Revista Ideação, N. 38, Julho/Dezembro 2018
HUBERT DREYFUS E O ANTICARTESIANISMO HEIDEGGERIANO
RODRIGO BENEVIDES BARBOSA GOMES1
RESUMO: Trata-se aqui de demonstrar a utilização da obra heideggeriana no contexto do
surgimento da inteligência artificial assim como encontra-se em Hubert L. Dreyfus. A crítica
de Dreyfus se resume em apontar o cognitivismo - paradigma dominante dos primórdios da
inteligência artificial - como a aplicação empírica do racionalismo filosófico, isto é, a
abordagem cognitivista argumenta que a cognição humana pode ser reproduzida a partir da
formalização de determinadas representações rigidamente fixadas que serviriam como
fundamento para a efetivação de comportamento inteligente. Em vista disso, apresenta-se o
anticartesianismo heideggeriano de Dreyfus como a antítese do cognitivismo.
PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; Dreyfus; Descartes; Cognitivismo; Inteligência Artificial.
ABSTRACT: It is demonstrated the use of heideggerian philosophy in the context of the arise
of artificial intelligence as it is laid out on the work of Hubert L. Dreyfus. Dreyfus’ critique
can be understood as the indicative of cognitivism - the dominant paradigm of the early days
of A.I. - as the empirical application of rationalism, that is, the cognitivist approach argues
that human cognition can be reproduced based on the formalization of rigid representations
that serve as the fundament for intelligent behavior. Thus, it is presented the heideggerian
anticartesianism of Dreyfus as the antithesis of cognitivism.
KEYWORDS: Heidegger; Dreyfus; Descartes; Cognitivism; Artificial Intelligence.
I. Introdução
O artigo visa demonstrar a utilização da obra de Heidegger por parte de Dreyfus como
contraposição ao cognitivismo dominante da aurora da inteligência artificial. O surgimento de
tal campo trouxe consigo a implementação do paradigma representacional, utilizado pelos
engenheiros do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Desde o início, Dreyfus
mostrou-se crítico ao representacionismo por conta de seu contato com a obra de Heidegger
que, levada em conta, já servia como indício do equívoco no qual a abordagem
representacional estava assentada. Com isso, o artigo pretende demonstrar a crítica
1
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos).
Financiamento: CNPq-CAPES. Contato: rodrigobenevides23@gmail.com.
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fenomenológica de Dreyfus ao representacionismo a partir do anticartesianismo característico
da obra heideggeriana.
II.
Durante a década de 1960, na posição de professor de filosofia no MIT, Dreyfus esteve
em contato próximo com o desenvolvimento da então recente área de inteligência artificial.
No entanto, Dreyfus não adotou uma posição tão otimista quanto seus colegas do
departamento de engenharia, pois “sem se darem conta, os pesquisadores de inteligência
artificial estavam realmente empenhando-se em fazer da filosofia racionalista um programa de
pesquisa” (DREYFUS, 2007, p. 247). Dreyfus refere-se aqui aos trabalhos pioneiros de Alan
Newell e Herbert Simon, onde o foco estava em desenvolver sistemas artificiais capazes de
tradução de texto, reconhecimento de padrões e resolução de problemas. Tais sistemas, como
Dreyfus lembra, seguiam uma espécie de pressuposto racionalista onde as tarefas exigidas
(traduzir um texto ou reconhecer objetos e rostos) eram tomadas como ações sequenciais onde
o simples armazenamento de representações seria o suficiente para reproduzir o tipo de
comportamento desejado. O germe de tal posição provém de Alan Turing, aquele que
“sugeriu que um computador digital de alta velocidade, programado com regras e fatos,
poderia exibir comportamento inteligente” (DREYFUS, 1992, p. ix). Em outras palavras,
Dreyfus percebeu que os primeiros engenheiros do campo da inteligência artificial faziam da
cognição algo equivalente à uma computação, ou seja, trata-se aqui de algo que mais tarde
convencionou-se chamar de cognitivismo, isto é, a tese de que a percepção (e,
consequentemente, a ação de um sistema) provém da síntese de predicados rigidamente
fixados e previamente estabelecidos que, em tese, poderiam ser transpostos para um sistema
artificial tal qual um computador. Porém, partindo de Heidegger, Dreyfus indicou a falha do
cognitivismo ao apontar que a relação primordial do organismo em seu meio não se dá via
representações: “em nossa forma mais básica de ser [...] nós não somos consciências, mas um
entrelaçamento com o mundo” (DREYFUS, 2007, p. 255), ou seja, “tudo aquilo que aparece
de forma inteligível para nós aparece em um pano de fundo de significação [...] As coisas não
são percebidas como entes isolados aos quais atribuímos funções predicativas isoladas”
(DREYFUS, 1991, p. 114). Como diria Merleau-Ponty, “no momento em que me dirijo a
mim mesmo para me descrever, entrevejo um fluxo anônimo, um projeto global em que ainda
não existem ‘estados de consciência’” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 581). O cognitivismo
desenvolvido no MIT, portanto, tratava-se de um “programa de pesquisa baseado na
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suposição que seres humanos produzem comportamento inteligente usando fatos e regras”
(DREYFUS, 1992, p. ix). Este tipo de posição racionalista, na qual se parte do descompasso
organismo-ambiente ou sujeito-objeto, pode ser traduzido em termos husserlianos da seguinte
forma: o representacionismo peca ao não admitir que a representação proveniente da
intencionalidade
de
ato
pressupõe
uma
esfera
antepredicativa
instanciada
pela
intencionalidade operante. Heidegger, dessa forma, visa dissipar uma distinção sujeito-objeto
primeva ao sustentar que ser-no-mundo significa um tipo de existência onde não há, como
contato primordial, uma mente destacada que, supostamente, faria a computação de
predicados exteriores via representações: “Eu comecei a suspeitar que os insights formulados
em poltronas existencialistas, especialmente as de Heidegger e Merleau-Ponty, eram más
notícias para aqueles trabalhando nos laboratórios de inteligência artificial” (DREYFUS,
2007, p. 247).
Partindo da obra de Heidegger, Dreyfus tentou demonstrar que o cognitivismo falhou em
teorizar sobre o contato originário do Dasein, ou seja, “atribuir funções a fatos brutos não
poderia captar a organização significativa do mundo do dia-a-dia” (DREYFUS, 2007, p. 248).
A valoração do ambiente opera não pelo armazenamento contínuo de fatos brutos, isto é, de
átomos lógicos, mas pelo campo existencial no qual o Dasein se encontra engajado. Em
outras palavras, o que Heidegger defende é que “valores, na verdade, são apenas mais fatos
sem sentido, sem significação. Dizer que um martelo possui uma função - martelar - deixa de
fora a relação definidora de martelos com pregos e outros equipamentos” (DREYFUS, 2007,
pp. 247-248). Partir do paradigma representacional, com isso, significa estar “convencido de
que representar alguns milhões de fatos sobre objetos e suas funções resolveria aquilo que
veio a ser conhecido como o problema do conhecimento de senso comum [frame problem]”
(DREYFUS, 2007, p. 248). No entanto, a leitura heideggeriana nos alerta que, na verdade, “o
verdadeiro problema não era o de armazenar milhões de fatos; era o de saber quais fatos eram
relevantes em uma dada situação” (idem). Em outras palavras, a insistência racionalista em
compartimentalizar representações, como percebeu Dreyfus, “era um sinal de que algo estava
seriamente errado com a abordagem em si. (DREYFUS, 2007, p. 248).
Formalizar o conhecimento de senso comum trouxe à tona dificuldades inesperadas.
Dreyfus lembra o malogro em conseguir definir as representações necessárias para um
programa conseguir entender uma história infantil: “O programa não possuía o senso comum
de uma criança de quatro anos de idade, e ninguém sabia como dar o background de
conhecimento necessário para entender mesmo a mais simples das histórias” (DREYFUS,
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1992, p. x). Este tipo de impasse limitou os primeiros sistemas aos chamados “micro-mundos
[micro-worlds]” (DREYFUS, 2007), isto é, contextos situacionais onde a quantidade de
objetos e possibilidades de concretização de comportamentos é reduzida. O sucesso que tais
experimentos trouxeram é inegável, no entanto, as formalizações inscritas para a atuação em
micro-mundos estavam longe de servir como base empírica para uma explicação do ser do
Dasein, muito menos para construir um sistema artificial comparável.
A distância que havia entre aquilo que era programado e o comportamento inteligente de
um ser humano de fato aponta que “Um velho sonho racionalista era o cerne do problema”
(DREYFUS, 1992, p. x), isto é, o cognitivismo, no fundo, “é baseado na ideia cartesiana de
que todo o entendimento consiste em formar e usar apropriadamente representações
simbólicas [...] A Inteligência Artificial transformou esta visão racionalista em um programa
de pesquisa” (idem). Com isso, os dias iniciais da inteligência artificial podem ser
compreendidos como uma busca pelas regras primitivas que fundamentam o conhecimento de
senso comum a partir da ideia de que tais regras podem ser formalizadas em representações
rígidas. Em outras palavras, “O Representacionismo supõe que o que subjaz ao conhecimento
de senso comum é um sistema de crenças implícitas” (DREYFUS, 1992, p. xvii). O
cognitivismo, portanto, parte do pressuposto que a cognição é nada mais que um sistema
proposicional, onde todas as atividades do organismo são efetivadas por conta das
representações que armazenam “context-free features [características não-contingentes]”
(idem) dos domínios em questão, algo que se pode encontrar tanto nas formulações de Husserl
quanto nas de Fodor (DREYFUS, 1992).
Rodney Brooks, por outro lado, é um exemplo consoante com a perspectiva de que o
mundo do Dasein não se constitui como uma predicação fixa de fatos gerais. Brooks,
argumenta Dreyfus, percebeu que o nosso senso de relevância do mundo é holístico, contínuo
e não-representacional. Os robôs de Brooks possuíam sensores de aprendizagem do ambiente,
livrando-se assim do processo de internalização de modelos pré-estabelecidos do mundo, ou
seja, o próprio mundo funciona como modelo para movimentar-se, instituindo assim uma
espécie de sistema que aproximou-se de uma “intencionalidade verdadeira que antes está em
seu objeto do que o põe” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 598). O que Merleau-Ponty chama
de “intencionalidade verdadeira” é, em sua fenomenologia, melhor entendido ao lembrarmos
de sua ênfase acerca do aspecto corporal da cognição e a apreensão existencial da
espacialidade do mundo: “Meu corpo tem seu mundo ou compreende seu mundo sem passar
por representações, sem subordinar-se a uma função simbólica ou objetivante” (MERLEAU307
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PONTY, 1994, p. 195). Ou ainda: “Enquanto tenho mãos, pés, um corpo, um mundo, em
torno de mim produzo intenções que não são decisórias e que afetam minha circunvizinhança
com caracteres que não escolho” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 589). Este tipo de valoração
pré-reflexiva, como argumenta Dreyfus, possui em Brooks uma aplicação empírica
aproximada, como também ressaltaram Varela, Thompson e Rosche em The Embodied Mind:
Cognitive Science and Human Experience (1991).
O modo antepredicativo de existência do Dasein aponta que a apreensão existencial de
uma situação não opera via predicação dos objetos-do-mundo, como sugere a abordagem
cognitivista, mas sim via respostas à solicitações, ou seja, para o Dasein “o equipamento é
uma solicitação para agir, e não uma entidade com uma caracterização funcional”
(DREYFUS, 2007, p.252). Enfim, a esfera não-representacional significa o aspecto nãopredicável de atividade prática do organismo em solicitações existenciais que vão desde
andar, correr, usar a linguagem para comunicar-se até, para usarmos o exemplo de MerleauPonty, jogar futebol.
A forma [Gestalt] é uma configuração visual, sonora, ou mesmo anterior à distinção
dos sentidos, em que o valor sensorial de cada elemento é determinado por sua função
no conjunto e varia com ela. [...] Essa mesma noção de forma permitirá descrever o
modo de existência dos objetos primitivos da percepção. Estes são, como dizíamos,
mais do que conhecidos como objetos verdadeiros, são vividos como realidades.
Certos estados da consciência adulta permitem entender essa distinção. O campo de
futebol não é, para o jogador, um “objeto”, ou seja, a palavra ideal que pode dar lugar
a uma multiplicidade indefinida de perspectivas e permanecer equivalente sob essas
transformações aparentes [...] O campo não lhe é dado, mas está presente para ele
como o termo imanente de suas intenções práticas; ele e o jogador são um só corpo e
o jogador sente, por exemplo, a direção do gol tão imediatamente quanto a vertical e a
horizontal de seu próprio corpo. Não bastaria dizer que a consciência habita esse
meio. Ela nada mais é, nesse momento, que a dialética do meio e da ação
(MERLEAU-PONTY, 2006, pp. 262-263).
Destarte, deve-se entender o comportamento pré-reflexivo como a apreensão de
solicitações que acarretam ações e não a pura internalização de representação que, enfim,
tornariam ações inteligíveis. Tais solicitações ou affordances2 são justamente a esfera
antepredicativa que Heidegger aponta como funcionamento prático do Dasein, ou seja, “todo
modo de lidar com o mundo acontece em um pano de fundo que Heidegger chama de ser-nomundo, o qual não envolve nenhum tipo de representação” (DREYFUS, 2007, p. 254). O
pano de fundo não representacional do Dasein permite Heidegger distinguir-se de Descartes,
pois o Dasein é, antes do cogito predicativo, um modo não-tético de existência: “o ser-no2
Cf. GIBSON, J. J., The Ecological Approach to Visual Perception (1986).
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mundo é mais básico do que a razão e a resolução de problemas; não é, de modo algum, algo
representacional” (DREYFUS, 2007, p. 254). Enfim, ser-no-mundo significa, como diria
Varela, Thompson & Rosche (1991), o processo de enação que constitui, de forma
ininterrupta, Gestalten de solicitações.
O problema da predicação cognitivista recai na rigidez em atribuir “sentido à fatos brutos”
(DREYFUS, 2007, p. 257). Dreyfus argumenta que a perspectiva heideggeriana, por outro
lado, parte do pressuposto de que, em primeiro lugar, nós não temos a “experiência de fatos
brutos e, mesmo se tivéssemos, nenhum valor predicativo poderia fundamentar uma
significação situacional” (idem). Dessa forma, a recusa ao representacionismo endossado pela
perspectiva cognitivista e a busca por uma inteligência artificial heideggeriana leva Dreyfus
ao elogio da pesquisa neurodinâmica de Walter Freeman (DREYFUS, 2007).
Walter Freeman, uma das figuras fundadoras da neurociência e o primeiro a tomar
seriamente a ideia do cérebro como um sistema dinâmico não-linear, formulou uma
abordagem para explicar como o cérebro de um animal ativo pode encontrar e
aumentar a relevância de aspectos do mundo. A partir de anos de pesquisa sobre
olfato, visão, tato e audição em coelhos em estado de alerta e movimentação, Freeman
propôs um modelo de aprendizagem sobre o acoplamento do cérebro com o ambiente.
(DREYFUS, 2007, p. 257).
Freeman argumenta, ao contrário do cognitivismo, que um dado comportamento do
coelho (sentir o cheiro de uma cenoura) depende do histórico de ações do animal de tal forma
que, mesmo que o input seja o mesmo de experiências anteriores, o bulbo efetiva padrões
diferenciados. Com isso, ressalta-se o enativismo do organismo em sua fundamentação de
solicitações no ambiente. Dessa forma, um mesmo estímulo é capaz de manifestar reações
físicas diversificadas no cérebro do animal: “o estado atual do cérebro é o resultado da soma
das experiências passadas do animal com cenouras, e este estado está diretamente acoplado
com ou ressoa a solicitação oferecida pela cenoura atual” (DREYFUS, 2007, p. 258). Dito de
outro modo, “os padrões macroscópicos do bulbo não se relacionam ao estímulo propriamente
dito, mas ao sentido do estímulo” (FREEMAN apud DREYFUS, 2007, p. 258). Logo, a
perspectiva que defende a formalização do comportamento inteligente em representações
fixas e internalizadas que operam de modo sequencial não parece soar como a expressão mais
verossímil da pré-reflexividade do corpo próprio, já que a diferenciação de padrões nos
cérebros dos coelhos testados aponta o fato que os estímulos não são reduzíveis a átomos
lógicos predicáveis, pois a significação existencial na qual um organismo encontra-se
engajado provém, na verdade, de uma retroatividade histórica de ações e solicitações, ou seja,
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o contrário de um modelo cognitivista representacional. Por conseguinte, Freeman é, para
Dreyfus, o mais próximo de uma aplicação empírica do pensamento heideggeriano.
Tenho observado que os padrões de atividades cerebrais estão constantemente
dissolvendo, reformulando e mudando, particularmente um em relação ao outro.
Quando um animal aprende a responder a um novo odor, há uma mudança em todos
os demais padrões, mesmo eles não estando diretamente envolvidos com a
aprendizagem. Não há representações fixadas, como há em computadores; há apenas
significações. (FREEMAN apud DREYFUS, 2007, p. 260).
Em suma, o que há de heideggeriano no modelo de Freeman é a rejeição de
representações pré-estabelecidas do mundo. O modelo associacionista - posterior ao
paradigma cognitivista - representa um avanço ao delegar aos sistemas a capacidade contínua
de aprendizagem; no entanto, mesmo no associacionismo, a possibilidade de aprendizagem
não acarreta a possibilidade com que cada significação apreendida possa ser ressignificada a
partir das novas, isto é, enquanto que em um sistema cognitivista ou associacionista o
sucessivo acúmulo de representações não implica a modificação das informações já
formalizadas, o tipo de comportamento holístico e não-representacional de um ser-no-mundo
deve ser compreendido a partir da noção de que as partes e o todo modificam-se por conta de
uma dialética perene que depende da historicidade comportamental. Como diz Dreyfus, o
modelo de Freeman - agora usando um importante conceito de Merleau-Ponty - “faz brotar
um verdadeiro arco intencional no qual não há conexões causais lineares, nem mesmo uma
biblioteca fixa de informações” (DREYFUS, 2007, pp. 260-261, grifo nosso). O arco
intencional, conceitualizado por Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepção, quer
dizer nada mais que “em cada momento que uma nova significação surge, todo o mundo
perceptivo do animal muda de modo que a significação diretamente apreendida é contextual,
global e continuamente enriquecida” (idem), isto é, a síntese passiva do corpo próprio é
análoga ao modelo neurodinâmico que Freeman defende em suas pesquisas. Porém, apesar da
clara harmonia entre Freeman e a crítica fenomenológica de What Computers Can’t Do,
Dreyfus é obrigado a reconhecer que estamos “bem longe de programar a inteligência
humana” (DREYFUS, 2007, p. 262), principalmente por conta que a maior dificuldade
continua a ser aquela apontada no oitavo capítulo da obra mencionada (The Role of the Body
in Intelligent Behavior). Neste capítulo, Dreyfus defende que, mesmo que um modelo
neurodinâmico seja plenamente desenvolvido, só podemos esperar um verdadeiro ser-nomundo quando uma corporeidade pré-reflexiva, isto é, quando um verdadeiro corpo próprio
conseguir de fato ser constituído. Porém, como se sabe, por mais autêntico que certos
sistemas artificiais possam parecer com um Dasein ou algum outro animal, até hoje não
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podemos reconhecer em nenhuma máquina um comportamento congênere à arranjos
orgânicos da matéria.
Um cérebro em um jarro ou um computador digital talvez ainda não sejam capazes de
responder à novos tipos de situações justamente por conta que nossa habilidade de
agir em uma situação talvez dependa não da flexibilidade de nosso sistema nervoso,
mas sim de nossa habilidade em engajar-se em atividades práticas. Depois de algumas
tentativas em programar tal máquina, talvez se torne aparente que o que distingue
pessoas de máquinas - não importando o quão brilhantemente construídas - não é um
espírito destacado, universal e imaterial, mas um corpo engajado, situado e material
(DREYFUS, 1992, p. 236).
III.
O erro do cognitivismo pode ser compreendido a partir do foco ôntico no qual ele
fundamenta as predicações necessárias para um sistema artificial efetivar um comportamento
inteligente. No fundo, trata-se aqui da questão ontológica tratada por Heidegger e que Dreyfus
coloca com as seguintes palavras: “a ontologia, como a ciência de tudo que há, deve propor
afirmações mais fortes que as ciências naturais. As ciências naturais nos explicam como
martelos funcionam, mas não o que martelos são” (DREYFUS, 1991, p. 113). O cognitivismo
pode predicar o ferro e a madeira que compõem uma dada configuração da matéria
denominada com a palavra “martelo”, porém, o martelo percebido holisticamente dentro de
um contexto histórico e social torna-se algo distinto daquilo da perspectiva ôntica. Dito de
outro modo, a ontologia heideggeriana parte da negatividade do para-si, ou seja, uma
descrição ontológica que não exclua o aspecto fenomenológico do Dasein, pois “nada é
inteligível para nós a não ser a partir da integração prévia do nosso mundo, já ajustada às
nossas práticas e formas de lidar com as coisas” (DREYFUS, 1991, p. 115). Heidegger está
interessado em descrever o irrefletido, o contato primordial pré-reflexivo do organismo, ou
como diria Merleau-Ponty, a intencionalidade operante do corpo próprio. Perceber que a
“natureza por si só não pode, obviamente, explicar a significação” (DREYFUS, 1991, p. 115),
significa afastar-se de toda a tradição racionalista que remonta a Platão e Aristóteles. A crítica
fenomenológica, portanto, resulta na retomada e articulação entre animalidade e
racionalidade, corpo e mente, percepção e ação. Algo que foi descrito de modo mais
contundente em Ser e Tempo (1927), mas que Dreyfus já percebe também em Wittgenstein.
Aristóteles ainda pensava o homem como uma espécie de objeto calculável e
calculante [...] Foi só recentemente, agora que finalmente ficou evidente as
consequências da tentativa de tratar o homem como mero objeto, que filósofos
começaram a esboçar uma nova visão. Os pioneiros foram Heidegger e Wittgenstein.
Desde então, diversos outros - especialmente Maurice Merleau-Ponty e Michael
Polanyi - conseguiram, cada um a seu modo, aplicar, consolidar e refinar insights
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similares; e jovens pensadores como Charles Taylor e Samuel Todes estão a continuar
suas pesquisas (DREYFUS, 1992, p. 233).
O racionalismo inscrito no cognitivismo revela uma separação artificial e injustificada
entre corporeidade e mente, afeto e razão, engajamento pontual e generalização universal.
Como Dreyfus lembra, “é justamente o lado corporal do comportamento inteligente que
causou o maior trabalho para a inteligência artificial” (DREYFUS, 1992, p. 236). O fracasso
do cognitivismo revela, no fundo, que o tipo de inteligência de ordem lógica e formal está
assentada na própria imbricação corporal do Dasein. Dessa forma, o esforço em formalizar
uma regra geral para simular um comportamento inteligente torna-se, na verdade, um trabalho
de Sísifo.
Para Heidegger, que afirma que o nosso conhecimento de senso comum é um tipo de
saber-como [knowing-how], e não um saber-que [knowing-that] proposicional, as
coisas parecem ainda mais desencorajadoras para o cognitivismo. Já que a nossa
familiaridade não consiste em um vasto corpo de regras e fatos, mas sim de
disposições que respondem apropriadamente a situações, não há um corpo de regras
de senso comum para se formalizar. A tarefa é antes perdidamente mal elaborada do
que infinita. [...] Por si só, fatos e regras não possuem sentido. Para captar aquilo que
Heidegger chama de significância ou envolvimento, os fatos e regras devem possuir
uma relevância atribuída. Porém, os predicados que devem ser adicionados para se
definir a relevância são apenas mais fatos sem sentido; e, paradoxalmente, quão maior
for o número de dados armazenados em um computador, maior é a dificuldade para se
computar o que é relevante em cada situação. (DREYFUS, 1991, p. 118).
A relevância de cada contexto, argumenta Dreyfus, provém da corporeidade que institui o
nexo não-representacional organismo-ambiente. Dreyfus chega mesmo a decretar que um
corpo, entendido como instauração pré-reflexiva de um campo ou horizonte de solicitações,
não pode ser “reproduzido por um computador digital programado de modo heurístico [...]
portanto, por conta de sermos seres corporificados, nós podemos efetivar tarefas que estão
além de qualquer robô heuristicamente programado” (DREYFUS, 1992, p. 237). A
predicação prévia do mundo-dos-objetos acaba por deixar de lado o papel ativo do organismo
na construção da relevância dos contextos. A Gestalt desvelada “é determinada pela minha
percepção da totalidade [...] a mesma constelação física de ondas sonoras pode ser escutada
como fenômenos diferentes a depender do sentido antecipado” (DREYFUS, 1992, p. 238).
Portanto, a inteligibilidade de um fenômeno provém não da atomização dos fatos brutos, mas
da totalidade da Gestalt que, em boa parte, provém do aspecto antepredicativo da
corporeidade do Dasein.
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Conclusão
A predicação atomística da res extensa passa ao largo da esfera holística e antepredicativa
do ser-no-mundo na qual observa-se a aurora da valoração não-representacional: “este pedaço
de madeira não é nem uma reunião de cores e de dados táteis, nem mesmo sua Gestalt total”
(MERLEAU-PONTY, 1994, p. 604), isto é, qualquer arranjo da matéria que está em nosso
horizonte ou campo de sentido surge, na verdade, como um tipo de solicitação que está
fundada em um fluxo anônimo que precede qualquer operação da esfera da intencionalidade
de ato. O mundo, sob a ótica do cognitivismo, não é o mundo de um ser-no-mundo. A
decomposição predicativa de partes não implica a chegada ao sentido do todo. A abordagem
representacional seguiu uma perspectiva de decomposição predicativa do real sem
compreender que a valoração não-representacional do Dasein funciona de tal forma retroativa
que a noção de que o simples acúmulo incessante de dados pré-estabelecidos seria o suficiente
para reproduzir o comportamento de um ser-no-mundo revelou-se, no fim, equivocada. Daí a
razão de serem estas as palavras que abrem a introdução escrita por Dreyfus duas décadas
após sua publicação original: “Esta edição de What Computers Can’t Do marca não só a
mudança de editora e uma pequena mudança em seu título; ela também marca uma mudança
de status. O livro agora oferece não uma posição controversa em um debate vivo, mas uma
visão de um período da história que já passou” (DREYFUS, 1992, p. ix).
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