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ANDRÉ BUENO – DULCELI TONET ESTACHESKI EVERTON CREMA – JOSÉ MARIA SOUSA NETO [ORGS.] APRENDENDO HISTÓRIA: DIÁLOGOS TRANSVERSAIS PRODUÇÃO: LAPHIS – Laboratório de Aprendizagem Histórica da UNESPAR Leitorado Antiguo – UPE Projeto Orientalismo Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS PUBLICAÇÃO: Edições Especiais Sobre Ontens Página | 2 FICHA BIBLIOGRÁFICA BUENO, André; ESTACHESKI, Dulceli; CREMA, Everton; NETO, José Maria de Sousa. Aprendendo História: Diálogos Transversais. União da Vitória: Edições Especiais Sobre Ontens, 2019. ISBN: 978-85-65996-70-9 Disponível em www.revistasobreontes.site SUMÁRIO CONVIDAD@S O CEMITÉRIO E SUA POTENCIALIDADE PEDAGÓGICA – RECURSO, FERRAMENTA E CAMPO DE ESTUDO Alcimara Aparecida Föetsch, 9 "NÃO HÁ DESVIOS NO CAMINHO DO ESTUDO": UM DIÁLOGO ENTRE PENSADORES DA CHINA TRADICIONAL E A QUESTÃO DO APRENDIZADO André Bueno, 13 UM FUTURO PARA O PASSADO: O MUSEU NACIONAL VIVE Vanessa Cristina Chucailo e Rodrigo Lima Veloso, 18 AUTOR@S DIÁLOGOS ENTRE SAÚDE E EDUCAÇÃO NO CURSO DE JARDIM DE INFÂNCIA: FOLHEANDO AS PÁGINAS DO CADERNO DE UMA PROFESSORA (1965) Amanda Pereira de Lima, 27 A HISTÓRIA AMBIENTAL EM SALA DE AULA: PERSPECTIVAS E DESAFIOS Anelisa Mota Gregoleti e Nathália Moro, 35 EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA: PARAR E PENSAR A ESCOLA PÚBLICA HOJE Aruanã Antonio dos Passos e Willian Roberto Vicentini, 40 O ENSINO DE HISTÓRIA PELOS TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS DO ATAQUE ATÔMICO EM HIROSHIMA Bruna Navarone Santos, 48 ENSINO DE HISTÓRIA E DE GEOGRAFIA: DESAFIOS E REFLEXÕES PARA A PRÁTICA DOCENTE INTERDISCIPLINAR Carlos Eduardo Ströher, 55 A EXCEÇÃO E A REGRA: UMA ANÁLISE COMPARADA DO PPP DE UMA ESCOLA MILITAR E UMA ESCOLA NÃO MILITAR Debora Luana Ribeiro e Maria Juliana de Freitas Almeida, 63 POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS: BREVE HISTÓRICO DAS PRINCIPAIS JUSTIFICATIVAS E O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO Diego Cavalcanti de Santana, 75 MÚSICA EM SALA DE AULA: ALGUMAS POSSIBILIDADES DO USO DE RAPS NACIONAIS PARA TRABALHAR A CONSCIÊNCIA NEGRA NAS ESCOLAS Edivaldo Rafael de Souza, 83 HISTÓRIA E LITERATURA: UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A UTILIZAÇÃO DE UM CONTO NO ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL Edivaldo Rafael de Souza, 90 REPRESENTAÇÕES E IMAGENS DO RIO DE JANEIRO EM “VIAGEM PITORESCA E HISTÓRICA AO BRASIL” Elenice Alves Dias Borges, 96 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 3 A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA REPRESENTADA NA OBRA MACUNAÍMA, DE MÁRIO DE ANDRADE Fabiana Wentz, 106 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS ALTO, DIREITA VOLVER: NOTAS SOBRE AS JUVENTUDES CONSERVADORAS BRASILEIRAS Fábio Júnio Mesquita, 110 O SUICÍDIO DE ADOLESCENTES INSTITUCIONALIZADOS NOS CENTROS DE SOCIOEDUCAÇÃO DO PARANÁ: OS CASOS DO CENSE CASCAVEL II Fernando Cesar Arnoni, 117 Página | 4 MÚSICA E HISTÓRIA: SUPORTES PARA FAZER UMA ANÁLISE MUSICAL NA HISTORIOGRAFIA Glauber Paiva da Silva, 124 A HISTÓRIA EM VERSOS MUSICAIS: OS HERÓIS BRASILEIROS DA SEGUNDA GUERRA QUE O ROCK PESADO ETERNIZOU Glayson Castro da Silva, 131 UMA CIÊNCIA PARADIGMÁTICA: DA TEOLOGIA ÀS TEORIAS DA HISTÓRIA Isabele Fogaça de Almeida, 138 DO VÉU AO VÉU: REPRESENTAÇÃO DO CASAMENTO NA OBRA DE LIMA BARRETO (1889-1922) Jacqueline Ferreira Dias, 146 O ROMANCE “ÚRSULA” (1859): UMA DENÚNCIA SUTIL DAS RELAÇÕES SENHORIAIS DO SÉCULO XIX Janaina Mendes da Silva, 153 QUANDO A NOSSA HISTÓRIA CHEGA COM O LICENCIAMENTO AMBIENTAL: EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO INTERIOR DO AMAPÁ Jelly Juliane Souza de Lima e Avelino Gambim Júnior, 160 ENTRE A HISTÓRIA E A MODA: UMA NOVA LINGUAGEM PARA O TRABALHO HISTORIOGRÁFICO Jéssica Mayara Santos Sampaio, 173 DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA, GEOGRAFIA E A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA ACERCA DO ESPAÇO ENQUANTO PATRIMÔNIO CULTURAL Jessica Caroline de Oliveira, 180 A CAÓTICA FRAGMENTAÇÃO DO CURRÍCULO COMO POSSIBILIDADE DE MINAR OS AVANÇOS INTERDISCIPLINARES DE SUJEITOS AUTÔNOMOS: POR UMA EDUCAÇÃO QUE ‘DEFORME’! Leandro Santos Costa e Bruna de Almeida Oliveira, 187 AS NARRATIVAS DE DIVULGAÇÃO DA HISTÓRIA Leonardo Paiva do Monte, 195 O JORNAL COMO FONTE: PERSPECTIVAS SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA, COTIDIANO ESCOLAR E NOVAS METODOLOGIAS A PARTIR DO CONTATO INICIAL COM A DOCÊNCIA Libiane Karina Orth, 201 VALORES TERESINENSES: EM BUSCA DE UMA HISTÓRIA RECONSTITUÍDA Lucas Rafael Santos Costa, 208 A PRESENÇA-AUSENTE DA MIGRAÇÃO NORDESTINA NO MUSEU DA IMIGRAÇÃO Luciano Araujo Monteiro, 215 O SIGNIFICADO DA “CONQUISTA” CASTELHANA DOS TERRITÓRIOS AMERICANOS NA LITERATURADO SÉCULO XVI: O CASO DE BARTOLOMÉ DE LAS CASAS Luciano José Vianna, 223 DA CÓLERA DA PÓLIS À ATARAXÍA DA ALMA: INTERSECÇÕES ENTRE O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA E A FILOSOFIA ANTIGA Luiz Henrique Silva Moreira, 230 É MAIS QUE ÓDIO: A EDUCAÇÃO EM UMA SOCIEDADE RESSENTIDA Makchwell Coimbra Narcizo, 237 TEMAS TRANSVERSAIS NO ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DA MÚSICA TRADICIONALISTA GAÚCHA: ENTRE A NOSTALGIA E A HISTÓRIA Manoel Adir Kischener, 245 A CONSTRUÇÃO DE UMA PERSONAGEM: ANA BOLENA (1501-1536) ENTRE AS INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS E LITERÁRIAS Marcos de Araújo Oliveira, 253 DISCUSSÕES SOBRE PATRIMÔNIO LOCAL E REGIONAL NO ENSINO DE HISTÓRIA Marcos Rafael da Silva e Tathianni Cristini da Silva, 261 A MEMÓRIA E A HISTÓRIA ESQUADRINHADAS: PROCESSO DE DIAGNÓSTICO E COLETA DE DADOS COM A POPULAÇÃO IDOSA DO MUNICÍPIO DE PATO BRANCO/PR Maria de Lourdes Bernartt e Carolina Rodrigues da Silva, 267 PATRIMÔNIO CULTURAL E MULHERES: UM VIÉS DECOLONIAL Marina Fares Ferreira e Bárbara Carolina Medeiros de Tompa, 274 DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA ÀS DIMENSÕES DA CULTURA HISTÓRICA: UMA ABORDAGEM PELA PERSPECTIVA DE JÖRN RÜSEN Max Lanio Martins Pina, 283 A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL COMO INSTRUMENTO DE APLICAÇÃO E VALORIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA NO ENSINO DE HISTÓRIA Maycon Junio Gonçalves, 290 PATRIMÔNIO HISTÓRICO-ARQUITETÔNICO E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UM OLHAR SOBRE O PASSADO DA CIDADE DE CAXIAS-MA A PARTIR DOS SEUS PRÉDIOS HISTÓRICOS Melissa Jéssica Beleza Souza e Raimundo Nonato Santos de Sousa, 295 IMIGRAÇÃO & COLONIZAÇÃO: A IDENTIDADE UCRANIANA EM PRUDENTÓPOLIS/PR Nikolas Corrent, 303 IDEIAS HISTÓRICAS SOBRE A RELAÇÃO FUTEBOL E POLÍTICA NO BRASIL [2019]: UMA PROPOSTA DE PESQUISA EM HISTÓRIA E ENSINO Pedro Aurélio dos Santos Luiz, 312 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 5 ENSINO DE HISTÓRIA EM MUSEUS: OBJETOS COMO FONTES DE SABERES Priscila Lopes d’Avila Borges, 322 IMPRENSA, VIOLÊNCIA E CONFLITOS DE TERRA NO PARÁ – ANOS 2000 Rafael Souza Ferreira, 326 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS A FESTA COMO SÍMBOLO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL Raildis Azevedo Avelino, 341 A GUERRA DE CANUDOS FRENTE AS NOVAS FERRAMENTAS DE ENSINO Renata Linhares de Araújo, 348 Página | 6 OENSINO DE ALGUNS PRINCÍPIOS TEÓRICOS DA ESCOLA DOS ANNALES A PARTIR DA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO Rodrigo Conçole Lage, 352 EXISTE UMA TRADIÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA ECONÔMICA? AS TRADIÇÕES CLÁSSICAS DE HISTÓRIA ECONÔMICA NO MUNDO E A HISTÓRIA ECONÔMICA NO BRASIL Rodrigo Henrique Araújo da Costa, 356 MÚSICA E ENSINO DE HISTÓRIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E CONCEITUAIS Rodrigo Luis dos Santos, 364 EXPERIÊNCIA DIDÁTICA DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO ENSINO DE HISTÓRIA Sandro Ambrósio Alves, 368 HISTÓRIAS DE PESCADOR: UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA NO BENDENGÓ DO UBÁ E O DESAFIO DE (RE)INTERPRETAR O PASSADO Simone Aparecida Quiezi, 379 PINACOTECA MUNICIPAL DE BAURU: ESPAÇO DE EDUCAÇÃO, ARTE E MEMÓRIA Taís Cristina Melero e Taynara Zulato Rosa, 388 QUEBRANDO TABUS: DISCUTINDO SAÚDE MENTAL E SUICÍDIO COM ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO Talita Samara Oliveira Mesquita, 393 REALIDADES DISTÓPICAS: INTERDISCIPLINARIDADE COMO DESENVOLVIMENTO DE CRÍTICAS SOCIAIS Tallita Stumpp Moreira, 399 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO AMOR: APONTAMENTOS SOBRE O CASAMENTO E SUA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA Tatiane Kaspari e Márcia Rohr Welter, 406 FOTOGRAFIA E ENSINO DE HISTÓRIA: A ARTE DO IMIGRANTE HARUO OHARA EM LONDRINA-PR (1927-1999) Valdir Pimenta dos Santos Junior, 415 MUSEUS ESCOLARES: ESPAÇOS DE INTERAÇÃO COM A COMUNIDADE E PROMOÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO EDUCATIVO ESCOLAR Vânia Maria Siqueira Alves, 421 CINEMA E CURTA-METRAGEM APLICADOS AO ENSINO EM CIÊNCIAS HUMANAS: REFLEXÕES A PARTIR DE UM PROJETO DE EXTENSÃO INSCRITO NA UERJ Walace Ferreira e Rodrigo de Souza Pain, 430 TEMAS DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS EM ESCOLAS ESTADUAIS DO RIO DE JANEIRO: NOTAS DE UM PROJETO EXTENSIONISTA Walace Ferreira e Rodrigo de Souza Pain, 435 AS CONCEPÇÕES DOS ALUNOS DO ENSINO BÁSICO SOBRE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUA RELAÇÃO COM A DISCIPLINA DE HISTÓRIA Wendell Presley Machado Cordovil, 445 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 7 HISTÓRIA ECONÔMICA NO ENSINO BÁSICO: O USO DE DICIONÁRIOS ECONÔMICOS COMO FERRAMENTA DE MEDIAÇÃO DIDÁTICA Werbeth Serejo Belo, 455 BIOS, 463 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 8 CONVI DAD@S O CEMITÉRIO E SUA POTENCIALIDADE PEDAGÓGICA – RECURSO, FERRAMENTA E CAMPO DE ESTUDO Alcimara Aparecida Föetsch “[...] aeternam dona eis [...]”, ou seja, “dai-lhes o repouso eterno”, trecho da Liturgia Católica do Ofício dos Mortos (Miranda, 1999, p. 81), abre nossa reflexão centrada nos desassossegos, inconformidades, aflições e fantasias associadas ao desaparecimento do ser vivo em função da morte e as repercussões/ressonâncias edificadas na paisagem e perpetuadas na memória. Dentre as múltiplas perspectivas, delimitamos, neste diálogo, a necrópole enquanto recurso, ferramenta e campo de estudo explorando sua potencialidade pedagógica, um aceno ao que Pegaia (1967) batiza de estudo geográfico do cemitério. Espaço-reduto da atividade fim da morte (Bittar, 2018) atende pelas alcunhas de campo-santo, ossuário, morada dos mortos, necrópole, espaço do enterro e inumação, dormitório e lugar do repouso eterno, este último enquanto eufemismo titulado para suavizar a incompreensível e inaceitável situação de desaparecimento do mundo natural. As necrópoles, referências históricas e museus a céu aberto, se qualificam geograficamente enquanto campo de representação simbólica, significação e sociabilidades e, dessa forma, constituem objeto de investigação interdisciplinar se caracterizando, ademais, como organizações bibliotecárias que podem ser exploradas com intenções cívico-educativas (Catroga, 2001). Isso porque: “[...] un cementerio es un complejo de obras de arte, significaciones, simbolismos, coreografías, estrategias, misterios, prácticas y seres humanos que de consuno y sin saberlo actúan creando un mundo espectacular más digno de admiración y de asombro que de temor”. (Grisales, 2017, p. 83). Sublinhamos o caráter espetacular e teatral da necrópole para além do assombro e do temor que sua perspectiva pode inicialmente conjurar, é o que Grisales (2017) designa como “discreto encanto”. Acreditamos, desse modo, que os cemitérios podem inflamar profícuos diálogos interdisciplinares em especial nas Ciências Humanas a partir da História, da Geografia, da Arqueologia, da Arte, da Antropologia, da Política e da Economia, sobretudo, porque suas ferramentas analíticas são tensionadoras, ou seja, permitem ocupar-se e problematizar os modos de sentir, pensar e viver das sociedades (Bastianello, 2010). São espaços de lembranças vivas, locais onde se projetam valores, estruturas ideológicas e socioeconômicas (Bellomo, 2000), discursos produzidos e alimentados pelas razões e emoções do outro, dos que nunca morreram. Enquanto potencialidade instrutiva, pesquisas e visitações guiadas aos cemitérios com fins pedagógicos subsidiam, de maneira ímpar, o (re)conhecimento do patrimônio cultural. É promissor recurso e considerável ferramenta didático-pedagógica, sobretudo por prover a Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 9 possibilidade de se pesquisar em campo. Nos convida a refletir sobre as distintas formas de encarar a morte, o ritual e a espacialidade, perpassando pela proibição do enterramento ad sanctos (ou extra-muros, para Rodrigues, 1997), pelo discurso médico-higienista e pela Educação Patrimonial. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 10 Perceber, investigar, decodificar e correlacionar os históricos sistemas religiosos e práticas diversas que, ao longo do tempo e no espaço, construíram e reconstruíram a territorialidade da morte é tarefa provocadora, visto que a paisagem contemporânea dos cemitérios é fruto da sobreposição de várias camadas de representações construídas (Cymbalista, 2002, p. 21). Espelho da sociedade, o cemitério evidencia o que Reis (1999) chama de ‘hierarquização das sepulturas’, provando que a morte igualitária é direito somente no discurso. De que forma ignorar tais inquietações em nossas práticas educativas? É possível, em um roteiro sugestivo e convidativo, perceber o processo formativo dos cenários do passamento, a sobreposição e distinção de suas camadas de representação e estratificação. A teatralidade da morte se evidencia na ritualização do luto, na heroização do morto, na linguagem das celebrações e das práticas performativas. São repositórios do “fazer recordar” e acionam o papel difusor de referência e recordação oportunizando o direito à memória e a imortalização do falecido, demarcam enraizamento territorial. Isso, ao mesmo tempo em que encobertam mortos anônimos, os não reivindicados (representados na efígie da “anima sola”), estampam o abandono, calam almas solitárias e perpetuam o esquecimento. Há também que se considerar, nesta proposição pedagógica, a turistificação do cemitério, as peregrinações a seus atributos, aos mortos santificados, sua categorização enquanto mercadoria e sua reciclagem simbólica atendendo aos que procuram por heróis, celebridades, santidades. Neste viés, ponderamos a patrimonialização da necrópole que, ao transcender sua função utilitária, sendo, portanto, um bem cultural, é repositório de identidade, pertença e espaço privilegiado de referência ancestral e icônica. O envolvimento pedagógico possibilita, ademais, a formação de agentes multiplicadores que, ao explorar a realidade, partem para propagar perspectivas, difundir percepções, irradiar conhecimento. O cemitério, pode, destarte, se configurar como espaço educacional, arquitetando a definição de temas geradores e norteadores, problematizando questões em múltiplas áreas do conhecimento. Neste sentido, Bellomo (2000), ao analisar a arte, a sociedade e a ideologia em cemitérios do Rio Grande do Sul, sugere seis promissoras possibilidades: fonte histórica para preservação da memória familiar e coletiva; fonte de estudo das simbologias das crenças religiosas; forma de expressão do gosto artístico; forma de expressão da ideologia política; forma de preservação do patrimônio histórico; e, fonte de preservação das identidades étnicas. Condizendo, é o que Rigo (2010) ao discutir o cemitério enquanto fonte de inspiração cênica, propõe sob a alcunha de “Pedagogia Cemiterial”, ou seja, um roteiro a ser considerado quando da utilização do cemitério como recurso pedagógico. Lugar de testemunho histórico e de lembrança, que “no es simplemente un depósito de restos humanos” (Guerrero, 2011, p. 204) é espaço de vivência e comunicação, onde se pode explorar: o estilo construtivo e as edificações (mini-igrejas, jardins, mausoléus, jazigos, capelas, covas rasas); as origens históricas e sociais (evolução dos lugares, elementos étnicos, genealogia, ideologias políticas, representações de poder, sincretismos, personagens icônicos); as manifestações artísticas da/para morte (arte tumularia artesanal, homenagens pictóricas, o fazer dos marmoristas, altares oratórios, adornos, iconografias, primorosos epitáfios, recordatórios, relicários); as oferendas e ex-votos (fotografias, santos de devoção, signos religiosos, objetos pessoais, mensagens bíblicas, hagiografias, instrumentos do ofício em vida, flores, coroas); e, a reprodução do ordenamento estrutural citadino (arruamentos, numeração de registro e identificação, placas informativas e decorativas, quadras, corretores, setorizações, frontispícios, instalações sanitárias). Camara Cascudo (1971) com sua incontestável sentença: “Morre-se em qualquer parte do Mundo, sob a condição preliminar de estar-se vivo” (p. 93) nos atiça com o inatacável argumento de que se morre tanto em Pequim, quanto em Quixeramobim – e que bordão lídimo. E assim, concluímos: por que não usufruir, pedagogicamente, dessa teia infindável e melindrosa da morte? São, de fato histórias de “toda uma série de artimanhas, de mascaramentos, de evitações, mas também de criações de imaginário coletivo em relação a uma passagem obrigatória em toda existência humana” (Vovelle, 2004, p. 59), bem cultural e espaço privilegiado a serviço do pedagógico, à disposição da prática educativa. Referências BASTIANELLO, E. M. T. Os monumentos funerários do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé e seus significados culturais: memória pública, étnica e artefactual – 1858 -1950. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural) Universidade Federal de Pelotas. Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, Pelotas, RS, 2010. BELLOMO, H. R. Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. 2. ed. rev. ampl. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. BITTAR, W. S. M. Da morte, dos velórios e de cemitérios no Brasil. In: Paisagens Híbridas. [S.l.], v. 1, n. 1, p. 178 a 205, out. 2018. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/ph/article/view/22039>. Acesso em: 24 jan. 2019. CAMARA CASCUDO, L. da. Tradição, Ciência do Povo. Pesquisa na Cultura Popular do Brasil. Editora Perspectiva: São Paulo, 1971. (Coleção Debates – Etnografia). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 11 CATROGA, F. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001. CYMBALISTA, R. Cidades dos vivos. Arquitetura e atitudes perante a morte nos cemitérios do estado de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2002. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 12 GRISALES, G. El discreto encanto de los cementerios. Mundo Amazónico, 8(2), 2017. (p. 71-84). Disponível em: http://dx.doi.org/10.15446/ma.v8n2.64711, acesso em 16/12/2018. GUERRERO, E. L. El Cementerio Central de Neiva (Huila): escenario de activación, reinterpretación y disputa de múltiples memorias. In: Universitas Humanística. n.72, julio-diciembre de 2011. (p. 189-210). MIRANDA, E. E. de. Agora e na hora: ritos de passagem à eternidade. 2ª ed. Edições Loyola: São Paulo, 1999. PEGAIA, U. A. Estudo geográfico dos cemitérios de São Paulo. Boletim Paulista de Geografia. nº 44. Outubro de 1967. (p. 103 - 120). REIS, J. J. A morte é uma festa: rituais fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. RIGO, K. F. Pedagogia Cemiterial. In: Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, Piracicaba-SP. Anais. IV Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais, 2010. RODRIGUES, C. Lugares dos mortos na cidade dos vivos. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. VOVELLE, M. Ideologias e Mentalidades. São Paulo: brasiliense, 2ª ed. 2004. NÃO HÁ DESVIOS NO CAMINHO DO ESTUDO: UM DIÁLOGO ENTRE PENSADORES DA CHINA TRADICIONAL E A QUESTÃO DO APRENDIZADO André Bueno Muito estudo leva a erudição; pouco estudo, a superficialidade. Ampliar sua visão de mundo leva a profundidade; reduzi-la, a estreiteza de juízo. [荀子 Xunzi, -313 a -238] Quando Xunzi citou esse pequeno trecho, ele tinha em mente a sempre onipresente questão do estudo. Estudar é um verbo, em chinês, cuja dimensão ultrapassa o sentido que temos em português [no Brasil] do que seja o ato de imbuir-se do desejo de conhecer, e do hábito de exercitar essa busca. Quando eu estudava chinês, lembro de complicarmos nossa professora com uma pegadinha – que então compreendi – existe em nossa língua, mas não necessariamente em chinês. Ao explicar o que era o verbo chinês ‘estudar’ [学xue], perguntamos também como seria o verbo ‘aprender’. Nossa professora não compreendeu a pergunta. Para ela – e para os bilhões de chineses – estudar é aprender. Dissemos que em português [Brasil] era possível ‘estudar e não aprender, e aprender sem estudar’. Ela não compreendeu. Eu sim, e tive então certa vergonha da situação. Percebi que, infelizmente, temos isso incrustado em nossa cultura. Talvez por serem milenares, os chineses perceberam que estudar é aprender, e vice-versa. Perde-se em riqueza lingüística, mas se ganha em sentido. O que restou a nossa docente foi explicar que em chinês, você pode estudar [学xue], mas não compreender [懂dong]; e que é muito estranho afirmar que alguém compreendeu sem estudar, pois se parte do pressuposto que, se compreendeu, estudou [a questão, ao menos]. De fato, se entende que se alguém estudou, mas não compreendeu, é porque precisa estudar mais. Essa discussão poderia ser infrutífera e meramente formal, se ela não levasse ao seguinte ponto: milênios atrás, os chineses já haviam compreendido que não se nasce sabendo. ‘Dom’, ‘benção do saber’, ‘facilidade’, ‘esperteza’, são coisas limitadas e imaginárias. Obviamente, os chineses não tinham dúvidas que os talentos pessoais variavam de pessoas para pessoa. Mas desenvolvê-los era outra coisa. Ainda que as pessoas tenham suas propensões, se não as desenvolverem, elas estagnam. Xunzi estava consciente disso. Ele começara a estudar em idade avançada, e ressentia-se sempre do que não sabia. Ainda que desse demonstrações cabais de capacidade, o tempo perdido nunca seria recuperado. Talvez seja importante lembrar que essa discussão é antiga na China, e talvez por isso eles tenham superado deste ponto. Portanto, se o modelo da analogia nos serve, poderíamos aproveitar a experiência chinesa para calar, de vez, nossos maus hábitos culturais de acreditar na sapiência da Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 13 esperteza. Wang Chong, estudioso da dinastia Han, deixou isso bem claro no século +1: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 14 Nenhuma pessoa inteligente teve êxito sem ter estudado, nem chegou a aprender sem ter questionado. Alguém poderia objetar: ‘mas não é verdade que Xiang Tuo, uma criança de sete anos, ensinou Confúcio?* Aos sete anos ele nem estava na escola. Mas o que se fala aqui é das pessoas que nascem sabendo. Durante o reinado de Wang Mang [+9 a +25], havia na prefeitura de Bohai um jovem de vinte e um anos chamado Yin Fang, que não tivera professor nem estudara com amigos, mas possuía uma inteligência inata. Dominava todos os cinco livros clássicos do Confucionismo. Chunyu Cang, magistrado local de Weidu, informou a corte, dizendo que Yin Fang, sem haver estudado, sabia recitar de memória composições literárias que só havia lido uma vez, e sabia comentar questões sobre diversos temas, citando os cinco clássicos confucionistas para explicar textos e analisar seu conteúdo, satisfazendo a todos. As pessoas o chamavam de santo, do sábio sem estudo, do gênio sem mestre. Isso não era algo divino?’. Minha resposta é: ainda que ele não tenha tido mestre ou colegas, ele teve que perguntar aos demais, e ouvir a resposta, para esclarecer certas questões. Mesmo que não tenha lido livros, ele sabe ler e escrever. Uma criança recém-nascida, cujos olhos e ouvidos nem se abriram, é incapaz de entender a verdade das coisas, por melhores que sejam seus dotes naturais. Xiang Tuo deu mostras de talento aos sete anos, mas aos três ou quatro anos, já ouvia falar sobre as pessoas. Yin Fang maravilhou a todos aos vinte e um anos, mas já devia ter visto e ouvido bastante coisa desde os quinze anos. [...] São casos de inteligência precoce os de Xiang Tuo e Yin Fang. Quanto a Huangdi [imperador amarelo] e Diku [antigo sábio], mesmo com inspirações divinas, podem também contar entre aqueles que tinham uma inteligência precoce. É certo que algumas pessoas alcançam a maturidade intelectual antes das outras, mas em todo o caso isso só acontece através do estudo. Há pessoas que, mesmo que não tenham estudado com mestres, pais ou irmãos, são objeto de excessivos elogios por parte daqueles que só enxergam seus êxitos em idade tenra. É dito que Xiang Tuo fez isso e aquilo com sete anos, mas suspeito que ele tinha dez anos; e se diz que ele ensinou Confúcio, mas acredito que Confúcio tenha lhe feito as perguntas. Dizem que Huangdi e Diku nasceram falando; mas qualquer criança só começa a falar pelos três ou quatro anos, e penso que esse é o caso. Dizem que Yin Fang tinha apenas vinte e um anos quando deu mostras de seu talento, mas o mais provável é que ele já tivesse trinta anos. Afirmam que ele não estudara nem com mestres nem com colegas, mas soube que ele estudou sozinho, e teve orientações de pais e irmãos em casa. É prática mais do que habitual neste nosso mundo fazer elogios pródigos além da verdade, ou difamar uma pessoa aumentando seus defeitos reais. Segundo a tradição, Yan Kuan, discípulo de Confúcio, escalou o monte Taishan aos trinta anos, e ali vislumbrou um cavalo branco amarrado fora do portão ocidental da muralha da capital do estado de Wu. No entanto, ao investigarmos os fatos e o terreno, revelou-se que aos trinta anos Yan Kuan não escalou o Monte Taishan, nem viu a capital do estado de Wu. Os elogios feitos a Xiang Tuo e Yin Fang são indignos de crédito, como é falso tudo que se possa dizer de Yan Kuan. As pessoas diferem em talentos, mas só chegam a saber aprendendo; quem aprende, sabe; e quem não aprende não sabe. [王充 Wang Chong, +27 a +97] O trecho ‘ainda que ele não tenha tido mestre ou colegas, ele teve que perguntar aos demais, e ouvir a resposta, para esclarecer certas questões. Mesmo que não tenha lido livros, ele sabe ler e escrever. Uma criança recém-nascida, cujos olhos e ouvidos nem se abriram, é incapaz de entender a verdade das coisas, por melhores que sejam seus dotes naturais’ é absolutamente esclarecedor. As pessoas esquecem, hoje, que tiveram que estudar com um professor para aprenderem a ler e escrever. Algumas afirmam que ‘aprenderam tudo sozinhas’. Sozinhas, na verdade, eles não teriam sobrevivido algumas semanas depois de nascer. É humano – e talvez muito brasileiro – renegar os mestres, e afirmar-se sábio de si mesmo. A desvalorização dos professores em nossa cultura depende, em parte, desse problemático valor cultural de acreditar que as diferenças intelectuais são ‘naturais’; alguns nascem sabendo, outros nunca. O desinteresse no estudo é falsamente justificado por uma natural incapacidade individual. Ora, desde o século +1 os chineses sabem que não é bem assim. Eles inverteram o paradigma. Qualquer um poderia ser inteligente, com esforço. Quem tem potencial, porém, se não o desenvolve, não se torna inteligente. O mesmo Confúcio, que teria sido avacalhado na apócrifa história de Xiang Tuo, teria dado o troco em outra historieta [igualmente apócrifa] em que, ao passear com seus discípulos, encontraram uma vila em que havia uma criança tida como sábia. Confúcio a perguntou: ‘como poderíamos igualar a todos?’. A criança respondeu: ‘montanhas iguais cansarão as aves; rios iguais matarão os peixes; se o chefe e o louco forem iguais, não haverá ordem. Pra que igualar? Deixe tudo diferente’. Os discípulos de Confúcio ficaram impressionados com a criança. Afirmaram: ‘nossa, quem dera se todas as crianças fossem assim’. Ao que Confúcio respondeu: ‘conheci muitas crianças que ao invés de estarem brincando, queriam saber o mundo. Quando cresceram, não deram em nada, nem fizeram algo grande: elas nunca conheceram a inocência na pureza da infância’ [孔丛子Kongcongzi]. Ao ler isso, podemos supor que Confúcio era contra o estudo, e assim se contradizia? Claro que não, é justamente o contrário. Confúcio nos informa que, sem estudo, a bajulação dos adultos prejudicaria o desenvolvimento infantil. Ainda que ela tivesse talento, precisaria estudar. Wang Chong repetiria esse argumento. A fantasia sobre uma suposta ‘inteligência superior na infância’ estragaria o seu crescimento. Isso tudo, porque, as pessoas teriam o hábito de ser orgulhar de crianças inteligentes – afinal, quem não gostaria de saber sem ter que estudar? Esse é um desejo humano, absolutamente concebível pela ideologia da preguiça, mas Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 15 dificilmente – senão impossível – de ser alcançado. Os chineses aprenderam isso há muitos séculos atrás. Deveríamos ser cautelosos, pois, com a desconsideração pelo estudo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 16 O reverso dessa ponderação é o afã de demonstrar algum estudo, sem uma real aquisição. Novamente, a questão é meramente de ostentação. Os chineses tiveram que lidar continuamente com isso. O desprezo ao estudo fora substituído pela vaidade de representar um aparente conhecimento – sem o tê-lo, de fato. O problema se acentuou com o desenvolvimento dos concursos públicos na China, depois da dinastia Han, em que o preparo do aluno levava anos, e começava cedo. Eu poderia destacar algumas citações que ilustram a questão, mas pulemos direto ao século 12 [a história chinesa nos permite essas transposições, em alguns casos], quando Yeshi nos diz que: Confúcio devia estar aludindo a alguns casos concretos quando falou sobre ‘estudar sem refletir’ e ‘refletir sem estudar’. Vemos o que fazem as gerações atuais. Estudando os livros clássicos, herdam de geração em geração opiniões superficiais e sem substância. Estes são os que não pensam. Outro tipo são aqueles que, de forma fingida, divagam sobre a ‘natureza humana’ e o ‘mandato celeste’, e andam envaidecidos do pouco que sabem. Estes são o que não estudam. Os letrados vulgares pertencem ou a uma categoria ou a outra. [叶适Yeshi, +1150 a +1223] Não existiria, pois – e já nessa época o vocábulo já se delineou – ‘estudar sem aprender’ ou ‘aprender sem estudar’. Verbos como refletir [思 si] ou compreender [懂dong] representam uma perspectiva anexa a de estudar [学xue]. A completa educação [教 jiao] só se dá quando o estudo proporciona o real aprendizado e a capacidade de reflexão. Todavia, como disse, a China pode nos servir de modelo de comparação – inclusive em seus problemas. A fixação no estudo presunçoso e isento de profundidade arrastar-se-ia na burocracia imperial, que criara mecanismos para driblar o estudo sincero. Entre eles, está a ‘demonstração de leitura’. Quem não conhece pessoas que se orgulham de seus milhões de livros, de suas vastas leituras, mas ao fim se comprazem apenas com resumos explicativos, sem adentrar em qualquer tópico? Como disse Feng Ban: Há quem considere que são estudiosos aqueles que lêem com uma rapidez extraordinária, terminando dezenas de volumes por dia, e persistindo em leituras cansativas até exaurir-se. No entanto, creio que esse trabalho todo renda muito pouco. Sustento essa opinião bem embasado. Uma leitura rápida torna impossível deter-se em reflexões tranqüilas e profundas; uma leitura ligeira não basta para consolidar o que foi lido. Se alguém lê desta maneira, apesar de sua aplicação e assiduidade, é como se não tivesse lido nada. [冯班 Feng Ban, +1602 +1671] Séculos depois, portanto, o problema muda, mas continua a girar em torno do problema do ato de estudar. Se antes acreditava-se na inteligência inata, agora, alguns praticavam a ‘facilitação’. Esses maus hábitos iriam proporcionar tempos calamitosos para os chineses, nos quais muitos ‘letrados’, despreparados para lidar com o futuro, se aferravam a sua arrogância ignorante. Seria por isso que 毛泽东 Mao Zedong [1893-1976] afirmaria, numa frase bastante dúbia, que ‘os fundadores das antigas escolas de pensamento eram jovens despreparados, que ao vislumbrarem algo novo, aferravam-se a isso, desafiando os antigos’. Nada mais verdadeiro para justificar o atropelo fatídico e mortal da jovem guarda vermelha nos tempos da revolução cultural [1966]. No entanto, isso era uma justificativa para a falta de estudo, apenas. A mudança pretendida, calcada na violência, se passava por um ‘novo saber’. Tivesse Mao aprofundado suas leituras, teria visto que nenhum dos antigos aprendeu sozinho, e até a negação de algo pressupõe a sua existência [mesmo que conceitual]. Por isso seu projeto falhou, e durou pouco depois de sua morte. Mas a falta do estudo aprofundado, essa sim, causou incompreensão, ignorância e por fim, morte. Assim sendo, não há desvios no caminho do estudo. Podem-se mudar as técnicas e métodos de ensino, mas a atividade fundamental do estudo real depende, ainda, do mergulho do leitor, e de sua reflexão. Ainda hoje, não há outra via: e as experiências milenares, se nos servem para algo, ilustram essa inevitável realidade. Referências *O conto de Xiang Tuo, um tanto extenso, pode ser visto no site de Sério Caparelli: http://www.capparelli.com.br/contos.php Márcia Schmaltz também fez um estudo do mesmo, aqui: https://marciaschmaltz.wordpress.com/2012/09/22/confucio-e-o-meninosem-nome-intertextualidade-e-adaptacao1/ As demais citações apresentadas são traduções feitas a partir da antologia de: CHAN, Wing-Tsit. Sources of Chinese Philosophy. Princeton: Princeton University Press, 1969. FENG, Tianju. (org.) La inteligencia a los chinos. Shanghai: Ediciones extranjeras, 1986 ojos de los pensadores Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 17 UM FUTURO PARA O PASSADO: O MUSEU NACIONAL VIVE Vanessa Cristina Chucailo Rodrigo Lima Veloso Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 18 Nem sempre a história dos museus tem sido permeada por valores ligados a ostentação, a opulência, a riqueza e ao poder. Enquanto instituições ligadas a preservação de bens culturais, nos últimos séculos os museus tem ampliado suas perspectivas de atuação, reorganizando suas plataformas técnico-científicas, procurando definir sua função social, especialmente através da educação e acesso a população [Bruno, 1999]. Trazemos para o debate o Museu Nacional (MN), criado em 1818, no Rio de Janeiro, e consumido pelo fogo em 2 de setembro de 2018, mesmo ano que celebrava seus dois séculos de existência. A tragédia desse incêndio levou a discussão sobre a carência orçamentária e de infraestrutura que as universidades públicas no país têm passado, visto que o Museu Nacional enquanto instituição de pesquisa, ensino e memória é integrado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), bem como a falta de políticas de cultura e CT&I no Brasil, de modalidades de captação de recursos na esfera pública, a privatização de museus, etc. [Miranda de Sá; Romero Sá; Lima, 2018]. A proposta dessa comunicação é refletir sobre as possibilidades de um futuro para um passado perdido nas chamas, representado aqui pelas perdas irreparáveis do acervo do Museu Nacional. Antes de adentrarmos na história do MN, propomos uma breve discussão sobre o que é um museu, e o seu papel enquanto local de ensino e aprendizagem. O que é um museu? A palavra Museu tem suas origens na Grécia Antiga, derivada da palavra “mouseîon”, ou “templo das musas”, filhas de Zeus com Mnemosine, a memória. O “mouseîon” era um lugar privilegiado, mistura de templo e instituição de pesquisa, destinado a abrigar os mais variados ramos das artes e ciências. As obras de arte ali reunidas existiam mais em função de agradar as divindades do que serem contempladas pelo homem [Suano, 1886]. No Egito do século II (a.C.), em Alexandria, o “mouseîon” adquiriu uma nova característica, de saber enciclopédico. Nessa condição buscava-se discutir e ensinar sobre o máximo possível dos saberes existentes nas mais diversas áreas do conhecimento. O “mouseîon” de Alexandria passou a armazenar não apenas coleções de obras de arte, mas também instrumentos cirúrgicos e astronômicos, peles de animais raros, rochas e minérios trazidos de terras distantes, entre outros itens, além de possuir uma biblioteca, anfiteatro, observatório, salas de trabalho, jardim botânico e zoológico. Mas é na época moderna que o hábito de colecionar itens tornou-se bastante comum. O fenômeno do colecionismo passou a tomar conta entre os mais nobres. No período do Renascimento, as coleções passaram a ser formadas por vestígios de antiguidades greco-romanas, e em seguida, por uma vasta diversidade de objetos que representassem curiosidades naturais ou artificiais, geralmente raridades trazidas por viajantes de lugares mais distantes. Surgem então os “gabinetes de curiosidades”, ou seja, espaços onde era possível reunir esses grandes coleções. E são, portanto, essas grandes coleções do período Renascentista que vão dar origem a instituição “museu”. É a partir do Iluminismo que o museu passa a assumir uma função social enquanto instituição pública, expondo objetos que documentassem o passado e o presente, e que celebrassem a ciência e a historiografia oficiais. O Ashmolean Museum, aberto em 1683 em Oxford, Inglaterra, foi o primeiro museu público da Europa abrindo suas coleções para os estudiosos [Suano, 1986]. Em 1747, o francês Lafont de Saint-Yenne escreve um panfleto em que defende a divulgação das grandes coleções reais, e propondo a criação de um museu real em Paris, onde fosse possível expor as obras de arte europeias que faziam parte dos gabinetes reais. Então em 1750, parte da coleção real francesa foi aberta ao público no Palácio de Luxemburgo, e esse fenômeno acabou espalhando-se para outros palácios europeus [Suano, 1986]. É no século XIX que vamos assistir a uma proliferação de museus na Europa e em outras partes do mundo. O museu passa a assumir uma função não apenas como instituição ideal para abrigar coleções, mas também como local ideal para consolidar a identidade e memória nacional, exibindo conquistas, ideais de progresso e novos modelos de civilização oriundos da Revolução Industrial. Se por um lado os museus passaram a ser utilizados como espaços para veiculação ideológica dos Estados Nacionais, por outro também passaram a desenvolver e incentivar atividades de pesquisa e ensino. Os museus enquanto instituições públicas não podem ser fechadas para a população. Para Carlos Carlan [2008], esses espaços devem guardar e zelar por seus acervos, mas não escondê-los. Os acervos precisam ser transforados em documentos, e enquanto guardiões de uma memória coletiva precisam sim ser protegidos, mas não excluídos dos debates acadêmicos, da produção de conhecimento e da sociedade em geral. “A partir da definição básica de museu como instituição permanente, que adquire, conserva, pesquisa, transmite e expõe testemunhos materiais do homem e do seu meio ambiente, diversos adendos foram realizados, ampliando a diversidade do que se compreendia por Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 19 museu, assim como seus vínculos e responsabilidades em relação à sociedade” [Santos, p. 57, 2004]. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 20 Como vemos, de “gabinetes de curiosidade” a “guardião da cultura material”, o conceito de museu foi sendo construído e aprimorado ao longo dos séculos, assumindo certas características e funções para atender as demandas de cada época. Museus enquanto espaços de ensino e aprendizado Maria Cristina Bruno [1999] aponta para uma dívida que a historiografia brasileira tem para com os museus do país. Ela tece sua crítica chamando a atenção para o fato de que o fenômeno museal raramente estimulou os olhares dos historiadores, nem mesmo antropólogos e sociólogos têm orientado suas reflexões para o estudo das comunidades museológicas, seus impasses, caraterísticas, trajetórias e necessidades. O Brasil é um país muito rico e diversificado quando se trata de patrimônio histórico, artístico e cultural espalhados por seu território. Esses conjuntos de bens, materiais e não-materiais, hoje, possuem um grande reconhecimento por parte das pessoas que se identificam com produtos culturais. Mas infelizmente a parcela da população brasileira que reconhece a importância histórica e cultural desses locais, ainda é muito pequena. A tentativa de reduzir esse “distanciamento” entre museus e população foi uma problemática muito debatida a partir do século XX, quando os museus passam a assumir um caráter mais educativo, buscando integrar as populações em suas ações e atividades. Quem nunca ouviu que “museu é lugar de coisa velha”? É um pensamento recorrente em grande parte da população, que tende a ver o museu enquanto espaço fossilizado, velho, que não tem movimento. Ele acaba deixando de ser um espaço de memória e de aprendizado, para se tornar um lugar abandonado ou excludente. O antropólogo Edgard Roquette-Pinto já dizia um artigo publicado no Jornal do Brasil em 1953, que as bibliotecas e demais “casas do conhecimento”, na qual se incluem os museus, devem ser a “universidade do povo”, ou seja, espaços onde existe investigação, produção de ciência, de conhecimentos, de aprendizado e de ensino. Desde que dirigiu o Museu Nacional entre 1926 a 1935, Roquette-Pinto demonstrava a preocupação com a educação, e suas iniciativas como a nova Seção de Assistência ao Ensino e a ‘Revista Nacional de Educação’ publicada entre 1932 a 1934, demonstravam sua crença na função social e educacional dos museus. “Historicamente o museu é responsável pela produção do conhecimento e a convergência dos saberes científicos. Não basta guardar o objeto. Sem uma pesquisa permanente, a instituição fica subestimada a um centro de lazer e turismo. Cabe aos pesquisadores inserir os objetos, reclusos em suas reservas técnicas, como fontes históricas” [Carlan, p. 82, 2008]. Os museus podem e devem ser utilizados como espaços alternativos para o ensino de história e diversas outras disciplinas. Os acervos e coleções museológicas podem e devem servir as pesquisas científicas, para a produção e divulgação de conhecimento. Os museus precisam e devem ser vistos enquanto espaços de ensino e aprendizagem, de movimento e interação, e não como depósito de memórias e “coisas velhas”. Breve histórico do Museu Nacional O Museu Nacional (MN) é a instituição científica mais antiga do Brasil, tendo sido criada em 1818 por Dom João VI com a finalidade de incentivar o conhecimento científico no país. Nessa época, ainda com o nome de Museu Real, tinha como sede a antiga Casa de História Natural, conhecida como Casa dos Pássaros que ficava no Campo de Santana. Com a Proclamação da Independência, o Museu passa a chamar-se Imperial e Nacional [Miranda de Sá; Romero Sá; Lima, 2018] e após a Proclamação da República tem a sua sede movida em 1892 para o Palácio da Quinta da Boa Vista, onde permaneceria até os dias atuais. Em 1938 o Palácio da Quinta da Boa Vista foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), primeiro passo para que fosse priorizada a preservação do edifício histórico, numa tentativa de manter a integridade do edifício que já havia sofrido alterações nas mãos dos republicanos durante os anos que se seguiram à Proclamação da República e às inúmeras obras que foram realizadas para abrigar os acervos e exposições do Museu nos anos que se seguiram [DANTAS, 2007]. No ano de 1946, a instituição foi integrada à Universidade do Brasil, que futuramente viria a ser a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), passando a ser agora uma nova unidade da Universidade. “O Museu Nacional foi anexado à Universidade do Brasil com as seguintes finalidades: coligir, classificar e conservar materiais, organizando coleções em séries e exposições públicas; realizar estudos e pesquisas; divulgar conhecimentos e cooperar com as escolas e faculdades da Universidade do Brasil com fins de ensino e pesquisa” [SEMU, 2008]. Ao longo de todos os seus anos de existência, os diversos diretores e profissionais tiveram diferentes maneiras de enxergar a instituição, por vezes estimulando mais a parte científica, a interação com o público ou a divulgação científica. A instituição ao longo dos anos cresceu em diversas áreas das ciências como arqueologia, biologia, paleontologia, antropologia física e cultural, etnologia, história e botânica, reunindo um acervo com aproximadamente 20 milhões de peças em seus diferentes setores. Com materiais únicos em todo o mundo, como diversos holótipos zoológicos, botânicos, paleontológicos, a maior coleção egípcia da América Latina e Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 21 diversos materiais etnológicos. O MN é considerado por muitos como a principal instituição de história natural e antropológica do país, e uma das mais importantes da América Latina [Fernandes; Fonseca; Henriques, 2007]. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 22 Entretanto, com a tragédia do dia 02 de setembro de 2018, o MN perdeu grande parte de seu acervo, e junto com ele uma parte da história de toda uma nação. É fácil visualizar as perdas materiais e culturais quando pensamos em todo o acervo que se encontrava em exposição dentro do Palácio da Quinta da Boa Vista, mas isso é apenas uma pequena amostra do que foi perdido. Do descaso histórico à tragédia consumada O Museu que comemorava seus 200 anos em 2018 vinha de um histórico de descasos e de falta de verba que parecem não ser de agora. “Em uma carta de Orville A. Derby de 1881, o naturalista (então responsável pela parte de mineralogia e paleontologia no MN) reclamava das más condições em que as coleções da 3a Seção se encontravam. (Pasta 20 – Fundo de Diretoria, Doc. 13 – SEMEARMN).” [Veloso, 2018]. Na carta, Derby diz em suas próprias palavras que encontrou a seção pela qual era responsável acéfala quando assumiu o seu cargo, tendo apenas dois outros funcionários para ajuda-lo, um dos quais também dividia suas tarefas como porteiro (cargo responsável por registrar entradas e saídas de materiais). Ele continua a carta falando sobre a falta espaço para poder realizar um trabalho melhor de coordenação nas coleções de mineralogia, geologia e paleontologia. Derby continua: “Até o presente dirigi a secção quase sem despesa, sujeitando-me sem reclamações à falta de pessoal, tirando para outros serviços, e aos grandes embaraços e transtornos causados pelas obras feitas nas outras seções, contando que, acabadas estas obras, a minha secção podia receber a atenção de que tanto necessita. Parece-me que já é tempo de tratar do seu melhoramento. A metade do tempo marcado em meu contrato já se acha decorrido sem grande proveito para o Museu, e, a continuarem as coisas no estado atual, todo ele decorrerse-á sem vantagens reais para o Museu e com perda de credito para mim. Até agora não tenho podido fazer nenhum trabalho científico de importância; tenho-me visto obrigado a tratar somente da conservação das coleções, sem poder fazer convenientemente, e a trabalhar com pura perda de tempo.” [Derby apud Veloso, 2018] Derby também se preocupava com o fato de que por falta de investimentos e de pesquisadores o Museu perdesse a oportunidade de poder contribuir com estudos sobre o material nacional que rapidamente era conseguido por pesquisadores estrangeiros, deixando à vista a falta de capacidade da instituição, e desvalorizando a coleção presente no MN. A carta supracitada é uma evidência de que os problemas enfrentados pelo então diretor da seção de geologia, mineralogia e paleontologia no fim do século XIX, são em sua maioria os mesmos problemas que afligiram o Museu por todos os anos. Cortes de verbas, a falta de interesse por parte do poder público e a falta de estímulo à cultura e ciência tornam-se cada vez mais constantes, fazendo com que as visitações diminuam a cada ano, e haja uma desvalorização de nosso patrimônio histórico e cultural. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 23 Do acervo de mais de 20 milhões de peças, muito pouco foi poupado das chamas. Mas esses 20 milhões não contabilizam documentos históricos, tais como as correspondências de pesquisadores renomados como Bertha Lutz, ativista feminista, bióloga e política brasileira que foi uma das responsáveis pelas pautas dos direitos dos homens e das mulheres na criação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, ou os registros originais que contavam a história das peças que pertenciam ao MN, e que eram as únicas fontes existentes dessas histórias. Centenas de pesquisas em andamento foram afetadas, algumas de maneira irreparável, algumas tendo que ser modificadas para que tivessem continuidade, fora as pesquisas que poderiam ser feitas com esses materiais. Um riquíssimo acervo documental perdido para sempre. O Museu Vive: o que nos resta Se existem uma forma de se reviver o MN, essa forma é através da conscientização da população de que o corpo de funcionários e alunos continua a sua luta, a percepção de que essas pessoas continuam diariamente suas pesquisas e de que trabalham incessantemente no resgate, tentando recuperar o maior número possível de material de dentro do esqueleto do palácio. É possível ainda recuperar boa parte do legado do MN através dos trabalhos já realizados, fazendo um resgate histórico através dos documentos existentes, principalmente dos que já haviam sido digitalizados. Nos seis meses decorrentes ao incêndio, já são duas exposições realizadas com material do MN, a primeira inaugurada no Centro Cultural da Casa da Moeda, apresenta a exposição ‘Quando Nem Tudo Era Gelo - Novas Descobertas no Continente Antártico’, com material paleontológico coletado por pesquisadores da instituição na Paleoantar, uma expedição para a Antártica, com a finalidade de coletar espécimes fósseis. Além do material que não foi afetado pelo incêndio e materiais usados na própria expedição, a exposição conta também com alguns materiais retirados de dentro do palácio, entre eles estão um fragmento de rocha vulcânica e um tronco fóssil com uma estimativa de 70 a 80 milhões de anos. Esse tronco encontra-se metalizado por conta do contato com o armário de ferro que derreteu sobre ele durante o incêndio [Casa da Moeda, 2019]. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 24 Essa exposição, além de ter sido a primeira a mostrar que o MN continua as suas atividades, mesmo sem ter um espaço físico próprio, e com todas as dificuldades que vem apresentando, teve um caráter histórico envolvido: a atual sede do Centro Cultural da Casa da Moeda é o edifício onde o MN teve a sua primeira sede de 1818 a 1892, fazendo com que a primeira exposição pós-incêndio, fosse também extremamente significativa por ser no local onde tudo se iniciou 200 anos antes. A segunda exposição foi no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB), com o nome de ‘Museu Nacional Vive – Arqueologia do Resgate’. Essa exposição parte da tragédia ocorrida para mostrar o trabalho realizado pelas equipes de resgate do MN, apresentando cerca de 180 peças, 103 delas foram retiradas dos escombros do Palácio da Quinta da Boa Vista (CCBB, 2019). É muito importante conseguir mostrar para o público que apesar de tudo que ocorreu, os profissionais, professores, técnicos e tecnólogos e alunos, continuam a sua luta para não deixar que o esquecimento acabe com 200 anos de pesquisa, história e cultura que nasceram a partir do esforço de milhares de pessoas ao longo desses anos. Referências BRUNO, M. C. O. A importância dos processos museológicos para a preservação do patrimônio. Rev. Do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, Suplemento 3, pp. 333-337, 1999. CARLAN, C. U. Os Museus e o Patrimônio Histórico: uma relação complexa. Rev. História. São Paulo, v. 27, n. 2, pp 75-88, 2008. CASA DA MOEDA. Museu da Casa da Moeda. 2019. Disponível em: https://www.casadamoeda.gov.br/portal/socioambiental/cultural/museucasa-da-moeda.html CCBB. Centro Cultural Banco do Brasil. Museu Nacional Vive – Arqueologia do Resgate. 2019. Disponível em: http://culturabancodobrasil.com.br/portal/museu-nacional-vivearqueologia-do-resgate/ DANTAS, R. M. M. C. A Casa do Imperador do Paço de São Cristóvão ao Museu Nacional. 276f. (Dissertação). Programa de Pós-graduação em Memória Social. Rio de Janeiro. 2007. FERNANDES A. C. S.; FONSECA V. M. M.; HENRIQUES D. D. . Histórico da Paleontologia no Museu Nacional. Anu. Inst. Geoc. – UFRJ, v. 30, n. 1, pp. 194-196, 2007. MIRANDA DE SÁ, D.; ROMERO DE SÁ, M.; LIMA, N. T. O Museu Nacional e seu papel na história das ciências e da saúde no Brasil. Cad. Saúde Pública. v. 34, n. 12, pp. 1-5, 2018. SANTOS, M. S. dos. Museus brasileiros e política cultural. Rev. Bras. Ci. Soc., jun. 2004, v. 19, n. 55, p.53-72 SUANO, M. O que é Museu. São Paulo: Brasiliense, 1986. VELOSO, R. L. A curadoria de coleções paleontológicas como função primordial para a preservação do patrimônio geológico: o caso dos gomphotheriidae da coleção de paleovertebrados do Museu Nacional/UFRJ. 64f. (Trabalho Final de Conclusão de Curso). Especialização em Geologia do Quaternário. Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2018. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 25 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 26 AUTOR@S DIÁLOGOS ENTRE SAÚDE E EDUCAÇÃO NO CURSO DE JARDIM DE INFÂNCIA: FOLHEANDO AS PÁGINAS DO CADERNO DE UMA PROFESSORA (1965) Amanda Pereira de Lima “Não existe um objeto que, contemplado de diversos lugares, seja sempre o mesmo. Da mesma forma, não existe um fenômeno, acontecimento ou assunto que, considerado de perspectivas diferentes, não mostre aspectos antes não-visíveis ou visíveis, mas não apreciados. Tudo depende, pois, da posição que adota aquele que olha. (FRAGO, 2008, p. 15). ” Ao pensar as práticas de ensino na escola de uma determinada disciplina ou dos conceitos que estão embutidos dentro de uma matéria a ser ensinada aos estudantes e apreendidas pelos professores, logo nos vem à mente os planos de aula, as legislações e os materiais escolares. No caso particular dessa pesquisa os cadernos de estudo dos professores utilizados durante cursos de formação inicial ou continuada. Os cadernos enquanto testemunhos de práticas e experiências, nos possibilitam olhar para outras dimensões dos processos educativos, nos fornecendo informações da realidade material da escola e do que nela se faz: “Los cadernos son testimonio de practicas, ejercicios y experiências dirigidas y compartidas, en las que tambien hay al menos um mínimo de produción y creación própria surgida em el próprio proceso de elaboración de la tarea. (MAHAMUD; BADANELLI, 2011, p. 224). ” Dessa forma está pesquisa tem por objetivo analisar por entre as páginas do caderno da professora normalista Maria Coeli de Almeida Vasconcelos, as atividades e conceitos sobre higiene, saúde e educação que eram ensinados dentro da disciplina de Higiene, no curso de formação em Jardim de Infância na cidade de Brasília entre os anos de 1965-1966. A fim de compreender os diálogos entre saúde e educação, que permeavam a formação das educadoras nesse curso, propusemos algumas questões que nortearam essa pesquisa sendo estas: qual era o espaço que a higiene enquanto disciplina tinha no curso dos professores de Jardim de Infância? E quais práticas relacionadas a saúde e educação eram contempladas no curso? Para o desenvolvimento metodológico dessa pesquisa optou-se por realizar um estudo de caso que como define Freitas e Jabbour (2011) é uma estratégia de pesquisa que visa reunir informações aprofundadas de um fenômeno, envolvendo-se no estudo de um ou poucos objetos. Que pode ter uma abordagem qualitativa ou quantitativa. No caso dessa investigação, optamos por utilizar uma abordagem qualitativa sobre a fonte. Como fonte primária utilizou-se o caderno de curso de Jardim de Infância da professora Maria Coeli de Almeida Vasconcelos, em contraposição a artigos, textos e decretos sobre jardins de infância e higiene no Brasil. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 27 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 28 A centralidade desse estudo no caderno do curso de Jardim de Infância justifica-se por haver poucos estudos que tomam o caderno usados pelos educadores em cursos de formação de professores como fonte principal de pesquisa. Revelando assim uma necessidade de se observar e investigar também as apropriações dos conhecimentos para o exercício de sua profissão, que os educadores fazem ao longo de sua formação inicial ou continuada. Entendemos que as apropriações feitas pelos sujeitos são diversas e distintas, conforme corrobora Chartier (2001) essas apropriações são resultado do que os indivíduos fazem com o que recebem, que também é uma forma de invenção, de criação e de produção dos sujeitos a partir do contato com os textos e com os objetos recebidos, revelando assim a imposição de um determinado sentido e também a produção de novos. Dando voz ao caderno de uma professora Kuhlmann (2000) em seus estudos sobre a educação infantil no Brasil mostra que a educação para as crianças de até três anos nas creches surgiu posteriormente as instituições destinadas as crianças maiores. Até a década de 1970 as creches se expandiram lentamente com atendimento de crianças de 4 a 6 anos, sendo que grande parte dessas instituições eram ligadas a órgãos de saúde e assistência: “As instituições de educação infantil tanto eram propostas como meio agregador da família para apaziguar os conflitos sociais, quanto eram vistas como meio de educação para uma sociedade igualitária, como instrumento para a libertação da mulher do jugo das obrigações domésticas, como superação dos limites da estrutura familiar. (KUHLMANN, 2000, p. 11)” Essa concepção assistencialista acerca da criança e da infância fica mais evidente a partir da virada do século XIX para o XX, sendo as creches, escolas maternais e jardins de infância um lugar para educar as crianças de mães pobres e trabalhadoras. É importante destacar que apesar dessa relação assistencialista que se constitui na formação das instituições de educação infantil, voltada as demandas das mães pobres e trabalhadoras, também havia reivindicações por parte de outros grupos sociais, pela educação das crianças pequenas: “A ampliação do trabalho feminino nos setores médios leva também a classe média a procurar instituições educacionais para seus filhos. (KUHLMANN, 2000, p. 11)” Os jardins de infância iniciam-se em 1840 na Alemanha com Froebel, numa perspectiva pedagógica em que a criança era concebida analogamente como uma planta em formação, que precisaria assim de cuidados periódicos para que crescesse de maneira saudável. Nessa perspectiva os jardins de infância passaram a constituir um modo específico de educar as crianças e a infância. Para Nascimento (2016) os jardins de infância formalizaram uma forma de educar com bases cientificas as crianças de 0 a 6 anos, tendo como pressupostos a psicologia do desenvolvimento, da aprendizagem e do método intuitivo. Os estudos que se debruçam sobre os cadernos como fontes históricas para História da Educação são relativamente recentes tendo adentrado os espaços de pesquisa acadêmica principalmente pelos estudos atrelados ao currículo e a história das instituições educativas, com a finalidade de examinar o vivido em sala de aula ou na escola: “Os historiadores da educação assim como os especialistas em currículo e formação de professores e os psicólogos, entre outros, preocupados em examinar o vivido na sala de aula têm se voltado para os cadernos, que passam a ser considerados importantes objetos ou fontes de pesquisa. (MIGNOT, 2008, p. 7) ” Seguindo na esteira do que nos mostrou Certeau (1982) é importante destacar o lugar que o caderno ocupa na sala de aula e na vida dos professores. O caderno assim como outros objetos escolares ocupa um determinado lugar, que por sua vez é distinto do lugar ocupado pelos livros escolares. Mas que complementa e amplia os estudos dos manuais, pois, como salientou Viñao Frago (2008) os cadernos escolares são produtos da Cultura Escolar, de uma forma de organizar o trabalho em sala de aula, de distintos ritmos, e da própria dimensão do ensino e aprendizagem, sendo reflexo do contexto e etapa de ensino a quem se destinam. Constituindo-se assim em uma fonte da cultura material escolar, imbuídos de uma determinada história, segundo Ulpiano de Meneses (1998) os objetos materiais possuem uma trajetória e uma biografia, corrobora nesse sentido Rosa Fátima de Souza (2007) ao salientar que os artefatos materiais vinculam as concepções pedagógicas, práticas e saberes do universo escolar. Neste estudo buscamos analisar como a disciplina de Higiene aparece no caderno de uma professora do curso de Jardim de infância entre os anos de 1965-1966 na cidade de Brasília. Com intento de perceber as apropriações feita pela mesma, a partir de suas anotações compreendendo que as disciplinas escolares são: “As disciplinas escolares, compreendidas como um produto cultural, responsáveis pela transmissão de conteúdos e saberes escolares, além de seu rol programático, são também constituídas pelo aparato didático-pedagógico que orienta seu ensino. Concebida como uma construção escolar, uma disciplina escolar, pelos códigos próprios criados para seu funcionamento, ajuda a moldar a cultura escolar. Nessa perspectiva, as práticas de ensino, sob o olhar da história cultural, são práticas culturais, um espaço de excelência repleto de códigos pertinentes para serem decifrados em uma história das disciplinas escolares. (PINTO, 2014, p. 7).” Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 29 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS O material analisado encontra-se disponível para consulta no Repositório Institucional da UFSC, junto com mais alguns cadernos de planejamento dessa mesma professora para aulas de matemática e alfabetização. Possui 74 páginas digitalizadas, do tipo espiral com dimensão 22, 5 cm X 15. Está organizado conforme as disciplinas do curso distribuídas e anotadas pela professora da seguinte maneira: 1. Recreação; 2. Psicologia; 3. Biologia; 4. Artes aplicadas; 5. Higiene; 6. Música; 7. Audiovisual. Segundo as anotações encontradas no próprio caderno as aulas aconteciam as 2º, 3º, 5º e 6º feiras das 8h às 11h. Os temas a serem tratados no curso estavam organizados da seguinte forma pela professora: Página | 30 1.“Introdução a educação pré-primária; A. A criança (60h); B. A escola (40h). 2.Educação da criança pré-primária; A. arte na educação; B. recreação; C. desenvolvimento da capacidade de expressão e socialização; D. Desenvolvimento da capacidade de exploração; E. unidade de trabalho como processo integrador das atividades de jardim de infância; F. educação para a saúde; G. o papel do jardim de infância em relação a aprendizagem da linguagem e matemática; H. Direção do trabalho. (VASCONCELOS, 1965, p. 4-5)” Percebe-se por meio dos nomes das disciplinas que havia no curso de Jardim de Infância uma preocupação para que as cursistas compreendessem quem eram essas crianças e dominassem ao mesmo tempo as noções de desenvolvimento da criança e de higiene segundo as orientações feitas pelos médicos, psicólogos e professores. Observando as legislações educacionais podemos observar que o ensino primário já tinha como uma de suas frentes promover a saúde a partir da instrução das crianças e adolescentes. Segundo a lei orgânica do ensino primário de 1946 a finalidade dessa etapa de ensino era: I-“Art. 1º O ensino primário tem as seguintes finalidades: II-a) proporcionar a iniciação cultural que a todos conduza ao conhecimento da vida nacional, e ao exercício das virtudes morais e cívicas que a mantenham e a engrandeçam, dentro de elevado espírito de Naturalidade humana; b) oferecer de modo especial, às crianças de sete a doze anos, as condições de equilibrada formação e desenvolvimento da personalidade; c) elevar o nível dos conhecimentos úteis à vida na família, à defesa da saúde e à iniciação no trabalho.” No mesmo texto é possível perceber que as Escolas Normais deveriam manter escolas anexas para práticas de ensino, fazendo menção aos jardins de infância que eram anexos aos institutos de educação, como um lugar de atuação e complementação de práticas para formação das jardineiras. Com a lei nº 4.024 de 20 de dezembro de 1961 a educação para as crianças menores de sete anos passa a ser reconhecida como parte do processo de ensino, sendo chamada de etapa pré-primária: “Art. 23. A educação pré-primária destina-se aos menores até sete anos, e será ministrada em escolas maternais ou jardins-deinfância. Art. 24. As empresas que tenham a seu serviço mães de menores de sete anos serão estimuladas a organizar e manter, por iniciativa própria ou em cooperação com os poderes públicos, instituições de educação pré-primária. “ Durante as décadas de 1960-1985 o Brasil encontrava-se em um regime político civil-militar em que a educação ganharia um viés mais tecnicista, cujo uma das finalidades era preparar os cidadãos para o mercado de trabalho e o exercício de uma profissão, com um conhecimento mais prático, utilitário e instrumentário. As concepções psicológicas que vem essa criança como um ser em desenvolvimento passam a influenciar publicações relacionadas a infância e as crianças, como exemplo a seguir de um programa de estudos para crianças de 5 e 6 anos, voltado para a orientação dos educadores: “Embora, as crianças, tenhas de um modo geral, características semelhantes, num determinado período ou idade, elas são completamente diferentes entre si. Não há duas crianças iguais. Elas provêm de famílias diferentes, de ambientes diferentes, e cada uma revela tipos diversos de experiências. Qualquer grupo ou classe de Jardim inclui crianças felizes e tristes, tímidas, agressivas, confiantes, amáveis, desconfiadas, crianças com interesses, habilidades e necessidades diferentes. (SÁBER; FÉRES, 1963, p. 41).” A educação pré-primária seria dessa forma uma educação voltada para as crianças de 0-6 anos de idade, um período anterior à escola primária. Nas anotações da professora Maria Coeli observa-se que a concepção de quem é essa criança pequena, está influenciada principalmente pelas correntes psicológicas que concebem a criança como um ser em desenvolvimento, e de outros pensadores importantes para história da Pedagogia (Rousseau, Montessori, Galton, Piaget e Clarapède). Diálogos entre educação e saúde no curso de Jardim de Infância Com a proclamação da República no Brasil o discurso modernizador se expandiu dando ênfase a necessidade de se proteger crianças e mulheres para que se pudesse construir a nação moderna. Estabeleceu-se uma nova relação entre o Estado e a Medicina como destaca Marques (2000), essa relação serviu para construir e reforçar o binômio mãe-filho em que o movimento higienista teve grande atuação na modulação dos comportamentos em prol da saúde da criança: “A linguagem médica endureceria, passando do conselho à ordem. Já não se permitia que a mãe escolhesse entre métodos diversos e não mais se tomava a natureza como guia, ao contrário, procurava-se contrariá-la. O pensamento médico tornava-se radical (...) o médico era o único guia e, como tal, não aconselhava, dava ordens: o número, a duração e o intervalo das mamadas deveriam ser Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 31 rigidamente estabelecidos em um período de vinte e quatro horas. (MARQUES, 2000, p. 43)” Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 32 A infância durante muito tempo foi uma das destinatárias e sujeito constituidora dos discursos higiênicos. Já que as crianças eram vistas como a geração futura e a esperança do país. Segundo Pykosz e Oliveira (2009) o movimento higienista pode ser compreendido como um projeto social ambicioso que buscava estabelecer novos padrões de saúde, usando a educação como uma das principais ferramentas de propagação desses saberes. Esse projeto educativo de higienização social expressou-se também nas escolas mediante a criação de disciplinas escolares como: Puericultura, Paidologia, Trabalhos Manuais e Prendas Domésticas. A Higiene nesse contexto passa a compor a grade dos conteúdos dos currículos escolares, da formação dos professores e programas de ensino. Essas prescrições e orientações médicas dentro na disciplina de Higiene ficam visíveis nas anotações do caderno da professora, com a indicação por exemplo, de uma pequena farmácia que as educadoras deveriam ter a sua disposição em caso de acidentes com as crianças: “Algodão Hidrófito 1 pacote médio; rolos de ataduras de gaze diversos tamanhos; gazes esterilizadas para curativos; álcool a 90º; um vidro de éter sulfúrico; 1 vidro de água oxigenada 10 volumes; 1 vidro de anticéptico (mertiolato); bicarbonato de sódio... (VASCONCELOS, 1965, p. 56). ” Há ainda uma série de anotações que aparecem no caderno sobre remédios e outros produtos que compunham essa pequena farmácia, bem como orientações sobre as injeções que as crianças deveriam tomar em cada período da vida. Além da indicação dessa farmácia ainda havia uma listagem sobre princípios da higiene do corpo, do vestuário e da alimentação, sendo essa última mais trabalhada, uma vez que várias doenças poderiam ser adquiridas pela ingestão de alimentos estragados ou mau higienizados. Havia também uma pequena parte de orientações relacionadas aos procedimentos a serem tomados em caso de envenenamento ou mordida de cobra e cachorros, como nesse outro exemplo, em que a uma descrição detalhada dos tipos de cobras e suas respectivas picadas, seguida de orientações sobre o que fazer em caso de acidentes com animais venenosos: “(...) cuidado; comprima para absorver a picada se é venenosa vai apresentar dois furinhos simétricos e uma série de furinhos menores. (...) Da cascavel é o mais grave em 2 horas a pessoa morre, a dor é pequena, mas a perna fica fraca, não consegue se manter em pé e sofre de perturbações visuais, paralisia do músculo do pescoço e vômitos em seguida a pessoa morre. (VASCONCELOS, 1965, p. 68) ” Por meio desses exemplos retirados das anotações de estudo da professora, é possível observar que existia uma gama variada de conhecimentos médicos, de puericultura e de doenças da infância que as professoras/jardineiras tinham que dominar. Assim as noções de saúde tinham um papel importante na formação dessas educadoras, esses conhecimentos relacionavam-se as várias áreas da vida dessa criança, tanto emocional, familiar quanto para o desenvolvimento saudável das crianças. Considerações Finais Os estudos dos cadernos como fonte para História da Educação e da Saúde se mostra um campo vasto de possibilidades. Que nos revela os processos de apropriação realizados sob a ótica do indivíduo que recebe esse conhecimento. É necessário pois não cair na armadilha de que os cadernos por si só dão conta do processo educativo, é necessário o cotejamento com outras fontes para que se torne possível a escrita da História. Além disso, os cadernos constituem fontes recentes para o estudo da Cultura Escolar, sobretudo os estudos com cadernos de formação de professores em nível de graduação ou formação continuada, que necessitam ser mais explorados e investigados. Referências Agradeço a professora Draª Gizele de Souza pelas discussões e debates na disciplina “História, Escolarização e Cultura Escolar”, que inspiraram a criação desse estudo e a todos envolvidos com a criação do simpósio pela oportunidade de compartilhar conhecimentos para contribuir no campo de pesquisa acadêmico da educação. BERTUCCI, L.M. Sanear a raça pela educação. Teses da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, início dos anos 1920. In MOTA, A.; MARINHO, M.G.S.M.C. (Org.) Eugenia e História. São Paulo: FFMUSP; UFABC; Casa de soluções e Editora, 2013, p. 219-238. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Decreto nº 4.024 de 20 de dezembro de 1961. BRASIL. Lei orgânica do Ensino Primário. Decreto nº 8.529- de 2 de janeiro de 1946. CERTEAU, M. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CHARTIER, Roger. Cultura escrita, literatura e história: conversas de Roger Chartier com Carlos Anaya, Jesús A. Rosique, Daniel Goldin e Antonio Saborit. 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A HISTÓRIA AMBIENTAL EM SALA DE AULA: PERSPECTIVAS E DESAFIOS Anelisa Mota Gregoleti Nathália Moro A partir da ascensão dos Estados nacionais durante os séculos XIX e XX, a função da disciplina de História restringia-se ao campo político. A chamada “velha História” era composta, em sua grande maioria, por fortes sentimentos patrióticos e nacionalistas que visavam reconstruir e reforçar na memória popular a ascensão de seus respectivos países e a formação de suas lideranças políticas. Entretanto, essa perspectiva de que o passado era controlado apenas por poucos homens poderosos começou a perder sua força com a construção de um mundo globalizado e mais democrático. Os historiadores passaram a dedicar-se às camadas que, até então, estavam submersas e a estudar as vidas das pessoas comuns, das classes mais baixas. Os historiadores ambientais foram ainda mais a fundo e transformaram a História em uma disciplina muito mais inclusiva e interdisciplinar do que ela, tradicionalmente, vinha representando (WORSTER, 1991, p.198). A origem da História Ambiental As primeiras discussões acerca de uma preservação no uso da natureza começaram a surgir ainda no final do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Em 1909, os europeus reuniram-se em Paris e criaram o Congresso Internacional para a Proteção da Natureza e, em seguida, no ano de 1913, criou-se uma Comissão Consultiva para a Proteção Internacional da Natureza. No entanto, esses esforços iniciais acabaram sendo interrompidos pelas duas Guerras Mundiais. Após 1945, a Europa encontrava-se destruída e, a partir de então, os integrantes da Escola de Frankfurt começaram a colocar em questão os ideais de progresso e civilização que eram propagados como expressão de uma superioridade europeia frente a outros povos e continentes (ALMEIDA, 2016, p.104). De acordo com Donald Worster, a ideia de uma História Ambiental começou a existir, de fato, na década de 1970, a partir da sucessão de uma série de conferências a respeito da crise global e do crescimento de movimentos ambientalistas entre cidadãos de vários países. Por isso, podemos considerar que sua origem está atrelada a uma época de reavaliação e reforma cultural, da qual a História não foi a única disciplina afetada. Apesar de ter surgido a partir de um objetivo moral com fortes comprometimentos políticos, a História Ambiental amadureceu com o passar do tempo e sua principal finalidade tornou-se aprofundar o nosso conhecimento de como os seres humanos foram afetados e afetaram o seu ambiente natural ao longo da História (WORSTER, 1991, p.199). Dessa forma, mesmo com muitos estudos tendo tratado da natureza desde o início da escrita humana, somente no século XX a historiografia atentouse aos fatores ambientais e às suas conexões com a história humana de forma sistemática. Como toda narrativa histórica, a História Ambiental Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 35 também é resultado do seu tempo e, por isso, possui objetivos e compromissos políticos dentro de um contexto no qual o meio ambiente passou a ser um interesse mundial. Em outras palavras, a questão ecológica impulsionou essa revisão da História tendo em vista as preocupações da Era Pós-Moderna (FERRI, 2017). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 36 Por que estudar História Ambiental? Para responder a pergunta do subtítulo podemos começar com a frase de Clive Ponting: “A história humana não pode ser compreendida em um vácuo. Todas as sociedades humanas foram e ainda são dependentes de complexos processos físicos, químicos e biológicos, interligados.” (PONTING, 1995, p. 30). Um dos problemas da História tradicional está justamente aqui. Na maioria das vezes, tratamos os seres humanos de forma individual, como se não nos relacionássemos com diversas espécies animais e vegetais, ou de uma forma geral, com o ambiente em que estamos inseridos. A História Ambiental rejeita essa premissa convencional de que a experiência humana teria se desenvolvido sem restrições naturais, de que os humanos são uma espécie “superior” e de que podemos ignorar as consequências ecológicas e seus feitos passados, como se eles em nada contribuíssem para a História (WORSTER, 1991, p.199). Os historiadores ambientais acreditam que o tempo das culturas humanas está inserido dentro de um tempo geológico ou natural muito mais amplo do que as Ciências Humanas e Sociais, geralmente, estudam. Por essa razão, a História Ambiental, desenvolvida atualmente em países como os Estados Unidos, França e Inglaterra, é uma reação a essa pressão de ajustar “os ponteiros dos relógios” dos dois tempos: o geológico (natural) e o social. Isso significa uma grande mudança nos paradigmas das ciências sociais, já que o cientista passa a dar às “forças da natureza” a posição de agente que condiciona ou modifica a cultura (DRUMMOND, 1991, p.179180). Em sua obra “A História Ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa”, José Augusto Drummond pontua alguns conceitos e métodos utilizados pelos historiadores ambientais. Em primeiro lugar, a maior parte das pesquisas nessa área focalizam uma região com alguma homogeneidade ou identidade natural, o que nos revela grande parentesco com a História Natural. Pode-se dar um recorte cultural ou político para a região estudada, mas sem deixar de lado as suas particularidades físicas e ecológicas. Justamente por isso, as pesquisas dialogam de forma sistemática com as Ciências Naturais e exploram as interações entre diferentes estilos civilizatórios e o uso de recursos naturais. Somada a essas questões, as pesquisas também valorizam grande variedade de fontes e executam trabalhos de campo pertinentes ao estudo das relações entre sociedades e seu ambiente (apud, 1991, p.181-182). Desta forma, fica claro que a História Ambiental trata-se de uma área interdisciplinar que valoriza o conhecimento de diversas áreas científicas e propõe o diálogo entre elas. Além de relacionar-se com as Ciências Biológicas, a História Ambiental também vai de encontro com algumas definições utilizadas pela Geografia. A paisagem apresenta-se aqui como um desses conceitos-chaves. A Terra passa a ser vista como um documento histórico carregado de informações a serem estudadas e a dinâmica entre Geografia Histórica e História Ambiental se torna indispensável para a compreensão da paisagem a nível temporal e espacial. Portanto, constroem-se narrativas a fim de ordenar o passado e a relação entre sociedade e natureza que, na realidade, apresentam-se como realidades misturadas e desordenadas. De forma resumida, podemos afirmar que a História Ambiental provoca o encontro e a hibridização da História Natural com a História Humana (FERRI, 2017). A importância da História Ambiental nas salas de aula Desde 1992, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) junto com o Instituto de Estudos da Religião (ISER) vêm realizando, de 4 em 4 anos, a pesquisa nacional de opinião pública “O que o brasileiro pensa do meio ambiente e do consumo sustentável?”. A pesquisa mostrou que apenas 30% dos entrevistados apontaram que homens e mulheres são parte do meio ambiente. Índios (25%), cidades (18%) e favelas (16%) foram conceitos pouco identificados como integrantes do meio ambiente. De forma geral, os itens mais facilmente identificados foram matas (73%), rios (72%), água (70%) e animais (59%). Outro dado importante é que para 67% dos brasileiros entrevistados “a natureza é sagrada e o homem não deve interferir nela” (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE; ISER, 2001, p.12-16). A partir destas informações podemos ter uma ideia de como ainda existe a noção de que os seres humanos não compõem o meio ambiente. Muito disso deve-se ao fato da grande fragmentação entre as disciplinas escolares e a, consequente, dificuldade de compreender o humano enquanto parte do espaço em que vive. De acordo com Clive Ponting: “Assim como as plantas e a animais de um ecossistema são parte de um todo maior, os próprios ecossistemas são parte de um todo ainda maior – a própria Terra. […] Os seres humanos também fazem parte dos ecossistemas terrestres, mesmo nem sempre estando conscientes desse fato e de suas implicações” (PONTING, 1995, p.43). Dessa forma, é de extrema importância localizar o aluno, não apenas temporalmente, mas também espacialmente. É necessária a compreensão de que os seres humanos constituem o espaço em que vivem e se relacionam com outros elementos, naturais, vegetais e animais. Dentro dessa relação devemos ainda pontuar os impactos trazidos pelos humanos ao meio ambiente, já que somos a única espécie capaz de colocar em perigo, ou mesmo destruir, os ecossistemas dos quais dependem nossa existência. Além disso, somos os únicos também que conseguiram se espalhar por todos os ecossistemas terrestres e dominá-los a partir do uso da tecnologia (apud, 1995, p.43). Tudo isso não pode ser simplesmente ignorado ou esquecido. A História tradicional, também denominada de “velha História”, sempre definiu muito bem a temporalidade dos acontecimentos a partir das Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 37 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 38 datações. Entretanto, quando segue-se essa perspectiva, na grande parte das vezes, os aspectos naturais necessários para uma compreensão mais ampla são deixados de lado e os discentes não são localizados espacialmente. Por isso, a dinâmica tempo-espaço é essencial e deve ser ensinada no meio escolar. Nas aulas sobre História do Brasil, por exemplo, além de localizarmos os alunos a partir do ano de 1500 com a chegada dos portugueses ao Novo Mundo, é necessário também que expliquemos “onde” esses europeus aportaram e não apenas “quando”. Dessa forma, ao utilizarmos a interdisciplinaridade em nossas aulas, conseguiremos preencher as lacunas muitas vezes deixadas por uma História na qual apenas o tempo e o homem são vistos como objetos de estudo. A Mata Atlântica, por exemplo, quase nunca é tema das aulas de História. No entanto, foi a primeira visão apresentada diante dos olhos europeus quando estes desembarcaram no Novo Mundo. Os colonizadores recémchegados foram tomados por uma mistura de espanto e fascínio, o que os levou à preocupação de catalogar a fauna e a flora americana. A partir de então, um número imenso de documentos, tais como crônicas, cartas e tratados descritivos, foram produzidos a fim de provar que haviam chegado em novas terras e de descrever tudo que fosse possível observar (FERRÃO, 1992, p.10). Obviamente, não podemos nos esquecer de que esta preocupação em conhecer e estudar o Novo Mundo estava atrelada aos interesses exploratórios e coloniais. Como nos recorda Warren Dean, o grande impacto sobre a Mata Atlântica teve início desde que os portugueses derrubaram a primeira árvore para construir uma cruz (DEAN, 1996, p.59). Devido sua intensa exploração, atualmente, resta apenas cerca de 5 a 12% de área da Mata Atlântica, composta em maior parte por fragmentos florestais relativamente pequenos (TONHASCA JUNIOR, 2005, p.101). Conclusão A história da Mata Atlântica foi utilizada como exemplo porque, sob uma visão pedagógica, contribui para a desconstrução de uma perspectiva histórica exclusivamente antropocêntrica que compreende a natureza como fonte de recursos que deve apenas atender as necessidades humanas. Mais do que isso, essa abordagem nos permite exceder marcos temporais que costumam limitar a consciência dos discentes em nossas escolas, ao considerar a perspectiva do tempo geológico, sem o qual não compreendemos os processos evolutivos da natureza. É necessário reconhecermos os valores intrínsecos da natureza caso desejamos de fato formar sociedades sustentáveis. Dessa forma, cabe aos historiadores investigarem as relações estabelecidas entre o ser humano e o meio ambiente no qual ele se encontra inserido através de documentos produzidos ao longo da História e dos vestígios geológicos deixados pela própria Terra. Acreditamos que estas discussões não devem ficar apenas nas faculdades e laboratórios de pesquisa, mas sim adentrar salas de aula, uma vez que contribuem para a formação de alunos que se entendem como parte do espaço em que vivem e responsáveis pelas relações que estabelecem com o mesmo. Referências ALMEIDA, J. P. . A História da Questão Ambiental (1945-2012). In: Sidnei J. Munhoz; José H. Rollo Gonçalves. (Org.). História Contemporânea V. Maringá: Eduem, 2016, v. V, p. 103-118. AMBIENTE, M. M.; ISER. O que o brasileiro pensa do meio ambiente? Pesquisa Nacional de Opinião, out. 2001. DEAN, W. A ferro e fogo: a história da devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 39 DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro: FGV/FBB, nº 8, 1991, p. 177-197. FERRÃO, J. E. M. . A aventura das plantas e os descobrimentos portugueses. 2ª ed. 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EDUCAÇÃO E IDEOLOGIA: PARA REPENSAR A ESCOLA PÚBLICA HOJE Aruanã Antonio dos Passos Willian Roberto Vicentini Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 40 Diante dos desafios da educação no mundo contemporâneo, a questão da ideologia reassumiu um dos centros no debate que vai da dimensão política da educação à ética profissional e a inserção de docentes e dos alunos nesses desafios. No caso da realidade brasileira esse debate se torna premente as intervenções que procuram se apropriar dos espaços educacionais como parte de uma luta contra poderes e contrapoderes que, por vezes, em nada se relacionam com processos de ensino-aprendizagem. Assim, procuramos neste trabalho retomar o conceito de ideologia e propor uma breve reflexão sobre as relações de ideologia na escola pública. Dentre os autores que nos ajudam a compreender o conceito de ideologia se encontra Michael Löwy, que nos apresenta a obra Ideologias e Ciências Social, em que traz em um de seus capítulos, o conceito de ideologia, em que o mesmo (2006, p. 10) discute o debate inicial sobre o tema, citando que, “é difícil encontrar na ciência social um conceito tão complexo, tão cheio de significados, quanto o conceito de ideologia. Nele se dá uma acumulação fantástica de contradições, de paradoxos, de arbitrariedades, de ambiguidades, de equívocos e de mal entendidos, o que torna extremamente difícil encontrar o seu caminho nesse labirinto”. Em seguida na obra, Löwy vem a propor uma conclusão provisória sobre tal conceito, apresentando elementos centrais para a discussão, inicialmente com Destutt de Tracy e a relação com a zoologia, Napoleão com o uso do termo para se referir a um mundo especulativo. Apresenta Marx, que trabalha a ideia de que “ideologia é um conceito pejorativo, um conceito crítico que implica ilusão, ou se refere a consciência deformada da realidade que se dá através da ideologia dominante.” (p.12) Temos contato ainda com Lênin, o qual, nos apresenta duas ideologias, uma burguesa e outra proletária, e aplica ideologia como doutrina sobre a realidade social. Para fechar esta primeira exposição de ideias, a obra apresenta Karl Manheim, o qual distingue os conceitos de ideologia e de utopia. Cita que para ele, “ideologia é o conjunto de concepções, ideias e representações, teorias, que se orientam para a estabilização, ou legitimação, ou reprodução, da ordem estabelecida.” (p. 12). Sabe-se que ao seguir a obra, é proposto se usar visões sociais de mundo, e não um conceito de ideologia total, englobando, ideologia e utopia. A iniciativa do autor deste artigo é inicialmente situar o leitor neste sentido, em que serão expostas várias ideias e buscar-se-á trabalhar com o conceito que mais cabe para o tema, uma relação de Ideologia com a Escola Pública. Sabe-se que com o decorrer do tempo, ideologia foi tendo outros significados ou sentidos, mas não teve sua essência alterada em sua definição ou sentido, a de se afastar da questão das ideias e do conhecimento. Acredita-se que o conhecimento se realize tendo as ideias como fator principal, consequentemente, deverá se buscar uma ciência voltada para as ideias. Verifica-se que o termo ideologia tem uma grande importância e é muito utilizado como categoria de análise nas pesquisas em Ciências Sociais, estando atrelado com relação à utilização do método na construção do conhecimento na área das Ciências Sociais e Humanas. É sabido que a Escola Pública atua como um suporte social dentro da realidade social da sociedade que a cerca, comunidade escolar em geral, os alunos e os docentes, em que se envolvem e se relacionam em um cotidiano de ideias com suas visões de mundo, seus valores, concepções e ideias, seguindo ideologias diferentes e vivenciando realidades diferentes em busca de uma transformação desta realidade social. A ideologia na relação com a escola pública Sabe-se que a escola pública é um “organismo vivo”, uma instituição que faz parte e é considerada um elemento da sociedade local. Muitos de seus componentes querem fazer parte desta, já outros estão inseridos não por vontade própria, mas por um dever com sua família, no caso de alguns alunos. De outro lado se encontram os docentes, que tem como profissão o labutar na escola e por opção, a pública (muitos ainda mantém vínculo com a escola privada), com sua visão de mundo, buscando trazer o conhecimento aos alunos e fazer da melhor forma o seu papel. Não existe um consenso a respeito das diversas reformas educacionais no Brasil, especialmente porque, muitas vezes, estas são impostas “de cima para baixo”, sem uma discussão ampla com as partes interessadas. Uma reforma nacional, mas que se volta para os Estados e Municípios, em que resulta em alterações das práticas pedagógicas e da organização escolar, mas que vai muito a “contramão” das reais necessidades de alunos e docentes. Sabe-se a importância que a educação tem como elemento fundamental no desenvolvimento social e econômico de uma sociedade, especialmente em países como o Brasil, que se busca firmar enquanto nação em desenvolvimento para o mundo. Uma das ideias principais do tema deste, é que a inserção do aluno na escola o leve a um novo caminhar em sua vida, que ao adquirir conhecimentos, este consiga uma ascensão pessoal e futuramente profissional, ou seja, a formação do trabalhador, que busca a escola como meio de uma mudança de vida para todos. Para tal, Saviani (2010, p. 429) escreve que, “nessas novas condições, reforçou-se a importância da educação escolar na formação desses trabalhadores (…)”. Mas o que é a Escola Pública? Sabe-se que tal definição é complexa, mas se busca em Carvalho (1989, p. 21) um significado, em que este escreve; “para apreendermos o significado social da escola hoje e como a divisão do trabalho aí se expressa, faz-se necessário situá-la no processo de reprodução das relações sociais, em especial na forma que este assume no capitalismo monopolista. Impõe-se preliminarmente captar o movimento no qual e através do qual se Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 41 engendram e se renovam as relações que peculiarizam a formação social capitalista a formação social capitalista, partindo assim de um primeiro nível de reflexão, de maior abrangência e abstração, para em seguida fixar a atenção na escola, apreendendo-a na sua significação histórica”. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 42 Sabe-se que na escola podemos observar que esta serviu e serve para alimentar a ideologia das classes dominantes, mas muito representa ainda um importante espaço para a troca, para a sociabilidade, um local para a convivência coletiva, em que muitos de nossos jovens a tem como única opção fora do seu lar. Apesar deste processo de busca, a escola pública é alvo de medidas, ideias e imposições governamentais (Estado), em que os envolvidos no processo educacional não opinam, são obrigados a cumprir, apenas as recebem e a executam, ideias vindas de uma forma impositiva, que em muito não atendem as necessidades e anseios dos envolvidos no processo, até desfazendo o caráter social da escola. Pode-se apontar que esta ação, seja uma maneira deste Estado mostrar força, assim pressionando aqueles que fazem parte do processo educacional, atuando assim em cima dos grupos sociais subordinados. Dentro deste contexto, acredita-se que a escola se relacione com a chamada superestrutura de Marx, em que esta se caracteriza como fruto de estratégias daqueles grupos que são dominantes, existindo assim uma afirmação e consequentemente a continuação de seu domínio, que em Löwy (2006, p. 105), cita que “segundo essas observações, as visões de mundo, as ideologias, a superestrutura, não configuram ideias isoladas mas um conjunto orgânico. São sobretudo uma maneira de pensar”. Dentro deste contexto, se crê que o caminhar dos profissionais desta escola assim como seus alunos, deva ser única, procurando buscar em conjunto tal ação, baseados em seus direitos constitucionais e na união de todos, fazendo com que o Estado reconheça a força de todos os envolvidos neste processo. A escola como conhecemos é fruto do processo de modernização social, vem do processo de industrialização, da modernização das cidades, do crescimento do capitalismo e do consumismo, fatores que se apresentam nos dias atuais e não podem deixar de ser debatidos. Assim, pode-se citar Marx, (o representante maior do materialismo histórico), o qual entende que a ideologia é um fenômeno histórico-social decorrente do modo de produção econômico. Marx e Engels afirmam que vivemos sob a pressão da ideologia dominante, que é sempre a ideologia das classes dominantes. Löwy (2006, p. 15) afirma que: “para Marx, aplicando o método dialético, todos os fenômenos econômicos ou sociais, todas as chamadas leis da economia e da sociedade, são produto da ação humana e, portanto, podem ser transformados por essa ação”. Busca-se finalizar este tópico, observando que a escola é um lugar onde estão presentes uma gama de diferentes pessoas, entre estes, os docentes e discentes, com seus desejos, vontades e ideologias, convivendo juntos no mesmo espaço, em que se realizam diversos papéis, devendo prevalecer a troca, o respeito e o conhecimento, o qual também deve estar em constante transformação. Os papéis docente e discente na escola pública Como citado anteriormente, a escola é um local em que ocorre o relacionamento entre todos os envolvidos no processo educacional, tendo como principais elementos dentro deste relacionamento, o aluno e o professor. Sabe-se que na dinâmica educacional, é uma constante, em que professor e alunos devem caminhar juntos, ainda, abordar conceitos, efetuar o diálogo e devem estar em constante sintonia diante do processo educacional e dos conteúdos trabalhados em sala de aula. Mas se vê que para construir o conhecimento, deve-se considerar os elementos envolvidos, com sua ideologia e reflexões. A muito já se deixou de apontar o docente como o único elemento detentor de conhecimento em sala de aula, tendo hoje o papel docente como aquele que conduz o aluno no processo de conhecimento. Ainda, para Ferreira in Rangel (2001, p. 84) a LDB/96 aponta em seu artigo 3º. O seguinte texto: “o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios, dentre eles: pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Quando se aborda o tema ideologia e escola pública, ligados ao processo educacional, em que se busca discorrer sobre um conjunto de ideias diversas que permeiam o horizonte dos personagens desta instituição. Vemos em Vázquez (1977, p. 158) em que este afirma: “a educação permite que o homem passe do reino das ‘sombras’, da ‘superstição’, para o reino da razão. Educar é transformar a humanidade. Mas quem são esses educadores que devem educar o resto da sociedade?” Dentro do exposto, sabe-se que devemos como docentes extrair dos nossos alunos os conhecimentos que os mesmos trazem de sua vida, suas verdades e ideologias, mas devemos acreditar, que a soma das partes, conhecimento somado a tais concepções, façam de nossos alunos cidadãos. Acredita-se que estes não devam permanecer em estado de estagnação, pois tal situação acabaria com a razão da instituição escolar, apesar desta reproduzir as relações sociais de produção capitalistas, enquanto aparelho ideológico do Estado. Para Neto (2009, p. 07), este cita que: “para nosso autor, a questão da manipulação é entendida, portanto, como expressão do próprio processo constitutivo da modernidade. A natureza e o homem tornam-se objetos disponíveis e possíveis de serem manipulados”. Ainda, se vê que cada docente tem um papel a cumprir neste processo de “manipulação” de nossos jovens, em que se inculcam ideologias e valores aos alunos, pois é sabido que a sociedade cobra deste docente a sua atuação em sala de aula, em que vários são os questionamentos em relação à forma como este docente vem atuando no processo de formação das novas gerações, na Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 43 forma como as informações e os conhecimentos, estão sendo transmitidos aos alunos. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 44 Ainda, cada docente deve ofertar aos seus alunos a oportunidade de conhecer e se apropriar de saberes diversos que os ajudarão em seu processo de formação acadêmica e pessoal, ainda, não se pode deixar de lembrar que a escola é uma instituição educacional e que esta se caracteriza como um espaço da sociabilidade, da troca de conhecimentos e saberes diversos, sim, muito mais que “apenas” dos conteúdos das disciplinas, em que se transformou em um espaço da cordialidade, da troca, e do fomentar as diversas culturas inseridas nesta instituição. Um espaço em que ocorra a construção do conhecimento, da oportunidade em poder fazer e que ocorra o aprender a aprender. Para Demo (2009, p. 89): “aprender bem implica algumas dinâmicas entrelaçadas. Podemos começar com as mais antigas, do pai da pedagogia, Sócrates, que, em sua maiêutica, primava por relacionamentos emancipatórios, também visíveis no termo “educação” em sua etimologia latina (retirar de dentro), colocando o professor como referência promotora da autonomia e autoria dos alunos”. Assim, o papel do professor consiste em mediar a reflexão sobre os conteúdos apresentados aos alunos, e que os levem a se sentirem parte do processo histórico e de construção da sociedade. Isso implica a necessidade do docente em dominar os conteúdos e a prática pedagógica e que esta se apresente de forma flexível, inovadora e aberta a troca de informações e conhecimentos com seus alunos, prevalecendo a interação, fortalecendo a construção do conhecimento. Nesta realidade, para enfrentar as dificuldades da profissão, o professor precisa ter buscar a todo o momento como utilizar de forma melhor a prática pedagógica e a metodologia que caiba para determinada turma. Neste sentindo, é preciso não só buscar o lado da crítica da realidade dos professores, dos alunos e da escola, mas propor concretamente ações que possibilitem mudanças de atitudes individuais e coletivas, na perspectiva de apontar caminhos para a desconstrução e construção do ensino. Dentro deste contexto, aponta-se que a prática da docência é intensa, deve acompanhar a contemporaneidade em que a informação pode se transformar em conhecimento, em que a articulação entre a teoria e a prática passa a ser um desafio constante para os envolvidos no processo ensino/aprendizagem. Neste processo o professor e seus alunos, têm um papel de suma importância, o de caminhar até as fontes, dialogando com os conteúdos e buscando estratégias para ajudar na compreensão dos referidos temas por parte dos alunos. No que se refere a entre professores e alunos, ainda se pode ver em Werneck (1984, p. 87), que, “outro aspecto a ser considerado é que tanto o educador quanto o educando estão sempre, durante toda a relação, inseridos num determinado meio social. As condições sociais podem favorecer ou prejudicar o processo de valorização”. E este meio em sociedade caracteriza o papel destes envolvidos no processo escolar, pois nossos alunos hoje são diferentes dos alunos de 30 anos, vivendo o hoje e cabe aos docentes, leva-los a um processo de reflexão, apontando que o ontem pode ajudar o hoje. Ainda se pode citar que muitos alunos buscam e querem uma formação, outros não tem uma definição certa do que querem, mas acredita-se que o importante é que todos devem se sentir acolhidos na escola. Vê-se a importância em saber quem são nossos alunos nos dias atuais, tempos em que a mídia e as redes sociais estão em alta, em que estar conectado a tudo e a todos, é o mais importante. Para Rossato, (2001, p.105) na cultura brasileira. “(...) o espaço da escola na vida das pessoas caracteriza-se como um, “divisor de águas” e, de modo geral, todos concordam com sua importância e necessidade, sendo sua frequência assegurada por lei. Contudo, qual o sentido de ir à escola para aprender? Ir à escola para aprender o quê? Para que serve o que aprendemos na escola? Destaco passado e presente. Os alunos só veem sentido no futuro, um futuro como possibilidade, um futuro encharcado de esperança”. A escola busca colaborar com o desenvolvimento educacional e na transmissão de valores, ainda, os docentes devem ter a consciência de que muitos de nossos alunos têm a escola como ponto de apoio, pois em suas vidas apresentam-se muitos problemas sociais. Valorização destes alunos é parte integrante do processo educacional, estes devem ser reconhecidos como cidadãos e notados, tendo suas atividades escolares apreciadas pelos docentes, fazendo do processo em sala de aula, um ambiente de boas discussões e do crescimento educacional. Dentro deste contexto, Moraes (1997, p. 225) aponta que, “educar para a cidadania global significa formar seres capazes de conviver, comunicar e dialogar num mundo interativo e interdependente utilizando os instrumentos da cultura”. Nossos alunos de hoje tem meios próprios para o seu desenvolvimento pessoal, encontram nos sites de relacionamento um modo de viver, uma “sociedade secreta”, em que muitos ficam de fora. Ainda, estes possuem uma linguagem própria, em que viver, é viver (como citado) o hoje, cabendo ao docente dar voz a estes, para que se expressem e mostrem o que sabem. Ainda, se discute a realidade de trazer aspectos da vida real destes alunos para sala de aula, acredita-se como um desafio, visto que a gama de informações trazidas por estes jovens é muito grande. Algo como uma relação direta entre professor/aluno, colocando em práticas concepções diversas de ensino, em que se formem não apenas cidadãos, mas também agentes de transformação, dando oportunidade da inserção Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 45 destes no contexto social, político e econômico. Ainda, no que se refere a esta relação entre a escola e os alunos, vê-se que a escola deve acompanhar a modernidade, mas deve também manter seus valores e concepções dentro de uma linga moral, em que sua(s) ideologia(s) seja utilizada para o crescimento de todos e para todos. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 46 Referências BUFFA, Ester. Educação e Cidadania / Ester Buffa, Miguel G. Arroyo, Paolo Nosella. – 10ª. ed. – São Paulo, Cortez, 2002. 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A construção e registro dessas memórias são realizadas a partir da História Oral. Essa, mediante as entrevistas, pode identificar formas variadas de rememoração de um mesmo acontecimento histórico (CHARTIER, 1996, p. 216, apud RANZI, 2001). Essas fontes orais se baseiam em perspectivas individuais legitimadas como fontes, devido a seu valor informativo e/ ou seu valor simbólico, e incorpora elementos como a subjetividade e o cotidiano (FERREIRA E MARIETA, 2015). Os relatos dos sobreviventes podem comunicar uma memória sobre experiências coletivas e representar uma visão de mundo. No ensino de História, o papel dessas memórias pode contribuir para partilhar com os estudantes as trajetórias individuais, eventos e processos históricos que às vezes não podem ser entendidos de outra forma. As memórias podem revelar histórias de lutas cotidianas que geralmente são encobertas pelos discursos oficiais (FERREIRA E MARIETA, 2015). Neste trabalho, primeiramente, apresenta-se os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial e as possíveis motivações que levaram ao ataque atômico em Hiroshima e Nagasaki. Na secção seguinte apresenta-se como o ensino de História pode utilizar a analise dos relatos de sujeitos que vivenciaram as consequências do ataque atômico para abordar a Segunda Guerra Mundial. Analisa-se, como exemplo, os relatos do médico nipoamericano e de uma mãe sobrevivente ao ataque atômico para mostrar como o ensino de História, a partir da contextualização dos testemunhos e memórias, possibilitam um ensino que resgate a historicidade dos fenômenos sociais e o protagonismo dos indivíduos que os constituem. Dessa forma, pode ensiná-los a problematizarem a compreensão dos fenômenos sociais, tendo em vista uma formação para desenvolverem um pensamento autônomo, crítico e reflexivo para desconstrução de seus modos de pensar e lidar com o meio onde estão inseridos e suas problemáticas (BRASIL, 2002). Ataque atômico em Hiroshima e Nagasaki Os Estados Unidos, em 1945, lançaram bombas atômicas sobre as cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, com o objetivo de coagir as autoridades políticas e militares do Japão a se renderem durante a Segunda Guerra Mundial. A declaração de guerra dos Estados Unidos contra o Japão ocorreu em 1941 após o ataque japonês à base naval de Pearl Harbor. Inicialmente o Japão teve êxito em suas ações e conquistou vários territórios, derrotando as forças americanas, inglesas e francesas na Ásia. Contudo, na Batalha de Midway, a Marinha Imperial Japonesa foi prejudicada. Após esse acontecimento o Japão sofreu constantes derrotas e, em 1945, os recursos econômicos desse país estavam desfalcados devido ao prolongado investimento nos enfrentamentos destas guerras (SILVA, 2019). Diante dessa situação de vulnerabilidade do Exército e Marinha Japonesa, os Estados Unidos e os Aliados (Inglaterra, França, Estados Unidos e, depois, União Soviética) decidiram invadir o território japonês. As dificuldades acarretadas pela resistência cultural japonesa indicavam que uma invasão poderia provocar a morte de muitos soldados americanos. Na Conferência de Potsdam, em 1945, constituíram-se os termos da rendição japonesa a partir da Declaração de Potsdam. O documento reiterava a rendição sob as seguintes condições: a soberania japonesa deveria ser limitada a seu território anterior às conquistas de outros durante a Segunda Guerra; crimes de guerra seriam julgados; sua força militar seria desarmada e a ocupação americana continuaria em seu território. As autoridades japonesas recusaram esses termos e, em 1945, em contrapartida, Truman (1884-1972) enquanto presidente dos Estados Unidos ordenou que a bomba atômica fosse lançada em território japonês na cidade de Hiroshima (HICKMAN, 2018). Muitas pessoas foram vaporizadas e carbonizadas com o calor da explosão da bomba e grandes incêndios se manifestaram por toda a cidade de Hiroshima. Parte da cúpula do governo japonês confiava que seu povo seria capaz de resistir e derrotar os Estados Unidos. Essa recusa japonesa fez com que os Estados Unidos lançassem sua segunda bomba nuclear na cidade de Nagasaki (SILVA, 2019). Historiadores ortodoxos, em contrapartida, argumentam que esse bombardeamento atômico foi uma medida necessária para rematar os enfrentamentos de guerra com o Japão. O ataque nuclear teria prevenido a morte de milhares de soldados estadunidenses e civis japoneses, uma vez que um desembarque no Japão custaria de 500 mil a 1 milhão de vidas. Já os revisionistas sustentam que o ataque atômico foi uma demonstração de força para chantagear os soviéticos em função das tensões emergentes entre as duas potências. Nessa época, os japoneses já teriam indicado uma rendição, mas para os Estados Unidos seria mais vantajoso terminar a guerra com o Japão antes da entrada da União Soviética, tendo em vista impedir a divisão de áreas de influência na região. A partir dessa perspectiva, os bombardeios nucleares ao Japão são considerados como as primeiras declarações da Guerra Fria (MUNHOZ, 2015). Também existem discrepâncias sobre estatísticas que representam as fatalidades. Enquanto o Projeto Manhattan registra 66 mil mortos, o governo de Hiroshima contabiliza cerca de 130 mil mortes imediatas e mais Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 49 10 mil até novembro de 1945. Em Nagasaki, as estatísticas do Projeto Manhattan computam 39 mil mortes simultâneas ao ataque atômico, enquanto essa cidade japonesa reconhece 73.884 mortes e 74.909 feridos (MUNHOZ, 2015). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 50 Muitos sobreviventes tiveram de conviver com a dor de queimaduras espalhadas pelo corpo, suas consequentes deformações físicas e traumas. O contato com a radiação matou muitos dos sobreviventes nos dias e anos seguintes ao ataque, enquanto outros conviviam com as doenças causadas pela radiação ou temiam pelo possível adoecimento no decorrer de suas vidas. Durante décadas, a população japonesa precisou lutar para que o governo japonês arcasse com os seus custos médicos (SILVA, 2019). Na secção seguinte, apresenta-se as definições de testemunho, experiência e memória para posteriormente analisar os relatos de dois sujeitos relacionados a esse fato histórico da Segunda Guerra Mundial: um médico nipo-americano que lida e estuda as consequências do ataque atômico, entrevistando os sobreviventes, e uma mãe sobrevivente ao bombardeamento atômico em Hiroshima. Também, propõe-se que o ensino de História pode utilizar essa análise dos testemunhos e memórias para abordar a Segunda Guerra Mundial. Testemunho, experiência e memória Considera-se como papel fundamental da disciplina História ensinar aos alunos os processos históricos que explicam as transformações e mudanças dos fenômenos da sociedade que, no senso comum, são vistos como imutáveis. Esse ensino pode ser realizado a partir da análise e problematização dos testemunhos e memórias de indivíduos que vivenciaram determinados acontecimentos históricos. Nesse caso, a partir das memórias de um médico nipo-americano diante das consequências do ataque atômico e a de uma mãe sobrevivente a esse na Segunda Guerra Mundial. Para analisá-los, entende-se como necessário compreender três noções correlatas nesse processo de narrativa: testemunho, experiência e memória. Márcio Seligmann-Silva (2003) considera que a linguagem possibilita a transformação do acontecimento em experiência. O testemunho remete a dificuldade de falar sobre um evento traumático que se passou, a partir da possibilidade de falar sobre o mesmo. Entende-se que aquele que testemunha não pôde experienciar esse evento e, assim, a linguagem não dá conta de traduzi-lo. O testemunho de um evento traumático evidencia a relação conflituosa entre a linguagem e o real. Esse real representa o evento traumático vivido que deve ser entendido a partir da participação ativa dos sujeitos nesse processo histórico. A partir dos testemunhos, os sobreviventes estão engajados na tentativa de traduzir um evento não assimilado (SELIGMANN-SILVA, 2000). A partir dos testemunhos, o ensino de História pode resgatar tanto a historicidade dos fenômenos sociais como também o protagonismo dos indivíduos que os constituem, evidenciando que certas mudanças ou continuidades históricas decorrem de interesses e decisões socialmente construídos (BRASIL, 2002). Michael Pollak (1992) entende-se a memória como um fenômeno construído pelos sujeitos, socialmente, e submetido a seleções, transformações e mudanças constantes. Os elementos constitutivos da memória individual e coletiva são os acontecimentos vividos pessoalmente e pelo grupo, ou pela coletividade, à qual a pessoa se sente pertencente. A memória também é constituída por pessoas, personagens e lugares. Pode-se dizer também que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade tanto individual e coletiva, pois ela é um fator importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992, p.202). A partir das memórias, o ensino de História pode propiciar os estudantes a situarem-se na sociedade para melhor compreendê-la, desenvolvendo a capacidade dos alunos em apreender o tempo enquanto um conjunto de vivências humanas que são sociais e culturais, mutáveis e constituintes do processo histórico (BRASIL, 2002). Para utilização dos testemunhos e memórias no ensino de História, torna-se fundamental o desenvolvimento de competências ligadas à leitura, análise, contextualização e interpretação das fontes e testemunhos dos sujeitos históricos. Como também contextualizá-los ao ensinar sobre os diferentes agentes sociais envolvidos na produção dos testemunhos, os interesses explícitos ou implícitos nessa produção, e a especificidade das diferentes linguagens e contexto histórico pelos quais se expressam (BRASIL, 2002). A seguir, analisa-se os testemunhos e memórias de dois sujeitos da história que vivenciaram as consequências do ataque atômico em Hiroshima. Esses foram registrados por James Yamazaki no livro “Children of the Atomic Bomb: An American Physician's Memoir of Nagasaki, Hiroshima, and the Marshall Islands”. O primeiro sujeito é o próprio James Yamazaki, um médico nipo-americano que relata sobre suas memórias em estudar as consequências do bombardeamento atômico na vida de crianças, como também em entrevistar os sobreviventes para saber de seus traumas físicos e psicológicos. O segundo sujeito, Kondo, é uma mãe que relata seu testemunho sobre os acontecimentos no momento em que foi atingida pela bomba atômica As vivências do ataque atômico James Yamazaki é descendente de japoneses e nascido nos Estados Unidos. Ele relata que, em 1949, foi convocado para trabalhar no Japão com a intenção de estudar os efeitos da radiação nuclear sobre as crianças. Como médico, trabalhando e estudando no Japão, pôde ouvir as histórias de sobreviventes de Hiroshima que foram afetados pelo bombardeamento atômico. Embora não tivesse evidencias estatisticamente significativas sobre os efeitos genéticos dessa radiação a longo-prazo, presenciou os traumas das vítimas que temiam quanto a como viver sob as consequências da radiação e o que poderia advir dos efeitos dessas (YAMAZAKI E FLEMING, 1995). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 51 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Depois do ataque atômico, em 1950, o médico também experimentou a hostilidade dos japoneses. Muitos sobreviventes com quem entrou em contato pensavam que os médicos norte-americanos estavam lá apenas para conseguir as informações que protegessem os Estados Unidos de um possível bombardeamento atômico. No entanto, Yamazaki estava interessado em encontrar os sobreviventes que pudessem ajudá-lo a descobrir lições médicas para tratar dos traumas físicos e psicológicos acarretados pelo contato com a radiação da bomba (YAMAZAKI E FLEMING, 1995). Página | 52 Posteriormente, em 1989, Yamazaki retorna ao Japão para participar de um encontro de mães de crianças pica em Hiroshima. Pica significa luz e referese à luz ofuscante da bomba. Também é um termo eufêmico para se referir às crianças nascidas com deficiências por terem sido expostas no útero a radiação das bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki (YAMAZAKI E FLEMING, 1995). No que diz respeito ao testemunho de uma dessas mães sobreviventes ao ataque, analisa-se o da sobrevivente Kondo. Como consequência a exposição da radiação, sua filha desenvolveu microcefalia e outras deficiências mentais. No dia do bombardeamento atômico em Hiroshima, Kondo estava trabalhando com sua irmã nessa região. Ela tinha 20 anos de idade e estava grávida de seu primeiro filho. Em certo momento, ela foi em direção a uma estreita vilela para lavar suas mãos. Como ela própria relatou a seguir: “No momento em que me inclinei para a torneira, uma forte luz solar de verão envolveu e fez desaparecer toda aquela área. Eu instintivamente cobri meu rosto com as duas mãos. Então ouvi um barulho, ‘boom’. Eu levantei minha cabeça e olhei ao redor, mas não pude ver nada por causa de uma espessa nuvem de poeira. Eu, lentamente, encontrei o caminho para chegar onde minha irmã estava me chamando. A casa estava destruída. Apenas um pilar resistiu, onde minha irmã estava de pé. De repente, notei que toda a área estava em chamas. As pessoas estavam gemendo de dor, pedindo por água ou para serem levadas para casa. [...] Eu ainda lembro de avistar vividamente essa terrível cena. Eu estava perplexa, perguntando-me como isto poderia ter acontecido na humanidade, e fiquei chocada, olhando toda a cidade a partir da colina durante todo o dia. [...] O lugar onde nós estávamos era escuro, com pesadas nuvens pairando sobre nossas cabeças. Toda a cidade parecia o inferno na terra (YAMAZAKI E FLEMING, tradução nossa, 1995, p.132).” Diante desse relato, considera-se que o testemunho como narração atesta a a impossibilidade de vocalizar o vivido, o real, como o verbal (SELIGMANSILVA, 2003). Isso é evidente quando Kondo tentou expressar o que ocorreu pelos termos “choque” e “... parecia o inferno na terra.” Esse testemunho nos remete ao que Seligmann-Silva (2003) diz quanto à percepção do caráter inimaginável do ocorrido. E, assim, esse real só pode ser representado pela própria imaginação. Portanto, Kondo testemunhou um evento traumático que exige um relato na tentativa de atribuir algum significado possível. Deve-se considerar que os relatos do médico e dessa sobrevivente não tratam só de um tempo passado, mas uma busca pela preservação e sua transmissão. É importante reiterar que os relatos das mães sobreviventes foram registrados após passar mais de 40 anos do bombardeamento atômico. Michael Pollak (1989) sugere que a sobrevivência de lembranças traumatizantes, durante dezenas de anos, é a resistência que uma sociedade civil exerce diante dos discursos oficiais, nesse caso, os que retratam os afetados pelo ataque atômico apenas como vítimas. Considerações finais O ensino a partir de temas históricos, como a Segunda Guerra Mundial, deve reconhecer a ação do indivíduo enquanto sujeito da história nas transformações do processo histórico. Essa ação deve ser apresentada como mobilizada pelos interesses dos sujeitos e determinada pela sociedade que também é produto do processo histórico. Portanto esse ensino deve abordar temas ligados ao cotidiano, ponderando nas singularidades dos acontecimentos as generalizações para a compreensão do processo histórico. Dessa forma o ensino a partir dos testemunhos e as memórias pode possibilitar que os educandos desenvolvam competências e habilidades que lhes permitam apreender as durações temporais, nas quais os sujeitos desenvolveram ou desenvolvem suas ações para lidar e intervir nesses acontecimentos e suas consequências. Referências bibliográficas BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais (ensino médio). Parte IV: Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília: Governo Federal, 2002. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/cienciah.pdf. Acesso em: 17/02/2019. FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2015. HICKMAN, Kennedy. World War II: Potsdam Conference. Disponível em: <https://www.thoughtco.com/potsdam-conference-overview-2361094>. Acesso em: 01 mar. 2019. HUYSSEN, Andreas. Present pasts: Media, politics, amnesia. Public Culture, v. 12, n. 1, p. 21-38, 2000. MUNHOZ, Sidney J. O pior dos fins: Bombardeios nucleares em Hiroshima e Nagasaki ainda geram vítimas e controvérsias. Necessidade ou crime de guerra?. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, ano 10, nº 116, p. 36-37, 2015. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 53 POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 54 ______. Memória, Esquecimento, Silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. RANZI, Serlei Maria Fischer. Fontes orais, História e saber escolar. Educar em Revista, v. 17, n. 18, p. 29-42, 2001. SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio; NESTROVSKI, Arthur (org.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, p. 73-98, 2000. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura. O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. SILVA, Daniel Neves. Bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki; Brasil Escola. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/bombasatomicas-hiroshima-nagasaki.htm>. Acesso em: 01 mar. 2019. SOARES, Marco Antonio Neves. O ensino de História presente nos Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (PCNEM): A construção do sujeito adequado. História & Ensino, v. 8, p. 29-44, 2002. YAMAZAKI, James N.; FLEMING, Louis B. Children of the Atomic Bomb: An American Physician's Memoir of Nagasaki, Hiroshima, and the Marshall Islands. Duke University Press, 1995. ENSINO DE HISTÓRIA E DE GEOGRAFIA: DESAFIOS E REFLEXÕES PARA A PRÁTICA DOCENTE INTERDISCIPLINAR Carlos Eduardo Ströher As áreas da História e da Geografia constituem-se nas principais Ciências Humanas ensinadas na Educação Básica das escolas brasileiras. Os conhecimentos abordados por elas constituem a base dos saberes que crianças e jovens possuem sobre as relações que os homens estabeleceram com o tempo e o espaço desde a organização da vida em sociedade. Assim, é de fundamental importância problematizar esses saberes e questionar: afinal, o que se ensina e o que se aprende em História e Geografia? Qual a relação entre esses conhecimentos, os vindos dos referenciais teóricos das ciências de referência, e os empíricos, experienciados por alunos e docentes no cotidiano escolar? Essas perguntas apresentam aspectos profundamente complexos e polissêmicos, e não é pretensão desse trabalho esgotá-las. No entanto, são questões fundamentais para que o processo de ensino-aprendizagem nas áreas de História e Geografia se concretize de maneira eficaz e garanta a construção dos conceitos fundantes dessas áreas. Na estruturação atual da formação de professores no Brasil, a docência nessas áreas é separada conforme o título adquirido na graduação: assim, pedagogos trabalham História e Geografia, e também as demais áreas de conhecimento, na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental – o que corresponde, atualmente, a alunos entre 4 e 10 anos, aproximadamente – e licenciados em História e Geografia atuam com a docência desses componentes curriculares, nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, atendendo a alunos entre 11 e 17 anos, considerando a faixa etária regular e sem distorções de idade/série, bastante comuns no contexto educacional brasileiro. Essa divisão na formação gera lacunas em todos os profissionais, independente da formação: da mesma forma que docentes que atuam nos Anos Finais e Ensino Médio pouco conhecem o processo de construção dos conhecimentos nas crianças – a não ser, muitas vezes, por suas lembranças como alunos –, licenciados em Pedagogia, que atuam nos Anos Iniciais, por vezes sentem falta de uma base conceitual maior, e sentem-se inseguros ao trabalhar temáticas nas áreas de História e Geografia. Somado a isso, têm-se políticas educacionais que privilegiam outras áreas de conhecimento, como Língua Portuguesa e Matemática, através de avaliações externas, a despeito dessas avaliações exigirem habilidades que podem ser trabalhadas também nas disciplinas das Ciências Humanas. Como resolver esses impasses? São justamente essas lacunas e os desafios por ela gerados que inspiram esse texto. Enquanto que um pedagogo tem uma formação mínima – ainda que por vezes insuficiente – para atuar com as duas áreas nos Anos Iniciais, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 55 um professor formado em História ou Geografia habitualmente trabalha a disciplina correlata nos Anos Finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, mesmo que seus currículos de graduação ofereçam pouco ou nenhum espaço para aprofundar os conhecimentos da “vizinha”. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 56 Dessa forma, o objetivo geral desse texto é problematizar o ensino de Geografia e de História de forma integrada e interdisciplinar. Especificamente, objetiva-se refletir sobre algumas possibilidades de trabalho, contribuindo para o debate sobre a qualidade do ensino nessas áreas, sem perder os conhecimentos essenciais das ciências histórica e geográfica. Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), quase 50% dos professores não têm formação na matéria que ensinam (SALDAÑA, 2017). Esmiuçando as estatísticas, percebe-se que especialmente no Ensino Médio essa realidade é mais premente. Informações do Censo Escolar 2015 apontam que 59% dos professores de Geografia e 60% dos de História desse nível de ensino não tem formação na área em que atuam. Se olharmos para outras disciplinas da área de Ciências Humanas os dados são ainda mais alarmantes: só 12% dos docentes de Sociologia e 23% dos de Filosofia têm formação inicial em suas áreas de conhecimento (SALDAÑA, 2017). Observando o panorama histórico do ensino de História e Geografia no Brasil, percebe-se que ambas tiveram trajetórias semelhantes – ora isoladas, ora mescladas –, e vinculadas à formação da nacionalidade e dos valores cívicos do país. Mas, no campo educacional, a História e a Geografia dialogam mais com as ciências de referência do que entre si. Urge, portanto, pensar as duas áreas de conhecimento em uma perspectiva interdisciplinar. Mas o que propriamente isso significa? O tempo interdisciplinaridade surgiu na Europa, principalmente na França e na Itália, na década de 1960. A ideia influenciou sutilmente a Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 5692/71), quando os governos militares uniram a História e a Geografia em Estudos Sociais. Era, porém, somente uma aglutinação de conteúdo, sem propósitos de compartilhamento de conhecimentos de diferentes áreas. Ademais, a simples parceria entre professores de diferentes disciplinas não “[...] abarca, ordena e totaliza a realidade supostamente confusa do mundo científico” (JANTSCH, BIANCHETTI, 2008, p. 12). Para Ari Jantsch e Lucídio Bianchetti, ao teorizarem sobre a interdisciplinaridade, salientam que o questionamento atual não deve girar em torno de haver ou não parceria entre docentes, mas precisa definir quando e em que condições a parceira é necessária para efetivar a interdisciplinaridade. Os autores defendem que, na base do conceito, estão os traços da criatividade e da diversidade e que, assim, é “[...] impensável a interdisciplinaridade sem a base que as possibilita, ou seja, as disciplinas” (JANTSCH, BIANCHETTI, 2008, p. 21). Esse ponto de vista abre caminho para a conciliação entre campos de conhecimento, de modo que um único professor, em sua disciplina, possa deflagrar um processo interdisciplinar, rompendo com a falsa ideia de que a interdisciplinaridade depende de um trabalho coletivo de docentes. Dessa forma, acredita-se que um professor, seja formado em História ou Geografia, pode trabalhar em uma perspectiva interdisciplinar, sem abandonar sua área de referência. Apresentam-se a seguir, algumas reflexões que, longe de propor novas “receitas de bolo”, rígidas e às vezes impossíveis de serem implementadas em determinados contextos, abordam alguns critérios sugeridos para que a docência nas áreas de História e Geografia possibilite a construção de propostas que permitam aprendizagens interdisciplinares significativas, baseadas em um ensino plural e com metodologias e fontes variadas.  Escape da maratona curricular: “preciso dar conta de todo o conteúdo” é uma expressão muito usada por professores, e de forma especial nas áreas de História e Geografia. É um desafio imposto para escolas e professores dessas áreas de conhecimento superar currículos muito extensos que possuem “um quilômetro de extensão e poucos centímetros de profundidade”, segundo expressão de Bransford et al. (2007, p. 44). Ao propor uma abordagem que priorize aspectos qualitativos aos quantitativos, não se está afirmando que existem saberes mais importantes do que outros para serem abordados. Ao invés de pensar em uma hierarquia de conhecimentos, é fundamental que o professor esteja apropriado dos planos de ensino da instituição em que ele atua e que norteie seu trabalho a partir desses documentos. Infelizmente, muitas vezes, esses planos estão desatualizados, ou são muito genéricos, pouco contribuindo para a organização do trabalho do docente. Nesse caso, é preciso estar ciente do que as determinações legais indicam como conhecimentos primordiais para o trabalho nos componentes curriculares das Ciências Humanas, para que as propostas de trabalho estejam em consonância com o currículo “possível”, ou seja, as habilidades e competências desejadas aos alunos a partir do contexto em que estão inseridos;  Não caia na tentação das datas comemorativas: já é tradição a realização de inúmeras atividades ao longo do ano letivo, acompanhando o calendário das datas comemorativas. O professor mais fiel a isso tem o seu currículo dominado, especialmente no Ensino Fundamental, por um cronograma extenso de ações a serem implementadas em curtos períodos. O problema desse tipo de proposta é a aderência a uma abordagem estereotipada de diversos temas: assim, só se fala do índio em 19 de abril, do negro na semana da Consciência Negra, o folclore é assunto para o mês de agosto, as estações do ano são fixas e imutáveis e só começam na data do calendário. Essas artificialidades pouco problematizam aspectos sociais e naturais, além de tenderem a repetições ano após ano. É fundamental que o professor eleja algumas datas significativas, e a partir dela, construa propostas que ampliem a visão de determinado tema. Por exemplo, os alunos podem pesquisar as características naturais da sua região – variações de temperaturas, volume de chuvas, estado de conservação da Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 57 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 58 vegetação – e estabelecer relações com as representações tradicionais das estações do ano, e assim perceber como a ação humana interfere na paisagem natural no espaço em que vivem. Ou pesquisar a origem de determinado feriado, como a Independência ou da Proclamação da República, buscando entender seus significados históricos no passado e no presente;  Conheça seus alunos: é fundamental que o professor saiba quem são os alunos com os quais interage diariamente. Não se trata apenas de compreender as teorias de desenvolvimento humano e as de aprendizagem para auxiliar relação em sala de aula ou inteirar-se de elementos da cultura juvenil e do contexto social que moldam o que pensam e como agem os estudantes. Implica o que Fernando Seffner diz ser uma das tarefas fundamentais de uma aula de História – e também de Geografia: “[...] possibilitar que o aluno se interrogue sobre sua própria historicidade, inserida aí sua estrutura familiar, a sociedade ao qual pertence, o país, o estado, etc. (SEFFNER, 2013, p. 59-60). Dessa forma, o professor deve ter um olhar sensível para a realidade que seus alunos, para que possa auxiliar da construção da identidade histórico-cultural desses sujeitos, e que assim seja possível também instrumentalizá-los para que formulem e construam seus próprios projetos de vida. Ignorar esse universo prejudica a ação do professor, ao construir conhecimentos sem aplicabilidade, desconectando os saberes dessas áreas de conhecimento com o mundo real dos alunos;  Olhe para a identidade, mas também para a diferença: os constantes questionamentos teóricos e metodológicos que as Ciências Humanas debateram nas últimas décadas, sobretudo buscando superar o eurocentrismo, tem tornado as aulas de História e de Geografia espaços para discussão e reflexão sobre identidade, visando atender as demandas trazidas por variados movimentos sociais que apregoam o direito à manifestação da diversidade, como indígenas, quilombolas, mulheres, população LGBT, entre outros. Essas lutas, apesar de legítimas, contribuem para uma aprendizagem focada na busca pela identidade, ou seja, os laços que ligam os estudantes ao tema. Pereira e Marques (2011) defendem a necessidade de uma “narrativa do estranhamento”, ou seja, um exercício de aprendizagem com o diferente, em que a novidade e a surpresa estejam presentes. Assim, ao estudar os aborígenes da Polinésia, por exemplo, não se precisa incessantemente buscar semelhanças entre esses povos e nossos padrões de comportamento. “A experiência alheia e distante pode muito bem ensinar a olhar para si mesmo e, sobretudo, olhar para o outro sem valorar, sem referir a um conceito do presente ou de uma cultura determinada” (PEREIRA, MARQUES, 2011, p. 8). Esse exercício de alteridade é fundamental para a construção de aprendizagens nas aulas de História e de Geografia que fujam de estereótipos e generalizações;  Fique ligado: já é chavão afirmar que o professor deve estar atualizado das questões específicas à docência e sua área de conhecimento. Porém, é preciso que ele também esteja atento ao que acontece no mundo. Isso vai além do Jornal Nacional e dos demais noticiários tradicionais. A forma de se informar mudou radicalmente. Boa parte dos alunos do século XXI são digitais, e se informam basicamente através de redes sociais, acessadas através de seus smartphones. Diante dessa nova realidade, os professores não podem permanecer analógicos, mesmo que o avanço tecnológico ocorre de maneira desigual em diferentes contextos. Estamos sujeitos a todo o tipo de informação que circula nas timelines, para o bem ou para o mal. Considerando que muitas pessoas não possuem outra fonte para confrontar determinado fato, é fundamental que a discussão sobre notícias falsas – as fakenews – ocorra nas salas de aula e estas sejam utilizadas como iscas para pesquisas mais aprofundadas e melhor embasadas. Além disso, é importante também que o professor apresente aos alunos outras fontes de conhecimento, para que eles possam ter acesso a visões diversificadas e a partir delas construam suas próprias opiniões, escapando das “bolhas sociais”;  Saia da escola: já é consenso também que a prática educativa deva ocorrer para além dos muros da escola. No entanto, há obstáculos a serem ultrapassados. Duarte Jr. (2001), ao refletir sobre os significados dos atos de caminhar e morar nas sociedades contemporâneas, alerta que as cidades negam os movimentos livres aos habitantes, devido a sua organização pensada em fins utilitaristas – sair para trabalhar ou estudar, fazer compras, pagar contas. “O exercício do passeio por ruas, jardins e praças do lugar onde se mora funciona como um processo de identificação entre o homem e seu ambiente vital” (DUARTE Jr, 2001, p. 81). Dessa forma, é fundamental que o professor realize com seus alunos passeios que promovam a construção de identidades para o reconhecimento de aspectos materializados no espaço geográfico e que permitam conhecer e valorizar a história de suas comunidades. Entretanto, exercícios de caminhada fora da escola tem se tornado cada vez mais difíceis em grandes cidades, devido às condições dos espaços urbanos que afastam as pessoas das ruas – seja por calçadas mal conservadas, a poluição do ar ou os altos índices de violência – que preferem transitar por shopping centers, mais limpos e seguros. Ao mesmo tempo, em comunidades vulneráveis, todos estão mais próximos da rua, mas muitas vezes não conseguem visualizar nesse espaço aspectos positivos, já que nos noticiários eles nunca aparecem. Por que não inverter? Fotografar “cantinhos bonitos”, espaços importantes, e valorizá-los? Outra situação, em regiões periféricas há um distanciamento entre essas comunidades e as áreas centrais dos municípios. Conhecer esses lugares e seus espaços, seja uma praça, a Prefeitura, uma fábrica importante, também significa construir o sentimento de pertença. É um passo para que os alunos possam entender o significado de espaço público como algo que também pode ser deles. Assim, o conhecimento dos espaços locais é elemento fundamental para a construção de aprendizagens sólidas, em articulação com as práticas desenvolvidas dentro de sala de aula;  Pesquise com o aluno: a pesquisa como princípio educativo também é frequentemente reiterada nas pautas pedagógicas. No entanto, o que pode contribuir para que ela promova efetivamente aprendizagens significativas é a postura e o envolvimento do professor nessa proposta. Hernández e Ventura (1998), ao proporem a organização do currículo por projetos de trabalho, expõem a necessidade do docente alterar a forma como constrói Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 59 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 60 seu planejamento, abrindo espaço para uma participação ativa dos alunos nesse processo, num exercício de mediação pedagógica e aprendizagem colaborativa em grupo. Nas áreas da História e da Geografia, há inúmeras formas de possibilitar pesquisas que envolvam ativamente os alunos. Sugere-se que as temáticas referentes à história local e ao patrimônio cultural do espaço em que está inserida a comunidade escolar sejam abordadas nessas propostas, visto que constituem fontes que muitas vezes somente a pesquisa de campo fornece. A realização de entrevistas permite o surgimento e a divulgação de narrativas desconhecidas, subjugadas pelo tempo, e que adquirem protagonismo quando iluminadas por questionamentos vindos da curiosidade dos alunos. Da mesma forma, essas investigações permitem ações de intervenção no meio sociocultural, ao questionarem, por exemplo, os motivos da pouca valorização do patrimônio histórico de uma construção ou da conservação do meio ambiente em determinado local;  Cada cabeça, uma sentença: considerando que todas as indicações supracitadas sugerem a ampliação das metodologias de trabalho em sala de aula e a compreensão da pluralidade das formas de ensinar e aprender, fica o dilema: como avaliar os alunos diante de um cenário tão complexo? Gil e Almeida (2012) sugerem que o professor privilegie atividades de pesquisa com seus alunos, e que tenha clareza das competências e habilidades que as atividades realizadas permitem desenvolver. A partir desse discernimento, e considerando a faixa etária dos estudantes, é possível questionar: “Que hipóteses o aluno consegue formular a partir das temáticas estudadas? Ele consegue progredir além dos conhecimentos prévios? Desenvolveu autonomia para buscar fontes de pesquisa?” (GIL; ALMEIDA, 2012, p. 119). Essas respostas somente são possíveis se o docente manter o hábito de fazer registros frequentes das práticas em sala de aula em um diário de campo, atentando para as singularidades de cada discente, e também possibilite que esse instrumento metodológico seja utilizado pelo aluno na realização de uma escrita mais livre, e menos engessada em perguntas e respostas prontas. Considerações finais Um longo caminho foi percorrido pelos profissionais das áreas de História e Geografia, na luta pela inserção e manutenção dessas áreas nos currículos escolares. Da mesma forma, caminhos e olhares sobre conceitos e versões foram se alterando ao longo do tempo, constituindo, nessas áreas, propostas que privilegiem a construção da cidadania, a valorização do patrimônio cultural e ambiental e a diversidade, sem esquecer de tornar concretos seus temas fundantes: espaço e tempo, e suas relações. Nesse sentido, as aproximações, o diálogo e propostas interdisciplinares entre a História e a Geografia sempre serão bem-vindas, mas mantendo as especificidades e os campos de atuação de cada uma. Nessa caminhada, chegamos agora até a homologação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que ressalta que a necessidade de adequação dos currículos ao documento nos próximos anos. Há muito trabalho pela frente: repensar currículos, rever práticas, estabelecer diálogos e engajar todos os membros das comunidades escolares. Geografia e História permanecem como disciplinas das Ciências Humanas no Ensino Fundamental, mas no Ensino Médio estão diluídas na área, junto dos conhecimentos de Sociologia e Filosofia. Urge, portanto, pensar na interdisciplinaridade já na formação dos futuros docentes, e em práticas que favoreçam essa perspectiva. Assim, retomando o problema inicial, é possível que um professor de História ensine efetivamente Geografia, e vice-versa, desde que esteja comprometido com uma abordagem interdisciplinar e reflexiva. Isso não significa eliminar a formação básica em uma das áreas ou simplesmente unificá-las em um único curso. O exercício interdisciplinar pressupõe problematizar saberes, metodologias e aprendizagens presentes na formação e no ensino de História e de Geografia, e alavancá-los para patamares em que seja possível efetivar os objetivos, as competências e as habilidades necessárias para uma aprendizagem adequada desses componentes curriculares e que a devida importância das Ciências Humanas seja ressaltada, tanto na escola quanto nas demais instâncias sociais. Referências BRANSFORD, John; BROWN, Ann; COCKING, RodneyR. (Org.). Como as pessoas aprendem: cérebro, mente, experiência e escola. São Paulo: Senac São Paulo, 2007. BRASIL. BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR. Disponível http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf. Acesso em 6 jan. 2019. em: DUARTE Jr, João Francisco. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. Curitiba: Criar Edições, 2001. GIL, Carmem Zeli de Vargas; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Práticas pedagógicas em História: espaço, tempo e corporeidade. Erechim: Edelbra, 2012. HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA, Montserrat. A Organização do Currículo por Projetos de Trabalho. 5a. Ed., Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. JANTSCH, Ari; BIANCHETTI, Lucídio. (orgs). Interdisciplinaridade para além da filosofia do sujeito. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. PEREIRA, Nilton Mullet; MARQUES, Diego Souza. Narrativa do estranhamento: ensino de história entre a identidade e diferença. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São Paulo, julho 2011. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1307971840_ARQUIVO _Narrativadoestranhamentotextofinal.pdf. Acesso em 11 jan. 2019. SEFFNER, Fernando. Aprendizagens significativas em História: critérios de construção para atividades em sala de aula. In: GIACOMONI, Marcelo Paniz; Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 61 PEREIRA, Nilton Mullet (orgs). Jogos e ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 62 SALDAÑA, Paulo. Quase 50% dos professores não têm formação na matéria que ensinam. Folha de S. Paulo. Educação. 23/01/2017. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/01/1852259-quase-50-dosprofessores-nao-tem-formacao-na-materia-que-ensinam.shtml. Acesso em 15 jan. 2019. A EXCEÇÃO E A REGRA: UMA ANÁLISE COMPARADA DO PPP DE UMA ESCOLA MILITAR E UMA ESCOLA NÃO MILITAR Debora Luana Ribeiro Maria Juliana de Freitas Almeida Introdução A pesquisa tem por objetivo promover a comparação entre os Projeto Político-Pedagógicos (PPP) de duas escolas, uma militar e outra não militar, buscando as diferenças e semelhanças entre ambas, analisando questões didáticas, pedagógicas e disciplinares. A escolha da análise dos PPPs das escolas em questão surgiu durante o Estágio Supervisionado realizado nos anos de 2017 e 2018. O primeiro, sendo no Ensino Fundamental, foi desenvolvido no colégio militar de Porangatu; e o segundo, no Ensino Médio, realizado no colégio do município de Formoso, ambos localizados no norte do estado de Goiás. O Estágio Supervisionado é uma disciplina obrigatória para os cursos de Licenciatura, busca trabalhar a concepção de um processo de teoria e prática, sujeito à construção e reconstrução do conhecimento científico do estagiário. O estágio tem por objetivo a preparação do aprendiz para a realidade do campo de trabalho em que se pretende seguir, proporcionando-lhe experiência em áreas ainda pouca compreendidas, capacitando, assim, “o estagiário para a realização de atividades nas escolas com os professores nas salas de aula, bem como para o exercício de analise, avaliação e crítica que possibilite a proposição de projetos de intervenção a partir dos desafios e dificuldades que a rotina do estágio nas escolas revela” (PIMENTA, 2008, p. 102). O problema a ser analisado parte da necessidade de uma reflexão sobre a crescente transformação de uma parte das unidades educacionais públicas de ensino básico, as quais eram de responsabilidade do governo do Estado de Goiás e que estão sendo transferidas para a Polícia Militar de Goiás, transformando-as, desta forma, em instituições de ensino militarizada. Através dos PPP buscaremos diferenças e semelhanças entre as duas escolas utilizando o método comparativo de Marc Bloch. A história comparada de Marc Bloch O método da comparação, mesmo com sua riqueza, ainda não é muito utilizado em pesquisas e trabalhos acadêmicos. Segundo Marc Bloch em sua obra “Por uma história comparada das sociedades europeias” (1998, p. 120), a história comparada é “um instrumento técnico de uso corrente, maleável e susceptível de resultados positivos. O método comparativo [...] não tenho a certeza de que até agora tal tenha sido suficientemente demonstrado”. Bloch (1998) afirma que mesmo com todas as demonstrações e técnicas, a maioria dos historiadores ainda relutam pela pratica do método. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 63 Bloch propõe a utilização do método para estudos de sociedades europeias que são postas em comparação, buscando as semelhanças e diferenças entre si. Sendo destacadas duas formas da pesquisa comparativa: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 64 “Escolhemos sociedades separadas no tempo e no espaço por distancias tais que a analogia observada de um lado e do outro, entre este ou aquele fenômeno, não possam, com toda a evidencia, explicar-se por influencias mútuas ou por alguma comunidade de origem. [...] mas há uma outra aplicação do progresso de comparação: estudar paralelamente sociedades a um tempo vizinhas e contemporâneas, incessantemente influenciadas umas pelas outras[...]” (BLOCH, 1998, p.121-123, grifos nossos). Estas duas alternativas de comparação deixam explícita sua preferência pelo segundo método, no qual se compara sociedades contemporâneas no mesmo tempo e espaço, e como uma influencia a outra. Bloch salienta que não se deve interpretar o método comparativo como somente uma forma de “caçar” semelhanças, mas sim, do mesmo modo, deixar perceptível suas diferenças, mesmo que sua origem seja de caminhos diversos. Outro dever desta metodologia é buscar as origens das diferenças, podendo assim analisar de forma relevante cada uma delas (BLOCH, 1998). Sobre o método José D’Assunção Barros nos diz que: “Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber variações de um mesmo modelo (...) de modo a que os traços fundamentais de um ponham em relevo os aspectos do outro, dando a perceber as ausências de elementos em um e outro, as variações de intensidade relativas à mútua presença de algum elemento em comum”. (BARROS, 2007, p. 10). Assim, a história comparada feita por Bloch e Barros, leva a pensar toda a importância para a formação do conhecimento histórico, o qual será utilizado para a análise dos PPP de instituições de ensino básico, que são regidas por administração diversificadas, utilizando o método que se analisa sociedade num mesmo tempo e espaço. Um PPP deve ser criado a partir de problemas ou de um sentimento de busca de melhoria, por isso, apresenta diferenças de uma escola para outra e, também, entre períodos. Como todo projeto no início do ano letivo, o PPP se torna um documento guia para o desenvolvimento de atividades propostas. Assim: “É preciso entender o projeto político-pedagógico da escola como um situar-se num horizonte de possibilidades na caminhada, no cotidiano, imprimindo uma direção que se deriva de respostas a um feixe de indagações tais como: que educação se quer e que tipo de cidadão se deseja, para que projeto de sociedade? A direção se fará ao se entender e propor uma organização que se funda no entendimento compartilhado dos professores, dos alunos e demais integrantes em educação” (ROMÃO E GADOLLI Apud PADILHA, 2001, p.44) Em uma análise mais ampla, pode-se verificar que o PPP militar e o não militar, aqui analisados, mesmo com todas as características distintas, baseiam-se nos pré-requisitos apresentados para a construção estrutural, conduzindo a trabalhar de modo a compreender o surgimento da nova estratégia de manipulação da responsabilidade com a administração das unidades militarizadas. “O primeiro colégio do estado de Goiás a ser transformado em colégio militar foi a Escola Estadual de 1º grau Vasco dos Reis, em 1999, que passou a se chamar, então, Colégio da Polícia Militar de Goiás Polivalente Modelo Vasco dos Reis, com cerca de 440 alunos. Em seguida, no ano 2000, a Secretaria de Educação entregou a direção do Colégio Hugo de Carvalho Ramos para o Colégio da Polícia Militar de Goiás (CPMG) com um quantitativo de 1700 alunos na época”. Não se deve confundir CPMG (Colégio da Polícia Militar de Goiás) com CM (Colégio Militar), pois seus objetivos são diferentes, pois o primeiro é destinado à educação básica de jovens e de adolescentes sob a administração de militares somente, e o segundo é específico para a formação de novos soldados, com funcionários, em sua maioria, militares. A motivação para a implantação desta nova forma de administração educacional misturada com a militarização teve toda uma abordagem política, segundo Guimarães (2018, p, 73): “Com o pressuposto de diminuir a violência e melhorar o desempenho dos alunos em um ambiente seguro tanto para os alunos quanto para professores e funcionários, o governo de Goiás, a partir de uma parceria entre as Secretarias Estaduais de Segurança Pública e de Educação, firmou convênio para que escolas públicas sejam repassadas à Polícia Militar. Cabe destacar que as escolas selecionadas estão localizadas em sua maioria na periferia, onde há altos índices de homicídios e com baixos índices de aproveitamento no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). A educação brasileira, na atualidade, mesmo com todas as novas transformações em escolas públicas para o novo modelo militarizado, inspira um sentimento de luta contra esse novo método padronizado de pensamento, como salienta Guimarães (2018, p.74). “É importante destacar que a emergência dos novos Modelos Militarizados de Gestão Escolar tem encontrado resistências. Em nota publicada pelo Fórum Estadual de Educação de Goiás (FEE-GO), Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 65 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 66 manifesta-se uma posição contrária ao projeto de Lei que regulamenta a militarização de parte das escolas, ressaltando que é competência do governo de Goiás garantir uma escola pública de qualidade e não transferir essa competência para a Polícia Militar, cuja missão constitucional difere enormemente do projeto de educação do MEC”. Toda esta nova proposta de direcionamento da educação pública para as mãos da polícia militar nos apresenta grandes contradições, como se refere Guimarães (2018, p.77): “Outra diferença seria o modelo de ingresso de novos alunos nas escolas e a reserva de 50% das vagas a serem destinadas aos filhos de policiais militares e os outros 50% destinados ao sorteio público aberto à comunidade estudantil”, sendo que por Lei todos têm o direito à educação, a qual é responsabilidade da família e do estado e, a deste, à inclusão gratuita. A Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB) legitima que é “dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, trazendo, pois, várias discussões a respeito da militarização do ensino acerca da possibilidade ser mascarada as reais intenções. CRUZ (2018, p. 151) destaca que: “os defensores dessas categorias não reconhecem que essa estratégia tira a responsabilidade do estado em cumprir com o que está previsto na lei, que toda criança tem direito a ter uma educação totalmente gratuita e de qualidade”. Assim, através de um estudo dos possíveis parâmetros trabalhados para a formação de um PPP, e após uma análise sobre o caminhar da militarização das escolas públicas brasileiras, realizar-se-á a análise da construção dos dois PPPs, tão discutidos até agora, comparando-os. PPPs: semelhanças e diferenças (ANALISE) Analisar de forma comparada os dois documentos de natureza orientadora, os quais são de suma importância para a sociedade educacional brasileira e de imensa complexidade, o foco da atividade são as características, principalmente, pedagógicas, assumidas pelos dois PPPs, que são construídos na mesma base pedagógica, mas, administrados de formas distintas. O PPP é um instrumento claro que apresenta de forma objetiva e transparente: propostas, ideias e formações da escola. Desenvolvendo de forma prática tudo que ocorre dentro do campo escolar e tem como objetivo guiar seus membros no decorrer do ano letivo, promovendo soluções práticas e novas estratégias para adventos futuros para que haja uma mudança de resultados no final de todas as experiências. O PPP funciona como um guia para todos os planos dentro de uma instituição, através do qual busca desenvolvimentos imediatos e futuros, podendo ser alterado a qualquer momento, mesmo que seja período de utilização. Padilha acentua: “Sem esquecer que a preocupação maior da escola deve ser o melhor atendimento ao aluno, o projeto político pedagógico deve partir da avaliação objetiva das necessidades e expectativas de todos os segmentos escolares. Deve ser considerado como um processo inclusivo, portanto, suscetível às mudanças necessárias durante sua concretização”. (PADILHA, 2001, p.76) Todos os PPPs foram desenvolvidos coletivamente e democraticamente com a participação de todos os membros da instituição que trabalharam em conjunto para melhorar as questões sociais, pedagógicas, disciplinares e estruturais dentro do âmbito escolar, sendo composto, então, pelos professores, alunos, direção, e indivíduos da comunidade os quais têm uma ação participativa direta ou indireta nos resultados. Como Padilha mesmo ressalta: “A partir dos dados disponíveis e das discussões ate então realizadas, os participantes terão condições de estabelecer possíveis saídas para os problemas levantados, e, mesmo, de organizá-las por categorias, ou seja, definir, hipoteticamente, estratégias e ações específicas (para aquele ano letivo, por exemplo), para as atividades pedagógicas, para as administrativas, comunitárias e financeiras da escola”. (PADILHA, 2001, p.81) O PPP das duas instituições caracteriza-se por apresentarem estrutura semelhantes de maneira explícitas, como a divisão por marcos. Primeiro, apresenta-se um diagnóstico da realidade em que a escola está inserida, como: a apresentação das ideologias; dos projetos já concretizados; da identificação da estrutura: física, pedagógica e organizacional (Marco Situacional). Em segundo, evidencia-se que o referencial teórico aborda a conceitualização de pontos fundamentais da construção, como: o conceito de aluno; o conceito de professor; e todo o aparato jurídico e burocrático das escolas (Marco conceitual). Por último, demonstra os planos desejados os quais se pretendem realizar, apresentando os objetivos das escolas, como: o que será trabalhado durante o ano letivo, com relação às disciplinas, às avaliações e à recuperação (Marco operacional). Estes seguimentos caracterizam e especificam cada período a ser transformado e reforçado durante o ano letivo, sendo que todos estes pontos conceituados dos marcos são mais bem desenvolvidos e descritos segundo a análise feita na unidade não militarizada. Outra característica clara são as extensões e a fundamentação, na qual o PPP da escola não militarizada apresenta quase que o dobro de extensão do outro, o PPP militar contém 34 páginas e o PPP da unidade não militar apresenta 64 páginas. As referências bibliográficas do militar constituída somente por documentos obrigatórios disponibilizados pelo governo; já o não militar, apoia-se em referências de autores renomadas que trabalham Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 67 para e pela educação, juntamente com os documentos disponibilizados pelo governo, assim, o PPP não militarizado se caracteriza mais específico e dinâmico com suas modalidades nele conceituado. Proporcionando, assim, uma maior clareza sobre seus objetivos e anseios. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 68 Para maior clareza da análise, uma tabela foi desenvolvida, a qual vai demonstrar de forma objetiva as dessemelhanças entre os dois PPPs, afirmando que ambos seguem o mesmo raciocínio de construção, do qual a escola não militar goza de algumas ideias evolutivas de maior desenvoltura, como, por exemplo, projetos voltados para a classe menos favorecida da comunidade. Entretanto, a escola militar demonstra que apesar da sua popularidade e exaltação, possui em menor escala determinados elementos criativos e de origem revolucionário, mostrando ser de modelo tradicionalista, desenvolvendo apenas o que outros autores já afirmaram como base para sua construção, seguindo apenas regras já determinadas, sem ampliar ideologia e base. Tendo em vista que dentro dos PPP, existe uma amplitude de atividades desenvolvidas, destacam-se, neste trabalho, pontos determinantes com relação ao âmbito pedagógico que interferem diretamente no resultado final de uma educação de qualidade, na qual as marcações em vermelho destacam suas atividades equivalentes: Quadro 1: Conceitos trabalhados em ambos os PPPs Colégio militar Dimensões pedagógicas X Pré-conselho X Conselho de classe X Pós-conselho X Reunião de pais X Direitos e deveres do aluno em sala de aula X Medidas socioeducativas X Proposta de formação continuada X Acompanhamento pedagógico dos X professores Reunião pedagógica com os professores X Avaliação do ensino aprendizagem X Rec. paralela e rec. da aprendizagem X Classificação e reclassificação X Progressão parcial X Avaliação e revisão do projeto político X pedagógico Fonte: os autores não Escola Militar X X X X X X X X Diversas etapas, como já demonstrada anteriormente, são necessárias para a construção de um PPP, com isso, abordar-se-á agora como cada elemento citado no quadro acima é tratado em cada PPP, pois as “dimensões pedagógicas”, segundo o PPP da unidade não militarizada, são trabalhadas de forma coerente e detalhada, especificando como é o projeto de ensino da unidade; como é trabalhada a formação do aluno reflexivo; qual a metodologia trabalha na escola; apresenta como serão atingidos os objetivos propostos; como é a relação professor-aluno, entre outras temáticas fundamentais para a fundamentação pedagógica de toda instituição de ensino. Já o PPP do militar, não há uma coesão sobre o trabalho desenvolvido neste sentido. Com relação ao “conselho de classe”, ambos os documentos analisados discutem o tema, mas de formas diferente, como, por exemplo, o PPP não militar faz uma abordagem mais ampla, discutindo conceitos e aspectos relacionados à justificativa apresentada no projeto. Referente ao “pré-conselho” e ao “pós-conselho”, é trabalhado somente na unidade não militar, porque se caracterizam como de grande importância para a construção e análise dos assuntos debatidos no conselho de classe. A “reunião de pais” é discutida de forma bem detalhada em ambos os PPP, explorando sua fundamentação de forma a influenciar toda estrutura educacional. Somente no PPP não militar, os “direitos e deveres do aluno em sala de aula” são abordados objetivamente de todas as maneiras, sendo inexistentes no PPP militar. A respeito das “Medidas Socioeducativas”, espera-se que esteja bem destacada no PPP de uma unidade militarizada, mas não foi isso que se pode verificar, pois durante a análise, foi constatado que o militar não aborda o tema, já o PPP não militar discute o assunto de forma detalhada e documentada seguindo todos os direitos e deveres dos envolvidos, incluindo: aluno, responsável, professor e gestores da unidade. Buscando o melhor desenvolvimento do aluno em sua formação acadêmica. As “propostas de Formação continuada” são trabalhadas em ambos os PPPs, mas com imensa controvérsia em sua proposta final. O PPP não militar faz todo um aparato dentro da unidade, disponibilizando ao profissional, que deseje esta formação, um ambiente receptivo e colaborativo com progresso, fornecendo-lhes periódicas discussões sobre o assunto, programas de curso, encontros e seminários para alavancar as metas desejadas coletivamente e individualmente. Mas, em contraponto, o PPP militar apresenta ser somente de acompanhamento e responsabilidade do governo, sem a influência ou responsabilidade da unidade. Outro ponto a ser destaque é a abordagem e a inexistência com relação ao “acompanhamento pedagógico dos professores”, e a “reunião pedagógica dos professores” no qual o PPP não militar discute especificamente cada passo e função deste processo, possibilitando ao professor um aparato especializado e de qualidade para com o desenvolvimento pedagógico no decorrer do ano letivo. Mas na análise do PPP militar não é mencionado. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 69 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 70 A “Avaliação do ensino-aprendizado’’, a “Recuperação paralela e recuperação da aprendizagem”, a “Classificação e reclassificação”, a “Progressão parcial” e a “Avaliação e revisão do projeto político pedagógico” são trabalhadas nos PPPs de forma abrangente, destacando suas normativas e ferramentas para a melhor forma de ensino disponibilizado aos alunos, mesmo assim, a abordagem desenvolvida foi, consideravelmente, mais abrangedora no PPP não militar. Ao decorrer do texto, foi demonstrado de forma explicita as diferenças e semelhanças de ambos os PPP, com a ideia do quadro, vê-se que o resultado é mais conclusivo, pois se tem acesso direto aos meios diferenciados e destacados em cada instituição. O IDEB apresenta outra falha com relação à construção do PPP, sendo mais claro o militar, no qual os dados apontados pelo MEC, não estão claramente expressos, apresentando somente os índices já realizados pela instituição e sua projeção. Fazendo refletir sobre o descaso com as notas já obtidas no ano de 2013 e 2015, pois uma nota se encontra totalmente zerada e sem embasamento para a construção deste índice, como se pode analisar no quadro a baixo retirado do próprio PPP militar: Ano Letivo 2005 2007 2009 2011 2013 2015 Quadro 2: EF Anos Finais IDEB Projeção 3,30 0,00 3,30 3,30 3,00 3,50 3,20 3,80 0,00 3,20 0,00 4,50 Fonte: PPP/ Escola Militar Em contraponto, o IDEB apresentado pela instituição não militar promove uma análise digna, mostrando índices com comprovações documentais, ou seja, dados pelo MEC. Segue o modelo abaixo retirado do PPP da unidade não militar: ANO 2002 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019 2021 Quadro 3: IDEB – 3ª Série do Ensino Médio IDEB OBSERVADO 2,9 2,8 3,1 3,6 3,8 FONTE: MEC (Estado de Goiás) METAS PROJETADAS 2,9 3,0 3,2 3,4 3,8 4,2 4,4 4,7 Analisando-se o contexto do PPP percebe-se que há toda uma abordagem trabalhada nos dados obtidos pelo MEC e transcritos de acordo com a tabela a cima. “A partir da análise dos indicadores do IDEB, esta Unidade Escolar tem buscado propostas de ações de melhoria além do trabalho em parceria com os pais e responsáveis para que os mesmos acompanhem o desempenho da escola de seus filhos, pela melhoria da educação”. (PPP, 2018, p. 19) Portanto, mesmo com todas as semelhanças as duas unidades tratam o Índice de desenvolvimento da educação básica de formas controversas: a militar somente disponibiliza os dados aleatoriamente, enquanto o não militar faz uma discussão abrangente em todos os níveis possíveis a serem abordados dentro da unidade. Um fato muito importante a ser destacado com relação ao PPP da escola militarizada, é que da documentação, a qual se teve acesso, em sua capa determina a data de 2018, porém ao decorrer do texto diversas passagens apresentam que o ano correspondente é o de 2013, sendo que a escola não tinha se tornado de administração militar naquele ano, assim, levando a entender que não foi feito uma atualização em seu todo. O objetivo primordial de toda escola, segundo a Constituição Federal Brasileira e o Conselho Estadual de Educação do estado de Goiás, é o livre acesso de toda e qualquer pessoa à educação de qualidade seguindo regimento e regras para a formação de cidadãos responsáveis e habilitados à vida social. Considerando-o claramente exposto no decorrer dos dois documentos, os quais faz a devida conceituação, explorando todas as suas vertentes obrigatórias. Baseando-se em uma análise mais profunda, é possível verificar que a documentação da escolar militarizada é superficial, seguindo, somente e especificamente, as normas e sugestões, negando uma abordagem criativa e inovadora. Mas, em contraponto, a escola não militar apresenta uma ampla atenção para os dados, trabalhando com tópicos e explicando de maneira clara e concisa os recursos metodológicos e diversificados para atender os anseios e os pontos de análises individualizados. No decorrer dos documentos, a caracterização de suas dimensões pedagógicas e a forma como estão sendo trabalhados: os objetivos, as propostas e as metodologias; como é compreendida a formação do aluno, e a forma como se é visto o professor, todas são abordadas de formas distintas. O PPP do colégio militarizado busca desenvolver ações pedagógicas e administrativas, tendo como meta a elaboração de projetos para a melhoria da escola, incentivando e melhorando assim o processo de ensinoaprendizagem. O projeto pedagógico é prioridade na escola, o qual foi elaborado numa reunião com todos os membros da unidade ao logo do ano Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 71 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 72 letivo, cujo objetivo é a organização dos conteúdos educacionais, tendo como apoio os resultados já obtidos do ensino-aprendizagem e os índices nas avaliações externas. Com relação ao regimento da escola, é de total organização e de um desenvolvimento ativo, pois, pelo fato de ser um colégio militarizado, a questão do regimento é respeitado e seguido fielmente. Segundo o PPP da unidade educacional não militar, o convívio com os pais é realizado em reuniões por bimestres e, também, por reuniões cuja finalidade é a construção do PPP; por meio da reconstrução e da participação efetiva dos pais durante esse acompanhamento e por meio dos projetos interdisciplinar que a unidade escolar realiza. Os pais participam de 98% das reuniões nas quais auxiliam na criação das normas de legislação do PPP e, principalmente, quando são convocados para reuniões individuais que tenham por fundamentação o desenvolvimento do aluno. Já com relação ao PPP da unidade educacional militar, os responsáveis são aqueles de participação ativa com os assuntos da unidade, destacando-se na criação de uma Associação de Pais e Mestres, a qual tem por objetivo auxiliar a escola e colaborar com o aprimoramento do processo educacional, dando assistência à escola e à integração família-escola-comunidade. Ainda de acordo com o PPP da unidade não militar, o papel do professor é caracterizado por não se resumir em apenas educar, mas também formar cidadãos conscientes de seus deveres e direitos em meio à sociedade. Trazendo, também de forma evidente, o método como é trabalhada a educação inclusiva, disponibilizando a integração do aluno portador de necessidades especiais à introdução e desenvolvimento no âmbito escolar. No decorrer do PPP da unidade não militarizado, observa-se disposição de um pré-conselho, um conselho e um pós-conselho, os quais apresentam uma organização e planejamento para que sejam realizados em cada etapa. Se houver necessidade de troca de projeto, também é convocado o conselho a cada bimestre letivo; bem como para diagnosticar o desenvolvimento do aprendizado do aluno, das atribuições ao professor e do trabalho da escola em geral. Segundo Cruz e Guimarães, a educação conservadorista transparece que apenas o professor detém o conhecimento, trabalhando com a repressão física, psicológica, educacional e moral, sendo exposta como repressão aos modelos tradicionalistas e conservadoristas. Deixando o aluno com limitação de pensamento, alienado e não sabendo como expressar questionamentos ou ideias, é questionável se realmente é o melhor modelo a ser implantado, mesmo que a justificativa para a mudança educacional seja os requisitos disciplinares ou evasão escolar. Mesmo com todos os seus contrapontos e dessemelhanças no desenvolvimento e criação dos PPPs, as duas instituições analisadas ambicionam garantir a todos o acesso e sua permanência ao ambiente escolar, transformando os alunos em futuros cidadãos com críticas formadoras de conhecimento e seres capazes de atuarem em meio à transformação da sociedade. Conclusão Destarte, a educação brasileira sofre com inúmeras adversidades, tanto pedagógicas, quanto estruturais e financeiras, acarretando uma imensa devastação do desenvolvimento educacional e intelectual dos envolvidos; e mostrando-se desmedida a sequência de problemas que se apresentam. Após analisar minuciosamente os dois PPP das unidades em questão, chegase à conclusão que, mesmo com tantos desafios enfrentados, as investidas pedagógicas e educacionais, apresentadas pelos PPPs, conseguem desenvolver o papel de instituições formadoras do conhecimento. A escola militar, por sua vez, não deve ser vista como um símbolo de superioridade, mas sim uma entre tantas outras unidades educacionais brasileiras, pois uma simples escola no norte goiano, não militar, mostrouse de grande criatividade, desenvoltura e competência pedagógica. Assim, percebe-se que todos têm a mesma habilidade de desenvolver novas estratégias para aperfeiçoar o aluno, ajudando-o a ser um cidadão criativo, crítico, reflexivo que saiba questionar tudo a sua volta. Referências BARROS, José D’Assunção. História Comparada – da contribuição de Marc Bloch à constituição de um moderno campo historiográfico. Campinas – SP: 2007. BLOCH, Marc. Para uma história comparada das sociedades européias. In: História e Historiadores. Lisboa: Teorna, 1998. p. 119 – 15 0. CARIA, Alcir de Souza. Projeto político-pedagógico em busca de novos sentidos. São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2011. 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POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS: BREVE HISTÓRICO DAS PRINCIPAIS JUSTIFICATIVAS E O PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO Diego Cavalcanti de Santana A relevância das ações afirmativas no contexto brasileiro e seus principais argumentos As políticas de ações afirmativas para o ensino superior têm como principal objetivo incorporar estudantes oriundos de grupos sociais representados de forma menos expressiva nas universidades públicas do Brasil. Segundo Bolonha e Tefé (2012, p.122), as ações afirmativas no âmbito educacional buscam produzir uma “real efetividade ao direito fundamental à educação e ao princípio da igualdade”, objetivos presentes na Constituição Federal de 1988. De forma mais ampla, tais políticas voltam-se para a promoção do acesso aos meios fundamentais como educação e emprego, e têm como público-alvo as minorias étnicas, raciais, sexuais, nacionais e grupos com características físicas e outras que diferem do padrão social majoritário normatizado. São segmentos que historicamente sofreram e sofrem algum tipo de discriminação e exclusão social (GOMES, SILVA, 2001). Sendo assim, as ações afirmativas pretendem viabilizar as oportunidades de “ingresso no mercado de trabalho, progressão na carreira, desempenho educacional, acesso ao ensino superior, participação na vida política, entre outros” (MOEHLECKE, 2002, p. 198; SILVA, 2006). Em estudo comparativo entre Brasil e África do Sul sobre as políticas de ações afirmativas, Silva (2006, p. 140) destaca que o argumento da modernização estava presente entre as justificativas mais frequentes para a implementação de tais políticas. A autora enfatiza que ambos os países passaram por processos de democratização em período recente, sendo que no Brasil a Constituição vigente foi promulgada em 1988 - após o término do regime autoritário civil-militar. A partir da visão de Telles (2004), o estudo aponta que tanto o Brasil quanto a África do Sul ao “se tornarem democracias passaram a sofrer pressão de grupos sociais para compensar suas dívidas históricas com os grupos excluídos”. Em consonância com tal afirmativa, Moehlecke (2002) afirma que com a redemocratização no Brasil, movimentos sociais exigiram uma postura mais ativa do poder público diante de questões como raça, gênero e etnia, estimulando o debate para que fossem criadas medidas específicas para a solução de problemas relacionados a esses grupos, como são as ações afirmativas. Torna-se essencial compreendermos também a importância dos direitos humanos para a existência das ações afirmativas. Na concepção de Santos (2012, p.290), a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completou 70 anos em 2018, “pode ser identificada como marco universal em defesa e justificação das ações afirmativas”. O autor destaca a influência do documento na construção da concepção contemporânea dos direitos humanos, que consagra o princípio da igualdade, e está em Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 75 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 76 harmonia com a Carta Magna brasileira, onde é determinado que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988). No entanto, essa igualdade formal, baseada em um aparato jurídico, não equivale a igualdade material. Por isso, argumenta-se sobre a necessidade de romper com a lógica igualitária e instituir um tratamento diferenciado, a fim de atenuar as desigualdades concretas, primando pela equidade. Ao implementar políticas públicas de ações afirmativas, o Estado admite a necessidade de “conferir a determinados grupos uma proteção especial e particularizada” (PIOVESAN, 2005, p. 46). No âmbito educacional, a adoção das cotas sociais e raciais nos processos seletivos de acesso às universidades públicas efetivam uma discriminação positiva, ao tratar grupos considerados vulneráveis de forma diferente. Também nesse caso, a necessidade de criar políticas públicas que possibilitem um tratamento diferenciado a determinados grupos, passa pelo reconhecimento das desigualdades sociais historicamente construídas que decorrem do processo de formação da sociedade brasileira (PIOVESAN, 2005). Na literatura sobre as ações afirmativas (SILVA, 2006; FERES JÚNIOR, 2006; SANTOS, 2012) são destacados três argumentos que justificam a adoção dessas políticas no contexto do ensino superior: 1o) o argumento da reparação, 2o) o argumento da Inclusão Social e 3o) o argumento da Diversidade. O argumento da reparação é uma justificativa histórica, que fundamenta-se na necessidade de buscar uma compensação em função da discriminação ocorrida no passado, como a escravidão no Brasil e o Apartheid na África do Sul. O argumento da Inclusão Social enfatiza uma compensação baseada no presente, diferindo da noção de passado do argumento de Reparação, expondo a necessidade de ações afirmativas para promover a “mobilidade de grupos excluídos socialmente” no contexto atual (SILVA, 2006, p. 142). Por fim, a justificativa baseada na Diversidade projeta as ações afirmativas como uma ferramenta de inclusão de grupos de alunos de diferentes origens raciais e étnicas, pluralizando o espaço universitário e enriquecendo as experiências de aprendizado e socialização do aluno. Transformam-se, portanto, em uma importante ferramenta de integração que estimula a convivência com as diferenças culturais no ensino superior. Com base nos principais argumentos de justificação, é possível afirmar que o tema das ações afirmativas tem uma importância central no debate sobre um ensino superior mais democrático, onde é possível pensar medidas que possibilitem a inserção de grupos representados em menor número nas universidades públicas do país. Entende-se que, em longo prazo, tais políticas “seriam responsáveis por mudar substancialmente a composição daqueles que ingressam na universidade pública, tanto no corpo discente quanto docente, ajudando a suprimir possíveis estereótipos na vida universitária e no convívio geral da comunidade” (BOLONHA, TEFFÉ, 2012, p. 124). Nesse cenário, as cotas surgem como um importante mecanismo na busca por maior equidade dentro do espaço universitário público brasileiro, sendo a modalidade de ação afirmativa mais adotada entre as universidades públicas do país. Conforme levantamento realizado por Daflon, Feres Júnior e Campos (2013, p. 314) “das 70 universidades brasileiras que possuíam na época alguma ação afirmativa, 35 (50%) aplicavam exclusivamente o sistema de cotas”. Apesar de ser a modalidade mais comum entre as ações afirmativas destinadas ao ensino superior, o sistema de cotas representa apenas uma categoria dessa política. Além das cotas, existem outras duas modalidades de ação afirmativa: A distribuição de bônus e o acréscimo de vagas, utilizados em ao menos 37,5% de todas as universidades federais e estaduais do país, segundo levantamento realizado no ano de 2011 (FERES JÚNIOR, CAMPOS, DAFLON, 2011). Os autores analisam as especificidades dessas duas modalidades de ações afirmativas menos conhecidas: A distribuição de bônus é um mecanismo utilizado para equilibrar a concorrência no vestibular a partir da distribuição de pontos-extras nas provas dos candidatos pertencentes a determinados grupos. Ao invés de se reservar um número de vagas, prefere-se bonificar os alunos negros, de escola pública, indígenas, de baixa renda etc. O bônus não garante que as vagas serão preenchidas pelos candidatos pertencentes a grupos desfavorecidos, mas pretende facilitar seu acesso a essas vagas. Já o acréscimo de vagas cria postos suplementares para determinados grupos (FERES JÚNIOR, CAMPOS, DAFLON, 2011, p. 314). As ações afirmativas presentes nas universidades brasileiras possuem critérios bastante distintos, sendo a desigualdade social mais aceita dentre as normas de inclusão dos programas, e os critérios raciais sendo os mais criticados pela população (GUARNIERI, SILVA, 2017). É possível afirmar que a modalidade de ações afirmativas mais conhecidas são as cotas raciais reserva de vagas para afrodescendentes e indígenas - talvez muito por conta do protagonismo do movimento negro na mobilização em prol de políticas públicas que buscassem atenuar as desigualdades raciais presentes no Brasil. A expansão das ações afirmativas em todo o país provocou uma série de alterações no ensino superior público brasileiro nos últimos quinze anos. O aumento do número de vagas e matrículas, assim como a mudança de perfil do estudante universitário, ocasionada pelo maior acesso das camadas populares as universidades públicas no país, são algumas das consequências mais perceptíveis de tais políticas. Na próxima seção pretendo analisar brevemente esse processo de democratização, as mudanças decorrentes da implementação das ações afirmativas e as peculiaridades da expansão do ensino superior brasileiro. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 77 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 78 Democratização do ensino superior brasileiro: Um sistema de massa em construção? As duas últimas décadas foram marcadas pelo processo de ampliação da educação superior brasileira, onde foi verificado um aumento significativo do número de instituições, cursos, vagas e matrículas. Esse período pode ser dividido em dois momentos: Segundo mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), caracterizado pelo alastramento das instituições privadas, e os governos Lula-Dilma (2003-2016), destacados “pela sintonia com as políticas globais de inclusão social” (RISTOFF, 2014, p. 724), configurada pela expansão das ações afirmativas no ensino superior público, mas também pela criação de políticas direcionadas às instituições particulares, como o PROUNI (RISTOFF, 2014; GOMES, MORAES, 2012). Ristoff (2014) analisa alguns dados que favorecem a visualização desse processo, ao afirmar que o número de instituições de ensino superior aumentou de “893 em 1991 para 2.416 em 2012, representando um crescimento de 171%”. Outro dado relevante para a discussão destacado pelo autor diz respeito ao aumento de número de matrículas que “cresceram de pouco mais de 1,5 milhão para mais de 7 milhões no [mesmo] período, representando um crescimento de cerca de 350%” em pouco mais de 20 anos (RISTOFF, 2014, p. 724). Verificou-se que entre 1999 e 2003 as matrículas no setor privado cresceram quatro vezes mais do que no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), período em que, apesar de não ter ocorrido crescimento significativo nessa área, o número total de matrículas no setor privado se manteve superior ao setor público. Esse cenário somente foi modificado no fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, quando o setor público apresentou um crescimento de matrículas superior ao setor privado pela primeira vez em muitos anos. A partir dessas informações o autor referenciado explicita um importante contraste entre o ensino superior em relação aos demais níveis de ensino: Enquanto todas as etapas da educação brasileira, do ensino fundamental ao doutorado, apresentam maiores porcentagens de matrículas nas instituições públicas, o ensino superior, pelo contrário, concentrava até 2012, um maior número de matrículas no âmbito privado (RISTOFF, 2014). Em um primeiro momento, o quadro descrito acima pode sugerir que as mudanças ocorridas nos últimos vinte anos seriam suficientes para que o Brasil tivesse atingido um sistema de educação de massas. Ristoff (2014), Gomes e Moraes (2012) se apoiam na perspectiva teórica desenvolvida por Martin Trow para analisar o contexto do sistema de ensino superior brasileiro. Trow (2005) desenvolveu três dimensões para pensar as transições dos sistemas de ensino superior, denominadas “sistema de elite”, “sistema de massa” e “sistema de acesso universal”, onde as principais transformações estariam associadas 1) as taxas de crescimento da matrícula; 2) o tamanho do sistema e das instituições de forma individual e a 3) a proporção do grupo etário de 18 a 24 anos matriculado (RISTOFF, 2014; GOMES, MORAES, 2012). Tanto Ristoff (2014) como Gomes e Moraes (2012) destacam as porcentagens de matrículas no ensino superior com o intuito de compreender a realidade do sistema brasileiro. Ambos os trabalhos utilizam a perspectiva de Martin Trow que compreende que um sistema de elite atende até 15% do grupo etário de 18 a 24 anos da população, o sistema de massa é definido por atender entre 16% e 50% desse grupo, enquanto o sistema universal caracteriza-se por um volume de matrículas que compreende mais de 50% dessa população (RISTOFF, 2014; GOMES, MORAES, 2012). Com base na classificação de Trow, ambos os autores concluem que o sistema brasileiro de ensino superior ainda pode ser compreendido como um sistema de massa em construção, tendo em vista que os estudantes de nível superior do Brasil representam cerca de 15% da taxa de escolarização líquida do grupo etário entre 18 e 24 anos. A consolidação de um sistema de massa em relação ao sistema de elite, de acordo com Trow, no entanto, só é possível, quando passa a admitir mais de 30% das matrículas do grupo etário relevante (RISTOFF, 2014; GOMES, MORAES, 2012). O volume de matrícula representa assim, uma variável central no processo de transição de um sistema para o outro, ao qual se articulam outras características que o sistema passa a apresentar, como a inserção de uma diversidade maior de estudantes, de origens sociais distintas, diferentemente do que ocorre em um sistema de elite onde “o acesso se dá quase que exclusivamente em função da origem de classe social dos estudantes, [obtendo] uma relação direta com o nascimento e a renda [onde se] constitui [um] privilégio social associado aos mecanismos meritocráticos da escolarização básica” (BOURDIEU, 2001 apud GOMES, MORAES, 2012, p. 174). Apesar de o processo de “massificação” do ensino superior brasileiro estar muito associado às instituições privadas, que possuem o maior número de matrículas de graduandos, é inegável que as políticas de ações afirmativas direcionadas ao ensino público tiveram uma importante parcela nesse processo de inserção das camadas mais populares nos cursos de graduação das universidades mais concorridas do Brasil. Com a inclusão dos grupos historicamente excluídos desse nível educacional, o perfil do aluno do ensino superior foi alterado significativamente. Ristoffi (2014) em seu estudo analisou essas mudanças de perfil dos estudantes do ensino superior brasileiro levando em consideração quatro aspectos: 1) Cor do estudante 2) renda mensal da família do estudante; 3) a origem escolar desse aluno e 4) a escolaridade dos seus pais. Em sua análise, o autor concluiu que as políticas implementadas no país nas últimas duas décadas permitiram uma série de alterações. No entanto, essas modificações representam apenas o início de um processo de democratização, onde são necessárias a manutenção, aperfeiçoamento e a Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 79 ampliação dessas políticas para que seja possível reverter elementos de um longo período em que perdurou no Brasil um sistema de ensino superior elitizado. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 80 Dentro das principais conclusões da pesquisa, o autor destaca que o campus brasileiro ainda está longe de refletir a realidade populacional do país. Segundo Ristoffi, apesar das alterações visualizadas nos últimos anos, alguns grupos da sociedade, como negros, e principalmente pardos, encontram-se ainda sub-representados nas instituições de ensino superior. Além da questão racial, a questão socioeconômica, a origem escolar e a escolaridade dos pais mostraram-se relevantes, conforme destacado abaixo: “Há uma forte correlação entre os indicadores socioeconômicos. Via de regra, o estudante que tem pai com escolaridade superior vem também de família das duas faixas de renda mais elevadas, frequenta cursos com os mais altos percentuais de brancos e se origina da escola do ensino médio privado. Já no outro extremo, estudantes que não têm pais com escolaridade superior ou com alto rendimento, estudam em cursos com percentuais de brancos muito próximos ao da população brasileira e têm a sua origem escolar no ensino médio público” (RISTOFFI, 2014, p. 274). O autor conclui também que as chances de ingresso nos cursos de alta demanda estão significativamente marcadas pela escolaridade superior dos pais, encontrando um resultado que está em consonância com o que Bourdieu havia evidenciado em sua obra “Os Herdeiros” (1964), destacado por Nogueira (2015): “Os estudantes não se distribuiriam homogeneamente entre os diferentes cursos ou áreas de formação mas, ao contrário, essa distribuição seria influenciada por sua origem social. Aqueles com uma origem mais modesta seriam afetados por aquilo que os autores chamam de uma “restrição de escolha”, concentrando-se nos cursos de menor prestígio, como Letras e Ciências, em detrimento de opções como Medicina e Direito. A instituição de ensino superior cursada também seria socialmente condicionada, com clara concentração daqueles com uma origem social privilegiada nas instituições de maior prestígio” (NOGUEIRA, 2015, p.51). Em estudo sobre o processo de escolha do curso superior, Nogueira (2007) aponta que o perfil dos estudantes varia fortemente de acordo com o curso frequentado. Para o autor, “essa distribuição está estatisticamente relacionada às características sociais, perfil acadêmico, etnia, sexo e idade do estudante” (NOGUEIRA, 2007, p. 3). No entanto, é cada vez mais frequente nessa etapa de ensino a presença de indivíduos que desafiam a noção de reprodução construída por Pierre Bourdieu, por serem oriundos de famílias com pouco ou nenhum capital cultural e mesmo assim conseguirem ingressar em cursos e instituições altamente seletivas. Considerações Finais A partir das reflexões levantadas nesse trabalho, é possível afirmar que nos últimos anos o Brasil consolidou as políticas de ações afirmativas que vem democratizando o acesso ao ensino superior, alterando assim, o perfil dos estudantes que ingressam nessas instituições de ensino. Desta forma, essas ações favoreceram a entrada de alunos das camadas mais populares da população, estudantes de escolas públicas, grupos historicamente excluídos, que são muitas vezes os primeiros membros da família a cursarem o ensino superior. Apesar do crescimento das ações afirmativas no ensino superior brasileiro e sua consolidação no cenário nacional ainda é possível apontar duas questões relevantes ao tema: 1) O maior número de matrículas dos alunos dessa etapa de ensino está concentrado no setor privado, se contrapondo ao cenário do ensino médio do país, que possui a maior parte dos seus estudantes originários da escola pública. Com isso, a realidade do ensino básico nacional, apesar dos avanços, ainda não é refletida no nível superior, tornando notória a discrepância entre alunos das escolas públicas que conseguem vagas nas universidades públicas do país e os demais alunos ingressantes, oriundos da rede privada; e 2) Apesar de as políticas de ação afirmativa terem contribuindo com o processo de democratização do ensino superior, torna-se evidente a necessidade que o Brasil ainda tem de avançar no que diz respeito ao oferecimento de oportunidades nessa etapa de ensino, tendo em vista que a maioria da população brasileira não possui nível superior. Referências BOLONHA, Carlos; TEFFÉ, Chiara de. Cotas Universitárias no Brasil: Uma Análise Sobre o Comportamento Institucional. In: Revista da Faculdade de Direito, UFPR, Curitiba, n.55, p.121-142, 2012. BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 2001. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. DAFLON, V. T., FERES JÚNIOR, J., & CAMPOS, L. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico. Cadernos de Pesquisa, 43(148), 302-327. 2013. FERES JÚNIOR, João. Aspectos Normativos e Legais das Políticas de Ação Afirmativa. In: FERES JÚNIOR, João; ZONINSEIN (Orgs). Ação Afirmativa e Universidade: Experiências Nacionais Comparadas. Editora UNB. 2006. p. 46-62. FERES JÚNIOR, João; CAMPOS Luiz Augusto; DAFLON, Veronica Toste. Fora de quadro: a ação afirmativa nas páginas d’O Globo. Contemporânea Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, n.2, p. 61-83. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 81 GOMES, Alfredo Macedo; DE MORAES, Karine Numes. Educação Superior no Brasil Contemporâneo: Transição para um sistema de massa. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, v. 118, p. 171-190, jan/mar. 2012. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 82 GOMES, J.B.B.; DA SILVA, F.D.L.L. As Ações Afirmativas e os Processos de Promoção da Igualdade Efetiva. In: Seminário Internacional - As Minorias e o Direito. Série Cadernos do CEJ. p. 86-153.2001. GUARNIERI, Fernanda Vieira; MELO-SILVA, Lucy Leal. Cotas Universitárias no Brasil: Análise de uma década de produção científica. In: Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo. Volume 21, Número 2, p. 183-193. Maio/Agosto. 2017. MOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e Debates no Brasil. In: Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 197-217, novembro. 2002. NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins. O Processo de Escolha do Curso Superior: Análise Sociológica de um Momento Crucial das Trajetórias Escolares. 30ª Reunião ANPED. GT: Sociologia da Educação. 2007. NOGUEIRA, Cláudio Marques Martins; NOGUEIRA, Maria Alice. Os Herdeiros: Fundamentos para uma sociologia do ensino superior. Educação e Sociedade, Campinas, v. 36, n. 130, p. 47-62, jan/mar. 2015 PIOVESAN, Flavia. Ações Afirmativas da Perspectiva dos Direitos Humanos. In: Cadernos de Pesquisa. v. 35.n. 124. p. 43-55. jan/abr. 2005. RISTOFF, Dilvo. O novo perfil do campus brasileiro: Uma análise do perfil socioeconômico do estudante de graduação. Avaliação, Campinas; Sorocaba, SP, v.19, n. 3, p. 723-747, nov. 2014 SANTOS, Adilson Pereira. Itinerário das ações afirmativas no ensino superior público brasileiro: dos ecos de Durban à Lei das Cotas. In: Revista de C. Humanas. Viçosa. v. 12, n. 2, p. 289-317. julho/dez. 2012. SILVA, Graziella M. Dias. Ações afirmativas no Brasil e na África do Sul. In: Tempo Social, revista de sociologia da USP. v. 18, n.2 p. 131-165. 2006. MÚSICA EM SALA DE AULA: ALGUMAS POSSIBILIDADES DO USO DE RAPS NACIONAIS PARA TRABALHAR A CONSCIÊNCIA NEGRA NAS ESCOLAS Edivaldo Rafael de Souza A partir de discussões da utilização de músicas em sala de aula, esse trabalho discorre sobre o uso de raps nacionais para trabalhar a consciência negra, sobretudo, nas aulas de História do Ensino Médio. Ao 20 de novembro de cada ano é dedicado o Dia da Consciência Negra e o Dia nacional de Zumbi. Essa data histórica foi instituída pela LEI Nº 12.519, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2011. Um dos principais fatores para que esse dia fosse definido no calendário é o de que, nessa data, pode-se trabalhar sobre as diversas faces das lutas da população negra em torno da igualdade racial no Brasil. Embora seja uma data definida por lei, são poucas as localidades que a definem como sendo de fato um feriado. Deve-se levar em consideração que o Brasil é um país de dimensões continentais, e que cada localidade tem a sua especificidade, ou até mesmo prioridade. Nesse sentido, alguns pesquisadores defendem que o feriado deveria ser nacional, assim como o de Tiradentes, por exemplo. A utilização da música em sala de aula, principalmente no ensino de História, pode ser uma metodologia que permite o estudante ter uma visão mais geral de determinado tema; ou ainda que ele possa desenvolver um gosto maior pelo tema estudado, uma vez que, na atualidade, o método tradicional de ensino, que utiliza giz e lousa e que perdura por muito tempo, está cada vez mais defasado frente ao uso da tecnologia em sala de aula. Dessa forma, a utilização de vídeos, músicas e, principalmente, a utilização da internet, vem gradativamente ganhando espaço nas escolas. Essa implementação de tecnologias no ambiente escolar torna necessário que, além de repassar conteúdo, o professor seja um mediador entre o estudante e a informação, separando, assim, as mídias que devem ser utilizadas para se trabalhar os fatos históricos. Diante disso, “O rap nos proporciona esse novo olhar para a complexidade que existe nas relações raciais no Brasil, que transmitem toda uma vivência de exclusão, pertencimento e luta por justiça social e racial. Ao fazer uso dessa temática de maneira interdisciplinar poderemos, através da arte, cultura, discussão e consequente interpretação, construir espaços dialógicos, emancipatórios e verdadeiramente democráticos no seio escolar” (MIZAEL, 2012, p. 5). Existem diversos cantores(as) e grupos brasileiros de raps que trabalham a questão da consciência negra em suas letras. Sendo algumassugestões:  D.M.N: 4.P (1993). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 83 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS  Emicida Part. Drik Barbosa,Rico Dalasam, Amiri, Raphão Alaafin, Muzzike, Rafael Tudesco:Mandume (2015).  Emicida Part. Karol Conká: Todos os olhos em nóiz (2018).  Emicida:Amoras (2015), Avuá (2017); dentre outras.  Gabriel O Pensador: Racismo é burrice (2003).  Lady Rap: Mulheres pretas (1993 ).  Mv Bill: Contraste social (1999), Só Deus pode me julgar (2002); dentre outras.  Negra Li Part. Rael:Raízes (2018).  Posse Mente Zulu: Sou negrão (2004).  Racionais MC’S: Voz ativa (1992), Negro drama (2002); dentre outras.  Rappin Hood: Eu tenho um sonho (2005), dentre outras. Página | 84 Ressalta-se também que, para a utilização de músicas em sala de aula, é necessário fazer uma breve introdução sobre o(a) artista trabalhado(a), o contexto que é retratado na música e qual o ano de sua produção. Nesse sentido, “(...) é fundamental a articulação entre ‘texto’ e ‘contexto’ para que a análise não se veja reduzida, reduzindo a própria importância do objeto analisado” (NAPOLITANO, 2002, p. 53). O exemplo nessa comunicação será a análise de um clássico do rap nacional, intitulada “Voz ativa”. A música, de composição de Edi Rock e Mano Brown,foi gravada pelo grupo Racionais MC’s. O grupo Racionais MC' s foi formado em 1988 por quatro rappers da cidade de São Paulo; Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e o DJ KL Jay. Em relação ao grupo, tem-se que “Nos anos 1980, eles frequentam bailes de música negra e KL Jay chama atenção pelo talento como dançarino de break. Edi Rock começa a cantar rap e abre shows para artistas como Thaíde & DJ Hum e MC Jack. KL Jay começa a acompanhá-lo como DJ. Os quatro frequentam o Largo de São Bento, reduto paulistano da cultura hiphop nos anos 1980. O produtor cultural Milton Salles é quem promove a fusão das duplas no grupo Racionais MC’s e, em 1988, passa a empresariá-lo” (Fonte: Site Itaú cultural). Ainda em 1988 “(...) foi lançada a primeira coletânea de rap brasileira, ‘Hip-Hop Cultura de Rua’, produzida por Nasi e André Jung, que contava com participação da dupla Thaíde & DJ Hum. Uma semana depois foi lançado o LP ‘Consciência Black, Vol. I.’, apresentando pela primeira vez o grupo Racionais MC's ao Brasil” (ROSA, 2017, p. 14). A canção analisada aqui nesta comunicação está presente no álbum “Escolha o seu caminho”, lançado em 1992. A letra da música “Voz ativa” vem a seguir: Voz Ativa Composição: Edy Rock / Mano Brown Racionais MC's “Eu tenho algo a dizer E explicar pra você Mas não garanto porém Que engraçado eu serei dessa vez Para os manos daqui! Para os manos de lá! Se você se considera um negro Um negro será MANO !!! Sei que problemas você tem demais E nem na rua não te deixam na sua Entre madames fodidas e os racistas fardados De cérebro atrofiado não te deixam em paz Todos eles com medo generalizam demais Dizem que os negros são todos iguais Você concorda... Se acomoda então, não se incomoda em ver Mesmo sabendo que é foda Prefere não se envolver Finge não ser você E eu pergunto por que ? Você prefere que o outro vá se foder. Não quero ser o Mandela Apenas dar um exemplo Não sei se você me entende Mas eu lamento que, Irmãos convivam com isso naturalmente Não proponho ódio, porém Acho incrível que o nosso compromisso Já esteja nesse nível Mas Racionais, diferentes nunca iguais Afrodinamicamente mantendo nossa honra viva Sabedoria de rua O RAP mais expressiva(E ai...) A juventude negra agora tem a voz ativa (Pode crer) Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 85 Você gosta, gosta, gosta, gosta de Nós (Hum...) Somos Nós, Nós, Nós, Nós mesmos (Hum...) Você gosta, gosta, (Scracthes..), gosta de Nós Somos Nós, Nós, Nós, Nós mesmos (Hum...) Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 86 Você gosta, gosta, (Scracthes..), gosta de Nós Somos Nós, (Scracthes..), Nós mesmos (Hum...) Você gosta de Nós Somos Nós, (Scracthes..), Nós mesmos Precisamos de um líder de crédito popular Como Malcom X em outros tempos foi na América Que seja negro até os ossos, um dos nossos E reconstrua nosso orgulho que foi feito em destroços Nossos irmãos estão desnorteados Entre o prazer e o dinheiro desorientados Briganbo por quase nada Migalhas coisas banais Prestigiando a mentira As falas desinformado demais Chega de festejar a desvantagem E permitir que desgatem a nossa imagem Descendente negro atual meu nome é Brown Não sou complexado e tal Apenas Racional É a verdade mais pura Postura definitiva A juventude negra Agora tem voz ativa Você gosta, (Scracthes..), gosta, gosta de Nós (Hum...) Somos Nós, Nós, Nós, Nós mesmos (Hum...) Você gosta, (Scracthes..), gosta de Nós Somos Nós, (Scracthes..), Nós mesmos (Hum...) Você gosta, (Scracthes..), gosta de Nós Somos Nós, (Scracthes..), Nós mesmos (Hum...) Você gosta de Nós Somos Nós, (Scracthes..), Nós mesmos Mais da metade do país é negra e se esquece Que tem acesso apenas ao resto que ele oferece Tão pouco para tanta gente Tanta gente Tanta gente na mão de tão pouco Pode crer Geração iludida uma massa falida De informações distorcidas subtraídas da televisão Fodidos estão sem nenhum propósito Diariamente assinando o seu atestado de óbito Pô to cansado de toda essa merda que eles mostram na televisão Todo dia mano...não aguento mais é foda mano... Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 87 Mas onde estão Meus semelhantes na TV Nossos irmãos Artistas negros de atitude e expressão Você se põe a perguntar por que Eu não sou racista Mas meu ponto de vista é que Esse é o Brasil que eles querem que exista Evoluído e bonito, mas sem negro no destaque Eles te mostram um país que não existe Esconde nossa raiz Milhões de negros assistem Engraçado que de nós eles precisam Nosso dinheiro eles nunca descriminam Minha pergunta aqui fica Desses artistas tão famosos Qual você se identifica? Então, Lecy Brandão, Moisés da Rocha, Thaíde e Dj Hum, Ivo Meireles, Moleques de Rua e tal E da Zona leste de São Paulo Grupo DMN. Pode crer é isso ai. Nossos irmãos estão desnorteados Entre o prazer e o dinheiro desorientados Mulheres assumem a sua exploração Usando o termo mulata como profissão É mal... (Chegou o Carnaval, Chegou o Carnaval) Modelos brancas no destaque As negras onde estão...Ham Desfilam no chão em segundo plano Pouco original mais comercial a cada ano O carnaval era a festa do povo Era...mas alguns negros se venderam de novo Brancos em cima negros em baixo Ainda é normal, natural 400 anos depois, 1992 tudo igual Benvindos ao Brasil colonial e tal Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 88 Precisamos de nós mesmos essa é a questão DMN meus irmãos descrevem com perfeição então Gostarmos de nós brigarmos por nós Acreditarmos mais em nós Independente do que os outros façam Tenho orgulho de mim, um rapper em ação Nós somos negros sim de sangue e coração Mano IceBlue me diz Justiça é o que nos motiva a minha a sua A nossa voz ativa (Scracthes..) Racionais (Scracthes..) Racionais (Scracthes..) Racionais Ra, Ra, Racio, Ra, Ra, (Scracthes..), Ra, Ra, Ra,(Scracthes..), Ra, (Scracthes..), Ra, Racionais”. (Scracthes..), Fonte: Site Letras. Disponível em:<https://www.letras.mus.br/racionais-mcs/63445/>. Acesso em: 1 jan. 2019. Quando se analisa a letra fica claro que é um rap que fala sobreas ruas, sobre a realidade da população negra brasileira, principalmente a de baixa renda. Gravada no ano de 1992, ela traz um estilo de rap que estava em plena ascensão no mundo, que utilizava o dia a dia como inspiração para produção das letras. Aqui no Brasil o próprio Racionais MC’s se tornou o principal grupo desse período, mas em outros diversos lugares já haviam surgidoartistas que utilizavam a periferia como recorte espacial, Tupac Shakur (1971-1996), nos Estados Unidos, talvez seja o maior exemplo. Essas letras voltadas para o cotidiano podem ser entendidas como “[...] um conjunto disperso de práticas, representações e formas de consciência que possuem lógica própria (o jogo interno do conformismo, do inconformismo e da resistência) distinguindo-se da cultura dominante exatamente por essa lógica de práticas, representações e formas de consciência” (CHAUÍ, 1994, p. 25). Desse modo, percebe-se que, na letra de “Voz ativa”, são citadas várias personalidades negras que exerceram ou ainda exercem papel de liderança. Na música é trabalhado a necessidade de se dar maior voz aos cidadãos negros, principalmente na mídia, que tem um papel fundamental na luta pela igualdade. Por meio dessa análise também é possível desenvolver pesquisas no que tangemaos movimentos negros no país, ressaltando o período em que a canção foi gravada, do ano de 1992 aos dias atuais, pesquisando sobre os possíveis avanços das lutas desses movimentos. Tem-se, portanto, a conclusão de que o rap nacional se apresenta como uma ferramenta que torna possível desenvolver aulas que levem os estudantes a refletirem sobre a temática da consciência negra. Ademais, é papel fundamental da educação brasileira promover crescentemente a igualdade na sociedade, eliminando as práticas racistas que muitas vezes persistem no ambiente escolar. Ao apresentar e debater a consciência negra utilizando métodos mais envolventes e inovadores, a escola ajuda na promoção de cidadãos mais críticos e atuantes em prol de uma sociedade mais justa e igualitária. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 89 Referências CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. MIZAEL, Náiade Cristina de Oliveira; et al. Rap no espaço escolar: redescobrindo identidades. Anais do III Congresso Internacional de História da UFG/ Jataí: História e Diversidade Cultural, p. 1-7. Universidade Federal de Goiás, 2012. NAPOLITANO, Marcos. História & música: história cultural da música popular. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2002. PERCILIANO, Michele. No ritmo e na poesia: o rap e o hip-hop como estratégia didática para o ensino de História da áfrica e cultura afrobrasileira. Anais do VIII Congresso Internacional de História, p. 1341-1348. Universidade Estadual de Maringá, 2017. ROSA, Vitor Hugo de Araújo. Patos de rimas: o rap em Patos de Minas. 2017. 23p. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), Patos de Minas-MG, 2017. Site Itaú Cultural. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo636012/racionais-mcs. em 1 jan. 2019. Acesso Site do cantor Emicida. Disponível em: http://emicida.com/. Acesso em: 1 jan. 2019. LEI Nº 12.519, DE 10 DE NOVEMBRO DE 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2011/lei/l12519.htm>. Acesso em: 1 jan. 2019. HISTÓRIA E LITERATURA: UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A UTILIZAÇÃO DE UM CONTO NO ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL Edivaldo Rafael de Souza Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 90 A partir de discussões do uso da Literatura no ensino de História, esta comunicação analisa a possibilidade da utilização do conto “São Gonçalo do Abaeté (1968) ”, da escritora mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993), no ensino de História Local. O conto supracitado retrata o período de transição de distrito a cidade do município mineiro de São Gonçalo do Abaeté-MG, terra natal da escritora. Dessa forma, é possível abrir discussões não só a respeito da história local, mas também a respeito de como era a vida nessa pequena cidade do interior mineiro. No conto São Gonçalo do Abaeté, publicado primeiramente em 24 de abril de 1965 no Jornal Correio da Manhã, e segundamente no livro “o sofredor do ver (1968)”, a escritora rememora o período em que morava em sua terra natal, retratando de forma detalhada o processo de emancipação político-administrativa da localidade. Diante disso, é possível analisar o conto utilizando-se da vertente historiográfica que discorre sobre a história local, pois a “História local requer um tipo de conhecimento diferente daquele focalizado no alto nível de desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador uma ideia muito mais imediata do passado” (SAMUEL, 1990, p. 220). Pode-se utilizar também a vertente que destaca o diálogo entre ahistória e a literatura. Um dos precursores em pesquisas de aproximações entre essas duas áreas dos saberes foi o historiador estadunidense Hayden White, 1928-2018, que, ao publicar o livro intitulado “Meta-História: a imaginação histórica do século XIX” define que existem quatro tropos, que servem para “a análise da linguagem poética, ou figurada: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia” (WHITE, 1995, p. 46). Diante desse fato, White define que o discurso histórico está centrado em uma narrativa literária. Além disso, “com relação à literatura tipo de fonte escolhida para a proposta, sua conversão em fonte histórica efetivou-se dentro de uma mudança de enfoque do historiador, interessado em compreender o universo mental de homens e mulheres. O estabelecimento deste diálogo foi uma tarefa árdua que implicou em um amplo questionamento das concepções das correntes historiográficas resultando com que nas últimas décadas a literatura fosse vista pelo historiador como material propenso a diversas leituras, pela sua riqueza de significados para o universo cultural, dos valores sociais e experiências dos homens e mulheres no tempo” (CORREIA, 2012, p. 192). No início do conto, a escritora descreve que “[p]lantou-se uma casa. Grave, um padre traçou um destino: cidade” (CANÇADO, 2015, p. 67). O padre em questão era João de Almeida Mattos, que, além de responsável por representar a religião católica naquela localidade, também foi um dos primeiros moradores, e irmão do primeiro prefeito, Messias Mattos. Ressalta-se que padre João Mattos era tambémconhecido na cidade como um coronel, uma vez que possuía uma grande quantidade de terras nas redondezas. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 91 Imagem 1: Padre João de Almeida Mattos. Fonte:Monografia de Fernando Borges. Em outra descrição sobre o município, Maura Lopes Cançado (1965, p. 68) discorre “[s]ua nudez não lhe permitindo vida mais íntima, os habitantes expostos, talvez por isto sadios – gente que gosta muito de cantar. Pois jovem e pequena. Não oficialmente cidade, São Gonçalo passou a ter a sua bandinha”. A banda se chamava Santa Cecília, e era formada por moradores do distrito, e também por um maestro da cidade vizinha de Patos de Minas, que foi contratado pelo prefeito. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 92 Imagem 2: Banda de Música Santa Cecília. Fonte: Livro São Gonçalo do Abaeté e sua gente. Cançado (2015, p. 68) descreve a cidade como sendo “[s]em princípio nem fim. Vista de longe brilhava incrustada na campina, em sua marcha lenta e anônima para o progresso. Ou, princípio era o alto do cruzeiro, de onde parecia nascer. A cruz iniciava a marcha. Desse ponto descia reverente a rua principal, espinha dorsal da cidade. Terra branca, água clara: os olhos de prata dos habitantes perdiam-se nos regos, líquidos. A falta de número nas casas jamais dificultou a vida daquela gente”. A cruz destacada encontrava-se no alto de um morro, onde, na atualidade, encontra-se a capela de Nossa Senhora das Dores. A rua principal pela autora destacada é hoje a Avenida Padre João Mattos, sendo ainda nos dias atuais a principal via da cidade. Os regos de água clara não existem mais, pois foram desativados após a instalação da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) na cidade. Em relação àemancipação político-administrativa do município, escreveu Cançado (2015, p. 72) que “[d]e distrito São Gonçalo surpreendeu, conquistando o direito precoce de ser chamada cidade. (...) Fundação da Prefeitura, Câmara dos Vereadores, tanta coisa, meu Deus. (Ouviu-se essa frase reiteradas vezes durante o período da transição)”. Após 21 anos como distrito de Tiros-MG, São Gonçalo do Abaeté conseguiu a sua emancipação. De acordo com Brandão (1993, p.112): “(...) era governador do estado de Minas Gerais o Dr. Benedito Valadares Ribeiro que, atendendo aos pedidos da população, fez o seu Decreto-Lei n. 1058, de 31 de dezembro de 1943, criando o município de São Gonçalo do Abaeté”. Sobre a vida social é revelado que “[d]o entardecer até a noite, no coreto da igreja – a igreja foi uma das primeiras e principais instituições da cidade – a música vibrava quente, nos rostos que, ignorando para onde, tinham a sensação de em breve se dirigirem para algum lugar” (CANÇADO, 2015, p. 68). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 93 Imagem3: Igreja de São Gonçalo do Abaeté, década de 1940. Fonte: Paróquia Imaculada Conceição – São Gonçalo do Abaeté – MG. Mesmo após se mudar de São Gonçalo do Abaeté, a escritora parecia ainda ter notícias da localidade ao escrever que “[a]gora São Gonçalo conta com pequeno ginásio, sede de clube, algumas estradas rodoviárias, campo de aviação, bares descansados (...)” (CANÇADO, 2015, p. 73). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 94 É fundamental destacar que quando são utilizados fragmentos literários em uma pesquisa biográfica ou histórica, é necessário um amplo debate sobre a história e a ficção, já que as fronteiras entre essas duas áreas das humanidades estão em constantes aproximações e distanciamentos entre o fato e a fantasia, o real e o imaginário. Fazendo-se, segundo Santos (2003, p. 84), “necessária uma relação dialógica entre o discurso histórico e o literário”.Não obstante, a utilização da literatura na área da história é muito importante, pois além do seu uso como fonte, ela também pode favorecer para que sejam estudados novos temas, levantando-se teorias e métodos de abordagens para que, posteriormente, seja feita a sua utilização em prática. Assim sendo, o “uso das obras literárias como uma linguagem alternativa no ensino de história representa as minúcias de uma sociedade, sua leitura pode assumir o papel de uma narrativa histórica, e o mais interessante, podemos abordar as distintas interpretações quando vinculamos ao seu contexto histórico, observando o confronto dos dois tempos, aquele na qual a obra foi escrita e o contexto que se insere o leitor. É importante destacar que o uso da literatura procura despertar no alunado o interesse pela leitura, e ainda, procura despertar sua individualidade como leitor, respeitando as particularidades do seu tempo” (SOARES, 2011, p. 797). Indubitavelmente, pode-se concluir que, por meio do estudo do conto abordado nesta comunicação, faz-se possível analisar e compreender diversas variáveis que auxiliam em um maior (re) conhecimento da cidade em questão, o que resulta na recomendação da obra em foco para ser trabalhada em sala de aula das escolas do município. Nota-se, ainda, a viabilidade de utilizar-se da escrita da autora para trabalhar em outras pesquisas que contemplem São Gonçalo do Abaeté como tema. Referências BORGES, Fernando Antônio. João de Almeida Mattos: um coronel de batina. Monografia de graduação em História, Centro Universitário de Patos de Minas, 2005. BRANDÃO, José da Silva.São Gonçalo do Abaeté e sua gente. Belo Horizonte: AMG, 1993. CANÇADO, Maura Lopes. O sofredor do ver. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. CORREIA, Janaína dos Santos. O uso da fonte literária no ensino de história: diálogo com o romance “Úrsula” (final do século XIX). Revista: História & Ensino, Londrina, v. 18, n. 2, p. 179-201, jul./dez.2012. Disponível em: <https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/847814/mod_resource/content/1/O %20USO%20DA%20FONTE%20LITER%C3%81RIA%20NO%20ENSINO%20 DE%20HIST%C3%93RIA.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2019. SAMUEL, Raphael. História Local e História Oral.In: Revista Brasileira de História. P. 219-242. V.9, n. º 19, set. 1989/ fev. 1990. SANTOS, Roberto Carlos dos. Entre a história e a ficção: diálogos, fronteiras, identidades. Revista Alpha, Patos de Minas - MG, 4(4):76-94, nov. 2003. SOARES, Cristiane de Souza. As representações literárias e o ensino de história: discutindo história pela literatura. Anais do V colóquio de historia perspectivas históricas, 16,17 e 18 out 2011. Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Disponível em: <http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wpcontent/uploads/2013/11/5Col-p.795-800.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2019. WHITE, Hayden. Meta-História: a imaginação histórica do século XIX. Trad. José Laurênio de Melo. São Paulo: Edusp, 1995. Conto “São Gonçalo do Abaeté” de Maura Lopes Cançado. Fonte: Arquivos do Jornal Correio da Manhã. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFi s=64024>. Acesso em: 4 jan. 2019. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 95 REPRESENTAÇÕES E IMAGENS DO RIO DE JANEIRO EM “VIAGEM PITORESCA E HISTÓRICA AO BRASIL” Elenice Alves Dias Borges Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 96 Introdução Este artigo trata sobre o trabalho do artista Jean-Baptiste Debret quando veio ao Brasil com a Missão Artística Francesa. O interesse e o estudo ora apresentado derivam de atividades realizadas nas disciplinas de “História da Arte” e “História do Brasil: Colônia” realizadas durante nossa graduação em História, ainda em andamento pela UNICESUMAR. A escrita se divide de forma a apresentar brevemente a vida do artista, o Movimento Neoclássico e a cidade do Rio de Janeiro, separada em três tópicos para melhor entendimento, sendo eles: Território, População e Cotidiano. Para cada tópico, usamos de duas a três pranchas de Debret para análise, com isso, procuraremos responder a pergunta: Como era o Rio de Janeiro que Debret conheceu? Acreditamos que o trabalho contribui com o assunto do Simpósio ao passo em que se insere na discussão do uso das fontes iconográficas, do diálogo entre Arte e História, que podem ser de grande contribuição para o ensino de História em sala de aula. Jean-Baptiste Debret Nascido em Paris, em 18 de abril de 1768, Jean- Baptiste Debret era filho de uma comerciante de roupas com um funcionário do parlamento francês. Era sobrinho-neto de François Boucher (1703-1770), um expressivo pintor e gravador do barroco-rococó francês, e primo de Jacques Louis David (17481825), um dos maiores nomes do neoclassicismo francês (TREVISAN, 2007). Cursou alguns anos o liceu Louis-Le-Grand e após esse período viajou com Jacques Louis David para Roma em 1784, iniciando sua carreira artística (TREVISAN, 2007). Em 1805 passou a trabalhar para Napoleão. Em 1815 perdeu seu único filho e no mesmo ano Napoleão foi exilado na ilha de Santa Helena, além da mudança definitiva de Jaques Louis David para a Bélgica. A França se tornou um ambiente menos amistoso para artistas que trabalharam para Napoleão e apoiaram a Revolução. Assim, Debret escolhe sair em uma expedição artística organizada por Joaquim Lebreton (1760-1819). Com outros artistas franceses Debret viria para o Brasil. Ironicamente, Debret e os demais artistas (Taunay, Lebreton, Grandjean de Montigny, etc) vieram para o Brasil, que seria a nova sede do governo português, já que Dom João e a família real precisaram fugir de Napoleão e do exército francês (TREVISAN, 2007; SQUEFF, 2005). Essa viagem de artistas para o Brasil, em 1816, foi nomeada de Missão Artística Francesa, sendo registrada por Jean-Baptiste Debret em seu livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (SQUEFF, 2005). O movimento neoclássico Nascido na França no contexto da Revolução, o movimento Neoclássico correspondeu aos anseios burgueses da época, servindo aos propósitos da Revolução com obras que remetiam aos temas clássicos greco-romanos. Quando se fala em Neoclassicismo, de imediato pode vir a mente as obras de Jaques Louis David, importante representante neoclássico e criador das obras: O Juramento dos Horácios, A Intervenção das Sabinas e A Morte de Sócrates, não as únicas, porém as mais famosas junto às pinturas de Napoleão Bonaparte. A característica forte das obras de David é a imagem heroica dada aos personagens de suas telas (GOMBRICH, 2013). Essa natureza heroica e tocante foi característica predominante nas obras neoclássicas. Nessas obras, os artistas deixavam registrado seu sentimento. Consideravam o período em que viviam tão importante e memorável quanto o período clássico greco-romano (GOMBRICH, 2013). Por essa razão, a referência ao período clássico foi tão forte. Eram retratadas as mortes dos membros importantes da Revolução, essas mortes eram reproduzidas de forma que o espectador sentisse a dramaticidade e a simbologia daquela morte. Por isso que a arte neoclássica serviu tão bem aos propósitos burgueses e revolucionários. O movimento Neoclássico não foi exclusivo da França, porém, nasceu em terras francesas e foi nelas onde se mostrou mais expressivo devido seu contexto. Movimento neoclássico no Brasil No ano de 1808 a família real portuguesa, fugindo do cerco francês, atraca na costa brasileira, mais precisamente na cidade do Rio de Janeiro em 26 de fevereiro. O Brasil seria, a partir de então, sede da corte real portuguesa (TREVISAN, 2007). Em meio a mudanças administrativas e culturais, após sugestões do Conde da Barca, Dom João aceitou a ideia de receber um grupo de artistas franceses de diversas áreas do conhecimento para a formação de uma Escola Real de Ciências Artes e Ofícios. Foi essa gama de artistas que formou a então chamada Missão Artística Francesa (DIAS, 2006). Como pode-se perceber, a vinda de artistas estrangeiros para o Brasil ocorreu através da Coroa, ou seja, foi iniciativa premeditada e institucional. Por essa razão, pode-se observar que o surgimento do movimento Neoclássico no Brasil se diferencia do Francês. Enquanto na França os artistas neoclássicos estavam em pleno clima de revolução e luta contra o absolutismo, no Brasil ele se desenvolve sob o patrocínio da Coroa (SANTOS, 2012). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 97 Jean-Baptiste Debret foi o maior representante neoclássico no Brasil. Ao produzir suas obras, registrou o Brasil que conheceu no século XIX. Debret viajou pelo Brasil e suas províncias registrando o que via e catalogando em seu livro. Os registros de Debret demonstravam desde o cotidiano das famílias brasileiras e da família real, até a fauna e a flora brasileira. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 98 Iconografias da cidade do Rio de Janeiro A cidade fluminense encontrada por Debret, além de seu objeto de estudo, foi também sua habitação por 15 anos, dando ao artista condições suficientes para atenuar os efeitos de “primeira impressão” dos olhos de um estrangeiro. Separamos as representações da cidade do Rio de Janeiro em três tópicos para melhor entendimento, sendo eles: Território, População e Cotidiano. Território O território do Rio de Janeiro foi reproduzido por Debret nas pranchas 51, 52 e em um mapa, constante na página 331 de nossa edição de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (DEBRET, 2016). FIGURA 1 Prancha 51: “Vista da entrada da Baía do Rio de Janeiro”, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tomo II. Primeiramente, através da prancha 51, pode-se notar a imagem da Baía de Guanabara que se destaca nitidamente pela presença do monte que conhecemos por Pão de Açúcar. Pode-se dizer que a prancha de Debret retrata um dos maiores símbolos visuais brasileiros. Ao ler a descrição física feita por Debret, nota-se os nomes de lugares famosos do Rio de Janeiro como o Morro do Corcovado, Enseada de Botafogo, bairro do Catete, lugares que estrelaram as páginas de romancistas brasileiros. Na prancha 51, Debret retrata a imagem que vem aos olhos de brasileiros e estrangeiros quando se ouve falar em Brasil. A Baía de Guanabara era, quando Debret chegou ao Brasil, cercada pela mata ainda virgem e, apesar de ser uma cidade já povoada, a mata fechada continuava presente em seus entornos, sendo que esse detalhe não ficou de fora da pintura. Debret também não deixa de fora as atividades cotidianas realizadas no mar, como os pescadores nas canoas e as embarcações maiores que ele atribui a barcos que fazem o transporte de produtos dos sítios da região. Na prancha 52, é retratada a baía de Praia Grande, que assim como a retratada na prancha 51 possui uma forte vegetação e alto nível de trabalhadores. A beleza da baía é exaltada por Debret em seus escritos. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 99 FIGURA 2 Prancha 52: “Vista geral da cidade do Rio de Janeiro”, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tomo II. Na prancha 52, Debret retrata a baía com a neblina rotineira da manhã, dá breve destaque ao Corcovado e cobre quase que por completo o Pão de Açúcar. Também se podem perceber as casas construídas na areia da praia, ainda que não sejam muitas. Toda essa região pintada por Debret hoje é ponto turístico que atrai turistas do mundo todo. População A população do Rio de Janeiro á época da chegada da Corte era de 60 mil habitantes, sendo que destes, metade eram escravos. Esse número subiu com a vinda da Corte que aumentou a população em cerca de 15 mil habitantes. Sobre o brasileiro, Debret o descreveu como sendo cortês, hospitaleiro e com tendência a querer encantar o próximo. Suas características físicas são fortes e marcantes e seu olhar, segundo o artista, é vivo (DEBRET, 2016). Ao falar da mulher brasileira, destacou sua limitação de atuação. Segundo ele, a prática governamental europeia de manter as suas colônias sem acesso à educação tornou as mulheres principalmente presas as rotinas dos seus lares. Relata sobre a timidez da mulher brasileira que, segundo ele, se dava pela falta de educação. Isso não quer dizer que fosse ríspida ou grosseira, mas o que Debret compreende é que a mulher não obtinha preparação para o convívio social. A consequência da falta de traquejo social seria a reclusão e a “solidão” dessa mulher, que se mantinha nas dependências de seu lar, com seus afazeres e o gerenciamento de seus escravos (DEBRET, 2016). Para ilustrar essa “solidão”, ele pintou uma de suas pranchas com uma cena cotidiana de uma senhora brasileira. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 100 FIGURA 3 Prancha 54: “Uma senhora brasileira em seu lar”, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tomo II. Nesta prancha, de número XX, Debret procurou demonstrar um dia de rotina de uma senhora brasileira. Ela está rodeada de seus escravos, cada um com sua função. Ao lado dessa senhora, está um cesto, que se denomina de gongá, dentro dele, além das roupas brancas há também um chicote de couro, que era usado para ameaçar seus escravos e também um pequeno macaco, como uma espécie de mico, que seria uma distração para alegrar a rotina da senhora. À frente dessa mulher está sua filha, que toma de si mesma lições de leitura. Debret informa na descrição da cena que a leitura da moça não é tão avançada; sobre a escrava que está sentada aos pés da senhora, ressalta observação sobre os cabelos da mulher, que são enrolados dando um formato cilíndrico e sem adornos ou enfeites. Esse detalhe, segundo o artista, diz que escrava trabalha em uma casa que não seria tão “opulenta”. À direita está uma escrava de cabelos bem mais curtos que praticamente faz lembrar um homem, esse detalhe estético mostra que ela é de nível inferior ao da outra escrava. Além destas duas escravas, nota-se também um rapaz que traz um grande copo de água. Em um lugar quente e em que os habitantes possuíam o costume de comer alimentos apimentados e compotas açucaradas, beber bastante água era costumeiro. No chão, duas crianças que ainda nem mesmo andam, apenas engatinham, brincam na esteira enquanto os adultos trabalham (DEBRET, 2016). A cena ilustrada aponta a naturalidade do momento, costumeiro, em que as senhoras ficavam sozinhas, cercadas apenas pelos seus escravos e longe do convívio social. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 101 FIGURA 4 Prancha 58: “Visita a uma fazenda”, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tomo II. Na prancha 58, Visita a uma fazenda, Debret pintou uma reunião em uma fazenda. Na descrição dessa cena, Debret chama a atenção para a face sisuda da dona da casa que seria por rotineiramente advertir os “escravos preguiçosos” (DEBRET, 2016). Também ressalta a influência europeia nos cabelos das brasileiras. Debret escreveu sobre a rotina dos brasileiros estar atrelada ao clima quente e úmido. Na prancha, nota-se a vestimenta das mulheres que é composta por tecidos finos, tanto as donas da casa quanto as visitantes e escravas ao redor. Novamente nesta prancha, o artista comenta sobre o corriqueiro costume do consumo de água. As famílias brasileiras, segundo Debret, eram numerosas, já que as mulheres tinham de 12 a 14 filhos. Nesta visita ilustrada pelo artista, notase que os visitantes portam chapéus de abas bem largas para a proteção do sol forte. A dona da casa usa um xale para recepcionar suas visitas, uma roupa diferente para recepcionar visitantes. Diferentemente da prancha analisada anteriormente, as escravas ilustradas utilizam um pouco mais de adornos, isso pode significar que essa família tinha mais posses. Debret ressalta que a dona da casa, mãe da família, passa bastante tempo em sua marquesa (DEBRET, 2016). Nessa prancha, além de estar sentada na marquesa, a dona da casa também possui em suas mãos uma espécie de leque para resistir so calor intenso. Cotidiano A cidade do Rio de Janeiro foi ilustrada por Debret em todos os cenários possíveis. O cotidiano do Rio de Janeiro era muito diferente do que o atual. Um exemplo de elementos do cotidiano da cidade que hoje já não existem mais eram as Lojas de Barbeiros. O que hoje conhecemos como barbearias, à época possuíam mais funções e eram muito requisitadas pela população. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 102 FIGURA 5 Prancha 52: “Loja de Barbeiro”, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tomo II. Acima temos a prancha 60, Loja de Barbeiro. Na descrição dessa prancha, o artista relata sobre a semelhança do estabelecimento com as Lojas de Barbeiro da Europa, porém, chama a atenção para a característica rústica, não refinada. Outra diferença, com relação à Europa, é o próprio barbeiro, que quase sempre é negro ou mulato, característica nítida na prancha. O artista chama a atenção para o fato de que, mesmo os barbeiros sendo mulatos ou negros, as pessoas entram com muita confiança, pois, segundo o artista, a mistura étnica brasileira permitiu que essa “confiança” fosse possível (DEBRET, 2016). Na pintura, o artista retratou a loja que possui uma placa escrita “Barbeiro, Cabellereiro, Sangrador, Dentista, e Deitão bixas”. Essa placa identifica as diferentes atuações dos barbeiros que além de cortar cabelos e fazer barbas também serviam como dentistas e com uma medicina mais genérica como o uso de sanguessugas, que na placa são chamadas de bixas – o costume de se usar esse tipo de tratamento para algumas doenças era normal à época. Ao lado da loja há um morador atendendo uma escrava que lhe deseja vender doces, o qual não se demonstra muito inclinado a comprá-los. Debret destaca a preguiça do vizinho que se mantém com um braço pendurado pelo lado de fora da janela enquanto se abana com a outra mão. O momento de registro da imagem segundo ele é das quatro as cinco da tarde o que explica a falta de movimento da loja. Ao contar sobre os negros que estão na frente da loja, Debret informa que estes são escravos libertos que após sua alforria compraram o espaço e montaram o estabelecimento (DEBRET, 2016). Diferente dos exemplos sobre escravos libertos da prancha 60, a prancha 71 retrata outro pedaço do cotidiano carioca, na Rua do Valongo, onde havia um mercado de escravos. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 103 FIGURA 6 Prancha 71: “Mercado da Rua do Valongo”, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tomo II. Debret em sua obra não deixa de destacar as condições desses escravos que se apresentam em corpos esqueléticos e sofridos. Na descrição da imagem o artista comenta sobre o comum silêncio do lugar e o ambiente tomado pelo cheiro de óleo de rícino que saía da pele desses escravos. Debret ilustra o momento falando do olhar de raiva, timidez e tristeza vindo dos escravos e compara todo esse ambiente de escravos “guardados” e quietos, falando apenas com o olhar como um “Menagerie” (palavra francesa para designar uma coleção particular de animais vivos em cativeiro, geralmente selvagens e exóticos) (DEBRET, 2016). Na imagem é possível notar que existem também crianças muito pequenas e também de corpos esqueléticos. Há também no salão dois homens conversando, um sentado cuidando dos escravos presentes e outro em pé. Debret também registrou como parte do cotidiano do Rio de Janeiro o festejo do Carnaval. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 104 FIGURA 7 Prancha 81: “Cena de carnaval”, Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, tomo II. Não passa despercebido aos olhos do estrangeiro a diferença entre a festa que ele vê no Brasil da que ele conhecia na Europa. Sem pompa e sem baile, a festa brasileira mostra-se oposta à europeia quando participam não só os ricos mas também os escravos. A festa é marcada pela confecção e uso dos chamados limões de cheiro, que eram jogados contra as pessoas. Escravas de ganho confeccionavam e vendiam os limões as demais pessoas para que brincassem o carnaval. Na imagem da prancha, no centro está uma escrava que aparentemente puxa para trás seu rosto fugindo da mão de outro escravo que lhe aplica uma mistura de polvilho e água. No entorno, há outros escravos, entre eles crianças que também possuem os rostos brancos por causa da mesma mistura, esses demais negros participam da brincadeira com bolas de polvilho. Considerações finais Jean-Baptiste Debret passou um bom período no Brasil e durante esse tempo registrou pessoas, lugares, animais, vegetação, festejos, entre outros aspectos do cotidiano brasileiro. Além desses registros pictóricos, Debret descreveu tudo que viu e seus registros possuem a visão de quem não nasceu no Brasil e pode comparar com outras regiões da Europa. A cidade do Rio de Janeiro, segunda capital brasileira, foi reproduzida nas obra de Debret, suas pinturas podem dar a noção do ambiente da cidade e sua rotina. A cada momento que Debret presenciava e reproduzia em suas obras, buscava escrever a respeito. Essas descrições auxiliam o leitor a compreender tanto o momento retratado quanto à conjuntura que era descrita. Tais registros, tanto os pictóricos quanto os escritos, são de extrema valia à compreensão da história colonial brasileira. Através das obras de Debret, é possível compreender a vivência da cidade do Rio não só pelas imagens reproduzidas, mas também pela narrativa do artista que presenciou as circunstâncias que relata. Dessa forma, Debret torna-se uma importante fonte para o estudo do período colonial brasileiro, e suas obras, além disso, são ricas para o ensino e a ilustração desse período histórico. Neste artigo, procuramos apresentar, ainda que em linhas muito gerais, algumas representações e descrições do artista sobre a cidade do Rio de Janeiro, sua topografia, populações e também costumes. Além disso, reafirmamos que, ao passo em que discutimos as obras de Debret mostramos que elas são importantes materiais para o ensino de História do Brasil. Referências DIAS, Elaine Cristina. Correspondências entre Joachim Le Breton e a corte portuguesa na Europa. O nascimento da Missão Artística de 1816. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.14. n.2. p. 301-313 jul.- dez. 2006. DEBRET, Jean-Baptiste. Viajem pitoresca e histórica ao Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2016. TREVISAN, Anderson Ricardo. Debret e a Missão artística Francesa de 1816. Aspectos da constituição da arte acadêmica no Brasil. Plural, Revista do programa de Pós- graduação em Sociologia da USP. São Paulo. Nº 14. pp. 9-32. 2007. SANTOS, Maria das Graças Vieira Proença dos. História das Artes. 17.ed. São Paulo: Editora Ática, 2012. GOMBRICH, Ernst Hans. A História da Arte. Rio de Janeiro. Ltc. 2013. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 105 A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA REPRESENTADA NA OBRA MACUNAÍMA, DE MÁRIO DE ANDRADE Fabiana Wentz Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 106 Os fatos que contribuíram para a construção e a formação da identidade do Brasil são estudados pela história. Já a literatura, por meio da subjetividade das palavras, permite que o leitor reflita e compreenda de outro viés essa história. Desde que o Brasil foi descoberto, a literatura brasileira e a história do país andam juntas, já que a partir da Carta escrita por Pero Vaz de Caminha, descrevendo a terra encontrada, se inicia a sua representação nos escritos literários. Nas primeiras obras os autores se inspiravam muito nos modelos europeus, isto é, a literatura seguia aquilo que se produzia nos países estrangeiros. Insatisfeitos com os rumos que a arte tomava, alguns autores e artistas promoveram a Semana de Arte Moderna, em 1922, introduzindo a primeira fase do Modernismo Brasileiro, que ocorreu entre os anos de 1922 e 1930. Com o objetivo de reconstruir a cultura brasileira sobre bases nacionais, eliminando a situação de colonizados e o apego aos valores estrangeiros, autores como Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e Mário de Andrade se destacaram nessa fase. A fim de solidificar os ideais modernistas, surgiram diversos grupos, movimentos, revistas e manifestos que divulgaram as novas ideias. Nesse cenário, um romance peculiar tem papel fundamental. A obra Macunaíma, de Mário de Andrade, publicada em 1928, apresenta um personagem contraditório, que usa uma linguagem rapsódica e inventiva, atrelada ao estudo feito pelo próprio autor sobre a identidade linguística brasileira. A história tem início com o nascimento de Macunaíma, descrito como um herói: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma (ANDRADE, 2016, p. 39).” Assim, Macunaíma é retratado em dois momentos nessa obra. No primeiro, ele representa, junto com sua mãe e irmãos, índios que viviam às margens dos rios numa tribo Amazônica brasileira. Macunaíma é negro e “o herói da nossa gente” por retratar o povo brasileiro a partir de sua miscigenação cultural e racial. Depois da morte de seu filho e de sua mulher, Macunaíma e os irmãos, Jiguê e Maanape, vão para São Paulo em busca de uma pedra, a Muiraquitã, que o personagem recebera de sua mulher. Essa pedra era um amuleto que vai parar nas mãos do vilão da história, o gigante comedor de gente, Venceslau Pietro Pietra. Aqui, surge um novo ambiente geográfico em que já era possível perceber o grande aumento de fábricas, a expansão do comércio, o avanço das tecnologias. Um Brasil mudado na década de 20. “A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhas rindo tinham ensinado pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram clácsons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças-pardas não eram onças-pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curututás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! (ANDRADE, 2016, p. 68).” Nesse período de transição, os três irmãos encontram um local com água encantada onde Macunaíma se lava e fica branco. Por Macunaíma já ter se lavado e a água estar acabando, um dos irmãos não consegue se lavar a ponto de ficar branco e fica amarelado. O outro irmão, então, continua preto. Os três representam, assim, a população brasileira formada por europeus, índios e negros. Dessa maneira, “[...] pretendem corporificar imagens mais ou menos estereotipadas de nações” (KOTHE, 1987, p. 55). Segundo Segolin (1978, p. 108), “[...] a personagem, ao se modificar, questiona não apenas a personagem que foi ou que é, mas a própria crítica da personagem, impondo posturas críticas inteiramente novas”. Nessa formação, em que brasileiros não possuem uma civilização própria, é que Mário de Andrade refere-se a Macunaíma como “herói sem nenhum caráter”, representando uma cultura ameaçada pela civilização urbana e pelo progresso tecnológico e industrial. Segundo Kothe (1987, p. 89), “Trata-se de uma convicção em torno da estrutura, dos valores e dos caminhos da sociedade”. Há, portanto, a representação do choque do índio amazônico com a tradição e cultura europeia. No início, os índios eram pardos e com a chegada do europeu, há a construção do povo brasileiro através da miscigenação. No livro, a ida para São Paulo permite analisar de que forma a vinda dos imigrantes modificou a vida de quem já vivia no país. Os índios, bem como Macunaíma e seus irmãos, tiveram que adequar-se aos costumes de uma sociedade urbana e rural imposta a eles. Mário de Andrade criou o personagem principal inspirando-se em uma pesquisa sobre as lendas amazônicas, recolhidas por Koch-Grümberg e publicadas em Von Roraima Zum Orenoco, em 1916. O nome Macunaíma tem significado literal “O grande mau”, sendo um deus indígena que reúne em si o bem e o mal. A diversidade trazida por meio dessas lendas mostra a tradição de várias regiões do país, o que faz de Macunaíma um representante do povo brasileiro e do homem latino-americano. O herói aventureiro é ao mesmo tempo sincero e mentiroso, malandro e otário, caracterizando-se também como um mulherengo e assanhado. Sua frase Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 107 “Ai, que preguiça”, que se repete ao longo da obra, demonstra o quanto o personagem se aproxima da figura indígena, já que esses resistem em entrar no mundo civilizado da produção. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 108 O livro é também uma síntese da Língua Portuguesa falada no Brasil, com as variações regionais, as influências estrangeiras e as alterações oriundas da criatividade popular. Beth Brait afirma que “Nesse mundo de palavras, nessa combinatória de signos, o leitor vai se alfabetizar, vai ler o mundo e decifrar a sua existência” (BRAIT, 1990, p. 66). Ao ler a obra, é perceptível a mistura de vocabulário indígena, “bolo de aipim” (ANDRADE, 2016, p. 97), africano, “urucungo” (ANDRADE, 2016, p. 95), ditos populares, “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são” (ANDRADE, 2016, p. 109), e gírias, “chinoca” (ANDRADE, 2016, p. 95). Pelo fato de valorizar o modo de falar no país, há uma crítica à norma culta cultivada no Brasil, como é possível identificar neste trecho: “Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos será grata empresa vo-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões!” (ANDRADE, 2016, p. 111). Conforme Bosi (2017), o emprego diferenciado da fala brasileira em nível culto estava ligado às ideias de Mário de Andrade, que buscava a consolidação das conquistas do Modernismo na esfera dos temas e do gosto artístico. “Muito da teoria literária e musical escrita por Mário de Andrade na década de 30 centrou-se nesse problema, prioritário para o escritor e compositor brasileiro, dividido entre um ensino gramatical lusíada e uma práxis linguística afetada por elementos indígenas e africanos e cada vez mais atingida pelo convívio com o imigrante europeu” (BOSI, 2017, p. 378-379). É provável que a intenção do autor ao escrever esta obra foi abordar o Brasil de modo crítico, através de um personagem único, que valoriza a cultura do país e a põe em igualdade com as dos demais países. O movimento antropofágico que se deu nesta história pretendeu aproveitar a cultura que os imigrantes trouxeram, transformando-a em uma cultura nacional, algo próprio do nosso país. A partir desses aspectos, a obra Macunaíma faz uma reflexão acerca do que era o povo brasileiro naquela época. O personagem é a representação do caráter do brasileiro, que não estava definido. Dessa maneira, percebe-se uma relação direta entre o personagem e a situação de construção do país na época, pois ambos apresentavam-se como imaturos. Referências ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 2. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 51. ed. São Paulo: Cultrix, 2017. BRAIT, Beth. A personagem. 4. ed. São Paulo: Ática, 1990. KOTHE, Flávio René. O herói. São Paulo: Ática, 1987. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 109 SEGOLIN, Fernando. Personagem e anti-personagem. 1. ed. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978. ALTO, DIREITA VOLVER: NOTAS SOBRE AS JUVENTUDES CONSERVADORAS BRASILEIRAS Fábio Júnio Mesquita Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 110 Já não se discute mais a singularidade da juventude, agora entendida como juventudes. Entretanto, nota-se que as juventudes que contestam e enfrentam a direita goza de mais atenção da academia que os jovens contrários à esquerda. O interesse acadêmico pelas juventudes dá origem a diversas pesquisas nos programas de pós-graduação brasileiros, a saber, algumas destas pesquisas, que foram produzidas no período entre 1999 e 2006, foram organizadas em dois volumes, totalizando onze capítulos coordenados por Spósito [2009a; 2009b], como uma análise do estado da arte sobre a juventude. Neste sentido, não se trata aqui de apresentar outra forma de ser jovem ou, menos ainda, menosprezar alguns destes grupos com diferentes orientações políticas, mas pretende-se dar continuidade aos estudos sobre as juventudes, com enfoque sobre os jovens de direita. Posto isto, cabe apontar que este estudo apresenta inspirações no trabalho de Groppo [2004]. Portanto, compreende a juventude diferentemente da puberdade, para a medicina, e da adolescência, para a psicologia; e descarta-se que se trata ”[...] apenas de uma construção imaginária, um rótulo gerado com o intuito de manipulação ideológica” [GROPPO, 2004, P. 11], característica apresentada no trabalho publicado por Murdock e McCron, em 1982, e contestado por Groppo [2004]. Groppo [2004, P. 12] ensina que “[...] na análise social e histórica, é preciso correlacionar a juventude com outras categorias sociais, como classe social, nacionalidade, região, etnia, gênero, religião, condição urbana ou rural, momento histórico, grau de “desenvolvimento” econômico etc”. Na sequência, após “[...] analisar as juventudes concretas, é preciso fazer o cruzamento da juventude – como categoria social – com outras categorias sociais e condicionantes históricos” e conclui, dizendo “[...] que a história e a análise sociológica demonstram é que, o que existe efetivamente, são grupos juvenis múltiplos e diversos, não uma única juventude concreta” [GROPPO, 2004, P. 12]. Neste entendimento, adota-se esta consideração para investigar a relação dos jovens com a direita. Com intuito de aprofundar está investigação ao mesmo tempo que parte-se da totalidade para o especifico, resgatam-se as formas de revolta e organização de jovens, desde a segunda metade do século XVIII em distintos países. Ainda que as mobilizações ocorressem também por intermédio de adultos, sabe-se da existência de: “[...] grupos juvenis formados pela Franco Maçonaria, ou sob sua inspiração, inclusive vários deles com apelo místico e esotérico, como os Rosacruzianistas; grupos evangélicos anti-institucionais (pietistas, quakers e metodistas); sociedades secretas insurrecionais contra a Restauração (como os carbonários); juventudes nacionalistas de Mazzini; grupos juvenis formados por seguidores dos socialistas ‘utópicos’ (como as ‘Crianças de Saint-Simon’); sociedades ginastas e fraternidades universitárias na Alemanha; a Boêmia parisiense etc.” [GROPPO, 2004, P. 15]. Na época já não se tratava de um único jeito de ser jovem, percebe-se a criação de diversos grupos e ideologias diferentes, com predominância conservadora. Nota-se que o flerte dos jovens com a direita é bem mais antigo, do que a situação que se apresentou em 2018, existe mais influências por detrás disto que somente a internet, redes sociais e memes. Algo em comum a estes jovens está em se reunir em grupos, formados em torno de valores e projetos já consolidados pelas gerações antecessoras. Não por acaso, os jovens daquele período se encontravam mais à direita que à esquerda; tratava-se de expectativas e tentativas conservadoras e patrióticas, “[...] ensaiada[s] desde as jovens companhias de cadetes, na Inglaterra da década de 1850, passando pelos batalhões escolares na França da década de 1880, pelas Brigadas Juvenis inglesas e o escotismo” [...] [GROPPO, 2004, P. 16], grupos de caráter militar e disciplinador, ligados às práticas esportivas, como informa o autor. Claramente percebe-se que a adesão dos jovens à direita não é novidade, não há nada de inédito nisto. Embora o espanto de muitos, diante desta “nova onda” que tem arrebatado vários jovens pelo Brasil afora, faça, por vezes, com que questione se os jovens estariam se voltando à direita, abandonando a rebeldia. Esta dúvida é pertinente, visto que desde o século passado a história que se escreve é marcada pela contestação de jovens de esquerda, principalmente jovens de movimentos estudantis. Milton Joeri Fernandes Duarte, em sua dissertação, defendida em 2005, identifica algumas fases do movimento estudantil na história brasileira. Para Duarte [2005], a primeira está datada entre o final do século XVIII e primeira metade do XIX, sem a existência de qualquer entidade ou organização formal, tratava-se de uma atuação individual e particularizada em momentos como a Inconfidência Mineira e a própria Independência do Brasil, não sendo caracterizado ainda como um movimento. Duarte [2005] vê entre o II Reinado e o Estado Novo, uma nova fase marcada pela atuação coletiva de estudantes, tendo atuação importante em períodos decisivos como na campanha abolicionista e no movimento republicano. Já a terceira fase, surge junto à criação da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 11 de agosto de 1937. Na ocasião, surgia uma organização com objetivos políticos com intenção de apoiar e desencadear novos movimentos como, por exemplo, a campanha pelo Brasil na II Guerra Mundial - nos anos 40 -, a criação da Petrobrás e o efetivação do monopólio estatal sobre o petróleo - nos anos 50 - e os protestos contra a ditadura militar - nos anos 60 [DUARTE, 2005]. Chama-se a atenção, para uma memória disponibilizada no site da UNE, em que registra o ano de 1901 como o ano em que foi criado a Federação dos Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 111 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 112 Estudantes Brasileiros [UNE, 201-?], entidade com pouco tempo de atuação, mas de grande importância por ser pioneira nas organizações de movimentos estudantis. Tão importante quanto, mas com menos destaque no texto disponibilizado no site da UNE [201-?], lê-se que “a partir da Revolução de 1930, a politização do ambiente nacional levou os estudantes a atuar firmemente em organizações como a Juventude Comunista e a Juventude Integralista”, esta diversidade impulsionava o desejo pela criação de uma “entidade única, representativa, forte e legítima”, que mais tarde seria fundada como a União Nacional dos Estudantes. Mais quê apontar os primórdios dos movimentos estudantis, as informações presentes no site da UNE [201-?] desvelam neste trabalho a aparição dos jovens adeptos a movimentos de direita no Brasil. Em 2011, a professora Drª Márcia Regina da Silva Ramos Carneiro apresentou e publicou o um trabalho que se inicia com os seguintes dizeres: “Pode-se dizer que o informativo Alerta nasceu sem a pretensão de ser um ‘formador’ de opiniões. Queria formar sim o integralista, mas isso não significava impor ou produzir ‘tempestades cerebrais’. O Alerta surgiu mais como um repositório da memória integralista e um ‘formador’ doutrinário. Começou pela vontade e esperança de um homem: Arcy Lopes Estrella. Arcy cumpriu até o fim a missão que lhe foi confiada aos 16 anos: ser um decurião da milícia integralista. Por toda a sua trajetória esteve sempre a postos, como um ‘soldado de Deus’, para servir ao integralismo. Depois do fim da Ação Integralista Brasileira, que se deu oficialmente em 1937, Arcy militou na clandestinidade, mantendo contatos com antigos companheiros. Participou do Partido de Representação Popular durante todo seu tempo de vigência, de 1945 a 1965 e, ainda durante a década de 1960, presidiu a União dos Lavradores do Estado do Rio de Janeiro (ULERJ), ligada à União Operária e Camponesa Brasileira (UOCB), ainda como ‘soldado’ do Sigma” [CARNEIRO, 2011, p. 01]. Três pontos precisam ser considerados: primeiro, a idade em que Arcy iniciou suas atividades na milícia integralista; segundo, passado sua juventude o mesmo manteve contato com antigos companheiros integralistas ao mesmo tempo que se relacionava com novas pessoas e instituições, se entendendo como um soldado integralista; e, terceiro, a intenção de formar o integralista, por meio do informativo Alerta. Assim, não só se confirma a existência de jovens de direita, como também a intenção e possibilidade de formação/instrução a tantos outros jovens, tanto por meio das instituições em que participava, quanto pelas relações e proximidades estabelecidas entre pessoas comuns e os integralistas – neste caso Arcy e seus companheiros. O Integralismo educou e ajuntou novos membros principalmente com “[...] o jornal Alerta que viria a ser o principal veículo aglutinador de vários grupos de jovens que se interessavam pelo integralismo e que buscavam na doutrina os parâmetros para sua organização” [CARNEIRO, 2011, p. 03]. Embora, possa-se julgar este interesse dos jovens por se tratar de um movimento muito forte na primeira metade do século passado, é curioso identificar que o Alerta só passou a circular em novembro de 1995, sendo divulgado entre “[...] uma rede de ‘antigos companheiros’, ou de seus filhos e netos, que fora se ampliando, com a adesão de outros grupos, não necessariamente gestados como integralistas [...]” contando também com a adesão “[...] de jovens que tiveram conhecimento do movimento pelas obras de Plínio Salgado e Gustavo Barroso, principalmente” [CARNEIRO, 2011, p. 03], desta forma, novos militantes se aproximavam do integralismo, ainda que este nome lhes fosse omitido. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 113 Carneiro [2011] ainda destaca grupos nacionalistas em atividade até a publicação de seu artigo, por exemplo, a Juventude Nativista de Niterói. Em todo o artigo a presença dos jovens de diversos estados brasileiros é muito frequente, levando a autora a identificar que “a adesão de jovens ao Alerta o introduziram na ‘era cibernética’. Através da internet, o jornal atravessou fronteiras dentro e fora do país. A sua importância na construção do ‘novo integralismo’ é, portanto, incontestável” [CARNEIRO, 2011, p. 03]. Também incontestável, é a existência desta outra juventude que mantém viva os sonhos de tantos outros jovens e agrupam novos jovens a esta ideia, no decorrer do século XXI. O movimento Ação Integralista Brasileira (1932-1937) foi extinto, seguido pelo início do Estado Novo, de Getúlio Vargas (1937-1945). Posteriormente, já entre 1950 e 1955 a UNE se aproxima de setores da direita brasileira, principalmente com a União Democrática Nacional (UDN), provocando um retrocesso na participação política juvenil [DUARTE, 2016]. Ao mesmo tempo, outros jovens se aproximavam da Igreja Católica e do Partido Comunista Brasileiro, para que se mantivessem na cena política. Estes dois grupos derrotam a UDN, e reassumem a UNE, em 1956. A década seguinte foi ainda mais marcante. Em 1964, com os militares no poder, as mobilizações estudantis, como vários outros movimentos e organizações, sofreram um refluxo [GOHN, 2016]. A partir de 1966 o Movimento Estudantil volta a ter sucesso, tendo como marco o ano de 1968, “[...] criando um imaginário de luta dos estudantes que associou-se à luta contra a ditadura, às lutas contra o status quo, no rastro de Maio de 68 na França, Alemanha, Checoslováquia, Estados Unidos, México, Argentina etc.” [GOHN, 2016, p. 10]. A Reforma Universitária, o Decreto nº 477, que proibia as manifestações estudantis, e o Ato Institucional nº 5 (o AI-5) ocorreram em resposta aos atos realizados naquele ano. Bem, o que ocorre neste período ditatorial, como aponta Hilsdorf e Peres [2009], possibilitou vasta produção, principalmente nos anos 1960-1970, com interesses que orbitam o movimento estudantil. O foco dos trabalhos está centralizado na atuação política dos estudantes contra o autoritarismo militar, desconsiderando tanto o aspecto “estudantil” do movimento, quanto a existência de grupos juvenis que se posicionassem a favor do governo militar [BRAGHINI; CAMESKI, 2015, p. 947]. Também apontam que, por vezes, os trabalhos tratam como se todos eles fossem rebeldes e militantes, não considerando a existência de jovens que não tinham estas práticas, seja por ser de direita, seja por não agir politicamente. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 114 Também para Sanfelice [2008], nem todos os estudantes universitários da década de 60 participaram e/ou reconheciam a UNE como representante legítima de seus interesses. Neste sentido, trata-se de apresentar a oposição entre os estudantes democráticos e os subversivos, apontado por Braghini e Cameski [2015]. Braghini e Cameski [2015] apontam que termo “estudantes democráticos” foi reforçado ao longo do processo de constituição da Lei nº 4.464, a Lei Suplicy. Nomenclatura atribuída aos estudantes que se deslocaram até Brasília para sugerir apontamentos ao projeto de extinção da UNE e demais organizações semelhantes. Assim as autoras esclarecem que “mesmo a Lei Suplicy, tão rechaçada pela bibliografia pertinente ao movimento estudantil, tinha os seus defensores entre os jovens [BRAGHINI; CAMESKI, 2015, p. 955]. Salienta-se que o termo democrático, fora empregado para nomear os estudantes que apoiavam os militares, diferentemente da ideia democrática mais conhecida e defendida na atualidade. E não eram poucos os grupos juvenis, formados principalmente por estudantes, que eram contrários aos jovens de esquerda/ rebeldes/revolucionários, ou como chamados estudantes subversivos. No trabalho de Braghini e Cameski [2015] encontram-se relacionados alguns grupos que manifestavam entusiasmo com o golpe militar, como a União Metropolitana dos Estudantes (UME) - que apoiava a intervenção militar. Os “estudantes democráticos” que participaram da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, como: o Grupo de Ação Patriótica (GAP), patrocinado pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes); a Vanguarda Universitária Católica; a Associação dos Estudantes Democratas; o Movimento de Arregimentação dos Estudantes Democráticos (Maed); a Frente Estudantil de São Paulo; o Movimento Estudantil Democrático; o Movimento Estudantil de São Paulo; a Frente da Juventude Democrática; a Associação de Estudantes Democratas; a Associação Cristã de Moços (São Paulo e Rio de Janeiro); e a Frente da Juventude Democrática (Rio de Janeiro). Também alguns grupos que foram, posteriormente investigados pela Polícia Federal, como a “Cruzada Estudantil Anticomunista”. Além da existência do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) que era composto em sua maioria por estudantes da Universidade Mackenzie e, minoritariamente, pelos universitários da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), atuando juntamente com a Frente Anticomunista (FAC) e Movimento Anticomunista (MAC). Ressalta-se que o silêncio, a suposta neutralidade, era entendida como apoio aos “estudantes democráticos”, visto que os “jovens que pediam por sossego também entravam nos critérios válidos aos estudantes democráticos [BRAGHINI; CAMESKI, 2015, p. 958]. Naquele momento, como indica as autoras, o silêncio era uma posição valorosa a ser praticada e tomada como exemplo a seguir. Por fim, outras características dos “estudantes democráticos” era a tutela deles e de novos jovens por adultos que organizavam os movimentos anticomunistas; e o apoio às intervenções militares dos Estados Unidos em ambientes considerados perturbadores [BRAGHINI; CAMESKI, 2015]. Logo, a participação estudantil era demasiadamente “[...] válida, quando praticada por meio de uma política de conciliação, principalmente associada às ideias oficiais ou se tutelada por um adulto. [BRAGHINI; CAMESKI, 2015, p. 957]. Do contrário, seriam enquadrados como subversivos, e comportamentos contrários, não podiam ser tolerados. Como apontado, não era uma dualidade clara, isso se mostra por conflitos que existiam na própria UNE, que foi tida como traidora da causa estudantil “humanitária”, por parte dos estudantes, após mostrar apoio “[...] à Federação de Estudantes Universitários (FEU), órgão que representava os estudantes cubanos no mesmo evento. Alguns estudantes se mostravam arredios com os fuzilamentos acontecidos na ilha” [BRAGHINI; CAMESKI, 2015, p. 952]. Assim, outros ideais surgiam em desacordo com a UNE. Neste entendimento, concorda-se com Braghini e Cameski [2015], pois “a ideia de que o movimento estudantil naqueles anos esteve sempre ativo, rebelde e contrário ao fechamento das liberdades civis também é um senso comum”, posto que “existiam jovens dispostos a atitudes pouco progressistas ou totalmente reacionárias. O conservadorismo não é uma característica adstrita aos mais velhos” [BRAGHINI; CAMESKI, 2015, p. 957]. Prática que não é exclusiva desta época, como constata-se neste estudo, melhor expresso nas palavras de Groppo [2004, p. 15], considerando “[...] que não são apenas movimentos políticos, muito menos apenas “progressistas”, mas também religiosos, místicos e culturais, com tendências ideológicas diversas como republicanismo, nacionalismo, socialismo “utópico” e até conservadorismo”, identifica também, que os jovens valorizaram mais a experimentação que a experiência. Assim sendo, entende-se que não muito diferente da tradição brasileira, as juventudes se aproximam frequentemente do conservadorismo, talvez pela influência dos adultos que lideram as organizações, talvez não. De todo modo, é seguro afirmar que a “onda direitista” que ganhou nas urnas nas eleições de 2018, não apanhou os jovens no calor do momento, trata-se de uma relação permanente com os jovens e com a sociedade em geral. A internet, de fato, teve contribuições, mas faz-se necessário saber o quanto influenciou, visto que as relações sociais, para além das redes sociais, já interferem a mais tempo na ideologia das juventudes. Nesta direção, aguardam-se outros trabalhos que ajudem a compreender as juventudes de direita, principalmente após a expressiva participação delas nas últimas eleições, e nos rumos do país. Referências BRAGHINI, Katya Zuquim; CAMESKI, Andrezza Silva. “estudantes democráticos”: a atuação do movimento estudantil de “direita” nos anos 1960. Educação & Sociedade, Campinas, v. 36, nº. 133, p. 945-962, out./dez. 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v36n133/16784626-es-36-133-00945.pdf. Acesso em: 27 jan. 2019. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 115 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 116 CARNEIRO, Márcia Regina da Silva Ramos. Alguns temas delicados – o “novo” integralismo e a interpretação do passado e do presente a partir do Alerta. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, 2011, São Paulo. Anais... São Paulo, 2011. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resourcesnais/14/1308767525_ ARQUIVO_Alguns_temas_delicados2.pdf. Acesso em: 23 jan. 2019. DUARTE, Aldimar Jacinto. Juventude, movimentos sociais e participação política no Brasil entre os anos de 2013 a 2015. Educativa, Goiânia, v. 19, n. 1, p. 884-901, set./dez. 2016. Disponível em: http://seer.pucgoias.edu. br/index.php/educativa/article/viewFile/5442/3014. Acesso em: 26 jan. 2019. 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O SUICÍDIO DE ADOLESCENTES INSTITUCIONALIZADOS NOS CENTROS DE SOCIOEDUCAÇÃO DO PARANÁ: OS CASOS DO CENSE CASCAVEL II Fernando Cesar Arnoni De novembro de 2015 a novembro de 2016 dobrou o número de adolescentes cumprindo medida socioeducativa no país - em novembro de 2015 havia 96 mil adolescentes nessa condição e em 2016 foram contabilizados 192 mil adolescentes - segundo dados que foram extraídos do Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O tráfico de drogas é o crime mais frequente entre os jovens; havia quase 60 mil guias ativas expedidas pelas Varas de Infância e Juventude do país por este ato infracional. Já o crime de estupro cometido pelos menores aumentou de 1.811, em novembro de 2015, para 3.763, em novembro de 2016. No Estado do Paraná, os Centros de Socioeducação (Censes) são responsáveis pelo acompanhamento desses jovens em cumprimento de medida socioeducativa de internação. Torna-se fundamental entender que os adolescentes em conflito com a lei recebem essa denominação a partir do momento em que são tomados pelo sistema judiciário devido a uma ação por eles realizada que infringe o Código Penal Brasileiro. Passam de meninos, que em muitos casos não possuem acesso a bens e serviços sociais/sanitários/culturais, a adolescentes em conflito com a lei em virtude do ato infracional realizado, sendo então tomados pela rede da justiça. (Digo aqui meninos porque a grande maioria dos que cometem atos infracionais são do sexo masculino – acima de 90%, segundo o Conselho Nacional de Justiça, 2016). A internação é o sexto estágio da medida socioeducativa e corresponde a privação de liberdade, que pode ser provisória, com um prazo limite de até 45 dias para resultado da sentença, ou de internação, cujo tempo de permanência internado é de seis meses até três anos. Segundo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), lei n.º 8.069/90 de 13 de julho de 1990 em seu art. 122, a medida de internação só poderá ser aplicada quando tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves ou por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta (BRASIL, 2005b). Por isso, a sentença deve ser sempre proporcional à gravidade do ato infracional e precisa obedecer alguns princípios, tais como, brevidade e excepcionalidade. Os outros tipos de medidas socioeducativas são: advertência (art. 115 do ECA); obrigação de reparar o dano (art. 116 do ECA); prestação de serviços à comunidade (art. 117 do ECA); liberdade assistida (arts. 118 e 119 do ECA); semiliberdade (art. 120 do ECA). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 117 A internação corresponde aos artigos 121 a 125 do ECA, e é esse universo do adolescente institucionalizado privado de liberdade que interessa a minha pesquisa. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 118 No Paraná ao todo são dezenove Censes distribuídos em três regiões num total de 1065 adolescentes internados. (Como dito anteriormente são em sua grande maioria do gênero masculino, mas a título de informação são cinco unidades para internação feminina em todo Paraná, localizadas em Ponta Grossa, Curitiba, Londrina, Foz do Iguaçu e Maringá). Entre os anos de 2006 e 2013 tive a oportunidade de trabalhar como educador social - hoje nominado como agente socioeducativo - em duas unidades de internação: Cense Londrina II e, posteriormente, Cense Cascavel II, ambas unidades de internação de adolescentes do gênero masculino que atendem em média 70 e 55 adolescentes, respectivamente, e que não possuem histórico de superlotação. De acordo com Peixoto, a unidade Cascavel II, inaugurada em 2007, é uma das cinco unidades inauguradas no mesmo ano e correspondem a um novo projeto arquitetônico e um novo panorama de atendimento socioeducativo, onde foi necessária a rejeição categórica de práticas absolutistas das instituições totais que se caracterizavam pela segregação do indivíduo e pela ruptura com o mundo exterior (PEIXOTO, 2011, p. 58). A estrutura física das novas unidades, aparentemente, é menos ostensiva do que as unidades mais antigas. Foz do Iguaçu tem até hoje uma estrutura física precária adaptada de uma antiga escola agrícola, improvisada, onde no ano de 2010 passou por um grave episódio: um adolescente de 16 anos foi morto por asfixia por um de seus colegas de alojamento enquanto dormia na madrugada de 12 de julho. Segundo relatório da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de 2016, a estrutura arquitetônica do CENSE Curitiba durante visita no mesmo ano estava em total dissonância com o previsto no ordenamento jurídico e nas normas de referência do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), lembrando-se que suas instalações foram adaptadas e não projetadas para a implementação do programa socioeducativo (SANTOS, 2016, p. 37). Nesse mesmo Cense, no ano de 2014, foi registrada a morte um adolescente de 13 anos por suicídio. As frequentes situações de isolamento, os conflitos entre os internos, o ambiente insalubre, o controle constante dos corpos e o sofrimento mental associado são fatores de risco que podem potencializar um sentimento de vazio existencial e medo levando os adolescentes à episódios de tentativas e de suicídios. De acordo com o SINASE a grande maioria das unidades de privação de liberdade, onde se incluem os CENSES, está longe de cumprirem os requisitos mínimos estruturais para o desenvolvimento do trabalho socioeducativo: “As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade estabelece o princípio - ratificado pelo ECA (artigos 94 e 124) - que o espaço físico das Unidades de privação de liberdade deve assegurar os requisitos de saúde e dignidade humanas. Entretanto, 71% (setenta e um por cento) das direções das entidades e/ou programas de atendimento socioeducativo de internação pesquisadas em 2002 (Rocha, 2002) afirmaram que o ambiente físico dessas Unidades não é adequado às necessidades da proposta pedagógica estabelecida pelo ECA (SINASE, 2006, P. 20).” A capacitação para todos os novos funcionários concursados do ano de 2006 no Estado do Paraná, que foi desenvolvida à primeira vista sob uma perspectiva humanizante e mais adequada à prática socioeducativa preconizada em leis, talvez não tenha sido suficiente para a garantia dos requisitos de saúde e dignidade humanas no interior dos CENSES. Situações como essas de Foz do Iguaçu e Curitiba, e várias outras até mais violentas levaram a produção de um Protocolo Interinstitucional de Gerenciamento de Crises (2006), que é um dos documentos usados nessa pesquisa e que compõem, dentre outros documentos institucionais, os chamados Cadernos de Socioeducação (2006), documentos que auxiliam no convívio e não relações estabelecidas nos CENSES. Vale lembrar também que o Cense Londrina II passou por seis rebeliões entre os anos de 2004 e 2007, tendo eu presenciado a última (disponho de relatórios, fotografias e um vídeo que podem ser usados em algum momento, se a pesquisa assim exigir, para referendar as mais de 7 horas de rebelião e destruição de quase toda unidade, além de um estupro). Abaixo reproduzo sem alterações documento de 2006 preenchido por mim informando a direção sobre uma tentativa de fuga no CENSE Londrina II: “No dia citado trabalhei no plantão da manhã até as 13:30, dobrando até as 18:15 para compensar folga autorizada por essa direção. As atividades transcorreram normalmente. Por volta das zero hora do mesmo dia, recebi a ligação do Cense pedindo apoio já que o adolescentes da ala D haviam serrado 4 grades e a tentativa de fuga estava a pouco de se concretizar. Cheguei a unidade por volta das 0:20 e logo de início avistei as viaturas da polícia militar e tropa de choque. No pc recebi as primeiras orientações sobre o ocorrido e na quadra encontrei um grupo de pelo menos 12 educadores munidos dos equipamentos de CDC, junto a pelo menos mais uns 15 educadores divididos e organizados por funções. Imediatamente a célula de CDC adentrou ao solário e um a um os adolescentes foram algemados e levados para as salas de atendimento/oficinas e também para o CC-4 da ala C. Foram 4 grades serradas de 4 alojamentos. Foram encontradas 2 serras cortadas ao meio, uma faca de cozinha, 3 chaves de fenda e uma roupa de bebê no interior dos alojamentos. Pelo menos 1 alojamento ficou totalmente destruído. No dia 28.11.2006, as 7:30 quando assumíamos o plantão, o adolescente Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 119 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 120 Carlos Marcello, ala D, conseguiu abrir o parafuso que trancava o ferrolho da oficina onde passou a noite e acabou saindo pelo telhado, ganhando a parte intermediária na unidade e ainda subindo no portão e no muro, quando foi surpreendido pelos educadores e guarda da guarita. Foi algemado e imediatamente levado ao CC-4. sem mais.” (Cense II – Londrina Relatório do dia 27/11/2006 e 28/11/2006 Tentativa de fuga ala D - Educador Fernando Cesar Arnoni). Foram mantidos aqui inclusive os erros de português, concordância verbal e digitação. Nos dias que se seguiram foram feitas reuniões chamadas de Conselho Disciplinar (CD) para responsabilização dos adolescentes envolvidos e, no geral, todos permaneceram por dias isolados dos demais adolescentes, confinados em seus alojamentos, saindo somente para atendimento técnico da assistência social ou psicologia, ou atendimento médico. Sequer saindo para atividades de escolarização o que sugere que esse isolamento possa ser um fator determinante para a prática e/ou tentativa de suicídio, dificultando o convívio e permanência na instituição. A partir desse breve relato justifico o meu interesse e relevância sobre o tema da pesquisa e, apesar de ainda muito insipiente, pude observar que o que aparentemente era o mesmo trabalho de atendimento, algo que a primeira vista saltava aos olhos como homogêneo e universalizante, de fato apresentava-se de uma forma muito diferente se compararmos uma unidade com a outra. Escolhi o Cense Cascavel II como recorte espacial dessa pesquisa por ser uma unidade considerada modelo e sem histórico de rebeliões ou motins, (diferente em vários sentidos da Unidade Londrina II), mas, também por registrar dois suicídios de adolescentes (2009 e 2017) e diversas outras tentativas de suicídio. Casos de suicídio e tentativa não são exclusividade do Cense Cascavel II. A unidade de Pato Branco no sudoeste do Estado também registrou um suicídio no ano de 2006. Hoje extinta, essa instituição era um anexo adaptado à cadeia pública da cidade, descumprindo a legislação e colocando em risco as vidas que ali estavam sob a tutela do Estado. O (recorte temporal/ Estudo de caso) são os casos de suicídio de 2009 e 2017 ocorridos no CENSE Cascavel II, ambos por enforcamento e pretendo me debruçar sobre o documento chamado de Livro de Ocorrências ou Livro Ata especificamente da Casa de número 01, casa de acolhida e recepção dos adolescentes recém-chegados para assim, chegar até esses adolescentes tentando compreender suas relações enquanto institucionalizados. Esses casos de tentativas e de suicídios que como visto não ocorrem de forma tão excepcional como imaginava exigiram, por parte do Estado, a criação de um Caderno de Socioeducação: internação e suicídio (2010) e posteriormente um Caderno de Prevenção de Suicídios (2015), dois documentos fundamentais para essa pesquisa e que também compõe os Cadernos de Socioeducação. “Ainda, tendo em vista o dever de cuidado do Estado para com os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, em especial às questões relativas à saúde e à segurança, a prevenção do suicídio figura como um de seus objetivos. Esta preocupação se acentua pelo fato de que vários fatores de risco para o suicídio são identificados entre os adolescentes em conflito com a lei privados ou restritos de liberdade, quais sejam: transtornos mentais, tentativas de suicídio anteriores, desesperança, maus-tratos na infância, problemas familiares, suicídio de um colega, pouca habilidade na resolução de problemas, fácil acesso a meios letais e problemas nas relações com os pais (PARANÁ, 2015, p. 18 e 19).” Esses cadernos sobre prevenção de suicídio, encontrados por acaso, chamaram minha atenção por parecerem contraditórios se comparados com os registros dos Livros Atas ou Livros de Ocorrência das casas do Cense Cascavel II, que preenchi durante todo meu tempo trabalhando como agente socioeducativo. Nos livros deve constar a rotina de cada uma das casas, mas, principalmente, situações que fogem da regra e da rotina de segurança e prevenção como a que foi descrita no episódio da tentativa de fuga. Outros exemplos ocorrências de menor e maior gravidade respectivamente e que eram muito comuns na rotina do CENSE são a recusa do alimento, no caso o almoço ou jantar, inclusive a sobremesa e a confecção de “terezas”. “Terezas” são cordas improvisadas fabricadas com recortes de peças de roupas que os adolescentes se utilizam para “pescar” coisas, mas também como instrumento para enforcamento. Logo abaixo transcrevo pequeno texto a partir de fotografia de Livro de Ocorrências do CENSE Cascavel II fornecida por um funcionário, informalmente: “Recebido Ata do CD 051/201X que consta medidas disciplinares dos adolescentes Gustavo, Wiliam e Everton 8 dias sendo de 20/10/201X até 27/10/201X e do adolescente Marcos 4 dias sendo de 20/10/201X até 24/10/201X. Sem mais encerro o plantão com os mesmos 8 adolescentes.” Os dias de cumprimento de medida disciplinar são determinados após reunião de Conselho Disciplinar, reunião que conta com representantes de vários setores: socioeducadores, técnicos, direção. No caso transcrito não tivemos acesso à falta cometida pelos adolescentes. Possivelmente uma falta média ou grave, estando a exemplificação e gravidade das faltas registradas em um caderno chamado de Rotinas de Segurança. O resultado do Conselho Disciplinar como transcrito foi de 8 dias de isolamento, inclusive deixando de frequentar as aulas e outras atividades e o adolescente saindo do alojamento somente para atendimento técnico ou médico. No interior de cada CENSE temos a modalidade EJA – Educação de Jovens e Adultos do Paraná – que os adolescentes frequentam de forma Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 121 regular. Privá-los da escolarização como forma de punição é no mínimo um exagero. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 122 O documento institucional considera que os fatores de risco para o suicídio são relativos à vida pregressa dos adolescentes, incluindo todo tipo de violação e sofrimento mental, mas parece desconsiderar que o próprio ambiente de carceragem pode ser um fator de risco vindo a potencializar o comportamento suicida. O documento admite também que é impossível a prevenção total da prática do suicídio. Na metade do século XIX e para além de uma crítica de Economia Política, Marx, em texto de 1846 já refletia sobre as causas que aparentemente poderiam levar indivíduos ao suicídio: “As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que impulsiona a personalidade, é frequentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável (MARX, 2006, p 24).” O autor analisa o suicídio como expressão extrema de uma sociedade doente, de um sistema que necessita de uma transformação radical para resolver não só as questões do campo da política e da economia, mas, também, as opressões nas relações sociais e o mal-estar dos indivíduos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde a adolescência compreende a faixa etária entre os 10 e 20 anos; o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA restringe essa fase entre os 12 e 18 anos. Grande parte dos estudiosos sobre adolescência afirma que esse período não pode ser considerado hegemônico, ou seja, são identificados períodos/etapas distintas. Embora as etapas estejam definidas pelas faixas etárias, na realidade, são determinadas, também, mais pela experiência do que pela idade, mais pelo comportamento do que pela aparência e mais pelo significado interior do que pela avaliação exterior. Dessa forma, pode-se afirmar que a adolescência é um período de constantes transformações: no corpo, na mente e na vida social. Referência BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2005. ______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Ministério da Educação, Assessoria da Comunicação Social. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: MEC/ACS, 2005b. ______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília – DF: CONANDA, 2006. ______. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente. Curso para operadores do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasilia, jul. /out. 2010. CURY, Munir (coord.). Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 9ª ed., atual. São Paulo: Malheiros, 2008. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 123 MARX, Karl. Sobre o suicídio. Tradução de Rubens Enderle e Francisco Fontanella. - São Paulo: Boitempo, 2006 PARANÁ. Instituto de Ação Social do Paraná. Práticas de Socioeducação, Cadernos para Prevenção do Suicídio, Protocolos de Gerenciamento de Crise, Compreendendo o Adolescente. Cadernos do IASP, Curitiba, 2007. PEIXOTO, Roberto Bassan. A gestão de execução de medidas socioeducativas no Paraná: uma política pública em construção. Dissertação de Mestrado. FAE Centro Universitário – Curitiba, 2011. SANTOS, Maria Christina dos: Relatório de visitas a centros de socioeducação e a unidades de semiliberdade no estado do Paraná: adolescentes em privação e restrição de liberdade / Maria Christina dos Santos, Marta Marília Tonin, Anderson Rodrigues Ferreira. - Curitiba: OABPR, 2016. MÚSICA E HISTÓRIA: SUPORTES PARA FAZER UMA ANÁLISE MUSICAL NA HISTORIOGRAFIA Glauber Paiva da Silva Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 124 Introdução Com o advento da Nova História Cultural e o alargamento das fontes, o historiador pode pensar a história a partir de diversas perspectivas que resultam em novas possibilidades. Em nossos dias, a história vista pelo âmbito da Nova História Cultural se torna plural, dialogando com a interdisciplinaridade e se utilizando de uma diversidade de fontes que antes não poderiam ser trabalhadas. As fontes que antes deveriam ter unicamente caráter oficial se abrem em um leque de possibilidades. Possibilidades estas que podem refletir a história por diversos âmbitos, como, por exemplo, debruçando-se simplesmente a partir do som. Afinal, para muitos historiadores o som que uma cidade traz em seu cotidiano pode falar um pouco da sua história, já que os sons em nosso dia-a-dia são marcas constantes. No entanto, muitos sons que faziam parte das cidades, em nosso cotidiano são apenas lembranças. A música dos alto-falantes em praças e ruas das cidades, os sons dos sinos das igrejas, que sempre há mesma hora soavam em alto e bom som, como também a canção da Ave Maria Sertaneja, entoada às 18 horas todos os dias da semana em forma de agradecimento e oração nas rádios da cidade. Sons tão presentes no cotidiano da cidade, como a gritaria nas feiras entre aqueles que queriam vender e os que se propunham a comprar, o apito das fábricas de tecidos, como também o barulho das máquinas trabalhando, e o som ensurdecedor do trem ao passar pelos trilhos são documentos que estão guardados na memória coletiva da população dessas cidades, e em nossos dias o historiador pode rumar para tais possibilidades de trabalho como fontes da história. O som sempre esteve presente no mundo e na história. É inegável que o cotidiano nos trouxe sons que a cada dia deixam rastros da história da sociedade em nossas vidas. Segundo Moraes (2000): “Sons e ruídos estão impregnados no nosso cotidiano de tal forma que, na maioria das vezes, não tomamos consciência deles. Eles nos acompanham diariamente, como uma autêntica trilha sonora de nossas vidas, manifestando-se sem distinção nas experiências individuais ou coletivas.” (MORAES, 2000, p. 204) Um som que está presente na vida de todas as pessoas e que pouco a pouco ganha seu espaço na história, seria a música. A combinação de harmonias e ritmos formam o que conhecemos como música, uma das artes mais antigas que a humanidade já conheceu e que está todos os dias presente em nosso cotidiano (MORAES, 1983). No entanto a música no formato de canção pode ainda ter uma série de elementos que lhe formam. Para Villaça (1999), a canção é o: “Complexo conjunto composto pelos elementos musicais por excelência: harmonia, ritmo, melodia, arranjo, instrumentação – e por uma série de outros elementos que compõem sua forma: a interpretação e os signos visuais que formam a imagem do intérprete, a performance envolvida, os efeitos timbrísticos e os recursos sonoros utilizados na gravação [...] a estes elementos acrescenta-se à letra da canção e toda a sua complexidade estrutural, à medida que qualquer signo linguístico, associado a um determinado signo musical, ganha outra conotação semântica, que extrapola o universo de compreensão da linguagem literária.” (VILLAÇA, 1999, p. 330) Seja na arte ou no amor, seja na tristeza ou na alegria, a música está presente em nosso cotidiano. Ela atravessa nosso dia a dia sem nos darmos conta de sua importância. Da infância e juventude, até aquelas que tocaram em momentos importantes de nossa vida, a música permeia nossa vivência. A memória e a música conseguem caminhar em concordância, pois, aguçam sentimentos que já estavam esquecidos. Ao tocar, estas memórias revivemse com uma mistura de saudade e afeição. Marcam amigos, amores, família, trabalho, dificuldades e felicidades e, quando reproduzidas, as memórias dessas pessoas com saudosismo retornam em imagens e nostalgia. A música também nos mostra algumas porções que remetem a história. Torna-se importante fonte histórica em face do seu caráter memorialístico, representativo de uma época. No Brasil, temos como principal exemplo, as músicas compostas no período de ditadura militar, que, serviam como forma de resistência àquele período e denunciavam o silêncio e as torturas que pessoas contra o regime sofriam. Nesta perspectiva, a música também pode ser entendida na sociedade como uma nova fonte histórica. Suportes musicais para a pesquisa historiográfica Em diversas músicas podemos encontrar narrativas de outras épocas que podem ser valiosas aos estudos históricos. Mais importante que saber disso, é fazer sua análise, o que, de fato, é imprescindível para a apropriação de detalhes que contam um pouco da história. Contudo, nem sempre o historiador condicionou-se com a utilização da música como fonte. Isto se dava principalmente pelo discurso historiográfico que não aceitava a utilização de fontes que não vinham de caráter oficial. Na pesquisa histórica, as fontes musicais ganham crescente espaço e do ponto de vista metodológico são consideradas pelos historiadores como objetos e fontes primárias novas e desafiadoras. Contudo, no estudo da canção, os historiadores de ofício chegaram atrasados, já que a área de Letras e de Ciências Sociais já haviam descoberto e consagrado à canção a algumas abordagens, antes de os historiadores utilizarem a música como fonte (NAPOLITANO, 2008). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 125 Segundo, Blomberg (2011): Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 126 “Assume-se que houve pouco contacto dos historiadores com a música no Brasil. Atualmente corroboram para esta visão, uma análise quantitativa de artigos em periódicos e de teses e dissertações. Esta situação parece não ser privilégio do Brasil, segundo a autora Miriam Chimenés, o quadro se repete em seu país, a França” (BLOMBERG, 2011, p. 422). Este trabalho iniciado nos anos 1970 pelos Estudos Literários e pelas Ciências Sociais da análise da canção de certa forma influenciou os historiadores. O estudo literário dá destaque ao parâmetro poético da canção, ou seja, a letra como foco principal da análise, e no estudo das Ciências Sociais são enfatizados os atores sociais envolvidos na criação, produção e consumo da música (NAPOLITANO, 2008). De acordo com Baia (2011): “Até 1981, foram realizados cerca de vinte pesquisas na pósgraduação nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro que podemos considerar fundadores de um campo de estudos acadêmicos [...] De uma maneira geral, três questões estiveram mais presentes, como problemas para as pesquisas do período, explícitos ou de forma latente: a) as questões envolvendo a letra das canções, suas relações com a poesia literária e suas intenções com o texto musical; b) as relações da produção musical com a indústria e o mercado; c) as relações entre a música popular e a questão étnica no Brasil.” (BAIA, 2011, p. 68) Hoje os historiadores focam suas reflexões principalmente em três suportes da música com métodos e objetivos diferentes: A Musicologia histórica; a Etnomusicologia e a Música Popular. A Musicologia histórica concentra-se no estudo da vida e obra dos compositores, como também das formas eruditas, segundo Baia (2011): “O termo “musicologia”, que denomina (ou deveria denominar) a disciplina de estudos científicos da música, contém uma ambiguidade. Ele é, por vezes, empregado no sentido de um amplo campo interdisciplinar de estudos da música, enquanto texto e contexto, no qual os músicos seriam os especialistas nas questões relativas ao material sonoro propriamente dito. Por outro lado, a Musicologia como disciplina acadêmica acabou historicamente associada, ao menos até por volta dos anos 1980, a apenas um dos seus ramos originais, a Musicologia Histórica” (BAIA, 2011, p. 205). A Etnomusicologia enfoca o estudo das formas e manifestações musicais dos grupos comunitários, de caráter socialmente integrador ou ritualístico, cuja prática musical não está voltada essencialmente à industrialização e ao consumo de massa (NAPOLITANO, 2008). Para Baia (2011): “É unanimemente aceito que a primeira vez que o termo Etnomusicologia apareceu impresso foi em 1950 no subtítulo do livro de Jaap Kunst Musicologia, rebatizado nas edições posteriores como ‘Ethnomusicology’, mas Merriem faz a ressalva de que a palavra já estava em uso corrente entre os pesquisadores no momento. Em 1955, foi fundada nos Estados Unidos, como sucessora da American Society for Comparative Musicology que teve curta existência nos anos 1930, a Society for Ethnomusicology –SEM, que viria a ser uma poderosa e influente instituição. O termo Etnomusicologia foi aceito quase imediatamente” (BAIA, 2011, p.207). Se na Musicologia se trabalha com a análise de partituras, com a evolução dos instrumentos musicais e com a documentação escrita feita pelos compositores e críticos, na Etnomusicologia se enfatiza o “trabalho de campo”, no qual o pesquisador faz o papel do etnógrafo, produzindo uma determinada documentação a partir dos agentes de uma determinada perfomance musical, podendo obter vários suportes, como vídeos, fitas, entre vários outros que, com o passar dos anos, pode se constituir em corpus documental a ser utilizado por historiadores da cultura e da música, que irão se debruçar sobre o material etnográfico transformado em fonte histórica (NAPOLITANO, 2008). O terceiro suporte de reflexão seria a da Música Popular, que é produzida pela indústria fonográfica e audiovisual e que tem colocado as fontes de maneira diferente. Até meados dos anos 1970 a música era composta e produzida para ser ouvida e dançada, sendo o fonograma, assim, o principal suporte da produção musical urbana. A partir dos anos 1980, da ascensão dos vídeo-clipes e da participação dos cantores em apresentações em programas televisivos passou-se a produzir a música cada vez mais para ser vista, muitas vezes subordinada ao império da imagem, embora a dança continue sendo um elemento fundamental da experiência sociomusical (apesar de o filme-música também fazer isso, mas em menor escala entre as décadas de 1930 a 1950). Desse modo, o historiador já pode deslumbrar um futuro que representaria a integração dos suportes sonoros e audiovisuais, principalmente devido à internet (NAPOLITANO, 2008). Todavia, o fonograma é o corpus documental do pesquisador em Música Popular do século XX, e entre o início da década de 1900 e a década de 1990 o fonograma impresso em diversos discos de formatos diferentes constitui um patrimônio documental muito pouco explorado. Segundo Napolitano (2008): “A rigor, não existe um levantamento completo desse material, ou seja, aquele trabalho inicial dos historiadores e arquivistas que é o estabelecimento das fontes. Para o caso dos 78 RPM, que foram Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 127 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 128 produzidos de 1902 a 1964, existe um catálogo geral organizado com apoio oficial, no início dos anos 1980, mas a conservação desse riquíssimo acervo documental deveu-se mais aos colecionadores particulares do que aos órgãos oficiais da cultura. Para o formato LP (o popular “vinil”) ou compactos (duplos e simples), não existe sequer um levantamento amplo dos lançamentos realizados pelas gravadoras entre 1951 e 1990, período conhecido como “Era do LP”. Muitas matrizes foram perdidas ou destruídas pelas próprias empresas e mais uma vez o acervo particular dos colecionadores é o tesouro a ser descoberto, mapeado e estudado pelos historiadores.” (NAPOLITANO, 2008, p. 256-257). Portanto, fica evidente que o historiador tem uma gama de objetos e métodos diferentes para sua pesquisa sobre música, mas ainda muitos encontram algumas dificuldades em relação ao diálogo entre música e história. Afinal, segundo Baia (2011), apenas na década de 1980, temos o primeiro estudo acadêmico no meio historiográfico sobre a música popular, por exemplo: “O primeiro estudo acadêmico realizado na pós-graduação na área de História sobre música popular urbana no Brasil foi defendida em 1980. Teriam que passar mais seis anos para que a área produzisse outro trabalho de pós-graduação com tema relacionado à música popular. No período que vai de 1980 a 1999 foram encontrados 35 trabalhos, sendo 27 dissertações de mestrado, 6 teses de doutorado e 2 de livre docência [...] realizados na área de História em São Paulo e no Rio de Janeiro, que são fundadores de uma historiografia acadêmica desenvolvida em programas de pós-graduação em História” (BAIA, 2011, p. 91). Algumas dificuldades encontradas entre os historiadores para desenvolver tais estudos relacionados à música, segundo Napolitano (2008), seriam a de não ter uma formação em música, na análise da linguagem musical, escrita em partitura ou registrada em fonograma. Segundo Moraes (2000), o historiador deve superar essas dificuldades: “Um dos obstáculos gerais colocados às investigações no campo da música é a dificuldade em circunscrevê-la como uma “disciplina” voltada claramente para a produção do conhecimento [...] Certamente esse é um problema sério, não o único, mas que deve ser superado. Essa dificuldade não pode ser impeditiva para o historiador interessado nos assuntos relacionados à cultura popular, como não foram, por exemplo, as línguas desconhecidas, as representações religiosas, mitos e histórias e os códigos pictóricos. Na realidade, essas linguagens não fazem parte de fato do universo direto e imediato do historiador, mas nenhuma delas impediu que esses materiais fossem utilizados como fonte histórica para desvendar e mapear zonas obscuras da história. Deste modo, mesmo não sendo músico ou musicólogo com formação apropriada e especifica, o historiador pode compreender aspectos gerais da linguagem musical e criar seus próprios critérios, balizas e limites na manipulação da documentação (como ocorrem, por exemplo, com a linguagem cinematográfica, iconográfica e até no tratamento da documentação mais comum).” (MORAES, 2000, p. 209-210) Dessa maneira, os historiadores de ofício teriam de enfrentar tais dificuldades de questões teórico-metodológicas para conseguir fazer o diálogo entre história e música de forma proveitosa. Considerações finais A música pode ser trabalhada como fonte história a partir de diversas perspectivas. O diálogo entre história e música consegue: mostrar a temporalidade em que tal música foi composta, o que estava acontecendo no entorno do compositor e também demonstrar seu caráter memorialístico representando uma época, entre uma variedade de outros questionamentos que podemos nos debruçar a fazer. Contudo, tal qual percebemos, muitas possibilidades podem ser pensadas e repensadas, destinando uma gama de discussão histórica que foi possibilidade a partir do advento da Nova História Cultural. O Brasil tem uma cultura enorme que pode ser discutida a partir de várias fontes de pesquisa diferentes. O que importa é trazer à baila temas diversos e sempre pensar nas novas possibilidades que eles podem nos trazer. Desta feita, esperamos que outras pesquisas possam surgir a partir dessa temática, utilizando essa ponte tão profícua entre Música e História e relacionando-as quem sabe, ao cotidiano e às práticas socioculturais. A reflexão por meio da harmonia, do ritmo e até mesmo do gênero musical escolhido, como o samba, por exemplo, para se trabalhar a música é outro meio efetivo de pensar sobre a história. Para Costa (2010) a análise musical: “Pode nos fornecer dados com preferências do público, sobre formar e gêneros mais em voga, sobre classe social que a sustenta e sobre fontes de importação, além de outros fatores. É de suma importância pensarmos que o documento musical apresenta um caráter polissêmico, onde perduram vários códigos que podem ser decifrados.” (COSTA, 2010, p. 112) Assim, a partir da história cultural, da interdisciplinaridade e principalmente do alargamento das fontes temos a possibilidade de transformar um objeto de entretenimento e até mesmo de manifestação artística em fonte de pesquisa de aspectos de vivência cotidiana, de seus produtores e ouvintes. Para o historiador a música não tem apenas o objetivo de lazer, de entretenimento, não é apenas a trilha sonora do seu romance, ou aquela música que acompanha sua solidão, mas a música fala e nos conta muito sobre cotidiano e história e justamente por isso é fonte histórica. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 129 Referências BAIA, Silvano Fernandes. A historiografia da música popular no Brasil (1971-1999). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 130 BLOMBERG, Carla. Histórias da música no Brasil e musicologia: uma leitura preliminar. Projeto História N° 43. Música e Artes. Dezembro, 2011. COSTA, Manuela Areias. Música e História: as Interfaces das Práticas de Bandas de Música. Caminhos da História. Vassouras, 2010. MORAES, José Geraldo Vinci de. História e música: canção popular e conhecimento histórico. Revista Brasileira de História N°39. São Paulo, 2000. MORAES, J. Jota de. O que é música. Editora brasiliense. São Paulo, 1983. NAPOLITANO, Marcos. Fontes audiovisuais: A história depois do papel. In: Fontes Históricas. PINSKY, Carla Bassanezi. Editora Contexto. São Paulo, 2008. VILLAÇA, Mariana. Propostas metodológicas para a abordagem da canção popular como documento histórico. II Simpósio Latino-Americano de Musicologia. Fundação Cultural de Curitiba, 1999. A HISTÓRIA EM VERSOS MÚSICAIS: OS HERÓIS BRASILEIROS DA SEGUNDA GUERRA QUE O ROCK PESADO ETERNIZOU Glayson Castro da Silva Introdução A banda Sueca “Sabaton” em seu álbum, “Heroes” – que é um compilado de histórias de pessoas comuns que se tornaram símbolos de heroísmo -, dedicou uma faixa do mesmo para homenagear os Pracinhas brasileiros contando uma história real de três soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial. Partindo do pressuposto que o uso da música é uma fonte geradora de aprendizagens históricas, e das Diretrizes Curriculares Orientadoras da Educação Básica que delimitam que a música é um documento que pode ser transformado em material didático de grande valia na constituição do conhecimento histórico, e a fim de estabelecer relações entre o passado e o presente. Desenvolvemos esta breve investigação sobre a música “Smoking Snakes”, da banda Sabaton, que é um Heavy Metal – rock pesado – em referência ao três soldados da força expedicionária brasileira na segunda guerra mundial na batalha de Montese, Italia. A partir da problematização deste recorte temático, da música, da cena musical da banda, e seus diálogos com o ambiente sociocultural dos estudantes, buscaremos elucidar - a luz do conhecimento histórico, em que medida a referida musica pode ser utilizada como fonte e material didático para estabelecer um paralelo entre o tempo histórico passado e presente de modo a viabilizar diálogos contemporâneos produzindo saberes históricos e culturais, segundo Marcos Napolitano (2002, p. 5-6) “é necessário compreendermos as várias manifestações e estilos musicais dentro da sua época, da cena musical a qual está inserida, sem consagrar e reproduzir hierarquias de valores herdadas ou transformar o gosto musical em medida para a crítica histórica”. A música de titulo "Smoking Snakes" - que significa cobras fumantes em português -, fala especificamente da história dos soldados: Arlindo Lúcio da Silva, Geraldo Rodrigues de Souza e Geraldo Baêta da Cruz, que lutaram no território Italiano na cidade de Montese onde, segundo registros, ocorreu uma das batalhas mais sangrentas da segunda guerra fazendo um diálogo com a historiografia disponível selecionada para está investigação. Dito isso, vamos analisar em que medida a música “Smoking Snakes” pode servir como ferramenta metodológica transversal para abordar a temática da força expedicionária Brasileira na segunda guerra e sua importante participação no conflito. Justificando, portanto, a necessidade desta investigação devido o referido recorte temático ainda ter uma abordagem pouca explorada sobre os atores que compuseram a FEB, suas histórias no front, suas dificuldades e feitos, podendo está canção servir como fonte – mesmo que secundária ou terciaria - e como ferramenta para mobilizar os saberes prévios dos estudantes contribuindo para construção do Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 131 conhecimento histórico dos mesmos. Conforme fundamenta Circe Bittencourt (2004, p. 158) “é possível retirar as informações necessárias das fontes utilizadas, pois ao questionar e confrontar diversas fontes históricas pode-se construir narrativas embasadas nas evidências deixadas por estas”. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 132 Portanto, verificar de forma analítica a intencionalidade da letra da música dentro do conteúdo histórico no qual ela se refere, visando produzir saberes que possam auxiliar professores no sentido de fornecer novas fontes, novas abordagens, para a construção de métodos e dialógicos e sociointerativos que insiram o professor no universo culturalmente difuso e inevitavelmente mais jovem de seus alunos. Os versos e a prosa com a história A banda Sabatton não mede esforços em enaltecer os nossos soldados nos versos da canção, podemos observar que com base em documentos históricos nos quais a banda teve acesso com uma mistura de romantismo heroico, a letra da musica já traz em seus versos iniciais a admiração pela bravura e coragem destes destemidos soldados brasileiros, conforme podemos observar. “Nós lembramos, sem rendição Os heróis de nosso século 3 homens foram fortes, e eles resistiram por muito tempo Indo para a luta, para a morte que os espera Loucos ou corajosos, isso vai acabar na sepultura? Assim eles estão dando suas vidas Como sua honra determina.” A banda traz nesta estrofe o pressuposto de que estes soldados já estariam cientes que aquela luta era por algo maior do que eles, e não importava o quanto eles lutassem e qual resultado eles obtivessem, a bravura e suas honras iriam prevalecer no fim do combate. É sabido que numa guerra muito fica para trás na vida de um soldado, sua família, sua vida em sua cidade e ou país natal. Contudo, seus valores e crenças e o acompanham e são por vezes geradores da motivação necessária para que eles mantenham o foco no objetivo (missão), pelo qual eles estão lutando. Isto pode ser observado nas trocas de correspondências com familiares, amigos e namoradas, que serviam de consolo e motivadoras aos militares. Sobre estas correspondências o historiador Arthur Ituassu, propõe que em tempos de guerra. “As cartas de amor são um caso à parte no front. A distância, a realidade ingrata e a privacidade da escrita transformam textos simples em confissões absolutamente verdadeiras, palavras sinceras tornam-se representações na busca de um sentido para a vida, quando tudo ao redor são escombros.” (ITUASSU, 2007, p.407). O Sabatton de forma muito feliz também destaca essa humanização dos soldados e seu cotidiano sofrido distante de familiares, amigos e suas amadas, no combate sangrento e caótico no qual eles estavam imersos, conforme evidenciamos na 2ª estrofe da música. “Longe, longe de casa, para uma guerra Travada em solo estrangeiro e Longe, no desconhecido, contem seu conto Sua história esquecida.” Ciente da importância desta comunicação entre os militares no front e suas famílias, romances e amigos, o governo Brasileiro em 19 de Agosto de 1944, por meio do ora denominado Departamento Brasileiro de correios e telégrafos, criou um sistema de comunicação chamado de “Mensagem da Força expedicionária” para estes atores se comunicarem com os militares no front, conforme registra o jornal Diário Mercantil de 23/08/1944. A banda Sueca dá um tom triunfante aos pracinhas em seu refrão e apresenta uma grata surpresa ao cantá-lo em português, bradando o slogan da FEB de forma musicalizada em tom de opera rock cantando: “Cobras fumantes eterna é sua vitória”; Dando o caráter heroico e eterno aos soldados e suas conquistas exaltando os mais elevados valores e honrarias que heróis que o romantismo literário exige ao darem suas vidas pela libertação da opressão Nazifascista, conforme observamos na estrofe seguinte ao refrão. “Ergam-se do sangue dos seus heróis Vocês, foram os únicos que se recusaram a se render Os 3, escolheram morrer ao invés de fugir Saibam que a sua memória Será cantada por um século Os 3 levaram um golpe, ao impressionar seu inimigo Jogando dados, com suas vidas Por isso eles estão pagando o preço Enviados para elevar o inferno, ao ouvir o toque dos sinos.” Embora da curta participação da FEB no conflito foi crucial para libertar as cidades Italianas, já que o Brasil tinha à seu favor o elemento surpresa, tendo em vistas que a participação do Brasil na guerra só foi percebida pelo eixo poucos meses antes do termino do conflito. Mesmo assim, estes três soldados deixaram uma história fantástica para livros de história, obras literárias e musicais como esta música do Sabatton, já que o conflito na cidade Montese foi intenso e difícil para estes soldados que se viram frente a frente com uma companhia alemã composta de aproximadamente 100 homens em, 14 de abril de 1945. Eles receberam ordens para se render, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 133 mas continuaram em combate até ficarem sem munição e serem mortos, conforme a 4º estrofe seguida do refrão, destaca. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS “Ele está chamando por você como a Wehrmacht imaginou Longe, longe de casa, para uma guerra Travada em solo estrangeiro e Longe, no desconhecido, contem seu conto Sua história esquecida [..] Cobras fumantes, eterna é sua vitória.” Página | 134 A música em seu clipe com o objetivo de nos passar uma representação deste heroísmo dos três soldados, de forma muito feliz novamente, demonstra o comandante do pelotão nazista que enfrentou os três pracinhas em um ato de reconhecimento pela bravura dos guerreiros Brasileiros, mandou enterrá-los e colocar, sobre a cova, uma cruz e placa com a inscrição: “Drei Brasilianische Helden”. Que significa: “Três Heróis Brasileiros”. Na ultima estrofe da música a banda com o objetivo de valorizar ainda mais os esforços da FEB em sua participação naquele conflito, traz mais uma vez o lado humano dos soldados brasileiros destacando sua jornada, longa e difícil além mar para incorporar as forças aliadas no front começar a virar o resultado da guerra até aquele momento favorável aos alemães e seus aliados. “Enviado ao longo do mar para ser lançado no fogo Lutaram por um propósito com orgulho e desejo O sangue dos bravos que dariam para inspirar Cobras fumantes, sua memória vive![...] Cobras fumantes, eterna é sua vitória”. Obviamente que as força expedicionárias estavam não apenas adentrando em território inimigo e hostil, mas em um território desconhecido, de clima diferente ao tropical quente e úmido de nosso país, além é claro da viagem longa e desgastante e o cenário de destruição com o qual os pracinhas se deparavam. “O porto era uma visão apocalíptica, dantesca, mas, por incrível que pareça, ao mesmo tempo, extraordinariamente bela. Por um lado, em terra, ruínas, destruição, provocadas pelos bombardeios. No mar, navios seminaufragados, semidestruídos, incendiados, adernados, grandes mastros fora d’água, espetando o ar.” (VIOTTI, 1998, p. 52). Em linhas gerais, não era fácil para soldados inexperientes em combates manterem-se firmes diante de tantas adversidades e uma realidade que muitos talvez nunca imaginaram presenciar. Conforme as forças iam adentrando no território italiano a situação ia piorando, pois, além do conflito e a destruição, havia também o civis italianos que viviam em estado de miséria absoluta devido a guerra e em condições desumanas de sobrevivência, sem ter não só o que comer, bem como teto para se abrigarem. ”Não se podia dar nada de graça. A filosofia era pagar. Aí vinham aquelas mulheres lavar roupa. Recebiam um crachá para entrar e vinham mostrando e passando pelos sentinelas até chegar ao acampamento, a uma barraca, para pegar uma gandola e uma calça para lavar. Elas levavam até a cantina e tiravam o alimento para suas famílias. Levavam macarrão, chocolate, até toalhas de banho para fazer vestido. Depois traziam a roupa passada e iam entregar, sempre escoltadas.” (MOTTA, 2001, p. 190). No decorrer da música, o Sabatton, entre solos de guitarra melódicas e repetição do refrão, repete a 3º estrofe. Em um trabalho muito feliz a banda consegue transmitir este fato histórico com muita propriedade e riqueza de detalhes sobre este momento crucial não apenas para nossas forças expedicionárias, para nosso país, bem como para o mundo. Foi graças às ações cirúrgicas dos aliados como está na Itália, que foi possível haver uma virada no cenário de guerra até então favorável ao Eixo. Dito isso, ao termino da guerra, os restos mortais foram trasladados para o Cemitério de Pistoia, na Itália, e depois para o Monumento aos Pracinhas, no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, recebendo as diversas condecorações e honrarias. Conclusão Podemos observar que a fonte utilizada nesta investigação e o recorte temático em questão, permitem a construção de uma narrativa histórica dialógica já que a canção em questão é um produto contemporâneo que faz parte do universo sociocultural dos estudantes, independente de seus gostos musicais particulares, por possuir um eu lírico romântico e heroico dos atores nela representados, permitindo problematizar a pouca abordagem sobre este tema no tempo presente, projetando novas perspectivas para narrativas e problematizações futuras. “A narrativa histórica organiza essa relação estrutural das três dimensões temporais com representações de continuidade, nas quais insere o conteúdo experiencial da memória, a fim de poder interpretar as experiências do tempo presente e abrir as perspectivas de futuro em função das quais se pode agir intencionalmente. A narrativa histórica constitui a consciência histórica como relação entre interpretação do passado, entendimento do presente e a expectativa de futuro mediada por uma representação abrangente da continuidade. Essa mediação deve ser pensada como especificamente histórica por operar a inclusão da interpretação do presente e do futuro na memória do passado”. (RÜSEN 2010, p. 65) Nesse sentido, a presente investigação possibilita por meio da sociointeratividade com seus alunos e da problematização e confronto entre documentos e fontes, discutir as considerações e os conhecimentos prévios Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 135 trazidos pelos estudantes, estabelecendo a temporalidades sincrônica e diacrônica da temática envolvida através do interesse pela música, bem como as diversas outras fontes disponíveis que dialogam com o universo sociocultural do estudante com, quadrinhos, cinema e etc, que despertam no aluno o melhor interesse pela disciplina e suas temáticas. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 136 O Ensino de história tem dentre seus diversos desafios despertar no aluno este interesse pela disciplina, com efeito, incorporar novas fontes e práticas que permitam estabelecer dialogicidades entre os saberes dos estudantes e o conhecimento histórico, é uma tarefa difícil dentro das mais diversas tarefas difíceis que o professor já tem que executar, está a busca constante por novas abordagens, outras fontes e tendências, conforme observa ABUD. “As novas abordagens, os novos objetos, outras fontes, outras linguagens foram se incorporando ao ensino de História. As novas tendências e as correntes historiográficas que entendem a História como construção, aliadas a concepções que envolvem o processo de ensino-aprendizagem, provocaram transformações bastante profundas na construção da História como conhecimento escolar.” (ABUD, 2003, p. 184). Dito isso, a busca por novas abordagens e diálogos por meio de fontes diversas e da transversalidade, podem ser geradores de interesses e saberes pela disciplina, pela temática abordada, por novas pesquisas e práticas pedagógicas que possibilitem sempre aproximar aluno, professor e conteúdo. Referências ABUD, Katia Maria. A construção de uma Didática da História: algumas ideias sobre a utilização de filmes no ensino. História. São Paulo, v 22, n. 1 pp.183 a 193, 2003. BITTENCOURT, M. C. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. DIÁRIO Mercantil, Juiz de Fora 23 ago. 1944. Disponível em: https://www.cesjf.br/revistas/cesrevista/edicoes/2009/HIST2009_a_cobra_ fumou.pdf:> Acesso em: 05/03/2019. ITUASSU, Arthur. Cartas do front Brasileiro. In: CARROLL, Andrew. Cartas do Front. Rio De Janeiro: Zahar, 2007. MOTTA, Aricildes de Moraes. História Oral do Exército Brasileiro na Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Bibliex, 2001. Tomo 2. NAPOLITANO, Marcos. 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Nesse sentido de subjetividade, como veremos na sequência, a teologia e a filosofia vão argumentar a respeito, e mais tarde, de igual maneira as teorias da história. Em oposição à percepção cíclica de história para os gregos, surgiu a teologia da história com uma concepção linear, com um começo, meio e fim, e com a participação e desígnio providencial de Deus, cuja destinação é a salvação. O começo é quando Deus cria o mundo, o meio é a encarnação, e o fim é o juízo final. Essa ideia cristã influenciou rigorosamente a forma como foi compreendida a história, considerando que o processo histórico é designado por Deus. ”Todo agente humano sabe o que quer e procura atingir o seu objetivo, mas não sabe por que razão o quer: a razão porque o quer está no fato de Deus o ter levado a querê-lo, a fim de fazer avançar o processo de concretização dos Seus desígnios.“ (COLLINGWOOD, p. 67). Em Santo Agostinho essa propriedade providencialista terá seu ápice teórico. No seu livro "A Cidade de Deus" concluído na primeira metade do século V, ele perguntou se havia algum sentido na evolução histórica da humanidade, se havia um sentido na história, ou se a história teria um fim. Concluiu que sim, e encontrou a resposta a esta importante pergunta na vontade de Deus. Essa reflexão com solução divina para natureza histórica de Santo Agostinho mantém-se até o final do século XVIII, e é a precursora do debate da Filosofia da História. Nessa, a clareza da história se dá a partir do homem e de suas atuações atreladas propriamente as suas vontades, ou seja, a partir da razão humana, e não da intervenção divina. Mas ainda permanece a concepção de um objetivo final para a história. ‟A teologia da história não desapareceu quando os filósofos criaram a expressão “filosofia da história”. Ela continua viva e atuante até os dias atuais, pois transcende em muito o campo de atuação dos teólogos e se assinala a sua presença entre os fiéis do cristianismo. Mas ao lado dela, e tentando uma superação, os filósofos criaram uma filosofia da história a qual, apesar da pluralidade de suas expressões, se estruturou segundo uma coerência interna que pretendia envolver, não só o já acontecido, mas o próprio futuro, ambos pensados de um ‘ponto de vista cosmopolita’, tópico credenciado pela suposição da índole perfectível da humanidade e de sua consequência maior: o progresso indefinido.“ (CATROGA, 2003, p. 12) Os iluministas romperam com a ideia providencialista cristã e passaram a procurar leis gerais que regessem a história. Para Voltaire, o fim da história é o progresso, Deus e a Providência dão lugar a razão humana e seu desenvolvimento; Turgot não descarta o cristianismo, mas reconhece sua importância para suavizar os impulsos selvagens do homem (PECORARO, 2009, p. 24), embora o fim da história seja a perfeição das mentes, ou seja, progresso; Condorcet, um matemático, defende a capacidade de prever as ações humanas matematicamente, e assim chegar ao fim da história: a libertação do homem, ou seja, progresso social e político. Um filósofo desta época que será de grande importância dentro do campo das filosofias da história é Immanuel Kant (1724-1804), que embora estivesse no cenário do iluminismo alemão, argumentava que não bastava negar as autoridades, mas que sempre estaremos sujeitos a leis. Para Kant, todo indivíduo é capaz de pensar por si próprio, mas é impedido pela preguiça e falta de coragem. Isto é devido à “menoridade do homem” que o faz necessitado de tutores que pensem por ele, colocando-o numa posição cômoda, pois é mais fácil obedecer do que racionar. A linha de pensamento de Kant, de que cada forma singular compõe um conjunto homogêneo que funciona adequadamente, leva ao universalismo. Ou seja, embora cada povo ou Estado tenha seu modo de funcionar, há uma estrutura única formada ao final, há uma lógica na história, por isso crê que existam leis para definir a História de todos os povos. Nesse sentido, as “filosofias da história, como Kant, constatam que, no conjunto, o movimento da humanidade segue ou tem tendência a seguir tal ou tal caminho e que esta orientação é devida a causas concretas” (VEYNE, 1998, p.19). Aqui entra sua principal diferença com seu aluno, Herder. Johann Gottfried Herder (1744-1803), pastor protestante, obviamente irá discordar que é preciso se livrar da ideia de Deus para alcançar a “maioridade”, o que irá contra todo o pensamento iluminista. Próximo a uma visão “particularizante”, reconhece que cada povo tem sua singularidade e deve ser visto de acordo com ela, pois a formação de cada um deles “depende primordialmente do tempo e do lugar em que nasce, das partes que o compõem e das circunstâncias exteriores que o rodearam” (HERDER apud GARDINER, 2004, p.51); e ainda, vê como necessário cada povo diferente que formou a Europa, outra diferença grande entre Herder e os iluministas; enquanto estes chamariam a Idade Média de “Idade das Trevas”, Herder defenderá que “os rudes povos da Idade Média” foram necessários. Essa tendência de valorizar cada povo com suas características próprias que descendem de fatores internos e externos dará origem ao nacionalismo e, mais tarde, dará base à História Social. Em relação à liberdade de pensamento, para Herder as ações humanas são “subordinadas ao lugar e à época” (HERDER apud GARDINER, 2004, p. 43), Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 139 portanto, liberdade completa o homem não tem se está subordinado a alguma coisa, mesmo que seja ao lugar e a época em que vive. Logo, o historiador não é imparcial. Se Kant julgava viver em uma época de esclarecimento, rumo ao status de “esclarecida”, Herder acreditava que o homem não iria amadurecer tão cedo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 140 Kant e Herder compartilharam o mesmo cenário de pensamento, cada um desenvolveu sua filosofia da história, mas havia divergências notáveis em seus pensamentos, principalmente ao que Barros descreveu como “universalizante” e “particularizante”. É importante notarmos que não existe um monopólio de pensamento, mas há tendência a surgir reações a ele. Vejamos o Romantismo, movimento do século XVIII que surge como reação ao Iluminismo. Além da crítica ao racionalismo iluminista, o Romantismo exalta a tradição e a nacionalidade, portanto, não tem a mesma perspectiva “universalizante” do Iluminismo, mas valoriza a história de um povo, sendo então, “particularizante” na visão de Barros já exposta. Enquanto o Iluminismo olha para o passado apenas em busca de leis para alcançar o progresso no futuro, o Romantismo exalta esse passado: enquanto a Idade Média é a Idade das Trevas para os iluministas, é a Idade das Luzes para os românticos; enquanto os iluministas apostam apenas na racionalidade para o progresso da humanidade, os românticos respeitam a singularidade e a bondade humana, como quando Rousseau diz, em “Emílio ou da educação” (1968), que a sociedade corrompe o homem. Romantismo e Iluminismo não são escolas teóricas, mas movimentos mais abrangentes que possuem suas próprias visões acerca da História. Entretanto, é importante conhecermos suas principais divergências a fim de entendermos a importância dos movimentos filosóficos que darão base para a formação da história científica. Veremos mais a frente o Historicismo e o Positivismo, paradigmas historiográficos desenvolvidos no século XIX, “o século da História”, e embora ambos recebam influência iluminista, se contrapõem em questões fundamentais. Entretanto, iremos nos atentar primeiro a filosofia da história de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (17701831) e sua contribuição para a construção da Teoria da História, que para Rüsen (2015, p. 247), é a “teoria da história como ciência”. Mesmo afirmando em sua “A Razão da História” que o historiador não tem competência para escrever História porque ela é filosófica, Hegel traz conceitos que serão absorvidos pelas escolas históricas. Para demonstrar sua preocupação com a escrita da História, observemos os três métodos de escrever História que ele expõe no início de seu livro. A “História Original” é feita pelo próprio historiador que está envolvido na História, por isso proporciona uma visão imediata e limitada da História, como o caso de Heródoto, Tucídides e Júlio César, por exemplo; em seguida, a “História Reflexiva” ultrapassa o historiador, que escreve sobre outras épocas e outras culturas; por fim, a História Filosófica busca compreender o sentido da História por meio da Razão. É curioso observar como Hegel dá maior credibilidade ao método filosófico de escrever História enquanto é contemporâneo do Positivismo, um paradigma que objetiva excluir completamente a metafísica do saber historiográfico, portanto, “devemos notar que a “era das filosofias da história” não é substituída totalmente pela “era das teorias da História”, como se uma cancelasse definitivamente a outra” (BARROS, 2012, p. 368). Entretanto, seu pensamento não pode ser visto como rejeitado pelas escolas teóricas, pelo contrário, a dialética de Hegel deu base para o trabalho do historiador. Embora somente a partir do século XX a historiografia tenha exigido do historiador uma história feita a partir de análise, além da narrativa no século XIX, Droysen já disse que “o ponto de partida de toda pesquisa é a pergunta histórica” (DROYSEN apud BARROS , 2011, p. 62), ou seja, a problematização. A dialética de Hegel propõe a problematização por meio da tese, antítese e síntese, e de fato o Materialismo Histórico irá aprimorar esse conceito, além de marxistas posteriores. O próprio pensamento de Hegel é a síntese de suas influências: aceita a ideia de razão iluminista (tese), mas não descarta a ideia de Deus que é ainda sustentada pelos românticos (antítese). Entretanto, embora a dialética tenha sido utilizada por escolas teóricas da historiografia, a filosofia da História de Hegel é apenas dele, e não pode ser modificada. Embora as Teorias da História se preocupem com a escrita da História de forma científica e com métodos próprios, isso não quer dizer que não houvesse divergências. Como proposto anteriormente, analisemos rapidamente o cenário do Positivismo e do Historicismo. O Positivismo de August Comte não propõe uma História Ciência, mas uma Física Social. Assim como o Iluminismo, busca explicar a sociedade por meio de leis, mas vê a necessidade de uma ciência que estude a própria sociedade, elaborando assim a teoria dos três estados: Teológico, onde a humanidade busca explicações no sobrenatural; Metafísico, que substitui a religião pela reflexão filosófica, o abstrato; e o Positivo, onde “todas as atividades humanas tiverem se convertido ao método científico” (PERCORARO, 20019, p.32). Ao contrário do Iluminismo, o Positivismo acaba se tornando conservador e autoritário, pois justifica a hierarquia social enquanto trabalha com a hipótese de leis de progresso exatas. ”O dogma fundamental do positivismo é este: só o sensível é objeto do conhecimento, só o sensível é real. De sua natureza, o homem está condenado a ignorar tudo o que ultrapassa a ordem empírica. Qualquer investigação que pretende elevar-se acima dos fatos, indagando-lhes a origem, o fim e as causas está de antemão condenada a irremediável esterilidade. O homem só tem um modo de conhecer: o positivo, isto é, o sensível. (...) A metafísica é impossível. Possível é só a ciência positiva.“ (FRANCA, 1978, p. 192) Em oposição ao Positivismo Francês com descendência iluminista, temos o Historicismo alemão- que fornece uma contribuição determinante para a identidade da historiografia atual, num cenário de consolidação dos Estados-Nacionais do século XIX. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 141 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 142 ”No fundo, tanto o Positivismo como o Historicismo foram, à partida, frutos de uma mesma necessidade de época, representada pelo paradoxo de encaminhar uma modernização política que viabilizasse aquele desenvolvimento industrial que atenderia às exigências da burguesia triunfante, e ao mesmo tempo conservar alguns privilégios sociais da nobreza.“ (FONTANA, 2004, p.222). Apesar de partirem de um ponto em comum, esses paradigmas permeiam caminhos distintos. Enquanto o Positivismo vai à direção de uma história universalizante das sociedades humanas, de análise geral, onde os métodos das leis naturais são válidos para os fenômenos humanos em qualquer povo que exista no mundo, o Historicismo se atem as especificidades de cada povo, reconhecendo a pluralidade dos homens e dos tempos. Portanto, não apenas os povos seriam singulares, mas também os historiadores, e estão muito distantes de serem objetivos e neutros, partindo do pressuposto de que cada ser tem sua própria história, seus costumes, suas subjetividades, e está inserido em determinada cultura, classe social, contexto histórico. Desta forma, a história é entendida como uma ciência específica, com métodos próprios. É importante destacar que, ainda que os modelos do Positivismo e Historicismo sejam inversos, o historiador não precisa estar necessariamente dentro de um ou de outro; suas perspectivas podem ser articuladas na análise de um dado assunto. Da mesma maneira que, como citado anteriormente, essas duas teorias da história – o Positivismo e o Historicismo – relacionaram-se com a Filosofia da História de Hegel, ainda que após a Nova História dos Annales, a maneira mais considerável de conduzir uma análise e interpretação histórica seja através das Teorias da História, isso não faz que de maneira alguma com que a Filosofia da História deixe de existir, e até mesmo a Teologia da História não permaneça entre os fiéis do cristianismo. Ainda que para muitos a História seja consolidada como uma ciência, e exista todo um processo para ela ter essa caracterização, a Teologia, Filosofia e a Teoria da História se fazem todas presentes, e estão diretamente interligadas entre si. De uma maneira ou de outra, toda produção é válida e a historiografia utiliza-se ainda hoje de algum aspecto dessas três maneiras de dar sentido à História. Nesse sentido afirma Barros: Na verdade, a relação entre a historiografia e a filosofia é muito íntima, e, a não ser que se pretenda elaborar uma história meramente factual e descritiva – o que de resto é rejeitado nos dias de hoje – pode-se dizer que a historiografia em sentido moderno ampara-se necessariamente em uma Teoria da História e, por que não dizer, em uma Filosofia da História, que corresponde à especulação dos historiadores sobre o seu próprio ofício (Id. p. 71). Para melhor demonstrar esse ponto, analisemos a Filosofia e Teoria da História de Marx. Há quem confunda, de modo simplista e em senso comum, o paradigma do Materialismo Histórico com a Filosofia da História de Marx e Engels. Ambos desenvolveram esses dois aspectos de um mesmo pensamento, sendo ainda sua Filosofia politicamente pensada, e portanto, assim engajada. Entretanto, um historiador que se diz marxista, pode o ser apenas ao optar pelo Materialismo Histórico como base de análise de seu trabalho, e não necessariamente ser ativo politicamente ou mesmo concordar com a Filosofia da História marxista. Essa Filosofia propõe que no curso da história, os trabalhadores se unirão e formarão uma ditadura do proletariado, que culminará em uma sociedade comunista, assim sendo, ações políticas devem ser tomadas para que isto aconteça, e requer do seu adepto não apenas concordância, mas engajamento. Entretanto, Marx e Engels não concordam que a filosofia da história possa explicar toda e qualquer sociedade, tão quanto não queriam colocar sua Teoria da História como um modelo a ser seguido – embora muitos marxistas ortodoxos tenham tentado fazê-lo – mas como propõe Barros, sua Teoria da História é um espaço de reflexão para outros historiadores (2012, p. 370). Vejamos alguns historiadores que se utilizaram deste paradigma não de forma dogmática, mas de forma reflexiva. As críticas ao Materialismo Histórico, ainda conforme Barros se referem ao determinismo econômico e à dicotomia base/estrutura. Maurice Godelier (1934-), contra o determinismo, mostra que as relações de produção nem sempre são econômicas como no caso da sociedade capitalista, mas que com os aborígenes australianos eram relações de produção de parentesco, na Atenas do século V eram políticas, no Antigo Egito eram políticoreligiosas. Em relação à dicotomia base/estrutura, Antonio Gramsci (18911937), além de se preocupar com a esfera cultural ao invés de somente a econômica, apontava que a ideologia não era apenas um reflexo da base. Thompson argumenta que essa dicotomia pode levar a situações políticas absurdas, como no caso de Stalin que almejou uma sociedade de base industrial e uma estrutura social que se construísse sozinha a partir dela. Já Raymond Williams (1921-1988) defende que Marx não via como dicotomia, mas como uma relação, e tudo fora disso foi desvio de marxistas posteriores. Essa relação, defendida por Raymond, é como a construção de um edifício: o prédio precisa de uma base para ser construído, da mesma forma que a política e a cultura da sociedade precisam de uma base para serem edificadas, sendo essa base econômica. Por fim, Edward P. Thompson (1924-1993) acusa o Materialismo Histórico de reducionista, afirmando que não há produção sem cultura, por isso ele e a Escola Inglesa do Marxismo, do qual faz parte (inclusive Gramci, já citado), contribuem para a Teoria levando em consideração o aspecto cultural de uma sociedade. Thompson ainda defende que classe social não é uma estrutura, mas uma instância cultural (Ibid., p. 123), reflexo do seu afastamento do determinismo econômico e aproximação da realidade cultural. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 143 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 144 Como vimos, historiadores que se dizem marxistas reformulam conceitos do próprio marxismo, acrescentando pontos de análise não pensados pelos autores da Teoria do Materialismo Histórico, como fez a Nova Escola Inglesa com a dimensão cultural e Pierre Vilar (1906-2003) com as condições geográfica e a demografia para analisar o modo de produção, apontando que somente “a produtividade não é suficiente para a transformação histórica”. Enfim, podemos compreender que as múltiplas faces da História convivem, são reanalisadas e reinterpretadas, seja por filósofos ou historiadores, e que, portanto, a consolidação da História como ciência ainda é um processo relativamente novo e constante; e como nas palavras de Certeau: “a "relatividade histórica" compõe, assim, um quadro onde, sobre o fundo de uma totalidade da história, se destaca uma multiplicidade de filosofias individuais, as dos pensadores que se vestem de historiadores” (CERTEAU, 2000, p. 66-67). Referências BARROS, J. A. Historicismo e Positivismo: confronto entre dois paradigmas. Dezembro, 2010. Disponível em: <http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/historicismo-e-positivismo>. Acesso em: 15 de janeiro de 2018. _____. Teoria da História: os primeiros paradigmas - Positivismo e Historicismo. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. _____. “Teorias da História” e “Filosofias da História”: Considerações sobre o contraste entre dois espaços de reflexão sobre o fazer histórico. Anos 90, Porto Alegre, v. 19, n. 36, p. 367-400, dez. 2012. _____. Teoria da História: Os paradigmas revolucionários. Petrópolis: Vozes, 2013. CERTEAU, M. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. São Paulo: Forense Universitária, 2000. CATROGA, F. Caminhos do fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003. COLLINGWOOD, Robin George. A ideia de história, Trad. Alberto Freire, Lisboa: Presença, 1972. FONTANA, J. História dos Homens. Bauru: EDUSC, 2004. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984. FRANCA S.J., Pe. Leonel. Noções de História da Filosofia. 22 ed. Rio de Janeiro: Livraria Agir, 1978. GARDINER, P. Teorias da História. Tradução de Vítor Matos e Sá. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. KANT, I. Textos Seletos. 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Brasília: UnB, 1998, DO VÉU AO VÉU: REPRESENTAÇÃO DO CASAMENTO NA OBRA DE LIMA BARRETO (1889-1922) Jacqueline Ferreira Dias Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 146 Introdução A partir das décadas de 60 e 70 do século XX, houve um crescimento considerável nas produções acadêmicas voltadas para a História das mulheres. Este impulso se deve ao advento do movimento feminista que propôs debates sobre os direitos das mulheres, na qual “reivindicavam [...] mais recursos para as mulheres e [...]denuncia[vam] a persistência da desigualdade” (SCOTT, 1992, p.69), ou seja, buscavam que as mulheres obtivessem a representatividade merecida, e assim evidenciar a importância destas para a história. Com isso, surge um novo campo de estudo denominado história das mulheres, com o qual inicia-se uma outra forma de se produzir história, pois como afirma Joan Scott, a história das mulheres modifica a história e “questiona a prioridade relativa dada á ‘história do homem’, em oposição á ‘história da mulher’, expondo a hierarquia implícita em muitos relatos históricos”. (1992, p.78). As produções acadêmicas adotaram as concepções da recém surgida área de investigação, cuja a expansão se deu através de artigos, teses, monografias conferências e congresso, elevando dessa maneira, as contribuições historiográficas em torno do papel da mulher na sociedade. Dentro do campo da história das mulheres o debate sobre o termo gênero tornou-se necessário na medida que teoriza a questão da diferença sexual dentro do seio da História, ampliando assim a discussão em torno da produção historiográfica, pois trouxe a “dimensão analítica do sexo para as experiências sociais em detrimento do determinismo ‘biológico’ e ‘natural”(Gomes, 2010, p.7). A partir disto, o gênero passou a considerar a múltipla identidade desta categoria seja elas, cor, raça e sexualidade. Ao analisarmos estas variedades de temáticas, nota-se um maior destaque a relação existente entre a figura feminina e a instituição do casamento, visto que, o matrimônio representar a propagação da instituição familiar e está sempre atrelado diretamente a figura da mulher, mais que do homem, sendo sua vida ditada em função disto. As representações da mulher e do matrimônio sob o olhar Barretiano Para uma maior exploração do tema, pode-se utilizar as obras ficcionais do autor carioca Lima Barreto como fonte de extração de informações. Em função da produção literária do autor, adotaremos como recorte temporal o período conhecido como a Primeira República entre os anos de 1889-1922, ambientado no Rio de Janeiro. Afonso Henrique de Lima Barreto, nascido em 1881 no Rio de Janeiro e falecido em 1º de novembro de 1922, foi um escritor, negro, que teve graças a família o estudo garantido. Escritor de romances, crônicas e contos, seus escritos apresentam característica ficcionista, ou seja, possuem ligação com a realidade e, influenciado pela literatura Russa, suas obras abordavam temáticas voltadas para críticas sociais em favor dos marginalizados pela sociedade, na medida que buscava nelas retratar assuntos do cotidiano das pessoas, prezando por uma literatura militante e que abordava as preocupações sociais políticas que permeavam a sociedade. Neste período o Brasil passava por várias transformações nos setores econômicos, sociais e políticos. Dentre eles a consolidação do capitalismo a proclamação da república (1889), a abolição da escravatura. Fatores que não só modificaram as estruturas institucionais do país, mas também a vida das pessoas, visto que houve uma reestruturação dos ideais em relação ao casamento e a ideia de amor, ou seja: uma mudança nos valores sociais da sociedade, sendo o Rio de Janeiro - capital da época (1763 á 1960)- palco destas transformações, na qual recebia grande influência Europeia nesse período. Em meio a estes processos de mudanças, estava a mulher, que em detrimento desta modificação de pensamento, teve sua imagem mais atrelada ao sexo masculino, na medida que eram submetidas ao regime patriarcal na qual o homem detinha o domínio sobre tudo na sociedade. Através disto, o casamento era o meio pela qual a mulher ganhava o título de membro da comunidade, visto que quem não selava este laço matrimonial era marginalizado e considerado não pertencente da sociedade. Por isso as ambições atreladas ao considerado “sexo frágil” estava o matrimônio como único objetivo de vida. Como afirma Eliane Vasconcellos. “Desde a infância, era socializada para torna-se dependente. Para integrar a sociedade, precisava ostentar o título fulana de tal. Só assim adquiria status de ser. O casamento lhe era proposto como único assunto sobre o qual deveria pensar, a via pela qual desempenhava suas funções mais importantes: a de esposa e a de mãe, realizando-se, assim, social e biologicamente.[...] aquela que não contrai matrimonio é marginalizada e há uma série de expressões pejorativas empregadas em relação a ela” (VASCONCELLOS, 1999, p.27). Desse modo, a instituição matrimonial movia toda a estrutura social, pois era através deste que homens e mulheres buscavam ascensão social e ganhavam prestígio no grupo que estava inserido. Através disto, o enlace acontecia por vários motivos; sejam lucrativos, nos quais o objetivo da união para a elite configurava-se por conveniência financeira, na qual era selado um acordo entre ambas famílias com fins lucrativos. Porém, na classe pobre este valor não era atribuído visto que não possuíam poder aquisitivo para tal, com isso considera-se a ideia do amor como motivo do matrimônio. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 147 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 148 No século XX, em ambas as classes muitos casamentos aconteciam por autorização da justiça, na medida em que as famílias obrigavam as partes a se casaram em face de provável defloramento, ou seja: sexo antes do casamento. Prática que não era admitida legalmente. Dessa maneira o casamento não se tratava apenas da união do casal, mas de famílias com propósitos sociais, políticos e culturais por trás do enlace. A figura da mulher, personagem fundamental desse desenrolar é quase sempre silenciada neste processo. Lima Barreto, por ter vivido nesta época, é um escritor relevante, pois, este panorama não o impediu de fazer da literatura porta para: “um alto falante de denúncia, crítica e catarse, mesmo incorrendo na dominação machista [..]”(CUTI, 2009, p. 161), na medida que escrevia literatura tendo as mulheres como protagonistas de suas histórias, abordando variadas situações, promovendo uma ruptura com o pensamento patriarcal. Com isso, considerando a gama de escritos de Lima Barreto, que traz a figura feminina de forma explicita, utilizaremos os romances: “Numa e a Ninfa”, “Clara dos Anjos” e “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Na qual são apresentadas as representações do matrimônio nestas obras. Buscando compreender como se arrolava o processo para o arranjo do casamento, como se comportavam as mulheres neste processo, e identificar até que ponto a educação dada influenciava a mente feminina em torno desse costume. Desse modo, é possível realizar na pesquisa histórica sobre o comportamento feminino e o matrimônio, a utilização da literatura barretiana como fonte de extração, permitida pela relação entre história e literatura, para compreender as práticas culturais, comportamentais e visões de mundo na primeira República. Ou seja, através das obras de Lima Barreto, buscamos refletir sobre a representação do casamento na “Bellé Époque”. História e literatura: o casamento consumado Antônio Candido traz na sua obra “Literatura e sociedade” (2006), algumas formas de investigação do estudo de história e literatura, dentre a qual está a sociologia literária, na qual afirma que esta não analisa a questão do valor da obra em si, mas a suas ligações com questão políticas, sociais e culturais, bem como o vínculo entre a obra e o imaginário de uma dada sociedade. Neste caso, a noção histórico-social é o foco desta análise da literatura, na medida que propõe uma análise externa da obra buscando caracterizar elementos que permitam identificar expressões de uma determinada época. Desse modo consiste no fato de determinar correlações entre as noções reais e as que aparecem no livro. Porém, Candido alerta os pesquisadores de história e literatura para o fato do vínculo arbitrário e deformante que a produção artística propõe com a realidade mesmo quando intenciona transpô-la rigorosamente. No sociologismo, Antônio Candido salienta que: “É preciso estabelecer uma distinção de disciplinas lembrando que os tratamentos externos dos fatores externos pode ser legitima quando se trata de sociologia da literatura, pois não propõe a questão do valor da obra, e pode interessar-se, justamente, por tudo que é condicionante. Cabe-lhe, por exemplo, pesquisar a voga de um livro, a preferência estática por um gênero, o gosto das classes, a origem social dos autores, a relação entre as obras e as ideias, a influência organizacional, econômica e política etc.(CANDIDO, 2006,p.14) A obra de Antônio Candido contribui para análise deste projeto, na medida que traz a discussão teórica sobre o uso da literatura em trabalhos historiográficos, sendo fundamental para compreensão desta temática. Também contribui com a discussão sobre a importância do estudo da autoria, pois é preciso inquirir sobre a vida e obra do autor que se pretende trabalhar, saber sobre sua função social, sua relação com a sociedade, bem como a natureza da sua produção e verificar se a literatura tem vínculos com a realidade. No livro “Entre agulha e a caneta: A mulher na obra de Lima Barreto” (1999), Eliane Vasconcellos analisa a figura da mulher no século XIX, na obra de Lima Barreto, traçando ponte com todas as obras do escritor que tratam desta temática, detectando várias questões dentre elas o casamento, descrevendo situações que se fazem presentes neste processo como sexo, educação e pensamentos deste período. Vasconcellos levanta um questionamento importante que deve ser levado em consideração não só no campo da história das mulheres, mas nos diversos campos de estudo, ao dizer que: “cada cultura oferece á mulher uma visão de si mesma, um estereotipo. A ótica discriminada para o sexo feminino varia em função de fatores culturais, de determinadas condições de civilização[...]de correntes ideológicas que suscitam condutas” (VASCONCELLOS, 1999, p, 17). A autora nos mostra que é essencial compreender que as representações das mulheres encontradas na literatura Barretiana foram feitos a partir da ótica masculina. Ao abordar o casamento, Vasconcellos (1999) traz um debate interessante, no qual afirma que a mulher, nesta época, tinha somente como ambição o matrimônio: Este seria o primeiro se não o único projeto destinado à elas, ou seja: a mulher desde de criança era direcionada para ideia do matrimônio como única função a exercer. Esta noção de casamento, que reforça as desigualdades entre homem mulher foi oficializada pelas preposições dos códigos civis implantados no século XIX, que deram total poder sobre a mulher e família ao homem: “No nosso código civil [...], no artigo 233: ‘o marido é o chefe da sociedade conjugal’, a função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse do casal e dos filhos. Já no artigo 246, é atribuído à mulher o dever de obediência ao marido” (VASCONCELLOS, 1999, p28). Vasconcellos (1999) apresenta uma discussão muito esclarecedora em torno da posição da mulher neste período, dando grande contribuição para Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 149 nossa pesquisa na medida em que aborda a diferenciação de pensamentos das personagens barretianas sobre a condição feminina e a noção de casamento na Belle Époque. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS O casamento era uma espécie de favor que o homem conferia a mulher. [pois], [...] o período que antecede o casamento, tão decisivo na vida da mulher, nada revela sobre a natureza como ser humano. Mostra apenas o que nossa cultura espera dela, ou seja, que cumpra o seu destino, o qual e´, essencialmente, casar e ter filhos. Aquela que não atinge esse objeto não é bem aceita. (VASCONCELLOS, 1999, p.32). Página | 150 “Perspectivas para educação da mulher em Lima Barreto”, de Jomar Ricardo da Silva e Maria Arisnete Câmara de Morais, os autores nos apresentam uma visão em torno da educação da mulher no início do século XX. A educação estava ligada aos ideais da alta sociedade, tendo como função moldar os indivíduos de acordo com os padrões da elite. Tendo a família papel fundamental nestes aspectos. Conforme os autores: “(...)podemos compreender a educação como a forma que uma sociedade dispõe de mecanismo de reprodução, na medida que os indivíduos os internalizam, implicando uma prática de ações rotineiras e na aceitação de valores como naturalizados (SILVA e MORAIS, 2006, p.6). Silva e Moraes afirmam que: “(...) a polaridade educação-gênero, a educação é o processo que articula o indivíduo e realidade social com a finalidade historicamente, produzir as diferenças entre homem e mulher” (2006, p. 06). Desse modo apesar da educação familiar, o indivíduo não era espelho da estrutura social na qual foi educado, pois poderia, através de sua individualidade, moldar a si próprio. Com isso, as obras de Lima Barreto trazem uma pluralidade de visões em torno da figura feminina. Evidenciando a atuação feminina dentro do universo complexo nos quais o homem detém a hegemonia. A literatura Barretiana e as possibilidades da literatura sociológica As fontes analisadas dentro deste estudo das representações femininas e do matrimônio são narrativas escritas pelo autor Lima Barreto, sendo estas: “Clara dos Anjos”, romance publicado postumamente a morte de autor. Tendo a redação original datada por volta de 1904/05, na qual contém ensaios do que viria ser a obra original. A obra aborda várias questões importantes como o preconceito racial, social e de gênero. Ao contar a história de Clara dos Anjos, uma moça negra de família humilde do subúrbio carioca, que tem sua vida mudada ao se apaixonar por um rapaz da elite carioca. “Triste fim do Policarpo Quaresma”, obra publicado em 1915, sendo a mais conhecida de Lima Barreto. Retrata a história de Policarpo Quaresma, um visionário extremamente nacionalista, pois evidenciava os valores da nação brasileira, na medida que considerava as qualidades deste povo- a hospitalidade-, a culinária, os costumes do país melhor que de qualquer outra nação. E utilizava de seus estudos e práticas para expor que cultura do seu país estava no patamar de uma grande potência mundial. E a obra “Numa e a Ninfa”, romance publicado em 1915 como folhetim pelo jornal “A Noite”, no Rio de Janeiro. A obra tem como enredo uma crítica ao panorama político e social do contexto da Primeira República, sendo retratado este enredo através dos personagens principais: Numa um advogado que tem a carreira política iniciada graças a influências do sogro e Edgarda retratada como uma mulher inteligente e ambiciosa que ajuda o marido na carreira política. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 151 Com uso da literatura como fonte devemos nos atentar para o fato de “a integridade da obra não permite adotar(...) visões desassociadas, [pois] só podemos entender fundindo o texto e contexto numa interpretação dialeticamente integrada”. (CANDIDO, 2006, p. 13). Utilizaremos então a noção de literatura sociológica, na qual: “As modalidades mais comuns de estudo(...)sociológicos em literatura[são] primeiro tipo seria formado por trabalho que procurou relacionar o conjunto de uma literatura, um período, um gênero com condições sociais. (...)um segundo tipo poderia ser formado pelos estudos que procuram verificar a medida em que as obras espelham ou representam a sociedade(...) o terceiro (..) estudo da relação entre obra e o público(...) O quarto tipo, que estuda a posição e a função social do escritor, procurando relacionar a sua posição com a natureza da sua produção.(..) o quinto tipo eu investiga a função politicas das obras e dos autores”(CANDIDO, 2006, p 18-20) Com isso, o sociologismo literário propõe uma análise dos fatores externos e internos que compõe uma obra literária, permitindo um vínculo da literatura e a história. Alfredo Bosi, em seu livro “Literatura e resistência” (2002) afirma que a história da literatura tem por objetivo a descrição das individualidades; e tem por base intuições individuais, portanto, as obras literárias são escritas tendo como base um autor que traz consigo especificidades, vivências, pensamentos individuais. Por isto, Bosi enfatiza que é necessário que se analise e problematize nesta operação historiográfica o autor. Considerações finais Desse modo, percebemos que se torna essencial para operação historiográfica o aprofundamento na vida do autor Lima Barreto, na medida que suas vivências, ideias políticas e sociais estão explicitamente nos seus textos. Na qual sua obra traz um retrato da sociedade do período, tornando-se passível de considerar esses escritos como representação desta sociedade. Considerando que apesar desta ligação essas obras trata-se de uma obra ficcional, ou seja, elementos criados pelo autor, tornando-se assim fundamental seu estudo. Através disto, por meio da representação do casamento extraído da análise da literatura barretianas, permite a compreensão dos valores deste período, ampliando a compreensão da história e sociedade, buscando contribuir para a reflexão para sobre a história das mulheres, uma vez que estas são personagens apesar de não ter sua representação evidenciada no período, já que o homem detinha este papel na maioria dos casos, a mulher ocupa um papel importantíssimo neste processo chamado casamento. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 152 Na medida que reporta uma literatura com característica do contexto social do autor, tratando da realidade social, cultural, politica da Primeira Republica, vemos que neste período era empregado para mulher o valor de mãe, filha e esposa, ou seja, todo sua existência se da através do casamento. Desse modo através do método de análise da história e literatura, a sociologia literária possibilita o estudo interdisciplinar uma vez que através destas obras literárias podemos caracterizar uma sociedade nos seus vários aspectos, mas neste caso tendo o casamento e a mulher como foco deste trabalho. Referências BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. São Paulo: Penguin: companhias de letras, 2012. BARRETO, Lima. Numa e a Ninfa. Belo Horizonte: Rio de Janeiro: Damier, 1989. BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguin: companhias das letras, 2011. Bibliografia: BOSI, Alfredo. Por um historicismo renovado: Reflexo e reflexão em História literária. In.____. Literatura e Resistência. São paulo: Companhias das letras, 2002, p 7-53 CANDIDO, Antônio. Primeira parte. In_____. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul. 6ª ed, 2006, p 13-51. GOMES, Gisele Ambrósio. História, Mulher e Gênero. Virtú (UFJF) , v. 10, 2010, p. 1-10. 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É necessário que haja um olhar amplo e crítico do que se lê, para que assim possa se extrair dela o máximo de detalhes possíveis. Seguindo a perspectiva do que pode ser analisado em uma obra literária, Candido (2006) explica que há uma concepção de que a literatura deve expressar aspectos da realidade, e que há outra visão oposta na qual a literatura não deve ser um retrato fidedigno da realidade. Segundo Candido (2006) atualmente a discussão desses elementos da literatura e sociedade pode ser visualizada da seguinte maneira: “Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno”. (CANDIDO, 2006, p.8-9). Analisando o pensamento de Candido (2006), é possível concluir que a respeito da obra literária, que é necessário haver uma reflexão que una essas duas visões. A externa, que o autor explica sendo como questões sociais e a interna que é como essas questões se solidificam dentro da literatura. Candido destaca outro ponto importante que são as camadas que a literatura pode ter, o autor faz esse exercício crítico para equilibrar análise sociológica e estética em termos de estudos literários: “É este, com efeito, o núcleo do problema, pois quando estamos no terreno da crítica literária somos levados a analisar a intimidade das obras, e o que interessa é averiguar que fatores atuam na organização interna, de maneira a constituir uma estrutura peculiar. Tomando o fator social, procuraríamos determinar se ele fornece apenas matéria (ambiente, costumes, traços grupais, ideias), que serve de veículo para conduzir a corrente criadora (nos termos de Lukács, se apenas possibilita a realização do valor estético); ou se, além disso, é elemento que atua na constituição do que há de Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 153 essencial na obra enquanto obra de arte (nos termos de Lukács, se é determinante do valor estético)”. (CANDIDO, 2006, p.9-10). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 154 Quanto mais profunda a análise de uma obra literária, mais sobre ela o pesquisador irá saber, comparando-se a um poço no qual se acha que sabe a profundidade, mas quando analisa-se com mais cautela, ele tem mais metros a serem visualizados. A obra “Úrsula” (1859):a literatura como crítica no Brasil Imperial A respeito dessa discussão sobre extrair da obra o que ela tem além das respostas aparentes, podemos destacar o romance “Úrsula”, publicada pela autora maranhense Maria Firmina dos Reis em 1859, porém é necessário entender quem foi a autora da obra e sua trajetória para que possamos analisar as claras as obras e seus posicionamentos, para assim analisar a função social de sua obra. Segundo Candido: “Considerada em si, a função social independe da vontade ou da consciência dos autores e consumidores de literatura. Decorre da própria natureza da obra, da sua inserção no universo de valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela comunicação. Mas quase sempre, tanto os artistas quanto o público estabelecem certos desígnios conscientes, que passam a formar uma das camadas de significado da obra. O artista quer atingir determinado fim; o auditor ou leitor deseja que ele lhe mostre determinado aspecto da realidade”. (CANDIDO, 2006, p.49). Vale ressaltar então, que a escritora da obra Maria Firmina dos Reis foi uma maranhense nascida em 1825 em São Luís, a autora contribuiu nos jornais da época com o pseudônimo “Uma Maranhense” e também teve uma vida docente bem ativa em São Luís, morreu em 1917 pobre e cega, porém teve uma enorme contribuição na literatura brasileira sendo considerada a primeira autora abolicionista, seu nome por vezes não é mencionado nas obras sobre literatos, o que deixa transparecer um “esquecimento do seu nome”. A investigação da pesquisa se dá na vertente de entender a partir da obra “Úrsula”, as representações da escravidão e a posição feminina frente a uma sociedade escravista e patriarcal no período imperial datado de 1822 até 1889. Salientando-se assim o ano de 1859, data de publicação da obra. A narrativa da obra é em primeira analise um simples romance que apenas fala sobre um amor cheio de desafios entre os jovens Tancredo e Úrsula, porém ao fazer uma leitura mais detalhada pode-se extrair da obra questões que vão além de um mero romance, a autora faz uma crítica a sociedade escravocrata na qual se passa história,) e as relações que nela existem, a partir da obra de Firmina pode-se entender como se dava a relação escravo e senhor, e os padrões de feminilidade a partir das personagens de sua obra. A obra foi encontrada por Horácio de Almeida em uma biblioteca no Rio de Janeiro, anteriormente “esquecida”, esse esquecimento de Firmina é perceptível dentro da literatura. Sua Obra “Úrsula” foi o primeiro romance que tinha um viés abolicionista, a caraterização dos personagens, foi feita de maneira clássica, divididos entre mocinhos e vilões, no qual cada personagem tinha seu papel social bem definido na trama, uma das diferenças da obra é que de maneira sucinta Firmina critica os moldes senhorias na qual está inserida e faz análise desses atores sociais em sua obra. O livro “Úrsula” é dividido em 20 capítulos, sendo composto por 166 páginas. Nesses capítulos a autora narra o destino de personagens como de Adelaide, Tulio e Luiza B. e o Comendador, tendo cada personagem que norteia a obra, intitulados em um capitulo. A narrativa se passa em meio as mazelas da escravidão, trazendo triângulos amorosos como o do jovem Tancredo ao ver seu primeiro amor, Adelaide, envolvida com seu próprio pai, depois da morte da sua mãe. Outro triângulo amoroso é o vivido pelo também Tancredo e Úrsula e o seu tio comendador Fernando B. A narrativa, além dos enlaces amorosos, traz como pano de fundo as tristezas que a escravidão possibilitou aos indivíduos que a viveram. A análise dessa obra permite visualizarmos assim pelo contexto que está inserida, as representações da sociedade escravagista. Conhecendo a partir dos personagens, o modo de vida dessa sociedade e assim compreender como se dá a relação do negro com o meio social. A partir das narrativas sobre as mulheres que “Úrsula” traz, é possível problematizar os perfis das personalidades dos diversos atores sociais, inseridos no contexto do Brasil Império. Os personagens de Firmina e a crítica social neles presentes. O romance “Úrsula” publicado na metade do século XIX, expõe os ideais e posicionamentos de Maria Firmina dos Reis que faz críticas sociais importantes em seu livro, pois o contexto social da época era um Brasil que tinha um poder econômico abastecido em parte pela escravidão. A narrativa de Firmina busca dar voz para aqueles que viveram sob o regime escravista, tendo o senhor de escravos em sua obra como o centro das relações de poder da sociedade, destacando-se assim o fato de estarem presentes no livro personagens cujas ações são de agentes sociais e históricos. A voz da personagem “preta Susana”, que a autora evoca é a voz do negro que sofre com as mazelas da escravidão, o papel de Suzana é o olhar e a crítica da autora para com o sofrimento dos negros ao serem trazidos para o Brasil, sequestrados da sua terra natal. “Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida; passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé, e, para que não houvesse receio de revolta, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 155 acorrentados como os animais ferozes das nossas matas que se levam para o recreio dos potentados da Europa : davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca; vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros com á falta de ar, de alimento e de água” (REIS, 2017, p.72) Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 156 A denúncia de Firmina nessa fala por meio do testemunho de Susana salienta como ela e os demais escravos foram trazidos sequestrados da África para o Brasil. Em determinado dialogo dentro da sua obra, Firmina abre os olhos e deixa ecoar a voz de quem foi calado, e expõe o depoimento cheio de horrores Susana mostra aos leitores, as misérias dos negros que calavam-se e que costumeiramente via esses horrores acontecerem por serem silenciados pela opressão. Discutindo essa ideia de escravidão, Jaime Pinsky, no livro a “Escravidão no Brasil” define a Escravidão como: “A escravidão se caracteriza por sujeitar um homem ao outro de formas completa: Os escravos não é apenas propriedade do senhor, mas também sua vontade está sujeita à autoridade do dono do seu trabalho pode ser obtido até pela força”. (PINSKY,2012) A escravidão como explica Pinsky, é a forma como o indivíduo utiliza sua vontade sob o outro; a escravidão é a forma de usar o outro como propriedade humana, como eram usados os personagens de Firmina em sua obra. “Tão comum a ideia da existência do escravo na Antiguidade clássica que Aristóteles, o filosofo grego costumava dizer que o escravo, por natureza, não pertencia a si mesmo, mas a outra pessoa. (PINSKY,2012). Pinsky (2012), explica que essa legitimidade da escravidão não está ligada a naturalidade, mas sim pela condição histórica que cada indivíduo que ocupa, nos mais diferentes momentos históricos, e não pela naturalidade da escravo, a escravidão está ligada a condição do indivíduo, o lugar que ele ocupa dentro da sociedade, assim conclui-se com a ideia de Pinsky que o indivíduo não é escravo por natureza e sim feito de escravo pelo sistema no qual está inserido, seja escravo de guerra, ou pela cor de pele. Ao falar sobre o escravo negro, Pinsky (2012) aponta o aspecto de autoridade que a escravidão revela, visto que o autor aborda como os negros eram trazidos para o Brasil contra sua vontade, explicando que essa forma de chegada dos negros contra sua vontade já implica no autoritarismo do sistema escravista. “Nada mais equívoco do que dizer que o negro veio para o Brasil. Ele foi trazido. Essa distinção não é acadêmica, mas dolorosamente real e só a partir dela é que se pode tentar estabelecer o caráter que o escravismo tomou aqui: vir pode ocorrer a partir de uma decisão própria, como fruto de opções postas a disposição do imigrante. Ser trazido é algo passivo como próprio tempo do verbo- e implica fazer algo contra e a despeito de sua vontade. (PINSKY, 2012) Pinsky (2012) explica que essa presença do negro no Brasil de maneira forçada, esteve relacionada a ausência de força braçal nas lavouras brasileiras, essa falta de pessoas foi um grande incentivo para a vinda do negro para compor a ocupação de força braçal. Debate ainda que dentro da própria organização da lavoura se tinha outras atividades, por isso a necessidade de varia pessoas para ocupar essas atividades. A narrativa de Firmina como quebra aos silêncios da escravidão e a união entre História e Literatura Uma das vozes trazidas por Firmina é a do Jovem Tulio que foi um escravo na fazenda que pertencia a Luiza B., mãe de Úrsula, e vivia sob os comandos de suas senhoras, depois de ser resgatado e ter a “liberdade” cedida e comprada por Tancredo, Tulio serve a Tancredo por gratidão. Nessa ideia de gratidão, Firmina traz a falsa ideia de liberdade que Tulio tem. Tulio segundo Susana não conhecia o que era liberdade porque não gozou da mesma. A respeito dessa ideia de liberdade destaca-se a tese de Chalhoub, bem como a ideia de coisificação do negro, outro ponto que Maria Firmina traz sobre Tulio é que este não se deixou endurecer pela escravidão, visto que esse salvou o jovem Tancredo. “E o misero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma, porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma” (REIS, 2017, p.8) O ponto a ser destacado na obra de Chalhoub é o debate que o autor traz sobre a coisificação do negro, o negro como objeto, como um ser inumano, com ideias não mais dele e sim de seus senhores. A coisificação do negro, segundo Chalhoub (1989), diz muito sobre o cotidiano do negro e suas relações. De acordo com o autor: A constatação da violência na escravidão é um ponto de partida importante, mas a crença que essa constatação é tudo que importa saber e comprovar sobre o assunto acabou gerando seus próprios mitos e imobilismo na produção historiográfica. Podemos, por exemplo, fazer uma breve história de um dos mitos mais celebres da historiografia: a coisificação do negro”. (CHALHOUB, 1989, p.41). A ideia de coisificação do negro, para o autor, é bem mais abrangente porque vai além de um aspecto legal, vai ao ponto da coisificação do negro se estender a suas experiências. Porém, Chalhoub (1989) não concorda com a ideia de que o próprio negro trazia para si essa ideia de inferioridade, o sentido de coisa para si mesmo. O autor esclarece que os escravos produziam seus próprios valores e não assimilavam essa ideia de coisa que era atribuída a eles. Para explicar essa ideia, traz a história de alguns negros que se encontravam em uma loja de comissões onde aguardavam para ser vendidos. Dentro da loja eles atacaram o dono chamado Veludo, o motivo Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 157 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 158 do ataque foi diverso. Sendo algumas justificativas, os maus tratos que os negros sofriam, a rigidez com o que Veludo os tratava, e porque não queriam ser vendidos para uma fazenda de café. “Os negros, portanto oscilavam entre a passividade e a rebeldia, sendo que os atos inconformados eram a única forma dos escravos negarem sua coisificação social e afirmarem sua dignidade humana”. (CHALHOUB, 2008, p. 50-51). O negro como demonstra o autor tinha sua forma de pensar, a rebeldia é uma forma de se rebelar contra essa posição que os colocaram, o autor destaca como o negro se comportava ao ser tratado como objeto de venda e troca. A ideia de liberdade trabalhada por Chalhoub (1989) é a que os negros continuavam presos a seus donos apesar de já serem libertos no papel, Aqui percebe-se que a liberdade para o escravo, não modificava seus status. “A liberdade pode ter representado para os escravos, em primeiro lugar, a esperança de autonomia de movimento e de maior segurança na constituição das relações afetivas. Não a liberdade de ir e vir de acordo com a oferta de empregos e o valor dos salários, porém a possibilidade de escolher não servir a ninguém” (CHALHOUB, 1989, p.110). Na obra de Firmina, nota-se então uma crítica ao sistema escravista que só atinge os negros perpetuando uma vida inglória e cheia de desgraças. A autora expõe ainda a problemática da falsa liberdade, demonstrando que a vida dos negros era extremamente condicionada ao sistema escravista vigente e que cabia aos negros adaptarem-se a essas mazelas sociais para conquistarem sua sobrevivência. Na narrativa de “Úrsula”, encontramos assim um diálogo entre literatura e história, onde o romance ambientado no sistema escravista do Brasil Imperial revela várias possibilidades de estudos a respeito desta triste realidade social que durante muito tempo condenou diversos seres humanos ao sofrimento e até mesmo a morte. A obra de Firmina apesar de ficcional, se mostra um verdadeiro testemunho histórico, servindo assim como um relato vivo da resistência ao domínio da escravidão. Considerações Finais Ao tentarmos entender as relações escravistas a partir do olhar de Maria Firmina dos Reis, uma negra que vivia sob o status de parda, e que viu as mazelas da escravidão de perto, é necessário entender que seu romance “Úrsula” é muito mais que uma critica a sociedade escravocrata maranhense no qual a autora viveu, mas sim uma crítica a todo o regime senhorial e escravista no Brasil império. Falar sobre escravidão é uma preocupação frequente na historiografia brasileira, visto que a sociedade brasileira ainda vela um certo resquício de escravidão entranhada nas relações modernas, por isso a abordagem literária torna-se também importante para historiadores ao se buscar possibilidades de estudo sobre a escravidão nas mais diferentes vertentes. Sendo isto importante e preciso, para que haja resistência contra o racismo e preconceitos contínuos na sociedade contemporânea. Logo, falar sobre as representações da escravidão sob o olhar de Maria Firmina busca entender como a autora interpretou seu contexto social, expresso no romance “Úrsula” (1859) - obra de crítica ferrenha a sociedade imperial. Sendo importante assim na operação historiográfica, analisar essa crítica que parte da literatura para investigar essas relações sociais e culturais da segunda metade do século XIX. Desse modo, “Úrsula” é um romance que merece ser debatido, ressaltando as vozes negras presentes na obra, já que visão de vida de Firmina em relação a escravidão influencia na sua escrita, sendo que o lugar social ocupado pela autora influencia na construção da sua narrativa literária, e que expressa sua maneira de pensar e posições frente as mazelas sociais que a rodeiam. Referências Fonte: REIS, Maria Firmina. Úrsula. Jundiaí: Coleção Acervo Brasileiro, 2017. Bibliografia: CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: ouro sobre azul, 2006. CHALHOUB, Sidney. Campinas,1989. Visões de Liberdade, 1989 Tese (Doutorado). PINSKY, Jaime. A Escravidão no Brasil, São Paulo: contexto, 2010. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 159 QUANDO A NOSSA HISTÓRIA CHEGA COM O LICENCIAMENTO AMBIENTAL: EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO INTERIOR DO AMAPÁ Jelly Juliane Souza de Lima Avelino Gambim Júnior Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 160 Introdução a Educação Patrimonial O projeto de “Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico nas Fazendas Reginato, Rodrigues, Santa Izabel e Santa Rita, Amapá, AP”, visou cumprir as recomendações previstas na portaria n°230, de 17 de Dezembro de 2002 e Instrução Normativa n°001 de 25 de Março de 2015 sobre a Educação Patrimonial que fazem parte dos projetos de pesquisa arqueológica executados no licenciamento ambiental de empreendimentos. Neste sentido, como a Educação Patrimonial do projeto de “Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico nas Fazendas Reginato, Rodrigues, Santa Izabel e Santa Rita, Amapá, AP” foi executada por uma equipe multidisciplinar possuidores de licenciatura, portanto, entendemos que a educação é o ponto de partida. Como objetivo principal da Educação patrimonial, procuramos criar meios de fortalecimento e valorização do patrimônio arqueológico do município do Amapá. Como no município do Amapá, já existe um patrimônio de cunho arqueológico como a Base Área do Amapá, as ações devem ter como ponto de partida o que é mais próximo da realidade da comunidade que estão próximos a área da pesquisa arqueológica e em seguida apresentaremos outros tipos de patrimônio que ainda são pouco socializados. Quanto aos objetivos complementares foram estabelecidos: 1-Realizar atividades que tenham como ponto de partida o que seria patrimônio para o público envolvido; 2-Apresentar outros tipos de patrimônio que sejam desconhecidos para o público envolvido; 3-Registrar as percepções do público envolvido acerca do patrimônio arqueológico; 4-Reunir acervos gerados nas atividades que possam contar a história do patrimônio arqueológico a partir das percepções do público envolvido; 5Promover a socialização e reconhecimento do patrimônio arqueológico na área da pesquisa, que contemple não apenas as informações sobre a base área, mas também os sítios arqueológicos já registrados no município do Amapá. Público alvo e metodologia As ações de Educação Patrimonial inicialmente foram definidas ações educativas com a equipe de arqueologia e na área do empreendimento foco da pesquisa arqueológica (Portaria n° 72, de 23 de Novembro de 2018, DOU, em 26/11/2018, seção I, anexo 2, sob coordenação dos arqueólogos Avelino Gambim Junior e Jelly Juliane Souza de Lima). Como foco das ações de Educação Patrimonial, acreditamos que ao atender os públicos inseridos no pré-ensino, ensino fundamental e médio que apresentam faixas etárias diferenciadas, é uma das formas de criar diálogos com o patrimônio arqueológico e que têm com “ponta pé” a escola. Como base metodológica da Educação patrimonial foram utilizadas as publicações dos livros: “Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos” de 2014 (Florêncio et al, 2014);Mediações culturais com o patrimônio arqueológico: material de apoio à ação educativa patrimonial (Lima et al. 2007);“Guia Básico de Educação patrimonial (Horta et al, 1999);lei N° 9.795, de 27 de abril de 1999, que dispõe sobre a Educação Ambiental; Aproximações entre história ambiental e ensino de história e educação ambiental (Gerhardt & Nodari, 2010). Em relação às questões de princípios e diretrizes conceituais serão explorados a partir da proposta de Florêncio et al (2014, p. 21-25). Neste sentido, o tópico “comunidades: participantes efetivas das ações educativas” chama a atenção para que essas ações assegure principalmente a participação da comunidade durante a construção coletiva do conhecimento e que reconhece suas referências culturais (Florêncio et al, 2014, p. 20). Quanto a cultura, enquanto “conjunto de crenças, costumes, hábito, ideologias, códigos morais, entre outros aspectos” que dão forma ao comportamento do indivíduo e da sociedade, estes serão entendidos a partir da perspectiva da teia de significados, pois se a cultura é uma construção, quer dizer que também possui características dinâmicas e que se transforma ao longo do tempo (Lima et al. 2007, p. 10-11). Horta et al (1999, p. 36-37) sobre o enfoque interdisciplinar, levamos em conta que o patrimônio cultural é um recurso educacional favorável também para a ultrapassagem de cada disciplina, principalmente para a vida do aluno. O patrimônio cultural pode ser utilizado como um motivador para qualquer área do currículo ou agrupar áreas consideradas distantes no processo de ensino e aprendizagem (Horta et al, 1999, p. 36-37). Este é o exemplo, dos tópicos vinculados ao ensino básico que perpassam várias disciplinas como a educação ambiental (Horta et al, 1999, p. 36-37). As etapas metodológicas previstas em Horta e colegas (1999, p. 10-11) tem contribuído no planejamento das atividades a serem executadas no âmbito da Educação Patrimonial, ao articular etapas/atividades e objetivos. Uma vez definidas as etapas, as demais proposições indicadas acima serão articuladas no decorrer das atividades. O exercício desta Educação Patrimonial visa também contemplar a Educação Ambiental, pois ao mostramos que o patrimônio material não está desconectado do imaterial, conseguiremos fazer com que os alunos relacionem estes com o seu cotidiano dentro da comunidade. É preciso destacar que muitas das vezes as comunidades não possuem uma relação de identidade com a arqueologia e o patrimônio arqueológico, os meios de aproximação com o ambiente. Também estaremos abordando a lei N° Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 161 9.795, de 27 de abril de 1999, que dispõe sobre a Educação Ambiental, institui a Política Nacional de Educação ambiental e dá outras providências. Para cada etapa, foram planejadas atividades concernentes a: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 162 1.Observação: Identificação do objeto/função/significado; desenvolvimento da percepção visual e simbólica-Na etapa de observação, devem ser realizadas atividades que visem o desenvolvimento das percepções sobre o patrimônio cultural dos participantes. Neste sentido, apresentações que envolvam diferentes turnos e faixas etárias no ambiente escolar fazem parte das ações de Educação Patrimonial. As exibições de filmes e desenhos que retratem de forma geral a arqueologia podem ser consideradas como ponto de partida para o início das atividades de Educação Patrimonial. Após a exibição dos filmes e desenhos, uma apresentação sobre o projeto de “Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico nas Fazendas Reginato, Rodrigues, Santa Izabel e Santa Rita, Amapá, AP” deve ser feita. O objetivo principal seria socializar os resultados das atividades de campo e destacar a importância da pesquisa arqueológica como forma de preservação da História do Munícipio do Amapá. 2.Registro: Fixação do conhecimento percebido, aprofundamento da observação e análise crítica; desenvolvimento da memória, pensamento lógico, intuitivo e operacional. A partir das apresentações feitas pela equipe de arqueologia, noções de memória, patrimônio, identidade seriam destacadas. Em seguida, os participantes devem produzir desenhos coloridos em papel A4 e papel 40 kilos, valorizando os conhecimentos que possuem sobre o Município do Amapá, ao destacar o patrimônio cultural e outras formas de expressão que os rodeiam. 3.Exploração: Desenvolvimento das capacidades de análises e julgamento crítico, interpretação das evidências e significados-Após a elaboração dos desenhos coloridos em papel A4 e papel 40 kilos, valorizando os conhecimentos que possuem sobre o Município do Amapá, ao destacar o patrimônio cultural e outras formas de expressão que os rodeiam, os participantes serão instigados a falar sobre sua produção. 4.Apropriação: Envolvimento afetivo, internalizarão, desenvolvimento da capacidade de auto-expressão, apropriação, participação criativa, valorização do bem cultural. Na última etapa, uma exposição fotográfica intitulada “Dia da Arqueologia no Amapá” será realizada no ambiente escolar, a partir da seleção de um determinado espaço a exposição fotográfica deverá ser fixada. A partir da seleção de fotos produzidas em campo e na primeira etapa de Educação Patrimonial, o acervo fotográfico selecionado deverá refletir as ações educativas que envolveram os participantes. Descrição dos Resultados As ações de Educação patrimonial previstas no projeto de “Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico nas Fazendas Reginato, Rodrigues, Santa Izabel e Santa Rita, Amapá, AP”, ocorreram em duas etapas, sendo a primeira no mês de dezembro de 2018 e a segunda em janeiro de 2019. Somadas as horas de planejamento (32 horas) e de execução das ações de Educação Patrimonial (40 horas), esta pesquisa gerou uma carga horária de 72 horas. Abaixo o mapa indica as escolas onde foram realizadas as ações de Educação patrimonial. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 163 Figura 1: Mapa mostrando os locais onde realizamos as atividades de educação patrimonial, na comunidade do Breu, na sede da fazenda e na cidade do Amapá. Educação Patrimonial nas escolas A partir de informações da comunidade ficamos sabendo que duas escolas públicas do Breu que fazem parte do município de Pracuúba estariam mais próximas do empreendimento foco da pesquisa arqueológica. Conforme a consulta realizada no site do IBGE o município do Amapá encontraríamos escolas públicas sob a administração do município e estado, que atendem a várias faixas etárias. Como o foco principal da Educação Patrimonial, a equipe de arqueologia procurou as escolas públicas para estabelecer parcerias onde seriam realizada as atividades. Como parte do contato, a equipe explicou os motivos da realização da pesquisa arqueológica e “o porquê” devíamos realizar a Educação Patrimonial. Em geral, fomos bem recebidos por pelas diretoras e coordenador pedagógico que estavam responsáveis no momento pelas escolas Evandro Martins Ribeiro e Veiga Cabral (figura 2). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 164 Figura 2: Equipe de arqueologia sendo recebida pelos responsáveis das escolas. Com as ações agendadas, retornamos nas escolas para deixar os cartazes de divulgação. A partir do momento que a equipe de arqueologia colocou nas paredes das escolas os cartazes, informativos sobre da ação de Educação Patrimonial, percebemos que nossa atividade seria um sucesso, pois vimos que os alunos rapidamente foram olhar e demonstraram interesse. Exibição de filme Os filmes: As Aventuras de Tadeo: ele só queria ser arqueólogo 1 e As Aventuras de Jackie Chan episódio 30 (figura 3, à direita), foram escolhidos por combinar animação, comédia e imaginário acerca da arqueologia e da profissão de arqueólogo. Figura 3: Cartazes dos filmes exibidos nos ambientes escolas do Breu e Amapá. Após a organização da sala de aula, iniciamos a atividade com a apresentação da equipe e expondo o projeto de pesquisa arqueológica que estávamos desenvolvendo. Em seguida, a equipe de arqueologia repassou para os alunos pipoca e refrigerante e iniciou a exibição dos filmes As Aventuras de Tadeo: ele só queria ser arqueólogo 1 e As Aventuras de Jackie Chan episódio 30. O Cine arqueologia aconteceu no dia 11 de dezembro de 2018 às 15: 00 horas, simultaneamente na escola Evandro Martins Ribeiro (figura 4), situada no Breu e na Escola Veiga Cabral (figura 4), no dia 13 de dezembro de 2018, às 08:00 horas com 30 alunos. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 165 Figura 4: Cine arqueologia nas Escolas Evandro Martins Ribeiro e Veiga Cabral. Palestras Após a exibição dos filmes As Aventuras de Tadeo: ele só queria ser arqueólogo 1 e As Aventuras de Jackie Chan episódio 30, a equipe de arqueologia deu início a uma apresentação (figura que abordou a Educação Patrimonial, patrimônio cultural e suas divisões em material e imaterial, formas de identificação e preservação destes (figura 5). Figura 5: Apresentação sobre patrimônio cultural na Escola Municipal Evandro Martins Ribeiro. Em geral, destacamos os patrimônios do Estado do Amapá, como a Fortaleza de São José de Macapá, a base área do Amapá (BAA). A equipe de arqueologia exemplificou verbalmente sobre os patrimônios presentes na comunidade que é próxima a reserva biológica do Lago Piratuba e rodeada pelo bioma do cerrado no qual possui como características naturais diversidades de ecossistema e fauna onde os moradores extraem os recursos naturais especificamente para consumo familiar. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 166 Os alunos foram separados em dois grandes grupos. A equipe auxiliou os alunos a fazer uma caracterização de um ambiente familiar. Todos os alunos participaram da construção artística e colocaram um pouco de suas ideias próprias no desenho para torná-lo mais específico possível. Cada grupo teve que verbalizar cinco exemplos de patrimônios materiais e cinco imateriais presentes em sua comunidade e o motivo que os levou a escolher aquela paisagem. Ao termino desta atividade, a equipe de arqueologia agradeceu a participação de todos os alunos que mostraram interesse durante toda a execução e construção desse momento didático a partir dos desenhos. Desenhos A partir da exposição feita na apresentação sobre patrimônio cultural e sua divisão em material e imaterial, os alunos foram separados em grupos (figura 6). Cada grupo recebeu folhas branca A4 ou papel 40 kilos e lápis de cor. A equipe de arqueologia instruiu que os alunos descrevessem por meio do desenho o que seria patrimônio para cada um destes. Após, o termino do desenho cada grupo explicou as motivações que levaram a eleger a categoria indicada no desenho. Figura 6: Momento da elaboração dos desenhos e desenho pronto. Com o levantamento das informações advinda da coleta dos desenhos, também foi possível verificar que os alunos consideram como patrimônio a Base área do Amapá (BAA), os vestígios arqueológicos como machado e urnas funerárias, a praça Barão do Rio Branco, a escola, a Fortaleza de São José de Macapá, além da dança, comida e lendas que fazem parte da história das comunidades distantes das áreas urbanas (figura 7). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 167 Figura 7: Outros patrimônios culturais indicados pelos alunos da Escola Evandro Martins. Quanto ao patrimônio material pode-se visualizar que a Base área do Amapá, os vestígios arqueológicos (machado e urnas funerárias) e a Fortaleza de São José de Macapá são as categorias reconhecidas pelos alunos. A explicação para a indicação destas categorias talvez esteja relacionada a propagação das imagens da Fortaleza de São José de Macapá e dos vestígios arqueológicos pela mídia local. Já a Base área do Amapá por ser o patrimônio mais próximo da comunidade do Breu e do Amapá. Outras categorias de patrimônio como casa/família, escola e objetos pessoais foram indicadas nos desenhos dos alunos. Em relação a essas categorias, é comum em comunidades afastadas a valorização e zelo do patrimônio familiar como a casa e objetos pessoais. Outro dado apontado pela figura 7, mesmo que de baixa expressividade é a valorização do patrimônio ambiental, como por exemplo, o rio Breu e o Curiaú. Exposição fotográfica Como experiência anteriormente aplicada no âmbito da extensão universitária, aplicamos a proposta de uma exposição fotográfica tendo como suporte fios de barbante, que mostra a trajetória das atividades executadas pelos participantes feitas no âmbito da educação Patrimonial (Luna et al, no prelo). Na Escola Estadual Veiga Cabral, a exposição fotográfica intitulada “Dia da arqueologia no Amapá” (figura 8) mostrou as ações realizadas como: a socialização das atividades no empreendimento, atividades de campo e na escola. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 168 Figura 8: À esquerda, montagem da exposição fotográfica. À direita, alunos visitando a exposição fotográfica. Desse modo, junto a exposição sempre tinha um membro da equipe disposto a explicar o que estava sendo mostrado nas fotografias com quem se aproximava e explicar que é arqueologia e patrimônio arqueológico, e o que viemos fazer no município do Amapá. Avaliação das atividades de Educação Patrimonial Vasconcellos e Hattori (2014, p. 80-81) em caminhos metodológicos para a Educação patrimonial na arqueologia preventiva, lembram da importância de questionamentos que visem refletir e avaliar a própria práxis das ações de Educação Patrimonial na arqueologia. Como a práxis é entendida como uma prática regida por princípios teórico-metodológicos que ancoram projetos (Lima et al, 2007), avaliamos as ações de Educação Patrimonial e a práxis feita no percurso desta pesquisa arqueológica. Objetivo 1: Realizar atividades que tenham como ponto de partida o que seria patrimônio para o público envolvido. Para este objetivo, o principio metodológico de observação, rege o desenvolvimento das percepções sobre o patrimônio cultural dos participantes (Horta et al, 1999) e a socialização das atividades de campo, ao destacar a importância da pesquisa arqueológica como forma de preservação da História do Amapá. Em geral, as inferências tratam das ações educativas iniciais feitas com os moradores do empreendimento, auxiliares de campo, rádio e escolas. Ao ter contato com este público, buscamos inicialmente saber o que estes conheciam acerca da arqueologia e do patrimônio cultural, sendo também uma forma de troca, experiências e saberes. Em nossas ações procuramos ter como ponto de partida, a relação das pessoas com os lugares. Este é o caso da Educação Patrimonial articulada a Educação Ambiental (Brasil, lei N° 9.795, de 27/04/1999; Gerhardt & Nodari, 2010; Horta et al, 1999). Os registros dos trechos das entrevistas, os desenhos e a entrevista realizada na rádio dão conta das indicações feitas pelo público alvo. O público alvo do Amapá, principalmente do ambiente escolar, reconhece como patrimônio a Base Área do Amapá. Outra questão geral apresentada pelo público alvo trouxe à tona a ideia romantizada e equivocada da arqueologia (Bahn, 1996; Oliveira & Lima, no prelo; Moreno de Sousa, 2018). Como as informações absorvidas pela maioria das pessoas sobre a arqueologia e sua prática foram produzidas principalmente por não arqueólogos e disseminadas pela mídia (Chowaniec, 2012, 2013), estas acarretaram equívocos sobre o seu papel social e da imagem do patrimônio arqueológico como tesouro e de valor comercial (Moreno de Sousa, 2018; Oliveira & Lima, no prelo; Ribeiro, 2018; Trigger, 2004; Zanettini, maio de 1991. Jornal da Tarde. SP). Objetivo 2: Apresentar outros tipos de patrimônio que sejam desconhecidos para o público envolvido. Após as exibições de filmes, a realização das palestras nos ambientes escolares visou mostrar aos alunos os outros tipos de patrimônio que eram desconhecidos destes, pois conforme expresso no objetivo 1. Para iniciar, o conceito de patrimônio cultural foi explicado. Em seguida, as distinções entre patrimônio material e imaterial tendo como referência exemplificações trazidas pelos palestrantes eram indicados. Ao fazer isso, aos alunos eram feitas perguntadas sobre o que estes indicariam como patrimônio. Como forma de indicar outros tipos de patrimônio cultural, ao partir da arqueologia, as imagens traziam informações referentes à fase Aristé, a classificação dos tipos de sítio arqueológico e como esta se diferencia da Base Área do Amapá. Ao fazer estas comparações, podemos os tipos de sítios arqueológicos relacionados aos períodos pré-coloniais e Coloniais. Ao apresentar, fotos dos materiais arqueológicos encontrados na área do empreendimento foco da pesquisa arqueológica, os alunos ficaram surpresos com a informação. Ao salientar que os materias arqueológicos teriam relação com a antiga ocupação do território que hoje conhecemos como Amapá, a preservação e salvaguarda destes colaboraria com a reescrita de histórias de ocupação e construções identitárias, tendo em vista que outras memórias poderiam ser ativadas e as histórias particulares vir à tona e contrastar com as memorias universalistas construídas sobre a região do Amapá (Nora, 1993). A apresentação da diversidade cultural e suas múltiplas formas a partir da perspectiva das pessoas, seja na forma de expressão oral e escrita, nas representações sociais que comunicam cultura e identidades sociais, variam conforme o tempo e espaço, possibilitando com isso, reconhecer o que nos torna plurais, como propõe a Carta Magna de 1988. Desta forma, o patrimônio foi percebido como uma construção humana que perpassa geração a geração (Martins, 2001). A percepção sobre o patrimônio significa relativizar o olhar sobre o outro, de maneira a contextualizá-lo, compreendendo o outro e seus valores. Com isso, a diferença passa a ser percebida como diversidade relacionada ao modo de viver, contrapondo-se ao etnocentrismo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 169 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 170 Para o fomento de visitações, destacamos a importância das instituições de pesquisa no Amapá que realizam os estudos arqueológicos como o Centro de Estudos e Pesquisas Arqueológicas do Amapá (CEPAP) da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), o Núcleo de Pesquisas Arqueológicas (NuPARQ) do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (IEPA) e Museu Histórico Joaquim Caetano da Silva (MHJCS) do Governo do Estado do Amapá (GEA). Objetivo 3: Registrar as percepções do público envolvido acerca do patrimônio arqueológico. Ao reconhecer que cada pessoa percebe o mundo de acordo com os aspectos que possuem importância para si (Lima et al, 2007, p. 9), podemos elencar de fato o que principalmente os públicos dos diferentes ambientes escolares registraram como percepção do patrimônio cultural e arqueológico que se materializaram através dos desenhos. Ao avaliar esta informação por área, podemos observar conforme expresso anteriormente que no Breu o meio ambiente é muito valorizado igualmente a Base Área do Amapá, o que os garante como referência cultural (Florêncio et al, 2014, p. 20-21) é uma referência. Estas informações foram importantes, pois os desenhos permitiram expressar outras categorias de patrimônio que só emergiram neste momento. Estes são os exemplos das menções a lugares (Praça Barão do Rio Branco), Igreja e Escola, que podem ser explicados como a valorização da conservação, em decorrência de investimento público. De ordem mais estrita, também surgem categorias como casa/família e objetos pessoais, pois os alunos entendem também patrimônio como uma herança. Desta forma, entende-se que os grupos, em especial escolar fizeram escolhas influenciadas por outros grupos (Lima et al, 2007, p. 11), tais como país, direção escolar que regem certas diretrizes sobre os bens de sua responsabilidade. Para finalizar, apesar de ter encontrado dificuldades de acesso a alguns segmentos escolares em decorrência do ano corrido por falta de professores, considera-se que as ações de Educação Patrimonial foram executadas conforme a proposição inicial. É preciso mencionar que na Escola Estadual Veiga Cabral, outros pesquisadores que estejam realizando projetos relacionados ao licenciamento ambiental ou pesquisa acadêmica, procure o corpo técnico desta, pois esta seria uma das escolas que podem contribuir com a socialização do patrimônio arqueológica da região dada a sua proatividade e colaboração. Considerações finais No percurso deste relatório, objetivamos mostrar como foram executadas as ações de Educação Patrimonial do Projeto de “Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico nas Fazendas Reginato, Rodrigues, Santa Izabel e Santa Rita, Amapá, AP” conforme recomenda o IPHAN na portaria n°230, de 17 de Dezembro de 2002 e Instrução Normativa n°001 de 25 de Março de 2015. A Educação Patrimonial proposta pela presente equipe de arqueologia teve como consenso principal levar o conhecimento para a comunidade geral e escolar a partir da pesquisa vinculada ao licenciamento ambiental. Esta é uma oportunidade que abre mais um espaço para trocas de experiências e saberes mais horizontais. De fato as pesquisas no âmbito acadêmico e do licenciamento ambiental, tornam gritantes as execuções da Educação Patrimonial. No entanto, é com o licenciamento ambiental que muitas vezes a arqueologia chega em lugares que desconhecem a importância da valorização e preservação do patrimônio cultural. Esta situação já foi ressaltado por Bastos (1999). Para o autor, a existência de sítios arqueológicos que não seriam pesquisados no âmbito acadêmico, tiveram através da pesquisa arqueológica de contrato a determinação que fossem abrangidos através da legislação e desta forma teriam conhecimento produzido incorporado à Memória Nacional (Bastos, 1999). Em geral, é consenso que a pesquisa arqueológica e a Educação Patrimonial estão envolvidas nas questões atreladas ao licenciamento ambiental (Schaan, 2007; Vasconcellos & Hattori, 2014). A arqueologia e as ações de Educação Patrimonial, desenvolvidas junto às comunidades tem como finalidade dialogar com as diferentes visões principalmente no contexto de transformação da economia global ligados aos empreendimentos (Vasconcellos & Hattori, 2014, p. 79). Ao concordar com Bastos (1999) que o “IPHAN tem papel preponderante em capitanear ações educativas exemplares e de desenvolvimento econômico a partir do uso do patrimônio arqueológico”, recomenda-se que articulações entre este, Ministério Público do Amapá fomentem e incentivem projetos educativos de longa duração na Base Área do Amapá e no Museu do Amapá que se encontram abandonados pelo poder público e que estas sejam conduzidas pela Escola Estadual Veiga Cabral. Referências Os autores agradecem a equipe de arqueologia que fez parte desta pesquisa educativa: Deise Cristina Vale, Jordan Souza de Lima, Joely Priscila Souza de Lima, Julielton Souza de Lima, Marcio Claudio Lima Nunes, Ildo Guilherme Pinheiro, Daniel Paixão Ramos, José Wilker Penha da Silva, Leitícia Pinheiro Barros e Carlos Eduardo Santos Barbosa. Agradecemos ainda as escolas Evandro Martins Ribeiro e Veiga Cabral pela possibilidade de interação desta pesquisa. BAHN, Paul G. (Ed.). The Cambridge illustrated history of archaeology. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. BARBOSA, Carlos Eduardo; LIMA, Jelly Juliane Souza. História em quadrinhos e Patrimônio Arqueológico: Proposta do Projeto de extensão “Arqueologia e Educação patrimonial: Construindo Experiências a partir da Universidade Federal do Amapá, Campus Marco Zero. No prelo. BASTOS, Rossano Lopes. Arqueologia Pública no Brasil: novos tempos. Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9ª SR/IPHAN, 2006, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 171 155-168.BRASIL. Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999: Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, 1999, 79. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS CHOWANIEC, Roksana; WIĘCKOWSKI, Wiesław; WARSZAWSKI, Uniwersytet (Ed.). Archaeological Heritage: Methods of Education and Popularization. Archaeopress, 2012. ______. New technologies in the process of educating about the archaeological heritage. Stara strona magazynu EduAkcja, v. 5, n. 1, 2013. Página | 172 GERHARDT, Marcos; NODARI, Eunice Sueli. Aproximações entre história ambiental, ensino de história e educação ambiental. Ensino de História: desafios contemporâneos. Porto Alegre: EST, p. 57-72, 2010. LIMA, Janice Shirley Souza et al. Mediações culturais com o patrimônio arqueológico: material de apoio à ação educativa patrimonial. In: Mediações culturais com o patrimônio arqueológico: material de apoio à ação educativa patrimonial. 2007. LUNA, Verônica Xavier; GAMBIM JUNIOR, Avelino; LIMA, Jelly Juliane Souza; BASTOS, Cecília Maria Chaves Brito. Relatório Final do Projeto “Arqueologia e Educação Patrimonial: Construindo experiências a partir da Universidade Federal do Amapá, Campus Marco Zero. Macapá: Relatório de pesquisa, no prelo. MARTINS, Maria Helena Pires. Preservando o Patrimônio e construindo a identidade. São Paulo: Ed. Moderna, 2001. 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ENTRE A HISTÓRIA E A MODA: UMA NOVA LINGUAGEM PARA O TRABALHO HISTORIOGRÁFICO Jéssica Mayara Santos Sampaio O estudo sobre moda é uma das variedades do campo da História. Relaciona-se com todas as esferas da vida social, mudanças no cotidiano e cenário urbano, hábitos e padrões sociais estabelecidos, assim como abre possibilidades de pesquisa sobre a construção da identidade, relações econômicas e políticas, bem estar, beleza e aparência, mostrando que através dos discursos e práticas que envolvem esses aspectos, é possível a compreensão acerca das representações da vida, costumes e modificações que ocorreram na sociedade. A moda também proporciona a análise de características de gênero, marcadas pela definição dos papeis de homens e mulheres na sociedade, entre outros pontos que podem ser trabalhados detalhadamente devido à amplitude do tema, como os discursos presentes nos periódicos que visavam enquadrar e moldar padrões para mulheres e homens. Desta forma estabelece o diálogo com outros campos da história, o que torna a investigação ainda mais rica, com a diversidade de questionamentos que surgem ao explorar esse universo levando em consideração a moda e o cenário em que está inserida. A História consiste em uma grande variedade de conhecimentos, experiências e fatos acerca das ações humanas e suas relações com as diferentes fases que envolvem a sociedade. Por isso a importância de um processo que envolve ferramentas para buscar o diálogo, a construção de novas questões e acontecimentos, responsável pela formação dos indivíduos, que são levados a aprender a pensar historicamente, tendo como base as permanências, rupturas e as continuidades ocasionadas pelas transformações apresentadas com o decorrer do tempo. Durante o século XIX, surge a história como ciência, que estabelecia a história como narrativa, voltada para justificar os acontecimentos de âmbito nacional e a preocupação com a construção da identidade dos cidadãos, a memória coletiva e a nacionalidade, de modo que não houve a aplicação de outro método para maior exploração dos processos históricos. A partir do século XX, com o movimento dos Annales, houve uma rearticulação historiográfica e uma desconstrução da história-narrativa, pois novos temas passaram à condição de objetos de estudo no campo da História. Novos objetos, problemas, abordagens e técnicas, a História encontra uma nova forma de ser feita. A transformação em história-problema ou pesquisa possibilitou o acesso a temas que até então não faziam parte do universo historiográfico, como o cotidiano, vestuário, mulheres, gênero, corpo, entre outros. O que levou à uma nova condição: problematizar, pois o o historiador passou a ter a necessidade de investigar a relação do tempo com a sociedade, as transformações sociopolíticas e as inquietações que Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 173 movem o seu trabalho, através dos documentos, vestígios, entre outras marcas das ações humanas no tempo Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 174 Os documentos respondem ao questionamento do historiador, em geral são provenientes tanto do tempo em que estão inseridos, quanto das ferramentas para explorar os vestígios. Os questionamentos que surgem com o levantamento das fontes, são comuns no campo da investigação, pois os problemas encontrados também movem o historiador, seja para a manutenção ou alteração de memórias, o rompimento ou não do silêncio, isto é, pode-se voltar para problematizar muito além do que está presente na documentação, levando à inúmeros caminhos devido a amplitude e abrangência do tema que envolve a pesquisa. O Historiador precisa ser crítico para questionar e retirar informações relevantes durante a coleta feita com a investigação, por isso vale apontar para o trato com a fonte, que pode apresentar diversos tipos de influências de seu tempo, seja através de representações, relações de poder, grupos, famílias, entre outros, o que torna todos esses aspectos passíveis de análise e detalhamento. A própria amplitude desse tema no âmbito acadêmico, também é uma novidade. Os assuntos mais abordados eram voltados para outros tipos de questionamentos e críticas, como a visão da cidade através da política de determinado governante, ou o capital financeiro que envolve uma sociedade. A moda conversa com os debates sobre gênero, pois entre a análise das práticas e representações na sociedade, estão as determinações impostas aos indivíduos através do contexto social, por meio dos “relacionamentos familiares, formas de expressar a sexualidade, ideias sobre maternidade e paternidade, os modos como se dão as relações de trabalho, a divisão de tarefas ou a distribuição social” (PINSKY, 2009, p. 32) de poder e liberdade. Todos esses fatores tem ligação com a dinâmica da sociedade, a partir de condutas, práticas e do discurso construído por meio das relações sociais, que funcionam como estruturadores das ações e normas que circulam na sociedade e influenciam o desenvolvimento de discriminações, contestações e conflitos entre homens e mulheres. Durante o período republicano, alguns aspectos podem ser analisados, pois o momento enquadrava as mulheres nas atividades domésticas, com a responsabilidade de manter a união do lar e o fortalecimento da unidade do país, apontando sempre a fragilidade da modernidade, que poderia desviar os instintos maternais, de boa mãe e esposa, para um processo de emancipação que não era destinado às mulheres naquele contexto. Sob o controle do Estado e da Igreja, o comportamento feminino não poderia apresentar contradições em relação às ações de submissão e obediência. Diferente do que era direcionado ao masculino, as mulheres tinham que se encontrar dentro das possibilidades oferecidas para sua condição, baseados na integridade da família e nos valores morais. Por isso, vale ressaltar a importância das normais sociais na orientação das relações de gênero, que estão presentes, como frisa Pinsky (2009, p.41) em “doutrinas religiosas, concepções educacionais, condutas jurídicas, dinâmicas familiares, escolhas de parceiro, noções de progresso”, entre outros fatores que criam um abismo ainda maior nas relações entre os sexos. Por fazer parte dos estudos sobre moda presentes na historiografia brasileira, tem-se na década de sessenta a obra pioneira da historiadora Gilda de Mello e Souza, referência no campo da moda e relações sociais. ‘O espírito das roupas – a moda no século dezenove’, descreve e interpreta as vestimentas e hábitos do século XIX e volta-se para as mudanças e conquistas que surgiram com o período da modernidade início do século XX. Estudo que atravessa o gosto e o consumo, mas proporciona a leitura da estrutura social através da moda, modos e os costumes. “As mudanças da moda dependem da cultura e dos ideais de uma época. Sob a rígida organização das sociedades, fluem anseios psíquicos subterrâneos que a moda pressente a direção. Na sociedade democrática do século XIX, quando os desejos de prestígio se avolumam e crescem as necessidades de distinção e liderança, a moda encontrará recursos infinitos de torná-los visíveis” (SOUZA, 1987, p. 25). Obra que permite a análise das regras que giravam em torno do comportamento feminino e apareciam no cenário da cidade, possibilitando compreender os costumes que estavam presentes no passado e como a moda tinha características específicas de acordo com os grupos sociais. Estes aproveitavam seus hábitos para perpetuar a visibilidade através das vestimentas, aparições em público e de valores que combinassem o controle do corpo, com os aspectos religiosos impostos pela igreja e às mudanças que não levassem à desaprovação das indumentárias e do comportamento de homens e mulheres. As relações de gênero estão presentes nesse campo da história, pois apóiam-se em discussões sobre a condição feminina, práticas políticas, econômicas e sociais, que também fazem parte dos processos históricos em que as relações sociais são marcadas e definidas pelas relações de poder, em que é possível fazer ligações entre uma diversidade de aspectos que permitem o entendimento sobre práticas, condutas e influencias. A moda nem sempre foi vista como um instrumento que possibilita análises. Por isso Calanca (2011, p.37), afirma que a desvalorização desse estudo pode ser “compreendida dentro de um âmbito historiográfico mais amplo, (...) alguns historiadores definem a historia social como uma “nova história” e outros como “uma história fraca”. No entanto, a investigação sobre modos e relações sociais é capaz de reconstruir os âmbitos político, econômico e social através das roupas que funcionam como símbolos de distinção, mas constituem na perspectiva de gênero: normas sociais e a própria construção das relações entre homens e mulheres. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 175 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 176 “As formas de aquisição e posse dos bens revelam não somente o mundo econômico ao qual tais bens pertencem, mas também o mundo moral e político, pois, se de um lado remetem a mecanismos sociais que colocam em movimento um processo de transformação dos comportamentos econômicos, de outro atingem o conjunto das normas sociais, religiosas, políticas pelas quais a sociedade é regulada” (CALANCA, 2011, p.39). Para a autora (2011, p.39), o historiador que estuda a indumentária tem a possibilidade de trabalhar com questões culturais, “o consumo ostentatório, a representação simbólica das hierarquias econômicas e sociais; a distribuição das marcas de origem; questões repletas de conteúdos morais e sujeitas” a uma evolução que se estende durante todo o processo histórico, mas que se dá de forma gradativa e complexa, pois ocorre de um século a outro. Podemos citar as relações e definições de papéis sociais de homens e mulheres que ocorrem desde o século XIX. Os homens desde a fase infantil eram ensinados a brincar com objetos que lhes permitissem alcançar a liberdade, a apoiar diferenças que sustentassem sua individualidade e principalmente sua posição de virilidade na sociedade. Dotado de força física, capacidade intelectual e a livre circulação por qualquer ponto urbano, os homens das classes médias e altas, iniciaram os estudos fora do Brasil, trajavam vestimentas sóbrias, simples e com acessórios que afirmavam sua posição social e indicavam o seu nível de prestígio. “Ao mesmo tempo um duplo padrão de moralidade regia as relações humanas, o código de honra do homem sendo diverso do da mulher. (...) de um lado uma moral masculina contratual, um código de honra originado nos contatos da vida pública, comercial, políticas e das atividades profissionais” (SOUZA, 1987, p.58). A abordagem sobre o universo da moda é apropriada pela união de aspectos metodológicos e teóricos, que visam o levantamento das configurações sociais, dos cenários de transformações encontrados no meio urbano, seja através da estrutura da cidade ou pela alteração das relações dos indivíduos e seus comportamentos no espaço privado e público; e também, pelas ferramentas utilizadas para iniciar o processo de identificação das diferenciações entre as classes sociais, que buscavam uma forma de se manter e se estabelecer enquanto status social, visibilidade e vestuário. Dentro desse contexto, não há dúvidas que os acontecimentos gerais interferem no ritmo de vida de espaços menores, logo os fatores locais fornecem significados de grande contribuição para o trabalho de investigação. É nesse momento que ocorre o resgate das interações que existiam no espaço local. A investigação tenta recuperar através das fontes os espaços privado e público, as práticas cotidianas dos diferentes estratos sociais da sociedade, instrumentos e trabalho, vestimentas e ocasiões, visando a importância dos contrastes e conflitos apoiados na prática historiográfica e na expansão dos limites da história. Abordando a partir de então temas tão recorrentes no território privado, como sentimentos, corpo, gestos, entre outros, enfatizando os elementos de valorização que se organizam dentro de cada sociedade através de grupos diferentes, práticas que levam à manutenção da posição social e as ações que determinaram os símbolos valorizados na sociedade. Em razão disso, as manifestações e práticas cotidianas movimentam o campo historiográfico. Ao analisar as condições de vida, as experiências vividas e assuntos ligados ao cotidiano, existem indícios das singularidades, que podem nos remeter a símbolos, práticas culturais e até mesmo a formação social do individuo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 177 Seja através do uso de periódicos ou estudos bibliográficos, a construção da memória e a análise de acontecimentos individuais e coletivos ocorre para encontrar uma compreensão sobre as transformações urbanas e de beleza. A produção de trabalhos acadêmicos referente a este tema, ainda não tem grandes proporções, por isso a preocupação e responsabilidade por utilizar questões que elucidam as transformações sociais por meio da análise da moda e das representações de gênero, o que significa uma abordagem bem ampla, mas que compreende o processo de modernização das cidades Diante disso, no século XXI, ainda é possível observar a permanência de muitos aspectos, entre eles a dupla jornada feminina – entre o trabalho e o lar, a crítica à escolha das que não tem a vontade de realizar o desejo maternal, como se todas as mulheres tivessem o objetivo de serem mães; a desaprovação às roupas femininas; as desvantagens salariais enfrentadas por mulheres que ocupam os mesmos cargos que os homens; a distinção de gênero através de cores, rosa para menina e o azul para menino, entre outros obstáculos que se arrastam desde os séculos anteriores. Por isso a necessidade de investigação para fragmentar tudo aquilo que é considerado normal e configura apenas maneiras para estabelecer um padrão e fazer com que este seja mantido. Dessa forma, o estudo da história e as transformações que ocorrem no tempo e no espaço, permitem desconstruir o que é considerado como permanente na sociedade, começando pelas definições de papeis sociais e os limites sobre o que é do mundo feminino e masculino. Apresentar essas mudanças e o que levou à elas, é uma forma de mostrar o papel transformador do tempo, que torna os pontos fixos passíveis de uma análise minuciosa com a tendência em se voltar para as diferenças e a uma perspectiva histórica, que traça os caminhos percorridos, as condições que foram submetidas e a construção ou não de novas definições. Os conceitos de moda, costumes e transformações sociais fazem parte da historiografia, assim como as categorias cultura, identidade, memória e representações, o que nos leva a dar destaque à importância da abordagem e as informações que surgem com a ampliação das linguagens que envolvem esses aspectos da investigação histórica. Dessa forma, pode-se afirmar que são pontos essenciais para entender as singularidades das relações sociais, as expressões de individualidade e aparência, e o cenário estrutural urbano em que as formas de sociabilidades se fixavam. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 178 O próprio espaço ocupado representa uma distribuição de poder e status. A moda, os costumes, até os móveis e adereços, tudo lembra a organização social. O que é adotado por indivíduos economicamente abastados são aspectos que passam a ter valor de acordo com quem está usando, o ambiente em que está localizado, sem contar especificamente a sua função, e sim, características que movimentam a vida e o status social, pois de acordo com Halbwachs (1990, p.145) “é necessário que a todo instante cada parte saiba onde encontrar a linha que delimita os poderes que elas tem, uma sobre a outra”. As cidades podem se transformar, mas a diferenciação entre os indivíduos surge de acordo com o equilíbrio e a adequação às novas condições, de modo que seja desenvolvida a legitimação dos grupos sociais através das relações estabelecidas entre os que detém maior prestígio e os que não se adequam às imposições econômicas, políticas e sociais exigidas por essas disputas. Belo, feio, moderno, urbano, novidades, sociabilidades. Os conceitos podem ser alterados e distorcidos, de acordo com as dimensões tratadas da realidade estudada. Levando em consideração que o sentido destes está relacionado com as possibilidades de interpretação, a palavra não carrega somente um sentido e sua definição está ligada à forma de apropriação. Por isso, as estratégias de leitura abrem novas possibilidades sobre as definições da natureza dos conceitos. Com o estudo sobre moda pode-se construir a ligação da identidade através das relações, representações no cotidiano e dos comportamentos sociais. Nesse sentido, as condições que influenciam o comportamento são inúmeras, pois a manutenção de riqueza e prestigio representavam o consumo e a condição social, formando uma estratégia para a distinção. Segundo Godart (2010, p. 33), a moda é “um elemento essencial na construção identitária dos indivíduos e dos grupos sociais. As roupas (...) são um elemento importante, mas não o único”, o que revela a diferenciação é a consciência de classe, as escolhas do vestuário, as estratégias de comportamento e aparatos sociais. Logo, ainda de acordo com o autor (p.36), cada indivíduo pode ter múltiplas identidades que podem se consolidar em âmbito privado ou publico, ainda que contribua para a formação de identidades coletivas e de grupos, pois “a moda é uma produção e uma reprodução permanente do social”. É necessário aprender a interpretar os costumes, valores, discursos, presentes em cada período da história, devido a dificuldade de identificar em uma primeira impressão, as deformidades apresentadas pelas fontes, que em grande parte são construídas com intenção, baseadas em opiniões e o interesse fixar uma verdade. As fontes são tratadas como um armazém de informações, que podem ser munidos de inúmeras revelações, mas são construídos através de registros e processos do cotidiano, peculiaridades de grupos e da memória dos indivíduos. A expansão desses campos históricos se configura como novos focos de orientação para o historiador no século XX, voltadas muito mais para a dimensão social, do cotidiano e da vida humana, porém o que vai direcionar para a relevância da investigação é a abordagem, os diferentes pontos temáticos. O campo da moda é cercado por objetos de significação e valor. As vestimentas, ornamentos, comportamentos têm valor no jogo das aparências. Por isso, a relevância em elucidar dentro do estudo sobre o tema, os elementos da moda e modos nas representações sociais e de gênero, dando ênfase aos atributos físicos e comportamentais de homens e mulheres, e observar, especialmente, a preocupação com a perda da feminilidade e a inversão de valores, por exemplo, presentes no período da década de 1930. Referências CALANCA, Daniela. História Social da Moda. 2 edição. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2011. GODART, Frédéric. Sociologia da Moda. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. PINSKY, Carla Bassanezzi. Gênero. In.: PINSKY, Bassanezi (org.). Novos Temas nas aulas de História. São Paulo: Contexto, 2009. SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 179 DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA, GEOGRAFIA E A FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA ACERCA DO ESPAÇO ENQUANTO PATRIMÔNIO CULTURAL Jessica Caroline de Oliveira Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 180 Pensando que as conceituações e percepções em relação ao espaço são múltiplas, este texto tem por objetivo discutir como o espaço é debatido a partir da perspectiva da geografia, seus enlaços com a história, sobretudo, a forma como o mesmo pode ser entendido enquanto lugar de memória e, por assim dizer, um patrimônio cultural. Esta reflexão é fruto de um projeto realizado no ano de 2017, intitulado Projeto Conhecer e Preservar a História Local, realizado no Núcleo Educacional João Fernando Sobral, Porto União – SC. Este projeto contou com a participação de duas turmas de 6º ano e tinha como objetivo fomentar a formação da consciência histórica estudantil em relação à preservação patrimonial. Para tanto, era preciso criar ferramentas para apresentar conceitos básicos como História, Cultura, Tempo, Patrimônio (Cultural, Histórico, Natural, Material e Imaterial) e Espaço, os quais seriam apresentados teoricamente na escola, a partir da metodologia da aula expositiva dialógica e, em seguida, buscar observar na cidade e em pontos históricos específicos o diálogo com a prática. Cabe dizer, que o uso da aula expositiva dialógica se pauta nos vieses de Lopes (1991) no sentido de buscar questionar as crianças no tocante aos seus saberes prévios, ansiando assim, estimulá-las a compartilhar, produzir e reelaborar os conhecimentos que trazem para a sala de aula a partir de suas consciências históricas. Estas, por sua vez, segundo Rüsen (2007) são a soma dos saberes produzidos e adquiridos ao longo de suas trajetórias e que permitem gerar sentidos, interpretações e orientações para a vida prática. Dito isso, entende-se que o conhecimento sobre o patrimônio é fundamental para a formação não só da consciência histórica, mas também, da própria identidade e sentimento de pertencimento das crianças ao ambiente em que vivem, isto é, ao seu espaço. Nesta acepção, o primeiro ponto a ser pensado é: o que configura o espaço? Para responder a essa questão pode-se utilizar das colocações abordadas por Corrêa (1995), quando o autor desvela que o espaço é algo vivido, social e com íntima relação com a práxis social. Por isso, está longe de ser ou ser visto como vazio, puro ou absoluto, visto que é locus da dialética das esferas sociais que o compõe, transitam, circulam e se intersectam nele. Além disso, o autor descreve que o espaço é um campo de representações simbólicas que traduzem sinais da sociedade, como as crenças, valores e culturas. Face a estas colocações, o primeiro conceito que chama a atenção diz respeito ao lugar, visto que, tradicionalmente, isto é, do momento da institucionalização da geografia enquanto disciplina universitária, em 1870, até à década de 1950, privilegiou-se os conceitos de paisagem e região, os quais embasavam-se nas noções positivistas e historicistas. Diante disso, o espaço não se configurava enquanto um conceito-chave na geografia tradicional. O espaço altera o seu princípio por meio das formulações teóricas de Ratzel, que o denotou enquanto indispensável a vida humana, bem como, onde ocorrem as diferentes relações e condições de trabalho, sejam elas naturais ou socialmente construídas. Na concepção de Ratzel, o espaço é absoluto, gestado a partir de um conjunto de pontos que coexistem e são independentes de qualquer coisa. Trazendo o debate para a noção de Hartshorne, é possível identificar a associação do espaço com a de área, fomentando-se assim, um pressuposto ideográfico da realidade, em que se estabelece uma combinação única de fenômenos naturais e sociais. Na década de 1950, Corrêa (1995) salienta que espaço emerge nos debates do pensamento geográfico enquanto um conceito-chave, sendo o conceito de paisagem deixado de lado e o de região reduzido ao processo de classificação de unidades espaciais conforme a lógica de agrupamentos e divisões baseadas em estatísticas. Portanto, o espaço passa a ser perfilado através da noção de planície isotrópica (paradigma racionalista e hipotéticodedutivo) e/ou como representação matricial (meios operacionais que permitem alcançar conhecimento sobre localizações e fluxos, hierarquias e especializações funcionais). Por meio de intensos debates dos anos de 1970, geógrafos marxistas e nãomarxistas legaram ao espaço novamente o status de conceito-chave, ainda que na obra de Marx o conceito tenha tido uma discussão marginalizada. Todavia, os geógrafos marxistas colocaram-se em favor da concepção de que o espaço era um receptáculo ou espelho externo da sociedade, como bem expõe Corrêa (1995). O ponto alto destes debates foi a teorização do espaço enquanto fundamental para a constituição e devir da sociedade, existindo assim, uma relação entre espaço e tempo. Nas palavras do autor, esse viés, em certa medida, vincula-se as contradições sociais e espaciais, sobretudo, pela crise do capitalismo durante a década de 1960. O teor deste conceito aparece efetivamente na obra do marxista Henri Lefébvre, que atribui a ele o caráter de espaço vivido, social e com intima relação com a prática social que não deve ser interpretado como algo vazio, puro ou absoluto. Sendo assim, afirma que o espaço é um locus da reprodução das teias sociais e relações de produção. Para ser analisado, este espaço utiliza-se de categorias como estrutura, processo, função e forma, ambas consideradas de maneira dialética. Articulando estes princípios, Corrêa (1995) fomenta o entendimento de que o espaço é vivido, isto é, uma experiência continua e social, inclusive, um campo de representações simbólicas que traduzem sinais da sociedade, como crenças, cosmogonias, valores e culturas. Trazendo o debate para um espaço tido como essencialmente humano, a cidade pode ser entendida como o ponto de concentração máxima de poder e cultura de uma sociedade, portanto, é o campo de representações Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 181 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 182 simbólicas que oportuniza pensar, refletir e analisar a experiência social. Para Paddison (2001), o que define a cidade é o seu funcionamento estratégico, tanto para a comunidade quanto pela premissa civilizadora e enquanto mecanismo facilitador para o mercado. Além disso, o espaço que compõe a cidade é permeado de dois aspectos: o urbano e o rural, sendo estes marcados pelo que um não é do outro. Noutras palavras, o urbano não o rural, e vice-versa. Partindo destas colocações, Paddison (2001) explica que há três elementos que melhor distinguem os aspectos urbanos e rurais: o elemento ecológico, o elemento econômico e o caráter social. No tocante à cidade, não só os caracteres urbanos ou rurais edificam o seu espaço, como também, outras delimitações que cercam e trazem novas especificidades aos mesmos, como é o caso das definições de área metropolitana e área periférica, ambas ocupando/dividindo e configurando o espaço urbano. Frente a estas exposições, o autor define que as áreas metropolitanas são definidas pelo tamanho da população e perímetro urbano, contando com funções econômicas e padrões que fluem para o núcleo. Ao passo que a área periférica diz respeito as ocupações terciárias e marginais. Dentre os espaços essencialmente humanos, a cidade é um exemplo de concentração de poder e cultura, sendo um campo para gestar e colocar em prática representações simbólicas da experiência social. Diante disso, Paddison (2001) afirma que a cidade é composta pelo elemento urbano e pelo elemento rural, um sendo o oposto do outro. A cidade ainda pode ser pensada a partir do viés de Rocha e Monastirsky (2008) no momento em que os autores apresentam a discussão no tocante a dialética do local e o global, os quais possuem traços de origem que são preservados pelo patrimônio cultural que, em linhas gerais, objetiva conservar a memória, história e identidade local. Sendo assim, patrimônio aqui é pensando enquanto hábitos, costumes, crenças, formas de vida cotidiana, seja erudita ou popular, conforme explica Monastirsky (2009). Partindo destas colocações, é possível concordar que o patrimônio cultural fortalece a ideia de pertencimento e apropriação social de um dado espaço, o qual é tido como testemunho de experiências vividas que oportunizam conhecer, lembrar, pertencer e partilhar uma cultura e identidade comum, sendo esta última considerada enquanto um sentimento de afinidade que conecta uma pessoa ou grupo a determinado espaço. Não distante disso, Pollak (1992, p. 5) destaca que “a identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outro”. Face a estas discussões, entende-se que em Porto União - SC, um espaço que congrega estas características é a Estação Ferroviária, construída em 1905, foi um marco para a cidade, tanto de transformação social, política e econômica, pois fomentou o trânsito e circulação de diferentes pessoas e objetos, vindos de locais múltiplos e de diversas facetas culturais; como também, de fortalecimento cultural das pessoas da própria cidade, visto que esse contato com o outro fomentou o sentimento de pertença a elementos culturais tidos como locais, como festas, pratos típicos, entre outros. Noutras palavras, houve uma (re)elaboração da identidade da cidade, em que pontos comuns e coletivos foram frisados a fim de possibilitar o sentimento de pertencimento aos seus moradores, fossem residentes do espaço urbano ou rural. Nos dias de hoje, a Estação não está mais em uso, todavia, ainda mantem a Maria-Fumaça, relógio, telegrafo e fotografias do período de auge das atividades ferroviárias, permitindo o acesso e visitação de turistas e estudantes, @s quais podem conhecer a história da cidade e, por vezes, dialogar com a história da sua família, afinal, avós ou parentes trabalharam nos diferentes ofícios que a Estação permitia, ou em casas de comércio, hotéis e locais próximos, guardando a memória e histórias individuais que dialogam com a coletiva. Portanto, acaba transcendendo do ‘local’ para um espaço ‘global’, em que conecta experiências, saberes e memórias. Partindo das colocações de Rocha e Monastirsky (2008), entende-se que as relações entre global e local vão além da esfera acadêmica, sendo os fenômenos da escala global percebidos enquanto a padronização do espaço e a normatização das técnicas, já no âmbito local, é onde se desvela as diferenças sociais e desemprego. Diante disso, os autores esclarecem que a escala global fomenta as discussões de que há uma homogeneização do espaço, a qual é provocada pelos avanços das comunicações, tecnologias, informação, transporte e a noção de encurtamento das distâncias, o que gesta a ideia de uma cultura padronizada e de consumo, por eles definida como “aldeia global”. Esse viés romanceado de que o mundo está ao alcance de todas as pessoas é equivocada, segundo informa os autores, afinal, há gritantes diferenças entre os países que propagam essa fantasia e aqueles mais emergentes, subdesenvolvidos ou não a altura dos mesmos. Neste sentido, ainda que o global busque se sobrepor ao local, é importante dizer que o lugar permite a inteligibilidade humana, inclusive, é por meio dele que os sujeitos adequam, traduzem e mesclam suas interpretações. Frente a estas exposições, Rocha e Monastirsky (2008) discorrem que a dialética entre as escalas global e local oportuniza notar que há pontos de interação, intersecção e interdependentes, pois o lugar defronta e confronta a sua própria ordem. Logo, pensando mais especificadamente nas cidades, é perceptível que elas possuem seus traços de origem, os quais são preservados a partir do patrimônio cultural, cujo intento é conservar a memória, história e identidade local – ainda que tenha suas nuances econômicas associadas ao turismo, por exemplo. Relacionando estas informações, os autores elucidam que: “Portanto, ao preservar o patrimônio cultural e valorizar a identidade, o lugar não só estabelece conexão com a dinâmica global através da atividade turística, mas, ao mesmo tempo, fortalece seus laços locais pelo fortalecimento da sua idiossincrasia como atitude contrária e Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 183 complementar a ordem padronizadora da globalização. Enfim, a análise do processo dialético entre o global e o local através da associação entre a atividade turística e o patrimônio cultural permite visualizar as diversas interpretações do cotidiano em um movimento mundial tão dinâmico.” (ROCHA, MONASTIRSKY, 2008, p. 147) Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 184 Um ponto importante a se esclarecer neste momento, diz respeito a concepção de patrimônio cultural adotada pelos autores que, como bem Monastirsky (2009, p. 323) explica noutro artigo, não é aquela pensada até a metade do século XX, em que resumia-se às obras de arte, mas sim, o viés revisionista que congrega “as manifestações artísticas, mas também os hábitos, os usos e os costumes, as crenças, as formas de vida cotidiana da sociedade e a sua memória”, tanto erudita quanto popular. Interessante lembrar, conforme expõe os autores Rocha e Monastirsky (2008), o fato de que o espaço é composto com lugares que contem e se valem de tempos e lógicas peculiares, articulado por singularidades que se conectam ao global. Essa relação pode ser entendida e percebida a partir da ideia de redes, ou seja, pontos espaciais que se interligam e caracterizam fluxos e que atravessam níveis locais e mundiais. Noutras palavras, as redes podem ser entendidas como um veículo dialético dos aspectos locais e globais, bem como, suas díspares repercussões. Isso só é possível se houver um lugar no mundo atual para revisitar e encontrar significados – que é o que a história faz, dá significado para as coisas. Tal práxis se efetiva por meio da interpretação que o patrimônio local lega ao contexto global. Nesta perspectiva, o patrimônio cultural fortalece a ideia de pertencimento e apropriação social de um determinado lugar, sendo conceituado como tal ao levar-se em consideração os testemunhos de experiências vividas, sejam elas coletivas ou individuais, que fomentam o conhecer, lembrar, pertencer e partilhar de aspectos que perfilam uma dada cultura, sentido de grupo e identidade coletiva. Por isso, a identidade aqui é pensada como um sentimento de afinidade, pertencimento e/ou algo que conecta uma pessoa a um grupo e/ou espaço. Pollak (1992), por sua vez, discute que identidade é construída a partir de três elementos essenciais: a unidade física, isto é, o sentimento de pertencimento; a continuidade dentro do tempo, seja ele moral ou psicológico; e o sentimento de coerência, que é aquele que integra um sujeito, logo, social. Portanto, a memória, segundo ele, seletiva, socialmente construída, em disputa e herdada, é um dos pontos que constitui esse sentimento à identidade, individual ou coletiva, e mais do que isso, “a identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outro”, (POLLAK, 1992, p. 5) fomentando assim, que a identidade seja social e gestada por meio de elementos de pertença e da própria memória – em suas diferentes nuances. A comunhão e diálogo destes elementos possibilita a elaboração e manutenção de uma memória social, a qual guarda fatos históricos ocorridos e é recordada por homens e mulheres que dialogam essa memória coletiva acerca do acontecimento, tornando-se assim, um mote de singularidade do grupo. Monastirsky (2009) salienta que os debates em torno do patrimônio e da memória tem se associado cada vez mais com a cultura naquilo que ele chama de indústria cultural ou mundialização da cultura. E isso se deve a fusão da velocidade que as sociedades tem experienciado nos últimos tempos, sobretudo, em virtude da globalização, a qual tem impactado tanto na constituição da identidade, seja ela individual quanto coletiva. No tocante a memória, pode-se ressaltar que a sua preservação, assim como a do patrimônio, se trata de uma tendência de países periféricos com algum atraso ou conflito, buscando reconstruir a história e manter vivo e vivido a sua identidade, antes de uma perda das referências e desvalorização dos caracteres culturais em detrimento do novo, do progresso e do atual. Conectando os conceitos e vieses até aqui elencados, concorda-se com os autores quando os mesmos explicam que: “Verifica-se que o patrimônio cultural revela-se então um interlocutor entre o ser humano e a prática social, obtendo o status de lugares de memória pois é o resultado da construção histórica de uma sociedade que passa a ser mediador entre passado e presente, uma âncora capaz de dar uma sensação de continuidade em relação ao passado social em meio à turbulência da atualidade.” (ROCHA, MONASTIRSKY, 2008, p. 150) Face a estas colocações, considera-se assim o patrimônio cultural enquanto importante para a sociedade, não só pelos seus significados para a história, memória e identidade, mas também pelo seu potencial ao turismo. Por fim, observa-se que ainda que a globalização tenha se tornando uma realidade histórica, geográfica, política e econômica, tornando assim, o tempo e espaço pluralizado e dinamizado, legou à sociedade também uma preocupação com a retomada de princípios e valores formadores de uma cultura local e de lugares de memória. Esse movimento foi acompanhado para que os autores nominam de redes, as quais privilegiam informações e aspectos que exaltem uma conexidade entre local e global. Dialogando estas diretrizes com o Projeto, pode-se dizer que ao andar pela cidade, as crianças tiveram a oportunidade de perceber o que permaneceu dos patrimônios culturais, quais mudanças foram operacionalizadas e se estas foram grandes ou pequenas, bem como, sua influência na formação da consciência histórica de pessoas que não tiveram a oportunidade de acompanhar esse ‘olhar’ sobre o espaço. Além disso, antes da saída à campo, as turmas tiveram acesso a fotografias da cidade dos anos de 1920 a 1950, o que possibilitou notar mudanças e permanências não só ‘à sua época’, mas em momentos anteriores ao seu nascimento, sendo as praças públicas um ótimo exemplo de alterações no espaço. E, ainda que nessa era global haja uma preocupação com o turismo, entende-se que há pontos bem específicos que geram interesse e, algumas vezes, parte do patrimônio cultural acaba se perdendo pela ausência de interesse público. Pensar em Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 185 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 186 questões ligadas ao Patrimônio é um ato de resistência, pois é necessária muita luta pela sua valorização e preservação e, para tal, o ensino e a formação de uma educação patrimonial tem sido uma estratégia de fortalecimento para que não se perca os fragmentos da nossa história, memória e identidade, cujos pedacinhos estão aí ao nosso redor, nas diferentes formas de se pensar, olhar e entender o espaço. Referências CORRÊA, R. L. Espaço, um conceito-chave da geografia. In: CASTRO, I. E. et al (Org.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. LOPES, A. O. Aula expositiva: superando o tradicional. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.) Técnicas de ensino: Por que não?. Campinas, SP: Papirus, 1991. MONASTIRSKY, L. B.A. Espaço urbano: memória social e patrimônio cultural. Terr@Plural, Ponta Grossa, v. 3, n. 2, p. 323-334, jul/dez 2009. PADDISON, R. Identificando a cidade. Handbook of Urban Studies. London: Sage Publication, 2001, p. 11-33. POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992. RÜSEN, J. História viva: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. A CAÓTICA FRAGMENTAÇÃO DO CURRÍCULO COMO POSSIBILIDADE DE MINAR OS AVANÇOS INTERDISCIPLINARES DE SUJEITOS AUTÔNOMOS: POR UMA EDUCAÇÃO QUE ‘DEFORME’! Leandro Santos Costa Bruna de Almeida Oliveira No momento atual do Brasil chocam-se conceitos extremamentes antagônicos e mais um objeto de perecimento neste este enredo é, infelizmente, a Educação. Arbitrariedades em decisões importantes são justificadas de formas irrelevantes, enquanto se desvia o foco da sociedade com outras discussões rasas. Analisaremos mais uma crise que emerge no momento em que a interdisciplinariedade perde força, onde há restrição de conteúdo no ensino, onde não há a devida atenção para os reais desafios do ensino e onde não se valoriza o percurso e os avanços do conhecimento. A Educação vem sofrendo ataques e fragmentos principalmente pela proposta sancionada da Reforma do Ensino Médio, onde os principais pontos controversos são a exclusão de diversas disciplinas obrigatórias, privação de conteúdos e a formação técnica, que substitui uma gama de matérias necessárias para a construção de conhecimento do sujeito e sua formação cidadã. Além de analisarmos como esta medida rompe com conquistas históricas educacionais, faremos uma releitura no contexto do Pósestruturalismo e seus pensadores, um movimento que discutia o currículo em suas possibilidades sociais e verdadeiramente educadoras, mostrando formas alternativas de educar e ensinar, indo contra a formação tecnicista para a indústria e a favor da pluralidade e o diálogo entre os saberes. Introdução Em um momento delicado de profundas mudanças na sociedade brasileira, as escolas vêm caminhando a passo curto quanto ao quesito de melhoria estrutural, universalização e a dignidade da categoria dos professores. Enquanto se discute e se estimula mudanças na educação e a Reforma no Ensino Médio, podemos analisar se a medida representa uma fragmentação e restrição de saberes e conhecimento, de forma a desuniversalizar a educação e contribuir para a formação de sujeitos acríticos. A reforma em questão não aborda sobre a dificuldade de muitos alunos a chegarem até as escolas, a precariedade nas estruturas, a falta de pagamento e desvalorização da classe dos professores, nem busca uma proteção para aqueles que sofrem violência dentro de sala de aula. Podemos dizer que ela se preocupa em formar sujeitos técnicos prontos para a indústria, com deficiências cada vez mais críticas de conhecimento. Esta mudança rompe com o diálogo de muitos estudos do século XX, que ampliavam as possibilidades de conhecimento e currículo, contribuindo para a interdisciplinariedade dos saberes. Com o surgimento de diversas teorias da educação que ampliavam os horizontes sociais, criavam-se aportes tais como: Psicologia, Filosofia, Sociologia, Linguagens, Pedagogias e etc. A herança do século passado foi a riqueza de suas múltiplas e rizomáticas formas educar, tornando possível conversas entre opostas disposições e necessidades. Uma dessas correntes, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 187 o Pós-estruturalismo, ganhou espaço não só nas faculdades, mas nos currículos de instituições escolares na Europa e, posteriormente, no mundo. Por isso, para percebermos como este movimento dialoga a fragmentação atual do ensino, do currículo e da educação brasileira, voltaremos às propostas da corrente teórica e seus pensadores. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 188 Desenvolvimento Para analisarmos a fragmentação dos saberes e como esta medida não dialoga com grandes avanços da humanidade, convidaremos Nietzsche para uma reflexão acerca da educação, um dos grandes influenciadores do movimento Pós-estruturalista e um dos principais pensadores da nossa era. Em meados dos anos 60, próximo ao Golpe Militar brasileiro, surgia na Europa pensadores que resgatavam a filosofia nietzschiana, assim como outros que disparavam reflexões contra a razão. As críticas desenvolvidas percebem e expõem esta razão que, segundo Rouanet, “não é denunciada como tal, mas na medida em que perde sua função subversiva transformando‐se em álibi do poder, agente da heteronomia, adversário do prazer ou instrumento da repressão”. (ROUANET, 1998, pp. 236-264) Qual é a razão de trazer com eles filosofias a martelo de Nietzsche? A razão é que este denunciou as supraestruturas e as bases sociais, fincando-se no panorama filosófico com os seus contrasensos. Na contemporaneidade, a noção de um sujeito singular, autônomo, continuou ainda a se construir como uma necessidade ideológica do sistema, pois a mercadoria e o lucro não geraram por si mesmos mecanismos suficientes de legitimação, segundo a lógica capitalista. As perspectivas de sujeitos iluministas e subjetivos foram se construindo paralelas e inseridas nas ações culturais e estéticas, atributos fixados pela modernidade. Em sua conjuntura, as reflexões sobre tais mudanças e necessidades sociais trazem consigo proposições sobre novos saberes, principalmente pela constatação da desintegração da noção de sujeito e da filosofia antropocêntrica. Foucault, Derrida e Barthes, igualmente problematizam a razão e a modernidade, fazendo parte do que se chama crítica cultural, que podemos definir como Silva sintetiza, “rejeição dos dualismos e oposições binárias, por sua ênfase no texto e no discurso como elementos construtivos da realidade e pela negação de uma concepção representacional da realidade.” (SILVA, 1996, p.138). Os sujeitos contemporâneos ainda reinterpretam o mundo a partir de conceitos ideológicos modernos. O filósofo Terry Eagleton, por sua vez, percebe que a partir desta subjetivação da realidade o sujeito confirma o solipsismo moderno, ou seja, ele é na medida em que constrói o seu mundo, “você respeita a minha propriedade, e eu respeito a sua”. (1993, p.56) O sujeito moderno é o “eu pensante” que não segue só uma lei externa; mas também estabelece suas próprias leis. Desta maneira, esse sujeito moderno foi sendo lapidado de forma racional, fechada (solipsista) e unitária, para o Pós‐estruturalismo, isto é uma ideia desenvolvida como projeto Iluminista. O iluminismo pressupõe uma sociedade formada por pessoas racionalmentes conscientes e autonômas, como presumira Kant (em “Possiveis Respostas a Pergunta: ‘O que é o Esclarecimento (Iluminismo)?’”, fazendo sair, portanto, de um estado minórico para uma maioridade mental. Desta maneira, nos Estados modernos, devidamente refinados e educados, o sujeito vai se tornando objeto principal em sua estrutura econômica e social. Docilizado em diversos aspectos na sua forma de mundo, ou melhor, ‘apto’ a viver em uma pré-programada forma de sociedade. Dentre os pós-estruturalistas que marcaram o movimento, Foucault (1986) centralizou sua visão na razão inserida na escrita da história ocidental, onde está a ideia de origem, continuum e intencional a partir de uma “anti‐história”, da qual se exclui todas as referências a um projeto, a um sujeito e que se funda no corte, na ruptura e no descontínuo. Seu método arqueológico deve atuar escavando o subsolo, onde atuam as formações discursivas, manipuladas pelo poder, para se construir uma história das descontinuidades, dos retrocessos, dos recomeços, dos vazios, dos não‐acontecimentos. O sujeito não é autônomo como as escolas cansaram de pregar, mas uma construção, feita através da linguagem, dos discursos que foram lançados. Outra grande inovação do movimento fora não acreditar e não procurar modos certos e fixos de ensinar, de avaliar o conhecimento, optando pela problematização do mesmo, expondo as inúmeras possibilidades de entendimento do currículo, dos sujeitos escolares nas políticas públicas, e do uso das novas tecnologias. Estes questionamentos permitem inúmeras reflexões acerca de conceitos que ultrapassam os muros da escola e acabam por promover preceitos que regem a sociedade, criando padrões, verdades e seus sujeitos. Esta criação, entretanto, muitas vezes exclui, estereotipa e desoportuniza certos indivíduos que não se adequam às condutas impostas. Muitos conceitos difundidos pela modernidade, postos pelo iluminismo, tais como: liberdade, democracia, justiça, cidadania, felicidade, etc, acabaram por gerar uma exclusão de indivíduos que não se enquadravam nestes moldes, o homossexual – o qual não fazia parte do padrão de sujeito europeu –, a mulher, o negro – subjulgado devido, segundo a igreja católica, “a marca de Caim” –, aqueles que cultuavam as diversas religiões que não a católica, entre outros. O movimento, por sua vez, busca abarcar a realidade e as possibilidades de cada um, tornar leve o ensino e a aprendizagem, sem esquecer seus diversos contextos e realidades sociais. A escola foi sendo estrututurada para a formação do sujeito burguês e um de seus objetivos era a retirada da criança da minoridade e conduzi-la à maioridade intelectual. “Oferecendo” o preparo de cidadãos patriotas, dispostos a sacrificar-se pelo outro. Com o passar dos anos, a escola, já institucionalizada, se tornou também um meio de disciplinar o aluno – e o próprio saber –. Se tornando um espaço, não só para ‘fazer cidadão’, mas para gerar um tipo de sociedade, pois, surge como ‘fábrica’ que produz subjetividades doutrinadas, ao mesmo tempo em que promete formar indivíduos. Aqui já estamos percebendo que, o que temos hoje como princípios, fora uma construção social submersa nos processos históricos dialéticos. O colégio faz parte dessa realidade de mundo e a fragmentação Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 189 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 190 do currículo é uma das muitas situações que ameaçam a instituição escolar e a realidade do educando, somados à falta de suprimentos básicos, problemas no acesso a escola e a desvalorização do Professor, acabam por gerar uma crise evasiva de discentes. Desatualização de conteúdos e métodos de ensino, disciplinas mal distribuídas, com significativas reduções nas cargas horárias, greves, são alguns dos problemas da realidade escolar brasileira, que se tornam prejudiciais ao desenvolvimento educacional e precisam ser repensadas. “No Brasil, uma sociedade profundamente hierárquica e excludente, a escola foi, durante muito tempo, um privilégio de classe, de etnia e de gênero. A escola estava destinada à formação de uma dada elite [...]. Pensar que só a partir dos anos cinqüenta do século XX, o ensino começa a se massificar no Brasil, a chegar à zona rural, outra realidade comumente excluída, a ser acessível às mulheres, a dar acesso às camadas médias e alguns elementos da raça negra, que ainda lutam hoje em dia por pleno acesso a ela, dá a medida do caráter excludente desta escola. Normalmente se lamenta a perda de qualidade do ensino público no Brasil, mas poucas vezes se diz que isto ocorreu, justamente, quando este deixou de ser voltado para a formação das elites sociais.” (ALBUQUERQUER JR, 2001, p. 05) Eis um grande problema: como formar se lá fora a realidade mostra o contrário, em muitos casos? Quando a escola nem chega para todos? Se a sociedade, também por si mesma, fabrica sujeitos de várias formas e exclui a muitos. Os alunos são os que mais sofrem com estas realidades, sentem também a crise de valores da contemporaneidade, que os distanciam de uma ideia de vida digna e com reconhecimento social, minando suas expectativas de vida, trabalho, cultura, lazer e saúde e outros direitos básicos. Deve haver um elo entre a família e a escola que atendem os mesmos, pois assim iremos conhecer profundamente os alunos em suas diferentes necessidades e facetas. “A pedagogia e cultura popular conseguem juntas repensar a escolarização como uma viável e valiosa forma política cultural.” (GIROUX, 2005, p. 51). A escola deve acolher esse tipo de sujeito e prepará-lo para a sociedade, ou melhor, guiá-lo a ser um cidadão. A escola deve contribuir na formação de sujeitos responsáveis de suas existências sociais, adquirindo maneiras de ser conscientes ao produzir, consumir, modificando seu meio social fazendo ser ou não satisfatórias as “necessidades e enquanto transforma a realidade, constrói a si mesmo no seio de relações sociais determinadas.” (LUCKESI, 1994, pág. 51). De acordo com Durval Muniz: “A chamada crise da escola pública se dá [...] no momento em que os filhos das camadas populares adquirem o direito e as condições mínimas de nela ingressar [...] embora desde o começo o discurso a destine ao povo, a escola se vê inviabilizada quando grupos sociais com valores, comportamentos, hábitos, costumes os mais diversos vêm aí se encontrar.” (ALBUQUERQUE Jr., 2001, p. 04) Considerando estas concepções filosóficas, podemos multiplicar os ângulos de saberes, e a partir destes, formular novas ideias. Possibilitando, a partir da interdisciplinaridade entre conhecimentos, usar a própria cultura e a realidade e história local como ferramenta para uma educação acessível, livre e expansiva. A escola reflete a realidade e as carências na sociedade em que está inserida, por isso não se deve restringir e distanciar o saber, mas abordá-la como um diálogo social. Pensar em uma reforma que segregue os saberes é contribuir para uma deformação social, não valorizar uma formação completa e sólida, não pensar as reais necessidades e distrair com medidas sem relevância. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 191 A Escola será o palco para o espetáculo do saber, contudo, sendo adaptável e abordando os seus cotidianos. A interdisciplinaridade é uma abordagem metodológica que consiste na busca sistemática de integração das teorias, dos instrumentos e das fórmulas de acção científica de diferentes disciplinas, com base numa concepção multidimensional dos fenômenos. No Brasil, o conceito passou a fazer parte do cenário educacional do país, a partir da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) Nº 5.692/71 e mais fortemente com a LDB Nº 9.394/96 e a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais, influenciando o trabalho das escolas e dos professores para compreender o processo de ensino e aprendizagem como sistêmico e não como uma abordagem ou leitura estanque de conceitos e teorias. Portanto, a restrição de matérias obrigatórias vai contra este princípio de diálogo entre os saberes, acesso à educação, dando espaço às insuficiências funcionais. A Reforma do Ensino Médio brasileiro, aprovada sob Medida Provisória em 2018, propõe mudanças profundas na Educação. O grande problema deste projeto entregue pelo parlamentar Alexandre Frota ao ex-presidente Michel Temer, assim como muitos outros, é que ele não prioriza e valoriza o debate de especialistas e agentes da realidade escolar brasileira. Tampouco, em seu conteúdo, valoriza a interdisciplinariedade de matérias e o acesso à escola. A mudança que mais choca estudiosos da Educação é a restrição de matérias que eram consideradas obrigatórias no Ensino Médio, indicando o projeto apenas Português e Matemática como disciplinas universais. As outras áreas de conhecimento serão dividas em outras cinco sub-áreas, onde o aluno, portanto, escolhe dentre áreas secundárias o que irá complementar em seu currículo, de acordo com a oferta que estiver disponível em sua Escola. As escolas, por sua vez, de acordo com o texto da Reforma, precisarão somente dispor das disciplinas obrigatórias e um itinerário formativo, evidenciando que acarretará em demissões de professores, dificuldade dos alunos em achar oferta na área requerida e mais deficiências em áreas em que o aluno não tiver mais aprofundamento. A discussão sobre a medida acabou por gerar muitas críticas de ilegalidades, com análises que deixam de forma clara que esta mudança só contraria esforços e avanços de um acesso à educação. As controvérsias se elevam na audiência pública sobre o Novo Ensino Médio, levando a suspensão da discussão em junho de 2018, que ocorreu em São Paulo. Muitos professores e alunos também protestaram contra, com suas visões da realidade Brasileira e até mesmo o presidente da Comissão Bicameral do Conselho Nacional de Educação decidiu se afastar do cargo por discordâncias com as propostas. Segundo César Callegari, o projeto aponta diversas falhas e não está alinhado a Base Nacional Comum Curricular atual, devendo ser descartado. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 192 Segundo o novo Ministro da Educação, em entrevista ao ‘Jonal Valor Econômico’ – 28 de janeiro de 2019 –, “as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual”. Vélez Rodríguez alimenta a esta (des)Reforma do Ensino Médio – aprovada por medida provisória no governo Temer –, para fortalecer o ensino técnico, já que segundo ele, o retorno financeiro dos cursos técnicos é rápido, maior e imediato, e desta forma, lançando todos aptos às fábricas, diminuindo é claro, a procura do ensino superior. Essas políticas tendem a fragmentar os direitos garantidos democraticamente, por isso diluem o ensino basico, médio e superior, buscando deixar mais distantes daqueles que compõem partes minóricas, em um estado com um abismo em desigualdade, o ministro colombiano nos deixa claro: “a ideia de uma universidade para todos não existe!”. É um reflexo do retrocesso, oligarquico e excludente sistema fragmentado educacional. O que fechamos, para nossas considerações, é indicar ao Brasil a voltar em seu berço, lá atrás, Anisio Teixeira “Educação Não é Privilégio” (2007): “Em face da aspiração de educação para todos e dessa profunda alteração da natureza do conhecimento e do saber (que deixou de ser a atividade de alguns para tornar-se, em suas aplicações, a necessidade de todos), a escola não mais poderia ser a instituição segregada e especializada de preparo de intelectuais ou “escolásticos”, mas deveria transformar-se na agência de educação dos trabalhadores comuns, dos trabalhadores qualificados, dos trabalhadores especializados em técnicas de toda ordem e dos trabalhadores das ciências nos seus aspectos de pesquisa, teoria e tecnologia.” (p. 49) Continua, “A aceleração do processo histórico sob o impacto do progresso material, ignorância generalizada em virtude das deficiências e perversões do processo educativo e clima de conservadorismo, se não reacionarismo social, estão, assim a criar no País condições particularmente difíceis à nossa ordenada evolução educacionais. “(p. 99) Entretanto, a escola, como lugar legítimo de aprendizagem, produção e reconstrução de conhecimento, cada vez mais precisará acompanhar as transformações da ciência contemporânea, adotar e simultaneamente apoiar as exigências interdisciplinares que hoje participam da construção de novos conhecimentos. A escola precisará acompanhar o ritmo das mudanças que se operam em todos os segmentos que compõem a sociedade. O mundo está cada vez mais interconectado, interdisciplinarizado e complexo. Ainda é incipiente, no contexto educacional, o desenvolvimento de experiências verdadeiramente interdisciplinares, embora haja um esforço institucional nessa direção. Não é difícil identificar as razões dessas limitações; basta que verifiquemos o modelo disciplinar e desconectado de formação presente nas universidades, lembrar da forma fragmentária como estão estruturados os currículos escolares, a lógica funcional e racionalista que o poder público e a iniciativa privada utilizam para organizar seus quadros de pessoal técnico e docente, a resistência dos educadores quando questionados sobre os limites, a importância e a relevância de sua disciplina e, finalmente, as exigências de alguns setores da sociedade que insistem num saber cada vez mais utilitário. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 193 Essa realidade nos mostra que algumas iniciativas públicas surgem de campos privados e que detém pouco ou nenhum conhecimento da matéria que regula. Muitas são as tentativas de alertar as falhas no projeto, mas o esforço por uma sociedade técnica e acrítica é grande por parte de alguns legisladores, que insistem em dar pouca importância à vontade do povo e o conhecimento de profissionais da parea. Isso fica evidenciado quando há aprovação instantânea de projetos delicados, seja por Medida Provisória ou por equívocos na competência, circunstâncias que não exploram nem dá a devida voz e valor ao debate sobre os temas. Considerações Finais Dadas a natureza e a especificidade deste artigo, tomamos como principal ponto de reflexão o papel da interdisciplinaridade no processo de ensinar e de aprender na escolarização formal, buscando-se articular as abordagens pedagógica e epistemológica, com seus avanços, limitações, conflitos e consensos. O pós-estruturalismo, movimento que rompe com vigências no século XX, propõe um pensamento complexo sobre uma realidade também complexa, fazendo avançar reformas do pensamento na direção da contextualização, da articulação e da interdisciplinarização do conhecimento produzido pela humanidade. Nesse sentido, a interdisciplinaridade será articuladora do processo de ensino e de aprendizagem na medida em que se produzir como atitude, como modo de pensar, como pressuposto na organização curricular, como fundamento para as opções metodológicas do ensinar, ou ainda como elemento orientador na formação dos profissionais da educação. Este método, que vai de contra à formação Iluministaburguesa e moderna que por ter se voltado às camadas populares, se voltou para o contexto industrial e fabril, alicerça nossa crítica à fragmentação proposta na educação brasileira, que marcará uma segregação de conhecimento e senso da própria história social dos indivíduos dentro deste contexto fragmentado. Referências ALBUQUERQUE JR, D. Por um ensino que deforme: o docente na pósmodernidade. Disponível em: http://www.cnslpb.com.br/arquivosdoc/MATPROF.pdf . Acesso em: 01 março 2019. EAGLETON, T. A ideologia estética. Trad. Mauro Sá Rego Costa. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986. GIROUX, H. A. SIMON, R. In_MOREIRA, A. F. SILVA, T. Currículo, cultura e sociedade. Editora Cortez. Capítulo IV, 8ª edição. São Paulo – 2005. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 194 LUCKESI, C. C. Filosofia da educação. Editora Cortez. São Paulo – 1994. Pág, 110. Consulta escolas. 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Acostumado com eventos e a notícia imediatas, como trataria o passado? Como o jornalista produz sua narrativa historiográfica? Qual o método de trabalho de um jornalista? Qual o peso da competitividade típica da profissão? Como se dá o relacionamento do jornalista com suas fontes? São muitas as questões que se conectam a esta historiografia popular [PALETSCHEK, 2011]. Por isso, dedicar-nos-emos a compreender o potencial das narrativas e como são empregadas quando divulgam o conhecimento histórico. Narrativas – chaves de compreensão Inicialmente, vale apontar que a narrativa não é um recurso específico apenas do conhecimento histórico, mas, como afirma Roland Barthes [1971, p.79], “está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, nas histórias em quadrinhos, na conversação”. A narrativa dá sentido ao mundo em que vivemos, explica acontecimentos e permite a emergência de outras histórias. A narrativa designaria “a organização de materiais numa ordem de sequência cronológica e a concentração do conteúdo numa única história coerente, embora possuindo subtramas” [Stone, 1991, p. 13 – 14]. A história narrativa possibilita a empatia compreensiva com outro, permite trazer emoção e a sensibilidade para o texto. Para José D’Assunção Barros, “narrar é configurar ações humanas específicas, mas é também discorrer sobre significados, analisar situações. Inversamente, discorrer sobre significados e analisar é também é uma forma de narrar” [2011, p.07]. As obras de divulgação tratam de temáticas que são conhecidas de seu público, de comemorações e personagens e eventos do passado, porém procuram trabalhar com as possibilidades da linguagem, tornando o texto mais acessível ao leitor, já que o público-alvo é o consumidor comum, não especializado. O historiador Hayden White [1998], ao definir o que são as narrativas históricas, causou alvoroço no meio acadêmico, entre os consideram suas obras como o próprio passado ou como a verdade do passado por que utilizaram um método científico. Para White, o que possuímos são vestígios presentes aos quais o historiador designa um significado simbólico, em que a única forma de apreender o passado seria por meio de um relato: a disciplina histórica deve se identificar com a narração para tornar o passado inteligível. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 195 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 196 “De um modo geral houve uma relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com seus correspondentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências” [White, 1998, p. 98]. Ao identificar a forma de narração da história com a literatura, White postulou uma convergência disciplinar entre história e crítica literária. Somente seria possível conhecer o passado através da narrativa. Paul Veyne [1998], as explicações que a história produz são apenas as formas como a narrativa tem de se organizar em uma intriga compreensível. E ainda argumenta que “A história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso. Já que é, de fato, uma narrativa, ela não faz reviver esses eventos, assim como tampouco o faz o romance; o vivido, tal como ressai das mãos do historiador, não é o dos atores; é uma narração que permite evitar alguns falsos problemas. Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba em uma página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória” [Veyne, 1998, p. 18]. A narração dos eventos é formada por personagens, que podem ser tanto indivíduos como instituições, que agem com outros personagens, possuem motivação e intenções diferentes. As “notícias” do passado são dadas através da narração feita. Comentando sobre o trabalho historiográfico que o jornalista Eduardo Bueno realiza, por exemplo, o historiador e professor Francisco M. P. Teixeira afirma que o “que Bueno faz tem alto valor, no sentido de divulgar a história”, o historiador reconhece a amplitude da obra do jornalista, e continua no comentário, “ele nunca se declarou historiador, portanto a literatura que ele escreve não é originária da pesquisa, portanto não agrega conhecimento — mas divulga fatos”, divulgar fatos, narrar fatos. Em contrapartida, a historiadora Mary del Priore, comentando sobre o livro de Eduardo Bueno, “Brasil – uma história”, publicado em 2003, nos diz que “Independente das abordagens teóricas consagradas pelas academias, destacado da pesquisa histórica que se faz nas universidades, o autor identifica-se ao espírito de abertura e descoberta que domina nossa época. Exemplo de coerência intelectual, ele lê o Brasil numa chave jornalística onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisões coletivas, assim como a permanência das decisões individuais sobre o curso da história. Menos preocupado em interpretar a significação das estruturas, ele extrai habilmente lições de fatos históricos” [Priore, 2013]. Refletir sobre como escrever a história é obrigação dos historiadores. A teoria literária tem indicado possibilidades para que os resultados da pesquisa histórica cheguem ao público de maneira inteligível e em acordo com as diferentes consciências históricas dos destinatários. Para os consumidores / leitores comuns de história, a escrita histórica não difere da jornalística. As obras escritas por não historiadores tratariam de obras históricas. Produzidas para o consumo, demandaram trabalho, pesquisa e espaço no mercado. Bem construídas, fruto de pesquisa bibliográfica e bem narradas, as obras de divulgação seriam o início para uma problematização mais aprofundada acerca das temáticas historiográficas. Uma publicação para suprir a curiosidade e o interesse do leitor pela história, assim, a partir da narrativa feita por não-historiadores seria a porta de entrada para estudos e pesquisas mais acadêmicos e historiográficos. Desse modo, conclui-se que “as liberdades narrativas inerentes à escrita literária podem ter valor propedêutico – o de pavimentar o caminho da compreensão histórica” [Glezer, Albieri, 2009, p. 30]. As narrativas de divulgação As publicações de divulgação histórica seriam reflexo da época em que estão inseridos seus autores, com um linguajar rápido e direto, a “notícia” histórica é narrada nestas obras. As obras de divulgação se apegam ao curioso, ao que é exótico, ao que é diferente do que percebemos hoje. Semelhante maneira em que um jornalista dá uma notícia ao vivo, com detalhes e em busca da explicação, o jornalista, ao escrever história, quer dar aquela notícia, mostrando os fatos que levaram a tal acontecimento, tratando da vida das “celebridades” da época e relatando os acontecimentos, acidentes, crimes e festividades. Que motivos levam o leitor a buscar informações sobre o passado nestes livros e o que isso implica na produção acadêmica e não acadêmica? Leitores “que se interessam pelos acontecimentos do passado, mas não estão habituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadêmica”, como afirma Laurentino Gomes, um jornalista historiador [2008, p. 20]. Todos eles têm a pretensão de descrever a história do Brasil - a “verdadeira história” do Brasil, como está no subtítulo do primeiro livro de Eduardo Bueno (1998). Ou como afirma Laurentino Gomes (2008, p. 19), livros que fazem um resgate da história, que devolvem “seus protagonistas à dimensão mais correta possível dos papéis que desempenharam”. Nessas obras, o conhecimento do passado se faz História ou se transforma em algo diferente. Um aspecto, frequentemente, encontrado nas narrativas de divulgação é o apego ao exótico, ao inusitado, ao imaginativo. Vale lembrar que a característica do exótico se relaciona mais ao presente em que se lê a obra do que ao período retratado por ela. Lucas Figueiredo, em seu livro “Boa Ventura!”, publicado em 2011, apresenta algumas atividades que o rei de Portugal poderia realizar. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 197 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 198 “Se pudesse escolher, Sua Majestade Fidelíssima talvez tivesse preferido passar o dia a tocar violoncelo ou a traduzir mais uma peça de Shakespeare para o português, trancado no gabinete real. Disso era o que d. Luís I gostava e fazia de melhor. Mas naquele princípio de fevereiro de 1876, sua agenda incluía uma tarefa que ele não apreciava e que definitivamente não era sua especialidade: governar Portugal” [Figueiredo, 2011]. A descrição realizada pelo autor são apenas suposições imaginativas. Emprega alguns hábitos do monarca português de modo a criar um cenário onde a falta de habilidades nas questões administrativas faça sentido. Ainda no terreno do curioso, na narrativa que conta sobre o grito do Ipiranga, as primeiras palavras de Gomes, no livro “1822”, publicado em 2010, são sobre a dor de barriga do Imperador: “O destino cruzou o caminho de D. Pedro em situação de desconforto e nenhuma elegância. Ao se aproximar do riacho do Ipiranga, às 16h30 de 7 de setembro de 1822, o príncipe regente, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, estava com dor de barriga. A causa dos distúrbios intestinais é desconhecida [Gomes, 2010, p. 14]. Entre várias possibilidades narrativas para apresentar os acontecimentos que levaram à Independência do Brasil, o autor buscou chamar a atenção com um acontecimento irreverente. Há precisão de dia e hora do acontecimento. Constrói sua narrativa a partir de testemunhos de pessoas que estavam presentes na ocasião, retirados de seus escritos. O autor não busca criticar suas fontes ou mesmo questionar, mas já considera esses testemunhos como a verdade do que aconteceu. Além do exótico para delinear a história, o passado é tornado em uma sequência de aventuras. Procura-se construir uma narrativa em que a história é simplificada às causas e efeitos, atitudes que geram conflitos e paz. Busca no relato da história uma grande aventura, selecionando os eventos e personagens dentro de uma cronologia previamente determinada pelas escolas historiográficas. “A história dos inconfidentes de Vila Rica, contada nas próximas páginas, é a de uma aventura. É a de um sonho de um grupo de loucos, uma conspiração perigosa que custou a todos os envolvidos um pedaço de suas vidas. A um, a própria vida. Para nós, tanto depois, é um eterno imaginar do que poderia ter sido. Mas é, também, uma revelação da origem de tantos dos vícios que ainda assolam o Brasil” [Doria, 2017]. Palavras como “loucos”, “conspiração”, “perigosa”, por exemplo, criam um enredo de mistério e conflitos. Já se percebe de antemão que a aventura conduzirá o passado descrito nos textos de divulgação. Além desse aspecto, Pedro Doria cria uma conexão entre a aventura de outrora com o presente, os “vícios” ainda presente na sociedade brasileira. Na introdução de sua obra, “1808”, Laurentino Gomes comenta sobre a bibliografia utilizada escrevendo que além dos “preciosos” livros de historiadores como Jurandir Malerba, Jean Marcel Carvalho França e Lília Schwarcz, utilizou “algumas fontes de pesquisa não convencionais, ainda não reconhecidas pela historiografia oficial, mas que se revelaram de extrema utilidade pela facilidade de acesso e pelo volume de informações que oferecem” [Gomes, 2008, p. 23]. Com isso, busca justificar o uso da Wikipédia em suas pesquisas, por exemplo, e alerta que este site “precisa ser consultado com cautela”. O autor está ciente das críticas que podem surgir a partir de seus métodos de “pesquisa” e já tenta se justificar de antemão. Uma justificativa muito mais direcionada para os historiadores do que para os leitores de fora da academia. Outro recurso encontrado nos livros de divulgação é a nomeação de historiadores e a ajuda que prestaram, seja como orientação ou revisão técnica. Não são resenhas ou comentários após a publicação do livro, mas é um auxílio durante a escrita do texto. “Este livro assenta-se sobre outros livros e outros textos. Baseia-se nos numerosos autores que em crônicas, cartas, artigos de imprensa, relatos de viagem e estudos históricos [...]. Quando a conversas ao vivo, não o diálogo silencioso com os livros, os historiadores Maria Luíza Marcílio e Marco Antonio Villa me dirimiram dúvidas e forneceram indicações bibliográficas” [Toledo, 2003]. Estas obras ganham legitimidade ao ter historiadores em sua elaboração, a citação de um profissional de academia procura aumentar a confiabilidade da narrativa apresentada. Os historiadores não estão ali como personagens a serem criticados, mas como autoridades em determinados assuntos. Estas obras buscam por credenciais acadêmicas, além do uso de bibliografia historiográfica, busca-se a aprovação de historiadores. Neste artigo, procurou-se apresentar algumas estratégias utilizadas na composição das narrativas de obras de divulgação. O passado, na divulgação, ganha cores ao ser enquadrado em uma aventura repleta de descrições curiosas e de construções imaginativas. Os historiadores aparecem nestes textos como garantia de veracidade e cientificidade do que é narrado. Podemos refletir se quanto mais se falar de história é melhor. Nem sempre. As obras de divulgação e a facilidade de aquisição de bens culturais permitiram um maior acesso ao conhecimento histórico por um grande público. Cabe aos historiadores avaliarem esse conhecimento, pois deve assumir alguns compromissos éticos e morais, evitando, assim, a difusão de preconceitos, a negação de violências do passado, a defesa da manutenção da desigualdade e as justificativas das explorações, todos aspectos que podem se esconder por traz de uma narrativa aventuresca de grande circulação. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 199 Referências BARROS, J. “Paul Ricoeur e a Narrativa Histórica”. In: História, imagem e narrativas. Nº12, abril/2011. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 200 BARTHES, R.; GREIMAS. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971. BUENO, E. A viagem do Descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. BUENO, E. Brasil, uma história. São Paulo: Leya, 2013. DORIA, P. 1789 - os contrabandistas, assassinos e poetas que sonharam a Inconfidência no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. FIGUEIREDO, L. Boa Ventura! A corrida do ouro no Brasil (1697-1810). Rio de Janeiro: Record, 2011. GLEZER, R.; ALBIERI, S. O campo da história e as “obras fronteiriças”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v.48, p. 13-30, 2009. GOMES, L. 1808 - como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. GOMES, L. 1822 - como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Ed. Planeta, 2010. PALETSCHEK, Sylvia. Introduction: why analyse popular historiographies? In: _________ (Org.). Popular historiographies in the 19th and 20th centuries: cultural meanings, social practices. Oxford: Berghahn, 2011. pp. 01 - 19. PRIORE, M. Uma história para ler. In: BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Leya, 2013. STONE, L. “O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma nova velha história.” RH – Revista de História, Campinas, n.2/3, p. 13-37,1991. TEIXEIRA, F. Entrevista concedida a Juliana Resende ao Portal Educacional. Disponível em: http://www.educacional.net/entrevistas/entrevista0011.asp TOLEDO, R. P. A capital da solidão - uma história de São Paulo das origens a 1900. São Paulo: Objetiva, 2003. VEYNE, P. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história. Brasília: UnB, 1998. O JORNAL COMO FONTE: PERSPECTIVAS SOBRE O ENSINO DE HISTÓRIA, COTIDIANO ESCOLAR E NOVAS METODOLOGIAS A PARTIR DO CONTATO INICIAL COM A DOCÊNCIA Libiane Karina Orth As práticas das aulas de estágios que compreendem a grade curricular do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do Paraná UNESPAR - Campus de União da Vitória proporcionaram o desenvolvimento de uma aprendizagem inicial de contato e interação com o cotidiano escolar na Cidade de Porto União especificamente na Escola de Educação Básica Antônio Gonzaga no ano letivo de 2018. Nesse sentido, torna-se fundamental expor a experiência a fim de relacionar as perspectivas que como acadêmica trazia na bagagem frente à realidade do enfrentamento diário de criação e confronto de ideias e novas possibilidades de ensino neste primeiro momento em que obtive real contato com a profissão. Período de observação As observações com o 3º ano do Ensino Médio foram bem esclarecedoras ao final da prática das aulas na aplicação do estágio. Os alunos estão acostumados com um grande contingente teórico, não havia segundo os alunos e o próprio professor aulas com produções realizadas pelos próprios alunos em sala de aula, como propostas em meu plano de aula. São de acordo com a forma escolhida pelo professor regente, aula expositiva e trabalhos escritos. Foi perceptível o interesse de alguns alunos, especificamente os que se sentam na frente. Alunos destaque, melhores notas, atentos, trabalhos entregues em dia. Porém, ao conversar com os alunos que se sentam ao fundo, percebi que são os aparentemente mais cansados, que trabalham durante o dia ou que praticam esportes como pretensão de ofício no futuro, e visivelmente exaustos, frequentam as aulas matinais. A realidade de uma juventude que trava diariamente uma luta com o seu futuro nos estudos e a sobrevivência digna a partir dos ofícios necessários para a manutenção familiar. A presença de segundos professores para auxiliar alunos com dificuldades ou deficiências na sala de aula é bem comum quase em todos os anos do ensino fundamental e médio na escola. Nesta classe em questão, o aluno que estava acompanhado interagia, mas não copiava a matéria, ela é anotada pela professora auxiliar e ele presta a atenção na aula expositiva, responde a estímulos e provocações, e gosta de participar ativamente com comentários e exemplificações próximas da sua realidade. Período de regência O desenvolvimento das aulas aplicadas na sequência com essa turma seguiu o modelo expositivo e dinâmico, perguntando sobre o conteúdo anterior, a República Velha e o contexto social e político brasileiro. Surpreendi ao ver dinamismo e interesse político, o qual se deve provavelmente ao atual cenário brasileiro de eleições. Percebi de alguns Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 201 alunos apreensão com a proximidade das provas de Enem e vestibulares. A aula inicial foi espetacular com relação à resposta obtida dos alunos, e as que se seguiram na explicação da matéria também. Quando me refiro desta forma, é porque percebi visivelmente que os alunos estavam estimulados. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 202 A proposta foi a utilização do jornal como fonte e ela vem da minha pesquisa de monografia na universidade, se deve essencialmente pelo resultado empregado no desenvolvimento do conhecimento. A proposta foi a criação de um jornal com nome e com notícias relacionadas ao tema estudado, respeitando a cronologia e a posição de um escritor jornalístico e sua forma de narrativa. De modo que esta aula teve um ganho coletivo de interação e confiança, estímulo e novas perspectivas, um dos propósitos era alcançar o aluno em sua totalidade sempre que possível. Trazer para a sala de aula novos materiais e analisá-los foi de ganho coletivo e chamou muito a atenção tanto a escrita do período como as charges, propagandas, notícias e o tema estudado na forma como era exposto em tempo real de seus acontecimentos. Mas... Nem tudo são flores. No dia da apresentação deste trabalho que foi organizado, os alunos deveriam trazer o material pronto que foi previamente entregue a eles (folhas envelhecidas, cartazes, jornais do período getulista em tamanho real e músicas), o que não ocorreu de forma geral. Alguns alunos terminaram durante a aula, e fizeram uma junção de informações que não seguiam corretamente os fatos históricos, e também uma leitura dificultosa durante as falas. Houve apresentação de música utilizando instrumento, e de maneira geral as apresentações seguiram um ritmo mais apurado, pois na sequência aplicaria uma prova, sendo aulas conjugadas o tempo para a execução estaria ajustado. Momentos antes da aplicação da prova, o professor da disciplina de História desta turma informou que a mesma aparentava saber o conteúdo, mas sem consulta não desenvolveriam nada por escrito. Ele instruiu, para que não houvesse “decepção”, que eu aplicasse a prova com acesso aos materiais que eles tinham disponíveis. Os alunos sentam normalmente juntos e trocam informações, questionei alguns alunos estarem copiando uns dos outros durante a prova, e ainda o fato de não terem em seus cadernos anotações ou o conteúdo que foi passado no quadro, percebi a circulação de anotações de um aluno por toda a sala. Mas a certa altura tudo estava claro, não havia o hábito de provas no modelo que eu aplicara. O que durante as observações não foi verificado ou mencionado. A incidência de respostas iguais foi grande. Procurei colocar o tema no quadro em tópicos para facilitar a linha de pensamento durante as aulas anteriores, e instruí que escrevessem no caderno sobre o que eu explicava, conforme fazemos na graduação, deste modo faz pensar no uso da aprendizagem prática do currículo para o ambiente escolar e sua adaptação. Mas este método não funcionou. Eles interagiam e gostavam do assunto, demonstraram interesse no decorrer das aulas, mas poucos eu notei realmente registrarem no caderno as discussões travadas em sala de aula, cerca de quatro alunos fizeram pesquisa voluntariamente e trouxeram questões pedindo explicação, confundiram muito primeiro período de governo Vargas com o segundo de seu suicídio. O método de pesquisa verificado nesta turma foi a internet, em sua maioria sites e vídeos populares sobre o assunto. Apenas um dos alunos que se preparava para o vestibular justamente para vaga em Licenciatura em História, é que trazia consigo livros preparatórios sobre a História do Brasil. São deste modo características de muitos nesta turma: não dinamizarem outros meios de consciência histórica, que segundo Rüsen é “(...) a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (RÜSEN, 2010, p. 57), relativas ao seu cotidiano de forma pratica pelas aulas serem de cunho mais teórico e preparatório no último ano; uma grande parte dos alunos trabalha e demonstram cansaço físico; pensando essa característica, sobra pouco tempo para pesquisa extraclasse; poucos se manifestaram quanto à intenção de curso superior; estão acostumados a reproduzir através de provas com consulta o conteúdo, a reflexão que o professor almeja ocorre pelos mesmos poucos alunos interessados e mais dedicados. Não há deste modo, como sugerir que determinados alunos se dedicam mais do que outros se temos discrepâncias no tempo e material de acesso para desenvolvimento das atividades. Mas o espanto se dá pela dificuldade em interpretação, o “copia e cola” dos alunos aparentemente, se tornou natural diante das provas lidas após a avaliação. Um dos alunos, João (nome ficcional), faltou em todas as aulas, o reconheci no mercado do mesmo bairro que estuda. Fui até ele e o avisei do trabalho e da prova, ele pediu para eu dar um tema para ele fazer, mostrou interesse. Mas no dia apenas juntou-se a outro grupo e falou informações distorcidas e repetitivas com dificuldade de fazer links entre os fatos e a temporalidade. Na prova, esse aluno tinha todas as questões respondidas, mais do que outros alunos que vieram nas aulas. Porém, as respostas não tinham nada haver com a matéria, nem nexo com assuntos ligados ao tema trabalhado, falou sobre inflação, o que era ruim naquele período e terminou com frases como “acho que é isso aí, não sei, desculpa professora”. Ao final desta prova a questão era livre, dissertar sobre o que achou sobre o período Varguista de 1930-1945, se foi bom ou ruim e justificar a resposta. Este mesmo aluno, João, surpreendeu pela sua visão de mundo. Ele diz entender sobre como a censura era ruim, a repressão e o sentimento das pessoas. Ele descreveu: “parecia que as pessoas estavam em quartos escuros e sem janelas”, ou seja, sem perspectiva. Olhar para o que o aluno em questão quis expressar revela que a consciência histórica desenvolvida por ele o tornou mais próximo dos atores da nossa história. Entendemos a importância do passado nas atitudes presentes, e as modificamos de acordo com nosso aprendizado. Ao ler sobre o assunto proposto por mim, a DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) responsável pela censura no Governo Vargas, ele percebeu e se identificou com o tema. Sua nota não foi Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 203 das melhores. Mas fiz questão de ressaltar que o avaliei a partir da melhor resposta que poderia desenvolver, dei-lhe os parabéns, e apesar de não absorver questões que julguei importante, ele surpreendeu pela clareza e profundidade das palavras. Fiquei neste momento, satisfeita. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 204 Da teoria à prática Um apontamento é importante a partir das discussões de Peter Seixas acerca do significado atribuído pelos jovens sobre acontecimentos do passado, o que podem vir a auxiliar os professores nas formas de compreensão da aprendizagem. Esse olhar para o passado com consciência do que é vivenciar tal situação no presente fornece uma perspectiva, não dá ao aluno e nem a ninguém uma experiência palpável. Mas na escrita do aluno João, percebi um sentimentalismo, ou mesmo uma carga de leitura provocante (SCHMIDT; BARCA; SILVA; PEGORARO. 2018). A compreensão do passado une o passado ao presente, de um modo a nos preparar um confronto com o futuro, e contribui para a formação da “consciência histórica”. De maneira geral, essa era a intenção com a turma do 3º ano, objetivo parcialmente atingido. Tive apresentações e provas muito boas, dedicação e debates que suscitaram várias vezes temas e vivências políticas atuais. Isso quer dizer uma inter-relação com fatos históricos e experiências cotidianas, o resultado desse confronto é proporcionar no aluno o senso crítico. Quando refleti sobre os alunos que minhas aulas não atingiram como o previsto, percebi que não há uma solução para os instrumentos e práticas metodológicas, apenas reflexão e aperfeiçoamento das aplicações cotidianas na escola de acordo com cada turma. Visto que demanda dos dois lados, professor e aluno, mas com raízes mais profundas, a família, a estrutura social e física da escola. É imprescindível vincular as responsabilidades, e formar a partir delas um diálogo que procure orientar o aluno e o professor por um caminho mais eficaz dentro da educação. Segundo Teresa Cristina Rego, Vygotsky aborda a cerca das generalizações e abstrações dos alunos que expandem o seu conhecimento e modificam as relações cognitivas com o mundo. Em outro pensamento do autor apoio a questão de evasão escolar já citada no início do presente trabalho. Ao tratar do impedimento da apropriação do saber sistematizado, considero importante salientar o abandono da escola por parte dos alunos a partir de fatores relevantes como a necessidade do trabalho, drogas e violência sexual familiar, problemas com quais tive contato indireto dentro da escola (REGO, 1999). Existe uma consciência por parte da escola das dificuldades e mazelas dos seus alunos, e na medida do que se pode auxiliar junto aos corpos responsáveis, isto é feito. Mas nem sempre se mostra uma medida efetiva, na convivência com demais funcionários fiquei a par de situações bem complicadas, senti falta de um psicólogo para os alunos e seus pais, professores e demais funcionários. O acesso ao conhecimento não depende apenas da frequência escolar, são indivíduos que se complementam e juntos constroem um saber, a partir das dificuldades vivenciadas no âmbito escolar e familiar. O que vai de encontro com o papel do outro na construção desse conhecimento. O que me surpreendeu ao fim da aplicação das aulas do meu estágio, foi a utilização do material de apoio para a prova. Com o modelo de trabalho com consulta e provas individuais sem consulta realizei atividades com o 6º ano do Ensino Fundamental na mesma escola. Eles se saíram muito bem, e problematizaram algumas questões com maior facilidade. O que mostra que a forma com que os professores moldam o modelo pedagógico acostuma os seus alunos a um modelo de aprendizado, eles já estavam acostumados a esse ritmo segundo o professor. E ao transpor tais métodos como eu fiz com o 3º ano, constatei dificuldades no momento da avaliação. Eles esperavam conteúdos esmiuçados no quadro e cobranças a cerca do que estava ali e somente. Quando eu esperava ver reflexões sobre o que discutimos oralmente durante as aulas e que deveriam estar anotadas no caderno. Segundo Pedro Demo (2009) um problema a ser discutido é o instrucionismo, a reprodução da matéria sem reflexão, o que me deparei na correção das provas. A ausência de escolha e autonomia revela uma mecanização do aluno priorizando a conclusão e não o caminho trilhado que traz reflexão. Pensando o mundo moderno como se apresenta, em demandas profissionais e de exigências inovadoras, aquele que preparamos para o mercado de trabalho deve ser capaz e refletir e socializar em termos intelectuais e práticos. Uma parcela do compromisso com essa formação é dos professores, no entanto a descoberta das necessidades carece da conciliação entre a escola, alunos, professores e novamente família e sociedade. A construção de sentido histórico propõe a elaboração de habilidades e competências para o mundo de trabalho e relações sociais, ou seja, de nada adianta uma mecanização da reprodução de conteúdos históricos e embasamentos teóricos se não colaborarem para o autoconhecimento e para dar continuidade ao aprendizado ao longo da vida. A educação deve auxiliar na formulação de novas hipóteses, na tomada de decisões ou mesmo a trilhar novos caminhos. De modo que como docentes focamos no desenvolvimento humano pessoal coletivamente, o que acarretará em longo prazo mudanças, e em curto prazo afeta nosso círculo de convívio através de nossas escolhas. A construção da identidade e percepção de liberdade é que dá ao aluno a autonomia e capacidade reflexiva (MORAES, 1997. P. 209). No confronto predominantemente negativo com as avaliações, percebi o que já tinha sido alertada que não alcançamos a totalidade dos alunos, e isso é um fato. Nem posso dizer ao certo, pelos meios como realizei a prova se aqueles que foram bem refletem a expressão da verdade ou da cópia aleatória de informações contidas nas provas alheias. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 205 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 206 De acordo com Luckesi (2011), este método moderno consciente e automático “colar” é justificado a partir do resultado satisfatório que proporciona. Se o professor não vê e não sabe, então o meio está válido para atingir o objetivo. Ele justifica esse método a partir da reflexão de Karl Marx quando trata de explicar a mais-valia no sistema capitalista, daquele excedente lucrativo na ausência pagamento justo pelo produzido “equivale a parte não paga do trabalho...” (LUCKESI, 2011. p.412). Mas não posso justificar somente deste modo, como o costume daquela sala em específico revela o sistema de sabotagem do conhecimento. Essa é uma das teorias que permeiam os porquês das fissuras na educação. Luckesi de igual maneira sugere a falha profissional e física estrutural pelos meios e instrumentos que utilizamos, nem todos os planejamentos saíram como previamente pensados, este é o ponto. A prática dos componentes curriculares não é a obra prima que pintamos no plano de aula. Deste modo, o autor sugere algo que tomei por disciplina particular e irei aplicar novamente. Pois aprendemos com os erros e levamos a intenção do acerto para o cotidiano, iremos novamente trilhar ensinando outros indivíduos. É a educação da “ética saudável”, aquela que vai ajudar o aluno a tornar-se um indivíduo melhor, não enganar a si e aos outros. Isso deve ocorrer sem repreender, do contrário levaria o aluno a exercer um mecanismo de defesa. É necessário que o aluno aprenda o conteúdo, mas de extrema importância que quando isso não ocorrer o professor saiba através do reflexo da avaliação, e modifique a metodologia de acordo com as necessidades e limitações, alcançando um resultado que beneficie os discentes. Considerações finais A aproximação do estudante com a prática da docência é um período de adaptação e reconhecimento. É conhecer sobre si e sobre o local em que estaremos durante boa parte de nossas vidas ensinando. É um grande desafio que testa nossas habilidades e competências. Em toda a sua complexidade, revela-se que somos indivíduos em eterna formação o que exige constante inovação, portanto um compromisso particular do professor por ele mesmo e pelos seus alunos. Nenhum dos percalços do ensino que escolhi para delinear meus pensamentos neste trabalho podem levar o professor a desmotivar, mas sim sugerir oportunidades de criação utilizando velhos métodos e adaptando os novos a realidade da sala de aula. Ser capaz de compreender e modificar as práticas quando elas não alcançam os seus objetivos, é aperfeiçoar os meios que escolhemos para lecionar e torná-los melhores. Quem pensa que a receita está dada, se engana. A posição que o professor ocupa é um campo minado e constantemente bombardeado, o preparo é e deve ser constante, portanto essa análise é para pensar a educação não apenas em seu conteúdo. Vamos para a sala com muito para contar e mostrar. Mas quando? Com que recursos? Para quê e a quem? São perguntas que teremos que nos fazer todos os dias. Referências DEMO, Pedro. Aprendizagens e Novas Tecnologias. Revista Brasileira de Docência, Ensino e Pesquisa em Educação Física – ISSN 2175-8093 – Vol. 1, n. 1, p.53-75, Agosto/2009 LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da Aprendizagem: componente do ato pedagógico. 1ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. MORAES, Maria Cândida. O Paradigma Educacional Emergente. 9ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1997 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 207 REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: Uma perspectiva Histórico-Cultural da Educação. Petrópolis: Editora Vozes,1999. RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. 1ª reimpressão. Brasília: Editora UNB, 2010. SCHMIDT, Maria Auxiliadora. BARCA, Isabel. SILVA, Gomes da. PEGORARO, Vaneska. Aprendizagem Histórica: Catálogo Seletivo de Teses e Dissertações Brasileiras e Portuguesas. Curitiba: W.A. Editores, 2018. Pg. 09-14. VALORES TERESINENSES: EM BUSCA DE UMA HISTÓRIA RECONSTITUÍDA Lucas Rafael Santos Costa Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 208 Este artigo objetiva verificar a aplicação da Lei Municipal n° 2.639 (TERESINA, 1998) que institui a disciplina “valores teresinenses” no currículo da educação básica de Teresina, de forma a analisar as narrativas oficiais em torno da definição destes valores e das práticas docentes. Para isso, utiliza-se diário de campo e entrevistas orais com representantes de instituições oficiais como Semec e FMC, afim de identificar e levantar as narrativas e o que tem sido feito e produzido no espaço escolar. Este representa um trabalho inicial de identificação e levantamento de fontes e práticas que permitirá subsidiar pesquisas posteriores em torno da história, memória e patrimônio (i) material de Teresina e suas ressonâncias no âmbito educacional. Diante do intempestivo processo de globalização buscase na memória, na tradição, nos saberes ancestrais a afirmação de suas identidades, fazendo dessa instituição e das práticas que nela desenvolvem possíveis aliadas de luta e manutenção de valores da coletividade. Este estudo aponta para questões em torno da história, memória e patrimônio imaterial de Teresina e suas ressonâncias no âmbito educacional. Trata-se de uma oportunidade singular para pensarmos as relações entre história, memória e patrimônio na construção da identidade (s) cultural (s) na cidade de Teresina e aquilo que o município compreende como valores da comunidade que devem constituir a memória dos educandos da escola básica que tem por objetivo criar sentimentos de pertencimento a terra e quais as orientações e estratégias pedagógicas para concretização destes objetivos no espaço escolar. O pretexto para estás investigações será analisado, a partir da Lei Municipal n° 2.639 (TERESINA, 1998) na qual institui na estrutura curricular da educação básica de Teresina uma nova disciplina chamada “valores teresinenses”. A principal questão a ser trabalhada é: verificar a aplicação da Lei Municipal n° 2.639 (TERESINA, 1998) que institui a disciplina “valores teresinenses” no currículo da educação básica de Teresina, bem como identificar e levantar as narrativas e o que tem sido feito e produzido no espaço escolar. Afinal, para que um professor aplique efetivamente em sala de aula ele deve conhecer e compreender. A nossa intenção foi a de elaborar um texto investigativo introdutório, claro e simples sobre a história, memória e patrimônio de Teresina e suas ressonâncias nas práticas escolares, a partir dos “valores teresinenses” proposto na lei. Metodologicamente a pesquisa constrói-se através de diário de campo e entrevistas orais com funcionários de órgãos municipais como a Secretária Municipal de Educação (SEMEC), Fundação Municipal de Cultural Monsenhor Chaves (FMC), no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e com alguns especialistas da área de currículo e patrimônio mais revisão de literatura na temática em questão. Utiliza-se como conceito chave para a compreensão destas discussões a noção de patrimônio imaterial e referência cultural. A lei possui não oferece subsídios suficientes para a compreensão do que ela compreende por valores teresinenses. Embora, seja uma lei difusa e extremamente passível de crítica nos interessa a parte que nos interpela para a legitimação, organização e preservação de saberes e fazeres préexistentes e a necessidade de reproduzi-los no âmbito do processo educacional. As primeiras discussões se costuraram, a partir da formação dos EstadosNações em fins do século XVIII e início do XIX, onde a ideia de patrimônio referia-se basicamente a ideia de monumentos, edificações materiais de valores artístico, arquitetônico e histórico. Manoel Guimarães (GUIMARÃES, 2006) contextualiza esse debate referindo-se a Guizot no século XIX, destacando que o mesmo defendia a ideia do passado administrado pelo Estado como aquele que consolidaria a sociedade, defendendo a necessidade de preservação e estudo dos vários monumentos históricos existentes na França, bem como o uso político dos mesmos para a construção de uma identidade coletiva. A partir de meados do século XX, as discussões intensificam e se ampliam buscando novas abordagens e conceitos e compartilhando seus anseios e dilemas quanto à gestão e preservação dos seus patrimônios culturais. Nisto tem-se, por exemplo, a Carta de Atenas, de outubro de 1931, que já destacava o papel da educação patrimonial como garantia de respeito, proteção, preservação e salvaguarda do patrimônio cultural. No contexto nacional tem-se a criação da primeira instituição brasileira responsável pela proteção e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro: o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), de 13 de janeiro de 1937, regulado pela Lei nº 378, do governo de Getúlio Vargas, sob o regime do Estado Novo. O conceito de referência cultural passou a compor os discursos das instituições o que proporcionou o alargamento das fronteiras conceituais que passaram a considerar e proteger os sentimentos, interesses pelas memórias das comunidades, o valor afetivo, os sentimentos, os saberes e fazeres. A lei foi proposta pelo vereador Valdinar Pereira dos Santos posta em sessão na Câmara Municipal de Teresina (CMT) pela primeira vez no dia 10/11/1997, mais só foi posto em discussão no dia 03/03/1998 devido ao recesso parlamentar. E, finalmente aprovada no dia 06/03/1998. O proponente era negro era negro, homossexual, participava de cultos da umbanda. Sua primeira conquista a uma cadeira legislativa na CMT fora pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em 1988, depois se reelegeu em 1992 e 1996 agora, pelo Partido Progressista (PP). Atuou também no Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), mas voltou para o PP. Em 2000, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 209 renunciou ao mandato para escapar de uma cassação na Câmara proposta pelos vereadores petistas Flora Izabel (PT) e João de Deus (PT). Desgastado, não conseguiu ser novamente eleito naquele ano. Voltou com expressiva votação em 2004 totalizando sua quarta legislatura. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 210 A lei em seu parecer se justifica a atender o cumprimento de determinadas demandas da educação e da cultura. No Art. 227 que trata da Cultura. O documento do perecer da lei na época de sua criação faz referência ao Art. 220, mas este fora atualizado atualmente para o Art. 227. Destaque para os incisos I e IV que trata nas devidas proporcionalidades sobre a questão patrimonial material e imaterial. No âmbito da educação temos o Artigo 220 que define que o Município manterá, entre outros: VIII - currículos escolares adequados às peculiaridades do Município, à sua cultura, ao seu patrimônio histórico, artístico e ambiental. A lei valores teresinenses (Teresina, 1998) aponta para o centro o tema da diversidade cultural teresinense, nos fez refletir sobre a importância histórico-etnográfica da cultura e neste contexto, foi criada uma lei municipal que ficasse responsável divulgação destes valores na educação do patrimônio cultural teresinense. Ela orienta a educação básica municipal a necessidade do ensino da cultura local nas suas diversas linguagens para que seja estudado e memorizada a fim da construção de uma identidade coletiva. Vejamos a lei na integra para melhor compreensão: “Insere no currículo da escola pública municipal de Teresina a disciplina valores teresinenses. O Prefeito Municipal de Teresina, Estado do Piauí, faço saber que a Câmara Municipal de Teresina aprovou e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1º Fica inserido no Currículo da Escola Pública Municipal de Teresina a disciplina - Valores Teresinenses. Parágrafo Único - São considerados Valores Teresinenses para os efeitos desta Lei: I - a formação étnica da sociedade teresinense, especialmente, a história e as manifestações culturais da comunidade afro-piauiense; II - a literatura, a música, a dança, a pintura, o folclore e todas manifestações e produção artístico-culturais locais; III - os aspectos geográficos, históricos, paisagísticos e turísticos. Art. 2º A Secretaria Municipal de Educação e Cultura ditará normas regulamentares para o cumprimento desta Lei. Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. Art. 4º Revogadas as disposições em contrário. [grifo meu]” (TERESINA, 1998) Podem ser considerados valores aqueles saberes considerados legítimos que costumavam nortear as interpretações e as atuações no campo da preservação de bens culturais. Falar em valores é tratar dos referenciais culturais que são os patrimônios imateriais. Consta como referencial aquilo que está no cotidiano, na vida das pessoas e da comunidade que traz consigo significado e se preserva na memória. Objetiva-se promover e incentivar à promoção e divulgação da história, dos valores humanos e das tradições locais. Tem-se a concepção de uma memória e tradição ainda viva e pulsante que dialoga com o presente, a fim de forma a identidade da cidade. No primeiro item identifica-se a menção a formação étnica da sociedade teresinense, especialmente, a história e as manifestações culturais da comunidade afro-piauiense. A associação das expressões culturais de origem da comunidade afro como um valor teresinense demonstra uma postura inovadora em relação à noção de patrimônio histórico e artístico desse grupo da sociedade pouco explorada pelos órgãos oficiais local. Tendo em vista essa lei, podemos traçar alguns paralelos com a Lei 10.639/2003, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira. Assim é possível dizer que o Piauí parti participou e, inclusive, se antecipa aos debates referentes as construções de novas narrativas sobre a formação da país e de sua história, considerando os diferentes povos. No entanto, para que haja a efetivação das práticas pretendidas em sala de aula de modo a construir identificações como é proposto no texto da lei é preciso que o professor conheça, dialogue, ressignifique, valorize, a fim de divulgar na comunidade local. A construção social de caráter identitário serve não somente aos interesses do reforço da identidade local, mais também serve ao patrimônio (i) material na sua conservação, divulgação e conhecimento. Funciona como um ciclo mutualístico, onde ambos saem beneficiados. E nesse processo educacional contínuo que a sociedade terá como conhecer, se apropriar e valorizar o patrimônio cultural local. O grupo se fortifica por meio dos elos de pertencimentos e nesse sentido, “quanto mais nos sentimos pertencentes a um grupo, mais temos condições de ter consciência do nosso papel social e de nossa condição de cidadão” (MACHADO, 2010, p.26). Com base nisso podemos apreender que o contato com esses referenciais culturais pode ser uma das maneiras mais significativas para a manutenção da identidade cultural. Destaco, ainda que “a educação e a cultura, cujos significados e alcance têm ampliado consideravelmente, são essenciais para um verdadeiro desenvolvimento do indivíduo e da sociedade” (IPHAN, 2004, p.271). Este constitui um trabalho que utiliza como pretexto uma lei problemática para se discutir a noção de memória e identidade com um caráter potente no sentido de permitir esse debate no âmbito educacional que abre possiblidade múltiplas de problematizações e significações que poderia permitir aos alunos ricas experiências como, por exemplo buscar as memórias de instituições como famílias, bairros, monumentos, manifestações artísticas, celebrações e a própria cidade e pensar sobre suas infinitas significações. Contudo, constata-se, a partir das entrevistas, observações e anotações do diário de campo a primeira conclusão é o total desconhecimento da lei por parte do próprio poder público municipal. Logo, se não tem conhecimento não tem aplicação. O uso desta metodologia se Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 211 deu exatamente em função da ausência de fontes oficiais que subsidiassem a pesquisa. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 212 Mediante a essas discussões podemos aferir que é uma lei que caracteriza um movimento de afirmação das identidades e resultante de três marcos. O primeiro refere-se cenário internacional de interesses pelas questões patrimoniais. Onde o município se insere nestas questões e direciona seus esforços para o currículo escolar da educação básica como instrumento de significação dos valores teresinenses e de fabricação de sentimentos e de pertencimento ao propor o contato com fontes históricas. O segundo, nasce a partir da compreensão do legislador da perda das identidades teresinenses e do amor a terra e que, portanto, seria necessário resgatar através do contato com as fontes e valores. Terceiro emerge das experiências de vida do legislador que, inclusive irá configurar como primeiro valor a formação étnica da sociedade teresinense, especialmente, a história e as manifestações culturais da comunidade afro-piauiense. Como destacado a ideia de referencial cultural é diversa e múltipla e possui diversas pontes integradas com a história, memória e identidade. Logo, os valores teresinenses podem ser caracterizados nas suas diversas dimensões culturais. Tendo em vista esse aspecto a lei define as linguagens, mas não define os valores deixando margens abertas para os agentes educacionais definirem as tonalidades conforme seus interesses e demandas da sociedade que vai lhe atribuir os tons, cores e vozes as manifestações artísticas que vão formar os valores teresinenses. Contudo, quem de fato tem propriedade para definir o que é importante e o que possui significado é o próprio morador da cidade. Ferrari destaca que “a memória coletiva e a identidade cultural pressupõem a necessidades de sujeitos para os quais tais referências façam sentido” (FERRARI, 2007, p.109). Quanto a sua aplicação pode-se aferir que passados quase vinte anos da lei não houve sua real efetivação nas práticas escolares da rede municipal pública de educação por dois motivos. O primeiro fator é o conhecimento da lei. Ao entrevistar representantes das instituições como Semec, FMC entre coordenadores, gerentes de ensino e educação a resposta foi unânime: todos a desconheciam. Embora, destacassem a importância de se ter uma lei que valorizasse a cultura e as identidades locais afirmavam que não conheciam. Logo, se desconhece a seu caminho é o fracasso. A letra morta da lei nos induz a perceber ela como uma lei puramente política e eleitoreira sem fins práticos. O município não desenvolveu nenhuma ação ou política pública que garantisse sua efetivação. Não há qualquer tipo de material produzido pelo poder público no sentido de definir quais são esses valores ou, mesmo de preparar os docentes para apropriação deste conteúdo. Como apontado anteriormente, era um debate que estava em pauta nas diversas esferas institucionais e que neste caso que se esgotou em si mesmo. Contudo, mediante as investigações de campo a que se destacar dois focos de expressividade de práticas educativas em Teresina que fazem menção a identidade teresinenses. Um de caráter perene, mais local as práticas ficam concentradas na zona norte da cidade que compreende a região do bairro Poti Velho, habitação mais antiga da cidade onde nascera a capital e está localizada na confluência do Rio Parnaíba com o Poti. Neste bairro há uma tradição na pesca, canoeiros, cerâmica e artesanato e é a região em que nasce uma das lendas mais conhecidas a do Cabeça de Cuia. Todo esse arcabouço cultural vem a forma a tradição da região e serve como um diferencial fomentador das as práticas nas escolas e lá os professores da rede escolar municipal tendem a desenvolver durante todo o ano atividades que valorizam a história e memória da cidade. O segundo de caráter mais abrangente e temporal. Nele as atividades são concentradas no mês de agosto que corresponde ao mês de aniversário da cidade. Neste mês são realizadas várias atividades como feiras, gincanas e atividades pedagógicas em sala de aula que fazem menção as danças, folclore, músicas, literatura e culinária entre outras manifestações artísticas. Pode-se perceber que há semelhanças entre a Lei 2.639 e a lei 10.639 (BRASIL, 2003), principalmente quanto a menção a cultura Afro-Brasileira e há indícios que a sua não efetivação se deu justamente pela sobreposição da lei de abrangência nacional. Por exemplo, nas diretrizes curriculares do município de Teresina já há menção a 10.639 como conteúdo, principalmente no âmbito da história, artes, literatura e educação física. As significações do patrimônio imaterial teresinenses estão em processo de continuidade e modificação, natural aos movimentos de atualização que os fluxos modernizadores apresentam, consequentemente os valores que são múltiplos e estão em constante renegociação. A sua definição deve levar em conta quem está falando e para quem a direciona dependendo destes elementos podemos ter resultados diferentes. Esta situação nos leva a perceber que também o patrimônio não existe em si mesmo, mas deriva de uma construção social que está muito ligada à formação da identidade que se quer representativa de um povo ou lugar. Com isso, o historiador e o professor de História adquirem importância ímpar na (des) construção dos sentidos do patrimônio, ao mobilizarem reflexões que ultrapassem o senso comum e contribuam para o desenvolvimento de um conhecimento crítico da realidade social e do passado. Contudo, apesar da não aplicação da lei as questões sobre memória, patrimônio e identidade são fontes inesgotáveis de reflexões. São questões que merecem destaque em pesquisas posteriores. Consideramos pertinente aprofundar conceitos, metodologias e ações indispensáveis às demandas das comunidades educacionais, culturais e do patrimônio, proporcionando um encontro com as suas necessidades e desejos. A conclusão maior desta pesquisa não são respostas mais necessidades. Necessidade de investigação, conservação, documentação, valorização e difusão de testemunhos, saberes e fazeres dos espaços de construção e transmissão de memórias sociais. Necessidade de estabelecer diálogos entre as artes, os patrimônios, as tradições, as culturas que são ricas em memórias e história visando relacionar universos de referências culturais. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 213 Necessidades de se provocar formas de pensar e agir locais procurando caracterizar a diversidade cultural dando especial relevância aos aspetos estruturais que os condicionam, nas suas relações e manifestações sociais, culturais e ambientais. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 214 Referências GUIMARÃES, José Otávio Nogueira. Escrever a história, domesticar o passado. In: LOPES, A. H.; VELLOSO, M.P.; PESAVENTO, S. J. (Org.) História e linguagens: texto, imagem e representações. RJ: 7Letras, 2006 LONDRES, Cecília. Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio. In: Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação. Brasília: IPHAN, 2000. TERESINA. Lei Nº 2.639, de 16 de Março de 1998 A PRESENÇA-AUSENTE DA MIGRAÇÃO NORDESTINA NO MUSEU DA IMIGRAÇÃO Luciano Araujo Monteiro O presente ensaio tem por objetivos inserir o leitor na História do Museu da Imigração (MI), antiga Hospedaria do Brás, conferindo maior enfoque à migração nordestina que, embora tenha sido significativa, não recebe a devida atenção, seja por meio da expografia existente na exposição permanente, seja por intermédio da proposta curatorial. Com o intuito de tornar este estudo possível, serão utilizadas reproduções de imagens, pertencentes ao espaço expositivo, como também, as que pertencem ao conjunto iconográfico do livro: ‘Memorial do Imigrante: a imigração no Estado de São Paulo’, escrito por Odair da Cruz Paiva e Soraya Moura, assim como textos elaborados por estes autores por abordarem a migração interna. No presente estudo é estabelecido conexão com as reflexões dos historiadores: Pierre Nora e Paulo Fontes, enquanto este aborda a migração nordestina para São Miguel Paulista (para atuar no ramo industrial), aquele trabalha com os lugares da memória, sendo que, o espaço museológico também cumpre essa função, por meio de suas exposições e atividades educativas. A maior parte das imagens selecionadas ilustra a migração interna, lembrando que ela ocorreu em três momentos distintos, sendo o primeiro período entre fins do século XIX e início do XX (acompanhando o fluxo imigratório internacional), já o segundo período ocorreu entre as décadas de 1930-40, por conta do estímulo, realizado pelo governo de Getúlio Vargas (promovendo um discurso em prol do trabalhador nacional), enquanto que, entre as décadas de 1950-70 houve grande estímulo à vinda de trabalhadores nordestinos para atuarem no crescente campo industrial da cidade de São Paulo, segundo nos informam Odair Paiva e Soraya Moura: “Entretanto, o grande boom da presença de migrantes nas dependências da Hospedaria se deu entre as décadas de 1930 e 1950. Nesse período, passaram por aquela instituição aproximadamente 1 milhão de trabalhadores oriundos notadamente do Nordeste. A Hospedaria dos Imigrantes também foi a Hospedaria dos Migrantes. As razões para este enorme e intenso fluxo migratório interno podem ser encontradas na política de nacionalização da mão de obra instituída pelo governo Getúlio Vargas e que, ao menos no plano do discurso, visava à proteção do trabalhador nacional.” [MOURA; PAIVA, 2008, p. 115] Esse grande fluxo migratório pode ser ilustrado por meio da fig. 01 (podemos visualizar trabalhadores nacionais e familiares no salão de matrícula), compondo um grande contingente de anônimos em busca de melhores condições de vida. Outro ponto a ser considerado é o momento em que foi elaborada essa imagem (década de 1940), época em que o mundo sofreu com a Segunda Guerra Mundial e trata-se de um período em que o Brasil promoveu a substituição de importações, aumentando seu Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 215 parque industrial e suas exportações para os países da Europa, gerando, por consequência, mais empregos na região Sudeste. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 216 Fig. 01 – (MOURA; PAIVA, 2008, p. 100) Embora seja incontestável a importância da influência nordestina na cultura paulista e paulistana, as manifestações culturais destes migrantes não serão aqui abordadas, dado o escopo deste ensaio (podendo ser desenvolvido num estudo posterior), que visa trabalhar a ausência de um destaque maior aos contingentes de migrantes nordestinos no espaço expositivo do MI, tendo em vista a lógica do trabalho, seja no meio rural, seja na área urbana. A presença nordestina pouco mencionada no espaço expositivo O Museu da Imigração foi inaugurado em 2014, como uma instituição pertencente ao governo do Estado de São Paulo, sendo subordinado à Secretaria de Estado da Cultura. Antigamente, naquele espaço funcionava a Hospedaria do Brás, construída no final do século XIX e funcionou com esse fim até a década de 1970 (Inicialmente, subordinada à Secretaria Estadual de Agricultura), sem nos esquecermos de que, até a década de 2010, aquele espaço funcionou como o Memorial do Imigrante. Embora seja amplamente divulgado no MI que, entre as últimas décadas do século XIX e início do XX houve um intenso fluxo imigratório, sendo que, os maiores contingentes populacionais vinham da Itália, Espanha e Portugal, respectivamente, quase não é mencionado que, nesta mesma época, houve um período de migração interna para o estado de São Paulo. Apesar da Crise Econômica Internacional de 1929 ter afetado a elite cafeeira existente no Brasil, a agricultura de exportação não deixou de ocorrer, necessitando de mais trabalhadores para as lavouras: “A presença de trabalhadores nacionais na Hospedaria de Imigrantes foi registrada no ano de sua inauguração, em 1888. Embora construída para alojar e encaminhar imigrantes para a lavoura, grupos de migrantes provenientes basicamente da região Nordeste também estiveram ali alojados desde muito cedo. Durante o final do século XIX e também nas duas primeiras décadas do século XX, os nacionais eram, entretanto, um grupo bastante minoritário entre os alojados na Hospedaria.” [MOURA; PAIVA, 2008, p. 112] A migração interna também foi motivada (na primeira metade do século passado) por conta das secas no Nordeste e pela crise que assolou os donos dos engenhos de cana de açúcar (em Pernambuco) e pela baixa produtividade nas regiões algodoeiras, também no Nordeste. Além disso, o governo Paulista promoveu uma campanha de subsídios, assim como ocorreu com os imigrantes que decidissem vir ao Brasil. Para atender esse fluxo migratório, foi criada, em 1939, a Inspetoria de Trabalhadores Migrantes (ITM), para subsidiar as famílias nacionais, lembrando que, além de virem pelo Norte, saindo de Minas Gerais (de Pirapora e Montes Claros), por meio do uso do transporte ferroviário (reforçando a argumentação de Moura e Paiva), também poderiam vir pelo litoral (por intermédio da navegação de cabotagem, a fim de utilizarem a Estrada de Ferro SantosJundiaí). Nos dias atuais, o trecho que levava à antiga Hospedaria, utilizando a via férrea Central do Brasil (partindo de Minas Gerais) se encontra desativado. A seguir, há a reprodução de uma imagem que representa um desembarque de migrantes, que contribuíram para o desenvolvimento de São Paulo: Fig. 02 – (MOURA; PAIVA, 2008, p. 110-111) Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 217 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 218 Já na década de 1950, o vertiginoso crescimento da cidade de São Paulo, associado à instalação de um imenso parque industrial, contribuiu para que houvesse, mais uma vez, a atratividade de mão de obra migrante. O historiador Paulo Fontes ilustra em seus estudos o quanto a cidade paulistana se desenvolveu: “De fato, a zona metropolitana de São Paulo nos anos 1950 foi o palco de um acelerado e diversificado processo de industrialização e urbanização. A região foi a principal responsável pela elevada taxa de crescimento industrial do país. Entre 1945 e 1960 o setor secundário no Brasil cresceu em média 9,5% ao ano, constituindo um dos mais acentuados processos de industrialização no período em todo o mundo. Em 1959, quase 50% de todo o emprego fabril do país estava concentrado no estado de São Paulo. Adicionalmente, o crescimento industrial paulista estimulou uma grande expansão do setor de serviços na região, ampliando ainda mais a oferta de empregos e possíveis oportunidades.” [FONTES, 2008, p. 47] Graças a esse intenso crescimento, São Paulo foi um grande ponto de atração de trabalhadores nacionais, que estavam à procura de melhores oportunidades de trabalho, assim como por melhores condições de saúde e educação: “Por fim, a associação da cidade com toda uma série de benefícios urbanos, particularmente nas áreas de educação e saúde também era salientada pelos migrantes. "Na Bahia", lembrava uma mãe de família também entrevistada no início da década de 1950, "não se pode dar boa educação aos filhos. A escola fica longe. Aqui [em São Paulo] há mais facilidades". As estatísticas comprovavam a experiência dos trabalhadores. Em 1.950, enquanto em todo interior da Bahia existiam apenas 1.790 leitos hospitalares, eles passavam dos 12.300 somente na capital paulista. Emprego, salários mais elevados, direitos trabalhistas, maior infraestrutura hospitalar e educacional compunham um cenário deveras atrativo. Paulatinamente, ganhava fôlego a ideia de que a vida em São Paulo seria "mais fácil", ainda mais se comparada com as difíceis circunstâncias que os trabalhadores rurais nordestinos enfrentavam no período.” [FONTES, 2008, p. 48] Em sua exposição de longa duração, intitulada: “Migrar: experiências, memórias e identidades”, existente desde a abertura do Museu (2014) há um espaço quase imperceptível, fazendo uma breve menção à migração nordestina, ocupando uma parede com aproximadamente, 3m de altura por 2m de largura (fig. 03-04). Enquanto a fig. 03 é uma representação da parede expositiva, dedicada à migração interna, com textos apresentados em: português, inglês e espanhol, a fig. 04, apresenta em destaque uma mulher e um grupo de crianças, possivelmente se trate de uma mesma família, acomodada em beliches da antiga Hospedaria. Trata-se de um espaço com poucas informações, havendo a inexistência de legendas explicativas nas reproduções fotográficas, que pudessem apresentar dados como: autoria da imagem, nome da família ou de indivíduos retratados, ano de produção da iconografia, em que ramo as pessoas retratadas esperavam ser inseridas no mercado de trabalho, conforme evidenciamos a seguir: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 219 Fig. 03 – Fonte: Arquivo pessoal. Ano: 2019. Fig. 04 – Fonte: Arquivo pessoal. Ano: 2019. Um problema que se repete na fig. 05 (que retrata trabalhadores nacionais no setor de encaminhamento ao trabalho, na década de 1940), que, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS embora esteja identificada neste estudo, no ambiente expositivo ela se encontra completamente descaracterizada, inexistindo qualquer informação sobre ela. Um entrave que dificulta o entendimento do contexto no qual essa imagem foi produzida, ou seja, o momento em que trabalhadores nacionais se candidatavam às vagas de emprego, assim como acontecia com a mão de obra estrangeira. Página | 220 Fig. 05 – (MOURA; PAIVA, 2008, p. 67). Os trabalhadores internos também chegam a ser valorizados por conta da diminuição da vinda de imigrantes, em decorrência da Primeira Guerra Mundial (1914-18), um ponto que também não é mencionado na exposição. Outro fator a ser considerado foi a atribuição aos trabalhadores nordestinos um caráter ordeiro, perpetuando um discurso de valorização do trabalhador interno (realizado pelo governo paulista), em detrimento dos imigrantes, que atuavam politicamente, promovendo greves em fábricas, tendo por interesse a melhoria das condições salariais e de trabalho, baseando-se nas ideias anarquistas e comunistas, presentes na primeira metade do século XX: “Outro elemento que contribuiu para a reavaliação do trabalhador nacional refere-se à diminuição do fluxo imigratório para São Paulo após o término da I Guerra Mundial. Mesmo enfrentando crises periódicas, a lavoura cafeeira necessitava constantemente de braços. Naquelas circunstâncias, o trabalhador nacional foi visto como um substituto natural ao braço imigrante. Assim, a partir dos anos 1920, a entrada de nacionais na Hospedaria tendeu a crescer na proporção inversa do refluxo imigratório. Em 1928 a entrada dos nacionais foi superior a dos imigrantes.” [MOURA; PAIVA, 2008, p. 115] Outra questão que poderia ser abordada no MI seria o preconceito, promovido em relação aos migrantes nordestinos, sendo estes chamados pejorativamente de “baianos”, promovendo uma articulação com o público espontâneo, e também, com as disciplinas desenvolvidas em sala de aula (como História e Geografia) já que a maior parte de seus visitantes é composta por alunos, das redes pública e particular de ensino, problematizando a política imigratória de outrora, a fim de promover um embranquecimento da população brasileira, visando assim, a “melhoria da raça” e como os trabalhadores internos foram estigmatizados (em fins do século XIX e no século XX), sendo alvos de preconceitos por agentes governamentais, existentes na antiga Hospedaria e no âmbito do estado Paulista. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 221 Devemos ter em mente que, atualmente, ainda há um preconceito sobre a população nordestina, residente na cidade de São Paulo, que deve ser combatido, com o objetivo de respeitar as diferenças regionais e culturais destes trabalhadores nacionais. Um lugar em potencial para se realizar esta tarefa é justamente dentro de instituições museológicas como o MI, por ter sua importância como um lugar de memória e que pode difundir, por meio dos vestígios documentais, seja iconográfico, seja textual a ideia de tolerância e respeito em relação aos nordestinos e seus descendentes, que se encontram no estado de São Paulo ou na cidade paulistana, pensando nas reflexões do historiador francês Pierre Nora de valorização de componentes do passado, tendo em vista um futuro incerto: “O sentimento de um desaparecimento rápido e definitivo combina-se à preocupação com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do memorável.” [NORA, 1993, p. 12]. Por meio deste estudo foi possível exaltar a importância da migração interna, com a finalidade de obter melhores condições de vida, por meio de melhores oportunidades de emprego, de saúde e educação. Condições que não eram possíveis de se encontrar no Nordeste brasileiro e que, nos dias atuais, persistem as diversas formas de exclusão social, impedindo o desenvolvimento de muitos trabalhadores nordestinos. Como foi visto neste texto, o Museu da Imigração também é um Museu de Migrantes (Fig. 06 mostra a fachada do MI nos dias atuais) e deve realizar com mais rigor o resgate da memória da migração interna, que serviu para substituir mão de obra estrangeira nas lavouras de café e nas indústrias que se estabeleceram na capital Paulista. Isto é, trata-se de um espaço onde podem coexistir várias memórias sociais que, de acordo com Nora, são múltiplas, em decorrência da existência de vários grupos sociais: “A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quanto grupos existem, que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada” (NORA, 1993, p. 9). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 222 Fig. 06 – Fonte: Arquivo pessoal. Ano: 2015. Por ser uma instituição museológica, ela também é um lugar de memória e, por isso, torna-se imperativo que haja um resgate maior dessa memória nordestina, por intermédio de ações educativas e de exposições que ensinem sobre essa temática, com o objetivo de estimular o respeito para com essa comunidade e seus descendentes, contribuindo para que seja perpetuada uma nova imagem do MI, como um reduto de trabalhadores nacionais. Referências Deixo aqui meu profundo agradecimento aos profissionais do Museu da Imigração pelas informações prestadas. FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Um Nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em são Miguel Paulista (1945-66). Editora FGV. Rio de Janeiro: 2008. MOURA, Soraya; PAIVA, Odair da Cruz. Memorial do Imigrante: a imigração no Estado de São Paulo. Imprensa Oficial. São Paulo: 2008. NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 7-28. O SIGNIFICADO DA “CONQUISTA” CASTELHANA DOS TERRITÓRIOS AMERICANOS NA LITERATURA DO SÉCULO XVI: O CASO DE BARTOLOMÉ DE LAS CASAS Luciano José Vianna A “Brevísima relación de la destrucción de las Indias” Alguns trabalhos voltados para o contato entre os europeus e as populações do território que foi chamado de América, tanto a castelhana quanto a portuguesa, trazem uma visão renovada sobre este aspecto. Por exemplo, Eduardo Natalino dos Santos define as relações entre estes dois mundos como “relações multidirecionais”, ou seja, desconstruindo completamente a única forma de entender as relações ocorridas única e exclusivamente a partir da ótica dualista (europeus x populações locais) (Santos, 2014, p. 218-232). Não se pode esquecer, também, que muitas vezes as análises feitas em pesquisas e investigações acabam se refletindo em termos de ensino de História, o que faz com que determinado aspecto deste assunto seja visto de forma errônea e, sobretudo, ensinado de forma equivocada, tanto no que diz respeito ao âmbito conteudista quanto no que diz respeito ao âmbito da reflexão discente (Fernandes e Morais, 2013, p. 143-162). Embora o texto de Santos esteja voltado para o aspecto bélico, ou seja, a aliança militar realizada entre algumas populações locais e castelhanos na conquista de México-Tenochtitlán, o foco do presente texto está voltado para outro aspecto, ou seja, o defensivo-textual, especificamente de personagens castelhanos defendendo as populações locais de outros castelhanos. Este aspecto é percebido através da leitura de uma das obras mais conhecidas do século XVI referentes ao contexto americano castelhano, ou seja, a “Brevísima relación de la destrucción de las Indias”, de Bartolomé de las Casas (Las Casas, 2006). Através da narrativa desta obra, observamos Las Casas defendendo as populações locais e acusando os castelhanos de realizarem o que ele chama de “conquistas”, as quais foram “inicuas, tiránicas y por toda ley natural, divina y humana condenadas, detestadas y malditas” (Las Casas, 2006, p. 10), acusações feitas em um documento direcionado para o rei Felipe II (1557-1598), uma vez que, segundo Las Casas: “de la innata y natural virtude del rey, así se supone, conviene a saber, que la noticia sola del mal de su reino es bastantíssima para que lo dissipe, y que ni por un momento solo, en cuanto em sí fuere, lo puede sofrir.” (Las Casas, 2006, p. 9). A “Brevísima relacción de la destrucción de las Indias” foi escrita em 1542 por Bartolomé de las Casas, ou seja, 50 anos depois da chegada gradativa de castelhanos ao solo do que seria posteriormente conhecido como América castelhana. Tal obra foi elaborada a partir de um contexto literário e não somente a partir da experiência de Las Casas com o território, mas também através de testemunhos visuais, escritos e orais para recontar o desenvolvimento da conquista castelhana nas terras americanas (Colombi, 2013, p. 91-102). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 223 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 224 Las Casas escreveu uma primeira versão de sua obra em 1542, com outro título, obra a qual foi lida pelo rei Carlos V (1519-1557), e que proporcionou a ocasião para a redação das Leyes Nuevas de las Índias. A publicação definitiva da obra de Las Casas foi em 1552, e assim percebemos que a mesma está inserida em um contexto de preocupação da Coroa de Castela com as populações locais, uma vez que as chamadas Leyes Nuevas de las Indias, estavam voltadas, principalmente, para a proteção destas populações diante das relações sociais com os castelhanos que viviam no território. De acordo com Elliott: “À medida que se multiplicavam os abusos, aumentava também a repulsa contra eles, mas somente com as Novas Leis de 1542, que produzia efeito tanto retrospectivamente quanto para o futuro, é que foi abolida definitivamente, embora não universalmente, a escravidão indígena.” (Elliott, 1998, p. 135-194). Tais relações foram marcadas pela violência e pelos maus tratos, os quais, mesmo depois da publicação das leis citadas acima, dez anos depois ainda continuaram e foram denunciadas por Las Casas em sua obra. Mesmo assim, a principal impressão que a obra de Las Casas apresenta refere-se ao contexto de 1542, o que se reflete em alguns momentos da narrativa do texto, principalmente quando comenta sobre a questão demográfica do território: “en lo que hasta el año de cuarenta e uno se há descubierto, que parece que puso Dios en aquellas tierras todo el golpe o la mayor cantidad de todo el linaje humano” (Las Casas, 2006, p. 12). Neste sentido, o objetivo deste trabalho é se aproximar ao significado de “conquista” presente na obra de Las Casas. Para isso, utilizaremos como aspecto conceitual a proposta de Patrick Geary em relação à memória social, ou seja, algo que é resgatado, reinterpretado e adequado de acordo com o contexto no qual se encontra, renovando e reformulando sua ideia do passado para integrá-la em seu presente (Geary, 2002, p. 167-181). Portanto, faremos uma análise da obra de Las Casas buscando o significado da “conquista” castelhana para o autor. A denúncia contra “las dichas conquistas” ou as “tan nocivas y detestables empresas” As acusações de Las Casas são contundentes, todas voltadas para um termo em especial, ou seja, a “conquista”, e principalmente a forma como esta ocorreu. Segundo Las Casas, a conquista realizada pelos castelhanos foi violenta, fato que fica muito claro em diversas passagens nas quais denuncia os ataques feitos às populações locais pelos castelhanos, os quais derramaram “tan inmensa copia de humana sangre e despoblar de sus naturales moradores y poseedores, matando mil cuentos de gentes”. Neste sentido, a obra de Las Casas é entendida como uma obra de denúncia do que estava ocorrendo no Novo Mundo e principalmente com as populações nativas, as quais são vistas como os “naturales moradores y poseedores” (Las Casas, 2006, p. 10). Embora a narrativa de Las Casas apresente os castelhanos atacando as populações locais, Las Casas coloca-se ao lado destes para denunciar o que ocorrera durante os últimos anos da colonização da América castelhana e, para isso, escreveu a “Brevísima relación de la destrucción de las Indias” para “servir a Vuestra Alteza con este sumario brevísimo, de muy difusa historia, que de los estragos e perdiciones acaecidas se podría y debería componer.” (Las Casas, 2006, p. 11). Gradativamente, ainda no prólogo de sua obra, Las Casas apresenta o motivo do tratamento violento realizado pelos castelhanos contra os que são chamados em sua obra de “gentes inocentes”: de acordo com suas palavras, este tratamento fora realizado por “codicia y ambición” (Las Casas, 2006, p. 7), geradas principalmente pela tentativa de exploração forçada incluindo a mão-de-obra das populações nativas e visando principalmente: “tener por su fin último el oro y henchirse de riquezas en muy breves días e subir a estados muy altos e sin proporción de sus personas (conviene a saber): por la insaciable codicia e ambición que han tenido (Las Casas, 2006, p. 17). Devemos destacar que o motivo da busca pelo ouro, segundo Las Casas, proporcionava aos que participavam da empresa uma elevação social, a qual muitas vezes não correspondia ao estado social daqueles que participavam da empresa. Ou seja, que muitos não mereceriam elevar o seu status social motivados pela “insaciable codicia e ambición” que demonstraram nos atos chamados de conquista. A defesa realizada por Las Casas refere-se a uma população que estava sendo dizimada gradativamente, principalmente pela via bélica. Entretanto, hoje sabe-se que esta queda demográfica foi motivada pelas mais diversas formas de contato com os europeus: bélica, medicinal, social. Neste sentido, uma frase de Nicolás Sánchez-Albornóz é enfática e explica bem este múltiplo contexto: “a guerra e a violência geraram a contração inicial: a mudança social e econômica precipitou o colapso” (Sánchez-Albornóz, 1998, p. 31). A oposição social na narrativa do documento elaborado por Las Casas é muito clara, e as características pacíficas das populações locais também se destacam no documento, como no fragmento a seguir: “Todas estas universas e infinitas gentes a todo género crió Dios los más simples, sin maldades ni dobleces, obedientíssimas y fidelísimas a sus señores naturales e a los cristianos a quien sirven; más humildes, más pacientes, más pacíficas e quietas, sin rencillas ni bullicios, no rijosos, no querulosos, sin rencores, sin odios, sin desear venganzas, que hay en el mundo. Son asimismo las gentes más delicadas, flacas y tiernas en complisión e que menos pueden sufrir trabajos y que más facilmente mueren de cualquiera enfermedad, que ni hijos de príncipes e señores entre nosotros, criados en regalos e delicada vida, no son más delicados que ellos, aunque sean de los que entre ellos son de linaje de labradores” (Las Casas, 2006, p. 13). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 225 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 226 A oposição em relação aos castelhanos é clara, os quais, realizadores das “conquistas” denunciadas no documento, são nomeados por Las Casas como: “lobos e tigres y leones crudelísimos de muchos días hambrientos. Y otra cosa no han hecho de cuarenta años a esta parte, hasta hoy, e hoy en día lo hacen, sino despedazarlas, matarlas, angustiarlas, afligirlas, atormentarlas y destruirlas por las extrañas y nuevas e varias e nunca otras tales vistas ni leídas ni oídas maneras de crueldad (...) (Las Casas, 2006, p. 14-15).” E o motivo da realização de tais empresas, denunciadas por Las Casas, foi a tentativa de enriquecimento (rápido) feita pelos castelhanos que, utilizando a mão-de-obra das populações nativas, tentaram enriquecer encontrando ouro, “su fin último”: “ha sido solamente por tener por su fin último el oro y henchirse de riquezas en muy breves días e subir a estados muy altos e sin proporción de sus personas (conviene a saber): por la insaciable codicia e ambición que han tenido” (Las Casas, 2006, p. 17). Assim como as outras áreas destacadas por Las Casas, o território da Nova Espanha também sofreu com os acontecimentos do primeiro século da presença castelhana no território: “Y desde este año de diez y ocho hasta el día de hoy, que estamos en el año de mil e quinientos y cuarenta e dos, ha rebosado y llegado a su colmo toda la iniquidade, toda la injusticia, toda la violência y tiranía que los cristianos han hecho en las Indias, porque del todo han perdido todo temor a Dios y al rey e se han olvidado de sí mesmos” (Las Casas, 2006, p. 53-54). A denúncia de Las Casas volta-se contra os cristãos, em especial as empresas realizadas pelos primeiros conquistadores, os quais tinham em suas mãos diversas e diferentes funções, não somente voltadas para a conquista territorial, mas também, principalmente depois dos primeiros anos que chegaram ao território, a função de organização de outros assuntos relacionados (administração, justiça, etc...). É notório observar na fonte que Las Casas afirma que foram os cristãos que perderam o temor a Deus e ao rei e se esqueceram de si mesmos, cometendo atos de violência contra as populações nativas. Para caracterizar tais ações, Las Casas recorre novamente ao termo “conquistas”, sendo estas caracterizadas pelo dominicano como “invasiones violentas de crueles tiranos, condenadas no sólo por la ley de Dios, pero por todas las leyes humanas, como lo son e muy peores que las que hace el turco para destruir la iglesia cristiana” (Las Casas, 2006, p. 55). Para a época, portanto, e a partir de um viés religioso, o termo “conquista” apresenta um aspecto negativo, vinculado a palavras tais como “invasões”, “violência”, e ademais comparadas às investidas do Islã turco contra o mundo cristão do contexto de Las Casas. As populações locais e a sua “dupla” ausência no documento: a queda demográfica e a (falta de) resistência Uma das principais denúncias feitas por Las Casas, além da violência contundente contra as populações locais, refere-se à queda demográfica local, consequência do tratamento castelhano. Em toda a narrativa de sua obra fica muito claro este aspecto, o qual é retratado constantemente pelo autor. Como fez parte desde o começo da chegada dos europeus ao novo território, Las Casas presenciou este declínio demográfico, pois, se em um primeiro momento comenta que “puso Dios en aquellas tierras todo el golpe o la mayor cantidad de todo el linaje humano” (Las Casas, 2006, p. 12), depois destaca em diversos momentos de sua obra referindo-se a localidades “cuasi toda despoblada” (Las Casas, 2006, p. 15), “despobladas y perdidas” (Las Casas, 2006, p. 16) ou a lugares onde “no hay una sola criatura” (Las Casas, 2006, p. 15). Entretanto, o documento de Las Casas deixa, em um primeiro momento, a questão da resistência das populações locais de lado. Ao abordar a relação entre estes e os castelhanos, as populações locais são apresentadas como passivas e sem poder de resistência, e o documento, caso não seja contextualizado e criticado, pode levar o leitor ou o estudioso a ter uma ideia errônea também no processo de compreender as populações nativas como protagonistas de sua própria história (Fernandes e Morais, 2013, p. 143-162). Neste sentido, é necessário destacar que a obra de Las Casas se insere em um contexto de proteção das populações nativas e, assim, compreende-se o tom das palavras no documento. O documento de Las Casas insere-se em um contexto político no qual a Coroa de Castela desejava cada vez mais se fazer presente e estar à frente do controle das terras na América. Uma vez passado o momento inicial de contato do homem europeu com este território, e uma vez passada a fase liderada pelos conquistadores – os quais exerciam diversas funções ao mesmo tempo (Capdequí, 1957, p. 47) –, o cenário social no novo território foi se modificando, e gradativamente novos personagens foram chegando, principalmente funcionários especializados em diversas áreas, criando, assim, uma espécie de burocracia colonial, fato que se refletiu na cada vez mais intensa tentativa de controle político sobre o território por parte da coroa castelhana (Elliott, 1998, p. 296-309). Na verdade, após a primeira conquista, chamada pelos historiadores de conquista bélica, outras conquistas foram sendo colocadas em prática, como, por exemplo, a conquista territorial, a conquista burocrática, a conquista missionária/espiritual, a conquista migratória e a administrativa, o que favoreceu a gradativa transferência da presença efetiva da Coroa de Castela para o novo território (Sánchez-Albornoz, 1998, p. 23-52). Conclusão A conquista da América pelos europeus, tanto no caso castelhano quanto no caso português, foi lenta e gradativa, e até hoje muitas vezes suscita erros de interpretação que refletem no processo de ensino de História (Fernandes e Morais, 2013, p. 143-162). Um dos erros mais comuns sobre este tema é Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 227 a relação dual e completamente opositora entre europeus e populações locais, como se ambos fossem vistos de forma completamente opositora, e sem nenhuma relação de auxílio, aliança, etc... Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 228 A intensidade dos acontecimentos no Vice Reino da Nova Espanha foi destacada na “Brevísima relación de la destrucción de las Indias”, que chama a atenção pelo seu caráter de contato entre o passado (os acontecimentos da conquista), o presente (a denúncia de Las Casas) e o futuro: “Fué una cosa esta que a todos aquellos reinos y gentes puso en pasmo y angustia y luto, e hinchó de amargura y dolor, y de aqui a que se acabe el mundo, o ellos del todo se acaben, no dejarán de lamentar y cantar en sus areítos y bailes, como en romances (que acá décimos), aquella calamidade e pérdida de la sucessión de toda su nobleza, de que se preciaban de tantos años atrás” (Las Casas, 2006, p. 64). A defesa de Las Casas para com as populações nativas é clara e direta, e apresenta um ataque a todo empreendimento realizado nos territórios ocupados pelos europeus. Mesmo com esta defesa, as palavras de Las Casas retiram a possibilidade de existir uma compreensão acerca da força das populações locais e sua atividade em termos de defesa própria e de resistência, questões que devem ser levadas em consideração na análise crítica da fonte. Referências Fonte LAS CASAS, B. de. Brevísima relación de la destrucción de las Indias. Edición y notas José Miguel Martínez Torrejón. Prólogo y cronología Gustavo Adolfo Zuluaga Hoyos. Antioquia: Editorial Universidad de Antioquia, 2006. Bibliografia CAPDEQUÍ, J. M. Ots. El estado español en las Índias. México: Fondo de Cultura Económica, 1957. COLOMBI, B. La Brevísima relación de la destruición de Indias da fray Bartolomé de Las Casas en eje de las contoversias. Zama, n. 5, p. 91-102, 2013. ELLIOTT, J. H. A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII. In: BETHELL, Leslie (Org.). História da América Latina Vol. I – A América Latina Colonial I. São Paulo. Edusp, 1998, p. 296-309. FERNANDES, L. E.; MORAIS, M. V. de. 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Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 229 DA CÓLERA DA PÓLIS À ATARAXÍA DA ALMA: INTERSECÇÕES ENTRE O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA E A FILOSOFIA ANTIGA Luiz Henrique Silva Moreira Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 230 Introdução O presente texto apresenta uma proposta de leitura das produções educacionais da antiguidade helenística (IV a.C. – II d.C.) sob a ótica da Filosofia Antiga. Para que se torne possível repensar um Ensino de História Antiga que fuja do estereótipo dos mitos e magias, de modo que não se nega tais instrumentos como artificies importantes para instigar interesse no aluno sobre o tema, entretanto propõe-se que esta não seja o único objetivo da História Antiga no currículo escolar. Desse modo a proposta aqui apresentada visa sair da tal premissa para que seja possível traçar ligações diretas com o cotidiano do educando ensinando-o a pensar filosoficamente problemas históricos e o mundo a sua volta. Visando não romper bruscamente as delimitações de cada área do saber, História Antiga e Filosofia Antiga, optou-se por apresentar uma narrativa história acerca da influência filosófica na sociedade antiga durante a transição do período clássico ao helenístico. Ao final apresentou-se excertos de fontes que apresentam conhecimentos científicos cultivados à época helenística que demonstram uma possibilidade de se transformar textos filosóficos antigos em fontes para uso em sala de aula. A cólera de Aquiles “Canta-me, ó deusa, a cólera funesta de Aquiles” (Homero, Ilíada,I,1), e assim se inicia a Ilíada, obra que ao lado da Odisséia serviu de material didático nas instituições de ensino, e dedicadas ao saber, durante todo o mundo antigo. A permanência de tal obra reside no fato de ela apresentar, imbricando ética e estética poética, o espírito necessário à época através da junção de mito e poesia. “O Pathos do sublime destino heróico do homem lutador é o sopro espiritual da Ilíada. O ethos da cultura e da moral aristocrática encontra na Odisséia o poema de sua vida” (JAEGER, 2001, p. 66), o Pathos heróico, ou o sentimento da experiência da experimentação da glória, que educa a nobreza aristocrática grega se manifesta através da Aristéia, momentos dos combates individuais onde se manifesta o individual e ético, e no qual os grandes guerreiros alcançam sua glória, mesmo que esta venha com a morte. Torna-se possível perceber que é através dos poemas homéricos que se manifestam ideais que ligam a individualidade à coletividade, através de expressões como “lutar pela pátria é um bom augúrio”, frases que aparecem tanto na boca dos gregos, quanto de troianos, para demonstrar qual era a qualidade humana que deveria ser perseguida (JAEGER, 2001, p. 72). Tal Aristéia gera a Arete, que não tem tradução direta para o português, mas fazendo alusão ao seu correlativo em latim (Virtus), podese compreender como virtude, ou excelência. A Arete se baseia na busca pela glória através de uma ética da honra, essa era a ética contida em Homero, na qual o herói vive e morre por encarnar em sua conduta um ideal que manifesta a qualidade de sua existência, que a palavra Arete simboliza (MARROU, 1975, p. 29). Como bem observou Sloterdijk (2012), em seu ensaio político-psicológico, a opção pelo canto da cólera (Mênis) de Aquiles mostra uma faceta dos gregos que baseavam sua virtude (Arete) na ira, que era primordial para o espirito do mundo grego antigo, mundo esse no qual a violência era tomada como coisa cotidiana, fator esse que explica como até mesmo filósofos como Sócrates tomavam a escravidão por normal e a utilização da força como indispensável (SOUSA, 1988, p. 8). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 231 Foi através da Mênis e da Arete que o espírito ático grego atingiu seu ápice após os feitos de Atenas nas guerras pérsicas, “A criação da cultura Ática popular do séc. V não provém da constituição nem do direito eleitoral, mas da vitória” (JAEGER, 2001, p. 287), de modo que através de tal interpretação podemos compreender como a questão da “vitória” se torna um componente formador essencial da cidadania grega. Ou seja, os séculos VI-IV a.C. marcam uma transformação no conceito de Arete, que culminará em um novo ideal de educação. Ao passo que na Grécia Arcaica (VII-VI a.C.) a Aretê se mostrava como uma virtude aristocrática que legitimava pequena parcela da população, perante a grande massa, através da manutenção de uma memória social de uma nobreza que alegava compartilhar laços sanguíneos com heróis, deuses e semideuses, durante o século VI a.C. tal legitimidade passa a ser contestada. Pode se supor como motivos de tal alteração, o surgimento dos primeiros pensadores gregos e expressões filosóficas que criticaram abertamente as genealogias cosmogônicas nas quais tais virtudes eram pautadas, ou também pelo fato do sentimento de vitória e pertencimento dos feitos atenienses se tornarem popular, ou ambos. Tomando como plausível a hipótese da popularização do sentimento de vitória, seria possível tomar os Jogos Olímpicos como uma alternativa de manutenção da Arete sem a guerra, evidenciando a popularização do espírito de Arete. Pois os jogos funcionavam como um ritual de cidadania para os gregos, se tratando de outra forma do Grego integrante da Pólis (Polites) manifestar sua excelência pera o Outro, estrangeiro (Xenos), reforçando não só os elos para com a comunidade, que se identifica com a Arete do competidor que encarna o herói-guerreiro em busca de glória, mas também reafirma o sentido de ser grego como sinônimo de civilizado perante os bárbaros (FIALHO, 2011). Visando especular a hipótese do surgimento de corrente filosóficas que contrapõem direta e indiretamente a Arete, se faz necessária uma análise da filosofia sofística e a corrente de pensamento “humanista” implantada pelos mesmos, e aprimorada por Platão e Aristóteles. Por mais que os sofistas, e outros filósofos da Grécia Clássica, ainda estejam ligados à velha tradição aristocrática, estes se tornam responsáveis por renovar a preeminência moral e espiritual da Arete, em busca de ensinar a Techné política. Tal ensino se baseava na possibilidade de ensinar o grau mais alto da lei e justiça para os futuros chefes da Pólis, de modo que se encontra nessa atitude uma tentativa de quebrar com os privilégios através dos laços sanguíneos, ao passo que ensinavam a quem podia pagar, entretanto, ensinando que este poderia almejar o posto de governante da Pólis. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Os sofistas iniciam uma cisão entre religião e cultura, mas acima de tudo iniciam uma educação ética e política voltada para o humanismo, onde não se separa filosofia da vida como se fazia antes destes. Esta educação ética e política é um traço essencial da verdadeira Paidéia, o novo ideal de educação que estava surgindo. Página | 232 Entretanto, o fato é que seja qual for o motivo que leva a uma alteração da Aretê entre os séculos VI-IV a.C., esta se dá de forma tardia ou demasiadamente demorada. De modo que essa virtude, com base na ira homérica, que se alimentava da busca constante por glória levará ao fim as Póleis em seu modelo clássico, antes mesmo que a gestação natural da Paidéia ocorra. Essa assertiva se baseia nos incidentes que levaram à Guerra do Peloponeso, tanto a administração de Atenas frente à Liga de Delos, quanto os incidentes de Córcira e Potidéia, onde os atenienses fizeram oposição aos coríntios, principais aliados de Esparta, ocasionando a guerra e uma crise que culmina com a derrota frente à Macedônia por volta de 338 a. C. (SOUSA, 1988, p. 64), levando toda Hélade ao domínio macedônico. A Paidéia helenística como forma de Cultura Após a morte de Alexandre da Macedônia, se inicia o que se convencionou a chamar por período helenístico, ou alexandrino, que, levando em conta os estudos recentes acerca da Antiguidade Tardia, pode-se alocar dentre o período de 323 a.C. e 180 d.C. Para além do período onde a cultura grega se espalha para todo entorno mediterrâneo, ocidental e oriental, se trata do mundo antigo da Paidéia, período que separa a antiguidade da Pólis da antiguidade da Teópolis, “a civilização cristã do Baixo Império constantiniano, da cristandade medieval, ocidental ou bizantina” (MARROU, 1975, p. 160). Se a gestação da Paidéia no período clássico foi lenta, a partir do período helenístico a situação se altera, e a palavra que antes significava criação ou educação da criança, assume então a ideia de cultura: “(...) a mesma palavra, em grego helenístico, serve para designar o resultado desse esforço educativo, continuado para além dos anos escolares durante toda a vida a fim de realizar mais perfeitamente o ideal de humano.” (MARROU, 1975, p. 158-159) A partir de então, Paidéia (ou Paideusis) passa a significar “a cultura, entendida não no sentido ativo, preparatório, de educação, mas no sentido perfectivo que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, o do homem tornado verdadeiramente homem.” (Idem) E tal fato explica porque, segundo Aulo Gélio (Noites Áticas, XIII, 16, I), quando Varrão e Cícero tiveram de traduzir Paidéia, o farão através do termo em latim Humanitas. Ao passo que se avança em relação ao tratamento que o período helenístico deu à educação, se torna possível perceber porque o mesmo se tornou a civilização da Paidéia, e erigiu um novo ideal de “cultura”. Enquanto durante o período clássico só se encontrava a educação como objeto de uma regulamentação do Estado nas Póleis aristocráticas, como Esparta e Creta, e a maioria das Póleis seguia o molde ateniense no qual a educação sempre foi assunto regulado por instituições privadas, fator esse que se altera durante o período alexandrino, quando a exceção vira regra, tornando toda a educação do entorno mediterrânico um assunto das instituições públicas das cidades: “Ao contrário, para os helenísticos, a legislação escolar tornou-se coisa normal, um dos tributos necessários do Estado civilizado: donde seu espanto quando encontram em Roma republicana um estádio de evolução arcaico, no qual a educação é ainda negligenciada pelo Estado” (MARROU, 1975, p. 166). Não se torna incongruente tomar a educação como assunto estatal se esta mesma era regulamentada pelas cidades, visto que o reino macedônico pouco alterou na estrutura de funcionamento a nível “municipal”, operando e se manifestando através de estruturas pré-existentes, ao contrário do Baixo Império Romano que as fazias sobre uma premissa totalitária. Mas tal fato também explica, como apontou Maria Helena da Rocha Pereira, o motivo de mesmo uma educação que passa a ser legislada pelo Estado, que garante sua aplicação, ainda detinha grandes investimentos do mecenato (PEREIRA, 1993, p. 525). É durante o período que surge o que se convencionou chamar de estudos secundários, expandindo o tempo de ensino do jovem grego que agora passa a ocorrer dos sete aos dezenove/vinte anos. Havendo assim uma divisão dos estudos secundários em duas partes, em uma parte literária (gramática, retórica, dialética) e uma parte científica (aritmética, geometria, astronomia, música), divisão essa que será reaproveitada durante o medievo, no Império de Carlos Magno, sob os nomes de Trivium e Quadrivium. A criação do Museu (Templo das Musas) de Alexandria por parte de Ptolomeu I, e ampliação deste por parte de seu filho Ptolomeu II, com “um observatório, salas para dissecação ou laboratórios, jardim botânico, jardim zoológico” (PEREIRA, 1993, p. 534), fomentaram os estudos científicos da época. Estrabão fornece uma descrição do mesmo em uma de suas obras: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 233 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 234 “Também faz parte dos palácios reais o Museu, dotado de um passeio coberto (Perípatos), de uma exedra e de uma grande casa, onde fica a sala de refeições dos eruditos (Filólogos) que pertencem ao Museu. Esta assembleia possui bens comuns e tem um sacerdote que está à frente do Museu, o qual outrora era designado pelos reis, e na actualidade o é pelo imperador.” (Geografia, XVII, 1.8) (Tradução PEREIRA, 2003, p.500) Através desses avanços em estruturas para os estudos e pesquisas, se tem um grande salto no conhecimento científico da época em várias áreas. Em relação à Matemática e Física, pode-se citar Euclides de Alexandria com seus treze livros de Elementos, que inaugura a geometria. Na área da Astronomia, já no século III a.C., Aristarco de Samos estudou o Sol e a Lua, chegando à constatar suas distancias e que o satélite terrestre não detém luz própria: “A Lua recebe a sua luz do Sol. A Lua subentende 1/50 de um signo do Zodíaco. A distância do Sol à Terra é maior dezoito vezes, mas menor do que vinte vezes, a distância da Lua à Terra.” (Tamanhos e Distâncias do Sol e da Lua, I, 6,7) (tradução PEREIRA, 2003, p. 487) Aristarco também supôs, ao que parece pela primeira vez na história, uma teoria heliocêntrica do universo, teoria essa comentada por Arquimedes de Siracusa: “Tu sabes por que razão a maior parte dos astrônomos chama o mundo (Kósmos) à esfera cujo centro é o centro da Terra e cujo raio é a linha recta compreendida entre o centro do Sol e o da Terra. Esta doutrina é a que aprendeste nos tratados de astronomia. Porém, Aristarco de Samos publicou uma exposição, da qual se deduz que o mundo é muito maior do que se diz. Supõe ele que os astros fixos e o Sol Permanecem imóveis, ao passo que a Terra gira em círculo à volta do Sol, o qual se encontra no centro do percurso, e que a esfera dos astros fixos, que se situa à volta do mesmo centro que o Sol, tem dimensões tais que a proporção do círculo, em do qual ele supõe que a Terra gira, para a distância das estrelas fixas, é semelhante à proporção entre o centro da esfera e a sua superfície. É fácil demonstrar como isto é impossível. Porquanto, uma vez que o centro da esfera não tem grandeza, não pode admitir-se que tenha qualquer proporção com a superfície da esfera.” (O Arenário, 1) (tradução PEREIRA, 2003, p. 493) Podem-se interpretar os estudos de eruditos, que em sua maioria eram filósofos, como a continuação de uma tradição de estudos em várias áreas do saber iniciada pela Academia de Platão e pelo Liceu de Aristóteles. Fator esse que fornece o indicativo da necessidade de pensar as mudanças ocasionadas na sociedade pelo pensamento crítico-filosófico durante a Antiguidade, e quem sabe os demais períodos da história humana. Conclusão: Um novo modo de ser e estar no mundo Dessa maneira, se pode evidenciar que quando se pensa a História da Educação Antiga, sob o espectro da Filosofia Antiga, as possibilidades de fontes de ensino sobre o mundo antigo se expandem, aumentando consequentemente as possibilidades de interpretação do Período. Acessar a produção de conhecimento, crítica às estruturas sociais e morais, feitas pelos filósofos antigos permite sair do estigma do estereótipo de uma sociedade tomada por uma mentalidade infestada de mitologia e mágica, e traçar aas rupturas e continuidade que separam a antiguidade e a contemporaneidade. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 235 A tentativa de enquadrar a História Antiga sob os conceitos de rupturas e continuidades se apoia na ideia de que o conceito de decadência da cultura grega, durante o período alexandrino, há alguns anos já não se sustenta perante os estudos acerca do helenismo. O que se pode constatar em relação ao período, tendo por base a filosofia antiga é uma mudança no conceito de mundo. Pode-se perceber tal mudança porque trata-se aqui de uma filosofia como um modo de ser e estar no mundo, tendo de abordar as problemáticas do mundo no qual o ser se encontra. Compreende-se assim como a filosofia socrática-platônica da época clássica se relacionava com o mundo clássico, pois essa se deparou com a necessidade de refletir sobre a problemática da Pólis ateniense, pois esse era o mundo no qual ambos estavam inseridos. Entretanto, com a ascensão da monarquia macedônica a visão de mundo dos gregos se altera. A Hélade que antes se distinguia dos demais através de sua cultura, se torna parte de uma única, e mista, Paidéia mediterrânea. Nota-se então uma realocação do filósofo, que vai de cidadão da Pólis à cidadão do mundo (Kosmo-polites), alterando não só o conceito de mundo da antiguidade ocidental, como o objeto especulativo da filosofia antiga. Filosofia essa que agora tem que se deparar com o problema do ser perante o mundo, levando os filósofos à busca de uma vida sem tormentos (Ataraxía). Abordar tais problemáticas permite, durante as aulas de História Antiga, apresentar aos alunos um ensino que corrobore para a reflexão crítica do mundo a sua volta. Para além de mostrar como a educação condiciona a visão de mundo do ser, têm-se a possibilidade de ampliar a consciência histórica dos educandos, ensinando-os à pensar filosoficamente problemas históricos, para que estes também sejam capazes de buscas sua Ataraxía. Referências FIALHO, Maria do Céu. Rituais de Cidadania na Grécia Antiga. In: Cidadania e Paideia na Grécia Antiga. LEÃO, Delfim Ferreira; FERREIRA, José Ribeiro; FIALHO, Maria do Céu (org.). São Paulo: Annablume Clássica; Coimbra: CECH, 2011. JAEGER, Werner. PAIDÉIA: A Formação do Homem Grego. ed. 4. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MARROU, Henri-Irénéé. História da Educação na Antiguidade. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1975. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 236 PEREIRA, Maria Helena da Rocha. ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CULTURA CLÁSSICA: Cultura Grega. v.1. ed. 7. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. PEREIRA, Maria Helena da Rocha (Org.) (trad.). HÉLADE: Antologia da Cultura Grega. ed. 9. Porto: Edições ASA, 2003. SLOTERDICK, Peter. Ira e Tempo: ensaio político-psicológico. São Paulo: Estação Liberdade, 2012. SOUSA, Marcos Alvito Pereira de. A GUERRA NA GRÉCIA ANTIGA. São Paulo: Editora Ática, 1988. É MAIS QUE ÓDIO: A EDUCAÇÃO EM UMA SOCIEDADE RESSENTIDA Makchwell Coimbra Narcizo Considerações iniciais Emoções, sentimentos, paixões são constitutivas da vida humana, estamos imersos a elas em todos os momentos de nossas vidas, logo, compõem a dimensão afetiva da vida social. Por conta disso, as paixões coletivas participam das práticas sociais e, apesar dessa dimensão afetiva do exercício público, ou seja, que compõem nossas relações, não significa que é de fácil trato por parte de quem visa estudar sua influência, seja ela em qual área do conhecimento for. Desta maneira, a sala de aula que é um local de afetos, é resultado de uma relação afetiva ampla e complexa que por vezes, é necessário um esforço grande para se compreender, utilizando-se de mais de uma disciplina e área do conhecimento. Tais afetos, são construídos, reconstruídos em diversos momentos, laços afetivos são criados e ganham força com a convivência contínua. A convivência na comunidade escolar, gera afetos significativos. No que diz respeito a dimensão afetiva da vida humana nos deparamos com o ressentimento, consequentemente o ressentimento é estendido para a dimensão afetiva da vida pública, tornando-se uma importante ferramenta política, que resulta diretamente no cotidiano escolar. Ressentimentos Ressentimento é uma constelação afetiva ampla. Maria Rita Kehl (2014, p.13) defende ser esta uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem do mundo moderno, privilegiando o indivíduo em detrimento do sujeito, contribuindo para sustentar nele uma integridade narcísica que independe do sucesso de seus empreendimentos. A autora adianta a hipótese de que a versão imaginária da falta, no ressentimento, é interpretada como prejuízo. Seguindo essa orientação, ainda em Maria Rita Kehl (2014, p.13), por uma compreensão preliminar do que é ressentimento, a autora trata ressentir-se da seguinte maneira: “Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpa-lo do que venha a fracassar”. A própria autora considera a definição genérica, por conta de um ponto, pelo fato da aproximação de uma aproximação do paradigma do neurótico. A modernidade seria de tal modo, para o Nietzsche, alicerçada por valores que foram construídos na aliança entre Estado e Igreja, o primeiro responsável pela coerção, impondo aos indivíduos os valores criados pela igreja. Estado, para Nietzsche (2009: tese 2 parágrafo 17) produziu mudanças ativas e radicais na humanidade, fazendo com que o homem a partir de sua tutela, atingisse uma coerção inevitável, contribuindo Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 237 diretamente e decisivamente para deixar de ser livres e se tornarem culpados. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 238 Nietzsche faz uso da expressão ressentimento para caracterizar uma ideia de auto envenenamento, o que envolve ódio, rancor, inveja, uma série de sentimentos reativos. Ocorrendo quando esses sentimentos, na medida em que não podem ser descarregados para o exterior, voltam para o homem interior o envenenando. Por esse motivo é chamado de res-sentimento. Maria Rita Kehl, (2014, p. 120) o ressentimento é “só daqueles que por motivos morais, foram covardes e cúmplices em sua própria derrota.” Criando assim, uma “vingança imaginária”. Se visitarmos Nietzsche novamente, podemos ler: “A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” — e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores — este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si — é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto — sua ação é no fundo reação.” (...) (NIETZSCHE,2009, segunda tese paragrafo 10) Para Pierre Ansart (2009), Nietzsche elabora o conceito de ressentimento em três abordagens complementares: histórica, psicológica e sociopolítica. Pois bem, no quesito histórico, o autor (p. 16) destaca que Nietzsche aponta que o ressentimento seria o resultado do que já apontamos, um longínquo conflito entre a religião judaico-cristã contra os guerreiros aristocratas. O que ocorre no Ocidente, são desdobramentos dessa guerra, o desdobramento da mesma situação, a sublevação dos inferiores, pela sublevação dos escravos contra os dominadores. Ansart mostra que o trabalho de Nietzsche ao traçar o histórico do ódio, transformando-se em ressentimento em seu processo de longa duração no embate entre moral escrava frente a postura aristocrática culmina na interiorização do ódio por parte dos inferiores, fazendo com que esses não somente convivam com ele, mas busquem o justificar, o glorificando como algo bom, por isso não haverá uma busca para sua superação, que em suma, é em si, um ódio de si mesmo. O próprio Pierre Ansart aponta para os perigos de se pegar as considerações de Nietzsche como definitivas, ou mesmo seu conceito de ressentimento como algo fechado, apontando a própria linguagem da Genealogia da Moral. Por conta disso, Ansart mostra como um contraponto necessário o Max Scheler. Diferentemente de Nietzsche, Max Scheler acredita que o ressentimento surge entre os iguais. Partindo daí, defende que o ressentimento resulta da competição entre pessoas, em uma luta constante e contínua pela redistribuição de prestígio e poder no interior de uma sociedade. Em Scheler o sentimento de vingança ganha uma configuração distinta, a questão da vingança, por sua vez ganha um sentido diferente, para tal, vejamos dois momentos de sua argumentação: “[...] este sempre-de-novo-através e a partir do viver da emoção é muito diferente de uma mera recordação intelectual da emoção dos antecedentes dobre os quais ela “responderia”. O ressentimento é um vivenciar da emoção mesma – um sentir após, um sentir de novo. Destarte, a palavra traz em si o fato da qualidade desta emoção ser um negativo, o que significa ser um movimento de hostilidade.” (...) (SCHELER, 2012, 45) O agravo é a base do ódio, mas este é guardado, todavia tem causas e consequências bem determinadas. O ressentimento é um envenenamento da alma, que é resultado de uma introjecção psíquica contínua, um exercício sistemático de recalcamento, como afirma Max Scheler (2012, p. 48). Em seguida, defende ser tais sentimentos naturais no ser humano que levam a formação e conformação do ressentimento, como sentimento e impulso de vingança, o ódio, maldade, inveja, cobiça e malícia. Todavia, sua análise parte do impulso de vingança. O que há de novo na interpretação de Max Scheler é que este em certa medida amplia o alcance do ressentimento, como podemos ver no trecho a seguir: “Mas, em todos estes casos, a origem do ressentimento está presa em uma especial introdução da comparação entre valor de si mesmo e valor dos outros, a qual necessita de uma breve e distinta investigação. A comparação de nossos valores próprios em geral, ou qualquer uma de nossas características, com valores que a outros pertencem, é executada por nós continuamente. Todos a executam: o nobre e o vulgar, o bom e o mau. Quem escolhe para si por exemplo um modelo ou um herói está de qualquer modo ligado a uma tal comparação de valor.” (...) (SCHELER, 2012, 57) Max Scheler mostra não apenas que o ressentimento surge também entre os iguais, mas que ele não é exclusividade da moral escrava. Há uma ampliação no entendimento do ressentimento por parte de Scheler, não ficando exclusivo da moral escrava. Pierre Ansart (2009, p. 19) que em sua concepção sobre a maneira como Scheler constrói sua versão sobre o ressentimento acredita que há um abandono da hipótese histórica que Nietzsche trabalha, construindo uma Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 239 oposição para com sua filosofia dos valores. Sobre a complementação da noção de ressentimento, Ansart declara: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 240 “É preciso, primeiramente, atentar à diversidade das formas de ressentimento e falar de ressentimento no plural e não de um ressentimento que tomaria as dimensões de uma essência universal. Se admitirmos, como faz Max Scheler, que pode existir por exemplo um ressentimento ligado às relações de entre grupos de idade, convém especificar precisamente os caracteres de tal sentimento e sublinhar tudo aquilo que separa tais afetos difusos do ressentimento recíproco que pode opor, por exemplo, duas classes sociais, ou ainda, duas etnias.” (...) (ANSART, 2009, p. 19) Para Ansart, o próprio Nietzsche apresenta em a Genealogia da Moral dois tipos opostos de ressentimento, o dos fracos contra os mais fortes que é amplamente comentado; por outro lado, apresenta o ressentimento dos dominantes em relação aos dominados, que é tão destruidor quanto a outra forma mais debatida do ressentimento. Segundo o argumento de Ansart (2009, p.19): “Ressentimento que é reforçado pelo desejo de reencontrar a autoridade perdida e vingar a humilhação experimentada”. É possível entender e notar que tal ódio não é menos recalcado que aquele que o escravo nutre, tal como as bases de vinganças e todo o processo de ressentimento. Ressentimento Educação Parte-se aqui de um entendimento da Educação a partir da sala de aula e das relações resultantes dela, da vida cotidiana dos professores e tudo que a cerca, além das imposições externas que condicionam as questões mencionadas. Ou seja, questões sociais e políticas. O ressentimento sempre teve e terá lugar no mecanismo político e social, fazendo parte dele, cabe então analisar como esse (res)sentimento surge e é operacionalizado, como é utilizado, até que ponto é essencial e qual o papel que esse desempenha em um âmbito geral. A sala de aula é um espaço propício para a construção de afetos. Estes, são construídos, reconstruídos em todos os momentos, laços afetivos são criados e ganham força com a convivência contínua. Em muitos casos, os alunos convivem mais com seus colegas e professores que com os pais. Essa criação de afetos traz consigo as variadas potencialidades e negatividades que os afetos naturalmente carregam consigo, em certa medida somos reflexo dos afetos que estamos inseridos. Por conta disso é necessário um contato cuidadoso por parte do professor, na medida em que esse se torna mediador de sentimentos, ou seja, um gestor deles e consequentemente, envolvido em sua construção. Desta forma, uma palavra mal posta pode gerar ressentimentos que refletirão de forma marcante na vida dos alunos. Neste ponto, como destaca Antônio Zuín (p. 585) “os alunos humilhados pelos professores são obrigados a reprimir a angústia e o medo que sentem, fato este que produz frustração e ressentimento”. O ressentimento produzido gera novos tipos de relações, como mostra Zuín (p. 592): “Este jogo de cena dos alunos é um dos principais elementos da chamada vingança adiada. O tempo favorito do aluno ressentido é o do futuro do pretérito, pois aquilo que ele poderia ter sido e que não foi, a saber, um verdadeiro interventor com voz ativa na sala de aula, não se concretiza, assim como a sua vingança que parece nunca chegar. Daí a ideia da vingança adiada que esteia o prazer do ressentido diante do sofrimento que o outro lhe imputou. Nesta perspectiva de análise, o prazer sádico do ressentido, frente aos sinais de remorso dos agressores, é acalentado pela sua postura masoquista que lhe impede tanto de esquecer, quanto de superar a dor que lhe foi imposta.” É possível ver a noção de uma vingança que nunca passa, um agravo que é presente, no qual adiamento da vingança é constante. O ressentido não quer necessariamente se vingar, mas quer manter a possibilidade de ter o objeto de sua vingança em certa medida próximo, nisso, a perspectiva do ressentido, suas dores são as que realmente importam e devem ser, por isso, reconhecidas por todos. Retomando Maria Rita Kehl (2014, p. 96), “O ressentido é um escravo de sua impossibilidade de esquecer (...). Mas, no ressentimento, a dívida permanece impagável: a compensação reivindicada é da ordem de uma vingança projetada no futuro”. Esse trato, ou não trato, dos ressentimentos que propiciam um ambiente ressentido proporcionam dificuldades na interação entre professor e aluno e consequentemente perdas marcantes no processo de aprendizagem. Não que todo ambiente seja movido pelos ressentimentos, mas que em algum grau ele pode se manifestar. Outro ponto importante da vida escolar é a relação institucional, ou seja, a convivência de professores com outros professores e com outros profissionais que fazem parte da vida cotidiana escolar. Afetos são gerados e como vimos e em diversos momentos fomentadores de sentimentos, bons e ruins, que no caso, os ruins, os reativos, transformam-se em ressentimentos. Ponto importante no que diz respeito a gestão de sentimentos e maneiras como os ressentimentos estão presentes no cotidiano escolar é a promoção de políticas que direcionam os caminhos da Educação. Como pôde ser visto anteriormente nas argumentações de autores como Pierre Ansart (2009) e Paul Zawadzki (2009) os ressentimentos são constitutivos do sistema democrático. Utilizando a argumentação de Pierre Ansart (2001, p. 146), de que as emoções, sentimentos e paixões encontram-se presentes nas instituições, decisões e fatos políticos. É possível assim afirmar que esses participam das Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 241 decisões que moldam a Educação, a construção de políticas públicas educacionais, currículo e por fim, maneiras que os professores devem conduzir suas aulas e em determinada medida, como a história da Educação nos mostra, até mesmo modos de se portar em sua vida particular. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Desta feita, decisões políticas que influenciam a vida dos professores em seu trabalho cotidiano são feitas com cargas de ressentimentos e se valendo deles. Um exemplo prático de como isso funciona é o projeto Escola sem Partido que apesar de (ainda) não ser aprovado acaba por influenciar o cotidiano escolar. Página | 242 A questão é que o projeto tem colaborado para a elaboração de leis em diversos Estados, em cidades específicas e mesmo que não sejam aprovados, sua simples discussão gera uma ascensão dos ressentimentos. O professor acaba por ser alvo desses ressentimentos, como se fosse o culpado pelas más condições de aprendizagem e da educação em um sentido amplo. Pedro Pagni, Alexandre de Carvalho e Sílvio Galo (2018) afirmam que essa questão revela um traço de nossa cultura política e uma relação de poder que se estrutura no ressentimento contra a escola e o trabalho docente, colocando em risco uma de suas principais virtudes modernas. Considerações finais Ao buscarmos uma explicação clínica para o ressentimento, Maria Rita Kehl traz alguns importantes apontamentos: “O ressentimento é uma relação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações próprias do individualismo e os mecanismos de defesa do eu a serviço do narcisismo.” (KEHL, 2014, p. 13). Desta forma, ascende como problema chave na reflexão, o ressentimento ser fomentador da memória do ódio, memória esta que é marcante na história contemporânea, como destaca Jacy Alves de Seixas: “[...] Desnecessário lembrar quanto a história contemporânea tem presenciado a manifestação dessa instável memória involuntária, carregada de emoções, freqüentemente avessa à clivagens ideológicas e políticas tradicionais. Memórias que parecem emergir, irromper de um passado mais-que-morto para assombrar o nosso presente concebido, contra todas as evidências, segundo os cânones do progresso.” (SEIXAS, 2009, p. 48) Como destacado pela autora, essas memórias ressurgem constantemente do passado para assombrar o presente. Na medida que a memória se articula com sentimentos, com os sentimentos mais obscuros os quais operacionalizam o ressentimento, esses ressentimentos que são guardados e escondidos, voltam em momentos específicos com mais força e criando problemas reais. O ressentimento se relaciona necessariamente com o sentimento que tenho do outro, as formas explícitas ou não, para uma melhor compreensão de tal afirmação, voltemos ao auxílio de Maria Rita Kehl (2014, p. 13): “Ressentirse significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpa-lo do que venha a fracassar.” Desta forma o ressentido não quer vingança, ele quer ter o seu objeto de ressentimento por perto para poder justificar seus fracassos. Isso gera um ciclo de ressentimentos que atrapalham as relações e consequentemente a Educação em si. É importante levar em consideração que muitas barreiras que estão no dia a dia do professor não são acidentais, mas algo orquestrado. É algo que compõe uma sociedade ressentida em sentido amplo. O cotidiano escolar é gerador e promotor de ressentimentos, infelizmente práticas pedagógicas contrárias ao recalque, medo, angústia que interrompidos geram os ressentimentos não são difundidas ou colocadas em prática nas instituições escolares em sua maioria. Não obstante, é crescente uma predisposição generalizada para o fortalecimento dos ressentimentos, isso pode ser visto em atitudes ressentidas de alunos, professores e comunidade escolar, sem mencionar é claro, as imposições políticas que são fruto de ressentimentos e geradoras deles. Ao pegarmos a afirmação de Pierre Ansart (2009, p. 24-26) que deveríamos perder a ilusão do fim do ressentimento devemos nos perguntar: como educar em uma sociedade ressentida? Ou ao menos tempo, quais os caminhos da Educação em uma sociedade ressentida? Uma Educação que não gere ódio e os outros sentimentos reativos provocadores do ressentimento é fundamental, isso impede a reprodução de novos ressentimentos. Os caminhos da Educação devem ser em resistência aos ressentimentos e que vá de encontro a eles, contra eles, uma Educação que alcance os ressentidos mesmo que esses não desejem sair de suas camadas mais profundas do ressentimento, o que abre possibilidades de superação do próprio ressentimento. Referências ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org). Memória e (res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP: Editora UNICAMP, 2009, p. 15-36. ANSART, Pierre. La gestion des passions politiques. Lausanne: L’age d’homme, 1983. BRESCIANI, Maria Stella. (Introdução), HAROCHE, Claudine. O que é um povo? Os sentimentos coletivos e o patriotismo do final do século XIX. In: BREPOHL, Marion. Et al (org). (2002) Razão e paixão na política. Brasília: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 243 Editora UnB. Pp. 7-11. In: BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Márcia (org). Memória e (res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP: Editora UNICAMP, 2009. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 244 BRESCIANI, Maria Stella. (Introdução), HAROCHE, Claudine. O que é um povo? Os sentimentos coletivos e o patriotismo do final do século XIX. In: BREPOHL, Marion. Et al (org). (2002) Razão e paixão na política. Brasília: Editora UnB. Pp. 7-11. BRESCIANI, Maria Stella; NAXARA, Márcia (org). Memória e (res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP: Editora UNICAMP, 2009. CARVALHO, Alexandre et al. O programa Escola sem Partido e a destruição de uma das virtudes modernas da escola. Disponível em < http://www.anped.org.br/news/o-programa-escola-sem-partido-edestruicao-de-uma-das-virtudes-modernas-da-escola> Acesso em 12 fevereiro 2018. KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Companhia de Bolso São Paulo: 2009. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 2, n. 3, 1989. Pp. 3-15. SANTOS, Márcia Pereira. História e Memória: desafios de uma relação teórica. In: OPSIS. V. 07, n. 9. 2007. SEIXAS, Jacy. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (org). Memória e (res)sentimento: Indagações sobre uma questão sensível. Campinas SP: Editora UNICAMP, 2009. Pp. 37-48. ZUIN, Antônio. A educação de Sísifo: sobre ressentimento, vingança e Amor entre professores e alunos. In: Educ. Soc., Campinas, vol. 29, n. 103, p. 583-606, maio/ago. 2008. TEMAS TRANSVERSAIS NO ENSINO DE HISTÓRIA A PARTIR DA MÚSICA TRADICIONALISTA GAÚCHA: ENTRE A NOSTALGIA E A HISTÓRIA Manoel Adir Kischener Introdução Os temas transversais no ensino de História costumam causar certo alvoroço entre os professores. Geralmente se posterga não trabalhando ou quando mencionados por diretores mais zelosos, ficam espantados e indispostos por se verem invadidos em seu planejamento, então declinam dessa obrigatoriedade. Numa das escolas que trabalhava havia a exigência de se colocar um asterisco ao lado do conteúdo que se escrevia nos diários, supostamente trabalhados, mercê do controle do professor, mas nunca efetivamente ocorreu acompanhamento a respeito de sua efetivação. É mais “para inglês ver”, registra-se no papel, mas aos alunos resta estarem com um professor que prefira não se arriscar e siga corretamente o que dispõe a legislação educacional. Da ideia de integrar as disciplinas por alguma afinidade – a busca do impossível frente a fogueira de vaidades que geralmente caracteriza a escola (cada área se achando melhor que a outra) – pelos temas mais sociais por assim dizer, aqueles que fazem referência e defesa da cidadania, os temas transversais quase sempre não são efetivados, acabam se transformando em conteúdo quando há a abertura da escola para isso, e assim ficam “(...) desligados da perspectiva do investimento na vinculação com a realidade social na qual estavam imersos. (...) as noções deixaram de ser temas constitutivos do debate curricular, imersas na construção do sujeito social, na articulação saber, conhecimento e vivências” (WENCESLAU; SILVA, 2017, p. 204-5). Desta forma, não com um paliativo, mas como possibilidade de fazer aquilo que se está ao alcance dentro das possibilidades e da disposição do professor, pois “Tanto no ensino como na pesquisa de História, podemos nos basear, sim, na realidade dos fatos irreais ma non tropo gerados por diferentes Poéticas” (SILVA, 2016, p. 12), nesse caso, com a música e, das lições, das propostas embutidas em cada letra, do perceptível e das leituras possíveis e ao apreço do ouvido do aluno e do professor, do quanto poderão se permitir e do que poderá gerar em sala de aula, os temas transversais poderão ser trabalhados ao menos valorizando a cultura local, um dos leques possíveis com a realidade social do aluno. Nesse sentido, se aproximando da realidade do aluno ou recuperando uma história de sentidos e ouvidos musicais (presente pelo menos no gosto musical de seus pais), e nesse caso, fazendo esforço para levar ao mundo desses alunos canções que estão a sua volta e entorno cultural, mas por razões de imposição midiática e cultural por eles geralmente é alheia. São questões que conduzem essa escrita, dentre outras e, com certeza deixam brechas à crítica, mas o maior intento é apontar sugestões: a) em meio a uma era com crescente apreço ao uso e ao fascínio da internet, os professores de História estarão abertos a essa ferramenta? de outra maneira, como transformar o problema do uso de celular em sala de aula Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 245 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 246 como solução para a aprendizagem significativa aos alunos? b) em meio a imposição cultural que esses meios levam aos alunos, via internet, como espaços como o YouTube, poderão permitir levar ao aluno o novo, nesse caso aquilo que geralmente, pela adesão ao que está na mídia, acaba por preterir ou mesmo desconhecer, em se tratando da música regional? como trabalhar a cultura local? c) como está disposta caracteristicamente a música regional gaúcha? d) de que maneira será possível utilizar a música tradicional gaúcha como fomento a temas transversais no ensino de História? Questões metodológicas Para essa escrita far-se-á referência tão somente ao artista que canta/gravou a canção citada, até pela dificuldade de precisar os compositores e por ser uma escrita amparada no acesso que a internet possibilita. Careceria de um aprofundamento maior em distribuidoras, gravadoras e acervos fonográficos para além da rede, mesmo em coleções particulares, o que demanda recursos e tempo. Essa é, portanto, uma das fragilidades dessa escrita, o que não nos isenta de reconhecer o trabalho imprescindível e artístico – muitas vezes, dependendo da canção – dos compositores. Dentro das possibilidades se ofertará o link e para o áudio da canção citada, mormente disponibilizadas no portal “YouTube”. As letras poderão ser acessadas no “Letras”, se o professor desejar. Também se sugere o uso do celular em sala de aula por parte dos alunos como forma de acesso a audição das músicas, desde que de forma organizada. O método de pesquisa foi por acesso e pela afinidade que mais adiante estará exposta, mas fruto da relação pai-filho, do escutar nas lidas do campo e da roça. O método de análise far-se-á a partir da perspectiva de despertar o leitor ao sentido do ouvir, de se permitir a escutar mais uma vez ou pela primeira, canções com sentido, de outra época pouco divulgadas na atualidade por ser doutros tempos e costumes, mas que são atemporais e pode contribuir ao planejamento de aulas que contemplam temas transversais especialmente no ensino de História. O acesso à rede mundial de computadores permite buscar pela memória de sentidos, como que a recuperar audições de tempos de guri, estranho a maioria dos alunos da atualidade, especialmente em se tratando dos urbanos, mesmo que grande parte de seus pais um dia esteve no campo e depois migrou para as cidades. A música tradicional gaúcha como fomento a temas transversais no ensino de História Em defesa de um modo de vida. Há nisso uma forma de perceber a vida, de defendê-la e de entender as relações sociais, instituindo as prioridades e as condições de se estabelecer e se preservar os costumes, a tradição, enfim. Era outra época, com escolas rurais cheias, com a vivacidade das comunidades religiosas, a visita dos padres, pois regiões de predomínio de credo católico, antes da expansão do neopentecostalismo pelo campo. A sociabilidade das pessoas se dava mais no contato entre as famílias, no grupo com grande poder disseminador via programas de rádio, fazia-se verdadeiras rodas, a família parava em alguns momentos, para escutar os programas musicais. Possivelmente essa sociedade era mais conservadora, pois ainda não sofria tanta influência externa, por exemplo, da música de outros estados, como Rio de Janeiro e São Paulo, apesar de que, grupos e modas caipiras também faziam parte do repertório. Nesse sentido, é representativa “Ainda existe um lugar”, de Wilson Paim (1989): “Venha sentir a paz que existe aqui nos campos O ar é puro e a violência não chegou O céu bem limpo e muito verde pela frente Uma vertente que não se contaminou Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 247 (...) Aqui a verdade ainda reside em cada alma Se aperta firme quando alguém lhe estende a mão Se dá exemplo de amor, fraternidade Aos na cidade que nem sabem pra aonde vão”. Apesar da nostalgia conservadora, do descompasso sugerido, idílico que é, desfavorável ao espaço urbano, local da maioria dos alunos (mas seus pais ou avós se originam do campo), a canção sugere uma série de possibilidades de reflexão: das tradições das diferentes regiões, o espaço do campo e as possibilidades de observação impossíveis na artificialidade da cidade, os costumes, a solidariedade, o respeito aos animais, e essencialmente porque “O chimarrão tem um sabor de esperança/ E a criança traz um futuro no olhar”, espaço-tempo-identidade que pode ensinar valores e saberes próprios de lá, mas com alcance universal em se tratando de relações, rememorar aspectos da História e da Geografia, bem como abre-se a possibilidade da interdisciplinaridade com as Letras/Português, por exemplo. A conotação social e política. Indiscutivelmente, muitas canções tinham a conotação social e política, tendo aquelas para bailar, nos matinês e festas de santo, e também aquelas mais de se apreciar, como as vindas de mais ao Sul do Rio Grande, Mas “Bem pro Sul”, como canta Luiz Marenco. Eram tempos de reflorescimento da democracia, no retorno após o período de governo civil-militar. Apesar da conotação mais festiva ou dançante, como o vaneirão, havia letras que denunciavam alguma questão social ou mesmo política. Em se tratando da chaga da corrupção, agora mais divulgada e que aquece os debates (pois, há até alguns colegas que preferem a ver como cívica, sendo dos males o menor, pois se rouba para ajudar os pobres?!), faz-se referência a canção, dos anos 1980, “Tá Assim de Graxaim”, de Eraci Rocha (1983): “(...) Desse jeito companheiro, não vale a pena viver (...) Aí de mim, aí de ti/ Aí de ti, aí de mim/ A estância de São Pedro tá assim de graxaim”, o problema é que se espraiou para o país todo, desde Brasília, enquanto política de estado. As regiões e algumas cidades do Rio Grande do Sul. Com “Pampa na garupa” (1987) e “Me comparando ao Rio Grande” (1981) d’“Os Farrapos”, traz-se a temática das diferentes regiões do estado e, de quando essas ainda tinham suas “vocações” econômicas, os produtos que a essas era associada a imagem da cidade, por exemplo, a erva-mate, essência e como Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS que seiva da vida do gaúcho, tendo na região de Palmeira das Missões a maior parte de sua produção (hoje se espraiou, inclusive para outros estados): “Com cavacos do ofício/ Faço fogo na fogueira/ Com a água do guaíba/ Faço chiar a chaleira/ Tomo um gole do amargo da saudade/ Erva buena da Palmeira. (...)”. Na primeira o destaque são as mais diversas regiões com suas cidades e produtos-marco, na segunda canção ganha ênfase a comparação com os símbolos do Rio Grande, como o quero-quero, a ave-mor dos pagos: “Sou grito do quero-quero/ No alto de uma coxilha/ Sou herança das batalhas/ Da epopeia farroupilha/ Sou rangido de carreta/ Atravessando picadas/ Sou o próprio carreteiro/ Êra boi, êra boiada (...). Página | 248 Também os temas fundantes, por assim dizer, são repassados na letra, a demarcação do território a ponta de adaga e lança no lombo do cavalo, e finalmente uma das atividades que gerou desenvolvimento ao estado, a tropilha, criando a necessidade de integração com o país, que para muitos ainda cabe questionamento, vide que cresce a ideia politiqueira de um punhado de interesseiros e um bando de desinformados, de separar-se do Brasil, no tal “O Sul é o meu país”. Desde os temas quentes, as atividades econômicas, o perfil formativo de muitas das atuais cidades enquanto paragem de tropeiros e a possibilidade de ressignificar isso, por exemplo, via genealogia (ALVES, 2003), mesmo quando a economia dessas regiões volta a se aquecer ganhando destaque o turismo histórico. Das dinâmicas regionais próprias a Geografia, com suas singularidades, o mito fundador, os nomes, a origem, enfim, a série de enfoques possíveis no estudo dos municípios, afinal, todos nascemos em algum. A preservação da natureza. Muito antes dos atuais movimentos – parte deles – mais alvoroçados que estão de olho na verba pública do que efetivamente em princípios de ação em prol do meio ambiente, muitas letras retratam a relação do homem do campo com a natureza, o respeito aos animais, em que pese o privilégio do cusco e do pingo (cão e cavalo), a percepção dos limites dessa relação, da forma que se pode valer para meio de vida, como em “Balseiros do Rio Uruguai”, de Noel Guarany (1975): “(...) Oba, viva veio a enchente/ o Uruguai transbordou/ vai dar serviço pra gente./ Vou soltar minha balsa no rio,/ vou rever maravilhas/ que ninguém descobriu (...)”. Ou até a “História dos passarinhos”, de Gildo de Freitas (1964), na conscientização forçada pela contingência da vida: “(...) Aí eu fui recordando O que já me aconteceu Há muitos anos atrás Que a polícia me prendeu O juiz me condenou E depois de mim se esqueceu E eu pelo rádio escutava Quando os colegas cantava E aquilo me comoveu Então eu fui perguntando Quanto quer pelo bichinho (...)”. A integração latino-americana. Muito antes do Mercosul e mesmo a que sugerir isso, cantores regionalistas e não só do Rio Grande, mas também da Argentina e do Uruguai (Atahualpa Yupanqui, Alfredo Zitarrosa, Horacio Guarany e Daniel Viglietti, dentre muitos) principalmente defenderam essa conexão. Irmanados pelas desgraças de um passado histórico semelhante de escravidão e de extinção do nativo, dos povos originários, de uma matriz econômica e agrícola, mas também por um presente que nos aproxima pela desigualdade social, a pobreza e as mazelas que se postergam fruto de desgovernos na maioria dos países empesteados com a chaga da corrupção. No entanto, tal integração, mais folclórica e cultural do que propriamente efetiva, de fato mais vigorou nos três países citados, Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul (aliás, Brasil) com o estilo da milonga, por exemplo, ou do chamamé. Conforme atesta a canção “Orelhano”, de Dante Ramón Ledesma (1984): “Orelhano, ao paisano de tua estampa/ Não se pede passaporte nestes caminhos do pampa/ Orelhano, ao paisano de tua estampa/ Não se pede passaporte nestes caminhos do pampa (...)”. Também o imortal Noel Guarany, com “Potro sem dono” (1975), em tempos que impõe o freio dos passaportes à liberdade, às vezes por interesses não tão claros nesse impedimento, a metáfora do potro sugere reflexão sobre as barreiras, os murros imaginários e os reais, por exemplo, a respeito dos imigrantes: “A sede de liberdade Rebenta a soga do potro Que parte em busca do pago E num galope dispara Rasgando a coxilha ao meio Mordendo o vento na cara Bebe horizonte nos olhos Empurra a terra pra trás Já vai bem longe a figura Mostra o caminho tenaz Da humanidade sofrida Que luta em busca da paz (...)”. Os temas sensíveis: o negro, os velhos ou o agricultor. Quando a história nacional, salvo bem raras exceções, pouco se preocupava com as minorias políticas, os excluídos da narrativa que aqui é o peão, o gaúcho ou o gaucho na região mais entendida do Pampa, aqui visto como “Um Pampa = duas nações” (BRANDALISE, 2002), muitas letras denunciavam as injustiças ou adotavam o estilo de transpor ao ouvinte o imaginário do trágico no “Destino de peão” (1979), como atesta Noel Guarany: “(...) Queria tanto dar um presente pra prenda Ponta de gado, fazenda, e um montão de coisas mais Dizer palavras, que sei e penso em segredo E que só em pensar tenho medo por isso não sou capaz Eu até tive pensando em construir um ranchinho Nem que seja pequeninho, já vivi muito em galpão Se ela quisesse, que coisa linda seria Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 249 À Deus agradeceria, o meu destino de peão (...)”. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 250 De tão bela e que estimula o imaginário campeiro mesmo no mais apegado aos serviços urbanos, lá no recôndito dos sentimentos mais nostálgicos ou de idealização em tempos de extrema violência nas cidades, como se contivesse “O pampa na cidade” (AGOSTINI, 2005), que é espaço das desigualdades e da “ilusão povoeira” como canta Telmo de Lima Freitas (1971), “(...) Nesta vida guapa vivendo de inhapa, vai voltar aos pagos para remoçar/ Quem vendeu tesouras na ilusão povoeira, volte pra fronteira para se encontrar (...)”, por outro lado o “Destino de peão” ressalta a ideia de sociedade de castas, cada qual com seu destino, seu lugar na ordem social, onde a mobilidade social só era possível no sonho. O lugar do gaúcho, errante sem rumo, a pé, como o Chiru, era viver “Sem rumo” (MARTINS, 1997). O negro e os velhos estiveram presentes em canções como “Negro da gaita” de Cesar Passarinho e “O colono” de Teixeirinha. Em “Negro da gaita” (1982) “(...) (Quando o negro abre essa gaita/ Abre o livro da sua vida/ Marcado de poeira e pampa/ Em cada nota sentida) (...)”, mais adiante como que explicando as contradições sociais da escravidão assim expõe: “(...) E a gaita se fez baú para causos e canções/ Do negro que passa a vida, mastigando solidões/ E vai semeando recuerdos, por estradas e galpões (...)”. Já na de Teixeirinha (1969), “(...) Não ri seu moço daquele colono/ Agricultor que ali vai passando/ Admirado com o movimento/ Desconfiado lá vai tropicando/ Ele não veio aqui te pedir nada/ São ferramentas que ele anda comprando (...)”. Muitas são as possibilidades, em se tratando da música regional gaúcha, em nosso caso, a de verve missioneira (Cenair Maicá/Noel Guarany e Pedro Ortaça), a nativista (Leopoldo Rassier/César Passarinho e Luiz Marenco) e a tradicionalista (“Os Bertussi”/Rui Biriva e “Os Monarcas”), grosso modo de expor um cantor/grupo mais antigo e um mais recente. Aqui essa categorização não pretende prender ao estilo, apenas exemplificar, por alto, e o autor se dispõe a rever, caso necessário; possibilidades essas abertas com as canções e os grandes nomes dessa música, que estimula a transversalidade de temas prenhes da realidade social do aluno ou da cultura da qual se originou, sendo dessa forma, uma a mais, de se aperceber da história gaúcha, que talvez ao final, ganhe um sentido. Considerações finais O intento foi trazer sugestões de canções do repertório do cancioneiro tradicionalista do estado do Rio Grande do Sul, nesse caso a verve missioneira, a nativista e a tradicionalista, como forma de enfrentar os temas transversais na Educação Básica. Uma obrigatoriedade e uma dificuldade na realidade das escolas, no dia a dia dos professores da disciplina de História e, mesmo de outras áreas. Em tempos de adesão acrítica ao multiculturalismo, fez-se a defesa que se parta da valorização da cultura local para que depois se estimule a tolerância se não possível a multiculturalidade musical. A necessidade do ensino de História estar associado a realidade social do aluno naquilo que pode se pensar como uma cultura musical de sentidos, fazendo-o adentrar ao imaginário propiciado pela música regional gaúcha, induzindo o ouvido musical ao local, àquilo que porventura seus pais escutavam e um retorno à própria ideia de conhecer as origens, como forma de valorização do campo, o local de origem de muitos que estão nas cidades e, é pouco conhecido em sua essência e em suas formas de representação, foi outra das defesas e propostas do artigo. Um outro ensino de História é possível, desde que o professor esteja aberto a novas poéticas. Uma mais apurada “revisão musical” poderá contribuir para sanar as lacunas aqui apresentadas e as limitações que se avistam na escrita da “história” musical do Rio Grande do Sul aqui meramente esboçada e utilizada como forma de justificação e pano de fundo histórico, pois tributária é da nostalgia dos tempos de guri do autor. Referências AGOSTINI, Agostinho L. O pampa na cidade: o imaginário social na música popular gaúcha. Caxias do Sul: UCS, 2005. (Dissertação de Mestrado em Literatura). ALVES, Luiz A. A grande nação. Porto Alegre: EST Edições, 2003. BRANDALISE, Roberta. Gaúchos e gauchos: um pampa, duas nações. In: Anais do XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Salvador/BA – 1 a 5 set/2002, s./p. In: <http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/1064910138403930795008747 79230637455199.pdf>. Acesso em 02/01/2019. FREITAS, Gildo de. História dos passarinhos. LP O trovador dos pampas. Rio de Janeiro: Continental, 1964. 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A CONSTRUÇÃO DE UMA PERSONAGEM: ANA BOLENA (1501-1536) ENTRE AS INTERPRETAÇÕES HISTÓRICAS E LITERÁRIAS Marcos de Araújo Oliveira Introdução Ao analisarmos o crescimento de pesquisas e obras com figuras femininas nas últimas décadas, é possível visualizar a relevância deste cenário de estudos graças à consolidação do movimento feminista, fortalecido entre os anos 60 e 70 do século XX. Este movimento, além de levantar debates e problemáticas sobre os direitos da mulher, favoreceu o desenvolvimento no âmbito universitário voltado para uma produção histórica cujas personagens femininas obtivessem a representatividade merecida, dando origem e força, então, ao campo da “história das mulheres” (Scott, 1992). A partir de então, o âmbito universitário passou a produzir artigos, monografias, teses, etc..., com as perspectivas deste novo campo de estudo, alavancando, portanto, as contribuições historiográficas acerca do papel das mulheres para as construções históricas, políticas e sociais. Sobre a história das mulheres e suas lutas, Joan Scott (1992, p. 78) afirma que o campo: “questiona a prioridade relativa dada à ‘história dos homens’, em oposição a ‘história da mulher’, expondo a hierarquia implícita em muitos relatos históricos”. Ao se falar de história das mulheres, também é essencial que se considere a questão do gênero, termo muito utilizado para teorizar a problemática da diferença sexual, cujos debates tiveram forte emergência na década de 80 do século passado, contribuindo para o entendimento de fatores sociais e culturais e servindo, assim, de categoria de análise para o campo da história das mulheres. De acordo com Rachel Soihet (2011, p. 266), “A palavra gênero indica uma rejeição ao determinismo biológico no uso de termos como ‘diferença sexual’ ou ‘sexo’. [...] Além disso, o gênero define “a criação inteiramente social das ideias sobre os papeis próprios aos homens e às mulheres”. Sendo assim, o gênero se torna um termo para designar “as construções sociais” dos papeis perante os sexos. O estudo sobre as mulheres no Medievo vem ganhando grandes proporções dentro das universidades. No entanto, essa área de pesquisa é carregada de especificidades. Por exemplo, Macedo (1992) afirma que para se realizar um estudo acerca da mulher na Idade Média ocidental é preciso considerar que as informações obtidas revelam-nos um olhar masculino não neutro sobre essas mulheres, sendo que boa parte do que foi escrito sobre elas é carregado de discursos religiosos católicos, com ideais cristãos e direcionados pela ideia de ética, culpa, pecado, etc...; naturalmente, ao serem debatidos certos temas sobre a mulher no Medievo, devemos nos atentar a estas peculiaridades. Ana Bolena: a mulher e o protagonismo literário Ao nos situarmos nas biografias de famosas mulheres da Idade Média, uma despertou nossa atenção: a de Ana Bolena (1501-1536), conhecida por ser Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 253 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 254 a segunda esposa do rei da Inglaterra, Henrique VIII (1491-1547). Ana, que antes era dama de companhia de Catarina de Aragão (1485-1536), a primeira esposa do rei, despertou o desejo no monarca que anulou não só o casamento com a princesa castelhana para casar-se com Bolena, como também findou sua aliança com a Igreja Católica, fundando a Igreja Anglicana e tornando Ana rainha da Inglaterra, tendo ela grande influência perante o rei por também ser admiradora de ideias protestantes. A Inglaterra do século XVI, apesar do crescimento, firmava-se como um dos estados absolutistas de potencial ainda tardio dentro do continente europeu. Sendo assim, o fato de uma mulher ter um papel decisivo na reforma religiosa de um reino tão poderoso revela-nos uma personagem que apesar de muitas vezes ser lembrada como uma anti-heroína, revela-se ser uma figura interessante. Sobre o século XVI inglês é possível apontar que: “Não havia ainda sinais de qualquer desenvolvimento espetacular na orientação da política monárquica na Inglaterra. Foi a crise matrimonial de 1527-28, causada pela decisão real de se divorciar de sua esposa espanhola, com o subsequente impasse com o papado sobre uma questão que afetava a sucessão interna, que viria subitamente alterar toda a situação política. Para lidar com a obstrução papal — inspirada pela hostilidade dinástica do imperador ao planejado novo casamento — foi necessário recorrer a novas e mais radicais leis, e reunir apoio político nacional contra Clemente VII e Carlos V.” (Anderson, 1984, p. 119). Pode-se, então, atribuir a Ana Bolena uma parcela de contribuição em uma das maiores transformações políticas – e religiosas – da Inglaterra, em um momento crucial para o Estado absolutista inglês no século XVI, que apesar dos avanços intensos ainda era envolto na “atmosfera” medieval que só teria fim no século seguinte, pois segundo o autor Christoper Hill (1988, p. 13) “O século XVII é decisivo na história da Inglaterra. É a época em que a Idade Média chega ao fim”. Desse modo, a trajetória de Ana Bolena marcou não somente a historiografia, mas serviu de inspiração para diversos filmes, séries e principalmente impulsionou a literatura de uma forma muito forte. Em 29 de junho de 1613 (80 anos após a morte de Ana) era exibida no teatro Globe, a peça “A famosa história da vida do rei Henrique VIII”, com texto assinado pelo dramaturgo William Shakespeare (1564-1616), considerado um dos maiores escritores da língua inglesa (Möderler, 2016). O texto da peça retrata a trajetória do Rei Henrique VIII focando principalmente na questão da anulação do seu casamento para casar-se com Ana; entretanto, Ana Bolena nesta obra torna-se apenas uma personagem coadjuvante, em muitos casos tendo suas contribuições históricas pouco evidenciadas nos eventos narrados. Entre alguns dos romances históricos que retratam a figura de Ana Bolena, pode-se destacar o livro “Assassinato Real” (no original “Murder Roost Royal”) de Jean Plaidy, publicado em 1949 na Inglaterra. O livro “Assassinato Real” teve publicação no Brasil pela Editora Record em 2000. O romance nos revela uma representação de Ana Bolena na visão inglesa da primeira metade do século do século XX, destacando a relevância desta figura histórica através de uma narrativa literária que mescla ficção e história. Jean Plaidy (1906-1993) é um dos pseudônimos da escritora inglesa Eleanor Alice Burford Hibbert, autora de mais de duzentos livros, entre romances históricos, romances de mistério e não-ficção. A autora consagrou-se ao publicar a série épica “A Saga Plantageneta”, com intensa e relevante pesquisa histórica aliada às intrigas familiares dos monarcas desta dinastia. Sendo assim, a análise da representação e construção da personagem Ana Bolena através da peça de Shakespeare e do romance histórico de Jean Plaidy se justifica na problemática de como esta figura histórica é retratada na literatura, considerando, então, o final do Medievo como cenário; destacando o fato de serem obras inglesas e publicadas em um contexto pré-feminista dos anos 60 e 70 do século passado, e apresentando, portanto, parâmetros anteriores às demandas sociais realizadas por este movimento. A literatura como fonte O livro “Assassinato Real” é um romance inglês publicado em 1949. Sua publicação no Brasil aconteceu em 2000 pela Editora Record com a tradução de Sylvio Gonçalves. A obra recebeu ainda o subtítulo “A vida e a morte de Ana Bolena na corte de Henrique VIII”, estratagema para atrair a atenção de leitores, despertando o interesse para se conhecer a história trágica da rainha. O livro possui 528 páginas, sendo divido em quatro partes: “As Vontades do Rei” (p. 11-76), “O Assunto Secreto do Rei” (p. 77-168), “A Mais Feliz das Mulheres” (p. 169-412) e “Nenhuma outra vontade senão a do Rei” (Plaidy, 2000, p. 413-523). A autora Jean Plaidy ao final do livro agradece a ajuda obtida com a análise das fontes históricas que usou para a elaboração de seu romance e deixa claro: “Nos diversos pontos que as autoridades diferem, usei meu próprio julgamento, procurando manter-me o mais próximo da verdade quanto possível” (Plaidy, 2000, p. 525). Já a peça “A famosa história da vida do rei Henrique VIII” (no original The Famous History of the Life of King Henry the Eighth) foi escrita por Willian Shakespeare e encenada em 1613 no teatro Globe. O texto é dividido em cinco atos e narra fatos históricos com personagens reais como o rei Henry, Ana Bolena, Cardeal Wolsey, etc... Acredita-se que a peça tenha sido uma homenagem a rainha Elizabeth I, já que o epílogo retrata com pompa o nascimento da soberana. A Editora Peixoto Neto publicou o texto da peça em 2017 no Brasil, fazendo parte da coleção “Shakespeare de Bolso”. Ao se adotar uma metodologia na análise de uma fonte literária sobre Ana Bolena, é preciso destacar que estas obras, apesar de se apropriarem da personagem e de fatos históricos, ainda assim são narrativas ficcionais. Esse tipo de narrativa é denominada como metaficção historiográfica. “Em primeiro lugar, a metaficção historiográfica se aproveita das verdades e das Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 255 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 256 mentiras do registro histórico. [...] A segunda diferença está na forma como a ficção pós-moderna realmente utiliza os detalhes ou os fatos históricos. A ficção [...] costuma incorporar e assimilar esses dados a fim de proporcionar uma sensação de verificabilidade [...] ao mundo ficcional. [...] Como leitores, vemos tanto a coleta quanto as tentativas de fazer uma organização narrativa. A metaficção historiográfica não reconhece o paradoxo da realidade do passado, mas sua acessibilidade textualizada para nós atualmente” (Hutcheon, 1991, p. 152). Essa construção de metaficções historiográficas busca, então, unir literatura com história, sendo que os discursos nelas implícitos são frutos do seu próprio contexto social de produção e almejam atingir a um público, produzindo uma narrativa do passado. Neste sentido, Antônio Celso Ferreira (2013, p. 67) afirma que: “Toda ficção está enraizada na sociedade, pois é em determinadas condições de tempo, espaço, cultura e relações sociais que o escritor cria seus mundos”. Sendo assim, na operação historiográfica da análise das fontes é importante interrogar suas problemáticas, seu papel social e sua proposta de representação de uma figura histórica feminina, observando esses aspectos no romance, pois, como explica Celso Ferreira (2013, p. 74): “Cabe àqueles que trabalham com a fonte literária, em vez de enquadrá-la em algum gênero pressuposto, interrogar a que público ela se destina e que papel cumpre nas condições sociais e culturais de uma época”. Dessa forma almeja-se analisar brevemente a representação de Ana Bolena nestas duas obras distintas, que nas suas narrativas ficcionais expressam elementos historiográficos relevantes e úteis para a formulação desta pesquisa. História e literatura: o resgate a memória de Ana Bolena Na Tese de Doutorado “Ficções de Anna Bolena: Na História e na Literatura Contemporânea” de Flávia Adriana Andrade (2013), Doutora em Letras no campo de Literatura Comparada, é possível identificar que os discursos construídos a respeito de Ana Bolena foram influenciados diretamente por diversos aspectos próprios de seus/suas autores(as), tais como: as diferenças de gênero, pertencimento nacional, as peculiaridades dos paradigmas discursivos (história e literatura), etc... Segundo Andrade: “A focalização de diferentes paradigmas discursivos propiciou a investigação de interface entre literatura e História, um aprofundamento dos estudos, dos diálogos e intersecções que se estabelecem entre as duas disciplinas. O estudo das relações entre literatura e história, que proponho aqui, parte do pressuposto de que ambas são espécies diferenciadas de ficção” (Andrade, 2013, p. 21). Andrade (2013), em sua análise, contribui ao nos apontar que as percepções de Ana dependem do contexto no qual está inserida sua representação, seja no século XVI, XX ou até na contemporaneidade. Além disso, devem-se observar as implicações ideológicas e até mesmo a alteridade do autor do discurso acerca dessa personagem. É importante que o historiador identifique esses traços diante do paradigma que se é analisado, seja na história ou na literatura, pois ambas dependem da visão de seus autores, não estando isentas de interpretações pessoais ou da imaginação para a construção da imagem dessa personagem, o que resulta na legitimação desses discursos. Ao final da tese, Andrade (2013) explica que os discursos históricos e literários, se apropriam da figura de Ana Bolena para a realização de um resgate e reabilitação da memória apagada, silenciada, fragmentada e demonizada dessa personagem histórica. Esse procedimento de resgate é realizado quando ambos os discursos se apropriam de informações e aspectos de Ana nunca explorados (fé, educação, participação na política, etc) e através dessa focalização conferem a Ana Bolena uma nova ótica, descontruindo, assim, seu envilecimento. Conforme as palavras da autora: “Os textos estudados mostram que a sociedade patriarcal e católica, transformou Anne em objeto de vários discursos depreciativos. Moldando, dessa forma, a percepção com relação a ela e formando um arquivo no inconsciente coletivo que determina o que é pensado ou falado sobre ela. Ao construir representações da personagem em bases diferenciadas das tradicionais, os textos do corpus agem no sentido de: 1. Desconstruir as imagens depreciativas; 2. Remodelar a percepção da personagem; 3. Desarticular a imagem negativa cristalizada no inconsciente coletivo”. (Andrade, 2013, p. 283). Ana Bolena por muito tempo foi uma figura representada de forma muito negativa pela historiografia, herança das visões dos seus contemporâneos que a demonizavam. Com as conquistas do feminismo e as novas perspectivas da história das mulheres, essa personagem ganhou novas representações no resgate de sua identidade. A autora ainda enfatiza que o romance histórico contemporâneo tem como função “complementar a informação histórica”: “As diferenças de paradigma discurso, histórico e literário, também provocam diferenças essenciais entre os textos de romancistas e historiadores. [...] O romance de cunho histórico contemporâneo tem como uma de suas características essa aspiração de complementar a informação histórica, apresentando versões possíveis daquilo que a história, por sua limitação às fontes, não tem como alcançar”. (Andrade, 2013, p. 285). Ana Bolena: das sombras ao protagonismo Embora Ana Bolena seja uma figura central na historiografia, vemos que na literatura ela vem se destacando constantemente, atribuindo-se assim uma nova ótica sobre o papel histórico dessa personagem, como no livro “Assassinato Real”, que a retrata nas suas ações, pensamentos e comportamentos – enquanto mulher perspicaz, inteligente e audaciosa – sendo estes aspectos decisivos para a sua glória e declínio; ou na peça “A famosa história da vida do rei Henrique VIII” que mesmo dando pouco Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 257 protagonismo a Ana, revela-nos uma personagem sedutora, seguidora da reforma religiosa e disposta a dar um filho ao rei. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 258 Ao analisarmos a peça “A famosa história da vida do rei Henrique VIII”, nota-se que Shakespeare aborda a questão da anulação do casamento real dando maior visibilidade a figura de Henrique do que de Ana em si. De início, a personagem é apresentada como a dama de companhia da rainha, apontada como adorável e que logo desperta a atenção do rei. Em uma conversa com a personagem velha dama, Ana é questionada se almeja ser rainha e a jovem nega tal desejo, pois não ambiciona este posto (Shakespeare, 2017 p. 66). Já no romance “Assassinato Real”, apesar de não corresponder aos sentimentos amorosos do rei, a donzela sente-se atraída pela possibilidade de ser soberana e entrega-se a esta ambição (Plaidy, 2000, p. 137). No romance “Assassinato Real” Ana é muito mais ativa no processo de reforma religiosa, incentivando Henrique a ler obras protestantes (Plaidy, 2000, p. 178). Já na peça de Shakeapeare, a jovem não tem papel ativo neste aspecto, mas o fato de ser admiradora do protestantismo é mencionado com desconfiança por outros personagens (Shakespeare, 2017, p. 98). Nota-se, porém, que as duas obras são semelhantes ao abordarem a glória de sua coroação, destacando sua ascensão enquanto rainha e ambas defendem a insatisfação, a princípio, de Henrique VIII, em não conseguir seu herdeiro homem com Ana. Entretanto, a peça ”A famosa história da vida do rei Henrique VIII” romantiza muito mais o nascimento de Elizabeth, já que esta se tornaria a rainha responsável pela “Era de ouro” inglesa, por quem Shakespeare nutria grande admiração. A construção da personagem representa assim as próprias interpretações de seus autores em relação aos fatos vivenciados por ela. Nota-se, portanto, uma tentativa de resgate ao passado por meio da narrativa ficcional, que utiliza os personagens históricos para dar vida ao enredo literário, como no romance histórico de Jean Plaidy ou no roteiro de Shakespeare. No caso da peça de teatro, o dramaturgo inglês opta por tonar Henrique VIII o grande foco da sua peça, sendo Ana Bolena retratada como a paixão e a esperança do rei para obter o herdeiro que reinaria na Inglaterra, onde a jovem dama assume as virtudes elogiáveis desta época para o sexo feminino: doçura, beleza e maternidade. Já na obra de Jean Plaidy, Ana Bolena destaca-se como uma figura feminina corajosa, inteligente, sedutora e ambiciosa, conquistando poder e influência na corte, seguindo as perspectivas da autora. É possível apontar então que essas duas metaficções historiográficas abordam a representação de Ana Bolena de maneiras distintas, construindo a personagem de acordo com as próprias visões e contextos sociais de seus autores. Enquanto Shakespeare, no século XVII, retrata uma Ana Bolena muito mais coadjuvante, Jean Plaidy, na primeira metade do século XX, ousa ao dar protagonismo a esta figura histórica que marca até hoje o imaginário universal. Considerações finais Nota-se, que os contextos históricos em que as narrativas literárias foram escritas e as interpretações dos autores sobre os fatos e as figuras históricas influenciam diretamente na construção de suas metaficções historiográficas, moldando a personagem Ana Bolena de acordo com estas especificidades contextuais. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 259 As escolhas de narrativa e as ações de Ana Bolena vão ganhando destaque conforme os trabalhos de Shakespeare e de Jean Plaidy se desenvolvem, evidenciando-se que estas obras, apesar de não terem compromisso com a verdade por mesclarem ficção e história, demonstram os esforços de seus autores em retratarem com fidelidade a história, sendo que ambas as manifestações literárias são produtos culturais de seu próprio tempo. Vemos assim que as possibilidades para o estudo da representação de Ana Bolena em obras literárias resultam em um resgate da memória, muitas vezes depreciada, dessa importante personagem, expandindo, assim, a interdisciplinaridade entre literatura e história, as fontes de estudo para o campo da história das mulheres e os debates sobre o poder feminino no Medievo. Referências Fontes PLAIDY, Jean (Eleanor Alice Burford Hibbert). Assassinato Real – A vida e morte de Ana Bolena na corte de Henrique VIII. Rio de Janeiro: Record, 2000. 528 p. SHAKESPEARE, William. A famosa história da vida do rei Henrique VIII. São Paulo: Peixoto Neto, 2017. 200 p. Bibliografia ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 1984. ANDRADE, Flávia Adriana. Ficções de Anna Bolena, na história e na literatura contemporâneas. 2013. 390 f. Tese (Doutorado) – Instituto de Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013. FERREIRA, Antônio Celso. Literatura – A fonte fecunda. In: LUCA, Tania Regina de; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2013. p. 61-92. HILL, Christopher. Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa. In: O eleito de Deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 11-32. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: História, Teoria, Ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 331 p. MACEDO, José Rivair. Introdução. In:______. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1992. p. 9-13. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS MÖDERLER, Catrin. 1613: Estreia de "Henrique 8º" de Shakespeare. jun. 2018. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/1613-estreia-de-henrique-8%C2%BA-deshakespeare/a-297909>. Acesso em: 01 mar. 2019. Página | 260 SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História. São Paulo: Unesp, 1992. p. 63-95. SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Rio de Janeiro: Elsevier Editora Ltda., 2011, p. 263-283. DISCUSSÕES SOBRE PATRIMÔNIO LOCAL E REGIONAL NO ENSINO DE HISTÓRIA Marcos Rafael da Silva Tathianni Cristini da Silva A presente comunicação relata uma experiência pedagógica proposta aos alunos do curso de História, e que consistiu em visitas técnicas realizadas no centro histórico de Santos-SP e redondezas. Tem por objetivo salientar a importância deste tipo de atividade didático-pedagógica tanto para formação dos futuros docentes quanto para o exercício da cidadania, que passa necessariamente pelo conhecimento e compreensão da história local. Verificou-se que a maioria dos alunos, nascidos ou há muito na cidade, não conheciam os espaços de cultura da cidade, tampouco as edificações patrimonializadas. Nesse sentido, percebe-se a necessidade de uma constante educação patrimonial que incentive a prática do estudo do meio, tanto no âmbito do ensino superior, como do ensino básico, espaço para o qual eles estão sendo formados. De acordo com Circe Bittencourt, a educação patrimonial deve integrar os planejamentos escolares e, especialmente, a componente curricular História, envolvendo o desenvolvimento de atividades lúdicas e de ampliação do conhecimento sobre o passado e sobre as relações que cada sociedade estabelece com ele. O professor deve suscitar nos alunos indagações do tipo: o que é preservado? Como é preservado? Porque é preservado? Por quem é preservado? Essas perguntas têm por objetivo refletir sobre a construção da memória social e indagar, ainda, se todos os setores e classes sociais têm sua memória reconhecida. (Bittencourt, 2008). Além disso, cumpre à discussão do patrimônio e da memória o papel de desfazer a percepção equivocada de que somos “um país sem memória”, cabendo questionar qual memória tem sido esquecida e como recuperar um passado que possa contribuir para atender às reivindicações de parcelas consideráveis da população às quais tem sido negado, recorrentemente, o “direito à memória”. Esta comunicação pretende levantar questões a partir de uma experiência concreta de estudo de meio como elemento propositivo de reflexões voltadas para o exercício da cidadania e a construção de uma sociedade democrática. O primeiro problema que o professor deve refletir na prática pedagógica que envolve o estudo de meio e o patrimônio é com a noção de “história local”. Esta noção, embora frequente, não tem sido devidamente tratada do ponto de vista teórico e metodológico. O que é “local”, “regional”, “nacional”, “global”? Tais perguntas devem levar o historiador a indagar sobre os conteúdos dessas noções, lembrando que as mesmas não são dados da realidade, mas construções historicamente situadas. Como lembra Rosa Maria Godoy Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 261 Silveira, a relação entre História e região é, em última instância, a relação entre temporalidade e espacialidade. Tal relação não parece, segundo ainda a autora, óbvia nos estudos históricos no Brasil. Diz a historiadora: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 262 “Nossa produção historiográfica ignora completamente a problemática em termos de seu tratamento teórico-metodológico. Praticamente, não existem reflexões sistematizadas sobre as várias abordagens que se tem dado à relação Região-História nos trabalhos empíricos, e sobre as implicações epistemológicas e políticas de tais enfoques.” (SILVEIRA, 1990, p.17). Ou como diz o historiador Durval Muniz de Albuquerque, no mesmo sentido, embora mais recentemente: “A região aparece como um dado prévio, como um recorte espacial naturalizado, a-histórico, como um referente identitário que existiria per si, ora como um recorte dado pela natureza, ora como um recorte político-administrativo, ora como um recorte cultural, mas que parece não ser fruto de um dado processo histórico. A história ocorreria na região, mas não existiria história da região. A história da região seria o que teria acontecido no interior de seus limites, não a história da constituição destes limites.” (2008, p.55). Há ainda uso problemático, e às vezes equivocado, dos conceitos de “Espaço” e “Região”, caros à Geografia, por parte dos historiadores. (SILVEIRA, 1990, p.18). Um cuidado que se deve ter com o estudo da história local é a identificação do conceito de espaço. É comum falar em história local como a história do entorno, do mais próximo, do bairro ou cidade. Quem mais se dedica aos estudos dessa natureza são os geógrafos, e estes fazem algumas advertências aos historiadores que não se preocupam com o espaço e os conceitos dele decorrentes. A reflexão sobre o espaço é imprescindível para os estudos de história da região ou da história local, insistem os geógrafos. E um dos conceitos fundamentais atualmente trabalhados por eles é o de lugar. (SILVEIRA, 1990, p.17). O geógrafo Milton Santos apresentou em vários de suas obras importante reflexão sobre espaço geográfico, com uma contribuição preciosa sobre o conceito de lugar. (1991). Cada lugar tem suas especificidades e precisa ser entendido por meio da série de elementos que o compõem e de suas funções. Milton Santos sustenta, no entanto, que o lugar só pode ser compreendido dialeticamente levando-se em conta as relações de produção nele estabelecidas e sendo concebido como uma produção histórica. A história, afirma, “atribui funções diferentes ao mesmo lugar. O lugar é um conjunto de objetos que têm autonomia de existência pelas coisas que o formam – ruas, edifícios, canalizações, indústrias, empresas, restaurantes, eletrificação, calçamentos –, mas que não têm autonomia de significação, pois todos os dias novas funções substituem as antigas, novas funções se interpõem e se exercem.” (SANTOS, 1991, p. 52). Esse autor ressalta que cada lugar é diferente de outro, tem sua singularidade, mas é fração de uma totalidade. Ao analisar o atual processo de globalização, pressupõe as relações de cada lugar com a expansão das multinacionais, com a nova forma de atuação do Estado e com a organização social. Afirma assim que as relações de produção atuam na transformação dos lugares, embora seja preciso averiguar a dinâmica dos usos de cada espaço, como ocorre a ação concreta do capitalismo globalizado nessa fração do espaço total. (SANTOS, 1991, p. 172). A história do “lugar” como objeto de estudo ganha, necessariamente, contornos temporais e espaciais. Não se trata, portanto, ao se proporem conteúdos escolares da história local, de entendê-las apenas na história do presente ou de determinado passado, mas de procurar identificar a dinâmica do lugar, as transformações do espaço, e articular esse processo às relações externas, a outros “lugares”. (SANTOS, 1991, p. 172). Ainda sobre a problemática conceitual do “lugar”, da “região”, e porque não, do “território”, diz o geógrafo Marcelo Lopes de Souza: “No caso do conceito de lugar, não é a dimensão do poder que está em primeiro plano ou que é aquela mais imediatamente perceptível, diferentemente do que se passa com o conceito de território; mas sim a dimensão cultural-simbólica e, a partir daí as questões envolvendo as identidades, a intersubjetividade e as trocas simbólicas, por trás da construção de imagens e sentidos dos lugares enquanto espacialidades vividas e percebidas, dotadas de significado [...].” (SOUZA, 2013, p. 118). Em outras palavras, “o lugar está para a dimensão cultural-simbólica assim como o território está para a dimensão política”. (Souza, 2013). Isso não quer dizer, no entanto, que a dimensão do poder, da política, esteja ausente do conceito de lugar: “[...] uma região ou um bairro é, enquanto tal, um espaço definido basicamente, por identidade e intersubjetividades compartilhadas [...], ambos são, portanto, “lugares” [...]: espaços vividos e percebidos. Porém, é lógico que um bairro e, mais provavelmente ainda, uma região igualmente pode ser nítida ou intensamente um território: seja em função de regionalismos e bairrismos, dando origem a territórios informais, seja mesmo porque foram “reconhecidos” pelo aparelho de Estado como unidades espaciais formais de administração ou planejamento. Isso sem contar que hipotéticos movimentos sociais, se ali passarem a exercer, fortemente um contrapoder de resistência ou insurgente, podem também definir um tipo de territorialidade alternativa, a atritar com a estatal.” (SOUZA, 2013, p. 116). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 263 Feitas as ressalvas do ponto de vista da Geografia, algumas preocupações ainda devem acompanhar o historiador que se interessa pela região, ou por qualquer recorte espacial. Uma vez mais recorremos a Durval Muniz de Albuquerque: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 264 “o historiador [...] deve estar atento para os afrontamentos políticos, as lutas pelo poder, as estratégias de governo, de comando, os projetos de domínio e de conquista que aí estão investidos, que fizeram parte de sua instalação e demarcação, que estabeleceram as fronteiras e os limites que agora podem reivindicar como sendo naturais, ancestrais, divinos ou legítimos. As regiões, portanto, não pré-existem aos fatos que as fizeram emergir; as regiões são acontecimentos históricos, são acontecimentos políticos, estratégicos, acontecimentos militares, diplomáticos, são produtos de afrontamentos, de disputas, de conflitos, de lutas, de guerras, de vitórias e de derrotas. Falar em região implica em se perguntar por domínio, por dominação, por tomada de posse, por apropriação. Falar em região é também falar em subordinação, em exclusão, em desterramento, em banimento. Falar em região é se referir àqueles que foram derrotados em seu processo de implantação, àqueles que foram excluídos de seus limites territoriais ou simbólicos, àqueles que não fazem parte dos projetos que deram origem a dado recorte regional. Falar de região implica em reconhecer fronteiras, em fazer parte do jogo que define o dentro e o fora: implica em jogar o jogo do pertencimento e do não pertencimento.” (2008, p. 58). E autor continua: “A história do regional não pode ser uma história celebrativa, monumentalizadora, veiculadora de mitos e reafirmadora de identidades. Ela deve ser capaz de introduzir o estranho em nosso próprio ser, ela deve ser capaz de produzir o afastamento do que se vê, se diz e se sente como próximo.” (2008, p. 58). É importante, ainda, ter clara a diferença do regionalismo como método de investigação e como concepção interpretativa. (CARDOSO, 1990, p.43). Assim, é preciso partir da definição de regionalismo, cujo referencial analítico que o dá sentido é a teoria dos sistemas, ou seja, a integração de partes que formam um todo. “A região só se entende, então, metodologicamente falando, como parte de um sistema de relações que ela integra. Deve, portanto, ser definida por referência ao sistema que fornece seu princípio de identidade. Assim, pode-se falar tanto de uma região no sistema internacional, como de uma região dentro do estado nacional ou dentro de uma das unidades de um sistema político federativo.” (CARDOSO, 1990, p.43). O que não se pode fazer, defende Vera Alice Cardoso Silva, é perder de vista que a significação analítica e a utilidade explicativa do conceito de região dependem de sua referência constante a um sistema global de relações do qual foi recortada. (CARDOSO, 1990, p.44). Por outro lado, a história regional não substituiu a história de processos estruturais ou a história das mudanças sociais e política. E tampouco deve ser vista como fornecedora de subsídios que, somados, resultaria naturalmente numa “História nacional” ou numa “História Geral”. Ou seja, uma antologia de histórias regionais não produziria uma “história nacional”. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 265 Destarte, o regionalismo, para fecharmos a reflexão da autora referenciada, configura o objeto da História Regional, e assim oferece elementos essenciais para a História Comparada. Como enfoque interpretativo o regionalismo aponta para uma complexidade de focos de articulação da ação coletiva, nem sempre inteiramente explicável por referências às classes e à estratificação econômica nas sociedades modernas. E preocupada com esta questão, a historiadora Maria de Lourdes Monaco Janotti, em texto justamente intitulado “Historiografia: uma questão regional?”, fala de “recusa de uma visão regionalista”, por parte dos historiadores do eixo Rio-São Paulo. Com propriedade escreve a historiadora: “O caráter da evolução histórica nacional, delineado por estruturas de produção colonial, neocolonial e, de forma mais abrangente, capitalista, gerou a centralização dos polos dinâmicos da economia em algumas áreas geográficas do país, atribuído o termo regiões aos espaços geoeconômicos que não participavam de sua prosperidade. Portanto, o regional passou a ser sinônimo de marginalidade e/ou decadência. [...] Dessa maneira, a primazia dispensada pelos estudos históricos aos polos dinâmicos passou a identificá-los com a própria história do Brasil, que parece apenas se desenvolver ora em uma, ora em outra área, reproduzindo assim, claramente, a desarticulação econômica interna.” (JANOTTI, 1990, p. 85-86). Também Durval Muniz Albuquerque, anos depois, chamou a atenção dos estudiosos do regional para a questão: “No Brasil o lugar de historiador regional quase sempre é assumido por aqueles historiadores que vivem fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, que se consideram, portanto, afastados do centro da produção historiográfica nacional, daqueles que fariam história em nome da nação, que fariam a História do Brasil.” (ALBUQUERQUE, 2008, p. 65). O que confirma a persistência desta tendência. Não obstante esse quadro problemático da historiografia brasileira, as propostas curriculares e algumas produções didáticas têm introduzido a história do cotidiano e a história local, opção que não é recente, de acordo com Circe Maria Bittencourt. Segundo a autora, a associação entre cotidiano e história de vida dos alunos possibilita contextualizar essa vivência em uma vida em sociedade e articular a história individual dos alunos a uma história coletiva. (Cf. BITTENCOURT, 2008, p. 164-165). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Por fim, queremos reforçar que o estudo do meio é, com todas as suas dificuldades operacionais, a prática escolar que possibilita outra relação entre saber histórico e saber geográfico, isto é, entre tempo e espaço. (BITTENCOURT, 2008, p. 172). Página | 266 Referências ALBUQUERQUE, Durval Muniz. O objeto em fuga: algumas reflexões em torno do conceito de região. In: Fronteiras, Dourados-MS, v. 10, n. 17, p. 55-67, Jan./jun. 2008. BITTENCOURT, Circe Maria. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2. Ed. São Paulo: Editora Cortez, 2008. JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Historiografia: uma questão regional? In: SILVA, Marcos Antonio. República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990. SANTOS, Milton. As metamorfoses do espaço habitado. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1991. SILVA, Vera Alice Cardoso. Regionalismo: o enfoque metodológico e a concepção histórica. In: SILVA, Marcos Antônio. 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A população brasileira manteve a tendência de envelhecimento dos últimos anos e ganhou 4,8 milhões de idosos desde 2012, superando a marca dos 30,2 milhões em 2017, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Características dos Moradores e Domicílios, divulgada recentemente pelo IBGE (2018). A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2015) alerta a respeito das estatísticas que revelam o aumento do número de pessoas na terceira idade, e das consequências positivas do fato de haver uma maior população idosa, e do acelerado crescimento da quantidade de pessoas com mais de 60 anos, que dobrou nos últimos 30 anos e deve chegar a dois bilhões até 2050 no mundo. O Brasil, até 2025, será o sexto país do mundo com o maior número de pessoas idosas. Também a Organização das Nações Unidas (ONU, 2012, p. 1), assevera que, “o número de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos vai mais que dobrar no mundo até 2050, passando das atuais 900 milhões para cerca de 2 bilhões”. No Brasil, a representatividade de pessoas idosas vem aumentando consideravelmente. Em 2012, a população com 60 anos ou mais era de 25,4 milhões. Os 4,8 milhões de novos idosos em cinco anos correspondem a um crescimento de 18% desse grupo etário; as mulheres são 16,9 milhões (56% dos idosos), enquanto os homens idosos são 13,3 milhões (44% do grupo) (IBGE, 2018). Levantamento do IBGE (2018) apontou que a região Sul é a que envelhece mais rápido no país. A região Sul do Brasil é a menor das regiões brasileiras, mas a terceira mais povoada e com uma grande quantidade de habitantes por área. Com uma área de 576.409 km² e apenas três estados: Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A população da região Sul, segundo estimativas do IBGE (2018) para o ano de 2013, é de 28.795.762 habitantes. O estado do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro possuem o maior número de idosos do Brasil, ambas com 18,6% de suas populações dentro do grupo de 60 anos ou mais. Entre 2012 e 2017, a quantidade de idosos cresceu em todas as unidades da federação. O Amapá, por sua vez, é o estado com menor percentual de idosos, com apenas 7,2% da população (IBGE, 2018). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 267 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 268 Segundo Peixoto (2004), o Brasil não é mais um país de jovens, a população idosa (com mais de 60 anos) ocupa a maior faixa de crescimento se comparando com o restante da população. O envelhecimento é um processo natural, embora nem todos o vivam da mesma forma, o mesmo está estritamente relacionado com as formas materiais e simbólicas que identificam socialmente cada indivíduo. O processo de envelhecimento difere dependendo do grupo social, identidade de gênero, orientação sexual e raça que a pessoa pertence. Para Netto (2011), o aumento acentuado da população idosa trouxe consequência para a sociedade, e também para os indivíduos que compõem esta faixa etária, como problemas psicológicos, sociais, culturais e econômicos. Se por um lado a sociedade moderna confrontasse com o crescimento massivo da população idosa, de outro omite-se a esta mesma população ou adota atitudes preconceituosas, desacelerando destarte a implementação de ações que visam minorar o pesado fardo dos que adentram na terceira idade. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2008) destaca que, na atualidade, a maioria dos cidadãos idosos residem em meios urbanos. Corroborando com esse dado, estudos de Jordão e Silva (2014) demonstram que 84,35% da população brasileira vivem em áreas urbanas. Tal situação indica que as cidades precisam voltar a atenção para as circunstâncias e características locais que este envelhecimento populacional provoca, além do impacto futuro no desenvolvimento urbano que esse público formará (BUFFEL E PHILLIPSON, 2016). Outros estudos, como os de Porto e Rezende (2016) demonstram que os ambientes influenciam as pessoas, no que se refere a bem-estar, comportamentos, emoções e capacidades e sugerem a readequação destes ambientes para proporcionar maior qualidade de vida a seus cidadãos. Para os autores, em relação à pessoa idosa, os laços são mais significativos com o seu espaço e contexto, entretanto, concomitantemente, a interação com o local vai declinando, decorrente do próprio processo de envelhecimento. Em vista disso, a OMS (2008) justifica a necessidade e a relevância de as cidades proporcionarem estrutura e oportunidades para que seus habitantes se mantenham bem e ativos, defendendo a concepção de envelhecimento ativo, destacando a independência, a valorização do idoso pelo seu potencial físico, social e mental; participação na sociedade; respeito às suas necessidades, capacidades e desejos, enquanto lhes garante segurança, proteção e cuidados adequados. Faz – se necessário que os ambientes, onde os idosos residem e convivem devam ser adaptados às suas necessidades, visando lhes garantir vida saudável bem-estar, segurança, envolvimento social e independência. Assim, uma cidade e comunidade amigável à pessoa idosa deve proporcionar saúde, segurança e participação para os cidadãos de todas as idades por meio de políticas, ambientes, estruturas e serviços, que apoiem e possibilitem às pessoas a envelhecer ativamente. Por sua vez, a cidade considerada amiga da pessoa idosa é aquela que: a) “reconhece a ampla gama de capacidades e recursos entre os idosos; b) prevê e responde, de maneira flexível, às necessidades e preferências relacionadas ao envelhecimento; c) respeita as decisões dos idosos e o estilo de vida que escolheram; protege aqueles que são mais vulneráveis e; e) promove a sua inclusão e contribuição a todas as áreas da vida comunitária” (WHO, 2007). Preocupada, então, com o envelhecimento populacional, a OMS elaborou um documento orientador para políticas públicas, em 2002, denominado Marco Político do Envelhecimento Ativo, embasado por produção teórica e estudos epidemiológicos multidimensionais sobre os determinantes sociais da saúde. Sua abordagem do “curso de vida” revela acentuada “… preocupação com a manutenção de boas relações intergeracionais e com a qualidade de vida de indivíduos de todas as idades e ao longo de toda a vida (AVAES e ILC-BRASIL, 2016, p. 1). Em 2007, a OMS lançou o “Global age-friendly cities: a guide” (WHO, 2007), construído a partir dos fundamentos de “Envelhecimento ativo” da OMS (WHO, 2002) e traduzido para o português, como Guia Global Cidade Amiga do Idoso, com o objetivo de orientar o desenvolvimento de ambientes que favorecem o envelhecimento ativo. Este Guia propõe um instrumento de autoavaliação e de mapeamento para a evolução de melhorias, possibilitando detectar principais informações sobre o bem-estar do idoso, bem como elencar aspectos fortes e fracos da cidade, mediante o diálogo com a população idosa e profissionais que atuam com esta população (OMS, 2008). Conforme destacado por alguns autores, dentre eles, Graeff, Domingues e Bestetti (2012), a metodologia proposta não é rígida, adapta-se de acordo com o contexto local, fundamentação teórica de seus idealizadores e pela natureza do objeto. O guia tem como objetivo sensibilizar e orientar sobre como as cidades podem se tornar acolhedoras e promotoras de bem-estar a todas as pessoas, em especial, às pessoas idosas, assim como e fornecer parâmetros para formar um padrão universal como guia de autoavaliação da cidade. As características consideradas amigáveis ao acolhimento são definidas pelo processo de escuta de opiniões das pessoas idosas da cidade, uma vez que estas apresentam necessidades diferenciadas à medida que envelhecem, dessa forma, revelando um aspecto específico das experiências e vivências em área urbana. Para isso, é imprescindível que os gestores locais, visando tornar a cidade e a comunidade amigável às pessoas idosas devem rever políticas públicas, bem como realizar adaptações nas estruturas e serviços da cidade para proporcionar o bem-estar de sua população, e especialmente, promover a inclusão de pessoas idosas com diferentes necessidades e graus de capacidades. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 269 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 270 Para a elaboração do Guia Global, a OMS desenvolveu um protocolo de pesquisa denominado Protocolo de Vancouver (questionário fechado com 72 questões e roteiro de grupo focal, por meio dos quais pessoas idosas, cuidadores de idosos e prestadores de serviços identificavam na comunidade, pontos fracos e fortes em relação à qualidade de vida dos idosos) (OMS, 2008). O protocolo de Vancouver propõe uma abordagem metodológica qualitativa com a realização de grupo focal como técnica de coleta de dados, e apresenta um roteiro de questões composto por oito tópicos que servem para elaborar um diagnóstico das condições das cidades necessárias para se identificar as vantagens e as barreiras em se viver em áreas urbanas e, em especial, verificar se as necessidades das pessoas idosas estão sendo atendidas, quais sejam: 1) prédios públicos e espaços abertos; 2) transporte; 3) moradia; 4) respeito e inclusão social; 5) participação social; 6) comunicação e informação; 7) participação civil e empregos, e 8) apoio da comunidade e serviços de saúde nas cidades, considerando e respeitando os limites e as potencialidades dos idosos visando oferecer facilidades em se viver com segurança, participação social e qualidade de vida (WHO, 2007). Participaram desta pesquisa inicial 33 cidades no âmbito mundial, 22 países, considerados desenvolvidos e em desenvolvimento, incluindo megacidades como Tóquio (Japão) e Londres (Inglaterra), e pequenas cidades, como Mayagüez (Porto Rico) e Montego Bay (Jamaica). Na América do Sul, fizeram parte Rio de Janeiro (Brasil) e La Plata (Argentina), envolvendo uma amostragem total de 1.500 idosos (OMS, 2008). No Brasil, as quatro cidades brasileiras certificadas pela OMS no Brasil como Cidades e Comunidades Amigáveis com a Pessoa Idosa pertencem à região sul, e, são, respectivamente, Veranópolis, Porto Alegre e Esteio no Rio Grande de Sul e Pato Branco, no Paraná. Para a obtenção da Certificação da cidade de Pato Branco-PR, no Programa Cidades e Comunidades Amigáveis com a Pessoa Idosa, da Organização Mundial de Saúde, OMS (2008), vários atores sociais foram protagonistas do processo, dentre eles, a Prefeitura Municipal de Pato Branco-PR, o Rotary Club de Pato Branco, a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Campus Pato Branco e a comunidade em geral. Para isso, a trajetória compôs-se de várias etapas desde a sensibilização da sociedade até ações futuras, as quais envolveram as parcerias dos atores fundamentais como as pessoas idosas residentes no município, pesquisadores, líderes de instituições que atuam com pessoas idosas, poder público municipal e federal, entidades como os clubes de Rotary, Conselho e associações de idosos, entidades filantrópicas e entidades privadas. Contudo, ao se analisar o protocolo de pesquisa denominado Protocolo de Vancouver, com orientações do Guia Global, notou-se a dificuldade de aplicá-lo em sua integralidade, pelas razões que seguem: o original encontra-se em Inglês, é muito extenso (19 páginas), as questões relacionadas aos oito eixos são muito extensas, carece de padrão para as respostas, carece de informações sobre o peso atribuído às respostas, e especialmente, porque diversas questões não são adequadas às cidades brasileiras, carece de explicações metodológicas de aplicação do questionário e do grupo focal. Carece, especialmente, de uma forma mais dinâmica de aplicação do questionário e do grupo focal. Da forma como se apresenta, não é possível aplicá-lo no Brasil. Em vista disso, pela expertise desenvolvida pela Equipe Multidisciplinar de Pesquisadores (e colaboradores) da UTFPR, esta elaborou o próprio projeto, aprovando-o no CEP da instituição. Criou aplicativo inédito para a coleta de dados a campos, assim como a análise dos dados quantitativos, pela Cartografia de Síntese (MARTINELLI 1991, 2003; SAMPAIO, 2012; BUFFON, 2016). Já o tratamento dos dados qualitativos amparam-se teórica e metodologicamente no Método da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2009), e pelo grande volume de informações, utilizam o Software ATLAS.Ti, pela possibilidade de articulações entre diferentes elementos, especialmente pela possibilidade de analisar os dados qualitativos em menor tempo e com maior confiabilidade; auxilia no processo de análise somente naquilo que o pesquisador estabelece para o processo analítico. Estes podem agregar as diferentes ferramentas e a associação entre elas, por exemplo, as codificações e suas respectivas frações de texto selecionadas durante a análise. O software Atlas.ti (Qualitative Research and Solutions) é um exemplo de CAQDAS, utilizado nas mais diversas áreas de investigação, para a análise qualitativa de dados. Referências ATLAS.TI. Atlas.ti scientific software development GmbH. Qualitative data analysis. Version 7.5.10. Berlin; 2015. AVAES. Associação Veranense de Assistência em Saúde; ILC- Brasil. Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-Brasil). Veranópolis – Cidade Para Todas As Idades ‘Envelhecimento Ativo: Criando um Município Para Todas As Idades’ A Medida da Linha de Base. Veranópolis, RS, 2016. BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal; Edições 70, LDA, 2009. BUFFEL, T. & PHILLIPSON, C. Can global cities be “age-friendly cities”? Urban development and ageing populations. 2016. Cities, 55, 94–100. [Acesso em 22 de ago/2018]. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.cities.2016.03.016. BUFFON, E. A. M. A leptospirose humana no AU-RMC (Aglomerado Urbano da Região Metropolitana de Curitiba/PR) – risco e vulnerabilidade socioambiental. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências da Terra, Programa de Pós-Graduação Geografia, 2016, 171f. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 271 GRAEFF, B.; DOMINGUES, M. A.; BESTETTI, M. L. T. Bairro amigo do idoso no Brás: percepções sobre os migrantes internacionais. Revista Temática Kairós Gerontologia. São Paulo, v. 15, n. 6, p. 177-196, 2012. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 272 IBGE. Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação. [Acesso em 28 de ago/2018]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/ 2018. JORDÃO, H. M.; SILVA, M. R. C. e. Intervenções urbanas e suas precariedades. Estudos Vida e Saúde, Goiânia, v. 41, n. especial, p. 81 – 92, 2014. MARTINELLI, M. Curso de cartografia temática. 1. ed. São Paulo: Contexto, 1991. _____________. Mapas da geografia e cartografia temática. São Paulo: Contexto, 2003. NETTO, Matheus Papaléo. O Estudo da velhice: Histórico, Definição do Campo e Termos Básicos. In: FREITAS, Elizabete Viana de; PY, Ligia (Org.). Tratado de Geriatria e Gerontologia. 3. ed. 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Em meados do século XX, os estudos culturais rompem com a hierarquização das culturas que até então prevalecia, direcionando também para estudos de outros grupos, incluindo chamadas minorias ou subculturas. No campo da História, o surgimento da Nova História Cultural contribui “para o debate de temáticas vinculadas a grupos sociais até então excluídos historicamente, como os operários, camponeses, mulheres, escravos, pluralizando-se os objetos de investigação histórica” (CARMO e PEREIRA, 2015, p.23418). Essa nova corrente surge em um momento importante da historiografia aonde o macrossocial, em sua busca por uma história globalizante, não dava atenção aos atores sociais e suas experiências cotidianas. A aproximação do campo da História com a Antropologia, a partir da década de 1970, fortaleceu as pesquisas científicas baseadas nas micro-histórias. A história do gênero feminino foi “apoiada à explosão do feminismo e articulada ao crescimento da antropologia e da história das mentalidades, incorporando as contribuições da história social e dos aportes das novas pesquisas sobre memória popular.” (DAUPHIN et all,2000, p.2) Os movimentos feministas fazem parte dos movimentos sociais que surgiram após o término da Guerra Fria pertencendo ao contexto da Nova Ordem Mundial. Nesse momento o movimento feminista estava atrelado à política sendo influenciado pelas teorias marxistas sobre o mundo do trabalho. A partir da década de 1980, os estudos sobre o tema passam a ser considerados objeto de análise de gênero na sociedade. Esses estudos buscavam principalmente construir uma História das Mulheres. Essa construção vai ao encontro de uma busca pela identidade e da reflexão sobre a relação de gêneros. Uma identidade não se constrói sem a relação com o outro, ou seja, o reconhecimento do outro, analisando o contexto em que a identidade está inserida. Assim, os estudos sobre as mulheres começam a retratar aquelas que sempre foram silenciadas e apagadas, refletir sobre suas trajetórias e contribuir para que elas sejam porta voz de suas próprias histórias. Por fim, preencher lacunas da historiografia oficial sobre a temática feminina e a participação das mulheres na história. Também nesse sentido, pretendemos contribuir com a reflexão sobre as mulheres como protagonistas de sua própria história através da utilização de um tema considerado transversal no campo da História: o patrimônio cultural. Para tanto iremos abordar a concepção de patrimônio, discutir os conceitos de colonialidade e decolonialidade nessa área e, finalmente, abordar os bens culturais registrados pelo IPHAN (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) que são mantidos e praticados exclusivamente por mulheres. A concepção de patrimônio brasileiro A política de patrimônio cultural no Brasil tem sua história narrada a partir do início do século XX, no período da Era Vargas (1930-1945), em um contexto em que intelectuais e políticos discutiam sobre a identidade brasileira. O decreto de lei nº 25 da Constituição de 1937 denomina como patrimônio histórico e artístico nacional “o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse político, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico bibliográfico ou artístico” (Decreto de lei nº 25 de 30 de novembro de 1937). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 275 Nas primeiras décadas de século passado, essa concepção de patrimônio e as ações do SPHAN – Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, “estiveram estritamente voltadas à proteção do legado material da colonização portuguesa e do período imperial” (PORTA, 2012, p. 11). Dentro dessa perspectiva hegemônica houve a construção e a disseminação de uma imagem elitista sobre o patrimônio, que priorizava bens materiais com representatividade nacional para serem tombados. A formação da política de patrimônio no Brasil foi consolidada através de um discurso sobre a nação, fazendo referência a uma memória social, uma memória sobre a nação, com “padrões estético-estilísticos eruditos e de excepcionalidade” (MOTTA, 2000, p. 18). Para isso, foram decretados marcos simbólicos via patrimônios históricos oficialmente consagrados. Esse período, conhecido como “pedra e cal”, durou mais de 60 anos e privilegiava os bens materiais com excepcional valor, voltados para os monumentos, edificações e obras de artes, e visando a conservação de sua integridade física. (FONSECA, 2009, p.64). A arte no patrimônio histórico e artístico nacional era fundamental para a contribuição da construção de nação. Ela era vista através da crença na universalidade e na integração aplicadas, principalmente, na arquitetura tradicional brasileira, sendo classificada de acordo com os períodos da arte ocidental. Através do campo da arte, pesquisadores, intelectuais e políticos acreditavam que o Brasil podia alcançar o status que tanto almejavam, de uma nação brasileira enquanto unidade. Novos pontos de vistas sobre o patrimônio cultural só foram levados em conta principalmente após a Constituição de 1988. Nos artigos 215 e 216 está: “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Nesse momento foi ressaltada a importância dos bens imateriais para a ampliação do que seria patrimônio cultural brasileiro, e mantida a valorização dos bens materiais. Nota-se que o próprio conceito de patrimônio sofre mudança: o que se chamava patrimônio histórico e artístico passa a ser denominado “patrimônio cultural”. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 276 Essa nova denominação do conceito de patrimônio cultural era o reflexo da aproximação desse campo com as Ciências Sociais, a partir da década de 1970. Foi nesse período que o “problematizar os critérios do belo, do monumental e da excepcionalidade, influenciadas pela efervescência do período de transição para a democratização” teve início (CHAUÍ, 1992 apud TOJI, 2011, p.58). Nesse contexto também foi criado o Centro Nacional de Referências Culturais (CNRC), como forma de abrigar outra ramificação do patrimônio que estava em ascensão: o patrimônio imaterial. É nesse campo que abordaremos os conceitos de colonialidade e o decolonial. A colonialidade e o decolonial A discussão sobre o conhecimento como forma de poder e colonização também começa na década de 1970. Diversos autores originários da América Latina, como Arthuro Escobar, Walter Mignolo, Aníbal Quijano desenvolveram linhas de pensamento crítico sobre a colonização. Em 1992, é constituído o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos (GLES) que procura refletir sobre as diversas concepções e efeitos do processo de colonização, incluindo a América Latina no debate pós-colonial. A criação do grupo foi inspirada no Grupo de Estudos Subalternos, criado com o intuito de criticar a historiografia da Índia feita pelos ocidentais. De acordo com Amaral (2015), é importante ressaltar, segundo esses autores, a diferença entre colonialismo e colonialidade. O primeiro remete a uma relação política e econômica de dominação colonial de um povo sobre o outro, já a colonialidade não se limita apenas ao padrão de exploração, envolve também as relações intersubjetivas que se dialogam a partir de domínio e subalternidade. Ainda segundo o autor, é através dessa última que se “articularam o conjunto de narrativas nacionais que, desde o século XIX, vêm forjando as identidades coletivas na América latina, reproduzindo mecanismos geradores de alteridades e subjetividades subalternas” (p. 19). Foram esses autores, dentre outros do GLES, que propuseram a descolonização do saber e do ser, pois o conhecimento é uma forma de poder e colonização. Para isso, seria necessário a crítica ao paradigma europeu e uma dissociação dos processos de aprendizagem da racionalidade colonial. Citado por Amaral (2015), Quijano coloca que é preciso primeiro acontecer “a descolonização epistemológica para, em seguida, ser possível uma comunicação intercultural, um intercâmbio de experiências e de significações que formem a base de uma racionalidade nova e que possa pretender, quiçá com mais legitimidade, a alguma universalidade” (p.20). A questão decolonial é tratada pelo porto riquenho Maldonato Torres, na obra de Balllestrin (2013) quando lança o conceito de "Giro decolonial". Esse termo “basicamente significa o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade.” (p.105). Para o autor, esse movimento sugere identificar as várias formas de poder colonial, assim como pensar sobre os conhecimentos e as experiências vividas pelos sujeitos marcados pelo sistema colonial. É através desse reconhecimento que se entende as formas modernas de poder, sendo assim possível prover alternativas baseadas nesse conhecimento. A discussão sobre colonialidade e decolonial lança possibilidades de reconstrução de narrativas de histórias silenciadas, reprimidas e subalternas. Entretanto, ainda segundo Amaral (2015), o principal desafio diz respeito “(...) a possibilidade de rompimento com a lógica da colonialidade sem, contudo, abandonar as contribuições do pensamento crítico eurodescendente para a própria decolonização.” (p.20). Patrimônio Imaterial O conceito de decolonial contribui significativamente para o campo do patrimônio cultural, mais especificamente para o patrimônio imaterial. Essa categoria vem para suprimir uma demanda crescente de inventários em relação à cultura popular, que antes era trabalhada como ações secundárias de preservação e, como dito anteriormente, numa política que priorizava bens materiais. O atual modelo de preservação dos bens imateriais tenta ir ao encontro do conceito de decolonialidade, ou seja, busca refletir sobre o patrimônio cultural a partir das experiências vivenciadas pelos detentores do bem. E também, busca suas singularidades, os saberes e práticas tradicionais que estão enraizados no cotidiano de determinadas comunidades locais. No Brasil, o IPHAN – órgão nacional responsável pela preservação dos bens nacionais – tem como objetivo preservar, divulgar e fiscalizar os bens culturais brasileiros. Para a preservação do patrimônio cultural, existem diretrizes a serem seguidas em relação ao cuidado e à proteção dos bens culturais, que são ditadas pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), com orientações direcionadas através de manuais de referência. Os manuais são desenvolvidos como ferramentas de utilização para capacitar e conscientizar a respeito da Convenção do Patrimônio Mundial. No Brasil dos anos 2000, foi instaurado o Registro como instrumento de preservação do patrimônio imaterial. De acordo com o site do IPHAN, patrimônio imaterial se define como “práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas)” (trecho retirado do site do IPHAN, acessado em 10 de fev 2019). Atualmente, nos registros de proteção, é fundamental que o bem cultural seja relacionado com aspectos do seu contexto sociocultural. A compreensão da representação e significação do bem cultural, assim como a importância das ações dos atores sociais inseridos nesse contexto, devem ser elementos norteadores para a busca de sua preservação e valorização. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 277 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 278 Os primeiros registros foram feitos pelo órgão patrimonial no ano de 2002, com o Oficio de Paneleiras de Goiabeiras, Espírito Santo e a Arte Kusiwa Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajápi, Amapá. Ambos os registros trataram de saberes de grupos considerados minorias: o primeiro realizado apenas pelas mulheres e o segundo, por uma comunidade indígena. Hoje, a instituição conta com 47 bens registrados a nível federal. Para se chegar a esse fato, foram considerados os bens culturais imateriais registrados pelo IPHAN, no período de 2002 a 2018. Esses bens culturais são classificados pelo órgão em 4 categorias: Saberes, Lugares, Celebrações e Formas de Expressão. Algumas considerações dos bens culturais brasileiros registrados mantidos por mulheres Ao analisar os bens registrados pelo IPHAN, notamos que aproximadamente 20% deles são exclusivamente comandados por mulheres. Os bens culturais mantidos por ambos os sexos representam 79% do total, enquanto 9% dos bens são praticados exclusivamente por homens. Os bens culturais comandados por mulheres são: Modo de fazer Renda Irlandesa na cidade de Sergipe; Ofício das Baianas do Acarajé no estado da Bahia; Oficio das Paneleiras de Goiabeiras no Espírito Santo; Tradição das Doceiras de Pelotas no Rio Grande do Sul; Modo de fazer Cuias no Baixo Amazonas; A Ritxòkò - Expressão Artística e Cosmológica do Povo Karajá e os Saberes e Práticas Associados ao Modo de Fazer Bonecas Karajá, ambos no Norte e Centro-Oeste do país. A perpetuação desses bens acontece através da oralidade, que tem o conhecimento dessas mulheres como principal fator impulsionador. Campos e Cerqueira (2012) citam Perrot afirmando que as fontes históricas sobre mulheres não são escassas, elas foram reproduzindo a visão dos homens, ao invés de mostrar o que pensavam. Já Burker, também citado pelos autores, diz que as fontes históricas sobre mulheres estão voltadas para as imagens e não para as fontes escritas. Nas palavras de Cerqueira e Campos: “Nessa perspectiva, o estudo dos testemunhos orais de mulheres sobre a história feminina adquire grande relevância: de um lado, oferece uma visão feminina; de outro, relata fatos e representações pouco presentes na documentação escrita” (2012, p.263). A falta de narrativas e fontes escritas por mulheres deve-se inclusive ao menor índice de escolaridade e letramento dessas em relação aos indivíduos do sexo masculino ao longo do tempo, situação só alterada nas últimas décadas. A história tradicionalmente foi escrita por homens, dentro de uma cultura patriarcal, e esses perpetuaram e valoraram seus próprios feitos. A análise dos dossiês, por sua vez, demonstra a relevância da participação das mulheres dentro do âmbito do patrimônio imaterial brasileiro. Sem tomar como estudo de caso apenas um bem cultural, notamos nos documentos que o legado das práticas e saberes é passado de forma familiar para outras mulheres, filhas, sobrinhas, parentes, perpetuando a tradição através da oralidade e da observação do ofício. As práticas estão enraizadas em seu modo de vida, pertencendo ao cotidiano e ao modo de viver dessas pessoas, de forma, principalmente, artesanal e local. Muitas vezes os bens culturais são produzidos dentro do próprio ambiente doméstico ou em lugares específicos da comunidade. É importante enfatizar que algumas dessas práticas são vistas como forma de contribuição financeira para o lar, como é o caso das Cuias do Baixo Amazonas, das Paneleiras de Goiabeiras. Outras atividades exercidas são a única fonte de renda, exemplificado pela comunidade indígena Karajá, com o seu modo de fazer Bonecas do Karajá. Segundo o Dossiê Ofício das Baianas de Acarajé “70% das mulheres vinculadas a associação desse ofício são chefes de família”. (2007, p.50) Sublinhamos ainda que essas práticas culturais são repletas de singularidades em seu modo de fazer, de detalhes que são passados entre as gerações e que podem sofrer modificações ao longo do tempo, num processo contínuo e vivo de construção e incorporação de influências. Na maioria das vezes o patrimônio cultural também é cercado por um rico universo simbólico do qual seus mantenedores são guardiões. Dessa maneira o patrimônio cultural é efetivamente um exemplo das práticas e saberes decoloniais no Brasil. Representa o que é genuíno dessa nação construída pela miscigenação de culturas e que ainda sim fez gerar uma cultura própria. As panelas de barro tem influência indígena, o acarajé das baianas veem das negras vindas do continente africano, as rendas advêm de influência europeia, etc. O tempo fez surgir, a partir de muitos legados multiculturais, um elemento que se forjou desde o Brasil colonial, que incorporou, que resistiu, que por vezes protestou de forma disfarçada resistindo e também se adequando às formas de imposição cultural. Assim, as mulheres mantenedoras de tradições nos mostram como o tempo sintetizou as influências e contribuiu para criar uma nova cultura que chamamos brasileira. Essa formação ocorreu quando as culturas agredidas pela colonização incorporaram matizes da cultura dominante muitas vezes como forma de resistência, as transformaram e acabaram criando algo novo, próprio. Além disso, é importante notar como o legado das mulheres sempre subsistiu na história como pano de fundo, pertencente ao universo privado considerado de menor importância porque não era tangível, não estava (ou poucas vezes estava) materializado enquanto monumento ou edifício. Os conhecimentos das mulheres comumente expressos em rezas, benzeções, curas, uso de plantas medicinais, danças, cantos, confecção de utensílios e artesanatos, modos de tecer, de criar, de assistir aos partos, poucas vezes se mostraram na história oficial e o campo do patrimônio imaterial tem o mérito de valorizar esses saberes, tirá-los da invisibilidade, mostrar sua importância enquanto legados culturais e trabalhar pela sua salvaguarda. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 279 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 280 Figura 1. http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/81/ Saberes e Práticas Associados aos Modos de Fazer Bonecas Karajá Figura 2. http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1055/ Cuias do Baixo Amazonas Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 281 Figura 3. http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1768/ Tradição das Doceiras de Pelotas Considerações finais Neste texto buscamos mostrar que o que era antes entendido como patrimônio cultural até a metade do século passado, fazia-se sobre uma visão hegemônica, elitista e masculina na qual eram priorizados monumentos que diziam de um fato histórico nacional para se alcançar a nação brasileira enquanto unidade. Com a aproximação do campo da antropologia, as vozes subalternas que foram silenciadas no processo de construção do patrimônio cultural ganharam força e lugar de voz. A perspectiva decolonial é de grande valia na reconstrução da narrativa dos detentores do bem, esses ocupando o lugar de protagonistas, como é o caso das mulheres, no âmbito do patrimônio imaterial. Assim, a relação de poder é colocada à prova e os atores sociais participam do processo de patrimonialização e na manutenção do seu bem cultural. Referências AMARAL, J. P. P. Da colonialidade do patrimônio ao patrimônio decolonial. Dissertação de Mestrado Profissional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, Rio de Janeiro, 2015. BALLESTRIN, L. América Latina e o Giro Decolonial. Brasília: Revista Brasileira de Ciência Política, nº11, pp. 89-117, maio/ago. 2013. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Decreto de lei nº 25 de 30 de novembro de 1937. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasil, Brasília, 1988. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 282 CARMO, L; PEREIRA, F. 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Nesse capítulo, o autor esclarece sua concepção de uma matriz disciplinar para a Ciência Histórica, na qual existe uma relação íntima entre a ciência especializada e a vida prática, tornando, assim, essa situação imprescindível para a efetivação do pensamento histórico a partir dos problemas do mundo da vida. Para Rüsen (2001), a História como ciência começa e termina na vida prática, dentro de um movimento cíclico e infinito, uma vez que as questões do mundo vital estão em constantes transformações ou permanências. Nesse sentido, Matriz disciplinar é um termo que Rüsen tomou emprestado de Thomas Kuhn, e que pode ser compreendido também como paradigma. Ele foi definido como o “conjunto sistemático dos fatores ou princípios do pensamento histórico determinantes da ciência da história como disciplina especializada” (RÜSEN, 2001, p. 29). A matriz disciplinar, como um modelo representativo da constituição do pensamento histórico, é apresentada por meio de um esquema circular que está dividido em duas partes: a inferior, que representa a vida prática e a superior, que representa a ciência especializada. Seu ponto de partida para a reflexão sobre os fundamentos da História pressupõe: interesses que surgem na vida prática e fazem parte das carências de orientação que o homem possui para poder viver e direcionar-se no tempo pelo passado. Em seguida esses interesses são transformados em ideias, as quais – no campo da ciência – se tornam as perspectivas orientadoras da experiência do passado. Essas ideias, ainda no campo da ciência, passarão pelos critérios dos métodos, que constituem as regras da pesquisa empírica. Nessa dialética haverá uma transformação das ideias em produto (o pensamento histórico produzido). Essa transformação se estabelecerá nas formas de apresentação do conteúdo histórico válido, que, por sua vez, volta para a vida prática em formato de funções para orientar existencialmente a vida humana (RÜSEN, 2001, p. 29-35). Sendo assim, a História ou as várias formas de história são uma maneira de suprir as carências que os homens possuem para se orientar no tempo e perspectivar seu futuro. A consciência histórica como um fenômeno do mundo da vida Uma vez que alcançamos o entendimento da forma como Rüsen concebe a produção do conhecimento histórico, partiremos para a compreensão da consciência histórica como um fenômeno que pertence ao mundo da vida. Isto é, “como uma forma da consciência humana que está relacionada imediatamente com a vida humana prática” (RÜSEN, 2001, p. 57). Neste Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 283 caso, ele conceitua a consciência histórica como: “a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar intencionalmente, sua vida prática no tempo.” (RÜSEN, 2001, p. 57). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 284 A primeira ideia que devemos ter é o fato de que a consciência histórica não precisa ser necessariamente consciente, todavia, é por meio dela que o homem age no tempo, a partir de sua experiência do tempo. Já a segunda é compreender que todo ser humano tem consciência histórica, porque todos são capazes de interpretar o passado, porém ressaltamos que alguns indivíduos realizam essa operação mental com mais complexidade do que outros. Em terceiro lugar, é necessário considerar que a História, nas suas várias vertentes, é apenas uma forma de consciência. O que nos leva a observar que a consciência histórica é na verdade o tempo significado, que permite que o passado faça sentido para o homem (CERRI, 2011). Partindo das ideias acima, podemos afirmar que existe um imperativo de produzir histórias, isto é, para viver o ser humano precisa narrar muitas histórias. É necessário narrar para explicar quem ele é; para explicar de onde ele veio é imprescindível narrar; para marcar seu lugar no tempo ele narra etc. O ser humano está constantemente narrando para explicar sobre sua vida e sua existência. Quando ele narra, ele cria histórias. Narrar é, portanto, uma condição antropológica da qual a humanidade não pode se furtar. De acordo com Rüsen, “o homem tem de agir intencionalmente para poder viver e de que essa intencionalidade o define como um ser que necessariamente tem de ir além do que é o caso, se quiser viver no e com o caso” (RÜSEN, 2001, p. 57). Isto significa que o homem não pode se apropriar do mundo em seu estado puro, dado, mesmo possuindo a experiência com esse mundo ele precisa interpretá-lo e reinterpretá-lo constantemente, com o propósito de dar sentido à sua vida. “O homem só pode viver no mundo, isto é, só consegue relacionar-se com a natureza, com os demais homens e consigo mesmo se não tomar o mundo e a si mesmo como dados puros, mas sim interpretálos em função das intenções de sua ação e paixão, em que se representa algo que não são.” (RÜSEN, 2001, p. 57). Portanto, essa situação só é possível por causa do “superávit de intencionalidade” (RÜSEN, 2001, p. 57) que permite ao homem ir além daquilo que é o caso, ou seja, as intenções humanas sempre buscarão ir além daquilo que está dado como puro no mundo. Por isso, o referido autor afirma que o “agir é um procedimento típico da vida humana na medida que, nele, o homem, com os objetivos que busca na ação, em princípio se transpõe sempre para além do que ele e seu mundo são a cada momento” (RÜSEN, 2001, p. 57). Desta forma, há a necessidade do estabelecimento de um “quadro interpretativo”, por parte do homem, daquilo que ele experimenta “como mudança de si mesmo e de seu mundo ao longo do tempo” (RÜSEN, 2001, p. 58). A teoria rüsseniana sobre a utilidade da História na vida prática se resume, basicamente, em duas situações: as intenções no tempo e a experiência do tempo. A primeira é marcada pelas projeções que o homem faz de seu futuro, suas expectativas ou as perspectivas por ele tencionadas. Tudo isso são definidores para o agir humano (RÜSEN, 2001). Contudo, as experiências do tempo são marcadas por dores e sofrimentos. Em outras palavras, quando as intenções do agir humano no tempo entram em choque ou conflito com as experiências do tempo, o ser humano sofre as carências de orientação temporal. Existe aí a necessidade de interpretação e reinterpretação histórica. Quando as histórias narradas na vida não fazem mais sentido, quando se tornam desatualizadas, elas não podem mais resolver problemas do tempo presente e o ser humano continua com suas carências de orientação. Lembrando que a satisfação de uma carência sempre levará a outras carências de orientação. Nessa perspectiva, a consciência histórica se torna importante por ser ela: “o trabalho intelectual realizado pelo homem para tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do tempo. Esse trabalho é efetuado na forma de interpretações das experiências do tempo. Estas são interpretadas em função do que se tenciona para além das condições e circunstâncias dadas da vida.” (RÜSEN, 2001, p. 59). Para exemplificar essa circunstância, Saddi (2001) apresenta uma situação que torna explícita tal ocorrência: “A morte de um pai, quando o filho projetava um futuro em sua presença. A experiência no tempo (a morte do pai) entra em confronto com as intenções do homem no tempo (um futuro com a presença do pai), de modo que o homem sente necessidade de reinterpretar sua experiência e suas intenções no tempo, produzindo assim operações mentais que possibilitem-no ainda agir. Da mesma forma, um revolucionário que sonha com um mundo de igualdade e liberdade, mas vive em condições que colocam limites para a sua perspectiva. Precisa assim produzir uma interpretação do tempo de modo que possa conformar as suas experiências às suas intenções.” (SADDI, 2001, p. 58). Assim, a consciência histórica entra em ação porque ela é “o modo pelo qual a relação dinâmica entre experiência do tempo e intenção no tempo se realiza no processo da vida humana” (RÜSEN, 2001, p. 58). Nessa relação dinâmica ela une presente, passado e futuro como condição dessa tripartição, que pode ser compreendida pela subjetividade humana. Diante disso, pode-se utilizar a definição estabelecida por Karl-Ernst Jeismann, o qual afirma que a “consciência histórica é um nexo interno entre interpretação do passado, compreensão do presente e expectativa do futuro” (JEISMANN apud RÜSEN, 2012, p. 130). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 285 A cultura histórica como articulação da consciência histórica Há a necessidade de descrevermos e analisarmos a consciência histórica porque, conforme Rüsen (1994), a partir dela existe apenas um pequeno passo para a cultura histórica. O autor afirma que essas duas categorias estão ligadas pela memória histórica: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 286 “De la conciencia histórica hay solamente un pequeño paso a la cultura histórica. Si se examina el papel que juega la conciencia histórica en la vida de una sociedad, aparece como una contribución cultural fundamentalmente específica, que afecta e influye en casi todas las áreas de la praxis de la vida humana. Así la cultura histórica se puede definir como la articulación práctica y operante de la conciencia histórica en la vida de una sociedad.” (RÜSEN, 1994), p. 4.). De acordo com a citação acima, constata-se que a cultura histórica é a articulação prática da consciência histórica em uma sociedade e que ela afeta e influencia todas as áreas da vida. Todavia, Rüsen (1994) conceitua a cultura histórica como: “(...) un fenómeno que caracteriza desde años el papel de la memoria histórica en el espacio público: me refiero al boom continuo de la historia, a la gran atención que han suscitado los debates académicos fuera del círculo de expertas y expertos, y a la sorprendente sensibilidade del público en el uso de argumentos históricos para fines políticos.” (RÜSEN, 1994, p. 1-2). Pensado dessa forma, o conceito de cultura histórica é abrangente, pois abarca toda a memória histórica encontrada no espaço público. Isso indica que Rüsen (1994) está preocupado com o grande despertamento e com a utilização da cultura histórica, por parte dos não especialistas em assuntos do passado, com finalidades políticas. Porém, para ele existe uma aproximação dessa categoria com a investigação científica, o ensino escolar, a conservação de monumentos, os museus e outras instituições que contemplam e discutem o passado comum (RÜSEN, 1994, p. 2). De uma maneira simples, podemos afirmar que a cultura histórica é uma categoria de análise que permite o entendimento da produção e do uso da História no espaço público das sociedades modernas (SCHMIDT, 2014). “De este modo, la 'cultura histórica' sintetiza la universidad, el museo, la escuela, la administración, los medios, y otras instituciones culturales como conjunto de lugares de la memoria colectiva, e integra las funciones de la enseñanza, del entretenimiento, de la legitimación, de la crítica, de la distracción, de la ilustración y de otras maneras de memorar, en la unidad global de la memoria histórica.” (RÜSEN, 1994, p. 2-3). Rüsen (2007a) apresenta ainda a cultura histórica como “o campo em que os potenciais de racionalidade do pensamento histórico atuam na vida prática” e isto significa que o especificamente histórico possui um lugar próprio e peculiar no quadro cultural de orientação da vida humana prática” (RÜSEN, 2007a, p. 121). Em um conceito mais restrito, ligado à força cognitiva, Rüsen (2007a) afirma que: “A cultura histórica nada mais é, de início do que o campo da interpretação do mundo e de si mesmo, pelo ser humano, no qual devem efetivar-se as operações de constituição do sentido da experiência do tempo, determinantes da consciência histórica humana. É nesse campo que os sujeitos agentes e padecentes logram orientar-se em meio às mudanças temporais de si próprios e de seu mundo.” (RÜSEN, 2007a, p. 121). Desse modo, compreendemos que a cultura histórica está dimensionada na modernidade, em toda a vida humana prática. Se antropologicamente o ser humano é histórico e possui uma consciência histórica, a cultura histórica pode ser resumida na forma como as sociedades modernas se apropriaram dessa dimensão do passado para naturalizar o que chamamos, de forma genérica, de “cultura”. As dimensões (ou funções) da cultura histórica Conforme Rüsen (1994), a cultura histórica possui três funções ou dimensões que atingem principalmente as sociedades modernas: a dimensão estética, a política e a cognitiva. Em cada uma delas os procedimentos, os fatores e as funções da memória histórica se apresentam de diferentes maneiras (RÜSEN, 1994, p. 13). Na dimensão estética da cultura histórica, as rememorações históricas aparecem principalmente na forma de criações artísticas, tais como novelas e dramas históricos, entre outros (RÜSEN, 1994, p. 14). Todavia, como afirma Schmidt, “não se trata de encontrar o histórico no estético, mas a presença do estético no histórico, tornando-o visível como algo relevante para o trabalho rememorativo da consciência histórica” (SCHMIDT, 2014, p. 34). Dessa maneira, percebemos que nas obras dos historiadores (formas do conhecimento histórico) há a presença do elemento estético, uma vez que essas produções são resultados de construções linguísticas de sentidos e não meros processos de operações cognitivas. Rüsen (1994) afirma que um olhar imparcial ao caráter textual e à forma literária específica da historiografia revela sua qualidade estética. Corroboramos com o autor que existe, de fato, uma qualidade estética e poética nas representações históricas sobre o passado e entendemos que, sem essa força estética, as rememorações históricas seriam pálidas e perderiam a criatividade da imaginação, que é um elemento essencial ao historiador: “Pero es indiscutible que la construcción estética de sentido por la conciencia histórica representa una actividad de la imaginación, en la que los contenidos experienciales de la memoria se cargan de significado histórico, esto es, se convierten en portadores de un Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 287 transcurso temporal que, en cuanto ‘historia’, hace interpretable la praxis vital cotidiana.” (RÜSEN, 1994, p. 16). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 288 A dimensão política da cultura histórica está marcada e é baseada em qualquer forma de domínio e necessita do consentimento daqueles que são afetados. Como afirma Rüsen (1994), não é casualidade que o domínio político está cheio de símbolos carregados de ressonâncias históricas: “Esto se hace evidente en las fiestas nacionales, que generalmente deben recordar el origen de la comunidad política, de tal manera que muestren una obligación normativa inicialmente establecida como duradera. La rememoración histórica tiene una función genuinamente política de legitimación.” (RÜSEN, 1994, p. 18). De acordo com Rüsen (1994) é a legitimidade que permite o consentimento por meio da capacidade estrutural do domínio e, para que isso ocorra, a consciência histórica se transforma no cimento para a dominação política mental. Todavia, a orientação cultural da práxis da vida é efetuada pela memória histórica e ela, para ser efetiva, tem que concordar com as intenções e os interesses políticos que regem a vida do sujeito. “La memoria histórica orienta la perspectiva temporal, en la cual el pasado aparece como historia plena de sentido y significado para el presente, siempre siguiendo un sistema de coordenadas político (entre otras cosas) que corresponde con las voluntades empujadas por el poder, con las cuales los sujetos que memoran organizan su vida en la práctica.” (RÜSEN, 1994, p. 19). Por fim temos a dimensão cognitiva da cultura histórica, que se realiza nas sociedades modernas por meio da ciência histórica. Utiliza-se da regulação metodológica da consciência histórica de perceber, interpretar e orientar, pois são operações cognitivas fundamentais para o agir humano: “Se trata del principio de coherencia de contenido, que se refiere a la fiabilidad de la experiencia histórica y al alcance de las normas que se utilizan para su interpretación” (RÜSEN, 1994, p. 19). Essa última operação afeta o historiador, pois conforme o autor em análise, o pensamento histórico só vai se tornar científico quando forem observados os princípios da metodização para sua construção/produção, isto é, quando esse pensamento sujeitar a consciência história a todas as regras da pesquisa científica. Por metodização se compreende a “sistematização e ampliação dos fundamentos que garantem a verdade” (RÜSEN, 2007b, p. 12). Conquanto, Rüsen (1994) afirma que essas três categorias sintetizadas nas palavras arte, política e ciência, quando abordadas numa base antropológica, podem representar os três modos fundamentais da mente humana: o sentimento (estético), a vontade (político) e o intelecto (cognitivo). Ademais, essas três dimensões não podem ser reduzidas uma pela outra, e como já foi afirmado elas precisam da consciência histórica para fazer com que a vida do indivíduo apresente as condições de se viver, naquilo que é dado no mundo. O ser humano é antropologicamente histórico, isso indica que é impossível viver na modernidade sem que se seja afetado pela ou por uma cultura histórica. Assim, a assimilação de tudo isso passa pela peneira de uma consciência histórica, que dentro de uma tipologia rüsseniana pode começar com uma operação mental simples (tradicional e exemplar) e chegar às formas mais complexas (crítica e genética) de se interpretar o passado (RÜSEN, 2010). Uma vez que o ser humano alcance ou possua as formas mais complexas da consciência histórica, ficará mais difícil o estabelecimento político de uma cultura histórica generalizante e impositiva. Referências CERRI, Luis Fernando. Cartografias Temporais: metodologias de pesquisa da consciência histórica. Educ. Real. Porto Alegre, v. 36, n.1, jan./abr., 2011. RÜSEN, Jörn. História viva – Teoria da História III: Formas e funções do conhecimento histórico. Tradução de Asta-Rose Alcaide. Brasília: Ed. UnB, 2007a. RÜSEN, Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na prendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral. In: CHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende. (Orgs.). Jörn Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: UFPR, 2010, p. 51-77. RÜSEN, Jörn. Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre uma nueva manera de abordar la historia. Tradução: F. Sánchez Costa e Ib Schumacher, (1994), p. 4. 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Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 289 A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL COMO INSTRUMENTO DE APLICAÇÃO E VALORIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA NO ENSINO DE HISTÓRIA Maycon Junio Gonçalves Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Refletir a ciência histórica como disciplina escolar, bem como os processos de ensino envolvem indagações e desafios múltiplos. Tratar das experiências passadas e refleti-las em aula procurando estabelecer uma visão crítica e sem neutralidade por parte do professor, coloca-se como um desafio à parte no contexto social contemporâneo. Página | 290 Dentro da complexidade constitucional do qual a sociedade brasileira é feita, pensar os sujeitos dentro das dinâmicas sociais envolvem despendimentos e referências múltiplas. Conforme aponta Chimamanda Ngozie Adiche em seu célebre vídeo “O perigo de uma história única”, adotar um modelo de explicação e interpretação histórica onde apenas uma visão seja contemplada pode ser algo perigoso, sobretudo, dentro de uma sociedade que se constitui de sujeitos sociais variados e de referenciais distintos: “Cabe ao professor, utilizando-se dos métodos históricos aproximar o aluno dos personagens concretos da história, sem idealização, mostrando que gente como a gente vem fazendo história” (Pinsky; Pinsky, 2016) É partindo desse princípio que se proporá uma reflexão observando a necessidade de refletir um ensino de história onde os sujeitos sociais sejam pensados dentro de suas especificidades, dotados de características e subjetividades próprias. Para tanto as discussões apresentarão uma vertente racial pensando a necessidade de buscar, sobretudo, após a promulgação da Lei 10.639 as várias possibilidades de trabalhar com referências da população negra em âmbito escolar. Diante (disso) do apontado, a proposta na qual essa construção se pautará ancora-se na questão do modo como as relações étnico raciais tem sido trabalhadas no ambiente escolar, e de que maneira o entendimento sobre Patrimônio Imaterial, voltando nossos olhares para as práticas culturais da população negra que já são registradas, pode ser um facilitador no processo de trabalho e valoração da cultura afro brasileira no ensino de história. Para tanto, o caminho escolhido para o intento, é o da aproximação do ensino de história com as várias manifestações que compõem o acervo de Patrimônio Imaterial. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, traz inserido dentro da categoria Patrimônio Imaterial manifestações distintas que englobam livros de Registro distintos dentre eles: Celebrações, Saberes, Formas de Expressão e Lugares. O que se observa como ponto comum é a extrema aproximação com a comunidade (sujeitos sociais), portanto fica explicito que se refere as práticas históricas dos indivíduos que marcaram determinado tempo, permaneceram enraizadas em âmbito social ao longo do tempo e por tal fato são passíveis de proteção estatal, já que se referem diretamente a própria concepção de formação social. “Com a publicação do Decreto nº 3.551, em 4 de agosto de 2000, instituiu-se o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou-se o Programa Nacional de Patrimônio Imaterial, os quais vêm implementando políticas públicas voltadas para o reconhecimento, a valorização e o apoio sustentável aos chamados bens culturais de natureza imaterial [...] Conforme define o artigo 2º da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ocorrida em Paris, em 2003, a expressão patrimônio imaterial designa as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana” (CURY, 2004, p. 373). Tão importante quanto registrar um bem imaterial é estabelecer medidas eficazes de proteção e vislumbre das modificações e eventuais transformações pelas quais esse bem passa. Tendo em vista a divulgação e difusão cultural das práticas que estabelecem ligação a identidade de cada um, a educação patrimonial é a ponte pela qual o patrimônio imaterial alcança o ambiente escolar e por isso estabeleceu-se por decreto em 2004 a necessidade de promover e fomentar a promoção do patrimônio cultural brasileiro em âmbitos distintos. Apontados alguns instrumentos necessários à compreensão da temática abordada, alguns indícios começam a se apontar como caminho de compreensão da proposta inicial. Dentro da categoria patrimônio imaterial, encontram-se inseridas uma gama de manifestações culturais que estabelecem relação com a população afro brasileira. Em uma breve consulta ao site do Iphan, destacam-se: Samba de roda do recôncavo (2014); Jongo no Sudeste (2005); Ofício das baianas de acarajé (2005); Tambor de crioula do Maranhão (2007); Ofício dos mestres de capoeira (2008); Roda de capoeira (2008). Para além desses, ainda se encontram tombados vários terreiros de candomblé no Brasil, espaços que são primordiais para identificação e compreensão de uma série de práticas que estabelecem relação intrínseca com várias das cosmovisões africanas transplantadas no seio social brasileiro desde o período colonial mantendose inseridas na dinâmica social até a contemporaneidade. Dentre destes, é possível apontar em Salvador (BA): Ilê Iyá Omim Axé Iyamassé (Gantois); Axé Opô Afonjá; Casa Branca do Engenho Velho; Ilê Maroiá Láji (Alaketo); Bate-Folha; Ilê Axé Oxumaré. Na cidade de Itaparica (BA) o terreiro Omo llê Agboulá, em Cachoeira (BA) Zogbodo Male Bogun Seja Unde (Roça do Ventura) e em São Luís do Maranhão a Casa das Minas Jeje. Como supracitado as manifestações do patrimônio imaterial registradas em âmbito nacional que trazem referenciais diretos da cultura afro brasileira e Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 291 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 292 africana já são uma realidade a mais de duas décadas em nosso país, todavia, o que pode se colocar como um desafio é de que modo inserir essa categoria no ensino de história. O trabalho com a perspectiva patrimonial sobretudo no que se refere a valoração cultural afro brasileira, envolve munir-se de conceituações básicas a respeito da discussão historiográfica patrimonial, os aspectos culturais de nossa formação enquanto sociedade, manifestações culturais afro brasileiras e as formas de enfrentamento ao racismo como um estruturante social, temáticas essas que já são uma realidade dentro dos cursos de graduação em história. Dessa maneira para a apropriação dessas temáticas e uma posterior aplicação em âmbito escolar, o primeiro passo é entrar em contato com os dossiês que são elaborados para o registro desses bens, que em sua grande maioria já são disponibilizados online no site do IPHAN. Entrar em contato com esse material e utilizá-los como recurso didático já se apresenta como um passo inicial fundamental, uma vez que, esses dossiês trazem em seu corpo constitucional um histórico completo e detalhado sobre a manifestação registrada e para além disso, envolve uma participação ativa da comunidade detentora que faz uma descrição pormenorizada de como se dá a manifestação. Outro passo importante e fundamental é acessar os guias básicos de Educação patrimonial disponibilizados também pelo site do IPHAN, onde contém as diretrizes, sugestões e conceitos a serem abordados na educação patrimonial. “A Educação Patrimonial consiste em provocar situações de aprendizado sobre o processo cultural e seus produtos e manifestações, que despertem nos alunos o interesse em resolver questões significativas para sua própria vida, pessoal e coletiva. ” (HORTA, GRUNBERG, MONTEIRO, p. 6). O conceito fundamental a ser trabalho na educação patrimonial é justamente a concepção de patrimônio cultural e a partir deste desenvolver outros referenciais que o compõe, tais como: identidade, alteridade, memória coletiva, memória individual, lembrança, patrimônio cultural, tradições, comunidades tradicionais e o próprio conceito de História, já que a concepção de história como disciplina ainda é limitadora. Um tema que pode servir de exemplo para ser trabalhado, tanto na educação patrimonial quanto na história afro-brasileira, é a manifestação das Congadas, que são registradas como patrimônio imaterial na cidade de Uberaba interior de Minas Gerais; além de tratar de um tema local, para que os alunos possam compreender melhor o contexto social que estão inseridos, elas evidenciam uma manifestação afro-brasileira que representa a coroação do Rei do congo, aos moldes do que acontecia em África. Através dessa é possível conhecer alguns aspectos da história dos negros no Brasil e perceber a diversidade étnica que compõe a população brasileira. Outro exemplo, a ser citado, são os terreiros de candomblé tombados como patrimônio imaterial brasileiro, esses resguardam práticas que se referem diretamente ao modo como a população negra passou a organizar seus referenciais religiosos e cosmovisões africanas em espaços auto organizados. Por meio da história e difusão do conhecimento destas, podese demonstrar a prática religiosa afro-brasileira como influenciadora em manifestações musicais, artísticas e sociais que se inserem no social. Em um ambiente de preconceito e estereótipos, a educação patrimonial pode contribuir para que um cenário de preconceitos e distorções, se transformem em compreensão e convívio com práticas religiosas e culturais de suma importância para a formação identitária brasileira. E para além disso, trabalhar em prol do fortalecimento da luta antirracista que cotidianamente se fortalece no seio social. Observadas todas as manifestações apontadas, bem como a história da população negra na sociedade brasileira, tem-se a noção que as práticas culturais foram e ainda são sinônimo de resistência desse grupo étnico, e para além disso, um modo de manter as suas subjetividades vivas em um ambiente onde essas são tolhidas em vários momentos em virtude do estabelecimento de um padrão único como modelo, dentro de uma perspectiva eurocentrada. Como previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), trabalhar dentro de um aspecto plural da sociedade bem como de sua constituição é fornecer aos envolvidos a própria noção de ser social já que: “O tema Pluralidade Cultural oferece aos alunos oportunidades de conhecimento de suas origens como brasileiros e como participantes de grupos culturais específicos. Ao valorizar as diversas culturas presentes no Brasil, propicia ao aluno a compreensão de seu próprio valor, promovendo sua auto-estima como ser humano pleno de dignidade, cooperando na formação de autodefesas a expectativas indevidas que lhe poderiam ser prejudiciais. Por meio do convívio escolar, possibilita conhecimentos e vivências que cooperam para que se apure sua percepção de injustiças e manifestações de preconceito e discriminação que recaiam sobre si mesmo, ou que venha a testemunhar — e para que desenvolva atitudes de repúdio a essas práticas.” (PCN 1997, p.137) Dentro dessa logística. Em um país multifacetado como o Brasil, é fundamental que a escola ofereça um ensino que permita com que os alunos conheçam e compreendam tal diversidade, é desta forma, que a instituição escolar coopera para quebrar preconceitos e violências diversas, sejam elas de ordem étnica, religioso ou racial. A importância de um ensino plural se evidencia no momento em que não prioriza uma vertente única para explicação do sujeito social enquanto coloca terceiros no porão histórico. Somente dessa maneira é que se desperta a noção de constituições múltiplas e diferenciais, que são passíveis de respeito dentro de suas diferenças e desperta-se a noção de ser social dentro das diversas individualidades e particularidades que compõem o todo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 293 Referências ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. In: TED Ideas worth spreading. 2009. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single _story/transcript?language=pt Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 294 Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997. CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. 3. ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004 HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/guia_educacao_patrimonial.pdf.pdf PINSKY, J. PINSKY, C. B. Por uma História prazerosa e consequente. KARNAL, L. (org.).História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 6. ed., São Paulo: Contexto, 2016. PATRIMÔNIO HISTÓRICO-ARQUITETÔNICO E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UM OLHAR SOBRE O PASSADO DA CIDADE DE CAXIAS-MA A PARTIR DOS SEUS PRÉDIOS HISTÓRICOS Melissa Jéssica Beleza Souza Raimundo Nonato Santos de Sousa Considerações iniciais O presente texto tem por objetivo apontar alguns aspectos da história da cidade de Caxias, situada no interior do Maranhão, a partir da apresentação de alguns dos seus prédios antigos, sem o intuito de esgotar o assunto. Pretende-se com isso lançar luz sobre a memória da cidade expressa nos seus patrimônios históricos, e principalmente estimular a conservação desses espaços representativos de memória que evocam não apenas a história da cidade, mas também a do seu povo. Para tanto, optou-se por articular essa análise à necessidade de se inserir a educação patrimonial nas escolas de Caxias-MA, dado que esta fermenta a reflexão sobre a importância da preservação do patrimônio histórico, inclusive em contextos locais (HORTA, 1999). Tem-se percebido nos últimos anos que a produção de estudos, feitos por pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento, que versam sobre o valor que o patrimônio histórico e arquitetônico tem para as sociedades, tem crescido significativamente, em reconhecimento da potencialidade que ele possui de salvaguardar e revelar a memória social da cidade e do povo que nela habita (SOUZA, 2016). Isso, por certo, é compreensível, uma vez que os monumentos históricos são repositórios físicos das lembranças e do passado da sociedade que os erigiu. Nesse sentido, percebe-se que a conservação dessas construções antigas se traduz numa estratégia de preservar referências históricas capazes de subsidiar a construção do sentimento de pertença dos habitantes em relação ao lugar em que vivem. Evidentemente nesse processo a consciência histórica tem um papel muito importante, dado que ela “estabelece a relação do sujeito com o grupo”, de modo que “ele se torna parte do grupo, percebendo-se no grupo [...]” (SOUZA, 2016, p. 23). Reconhece-se que os bens patrimoniais se tratam de heranças pertencentes a toda coletividade e não apenas a certos grupos. Daí a necessidade de fermentar o debate sobre esse assunto, uma vez que todos eles precisam ser preservados e conservados, por serem possessões coletivas, detentoras de uma irrefutável importância histórica para a sociedade como um todo. Por ser um assunto muito debatido na atualidade, é possível que tenhamos um entendimento, por mais raso que seja, sobre o que é patrimônio. Não obstante, sempre é válido recorrermos a uma conceituação mais consistente e de maior aceitação. Assim: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 295 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 296 “Patrimônio, palavra que compreende várias denominações, como histórico, artístico, paisagístico, tangível, intangível, industrial, genético, entre tantas outras. O que cabe ressaltar é que patrimônio está associado a práticas voltadas ao fortalecimento/produção de identidades de grupos. Preservar, construir ou inventar o patrimônio supõe atribuir valor e construir significados para objetos e obras culturais que constroem identidades.” (GIL, 2013, p. 153). Com base no conceito apresentado acima, percebe-se que patrimônio histórico, pode ser entendido como tudo que nos rodeia, cuja existência é fundamental para a construção e fortalecimento de identidades. Desse modo, o apresentado justifica a discussão do presente texto. Afinal, à medida que o debate sobre patrimônio histórico e educação patrimonial se intensifica na sociedade, vem se tornando cada vez mais emergencial implantar nas escolas propostas pedagógicas que possibilitem a reflexão sobre a importância do patrimônio e a necessidade de preservá-lo, especialmente na cidade de Caxias-MA que tem testemunhado, nos últimos anos, uma série de demolições de construções antigas, para dar espaço a estacionamentos e prédios comerciais. Alguns apontamentos sobre a história da cidade de Caxias-MA Em consonância com o que foi inicialmente dito, esse tópico irá apresentar, sucintamente, alguns aspectos da história da cidade de Caxias-MA. O processo de ocupação da cidade de Caxias se deu pelo movimento de entradas e bandeiras, precisamente no século XVII. O território em que se encontra situada a cidade de Caxias foi, primitivamente, um agregado de aldeias dos indígenas Timbiras e Gamelas. Com a expulsão dos franceses do Maranhão, em 1615, os portugueses reduziram as aldeias desses povos à condição de subjugados (ALMEIDA, 2010). Avançando no tempo, chegamos ao século XIX. Nessa época, o Maranhão era uma província muito rica que contribuía bastante para a economia do país. Dentre as suas cidades, Caxias se destacava, afinal ela era um grande centro urbano reconhecido pela sua atuação na atividade agrícola e pastoril da região. Caxias adquiriu relevância no contexto da época, graças à produção do algodão, que chegou a ser exportado inclusive para a Inglaterra, em virtude da Guerra de Secessão (PESSOA, 2009). Como consequência direta de uma crise que sobreveio sobre a província maranhense, Caxias se deparou com uma fase muito difícil, em que sua população mais pobre, constituída em sua esmagadora maioria por escravos e negros, precisava lutar pela garantia dos seus direitos (ALMEIDA, 2010). Nesse contexto, objetivando uma vida melhor, pessoas diferentes, mas unidas pelo mesmo propósito se voltaram, em uma reação reivindicatória contra as elites latifundiárias e políticas, e começaram a exigir seus direitos. Isso desembocou no conflito, conhecido nacionalmente como a Guerra da Balaiada. Esta foi um dos movimentos mais significativos do Maranhão que ocorreu entre os anos de 1838 e 1841, se estendendo também pelas regiões do Piauí e Ceará (ALMEIDA, 2010). Na segunda metade do século XIX, mais especificamente na década de 1880, um novo capítulo da história de Caxias passa a ser escrito: a cidade se industrializa. Nesse novo contexto, há instalações de fabricas na cidade, caracterizando a fase industrial de Caxias. Este momento consagrou o ressurgimento da grande e imponente Caxias, agora não mais na condição de cidade agroexportadora, mas sim na condição de urbe fabril (PESSOA, 2009). Apesar de Caxias apresentar, desde o inicio do século XIX, um cenário composto, esmagadoramente por escravos e negros, existia também uma minoria que formava a elite da época. Esta elite era constituída por pessoas de classes mais abastardas e que, portanto, desfrutavam de um estilo de vida diferenciado da população pobre. Geralmente esse estilo adotava como referências os padrões vindos da Europa (PESSOA, 2009). Por isso, era fácil encontrar na sociedade caxiense do século XIX, pessoas que tinham privilégios e que viviam bem, tais como fazendeiros, políticos e comerciantes ricos, que, não raro, conseguiam copiar o estilo português e refletir esse estilo em todos os aspectos da sua vida: desde as vestimentas às habitações particulares e prédios públicos. Para mais, outro indicativo dessa influência recebida da Europa é o catolicismo e suas arquiteturas eclesiásticas, muito presentes em Caxias até hoje. Dessa maneira, por meio dessa simbiose de referências históricas e culturais, a sociedade caxiense foi formada, conservando até hoje traços vívidos das suas raízes. Caxias e suas heranças Agora, serão apresentadas algumas construções antigas, que se enquadram no que se convencionou chamar de patrimônio histórico-arquitetônico caxiense. Tais construções ainda estão presentes em Caxias-MA e possuem uma relação muito próxima com a história dessa cidade e do povo caxiense. Igreja Nossa Senhora de Nazaré Localizada no antigo largo de Nazaré, à margem esquerda do Rio Itapecuru, essa Igreja foi construída em 1773, e possivelmente é a mais antiga igreja da cidade de Caxias-MA (SOUZA, 2016). Ela está fixada na região em que se teve indicio dos primeiros indígenas da cidade, assim como da presença de jesuítas neste território. A igreja, situada atualmente na rua São tradicional festejo de Nossa Senhora de agosto e setembro. Durante o episódio da destruída, porque servia de armazém de balaios (SOUZA, 2016). José, bairro Trizidela, possui o Nazaré ocorrido nos meses de Guerra da Balaiada, a Igreja foi munições e de abrigo para os Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 297 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 298 Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos situada em Caxias-MA, mais precisamente na Praça Rui Barbosa, foi construída com mão de obra escrava em 1775 (SOUZA, 2016). Ela era frequentada somente por pessoas negras e escravas, por causa do preconceito da elite local da época que não aceitava escravos na missa em outras igrejas. O templo ainda conserva sua estrutura inicial. Um pelourinho, que se localizava ao lado da Igreja, na Rua São Benedito, funcionou até o ano de 1888. Nele, eram castigados, com 500 chibatadas, os escravos transgressores (MESQUITA, 1991). Causa admiração que esse pelourinho foi construído ao lado da Igreja. Conta-se que nesse pelourinho certa vez, foi barbaramente açoitado, até a morte, um senhor chamado Pedro. Relatos mostram que ele gritava a todos que assistiam a sua sentença. O mesmo afirmava que era inocente da acusação da morte de uma mulher adúltera. Pedro gritou até a morte, sem nenhuma clemência. Mais tarde, o falecido foi chamado de “Pedro, o Inocente” (MESQUITA, 1991). Ao lado da Igreja morou D. Amália Fernandes Torres, nascida na cidade de Timon-MA, no dia 06 de maio de 1930. Ela estudou no Liceu Maranhense. Mais tarde, fez o curso de Direito, porém não se formou. D. Amália Fernandes trabalhou por muitos anos no Cartório Eleitoral e era uma das molas mestras daquele estabelecimento (MESQUITA, 1991). Ela foi casada com o Sr. Elmary Machado Torres e mãe de seis filhos. D. Amália, católica praticante e se dedicou com muito esmero na conservação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, e se não fosse por sua preciosa ajuda e dedicação à Igreja está teria ruído. Dona Amália Faleceu em 1990 (MESQUITA, 1991). Igreja de Nossa Senhora dos Remédios O início da construção da Igreja Nossa Senhora dos Remédios, conhecida também na cidade como Catedral, se deu a princípio através do português José Antônio de Oliveira, residente em Caxias. O referido enviou um requerimento ao bispado do Maranhão, solicitando uma licença para erguer uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Remédios, padroeira do comércio. A autorização foi concedida pelo vigário capitular Dr. João de Bastos Oliveira, no dia 20 de outubro de 1817 (SOUZA, 2016). A partir desta data, devotos e comerciantes passaram a planejar sua construção, às margens então do Morro das Tabocas - atual Morro do Alecrim. Localizada na Praça Magalhães de Almeida no centro da cidade, sua construção ocorreu no século XIX através dos esforços da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, junto com a ajuda da população (SOUZA, 2016). Ela foi uma das igrejas mais presentes durante a Guerra da Balaiada. No decorrer desta, a Igreja foi usada como depósito de armas e munições por aqueles que defendiam a cidade (SOUZA, 2016). Na época em que a Igreja foi tomada pelos balaios, a capela foi parcialmente destruída. Além disso, a Catedral também serviu, durante a Independência do Brasil, como Câmara Municipal. Durante as sessões, ali mesmo foi firmada a adesão à independência. A igreja também possui em seu interior lápides da elite caxiense da época. Nos séculos anteriores existia uma prática bastante comum em Caxias-MA, que era a de enterrar pessoas dentro das igrejas. Isso porque se acreditava que ao ser enterrado em um local sagrado, o falecido estaria mais perto do céu. A igreja de Nossa Senhora dos Remédios possui uma decoração com características neoclássicas e elementos influenciados pelo estilo europeu, que compõem toda a sua estrutura, como por exemplo: altar, forro, piso, a presença de santos entornados com enfeites. Prédio da Companhia de Fiação de Tecidos União Caxiense A Companhia de Fiação de Tecidos União Caxiense foi uma fábrica têxtil caxiense construída no ano de 1889, e que funcionou até a segunda metade do século passado. A respeito dela no jornal caxiense Commercio de Caxias, nos informa que: Este vasto edifício mede 52 metros de frente, 68 do lado direito e 40 do lado esquerdo, contando nesse recinto espaço folgado para todas as máquinas que devem se mover e alimentar 220 teares (Commercio de Caxias, 25 fev., 1883, p. 1. Apud PESSOA, 2009, p. 56). Atualmente, o prédio ainda existe, situado na Praça Dias Carneiro, porém com o nome Centro de Cultura Acadêmico José Sarney. Nele muitas secretarias de Caxias funcionam. Sem dúvida sua existência, com destaque para sua imponente chaminé, serve de indicativo do espírito progressista que envolveu os caxienses no final do século XIX e inicio do XX. Cassino caxiense Considerado um dos mais importantes espaços de memórias de Caxias, o Cassino caxiense serviu por décadas como um dos principais pontos de encontros e de recreação das famílias caxienses. Sua fundação ocorreu em 1∘ de outubro do ano de 1934, estando ele situado na Rua Araão Reis, no centro da cidade. Dentre as festas mais populares ocorridas nesse local, pode-se destacar os bailes carnavalescos que atraiam toda a população da cidade. De acordo com o estatuto do prédio, o objetivo maior do Cassino era: “Aproximar a família caxiense, por meio de um centro de convergência, em que serão proporcionadas diversões aos sócios e Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 299 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS onde se formavam e consolidavam boas relações; comemoravam datas cívicas, promoviam bailes, chás-dançantes e festas beneficentes à comunidades carentes e as instituições consagradas ao desenvolvimento da instrução. Na sua sede ocorriam dançantes, representações teatrais, conferencias de cultura, tertúlias literárias, festas caipiras, bailes carnavalescos – onde concorriam a prêmios, desfile de modelos e concursos de misses caxienses – onde concorriam mais tarde em São Luís, à Miss Maranhão. Reunia, nestas ocasiões, o que tinha de mais seleto da sociedade local.” (MESQUITA, 1992, p.18) Página | 300 Hoje o prédio se encontra abandonado pela sociedade e pelo poder público municipal, estando inclusive em estado de profunda descaracterização. Palácio Episcopal Situado bem ao lado da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, e consequentemente próximo ao largo dos Remédios, esse prédio conhecido também como Palácio Diocesano, foi construído, na primeira metade do século XX, com a finalidade de servir de abrigo para os Bispos atuantes em Caxias-MA. Sua arquitetura revela o estilo colonial. Segundo SOUZA (2016), a construção do prédio se iniciou na administração do Arcebispo do Maranhão Dom Carlos Carmelo Vasconcelos Mota, em 1943, sendo concluída apenas na década de 50 do século XX, sob a administração do Bispo Dom Luís Gonzaga da Cunha Marelim. A parte interior do Palácio é formada por biblioteca, uma capela, auditório, sala de acervo, imagens de santos do século XIX, como por exemplo, a imagem de Nossa Senhora dos Remédios e utensílios litúrgicos (SOUZA, 2016, p. 71). Nos dias de hoje, o Palácio Episcopal se encontra aberto para a comunidade. Educação patrimonial Por muito tempo, a principal finalidade do ensino de História esteve vinculada a tarefa de institucionalizar a memória nacional, estimulando com isso a construção do sentimento de nacionalidade nos estudantes desde a tenra idade. Não obstante, após passar por uma longa trajetória de mudanças, tal ensino hoje busca novas perspectivas, abordagens e problematizações, a fim de estimular os alunos a pensar historicamente a realidade em que estão inseridos, como também ajuda-los a se enxergar enquanto membros dela. Trabalhar com a educação patrimonial significa, antes de qualquer coisa, desempenhar em sala de aula um trabalho muito importante, cujo fim primordial é o de promover a preservação da memória materializada em monumentos históricos. Ademais, outro elemento que torna a educação patrimonial ainda mais atrativa é o fato de ela implicar uma participação ativa dos alunos em atividades de pesquisa, inclusive aquelas “in loco”, levando-os assim a exercitarem sua consciência crítica e a desenvolver sua consciência histórica (SOUZA, 2016). Certamente, as aulas de História são os melhores espaços para a discussão desse tema. Afinal, uma das funções do ensino de História na atualidade é a de auxiliar o aluno no processo de articulação dos conteúdos formais estudados nesta disciplina com a sua realidade vivida (SOUZA, 2016). Em consonância com isso, a educação patrimonial se destaca por possibilitar aos sujeitos se situar na história e no tempo, além de os ajudarem a desenvolver um sentimento de pertença para com o lugar em que vivem. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 301 Assim, percebe-se que as aulas de História devem proporcionar aos alunos conhecimentos sobre o patrimônio histórico, para que estes possam se tornar cidadãos dotados de consciência acerca da importância da valorização e da preservação desses verdadeiros repositórios de memórias. Após o exposto, não há dúvidas sobre as vantagens de inserir a educação patrimonial nas aulas de História, a fim de permitir a divulgação da História local em sala de aula e de fermentar a reflexão sobre a importância de valorizar e preservar o patrimônio histórico local. Mas possivelmente pode surgir a seguinte pergunta: Como fazer? Objetivando apresentar uma proposição, sugerimos que os professores elaborem uma atividade para suas turmas. Esta atividade deve envolver a identificação dos principais construtos históricos da cidade, acompanhada de uma descrição detalhada que responda, entre outras questões: a) Quando/ Por que/ E por quem estes prédios foram criados? b) Em que estado eles se encontram hoje? c) Qual era a importância desses prédios na época funcionamento? d) O que eles ensinam sobre o passado da nossa cidade? e) Que histórias há por trás do que hoje são só ruínas? do seu Feito isso, os professores poderão também sugerir aos alunos fotografarem os prédios pesquisados, utilizando desse modo a fotografia como meio de salvaguarda desses patrimônios. Considerações finais Portanto, com base no que foi apresentado, conclui-se que o patrimônio histórico-arquitetônico não é apenas um bem material, uma vez que ele possui um significado maior, relacionado com a construção e o fortalecimento das identidades dos sujeitos históricos. Assim sendo, é perceptível que possibilitar o diálogo envolvendo alunos e o patrimônio histórico da cidade em que vivem é muito importante para que a articulação entre a história local e o conhecimento histórico recebido em sala de aula, possa ser estabelecida a contento. Nesse sentido, também é evidente a necessidade de chamar atenção para a preservação do patrimônio histórico-arquitetônico, a partir da educação patrimonial, dado que será somente por meio disso que a memória social da cidade e a do seu povo, será salvaguardada, tornando possível, assim, que as gerações futuras possam conhecê-la. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Essa questão é prioritária em Caxias-MA, pelo fato desta ser uma cidade com um passado muito interessante, expresso em seus prédios antigos, que infelizmente, por causa do descaso público e da desvalorização da sociedade, podem ser tragados pela cobiça humana. Página | 302 Referências ALMEIDA, Eliane de Sousa. Patrimônio cultural e memórias: percorrendo os dias e sentindo a cidade de Caxias. In: MELO, Salânia; PESSOA, Jordânia. (org.) Percorrendo Becos e Travessas: feitios e olhares das histórias de Caxias. Teresina: Edufpi, 2010. GIL, Carmem Zeli.; TRINDADE, Rhuan Targino Zaleski (Org). Patrimônio Cultural e Ensino de História. – ed.- Porto Alegre, RS: Edelbra, 2014. HORTA, Maria de Lourdes Parreira. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN/ Museu Imperial, 1999. MESQUITA. Letícia. Memórias de Caxias, cada rua sua história. Câmara Municipal de Caxias. – Caxias - MA, 1992. PESSOA, Jordânia Maria. Entre a tradição e a modernidade: A BELLE ÉPOQUE CAXIENSE. Práticas fabris, reordenamento urbano e padrões culturais no final do século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2009, 144 p. SOUZA, Joana Batista. Educação patrimonial: passados possíveis de se preservar em Caxias-MA. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual do Maranhão, 2016, 147 p. IMIGRAÇÃO & COLONIZAÇÃO: A IDENTIDADE UCRANIANA EM PRUDENTÓPOLIS/PR Nikolas Corrent O artigo apresenta um estudo realizado com o propósito de abordar o processo imigratório dos ucranianos para Prudentópolis/PR, bem como de elucidar a colonização nesse município. Nesse seguimento, o artigo explana acerca da inserção do imigrante em terras paranaenses desde fins do século XIX e as suas dificultosas adaptações no território de florestas da época. Por fim, ilustra a importância desse contexto de colonização supracitado para a construção e o desenvolvimento de Prudentópolis, assim como para a preservação da identidade étnico-cultural dos habitantes descendentes. O estudo apresenta essa população municipal na contemporaneidade, população que, em cerca de 75%, é composta por descendentes de ucranianos. Para a efetivação dessa proposta de pesquisa, foram empregadas fontes teóricas, conceituais e documentais, isso em conjunto com as informações adquiridas mediante um estudo de campo para a obtenção de histórias orais. Dessa forma, foram obtidos os subsídios necessários e pertinentes para a construção do artigo. Como desfecho, foi elaborada uma análise sobre as informações relevantes para a constituição étnico-cultural da população prudentopolitana e o desenvolvimento do município. Introdução O Brasil apresenta uma identidade cultural fundamentada em uma miscigenação composta inicialmente pelos autóctones, posteriormente por lusitanos e, por último, por africanos. Essa mistura entre as etnias principiou-se em torno de 1530, quando os portugueses desembarcaram no litoral território com o objetivo de colonizá-lo. Destarte, os brasileiros, mais precisamente, os nativos, foram concebidos com uma nova identidade. Evidencia-se então que a imigração, a colonização e a identidade desempenham uma relação intrínseca, responsável pela construção do país que temos na contemporaneidade. Dessa mesma forma se sucedeu em diversas regiões interioranas do país, onde, a partir da imigração de outros indivíduos, foi concebida uma nova estrutura a cada localidade. No Paraná, a imigração inicial de europeus portugueses e espanhóis resultou na formação histórica de um estado de grande extensão demográfica. Estes indivíduos chegaram aos territórios paranaenses na condição de colonos visando desenvolver vastas lavouras no interior do estado e fortalecer as vilas, que, no decorrer de décadas e séculos, viriam a constituir as futuras cidades. No caso do território que viria a ser o município de Prudentópolis, os colonizadores também foram imigrantes europeus, porém a maior parcela oriunda da Ucrânia e corresponde à maior colônia de imigrantes ucranianos no estado do Paraná, bem como em todo o Brasil, apresentando uma intensa tradição que narra a história e a trajetória cultural de uma população que pelejou com a dominação de outros países e trazia, nos Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 303 costumes e na cultura, uma maneira de preservar suas tradições e de esquivar-se da repressão a que tinham sido historicamente submetidos. Essa cultura atualmente causa grande influência na rotina das pessoas e na própria cidade. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS De acordo com os dados obtidos pelo – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística − IBGE, no ano de 2010 os descendentes de ucranianos no Brasil constituíam uma população de cerca de 500 mil habitantes, dos quais 80% residiam em território paranaense e, conforme supracitado, 75% da população de Prudentópolis é considerada como de ascendência ucraniana. Página | 304 A construção de uma reflexão acerca do processo de colonização do município de Prudentópolis realizada pela imigração dos ucranianos se faz de suma importância para os historiadores que residem no estado paranaense. Dessa forma, ponderamos a escolha desta temática como uma fonte de conhecimento para os habitantes da região, sobretudo para os descendentes de ucranianos ali residentes e que desempenham uma participação efetiva e simbólica na constituição e na preservação de uma identidade étnico-cultural relativa ao seu passado europeu. Conforme os dados expostos anteriormente, esse município se estabelece com uma porcentagem relativamente alta de descendentes ucranianos, assim constituindo a maioria da população. Contemporaneamente, esses indivíduos vivenciam uma realidade consuetudinária estabilizada. Torna-se relevante, no entanto, frente a esse cenário, a menção às dificuldades enfrentadas por seus antepassados na construção de Prudentópolis. Com o intuito de atrair a atenção da população para essa temática, o presente artigo propende a incentivar a importância de não somente preservar as tradições e os costumes, mas também resgatar a história de um grupo étnico que possibilitou o progresso do município de Prudentópolis. O principal objetivo desta pesquisa consiste então em apresentar uma abordagem referente ao processo de imigração e de colonização ucraniana no município de Prudentópolis/PR. Mediante uma pesquisa do tipo qualitativa e a obtenção de relatos orais de personagens representativos dessa população, buscaremos elucidar os motivos para a expatriação do ucraniano, bem como a sua inserção no território brasileiro, sobretudo na região centro-sul do Paraná. Ademais, explanaremos acerca da acomodação do imigrante em Prudentópolis, evidenciando a colonização e a construção desse município. Nessa narrativa vão salientados, mediante ilustrações, edificações, imagens, iniciativas coletivas e depoimentos, relativos às formas empregadas para preservar a identidade étnico-cultural dos descendentes de ucranianos em Prudentópolis. Imigração e identidade ucraniana em Prudentópolis: uma dualidade necessária A cidade de Prudentópolis, localizada no estado do Paraná, apresentou-se, até o século XIX, como uma região de povoamento escasso, bem como a quase totalidade do território paranaense. Destarte, ao término desse século se evidenciavam as chegadas dos primeiros imigrantes, sobretudo aqueles provenientes da Ucrânia, de que os seus descendentes compreendem, na contemporaneidade, cerca de 75% da população prudentopolitana. Nesse contexto, faz-se relevante salientar os fatores que forçaram o processo de emigração de contingentes populacionais ucranianos. Foram fatores não somente econômicos, mas sociais e políticos, que desempenharam esse papel de impulsionar uma intensa fuga desses indivíduos de sua terra natal. Durante o século XVII, a Ucrânia encontrava-se sob a dependência da Polônia e, desse modo, a população padecia com as imposições desse governo. Vivenciando um regime de servidão, os camponeses eram explorados e oprimidos em distintas esferas, sobretudo na alta cobrança de impostos e na opressão do culto religioso. A dominação polonesa, no decurso do tempo, intensificou-se, impondo uma conjuntura de extrema pobreza sobre a população camponesa. Concomitantemente a esse fator, os governos americanos, de norte a sul, iniciaram seus investimentos em propagandas visando atrair imigrantes com a finalidade de povoar os seus países. Nesse cenário, diante das calamitosas condições políticas e econômicas instaladas na Ucrânia, com supressão das liberdades sociais e culturais da população, inúmeros ucranianos decidiram por expatriar-se como uma forma de reconquistarem os seus direitos e se desvencilharem das dificuldades. Isto posto e deslumbrados com as propagandas supracitadas, esses indivíduos se viram forçados a abandonar a sua terra natal em busca de outros países, sobretudo de países no continente americano, em busca de paz e de liberdade, na esperança de poderem continuar a praticar a sua religiosidade, de resguardar as suas tradições e de manter a sua cultura. Uma grande parcela dos imigrantes ucranianos instalou-se no Paraná, mais precisamente no território que se tornaria o município de Prudentópolis. Segundo as considerações do historiador Ruy Christovam Wachowicz (1988, p. 116), os primeiros ucranianos chegaram ao estado paranaense no início de 1891, oriundos da Galícia e abrigando-se, ao chegarem, na região de “[...] Rio Claro, Antônio Olinto, Senador Correia, Cruz Machado, Prudentópolis”. Acerca desse processo imigratório, a historiadora Oksana Boruszenko ressalva que: “A imigração ucraniana no Paraná realizou-se em três etapas distintas. A primeira data dos fins do século XIX, quando milhares de ucranianos (sobretudo lavradores da Galícia e da Bukovina, que, desde o Congresso de Viena, estavam sob o domínio da Áustria, em consequência da superpopulação agrária e débil industrialização, bem como das más condições socioeconômicas) abandonaram as terras negras e transferiram-se para outros países, entre os quais o Brasil, onde se fixaram, especialmente no Estado do Paraná”. (BORUSZENKO, 1995, p. 9). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 305 A fase pioneira da imigração destacada por Boruszenko remete àquela na qual os ucranianos se submeteram a uma política oficial de povoamento do governo nacional e foram instalados em lotes coloniais na região de Prudentópolis. O doutor em História, Odinei Fabiano Ramos, reitera que: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 306 “Foi no dia 16 de abril de 1896 que chegaram à região que futuramente se chamaria Prudentópolis as carroças de Henrique Kremmer trazendo as primeiras famílias de imigrantes ucranianos, os quais foram encaminhados à região pelo serviço imigratório do Paraná. Foi então que o diretor das obras públicas e coloniais, o engenheiro civil Dr. Cândido Ferreira de Abreu, resolveu por denominar a colônia de imigrantes eslavos de Prudentópolis, em homenagem ao então presidente da República, Dr. Prudente de Moraes”. (RAMOS, 2012, p. 70-71). Desse modo, salienta-se que Prudentópolis se concebe como o município brasileiro que recepcionou a maior parte dos imigrantes procedentes da Ucrânia. Essa população foi destinada a territórios inóspitos e obstruídos da região, sendo imprescindível o desbravamento das matas e a construção de estradas para alcançar as suas novas terras. Há de se considerar, no entanto, que, mesmo com essas muitas dificuldades iniciais, a instalação na pátria brasileira possibilitou aos ucranianos a preservação de sua cultura, bem como a prática religiosa no seu rito bizantino católico. A segunda fase ocorreu no início do século XX, mais precisamente após o ano de 1918 ou, consoante a historiadora, “[...] após a Primeira Guerra Mundial”, destacando-se que “[...] os motivos, desta vez eram, sobretudo, políticos” (BORUSZENKO, 1995, p. 9). Desse modo e em razão do fracasso da independência da Ucrânia em 1919, a população ucraniana padeceu com a forte dominação simultânea da Polônia e da Rússia sobre os seus territórios. Nessa conjuntura arrevesada, outros indivíduos abandonaram sua pátria natal e rumaram para países da América, sobretudo para o Brasil, com o objetivo de encontrar melhores condições de vida. Os imigrantes que adentraram o estado paranaense nesse ínterim foram encaminhados aos já consolidados lotes coloniais. A última etapa da imigração ucraniana ocorreu após a Segunda Guerra Mundial e, segundo Boruszenko, foi considerada a maior em número de indivíduos. Registra-se que “[...] eram mais de duzentos mil imigrantes, entre operários, prisioneiros de guerra, refugiados políticos e soldados da Primeira Divisão ucraniana e de outras formações militares, que lutaram contra os russos” (BORUSZENKO, 1985, p. 10). Cabe destacar que, além desses imigrantes instalados no Brasil, outros também se refugiaram em países como Argentina, Canadá e Estados Unidos. Evidencia-se, mediante o mapa abaixo, que o processo imigratório dos ucranianos para o município de Prudentópolis se intensificou antes mesmo da Segunda Guerra Mundial. Consoante os dados de Boruszenko (1969, p. 427), até o ano de 1960 cerca de 150.000 imigrantes ucranianos se encontravam instalados no Brasil e, desse total, em torno de 120.000 residiam em território paranaense. A respeito do município de Prudentópolis, não constam dados precisos, no entanto, segundo os números de Paulo Renato Guérios, em sua obra Imigração Ucraniana ao Paraná (2007, p. 117), “[...] entre 1896 e março de 1897 cerca de 5.200 ucranianos foram destinados à Prudentópolis”. Salienta-se, de acordo com as historiadoras Talita Seniuk e Maria Inêz Antônio Skavronski (2014, p. 86), que. “[...] para os que desejavam migrar para o Brasil”, este território “[...] era o local que mais se assemelhava em relação ao clima europeu”. Destarte, entre os anos de 1895 e 1896, inúmeros imigrantes chegaram à cidade, designada, na época, de São João de Capanema, consistindo em uma vila com vastas regiões de matas, que, ao serem povoadas, originou o município de Prudentópolis. Assim foi fundada, portanto, a Colônia Ucraniana, local de habitação desses imigrantes que viriam a colonizar o município. A Colônia Federal Prudentópolis foi ponderada como a mais ampla, recebendo, em 1895, cerca de 250 famílias de imigrantes oriundas da região da Galícia e da Bukovina. Ademais, constata-se que esses imigrantes constituíram em torno de 130 comunidades rurais, comunidades que, por sua vez, formaram o município de Prudentópolis no ano de 1906. Ressalta-se, no entanto, que a instalação dos ucranianos em sua nova pátria foi marcada por intensas dificuldades, como a laboriosa adaptação, a expansão na taxa de mortalidade por causa das péssimas condições vida, a ausência de subsídios do governo para suprir, nos tempos iniciais, as condições básicas de sobrevivência. Tudo isso somado ao desconhecimento acerca da terra e do idioma resultou no anseio de muitos desses imigrantes em regressar ao seu país de origem. De acordo com o relato da descendente de ucranianos e gerente do Departamento de Cultura de Prudentópolis, Nádia Morskei (2017), os imigrantes pioneiros habitavam em pequenos “barracos”. Ademais, não dispunham de alimentos básicos, tampouco de ferramentas para trabalharem com a agricultura, prática que desempenhavam em sua nação de origem. A entrevistada expõe, porém, que, mediante a “força de vontade”, esses indivíduos adquiriram seus empregos e, com isso, foram obtendo melhorias em suas vidas. Dada essa conjuntura supracitada, os ucranianos permaneceram nas terras ilusórias, ponderando sobre a falsidade das propagandas governamentais que concebiam o Brasil como um território de solo fértil e favorável aos imigrantes, porém livres para prática da sua religiosidade, prática era reprimida na Ucrânia. As informações de Meroslawa Krevei (2017), responsável pelo Museu do Milênio em Prudentópolis, elucidam a fé desses indivíduos. Desse modo, a entrevistada relata que “[...] o desânimo, as doenças e a saudade rodeavam o imigrante ucraniano”, no entanto, “[...] a igreja que segurou o imigrante no Brasil, sempre presente em tudo”. Ademais, Krevei reitera que “[...] a força condutora do povo ucraniano é a igreja”. O Museu do Milênio foi inaugurado em Prudentópolis quando houve a solenidade do centenário da imigração ucraniana no município em 11 de agosto de 1995. Em seu interior consta um acervo de livros, arquivos e fotografias, rememorando as tradições e a cultura da comunidade ucraniana brasileira de Prudentópolis. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 307 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Mediante a abolição da escravidão no Brasil em 1888, os proprietários de terras e de indústrias avaliaram os imigrantes ucranianos como um possível recurso para a escassa mão de obra que se instalava no país e, a partir disso, foi possibilitado o ingresso desses indivíduos no mercado de trabalho. Dessa forma, esses imigrantes recebiam seus salários, adquiriam terras para construir suas moradias e reconstruíam suas vidas na nova pátria. Krevei (2017) segue narrando a inserção dos ucranianos no Brasil, explanando que “[...] fizeram dele um país querido, mantendo aqui alguns aspectos de sua cultura de origem”. Página | 308 As comunidades instituídas pelos descendentes ucranianos foram, paulatinamente, concebendo um aspecto de cidade aos territórios habitados, e isso foi conquistado por meio da construção de estradas e de ferrovias, do progresso no comércio, bem como da fundação de centros de saúde, de estabelecimentos educacionais e de templos religiosos. Evidenciam-se, na sequência deste estudo, as considerações supracitadas de que a religiosidade e a força de vontade dos imigrantes ucranianos foram os principais fatores responsáveis pela permanência desses indivíduos em Prudentópolis e, sobretudo, responsáveis por uma adequada colonização do município, reconhecido na contemporaneidade como a “pequena Ucrânia no Brasil” – o que, efetivamente, é uma justa designação, considerando a formação de uma identidade étnico-cultural marcante e única. Esse fator se tornou de suma importância para o intenso desenvolvimento da cidade e do município todo, tanto no setor econômico, quanto no cultural, atraindo milhares de turistas para Prudentópolis, incentivados a comparecer para conhecer, compreender e admirar as tradições ucranianas que foram trazidas para o nosso país e aqui mantidas na medida do possível. Para o teórico cultural Stuart Hall (2002), as nações modernas dispõem de uma fusão de grupos étnicos diferentes. Esse é o caso do Brasil, caracterizado por sua miscigenação inicial de povos no período colonial, ou seja, pela mistura inicial de três povos com peculiaridades dessemelhantes – mesmo dentro de cada povo desses −, sendo eles os índios nativos, os portugueses colonizadores e os africanos escravizados. A imigração ucraniana em Prudentópolis possibilitou, diferentemente da miscigenação tradicional do Brasil e do Paraná, uma outra identidade étnica aos antigos habitantes do município, que se integraram aos imigrantes ucranianos estabelecidos então como maioria e que implantaram as suas tradições culturais e religiosas, que foram sendo reafirmadas constantemente pelas práticas da população descendente, assim motivando e moldando um original sentimento de pertença em território brasileiro paranaense. Faz-se relevante destacar, nesse cenário, as contribuições dessa nova identidade étnico-cultural para a cidade e região, como a arquitetura impressa nos templos religiosos, o emprego da língua ucraniana nos eventos − especialmente nos das igrejas −, a gastronomia referenciando os ucranianos, o artesanato − sobretudo o bordado desempenhado com desenhos e figuras geométricas que remetem à religiosidade −, as festividades folclóricas e os rituais pascais. A forte religiosidade dos ucranianos possibilitou uma expansão cultural no município, sendo motivo de atração aos visitantes oriundos de diversas regiões do país. Os costumes e as tradições desses imigrantes foram resguardados por seus descendentes, sendo praticados ainda na contemporaneidade. Nota-se, na Igreja Matriz de São Josafat, que as missas são celebradas na língua ucraniana e, ademais, a edificação e a decoração desse ambiente simbolizam um caráter alusivo à Ucrânia. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 309 As práticas desempenhadas por esses descendentes de ucranianos − sejam as vivenciadas no cotidiano, sejam as programadas no calendário anual − buscam uma afirmação identitária no presente a partir daquela que foi reconstruída por seus antepassados pioneiros nos primeiros contatos com a cultura dos brasileiros. Segundo as considerações de Hall (2002), ocorreu um hibridismo cultural, isto é, um complexo de culturas diferentes, tal como ocorreu em Prudentópolis a partir dos fins do século XIX, quando da chegada dos primeiros ucranianos ao município. Daquele episódio histórico em diante foi surgindo a reconstrução de uma identidade homogênea, ou seja, o misto entre a cultura brasileira e a ucraniana, misto do qual resultou a formação de uma identidade prudentopolitana. Esse processo de reconstrução da identidade étnica pelos descendentes de ucranianos apresentou determinadas alterações − seja para eles próprios, seja para a pequena população nativa − em razão de variadas influências modernas, ponderando que as culturas não são estáveis, transfigurando-se de acordo com as alterações no ambiente externo. Em suma, sem aqui mencionar as contribuições mútuas entre nativos e imigrantes, são inúmeras as contribuições que a imigração ucraniana possibilitou a Prudentópolis, sendo esse um processo fundamental e de extrema importância para a formação e o desenvolvimento da atual população urbana e rural do município. Considerações Finais No presente artigo abordamos sumariamente o processo de imigração e colonização ucraniana no município de Prudentópolis/PR. Elucidamos aspectos como as fases imigratórias a que os ucranianos se submeteram até se instalarem no estado paranaense, sobretudo em Prudentópolis, o que incluiu informações sobre a chegada e a adaptação desses indivíduos à sua nova pátria, bem como a importância desse processo para a cidade. Dessa forma, explanamos que a imigração no Paraná ocorreu em três fases, variando no decurso do tempo em razão das condições em que os ucranianos se encontravam em sua terra natal. Dentre os fatores predominantes que determinaram o processo de emigração do Leste Europeu para território americano em geral, aí incluído o território brasileiro, destacamos, nesta pesquisa, a dominação polonesa e a dominação russa sobre a população da Ucrânia, a qual se viu obrigada a expatriar-se em busca de melhores condições de vida. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 310 Em seguida, analisamos o processo de adaptação dos imigrantes em terras brasileiras. Ressaltamos, nesse contexto, as dificuldades enfrentadas por esses indivíduos ao se situarem em uma conjuntura diferenciada daquela de origem. Moradias precárias, ausência de alimentos e de ferramentas para trabalhar e, sobretudo, a deficiência governamental em proporcionar subsídios aos ucranianos, apresentaram-se como fatores que desestimularam esses novos habitantes de São João de Capanema – antiga denominação de Prudentópolis. Vimos, no entanto, que a religiosidade e o empenho desses imigrantes resultaram na concepção de uma nova cidade no Paraná e que é popularmente denominada de “a pequena Ucrânia no Brasil”. Por último, observamos a importância e a intensa contribuição do processo imigratório para Prudentópolis. Conforme supracitamos, a transformação do antigo vilarejo em município foi resultado da colonização ucraniana, que, mediante construção e fundação de escolas, de igrejas, de postos de saúde e de casas de comércio, foi possibilitando o desenvolvimento e tornando aquela antiga vila na contemporânea cidade de Prudentópolis. Ademais, esclarecemos acerca das contribuições culturais e econômicas que os descendentes de ucranianos desempenham no município, salientando, nessas contribuições, a preservação dos costumes e das tradições de seus antepassados europeus do Leste. Em síntese, foi analisada a formação de uma nova identidade étnico-cultural para os prudentopolitanos, para todos os prudentopolitanos, sendo essa formação resultado de uma mistura entre os brasileiros e os ucranianos. Essa construção se responsabiliza pelo atual progresso municipal, bem como pelo desenvolvimento da cidade. Destaca-se que a identidade existente entre a população se reafirma mediante as práticas culturais desempenhadas periodicamente em Prudentópolis – inclusive constituindo um calendário turístico – e que possibilitam a essa população um sentimento de pertença único em âmbito nacional e internacional. Referências BORUSZENKO, Oksana. A imigração ucraniana no Paraná. In: Colonização e Migração. Anais do IV Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História. Eurípedes Simões de Paula org. São Paulo, p. 423-439, 1985. __________ . Os ucranianos. 2. ed. Curitiba, PR: Fundação Cultural de Curitiba, 1995. vol. 22. BURKO, Valdomiro N. 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Curitiba, PR: Gráfica Vicentina, 1988. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 311 IDEIAS HISTÓRICAS SOBRE A RELAÇÃO FUTEBOL E POLÍTICA NO BRASIL [2019]: UMA PROPOSTA DE PESQUISA EM HISTÓRIA E ENSINO Pedro Aurélio dos Santos Luiz Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Investigar os usos, funções e formas que o conhecimento histórico assume na sociedade é papel do historiador, visto que através desse conhecimento é possível enxergar as estruturas que compõe as mais complexas relações sociais e compreender o comportamento humano. Página | 312 Não é de hoje que no Brasil percebemos uma relação próxima entre práticas culturais e as tomadas de decisões políticas, onde só é possível evidenciar essa proximidade através do estudo do conhecimento histórico que circula na sociedade em geral, não apenas aquela voltada aos especialistas. Exemplificando, vemos cada vez mais ícones esportivos se tornarem representantes políticos, grandes eventos se apropriarem de marketing partidário, ou mesmo arquibancadas se tornarem movimentos sociais organizados. Esse fenômeno social pode ser apropriado por pesquisas de variados campos de estudo da História como a Didática da História, a História Política, a História Pública, até mesmo a História por meio do Futebol. Logo, o projeto em questão busca compreender um aspecto característico que marca a História recente do Brasil, a relação entre Política e Futebol, contudo, através do olhar do aluno de Ensino Médio. A proposta é perceber de que forma a História contribui para o entendimento da relação Futebol e Política em alunos de Ensino Médio. Essa relação está presente no conhecimento histórico dos alunos? Futebol tem alguma relação com a Política no Brasil? De que maneira essa relação auxilia na formação do conhecimento histórico? Faz sentido aproximar uma prática cultural tão popular no Brasil com a História Política brasileira? De que maneira essa relação é evidenciada pelos jovens estudantes brasileiros? Para tanto, acredita-se que seja necessária uma articulação entre estudos de autores de várias áreas da História, como as já mencionadas acima, para solucionar essa especulação. Primeiramente, a contribuição de Jörn Rüsen para o estudo da Didática da História, onde o autor entende a história relacionada à vida prática das pessoas, não apenas dentro da escola, mas também fora dela. No caso, a Didática da História se preocupa com as formas de elaboração da consciência histórica, o saber histórico que circula na sociedade e dentro da escola a forma que a disciplina de História é apreendida, o que se apreende e o deveria ser apreendido, até onde há cientificidade nas narrativas históricas. A História Política que René Rémond propõe voltada a interlocução dos aspectos políticos com os mais variados campos do saber também retém a atenção em se trabalhar com a investigação proposta neste projeto pois dinamiza a historiografia política e fundamenta uma possível relação entre o futebol e as tomadas de decisões políticas. Em pesquisas sobre narrativas históricas circulantes na sociedade é importante compreender de que maneira o conhecimento histórico é apropriado pela sociedade e quais seus mecanismos de propagação, desta forma, a História Pública é uma área de atenção na articulação da temática aqui proposta. Obras como ‘Introdução à História Pública’ [2011] de Almeida e Rovai e ‘História Pública no Brasil [2016] de Mauad, Almeida e Santhiago trazem uma discussão recente do compartilhamento da história como conhecimento científico com os mais variados públicos e de modo inter-relacional, transdisciplinar. Além disso, mesmo que não seja o objetivo principal do projeto realizar uma historiografia política do Brasil ou uma História do Futebol no Brasil, estudos históricos que entendem a história do Brasil através do Futebol vão auxiliar na compreensão das narrativas históricas de alunos sobre a relação política e futebol. Alguns estudos que trabalham com essa perspectiva são: ‘A dança dos deuses’ [2007] de Hilário Franco Júnior, ‘Memória Social dos esportes: futebol e política’ [2006] de Silva e Santos, ‘O negro no futebol brasileiro’ [2003] de Mário Filho, entre outros. Norteado por tais análises, o problema aqui proposto é compreender as ideias históricas dos alunos de Ensino Médio sobre a relação Política e Futebol no Brasil, articulando variadas noções históricas, como de permanências e mudanças, noções de fontes e evidências, interpretação, narrativa, além de ideias substantivas, conceitos históricos gerais, como ditadura, revolução, ideias de espaço/tempo, histórias nacionais, etc. Tem-se o entendimento a piori de que a relação entre Política e Futebol no Brasil compõe um problema de orientação da vida prática dos sujeitos que pertencem ao contexto brasileiro a partir do século XX. A fundamentação para tal é a de que um esporte que surge como prática da elite se torna atividade popular de cunho identitário e que passa ser representativo na ascensão social de estratos marginalizados demonstra que algumas características históricas possibilitaram que esse fenômeno ocorresse numa sociedade tão complexa como na história do Brasil recente. A História, segundo Rüsen [2010], através de competências da consciência histórica, busca resolver problemas práticos de orientação. Unindo a tese de que o Futebol é fator que pode condicionar ações políticas da sociedade brasileira com a perspectiva de que a História questiona e instiga compreensão racional e científica das ações humanas, justifica-se a escolha da temática na análise de narrativas de um grupo de jovens estudantes brasileiros para compreender se este fenômeno tem algum sentido no cotidiano desses jovens e em que dimensão isso ocorre. Além de percebermos de que maneira se articulam as ideias históricas em alunos de Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 313 Ensino Médio, que nível científico compõe as narrativas desses jovens, que noções históricas são utilizadas na fundamentação de argumento racional para os problemas de vida prática. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 314 A pesquisa já fora aplicada em caráter inicial na dissertação de mestrado, e busca neste momento aprofundar as questões aqui apresentadas visto que o primeiro estudo instigou inúmeras especulações referentes a relação Política e Futebol na História do Brasil sobre olhares de estudantes de Ensino Médio. Percebeu-se que os alunos utilizaram ideias históricas complexas para articularem problemas do cotidiano, sendo que fundamentaram suas narrativas em saberes especializados que estão presentes em variadas mídias, contudo, a presença de narrativas fragmentadas e simples também alertou para alguns problemas de compreensão histórica que fazem parte da História Pública. Sendo assim, a relevância de uma pesquisa mais abrangente e que analise uma amostragem diferente se dá na perspectiva de que o tema e a metodologia ainda possuem uma gama considerável de exploração, visto que pode proporcionar avanços nas pesquisas em Didática da História, Educação Histórica, História Pública, entre outras áreas. A pesquisa tem como objetivo principal analisar de que maneira as ideias históricas de alunos de Ensino Médio tratam a relação entre Futebol e Política no Brasil e se esta relação tem sentido em suas vidas práticas. Como objetivos específicos buscaremos compreender: 1. Que noções históricas são articuladas na fundamentação racional dos alunos diante de carências de orientação do cotidiano? 2. A História está relacionada à vida prática? 3. A História é entendida pelos alunos como conhecimento científico? 4. Existe alguma relação histórica entre Futebol e Política no Brasil? 5. É viável entender a História do Brasil através do Futebol de acordo com os alunos pesquisados? Descrição das fontes, metodologia e referencial teórico Acredita-se que a proposta de pesquisa se enquadra melhor numa dinâmica qualitativa, sendo que não haverá preocupação com um número exorbitante na amostragem, pois pode haver defasagem na análise minuciosa das narrativas colhidas durante a aplicação dos variados instrumentos de coleta de dados. Pensa-se, dessa forma, na utilização do método de pesquisa conhecido como ‘Grounded Theory’, inspirado principalmente nos escritos de Kathy Charmaz [2009]. ‘Grounded Theory’ ou Teoria Fundamentada é um método de pesquisa que surge nos EUA na década de 1960 com Glaser e Strauss e propõe análises qualitativas em estudos em ciências sociais. O método surge em decorrência do conflito com preceitos positivistas que estavam em alta e busca dinamizar o modo de interpretação das realidades sociais pesquisadas no período. A Teoria Fundamentada passou por reformulações com o decorrer dos anos, surgindo algumas correntes específicas de acordo com os trabalhos publicados, principalmente diante do conflito metodológico adotado por seus expoentes. É quando se diferenciam seus métodos de abordagem em ‘Grounded Theory’ clássica [Glaser], ‘GT full conceptual description’ [Strauss e Corbin] e ‘GT construtivista’ [Charmaz]. Basicamente, as divergências entre essas correntes é a rigidez das categorias que surgem no decorrer da pesquisa e a abrangência da pergunta principal, onde a vertente clássica faz críticas a reformulação proposta por Strauss e Corbin devido a descaracterização do poder analítico do pesquisador. Posteriormente com a popularização da GT no meio acadêmico outros autores puderam reelaborar os pressupostos adotados em seu surgimento. Desta forma, Kathy Charmaz publica ‘A construção da Teoria Fundamentada’ [2009], quando dá início ao que chamamos de Teoria Fundamentada construtivista, que dá certo relativismo ao conhecimento. Construtivista devido ao reconhecimento que a produção do conhecimento ocorre de maneira recíproca entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa, levando em consideração a dimensão do significado. Com isso, entendendo a vertente construtivista mais apropriada à pesquisa, alguns pontos devem ser esclarecidos sobre o método: a) não existe uma pergunta de pesquisa a priori; b) os dados são [co]construídos, construção simultânea entre pesquisador e pesquisados, através de variadas técnicas [questionários, entrevista semi-estruturadas, análise textual, Grupo Focal, etc.]; c) existe uma categoria principal que se articula às demais categorias que vão surgindo no decorrer da pesquisa. Em síntese, a GT propõe a aplicação de técnica de recolhimento de dados que quando analisados construirão categorias específicas que demandarão a aplicação de novos procedimentos que apresentarão novos memorandos e assim sucessivamente até obter dados que atendam a categoria principal e que possibilite o entendimento de uma realidade social. Como fonte para a compreensão do problema apresentado neste projeto utilizar-se-ão narrativas de estudantes de Ensino Médio da rede pública e/ou privada. A construção dessas fontes será viabilizada pela aplicação de procedimentos específicos que serão propostos em sala de aula, onde a cronologia de aplicação surgirá de acordo com a demanda de memorandos construídos. Logo, algumas técnicas são possíveis e já reconhecidas por outros trabalhos acadêmicos, a exemplo da submissão de questionários escritos, que podem identificar conhecimentos prévios como visto no trabalho de Isabel Barca [2007], ou mesmo a organização de Grupo Focal que percebe na interlocução das narrativas dos sujeitos pesquisados uma alternativa para construção de dados [GATTI, 2005]. Além da execução de algumas atividades que instiguem o estudante a analisar os questionamentos do pesquisador, como análises de fontes documentais como jornais, redes Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 315 sociais, mídias eletrônicas, livros, e o enfrentamento destas fontes, a exposição de filmes sobre o tema, entre inúmeras outras atividades que podem proporcionar ao aluno pesquisado base para a fundamentação das questões apresentadas. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 316 Narrativas de jovens estudantes é matéria-prima para pesquisas em Ensino de História, em específico no campo de pesquisa em Didática da História e na especialidade de análise Educação Histórica. Acredita-se na utilização simultânea da Didática da História e da Educação Histórica porque as percebemos como complementares, mesmo que em alguns pontos elas se distanciem. Por Didática da História entendemos um campo de pesquisa do papel da História na opinião pública, analisando qual e como os saberes históricos circulam na sociedade. Essa função didática se compromete com a introdução de saberes históricos científicos para as explicações de mundo a partir da investigação das ideias dos sujeitos, pois identifica carências de orientação e projeta um raciocínio histórico como norte reflexivo. Bergmann [1989/90] ainda complementa dizendo que ideias históricas estão intimamente presentes na compreensão do comportamento humano, pois os sujeitos agem de acordo com as respostas que dão aos problemas do cotidiano, de maneira que resgatam experiências passadas e que refletem em ações futuras. O engajamento da Didática da História se volta à cultura histórica, ao pensamento histórico, à consciência histórica, não apenas dentro da escola. Para aprimorar a análise para dentro do universo escolar, acredita-se que o uso das pesquisas em Educação Histórica apresenta grande valia. A Educação Histórica é uma especialidade de análise do vasto campo de pesquisa em Ensino de História, onde direciona seu foco para o ensino e aprendizagem histórica no ambiente escolar. A problemática da Educação História se volta a como os alunos aprendem história e para que serve tal aprendizado, partindo dos conhecimentos históricos que os mesmos carregam, se distanciando de uma aprendizagem transpositiva que outrora fora pensada [RAMOS, 2013]. Para Peter Lee [2006], um dos expoentes da Educação Histórica, a especialidade tem como objetivo a “literacia histórica”, termo que remete a um “letramento histórico”, um modo específico de “ler o mundo” a partir da História. Para tanto, o autor esclarece alguns conceitos históricos específicos que possibilitam a compreensão das narrativas históricas dos sujeitos. Lee entende que conceitos substantivos são ideias históricas gerais, normalmente tratados como conteúdo disciplinar, ditadura, imperialismo, revolução, etc. Por conceitos de segunda ordem são aqueles relativos à cognição histórica, como noções de interpretação histórica, noção de evidência, mudanças e permanências, entre outras ideias referentes à natureza do conhecimento histórico. Embora percebamos muitas proximidades entre a Didática da História e a Educação Histórica que auxiliarão no desenvolvimento da tese aqui proposta, é importante descrever que em alguns aspectos elas se diferenciam. Primeiramente suas matrizes teóricas, a Didática da História vem de uma corrente de filósofos da História alemã [Rüsen, Begmann, Pandel], já a Educação Histórica surge de pesquisas em ensino e aprendizagem histórica de vertente inglesa [Lee]. Outro ponto é que a Didática da História não tem foco apenas na aprendizagem histórica dentro da escola, a Educação Histórica sim, mesmo que leve em consideração saberes históricos trazidos de outros ambientes. A Educação Histórica também tem interesse na progressão do conhecimento histórico, pois parte da premissa de um “letramento histórico”, logo se volta também à currículos escolares, ao processo de aprendizagem dentro da escola e também à uma potencialização da cognição histórica por parte de alunos e professores. Nesta pesquisa acreditamos que a interlocução de ambas [Didática da História e Educação Histórica] pode enriquecer o poder analítico das narrativas pois viabiliza o entendimento das ideias dos alunos em múltiplos ambientes, ancorado em pressupostos que reconhecem uma autonomia do aprendizado histórico pautado em saberes especializados e não-científicos, sendo que a reflexão proposta da relação entre história, política e futebol abrange gamas diversas de construção do conhecimento histórico, essa dinâmica é composta por saberes escolar, científico e público. Pautaremos a tese em algumas áreas específicas do estudo da História que viabilizem a compreensão das ideias históricas de alunos do Ensino Médio sobre a relação Política e Futebol no Brasil contemporâneo. A pesquisa se enquadra na linha de estudo sobre o Ensino de História, com foco em narrativas históricas de jovens estudantes tendo como premissa a relação entre uma prática cultural popular [Futebol] e ações políticas. Em Ensino de História, voltaremos nossos olhares às pesquisas em Didática da História e Educação Histórica. Em Didática da História algumas obras devem compor o arcabouço teórico da pesquisa, principalmente os escritos de Jörn Rüsen como sua trilogia ‘Teoria da História: Razão Histórica, Reconstrução do Passado e História Viva’ [coleção traduzida para o português pelo professor Estevão de Rezende Martins, publicada em 2010]. Tais livros descrevem toda a fundamentação teórica utilizada por Rüsen para entender o processo de construção do conhecimento histórico científico e sua pretensão de racionalidade relacionando-a a vida prática humana. Outras obras de Rüsen como ‘Teoria da História: uma teoria da história como ciência’ [2015] e ‘Jörn Rüsen e o Ensino de História’ [textos de Rüsen compilados em uma obra de Schmidt, Barca e Martins no ano de 2011] também compõe esse referencial teórico para a compreensão das operações mentais que traduzem o conhecimento histórico como indissociável da vida prática e dotada de racionalidade científica, além de seus usos e funções dentro e fora da escola. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 317 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 318 Sobre Educação Histórica, os textos de Peter Lee explicitam os conceitos históricos capazes de analisar as narrativas coletadas durante a pesquisa, fazendo uma fundamentação acerca da compreensão do termo ‘literacia histórica’ e da importância do ensino e aprendizagem histórica [‘Em direção a um conceito de literacia histórica’, 2006; ‘Por que aprender História?’, 2011]. Pesquisadores portugueses e brasileiros também complementam tais pressupostos e trazem uma gama a mais de experiências na aplicação de tais fundamentos da Didática da História e da Educação Histórica como no caso, ‘História e Vida: o encontro epistemológico entre Didática da História e Educação Histórica’ [ALVES, 2013], ‘Perspectivas em Educação Histórica [BARCA, 2001], Literacia e Consciência Histórica’ [BARCA, 2006], ‘Educação Histórica: uma nova área de investigação’ [BARCA, 2005], ‘Para uma definição de Didática da História’ [CARDOSO, 2008], ‘A didática da história para Jörn Rüsen: uma ampliação do campo de pesquisa’ [CERRI, 2005], ‘Educação Histórica: uma articulação orgânica entre investigação e ação’ [RAMOS, 2013], ‘O parafuso da didática da história: objeto de pesquisa e o campo de investigação de uma didática da história ampliada’ [SADDI, 2012], ‘Educação Histórica: a constituição de um campo de pesquisa’ [GERMINARI, 2011], entre outras obras. Para a fundamentação teórica sobre a relação Política e Futebol, historiadores políticos da corrente chamada Nova História Política auxiliarão na busca pela dinamização dos estudos históricos sobre política na história do tempo presente, de tal maneira, Por uma História Política [RÉMOND, 2003] e Por uma História do Político [ROSANVALLON, 2010], discorrem sobre a conceituação do campo do político e da política, além de analisarem essa reformulação das pesquisas na área, promovendo uma discussão sobre opinião pública, eleições, ideias políticas, com um viés transdisciplinar, recorrendo à Ciência Política, Antropologia, Sociologia e afins. Sobre a história do Brasil por meio do futebol, há uma bibliografia especializada que pode fornecer material essencial para promover a relação desta prática esportiva com a política brasileira trazendo fontes documentais e relatos orais que enriqueceram a discussão. ‘A Dança dos Deuses’ [FRANCO JR, 2005], ‘Futebol e populismo: O esporte das multidões e a política das massas’ [SCHLATTER, 2009], ‘Memória Social dos esportes’ [SILVA e SANTOS, 2006], entre outras obras descrevem momentos específicos da História do Brasil que puderam explicitar que maneira a prática do futebol pôde condicionar o comportamento social, desde questões raciais, de gênero, formação de movimentos sociais, influências econômicas e uso político. Uma interface adequada para o entendimento da dinâmica do futebol para com a sociedade brasileira pode ser melhor compreendida através das pesquisas em História Pública. Por História Pública entendemos uma valorização da História para além da academia, uma democratização do conhecimento histórico. Não que promova uma relativização da ciência da História ou seu descrédito, mas que busque “[...] reflexões sobre a atuação do profissional capaz de estimular a consciência histórica para um público amplo, não acadêmico” [ALMEIDA e ROVAI, 2011, p. 7]. “[...] pensamos e falamos historicamente, e esse é o modo pelo qual nos posicionamos na cultura” [ALBIERI, 2011, p. 28], é o modo pelo qual o futebol pode ir do apoio à oposição a regimes políticos, quando uma ação política deixa de fazer sentido, quando o pensar historicamente passa a questionar mecanismos de dominação. Referências ALBIERI, S. História pública e consciência histórica. In: ALMEIDA, J. R.; ROVAI, M. G. O. (org.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. ALMEIDA, J. R.; ROVAI, M. G. O. (org.). Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011. ALVES, R. C. 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Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 321 ENSINO DE HISTÓRIA EM MUSEUS: OBJETOS COMO FONTES DE SABERES Priscila Lopes d’Avila Borges Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 322 O presente trabalho tem como objetivo examinar a potência do ensino de história em espaços museais. Normalmente, os professores de história levam seus alunos aos museus como espaços de observação, onde os conteúdos expostos em sala de aula são ilustrados, por meio de uma narrativa expositiva, construída através de imagens, sons, cores e objetos. Todavia, apresentamos o museu como um lugar privilegiado para o desenvolvimento de habilidades e competências, referentes aos saberes históricos. Nos museus o público, escolar ou espontâneo, aprende pelos sentidos. Na educação museal impera a ludicidade, não sequencialidade, polifonia e provocação, museus são lugares de encantamento e, por isso, não podem ser encarados com ingenuidade. Assim como a história é a escrita da história (CERTEAU, 1982), sendo diretamente influenciada pelas interpretações e fontes que remontam a sua construção, a expografia é fruto de uma seleção, que tem por objetivo oferecer ao público determinada percepção da realidade, carregada de silenciamentos e esquecimentos, em prol da evocação de certas memórias. Vivenciar uma experiência no museu requer tempo, sensibilidade e intenção, por isso é significativo que os professores tenham objetivos claros, pré-estabelecidos, para a visita, conjugados com a coragem do desprendimento do controle dos saberes a serem aprendidos. A educação pela sensibilidade é, também, a educação do destemor, do amor ao saber e da profunda vontade de suscitar nos alunos a capacidade de elaborarem, a partir de seus saberes espontâneos, seu próprio conhecimento. No sentido da educação emancipadora, Larrosa Bondía (2002) exalta o conceito de experiência, não como prática, mas como algo que nos acontece, que nos passa, demandando atenção, entrega e presença. “A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço”. (BONDÍA, 2002, p. 24). Um dos desafios contemporâneos do ensino de história reside na ideia da disciplina como um conjunto de saberes que dizem respeito ao passado, sem valor para o presente, formada por uma massa de informações que não precisam ser problematizadas, por estarem teoricamente disponíveis em suportes externos. Nesse sentido, o professor de história seria um depósito de saberes sobre o passado, fadado a inutilidade. Contudo, os docentes não devem primar pela transmissão de saberes históricos, e sim por estimular seus alunos a pensarem historicamente. A autora Mariana Muaze (2015, p.228) defende que: “A partir da leitura dos textos historiográficos, das relações com diversos produtos culturais, dos saberes acumulados, das experiências compartilhadas com outros colegas, o professor é autor de uma interpretação histórica completamente original, que é permanentemente submetida à interação com os alunos e, desse processo, surgem novas possibilidades. Por meio dessa dinâmica nasce a “aula como texto”, um momento único, onde um dado conhecimento é gestado, a um só tempo, como criação individual e coletiva”. Sendo assim, defendemos uma educação dialógica, seja em espaços de ensino formais ou não formais, na qual o aluno e o professor tenham protagonismo na relação ensino-aprendizagem. Lembramos que os processos de ensino e aprendizagem não são indissociáveis, uma vez que o aluno pode aprender além do que é ensinado. Silvio Gallo (2012) destaca que o aluno pode compreender o que o professor não tinha a intenção de ensinar. Escapando a práticas de educação bancária, entendemos a formação como um produto de relações e trocas, que não são controladas, mas sim mediadas pelo professor. No ambiente museal, os professores têm a oportunidade de utilizar os objetos e imagens como disparadores para o ensino de história. Os alunos devem ser incentivados a adotarem uma postura investigativa, questionadora e crítica, disposta a olhar para além do que está exposto, interrogando o por quê das escolhas institucionais, para compreenderem que histórias estão sendo enaltecidas no museu. Mário Chagas (2013, p.3031) justifica que: “É desejável abolir toda e qualquer ingenuidade em relação ao museu, ao patrimônio e à educação. Ao lado dessa abolição é desejável desenvolver uma perspectiva crítica, interessada em investigar ao serviço de quem estão sendo acionados: a memória, o patrimônio, a educação e o museu. É preciso saber que o museu, o patrimônio, a memória e a educação tiranizam, aprisionam, acorrentam e escravizam os olhares incautos e ingênuos. É preciso coragem para pensar e agir a favor, contra e apesar do museu, do patrimônio, da memória e da educação. É preciso enfrentá-los com o desejo de ressignificação e antropofagia, com a coragem dos guerreiros que estão prontos para a devoração”. Levando em conta as reflexões até aqui expostas, propomos que os professores utilizem o museu não como templos, mas como laboratórios. Que os docentes fomentem em suas turmas a vontade de saber, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 323 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 324 proporcionando mais que um momento de contemplação, para permitir que o museu seja um fórum, um espaço aberto a produção de novas narrativas. Os objetos devem ser disparadores de discussões, motivando a reflexão dos visitantes. Em sua função educativa, os objetos funcionam como geradores, interessando “esmiuçar as várias dimensões sociais que caracterizam a criação e o uso dos objetos. Torna-se fundamental estudar como os seres humanos criam e usam os objetos, e vice-versa (RAMOS, 2004, p.36). Os professores devem dedicar seus esforços para as relações estabelecidas a partir dos objetos, superando o valor do objeto em si. Ulpiano Meneses (2011) salienta que, diante de uma tradição logocêntrica, os alunos costumam ter dificuldade de se relacionarem com os objetos. Tendo uma atividade posterior, a ser desenvolvida na escola, os alunos “copiam legendas, parecem caititus, aqueles porquinhos do mato que tem uma consolidação cervical e não podem levantar o pescoço. Eles não veem o que está acima da legenda” (Ibidem, p.421), ou seja, o professor deve estimular sua turma para que ela aprenda a partir dos objetos, encarando as várias camadas temporais e intencionais depositadas sobre um artefato. Nos museus encontramos testemunhos materiais de diversos momentos históricos, o que explica a tendência das visitas pensadas no eixo da ilustração. Entretanto, destacamos que o sentido dos objetos, isto é, a carga de representatividade histórica que ele possui, é resultado de uma série de escolhas teórico-metodológicas, que incluem a missão do museu e o ambiente no qual o artefato se localiza. Devemos estar atentos, evitando que a representação seja apreendida como verdade absoluta, o que distorce a função dos saberes históricos. Os objetos, inseridos na narrativa museal, podem ser fetichizados, não só pelo seu valor material, mas pelos sentidos metafóricos e metonímicos encarnados e comunicados pela sua existência física. A ideia de uma verdade histórica absoluta deve ser veementemente combatida, em favor de uma educação que priorize a problematização do museu como um espaço de memória e esquecimento, lugares de litígio, dicotomia, poder e silêncio. A verdadeira democratização do acesso aos museus não reside na garantia de visitação, os saberes museais só serão democráticos quando forem acessíveis cognitivamente para seu público. Referências BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002. CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CHAGAS, Mário. 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Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 325 IMPRENSA, VIOLÊNCIA E CONFLITOS DE TERRA NO PARÁ – ANOS 2000 Rafael Souza Ferreira Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 326 O artigo aborda a questão da violência no campo e como a imprensa trata os conflitos de terra no estado do Pará, Brasil. O material apresentado é parte do resultado parcial de pesquisa desenvolvida com o plano de trabalho intitulado Em pauta, a violência: a imprensa e os conflitos de terra no Pará, anos 2000, realizada pelo autor, com fomento do PIBIC-CNPq. Foram realizados levantamentos e análises bibliográficas e documental, visando cumprir alguns dos objetivos da pesquisa em andamento, como, por exemplo, identificar narrativas sobre violência e conflitos de terras no Pará nas matérias jornalísticas e opiniões publicadas sobre os casos que tenham sido veiculadas na imprensa, e estudar a postura tomada por esta na cobertura dos eventos. O ato de violar Em nossas pesquisas, pudemos perceber que a temática da violência tem ganhado destaque cada vez mais forte nos mais variados âmbitos da sociedade. São diversos os tipos de violência que assolam a população mundial, em suas multiplicidades de culturas, estando cada vez mais presente nas conversas cotidianas, tendo se tornado algo naturalizado. Jayme Paviani (2016) afirma que “é necessário considerar que o termo violência atualmente está na ordem do dia. Ele frequenta a mídia, está nas ruas e na internet. O senso comum refere-se a ele de modo simplificado e parcial. Mas é preciso examinar as condições de seu uso. A linguagem usada para falar da violência pode estar revestida de pressupostos ideológicos” (PAVIANI, 2016, p. 09). O uso do termo violência tornou-se banal no dia a dia, principalmente pelo crescimento de desigualdades sociais e da dinâmica mais acelerada com que as notícias são postas a público. O consumidor destas informações acaba tendo, na maioria das vezes, um contato superficial com o que acontece a sua volta e no mundo. Outras e novas informações chegam a cada instante. Assim, como o próprio Paviani alerta, o termo violência acaba por ser usado mesmo sem se saber do que realmente se trata, uma vez que o próprio meio de comunicação que nos trás o termo tem, por si só, seus entendimentos sobre o que é a violência, dependendo, obviamente, de seus interesses e contextos. Mas, como poderíamos defini-la? “A origem do termo violência, do latim, violentia, expressa o ato de violar outrem ou de se violar. Além disso, o termo parece indicar algo fora do estado natural, algo ligado à força, ao ímpeto, ao comportamento deliberado que produz danos físicos tais como: ferimentos, tortura, morte ou danos psíquicos, que produz humilhações, ameaças, ofensas. Dito de modo mais filosófico, a prática da violência expressa atos contrários vontade de alguém” (PAVIANI, 2016, p. 08). à liberdade e à Nos apropriando, portanto, do entendimento deste autor, podemos afirmar que a violência se configura como o ato de violação do estado natural de liberdade e vontade de algo, como uma força que rompe de maneira negativa. Marilena Chauí aponta também essas características como próprias do ato de violência. Segundo ela, é tudo o que, ao agir, usa da força para ir contra a natureza de um ser, contra a espontaneidade ou vontade de alguém. É o ato de violação de algo que a sociedade valoriza. É transgredir contra coisas e ações que a sociedade ou alguém defende como justas ou um direito (CHAUÍ, 1998 apud PAVIANI, 2016). Ao mencionar Perine (1987), Paviani nos lembra ainda que a capacidade exclusiva que o homem tem de criar um sentido para a vida, também é a mesma que o faz revelar a violência. Há violência apenas porque existe a capacidade de pensamento. Nessa linha de raciocínio, Chauí também tem um pensamento semelhante, em que liga a violência à capacidade que o homem tem de pensar e refletir sobre seus atos. Ao caracterizar a violência como ato de brutalidade, sevícia e abuso, físico e/ou psíquico contra alguém, com relações intersubjetivas e sociais marcadas por opressão, medo, terror, Chauí (1998) coloca que a violência é oposta à ética pelo fato de se tratarem de seres sensíveis e racionais, dotados de linguagem e liberdade, não são coisas. Assim, a ética seria inseparável do sujeito racional, responsável, livre e voluntário. Violência e os conflitos de terra A prática da violência é histórica. Ela se atualiza, se adapta, se recria conforme os contextos que se estabelecem. No Brasil, fez parte do próprio processo de construção da sociedade. A violência e os conflitos no campo no século XXI, em nosso país, estão relacionados a grande concentração de poder e riqueza nas mãos de grandes proprietários. A distribuição da terra ainda conserva uma antiga estrutura concentrada, que tem suas raízes históricas remontando ao colonialismo sobre a América Latina, afirmam Girardi e Fernandes (2008). Assim, se existe, por um lado, uma grande parte da população ainda necessitada de terras para sobrevivência e, por outro, uma minoria latifundiária detendo o poder e com numerosos hectares, a desigualdade tende a permanecer. Essas diferenças, o choque social, cultural, econômico e político entre as classes sociais permite a ascensão das reivindicações por direitos. Ao que sabemos, porém, as lutas por direitos à terra no Brasil são marcadas por constantes conflitos e violência, manchando a história da sociedade brasileira e, permanecendo sem soluções justas, acabam por perpetuar as desigualdades sociais. No artigo intitulado A violência no campo, do site ‘Atlas da questão agrária brasileira’, de Eduardo Paulon Girardi, este autor afirma: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 327 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 328 “No interior da questão agrária, o conflito é resultado do enfrentamento entre o território do campesinato e do latifúndio e agronegócio. O conflito surge da diferença de interesses entre esses territórios e a sua solução vem da mediação do que esses dois territórios consideram problemas. É através desta mediação que ocorre o desenvolvimento. Por apresentarem interesses e estratégias divergentes, a resolução dos conflitos entre esses dois territórios nunca é total e requer constante intervenção do Estado. [...] O conflito não é sinônimo de violência. Conflito é uma ação criadora para a transformação (da sociedade e a violência é uma reação ao conflito, caracterizada pela destruição física ou moral; é a desarticulação do conflito por meio do controle social. A violência tenta por fim ao conflito sem que haja resolução dos problemas e por isso barra o desenvolvimento. Ocupações de terra, acampamentos, defesa de interesses junto ao parlamento e ao governo são formas de conflito. Assassinatos, ameaças de morte, expulsões da terra, despejos da terra e trabalho escravo são formas de violência.” Os conflitos e a violência no campo, dessa maneira, fazem parte da atuação e interesse de grupos distintos, postos em jogo e alimentados por leis de sobrevivência e dos privilégios. Nesse meio, constituem-se os movimentos socioterritoriais reivindicando seus direitos. É a força e persistência desses movimentos e reivindicações, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, MST, que chama a atenção das autoridades políticas do país. A atuação do Estado no processo de reforma agrária tem possibilitado algumas mudanças no quadro dos conflitos. Porém, as soluções apresentadas mais minimizam os problemas temporariamente, do que exercem a justiça de forma imparcial. Isso, obviamente, beneficia alguns e prejudica muitos. O Estado brasileiro deveria ser o responsável pela tomada de decisão frente aos conflitos, de modo que as desigualdades terminassem. Mas, o que se percebe é que, nos últimos anos, as instituições estatais retomaram uma configuração político-administrativa caracterizada pela forte representação de interesses daqueles que sempre foram detentores do poder. O próprio poder judiciário, fatigado com sua morosidade, leva anos lidando com processos referentes a violência no campo. Ao contrário de uma reforma justa para todos, o que é realizado no país, por parte do Estado, são implantações de assentamentos, em resposta às ocupações de terra, que é a principal estratégia de luta realizada pelos movimentos socioterritoriais dos camponeses. Porém, conforme Girardi e Fernandes (2008), os assentamentos configuram apenas mais uma fase da luta: o processo pela conquista da terra. Além disso, é necessário também conquistar condições de sobrevivência e produção. Trata-se, para os autores, de uma "reforma agrária conservadora", que acaba por não realizar a descentralização de terras, camufla desigualdades sociais, e vê na Amazônia uma válvula de escape para não fazer reformas nas regiões de ocupação consolidadas no nordeste e centro-sul. A continuação da desigualdade, dos conflitos e da violência. tendência é a Diante das informações expostas, corroboramos, portanto, do pensamento de Brumer e Santos (2006), que elucidam de maneira clara o que caracteriza a violência no campo na contemporaneidade brasileira: “trata-se de uma violência difusa, de caráter social, político e simbólico, envolvendo tanto a violência social como a violência política. Neste caso, ela se exerce, frequentemente com alto grau de letalidade, contra alvos selecionados (contra as organizações dos camponeses e trabalhadores rurais) e seus agentes são membros da burguesia agrária, fazendeiros e comerciantes locais, mediante o recurso a "pistoleiros" e milícias organizadas. Também se registra a presença do aparelho repressivo estatal, comprovado pela frequente participação das polícias civis e militares. Enfim, a omissão de membros do Poder Judiciário reforça o caráter de impunidade. Como resultado, produz-se a carência do acesso ao Poder Judiciário para as populações camponesas e dos trabalhadores rurais, resultando em uma descrença na eficácia da Justiça para resolver conflitos ou mesmo para garantir direitos constitucionais, como o direito da função social da terra” (BRUMER; SANTOS, 2006, p. 62-63). Do comportamento da imprensa sobre a violência e conflitos de terra As características da violência no campo que Brumer e Santos mostram são perceptíveis nos noticiários que a imprensa produz. A forma como as informações sobre a violência chegam até cada um de nós está revestida de pressupostos ideológicos, indícios que permitem perceber o comportamento da imprensa diante dos fatos que acontecem diariamente, quais os interesses por trás das publicações e os modos de produção e apresentação das notícias ao público. Segundo Lage (2001, p. 102) "a primeira coisa que um jornal informa é sua ideologia". Afirmar que um jornal se propõe a buscar a total imparcialidade é cair numa ilusão, pois a própria construção histórica e social do jornal, da imprensa, tem suas influências de classe, de contextos. Não são raros o casos em que o discurso jornalístico se propõe a tentar autoafirmar-se como acima de lutas ideológicas. Contudo, “A instituição jornalística ‘esquece’ que foi obrigada a fundar-se com uma interpretação do mundo juridicamente assegurada. Ou melhor, que assegura, juridicamente, a fronteira entre o que pode e deve ser dito. O resultado deste processo é a ilusão do jornalismo-verdade, ou seja, a ilusão de que os jornais são apenas testemunhas, meios de comunicação ou veículos informativos” (MARIANI, 1999, p. 59). A construção do discurso, por mais que tente ser imparcial, haverá de estar sempre conectada a um contexto histórico, social, político, cultural. A imprensa e o produto jornal refletem o seu próprio tempo e as formas de pensar de seus idealizadores. A maneira como os discursos são construídos Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 329 e apresentados, a seleção e disposição das imagens, os sujeitos que mais ou menos aparecem, demonstram o comportamento de um jornal diante da sociedade. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 330 Como parte dos resultados parciais de nossa pesquisa, fizemos um breve recorte abrangendo algumas amostras de matérias jornalísticas publicadas entre os anos 2015 e 2016, dos jornais Diário do Pará e O Liberal, ambos de grande circulação no Pará. Detectamos até aqui, aproximadamente, 57 exemplares do jornal Diário do Pará e 30 exemplares do jornal O Liberal, com matérias relacionadas a violência e conflitos de terras, no período mencionado. Uma significativa quantidade dessas matérias trata de assuntos, como, por exemplo, confrontos e desocupação de terrenos, desmatamento e os sujeitos envolvidos, protestos em rodovias ou prédios públicos, prisões ou desdobramentos de processos sobre violência no campo e a atuação do Estado. Ao observarmos as imagens seguintes, é perceptível que a questão da violência e conflitos de terras estão presentes nas páginas do jornal Diário do Pará. Foram identificadas matérias jornalísticas, com narrativas que tratam do tema em questão, mas também com diferentes assuntos que estão conectados à violência no campo. Ao mesmo tempo em que pudemos identificar que a presença desta temática é muito expressiva quantitativamente, podemos mencionar, por ora, em relação às opiniões expressas, que ainda há a presença de uma certa dubiedade no tratamento dado aos sujeitos envolvidos nos movimentos de lutas pela terra. Vejamos algumas características presentes nas matérias. Nossa primeira imagem trata do MST. Enquanto na imagem 1 vemos um título que nos leva a refletir e ter um olhar mais sutil, indicando novos e talvez melhores rumos ao MST, na imagem 2 temos um MST que atribula e promove conflitos. A palavra "escola" presente num dos títulos da imagem 1 contrasta com a palavra "invade" no título da matéria da imagem 2. Alimentam-se, neste sentido, antigos esteriótipos ao movimento, o de invasores. As "outras bandeiras" que o movimento poderia erguer são abafadas pelo destaque que ganha o termo "exército", com as aspas, enquanto as mudanças que seriam provavelmente trazidas pela "escola" ficam com menos relevância. Claro que temos que lembrar que são matérias de meses e contextos diferentes, mas que protagonizam o MST neste jornal. Abaixo, as imagens: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 331 Fig. 1 Jornal Diário do Pará, 08/03/2015 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 332 Fig. 2. Jornal Diário do Pará, 29/03/2016 Outras duas imagens, que também selecionamos como exemplos, tratam de mortes no campo. O destaque dado é principalmente pelo número de mortos de uma só vez em cada evento e pelo grau de proximidade que havia entre as vítimas. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 333 Fig. 3 Jornal Diário do Pará, 18/02/2015 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 334 Fig. 4 Jornal Diário do Pará, 26/05/2016 Nas duas imagens é evidente que a quantidade de mortos é o que se propõe a chamar a atenção, tanto que é isso que inicia a frase das manchetes. O ambiente também é mencionado: a fazenda, o campo, as terras e os conflitos. A publicação na capa do caderno policial chama atenção para a relevância do fato. Abaixo da manchete, na chamada de capa da imagem 3, de apenas três linhas, onde se evidencia que foram mortos por um lote de terras - o que leva pensar que poderiam ser simples sujeitos em busca de terra - podemos observar o detalhamento prévio que se dá sobre o caso, e compará-lo ao da imagem 4. Nesta, o texto de chamada possui seis linhas, com mais detalhes, e apontando que se tratava de um fazendeiro sua família e empregado, muito embora o caso da figura 3 se desdobre em duas páginas, o outro em uma apenas. No jornal O Liberal também foram detectadas matérias que tratavam de conflitos de terra e violência no campo, embora em menor número. Isso se justifica talvez pela relação de proximidade de membros proprietários do jornal com o governo do estado à época. Para não macular o mandato do governador, podemos supor que não noticiavam tanto os conflitos, ou noticiavam sem tanto destaque. Mas, é importante mencionar que, a partir de janeiro de 2019, quem assumiu o governo do estado foi um dos membros do grupo dono do Diário do Pará. O que foi perceptível em O Liberal foi a presença de matérias relatando conflitos por terra nas regiões consideradas mais urbanas. Isso também foi identificado em algumas matérias no Diário do Pará, embora neste o campo tenha aparecido também de forma equilibrada em relação a conflitos por terra mais urbanos. Porém, isso não significa que O Liberal tenha deixado de noticiar casos de violência no campo. Nos exemplos das imagens à seguir, 5 e 6, temos novamente um antigo estereótipo sendo usado para nomear pessoas que lutam pela terra. "Invasores". A reprodução dessa palavra faz reverberar e atualizar um sentido preconceituoso, pejorativo e de má índole que se atribuiu aos semterra e que já carregam há tanto tempo. Além disso, as fotografias utilizadas remetem também à tragédia, à violência e crueldade. Casando os títulos e subtítulos com as imagens, que são os destaques da página, a tendência é atribuir a responsabilidade desses acontecimentos para os chamados invasores, os que buscam o direito à terra. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 335 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 336 Fig. 5 Jornal O Liberal, 28/01/2015 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 337 Fig. 6 Jornal O Liberal, 25/04/2016 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 338 Outro detalhe que podemos identificar é a presença da PM e da lei, a quem os invasores se contrapõem, conforme se subentende, como se fossem arruaceiros. Os dois representantes do Estado brasileiro, a Polícia Militar e a Lei, aparecem como uma ordem natural a ser obedecida para proporcionar o bem estar, como se Estado estivesse sempre disposto a agir, mas não responsável pelo que está acontecendo política e socialmente. Esses acontecimentos, percebe-se, deixam de lado as referências históricas. Nas imagens 7 e 8 temos as mortes no campo. Aqui optamos por mostrar os mesmos casos que utilizamos no Diário do Pará, as chacinas das famílias. Fig. 7 Jornal O Liberal, 26/02/2015 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 339 Fig. 8 Jornal O Liberal, 26/05/2016 Ambas as matérias publicadas em O Liberal não foram destacadas como manchete de capa. Na imagem 8, temos uma fotografia de duas das vítimas num momento aparentemente feliz, que não lembra a crueldade da violência. O título da matéria já indica que as providências por parte do órgão governamental competente da investigação já estão sendo tomada. As breves colunas resumem o caso, ao contrário das duas páginas dedicadas pelo outro jornal. Vale mencionar que a imagem 8 é um detalhe, um recorte de uma das extremidades de uma página. Na imagem 8, o título aponta a quantidade de mortos no âmbito de uma fazenda. Sem fotografia, e sendo também um detalhe recortado de uma das extremidades da página, a imagem 9 expõe o caso em pequenas colunas. O texto menciona o possível envolvimento de uma das vítimas com atividades ilícitas, roubo e receptação de cargas roubadas na região. Como o proprietário da fazenda também foi morto, a matéria deixa no ar se possivelmente o mesmo estaria envolvido com estes tipos de negócios. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 340 Considerações Estes são alguns dos resultados que esta pesquisa vem, aos poucos, conquistando. A sistematização e análise das fontes está em fase inicial. Tentamos sintetizar nossos entendimentos sobre as leituras realizadas, sobre os levantamentos bibliográficos e expor uma amostra de matérias jornalísticas onde identificamos a presença de relatos e posicionamentos dos jornais sobre os conflitos de terra e a violência no campo no estado do Pará. Referências BRUMER, Anita. SANTOS, José Vicente Tavares dos. Estudos agrários no Brasil: modernização, violência e lutas sociais (desenvolvimento e limites da Sociologia Rural no final do século XX). In: Revista Nera. Ano 9, Número 9. Presidente Prudente, julho-dez/2006, p. 49-72. CHAUÍ, Marilena. Ensaio, ética e violência. Revista Teoria e Debate, ano 11, n. 39, 1998. GIRARDI, Eduardo Paulon; FERNANDES, Bernardo Mançano. A luta pela terra e a política de assentamentos rurais no Brasil: a reforma agrária conservadora. Agrária (São Paulo. Online), [S.l.], n. 8, p. 73-98, junho 2008. GIRARDI, Eduardo Paulon. A violência no campo. In. http://www2.fct.unesp.br/nera/atlas/violencia.htm LAGE, Nilson. Ideologia e técnica da notícia. 3ª ed. Florianópolis, 2001. Ufsc-Insular, MARIANI, B. Discurso e instituição: a imprensa. RUA - Revista do Núcleo de. Desenvolvimento da Criatividade. Campinas: Editora da Unicamp, n. 5, 1999. PAVIANI, Jayme. Conceitos e formas de violência. In: MODENA, Maura Regina (org). Conceitos e formas de violência. Caxias do Sul, 2016. Disponível em https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-conceitosformas_2.pdf PERINE, Marcelo. Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil. São Paulo: Loyola, 1987. A FESTA COMO SÍMBOLO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL Raildis Azevedo Avelino O Presente artigo baseia-se em uma abordagem sobre o conceito de cultura na obra “Interpretação das Culturas” do autor Clifford Geertz (1978). Na oportunidade abordaremos a festividade religiosa de Nossa Senhora do Rosário, que ocorre todos os anos na cidade de Monte do Carmo no estado do Tocantins. Tal festividade se insere como exemplo para o conceito de cultura em Geertz. O objetivo principal será em torno da decodificação dos rituais da festa para a comunidade e abordar o porquê de tais rituais remotos do período colonial se mantem preservados no contexto da contemporaneidade, tornando assim símbolo do patrimônio cultural imaterial da cidade. Introdução A cultura de uma sociedade é transmitida das gerações adultas às novas gerações pelas técnicas do dia a dia. Os saberes e fazeres são aprendidos de forma involuntária formando assim, uma característica identitária particular. Iremos abordar nesse fragmento do texto de forma breve a trajetória do desenvolvimento do conceito de cultura à luz da Antropologia. “Compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade.” (GEERTZ, 1989). O conceito de cultura não é recente. Qual é o sentido que a Antropologia atribui ao conceito de cultura? Mesmo no sentido antropológico temos várias tentativas de conceitua-la. Ao longo dos últimos três séculos vários autores apresentaram seu terreno teórico de interpretação do que entendiam por cultura. Apesar da palavra cultura não ser recente, seu estudo começou a ganhar mais importância no momento em que a Antropologia surgiu como área de conhecimento, a partir do século XVIII. Mas, o debate antropológico ganhou fôlego mesmo, somente a partir do século XIX com uma sistematização do conhecimento. A partir disso, suscita novas pesquisas, com a preocupação dos antropólogos em estabelecer leis gerais para a interpretação e descrição dos fenômenos da cultura. Num primeiro momento, o conceito de cultura remetia a civilização a qual se partia de estágios de evolução. Vemos expresso, especialmente, no pensamento de Edward Taylor (1832 – 1917), um dos primeiros autores a formular o conceito “cultura”. Ao tentar argumentar sobre “ciência da cultura”, Taylor inicia por descrever que: "Cultura ou Civilização, tomada em seu amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade.” Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 341 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 342 A partir de meados do século XIX para o século XX, esse conceito de cultura sustentado pelo pressuposto evolucionista foi posto em cheque. Foi refutado especialmente pelo antropólogo Franz Boas (1858 – 1942). Boas propõe o método histórico de pluralizar a cultura ao partir de um “relativismo cultural”. Com a interpretação de Boas, cultura, portanto, deixa de ser uma única cultura para se tornar um modo de vida e Geertz acredita que “o homem é um animal amarrado em teias de significados que ele mesmo teceu”. Para Geertz, “a cultura é pública, porque o significado o é”. E a antropologia, segundo ele, deve ser vista não como ciência experimental em busca de leis, como queriam os primeiros antropólogos, mas como ciência interpretativa em busca dos significados. Segundo Geertz, a cultura é a própria condição de existência dos seres humanos, produto das ações por um processo contínuo, através do qual, os indivíduos dão sentido à suas ações. Ela ocorre na mediação das relações dos indivíduos entre si, na produção de sentidos e significados. Ao tratar do conceito de cultura sob o aspecto relativo/semiótico, acreditamos que Geertz contribui para entendermos as questões estruturais da sociedade nas diversas épocas e realidades contextuais e, principalmente, das diferenças e transformações que vem ocorrendo na pós-modernidade. Na oportunidade abordaremos como exemplo de cultura a festa de Nossa Senhora do Rosário, uma manifestação cultural religiosa que ocorre todos os anos na cidade de Monte do Carmo, situada no estado do Tocantins. Os rituais dessa tradição que se misturam entre o sagrado e o profano já ultrapassam séculos e resistem aos aspectos da contemporaneidade. Conceito de cultura em Clifford Geertz Ao longo de sua história a sociedade passou por inúmeras mudanças em todas as áreas do conhecimento. A cultura vista como processo dinâmico também sofreu influência de tais transformações que ocorreram de forma lenta e gradual. Podemos assim afirmar que a cultura é passível de mudanças. Porém essas mudanças não afetam a sua essência uma vez que na construção de uma identidade cultural de um grupo social deve-se ter um reconhecimento coletivo dos padrões de comportamento e costumes. A cultura seria parte de uma memória coletiva da sociedade impossível de se desenvolver individualmente. Na “interpretação das culturas”, Clifford Geertz faz uma descrição densa da teoria interpretativa da cultura sugerindo que o conceito de cultura, segundo Max Weber, é de que o homem é um animal amarrado à teia de significados que ele mesmo tece, assume a cultura como essa teia e sua análise. Assim, Geertz se propõe a repensar a noção de cultura, se define como antropólogo cultural e que toda antropologia é interpretativa dos símbolos e seus significados. Geertz é considerado anti-reducionista radical, epistemologicamente a cultura sendo a antropologia trata mais uma ciência interpretativa e que portanto a hermenêutica é fundamental. A obra Interpretação das Culturas, trata de uma teoria interpretativa da cultura, argumentando que sobre o conceito de cultura surgiu todo o estudo da antropologia e cujo âmbito essa matéria tem se preocupado cada vez mais em limitar, especificar, enfocar e conter. Geertz propõe um conceito de cultura mais limitado, mais especializado e teoricamente mais poderoso para substituir o famoso o todo mais complexo como até então era conceituada a cultura. Acreditando em Max Weber (1864 – 1920) que o homem é um animal amarrado a teia de significados, que ele mesmo tece, assume a cultura como sendo essas teias e a sua análise. Uma ciência interpretativa a procura de seu significado. Assim, a cultura dentro desta etnociência/etnologia é composta de estruturas psicológicas por meio das quais os indivíduos e grupos de indivíduos guiam seu comportamento. Geertz faz parte de uma geração de intelectuais, que alguns o considera uma mistura de Boas e Talcott Parsons. Geertz se propõe a repensar a noção de cultura. Geertz trata a cultura mais epistemologicamente, evoca Weber e a questão fenomenológica. Segundo Geertz, acultura não é nunca particular, mas sempre pública. Assim, entendo que os elementos que constituem as teias propostas por Weber, não têm criadores identificáveis. Os fatos inovadores nascem e evoluem numa reprodução espontânea e despercebida dos agentes culturais, e na maioria das vezes só percebidos na análise extrínseca de um agente alienígena. Como um sistema de signos passíveis de interpretação, Geertz salienta que, “a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processo; ela é um contexto, algo dentro do qual eles (os símbolos) podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade” (GEERTZ, 1973, pg. 24). Seguindo o raciocínio de Geertz, podemos refutar a ideia que Edward B. Tylor defende, de que a cultura é um fenômeno natural, e inferir que ela seja um fenômeno social, cuja gênese, manutenção e transmissão estão a cargo dos atores sociais. Nesse sentido podemos atribuir que as manifestações culturais são essas teias de significados, sendo repassados de gerações em gerações na finalidade de manter a identidade de um grupo. Os atores sociais da cidade de Monte do Carmo, mantém viva suas tradições, materializando-se na festividade de Nossa Senhora do Rosário. Manifestação cultural da cidade de Monte do Carmo – TO. Um exemplo de manutenção cultural. A cidade de Monte do Carmo é um município brasileiro localizado na região central do Estado Tocantins, aproximadamente 89 quilômetros da capital do Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 343 estado, Palmas – TO e tem cerca de 6.717 mil habitantes (IBGE, 2010). A economia de Monte do Carmo gira em torno da pecuária de corte e a agricultura, tendo em suas terras bons resultados na plantação de soja, arroz, milho e outros itens. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 344 No rol das manifestações culturais religiosas de Monte do Carmo, estão as Festas do Carmo, comemoradas todos os anos em datas fixas e/ou flexíveis decididas pela igreja católica. Começa em janeiro com as folias de Santos Reis e procissão de São Sebastião; em julho com a junção de três santos: a Santa Padroeira Nossa Senhora do Carmo, Divino Espirito Santo e Nossa Senhora do Rosário; em outubro também se comemora Nossa Senhora do Rosário, porém, com uma pompa reduzida. Festividade Religiosa de Nossa Senhora do Rosário Abordarei nesse espaço, uma manifestação cultural remota da América Portuguesa. Todos os anos, Monte do Carmo é palco de diversas festividades tradicionais religiosas, entre elas abordaremos a que resiste a mais tempo. Ou seja, a festividade de Nossa Senhora do Rosário, de acordo com moradores locais, foi o primeiro festejo da cidade, sendo celebrada pelos escravos, trabalhadores das minas. Através de memórias locais, observa-se que a festividade de Nossa Senhora do Rosário, foi a primeira manifestação religiosa no antigo arraial, arraigada de rituais que se misturavam e ainda se misturam, entre o sagrado e o profano. “Era comemorada pelos negros em condição de escravos”, visto que a santa era e/ou é considerada sua protetora. A historiadora Marina de Mello e Souza (2002, p. 309) assinala que as irmandades, ligadas às Igrejas locais, eram organizações criadas nos centros urbanos, nos quais ocorriam preferencialmente as festas, sendo as “festas em homenagem à santa uma recuperação da africanidade sob o manto do catolicismo”. Nos registros de memória do Frei Maria Audrin (1963), festa muita reverenciada é a de Nossa Senhora do Rosário, "outrora exclusivamente reservada aos escravos, numerosos em nossos sertões, nos tempos de mineração". Audrin não informou as datas e nem as localidades onde ocorriam as festas, porém, ao que tudo indica e, fundamentando em depoimentos dos moradores, subentende-se que está se referindo a Monte do Carmo. “coroação dos consortes reais, mastros, cantorias, bailes e banquetes. Tudo, porém, no dizer dos anciãos, pálidos vestígios dos esplendores de outrora, quando os escravos, auxiliados pelos fartos recursos de seus donos, verdadeiros nababos sertanejos, se compensavam, durante aquêles dias de festejos maravilhosos, das durezas e humilhações de sua existência. O "rei" e a "rainha" eram sempre negros retintos, trajando, porém, luxuosa indumentária [...] O mesmo precioso pó era profusamente semeado por dois pajens ao longo do caminho por onde passava a rainha” (AUDRIN, 1963, p. 125). Atualmente a festa de Nossa Senhora do Rosário, em Monte do Carmo, é uma devoção festejada por reis e rainhas, os quais são chamados também de festeiros, em duas datas distintas, julho e outubro. O folguedo de Nossa Senhora do Rosário tem início oficialmente com o anúncio dos festeiros na Igreja, que por sua vez a multidão saúdam com salvas de palmas e gritos de "viva a rainha e o rei de Nossa Senhora do Rosário". A partir deste ato, iniciam os preparativos que vai desde a busca por patrocinadores para obtenção dos elementos servidos no dia da coroação do rei e da rainha, bem como a ornamentação do ambiente para receber os fiéis e turistas. A população de modo geral oferece suporte material à festa. Alguns devotos comentam que a festa de Nossa Senhora do Rosário é celebrada sem a arrecadação de fundos (esmolas), fato que dificulta o preparo dos folguedos. Neste sentido, a busca por patrocínio é de fundamental importância, visto que a rainha e o rei são pessoas de menor poder aquisitivo. Muitas vezes, em decorrência da falta de recursos, as vestimentas da rainha, rei, congos e taieiras, são reciclados dos festeiros do mês de julho. A rainha é a personagem principal do festejo de Nossa Senhora do Rosário, sendo sua importância, extrapola a magnitude do posto, sendo observada até nas cantigas: "O rei é bom, a rainha é mió". Também na denominação dos momentos da festa: A Chegada da Rainha; A Caçada da Rainha; A Coroação da Rainha; O Cortejo da Rainha; Até o local chama-se A Casa da Rainha. Não raras vezes, ouve-se dizer em Monte do Carmo, que para ser rainha na festa do Rosário no mês de julho é preciso ser rica, ou seja, que apenas os mais abonados conseguem fazer esta celebração, visto que as despesas são maiores. Em julho, a festa torna-se cara por que é o período das férias escolares e o afluxo de pessoas para a cidade é maior, portanto, faz-se necessário ter mais recursos. Ser rainha da festa no mês de outubro não implica em muitos gastos, favorecendo a participação das mulheres negras, que se manifestam para assumir a coroa de rainha. Há vários rituais religiosos e profanos permeados de significados na festa de Nossa Senhora do Rosário, que se entrelaçam em um universo de representações. Iniciando com novenas que duram uma semana, sendo que, no primeiro final de semana (sábado à noite) começam às celebrações em louvor a santa. Os congos, taieiras e tamborzeiros iniciam o cortejo da casa da rainha até a igreja em um misto de cultura popular/folclórica e religiosa. Neste momento é realizada a missa e coroação da rainha e rei. No dia seguinte (domingo) à tarde começa o ritual da Caçada da Rainha, Congos, Taieras e Caretas que buscam a rainha em um local estratégico, Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 345 conhecido como “butiquim”, deste local seguem para a igreja e posteriormente para a casa da rainha, em clima de muita alegria, banhado por sussa, tambor, licor e muitos cantos para à rainha de Nossa Senhora do Rosário. Encerra-se na igreja com missa e no dia seguinte é realizada a escolha dos festeiros do ano seguinte. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 346 Para os moradores da cidade e nos escritos da historiadora Noeci Carvalho Messias (2010, p. 278), a origem desse ritual remonta ao período das minas de ouro na Serra de Monte do Carmo, no tempo da escravidão. Como nas narrativas míticas, não existe uma data precisa, mas destaca-se que certo dia um homem, possivelmente escravo, encontrou na Serra de Monte do Carmo uma imagem de Nossa Senhora do Rosário e levou-a para a cidade. Entretanto, no dia seguinte, a imagem desapareceu. O mistério do desaparecimento da imagem, que ocorreu por duas vezes, levou a comunidade a se organizar e travar uma verdadeira ‘caçada’ à referida imagem. Uma multidão se formou e seguiram em cortejo, à procura da imagem. Para esse cortejo, levaram os tambores, os congos e as taieiras; cantaram e dançaram e assim reencontraram a imagem e, em ritual, levaram-na de volta à cidade. Após o episódio festivo, a imagem nunca mais desapareceu, permanecendo na Igreja. Reza a tradição que o ritual organizado por aquele grupo de pessoas fez com que a imagem permanecesse na cidade. A partir daquele momento, o ritual da Caçada da Rainha passou a fazer parte dos festejos religiosos de Nossa Senhora do Rosário e se matem até os dias atuais, com a ritualização de buscar a imagem. O ritual da Caçada da Rainha se caracteriza em um espaço recriado a cada ano, pelos seus participantes, na maioria moradores locais. Este espaço marcado pela fé, diversão, devoção e brincadeiras em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, é também um espaço de afirmação social e religiosa dos devotos. O ritual contribui para a construção das práticas sociais, organizando as relações com o passado de forma socialmente significativa, (Cf. MESSIAS, 2010, p. 278). Geertz (2008) afirma que a tarefa construída a partir da concepção simbólica da cultura é descobrir as estruturas conceituais que informam os atos dos sujeitos, o “dito” no discurso social, e construir um sistema de análise que permite diferenciar o que é específico dessas estruturas conceituais de outros determinantes do comportamento humano, ou seja, a teoria tem como principal tarefa fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre si mesmo, ou seja, sobre o papel da cultura na vida humana. Nesse sentido festa de Nossa Senhora do Rosário solidifica pelo empenho dos fiéis, a resistência dos devotos no ato de comemorar e preservar os rituais é o que Geertz aborda em sua obra, uma vez que esses rituais é a própria identidade desse grupo. Tratando de acontecimentos sagrados que teve seu lugar no tempo de origem e que vai ritualmente uma vez que os participantes da festa se tornam os contemporâneos do acontecimento mítico. Conclusão As culturas são organizadas por meio de sistemas ou códigos de significação, que dão sentido às nossas e às demais ações. Em virtude disso, qualquer que seja a ação ou prática social, ela é cultural, pois expressa ou comunica significados e, por isso, é prática de significação. A discussão do conceito de cultura, como prática de significação, surge a partir da definição semiótica de cultura sugerida por Geertz. Contudo, se me cabe o direito de defender, entre as tantas definições conceituais existentes, uma que julgo mais completa, o faço transcrevendo as palavras de Clifford Geertz, quando diz: O conceito de cultura que eu defendo, (...) é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado (GEERTZ, 1973, pg. 15) Ademais, a festividade é um símbolo do patrimônio cultural imaterial da cidade por reunir características dos conceitos aqui abordados. Uma vez que a comunidade se reúne para a realização do folguedo, estão assim repassando seus conhecimentos, saberes e fazeres à nova geração. A preservação dos rituais forma a identidade especifica da comunidade e a preservação é um dever de todos. Referências AUDRIN, Frei José Maria. Os sertanejos que eu conheci. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1963, p. 32. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. São Paulo: LTC, 1989. HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. 2.ed. Rio de Janeiro: DP&A,1998. P. 67-76. HONÓRIO, Ricardo. Concepções de Cultura. Revista de História, v. 05. Artigo: “The Limitation of the Comparative Method of Anthropology”. Rio de Janeiro, 2012. MELLO E SOUZA, Marina de. Reis negros no Brasil escravista. História da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte, Editora da Universidade de Minas Gerais, 2002. MESSIAS, Noeci Carvalho. Religiosidade e devoção: as festas do Divino e do Rosário em Monte do Carmo e em Natividade - TO. Goiânia: UFG, 2010. [Tese de Doutorado]. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 347 A GUERRA DE CANUDOS FRENTE ÀS NOVAS FERRAMENTAS DE ENSINO Renata Linhares de Araújo Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 348 Introdução Este trabalho surgiu após os debates na disciplina de Laboratório III na Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, acerca das novas ferramentas de ensino e avaliação, nos possibilitando um novo olhar para o ensino de história. Tendo como finalidade permitir ao professor e aos alunos a conhecer outras abordagens de ensino e aprendizagem em sala de aula que vai além tradicionalismo do quadro e da caneta. Da orientação do trabalho surgiu o título da aula “Uma reflexão sobre o legado sociopolítico da Revolta de Canudos” direcionada ao público do 9° ano do Ensino fundamental. Proposta de aula A guerra de Canudos frente a novas ferramentas de ensino que são através dos quadrinhos, música, cinema. O tema foi escolhido, por apresentar uma das revoltas mais marcantes da história do Brasil. As razões de trabalhar esse acontecimento histórico, é devido ao fato de permitir que os alunos reflitam sobre o papel de ambos os lados da revolta. E, sobre importância histórica dessa luta para a história do Brasil. A proposta da avaliação e aula em si, visa uma alternativa mais dinâmica para se alcançar a compressão dos alunos a respeito do tema apresentado, que vão muito além da maneira tradicional e limitada que conhecemos de ensino. Objetivos Os objetivos que se pretende alcançar com esse tipo de aula são: apontar como as dinâmicas e as estruturas presentes na Primeira República influenciaram o processo do conflito em canudos. Ressaltar a herança que o processo do contexto histórico de canudos irá impactar politicamente e socialmente na região fazendo um paralelo com dinâmicas expostas no contexto do Brasil atual. A partir dessas perspectivas, busca-se apontar os diferentes pontos de vista dos dois lados envolvidos na revolta, ou seja, o da população de canudos e o da primeira república, da igreja e dos grandes fazendeiros. Mostrando assim, a dualidade das visões estabelecidas, utilizando como ferramenta para isso o uso da história em quadrinhos. Essa que narra de forma mais atraente o processo da revolta de canudos. Dessa forma, almeja-se alcançar compreensão dos alunos entorno dessas dinâmicas estabelecidas de uma maneira mais atrativa, rompendo com os padrões tradicionais de ensinar o conteúdo que pouco possibilita o aluno a desenvolver sua autonomia e desempenhar o seu pensamento crítico. Além disso, através do uso das histórias em quadrinhos, percebe-se uma maneira de reforçar o processo de ensino aprendizagem, promovendo uma reflexão sobre o uso de novas metodologias para além dos livros didáticos. Dessa forma, a aula abrangerá as características do período da Primeira República; a importância da história da comunidade de Canudos; e os principais pontos para investigar o legado sociopolítico de Canudos no contexto do Brasil atual de forma mais acessível e dinâmica. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 349 Foto. 1 Materiais Os materiais que podemos usar no planejamento dessa proposta de aula são: a história em quadrinhos da guerra de canudos, que foi roteirizada André Diniz e desenhada por José Aguiar, como não se pode arcar com a compra de diversos exemplares, há a opção de se utilizar do formato digital o quadrinho. Que poderá ser acessado em celulares, tablet, computadores e notebooks no formato de PDF, permitindo a todos o livre acesso a história. Além disso, a proposta utiliza-se da canção “Canudos de Chico Pottier” para iniciar aula. Na avaliação não serão utilizados apenas, papel, caneta, como também o uso de celulares para auxiliar na apresentação fazendo com que ele não seja considerado um inimigo na aprendizagem, e sim um mediador. Após concluímos a leitura e o debate, os alunos terão a alternativa de registrar em seus cadernos as ideias centrais do conteúdo histórico apresentado. Metodologia A estratégia utilizada para estruturar a aula será feita de seguinte maneira: iniciaremos a aula com a música Canudos-Chico Pottier. Em seguida, será debatido em sala com a leitura previamente feita da história em quadrinhos “a Revolta de Canudos de André Diniz”, a interpretação que os alunos tiveram do movimento (a partir da leitura e a escuta da música). Quais são as impressões que a revolta os trouxe. Quais são os discursos de ambos os lados envolvidos na Guerra. O objetivo é que os alunos apresentem as ideias centrais que compreenderam após a leitura da história em quadrinhos. No debate iremos procurar expor essas ideias com entendimento de cada um para a turma. A partir dessa exposição vamos refletir em sala de aula sobre o que representou a guerra de canudos para a história do Brasil, apontando os aspectos sociais e políticos presentes no contexto histórico analisado. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Avaliação Um método de avaliação sugerido funcionará da seguinte maneira, como a aula será feita em torno de um debate em sala utilizando-se da história em quadrinhos e da música que representa a guerra de canudos. Pode-se utilizar os seguintes métodos de avaliação: O aluno terá que escolher entre as quatro opções abaixo, para descrever o que entendeu da Revolta de Canudos; Página | 350    Um poema Um minidocumentário utilizando seus celulares, podendo até inventar uma entrevista. Uma ilustração ou uma parodia sobre o conteúdo. Lembrando, que todas as avaliações serão sobre o que se entendeu da leitura da história em quadrinhos da Revolta de Canudos. A partir dessas propostas de avaliação, será possível identificar ao longo da apresentação se os alunos conseguiram entender o tema em questão, ou seja, o contexto da revolta, o período em que ela se encontrava no caso o da Primeira República, a importância histórica da comunidade de Canudos e os principais pontos para investigar o legado sociopolítico de Canudos no Brasil atual. Um Plano B Na ausência dos recursos planejados, podemos recorrer a uma atividade alternativa utilizando o Filme: Guerra de Canudos, 1996. Os alunos assistiram ao filme em casa, depois faremos um debate em sala de aula para entender as visões de ambos os envolvidos na guerra e no contexto histórico analisado. Também será utilizado o uso de fotografias para auxiliar na aula que podem ser rapidamente encontradas na internet via smartphone. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 351 Foto.2 Considerações finais A proposta desse trabalho que nasceu na disciplina de laboratório III aos estudantes do curso de história da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e deve-se a orientação Prof. Dr. André Bueno da Silva. A sugestão da aula com tema de Canudos frente as novas ferramentas de ensino e avaliação, visa permitir ao professor e aos alunos a explorar outras abordagens de ensino e aprendizagem em sala de aula que vai além da modelo tradicional que conhecemos, nos mostrando assim, novas possibilidades de olhar para o ensino de história. Referências POTTIER, Chico. Canudos. Disponível em: https://www.letras.mus.br/chico-pottier/1772320/ acessado 28/02/2019 DINIZ, André. A Revolta de Canudos História do Brasil em Quadrinhos. São Paulo: Escala Educacional, 2008. CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 1998. Filme Canudos, 1996: Direção de Sérgio Rezende e o roteiro de Paulo Halm; Sérgio Rezende. Fotografias: http://www.historiailustrada.com.br/2014/06/fotos-da-guerrade-canudos.html?m=1 acessado 28/02/2019 FRONZA, M. As histórias em quadrinhos e as ideias de jovens estudantes sobre a conquista da América a partir do conflito entre europeus e indígenas. Disponível em: http://simpohis2017.blogspot.com/p/marcelofronza.html O ENSINO DE ALGUNS PRINCÍPIOS TEÓRICOS DA ESCOLA DOS ANNALES A PARTIR DA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO Rodrigo Conçole Lage Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS No séc. XX, na França, temos o surgimento de um movimento historiográfico conhecido como Escola dos Annales, sob a liderança dos historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre. Eles tinham como objetivo remodelar as pesquisas históricas visando construir uma história total na qual a sociedade fosse analisada em todos os seus aspectos. Página | 352 Como a formação do historiador ou do professor de história tem como um de seus fundamentos mais importantes o estudo da Teoria da História, isso envolve o aprendizado das ideias que nortearam o trabalho de movimentos historiográficos como os da Escola dos Annales. Isso é um elemento essencial na formação profissional de modo que não pode ser negligenciado. Contudo, apesar da importância do estudo da Teoria da História, a verdade é que muitos estudantes não só não gostam da matéria, mas tem grande dificuldade no aprendizado desta matéria. Assim, acreditamos que o uso da literatura, acompanhado dos textos teóricos, pode facilitar a compreensão de algumas questões. Para isso escolhemos a obra de José Saramago como base para este trabalho pelo fato de que suas obras, principalmente aquelas de caráter histórico tem como fundamento algumas das ideias que nortearam o trabalho dos historiadores da Escola dos Annales. Assim, vamos dividir este texto em duas partes. Na primeira exporemos as relações do escritor português com o trabalho desses historiadores. Na segunda, apresentaremos algumas das ideias que podem ser discutidas a partir de seus romances. Saramago e a Escola dos Annales É muito comum, nos estudos literários, encontrarmos associações entre a obra de Saramago com os princípios os Annales: “Assim, o projeto ensaístico que emerge de História do Cerco de Lisboa parece buscar munição nos postulados do movimento Nova História, protagonizado pelos intelectuais franceses da Escola de Annales (Jacques Rancière, Michelet, Foucault, Paul Veyne, Jacques Le Goff) [...].” [Wandelli, p. 183] Contudo, pelo exemplo citado, vemos que existe um grande desconhecimento em relação a essas relações já que a autora do artigo não tem certeza se Saramago se baseou no pensamento desses autores. Em outros casos, vemos pesquisadores que agem como se eles tivessem escolhido os Annales como referencial teórico por conta da similaridade de pensamento, e não porque o autor se baseou neles. O fato é que Saramago foi um conhecedor do pensamento dos Annales. Isso se deu de duas formas. Em primeiro lugar dentro do seu trabalho de tradução. Dentre as muitas obras que ele traduziu temos o livro “O tempo das catedrais: a arte e a sociedade 980-1420” de Georges Duby, publicado em 1978 pela Editorial Estampa. Duby foi um dos grandes nomes da chamada segunda geração dos Annales. O segundo ponto de contato foi por meio da leitura. As reflexões do escritor referentes à História, que se apresentavam durante a escrita de seus livros, o levaram de encontro à obra destes historiadores: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 353 “Foi isso que me levou a esse sentido da História, que para mim era confuso, mas que depois vim a entender, em termos mais científicos, a partir do momento em que descobri uns quantos autores (os homens dos Annales, os da Nouvelle Histoire, como Georges Duby ou o Jacques Le Goff), cujo olhar histórico ia por esse caminho.” [Saramago apud Reis, 80] Infelizmente, como não existe publicado nenhum catálogo da biblioteca de Saramago, não é possível ter uma ideia mais precisa dos livros que ele leu ou se ele leu a revista dos Annales. De qualquer modo, ele deixa bem claro que o sentido de História presente nos seus livros é baseado neles. Assim, mesmo sendo um militante comunista, ao elaborar sua obra, ele não se baseou nos princípio do neorrealismo, mas no dos Annales. Principio teóricos dos Annales presentes na obra de Saramago Diante da brevidade do texto não podemos discutir todos os pontos de ligação que podem ser trabalhados. Vamos apresentar alguns dos mais importantes que servirão de base quem quiser trabalhar outros assuntos. Em primeiro lugar temos a questão da história-problema. Isto é, da crítica a história factual em favor de uma que seja: “interpretativa, problematizada, apoiada em hipóteses, capaz de recortar o acontecimento através de novas tábuas de leitura, e, na verdade, capaz de problematizar este próprio gesto de recortar um acontecimento.” [Barros, 306] No romance “História do Cerco de Lisboa”, por exemplo, em vez de uma historia factual, nós temos a história de um revisar que reescreve a história ao acrescentar um não ao texto, negando a ideia de que os cruzados teriam ajudado os portugueses a conquistar a cidade. Isso leva a toda uma reflexão sobre a escrita da história como algo interpretativo, sobre o que é a verdade. Além disso, é importante se destacar o fato de que Saramago não é o único escritor que realiza esse diálogo com a História. Ao longo do século XX surge o que a crítica literária chama de novo romance histórico. Eles têm um caráter metaficcional e “levantam questões a respeito da dicotomia entre a literatura e a história.” [Araujo, p. 2535]. O que implica uma aproximação das duas e o questionamento da história oficial: “A metaficção historiográfica se apropria das mesmas fontes e por vezes a mesma forma que o discurso histórico. Com isso destaca que a concepção da historiografia enquanto realidade baseada em Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 354 referências a um passado empírico não passa de um senso comum, pois na verdade a historiografia se refere a textos e reminiscências do passado, e não ao passado em si. Esse novo tipo de romance reinterpreta a história e a reescreve através da ficção, sem o objetivo contar a verdade, mas de questionar qual é essa verdade que se conta” [Araujo, 2011, p. 2535] Analisar o texto de Saramago é um modo de se compreender as diferenças entre um texto literário, que se apresenta como um discurso histórico, e um texto historiográfico propriamente dito. Esse tipo de discussão pode ser complementado com o exame das teses de Hayden White tais como as que tratam a respeito da ficcionalidade e do modo como as figuras de linguagem são utilizadas. E também podem ser complementada com o exame do resgate da narrativa dentro da produção historiográfica. Além disso, a discussão a respeito das diferenças entre um texto literário e um ficcional, o modo como um historiador pode utilizar elementos da retórica para a construção da narrativa história são de fundamental importância para a formação de um historiador. Ao mesmo tempo, esse tipo de assunto pode ser complementado com discussões a respeito de como o historiador trabalha para preencher as lacunas das fontes históricas sem inventar nada enquanto um escritor trabalha com sua própria imaginação. Até onde sabemos Saramago teve contato com a produção da terceira geração dos Annales, a chamada “Nouvelle Histoire”. Assim, seus romances podem servir de ponto de partida para se abordar o conceito de mentalidade, que está muito presente em seus romances. E, mesmo a ideia de uma história total. Outro ponto que pode ser destacado é o fato de que Saramago abandona a história dos grandes homens e dos grandes feitos e coloca em primeiro plano a história do homem comum, daqueles são muitas vezes ignorados e não tem seus nomes preservados nos registros da História. Isso leva, naturalmente a uma tentativa de se preencher os silêncios da história. Vemos isso em “Memorial do Convento”, no qual o autor tem como foco narrar a vida dos operários, ficando a realeza e a nobreza em segundo plano. Essa busca pela história do homem comum lava também ao resgate de acontecimentos que, normalmente, são ignorados pelos historiadores por não serem considerados historicamente importantes. Um exemplo disso será visto no romance “A Viagem do Elefante”, no qual o escritor resgata um acontecimento histórico que havia caído no esquecimento: “Há dez anos, o português José Saramago recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Entre as dezenas de viagens que fez pelo mundo naquele ano, uma lhe ficou na memória. Em Salzburgo, na Áustria, após falar aos alunos da universidade local, Saramago foi convidado a jantar no restaurante do hotel Elefant. Trata-se de um local simples, fundado há 700 anos. Em 1551, era uma estalagem. O hotel de hoje não difere muito daquele do século XVI. Ali se hospedou o arquiduque austríaco Maximiliano II. O nobre e sua comitiva faziam uma viagem de Valladolid, na Espanha, rumo a Viena, levando um elefante. Daí o nome da hospedaria e a fileira de figuras que o dono mandou esculpir em madeira na sala de jantar. Saramago ficou intrigado com a obra, porque notou que na extrema esquerda figurava a Torre de Belém, monumento famoso de Portugal. Os anfitriões lhe explicaram que o elefante foi um presente dos reis dom João III e Catarina d’Áustria de Portugal ao nobre austríaco – e a viagem do animal havia começado em Lisboa. Surgiu assim, do acaso, o argumento de A Viagem do Elefante.” [Giron, 2008] Isso leva a outra questão importante para os historiadores dos Annales que é a do uso de novas fontes para a pesquisa histórica, em vez de se limitar aos documentos oficiais. Mesmo que não tenha sido intencional, foi a fileira de figuras esculpidas que foi a fonte a partir da qual este fato histórico foi resgatado. O que é algo importante a ser trabalhado com os alunos. Conclusão Por tudo o que foi dito, podemos ver alguns pontos de contato entre a obra de Saramago e a dos historiadores dos Annales. Esses são só alguns dos muitos temas que podem ser trabalhados por um professor de história. Além disso, esse tipo de trabalho por ser feito com muitos outros autores que utilizaram a literatura como forma de se repensar a História, como Gabriel García Márquez que, em “O general em seu labirinto”, faz uma releitura da figura de Bolívar, procurando desmistificá-lo. Nesse sentido, é importante se discutir a questão da utilização da literatura como fonte de trabalho para o historiador e para o professor de história. Além disso, é um meio de se levar o aluno a ter contato com a obra de um grande escritor. Referências ARAUJO, Rodrigo Gomes de. Entre a literatura e a história: a metaficção de Valencio Xavier in http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Rodrigo% 20Gomes%20de%20Araujo.pdf, 2011. BARROS, José D’Assunção. Os Annales e a história-problema – considerações sobre a importância da noção de “história-problema” para a identidade da Escola dos Annales. História: Debates e Tendências, v. 12, n. 2, 2012. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/3073 GIRON, Luís A. A enigmática viagem de Saramago in http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI16225-15220,00A+ENIGMATICA+VIAGEM+DE+SARAMAGO.html, 2008 REIS, C. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1988. WANDELLI, R. A invenção do real em Saramago. Anuário de Literatura, n. 6, 1988. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/view/5208. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 355 EXISTE UMA TRADIÇÃO BRASILEIRA DE HISTÓRIA ECONÔMICA?: AS TRADIÇÕES CLÁSSICAS DE HISTÓRIA ECONÔMICA NO MUNDO E A HISTÓRIA ECONÔMICA NO BRASIL Rodrigo Henrique Araújo da Costa Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 356 Este trabalho teve como objetivo traçar um panorama entre a História Econômica mundial e fazer as devidas referências com a História Econômica do Brasil. A questão principal é se há uma tradição da História Econômica no Brasil e se esta perspectiva historiográfica está em crise. Desta forma, nós analisamos as diferentes vertentes da historiografia econômica do mundo, para em seguida passarmos a refletir sobre o Brasil. Este tema e seu questionamento foi trazido à tona pelo professor Alexandre Saes durante a disciplina “Tradições Nacionais em História Econômica”, realizada entre 1 e 5 de outubro de 2018, na FEA/USP. Decidimos seguir o mesmo caminho proposto, especificamente, na aula 5 do curso, realizada no dia 5 de outubro de 2018, cujo norte foi a questão “Existe uma tradição brasileira de história econômica?”. Foi desta aula que saiu a ideia do tema para este ensaio. A tendência brasileira foi pensada com seus autores de fulcral participação. Para esta finalidade, nos debruçamos sobre os trabalhos de José Flávio Motta em “Agonia ou robustez? Reflexões acerca da historiografia econômica brasileira”, de João Fragoso em “Para que serve a história econômica? Notas sobre a história da exclusão social no Brasil”, o capítulo presente no livro Domínios da História de autoria de João Fragoso e de Manolo Florentino intitulado “História Econômica”, o artigo de Flávio Azevedo Marques de Saes de título “A historiografia econômica brasileira: dos pioneiros às tendências recentes da pesquisa em história econômica do Brasil” e o artigo do Tamás Szmrecsányi intitulado “Retomando a questão do início da historiografia econômica no Brasil”. A primeira fase foi a tradição britânica, entre 1890-1920. Nesta, analisamos os embates entre a Teoria econômica versus Economistas históricos. É nesse debate e ambiente (em que se sobressai, entre tantos, Jevons, por exemplo) que se forma a Economic History Society, em 1926, que seria o espaço de consolidação dessa tendência historiográfica, uma sociedade erudita que foi estabelecida na London School of Economics para apoiar a pesquisa e o ensino da história econômica no Reino Unido e no mundo. Trata-se de um grupo de autores que formam uma sociedade de História Econômica de peso, cujo debate está feito dentro do campo da Economia e da História, a exemplo dos estudos sobre Revolução Industrial, estudo sobre preços, questões econômicas levadas para dimensões históricas. Posteriormente, o que vemos em torno das décadas de 1950-1970 seria o momento chamado dos historiadores marxistas. O texto do Harvey Kaye “The British Marxist historians: an introductory analysis”, de 1984, deixa bastante claro que o ponto de partida advém do Partido Comunista inglês, o papel central de personagens como Dobb, Hobsbawm, Christopher Hill, Thompson, Hilton, etc; autores decisivos. Nesta conjuntura, temos dois caminhos muito distintos do fazer história, um deles seria a relação da história com a teoria econômica e com temas mais voltados pra acontecimentos clássicos como a Revolução Industrial, mas com olhar para preços, com olhar para produção, dos temas econômicos e o olhar histórico destes temas. O segundo seria o grande tema do papel da luta de classes, dos trabalhadores e do campesinato. Outro é o da Alemanha, que vai se constituindo ao longo do século XIX, naquilo que conhecemos como Historicismo, que é uma forma de método no campo da história e da economia; cria-se uma perspectiva ou um olhar muito particular para se fazer economia, o resgate da história sobre a economia. Se essa tradição permanece na sociedade e nos departamentos de Economia e História, certamente, devemos crer que o historicismo vai até a Primeira Guerra Mundial, reverberando até os anos 1930. Mas esse historicismo deixa de cumprir um papel importante na economia. Sobre a França, em seu debate tradicional, e a resposta dos Annales como confronto da história tradicional com as ciências sociais. Neste sentido de confronto, uma síntese que é comum aos três períodos é a tradição dos Annales, que também se refletiu no Brasil. Na primeira fase, a presença de Bloch e Febvre. Na segunda fase, Fernand Braudel. E na terceira fase, a Nova História. A terceira fase, analisada vastamente por Fernando Antonio Novais e Rogério Forastieri da Silva em “Introdução: para a historiografia da nova história”. O espaço dos Annales é de uma abertura e de um diálogo bastante vigoroso. O período da segunda geração de Braudel é o espaço de hegemonia e de maior dominância dos temas econômicos, da presença da história econômica com um veio mais explicativo; também a passagem de Braudel pela USP. O terceiro período, o pós-1970, é o de crise da história econômica, debatida no capítulo História Econômica em “Domínios da História” de João Fragoso e Manolo Florentino, em que trabalham este momento para mostrar a conjuntura agonizante da História Econômica no mundo. É significativo observar que os dois primeiros momentos foram bastante férteis, com Braudel sendo o momento da dominância completa da perspectiva da História Econômica, e o que resta aqui nessa transição é um esvaziamento daquilo que representa a História Econômica. Porém, tomada a questão de um ponto de vista mais amplo, vemos os EUA e algumas de suas principais Universidades com um percurso bastante sui generis. De um lado, a importância do institucionalismo, naquilo que trabalhamos como um espaço de uma certa pluralidade, indo desde 1890 até 1940. Em comparação com as outras tendências analisadas brevemente, este espaço estadunidense será muito fértil para os estudos institucionalistas. Em torno da década de 1920-30, abrir-se-á um espaço bastante dominante da visão mais institucionalista, abrindo agendas e campos de discussão importantes dentro da economia, da história e da Sociologia. É característica a trajetória da chamada Business History, bem como também outro espaço que é Harvard, fazendo um diálogo com a economia em conjunto com as pesquisas históricas. Lembremos também da tradição que surge com Schumpeter e também com David Landes, este, notadamente, com "A Riqueza e pobreza das nações: Porque umas são tão Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 357 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 358 ricas e outras tão pobres" (1999) e a corroboração com as teorias acerca do surgimento do Capitalismo de Max Weber. Há nos anos 40 a formação da Economic History Association, fundada em 1940, e uma tese a ser problematizada é a de que em campos antes restritos abrem-se lugares para pesquisas de história econômica. Conforme Alexandre Saes, em “A institucionalização da história econômica”, essa agenda institucional foi criada dentro desses marcos da pluralidade da pesquisa dos historiadores, economistas e sociólogos, enfim, como também a Revolução cliométrica, em torno dos anos 1950-1960. Essa história econômica se restringe a dar pluralidade a um discurso onde praticamente só atuam economistas. Seria uma História Econômica feita por economistas. É certo que entre historiadores marxistas e as escola dos annales há uma convergência de alguns temas, conforme explicitado por François Dosse em “A História em Migalhas”. As tradições citadas mostram que podemos reconhecer aquilo que era tido como tradicional na chegada ao Brasil e como que isso foi ou não foi absorvido. E no caso de ter sido assimilado, quais as contraposições a tais pensamentos e seus autores. Ou se pelo contrário foi uma assimilação direta e como isso se deu no Brasil, eis a questão basilar a ser pensada. Assim sendo, reavemos a questão trabalhada pelo texto do Tamás Szmrecsányi, retomando a questão do início da historiografia econômica no Brasil, que trabalhou a questão do início da história econômica no Brasil e em mesmo sentido o texto da Alice Canabrava, da década de 1950, que é um roteiro sucinto do desenvolvimento da historiografia brasileira. Os dois autores chegam num norteamento muito congruente para pensar sobre as principais vertentes que refletiram sobre um “início” da História Econômica no Brasil. Tamás Szmrecsányi vai referenciar os trabalhos de Francisco Iglésias para explicar quais as fases gerais do fazer história no Brasil. Há uma fase longa de textos, de relatos, crônicas sobre o Brasil colonial e o início da independência, algo em torno de textos históricos, entre 1500 a 1850, entretanto, não há nada sistemático nesse sentido de se fazer história econômica propriamente dita. E o que o Iglésias diz sobre a primeira versão de um texto minimamente sistematizado, com alguma metodologia de análise que poderia marcar o início da tradição historiográfica brasileira é o texto História Geral do Brasil, de 1854, de Francisco Adolfo de Varnhagen. Varnhagen e a produção do IHGB constituíram um tipo historiográfico que é calcado na história factual, baseada nos documentos, de certa maneira até mesmo se igualando naquilo que veríamos na Escola dos Annales, caso específico do tipo de escrita e metodologia de Langlois e Seinobos, conforme tendência típica do fim do século XIX. Efetivamente, se vamos para a História Geral do Brasil, o texto do Varnhagen é riquíssimo, mas dificilmente se pode tirar algo relativo à História Econômica. Francisco Iglésias chega com uma ruptura na década 1930 com os trabalhos mais analíticos e críticos sobre o Brasil. Existem outros trabalhos, num período posterior, que podemos pensar como é o caso de Victor Vianna, com História da Formação Econômica do Brasil (1923), também Pontos de partida para a historia econômica do Brasil do José Gabriel de Lemos Britto, de 1923. Mesmo um posterior, fora citado por Alexandre Saes durante o curso, caso do livro Evolução Econômica do Brasil, de J. F. Normano, assim, concluindo que existem textos que se referem à ideia de uma História Econômica ou de uma História dos fatos econômicos. Podemos citar também Capistrano de Abreu (Seria o primeiro historiador econômico? Têm capítulos muito próximos ao que é analisado por Caio Prado Jr). Analisamos de 1900 a 1930 como um período de transição, ou como sinais de ruptura da historiografia tradicional. O que Tamás, seguindo as pistas de Alice Canabrava, coloca como os quatro pioneiros. O Tamás acrescenta um quinto, que é a própria Canabrava. Como exposto, para Canabrava o primeiro seria João Lúcio de Azevedo (1928) com textos sobre o pensar o Brasil no período colonial, apresentando uma ideia de ciclos econômicos, até mesmo no método, trazendo uma metodologia da economia, incorporando narrativas da análise econômica. Em segundo, Roberto Simonsen em História Econômica do Brasil. Simonsen é formado em engenharia na USP, depois industrial, empresário, com peso importante na política empresarial, com cargo no governo Vargas. História Econômica do Brasil tem essa ideia de pioneiros, tem uma importância por apresentar uma interpretação sobre o Brasil a partir dos ciclos econômicos, a economia brasileira vinculada aos ciclos, do açúcar, do ouro, do café, etc. Também pensando os ciclos como um ponto de crescimento de uma economia, mas que ao se dissolver não deixa nenhuma herança positiva para o Brasil, narrativa crítica de uma certa intervenção, defendendo então a superação dos ciclos econômicos e, enfim, propondo caminhos para a industrialização. Seu livro é de 1937 e é um livro que advém do curso na Escola de Sociologia Política e que ficou inacabado. Foi alguém que dialogou com outras áreas em seu contato com a economia mas dentro de uma Escola de Sociologia. Referenciamos para tanto o trabalho do Marco Cavalieri, que diz que Roberto Simonsen teria incorporado alguns elementos do institucionalismo e pluralismo econômico americano. O terceiro autor, indicado pela Canabrava e pelo Tamás, é Caio Prado Júnior com uma discussão marxista, com a relação com as ciências sociais, sendo um grande interpretador sobre o período colonial, notadamente, com seu livro de 1942. E o quarto é o Celso Furtado, com Formação Econômica do Brasil, de 1959. A Canabrava fala sobre esses quatro, e o Tamás adiciona a própria Canabrava, especialmente o livro “Comércio Português no Rio da Prata (1580-1640)”, tese defendida em 1942 e publicada em 1944, que de certa forma não tem um caráter de síntese, mas é um texto que teria uma influência de Braudel e dos Annales, também de Camille-Ernest Labrousse. Trata-se de uma profunda pesquisa documental e bibliográfica, o próprio Braudel faz uma resenha elogiosa sobre essa tese de Canabrava. Todavia, vale ressaltar, em 1930, Gilberto Freyre, em outro viés. Também, Sérgio Buarque de Holanda, particularmente, ligado ao marxismo (19201960), teríamos a influência das versões oficiais do PCB e Luís Carlos Prestes, Nelson Werneck Sodré, Florestan Fernandes (1960-1970) e Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 359 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 360 Fernando Henrique Cardoso (também entre 1960-1970). Ou seja, temos um quadro paralelo, com interpretações sobre, por exemplo, as formas de pensar a questão agrária, o imperialismo e também o feudalismo, esta última advinda de debates europeus, que trouxe em 1988 a organização de Theo Santiago, de textos de Pierre Vilar, Hobsbawm e Charles Parain, em livro intitulado “Do feudalismo ao capitalismo: uma discussão histórica”. Importante pensar o caráter do capitalismo brasileiro, de que estávamos ligados a uma herança colonial, um tipo de estrutura agrária. Há um campo de pesquisa que vai ter uma produção ligada ao campo político, o caráter do capitalismo e a revolução. No caso de Caio Prado Jr., pensado por José Carlos Reis nas palavras de uma reconstrução crítica do sonho de emancipação e autonomia nacional, o pensamento pradiano reflete sobre o caráter desse capitalismo brasileiro, em relação com o sentido da herança colonial, a relação de dominância e de subordinação às relações externas, uma estrutura agrária que estava colocada há séculos. Ainda sobre o marxismo no Brasil, lembrando que por volta de 1922, ano de fundação do PCB, o espaço institucional da Universidade ainda estava em formação, então esses escritos tem outros ambientes e mecanismos de disseminação, claro que no campo político do comunismo e do marxismo. Outro estudioso a ser lembrado, dentro de uma economia estruturalista é Furtado. A análise centra-se no desenvolvimento econômico, na questão da indústria, na dependência econômica. Então, no campo da História Econômica certamente a referência para esse período, em específico, seria Celso Furtado. Pensando o caráter do Capitalismo brasileiro, criando várias subáreas de análise. Penso que estas observações são relevantes para pensar o cômputo das pesquisas em História Econômica a partir de problemas mais objetivos, questões atuais e mediadas pela História. O debate dele é com a teoria do desenvolvimento, da indústria e da potencial industrialização. Furtado, segundo Novaes, parte de problemas teóricos da economia para abalizar a sua Formação Econômica do Brasil. Existiria uma terceira tradição que seria esse método dos Annales. Tamás em ‘Ensaios da história do pensamento econômico no Brasil’ diz que a Canabrava teria seguido essa tradição. Lembramos disto como uma fase de monografias e também de trabalhos com uma documentação quantitativa. Por sua vez, e diante deste quadro proposto, temos entre os anos de 1960 e 1980 aquilo que é a História Econômica dentro das universidades, ou seja, com novos temas, novas influências, também com um marxismo mais universitário calcado nas bases metodológicas acadêmicas, assim pensemos esses historiadores marxistas já incorporados à Academia, então, o debate é trazido pro âmbito acadêmico e teremos novos nomes como Novais e também as contribuições e influências no exterior de E. P. Thompson. Todo caso, ainda persistirá na Academia esse grande tema de análise do capitalismo, todo debate em torno do sistema mundo e a questão da dependência de países mais desenvolvidos. A CEPAL e novas questões da economia é fundamental para o período, bem como o marco posto pelo Golpe civil-militar de 1964 será um divisor para pensar estes quadros da História Econômica no Brasil. Alguns pólos desses debates serão Universidades como a Unicamp e a UFRJ, e sobre a questão da Industrialização será mais na USP com Cano, Suzigan, Warren Dean, Saes, etc. Há o tema do empresariado, Bresser e FHC. Também a presença de Delfim Neto e pesquisadores do marxismo. Há o aprofundamento das monografias, marca de uma nova geração de 1980-2000, que careceria de mais tempo e estudos de nossa parte. Compreendemos este momento como de declínio das análises históricoeconômicas, posto por Fragoso, Florentino e Motta como de crise, em que a influência da história econômica vai se fragmentando, conforme gráficos trazidos por Fragoso e Florentino, os trabalhos em História Econômica declinam vertiginosamente nas Universidades, justamente, nessa virada do que será o perfil da pesquisa histórica no Brasil. Em 1980, há uma nova oxigenação com a Nova História, novos temas, que deslocam as discussões econômicas e que de certa forma perde espaço dentro dos programas de história. Trata-se de um viés que fica muito claro, enquanto na economia a grande questão é pensar a inflação, a questão do desenvolvimento diminui totalmente e podemos dizer até que sai de cena. Acredito que falta refletirmos mais sobre o liberalismo no Brasil, mas para tal intento, necessitaríamos de maior espaço e pesquisa avançada. A leitura de Flávio Saes se faz necessária, tendo-se em vista que são recolocadas as possibilidades de sobrevivência da história econômica brasileira. Chegamos a Fragoso e Florentino e também a interpretação de Motta, no sentido de uma História Econômica entre a agonia e a robustez, ou seja, perante o quadro proposto atingimos uma produção considerável de História Econômica, que reverbera não somente nos pólos e Escolas de São Paulo e Rio de Janeiro, mas em vários programas de pós-graduação do Brasil e em seus respectivos departamentos de História. Cremos que a visão de Motta é um tanto quanto pessimista, bem como a de Fragoso e Florentino, estes em menor escala, dado que trazem mais critérios basais. Mas pensar a crise de uma determinada vertente é também pensar se essa crise também não se encontra em outras áreas, no caso específico da História, por exemplo, se não há a suposta crise em outros campos. Claro que determinadas perspectivas se ampliaram, como é o caso das representações, história regional, escravidão, memória, a História Social em si, algumas subdivisões como Cultura e Sociedade, mentalidades, Poder e Sociedade, Estado, instituições, atores e pensamento político, relações internacionais, regimes e sistemas políticos, cultura e poder, sujeitos históricos e micro poderes, Economia e Sociedade. Há um desgaste metodológico, bem como uma reprodução em massa de mesmas perspectivas teórico-metodológicas. Todavia, após a curta reflexão, ainda necessitando de ressalvas, percebemos que há sim uma tradição de História Econômica brasileira e refutamos a ideia de uma suposta crise da História Econômica no Brasil, haja vista trabalhos de fôlego produzidos por abnegados professores em História Econômica em todo o país. Afirmar uma crise e colocar em xeque essas produções seria uma espécie de suicídio acadêmico para muitos que labutam pela História Econômica. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 361 Referências BEISER, Frederick. The German historicist tradition. Oxford: Oxford UP, 2012. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 362 BERSTEIN, Serge. A cultura política. In.: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI, Jean-François (dir.). Para uma história cultural. Lisboa: Editora Estampa, 1998. BRUZZI CURI, Luiz Felipe. Influências que abriram caminhos: Roberto Simonsen e a perspectiva histórica. Informações Fipe, n. 419, 2015, pp. 4956. BURKE, Peter. 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Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 363 MÚSICA E ENSINO DE HISTÓRIA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E CONCEITUAIS Rodrigo Luis dos Santos Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 364 A palavra música tem sua origem no termo grego mousiké, que tem como significado a arte das musas. Conceitualmente, entende-se por música a arte de organizar sensível e logicamente uma combinação de sons e silêncios, de forma harmônica e coerente. Nesse sentido, ela se fundamenta em três princípios básicos: a melodia, a harmonia e o ritmo. A música constitui-se em um produto cultural significativo das sociedades humanas e manifestação artística capaz de suscitar múltiplas experiências extáticas, cognitivas e emocionais ao ouvinte. Também pode ser considerada como um estímulo no campo perceptivo humano, pois pode assumir várias funções, como é o caso do entretenimento, da comunicação ou do direcionamento psicossocial e ideológico. Neste prisma, Kátia Abud e Raquel Gleizer apontam para a importância e influência da música no ambiente social, ao asseverar que ela “[...] representa modos de ver o mundo, fatos que acontecem na vida cotidiana, expressa indignação, revolta, resistência, e mesmo que tenha um tema específico, ela traz informações sobre um conjunto de elementos que indiretamente participam da trama. No Brasil, a música popular é especialmente importante porque, para a maioria da população, as formas de comunicação oral são muito mais fortes que a escrita” (ABUD; GLEIZER, 2004, p. 59). A História, por seu turno, contempla, dentre seus objetivos centrais, perceber a ação humana no tempo e no espaço, compreendendo sua complexidade, suas continuidades, suas rupturas, coerências e incongruências. E, para poder efetivar tal desejo, aqueles que se dedicam a esse campo da ciência devem contemplar, criticamente, as mais variadas formas de expressão e criação dos grupos sociais. Não se trata de contemplação meramente dita, mas de uma qualificada prospecção, adentrando criteriosamente nas múltiplas dimensões e interpretações acerca do desenvolvimento humano e de sua atuação no mundo, seja no passado, seja no presente. Diante do exposto, não há como se apreender uma sociedade sem alargar o panorama de espaços, fontes e possibilidades interpretativas. E a música, enquanto modo cultural de produção e representação, é um destes elementos salutares. Neste sentido, queremos trazer algumas questões de cunho teórico e conceitual, que se refletem de forma nítida na aplicação prática no ambiente escolar. O primeiro ponto está vinculado ao ambiente no qual a atividade envolvendo História e música será realizada. É fundamental um conhecimento prévio, por parte do docente, da realidade cultural e social na qual seus alunos e alunas estão imersos. Somente assim será possível estabelecer conexões e diálogos, evitando uma mera exposição auditiva, sem assimilação por parte dos estudantes e sem compreensão do que se pretende através daquela didática. Precisamos ter delineado que, na perspectiva de mudanças geracionais e de interação entre essas diferentes gerações, os códigos culturais e as linguagens passam por transformações, sobretudo em tempos de informação instantânea e globalizada. E é preciso lembrar que a música também é uma forma de linguagem e sofre influências, assim como é influenciadora. Deste modo, “[...] devemos expor o jovem à linguagem musical de forma a criar um espaço de diálogo a respeito de música e por meio dela. Como acontece com qualquer outra linguagem, cada povo, grupo social ou indivíduo tem sua expressão musical. Portanto, cabe ao professor, antes de transmitir sua própria cultura musical (no caso, relacionada ao conhecimento histórico), pesquisar o universo musical ao qual o jovem pertence e, daí, encorajar atividades relacionadas com a descoberta e construção de novas formas de conhecimento por meio da música” (ABUD; SILVA; ALVES, 2010, p. 61). Outro tópico essencial está associado diametralmente com a postura ética da atividade docente. Independente dos gostos musicais do professor, ele deve estar atento e ser aberto aos padrões culturais de seus alunos e alunas. Não se trata de se deixar seduzir por esses gostos e expressões musicais, mas compreender que são formas representativas da atualidade, fazendo parte do complexo tecido sociocultural em que estamos envolvidos. Visando contribuir para o estabelecimento de uma conexão entre teoria e possibilidades práticas, apresentamos alguns caminhos que podem ser seguidos, visando direcionar mais sistematicamente a utilização da música nas aulas de História. Como afirmamos anteriormente, não se trata de um roteiro estanque, mas de um modelo alternativo. Esse roteiro se fundamenta em sete tópicos: 1. Definição do que é uma fonte histórica; 2. Apresentar e explicar as diferentes modalidades de fontes que são utilizadas, especialmente na atualidade, pelos pesquisadores; 3. Definir, mais detalhadamente com os estudantes, o que significa uma fonte sonora, explicando que as músicas que os mesmos ouvem também se tratam de fonte para se entender o presente e a relação com o passado; 4. Verificar quais são os tipos musicais que fazem parte do cotidiano social e cultural dos estudantes; 5. Estabelecer uma relação entre as músicas que os alunos ouvem hoje em dia e canções do passado, dando maior visibilidade para os temas que elas abordam e que podem ser trabalhados em sala de aula (gênero, relações sociais, trabalho, violência, religiosidade, entre outros); Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 365 6. Com base nessa aproximação, incentivar uma leitura, por parte dos estudantes, dos elementos de caráter histórico que podem estar contidos nas canções, assim como a coleta de informações sobre seu(s) intérprete(s), autor(es), período em que foi gravada, etc; Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS 7. E, por fim, avaliar junto com os alunos de que maneira se pode interpretar a música como fonte histórica, assim como ela pode ser influenciada e influências na sociedade, objetivando despertar uma percepção crítica sobre as construções culturais, tanto do passado, mas especialmente do tempo presente. Página | 366 Chamamos a atenção para a necessidade de compreender a música como uma fonte possível de múltiplas interpretações, não podendo ser subjugada como uma expressão literal, especialmente no tocante à constituição de sua letra. Em outras palavras, mesmo com um sentido aparente, ele pode estar relacionada com outras visões e códigos estabelecidos por quem a compôs. Nas palavras de Adalberto Paranhos, “[...] quando não permanecemos reféns da mera literalidade das letras das canções, aí sim estamos aptos a perceber que o significante não se acha irremediavelmente comprometido com um significado único, esvaziado de historicidade. Na perspectiva aqui adotada, uma canção está longe de reter um sentido fixo, préfabricado ou predeterminado. Afinal, examinada dialeticamente, a produção de sentidos, como parte de uma espécie de jogo polissêmico, abriga múltiplas leituras possíveis, por mais ambíguas e contraditórias que sejam. O sim pode transmutar-se em não, e viceversa, ou em talvez” (PARANHOS, 2006, p. 4830). Este texto estabelece algumas percepções de caráter conceitual em sua parte inicial, indicando também alguns procedimentos metodológicos básicos para uma melhor exploração da música como recurso didático nas aulas de História – e que podem possibilitar ações interdisciplinares, como com a Geografia, Sociologia, Língua Portuguesa e Inglesa, entre outras. Na segunda parte, buscamos demonstrar, de forma prática, possibilidades de análise e interpretação crítica das canções, compreendendo-as como produtos diretamente relacionados com o meio social na qual estão inseridas. Mesmo que assumam, a posteriori, uma dimensão atemporal, elas são frutos de um momento específico, de uma conjuntura própria, de uma visão de mundo centrada em determinada realidade. Por conta disso, são fontes riquíssimas para se compreender uma sociedade ao longo do tempo, com suas continuidades, suas mudanças, suas aproximações e divergências. Referências ABUD, Kátia M.; SILVA, André Chaves de M.; ALVES, Ronaldo C. Ensino de História. São Paulo: Cenage Learning, 2010. _______; GLEIZER, Raquel. A música popular: resistência e registro. In: História – módulo 4. Programa Pró‐Universitário (Universidade de São Paulo e Secretaria de Educação do Estado de São Paulo). São Paulo: Dreampix Comunicação, 2004. PARANHOS, Adalberto. Ciladas da canção: usos da música na prática educativa. Disponível em: www2.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/442AdalbertoParanhos. pdf; Acesso em: 22 jan. 2018. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 367 EXPERIÊNCIA DIDÁTICA DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO ENSINO DE HISTÓRIA Sandro Ambrósio Alves Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 368 “Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens de hoje as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho.” (BOSI,1994, p.55) Ao caminhar pelas ruas de um dado espaço de convivência social, enquanto indivíduos que fazem parte do seu contexto, ou não, o olhar percorre, mesmo que sem intenção, os vários aspectos que tornaram o lugar como ele é. Sejam em uma comunidade cosmopolita, sejam em uma aldeia indígena, quilombola, em uma periferia ou outros lugares, o ‘olhar reflexivo’ percebe os aspectos econômicos, culturais, políticos, arquitetônicos e de memória. E mesmo que não se tenham reflexões sobre o lugar, é comum ouvirmos: “isso não deveria estar aqui” ou “para que serve isso? ” Ou ainda, “minha infância foi vivida neste lugar, quantas lembranças! ”, que servem como lampejos de uma memória que insiste em se manter viva. Isso porque, para essa reativação das lembranças individuais “... a pessoa precisa recorrer as lembranças de outras, e se transportar a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. ” (HALBWACHS, 2003, p.72), tornando esses pontos de referência um importante sinal que pode trazer à memória eventos e espaços que marcaram, ou ainda marcam, uma coletividade e que está no indivíduo como parte desse coletivo, ou podem servir para serem questionados, quando os mesmos não são reconhecidos como pertencentes à memória coletiva. E nos espaços urbanos, onde se nota a constante transformação e movimento, há o desenvolvimento de uma territorialidade, pois verifica-se uma relação que está para além do funcional nesses espaços, entre grupos sociais, que constitui-se o espaço vivido, onde “há uma relação de exterioridade do sujeito em relação ao espaço e uma ligação intrínseca com a subjetividade quando se fala em território [...] Não existe território sem um sujeito[...]” (ROLNIK,1992,p.28), ou seja, o espaço constituído depende dos sujeitos e suas relações cotidianas nesse dado espaço. Desta maneira, concebe-se que a cidade deve ser encarada como: “ [...] um artefato, como um bem cultural [...] um artefato que pulsa, que vive, que permanentemente se transforma, se autodevora e expande em novos tecidos recriados para atender a outas demandas sucessivas e programas em permanente renovação. ” (LEMOS,2013, p.48) O trabalho produzido, traz como título: Patrimônio Histórico e Cultural de Rondonópolis-MT: Orientações Didáticas no Ensino de História. Ele se insere na linha de pesquisa: “Saberes Históricos em diferentes Espaços de Memória” do Mestrado Profissional em Ensino de História, que teve como objetivo refletir sobre o ensino de História e Educação Patrimonial, na cidade de Rondonópolis em Mato Grosso. A pesquisa objetivou a elaboração de um material didático, com base nas análises de documentações de historiadores e de experiência prática, envolvendo uma ação didática realizada com estudantes dos anos finais do ensino fundamental (7º anos), como proposta para uso dos professores em sala de aula e nas saídas de campo. Desta forma, analisei, a partir da investigação com os alunos de uma escola pública de Rondonópolis, de que forma eles se apropriam da abordagem sobre Patrimônio Cultural na aula de História, seja ela em sala de aula seja ela em saída de campo, através das narrativas apresentadas pelas crianças. Por conseguinte, foi proposto uma oficina didática com os estudantes, a partir de um roteiro didático previamente preparado e discutido com o professor de História, de maneira a envolver os temas: Patrimônio Cultural, memória, lugares de memória, tombamento e registro, baseando-se na concepção de aula-oficina. Figura 1. Roteiro didático proposto e preparado junto com o professor de sala e que faz parte do livreto. Fonte: O autor Após as ações didáticas em sala de aula foi realizada a saída de campo para alguns lugares de memória da cidade como edificações, museus, praças, com intuito de analisar as narrativas dos estudantes e propor o uso do patrimônio como contributo à prática das aulas de História. Com base nos dados analisados e na experiência didática em sala, foi desenvolvido um material de auxílio ao professor, como um recurso didático em formato de livro, contendo nele o roteiro didático utilizado na pesquisa. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 369 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 370 Ao refletirmos sobre o termo Patrimônio, pensamos ser naturais tais definições, mas “...resultam de processos de transformação e continuam em mudanças. A categoria ‘patrimônio’, tal como é usada na atualidade, nem sempre conheceu fronteiras tão bem delimitadas. ” (GONÇALVES, 2009, p.27). O caráter de patrimônio é milenar, não se restringindo às sociedades ocidentais, ainda que com diferenças notáveis, como é o caso do pensamento oriental que caminha por um viés diferente das mudanças e permanências. Entendendo o objeto histórico-cultural não como depositário da tradição, mas de um saber fazer que precisa ser constantemente transmitido. Mário Chagas (2009) discute a ideia de Patrimônio Cultural salientando que quando se tem uma ação de preservação dos bens culturais tangíveis, a justificativa não seria a sua materialidade e sim os saberes, técnicas, valores, funções e significados e sentidos que representam e ocupam na vida social, desta forma, o fato de preservar um bem em si não se constitui por si patrimônio. (CHAGAS, 2009, p.98-109). Partindo dessa premissa, podemos pensar que o que se deseja preservar do Patrimônio Cultural, “...não são os objetos, mas seus sentidos e significados; ou seja, aquilo que confere sentido ao bem tangível é intangível. ” (CHAGAS, 2009, p.99). Portanto, observa-se a necessidade da Educação Patrimonial atrelada a Educação Histórica para formação cidadã, pois através do conhecimento do patrimônio como elementos identitário, caminha-se no sentido do conhecer a si, permitindo a valorização e preservação cultural e inserindo-se o sujeito em seu contexto sociocultural e também na compreensão de conceitos históricos. O texto das Diretrizes Curriculares Nacionais aponta para a importância dessas questões, e pressupõe que a escola, professores e profissionais da educação criem situações de aprendizagem com base no contexto local, e o estudante possa ter uma “leitura atenta da realidade local” e que esteja inserido no Projeto Político Pedagógico (PPP), a “valorização da cultura local” em articulação com a base nacional comum. (Diretrizes Curriculares Nacionais, 2013, p.49-113.) O que também pode ser observado nos Parâmetros Curriculares Nacionais de História do ensino fundamental anos finais (7º, 8º e 9º anos), tendo entre os objetivos: “valorizar o patrimônio sociocultural” e propondo ao professor visitas a museus e patrimônios históricos e culturais como recurso didático, tendo como debate a preservação dos vários tipos de patrimônio, bem como a compreensão dos espaços de preservação e divulgação da memória. (Parâmetros Curriculares Nacionais de História, 1998, p.90-93.) E seguindo a mesma linha das legislações nacionais, as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso, destacam que ao fazer o “estudo do meio” o estudante pode observar seu local de vivência, e também “identificar os bens materiais do patrimônio histórico-cultural, de sua cultura”, que se tornem uma forma de compreensão da sociedade em que o mesmo convive. (Orientações Curriculares- área de ciências humanas, 2010, p.15-18.) Nesse sentido, baseamos nossa proposta de análise na metodologia da Educação Patrimonial, a qual se fundamenta como: “[...] a utilização de museus, monumentos históricos, arquivos, bibliotecas – os lugares e suportes da memória – no processo educativo, a fim de desenvolver a sensibilidade e a consciência dos educandos e futuros cidadãos da importância da preservação dos bens culturais.” (ORIÁ, In BITTENCOURT, 2017, p.141) Desta forma, no mês de novembro de 2017, iniciamos as ações, encaminhando com o professor (a) de História de uma Escola Estadual de Rondonópolis-MT, o roteiro didático, sobre o que e como abordar a temática do Patrimônio Cultural. Visando relacionar com o currículo, nas turmas do 3º ciclo de formação humana, que compreendeu o 7º ano A e 7º ano B do ensino fundamental. E também pontuamos sugestões de leituras e atividades à serem desenvolvidas objetivando a apropriação pelos estudantes. Assim, na ação didática proposta em sala de aula, iniciou-se com questões sobre o local de vivência dos estudantes. E, em seguida, sensibilizando em relação aos conceitos de Patrimônio Cultural: material e imaterial, memória, lugares de memória, tombamento e registro e com uma atividade prática que contribuiu para apreensão do que foi desenvolvido. E ainda, realizando a preparação para saída de campo, que teve como foco os aspectos do Patrimônio Cultural da cidade de Rondonópolis-MT. Com essas atividades, os estudantes começaram a observar melhor o que está ao seu entorno, sendo possível reconhecer os lugares que consideram importante, que são constituídos de memórias e podem, com isso, aprender a ter um olhar mais crítico e respeitar o meio em que vive, pois, de acordo com Marcelo Fronza: “[...] a investigação da localidade em que os estudantes vivenciam os ajuda na análise dos diferentes níveis da realidade econômica, política, social e cultural, tematizando, assim, as problemáticas advindas de suas experiências a serem narradas. [...] também facilita o estabelecimento de continuidades e diferenças em relação ás evidências de mudanças, conflitos, permanências na comunidade em que os estudantes vivem. ” (FRONZA, 2016, p.179) Em aulas posteriores ao 1º passo da ação didática, foi proposto aos alunos a análise de um objeto – boneca – artesanato produzido por uma moradora do bairro que se encontra a escola. A intenção foi de trabalhar com patrimônio imaterial, pois, através dessa experiência, contribuir para que os Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 371 estudantes percebam os bens patrimoniais imateriais em seu cotidiano, valorizando o contato e a manutenção destas ações em seu bairro. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 372 Figura 2 - Artesanato produzido por artesã local e alunos fazendo análise Fonte: o autor A partir das discussões e oficina didática com os estudantes em sala de aula sobre o Patrimônio Cultural, ocorreu saída de campo ao espaço central da cidade com intuito de estimular a observação, introduzir a discussão e sensibilizá-los em relação ao meio ambiente que os rodeia através de um questionário guia. O objetivo com o questionário guia foi de perceber o contato dos estudantes com as fontes históricas, entendendo-as como bens patrimoniais, bem como dar a eles a tarefa de entrevistar pessoas que fazem parte da vivência daquele espaço. O início do percurso foi no Casario Marechal Rondon, local que foi espaço de confluência de diversas pessoas, desde a vinda dos primeiros moradores não indígenas para região, em 1902, fixando-se e estabelecendo território. Os estudantes tiveram a oportunidade de conversarem com alguns artesãos que ali executam seu trabalho. Seguindo, a pé, pela avenida Marechal Rondon, passamos por alguns espaços como o 1º Correio da Cidade, O 1º Cinema, tendo uma pequena parada explicativa, seguindo para a o Museu Bororo e finalizando na Praça Brasil local onde tiveram a oportunidade de perceber vários aspectos que se desenvolveram no seu entorno, como a Igreja Matriz, a Escola Sagrado Coração de Jesus, a EEMOP (Escola Estadual Major Otávio Pitaluga) e o Museu Rosa Bororo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 373 Figura 3 – Página do livreto com mapa do percurso partindo do Casario Marechal Rondon. Fonte: www.googleearth.com (com alterações do autor) Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 374 Figura 4 - Lugares que fizeram parte do roteiro de saída de campo – ano 2018 Fonte: o autor Logo, a saída de campo possibilitou a ação educativa, tendo que as narrativas obtidas são a compreensão dos estudantes em relação a edificação e suas características, ao percorrer o espaço, olhar seus detalhes e o entorno com um olhar que pode, em parte, ser analisado através da narrativa escrita. A proposta de análise fundamentou-se a partir das narrativas, que de acordo com Isabel Barca: “[...] através da narrativa tem sido possível conhecer as concepções dos sujeitos (alunos, inclusivamente) sobre, a) significados atribuídos ao mundo presente e passado. b) sentidos de mudança (progresso ou declínio linear ou complexo, dialética, ciclo, permanências ou rupturas), c) papel da História na orientação temporal (relações entre passado, presente e expectativas de futuro) no plano coletivo e no plano individual (como se posiciona o sujeito na História?), d) valores de (inter)culturalidade em situações de diálogo, de tensão ou de conflito[...]” (BARCA, 2012, p.40-41) As narrativas dos estudantes remontam a importância de estudar e valorizar esse espaço, pois o Casario representa o marco inicial da cidade de Rondonópolis, sendo assim, enquanto Patrimônio Histórico de grande importância, bem como a região que o permeia. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 375 Figura 5. Alunos no Museu Rosa Bororo Fonte: O autor Com base nas concepções sobre o Patrimônio Cultural, memória, lugares de memória e História regional/local e ancorados na metodologia da Educação Patrimonial, bem como a partir da experiência de ação didática realizada tanto em sala de aula, quanto na saída de campo, como os estudantes dos 7º anos do ensino fundamental, apresentamos o material didático, que terá como público alvo, os professores e alunos da Educação Básica. O material didático, denominado de Patrimoniar, foi elaborado levando em consideração as Diretrizes Curriculares Nacionais, Os Parâmetros Curriculares Nacionais e as Orientações Curriculares do Estado de Mato Grosso, no que diz respeito ao estudo do meio, a História local e o Patrimônio Cultural, bem como a metodologia da Educação Patrimonial. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 376 Figura 6 – Capa do Material didático e uma de suas páginas. Fonte: O autor Constituindo-se também como ferramenta diagnóstica, a proposta didática é sugestiva para compreender algumas noções que os estudantes possuem sobre determinados assuntos, que estão diretamente ligados a vivência deles. E, partindo deles, o professor trazer subsídios teóricos e metodológicos como contributo para o esclarecimento e visualização de diferentes concepções presentes na sociedade. Essencial para se discutir a História local, seja da cidade, seja do próprio bairro, levando em consideração as questões que lhes são peculiares e que podem ser um pontapé inicial para a resolução de situações de ordem social. Sendo que sua utilização não está limitada a data comemorativa do aniversário da cidade, podendo ocorrer em diferentes momentos do ano letivo e do currículo escolar. Para além da sala de aula, o ensino de História precisa pensar, excepcionalmente no contexto dos estudantes, através de saída de campo, no entanto, tendo em consideração que: “...é necessário ultrapassar uma visão impressionista de experiência meramente lúdica de saída do espaço escolar e reconhecer o seu papel no desenvolvimento da compreensão de evidência pelos alunos, envolvendo-os na construção do conhecimento histórico. ” (PINTO, 2015, p.217) Compreendendo que a problematização do Patrimônio Cultural e sua utilização como instrumento metodológico de ensino pode contribuir para perspectivas diferenciadas no ensino de História, de maneira que o ensino passa a instigar os estudantes, dando a eles questões práticas e desafiadoras, partindo de situações concretas e cotidianas na busca de respostas, questionando o próprio espaço de vivência, oportunizando um outro olhar sobre a História enquanto ciência, que possibilita a eles serem sujeitos da própria história. Esse material proposto pode ser ampliado aos outros lugares de memória da cidade que não foram mencionados no orientativo didático. Ainda, podese criar aplicativos, QR Code, mapas, jogos, documentários, projetos de pesquisa e projetos de lei que proporcione não só a comunidade estudantil, mas as pessoas que fazem parte da cidade a repensarem suas ações de conservação e valorização do Patrimônio Cultural. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 377 Por fim, considerei a experiência muito produtiva, pois, por meio da sua realização, tendo contato com teorias e metodologias que fundamentam as ações educativas, e, que nesse sentido, as práticas que a partir delas utilizarei, se constituirão de novas perspectivas para aula de História, pois: “Se desejamos que nosso trabalho resulte em aprendizagens significativas, que nossas aulas se constituam em espaço para reflexão crítica e mudança, precisamos de tempo para ouvir nossos alunos. ” (MONTEIRO, 2009, p.22) Referências BARCA, Isabel. Ideias chave para a educação histórica: uma busca de (inter)identidades. História Revista. V.17, nº 1, 2012. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/21683/12756. Acesso em: 28 de maio de 2018. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais. Brasília: MEC, 2013, p.49-113. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/julho-2013-pdf/13677-diretrizeseducacao-basica-2013-pdf/file. Acesso: 10 de mai. 2017. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais de História. Brasília: MEC, 1998. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_5a8_historia.pdf. Acesso: 05 de abr. 2017, p.90-93. CHAGAS, Mário. O pai de Macunaíma e o patrimônio espiritual. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (org.), Memória e patrimônio. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. FRONZA, Marcelo. A cultura histórica como possibilidade investigativa da educação patrimonial nas aulas de história. Fronteiras: Revista de História, Dourados-MS, v.18, nº. 31, p.169-185, jan-jun. 2016. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (orgs), Memória e Patrimônio - ensaios contemporâneos (pp. 25-33). Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Trad. 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HISTÓRIAS DE PESCADOR: UMA REFLEXÃO SOBRE O TEMPO, A MEMÓRIA E A HISTÓRIA NO BENDENGÓ DO UBÁ E O DESAFIO DE (RE)INTERPRETAR O PASSADO Simone Aparecida Quiezi Numa manhã ensolarada, novembro de 2016, comunidade ribeirinha às margens do Rio Ivaí, na varanda de uma aconchegante casa de madeira, algumas partes já em alvenaria, bancos e cadeiras de madeira, sofá forrado de tapetes artesanalmente confeccionados de retalhos coloridos, pisos de “caquinhos”, parentes que estavam de visita se despedindo e seguindo viagem, entre uma xícara de café e outra, uma deliciosa conversa sobre memórias: Pescador Maurício - quando nós cheguemo aqui. Aqui, isso aqui, era uma safra de porco. Entrevistadora – Isso! Conta um pouco para mim como era aqui quando o senhor chegou. 1954, né? (apesar de confirmar essa data no início da entrevista, neste momento segue o pescador, parecendo não ter nem ouvido minha pergunta quanto ao ano de sua chegada). Pescador Maurício – Que vê. 59, 59, 60 (a voz engasga e não completa o sessenta. Uma pausa de alguns segundos), 55 por aí, isso aqui era 14 alqueire cercado de tabua, só porco. No fundo a voz da esposa dona Francisca, diz: era a coisa mais bonita. Segue o pescador Maurício: pura batata. Pura Batata. Batata doce e mio. Só tinha um trio aqui (mostrando a frente de sua casa, saindo para a rua). Isso aqui era antigo. Passava um trio aqui. Dona Francisca interrompe e diz: tinha um paiozão de milho aqui para tratar daquele mundo de porco, sabe. As vozes do pescador Maurício, de dona Francisca e da entrevistadora se misturam. Todos querendo falar ao mesmo tempo, parece que as lembranças começaram a brotar e os dois sentem uma necessidade de falar. Tento me comunicar com os dois e por um instante os três acabam falando ao mesmo tempo. O casal demonstra saudosismo ao relembrar do passado, sinto a emoção do casal. Percebo que sentem saudades daquele tempo. Pescador Maurício: aqui tinha um paió que cabia mil cargueiro de mio. Era do meu avô, o veio Gregório. Dona Francisca interrompe: aí que coisa mais linda! Aqui era tão bonito de primeiro fia! Meu vô tinha usina para sortar luz. Tudo ele tinha! Pescador Maurício interrompe: Inclusive tinha uma irmã que morreu aqui ó. Subindo aqui ó (mostrando em frente a casa, onde seria o trio, cruzando a rua e seguindo em frente). Por causa de mandruvá. Dona Francisca interrompe: porque tinha muita torá, meu avó tirava torá para vender. Aquelas torona. E dai subiu. As batatas subiu nas toras, tampou tudo as toras, sabe. Então, dai nois vimo os mandruvá naquelas tora, que era muito, daí nois morrendo de medo, saimo correndo e derrubemo a menina em cima daquelas torá. No fundo o pescador Maurício diz: e não contou para a mãe. Dona Francisca continua: Daí quebrou aqui (mostrando as costelas), Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 379 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 380 acho que quebro. Daí nois continuemo, passa na casa do seu Tito. Passeando lá. Chegamo lá, parece que ela tá tão tristinha. Falei para minha cunhada. Será que tá?(falou a cunhada). Será que não é o tombo? (fala dona Francisca para a cunhada). Acho que não é(responde a cunhada). Continua Dona Francisca: Viemo embora e não contemo nada. E o medo de nois conta. Nem para ele (para o pescador Maurício) noís não contemo. Aí quando foi base de uma seis horas ele(o pescador Maurício) chegou aqui. Seis não sabe de uma coisa Chiquinha?(fala o pescador Maurício). A minha irmãzinha morreu. (dona Francisca faz um gesto de espanto com as mãos no rosto e continua) Aí meu Deus! É do tombo. Aí minha sogra foi vê tava tudo roxo. (A entrevistadora interrompe dizendo que deve ter quebrado a costela e perfurou o pulmão. O que ia sendo confirmado pelos entrevistados. E volta no assunto da criação de porco) Entrevistadora: Daí tudo aqui era porco, não tinha casa? As vozes do pescador Maurício e dona Francisca se mesclam dizendo: Dona Francisca: tudo, tudo, tudo coisa mais bonita! Pescador Maurício: não tinha nada, nada de casa. Dona Francisca: só porco. Entrevistadora, professora Simone Aparecida Quiezi. Entrevistados: Pescador Maurício Oliveira e sua esposa Francisca Pereira de Oliveira, ambos com 76 anos. Teriam chego com suas famílias ao Distrito de Porto Ubá, atualmente município de Lidianópolis-Pr, no ano de 1954. Os dois hoje aposentados, mas ele ainda na atividade de pescador. Agora atuando mais na preservação do Rio Ivaí, como membro da Patrulha Ambiental. Tiveram um filho homem, que concilia função de servidor público municipal com a função de pescador (primeira atividade de trabalho aprendida com o pai) e é referência na organização e atuação da Colônia e Associação de Pescadores Z-17 localizada também no Distrito de Porto Ubá. O casal teve ainda outras duas filhas. O objetivo da entrevista foi saber mais sobre a presença das populações indígenas na região de Porto Ubá, sobretudo na chamada “corredeira dos índios”, localizada às margens do Rio Ivaí. E compreender sobre as balsas, estradas e localização destas no Distrito de Porto Ubá. Uma das propostas da pesquisa era averiguar os possíveis Paleoterritórios de indígenas na região que chamo de “Bendengó do Ubá”. A sistematização dessa pesquisa se tornou uma produção didática que foi implementada no 6º ano do Ensino Fundamental da rede pública estadual do Paraná sobre História Local e História Ambiental, no Colégio Estadual do Campo D. Pedro I, localizado no Município de Lidianópolis, no território da pesquisa. Em 2018, ingressei no programa de Mestrado em História (UEM) propondo-me a dar continuidade às pesquisas sobre a ocupação humana desta região. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 381 Mapa 01 Fonte: QUIEZI, S.A (2014, p.80) De acordo com Quiezi (2016) “bendengó” (ou Bendegó) era uma palavra utilizada pelos kaingang no Paraná para se referir às demarcações de terras como “concessões escandalosas”, assalto as terras indígenas ou públicas. E Ubá, nome dado às canoas feitas pelos indígenas a partir de um único tronco ou plantas herbáceas utilizadas para a confecção de cestarias. O uso dessas duas palavras para denominar essa região é uma estratégia de narrativa considerando os diversos personagens por hora esquecidos ou excluídos da historiografia. Até o início de 2016, meus estudos eram amadores ou não profissionais como afirma Silva (1998), movidos pelas inquietudes das indagações sem respostas contidas nas versões que se contam na historiografia da região. Descobri que podem ter ocorrido fraudes na propriedade e legitimação da posse das terras; que houve resistência indígena e de posseiros; que os primeiros não foram os primeiros. Descobri tantas coisas: violência, silêncios, discursos e memórias que interferem nos arranjos políticos, ideológicos, econômicos e socioculturais da atualidade. Pergunto-me hoje qual a relevância de se expor tudo isso? Seria apenas uma necessidade particular minha? Escrever sobre e narrar outras histórias sobre o Território do Bendengó do Ubá contribuirá de alguma forma com a vida da sociedade local? Do ponto de vista historiográfico e da produção acadêmica é uma abordagem inédita e considerável? Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 382 Mapa 02 Fonte: IBGE (2012). Organizado por: QUIEZI, Simone A. (2014 p.68). Cronologicamente o período de atenção tende a se estabelecer entre os anos de 1870 a 1960. O objeto de estudo é o Rio Ivaí e o espaço geográfico que abrange o território delimitado, propondo-me a refletir sobre o deslocamento e a movimentação de alguns sujeitos no processo de ocupação do território, bem como a apropriação, as transformações e as ações destes sujeitos neste território e como se davam as relações entre estes sujeitos e destes com o meio natural (aqui pensando na perspectiva da História Ambiental). Por que iniciei com a narrativa oral do pescador Maurício e de dona Francisca? Primeiro porque os pescadores é um grupo dos sujeitos que pretendo abordar. Os indígenas, os membros de expedições, os posseiros e os agricultores completam o substrato do proposto. Segundo porque, apesar de saber que vou lidar com a(s) memória(s), ainda não tenho claro quais fontes vão subsidiar essa pesquisa. E o exercício que me desafio aqui é utilizar o trecho de três minutos narrado da entrevista para refleti-lo metodologicamente à luz do pensamento de Alessandro Portelli, sem desconsiderar as contribuições de outros autores citados. O pescador Maurício e Dona Francisca contam que o Distrito de Porto Ubá, quando chegaram à década de 1950 era um território de 14 alqueires pertencentes ao avô de dona Francisca, o senhor Gregório Augustinho do Rosário. Falam com muita propriedade e com pertencimento sobre a criação de porcos, a derrubada das árvores para comercialização da madeira e sobre o domínio dos meios de transporte para travessia do Rio Ivaí - as balsas, atividades exercidas ou sob o comando do avô Gregório. Isso evidencia o que Portelli (1996) afirma sobre narrar um fato. Ou seja, que nenhuma pessoa ao conceder uma entrevista sobre determinado fato o faz sem interpretá-lo. A narrativa não representa o fato sem a subjetividade do narrador, contudo, de acordo com Portelli, é um texto, é uma fonte, que remete a fatos. Toda a narrativa dos entrevistados está pautada nas suas lembranças e as ações de seus familiares ou nas suas próprias ações naquela localidade e no Rio Ivaí como balseiro e pescador. São as memórias deles, a partir das quais o historiador pode ir confrontando-as com os fatos e analisando-as na perspectiva da historicidade e da cientificidade. Em outro trecho, o pescador Maurício faz questão de ressaltar que a quadra esportiva de Porto Ubá recebeu o nome de seu avô. Dona Francisca, entusiasma-se em lembrar que tudo pertencia a seu avô e que tudo era a “coisa mais bonita”. Na subjetividade dos dois pode estar implícito o desejo do reconhecimento do pioneirismo do avô Gregório para a existência da comunidade ribeirinha Porto Ubá. Para Portelli (1996, p. 3-4) nossa tarefa enquanto pesquisadores não é exorcizar a subjetividade, “mas a de distinguir as regras e procedimentos que nos permitam de alguma medida compreendê-la e utilizá-la.” Alguns fatos narrados pelos entrevistados podem ser validados ou evidenciados pela confrontação de outras fontes, inclusive outros testemunhos orais. Como a questão das balsas serem o meio de transporte de travessia do Rio Ivaí nas décadas de 1940-60, e, a família deles ser a detentora deste meio de transporte na época e, ainda hoje, com um bisneto de Gregório comandando o negócio na atual “Balsa do Marolo” no município de Jardim Alegre-Pr, fazendo a ligação com o município de Grandes Rios-Pr. A atividade econômica de criação de porcos, os chamados safristas também é uma realidade constatada por vários outros testemunhos de pessoas que viveram à época, além de algumas pesquisas acadêmicas da história do Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 383 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Paraná que abordam a questão. Por fim, é possível checar na prefeitura de Lidianópolis-Pr e Jardim Alegre-Pr o histórico da documentação de posse das terras, verificando-se o senhor Gregório Augustinho do Rosário como proprietário, ressaltando-se que a legitimidade dos lotes naquela localidade ainda possui documentação duvidosa e irregular, sobretudo do ponto de vista da demarcação. O desmatamento pode ser facilmente constatado a campo e também no histórico das serrarias, inclusive uma da família Menin localizada em Lidianópolis-Pr. E, mais uma vez, é possível amparar-se em Portelli (1996), no sentido da constatação da fusão entre o individual e o social. Página | 384 O pescador Maurício, fala longamente sobre a relação dos pescadores com a população indígena que vivia na chamada corredeira dos índios, nos fundos da propriedade que hoje pertence ao senhor Odair Judaia (município de Lidianópolis-Pr). Entre tantas histórias narradas, uma delas parece evidenciar o deslocamento desta população que dá lugar definitivamente aos pescadores, aos posseiros e aos agricultores: “Aí o Oristide, um dia nois tava subindo pra lá para pescar, ele foi tira peixe lá do pãri, bêbado e caiu. Chegamo lá já tinha morrido no canal lá que é muito forte, sabe. Quando passemo por lá as mué tava tudo desesperada, gritando. Depois acharam ele pra baixo lá, enroscado, noutro dia. Depois não sei como foi, foi cabando aquilo lá. Aquele Guarapuava que era dono lá, esqueço o nome dele, era um devogado. Era dono daquela fazenda, que hoje é do seu Dair Judaia. Era o Dr Arruda. Ficou só o Adriano, outro índio, que ficava aqui no patrimônio, andando bêbado por aí, era daquela quadrilha o Adriano. Aí ficou outro, muleque novo, que ficou junto com um senhor que tinha aí, um pescador chamado João Miséria. Eles ficavam junto. Isso era antigamente. Isso é antigo. Ele pegava peixe e o indinho sai vender nas casas aí. Cê chegava lá prozeá com o veio lá, ele(o indinho) tava sentado lá, mas não oiava no cê não. Oiava por baixo assim. Dizem, eu não sei, que esse próprio índio matou o João Miséria. Aí foi se acabando, acabando, hoje existe só umas bananeirinhas lá, no lugar, no baixadão que eles tinha a ardeia.” (OLIVEIRA, 2016) A fala do pescador Maurício traz implicitamente o ato interpretativo da presença dos indígenas na região e as ações dos proprietários de terras que, segundo ele, vão se apossando não só das terras, mas das mulheres indígenas e violentamente deslocando-os para outras regiões sobrepondo gradativamente outra forma de ocupação, usos, apropriações e transformações do espaço geográfico e natural. Este ato interpretativo presente na narrativa do pescador Maurício é destacado por Portelli (1996) como ato fundamental na construção, justa ou equivocada, da narrativa em si. Como afirma Portelli (1996), a história oral e as memórias nos oferece um campo de possibilidades compartilhadas. Isso está visível na fala do pescador Maurício e de dona Francisca. O desafio é organizar estas narrativas de forma compreensível, de modo que estes mosaicos vão se (re)configurando a partir da contribuição de cada fragmento. Entendo, a partir de Portelli, que os mosaicos podem ser os grupos específicos ou a sociedade num determinado recorte tempo espaço. E os fragmentos são cada sujeito que oralmente pode narrar os fatos dessa temporalidade, constituindo-se em fontes e textos a serem interpretadas e novamente narradas, resguardadas suas interconexões, contradições, diferenças e similitudes. Na entrevista, ficam evidentes os fatos que marcaram a movimentação e o deslocamento dos sujeitos da pesquisa a que me proponho, bem como a relação destes entre si e com o meio natural (o Rio Ivaí e as paisagens às suas margens). Os dois falam da derrubada das árvores e a tristeza do pescador Maurício por ter participado desse processo; da demarcação de terras com a chegada dos agricultores e a companhia de terras; do nascimento e das dificuldades da atividade da pesca; dos costumes das populações indígenas; das balsas como meio de travessia ligando o restante do Paraná ao Centro deste; da criação de porcos como atividade econômica inicial, associada com a abertura das matas e as serrarias; da violência e conflitividade nas relações entre os sujeitos que se movimentaram, estabeleceram-se ou deslocaram-se neste território. Obviamente, cada processo desse precisa ser investigado dentro da lógica de produção do conhecimento histórico, confrontado, compreendido e interpretado, considerando ainda outras fontes. Prefiro pensar que a História Oral é uma fonte, um recurso de memória. Que a fala do pescador Maurício e dona Francisca são como o texto. Portanto, uma fonte a ser interpretada tal qual o texto escrito, contudo não com os mesmos métodos. Portelli (1997) chama atenção para os riscos das transcrições que podem provocar mudanças e alterações no sentido da fala do entrevistado. Isso pude facilmente constatar quando selecionei alguns trechos para este trabalho. Portelli (1997) registra que a linguagem é composta por um conjunto de traços portadores de significados. Ao ouvir a fala de dona Francisca, em dois momentos sua memória é invadida pelas emoções das lembranças ao descrever como Porto Ubá era bonito e a desatenção e o medo que matou a irmãzinha do pescador Maurício. A fuga e o desconforto do pescador Maurício em falar sobre os “guarapuavanos”. Segundo o pescador Maurício, ainda nesta entrevista, os “guarapuavanos” eram homens brancos vindos de Guarapuava-Pr e que iam, de acordo com ele, se apropriando das terras na região de forma violenta, causando medo e estupros com cárcere das mulheres indígenas. Esse termo “guarapuavano” é também retratado em outras narrativas orais de personagens que à época viviam na região. E a interpretação de violência identificada na fala do pescador Maurício é também reproduzida nestas outras narrativas, acrescentando-se ainda um “poder de polícia” ou “coronelismo” exercido por estes tais “guarapuavanos” que carecem de investigação. Tais expressões, sentimentos e tons de vozes demonstrados tanto por dona Francisca como pelo pescador Maurício jamais serão transcritos ou sentidos na escrita. Dessa forma, também preciso preocupar-me quanto ao passado preservado Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 385 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 386 na memória destes entrevistados, o que a memória pode ter forjado ao longo do tempo, naturalmente pela própria influencia do decorrer do tempo e da temporalidade a qual eles estão inseridos. O pescador Maurício é hoje uma referência da memória local e da organização dos pescadores, sendo por várias vezes ouvido, filmado e homenageado em eventos por sua luta pelo Rio Ivaí e a pesca profissional. Segundo Portelli (1997, p. 33) o narrador deve colocar a entrevista e a narração em seu contexto histórico. Mesmo considerando Portelli (1997) que o resultado final da entrevista é o produto de ambos, narrador e pesquisador, penso que fui infeliz e insensível durante a entrevista. Por algumas vezes interrompi a fala dos meus entrevistados. E ao ouvir a entrevista, percebi o quanto isso foi deselegante e prejudicial, pois alguns fatos ficaram com narrativas inconclusas, incompletas. Se é que é possível pensar em conclusões e completude quando se utiliza a história oral e suas memórias. Não que isso tenha causado algum embaraço na minha relação com eles. Apenas estou me autoanalisando no processo. Enfim, as questões estão postas e gerir isso tudo depende muito da disponibilidade minha enquanto pesquisadora, sobretudo, o quanto conseguirei apropriar-me do que já se produziu, o quanto de fontes conseguirei averiguar, quais fontes utilizarei e os possíveis resultados que conseguirei obter de todo esse processo. De acordo com Le Goff (1984), será que darei conta de visitar o passado e dialogar sobre o que não está, o que poderia ter estado, por que não está no presente ou por que está, desnaturalizando o que está posto? Para Portelli (1997) o papel do historiador é a crítica do passado. E a história oral, de acordo com historiador Guarinello (1994) é a construção de uma fonte. Estes dois autores me leva a compreender que as falas do pescador Maurício e de dona Francisca podem ser um ponto de partida para a (re)interpretação do passado quanto a movimentação e deslocamentos dos indígenas, pescadores e agricultores. Não está presente na fala deles os posseiros e as expedições. Necessitando, portanto da busca de outras fontes. Não posso, tendo Pierre Nora (1993) como referência, perder de vista que todas as narrativas e depoimentos se localizam no tempo e no espaço, e, que estou me propondo a refletir sobre este quadro espacial que estas narrativas estão me dizendo. Preciso ir a campo. Preciso definir minhas fontes. Preciso ampliar e aprofundar minhas leituras. Referências GUARINELLO. Norbert Luiz. Memória Coletiva e História Científica. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.14, n.28, p. 180-193, 1994; LE GOOF. Jacques. Memória-História. Enciclopédia Nacional, Rio de Janeiro, vol.1,1984, p. 11-47; Enaudi. Imprensa NORA. Pierre. Entre a Memória e a História. A problemática dos lugares. São Paulo: Projeto História, (10) dez. 1993. OLIVEIRA. Francisca Pereira de. Entrevista concedida a Simone Aparecida Quiezi. Lidianópolis, 25/11/2016. [a entrevista completa encontra-se em arquivo de áudio em poder da entrevistadora e trechos dela foram transcritos neste trabalho]; OLIVEIRA. Maurício de. Entrevista concedida a Simone Aparecida Quiezi. Lidianópolis, 25/11/2016. [a entrevista completa encontra-se em arquivo de áudio em poder da entrevistadora e trechos dela foram transcritos neste trabalho]; PORTELLI. Alessandro. A Filosofia e os Fatos. Rio de Janeiro: Revista Tempo, vol. 1, nº 2, 1996, p. 59-72; __________. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. São Paulo: Projeto História, (14) fev. 1997; __________. O que faz a História Oral diferente. São Paulo: Projeto História, (14) fev. 1997; QUIEZI, S. A.; PRZYBYSZ, J. A. A (re)organização do território entre os rios Ivaí e Corumbataí após a ocupação da Sociedade Territorial Ubá Ltda. no Estado do Paraná (1911 a 1990). In: NABOZNY, A. (Org.). Geografia a Distância: experiências de pesquisa em EaD. Ponta Grossa: NUTEAD, 2013. p. 1-30; __________. Os desafios da escola pública paranaense na perspectiva do professor PDE: produções didático-pedagógicas, 2016 / Secretaria de Estado da Educação. Superintendência da Educação. Programa de Desenvolvimento Educacional. – Curitiba: SEED – Pr., 2018; SILVA. Francisco Ribeiro da. História Local: Objectivos, Métodos e Fontes. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/3226.pdf. Acessado em 10/06/2018. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 387 PINACOTECA MUNICIPAL DE BAURU: ESPAÇO DE EDUCAÇÃO, ARTE E MEMÓRIA Taís Cristina Melero Taynara Zulato Rosa Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 388 Ambiente de expressões artísticas locais, memória, cultura e identidade, a sede da atual Pinacoteca Municipal de Bauru, a Casa Ponce Paz, permite uma gama de usualidades pedagógicas nos campos da educação patrimonial e ensino das artes. Repleto de pinturas murais e promotor de mostras e exposições culturais, o imóvel é um instrumento didático que viabiliza a interação dos discentes com as artes e suas pluralidades, angariando as aulas novos aprendizados e práticas. Através da Casa Ponce Paz e seu contexto histórico que remete a década de 1930, a educação patrimonial vem como uma proposta interdisciplinar de ensino direcionada ao patrimônio cultural que envolve a comunidade escolar, despertando a consciência acerca da valorização, preservação da memória histórica e formação identitária de Bauru. Espera-se demonstrar e refletir sobre a potencialidade da Pinacoteca Municipal de Bauru como espaço para metodologias ativas no ensino das artes, voltadas ao patrimônio cultural material e imaterial. Introdução A Casa Ponce Paz, sede atual da Pinacoteca Municipal de Bauru, foi construída em 1938 e abriga em seu interior uma gama de pinturas murais, encontradas em 2008 por funcionários da Secretaria Municipal de Cultura. A autoria das representações é dos irmãos João e Antônio Ponce Paz, importantes pintores e escultores espanhóis que se fixaram em Bauru na segunda década do século XX e desenvolveram suas carreiras artísticas. Em 2014, a Casa tornou-se sede da Pinacoteca Municipal, de acordo com a Lei nº 6.515 de 14 de maio de 2014 que: “Dispõe sobre a criação da PINACOTECA MUNICIPAL DE BAURU, e dá outras providências. Art. 3º - A PINACOTECA MUNICIPAL DE BAURU promoverá ações e eventos com o objetivo de valorização da arte como expressão da cultura. Constituem-se, igualmente, objetivos da Pinacoteca Municipal a gradual organização e implantação de: I - Oficinas de artes plásticas, em todas as suas modalidades; II - Mostras e exposições, coletivas ou individuais; [...] VI - Congressos, simpósios, seminários, conferências e outros eventos voltados ao aperfeiçoamento e a valorização de artistas e profissionais da cultura.” Tombada como patrimônio cultural de Bauru em 2009, a Pinacoteca Municipal promove e propõe o diálogo com as diferentes expressões artísticas, como as artes visuais, teatro, música e dança, proporcionando diversos usos culturais e educativos. Por estar estreitamente relacionada com o crescimento do munícipio e por constituir-se marco arquitetônico com características do movimento eclético, comum na transição do século XIX para o XX, com o estilo ornamentado e imponente, influenciado pela arquitetura renascentista e neoclássica, a Casa é essencial para práticas educativas nos âmbitos patrimoniais e artísticos. A vertente patrimonial busca utilizar o imóvel para resgatar a história do município e, assim, perceber em sua composição a dinâmica dos processos imigratórios, do comércio e urbanização bauruenses. A Educação Patrimonial, então: “Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural.” (HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO, 1999, p.5). A Pinacoteca Municipal transforma-se em um ambiente promissor de metodologias ativas no ensino das artes, às quais colocam os estudantes como agentes ativos e autônomos em seu processo de aprendizagem. A vertente artística possibilita o contato direto dos estudantes com as inúmeras linguagens visuais, sonoras e corporais, o que propicia a estes o conhecimento das técnicas de pintura existentes no imóvel e a interação com as exposições temáticas, como explicitado na imagem abaixo: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 389 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 390 Figura 1. Exposição "UneVersos". Fonte: Prefeitura Municipal de Bauru. 2017. O professor deve agir como mediador e potencializar práticas de ensino que priorizem o protagonismo discente, além de transcender o espaço da sala de aula, usando a cidade e seus patrimônios como objetos e lócus de construção de conhecimentos: “A arte como linguagem aguçadora dos sentidos transmite significados que não podem ser transmitidos por meio de nenhum outro tipo de linguagem, tal como a discursiva ou a científica. Dentre as artes, as visuais, tendo a imagem como matéria-prima, tornam possível a visualização de quem somos, de onde estamos e de como sentimos.” (BARBOSA, 2005, p.99). Para além das pinturas murais, a Pinacoteca Municipal de Bauru constitui-se em uma ferramenta fundamental para difusão de atividades pedagógicas diversificadas e dinâmicas no ensino das artes, permitindo inúmeros usos educacionais e viabilizando a aproximação da escola, professores e alunos com o patrimônio cultural municipal: “O conhecimento crítico e a apropriação consciente pelas comunidades do seu Patrimônio são fatores indispensáveis no processo de preservação sustentável desses bens, assim como no fortalecimento dos sentimentos de identidade e cidadania.” (Ibid., p.5). Arte e patrimônio: diálogos A Pinacoteca Municipal de Bauru, enquanto espaço artístico e patrimonial promove a adoção de novas práticas de ensino, potencializando o vínculo do aluno com as expressões artísticas locais. “A arte, enquanto bem patrimonial, tornando-se acessível a todos por meio de metodologias adequadas à fruição, compreensão em sua multiplicidade de sentidos e estímulo à criação, revelará modos distintos de conhecimento.” (GRINSPUM, p.39). É de suma importância a cooperação da escola e do professor como mediadores no processo de aprendizagem, deslocando a sala de aula para novos ambientes com potenciais educativos. Assim, enriquece e estimula o exercício da cidadania, valorização e salvaguarda da memória e identidade regional para os discentes. Desse modo: “A colaboração da escola no aperfeiçoamento dos saberes artísticos dos alunos, tem como objetivo auxiliá-los a apreender e aprimorar uma cultura básica nessa área de conhecimento humano para que participem, como cidadãos, da produção e da comunicação expressivas em imagens, sons, falas, movimentos, cenas, gestos na e sobre a vida atual e passada.” (FUSARI, 1992, p.33). Conclusões Dessa forma, torna-se de extrema importância a utilização da Pinacoteca Municipal para a educação patrimonial e artística por se tratar de instrumento ativo para a memória da cidade de Bauru e promover aos discentes/visitante compreender a relevância da preservação da identidade local, uma vez que esta oportuniza debates, discussões e reflexões que transcendem a sala de aula e possibilitam novos olhares em relação aos mais diversos assuntos do campo das artes. Logo, a Pinacoteca afirma-se como ferramenta crucial para a composição social de cada indivíduo. Referências BARBOSA, Ana Mae. Arte/Educação Contemporânea: Internacionais. São Paulo: Editora Cortez, 2005. Consonâncias BAURU. Lei nº 6.515, de 14 de maio de 2014. Dispõe sobre a criação da PINACOTECA MUNICIPAL DE BAURU, e dá outras providências. Câmara Municipal de Bauru, 2014. Disponível em: <https://sapl.bauru.sp.leg.br/sapl_documentos/norma_juridica/6697_texto _integral.pdf>. Acesso em: 26 de mar. 2018. FUSARI, Maria Felisminda. Metodologia do ensino da arte. São Paulo: Editora Cortez, 1993. GRINSPUM, Denise. Educação para o Patrimônio: Museu de Arte e Escola Responsabilidade compartilhada na formação de públicos. 2000. 157f. (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 391 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 392 HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: IPHAN, Museu Imperial, 1999. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. A instituição. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/guia_educacao_patrimonial.pdf.p df>. Acesso em: 27 de mar. 2018. PREFEITURA MUNICIPAL DE BAURU. Pinacoteca Municipal de Bauru prepara a exposição “UneVersos”, c2017. Apresenta informações sobre as atividades realizadas na Pinacoteca Municipal. Disponível em: < http://www.bauru.sp.gov.br/materia.aspx?n=25258>. Acesso em: 27 de mar. 2018. QUEBRANDO TABUS: DISCUTINDO SAÚDE MENTAL E SUICÍDIO COM ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO Talita Samara Oliveira Mesquita O presente projeto, visa observar e discutir a saúde mental no ensino médio e os desdobramentos do ambiente escolar enquanto um espaço fundamental na formação dos indivíduos. O trabalho busca também analisar a relação e conexão entre os campos de conhecimento e a relevância da interdisciplinaridade, uma vez que os temas poderão permear todas as áreas que compõem o currículo escolar. O projeto surgiu a partir da prática do estágio realizado em uma escola Estadual na cidade de Belo Horizonte, que permitiu uma análise no ambiente escolar em destaque. Foi percebido que há uma carência por parte da escola no trabalho do eixo temático “saúde”, especialmente quando nos referimos ao suicídio e consequentemente na conscientização tanto dos alunos como de toda comunidade escolar. Assim, foi percebido a necessidade de aplicação do presente projeto. A metodologia adotada é composta por uma análise, em um primeiro momento, dos Temas Transversais, como eixo pedagógico; as competências socioemocionais dispostas na Base Nacional Comum Curricular – BNCC, e a utilização de outras metodologias como recurso didático, tais como a literatura, em ‘Os sofrimentos do jovem Werther’ e o seriado, ‘Os 13 porquês’. Os Temas Transversais caracterizam-se por um conjunto de assuntos que se mostram “transversalizados” em determinadas áreas do currículo e que se constituem na necessidade de um trabalho mais significativo e expressivo na escola, com temas “cotidianos”. Os PCN‟s trouxeram para o ensino a ideia de ultrapassar as disciplinas trabalhadas em sala de aula, podendo-se trabalhar temas que valorizam a vida, estando relacionados com o cotidiano e vivência dos estudantes. Dentre os assuntos, a temática escolhida foi “Saúde”. A partir dela, o trabalho se propôs, em criar uma nova sistematização e o seu afunilamento, seja ela, “saúde mental”, dentro do grande eixo temático em questão. O modelo de disciplinas isoladas e com ensino fragmentado contribuem para a não aplicação de temas transversais relevantes na vida dos estudantes e facilitam a perpetuação de um ensino tradicionalista. O crescimento dos índices referentes às doenças mentais, tem crescido abruptamente no século XXI, em especial entre adolescentes e jovens e, apesar dos diversos métodos científicos de tratamentos de tais doenças, ainda assim, existe um alto nível de desinformação e até mesmo de preconceito a respeito da temática. De acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde), o Brasil é o quarto país latino-americano com o maior crescimento no número de suicídios entre os anos de 2000 e 2012, segundo o relatório publicado em 2014. O Brasil e alguns países, apesar deste aumento, possuem uma estratégia nacional de prevenção de suicídios. Uma Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 393 das ações especificas para o combate a esse problema crescente, é chamada de “Estratégia de Diretrizes Nacionais de Prevenção do Suicídio”, que inclui 2.128 Centros de Atenção Psicossocial (CAPs). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Dessa forma, dentro da perspectiva da saúde mental, o tema em específico que será trabalhado, é o suicídio. Ao longo das civilizações o suicídio foi abordado de maneiras diferentes, tanto pelo senso comum, como pelas religiões e sua moral, quanto pela ciência. A existência de diversos tabus sobre essa temática dificulta a formulação do entendimento e um diálogo claro e amplo a respeito do suicídio, enquanto um problema histórico-social. Página | 394 Émile Durkheim (1978) foi um dos primeiros sociólogos a argumentar que as causas do suicídio eram encontradas em fatores sociais e personalidades não individuais. Observando a variação de tempo e lugar, Durkheim atentou para causas ligadas a estes outros fatores de estresse emocional. Ele olhou para o grau em que as pessoas se sentem integradas na estrutura da sociedade e em seu meio social como fatores sociais produtores do fenômeno, e argumentou que as taxas de suicídio são afetadas pelos diferentes contextos sociais nos quais eles emergem. Para ele, “[...] em vez de vermos neles apenas acontecimentos particularmente isolados uns dos outros e que necessitam cada um por si de um exame particular, considerarmos o conjunto dos suicídios cometidos numa sociedade dada, o total assim obtido não é uma simples soma de unidades independentes, um todo de coleção, mas constitui em si um fato novo e sui generis, que possui a sua unidade e a individualidade, a sua natureza própria por conseguinte, e que, além disso, tal natureza é eminentemente social. ” [p. 169] Assim também, a psicanálise freudiana irá pensar o que está por trás daquilo que as coisas aparentam ser. Há uma carapaça no mundo, em que encobre o modo como as pessoas agem, se comportam e como a sociedade está organizada. Ele lança luz sobre o que está “escondido”, para que seja possível uma análise social mais eficaz. Analisa a cultura como resultado do sintoma humano, ou seja, a tentativa de negar o sofrimento no qual o indivíduo se encontra. A psicanálise também foi utilizada como um método base para as atividades desenvolvidas com os estudantes. A partir das linhas teóricas apresentadas, serão trabalhadas no projeto as metodologias que possibilitarão pensar a história de forma dinâmica e diversa, fazendo o estudante perceber os movimentos da história. Através da obra literária ‘Os Sofrimentos do Jovem Werther’ e o seriado produzido pelo streaming Netflix, ‘Os 13 porquês’, serão utilizados para se pensar o suicídio em sociedades e momentos históricos distintos e os impactos que as obras causam na comunidade e como a escola pode participar dessa discussão, que ainda é de certa forma velada. O cinema, embora tenha adquirido uma centralidade indiscutível no mundo contemporâneo, ainda é pouco utilizado como um recurso didático em salas de aula, muito pela falta de infraestrutura das escolas públicas. A predominância ainda hoje do método tradicional de aula expositiva para o ensino de História, constitui em um dos fatores que explicam essa carência na utilização de recursos múltiplos. E não somente a linguagem cinematográfica, mas também a linguagem literária como um recurso “não tecnológico” ainda é pouco aproveitada. Portanto, será ressignificado o entendimento de “saúde”, tanto no campo histórico, clínico e social, pois, a técnica de discussão livre permite desenvolver a cooperação intelectual e a avaliação crítica do conhecimento. Segundo Maria Eugênia Castanho (1991), a discussão tem seu papel no ensino, pois submete uma teoria, uma exposição qualquer à um esmiuçamento tal que sejam analisadas todas as implicações contidas ali. “(...)Caracteriza-se por ser uma forma de cooperação intelectual, uma vez que se esclarece e detalha um assunto em questão”. Assim, o trabalho se propõe a pensar e investigar as seguintes questões: Por que os índices das taxas de suicídio, atualmente, estão altas e principalmente em faixas etárias e grupos específicos? Qual a importância de se trabalhar saúde mental no ambiente escolar e como isto irá dialogar com a História? E ainda, como essa aprendizagem irá proporcionar que os estudantes e o grupo escolar se desenvolvam, a partir da análise sóciohistórica de Vygotsky? Dito isso, é imprescindível o estudo de temáticas não “convencionais” para o ensino e estudo da história, uma vez que o seu objeto é, por natureza, o homem no tempo. E as análises do homem contemporâneo, favorecem a um aperfeiçoamento nos métodos de estudo e das práticas educacionais. Desse modo foi utilizada uma das técnicas da história, como a análise das fontes, que aqui foi vista a partir da observação de quantificações feita pelo Ministério da Saúde e demais órgãos responsáveis pelas estatísticas sobre o suicídio e como isso se dará em fatores históricos. Planejamento de aplicação de projeto O projeto foi pensado para que houvesse além da conscientização e prevenção do suicídio - uma das funções da escola – um trabalho interdisciplinar, evidenciando a importância do diálogo entre diferentes áreas e a prática de eixos que possibilitem entrar no mundo dos jovens de maneira mais eficaz. Embora todas as datas comemorativas e/ou preventivas sejam trabalhadas nas escolas em praticamente todas as séries do ensino fundamental e médio, foi percebido um déficit em relação ao Setembro Amarelo. Houve uma preocupação, a princípio, por parte da escola pela dificuldade de se abordar temas como este. Entretanto, foi entendido que o pior combate à problemas semelhantes é a falta de diálogo. Logo, todo o cronograma foi passado e pensado juntamente com a direção e professores para o acompanhamento e desenvolvimento do projeto. A partir das observações da escola e suas necessidades, foi conversado com a direção a possibilidade de promovermos um momento para a discussão de transtornos mentais com todas as turmas de 2º ano no auditório. Após a Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 395 autorização e programação as atividades foram desenvolvimentos conforme apresentado abaixo. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS O conteúdo utilizado em sala de aula, foi feito através da literatura, trabalhado com a professora de português; a série foi previamente assistida pelos alunos e texto adaptado para que acontecesse o diálogo. Embora no currículo do ensino de História do ensino médio não houvesse a temática “saúde” para ser trabalhada, foi percebida a necessidade tanto pelo contexto social, quanto para o desenvolvimento da interdisciplinaridade e uma problematização nos temas transversais. Página | 396 A educação em saúde deve fazer parte do dia a dia da escola, de forma contextualizada, para que os alunos possam crescer em conhecimento, melhorar suas práticas e ter melhor qualidade de vida. Assim, a aprendizagem ocorre quando o aluno se faz sujeito ativo nesse processo de construção do conhecimento. Foi constatado como o tema ainda é um tabu para a sociedade e ainda mais dentro da escola, uma vez que se deve ter a preocupação na aplicação de projetos e até mesmo na discussão do assunto para que não haja gatilhos. Assim, foi preciso o envolvimento da escola e também estudos na área da saúde para que cuidados fossem tomados e para que também pudéssemos realizar um projeto que realmente ajudasse a escola nessa deficiência. Ao final da experiência no campo de estágio, foi possível perceber o choque entre a teoria e a prática, pois nem sempre os conteúdos estudados durante nosso curso são apresentados ainda que considerando o nível ao qual se destina: Ensino Fundamental II e Médio. Portanto, sugere uma reestruturação de ambos, como uma maneira de promover o melhor entrosamento tanto do estudante em formação acadêmica quanto em sua futura profissão de professor atuante em sala de aula, onde irá atuar numa realidade totalmente diferente. A realidade escolar observada é de uma educação ainda tradicional, em que o professor utiliza como instrumento metodológico indispensável o livro didático e automaticamente acionam uma metodologia que reprime e limita a fala do aluno e sua capacidade interpretativa. Isso se reflete diretamente na aprendizagem dos alunos, pois estes se acostumam somente a copiar dos livros e a receber conteúdos prontos e, quando são instigados a escrever e a dizer o que pensam de um assunto, apresentam muitas dificuldades. As metodologias usadas neste trabalho, primeiramente os eixos temáticos, nos proporcionaram um maior campo de atuação, em que o ensino de história, pudesse ganhar contornos mais críticos, e menos de decoração. Sendo assim, fora escolhido o uso de linguagens audiovisuais e também da literatura como auxiliadores nesse processo de construção do conhecimento. Após esta experiência docente, verificou-se uma disposição dos estudantes em promover atividades que dinamizam o cotidiano escolar. Apesar de ser um tema que, muitas vezes, aparenta não dialogar com outras áreas além da saúde, é possível estabelecer relações e possíveis caminhos para alcançar o esperado. Com o auxílio de uma didática que possibilite o raciocínio crítico e a autonomia; e metodologias diversas, que fujam um pouco do uso exclusivo do livro didático, buscando uma união entre conhecimento cientifico e a vivência fora da escola, pode-se alcançar um resultado significativo no processo de ensino aprendizagem. Seria, portanto, conveniente adotar uma prática de ensino que tivesse mais relação com a realidade e o cotidiano do aluno. As experiências dos alunos devem ser aproveitadas e problematizadas em sala de aula, pois a escola tem um forte papel social para a formação do ser humano e de sua cidadania. Todavia, trabalhar este saber cotidiano é um desafio para todos nós. Assim, através da psicanálise dando embasamento para o desenvolvimento do projeto, foi possível utiliza-la como um instrumento para se pensar a educação e a metodologia usada em sala de aula. As rodas de conversa proporcionadas pelos seminários foram fundamentais, pois, a partir delas podemos ver a forma como o outro significa o mundo, pensando assim sobre os discursos, ou seja, as práticas aqui aplicadas trabalhadas com a fala. Com isso, o projeto foi pensado além do ponto de vista de uma contribuição para a educação, mas também para a História. Nesse sentido, podendo a história ser entendida como o estudo do homem no tempo, foi-se pensado uma breve análise do homem no tempo presente. E como, a partir da educação e de um ponto de partida da saúde é possível se perceber esses movimentos da história em seus diversos setores, sejam eles, culturais, políticos, sociais e etc. Foi possível perceber que embora alguns professores planejem utilizar tais metodologias em sala de aula ou de maneira interdisciplinar, contam com dificuldades “externas‟, sendo elas os planejamentos escolares, currículo e atividades já destinadas pela escola. Assim como também a utilização de espaços não convencionais para a aplicação das atividades, tais como a quadra, o lado externo da escola. Observamos que ainda hoje a escola possui alguns receios no desenvolvimento de atividades que extrapolem um pouco o tradicional, porém foi possível esclarecer que com o auxílio e empenho, é possível trabalhar de maneira séria e utilizando os espaços da escola de maneira positiva na formação dos alunos. Também foi fundamental analisar que os alunos conseguem assimilar as atividades e cumprir as tarefas destinadas a eles de maneira admirável. Nessa perspectiva, a História é, antes de qualquer outra afirmação, um mecanismo que permite às pessoas refletirem e problematizarem suas ações no mundo, sobretudo enquanto sociedade. A História em sua Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 397 formação intelectual se dá através do diálogo com outras áreas, assim, acontecimentos dito “sociológicos” não devem ser excluídos no campo de estudo da História. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 398 Referências CASTANHO, Maria Eugênia. Da discussão e do debate nasce a rebeldia. In VEIGA, Ilma Passos Alencastro (org.) Técnicas de ensino: por que não? Campinas, SP: Papirus, 1991. DURKHEIM, Émile. O suicídio – estudo sociológico. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura [et al.]. São Paulo: Abril Cultural, 1978. GARCIA, Janaína Mandra. Saúde mental na Escola: o que os Educadores Devem Saber. Itatiba, v.21, n.2, may./Aug. 2016 REALIDADES DISTÓPICAS: INTERDISCIPLINARIDADE COMO DESENVOLVIMENTO DE CRÍTICAS SOCIAIS Tallita Stumpp Moreira A procura por literatura distópica tem aumentado significativamente nos últimos anos. No jornal ‘O Globo’, por exemplo, foi publicada uma matéria que aborda o aumento de vendas dessas narrativas após a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos (2017). Dentre os diversos autores, estão os clássicos George Orweel (2000), Adouls Huxley (2014) e Margaret Atwood (2017). Outro evento também marcado pela referência ao gênero foi o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro de 2018, que contou com diversas analogias feitas à obra de Ray Bradbury, ‘Fareinheit 451’ (2003). Neste sentido, pode-se dizer que os leitores têm observado características intrínsecas ao gênero distópico que, ainda que como crítica radical, refletem-se nos acontecimentos políticos e sociais do mundo real. O ensino interdisciplinar apresenta-se como um dos métodos de ensino que melhor desenvolve o senso crítico dos alunos. Ao fazer com que os processos do meio social, político, econômico e cultural sejam entendidos em suas mais amplas relações, a educação se dá pela construção do conhecimento feita através do diálogo, tanto entre professor e aluno, quanto entre diferentes disciplinas. Segundo Antônio Cândido (1976), a literatura está diretamente ligada ao contexto histórico vivenciado pelo autor, o que reflete em sua obra as nuances dos acontecimentos históricos e da sociedade em que vive. Seguindo esta afirmação, o presente trabalho busca apresentar o romance distópico como fruto de um contexto histórico que, através do conhecimento sociológico, é capaz de incitar o pensamento crítico dos indivíduos em relação aos atuais acontecimentos políticos, sociais, culturais e econômicos. Utilizando-se da Literatura, da História e da Sociologia como interdisciplinares, buscar-se-á apresentar os reflexos provenientes de cada uma dessas áreas do saber de maneira que seja possível identificar suas relações e incitar o pensamento crítico dos alunos através destes romances. A palavra distopia é composta pelo prefixo dis, do grego dys, que significa defeito, dificuldade, anomalia; e topos, que significa lugar. Levando-se em conta a etimologia da palavra o termo poderia ser definido como “lugar ruim” ou “lugar defeituoso”. As distopias mais conhecidas e lidas pelo público, como também discutidas no meio acadêmico, são as publicadas durante e após o século XX, frutos de um contexto histórico extremamente turbulento, marcado por importantes conflitos e evoluções na tecnologia e ciência. O gênero em questão pode ser caracterizado, assim, como uma narrativa fictícia que descreve o futuro de forma negativa, colocando em evidência os extremismos de sociedades que adotam o conservadorismo e o autoritarismo como meios de organização e controle social, banindo a liberdade de ideias de seus indivíduos que, conformados, defendem um estilo de vida superficial e de dominação total. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 399 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 400 O século XX foi caracterizado por Eric Hobsbawm como a ‘era dos extremos’ (1995). O cenário político deste mundo foi marcado por várias guerras envolvendo grandes potências: duas Guerras Mundiais, Guerras no Vietnã, Coreia, Afeganistão e até mesmo Guerra que foi chamada de Fria; a criação e fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); a ascensão de governos totalitários (NEUMANN, 1969), como a fascista Itália de Mussolini e a nazista Alemanha de Hitler. Diversas revoluções ocorreram em países como Rússia, Cuba e China. Os avanços tecnológicos corroboraram para uma verdadeira revolução na forma de se comunicar, com a invenção da televisão, do primeiro computador e da internet. Na medicina, o avanço científico proporcionou a primeira pílula anticoncepcional, a invenção da penicilina e a indústria farmacêutica. A economia mundial também teve sua maior crise já registrada, proveniente da quebra da Bolsa de Nova York, posteriormente reafirmada com a Crise do Petróleo. Conquistas culturais e sociais como a popularização do cinema e lutas feministas; invenções como o automóvel, o avião e os foguetes espaciais, que levariam o homem ao inimaginável: a Lua. Porém, apesar de tantas modificações ditas positivas, ao mesmo tempo que o avanço tecnológico e científico provenientes das necessidades específicas das guerras promoveram ferramentas que melhoraram a vida dos indivíduos, invenções como a Big Boy e a Fat Man, bombas atômicas sarcasticamente nomeadas, foram lançadas sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, dizimando milhares de civis e causando doenças aos sobreviventes devido ao nível de radioatividade resultante das reações nucleares. Nos campos de concentração nazistas, milhões de pessoas morreram por privação, fuzilamento e nas câmaras de gás, com a desculpa eugênica do arianismo. É no contexto histórico desses extremos que surge a primeira distopia do século XX, a literatura que descreve e analisa um “lugar ruim”, um “lugar defeituoso” ou quais circunstâncias políticas, sociais, culturais ou econômicas levam a tais lugares. ‘Nós’ (2017) foi publicado em 1924, nos Estados Unidos, pelo autor russo Ievguêni Zamiátin. A história é contada através do diário de D-503, um matemático que trabalha na construção da “Integral”, uma nave que levará o Estado Único para o espaço, com o fim de conhecer e dominar vidas de outros planetas. Após uma grande guerra que destruiu as formas de organização social do passado, a sociedade instaurada da qual D-503 faz parte é regida por um governo extremamente autoritário, representado pela figura do “Benfeitor”. Não há liberdade. Os indivíduos têm horas estipuladas para todas as atividades, como para o lazer, alimentação e trabalho. As casas são todas transparentes, pois, além da tecnologia de monitoramento, as próprias pessoas vigiam umas às outras – similarmente ao que aconteceria nos regimes autoritários dos anos que se seguiriam à publicação da obra (KERSHAW, 2010). Não há manifestações de diversidade cultural ou de pensamento. O protagonista, em diversas passagens, refere-se às nossas sociedades atuais como sendo desorganizadas, não acreditando que conseguíamos viver com tamanha liberdade, o que, para ele, é sinônimo de desordem. Conformado com o meio em que vive, D-503 defende as regras instauradas pelo Benfeitor, acreditando que a organização social vigente é a melhor forma de se viver. Porém, o matemático conhece uma mulher rebelde que faz parte de um grupo que burla as leis instauradas pelo Estado. Assim, ele se apaixona por I-330 e começa um embate existencial entre o conformismo e a outra forma de vida apresenta a ele. Muitos autores acreditam que ‘Nós’ serviu de inspiração para as outras distopias, como as de Orwell e Huxley. Orwell, em uma resenha publicada na revista Tribune, de Londres, em 1946 (2017), declara que escreverá um romance inspirado em Zamiátin, afirmando, ainda, que ‘Admirável Mundo Novo’ de Aldous Huxley, parece ter se originado de ‘Nós’. Em todas essas obras há sempre um governo autoritário que, em busca da ordem e de uma unificação da humanidade, desenvolve mecanismos de controle social extremo com o auxílio da tecnologia. Em ‘1984’, de Orwell, para que o Estado consiga controlar seus indivíduos, é desenvolvida a novilíngua com o objetivo de restringir o uso das palavras, pois, assim, restringe-se também a capacidade de pensamento e desenvolvimento de ideias, além de ser usada como mecanismo de elaboração de falsas declarações e argumentos utilizados pelo presidente como forma de garantir seu poder. Em ‘Fahreinheit 451’, os livros são proibidos e os bombeiros, que antes apagavam incêndios, agora promovem as chamas para destruir qualquer livro encontrado. Já que os governantes consideram os livros como uma ameaça, a ideia implantada na sociedade é de que os escritos trazem confusão, incerteza e melancolia, o que seria perigoso para o estilo de vida controlado, seguro e “feliz” proporcionado com a ausência dos mesmos. Assim, a tecnologia também serve como uma espécie de controle. Em todas as casas há imensos telões nos quais aparecem pessoas desconhecidas que são chamadas de “família”, criadas para ocupar o tempo dos indivíduos. São distribuídas pílulas do sono, que são ingeridas em grandes quantidades, levando as pessoas quase à morte. Isso só não acontece porque existe um aparelho que aspira a substância do organismo, o que traz a pessoa de volta à vida para que possa tomar os mesmos remédios na noite seguinte. O uso exagerado das tecnologias também é criticado em ‘Admirável Mundo Novo’, onde a biotecnologia serve para criar indivíduos já dominados, acostumados desde o óvulo às atividades às quais serão direcionados a realizar para o resto da vida. Uma forma concreta de um determinismo e conformismo pré-programado. Assim, a sociedade é dividida em classes, cujos indivíduos recebem suas características e as supostas classes às quais pertencerão já no momento de fecundação dos óvulos, numa produção em massa. Uma Revolução Industrial cujo produto é a própria vida humana. É notório, pelo desenrolar dos enredos, que há uma clara tentativa, por parte dos governantes e dos próprios indivíduos que aderem às alienações, de atingir um “progresso” social e político. Os meios de organização anteriores entraram em colapso, gerando um grande conflito que, ao terminar, devasta todo um mundo de ideias antes conhecidas, causando sentimentos de incerteza e medo generalizado. Governantes autoritários com a promessa de estabilidade e unidade social assumem o total controle da vida pública e privada dos indivíduos, convencendo-os de que essa é a melhor maneira de se viver, delegando as funções sociais a toda gente Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 401 subordinada que queira sentir-se útil ao Estado e à construção da nova e mais evoluída civilização. Essas mesmas circunstâncias também podem ser percebidas no contexto que ajudou a promover o governo nazista na Alemanha devastada do pós-guerra (RICHARD, 1988). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 402 O conceito de ‘progresso’ nasce às luzes do Iluminismo, no século XVIII. Segundo autores como Locke, Montesquieu e Hume, a sociedade poderia, através da razão, perceber os progressos alcançados na sociedade. Além da percepção racional, acreditavam que a razão humana aplicada às políticas sociais proporcionaria os mecanismos necessários para que a sociedade desenvolvesse seus próprios caminhos em vista de um progresso historicamente orientado (FONTANA, 2004). Já no século XIX, o conceito de progresso enraizou-se de diversas formas, com diversas teorias em diferentes áreas da experiência humana. A ideia de progresso evolutivo aparece na Biologia em 1859, com a obra de Chales Darwin, ‘A origem das espécies’ (2014). Em sua teoria da evolução, Darwin percebe mecanismos de modificações nos seres que serviram de base para o conceito de ‘seleção natural’, no qual os seres vivos, durante muito tempo, sofrem mutações sucintas que vão se acumulando e sendo selecionadas pelas condições do ambiente. Logo, os seres que sobrevivem são aqueles que melhor se adaptaram ao meio e que apresentaram as adaptações mais úteis, o que garantiu a sobrevivência de uns indivíduos (progresso) em detrimento de outros (extinção). As espécies sobreviventes podem, então, acumular ainda mais adaptações, num processo contínuo. Tal processo deu origem à ideia de que o homem, não que tenha evoluído do macaco, mas sim que possui um ancestral comum que precedeu todos os primatas. Na religião, a doutrina espírita de Allan Kardec também trouxe a ideia de progresso. No Livro dos Espíritos, publicado em 1857, Kardec desenvolve as crenças do espiritismo através da caridade e reencarnação, pois só retornando à vida terrena após a morte e reparando seus erros que os espíritos podem evoluir, até que sejam seres plenos e perfeitos. Ainda no século XIX, um filósofo francês, considerado o pai da sociologia, também desenvolveu suas ideias de progresso no meio social. Auguste Comte acreditava que os fenômenos sociais deveriam seguir leis objetivas, assim como seguem os fenômenos naturais e, com este intuito, desenvolveu a ‘lei dos três estados’ (BARROS, 2011). Para Comte, todas as sociedades evoluem e, necessariamente, passam por três estados para que seja possível atingir o progresso. O primeiro estado é o teológico, no qual os fenômenos observados são relacionados à ação de um ser sobrenatural, à imagem e semelhança do homem, o que leva os indivíduos a pensar como sendo criaturas de um criador, causando questionamentos que indagam diretamente a causa primeira de todas as coisas, como na definição grega pré-socrática de filosofia (BRAGA; LOPES, 2015). O segundo estado é o metafísico, no qual mantém-se uma presença sobre-humana regente, porém que já não é personificada como no estado teológico. Por fim, o terceiro e último estado é o positivo, no qual os fenômenos são analisados partindo de observações internas e buscando as relações entre um e outro, com o fim de encontrar as leis gerais da causalidade que regem tais fenômenos em determinada sociedade. Portanto, a maneira como o indivíduo compreende a realidade está diretamente ligada à organização estrutural de determinada sociedade (COMTE, 1983). Com base nessas leis, Comte defendia um meio social positivo. Seria necessário observar, formular as leis existentes entre as relações estabelecidas entre os fenômenos, o que possibilitaria a previsão e provisão dos fenômenos futuros. Assim, o homem dominaria a natureza para extrair os recursos naturais que, agora, seriam utilizados nas indústrias. Mas para que uma sociedade atinja, de fato, o progresso proporcionado pelo positivismo, seria necessário ordem. Portanto, sem ordem não haveria progresso. Para Comte, as características sociais provenientes da Revolução Industrial não seriam um problema para a organização social. Enquanto Marx via diversos problemas causados pela segregação da classe operária em periferias, em oposição aos detentores dos meios de produção que acumulam cada vez mais capital, Comte considerava esta divisão necessária para ordenar a sociedade, pois esta progrediria apenas se cada indivíduo pertencesse a um determinado lugar. Assim, o conservadorismo seria o meio político utilizado para manter a ordem social pré-estabelecida com o fim de atingir sempre um progresso sem correr os riscos revolucionários (ARON, 1999). Assim como no modelo social imaginado por Comte, a sociedade descrita nas literaturas distópicas também seguem a lógica positivista e conservadora de uma ordem social estática que possa garantir a previsibilidade do futuro em um progresso: manter cada indivíduo exatamente no lugar ao qual pertence dentro de determinado cenário social e político, ainda que marcado por desigualdades. O erro metodológico cometido na formulação dessas leis é o de unificar todas as sociedades, desconsiderando o que há de fundamental e de diferente em cada uma delas: a pluralidade cultural (Idem). Assim, o autor parte de princípios que igualam e reitificam o ser humano excluindo as significações culturais. A metáfora utilizada nas distopias para descaracterizar um ser humano individual e transformá-lo apenas em um ser coletivo, não-autônomo, é a falta de liberdade de expressão e formulação de ideias. Os meios de comunicação são confeccionados de modo que essa liberdade seja cerceada ao máximo, levando a alienação proveniente da política enquanto ‘indústria cultural’ a níveis extremos, bem como realizando modificações genéticas e físicas para que os indivíduos se tornem cada vez mais conformados e uniformizados. Os fatos históricos pertencentes ao cenário de criação das obras distópicas do século XX podem ser analisados de forma muito clara nas diversas metáforas distribuídas entre os enredos. Como tratam de sociedades complexas, a sociologia aparece como uma ferramenta indispensável na análise das narrativas, bem como as narrativas passam a complementar o conhecimento sociologicamente orientado. O mundo contemporâneo presencia a todo momento muitos acontecimentos que carregam questionamentos referentes à educação em seus mais variados campos. A onda de negação de eventos históricos cujos efeitos foram devastadores, a desvalorização e pouca procura pela leitura entre os brasileiros, o desleixo Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 403 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 404 com a memória nacional e internacional que parece não valer como memória, como história, como passado e como parte do presente. Desigualdades sociais e econômicas exorbitantes em diversos lugares. Portanto, torna-se necessária a visão mais ampla e unida da educação, assim como do conhecimento. A interdisciplinaridade entre História, Literatura e Sociologia é apenas um dos caminhos possíveis de ensinar criticamente ao aluno que os acontecimentos da arte, da política, da cultura e da sociedade como um todo não são acontecimentos distantes, que não o englobam. São acontecimentos que não atuam de forma independente, mas que existe uma ligação entre todos eles e, também, uma causa que, através desses e outros campos do saber, podem ser estudadas e modificadas de forma que valorize cada cultura, modificando os lugares antes prédeterminados para um alcance de igualdade, ainda que dentro da diversidade cultural e individual. O ensino interdisciplinar aborda os conteúdos de maneira que mostra ao aluno que a História, a Literatura e a Sociologia são mais que meros textos enfadonhos escritos há muito tempo e que o mundo material e a temporalidade estão presentes em todos os âmbitos da vida e que fazem parte, não necessariamente de um progresso, mas de um processo cujos fenômenos levaram às atuais circunstâncias. Portanto, é indispensável o reconhecimento de que com essas ciências é possível identificar falhas, bem como acertos e melhorias e, assim, formar indivíduos pensantes capazes de criticar e denunciar o totalitarismo através do entendimento não só de narrativas e datas, mas das relações de poder existentes entre o meio político, social e econômico, formando, assim, uma consciência histórica. Referências ARON, Raymon. As Etapas do Pensamento Sociológico. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ATWOOD, Margaret. O conto da aia. 2ed. São Paulo: Rocco, 2017. BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: os primeiros paradigmas: positivismo e historicismo. Petrópolis: Vozes, 2011. BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Globo, 2003. BRAGA, Antônio Djalma; LOPES, Luís Fernando. Introdução à Filosofia Antiga. Curitiba: InterSaberes, 2015. COMTE, A. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1983. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5ed. São Paulo: Editora Nacional, 1976. DARWIN, Charles. A origem das espécies. São Paulo: Martin Claret, 2014. FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru: EDUSC, 2004. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. 2ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22ed. São Paulo: Globo, 2014. KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário. Rio de Janeiro: Zahar, 1969. O Globo. Narrativas distópicas viram best seller após eleição de Trump. https://oglobo.globo.com/cultura/livros/narrativas-distopicas-viram-bestseller-apos-eleicao-de-trump-20945259 Acesso em 15/02/2019. ORWELL, George. Resenha de Nós. In: ZAMIÁTIN, Ievguêni. Nós. São Paulo: Aleph, 2017, pp.317-323. ORWELL, George. 1984. 24ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000. RICHARD, Lionel. A República de Weimar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ZAMIÁTIN, Ievguêni. Nós. São Paulo: Aleph, 2017. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 405 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO AMOR: APONTAMENTOS SOBRE O CASAMENTO E SUA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA Tatiane Kaspari Márcia Rohr Welter Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 406 A estreita relação estabelecida entre amor e casamento em cerimônias de reconhecimento de vínculos conjugais é fruto de processos culturais que têm solidificado e, concomitantemente, transformado o matrimônio como um dos rituais mais importantes no convívio social. A associação do casamento ao sentimento amoroso consta, no texto bíblico na Carta aos Efésios (Ef 5, 28), como recomendação aos maridos, que “devem amar suas esposas como a seus próprios corpos” (CARTA..., 2014, p. 1431). A retomada do princípio do matrimônio como a união de “duas carnes em uma só”, contudo, guarda um sentido contratual, em que estão intrínsecas relações de gênero, como também é apontado na Carta aos Efésios (Ef 5, 22-23): “As mulheres sejam submissas a seus maridos como ao Senhor, pois o homem é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, ele que é o salvador do Corpo” (CARTA…, 2014, p. 1431). A renúncia da individualidade requerida pelo casamento é tematizada, com boa dose de sarcasmo, no ‘Dicionário do diabo’, de Ambrose Bierce. Nele, a definição de “amor” faz referência a uma “demência temporária, que se cura com o casamento” (BIERCE, 2006, p. 9). Entre o verbete “diabólico” e os versículos bíblicos, desenha-se a polêmica cultural acerca do casamento, que remonta à sua constituição, no Ocidente, enquanto instituição, ou seja, “uma construção social que engloba o conjunto dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos e nas relações sociais” (ARAÚJO, 2002, online). Ao traçar um histórico a respeito do matrimônio, Maria de Fátima Araujo (2002, on-line) ressalta dois fatores em sua origem: “a necessidade de reciprocidade imposta pela divisão sexual do trabalho” e as relações econômicas e políticas que subjaziam ao enlace especialmente de integrantes da elite. Sobretudo essa última característica levou à dissociação entre amor e casamento já na Idade Média. Segundo JacquesLe Goff (1995), antes da emergência do conceito de “amor cortês”, para cuja consolidação contribuiu a literatura do Trovadorismo, o primor do sentimento entre dois seres humanos – chamado, na Antiguidade, de “amor nobre” – parecia limitar-se à amizade, que pressupunha lealdade e honra, entre dois homens. Assim, somente na Idade Média, o amor assume uma configuração mais próxima da moderna, referindo-se especialmente ao relacionamento entre homem e mulher e oferecendo-se como contraponto ao casamento. Nesse contexto, a condessa Maria de Champagne constata a inviabilidade de o amor cortês – espiritual e inefável – desenvolver-se dentro do matrimônio: “o amor não se pode desenvolver entre dois casados; porque os amantes dão-se reciprocamente tudo, de graça, sem o menor constrangimento; ao passo que os casados se obrigam a mútua obediência, por dever, e não se podem recusar cousa nenhuma” (LAPA, 1966, p. 13). Como consequência desse pressuposto, as cantigas medievais – principalmente as produzidas na região francesa de Provença – associavam o amor cortês a situações de adultério, em que a “mesura”, ou seja, o segredo em relação à identidade da amada, derivava tanto do jogo de fingimento poético quanto da necessidade de não expor publicamente senhoras casadas (LAPA, 1966). A tendência antimatrimonial das cantigas trovadorescas sustentava-se, pois, de acordo com Lapa (1966), na concepção de que o casamento representava um negócio entre um homem e uma mulher – implicando obrigações para ambas as partes –, o qual, por seu caráter terreno, era considerado profano. Segundo Lapa (1966), o amor ideal, para o homem medievo, era “uma fonte inesgotável de educação moral e a condição indispensável para se atingir o sumo bem e a suma beleza” (LAPA, 1996, p. 21), o que, de fato, não coincidia com o sentimento existente entre marido e esposa. Faltava a este a beleza e a liberdade, essenciais entre amantes. A disseminação da ideologia burguesa de valorização da individualidade e do conceito de amor romântico provocou alterações significativas no casamento, mas que pouco incidiram sobre seu caráter regulador - e, por vezes, repressor - da sensibilidade e da sexualidade. Consequentemente, no campo da literatura brasileira, por exemplo, a crítica às relações pecuniárias e à aridez das relações íntimas no casamento podem ser identificadas no Romantismo, como em ‘Senhora’, de José de Alencar; no Realismo, como em ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, de Machado de Assis; no Modernismo, como em ‘Amar, verbo intransitivo’, de Mario de Andrade, e ‘Olhai os lírios do campo’, de Erico Verissimo; e na Literatura Contemporânea, como em ‘Leite derramado’, de Chico Buarque. No universo representado, a ruptura da submissão feminina, mesmo em suas formas mais discretas ou mesmo apenas intuídas pelo marido, resulta no assassinato físico e/ou social da esposa, como demonstram o exílio de Capitu, em ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis; o suicídio de Madalena, em ‘São Bernardo’, de Graciliano Ramos; e a tortura da mulher no conto ‘Humano’, de Altair Martins. Não surpreende, portanto, que uma das causas feministas do século XX, ao lado do direito ao voto e à igualdade salarial, estivesse ligada à possibilidade de dissolver casamentos opressores. Essa reivindicação atinge a esfera legal, no Brasil, somente na década de 1970, quando, apesar da forte resistência da Igreja Católica Romana, o então presidente Ernesto Geisel aprovou a “A separação judicial, a dissolução do casamento, ou a cessação de seus efeitos civis” (BRASIL, 1977, s/p). Em termos práticos, a separação judicial significa Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 407 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 408 “a dissolução legal da sociedade conjugal, ou seja, a separação legal do marido e da mulher, desobrigando as partes de certos compromissos, como o dever de vida em comum ou coabitação, mas não permitindo direito de novo casamento civil, religioso e/ou outras cláusulas e acordo com a legislação de cada país” (IBGE, 1986, p. XVI). O divórcio, por sua vez, é descrito, em 1986, como “[...] a dissolução do casamento, ou seja, a separação do marido e da mulher conferindo às partes o direito de novo casamento civil, religioso e/ou outras cláusulas de acordo com a legislação de cada país” (IBGE, 1986, p. XVII). O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE - passou a divulgar esses dados, juntamente com as informações matrimoniais, a partir de 1984. No primeiro registro, foram indicadas 63.698 separações e 31.635 divórcios (IBGE, 1986). Nesse contexto de relativa dessacralização do casamento e de reafirmação do amor - fomentada por Woodstock e pelo movimento hippie -, a Música Popular Brasileira - MPB - passa a se inserir no circuito de reflexão acerca das relações conjugais. Especialmente na produção de Chico Buarque abundam esposas incompreendidas ou violentadas, que apresentam o matrimônio como o algoz da felicidade feminina. Um exemplo significativo das discussões referentes às relações intersubjetivas no casamento é “A história de Lily Braun” (ANEXO 1), composição de Chico Buarque, lançada em 1982.O título prenuncia a narração da trajetória da voz poética, que se identifica com uma mulher cujos propósitos se bifurcam entre a concretização de um romantismo ingênuo e o desejo de relevo social – aspiração de ser “star”. O primeiro é evidenciado, desde os versos iniciais, pelas palavras “romance” e “homem dos meus sonhos” e pela reação da voz lírica ao receber rosas e poemas: ela assume uma postura de “gema desmilinguida”, isto é, suas intenções tornam-se difusas e suas atitudes, inconsistentes. A analogia com uma gema pode, ainda, ser explorada por sua relação com a culinária. Ao mesmo tempo em que remete à cozinha, que constitui, por excelência, o lugar da mulher segundo o senso comum, prenuncia o ato sexualentrevisto na estrofe posterior – “Disse que meu corpo/ Era só dele aquela noite” (BUARQUE, 1982, on-line). Quanto a essa relação, cabe diferenciar alimento e comida: aquele “é como uma grande moldura; mas a comida é o quadro, aquilo que foi valorizado e escolhido dentre os alimentos; aquilo que deve ser visto e saboreado com os olhos e depois com a boca, o nariz, a boa companhia e, finalmente, a barriga...” (DAMATTA, 1986, p. 55). Assim, o rapaz, segundo a voz lírica, deixa de ser mais um que aparecera no dancing a partir do momento em que ele dirige à moça um olhar com forte denotação sexual – como revelado pelas ações “chupar” e “comer” atribuídas aos olhos –, interpretado por ela, entretanto, como intensa admiração. Nesse ponto, desvela-se a vontade da voz lírica de ser socialmente visada, revelada sobremaneira pelas numerosas referências ao universo artístico: “cinema”, “zoom”, “fotografia”, “cheese”, “close”, “foco de luz”, “show”, “turnê”, “star‟. A grande reprodução de palavras em língua inglesa – a maioria, no final do verso – enfatiza o glamour por que anseia a voz lírica, que parece protagonizar uma cena de cinema ao entregar-se ao amado e ao optar, no “derradeiro show”, por seguir com ele. No entanto, aquilo que significara para a voz lírica o início de uma grande trama amorosa, para o homem significava o ponto de chegada, o êxito de um intento. A parte inicial da primeira, quarta e sétima estrofes – “Como” – e da terceira e sexta estrofes – “E voltou” – permite que a produção seja decomposta em três partes, que guardam também uma unidade semântica: nas três primeiras estrofes, o rapaz escolhe o alvo da conquista e tem seu primeiro contato – pelo olhar e, após, pela fala –; na quarta, quinta e sexta estrofes, ele logra o encontro físico entre ambos e, nas duas últimas estrofes, com a posse da mulher desejada, finda-se o jogo de sedução. Dessa maneira, após o casamento – “Me beijou no altar” –, a mulher deixa de ser inatingível ou mesmo superior – “star” –, o que acaba por banir as atitudes românticas e/ou sedutoras do homem, as quais vinham expressas, sobretudo, nas estrofes iniciadas por “E voltou” – inexistente na parte final da composição. O desejo insatisfeito, tanto emocional quanto fisicamente, leva a um tom de lamento nas estrofes finais, já previsto pelo adjetivo “derradeiro”, na sexta estrofe. Ao contrário das outras ocorrências, em que engendra uma analogia, a palavra “como”, que introduz a penúltima estrofe, impetra uma indagação reveladora da incompatibilidade entre o enlace matrimonial e o amor intenso experenciado anteriormente. A inexistência do jogo de sedução pressupõe a monotonia, que se reflete na coincidência da métrica dos versos das duas últimas estrofes – predominando as redondilhas menores – e no paralelismo anafórico: [...] “Me amassou as rosas Me queimou as fotos Me beijou no altar Nunca mais romance Nunca mais cinema Nunca mais drinque no dancing Nunca mais cheese Nunca uma espelunca Uma rosa nunca Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 409 Nunca mais feliz” (BUARQUE, 1982, on-line). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 410 Embora as duas primeiras ações dos versos acima tenham por objeto as rosas e as fotos, o pronome “me” evidencia que elas recaem principalmente sobre a voz lírica, que passa a ter negados todos os símbolos do romantismo e do glamour a que aspirava. A ênfase na expressão “nunca mais” endossa a dramaticidade da enunciação poética, referindo-se à indissolubilidade da escolha que requereu a abdicação da felicidade. Estabelecendo-se uma relação entre o texto e seu contexto de origem – ela foi produzida para o balé “O grande circo místico” –, tem-se uma congruência entre a expressão do eu-lírico e a trajetória da personagem Lily na peça, uma vez que a jovem artista entedia-se após o casamento com Oto, que, com o passar do tempo, torna-se prepotente. Contudo, o nome presente no título permite também uma ponte com uma personalidade homônima, filha do general prussiano Hans von Kretschmann. Sugestivamente, Lily – casada com o professor de filosofia Georg von Gizycki, e, após a morte deste, com Heinrich Braun – era partidária das causas feministas, defendendo a abolição do casamento legal. Considerando que ela foi também escritora e romancista, pode-se pensá-la enquanto a voz que permeia o relato na composição acima, ou seja, por detrás da história contada, é possível divisar a voz da feminista, que alerta para as consequências inevitáveis do enlace matrimonial. Essa admoestação parece prenunciar, na vida real, o aumento tanto no número de separações quanto de divórcios ao longo das décadas. Em 1989, o IBGE (1991) registrou 79.142 separações e 67.198 divórcios. Na metade da década de 90, 1995, a crescente nos números permanece, com 86.118 separações e 99.887 divórcios (IBGE, 1998). Transcorridos dez anos, ainda ocorre um aumento significativo nos números, 102 503 separações e 153 839 divórcios (IBGE, 2005). No ano de 2010, a constituição brasileira passa por mais uma mudança nas leis envolvendo o casamento. A partir de 13 de julho desse ano, “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio” (BRASIL, 2010, s/p). Assim, em 2010, o número de separações registradas cai quase pela metade, 58 153, e o número de divórcios, 179 866, continua aumentado em comparação a 2005 (IBGE, 2010). Já no ano de 2013, último registro de estatísticas no qual são indicados dados relativos às separações, foram registradas apenas 492 separações (IBGE, 2013). Os divórcios, por sua vez, prosseguem avançando e registram, em 2017, último ano com os registros disponíveis, um total de 373 216 casos. Paralelamente, os registros de uniões civis, entre o final da década de 80 e os anos 2000, apresentaram uma diminuição: em 1989, foram 827.528 casamentos (IBGE, 1991) e em 2000 foram 732 721 enlaces (IBGE, 2000). Os índices parecem materializar o descrédito ao casamento, prenunciado pela história de Lily Braun. Entretanto, esse movimento passou muito a largo da dissolução do matrimônio, enquanto instituição social e religiosa. A exemplo do que ocorre com a voz lírica da composição de Chico Buarque, a celebração do amor e das relações interpessoais (re)encontra seu espaço no casamento, como demonstra o crescimento significativo do número de enlaces a partir de 2000. Segundo o IBGE, em 2005, foram 835 846 uniões (IBGE, 2005), em 2010, foram 977 620 casamentos, e, em 2017, chegouse à marca de 1 070 376 uniões civis no Brasil. Esses dados revelam que, de certo modo, após alguns anos de desencanto com o “felizes para sempre” e “unidos até que a morte os separe”, os brasileiros voltaram a apostar no matrimônio como instituição reguladora de suas relações interpessoais. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 411 Diante de tantos avisos, literários ou não, sobre os descaminhos do casamento - e esse trabalho nem tocou na gravidade dos índices de violência doméstica no Brasil -, como justificar sua resistência ao tempo? Parte da resposta, talvez, esteja na necessidade humana de desenvolver sua identidade por meio da participação de ritos sociais, que possam provocar uma noção de pertencimento cultural. Outra resposta parcial pode estar na infiltração, no imaginário coletivo, de representações ficcionais, como contos de fada e novelas, que harmonizam o casamento e o amor incondicional. Uma última tentativa de resposta, igualmente parcial, apela para a sensibilidade humana, que reage à aridez da realidade com sonhos de véus, grinaldas, flores e cânticos de amor. Referências ARAÚJO, Maria de Fátima. Amor, casamento e sexualidade: velhas e novas configurações. 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Ementa Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010. Dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos. Brasília: DF: Mesa da Câmara dos Deputados; Mesa da Câmara do Senado, 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc66.h tm>.Acesso em: 04 mar.2019. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 412 DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986. IBGE. Estatísticas do Registro Civil- 1984. v. 11. Rio de Janeiro: Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1986. Disponível em: < https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_1984_v11.pdf >. Acesso em: 04 mar.2019. ____. Estatísticas do Registro Civil- 1989. v. 16. 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Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2010. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2010_v37.p df>. Acesso em 04 mar.2019. ____. Estatísticas do Registro Civil- 2013. v. 40. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2013. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2013_v40.p df>. Acesso em: 04 mar.2019. ____. Estatísticas do Registro Civil- 2017. v. 44. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2017. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2017_v44_n otas_tecnicas.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2019. LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de literatura portuguesa: Época medieval. 6. ed. Coimbra: Coimbra, 1966. LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. 2. ed. Lisboa: Estampa, 1995. 2v. ANEXO 1 – Canção “A história de Lily Braun” A História de Lily Braun Edu Lobo - Chico Buarque/1982 Como num romance O homem dos meus sonhos Me apareceu no dancing Era mais um Só que num relance Os seus olhos me chuparam Feito um zoom Ele me comia Com aqueles olhos De comer fotografia Eu disse cheese E de close em close Fui perdendo a pose E até sorri, feliz E voltou Me ofereceu um drinque Me chamou de anjo azul Minha visão Foi desde então ficando flou Como no cinema Me mandava às vezes Uma rosa e um poema Foco de luz Eu, feito uma gema Me desmilinguindo toda Ao som do blues Abusou do scotch Disse que meu corpo Era só dele aquela noite Eu disse please Xale no decote Disparei com as faces Rubras e febris E voltou No derradeiro show Com dez poemas e um buquê Eu disse adeus Já vou com os meus Numa turnê Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 413 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 414 Como amar esposa Disse ele que agora Só me amava como esposa Não como star Me amassou as rosas Me queimou as fotos Me beijou no altar Nunca mais romance Nunca mais cinema Nunca mais drinque no dancing Nunca mais cheese Nunca uma espelunca Uma rosa nunca Nunca mais feliz FOTOGRAFIA E ENSINO DE HISTÓRIA: A ARTE DO IMIGRANTE HARUO OHARA EM LONDRINA-PR (1927-1999) Valdir Pimenta dos Santos Junior “Haruo não parou mais de registrar imagens e fazer composições a partir do cotidiano da família, sempre como fotógrafo amador. Como leitor voraz e autodidata, tornou-se líder e conselheiro da colônia, que atravessaria momentos de grande turbulência com as restrições estabelecidas aos japoneses, alemães e italianos durante a Segunda Guerra. O governo resolveu desapropriar o lote n. 1, e a família se mudou para um sobrado na cidade, onde, num quarto minúsculo, o fotógrafo construiu seu laboratório. No lugar do lote, foi construído o aeroporto de Londrina. Haruo passou a se dedicar à fotografia, associando-se, em 1951, ao Foto Cine Clube de Londrina e ao Foto Cine Clube Bandeirante, de São Paulo. Passou a percorrer salões de arte fotográfica em todo o Brasil, chegando a enviar trabalhos para o exterior. Ganhou, assim, prêmios e menções honrosas, como no 1º Salão Nacional de Arte Fotográfica da Biblioteca Municipal de Londrina, no qual recebeu como prêmio uma câmera Voigländer Bessa. Possuía duas dessas câmeras, bem como um par de Rolleiflex. Costumava sair pelos arredores da cidade com outros amantes da fotografia para explorar os ambientes, e assinava publicações técnicas nacionais e internacionais. Sempre fotografou o entorno, sem pressa, mas com alguma preparação, anotando todo o processo em seus diários. A família providenciava os modelos favoritos, o cotidiano fornecia o cenário ideal e a luz adequada era procurada com obstinação e meticulosidade. Sendo um fotógrafo das horas vagas, Haruo tinha o tempo a seu favor. No final dos anos 1960, a esposa, Kô, foi acometida por uma doença rara, diagnosticada como Miastenia gravis, que compromete os músculos, mas preserva os movimentos. Haruo a fotografou, conseguindo tirar dela uma placidez sorridente e inusitada. A arte do fotógrafo amador passou a ser reconhecida nos jornais locais. Com a morte de Kô Ohara, em 1973, Haruo entrou num pesado luto, do qual se recuperou cerca de um ano depois, com um álbum de fotografias dedicado a cada um dos filhos, contando a história da família e as particularidades do presenteado. Fotografando sempre em preto e branco, de acordo com a luz do sol, no final dos anos 1970 passou a usar a cor. Em 1979, a filha Kazuko morreu num acidente de automóvel, e a partir daí Haruo desativou definitivamente o antigo laboratório. Sua fotografia nunca mais seria a mesma. Por ocasião dos 80 anos da imigração japonesa no Brasil, no final dos anos 1980, os trabalhos de Ohara obtiveram grande reconhecimento, assim como os feitos pioneiros do artista. Mas, em 1992, ele parou de escrever os diários nos quais relatava todo o processo de um trabalho que se alongava por quase 50 anos. Em 1997, começou a sofrer do Mal de Alzheimer e, no ano seguinte, aconteceu a sua primeira exposição individual, Olhares, na Casa de Cultura de Londrina, sendo exibida depois, com grande repercussão, na 2ª Bienal Internacional de Fotografia de Londrina. Aos 89 anos, 70 deles vividos no Brasil, Haruo Ohara morreu em 25 de agosto de 1999. Em 2003, foi publicado o livro Lavrador de Imagens: uma biografia de Haruo Ohara, escrito por Marcos Losnak e Rogério Ivano. Cinco anos depois, a família doou todo o seu acervo ao Instituto Moreira Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 415 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Salles, onde é tratado e preservado na Reserva Técnica Fotográfica do Rio de Janeiro. No mesmo ano, o IMS iniciou uma mostra itinerante com fotos em preto e branco produzidas por Ohara entre 1940 e 1970. O acervo é composto por cerca de oito mil negativos em preto e branco, dez mil negativos coloridos, dezenas de álbuns e centenas de fotografias de época, além de equipamentos fotográficos, documentos pessoais, objetos, diários e livros. O conjunto permite um estudo aprofundando da obra e do tempo de Haruo Ohara, o imigrante e pequeno agricultor de Londrina que é considerado hoje um dos fotógrafos mais expressivos do Brasil”. (Instituto Moreira Sales. Acesso em 28/08/2018 –17:52h) Página | 416 Figura 1 A fotografia, enquanto recurso de documentação e registro da diversidade de práticas sociais é cada vez mais presente na estrutura referencial do mundo contemporâneo. Sua instrumentalização, mais ou menos sofisticada no que diz respeito a sua manipulação técnica, com intenções artísticas, recreativas ou documentais abrange setores de toda a produção humana. A necessidade de reflexão da teoria e prática pedagógicas ao pluralismo das formas de consciência do tempo atual, colocam diante de professores e pesquisadores o espectro do século XXI e suas peculiaridades, fazendo com que a categoria busque identificar novos conceitos, novas práticas e possibilidades que possam assim contribuir significativamente para o processo de ensino e aprendizagem. A Historiografia, bem como o ensino da História, busca também utilizar-se de tais recursos para ampliar o campo de visão e possibilitar à pesquisa e ao ensino referenciais que deixem de lado as transformações que se colocam diante de nós. Portanto, o trabalho aqui presente, pretende elucidar as razões e problemas que engendram as relações entre a teoria e prática do ensino de História a partir da instrumentalização dos recursos fotográficos enquanto instrumento documental e de manifestação da percepção e sensibilidade humana, transformando a imagem em algo que está para além do registro, mas que manifesta o potencial na natureza do ser diante do mundo que o cerca. A fotografia, enquanto discurso histórico-social permite transformações estruturais no processo de ensino e aprendizagem durante as aulas de História? Vejam: “Talvez uma de suas mais poderosas armas tenha sido aliar ao discurso plástico a prática da documentação fotográfica, o registro dos acontecimentos e das obras que se perderam no tempo e no local onde foram feitas. A arte descobriu que a fotografia, ao invés de ser uma concorrente, poderia se tornar uma ferramenta de grande valia em instalações, performances e/ou land art (arte de paisagem)”. (Pileggi Sá, 2003) Desta forma, a utilização frequente da fotografia, desde fins do século XIX, apresenta para a Arte uma nova possibilidade estética enquanto ferramenta de manifestação e expressão humanas. Para a historiografia, por sua vez, uma modalidade de registro e aparição de novas fontes de investigação, de tal modo que cabe a partir disso, aos historiadores, tomar a existência do registro fotográfico como pertinente à análise historiográfica, portanto passível de interpretação a partir da utilização de metodologias e teorias específicas, não encarando a imagem como detentora, portanto, de uma verdade inequívoca. Como nos coloca Edward Carr, o historiador é parte da História. O ponto da procissão em que ele se encontra determina seu ângulo de visão sobre o passado. (Carr,1961) Figura 2 Do ponto de vista da percepção e utilização da imagem no ensino de História, a fotografia assumiu, juntamente com outras modalidades e ferramentas oriundas da inserção da tecnologia no processo de aprendizagem, um papel cotidiano na ação da docência. O recurso visual está hoje presente e a recuperação dessa categoria implica principalmente em um desafio para o historiador: “Considerando-se a fotografia como uma Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 417 construção social, pretende-se identificar os usos e funções sociais que lhe foram atribuídos no universo escolar”. (Abdala,2013). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 418 De que maneira o uso das imagens contribui para o processo de ensino e aprendizagem? Há resultados significativos quando nos dispomos de fotografias com conteúdo histórico em sala de aula? A fotografia insere-se enquanto fonte histórica pertinente para o aprendizado? O professor de História está apto ao uso de tais ferramentas? Quais são as disciplinas e metodologias auxiliares ao desenvolvimento do trabalho? São esses alguns dos questionamentos pertinentes a investigação proposta pelo projeto em questão no que tange ao entrelaçamento ente fotografia e educação. Por outro lado, a fotografia enquanto objeto e discurso específico nos remete a reflexão do objeto em si e das relações para com este estabelecidas: “Hannah Arendt assinala que, para Benjamin, o colecionador tem, em sua "atitude", algo do revolucionário: "Colecionar é a redenção das coisas que complementa a redenção do homem", uma vez que os objetos libertam-se do jugo de sua utilidade. Ao comentar a declarada tentativa de Benjamin de "capturar o retrato da história nas mais insignificantes representações da realidade, seus fragmentos", chama a atenção para sua admiração por dois grãos de trigo que integravam a seção judaica do Museu Cluny, "no qual uma alma piedosa escreveu o Shemá Israel inteiro." Observa que, para ele, "quanto menor o objeto, mais este lhe parecia capaz de conter, da forma mais concentrada, tudo o mais." Algo do gênero deve passar-se com a fotografia e sua pequena história. Toda a história, afinal, não seria necessariamente maior que um ou dois grãos de trigo”. (LISSOVSKY,1995). Desta forma, a filósofa chama a atenção para a tentativa sensível de Walter Benjamin em buscar capturar um fragmento histórico nessas então chamadas insignificantes representações da realidade, como o frasco pequeno do perfume inebriante que concentra o sopro da experiência humana. “O fotógrafo lê as imagens de sua autoria ao produzir, pelo registro fotográfico, representações da realidade. Desse modo, antes de ler imagens fotográficas, ele lê a realidade. Por outro lado, para ler a realidade ele precisa ter sensibilizado seu olhar, lendo outros registros fotográficos. Além disso, essa observação indica que o fotógrafo não produz registros simplesmente de modo mecanizado, mas estuda a realidade e suas referências objetivas e subjetivas antes de efetuá-los. Consciente ou não, esse processo está no cerne da fotografia. Muitos autores, tais como Boris Kossoy, Miriam Moreira Leite, Annateresa Fabris e Armando Martins de Barros, já mencionaram a ideia de uma “alfabetização do olhar”. Ao propor uma análise das fotografias escolares, Rosa Fátima de Souza também trata dessa questão e recorre a esses autores. (LISSOVSKY,1995). A pesquisadora Raquel Duarte Abdala, nos sugere dessa maneira, o referencial para o que chamam alguns autores de “alfabetização do olhar”, ou ainda a possibilidade de análise de imagens fotográficas a partir da construção de padrões de representação social. A fotografia assume, desta maneira, um caráter de suporte de memória e, consequentemente, dotado de um tipo específico de narrativa e linguagem, capazes de serem lidas e compreendidas. Em sua Pequena História da Fotografia, Walter Benjamin questiona o leitor: “Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia? ”. Portanto, a leitura e questionamento interpretativo da fotografia se faz na observação e desconstrução de tais imagens. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 419 Figura 3 Amparado por tal suporte de pesquisa, a análise da obra de Haruo Ohara permite, a partir de suas possibilidades de aplicação pedagógica, relacionar seu acervo fotográfico a um ambiente de compreensão do fenômeno histórico e das práticas sociais enquanto produtor de um discurso específico e da memória coletiva. Segundo Ricardo Oria, “a preocupação com a preservação da memória histórica é um fenômeno que vem caracterizando um número considerável de instituições públicas ou privadas”. (ORIA,2004). Do ponto de vista da sala de aula, portanto, temos diante de nós uma importante ferramenta de trabalho para a construção da memória. Jacques Le Goff nos atenta para a memória coletiva e sua forma científica, a História, nas quais se aplicam dois tipos específicos de materiais: os monumentos e os documentos. A fotografia, nesse sentido, possui um caráter documental, e se constitui, portanto, como um monumento. (LE GOFF,2003). Já Michel Foucault, em sua análise arqueológica dos saberes, considera como arquivos o conjunto das práticas discursivas, considerando a verdade como uma produção histórica: “O grande problema que se vai colocar não é Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 420 mais a tradição e o rastro, mas o recorte e o limite; não mais o fundamento que se perpetua, e sim as transformações que valem como fundação e renovação dos fundamentos”. (EIZIRIK,2002.) Assim, a investigação arqueológica propõe a configuração histórica da verdade para que sejam estabelecidos os limites de seus modos de produção em saberes atrelados ao pensamento de uma determinada época. Referências ABDALA, Rachel Duarte. Fotografias escolares: práticas do olhar e representações sociais nos álbuns fotográficos da Escola Caetano de Campos (1895-1966), tese de doutorado, USP, 2013. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985. BITTENCOURT, Circe (org.) O saber histórico na sala de aula / 9º ed. São Paulo: Contexto, 2004. CARR, Edward. Que é História? Comunicação feita na Universidade de Cambridge, 1961. EIZIRIK, Marisa Faermann. Michel Foucault: Um pensador do presente. Unijuí, 2002. FOUCAULT, Michel. Universitária, 2000. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense LE GOFF. Jacques. História e Memória. Unicamp. Campinas:2003. LISSOVSKY, Mauricio. A fotografia e a pequena História de Walter Benjamin. UFRJ, Rio de Janeiro: 1995. OHARA, Haruo. Fotografias. Instituto Moreira Salles, 2008. SÁ, Rubens Pileggi. Alfabeto Visual, 2003. MUSEUS ESCOLARES: ESPAÇOS DE INTERAÇÃO COM A COMUNIDADE E PROMOÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO EDUCATIVO ESCOLAR Vânia Maria Siqueira Alves Museus escolares A experiência dos museus de educação – museus pedagógicos e museus escolares - remonta ao século XIX, às grandes exposições destinadas, em sua maioria, a mostrar o progresso técnico vivenciado pelas potências industriais e a concepção pedagógica pestaloziana cujos princípios centravam-se na experimentação. No final do século XIX e início do século XX, esses museus ocuparam importante espaço, pelo menos teoricamente, no campo educacional. Perdendo significado com o declínio da escola normal, os museus de educação reaparecem e ou revitalizam no final do século XX num movimento de tendência mundial - o desejo de memória - sob várias denominações – Museus da escola, Museu Pedagógico, Museus de História da Educação, Museus escolares - (LINARES, s/d). Os museus escolares são uma experiência singular e muito interessante por apresentar diferentes soluções na experiência atual da nova museologia como forma de adaptação do museu e da museologia às necessidades do desenvolvimento humano (VARINE, 2012). No Brasil, a musealização do patrimônio histórico-educativo ainda é um movimento tímido, pouco discutido e teorizado. As pesquisas e discussões teóricas atêm-se aos museus enquadrados nas categorias de história da educação e no geral vinculados às universidades. São raros os estudos e pesquisas cujo objeto é museus surgidos no âmbito das escolas de educação básica. Os museus de educação escolar no Brasil não estão restritos aos museus escolares, havendo algumas ocorrências de museus denominados “pedagógicos”, e/ou da história da educação e os museus virtuais de educação. Mapear e falar sobre museus escolares hoje no Brasil não foi uma tarefa simples, uma vez que existem formas variadas de concepção, divulgação/apresentação e função dessa instituição pelas escolas. Também a maior parte dessas instituições não aparece ou não foi cadastrada em nenhum órgão. O quantitativo desse formato de museu é bem pequeno se considerado o universo total de museus brasileiros, representando aproximadamente 3% e bastante desigual entre as regiões e unidades das federação. As regiões sul e sudeste concentram o maior número de museus escolares com destaque para os Estados do Rio Grande do Sul e São Paulo. O nordeste é a terceira região em quantitativo de museus e a maior concentração ocorre no Estado do Ceará. No que se refere a presença de museus escolares nas regiões Norte e Centro-Oeste, constatamos que possuem o menor número de instituições museológicas. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 421 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 422 Em um universo complexo de instituições, em maioria não tem sido consideradas no campo do museu e da museologia. São museus surgidos no âmbito das próprias instituições, fruto da ação de comunidades escolares com finalidades didáticas e ou de preservação da memória das respectivas escolas. Parte significativa destas instituições museológicas escolares foi criada em datas comemorativas das escolas, por iniciativa de algumas lideranças internas e contou com doações da comunidade: ex-professores, ex-diretores, ex-funcionários e ex-alunos, assim como dos profissionais e alunos atuantes à época da criação/organização. Concordando com Varine (2012), são instituições com processos museológicos e compõe o conjunto de alternativas ao museu tradicional. De acordo com classificação adotada pelo ICOM, os museus que funcionam em instituições escolares ou vinculados a essas se enquadram na categoria museus de Ciências Sociais e Serviços. Em razão de suas coleções, muitos são denominados e enquadrados como Museus de História Natural em Geral (coleções de botânica, zoologia, geologia, paleontologia, mineralogia, etc.); Museus Históricos (coleções de objetos e recordações de uma época determinada, comemorativos, etc.) e Museus de Etnografia e Antropologia. Os limites da classificação são bastante tênues. Ao pensar a criação de museus escolares é preciso ainda identificar a instrumentalização do museu e qual o seu papel, o patrimônio utilizado, o público alvo, atores, parceiros dos museus entre outras questões. Para Vinão (2011), a historiografia educativa não tem estado e nem está isenta do furor comemorativo que caracteriza boa parte da produção histórica. O furor comemorativo mencionado pelo autor estende-se também a outras tipologias de museus e ao patrimônio. No entanto, esse furor não pode ser pensado isoladamente, ele faz parte do momento atual onde há uma grande preocupação com a questão da memória. Nesse novo movimento dos museus escolares podem-se constatar dois fenômenos: 1) os novos museus criados com funções comemorativas; 2) museus criados com funções memorialísticas, visando à preservação da memória e história da instituição e ou outras temáticas; 3) museus de história natural e tecnologia, sendo os primeiros criados em contextos anteriores retomando sua visibilidade. Entre os museus identificados, menos da metade foram criados com finalidades didáticas, são museus de história natural se situam num recorte temporal – final do século XIX aos anos 1960, aproximadamente e museus de tecnologia, característicos do final do século XX e início do XXI. Voltados para finalidades didáticas, esses museus são produtos históricos e não podem ser pensados desvinculados do desejo de memória. Os museus comemorativos e de conservação da memória escolar representam um percentual total bastante expressivo, especialmente os criados partir dos anos 1970 objetivando a preservação do patrimônio histórico escolar. Caracterizar os museus escolares é preciso levar em conta também a sua natureza, ou seja, mais especificamente, quem são seus mantenedores ou seus vínculos funcionais. No desenvolvimento do campo museal brasileiro prevalece o investimento púbico, sendo a categoria municipal a que apresenta maior índice (41,1%). As categorias de museus privados no Brasil – que podem pertencer aos grupos associação, empresa, fundação ou sociedade – apresentam percentuais menores em relação às categorias públicas (22%) (INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS, 2011, P. 63, vol, 1). Com novas funções, os museus escolares incluem-se predominantemente no movimento das instituições de ensino particulares, sobretudo as confessionais, na preservação de sua memória, prevalecendo o investimento privado. Quanto à rede de ensino público, esse tipo de instituição tem sido criada/e ou reativadas em sua maioria em colégios centenários que em determinados períodos foram considerados centros de excelência do ensino. A natureza administrativa dos museus escolares e suas respectivas instituições de ensino são reveladoras de um fazer social que requer condições especiais para fazer lembrar ou esquecer. Para o sistema de classificação de museus, o ICOM utiliza atualmente a natureza das coleções. Para elaboração de categorias dos museus escolares, utilizou-se como critério a natureza das coleções: a) coleções sobre a memória da escola; b) Coleções de ciências; c) outros temas (etnografia, história local e geral, etc.); d) coleções sobre memória da escola, coleções de ciências e outros temas; e) memória da escola e ciências; f) memória da escola e outros temas; g) Ciências e outros temas. Pode-se verificar na investigação a prevalência de coleções sobre memória da escola, cujos conjuntos são compostas por coleções de objetos e recordações da história da instituição, evento, cidade. Sobretudo nas instituições confessionais (museus maristas, salesianos, metodistas, evangélicos e outros) e escolas centenárias, além da história da instituição, recordam-se também grupos de indivíduos, categorias profissionais e alguns personagens. Coleções de Ciências - zoologia, botânica, paleontologia, antropologia, geologia e mineralogia - representam um percentual bastante significativo entre os museus identificados. Alguns contam com coleções oriundas dos museus escolares do final do século XIX e início do XX. As coleções etnográficas em sua maioria dividem espaço com os museus de ciências e históricos. Aparecem ainda coleções referentes ao patrimônio imaterial e áreas ambientais ao ar livre tanto para os museus históricos como para os de ciências. No que se refere à localização e espaço físico ocupado pelo museu escolar pode-se identificar a predominância de instituição alojada no espaço físico da escola. Outro aspecto interessante são alguns casos de escolas que abrigam museus ou coleções em razão de falta de outros espaços para abrigá-los, embora a criação não tenha nascido na escola, esta a incorpora ao seu dia a dia. Alguns exemplos identificados nessa pesquisa merecem atenção: o Museu “Professor José Luiz Pasin” - Escola Chagas Pereira em Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 423 Aparecida, São Paulo, o Museu Maria Soldado - Colégio Santo Ivo, São Paulo, SP e o Museu Histórico Municipal João Rissati em Cafeara, Paraná. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 424 Rompendo com a configuração museu tradicional, foi identificado dois museus: o Ecomuseu da Amazônia em Belém, Pará e O Museu Cultural Escolar 2 de Maio em Fortaleza, CE. O primeiro, embora não tenha sido criado com função de museu escolar pode ser considerado também como tal, pois integra as unidades pedagógicas da “Escola Bosque”. Já o segundo que se denomina como museu, não tem coleções materiais e imateriais em si, no entanto, desenvolve ações voltadas para o patrimônio, memória e atividades culturais com os alunos da escola e tem como meta, a organização de coleções materiais sobre a história da escola. Quanto aos museus classificados como escolares, em sua maioria contam com páginas eletrônicas, redes sociais, blogs e /ou outros meios virtuais para a divulgação e difusão de suas atividades internas e abertas ao público e à visitação. Os museus escolares no Brasil podem ser pensados como espaços onde a memória favorece a ação e criação ao combinar-se com o esquecimento da memória da escola básica e profissional no Brasil. Concordando com Varine (2012, p. 196), os museus escolares são frutos “de um processo realmente museológico (conceito inicial, programação, adaptação de locais, levantamento e coleta de objetos, análise e estudo dos objetos, inventário, conservação, apresentação, animação) ligado a atividade escolar. Museus escolares: espaços de interação com a comunidade e promoção do patrimônio histórico educativo escolar “Os museus têm o importante dever de promover o seu papel educativo e atrair maiores audiências da comunidade, localidade ou grupo que representa”. Interagir com a comunidade e promover o seu patrimônio fazem parte do papel educativo dos museus (LEWIS, 2004, p.1). Em pesquisa realizada pelo IBRAM, a preservação do patrimônio museológico ocupa lugar central nas atividades a ser desenvolvida pelos museus para a garantia do direto à memória. Seguindo-se a essa ação encontram-se as atividades educativas e as culturais (SILVA [et al.], 2014, p. 27). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 425 Gráfico 1: Direito à memória Fonte: SILVA, Frederico Barbosa da Silva ... [et al.] Encontros com o futuro: prospecções do campo museal brasileiro no inicio do seculo XXI /– Brasilia, DF: Ibram, 2014. 142p. (Colecao Museu, economia e sustentabilidade, 1), P. 40. Os museus contemporâneos têm enfrentado múltiplos desafios, entre os quais questões relacionadas às políticas de inclusão social e ampliação das possibilidades de ação cultural dos museus para além das atividades consagradas de acervo e exposições. Além das técnicas de conservação e exposição, a missão educativa dos museus é um dos fatores mais analisados e ressaltados nos últimos anos. Fixadas pelo ICOM em sua Conferência Geral de 1966, as diretrizes sobre a educação e a ação cultural dos museus ganharam importância se fizeram presentes cada vez em reuniões, seminários e publicações especializadas pós Segunda Guerra Mundial. A Mesa-Redonda de Santiago- do Chile em 1972 reforçou esse debate. Todos os esforços na recolha, restauro e exposição de objetos tem como objetivo “tornar público o conhecimento e acervo do museu, a pessoas de todas as idades e estatuto social e deixá-los participar no conhecimento e cultura”. Toda ação museológica deve objetivar “servir o público e a sua educação” (BRÜNINGHAUS-KNUBEL, 2004, p. 129). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 426 Métodos e meios educativos são utilizados para transmitir o significado do objeto do museu e aumentar a compreensão do visitante, visando um receptor passivo ou incentivando o visitante a envolver-se ativamente e a examinar as colecções, exposições ou o objeto cultural individual a ser estudado (BRÜNINGHAUS-KNUBEL, 2004). Os preconcietos sobre o publico, ou o pensamento de que este é uma audiência passiva são apontados pelo pesquisador britânico Mike Alt como alguns problemas na relação com a exposição/museu (SCHOUTEN, 1983). Embora nem sempre tenha ocorrido de forma ativa, à função educativa sempre foi central para os museus escolares. O protagonismo do público – constituição dos museus, laboratórios de aprendizagem – esteve, ou pelo menos deveria estar presente nessa tipologia de museu. Destinados inicialmente ao seu público escolar, tendo como de estudo principal a ação educativa no sentido lato sensu muitos desses museus estenderam ou estão estendendo seu raio de atuação à comunidade como se pode verificar no quadro a seguir. Além de cumprir a função do reconhecimento, o museu escolar é uma oportunidade de educação patrimonial e museal para a comunidade no qual está localizado. O público interno, ou seja, da própria instituição de ensino é o usuário predominante dos museus escolares, e poucos são os museus que estão atuando de forma “fechada” e sem nenhum tipo acesso do público local ou externo. Ao longo da pesquisa, pode-se perceber a preocupação com o atendimento ao público externo. Além de um número significativo atender esse tipo de público, há museus com horários e dias específicos para tal atendimento, bem como outros com atendimento agendado. O museu como espaço de lazer e educação não-formal não deve coagir a aprendizagem do visitante. Nesse sentido, tanto os museus escolares, quanto os de ciências e os históricos intencionam instrumentalizar o indivíduo, estimulando o desenvolvimento de diferentes habilidades necessárias à atuação ativa, consciente e autônoma na sociedade. Diferentemente dos demais formatos, o museu escolar está diretamente integrado à educação formal. No entanto, se propõem ou deveriam propor a guiar esse processo aguçando a curiosidade, o questionamento, a pesquisa através de ações de educação não-formal. Mediante o desenvolvimento de diferentes perspectivas, os resultados da ação educativa dos museus podem suscitar resultados coletivos e individuais. “Dentre elas destaca-se: a consciência histórica e noção de temporalidade; o diálogo; a criticidade; a noção de pertencimento; a identidade; e adiversidade cultural” (FIGUERELLI, 2011, p 122). Para M. Brandão (1996), não há ainda avaliações sobre a determinação do impacto que as exposições provocam nos visitantes, do ponto de vista do enriquecimento dos seus conhecimentos, ou do ponto de vista da alteração dos seus hábitos e posturas sobre a realidade quotidiana. Esses trabalhos ainda estão centrados na avaliação das exposições e o estudo dos seus reflexos sobre os visitantes. Sendo o museu predominantemente visual, Schouten (1983) atenta para a exploração dessa vantagem. Imagens (gráficos, cartuns, etc.), experiências vividas (sons, aromas, experiências táteis), poemas e humor atingem mais diretamente o observador do que etiquetas. A disposição dos objetos de modo a comunicar-se com o visitante de forma mais direta e contextualizada é um recurso eficiente, bem como a utilização de recursos de comunicação em que uma parte significa um todo. Entre as imagens, as fotografias têm sido utilizadas com frequência para ilustrar um conceito e atingir uma coerência eficaz nos museus escolares como forma de identificar as experiências vividas. As montagens de salas remontando a períodos anteriores tem sido um dos aspectos reveladores da eficiência da disposição dos objetos de modo a comunicar-se com o visitante de forma mais direta e contextualizada. Nos museus escolares, a visita guiada e o diálogo educativo são frequentes. Na maioria das imagens analisadas, não foram detectadas evidências de atividades exploratórias e de experimentação. Sistemas de guias auditivos e audiovisuais vêm sido utilizados cada vez mais pelos museus. “Os meios audiovisuais têm um elevado potencial na educação do museu, se utilizados de forma correcta”. Nesse cenário de incorporação de novas tecnologias, os computadores têm sido utilizados cada vez pelos museus para a aprendizagem interativa e divulgação do museu (BRÜNINGHAUS-KNUBEL, 2004, p. 35). Os meios audiovisuais também têm sido utilizados por alguns museus escolares, mas, o uso de computadores visando à interatividade ainda é uma realidade distante, ao que parece decorrente da carência de investimentos e espaço físico. A maioria dos museus disponibiliza informações na internet. Programas de apoio de eventos educativos têm sido bastante utilizados pelos museus e se caracterizam como programas de apoio organizados e promovidos para completar e aumentar as exposições ou mostras regulares ou temporárias incluindo frequentemente projeção de filmes e vídeos, peças de teatro e apresentações musicais, discursos, cursos e conferências. No âmbito dos museus escolares, destaca-se as apresentações artísticas, conferências e palestras como forma de divulgação das ações desenvolvidas pelas instituições, assim como a utilização do método clássico, folhetos, folders, um livro, brochura ou catálogo como meio de publicizar as informações sobre o acervo ou sobre uma exposição temporária. Quando utilizados como apoio ao processo do currículo formal em atividades de apoio pedagógico, a visita ao museu geralmente se dá acompanhada de roteiro de trabalho, questões e questionários. Também o responsável pelo setor educativo do museu ou professor pode utilizar quadros, textos, apresentações em PowerPoint e outros programas informáticos semelhantes Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 427 como apoios para ajudar a explicar e aprofundar o conhecimento além do objeto do museu. Textos de apresentação, planos de aula, filmes, pesquisa em página da internet do museu também são recursos comumente utilizados pelos professores antes da visita ao museu. A visita ao museu por escolares é sempre planejada e com objetivos definidos. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 428 A interpretação do patrimônio cultural deve ser desenvolvida como uma função educativa e não instrucionista - memorização de características das coleções e fatos, reprodução de cenas e vivências pelos alunos. Os procedimentos adotados nos programas desenvolvidos com as escolas orientados por posturas burocráticas e instrucionistas necessitam ser repensados. Não basta conhecer e divulgar o museu, este “precisa ser vivido, compreendido como um local onde a tradição pode ser conhecida, percebida, questionada e reinventada, estimulando e apoiando até mesmo a criação de novos museus” (SANTOS, 2008, p. 142). A ação educativa não deve e nem pode ficar restritas às atividades pedagógicas desenvolvidas pelo museu. Todas as ações do museu – preservação, comunicação, documentação e pesquisa - devem ser aplicadas em interação e como função educativa. Centrados na função educativa, os museus escolares também precisam vencer esses desafios. Referências BRÜNINGHAUS-KNUBEL, Cornélia. A Educação do Museu no Contexto das Funções Museológicas IN Como Gerir um Museu: Manual Prático, ICOM – Conselho Internacional de Museus 2004 FIGUERELLI, Gabriela Ramos. Articulações entre educação e museologia e suas contribuições para o desenvolvimento do ser humano. Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio – PPG-PMUS Unirio | MAST - vol. 4 no 2 – 2011 Disponível em http://revistamuseologiaepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus Acesso: 01/09/2014 INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Guia dos Museus Brasileiros/Instituto Brasileiro de Museus. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011. __________________________________. Museus em Números/Instituto Brasileiro de Museus. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011, vol.1, p. 48 INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Guia dos Museus Brasileiros/Instituto Brasileiro de Museus.Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011, vol. 1 LEWIS, Geoffrey. O Papel dos Museus e o Código de Ética Profissional IN Como Gerir um Museu: Manual Prático, ICOM – Conselho Internacional de Museus 2004 LINARES, Mª CRISTINA: "Museos Pedagógicos - Museos Escolares - Museos de Historia de la Educación". http://estatico.buenosaires.gov.ar/areas/educacion/programas/me/pdf/mus eos_pedagogicos_%20museos_escolares_museos_de_historia_de_educacio n.pdf Acesso: 20/5/2018 SANTOS, Maria Célia. Encontros museológicos: reflexões sobre a museologia, a educação e o museu. Rio de Janeiro: Minc/IPHAN/DEMU, 2008. SILVA, Frederico Barbosa da Silva ... [et al.] Encontros com o futuro: prospecções do campo museal brasileiro no inicio do seculo XXI /– Brasilia, DF: Ibram, 2014. 142p. (Colecao Museu, economia e sustentabilidade, 1). SCHOUTEN. Fransz. Visitor perception, the right approach, in: Design as an educational tool, P. Pouw en F. Schouten (eds), RA Studies in Museology, 1983, p. 37 – 46, tradução Teresa Scheiner VARINE, Hugues de. A respeito da Mesa-Redonda de Santiago. Tradução Marcelo M. Araújo e M. Cristina O. Bruno ARAUJO, Marcelo Mattos; BRUNO, Maria Cristina Oliveira (Orgs.). A Memória do Pensamento Museológico Contemporâneo: documentos e depoimentos. São Paulo: Comitê Brasileiro do ICOM, 1995 _________________. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Trad. de Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2012. VIÑAO-FRAGO, Antonio. El patrimonio histórico-educativo: memória, nostalgia y estúdio. Com-Ciencia Social: El lugar de la memória en la educación. Número 15. Año 2011. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 429 CINEMA E CURTA-METRAGEM APLICADOS AO ENSINO EM CIÊNCIAS HUMANAS: REFLEXÕES A PARTIR DE UM PROJETO DE EXTENSÃO INSCRITO NA UERJ Walace Ferreira Rodrigo de Souza Pain Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 430 Reflexões iniciais Este trabalho procura valorizar e reconhecer a importância do filme e do curta-metragem como recursos didáticos importantes na dinamização do trabalho docente em sala de aula. A partir do projeto de extensão “Cinema, curta-metragem e o ensino da Sociologia na Educação Básica”, inscrito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) desde fins de 2018, refletimos sobre o papel dos recursos audiovisuais aplicados às diferentes disciplinas de ciências humanas (História, Sociologia, Geografia e Filosofia). O objetivo do projeto consiste em reforçar o uso do cinema como recurso didático tendo em vista que a força e a abrangência da linguagem imagética, seja ela de qualquer natureza, é uma das principais características do mundo moderno. Dessa maneira, visa-se a dinamização da sala de aula através da incorporação da linguagem audiovisual como recurso propulsor de uma nova dinâmica de ensino e aprendizagem, podendo envolver todas as disciplinas de humanidades. Entende-se que através da apresentação de filmes, vídeos e documentários, podemos introduzir no cotidiano da vida escolar o debate sobre questões que podem ser tratadas como tema e/ou problema da sociedade mais ampla. Com essa perspectiva, pretendemos superar algumas ausências no cotidiano das escolas da rede pública, de maneira a possibilitar um diálogo acadêmico entre a Universidade e a Educação Básica. Inicialmente, é importante refletirmos sobre o papel do professor frente à prática docente, ou seja, a produção de saberes profissionais relacionados ao magistério, e sua ação no processo de ensino-aprendizagem. É mister argumentar sobre a relevância do docente como mediador deste processo, e claro, não somente um mero transmissor do conhecimento. Uma das características do professor está na solidão em que exerce sua atividade. Esse tipo de sensação é muitas vezes abraçada pelo baixo reconhecimento social da profissão, pela falta de estrutura das instituições escolares, baixos salários, falta de políticas de educação continuada, e inúmeras outras dificuldades que vivem nossos docentes. Diante dessa realidade, o projeto de extensão mencionado busca a interação entre universidade e escolas básicas, percebendo-se como importante fator motivador para os docentes envolvidos. Cinema na sala de aula O cinema não se constitui como um mero entretenimento, muito pelo contrário, tal metodologia pode auxiliar o professor como uma importante ferramenta de suporte em sua prática. Observando-se, por exemplo, as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio de Sociologia (BRASIL, 2006), no que também serve para pensar as demais disciplinas de humanidades, há três recortes para o trabalho docente. Inicialmente é trabalhar o “conceito” como elemento de conhecimento racional que permite melhor explicar ou compreender a realidade. Assim, ter-se-ia, de acordo com o documento, a vantagem de elevar o patamar de análise do estudante com o discurso científico. Porém, o trato de conceitos pode dificultar a compreensão do aluno e a dificuldade de se trazer determinadas concepções para a realidade discente. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 431 Em segundo lugar, há a importância de se trabalhar com “temas”. Faz-se necessário a adequação da realidade do aluno partindo de casos concretos. Como vantagem, tem-se a familiarização dos estudantes com as disciplinas, permitindo despertar neles o interesse pelo aprendizado, principalmente quando abordados temas da atualidade. Como desvantagem, há a necessidade de o professor ter grande capacidade analítica e amplo conhecimento sobre a realidade social. Por fim, o terceiro recorte está na “teoria” como modelos explicativos, possibilitando ao estudante conhecer com profundidade as bases teóricas das disciplinas. A desvantagem, contudo, está na necessidade de apresentar uma síntese bem feita, e com linguagem adaptadas à realidade da educação básica, para não cair no rebuscado discurso da academia. Para Moraes e Guimarães (2010), na educação básica os conteúdos teóricos devem estabelecer relação mais direta com as realidades próximas das experiências dos educandos. A sugestão dos autores é que elas sejam associadas a recursos didáticos que sejam eficientes para realizar essa abordagem junto aos discentes. Assim, o cinema e o curta-metragem como recursos didáticos têm o poder de despertar no alunado aspectos importantes na busca pelo conhecimento de cada disciplina, auxiliando o docente a trabalhar conceitos, temas e teorias de maneira articulada. Para Wright Mills (1982), os recursos audiovisuais podem ser usados para entender as transformações pelas quais passa a sociedade, ou “uma qualidade de espírito que lhes ajude a usar a informação e a desenvolver a razão, a fim de perceber, com lucidez, o que está ocorrendo no mundo e o que pode estar acontecendo dentro deles mesmo” (MILLS,1982, p.11). O filme, com isso, é um modo de compreender comportamentos, visões de mundo, valores, identidades, percursos históricos, espaços geográficos e ideologias de uma sociedade. É, antes de qualquer coisa, uma construção sobre a realidade, isto é, não é reflexo do real, tampouco traduz a verdade dos fatos (ENGERROFF, 2014). Cabe ao professor fazer essa intermediação, entre o conteúdo relacionado à disciplina e o filme ou curta a ser exibido. Nos tempos atuais, devemos nos questionar sobre os papéis das novas tecnologias da informação dentro da sala de aula, afinal, lidamos com jovens discentes que cresceram nesse ambiente digital. É a geração de “nativos digitais” (PRENSKY,2001), pois nasceram na geração dos computadores, videogames e internet. Diante disso, é importante que o próprio professor em sala de aula tenha consciência e saiba trabalhar as inúmeras possibilidades que esse ciberespaço seja capaz de proporcionar. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS A escola, por sua vez, deve buscar adaptar-se ao desenvolvimento dessas novas tecnologias. O filme e o cinema não são novidades nos métodos de aprendizagem, mas o seu estímulo, em um contexto marcado pelos novos aparatos tecnológicos e pela cibercultura, é ótimo caminho para a compreensão dos fenômenos sociológicos, históricos, filosóficos e geográficos. Página | 432 Planejamento, realização e o embasamento teórico Para a execução deste projeto de extensão, inicialmente fizemos contato com docentes da rede estadual do Rio de Janeiro egressos do curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UERJ. Após essa aproximação, tivemos encontros com os licenciandos da universidade com o objetivo de analisar o contexto social e geográfico de diferentes escolas. Sabemos das opressões no cotidiano escolar, por isso foi fundamental o debate para tentar entender o perfil do alunado que vamos encontrar. Nos valemos de Michel Foucault, principalmente do conceito de “corpos dóceis”, com a ideia de assimilar orientações sem oferecer resistência, no caso os discentes de uma escola, associando as instituições escolares como espaços opressivos. Muitos dos universitários não conheciam a realidade social das escolas públicas do Rio de Janeiro, de modo que o debate trouxe algumas aproximações e criou perspectivas e expectativas nos licenciandos. Também nos valemos do conceito de “habitus” de Pierre Bourdieu, como a marca que a sociedade escreve no corpo, ligado às subjetividades do sujeito e também ao indivíduo biológico. O pensador francês nos auxiliou nos debates, pois segundo identificou, o habitus das crianças de classes sociais mais baixas não consiste no mesmo que dos educadores que pertencem a uma classe social mais elevada. Nesse sentido, refletimos sobre como encarar o desafio de passar uma produção audiovisual para alunos que pouco tem contato com filmes ou cinema, ao mesmo tempo que precisam muito desse trabalho. Ademais, Foucaut (1987), um grande crítico da instituição escolar, refletia sobre o poder da disciplina naquele ambiente. Professor de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France, o autor vê as sociedades modernas e suas instituições (a escola, por exemplo) como disciplinares e hierárquicas, dotadas de uma tecnologia política que visa tornar os corpos disciplinados (corpos dóceis) e controlar o espaço, o tempo e as informações. De acordo com Foucault, sociedades disciplinares estruturam modelos de controle social que articulam diferentes técnicas de segregação, vigilância e monitoramento, as quais passam a vida social por meio de uma cadeia hierárquica oriunda do poder central. O debate com os universitários sobre o autor se debruçou em seus estudos sobre a escola e as ideias pedagógicas na Idade Média (fruto das reflexões de Foucault), identificando-as como instrumentos de controle e dominação que visam suprimir ou conformar os comportamentos de diversos agentes. Portanto, discutimos a escola como uma instituição dentro do contexto das sociedades disciplinares. No livro “A reprodução” de Bourdieu e Passeron (1992) aponta-se que, em uma sociedade de classes, as distinções não são apenas econômicas, mas também culturais. As classes dominantes possuem determinadas características culturais que se distinguem das classes trabalhadores pelos gostos, modo de se vestir e de falar, entre outros aspectos. Para os autores, a escola seleciona os conhecimentos e os valores das classes dominantes como os de maior valor, freqüentemente menosprezando os elementos culturais das classes trabalhadoras e auxiliando na reprodução das desigualdades sociais. Apontamos assim que a escola, reprodutora da cultura dominante, tende a contribuir para reproduzir as estruturas das relações de poder e a função da educação então passa a ser a reprodução das desigualdades sociais (ÁLVARES e PINHEIRO, 2014). Ao planejar o projeto, levamos em consideração aspectos importantes que devem ser observados pelos professores. O fundamental é que o material a ser exibido tenha uma relação com o conteúdo estudado ou a ser trabalhado. Contextualizar de maneira bem clara é fundamental para atender aos propósitos pedagógicos. A apresentação da sinopse do filme associado ao conteúdo a ser ministrado é uma opção válida. Muitos docentes optam por passar filmes produzidos mais recentemente, ou nacionais, ou até mesmos aqueles ligados diretamente à indústria cultural. Nesse sentido, é importante refletir sobre o público que se pretende alcançar. Um documentário, que pode parecer chato para os alunos em um primeiro momento, pode trazer informações valiosas, e não pode ser desprezado. Devemos salientar que temos esbarrado em alguns obstáculos para a realização do projeto. A falta de estrutura para passar o filme revela-se evidente em diversas instituições com aparelhos obsoletos, problema com fios e dificuldades nos contatos. Algumas escolas sequer têm aparelhagem audiovisual. No caso específico deste projeto de extensão, procuramos construir uma proposta metodológica que dinamize a Licenciatura em Ciências Sociais através do uso de filmes e vídeos. Também estimulamos uma maior integração entre a Universidade e o Ensino Básico, como também visamos dinamizar e socializar a produção cultural universitária, e finalmente inserir no cotidiano escolar o debate acadêmico por meio de discussão de temas sob o ponto de vista das disciplinas de humanidades e o instrumental do cinema, documentário, ficcional e curta-metragem. Conclusão: Exemplo de um recurso audiovisual utilizado Um filme usado em algumas aulas do ensino médio, e que serve tanto para aulas de Sociologia quanto de História e Filosofia, consiste na produção alemã “A Onda”. O filme trata da experiência realizada por um professor em sala de aula, e propõe reflexões sobre a história do nazi-fascismo, o Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 433 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 434 totalitarismo político, a servidão voluntária, a dominação carismática e a disciplina das massas como meio de manutenção de uma ordem política fundamentada na hierarquia e na submissão. Desnaturalizar os processos políticos e vê-los como uma construção social e histórica, bem como estranhar o comportamento dos indivíduos e da coletividade, são marcas dos debates que geralmente acontece após a exibição de um filme como A Onda. O papel do professor é manter o nível de motivação do aluno através do diálogo contínuo e da busca por novas estratégias de ensino-aprendizagem, evitando o tédio pelos conteúdos disciplinares (PISCHETOLA, 2016). É nesse sentido que o projeto, de caráter interdisciplinar, visa trazer o cinema para a sala de aula, o que pode e deve estimular atividades semelhantes em todas as disciplinas do campo das humanidades. Referências ALVARES, C.C.O.T.; PINHEIRO, A. Da escola e democracia de Demerval Salviani à educação para a democracia de Vitor Paro: questões sobre a função da escola e da educação da antiguidade até a contemporaneidade. Enciclopédia Biosfera. Centro Científico Conhecer. Goiânia, 2004. BRASIL. MEC. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Ciências Humanas e suas Tecnologias. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brasília, DF, 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf BOURDIEU, P.; PASSERON, J.C. A reprodução. 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992. ENGERROFF, A.M.B. et al. Estudo da ferramenta cinema presente nos livros didáticos de Sociologia. Mosaico Social - Revista do Curso de Ciências Sociais, UFSC, 2014. FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis, Ed. Vozes, 1987. MILLS, C. Wright. A imaginação sociológica, Rio de Janeiro, Zahar, 1982. MORAES, Amaury César e GUIMARÃES, Elisabeth da Fonseca. Metodologia de Ensino de Ciências Sociais: relendo as OCEM – Sociologia. Coleção explorando o Ensino. Ministério da Educação, Brasília, 2010. PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação. Editora PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2016. PRENSKY, M. Digital natives, digital immigrants. On the Horizon, v.9, n.5, MCB University Press, 2001. TEMAS DE CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS EM ESCOLAS ESTADUAIS DO RIO DE JANEIRO: NOTAS DE UM PROJETO EXTENSIONISTA Walace Ferreira Rodrigo de Souza Pain Introdução Este trabalho é resultado do projeto de extensão “Sociologia, Juventude e Cidadania”, inscrito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) desde agosto de 2017. A partir de temas que apontam para o desenvolvimento do pensamento crítico e a formação cidadã de estudantes do ensino médio, o projeto tem realizado palestras e oficinas em colégios estaduais do Rio de Janeiro. As atividades do projeto são, inclusive, uma oportunidade de ampliação para debates temáticos com os quais os estudantes já podem ter tido contato em sala de aula, seja em Sociologia, seja em disciplinas transversais da área de humanidades. O tema a ser desenvolvido em cada uma dessas atividades é negociado entre o colégio e os membros do projeto, o qual deve preferencialmente constar entre racismo, população indígena, gênero, violência doméstica, sexualidade, trabalho, tecnologia, política, democracia, justiça, desigualdades, cultura, meio ambiente, preconceito e intolerância, bullying, direitos humanos, educação e redes sociais, nada impedindo que outras temáticas sejam desenvolvidas. Do ponto de vista da formação técnico-científica, os temas podem, ainda, dar suporte à preparação dos estudantes para os vestibulares e para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), haja vista contribuir para as provas de Ciências Humanas e para a argumentação das provas de Redação. Como um dos públicos alvos deste projeto é o estudante de licenciatura em Ciências Sociais da UERJ, levando-os a alguns desses eventos e futuramente pretendendo inclui-los na realização de algumas das atividades desenvolvidas, possibilita-se ao futuro docente de Sociologia a observação da atuação da disciplina em múltiplos espaços de realização educacional de forma diferente das aulas tradicionais. Com isso, gera-se o estímulo para que ações semelhantes sejam realizadas pelo futuro docente quando estiver exercendo sua profissão. Em tempos de conturbação política, lenta recuperação econômica e expansão de valores conservadores difusos pela sociedade brasileira, faz-se necessário apresentar debates lastreados na valorização dos direitos humanos e na cidadania. Esse lastro está na base do projeto de extensão ao qual este trabalho é remetido, acreditando na importância do diálogo e da formação cidadã como auxílio da educação na sociedade na qual a universidade está inserida. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 435 Sobre o projeto: objetivos e base teórica O projeto tem pretendido: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 436 1) Promover a articulação entre universidade e sociedade, objetivo que embasa os projetos de extensão, recorrendo ao apoio de profissionais de dentro da UERJ e de outras instituições que visem debater temas relacionados direta ou indiretamente ao currículo de Sociologia e de demais disciplinas de Humanas e que ajudem na formação cidadã de estudantes de escolas públicas do Estado; 2) Auxiliar escolas públicas a realizar atividades de discussão social dentro do seu próprio espaço, reunindo alunos da educação básica, professores e corpo administrativo em torno de uma proposta de cidadania; 3) Estabelecer redes de contato e de trabalho entre professores membros do projeto e docentes de escolas estaduais do Estado fluminense; 4) Estimular a participação de estudantes de licenciatura em Ciências Sociais da UERJ junto a um projeto extensionista, conhecendo, já na formação universitária, a realização de um trabalho que articula teoria e prática ao levá-los para a realidade das escolas visitadas. Este projeto de extensão parte de uma perspectiva do papel da Sociologia articulado à vertente humanitária e não-tradicional de educação, entendendo o saber como uma prática que pode ser construída a partir de formas alternativas e complementares de ensino. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio, na parte de Sociologia [BRASIL, 2006], alertam para função da disciplina como um instrumento de desenvolvimento da cidadania. A esse respeito, diz o documento: “Muito se tem falado do poder de formação dessa disciplina, em especial na formação política, conforme consagra o dispositivo legal (LDB nº 9.394/96, Art. 36, § 1o, III) quando relaciona “conhecimentos de Sociologia” e “exercício da cidadania”. Entende-se que essa relação não é imediata, nem é exclusiva da Sociologia a prerrogativa de preparar o cidadão. No entanto, sempre estão presentes nos conteúdos de ensino da Sociologia temas ligados à cidadania, à política em sentido amplo (quando, muitas vezes no lugar da Sociologia stricto sensu, os professores trazem conteúdos, temas e autores da Ciência Política) e mesmo contrastes com a organização política de sociedades tribais ou simples (quando, então, é a Antropologia que vem ocupar o lugar da Sociologia), ou ainda preocupações com a participação comunitária, com questões sobre partidos políticos e eleições, etc. Talvez o que se tenha em Sociologia é que essa expectativa - preparar para a cidadania - ganhe contornos mais objetivos a partir dos conteúdos clássicos ou contemporâneos – temas e autores” [BRASIL, 2006, p. 104]. Na educação básica a Sociologia tem por objetivo a análise crítica das relações sociais, despertando no aluno a “imaginação sociológica” descrita pelo sociólogo norte-americano Wright Mills [1975], propondo o uso da disciplina como forma de entender o indivíduo e suas ações perante as estruturas sociais. Seguindo a perspectiva da imaginação sociológica, trilhase o entendimento segundo o qual os seres humanos só podem compreender sua existência e analisar seu futuro percebendo-se parte de um determinado contexto, de maneira que nossas ações influenciam e são influenciadas pela dinâmica social. O exercício de “transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico” proposto pelo antropólogo Roberto DaMatta [1987] é um caminho eficiente para despertar a imaginação sociológica, o que significa problematizar o que é cotidiano, reafirmando sua historicidade, e, portanto, sua materialidade. Ademais, só é possível tomar certos fenômenos como objeto da disciplina na medida em que sejam submetidos a um processo de estranhamento e desnaturalização, demonstrando que os fenômenos de ordem social não passam de construções ligadas à história e às relações de força presentes nas dinâmicas sociais. Diante disso, o ensino de Sociologia deve auxiliar a emancipação do indivíduo para além da sala de aula, valendo-se, por exemplo, de outros espaços no âmbito das escolas, conforme defendido por Paulo Freyre [1993]. Inspirando-se no autor de Pedagogia do Oprimido, Frago e Escolano [2001], salientam que no modelo de escola contemporânea, a sala de aula vai além de um ambiente delimitado por paredes, porta e janelas, onde estão dispostas inúmeras carteiras e cadeiras. O ambiente escolar deve ser um espaço no qual se devem acolher as diferenças, os questionamentos, as dúvidas e os saberes. Com isso: “[...] a escola transforma-se num lugar no qual é permitido ir além dos limites de uma apostila/livro conseguindo alcançar o diferente, pois as vivências normais e comuns são esquecidas num piscar de olhos, enquanto aquelas significativas serão lembradas e relembradas por décadas e décadas” [SCHLICKMANN; SCHMITZ, 2015, p. 5]. Nesse sentido, o ensino para o jovem tende a ser mais atraente quando abordado segundo uma atividade mais dinâmica, afinal o indivíduo procura estar em locais onde há satisfação pessoal e intelectual. Por fim, os temas propostos pelas atividades deste projeto extensionista referem-se a assuntos candentes da sociedade brasileira, marcada pela indecisão entre o moderno e o tradicional [HOLANDA, 1995], levando a práticas de “jeitinho brasileiro” e corrupções cotidianas; e pela cidadania inconclusa [CARVALHO, 2002], que impede a totalidade da sociedade do alcance dos direitos fundamentais garantidos, por exemplo, pela Constituição Federal de 88. Colégios visitados e atividades desenvolvidas Depois do início da vigência do projeto em fins de 2017, realizamos contato com colégios visando sua efetivação em 2018, período utilizado como base Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 437 de elaboração deste artigo. Para 2019 o projeto foi renovado e em breve as atividades terão novos desdobramentos. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 438 Com 13 atividades em 12 colégios estaduais do Rio de Janeiro, além de um pré-vestibular comunitário (o PVNC-Caxias), totalizando 14 em 2018, presenciamos diferentes realidades socioeconômicas, perfis variados de estudantes e compartilhamos a percepção de que a juventude fluminense carece do debate de uma série de temas que estão no currículo de Sociologia e demais disciplinas de humanidades e que falem diretamente às suas realidades, levando-os a rever comportamentos e combater preconceitos. Os temas trabalhados, diretamente e de forma interconectada, foram: cultura e cidadania; diversidade e tolerância; fake news e meios de comunicação; direitos humanos; política; preconceito e discriminação; gênero, classe e raça; indústria cultural; violência doméstica; e educação no Brasil. Suas definições se deram a partir de demandas dos colégios em negociação com os partícipes do projeto e foram postas em prática pelos próprios professores membros e por colaboradores vindos de outras instituições (caso dos Professores de Sociologia Vinicius Mayo Pires e Natália Braga de Oliveira, ambos do Colégio Pedro II, e Denis T. S. de Barros, do INES). No caso de atividades realizadas pelos componentes do projeto, destacam-se os professores de Sociologia do CAp-UERJ Walace Ferreira e Rodrigo de Souza Pain, e o Professor Alberto Alvadia Filho, do IFRJ, unidade São João de Meriti. As cidades envolvidas, e a quantidade de atividades, foram: Rio de Janeiro (6), Petrópolis (3), Duque de Caxias (2), São Gonçalo (1), Niterói (1), Paty do Alferes (1). Na capital, os bairros envolvidos foram Cordovil, Brás de Pina, Campinho e Rio Comprido. Salienta-se que o CAp-UERJ foi escolhido para receber uma oficina em duas turmas do primeiro ano, pela Professora Natália B. de Oliveira, do CPII, sobre gênero e violência doméstica, por ser a origem do projeto. O Instituto de Aplicação ainda tem envolvido a formação de professores por meio do estímulo à participação de licenciandos em Ciências Sociais nas atividades desenvolvidas. Foi o caso da ida de alunos em algumas das atividades realizadas no Rio de Janeiro, bem como da roda de conversa coordenada pela estudante de Licenciatura em Ciências Sociais da UERJ Fernanda Azevedo no PVNC (Pré-Vestibular para Negros e Carentes), núcleo Caxias, onde ela atua como docente voluntária, cujo tema versou sobre a educação brasileira nos tempos atuais e a perspectiva de entrada do estudante pobre e negro na universidade. Em todas as instituições visitadas registramos os acontecimentos com fotos permitidas pelos envolvidos e assinatura de lista de presença, assim como certificação dos organizadores por parte do CAp-UERJ. Alguns exemplos de atividades Colégio Estadual Hélio Rangel (Jardim Primavera/Duque de Caxias – 20 de março de 2018) Numa região carente socioeconomicamente, o Professor do CAp-UERJ vinculado ao projeto, Rodrigo Pain, realizou palestra com o título “Cultura e Cidadania”, na qual abordou-se assuntos sobre as condições da juventude nas periferias das grandes cidades, em especial da região da baixada fluminense, assim como da importância de os jovens atentarem para as características do mercado de trabalho, os direitos sociais e a política nacional em ano de eleições. O evento foi realizado na parte da manhã e contou com 31 estudantes do segundo e do terceiro ano. Imagem 1: Prof. Rodrigo Pain no Colégio Hélio Rangel Colégio Estadual Teresa Cristina (Brás de Pina/Rio de Janeiro - 03 de abril de 2018 a primeira atividade) Na primeira visita neste colégio, a Professora de Sociologia Nathalia Oliveira, do Colégio Pedro II, especialista em gênero, diversidade e direitos humanos, realizou no turno da noite a oficina “A dignidade é um olhar: tolerância e diálogo na construção de uma cultura democrática” para alunos do NEJA (Jovens e Adultos) e do terceiro ano do ensino médio, com 37 presentes. Partindo da reflexão “Eu me sinto diferente porque...” os estudantes foram levados a pensar na necessidade de valorização da diversidade e da tolerância como forma de superação do ciclo de violência e dos discursos de ódio presentes na sociedade brasileira. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 439 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 440 Imagem 2: Profa. Nathalia Oliveira no Colégio Teresa Cristina Colégio Estadual Professora Maria Terezinha de Carvalho Machado (Campinho/Rio de Janeiro - 20 de abril de 2018) Devido à integração cada vez maior dos jovens ao universo da internet e à propagação das fake news pelas redes sociais, inclusive ameaçando a idoneidade das notícias em contexto eleitoral, foi realizado pelo Professor de Sociologia Walace Ferreira, coordenador deste projeto, a oficina “Os desafios da informação na era da Internet: o caso das Fake News” em duas turmas do segundo ano do ensino médio, na parte da manhã, envolvendo 52 estudantes na primeira turma e 33 alunos na segunda. O professor já lecionou nessa instituição entre 2015 e 2016, o que favoreceu o diálogo para a realização da atividade nesta unidade escolar. Após explanação inicial sobre indústria cultural e a necessidade de termos uma visão crítica acerca dos meios de comunicação de massa, diferentes casos conhecidos de fake news foram distribuídos aos grupos, que tentaram descobrir se as notícias eram verdadeiras ou não. Ao final do debate intragrupos, cada qual expôs seu caso e o professor explicou por que consistiam em notícias falsas e como elas prejudicam a democracia. Os casos envolviam assuntos de cultura brasileira, política, economia e costumes. A atividade contou com a presença de alunos da licenciatura em Ciências Sociais da UERJ, que ajudaram na realização dos trabalhos. O modelo de aplicação de oficinas tem soado útil no sentido de estimular os estudantes à produção de uma atividade como resultado da exposição inicial sobre a temática. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 441 Imagem 3: Prof. Walace Ferreira no Colégio Maria Terezinha Colégio Estadual Dom Pedro II (Centro/Petrópolis - 14 de maio de 2018) Neste tradicional colégio estadual do centro de Petrópolis, com razoável infraestrutura e contando com um público de maioria branca, o professor de Sociologia do Colégio Pedro II, com experiência pessoal na vida política da cidade petropolitana, Vinícius Mayo, realizou a oficina “Política: para além do amor, do ódio e do estereótipo”, mostrando aos alunos como a política está no cotidiano de todos nós e se manifesta de várias maneiras. Para estimular a visão crítica dos 26 alunos de uma turma de segundo ano, turno da tarde, após a exposição que abordou a relação entre público e privado na teoria sociológica, o professor os dividiu em grupos e lhes entregou reportagens que abordavam assuntos como racismo, privilégios, aumento da passagem de ônibus, manifestações populares em torno da democracia, dentre outras. Ao fim das discussões com as reportagens, os grupos foram à frente da sala e apresentaram os assuntos analisados, evidenciando clareza no que tange ao ponto central da oficina e entendendo a importância de se ver a política cotidiana como instrumento fundamental de exercício da democracia. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 442 Imagem 4: Prof. Vinícius Mayo no Colégio Dom Pedro II Colégio Estadual Edmundo Peralta Bernardes (Lot. Ville D'monte Alegre/Paty do Alferes - 21 de maio de 2018) Intitulada “Preconceito e Discriminação: um debate necessário”, a palestra realizada no turno da manhã pelo Professor de Sociologia Alberto Alvadia Filho do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), unidade São João de Meriti, contou com 62 alunos do primeiro ano. O tema foi previamente definido em conjunto com a direção e o corpo técnico do colégio, tendo em vista a ocorrência recente de episódios de discriminação entre estudantes da educação básica. O Professor Alberto, membro do projeto, já lecionou nesse colégio e foi convidado não apenas para essa palestra, mas também para uma reedição que contemple o restante de alunos do ensino médio da escola. A atividade foi realizada num refeitório, cuja adaptação costuma ocorrer para eventos dessa natureza, até mesmo para viabilizar o uso do data show. Imagem 5: Prof. Alberto no Colégio Edmundo Peralta Bernardes CIEP 239 – Professora Elza Vianna Fialho (Vista Alegre/São Gonçalo – 29 de agosto de 2018) Especialista na temática “gênero”, a Professora Nathalia Oliveira, do Colégio Pedro II, realizou a oficina “Desmanipulando a mídia: indústria cultural e violência doméstica” para duas turmas do 2º ano, numa atividade única que contou com 55 presentes ao todo. Além de debater o tema e apresentar variados exemplos de manipulação da mídia com relação à violência doméstica, à predominância do patriarcalismo e do machismo na sociedade brasileira, foi realizado um trabalho que visava a reelaboração de reportagens que inicialmente reforçavam preconceitos. Após a realização dos trabalhos os alunos colaram as novas reportagens e estenderam o produto num mural da escola. Imagem 6: Profa. Nahalia no CIEP Elza Vianna Fialho Considerações Finais Com as experiências adquiridas até o momento pretendemos expandir o projeto a outras unidades escolares neste ano de 2019, algumas das quais já estamos fazendo contato - principalmente intermediados por ex-alunos da licenciatura em Ciências Sociais da UERJ e que agora estão lecionando em colégios da rede estadual -, realizar atividades diferenciadas, envolver outros especialistas e aumentar as temáticas abordadas. Este projeto extensionista parte de uma perspectiva do papel da Sociologia articulado à vertente humanitária de educação, pensando o saber como uma prática que pode ser construída a partir de formas alternativas e complementares de ensino. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 443 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 444 Nesse horizonte, avança-se para além dos muros da universidade, articulase com outras instituições no propósito de formação crítica do aluno da escola pública e de sua consequente formação cidadã. Ao promovermos atividades sobre assuntos candentes das Ciências Humanas contribuímos para o aprendizado desses temas por parte de alunos da educação básica e no desenvolvimento de percepções críticas diante de uma realidade em que esses assuntos estão postos frequentemente. Com o desenvolvimento do projeto, ainda esperamos estimular a formação do estudante da licenciatura no que tange à observação da Sociologia em múltiplos espaços de realização educacional e de modo diferente das tradicionais aulas. Abre-se espaço, além disso, para a pesquisa que o licenciando pode realizar a partir dessa vivência. Referências BRASIL. MEC. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Ciências Humanas e suas Tecnologias. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Brasília, DF, 2006. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_03_internet.pdf CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. DAMATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1987. FRAGO, Antônio Viñao; ESCOLANO, Augustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2001. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. MILLS, Wright. A Imaginação Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. SCHLICKMANN, Luciane.; SCHMITZ, Lenir Luft. “Da escola tradicional à escola contemporânea: algumas considerações sobre a constituição do espaço escolar”. In: Anais do 6º SEMIC do Curso de Pedagogia da FAI Faculdades. 2015. Disponível em: http://faifaculdades.edu.br/eventos/SEMIC/6SEMIC/arquivos/resumos/RES 27.pdf AS CONCEPÇÕES DOS ALUNOS DO ENSINO BÁSICO SOBRE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUA RELAÇÃO COM A DISCIPLINA DE HISTÓRIA Wendell Presley Machado Cordovil O meio ambiente é um tema que ganha cada vez mais destaque nas discussões globais. A preocupação com a degradação ambiental aumenta juntamente com a maior visibilidade das problemáticas relações da humanidade com o meio. Para muitos, os sérios conflitos da humanidade com a natureza se acentuam no século XIX, com os processos históricos descritos como Revolução Industrial. Porém, ao longo de todo o desenvolvimento da espécie humana sua relação com a natureza pode ser observada. Mas as discussões globais sobre as problemáticas ambientais aumentam na década de 1960 (WORSTER, 1991). Atualmente, no cenário brasileiro, a Lei 9.795/99 dispõe a Política Nacional de Educação Ambiental e estipula que em todos os níveis de ensino, formais e não formais, a Educação Ambiental deve estar presente. Os PCNs, ainda em 1997, também já definiam o meio ambiente como tema transversal. Considerando importante entender quais compreensões sobre Educação Ambiental e meio ambiente os alunos do ensino básico, de escolas de Ananindeua (PA), possuem esse breve texto tem a pretensão de expor os resultados parciais da pesquisa “Questionário de Educação Ambiental aos estudantes das escolas de Ananindeua (PA)”. A pesquisa, coordenada pelo Prof. Dr. Wesley Oliveira Kettle, continua as investigações anteriores do projeto “História e Educação Ambiental nas escolas de Ananindeua (PA)”, que visou compreender como os professores de história desse município trabalhavam e compreendiam a questão ambiental. Agora as investigações pretendem analisar como os alunos de Ananindeua percebem o debate ambiental, o que entendem por Educação Ambiental, se para eles a disciplina de história é importante na discussão, entre outras indagações. A pesquisa anterior e as pretensões atuais A pesquisa da qual os resultados parciais aqui serão expostos se desencadeia da investigação realizada anteriormente, de 2016 a 2018. A pesquisa se intitulava “História e Educação Ambiental nas escolas de Ananindeua”, coordenada pelo Prof. Dr. Wesley Oliveira Kettle e financiada pela Universidade Federal do Pará. Anteriormente a investigação se atentara para, a partir de entrevistas, as compreensões dos professores de história do ensino básico de Ananindeua (PA) sobre natureza, Educação Ambiental, ensino de história e interdisciplinaridade. Além disso, o material didático utilizado por alguns professores entrevistados também foi analisado. A partir disso, a pesquisa tentou perceber de que maneira o material dos professores (livros, apostilas, provas) realizava a discussão ambiental e a Educação Ambiental. Para aprofundar mais a análise, algumas aulas ministradas pelos professores também foram observadas. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 445 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 446 Nessa pesquisa foi possível concluir que os professores de história analisados pouco discutem sobre a temática ambiental. Além disso, a maioria dos professores disse que em sua formação não tiveram tanto contato com o que chamaram de “história e natureza”, por conta disso ainda encontram muita dificuldade em trabalhar a temática ambiental e realizar Educação Ambiental na disciplina de história. Comparando esses resultados com os da pesquisa de Marcelo Bizerril e Dóris Faria (2001) é de se notar que para os professores do ensino básico em geral a Educação Ambiental ainda é tida como um tema difícil de se efetivar. A investigação também entendeu que são diferentes as formas de os professores da disciplina de história compreendem o que é natureza e o que é EA (CORDOVIL; VIDIGAL; KETTLE, 2018). Em um momento a natureza é descrita como os animais – sem considerar os humanos -, a água, solo, em outro é descrita como “nossa essência”. Já a Educação Ambiental em um momento é descrita como “uma questão de sobrevivência”, em outro aparece como uma educação que forma novos olhares sobre nosso meio. Os professores também refletiram sobre suas próprias práticas e responderam como incorporam o debate ambiental na disciplina de história. Comentaram da dificuldade, mas disseram que em conteúdos como Egito Antigo, Mesopotâmia e Revolução Industrial a temática é mais propícia. Porém para compreender mais profundamente a Educação Ambiental desenvolvida na disciplina de história ainda se mostrou necessário a análise dos vários sujeitos que também compõem a construção do conhecimento: os alunos. Desdobrando-se então para a pesquisa intitulada “Questionário de Educação Ambiental aos estudantes das escolas de Ananindeua” a investigação visa compreender agora os alunos. A partir da aplicação de um questionário contendo 10 perguntas, três discursivas e sete objetivas, pretendeu-se construir um panorama expondo as concepções dos alunos sobre EA e a discussão ambiental. Além disso, buscou-se perceber qual a visão dos alunos sobre o papel da disciplina de história dentro desses debates. Para melhorar devemos educar: a questão ambiental na história, a história e a questão ambiental Antes de apresentar os resultados da pesquisa se faz necessário apresentar um pequeno histórico da EA e da relação da disciplina de história com a temática ambiental. É preciso que compreendamos que as discussões sobre as problemáticas ambientais e a emergência de propostas visando melhores relações entre humanos e meio já de desenvolvem há bastante tempo, também na área da história. Ao analisar a trajetória até o momento da criação da Educação Ambiental, ou seja, o primeiro aparecimento do termo, é de se notar que as preocupações que emergiam cada vez mais na década de 1950 tiveram grande efeito na ampliação dos debates políticos em âmbito global. Junto com o surgimento de novas tecnologias na década de 50 e 60 do século XX apareciam também preocupações mundiais sobre os efeitos da ação humana no planeta. Um caso que impulsionou a necessidade de debates em âmbitos globais sobre a questão ambiental foi o que iniciou no Japão de 1956 (HERCULANO, 1992). Esse caso, conhecido como ‘Desastre de Minamata’, ocorreu em Minamata, cidade da província de Kumamoto. Em 21 de Abril de 1956 uma criança dava entrada no hospital da região apresentando diversos problemas de disfunção nervosa (O GLOBO, 2016). A criança havia sido contaminada pelo consumo de peixes da baía da região que ingeriram mercúrio. Esse mercúrio era despejado por uma empresa produtora de químicos, a Chisso Corporation. Essa Corporação se instalara na região em 1908 e começara sua produção de acetaldeido em 1932 (MINAMATA DISEASE MUSEUM, 2016). A criança de cinco anos foi o primeiro de muitos diagnosticados com ‘a doença de Minamata’. Até os dias atuais a memória desse desastre ainda é muito presente, um exemplo disso é a Convenção de Minamata sobre Mercúrio que entrou em vigo em 2017. O documento é um tratado global com o intuito de diminuir as emissões de mercúrio e define em seu Artigo 1º que “O objetivo desta Convenção é proteger a saúde humana e o meio ambiente das emissões e liberações antropogênicas de mercúrio e de compostos de mercúrio” (UNITED NATION, 2017, p. 7). Esse desastre ajudou a reforçar o pedido da Suíça, de 1969, por uma Conferência Internacional organizada pela ONU com a pretensão de discutir a questão ambiental (HERCULANO, 1992). A Conferência então foi marcada para o ano de 1972, em Estocolmo. Dentro desse momento histórico várias regiões do globo discutiam sobre a relação da humanidade com a natureza. Na Inglaterra no ano de 1965 ocorre na Universidade de Keele a Conferência de Educação. Nessa surge pela primeira vez o termo “Educação Ambiental” (RAMOS; FELLINI, 2008). Com o surgimento do termo se torna nítido o caminho o qual se entende ser o possível para construir uma melhor relação da humanidade de todo o planeta com o meio ambiente: a educação. O termo Educação Ambiental ganha proporções globais na Primeira Conferência Mundial de Meio Ambiente, que ocorreu em Estocolmo em 1972. Ao fim da Conferência um documento foi redigido. No documento fica claro a preocupação com os avanços tecnológicos e do poder que “o homem adquiriu [...] de transformar, de inúmeras maneiras e em uma escala sem precedentes, tudo que o cerca” (DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO, 1972, p.1). O documento também define 26 princípios que visam a preservação e conservação do bem estar humano e ambiental. O último princípio do documento deixa claro que naquele momento histórico a humanidade se preocupara como nunca antes com os efeitos destrutivos da ação humana no planeta. Um dos motivos para isso se apresentou com todas as letras no Princípio que fechava o documento: Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 447 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 448 “Princípio 26: É preciso livrar o homem e seu meio ambiente dos efeitos das armas nucleares e de todos os demais meios de destruição em massa. Os Estados devem-se esforçar para chegar logo a um acordo – nos órgãos internacionais pertinentes - sobre a eliminação e a destruição completa de tais armas” (DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO, 1972, p.7). No documento produzido em Estocolmo ainda não apresenta o termo “Educação Ambiental” como o caminho para um bom relacionamento entre animais humanos e a natureza, isso se dá possivelmente por conta de as definições e diretrizes da EA serem apresentadas apenas em 1975, em Belgrado. O evento conhecido como Encontro de Belgrado, promovido pela UNESCO, foi uma reunião que visou discutir uma estrutura global para a Educação Ambiental (RAMOS; FELLINE, 2008). Ao fim desse encontro um documento dando as diretrizes, metas e métodos para realizar a Educação Ambiental são produzidos. O documento conhecido como “Carta de Belgrado” pode ser visto como a base para a realização da Educação Ambiental, servindo até mesmo como direcionamento para legislações como a Lei brasileira de número 9.795/99. Nas décadas de 1960 e 1970 também é o momento histórico em que a sociedade em geral começa a se interessar e adentrar na discussão sobre as problemáticas ambientais. A sociedade civil organizada exerceu uma pressão cada vez maior no campo político, com isso ajudando a provocar as reuniões internacionais citadas anteriormente. Nesse período, um marco para o lançamento do que ficaria conhecido como o movimento ambientalista foi a publicação do livro da bióloga Rachel Carson, “Silent Spring” de 1962. O mundo acadêmico também não ficou à parte das preocupações da relação da humanidade com a natureza. É na década de 1970 que subáreas que estudam mais profundamente a questão do meio ambiente se formam em diversas áreas como direito, filosofia, engenharia, sociologia e história. No caso da história, forma-se a chamada história ambiental (WORSTER, 1991). A disciplina histórica nesse momento encontrava-se em movimento de afastamento das concepções iniciais da disciplina de que apenas os “grandes homens” eram os responsáveis por fazer a história se mover, ou que a disciplina era apenas para reafirmar o poder dos Estados Nacionais. “Os estudiosos começaram a desenterrar camadas longamente submersas, as vidas e os pensamentos das pessoas comuns, e tentaram reconceituar a história ‘de baixo para cima’” (WORSTER, 1991, p. 1). Os historiadores ambientais surgem para aprofundar, segundo Worster, mais ainda as pretensões de aprofundar os estudos históricos. Esses pesquisadores rejeitam a ideia de que o desenvolvimento humano se deu sem restrições naturais, sem barreiras ambientais, mas tenta enfatizar o meio ambiente e a natureza como mais uma força presente na construção dos processos (WORSTER, 1991). Interessante apontar que segundo José Augusto Pádua (2010) o primeiro curso universitário de maior destaque que possuía o título de “História Ambiental” foi ministrado por Roderick Nash, na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara no ano de 1972. Os alunos de Ananindeua e a educação ambiental na disciplina de história Com os apontamentos anteriores é inegável que a discussão ambiental já está em questão, tanto globalmente quanto na área da história, há bastante tempo. Os resultados que serão expostos aqui foram recolhidos com a investigação “Questionário de Educação Ambiental aos estudantes das escolas de Ananindeua”. Os questionários foram aplicados para turmas de sexto ao nono ano do município de Ananindeua, no Estado do Pará. As perguntas presentes no questionário foram: 1- O que você entende como Educação Ambiental? (Discursiva); 2- Algum professor ou professora de alguma disciplina já falou sobre Educação Ambiental?Qual disciplina? (Objetiva. Opções: sim indicando a(s) disciplina(s), não ou não sei); 3Você acha importante discutir o meio ambiente nas disciplinas que você estuda na escola? (Objetiva de sim ou não); 4- O que você entende como meio ambiente? (Discursiva); 5- Qual/Quais disciplinas você reconhece como responsável pela discussão do meio ambiente? (Discursiva); 6 - No material didático de história (livros, apostilas, provas, etc.) o meio ambiente é discutido? (Objetiva de sim, não ou não sei); 7- Nas aulas de história o professor ou professora discute sobre o meio ambiente? (Objetiva de sim, não ou não sei); 8- Os professores de outras disciplinas realizam projetos junto com o(a) professor(a) de história? (Objetiva de sim ou não); 9- É importante debater meio ambiente na aula de história? (Objetiva de sim ou não); 10- Você acredita ser um agente importante contra as problemáticas ambientais? (Objetiva de sim ou não). Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 449 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 450 Fig.1: Gráfico 1 - Compreensão dos alunos de Ananindeua-PA sobre Educação Ambiental. Wendell Cordovil, 2019. No gráfico acima é possível observar as respostas que os alunos escreveram quando questionados sobre o que entendiam como Educação Ambiental. Mais de 60% dos alunos efetivamente demonstrou ter alguma definição sobre o que seja Educação Ambiental. Mais de 30% responderam que não sabem. Entre esses, os escritos variam entre “Nada”, “Não sei” além dos alunos que apenas deixaram o questionamento em branco. Uma porcentagem de 21,27% dos alunos mostrou que ligam a ideia de EA com a questão de jogar lixo no local adequado e deixar os lugares limpos. Em um dos questionários o aluno escreveu “Aprender a cuidar do meio ambiente para vivermos em um lugar limpo”, em outro o aluno defende que é o ensino em que os professores devem cobrar as pessoas para que o mundo fique limpo. Essa visão pode estar ao fato de grande parte das propostas sobre Educação Ambiental nas escolas estarem ligadas à questão da coleta seletiva, juntamente com essa proposta a construção de hortas. Já 12,08% dos alunos escreveram que Educação Ambiental é estudar, ou ter consciência, sobre o meio ambiente. Os que definiram dessa forma não se aprofundaram para explicar o que seria ter consciência sobre o meio ambiente. 7,69% dos alunos entendem como Educação Ambiente a educação para “Aprender a respeitar”. Nesse momento aparecem comentários que não especificam ao que se deve aprender a respeitar, mas um afirma que o que as pessoas ensinam é que Educação Ambiental é respeitar os professores e os mais velhos. Quando o aluno informa que “pessoas” dizem que isso é EA podemos perceber que sua noção sobre esse termo parece foi adquirida fora do espaço escolar. Aqui é necessário perceber que os alunos também constroem suas noções sobre Educação Ambiental em outros espaços. Os números também mostram que 5,49% dos alunos pesquisados definem EA como “Algo legal de estudar”, “TUDO” e “Uma educação boa para crianças”. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 451 O segundo questionamento que os alunos deveriam responder indagava se algum professor de alguma disciplina já havia falado sobre Educação Ambiental. Em caso positivo o aluno deveria indicar em qual(quais) disciplina(s). Os resultados mostram que 57% dos alunos dizem que sim, professores já falaram sobre Educação Ambiental. Em contra partida, 21% dizem que não, nenhum professor nunca falou sobre Educação Ambiental, e 22% dizem que não sabem. Dos 57% dos alunos que disseram que algum professor de alguma disciplina já falou sobre Educação Ambiental, 88,46% (46 alunos) indicaram em qual disciplina o tema foi apresentado. O gráfico a seguir mostra quais disciplinas os alunos disseram que o(a) professor(a) falou sobre Educação Ambiental. A porcentagem apresentada considera os alunos que responderam “sim” e comentaram a disciplina. Fig. 2: Gráfico 2 - As disciplinas que falaram sobre EA na visão dos alunos. Wendell Cordovil, 2019. Primeiramente no gráfico é de se notar que apenas 2,17% (que representa apenas 1 aluno) escreveu que foi falado sobre Educação Ambiental na Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 452 disciplina de história. É apontado por Marcelo Bizerril e Dóris Faria (BIZERRIL; FARIA, 2007) que temas ligados à Educação Ambiental parecem estar intimamente ligados às disciplinas de Ciências e Geografia. A partir desses resultados é de se perceber que as disciplinas mais apontadas pelos alunos de Ananindeua como as que falaram sobre Educação Ambiental condizem com as disciplinas apontadas por Marcelo Bizerril e Dóris Faria. Após Ciências (C.F.B.) e Geografia a disciplina mais apontada é Artes, seguida de Estudos Amazônicos – está é citada 2 vezes sozinha e mais 3 vezes junta de outra disciplina – e Português. Quando questionados se a discussão sobre o meio ambiente deve estar na presente nas aulas de história, os alunos mostram ir contra a ideia de que a discussão ambiental é exclusiva de Ciências ou Geografia. Mais de 69% dos alunos disse que é importante debater o meio ambiente na disciplina de história. Além disso, mais de 64% dos alunos se consideram agentes importantes para solucionar as problemáticas ambientais. A pesquisa de Marcelo Bizerril e Dóris Faria expôs que alguns professores acreditam que os alunos não se importam com a discussão ambiental e que “A maioria concorda que seus alunos ainda não apresentam condições de debater as questões ambientais locais e propor e participar das soluções, conforme seriam os objetivos primordiais da educação ambiental” (BIZERRIL; FARIA, 2007, p. 58). No entanto, a partir das respostas desses alunos é possível compreender que eles acreditam ser capazes de tomar atitudes contra as problemáticas ambientais, mas precisam desenvolver Conhecimentos, Atitudes e Aptidões. Fig. 3: Gráfico 3 - Compreensão dos alunos sobre o que é meio ambiente. Wendell Cordovil, 2019. Pelos questionários, 47% dos alunos entendem por meio ambiente o lugar onde vivemos, 33% compreendem que meio ambiente são os locais de floresta, mata, natureza, e 20% compreendem que o meio ambiente é tanto onde vivemos quanto os locais afastados de florestas e matas, chegando a classificar o meio ambiente como “O Mundo” ou “Tudo”. Quando indagados sobre quais disciplinas são as mais responsáveis pelo debate sobre o meio ambiente a história aparece em terceiro lugar, atrás apenas de C.F.B. e Geografia. No geral os alunos se mostram confiantes de que são agentes importantes contra as problemáticas ambientais e compreendem a importância da discussão. Além disso, mostram que acreditam na de história como uma das responsáveis pela discussão ambiental. Os resultados obtidos até o momento já mostram que o caminho para a discussão ambiental nas aulas de história é fértil. Os alunos mostraram-se confiantes que essa disciplina também possui responsabilidade no debate, além de se afirmarem como sujeitos ativos frente às problemáticas ambientais. Referências BIZERRIL, Marcelo XA; FARIA, Dóris S. Percepção de professores sobre a educação ambiental no ensino fundamental. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 82, n. 200-01-02, 2007. CORDOVIL,Wendell P. Machado; VIDIGAL, Victória Murakami ; KETTLE, Wesley Oliveira. Professores de Ananindeua e a educação ambiental em suas aulas de História. In: Francivaldo Alves Nunes; Wesley Oliveira Kettle. (Org.). Desafios do Ensino de História e prática docente. 1ed. Minas Gerais: VirtualBooks, 2018, v. 1, p. 122-128. DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO. 1972. 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Carta de Belgrado. Belgrado. 1975. 3 p. Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/sdi/ea/deds/pdfs/crt_belgrado.pdf. Acesso em: 06/03/2019. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 454 UNITED NATION. Convenção de Minamata sobre Mercúrio. 2017. Disponível em: http://www.mma.gov.br/images/arquivo/80037/Mercurio/Convencao_Mina mata.pdf Acesso em: 06/03/2019. WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8. 1991, p. 198·215. HISTÓRIA ECONÔMICA NO ENSINO BÁSICO: O USO DE DICIONÁRIOS ECONÔMICOS COMO FERRAMENTA DE MEDIAÇÃO DIDÁTICA Werbeth Serejo Belo O texto aqui apresentado é uma síntese da dissertação defendida no mestrado profissional do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão o qual teve como produto final o Dicionário de Conceitos e Temas Econômicos para Jovens. Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar um pouco do percurso da elaboração do mencionado produto de forma que possa auxiliar em outras reflexões metodológicas de elaboração de materiais voltados para o ensino da História Econômica no ensino básico. Inicialmente, foi realizado um levantamento prévio no que tange aos materiais voltados ao ensino básico que sirvam de subsídio aos docentes da disciplina de história. A partir deste levantamento buscou-se encontrar dicionários que pudessem ser utilizados no processo de ensinoaprendizagem da disciplina de história. Vários destes dicionários sinalizam que seu público pode ser professores e alunos dos cursos de graduação em História, como o público. No entanto, a sua linguagem está voltada para o público adulto, ficando os jovens da idade escolar impossibilitados de compreenderem seus verbetes pela complexidade da linguagem. Considera-se, então, que “O material didático para ter função significativa no aprendizado de história deve ser concebido através de uma ação conjunta entre o professor e o aluno. Assim, este recurso não deve ser apenas utilizado em sala de aula, mas produzido na mesma, gerando um processo de interação entre o conteúdo e sua compreensão. O grande ganho com a prática de produção de materiais didáticos está em criar um elo explicativo dos temas abordados na disciplina de história. Através da produção desse recurso, o aluno cria intimidade com o assunto trabalhado, sendo capaz de perceber os significados dos processos históricos e identificar sua própria identidade dentro dos mesmos. A prática, em geral, cativa mais a atenção do discente do que a exposição oral, permitindo que o aluno descubra novas interpretações para os fenômenos históricos, identificando suas habilidades e competências dentro desse universo” (LIA; COSTA; MONTEIRO, 2013, p. 43). A produção à qual as autoras se referem é a produção do conhecimento histórico em sala de aula com o objetivo de romper com as aulas expositivas clássicas. Partindo desta hipótese considera-se o dicionário de conceitos e temas econômicos uma ferramenta de dinamização das aulas de história, partindo da análise das relações econômicas que suscitam debates constantes em sala de aula. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 455 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 456 Deste levantamento realizado somente quatro podem ser utilizados por jovens da educação básica, a saber: Dicionário da Antiguidade Africana, Pequeno Dicionário de Grandes Personagens Históricos, Mini Larousse da Pré-História e o Dicionário de Conceitos Históricos. É válido ressaltar que nenhum dos dicionários trabalha os conceitos econômicos fundamentais à compreensão das diversas conjunturas históricas. Assim, se justifica a emergência do dicionário de conceitos e temas econômicos para jovens, ou seja, acredita-se que “O período atual também requer uma reflexão a respeito de como certas medidas econômicas impactam na sociedade. as economias mais avançadas foram abaladas recentemente por uma crise internacional, que foi amena nos países emergentes, fazendo com que a ordem que se tinha até então, em que somente os países mais pobres sofressem com as mudanças econômicas, fosse levemente alterada” (OLIVEIRA; COSTA, 2013, p.12). Além disso, é preciso destacar que o dicionário proposto é uma concepção contra-hegemônica em relação aos currículos de educação financeira que ganharam espaço na educação básica a partir do decreto nº 7.397 de 22 de dezembro de 2010 que “institui a Estratégia Nacional de Educação Financeira – ENEF, dispõe sobre a sua gestão e dá outras providências” (BRASIL, 2010, on-line). Este decreto tem por finalidade “promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional e a tomada de decisões conscientes por parte dos consumidores” (BRASIL, 2010, on-line), logo, objetivamente, pretende uma educação com base no fortalecimento da economia burguesa, propondo ações que promovam uma sistematização do consumo. Assim, foram elaborados materiais didáticos ao ensino básico como estratégia de sistematização da educação financeira, como o material destacado a seguir. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 457 Fig. 1 http://www.vidaedinheiro.gov.br/ef-livro-9/ Este material está organizado para todo o ensino básico, desde as séries iniciais até o ensino médio. Segundo o manual do professor este material é chamado de impressite, pois o 9º ano utiliza este material em web site a partir da sistematização em módulos que trabalham os seguintes conceitos: Consumo: pessoas gastadoras X poupadoras; Armadilhas mentais de consumo; Desperdício; Cartão de débito e crédito; Defesa do Consumidor; Empreendedorismo; Poupança programada; Preço X Valor; Compra a prazo; Juros; Investimento; Risco X Retorno; Planejamento; Estimativas; Orçamento; Categorização de Despesas; Patrimônio; Seguros; Espaço Público; Orçamento Público; Informações Públicas; Tributos (CONEF, 2014). É válido destacar que os conceitos destacados são elencados em defesa de uma compreensão do sistema financeiro nacional com o objetivo de educar sujeitos capazes de movimentar a engrenagem do capitalismo financeiro. Assim, não objetiva uma compreensão com base na totalidade das relações sociais que permeiam a relação econômica podendo ser considerado instrumento de criação de consenso em torno da manutenção da hegemonia da fração financeira dirigente. Considera-se fundamental, então, a exemplificação de um dos conceitos destacados. Segundo o material de diretrizes ao professor preço e valor devem ser abordados em sala de aula da seguinte maneira: “A percepção de que preço e valor são coisas diferentes nem sempre é fácil. Para muitas pessoas as coisas que são mais caras automaticamente são também mais valiosas. Os alunos são levados a perceber que há coisas que são valiosas para nós e não para os outros, e vice-versa, e muitas dessas coisas não são caras. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Apresenta-se também como muitas vezes nos deixamos levar pela publicidade ou pelos amigos e acabamos comprando coisas e pagando por elas um preço bem maior do que o valor que acabamos dando para elas. Cuidados com o consumo, o valor histórico e cultural de locais, objetos e costumes, a preocupação com o outro, o cuidado de si são trazidos dentro de uma visão de sustentabilidade para que os alunos se preocupem em manter uma vida que de fato seja mais valiosa para eles sem se deixar levar pela publicidade ou pelo preço das coisas como indicador necessário de sua qualidade” (CONEF, 2014, p. 33). Página | 458 Está claro o equívoco na abordagem do material como sugestão ao professor. O conceito de valor está diretamente relacionado ao consumo e não à produção. É sabido que mesmo para os autores liberais, como David Ricardo, por exemplo, o valor está associado à produção através do trabalho, portanto, há uma confusão (intencional ou não) no material em análise. Além do material elaborado pelo Comitê Nacional de educação Financeira – CONEF, outros materiais tem sido utilizados na educação financeira em escolas privadas através da metodologia OPEE – Orientação Profissional, Empregabilidade e Empreendedorismo, sendo a disciplina nomeada de “Projetos de vida”. Alguns materiais podem receber títulos como “Empreendedor Júnior” ou “Caminhos para o Amadurecimento”. Segundo a editora OPEE, esta metodologia “contribui para o desenvolvimento do autoconhecimento, da inteligência emocional, da educação financeira com vistas à sustentabilidade, das escolhas profissionais, dos métodos de ensino, da visão ampla do mercado de trabalho e dos processos seletivos” (www.metodologia.opee.com.br), portanto, sistematiza o jovem para que esteja pronto ao mercado de trabalho. É importante destacar que os materiais supramencionados podem ser utilizados em diversas matérias da educação escolar como apoio a eventuais discussões de temas transversais, podendo, até mesmo, ser utilizados como suplementos para discussão de temas no campo da história econômica. No entanto, considera-se seu uso como promotor da consolidação da educação burguesa. Em oposição a estas propostas que foi elaborado o dicionário de conceitos e temas econômicos para jovens, isto é, como ferramenta de um movimento contra hegemônico ao projeto burguês de educação que educa para o fortalecimento do mercado e não para a formação de sujeitos históricos conscientes e capazes de um posicionamento crítico-analítico das relações sócio-econômicas nas quais estejam inseridos. O processo de elaboração do dicionário teve início com a demarcação temporal que se pretendia analisar os conceitos econômicos, pois através desta demarcação delimitar-se-iam, também, os conceitos econômicos que deveriam ser analisados. Assim, o corte temporal data de 1945 – o pós Segunda Guerra Mundial. A justificativa para esse corte temporal é a reconfiguração do imperialismo contemporâneo ocasionando, assim, recomposição dos conceitos, haja vista que conceitos, partindo da metodologia dialética, são frutos de processos e de movimentos constantes na sociedade. Assim sendo, recebem novas composições. O segundo momento do processo de elaboração do dicionário foi marcado pela escolha do segmento ao qual se destinaria este material. Optou-se, então, pelo Ensino Fundamental – 4º ciclo. Justifica-se esta opção por ser este segmento da educação escolar o momento em que há certa maturidade intelectual dos jovens para se posicionarem de forma analítica em relação aos conceitos econômicos utilizados em seus materiais. Esta maturidade também está presente em jovens do ensino médio. Entretanto, acredita-se que os jovens já devem chegar ao ensino médio com a possibilidade de analisar as relações econômicas de forma eficaz, isto é, de modo que recorram ao dicionário para eventuais dúvidas. Após a seleção do segmento da educação escolar houve a necessidade de delimitar a qual série deste segmento dever-se-ia destinar este material. Esta seleção está diretamente relacionada com o primeiro momento de elaboração do dicionário, isto é, o recorte temporal, pois os conteúdos do pós-1945 estão inseridos no currículo do 9º ano da educação básica. Feitas estas delimitações, passou-se ao processo de análise dos conceitos e temas econômicos presentes nos dois livros didáticos de maior circulação que constavam no PNLD/2017. Assim, os conceitos que constam no material pedagógico proposto foram selecionados a partir dos livros didáticos mais utilizados em salas de aula da escola pública. Dado o processo de seleção dos verbetes que comporiam o dicionário começa-se a pensar a estrutura deste material. Assim, foram pensadas duas seções didáticas nomeadas “Você sabia?” e “Vamos pensar um pouco?”. Estas seções acompanham alguns verbetes como incentivo ao debate dos conceitos apresentados, para que além de ser um recurso de consulta o dicionário possa ser utilizado como material pedagógico central em diversas aulas. Portanto, de acordo com o (a) professor (a) a utilizar este material, o dicionário potencializa duas dimensões de uso: a) como aparato ao debate, tanto aos professores e professoras quanto aos discentes no que tange ao esclarecimento de alguns conceitos que aparecem de forma simples no material didático central e; b) como recurso central na promoção de debates em sala de aula. Assim, segundo Oliveira e Costa (2013), o material paradidático possui duas dimensões, a primeira leva em consideração que este material “É um material pensado para ser um apoio ao professor, em assuntos específicos, esse pode ser um livro, uma figura, um quadro, um filme ou qualquer outro material que remeta a um assunto de interesse do Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 459 profissional. Este não é um material de grande aprofundamento teórico, ou seja, não substitui em caso algum as obras de grandes autores” (OLIVEIRA; COSTA, 2013, p.07) Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 460 A segunda consideração tem uma relação estreita com a formação do professor, isto é, em casos de conteúdo que este não domine bem “o paradidático também pode ser utilizado como aprofundamento teórico por parte do professor, conhecendo mais a respeito de conteúdos que não domine bem” (OLIVEIRA; COSTA, 2013, p.08). Os verbetes possuem uma estrutura geral, variando poucas vezes de acordo com as necessidades percebidas. Esta estrutura, segundo, Rangel (2006) o verbete se estrutura da seguinte maneira: a) entrada: a palavra que designa o tema do verbete; b) acepção: momento inicial do verbete; c) enunciado definitório: parte central, momento da definição da palavra (RANGEL, 2006). Esta estrutura foi destacada por Rangel como condutora da escrita de verbetes de dicionários da língua portuguesa. Partindo desta estrutura, com algumas adaptações, foi pensada a seguinte estrutura para o dicionário proposto neste trabalho: a) entrada: conceito que será apresentado; b) introdução: levando-se em consideração que os conceitos e temas econômicos não são de fácil compreensão é feita na introdução uma aproximação com o cotidiano dos discentes a fim de que possam apreender a hipótese central, este é o momento de contextualização; c) questãoproblema: é considerada uma transição à elaboração da hipótese central, esta parte do verbete é o elo entre a introdução e a hipótese; d) hipótese central: considerado o momento de conceituação, no entanto, considerado hipótese, pois não pretende ser tomado como verdade inquestionável, mas como uma das possibilidades de interpretação haja vista que este material possui alinhamento teórico que, portanto, é uma das chaves de compreensão das relações econômicas; e) remissão: auxilia na dinâmica da leitura do dicionário. Parte que indica outros verbetes necessários à compreensão do verbete lido. No que tange à introdução dos verbetes são levadas em consideração algumas contextualizações necessárias ao aprendizado significativo do alunado de modo que entre as várias reformulações nos diversos campos da História tem-se a preocupação com a utilização de alguns conceitos. Segundo Circe Bittencourt (2008) é uma das tarefas do pesquisador “selecionar os conceitos-chave, contextualizá-los e utilizá-los na organização e sistematização dos dados empíricos” (BITTENCOURT, 2004, p. 191). Acredita-se que não seja somente tarefa do pesquisador tomar determinada postura, mas também, do professor de História do ensino básico, já que os conceitos são aplicados a momentos distintos e em sociedades díspares. Portanto, a apresentação e contextualização destes conceitos em sala de aula são de fundamental importância para que os alunos possam compreender a lógica de toda uma estrutura social e relacioná-la a determinada conjuntura estudada. Segundo Bittencourt o conhecimento histórico escolar produz-se “por intermédio da aquisição de conceitos, valores e informações” (BITTENCOURT, 2004, p. 195). Portanto, para Bittencourt, “O importante na aprendizagem conceitual, é que sejam estabelecidas relações entre o que o aluno já sabe e o que é proposto externamente – no caso por interferência pedagógica -, de maneira que se evitem formas arbitrárias e apresentação de conceitos sem significados, os quais acabam sendo mecanicamente repetidos pelos alunos, confundindo-se domínio conceitual com definição de palavras” (BITTENCOURT, 2004, pp. 189-190). É fundamental, portanto, a mediação didática do professor de história a fim de dar subsídio aos estudantes para que os conceitos sejam discutidos em sala de aula e não somente reproduzidos. Neste sentido que foi pensado o dicionário de conceitos e temas econômicos para jovens, isto é, como ferramenta a ser utilizada por professores de história e por seus alunos como forma de promover discussões em torno dos conceitos ali elencados, de modo que estes não se encerram em si mesmos, mas podem ser utilizados como chave de compreensão da dinâmica econômico-social contemporânea. Leva-se, então, em consideração que, “O conhecimento do conteúdo pedagogizado não é um conjunto de técnicas de ensino que se pode usar como uma receita de bolo para aplicar a qualquer conteúdo em sala de aula. São construções elaboradas na prática docente, em que o professor reflete sobre sua ação em um processo de racionalização pedagógica, que inclui diferentes momentos: compreensão, transformação, instrução, avaliação, reflexão e nova compreensão” (SHULMAN, 1987, p. 15, apud MONTEIRO, 2014, p.196). Considerações Finais Assim, a utilização de conceitos nas aulas de história requer um trajeto a ser percorrido e anteriormente pensado pelo professor de modo a possibilitar aos alunos um olhar crítico em relação ao conteúdo ensinado, já que os conceitos históricos são fundamentais para a construção das diversas ordens de consciência histórica, desde a tradicional até a genética, de modo que “a História busca aprimorar o exercício da problematização da vida social como ponto de partida para a investigação produtiva e criativa, buscando identificar as relações sociais de grupos locais, regionais, nacionais e de outros povos” (BEZERRA, 2005, p.44). Portanto, o estudo da História econômica em salas de aula do ensino básico se faz extremamente necessário de modo a permitir que os jovens na atualidade não se limitem somente (e quando muito) aos noticiários dos jornais, sempre tendenciosos em suas análises econômicas, ou que acompanhem estes noticiários com uma carga de criticidade e análise um tanto mais profunda que a divulgada pelos “economistas destros” dos Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 461 telejornais da TV aberta. Acredita-se, portanto, no caráter emancipador do ensino de História. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Referências BEZERRA, Holien Gonçalves. Ensino de história: conteúdos e conceitos básicos. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: contexto, 2005. BITTENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004. Página | 462 BRASIL. Decreto nº 7.397. Institui a Estratégia Nacional de Educação Financeira - ENEF, dispõe sobre a sua gestão e dá outras providências. DF, Brasília, 22 de dezembro de 2010. COMITÊ NACIONAL DE EDUCAÇÃO FINANCEIRA (CONEF). Educação financeira nas escolas: ensino fundamental. Brasília: CONEF, 2014 LIA, Cristine Fortes. COSTA, Jéssica Pereira. MONTEIRO, Katani Maria Nascimento. A produção de material didático para o ensino de História. Revista Latino-Americana de História. Vol. 2, nº6, agosto, 2013, p.40-51. MONTEIRO, Ana Maria. RALEJO, Adriana Soares. CICARINO, Vicente. “Brasil: uma história dinâmica”: desafios didáticos no ensino de história. In: MONTEIRO, Ana Maria. GABRIEL, Carmen Teresa. ARAUJO, Cinthia Monteiro de. [Et. Al.]. Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2014, p. 189-208. OLIVEIRA, Alessandro Francisco Trindade de. COSTA, Pierre Alves. A utilização de livros paradidáticos como recursos no ensino de geografia econômica. Voos – Revista polidisciplinar eletrônica da Faculdade Guairacá. Vol.5, Ed.2, dez., 2013, p.04-14. RANGEL, Egon de Oliveira. Dicionários em sala de aula. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de educação básica, 2006. Bios CONVIDAD@S Alcimara Aparecida Föetsch é pós-doutora em Geografia pela Universidade Federal do Ceará – UFC e professora adjunta do Colegiado de Geografia da Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR, Campus União da Vitória. André Bueno é Prof. Adjunto de História Oriental da UERJ. Tem experiência na área de História e Filosofia, com ênfase em Sinologia, atuando principalmente nos seguintes temas: China, pensamento chinês, cultura chinesa, história e filosofia antiga, interações culturais e ensino de história. É o fundador do Projeto Orientalismo, de difusão e pesquisa em História e Cultura Asiática. Coordenou o Curso de História da UNESPAR - União da Vitória [2010-11], e atuou na comissão de planejamento institucional da FAFIUV [2009]. Tem mais de dez livros publicados sobre questões históricas da China, além de traduções e publicações em geral. É membro da Associação Europeia de Estudos Chineses e da Associação Europeia de Filosofia Chinesa; Colaborador no Laboratório de Estudos da Ásia [LEA] da USP; membro do grupo Leitorado Antiguo [UPE]; membro do Alaada Associação Latino Americana de Estudos Asiáticos; membro da Rede Iberoamericana de Sinologia [Ribsi]; membro do LHER - Laboratório de Experiências Religiosas da UFRJ; membro do Council for Research in Values and Philosophy (CRVP); membro do projeto Re-Learning to Be Human for Global Times: The Role of Intercultural Encounters (Iasi, Romênia) Vanessa Cristina Chucailo é doutoranda em História Social pela Unirio e bolsista CAPES. Rodrigo Lima Veloso é mestre em Patrimônio Geopaleontológico pelo Museu Nacional / UFRJ. AUTOR@S Amanda Pereira de Lima é licenciada em Pedagogia pela UFPR (2017), atualmente é mestranda da linha de História e Historiografia da Educação desenvolvendo a pesquisa intitulada “ Formando a gerente do lar: Economia Doméstica na Revista Feminina de São Paulo (1914-1918) ” sob orientação da professora Draª Liane Maria Bertucci no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná. É integrante do núcleo de Estudos e Pesquisas em História da Formação e das práticas Educativas (NUHFOPE) da UFPR. Tem experiência em docência do Ensino Fundamental I, Tutoria EAD e coordenação pedagógica. Anelisa Mota Gregoleti é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e bolsista do CNPq. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 463 Aruanã Antonio dos Passos é doutor em História e docente do Departamento de Ciências Humanas da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) campus Pato Branco. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 464 Avelino Gambim Junior é Bacharel em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC RS) e professor no curso de História Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Bárbara Tompa de Medeiros é graduada em História e especialista em História e Culturas Políticas pela UFMG. Bruna de Oliveira Almeida é graduanda em Direito pela Faculdade Cenecista da Ilha do Governador. Bruna Navarone Santos é bacharel e licencianda em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestranda em Ensino em Biociências e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz. Carlos Eduardo Ströher é licenciado em História, especialista em Ensino de História e Geografia, mestre e doutorando em Educação. Atua como professor de História e Geografia na educação básica. Carolina Rodrigues da Silva é graduada em História e Pedagogia. Mestranda em Desenvolvimento Regional pela UTFPR, campus Pato Branco. Bolsista CAPES. Christian Fausto Moraes dos Santos é professor pós-doutor em História das Ciências, professor da Graduação e Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM), bolsista produtividade do CNPq e orientador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC – UEM). Debora Luana Ribeiro: Graduando em Licenciatura Plena em História, da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus de Porangatu. Diego Cavalcanti de Santana é mestrando em Ciências Sociais no PPCIS/UERJ. E-mail: diego.dimassantana@gmail.com Edivaldo Rafael de Souza é Graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas – UNIPAM; pós-graduado em Metodologia do Ensino de Sociologia pelo Instituto Superior de Educação Ateneu - ISEAT; atualmente cursa pós-graduação em Biblioteconomia pela Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI. É também professor regente de aulas de História da rede estadual de ensino do Estado de Minas Gerais. E-mail: edivaldorafael007@gmail.com Elenice Alves Dias Borges é graduada em Administração. Atualmente é acadêmica do curso de Licenciatura em História na UNICESUMAR. Fabiana Wentz é mestranda do Mestrado Profissional em Letras, da Universidade Feevale. Fábio Júnio Mesquita é Pedagogo pela FACISA-BH e Mestrando em Educação pela UEMG na linha de pesquisa Culturas, Memórias e Linguagens em Processos Educativos (Bolsista CAPES). Fernando Cesar Arnoni é mestrando em História pelo PPGH da Unioeste Campus de Marechal Cândido Rondon – PR, linha de pesquisa Trabalho e Movimentos Sociais, sob a orientação da Professora Dra. Aparecida de Souza Darc. Glauber Paiva da Silva é Doutorando em História pelo programa de PósGraduação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e Mestre em História pela mesma instituição. Possui graduação em História pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e participa do Núcleo de Pesquisa e Extensão em História Local (NUPEHL) da Universidade Estadual da Paraíba como pesquisador vinculado a outras instituições na linha de pesquisa: Espaço, Cultura e Sociabilidades. Atualmente desenvolve pesquisa na área de História Cultural, com ênfase em Festas, Lazer, Espaços, Identidade e Cultura Nordestina. Este artigo é um fragmento da minha dissertação de mestrado intitulada “Práticas e representações nordestinas na musicografia de Jackson do Pandeiro (1953-1981)”. Glayson Castro da Silva. Graduado em Licenciatura plena em História: FACULDADES INTEGRADAS BRASIL AMAZÔNIA - FIBRA. Isabele Fogaça de Almeida é Mestranda em História, Identidade e Cultura na UEPG. Jacqueline Ferreira Dias é graduando de Licenciatura em História na Universidade de Pernambuco –UPE (Campus Petrolina). Orientador: Prof. Dr. Joachin de Melo Azevedo Sobrinho Neto(UPE-Campus Petrolina). É integrante do GEHARTE- Grupo de estudo de História e Arte da UPE/Petrolina. Bolsista da CAPES, pelo programa Residência Pedagógica. Janaina Mendes da Silva é graduanda em Licenciatura Plena em História pela Universidade de Pernambuco- UPE (Campus Petrolina). Orientador: Prof.Dr. Joachin de Melo Azevedo Jelly Juliane Souza de Lima é Licenciada em História pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e mestra em Arqueologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Jessica Caroline de Oliveira, licenciada em História pela Universidade Estadual do Paraná, Pós-Graduada em História e Cultura Afro-brasileira pela Universidade Cândido Mendes, Pós-Graduada em História, Cultura e Arte pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, onde também obteve o título de Mestra em História, Cultura e Identidade, Doutoranda em História, Poder e Práticas Sociais pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná Jéssica Mayara Santos Sampaio é graduada em História pela Universidade Estadual do Maranhão e Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História (PPGHIST) da Universidade Estadual do Maranhão. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 465 Leandro Santos Costa é Pós-graduando lato sensu Fenomenológicos e Hermenêutica pela Faculdade Unyleya. em Problemas Leonardo Paiva Monte é mestre em História Social [USP]. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 466 Libiane Karina Orth é acadêmica do Curso de Licenciatura em História na Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR Campus de União da Vitória. Lucas Rafael Santos Costa é professor da Rede Estadual de Educação do Piauí (SEDUC-PI). Luciano Araujo Monteiro é Historiador, formado pela UNIFESP, mestrando pelo departamento de História da UNIFESP e pós-graduando em Gestão Pública pela UNIFESP. Atua como Assistente de Gestão e Políticas Públicas pela Autarquia Hospitalar Municipal de São Paulo (AHM). Luciano José Vianna é Professor Adjunto de História Medieval da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores e Práticas Interdisciplinares (PPGFPPI) da Universidade de Pernambuco/campus Petrolina. Doutor em Cultures en contacte a la Mediterrània pela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB). Membro do Institut d’Estudis Medievals (UAB-IEM). Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística (UPE/campus Petrolina). Luiz Henrique Silva Moreira é licenciado em História pela Universidade Estadual do Paraná. Atualmente é aluno do Programa de Pós-Graduação, de nível mestrado, da Universidade Federal do Paraná pela linha de pesquisa Cultura e Poder. Makchwell Coimbra Narcizo, Graduado e Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás e Doutorando em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Manoel Adir Kischener é Bacharel e Licenciado em História, Mestre em Desenvolvimento Regional e Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Márcia Rohr Welter é mestranda em Processos e Manifestações Culturais, pela Universidade Feevale, bolsista PROSUC/CAPES, e graduada em Letras Licenciatura - Habilitação Português, pela UNISINOS. Marcos de Araújo Oliveira é graduando em Licenciatura em História na Universidade de Pernambuco – UPE (Campus Petrolina). Orientador: Prof. Dr. Luciano José Vianna (UPE – Campus Petrolina). É integrante do Spatio Serti – Grupo de Estudos e Pesquisa em Medievalística da UPE/Petrolina. Marcos Rafael da Silva é Doutor em História Social pela USP. Professor dos Cursos de Arqueologia e História da Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES – Santos/SP. Maria de Lourdes Bernartt é doutora em Educação Brasileira, docente do Departamento de Ciências Humanas da UTFPR Campus Pato Branco e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional- PPGDR/UTFPR. Maria Juliana de Freitas Almeida: doutoranda do Programa de Pós Graduação em História (PPGH) da Universidade Estadual de Goiás (UEG); Mestre me Ciências Sociais e Humanidades pelo programa TECCER (Territórios e Expressões Culturais do Cerrado) da Universidade Estadual de Goiás (UEG); docente efetivo da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus de Porangatu. Marina Fares Ferreira é graduada em História, mestre em Mediação da Cultura e do Patrimônio pela Université de Avignon et Pays de Vaucluse, e mestranda no Programa de Pós-graduação em Artes da UEMG. Max Lanio Martins Pina é doutorando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (PPGH/UFG), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) e docente efetivo da Universidade Estadual de Goiás (UEG). Maycon Junio Gonçalves e Karine Rodrigues Firmino são Discentes do Curso de História da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Melissa Jéssica Beleza Souza é acadêmica do 6∘ período do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA. Nathália Moro é graduada pelo curso de História da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Nikolas Corrent é Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Membro do grupo de pesquisa de Estudos em História Cultural da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Graduado em Filosofia Licenciatura (2018) pelo Centro Universitário de Araras Dr. Edmundo Ulson (UNAR), História Licenciatura (2016) pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA) e Ciências Sociais Licenciatura (2015) pela Faculdade Guarapuava (FG). Especialista em Docência do Ensino Superior (2018) e Educação a Distância com Ênfase na Formação de Tutores (2018) pela Faculdade São Braz (FSB); Gestão da Educação do Campo (2017) pela Faculdade de Administração, Ciências, Educação e Letras (FACEL); Educação Especial e Inclusiva (2016), Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia (2016) e Ensino Religioso (2015) pela Faculdade de Educação São Luís (FESL). Professor de Sociologia contratado pela Secretaria de Educação do Estado do Paraná e leciona as disciplinas de Filosofia, História e Sociologia no Colégio Imaculada Virgem Maria e Sociologia no Colégio São José, ambos em Prudentópolis/PR. Pedro Aurélio dos Santos Luiz é mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 467 Priscila Lopes d’Avila Borges é doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana, bolsista da FAPERJ e professora de História na rede privada do Rio de Janeiro. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 468 Rafael Souza Ferreira atualmente é discente do curso de Licenciatura em História, na Universidade Federal do Pará (UFPA). Também tem formação na área de Artes, graduado em Licenciatura em Dança, na mesma instituição. Este artigo é resultante de pesquisa de bolsa PIBIC, com fomento do CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Francivaldo Alves Nunes, da faculdade de História UFPA-Campus Ananindeua. Raildis Azevedo Avelino, Mestranda em História Cultural e Patrimonial pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Raimundo Nonato Santos de Sousa é acadêmico do 6∘ período do curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual do Maranhão - UEMA, pesquisador-bolsista PIBIC-FAPEMA e pesquisador-colaborador UNIVERSALFAPEMA. Renata Linhares de Araújo, graduanda em história pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rodrigo Conçole Lage é graduado em História (UNIFSJ), especialista em História Militar (UNISUl) e professor de história da SEEDUC-RJ. Rodrigo de Souza Pain é doutor em Ciências Sociais, na área de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA-UFRRJ) e Professor Adjunto de Sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rodrigo Henrique Araújo da Costa está professor efetivo de História da Rede Municipal de Educação, Graduado em História pela UFPB, Especialista em História pela Faveni/Rede Futura, Mestre pelo PPGH/UFPB e doutorando pelo PPGHE/USP. Agradeço ao Prof. Dr. Alexandre Macchione Saes. Rodrigo Luis dos Santos é doutorando em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (bolsista PROSUC/CAPES), mestre e graduado em História pela mesma instituição. Email: rluis.historia@gmail.com. Sandro Ambrósio Alves, Mestre em Ensino de História pela UFMT (ProfHistória). Simone Aparecida Quiezi é Professora de História da rede Estadual do Paraná e aluna regular do Programa de Pós-graduação Mestranda em História (UEM/PR). Graduada e Especialista em Geografia (UEPG/PR), Filosofia (UEL/PR), Normal Superior e Pedagogia (UEM/PR). Orientada no PDE (UEL) e no Mestrado (UEM) pelo Professor Dr. Gilmar Arruda (UEL/UEM/PR). Taís Cristina Melero é Graduanda em História pela Universidade do Sagrado Coração (USC) e Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Talita Mesquita graduada em História pelo Centro Universitário de Belo Horizonte Tallita Stumpp Moreira é graduanda em Licenciatura em Letras pela Universidade Estacio de Sá e em Licenciatura em Biologia pela Universidade Estadual do Norte Fluminense através do consórcio CEDERJ. Desenvolve pesquisas acerca da relação entre narrativas e cientificidade. Tathianni Cristini da Silva é Doutora em História Social pela USP, atualmente no Pós-Doutorado pela mesma instituição. Professora dos Cursos de Arqueologia, História e Pedagogia da Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES – Santos/SP. Taynara Zulato Rosa é Graduanda em História pela Universidade do Sagrado Coração (USC) e Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Tatiane Kaspari é Doutoranda e Mestra em Processos e Manifestações Culturais, pela Universidade Feevale, e professora substituta de Letras no IFRS – Campus Feliz. Vladimir Ferreira Gama é graduado em Comunicação Social, cursa Mestrado em Políticas Públicas pela Universidade de Mogi das Cruzes, é docente na Universidade Braz Cubas e foi orientador do trabalho de conclusão de curso que deu origem ao presente artigo. Willian Roberto Vicentini é mestre em Educação e História e doutorando em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná, docente da Faculdade Educacional de Colombo e da rede pública estadual de ensino. Valdir Pimenta dos Santos Junior: Licenciatura e Bacharelado em História (2002-2005), Especialização em História Social (2006-2007), Mestrado em História Social (2007-2010). Atualmente sou doutorando no Programa de Educação e História. Toda a minha formação e atual doutoramento pela Universidade Estadual de Londrina-PR. Vânia Alves: Graduação em História, Mestrado em História pela USS/RJ e Doutorado em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO. Professora do curso de História da Universidade do Estado de Minas Gerais, UEMG. Walace Ferreira é doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ e Professor Adjunto de Sociologia do CAp-UERJ. E-mail: walaceuerj@yahoo.com.br. Wendell Presley Machado Cordovil é graduando de Licenciatura em História pela Universidade Federal do Pará. Bolsista PIBIC do Projeto “Questionário de Educação Ambiental aos estudantes das escolas de Ananindeua”, financiado pela UFPA com orientação do Prof. Dr. Wesley Oliveira Kettle. Werbeth Serejo Belo é Doutorando em Estudos Contemporâneos no Centro de estudos Interdisciplinares do Século XX/Universidade de Coimbra Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 469 (CEIS20/UC). Mestre e licenciado em História pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Integrante do Núcleo de Pesquisa em História Contemporânea – NUPEHIC. Bolsista CNPQ pelo INCT – Proprietas. Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 470 Aprendendo História: DIÁLOGOS TRANS VERSAIS Página | 471