que julgava ser o momento mais propício para a defesa pública da causa feminina. Para convencer os homens a aderir à causa feminina, Mill reserva uma parte significativa do livro para mostrar que a desigualdade de gênero é ruim tanto para as mulheres quanto para os homens. Foi por isso que lemos acima que a servidão das mulheres representava uma contradição “monstruosa” aos princípios democráticos (CW XXI, p. 323). A existência de relações despóticas no interior da casa é monstruosa porque distorce a natureza e o caráter dos seres nela envolvidos (CW XXI, pp. 276, 305). Mill chega a afirmar que a sujeição feminina é mais prejudicial às mulheres do que aos homens: E é verdade que a servidão, exceto quando brutaliza, apesar de ser corruptora a ambos, o é menos para os escravos do que para os senhores. É muito mais revigorante para a natureza moral ser refreado [...] do que ser permitido exercer poder arbitrário sem qualquer freio (CW XXI, pp. 320–1). 142 Esta tese, apresentada de passagem no capítulo três da SM, é retomada de maneira mais elaborada no início do capítulo quatro: Todas as propensões egoístas, a egolatria e a preferência injusta a si próprio, que existem entre os homens, têm sua fonte e raiz [...] na constituição atual da relação entre homens e mulheres. Pense o que é para um garoto crescer na crença de que, sem qualquer mérito ou esforço próprio, e mesmo que ele possa ser o mais frívolo e vazio ou o mais ignorante e apático da humanidade [mankind], pelo simples fato de ter nascido homem, ele é de direito superior [...] à metade da raça humana. [...] Qual deverá ser o efeito desta lição no caráter dele? [...] A relação entre marido e mulher é muito similar àquela entre senhor e vassalo, com a exceção de que a mulher é submetida a uma obediência muito mais ilimitada do que o vassalo. Por mais que o caráter do vassalo possa ter sido afetado, para melhor ou pior, por meio de sua subordinação, quem não consegue ver que o caráter do senhor foi muito mais afetado para o pior? (CW XXI, pp. 324–5). Tendemos a pensar que a manutenção de relações servis é deletéria apenas para o servo. No entanto, o que se sustenta acima é que as relações servis são mais nocivas para o senhor do que para o servo. A tese de que as relações de dominação corrompem mais o senhor do que o dominado fez fortuna na literatura abolicionista do século XIX. DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 O livro de memórias de Frederick Douglass, abolicionista que, aos vinte anos, fugiu de seu senhor e iniciou uma vida como homem livre, em uma cidade grande no norte dos EUA, é exemplar a esse respeito. Em Narrative of the Life of Frederick Douglass (1845), o antigo escravizado testemunha de forma pungente como a escravidão corrompeu o caráter daqueles que o escravizaram. Em carta dirigida a Harriet Taylor, Mill faz menção à militância de Douglass e, com entusiasmo, aprova a coalização de forças entre abolicionistas e feministas, orquestrada, nos EUA, com o intuito de promover a causa da liberdade (CW XIV, p. 49). A aliança entre a militância feminista e a abolicionista não surpreende, uma vez que tanto esta quanto aquela pleiteavam uma pauta comum: a defesa da igualdade e da liberdade de todos os indivíduos. Não é à toa, então, que abolicionismo e feminismo se consorciem em SM, haja vista Mill ser partidário de ambos. A analogia entre a mulher e o escravo ocorre várias vezes ao longo do livro; “nenhum escravo é um escravo em tamanha medida, e em um sentido tão completo da palavra, como a esposa o é” (CW XXI, p. 284). 5 4F Mill retratava a situação feminina em termos tão negativos porque acreditava que a sujeição das mulheres “escraviza[va] o espírito delas”, algo que, segundo ele, não acontecia com os escravizados africanos (CW XXI, p. 271). As mulheres eram ensinadas a aceitar passivamente a ausência de igualdade e liberdade e a amar sua submissão. Compreende-se, pois, que “ser atraente aos homens” fosse “a estrela polar da educação e formação do caráter femininos” (CW XXI, p. 272). Assim, não era preciso que o despotismo dos homens se traduzisse em repressão física, pois as próprias mulheres, em muitos casos, consentiam em ser subjugadas e não ofereciam resistência alguma. “O despotismo [em Mill] designa relações de poder marcadas pela ausência de consenso formado autonomamente, e não pela ausência de qualquer tipo de consenso” (URBINATI, 2007, p. 85). A ausência de resistência e a presença de consenso não 5 A um primeiro olhar, a asserção de Mill pode parecer hiperbólica. Contudo, cabe lembrar que, antes de Mill, a situação da mulher já havia sido aproximada da escravidão por Mary Wollstonecraft (2016), representante do republicanismo inglês do final do século XVIII. Ao longo dos séculos XVII, XVIII e XIX, o termo escravidão era usado em um sentido distinto do nosso. “A palavra ‘escravidão’ se utilizava então, em um sentido muito mais amplo, para descrever qualquer situação de dependência ostensivamente intolerável” (ROSANVALLON, 2011, p. 41). Em um livro escrito no final do século XVII, Algernon Sidney (1996, p. 17) ilustra bem este sentido amplo do termo escravidão ao afirmar: “Depender do arbítrio [will] de outro homem é escravidão”. DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 143 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 bastam para constatar a existência de relações livres. Para averiguar a existência de liberdade, seja na esfera familiar ou política, é necessário analisar o processo de formação do consenso. A resistência organizada contra qualquer tipo de dominação depende da disponibilidade de mecanismos discursivos e esquemas interpretativos que permitam aos dominados enquadrar sua dominação como fonte de obstrução da liberdade. Se a educação de uma sociedade não dá ferramentas para que os dominados constatem o cerceamento de sua liberdade, a resistência contra o despotismo tende a não ocorrer. Nas últimas páginas da SM, Mill escreve que um dos propósitos de seu manifesto foi trazer à luz “a diferença entre uma vida de sujeição ao arbítrio de outrem e uma vida de liberdade” (CW XXI, p. 336). Semelhante contraste é digno de nota, porque nos permite pôr em xeque as interpretações que veem em Mill o epítome do conceito negativo de liberdade. Como veremos no próximo item, SM oferece uma concepção de liberdade qua ausência de sujeição arbitrária que aproxima Mill do republicanismo (cf. SKINNER, 1999, p. 9). 144 3. O feminismo republicano de Mill “A tradição republicana é unânime ao descrever a liberdade como o oposto da escravidão” (PETTIT, 1997, p. 31). A antítese entre liberdade e escravidão, central à argumentação da SM, revela que a concepção de liberdade milliana possui matizes republicanos: A característica mais marcante destas definições [republicanas de liberdade] é que elas devem toda sua fraseologia à análise da liberdade e da escravidão feita no início do Digesto do direito romano. Lá, somos informados, primeiro, que “a divisão fundamental do direito [...] é que todos os homens e as mulheres são livres ou escravos”. Em seguida, dá-se uma definição formal da escravidão. “A escravidão é uma instituição do ius gentium pela qual alguém é, contra a natureza, sujeito ao domínio de outrem”. Isto, por sua vez, fornece uma definição para a liberdade individual. Se todos em uma associação civil são cativos ou livres, então um civis ou cidadão livre deve ser alguém que não está sob o domínio de outrem, mas sim sui iuris, capaz de agir em direito próprio. Segue-se, outrossim, que não ter o status de cidadão livre significa não estar sui iuris e, em vez disso, estar sub DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 potestate, sob o poder ou sujeição ao arbítrio de outrem (SKINNER, 2002, pp. 248–9). Uma das maiores características dos pensadores republicanos é que, na contramão da concepção de liberdade formulada por Hobbes (1996, pp. 145–6), eles não pensam que a ausência de interferência basta para assegurar a liberdade. Como a citação acima deixa entrever, é a ausência de sujeição arbitrária, e não a ausência de interferência tout court, que indica a presença de liberdade. Essa seção buscará destacar as afinidades entre a concepção de liberdade apresentada em SM e a tradição republicana, evidenciando, pois, o feminismo republicano de Mill. Na filosofia política contemporânea, o republicanismo tem sido objeto de diversos estudos. Ao explicar a singularidade do conceito de liberdade republicano, esses estudos, via de regra, resgatam a célebre dicotomia que, na década de 1950, Berlin postulou entre liberdade negativa e liberdade positiva: A liberdade nesse sentido [negativo] diz respeito à área de controle, não à sua fonte. Assim como a democracia pode, com efeito, alienar o cidadão individual de muitas liberdades que em outro tipo de sociedade se teria, é perfeitamente possível que um déspota esclarecido conceda a seus súditos grande liberdade individual. [...] A liberdade nesse sentido não está logicamente associada com a democracia ou o autogoverno. [...] não há ligação necessária entre liberdade individual e governo democrático. A resposta para a pergunta “Quem me governa?” é logicamente distinta da questão “Quão longe vai a interferência do governo sobre minha conduta?” Ao fim e ao cabo, é nisto que consiste a diferença que contrasta, profundamente, os dois conceitos de liberdade positiva e negativa (BERLIN, 2000, pp. 201–2). Segundo Berlin, a liberdade é positiva quando se associa com a presença de um regime político específico, qual seja, a democracia. A liberdade negativa, por seu turno, remete apenas à ausência de interferência. Dada a caracterização, não surpreende que alguns estudiosos do republicanismo, hoje, afirmem que a liberdade republicana é negativa, no sentido em que também associa a liberdade com uma ausência: a ausência de DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 145 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 dominação (PETTIT, 1997, p. 27). 6 A afirmação, contudo, deve ser lida com cautela, pois a 5F liberdade republicana [...] é marcada pela presença de algo, já que não ser dominado implica em livrar-se da incerteza e da vulnerabilidade de situações de dependência. No pensamento republicano, a liberdade não é avaliada apenas pelo campo de não interferência, nem pela extensão da ação permitida aos indivíduos, mas leva em conta o grau de segurança contra intervenções arbitrárias. Desse modo, ela é mais ampla do que a liberdade negativa, porque objetiva não apenas proteger os indivíduos de interferências, mas também dar garantias desta proteção, emancipando-os das condições de precariedade que caracteriza a submissão a um poder discricionário (BARROS, 2015, p. 28). A ausência de sujeição arbitrária não ocorre espontaneamente e requer a presença de mecanismos que permitam aos cidadãos vigiar, contestar e penalizar a conduta dos agentes com os quais interagem em relações de poder. Além da contenção do poder arbitrário, o republicanismo exige a manutenção de canais que concedam aos indivíduos o exercício do poder político: “O regime republicano não propõe apenas que o poder seja contido por leis e se exerça para o povo, em vista do bem comum, mas exige ainda que seja exercido, de algum modo, por todo o povo” (CARDOSO, 2004, pp. 46–7). Sendo assim, podemos dizer que a oposição berliniana entre liberdade negativa e liberdade positiva enquadra mal a liberdade republicana. Outrossim, também enquadra mal a liberdade milliana (SIMÕES, 2008, p. 29). Na esteira do republicanismo, Mill entende que a liberdade requer canais tanto de contenção quanto de exercício do poder político. Todavia, cabe destacar que, em um dos primeiros artigos que publicou sobre a liberdade, Mill de fato apresenta uma concepção negativa de liberdade: A liberdade [...] significa liberdade contra restrição [restraint]. Nesse sentido, toda lei, toda regra de conduta, é contrária à liberdade. Um déspota, que se encontra inteiramente emancipado de ambos, é a única pessoa cuja liberdade de ação é completa (CW I, p. 296). 6 Quentin Skinner (1998) usa “dependência” no lugar de “dominação”. A diferença, entretanto, é apenas vocabular, pois, como Phillip Pettit (2002, p. 341) reconhece, ambos os termos descrevem o mesmo fenômeno. DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 146 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 A definição de liberdade, apresentada nesta passagem, foi escrita quando Mill tinha dezesseis anos e tipifica de maneira exemplar o conceito negativo de liberdade. Liberdade significa ausência de restrição e, já que a função de todas as leis é restringir, livre é quem do jugo delas consegue se emancipar. A menção do déspota como exemplo de ser livre é significativa, pois mostra a distância que separa este artigo de adolescência do pensamento posterior de Mill sobre a liberdade. Como observaremos, Mill afirma na SM que o déspota não é livre porque se encontra privado da relação entre iguais. No último capítulo da SM, Mill associa a liberdade com o autogoverno, isto é, com “a liberdade de cada um para governar sua conduta [...] por meio daquelas leis e restrições sociais a que sua própria consciência pode subscrever” (CW XXI, p. 336). Autogoverno, aqui, não significa que todas as pessoas devem exercer um cargo governamental ou trabalhar dentro de alguma instituição estatal. A capacidade de governar, no sentido aqui empregado, refere-se ao exame crítico de uma consciência política participativa. A participação política não deve se restringir àqueles que ocupam um cargo governamental. A participação – i.e., o poder de influenciar os rumos da política – deve estar presente também no exercício do voto, no debate público, nas passeatas, petições, greves etc. (cf. CW XIX, p. 535). Ao guiar suas palavras e atos por meio do escrutínio crítico das regras sociais e leis governamentais que o circundam, o indivíduo realiza um ato político. Mill encoraja a participação política porque acredita ser por meio dela que se evita a sujeição arbitrária. Quando as pessoas não participam da vida pública, elas cedo ou tarde acabam se vendo à mercê de um poder arbitrário. No segundo capítulo de Considerações sobre o governo representativo, Mill indica compreender a política “tal qual os antigos a concebiam”: “não podemos esquecer que há, nos assuntos humanos, uma corrente incessante que sempre flui em direção ao pior” (CW XIX, p. 388). Na tradição republicana, é comum a ideia de que a corrupção é um perigo sempre à espreita, de que a melhor das instituições políticas pode, na ausência de cidadãos virtuosos que a vigiam, degringolar para a pior das tiranias. 7 6F Para Mill, não menos do que para grande parte dos pensadores alinhados ao republicanismo, o despotismo, sujeição arbitrária ou tirania – isto é, a ausência de liberdade 7 Sobre o conceito de virtude em Mill e sua relação com o republicanismo, ver Bernard Semmel (1984, p. 110). A respeito do tema da corrupção na tradição republicana, cf. Newton Bignotto (2008). DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 147 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 – não consiste apenas na interferência em si. Todo o tempo em que não há garantias contra a disposição de um agente em interferir de maneira arbitrária sobre a conduta de outro constitui, a rigor, um tempo sem liberdade. Nessa perspectiva, uma mulher sob o jugo de um marido ou pai magnânimo, que não interfere em suas ações, permanece sem liberdade. Como se sabe, magnanimidade é o termo que se emprega para caracterizar o agente que, tendo o poder de fazer mal a outrem, por ora decide não fazê-lo. O problema é que, quando o bom ânimo cessa, a magnanimidade tende a desaparecer. Quando o sujeito que se encontra sob sujeição arbitrária se apercebe disto, ele começa a policiar seus atos e palavras, a fim de evitar que eles despertem a ira do senhor – o que, não obstante, permanece um modo bastante imperfeito de assegurar a não interferência, pois nada garante que o senhor fique de mau humor e, subitamente, resolva oprimi-lo. Não é à toa que os republicanos de outrora associassem esse autopoliciamento, decorrente da sujeição arbitrária, com a feminilidade; de fato, argumenta Mill, esse tipo de comportamento permanecia presente entre as mulheres vitorianas. Não por conta de uma suposta natureza feminina, mas sim porque elas se encontravam sob sujeição arbitrária: 148 Quando consideramos em conjunto [...] a dependência completa da mulher ao marido – todo privilégio ou prazer que ela tem é um presente ou algo que depende inteiramente do arbítrio dele – e, por fim, o fato de que os principais objetos de busca e estima humanas, assim como todos os objetos de ambição social, podem, em geral, ser obtidos por ela apenas graças a ele, [compreendemos que] seria um milagre se a capacidade de ser atraente aos homens não houvesse se tornado a estrela polar da educação e formação de caráter femininos (CW XXI, p. 272). A bajulação e a deferência servil – assim como a duplicidade que quem precisa agradar um superior se vê obrigado a cultivar – seriam exemplos de traços “femininos” presentes em todos os que vivem sob sujeição arbitrária. No caso das mulheres, a dependência ao arbítrio do homem, acoplada a um conjunto de regras que fazia esta lhes parecer natural, criava um círculo vicioso que as levavam a modelar seus gestos, roupas, palavras – em resumo, suas vidas inteiras – com o desígnio de agradar o senhor que as dominava. Na leitura republicana, viver sem liberdade é viver sob dependência do arbítrio alheio. Isso vale mesmo quando tal submissão se dá voluntariamente. Com efeito, vale DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 ainda mais para os casos em que o oprimido se submete à sujeição arbitrária de bom grado, pois semelhante comportamento revela que suas emoções e desejos foram manipulados de modo a fazê-lo aceitar a opressão que sofre. Para Mill, o que há de perverso na sujeição feminina é que, além de oprimidas, as mulheres eram ensinadas a amar sua sujeição. Isso é comum a outros grupos subalternizados que são expostos à sujeição arbitrária: em vez de resistir à dominação, eles internalizam a visão depreciativa de si próprios que o mestre lhes imputa e reproduzem os padrões inventados para oprimi-los. A escravidão atinge seu ápice quando os grupos escravizados deixam de se considerar subjugados e passam, a todo custo, a tentar se conformar aos padrões que o opressor inventou para subjugá-los. A sujeição arbitrária rouba dos indivíduos um componente essencial da liberdade milliana – qual seja, o desenvolvimento pleno das faculdades humanas – porque quem se encontra sob jugo arbitrário tem o desenvolvimento de seus talentos e potencialidades frustrado. Esta, com efeito, era uma das queixas de alguns republicanos antigos contra a sujeição arbitrária. No início da Bellum Catilinae, elogiando o governo livre em oposição à monarquia tirânica, Salústio observa: 149 [Os romanos] tinham uma constituição fundada na lei [...] que, de início, tendia a preservar a liberdade e fazia o Estado prosperar [...]. Naquele tempo, os homens começaram a voltar sua cabeça para cima e a ter seus talentos [ingenium] mais desenvolvidos, pois os reis costumam ter os bons em maior suspeita do que os ruins, e para eles o mérito alheio sempre representa perigo [...]. Porém, uma vez conquistada a liberdade, o Estado cresceu incrivelmente forte e grandioso, em um período excepcionalmente curto, tamanha a sede de glória que se apossou do espírito dos homens [...]. O jogo mais desafiante pela glória se dava um com o outro; cada homem esforçava-se para ser o primeiro a derrubar o inimigo, a escalar uma muralha e a ser observado enquanto fazia semelhante ação (SALÚSTIO, 1931, pp. 13, 15). Salústio indica que, ao passo que a sujeição arbitrária leva as pessoas a não desenvolverem seus atributos para não despertar a desconfiança do rei, a liberdade salvaguardada pela república configura uma atmosfera convidativa ao desenvolvimento dos talentos humanos. Para Salústio, assim como para os republicanos de modo geral, a liberdade não se confunde apenas com a ausência de interferência e reclama a manutenção de relações igualitárias, que permitam aos cidadãos se olharem de cabeça erguida, sem necessidade de portar-se de modo servil. O relato de Salústio revela, assim, que a república constituía o reverso do despotismo: enquanto este se caracterizava pela DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 duplicidade e desconfiança das pessoas, aquela gerava uma forma de liberdade em que a igualdade diante da lei permitia a cada um expressar sua singularidade perante os demais. Embora, ao tematizar a liberdade como ausência de sujeição arbitrária, Mill não cite Salústio, é possível especular que esta ideia do republicanismo salustiano – segundo a qual a ausência de sujeição arbitrária gera uma atmosfera conducente ao desenvolvimento dos talentos humanos – influenciou seu pensamento, pois, conforme consta na autobiografia do filósofo, Mill estudou na juventude “toda a obra de Salústio” (CW I, p. 14). Seja como for, o fato é que a ideia de que a liberdade implica a ausência de sujeição arbitrária marca presença na filosofia milliana. É a garantia desta liberdade, e não da segurança tout court, que caracteriza o bom governo: Olhe para o governo de Napoleão Bonaparte: se a segurança contra roubos e assassinatos constituísse um bom governo, nunca houve melhor governo que o dele. Todavia, a segurança contra ladrões e assassinatos é uma parte pequena de um bom governo e compreende apenas aquele departamento subordinado que se chama de polícia. Por que consideramos o governo de Bonaparte ruim? Porque, ainda que a pessoa e a propriedade estejam seguras contra os indivíduos, elas não o estão contra o déspota. Ele suprimiu todos os ladrões e assassinos, mas não a si próprio (CW XXVI, p. 282). Em última instância, quem se encontra sujeito a um poder despótico nunca tem segurança, pois a propriedade sobre seus bens e sua própria pessoa pode, arbitrariamente, ser violada pelo déspota. Um governo autoritário, que promete segurança no lugar da participação política do povo, não consegue entregar o que promete porque deixa seus súditos à mercê de um poder discricionário. “Eu preferiria, se precisasse escolher, ser tributado amiúde do que viver sob o medo constante de que toda minha propriedade fosse usurpada de supetão pelo decreto de um déspota” (CW XXVI, p. 346). Um Estado cheio de leis é preferível a um Estado despótico que não tributa os súditos. O “governo da Lei é sempre preferível a um governo arbitrário” (CW XXVI, p. 346). Mill queria acabar com os dois componentes básicos da arbitrariedade: a imprevisibilidade e a discricionariedade. “Mal posso imaginar leis tão ruins as quais eu não preferiria me submeter do que ao capricho de um homem” (CW XXVI, p. 346). Reivindicação constante na tradição republicana, o Império da Lei é bem-quisto por Mill, porque confere previsibilidade à vida das pessoas e impede que o capricho do tirano substitua a lei. DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 150 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 Mill era contra a interferência arbitrária, e não contra a interferência em si; “ele não pensava que as restrições impostas por leis não arbitrárias fossem, nelas mesmas, uma ofensa contra a liberdade” (URBINATI, 2002, p. 168). Urbinati haure daí que Mill é tributário do republicanismo e, além disso, associa a discussão com o princípio do dano. Esse segundo passo merece atenção porque, em verdade, o princípio do dano afasta Mill do republicanismo, porquanto em sua base jaz um conceito inexistente entre os antigos: o da individualidade. A categoria da individualidade e a ideia de direitos individuais não existiam no mundo antigo (BOBBIO, 1992, pp. 58–60). Enquanto na tradição republicana as muralhas contra a sujeição arbitrária erigiam-se em torno de grupos constituídos politicamente, na filosofia de Mill a proteção contra a interferência arbitrária remete ao conceito da individualidade. 8 7F Sem dúvida, não se trata de uma diferença desprezível. Afinal, é justamente por não restringir sua teoria da liberdade aos grupos constituídos politicamente que Mill consegue estender o clamor pela liberdade como ausência de sujeição arbitrária a indivíduos que não estão organizados em grupos e que nem sequer atuavam como cidadãos no espaço público (como, por exemplo, as mulheres de outrora). O próprio fato de Mill politizar a esfera privada e afirmar que o poder público deveria intervir nas relações entre marido e mulher, a fim de permitir que esta pudesse ser livre e igual perante os demais, seria inadmissível para os antigos republicanos. Como o próprio Mill reconhece, a igualdade defendida na SM difere da igualdade apregoada pelo republicanismo antigo. “Assim era nas repúblicas livres da Antiguidade [:] mesmo na melhor delas, os iguais limitavam-se aos cidadãos livres masculinos; escravos, mulheres, e os residentes que não tinham o sufrágio encontravamse sob o jugo da força” (CW XXI, p. 294). O republicanismo antigo restringia a cidadania aos homens livres. Sendo assim, o feminismo republicano moderno, inevitavelmente, sinaliza uma ruptura perante o republicanismo dos antigos (HALLDENIUS, 2015, p. 24; PHILLIPS, 2000, p. 279; VEGA, 2008, p. 158). 8 Seria equivocado associar a individualidade milliana com o atomismo. Como mostra Catherine Audard (2009, pp. 86–7), Mill na maior parte das vezes preferia usar o termo “individualidade”, pois tinha ciência de que o termo “indivíduo” evocava o atomismo. Não obstante, Mill em algumas ocasiões emprega o termo “indivíduo”, mas não em um sentido atomístico. Seguindo o vocabulário de Mill, empregamos os termos “indivíduo” e “individualidade” de maneira indiscriminada. Sobre a constituição social da individualidade milliana, cf. Dalaqua (2018). DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 151 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 O feminismo republicano de Mill difere do republicanismo clássico, pois se baseia em uma concepção de igualdade mais abrangente. Ademais, sua doutrina da liberdade é tipicamente moderna na medida em que se ancora na individualidade. Em SL, Mill afirma que a liberdade requer ausência de “dano”, obstáculo que o indivíduo experimenta não só quando alguém interfere sobre sua conduta, como também quando o desenvolvimento de suas capacidades é atrofiado por causa de arranjos políticos deficientes. Em vários casos, o dano decorre da omissão ou ausência de interferência. Nesse sentido, o princípio do dano ecoa o republicanismo, pois afirma que alguns tipos de interferência são constitutivos da liberdade (URBINATI, 2002, p. 165). A lei civil que resulta do consentimento dos cidadãos é um exemplo a que os republicanos frequentemente recorrem para ilustrar esse ponto: longe de resultar em sujeição arbitrária, a interferência que ela representa é fundamental para a liberdade. Segundo Urbinati, o conceito de liberdade como ausência de sujeição arbitrária, defendido por Mill, traz à luz a distinção entre interferência legítima e interferência arbitrária [...] e transforma a reivindicação para ser deixado em paz em uma reivindicação por emancipação. Enquanto o clamor pela ausência de interferência resulta em um clamor pelo silêncio da lei, o clamor pela ausência de sujeição culmina no clamor por uma lei justa. O primeiro clamor presume uma pessoa que se encontra isolada dos outros, e o segundo, uma pessoa que se percebe como um ser relacional (URBINATI, 2002, p. 156). A grande diferença da liberdade negativa com a liberdade republicana é que a primeira postula tão somente uma política de contenção do poder. A liberdade republicana, por sua vez, demanda uma cidadania ativa, um povo enérgico e arredio que está sempre disposto a vigiar o governo e a exigir a remoção de possíveis fontes de poder arbitrário. Além da compreensão da liberdade como ausência de sujeição arbitrária, outro matiz republicano, presente em Mill, é a junção entre liberdade e igualdade. Com efeito, na tradição republicana, a liberdade “implica uma condição de igualdade” (SPITZ, 1995, p. 194; cf. VIROLI, 1998, p. 120). Conquanto já apareça em SL, a fusão entre igualdade e liberdade é mais proeminente na SM, obra segundo a qual o objetivo maior da luta feminina seria garantir a “igual liberdade das mulheres” (CW XXI, p. 281). De acordo com o capítulo dois da SM, DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 152 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 [...] a verdadeira virtude dos seres humanos é a aptidão para viver juntos como iguais, não reivindicando para si nada a não ser o que livremente concedem para todos os outros; considerando qualquer tipo de comando como uma necessidade temporária; e preferindo, sempre que possível, a sociedade daqueles com quem o governo e a obediência possam ser alternados e recíprocos (CW XXI, p. 294). Uma “aproximação” a esta “sociedade entre iguais”, segundo o autor, ocorrera “nas repúblicas livres da Antiguidade” (CW XXI, p. 294). Ali, governar e ser governado constituíam atos recíprocos e alternados, e a liberdade não era senão o nome que se dava para o exercício do poder entre iguais. De acordo com Mill, “a liberdade de cada um não tem nenhuma segurança sólida senão a igual liberdade de todos os outros” (CW XIX, p. 610). Conforme mostra Gregory Claeys (2013, p. 171), Mill teria herdado do republicanismo “a dependência da liberdade de um indivíduo à manutenção da liberdade dos demais [...]. A concepção de igualdade dele, em última instância, almejava suplantar a servidão por completo”. “Ao apresentar a comparação entre a família e a escravidão e definir o marido como um mestre e despot, Mill reavive as representações [...] da oikos como exemplo de tirania política, a fim de reforçar o valor do governo cívico” (URBINATI, 2005, p. 169). Ao matizar o despotismo doméstico como o avesso da liberdade, o autor de SM alinhar-se-ia a “Aristóteles e Cícero, que insistiam que o tirano, assim como os escravos, era sozinho e não livre, haja vista suas relações se darem com homens cativos” (URBINATI, 2005, p. 169). Para os antigos republicanos, a liberdade praticava-se na relação com homens que se tratavam como iguais. Logo, ao assumir domínio sobre outrem, o tirano ou déspota destruía não só a liberdade dos outros, como também a sua própria, porquanto se privava da relação com os pares em cuja companhia poderia desfrutar da liberdade. 4. Conclusão Este trabalho argumentou que Mill pode ser considerado um feminista republicano, na medida em que seu compromisso com a igualdade de gênero e sua percepção aguda da sujeição das mulheres ao patriarcado o levaram a elaborar uma concepção de liberdade alinhada ao republicanismo. Assim como outros “–ismos” da filosofia, o republicanismo DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 153 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 abarca diferentes matrizes (cf. BIGNOTTO, 2013). A declaração de Mill, proferida em 1826, de que seu pensamento político era tributário do “republicanismo” não nos permite afirmar que a liberdade milliana seja idêntica, por exemplo, à liberdade de Aristóteles ou Cícero (CW XXVI, p. 358). A matriz do republicanismo na qual Mill se insere é aquela que predominava na Inglaterra vitoriana – matriz esta que, em verdade, é pouco estudada entre nós. 9 Tal negligência talvez explique por que, não raramente, nos deparemos com análises 8F que tratam liberalismo e republicanismo como doutrinas absolutamente incompatíveis entre si. O republicanismo e o liberalismo são correntes filosóficas polifônicas. Como a filosofia de Mill mostra, houve um momento na história das ideias em que este e aquele cruzaram entre si. Ainda que guarde semelhanças com relação à liberdade pensada pelos autores republicanos da Antiguidade, a doutrina da liberdade milliana difere do republicanismo clássico porque tem como âncora a individualidade. Ao passo que no republicanismo clássico a liberdade se referia apenas a grupos politicamente constituídos, na filosofia de Mill a liberdade tem o indivíduo como seu ponto de remissão último. É justamente esta ruptura com a filosofia política antiga que permite a Mill mobilizar uma concepção republicana de liberdade em prol da luta feminista. Ao não restringir a liberdade a grupos politicamente constituídos, Mill conseguiu expandir a reivindicação pela liberdade a pessoas que nem sequer eram consideradas cidadãs (caso das mulheres de outrora). A fim de justificar a tese de que feminismo e republicanismo se consorciam na teoria da liberdade milliana, quatro semelhanças entre a filosofia política de Mill e a liberdade republicana foram destacadas. Em primeiro lugar, a teoria da liberdade em Mill evoca o republicanismo porque associa a liberdade com a ausência de interferência arbitrária. Para Mill, é a ausência de sujeição arbitrária, e não a ausência de interferência tout court, que manifesta a presença de liberdade. No limite, todo tempo que se vive na ausência de garantias contra a interferência arbitrária constitui um tempo sem liberdade. Portanto, uma mulher que vive sob o jugo de um marido magnânimo permanece cativa, pois, ainda que seu mestre nunca decida importuná-la, o simples fato de ela ter um mestre basta para atestar a ausência de liberdade. A segunda similaridade é que Mill, na esteira de outros filósofos republicanos, põe em relevo o tormento psicológico que acomete os que vivem sob sujeição arbitrária. Depois 9 Sobre a matriz republicana presente no pensamento político vitoriano, cf. Robert Gossman (1962). DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 154 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 que tomam ciência da sua situação, as pessoas à mercê de um poder discricionário passam a policiar seus atos e palavras com o intuito de não despertar a ira do senhor. Por conseguinte, elas não desenvolvem suas potencialidades (cf. SALÚSTIO, 1931, pp. 13–5). Não é à toa, então, que a duplicidade e a bajulação tendam a ser apanágio dos povos subjugados. Os antigos republicanos caracterizavam este apanágio de “feminino”; como Mill relata na SM, as mulheres do século XIX eram obrigadas a agir com duplicidade e a se autopoliciar toda hora, pois tinham de agradar um grande número de mestres: os homens. Segundo Mill, uma parte significativa das mulheres sentia prazer em se sujeitar aos homens, haja vista a educação delas ter moldado seus desejos e emoções de modo a fazêlas aceitar a situação opressora em que viviam. De acordo com o filósofo, o que há de especialmente perverso na sujeição das mulheres é que elas são ensinadas a amar a opressão que sofrem. Porém, ainda que sinta prazer em ser submissa e aceite ser escravizada, uma mulher permanece cativa. Isso vale não apenas para as mulheres, mas também para outros grupos subalternizados que, ao internalizarem a visão depreciativa de si próprios, propagada pelos opressores, acabam por se tornar partícipes da opressão que sofrem. A escravidão atinge seu ápice quando grupos vivendo à mercê de um poder arbitrário deixam de se considerar cativos e viram cúmplices de sua opressão. A terceira semelhança é que Mill pensava que a liberdade exigia tanto a ausência quanto a presença de algo. Como argumentamos, tal similaridade revela que a liberdade milliana não deve ser reduzida ao conceito negativo de liberdade. A ausência de sujeição arbitrária não emerge espontaneamente e requer a presença de instrumentos e instituições que permitam aos indivíduos monitorar, contestar e punir a conduta daqueles com quem interagem em relações de poder. A ausência de interferência, por si só, não cria a liberdade. Como o princípio do dano milliano mostra, alguns tipos de interferência são constitutivos da liberdade. O dano – i.e., a obstrução da liberdade – é frequentemente causado pela ausência de interferência legítima. Para Mill, enquanto a interferência arbitrária inibe a liberdade, a interferência legítima a promove. A lei civil que resulta do consenso popular ilustra isso muito bem: longe de gerar sujeição arbitrária, a interferência que ela provoca constrói a base da liberdade política. O ideal republicano do Império da Lei – o qual, como se mostrou, Mill defendia – salvaguarda a liberdade porque elimina o principal traço da arbitrariedade, nomeadamente, a imprevisibilidade. Ao regular as ações humanas com padrões comuns, aplicáveis igualmente a todos, a lei civil confere previsibilidade à vida das pessoas. DALAQUA, Gustavo Hessmann. O FEMINISMO REPUBLICANO DE JOHN STUART MILL. p. 137-159 155 Inverno 2020 V.17, N.1. e-ISSN: 1984-9206 A quarta semelhança é que Mill entendia que a liberdade só se exercia entre cidadãs e cidadãos que se tratam como iguais. Isto o alinha ao republicanismo, pois o consórcio entre liberdade e igualdade é característico do republicanismo. Mill afirmava que as pessoas podiam desfrutar da liberdade apenas na presença entre iguais (CW XIX, p. 610). A liberdade reclama não apenas a ausência de interferência arbitrária como também a presença de relações igualitárias que possibilitem aos cidadãos e cidadãs encarar uns aos outros de cabeça erguida, sem ter de agir de maneira dúplice, servil ou bajuladora. Referências AUDARD, Catherine. Qu’est-ce que le libéralisme ? Éthique, politique, société. Paris: Gallimard, 2009. BAIN, Alexander. John Stuart Mill: A Criticism with Personal Recollections. Londres: Longmans, Green & Co., 1882. BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves de. Republicanismo inglês: uma teoria da liberdade. São Paulo: Discurso Editorial, 2015. BELLAMY, Richard. Citizenship: A Very Short Introduction. Oxford: Oxford University Press, 2008. BERLIN, Isaiah. The Proper Study of Mankind: An Anthology of Essays. Nova York: Farrar, Straus and Giroux, 2000. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo. In: AVRITZER, Leonardo et al. (Orgs.) Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, pp. 103–110. BIGNOTTO, Newton (Org.). 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