O novo cinema português e o cinema novo brasileiro:
o caso Glauber
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Paulo Cunha é doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de
Coimbra. Leciona Cinema na Universidade da Beira Interior. É pesquisador
integrado do LabCom.IFP da Universidade da Beira Interior e da Rede Proprietas.
É Coordenador Editorial da Aniki: Revista Portuguesa da Imagem em Movimento.
Tem publicado diversos textos sobre cinema português, cineclubismo e cinema de
amadores, políticas públicas e modos de produção.
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Paulo Cunha1
e-mail: paulomfcunha@gmail.com
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Resumo
Este breve texto pretende fazer uma aproximação entre o novo cinema português e o cinema novo
brasileiro a partir das pontes estabelecidas pelo cineasta brasileiro Glauber Rocha com diversos
cineastas portugueses. Sabendo que, desde meados dos anos 60 até à sua morte, Glauber Rocha
manteve relações de amizade e cumplicidade cinéfila com várias figuras do novo cinema português,
pretendo saber se o cineasta brasileiro terá sido um elemento fundamental no diálogo entre os
cinemas brasileiro e português desse período.
Objetivamente, o que pretendo fazer, a partir de um estudo de caso concreto, é iniciar um
levantamento arqueológico das relações entre o cinema novo brasileiro e o novo cinema português.
Interessa-me também conhecer e tentar refletir sobre a forma como estes dois novos cinemas que se
expressavam através da língua portuguesa se posicionaram nos circuitos cinéfilos internacionais que
defendiam um cinema como forma de expressão artística e cultural e como experiência moderna.
Palavras-chave: Novo cinema português; Cinema novo brasileiro; Glauber
Rocha; Cinema Tricontinental.
Abstract
several Portuguese filmmakers. Knowing that, from the mid-1960s until his death, Glauber Rocha
maintained relations of friendship and cinematic complicity with various figures of the new Portuguese
cinema, I want to know if the Brazilian filmmaker would have been a fundamental element in the
dialogue between the Brazilian and Portuguese theaters of that period.
Objectively, what I intend to do, starting from a concrete case study, is to begin an archaeological
survey of the relations between the Brazilian new cinema and the new Portuguese cinema. It is also my
interest to know and try to reflect on how these two new cinemas that expressed themselves through
the Portuguese language have positioned themselves in the international cinephile circuits that
defended a cinema as a form of artistic and cultural expression and as a modern experience.
Keywords: New Portuguese cinema; Brazilian new cinema; Glauber Rocha;
Tricontinental Cinema.
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This short text intends to make an approximation between the new Portuguese cinema and the
Brazilian new cinema from the bridges established by the Brazilian filmmaker Glauber Rocha with
2
1.
Que relações pessoais ou profissionais se conhecem entre cineastas dos dois
países? Que condições de recepção e divulgação, por parte do público e da
crítica, conheceram os filmes no país-irmão? Que influências estéticas e éticas
terão exercido um cinema sobre o outro? Os modos de produção de um terão
sido exemplo ou inspiração para o outro? Os processos de afirmação e
reconhecimento, quer no interior como no exterior, terão sido similares?
Estas são algumas perguntas que urge primeiro fazer e depois tentar elaborar
respostas para contribuir para um estudo comparativo das duas cinematografias
que possa ajudar a compreender melhor as suas dinâmicas de afirmação e
reconhecimento nos circuitos cinéfilos internacionais.
São reconhecidas pelos próprios jovens cineastas do novo cinema português
diversas afiliações e influências estéticas e éticas estrangeiras que contribuíram
para o esforço de renovação no cinema português de então. Num inquérito
retrospectiva dedicada ao novo cinema português, uma das principais questões
dizia respeito às influências de cinematografias estrangeiras: “Considera que os
seus filmes (tanto ao nível da produção, como ao nível estético) se filiam, ou foram
influenciados, em movimentos internacionais?”. Na sua resposta, Fernando Lopes
cita uma máxima popularizada por Glauber Rocha como inspiração: “câmera na
mão e pé no chão”. Ainda assim, as principais referências internacionais
assumidas vinham das novas ondas europeias.
Desde finais dos anos 50, primeiro com bolsas de estudo financiadas pelo
próprio Estado Português e depois por instituições privadas como a Fundação
Calouste Gulbenkian, grande parte dos jovens que institucionalizariam mais tarde
o novo cinema português frequentou escolas de cinema um pouco por toda a
Europa, particularmente em Londres e Paris. Nessas escolas, a generalidade dos
alunos receberam dois importantes núcleos de influência: a) herança cinéfila de
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promovido pela Cinemateca Portuguesa em 1985, a propósito da primeira
autores clássicos europeus como Jean Renoir, Carl Theodor Dryer, Fritz Lang,
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Sergei Eisenstein ou Roberto Rosselini, mas também americanos (Orson Welles,
Nicholas Ray, John Ford, Alfred Hitchcock) e orientais (Ozu, Mizoguchi); b) a
prática de jovens cineastas que um pouco por toda a Europa propunham o
cinemas das new waves (os franceses François Truffaut, Jean-Luc Godard ou
Claude Chabrol, os ingleses Lindsay Anderson, Karel Reicz ou Tony Richardson, e
os italianos Michelangelo Antonioni, Federico Fellini ou Pier Paolo Pasolini).
Apesar de ser falado numa língua comum, e essencialmente por razões duma
certa periferia geográfica e cultural do Brasil, o cinema brasileiro – velho ou novo –
não estava presente entre as referências cinéfilas dos jovens cineastas
portugueses até meados dos anos 60. Mas na segunda metade da década,
sobretudo após a falência das Produções António da Cunha Telles, quando os
jovens cineastas procuraram redefinir as suas estratégias de afirmação e
apostaram definitivamente na internacionalização, o cinema novo brasileiro serviu
como exemplo de acção para vários cineastas portugueses.
Por partir de um contexto cultural periférico semelhante ao português e ter
Sol e Terra em Transe, ambos de Glauber Rocha, foram premiados em Cannes
(1964 e 1967, respectivamente); Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, foi
premiado em Cannes (1964), e Fome de Amor em Berlim (1968); Os Fuzis, de Ruy
Guerra, foi premiado em Berlim (1964) –, o cinema novo brasileiro foi visto como
um exemplo de sucesso e um modelo a seguir pelos jovens cineastas
portugueses, até porque partilhavam de muitas premissas estéticas.
2.
Apesar de aplaudido nos festivais e pela crítica especializada europeia, o
cinema novo brasileiro continuava longe das salas de cinema portuguesas. De
acordo com o levantamento de SILVA (2006), só nos anos 70 é que os filmes
brasileiros começaram a ser verdadeiramente exibidos em Lisboa, sobretudo em
retrospectivas e mostras (1º Festival de cinema Brasileiro em 1971; 1ª
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conseguido triunfar no circuito cinéfilo internacional – Deus e o Diabo na Terra do
Retrospectiva do Cinema Brasileiro, 1972; Semana do Cinema Brasileiro, 1973).
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Ao longo dos anos 60, salvo raras exceções, como O pagador de promessas,
Assalto em trem pagador ou Vidas Secas, a censura e a falta de interesse dos
distribuidores portugueses não permitiram a divulgação do cinema brasileiro em
Portugal. Por exemplo, Antônio das Mortes (1969) só seria exibido com cortes em
1972 (CELULÓIDE, 1974: 19), e Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe
só chegariam às salas portuguesas depois da Revolução de 1974.
No entanto, como observa Regina Silva, a crítica cinematográfica portuguesa
reconhecia as qualidades do cinema novo brasileiro e a necessidade de exibi-lo
em Portugal, mas também a necessidade de divulgar o novo cinema português
em terras brasileiras:
Em Junho de 1966 o editorial da Celulóide clamava por um Cinema Novo
luso-brasileiro. Com uma frase de efeito persuasivo logo nas primeiras linhas:
O Cinema Novo é um fenômeno universal, o texto não só acolhe o Cinema
Novo brasileiro, mas clama por uma partilha entre este movimento e o Novo
Cinema português: Em Portugal e no Brasil, um Cinema Novo de língua
Catembe de Faria de Almeida, Domingo à tarde de António de Macedo com
Deus e o diabo na terra do sol de Glauber Rocha, Os fuzis de Ruy Guerra, ou
Vidas secas de Nelson Pereira dos Santos, o editorial defende um Cinema
Novo Luso-Brasileiro e apela aos distribuidores por uma exibição mútua de
filmes portugueses no Brasil e brasileiros em Portugal. A identificação (ainda
que isto provoque questionamentos) e o acolhimento da cinematografia
brasileira pela revista revelam a boa imagem que o cinema brasileiro detinha
em território luso no período, além, naturalmente da proposta de promoção
do movimento cinemanovista (SILVA, 2006: 141).
Em 1965, a Seara Nova publicou “Descoberta dos Cinemas da Fome”, onde o
Cinema Novo brasileiro era encarado como uma verdadeira revolução, comparável
à do neo-realismo na Itália. O texto acentua o caráter de compromisso social e
autenticidade do movimento que busca defender as raízes nacionais e refletir
sobre o “cinema da fome”, numa clara alusão ao manifesto de Glauber Rocha.
Apesar de demonstrar certo desconhecimento nos dados apresentados (como
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portuguesa, fala uma linguagem universal e vai, com certeza, vencer.
Comparando Verdes anos de Paulo Rocha, Belarmino de Fernando Lopes,
chamar Ruy Guerra de um realizador negro e afirmar que no Brasil há uma
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ausência de preconceitos raciais), Michel Capdenac mostrou sua defesa de um
cinema contemporâneo, de vanguarda estética e política, cinema este que “já
contrastava com o declínio artístico das cinematografias mais desenvolvidas, um
cinema da fome”. (SILVA, 2006: 148)
3.
Apesar de algumas relações pessoais estabelecidas por estes anos entre
vários jovens cineastas portugueses e Glauber Rocha, não se conhecem óbvias
influências estéticas sobre filmes dos jovens cineastas portugueses.
A exceção é claramente Paulo Rocha. Conheceu Glauber em Cannes (1964), e
voltariam a encontrar-se em Acapulco (1965) e Montreal (1967). O seu segundo
longa-metragem – Mudar de Vida (1966) – foi protagonizado pelo brasileiro
Geraldo d’el Rey (por sugestão direta de Glauber), e era ambientado numa
comunidade de pescadores do norte do país, num cenário marcadamente
precário do ponto de vista social, e próximo do nordeste brasileiro. Fernando
com Glauber, mas os seus filmes não refletem influências estéticas óbvias.
Na minha opinião, é na fase final do novo cinema português (1974-80) que
parece mais presente uma influência do pensamento de Glauber Rocha sobre os
cineastas deste movimento. Em 1974, no dia seguinte à Revolução, Glauber
chegou a Portugal. Nos dias 28 e 29 de abril, Glauber esteve presente numa
importante reunião que teve lugar no anterior Sindicato Nacional dos Profissionais
de Cinema para apoiar o plano de ação da Comissão de Cineastas Anti-Fascistas
e para dar testemunho de outras experiências paralelas que tão bem conhecia,
nomeadamente no Brasil, Chile, México e Cuba.
Glauber Rocha foi o único estrangeiro convidado a colaborar no filme coletivo
As Armas e o Povo (1975), um documentário assinado por um coletivo de
“Trabalhadores da Atividade Cinematográfica”, que registrava os primeiros dias de
liberdade de um povo a viver os primeiros dias de processo revolucionário, mais
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Lopes, António da Cunha Telles e José Fonseca e Costa também se relacionaram
concretamente os eventos registrados entre os dias 25 de abril e 1º de maio de
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1974. Este convite espelha bem a importância do cineasta brasileiro num
momento de redefinição da instituição cinema em Portugal.
Numa entrevista conduzida por João César Monteiro, então publicada na
revista Cinéfilo de 18 de Maio de 1974, Glauber teceu algumas considerações
sobre o singular momento que o cinema português atravessava e sobre o
panorama internacional da distribuição cinematográfica.
Nessa entrevista, Glauber Rocha incluía o novo cinema português, tal como o
cinema novo brasileiro, no que ele designava por “cinema independente”, uma
espécie de terceira via que se distinguia ideologicamente dos cinemas produzidos
por duas grandes “estruturas econômicas” hegemônicas: “de um lado o cinema
capitalista, cujo modelo expressivo é o cinema hollywoodiano (…); temos depois
uma segunda estrutura – a dos países socialistas – que é a indústria estatal (…)”
(Glauber Rocha apud MONTEIRO, 1974: 11).
Neste momento singular, a contribuição de Glauber foi reconhecida como
importante para o futuro do cinema português que então se discutia e procurava
“geralmente falhadas por falta de rigor e disciplina na formulação dos problemas e
na definição de uma linha de reivindicações coletiva”, também em Portugal a
conjectura
social
e
política
não
permitiu
a
afirmação
de
um
cinema
verdadeiramente revolucionário como Glauber preconizava (Ibid., p. 10).
Gradualmente, com o “aburguesamento” do processo revolucionário em curso, as
ambições e os limites do cinema português voltavam ao momento anterior à
revolução.
Em julho desse ano, Glauber voltou a Paris; e após cinco anos de exílio,
regressou ao Brasil. Mas, em 1981, após uma viagem a Itália para apresentar A
Idade da Terra (Veneza, 1981), Glauber não aceitou a má recepção crítica ao filme
no Brasil e, também motivado pelo esforço de renovação sobrevivente no cinema
português, decidiu rumar a Portugal. Regressou então em fevereiro de 1981, e
instalou-se em Sintra, cidade especial para Glauber pela ligação ao universo
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construir. No entanto, tal como aconteceu noutros países, com experiências
metafísico de Eça de Queirós. Em abril do mesmo ano, a Cinemateca Portuguesa
dedicou-lhe uma retrospectiva.
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Anos antes, com O leão de sete cabeças (Congo, Itália, França, 1970), Cabeças
cortadas (Espanha, 1970) e História do Brasil (Cuba, Itália, 1972-74), Glauber
Rocha tentou desenvolver um projeto “de integração política e estética das
cinematografias dos países pobres dos três continentes (América Latina, África e
Ásia)” a que denominou de “Cinema Tricontinental, inspirado no internacionalismo
revolucionário de Che Guevara.” (CARDOSO, 2007: IV). No discurso de Glauber
Rocha, as primeiras referências ao “Cinema Tricontinental” surgiram em textos de
1967. A expressão ganhou maior visibilidade numa entrevista publicada em janeiro
de 1968 pela francesa Positif: uma verdadeira relação internacional que se deveria
“pautar num princípio de equivalência entre culturas: basta de paternalismo, basta
de solidariedade sentimental, basta de humilhação, basta de agressividade
gratuita, sobretudo, baste de conselhos”. (Ibid., p. 23-26).
Entre 1967 e 1974, através de declarações, intervenções e dos próprios filmes,
Glauber Rocha foi construindo uma ideia de Cinema Tricontinental que foi
(...) contribuiu para a definição clara de um patamar de interlocução com a
crítica europeia: apontou formas de aglutinação das cinematografias latinoamericanas esboçando um projecto de descolonização estética e de
combate à linguagem do cinema hollywoodiano; convergiu, enfim, estética e
política, cinema e experiência na realização de alguns filmes, cuja expressão
cinematográfica radical foi capaz de romper com os padrões de colonialidade
e incorporar as forças mágicas das culturas populares. (Ibid.)
A vinda de Glauber Rocha a Portugal para viver a revolução in loco coincidiu
com este período de reflexão sobre o Cinema Tricontinental. O fim de uma
ditadura fascista que durava 48 anos fez Glauber Rocha olhar para Portugal com
outros
olhos,
inclusive
como
espaço
para
desenvolver
algum
projeto
cinematográfico. Entre 1974 e 1981, dos inúmeros projetos que desenvolveu,
Glauber pensava em alguns que poderiam ter como parceiros cineastas
portugueses, um dos quais Fernando Lopes:
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orientando a sua ação política e a sua reflexão:
A primeira pessoa, uma das primeiras pessoas que assistiu à montagem do
Belarmino, já estava quase no fim, foi o Cacá Diegues e depois o Glauber
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Rocha. O Belarmino chegou a passar no festival de Pésaro clandestinamente.
O primeiro festival de cinema novo... quando o Glauber Rocha ganhou o
prêmio com o Barravento e o prêmio de crítica ficou para mim com o
Belarmino. E aí ficamos muito amigos, tivemos imensas relações, eu e o
Gláuber, sobretudo em Paris, e depois aqui em Lisboa já na fase final do
Glauber, quando eu era diretor de co-produções, já muito depois do 25 de
Abril, eu fui diretor de co-produções do serviço público. E aí tínhamos a idéia
de fazer um filme, que se chamava Uma Cidade Qualquer, que depois que ele
morreu eu dei a mãe dele… (Fernando Lopes, apud SALES, 2009: 31).
Mas segundo Mário Pacheco, Glauber tinha projetos bem mais ambiciosos:
O objetivo principal dessa renovação é a criação de uma cinematografia de
língua portuguesa, aberta, portanto, ao Brasil e a África, que depende da
efetização de um acordo luso-brasileiro... Esse projeto é também a
concretização do tricontinentalismo que Glauber Rocha defende. Um novo
movimento de cinema com a livre circulação dos filmes brasileiros e
portugueses que, extrapolando, abrangeria o mundo de fala portuguesa”
Glauber Rocha estaria particularmente entusiasmado com um acordo de
coprodução cinematográfica entre Portugal e Brasil assinado em 3 de fevereiro de
1981, mas que só seria publicado em Portugal em 21 de abril seguinte (decreto
regulamentar 48/81), e no Brasil apenas em 14 de junho de 1985 (decreto
91.332/85).
Como reza o texto do acordo, os dois governos, “animados pelo propósito de
difundir, através da coprodução de filmes, o acervo cultural dos dois povos” e
“pelo objetivo de promover e incrementar os interesses comerciais das indústrias
cinematográficas respectivas com base na igualdade de direitos e benefícios
mútuos”, decidiram considerar como nacionais nos dois países os filmes de
longa-metragem concluídos em regime de coprodução, e autorizar, sem quaisquer
restrições, a exploração comercial desses filmes nos dois países.
Nesse período, Glauber escreveu em várias correspondências com amigos
(BENTES, 1997) alguns dos seus planos cinematográficos:
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(PACHECO, s/d).
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Paris, 29-30/dezembro de 1980 / Querido Celso [Amorim, diretor da
Embrafilme] / (...) Manifestei-lhe o desejo de fundar uma Empresa de
Comunicações em Paris (com ramal em Lisboa) e dar início à minha
produção.
Sintra, 23 de março de 1981. / Cacá [Diegues], / (…) Assinei um contrato para
escrever um roteiro e tenho como viver até junho, meados de julho, quando
espero concretizar a produção. Aqui há condições, o ambiente é tranquilo,
tenho alguns amigos (...) Se nada der certo, verei onde posso fazer este filme
que estou criando, ou outro, em outro país, sem excluir o Brasil. / Vivo um
intervalo. Fim de um ciclo psíquico e corporal. Um segundo exílio, de futuro
incerto, mas caminhos mais ou menos estruturados. (...) / Não lamento nada.
Este túnel chegará ao fim e nos encontraremos mesmo que seja no deserto,
onde encontraremos novas soluções. (...) / Preciso que o Celso Amorim me
ajude a fazer o filme aqui. É fundamental para minha saúde. Ele facilitou as
coisas aqui em Portugal mas é bom você apoiar. Felizmente fofocas não nos
separaram.
Sintra, 26 de abril de 1981 / Querido Cacá / (...) Escrevo diante de uma
panavisão sobre o Atlântico camoniano e sebastianista do alto de uma
Ferreira de Castro (...) as coisas vão bem, estou feliz no meu feudo à beiramar plantado vendo todos os dias naves partindo na construção do IV
Império de Sebastião Ressuscitado... vou fazer com a RAI aqui em
coprodução com os portugueses o NASCIMENTO DOS DEUSES (...) é
possível realizar o Ciro e Alexandre aqui, há muita cultura árabe castelos etc.
(...) / PS – o cinema português está prometendo... sinto-me mais ou menos
em casa, boa cama, boa mesa, bom clima, transromantismo...
Sintra, 8 de junho de 1981 / Querido Celso / (...) Preciso saber de tudo
rapidamente porque resta-me 50 dólares. Sá da Bandeira [Presidente do
Instituto Português de Cinema] não me procura, o verão começa, a vida só
recomeça em setembro. Claude está interessado, mas Sá da Bandeira ainda
não se decidiu. / PRECISO DINHEIRO URGENTÍSSIMO – adiante-me sobre o
contrato 2 MILHÕES e depois vamos acertar o resto até ao fim do ano. Caso
a
Embrafilmes
não
resolva
meu
problema,
estarei
definitivamente
proletarizado, em suma, será difícil...
Sintra, 16 de julho de 1981 / Caro Tom [Luddy, produtor americano] / Estou
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montanha antes habitada por [Lord] Byron numa linda casa onde viveu
escrevendo um novo roteiro: O destino da humanidade. Vou acabar no dia 20
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de agosto. Meu produtor francês, Claude-Antoine, quer fazer o filme aqui.
Portugal é bonito e poderei ter dinheiro em setembro do Instituto de Cinema
Português. Embrafilme coproduz. Acho que posso fazer o filme em outubro.
Aqui, no Sul, tenho sol durante novembro e dezembro. Preciso de 2 milhões
de dólares e acho que Toscan du Plantier está interessado. Se não for
possível aqui irei para Paris. O cenário do filme é uma grande cidade. (...) /
Estou bem – ok. Posso trabalhar. Portugal é o Paraíso... / (…) Agora é 17 de
julho. O Presidente do Instituto Português de Cinema, Sr. Sá da Bandeira,
saiu! Crise com a secretaria de Cultura. Minha produção está parada... Mas
eu escrevo roteiro. Talvez a crise esteja acabada em setembro...
Sabe-se hoje que Glauber Rocha não se beneficiou das vantagens deste
acordo de coprodução luso-brasileiro. Em julho, apesar de concluída no mês
anterior a primeira fase do argumento de O Império do Napoleão, uma alteração
na administração do Instituto Português de Cinema fez com que o financiamento
prometido para o filme fosse suspenso. Poucos dias depois Glauber Rocha
adoeceria. Foi hospitalizado a 3 de agosto e acabaria por falecer a 21 de agosto.
CELULÓIDE..., nº 197, maio de 1974.
Cinema
Novo
Portuguesa, 1985.
Português
1962-74.
Lisboa:
Cinemateca
BENTES, Ivana (org.). Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
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