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Pablo Trapero e o novo cinema argentino

Segundo longa-metragem realizado por Pablo Trapero, El bonaerense é considerado um filme emblemático do chamado Nuevo Cine Argentino. E, mesmo que para Trapero esta seja uma nomenclatura arbitrária que agrega sob um mesmo espectro produções heterogêneas que não foram realizadas sob a égide de um movimento cinematográfico organizado para tal, ele reconhece o diálogo que há entre as produções e que une seus realizadores enquanto geração.

Organização: Yanet Aguilera Natalia Christofoletti Barrenha Lúcia Ramos Monteiro IMAGENS DE UM CONTINENTE Livro Eletrônico 1ª Edição São Paulo 2016 3 4 5 SUMÁRIO Prefácio, por João Batista de Andrade ................................................................................................................11 I. Introdução, por Yanet Aguilera. ..............................................................................................................13 II. Ensaio coletivo, por Gecilava Sobre “Del olvido al no me Acuerdo”, (Juan Carlos Rulfo, México, 1999) ...............................................................................................................30 III. Ensaio coletivo, por Gecilava Sobre “A raiva” (“La rabia”, Albertina Carri, Argentina/ Holanda, 2008) ..............................................................................................................33 IV. Ensaio coletivo, por Gecilava Sobre “Um tigre de papel” (“Un tigre de papel”, Luis Ospina Colômbia, 2007) ..............................................................................................................36 V. Ensaio Coletivo, por Gecilava Sobre “Así es la vida”, (Arturo Ripstein, México, 2000) ...............................................................................................................40 VI. Um breve passeio pela Terra do Sol, por Rodrigo Frare Baroni Sobre “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Glauber Rocha, Brasil, 1964) .........................................................................................................................44 6 VII. Oh, abandonado como los muelles al alba, todo en ti fue naufragio: expectação e isolamento em “Memórias do subdesenvolvimento”, por Cristina de Branco e Miguel Dores Sobre “Memórias do subdesenvolvimento” (“Memorias del subdesarrollo”, Tomás Gutiérrez Alea, Cuba, 1968) ..............................................................................................................54 VIII. Para não dizer que não falei do im da democracia, por Lúcia Ramos Monteiro e Sérgio César Júnior Sobre “Os anos JK” (Silvio Tendler, Brasil, 1980) ...............................................................................................................63 IX. (Re)encenações do exílio, por Lívia Fusco Sobre “Tangos, o exílio de Gardel” (“Tangos, el exilio de Gardel”, Fernando Solanas, Argentina/França, 1985) ..............................................................................................................74 X. A transgressão no ilme “A história quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira”, por Dirceu Antonio Scali Junior Sobre “A história quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira” (“La historia casi verdadera de Pepita la pistolera”, Beatriz Flores Silva, Uruguai, 1993) ..............................................................................................................83 XI. O espírito da contra perspectiva ou a razão do caminho inverso, por Sérgio César Júnior Sobre “Terra estrangeira” (Walter Salles e Daniela Thomas, Brasil/Portugal, 1995) ...............................................................................................................89 XII. Pablo Trapero e o novo cinema argentino, por Daniela Gillone e Rosângela Fachel Sobre “O outro lado da lei” (“El bonaerense”, Pablo Trapero, Argentina/Chile/França/Holanda, 2002) ..............................................................................................................98 XIII. Uma outra globalização audiovisual, por Vanderlei 7 Henrique Mastropaulo Sobre “Encontro com Milton Santos”, ou “o mundo global visto do lado de cá” (Silvio Tendler, Brasil, 2006) ........................................................................................................... 107 XIV. Dos heróis bandoleiros ao cobrador, por Daniela Gillone Sobre “O cobrador” (“Cobrador: in God we trust”, Paul Leduc, Argentina/Brasil/Espanha/França/México/Reino Unido, 2006) ........................................................................................................... 113 XV. Violência e sociedade em “La rabia”, por Mônica Brincalepe Campo Sobre “A raiva” (“La rabia”, Albertina Carri, Argentina/Holanda, 2008) ................................................................................................................ 122 XVI. Dor elegante: Itamar Assumpção e o pertencimento, por Mona Perlingeiro Sobre “Daquele instante em diante” (Rogério Velloso, Brasil, 2012) ........................................................................................................... 130 XVII. Risco e engajamento no documentário “O veneno está na mesa”, por Carla Daniela Rabelo Rodrigues Sobre “O veneno está na mesa” (Silvio Tendler, Brasil, 2012) ........................................................................................................... 136 XVIII. O mito como sobrevivência, por Luís Fernando Beloto Cabral Sobre “A memória que me contam” (Lúcia Murat, Argentina/Brasil, 2012) ....................................................................................................................................144 XIX. Sensibilidade e forma, por Mona Perlingeiro e Thiago Carvalho Sobre “Caíto” (Guillermo Pfening, Argentina, 2012) ........................................................................................................... 152 XX. Crônica de um testemunho, por Jennifer Cazenave e Natalia Christofoletti Barrenha Sobre “Os dias com ele” (Maria Clara Escobar, Brasil/Portugal, 2013) ........................................................................................................... 158 8 XXI. Em busca do lirismo no concreto armado, por Marília Bilemjian Goulart Sobre “Pelo malo” (Mariana Rondón, Alemanha/Argentina/Peru/Venezuela, 2013) ........................................................................................................... 166 XXII. A representação da tortura e a política da memória justa, por Cristina Alvares Beskow e Lúcia Ramos Monteiro Sobre “Corte seco” (Renato Tapajós, Brasil, 2014) ........................................................................................................... 174 XXIII. O Estado ausente e a destruição da natureza, por Alexsandro de Sousa e Silva Sobre “Matar a um homem” (“Matar a un hombre”, Alejandro Fernández Almendras, Chile/França, 2014) ........................................................................................................... 183 XXIV. Autores ............................................................................................................ 191 9 10 Prefácio Ao propor e formatar o Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em 2006, sentia falta de um espaço que privilegiasse a exibição da produção cinematográica contemporânea da América Latina. Assim como no Brasil tivemos o chamado cinema da Retomada, a partir de meados dos anos 90, imaginava que nos países vizinhos também haveria uma nova geração de cineastas que precisava ser conhecida. Naturalmente, o melhor lugar para esse diálogo audiovisual se efetivar era o Memorial da América Latina. E lá se vão onze anos de Festlatino, hoje uma referência no calendário cultural da cidade e do país. A partir do Memorial, ele se irradiou para outras instituições culturais, aglutinou os cinéilos paulistanos (que não são poucos). Não hesito em airmar que nosso Festival formou uma nova geração de amantes do audiovisual com a nossa cara, o nosso falar, a nossa cultura. Uma demonstração do que estou falando pode ser considerado este livro de ensaios que o Memorial ora lança em edição eletrônica, sob o título “Imagens de um continente”. Em 2013 fomos procurados por jovens pesquisadores que propuseram reletir sobre alguns dos ilmes do Festlatino daquele ano. Eles se autode11 nominavam Gecilava (Grupo de Estudo de Cinema Latino-Americano e Vanguardas Artísticas) e eram ligados especialmente à Universidade Federal de São Paulo, mas não só. Coordenados pela professora Yanet Aguilera, esses estudiosos se apresentavam ávidos por analisar ilmes que falavam sobre a realidade na qual viviam, assim como olhamos com atenção diante do espelho. Reuniões entre o Gecilava, os realizadores do Festlatino e o CBEAL (Centro Brasileiro de Estudos da América Latina), deste Memorial, acertaram que não apenas ilmes contemporâneos seriam contemplados, mas também clássicos da nossa ilmograia. Ainal, para se conhecer o presente é imprescindível a História. A Associação do Audiovisual providenciou os links dos ilmes escolhidos das 8ª, 9ª e 10ª edições do Festlatino. E aí temos, agora, nosso e-book. Tenho certeza que ao percorrer as páginas luminosas e luídas deste livro eletrônico o leitor vai se sentir motivado a ver ou rever os ilmes analisados. Um prazer estético e intelectual que só a arte, em especial as artes narrativas, como o cinema e a literatura, podem nos proporcionar. João Batista de Andrade Diretor presidente da Fundação Memorial da América Latina 12 I. Introdução Yanet Aguilera O cinema da América Latina tem despertado cada vez mais interesse no Brasil e este e-book pretende ser uma pequena contribuição sobre o assunto. Estes ensaios foram publicados numa versão bastante reduzida, quando os membros do Gecilava (Grupo de Estudo de Cinema LatinoAmericano e Vanguardas Artísticas, da Universidade Federal de São Paulo) analisaram coletiva e individualmente vários ilmes apresentados pelo Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, na 8ª, 9ª e 10ª edições. Se naquela ocasião os ensaios tentavam se adequar às linguagens da internet e dos festivais, nesta publicação os autores se debruçaram mais demoradamente sobre os ilmes e transformaram pequenos trechos críticos em relexões mais aprofundadas e cuidadosas. O objetivo do grupo não é apenas divulgação, pois desde os pequenos artigos para o site do Festival buscou-se um equilíbrio entre o formato mais breve e uma análise mais consistente e não apenas ilustrativa que, embora limitada pelo espaço, izesse jus à obra em estudo. O nosso interesse é poder ajudar a criar, para o público paulista em particular, um espaço para este debate, que nos parece fundamental para entender a própria história do cinema brasileiro. Os in13 úmeros ios de diálogos que se entrecruzam constantemente nas ilmograias da América Latina não têm ainda uma fortuna crítica à altura deles. As poucas iniciativas, embora de fôlego, ainda são insuicientes para dar conta deste assunto. Num primeiro momento, decidimos publicar os quatros textos feitos coletivamente no formato original. O intuito seria esclarecer os pressupostos das análises que nortearam o grupo. Mais do que uma metodologia, as leituras dos ilmes levantam questões sobre a imagem, a narrativa, a história, os processos interpretativos, as relações com a literatura, a ilosoia, a história da arte, a política etc. No caso de Del olvido al no me acuerdo (1999), pensou-se o documentário enquanto gênero estabelecido pelos estudos cinematográicos. No caso dos ensaios coletivos, evitamos assumir simplesmente a divisão entre clássico e moderno, ou quaisquer outras classiicações, pois nos pareceu que elas faziam os documentários da América Latina um mero apêndice das cinematograias da Europa e dos Estados Unidos. A opção foi não assumir o ranço neo-colonizado e o dogmatismo embutidos nessas catalogações. As caixinhas classiicatórias facilitam a ordenação daquilo que queremos pensar, mas impedem de ver o processo hierárquico que se estabelece e nos deixam apenas como meras cópias de processos de ilmagens que têm outras questões e outros contextos. É na concretude das práticas cinematográicas – fílmicas, narrativas e iconográicas – e na sua relação com outras formas de saberes e práticas culturais, locais e vizinhas, que devemos pensar para fazer justiça ao enorme acervo de ilmes que já produzimos. Não é que neguemos a validade de vários processos hermenêuticos historicamente estabelecidos, mas recusamos qualquer categorização a priori e dogmaticamente inamovível. A modernidade não é mais horizonte para ninguém, assim como a questão formal, estritamente ligada à categoria do cinema moderno, não é mais o critério de validação de um ilme. Del olvido al no me acuerdo exige que não nos atenhamos à estrutura formal do ilme, aparentemente bastante tradicional: trata-se de fazer uma biograia fílmica do grande escritor Juan Rulfo por meio de entrevistas e depoimentos das pessoas que tiveram algum contato 14 com ele. Entretanto, as testemunhas são pessoas velhas, não se lembram do célebre escritor e acabam falando banalidades sobre o amor e cantando velhos boleros sentimentais. Apesar do diretor se manter estritamente dentro da forma “clássica” das entrevistas, entremeadas com paisagens de Jalisco, a potência das falas do esquecimento e das imagens vão além da estrutura convencional do ilme. As questões que Juan Carlos Pérez Rulfo plasma nesses depoimentos banais e fragmentários e nas belas paisagens pétreas reencontram as questões da literatura do pai, que o tornaram um dos maiores escritores da América Latina. A surpreendente novidade da obra de Rulfo é que ela propõe uma metafísica diferente da ocidental, que está relacionada aos problemas cruciais da vida e da morte. Nos livros do mexicano, a morte já não é o horizonte como para a teologia cristã, marca da metafísica ocidental. A vida não é um mero caminho para o nada. Se estamos todos mortos como Juan Preciado constata em Comala, viver signiica ter a morte como companheira. Então, o ser é ao mesmo tempo existência e vazio. O mundo deixa de ser mera aparência descartável e o além não é mais o lugar almejado ou temido como é para o Ocidente. Na obra de Rulfo cria-se um plano de imanência fundamental. É nele que devemos constituir fagulhas de vida, apesar da morte, ou instante intensos e fugidios que possam sobrepor-se, ainda que momentaneamente, à inexorabilidade do tempo E, se o fundo da história são murmúrios intermináveis, viver é a capacidade de criar faíscas e sons que se sobreponham aos sussurros espectrais. Daí que a história não é formada por acontecimentos neutros, mas por opções políticas de tornar visível e audível os acontecimentos. E o ilme, ao insistir na materialidade desses “corpos prestes a retornar à terra”, torna a imagem da vida ainda mais viva, pois ela está a ponto de extinguir-se. E sabemos que os desdobramentos conceituais, históricos e políticos certamente serão outros nesta radical mudança metafísica. Uma narrativa ainda a construir. Em La Rabia (2003), os diversos componentes do ilme – as imagens, os sons, o enredo, as falas, os elementos ditos “fílmicos” (plano, enquadramento, ponto de vista etc.) – foram analisados. A conclusão foi que a 15 história de violência rural contada pelo ilme é apenas um pretexto (no sentido cabal do termo) para provocar uma relação intensa, nem um pouco distanciada, entre cinema e público. A atmosfera, tensionada principalmente pela duração das sequências (um recurso relativamente conhecido mas ainda não tão comum no fazer cinematográico), vai além da narrativa, pois cria um componente diretamente ligado à maneira como o ilme pretende chegar a seu espectador. O mesmo acontece com as referências iconográicas. A imagem do porco faz alusão ao Figure with meats, de Francis Bacon, duplicando o estranhamento do grotesco tanto no plano cinematográico como no quadro do pintor inglês. De modo que a violência da imagem é escancarada com uma certa sorna, dialogando ambiguamente com o espectador, pois não apenas quer chocá-lo como se burla dele. O Cristo representado no coelho espetado tem também o mesmo efeito, porém com um quê de profanação, pois nessa ligação entre o Cristo e o animal, não estranha à doutrina cristã, o corpo vai ser assado ou queimado como os hereges ardiam nas fogueiras da Inquisição. Distensão histórica que vai além do contexto circunscrito pelo enredo do ilme. O som é igualmente um elemento que ultrapassa a narrativa. Em crescendo musical, a trilha sonora também tem a inalidade de provocar o espectador. As animações nunca podem ser atribuídas à ilustração da fantasia, sonho etc., de um personagem, menos ainda as que aparecem no ilme. Imagens marcantes, elas dialogam estreitamente com o processo criativo da animação e seu vaivém entre linhas e iguras. A opção pelo espargimento de tinta na tela mostra que não se trata da mera passagem do igurativo ao geométrico ou abstrato que está colocada, mas do corpo daquele que, jogando tinta na tela, parece estar fora dela, como o espectador. De modo que todos os recursos audiovisuais estão em função, não da história, mas de um relacionamento estreito com o público. Para além de uma crítica à violência – o tema do ilme –, Albertina Carri dele solicita não apenas compreender o ilme, mas uma relação sinestésica que envolve o corpo do espectador. Em Um tigre de papel (2007), a relação entre documentário e história foi o tema discutido. A ironia com que se trata a questão da representação 16 cinematográica e sua relação com os “fatos” históricos deixam claro qual a posição que Luis Ospina toma neste debate. Como toda paródia, o ilme rebaixa e, ao mesmo tempo, emula os pressupostos do documentário. De modo que a pretensão à verdade deste gênero – pelo talking head e material de arquivo – não passa disso, uma mera pretensão, mas que, enquanto tal, é louvável. Entretanto, a reconstituição biográica que supõe uma cronologia, essa não tem remissão. À ordenação de uma vida, que ilusoriamente a torna inteligível, propõe-se a técnica da colagem com os elementos mais heterogêneos e grotescos. Assim, nem a imagem “artística” é limpa, bonita e transparente, nem a sua associação com o texto é coesa ou apaziguadora. O buraco do passado é sempre mais fundo do que os documentários fazem supor. Em Así es la vida (2000), discutimos as relações entre estética e política que o cinema pode estabelecer do ponto de vista das culturas erudita e popular. A validação cultural é uma questão que diz respeito diretamente ao cinema, pois seu valor só foi amplamente reconhecido nos anos 1960. Não se trata de consolidar este juízo, mas de questioná-lo, assim como Arturo Ripstein fez no ilme ao obrigar-nos a percorrer um caminho de mão dupla. Quer dizer, postulam-se não apenas os ganhos que o fait divers dos cortiços mexicanos tem com a Medeia de Sêneca, mas também de que modo os elementos da cultura popular repercutem na adaptação cinematográica do texto latino. Há uma tensão entre imagens e textos. O que se sugere é que o texto de Sêneca em certo sentido não passa de um fait divers, não muito diferente ao da história mexicana. Questiona-se explicitamente o julgamento de valor que nos leva a cultuar um texto e a menosprezar outro. A substituição do coro, que representa a comunidade na tragédia “clássica”, pelo quarteto de Mariachis, que saem da TV para a tela do cinema, é pura ironia. Ainal, o diálogo entre cinema e televisão, pelo menos no caso do México, é fundamental e ainda não foi feito. O melodrama como ponte entre as duas mídias não deixa dúvida sobre a visada crítica de Ripstein. Por outro lado, ele tampouco poupa a igura do autor cinematográico, dependente da relação entre cinema e literatura (a igura 17 do autor é fundamentalmente a do escritor). É outro o caso das estatuetas e das pinturas populares do “consultório” da protagonista, pois este cenário enigmático potencializa ainda mais a questão de gênero colocada pelo ilme. Assim como a iconograia popular é quase sempre pouco valorizada, o desejo feminino também foi bastante negado, ainda mais quando se trata de uma mexicana pobre. O gênero e a arte popular, até pouco tempo pontos cegos dos estudos cinematográicos, são fundamentais para entender o nosso cinema. É um privilegio e um belo encontro este diálogo com os autores individuais do livro. Nesta introdução procurei mimetizar as discussões que tivemos quando começamos a produzir estes textos e ensaiamos uma experiência coletiva. Não se trata então de um resumo ou explicação dos textos, mas de uma conversa crítica, lamentavelmente de uma mão só, mas que tem o intuito de se prolongar nas inúmeras conversas que ainda espero tenhamos futuramente. Em Um breve passeio pela Terra do Sol, Rodrigo Baroni relete sobre o desejo de justiça dos protagonistas, Manuel e Rosa, deste que é um dos ilmes ícones do cinema brasileiro. Questão espinhosa, pois a justiça é sempre precedida por um acontecimento brutal e só pode ser produto de um pacto. Então, com quem pactuar? Se Deus e o Diabo são a mesma coisa (ambos exigem paga), parece que este último oferece alguma vantagem: os benefícios, embora mínimos e pouco duráveis, são deste mundo e não do outro. A sabedoria não é optar pelo cangaço ou pelo diabo, deixando Deus ou o messianismo de lado, mas perceber que a escolha da imanência é a única possível se quisermos fazer prevalecer o nosso desejo de justiça. Embora breve, a vida não é de Deus nem do Diabo, mas do próprio homem. O mundo em transe cubano segue ao brasileiro. Cristina Branco e Miguel Dores analisam Memória do subdesenvolvimento, de Tomás Gutiérrez Alea, a partir do livro escrito por ele, A dialética do espectador. Se o público se identiica com Sérgio, o intelectual protagonista, as diversas lentes que Alea distribui sabiamente durante todo o ilme criam um vaivém de 18 aproximação e distanciamento entre espectador e ilme, como airmam os autores. Mas, o que interessa não é a distância brechtiana, produzida pela mistura de icção e fontes documentais, já que ela não é inalidade. O distanciamento apenas serve de passagem para evitarmos a identiicação sentimental com o protagonista e seu complexo de Malinche, e cairmos no transe histórico e na dança revolucionária. Em Para não dizer que não falei do im da democracia, Lúcia Ramos Monteiro e Sérgio César Júnior fazem duas relexões que, embora paralelas a princípio, acabam se entrecruzando. À relação entre cinema e disciplina histórica junta-se uma visão sobre o processo político brasileiro, representado pelo vaivém entre democracia e ditadura. Em Os anos JK, os autores reletem sobre as ligações entre as imagens do poder e o poder das imagens. Neste balanço, explicita-se ao mesmo tempo a relação entre dois tópicos fundamentais para a compreensão do Brasil, que não dizem respeito apenas ao contexto histórico do ilme. Nas imagens de JK misturam-se o ideal desenvolvimentista e a igura do homem cordial civilizado. O primeiro assombra os países considerados subdesenvolvidos, carimbando suas populações como pessoas de segunda classe. E o último é uma velha e escabrosa igura que, apesar de criticada (principalmente por Sergio Buarque de Hollanda e Antônio Candido), teima em reaparecer de tempos em tempos. Visão classista, na qual o povo é inferiorizado, enquanto o presidente burguês é o tipo do branco ino e urbano. A ironia de Tendler é fraca não porque não tenha um alcance maior e permaneça nas construções do poder, como sugere Bernardet, mas porque toda ironia está inserida num contexto de poder. Segundo Isabelle Stengers, na grande partilha entre o sujeito e o objeto, a ironia cria um lugar transcendente ao espaço estudado. A posição de transcendência do sujeito irônico compromete o equilíbrio simétrico, fazendo pender a balança para os detentores do poder do conhecimento, constituindo-se como o ponto cego da crítica moderna. Em (Re)encenações do exílio, Lívia Fusco se debruça sobre o tema ao analisar Tangos, o exílio de Gardel, de Fernando Solanas. Feito na época 19 em que os argentinos estavam voltando para casa, depois de um longa e sangrenta ditadura, o ilme coloca em pauta o sentimento de que o desterro, uma vez vivido, jamais deixa de nos assombrar. Não há retorno ou volta para casa. Essa imagem do exílio se torna mais radical quando se pensa nas experiências de deportados ilustres: José de San Martin e o próprio Carlos Gardel. Fusco airma que as experiências dos desterrados já são parte da história, correndo o risco de se transformar num fato quase esquecido. O ilme é uma pequena tentativa para que isso não aconteça. Em A transgressão no ilme A história quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira, Dirceu Antonio Scali Junior mostra como Beatriz Flores Silva renova o cinema uruguaio e, consequentemente, o latino-americano. A um tratamento diferenciado de construir a igura feminina se acrescenta necessariamente uma transgressão da forma hipertroiada em gêneros cinematográicos. A história quase verdadeira de Pepita, a pistoleira não cabe nas caixinhas convencionais que os estudos cinematográicos fabricaram para pensar os ilmes. Ficiconalização de uma história real? Se o acontecimento é justamente fabular a própria vida, a ideia de uma icção da icção é insuiciente. Documentário iccionalizado ou dulcodrama? É uma completa inadequação. Insistir nos gêneros cinematográicos é obliterar o ato político fundamental do ilme: nas narrativas de mulheres sobre mulheres, não se expõem apenas a brutalidade e o ridículo das narrativas oiciais, mas se abre a possibilidade de outro pensamento e outro fazer do próprio cinema. Na iccionalização que Susana faz da própria vida, a cineasta destaca a ininita capacidade de resistência que as pessoas têm ao recriar-se por meio de personagens surpreendentes e empolgantes, como é o caso de Pepita. A viagem de volta que se delineia em Terra estrangeira, de Walter Salles e Daniela Thomas, é o assunto de Sérgio César Júnior. Crítica funda à atmosfera de grandiosidade épica com que sempre se narraram estas histórias de saques e infâmias. As caravelas europeias são apenas navios fantasmas, governadas por Nosferatus sedentos de sangue e cobiça. A ruína do barco encalhado, símbolo do passado sangrento, remete também à frustração da viagem de volta, no qual o euro-brasileiro se embrenhou 20 em busca de outra vida que lhe permitisse sair do papel de vítima. Lesa ilusão? Sim e não, pois ainal sempre há um espaço e um gesto para a resistência. À viagem sem saída, representada pelo fado ou o destino implacável, o vapor barato macaliano se torna um respiro, ainda que curto e mínimo. Justamente por se colocar no horizonte do rebaixamento, o Vapor barato, esta música tropicalista e o próprio ilme são a possiblidade de uma contra-narrativa para essa geração descrente. Resistência ao poder nomeador dos acontecimentos impingidos pelos vencedores. À vazia grandiloquência das chamadas “conquistas marítimas” ou “viagens do descobrimento”, contrapõe-se o barato, como possibilidade de outra viagem. A trilha musical é também destaque em El bonaerense, de Pablo Trapero, analisado por Daniela Gillone e Rosângela Fachel. Embate entre a música folclórica gauchesca e a cumbia villera, que representam respectivamente o ambiente rural e urbano. A ligação com o Nuevo Cine Argentino dos dois Fernandos, Solanas e Birri, pode ser colocada dentro deste contraste dos ritmos musicais. A referência ao universo urbano é uma constante nos três diretores. Entretanto, Trapero se afasta das denúncias das mazelas sociais, marca distintiva dos outros cineastas, para observar e até se envolver com os espaços marginais retratados, como é mencionado neste ensaio. O que não se diz é que o gaucho e sua música, para a maioria das narrativas – históricas, literárias e musicais –, é a igura símbolo da identidade nacional argentina. É deste contexto nacionalista que Trapero se afasta ao optar pela onipresença da cumbia villera no ilme. Nascida nas villas misérias (assentamentos precários, semelhantes às nossas favelas) que cercam as grandes cidades argentinas, principalmente Buenos Aires, este ritmo musical é produto de uma mistura de imigrantes de países latino-americanos que chegaram à Argentina e foram marginalizados, tornando-se cidadãos de segunda classe, assim como grande parte dos argentinos do interior que se deslocam para os grandes centros urbanos. O ilme se debruça sobre uma Argentina misturada, na qual o euro-argentino já não tem a prevalência. Neste mundo de argentino-paraguaio, argentino-boliviano, argentino-peruano, argentino-colombiano, argentino-bonaerense etc., o 21 que se preigura é uma Argentina que ignora soberanamente a modernidade, que geralmente foi posta como um horizonte a ser atingido. A Trapero não lhe interessa desfazer a ilusão neocolonialista de que este país é o mais europeu da América Latina, denunciando as mazelas que acontecem em suas bordas. A relação campo cidade não se subordina à leitura, infelizmente paradigmática para o cinema latino-americano, que vê nestas imagens uma relação entre as periferias e um centro: Buenos Aires como metáfora da Europa. Este drama com toda sua violência reivindica outro território a ser construído por um olhar que ignora o Atlântico e se volta para paisagens e associações quase nunca dantes navegadas: o campo não como o atraso ou o espaço ideal contraposto à cidade, mas o interior argentino diretamente ligado aos países vizinhos, latino-americanos. Um belo reencontro com a tradição do Nuevo Cine Latinoamericano, pois traz uma nova carga estética e política a ser explorada. Encontro com Milton Santos, ou o mundo global visto do lado de cá é um esforço de traduzir numa narrativa audiovisual as reinadas teorias de Milton Santos, segundo Vanderlei Henrique Mastropaulo. Às imagens e aos imaginários que produzem a fabulação ideológica da globalização, Santos acrescenta as imagens de uma exclusão sem precedente, resultado das imposições econômicas neoliberais globalizadas. Segundo Mastropaulo, Silvio Tendler divide pedagogicamente o ilme em dois momentos. O primeiro denuncia que estas ideias que querem implantar hegemonicamente são apenas construções históricas e culturais. O segundo mostra as possibilidades e formas de resistência, que também têm que ser globais para poderem se opor ao poder hegemônico da “má globalização”. A vitória pela não privatização da água, em Cochabamba-Bolívia, é um resultado concreto dessa luta. Entretanto, paira uma dúvida a respeito da reairmação de um discurso globalizado sob a égide da informação: não reforçaria ainda mais o “autoritarismo da informação” dos grandes conglomerados midiáticos? Informar não é necessariamente conhecer e seria ingênuo pensar que a grande mídia não denuncia e não informa. O problema é justamente o que se denuncia e a quantidade de informações com que se me22 tralha o público diariamente, de modo que ele ica meio anestesiado diante de tanta notícia. A simples denúncia não é suiciente para enfrentar este dilúvio informativo. Além disso, a “boa globalização” não tem recursos suicientes para ser repetitiva o bastante aim de fazer valer a resistência. Os exemplos esporádicos como aquele da defesa da água apenas nos consolam das inúmeras derrotas diárias, às quais as pessoas são submetidas pela “má globalização”. Em Dos heróis bandoleiros ao Cobrador, Daniela Gillone se detém sobre a igura mítica do bandido-herói que povoa o imaginário popular desde a Idade Média e que fez fortuna no imaginário artístico da América Latina. Porém, distante da imagem do bandoleiro romântico do cinema épico, o protagonista de O Cobrador faz parte de uma galeria recente de personagens que se caracterizam por um “individualismo pragmático” e por encarnar a igura do ressentimento, airma Gillone, citando Ismail Xavier. A luta individual do protagonista é mera vingança e se objetiva em pura violência, não almejando nenhum im coletivo ou fundo utópico. Entretanto, talvez a sua potência narrativa esteja em se desfazer de qualquer ranço consolador das narrativas épicas com que normalmente se construiu este personagem. Num mundo enlouquecido, de extrema violência, todos são bandidos e estão fraturados, portanto, são ressentidos. O Cobrador ainda distingue, sem romantizar, o bandido pobre dos ladrões e sádicos assassinos ricos. Porém, este contraponto não é essencial no ilme. O que se busca é uma estratégia imagética e narrativa que exponha os esquemas de visibilização que, ao mesmo tempo em que torna esta fratura um espetáculo, a parcializa e a higieniza. A igura do bandido cruel e enlouquecido não é uma criação de Leduc, ela já aparece abundantemente na televisão e numa série de ilmes que se comprazem em mostrar detalhadamente a violência destas pessoas marginalizadas. Assim, O Cobrador investe contra a invisibilização da fratura do poder (os assassinatos cruéis e as roubalheiras do empresário e do policial corrupto não são tão conhecidos...) e também na exacerbação irônica da espetacularização corriqueira dos atos violentos cometidos pelo bandido pobre. No capitalismo, a busca ensandecida pelo 23 lucro a todo custo não permite que se fale em justiça, mas apenas em cobranças. Os juros que o protagonista impõe são tão exorbitantes como os do mercado inanceiro. A violência que incomoda e choca, e que, portanto, provoca o debate no público espectador, é o tópico que caracteriza, para Mônica Brincalepe, o ilme de Albertina Carri, La rabia. Em Violência e sociedade em La Rabia, a estudiosa airma que o aspecto lúdico das 5 animações do ilme é soterrado por uma associação dos desenhos aos ilmes de terror. Perigo e medo, “sentimentos mais complexos”, estariam por trás deles. De modo que o “tom sisudo do retrato da opressão mais primária de nossas existências” prevalece no ilme. Entretanto, não há como negar que o medo e o perigo são estratégias lúdicas muito bem desenvolvidas e utilizadas pelos ilmes de terror. Daí, haver uma certa indiscernibilidade entre violência e pulsão lúdica. Na análise coletiva do grupo Gecilava deste mesmo ilme, sustenta-se que estas animações inusitadas não podem ser apenas da imaginação da criança, pois são soisticadas em demasia. De ilustrações das histórias vivenciadas pela menina as animações passam a simbolizar a própria violência na tinta negra que é jogada na tela e em alguns traços vermelhos que inalizam a animação. Porém, não são apenas os aspectos estético e simbólico que contam, pois a forma de animar é fundamental: da iguração se passa ao respingo violento de tinta. Ao aspergi-la energicamente na tela, cria-se um ritmo frenético que, intensiicado pelo rock, potencializa ainda mais o gesto do expressionismo abstrato que é emulado na animação. Mais do que uma história que debate e critica a violência e o machismo da vida no campo argentino, La Rabia quer que o espectador, por meio da combinação inusitada de imagens e sons dos mais heterogêneos, vivencie intensamente a brutalidade mostrada e tematizada. Cinema e música têm dado frutos muito bons no cenário brasileiro. Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, e O homem que engarrafava nuvens, do Lírio Ferreira, são dois bons exemplos desta associação. O documentário sobre Itamar Assumpção, de Rogério Velloso, Daquele instante em diante, faz parte desta safra. Em Dor elegante: Itamar Assumpção e o per24 tencimento, Mona Perlingeiro destaca a biograia que se faz do artista. A carreira e percurso do músico-ator são mostrados por meio de material de arquivo e depoimentos de amigos e companheiros de estrada. O tom autobiográico predomina ao mostrar um Itamar intimista, marido, pai e amante de orquídeas, ao lado de seu oposto, o performático irreverente dos palcos. A delicadeza e despretensão do ilme retiram o tom convencional ou a mesmice do mainstream documental, airma Perlingeiro, mas não evita que sintamos saudade do Itamar intrépido, contestador, integrante da Lira Paulistana. A encenação que o ilme faz do músico parece “domesticar” alguém que bradava, com muita dor e ironia, ser “isca de polícia” apenas pela sua cor. Em Risco e engajamento no documentário O veneno está na mesa, Carla Daniela Rabelo Rodrigues põe em pauta a crítica que sempre viu como ideológicos e conservadores os documentários de feições “clássicas”. A denúncia que Silvio Tendler faz das atividades da Monsanto, Syngenta, Bayer, Dow, DuPont não se limita ao poder incomensurável que exercem sobre o governos, a mídia e a sociedade, pois o documentário desenha um histórico aterrorizador destes conglomerados empresariais. A Bayer fabricou o gás que matou milhares de alemães, ciganos, homossexuais, doentes e judeus, na Segunda Guerra Mundial; e a Montsanto produziu o gás tóxico na guerra do Vietnam, que provocou milhares de mortes e muitas malformações nas crianças vietnamitas. Além disso, as inúmeras entrevistas com os pequenos agricultores – quase todos vítimas dos venenos fabricados por estas empresas – torna repetitivo e, portanto, contundente os efeitos nefastos dos agrotóxicos para a cultura, as pessoas e a natureza. Saberes tradicionais soterrados, pessoas mortas e doentes, natureza contaminada e desertiicada. O veneno está na mesa busca “objetividade e clareza em narrar os fatos de modo crível, assertivo, persuasivo, argumentativo, dando continuidade à narrativa”. Apesar do formato “clássico”, cumpre de maneira exemplar e com muita eicácia, o papel ativista que se propõe, sustenta Rabelo. Abordagem rara que defende o cinema militante tout court, afastando-se da ditadura formal em que os estudos so25 bre o documentário se calciicaram. Em O mito como sobrevivência, Luís Fernando Beloto Cabral se debruça sobre a história e as imagens que estão sendo construídas sobre o pesado período ditatorial brasileiro, em A memória que me contam, de Lúcia Murat. A luta da resistência contra a ditadura e os terríveis atos praticados por ela se coniguram numa memória complexa que este ilme recria de várias maneiras. O fundamental é escancarar os efeitos tenebrosos dos anos de repressão e mostrar, como um mínimo de reparação, as histórias das inúmeras vítimas da violência dos governos militares. É urgente e necessário a abertura dos arquivos deste período escabroso. Uma segunda questão é a memória dos atos extremos da resistência, que não deixam de estar carregados de ambiguidade política e moral, já que se joga com a vida e a morte. Porém, não há como esquecer que se trata de uma luta desigual e que a justiça só será feita se os torturadores e assassinos, resguardados pelo Estado, forem julgados. E, inalmente, como herança deste período violentíssimo, a nova geração repensa os acontecimentos e ensaia fazer outra forma de política, na qual os afetos e os corpos sejam vivenciados de maneira menos traumática. Em Sensibilidade e forma, Mona Perlingeiro e Thiago Carvalho analisam o caso singular de Caíto, de Guillermo Pfening. Um ilme sobre a igura do irmão doente, sem cair na exploração indecente das representações piegas costumeiras a este tipo de tema, não é tarefa muito fácil. Expor os bastidores para mostrar Caíto participando ativamente, juntamente com Guillermo, na montagem e na ilmagem, não é suiciente. A auto-exposição do cineasta pode ser apenas uma espécie de conissão, cuja inalidade seria a absolvição fácil. O que torna instigante o ilme é o esforço de criar uma icção, mesmo que esta seja também uma história sentimental, pois ela é motivo para produzir planos admiráveis. É realmente comovente a sequência em que o corpo de Caíto, enrijecido pela doença, usufrui como os demais personagens das ondas do tanque de água. A luz e a cor tornam ainda mais lúdica a cena deste documentário que se quer e se mostra como um faz de conta que, se não resgata os personagens e a história, pelo menos dá a ver o 26 intenso envolvimento e o prazer de sua realização. Em Crônica de um testemunho, Jennifer Cazenave e Natalia Christofoletti Barrenha esmiúçam as relações políticas do privado e do coletivo, que Os dias com ele elabora com o objetivo de criar uma memória pessoal e coletiva de um período traumático como foi o da ditadura brasileira. Se Maria Clara Escobar não consegue delimitar seu próprio lugar, que oscila entre ilha e cineasta, como se airma no ensaio, é porque aqueles que sofreram, direta ou indiretamente, a extrema violência dos governos militares em quase toda América Latina, perderam bruscamente o lugar de pertencimento, icaram à deriva. É a partir deste doloroso não-lugar que Maria Clara consegue construir uma história pessoal e política com os pedaços da infância de outras crianças. Histórias traumáticas só podem ser contadas escancarando as feridas que não saram. A coragem de exibir esse tour de force entre ela e o pai mostra como a potência da política aparece muito mais nessas histórias pessoais, no cotidiano, na memória afetiva, invertendo uma fórmula de Cazenave e Barrenha. Marília Bilemjian Goulart analisa Pelo malo, de Mariana Rondón, pelo viés do gênero e da relação cidade/cinema. O conlito entre mãe e ilho se plasma também na oposição entre racionalidade e lirismo ou entre uma “face escura” da modernidade e uma outra libertária. Entretanto, o ilme pode ser visto como uma história que confronta uma mulher ao mundo masculino e patriarcal, representado pelo mercado de trabalho, pela cidade e pelos ilhos. Podemos perceber na protagonista o desespero do desemprego, a homofobia, porém não uma incapacidade de afeto, visto que, embora não o seja com Junior, ela é bastante carinhosa com o bebê. Além disso, a recusa de uma afeição explícita não implica num desapego, pois apesar das diiculdades, ela não entrega o ilho à avô, nem pelo dinheiro que esta lhe oferece. As desavenças com Junior podem ter várias razões, uma delas pode ser justamente o fato de a protagonista reconhecer no menino traços “femininos” (no sentido dos afetos), que também podem ter sido os seus, antes de ser triturada pelo mundo urbano. O jogo interpretativo está aberto. Por outro lado, o edifício 23 de Enero como fracasso do 27 projeto de erradicação do cinturão da pobreza de Caracas não representa a “face escura” da modernidade. O “iluminismo” do mundo moderno, com seus projetos urbanos de cidades para os países da América Latina, nunca foi uma promessa de libertação. Desde a invasão europeia, neste canto do Mundo, só houve genocídio, exploração e humilhação. Em A representação da tortura e a política da memória justa, Cristina Alvares Beskow e Lúcia Ramos Monteiro se perguntam sobre a possibilidade de representação das catástrofes. Se não há equivalência entre elas, como pensar as nossas, que têm dimensões estratosféricas – estima-se que mais de 40 milhões de índios foram mortos desde 1492, praticamente mais de 8 milhões por século. E o genocídio continua: na ditadura brasileira o número de mortes e indígenas presos supera ao dos desaparecidos e presos políticos urbanos. Mas não se trata apenas de quantiicar as vítimas. Renato Tapajós, em Corte Seco, não quer nenhuma possibilidade de mediação diante da impossibilidade de igurar o horror. A opção pela frontalidade dos planos longos e pelo corte seco intensiica ainda mais as sequências de tortura. Não bastasse isso, “cenas escuras, câmera nervosa, planos fechados”, descritos por Beskow e Monteiro, tornam ainda mais lancinantes os “berros de dor e sofrimento que ecoam ao longo do ilme”. Gritos dos que não falam “por medo ou porque estão mortos”. Foco narrativo dos que sofreram a tortura, vivência extravasada e intensiicada pelos inúmeros recursos fílmicos – incluindo ironicamente a icção –, que nos lembram que essas cenas chocantes são ainda práticas do presente. O pau de arara sobrevive incólume nos quarteis das polícias. Neste choque de dois presentes – o do ilme e a da tortura –, pergunto se é possível falar de uma política da memória justa. Toda memória é fundamentalmente um lugar de disputa, tanto do que se tornará memória como de seu sentido, além de que todo trauma é pura memória latente, não se explica nem se cura (citando Graciela Foglia e Fabio Carmaneiro respectivamente). Ruas desertas, justiça pelas próprias mãos e desmatamento compulsório são os efeitos mais visíveis do abandono do poder público nos governos liberais chilenos que reduziram o Estado ao mínimo possível. Estas 28 são as questões levantadas por Alexsandro de Sousa e Silva, em O Estado ausente e a destruição da natureza, ao analisar Matar a un hombre, de Alejandro Fernández Almendras. Que o Estado e a família não se interessem pela existência do protagonista e pelos acontecimentos devastadores no Chile da ditadura e da pós-ditadura, nos parece familiar. Todavia, que nem mesmo o espectador se interesse por esta história é uma conclusão que de tão lúcida ica amarga. Talvez seja isso que nos reste, a tristeza do desinteresse. Mas desde que visibilizemos esse estado de coisas, sempre encontraremos um antídoto ao luto interminável de todas as tragédias que nos assolam. 29 II. Del olvido al no me Acuerdo (México, 1999, Juan Carlos Rulfo) Ensaio coletivo – por Gecilava Del Olvido al no me Acuerdo, ilme de Juan Carlos Rulfo, narra a jornada de um ilho em busca do passado de seu pai, o renomado escritor mexicano Juan Rulfo. O cineasta vai a Barranco de Apulco, vilarejo de Jalisco, onde o pai passava as férias quando jovem e, nessa região, entrevista um grupo de antigos funcionários da fazenda da família e velhos moradores do lugar, com a esperança de que tenham conhecido e se lembrem do escritor. Porém, ele é quase um desconhecido para seus conterrâneos. Sem ter nada a dizer sobre o romancista e lembrando pouca coisa da época em que ele visitava Jalisco, os entrevistados desandam a falar sobre o amor, a vida e a morte. Dona Rebeca e dona Fausta, ambas com mais de oitenta anos, conseguem arrancar do esquecimento, pessoal e coletivo, algumas estrofes de antigos boleros. As vozes alquebradas das velhas senhoras retiram todo traço sentimentalista das canções de amor que povoam o imaginário da sociedade mexicana. A exaltação amorosa se torna ainda mais intensa no percurso saudoso que dona Clara, mãe do cineasta, faz na capital 30 mexicana para rememorar a grande paixão que viveu com Juan Rulfo. As lembranças dos amores vividos e sonhados dão uma vitalidade inusitada àqueles corpos curvados pelo tempo. Alguns primeiros planos destacam sorrisos e olhares, reforçando ainda mais o halo de energia que as imagens desses anciões conseguem transmitir. Detalhes das peles enrugadas e dos pés curtidos pelo pó lembram que esses corpos estão prestes a retornar à terra. Assim, o ilme capta de maneira exemplar, na visualização da materialidade corporal, momentos em que a vida, graças à rememoração, parece sobrepor-se ao peso inexorável do tempo. Os depoimentos de pessoas próximas e mais ou menos com a mesma idade do escritor mostram que Juan Carlos Rulfo se lançou, no início do documentário, na busca de “autenticidade” para a construção da igura paterna. E, diante das falhas de memória dos entrevistados, concentra-se em visualizar, nessa velha geração, instantes pungentes, em que a vida é ainda mais vida, já que está em vias de se extinguir. A célebre frase que inicia o romance mais conhecido de Juan Rulfo – “Vine a Comala porque acá me dijeron que vivía mi padre, un tal Pedro Páramo”– mostra que não é mera coincidência que o cineasta esteja em busca do pai. Outra característica que liga o ilme ao romance: ambos alinhavam retalhos de memórias truncadas, materializados em fragmentos de histórias, de canções e de lamentos. Segundo Octavio Paz, em Pedro Páramo, essas vozes são sussurros que “surgen de la nada aturdiendo nuestros oídos y señalándonos la proximidad de nuestra propia extinción”. Juan Preciado fala das profundezas de Comala, está morto, os rumores e murmúrios o mataram. Se a morte é o ponto de partida e de chegada desse relato fantasmagórico, na visão do célebre crítico mexicano, o esforço de Juan Preciado de reconstruir Comala, que é também o dos leitores, infunde-lhe nova vida, dando a ilusão de que a morte pode ser vencida ou pelo menos adiada. Não é justamente isto que o ilme obtém por meio da sutura das lembranças fragmentadas com a visualização dos corpos consumidos pelo tempo? As memórias imprecisas, plasmadas no ilme, não são também 31 uma tentativa de falar da vida a partir, mas também, apesar da morte? Assim, o ilho não acaba reencontrando o pai por um viés, talvez muito mais intenso, do que se tivesse obtido depoimentos diretos sobre ele? Peris humanos, esculpidos nas rochas pelos agentes exógenos, são enquadrados em contraluz pelo ilme, sugerindo que nos desertos de Jaliscos, a vida esvaída se plasmou em pedra. Reproduz-se sugestivamente, em imagens, o nome Pedro Páramo, aquele que “se fue desmoronando como si fuera piedra”. Os planos gerais das tomadas externas que ambientam o ilme também remetem, ainda que de maneira indireta, a situações e a questões colocadas por Juan Rulfo em seus romances. Monumentalizadas e desmaterializadas pela contraluz e pela câmera ao rez do chão, personagens desconhecidas atravessam como fantasmas as paisagens ermas. O som materializa a presença do vento – “el viento de la muerte”, como diria Octavio Paz. O pôr do sol, os escuros enquadramentos noturnos, a lenha sendo consumida pelo fogo são também símbolos do im, da passagem do tempo. Dois enquadramentos inesperados conseguem chegar ao ápice da reprodução de uma atmosfera onírica e estranha. Num deles, planos gerais de um dos paramos de Jalisco compõem uma pintura surrealista, à René Magritte. A cadeira solitária é um elemento bizarro dentro da aprazível composição cromática do enquadramento. A beleza da composição do azul suave do céu e do rosa terroso do chão é perturbada pela cadeira, elemento estranho que potencializa um aspecto que teria icado soterrado pela plástica da paisagem: o vazio da imagem. No outro, vemos dona Fausta cantando, em primeiro plano, enquanto uma mosca insiste em sobrevoar o rosto da velha senhora. Estes planos em movimento lembram vanitas, pinturas sobre a insigniicância da vida, ou melhor, aparentam-se aos ars moriendi, quadros em que se transforma a inevitabilidade da morte em arte de morrer. Resultado belo e comovente do acaso, que Juan Carlos Rulfo e a equipe de ilmagem souberam aproveitar. Não há melhor encontro entre pai e ilho do que este. 32 III. La Rabia (Argentina, 2008, Albertina Carri) Ensaio coletivo – por Gecilava Em La Rabia, ilme da diretora argentina Albertina Carri, duas crianças deicientes vivenciam um ciclo de relações violentas, que as contamina de maneira inelutável. Nati vê o pai bater na mãe e tem que suportar que o amante desta se exiba obscenamente para ela. Ladeado vive com um pai patrão, que o maltrata. Trata-se de uma narrativa marcada pelo domínio do forte contra o fraco e ilustrada pela matança explicita e detalhada de animais. O embrutecimento pela sobrevivência e os conlitos das duas famílias vizinhas nos pampas argentinos poderiam ser apenas uma corriqueira crônica de rudes costumes rurais não fosse a atmosfera carregada de tensões que se cria no ilme. A mistura de cenas banais e acontecimentos brutais não deixa indiferente o espectador. Ao vermos o menino sair do bosque com uma sacola de pano e uma espingarda, seguido de dois cães, parece que estamos diante da vida simples do campo. Entretanto, quando em seguida o jovem bate fortemente a sacola numa árvore, somos tomados de apreensão imaginando que se trata da matança cruel de algum animal apanhado há pouco. Essa impressão é ainda 33 mais desconfortável porque a sacola é jogada num pântano e somos levados a ver e ouvir o objeto desaparecer lentamente na água. Não há lugar para o cinéilo comum usufruir da referência ao gênero noir, pois o momento citado é justamente aquele em que se faz desaparecer o corpo assassinado, além de a distensão temporal prolongar o acontecimento e a trilha sonora intensiicá-lo ainda mais. O espectador sente-se atingido pelo clima grotesco, principalmente se for urbano e não estiver habituado à violência do mundo rural. Os guinchos agudos do porco tornam torturante a sua morte. Embora a pequena incisão na garganta mate rapidamente o animal, a visão do sangue a jorrar se prolonga para nós, de modo que somos levados a acompanhar, nessa prática culinária (com o sangue se faz a morcela, uma apreciada iguaria), o acréscimo de violência que ela acarreta. Pode-se dizer que se trata de um ilme de difícil digestão, com o perdão do trocadilho fácil. Além disso, o coelho no espeto lembra uma igura cruciicada e o porco pendurado faz uma referência à Figure with meat, do pintor inglês Francis Bacon. A violência dos acontecimentos é potencializada pela carga simbólica das iconograias cristã e do estranhamento artístico. Assim, pensar que se quer evidenciar o que há de animal no homem é pouco, mesmo porque não se trata de criticar a vida no campo por meio da ótica de um urbanismo superior, que muitas vezes é ainda mais brutal. No ilme, não há silêncios, mas gradações de sons. O áudio é construído como se fosse uma partitura musical, cujo movimento dominante é o crescendo: ao allegro das vozes dos animais do campo se sobrepõem ruídos estridentes produzidos por máquinas, pessoas etc. O espectador é envolvido auditivamente sem pausa alguma. A trilha sonora pauta a história para além de sua inteligibilidade, propondo tonalidades que surpreendem e às vezes agridem o espectador. Enquadramentos inesperados também contribuem para criar a atmosfera intensa, como quando a câmera foca do alto os rostos dos amantes no momento mais intenso do ato sexual, tornando palpável, pela maneira inabitual de mostrar, como o gozo pode ser inseparável da dor e como ele se manifesta 34 por meio de rictos grotescos que lembram expressões animalescas. Tons frios e escuros produzem o aspecto sombrio das inúmeras paisagens, de modo que pela cor e a luz da fotograia, La Rabia é um ilme belo e inquietante. Os desenhos feitos por Nati, embora sejam traços de uma criança, são pesados: olhos vazados ou o amante da mãe nu e excitado reletem a agressividade das cenas obscenas que acaba presenciando. Como não fala, desenhar é sua forma de expressão, que lhe permite digerir a brutalidade que a rodeia. Por outro lado, se os desenhos ajudam a menina esconjurar a violência, eles duplicam sua representação para o espectador, tornando-a ainda mais presente. As animações podem ser produtos da imaginação de Nati, mas são soisticadas demais – aquarelas coloridas e tinta negra que formam iguras e pinceladas mais ou menos abstratas. Além disso, elas não mantêm um padrão. Se no começo são ilustrações de lendas e histórias que a menina escuta ou vê, depois se tornam traços indiscerníveis, em que as cores desaparecem para dar lugar a respingos de tinta negra e alguns traços vermelhos. O aspecto simbólico se sobrepõe ao ilustrativo, deixa-se de igurar uma narrativa para marcar simbolicamente acontecimentos tais como a perda de inocência de Nati. Entretanto, o que impressiona na animação não é apenas a transformação da ilustração igurativa em simbolismo abstrato, mas os modos de animar. No começo, os personagens surgem de uma linha horizontal e são animados para realizar uma ação. Mais tarde, o movimento se concentra em espargir rapidamente a tinta na tela, impondo um ritmo frenético, intensiicado pelo rock que invade a tela. Como se pode ver, a força de La Rabia é resultado da combinação surpreendente de diversos tipos de imagens e de sons. Albertina Carri não se contenta em realizar um trabalho que critica a violência, o machismo e a vida limitada dos trabalhadores assalariados nos pampas argentinos. O ilme busca provocar certa ansiedade no espectador, atingindo-o visceralmente, de modo que sinta a brutalidade exibida. Não há como negar que o diálogo que Carri propõe a seu público é bastante instigante. 35 IV. Um tigre de papel (Colômbia, 2007, Luis Ospina) Ensaio coletivo – por Gecilava Um tigre de papel é a tentativa de reconstruir a história de um artista plástico colombiano, Pedro Manrique Figueroa, suposto precursor da colagem em seu país. Seria um documentário convencional sobre a vida e a obra de um grande artista militante, não fosse ele apenas um personagem de Luis Ospina. A biograia do artista é imaginada como uma trajetória mirabolante, quase uma viagem picaresca de um anti-herói desiludido, outrora um simpatizante da vibrante esquerda colombiana. As desventuras do protagonista permitem traçar uma linha do tempo que vai até os dias atuais e que começa na Colômbia dos anos 1930, década que antecede ao primeiro período de violência que o país vive até hoje. Essa época foi marcada pelo assassinato do líder liberal Jorge Gaitán, que desencadeou uma série de protestos e provocou uma situação caótica, conhecida como o bogotazo. O percurso de Figueroa também permite colocar em pauta os mo36 vimentos e tensões que marcaram largamente a história do século XX, principalmente a divisão do mundo entre socialistas e capitalistas. A guerra fria teve um grande impacto sobre os movimentos latino-americanos de esquerda, produzindo um clima, por assim dizer, esquizofrênico, que se instaurou no relacionamento entre seus membros. Perseguidos e jogados na clandestinidade pelas ditaduras que proliferaram na América Latina, todo militante era potencialmente um traidor. Na Colômbia da década de 1950, sob a ditadura de Gustavo Rojas Tenilla, a situação política era muito difícil e, em Bogotá, nos inais de tarde, tudo era tomado pelo exército. Os boêmios, artistas e intelectuais costumavam passar as noites no Café Automático, onde se vivia um ambiente de “revolução, utopia, vida e morte”, como airma um dos entrevistados no ilme. Figueroa participou do bogotazo, foi considerado um traidor, sendo assíduo frequentador do famoso Café. Se a biograia deste personagem chama a atenção pelos feitos extraordinários e até inviáveis para um só homem, essas “inverdades” são tensionadas pela exibição de inúmeras imagens de arquivo de episódios largamente conhecidos, que carregam o ilme de uma textura de “registro” do acontecimento “real”. Por outro lado, combinar importantes eventos da história com o tradicional formato talking head não produz a esperada credibilidade da obra cinematográica que recorre a esse tipo de associação. Como muitas vezes as entrevistas veiculam um conteúdo absurdo, ironiza-se, justamente, o gênero documentário como discurso da verdade, impedindo a simpliicação do ilme e evitando que nele se coloque a etiqueta de “falso documentário”. Longe de se limitar à crítica irônica do documentário ou aos desdobramentos conceituais da tensão entre verdade/invenção, Um tigre de papel é um elogio à colagem, tanto que o próprio ilme pode ser considerado uma longa, reletida e divertida colagem. A associação de intrigantes imagens de arquivo, de animações, de quadros e de entrevistas se traduz numa polifonia de vozes compostas por muitas línguas e sotaques, por diferentes ruídos, texturas e tons. Assim, pode-se dizer que o tema é a forma. A ironia, a irreverência e a paródia contagiam a narrativa, de modo que 37 a colagem, do tipo surrealista, domina o ilme. Associações inesperadas desmantelam de maneira engraçada o formato do documentário. Ao pequeno ilme sobre a ascensão de Mao, por exemplo, são acrescentadas palavras que, pela forma, parecem ser os créditos inais do curta – uma atrás da outra, as frases entram e saem do quadro, num movimento vertical –, mas que são informações sobre o nascimento do artista colombiano. Nas colagens de Figueroa, o efeito cômico é produzido pela relação entre imagens e textos: Bailando con la más fea é o título do quadro em que vemos Nixon nos braços de Stalin e, em Los huevos del pecado, cola-se na mão de um lavrador a foice e o martelo, que esmagam os testículos do Capitão América. Estes não são os únicos exemplos. A maneira de mostrar esses trabalhos potencializa a irreverência, já que parodiam as edições dos livros de artes ou as exposições artísticas. Uma crítica negativa inicia a avaliação da obra, mas logo é relativizada pela apreciação entusiasta de outros estudiosos e pela constatação da consagração do artista, evidente nos trabalhos apócrifos que começam a aparecer. O aspecto rudimentar e grotesco das colagens sobre um elegante fundo negro debocha da “recuperação” que o meio intelectual e artístico faz do artista “primitivo”, de origem humilde. Divertidíssimo, o ilme instrumentaliza o riso para uma relexão crítica sobre os fundamentos que sustentam os gêneros narrativos que ele parodia – os documentários sobre artistas e as retrospectivas da televisão. O que está em jogo é o próprio conceito de História. Ironiza-se a necessidade de uma cronologia com a qual os críticos, curadores e historiadores pretendem ordenar diversos acontecimentos históricos ou a vida de um artista. A História, em Um tigre de papel, será uma narrativa composta de pedaços díspares que, combinados, produzem mais do que um signiicado coerente e apaziguador do passado. Assim, mais do que a mera adoção da ironia e da parodia como retóricas da narração próprias à colagem, o ilme parece endossar a ideia do artista alemão Kurt Schwitters, apresentada no início: se tudo foi derrubado, é preciso criar com os fragmentos que, recombinados, não mostram como 38 as coisas são ou foram, mas o modo como são vistas pelo artista. A compilação que compõe a memória criada por Um tigre de papel só é possível pelo trabalho dos cinematograistas desconhecidos, os verdadeiros artistas ou autores do ilme. Ainal, sem o trabalho deles não haveria memória, como o próprio ilme airma. 39 V. Así es la vida (México, 2000, Arturo Ripstein) Ensaio coletivo – por Gecilava Pode-se resumir deste modo a história do ilme mexicano “A Vida é Assim”: mulher traída, abandonada e expulsa de casa resolve se vingar matando seus dois ilhos no dia do casamento do ex-marido com a ilha do dono do cortiço onde moram. Ao assumir que se trata de uma adaptação da Medeia, de Sêneca, Arturo Ripstein parece introduzir uma dimensão estética e política na crônica policial do México pobre dos cortiços. Entretanto, devemos perguntar igualmente como essa história de imprensa sensacionalista pode repercutir na adaptação cinematográica de uma peça teatral tão cultuada como Medeia, de Sêneca, cuja força vem da tragédia grega escrita por Eurípedes no século V antes de Cristo. Estatuetas e quadros pequenos tomam conta do ambiente em que vive a protagonista. Como não temos certeza a que época ou cultura pertencem, testemunham apenas o sincretismo religioso de Júlia. Por outro lado, 40 as pequenas esculturas e pinturas estão dentro de planos cinematográicos. A duplicação das imagens lexiona o texto ocidental para igurar a camada pobre da sociedade mexicana, cujo hibridismo cultural é quase todo expresso visualmente. Cria-se uma tensão entre um texto cultuado e as imagens da esfera popular, já suposta na transposição da tragédia a um fait divers do lumpen mexicano. A protagonista é a expressão da tensão dessa mistura: imagem de mulher pobre e voz que reproduz o texto teatral. A mesa de boticário, as ferramentas para fazer abortos, o altar religioso, o berço e outros objetos dos cenários remetem aos papéis que a sociedade atribuiu historicamente à mulher: parteira, dona de casa, mãe etc. Assim, a loucura de Júlia pode ser o resultado não apenas do abandono, mas de carregar nos ombros o pesado fardo de ser mulher numa sociedade tão patriarcal como a mexicana. Os homens da trama são claramente os detentores do poder – não por acaso, Nicolás deixará Julia para icar com a ilha do homem mais rico do cortiço. A aguda consciência do jugo masculino se manifesta ainda mais quando a tia de Júlia nos conta que teria comentado “menos uno”, quando soube que a criança que tinha abortado era um menino. A situação complicada da mulher na América Latina alcança, no México, ares de verdadeira tragédia (a cidade de Juárez é um triste exemplo disso). Entretanto, o ilme não se limita a escancarar essa situação social crítica O comovente monólogo, quando vemos pela primeira vez a protagonista, é pautado pela pergunta: “¿Y yo qué?”. Repetida inúmeras vezes, a frase ajuda a tornar explícito aquilo que é negado a essa mulher que se restringe às representações que a sociedade lhe impõe. Júlia não quer ser vista como mãe e trabalhadora, mas como sujeito que deseja. As cenas do ato sexual de Júlia e as de sua rival com o ex-marido, na mesma sequência, são uma duplicação estranha que airma ainda mais o desejo como constituinte da igura feminina. Pathos que transforma os sentimentos da personagem em uma reivindicação política. Os longos planos e as falas para a câmera constroem concisos atos de uma peça dramática. Os atores ocupam o cenário como se fosse um palco 41 a ser explorado, começam e terminam cada diálogo sem corte. Nos planos do monólogo, é para nós que Júlia se lamenta, é a nós que encara. Entretanto, uma câmera inquieta, na mão, aventura-se pelos espaços, segue os personagens, solicitando dos espectadores mais do que a posição estática do público do teatro. Somos interpelados para que sintamos, consternados, a profunda crise da protagonista. Ao exagero das emoções se contrapõe a sobriedade com que se ilma o assassinato das crianças. Desse modo, a desmesura sentimental rompe o frágil equilíbrio entre as encenações das emoções femininas e do ato inominável do infanticídio da peça teatral. “A Vida é Assim” se afasta, então, da cena trágica para enredar-nos nos meandros do melodrama, gênero predileto da televisão e cinema mexicanos. Entretanto, o exagero se concentra na explosão de amor e ódio de Júlia, sentimentos obscuros e misturados que obliteram o sentimentalismo cor-de-rosa do melodrama domesticado. A substituição do coro de cidadãos da cena trágica por um conjunto de mariachis, além do rebaixamento sarcástico, aponta para esse diálogo complexo com o melodrama. Os boleros não comentam a situação digna de piedade da protagonista, como na Medeia de Sêneca, mas glosam ironicamente o excesso de amor, apontado como causa da submissão feminina. Os músicos estão longe de representarem a coletividade, suposta no coro da cena clássica. Ao descartar o centro estético e político da tragédia, abandona-se irremediavelmente o espaço teatral para assumir um diálogo com o cinema mexicano e a televisão. Não por acaso os músicos transitam entre a tela da TV e a do ilme, criando situações que debocham da tradição sentimental que prevaleceu na dramaturgia das duas mídias. Não bastasse o grupo de músicos invadir a casa de Júlia, zombando de sua dor de cotovelo, a moça do tempo da televisão chega a reclamar indignada do anarquismo cênico. Não se poupa nem mesmo o velho trio de mariachis, pois se lhe acrescenta um jovem, ridiculamente vestido, que faz rir pela sua falta de jeito. O próprio diretor e o cinegraista são inseridos no ilme como personagens cômicos; icam constrangidos quando são lagrados pela câmera no ato de ilmar e apresentam-se como bisbilho42 teiros surpreendidos em pleno ato proibido. Não há como negar que o rebaixamento destas iguras emblemáticas – ainal, o autor foi o atalho pelo qual se tentou validar culturalmente o cinema – contamina a esfera cinematográica. Diante da cena teatral, o ilme parece assumir um papel menor, identiicando-se ao fait divers da esfera popular. Entretanto, a gente sabe quão poderosa é a retórica da humildade. 43 VI. Um breve passeio pela Terra do Sol Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, Brasil, 1964) Rodrigo Frare Baroni Deus e o Diabo na terra do Sol narra a trajetória de Manuel e Rosa à procura de justiça num sertão dominado pela lógica da luta entre Deus e o Diabo. Depois de matar o coronel que tentara roubá-lo na partilha do gado e de ver a mãe assassinada por jagunços, Manuel, juntamente com Rosa, se alista nas hostes do beato Sebastião. Ao conirmar que a justiça de Deus, encarnada no religioso, é falha, Rosa mata o “homem santo”, sem saber que Antônio das Mortes, a mando dos coronéis, dizima os seguidores do beato. Poupado pelo matador de aluguel, o casal é conduzido pelo cego Júlio, um dos narradores do ilme, até o lugar onde se escondem os cangaceiros que haviam sobrevivido ao massacre do bando de Lampião. Porém, o diabo tampouco é justo. Como bem aponta Ismail Xavier em Sertão mar, o ilme assume uma dupla complexidade: a da literatura de cordel e a da música “erudita” de 44 Villa-Lobos. O cordel utilizado no ilme, escrito por Glauber Rocha e por Sérgio Ricardo, é a apropriação de uma forma especíica e popular de se contar história que foge à regra da História como disciplina acadêmica (bem como o cinema o faz), mas que se legitima culturalmente, talvez, tanto quanto a última. A forma popular de narração apropriada por Glauber Rocha atribui ao ilme uma polifonia no sentido de que este rompe com uma espécie de “dever ser”, de um padrão que confere academicamente certa legitimidade ou autoridade para determinadas maneiras de se narrar a História. Pedro Paulo Gomes Pereira, em seu artigo “O sertão dilacerado: outras histórias de Deus e o Diabo na Terra do Sol” recorre ao pensamento de Michel de Certeau para apontar a relação entre narrativa e espaço. Para o autor: [...] A locomoção, a transposição no espaço, é metafórica, já que a metáfora é justamente a manifestação das maneiras de se passar a outro, de se transigurar. As narrativas possuem, assim, valor de sintaxes espaciais: são práticas do espaço (Pereira, 2008). Entre o cordel e a música de Villa-Lobos encontrar-se-ia, portanto, uma disputa pela formação de um imaginário do sertão. A música de Villa-Lobos não está dissociada de um projeto hegemônico de nação. Em diversos momentos do ilme, as músicas, que estariam ligadas ao que seria de mais “erudito”, aparecem, no entanto, associadas à barbárie, à violência e ao fascismo. O cordel mescla, claramente, assim como o ilme, elementos históricos e elementos imaginários (ou ictícios), explorando ainda mais as potencialidades da narrativa e possibilitando sua estruturação, contando uma história das lutas sertanejas diferente na forma e no conteúdo da história “oicial”. A disputa entre o cordel e a música “erudita” se dá desde as primeiras imagens, nas quais o espaço do sertão nos é mostrado em um plongée da caatinga ao som de Villa-Lobos. Dado o acompanhamento musical, 45 nestes planos, é o relato “oicial” que inicia uma prática do espaço do sertão fílmico. Além disso, a última canção de cordel do ilme é abafada pela música de Villa-Lobos; é dela a primeira e a última palavra sobre o sertão. Como sabemos, o messianismo e o cangaço são dois grandes temas da literatura de cordel. O ilme os retoma para mostrá-los como duas faces da mesma moeda, embora o bando de Corisco possa ser visto como uma “opção” melhor do que a do beato Sebastião, como airma Ismail Xavier. Entretanto, as aproximações entre as duas esferas chegam a criar indeinições que podem diluir suas diferenças. Elementos que primeiramente são vistos como antagônicos ao longo do ilme tomam semelhança e até mesmo unicidade através da encarnação nas personagens. Assim, é possível ao ilme mostrar uma lógica de separação e classiicação do mundo presente na cultura dos personagens, mas, ao mesmo tempo, permite demonstrar como essa lógica pode ser operacionalizada de forma complexa e como esferas antagônicas desta forma de classiicação podem coexistir na mesma igura. Essa lógica entrelaçada também aparece no tratamento da trilha musical, pois a complexidade de um elemento popular é apropriada com a devida maestria pelo diretor do ilme e somada a elementos que poderiam ser vistos como “eruditos”, por exemplo, as músicas de Heitor Villa-Lobos fazem a ligação entre diferentes partes do ilme. Mas não há como esquecer que as músicas do compositor também parecem, em determinadas cenas, estarem associadas a estéticas semelhantes às das propagandas fascistas. Podemos veriicar isso quando Manuel e Rosa sobem o Monte Santo para se unirem a Sebastião: “imagem e som imprimem um tom de solene grandiosidade ao momento capaz de expressar a força e o valor do êxtase coletivo” (Xavier, 2007: 119). A música de Villa-Lobos, associada às imagens dos estandartes dos beatos, poderia lembrar os mastros de caravelas portuguesas – imagem evocada pela associação ao discurso do santo que exalta os portugueses –, bem como também aludir, através da relação entre música e imagem, à propaganda fascista europeia na qual são exaltados 46 estandartes com o símbolo do partido político vigente, juntamente com músicas “eruditas” nacionais. Neste sentido, Ismail Xavier diz: É a mesma peça musical de Villa-Lobos que consagra o instante de triunfo em Monte Santo, quando Manuel adere a Sebastião, e o instante da violência, no ataque do cangaço à fazenda, quando se deine a iniciação de Manuel-Satanás, sua passagem da cruz à espada, sua participação traumática no ritual de sangue onde Corisco é o sacerdote (Xavier, 2007: 122). O fato de a mesma música que marca a ascensão dos iéis a Monte Santo também marcar a cena em que o novo bando de Corisco destrói a casa de um fazendeiro em um “ritual de sangue” conirma a suspeita de que o messianismo está irremediavelmente contaminado pela violência do cangaço, como já tinha sido apontado por Ismail Xavier. Entretanto, na repetição, a música de Villa-Lobos, que sublinhava o aspecto apoteótico da narrativa messiânica, contamina a trajetória do cangaço com uma grandiloquência vazia. Assim, através da música é estabelecida uma relação de semelhança entre as duas cenas, apesar de suas diferenças. O autoritarismo do messianismo e o do cangaço se mostram pelos exercícios de poder que, embora se apresentem sob diferentes formas, são aproximados pela música de Villa-Lobos. Portanto, a cena, que aparentemente parece engrandecer os beatos e o santo, contém em si suas próprias contradições. É possível interpretar o discurso de Sebastião – no qual seus seguidores veem a possibilidade de libertação – como análogo ao das formas opressivas do colonizador e do ditador. Isso se deve ao fato de que tanto Sebastião, na referida cena, quanto Corisco (na cena ligada pela repetição da mesma música de Villa-Lobos) são apresentados sob o ponto de vista ambíguo (Deus e Diabo, sagrado e profano, libertação e opressão). O ilme apresenta o messianismo e o cangaço como perspectivas que almejam justiça e ao mesmo tempo atuam de forma violenta, que é o elemento de controvérsia nos ideais 47 apresentados por ambos os movimentos. Sebastião, ao mesmo tempo em que pode ser visto como um “santo” – que prega a justiça e promete uma vida melhor em um mundo onde a fartura deixaria de ser utopia – também pode ser encarado sob outro prisma, como um “ditador”. Pode igualmente ser visto sob o prisma de “Diabo” por suas ações violentas cometidas contra prostitutas e crianças, bem como seu senso de justiça social pode ser relativizado, pois ao invés de propor a extinção da desigualdade, o que Sebastião propõe em seu discurso para os beatos é a ideia de uma inversão social, que preserva a mesma lógica estrutural: “Quem é pobre vai icar rico no lado de Deus, e quem é rico vai icar pobre nas profundezas do inferno”. A cruz quase sempre é apresentada ao lado de uma espada, faca ou fuzil, elementos presentes ao longo de todo ilme, fazendo alusão não só à violência da religião, mas também aproximando, através dessas imagens, o imaginário de Deus e do Diabo, sempre aparecendo conjuntamente. Esses elementos podem ser observados, por exemplo, no saque realizado pelos beatos de Sebastião. Além disso, o próprio utiliza-se de um punhal num ritual religioso para sacriicar uma criança com a inalidade de “puriicar” as almas de Manuel e Rosa. Tal aproximação culmina no momento em que, pela primeira vez, Rosa encontra Antônio das Mortes, logo após o massacre de Monte Santo. Nesta cena, a sombra projetada na parede pelo rile empunhado por Antônio das Mortes e pelo punhal nas mãos de Rosa forma uma cruz. Corisco, pouco depois, nos é apresentado como portador de ambos os instrumentos, e seu punhal é para ele a lança emprestada por São Jorge para enfrentar o “dragão da maldade”. A crença parece então justiicar a violência que está diretamente associada a ela. A diferença entre a cruz, o rile e a espada parece dissolvida ao longo do ilme. A aproximação entre Deus e o Diabo é realçada ainda pela fala de Antônio das Mortes, quando este diz: “O padre pode achar que Sebastião tem parte com o Diabo, mas eu acho que ele tem parte com Deus também”. 48 Longe, então, de Sebastião e Corisco representarem Deus e o Diabo respectivamente, eles representam ambos simultaneamente. Corisco e Sebastião são, portanto, outra grande cabeça bicéfala entre as muitas que povoam o imaginário do sertão. Dentre todas elas, a de Manuel e Rosa é fundamental, pois dela depende a compreensão dos outros pares que aparecem no ilme. Ainal, como airma a ita, “a terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo”. Passaremos, portanto, a debruçar-nos sobre as iguras de Manuel e Rosa dentro do ilme. No início, Rosa é uma igura desesperançada, ainda mais se considerarmos as expectativas do companheiro. Diante dos projetos de Manuel de conquistar um futuro melhor, ela deseja apenas conservar o pouco que possui com o marido. Entretanto, o ilme se encarrega em contradizer, das maneiras mais inesperadas, a imagem apequenada de sua igura. Por exemplo, na sequência da fabricação da farinha de mandioca, quando parece reproduzir-se uma cena “documental” de um labor cotidiano do sertão, a câmera sugere outra esfera completamente diferente: um primeiro plano de Yoná Magalhães transforma uma cansada sertaneja em uma bela e enigmática Moira que manipula a Roda da Fortuna, deixando frouxas as “correias” gastas que mexem com o destino dos homens. A complexidade da igura feminina já tinha sido trabalhada no artigo “Nem Deus, nem o Diabo: Rosa na Terra do Sol” (Telles e Silva, 2012), no qual os autores analisam a igura de Rosa em diferentes momentos do ilme. No mesmo artigo, os autores dizem que: “[...] não é apenas ‘coincidência’ que o nome da personagem ‘Rosa’ seja o mesmo de uma lor cheia de outros signiicados [...]” e, em uma passagem anterior, comentam: “Fato é que a lor é elemento que se sobressai aos outros nessa vegetação amarelada”. De fato, no Monte Santo podemos observar uma cena que deixa claro que o nome da personagem realmente não é “Rosa” à toa. Ele marca um forte contraste com o cenário do ilme, como bem apontam os dois autores citados. Em um plano sequência é mostrada uma lor que nasce em meio às pedras de Monte Santo para, seguindo as rochas da escadaria do local, mostrar outra lor. Desta vez, a personagem Rosa aparece con49 trastando com um meio, um universo simbólico do qual ela parece não compartilhar. A relação de Rosa no Monte Santo é de choque, ao contrário de Manuel que, na maior parte do tempo (até pouco antes do rompimento com o Santo), é de uma submissão completa aos desígnios impostos pelo beato a seus seguidores. Por outro lado, a relação de choque de Rosa traz uma dupla conotação: não se trataria da relativização dos valores do outro e um contato com a alteridade por parte da personagem (embora o ilme ainda possa provocar esse movimento no espectador), mas sim a repulsa e a negação dos valores dos beatos. Por outro lado, ela parece ser a única a ver nas ações do “Santo” o emprego injustiicado da violência baseado em promessas vazias. No artigo citado anteriormente, os autores analisam a cena em que Rosa aparece na frente dos beatos que cantam Ave Maria. Nesta cena observa-se, ixado na parede ao fundo, um quadro que parece ter rosas desenhadas. A respeito desta imagem, os autores do texto airmam que: O olhar da mulher é, ao mesmo tempo, de compaixão e nojo com os religiosos sem-face. Antes de sair de cena, ela dá de ombros, aparentemente repugnada com o cântico insosso daqueles que têm fé na vida póstuma, no outro mundo – a salvação dela e de Glauber Rocha é da ordem deste (Telles e Silva, 2012). Já Manuel nega os valores do “santo” e dos beatos apenas após a ostensiva de Rosa contra o “santo”1 pela qual, através do choque, faz Manuel suspender os valores aos quais tinha aderido e inverter a airmação de “É preciso lavar a alma dos pecadores com o sangue dos inocentes” para “Não se pode lavar a alma dos pecadores com o sangue dos inocentes”. É através da inversão da sentença que podemos observar um claro rompimento por parte de Manuel com as ações e ideias impostas a ele por sua devoção ao “Santo”. Porém, apesar desse rompimento, Manuel continuará a idealizar as atitudes e ideias de Sebastião – pelo menos até a disputa com Corisco, na qual discutem sobre quem é maior, Virgulino ou 50 Sebastião – tudo para concluírem que ambos tinham suas fraquezas. Os registros narrativos se misturam: à busca progressiva por justiça de Manuel, embaralha-se a trajetória de uma Rosa mítica, responsável por grandes mudanças no seu próprio destino e no do companheiro. O universo da lenda coloca no centro do relato não apenas a igura de Deus e do Diabo, como no início, mas a sua lógica, na qual o homem só pode sobreviver por meio do pacto, como nos ensina Guimarães Rosa. Com o beato Sebastião o pacto só pode ser de total submissão, excluindo qualquer outro, mesmo aquele entre marido e mulher. Manuel abre mão de Rosa e se torna soldado de Deus, obrigado a humilhar pequenas prostitutas e ajudar a assassinar crianças para aplacar a fúria divina. Rosa não abre mão do pacto que tem com Manuel e desconia do autoritarismo de Sebastião, corporiicado na submissão incondicional que exige de seus comandados e na histeria que ele provoca. O pacto com o cangaço é muito mais horizontal: tem início na primeira troca de olhares entre Dadá e Rosa e é, inalmente, consumado no momento em que se dá a troca de carícias entre Corisco e Rosa. O diabo não é tão exigente quanto Deus. Embora de Manuel se exija um ato cruel de iniciação – castrar um inimigo –, Corisco respeita o desejo de justiça que move o vaqueiro e, no inal, libera-o do fardo de seguir a sua sina. Não há dúvida de que, na esfera do cangaço, as experiências abrem outras perspectivas, embora marcadas pela violência. Essas possibilidades não escapam a Rosa. A troca simbólica da lor com o lenço entre ela e Dadá inaugura uma nova forma de pactuar que vai repercutir em sua relação com Manuel. Pela primeira vez, ela é consultada sobre o rumo que o casal deverá seguir. Porém, morto Corisco, o pacto de Rosa com os cangaceiros se dissolve; não mais envolto pela relação simbólica de obrigação para com estes, Manuel e Rosa fogem correndo pela caatinga. Na fuga, Rosa cai e é deixada para trás por Manuel. Cria-se assim uma situação de suspensão da ordem: ao mesmo tempo em que Manuel livra-se de todos os laços que 51 o prendiam na relação entre “Deus” e “Diabo”, sua corrida sem destino e os planos inais do ilme sugerem tanto a possibilidade de rompimento dessa lógica quanto a de sua restituição. Cria-se, nas últimas sequências do ilme, a alternativa de Manuel, livre dos pactos que o obrigavam anteriormente, começar uma nova busca por justiça, mas desta vez “fora da cegueira de Deus e o diabo” (conforme dizia a profecia de Antônio das Mortes), abrindo-se uma brecha para a possibilidade de uma permanência das personagens no interior desta lógica. Por outro lado, diante da ambiguidade que pode suscitar esta sequência do ilme, pode se entender que não há de fato uma libertação, mas uma restituição, pois no meio da fuga, mais uma vez, Rosa é deixada para trás por Manuel, como centenas de mulheres sertanejas abandonadas pelos maridos que se aventuram em busca de uma vida melhor longe do sertão. Este fato, nada negligenciável, compromete qualquer visão da história como uma preiguração de uma revolução redentora. Rosa é a cisão irreparável, que torna espúria a corrida de Manuel para o futuro. O que se rompe é aquilo que tinha sido ganho a muito custo, o pacto de solidariedade entre as duas cabeças essenciais da história, Manuel e Rosa. Isso parece se conirmar na última sequência: o enquadramento do tão ansiado mar é semelhante ao do sertão, do início do ilme. Essa falta de horizonte, nas duas imagens2, muito mais do que sugerir que Manuel pode chegar lá, parece conirmar o destino inexorável da profecia do beato Sebastião: o sertão vai virar mar, mas também o mar vai virar sertão. O movimento circular instaura de novo a lógica de Deus e do Diabo e a exigência de uma contrapartida violenta – não há redenção, pois sempre haverá um sertão, o que nos remete ao vaticínio de Guimarães Rosa, “o sertão está em toda parte” (Rosa, 2006: 08). Referências bibliográicas: CERTEAU, Michel de. “Caminhadas pela cidade” in A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petró- 52 polis: Editora Vozes, 1998. PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. “O sertão dilacerado: outras histórias de Deus e o Diabo na Terra do Sol” in Lua Nova, nº 74. São Paulo: 2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0102-64452008000200002&lng=en&nrm=iso. Acesso em 06 de abril de 2015. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. SILVA, Alexandre Rocha da e TELES, Marcio. “Nem Deus nem Diabo: Rosa na Terra do Sol” in Imagofagia, nº 5. Buenos Aires: 2012. Disponível em: http://www.asaeca.org/imagofagia/sitio/index.php?option=com_content&view=article&id=185% 3Anem-deus-nem-o-diabo-rosa-naterradosol&catid=44&Itemid=107. Acesso em 21 de novembro de 2013. XAVIER, Ismail. “Deus e o Diabo na Terra do Sol: As iguras da Revolução” in Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Notas: 1. No artigo citado, os autores também comentam esta passagem dizendo que: “Manuel, porém, atordoado ao perceber a sanguinolência do homem santo, queda-se calado. Chora copiosamente e não é capaz do único ato sensato para libertar-se: repetir o assassínio. A saída do impasse só é tomada por Rosa, santa libertadora” (Telles e Silva, 2012). 2. Como já havia apontado Ismail Xavier: “A câmera, em movimento, nos mostra um mar visto de cima, de modo a evitar que se desenhe uma superfície lisa, delimitada pela linha estável do horizonte” (Xavier, 2007: 122). 53 VII. Oh, abandonado como los muelles al alba, todo en ti fue naufragio: expectação e isolamento em Memórias do subdesenvolvimento Memórias do subdesenvolvimento (Memorias del subdesarrollo, Tomás Gutiérrez Alea, Cuba, 1968) Cristina de Branco e Miguel Dores Memórias do subdesenvolvimento é uma adaptação cinematográica da obra literária homônima de autoria de Edmundo Desnoes, que também foi correalizador e corroteirista do ilme. O nosso enfoque neste artigo não se prenderá nem à relação obra literária e adaptação cinematográica, nem ao relativo processo de transladação estética, mas sim ao ilme em si, tendo como eixo de análise as estratégias estéticas de articulação entre o protagonista e o tempo histórico do ilme. Esta escolha é determinada pelo caráter modular de ambos para a estética cinematográica de Alea, essencialmente tomados na sua correlação. Nos primórdios do processo revolucionário cubano, Sérgio, o protago54 nista, torna-nos espectadores de uma La Habana particular, visibilizando a perspectiva de um não-participante no processo histórico da sua contemporaneidade. Vê sua família e amigos partirem de Cuba e assiste do cimo do mais alto edifício da capital às transformações urbanas, políticas e sociais mais ou menos perceptíveis à sua condição altaneira. Ao envolver-se com Elena, jovem que para ele personiica o subdesenvolvimento, Sérgio permanece distante e alheio ao questionamento que faz sobre a sua condição no espaço e a dinâmica que o rodeia, funcionando como uma lente de graduação única. Entretanto, vários contrapontos, várias outras lentes são intercaladas no ilme através de momentos documentais que mostram registos sonoros, fotográicos e audiovisuais da realidade pré e pós-revolucionária, desestabilizando, assim, a visão unilateral e confessional de Sérgio. Memórias do subdesenvolvimento começa em transe com a cena de uma festa afro-cubana: ¿dónde está Teresa? / ¿Teresa? / ¿dónde está Teresa?, a batida repete-se incessantemente balançando corpos incógnitos que, apertados, dançam, mesmo que interrompidos por um disparo e consequente morte de um dos indivíduos bailantes entre a plateia atuante e extasiada. A cena conclui-se com o olhar congelado de uma jovem mulher sobre a câmera, sobre nós, presentiicando o espectador no meio cênico e levando-o a sentir-se, frente à sua face, como um meio comunicante e construtor do ilme. Não é só o espectador que recebe o ilme, mas também o ilme recebe o espectador e suas expectativas. Esta cena propõe-nos um ritmo de entrada vibrante bruscamente amputado pela cena seguinte, no aeroporto de Havana, em que o protagonista despede-se de seus pais e esposa, que abandonam o país pela discordância ideológica perante o processo revolucionário. Ao regressar à casa, Sérgio aproxima-se da sua varanda e encontra um dos passarinhos morto dentro da gaiola. Friamente, lança-o, varanda abaixo. “Mantengo una lucidez, un vacío”. Sérgio é este personagem isolado perante uma construção histórica que ganhou um sentido coletivo, a Revolução Cubana, na qual ele não participa, apenas observa e critica, embora frente 55 a sua classe, família e amigos seja visto como um resistente, expectante por aquilo que em Cuba possa vir a acontecer. “Nada, no eres nada”. Não sendo motor ativo nesse tempo histórico, Sérgio pertence a ele e é seu agente, mesmo que indireto. Embora não seja protagonista da sua contemporaneidade, Sérgio é o motor do ilme. A prolixidade deste personagem não reside de forma simples no seu isolamento pequeno-burguês, quanto menos no apanágio de uma visão descomprometida. Para compreendê-la, teremos que mergulhar de modo mais profundo na dimensão de “expectação” que esta provoca, ou, por outros termos, de recepção do espetáculo. Sérgio está para a Revolução Cubana numa posição de relativo distanciamento, tão relativo quanto à posição de um espectador frente ao espetáculo cinematográico. “Todo sigue igual. Aquí todo sigue igual. Así de pronto, parece una escenografía, una ciudad de cartón. [...] Sin embargo, hoy todo parece tan distinto. ¿He cambiado yo o ha cambiado la ciudad?”. Tal como a sua condução escrita da realidade cubana “nega dialeticamente” esta mesma, o ilme nega dialeticamente a vida. O cinema compõe, segundo esta perspectiva, uma interrupção (e não um prolongamento) da realidade que constitui, a priori, uma contradição alienante, competindo ao criador da obra artística fazer desta instituição uma contradição comunicante que devolva o espectador à realidade, para que a negação artística se torne verdadeiramente dialética e o “espetáculo socialmente produtivo”. Todas estas concepções Tomás Gutiérrez Alea sistematizará mais tarde na obra Dialética do espectador, embora a sua composição esteja germinada já em Memórias do subdesenvolvimento. Sérgio é, deste modo, a igura-chave deste espectador que, embora não participe de um tempo histórico, o questiona como uma entidade externa. A dinâmica entre a identiicação/desconstrução do protagonista permite ao diretor encenar um movimento de relativa distância e questionamento no espectador, levando-o, portanto, a não aceitar totalmente a orientação do personagem, mas a criticá-la, aceitá-la em parte, recusá-la em parte; enim, pensá-la. Alea procura com este protagonista a igura de um espectador em constante processo de produção de eixos de interpretação do real. 56 ¿Cómo se sale del subdesarrollo? Cada día lo pienso más difícil. Lo marca todo. Todo. ¿Y tú que haces acá abajo, Sérgio? ¿Qué signiica todo eso? Tú no tienes nada que ver con esa gente. Estás solo. En el subdesarrollo nada tiene continuidad, todo se olvida. La gente no es consecuente. Pero tú recuerdas mucha cosa, recuerdas demasiado (Sérgio em Memórias do subdesenvolvimento). Por outro lado, deixa clara a sua condição burguesa, eurocêntrica, autoexcludente e coisiicante da realidade cubana, a ponto de submergi-la no discurso do subdesenvolvimento. “Siempre trato de vivir como un europeo. Y Elena me hace sentir el subdesarrollo a cada paso”. Esta conissão do protagonista leva-nos a considerar o “Complejo de la Malinche”, descrito por Octavio Paz em El laberinto de la soledad, como uma tendência do pensamento latino-americano segundo a qual o dominado se apaixona pelo dominador. Airma-se, assim, o isolamento de Sérgio como uma construção labiríntica da solidão. O seu ninguneo, conforme Octavio Paz, surge como característica da sua própria dominação e subdesenvolvimento. Esta segunda dimensão do personagem incita também o espectador a criar com ele uma relação dialética através de uma operação contrastante de alienação/desalienação que apenas se torna possível por meio de uma identiicação desconstruída, de um efeito de distanciamento que se vai construindo ao longo do ilme. Seguindo esta perspectiva de análise, chegaremos à ampla conexão entre Memórias do subdesenvolvimento e o teatro brechtiano. Contrariamente à noção coercitiva do personagem como guia moral do espectador e à imposição de um processo de identiicação catártica entre personagem e público, o conceito de espetáculo de Alea considera a percepção relexiva e crítica do espectador diante do espetáculo como contradição fundamental da vida. Tal como Brecht, Alea apresenta-nos no ilme um aparato de superação cinematográica da poética moralizante aristotélica. Sérgio não é um protótipo heroico da Revolução, nem um ser que se lhe apresenta heroicamente antitético. É, sim, um personagem que mostra as suas debilidades, contradições e incongruências enquanto sujei57 to discursante. A formulação desalienante do teatro brechtiano poderá radicar-se no espetáculo como experimentação cientíica ou negação da sua completude realista, no entanto, a estética de Tomás Gutiérrez Alea não se encerra necessariamente nesse pressuposto. A cena inicial de Memórias do subdesenvolvimento em que somos imediatamente colocados num ambiente de adesão a um corpo em transe é paradigmática. Como o próprio autor enuncia em Dialética do espectador, a alienação é uma função essencial do espetáculo, o que inclui claramente o divertimento e a fuga do espectador para dentro do mundo iccional. O espetáculo socialmente produtivo se propõe a um processo de alienação e desalienação: Yo pienso que todo cine debe ser desalienador, pero para serlo debe alienar previamente al espectador. Me parece inevitable. Hay películas que solo alienan, que no ayudan a comprender la realidad. Pero la alienación del espectador ante la pantalla es útil si la utilizamos posteriormente para desalienarlo. La acción tomada como un in en sí misma es puramente alienante, pero en cambio podemos utilizarla para captar, empatizar al espectador con el objetivo de transcenderla (Alea apud Avellar, 1995: 276). É através das contradições internas da icção que o espectador pode ser levado a um processo crítico de desalienação. Neste sentido, o “espetáculo socialmente produtivo” é aquele que consegue transportar esta relexão crítica da icção à realidade do espectador. Em Memórias do subdesenvolvimento este processo relaciona-se com o processo de montagem de contradições imagéticas. Isto é, mediante a contradição discursiva de Sérgio (personagem tutelar das memórias individuais de Havana) e as interrupções documentais que se lhe vão opondo assume-se uma lógica interna semelhante à da montagem eisensteiniana. Tendo em conta esta perspectiva da atividade dialética do espectador como condição necessária ao desenvolvimento de um “espetáculo socialmente produtivo”, poderemos então compreender outra dimensão impor58 tante da escolha da novela de Desnoes e deste protagonista controverso. Por um lado, a escolha pela igura de Sérgio permite a abordagem de um personagem que encarnasse o universo do espectador; por outro, mais do que a projeção conteudística de uma realidade que expressasse a tendência política correta, parece importar ao diretor a correção da forma estética, esta sim capaz de expressar uma tendência política correta. Ou seja, o potencial transformador de um espetáculo reside na sua capacidade de ser socialmente produtivo e, para tal, mais do que demandar a identiicação com certos discursos ou imagens, deve inserir-se corretamente na transformação das formas de produção. Este problema da expressão da tendência artística correta como condição para a expressão de uma tendência política correta apresenta, desde logo, uma clara ainidade com os problemas essenciais de Walter Benjamin em O autor enquanto produtor: [...] a tendência política correta implica uma tendência literária. E para completar a ideia desde já: esta tendência literária que está contida, implícita ou explicitamente, em qualquer tendência política correta – esta, e nada mais do que esta, determina a qualidade da obra. Por essa razão, a tendência política correta de uma obra implica a sua qualidade literária, porque engloba a sua tendência literária (Benjamin, 1995: 138). Considerando o processo de transformação dos meios de produção levado a cabo pela Revolução Cubana, Alea estabelece uma estética dialética que utiliza como maior dispositivo a transição entre a narrativa linear da vida de Sérgio, seu envolvimento com Elena e com a época histórica que lhe coube, os lashbacks que nos trazem as suas lembranças íntimas e ainda trechos documentais que abordam o passado e o presente vivenciados coletivamente. O ato de escrita confessional, como meio construtor das memórias individuais visibilizadas pelo ilme, será desbloqueado pelo distanciamento dos seus familiares e resultará num relato, em forma de diário-áudio, sobre o que o rodeia. Este diário funcionará no ilme como uma estratégia de adap59 tação da obra literária de Edmundo Desnoes ao discurso cinematográico e também como forma de surgimento de uma voz-off dirigente que singulariza e distancia o sujeito dos objetos narrados. A experiência revolucionária cubana passa a ser projetada no ilme, por um lado, como algo interno à própria consciência de Sérgio. Por outro lado, a contraposição aos seus juízos sobre a sua contemporaneidade igura através de cenas documentais sobre o tempo histórico coletivo. Forma-se, assim, uma relação dialética no ilme entre a signiicação individual da consciência de Sérgio e as interrupções documentais que nos trazem algumas vozes e retratos sobre a mesma realidade geográica e política. A voz de Sérgio assume-se como um todo, enquanto o todo se assume como parte. “Cada uno se remete a su propia individualidad cuando se quiere alejar de la miseria ajena que lo contamina”. As memórias de Sérgio durante a sua vida na isla subdesarrollada, ou ainda as memórias do subdesenvolvimento do próprio protagonista, imerso num individualismo e artiicialismo que bloqueiam a sua relexão e ação, dão conta da sua individualidade e de alguns fatores que a compõem. Em três lashbacks, a câmera toma o olhar de Sérgio como perspectiva em travelling. Sempre sob o formato diarístico, o personagem retoma as suas lembranças de infância – o seu melhor amigo e o convívio escolar –, da adolescência – sua primeira experiência sexual num bordel barato –, e da juventude – sua primeira paixão, Hanna, e a frustração com o início da vida adulta ao ser responsabilizado pela loja de móveis de sua família. Sérgio relaciona as suas lembranças íntimas a uma insatisfação perpétua, revolvida em si mesma e obtusa perante as memórias coletivas e múltiplas dos enormes desaios ao desenvolvimento socioeconômico que a sociedade cubana atravessava. De certa maneira, Sérgio repulsa diretamente o cosmos social ao qual pertence e indiretamente a si próprio, permitindo-se apenas à adoração material e às relexões inconclusas. Resulta daí, por exemplo, a tendencial coisiicação do outro, a concepção e relação com o outro como coisa – como diante de la delgada de Vogue, dos joelhos de Elena e como também demonstram as suas considerações impositivas sobre rostos que vai vendo nas suas parcas jornadas pelas ruas de La Habana. 60 Por mais que veja em Elena a personiicação do subdesenvolvimento, ou seja, a igura que sendo humana ainda não consegue relacionar fatos e textos, Sérgio prova-se, ele mesmo, mais uma igura do subdesenvolvimento, consequência da asixia intelectual e emocional causada, por sua vez, pelas dinâmicas sociais próprias do sistema capitalista. Entre as percepções íntimas de Sérgio, suas memórias e considerações, a narrativa é novamente interrompida por três momentos documentais (igual número dedicado aos lashbacks). Ao envolver-se com Elena, Sérgio promete-lhe apresentá-la aos seus amigos cineastas. Percebemos a concretização da promessa ao vê-los numa plateia após o surgimento de uma sucessão de cenas eróticas cortadas de seus ilmes e reeditadas numa nova proposta cinematográica. O próprio Tomás Gutiérrez Alea explica-se na cena seguinte: “Una película que sea como un collage, donde se pueda meter de todo”. Sérgio desaia-o: “Pero tiene que tener algún sentido”. Ao que Alea responde: “Y va a salir. Tú verás”. As cenas documentais de Memórias do subdesenvolvimento são, também elas, montadas como um collage de vários registros de áudio, audiovisuais e fotográicos do período pré e pós-Revolução. O primeiro trecho documental surge entre as conversas de Sérgio e seu amigo Pablo, prestes a partir para os Estados Unidos. Após um longo bocejo do protagonista surgem imagens ixas e em movimento referenciais à miséria e fome sofridas pelas crianças e pelos povos latino-americanos, entre eles o cubano. “En América Latina mueren cuatro niños por minuto, por enfermedades provocadas por la desnutrición”. A gravidade dos fatos relatados provam a opinião que Sérgio vai formando sobre a inconsistência discursiva de Pablo perante a situação sociopolítica de Cuba e seu envolvimento como cidadão cubano (inconsistência essa continuada pelo próprio Sérgio). Existe, então, uma frágil ponte entre os registros documentais e a consciência de Sérgio. O segundo momento documental prolonga-se ao ilustrar por imagens de objetos de tortura, de torturados e seus familiares e de torturadores e seus cúmplices, várias vozes em off captadas durante os julgamentos realizados após a Revolução aos coniventes com o regime de Baptista. Entre a voz de uma testemunha que denuncia emocionadamente o assassina61 to e a profanação do corpo de seu companheiro, também são transmitidas relexões sobre o conlito de classes próprio do capitalismo. A presença da classe burguesa, como se discute no próprio ilme, permite, por otra parte, la existencia de aquellos que no están en contacto directo con la muerte y que pueden sustentar, como individuos separados, sus almas limpias. […] Todos aparecen dislocados de un sentido global que nadie asume completamente. No mesmo sentido ideológico, o último momento documental é concluído com um discurso histórico de Fidel Castro: “Tenemos que saber vivir en la época en que nos ha tocado vivir. Y con la dignidad que debemos vivir. Todos. Hombres y mujeres. Jóvenes y viejos”. Em tom crítico e sugestivo direcionado ao protagonista e àqueles que, fazendo parte de uma sociedade, não contribuem ativamente para o seu desenvolvimento, Tomás Gutiérrez Alea fecha o enredo com a chave política que permeia todo o ilme. Em pleno período pós-revolucionário, Alea apropria-se da igura do burguês desencontrado, de suas memórias e da sua tendência individualista para dar conta, dialeticamente, da importância da construção histórica coletiva. Este movimento encena por sua vez uma necessidade de pensar as inscrições dialogantes do ilme e atribui ao espectador a capacidade de sujeitar estas mesmas a um sentido crítico sobre as memórias do subdesenvolvimento. Referências bibliográicas: AVELLAR, José Carlos. A ponte clandestina – Teorias de cinema na América Latina. São Paulo: EDUSP, 1995. BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 1992. PAZ, Octavio. El laberinto de la soledad. Madri: Letras Hispánicas/Fondo de Cultura Económica, 2006. 62 VIII. Para não dizer que não falei do im da democracia Os anos JK (Silvio Tendler, Brasil, 1980) Lúcia Ramos Monteiro e Sérgio César Júnior Foi depois de uma adolescência de cineclubista no Rio de Janeiro, de um período de um ano e meio no Chile de Salvador Allende e de quatro anos de estudos na França que Silvio Tendler volta ao Brasil (Mengardo, 2011: 13) e realiza Os anos JK, seu primeiro longa-metragem, lançado em 1980. Na temporada parisiense, aproxima-se de Jean-Rouch, de Chris Marker e de Marc Ferro. Três iguras que tiveram, de maneiras distintas, peso fundamental em sua formação e cujos trabalhos iluminam a compreensão que se pode ter, hoje, da obra do cineasta brasileiro. Nos cursos de Rouch, iniciou-se no cinema documentário; como voltara ao Chile em 1973, pouco antes do golpe que derrubou o presidente Allende, teve a oportunidade de colaborar com Marker em A espiral (1976); quanto a Ferro, ele teve inluência no percurso acadêmico de Tendler, que pesquisou o cineasta holandês Joris Ivens no mestrado em Cinema e História. Silvio Tendler começa a trabalhar em Os anos JK em 1977, assim que 63 regressa ao país, motivado, ao menos em parte, pela comoção causada pela morte de JK no ano anterior (Elias, 2010). É impossível ver o longa, hoje, sem encará-lo como documento não apenas do período em que Kubitschek governou, mas sobretudo como documento das últimas etapas do regime militar no Brasil. O movimento de deslocar o olhar do conteúdo do ilme para seu contexto de fabricação é, aliás, uma das bases do pensamento que Ferro estabeleceu, principalmente, a partir de sua participação na revista Annales, no início dos anos 1960, enquanto defensor do cinema como fonte para a historiograia. Se antes de Ferro outros historiadores, no Brasil inclusive, já haviam chamado a atenção para a riqueza do material fílmico como documentação para os historiadores (Morettin, 2013: 132), Ferro desempenhou um papel pioneiro ao sistematizar esse pensamento, posto que, até então, o cinema era, em geral, desprezado no fazer histórico. “A exclusão da imagem cinematográica do fazer histórico, para Ferro, ocorreria em função desta pertencer ao imaginário da sociedade que, por sua vez, também não era considerado pelo historiador. A vinculação entre cinema e imaginário é fundamental para o seu trabalho, é o seu postulado”, airma Eduardo Morettin (2007: 48). Qual é a hipótese de Ferro? A de que “o ilme, imagem ou não da realidade, documento ou icção, intriga autêntica ou pura invenção, é História”. E seu postulado? O de que “aquilo que não aconteceu (e por que não aquilo que aconteceu?), as crenças, as intenções, o imaginário do homem, são tão História quanto a História” (Ferro, 1992: 86)3. Ferro advogava, entre outras coisas, que o valor de documento do cinema não se restringia ao documentário, sendo igualmente presente na icção, pois todo ilme documenta, em primeiro lugar, seu processo de fabricação e o tempo em que é feito. O pensamento de Ferro não se tornou hegemônico e, se atualmente historiadores de fato trabalhem com fontes fílmicas, isso não signiica que sejam completos seguidores de Ferro. Não é consensual, por exemplo, a importância que ele dá para “o não visível”, para o que escapa dos ilmes e das intenções de seus autores. De todo modo, algo permanece inegável: “o 64 ilme histórico, tomando como base eventos passados, ilustra problemas políticos contemporâneos e opera, de ponta a ponta, uma translação em direção ao presente” (Sorlin, 1974: 267. Tradução nossa). Dessa maneira, examinar Os anos JK hoje em dia é observar o desejo corajoso de, na segunda metade da década de 1970, celebrar uma igura icônica da democracia brasileira. O jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho haviam sido assassinados entre 1975 e 1976 e, embora os crimes tenham contribuído para desmoralizar a chamada “linha dura” e a distensão começasse pouco a pouco a se colocar desde o mandato de Geisel, a abertura só vem com o general João Batista Figueiredo (1979-1985), último presidente militar. Ou seja: o ilme de Tendler não poderia ter sido lançado antes. O documentário de longa-metragem de Silvio Tendler traça a trajetória do ex-presidente da república Juscelino Kubitschek de Oliveira, com base nas atuações parlamentar e executiva de âmbito regional e federal de sua carreira política. O ilme articula a narração voice over do ator Othon Bastos com arquivos fotográicos e audiovisuais que datam de 1940 a 1976 e com entrevistas que o cineasta realizou com personalidades políticas contemporâneas de JK. Tendler alia um trabalho exaustivo de pesquisa histórica ao vultoso material textual, iconográico e sonoro, para fundamentar a imagem do estadista brasileiro no trinômio “respeito, liberdade e anistia”. O ilme apresenta, ainda, o movimentado contexto do país no período do pós-Segunda Guerra Mundial e reconstitui o ambiente político no qual se deu o Golpe de 1964, contendo um questionamento implícito da legitimidade do regime militar. Como diz Jean-Claude Bernardet em um artigo escrito logo após o lançamento de Os anos JK: O ilme parte da premissa de que o regime político atualmente vigente no Brasil é ruim, o que ele não precisa demonstrar, pois se dirige implicitamente a um público que pensa dessa forma. Bastarão algumas imagens grotescas e sinistras de presidentes militares [...] para conirmar esse dado (Bernardet, 2003: 243). 65 Na abertura do ilme, surgem planos com fotograias e gravações radiofônicas do ato de promulgação da Constituição de 1946. O plano inicial mostra a manchete do Correio da Manhã: “Promulgada, ontem, solenemente, a Nova Constituição”. Enquanto se ouve a gravação do “Noticiário Radiofônico da Agência Nacional”, são reproduzidas fotograias do momento do pronunciamento. Um trecho de cinejornal mostra a assinatura do presidente Eurico Gaspar Dutra. Mais adiante, no plano-sequência que inaliza a abertura do documentário, Juscelino toma posse da presidência em juramento à mesma Constituição que havia ajudado a elaborar quando deputado federal. Esse destaque dado à promulgação da Constituição não pode ser pensado separadamente do fato de que, no momento da conclusão do longa de Silvio Tendler, já fazia dezesseis anos que essa Constituição deixara de valer integralmente, por conta das emendas que surgiram na esteira do Golpe de 1964 (Sodré, 2010: 473); no inal de 1966, o Ato Institucional Número 4 determinava um novo projeto de Constituição e revogava a de 1946 por completo (Sodré, 2010: 474). Pé-de-valsa Sem criticar diretamente o regime militar então em vigor, o documentário ressalta o papel de JK como um presidente que respeitava a Constituição. Ele é caracterizado como um homem simpático, carismático, “pé-de-valsa”, elegante, atencioso, popular e, acima de tudo, democrático, ouvinte das reivindicações feitas pelos setores sociais. Um dos exemplos disso é o episódio da manifestação estudantil contra o aumento da tarifa do transporte de bonde elétrico, promovida pela empresa Light. O ex-líder estudantil da União Nacional dos Estudantes (UNE), Marcos Heusi, dá a sua versão sobre o encontro que teve com o presidente JK naquela ocasião. Ele comenta que o presidente estava lúcido sobre a situação e se mostrou disposto a aceitar a reivindicação dos estudantes. Segundo Heusi, o presidente cedeu a ele a cadeira presidencial, durante a conversa, num gesto de cortesia e para mostrar como o estudante se sentiria se estivesse 66 no lugar do presidente. O ex-estudante alegou que o presidente cumpriu com a promessa de manter congelado o preço da tarifa. A narração conirma o cumprimento do acordo. Elabora-se, assim, a imagem de um homem compreensivo ou, nas palavras de Bernardet, “de um presidente liberal que sabia lidar com os vários setores da sociedade e as várias forças em presença no jogo político”, de alguém que “absorve e neutraliza os conlitos dentro da legalidade, inclusive quando é hostilizado” (2003: 244). O ápice dessa característica está na questão da anistia, abordada quando o documentário evoca a intentona de militares da Força Aérea Brasileira. Liderados pelo Major Veloso, eles se organizaram na região Amazônica, tentando criar um foco de guerrilha com o objetivo de proclamar uma nova “República do Galeão”4 em protesto à gestão de JK. A ação foi contida pela própria FAB, e JK não ordenou punições graves ou exonerações dos cargos. Para um espectador dos anos 2000, a anistia aos militares concedida por JK soa como um prenúncio da maneira como a ditadura militar terminaria, em 1985: com anistia “geral e irrestrita”. Tanto no governo JK quanto depois, os militares golpistas não seriam punidos. Assim, além de salientar a postura conciliadora do presidente, o ilme acaba por fornecer elementos que permitem compreender a subserviência da democracia brasileira ao poder militar. Em alguns trechos, o ilme apresenta o presidente como um sonhador, comparado a Dom Quixote. Dentre seus projetos desbravadores, o mais importante é, evidentemente, a fundação da nova capital federal. O depoimento do arquiteto Oscar Niemeyer exalta o entusiasmo de JK como principal responsável para a concretização da utopia de Brasília. Nem só de elogios, porém, se constitui o retrato de JK proposto por Silvio Tendler. O cineasta faz ressalvas com relação a sua opção por abrir estradas e incentivar a criação de parques industriais de empresas estrangeiras. “JK não entendeu a diferença entre a Volkswagen no Brasil e a Volkswagen do Brasil”, diz, de maneira um tanto irônica, o narrador. Ainda que sutil, a crítica serve, também, para pensar o nacionalismo e a política industrial do período em que o ilme foi lançado. 67 No consenso público, a imagem de gestor desenvolvimentista vinculada a Juscelino Kubitschek não lhe foi atribuída no governo presidencial; ela já o acompanhava desde quando era prefeito de Belo Horizonte. Na presidência da República, ele lança a agenda de modernização das atividades econômicas produtivas do País. Vivia-se, então, o contexto da “linguagem do desenvolvimento”, conforme expressão cunhada no período, segundo a observação da historiadora Vania Maria Losada Moreira (apud Ferreira e Delgado, 2003: 159). A industrialização está na pauta de urgência, no pacote de reestruturação econômico-administrativa do Plano de Metas de Kubitschek. Mobilizando não apenas os setores da construção civil, como também indústrias de base e de bens duráveis, o presidente contava com os políticos de seu partido PSD e do aliado PTB na aprovação da realização das obras. A aliança entre PSD e PTB é classiicada pela socióloga Maria Victória de Mesquita Benevides como o “ponto ótimo” da política naquela situação (1976: 59). No ilme, ica evidente a relação entre os partidos aliados e a identiicação de algumas ideias de JK com as de Getúlio Vargas, pois ambos defendiam a bandeira do desenvolvimentismo. Alguns trechos mostram retratos e imagens em movimento dos encontros entre ambos, conversando muito próximos e sorrindo. O carisma de Juscelino Kubitschek conquistou a aprovação de Vargas, unindo PSD e PTB no combate à oposição da UDN de Carlos Lacerda, Brigadeiro Eduardo Gomes e Juarez Távora, ex-líder tenentista e concorrente de JK. O plano-sequência em que Vargas visita uma plataforma de extração de petróleo, da recém-fundada Petrobrás, sinaliza as ações preparatórias do novo parque produtivo para a fase da indústria automobilística, nos anos 1950. A sequência do ato de inauguração dessa empresa estatal de exploração petrolífera abre com Vargas chegando, em pé e acenando aos presentes de dentro do automóvel em movimento. Em seguida, vêm o plano geral dos trabalhadores e outros planos do estadista tocando o líquido preto, na pose para a posteridade. O ato solene do aperto de mão entre Vargas e um presente, ambos com as mãos besuntadas de petróleo, simboliza o pacto do governo brasileiro 68 com o desenvolvimento industrial. O caráter combativo de Juscelino Kubitschek aparece em outro ponto do ilme, na celeuma com o presidente Café Filho. As imagens de Café Filho com os “militares anti-getulistas” Eduardo Gomes e Juarez Távora surgem numa recepção no salão de cerimônias do palácio presidencial. Em seguida, vê-se o plano conjunto do pronunciamento de Café Filho, sentado à mesa de seu gabinete, cercado de políticos, jornalistas e alguns partícipes. As imagens do pronunciamento estão sincronizadas com uma declaração voice over de JK sobre a tentativa de Café Filho de desestabilizar sua campanha presidencial. A resposta de Kubitschek refuta as acusações do presidente. Depois dos resultados das eleições, JK sofreu uma intentona contra a sua posse legítima. Resolvida a situação, ele assume a presidência da República em 1956, tendo como vice o membro do PTB João Goulart. Já como chefe de Estado, passa a visitar os Estados Unidos da América e a Alemanha Ocidental. Os motivos das viagens a esses países, segundo Paulo Fagundes Vizentini, residem no interesse de JK pela tecnologia alemã, e na manutenção de boas relações com o governo estadunidense, para atrair o investimento estrangeiro (Vizentini, 2008: 20). No ilme, podemos identiicar planos que mostram a chegada de JK aos Estados Unidos, ao lado de Richard Nixon, do presidente da época, Eisenhower, e de Foster Dulles. Conforme a explicação do narrador, o presidente era uma personalidade encantadora e com poder de persuasão eicaz. Ele consegue simpatia até mesmo das personalidades mais inluentes da política internacional. Os comentários do narrador sobre o seu modo elegante e agradável com as autoridades nacionais e internacionais mostram a habilidade do presidente de tornar prazeroso o momento de negócios. Nos planos em que visita as instalações de uma fábrica alemã, conferindo as maquetes de navios e testando um jipe numa pista com o trajeto irregular, o presidente está à vontade, sorridente e esportivo. Em uma curta sequência, JK também é mostrado como um bom cristão ao visitar e ser abençoado pelo Papa Pio XII. Um estadista para ganhar a credibilidade e evitar ser chamado de 69 comunista, no período da Guerra Fria, precisa demonstrar sua fé católica. Filme-túmulo Sobre as imagens do sepultamento de JK, morto num acidente na Via Dutra em 1976, o narrador reforça seus princípios de “respeito, liberdade e anistia”: cumprir a Constituição, dar liberdade de manifestação e expressão e anistiar os revoltosos. O ilme de Silvio Tendler faz, assim, prova de coragem e ineza de diagnóstico: reconstitui o momento do golpe de 1964, opõe o jogo democrático dos anos JK à ditadura que sobreveio, reproduz trechos de discursos de Che Guevara e aborda o assassinato do estudante Edson Luiz. O im do governo JK é considerado, pelo ilme, como o im da cordialidade na condução da política brasileira. Como diz a voz do narrador, sua morte, “num momento feito de mesquinharias e ressentimento”, serviu para atualizar uma série de temas que permaneciam fundamentais na política brasileira, dentre eles o da anistia, debatido até hoje. O ilme de Tendler teve um grande sucesso de bilheteria, estimado em cerca de 800 mil espectadores. Em 1981, o cineasta chega a uma plateia ainda maior (estimada em 1,8 milhão de espectadores) com O mundo mágico dos Trapalhões, documentário sobre o quarteto de humoristas, produzido por Renato Aragão e com narração de Chico Anysio (Mengardo, 2011: 14). O terceiro título lançado por ele no início da década de 1980 é Jango (1984), dedicado à igura do presidente João Goulart, deposto em 1964, no golpe que marca o início da ditadura. Agora sim, o regime militar estava em seus estertores e era possível abordar frontalmente as estruturas que o haviam estabelecido, vinte anos antes. O ilme foi visto por cerca de 500 mil espectadores. Com Os anos JK, Silvio Tendler cumpre papel crítico como realizador ao concentrar nessa narrativa fílmica muito mais do que imagens e vozes gravadas de uma experiência – ou de uma trajetória política. Em seu texto, Bernardet faz uma ressalva importante: o ilme de Tendler baseia-se quase exclusivamente no uso de materiais oriundos de cinejornais. Segundo Bernardet (2003: 250-251), apesar do tom crítico da locução instaurada 70 pelo cineasta, as imagens são oiciais e traduziriam somente o ponto de vista das elites. Sua crítica atinge de maneira ampla os ilmes de montagem históricos, “ilmes-túmulos”, como diria Chris Marker, cujos autores trabalham necessariamente com um material fílmico limitado. A recuperação, revalorização, ressigniicação das imagens cinematográicas ligadas à história do Brasil acabam operando predominantemente, se não totalmente, no âmbito do poder. Quando se louva tão insistentemente tal recuperação das imagens históricas brasileiras, o que de fato se elogia é a recuperação das imagens do poder, mesmo se tratadas com ironia (Bernardet, 2003: 251). Embora a crítica de Bernardet seja válida e pertinente, é inegável que montagens como a de Silvio Tendler demonstram uma crença tremenda no “poder das imagens” (Marin, 1993), poder que escapa às intenções de seu autor e no qual se apoiam ilmes de montagem posteriores, como os de Harun Farocki (En sursis, 2007) e Rithy Panh (La France est notre patrie, 2014), baseados exclusivamente em imagens rodadas por “carrascos”, sejam eles os agentes de campos de concentração e extermínio nazistas ou representantes dos colonizadores. Ao se apoiar nas imagens “oiciais” dos “anos JK”, Silvio Tendler observa-as com ainco, como se elas pudessem revelar algo além de suas camadas mais supericiais; como se pudessem mostrar também contradições, fraquezas, conlitos que estariam escondidos em camadas mais profundas da imagem. O olhar do cineasta, em um tempo posterior, seria capaz de revelar e traduzir, por meio de seu comentário irônico. De todo modo, o longa de Silvio Tendler traz, por um lado, uma importante contribuição para o debate sobre a representação histórica da igura de Juscelino Kubitschek. Por outro lado, ao apresentar para o espectador rupturas e continuidades existentes entre o período em que JK governou e o ano de sua morte, já no pós-1964, o ilme de Tendler revela relações de força entre os interesses dos grupos hegemônicos de nossa sociedade que 71 permaneciam extremamente atuais quando do lançamento do ilme. Tais embates, não seria demais dizer, continuam vivos no Brasil do século XXI. 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São Paulo: Perseu Abramo, 2008. 72 Notas: 3. Sobre o papel de Marc Ferro nas relações entre História e cinema, ver também Pascal Dupuy, “Histoire et cinéma” in L’homme et la société, nº 142, 2001/4, e Michel Marie, “Texte et contexte historique en analyse de ilms” in CinémAction, n° 65, 1992: “Cinéma et Histoire, autour de Marc Ferro”. 4. República do Galeão é como icou conhecido o Inquérito Policial e Militar (IPM), sob os auspícios da Aeronáutica, instalado na Base Aérea do Galeão, em agosto de 1954, para investigar o Atentado da Tonelero, que vitimou o major Rubens Vaz. O episódio levou ao suicídio de Getúlio Vargas. 73 IX. (Re)encenações do exílio Tangos, o exílio de Gardel (Tangos, el exilio de Gardel, Fernando Solanas, Argentina/França, 1985) Lívia Fusco A Paris da década de 1970 é o cenário de Tangos, o exílio de Gardel, longa do diretor argentino Fernando Solanas. A história trata da experiência de um grupo de exilados argentinos na capital francesa, tentando sobreviver e realizar uma peça teatral – que leva o mesmo título do ilme – sobre a ditadura argentina. A ligação entre teatro e cinema vai além da encenação da narrativa, já que o longa, dividido em atos, lembra a estrutura de uma peça teatral. A costura realizada entre o teatro e o cinema, utilizando Paris como pano de fundo, é feita por Solanas pelo tango. A música liga o ilme a um período determinado e a um gênero cinematográico que esteve muito em voga na Argentina. De 1931 a 1943, produziu-se um número signiicativo de ilmes que tinham o tango como elemento central ou que exibiam 74 alguns números de dança e música do gênero. Esses trabalhos icaram conhecidos desde o começo do cinema sonoro na América Latina como “ilmes de tango”. Participavam dessa produção grandes cantores populares. O ícone mundial do tango, Carlos Gardel, foi o protagonista de uma série de ilmes rodados fora da Argentina, como foi o caso de El tango en la Broadway (1934) e Melodía de arrabal (1933), dirigidos pelo francês Louis Gasnier. Alguns desses ilmes foram rodados nos Estados Unidos e na França. O próprio Gasnier ilmou Melodía de arrabal reconstituindo cenários argentinos. A ligação entre Solanas e esses musicais é evidente. Embora Tangos, o exílio de Gardel tenha sido rodado em Paris, as paisagens da cidade não são cenários recriados servindo de ambientação ao drama, como é o caso dos “ilmes de tango”. Ao contrário, há uma comunicação intensa entre a cidade e o tango. No diálogo construído entre a Cidade Luz e o tango, transparece a escolha de Solanas em trabalhar com esses dois elementos: Paris simboliza o exílio e o tango é o responsável por conectar as personagens exiladas e o grande público aos costumes de seu país de origem, a Argentina. No início de cada ato, um grupo de jovens dança e canta diretamente para a câmera. A canção fala das diiculdades no exílio e do sonho de viver em um país onde todos tenham voz. A repetição faz desse número uma espécie de “moldura”, que enquadra todos os acontecimentos narrados, como se fosse um manifesto, no qual se reairma a esperança de um destino melhor para aqueles que foram obrigados a abandonar seu país. Ela é também uma homenagem a Paris – que acolheu tantos refugiados políticos. As belas locações escolhidas lembram as paisagens parisienses tantas vezes retratadas por musicais notáveis, como Sinfonia de Paris, realizado por Vincent Minelli em 1951, por exemplo. Por outro lado, a música, o ritmo, os passos da dança e a temática política fazem desse preâmbulo algo próximo a Os guarda-chuvas do amor (Les parapluies de Cherbourg), dirigido por 75 Jacques Demy em 1964. Como se trata de um número musical curto, pode ser visto como um “prelúdio” da tanguedia, drama musical que os personagens do ilme almejam montar. Porém, como o prólogo alude ao musical cinematográico, o tango não é a única referência e não pode ser considerado apenas uma introdução à história do exílio narrada por meio da música e da dança. Como se verá mais adiante, trata-se mais de uma relação contrapontística em que duas vozes melódicas se sobrepõem, trazendo consequências na própria interpretação da relação entre musical e exílio. A escolha de Solanas pelo domínio da icção para contar sua história pontua uma nova fase de sua carreira. La hora de los hornos: notas y testimonios sobre el neocolonialismo, la violencia y la liberación (1968), considerado seu ilme documentário manifesto, dirigia-se a um espectador militante. O ilme tornou-se lendário também pelas diversas exibições clandestinas, numa época terrível da ditadura. Já em Tangos, a didática militante desaparece e se busca atingir um público maior. É um trabalho mais relexivo, ligado às questões que unem o cinema a problemas políticos de natureza diversa que os de outrora. Se em La hora de los hornos Solanas tenta impulsionar uma tomada de consciência política e ideológica por meio de estímulos intelectuais, em Tangos, o exílio de Gardel a narrativa e a mise en scène, repletas de metáforas e alegorias, visam mobilizar o imaginário coletivo tanto do cinéilo como do espectador argentino comum. Em paralelo com o desenrolar da história das personagens, surgem três iguras míticas argentinas: Carlos Gardel, Enrique Santos Discépolo e San Martín. Eles aparecem quando as personagens estão atravessando alguma situação limite e, sempre envoltos em uma atmosfera de mistério, trazem mensagens de esperança. O ato “A volta ao mundo” é um bom exemplo de como essas iguras fazem o contraponto com as diiculdades que os protagonistas estão atravessando: Juan Dois e Mariana tentam desesperadamente se comunicar com Juan Um, que está na Argentina. Discépolo aparece para consolá-los 76 e lhes explicar que Juan Um não revela o inal da obra pois tem medo da repressão da ditadura. A eles se junta, em seguida, Gardel e alguns músicos, transformando o diálogo em um número musical. A canção Anclao en Paris serve de fundo para a dança entre Mariana e Juan numa rua parisiense enevoada. A névoa branca da cena nos remete à descrição de um sonho, o que pode ser lido como uma metáfora de esperança e de que tudo será resolvido, ao mesmo tempo em que é um comentário irônico da situação do casal. Outra característica importante de Tangos, o exílio de Gardel é a mescla de distintos gêneros. Os mais evidentes são o melodramático e o musical, que permeiam toda a narrativa. O musical, apoiado no tango, como já comentado anteriormente, apresenta-se como pano de fundo para o gênero melodramático impresso nas histórias individuais de cada membro do grupo de exilados; histórias estas repletas de sofrimentos que comovem o espectador. O ilm-fresco é outro gênero encontrado no longa. Segundo Pablo Piedras, em seu artigo sobre o diretor: “O modelo de ilm-fresco remete à possibilidade de construir um grande relato sobre a pátria no qual se privilegiam símbolos, metáforas e alegorias que excedem o âmbito da história individual de uma série de personagens para construir um discurso totalizante sobre a Nação” (2011: 656. Tradução nossa). É possível aproximar a arquitetura do grande relato sobre a pátria com o ideal do próprio San Martín de formar uma grande nação latino-americana que pudesse fazer frente à dominação estrangeira. San Martín, além de ser considerado o Libertador, tem um papel fundamental na construção da identidade nacional argentina. O militar e jornalista Bartolomé Mitre, através da famosa biograia que escreveu sobre San Martín, enfatiza ainda mais a imagem de herói do Libertador. Partindo do testemunho do exílio, no primeiro ato, a jovem María, que também faz parte do grupo de jovens dançarinos do “prólogo”, narra em off sua história e a de um grupo de artistas exilados no subúrbio de Paris 77 durante os anos 1970 e 1980. Desse modo, ela, além de narradora, é também personagem da trama. O primeiro ato se divide em três subtítulos: “Miséria em Paris”, “Tanguedia de Ángel” e “A poética de Juan Um”. Nesse primeiro ato, a miséria é revelada através das diiculdades das personagens em conseguir um emprego e nos subempregos que são obrigados a aceitar. Um exemplo disso é a sequência na qual dois membros do grupo vestem uma fantasia de cachorro com uma placa da cadeia de lojas C&A e saem divulgando a marca por centros comerciais. A ironia nesta vida de cachorro literal é acrescida pelo fato de que um dos exilados, o único uruguaio da trupe, aquele que faz chamadas internacionais sem usar moedas, é apelidado de Miséria5. A “Tanguedia de Ángel” e “A poética de Juan Um” estão ligados à concepção desordenada da tanguedia El exilio de Gardel, que passa a ser um dos ios condutores do ilme. A tanguedia mescla música, tragédia e comédia, apropria-se da popularidade e do caráter nostálgico do tango, bem como da familiaridade que o espectador tem com os gêneros da tragédia e da comédia. De outro lado, criar a tanguedia seria recontar a história do exílio como resistência. Além disso, ela é vista pelos personagens como um credo estético: uma poética do risco, segundo Juan Um, o autor ausente da peça. Sem sequência preestabelecida, o diretor que tentar montá-la deve inventar ou encontrar uma lógica para ela. A anarquia da proposta tem como um dos objetivos diluir as fronteiras entre os gêneros e celebrar a incompletude da arte, no seu esforço de se aproximar da vida. O ilme cria uma dialética entre aspectos familiares ou facilmente identiicáveis com a desordem da proposta estética. El exilio de Gardel busca a amplitude do exílio de quem vai e de quem ica, usando como ponto de apoio o luxo entre a ditadura militar pela qual a Argentina passa e Paris, a “capital de todos os exílios”. O grupo de exilados tem como objetivo concluir esse projeto. Mas essa não é uma tarefa fácil. Logo no início, o primeiro diretor da tanguedia, Ángel, se recusa a continuar na peça. Para seguir com o projeto adiante, Juan Dois convida um francês, Pierre, para dirigi-la. Na sequência seguinte, Juan Dois convida Pierre para seu apartamento, 78 meticulosamente decorado com personagens míticos do coletivo argentino. Nessa atmosfera, entre diversos papéis desorganizados contendo parte da obra, ele apresenta para o francês o berço da tanguedia, tendo ela a ideia da descontinuidade, repleta de variações, organizada de forma orgânica, imperfeita e sem im. O segundo ato tem como introdução a música cantada sobre as cartas do exílio pelo mesmo grupo de jovens, seguida do subtítulo “Cartas do exílio”, que revela o quão importante é para as personagens receber notícias de sua pátria. Para ajudá-los a “dialogar” com seu país de origem e a viverem melhor no exílio, surge uma comissão de solidariedade, composta por franceses e exilados, em que se discutem desde questões ilosóicas até práticas como, por exemplo, a organização das viagens de parentes. O subtítulo que segue é “Um em Paris” e revela o processo criativo da tanguedia sempre em mutação, usando como pano de fundo diversos momentos da encenação que sugerem ao imaginário coletivo uma espécie de “manifesto político” de forma poética livre e intuitiva. O grande clímax do ilme acontece em “Eram dois exílios”, em que o conceito anárquico da criação livre da tanguedia passa a afetar o grupo diretamente, já que sem encontrarem um “inal” para a obra não será possível colocá-la em cartaz. Sem a realização da tanguedia de forma convencional – como produto inal para uma plateia –, o processo de criação no qual ela foi gerada icaria desvalidado e se perderiam os benefícios econômicos que a peça em cartaz traria para o grupo de exilados. Esse embate entre concreto e irreal pode ser lido como uma metáfora do rompimento da geração dos anos 1960 com certa ideologia socialista. Além de lutar por uma sociedade sem diferenças entre classes sociais, essa ideologia tinha um caráter anticapitalista e antiamericano. Ela havia se espalhado rapidamente entre os países latino-americanos e resultado no Nuevo Cine Latino Americano (NCL). Foi através desse movimento que, pela primeira vez, a produção cinematográica latino-americana se reuniu formalmente, tendo como principais características a proposta de conscientização política, o tom de denúncia, o uso de circuitos alternativos 79 de difusão e a organização das ideias expressas em forma de manifestos e de publicações nas décadas de 1960 e 1970. Solanas, junto ao Grupo Cine Liberación, atuou diretamente no NCL. “Ausências” marca o terceiro ato. Nele, Gerardo leva María e sua mãe Mariana para conhecer a casa, nos arredores de Paris, onde viveu San Martín durante seus 25 anos de exílio. Isso signiica que as experiências dos desterrados já são parte da História, correndo o risco de se transformar num fato quase esquecido, a exemplo dos exílios de San Martín e do próprio Gardel. Dessa forma, Solanas, por meio de Gerardo, evoca iguras importantes do coletivo argentino, aproximando mais uma vez o grupo de exilados do heroísmo desses personagens já históricos, provavelmente instigando uma espécie de resistência dentro do grupo de exilados e no próprio espectador. Em “Milonga louca” e “A volta do Mudo”, a procura pelo inal da tanguedia é acentuada pelo trecho já comentado em que Juan Dois e Mariana buscam desesperadamente entrar em contato com Juan Um e se encontram com Discépolo e Gardel. O quarto ato começa com uma passeata feita pelas ruas de Paris, na qual os exilados reclamam por seus parentes desaparecidos, seguido pelo subtítulo “Lolo”. Ali, Juan Dois volta para Argentina, sinalizando um novo momento. Veem-se trechos da encenação da tanguedia sob a direção do francês Pierre. Em sua concepção destacaram-se fotos em preto e branco de enfrentamentos e de lugares da memória. Na trilha sonora, ouve-se a música Solo. Essa equação de tango e imagem tem a função, nesse momento, de legitimar e fazer o espectador reletir sobre o passado e o presente da Argentina. “Volver” traduz o que deveria ser o título desse último ato: Gerardo doente recebendo a visita de San Martín e Carlos Gardel, que dizem que já é hora de ele voltar. A questão que paira é como icará a Argentina após a ditadura? Ao apropriar-se dessas duas iguras míticas do inconsciente popular argentino, Solanas evoca muito mais do que uma nova gramática estética para seu ilme 80 e a vontade do próprio povo argentino de pertencer a seu país, mesmo a quilômetros de distância. Ele está referenciando o próprio cinema argentino do exílio6, do qual Solanas não foi parte, praticado por realizadores exilados como forma de se fazerem presentes na lida política, mesmo estando geograicamente em outro lugar e muitas vezes de forma clandestina. María, que fala diretamente para a câmera, como se convidasse o espectador a participar da história com ela, toma assim a posição de interlocutora privilegiada do público – mesmo que nem todas as histórias ou imagens possam ser consideradas como fazendo parte de seu relato. Ela narra a sequência inal, em que relembra com nostalgia as tentativas de ligar para Buenos Aires da cabine telefônica da estação, o desfecho de cada um dos personagens e seu impasse entre França e Argentina. Devemos, então, questionar: quem é ela? Filha de desaparecido, ela viu os esbirros da ditadura levar o pai e acompanhou, ainda criança, a mãe no seu exílio. Como ela cresce e se torna adulta fora da Argentina, não vive o exílio como saudade insuportável, pois é capaz de criar laços com o país que a acolheu e que os exilados mais velhos não conseguem estabelecer. A peça El exilio de Gardel funciona como um espelho do próprio ilme. A narração da jovem María imprime o gênero narrativo épico ao contar a história do povo argentino transformando o grupo de exilados em heróis da resistência, além de projetar a própria interioridade dos personagens e, porque não, do próprio Solanas em personagens heroicos do folclore argentino como San Martín, Carlos Gardel e Discépolo. A tanguedia também se coloca como credo estético de regras. Dessa forma, Solanas consegue diluir as fronteiras entre esses gêneros narrativos. Solanas busca fazer de Tangos, o exílio de Gardel não apenas uma homenagem aos ilhos do exílio, mas o retrato de uma época. Revela a problemática, pouco discutida, dessa geração nascida entre ditaduras, que não se sente pertencente ao local onde nasceu e nem àquele em que vive. A construção dessa nova identidade carrega com ela a esperança e o futuro do país. 81 Referências bibliográicas: CAMPO, Javier. “Argentina es afuera. El cine argentino del exilio (1976-1983)” in LUSNICH, Ana Laura e PIEDRAS, Pablo (eds). Una historia del cine político y social en Argentina: formas, estilos y registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2011. PIEDRAS, Pablo. “Fernando Solanas: esplendor y decadencia de un sueño político” in LUSNICH, Ana Laura e PIEDRAS, Pablo (eds). Una historia del cine político y social en Argentina: formas, estilos y registros (1969-2009). Buenos Aires: Nueva Librería, 2011. Notas: 5. O primeiro subtítulo do primeiro ato faz um trocadilho com o apelido desse personagem. 6. “El cine argentino del exilio (1976-1983) representó una realidad política sin que sus realizadores estuviesen presentes en el teatro de las operaciones, el lugar de los hechos” (Campo, 2011: 225). 82 X. A transgressão no ilme A história quas verdadeira de Pepita, a Pistoleira A história quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira (La historia casi verdadera de Pepita la pistolera, Beatriz Flores Silva, Uruguai, 1993) Dirceu Antonio Scali Junior “Os artistas são a antena da raça”, diz-nos Ezra Pound (1934-2006), expressão citada e posta em evidência trinta anos depois por McLuhan (1964). Essa frase possibilita-nos olhar o fazer artístico não apenas como um ato de inspiração, mas também como uma conluência de alguns fatores que em suas conexões permitiriam a concepção da obra de arte, não necessariamente engajada, mas simbolizante de determinadas conformações econômicas, políticas e socioculturais da época na qual (con)vive. Ser a antena diz respeito ao captar, por intermédio de uma dada intuição e também de uma espécie de consciência que dialogam de forma dialética e possibilitam um acesso do artista ao que é fundante quanto ao entorno, quer dizer, ele capta as superfícies e as estruturas que as sustentam. 83 Estar em determinado local e num determinado tempo conferiria, assim, uma espécie de pertencimento e, ao mesmo tempo, a possibilidade de leitura das contingências advindas desses lugar e tempo, porém apenas o pertencimento talvez não desse as condições suicientes para a captura dos internos à realidade para a qual nos apontam obras de arte dignas dessa nomenclatura. Essas condições suicientes talvez pudessem ser-nos dadas por algo como uma determinada originalidade e espontaneidade nesse estar, de tal maneira que se possibilite uma expressividade e originalidade do próprio ser. Falamos até aqui de dois termos da frase de Pound, a antena e a raça (raça no sentido do aqui-agora de uma convivência espaço-temporal). Falemos agora do terceiro termo, o artista. O artista seria, em nossa equação, aquele que possibilita uma possível interpretação da raça para ela mesma num certo tempo e também para outros tempos. É aquele que, ao pertencer, transcende, podendo captar o sutil das conexões dos ios do real, mas só pode ser denominado como tal se realiza a obra. Então, é aquele que transforma a técnica – que é algo especíico e de certa maneira datado – em artifícios. Artifícios esses que poderíamos pensar como as técnicas do fazer, concebidas historicamente, manejadas pela subjetividade do artista na criação de algo original e expressivo que seria a obra. Nesse sentido, o artista só pode ser a “antena da raça” porque em si mesmo, e porque é pertencente a ela, capta tanto o que está à vista (de todos) quanto o que se oculta no íntimo do real. A diretora Beatriz Flores Silva nos mostra que nos internos da realidade daquele Uruguai do período em que se passa a trama do ilme A história quase verdadeira de Pepita, a Pistoleira (entre fevereiro e junho de 1988) nem tudo eram rosas. Como os artistas de Pound, Flores capta o momento e o transforma em arte; arte essa que é original na medida em que reconstrói as maneiras do narrar, e o olhar tem de ser desviado, realizando um volteio para tanger a interpretação de uma realidade nela mesma. A realidade interpretada nela mesma, como própria e diferente ao mes84 mo tempo, é possibilitada pela transgressão estabelecida pela personagem Susana, uma mulher de trinta e poucos anos, mãe de uma garotinha de sete anos, que está em diiculdades inanceiras e inserida em um mundo preponderantemente masculino, por vezes machista, que não “cumpre sua função” de sustentação. Para sobreviver, vê-se transformada em Pepita, a Pistoleira, apropriando-se, assim, de tudo o que lhe fora negado. A transgressão de Susana se dá não pela agressividade – pois a protagonista realiza seus assaltos com a tranquilidade de quem realiza um trabalho formal, bate o cartão de ponto e, ao inal do expediente, recebe o merecido pagamento pelo trabalho realizado –, mas por ela colocar em evidência a ineiciência das instituições sociais em cumprir suas funções, sejam elas suprir as necessidades essenciais do cidadão, no caso das instituições governamentais, ou transmitir informações relevantes e averiguadas, no caso dos veículos de comunicação. Essa atitude da personagem ganha mais relevância quando pensamos em um Uruguai que acabara de sair de uma ditadura (que vigorou entre 1973 e 1985) e passava por mudanças políticas fundamentais. A história da protagonista pode dividir o ilme em dois momentos. No primeiro, vemos Susana às voltas com suas diiculdades inanceiras, a deambular pelas ruas, com a ilha a tiracolo, tentando vender quinquilharias e vivendo em um local inóspito. Trata-se de cenas típicas de uma história melodramática. O segundo momento começa no instante em que lhe ocorre a ideia de cometer os assaltos, ao olhar para a casa de empréstimos. Nessas imagens, signiicativamente, há um cartaz com os dizeres “a vivir dignamente”. Há algo de pueril, naïf, no comportamento de Pepita quando utiliza o dinheiro dos assaltos nos passeios e diversões. De modo que se pode julgar que ela passa a viver de uma forma que seria “digna” do ponto de vista da ideologia de determinada classe social. Entretanto, viver dignamente pode também signiicar, nesse momento, ainda que por um ato radical, deixar o papel de vítima para tomar em suas próprias mãos as rédeas de seu destino, que vai se conirmar na decisão de facilitar sua captura para 85 inocentar outra mulher, mãe de duas meninas, injustamente culpada por seus crimes. No ilme, as diversas instituições são simbolizadas por elementos do mundo masculino, como policiais, jornalistas, entre outros. Nesse sentido, ela se coloca no lugar do outro, em uma posição de poder numa sociedade em que seu papel estaria mais associado ao da vítima (daí a transgressão), mas ao mesmo tempo evidencia a busca de seu próprio lugar. O mundo dos homens é retratado em tons brancos, pretos ou em cores esmaecidas, reletindo a inexpressividade dos poucos personagens masculinos que transitam pelo ilme; e quando não medíocres, são caricatos – como o gordo chefe de polícia, por exemplo. Em certos momentos, a polícia torna-se objeto de cenas cômicas, como em uma das cenas em que dois policiais pedem documentos para uma senhora cega, explicitando, na verdade, a “cegueira” dos mesmos oiciais que, segundos atrás, haviam permitido que Susana lhes escapasse, deixando-se enganar por suas desculpas inverossímeis (quando pedem seus documentos, ela diz que perdeu tudo e que estava indo ao banco para comunicar o extravio do talão de cheques). Com efeito, para ser apanhada, foi necessário que Susana facilitasse ao máximo e é impossível conter o riso na cena em que ela espera a polícia jogando tarô e olhando de quando em quando para a rua, a im de ver se os policiais já haviam chegado. Tudo se passa como se ela jogasse paciência com seu próprio destino. Essas anedotas permitem ao ilme se colocar em rota de colisão com o mito que a mídia tenta criar de Pepita. A visão da personagem perigosa é ridicularizada o tempo todo. Quando é presa, o objeto que pode incriminá-la, que o policial retira dos pacotes que a personagem carregava, é um brinquedo de criança. A própria “pistola” é o cabo do guarda-chuva da ilha. Mesmo os assaltos parecem brincadeiras de menina fazendo arte... O que está por trás da “cegueira da polícia” é a ideia de que a visão dos homens está permeada pelo preconceito e por estereótipos. Pepita só poderia ser alguém perigoso e agressivo. Por isso, a princípio, não acreditam 86 que ela seja uma mulher “comum” e buscam a pistoleira entre os travestis e outros suspeitos. Quando prendem a mulher errada, ela é considerada suspeita não apenas porque é erroneamente identiicada como Pepita, mas também porque tem como marido um chino (homem moreno dotado de traços indígenas). Pepita, para ser levada a sério por suas vítimas, airmava que um chino cruel era seu comparsa e que estava observando o assalto para interferir caso ela necessitasse. Susana apelava para o preconceito, bastante difundido, de que os malfeitores de traços indígenas são particularmente cruéis. É bem conhecida a inversão dos fatos históricos, em que a vítima é apresentada como o algoz. Aliás, o western nos habituou a ver, no índio, um bandido cruel. O próprio fato de a polícia deixar Susana escapar várias vezes deve-se a ela ser uma jovem loira, de olhos verdes e, portanto, acima de qualquer suspeita. É digno de nota o fato de as vítimas de Pepita serem sempre mulheres. Isso faz com que as cenas dos assaltos e mesmo as da prisão sejam de uma leveza e cumplicidade em que o lado humano se sobressai, haja vista o fato de a assaltante ser reconhecida por seu sorriso e não por uma aparência, digamos, de agressividade ou violência. Os momentos lúdicos acabam por dar uma leveza às situações tensas, como os assaltos. Em determinada cena, Susana e a ilha brincam de gangsters, enquanto se ouve ao fundo o som de um noticiário comentando os assaltos de Pepita, a Pistoleira. O que move o mundo das mulheres são as histórias melodramáticas que Susana vê na televisão ou aquelas que conta para suas vítimas sobre o que a levou para o mundo do crime. As cores fortes marcam o exagero sentimental que parece unir as personagens femininas. O encontro entre Susana e suas vítimas, quando de sua prisão, provoca certa comoção. As mulheres perguntam por sua ilha e chegam a desejar-lhe boa sorte. Dessa maneira, a transgressão aparente (de ordem jurídica) oculta uma mais profunda que é a emancipação da própria mulher uruguaia, que nos é evidenciada pela cumplicidade das mulheres que trabalham nas instituições, que são vítimas dos roubos de Pepita; cumplicidade essa no sentido do compartilhar de uma mesma situação socioeconômica como se todas 87 se espelhassem na personagem que simbolizaria o desejo de participar e de ter os direitos que lhes foram propostos como conquistas políticas, porém em vez de supridos, foram suprimidos. Pepita, por meio de suas narrativas sedutoras, acaba por colocar em evidência a necessidade de as mulheres, para se emanciparem, estabelecerem suas próprias narrativas, evitando assim a assunção das narrativas oiciais que colocavam a mulher em situação de subserviência ou menos valia. A própria pistola, símbolo fálico, é tomada como arma e, na narrativa, nenhuma das vítimas realmente a viu. Esse recontar as histórias estabelece uma narratividade do feminino ou uma apropriação da narrativa que daria à mulher a possibilidade de se colocar como agente na sociedade que se instaura. Beatriz Flores Silva, com seu ilme, realiza o mesmo gesto transgressor de Pepita com sua arma ictícia: em certa medida, a autora, artista poundiana, antenada com as vicissitudes das mulheres de seu entorno e além, nos traz pelo seu narrar os desejos e conquistas daquelas mulheres. Em La historia casi verdadera de Pepita la pistolera, o “quase” é uma forma irônica de se referir à divisão do cinema em icção e documentário. Beatriz Flores Silva sabe muito bem como a História (não precisa ser a oicial) sempre tratou as mulheres. O ilme brinca com as categorias documentário/icção, propondo uma nova maneira de se narrar histórias e uma estética distinta do que se fazia até então. Tornou-se, por esse motivo, um novo marco no cinema uruguaio. Referências bibliográicas: POUND, Ezra. Abc da literatura. São Paulo: Cultrix, 2006. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 1964. 88 XI. O espírito da contra-perspectiva ou a razão do caminho inverso Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, Brasil/Portugal, 1995) Sérgio César Júnior Terra estrangeira é um ilme brasileiro realizado no período do cinema da Retomada, quando o Estado já não fomentava mais a arte do audiovisual no país (Nagib, 2002: 21). A trama se passa no governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992), durante o processo de privatizações de empresas estatais, conisco da poupança e demissões nos setores privados nacionais (Nagib, 2002: 196). Essa situação de instabilidade econômica obrigou muitos brasileiros a migrarem para outros países, buscando novas oportunidades de trabalho. Walter Salles e Daniela Thomas basearam o argumento de Terra estrangeira nesse contexto. A obra trata da desvalorização da cidadania brasileira, do intenso luxo migratório e do destrato de Portugal com os imigrantes de suas ex-colônias da América e da África (Oricchio, 2003: 195). Os recursos de imagem e som nos sugerem a sensação de estranheza, 89 contradição e ruptura. Nos planos iniciais a música de Zé Miguel Wisnik, executada no piano, tem o tom agudo e forte de um som trágico e desumano – como um grito quase inaudível de alguém desesperado e em apuros, sofrendo por estar num lugar hostil. Os planos em cor preta chapada simulam páginas de passaporte carimbadas apresentando o elenco artístico, numa ordem seguida conforme a aparição de seus personagens. Em cada nome dos atores, ouve-se uma forte batida da pressão do carimbo, impressionando a página do passaporte. No último plano surge o Selo da República Federativa do Brasil em cor cinza, recebendo o carimbo do título da obra (Terra estrangeira). Ressalta-se aqui a ideia de que há um destino desconhecido para o brasileiro. O título é uma crítica ao país que não reconhece os seus conterrâneos nas políticas de governo e o coloca na situação de desterro. Os planos conjuntos que abrem a primeira cena focam os edifícios ao redor do Elevado Costa e Silva, na cidade de São Paulo, mostrando apartamentos com luzes internas apagadas; restando acesa apenas a do quarto de Paco. O antigo prédio tem o aspecto de penitenciária, pois cada janela lembra uma cela. As luzes apagadas simbolizam a atmosfera de apagão econômico e existencial da era Collor. A socióloga Marina Soler Jorge observa os sentimentos de solidão, angústia e desejo de ascensão social e econômica, que provocam em Paco o estado de insônia (Jorge, 2009: 48). Ele declama um trecho de Fausto (1808-1832), de Goethe (1749-1832), preparando-se para o teste de ator, o qual ele acredita que vai mudar sua vida. A leitura do Fausto já nos antecipa o fato de o personagem buscar aquilo que está além do seu alcance, e que só poderá conseguir por meio de pactos sinistros, com pessoas sem escrúpulos e em ambientes clandestinos. Na fachada lateral do edifício em frente ao Elevado Costa e Silva há um outdoor com a propaganda de peças íntimas, uma masculina da marca Mash e outra feminina da marca Hope. Os termos de origem inglesa enfatizam o caráter de dominação estrangeira em nosso território. Por outro lado, as semânticas das palavras dão um sentido importante para o con90 texto tratado no ilme. A palavra Mash signiica triturar, amassar até formar um malte ou se tornar líquido. Hope é esperança. Num modo geral, o anúncio publicitário contém os sinais de pessimismo da situação social do país, pois indica que a esperança de alguém será esmagada por uma ordem verticalizada. Maria, mãe de Paco, sente diiculdade ao subir as escadas com as compras, mas lhe sobra apenas esta opção, visto que o elevador está com defeito. Nessa cena, Paco ajuda a sua mãe a entrar com as sacolas e critica a falta de sensibilidade do síndico em providenciar o reparo. Este comentário serve como denúncia ao mau funcionamento dos aparelhos públicos no país, pois, nesse caso, o síndico pode ser comparado a um mau administrador público. Maria é a personagem que contém uma expressiva carga retórica na relação entre o povo brasileiro e o governo Collor. Mãe do protagonista (Paco), ela encarna o novo modelo brasileiro de chefe de família do inal do século XX: mulher, viúva e responsável pelo sustento e cuidados do lar e dos ilhos. Na meia-idade e de origem basca, Maria representa as muitas europeias que chegaram ao Brasil nos primeiros quartéis do século XX, junto ou não de suas famílias, refugiando-se das instabilidades econômicas e dos conlitos bélicos na Europa, para tentarem viver dignamente num lugar próspero e estável. Com ilho jovem ainda para sustentar, ela simboliza a mulher que enfrenta idoneamente as situações sem comprometer a integridade do que restou do seu núcleo familiar. Num plano médio, Maria está no sofá da sala vendo televisão. Em primeiro plano, a imagem da ministra da economia Zélia Cardoso de Mello, no televisor, anuncia a ação de conisco das contas poupança dos brasileiros. A sequência é trágica, pois Maria imediatamente sofre um infarto. Todo o esforço de reservar a quantia necessária para realizar o sonho de visitar sua terra natal, San Sebastián, é frustrado pelo plano econômico desastroso do governo recém-empossado. Maria personiica a República Brasileira ao sofrer o golpe contra a estabilidade econômica. 91 A morte da mãe deixa Paco abalado psicologicamente, perdendo tanto a perspectiva quanto sua integridade moral, e ele acaba desenvolvendo seu lado mais sombrio e ambicioso. Ele passa a transitar em lugares onde se relacionam tipos humanos de caráter precário, que tratam de negócios escusos, objetivando apenas saciar seus interesses pessoais. Assim, Paco se torna uma das vítimas dos projetos políticos e econômicos de Estado, que não incluem soluções aos problemas crônicos sociais. A situação de crise no Brasil propicia as brechas iscais para que quadrilhas recrutem pessoas como Paco, que nunca atuaram em comércios ilícitos. Desolado pela perda materna e em diiculdades inanceiras, Paco aceita contrabandear diamantes para Portugal, com a intenção de, em seguida, conhecer San Sebastián, a terra de sua mãe. A fotograia em branco e preto faz referência ao noir; porém, Terra estrangeira não cumpre à risca as regras do gênero – mesmo com cenas de perseguição, violência, assassinato e tráico de pedras preciosas, o esperado suspense não se concretiza. Desse modo, talvez possamos pensar que o interesse pela estética do gênero se sobrepõe à sua inluência na narrativa. Tampouco é possível limitar essa obra a um único gênero, pois percebemos que as inluências são múltiplas. As referências abrangem desde obras do expressionismo alemão e do cinema noir até chegar ao cinema brasileiro dos anos 1930. Especiicamente são citados o Fausto, de F. W. Murnau (1926); Limite, de Mário Peixoto (1931); O falcão maltês (The maltese falcon), de John Huston (1941); Aguirre, a cólera dos deuses (Aguirre, der zorn gottes), de Werner Herzog (1988); e Paris, Texas, de Wim Wenders (1984). Agravada no governo Collor, a situação de crise é uma consequência de governos anteriores. Em Terra estrangeira, as imagens de Lisboa e o contrabando de diamantes não podem deixar de ser associadas às práticas ocorridas desde o período da América portuguesa – entre os séculos XVII-XVIII, em que os minérios preciosos eram transportados em santinhos do pau oco. Numa associação entre os dois períodos históricos, Walter Salles e Daniela Thomas ligam o processo crítico da imigração aos grandes saques perpetrados pela Europa em suas colônias. Do mesmo 92 modo, as inúmeras imagens do Elevado Costa e Silva – uma ferida aberta na capital paulista que leva o nome de um dos mais truculentos militares brasileiros7 – relacionam a crise inanceira às recentes ditaduras americanas do século XX, herdeiras do processo histórico de depauperamento do continente. Como o sobrenome de Paco se pronuncia “Exaguirre”, o ilme propõe um jogo de linguagem a ser decifrado. O “ex” como preixo de Aguirre tanto pode desqualiicar os novos viajantes quanto o próprio personagem lendário, já que “ex” pode ser entendido como negação (Jorge, 2009: 56). No contexto crítico do ilme, a segunda opção parece mais adequada. Nesse sentido, o que se subtrai ao conquistador é a possibilidade de transiguração de seus atos nefastos num acontecimento grandioso. Assim, a viagem dos imigrantes retira do horizonte a tradicional atmosfera épica que sempre envolveu a travessia dos oceanos. Paco não está sozinho nesta desventura. Ele conhece Alex, garçonete de um bar popular onde o patrão aproveita da sua condição de imigrante brasileira para explorá-la. Ela namora Miguel, um trompetista, contrabandista de diamantes e viciado em narcótico. O casal é amigo de Pedro, o português proprietário da livraria “A Musicóloga”. O livreiro tenta fazer de Miguel um trompetista reconhecido na cidade, ao lhe arranjar apresentações numa casa noturna frequentada por imigrantes afro-lusófonos. A iniciativa não tem êxito, pois o público da casa não se interessa pela música do brasileiro. Miguel entra em conlito consigo mesmo. Em plano próximo, após executar a música, somente a parte esquerda de seu rosto está iluminada, embora o olho esteja fora do campo de visão. Este contraste de claro e escuro pode signiicar uma cisão de caráter, visto que Miguel está no dilema entre enfrentar as diiculdades da carreira artística ou debandar ao submundo do tráico de diamantes. Por enquanto ele é apenas alguém que recebe do Brasil a remessa das pedras para entregá-la aos contrabandistas. A precariedade inanceira, a falta de público para sua arte e a desilusão na nova terra torna-o um pessimista e, para compensar a decepção, faz das drogas o seu refúgio. O plano conjunto do quarto de hotel mostra o lado 93 egoísta do musicista. Ele não se importa mais com Alex. No momento em que ela o repreende por ter gasto as economias com drogas, Miguel ica despreocupado, fumando e ouvindo Miles Davis. A sua justiicativa é de que ele não vai entregar os diamantes e vai vendê-los por conta própria. Porém, o plano não dá certo, e ele acaba morto durante a negociação das pedras. Paco e Alex não conseguem deixar Portugal, nem mesmo pelo mar. O plano-sequência do litoral com o barco encalhado perfaz uma imagem contrária à dos antigos navegantes que singraram com êxito em sentido à América. Os personagens se deparam com a desventura e a frustração ao tentarem o sentido inverso da viagem do descobrimento. Dada a diiculdade de retornar ao Brasil, resolvem prosseguir por terra a San Sebastián. A estrada é a única via de acesso que lhes restou para se refugiar e escapar das encrencas da capital lusitana. As circunstâncias forçaram Alex a se aproximar mais de Paco, obrigando-os a constituírem um vínculo afetivo, cada vez mais estreito. Eles já não vivem mais ao sabor de seus planos pessoais e pouco importa que as políticas de governo, do Brasil e de Portugal, tenham determinado a sua sorte, pois eles dependem, agora, apenas do destino, como no tema das canções de fado que escutavam em Lisboa. A música no ilme é um elemento relevante da relação entre Brasil e Portugal, pois contextualiza e cria atmosferas, inserindo os personagens no tempo, no espaço e na densidade de seus estados espirituais. A música-título, Terra estrangeira, de Wisnik, em breve trecho apenas instrumental incide no plano conjunto de um pequeno barco navegando próximo da região portuária lisboeta. A música também marca a apresentação de Miguel e Alex. Se a lírica dessa canção fosse cantada, as estrofes estariam pertinentes aos sentimentos dos personagens: Muito além ou aquém da saudade / Sou ninguém ou alguém além da dor / Que chegou até onde vai o mar e voltou / Encalhado no fado estou / Viajante adiante da viagem / A levar todo mar e Atlântida / Sou curare de uma tribo 94 sem margem / Sem mais terra sem mal a buscar. Saudade, frustração e desterro ocupam as consciências de Miguel e de Alex. O pequeno barco representa as possibilidades reais mínimas da vida dos imigrantes lusófonos em Lisboa – o limitado espaço de circulação na cidade, pouco dinheiro, subempregos e os pardieiros. Simbolicamente estão eles neste pequeno barco “A levar todo mar e Atlântida”, desfazendo-se das utopias e tentando manter o curso marítimo durante a procela dos novos tempos. O fado é o gênero musical que ganha expressividade numa única cena do ilme. Primeiro, por ser uma instituição da identidade lusitana; segundo, pelo tema da saudade, lágrimas, tragédias e dor, produtos do destino. Não é gratuito que fado signiique destino. Na cena em que Paco está no restaurante à mesa com Igor, Kraft (francês, dono do contrabando) e Carlos (comparsa de Igor), vemos Maria João (fazendo o papel de si mesma) interpretar Estranha forma de vida 8. Os versos “Coração independente, / Que não comando / Vive perdido entre a gente, / Teimosamente sangrando, / Coração independente [...]” expressam o desejo de Paco de se libertar da enrascada. Ele declama dissimuladamente versos do Fausto para se safar do clima tenso e escapar da armadilha preparada pelos bandidos. Paco literalmente vira a mesa e foge, para tentar seguir o seu próprio “coração independente”. Em Estranha forma de vida, a lírica trata de um sentimento forte e incontrolável. Da mesma maneira, ao ser pressionado pelos traicantes, Paco decide enfrentar a angústia e o medo e trilhar seu próprio caminho apesar dos perigos. A canção Vapor barato (1971), de Jards Macalé, é o tema de Alex e Paco durante a fuga. Essa música surgiu num período de frequentes exílios na história do Brasil, entre os anos 1960 e 1970, quando muitos brasileiros deixaram o país devido à forte repressão da ditadura militar. Próximo ao movimento tropicalista, o compositor nos fala tanto de uma viagem real, aquela empreendida pelos exilados, quanto metafórica, aquela do barato ou alheamento que os psicotrópicos produzem nas pessoas (Zan, 2010: 87). Vapor também tem dupla acepção, signiicando “navio velho”, uma 95 forma de chamar o narcotraicante. A viagem de Paco dialoga intensamente com a canção de Macalé. A primeira frase de Vapor barato, “eu estou tão cansado”, contextualiza também o desânimo da geração dos anos 1990, vivendo sem perspectiva política, cultural e econômica. Por outro lado, a viagem, em Terra estrangeira, é a realização do sonho de ir embora sem lenço e sem documento, como apregoava o hino dos tropicalistas, Alegria, alegria (1967), de Caetano Veloso. Vítima do governo Collor, Paco fará de sua viagem forçada uma resistência, não apenas recusando que o transformem em mais um imigrante marginalizado, mas resgatando Alex dessa condição. Em plano conjunto na estação de metrô de Lisboa, os trens se movimentam entre as breves paradas de embarque e desembarque. Pessoas circulam pela estação passando em frente ao violinista cego de aparência deplorável, com óculos escuros, tocando uma música triste. Também é sugestivo que ele esteja sentado embaixo da placa que sinaliza a saída. Com a sua arte no local público, ele espera receber algum tipo de apreciação dos transeuntes apressados e indiferentes ao seu valor artístico. Apenas deixam algumas moedas no estojo do violino. De modo desastrado, um deles esbarra no estojo, espalhando as moedas e os diamantes, que estavam escondidos nele. Em primeiro plano, em plongée, pés apressados pisam nas pedras preciosas. Os diamantes incrustam-se nas solas dos calçados e são levados aos destinos indeterminados; ninguém percebe. É uma alusão ao modo como é feito o tráico, por pessoas comuns, no anonimato em meio à multidão, em vias subterrâneas, na vida cotidiana. Trata-se da indiferença do indivíduo diante da arte e da banalização do humano perante a hegemonia do capital. O violinista simboliza a nossa precária condição gerada pelas crises de grande proporção provocadas pelos governos neoliberais. Sem enxergar a saída, o violinista não percebe o valor de sua arte, e isso o mantém na vida subterrânea. A música triste que ele toca é o seu fado – última tentativa de espantar os males de sua alma para sobreviver. Nossa situação é análoga à do violinista e à dos usuários do metrô, com passos objetivos, anônimos na multidão, 96 buscando a saída e a própria identidade. Terra estrangeira é um ilme numa contra-perspectiva da viagem, da razão invertida dos valores e do espírito sem corpo, na praia deserta onde repousa a nau inerte do vapor barato Referências bibliográicas: JORGE, Marina Soler. Cultura popular no cinema brasileiro dos anos 90. São Paulo: Arte e Cultura/ FAPESP, 2009. NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002. A utopia no cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2006. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. ZAN, José Roberto. “Jards Macalé: desainando coros em tempos sombrios” in Revista USP, nº 87. São Paulo: setembro/novembro/2010. Disponível em: http://www.nics.unicamp.br/~marcelo/muspop/Musica_Popular/Publicacoes_iles/Zan%202010. pdf. Acesso em 16 de setembro de 2013. Nota: 7. Em julho de 2015, foi retomado um projeto de lei (em tramitação desde 2013) chamado Ruas de Memória, para alterar o nome de ruas, pontes, praças e viadutos relacionados à ditadura militar – uma recomendação da Comissão Nacional da Verdade. O Elevado Costa e Silva deve oicialmente passar a se chamar Minhocão, nome pelo qual é popularmente conhecido. 8. Estranha forma de vida (1962), de Alfredo Rodrigues Coelho e Amália Rodrigues. Um dos intérpretes brasileiros desta canção foi Caetano Veloso, no ilme Fados (2007), de Carlos Saura. 97 XII. Pablo Trapero e o novo cinema argentino O outro lado da lei (El bonaerense, Pablo Trapero, Argentina/Chile/França/Holanda, 2002) Daniela Gillone e Rosângela Fachel Segundo longa-metragem realizado por Pablo Trapero, El bonaerense é considerado um ilme emblemático do chamado Nuevo Cine Argentino. E, mesmo que para Trapero esta seja uma nomenclatura arbitrária que agrega sob um mesmo espectro produções heterogêneas que não foram realizadas sob a égide de um movimento cinematográico organizado para tal, ele reconhece o diálogo que há entre as produções e que une seus realizadores enquanto geração: No hubo un maniiesto y eso para mí le da la validez. De casualidad aparecieron películas en común, y muchas veces los directores ni se conocían. [...] Lo que sí creo es que hay una nueva generación en el sentido literal de la palabra. Durante los años setenta hubo una dictadura muy fuerte que práctica98 mente eliminó cualquier posibilidad creativa en Argentina, y en los ochenta resurge con la democracia, pero esta generación no era la generación de ese momento, era la mayoría de la gente que volvía a ilmar después de la dictadura, entonces en el medio hubo una generación ausente, y es la que aparece en los noventa, que analiza todo el cine de los ochenta, todo el cine de la dictadura, y que vuelve a una conexión con los sesenta, que fue el momento en que Argentina tuvo un cine de autor o independiente (Entrevista de Trapero em Letelier, 2003). Fica evidente a postura de Trapero de reconhecer, em seus ilmes (bem como nos de seus contemporâneos argentinos), um fazer autoral diretamente relacionado ao cinema argentino da década de 1960, época em que ganharam notoriedade internacional dois de seus cineastas argentinos favoritos: Fenando “Pino” Solanas e Fernando Birri, cujos ilmes, politicamente engajados e panletários, nunca deixaram à margem o comprometimento com o fazer cinematográico enquanto manifestação e linguagem artística. O Nuevo Cine Argentino surge como um cinema realizado por jovens egressos de faculdades de cinema. Oriundo de um contexto de relexão teórico-prática sobre o fazer cinematográico e de uma época com maior oferta de ilmes e com a facilitação do acesso a eles, o Nuevo Cine é um cinema que nasce do Cinema. E que constrói sua identidade através de processos produtivos e criativos de apropriação e de transculturação, nos quais a leitura da alteridade hegemônica estrangeira associa-se à releitura da tradição nacional, a partir de um olhar fortemente engajado em seu tempo e em seu espaço. Apesar de serem obras heterogêneas que não se auto-airmavam como um movimento, os ilmes do Nuevo Cine surgem com as mesmas diiculdades, ou seja, as de começar a produzir sem possuir um espaço especíico e sem contar com um apoio inanceiro concreto. E, mesmo que seus realizadores não defendam uma estética especíica, é possível identiicar em 99 suas obras características comuns. Quanto à linguagem cinematográica, decorrente das carências inanceiras e de uma evidente busca pelo “realismo”, há recorrências, como o imbricamento das linguagens iccional e documental, a utilização de atores não proissionais e de locações reais (naturais ou urbanas), evitando cenas de estúdio, bem como a captação de som direto. Compõe-se, assim, uma estética que foi chamada de “neorrealismo moderno”9 por sua proximidade às proposições do neorrealismo italiano. Outra marca importante com relação a esse Nuevo Cine é o fato de os diretores, geralmente, serem os autores ou coautores dos roteiros e, também, de exercerem controle absoluto sobre a produção, resgatando a igura do cineasta/autor. Outra forte marca desses ilmes é contar histórias “mínimas”, histórias cotidianas de pessoas comuns, tendo como temáticas a marginalidade, a pobreza, os excluídos sociais, a classe média decadente e a violência. Características essas que, como veremos a seguir, estão presentes em El bonaerense. O ilme está narrativamente centrado em Zapa, que será obrigado a migrar de um povoado para a região periférica de uma metrópole. A trajetória do protagonista será narrada através de uma estética que recorre a elementos do neorrealismo italiano10. O plano-sequência tão característico neste cinema é um dos recursos que sustentam a abordagem da trajetória de Zapa, pois ele expressa uma narrativa que não se baseia numa concepção tão controladora de produção, e que busca introduzir o acaso e o luxo contínuo, elementos que estariam mais próximos da manifestação da própria vida. Assim, a realidade cotidiana do protagonista é apresentada tendo como cenário locações reais que são apresentadas quase que documentalmente. Tematicamente, Trapero apresenta a história de um personagem comum e ordinário, contada sobre o pano de fundo de fatos políticos e sociais reais, dando visibilidade a situações que estão muito próximas à realidade e fomentando, assim, um olhar crítico sobre a realidade social. A combinação de atores proissionais e não proissionais (aspecto que também aproxima a produção às proposições do Dogma 95) instaura um estranhamento ao imbricar realidade e icção, construindo um entre100 -lugar narrativo que está alicerçado na percepção do diretor de que: Nunca se tendrá bien claro dónde empieza la icción y dónde termina la realidad, digamos. Esto es algo que pasa mucho en los países latinoamericanos, donde se ven muchas situaciones más absurdas que las que uno puede concebir en la icción desde lo político, desde lo cotidiano, en cualquier lugar. Uno se enfrenta a cosas en la vida real que superen cualquier idea de la icción. Esa ambigüedad de la icción es la que realmente me interesa. Entonces, el documental como herramienta de copia de la realidad no me interesa, ni tampoco me interesa hacer películas que copien la realidad porque el cine es icción (Entrevista de Trapero em Portal del Cine y el Audiovisual Latinoamericano y Caribeño, s/d). O ilme se inicia apresentando uma rua quase deserta de uma cidade interiorana, na qual, sob um sol inclemente, cinco homens observam calados e prostrados ao que deve ser uma partida de futebol de garotos. O espectador não vê, mas advinha pelas vozes escutadas à distância. Quatro desses homens estão sentados à mesa enquanto o quinto, um policial, está apoiado sobre uma das cadeiras. Passam uma bicicleta, um cachorro latindo e um carro de som, mas nada disso parece perturbar a monotonia da cena, que só será quebrada por uma mulher, que, sem se aproximar muito, avisa a um desses homens, Zapa, que Polaco o está chamando. É nesse momento, então, que conhecemos o protagonista de El bonarense, Zapa, um jovem pacato que trabalha como chaveiro para o grosseiro Polaco, a mando de quem ele vai abrir um cofre em uma situação muito suspeita, mas à qual ele parece completamente indiferente. Por esse trabalho, ele é acusado de roubo e preso, mas também isso lhe parece indiferente. Para livrá-lo da prisão, Zapa conta com a ajuda de seu tio, que paga sua iança e, através de um jogo de favores, consegue arranjar-lhe um trabalho em La bonaerense, a polícia da Grande Buenos Aires. Vem daí o título do ilme, que faz um jogo entre o nome da polícia e a condição de ser um 101 bonaerense, um habitante de Buenos Aires; mas que é, também, a alcunha pela qual são conhecidos os integrantes da polícia da cidade. A cena em que Zapa é levado pelo tio para tomar o ônibus rumo a Buenos Aires demarca a fronteira entre o mundo interiorano e o mundo metropolitano, fronteira que será cruzada pelo personagem e pelos espectadores. Ajuda a compor a cena rural e quase fora do tempo, desse momento limiar, a música folclórica gauchesca que se escuta ao fundo, na qual se destaca a voz de um bastonero, pessoa que coordena alguns tipos de danças nos bailes, que avisa: “A la voz de aura! Aura!”. Aura é um crioulismo para ahora (agora), que é utilizado pelo bastonero para indicar o momento em que os bailarinos devem fazer um novo passo. E, como vemos no ilme, “agora” é o momento para Zapa dar um novo passo em sua vida. Não por acaso, só após essa cena será apresentado o título do ilme. O volume da música vai diminuindo até que ela desapareça e surja, em letras brancas sobre a tela negra, o título: El bonaerense. Inicia-se, nesse momento, uma nova narrativa, uma narrativa urbana, vertiginosa e contemporânea. Para apresentar a diferença entre os ambientes interiorano e urbano, Trapero utiliza planos amplos, oferecendo uma visibilidade geral do conjunto do ambiente. O povoado parece viver em um tempo mítico, fora do tempo, com suas ruas monótonas e quase vazias, o entorno rural da casa de Zapa, o descampado que serve de terminal de ônibus, onde ele embarca rumo a Buenos Aires. Já a Grande Buenos Aires contemporânea reúne um turbilhão de luzes, imagens, sons, ruas movimentadas e cheias de pessoas e de carros. Além disso, demarca a diferença entre os dois ambientes o fato de as cenas no povoado serem realizadas com movimentos de câmera suaves em contraposição à câmera dinâmica e a menor duração dos planos que vão construindo a imagem fragmentada da cidade. E se a música do ambiente interiorano é a nativista, a música do ambiente urbano é a cumbia villera. Subgênero da cumbia, que nasceu nas villas (favelas) argentinas, a cumbia villera, assim como o Nuevo Cine Argentino, surgiu em meio à crise econômica da década de 1990. E, ao se dedicar a dar voz à villa, não por acaso 102 comparte temáticas com esse Nuevo Cine, como: a pobreza, o universo do tráico e do consumo de drogas, a marginalidade, a exclusão social, a falta de perspectivas e a violência. Enquanto manifestação musical híbrida, a cumbia villera nasceu do encontro transcultural da cumbia com o reggae, com o ska e com a música eletrônica, que é entrecruzado pela música folclórica argentina. Em contraposição aos instrumentos tradicionais da música nativista argentina, a cumbia villera é realizada através de instrumentos eletrônicos, como a bateria eletrônica e keytars (teclado-guitarra), com a utilização de sintetizadores, de vozes de teclado e de efeitos sonoros. E, enquanto representação identitária dos indivíduos da villa, suas canções utilizam a linguagem popular das vilas e dos marginais (lunfardo e lenguaje tumbero) que é repleta de gírias. Ao mergulhar no universo dos habitantes de La Matanza, partido marginal da Grande Buenos Aires onde nasceu Trapero, a trilha sonora urbana do ilme não poderia ter outro ritmo que não fosse a cumbia villera. Ficou a cargo de Pablo Lescano, líder do grupo Damas Gratis e principal expoente da popularização da cumbia villera na Argentina, dar cadência às cenas urbanas de El bonaerense. Para Trapero, que submerge seu ilme no ritmo de Damas Gratis e reconhece a força do estilo musical que cruzou fronteiras do marginal para o comercial, “la cumbia villera es el resultado de una mezcla de ritmos mucho más activa de lo que sugiere su título. Lo interesante de la cumbia villera es que va más allá de su lugar de origen. Musicalmente hay mezclas súper interessantes” (Entrevista de Trapero em Plotkin, 2002). É justamente a condição híbrida do ritmo que estreita o seu diálogo com o fazer cinematográico de Trapero, que igualmente se constrói através de processos de apropriação e de transculturação. A vida de Zapa na cidade resume-se à Bonaerense e ao processo de metamorfose de Zapa em bonaerense, processo que inicia com uma ruptura brusca em sua identidade, uma vez que, ao chegar à cidade, não será mais chamado pelo apelido, tratamento íntimo e familiar, passando a ser identiicado por seu sobrenome, Mendoza. Novato interiorano, ele precisa 103 se submeter às palavras depreciativas e aos desmandos de seus superiores, tendo como único alento o caso amoroso que desenvolve com Mabel, outra policial. Aos poucos, Zapa adentra um mundo de brutalidade marginal regido pela corrupção, pelo abuso de autoridade e pela força, passando de observador à agente dessas violências, o que faz com que Mabel termine o relacionamento com ele. Policial corruptível, ele é procurado pelo Polaco para um novo trabalho; no entanto, o inal inesperado e violento faz com que Zapa decida voltar a seu povoado. A violência é, então, o leitmotiv do ilme; ela move os personagens, delinquentes e polícias; ela está presente na pobreza e na decadência das instituições de Buenos Aires; e ela se ouve na linguagem dos personagens e na cumbia villera, que demarca o território desses personagens urbanos de fala coloquial e vulgar. Produzido em um momento em que a polícia de Buenos Aires estava muito depreciada em consequência das muitas acusações de corrupção e de imprudência, o ilme de Trapero mostra a Bonaerense de seu interior. Sem julgamentos éticos ou morais e sem distinções dicotômicas entre personagens bons e maus, nessa perspectiva a cumbia villera, oriunda do contexto marginal, acaba sendo, também, a trilha sonora da polícia, revelando a permeabilidade da fronteira que separa os dois contextos. O ilme mostra a Bonaerense em seus paradoxos: a corrupção, as agressões e o oportunismo dos policiais se misturam ao clima de irmandade e de companheirismo que existe entre eles. O crítico argentino Gonzalo Aguilar, ao analisar El bonaerense, destaca que: Delito e lei não estão totalmente diferenciados em El bonaerense. Forma-se, porém, uma associação, mas para que as coisas se coloquem em funcionamento é necessário um terceiro elemento: os afetos. A coloração afetiva faz com que o olhar do diretor sobre o estreito vínculo entre delito e lei não seja denúncia, mas de aproximação, de observação e até de envolvimento (Aguilar, 2008: 35. Tradução nossa). 104 A polícia é representada no ilme como uma comunidade na qual se estabelecem laços de lealdade e de suspeita. Para Aguilar, nesse lócus de afeto se produz uma divisão marcante entre a instituição polícia e a sociedade: enquanto de dentro da instituição se criam fortes laços, quase familiares, o lado de fora é percebido como um lugar de risco, vulnerável ao controle dos inimigos. Um exemplo se mostra na forma como um dos policiais explica a Mendoza/Zapa a situação em que se encontra a Bonaerense frente à sociedade da província: alguém que mata um cana (policial) é, para os que não pertencem à polícia, “um herói”; mas, para os policiais, é um negro de mierda. Gonzalo percebe, ainda, que os cidadãos de La Matanza, de maneira geral, icam em um “fora de campo” da narrativa e, se aparecem nas cenas, não chegam a se conigurar como personagens. Esse modo de representar o que está fora difere do modo como a polícia se percebe em si mesma. A ideia de Trapero parece ser a de deslocar a condição da polícia como um mundo asixiante em que certas ações erradas e imorais são vividas como normais, inevitáveis ou ainda corretas. Em defesa dessa percepção humana dos policiais, o diretor mostra que o afeto é central para o funcionamento da polícia, o que, por sua vez, desvia-a do caminho justo. O ilme termina com uma nova volta na jornada de Zapa que, assim como nas letras da cumbia villera, utiliza a trapaça e a fraude para vencer o sistema. Gloriicado e promovido em um estratagema criminoso, ele consegue voltar para casa e assumir um posto na polícia local. Mas, apesar de voltar a ser o Zapa, ele já não é o mesmo, pois sua passagem pela Bonaerense (onde experimentou a humilhação, a corrupção e a culpa) lhe marcou tão profundamente quanto o tiro que o faz mancar. A circularidade de seu destino, que parece estar iniciando um novo ciclo, é corroborada então pela música que acompanha as últimas cenas da narrativa onde escutamos mais uma vez a voz do bastonero, que novamente instiga: “A la voz de aura! Aura!”. Ahora. Agora! 105 Referências bibliográicas: AGUILAR, Gonzalo. Estudio crítico sobre El bonaerense: entrevista a Pablo Trapero. Buenos Aires: Picnic Editorial, 2008. BAZIN, André. O cinema – ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. “Cineasta: Pablo Trapero” in Portal del Cine y del Audiovisual Latinoamericano y Caribeño. Disponível em: http://www.cinelatinoamericano.org/cineasta.aspx?cod=54. LETELIER, Jorge. “Pablo Trapero, director argentino: ‘El bonaerense es una especie de esquizofrenia’” in Mabuse Revista de Cine, 08 de outubro de 2003. Disponível em: http://www.mabuse.cl/ entrevista.php?id=31391. MASINI, Fernando. “A opulência simples do cinema argentino” in Trópico – ideias de norte a sul, s/d. Disponível em: http://www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/2507,1.shl. PLOTKIN, Pablo. “Aquí y ahora. La cumbia: banda de sonido de la Argentina 2002” in Página 12, 17 de outubro de 2002. Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/no/12-426-2002-10-17.html. Notas: 9. A expressão foi usada por Serge Toubiana, em artigo publicado na Cahiers du Cinéma, em 2001, para se referir, justamente, a um ilme de Trapero, Mundo grúa (1999) que, conforme Toubiana, conirmava, à época, a renovação do cinema argentino (Masini, s/d). 10. Os ilmes neorrealistas buscavam romper com os modos de produções feitos nos grandes estúdios e com isso defendiam as ilmagens em locações, a atuação de atores não proissionais e uma decupagem que privilegiasse não a montagem, mas o plano-sequência. Para Bazin, o neorrealismo destacou-se das principais escolas realistas anteriores, assim como da escola soviética, porque não subordina a realidade a nenhum ponto de vista pré-determinado: “o ilme neorrealista tem um sentido, mas a posteriori, à medida que permite à nossa consciência passar de um fato para o outro, de um fragmento da realidade ao seguinte, enquanto que o sentido é dado a priori na composição artística [...]” (Bazin, 1991: 315). 106 XIII. Uma outra globalização audiovisual Encontro com Milton Santos, ou o mundo global visto do lado de cá (Silvio Tendler, Brasil, 2006) Vanderlei Henrique Mastropaulo Em janeiro de 2001, Silvio Tendler realizou uma entrevista com o geógrafo Milton Santos, célebre por sua trajetória de relexão crítica sobre as desigualdades causadas pelas formas de organização espacial segundo as necessidades da lógica capitalista mundial. Se este sistema é, em si, marcado por conlitos e contradições de origem econômica, social e política, tais características terão resultado também na coniguração dos territórios. Conhecido por sua independência de pensamento, o autor de obras como Por uma geograia nova (1978), A urbanização brasileira (1993) e A natureza do espaço (1996), entre outras, dedicou-se a desenvolver teorias sobre a organização espacial pelas ocupações humanas, principalmente em ambientes urbanos, formando redes dinamizadas pelas condições produtivas da economia. Após anos de relexão, Milton Santos publicou, em 2000, o livro Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal, no qual teoriza 107 a respeito de como tornar a globalização um fenômeno mais humano. Silvio Tendler tomou o livro como base para a realização do documentário Encontro com Milton Santos, ou o mundo global visto do lado de cá (2006) e, em acordo com as ideias do geógrafo, elabora um panorama que questiona os mecanismos de produção econômica da globalização, os efeitos ideológicos de seu discurso e de sua suposta uniicação planetária. Ambos não negam a globalização enquanto fenômeno social, mas a entendem como uma construção histórica e cultural de longa data. Este é o ponto de partida para contestar as ideias hegemônicas construídas em torno dela, em que interesses particulares se travestem de igualdade para todos os habitantes do mundo. Assim como o livro, o ilme esmiúça este “mundo confuso e confusamente percebido” (nas palavras certeiras do geógrafo) em que a globalização é construída de duas formas: como “fábula” e como “perversidade”. A “fábula” tem como base a produção de “imagens e do imaginário” sustentada pela velocidade da informação na dita aldeia global. A “perversidade” é visível em práticas econômicas cujos resultados geopolíticos potencializam desigualdades e a exclusão a níveis sem precedentes. Essas contradições se percebem, por exemplo, na paisagem urbana das grandes cidades, carregadas de sinais de negligência social (mendicância, trabalho informal, prédios abandonados). Porém, apesar do panorama um tanto desolador, livro e ilme atestam que essas contradições farão germinar a semente das novas formas de resistência, solidariedade e união entre os que lutam. Esta nova ordem será “uma outra globalização”, muito distinta do modelo atual. Não é tarefa simples traduzir as reinadas teorias de Milton Santos em narrativa audiovisual. Para tanto, Tendler constrói seu documentário com base na entrevista de 2001 e em conferências do geógrafo em universidades, nas quais são apontados os conceitos que guiam a crítica a esta globalização excludente. Estas sequências encontram apoio no conjunto de imagens de diversas procedências que o cineasta usa para pontuar as teorias. Há fotograias, material jornalístico de TVs de vários países, ma108 terial de arquivo, vídeos de organizações militantes, e outros documentários com propostas narrativas e preocupações sociais similares, como The Corporation (2003), de Mark Achbar e Jennifer Abbott, e Thirst (2004), de Alan Snitow e Deborah Kaufmann. Tendler utiliza ainda mapas, pois uma aproximação ao pensamento geográico precisa de representações cartográicas, elementos essenciais de comunicação convertidos aqui em instrumentos audiovisuais. Este recurso se faz imprescindível na sequência em que se explica o processo contemporâneo de fabricação de aeronaves, no qual cada parte de um avião procede de um país diferente apontado no mapa. Assim, esclarece-se de forma didática a atual divisão internacional do trabalho, conceito chave para entender o funcionamento da ordem econômica global, que hierarquiza as nações de acordo com o papel de cada uma na produção de bens de consumo e na geração de riqueza. Com esta e outras estratégias similares, o ilme desconstrói com grande eicácia o discurso padronizado sobre a suposta igualdade trazida pela globalização, repetido pela imprensa hegemônica nacional e internacional. Trata-se de um elegante exercício de militância audiovisual, realizado por um cineasta cuja carreira é marcada por ilmes de forte conteúdo político e que, mais uma vez, desenvolve seu tema de maneira contundente. Para desconstruir a “fábula”, faz-se necessário um recuo histórico. O prólogo apresenta dois momentos do fenômeno: a “primeira globalização”, com a violenta conquista da América no século XVI, cuja expansão territorial promovida por exploradores espanhóis e portugueses em busca de minérios e outras fontes de riqueza resultou no extermínio dos povos nativos; a “segunda globalização”, marcada pela fragmentação dos territórios. Explica-se: a exploração econômica de um dado espaço resulta na sua divisão em áreas centrais (mais ricas e opulentas) e periféricas (mais pobres e distantes das mais ricas), conforme as necessidades da ocupação, gerando um desnível entre áreas mais favoráveis à acumulação de riqueza e outras de menor valor. Esta fragmentação se agrava ainda mais com a velocidade desenfreada imposta pela globalização. Nestas condições, o desnível econômico entre regiões mais ricas e mais pobres torna-se abis109 mal, escancarando a miséria e concentrando ainda mais a riqueza. Por estas razões, Santos e Tendler se opõem ao discurso hegemônico do “globalitarismo”, fruto das teorias neoliberais cujas práticas econômicas trouxeram o desastre inanceiro à América Latina durante a década de 1990, período de instabilidade, desemprego e aumento da pobreza. A respeito deste tema, as entrevistas com Eduardo Galeano, Boubacar Boris Diop e Adetokunbo Borishade são precisas, pois ilustram as contradições impostas por este modelo econômico, gerador de extrema desigualdade social e de exércitos de miseráveis mundo afora. Esta e outras contradições inerentes a tal lógica global são postas em xeque. Como pode haver fome no mundo se há comprovada superprodução de alimentos? Como se pode imaginar a privatização da água, um bem essencial à vida? Por que se permite o livre trânsito de mercadorias e capitais internacionais e se proíbe o de indivíduos, barrados em fronteiras super vigiadas, sinal de violência impresso na paisagem? Como falar em democracia se a suposta formação de opinião se faz por pouquíssimos grupos de alcance mundial? Questiona-se ainda a falta de lógica do consumismo (este novo “fundamentalismo”, como airma Milton Santos) que cria falsas necessidades de consumo, cadeias de produção e exploração de matérias primas e bens e serviços vazios de signiicado. Ainda mais severa é a denúncia de todo o aparato tecnocrático que visa escamotear a exploração pelo trabalho em condições análogas à escravidão, realidade insuportável de vários países (inclusive o Brasil), que necessita de soluções urgentes. Por im, igualmente importante é o debate sobre concentração de mídia vs. liberdade de expressão. Não à toa, muitos temas vistos no ilme não se encontram entre os principais fatos veiculados em nossos meios de comunicação, visto que a seleção de assuntos e notícias segue interesses empresariais. Se a primeira metade do ilme se dedica a questionamentos e denúncias, a segunda metade propõe a busca de alternativas ao estado das coisas. O ritmo dinâmico muda e abre espaço à necessária relexão, para a qual Milton Santos elenca sinais que o permitem ser otimista na construção de uma globalização solidária. Os protestos e reivindicações por mudanças e os resultados 110 conquistados por organizações sociais são, para ele, formas de luta em busca de novos caminhos. Em paralelo a estas reivindicações, a emancipação dos povos será possível se acompanhada pela aplicação do conhecimento e pela apropriação da produção de discursos. Se antes o domínio técnico era exclusivo de poucos, hoje há meios alternativos acessíveis para gerar e transmitir informação e conhecimento graças, por exemplo, ao barateamento de equipamentos. Prova disso são os grupos periféricos que se apropriam da tecnologia digital, gerando uma inversão de forças que permitirá um futuro possível. O documentário apresenta exemplos, como o rap e o cinema popular. Entram em cena músicos, cineastas e artistas independentes, como Carlos Pronzato, Aline Sasahara e Adirley Queirós, que realizam trabalhos à margem dos circuitos culturais tradicionais. Tão importante quanto estas manifestações culturais e produtoras de conteúdos é a impactante sequência que recupera a luta do movimento contrário à privatização da água, em Cochabamba, Bolívia, liderado por Oscar Olivera, em 2000. A resistência popular ao gerenciamento privado desse recurso essencial à vida ganhou repercussão internacional, e trouxe a vitória do movimento quando o governo do país revogou o direito de exploração da água pela corporação envolvida no caso. O episódio mostra que a resistência organizada em torno de uma reivindicação legítima é o caminho para fazer frente às distorções econômicas aberrantes e gananciosas das corporações. Se a torrente de imagens e a estrutura narrativa da primeira metade remetem aos documentários militantes dos anos 1960 e 1970 (quase um collage audiovisual em tempos de produção digital), a segunda metade lança mão de fatos e informações que visam uma descolonização do discurso da globalização. Assim, Silvio Tendler mantém-se em franco diálogo com cineastas latino-americanos com os quais conviveu e que são referências no campo do cinema documentário, como o cubano Santiago Álvarez, o chileno Patricio Guzmán e o argentino Fernando Solanas. São cineastas que sempre mantiveram uma postura crítica e de denúncia à dependência econômica e à colonização cultural da América Latina. Sobre isso, vale recuperar o comentário irônico de Milton Santos, a respeito dos que insis111 tem em pensar, no Brasil, como se fossem europeus ou estadunidenses, o que resulta em distorções de análise do mundo atual. Ao inal, o geógrafo conclui ser possível uma outra globalização. Para tanto, mantém seu posicionamento político à esquerda. Entende necessário ser marxista, sobretudo hoje, pois as contradições do capitalismo nunca estiveram tão evidentes. Atribui papel indispensável ao Estado na organização de uma nova ordem e no exercício de suas funções públicas. Refuta, mais uma vez, as teorias neoliberais que pregam o esvaziamento do Estado, pois é papel estatal abarcar a todos e evitar a exclusão social resultante das regras do livre mercado. Milton Santos aponta ainda que o atual “totalitarismo de opinião”, capitaneado pelas grandes corporações de mídia, é o grande cerceador da democracia, esvaziando seu sentido. O curso da atual lógica global atenta contra a liberdade e, portanto, contra a cidadania. Isto se mostrará insuportável no futuro. Por ora, já se revela insustentável. Referências bibliográicas: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. 112 XIV. Dos heróis bandoleiros ao cobrador O cobrador (Cobrador: in God we trust, Paul Leduc, Argentina/Brasil/Espanha/França/México/Reino Unido, 2006) Daniela Gillone As iguras marginais estão representadas em um conjunto de ilmes produzidos durante os ciclos e movimentos mais capitulares do cinema da América Latina. A marginalidade heroica das revoluções e dos acontecimentos políticos do início do século XX, passando pelos movimentos indígenas e pelas repressões dos latifundiários no campo e da ditadura militar nas cidades, foi tematizada conforme a proposta política de determinados momentos do cinema. Durante o período clássico-industrial11 e no cinema de resistência da década de 1960, os ilmes ressigniicaram em versões romântica e revolucionária as representação das revoltas dos heróis bandoleiros: o Lampião no Brasil12, o Pancho Villa no México13 e o gaucho desbravador de fronteiras na Argentina14 – e ainda temos a coniguração de outras personagens marginais em outras cinematograias, tal como o cacique Tupac Amaru e as associações de sua imagem ao conlito 113 armado no cinema peruano. Esses heróis bandoleiros que izeram a história do início do século anterior inluenciaram na maneira de se pensar o contexto de dominação e colonização pelo cinema produzido durante as ditaduras militares. Essa associação da marginalidade à política do cinema suscitaria uma avaliação de ilmes cujos conteúdos são elaborados com estratégias desenvolvidas por seus diretores no plano político. Mesmo que de forma sucinta, analisar essas iguras historicamente representadas em diferentes períodos ampliaria o conhecimento e a crítica para entender as novas personagens marginais e suas relações com a atual política do cinema. O cinema de Paul Leduc é um exemplo para se reletir sobre o que se modiica e se mantém entre as personagens marginais em distintos períodos, já que o diretor atua desde a década de 1960 em um contexto contrário à produção massiicada do cinema industrial mexicano. Em seu ilme Reed, México insurgente (1973), Leduc icciona a participação do jornalista estadunidense John Reed, autor do livro Os dez dias que abalaram o mundo, na Revolução Mexicana. No ilme e na vida real, Reed foi contratado para cobrir essa Revolução, mas se tornou um militante e passou a seguir Pancho Villa. O diretor, ao incluir o processo de conscientização do personagem de Reed, quer levar o espectador a se identiicar com a militância contra as ditaduras. Consequentemente, este personagem deu visibilidade à política do cinema da época que primava por resistência às ditaduras. Depois de Reed, México insurgente, Leduc irá compor em seu ilme O cobrador outro ponto de vista sobre a marginalidade, distante do enquadramento dado aos heróis que estiveram representados na cinematograia anterior, que recorre às jornadas das lutas coletivas. Embora haja alguns pontos em comum entre os dois ilmes, que são adaptações literárias que privilegiam iguras marginais, o deslocamento, em O cobrador, se dá no enfoque utópico presente nos cinemas novos. Para realizar O cobrador, Leduc parte do conto homônimo de Rubem Fonseca, que conta a história de um operário que vive no Rio de Janeiro. 114 Assim como no conto, o ilme começa em um consultório odontológico em Nova Iorque, focando àquele que se transformará no cobrador. Ao ser humilhado pelo dentista, o personagem torna-se um matador perigoso, a im de cobrar da sociedade o que ele acha que esta lhe deve, prosseguindo, assim, a sequência dos assassinatos relatados no livro. Porém, o personagem cinematográico não fala uma só palavra, ao contrário do de Fonseca. Outra diferença: o conto privilegia a linearidade narrativa, ao passo que Leduc entrelaça várias histórias paralelas, que acontecem em diversos países da América para situar o seu cobrador. Os personagens do ilme transitam por várias cidades. O cobrador, quando descobre que está sendo procurado pelos assassinatos que cometeu em Nova Iorque, segue para a Cidade do México. Lá, conhece Ana, uma jornalista argentina que se torna sua namorada e parceira. Juntos decidem matar pessoas públicas importantes do cenário mundial e sabotar alguns estabelecimentos comerciais. Ao contrário do personagem Reed, o cobrador não está defendendo uma classe ou comunidade especíica. Ele e sua namorada elaboram manifestos que parecem dizer respeito a uma cobrança deles próprios. No somos guerrilleros ni terroristas, no somos ladrones ni narcotraicantes, pero nos deben mucho, nos deben todo. Nos deben mucho. (...) enquanto estiverem nos devendo, nós continuaremos cobrando15. Ana é a personagem que o ilme sugere ser politizada pelo fato de ser ilha de militantes desaparecidos e por ter amigos que estão envolvidos em manifestações políticas na Cidade do México. O espectador espera uma atitude política nos movimentos populares mexicanos que parta dela mesma. No entanto, após uma amiga dissidente ser morta por policiais, ela passa a assumir o plano do cobrador. O principal alvo da dupla é Mr. X, magnata e serial killer que vive em Miami e circula por Buenos Aires e Nova Iorque. Ele é dono de uma mina de ouro no Brasil, que ica aos cuidados de Zinho, um suposto militar assassino e sem escrúpulos que está à 115 procura da dupla. Atores brasileiros, argentinos, mexicanos e norte-americanos formam o elenco de O cobrador, além de o autor do conto ser brasileiro e o diretor, mexicano. Forma-se, por assim dizer, um “time” interamericano, o que sugere que o ilme pretende reletir sobre as iguras de resistência da esquerda continental nos tempos atuais. A trilha sonora tem a participação do músico brasileiro Tom Zé, conhecido por suas metáforas políticas. Suas canções reforçam as mediações do ilme, principalmente na cena em que aparecem as imagens do bombardeio às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, a partir de um televisor. A informação noticiosa é um recurso utilizado para o espectador associar o acontecimento com o momento em que se passa o ilme e, ainda, fazer uma alusão às relações de poder que se passam em universos macro (o mundo) e micro (a mina). Nesses planos, as imagens do cobrador ao lado da TV e da mina foram agenciadas com os trechos da música Curiosidade: Quem é que está botando dinamite na cabeça do século? Quem é que está botando tanto piolho na cabeça do século? Quem é que está botando tanto grilo na cabeça do século? Quem é que arranja um travesseiro para a cabeça do século? A música faz referência ao poder e ao “véu” que existe para ocultá-lo para, assim, haver uma acomodação – com o travesseiro, como menciona Tom Zé. A metáfora diz respeito à comodidade que existe após as guerras. Michel Foucault relete sobre essa comodidade que acontece após a batalha inal como uma “paz” imposta à sociedade civil que, por sua vez, seria uma forma de perpetuar o movimento que engendra as relações de forças. Tal “apaziguamento” inscreveria uma espécie de “guerra silenciosa nas instituições e nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo 116 dos indivíduos” (Foucault, 1979: 98). Para pensar mais sobre esse poder no contexto do ilme, dispomos, ainda, das menções contidas no exercício que Foucault propõe ao realizar uma análise não só econômica do poder: [...] o poder não se dá, não se troca nem se retoma, mas se exerce, só existe em ação, como também da airmação que o poder não é principalmente manutenção e reprodução das relações econômicas, mas acima de tudo uma relação de força. Questão: se o poder se exerce, o que é este exercício, em que consiste, qual é sua mecânica? [...] Teríamos, portanto, frente à primeira hipótese, que airma que o mecanismo do poder é fundamentalmente de tipo repressivo, uma segunda hipótese que airma que o poder é guerra, guerra prolongada por outros meios (Foucault, 1979: 99). No ilme, as relações de poder, a repressão e a “guerra” estão mais evidentes na Cidade do México e na mina brasileira. Enquanto ativistas ligados ao meio ambiente e à política local confrontam policiais na capital mexicana, os mineradores protestam por melhores condições de trabalho. Além disso, a própria mina como espaço de extração de ouro é o resultado de um domínio. A área dinamitada parece uma ferida exposta no meio da selva. Uma câmera aérea sobrevoa a loresta para logo enquadrar um enorme buraco que corta a uniformidade da imensidão verde da mata. Imagens de milhares de mineradores, que lembram Serra Pelada, conirmam a issura provocada pelo ouro, tanto na superfície terrestre como na vida das pessoas. As personagens principais envolvidas na mina lidam de algum modo com atos de violência para exercer o poder. Observamos suas particula117 ridades: entre o cobrador e o magnata parece não haver nenhuma diferença, ambos são agressivos e cometem os maiores assassinatos, mas são completamente diferentes em dois aspectos. O homem rico é poderoso – nenhuma autoridade o persegue mesmo sendo um serial killer; ao contrário do cobrador, que tem de se esconder para fugir do cerco da polícia. Evidentemente, com sua arrogância, matando covardemente mulheres solitárias e indefesas, o magnata não desperta nenhuma empatia nos espectadores. O mesmo se passa com Zinho, o militar que é capaz de assassinar uma criança de sete anos para contentar a amante. Já o cobrador desperta a simpatia das crianças do ilme e inspira o amor de uma jovem, além de ter um passado sofrido como minerador. É claro que nenhum desses elementos faria do cobrador uma personagem positiva de fato. Esse indício de empatia serve apenas para torná-lo mais complexo. É em função do adensamento do personagem que o ator Lázaro Ramos lhe empresta um aspecto feroz e melancólico, tornando-o ainda mais enigmático. O fato de não proferir nenhuma palavra deixa ainda mais incompreensível a sua ação, já que não há nenhuma fala que nos faça entender os motivos que o levaram a agir desse modo. Mesmo o manifesto, que ele e a namorada publicam, é apenas uma cobrança, um desabafo raivoso. De modo que o que caracteriza a ação do cobrador nessa relação de forças é sua ininteligibilidade. Mas é justamente este enigma que o torna uma fratura visível, que incomoda. O magnata é também um homem cindido psicologicamente, está doente, assim como Zinho, mas eles podem icar incógnitos, devido ao poder que têm de ocultar que são psicopatas. Quanto ao cobrador, é uma fenda psíquica bem visível. No inal, quando retorna à velha mina abandonada, começa novamente a se sentir incomodado pelo dente que o levou ao dentista. De modo que voltamos ao problema do início que detonou toda a ação furiosa do personagem – tudo começou com o seu dente que precisaria ser tratado e futuramente trocado por um dente de ouro. Vale notar que a ausência do dourado na boca do minerador em contraste com as coleções de relógio de ouro do magnata contextualizaria a nefasta “dis118 tribuição” de renda e a condição da personagem se achar no direito de cobrar da sociedade. Além dos elementos que conformam a ideia das diferenças sociais e das relações de poder, Leduc investe em imagens com esquemas plásticos que diferenciam os ambientes e personagens. Em vários quadros predominam os iltros azul e verde, outras vezes as imagens são em preto e branco, sempre nos lugares em que o cobrador aparece. As manifestações políticas são apresentadas sem uniformidade plástica. A mistura de registros parece reforçar o aspecto conturbado do momento e também dos personagens que estão implicados nos movimentos de protestos na Cidade do México. Na mina brasileira do magnata, as cores opacas, provocadas pela poeira levantada pela mineração e o trânsito das pessoas, tornam as imagens fantasmagóricas, e os mineradores, cobertos de pó, parecem mortos vivos, que estão deambulando sem rumo. Mesmo a mina fechada, no presente, ainda é uma chaga, solo arrasado, infértil, pura rocha carcomida. Ao contrário, o mundo do magnata é clean, brilhante, bem iluminado, arejado. Em seus ambientes há uma harmonia entre a iluminação, as cores e as formas. Mas esse mundo, de uma beleza quase asséptica, contrapõe-se ao ambiente sombrio pelo qual ele circula quando vai cometer os assassinatos, ou quando, em Buenos Aires, está à procura do vigor perdido. Essas variações plásticas reforçam o signiicado dos diferentes contextos por onde transitam as personagens. Com isso, podemos dizer que a estética do ilme está a serviço de sua retórica, que procura ressigniicar, por meio do cobrador, as iguras marginais que o cinema da América Latina tanto cultuou. O que se percebe a partir desta ressigniicação é que na contemporaneidade as iguras marginais surgem com projetos voltados aos seus interesses pessoais e não às demandas de uma classe ou comunidade, tal como tínhamos em um cinema mais épico ou dramático que expunha as lutas coletivas dos heróis bandoleiros. Essa coniguração dos interesses das iguras marginais no cinema recente pode ser vista dentro daquilo que Ismail Xavier (2000) chama de “pragmatismo do pobre”, ou seja, persona119 gens das classes populares que estão motivadas por seus próprios interesses como a inserção no mercado de trabalho ou na sua sobrevivência. O cobrador poderia ser pensado neste âmbito do pragmatismo. O discurso do cobrador versa sobre a destruição para seu próprio benefício ao passo em que o ilme brinca com a questão do tempo e do espaço e com aparente verdade ou ilusão dos acontecimentos em torno da cobrança deste personagem. Seus manifestos fariam a mediação entre o passado e o presente, entre os acontecimentos em diferentes espaços e as personagens envolvidas. Parte-se, então, da ideia de que tudo que é mediado no ilme gira em torno de um acerto de contas do cobrador com o passado. Se o personagem cobra é porque se ressente e não vislumbra um futuro que possa ser libertador. Ele parece estar preso às reminiscências e por isso podemos também percebê-lo sob outra categoria deinida por Xavier (2000): a “igura do ressentimento”, que faz referência às personagens que se ixam ao passado, com projetos de vinganças, entre outras situações. Outro elemento que nos levaria a considerá-lo sob essa categoria é o fato de ele ser um personagem que se distancia do discurso utópico das lutas coletivas16. A raiva do protagonista se transforma em melancolia, fúria e ressentimento preso à individualidade. Por im, podemos dizer que o cobrador e uma galeria de personagens recentes estão presos ao individualismo pragmático, esvaziado da utopia que existia em um cinema mais épico, no sentido grandioso do termo. Referências bibliográicas: FOUCAULT, Michel. “Genealogia e poder” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979. JAMESON, Fredric. Marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995. XAVIER, Ismail. “O cinema brasileiro dos anos 90” in Praga, nº 9. São Paulo: junho/2000. Notas: 120 11. O período clássico-industrial na América Latina se estendeu durante as décadas de 1930 e 1940 até meados de 1950. Durante esse período, os grandes estúdios viabilizaram a composição de fatos históricos. A Revolução Mexicana (1910-1917), a Revolução de Maio na Argentina (1910) e o Cangaço (que ocorreu, aproximadamente, entre 1890 e 1940 no Brasil) são acontecimentos bastante explorados nessas cinematograias. 12 . Na cinematograia clássica brasileira, a imagem do Cangaço e o mais conhecido “bandido social” nacional, Lampião, líder deste movimento, estão representados no ilme O cangaceiro (Lima Barreto, 1953), que valoriza os códigos do melodrama que deiniria a política do cinema produzido pelos Estúdios Vera Cruz. A proposta desse ilme contrasta com a resistência teatral de Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), que se evidencia por sua linguagem épico-didática que caracterizaria a política idealizada por Glauber no Cinema Novo. 13. A representação do herói bandoleiro como uma igura política é explorada pelo cinema mexicano em versões romântica e revolucionária, como propõem os ilmes Enamorada (Emilio Fernández, 1946) e Reed, México insurgente (Paul Leduc, 1973) para contarem suas histórias que se passam em torno da Revolução Mexicana liderada por Pancho Villa. 14. Na história, na literatura e no cinema da Argentina, a igura do herói marginal que liderou bandos e desbravou fronteiras é muito associada ao gaucho que interagiu na política do país. Ele está presente desde o surgimento da literatura que recorre aos mitos fundadores, como explora a obra La guerra gaucha (Leopoldo Lugones, 1905), que conta a história das guerrilhas dos gauchos partidários e dos independentistas que originaram o ciclo da Revolução de Maio. No cinema, esta obra foi adaptada com o mesmo título por Lucas Demare (1942). Nos ilmes das décadas de 1960 e 1970, as “alegorias nacionais” aparecem associadas à outra política de produção do cinema. Neste período de ditadura do General Onganía, os diretores Fernando Solanas e Octavio Getino, junto com o grupo Cine Liberación, izeram manifestos e realizaram a proposta de um “terceiro cinema” ou Tercer Cine, que se legitimou com a produção do ilme La hora de los hornos (1968), com uma clara mensagem para o espectador aderir à guerrilha peronista. Mais tarde, Solanas dirigiu o ilme Los hijos de Fierro (1972), que faz uma alusão à obra de Martín Fierro (1872), de José Hernández, à qual ele se refere (sem a preocupação de reproduzi-la) para falar sobre a militância sindical no início dos anos 1970. 15. No ilme, esses manifestos são apresentados pela imprensa de distintos países. 16. Há certa ressonância entre a construção dessas personagens com o momento político da sociedade, que Fredric Jameson (1995) considerou ser o período do im das utopias, em que a nostalgia intelectual e a ascensão do pensamento pragmático são evidentes. Essa relexão corrobora esta análise sobre as maneiras pelas quais as representações da marginalidade inluenciaram e inluenciam na formação da política e das estéticas no cinema. 121 XV. Violência e sociedade em La rabia A raiva (La rabia, Albertina Carri, Argentina/Holanda, 2008) Mônica Brincalepe Campo A raiva, substantivo feminino que intitula sucintamente o ilme de Albertina Carri, pode indicar tanto o sentimento, as emoções de insegurança, frustração e ódio, quanto a doença infecciosa transmitida por vírus que acomete animais mamíferos, incluindo, evidentemente, os seres humanos. A trama desse ilme se passa no campo, e o grau de violência nas relações entre seus habitantes é alto. A diretora busca provocar intencionalmente o incômodo no espectador ao submetê-lo a uma diversiicada representação da vivência conlituosa em sociedade. A violência nos é apresentada em múltiplos aspectos de sua existência; no entanto, a obra não promove sua estetização, apresentando-a realisticamente a im de provocar o debate do público espectador a partir do incômodo e do choque. A violência permeia o cotidiano daqueles que convivem na sociedade rural retratada – a nomear, inclusive, o lugar onde habitam os personagens desse ilme –, todos em um permanente processo de raiva. Ela aparece 122 das mais diversas maneiras: brota nos menores gestos, surge nos ataques verbais e irrompe no confronto físico, nas vias de fato, expressa em tapas e surras e, inalmente, no assassinato e morte. Todas as relações estão articuladas sob a batuta da violência, seja entre adultos e crianças, homens e mulheres, patrões e empregados (mesmo que os patrões nunca sejam representados em tela) ou mesmo entre homens e animais. Há, no entanto, diferenças, hierarquias: se entre os animais há a questão do ciclo da vida e da cadeia alimentar de sobrevivência, entre os homens é o poder de submissão de uns em relação a outros que impera neste trato mútuo insidioso. A linguagem dos homens é a expressão de ódio a irradiar por todos os poros, demonstrada nos olhares, nos gestos e na fala, tanto nos sussurros quanto nos gritos (em palavras, frases ou mesmo no som gutural emitido por um dos personagens) e, por im, nos desenhos e nas animações incluídas em meio à trama. Na interpretação feita pela pesquisadora Alejandra Josiowicz (2012), o ponto de vista predominante na obra parte da observação de uma das personagens, Nati, uma garota de comportamento autista. Para a autora, o autismo da personagem é expresso de três maneiras principais – a primeira é que ela não fala e no máximo emite gritos animalescos, sendo apelidada como “a muda”. A segunda maneira é que ela se despe compulsiva e espontaneamente em público. Por im, desenha garranchos que são vistos como monstruosos por aqueles que com ela convivem. Em meio à trama, esses desenhos assumem o lugar da principal expressão das observações de Nati, representando a subjetividade de sua personagem por meio de animações que são inseridas no processo da narrativa fílmica. Alejandra Josiowicz interpreta a personagem e o ilme a partir da análise teórica de gênero e dos estudos femininos, e é quem indica o autismo da personagem como um sintoma consequente da violência que a cerca17. Nati é a personagem que mais chama a atenção daqueles que se debruçaram sobre a análise do ilme, carregando a síntese de toda a violência que emana em tela. Seus pais são um casal em ruínas: Poldo e Ale vivem em conlito, com a ilha a justiicar suas mútuas agressões e sempre a tes123 temunhar o fracasso conjugal. Ale é amante de Pichón, vizinho e empregado hierarquicamente inferior a Poldo, que estabelece uma relação sádica com a mulher. O sadomasoquismo do relacionamento de Ale e Pichón é ilmado com requintes de enquadramento e movimentação de câmera. Em setembro de 2013, participando do IV Encontro Small Cinemas, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Albertina Carri airmou que, nestas cenas, foram tomadas como modelos as narrativas desenvolvidas em ilmes pornôs. Carri procurou o mesmo tipo de representação falocêntrica presente neste gênero de produção. Ela pretendeu apropriar-se da expressão fílmica presente no discurso patriarcal para airmar mais outra vertente de violência – a que impõe um tipo de sexualidade masculina sobre a feminina. Se entre Ale e Pichón ocorre o sexo como nos ilmes pornográicos presentes no mercado internacional, em que o homem submete a mulher em busca de sua airmação de poder, no personagem de Poldo, por sua vez, o voyeurismo, a projeção de seu desejo estimulado por uma garota é a sua representação de excelência. Ele vive em incontido desejo pela ilha do merceeiro de La rabia, Mercedes. Ela é uma jovem que incita a imaginação de Poldo, sendo sua primeira aparição uma clara referência à personagem de Lolita, pois está a esmaltar as unhas enquanto é observada na mercearia. Ele a observa e se sente seduzido, a câmera acompanha a movimentação de Mercedes, que parece perceber o efêmero poder que possui; ela percorre a mercearia enquanto homens imóveis e aparentemente distraídos a seguem com os olhos. Entre as relações existentes no mundo adulto ressaltam-se a violência, o sexo e o desejo, mas não há nada referente ao afeto. O arremedo de uma relação de cuidado é o que se estabelece entre Poldo, o pai, e Nati, sua ilha, mas mesmo este é distorcido. Poldo conta à ilha a história do tio-avô de Ale, com a intenção de ser “educativo”, para fazê-la superar a nudez compulsiva, os gritos, a mudez. Imediatamente após ouvir o conto, Nati inicia um desenho e, a partir deste, Carri insere uma animação. Serão exibidas ao longo do ilme cinco animações; são o momento da subjetividade 124 da personagem, a ilustrar o imaginário a partir do qual são expressas as sensações de Nati, e parecem atuar como que para explicar a ela o mundo ao seu redor. Estas imagens são o escape possível e são também sua manifestação da vivência nesse cotidiano violento. Entretanto, cabe ressaltar que se delas emanam, em um primeiro momento, elementos característicos do lúdico, ou seja, uma manifestação que poderia colaborar e expressar a possibilidade de escape da personagem do mundo violento que a cerca (como airmou Carri no debate do ilme), por outro lado, tais imagens também podem trazer outra interpretação a nuançar a ludicidade. Cynthia Tompkins (2012) analisou a primeira destas animações e a leu como referente ao gênero cinematográico de terror; assim, as animações transmitiriam a sensação de perigo e medo da personagem, ou seja, sentimentos mais densos e conturbados. Nati convive com Ladeado, um adolescente ilho de Pichón, cujos dias seguem no cumprimento do trabalho que seria do pai. Na fazenda, Ladeado arruma a cerca, limpa, lava e anda para todo lado acompanhado de seus cães. As tarefas deveriam ser desempenhadas por um adulto, mas são realizadas pela criança que, além de não estudar, perde sua infância na prática da exploração de mão-de-obra infantil, algo constante especialmente no campo. Muitas das sequências são feitas em travellings longos ou em planos abertos. Ao acompanhar as tarefas que Ladeado realiza, o espectador também percebe a vastidão e a solidão desse lugar, com a observação sobre os animais e o campo, misturando os personagens a essa paisagem e quase os perdendo de vista. Logo nas primeiras sequências do ilme vemos Ladeado bater com um saco de estopa em uma árvore para, em seguida, jogá-lo na água (provavelmente um rio). Percebemos que nesse saco havia seres vivos e depois concluímos que eram crias de gambá. Ladeado capturou um gambá e o nomeou por Luisa, pretendendo domesticá-lo. Guarda o animal em uma gaiola escondida de todos os demais adultos, e tem em Nati sua companheira neste segredo. 125 Na trama, os animais são os primeiros feridos e mortos: galinhas, ovelhas, um porco, cachorro. Todos são assassinados e correspondem ao viver no campo, como deixa claro o letreiro do ilme logo no início. Todos os animais no ilme morreram como seria a rotina de animais campestres, assim, segue-se o cotidiano de violência; a morte de um porco para ser servido em um churrasco é ilmada com requintes de documentário. Como a própria Albertina Carri informou no debate já citado, ela pretendeu, nesta sequência (que costuma incomodar sobremaneira a plateia urbana que assiste ao ilme), trazer a experiência da vivência no campo e do cotidiano cru de convívio com a morte. O porco é pendurado de cabeça para baixo, é sangrado, desentranhado, lavado, tudo em uma grande sequência ilmada em observação frontal e contínua. A câmera foca em plano aberto todo o processo descrito, em enquadramento ixo, para depois acompanhar de maneira editada, mas com preocupação minuciosa, o momento em que ele é despelado, esquartejado e inalmente assado em brasa para ser servido em churrasco. Este tipo de narrativa opta pela confrontação do espectador com a ação crua da violência: é o espetáculo direto, mas não é uma estética da violência voyeurística a que estamos habituados no cinema mainstream. O prolongamento da sequência elaborada em tomadas de enquadramento ixo e com poucos cortes produz por efeito o distanciamento do espectador, que depois de certo tempo se percebe em relexão sobre o que está ocorrendo em tela. Assim, não há a vertigem de uma sequência editada a anestesiar a recepção, em ações entrecortadas que surgem do nada para suprir de picos de adrenalina um espectador consumidor que é isgado pelo sensível. Apesar desta violência explícita em tela, para Carri, o momento de maior violência representada no ilme é o da surra que Pichón ministra em seu ilho Ladeado. Esta surra será principalmente ouvida, e a fotograia da cena irá recortar a imagem da mão de Pichón segurando o sapato e abaixando o braço para fora de campo. A tomada assume o ponto de vista de Nati, que, escondida, observa o que ocorre – portanto, em câmera subjetiva. Os gritos de Ladeado irão inundar o campo sonoro enquanto Pichón 126 berra impropérios e reprimendas ao ilho. Carri airma ter presenciado várias dessas surras e reprimendas em sua vida no campo quando criança: a violência e a exploração de adultos sobre as crianças é parte intrínseca da vida cotidiana neste ambiente. Nessa sequência, não há o espetáculo direto da cena de violência, mas também não é feita a opção pelo testemunho de Nati, com cena do contracampo e a reação da menina ao que ocorre. O enquadramento parcial da ação carrega a angústia de sua apreensão, pois nem dá possibilidade de se visualizar o que ocorre. Tampouco sentimos o alívio da ação com a apresentação do contracampo de Nati que, sabemos, ouve impotente os gritos do amigo sem que tenhamos sua recepção e sem que sua imagem possa nos confortar. Sentimos sua angústia ao observarmos o mesmo que ela estaria contemplando. A impotência do espectador é o motivo principal desta cena, e o gênero cinematográico do terror é o seu discurso de base. Logo no início do ilme, em uma de suas primeiras sequências, assistimos Ale e Pichón fazendo sexo. Neste momento, Nati está escondida e escuta a relação e os sons emitidos pela mãe. Esses sons irão povoar seu imaginário e alimentarão as animações inseridas ao longo do ilme. Para a menina que vive imersa nesta relação cotidiana de violências, os gritos e a respiração arfante da mãe são os sinais claros de mais violência. Portanto, o campo sonoro do ilme é fundamental para construir a trama. Os silêncios do campo, os sons dos animais e da natureza, a ausência de conversação e de capacidade de argumentação entre os adultos, os gritos (de quem fala e também da “muda”). No inal do ilme, Nati e Ladeado presenciam a relação sexual de Ale e Pichón – sequência que foi alvo de grande polêmica em todas as apresentações do ilme. Carri, antes mesmo de iniciar seu debate no IV Small Cinemas, airmou salientando que todas as cenas de sexo, como também este lagrante das crianças, foram encenação e domínio da técnica de ilmagem, portanto, nada foi real ou explícito. A ideia, de fato, foi trazer a sensação de realidade e transparência pedida para a icção. A relação entre o sexo elaborado no cinema pornográico e a submissão de Ale ao poder 127 de Pichón expressa o olhar da diretora sobre a sociedade patriarcal, percebida como fracassada e corroída. Assim, a utilização de sequências em que a linguagem documental foi a principal referência produziu, no ilme, o embaralhamento da tênue fronteira a deinir o que é icção e o que é documentário. Essas mesmas sequências serviram para a diretora expressar sua crítica à sociedade patriarcal e à relação que esta teria com as práticas de violência. Nesse sentido, ica mais claro o objetivo de buscar no efeito da montagem do ilme a contraposição entre as ilmagens documentais das mortes dos animais (gambás e porco), procurando a airmação de um discurso de veracidade, de real, para, em seguida, confrontá-las com as cenas construídas com maestria técnica de ilmagem e edição, como as sequências envolvendo a surra em Ladeado e o sexo entre Ale e Pichón. Finalmente, a partir deste clima de violência representada, ocorre a morte dos homens ao inal da trama. Tanto Poldo quanto Pichón não são mostrados sendo assassinados, mas ouvimos os tiros. A câmera ica fora da casa quando Poldo a invade para atirar em Pichón, entretanto, em outra sequência, a consequência do tiro de Ladeado em Pichón é vista no enquadramento do rosto do primeiro, caído e sorrindo. O efeito documental e explícito realizado ao longo do ilme contribui para a interpretação da morte de Pichón e, ainda, para a suposição de que talvez Ladeado também tenha se ferido gravemente (caso também não tenha morrido). Para além deste mundo cru, exposto na icção de Carri, as animações são a expressão da imaginação de Nati. Elas foram realizadas em digital e assumem características soisticadas, com a utilização de poucas cores (predominando os tons de cinza ao preto, com lances de verde e vermelho) em expressões abstratas e indicações ao igurativo, enquanto a banda sonora assume sons de grunhidos e ruídos em geral. Cynthia Tompkins analisou a primeira das animações inseridas na trama, que considera a mais complexa de todas, utilizando os conceitos de intertextualidade e intermedialidade, além de considerar as implicações cognitivas advindas da inserção em meio ao ilme. Tompkins procurou compreender a narrativa fílmica construída por Carri e suas implicações em meio à trama e, nessa 128 análise, atesta o caráter de gênero de terror do ilmete. No debate sobre La rabia, Albertina Carri airmou acreditar que, se há a possibilidade de esperança de transformar esta realidade, ela se encontra na arte e na infância. Talvez isso seja possível – no entanto, a explicação otimista da autora pode ter tido im retórico, convidando o público a oferecer uma resposta propositiva para o im da violência. No que concerne à obra, o que predomina é o tom sisudo do retrato da opressão mais primária de nossas existências. Referências bibliográicas: AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte – um seminário sobre o lugar da negatividade. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. JOSIOWICZ, Alejandra. “La rabia: Violence, Gender and Childhood in the Argentinean Pampas” in Thinking Gender Papers, UCLA Center for the Study of Women, UCLA, 18 abr. 2012. Disponível em: http://escholarship.org/uc/item/130070f9. RIERA, Elena López. Albertina Carri, El cine y la furia. Valência: Ediciones de la Filmoteca, 2009. TOMPKINS, Cynthia Margarita. “Cuestiones metodológicas resultantes del montaje ejempliicadas mediante la representación de procesos psíquicos en La rabia (2008) de Albertina Carri” in Estudios sobre las Culturas Contemporáneas, número XVIII. Colima: Universidad de Colima/México, 2012. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=31624694010. Nota: 17. Creio que esta interpretação está correta, entretanto, tendo a fazer a leitura desta mudez de Nati desde uma relexão ilosóica proposta por Giorgio Agamben sobre a questão da linguagem e da morte. Sigo o percurso do ilósofo sobre a discussão estabelecida desde Hegel até Heidegger questionando o ser e a morte, a linguagem e a ausência dela, mas este é um tema que pretendo explorar em outro artigo e em outro momento. 129 XVI. Dor elegante: Itamar Assumpção e o pertencimento Daquele instante em diante (Rogério Velloso, Brasil, 2012) Mona Perlingeiro “Vamos tomar um café?”. Com essa pergunta somos convidados a entrar no universo de Itamar Assumpção. Em um estúdio, com a ajuda de arquivos armazenados na memória do computador, itas cassetes guardadas desde que foram gravadas, fotograias, recortes de jornal e trechos de composições cantadas por companheiros de vida e obra, começa o documentário do diretor Rogério Velloso sobre o músico paulista. O ilme, que surge como um projeto de cinema experimental para homenagear Itamar Assumpção, não poderia resgatar sua obra sem se envolver com a história pessoal do artista que foi além de todas as barreiras impostas pela indústria fonográica. Quem era, de fato, “o maldito”, ou seria melhor dizer, “Nego Dito”? Itamar Assumpção nasceu em 1949 na cidade de Tietê, interior de São 130 Paulo. Passou a infância no Paraná e se instalou na capital paulista em 1972. Com experiência no teatro e sob a inluência de Arrigo Barnabé, construiu obras musicais com uma identidade profundamente paulistana, mas que não poderiam – e nem podem – ser entendidas como produções regionais, nem como composições apenas para intelectuais. O documentário apresenta a carreira de Itamar desde sua participação em grupos de teatro em Londrina, onde já dava indícios dos caminhos que sua criação artística tomaria. Essa experiência teatral seria a base para a fundação de um movimento que estava em sua fase embrionária, a Vanguarda Paulista. No longa, relatos de quem conheceu e trabalhou com Itamar são combinados a registros de apresentações realizadas no auge da Vanguarda Paulista, movimento cultural brasileiro que surgiu na cidade de São Paulo em 1979 e vigorou até meados da década de 1980, tendo como protagonista uma geração que vivia a redemocratização do Brasil. Jornalista e músico do Isca de Polícia, Luiz Chagas conta no ilme que “em rápidas palavras pode-se deinir Vanguarda Paulista como uma série de ocorrências na área cultural, gestadas e consumidas na virada dos anos 1980, com o im do regime militar, e concentradas em volta do teatro Lira Paulistana”. A Vanguarda Paulista fazia suas apresentações no Teatro Lira Paulistana, localizado na Rua Teodoro Sampaio, no bairro de Pinheiros, palco de um dos movimentos experimentais mais importantes da história da música popular brasileira, deixando o público que o frequentava arrebatado pela experiência musical, visual e performática de seus artistas. Os relatos sobre o Lira Paulistana também podem ser encontrados no documentário Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista (2012), dirigido por Riba de Castro, um de seus criadores, que conviveu com Itamar e com outras iguras do movimento, como Arrigo Barnabé, Luiz Tatit, Premeditando o Breque, Tetê Espíndola e Ná Ozetti. O resultado das apresentações de Itamar no Teatro Lira e a estreia de seu primeiro disco, Beleleu, Leleu, Eu (1980), lançado pelo selo independen131 te Lira Paulistana, marcaram as primeiras críticas airmando que Itamar tinha uma tendência musical classiicada como “marginal”. As airmações não eram algo de que Itamar se orgulhava ou apreciava. Ele era um grande cancionista, além de ter uma musicalidade marcada por um “suingue da pausa”, como deine Zé Natálio, baixista gaúcho e membro do Trio PretoBrás: “a música de Itamar soa complicada porque vem em camadas”. Simpliicar e colocar o artista dentro de uma classiicação que basicamente servia para excluí-lo representa algo que, com o passar dos anos, iria atingi-lo profundamente. No início de sua carreira, Itamar sofreu diretamente o racismo existente no Brasil. Assim como aconteceu com o sambista João da Baiana anos antes, preso em lagrante por estar com um pandeiro, Itamar também foi detido e passou cinco dias na cadeia, porque supostamente não teria condições de portar instrumentos musicais. Ainal, ele era um homem negro. O episódio o marcou pelo resto da vida, constituindo uma de suas frustrações: o problema não é o fato de ser negro, mas ter sido colocado nesse lugar de delinquente simplesmente em razão da cor de sua pele, ter sido um alvo fácil para a polícia e objeto permanente da desconiança da sociedade. Por que ele, homem, negro, artista e pai, tinha de sofrer pelo que era? Mesmo não participando do Movimento Negro – e inclusive “rejeitando” esse tipo de organização – individualmente Itamar fazia seus manifestos. Sua existência era a linguagem da música popular e negra. O nome de sua banda, Isca de Polícia, não foi escolhido por acaso: era essa a sua realidade. O documentário segue em clima despretensioso, claramente em busca da intimidade de Itamar Assumpção, intercalando imagens de arquivo que se costuram às diversas declarações de artistas, amigos e companheiros de vida de Itamar. Ao longo do ilme, tem-se a impressão de que até mesmo seus próximos redescobrem o amigo. Nenhuma ideia parece nos ser imposta, as falas vão se encontrando e construindo o homem que, infelizmente, por toda sua verdade escancarada, talvez só pudesse ser reconhecido postumamente. Fica clara a conirmação de que o novo não tem vez enquanto está acontecendo, o novo só é aceitável depois que 132 passa; antes disso causa mal-estar, e Itamar incomodava, não se repetia e era imprevisível. Também nos chama a atenção o visual extravagante e sua coleção ousada de óculos de todos os tipos, construindo a imagem desse vanguardista tremendamente sarcástico, preocupado com sua criação artística e que, consequentemente, fez o que quis. Talvez a “autossabotagem” gerada por só fazer o que lhe dava na cabeça – inclusive negando trabalhos e apresentações – tenha sido o preço de sua liberdade. Queriam que ele cantasse samba, possivelmente por ser o que se espera de um negro brasileiro, e ele não cantou. Somente anos depois, quando mergulhou na obra de Ataulfo Alves, chegou a gravar um disco e fazer apresentações baseadas nas obras do sambista. Apesar de gostar de samba e de ter nascido com ele, ao longo de sua vida foi inluenciado por artistas de diversos ritmos musicais, de Miles Davis a Roberto Carlos, passando por Bob Marley e Michael Jackson. Sendo assim, nem ele mesmo poderia se limitar a um estereótipo. Ao longo do documentário vamos compreendendo porque, de 1980 até 2004, de seus dez discos lançados, nove foram de forma independente. Ele não facilitava para a indústria musical, sua música exigia atenção. Para o artista, uma das piores coisas que existia era a mesmice da música (mainstream) brasileira. Itamar questionava o porquê de um número reduzido de artistas serem exaltados enquanto tantos outros permaneciam excluídos. Talvez o ápice da carreira de Itamar tenha sido o reconhecimento que alcançou na Alemanha no inal da década de 1980, que o fez pensar seriamente em sair do país. Eis aí o que deve ser questionado: até quando será necessário haver um reconhecimento de fora para aceitar o que é feito aqui dentro? Mas, no caso de Itamar, essa boa fase icou na Alemanha e não se concretizou com tamanho êxito em seu próprio país. A falta de reconhecimento também é assunto do longa. Seria ele um artista maldito ou teria sido “amaldiçoado”? A grande maioria de seus discos teve uma produção ruim apesar da alta qualidade musical, e isso se deve, ao menos parcialmente, às diiculdades de se gravar um disco na era pré-CD. Itamar esteve exatamente nesse lugar de diiculdade de gravação, 133 circulação e, principalmente, não queria fazer o que esperavam dele. Os relatos, apesar da diversidade de experiências, vão apontando para uma conclusão sobre o comportamento de Itamar e as decisões tomadas por ele, como se fosse possível estabelecer uma espécie de diálogo direto, no presente. Por meio dessa conversa, podemos tentar entender porque Itamar diicilmente seria reconhecido vivo. As participações de Wilson Souto, Arrigo Barnabé, Luiz Tatit, Alice Ruiz e Zena, sua companheira por mais de trinta anos, além das ilhas Anelis e Serena Assumpção, fazem dos depoimentos um grande momento de encontro do espectador com a alma de Itamar. O que o diretor nos apresenta vai além do artista, mostra a intimidade do homem e a ligação intrínseca da vida dele a tudo que fez pela música, através de seus shows e performances. Na sequência inal do documentário, a vida pessoal de Itamar é mais explorada, assim como sua relação com a cidade de São Paulo, sua casa, as plantas, os pássaros, a importância da presença feminina em sua vida pessoal e em sua obra. As cenas são uma espécie de antítese das apresentações musicais mostradas no início do documentário; aquele Itamar sem medo, corajoso e irreverente pouco a pouco vai dando lugar a um homem sensível, caseiro. No entanto, essa mudança não deve ser interpretada como a anulação de um “eu” para o nascimento de um novo, mas como a transição entre um momento e outro, movimento feito com incrível sensibilidade pelo diretor. Saímos do êxtase de saber quem era o artista, nos frustramos com a falta de (nosso) reconhecimento e a sequência de imagens passa a despi-lo ainda mais, destacando o homem que se desgastou e começou a deixar este mundo. Itamar morreu de câncer no intestino em 2003, após quatro anos lutando contra a doença, mas não ganhou nenhum programa em sua homenagem na televisão. Itamar, e o seu “eu” Nego Dito, ganharam alguns artigos de jornal após pouco mais de duas décadas de carreira. Ele era dor e humor, encarou a doença que o deinhou e, sempre muito irreverente, fez seu último show usando um cocar, sentado e sentindo 134 muitas dores. Talvez o documentário esteja além da ideia de homenagem, mas nos alerta sobre a nossa falta de coragem para encarar o novo. Referências bibliográicas: CHAGAS, Luiz e TARANTINO, Mônica. PretoBrás: Por que que eu não pensei nisso antes? – Volumes I e II. São Paulo: Ediouro, 2006. DINIZ, André. Almanaque do samba: A história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 135 XVII. Risco e engajamento no documentário O veneno está na mesa O veneno está na mesa (Silvio Tendler, Brasil, 2011) Carla Daniela Rabelo Rodrigues Introdução O documentário O veneno está na mesa é um ilme engajado que remete a discussões sociais contemporâneas urgentes devido à gravidade do tema (agrotóxicos), silenciado por mecanismos de vigilância e controle econômico. Esses mecanismos operam no campo do privado, culpabilizando indivíduos pelos seus atos e usos e, portanto, negligenciando o que deveria de fato ser acionado: a ação política de âmbito público, coletivo. Antes de adentrar na discussão sobre o ilme, cabe primeiramente uma análise conjuntural sobre o objeto ao qual o veterano diretor Silvio Tendler dedica sua obra: os agrotóxicos e seus riscos sociais. A produção agrícola está cada vez mais subordinada à economia de mercado cujo motor é acionado pelo avanço tecnológico resultando em 136 aumento e diversiicação da produção. Por outro lado, surgem novos danos à saúde e à segurança daqueles que utilizam tais tecnologias. Há uma crescente produtividade proporcionada pela difusão de tecnologias no campo. Contudo, o agronegócio resulta em imensos desaios à saúde pública no meio rural, sobretudo no que concerne ao impacto ambiental e à saúde do homem do campo: Estima-se que dois terços da população do país estão expostos, em diferentes níveis, aos efeitos nocivos desses agentes químicos, seja em função do consumo de alimentos contaminados, do uso de agrotóxicos para o combate de vetores de doenças infectocontagiosas ou pela atividade laboral. Mas nenhum grupo populacional brasileiro é tão vulnerável a esses produtos quanto os trabalhadores rurais. Entender a dimensão do problema para este grupo – com vistas à elaboração de estratégias de intervenção/mitigadoras – é um dos grandes desaios da parcela do setor saúde voltada à assistência e à vigilância das populações rurais (Lucca, Peres e Rozemberg, 2005). A escolha por um modelo de agronegócio cuja ação principal recruta a indústria lucrativa dos agrotóxicos representa uma faceta implacável de nossa era, a dos riscos sociais. No legado do sociólogo alemão Ulrich Beck, falecido em janeiro de 2015, destaca-se o livro Risk society que teoriza sobre a constituição de uma Sociedade de Risco (Beck, 1992). Seu diagnóstico aponta resquícios e degradações ambientais e sociais herdados da Revolução Industrial, do avanço tecnológico e das decisões político-econômicas que esgotam os recursos naturais, criando uma situação de efeitos aos quais temos que conviver como a poluição, escassez, insegurança, ansiedade, entre outros. A percepção negativa de Risco passa a dominar as instituições sociais, nossas vidas e nosso cotidiano como uma nova cultura 137 com seus costumes paliativos para tentativas do “bem-estar social” dentro de um modelo econômico predatório. Nesse sentido, os líderes à frente das tomadas de decisões econômicas globais não planejaram/anteciparam os efeitos gerais – a toda e qualquer vida na Terra – obtidos no esquema de produção e consumo atuais. Um dentre tantos exemplos é o incentivo à aquisição de automóveis novos e sua automática conversão em gases tóxicos que circulam poluindo, cada vez mais, o ar que respiramos, além do acúmulo de veículos nas ruas e uma implacável obsolescência programada de produtos como esses. Outro caso grave seriam os agrotóxicos adotados persuasivamente como recursos de produção na lavoura para garantir uma colheita mais segura. Os pesticidas em geral são, por natureza, toxinas perigosas aos seres vivos, mas servem aos interesses quantitativos da produção industrial justiicada pela ideia de garantia/segurança do alimento na mesa. E foi esse assunto que inspirou o documentário O veneno está na mesa. O veneno está na mesa e seu engajamento Conhecido como o “documentarista dos vencidos” e “cineasta dos sonhos interrompidos”, Silvio Tendler é uma referência na cinematograia brasileira, com cerca de trinta documentários realizados. Na sua história do engajamento político libertário, buscou trabalhar com temas da memória e história nacionais associados a personagens públicos e conscientização sobre autoritarismo, neoliberalismo, entre outros. Seu ilme O veneno está na mesa, de 2011, produto da campanha Agrotóxico Mata – Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, é apoiado por uma série de movimentos sociais. No início do ilme, Eduardo Galeano – falecido em 13 de abril de 2015 – nos explica que, desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo. Imagens de arquivo de algumas das principais empresas brasileiras de comunicação, como a Rede Globo, denunciando os efeitos nocivos dos venenos, atestam que o problema é tão sério que mui138 tas vezes foge do controle que os conglomerados tentam exercer sobre a mídia. Todavia, essas notícias não são suicientes diante do domínio da cena mundial da informação hegemônica e neoliberal, do marketing verde e do “ecobranqueamento” (greenwashing). Dada essa espécie de censura neoliberal, Tendler adota a internet como lugar alternativo de distribuição para concorrer com o poder da propaganda ideológica da indústria do agrotóxico e da grande mídia. Acaba atingindo gratuitamente uma “pulverização” gigantesca nas mídias sociais. O motivo dessa disseminação está associado à carência de informações mais plurais, com outra versão dos fatos ou simpáticas à isenção editorial. Há um controle da informação exercido pelos empresários detentores de concessão pública para atuar na mídia brasileira. Os meios de comunicação no Brasil não abarcam minimamente a pluralidade de discursos sociais e políticos vigentes. Com a internet, grupos e indivíduos iniciaram ações de ocupação discursiva midiática no intuito de conquistar lugares retóricos públicos na comunicação digital a im de trazer outros olhares e leituras sobre temas marcadamente homogêneos segundo interesses privados. É nessa vertente de evidenciar o não dito que Tendler trabalha. Com dados especíicos sobre o consumo de agrotóxicos no Brasil, o ilme destaca os riscos à saúde pública e aos trabalhadores da lavoura devido à manipulação do veneno, além de alertar que os brasileiros estão se alimentando mal e perigosamente por conta do agronegócio. Com o objetivo de conscientizar e mobilizar a população, posiciona-se contra o poder de corporações transnacionais como a Monsanto, Syngenta, Bayer, Dow, DuPont, entre outras. Vídeos, reportagens televisivas, fotograias e entrevistas servem para validar a tese de que os agrotóxicos, que se expandiram em nome da produtividade progressista, são contra o pequeno produtor e a própria ideia de sustentabilidade. Eduardo Galeano aparece como autoridade intelectual de denúncia e confere credibilidade ao ilme por seu caráter questionador e crítico. Ele explica que a história da América Latina foi marcada pela usurpação dos recursos naturais e que a consciência de preservação desses recursos não 139 é tão veloz quanto a ação dos ladrões, que continuam atuando ainda com mais rapidez. O divórcio entre desenvolvimento e direitos humanos, ou da natureza, se manifesta no fato de que a permissão desses elementos químicos nocivos nos países em desenvolvimento sustenta-se num critério meramente economicista. Venenos proibidos nos EUA e na China são usados no Brasil. Foram retirados do mercado nos dois países justamente porque seus componentes causam problemas no sistema nervoso, perda de memória em crianças, entre outros. Tendler desenha uma história da tecnologia da revolução verde ao vinculá-la à indústria da guerra. As imagens de arquivo são impactantes: corpos esqueléticos jogados numa vala de um campo de concentração nazista denuncia a participação da Bayer como fornecedora do gás que matou milhões de judeus e alemães; crianças vietnamitas deicientes, vítimas do uso do gás tóxico na Guerra do Vietnã, que foi produzido pela Monsanto. É assustador o poder que essas grandes indústrias têm nas decisões políticas e na manipulação das informações. Ademais, há um robusto arsenal de comunicação ideológica preparado para convencer o homem do campo, agricultores e empresários a adotarem os agrotóxicos – chamados muitas vezes de “remédio” – como forma de garantia da colheita. Para isso e para estimular as vendas, essa poderosa indústria realiza eventos de apresentação de novos produtos onde é comum ser distribuído material de propaganda sobre o novo produto e outros da empresa. Além disso, distribui folders, cartazes, cartilhas e demais materiais ilustrativos com caráter persuasivo para este público, “no qual são apresentadas as características de determinado produto, além das vantagens do seu uso” (Peres e Rozemberg, 2003: 339). Planos de plantações e entrevistas com agricultores, especialistas e jornalistas reairmam a nocividade dos agrotóxicos para a saúde humana e para o solo. Os próprios trabalhadores do campo, os agricultores, são contaminados, icam doentes e ainda costumam levar a culpa pelo uso incorreto como parte do discurso do comércio e da indústria que se exime de qualquer responsabilidade. Assim, o agricultor que foi praticamente 140 obrigado a adotar o uso deste produto, “não recebeu treinamento/informação adequada sobre o manejo e agora é culpado no caso de um eventual acidente” (Peres e Rozemberg, 2003: 344). Saberes locais e especializados são ignorados pelo governo; e as instituições econômicas trazem à tona essa pauta silenciada – por exemplo, os bancos não emprestam se os agricultores não usarem sementes transgênicas e agrotóxicos. A linguagem fílmica adotada está povoada por dados orquestrados para impressionar, não só em decorrência da desinformação geral sobre a quantidade de agrotóxicos contida nos alimentos consumidos pelos brasileiros, como também pela ausência de divulgação dos impactos desses produtos na saúde humana. Além do mais, a revolução verde do pós-guerra, que colocou na cena mundial as indústrias dos agrotóxicos e dos transgênicos, prejudicou a agricultura tradicional, instaurando um modelo que ameaça a biodiversidade, a fertilidade do solo, contamina os mananciais, as pessoas e o ar. Como apenas as transnacionais são ouvidas neste assunto, o ilme se faz porta voz daqueles que não tem vez no cenário político. É um ilme denúncia. O documentário de Tendler é engajado no mundo (Comolli, 2008) e reconstitui indagações primordiais sobre o documentário, cujo exercício é trabalhado pelo teórico Bill Nichols: [...] quem somos nós, que podemos vir a saber alguma coisa? Que tipo de conhecimento é esse que os documentários proporcionam? Que uso nós, e os outros, deveríamos fazer do conhecimento que o documentário proporciona? O que sabemos e a maneira pela qual passamos a acreditar no que sabemos são assuntos de importância social. Poder e responsabilidade residem no conhecimento; o uso que fazemos do que aprendemos vai além de nosso envolvimento com o documentário como tal, estendendo-se até o engajamento no mundo histórico representado nesses ilmes. Nosso en141 gajamento neste mundo é a base vital para a experiência e o desaio do documentário (Nichols, 2005:71). O veneno está na mesa proporciona conhecimentos de um período histórico contemporâneo. Para isso, utiliza das estratégias narrativas tradicionais que, por meio da imagem e da voz em terceira pessoa, exploram emoções, tais como o medo, a indignação e a comiseração. Entretanto, o ilme cumpre bem o papel de informar e alertar sobre um inimigo invisível que está diariamente nas mesas sem o conhecimento (e consentimento) dos brasileiros. Outra questão que se levanta é sobre como a revolução verde supostamente trouxe comida barata para a população. Esta é a posição de uma senadora que, num depoimento ao Senado, acusa um diretor da Anvisa de irresponsável por alertar, “sem provas”, sobre os perigos que esse tipo de produção traz para a população. O trabalho de Tendler propõe uma revisão desse modelo de agronegócio, esforçando-se em desfazer a desinformação e buscando conscientizar sobre o risco que a população não sabe que corre. São cerca de setenta entrevistas, em sua maioria com agricultores brasileiros. Quem melhor do que aqueles que lidam com os riscos do envenenamento e que sofrem seus efeitos implacáveis para nos falar dessa realidade invisível e apavorante? Nesse sentido, o documentário dá voz aos silenciados. A abordagem argumentativa deste documentário denota seu modo expositivo (Nichols, 2005) – também conhecido como clássico por não haver prioridade estética ou subjetiva, mas sim objetividade e clareza em narrar os fatos de modo crível, assertivo, persuasivo, argumentativo, dando continuidade à narrativa. Ademais, o que é dito está didaticamente apresentado numa lógica textual, facilitando a difusão e a recepção do público neste ilme que explora elementos de noticiários de TV, comentários em voz over e imagens conirmadoras/repetidoras da argumentação. A voz do ilme é uma voz ativista, com ponto de vista declarado; é Tendler usando a técnica para expressar sua visão de mundo particular. A obra revela os riscos e o sistema de poder que estão por trás do 142 agronegócio. Assume-se como panleto de causas sociais e políticas que se posicionam contra o avanço voraz das indústrias do agrotóxico e do transgênico, apoiadas por políticos e empresários de diversos setores. O documentário enquanto potência pode tanto ser instrumental quanto poético. Está aberto e engajado aos temas do mundo sob a ótica ou “verdade” de quem o dirige ou roteiriza. Embora não seja e nem se pretenda experimental e inovador, O veneno está na mesa é um ilme ativista, de mobilização social, cujo engajamento contundente é cada vez mais raro na era da tecnologia, da produção, do consumo e do risco. Referências bibliográicas: BECK, Ulrich. Risk society: Towards a new modernity. Londres: Sage, 1992. COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida, Cinema, televisão, icção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. LUCCA, Sérgio Roberto de; PERES, Frederico e ROZEMBERG, Brani. Percepção de riscos no trabalho rural em uma região agrícola do Estado do Rio de Janeiro, Brasil: agrotóxicos, saúde e ambiente. Cad. Saúde Pública, volume 21, no 6. Rio de Janeiro: dezembro/2005. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2005000600033. Acesso em 15 de abril de 2014. PERES, Frederico e ROZEMBERG, Brani. “É veneno ou é remédio? Os desaios da comunicação rural sobre agrotóxicos” in MOREIRA, Josino Costa e PERES, Frederico (orgs). É veneno ou é remédio? Agrotóxicos, saúde e ambiente. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. 143 XVIII. O mito como sobrevivência A memória que me contam (Lúcia Murat, Argentina/Brasil, 2012) Luís Fernando Beloto Cabral Em uma das primeiras cenas de A memória que me contam, de Lúcia Murat, a “personagem” Irene (Irene Ravache) está dirigindo sob uma pesada chuva. O aguaceiro embaça agressivamente o vidro do carro, dissolvendo a paisagem exterior a ponto de transformá-la em um conjunto luminoso de formas e cores indeinidas. Irene acaba aprisionada pela chuva; deve parar o veículo até o aguaceiro passar. Ela não consegue enxergar: o olhar da motorista, necessitando de uma imagem concreta (nesse caso, a imagem da estrada), depara-se apenas com o abstrato. A chuva intercepta o campo de visão e o olhar de Irene torna-se desencontrado. Temos um desejo frustrado de visão, o anseio por uma imagem que não se concretiza. De certa forma, este será o drama sofrido não apenas pelas personagens da narrativa, mas pelos próprios espectadores do longa-metragem. Numa das cenas posteriores, as estruturas da ponte rodoviária mais as 144 obras de construção urbana impedem uma livre visão da periferia que se estende ao fundo – e Eduardo, que contempla essa paisagem confusa pelo vidro do carro, nos é apresentado, momentos antes, pelo relexo difuso do vidro do veículo que simultaneamente vislumbra o complexo cenário urbano a sua volta. Da mesma forma, as marcas da janela do hospital diicultam a contemplação objetiva de uma Ana já inconsciente e à beira da morte. Mesmo a câmera se nega a lançar mão desse olhar objetivo, ao mostrar, via primeiríssimos planos, apenas algumas partes do corpo fraco e envelhecido da veterana. Mais à frente, no jantar entre Irene e Paolo, os próprios cálices de vinho, ressaltados por um contraplongée, se impõem perante os dois, impedindo uma imagem mais objetiva do casal. No entanto, mesmo na ausência de obstáculos materiais, as próprias personagens evitam um contato direto com a câmera. Até quando são enquadradas de peril seus olhares encontram-se dirigidos para outro lugar, num plano introspectivo de lembranças, culpas ou relexões vagas. E não bastasse esse rosto que se vira, temos a própria moldura do quadro que “recorta” incisivamente esses corpos, às vezes quase os expulsando do campo de visão do ilme. Lidamos, portanto, com um olhar jamais concretizado: em nosso exercício de contemplação e decifração, temos a ânsia de observar diretamente essas pessoas, espaços e memórias, mas sempre encontramos algum elemento ou fenômeno que intercepta esse ato de visão objetiva. Com a possibilidade da irredutível perda de uma companheira tão querida, o antigo grupo de guerrilheiros evoca a todo o momento o “fantasma” de Ana (Simone Spoladore), numa tentativa não apenas de observá-la, mesmo que por uma última vez, mas também de preservá-la. Ana torna-se uma imagem prestes a desaparecer, uma vez que a memória sobre ela corre o risco de ser futuramente esvaziada ou perdida. Nisso, Ana torna-se um símbolo óbvio da luta pela abertura dos arquivos do regime militar, explicitada na narrativa pelo drama do ministro vivido por Zé Carlos. Ana, nesse caso, é a memória que precisa ser descoberta, divulgada e preservada, em nome de todas as vítimas das violências e repressões da ditadura – assim como Ana, prestes a se esvair em vagas 145 lembranças num país ainda bastante negligente para com sua história. É visceral e urgentemente necessário, portanto, que Ana viva, nem que seja por intermédio de uma lembrança, de uma alucinação ou, num sentido metalinguístico, de um símbolo. Mais especiicamente, A memória que me contam possui um claro tom autobiográico. Lúcia Murat utiliza a “icção” de seu ilme para relembrar a antiga companheira de luta, Vera Sílvia Magalhães (lembrada na dedicatória do inal) – e tanto Murat quanto Magalhães são evidentes inspirações para as personagens Irene e Ana, respectivamente. Nesse sentido, quando vemos a cineasta Irene evocando a imagem da guerrilheira, como na cena em que seleciona algumas fotograias e vídeos de arquivo, não deixamos de igualmente enxergar a própria Murat evocando uma imagem que remeta à falecida companheira – ou, numa leitura metalinguística, evocando a atriz ou o “avatar” que personiicará esse ato de lembrança e homenagem. Na própria lógica do ilme, aliás, temos uma certa ambiguidade. Não sabemos se Spoladore é de fato Ana em seus tempos de juventude, uma imagem simbólica, ou mesmo uma atriz, que a cineasta e as demais personagens convocam para representar a guerrilheira, ainda que num plano imaginário. Mas se há uma necessidade tão forte de recuperar a imagem de Ana ou a memória sobre esta, por que fazê-lo por intermédio da representação de uma atriz ou da simbologia de uma imagem? A resposta parece encontrar-se na própria diiculdade das personagens em encarar essa imagem, a despeito de sua ânsia em encontrá-la e mantê-la. Ana não simboliza apenas os louros e honras da resistência armada. É também com Ana que os guerrilheiros se recordam das utopias e ingenuidades do dito movimento revolucionário, bem como da violência praticada sob a “lógica perversa da guerra” (pela guerrilha também posta em prática). Como bem alega Zezé em dado ponto da narrativa, Irene e os demais não são apenas vítimas: a despeito das torturas e outras violências, eles também mataram. O italiano Paolo, mesmo que acidentalmente, foi responsável pela morte de cidadãos inocentes, assim como Ana parece ter uma relação direta 146 com a morte de seu próprio companheiro (de luta e de vida). Nisso, o fantasma de Ana também personiicará um intenso sentimento de culpa e desilusão, uma vez que reitera ou relete os anseios e mágoas de boa parte daqueles que o projetam (sobretudo o ex-guerrilheiro italiano). E se veteranos como Irene parecem reclamar, mesmo que involuntariamente, um papel unívoco de vítima, eles ainda devem lidar com os resultados ambíguos de sua antiga luta pela democracia, como é evidente, por exemplo, na cena em que Irene dialoga com um taxista cujo clássico discurso de desprezo pelos políticos brasileiros poderia facilmente desembocar no desejo de retorno a um governo ditatorial. Ana, portanto, igualmente revela a amarga complexidade dessa resistência guerrilheira, e daí o desejo de vê-la não como o corpo decadente ou moribundo com o qual vivia em seus últimos anos, mas sim sob a imagem jovial e vigorosa de Simone Spoladore. Deseja-se ver Ana sob a égide do mito: o mito da jovem revolucionária, com seu olhar desaiador e irreverente e com seu cigarro sempre em punho. O mito da guerrilheira impetuosa, excitada com o Manifesto Comunista, mergulhada nas utopias empolgantes da revolução, disposta a mudar um continente inteiro, para não dizer o mundo. Mas o próprio mito, de tão explícito, se auto-desconstrói. Ana, mesmo apresentada pela imagem vitoriosa da guerrilheira, atira no cenário vazio de uma periferia, desloca-se subitamente para o exílio na França e enfrenta, sozinha e melancólica, o peso de seus erros, decepções e fracassos. E no diálogo inal com Irene, o fantasma de Ana questiona se valeu a pena. Não a luta revolucionária, mas a perpetuação desse mito. Quão válida é essa imagem quase santiicada da ex-guerrilheira se esta própria encontra-se praticamente abandonada e decadente nos dias atuais? Conforme a própria Ana diz, ela sobrevive de si mesma: solitária e esquecida, ela só está viva por causa de sua própria imagem e legado. Ou melhor: ela só está viva por causa de um ícone a ela associado, de uma imagem cultuada (possivelmente não verdadeira) que esconde a verdadeira contradição e complexidade dos fatos – fatos, aliás, que continuam a destruí-la. 147 E quando Irene pede para que Ana ique, a cineasta reivindica não apenas a memória de um tempo que corre o risco de ser sepultada, mas também a imagem revigorante que continue dando um sentido ao que foi feito e ao que se sucede – ainda que essa imagem seja vinculada a uma pessoa em relação a qual a própria Irene guarda alguns ressentimentos. Ainda nesse contexto, é válido observar a relação da juventude para com essa velha guarda de militantes (e para com esse mito da guerrilheira). Os personagens jovens, em verdade, são corpos estranhos no longa-metragem. Em oposição aos ex-guerrilheiros que se relacionam quase que friamente entre si, como se o peso da morte de Ana impossibilitasse grandes demonstrações de afeto, os jovens aspiram aos toques e carícias, às danças e abraços, aos beijos e relações sexuais. Eles, no caso, também evocam o mito de Ana, tanto pela imagem estimulante que essa idealização transmite quanto pela memória afetiva que possuem da tia revolucionária (a qual impede a projeção de uma imagem mórbida). Mas os jovens também se identiicam com esse fantasma: na condição de “ilhos da revolução” e a partir de seu próprio engajamento político, a segunda geração compartilha a impetuosidade, irreverência e ingenuidade da Ana guerrilheira e rebelde – e assim como os veteranos, eles não deixam de projetar parte de seus próprios anseios, inseguranças e utopias no fantasma da tia. É interessante, aliás, a interação dos jovens com essa herança do “movimento revolucionário”, bem como seu ativismo tão libertário e contraditório quanto o praticado pelos veteranos. Eduardo, por exemplo, provoca as utopias da guerrilha com sua instalação artística: a rede que personiica as armadilhas da revolução, enclausurando os velhos guerrilheiros ao som de “Embaixador, não se preocupe! Nós somos revolucionários!”. Entretanto, a obra se converte ela própria em potencial armadilha de alienação, uma vez que o divertimento que sua interatividade proporciona parece inibir qualquer relexão mais aprofundada de cunho político ou social (e isso por parte tanto das crianças da periferia que claramente se entretêm com a rede, quanto dos próprios militantes que interagem fascinados com a obra). No entanto, o mesmo trabalho continua denotando uma pequena re148 volução: a dessa nova experiência de fruição artística. Mesmo apenas se divertindo com a rede, as crianças da periferia ainda vivenciam uma experiência de interatividade que pode, por si só, implicar em novos signiicados e sensações, potencialmente válidos e até transformadores – mesmo que num plano puramente estético ou sensorial ou num âmbito de possível domesticação de “incisivas relexões engajadas”. Eduardo, por im, declara em certo ponto: “Não acredito mais em revoluções, nem em caminhos hiper-inovadores, mas continuo sonhando. Acredito nas micro revoluções, na explosão dos afetos. Não dou ouvidos a essas declarações vazias de que a arte não serve pra nada. Eu insisto, persisto: levo a arte pras ruas, expando os desejos. Essa é a minha revolução”. Dessa forma, a juventude também responde ativamente à velha guarda, mesmo que viva sob a inluência de seu legado. Eduardo, por exemplo, é uma espécie de herdeiro de artistas como Hélio Oiticica (cujos trabalhos, inclusive, são visualizados na cena de uma palestra), do legado do ativismo LGBT, até das contestações dos anos 1960 para frente e a um modelo tradicional de relacionamento monogâmico (vide uma das cenas inais em que ele, o namorado e a amiga de infância trocam afetos, abraços e beijos na frente de uma toilette feminina). Por outro lado, a jovem Chloé não hesita em analisar os ex-guerrilheiros e em tirar conclusões próprias a respeito da situação, anotando tudo o que lhe parece mais interessante; e Gabriel possui uma relação conlituosa com o pai Ricardo, outro ex-guerrilheiro. Em dado diálogo com a mãe, Irene, Eduardo retruca: “Mãe, você realmente acha que vocês izeram tudo”. A velha guarda não foi suiciente para gerar um berço de conforto e estabilidade: as lutas continuam, os desaios persistem. A homossexualidade de Eduardo, por exemplo, certamente ainda lhe implicará uma igual vida de resistências e perseguições – e é conveniente que, após esse diálogo com a mãe, o ilme vislumbre a relação sexual entre Eduardo e Gabriel, evidenciando tanto o romance e o erotismo da transa (os corpos nus no quarto semi-iluminado em tons de sépia) quanto o tabu que ainda impede que o ato da penetração seja diretamente visto (os corpos recortados pela 149 moldura do quadro). Por im, temos a igura inesperada de João Tavares, o ex-presidiário que, ainda na cadeia, fundou com outros prisioneiros um jornal inspirado em suas experiências com Ana, a qual lecionou um curso de cidadania na prisão, já idosa, após a ditadura. João, especiicamente, amplia e ressigniica as ações políticas da guerrilheira, abalando, inclusive, o predomínio de uma classe média nesse cenário de lutas e resistências, na medida em que expressa os movimentos próprios de um âmbito social até então periférico. E quando João conta sobre a rebelião dos presidiários em seu breve relato, ele não deixa de fazer menção a um outro tipo de guerrilha, tão digna ou válida quanto a dos “clássicos revolucionários”. Dessa forma, é natural que sejam os jovens os únicos a conseguirem um contato direto com o fantasma de Ana. Mesmo se identiicando com o mito e projetando essa imagem idealizada, a segunda geração também rompe com a aura do mesmo, na medida em que o desconstrói e o desbrava. João Tavares chamava Ana de “coroinha chapa quente”, Eduardo visita a antiga casa da guerrilheira e encara diretamente o fantasma, Chloé abraça e beija o fantasma ao mesmo tempo em que este afaga carinhosa e melancolicamente o seu rosto. Finalmente, o mito acaba, ele próprio, por se libertar. Ana quebra a quarta parede e encara o espectador. Seus olhos inalmente encontram os nossos, no momento em que a moça narra a reação de seus companheiros quando souberam de seu primeiro câncer. “Irene, choro não!”, ela conclui. Curiosamente, é nesse instante de libertação que o fantasma é ignorado: tanto os jovens quanto os veteranos encontram-se reunidos no bar, em claro momento de descontração (prolongado, inclusive, pelo slow motion da câmera). Esse fantasma dos anos de chumbo nos encara não numa cena de drama ou solenidade, mas de celebração e riso. Ou seja, na complexidade da alegria e da confraternização, assombradas pela iminência da morte e pelo peso de um passado sangrento. Ana, mesmo na idealização de seu mito, nos encontra em meio à complexidade desse grupo revolucionário, impetuoso em suas atitudes, transgressões e contestações, embora ainda 150 rodeado de tantos casulos e idealismos. No lashback inal, Ana (ou a atriz que a incorpora) contempla o jornal que reporta o seu recente ato “criminoso” como guerrilheira. O jornal, inclusive, possui um “retrato falado” da loira de óculos escuros que assaltou o banco. Ana se envaidece com essa imagem e até põe seus óculos escuros como forma de imitação irreverente daquele retrato. Ela própria assume a égide do mito, o ícone da guerrilheira impetuosa, revolucionária… e vaidosa. No entanto, talvez para a infelicidade de Ana, o corpo sobreviveu ao mito. Os heróis não se tornaram mártires: sobreviveram para presenciar os frutos ambíguos do heroísmo, a dor das cicatrizes, dos traumas e das dúvidas, a decadência de sua própria integridade física e mental. A ingenuidade anárquica de outrora, personiicada pelo mito, é vista atualmente sob a interferência da amargura e da melancolia, a despeito da imagem revigorante e saudosa que se deseja projetar. E, infelizmente, o mito torna-se a única chance de sobrevivência de um corpo já afundado e sepultado pelo oceano implacável do tempo. 151 XIX. Sensibilidade e forma Caíto (Guillermo Pfening, Argentina, 2012) Mona Perlingeiro e Thiago Carvalho É inevitável o impulso de tentarmos resumir uma obra, logo depois que a vivenciamos, sob um ponto de vista sensível. Apesar de genérico, esse sentimento sublinha fortemente as linhas que traçamos para nos aprofundarmos em uma análise mais detida do objeto. No caso de Caíto (2012), do ator e diretor argentino Guillermo Pfening, podemos resumir essa sensação com as palavras leveza e sutileza. Este ilme é sobre Luis Caíto, irmão do realizador, que sofre de Distroia Muscular de Becker, uma doença que leva à perda progressiva de massa muscular e provoca a paralisação dos movimentos corporais. No início da ita são inseridas passagens de um curta-metragem feito por Pfening (também intitulado Caíto, de 2004), que mostram como Caíto aprendeu a conviver com a terrível doença neuromuscular. Essas imagens exibem as condições em que ele vive e sua extrema singularidade. O longa dá continuidade, portanto, à relação cinematográica que se iniciou, anos antes, 152 entre os irmãos. Nas duas obras percebe-se o afeto e a grande cumplicidade que existe entre eles. Curioso como essa impressão entra em choque com a diiculdade motora do personagem. Não há dúvidas sobre a gravidade, na acepção primeira do termo, como algo que confere peso e até uma dimensão dramática da doença de Caíto. Mas a Distroia Muscular de Becker não assume papel central na trama, antes serve como pano de fundo de uma história que não apela e conquista pela naturalidade com que as relações interpessoais se desenrolam. Os enquadramentos dos irmãos com a família, a representação do corpo de Caíto e seus depoimentos sobre a doença dão à história um caráter bem pessoal; ainal, trata-se de um cineasta fazendo um ilme, que se tornará público, sobre um ente querido em sérias diiculdades. Pfening não quer ser visto como a “voz” do irmão e não poupa esforços para deixar claro que este participou em todos os momentos da feitura do longa – por exemplo, vemo-lo acompanhar na tela do computador a montagem dos planos. Imagens reiteradas dos irmãos falando sobre a nova produção e lembrando as ilmagens do curta reforçam o fato de Caíto ter desempenhado um papel ativo na realização da obra. Essa preocupação acaba produzindo um leve deslocamento de foco: a ita deixa de ser apenas sobre Caíto para se transformar no processo de fazer um ilme sobre ele. O êxito só é alcançado pelo tratamento formal que Pfening dá ao longa. Há pelo menos duas camadas narrativas com aspectos de cor, movimento e enquadramento totalmente diferentes. Todo esse cuidado explicita que os dois irmãos estavam bem conscientes das questões éticas que se levantam quando se faz um documentário sobre uma pessoa enferma. Para não correr o risco de acabar contando uma história apelativa, a doença passa a segundo plano e o ilme se propõe a outro enredo: o dos sonhos e desejos de Caíto. Evidente que, para falarmos de narrativa, precisamos de um narrador. Esse, no caso da linguagem audiovisual, é a câmera e seus diferentes “olhares”. Aparentemente essas camadas não se alternam, pois há um momento em que a icção começa declaradamente. Com o objetivo de narrar uma 153 outra história de Caíto, cria-se uma pequena icção, na qual ele poderá dar vazão a seu instinto paternal (Pfening soube pela isioterapeuta que seu irmão sonhava em ser pai) e viver um relacionamento amoroso. Os depoimentos e as imagens do cotidiano de Caíto são substituídos por planos em que se concretiza a trama imaginada e por enquadramentos que insistem em mostrar o processo fílmico dessa encenação. Caíto deixa de ser assunto para se tornar assumidamente personagem. As pessoas que fazem parte de sua vida serão representadas por atores proissionais. Além disso, alguns personagens ictícios são introduzidos: Anita e Suzuki. Com a primeira, Caíto será paternal e, com a outra, manterá um relacionamento amoroso. Cria-se todo um quiproquó para sustentar essa história: imagina-se que a relação conturbada com a mãe e o padrasto fará com que a criança acabe estreitando laços de amizade com o protagonista. Suzuki se afeiçoará por ele, porque foi o único homem que se importou de fato com ela. Enim, uma narrativa simples e sentimental que acaba criando cenas memoráveis. Muitas das sequências são ensaios do que deverá se realizar no ilme. Essa preparação de atores permite a Guillermo dar vazão a sua extensa experiência de ator no cinema e na televisão. Aliás, ele é mais conhecido como ator do que como diretor. Entre outros trabalhos, foi o protagonista de Nascido e criado (Nacido y criado, 2006), o quarto longa de Pablo Trapero, um dos mais importantes realizadores argentinos da atualidade. A fronteira que separa a diferença de olhar é a linda cena da piscina, na qual os atores e personagens misturam-se a Caíto numa espécie de abandono corporal, em que suas limitações não são relevantes. Guillermo propõe uma dinâmica, na qual as pessoas correm de um lado para outro, criando um movimento ondulatório na água. Caíto é deitado sobre a água agitada e as ondas parecem insular movimento a seu corpo enfraquecido pela doença. A câmera enquadra de cima esta sequência, abrindo o plano de tal maneira que capta as outras pessoas tendo as mesmas sensações do protagonista. Parece não haver diferença alguma entre os corpos que boiam prazerosamente na água. A luz reverbera no azul piscina, mudando 154 o aspecto da fotograia. As cores icam mais vibrantes, sublinhando o momento lúdico deste “faz de conta” que se inicia, mas que não se descola da imagem do corpo de Caíto. O limite de gênero imposto pelo olhar do narrador/câmera, no entanto, não é total. Apesar da notável mudança nos enquadramentos, no ritmo e nas cores da história “mais iccional”, a cisão não acontece completamente, pois a iccionalidade está – ainda que diluída por mecanismos que dão certo grau de realismo (não realidade) – presente na primeira parte do ilme. Como quando os irmãos estão conversando na sala de casa e a empregada aparece para falar com Caíto. Nada lhe ocorre enquanto está contracenando enfocada pela câmera principal, mas ela tem vergonha e se desembaraça da cena quando Guillermo pega outra câmera para ilmá-la. Aquela é sua reação natural ou roteirizada? Ou quando Caíto e Guillermo se abraçam no quarto, revelando a ternura da relação entre os irmãos. Qual a expectativa que o diretor cria com esse encadeamento de cenas e seu posterior desenlace? Contudo, não há apelo para que haja uma empatia do espectador com os personagens do ilme. Nós não colamos nossa experiência à dos personagens, pois vemos ali uma relação única que pode ser transmitida não por um chamado à realidade e dramaticidade da situação, mas pela sensibilidade e possibilidade de dar voz ao elemento mais frágil (isicamente, claro) da trama. Mas lembremos: Caíto participa de cada momento da confecção do ilme. Somos alertados sobre a iccionalidade própria do gênero o tempo todo. Parece haver sempre a radicalidade da experiência fílmica que se contrapõe ao relato documental. Aí está o ponto nevrálgico: não há conteúdo sem forma. A máxima do “baseado em fatos reais” não passa de um artifício que chama a atenção de um público sedento por uma suposta “verdade”. Sabemos que o cinema, assim como a literatura e outras linguagens que nos contam histórias, é fundamentalmente produtor de “mentiras”. Não se deve esperar nada que leve a qualquer coisa parecida com uma visão panorâmica do real a troco de não conseguir nada além de sua própria visão, entrecortada e predisposta pelo real. Abandonar-se para viviicar aquilo que a experiência do ilme nos per155 mite é pressuposto básico para a sensibilização e o entendimento. Sentimo-nos bem quando um ilme como Caíto não nos “engana” na tentativa de realizar como verdadeiro o padecimento do personagem. É o cuidado com a exposição do sujeito real/personagem que faz com que aquilo deixe de ser experiência pessoal para se tornar coletiva. Andrei Tarkovski, em seu livro Esculpir o tempo, diz que “os artistas se dividem entre aqueles que criam seu próprio mundo interior, e aqueles que recriam a realidade” (1998: 140). Caíto pode ser aquele que, por sua condição, esteja mais na posição de quem deve criar um mundo interior e, seu irmão, aquele que, por meio do cinema, (re)cria outra realidade. Luis Caíto Pfening é o homem comum – no sentido de que não constrói, como seu irmão, uma outra “verdade” através de suas atuações – que, para além do fato de ser protagonista, também é um espectador em busca do tempo “perdido” e o reencontra no cinema. O diretor possibilita a Caíto a experiência dentro do tempo de uma película, reformulando sua vida. A viagem pelo campo num quadriciclo é o momento em que Caíto e as atrizes que representam Anita e Suzuki estão mais à vontade. A montagem contribui também para que acabemos acreditando que se trata de uma “verdadeira” icção com atores convincentes. De modo que Caíto não apenas realiza a fantasia de ter uma mulher e uma ilha, como se revela um bom ator, dirigido pelo irmão. Apesar do impacto de o espectador ter que lidar com o problema físico do outro – pelo estranhamento provocado pelo que é diferente –, a alteridade torna-se um fenômeno presente, pois se contempla em primeiro plano uma igura fora dos padrões, portadora de uma doença pouco conhecida, dando à produção uma sutil sensibilidade que acima de tudo nos mostra a relação de respeito que os irmãos têm um com o outro, sem haver exploração de uma situação delicada. Ao im, não importa qual dos “Caítos” é verdadeiro e se de fato ele amou aquela mulher ou se teve uma relação paternal com a garota. Os desejos realizados pelo personagem, que são os desejos do Caíto real, fazem sentido como organização narrativa do ilme e 156 comemoram a realização do possível e do verossímil. Não nos compadecemos por um sujeito digno de pena, mas nos envolvemos por suas apreensões e desejos, comuns e, ao mesmo tempo, singulares. Referências bibliográicas: TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 157 XX. Crônica de um testemunho Os dias com ele (Maria Clara Escobar, Brasil/Portugal, 2013) Jennifer Cazenave e Natalia Christofoletti Barrenha Nas últimas três décadas, o documentário ampliou suas fronteiras para acolher abertamente a expressão da subjetividade como um elemento habitual dentro de suas práticas. A inluência de movimentos como o Cinema Direto e o Cinema Verdade (os quais, surgidos no im dos anos 1950, desembaraçavam o cinema documentário de suas estruturas rijas e estimulavam a experimentação formal e a maior proximidade entre o cineasta e a realidade que o cercava) e o desenvolvimento tecnológico são alguns dos fatores que explicam e promovem a progressiva subjetivação das práticas documentais em décadas recentes. Há, ainda, nos anos 1960 e 1970, a revalorização da primeira pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva e a necessidade de reconstituição da vida e da verdade abrigadas na rememoração da experiência. Beatriz Sarlo agrupa estes eventos como consequências do reordenamento ideológico e conceitual da sociedade do passado e de seus personagens, que se con158 centra nos direitos e na verdade da subjetividade – e que ela denominou guinada subjetiva18. O interesse pelas diversas formas do documentário chamado subjetivo coincidiu com essa virada nas Humanidades e Ciências Sociais descrita por Sarlo, particularmente, na França, onde os estudos de Philippe Lejeune contribuíram para o estabelecimento da autobiograia como gênero legítimo. Contudo, apesar de algumas publicações na década de 1980,19 foi somente durante a última década que um verdadeiro campo de pesquisa internacional, dentro dos estudos cinematográicos, começou a se desenvolver. De fato, os anos recentes viram não só a publicação de numerosas monograias e coletâneas sobre o cinema “autobiográico”,20 mas também a proliferação de etiquetas destinadas a delimitar uma forma cinematográica ainda diicilmente classiicável que agrupa tanto o autobiográico como o político e o histórico. De todas elas, convém mencionar a de “documentário performático”, cunhada por Bill Nichols, para designar ilmes centrados na experiência pessoal do cineasta; ou a de “documentário em primeira pessoa”, adotada, entre outros teóricos, por Michael Renov (2004, 2008), para se referir às obras organizadas a partir da intervenção pessoal do cineasta. A primeira pessoa aparece nos documentários latino-americanos dos anos 2000 como parte de um processo no qual o político relaciona-se com uma atitude de presença de individualidades em relexão. Esses ilmes reconsideram o passado a partir da experiência subjetiva: uma visão política nasce a partir de uma fratura familiar, e o que pareceria ser o documento de uma problemática doméstica transforma-se no registro de uma memória cujo destino é ser compartilhada, ou seja, social e não pessoal (Rival, 2007). No caso de documentários ditos “subjetivos” enfocados especiicamente nas ditaduras militares, a exploração das relações entre identidade, memória e infância torna-se, frequentemente, uma “busca que os ilhos fazem dos vestígios de um pai ou mãe desaparecidos” (Sarlo, 2007: 94). Podemos citar, entre os ilmes realizados por uma nova geração de cineastas latino-americanos, M (2007), do argentino Nicolás Prividera, Mi vida 159 con Carlos (2010), do chileno Germán Berger, e Diário de uma busca (2010), da brasileira Flavia Castro – obras que representam o passado através de uma busca por vestígios de seus pais, incluindo material tanto privado (fotos e ilmes de família) como público (recortes de jornais e reportagens televisivas). Se Os dias com ele, de Maria Clara Escobar (2013), apresenta-se como mais um ilme em primeira pessoa, ele se diferencia de seus predecessores, sobretudo, através da presença do pai da cineasta. Nesse documentário, ela o entrevista: Carlos Henrique Escobar, ilósofo e dramaturgo que foi preso e torturado durante a ditadura militar no Brasil e se auto-exilou em Portugal há 12 anos. Centrado na igura desse renomado intelectual, que esteve relativamente ausente durante a infância da ilha, o ilme oscila, por um lado, entre a busca de uma memória da relação afetiva da ilha-cineasta e, por outro, da experiência dele durante a ditatura. Além disso, o ilme põe em cena uma confrontação entre dois protagonistas que faz do ilme tanto uma investigação do passado como uma relexão sobre a possibilidade (ou, mesmo, impossibilidade) de representá-lo. O ilme constrói, a partir desse confronto, um modo de se aproximar do passado e fazer uma relexão sobre a história já não pensada em termos de uma lógica progressiva, mas a partir de um sentido alternativo e pessoal. O que está em questão são dois passados traumáticos que a cineasta tenta, ao longo do ilme, explorar, relacionados às duas facetas de Carlos Henrique – um pai ausente e um homem torturado, uma história pessoal e coletiva. Em Os dias com ele, Maria Clara Escobar explica repetidas vezes que o ilme é para entender a própria experiência pessoal cheia de lacunas. Como ela declara, é “uma relexão sobre o silêncio, os silêncios históricos e pessoais..., o silêncio da ditadura e o silêncio que eu tenho na minha própria história com relação à sua”. Perante essa ilha procurando vestígios do passado, Carlos Henrique a interpela constantemente, por sua vez, sobre as reais motivações que a levaram a querer realizar o documentário. Além disso, referindo-se aos trabalhos de Jacques Derrida sobre a impossibilidade de revelar a verdade na base do testemunho, ele pretende demonstrar, 160 ao mesmo tempo, os limites de sua posição como testemunha e à de sua ilha como cineasta. Carlos Henrique sugere insistentemente o quê e como ela deve perguntar, ou como efetuar a montagem – chegando mesmo a evocar, em algum ponto, um roteiro do ilme que ele mesmo está escrevendo –, recusando-se em se adequar tanto às expectativas da ilha como às da cineasta. Assim, como observa o crítico Raul Arthuso (2013), Maria Clara coloca tal confronto – ele não quer fazer o ilme proposto por ela, e ela não quer fazer o ilme ao qual ele se dispõe – no centro do longa, construindo Os dias com ele por meio de um tour de force. Ainal de contas, Carlos Henrique jamais aceitara dar entrevistas sobre si mesmo, e uma batalha gera o documentário, já que ambos brigam por um espaço simbólico mediado pela câmera. Na primeira parte do ilme, as recusas do pai em falar sobre suas experiências, principalmente aquelas que dizem respeito à tortura, são acompanhadas por imagens que sugerem a diiculdade de estabelecer um diálogo com ele: vemo-lo caminhando em direção ao fundo do plano, numa profusão de quadros dentro do quadro, observado através de janelas, fragmentado pelos tijolos vazados do muro ou ainda entre uma ininidade de livros. Uma herdeira à procura de histórias ausentes, a cineasta esconde seu corpo e deixa sua presença reduzida quase completamente a uma voz off que tenta arrancar fragmentos do passado desse pai sempre localizado no campo do visível. Esse contraste revela que, ainda que Maria Clara não consiga delimitar seu próprio lugar, que oscila entre ilha e cineasta, ela sabe qual é o do pai: uma testemunha, tanto da história do país como da infância da diretora. Esse deslocamento de Maria Clara fora de quadro é enfatizado através da onipresença de Carlos Henrique, particularmente, no momento em que ela lhe pergunta, pela primeira vez, sobre a tortura que sofreu. Nesse instante, em vez de relatar sua experiência, ele lê breve passagem de uma de suas peças, Matei minha mulher, onde o protagonista recorda sua própria tortura. Todavia, no meio da cena, a voz do pai – depois de ser silenciada inteiramente e de ele desaparecer da tela – ica coberta pela voz da cineasta que acaba a descrição em off, enquanto desilam 161 imagens de um ilme caseiro qualquer. Fragmentos de memórias “alheias” (no início do projeto, inclusive, o ilme intitulava-se Memória emprestada), esse material privado é objeto de desvio: contrariamente aos ilmes latino-americanos que já citamos, os Super 8 utilizados por Maria Clara ao longo de Os dias com ele pertencem a outras pessoas – ou seja, não mostram nem o pai, nem ela. Como revela a voz da cineasta numa sequência, a respeito de cada adulto que aparece na tela: “esse não é meu pai”. Da mesma maneira que o pai nega a possibilidade de representar o passado, o trabalho com os ilmes de família põe em cena os limites que assombram a própria busca de Maria Clara. Enquanto o pai, do início ao im, insiste que o projeto dela é impossível, a negação da cineasta manifesta-se de maneira implícita e, sobretudo, através da montagem. Mais precisamente, ao não usar nem imagens de arquivo nem imagens de sua família, seu próprio caminho de cineasta encontra o caminho do pai-ilósofo. Esse encontro é resultado de um processo inerente aos dois tempos do ilme: a ilmagem e a montagem. Em Os dias com ele, a distância se cristaliza na cena culminante – que é também o ponto alto da confrontação entre o pai-ilósofo e a ilha-cineasta: quando ela lhe pede para ler o documento do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) que autorizava sua prisão. De fato, no momento de ocupar o seu lugar na frente da câmera, o pai descobre o documento sobre a cadeira. Recusando-se a sentar e lê-lo, ele passa o mandado à sua ilha antes de deslocar-se fora do campo. Nenhum dos dois é visível e decorre uma discussão prolongada sobre a questão da representação do passado, ao longo da qual a noite começa a cair. Embora a cineasta queira aprofundar simultaneamente a história do Brasil e de seu pai, ele lhe explica sua negação à leitura do documento “deles” (isto é, dos responsáveis pela tortura), ou para falar de sua própria detenção quando tantos outros sofreram o mesmo destino. Por im, ele sai, e a cineasta se vê, então, obrigada a ocupar o lugar do pai para compensar essa ausência: sentada na cadeira dele, e pela primeira vez completamente visível no ilme, ela lê o mandado na frente da câmera. Embora essa tensão entre Carlos Henrique e Maria Clara não desapa162 reça em todo o documentário, ela se dilui um pouco para dar lugar a uma interação que estabelece, pela primeira vez, uma frágil ligação nessa complexa relação que o ilme busca realizar entre a esfera privada e a pública. A cineasta deixa de se confrontar diretamente com o pai para aceitar retoricamente suas sugestões, sem abrir mão de fazê-lo falar sobre seu passado. Aos poucos, ela consegue compreender que as evasivas do pai não são recusas de estabelecer uma relação com ela, repetindo voluntariamente no presente o que fora obrigado a fazer no passado. Torna-se claro que a resistência dele deve-se a sua diiculdade em expor suas experiências traumáticas. Não por acaso, deixa-se de enfocá-lo centralizado e de baixo para cima. A partir desse momento, Carlos Henrique conseguirá expressar, pela insistência da ilha, a profunda mágoa que realmente marca as pessoas um dia torturadas. Esse homem, áspero e descrente do gênero humano, fala sobre um dos gestos mais comoventes em meio ao horror da tortura – já bastante machucada, a companheira presa junto com ele lhe apertara a mão para lhe dar coragem. Através das resistências e das sinuosidades subjacentes no testemunho fragmentário de Carlos Henrique Escobar e na participação de Maria Clara como cineasta, Os dias com ele coloca em cena os limites implícitos a toda busca de uma representação do passado. Da mesma forma, tomando como ponto de partida as ausências que assombram tanto a história coletiva do Brasil como a história pessoal de Maria Clara Escobar, o ilme é construído em torno de uma série de limites, tal como a exclusão de imagens de arquivo da ditadura, o desvio de ilmes de família e a quase invisibilidade da cineasta. Enquanto ilustrando a posição incerta do “eu” na representação de um passado no qual ela não é a protagonista principal, mas a herdeira, esse deslocamento formal problematiza a questão da transmissão – e sua representação – da história da ditadura de uma geração para a outra. Em Os dias com ele, Maria Clara Escobar propõe contar suas versões da História (e como esta a afetou pessoalmente), ressigniicando a leitura do passado através da própria subjetividade e encontrando verdades-tenta163 tivas, parciais e provisórias, mas profundamente encarnadas e operativas para a construção de uma memória que transite do individual ao coletivo (Piedras, 2013). O ilme cede protagonismo à duplicidade da igura de Maria Clara enquanto ilha e cineasta, estando pessoalmente involucrada nessa reconstituição de uma memória de acontecimentos dos quais ela esteve ausente. Ela está contida no depoimento do entrevistado, e sua vivência, assim como a experiência da ilmagem, reforça o aspecto lacunar – não para dizer que o passado não pode ser recuperado (pelo menos no sentido de uma verdade), mas para mostrar, mais uma vez e quantas forem necessárias, como as lacunas e ausências desse período estão ali. Referências bibliográicas: ARTHUSO, Raul. “Demasiadamente humano. Os dias com ele, de Maria Clara Escobar (Brasil, 2013)” in Revista Cinética, 01 de dezembro de 2013. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/home/os-dias-com-ele-de-maria-clara-escobar-brasil-2013/. BARRENHA, Natalia Christofoletti. “Silêncios históricos e pessoais: memória e subjetividade no documentário latino-americano contemporâneo” in ARAÚJO, Juliano José de; BARRETO, Rodrigo Ribeiro e PAIVA, Carla Conceição da Silva (orgs). Cultura audiovisual: transformações estéticas, autorais e representacionais em Multimeios. Campinas: UNICAMP/Instituto de Artes, 2013. 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Em seu ensaio Tempo passado, Sarlo relete especialmente sobre os processos de reconstrução do passado na Argentina (cujas considerações podemos estender a outros países latino-americanos) após a redemocratização. Sarlo apresenta esse cenário da irrupção dos relatos em primeira pessoa no campo artístico argentino contemporâneo para depois criticá-lo, pois para ela tais obras teriam seu sentido político esvaziado justamente porque “preferem postergar a dimensão mais especiicamente política da história, para recuperar e privilegiar uma dimensão mais ligada ao humano, ao cotidiano, ao mais pessoal” (2007: 105). Na contramão da proposta da intelectual, queremos pensar aqui na potência do cotidiano e do pessoal através dos aspectos estéticos e políticos suscitados pela memória afetiva. 19. Ver, por exemplo, o dossiê sobre o cinema autobiográico publicado em 1987 pela Revue Belge du Cinéma que inclui um artigo do especialista francês da autobiograia Philippe Lejeune. Importa notar, também, que Elizabeth Bruss, pesquisadora americana na área de Literatura, foi a primeira que problematizou a relação entre o cinema e a autobiograia num artigo publicado em 1980, “Eye for I: Making and unmaking autobiography in ilm”. 20. Pensamos, entre outros, no livro de Michael Renov, The subject of documentary (2004), ou no de Laura Rascaroli, The personal camera: subjective cinema and the essay ilm (2009), assim como na coletânea publicada por Gregorio Martín Gutiérrez, Cineastas frente al espejo (2008). 165 XXI. Pelo malo: em busca do lirismo no concreto armado Pelo malo (Mariana Rondón, Alemanha/ Argentina/Peru/Venezuela, 2013) Marília Bilemjian Goulart O venezuelano Pelo malo aborda com sensibilidade as problemáticas que marcam a vida metropolitana na América Latina, em especial aquelas que se impõem sobre os habitantes mais pobres que lutam para sobreviver. Desempregada, Marta se vê às voltas para criar dois ilhos: um bebê de colo e Júnior – que, com cerca de oito anos, tenta quase de tudo para alisar o cabelo e, na foto do colégio, icar parecido com o cantor que idealiza. Apesar de próximos e unidos pelo desamparo e as diiculdades, Júnior e Marta parecem estar em oposição. Interpondo-se contra o vagueio e os sonhos do ilho, Marta é dura e com frieza e precisão se lança contra a imaginação de Júnior. Tendo como cenário principal o simbólico conjunto habitacional 23 de Enero, a tensão entre os polos representados por cada um dos personagens constrói o drama do ilme e tece também uma crítica 166 sobre a cidade moderna. A conlitante relação e as diiculdades dessa família colocam em pauta os entraves enfrentados por um número cada vez maior de mulheres que cheiam famílias em outras metrópoles da América Latina. Em sociedades marcadas pela desigualdade de gênero e pelo machismo essas mulheres assumem duplo papel de mãe e pai. Na dupla, e às vezes tripla jornada, não raro falta-lhes apoio familiar e subsídios básicos, inanceiros e mesmo emocionais para lidar com desaios e complicações da empreitada que assumem sozinhas. A obsessão de Júnior por alisar o cabelo e o repúdio de Marta ao comportamento do ilho, segundo ela afeminado, lançam luz sobre a imaturidade da mãe, as problemáticas oriundas dos padrões de gênero largamente impostos e sobre o racismo que alimenta a imaginação infantil. O conlito entre Júnior e Marta e as relações dos personagens com os espaços versam também sobre a capital venezuelana, tecendo metáforas entre o urbano e os protagonistas. Como buscarei argumentar, para além das analogias entre localidades e personagens, em Pelo malo a dramaticidade e as tensões são desenvolvidas através das relações com os cenários e, sobretudo, através da construção dos espaços em tela. Em quadro: signiicações da cidade Com pequenas folgas o atrito entre Marta e Júnior segue do começo ao im do ilme. Inábil com afetos, Marta repele carinhos e assume a rigidez em praticamente todas suas relações. À exceção do ilho menor, que recebe os poucos gestos ternos que ela parece ter para oferecer – e de Júnior, que vez ou outra ganha um sorriso ou um único cafuné –, Marta se relaciona com frieza com os demais homens e com as mulheres que cruzam seu caminho. Pelo malo apresenta-nos um universo em que as iguras femininas caminham alheias aos homens que, embora ausentes nas famílias, permanecem como entidades onipresentes. Assim, o pai que já se foi é evocado na designação do ilho (“Júnior”) e, mesmo se assemelhando a uma igura 167 mítica, capaz de se esquivar constantemente, o antigo chefe é buscado, ou caçado, com persistência por Marta. Nessa relativa ausência, as iguras masculinas têm importância e detêm certo poder nas relações que são construídas no ilme. Assim, Marta esforça-se para esboçar uma mínima simpatia com o vizinho e com o chefe, homens com quem se relaciona para atender objetivos especíicos e pontuais, como o desejo sexual e a reconquista do emprego. Através de ações peculiares e um tanto avessas, Marta deseja se tornar exemplar para o ilho e, em particular, oferecer um modelo a Júnior para que ele desempenhe um papel masculino alinhado a um padrão de gênero tido como normal. Desviando desse padrão de normalidade, as mais variadas ações de Júnior são reprimidas com palavras e olhares. Atos tão diversos quanto cantarolar, demorar para comer, dança e urinar sentado recebem sempre contundentes interdições de sua mãe. Central antagonista do maior desejo do ilho, Marta repreende ferozmente todas as vãs tentativas de Júnior de alisar o cabelo. Nessa construção, a tensão entre mãe e ilho não se restringe à caracterização e ao comportamento dos personagens, mas transborda nos cenários que basicamente compreendem locações nas agitadas ruas de Caracas e o complexo habitacional onde residem. Ora pendendo para o acelerado ritmo de Marta, ora para o vaguear de Júnior, a composição audiovisual dos espaços participa ativamente da construção dos dois polos conlitantes. Essa conexão entre cenários e personagens instiga uma leitura que relita sobre o conlito da trama em analogia às problemáticas e conlitos urbanos. O ritmo certeiro dos passos de Marta em sua obstinação para reconquistar o emprego integra-se ao acelerado compasso das caóticas ruas por onde ela se move com expertise entre carros e transeuntes. Nesses momentos a câmera lança-se com ela em meio ao luxo e, com movimentos agitados, acompanha a personagem em seu labiríntico e arriscado deslocamento. 168 Nas crescentes repressões a Júnior, que com falas ou olhares interditam o afeto e a sensibilidade, Marta parece encarnar o “espírito da vida moderna” que Simmel identiicou nas urbes do início do século XX. Em oposição à cidade pequena, marcadas pelo ânimo e por relações pautadas pelo sentimento, a cidade grande é regida pela objetividade, ou pelo “espírito objetivo”, em que impera o órgão menos sensível, isto é, o intelecto (Simmel, 2005). Algo semelhante a esse espírito objetivo parece comandar todos os movimentos de Marta, personagem que age e se relaciona com os demais sempre com um intuito bem deinido. Neste universo, as relações de Marta são intensas e as inalidades que as orientam estão basicamente ligadas às necessidades imediatas. O excesso de estímulos da metrópole resultou na incapacidade de reação do indivíduo que a habita (Simmel, 2005: 581) e a dureza da vida parece ter dado forma à Marta, que se torna incapaz de delicadezas e afetos. Em harmonia com a torrente urbana, a personagem reproduz certo aspecto ordenador da acelerada cidade moderna e tenta alinhar Júnior neste passo veloz e racional; “anda, corre!”, “por que tem que fazer isso tão lento?” são frases que se repetem ao longo do ilme. Na busca pela sobrevivência, os passos dos habitantes das metrópoles se submetem a uma rigorosa disciplina dos sentidos de espaço e de tempo, rendendo-se à hegemonia da racionalidade econômica (Simmel apud Harvey, 2014: 34). Esse também é o ritmo que se impõe sobre Marta que, completamente desamparada, vai sendo engolida pela feroz cidade e se torna ainda mais dura com o ilho. Se na primeira cena Marta tenta defender Júnior da fúria da patroa, ao im ela se lança contra o ilho, renunciando a toda possibilidade de afeto e rifando também sua própria posição de mãe, caso ele não se submeta à sua vontade. Em oposição a essa rígida relação com o espaço e com o tempo, contrário ao sentido pragmático e ordenador das ações de Marta, Júnior se apropria de modo mais lírico do ambiente que lhe envolve e não segue o frenético compasso da mãe. Sem se lançar por completo na urbe caraquenha, Júnior tem o conjunto habitacional como local central de permanên169 cia e faz das estruturas de concreto que lhe rodeiam os elementos de sua restrita diversão. Nesses momentos, acompanhando o olhar da criança, a câmera parece mais livre, em enquadramentos mais fecundos que recortam o monumental 23 de Enero de maneira inusitada. Assim, as inúmeras janelas do gigante e maciço conjunto se convertem em um tabuleiro de jogo imaginário, formam as trincheiras da brincadeira com bonecos de plástico e ainda o curioso cenário para os bonecos de fósforo que Júnior cria. Distante da ordenação materna, Júnior opera com liberdade essa transformação no espaço que, pelo uso e pela composição audiovisual, se torna mais leve e poético. Além de Júnior, o olhar infantil capaz de se encantar, imaginar e ultrapassar a crueza do dia a dia surge com La Niña, sua melhor – e também única – amiga. Com bastante ironia, a montagem exalta o contraste entre a menina que sonha (La Niña) e a mulher desiludida (Marta) através das ações lançadas em paralelo. Enquanto La Niña permanece extasiada com o concurso de Miss a que assiste na TV e do sofá, fantasiada, e reproduz o jingle (“hoje é o dia da beleza, todas podemos ganhar”), Marta se arrisca entre carros e encontra apenas negativas na busca por emprego. A montagem paralela produz confronto entre as duas perspectivas, mas também aproxima os dois mundos. Se La Niña sonha com a igura de Miss e literalmente usa essa fantasia como ornamento para a foto do colégio, de modo similar Marta também desila com sua “fantasia” de vigilante, uniforme que na maior parte do ilme permanece como adereço e não como roupa do trabalho ainda não reconquistado. O paralelo entre as fantasias femininas reforça a recusa da personagem adulta com relação ao modelo feminino hegemônico, isto é, da Miss que ainda encanta La Niña. A escolha de Marta pelo modelo duro em detrimento de um tipo frágil/sensual parece representar a busca de se alinhar ao universo masculino (daí o pavor de que o ilho mais velho seja gay). Nessa escolha, Pelo malo reforça o fracasso da saída de Marta, cujo pragmatismo exagerado adquire aspectos de um racionalismo que de tão extremo se torna delirante, mas que, mesmo assim, se impõe. 170 23 de Enero e o triunfo do ornamento racional Participando ativamente da tensão entre os polos e pendendo ora à dureza de Marta, ora ao olhar de Júnior, o complexo 23 de Enero é marca e testemunha das transformações que a cidade de Caracas enfrentou na última metade do século XX. Situado em Cata, zona oeste de Caracas, o imponente empreendimento foi erguido com a sugestivamente denominada política de cemento armado. Implementada pelo ditador Pérez Jiménez, a política promoveu, em meio à nefasta repressão, intenso salto nas construções caraquenhas que, com “grandes edifícios, muitas rodovias, variadas urbanizações, obras suntuosas e utilitárias [...] alteraram a face da cidade [...]” (Veracoecha, 1992: 250. Tradução nossa). Na política de concreto armado, a construção de habitações populares representou importante frente. Longe do enfrentamento de problemáticas sociais, essas construções buscaram combater o chamado “cinturão da pobreza” – composto por autoconstruções erguidas nas colinas que rodeiam a cidade. Em meio a essa empreitada ergue-se entre os anos de 1954 e 1957 o mais ambicioso projeto de renovação urbana da América Latina: o monumental 23 de Enero. Remetendo às unités d’habitation de Le Corbusier, o projeto – marcado por um ordenamento racionalista das linhas e formas que dialogam com o solo acidentado e com a paisagem do entorno – conigura-se como uma cidade funcionalista: entre os blocos de habitação são planejados estabelecimentos comerciais, escolas, igrejas, áreas de lazer e esportivas. O monumental empreendimento, associado à concepção que pretendia impor disciplina coletiva também no âmbito urbanístico, rapidamente colapsa. A busca por resultados rápidos no combate à pobreza, visível através das construções inanciadas pelo Banco Obrero, cujos projetos restringem-se exclusivamente às intervenções arquitetônicas, não dão conta das problemáticas que continuaram crescendo. Com a deposição do ditador em 1958, os apartamentos que não foram entregues são ocupa171 dos por cidadãos e, na década seguinte, as áreas comuns e espaços livres existentes entre os blocos são ocupados por autoconstruções (Lucente e Mendes, 2012). A apropriação por parte da população aponta a força da dinâmica social e das problemáticas especíicas da cidade. Contrariando a utopia moderna, com os anos muitas experiências demonstraram a incapacidade de se solucionar problemas urbanos e sociais por meio de projetos mais alinhados aos congressos internacionais do que à conjuntura local. Além disso, as ocupações “também revelam a face escura da modernidade, caracterizada pelo desalojamento, desigualdade e instabilidade, ainda mais dividida em termos econômicos, sociais, raciais e espaciais“ (Tamayo et al., 2005: 80. Tradução nossa). Mais do que o resultado de uma ação oposta à racionalidade e ao ordenamento, a transformação sofrida pelo 23 de Enero pode ser pensada como uma síntese de forças, em que o projeto moderno encontra a energia local, eclodindo um novo ordenamento. Nele, cada rua, passagem, escada e construção compreende uma célula do complexo sistema da “cidade informal” (Tamayo et al., 2005: 75) . Essa síntese entre o projeto modernista e as casas erguidas pelos populares é sugerida pelo modo como os moradores se referem ao 23 de Enero, denominado “barrio21 vertical”. A despeito das transformações no Conjunto 23 de Enero e do declínio da utopia moderna, em Pelo Malo o racionalismo e a regulação permanecem com força, em especial através da atitude ordenadora de Marta que se torna mais intensa ao longo da trama. Parecendo cada vez mais conformada à rigidez que lhe cerca, a dureza da mãe contra o ilho atinge seu limite ao inal. Apesar da leveza impressa nas estruturas de concreto pelo olhar de Júnior, a Caracas de Pelo malo não é suave como a soft city de Raban22. Ao im, ambos os projetos de relativo fracasso (a ordenação modernista que sucumbe e a reconquista do subemprego mediante sedução do chefe) se impõem sobre Júnior. A rigidez que se insinuara sobre o personagem ven172 ce e é também assumida na composição do espaço na tela. Sem issuras para a imaginação ou fruição, o longa termina sobre a austera escola. Remetendo à face tenebrosa do mito do projeto moderno, triunfa assim o ordenamento racionalista que, distante da promessa iluminista de libertação, oprime e aprisiona (Harvey, 2014). Na cena inal vemos pela primeira vez uma das faces do conjunto, que tem aos fundos uma escola. Nem a composição visual, nem a situação oferecem qualquer saída a Júnior. Alinhados às linhas perpendiculares das colunas do colégio, os alunos permanecem em ila. Sem cabelo, Júnior já não canta mais, permanece sério e calado enquanto os colegas recitam o hino nacional que se inicia: “glória ao bravo povo, que o jugo lançou, respeitando a lei, a virtude e a honra”. Referências bibliográicas: HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 2014. LUCENTE, Roberta e MENDES, Patrícia. “The 23 de Enero public housing in Caracas: re-thinking the relationship between the formal and informal city” in EURAU12 – Espaço Público e Cidade. Porto: FAUP, 2012. 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O grito que resume toda a dor, que é ao mesmo tempo vermelho como sangue e luminoso como o sol, um grito maior que a maior das bombas, a explosão deinitiva de tudo o que icou calado e não existem palavras para traduzir. O grito de todos os calados: dos que não falam por medo e dos que não podem mais falar porque estão mortos. Esse grito que rasgará os ouvidos, arrebentará os tímpanos e fará saltar a consciência de todos os bem-pensantes – mensagem inarticulada, selvagem, irracional (Renato Tapajós, 1977: 140). 174 A potência criadora da repetição, noção que devemos a Kierkegaard, está inteiramente ligada ao poder de reabrir o passado sobre o futuro [...]. Para nós, é ininitamente mais promissora a airmação segundo a qual repetir não é nem restituir après-coup nem re-efetuar, mas sim realizar de novo. Trata-se, aí, de um relembrar, de uma réplica, de uma resposta, até de uma revogação das heranças. A potência criadora da repetição cabe ela toda no poder de reabrir o passado sobre o futuro (Paul Ricoeur, 2000: 495).23 Em L’histoire, la mémoire, l’oubli, Paul Ricoeur (2000) põe ênfase na permanência do passado no presente e na necessidade de uma política da memória justa. É nessa chave que propomos analisar Corte seco, ilme lançado por Renato Tapajós em 2014, ano em que o golpe que instaurou a ditadura militar no Brasil completava meio século. Como já era o caso em boa parte de sua produção anterior, o foco do longa-metragem de Tapajós é o terrorismo de Estado praticado durante a ditadura, como se o cineasta estivesse mais uma vez a reairmar a necessidade desse trabalho de memória, tanto na esfera de sua individualidade quanto de maneira coletiva, para toda a sociedade. De certo modo, pode-se dizer que o pensamento sobre as narrativas do trauma e o trabalho de memória a partir de eventos catastróicos encontrou um ponto de inlexão ao ter de elaborar os horrores das duas guerras mundiais e dos genocídios que marcaram o século XX. Mais especiicamente, referimo-nos à literatura que se esforça por elaborar a terrível herança que os campos de extermínio e a bomba atômica – tentativas deliberadas de aniquilação da humanidade pela humanidade – legam às gerações posteriores. Não é sem um certo estranhamento que recorremos, nós, pesquisadores e críticos latino-americanos, a essa literatura – de Benjamin e Hannah Arendt a Claude Lanzmann e Didi-Huberman, sem 175 esquecer do lugar da psicanálise e de Freud nessa trajetória – para elaborar nossos traumas, em especial aqueles ligados à violência praticada por regimes ditatoriais militares em nossos países, a partir dos anos 1960. Tal estranhamento deve-se, por um lado, ao fato de que, tomando emprestada a fórmula de Jean-Luc Nancy (2012: 11), “as catástrofes não são equivalentes” e, portanto, elas se tornam, no limite, incomparáveis. Por outro lado, airmar o peso paradigmático da Shoah não signiica um olvido das catástrofes ocorridas em território brasileiro e latino-americano, de que nossas sociedades contemporâneas são fruto e cujo trabalho de memória ainda carece ser feito. Referimo-nos, por exemplo, ao genocídio ameríndio e africano, iniciados com a colonização e, a esse respeito, o trabalho de Frantz Fanon (2005, 2008) ocupa um lugar fundador.24 Ao articular análises de ilmes de diversos continentes, resultantes de diferentes genocídios que marcaram o século XX, Sylvie Rollet (2011) permite-se estabelecer relações entre maneiras de pensar a catástrofe que foram determinadas em momentos distintos da história. No caso brasileiro, um dos autores que faz essa ponte é Márcio Seligmann-Silva, no trabalho de longo fôlego que ele vem desenvolvendo, ao articular conceitos como trauma, catástrofe, representação e memória. Uma das discussões levantadas por Seligmann-Silva (2000) diz respeito à polêmica que envolve a representação da catástrofe: ainal, existem imagens que possam representar a Catástrofe? Se o epicentro da polêmica diz respeito às discussões, em grande parte protagonizadas por Lanzmann e Didi-Huberman, sobre a legitimidade de se trabalhar com fotograias de campos de concentração e extermínio, a questão de fundo é de fato maior: pode um evento catastróico, um trauma, ser igurado? Essa questão tem um longo caminho. Já estava presente na célebre obra de Lucrécio, De rerum natura25, escrita no século I a.C., e nunca foi resolvida. De fato, como traduzir imageticamente os genocídios da história da humanidade? Esses acontecimentos são repletos de imagens indeléveis e, no entanto, a eles se opõe outro extremo, como já reletiu Seligmann-Silva: “o da ausência de imagens” (2012: 63). Como representar histórias de violência que mal deixaram vestígios? 176 Quais os recursos imagéticos possíveis de (re)construção destas histórias traumáticas? O cineasta Renato Tapajós encontrou na icção a melhor forma para igurar a violência que sofreu nas salas de tortura durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985). A partir desse recurso, reairma a necessidade de seu trabalho de memória e oferece um caminho para se pensar a questão da representação do trauma com recursos iccionais. Autor de documentários políticos, a maioria deles tratando da militância de esquerda e dos movimentos populares durante a ditadura, como Universidade em crise (1966), A luta do povo (1980), Linha de montagem (1981), Em nome da segurança nacional (1983), No olho do furacão (2002, em codireção com Toni Venturi), O im do esquecimento (2013) e A batalha da Maria Antônia (2013), Renato Tapajós faz, com Corte seco, seu primeiro ilme de icção. Cinquenta anos depois do Golpe de 1964 e num momento em que os crimes cometidos pelo aparelho repressivo do Estado têm sido investigados, graças à atuação da Comissão da Verdade, muito embora até hoje nenhum torturador tenha sido punido, o cineasta lançou o longa que preparava havia mais de dez anos sobre a tortura no regime militar. A violência e a crueldade dos torturadores, na época abafadas pelos grandes jornais, são escancaradas pelo ilme. Nesse trabalho de memória, o recurso à narrativa iccional tornou-se essencial. Foi a estratégia que o realizador encontrou para retratar a tortura sofrida pelos presos políticos de maneira absolutamente frontal. O roteiro de Corte seco baseia-se na própria experiência de Tapajós, que era membro da Ala Vermelha do Partido Comunista do Brasil, esteve preso e foi brutalmente torturado. Suas lembranças haviam sido relatadas anteriormente no livro Em câmara lenta (1980), escrito na prisão e considerado pelo autor como um romance26, embora assustadoramente próximo da realidade. O ilme se inicia com a tomada da Rádio Independência de Santo André por um grupo de militantes da Ala Vermelha, com o objetivo de trans177 mitir um manifesto conclamando os trabalhadores a se organizarem em seus sindicatos para combater o regime e lutar por justiça social. Rodrigo e Aldo destacam-se como protagonistas e aparecem acompanhados de suas respectivas companheiras. Pouco depois, os dois são vistos dividindo a mesma cela, nas dependências da Operação Bandeirantes (Oban), onde passarão sete dias intermináveis, em que o cotidiano de maus-tratos na cela é intercalado por interrogatórios de terror na sala de tortura. Embora em nenhum momento recorra ao didatismo, Corte seco oferece ao espectador referências históricas do ano de 1969: as ações representadas no ilme ocorrem, grosso modo, no período que vai da tomada da Rádio Independência, efetivamente ocorrida no dia 1º de maio, em Santo André, ao derrame do General Artur da Costa e Silva (no dia 31 de agosto) e ao sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick (em 04 de setembro), esses dois últimos eventos mencionados no âmbito da prisão. O personagem Rodrigo é claramente inspirado em Renato Tapajós, enquanto Aldo baseia-se em Alípio Freire, seu amigo e companheiro de luta. Assim, Rodrigo é visto com a namorada em seu “aparelho”, sentado à máquina de escrever e, noutra cena, com a câmera na mão, ilmando camponeses no trabalho; Aldo, por sua vez, pinta uma tela, também acompanhado pela namorada. Ambos militantes, em 1969 Tapajós já era cineasta e Freire, artista plástico. Além disso, o personagem do capitão Guimarães, cruel e sádico, é uma clara referência a um dos torturadores mais temidos do período. No ilme, ele diz que, na sala de tortura, “todo mundo se chama Guimarães”. Guimarães era o codinome do Major Beltrão, um dos comandantes iniciais da Oban, denunciado pelo grupo Tortura Nunca Mais. As cenas de tortura são ilmadas em planos longos e frontais, com sequências de socos, pontapés, baldes d’água fria, choques elétricos no pau de arara e na cadeira do dragão. A narrativa adota majoritariamente o ponto de vista de Rodrigo. Um exemplo de sequência ilmada desde sua perspectiva se dá quando ele é encapuzado, no caminho do carro à sala de tortura: a tela ica negra e a imagem só reaparece quando os policiais tiram-lhe a venda do rosto. Isso não signiica uma incursão em sua subjeti178 vidade, já que, de certa forma, o ponto de vista de Rodrigo abarca a visão de muitos outros presos do período. Isso chega a se manifestar de maneira concreta nas cenas rodadas dentro da cela, em que a perspectiva do personagem alterna-se com a dos demais detentos. Pode-se dizer, portanto, que o foco narrativo do ilme, embora cambiante, apresenta uma coerência: ele pertence aos que sofreram a repressão política. Não se cede à tentação do personalismo, da vitimização ou do heroísmo. Fica no ar, por exemplo, o que terá acontecido com a namorada de Rodrigo, presa ao mesmo tempo que ele. Resiste-se, dessa forma, à identiicação espectatorial e ao melodrama. A trilha sonora discreta reforça essa opção, aliada à montagem sem truques e lashbacks, o que incrementa o realismo das sequências. Além disso, a transição entre os planos, como indica o título, se dá de forma brusca, com cortes secos. Acentua-se, assim, o impacto das sequências de tortura, marcadas por cenas escuras, câmera nervosa, planos fechados e som de gritos. O corte seco do título também pode ser interpretado como uma metáfora das diversas rupturas causadas pelos anos de chumbo. Os berros de dor e sofrimento que ecoam ao longo do ilme também podem ser encarados como o “o grito de todos os calados”, como escreve Tapajós (1977: 140), na primeira epígrafe deste texto. O grito “dos que não falam por medo e dos que não podem mais falar porque estão mortos, [...] que rasgará os ouvidos, arrebentará os tímpanos e fará saltar a consciência de todos os bem-pensantes”. Assim, neste caso, o espectador pode também ter um papel ativo na relação com o ilme, sendo um participante da narrativa histórica. Há, portanto, dois movimentos principais. Ao apresentar no campo fílmico a tortura frontalmente, o ilme transforma o espectador em testemunha ocular desse período ainda obscuro da história brasileira e também em alguém que sente os horrores transmitidos na tela. Além disso, ao incluir referências sutis a personagens reais e fatos históricos, instiga o espectador a buscar seu contra-campo invisível ou “a parte da sombra, o que não se mostra, o fora de campo, o subtraído, o ainda não visível e talvez o jamais 179 visível” (Comolli, 2010: 14). Assim, enquanto o ilme escancara a tortura, oculta o que ainda precisa ser investigado fora do campo fílmico. Nesse sentido, é interessante notar a atenção que o ilme demonstra em relação a presos comuns, que dividem a cela com presos políticos. O personagem interpretado pelo ator Jesser de Souza, um preso comum, dá a Rodrigo informações sobre como manter o corpo forte para resistir à tortura. Outro companheiro de cela é um artista (cujo nome é o mesmo do videoartista Toshio Matsumoto, e que se tornou notório por ilmes que abordavam a homossexualidade no Japão dos anos 1960 e 1970). Devido à tortura, Matsumoto acaba por ceder ao delírio. Mais tarde, Rodrigo e Aldo dividem a cela com um estelionatário francês, aparentemente também habituado àquele ambiente. Essa atenção dada a presos comuns funciona como uma estratégia para deixar claro que a tortura era novidade para os militantes, em sua maioria de classe média, mas não para a maior parte dos detentos de origem mais pobre que, aliás, continuam a sofrê-la até os dias de hoje. Assim, o ilme se diferencia do conjunto de produções, sejam elas icções ou documentários, que se concentram nas trajetórias de presos políticos, narradas de maneira épica. Talvez se possa estabelecer aí um paralelo com Quase dois irmãos (Lúcia Murat, 2004), que mostra os destinos de dois presos durante a ditadura militar, um político e um comum, cujos destinos se encontram porque compartilham a mesma cela; num outro registro, o ilme de Tapajós talvez possa oferecer uma resposta às provocações cínicas de Sérgio Bianchi em Jogo das decapitações (2013), que procura minimizar o sofrimento dos presos políticos durante a ditadura ao compará-lo com a tortura enfrentada atualmente nos presídios brasileiros. Se, em Corte seco, as referências a fatos e personagens históricos convidavam o espectador a imaginar um contra-campo que permanece invisível no ilme, as menções aos presos comuns conduzem a uma relexão sobre o futuro da violência instituída pelo regime militar. Assim, não haveria por que comparar qual violência é maior, a tortura dos militares ou a tortura da polícia atual. Trata-se, na verdade, de uma continui180 dade, de um processo que não foi investigado em profundidade e que deixa marcas da impunidade até os dias de hoje. A violência policial e a situação carcerária no Brasil de hoje são apenas algumas das provas dos impactos da carência de uma política da memória justa, para relembrar o que diz Ricoeur, ou seja, da necessidade de se pensar o passado no presente. Corte seco oferece uma inegável contribuição nesse sentido e reforça a necessidade tão atual de elaboração dessa memória, que também se traduz na frase de Alípio Freire, lembrado por Tapajós no ilme, “nós sobrevivemos ao pau de arara, mas o pau de arara também sobreviveu”. Referências bibliográicas: COMOLLI, Jean-Louis. Cine contra espectáculo seguido de técnica e ideología. Buenos Aires: Manantial, 2010. DELEUZE, Gilles. Le Bergsonisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1966. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. LUCRÉCIO. Da natureza (séc. I a.C.). São Paulo: Abril Cultural, 1980. Também disponível em EPICURO, LUCRÉCIO, CÍCERO, SÊNECA, MARCO AURÉLIO. Antologia de textos, coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985. MAUÉS, Eloísa Aragão. “30 anos de uma prisão” in Carta Maior, setembro de 2007. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/30-anos-de-uma-prisao/12/13553. Acesso em 01 de abril de 2015. NANCY, Jean-Luc. L’Équivalence des catastrophes (Après Fukushima). Paris: Galilée, 2012. NESTROVSKY, Arthur e SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. RICOEUR, Paul. L’histoire, la mémoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. ROLLET, Sylvie. Une éthique du regard. Le cinéma face à la Catastrophe, d’Alain Resnais à Rithy Panh. Paris: Hermann, 2011. 181 SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Imagens do trauma e sobrevivência das imagens: sobre as hiperimagens” in CORNELSEN, Elcio Loureiro; SELIGMANN-SILVA, Márcio e VIEIRA, Elisa Maria Amorim (orgs.). Imagem e memória. Belo Horizonte: Rona Editora, FALE/UFMG, 2012. TAPAJÓS, Renato. Em câmara lenta. São Paulo: Alfa-Omega, 1977. Notas: 23. Nesta e nas demais citações, quando o texto original estiver em uma língua diferente do português, a tradução é de responsabilidade das autoras. 24. Na célebre obra Os condenados da terra, Fanon relete sobre os efeitos catastróicos da colonização nos países de “terceiro mundo”. Segundo ele, “o colonialismo e o imperialismo não estão quites conosco quando retiraram de nossos territórios as suas bandeiras e as suas forças policiais. Durante séculos, os capitalistas se comportaram, no mundo subdesenvolvido, como verdadeiros criminosos de guerra. As deportações, os massacres, o trabalho forçado, o escravagismo foram os principais meios utilizados para aumentar as suas reservar de ouro e diamantes, suas riquezas, e para estabelecer a sua potência” (2005: 121). 25. Lucrécio traz uma relexão fundadora sobre a posição de quem observa um evento catastróico e, no limite, sobre a possibilidade de uma obra de arte representar a catástrofe. Um dos versos do prooemium do segundo livro diz o seguinte: “É doce, quando no mar imenso os ventos agitam as águas / observar a partir de terra as tribulações alheias”, ou em outra tradução: “É bom, quando os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os rudes trabalhos por que estão passando os outros; não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém, mas porque é bom presenciar os males que não se sofrem. É bom também contemplar os grandes combates de guerra travados pelos campos sem que haja da nossa parte qualquer perigo” (1985: 111). 26. A palavra “romance” aparece na capa do livro, provavelmente como uma estratégia do autor para driblar a censura do período. Mesmo assim, a obra foi proibida de circular e, em virtude de sua publicação, Tapajós foi novamente preso, em 27 de julho de 1977 (Maués, 2007). Na pasta que contém a documentação ligada à prisão de Tapajós, localizada no acervo do DOPS, atualmente depositada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, consta a seguinte descrição sobre o livro: “não se trata de uma icção, mas sim de uma apologia da subversão, do terrorismo e da guerrilha rural e urbana, em todos os seus aspectos, cujo texto tem como personagens principais o próprio Renato Carvalho Tapajós”. Na mesma época, Antônio Candido escreveu um parecer crítico sobre o livro, contrariando as airmações do órgão da repressão judicial e denunciando a arbitrariedade do Estado (Idem). 182 XXIII. O Estado ausente e a destruição da natureza Matar a um homem (Matar a un hombre, Alejandro Fernández Almendras, Chile/França, 2014) Alexsandro de Sousa e Silva Matar a un hombre é o quarto ilme na carreira do chileno Alejandro Fernández, que também dirigiu e escreveu os roteiros de Lo que trae la lluvia (2007), Huacho (2009) e Sentados frente al fuego (2011). No enredo marcado pelo gênero thriller, Jorge, trabalhador de uma área lorestal, e sua família – a esposa Marta e ilhos Nicole e Jorgito – são assediados por Kalule e seus comparsas, sem motivo aparente. Pressionado pela falta de escrúpulos do inimigo e pela ausência de amparo por parte da justiça, Jorge assassina-o e esconde o corpo. Sem perspectiva de seguir com a família e diante da inércia do Estado em investigar o desaparecimento de Kalule, Jorge recolhe o cadáver e se entrega aos carabineros. O roteiro simples, baseado em fatos reais, dá suporte a um cuidadoso trabalho de mise en scène, o que nos faz pensar em três questões, que se entrelaçam ao longo da narrativa: a temática que relaciona a omissão do Estado com a busca do “fazer 183 justiça com as próprias mãos” por parte dos indivíduos; o trabalho com a câmera, que combina um predomínio de planos ixos com alguns travellings em momentos precisos; e, inalmente, uma problemática articulação entre homem e natureza. A primeira questão é de ordem temática. Diante da omissão do Estado em proteger seus cidadãos, restou ao pacato Jorge buscar a saída pelas próprias mãos. Aqui no Brasil, tivemos casos similares, mas de outra natureza. No começo de 2014, coincidentemente ao lançamento do ilme de Alejandro, um grupo de moradores de classe média alta do Rio de Janeiro linchou um menor de idade, acusado de roubar uma mulher, e o prendeu junto a um poste de ferro, deixando-o sem roupas e atado pelo pescoço. Esta imagem atroz remete à época da escravidão, à maneira como se castigavam os escravos. Em maio do mesmo ano, um grupo de populares linchou e assassinou uma mulher acusada erroneamente de sequestrar crianças no Guarujá, São Paulo. Seu corpo foi ilmado e colocado em redes virtuais para a apreciação dos olhares sádicos. Foram mais de trinta infelizes casos de “justiçamentos”, realizados por pessoas insatisfeitas com a lentidão da Justiça e crentes de que os “criminosos”, todos cidadãos pobres, tinham que “pagar caro” pelos seus crimes. Mas o ilme em questão passa por outro caminho. Jorge e sua família buscaram amparo legal nas instâncias devidas. O julgamento de Kalule, que havia molestado e atirado em Jorgito, sentenciou-o a um ano e meio de prisão. Marta achou pouco, mas a advogada, que achou a decisão satisfatória, airmou que não havia mais testemunhas além do próprio Jorge para ampliar a pena. De fato, há um grande vazio nas ruas de Tomé e Concepción, onde o ilme foi rodado. As relações humanas, conlituosas ou não, são retratadas em sua maioria em espaços fechados: na casa da família, nas delegacias, no tribunal, no salão de cabeleireiros de Marta, nos bares, no trabalho de Jorge. Os espaços abertos, por sua vez, são lugares de abandono e tensões. Por exemplo, os laites (termo pejorativo a jovens agressivos, geralmente vinculados ao mundo das drogas) “se divertem” nestes lugares: assaltaram Jorge, acossaram sua 184 ilha e agrediram Jorgito duas vezes. Na agressão sexual de Kalule a Nicole, em plena luz do dia, apenas os comparsas assistiam à cena no carro. Um senhor no alto do plano até vê o crime à distância, porém vai embora calmamente. Sabendo desse vácuo humano no espaço aberto, Jorge sequestra seu desafeto e o conduz à morte, ocorrida dentro da caçamba fechada de um caminhão utilizado para transporte de cargas refrigeradas. Dessa forma, os espaços abertos coniguram-se em territórios de conlito, com ausência de convívio e harmonia social. As decisões de Jorge em assassinar o inimigo, esconder o corpo, recuperá-lo e entregá-lo às autoridades não são realizadas friamente. Como é comum acontecer nos thrillers, as cenas do sequestro e da morte de Kalule são longas e tensas, com breve intervenção musical, violoncelos e clarinetes, que ligam as duas sequências. A música com essa base instrumental e o som da gaita tocada por Jorge expõem de forma sonora a tensão do protagonista ao longo do ilme. No entanto, o silêncio é personagem que marca presença, como uma forma sonora de sintetizar o vazio representado no espaço público. A insegurança de Jorge, segurando a arma e improvisando um meio de capturar o inimigo, é acompanhada pela câmera, que registra a atuação de Daniel Candia. O pai da família olha para os lados, quase arrependido, não acreditando no que está fazendo. A estratégia de capturar Kalule foi utilizar-se do alarme do carro, de madrugada. A intermitência entre os sons do alarme, a cada vez que Jorge batia no carro e o outro desativava o ruído com o controle, ressalta a presença do silêncio e do vazio na rua. Intrigado com o alarme, Kalule vai conferir o automóvel e é rendido por Jorge. Em seguida, na hora do crime fatal, segue a incerteza do protagonista, que abre a porta da caçamba, parece querer fuzilar o inimigo, ica em dúvida, manda voltar, tranca. Ouvimos Kalule em off desculpando-se e amaldiçoando Jorge. Este tem a ideia de asixiar o inimigo com a fumaça do escapamento, e acompanhamos todo o processo até os primeiros sinais do humo saindo pelas frestas da caçamba. Mais uma vez, o espaço aberto está vazio. Os carabineros e os oiciais de justiça são iguras simbólicas do poder 185 do Estado e mostram as limitações da mesma instância em lidar com as diiculdades do cotidiano civil. A formalidade dos espaços inibe os personagens e os fazem seguir as regras impostas. Nas delegacias, vemos a imagem do então Presidente Sebastián Piñera (2010-2014) sorridente nos quadros. Os retratos oiciais destoam da gravidade das situações mostradas, como se o Presidente estivesse se divertindo. Suas “marionetes”, os funcionários públicos, preocupam-se apenas com os documentos (testemunhas, fotos, vídeos) que comprovem as agressões denunciadas. Burocratização. Marta, numa excelente atuação de Alejandra Yañez, mostrando um temperamento explosivo e verborrágico, reclama que as investigações nunca são feitas, e que o criminoso nunca será detido. Estado e sociedade civil parecem viver em duas instâncias distintas. A segunda questão entrelaçada na narrativa é o trabalho com a câmera, constantemente estática. Há um dado intrigante: prevalece ao longo do ilme uma forma peculiar de enquadramento, algo como um plano americano, porém a câmera é posta mais para o alto, de forma que os personagens sejam mostrados muitas vezes dos ombros para cima. A ação concentra-se na porção inferior da tela, enquanto na metade superior veem-se, sobretudo, os elementos de cenograia. Nas cenas das delegacias, por exemplo, é na parte superior da tela que são exibidos os retratos sorridentes de Sebastián Piñera. Tal forma de enquadramento empurra os personagens sempre para baixo, como uma forma de inferiorização. A ausência de movimentos de câmera é recorrente ao longo da película, dentro do enquadramento acima descrito. A ixidez do aparelho e este tipo de quadro são notados tanto nas ilmagens realizadas em interiores como em exteriores. Há uma cena em que a família é atacada por Kalule e seus companheiros que só entendemos pelo som em off: as ameaças do criminoso, os sons dos impactos das pedras (ou outros objetos) contra a porta e a parede externa, os vidros se quebrando. A tensão do lado externo resulta no nervosismo da família no plano interior, defendendo-se e, ao mesmo tempo, sendo obrigada a registrar a cena para acumular provas e, assim, poder ter uma suposta vantagem na hora do julgamento que nunca chega. 186 A câmera no ombro em movimento, em geral travellings para trás, é reservada a momentos de tensão: as duas vezes que Jorge passa pelos laites no pequeno campo de futebol, a expulsão de um homem da área lorestal, o sequestro de Kalule e a chegada ao posto de carabineros para se entregar. São cenas de conlito no espaço aberto. Chama a atenção a sequência de conlito com um homem que “invade” o lugar de trabalho de Jorge, o Centro de Investigación Forestal Santa Julia. Mesclando planos estáticos com o plano inal em movimento, o protagonista sai de um serviço com agrotóxico, vê a fumaça (sequências antes, Jorge aterrara uma pequena fogueira) e tenta convencer o “invasor” a sair daquela “propriedade privada”. O homem, como reação, quer agredir o protagonista, que retorna armado e o expulsa. A luz do sol faz estourar a fotograia, demarcando uma virada no ilme: entendemos que a luminosidade aponta um “esclarecimento” para a solução dos problemas de Jorge. Posteriormente, a mesma arma será usada no sequestro de Kalule. No último plano do ilme, quando Jorge chega com o caminhão para entregar o cadáver, há uma síntese entre as duas formas de movimento de câmera mais presentes na tela. Um travelling para trás mostra o protagonista dirigindo o veículo entrando em diversas esquinas, com as ruas vazias. Chegando ao estacionamento, a câmera ica estática, de forma a mostrar a traseira do caminhão e a porta de acesso à caçamba. Assim permanece até escurecer a tela, quando escutamos os sons em off das portas se abrindo, encerrando a narrativa e dando início aos créditos inais. Movimento e estaticidade se combinam no inal, de forma a equacionar as tensões e fazer o desfecho: Jorge, então divorciado de Marta, não vê sentido em continuar com a família (nas cenas domésticas predominam os planos estáticos) e resolve encarar o preço de suas ações (nesses momentos, a câmera está em movimento). Finalmente, a última problemática refere-se à representação da dinâmica entre o ser humano e a natureza no ilme. Ao longo da narrativa, aparecem indícios sobre o trabalho de Jorge que, numa primeira vista, não se relacionam com o núcleo dramático principal do ilme, a morte a Kalule. 187 A primeira imagem do ilme é uma loresta, vista em plano geral. Vemos o protagonista, à distância, caminhar entre as árvores. A trilha musical potencializa nesse plano um momento de tensão, num crescendo ao longo da cena. Na sequência seguinte, Jorge toma insulina em meio às árvores, guarda suas coisas no Centro de Investigación Forestal, e se prepara para retornar para casa. Após o julgamento de Kalule, a narrativa salta dois anos adiante, e vemos Jorge cortando árvores; está sozinho, divorciado de Marta (as causas não são claramente expostas ao espectador). A partir de então, em sua nova vida, surgem novas evidências sobre o trabalho do protagonista: um caminhão carregado de madeiras, um empreendimento imobiliário à beira mar; a conirmação de que é guarda de uma “propriedade privada”; as árvores derrubadas. Assim sendo, relacionamos a derrubada das árvores, a cargo de Jorge, com a construção de habitações luxuosas. O local de trabalho é um ambiente isolado, de forma que só vemos o homem em serviço. Além dele, os únicos a adentrarem o local são o “invasor” em efêmera passagem, o corpo de Kalule e os carabineros – estes últimos buscando-o para prestar depoimento sobre o desaparecimento do inimigo de Jorge. Há outras referências à natureza, cada vez mais rarefeitas. Pouco antes dos carabineros intimarem Jorge, o personagem estava numa pequena área de plantas (não as vemos bem devido ao enquadramento peculiar) equipado com roupa branca especial e caracterizado como quem aplicasse produtos químicos. Aparentemente, parece um espaço para testes. Isso não é explicado ao espectador. Mas a devastação da natureza continua. Daí até o inal da película não vemos mais rastros de lorestas como víamos nas primeiras sequências. Mais uma vez, o ilme não explicita as razões. Convém não explicitar. As sugestões abrem caminhos interpretativos e não encerram totalmente a película, que dá margem para leituras simplistas, uma vez que o roteiro não traz grandes complexidades. As “pistas” que seguimos indicam que Jorge seria um instrumento do avanço do liberalismo sobre o patrimônio ambiental, tema que gerou constantes mobilizações no Chile por parte dos ambientalistas nas últimas décadas. 188 O paralelo resulta um tanto frágil para argumentar nessas linhas, mas acreditamos que haja uma relação entre o abandono da coisa pública por parte do Estado, sintetizado visualmente nas ruas vazias e na liberdade dos laites pela cidade, e a devastação da natureza para empreendimentos privados, conforme os indícios do trabalho de Jorge no ilme. Ambas estão inseridas na lógica do “Estado mínimo”, defendida pelos liberais desde Adam Smith até sua imposição no Chile, pela força, durante a ditadura militar (1973-1990) através dos Chicago Boys, que ocuparam cargos públicos para beneiciar interesses privados de grandes corporações. A lógica seguiu com os anos de governo da Concertación (1990-2010). A violência, outra “herança” dos militares, também se faz presente na narrativa fílmica, porque será o recurso explorado pelo protagonista para conseguir “normalizar” a situação. Foi assim com o “invasor” na “propriedade privada” onde trabalha, e assim seria com o criminoso que ocupa o espaço abandonado pelo poder público. Voltando à película, as imagens que sintetizam a ausência do Estado e a devastação da natureza estão na sequência em que Jorge carrega o cadáver de Kalule. O corpo deformado é encontrado no quarto do empreendimento imobiliário próximo ao local de trabalho (vazio de presença humana, por sinal) e é arrastado envolto num plástico. O “trabalho sujo” é executado em meio a paisagens que se afastam da loresta e se encaminha ao mar, que rejeitará o defunto posteriormente. O plano geral e estático que mostra o protagonista tentando arrastar o corpo é sintomático: a trilha de terra corta a imagem em diagonal, de forma que a ação concentre-se na parte inferior e central da tela. O amplo espaço é cercado por uma vegetação rasteira, com rochas no canto superior esquerdo da tela. São quase 40 segundos de um plano geral que exibe um ambiente sem árvores, sem testemunhas, sem guardas e sem música, representando uma espécie de via-crúcis de Jorge carregando sua “cruz” e com uma temporalidade que estende a tensão da cena. O cadáver é o pedaço indesejado, que não cabe numa cidade “civilizada” nem em meio à natureza. A última dose de insulina que Jorge se aplica no ilme é vista no banhei189 ro de um prostíbulo, em uma das derradeiras cenas da narrativa. Junto com a devastação da natureza, está a destruição da própria moral do protagonista. Sobreviver naquela vida pacata não parecia mais fazer sentido. No trabalho, a solidão. Na família, a indiferença. A prostituta se nega a continuar o trabalho com ele. A extensa vegetação que abriu o ilme está agora ausente. O corpo do inimigo, abandonado a céu aberto, na beira do mar. O Estado não investiga as denúncias. Resta a última ação que visa dar dignidade a si mesmo, uma vez que ninguém, nem empresa, nem Estado, nem família, talvez nem mesmo o espectador, pode dar valor a sua existência. Fica uma questão ao terminarmos de assistir à película: ao falarmos de “matar um homem”, título do ilme, estaríamos nos referindo ao assassinato de Kalule ou ao extermínio da própria humanidade ante a indiferença com o outro e com a natureza? 190 XXIV. Autores Alexsandro de Sousa e Silva é bacharel e licenciado em História pela Universidade de São Paulo (USP), mestrando em História Social pela USP e professor da rede estadual de educação de São Paulo. Participante dos seguintes grupos: Laboratório de Estudos sobre História das Américas (LEHA), Associação dos Professores e Pesquisadores de História das Américas (ANPHLAC) e História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação (Escola de Comunicações e Artes – ECA e Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH). Carla Daniela Rabelo Rodrigues é professora adjunta do bacharelado em Produção e Política Cultural na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Doutora e Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Pesquisou temas como: ética na publicidade audiovisual infantil, comunicação de risco e documentário. Atualmente se dedica ao estudo do cinema peruano contemporâneo. Cristina Alvares Beskow é doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP e pesquisa o cinema militante do Nuevo Cine Latinoamericano das décadas de 1960 e 1970, com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Fundadora da Camará Comunicação e Educação Popular e do Coletivo de Comunicadores Popula191 res e integrante da comissão organizadora de seis edições da Mostra Luta, em Campinas, entre os anos de 2008 e 2013. Desde 2006, trabalha com produção audiovisual. Cristina de Branco é mestre em Antropologia Visual pela Universidade Nova de Lisboa com o projeto intitulado Invenção latinoamericana através do audiovisual a partir da Oicina Popular de Audiovisual Latino-americano. Dedica-se hoje ao estudo de diferentes cinematograias latino-americanas e indígenas contemporâneas e trabalha em mediação cultural, criação e produção audiovisual em São Paulo. Daniela Gillone é professora e pesquisadora de cinema e audiovisual. Com pós-doutorado pela ECA/USP, desenvolveu pesquisas com apoio FAPESP e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíico e Tecnológico). É docente colaboradora no curso de pós-graduação em Comunicação Social do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação das Faculdades Metropolitanas Unidas (CPPG/FMU). Sua área de pesquisa abrange a percepção estética e política das imagens cinematográicas. Dirceu Antonio Scali Junior é doutor e mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), graduado em Letras e Psicologia e docente na PUC-Campinas. Autor do livro Retratos de subjetivação: nuanças na migração campocidade pequena/metrópole (Casa do Psicólogo, 2002). Jennifer Cazenave desenvolve seu pós-doutorado no Departamento de Estudos Franceses e Francófonos da Faculdade Hobart and William Smith (Estados Unidos). Doutora em Cinema e Literatura Comparada pelas Université de Paris VII (França) e Northwestern University (Estados Unidos). Sua pesquisa enfoca as relações entre documentário, história e subjetividade. Publicou diversos artigos sobre as representações do Holocausto na literatura e no cinema e sobre a história da cineilia francesa. 192 Lívia Fusco é mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi, especialista em Crítica de Cinema pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e Bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Radialismo pela Universidade Metodista de São Paulo. Atua como pesquisadora do cinema latino-americano desde 2009 e tem experiência na produção de grandes festivais nacionais e internacionais de cinema. Trabalhou como produtora no setor de Difusão da Cinemateca Brasileira entre 2014 e 2015. Lúcia Ramos Monteiro é doutora em cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3 e em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Foi professora assistente do curso de cinema da Sorbonne Nouvelle Paris 3 e da Universidad de las Artes de Guayaquil, Equador. Coorganizadora, com Philippe Dubois e Alessandro Bordina, do livro Oui, c’est du cinéma. Formes et espaces de l’image en mouvement (Campanotto Editore, 2009), vem trabalhando como curadora de mostras de ilmes junto ao coletivo parisiense Le Silo, na articulação entre cinema e arte contemporânea. Luís Fernando Beloto Cabral é graduando do curso de História da Arte da Escola de Filosoia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Desenvolve um projeto de iniciação cientíica, vinculado à FAPESP, relacionado aos documentários sobre fatura artesanal presentes na Biblioteca do Memorial da América Latina. Marília Bilemjian Goulart é mestre pelo Programa de Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP com a dissertação Um Salve por São Paulo – narrativas da cidade e da violência em três obras recentes. É graduada em Ciências Sociais, tendo realizado pesquisas sobre violência nas cidades através da Antropologia e da Sociologia da Comunicação. Atualmente trabalha na Coordenação de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo. 193 Marina da Costa Campos é mestre pelo Programa de PósGraduação em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e graduada em Comunicação – Bacharelado em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Em 2014, atuou como Especialista em projetos audiovisuais pelo Ministério da Cultura. Compõe o grupo editorial da Imagofagia – Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAECA). É representante discente da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Atualmente, dedica-se ao estudo sobre cineclubismo, História e produção em super-8. Miguel Dores é português e imigrante em São Paulo há cerca de dois anos. Formado em Estudos Artísticos: Artes e Culturas Comparadas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, desenvolveu trabalhos acadêmicos sobre literatura e cinema da América Latina e da África. Atualmente correaliza projetos culturais ligados ao contexto migratório da cidade de São Paulo, através do enfoque múltiplo da produção, recepção e formação audiovisual. Mona Perlingeiro é bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela UNIFESP, pesquisadora de história e cultura árabe, povos do Oriente Médio e norte da África. Integrante do Coletivo Resistência Cultural. Professora de Sociologia no cursinho popular da Associação Cultural dos Estudantes e Pesquisadores da Universidade de São Paulo (ACEPUSP) e educadora em diversas instituições, como a Fundação Bienal de São Paulo. Mônica Brincalepe Campo é doutora em História Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com a tese intitulada História e Cinema: o tempo como representação em Lucrecia Martel e Beto Brant. Possui artigos publicados em diversos periódicos e tem se dedicado às pesquisas em torno das relações entre História e Cinema. É professora no Instituto de História (INHIS) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) desde 2011. 194 Natalia Christofoletti Barrenha é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Multimeios da UNICAMP, onde desenvolve um projeto sobre a representação do espaço urbano no cinema argentino contemporâneo com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Autora do livro A experiência do cinema de Lucrecia Martel: resíduos do tempo e sons à beira da piscina (Alameda Editorial/Fapesp, 2013). Membro do corpo editorial da Imagofagia – Revista de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (AsAECA) e da Cine Documental. Rodrigo Frare Baroni é aluno de graduação do curso de Ciências Sociais da UNIFESP. Além de participar do GECILAVA, também integra o Grupo de Pesquisas Visuais e Urbanas (VISURB). Rosângela Fachel de Medeiros possui doutorado e mestrado em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente é professora do Mestrado em Letras – Literatura Comparada da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI), atuando nas linhas de pesquisa Comparatismo e Processos Culturais e Leitura, Linguagens e Ensino. Sérgio César Júnior é mestrando e graduado em História pela UNIFESP. Pesquisador da linha de estudos visuais, cultura visual, história-cinema e história cultural, especializando-se em assuntos da história do Brasil República e história do cinema brasileiro do período pós-1945. Atualmente, em sua dissertação, estuda o ilme Canto da saudade (1952), de Humberto Mauro, com apoio da FAPESP. Membro do GECILAVA e do grupo de estudos História e Audiovisual: circularidades e formas de comunicação (ECA/USP). Thiago Carvalho é bacharel em Letras pela USP, com interesse pela interdisciplinaridade e diálogo entre as linguagens artísticas. Pesquisa as áreas de Filosoia e História, fazendo sempre maté195 rias nesses cursos como formação paralela na universidade. Atualmente dedica-se à área de literatura comparada e tem como horizonte um projeto em literatura angolana. Vanderlei Henrique Mastropaulo é pesquisador de cinema latino-americano, geógrafo pela FFLCH/USP e mestre em Comunicação e Cultura pelo Prolam/USP (Programa de Integração da América Latina) com a dissertação As ditaduras militares no cinema latino-americano da democracia – os casos de Brasil e Argentina (1982-2007). Yanet Aguilera Viruez Franklin de Matos é doutora em Filosoia e Cinema pela FFLCH/USP e professora do Departamento de História da Arte da UNIFESP. Organizadora e curadora dos livros Entre quadros e esculturas: Wesley e os fundadores da Escola Brasil (Discurso Editorial, 1997) e Preto no branco: a obra gráica de Amilcar de Castro (Discurso Editorial/Editora UFMG, 2005). Diretora, roteirista e produtora do curta-metragem Preto no branco (2005). Idealizadora do COCAAL – Colóquio de Cinema e Arte na América Latina, realizado anualmente desde 2013. O Gecilava (Grupo de Estudo de Cinema Latino-americano e Vanguardas Artísticas) é formado por Amanda Arantes (UNIFESP), Daniela Gillone (USP), Dirceu Antônio Scali Junior (PUC- Campinas), Janaína Andrade (UNIFESP), Lívia Fusco (UAM), Lucia Ramos Monteiro (USP), Marília Bilemjian Goulart (Marie Goulart) (USP), Marina Machado (UNIFESP), Mona Perlingeiro (UNIFESP), Natalia Christofoletti Barrenha (UNICAMP), Ormuzd Alves (UNIFESP), Rodrigo Baroni (UNIFESP), Sérgio César Júnior (UNIFESP), Thays Salva (UNIFESP), Yanet Aguilera Franklin de Matos (UNIFESP – coordenadora) . Este foram os membros que participaram da confecção dos quatro textos coletivos. Fazem parte do Gecilava também Carla Daniela Rabelo Rodrigues (UNIPAMPA), Cristina Alvares Beskow (USP), Cristina de Branco (UNINOVADELISBOA), Lúcia Ramos Monteiro (USP), Luís Fernando Beloto Cabral (UNIFESP), Marina da Costa Campos (USP), Miguel Dores (UNIDELISBOA), Rosângela Fachel de Medeiros (UFRGS), Vanderlei Henrique Mastropaulo (USP). 196