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Literatura, a emergência do político Antonio Barros de Brito Junior1 Claudia Luiza Caimi2 A política como acontecimento. Não há, por assim dizer, uma política perene ou um estado permanente do político. Só há a política enquanto evento. Não que a sua emergência não dependa de mecanismos socioeconômicos e históricos, de agentes humanos concretos empenhados na transformação da realidade vivida – isso é óbvio. Ocorre, porém, que a forma com que a política emerge não atende aos ditames de uma determinada regra – a distribuição da justiça, a defesa da soberania, a administração dos corpos, a luta de classes... Isso, aliás, é algo que Hannah Arendt já afirmava, ao refutar a ideia do homo politicus (ARENDT, 2008). Não se trata, portanto, de pensar a vida humana como destinada para a ação política; pelo contrário, a política surge apenas quando a própria existência humana, destinada para a convivência social, é posta em xeque, de modo que a ação política torna-se absolutamente necessária a fim de restabelecer o cuidado fundamental com a própria vida. Nesse sentido, a possibilidade do acontecimento político está na proporção inversa do risco de extermínio das condições de sociabilidade. Desse modo, o acontecimento da política deve ser pensado na sua singularidade. Não há dúvidas de que, na sua origem absolutamente contingente, a política surge como parte de uma insatisfação e de uma inconformidade com o status quo que são gestadas historicamente, instauradas por processos às vezes bastante longos e que remontam a séculos de injustiças, violências e distorções contra indivíduos, grupos ou comunidades 1 Professor Adjunto do Departamento de Linguística, Filologia e Teoria Literária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: antbarros@gmail.com. 2 Professora Adjunto do Departamento de Linguística, Filologia e Teoria Literária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: claudialuizacaimi@yahoo.com.br. discriminados, marginalizados, não-contabilizados pela sociedade ou pela economia. Contudo, quando emerge, a ação política sempre expõe uma subjetividade radicalmente presente e contingente, performaticamente atuante, que, imbuída de seus argumentos, sentimentos e razões, põe-se à distância da sociedade que a rebaixa ou ignora para justamente reivindicar o seu pertencimento a um coletivo social mais justo. E, por mais paradoxal que pareça, há nesse gesto uma presunção de universalidade, pois todo ato político, ao mesmo tempo em que rasga o tecido social, arrasta consigo uma nova possibilidade de formação da comunidade que, para todos os efeitos, escancara a insuficiência do social perante a promessa da igualdade e da emancipação. Pode-se mesmo dizer que o acontecimento político é o que de certo modo reencaminha a sociedade para a sua autodeterminação como comunidade dentro dos princípios elementares da autêntica democracia (NANCY, 2011). Com isso, toda ação política configura-se como uma espécie de “aferição” (RANCIÈRE, 2014). Ela mede diferentes temporalidades, ao pôr à distância a sociedade na sua presente insuficiência, amparada num passado de exclusão, para atualizar a promessa de uma comunidade igualitária sempre por vir (AGAMBEN, 1993). Além disso, a política mensura as distâncias entre as diferentes formas de vida abarcadas pela sociedade e as novas formas de vida e de organização do espaço público. Trata-se, enfim, de aferir a desigualdade no que se refere às distintas lógicas empregadas na racionalidade pública, em especial entre a lógica afirmativa do dano político e a lógica do senso-comum vigente no status quo. Em última análise, essa aferição se dá apenas por meio do emprego da palavra, de modo que no centro da política encontramos a linguagem: a palavra que serve para subjetivar-se, para mostrar-se capaz de organizar o pensamento, de expor as contradições da sociedade em relação aos princípios igualitários que a regem, evidenciar as distâncias entre os sujeitos da ação e do logos, redefinir temporalidades a fim de apontar os caminhos possíveis para a realização da promessa da comunidade. É aí que se dá o encontro entre a política e a literatura. Pensar a política como emprego da palavra é pensá-la inclusive em termos poéticos. E não se trata aqui de fazer o jogo da metáfora. Não estamos insinuando que a política é como a poética, assim como a poética pode ser política dependendo do caso. Em vez disso, trata-se de considerar que a política e a poética estão indissociavelmente ligadas desde sempre (RANCIÈRE, 2000), uma vez que em ambas há o agenciamento de discursos, a aproximação do heterogêneo, a organização das ações, das impressões e das sensações em um conjunto coerente que põe em comunicação as diferenças no âmbito ontológico. E, enquanto recomposição de forças, ambas, política e literatura, ofereceriam uma imagem do tempo que faz explodir a narrativa da história e o lugar das coisas do mundo (DIDI-HUBERMAN, 2017). Se no centro da política está o sujeito, na sua singularidade e na contingência histórica do dano, em posse da palavra que dá razão a si e afere as distâncias, então também estão a habilidade e a capacidade linguísticas exigidas pelo fazer poético. Ainda que possa ter muitas definições, essencialmente a poética diz respeito à operação da linguagem que cria relações entre as ações e as coisas, desdobrando ao longo do relato os caracteres de acordo com suas escolhas, juízos, pensamentos, propósitos. Ou seja, a poética é uma forma de dar a ver sujeitos empreendendo ações em circunstâncias específicas. Tanto os sujeitos quanto as ações fazem parte de uma partilha do sensível que dispõe, de modo mais ou menos normativo, a ordenação sensível mediante a qual um sujeito pode agir e falar e em quais circunstâncias. Mais do que isso, a poética responde, também, pela criação de uma realidade imaginada na qual as ações e as palavras adquirem seu valor. Quando Odisseu navega pelos mares gregos, visitando criaturas e lugares míticos, suas ações adquirem um sentido específico à medida que se constitui um universo de possibilidades no qual ele imerge. O episódio do canto das sereias é um bom exemplo: no universo da Odisseia, a experiência da travessia de barco pelo oceano habitado por aquelas figuras mitológicas opõe, no mesmo espaço, a essência humana de Odisseu e o elemento divino ou transcendental das sereias, criando uma cena cheia de contradições – cena que, por um lado, expõe com clareza o caráter do rei de Ítaca e, por outro lado, alarga o horizonte da potência humana face a uma realidade que se lhe contrapõe. Desse modo, as diferenças ontológicas conjugam-se num mesmo locus, de modo que o triunfo da técnica de Odisseu só ganha força e sentido conforme se estabelecem os nexos entre seus feitos e as condições efetivas de sucesso naquele espaço e naquele momento. Da mesma forma, Kafka nos dá a medida da possibilidade de um narrador que compõe por fragmentos um passado que age sobre nós, mas que nunca chega a sínteses, só oferece elementos de uma percepção incerta, limitada e insegura. Na sua narrativa a falta é algo constitutivo do passado resgatado, sendo a memória sempre uma percepção de perdas, que envolve aspectos dissociativos, fragmentários e incompletos. Em Kafka o cerne da obra está não na superação, substituição de uma tradição esvaziada de deuses e heróis, mas na persistência de, no avesso desse nada, fazer ressurgir as figuras do esquecimento e do esquecido, incluindo o recalcado no projeto narrativo. Nos universos poéticos de Homero e Kafka – mas, na verdade, na poética em geral –, as relações entre os sujeitos, as coisas, os espaços e os tempos desvelam uma concepção mais ampla acerca das potências e limites dos sujeitos, de modo que todo mundo poético contrasta, por assim dizer, com as lógicas supostamente inerentes na realidade social, mediante as quais os comportamentos e os sujeitos são reconhecidos. A poética, em última análise, dá ferramentas para a construção de novas arregimentações entre os heterogêneos, desfazendo os tecidos entre os tempos e os espaços que determinam, num nível social, as formas de ser de cada um. Nesse sentido, a poética é mais que um “modelo eficiente” para o político, mais que projeção dos dilemas sociais que envolvem um determinado período histórico no texto literário. A poética é a forma mesma da racionalidade política, na medida em que tem a ver com destacar e tornar visíveis os sujeitos no âmago das ações. Logo, a poética permite tomar posição, tanto do ponto de vista das formas, quanto dos conteúdos, interrompendo com lógicas estabelecidas e desligando as articulações discursivas até o limite do possível para criar descontinuidades que permitem as situações atingirem-se mutuamente, fazendo aparecer o espaço entre as coisas, espaço sem fundo, comum, que revela relações e razões que os agrupam apesar de tudo. O gesto que traduz a ação, diz Didi-Huberman, estabelece a relação entre o desejo, que almeja o futuro, e a memória, que o orienta. Como elemento fundamental da poética, dispõe as coisas do mundo em suas diferenças, choques mútuos e conflitos. Como posição extraterritorial, a poética renuncia antecipadamente à compreensão global e ao reflexo objetivo, mostra fendas, propondo desordens. Seu valor político é “tomar posição quanto ao real, modificando, justamente, de maneira crítica, as respectivas posições das coisas, dos discursos, das imagens” (DIDI-HUBERMAN, 2017, p. 101). Desse modo, a tomada de posição dentro de um regime estético das artes, como propõe Rancière, supõe a copresença eficaz e conflituosa de forças entre si e dos domínios da produção e do pronunciamento das situações de vivências em situação de segregação, discriminação, falta de recursos, autoritarismos, massacres e indignação coletiva. Do ponto de vista estético, portanto, a poética liga-se à política de duas maneiras: por um lado, ao exibir os personagens em ação de acordo com suas lógicas e em suas circunstâncias específicas, a poética dá a ver a outrem as especificidades de uma vida em potencial, realizada pelo discurso literário. Por outro lado, a potência literária de realizar essas figuras é política na exata medida em que é a comprovação de uma capacidade de uso da linguagem. Por isso, a poética é política quando traz à cena sujeitos em condições de dano; mas é essencialmente política quando há o atrevimento de um sujeito que supostamente não está habilitado ou credenciado para o uso da palavra dá provas dessa capacidade, tomando, portanto, posição no campo do sensível para redefinir as partilhas entre os corpos, as coisas, os tempos, as palavras. Contudo, a articulação política-poética ainda é pensada majoritariamente através da ideia de representação ou mimese, como se a finalidade prática inerente à ação política dependesse, em algum grau, da conscientização mediante a transposição da realidade no texto poético. Esse enfoque aparece nas suas mais diversas formas, seja no marxismo ortodoxo (LUKÁCS, 1965), seja na Teoria Crítica (ADORNO, 2003). Em ambos casos, a despeito das diferenças, parece pairar a convicção de que a política se “manifesta” na literatura mediante uma posição construída no nível estético, mas que, relativamente à realidade social, confirmaria ou contraditaria alguma ordem vigente. A tomada de posição, portanto, precede o agenciamento linguístico, como manipulação da linguagem poética orientada por um tangível elemento originário que determinaria sua “forma” (seja, de um lado, a forma do realismo balzaquiano ou do romance histórico, seja, de outro, a forma do fluxo de consciência ou do surrealismo). Assim, de acordo com essas concepções, a obra literária de cunho político demanda uma articulação relativamente uniforme entre as posições dos sujeitos fora e dentro do texto, organizando o espaço literário em virtude das funções sociais e suas representações. Consequentemente, nesses termos a atuação do sujeito poético, quer seja o autor ou o leitor, consiste em encontrar o seu “lugar” nesse cenário organizado pelo texto literário – cenário que é, para todos os efeitos, a pretensa duplicação da realidade social. E não se trata, como se vê pela leitura dos textos canônicos dessa vertente, de intuir antecipadamente qual é a “posição social” do escritor, como se disso dependesse a virtude política do texto. Já Marx e Engels demonstravam que o ódio burguês de Balzac não é a simpatia proletária, senão, pelo contrário, a condicionante psicológica que determina um quadro mais nítido do real. Importa, na verdade, perceber que, seja como for, uma vez concluída a obra, a única posição política do leitor – porque supostamente a única posição estética possível – é a cognição do real, em sua totalidade, parcialidade ou fraturas. Produz-se o “engajamento”, portanto, em conformidade com concepções relativamente assentes acerca de como praticar a ação política por via do estético. Aliás, essa noção muito sartreana de “literatura engajada”, proposta sobre a discutível distinção entre prosa e poesia, fomenta uma dicotomia segundo a qual apenas a prosa permitiria o engajamento (uma vez que se presta à práxis e à ação concreta no mundo), ao passo que a poesia, pelo que se depreende de Sartre (1999), flertaria com uma pretensa universalidade que, quando se trata de política e transformação da realidade, remeteria aos mais desgastados sentidos do Absoluto literário ocidental. É preciso, contudo, dizer que a noção de poética tal como esboçada acima não elimina a poesia da equação: um poema é potencialmente político na justa medida em que pode ser, ele próprio, o cenário de uma tomada de palavra – da tomada de uma posição, portanto –, tal como podem ser a poética de Paul Celan em relação ao extermínio judeu ou a poética abolicionista de Luiz Gama, por exemplo. Se, pelo contrário, pensarmos a articulação entre a literatura e a política no sentido que lhe emprestamos aqui, então seguiremos a intuição ranciereana de entendêla como uma cena (RANCIÈRE, 2014). Não é a despeito das vinculações históricas dos sujeitos (autores e leitores) com o texto, nem a despeito da contextualização linguística e social do texto, que a literatura erige uma cena política. Essas circunstâncias são, por assim dizer, motivações legítimas para a atitude poético-política. Contudo, permanecendo como motivações, elas não determinam num grau preciso e inequívoco os modos de inclusão da heterogeneidade conjugada no texto literário. Isso porque, enquanto é poético, prevalece no texto literário, a despeito de tudo isso, o caráter autotélico e tético (DERRIDA, 2014) que, por princípio, corta os liames que prendem a literatura ao real. Não estamos resgatando aqui a sentença kantiana da arte como uma finalidade em si mesma, nem o juízo estético e suas consequências, em favor de qualquer noção de autorreferencialidade inofensiva e em detrimento do engajamento político-social no texto. Em vez disso, postulamos que o embaraço que a linguagem poética impõe diante da necessidade das transposições miméticas da realidade social não pode ser pensado fora da própria dimensão estética. Se, como dissemos, o texto literário é o agenciamento poético do heterogêneo mediante uma lógica que dá demonstrações de uma racionalidade que é inerente ao sujeito, mas não totalmente reconhecida pelo senso-comum, então sua plasticidade decompõe a racionalidade linguística comum para instaurar o dano na própria linguagem. O que é a mesma coisa que dizer que a literatura cava o seu próprio espaço dentro da língua, distanciando-se e contrapondo-se à dimensão social da linguagem. Não é outra coisa a ideia de literatura menor (DELEUZE e GUATTARI, 2003), por exemplo. A literatura, portanto, inaugura para si esse outro espaço dentro da linguagem e, como tal, é um espaço que desarranja os liames sociais para reconfigurá-los e redistribuí-los em outra partilha do sensível. Sendo assim, não há uma absoluta conformidade do texto literário com a história dos usos da palavra. E é necessário que seja assim, para que se possa instaurar o sujeito para além de sua “representação social”; é preciso que seja assim, a fim de que o sujeito que emerge nesse outro espaço encontre guarida para sua fala, uma fala que é outra, inexistente no a priori das condições de visibilidade e dizibilidade arregimentadas pela linguagem na sua dimensão social. Em última análise, é somente criando para si um espaço “desnaturalizado” que o político pode emergir como dano. Do contrário, toda e qualquer reivindicação trará consigo a marca da pura mimese, na medida em que consistirá, no limite, em uma articulação naturalizada, devidamente reconhecida pelo social, e, por isso mesmo, “administrável” em vista do consenso ou do senso-comum em que se baseia. Com isso, a emergência do político na literatura decorre dessa cena na qual diferentes subjetividades atravessam o espaço neutro do texto literário. Nesse “fora” que é o texto literário emergem as diferenças não como pré-determinações do estético ou do social, mas como possibilidade mesma da partilha do sensível, como diferensa no sentido derridiano do termo (DERRIDA, 1991). Qualquer um que cruze esse campo do texto fatalmente terá que tomar posição. E, sendo assim, a emergência do político é um acontecimento que conjuga autores e leitores numa mesma cena, cada um pondo-se à distância do outro e da realidade, a fim de instaurar um ponto de vista legítimo sobre o mundo e até mesmo aferir a legitimidade de outros pontos de vista. Referências ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Ed. 34, Duas Cidades, 2003. AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que vem. Tradução de Antonio Guerreiro. Lisboa : Editorial Presença, 1993. ARENDT, Hannah. Introdução na política. In: ARENDT, Hannah. A Promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro : DIFEL, 2008. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka. Para uma literatura menor. Tradução de Rafael Godinho. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. DERRIDA, Jacques. A Diferença. In : DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa e Antonio M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. DERRIDA, Jacques. Essa estranha instituição chamada literatura. Uma entrevista com Jacques Derrida. Tradução de Marileide Dias Esqueda. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2014. DIDI-HUBERMAN, Georges. Quando as imagens tomam posição. Tradução Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017. LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Tradução de Giseh Viana Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. NANCY, Jean-Luc. Finite and infinite democracy. In: AA.VV. Democracy in what state?. Tradução inglesa de William McCuaig. Nova York: Columbia University Press, 2011. RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do sensível. Tradução de Mônica Costa Neto. São Paulo: Editora 34, 2000. RANCIÈRE, Jacques. Nas margens do político. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. Lisboa: KKYM, 2014. RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento. Política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 1995. SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura?. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Editora Ática, 1999.